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Universidade do Estado do Pará

Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica


Pró-Reitoria de Graduação
Centro de Ciências Sociais e Educação
Curso de Licenciatura em Pedagogia

DISCIPLINA
LITERATURA INFANTO-JUVENIL

Organizadora:
Josebel Akel Fares

Belém
2018
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Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica – PARFOR

Material organizado para o desenvolvimento da Disciplina LITERATURA INFANTO-


JUVENIL no Curso de Licenciatura em Pedagogia, a ser ofertado por meio de convênio
firmado entre o Ministério da Educação - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior – MEC/CAPES e a Universidade do Estado do Pará – UEPA.

Universidade do Estado do Pará

Profº Dr. Rubens Cardoso da Silva


Reitor

Profº Dr. Clay Anderson Nunes Chagas


Vice-Reitor

Profª. Ma. Ana da Conceição Oliveira


Pró-Reitoria de Graduação (PROGRAD)

Profª. Dra Hebe Morganne Campos Ribeiro


Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação (PROPESP)

Profº. Me. Carlos Jose Capela Bispo


Pró-Reitoria de Gestão e Planejamento (PROGESP)

Profª. Dra. Mariane Cordeiro Alves Franco


Pró-Reitoria de Extensão (PROEX)

Profº. Me Anderson Madson Oliveira Maia


Diretora do Centro de Ciências Sociais e Educação

Profº. Dr Antonio Sérgio Silva de Carvalho


Coordenador Geral do PARFOR-UEPA

Profª. Ma Izabel Cristina Borges Corrêa Oliveira


Coordenador Adjunto do Parfor

Profª. Ma Ceila Ribeiro de Moraes


Coordenadora do Curso de Pedagogia
3

APRESENTAÇÃO
Caríssimos discentes,
O material que agora recebem faz parte da disciplina Literatura Infantil e Juvenil, que
desenvolveremos presencialmente em uma semana. Nele temos o plano de ensino e alguns dos
textos com os quais trabalharemos na disciplina.
A disciplina estuda a formação do leitor e aponta para a diversidade da produção literária
dirigida à infância e ao jovem. Então, organizamos o conteúdo em três secções: A Voz e a
Literatura; A Literatura Infantil e Juvenil; O Leitor e o Livro. A primeira parte foca os textos orais a
partir do entendimento de que essa literatura é a primeira da criança e a fonte de origem dos
demais textos literários. Na segunda parte, enfatizaremos os conceitos fundamentais, gêneros e a
inter-relação da literatura com outras linguagens. Na última parte, o estudo se voltará às questões
relativas às instituições educativas e ao processo de formação de leitura.
A metodologia de trabalho se dará de forma teórico-prática. O estudo teórico tomará por
base os textos apresentados nesta brochura e de outros suplementares. Os artigos-ensaios
constantes neste material são frutos de pesquisa de professores da disciplina da UEPA, bem
como de estudos antológicos de professores de outras Universidades brasileiras.
Assim, em Scherazade ou do Poder da palavra, Adélia Menezes, a partir da protagonista d’
As mil e uma noites, discute a força da palavra oral em diferentes civilizações. Em Saberes
poéticos em signos verbais: espaços de leitura e de escrita, estudo o assunto a partir da pesquisa
em história oral Memória de Belém de Antigamente. O artigo Era uma vez uma história, de
Renilda Bastos, apresenta os contos de fada. Histórias e imagens de Joséa Fares faz um passeio
na história da imagem no texto infantil. Em A escolarização da literatura infantil e juvenil, Magda
Soares aponta como a literatura é tratada na escola. Aliado a estes e outros textos teóricos, a
disciplina analisará livros infantis, bem como o texto em outros suporte como cds, dvds. Por outro
lado, pretendemos desenvolver experiências de construção de textos verbais e de imagens pelos
alunos.
Diariamente, avaliaremos as atividades desenvolvidas e, se necessário, reprogramaremos
o roteiro previsto de forma a tornar as aulas bem produtivas e criativas, com vista a ação-reflexão-
ação sobre o fazer docente-discente de cada participante.
Então, mãos á obra e bom trabalho pra nós!
Belém, novembro de 2012
Profª Josebel Akel Fares
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ


CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E EDUCAÇÃO
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO ESPECIALIZADA

INFORMAÇÕES BÁSICAS PARA O PLANO DE ENSINO DO PROFESSOR

I – IDENTIFICAÇÃO
CURSO: PEDAGOGIA
DISCIPLINA: LITERATURA INFANTO-JUVENIL
CH: 80

II – EMENTA
O texto literário infantil e juvenil como importante instrumento de formação de leitores. As formas
de expressão da Literatura Infanto-Juvenil. A importância da leitura de textos literários para o
desenvolvimento do senso crítico e formação da dimensão estética do sujeito.

III – OBJETIVOS
Contribuir para a discussão da necessidade da formação do leitor desde a infância, a partir de
textos literários infantis e juvenis e teóricos, que reflitam sobre a situação da leitura no Brasil e que
provoquem no aluno a fruição poética.

IV – CONTEÚDOS
Unidade I
A Voz e a Literatura
1.1. Memória, tradição e esquecimento;
1.2. Narrador e performance;
1.3.Oralidade, leitura e escritura.
Unidade II
A Literatura Infantil e Juvenil
1.1. Literatura Infantil: história, características e conceituação.
1.2. Os gêneros literários: prosa poética, poesia;
1.3. O texto e a imagem
1.4. Literatura infantil e outras formas de expressão
Unidade III
O Leitor e o Livro
3.1- A Literatura Infantil e a Educação
3.2-A Literatura Infantil e a formação de leitores
3.3- Espaços de leitura

V – METODOLOGIA
As aulas terão o caráter teórico-prático, por meio de sessões de leitura de textos teóricos e infantis
e juvenis, de filmes e de audição de músicas; rodas de histórias, aulas expositivas, seminários,
experiências de pesquisa de campo, elaboração de textos e livros artesanais. Todos os trabalhos
poderão ser desenvolvidos individualmente e em grupo.

VI – RECURSOS
- Didáticos: livros infantis e juvenis; cd de música, filmes; cdroom, (resp: docente e discente);
Coletânea de texto da disciplina (resp: Parfor/Uepa). Para projeção: datashow, computador com
entrada para cd/dvd, caixa de som (responsável: Parfor/ Uepa); Para atividades de elaboração e
confecção de livros artesanais: papéis diversos; canetas coloridas; revistas, cola, tesoura
(responsáveis: alunos e, se possível, Parfor/ Uepa ).

VII – AVALIAÇÃO
A avaliação terá um caráter processual, ao final de cada unidade. Serão feitas individualmente e
em grupo, a partir dos trabalhos práticos desenvolvidos e da produção escrita concernente aos
textos lidos em sala ou em casa: fichamentos, resenhas, artigos.
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TEXTO I

Scherazade ou do poder da palavra1


Adélia Bezerra de Menezes

As 1001 Noites em geral nos chegaram através de antologias infantis. Conhecemos as


histórias: “Simbad, o Marujo”, “Aladim e a Lâmpada Maravilhosa”, “O Pescador e o Gênio” etc.
Mas tais antologias acabaram por privar o leitor do plano geral da obra – a estrutura de encaixe
dos contos, embutidos uns dentro de outros – e, sobretudo, da poderosa figura de Scherazade,
que vence a morte através da Literatura. Trata-se da maior apologia da Palavra, de que se tem
conhecimento. E analisar o papel da contadeira de histórias significará abordar o problema das
relações da mulher com a Literatura, da mulher com a Palavra, da mulher com o símbolo e com o
corpo.
Scherazade é personagem da narrativa que inicia e termina as 1001 Noites, servindo-
lhes de moldura; é a partir dela que se dará o pretexto para os demais contos. Trata-se da história
de Schariar, Sultão de todas as Índias, da Pérsia e do Turquestão, que decobre, por intermédio de
seu irmão, Imperador da Grande Tartária, que sua mulher o traía. E ele toma conhecimento disso
no mesmo momento em que o irmão lhe revela que também fora traído pela mulher. A conclusão
é inevitável: “Todas as mulheres são naturalmente levadas pela infâmia, e não podem resistir à
sua inclinação”. O Sultão, o estupor da mais funda desilusão afetiva, propõe ao irmão que ambos
abandonem seus estados e toda sua glória, e saiam pelo mundo para, em terras estranhas,
melhor esconderem seu comum infortúnio. O irmão aceita, com a condição de que voltariam se
encontrassem alguém mais infeliz do que eles próprios. Seguem caminho, disfarçados, e chegam
à beira-mar, onde são surpreendidos por algo que parece um maremoto. Sobem a uma árvore,
escondem-se entre os galhos, e presenciam uma cena na qual um gênio (um djinn) tira do fundo
do mar uma grande caixa de vidro, fechada a 4 chaves, onde estava encerrada uma bela mulher,
quase adolescente, que ele libera da caixa. Era a sua mulher que ele roubara para si no dia de
suas núpcias, e que mantinha presa. Declarando-se cansado, o gênio fala à mulher que gostaria
de deitar a cabeça nos seus joelhos, e adormece. Os dois irmãos acabam por ser descobertos no
meio das ramagens de seu esconderijo pelos olhos perscrutadores da jovem. Ela retira
delicadamente a cabeça do gigante do colo, vem para debaixo da árvore e propõe aos dois irmãos
que tenham relação com ela. Aterrorizados pela presença do gênio, eles inicialmente se recusam,
mas ela os força exatamente com o argumento de que, se não dormissem com ela, ela acordaria
o gênio. Obrigados, eles satisfazem sua vontade, primeiro o mais velho, depois o caçula. Ao fim, a
jovem pede a cada um o seu anel. E diante de seus olhos estupefatos, abre uma pequena bolsa

1
In MENEZES, Adélia Bezerra de. II – Scherazade ou do poder da palavra. In: MENEZES, Adélia Bezerra
de. Do poder da palavra: ensaios de literatura e psicanálise. São Paulo: Duas Cidades, 1993. p. 39-56
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que continha outros 98 anéis. Conta que esses anéis Foram dos homens que já a tinham
possuído. “Com os dois de agora, diz ela, completo uma centena”. “Uma centena de amantes,
malgrado a vigilância ciumenta e a precaução do gênio, que me quer só para si”. Ele se esmerava
em encerrá-la numa caixa no fundo do mar, mas ela não deixava de enganá-lo... “Vede que,
quando uma mulher tem um desejo, não há marido que possa impedir sua execução.” – dizendo
isso, ela senta e coloca de novo a cabeça do gênio, que continuava a dormir, tranquilamente em
seu colo.
Os dois irmãos voltam pelo caminho de onde tinham vindo, comentando que nada no
mundo ultrapassava a malícia das mulheres, e que, nesse assunto, até aquele gênio de poderes
sobrenaturais era mais infeliz do que eles. Convencidos da perfídia feminina, decidem retornar
cada um para o seu reino. O Sultão Schariar formula um plano, que lhe permitiria manter sua
honra inviolavelmente preservada, sem que fosse obrigado a prescindir de mulher: consistia em
dormir a cada noite com uma virgem, e no dia seguinte, ao acordar, mandar matá-la, pelo seu
grão-vizir. E escolheria uma nova para a noite seguinte, e assim por diante. A cada dia, uma
jovem casada e morta. E o início dessa prática trouxe à cidade a mais intensa das desolações.
Ora, o grão-vizir, que devia ao Sultão a mais cega obediência e que, malgrado sua
vontade, a cada noite apresentava ao Sultão uma nova virgem, e a cada manhã, malgrado sua
repugnância era obrigado a matá-la, tinha duas filhas: Scherazade e Dinerzade. É assim que,
textualmente é apresentada Scherazade, na versão de Galland:
... tinha uma coragem maior do que se teria de esperar do seu sexo, e um espírito de uma
admirável penetração. Tinha muita leitura e uma memória tão prodigiosa, que nada lhe escapava,
de tudo que ela havia lido. Aplicara-se com todo sucesso ao estudo da filosofia e da medicina, e
das belas-artes; e fazia versos melhores que os mais célebres poetas de seu tempo. Além disso,
era provida de uma grande beleza, e uma muito sólida virtude coroava todas essas belas
qualidades. (G. I, 35)

Dessa descrição ressaltam primeiro as qualidades “intelectuais” que fazem de


Scherazade uma mulher extremamente inteligente, e que se cultivava (lia, estudava, fazia poesia).
Mas suas características propriamente físicas – que não são dadas em detalhe, e vêm depois, e
só depois, das intelectuais, também não são descuradas: trata-se de uma bela mulher.
Pois bem: essa mulher altamente interessante que parece ser Scherazade comunica um
dia ao grão-vizir seu pai que queria tornar-se mulher do Sultão:

Desejo pôr um termo a essa barbárie que o Sultão exerce sobre as famílias desta cidade. Quero
dissipar o temor que tantas mães têm de perder suas filhas de uma maneira tão terrível. (...) Se eu
perecer, minha morte será gloriosa; se tiver êxito, prestarei um serviço importante à minha pátria.

E combina com a irmã seu plano: Dinerzade deveria deitar-se no quarto nupcial (sob
pretexto de que, ainda uma vez, elas pudessem passar uma noite próximas), e uma hora antes do
romper do dia, deveria acordar Scherazade e solicitar-lhe que contasse uma de suas histórias. É o
que se passa: nessa noite, depois de ter dormido com o Sultão, que a desvirgina, Scherazade é
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despertada pela irmã, que lhe pede uma história – talvez pela última vez. Depois de obtida a
permissão do Sultão, Scherazade começa a narrar. E no auge do suspense, quando a ação esta
para ser definida, e a curiosidade do seu real ouvinte aguçada, vendo que a aurora se anunciava,
suspende sua narrativa:

Scherazade, nesta passagem, percebendo que era dia e sabendo que o Sultão se levantava bem
cedo para fazer suas preces e ir gerir seus negócios de Estado, parou de falar. (G. I, 46)

Diante da observação da irmã, de que essa história era maravilhosa, Scherazade lhe
afirma que a continuação seria mais maravilhosa ainda e que, se o Sultão quisesse deixá-la viver
mais um dia, que lhe desse permissão para acabá-la na noite seguinte. Scherazade ganha um dia
de vida. Na segunda noite, quando a irmã a acorda, Scherazade “satisfaz a curiosidade do
Sultão”; acaba a história iniciada e começa uma nova, interrompida no auge do suspense, ao
romper a aurora. E assim, noite após noite, o Sultão declara desejar ouvir a história iniciada na
véspera, e a deixa viver por mais um dia. Não há garantia, nem Scherazade a pede: ela
consegue, à prestação, dia a dia, ganhar um dia de vida. Ela aceita assumir o risco absoluto:
arrisca perder a vida, para recuperar ao Sultão uma imagem feminina, perdida pela infidelidade.
Há algo de épico no seu gesto: uma mulher que, através da Palavra, salva a raça feminina.
E quando chega a milésima primeira noite, o Sultão se rende:

1001 noites tinham transcorrido nesses inocentes divertimentos; elas tinham mesmo ajudado
muito a diminuir as prevenções iradas do Sultão contra a fidelidade das mulheres; seu espírito
tinha-se abrandado; ele estava convencido do mérito e da sabedoria de Scherazade; lembrava-se
da coragem com a qual ela se tinha exposto voluntariamente a tornar-se sua esposa, sem
apreensão quanto à morte a que se sabia destinada no dia seguinte.
...
E diz o Sultão: “Bem vejo, amável Scherazade, que sois inesgotável em vossas narrativas; há
muito me divertis; pacificaste minha cólera, e eu renuncio de bom grado em vosso favor à lei cruel
que eu me tinha imposto... Desejo que sejais considerada como a libertadora de todas as moças
que deveriam ser imoladas ao meu justo ressentimento. (G. III, 439)

Isso, na versão de Galland. Na versão de Mardrus2 (por muitos considerada a “tradução


obscena” das 1001 Noites), as coisas são apresentadas de uma maneira bem mais concreta. Em
Mardrus, Scherazade apresenta ao Sultão ao fim da 1001ª noite, os filhos que, ao longo desses
quase 3 anos, ela tivera com ele. A relação sexual entre o Sultão e Scherazade, que Galland
omite, Mardrus explicita: ganha aqui inequívocas provas, ganha concretude.
Mas voltemos um instante à caracterização inicial de Scherazade. Se há algo que a
tipifica sobremaneira, é sua prodigiosa memória. Nas 1001 Noites podemos vislumbrar as ligações
da narrativa com o infinito, da Memória com o infinito – aspecto esse que se tornará bastante
evidente se formos situar a Memória na sua dimensão mítica. Com efeito, no Panteão grego, a

2
Utilizo aqui basicamente o texto de Antoine Galland (1717),em edição Garnier/ Flammarion, Paris, 1965, recorrendo
também por vezes, ao texto de Mardrus (1899), publicado por Robert/ Laffont, Paris, 1985.
8

Memória, Mnemosyne, é uma deusa, filha de Urano e de Gaia, irmã de Chronos e de Okeanos – a
memória, filha do céu e da terra, irmã do tempo e do Mar: todas, metáforas de infinitude...
E a Memória é para os gregos a mãe das Musas, mãe das divindades responsáveis pela
inspiração. ''Mnemosyne'' preside à função poética.
Essa deusa feminina tem tudo a ver com Scherazade. Mnemosyne revela as ligações
obscuras entre o “rememorar” e o “inventar”: a musa inspiradora da invenção poética é, ela
própria, filha da Memória. Sherazade, a contadeira de histórias, não era apenas uma espécie de
repositório vivo das histórias de seu povo, não apenas aquela que “transmitia” histórias contadas
por outros; na sua caracterização inicial, fora-nos dito que ela também escrevia “versos melhores
que os dos mais célebres poetas seu tempo”. Ela também criava.
E assim, noite após noite, Scherazade vai, com a ajuda da Memória, conduzindo adiante
o fio de suas histórias: vai tecendo as narrativas. Não é um fio linear: é uma teia, uma trama. Infin-
dável, infinita. Uma história dará margem a uma outra história que, embutida dentro dela
desembocará numa terceira, que contém em si o germe de uma quarta etc., etc. Na acepção do
último tradutor ocidental das 1001 Noites, Khavam, Scherazade é “La Tisserande .desNuits” – a
tecelã das noites.
Evidentemente, essa trama, essa rede narrativa eram frutos da astúcia de Scherazade:
serviam para enredar o Sultão. Essa trama narrativa (trama quer dizer também procedimento
ardiloso!) no limite significava... tramoia: a astúcia, velha arma dos fracos contra os fortes. E arma
feminina, muitas vezes.
Scherazade, a astuciosa, é a mulher que tece narrativas intermináveis, e que nesse fio
prende o seu homem, e vence seu poder. E nessa linha de astúcias, e de fios, e de tramas, há
toda uma tradição (é verdade que de outra cultura, mais uma vez, a grega) de mulheres
fiandeiras3. Penso sobretudo em Penélope, de quem já se disse que é tão astuciosa quanto seu
marido, o astuto Ulisses, tecendo infindavelmente o manto com o qual afastará os pretendentes à
sua mão, enquanto espera a volta do seu homem. Mas há também Aracnê, que desafia a deusa
Atena na arte da tapeçaria e acaba transformada em aranha; e Ariadne, que com seu fio ajuda
Teseu a vencer o Labirinto; e há as Parcas, que tecem a trama dos destinos humanos: a
tecelagem é uma arte feminina. Num estudo sobre a Feminilidade, Freud tece uma engenhosa
explicação: a técnica de traçar e tecer – apanágio das invenções femininas – teria como “motivo
inconsciente” o pudor4.
Scherazade e Penélope, astuciosas e fiéis. Trata-se, aqui, do mesmo tema da fidelidade.
Não nos podemos esquecer de que, na história de Scherazade, é a fidelidade que está em jogo: o
desígnio cruel que o Sultão se havia imposto, de que sua mulher por uma noite fosse morta ao

3
Cf. Gilbert Lescault, Figurées, Défigurées (Petit Vocabulaire de laFéminitéReprésentée, Union Générale d’Editions,
Paris, 1977), em que, no vocábulo “Fileuses” são elencadas várias mulheres mitológicas que lidam com o fio.
Agradeço a indicação desse autor a Sonia Rezende.
4
Freud, “A Feminilidade”, Conferência XXXIII das Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, 1933, vol.
XXII das Obras Completas. Imago, p 162. A referência a esse ensaio foi sugerida pela leitura de Gilbert Lescault:
Figurées, Défigurées, op. cit.
9

romper da aurora não tem outro objetivo senão preservar, ainda que ao preço da morte, a
fidelidade feminina. E ao mesmo tempo, como veremos mais adiante, tal decisão impedia-o de
amar, vedava ao Sultão o amor: matando a mulher com quem dormia a cada noite, impedia-se de
relacionar-se em continuidade, de estabelecer vínculos.
Penélope, Scherazade. Uma tece infindavelmente o manto, dia após dia, no meio dos
príncipes, e sua fidelidade é condição para o reencontro; outra tece infindavelmente, noite após
noite, a teia de sua narrativa: sempre em suspense, sempre na terminada. Terminá-la, seria a
morte. Penélope: a fidelidade por um fio. Scherazade: a vida por um fio. A falta de término, em
ambas, é uma metáfora do infinito. Em ambos o casos, na tecelagem que praticam, é a fidelidade
que está em questão. No caso de Penélope, a trama feita e desfeita é seu ardil, para afastar os
pretendentes reservar-se para a volta de Ulisses. No caso de Scherazade, a construção de sua
teia narrativa não apenas ardil para ganhar mais um dia de vida, mas seu fio narrativo refaz, ponto
a ponto, os farrapos do coração do Sultão, dilacerado pela traição feminina. Scherazade tece o
tecido de suas histórias, conduz o fio da narrativa. A trama da narrativa não é um fio: é uma teia,
com todas as suas ramificações, e nessa rede ela enreda o Sultão. Não é por acaso que ela é a
imagem mesma da sedução. Penélope.

... de dia, tecia uma grande tela e de noite desfazia a sua obra à luz das tochas. Foi assim que,
durante três anos, ela soube esconder sua astúcia e enganar os Aqueus (Odisseia, cap. XXIV).

Penélope, Scherazade: uma tece de dia, outra tece de noite. Três anos:
aproximadamente 1001 noites. Fidelidade e sedução articuladas. Em ambas, uma mulher vence o
poder masculino.
Qual é, exatamente, a astúcia de Scherazade?
A primeira resposta é que Sherazade não apenas joga com a imperiosa necessidade de
ficção que habita o coração de cada homem, mas teria inventado também a técnica do suspense:
inicia uma narrativa, aguça a curiosidade de seu ouvinte e... não a satisfaz – naquela noite. O
desenlace seria narrado na próxima noite, se o Sultão lhe concedesse mais um dia. Aos poucos,
vão sendo introduzidas referências às reações do Sultão, e, especificamente, à sua curiosidade.
Assim, termina, por exemplo, a noite XXXIII:

Sherazade preparava-se para prosseguir seu conto; mas, percebendo que era dia, interrompeu
sua narrativa. A qualidade dos novos personagens que a sultana acabava de introduzir em cena
tendo aguçado a curiosidade Schariar, e deixando-o na espera de algum acontecimento singular,
o príncipe esperou a noite seguinte com impaciência (G. I, 25).

Ou então:
O Sultão, persuadido de que a história que Scherazade tinha a contar seria o desenlace das
precedentes disse consigo mesmo: ‘É preciso que eu me conceda o prazer completo. Levantou-se
e resolveu deixar viver ainda este dia a sultana (G. I, 216).
10

Satisfazer a curiosidade, para o Sultão, significa prazer. Postergá-la, significa cultura.


