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JlTUfo e
C orlos Nelson Coutinho, um dos
nossos mais conhecidos pensadores ~Q(leDoDe
MO sra~
marxistas, busca examinar neste li~o
algumas determinações fundamentais da
relação entre cultura e sociedade no Brasil.
Além de propor uma original análise
I
da formação de nossa intelectual idade,
o autor aborda especificamente as obras
~OBreIDeFa~e ForMâ~
de autores tão significativos como Limo
Barreto, Graciliano Ramos, Caio Prado
Júnior e Florestan Fernandes.
Mostrando que os produções culturais só
)

podem ser plenamente avaliadas quando


inseridos na totalidade social da qual são
expressão e momento constitutivo,
este livro fornece uma das mais ricas e
sugestivas interpretações de conjunto dos
principais problemas do cultura e da
sociedade brasileiras.

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DP&A
editora.
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Cultura e sociedade no Brasil _
,
Ensaios sobre idéias e formas
reúnr: os principais textos que
Carlos Nelson Coutinho dedicou
à onólise de momentos
fundamentais do literatura e do
pensamento social em nosso Pois.
Embora escritos 00 longo de mais
de trinta anos, os ensaios
conservom uma preocupação
metodológico comum, inspirado
nos marxistas Antonio Gramsci e
Georg Lukócs, ou seio, o de
vinculo- os problemas do cultura à
totalidade social do qual são 00
mesmo t·empo expressão e
momentos constitutivos. Em todos Cultura e sociedade no Brasil
os ensoios, o autor se empenho
Ensaios sobre idéias e formas
em mostrar como o modalidade
de transfomlação social, experi-
menrodo pelo nosso Pois sempre
otrovés de movimentos "pelo oito",
com permanente exclusão dos
mossas populares gerou entre nós
urno culturo "amamento I", elitista,
escossomente nocionol-populor.
Paro identificar os raizes desta
culturo "ornamental", Carlos
Nelson Coutinho analiso,
sobretudo no ensaio que dó titulo
à coletânea, os principais caroc-
teristicos do formação de nosso
intelectual idade, vinculando tal
formoçâo o umo visão de
::onjunto do sociedade brosileira.
Mos também busco rnostror, em
outros ensaios do coletânea,
Jlguns momentos privilegiados
10S qucis, otuondo contra o
:orrente, importantes intelectuois
)rasileiros (como Limo Barreto,
:;raci/iano Ramos, Caio Prado
únior e Floreston Fernondes)
.riororn através de meios estéticos
lU teórico-conceituais uma outro
Título: Carlos Nelson Coutinho
Cultura e sociedade no Brasil
Ensaios sobre idéias e formas
Carlos Nelson Coutinho

FICHA TÉCNICA

Revisão de provas;
Paulo Telles Ferreira Cultura e sociedade no Brasil
Andréa Carvalho

Projeto gráfico e diagramação:


Ensaios sobre idéias e formas
Maria Gabriela Delgado

Capa:
Rodrigo Murtinho

Xilogravura da capa:
Leonardo Leal

2a edição revista e ampliada


CIP-BRASIL. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

C895c
2.cel.
Coutinho, Carlos Nelson, 1943-
Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre idéias e formas /
Carlos Nelson Coutinho. 2.ed. rev. e ampliada. - Rio de Janeiro:
DP&A; 2000. ~ArT,t::
K. \) v ,

14 x 21 cm
~ç 'v'
272 p.
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Inclui bibliografia ( '.L

ISBN: 85-7490-017-6

I. -Cultura - Aspectos sociais - Brasil. 2. Literatura e sociedade -


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Brasil. .1.··Títul.o.'
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" '.J~:2!I_- © De Paulo Editora Ltda.

Proibida a reprodução, total ou parcial, por qualquer


meio ou processo, seja reprográfico, fotográfico, gráfico,
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às características gráficas c/ou editoriais.
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com busca, apreensão e indenizações diversas
(Lei 9.610(98 - Lei dos Direitos Autorais-
arts.122, 123, 124 e 126).

Para
Leandro Konder,
Isnaia Veiga Santana,
Roberto Gabriel Dias (t),
José Paulo Netto
e Daniel Tourinho Peres -
DP&A editora
Rua Santo Amara, 129 parte - Santa Teresa com quem tenho conversado
CEP 22.211-230- ruo DE]ANEIRO- R] -BRASIL sobre muitas coisas,
Tel./Fax: (21)232.1768 até mesmo sobre estes ensaios.
e-rnail: dpa@dpa.com.br
home page: www.dpa.com.br

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Impresso no Brasil
2000 "'.
Sumário

Prefácio
9
I. Os intelectuais e a organização da cultura 13
lI. Cultura e sociedade no Brasil 37
1. Subordinação formal e subordinação real:
ou como as idéias "entram no lugar"
2. Os efeitos da "via prussiana"
sobre a intelectualidade brasileira
3. O nacional-popular como
alternativa à cultura "intimista"
. 4. As condições atuais da luta
pela democratização da cultura

III. Dois momentos brasileiros


da Escola de Frankfurt
81
1. Marcuse e a contracultura tupiniquim
2. Rouanet e a defesa da razão

IV. O significado de Lima Barreto


em nossa literatura
99
V. Graciliano Ramos
157
VI. A "imagem do Brasil" na obra
de Caio Prado júnior
219
VII. Marxismo e "imagem do Brasil"
em Florestan Fernandes
243
Nota Bibliográfica
267
Prefácio

Reúno nesta coletânea os principais ensaios que escrevi, ao


longo de mais de trinta anos, sobre as relações entre cultura e
sociedade no Brasil. Durante um tão extenso período de tempo,
certamente se alteraram tanto o âmbito de meus interesses
temáticos quanto, talvez, alguns de meus juízos estéticos e
ideológicos sobre figuras e movimentos da cultura brasileira.
Contudo, não proporia uma leitura conjunta destes ensaios se
não estivesse convencido de que eles possuem uma unidade
substancial, tanto de método como de conteúdo.
Embora o uso de categorias gramscianas se acentue nos
ensaios mais recentes, matizando e requalificando a ortodoxia
lukacsiana facilmente perceptível nos mais antigos (sobretudo
os de crítica literária), a unidade de método me parece residir
num pressuposto comum a todos eles: só é possível entender
plenamente os fenômenos artísticos e ideológicos quando estes
aparecem relacionados dialeticamente com a totalidade social
da qual são, simultaneamente, expressões e momentos
constitutivos. Enquanto marxistas, Lukács e Gramsci nos ensinam
a ver nas formas e nas idéias algo mais do que as leis da escrita
ou a coerência do discurso: formas e idéias são também expressão
condensada de constelações sociais, meios privilegiados de
reproduzir espiritualmente as contradições reais e, ao mesmo
tempo, de propor um modo novo de enfrentá-Ias e superá-Ias.
Os ensaios desta coletânea, ainda que busquem respeitar a
especificidade e a autonomia relativa das produções culturais
que abordam, estão todos dirigidos para um objetivo principal:
o de desvendar a problemática social que tais produções
contribuem para elevar à consciência ou à autoconsciência.
10 Cultura e sociedade no Brasil Prefácio 11

No plano do conteúdo, por outro lado, penso haver um fio modo de formação de nossos intelectuais. Eles fornecem, de
vermelho que atravessa os ensaios, dando-lhes relativa unidade: certa maneira, o enquadramento histórico-conceitual
em todos eles, empenho-me sempre por demonstrar que o introdutório para os demais textos. O terceiro, dedicado à
r
problema central da cultura brasileira - ou seja, em termos recepção brasileira da Escola de Frankfurt, permite-me ilustrar,
gr~lmscianos, 8 escassa densidade nacional-popular de seus com um. exemplo concreto, uma tese que defendo ao longo
produtos - tem sua gênese na ausência de um "grande mundo" de todo o livro, em particular nos dois primeiros ensaios: a de
dcrnocrático em nOSS8 sociedade (para repetir a expressão que é impossível construir uma verdadeira cultura
lukacsiana que utilizo no ensaio sobre Graciliano Ramos), democrática e nacional-popular no Brasil sem recorrer aos
ausência que resulta dos processos de transformação pelo alto melhores momentos do patrimônio cultural universal.
("vi8 prussiana", "revolução passiva") que marcaram a história 2) Os quatro ensaios seguintes abordam momentos privilegiados
brasileira, dificultando a participação popular criadora nas várias da construção daquilo que poderíamos chamar de "imagem
esferas do nosso ser social. A principal conseqüência dessa alternativa do Brasil". Os dedicados a Lima Barreto e a
constelação sócio-histórica no plano da vida cultural brasileira Graciliano Ramos, além de analisarem algumas determinações
foi a preponderância de uma cultura "ornamental", elitista, que gerais de nossa evolução literária, tentam mostrar como a
muito dificultou 8 construção de uma efetiva consciência crítica grandeza das formas romanescas criadas pelos dois escritores
nacionul-popu lar entre nós. Essa preponderância, contudo, resulta, em grande parte, do fato de que elas simbolizam
jamais significou monopólio: muitos dos ensaios aqui reunidos não só os impasses humanos provocados por esse modelo
visam precisamente a resgatar figuras que se colocaram contra perverso de modernização, mas também os impulsos
a corrente dominante, empenhando-se por revelar em suas obras orientados no sentido da criação de modos alternativos de
:15 graves distorções humanas e sociais geradas em nosso País vida e de organização social. Nesse mesmo eixo é que se
pela "via prussiana". Ao fazerem isso, tais figuras criaram ao situam os ensaios sobre Caio Prado [únior e Florestan
mesmo tempo as bases para o florescimento de uma arte e de uma Fernandes: o objetivo central da obra dos dois escritores
consciência social alternativas. Também busco indicar, em alguns paulistas me parece ser a compreensão conceitual dessa via
)
ensaios, <1 emergência das novas condições sociais que tornaram "não clássica" de transição para o capitalismo, bem como de
hoje menos utópica a tarefa de elevar essa cultura crítica suas deletérias conseqüências no presente brasileiro. Embora
alternativa à condição de cultura hegemônica - o que nada tem utilizem diferentes meios cognoscitivos (formas simbólicas
a ver, é importante sublinhar, com cultura "única" ou "oficial". ou conceitos científicos), as imagens do Brasil construídas
Ao reunir aqui os ensaios, preferi dispó-los não na ordem por Lima Barreto, Graciliano Ramos, Caio Prado [r. e
cronológica em que foram escritos, mas segundo dois eixos Florestan Fernandes convergem num ponto essencial:
ternáticos principais: elaboram uma dura crítica da modernização "prussiana" ou
L) Os dois primeiros, sobretudo o que dá título à coletânea, têm "passiva" de que fomos vítimas e, ao mesmo tempo, propõem
corno meta discutir os problemas gerais da relação entre cultura o esboço de uma alternativa nacional-popular e democrática
e sociedade no Brasil, examinando, em particular, o peculiar para o nosso País.
12 Cultura e sociedade no Brasil

Embora não tenha alterado essencialmente meu modo de


pensar durante as três décadas que separam o ensaio sobre
Graciliano Ramos daquele sobre Florestan Fernandes - continuo,
mesmo com o risco de me converter num "animal em extinção",
a me considerar marxista -, modifiquei muitas das minhas
posições: afinal, para nós, marxistas, o único modo de não sermos
"animais em extinção" é assumirmos plenamente a condição de
"animais em mutação". Foi grande, assim, a tentação de reescrever
os ensaios mais antigos, fazendo-os coincidir integralmente com
meus atuais pontos de vista. Contudo, salvo no caso de umas I. Os intelectuais e a
poucas revisões estilísticas e da supressão de uma formulação
organização da cultura
que hoje julgo claramente equivocada (isto é, a caracterização
do Brasil como "semiíeudal", contida na primeira versão do ensaio
sobre Graciliano), preferi conservar os ensaios em sua forma
original, mesmo quando eles falam de coisas hoje tão fora de
moda como "realismo socialista". Tomei a mesma decisão no
que se refere à presença de formulações semelhantes em diferentes
ensaios: suprimi-Ias talvez evitasse repetições, mas com o risco
de, muitas vezes, empobrecer ou tornar obscura a argumentação
de cada ensaio tomado isoladamente. Além do mais, isso
impediria o leitor de julgar se, em tais possíveis repetições, já
não estarão contidos alguns indícios daquela necessária mutação
a que me referi. É o que sinceramente espero. I

Carlos Nelson Coutinho


Rio de Janeiro, março de 2000

I A primeira edição desta coletânea (Selo Horizonte: Oficina do Livro, 1990) continha
um ensaio sobre "A recepção de Gramsci no Brasil", agora incluído, numa versão
atualizada. como apêndice ao meu livro Gramsci. Um estudo sobre SCll pensamento
/)o!ítico (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p. 279-305). Em troca, a presente
edição introduz o ensaio "Marxismo e imagem cio Brasil em Florestan Fernandes",
apresentado no simpósio "Florestan Fernandcs c o Brasil", promovido pela Fundação
Pcrscu Abramo, São Paulo, 26-28 de agosto de 1998. Os demais ensaios, salvo poucas
correções cstilísticns, são aqui reproduzidos na forma cru que aparecem na mencionada
primeira edição.
Os intel ectuais e a organização da cultura 15

1.
Gostaria de começar com uma questão terminológica. O título
que me foi sugerido para esta exposição, "os intelectuais e a
organização da cultura", é - como se sabe - o título de uma
coletânea de escritos do cárcere de Antônio Gramsci, que reúne
precisamente os textos relativos à questão dos intelectuais e da
relação deles com os mecanismos de reprodução cultural da
realidade (sistema educacional, jornalismo, etc.). Mas esse título
não é do próprio Gramsci.
Os famosos Cadernos do Cárcere foram publicados a partir
de 1948, sob a orientação editorial de Felice Platone e Palmiro
Togliatti, não na ordem em que haviam sido escritos, mas
agrupados segundo grandes temas, divididos em seis volumes,
cujos títulos foram escolhidos pelos próprios editores.' Pois bem:
no caso que nos interessa aqui, não só o título não é de Gramsci,
como também não é muito freqüente em suas notas a expressão
"organização da cultura".
Mas isso não quer dizer que ela seja infiel ao espírito da
reflexão gramsciana. Ao contrário: tem um forte vínculo com o
conceito de "sociedade civil", que, como se sabe, é um conceito
central na obra do fundador do Partido Comunista Italiano. Em
certo sentido, podem.os mesmo dizer que, sem uma "organização
da cultura" não existe sociedade civil no sentido gramsciano da
expressão.
Vamos resumir alguns tópicos conhecidos. O maior mérito
de Gramsci consiste em ter "ampliado" a teoria marxista clássica
do Estado. Ele viu que com a intensificação dos processos de
socialização da política, com algo que ele chama algumas vezes
de "estandardízação" dos comportamentos humanos gerada pela

, Somenrc em 1975, sob os cuidados editoriais de Valentino Gerratana, foi publicado


