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Júlio França2
2.1 Os monstros
No nono canto da Odisseia, Odisseu narra aos feáceos sua viagem à terra dos
ciclopes e seu encontro com Polifemo, cujo desfecho é uma das passagens mais
conhecidas da epopeia homérica. Tomemos, porém, não o triunfo dos ardis do rei de
Ítaca, mas o momento inicial do encontro, quando Polifemo resiste à proverbial lábia de
Odisseu, blasfema contra Zeus e devora dois companheiros do herói, em uma cena
assim descrita por Homero:
1
In: FRANÇA, Júlio, org. Poéticas do mal: a literatura do medo no Brasil (1840-1920). Rio de Janeiro:
Bonecker, 2017.
2
Júlio França tem doutorado em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (2006) e
pós-doutorado pela Brown University (2015). É professor de Teoria da Literatura do Instituto de Letras e
coordenador geral do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. É líder do grupo de pesquisa Estudos do Gótico (CNPq). Organizou As nuances do Gótico: do
Setecentos à atualidade (Bonecker, 2017)e Páginas perversas: narrativas brasileiras esquecidas (Appris,
2017). E-mail para contato: julfranca@gmail.com.
mundo, onde seus deuses não lhe têm valia. É uma terra de seres incivilizados, bestiais,
que desconhecem a mais básica das leis, a da hospitalidade, como atesta a fala grosseira,
arrogante e blasfema de Polifemo:
2.2 A potestade
Passemos agora para outro pilar da cultura ocidental, um texto escrito
provavelmente no primeiro século da Era Comum, o único entre as diversas obras do
gênero apocalíptico a integrar o cânone bíblico: O livro das revelações, também
conhecido como o Apocalipse de São João. Tomemos os versículos 1 ao 9 do Capítulo
9, correspondentes ao momento em que o quinto Anjo toca a quinta trombeta:
E o quinto Anjo tocou... Vi então uma estrela que havia caído do céu sobre a
terra: foi-lhe entregue a chave do poço do Abismo. Ela abriu o poço do
Abismo, e dali subiu uma fumaça, como a fumaça de uma grande fornalha,
de modo que o sol e o ar ficaram escuros por causa da fumaça do poço. E da
fumaça saíram gafanhotos pela terra, dotados de poder semelhante ao dos
escorpiões da terra. Disseram-lhes, porém, que não danificassem a vegetação
da terra, nem o que estivesse verde e as árvores, mas somente os homens que
não tivessem o selo de Deus sobre a fronte. Foi-lhes dada a permissão, não de
matá-los, mas de atormentá-los durante cinco meses com tormento
semelhante ao do escorpião quando fere um homem. Naqueles dias, os
homens procurarão a morte, mas não a encontrarão; desejarão morrer, mas a
morte fugirá deles. O aspecto dos gafanhotos era semelhante ao de cavalos
preparados para uma batalha: sobre sua cabeça parecia haver coroas de ouro e
suas faces eram como faces humanas; tinham cabelos semelhantes ao cabelo
das mulheres e dentes como os de leão; tinham couraças como que de ferro, e
o ruído de suas asas era como o ruído de carros com muitos cavalos, correndo
para um combate; eram ainda providos de caudas semelhantes à dos
escorpiões, com ferrões: nas caudas estava o poder de atormentar os homens
durante cinco meses. Como rei, tinham sobre si o Anjo do Abismo, cujo
nome em hebraico é “Abaddon” e, em grego, “Apollyon” (Bíblia, 2002, p.
2.151).
A estrela que cai, provavelmente o próprio Satã, abre o poço do Abismo, onde os
anjos decaídos aguardavam pela condenação final. De lá, saem, para atormentar “os que
não tivessem o selo de Deus sobre a fronte” (Bíblia, 2002, p. 2.151), gafanhotos
monstruosos, cujas formas grotescas se assemelham a cavalos de guerra, com faces
humanas, cabelos femininos e caudas de escorpião. Os horrores do Livro das
Revelações são sucessivos e, no caos instaurado pela batalha do Apocalipse, é difícil
discernir quem é quem – de que lado está Deus, de que lado estão os exércitos da Besta
(cf. Beal, 2002, p. 73). Para vencedores e vencidos, o Juízo Final é uma experiência de
horror supremo, ainda que de um horror sublime, talvez, para aqueles que imaginam ter
“o selo de Deus sobre a fronte” (Bíblia, 2012, p. 2.151).
No gênero profético, o ato enunciativo supõe que a divindade tenha feito saber
aos homens alguns de seus mistérios – o termo “apocalipse” origina-se no verbo grego
apokalúpto, cujo significado é “revelar”. Segundo a tradição hermenêutica eclesiástica,
o profeta, inspirado por Deus, tem uma visão que procura traduzir em uma linguagem
alegórica. Entre os múltiplos sentidos da passagem, ao menos uma mensagem é
cristalina: a intensidade do tormento a ser infligido nos infiéis. O sofrimento pode ser
medido pelo que é profetizado no sexto versículo: “Naqueles dias, os homens
procurarão a morte, mas não a encontrarão; desejarão morrer, mas a morte fugirá deles”
(Bíblia, 2012, p. 2.151).
Certo dia, a mãe de uma menina mandou que ela levasse um pouco de pão e
de leite para sua avó. Quando a menina ia caminhando pela floresta, um lobo
aproximou-se e perguntou-lhe para onde se dirigia.
– Para a casa de vovó – ela respondeu.
– Por que caminho você vai, o dos alfinetes ou o das agulhas?
– O das agulhas.
Então o lobo seguiu pelo caminho dos alfinetes e chegou primeiro à casa.
Matou a avó, despejou seu sangue numa garrafa e cortou sua carne em fatias,
colocando tudo numa travessa. Depois, vestiu sua roupa de dormir e ficou
deitado na cama, à espera.
– Pam, pam.
– Entre, querida.
– Olá, vovó. Trouxe para a senhora um pouco de pão e de leite.
– Sirva-se também de alguma coisa, minha querida. Há carne e vinho na
copa.
A menina comeu o que lhe era oferecido e, enquanto o fazia, um gatinho
disse: “Menina perdida! Comer a carne e beber o sangue de sua avó!”. Então,
o lobo disse:
– Tire a roupa e deite-se na cama comigo.
– Onde ponho meu avental?
– Jogue no fogo. Você não vai precisar mais dele.
– Para cada peça de roupa – corpete, saia, anágua e meias – a menina fazia a
mesma pergunta. E, a cada vez, o lobo respondia:
– Jogue no fogo. Você não vai precisar mais dela. Quando a menina se deitou
na cama, disse:
– Ah, vovó! Como você é peluda!
– É para me manter mais aquecida, querida.
– Ah, vovó! Que ombros largos você tem!
– É para carregar melhor a lenha, querida.
– Ah, vovó! Como são compridas as suas unhas!
– É para me coçar melhor, querida.
– Ah, vovó! Que dentes grandes você tem!
– É para comer melhor você, querida. E ele a devorou (apud Darnton, 1986,
pp. 21-2).
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