Pois uma das coisas que diferenciam o homem do animal é exatamente isso: a capacidade de
postergar a realização do prazer. E assim temos a curiosidade do Sultão extremamente bem
administrada por Scherazade, com sua técnica de suspense. E os textos acima provam o quanto
a quaIidade narrativa de suas histórias, sua qualidade literária, portanto (a saber: introdução
adequada de novos personagens; previsão de acontecimentos singulares; preparação cuidada do
desenlace) conta.
E o interessante é que a curiosidade está presente em 2 níveis, nas 1001 Noites: nesse
primeiro nível, da “macroestrutura”, na história que serve de moldura é a curiosidade que
fundamenta o adiamento da execução da sultana. Mas também, ao nível das histórias contadas,
entre os muitos motivos recorrentes nas narrativas das 1001 Noites, esse motivo da curiosidade
adquire grande importância, dado seu estatuto de desencadeador das ações. Curiosidade =
necessidade imperiosa de conhecer. Aguilhão do saber por experiência. Haveria que se fazer um
estudo antropológico da curiosidade, e do papel que ela desempenha em várias religiões e
mitologias: desde a curiosidade de Eva, atiçada pela serpente, na narrativa mítica do Paraíso, tal
como aparece no Gênesis (“Podes comer de todas as árvores do jardim. Mas da árvore do
conhecimento do Bem e do Mal não comerás...” E o resto a gente sabe: a queda, a expulsão do
Éden, o Paraíso Perdido...), passando pela curiosidade de Pandora, que abre a fatídica caixa de
males que se espalharão por toda a terra, só restando no fundo da caixa a esperança...; até a
curiosidade do curumim que abre o coco de tucumã que encerra noite, fazendo com que a
escuridão se espalhasse pelo mundo, como na lenda indígena brasileira. Sempre a curiosidade,
com o que ela representa de fálico e fáustico, de motor do progresso e de propulsora do espírito
humano, mas também com o que ela comporta de fragilidade: deixar-se vencer pela curiosidade
significa “sucumbir a uma fraqueza”, cair em tentação. Como naquela história que Scherazade
conta ao Sultão, do moço a quem foram franqueadas 99 salas de um castelo, com todas as suas
delícias; mas vedada a abertura da 100ª porta: premido pela curiosidade, ele a abre, e ai começa
a sua perdição. Mas sobretudo, em vários contos das 1001 Noites (como “O Comerciante e o
Gênio”, ou “História dos 3 Dervixes e das 5 Damas de Bagdá”, e muitas outras), é a curiosidade
por uma narrativa a ser feita por uma personagem que lhe salva a vida, inicialmente suspendendo
a execução da sentença e, finalmente, anulando-a. Assim, o mesmo elemento que se encontra,
importantíssimo, a nível da estrutura geral da obra, comparece no detalhe, em numerosos contos.
E Scherazade, o que faz é manipular a curiosidade do Sultão. No entanto, ao longo das
1001 noites processa-se uma evolução. Considera-se Scherazade como a especialista do
suspense. Contudo, isso é só inicialmente verdade: ao longo de suas tantas noites de contadeira
de histórias, ela abandona o suspense, chegando a levar a termo, ao romper da aurora, as suas
narrativas. Mas acena com a próxima... Ela abandonará o recurso do suspense – que tem algo de
um golpe mais ou menos enviesado – um discursusinterruptus – chegando a terminar os contos
11

na mesma noite em que os iniciara. E mesmo prescindindo do recurso do suspense, o Sultão a


deixará viver, mais um dia.
E aqui está a segunda a resposta para a pergunta “em que consiste a astúcia de
Scherazade?”: na realidade, ela lida é com o Desejo. E todos sabemos que o Desejo não tem um
objeto que o aplaque; uma vez cumulado, ele ressurge, desperto do outro, e assim
sucessivamente. Não tem objeto que o supra, que o satisfaça, que o cumule. O que é que o
Sultão queria? Uma nova de história, e por isso Scherazade viveria mais um dia, e depois outro, e
outro. Ela não tenta obter dele, logo de início, que lhe poupe a vida para sempre: consegue dele, a
cada dia, que lhe poupe a vida por aquele dia. Mas ele, também, o Sultão, daria sentido a mais
um dia de sua existência, na espera/ expectativa de algo que o plenifique. A função de
Scherazade era alçar sua vontade, tendê-la para algo por vir. Ela age no sentido de acutilar o
Desejo, de atiçá-lo, de só ilusoriamente aplacá-lo... por uma noite. Uma vez supostamente
aplacado, ele renascerá. O objeto do Desejo está sempre além, sempre adiante, visa sempre um
além que escapa: é isso que nos conta a história de Scherazade e do Sultão de todas as Índias.
E o mundo do Desejo é o mundo do Id, mundo da noite, da magia e da fantasia. O dia
que surge significa que a voz de Scherazade deve-se calar; é de dia que se realizaria sua
execução. Há uma fórmula quase que ritual, que esconde o fio narrativo de Scherazade: quando
rompe o dia, ela se cala, e o Sultão vai “cumprir seus deveres” de chefe de Estado. Há aí um
confronto entre o princípio do prazer e o princípio de realidade: o princípio do prazer cessa com a
luz do dia, quando se impõe a realidade, com o seu cortejo de opressões. As noites são para as
histórias e para o amor; os dias são para o trabalho (e para a morte)
Referi já a situação (presente tanto a nível das histórias que Scherazade conta, quanto
naquela da própria sultana, e que serve de moldura às demais) em que UMA VIDA É TROCADA
POR UMA NARRATIVA. Isso significa um extraordinário apreço pela palavra. Às vezes esse
apreço é expresso materialmente. Numa das histórias que Scherazade conta ao Sultão (“A
História de Ganem”), por exemplo, registra-se o seguinte:
Ele (o califa) achou esta história tão extraordinária que ordenou a um famoso historiador que a
escrevesse, em todos os detalhes. Ela foi em seguida depositada no seu tesouro, de onde várias
cópias tiradas deste original a tornaram pública. (G. II, 420).

As histórias excelentes são guardadas no tesouro real! Estamos numa civilização em


que, literalmente, a palavra vale ouro, em que a história narrada é tesouro.
E ainda, a palavra aqui é mágica. Já repeti várias vezes que, através da Palavra,
Scherazade vence a morte e o Poder. Scherazade, a mulher, instaura um novo tipo de poder. A
força da Palavra radica na magia. A palavra aqui transforma – como no curandeirismo, na magia,
na religião... e na Psicanálise. O conto “Ali-Babá e os 40 ladrões”, por exemplo, é expressivo
disso: trata-se de uma palavra mágica, palavra eficaz, que tem o poder de remover um rochedo, o
poder de fazer abrir a entrada da gruta onde os ladrões guardam seus tesouros: “Abre-te
Sésamo”. Ali-Babá a guarda na memória, com cuidado e respeito, e ela se torna um instrumento
12

de força na sua boca. Mas seu irmão, o invejoso e insolente Cassim, se esquece da palavra certa,
e tenta outras, que não têm, no entanto, a força mobilizadora da palavra mágica. Da palavra
transformadora, que remove rochedos. Ele consegue penetrar na gruta dos ladrões, mas depois
não consegue sair:

... acontece que ele se esquecera da palavra necessária (...) e, em lugar de “Sésamo”, diz: “abre-
te Cevada”; e espanta-se ao ver que a porta, longe de se abrir, permanece fechada. Nomeia
vários outros nomes de grãos, diferentes daquele que era necessário, e a porta não se abre (G. III,
247).

Ele se esquecera da palavra certa, da boa palavra. E acaba perecendo às mãos dos
ladrões, que o pilham preso dentro da gruta.
Pois bem, há algo de mágico na palavra, na história do rei Schariar e da bela
Scherazade, que consegue demover seu coração de pedra. A tentação de um paralelo com a
Psicanálise é bastante grande: essa situação extraordinária em que a Palavra (aquela que é
preferida pelo paciente, e aquela que é ouvida por ele) é palavra eficaz: provoca alterações,
transforma aquele que a recebe. Restaura-se aqui o poder arcaico e mágico da Palavra.
O poeta, o mago e o psicanalista: aqueles que constroem coisas com a palavra, que
alteram a realidade, modificam a essência profunda do ser. E ao lado poeta, do mago e do
psicanalista, a mãe, que conta histórias, a mulher.
A mulher contadeira de histórias: sua influência foi reconhecida por todos aqueles que,
desde a Antiguidade, se preocuparam com o problema da eficácia da Palavra, da força
transformadora da palavra:
Por conseguinte, teremos de começar pela vigilância sobre os criadores de fábulas, para
aceitarmos as boas e rejeitarmos as ruins. Em seguida, recomendaremos às mães que contem a
seus filhos somente as que lhes indicarmos e procurem amoldar por meio delas as almas das
crianças com mais carinho do que por meio das mãos fazem com o corpo (República, Livro II, 377
b).

O grifo, evidentemente, meu, realça a importância extrema que Platão atribui às


narrativas: capacidade de moldar, de plasmar almas. Não seria exatamente isso que Scherazade
faz com o Sultão? Ela plasmou, moldou sua alma, “abrandando o seu espírito”.
Jeanne Marie Gagnebin, num artigo publicado no Folhetim5, articula essa passagem de
Platão a um texto de Walter Benjamin, que se intitula, exatamente, “Narrar e Curar”6. Além da
ligação entre a fala e o gesto, entre a voz e a mão (a que retornarei mais adiante), o texto de
Benjamin aponta, de uma maneira extremamente pertinente, para a cura pela narração (não fosse
esse o seu título) – que é, como todos sabemos, apanágio da psicanálise (“talking cure”) e de
certas técnicas de cura xamanísticas.
Pode-se considerar o Sultãodoente, ferido na sua afetividade, na sua capacidade
amorosa, pela traição feminina; pois bem, nessas longas noites de história, Scherazade vai

5
“Narrar e Curar”, Folhetim, São Paulo, 1 de setembro de 1985.
6
“Erzaehlung und Heilung”, GesammelteSchriften, IV, SuhrkampVerlag, p. 430.
13

exercendo junto a ele um longo processo terapêutico, analítico, pontuado, a cada manhã, pela
interrupção com que ela o remetia á vida real. Ao fim das 1001 noites, o Sultão se declara
“curado”, abandona o “sintoma” e se dá alta:
“Vós pacificastes minha cólera, e eu renuncio de bom grado e, vosso favor, à lei cruel que eu me
tinha imposto”.

E Scherazade cessa suas narrativas.


Num processo analítico, o paciente fala; ao analista, cabe a escuta. Ele também fala,
interpretando; mas o que funda a psicanálise é o discurso do analisando. Pois bem, aqui se trata
de um processo invertido: é a escuta que é transformadora, é a escuta que cura o Sultão.
Falei da psicanálise e também aludi a certos processos de cura xamanistica, que, aliás,
estabelecem com a Psicanálise mais de um vínculo. Lévi-Strauss relata, na Antropologia
Estrutural (no capitulo “L’EfficacitéSymbolique”) um procedimento dos índios Cuna do Panamá,
por ocasião dos partos difíceis: o xamã canta para a mulher grávida, diz palavras ao seu ouvido, e
assim o nascimento da criança é facilitado. Trata-se, como observa o antropólogo, “de uma
medicação puramente psicológica, uma vez que o xamã não toca no corpo da paciente, nem lhe
administra remédios; mas, ao mesmo tempo, é colocado diretamente e explicitamente em causa o
estado patológico e seu centro: diríamos antes que o canto constitui uma manipulação psicológica
do órgão doente, e que é desta manipulação que a cura é esperada”7. Manipulação psicológica:
metáfora expressiva para o processo psicanalítico. E também para aquele processo em que as
narrativas, como queria PIatão, moldam as almas, “com mais carinho do que por meio das mãos
fazem com o corpo”. Mas voltemos a Lévi-Strauss: diz ele que o xamã fornece à sua doente uma
linguagem: “E é a passagem a esta expressão verbal (que permite, ao mesmo tempo, viver sob
uma forma ordenada e inteligível uma experiência atual, mas sem isso, anárquica e inefável) que
provoca o desbloqueio do processo fisiológico, isto é, a reorganização, num sentido favorável, da
sequência da qual a doente sofre o desenvolvimento” (p. 218).
O Sultão se encontra crispado na sua ira de traído, bloqueado na sua capacidade de
amar: Scherazade oferece a ele uma linguagem, na qual esse estado pode exprimir-se.
Scherazade fala, e o Sultão escuta. É como se a perturbação afetiva grave, de que fora
acometido, na sua ira de traído pelas mulheres, só fosse acessível à linguagem simbólica da
poesia e da literatura. E aqui a gente encontra a narrativa restaurada no seu sentido pleno e
primordial, de veículo de experiência humana.
Scherazade oferece ao Sultão uma linguagem, um discurso simbólico que possa atingi-lo,
por inteiriçado e crispado que ele estivesse na sua incapacidade afetiva. Ela oferece ao Sultão o
acesso ao mundo simbólico; oferta-lhe uma linguagem, como queria Lévi-Strauss, “na qual podem
exprimir-se estados não formulados e, de outro modo, não formuláveis”. Não é portentoso que na

7
Cf. capítulo “L’EfficacitéSymbolique”, AnthropologieStructurale, Paris, Plon, 1958, p. 211 e ss.
14

noite 602, o rei Schariar ouça da boca da rainha a sua própria história?”, pergunta-se Jorge Luís
Borges8 extasiado.
Scherazade apresenta a Schariar o nível mítico: apresenta-lhe à consciência conflitos
que o traumatizaram, bloqueando sua capacidade afetiva, de tal maneira que ele possa lidar com
eles. É por isso que ela não expurga de suas narrativas as histórias de adultérios e traições
femininas, não omite casos em que as mulheres enganam a seus maridos; ela não faz ao rei uma
narrativa “ad usumdelphini”; é notável a ausência de censura moral nas suas histórias.
Trata-se aqui, como na psicanálise (e na cura xamanística), de propiciar uma
transformação interior, consistindo numa reorganização estrutural da personalidade: trata-se de
recuperar a capacidade amorosa do Sultão. Pois bem, Scherazade, como na transferência,
propicia ao Sultão que reviva com ela uma experiência afetiva continuada e para isso ela
precisava de tempo (a saber: 1001 noites – o tempo de uma terapia?) e assim resgata sua
capacidade afetiva.
Falei em paralelo com a Psicanálise. Mas trata-se aqui de um paralelismo que,
evidentemente, não exclui as diferenças. Pois há nas 1001 Noites, como aparece em Platão,
como sugere W. Benjamin, uma ligação entre a fala e o gesto, entre a voz e a carícia. Não nos
podemos esquecer de que as narrativas de Scherazade se seguiam às suas noites de amor com
o Sultão e são suas histórias que lhe facultam a possibilidade de dormir próxima noite com ele. É
a narrativa que possibilita o encontro futuro. Já se disse que se Scherazade tivesse oferecido ao
Sultão só o seu corpo, ela teria sido executada, logo após a primeira noite: foi o que, todas as
suas antecessoras fizeram, e todas pereceram. E Scherazade salva não apenas a si própria e a
todas as mulheres em idade de casar do seu povo: ela salva também o Sultão: ela o cura de sua
ira patológica e assassina, e possibilita a ele uma descendência. A persistir no seu plano cruel e
ginecida, o Sultão se privaria para sempre de amar, e de filhos. Scherazade oferece a ele o tempo
e, junto com as suas histórias, a História; oferece a ele o tempo, e, junto com ele, as coisas todas
que dele precisam para se engendrarem: os filhos, a duração do afeto, a permanência de
vínculos, o longo processo (analítico) de uma cura. Scherazade oferece ao Sultão um discurso
vivo.
Scherazade ou do Poder da Palavra. A sultana era uma contadeira de histórias, não em
primeira linha uma escritora: ela as contava de viva voz. Aquelas 1001 noites eram marcadas pela
cálida proximidade da mulher, da mulher na sua inarredável corporeidade. Não podemos
esquecer da carga corporal que a Palavra falada carrega. Na narrativa oral, a Palavra é corpo:
modulada pela voz humana, e portanto carregada de marcas corporais; carregada de valor
significante. Que é a voz humana senão um sopro (pneuma: espírito...) que atravessa os labirintos
dos orgãos da fala, carregando as marcas cálidas de um corpo humano? A palavra oral é isso:

8
Cf. J. L. Borges “Los Traductores de las 1001 Noches, in Historia de laEternidad, Emecé Editores, Buenos Aires,
1953.
15

ligação de sema e soma, de signo e corpo. A palavra narrada guarda uma inequívoca dimensão
sensorial.
“No princípio era a Ação”, diz o Fausto de Goethe. Mas entre a Ação e a Palavra, nas
1001 Noites a escolha está feita. “No princípio era o Verbo”, parecem dizer-nos elas, retomando o
início do texto do mais visionário dos Evangelistas. No entanto, esse texto não para aí: “... e o
Verbo se fez carne”: restaura-se, assim, a dialética sema/ soma, inscrita no cerne da Palavra – a
Palavra é também, inapelavelmente, corpo. (1987)

TEXTO 2
SABERES POÉTICOS EM SIGNOS VERBAIS:
espaços de leitura e de escrita9
Josebel Akel Fares

O homem sempre se expressou de diferentes formas. Estudos privilegiam o estético como


veículo de expressão dos desejos humanos. A arte, em suas origens, tem, especialmente, a
função mágica. Desenha-se o animal para obtê-lo na caça, era assim nos tempos primordiais,
todos sabemos. Signos diversos precedem o código linguístico: gritos, riscos, desenhos, gestos.
Longa história, muitas pesquisas.
Depois, detentor do código linguístico, a palavra inventa o mundo, o homem inventa
histórias para explicar a terra, os céus, os mares, os rios, os animais. Então, cria-se as
cosmogonias, o mito se alia ao poder mágico dos traços e dos gritos. A palavra institui uma nova
ordem. O verbo é cor, gesto, voz, traço, ritmo. A palavra poética expressa o voco-visual na
plasticidade das formas escritas ou despregadas do papel, o gesto cênico na performance de
quem diz o texto, o musical cantado no ritmo do dito e do ouvido.
A matéria deste ensaio será apresentada em duas partes: uma referente à absorção e
gosto pela leitura do texto oral e do escrito e outra, algumas anotações sobre a comunicação
epistolar, ou seja, o processo de comunicação por meio de cartas. O tema foi apresentado aos
intérpretes na parte referente à categoria comunicação por meio de perguntas relacionada à
leitura e à escrita, ao ouvir e ao narrar.

LEITURAS DA VOZ
Antes, bem antes, de se apostar o adjetivo infantil ao termo literatura, as crianças já liam,
seja por meio de um texto vindo da voz, seja por um vindo da letra. Todos que estudam a matéria
sabem essa história. Em tempo anterior ao advento da chamada literatura infantil, a criança era

9
In FARES, Josebel Akel Memórias de Belém de Antigamente. Belém: Eduepa, 2010. Retirei do texto a
última parte referente às cartas, por não fazer parte do programa da disciplina.
16

considerada como adulto-pequeno, não se separava os dois mundos, a ascensão da burguesia e


as discussões em torno de infância modificam essa atitude: os “pequenos” passam a ocupar um
mundo diferente do dos “grandes”. Então, o universo infantil não mais se imiscui no universo
adulto, a escuta das conversas de adultos é interditada, os olhares reprovam a ação: quando
estava na vizinha conversando com a minha mãe ou minha avó, as crianças não podiam se
aproximar, só costumavam olhar, as crianças sabiam e se afastavam. Eu não escutava conversa
(Oswaldino Oliveira10, 2004).
Todavia, se a escuta das conversas entre adultos quase sempre foi proibida para as
crianças, no momento em que o apelo é o encanto das viagens sobrenaturais, fantásticas,
maravilhosas, proferido por contadores, esses universos convivem harmonicamente. No
medievalismo, por exemplo, as rodas de histórias, geralmente, conduzidas por vozes de adultos,
eram reconhecidas como os serões e aconteciam em volta das fogueiras. Ali se narrava
peripécias de cavaleiros e se trazia o labor cotidiano, como forma de evasão do duro mundo do
trabalho. Não havia histórias específicas para crianças, por isso lhes era permitido participar
desse evento contaminado ora de magia, ora de aspereza.
A despeito da propalada afirmação de Benjamim (1993, p.197-221) sobre a morte do
narrador tradicional, o Brasil ainda é um país da voz oral, mesmo nas cidades grandes, onde se
presume a inexistência de narrativas de apelos populares, elas continuam a fluir com o mesmo
caráter admoestador e mágico. Observe-se a narrativa da Loura do Banheiro, muito contada nas
escolas de São Paulo. A fábula fala da existência de uma personagem loura que aparecia morta,
inclusive com algodão no nariz, nos banheiros das escolas paulistas, narrada como forma de
assustar crianças e adolescentes, presumindo-se o uso do banheiro para outros fins.
Na Amazônia, conta-se histórias nas esquinas, nas portas, nas calçadas, nos bancos, e
quanto mais se adentra a mata ou se abeira o rio, mais o repertório se enriquece e se avoluma.
Os contadores dos casos, e não dos causos, como se costuma falar para imitar a pronúncia
cabocla, são pessoas mais experientes, em geral, mais velhas, mas mesmos os jovens, que,
muitas vezes, negam esse tipo de conhecimento por pleitearem experiências “modernas”, trazidas
pelos meios de comunicação de massa, não se afastam desta rede de signos, que representa
comumente a tradição. Esta é entendida não como um conjunto embolorado de conhecimentos e
crenças, mas como um aspecto da cultura, que, como um todo, se move no tempo e no espaço, e
traz matrizes de marcas mnemônicas:
Uma tradição poética pode se definir como um continuumonde se gravou a marca de textos
anteriores, e que tende a determinar, por isso mesmo, a produção de textos novos. É nela que se
arraigam e por ela se justificam as convenções que regem a sensibilidade poética e permitem a
fruição dos textos. A tradição funda assim a realidade, assegurando- lhe o caráter que a define de
maneira fundamental: sua autodeterminação. Lugar de relações intertextuais, ela confere ao
poema um estatuto referencial particular e eminente, pois este poema remete e adere a sistema

10
Na primeira citação de cada um dos intérpretes da pesquisa será indicado o nome completo, nas
seguintes o prenome, com o ano da entrevista, conforme já se explicou na primeira parte deste livro, item
referente aos intérpretes.
17

concebido como definitivo... de onde um dinamismo alegre, na encruzilhada de uma participação


unânime (ZUMTHOR, 1997, p. 23).

O medievalista continua seus argumentos sobre tradição, movência, paradigma:

Pode-se, em muitos casos, descrever esses traços como o que em etnologia chama-se mais
frequentemente motivos; em história literária, temas. Eu preferiria colocar que a noção de tradição
só tem sentido em relação a uma forma. Se há transmissão de um “tema”, de um “motivo”, eu
falaria disso como de uma configuração imaginária não aleatória, um conjunto ordenado e (ao
menos virtualmente) organizado de sugestões representativas, afetivas, prospectivas. A
organização, tratando-se de poesia, não pode ser manifestada ao nível discursivo. Na outra
extremidade do espectro dos possíveis, a marca tradicional se definirá como uma concreção de
elementos linguísticos debilmente semantizada. A tradição funciona assim como um repertório
de paradigmas e virtualidades relacionais. Donde, através dos textos que ela gera, uma
profusão de associações de toda espécie. (ZUMTHOR, 1997, p.23/24, grifo da autora)

Os dez narradores11 ouvidos no Projeto, apesar de não terem sido escolhidos por suas
habilidades na arte de contar histórias, mas pelo desejo de cada um de narrar a cidade, ao
expressarem as memórias sobre a Belém de outrora registram as mitopoéticas como parte dos
seus cotidianos. As narrativas trazem as marcas míticas eivadas da experiência pessoal,
contextual, que implicam em permanências e movências provocadas por associações de ordens
diversas, como ensina Zumthor.
Todos os intérpretes portadores de uma oralidade ou vocalidade mista, que é aquela que
procede da existência de uma cultura possuidora de uma escritura, ou que o escrito é parcial,
externo. Zumthor (1993) expõe também sobre uma vocalidade primária e imediata, pertinentes às
sociedades desprovidas dos sistemas de simbolizações gráficas, ou nos grupos sociais isolados e
analfabetos e sobre a oralidade segunda, oriunda de uma cultura letrada, em que toda expressão
é marcada pela escrita. Estas duas não dizem respeito aos intérpretes em estudo.

Outra referência a uma tipologia de narradores se apresenta no antológico “O narrador.


Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, de Benjamim (1993, p. 197- 200), já referenciado.
Assim, os contadores que fincaram o pé na terra, por isso, narram as tradições e têm profundo
conhecimento e respeito pelo espaço, são o que o filósofo chamou de narrador sedentário ou o
mestre-artífice - aquele que ensina o ofício contando histórias, dando conselhos aos
“desorientados”. A grande maioria dos intérpretes das pesquisas encontra-se nessa categoria. O
outro tipo é o narrador viajante, explicado como aquele que, ao voltar de suas viagens, conta
sobre descobertas, aventuras, conhecimento de novas terras. Aqui incluo aqueles que fizeram das
viagens longas ou próximas matérias das memórias narradas, como Mário Nazaré de Sousa e
Osvaldino Ferreira de Oliveira.
Entre os intérpretes da pesquisa, quando perguntados sobre a audição de histórias, apesar
da declaração da pouca lembrança sobre os repertórios narrativos, nenhum negou o gosto de

11
No capítulo inicial deste livro, explicitou-se que os entrevistados serão tratados como intérpretes,
narradores, contadores, sujeitos. A preferência pelo termo intérprete diz respeito à escolha teórica de
Zumthor, como base da leitura.
18

ouvi-las e alguns se revelaram contadores envolventes. Eles confessam que em toda comunidade
alguém assume a função de repassar experiências através da voz e os narradores podem ser os
pais, os avós, uma tia, um vizinho, a professora, e essas figuras, em geral, são partes do grupo do
afeto do ouvinte.
Joana do Espírito Santo (2004) lembra o pai e o tempo de contar: Ah, o papai [contava]. Às
vezes, as pessoas ficavam conversando, se juntava na boca da noite pra conversar e contavam
histórias. YolinaHerreira (2004) afirma que na família dela sempre teve alguém com a função de
narradora que era ou a vovó, ou uma tia, às vezes, a professora mesmo que contava histórias.
Florinda Cunha (2004) revela a presença dos empregados da casa dos pais, como os narradores
das experiências vividas:

Por incrível que pareça, nossos próprios empregados, que sentavam e contavam, até o modo
deles, como era na terra deles, é o sítio deles, tudo eles contavam, era muito bonito e ia deixando
a gente com gosto pra saber das coisas, pela cultura deles e por saber.