(Quademi de! carcere. Turim; Einaudi) uma edição crítica. Sobre isso, cf. C. N.
Coutinho. "Introdução", in A. Gramsci, Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro;
Civilização Brasileira, vol. I, 1999, p. 7-45.
16 Cultura e sociedade no Brasil Os intelectuais e a organização da cultura 17

pressão do desenvolvimento capitalista, surge uma esfera social autoritárias, apoiavam-se na ideologia, careciam de algum
nova, dotada de leis e de funções relativamente autônomas e modo de legitimação e consenso para poderem funcionar. Papel
específicas, e - o que nem sempre é observado - de uma decisivo, na conquista dessa legitimidade por um Estado,
dimensão material própria. É essa esfera que ele vai chamar de digamos, de tipo absolutista, vinha da ideologia religiosa: a
"sociedade civil", introduzindo uma novidade terminológica com Igreja era um "aparelho ideológico de Estado", fundamental
relação a Marx e Engels (para os quais "sociedade civil" é na época do absolutismo. Basta pensar, por exemplo, na teoria
sinônimo de relações de produção econômicas), mas retomando do "direito divino" dos reis, da origem divina da soberania do
alguns aspectos do conceito tal como aparece em Hegel (que \
monarca.
introduzia na sociedade civil as "corporaçóes", isto é, associações Não usei por acaso o termo de Louis Althusser, "aparelhos
político-econômicas que, de certo modo, podem ser vistas como ideológicos de Estado", que a meu ver não é sinônimo do termo
formas primitivas dos modernos sindicatos). gramsciano "aparelhos 'privados' de hegernonia", com ° qual
Nessa nOV8 situação, ou seja, nas formações sociais que Gramsci denomina os organismos da sociedade civil. Não quero
Gramsci chama de "ocidentais" por contraste com as "orientais" aqui entrar na discussão sobre o valor do conceito de Althusser,
e mais primitivas, o Estado - os mecanismos de poder - não se mas apenas me servir dele para indicar uma diferença histórica.
limita 1113isaos institutos de dominação direta, aos mecanismos Na época absolutista, é justo dizer que a Igreja, por exemplo, é
de coerção. Em suma: ao que Gramsci chama ora de "Estado um "aparelho ideológico de Estado". E por quê? Porque havia
em sentido estrito", ora de "sociedade política", e que ele uma unidade indissolúvel entre Estado e Igreja: a Igreja não se
identifica com o governo, com a burocracia executiva, com os colocava como algo "privado" em face do Estado como entidade
aparelhos policial-militares, com os organismos repressivos em "pública". Aideologia que ela veiculava (e não se deve esquecer
geral. que ela controlava todo o sistema escolar) não tinha nenhuma
É claro que tais institutos continuam a existir nas sociedades autonomia em relação ao Estado propriamente dito. O Estado
"ocidentais" mais complexas; continuam a ter papel fundamental impunha a su a ideologia de modo tão coercitivo como impunha
na reprodução da sociedade segundo os interesses de uma classe a sua dominação em geral: quem discordava dessa ideologia
dominante. Mas, ao lado deles, Gramsci vê a emergência da cometia um crime contra o Estado,
"sociedade civil", E o que especifica essa sociedade civil é o Com as revoluções democrático-burguesas, com o triunfo
fato de, através dela, ocorrerem relações sociais de direção do liberalismo, acontece um fato novo: o que poderíamos chamar
político-ideológica, de hegemonia, que - por assim dizer - de laicização do Estado. As instâncias ideológicas de Iegitimação
"completam" a dominação estatal, a coerção, assegurando passam a ser algo "privado" em relação ao "público": o Estado já
também o consenso dos dominados (ou assegurando tal consenso, não impõe uma religião, ou uma visão do mundo em geral; a
ou hegemonia, para as forças que querem destruir a velha religião deve conquistar consciências, deve confrontar-se, entrar
dominação). em luta contIa outras ideologias, contra outras visões do mundo.
Pode-se observar que também as formas anteriores de Criam-se assim, enquanto portadores materiais dessas visões de
dominação de classe, as formas abertamente ditatoriais ou mundo, o que Gramsci chama de "aparelhos 'privados' de

.á.
18 Cultura e sociedade no Brasil Os intelectuais e a organi2aÇJoda culLura
19

hegemonia". Por um lado, velhos "aparelhos ideológicos de


o que tem ... rud o is s« a. ver com a questão da "organização
Estado" (como as Igrejas, as Universidades) tornam-se
da cultura"? Embo r , Grarnsci tenha usado apenas
autônomos, passam a fazer parte da "sociedade civil"; e por outro,
esporadicament=e o terrnj, ele me parece indicar Ummomento
com a própria intensificação das lutas sociais, criam-se novas
necessário do eseu si ste nu categorial: Gramsci vê que, numa
organizações, novos institutos também autônomos do Estado -
formação socia) de ti.po "o::idental", a organização da cultura já
os sindicatos, os partidos de massa, os jornais de opinião etc. -,
não é algo diIetamente subordinado ao Estado, mas resulta da
os quais, embora possam ter como objetivo a defesa de interesses
própria trama complexa e: pluralista da SOCiedade civil. Mais
particulares, "privados", tornam- se também portadores materiais
que isso: ap are-ce COIllO un momenn, necessário da articulação
de cultura, de ideologias.
e da afirmaçã..o da própria sociedade civil. Desse modo, os
Vemos assim que a sociedade civil tem, por um lado, uma irire lecru ais já não são 11lais necessariamente ligados ao Estado
função social própria: a de garantir (ou de contestar) a ou aos seus aparelhos jdeológicos; eles podem se articular agora
legitimidade de uma formação social e de seu Estado, os quais corn ess a esfera de organismos "privados", exercendo suas
não têm mais legitimidade em si mesmos, carecendo do consenso atividades (e, entre elas, a de lutar pela hegemonia polftica e
da sociedade civil para se legitirrarem. E, por outro, que ela ideológica do grupo social que representam) através e no seio
tem uma materialidade social própria: apresenta-se como um dessas formas autônornas de criação e de difusão da cultura.
conjunto de organismos ou de objetivações sociais, diferentes
Essa, aliás. .me pareCtllma acepção, talvez a mais importante,
tanto das objetivações da esfera econômica quanto das
da noç.ão g:wam.sciana de "intelectual orgânico". Com a
objetivações do Estado strictu SenS1L. Digamos que, entre o Estado
emergência ela sociedade civil e de Sua organização cultural, os
que diz representar o interesse público e os indivíduos atomizados
intelectuais ligarn-xe predominantemente às suas classes de
nu mundo da produção, surge uma esfera pluralista de
origem ou de:: adoção -e, por meio delas, à sociedade como um
organizações, de sujeitos coletiva, em luta ou em aliança entre
todo - através da m~diação representada pelos aparelhos
si. Essa esfera intermediária é precisamente a sociedade civil, o
"privados" de hegemorüa. Começam a surgir fenômenos
campo dos aparelhos privados de hegemonia, o espaço da luta
de5Conhecid~s em épocas anteriores: o intelectual de partido, o
pelo consenso, pela direção político-ideológica. (Não é aqui
intelectual ligado ao sindicato, o intelectual que trabalha nos
necessário falar sobre o papel dos partidos políticos nesse quadro:
jornais, nas. editoras, erc ., de partidos ou de sindicatos, de
o ele agregar as correntes dominantes na sociedade civil, de
associações de variado tipo, de correntes de opinião; em suma:
promover uma síntese política que sirva como base para a
o intelectual que já não é funcionário direto do Estado (um
conservação da velha dominação ou para a construção de um
burocrata executivo), Ilem tampouco um intelectual "sem
novo poder de Estado.) Quando surge esse mundo intermediário
vínculos" (Nalln.heim), ~ue - em sua atividade cultural- julga
da "sociedade civil", e quando ele não está totalitariamente
comprometer apenas a si mesmo. (Esse seria o caso típico do
subordinado a um Estado despótico, podemos dizer que a
"intelectua] tradicional'; e um Voltaire, na França do século
sociedade passou de seu período meramente liberal para um
XVIl], pod. eria bem e.'(pressar o que Gramsci figura com esse
período liberal- dernocrá tico.
term o.) Sem necessariamente perder sua autonomia e sua
20 Cultura e sociedade no Brasil Os intelectuais e a organização da cultura 21

independência de pensamento, o "intelectual orgânico" tem uma díalética imanente: tão somente numa sociedade socialista
maior consciência do vínculo indissolúvel entre sua função e as fundada na democracia política é que podem se criar as
contradições concretas da sociedade. condições para um relacionamento verdadeiramente autônomo
A "organização da cultura", em suma, é o sistema das entre as organizações culturais e o Estado.)
instituições da sociedade civil cuja função dominante é a de
concretizar o papel da cultura na reprodução ou na transformação 2.
da sociedade como um todo. Um momento básico da Como Marx disse, a chave da anatomia do macaco está na
organização da cultura é o sistema educacional: cada vez mais, anatomia do homem. Tracei aqui, conscientemente, as linhas
com o crescimento da sociedade civil, o sistema educacional gerais das relações entre Estado e sociedade civil, entre
deixa de ser uma simples instância direta da legitimação do sociedade civil e organização da cultura, entre intelectuais e
poder dominante para se tornar um campo de luta entre as várias sociedade civil, etc., tal como se manifestam numa sociedade
concepções político-ideológicas (basta pensar, por exemplo, na desenvolvida, sob uma forma que - ainda segundo uma
luta entre ensino laico e ensino religioso). E até mesmo nas indicação metodológica de Marx - poderíamos chamar de "forma
organizações de ensino ligadas diretamente ao Estado ocorre clássica". Essa forma clássica mais desenvolvida nos permite
hoje uma ampla batalha de idéias: se a sociedade civil é realmente pensar a anatomia do caso brasileiro, ou seja, de uma forma
autônoma, as Universidades, por exemplo, tornam-se um campo mais primitiva e menos explicitada, bem como examinar como
de luta pela hegemonia cultural de determinados projetos de ela se criou no passado e vem se transformando até nossos dias.
conservação ou de transformação das relações sociais. A luta Diria, antecipando minha conclusão, que o Brasil conhece uma
de classes se trava também no interior das Universidades. trajetória que leva de uma situação de completa debilidade
E "organizações culturais" são também as instituições que servem (ou mesmo ausência) de sociedade civil até outra situação, a
para difundir ideologia de um modo geral: as editoras, os jornais, presente, caracterizada por uma sociedade civil mais ativa, mais
os grupos teatrais, etc., estejam ou não ligados diretamente a complexa, mais articulada. E é preciso lembrar que essa trajetória
algum organismo (tipo sindicato ou partido) da sociedade civil. é expressão do progressivo ingresso do Brasil, ainda que por
Para simplificar: não pode existirsociedade civil efetivamente vias transversas, na era do capitalismo industrial.
autônoma e pluralista sem uma ampla rede de organismos Vou esboçar aqui um quadro histórico-evolutivo extremamente
culturais; e, vice-versa, não pode existir organização da cultura esquemático; repetirei muitas coisas já ditas em outros trabalhos
efetivamente democrática sem estar apoiada numa sociedade meus, nos quais creio que esse esquematismo aparece - se me
civil desse tipo. E a luta de classes, sob a forma da batalha de permitem o jogo de palavras - um pouco menos esquemático.'
idéias, da luta pela hegernonia e pelo consenso, atravessa tanto
Se examinarmos o Brasil da época colonial, uma sociedade
a sociedade civil quanto este sistema de "organização da
pré-capitalista (ainda que articulada com o capitalismo através
cultura". (Não é preciso insistir aqui sobre o fato de que o Estado,
do mercado mundial), veremos facilmente a completa inexistência
enquanto permanecer sob controle capitalista ou burocrático,
interfere nessa batalha de idéias, obstaculizando sua livre 2 Cf. principalmente, o ensaio sobre "Cultura e sociedade no Brasil", infra, p. 30 e ss.
22 Cultura e sociedade no Brasil Os intelectuais e a organização da cultura 23

de uma sociedade civil. Não tínhamos parlamento, nem partidos classes fundamentais da sociedade brasileira: por um lado, os
políticos, nem um sistema de educação que fosse além das escravos que, evidentemente desorganizados e carentes de um
escolas de catequese: não tínhamos sequer o direito de imprimir projeto político global, não podem absorver os intelectuais como
livros ou publicar jornais. Em suma: a organização da cultura, se seus intelectuais orgânicos' e, por outro, os latifundiários
é que se pode falar de "organização" nesse caso, era tosca e escravocratas, que precisavam dos intelectuais apenas como mão-
primitiva. Os intelectuais, os poucos que havia, eram diretamente de-obra qualificada para a implementação das atividades
ligados à administração colonial, à sua burocracia, ou então à administrativas do Estado que controlavam. Não precisando
Igreja (que era na época um aparelho ideológico direto do Estado legitimar sua dominação através da batalha de idéias, as classes
colonialista). Há indícios de novidade na época imediatamente dominantes de então incentivavam uma cultura puramente
anterior à Independência, mas não passam de indícios. ornamental, que serviu para conceder status tanto aos intelectuais
O modo pelo qual se processou nossa Independência não quanto aos seus mecenas, mas que não tinha incidência efetiva
alterou substancialmente o quadro: a Independência resultou sobre as contradições reais do povo-nação.
de uma manobra "pelo alto", de um golpe palaciano, e não de Em tal atmosfera social rarefeita, era difícil para o intelectual
uma ativação prévia da sociedade civil (ainda inexistente). Mas encontrar o meio próprio para seu florescimento independente,
as próprias necessidades políticas do país tornado independente, para sua autonomia relativa. Restavam-lhe poucas opções; a
bem como o desenvolvimento econômico, colocaram novas principal, quase exclusiva, era aceitar a sua cooptação pelas
questões: surgiu a necessidade de elaborar uma camada de classes dominantes, tornar-se funcionário do aparelho de Estado.
intelectuais capaz de servir ao novo Estado. Isso impôs, por E não podia ser de outro modo, numa situação onde praticamente
exemplo, a criação de instituições de ensino superior (principalmente não haviasociedade civil: o parlamento, eleito pelo voto
jurídicas) no próprio país, em contraste com a situação colonial, censitário de uma exígua minoria, não podia ser considerado
quando os intelectuais eram formados na metrópole portuguesa. uma entidade autônoma em face do Estado em sentido estrito;
Surge também, com o aparecimento de um incipiente mercado os partidos políticos não eram partidos de massa, mas simples
cultural, a necessidade de criar os primeiros rudimentos de um apêndices do Estado. Por outro lado, o mercado cultural era
sistema de organização da cultura: publicam-se jornais, editam-se extremamente restrito; se hoje é quase impossível ao intelectual
livros, montam-se peças de teatro, etc. sobrevi.ver no Brasil com a venda de suas obras, pode-se
É preciso lembrar que vivíamos então sob um modo de facilmente imaginar o que ocorria no século XIX.
produção escravista. Um escravisrno certamente peculiar, já que E mais: a cooptação assumia freqüentemente o traço do
articulado no nível internacional com O capitalismo, com suas favor pessoal. Ligando-se a um poderoso, a um proprietário influente,
exigências mercantis e, portanto, capaz de "importar" um certo o intelectual era agraciado com empregos, prebendas, etc.
tipo de cultura (e de instituições) próprias do capitalismo liberal;
mas se tratava sempre, no plano interno, de um regime escravista. ) É claro que houve intelectuais abolicionistas; mas, em geral, seu vínculo cultural com
os escravos era exterior, retórico - basta pensar na poesia de Castro Alves -, e a luta
Isso gera importantes conseqüências para a situação do abolicionista não se fazia em nome de um projeto cultural e político dos escravos, mas
intelectual. O escravismo cria um grande vazio entre as duas de uma nova ordem liberal que garantiria o desenvolvimento do capitalismo.
24 Cultura e sociedade no Brasil Os intelectuais e a organização da cultura 25