Osvaldino (2004) comenta que a narradora de sua infância era a avó, conta da ambiência
noturna do espaço público e do privado. Recorda a Belém da luz de lamparinas, candeeiros,
lampião:

Tinha lá nas ruas, naquele tempo a população era pequena, eles dormiam cedo, não tinha luz, era
lamparina, ou candeeiro, ou então lampião. O lampião tinha que trocar o carbureto. Nós tínhamos
em casa. Era uma luz boa, não tinha luz elétrica no interior e aqui em Belém tinha, mas era
deficiente, só ia melhorar de dez horas da noite, é. E ela [a avó] contava muita história. Fazia roda
pra contar história.

Na ausência de avós, Terezinha Monfredo (2004) revela que os mais velhos embalaram as
histórias marajoaras de sua infância. Ela ouvia através da voz da irmã mais velha, da mãe e da
tia:

Como eu não conheci meus avós, eu só conheci o meu avô materno, os outros eu não conheci,
então, as tias contavam também muita história, a mamãezinha, a mãe contava história pros filhos
e, às vezes, repetiam a mesma história, sabe? Eu lembro que, às vezes, a minha irmã mais velha,
ela era como uma mãe pra mim, ainda é, ainda é viva [...] Então, essa minha irmã mais velha, ela
queria me mandar, queria me governar, sabe? Às vezes ela era assim. Mas, ela contava histórias
pra mim e ela lia, eu não sabia ler, eu ainda era pequena.

Os repertórios variados indicam a presença de contos de fadas, de lindas histórias do


tempo antigo, de reis, de rainhas, de princesas (Florinda, 2004), como a Branca de Neve,
marcantes para Yolina e para Florinda. Todavia, as mais recorrentes referem-se a aparições de
entidades sobrenaturais, como visagens e assombrações, surgidas das águas, das matas.
Terezinha se lembra do bicho da língua de fogo, história que a irmã contava e depois não
conseguia mais dormir sozinha:

E ela me contava história assim que eu lembro, que tinha um bicho, que tinha língua de fogo, olho
de não sei o quê. E quando chegava a noite, eu me lembrava da história que ela me contava e
19

não dormia, aí eu inventava que tava com dor no ouvido, tava com dor assim, que era pra virem e
estar perto de mim.

Maria José da Silva Amaral (2004), Joana e Osvaldino também relatam sobre repertórios
que têm a supremacia de conhecidas personagens do lendário amazônico: matintaperera, botos,
cobras encantadas. Assim, Joana assegura que

contavam histórias das pessoas que viram lobisomem, história das pessoas que viram
matintaperera, contavam histórias dos espíritos encantados que se tornam pessoas pra aparecer
pra outras pessoas, contavam história do boto, contavam muita história que eu não lembro agora.

Maria José conta sobre o repasse da tradição da matinta em Baião - local onde tem uma
escola de matinta perera - suas experiências familiares e justifica que apesar da chuva do enterro
de sua mãe, ela não era uma entidade encantada.

Eu ouvia historia de matintaperera, é que se vai virar mocinha, quando estão mocinhas novas vão
lá pra Baião, diz que lá é que é a escola de aprender a ser matinta pereira, assim eu ouço falar,
é que as moças aprendem a assoviar que nem a matintaperera, de noite elas aparecem trepada
nos muros, nessas casas que só tem meia parede, elas trepam.
É o que contam, né, mas assim que eu não acredito, mas isso de dizer que quando a mãe da
gente morre e chega a hora do enterro chove, eu acho que é saudade de Deus para os filhos.
Ainda mais, quando deixa pequeno, como a mamãe deixou,um de peito com 6 meses, eu com 4
anos e minha irmã com 2 - essa que mora pra Pedreira - , teve 4 filhos, ainda ganhou mais um
recém-nascido... e nunca fez nada pra matar os filhos, pra tirar do ventre (grifos da autora).

Osvaldino ouviu da avó muitas histórias, duas das quais viu ou participou. Na primeira
aparece um processo metamórfico: os botos são pessoas que morreram afogadas.

Agora tem uma coisa que eu vi com meus olhos, isso eu vi. A aparição de botos. Dizia minha avó
que aquilo eram pessoas, que morriam afogadas, e virava boto. Porque tinha boto macho e boto
fêmea. Então, aparecia nas pontes, trapiches, no interior, [que] tinha muito pra poder atracar as
canoas e abastecer. Meu avô tinha naquela época um comércio, um comércio menor que era pra
abastecer as pequenas embarcações que iam pro rio acima.
Então, eles a noite, tempo de luar bonito, parece dia, eles iam lavar as pontes, lavando,
escovando a ponte [...], jogando água, água caindo pelas frestas da ponte. [...] Então, eu ouvi
aquele barulho, aí eu bati na minha mãe e disse assim:
- Mãe tão lavando a ponte.
Aí ela disse assim, ela dizia pra mim:
- Não vai olhar não, é visagem.
Mas eu era abelhudo, fui olhar pela fechadura e ela falou:
- Vai deitar!
E, eu vi eles lavando, tudo bem vestido. Naquele tempo, o luxo era chapéu de palhinha com cinta
preta ao lado e um lacinho. É a moda e o sapato era preto e branco, sapato de luxo.
Porque dizem os antigos, que as pessoas que morriam afogadas em desastres marítimos viravam
boto, viravam gente encantado e eu acreditei nisso e vi.

O intérprete continua a contar sobre histórias acontecidas na água. A cobra de


chifre é uma aparição aquática e aparece duas vezes para o narrador: uma vez quando
estava em companhia da avó e outra quando estava com o pai.
20

- Existiu que eu vi, eu era garoto, mas eu vi, enorme. Mas não é chifre não, são as presas dela
que cresceram muito e ficaram assim, parece um elefante, só que em elefante é marfim e cresce
para baixo e na cobra é pra cima. A cor é meio azulada.
Numa ocasião minha avó, minha avó era uma cabocla do interior e meu avô, o marido dela, era
turco naturalizado brasileiro. Veio pra cá muito jovem, então, eu tinha até a foto dele... Então,
minha avó disse assim:
-“Vamos lá no algodoal” - [que] é a plantação de algodão.
[...] Então, a gente tinha um barquinho, só pra duas pessoas: eu e ela. E minha avó era mulher
que era magrinha, mas gostava de uma cana que só, beber. Então, naquele tempo as cachaças
eram puras, azuladas, gostosas mesmo. E ela botava o rifle a tira-colo de dois canos, botava os
cartuchos, fechava, botava na costa e a gente ia devagar.
Mas teve um dia que nós saímos pra o algodoal e ela disse: “Pára! Pára! Pára!”, na canoinha.
Aí eu perguntei: “O que foi vovó?”
E ela disse: “volta, volta, volta!”
E eu voltei, e eu falei: “O que foi que houve, esqueceu de alguma coisa?”
[...] “O que foi vó?”
Ela disse assim: “Olha o que vai lá!“
Aí vinha riscando o rio, o chifre.
Aí ela disse: “Sabe o que é aquilo? É a cobra que vai descendo rio abaixo.
E eu disse: “Aquilo é o chifre?”
-“É cobra de chifre, se nós formos pra lá, as ondas que ela provoca afunda a canoa, de tão grande
que ela é. Ela pode até dar uma abocanhada e comer a gente”.
Então, tinha essa cobra, tinha aqui na Boca da Laura, aqui no rio que vai até Mosqueiro, chama
Boca da Laura. Ela vive ali na saída do rio. Essa cobra tá viva até hoje e na Vigia também tem
uma só. (Osvaldino)

Os textos que circulam através da voz nos rios, nas matas, nas estradas, retratam o
cotidiano das comunidades amazônicas e se comparam àqueles ditos nas praças ou nas feiras
pelos aedos clássicos, ou nos serões medievais pelos vassalos, ou ainda mais tarde pelas classes
mais populares. No caso das populações mais pobres, na maioria das vezes, essas narrativas são
uma das poucas formas de convívio com o poético. Um estético envolto em magia e em sangue
marcado pelo difícil cotidiano. Lembra-se aqui do relato inscrito no capítulo Histórias que os
camponeses contam: o significado de Mamãe Gansa, de “O Grande Massacre dos Gatos”, em
que Robert Darnton (1986, p.21-93), a partir de um exemplo de um conto narrado “em torno às
lareiras, nas cabanas dos camponeses, durante as longas noites de inverno, na França do século
XVIII”, recupera por meio das diferentes versões a história das mentalidades:
Apesar de ocasionais toques de fantasia, portanto, os contos permanecem enraizados no mundo
real. Quase sempre acontecem dentro de dois contextos básicos, que correspondem ao cenário
dual da vida dos camponeses nos tempos do Antigo Regime: por um lado, a casa e aldeia; por
outro, a estrada aberta. A oposição entre aldeia e estrada percorre os contos, exatamente como
se fazia sentir nas vidas dos camponeses, em toda parte, na França do século XVIII (DARNTON,
1986, p. 54).

A literatura rege-se, entre outras características, pela metáfora e pela ficção, mas, como se
vê, por mais que a princípio possa parecer contraditório, o texto literário retrata uma época, um
espaço, uma forma de pensar o mundo. Daí a importância dos repertórios literários, oral ou
escrito, para a história cultural, entre outras ciências, e o processo de reconstrução identitária,
seja nos tempos imemoriais, em espaços distantes ou em Belém do século XXI.

LEITURAS DAS LETRAS


21

De volta às histórias da leitura versus literatura, um dos referenciais desse estudo, se diz
que, em relação ao texto escrito, as obras clássicas alcançavam os ouvidos das crianças e dos
jovens pela voz dos preceptores, profissional que trabalhava na educação das crianças da
nobreza. Assim, durante muito tempo, como se disse, não havia a separação de mundos por faixa
etária de leitores. Lembram-se das adaptações de Charles Perrault (Paris-1628/1703)? Conta-se
que ele escuta as histórias da babá de seu filho e as adapta ao gosto dos salões para ridicularizar
a corte francesa:

Charles Perrault entra na História Literária Universal, não como poeta clássico (eleito para a
Academia Francesa em 1671), mas como autor de uma literatura popular, desvalorizada pela
estética de seu tempo e que, apesar disso, se transforma em um dos maiores sucessos da
literatura para infância. Escrito num momento em que ainda não existia o gênero Literatura infantil,
“Os contos da Mãe Gansa”, com o tempo, se divulgam como leitura para crianças e se
imortalizando. (COELHO, 1982, p.233-4).

Então, como observam os teóricos da literatura infantil e juvenil, essa história ainda tem
poucos capítulos. Somente no século XVIII, a criança passa a ser considerada diferente do adulto
e, então, é apartada do mundo dos mais velhos e se cria um universo com características
diferentes e especiais, que preparasse a infância para a fase da maturidade (CUNHA, 1987, p.19).
Anteriormente, os preceptores orientavam as crianças da nobreza, eram os responsáveis pela
educação, agora, com a ascensão da burguesia, novamente, a Pedagogia toma assento na
preparação do futuro dos cidadãos e literatura é também chamada para educar:

É neste contexto que surge a literatura infantil; seu aparecimento, porém, tem características
próprias, pois decorre da ascensão da família burguesa, do novo status concedido à infância na
sociedade e da organização da escola [...] por sua vez sua emergência deveu-se antes de tudo à
sua associação com a pedagogia, já que as histórias eram elaboradas para se converter em
instrumento dela. Por tal razão, careceu de imediato de um estatuto artístico, sendo-lhe negado a
partir de então um reconhecimento em termos de valor estético, isto é, a oportunidade de fazer
parte do reduto seleto da literatura (ZILBERMAN, 1982, p.3-4).

Daí o porquê de a literatura infantil e juvenil inicialmente ser mais uma cartilha para ensinar
normas de comportamento, boas maneiras e moralidade, do que literatura propriamente dita. No
Brasil, para exemplificar, Olavo Bilac (R.J, 1865 - 1918), em Ao leitor e no Prefácio da 1ª edição
de “Poesias Infantis”, explica o caráter pedagógico dos poemas ali publicados. As normas do
manual são arroladas: amor à Pátria e ao trabalho, devoção à família, respeito aos amimais,
eliminação do maravilhoso, entre outros.

É um livro em que não há os animais que falam, nem fadas que protegem ou perseguem crianças,
nem feiticeiras que entram pelos buracos das fechaduras; há uma descrição da natureza, cenas
de família, hinos ao trabalho, à fé, ao dever; alusões ligeiras à história da pátria, pequenos contos
em que a bondade é louvada e premiada [...]
O autor deste livro destinado às escolas primárias do Brasil, não quis fazer uma obra de arte: quis
dar às crianças alguns versos simples e naturais, sem dificuldades de linguagem de métrica, mas,
ao mesmo tempo, sem a exagerada futilidade com que costumam ser feitos os livros do mesmo
gênero.
22

O que o autor deseja é que se reconheça neste pequeno volume, não o trabalho de um artista,
mas a boa vontade com que um brasileiro quis contribuir para a educação moral das crianças de
seu país (BILAC, 1952, p 9,10).

Esse quadro só se modifica com o modernismo e é introduzido por Monteiro Lobato (SP,
1882/1948), considerado o iniciador de uma literatura que considera a criança na sua forma mais
plena, independente do mundo dos adultos. O Sítio do Picapau Amarelo rompe com os cerzidos
apertados do pretenso texto infantil, desamarra os nós e elabora outros mais frouxos, desatável
pelos leitores.
Os detalhes dessa história da literatura infantil escrita, que serve como introdução a
análise da leitura das letras não será aqui esmiuçada, por não ser objeto específico do capítulo.
Mesmo assim, importa que até hoje, alguns reconhecem a existência do gênero, outros refutam a
idéia. Independente da aceitação do rótulo, todos sabemos que, muitas vezes, as faixas etárias,
entre outros fatores, induzem determinados tipos de leituras e as preferências do leitor, deste
modo salto para a voz dos intérpretes para analisar o que se lia na Belém dos anos 50.

Romances, jornais, revistas


A voz constitui os gostos e os tipos de leitura, que, a partir de determinado momento, se
dividiam por faixa etária e por gênero. A leitura parecia ser o melhor passatempo na vida das
moças. As entrevistadas referem-se a este fato atribuindo o gosto a parentes, as escolas, etc.
As leituras de Florinda, que confessa que não saia de cima dos livros, começam pela
literatura geral, romances que buscava nas bibliotecas: eu ia aqui na Igreja de Nossa Senhora de
Nazaré, trazia os romances pra ler e levava novamente, era menina- moça ainda, mas gostava.
Depois de casada, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde tinha uma pequena biblioteca, muito
importante para ela, e, como o marido era representante de livros, seu acervo sempre crescia. Os
livros traziam países que não conheceria ao vivo:

China, o Oriente, o Japão, Afeganistão, essas coisas assim, queria saber a cultura deles, eu não
sei, era uma coisa que eu tinha, entendeu? Eu já não tinha um saber como eu já tenho agora, né?
[...]
Porque, outra coisa, eu nunca tive vergonha de não conhecer uma coisa e não ir olhar no
dicionário o que significava, ou com uma pessoa mais esclarecida do que eu que a gente conhece,
né?Como aqui eu tenho uma pessoa excelente é a Terezinha Monfredo, é mora aqui, é uma
pessoa, fala com a gente e dá gosto de falar, compreendeu? E eu pergunto muita coisa a ela e ela
me explica, entendeu? E pra outros que tem um melhor conhecimento do que eu, compreendeu?
Eu não tenho vergonha.

Se o gosto de Florinda se inicia nas bibliotecas, o de Terezinha, que também sempre


gostou de ler, se desenvolve na escola, mas a base é o decoreba e a obrigação de estudar para
as disciplinas:

Eu estudei em São Benedito, em frente a Santa Casa, e tanto como lá no São Benedito e no
colégio Santo Afonso, a gente estudava, por exemplo: história, uma comparação, história, tinha
História do Brasil, História Geral, então estudava ali e eles marcavam, sem exagero nenhum, por
exemplo: descobrimento da América, eles marcavam ali, iam passando uma, duas, quando você
23

via já tava umas dez páginas pra você, você tinha que decorar. E o pior, decoreba mesmo, que eu
nunca gostei disso, fui professora, nunca achei que isso tava certo, sempre achei que isso tava
errado.

Na recomposição da história da leitura, a lembrança de uma escola tradicional e autoritária


continua a ser narrada na voz da intérprete:

Eu tinha uma professora que, lá no [...] São Benedito, era professora [...], ela era muito nervosa,
muito rígida, então ela não consentia, tinha que fazer a pontuação, pode uma pessoa dessa? Ela
tomava nota: “_ Diga aí Terezinha, a gente, não, agora é uma pausa pequena, uma pausa rápida,
você demorou”. Aí a pontuação, sabe? Você já tinha que começar tudo de novo, ela era muito
rígida, ninguém podia conseguir as palavras, tudo que estava lá, eu achava ela muito má.

História, geografia, em livros escolares impostos em sala de aula ou buscados em


bibliotecas pelo prazer da fruição, são a tônica de alguns depoimentos, principalmente das
intérpretes femininas. Os homens dizem preferir as leituras de jornais, revistas e almanaques, que
as mulheres também leem, mas geralmente preferem outro gênero.

Gostava de ler o jornal para saber dos casos acontecidos, né? O jornal... só isso que eu lia. Folha
do Norte é a principal, ainda existe, não existe a Folha do Norte? A Província... (Sales, 2004).

A Folha do Norte e A Província do Pará, citados nos testemunhos, são jornais fundados no
Pará ainda no final do século XIX. A Província do Pará, em 1876, durante o ciclo da borracha,
pertenceu ao intendente Antônio Lemos. Fez parte do grupo dos Diários Associados, de Assis
Chateaubriand, depois passou para a CEJUP (1997), de Gengis Freire, e foi novamente vendido
em 2001, quando fechou suas portas definitivamente. Em alguns períodos, teve circulação
descontinuada. Já a Folha do Norte, fundada em 1896, por Enéas Martins e Cipriano Santos,
aparece como opositor de Antônio Lemos. Ambos não deixavam de tomar posição política, que,
muitas vezes, terminava em retaliações e intrigas.
A imprensa brasileira, bem como a de alguns outros países, sempre esteve ligada a grupos
de poder e, por isso, porta-voz de interesses políticos e econômicos. No caso do Pará, Tembra
(2007) cita os dois jornais supra referidos para comprovar esses interesses, que caminham junto
com a história da imprensa paraense.
A longa história dos jornais paraenses contrasta com a das revistas locais. Desconhece-
se produções regionais aos moldes de “O Cruzeiro” e a “Manchete”12, de circulação nacional,

12
“O Cruzeiro foi a principal revistailustradabrasileira do século XX. Fundada por Carlos Malheiro Dias, começou a ser
publicada em 10 de novembro de 1928 pelos Diários Associados de Assis Chateaubriand. Foi importante na introdução
de novos meios gráficos e visuais na imprensa brasileira, citando entre suas inovações o fotojornalismo e a inauguração
das duplas repórter-fotógrafo, a mais famosa sendo formada por David Nasser e Jean Manzon que, nos anos 40 e 50,
fizeram reportagens de grande repercussão” (http://pt.wikipedia.org/ – acesso agosto 2009).
“A revista Manchete surgiu na década de 50, sendo considerada a segunda maior revista brasileira de sua época.
Empregando uma concepção moderna, a revista tinha como fonte de inspiração a ilustrada parisiense “Paris Match” e
utilizava, como principal forma de linguagem, o fotojornalismo. A Manchete atingiu rápido sucesso e em poucas
semanas chegou a ser a revista semanal de circulação nacional mais vendida do país, destituindo a renomada e, até
então, hegemônica “O Cruzeiro”. (http://www.traca.com.br - acesso em agosto 2009).
24

citadas nas entrevistas. Essas se constituem marcas fundamentais de leitura dos intérpretes.
Algumas revistas femininas também são citadas.

Eu gostava muito de ler a Veja, Manchete, Cruzeiro, Doméstica também; eu lia todas essas
coisas. A Doméstica era mais pra senhoras, mas tinha algumas coisas que me interessavam. E eu
fui me aperfeiçoando aí, lendo, depois eu me casei, a minha esposa era formada na Escola
Normal... (Osvaldino, 2004)

Além da Vida Doméstica13, revista de variedade destinada ao público feminino, as


entrevistadas dizem preferir aquelas que trazem histórias de artistas e de personalidades. As
memórias de um pretérito longínquo e de um recente misturam-se na voz de Florinda, leitora
contumaz, que hoje sofre com problemas na vista - lia muito, não leio mais nada filha, essa é a
minha maior tristeza e meu maior castigo que eu poderia ter – recompõe fatos da história do
Brasil.
Lia revista de artista, uma revista grande, grossa, especial que trazia tudo que se passava de
interessante, de bom no Brasil tudo. Aqui, no sul, por exemplo, a família daqui do presidente,
aquele mais moço, o Collor, era de Alagoas, que eram importantes também, então, eu lia tudo
aquilo, família do Getúlio, tudo dessa camada assim, eu conhecia como se tivesse contato com
eles, eles saíam na revista e a gente lia, gravava e sabia. (Florinda, 2004).

Se as revistas de variedades faziam parte das leituras do mundo feminino, as mulheres


também confessam suas predileções pelas narrativas românticas: ler representava uma forma de
viver o sonho, de romancear situações e, ao mesmotempo, de se informar.

Gostava de ler muito, eu lia livros de, de coisas de amor. Não, eu nunca me casei, namorei, mas
não deu pra casar [risos] Livro de história, era. Tinha história de romance, estas histórias eu
gostava de ler, depois fui me empregar e abandonei tudo. (Raimunda, 2004)

Então, a educação feminina passa pelas leituras de revistas informativas, mas também das
fotonovelas, dos acervos da coleção “Bibliotecas das moças”, também conhecida como “literatura
cor-de-rosa”, escritos por M.Delly. Como as sabrinas, as júlias, as biancas de hoje, essas leituras
conduziam as mulheres ao desejo do altar, da boa e dedicada esposa e mãe, representações do
papel da mulher tradicional, que, além dessas condições, ainda podia alçar à condição de
professora. Histórias de amor com final feliz, vividos em países distantes, sempre fizeram
sucesso entre as mulheres, seja em forma de romance, conto, quadrinho.
As fotonovelas sempre foram consideradas subgênero literário, narrativa marginal em
formato de revistas de quadrinho, com pequenos textos e fotografias. Em cada quadro, o texto
verbal é bem pequeno e, muitas vezes, apenas funciona como reforço ao que já está expresso na
imagem. O conteúdo traz histórias de costumes e de amor, sem muita profundidade psicológica,
uma vez que era direcionada ao público feminino, considerado de pouca exigência e formação e
de baixo poder econômico, e ainda tinha “como finalidade a transmissão dos princípios éticos,

13
Revista Vida Doméstica circulou entre os anos 1930 a 1950, impressa em papel de qualidade, rica em fotografia de
pessoas e de fatos comuns da vida familiar dos leitores, além de muita propaganda, atualidades, moda masculina e
feminina, política, curiosidades, arte.
25

morais e sociais concordantes com o sistema de valores da ideologia dominante através da


integração da mulher na sociedade urbana” (GALUCHO, 2008).
Assim como as telenovelas de hoje, nas fotonovelas os atores têm seus fãs clubes, vivem
tipos, tornam-se galãs e vilãos nas histórias de maior sucesso. Capricho e Grande Hotel eram
sem dúvida as maiores indústrias das histórias melosas lidas pelo mundo no século passado.