É verdade que essa situação de subordinação pessoal às classes escravista.) O naturalismo, tão diverso do romantismo sob tantos
dominantes era disfarçada pelo status relativamente elevado aspectos, tem um ponto semelhante: ao dizer que a "miséria
atribuído à condição de intelectual. A posse da cultura era um brasileira" é fruto de condições fatais, naturais, eternas, de raça
meio de distinção para homens livres mas não proprietários, que e de clima, os naturalistas desviam a atenção dos pontos
não queriam se dedicar a um trabalho efetivo, já que o trabalho concretos, histórico-sociais, portanto modificáveis, que estão
era marcado pelo estigma da condição escrava. Ser intelectual na raiz daquela miséria.
era ser ocioso; precisamente na possibilidade de desfrutar desse Esses dois exemplos parecem-me indicar bem a característica
ócio é que residia o traço de distinção, o status superior do central da cultura que nasce no solo da cooptaçào: trata-se de
intelectual. E esse status, ao mesmo tempo em que servia de uma cultura que promove uma "apologia indireta" (Lukács) do
disfarce para a posição dependente do intelectual, acentuava o existente, que justifica a estrutura social não mediante a sua
caráter ornamental da cultura dominante da época. defesa direta, mas mediante a sua mistificação ou ocultamento
É nesse clima que surge o que tenho chamado (usando um (caso do romantismo), ou mediante a afirmação de que, embora
termo de Thomas Mann recolhido por Lukács) de "intirnisrno à feia e desumana, ela é imutável, e que devemos nos resignar a
sombra do poder". O intelectual cooptado não tem necessariamente ela (como no naturalismo). É evidente que existem exceções, e
de ser um apologeta direto do regime social que o mantém e do não é casual que elas sejam precisamente as maiores figuras do
Estado ao qual está ligado. Ele pode, em sua criação cultural ou período, do ponto de vista cultural; basta pensar em Manuel
artística, cultivar sua própria intimidade, ou seja, dar expressão Antônio de Almeida ou em Machado de Assis, que souberam-
a ideologias ou estilos estéticos que lhe pareçam os mais em suas criações literárias - escapar dos impasses gerados pela
adequados à sua subjetividade criadora. Mas o fato é que a cultura do "intimismo". 4

própria situação de isolamento em face dos problemas do povo- Essa situação não se alterou radicalmente durante a Primeira
nação, a "torre de marfim" voluntária ou involuntária em que é República. Também a República, como a Independência, foi
posto pela situação de cooptação (e pela ausência da sociedade fruto de uma mudança "pelo alto", foi pouco mais que um golpe
civil), faz com que essa cultura elaborada pelos intelectuais militar; as grandes massas, que continuavam desorganizadas,
"cooptados" evite pôr em discussão/as relações sociais de poder não participam de sua proclamação. O arremedo de instituições
vigentes, com as q u a is estão direta ou indiretamente republicanas criado em seguida não era de molde a fortalecer a
comprometidos. sociedade civil. O parlamento continuou a ser um mero apêndice
Por exemplo: o romantismo, com seu culto da subjetividade, do Executivo; os partidos eram nada mais que confrarias locais
funciona certamente como estímulo à evasão; o próprio a serviço de alguns coronéis envolvidos na política. No essencial,
indianismo, como Nelson Werneck Sodré mostrou, é um modo a vida intelectual continua restrita a poucos setores das camadas
de deixar na sombra a questão mais candente da vida nacional médias; continua em grande parte a ser uma "cultura
cio época, a questão dos escravos negros. (Não me parece
casual que o romântico José de Alencar, "vanguardista" 4 Tento apontar algumas das causas de tais "exceções" em meu ensaio sobre Lima
literário, fosse - além de político conservador - um convicto Barre to , ínfra, p. 101 e ss.

I
~.
26 Cultura e sociedade no Brasil Os intelectuais e a organização da cultura 27

ornamental", algo que Afrânio Peixoto expressou muito bem de sociedade civil (associaçôes sindicais e primeiros grupos
quando, ingenuamente, definiu a literatura como sendo "o sorriso políticos de artesãos e operários), corresponde um embrião de
da sociedade". As polêmicas culturais abrem fissuras na superfície organização cultural exterior ao Estado (a imprensa e as associações
homogênea da camada intelectual, mas não tocam nas questões culturais dos proletários).
de fundo; não passam, no mais das vezes, de tempestades em
É nesse quadro, a meu ver, que se pode explicar o "fenômeno"
copo d'água. Parnasianos, simbolistas, românticos tardios: todos
Lima Barreto; Lima é o primeiro grande intelectual brasileiro a
se identificam numa comum concepção de cultura, ou seja, uma
se beneficiar diretamente dessa maior explicitação das contradições
concepção elitista, aristocratizante, ornamental.
sociais, dessa primeira (ainda que incipiente) tentativa de
organizar a partir de baixo a vida política e cultural brasileira.
3. Lima publicou grande parte de sua produção cultural, sobretudo
Mas seria errado não ver que algo começa a se mover, algo jornalística, nessa nova imprensa operária que surgia em sua
que explodiria à luz do sol sobretudo a partir dos anos 20 do época. E em seu principal romance, o Policarpo Quaresma, ele
século XX. A sociedade brasileira vai se tornando mais complexa faz urna crítica demolidora da sociedade brasileira, atingindo-a
(ou menos simples), o capitalismo vai se tornando o modo de em seu ponto talvez mais típico: no modelo de desenvolvimento
produção dominante também nas relações internas. Nossa "prussiano", "pelo alto", que o flori anis mo e o militarismo (rema
estru tura social, com a Abolição, com os primeiros inícios da central do romance) encarnavam tão bem.
"via prussiana" no campo, começa a se tornar mais próxima da E tampouco é casual que, em 1922, assista-se a um fato da
estrutura de uma sociedade capitalista, ainda que continue maior importância da vida do País: a fundação do Partido
atrasada e fortemente marcada por restos pré- capitalistas; novas Comunista do Brasil. Temos com isso, pela primeira vez em nossa
classes e camadas sociais se apresentam no cenário político do história, a criação de um partido político feita a partir de baixo;
País. Antes de mais nada, começa a surgir uma classe operária, e de um partido não só independente do Estado, mas até mesmo
formada ainda essencialmente por semi-artesãos; os primeiros antagônico a ele. O PCB, embora ainda não fosse um organismo
esboços de industrialização, a grande imigração de finais do de massa, representava o embrião de um autêntico partido
século passado, criam um bloco' social contestatário, que põe moderno, que é momento básico de uma sociedade civil efetiva.
em discussão de modo organizado (o que talvez ocorra no Brasil
O modo pelo qual se deu a chamada Revolução de 1930-
pela primeira vez) o modelo "prussiano", elitista e marginalizador
mais uma manobra "pelo alto", fruto da conciliação entre setores
de dominação política, econômica e social até então dominante.
das classes dominantes e da cooptação das lideranças políticas
Começa assim a surgir, com a introdução do capitalismo, das camadas médias emergentes (expressas no "terientismo" ) -
com o início das lutas operárias e com as agitações das camadas esse modo "prussiano" quebrou em grande parte as tendências
médias, um germe do que se poderia chamar de "sociedade civil". que se vinham esboçando antes. Mas não as destruiu
Multiplicam-se as associações proletárias; em conseqüência, surge inteiramente. É certo que o Estado pós-1930 lutou para extinguir
uma ainda rarefeita mas ativa imprensa operária, de orientação a autonomia da sociedade civil nascente, incorporando
predominantemente anarquista. Temos assim que, a um embrião corporativamente os sindicatos à estrutura do Estado (e destruindo
28 Cultura e sociedade no Brasil Os intelectuais e a organização da cultura 29

sua autonomia), instalando em 1937 uma ditadura aberta que Mas que se tratavam ainda de embriões débeis, com raízes
fechou partidos e parlamentos, criando com o Departamento de recentes e tenras, é algo que o próprio golpe de 1937 iria
Imprensa e Propaganda (DIP) um arremedo de organismo comprovar: mais uma vez foi possível às classes dominantes se
cultural totalitário (ou seja, uma tentativa de pôr a cultura servirem do Estado, de mecanismos de dominação "de cima para
diretamente a serviço do Estado). Mas a diversificação da baixo" (e que agora apresentavam traços terroristas e totalitários
formação social brasileira prosseguia; o próprio capitalismo tomados de empréstimo ao fascismo internacional), para
"à prussiana", impulsionado pelo Estado getulista, encarregava-se empreenderem um processo de modernização capitalista
de promover essa diversificação. Tinha-se agora um pressuposto conservadora, afastando o povo de qualquer decisão, quebrando
(que se podia certamente reprimir, porém não mais eliminar) qualquer veleidade de autonomia da sociedade civil nascente.
para a criação de uma sociedade civil, de uma organização da Mas essa debilidade da sociedade civil- é bom não esquecer
cultura menos vinculada a um Estado onipotente. - revela-se também pelo lado oposto: no caráter abertamente
O romance nordestino - um grande protesto literário contra "golpista", igualmente autoritário e elitista, que marcou a
o modo "prussiano" de modernizar o País - é um exemplo vivo atuação das forças políticas renovadoras do período. Longe de
de que agora se tornava possível, e não mais apenas como exceção apostarem no fortalecimento da sociedade civil, as forças
que confirma a regra, criar uma cultura não elitista, não populares apostavam no golpe, no putsch blanquista, na ação de
intimista, ligada aos problemas do povo e da Nação.' Uma exíguas minorias, como se viu em 1935, quando o movimento
cultura, em suma, nacional-popular. de massas esboçado na ANL - que fora posto na ilegalidade -
E não me parece possível desligar a irrupção de fenômenos é abandonado em favor de uma quartelada.
como a floração de importantes estudos sociais no período (é de
1933 a primeira tentativa séria de interpretar a história do Brasil 4.
à luz do marxismo, o ensaio pioneiro sobre a Evolução Política do Esses embriões de sociedade civil, esses pressupostos de uma
Brasil de Caio Prado J únior) da tendência à socialização da autonomia da cultura, favorecidos ademais pela situação
política que, apesar dos evidentes limites, começa a se manifestar internacional, apareceriam de modo mais claro em 1945, com a
nos anos trinta. A Aliança Nacienal Libertadora e a Ação redemocratização do País. Fato significativo é que, pela primeira
Integralista Brasileira são movimentos políticos de massa, de vez, o Partido Comunista do Brasil, legalizado, toma-se um
proporções até então desconhecidas em nossa história. Essa partido de massas; e revela, na época, compreender melhor do
socialização da política indica que já estavam em andamento os que em 1935, embora de modo ainda insuficiente, a importância
processos que levariam à criação no Brasil de uma sociedade da luta democrática, do fortalecimento da sociedade civil nos
civil autônoma e pluralista. combates pelo socialismo no nosso País.? Os sindicatos operários,
embora continuassem atrelados à tutela do Ministério do
\ !\ crítica romanesca da "via prussiana" não aparece apenas nos excelentes romances Trabalho, começam a ter um peso crescente não só nas lutas
de Graciliano Ramos. Basta pensar nos romances de José Uns do Rego que tratam
das devastações humanas provocadas pela capitalização do latifúndio, pela conversão
cio velho engenho na moderna usina. 6 Sobre o PCB em 1945, cf. Leandro Konder, A democracia e os comunistas no Brasil. Rio
de Janeiro: Graal, 1980, p. 49-61.
Cultura e sociedade no Brasil Os intelectuais e a organização da cultura 31
30

diretamente ao Estado no sentido de adotarem uma cultura


econômicas, mas inclusive na vida política nacional. Também
intimista, elitista; mas essa tendência só se impõe na média,
as camadas médias buscam formas de organização independentes,
permitindo naturalmente as exceções, que não são poucas.
nos partidos e fora dos partido: escritores, advogados, jornalistas
E, em segundo lugar, essas exceções aumentam, tendem mesmo
criam associações para a defesa de seus interesses e de seus
a deixar de ser exceções, no momento em que se estrutura uma
ideais. Tudo isso amplia o campo da organização material da
sociedade civil, em que começam a se formar diferenciações no
cultura; uma ampla e muitas vezes fecunda batalha das idéias
mundo da cultura: surge para o intelectual, mesmo para aquele
começa a ter lugar entre nós. Há um acentuado empenho social
que continua ligado "profissionalmente" ao Estado, uma
ela intelectual idade, um maior comprometimento com as causas
possibilidade bem mais concreta de romper as paredes do mundo
populares e nacionais.
fechado do "intimisrno" e de ser influenciado pela riqueza da
A possibilidade de subsistir fora da cooptação e do favor dos
vida cultural, pelo ambiente pluralista da batalha democrática
poderosos, graças à rede de organizações culturais que se amplia
das idéias. A relação de dependência entre cooptação e adoção
(com a publicação de jornais independentes, de revistas, com o
de uma cultura elitista tende a relaxar, a deixar de ser uma
aumento do número de editoras, com uma crescente autonomia
tendência quase impositiva, no momento em que surge ou se
das recém-criadas Universidades, etc.), permite ao intelectual
fortalece uma sociedade civil articulada. Com amarga lucidez,
escapar mais facilmente dos impasses a que é levado pela
Carlos Drummond de Andrade lembrou que não se deve
situação, pouco confortável em muitos casos, do "intimismo à
confundir "servir sob uma ditadura" com "servir a uma ditadura".
sombra do poder". E isso não vale apenas para os intelectuais
O clima favorável à democratização da vida cultural aberto
desligados do aparelho de Estado: muitos produtores de cultura
em 1945 sofreu altos e baixos (basta pensar no fechamento do
que retiram seu sustento material de cargos públicos, ao poderem
PCB em 1947, no clima de guerra-fria que marca o Governo
agora se beneficiar do clima de ativação da sociedade civil,
Outra), mas pode-se dizer que a tendência no sentido de uma
colocam-se claramente ao lado das forças progressistas,
democratização geral da vida brasileira continua a se impor,
comprometem-se com posições políticas e visões de mundo que
ampliando-se bastante no final do período pré-1964, sobretudo
colidem frontalmente com a dominação de classe encarnada
a partir do governo Kubitschek.? Mas, mesmo assim, ainda são
pelo Estado do qual são funcionários.
pouco sólidas as raízes de um novo caminho (democrático) para
Isso demonstra, a meu ver, o caráter mecanicista e esquemático
a vida nacional, e de uma nova hegemonia (nacional-popular e
das teses que afirmam ser o intelectual brasileiro, enquanto
não mais elitista) na cultura brasileira.
intelectual, um membro das classes dominantes; ou que afirmam
ser ele obrigado a assumir posições elitistas, ou mesmo reacionárias,
7 Em 1958, o PCB indicou claramente essa tendência, que considerava - malgrado os
tão-somente por ser funcionário publico. Basta lembrar que Lima seus altos e baixos - "uma tendência permanente": "A.sforças novas que crescem no
Barrete, "maximalista" radical, violento crítico do militarismo, seio da sociedade brasileira, principalmente o proletariado e a burguesia, vêm impondo
um novo curso ao desenvolvimento político do país (...). Esse novo curso se realiza no
foi por muitos anos um pacato funcionário do Ministério da
sentido da democratização, da extensão dos direitos políticos a camadas cada vez
Guerra. A questão é muito mais complexa. Em primeiro lugar, mais amplas." ("Declaração do CC do PCB", março de 1958, in PCB: Vinte Anos de
é certo que há uma tendência dos intelectuais ligados Política. São Paulo: Ciências Humanas, 1980, p. 8).
32 Cultura e sociedade no Brasil Os intelectuais e a organização da cultura 33

5. outras áreas, como a grande imprensa, o cinema, etc. O "capital


Isso se tornou evidente quando, em 1964, uma aliança entre mínimo" (Marx) necessário à criação de um organismo cultural
os vários segmentos das classes dominantes conseguiu truncar o tornou-se agora tão elevado, em setores fundamentais, que
processo de democratização em curso, impondo mais uma vez somente os grandes grupos monopolistas podem dispor do mesmo.
uma solução "prussiana" para os problemas decorrentes da Mas devo advertir que não penso como Theodor W Adorno;
necessidade de levar o país a um novo patamar de acumulação não acho que a indústria cultural seja um sistema monolítico,
capitalista. O novo regime ditatorial, particularmente no período sem brechas. Mesmo antes que se chegue a uma radical inversão
que se seguiu ao AI-5, tentou por todos os meios destroçar o de tendência, a uma situação na qual os organismos de difusão
embrião de sociedade civil autônoma que se vinha esboçando. cultural sejam apropriados coletivamente pela com.unidade,
E é evidente que a organização da cultura não foi poupada. através dos produtores culturais associados, o que só ocorrerá
Não é casual que, entre as primeiras medidas do regime ditatorial numa sociedade socialista fundada na democracia política -
implantado em 1964, estivesse o fechamento dos principais mesmo antes disso, e para que possamos chegar a isso, a luta pela
institutos democráticos de organização cultural da época, democratização da cultura pode e deve obter ganhos parciais
os CPCs e o ISEB, bem como a dissolução do Comando dos de grande importância e significação.
Trabalhadores Intelectuais (o CTI). Por um lado, é preciso lembrar que há ainda setores culturais
Todo o esforço da "política cultural" do regime se voltou no onde pequenas e médias empresas podem operar, garantindo
sentido de dar força às correntes elitistas e/ou escapistas no plano assim uma maior variedade de orientações, um maior pluralismo;
cultural. E isso era obtido principalmente de dois modos: por é o caso da indústria editorial, da chamada imprensa alternativa,
um lado, reprimindo e censurando os intelectuais que defendiam da montagem teatral, etc. E, por outro lado, na medida em que
uma orientação cultural nacional-popular, com o que se abria a resistência democrática vai pondo fora de funcionamento os
espaço para o monopólio de fato das correntes "intim.istas"; instrumentos de repressão e de censura, os próprios monopólios
c, por outro, quebrando a autonomia da sociedade civil, da cultura - penso particularmente na televisão e na grande
autonomia que, como vimos, é a base necessária para uma cultura imprensa escrita - começam a abrir mais espaços às exigências
pluralista e democrática. da sociedade civil, a dar passagem relativa ao pluralismo que
Outro fator conspirou ainda para obstaculizar a democratização nela tem lugar. Além disso, com a conquista de um regime de
da cultura. O regime ditatorial-militar criou as condições efetivas liberdades democráticas, pode-se conceber formas diretas
políticas necessárias à passagem do capitalismo brasileiro para de controle - exercidas tanto pelos próprios produtores culturais
uma nova etapa, a etapa da dominação dos monopólios, a etapa quanto pelos organiza dores da sociedade civil - sobre a geração
do capitalismo monopolista de Estado. Com isso, introduziu-se dos programas televisivos e sobre a informação em geral.
um fato novo no sistema de organização da cultura: uma parte E mais: malgrado o caráter deletério da "política cultural"
substancial do mesmo, a dos meios de comunicação de massa, da ditadura, nem tudo foram sombras na cultura brasileira
passou a ser dominada por grandes monopólios. A televisão é o durante os anos do regime militar. Não quero me referir apenas
caso mais evidente. Mas o fenômeno se manifesta também em à resistência passiva ou ativa da esmagadora maioria dos
34 Cultura e sociedade no Brasil Os intelectuais e a organização da cultura 35

intelectuais, que - independente de suas posições ideológicas impedirem assim a "segurança" que "garante o desenvolvimento".
- colocaram-se em oposição às medidas repressivas do regime E, na mesma medida em que era obrigada a dispensar a
no plano da cultura. Há um fato que me parece ainda mais organização das massas, a luta no interior da sociedade civil, a
significativo, já que está na raiz dessa resistência: é que o regime, ditadura dispensou também o concurso de intelectuais orgânicos,
modernizando o país, promovendo um intenso desenvolvimento que elaborassem uma ideologia reacionária a seu serviço: o que
das forças produtivas, ainda que a serviço das multinacionais, ela exigia dos intelectuais, do mesmo modo como o haviam feito
ainda que conservando traços essenciais do atraso no campo, os velhos regimes autoritários brasileiros, é que eles continuassem
o regime deu impulso aos fatores objetivos que levam a uma a cultivar o seu "intimismo à sombra do poder", deixando aos
diferenciação social e, como tal, à construção de uma autêntica tecnocratas "antiideológicos" a discussão e o encaminhamento
sociedade civil entre nós. A intensa sede de organização que, das questões decisivas da vida política.
nos últimos anos, atravessou o país, envolvendo operários,
Ora, durante a fase do chamado "milagre econômico", essa
mulheres, jovens, setores médios, intelectuais, até mesmo setores
"ideologia da não-ideologia" (de fundo neopositivista) pôde
das classes dominantes, atesta a presença já efetiva dessa
sociedade civil. desfrutar de um relativo consenso entre setores médios e servir
à legitimação parcial do regime. Mas, a partir do início da crise
É certo que o regime militar tudo fez para abafar esse do "modelo" e da reativação e reorganização da sociedade civil,
florescimento da sociedade civil, desde o momento em que o que tem lugar em meados dos anos 70, essa ideologia entrou
percebeu as imensas potencialidades democráticas de sua em bancarrota. Como vimos, o regime não tinha (e não podia
atuação. Mas a ditadura brasileira não foi uma ditadura fascista criar) m.ovimentos de massa capazes de organizar o consenso na
"clássica", ou seja, um regime reacionário com base de massas sociedade civil, de torná-lo relativamente estável, mesmo em
organizadas. Não dispôs de organismos de massa capazes de lutar épocas de dificuldades e crises. Para lutar pela obtenção deste
e conquistar a hegemonia na sociedade civil, para depois destruir consenso, ele se viu forçado a empreender uma tentativa de
sua autonomia e fazer funcionar seus organismos como "correias "auto-reforma", a abandonar a repressão como único instrumento
de transmissão" de um Estado totalitário, como ocorreu na Itália de governo; e essa auto-reforma, para ser exeqüível, implicava
ou na Alemanha fascistas. É certo que a ditadura brasileira lutou de certo modo a necessidade, por parte do regime, de fazer
para conquistar - e, em alguns momentos (quando da sua política. Mesmo lutando para conservar o seu monopólio de
implantação e nos anos do "milagre"), conseguiu até mesmo decisão, a ditadura foi obrigada a respeitar em certa medida os
obter - O consenso de ponderáveis parcelas da população. Mas espaços conquistados pelas forças democráticas na sociedade
se tratou sempre de um consenso passivo, que pressupunha a civil, a conviver com a presença de algo que escapava ao seu
atomização das massas e não se expressava mediante organizações controle. Confirma-se assim, de certo modo, a tese do PCB em
de apoio ativo à ditadura. O regime, em suma, era desmobilizador; 1958: malgrado os retrocessos, a democratização da vida
sua tentativa de legitimação não se fundava numa ideologia brasileira - que se apóia no desenvolvimento da sociedade civil
claramente fascista, mas na luta contra as ideologias em geral, gerada objetivamente pela modernização capitalista - parece
contra a política, acusadas de "dividirem a Nação" e de ser uma tendência permanente e, a longo prazo, irreversível.
36 Cultura e sociedade no Brasil

o próprio desenvolvimento do capitalismo, ao criar um


mercado de força de trabalho intelectual, alterou a situação
dos produtores de cultura: a possibilidade de que eles exerçam
sua função já não depende do favor pessoal, já não resulta da
cooptação. O velho intelectual mandarim, prestigiado por possuir
cultura, converte-se em trabalhador assalariado. Experimenta
agora a necessidade de se organizar, como qualquer outro grupo
social, para lutar por seus interesses específicos, entre os quais
não se situa apenas a melhoria das condições de trabalho:
e, entre essas ultimas, ocupa lugar de destaque a sua autonomia
11.Cultura e
enquanto criador. A luta pelo específico articula-se aqui com a sociedade no Brasil
luta geral, ou seja, com a luta pela liberdade de expressão, de
criação e de crítica, que só podem ser asseguradas plenamente
num regime democrático aberto à renovação social. De casta
fechada, de corporação de notáveis, os intelectuais passam a
ser uma parcela do mundo do trabalho.
Criaram-se assim as condições para que os intelectuais
compreendam de dentro, como uma exigência de sua própria
sobrevivência como produtores de cultura, a necessidade da
construção de uma sociedade democrática. A conquista da
democracia - de um sistema de organizações culturais aberto e
pluralista, apoiado numa sociedade civil autônoma e dinâmica
- torna-se a base para o florescimento de uma cultura nacional-
popular entre nós; mas a elaboração e difusão de tal cultura,
contribuindo para a hegemonia dos trabalhadores (do braço e
da mente) na vida nacional, é por seu turno um momento
ineliminável na conquista, consolidação e aprofundamento da
democracia, de uma democracia de massas que seja parte
integrante da luta e da construção de uma sociedade socialista
em nosso país.

(1980)
Cultura e sociedade no Brasil 39

o presente ensaio não tem a menor pretensão de esgotar -


nem histórica nem sistematicamente - os muitos e complexos
problemas que aborda. Deve ser lido como um conjunto de
anotações mais ou menos fragmentárias sobre alguns tópicos que
me parecem decisivos para a correta colocação e o justo
encaminhamento da questão cultural entre nós. O que unifica
relativamente essas anotações é que elas partem de um
pressuposto - o de que não é possível compreender a problemática
da cultura brasileira sem examinar algumas características da
nossa intelectualidade, ligadas ao modo específico do
desenvolvimento social em nosso País - e desembocam numa
perspectiva: a maneira pela qual a "questão cultural" se resolverá
no futuro imediato vai depender, em medida não desprezível,
da resolução dos complexos problemas colocados pela renovação
democrática e social de nosso País.
Isso não quer dizer, contudo, que essas anotações pretendam
ser "normativas" no sentido estreito da palavra. Ou seja: não
têm a intenção de ditar ao criador cultural certas regras estéticas
e/ou determinados procedimentos político-morais sem cuja
observância "não haveria salvação" para ele. Na criação artística
ou cultural em geral, "não há salvação" para o criador se ele
não se comprometer radicalmente com os valores e princípios
que considera os mais adequados à sua personalidade enquanto
criador. Nesse sentido, se há alguma "norma" proposta neste
ensaio, é a defesa intransigente da mais ampla e radical liberdade
de criação cultural.
Todavia, mesmo com o risco de repetir o óbvio, gostaria de
advertir que essa liberdade de criação me parece condicionada
por dois "limites". Em primeiro lugar, operando sempre num
quadro histórico-social concreto, a liberdade de criação implica
condicionamentos sociais, dos quais o criador pode ou não estar
consciente. E, dado que a liberdade em geral é também
40 Cultura e sociedade no Brasil
Cultura e sociedade no Brasil 41

conhecimento da necessidade, como queriam Hegel e Engels, brasileira e cultura universal. Em sua dimensão ontológico-
cri tão a específica liberdade de criação não será restringida -
social, é esse um problema que não pode ser resolvido no plano
Il1<1S an tes potenciada - se o criador tomar consciência das
de uma análise imanente das "fontes" e "influências". Há uma
implicações sociais (tanto do ponto de vista da gênese quanto
prévia questão histórico-genética a exigir resposta: de que modo
dos efeitos) de sua produção cultural: um dos objetivos deste
se articulou a evolução das formações econômico-sociais
ensaio é pre cisarne nre o de tentar esboçar alguns desses
brasileiras, de cuja reprodução e transformação a nossa cultura
condicionamentos concretos no caso brasileiro e, com isso,
é momento determinado e determinante, com o desenvolvimento
contribuir para uma tomada de consciência dos mesmos por parte
do capitalismo em nível mundial?
elos produtores de cultura.
Colocando na pergunta a questão do capitalismo, já
Em segundo lugar, a mais ampla liberdade de criação tem indicamos boa parte da resposta. Enquanto formação social
como contrapartida necessária a mais ampla liberdade de crítica: específica e relativamente autônoma, o Brasil emerge na época
se só ao criador cabe, em última instância, definir os conteúdos do predomínio do capital mercantil, na época da criação de um
e <1S formas de sua criação (o que ele fará de modo tanto mais mercado mundial. Nossa pré-história como nação - os pressupostos
livre quanto mais for consciente dos condicionamentos sociais de que somos resultado - não residem na vida das tribos
<1 que me referi), ao crítico cultural cabe o direito de exercer indígenas que habitavam o território brasileiro antes da chegada
<1 sua plena liberdade de avaliar - em nome dos critérios que de Cabral: situam-se no contraditório processo da acumulação
considerar válidos - os resultados concretos dessa criação. primitiva do capital, que tinha seu centro dinâmico na Europa
É evidente que a prática dessa dupla liberdade, de criação e ocidental. Os efeitos culturais desse processo foram assim
de crítica, implica de arribas as partes a possibilidade do descritos por Marx e Engels: "Em lugar do antigo isolamento
acerto ou do fracasso (com todas as suas gamas intermediárias). de regiões e nações que se bastavam a si próprias, desenvolvem-se
Mas a decisão quanto a isso não pode, em nenhum caso, um intercâmbio universal, uma universal interdependência das
depender de outra instância que não seja a própria dialética nações. E isso se refere tanto à produção material quanto à
d a vida cultural, na plur alid ade de suas orientações e produção intelectual. As criações culturais de uma nação
tendências. Talvez possa parecer ..supérfluo insistir nisso; mas tornam-se propriedade comum de todas. A estreiteza e o
houve e há fatos concretos que tornam necessário eliminar exclusivismo nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis;
dúvidas e preconceitos, se é que efetivamente desejamos criar das inúmeras literaturas nacionais e locais, nasce uma literatura
em nosso País, também no plano da vida cultural, uma efetiva universal".'
democracia pluralista.
O objetivo central do colonialismo, na época do predomínio
do capital mercantil, consistia em extorquir valores de uso
1. Subordinação formal e subordinação real: produzidos pelas economias não-capitalistas dos povos
ou como as idéias "entram no lugar" colonizados, com a finalidade de transforrná-los em. valores de
Um dos primeiros tópicos para uma justa conceituação da
"questão cultural" no Brasil é a análise da relação entre cultura I K. Marx e F. Engels, "Manifesto do Partido Comunista", in id., Obras escolhidas. Rio
de Janeiro: Vitória, 1956, vol. I, p. 29.
42 Cultura e sociedade no Brasil Cultura e sociedade no Brasil 43