Ah, lia, lia, lia revistas. Lia fotonovelas também. Eu lia muito, até depois de casada, eu lia muito
Capricho (risos), não sei se ainda existe. Só que me disseram que depois de um tempo mudou,
não era mais aquelas histórias lindas que contavam, né? (Terezinha, 2004)

Mocinhas, bandidos, personagens, roteiros, atores, não faziam parte da produção cultural
brasileira, esse mercado editorial era grande e todo importado. Galucho (2008) atribui a
disseminação das fotonovelas ao cinema. Entende-se que a leitura da literatura de imagem
comece seu processo de expansão. E, diferente da ideologia vigente de que às mulheres era
dado o supérfluo, admite-se uma leitura para além das letras, um olhar para as imagens, para
fotografia que começa a se desenvolver e experimentar novas formas.

Mais tarde a fotonovela torna-se independente do cinema e caracteriza-se pelas suas intrigas
sentimentais (a heroína é quase sempre uma rapariga de origem modesta que sonha com um
amor cheio de obstáculos e dificuldades mas no final consegue o seu objectivo), as personagens
não demonstram um grande desenvolvimento psicológico e são sempre estereotipadas (os bons
são sempre bons e os maus arrependem-se no final ou sofrem as consequências), predomina o
imaginário exótico, e, mais tarde o “suspense” e o sexo, os temas variam entre problemas
afectivos, sociais, a procura de sucesso numa carreira, a justiça na sociedade, a ascensão social,
a marginalidade, etc. (GALUCHO, 2008).

As leitoras dos romances de M. Delly também vivem seus contos de fadas, como nas
fotonovelas. As intérpretes da pesquisa discorrem sobre títulos dos romances preferidos,
reconhecem a escritura de gênero e fase etária, falam sobre a questão do volume dos livros, os
maniqueísmos, dos sonhos provocados. Cunha (1999), que defende tese sobre as “Armadilhas
da Sedução: os romances de M. Delly”, esclarece sobre algumas questões, como:
a. Os romances publicados na coleção Biblioteca das moças, pela Companhia Editora Nacional
(SP) e distribuídos por todo Brasil, eram estrangeiros:

Ambientados na França, os romances de M. Delly foram muito populares junto a jovens brasileiras
de classe média, entre as décadas de 1930 a 1960. Ainda hoje muitas pessoas se referem a M.
Delly, como Madame Delly. Trata-se, no entanto, do pseudônimo de um casal de irmãos
franceses, católicos fervorosos que se chamavam Frédéric Henri Petitjean de La Rosiére (1870-
1949) e Jeanne- Marie HenriquettePetijean de La Rosiére (1875-1947) (CUNHA, 1999, p. 17).
Ah, muito, eu adorava ler romances, eu olhava, eu lia muito é M. Delly, M. Delly, escrito por M.
Delly. Os romances de M. Delly eram livros, eram uns romances próprios pra jovens, pra moças,
romances mesmo de amores, muito lindo (Terezinha, 2004).

b.. Como nos contos de fadas, em geral, as personagens fazem parte da nobreza e da pobreza:
normalmente o herói, nobre e rico, e a heroína, plebeia e pobre. E nos enredos, depois da intriga,
terminam com o final feliz. Yolinda compara o desenlace dos romances com as mocinhas do
cinema.

Então, a gente ficava sonhando, nós, a gentemocinha, eunão fui namoradeira, não fui, eu gostava
muito de brincar, de dançar e tudo e tal e eu vim namorarsó já com 17 anos, maisoumenos isso.
26

Porque hojeemdiamenino de doze anosjá sabe o que é namoro e eunão sabia disso, era
despertava porque a genteviafilmes de amor e esseromance de M. Delly, querdizer, ficava toda
romântica, querendo sentiraquiloque a mocinha do romance, ou a mocinha do filme me
sentia no cinema, fazia, e eraisto(Yolinda, 2004) .

c. As personagens femininas enriqueciam com o casamento e viviam em castelos numa atmosfera


de encantamento e de romance, ainda que na trama necessariamente sempre haja um nó a
desatar, antes do desenlace. Esses enredos melodramáticos, ouso dizer, são transportados para
outros locais e misturados com elementos das culturas locais, configurando em novos gêneros,
como o Pássaro Junino14, a ópera cabocla do Pará.

Baronesas, princesas, condessas, as nobres heroínas ricas ou enriquecidas pelo casamento,


viviam felizes com seus heróis nobres e garbosos, em seus castelos magníficos. [...] Prosseguia
através das tramas das estórias que mostravam, sempre, um jogo de tramoias e falsificações dos
laços sanguíneos e das identidades narradas no mais clássico estilo romântico dramalhão. Assim,
em um universo povoado de nobres, filhos desconheciam a identidade de seus pais, pais
desconheciam o paradeiro dos filhos; apaixonados ignoravam a razão da tristeza de suas amadas,
mas tudo se ajeitava no final feliz quando os ricos bons permaneciam, os pobres esforçados eram
premiados com bons casamentos e os mistérios eram desvendados. (CUNHA, 1999, p. 107)

Então, eumocinhaliaromances de M. Delly, eraromanceslindosquesótinhagentelinda,


sempretinhamuitagentelinda, sempretinha uma mulherruimque fazia isso, que fazia aquilo,
masnãoera as maldades de hoje, era umas maldades tolas, tá me entendendo? Que escondia a
carta, porque o namorado mandava carta, então, escondia essas coisasassim e era o assunto dos
romances, quemuitos dos romances de M. Dellyerasóassim de amor, só assim (Yolinda, 2004).

d. Os repertórios incluíam títulos clássicos e entre os mais vendidos, segundo Cunha, estão
Magali (10ª ed, em 1956), Freirinha (6ª ed.,1947), Mitsi (8ª ed., 1960). Terezinha não esquece
outro título:

Eu li vários, vários, mas um que eu li, que eu gravei bem foi O Último Beijo, muito lindo este
romance, mas era romance, não era pequenininho que você lê e acabou não, romances de M.
Delly eram romances grandes e mesmo, fazia volume, né? E esse, esse O Último Beijo era o
maior romance de M. Delly, era muito demorado pra gente ler, mas como eu gostava de ler, toda
hora eu pegava pra ver se acabava ( rs) (Terezinha, 2004).

Referências
BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In Obras escolhidas:
magia e técnica, arte e política. 6 ed. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1993. I volume.
COELHO, Nelly Novaes. A literatura Infantil: história teoria e análise: das origens orientais ao Brasil
de hoje. 2 ed. São Paulo: Quíron/ Global, 1982.
CUNHA, Antonieta. Literatura Infantil: teoria e prática. 6 ed. São Paulo: Ática, 1987
CUNHA, Maria Tereza Santos. Armadilhas da Sedução: os romances de M. Delly. Belo Horizonte:
Autêntica, 1999.
DARNTON, Robert. O Grande Massacre de Gatos e outros episódios da História Cultural Francesa. Trad.
de Sônia Coutinho. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
FERREIRA, Paulo Roberto. Mais de 180 anos de imprensa na Amazônia. JORNAL DA REDE ALCAR. Ano
5, N. 55 - 30 de junho de 2005
GALUCHO, Isabel. Fotonovela.<<http://www.fcsh.unl.pt/edtl/index.htm>>

14
O pássaro é uma espécie de teatro popular, assemelhado aos dramalhões muito comuns nas óperas,
divido em quadros inter-relacionados ou não entre si. Os personagens, que ora cantam e ora recitam seus
papéis, são acompanhados de música de acordo com o momento da ação dramática; a dança também é
elemento constante. Costuma-se chamar à manifestação de brincadeira, aos atores de brincantes, e ao
texto de comédia, apesar de que o espetáculo tenda mais à tragédia. A brincadeira é denominada de
pássaro, mas, muitas vezes, os cordões são de bicho ou de feras e entre os rouxinóis, tem-tens, tucanos,
tangarás, uirapurus, beija-flores, já apareceram leões, quatis, macacos, tucunarés...
27

TEMBRA, Nelson. Salvemos a Amazônia. Tudo como antes (Postado em 04/06/2006). http: //
forum.jus.uol.com.br/4851/salvemos-a-amazonia
_____ . Defesa da Verdade ou de interesses comerciais? (Publicado em 7/02/2007 (8:28).
http://www.portalitaguai.com.br/article1439.html/Anonymous
ZUMTHOR, Paul.A Letra e a Voz: a “literatura” medieval. Trad. de Jerusa Pires Ferreira e Amálio
Pinheiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
_____. Tradição e Esquecimento. Trad. de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Hucitec,
1997.
_____. Introdução à poesia oral. Trad. Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia Diniz Pochat, Maria Inês de
Almeida. São Paulo: Hucitec; Educ, 1997.
ZILBERMAN, Regina. O estatuto da literatura Infantil. In: ZILBERMAN, Regina MAGALHÃES, Lígia
Cadermatori. Literatura infantil: autoritarismo e emancipação. São Paulo: Ática, 1982.

TEXTO 3
ERA UMA VEZ UMA HISTÓRIA
Renilda Rodrigues Bastos

Charles Perrault (1628/ 1703)


Há muitos e muitos anos, num país muito distante daqui, vivia um senhor que, após 65
anos de idade, resolveu escrever contos que encantam pessoas até hoje. Seu nome é Charles
Perrault, um burguês, acadêmico das letras francesas que, não por acaso, resolveu se voltar à
escritura de contos, o que não era prática de um escritor de seu tempo. O que este senhor não
imaginava, é que se tornaria um imortal, de verdade, por causa de seus contos, ainda que estes, a
“priori”, não coubessem nos moldes estéticos de sua época.
Onze contos, apenas onze, tão pouco, perto de toda variedade de matéria popular à
disposição de nosso personagem. As fontes desses onze contos nunca foram consensualmente
explicadas, mesmo levando em consideração o grande número de estudos sobre as origens e
fontes dos contos de Perrault.
No entanto, uma coisa é certa, autores italianos como Straparole e GiambattistaBasile já
haviam tratado de temas (re)criados a partir de contos compilados na tradição oral italiana que
mais tarde apareceriam em Perrault. Como por exemplo: “L’Orsa” (Pele de Asno), “Le TreFate”
(As Fadas), “La GattaCenerentola (A Gata Borralheira) “Gagluiso” (O Gato de Botas) presentes no
“Pentameron” de Basile. Sobre o fato das fontes de Perrault terem sido Basile, Soriano
(1975.p,116) diz o seguinte: “Basilioescribiaendialecto napolitano muy difícil de compreender y
que, con toda probabilidad, era ignorado por Perrault”. Apesar da opinião categórica de Soriano,
hoje sabemos que as influências de uma fonte escrita, pode não ser direta, portanto há a
possibilidade de Perrault ter escutado de segunda ou terceira mão o “Pentamerom” de Basile,
contado por alguém, e isto pode ter influenciado sua obra assim como os textos orais que
circulavam na tradição oral de sua terra dos quais ele seria ouvinte.
Mas por que um acadêmico, amigo do Rei, burguês, advogado, funcionário público de
grande prestígio se voltaria para a escritura de contos cujas origens estão no conto popular tão
desprezado pelo ideal estético de sua época?
28

A História conta que a primeira narrativa recriada por Perrault, “A Marquesa de Salusses”
ou “Paciência de Grisélidis”, considerada o marco inicial dos tão famosos contos, ocorreu por
causa de uma briga de Perrault com alguns acadêmicos franceses, principalmente Boileau e
Racine. Essa briga ficou conhecida como a Querelle entre lesAnciens et lesModernes que foi
desencadeada por ele mesmo ao ler, numa sessão da Academia Francesa, o poema “O Século
de Luis, O Grande” contra os seus opositores. A leitura provocou enorme confusão, e a crise se
instalou. Boileau e Racine eram considerados “antigos” e Perrault “moderno”. E foi justamente
para justificar sua posição de moderno que ele buscou num conto folclórico francês a matéria para
escrever a narrativa que iniciou sua verdadeira história como escritor e imortal.
Dessa forma, a narrativa escrita que conhecemos como contos de fadas “nasceu”, devido
a algumas idéias não consensuais entre acadêmicos franceses, fato que levou a se instalar uma
crise entre “antigos” e “modernos”.
A “Querelle” impulsionou Perrault a escrever seus contos, principalmente porque queria
reiterar suas idéias de “moderno” defendendo os seguintes pontos: a reação contra a autoridade
dos clássicos da antigüidade greco-romana transformou-se em modelo exclusivo de arte desde o
Renascimento; a exigência de uma Literatura que usasse o maravilhoso cristão ao invés da
mitologia clássica pagã; o Francês deveria ser superior ao Latim; nos salões da época, as leituras
eram os “romances preciosos”, a matéria desses romances estava mais próxima da “desordem”
do pensamento popular, do que das normas clássicas. A mulher como chave principal desses
romances, além disso havia uma sobrinha de Perrault , Mlle. L’Hériter que defendia os direitos
intelectuais das mulheres, pois
tão ponderável se revelava a produção literária feminina e atuação de várias mulheres na área da
cultura, que suscitaram muitas obras de ataque, de grandes escritores como Molière, que
combateu ou as ridicularizou em sua comédia ‘Ëcoles de Femmes, LesPrecieusesRidicules e
LesFemmesSavantes’ (COELHO, 1982.p, 233).

É, mais ou menos, consenso entre pessoas que pesquisam a obra de Perrault, que foram
esses os motivos que o levaram escrever seu primeiro conto “A Marquesa de Salusses” ou
“Paciência de Grisélidis”, em versos, para combater Boileau que iria apresentar na Academia uma
sátira contra as mulheres. E também comum dizer que esse conto já existia nos primeiros
manuscritos de escritores italianos, mas precisamente no Decameron de Bocaccio e no
Pentameron de Basile.
Perrault, por conta da “Querelle”, continuou escrevendo, e o seu segundo conto, também
em versos, “Desejos Ridículos”, foi baseado num antigo conto da tradição oral francesa, que fazia
parte de um antigo “fabliaux”15. “Desejos Ridículos” na época não fez sucesso, por isso foi

15
“conto em verso no qual, em tom trivial, são narradas uma ou diversas aventuras jocosas ou exemplares, uma e outra
ou uma ou outra”. (JODOGNE, 1985, p.28)
29

suprimido de muitas coletâneas importantes. Recentemente foi reeditado numa coletânea, de


contos de Perrault, traduzida para o português.
O último conto em verso foi “Pele de Asno”, em 1694. Este conto marca o nascimento de
um gênero que conhecemos como Literatura Infantil, pois o escritor o endereçou à criança. Além
disso, o momento em que foi escrito, coincide com a “descoberta da infância” na França (ARIÈS,
1991,p.50). Um ano após a escritura deste conto que, diferente do anterior, foi um sucesso, sai a
publicação de uma edição com os três contos iniciais: Grisélidis, nouvelle avecle Conte Peau
d’Asne et CeluydesSouhaitsRidicules.
Após essa publicação, Perrault continua produzindo contos, agora em prosa, com uma
moral ao final das narrativas e sempre com temas já existentes na cultura popular e nos escritores
italianos. Se no começo de sua produção Perrault queria provar a equivalência entre os antigos
“greco-latinos” e os modernos “nacionais”, agora queria também com sua Literatura “moderna”
divertir e orientar as crianças.
Em 1697, Perrault publica “HistoiresduTemps Passé avecMoralites - Contes de
MaMèreL’Oye”, com oito novos contos e mais os três primeiros, todos em prosa. Foi nessa edição
que houve a fuga de autoria tão falada na época. Dois motivos podem ter levado Perrault colocar
seu filho como autor da coletânea: o primeiro, pode ter sido por causa de Boileau seu opositor na
“Querelle”, que o acusava de escrever coisas pueris e sem o refinamento que um acadêmico
deveria ter; o segundo, é que Perrault poderia ter pensado que colocando o nome de seu filho, as
crianças se identificariam mais com as histórias.
Esses contos ganharam o mundo de forma escrita com os seguintes títulos: La Bellleau
Bois Dormant(A Bela Adormecida no Bosque); Le Petit Chaperon Rouge (Chapeuzinho
Vermelho) ; La Barbe Bleue(O Barba Azul); Le Maitre Chat Botté(O Gato de Botas); LesFées(As
Fadas); Cendrillon ou Petit PantoufleduVarré(Cinderela ou Gata Borralheira); Riquet a La
Houpe(Henrique, o Topetudo); Le Petit Poucet(O Pequeno Polegar)e mais os três referidos
anteriormente.
Essas narrativas originaram-se de outras que dificilmente se precise a origem, apesar de já
ter sido a preocupação de muita gente. Porém se há dúvidas sobre os “contos folclóricos” que
circulavam na tradição francesa, provavelmente outra fonte de Perrault, como já dito
anteriormente, algumas certezas existem sobre os contos escritos a partir do século XVII.
Os contos escritos viraram moda nos círculos reais franceses do século XVII, num tempo
de grande importância cultural ditado e marcado pelo trabalho de gente como Descartes, Pascal,
Corneille, Racine, Molière, La Fontaine e tantos outros que influenciaram a civilização ocidental.
Nessa mesma época, mais especificamente na última década do século XVII, havia um
espaço muito grande para publicações de contos de fadas, tanto que, além do sucesso
estrondoso de Perrault, outros escritores aderiram à escritura desse tipo de conto, principalmente
as mulheres e foi assim que o conto de fadas se tornou um “gênero”, um fenômeno social, de tão
30

cultivado e divulgado que foi em França do Rei Luis XIV e “seus ministros de ‘caras’ coberta de
pó de arroz e perucas brancas”.
Talvez por causa do contexto cultural francês, em ascensão, é que Perrault tenha se
tornado tão famoso, verdadeiramente um imortal acadêmico, que a História da Literatura registrou
como criador da Literatura Infantil, afinal era sua Pátria que ditava as regras para o resto da
Europa e do mundo.
Perrault foi considerado o autor mais popular de seu tempo, porém não podemos omitir
nessas considerações, a importância de algumas mulheres que se destacaram ao escrever contos
de fadas que também eram lidos na corte, como por exemplo: Madame D’Aulnoy que publica oito
volumes de contos maravilhosos, entre esses contos existem alguns célebres como O Pássaro
Azul, A Princesa dos Cabelos de Ouro e outros tantos, desafiando, tal qual Perrault, o
racionalismo clássico e o modelo dos antigos “greco-latinos”. Outras mulheres como Madame de
Beaumont e Madame de Murat também deram a sua contribuição no lançamento da “moda das
fadas”. O termo tão conhecido “Contos de Fadas” saiu de um livro de Mme. D’Aulnoy, publicado
em 1698, que tinha o nome de “Contes de Feés”.
O termo se generalizou na França, mesmo que nem todos os contos tragam a personagem
fada, como é o caso da maioria dos contos de Perrault. O nome de um livro para nomear um
gênero, que na verdade, deve ter separado o conto oral popular maravilhoso, que continua a
correr na boca do povo, das pessoas simples, camponesas, daqueles que eram escritos por
autores representantes da burguesia ou da aristocracia. Em outras palavras, para distinguir o que
vinha do povo, de sua forma de contar e o que se transformou em escrita.
Para Zack Zipes apud Canton (1994, p.34) crítico norte americano, os Contos de Fadas
“nasceram” dos Contos de Magia que, por sua vez, eram narrativas que possuíam uma função
utópica e emancipatória, pois eram criadas oralmente por pessoas comuns para compensar as
injustiças de seu dia a dia. Entretanto, em seu desenvolvimento histórico, os contos do povo foram
apropriados e transformados por escritores burgueses e aristocratas dos séculos XVI, XVII, XVIII,
e com a expansão das publicações os contos de magia transmitidos oralmente se tornaram um
novo gênero literário: o conto de fadas.
Esse pensamento vai ao encontro do que diz Robert Darnton (1996): os Contos de Fadas
são retratos de uma época tão difícil em que era comum fazer como a mãe de “Petit Poucet” ao
ter tantos filhos quanto Deus queria, não ter como alimentá-los, entregando-os à própria sorte:
Abandonando seus filhos na floresta, os pais do Pequeno Polegar tentavam enfrentar um
problema que acabrunhou os camponeses muitas vezes, nos séculos XVI e XVII - o problema da
sobrevivência no período de desastre demográfico. (DARNTON, 1996, p. 47).
Isto quer dizer que o cotidiano cruel dos povos, contado por eles como forma de aliviar
suas dores e sonhar uma vida melhor, foi transformado em contos escritos e legitimados como
leitura das altas rodas da corte. No decorrer do tempo, esses contos foram influenciando a
tradição oral de muitos povos.
Os irmãos Grimm
31

Jakob Ludwig Karl (1785-1863), o cientista, e Wilhelm Karl (1786-1859) o poeta. Os


famosos irmãos Grimm. Os dois nasceram em Hanau e morreram em Berlim, na Alemanha. Um
era a realidade, o outro o sonho. Eles combinavam tão bem esses dois mundos que se
completavam. Eram muito amigos e juntos estudaram e trabalharam a vida inteira.
Segundo Souza (1996, p.33), o começo de tudo estaria no fato dos irmãos conheceram
bastante a Literatura Popular espanhola, assim como sagas nórdicas, que os teriam inspirado em
sua vontade de conhecer a poesia popular alemã. Souza (1996) diz, ainda, que os dois tiveram o
cuidado e a sensibilidade de não deturpar a tradição oral. O que se contrapõe a uma visão de
outros estudiosos, entre eles Jaques Zippes, que diz que os Grimm manipularam os contos
recolhidos da oralidade, pois os mesmos dizem muito do contexto vivido por eles.
No ano de 1806, Jakob e Wilhelm começaram a reunir materiais de cunho popular. Em
1810, após muitas dificuldades, em virtude da morte de sua mãe, e os problemas de saúde de
Wilhem, o que levou Jakob a trabalhar como bibliotecário particular de um francês por quem tinha
completa aversão, eles conseguiram publicar os resultados de suas pesquisas sobre Literatura e
civilização alemã. Em 1812, saiu a primeira edição de seus KinderUndHausmarchën.
Os fatos pessoais vividos pelos autores e as questões políticas em que estava
mergulhado o seu país se refletem nas narrativas. Suas lutas pareciam com as do povo de quem
vinham suas histórias. Assim, é possível que os Grimm tenham filtrado o contado pelo povo e o
vivido realmente por eles. E em virtude disso, há uma grande possibilidade deles não terem sido
tão fiéis às vozes populares, como muitas vezes a História conta.
Na primeira edição dos contos dos Grimm, aparecem algumas narrativas já existentes na
coletânea de Perrault com um tratamento “alemanhizado”, sem que tivesse sido informada a fonte
francesa, como é o caso de “Cinderela” e “Chapeuzinho Vermelho” (Darnton, 1986, p. 24). Outros
não apareceram mais nas outras edições como por exemplo “O Barba Azul”, talvez isto tenha
ocorrido para que os contos dos Grimm não fossem associados aos de Perrault. É claro que a
omissão de algumas fontes não fizeram os contos dos dois irmãos serem menos importantes
como monumento cultural de sua Pátria.
Os Grimm passaram por provações de todas as ordens, mas conseguiram lutar contra tudo
e saírem vitoriosos e, ainda, transcenderam ao tempo deles, através de seu estilo literário, pois
as (re)criações ficavam por conta do gênio poético de Wilhelm, que exaltava o popular e o
maravilhoso e que, até hoje, influencia a cultura de muitos países. Sobre isso, Brandão (1995, p.
62) nos diz o seguinte:

Ora, todas as convergências que repontam nos KinderUndHausmarchën, nos autorizam a admitir,
no século XIX, a obra dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm como uma das fontes responsáveis pelo
surgimento da ciência do folclore no Brasil, com inegável influência na própria dinâmica do
folclore, na parte que diz respeito ao enriquecimento e difusão da literatura popular e da literatura
oral.

Não é possível negar a influência desses irmãos em nossa cultura, como Brandão (1995,
p.65) afirma ainda:
32

os irmãos Grimm foram os grandes responsáveis pelo preenchimento das horas de lazer da
sociedade brasileira, desde o primeiro quartel do século passado, quando o Brasil de torna
independente e busca inaugurar literatura própria, sob os influxos do romantismo. Especialmente
da sociedade imperial. De fato Dona Leopoldina, primeira esposa de Dom Pedro I, era austríaca e
trouxe com ela da Europa, uma plêiade de artistas e professores, que não deixariam de influenciar
nos meios culturais do Rio de Janeiro. (...) Assim, nos serões da corte, como em muitos serões
familiares das províncias, não será improvável o preenchimento de horas de lazer com a leitura do
KinderUndHausmarchën, fosse no original, fosse em traduções ou adaptações. Talvez mesmo lido
e recontado para um círculo de ouvintes.

Por conta de afirmações como essas, é que podemos observar quantas migrações
sofrem os contos de fadas, quem conta o que leu aumenta um ponto ou suprime, transforma. Daí,
Brandão (1995) ter razão em afirmar a influência que os contos dos Grimm tiveram em nosso
país, afinal as narrativas dos dois irmãos foram traduzidas e adaptadas reiteradamente até hoje,
muito mais do que qualquer outro autor. Os irmãos Grimm queriam muito mais que escrever para
a infância, tinham também uma cristalina intenção acadêmica de estudar a cultura de seu povo.
Como é possível perceber, os contos de Grimm assim como os de Perrault, são produtos
(re)escritos, moldados por valores socioculturais do contexto em que viviam seus autores, filtrados
pela visão que aqueles tinham de mundo, uma criação artística que teve como inspiração a cultura
popular, mas que reflete a formação e os valores pessoais, como toda obra literária. Mas não
podemos esquecer que os motivos centrais e universais dos contos permaneceram. As vivências
dos irmãos, as marcações de suas épocas estão presentes como códigos secundários, já que
suas interferências não chegaram à estrutura profunda dos contos, ou seja, os códigos principais
permaneceram e chegaram até nós.
Abrir um diálogo com esses autores é uma forma de entender o laço que o une o
passado ao presente, pois eles deixaram os seus olhares sobre o tempo em que viveram ao
(re)criarem, a partir do que ouviram da boca do povo ou do que leram. Por causa deles, tradição
francesa e a alemã foram transformando-se em um dos mais importantes testemunhos culturais
do Ocidente. Assim, sempre que uma pessoa lê ou conta uma história de fadas; encena para o
teatro um conto de fadas; narra uma história em discos; recria para o Ballet passos baseados nos
contos de fadas, estará abrindo um diálogo com o passado, estará dialogando com Perrault,
Grimm, Andersen portanto com tradições remotas que hoje distanciadas de seu contexto,
continuam influenciando outros contextos.
Hans Christian Andersen (1805/1875)
Se Perrault e outros escritores burgueses ou aristocratas contribuíram para difusão dos
contos de fadas escritos, não dá deixar de citar um dos maiores escritores de Contos de Fadas
que não era burguês nem aristocrata, mas que transitava por esta tradição oral mesclada com a
escrita da qual fazia parte, como pessoa do povo e contador de suas histórias, também como
criador de seus próprios contos,
Hans Christian Andersen, criador de histórias cujo contexto sócio-cultural histórico no qual
vivia está sempre presente em sua obra. Andersen era gente simples, do povo, poeta, contador de
33

histórias, artista de circo que sofreu todas as injustiças possíveis como outras pessoas de sua
classe, mas que, após muita luta, teve seus dias de glória.
Foi um célebre poeta e contador de histórias que nasceu na Dinamarca, totalmente em
sintonia com os ideais românticos que exaltavam valores populares, Andersen acaba por se
revelar uma das vozes simples e singelas que ainda hoje vive nas forças das emoções do coração
das crianças (Novaes, 1991).
Seus contos mais divulgados são os seguintes: O patinho feio, Os sapatinhos vermelhos, A
rainha das neves, O rouxinol e o imperador, O soldadinho de chumbo, A Pastora e o limpador de
chaminés, A pequena vendedora de fósforos, Pequetita, Os cisnes selvagens, A roupa nova do
imperador, O companheiro de viagem, O homem da neve e tantos outros contos, são mais ou
menos 160 contos.
Andersen também adaptou contos populares, como é o caso de a A princesa e grão de
ervilha, além de outros que ele contava para crianças. Nesse sentido não devemos esquecer que
Andersen era um artista popular, um improvisador que percorria aldeias de sua pátria contando
histórias. Ou seja, Andersen dos três artistas mais importantes dos contos de fadas, foi, talvez, o
que viveu melhor as duas possibilidades de criação: além de compilar e contar as histórias já
existentes em sua cultura, ele criou os seus próprios contos de acordo com os ideais de sua
época, sem deixar de inovar e propor novas formas de imagens construídas pelos seus
maravilhosos contos de fadas.
Para nós, ele deixou um sem número de contos que também podem ser encontrados na
tradição oral paraense, como é o caso de O Patinho Feio, Mindinha e outros que encontrei em
versão paraense. “Andersen é o próprio povo”.
O interesse desses comentários era para contextualizar Perrault. E sobre ele há ainda
muito que contar, mas não dá para falar de contos de fadas e omitir nomes tão importantes, como
os de Andersen e o dos irmãos Grimm porque, por caminhos diferentes, eles tiveram e continuam
tendo uma importância enorme na divulgação dos Contos de Fadas, e suas palavras continuam
criando novas palavras, nesse ir e vir complexo do oral/ escrito de transmissão cultural que atinge
o jeito de contar. Suas narrativas ou suas (re)criações vão se transformando, revestindo-se de
novas palavras.
As narrativas (re)criadas pela escrita, assim como aquelas de onde estas se originaram,
vão sendo “contaminadas” de acordo com o contexto sócio-histórico cultural, além de guardarem
situações narrativas ancestrais que se articulam perfeitamente em novos contextos onde os
contos são (re) escritos ou contados oralmente.
Com certeza, os contos escritos por Perrault foram muito difundidos via Literatura Infantil e
devem ter influenciado novas criações narrativas e, principalmente, devem ter enchido várias
páginas de livros que circularam no Brasil, como afirma Ferreira, (1995,p. 47):

Editoras como a Vecchi e a Quaresma, entre outras, fizeram circular suas coletâneas de livros
infantis de estórias como as da Carochinha e da Baratinha, das Mil e Uma Noites, bem como de
34

outros autores famosos, por destino e linguagens, difundidos por modas ou depositados por
afinidade no imaginário tradicional.

Além das coleções presentes na citação, outras tiveram penetração no imaginário popular,
como é o caso de “Histórias da Avozinha” e “Historias do Arco da Velha”, que tratam de contos
traduzidos e adaptados de Perrault e, principalmente, dos irmãos Grimm.
Nossos Contos da “Carochinha”

Houve no Brasil um tempo em era moda adaptar e traduzir contos maravilhosos europeus,
isto ocorreu a partir de Figueiredo Pimentel (1869/1914),primeiro autor brasileiro de livro infantil,
com as coletâneas já citadas e que tiveram uma penetração enorme no imaginário brasileiro.
Muitos contos europeus foram traduzidos por Monteiro Lobato (1882/1948)escritor e
pesquisador do folclore brasileiro, inventariou a cultura popular dando sua contribuição para a
divulgação de contos populares, como ele diz em cartas para Godofredo Rangel, reunidas em
“Barca de Gleyre”. A partir da década de 30, o “nosso folclore” entra para a Literatura Infantil numa
alusão à oralidade e à presença do negro nas histórias. No entanto, tais narrativas não eram tão
brasileiras como alguns diziam, e sim adaptações de contos europeus Monteiro Lobato sabia
disso e informa em “Histórias de Tia Nastácia”, livro escrito em 1936. No mesmo ano José Lins do
Rego escreve “Histórias de Velha Totônia” e ainda, em 36, outra coletânea é escrita por Osvaldo
Orico, “Contos da Mãe Preta e Histórias de Pai João”.
Antes de Figueiredo Pimentel, Silvio Romero, em Contos Populares do Brasil (1889) em
que havia a preocupação de resgatar o folclore brasileiro, sua formação de historiador e crítico
literário o levou pelos caminhos da recolha de narrativas da tradição oral, e delas retirou as
ferramentas para suas classificações e comparações. A maioria destas narrativas foi coligida em
Sergipe, sua cidade Natal, algumas em Pernambuco, e outras do Rio de Janeiro onde residiu
também.
Em “Histórias de Tia Nastácia”, Lobato “se inspira” na cultura popular e na coletânea de
Silvio Romero, para contar histórias da tradição oral. Mediatizadas pela escrita, essas histórias
também estiveram presentes na televisão quando a Globo adaptou e produziu o “Sítio do Pica
Pau Amarelo”. Publicou ainda “Saci Pererê”, além de ter trazido para alguns de seus livros
escritos para a infância, como é o caso de “Reinações de Narizinho” só para exemplificar,
personagens dos contos de fadas europeus para o “Sítio”. Assim, as personagens dos dois
universos contracenam, criando novas histórias.
Câmara Cascudo (1986) recolheu e publicou “Contos Tradicionais do Brasil” mostrando as
variadas formas de conto popular que circulavam no Brasil de sua época e que até hoje circulam.
E um estudo sobre o conto onde ele mostra sua famosa classificação. Essa coletânea recolhida
da tradição oral brasileira deve ter influenciado a própria tradição de onde foi recolhida. Cascudo
(1988, p. 317), em seu Dicionário do Folclore Brasileiro, nos informa o seguinte sobre o conto de
“fadas”:
35

[...] a fonte divulgadora teria sido Charles Perrault, Fées, de rápida expansão pela Europa na
segunda metade do século XVII. De Fata, fatum destino. As fadas fadam, predestinando:
“Fademos manas, fademos! ...” Denunciando o conto popular de recriação letrada. As fadas
brasileiras foram trazidas pelos portugueses, com vivos matizes das mouras encantadas,
premiando o herói com amor e riquezas infindáveis. Não existiam na literatura oral africana, de
fonte autêntica, naturalmente ausente nas memórias indígenas.

As histórias escritas por Perrault que faziam parte do imaginário francês seja porque algum
viajante já tivesse lido ou escutado histórias italianas, na pátria de autores mais antigos que o
escritor francês, seja como diz Darnton (1986) serem essas histórias inventadas a partir das
dores do povo, o é fato que para nós se trata de um universo de criação popular (re)criado por
Perrault, pelos Grimm, traduzido e adaptado no Brasil por Pimentel e por Lobato principalmente.
Os dois últimos pesquisados por Cascudo (1984) tem a ver com circuito impresso/ oral em que o
papel das edições das coletâneas de contos é muito importante na difusão e penetração dos
mesmos no imaginário brasileiro e que estão presentes na tradição paraenses.
Era uma vez, assim começa um conto de fadas, trata-se de uma forma canônica que situa
o ouvinte e/ou leitor num lugar especial para onde esse tipo de conto tem o privilégio de o levar. O
lugar é um mundo imaginário em que se pode permanecer até o e foram felizes para sempre. O
contador é o artista que preenche esses dois pontos invariantes. Assim conhecemos um conto de
fadas, algumas vezes como sinônimo de enganação, outras como “objeto museológico”.
No entanto, ao contrário do que algumas pessoas possam pensar, esses contos fazem
parte do patrimônio da memória coletiva da maioria das tradições dos mais variados países.
Moram no imaginário dos homens desde as mais antigas civilizações e tomaram a forma literária
que hoje conhecemos a partir de escritores como Perrault, um dos mais importantes e
representativos do gênero “Conto de Fadas”.
Segundo Zumthor (1997, p,51) o conto de Fadas “se constitui um indício e talvez a prova
da existência, na tradição francesa de um ‘gênero’ tido como particular...” A identidade desse
“gênero” tinha uma razão de ser no contexto cultural em que “nasceu”. Uma forma que os
franceses encontraram para ditar para o mundo mais uma “moda” a partir do advento do conto
folclórico compilado por escritores clássicos como Perrault e outros escritores franceses. Antes de
Perrault, Straparola (Le paicevolinotti, 1550) e Basile (Pentameron, 1634) já haviam feito registros
de contos populares italianos, mas que não tiveram a mesma divulgação e nem o estrondoso
sucesso dos contos franceses.
O conto é um gênero “no qual transitam formas do imaginário com aspecto ao mesmo
tempo constante, instável e evolutivo...”(Zumthor,1997.p,53). Muitas pesquisas sobre o conto
foram realizadas, ocorrendo um movimento de coleta e publicação de contos, que eram estudados
por temas, funções, dependendo da escola a qual pertencesse o pesquisador.
Assim é possível encontrar trabalhos, com as mais variadas propostas, que atingem certos
aspectos dos contos, mas que, segundo alguns pesquisadores, deixam a desejar em outros. Há
pesquisas feitas à luz da Antropologia, do Folclore, da Semiologia, da Psicanálise, do
36

Estruturalismo, da História das Mentalidades... E, se não há consenso em muitos aspectos


estudados do conto popular, e nem é de se esperar tal coisa, há para quem narra “uma realização
simbólica de um desejo; a identidade virtual que, na experiência da palavra, se estabelece um
instante entre o narrador, o herói e o ouvinte, cria, segundo a lógica do sonho...” (Zumthor, 1997,
p.55).
Antes do conto de fadas ser reconhecido como tal, o desejo de narrar, com certeza já
existia. Talvez tenha nascido pela necessidade que o homem tinha de falar de seu cotidiano, de
suas aventuras e de fenômenos que ele não sabia explicar. Para fugir da dura realidade, ele
inventa, ou quem sabe, mescla fatos reais e o que gostaria que ocorresse em sua vida, e. quem
sabe, nesse momento, tenha nascido esta forma de contar. Quando tudo começou, ninguém tem
certeza, apesar dos muitos estudos voltados para origem e ponto geográfico dos contos
populares.
Há uma marcação histórica que poderia vir a ser o primeiro conto, registrado em papiro
antiquíssimo, escrito no Egito 32 séculos atrás. Trata-se do conto “Dois Irmãos”, encontrado na
Itália, em 1852. É uma história escrita pelo escriba Anana para o príncipe SetiMemeftá, filho do
faraó Ramsés Miamum. Uma história com enredo maravilhoso cujos motivos ainda vivem nas
histórias tradicionais do Brasil (Cascudo, 1986, p, 20). Um dos motivos presente, naquele antigo
conto egípcio, do “novilho sagrado” que precisa ser sacrificado para que seu fígado seja retirado,
convive na tradição oral paraense só que transformada em “vaca encantada”. Esse exemplo de
registro escrito tão antigo mostra que tradição oral está prenhe da tradição escrita. Uma oral e
mutante, a outra cristalizada pela escrita, mas sempre tirada de dentro do livro por alguma voz-
madrinha.
Olhares Sobre os Contos de Fadas
Cada pesquisador tem uma forma de olhar os contos de fadas. Do ponto de folcloristas
como AntiAarne e StifhThompsom os contos são vistos, definidos e classificados de acordo com
os tipos e motivos básicos que são encontrados em narrativas dos mais variados países, nas mais
diferentes épocas e são incluídos na mesma categoria como, por exemplo: a floresta encantada,
aliados animais, o pai incestuoso, a árvore mágica... O sistema de classificação mais famoso é o
AT (Aarne-Thompson), que aliás recebeu o nome de seu criador, o finlandês AntiAarne (1867 -
1925) e depois traduzido e ampliado pelo americano Stifh Thompson.
Na classificação AT, os contos de fadas são listados do número 300 a 749 e subdividem-
se em grupos que envolvem aliados e adversários sobrenaturais, esposa ou marido encantados,
tarefas sobrenaturais, objetos mágicos, poderes e sabedorias sobrenaturais e outros.
No Brasil, temos várias classificações, porém a mais usada é de Câmara Cascudo, na qual
o conto de fadas16 tem o seu similar brasileiro no conto de encantamento. Câmara Cascudo

16
Estou usando deste do início o termo conto de fadas, em virtude, de ser uma marca da produção escrita desse tipo
de conto, principalmente por se tratar das “matrizes impressas” de Perrault.
37

(1984) estudou exaustivamente as mais variadas formas de expressão da cultura popular, e é


parada obrigatória para quem quer enveredar pelos caminhos da pesquisa do conto popular.
Outro olhar muito importante sobre os contos foi o de Wladimir Propp que, a partir de uma
centena de contos russos da coleção de Afanassaiev, fez sua abordagem estruturalista. O estudo
de Propp traduzido para o português iluminou e continua iluminando muitos trabalhos no Brasil.
No livro Morfologia do Conto Maravilhoso, por exemplo, Propp (1984) analisa os contos de
acordo com as funções, isto é, em temas ou seqüências particulares de acontecimentos que
organizam a narrativa. Desenvolveu um sistema de símbolos para determinar as funções pelas
quais os heróis e outros personagens passam pela narrativa. Estabeleceu um estudo
sintagmático, analisando diferentes contos de acordo com suas estruturas morfológicas
particulares e um estudo paradigmático no qual descreve as funções em número de 31, que
naturalmente não estão presentes em todas as narrativas, na verdade ocorrem saltos, sínteses,
agregações... mas que não contradizem a linha geral. Distanciamento, proibição, infração,
punição, partida, encontro com doador... são funções trabalhadas por Propp (1984). Dessa forma,
Propp definiu os contos de fadas conforme com o arranjo de suas funções, das introdutórias às
finais.
Para Propp 1984, a situação inicial ocorre a partir de uma falta, ou de uma proibição...
desenvolve-se através de outras funções intermediárias variáveis e então ocorre o desfecho,
ocasião em que geralmente surge o casamento, ou a recompensa... Ainda na linha da pesquisas
dos contos populares, Propp tem, traduzido para o português, Raizes Históricas do Contos
Maravilhosos e Édipo à Luz do Folclórico.
Os freudianos fazem suas pesquisas isolando os motivos e relacionando às questões de
maturidade sexual e social enquanto os yunguianos buscam representações arquetípicas, ou seja,
das estruturas psíquicas universais inatas ou herdadas que se exprimem por símbolos comuns a
toda Humanidade seguindo os rumos da Psicologia Analítica.
Há um olhar, que questiona as análises psicanalíticas, por se prenderem apenas nos
símbolos como se os contos não tivessem história. Trata-se de Robert Darnton (1986) que faz
uma leitura histórica dos contos e sugere que as narrativas que conhecemos como contos de
fadas escritos guardam ainda muito da mentalidade do camponês que viveu na França, há muito
tempo. Ele diz que antes de Perrault ter compilado estes contos, eles andavam na boca dos
camponeses e falam de seus sonhos, de suas fomes, de seus desejos...
De uma forma mais ampla, temos os significativos trabalhos de Paul Zumthor, alguns
como: A Letra e a Voz, Tradição e Esquecimento e Introdução à Poesia Oral já traduzidos para a
língua portuguesa. Este pesquisador levanta novas concepções acerca do texto oralizado, quando
aponta um caminho para o entendimento de múltiplas oralidades, tirando assim a idéia tão comum
de atribuir à tradição oral, e somente a ela, a originalidade de textos que circulam nesta mesma
tradição, como é o caso dos contos.
Referências
38

AARN’ES, Anti e THOMPSON, Stith. The types of the folktale: a classification and blibliografhy. Helsinki:
Indiana – University, 1961.
ARIÉS, Philipe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1991.
BRANDÃO, Adelino. A presença dos irmãos Grimm na Literatura Infanti e no folclore brasileiro. São Paulo:
Ibrasa, 1995.
CASCUDO, Luis da Camara. Literatura Oral no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo:/EDUSP,1984.
_________Contos tradicionais do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo /EDUSP, 1986.
_________Dicionário do folclore brasileiro. 7ª. Ed. Belo Horizonte/São Paulo: EDUSP,1993.
CANTON, Kátia. E o príncipe dançou: o conto de fadas, da tradição oral à dança contemporânea. Tradução
Cláudia Sant’Ana Martins, São Paulo: Ática, 1994.
COELHO, Nely Novaes. Panorama histórico da literatura infanto-juvenil. 4ª. Ed. São Paulo: Ática, 1991.
_________ Literatura Infantil: história, teoria e análise. 2ª. Ed. São Paulo: Quiron/Global, 1982.
DARTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. Tradução:
Sônia Coutinho. Rio de Janeiro: Graal, 1986
FERREIRA, Jerusa Pires. Matrizes impressas da oralidade. In Fronteiras do literário: literatura oral e popular
Brasil/França. (org) Zilá Bernd e Jacques Migozzi, Porto Alegre: EDUFRS, 1995.
OMER, Jodogne, Le fabliau (typologiedessourcesdumoyen age). Turnholt, Brepols, 1985.
PROPP, Vladimir, Morfologia do conto, Tradução Jasma P. Sardan. Rio de Janeiro: Forense, 1984.
_________ Raizes Históricas dos Contos Maravilhosos, Tradução Rosemary C. Abílio e Paulo Bezerra. São
Paulo: Martins Fontes, 1997.
SORIANO, Marc. Los cuentos de Perrault: erudición y traciones populares. Argentina: SigloVeintiuno
Editores, 1975. ( Primeira edição francesa, 1968)
ZUMTHOR, Paul. Introdução à Poesia Oral. Tradução Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia Diniz Pochat e
Maria Inês de Almeida. São Paulo. Editora: Hicitec, 1997
________A Letra e a Voz: a literatura medieval. Tradução: Amalio Ribeiro, Jerusa Pires Ferreira. São Paulo:
Cia das Letras,1993.

TEXTO 4

HISTÓRIAS E IMAGENS17
Joséa Fares (UEPA)

Este texto é baseado no artigo As transformações da imagem na literatura infantil, de


Susana Rangel Vieira daCunha (1999) e no livro “Ilustração do livro infantil, de Luiz Camargo”
(1995) e tem como pretensão estudar a literatura infantil e sua imagem, com intuito de que você
apreenda estas duas formas de expressão artista - literatura e plástica - por meio da imagem do
livro infantil no Brasil. Objetiva também contribuir para a compreensão da relação entre os
recursos poéticos da poesia e ilustração como o jogo sonoro da palavra e da imagem, o ritmo da
palavra e da imagem, entre outros.

BREVE HISTÓRICO DA IMAGEM NA LITERATURA INFANTIL

Não há dúvida de que as narrativas, sejam quais forem suas formas de transmissão e
configuração, acompanham o ser humano. As primeiras imagens nas cavernas pré-históricas
“interpretam o mundo material e mental dos homens” (OSTROWER, 1983, p. 298) e contam como
os grupos viviam seu cotidiano. Nas comunidades indígenas, o pajé concentrava a sabedoria de
um grupo não só por ter domínio dos princípios mágico-científicos, mas por ser o portador e

17
Este texto foi elaborado para a disciplina Formas de Expressão e Comunicação Artística, do curso de
Licenciatura em Pedagogia da Universidade Aberta do Brasil, em convenio com a Universidade do Estado
do Pará.
39

transmissor das histórias do mundo. Atualmente, as programações das redes televisivas, os CDs,
os computadores e outros meios de eletrônicos substituem em parte a fala dos narradores que por
tantos séculos modelaram nossas histórias.
O século XVII marca o aparecimento oficial da literatura da literatura infantil escrita. Os
narradores, antes anônimos, começam a ser conhecidos por suas características literárias.
Charles Perrault, um dos inauguradores da literatura infantil, adaptou contos medievais partindo
de temáticas populares, criando detalhes que satisfaziam a classe dominante e tinham o propósito
moralizante que nada tem haver com a camada popular que gerou os contos, mas com interesses
pedagógicos.
As primeiras ilustrações dos livros de Perrault foram realizadas pelo artista Gustave Doré
(1832 – 1883). Doré realizava os desenhos para que depois os artífices reproduzissem em uma
matriz em madeira ou metal. Desta forma, as primeiras ilustrações estavam circunscritas à
linguagem da gravura.
As primeiras ilustrações descrevem fragmentos dos textos. A cena não nos fornece dados a
mais daqueles contido nas palavras. O tratamento dado às imagens é realista/idealista, ou seja,
os objetos e pessoas representados têm a aparência física tal qual se apresenta, “não há intenção
de enfatizar as formas acima dos limites de configuração. O artista sintetiza os aspectos
individuais de um fenômeno em favor de uma generalização” (OSTROWER apud CUNHA, 2009).