troca no mercado internacional. A subordinação dessas ainda que "imperfeito" ou "incompleto".' Tais historiadores não
economias agora "periféricas" ao capital mercantil metropolitano levam na devida conta o fato de que a característica essencial
se dava no terreno da circulação: era, para usarmos com certa do modo de produção capitalista - característica que está na
liberdade um célebre conceito de Marx, uma subordinação base da lei do valor-trabalho e, por conseguinte, de todas as
[ortnai,' que mantinha essencialmente intocado o modo de demais leis que operam nesse modo de produção - é a existência
produção do povo colonizado. O fato de que a extorsão crescente do trabalho livre, do trabalho assalariado, que praticamente
de valores de uso levasse, com o passar dos tempos, a uma inexiste no Brasil durante toda a era colonial. Mas tampouco
alteração das bases econômicas e sociais do modo de produção me parece correto que, numa justa reação à teoria do "capitalismo
interno num sentido mercantil e mesmo capitalista (ou seja, colonial", outros historiadores insistiam excessivamente na tese
que gradualmente se passasse da subordinação formal à da autonomia do nosso modo de produção, chegando mesmo
subordinação real), é um resultado não intencional do processo a afirmar que o processo de circulação no período colonial
de colonização, não sendo característico de seus inícios. era posto pelo modo de produção interno, em vez de ser - como
(Voltaremos depois a essa questão.) penso - o ponto através do qual esse modo de produção tornava-
se formalmente subordinado ao capital (mercantil) internacional.
O esquema acima indicado vale também para o caso brasileiro;
mas apresenta aqui uma especificidade da maior importância, Sem entrar aqui nos detalhes da ampla polêmica acerca da
que não pode ser negligenciada na avaliação de nossa natureza desse modo de produção pré-capital ista da era
dependência colonial e que tem amplas conseqüências no plano colonial, assumo como hipótese a de que se tratava de um
da cultura. Não havia em nosso território uma formação modo de produção escravista. (Por outro lado, o adjetivo
econômico-social que, mesmo primitiva, fosse capaz de fornecer colonial não me parece caracterizar o modo de produção, no
excedentes de vulto ao processo de circulação do capital mercantil sentido de atribuir-lhe novas leis, mas indica precisamente o
colonialista. O problema, assim, era o de criar um aparelho seu vínculo de subordinação formal ao capital internacional:
produtivo que se articulasse diretamente com o mercado uma subordinação que certamente sobrederermina essas leis,
mundial. Mas o fato de que o modo de produção vigente na era que são porém as leis gerais de todo modo de produção escravista
colonial tivesse sido posto e reposto pelo movimento internacional com dominância mercantil.)" É o elemento escravista que
do capital não significa, como pensam muitos de nossos
) Um dos principais defensores da tese do "capitalismo colonial brasileiro" é Caio Prado
historiadores, que se tratasse de um modo de produção capitalista, Jr. Fernando Henriquc Cardoso, por sua vez, fala em "capitalismo incompleto"
(cf. Autoritarismo e democratização. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975, p. 104-106).
A conseqüência mais problemática da definição do modo de produção colonial como
2 P~r<1 OS conceitos de subordinação (ou subsu nçào) formal e real, cf. K. Marx,
capitalista é que assim se termina por reduzir o problema geral da transição para o
O Ca/>iwl. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, Livro I, p. 585 e ss: e id.,
capitalismo no Brasil ao problema mais específico da industrialização; com isso, perde-
O CCI/JÍral, Livro I, Capítulo VI (inédito). São Paulo: Ciências Humanas, 1978, p. 51-
se a possibilidade de operar de modo fecundo com a categoria de "via prussiana", que
70. A passagem da subordinação formal para a real, garantindo a socialização das denota precisamente um processo no qual a transição para o capitalismo se dá com a
forças produtivas, cria os pressupostos materiais para que a produção se liberte de sua conservação de elementos pré-capitalistas, tanto na infra-csrrutura quanto no Estado.
forma social capitalista: do mesmo modo, poderíamos dizer que a passagem
4 De qualquer modo, parece-me de grande interesse o livro de J acob Gorender,
correspondente, numa economia "periférica", faz com que surjam as bases materiais
O escra.vismo colonial. São Paulo: Ática, 1978, certamente uma das mais lúcidas
intcrnns - nacionais - para a superação da dependência ao capital internacional.
reflexões sobre o nosso modo de produção na época colonial.
44 Cultura e sociedade no Brasil Cultura e sociedade no Brasil 45

fornece a marca de terminante da formação econômico-social. autóctone anterior à colonização, que pudesse aparecer como o
Ele interfere, por um lado, na produtividade econômica do "nacional" em oposição ao "universal", ou o "autêntico" em
sistema, que se mantém estacionária (ao contrário do que contraste com o "alienígena". Basta pensar no mundo árabe, na
ocorreria no feudalismo), 5 com todas as conseqüências que disso China e na Índia, ou mesmo no Peru e no México, para
resultam para a criação ulterior de um mercado interno e, compreender imediatamente a diferença com o caso brasileiro.
conseqüentemente, para a forma "prussiana" que prevaleceria No Brasil, mesmo na época da subordinação formal, ou seja,
quando da transição para o capitalismo." E, por outro, vale mesmo quando o modo de produção interno ainda não era
ressaltar a marca escravista sobre a estrutura de classes: a capitalista, as classes fundamentais de nossa formação
degradação do trabalho manual, que é muito mais intensa no econômico-social colonial encontravam suas expressões
escravismo do que no feudalismo, opera no sentido de criar ideológicas e culturais na Europa." Com sua habitual lucidez,
faixas "médias" marginalizadas pelo sistema (tanto nas cidades Antônio Cândido registra o fato (o qual, em sua faticidade,
quanto no campo), que só podem se reproduzir através do independe de juízos de valor): "Imitar, para nós, foi integrar, foi
"favor" dos poderosos. Mais adiante, veremos a fundamental nos incorporarmos à cultura ocidental, da qual a nossa era um
importância do "favor" na formação da intelectualidade débil ramo em crescimento. Foi igualmente manifestar a
brasileira. tendência constante de nossa cultura, que sempre tornou os
O fato de que os pressupostos da formação econômico-social valores europeus como meta e modelo"."
brasileira estivessem situados no exterior teve uma importante A cultura universal, assim, não era algo externo, imposto
conseqüência para a questão cultural. Isso significa que, no caso pela força à nossa formação social, mas algo potencialmente
brasileiro, a penetração da cultura européia (que se estava interno, que ia se tornando efetivamente interno à medida que
transformando em cultura universal) não encontrou obstáculos (ou nos casos em que) era recolhido e assimilado por uma classe
prévios. Em outras palavras: não existia uma significativa cultura ou um bloco de classes ligados ao modo de produção brasileiro.
Nascido no momento em que se forma o mercado mundial, e
como conseqüência de sua expansão, o Brasil- desde sua origem
\ Sobre os estímulos ao aumento da produtividade no feudalismo, em contraste com o
- já é herdeiro potencial daquele patrimônio cultural universal
bloqueio rccnológico do escravismo, cf. Pcrry Anderson, Dall'antichità ai feudalesimo.
Mil~ll: Mondadori, 1978, p. 116 e ss. de que falam Marx e Engels, A história da cultura brasileira,
(,Todavia, do ponto de vista dessa transição, a questão não se altera essencialmente portanto, pode ser esquematicamente definida como sendo a
se se confirmasse a presença do feudalismo no Brasil. O decisivo é constatar que
essa transição "prussiana" se deu com a conservação de formas de trabalho fundadas
na coerção extra-econômica, formas que, como se sabe, são características tanto do 1 É evidente que a cultura indígena e, em particular, a cultura negra desempenham um
cscravismo quanto do feudalismo. Referindo-se ao sul dos Estados Unidos, Lênin papel decisivo na formação de nossa fisionornia cul tural especificamente brasileira.
observou: "As sobrevivências econômicas do escravismo não se distinguem Mas tal papel ocorreu sempre no quadro de um amálgama com as matizes européias
absolutamel1tc em nada das do feudalismo (... ). Encontramos aí passagem da estrutura (basta pensar, por exemplo, no processo ocorrido na música popular). Quando resistiram
cscravista - ou feudal, o que no caso dá no mesmo - da agricultura para a estrutura contra esse arnálgama, independentemente do valor moral dessa resistência, as
mercantil c capitalista" (V I. Lênin, "Nouvellcs donnés sur les lois du développement culturas índia e negra transformaram-se ou em folclore ou na expressão de grupos
du capitnlismc dans l'agriculturc", in id., Oeuvrcs. Paris: Éditions Sociales, 1973, marginais.
vo]. 22, p. 21 e 106).
8 A. Cândido, Introducôón a Ia litcratura de Brasil. Caracas: Monte Ávila, 1968, p. 27.
46 Cultura e sociedade no Brasil Cultura e sociedade no Brasil 47

história dessa assimilação - mecânica ou crítica, passiva ou anticolonial, uma corrente cultural avançada contribui para
transformadora - da cultura universal (que é certamente uma formar em nosso País uma consciência social efetivamente
cultura altamente diferenciada) pelas várias classes e camadas nacional-popular, contrária ao espírito da dependência, àquilo
sociais brasileiras. Em suma: quando o pensamento brasileiro que Nelson Werneck Sodré chamou de "ideologia do
"importa" uma ideologia universal, isso é prova de que colonialismo" (ou seja, a adoção por brasileiros de correntes
determinada classe ou camada social de nosso País encontrou culturais - como o racismo - que justificam a nossa situação de
(ou julgou encontrar) nessa ideologia a expressão de seus dependência) .10

próprios interesses brasileiros de classe. Quando surgiu no Brasil


Como quase toda reprodução social, também a da
a classe operária, por exemplo, não foi nos mitos bororos ou nas
dependência é uma reprodução ampliada, que implica a longo
religiões africanas que ela foi buscar sua expressão teórica
prazo transformações de qualidade. Ocorre, assim, uma
adequada.
progressiva conversão da dependência através da subordinação
Antes de prosseguir, cabe dissipar um possível mal-entendido. formal em dependência através da subordinação real; isso se dá
Embora condicionado pela relação de dependência (ou de quando o próprio modo de produção interno, sob a ação
subordinação econômica), esse vínculo com a cultura universal combinada de fatores endógenos e exógenos, vai se tornando
não impõe necessariamente um caráter dependente ou efetivamente capitalista e se subordinando não mais ou apenas
"alienado" à totalidade de nossa cultura." Por um lado, no ao capital mercantil ou comercial, mas também e sobretudo ao
interior de nossa formação social, há a presença de classes capital industrial ou financeiro internacionais. Essa conversão
; antagônicas, com perspectivas diferentes diante do problema cria novas condições para a nossa história cultural. Quanto mais
i da dependência política e econômica, da subordinação (formal
i 1 passa a predominar a subordinação real, tanto m a is vai
ou real) ao capital mundial; por outro, no seio da cultura desaparecendo aquele fenômeno que Roberto Schwarz, em sua
universal, surgem correntes ideológicas diversas que refletem lúcida análise da cultura brasileira do século XIX, chamou de
no plano das idéias - para nos expressarmos de modo simplificado "idéias fora do lugar".
- o antagonismo entre progresso e reação. Ora, é natural que se
I formem "afinidades eletivas" entre as classes anticoloniais e
entre
Segundo Schwarz,
idéia européia
o mais claro exemplo dessa "inadequação"
e realidade brasileira é a importação do
antiimperialistas e as correntes progressistas; ou entre os
liberalismo no século XIX. O vínculo do modo de produção
beneficiários da dependência e as correntes reacionárias. O processo
interno (ainda não capitalista) com o capital mundial, sobretudo
não é certamente mecânico, comportando a possibilidade de
na época imediatamente anterior e posterior à Independência,
"erros" ou "desvios": mas me parece justo dizer que, quando
levou o bloco das classes dominantes no Brasil de então -
"transplantada" para o Brasil por uma classe progressista e
formado pela junção da oligarquia latifundiária e escravocrata
com os representantes internos do capital comercial - a adotar
" Essa idéia de urna "alienação" estrutural da cultura brasileira, por causa da situação
colonial ou semicolonial, foi a posição dominanre entre os intelectuais ligados ao
ISEB. Sobre isso, cf. Caio Navarro de Tolcdo, ISEB: fábrica de ideologias. São Paulo:
Ática, 1977, p. 81-90. 10 Nelson Werneck Sodré, A ideologia do colonialismo. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1965, p. 11- I 6.
48 Cultura e sociedade no Brasil Cultura e sociedade no Brasil 49

urna ideologia liberal burguesa. Schwarz observa: "Era inevitável de tipo pré-capitalista; é, por conseguinte, um modo de
(... ) 8 presença entre nós do raciocínio econômico burguês - a relacionamento autoritário (mesmo quando parem alista) e
prioridade do lucro, com seus corolários sociais -, uma vez que antiliberal,
dominava no comércio internacional, para onde a nossa É essa dialética de adequação e inadequação que, a meu
econom ia era voltada". II Mas, como aquela ideologia liberal ver, altera-se com a passagem à subordinação real, Com o início
não se adequava inteiramente ao modo de produção interno da industrialização, ou, mais precisamente, com a transição do
(que não era capitalista), revela-se objetivamente como uma modo de produção interno à fase propriamente capitalista
"idéia fora do lugar": "Esse conjunto ideológico [liberal] iria \ (o que já se verifica também em certos setores da agricultura na
chocar-se contra a escravidão e seus defensores, e o que é mais, época da abolição da escravatura, ainda que isso se dê de modo
viver com eles"." "prussiano", ou seja, com a conservação de traços p ré-
HJ assim - se bem interpreto Schwarz - uma curiosa e capitalistas), as idéias importadas vão cada vez mais "entrando
paradoxal dialética de adequação e inadequação. É certo que em seu lugar", tornando-se mais aderentes às realidades e aos
o liberalismo expressa interesses efetivos das camadas interesses de classe que tentam expressar. E isso porque a
dominantes: livrc-cambismo no comércio internacional, cálculo estrutura de classes da sociedade brasileira vai se tornando
racional na comercialização dos produtos de exportação, garantia essencialmente análoga àquela da sociedade capitalista em
de igualdade jurídico-formal entre os membros das oligarquias geral. Com isso, as contradições ideológicas que marcam a vida
rural e comercial, etc. E, em outro nível, expressa também os cultural brasileira do século XX aproximam-se cada vez mais -
interesses dos homens livres mas não proprietários, que viam ainda que sem jamais se igualarem inteiramente - às contradições
assegurados pela ideologia liberal seus direitos formais à igualdade ideológicas próprias da cultura universal do período.
com os senhores e sua diferença em face dos escravos. Mas, ] não se pode dizer, por exemplo, que o "maximalismo"
á

diante do fenômeno da escravidão, da desigualdade estabelecida libertário de Lima Barreto esteja simplesmente "fora do lugar";
como (ato natural, do trabalho fundado sobre a coerção extra- na verdade, a ideologia de Lima expressa - e precisamente em
econômica e não sobre a livre coritratação no mercado, o sua contraditoriedade interna, em seus limites, em seus eventuais
liberalismo brasileiro de então revelasua face "inadequada" e "desvios" com relação às matrizes européias - a concreta
"(ora do lugar". Além disso, tampouco se pode falar em problemática das camadas urbanas subalternas que vão sendo
regulamentação liberal no relacionamento entre os "grandes" e geradas direta ou indiretamente pelo crescimento da indústria.
os homens livres sem propriedade. O "favor", que marca tal Para usar uma expressão de Lucien Goldmann, essa ideologia
relacionamento, consagra veículos de dependência pessoal, aparece como o máximo de "consciência possível" dessas
camadas nas duas primeiras décadas do século XX, Uma
,I Robcrro Schwarz, Ao venceclm as baratas. São Paulo: Duas Cidades, 1977, p. 14. Pelos observação análoga valeria para o movimento modernista de
motivos que indicarei em seguida, não concordo com a generalização que Schwarz 1922: sem discu tir aqui o conteúdo ideológico desse movimento,
faz para o século XX (cf por exemplo, ibid., p. 19 e 24) de sua tese de "idéias fora de
lugar".
parece-me que a tentativa de renovação das técnicas artísticas
11 Ibid., p. 14. a partir da importação do vanguardismo europeu pode ser
50 Cultura e sociedade no Brasil Cultura e sociedade no Brasil 51

interpretada como a expressão do necessário esforço de adequação que o fenômeno da "via prussiana" - tal como Lênin o formula -
das "forças produtivas" da arte ao novo universo cotidiano que tem sua expressão central na questão da passagem para o
o capitalismo, em sua forma moderno-industrial, ia introduzindo capitalismo, no modo de adequar a estrutura agrária às
na vida brasileira, sobretudo em São Paulo. Os exemplos poderiam necessidades do capital." Mas, generalizando o conceito, pode-
ser multiplicados, até mostrar como a irrupção do neopositivismo se dizer que - na base de uma solução "prussiana" global para a
ou da contracultura na vida cultural brasileira mais recente questão da transição ao capitalismo - todas as grandes
correspondern - sem "estar fora do lugar" - à passagem do alternativas concretas vividas pelo nosso País, direta ou
capitalismo brasileiro para a etapa do capitalismo monopolista indiretamente ligadas àquela transição (Independência,
de Estado. Abolição, República, modificação do bloco de poder em 1930 e
1937, passagem para um novo patamar de acumulação em 1964),
2. Os efeitos da "via prussiana" encontraram uma resposta "à prussiana": uma resposta na qual
sobre a intelectualidade brasileira a conciliação "pelo alto" não escondeu jamais a intenção
explícita de manter marginalizadas ou reprimidas - de qualquer
Somen te se tivermos em mente esse vínculo estrutural da
modo, fora do âmbito das decisões - as classes e camadas sociais
cultura brasileira com a cultura universal é que poderemos
"de baixo"." Portanto, a transição do Brasil para o capitalismo
avaliar corretamente o sentido e a atualidade do problema de
(e de cada fase do capitalismo para a fase subseqüente) não se
uma cultura nacional-popular em nosso País, sem com isso cairmos
deu apenas no quadro da reprodução ampliada da dependência,
na armadilha de um falso "nacionalismo cultural". Mas, antes
de abordar esse problema, é preciso indicar outra determinação
IJ Cf. V I. Lênin, "Programme agraire de Ia social-démocratie dans Ia prérniêre révolution
histórica-genética essencial da cultura brasileira, gerada dessa
russo", in id., Oeuvrcs, cit., vol. 13, p. 229 e ss.
feita não tanto no nível do caráter dependente de nossas relações
14 Esse conceito "ampliado" de via prussiana aparece em Georg Lukács. "Não é por
de produção, mas - através da mediação dessa base econômica acaso que Lênin indica essa via [seguida pela Alemanha] como um caso típico de
- naquele da articulação entre as classes e o poder político que alcance internacional, como uma via desfavorável para o surgimento da moderna
sociedade burguesa; ele a chama de via jJTussiana. Essa observação de Lênin não deve
foi característica da evolução histórica do Brasil. ser limitada à questão agrária em sentido estrito, mas aplicada a todo o desenvolvimento
do capitalismo e à superestrutura política que ele assumiu na moderna sociedade
Essa problemática pode ser 'resumida na idéia de que o
burguesa da Alemanha" (G. Lukács, La distrnzionc dclla ragionc. Turim: Einaudi, 1959,
processo de modernização econômico-social no Brasil seguiu p. 50). Em muitas de suas análises concretas da sociedade e da cultura da Alemanha
uma "via prussiana" ou uma "revolução passiva". Recordemos e da H ungria, Lukács aplicou de modo fecundo o conceito "ampliado" de via prussiana:
cf. por exemplo, o seu ensaio sobre Béla Bartók ("Il mandarino meraviglioso contra
as características centrais do fenômeno: as transformações l'alienazione", in Rinascita, n? 37, 18/09/1970, p. 18-20), onde ele relaciona
ocorridas em nossa história não resultaram de autênticas organicamente os conceitos de "via prussiana" e de "intimisrno à sombra do poder".
revoluções, de movimentos provenientes de baixo para cima, É interessante observar ainda que o conceito lukacsiano de "via prussiana" é
essencialmente análogo ao conceito gramsciano de "revolução passiva" (ou "revolução-
envolvendo o conjunto da população, mas se processaram sempre restauração", ou "revolução pelo alto"), com o qual Gramsci pretende sintetizar a
através de uma conciliação entre os representantes dos grupos ausência de participação popular e o tipo de modernização conservadora que foram
próprios do caminho italiano para o capitalismo. Nem se deve esquecer que tais
opositores economicamente dominantes, conciliação que se conceitos foram desenvolvid os por Lukács e por Gramsci na tentativa de determinar as
expressa sob a figura política de reformas "pelo alto". É evidente raízes históricas do fascismo, respectivamente, na Alemanha e na Itália.
52 Cultura e sociedade no Brasil Cultura e sociedade no Brasil 53

ou seja, com a passagem da subordinação formal à subordinação a sociedade civil. Em segundo lugar, um dos modos de isolar os
real em face do capital mundial; em estreita relação com isso grupos populares dos processos políticos foi precisamente o de
(já que uma solução não prussiana da questão agrária asseguraria "assimilar" os seus virtuais representantes ideológicos, incluindo-
as condições para o desenvolvimento de um capitalismo nacional os - naturalmente em posição subordinada - nos novos blocos
não dependente), essa transição se processou também segundo de poder que iam resultando dos processos de conciliação pelo
o modelo da "modernização conservadora" prussiana." alto. Isso se faz, essencialmente, através dos vários mecanismos
Entre as várias conseqüências da "via prussiana" ou da de cooptação das camadas médias (em particular dos
"revolução passiva", há uma de particular relevância também intelectuais) pelas classes dominantes. Esses mecanismos vão
no plano (18 cultura: dado que o instrumento e o local da desde o "favor" concedido a homens livres mas não proprietários
conciliação de classes foi sempre o Estado, verificou-se um na época da escravidão, passam pelo recrutamento da burocracia
fortalecimento do que Gramsci chama de "sociedade política" civil e militar a partir da época do Segundo Império e sobretudo
(os aparelhos burocráticos e militares que exercem a dominação do período varguista, e chegam até a recente criação - mediante
através do governo) em detrimento da "sociedade civil" (do mecanismos de redistribuição de renda - de um setor privilegiado
conjunto de aparelhos ideológicos através dos quais uma classe, de tecnocratas dotado de alto poder de consumo.
ou um bloco de classes, luta pela hegemonia ou pela capacidade O escasso peso dos aparelhos privados de hegemonia e dos
de dirigir O conjunto da sociedade). Ora, esse modelo de evolução partidos políticos de massa na formação social brasileira - onde
política e seus resultados sobredeterminam - e conseqüentemente "o Estado era tudo [e] a sociedade civil era primitiva e
alteram - o modo de relacionamento "clássico" (no sentido que gelatinosa"!" - condenou os intelectuais que se recusavam à
Marx dá a essa palavra) entre os intelectuais e as classes sociais. cooptaçâo pelo sistema dominante à marginalidade no plano
Em primeiro lugar, a debilidade da sociedade civil é cultural e, para nos expressarmos com certa vulgaridade, a
responsável pela minimização de um dos papéis essenciais da seríssimos problemas no plano da subsistência econômica." E isso
cultura, precisamente o de expressar a consciência social das para não falar na repressão política direta contra os intelectuais
classes em choque e de organizar a hegemonia ideológica de
uma classe ou de um bloco de classes sobre o conjunto dos seus 16A. Gramsci, Quademi dei carcere. Turim: Einaudi, 1975, p. 866.
110 vínculo de dependência do intelectual brasileiro ao Estado foi bem observado por
aliados reais ou potenciais. A cultura brasileira tornou-se assim
Antônio Cândido, que chega por isso a constatar, em nossa literatura oitocentista,
em grande parte uma cultura "ornamental", já que não existia "um certo conformismo de forma e de fundo." (Cândido, Literatura e sociedade. São
(ou era excessivamente débil) o medium próprio da vida cultural: Paulo: Nacional, 1965, p. 99). De modo ainda mais incisivo, Walnice Nogueira
Galvão observa: "O Estado (... ) se encarrega de dispensar o intelectual de qualquer
papel na produção, sustentando-o por meio de empregos burocráticos, doações, prêmios,
prebendas, etc. É assim que o intelectual se torna peça do aparelho de Estado, com
"Ou, em outras palavras: se tivesse ocorrido uma solução diversa para a nossa secular as conseqüências para sua obra que se podem prever. (... ) Então, o que se pode
questão agrária, uma solução democrático-revolucionária e não "prussiana", isso imaginar é que, com maior ou menor boa vontade, voluntariamente ou a contragosto
rcria aberto () espaço efetivo para uma industrialização centrada no mercado interno e mesmo com raríssimas exceções honrosas, os intelectuais brasileiros aderem à
popular; uma tal industrialização - expandindo-se de baixo para cima - poderia ter ideologia da classe dominante e procuram não enfrentar o Estado, do qual depende
evitado a monopolização precoce e a dependência recnológíca ao exterior, que estão diretamente sua subsistência" (W N. Galvão, Saco degaws. São Paulo: Duas Cidades,
na raiz do modelo capitalista dependente-associado que efetivamente triunfou. 1976, p. 40-41).
54 Cultura e sociedade no Brasil Cultura e sociedade no Brasil 55

que tentaram se ligar às camadas populares (ou que são por elas os fundamentos daquele poder a cuja sombra ele é livre para
produzidos), repressão que não foi um fenômeno marginal na cultivar a própria "intimidade" .19
história das relações entre os intelectuais e o Estado no Brasil. No interior desse espaço fechado a um contato orgânico com
Temos assim um claro "desequilíbrio" na luta cultural: enquanto a realidade do povo-nação, o intelectual cooptado pode
as classes dominantes encontram com relativa facilidade os seus experimentar o seu isolamento não como uma aprazível "torre
representantes ideológicos ou os seus "intelectuais orgânicos" de marfim", mas como uma "danação" da qual não pode se
(veremos logo mais que até mesmo a cultura "ornamental" serve libertar. Se a maior parte das ideologias ou das obras de arte
ideologicamente à conservação social), as camadas populares criadas no terreno do "intirnismo" são apologéticas, elas o são
são freqüentemente "decapitadas" e lutam com grandes dificuldades naquele sentido mediatizado que Lukács - partindo da idéia
para dar uma figura sistemática à sua autoconsciência ideológica. de que não existe ideologia socialmente "inocente" - resumiu
Basta pensar nos países que não seguiram uma "via prussiana" na expressão "apologia indireta" do existente." Por exemplo: no
para o capitalismo (como a França), ou que superaram caso brasileiro, o culto da evasão subjetivista no velho romantismo
posteriormente os seus efeitos (como a Itália pós-fascista), para ou na novíssima contracultura, o pessimismo ontológico dos
compreender as diferenças com o caso brasileiro. naturalistas, o cientificismo (que se pretende antiídeológico)
O conjunto desses pressupostos prepara um clima favorável dos estruturalistas, etc., são apologia do existente al)enas na
a que a cul tura se desenvolva naquele clima asfixiante que - medida em que afastam da ótica da arte ou da ciência social as
valendo-me de uma expressão de Thomas Mann recolhida por contradições concretas da realidade, em que transformam o
Lukács - chamei em outro local de "intimismo à sombra do essencial em inessencial ou vice-versa, obscurecendo ou
poder" .Ig Esse "intimismo" liga-se diretamente ao problema da impedindo urna justa consciência dos problemas efetivos do povo-
ornarnentalidade da cultura. O processo de cooptação não obriga nação. (Para evitar mal-entendidos: a relação que estabeleço
necessariamente o intelectual cooptado a se colocar diretamente aqui entre cooptaçâo e "intimismo" é uma relação tendencial,
~1 serviço das classes dominantes enquanto ideólogo; ou seja, que - se é válida para a média - não o é evidentemente para
não o obriga a criar ou a defender apologias ideológicas diretas cada caso singular.)
do existente. O que a cooptação. faz é induzi-Io - através de A tendência objetiva da transformação social no Brasil a se
várias formas de pressão, experimentadas consciente ou realizar por meio da "conciliação pelo alto" marca de vários modos
inconscientemente - a optar por formulações culturais anódinas, o conteúdo da cultura brasileira. Antes de mais nada, surgem

I
"neutras", socialmente assépticas. O "intimismo à sombra do
poder" lhe deixa um campo de manobra ou de escolha
aparentemente amplo, mas cujos limites são determinados 19 "Contudo, seria prova de esquematismo entender essa tendência como manifestação
de uma clara adesão imediatamente político-ideológica ao poder estabelecido, às
precisamente pelo compromisso tácito de não pôr em discussão formas mais reacionárias de dominação social, embora também essa adesão ocorresse
em alguns casos. O 'intirnismo à sombra do poder' combinou-se freqüentemente com
um inconformismo declarado, com um mal-estar subjetivamente sincero diante da
"Cf. C. N. Coutinho, "O significado de Lima Baneto em nossa literatura", infra, situação social dominante" (ibidem,p. 104).
p. 101 c 55. lOG. Lukács, La distruzione della ragione, cit., p. 5 e 205-206.
Cultura e sociedade no Brasil 57
56 Cultura e sociedade no Brasil

do Antônio Carlos mineiro antes da Revolução de 1930:


entre nós manifestações explícitas da ideologia "prussiana", que
"Façamos a revolução antes que o povo a faça". Vejamos uns
- em nome de uma visão abertamente elitista e autoritária -
poucos exemplos. Na véspera da Independência, o liberal
defendem a exclusão das massas populares de qualquer
Hipólito da Costa - de seu exílio londrino - já afirmava:
participação ativa nas grandes decisões nacionais. Citando
"Ninguém deseja mais do que nós as reformas úteis, mas ninguém
declarações nesse sentido de pensadores como Farias Brito,
aborrece mais do que nós que essas reformas sejam feitas pelo
Gilberto Freyre, Oliveira Vianna, Miguel Reale, Francisco
povo". E quando, após a Independência, um liberal considerado
Campos, Eugênio Gudin e outros, Leandro Konder assim sintetiza
avançado como Evaristo da Veiga defende a Constituição contra
a essência do pensamento au toritário e de direita entre nós:
o perigo do absolutismo, não hesita em dizer: "Modifique-se o
"O pluralisrno da ideologia da direita pressupõe uma unidade
nosso pacto social, mas conserve-se a essência do sistema
substancial profunda, inabalável: todas as correntes conservadoras,
adotado. (... ) Faça-se tudo quanto é preciso, mas evite-se a
religiosas ou leigas, otimistas ou pessimistas, metafísicas ou
revolução". Z3
sociológicas, moralistas ou cínicas, cientificistas ou místicas,
Essa tendência ao ecletismo - à conciliação ideológica -
concordam em um determinado ponto essencial. Isto é: em
não se manifesta apenas nos pensadores liberais moderados. Até
impedir que as massas populares se organizem, reivindiquem,
mesmo intelectuais progressistas, nada ligados em sua atividade
façam política e criem uma verdadeira democracia"."
cultural ou política às tendências intimistas e ao espírito de
Mas o elitismo antipopular não aparece apenas em pensadores
conciliação/cooptação, são pressionados pela situação objetiva
autoritários e de direita. A conciliação social e política encontra
I
a confusas sínteses eclé ticas, que minimizam ou danificam
um reflexo ideológico na tendência do pensamento brasileiro I seriamente o caráter em última instância progressista da ideologia
ao ecletismo, ou seja, à conciliação igualmente no plano das \
que professam. Nelson Werneck Sodré registrou processos desse