Em Cinderela, a cena representada é o momento da colocação do sapatinho de cristal. Nela


é retratada uma jovem com vestido drapeado, sentada de perfil em uma cadeira de espaldar alto.
Ao lado, um homem ricamente vestido, ajoelhado, coloca o sapato na jovem. Esta composição é
estruturada em um triangulo invertido em relação à base, formado pelos braços e cabeças das
figuras. Desta forma, o olhar concentra-se nos dois personagens, depois passa para ambientação
40

da sala. A leitura que fizemos desta imagem é imediata e encerra-se nela mesma: tanto
composição quanto tratamento dado a imagem não nos possibilita outras leituras da cena.
No Brasil, em 1921, Monteiro Lobato introduz na literatura infantil ilustrações de artistas
nacionais. Além de criar muitas histórias, Lobato também adapta Andersen, Grimm, Perrault, entre
outros. Para Fanny Abramovich (1997, p. 28), Lobato reinventou o idioma, maravilhando e
espantando as crianças ao fazer conviver a fantasia com a realidade.Também foi ele o primeiro
“escritor sensível quanto à questão da ilustração nos livros infantis. Lobato preocupou-se com o
projeto gráfico de seus livros e com as ilustrações de seu miolo tendo chamado Voltolino e outros
artistas para dar vida aos seus livros”(BRANDÃO, 1995, p. 5)

As ilustrações dos livros de Lobato são mais simples, sob o ponto de vista gráfico, que as
ilustrações do Doré. O mérito destas primeiras ilustrações não se atém às ousadias gráfico-
artísticas, mas ao processo que se inicia de descolonização da imagem da literatura infantil
brasileira dirigida às crianças. Se antes as crianças tinham acesso às imagens estrangeiras, surge
Lobato, Voltolino, Belmonte e outros artistas com outra concepção visual distanciada dos modelos
europeus.
Mesmo havendo mudanças na forma de representação, o sentido e o uso das imagens na
literatura infantil continuavam sendo o mesmo: elucidar, exemplificar ou reforçar o texto literário.
Na década de 70, com o chamado ‘boom’ da literatura infantil, as histórias passam a abordar
outras temáticas mais próximas do cotidiano da criança. As ilustrações tomam outro rumo,
aproximando–se da linguagem gráfico-plástica das crianças, recuperando algumas características
gráficas, como o uso da cor, traçado, perspectiva, composição, etc. O mundo infantil passa a ter
uma identidade com um mercado específico de bens destinado a supri-lo e satisfazê-lo. Com isso,
há uma tendência de mudanças nos projetos gráficos dos livros infantis, a imagem começa a ter
tanta importância quanto o texto.
Ana Lúcia Brandão aponta a década de 80 como o marco da ilustração no mercado editorial
brasileiro e exemplifica algumas técnicas de ilustração.
É neste momento que percebemos que as editoras reconhecem que a infância vive da
visualidade dominada pelos meios de comunicação de massa. Esse momento foi um dos
41

mais bonitos porque o boom da imagem invade o mercado editorial em diferentes


expressões de diversos ilustradores que trabalham com a linguagem visual através da
caricatura, o desenho clássico, a pintura, a ilustração pura, a colagem, a fotografia...
revelando um momento único na ilustração brasileira (BRANDÃO,1995, p. 6).
1. Bonecos fotografados;

O Lobisomem O Saci – Pererê


Mitos. Marcelo Xavier (fotografia Gustavo Campos)

Pedro e o Lobo Adaptação Álvaro Apocalypse

2. Colagem
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Bem – Me – Quer. Geruza Helena Borges

Um Jeito Bom de Brincar. Texto: Elias José. Ilustração:Sônia Magalhães e Bia Sampaio

3. Computação gráfica/apropriação

De Morte!, Ângela Lago


43

Casa Assombrada. Ângela Lago


Em seus livros Sua Alteza a Divinhae De Morte!, Angela Lago se apropria de ilustrações
anônimas e antigas, no primeiro caso, e de xilogravuras de Dürer, no segundo, transformando-as
através da computação gráfica.
4. Fotografia

(Retratos Roseana Kligerman Murray)


Este breve histórico da imagem na literatura infantil mostra que houve uma gradativa
modificação na concepção e na função da imagem e, em consequência, uma transformação nos
meios e recursos expressivos que constituem a linguagem visual. O livro infantil, então, incorpora
a ilustração, que é toda imagem que acompanha um texto e pode ser desenho, pintura, fotografia,
gráfico, etc.
PROJETO GRÁFICO
Projeto gráfico é o planejamento de qualquer impresso: um cartaz, embalagem, folheto,
jornal revista. No caso do livro, o projeto gráfico abrange: formato, número de páginas, tipo de
papel, tipo e tamanho das letras, mancha (a parte impressa da página por oposição às margens),
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diagramação, (distribuição de texto e ilustração), encadernação (capa dura, brochura e etc.), tipo
de impressão (tipografia, ofsete, etc), número de cores de impressão etc.
A ilustração é um dos elementos do projeto gráfico. O livro pode não ser ilustrado, mas tem
sempre um projeto gráfico.
Um mau projeto gráfico pode empobrecer uma ilustração e/ou um bom texto: páginas muito
cheias, margens acanhadas, ilustrações mal colocadas, falta ou excesso de espaços vazios,
desalinhamentos... coisas desse tipo tiram o conforto da leitura e podem no mínimo deixar o leitor
com aquela sensação de “está bom, mas...” Um bom projeto, ao contrário, cria um ambiente
harmonioso para a ilustração e para o texto, sem priorizar nenhum deles e, ao mesmo tempo,
valoriza-os, deixando “falar” de forma bonita e agradável.
1 - Diagramação:
Seguindo as orientações do projeto gráfico, é feito o protótipo do livro. Com o número de páginas,
o texto disposto nelas, os espaços para ilustração reservados, os títulos nos seus lugares, enfim,
faz-se um modelo do que se pretende como resultado final.
2 -Técnica:
O uso de técnicas diferentes do livro infantil enriquece o universo visual da criança, estimula sua
percepção, sua apreciação estética e sua própria criação plástica.Alguns ilustradores têm uma
técnica preferida, explorando suas possibilidades nas várias obras que ilustram. Outros procuram
variá-las, cuidando para que os livros não fiquem com a mesma aparência. Veja o exemplo:
Flicts, Ziraldo:
“Flicts” é a história de uma cor à procura do seu lugar no mundo. Correndo o mundo, Flicts
procura um lugar - para brincar ou trabalhar – entre os lápis de cor, no parque, no jardim, no arco-
íris, nas bandeiras, nos países mais bonitos, nos mais distantes, nos mais antigos, no mar, no
semáforo...Cansado de procurar neste mundo, que não tinha lugar para ele, Flicts acaba por
encontrar seu lugar na lua.
“Flicts”, livro, em que o texto conta e as imagens ilustram. Nele, as imagens sozinhas não
contam a história. Porém, em vários momentos, parece que é o texto que ilustra as imagens.
Como a ilustração de página dupla em que aparece um círculo vermelho sobre fundo preto,
cortado na margem inferior por uma estreita faixa roxa.
O texto comenta:
45

Em vários momentos se estabelece um verdadeiro dialogo entre o texto e a imagem. No


encontro com o aro-íris, a palavra não aparece no texto é a imagem que diz “arco-íris”.O texto
comenta:

Em “Flicts” a cor ocupa páginas inteiras ou se limita a faixas (horizontais, verticais,


diagonais, curvas), círculos, quadrados ou partes deste, num estilo que se aproxima da estática
concretista: uso da cor chapada, sem nuances nem manchas, preferência pelas formas
geométricas etc.
POESIA E ILUSTRAÇÃO DO LIVRO INFANTIL
Poesia
é brincar com palavras
como se brinca
com bola, papagaio, pião.
(José Paulo Paes. Convite”).
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O poeta José Paulo Paes diz que “poesia é brincar com as palavras”. Nesta brincadeira
com a palavra o poeta pode brincar de maneiras diferentes:
Sonoridade
Um dos recursos poéticos mais comuns no jogo sonoro é a rima, ou seja, a semelhança sonora no
final das palavras:
belo dia movimentado
acontece rápido
como desenho animado.(Ulisses Tavares)
Outro recurso poético usado no jogo da sonoridade é a aliteração, isto é, a repetição de
consoantes com o mesmo som, como exemplo, o poema “Roda na rua” de Cecília Meireles:
Roda na rua

Roda na rua
a roda do carro.

Roda na rua
a roda das danças.

A roda na rua
roda de barro

Na roda da rua
rodavam crianças.

O carro, na rua.
Ritmo
“O ritmo está presente no poema, nos versos e nas próprias palavras. Toda palavra tem um ritmo
que resulta da alternância de sílabas fortes (tônicas) e fracas (átonas). O verso combina ritmos de
cada palavra, formando uma nova estrutura rítmica” (CAMARGO,1995).
Ritmo

Na porta
a varredeira varre o cisco
varre o cisco

Na pia
a menina escova os dentes
escova os dentes

No arroio
a lavadeira bate a roupa
bate a roupa
bate a roupa

até que enfim


se desenrola
toda corda
e o mundo gira imóvel como um pião!
(Mário Quintana)

Ritmo Visual
Elementos que compõe a linguagem gráfica: linha, ponto textura, volume, luz, etc, estes
elementos se articulam para construção de espaços gráficos. Na poesia, o ritmo resulta, dentre
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outras coisas, da repetição e/ou alternância de sons, silabas, expressões, etc. De forma
semelhante o ritmo visual resulta da repetição/alternância de elementos visuais como, linhas,
formas e cores.
Estrutura linear.
A estrutura linear é o resultado de repetição de linhas, procedimento utilizado por Eleonora
Affonso ao ilustrar “O chão e o pão” de Cecília Meireles.

O poema apresenta, de forma sintética, a semeadura do trigo, a feitura do pão até chegar na
mão de quem vai comê-lo, concluindo com a recomendação de que não se deve jogar o pão no
chão. O texto valoriza a sonoridade e o ritmo das palavras.A ilustração representa hastes de trigo
que se inclinam de cima para baixo, sugerindo um trigal balançando com o vento.Assim como o
poema valoriza a estrutura sonoro-ritmica, a ilustração valoriza a estrutura rítmica das linhas.
Estrutura formal
A estrutura formal resulta da repetição de formas. Como exemplo, temos a capa do livro “Boi da
cara preta”, de Sergio Caparelli, ilustrado por Caulos que representa a cabeça de um boi com uma
flor na boca.
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Assim temos uma forma oval que se repete nos olhos, nas narinas, nas orelhas e na corola
da flor. Nos chifres, outra forma se repete, de um lado o chifre é uma lua crescente. Num olho há
um brilho com forma de uma pequena estrela, no outro o brilho tem a forma de uma estrela quase
do tamanho do olho. O boi é azul, os chifres amarelos. O fundo é azul. O ilustrador sugere que o
boi da cara preta do título do livro – que lembra uma cantiga infantil – é a personificação da
noite.O ritmo visual aqui é resultado da repetição de formas.
Estrutura cromática
A estrutura cromática resulta da repetição de cores, como nos apresenta Helena Alexandrino ao
ilustrar “Acolchoadas trilhas”, de Roseana Murray. O ritmo visual aqui é resultado da repetição e
alternância de formas e cores, combinando a estrutura formal e cromática.
49

ESTILOS DE REPRESENTAÇÃO
O ilustrador pode ter diversas atitudes em relação ao que vai representar. (Duas edições de “Arca
de Noé”, de Vinicius de Moraes, uma ilustrada por Antônio Bandeira e a outra por Marie Louise
Nery, cada ilustrador com sua forma de representar).

Antônio Bandeiras Marie Louise Nery


São Francisco
(Vinícius de Moraes)
Lá vai São Francisco
Pelo caminho
De pé descalço
Tão pobrezinho
Dormindo à noite
Junto ao moinho
Bebendo a água
Do ribeirinho.

Lá vai São Francisco


De pé no chão
Levando nada
No seu surrão
Dizendo ao vento
Bom-dia, amigo
Dizendo ao fogo
Saúde, irmão.
Lá vai São Francisco
Pelo caminho
Levando ao colo
Jesuscristinho
Fazendo festa
No menininho
Contando histórias
Pros passarinhos.
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Descrição
Ênfase na função descritiva, como Regina Rennó faz ao ilustrar “Lua nova”, de Wania Amarante.
A ilustração representa uma menina com uma camiseta azul com um veleiro estampado em cinza
claro. A menina tem um colar com um pingente em forma de lua crescente. A metáfora da lua
como “joia brilhante” é visualizada pela ilustração através de uma joia com forma de lua.

Lua Nova
Moda é um caso sério
Um dia se usa colar de pedra,
No outro um fiozinho de prata,
Tal aquela jóia brilhante
Que se deita radiante
No estojo azul-marinho do céu

Rabiscação
Ênfase na gestualidade do desenho. O traço não quer ser apenas contorno de uma forma, mas o
registro de um movimento, um risco, um rabisco, uma pincelada, como Rubens Matuck faz em
“Olha o bicho”, de José Paulo Paes. Exemplo:

Abstração
A ênfase na geometrização ou na rabiscação conduzem a um progressivo afastamento do objeto,
podendo chegar à abstração, como “Flicts”, de Ziraldo, ou “Raul” de Bartolomeu Campos Queiros
com programação visual de Mário Cafieiro.
51

Humanização (ou antropomorfização)


A representação se caracteriza pela humanização de seres dos reinos animal, mineral, vegetal e
objetos. O ilustrador atribui a estes seres características humanas como rosto, posturas eretas,
mãos, vestuários, etc. A exemplo desse estilo temos Zélio ilustrando o texto de Ciça.

FIGURAS DE LINGUAGEM VISUAL


Assim como o poeta utiliza figuras de linguagem para “brincar com as palavras”, o ilustrador utiliza
figuras de linguagem visual, como a metáfora e a ampliação.
METÁFORA VISUAL
A ilustração visualiza uma idéia. Ex: Luiz Maia ao ilustrar o poema de Edward Lear.:
A ilustração apresenta uma mulher com uma caravela na cabeça, visualizando a idéia fixa que
não sai da cabeça. A mulher da ilustração se olha no espelho, o que traduz visualmente “refletir”
sempre sobre a mesma coisa, sem nenhuma intenção de realizá-la.
52

Referências
ABRAMOVICH, Fanny. Literatura Infantil – Gostosuras e bobices. São Paulo: Scipine, 1997.
APOCALYPSE, Álvaro. Pedro e o Lobo. Adaptação de Álvaro Apocalypse. Editora Del Rey, 2002.
BORGES, Geruza Helena. Bem me quer. Belo Horizonte, MG: Mazza Edições, 1983
BRANDÃO, Ana. Caracol da ilustração. Catálogo dos ilustradores brasileiros. São Paulo: Instituto Goete,
1995.
CAMARGO, Luiz. Ilustração do livro infantil. Belo Horizonte. ED. Lê, 1995
CAPARELLI, Sergio. Boi da cara preta. Ilustrado por Caulos. Porto Alegre: 1983.
CUNHA, Susana Rangel V. da. As transformações da imagem na literatura infantil. In: PILAR, AnaliceOrg(s),
A educação do olhar no ensino das artes. 5ª Ed. Porto Alegre: Mediação 2009.
ECO, Umberto. História da Beleza. Rio de Janeiro: Record, 2010.
ECO, Umberto. História da Feiúra. Rio de Janeiro: Record, 2007.
FEITOSA, Charles. Explicando a filosofia com arte. Rio de Janeiro: Editora, 2004.
JOSÉ, Elias. Um jeito bom de brincar. São Paulo: FTD, 2002.
LAGO, Ângela. Casa Assombrada. Belo Horizonte, MG: Editora RHJ, 1993
LAGO, Ângela. De Morte! Belo Horizonte: Editora RHJ, 1993.
MORAES, de Vinicius. A arca de Noé. Ilustração: Antonio Bandeira. Rio de Janeiro: Editora Record, 1984.
MORAES, de Vinicius. A arca de Noé. Ilustração: Marie Louise Nery. 14. Ed., Rio de Janeiro, J. Olympio,
1984.
MURRAY, Roseana Kligerman. Retrato. Belo Horizonte, MG: Editora Miguilim. 1995.
OSTROWER, Fayga. Universo da Arte. Rio de Janeiro. Campos. 1983.
PIMENTEL, Figueiredo. Contos da Carochinha, 1992.
QUEIRÓS, Campos Bartolomeu. Raul-Luar. São Paulo:Editora Salesiana Dom Bosco, 1986.
RAHDE, Maria Beatriz. Leituras Iconográficas e Pós- Modernidade: da criação humana à criação do
humano/máquina. [Editorial] FAMECOS, nº 11, pg 75, dez, 1999.
XAVIER, Marcelo. Mitos: O folclore do Mestre André. Belo Horizonte: Formato Editorial, 1997
ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. São Paulo: Global, 1981
ZIRALDO. Flicts. São Paulo, SP: Ed. Melhoramentos, 1989.
53

TEXTO 5
A ESCOLARIZAÇÃO DA LITERATURA INFANTIL E JUVENIL18
Magda Soares

Comecemos por analisar o tema desta exposição: que relações existem entre o processo de
escolarização e a literatura infantil? Sob que perspectivas podem essas relações ser analisadas?
Numa primeira perspectiva, podem-se interpretar as relações entre escolarização, de um
lado, e literatura infantil, de outro, como sendo a apropriação, pela escola, da literatura infantil:
nesta perspectiva, analisa-se o processo pela qual a escola toma para si a literatura infantil,
escolariza-a, didatiza-a, pedagogiza-a, para atender a seus próprios fins – faz dela uma literatura
escolarizada.
Uma segunda perspectiva sob a qual podem ser consideradas as relações entre
escolarização, de um lado, e literatura infantil, de outro, é interpretá-las como a produção, para a
escola, de uma literatura destinada a crianças: nesta perspectiva, analisa-se o processo pelo qual
uma literatura é produzida para a escola, para os objetivos da escola, para ser consumida na
escola, pela clientela escolar – busca-se literatizar a escolarização infantil.
Uma e outra dessas duas perspectivas suscitam a questão, tão debatida e nunca resolvida,
do conceito de literatura infantil: quer se pense em uma literatização da escolarização infantil, ou
seja, quer se considere a literatura infantil como produzida independentemente da escola, que
dela se apropria, quer se considere a literatura infantil como literatura produzida para a escola, o
que caracteriza uma determinada literatura como infantil?
À primeira perspectiva está subjacente o conceito de que há uma literatura que é destinada
a, ou que interessa a crianças, da qual a escola lança mão para incorporá-las às suas atividades
de ensino e aprendizagem, às suas intenções educativas. Não cabe aqui discutir se literatura
infantil é uma literatura destinada acrianças ou uma literatura que interessa a crianças, mas vale a
pena recordar a questão que Carlos Drummond de Andrade tão bem formulou já no início dos
anos 40, e que ainda hoje permanece irrespondida:
O gênero “literatura infantil” tem, a meu ver, existência duvidosa. Haverá música infantil? Pintura
infantil? A partir de que ponto uma obra literária deixa de constituir alimento para o espírito da criança ou do
jovem e se dirige ao espírito do adulto? Qual o bom livro para crianças, que não seja lido com interesse pelo
homem feito? Qual o livro de viagens ou aventuras, destinados a adultos, que não possa ser dado à criança,
desde que vazado em linguagem simples e isento de matéria de escândalo? Observados alguns cuidados de
linguagem e decência, a distinção preconceituosa se desfaz. Será a criança um ser à parte, estranho ao
homem, e reclamando uma literatura também à parte? Ou será a literatura infantil algo de mutilado, de
reduzido, de desvitalizado – porque coisa primária, fabricada na persuasão de que a imitação da infância é a
própria infância? (Carlos Drummond de Andrade, Literatura Infantil, em Confissões de Minas)

18
InMARTINS, Aracy Alves etHeliana Maria Brina Brandão, Maria Zélia Versiani Machado (organizadoras).
A escolarização da leitura literária – O jogo do livro infantil. Belo Horizonte: Autêntica, 1999 (p.17-48).
54

A pergunta de Carlos Drummond de Andrade – “Será a criança um ser à parte, reclamando


uma literatura também à parte?” – conduz à mencionada segunda perspectiva sob a qual podem
ser analisadas as relações entre escolarização e literatura infantil: quando se pensa em uma
literatura produzida para crianças e jovens, o que significa produzida para a clientela escolar,
portanto, produzida para consumo na ou através da escola, a expressão escolarização da
literatura infantil toma o sentido de literatização do escolar, isto é, de tornar literário o escolar.
Este conceito de literatura infantil pode parecer, aos mais radicais, uma heresia – talvez
seja, mas deve-se também reconhecer que sempre se atribuiu à literatura infantil (como também à
juvenil) um caráter educativo, formador, por isso ela quase sempre se vincula à escola, a
instituição, por excelência, educativa e formadora de crianças e jovens; lembre-se, por exemplo,
que Monteiro Lobato, quando publicou A menina do nariz arrebitado, em 1921, caracterizou-o, na
capa, como “livro de leitura para as segundas séries”, o livro foi anunciado como “um novo livro
escolar aprovado pelo governo de São Paulo”, e a edição foi realmente vendida para o governo de
São Paulo para que o livro fosse adotado nas escolas.
Nessa mesma linha de raciocínio, é interessante observar como o desenvolvimento da
literatura infantil e juvenil no Brasil acompanha o ritmo de desenvolvimento da educação escolar;
basta citar o chamado boom da literatura infantil e juvenil, que coincide, não por acaso, com o
momento da multiplicação de vagas na escola brasileira. Parece mesmo que, ao longo do tempo,
a literatura infantil e juvenil foi-se aproximando cada vez mais da escola. Há autores que vêm
apontando (ou denunciando?) a clara vinculação, atualmente, da literatura infantil e juvenil à
escola: Marisa Lajolo fala do “pacto da literatura infantil com a escola”, um pacto que se traduz em
“pacto entre produtores e distribuidores”1, isto é, entre os autores que produzem e a escola que
distribui, e Nelly Novaes Coelho afirma que, a partir de meados dos anos 70, o livro infantil se
tornou “uma leitura que, mais do que simples divertimento, é um fecundo instrumento de formação
humana, ética, estética, política, etc.”, e ainda diz que a literatura infantil “oferece matéria
extremamente fecunda para formar ou transformar mentes”, pois é “um dos mais eficazes dos
instrumentos de formação dos imaturos”2. Fica claro esse “pacto” da literatura infanto-juvenil com
a escola quando se lembram: as fichas de leitura que atualmente acompanham quase todo livro
infantil e juvenil; a presença frequente e maciça de escritores de literatura infantil e juvenil na
escola; o grande número de escritores de literatura infantil e juvenil que são professores.
Esta exposição, que tem por tema a escolarização da literatura infantil, poderia, pois,
desenvolver-se a partir da interpretação das relações entre literatura infantil e escolarização como
sendo a produção de literatura para a escola, para a clientela escolar, poderia discutir a
literatização do escolar.3
Mas a opção aqui é analisar o tema escolarização da literatura infantilsob a outra
perspectiva apontada, isto é, tomando as relações entre literatura infantil e escolarização como
55

sendo a apropriação, pela escola, para atender a seus fins específicos, de uma literatura
destinada à criança, ou que interessa à criança.
No quadro dessa opção, comecemos por discutir o termo escolarização.