I
idéias. Fortes contaminações de "prussianismo" aparecem assim
tipo na produção de Euclides da Cunha, que combinava
também em nosso pensamento liberal, tornando-o por vezes
declarações de simpatia pelo socialismo com a aceitação de
acentuadamente
defende a mudança
moderado
que se tornou
e mesmo conservador."
necessária,
O liberal
valendo-se para I elementos ideológicos
ainda outros exemplos.
de fundo racista." Poderíamos
Basta pensar no modo pelo qual os líderes
lembrar

tanto
tempo,
explícito
de formulações
recusa as conseqüências
da "anarquia"
ideológicas

e do "caos"
progressistas;
últimas do progresso,
mas, ao mesmo

que vêm "de baixo",


por temor
das
I da Revolução
Figueiredo,
com o ecletismo
Praieira
tentavam combinar
espiritualista
de 1848, como
elementos
moderado,
Antônio
do socialismo
inspirado
Pedro
utópico
em Victor
de

forças populares ainda "imaturas". Podemos encontrar, na vida t Cousin; na bizarra síntese de marxismo e positivismo tentada
ideológica brasileira, toda uma série de formulações que - por
por Leônidas de Rezende, nos anos 30 do século XX; na infiltração
seu espírito e até por sua letra - antecipam a célebre declaração
de posições irracionalistas na pesquisa sociológica e filosófica

21 Leandro Kondcr, "A unidade da direita", in Joma{ da RelJública, 20/09/1979, São


Paulo, p. 4. 23 Ambas as citações estão em Mercadante, cit., p. 62 e 117.

li Essa tendência foi bem analisada, para o século XIX, por Paulo Mercadante, 14N. W. Sodré,A ideologia docolonialismo, cit., p. 101-161.
A consciênciCl conservadora no Brasil. Rio de Janeiro: Saga, 1965.
58 Cultura e sociedade no Brasil
Cultura e sociedade no Brasil 59

do ISEB, essencialmente voltada para uma análise crítica e 3. O nacional-popular como alternativa à cultura "intimista"
racional de nossa realidade; ou na "coexistência pacífica", em
Sem a menor pretensão de esgotar a questão, vamos a seguir
alguns dos intelectuais estruturalistas de nossos dias, de posição
enumerar algumas determinações essenciais do nacional-popular
políticas de esquerda com uma metodologia de tipo neopositivista
enquanto tendência alternativa no seio da cultura brasileira.
(e, como tal, filosoficamente reacionária). 25
Antes de mais nada, é fundamental ressaltar que tais determinações
Todos esses exemplos pretendem mostrar que a tendência - pelo menos é essa minha convicção - não resultam de uma
ao confusionismo ideológico, ao ecletismo teórico objetivamente escolha pessoal, não são normas arbitrárias que eu pretenda impor
"moderado" (onde elementos progressistas são "temperados" com de fora à prá tica criadora de artistas e ideólogos. São determinações
elementos reacionários), não resulta simplesmente de uma postas e repostas por um movimento cultural efetivamente existente
escolha subjetiva dos intelectuais, de um eventual oportunismo ao longo da história do Brasil, ainda que em posição quase sempre
constitutivo deles, mas sim de condicionamentos objetivos de subalterna: um movimento que, apesar de (ou graças a) suas
nossa formação histórica e social. Escapar da "via prussiana" e inúmeras diversidades internas, unifica-se enquanto alternativa
de suas seqüelas anticulturais não é um movimento que dependa real à cultura "ornamental" ou "intimista", a qual, pelas razões
a1)cnas da disposição pessoal dos intelectuais. A coragem e a I expostas, ocupou uma posição tendencialmente hegemônica ao
retidão moral são certamente necessárias, mas não suficientes. longo da história de nossa vida cultural. Nesse sentido, o
Dado que na raiz do "intirnismo" está a separação entre os

I
nacional-popular aparece objetivamente como oposição
intelectuais e a realidade nacional-popular, uma separação posta democrática, no plano da cultura, às várias configurações
e reposta pela "via prussiana", o antídoto contra tal veneno não concretas assumidas pela ideologia do "prussianismo" ao longo
pode ser produzido simplesmente no laboratório imanente da da evolução brasileira.
própria cultura: a superação do "intimismo", tanto no nível
Embora a situação italiana divirja em muitos pontos da
pessoal quanto social, passa pela orgânica integração dos
brasileira, acredito que a definição gramsciana do nacional-
intelectuais com a luta das classes subalternas para se afirmarem
popular - precisamente na medida em que Gramsci o concebe
como sujeitos efetivos de nossa evolução social e política. Uma
como alternativa à cultura elitista, gerada na I tália pela
luta que tem por meta a destruição do elitismo implícito na "via
predominância da "revolução passiva" como forma de transformação
prussiana", com a conseqüente abertura de um processo de
social e pelo conseqüente processo de "transform ísmo'' (de
renovação democrática que envolva todas as esferas do ser social
cooptação) dos intelectuais'" - pode contribuir grandemente para
brasileiro.
iluminar algumas contradições também da nossa vida cultural.
"Na Itália, o termo 'nacional' - observa Gramsci - tem um
25 Cf., respectivamente: para os líderes da Praieira, P. Mercadante, A consciência significado muito restrito ideologicamente; de qualquer modo,
conservadora, cit., p. 146-161; para L. de Rezende, Antônio Pairn, História das idéias não coincide com "popular", já que na Itália os intelectuais estão
filosóficas no Brasil. São Paulo: Grijalbo, 1967, p. 223 e ss.; para o ISEB,JacobGorende~,
''As correntes sociológicas no Brasil", in Estudos Sociais, n'" 3-4,1958, p. 335-352; e, distantes do povo, isto é, da "nação", ligando-se, ao contrário,
para o estruturalismo, Ferreira Gullar, "Vanguardismo e cultura popular no Brasil",
in Temas de Ciências Humanas, São Paulo, 1979, vol. 5, p. 80-81.
l6Cf. Gramsci, Quademi, op. cit., p. 962-963.
60 Cultura e sociedade no Brasil Cultura e sociedade no Brasil 61

a uma tradição de casta, que jamais foi rompida por um forte não se trata de afirmar que tal postura abstratamente cosmopolita
movimento político popular ou nacional que atuasse de baixo não exista entre nós: ela se manifesta sempre que a recepção de
para cima (... ). Os intelectuais não surgem do povo, ainda uma corrente cul tural universal se faz de modo abstrato, sem
quanto acidentalmente algum deles é de origem popular; nenhuma tentativa de concretizá-Ia e enriquecê-Ia no confronto
não se sentem ligados ao povo (a não ser de modo retórico), com a realidade brasileira. Em outras palavras, mais precisas: há
não conhecem nem sentem suas necessidades, aspirações e cosmopolitismo abstrato todas as vezes que a "importação"
sentimentos difusos; ao contrário, aparecem diante do povo como cultural não tem como objetivo responder a questões colocadas
algo separado, suspenso no ar, ou seja, como uma casta e não pela própria realidade brasileira, mas visa tão somente a satisfazer
como uma articulação, com funções orgânicas, do próprio exigências de um círculo restrito de intelectuais "intimistas",
povo"." A descrição gramsciana adequa-se muito bem ao caso Nesse sentido, podemos afirmar que essa postura "cosmopolita"
brasileiro: o nacional-popular, assim, é - visto pelo lado negativo é uma das manifestações da cultura elitista e não nacional-
- antes de mais nada a quebra desse distanciamenro entre os popular: é por estarem separados do povo, emparedados nos
intelectuais e o povo, distanciamento que está na raiz do limites do "intimismo", que certos intelectuais são incapazes de
florescimento da cultura "intimista" ou do elitismo cultural e proceder àquela concretização e àquele enriquecimento do
que, no mais das vezes, não resulta de uma escolha voluntária patrimônio universal.
do intelectual.
Por isso, é preciso insistir resolutamente no fato de que o
Mas se trata desde já de desfazer um possível mal-entendido nacional-popular não se confunde - antes conflita - com o
quanto à natureza do nacional-popular. Como vimos, a cultura fechamento provinciano e popularesco diante das conquistas
brasileira vincula-se organicamente - tanto em sua face efetivamente progressistas da cultura mundial." Pelas razões
reacionária quanto em sua face democrática e progressista - ao genético-sociais a que já aludi, um tal fechamento seria
patrimônio cultural universal, que lhe serviu e serve de inspiração simplesmente impossível. Quando defendido por artistas ou
e alimentação permanente. Assim, se o nacional-popular é pensadores progressistas, esse "nacionalismo cultural" conduz
essencialmente um modo de articulação entre os intelectuais e a sérios equívocos, que se expressam no empobrecimento da
o povo (que faz desses intelectuais -;:-na expressão de Gramsci _ expressão estética e/ou na limitação das potencialidades críticas
"intelectuais orgânicos" das correntes populares), ele não da consciência ideológica das forças populares. Por isso, na
pode ser entendi.do, no que se refere às suas figuras concretas verdade, o "nacionalismo cultural" encontra afinidades eletivas
e ao seu conteúdo, como algo oposto ao universal, como simples muito maiores com as forças reacionárias, assumindo quase
afirmação de nossas pretensas raízes culturais "autônomas" sempre os traços de uma ideologia retrógrada. Nesse caso, não é
contra a penetração do "cosmopolitismo alienado", etc. Decerto,
28 Lukács viu bem os dois momentos do processo: "O particular caráter do
desenvolvimento do povo alemão [isto é, segundo uma via prussiana] apresenta,
17 lbid., p. 2.116-2.117. Num sentido positivo, Gramsci definiu o nacional-popular
também em literatura, os falsospólos: a) de um abstrato cosmopolitismo (contraposto
ligando-o explicitamente ao historicisrno: "Humanidade 'autêntica', 'fundamental',
ao real internacionalismo) e b) de um provincianismo restrito, que freqüentemente
pode significar concretamente, no campo artístico, uma única coisa: 'historicidade',
se manifesta como chauvinismo reacionário (contraposto ao real patriotismo)"
ou seja, caráter 'nacional-popular' do escritor" (ibid.,p. 2.247).
(G. Lukács, Realisti tedeschi deiXIX secolo. Milão: Feltrinelli, 1965, p. 19).
Cultura e sociedade no Brasil Cultura e sociedade no Brasil 63
62

que se defenda uma suposta cultura nacional autônoma contra características do nacional-popular é precisamente a capacidade
a cultura estrangeira, mas antes se designa como "nacional" o de distinguir entre o válido e o não-válido no seio do patrimônio
atraso brasileiro, os elementos anacrônicos de nossa estrutura cultural universal).
social, ao mesmo tempo em que se luta contra o "idealismo" e a Um outro erro seria o de identificar o nacional-popular com
"falta de realismo" da cultura progressista mundial quando um determinado estilo ou com uma determinada temática, no
comparada à nossa vida social concreta. Isso é muito claro, por plano estético, ou com uma única posição ideológica, no plano
exemplo, em Azevedo Amaral, um dos principais teóricos do do pensamento social." São expressões do nacional-popular, por
autoritarismo no Brasil: "Contra essa orientação [da democracia exemplo, tanto As memórias de um sargento de milícias de Manuel
liberal], no sentido da universalização artificial de um regime Antônio de Almeida, que se valem de um estilo realista tradicional,
político, ergue-se a reação vigorosa do espírito contemporâneo quanto A meditação sobre o Tietê de Mário de Andrade, que
COlTl a afirmação da idéia nacional'l." Os exemplos poderiam recorre às conquistas técnico-expressivas do modernismo e da
ser multiplicados. Se observarmos nossa história, veremos vanguarda. Mas pode-se dizer que, através dessas variações
facilmente que tal "nacionalismo cultural", desde a época da estilísticas necessárias, há um método artístico comum - o método
luta da Coroa portuguesa contra penetração de idéias iluministas do realismo crítico (na acepção que Lukács dá a esse conceito) -
no Brasil até os recentes ataques da ditadura contra o marxismo que unifica na diversidade as várias expressões concretas do
em combinação com a defesa de uma "democracia relativa" nacional-popular no terreno estético. Essa idéia da unidade do
("adequada" à realidade brasileira), serviu sempre para impedir nacional-popular, porém, não deve levar de nenhum modo à
- em nome da recusa de "ideologias exóticas" contrárias à negação do seu radical pluralismo. Como Lukács observou, "a
"índole" do nosso país - a concreta assimilação dos instrumentos obra de arte autêntica - e somente essa pode se tornar a base de
ideológicos capazes de conduzir efetivamente o povo brasileiro uma fecunda universalização histórica ou estética - satisfaz as
3 sua afirmação nacional e democrática. Por isso, tem razão leis estéticas apenas na medida em que, ao mesmo tempo, as
Mercadante quando observa: "A preocupação de adaptar, de amplia e aproíunda";" Não há assim normas a priori para a arte
ajustar a experiência estrangeira às condições nacionais, decorre de inspiração nacional-popular: é direito e dever de cada artista
do próprio espírito de conciliação'L'? Em outras palavras: o exercer a máxima liberdade de criação, no sentido de encontrar
"nacionalismo cultural" é uma das principais manifestações o seu modo peculiar e próprio de ampliar e de aprofundar as leis
ideológicas da "via prussiana" antipopular. (É claro que nada estéticas do gênero dentro do qual trabalha. Portanto, a unidade
tem a ver com esse "nacionalismo cultural" retrógrado a luta da arte nacional-popular é algo apenas tendencial, que só pode
contra a penetração de produtos culturais alienados, impostos
ao nosso povo sobretudo através dos modernos meios de n Não é aqui o local para expor as necessárias diferenças que a qualificação de
nacional-popular apresenta quando referida à arte ou ao pensamento social.
comunicação de massa; como veremos adiante, uma das
O nacional-popular, decerto, refere-se apenas à ideologia, no sentido de concepção
do mundo; liga-se assim à ciência social e à arte apenas na medida em que essas se
1" Azevedo Amara], "Realismo político e democracia", in CLdtura ()olitica, nº I, 1943, ligam, de diferentes modos, a constelações ideológicas.
p.31. II G. Lukács, Esretica. Turim: Einaudi, 1970, voI. I, p. 579. Para o necessário pluralismo
\0 I~Mcrcadanre, A consciência conservadora, cir., p. 260. da esfera estética, cf. ibidem, p. 629-654.
64 Cultura e sociedade no Brasil Cultura e sociedade no Brasil 65