Escolarização
O termo escolarizaçãoé, e geral, tomado em sentido pejorativo, depreciativo, quando
utilizado em relação a conhecimentos, saberes, produções culturais; não há conotação pejorativa
em “escolarização da criança”, em “criança escolarizada”, ao contrário, há uma conotação
positiva; mas há conotação pejorativa em “escolarização do conhecimento”, ou “da arte”, ou “da
literatura”, como há conotação pejorativa nas expressões adjetivadas “conhecimento
escolarizado”, “arte escolarizada”, “literatura escolarizada”. No entanto, em tese, não é correta ou
justa a atribuição dessa conotação pejorativa aos termos “escolarização” e “escolarizado”, nessas
expressões.
Não há como ter escola sem ter escolarização de conhecimentos, saberes, artes: o
surgimento da escola está indissociavelmente ligado à constituição de “saberes escolares”, que se
corporificam e se formalizam e currículos, matérias e disciplinas, programas, metodologias, tudo
isso exigido pela invenção, responsável pela criação da escola, de um espaçode ensino e de um
tempo de aprendizagem.
A diferença fundamental entre o aprendizado corporativo medieval e o aprendizado
escolar que se difundiu no mundo ocidental, a partir sobretudo do século XVI, foi uma revolução
do espaço de ensino: locais dispersos mantidos por professores isolados e independentes foram
substituídos por um prédio único abrigando várias salas de aula; como consequência e exigência
dessa invenção de um espaço de ensino, uma outra “invenção” surge, um tempo de ensino:
reunidos os alunos num mesmo espaço, a idéia de sistematizar o seu tempo se impunha, idéia
que se materializou numa organização e planejamento das atividades, numa divisão e graduação
do conhecimento, numa definição de modos de ensinar coletivamente. É assim que surgem os
graus escolares, as séries, as classes, os currículos, as matérias e disciplinas, os programas, as
metodologias, os manuais e os textos – enfim, aquilo que constitui até hoje a essência da escola.
Assim, a escola é uma instituição em que o fluxo das tarefas e das ações é ordenado
através de procedimentos formalizados de ensino e de organização dos alunos em categorias
(idade, grau, série, tipo de problema, etc.), categorias que determinam um tratamento escolar
específico (horários, natureza e volume de trabalho, lugares de trabalho, saberes a aprender,
competências a adquirir, modos de ensinar e de aprender, processos de avaliação e de seleção,
etc.). É a esse inevitável processo – ordenação de tarefas e ações, procedimentos formalizados
de ensino, tratamento peculiar dos saberes pela seleção, e consequente exclusão, de conteúdos,
pela ordenação e sequenciação desses conteúdos, pelo modo de ensinar e de fazer aprender
esses conteúdos – é a esse processo que se chama escolarização, processo inevitável, porque é
da essência mesma da escola, é o processo que a institui e que a constitui.
56

Portanto, não há como evitar que a literatura, qualquer literatura, não só a literatura infantil
e juvenil, ao se tornar “saber escolar”, se escolarize, e não se pode atribuir, em tese, como dito
anteriormente, conotação pejorativa a essa escolarização, inevitável e necessária; não se pode
criticá-la ou negá-la, porque isso significaria negar a própria escola.
Disse em tese porque, na prática, na realidade escolar essa escolarização acaba por
adquirir, sim, sentido negativo, pela maneira como ela tem se realizado, no quotidiano da escola.
Ou seja: o que se procura criticar, o que se deve negar não é a escolarização da literatura, mas a
inadequada, a errônea, a imprópria escolarização da literatura, que se traduz em sua deturpação,
falsificação, distorção, como resultado de uma pedagogização ou uma didatização mal
compreendidas que, ao transformar o literário e escolar, desfigura-o, desvirtua-o, falseia-o. (É
preciso lembrar que essa escolarização inadequada pode ocorrer não só com a literatura, mas
também com outros conhecimentos, quando transformados em saberes escolares).
Esta exposição poderia, assim, discutir a inevitável e necessária escolarização da
literatura infantil e juvenil, e como fazê-la de forma adequada; na verdade, toda a bibliografia
prescritiva sobre a literatura na escola é uma bibliografia sobre como promover uma escolarização
adequada da literatura: como se deve ensinar literatura, como se deve trabalhar com o texto
literário, como se deve incentivar e orientar a leitura de livros.
Mas não é essa a discussão que se pretende desenvolver aqui; o que se pretende é
discutir como a literatura infantil tem sido inadequadamente escolarizada, erroneamente
escolarizada; discutindo isso, implicitamente se estará apontando como ela poderia ser
adequadamente escolarizada. Sendo assim, o tema desta exposição deveria, talvez, ganhar um
adjetivo, e tornar-se: A inadequada escolarização da literatura infantil.
Antes, porém, de desenvolver assim o tema, é necessário lembrar as principais instâncias
de escolarização da literatura infantil e, assim, contextualizar aquela que será aqui privilegiada.
Instâncias de escolarização da literatura infantil
São três as principais instâncias de escolarização da literatura em geral, e particularmente
da literatura infantil: a biblioteca escolar; a leitura e estudo de livros de literatura, em geral
determinada e orientada por professores de Português; a leitura e estudo de textos, em geral
componente básico de aulas de Português. Esta última instância é que será aqui privilegiada,
mas, para contextualizá-la, é importante desenvolver algumas considerações sobre as outras
duas.
 A biblioteca como instância de escolarização da literatura
Na biblioteca, escolariza-se a literatura infantil (aliás, a literatura em geral) através de
diferentes estratégias.
A primeira estratégia é a próprio estabelecimento de um local escolar de guarda da e de
acesso à literatura4, um local escolar a que se atribui um estatuto simbólico que constrói uma
certa relação escolar com o livro, fundadora da relação posterior do aluno com a instituição social
57

não escolar “biblioteca” (biblioteca pública, ou biblioteca de instituição não escolar, ou mesmo
biblioteca particular).
Uma segunda estratégia é a organização do espaço e do tempo de acesso aos livros e de
leitura – onde se pode ou se deve ler (na própria biblioteca escolar? em que lugar da biblioteca?),
quando e durante quanto tempo se pode ler (durante a “aula de biblioteca”? quando se pode ir à
biblioteca buscar um livro? Quanto tempo se pode ficar com o livro?).
Uma outra estratégia é a seleção dos livros – quais livros a biblioteca oferece à leitura, que
livros exclui ou “esconde”, que livros expõe mais abertamente.
Há ainda as estratégias de socialização da leitura: quem indica ou orienta a escolha do livro
a ler – a professora? a bibliotecária? que créditos definem a orientação seletiva de leitura para
uma série ou outra, para meninos ou para meninas? a orientação seletiva para tipos e gêneros de
leituras, de autores?
Também a determinação de rituais de leitura constitui estratégia de escolarização da
literatura no âmbito da biblioteca – desde as fichas que é preciso preencher e respeitar, até como
se deve ler (em silêncio, sem escrever no livro, passando as páginas de certa maneira, não
dobrando o livro, etc.) e em que posição se deve ler (sentado adequadamente, segurando o livro
de certa maneira, etc.)
 A leitura de livros como instância de escolarização da literatura
A leitura e estudo dos livros de literatura – a segunda instância mencionada – escolariza a
literatura também por diferentes estratégias.
Em primeiro lugar, a leitura é determinada e orientada, como já foi dito, por professores, e
geral os de Português, portanto, configura-se como tarefa ou dever escolar, sejam quais forem as
estratégias para mascarar esse caráter de tarefa ou dever – jamais a leitura dos livros no contexto
escolar, seja ela imposta ou solicitada ou sugerida pelo professor, seja o livro a ser lido indicado
pelo professor ou escolhido pelo aluno, jamais ela será aquele “ler para ler” que caracteriza
essencialmente a leitura por lazer, por prazer, que se faz fora das paredes da escola, se se quer
fazer e quando se pode fazer.
Além disso, a leitura é sempre avaliada, por mais que se mascarem também as formas de
avaliação – que se dê uma prova, que se peça preenchimento de ficha, que se promova trabalho
em grupo, seminário, júri simulado, enfim, que se use seja qual for a estratégia, das muitas que a
bibliografia de uma pedagogia renovadora vem sugerindo, sempre a leitura feita terá de ser
demostrada, comprovada, porque a situação é escolar, e é da essência da escola avaliar (o
simples fato de se estar sempre discutindo que é preciso não avaliar explicitamente, de se criarem
estratégias as mais engenhosas para verificar se a leitura foi feita, e bem feita, evidencia como a
leitura é escolarizada). Lembre-se que, fora da escola, nunca temos de demonstrar, comprovar
que lemos, e que lemos bem, um livro.
Com esses breves comentários sobre essas duas instâncias de escolarização da literatura
– a biblioteca escolar e a leitura de livros – o que se quer deixar claro é que a literatura é sempre e
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inevitavelmente escolarizada, quando dela se apropria a escola; o que se pode distinguir entre
uma escolarização adequada da literatura - aquela que conduza mais eficazmente às práticas de
leitura que ocorrem no contexto social e às atitudes e valores que correspondem ao ideal de leitor
que se quer formar – é uma escolarização inadequada, errônea, prejudicial da literatura – aquela
que antes afasta que aproxima de práticas sociais de leitura, aquela que desenvolve resistência
ou aversão à leitura.
Assim, é contraditória e até absurda a afirmação de que “é preciso desescolarizar a
literatura na escola” (como tornar não escolar algo que ocorre na escola, que se desenvolve na
escola?) ou a “acusação” de que a leitura e o leitor são escolarizados na e pela (como não
escolarizar na escola? Como pode a escola não escolarizar?). O que, sim, se pode afirmar é que
é preciso escolarizar adequadamente a literatura (como, aliás, qualquer outro conhecimento).
O mesmo se pode dizer com relação à terceira instância de escolarização da literatura: a
leitura e o estudo de textos, e geral componente básico das aulas de Português, instância
privilegiada na discussão que se faz neste texto.

A leitura e estudo de textos como instância de escolarização da literatura


Ao lado do acesso ao livro na biblioteca escolar, ao lado da leitura de livros promovida nas
aulas de Português, a literatura se apresenta na escola sob a forma de fragmentos que devem ser
lidos, compreendidos, interpretados. Certamente é nesta instância que a escolarização da
literatura é mais intensa; e é também nesta instância que ela tem sido mais inadequada.
Consideramos quatro aspectos principais da leitura de textos na escola: a questão da
seleção de textos: gêneros, autores e obras; a questão da seleção do fragmento que constituirá o
texto a ser lido e estudado; a questão da transferência do texto de seu suporte literário para um
suporte didático, a página do livro didático; e, finalmente, talvez o mais importante, a questão das
intenções e dos objetivos da leitura e estudo do texto.
Para discutir cada um desses aspectos, vão ser tomados exemplos de livros didáticos de
1ª a 4ª séries do primeiro grau, com o objetivo de ilustrar e caracterizar a escolarização
inadequada da literatura infantil na instância da leitura e estudo de textos; não serão mencionados
títulos e autores dos livros de que são extraídos os exemplos, já que estes são apenas modelares
– indicar título e autoria significaria não só individualizar o que é genérico, mas também penalizar
uma determinada obra e um determinado autor por falhas que são frequentes nos livros didáticos
em geral.5

A seleção de gêneros, autores e obras


Os gêneros literários nos livros didáticos
No quadro da grande diversidade de gêneros literários, há, na grande maioria dos livros
didáticos destinados às quatro primeiras séries do primeiro grau, nítida predominância dos textos
narrativos e poemas, embora estes tenham quase sempre papel secundário e subsidiário; o teatro
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infantil está quase totalmente ausente; o gênero epistolar, a biografia, o diário, as memórias,
gêneros que têm presença significativa na literatura infantil, estão também quase totalmente
ausentes.
Dos textos narrativos se tratará adiante, ao discutir a desestruturação a que é submetida a
narrativa nos livros didáticos; cabe aqui apontar o tratamento que neles é dado à poesia, quase
sempre descaracterizada: ou se insiste apenas em seus aspectos informais – conceito de estrofe,
verso, rima, ou, o que é mais frequente, se usa o poema para fins ortográficos ou gramaticais.
Vejam-se dois exemplos (os grifos são meus):

LEIA O TEXTO E SUBLINHE ORTOGRAFIA


TODOS OS SUBSTANTIVOS Sílabas terminadas em s
COMUNS: LEIA OS VERSOS E SUBLINHE TODAS AS
PALAVRAS COM SÍLABAS TERMINADAS EM
QUE BORBOLETA! S:
Que borboleta é aquela O PASTELEIRO
Que não gosta de flor Nem todo japonês é pasteleiro
E vive perseguindo mosquitos, mas todo pasteleiro é japonês
Dando piruetas no ar? fazendo garapa e pastel
- É uma lagartixa maluca à espera do freguês.
Que se vestiu com uma gravata-
borboleta O pastel aparece na hora
E conseguiu voar. estufa, surge do nada
surpresa quente e boa
NANI. Cachorro quente uivando para junto à garapa gelada.
a lua. Belo Horizonte: Formato (seguem-se outra duas estrofes)
Editorial, 1987. FLORA. Ana. Em volta do quarteirão. Rio de
Janeiro: Salamandra, 1986.

Mvnac, dsv,dckjsd

É desnecessário apontar a inadequação do uso dos poemas para identificar substantivos


comuns ou para encontrar palavras com determinado tipo de sílaba; a poesia é aqui pretexto para
exercícios de gramática e ortografia, perde-se inteiramente a interação lúdica, rítmica com os
poemas, que poderia levar as crianças à percepção do poético e ao gosto pela poesia.
Seleção de autores e obras
Também aqui se verifica a inadequada escolarização da literatura infantil. Em primeiro lugar
– aspecto que é, certamente, o menos grave – há uma grande recorrência dos mesmos autores e
das mesmas obras nas coleções didáticas para as quatro primeiras séries do primeiro grau.
Poemas são longamente buscados, ao longo das quatro séries, em obras de larga divulgação,
como Ou isto ou aquilo, de Cecília Meireles, A Arca de Noé, de Vinícius de Moraes, ou em autores
mais amplamente conhecidos, como Elias José, Sérgio Caparelli, Roseana Murray. A mesma
recorrência de autores e obras ocorre na seleção de textos narrativos: Ruth Rocha, Ana Maria
Machado, Pedro Bandeira, Ziraldo são autores que aparecem repetidamente; os livros Marcelo,
marmelo, martelo, O menino maluquinho, A fada que tinha idéiastêm lugar cativo nos livros
didáticos. São, inegavelmente, bons poemas, boas narrativas, excelentes poetas e excelentes
escritores; entretanto, oferece-se à criança uma gama restrita de autores e obras, quando a
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literatura infantil brasileira, em prosa e verso, é bastante rica e diversificada. O resultado será ou
tem sido aquele mesmo que ocorreu com gerações anteriores, já que parece ser antiga esta
característica da escolarização da literatura: quem, entre aqueles que frequentaram a escola nos
anos 50 e 60, não se lembra de Visita à casa paterna, de Luís Guimarães Jr., de As pombas, de
Raimundo Correia, de Ouvir estrelas, de Olavo Bilac, de Um apólogo, de Machado de Assis?
Uma seleção limitada de autores e obras resulta em uma escolarização inadequada,
sobretudo porque se forma o conceito de que literatura são certos autores e certos textos, a tal
ponto que se pode vir a considerar como uma deficiência da escolarização o desconhecimento,
pela criança, daqueles autores e obras que a escola privilegia...quando talvez o que se devesse
pretender seria não o conhecimento de certos autores e obras, mas a compreensão do literário e
o gosto pela leitura literária (voltando às gerações que frequentaram a escola nos anos 50 e 60: é
considerado “falta de cultura” o desconhecimento, por aqueles pertencentes a essas gerações, de
“Ora direis, ouvir estrelas...certo perdeste o senso...”, mas não se considera “falta de cultura” a
insensibilidade para o literário e o “desgosto” pela leitura literária).
Um outro aspecto que revela a inadequada escolarização da literatura infantil é que,
excetuados os autores e obras recorrentemente utilizados, porque amplamente conhecidos, como
dito acima, verifica-se a ausência de critérios apropriados para a seleção de autores e textos; na
verdade, ou se lança mão de obras e autores muito conhecidos, ou de autores pouco
representativos e obras de pouca qualidade. É muito comum, por exemplo, a inclusão de textos do
próprio autor do livro didático, veja-se, por exemplo, a escolarização – inadequada – da poesia,
pela apresentação à criança do seguinte poema:
Pare! Atenção!

O Joãozinho é distraído.
Em nada presta atenção.
Mas Totó, o seu amigo,
É um excelente cão.

Lá vêm os dois na calçada.


E agora, olhem só!
Na hora de atravessar,
vejam o que fez Totó:

Morde a calça do menino!


“Ficou louco este cão?”
Não, Joãozinho! O amarelo
mostra: Pare! Atenção!

A finalidade “instrutiva” do poema, a estrutura elementar e a precariedade dos aspectos


rítmicos e das rimas certamente distorcem o conceito de poesia e a caracterização de poema – é
sem dúvida uma inadequada escolarização da literatura (?) infantil.
Ainda um último aspecto que convém mencionar, no que se refere à seleção de autores e
obras, é a muito frequente ausência, nos livros didáticos, de referência bibliográfica e de
informações sobre o autor do texto: o texto torna-se independente da obra a que pertence,
desapropria-se o autor de seu texto – mais uma forma da escolarização inadequada de literatura;
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uma escolarização adequada desenvolveria no aluno o conceito de autoria, de obra, de fragmento


da obra.

A seleção do fragmento que constituirá o texto

Em livros didáticos encontram-se, em geral, como textos para a leitura, fragmentos de textos
maiores, já que é preciso que as atividades de desenvolvimento de habilidades de leitura tenham
por objeto textos curtos, para que possam ser analisados estudados em profundidade no tempo
limitado imposto pelos currículos e horários escolares – esta é mais uma das características
(exigências?) da inevitável escolarização da literatura. Entretanto, ao selecionar o fragmento de
um texto, este tem de constituir-se, ele também, como texto, isto é: uma unidade de linguagem,
tanto do ponto de vista semântico – uma unidade percebida pelo leitor como um todo significativo
e coerente – quando do ponto de vista formal – uma unidade e que haja integração dos
elementos, que seja percebida como um todo coeso.
Para escapar à dificuldade desta tarefa, muitas vezes são forjados “textos”, na verdade,
pseudotextos: o próprio autor do livro didático produz o “texto”, e em geral o faz não propriamente
como o objetivo de desenvolver atividades de leitura, mas de ensinar sobre a língua – ensino de
gramática, de ortografia; eis um exemplo:
A jibóia e a girafa

Umajibóia gigante estava de boca aberta, pronta


para engolir a girafa, quando esta, sabendo que
a cobra tinha medi de injeção, disse:
- Se me comer, vai ficar com indigestão. Vem o
guarda da floresta e lhe enfia na boca uma tigela
de jiló. E, ainda, lhe aplica uma injeção.
A jibóia se encolheu toda. Daí, começou a
cantar trovas:
Pajé jeitoso sentado na sarjeta comendo
jerimum. Megera rabugenta com cara de
gengibre e gosto de jejum. Tem pintas de
ferrugem e apanha tangerina na laranjeira da
Oscarlina. Vi anjinho guiar jipe e um outro imitar
gorjeio do sabiá do rodeio. Girafa que não corre,
fica, e comê-la será canjica.
A girafa fugiu.
je ji * gegi

Desnecessário comentar a falta de coerência deste pretenso “texto”: uma jibóia, por
gigante que seja, jamais poderia engolir uma girafa...jibóia com medo de injeção?! E por que a
tigela de jiló? E onde estão as “trovas” que a jibóia se pôs a cantar? e a absoluta falta de sentido
das trovas que não são trovas...
Nem se trata de exploração de nonsense, ou se jogo lúdico com as palavras: na verdade,
o objetivo foi apenas juntar palavras em que aparecem as letras j e grepresentando o mesmo
fonema – para não restar dúvida, as sílabas que o “texto” perseguia são destacadas no fim dele.
Apresenta-se esse “ajuntamento” de palavras ao aluno como se fosse um texto narrativo, levando-
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o a formar um conceito falso de texto, de leitura - um claro exemplo da escolarização inadequada


da literatura.
Por outro lado, quando se lança mão de um fragmento de um texto da literatura infantil,
muito frequentemente não se cuida de que o fragmento apresente, também ele, textualidade, isto
é, que apresente as características que fazem com que uma sequencia de frases constitua,
realmente, um texto. A frequência com que isso ocorre nos livros didáticos te relações com a
predominância, neles, da narrativa. Esta tem uma estrutura textual (uma macroestrutura 6) que se
organiza em ciclos sequenciais: começa com uma exposição, em que o acontecimento que será
narrado é “emoldurado”, com a apresentação da situação inicial (tempo e lugar, personagens,
etc.); prossegue trazendo um desequilíbrio que vem perturbar a situação inicial, isto é, uma
complicação, evolui para um clímax, em que o desequilíbrio chega ao seu ponto máximo;
finalmente cainha para o restabelecimento do equilíbrio, pela resolução da complicação. Torna-se,
assim, difícil retirar, de uma narrativa, um fragmento que conserve, em si, todos os ciclos de uma
narrativa; a consequência dessa dificuldade é que os fragmentos de narrativas apresentados nos
livros didáticos são quase sempre pseudotextos, em que um ou alguns ciclos da sequencia
narrativa são apresentados, faltando aqueles que os precedem ou os seguem. Alguns exemplos
comprovarão esta afirmação.
Há “textos” que apresentam apenas o ciclo inicial da sequencia narrativa, a exposição, e
interrompem aí a narrativa, que, portanto, não se realiza, deixando o leitor na expectativa: o que
acontecerá neste lugar? Com estes personagens?
Assim, em um livro didático, propõe-se à criança, como texto de leitura, fragmento do livro
Menina bonita do laço de fita, de Ana Maria Machado; eis o fragmento:
Menina bonita do laço de fita

Era uma vez uma menina linda, linda, linda.


Os olhos pareciam duas azeitonas pretas, daquelas bem brilhantes.
Os cabelos eram enroladinhos e bem negros, feito fiapos de noite. A pele era
escura e lustrosa, que nem o pêlo da pantera negra quando pula na chuva.
Ainda por cima, a mãe gostava de fazer trancinhas no cabelo dela e enfeitar com
laço de fita colorida. Ela ficava parecendo uma princesa das Terras da África, ou
uma fada do reino do luar.
MACHADO. Ana Maria. Menina do laço de fita. São Paulo: Melhoramentos, 1986,
p.4-5.

Em outro livro didático, o “texto” apresentado à criança é o fragmento da história “Rosa


Maria no castelo encantado”, do livro Gente e bichos, de Érico Veríssimo:

O castelo encantado
Eu sou um mágico. Moro num castelo encantado. Os homens grandes não sabem de nada. Só as crianças é
que conhecem o segredo....
Quando um homem passa pela minha casa, o que vê é uma casa como as outras: com portas, janelas, telhado
vermelho, sacada de ferro...
Só as crianças é que enxergam o meu castelo encantado. Com torres de açúcar e chocolate. Pontes que
sobem e descem, puxadas ou empurradas por anõezinhos barrigudos vestidos de verde. Os trincos das
portas, vocês pensam que são de metal? Nada disso. São de marmelada, de goiabada, de cocada.
Quando um homem grande entra na minha casa, tem de toda a escada, degrau por degrau. Quando uma
criança entra no meu castelo, é a escada que sobre com ela.
VERÍSSIMO. Érico. “Rosa Maria no castelo encantado”. Em: Gente e bichos.
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Como se vê, os “textos” são apenas o início das histórias, a exposição– no primeiro
exemplo, a apresentação da personagem central, menina bonita do laço de fita; no segundo
exemplo, a apresentação de um dos personagens, o mágico, e, sobretudo, do cenário em que se
passará a história. Uma primeira consequência dessa fragmentação inadequada, que apresenta
apenas a exposição que precede os acontecimentos, é que a criança, que te internalizada em si a
“linguagem universal da narrativa”, cuja estrutura conhece bem, das histórias que conta e ouve, há
de se perguntar: e depois? O que aconteceu? E, não obtendo respostas a essas perguntas, irá
construindo um conceito inadequado do texto, de narrativa, de leitura literária. Uma segunda
consequência, estreitamente ligada à primeira, é que se desfigura o sentido da obra dos autores:
no caso do livro de Ana Maria Machado, os parágrafos iniciais só ganham significado em função
da história que se desenvolve entre a menina e o coelho branco, e que tem por tema as
diferenças de cor; no caso do conto de Érico Veríssimo, a cumplicidade que os parágrafos iniciais
buscam criar entre o autor-mágico e o leitor-criança só se explica no desenvolvimento da
narrativa. Acrescente-se que os livros didáticos nem mesmo lançam mão de estratégias para
compensar a fragmentação que impõem à história, como por exemplo: levar a criança a imaginar
o que acontecerá em seguida, anunciar e apresentar a continuidade da história nos textos
seguintes...
Ainda mais frustrante inadequada é a fragmentação que, indo um pouco além da exposição,
apenas anuncia a complicação, como a seguinte “texto” de um livro didático, que apresenta os
parágrafos iniciais de uma das histórias do livro de Ruth Rocha Pedrinho pintor e outras histórias:

O coelho que não era de Páscoa

Vininho era um coelhinho. Branco, redondo, fofinho.


Todos os dias Vivinho ia à escola com seus irmãos.
Aprendia a pular, aprendia a correr...
Aprendia qual a melhor couve para se comer.
Os coelhinhos foram crescendo, chegou a hora de escolherem uma profissão.
Os irmãos de Vivinho já tinham resolvido:
- Eu vou ser coelho de Páscoa, como eu pai.
- Eu vou ser coelho de Páscoa, como meu avô.
- Eu vou ser coelho de Páscoa, como meu bisavô.
E todos queriam ser coelhos de Páscoa, como o trisavô, o tataravô, como todos os avôs.
Só Vivinho não dizia nada.
Os pais perguntavam, os irmãos indagavam:
- E você, Vivinho? E você?
- Bom – dizia Vivinho – eu não quero: ser coelhinho da Páscoa.
O pai de Vivinho se espantou, a mãe se escandalizou:
- OOOOHHHHH!!!
ROCHA, Ruth. Pedrinho pintor e outras histórias.

Como se vê, apresenta-se à criança o início da história, a exposição – personagens,


situação – enuncia-se a complicação – um problema é criado pelo personagem. E depois? Como
se resolverá o problema? O fragmento não é um texto, pois não é um todo significativo e coerente,
nem é uma narrativa, pois apenas apresenta a situação e o fato que desencadeará os
acontecimentos.
64

Mas há, nos livros didáticos, formas mais desastrosas de fragmentação de narrativas. Nos
exemplos anteriores, porque se tomam parágrafos iniciais de uma história, pelo menos
contextualiza-se a ação e apresentam-se os personagens; nos exemplos apresentados a seguir,
toma-se um fragmento do meio da história: falta a exposição, e apenas se enuncia a complicação.
A mesma Ruth Rocha é de novo penalizada em outro livro didático, em que se propõe à criança,
como um “texto”, o seguinte fragmento do livro Procurando firme:
Procurando firme
Mas a princesa estava desapontada! Aquele não era príncipe que ela
estava esperando! Até que ele não era feio, tinha umas roupas bem
bonitas, sinal que deveria ser meio riquinho, mas era meio grosso, tinha
um jeitão de quem achava que estava abafando, muito convencido!
A princesa torceu o nariz.
O pai e a mãe da princesa ficaram muito espantados, ainda quiseram
consertar as coisas, disfarçar o nariz torto da princesa, é que eles estavam
achando o príncipe bem jeitoso... Afinal ele era o príncipe da Petrolândia,
um lugar que tinha muito óleo fedorento e que todo mundo achava que um
dia ia valer muito dinheiro...
ROCHA, Ruth. Procurando firme, RJ: Nova Fronteira, 1984, p. 17.

Observe-se que o “texto” se inicia com um mas! Esta conjunção introduz uma sentença que
contraria algo que terá sido dita em sentença anterior: o quê? E menciona-se a princesa, não uma
princesa; portanto, um personagem que já foi apresentado: de que princesa se fala? E mais:
Aquele não era o príncipe que ela estava esperando! Qual é o referente para o anafórico aquele?
E por que, desde quando, para quê, a princesa estava esperando um príncipe? E depois, o que
aconteceu? A princesa terá aceitado o príncipe ou não? E por que o texto se chama Procurando
firme? Perguntas que a criança se fará, fará à professora, ou terá de se conformar com a falta de
sentido das coisas que na escola são dadas a ler... E pode sentir-se autorizada a escrever assim,
ela também.
Veja-se outro exemplo, de um outro livro didático:
O sapo Batista

No dia seguinte, de manhã, os bichos acordaram


escutando uma música que vinha de longe.
Curiosos, os sapos foram devagarzinho para ver o
que estava acontecendo. Eles queriam saber de
quem era aquela voz tão bonita.
Quando chegaram ao pé da rocha, uma surpresa.
Olha só quem estava lá! O sapo vozeirão.
Quando Batista viu que estava sendo observado
ficou todo vermelho e encabulado.

KALL, Vanessa. O sapo Batista.

No dia seguinte... seguinte a qual? os bichos... que bichos? Quem estava lá era osapo
vozeirão... que sapo é este? E por que era chamado de vozeirão? E depois, o que aconteceu? O
que fizeram os bichos? O que fez o vermelho e encabulado sapo Batista?
Mais um exemplo. O fragmento abaixo, apresentado à criança como um “texto” de leitura,
começa por mencionar o personagem O Júnior, que não se sabe quem é. Será um menino? Só
por inferência, ao longo da leitura, poderá o aluno descobrir quem é Júnior:
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Por que não?

O Júnior passava cada vez menos tempo em casa.


Até que um dia ele apareceu com a cara mais marota do
mundo:
- Minha gente, estão todos convidados para a minha
formatura!
- Formatura? – perguntaram todos em coro.
- Formatura! – confirmou o Júnior. – Estou me graduando na
Escola dos Pombos-correio.
- Pombos-correio? – tornaram a perguntar em coro os
Bicudos, que não só gostavam de cantar em coro, mas
também gostavam de falar em coro.
- Pois é – respondeu o Júnior.
- Por que é que um pombo pode trabalhar no correio e um
passarinho não pode?
- Ah, porque os pombos-correio nascem sabendo...
- Por isso é que eu tive que aprender. Mas uma pessoa
esperta aprende qualquer coisa que ela queira muito.

Esta história foi retirada do livro Por que não? De Ruth Rocha.

De novo, o fragmento retirado de livro de Ruth Rocha, o que confirma o que foi dito
anteriormente: a recorrência, nos livros didáticos para as quatro primeiras séries, dos mesmos
autores (esclareça-se que os fragmentos de obras de Ruth Rocha citados até aqui foram retirados
de diferentes livros didáticos). O “texto” apresenta a história já em curso; sem conhecer seu início,
o aluno há de pensar, até certa altura dele, que Júnior é um menino; ao longo da leitura é que
poderá inferir que Júnior é um passarinho, um bicudo, que resolveu aprender a ser pombo-
correio... e que comunica isso a outros bicudos (Seus irmãos? Seus amigos? Seu bando?). Se as
questões sobre o texto propostas aos alunos procurassem leva-los a fazer essas inferências e
recuperar o não-dito, talvez se justificasse a narrativa sem início (e também sem fim), mas não é
isso que acontece, como se verá mais adiante.
Cabe ainda uma observação sobre o título do “texto”, que apenas repete o título do livro de
onde foi tirado (o mesmo recurso é utilizado nos exemplos apresentados anteriormente – é a
forma usual, nos livros didáticos, de dar títulos aos fragmentos retirados de livros de literatura
infantil): nem sempre o título do livro é um título adequado para o fragmento escolhido (como já se
observou anteriormente, com referência ao fragmento retirado do livro Procurando firme), e é
também só por meio de inferências que se pode encontrar justificativa para que este “texto” se
denomine Por que não? (por que um bicudo não pode ser um pombo-correio?).
E síntese, e concluindo este item sobre a fragmentação da narrativa em “textos” propostos
à leitura em livros didáticos, pode-se afirmar que a escolarização – inevitável, repita-se o adjetivo
– da literatura infantil faz-se frequentemente de forma inadequada e, mais que isso, prejudicial
mesmo, pois abala o conceito que a criança tem, intuitivamente, da estrutura narrativa, dá-lhe
uma idéia errônea do que é um texto e pode induzi-la a produzir por ela mesma pseudotextos, já
que estes é que lhe são apresentados como modelo.
66

Um outro aspecto que evidencia a escolarização inadequada da literatura infantil nas


atividades de leitura e estudo de textos, propostas nos livros didáticos, é a distorção que o texto
sofre, ao ser transferido de seu suporte literário para a página do livro didático.
Transferência do texto de seu suporte literário para a página do livro didático
Ao ser transportado do livro de literatura infantil para o livro didático, o texto te de sofrer,
inevitavelmente, transformações, já que passa de um suporte para outro: ler diretamente no livro
de literatura é relacionar-se com um livro-objeto-de-literatura completamente diferente do objeto-
livro-didático: são livros com finalidades diferentes, aspecto material diferente, protocolos de
leitura diferentes. Se a necessidade de escolarizar torna essas transformações inevitáveis, é,
porém, necessário que sejam respeitadas as características essenciais da obra literária, que não
sejam alterados aqueles aspectos que constituem a literariedade do texto.
Frequentemente, não é isso que acontece. Um caso exemplar é o de uma coleção didática
que apresenta o mesmo texto no Livro 1 e no Livro 4 (o que já é surpreendente), impondo-lhe no
Livro 1, alterações de paragrafação, de estruturas linguísticas, de vocabulário, até mesmo de
título; embora no Livro 1 se indique que se trata de uma “adaptação”, as alterações feitas são
inteiramente dispensáveis, não se justificam pela necessidade de adaptação do texto (que, às
vezes, é realmente necessária – mais uma das estratégias que a escolarização impõe, mas que
deve ser feita sem ferir a literariedade do texto). É um texto de Érico Veríssimo, também este
retirado de Gente e bichos (de novo a recorrência de autores – o outro texto foi retirado deste
mesmo livro, anteriormente citado, “O castelo encantado”, está incluído em outro livro didático,
não neste que agora se menciona). Compare-se:

Livro 1 Livro 4

Que dor de Dente O Céu e a Terra na Escuridão


Mvnac, dsv,dckjsd
Anoiteceu. Apareceu no céu uma lua de cara inchada. Anoiteceu. Apareceu no céu uma Lua de
O galo saiu do meio do quintal e cantou: cara inchada. O galo saiu do meio do quintal
- Có-ró-có-có, boa noite, dona lua! e cantou:
A lua fez careta e respondeu: - Có-ró-có-có, boa noite, Dona lua!
- Não me amole! Estou com dor de dente. A Lua fez uma careta e respondeu:
O cachorro xereta latiu: - Não me amole, galo bobo. Estou com dor
- Au! Au! Au! Se a senhora está com dor de dente, por de dente.
que não vai ao dentista? Então o cachorro, que era muito
- É mesmo! Eu não me lembrei disso! – disse a lua intrometido ladrou:
admirada. - Au! Au! Au! Se a senhora está com dor
Ela colocou o chapéu na cabeça e foi para o dentista. de dente, por que não vai ao dentista?
O céu e a terra ficaram muito escuros. - É mesmo! – gritou a Lua, admirada. - Eu
Sozinhas, as estrelas não tinham força para alumiar. E não me lembrei disso!
mesmo começara a tremer de medo e acabara entrando Botou o chapéu na cabeça e foi para o
para dentro de suas casas. dentista. O Céu e a Terra ficaram muito
VERÍSSIMO. Érico. (adaptação) escuros. Sozinhas, as estrelas não tinham
Gente e bichos. P. Alegre: Editora Globo. força para alumiar. E mesmo começara a
tremer de medo e acabara entrando para
dentro de suas casas.
67

Há diferenças de paragrafação: os três últimos parágrafos do texto tal como apresentado no


Livro 1 constituem um só paragrafo no texto tal como apresentado no Livro 4: qual a razão? A
hipótese será que textos para crianças de primeira série devem ter parágrafos curtos? Por quê?
No Livro 4, a personificação da lua, do céu, da terra é enfatizada pelo uso de maiúsculas:
apareceu uma Lua de cara inchada; boa-noite, Dona Lua!; O Céu e a Terra ficaram muito escuros;
no Livro 1, as maiúsculas desaparecem, empobrecendo desnecessariamente o texto.
Palavras e expressões são eliminadas no texto do Livro 1: a lua fez careta, e não a Lua fez
uma careta; Não me amole! e não Não me amole, galo bobo. Por que, para que as eliminações?
Também o elemento coesivo então, que aparece no texto do Livro 4 – Então o cachorro...
desaparece, desnecessariamente, no texto do Livro 1.
Mais numerosas e menos justificáveis são as alterações vocabulário: por que o cachorro
xereta substituiu o cachorro que era muito intrometido? É a falsa suposição de que a criança na
primeira série não saberá ler orações adjetivas? E por que ladrou é substituído por latiu? Não
seria uma boa oportunidade para enriquecer o vocabulário das crianças, se fosse o caso, com o
verbo ladrar? E mais: gritou a Lua foi substituído por disse a lua, botou o chapéu na cabeça
transformou-se em colocou o chapéu na cabeça – qual a razão para essas adaptações?
Finalmente, também o título do texto é alterado: O Céu e a Terra na escuridão é alterado
para Que dor de dente!, que pouco tem a ver com a idéia central do texto.
O que acontece é que o texto do autor é desnecessariamente alterado, perde algumas de
suas qualidades, é mesmo, de certa forma, distorcido – uma escolarização inadequada,
fundamentada em pressupostos errôneos.
Uma segunda forma de distorção do texto, no processo de sua transferência de seu
suporte - o livro de literatura infantil – para o suporte escolar – o livro didático – é a alteração do
contexto textual, isto é, da configuração gráfica do texto na página, de suas relações com a
ilustração. Exemplos que ilustram bem essa forma de escolarização inadequada da literatura são
aqueles casos em que o livro didático apresenta apenas o texto de um livro infantil em que os
textos e ilustrações são indissociáveis, porque mutuamente dependentes; o texto, separado da
ilustração, perde o seu sentido e seu impacto. É o que tem ocorrido com, por exemplo, com a
escolarização, em livros didáticos para as séries iniciais, de textos da muito conhecida Coleção
Gato e Rato, de Mary e Eliardo França. Nessa coleção, voltada para a criança em fase de
alfabetização, há uma ou duas frases em cada página, esta tomada quase inteiramente por
ilustração que completa o significado da frase, acrescenta-lhes informação e, muitas vezes,
humor. A despeito disso, um livro didático toma frases do livro A bota do bode, que nele estão
apresentadas em cinco páginas, cada uma com ilustração indispensável à construção da
textualidade, e faz delas o seguinte texto:
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A bota do bode

O bode viu uma bota.


O bode colocou a bota numa pata.
E ficou muito gozado!
Um bota numa pata e três pata sem botas!
O bode deu a bota para o rato.
E o rato sumiu na bota.

Mary França e Eliardo França. Abota do bode.

Observe-se que, também aqui, verifica-se aquela característica da escolarização


inadequada já apontada: apresenta-se apenas o início da história, interrompida quando mal se
anuncia o ciclo da complicação. Mas o que se deseja aqui é destacar a incoerência e
inconsistência do texto, se lido assim desligado das ilustrações. Só a representação visual das
situações, tal como feita no livro A bota do bode, dá sentido às frases e acrescenta ao texto o tom
humorístico que ele tem. Tanto assim que, na indicação da dupla autoria do livro (e de toda a
Coleção Gato e Rato), não há distinção entre autor do texto e autor das ilustrações; aliás, em
livros de literatura infantil, frequentemente, o ilustrador é tão autor quanto o escritor, dada a
complementariedade entre texto e ilustração. É bem verdade que, no livro didático, o texto vem
também acompanhado por ilustração, mas a relação entre texto e ilustração, tão absoluta no livro,
aqui antes distorce que complementa o texto: é o desenho de um bode com uma bota numa pata,
tendo ao lado uma outra bota com um rato dentro: mas o texto não se refere a uma bota só? E o
bode não deu essa bota ao rato? Por que, então, duas botas, uma para cada um? E o rato não
sumiu na bota? Como, então, lá estava ele, bem visível dentro da bota?7
Ainda uma outra forma, esta talvez mais grave, de distorção do texto, no processo de sua
transferência do livro de literatura infantil para o livro didático, é a alteração do gênero do texto:
poemas se transformam em textos em prosa, textos jornalísticos em textos literários... Talvez o
exemplo mais desconcertante disso seja a transfiguração do poema “A chácara do Chico
Bolacha”, de Cecília Meireles, no livro Isto ou Aquilo, em uma história em quadrinhos! Recorde-se
o poema:

A Chácara do Chico Bolacha

Cecília Meireles

Na chácara do Chico Bolacha


o que se procura
nunca se acha!

Quando chove muito,


o Chico brinca de barco,
porque a chácara vira charco.

Quando não chove nada,


Chico trabalha com a enxada
e logo se machuca
e fica com a mão inchada.
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Por isso, com o Chico Bolacha,


o que se procura
nunca se acha.

Dizem que a chácara do Chico


só tem mesmo chuchu
e um cachorrinho coxo
que se chama Caxambu.

Outras coisas, ninguém procure,


porque não acha.
Coitado do Chico Bolacha.

A sonoridade, o ritmo, musicalidade, a disposição gráfica próprios do texto poético são


inteiramente perdidos quando o poema se transforma, num livro didático, no seguinte texto
dialogado e quadrinizado:

[Imagem]

É preciso reconhecer e reafirmar o que se disse anteriormente: não há como não alterar o
texto, ao transportá-lo de seu suporte próprio – neste caso, o livro de literatura infantil – para o
suporte escolar – o livro didático; no entanto, é preciso fazê-lo respeitando o que é a essência
caracterizadora do texto, é preciso fazê-lo se distorcer, desvirtuar, desfigurar; em síntese: se é
inevitável escolarizar a literatura infantil, que essa escolarização obedeça a critérios que
preservem o literário, que propiciem à criança a vivência do literário, e não de uma distorção ou
uma caricatura dele.
Mas há ainda, em livros didáticos, uma outra forma de distorção do literário, que se revela
na maneira como textos retirados da literatura infantil são estudados, interpretados – é o que se
discute no item seguinte.

Objetivos da leitura de textos da literatura infantil nos livros didáticos


Aos textos (ou pseudotextos) propostos à leitura dos alunos, nos livros didáticos, seguem-se
sempre exercícios de “estudo do texto” – mais uma exigência do processo de escolarização da
leitura: a escola deve conduzir o aluno à analise do texto e à explicitação de sua compreensão e
interpretação.
Entretanto, os exercícios que, em geral, são propostos aos alunos sobre os textos da
literatura infantil não conduzem à analise do que é essencial neles, isto é, à percepção de sua
literariedade, dos recursos de expressão, do uso estético da linguagem; centram-se nos
conteúdos, e não na recriação que deles faz a literatura; voltam-se para as informações que os
textos veiculam.
Assim, ao ser transferido do livro de literatura infantil para o livro escolar, o texto literário
deixa de ser um texto para emocionar, para divertir, para dar prazer, torna-se um texto para ser
estudado. O “estudo” que se desenvolve sobre o texto literário, na escola, é uma atividade
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intrínseca ao processo de escolarização, como já foi dito, mas uma escolarização adequada da
literatura será aquela que se fundamente em respostas também adequadas às perguntas: por que
e para que “estudar” um texto literário? O que é que se deve “estudar” num texto literário? Os
objetivos de leitura e estudo de um texto literário são específicos a este tipo de texto, devem
privilegiar aqueles conhecimentos, habilidades e atitudes necessários à formação de um bom
leitor de literatura: a analise do gênero do texto, dos recursos de expressão e de recriação da
realidade, das figuras autor-narrador, personagem, ponto-de-vista (no caso da narrativa), a
interpretação de analogias, comparações, metáforas, identificação de recursos estilísticos,
poéticos, enfim, o “estudo” daquilo que é textual e daquilo que é literário.
Não é o que fazem, e geral, os livros didáticos. Quase sempre, os exercícios propostos aos
alunos ou são exercícios de compreensão, entendida como mera localização de informações no
texto, ou são exercícios de metalinguagem (gramática, ortografia), ou são exercícios moralizantes.
Relembre-se o texto já citado anteriormente, Por que não?e vejam-se as perguntas propostas
sobre ele:
Entendendo o texto
1. Responda:
a) Qual é o título da história?
b) Qual o nome da autora?
c) Quem é o personagem principal?
2. Copie as frases, substituindo a ¶ pela palavra correta:
a) Júnior passava ¶ tempo em casa. [pouco/muito]
b) Um dia ele ¶ com uma novidade. [apareceu/fugiu]
c) Os Bicudos gostavam de cantar e ¶ em coro. [brigar/falar]
3. Complete de acordo com o texto:
Os pombos podem trabalhar no correio porque nascem ¶. Mas uma pessoa ¶ aprende qualquer coisa que
ela ¶ muito.

Não se pode mais que localizar informações no texto e copiá-las: o título do texto, o nome
da autora, frases com lacunas que deve preencher com palavras do texto (observe-se, ainda, que
a alternativa à palavra do texto para preenchimento da lacuna é inteiramente destoante do sentido
do texto, o que torna ainda mais maquinal a resposta do aluno). No entanto, haveria outras
possibilidades: a inadequada fragmentação do texto, já comentada, poderia, por exemplo, ser de
certa forma superada se as perguntas levassem o aluno a fazer inferências, como por exemplo:
Em que parte do texto se descobre com quem Júnior está conversando? Ou a estabelecer
relações com outras idéias, como: Por que Júnior teve de aprender a ser pombo-correio? Etc.
Um outro exemplo, lançando mão de novo do texto já anteriormente citado, são os
exercícios propostos para o texto “A bota do bode”; comece-se por observar como se anunciam os
exercícios: “Vamos entender melhor a poesia?”. Além da inadequação do uso de poesia por
poema,verifica-se que a prosa de Mary e Eliardo França aqui foi transformada em poesia. Na
reprodução abaixo, os desenhos que aparecem no livro estão representados simbolicamente.
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Vamos entender melhor a poesia?


1. Copie as frases, trocando os desenhos por palavras:
a) O ♠ viu uma ♠♠.
b) O ♠ deu a ♠♠ para o ♠♠♠.
2. Escreva os fatos na ordem em que eles apareceram no texto:
E o rato sumiu na bota.
O bode viu uma bota.
O bode colocou a bota numa pata.
3. Procure o livro A bota do bode de Mary e Eliardo França e leia a história toda.
♠ Desenho da cabeça de um bode, no original.
♠♠ Desenho de uma bota, no original.
♠♠♠Desenho da cabeça de um rato, no original.

Também aqui, exercícios de cópia de frases do texto: no exercício 1, apenas a tradução em


palavras de desenhos; no exercício 2, ordenação de “fatos”, que, ordenados, não se organizam
com coerência nem coesão; no exercício 3, mera identificação de frases no texto. Cabe uma
observação sobre o “exercício” 4 que, parece, tenta solucionar a já comentada fragmentação do
“texto” (na verdade, pseudotexto): exercício inócuo, se a escola ou a professora ou algum aluno
não tiverem o livro – aguça-se a curiosidade do livro e, consequentemente, aumenta-se a
frustração.
Um analise, ainda que superficial, dos exercícios propostos para os textos de literatura
infantil, em livros didáticos das séries iniciais, revela que são recorrentes os seguintes tipos de
exercícios: copiar o título do texto, nome do autor, o nome do livro de onde foi tirado o texto;
copiar a fala de determinado personagem do texto; escrever quem falou determinada frase;
escrever o nome dos personagens; copiar as frases que estão de acordo com o texto; copiar
frases na ordem dos acontecimentos apresentados no texto; completar frases do texto. Exercícios,
como se disse, de mera localização de informações no texto, adequados, por exemplo, para a
leitura do verbete de enciclopédia, ou determinados tipos de texto informativo, não para a leitura
de texto literário.
Há ainda, com frequência, exercícios de opinião sobre o texto, vagos – O que achou?
Gostou do texto? – e exercícios que pretendem buscar no texto um ensinamento moral – o que o
texto nos ensina? Nestes casos, é sempre interessante observar a resposta que, no Livro do
Professor, sugere-se como a resposta “correta”: frequentemente, informa-se ao professor o que o
aluno deve achar... deve aprender do texto... Por exemplo, após um texto de Malba Tahan, em
que um príncipe condena um criado à morte, por ter quebrado um vaso precioso, pergunta-se: O
que você acha sobre condenar um ser humano à morte por causa de um bem material? No Livro
do Professor, a resposta indicada como correta é: Acho um absurdo. Ou seja, o que o aluno deve
“achar” já está pré-estabelecido...
Tudo que se disse pretende comprovar a afirmação feita inicialmente de que, das três
instâncias de escolarização da literatura infantil na escola, a mais frequente, a mais regular e
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também a mais inadequada, é a leitura e estudo de fragmentos de textos de literatura infantil.


Inadequada porque há uma seleção limitada de tipos e gêneros, porque há uma escolha pouco
criteriosa de autores e obras, e, sobretudo, porque os textos são quase sempre pseudotextos, isto
é, fragmentos sem textualidade, sem coerência; e ainda porque as atividades que se desenvolvem
sobre os textos não se voltam nem para a literariedade do texto. Não será excessivo afirmar que a
obra literária é desvirtuada, quando transportada para o manual didático, que o texto literário é
transformado, na escola, em texto informativo, em texto formativo, em pretexto para exercícios de
metalinguagem.
Conclusão
Retornemos os pressupostos e conceitos que orientaram essa exposição.
Consideramos como escolarização da literatura infantil a apropriação dessa literatura pela
escola, para atender a seus fins formadores e educativos.
Defendemos que essa escolarização é inevitável, porque é da essência da escola a
instituição de saberes escolares, que se constituem pela didatização ou pedagogização de
conhecimentos e práticas culturais.
Distinguimos entre uma escolarização adequada e uma escolarização inadequada da
literatura: adequada seria aquela escolarização que conduzisse eficazmente às práticas de leitura
literária que ocorre no contexto social e às atitudes e valores próprios do ideal de leitor que se
quer formar; inadequada é aquela escolarização que deturpa, falsifica, distorce a literatura,
afastando, e não aproximando, o aluno das práticas de leitura literária, desenvolvendo nele
resistência ou aversão ao livro e ao ler.
De tudo isso conclui-se que a questão fundamental das relações entre a literatura infantil e
escola é que é necessário saber (ou descobrir?) como realizar, de maneira adequada, a inevitável
escolarização da literatura.
Notas
1 Jornal O Tempo, Belo Horizonte, 24 de agosto de 1997, Suplemento Engenho e Arte.
2 Idem
3 Um aspecto importante que poderia ser desenvolvido sob esta perspectiva é a produção de uma literatura, destinada a
crianças e jovens, assumidamente com conteúdos escolares –como fez Lobato em Emília no país da gramática, Emília no país da
aritmética, Viagem ao céu, etc. – produção que se vem intensificando atualmente, sobretudo através dos chamados “paradidáticos” –
um tema que está merecendo ser estudado.
4 Mesmo quando a biblioteca é de “classe”, há sempre um lugar na sala de aula, ainda que, às vezes, apenas uma caixa, de
guarda do livro e acesso ao livro.
5 Há, é óbvio, livros que escapam às inadequações apontadas nesta exposição, mas constituem a minoria dos manuais
destinados às quatro primeiras séries do primeiro grau.
6 É bastante complexa a questão, aqui apenas mencionada, da macroestrutura da narrativa, e é muito rica a bibliografia a
respeito; usamos apenas, de forma bastante simplificada, os conceitos necessários à argumentação desenvolvida para os fins desta
exposição.
7 Este exemplo remete à importante questão, não discutida neste texto, por fugir a seus objetivos, das ilustrações nos livros
didáticos em suas relações com os textos e a leitura.

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