ser estabelecido fJost festum, e que por isto está em permanente quem primeiro indicou explicitamente entre nós essa determinação
modificação; além do mais, é uma unidade na diversidade, básica do nacional-popular: "Nesse ponto, manifesta-se às vezes
que retira sua força e vitalidade do mais amplo pluralismo de uma opinião que tenho por errônea: é a que só reconhece
estilos artísticos, de temáticas, de tendências ideológicas, ete. espírito nacional nas obras que tratem de assunto local (... ).
O mesmo pluralismo constitutivo pode ser indicado no caso O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo
cio pensamento social. Assim, é possível constatar a presença de sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu
uma consciência nacional-popular tanto nas teorias pedagógicas país, ainda quando trate de assuntos remotos no tem.po e
ele Paulo Freire, inspiradas numa concepção existencialista de no espaço";"
fundo cristão, quanto nas pesquisas ou nas propostas políticas Uma questão importante é saber qual o conteúdo social, de
baseadas nos princípios do materialismo histórico. Enquanto o classe, desse ângulo nacional-popular de abordagem do real. Mas
realismo como método (e não como estilo) pode ser considerado também aqui vale o princípio dialético de que "a verdade é
o fator que unifica a posteiioti o nacional-popular no terreno sempre concreta". Tão-somente a análise concreta de cada
estético, no caso do pensamento social esse fator me parece período é capaz de indicar qual classe (ou bloco de classes) é
residir numa concepção humanista e tustoiicista do mundo, ou capaz de se constituir em classe efetivamente nacional- isto é,
seja, numa concepção que afirma o papel da práxis na de superar uma visão fundada em seus estreitos interesses
transformação das estruturas sociais e que concebe a ciência "econôrnico-corporativos" - e, desse modo, de servir de suporte
como um dos instrumentos para iluminar e guiar essa práxis para a formulação de uma figura cultural de tipo nacional-
transformaclora. (E cabe aqui recordar ainda a eficácia do popular, ou seja, com dimensão "ético-política". (Valho-me aqui
conceito engelsiano-lukacsiano da "vitória do realismo": tanto de categorias gramscianas.) E esse vínculo com a concreticidade
no plano do pensamento social quanto sobretudo no da arte, nacional-popular não entra de modo algum em contradição com
não é condição necessária para a realização de um produto o caráter universalizante de toda grande criação artística.
nacional-popular a adoção consciente pelo produtor cultural Ao contrário de uma objetivação de ciência natural, cuja
de uma ideologia ou concepção do mundo explicitamente validade imanente nada tem a ver com as condições históricas
progressista; também aqui, só [Jost festum é possível - a partir de ou nacionais que tornaram possível seu surgimento, todo produto
uma análise concreta de cada caso concreto - definir o caráter estético incorpora os seus pressupostos - a sua gênese histórico-
nacional-popular ou não de um produto cultural singular.) nacional - como momento ineliminável de sua estrutura
Por outro lado, deve-se evitar cuidadosamente que - no plano especificamente artística. Assim, quanto mais um artista se
da objetivação estética - se confunda o nacional-popular com a vincular à totalidade das contradições do seu povo e de sua
imposição de uma temática predeterminada. A consciência nação, quanto mais se tornar (como diria Machado) "homem
artística nacional-popular se manifesta não na temática, mas
sim no ângulo de abordagem, no !)onto de vista a partir do qual o }}Machado de Assis, "Notícia da atual literatura brasileira. Instinto de nacionalidade",
in id., Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1992, vol. Ill, p. 803-804. Cf também
criador estrutura sua obra. Ao que eu saiba, foi Machado de
as interessantes observações de Astrojildo Pereira sobre esse texto machadiano, in
Assis - em seu célebre ensaio sobre o Instinto de nacionalidade - Machado de Assis. Rio de Janeiro: São José, 1959, p. 45-85.
66 Cultura e sociedade no Brasil Cultura e sociedade no Brasil 67

de seu tempo e de seu país", tanto mais lhe será possível elevar-se não se tratava de contrapor o "nacional" ao "estrangeiro", mas
àquele nível de particularidade - de universalidade concreta - de distinguir, no seio do patrimônio cultural tornado universal,
sem a qual não existe grande arte. entre o que poderia se tornar elemento organicamente nacional-
Há ainda uma outra determinação do nacional-popular que popular de nossa própria cultura ou, ao contrário, o que serviria
me parece importante destacar. Refiro-me à capacidade de para reforçar o predomínio das correntes elitistas e "intimistas".
distinguir, a partir do ângulo de visão próprio de uma classe E, como toda manifestação cultural significativa, o nacional-
concretamente nacional-popular, entre os elementos da cultura popular apresenta também aquilo que poderíamos chamar de
universal que servem efetivamente ao povo-nação (no sentido sua "doença infantil". ("Infantil" não em sentido cronológico,
de aumentar-lhe o grau de autoconsciência) e os que conduzem mas enquanto expressão de um escasso nível de maturidade: o
ao beco sem saída do "intimismo" indiretamente apologético ou que quer dizer que a "doença infantil" pode coexistir ou mesmo
a posições claramente reacionárias. Também nesse ponto, o suceder manifestações maduras do nacional-popular.) Podemos
exemplo de Lima Barreto me parece significativo. Apesar da considerar essa versão "infantil", esquematicamente, como
debilidade de sua formação teórica, Lima sempre revelou um manifestação da "má consciência" do intelectual intimista, que
profundo instinto nacional-popular em suas avaliações do deseja mais ou menos sinceramente se identificar com o povo,
patrimônio cultural universal. Foi o caso quando, em contraste mas que é incapaz de fazê-Io "de dentro", assumindo a
com muitos dos seus contemporâneos envolvidos pelo "consciência possível" das classes populares como ponto de vista
"í ntirnismo", ele ridicularizou as bravatas pré-fascistas do estruturador de suas criações: a ligação desse intelectual com o
"modernista" D'Annunzio no Fiume, contrapondo-lhes a solidez povo é assim - para usarmos uma expressão de Gramsci
nacional-popular da ação de Lênin e de Trótski à frente do jovem anteriormente citada - "apenas retórica". Dessa identificação
Estado soviético; ou quando, referindo-se a Nietzsche, tratou-o retórica, "de fora", surge uma atitude paternalista, que pode se
como um dos responsáveis ideológicos pelo espírito belicista que expressar concretamente de diversos modos: as reais contradições
culminou na Primeira Guerra Mundial imperialista; ou ainda populares aparecem dissolvidas num ambiente de fantasia;
quando expressou, antes de morrer, uma posição cética diante atribuem-se ao povo valores idealizados próprios da camada
da importação acrítica de certas monas literárias européias (como intelectual; as figuras populares são tratadas como crianças
o futurismo), mas sem por isso deixar de recomendar aos jovens simpáticas, mas sempre como crianças, etc. Essa variedade não
escritores que se inspirassem nos exemplos "europeus" de impede que a versão "infantil" do nacional-popular - que seria
Dostoiévski, Tólstoi ou Gorki." Para Lima Barreto, assim, mais justo chamar depopulismo - desemboque quase sempre,
do ponto de vista estilístico, numa espécie de retórica romântica
H Cf., respectivamente, Lima Barrete, Feiras c mafuás. São Paulo: Brasiliense, 1961, e/ou de naturalismo fundado na exploração do pitoresco.
p. 202-207; id., Im/mssões de leitura. São Paulo: Brasiliense, 1960, p. 119-120; e id.,
reiras e mafuás, op. cu., p. 68-69, e carta a Jairne A. da Câmara, 27/07/1919 (op. cir.
em Francisco de Assis Barbosa, A vida de Lima Barrew. Rio de Janeiro: José ideologia nacional-popular no Brasil. São pouquíssimos, até agora, os estudos dedicados
Olímpio, 1975, p. 321). A produção jornalística de Lima Barrete, reunida em a essa parte de sua atividade cultural; é de ressaltar o belo ensaio de Astrojildo
vários volumes de suas obras completas editadas por F. de A. Barbosa (São Paulo: Pereira, "Posições políticas de Lima Barrete", in Crítica impura. Rio de Janeiro:
Brasilicnsc, 1958 e ss.), é um precioso instrumento para analisar a formação de uma Civilização Brasileira, 1963, p. 34-54.
68 Cultura e sociedade no Brasil Cultura e sociedade no Brasil 69

Exemplos: os romances indianistas de Alencar, o "romantismo e isso não poderia deixar de ter conseqüências no terreno da
revolucionário" do primeiro Jorge Amado, certas produções produção cultural.
teatrais do CPC, muitas das canções de protesto de inícios e Não pretendo me deter aqui em certos fenômenos, os que se
meados dos anos de 1960, um modo de conceber a "poesia expressam do modo mais evidente na generalização da censura
erigajada" do qual Thiago de MeIlo tornou-se talvez a mais típica como prática de relacionamento entre o poder e a cultura; tais
expressão ete.
fenômenos, refletindo a tentativa de quebrar a autonomia da
Talvez não fosse equivocado - diante de certos fenômenos sociedade civil e de reprimir o seu pluralismo em nome da
culturais contemporâneos - falar também de uma "doença senil" onipotência do Estado, são apenas o aspecto mais saliente da
do nacional-popular. Ela se manifesta quando certos elementos ação do novo regime político exigido para a implantação do
dessa orientação realista e historicista, despojados porém de sua CME num país de capitalismo hipertardio e, por isso mesmo,
intenção crítica e totalizadora, são utilizados em produtos dependente.ê" A prática sistemática da censura, aliada a um
característicos de uma arte puramente "agradável", digestiva claro terrorismo ideológico, pode ser considerada como a face
ou comercial, cujo valor estético é praticamente nulo e cujas aberta da "política cultural" vigente após 1964 e, em particular,
implicações ideológicas são freqüentemente negativas. O meio no período posterior a 1968, ou seja, à decretação do AI-S. Seria
de propagação privilegiado dessa "doença senil" é certamente a simplista reduzir a isso o quadro das relações entre a cultura e a
indústria cultural; é assim que podemos facilmente detectar o sociedade nos últimos anos; mas seria ainda mais perigoso
uso castrado do nacional-popular em várias novelas de televisão esquecer que tal face condicionou, através certamente de
ou em muitos dos filmes produzidos para o chamado grande múltiplas mediações, a totalidade da produção cultural sob a
público. O fenômeno também se manifesta no campo da literatura vigência do regime militar.
ou da música popular." Não se pode esquecer, porém, que a eficácia - relativa - dessa
face abertamente repressora operou num quadro para cuja
4. As condições atuais da luta pela democratização da cultura caracterização global contribuíram também outras determinações,
Sob muitos e fundamentais aspectos, o golpe de 1964 - e a nova tanto as lega das pelo passado (e que foram reprod uzidas e
situação que ele instaurou no País - marcou um divisor de águas ampliadas, no que tinham de negativo, depois de 1964), quanto
também na esfera da vida cultural. O ingresso do Brasil na época as geradas pelos novos elementos introduzidos em nossa formação
do capitalismo monopolista de Estado (CME) - ingresso econômico-social pelo processo de crescente monopolização do
facilitado e impulsionado pelo regime militar - trouxe alterações capital. O papel das determinações herdadas e reproduzidas é
importantes na esfera da superestrutura, tanto no Estado em sentido
restrito quanto no conjunto dos organismos da sociedade civil; 36 J. Chasin (O Integralisrrw de PUnia Salgado. São Paulo: Ciências Humanas, 1978, p. 628
e ss.) foi - ao que eu saiba - o primeiro a empregar o conceito de "capitalismo
hipertardío", ind icando com ele um processo de industrialização que se dá quando o
IS Cf., para a literatura, Walnice Nogueira Galvão, "Amado: respeitoso, respeitável", in capital monopolista já domina em escala mundial (ou seja, na época do imperialismo).
id., SClCO de gatos, cit., p. 13-22; e, para a música popular, Gilberto Vasconcellos, Enquanto o capitalismo tardio leva o país que o experimenta a uma monopolização
"O sambâo-jóia", in id., Música !)opular: de olho na fresta. Rio de Janeiro: Graal, precoce, que pode transformá-lo em potência imperialista (Alemanha, Japão), o
1977, p. 75-82 capitalismo hipe rtardio torna-se necessariamente dependente do imperialismo.
70
Cultura e sociedade no Brasil Cultura e sociedade no Brasil 71

c/e imediata identificclção: reforçando os traços autoritários da trabalho intelectual que, adequando-se aos mecanismos da
"via prussiana", elevando a nível superior a exclusão das camadas reprodução do capital, dificultam enormemente, em seu interior,
populares dos processos de decisão política, a ditadura reforçaria a formação e sistematização de uma cultura crítica e globalizante.
também - direta, mas sobretudo indiretamente - o papel das Portanto, as duas tendências - repressiva e monopolista
tendências culturais "intimistas", estimulando o florescimento de "racionalizadora" - contribuíram para deprimir fortemente a
uma cultura neurralizadora e socialmente asséptica. (O que era presença de um quadro pluralista também na pesquisa e no
feito, em particular, através da repressão às correntes nacional- ensino universitários.
populares, abrindo assim espaço para um quase monopólio de
. De imediato, esse processo de monopolização da indústria
fato das correntes "intimistas".) A época do chamado "vazio
cultural gerou uma forte expansão quantitativa dos chamados
cultural", que seria melhor designar como época da cultura
bens culturais, o que, antes de mais nada, serviu para ocultar o
esvaziada - e que domina, digamos, no período de 1969-1973 _,
fenômeno do vazio cultural, que é obviamente um fenômeno de
representou o momento em que a confluência da censura!
natureza qualitativa. (Um processo similar ocorre na produção
repressão com as tradições "intimistas"/neutralizadoras atingiu
universitária; aqui, a "modernização conservadora" possibilitou
aquilo que um tecnocrata poderia chamar de "ponto ótimo" na um nível de formação técnico-formalísta ou empirista elevado,
tentativa de marginalização das correntes nacional-populares mas que esconde a pobreza conreudístíca e o esvaziamento social
c, conseqüentemente, de remoção do pluralismo como traço
que marcam com freqüência o ensino e as obras geradas no
dominante de nossa vida cultural.
âmbito universitário.) Além disso, seria ocioso lembrar o fato de
Quando aludi a novas determinações, pensei essencialmente que a generalização da "lógica" capitalista e monopolista no
no grande estímulo emprestado pelo CME à expansão e plano da cultura provoca um espontâneo privilegiamento do valor
consolidação de uma poderosa indústria cultural em bases não de troca sobre o valor de uso dos objetos culturais, o que abre
só capitalistas (o que já vinha ocorrendo antes de 1964), mas caminho para a criação e difusão de uma pseudocultura de
cada vez mais monopolistas e de Estado. O processo atinge mais massas que, transmitindo valores alienados, serve como
duramente, decerto, os grandes meios de comunicação de massa, instrumento de manipulação das consciências a serviço da
como a televisão, a grande imprensa, a produção de discos, o reprodução do existente. Tal privilegiamento não se manifesta
cinema, erc.; mas os efeitos da monopolização se fazem igualmente apenas na difusão da "doença senil" do nacional-popular, a que
sentir sobre a indústria editorial e a produção teatral, embora já me referi; mais grave é o fato de que ele leva à importação em
aqui a presença de empresas médias e até mesmo de pequeno série de produtos pseudoculturais gerados nos países
porte assegure um maior pl uralismo de orientações e, por imperialistas, freqüentemente preferidos pelos mass media por
conseguinte, uma faixa de autonomia bem mais consistente. serem mais baratos que os produtos nacionais. E isso não tem
Por outro lado, a Universidade - enquanto importante fator conseqüências deletérias apenas no terreno cultural e ideológico
de produção e reprodução cultural - foi submetida não só a em si; essa importação ameaça também o trabalho e a
processos repressivos diretos, mas também a uma crescente sobrevivência de inúmeros artistas e intelectuais brasileiros.
"racionalização" em sentido capitalista, a formas de divisão do Todos esses fatos negativos da indústria cultural - comuns a
qualquer forma de capitalismo monopolista - assumiram entre
72 Cultura e sociedade no Brasil Cultura e sociedade no Brasil 73
\

nós proporções ainda mais catastróficas na medida em que monopolização capitalista dos meios de divulgação cultural
ocorreram no quadro de um regime político fundado na aumenta objetivamente as já antigas dificuldades para a criação
repressão e no arbítrio. e divulgação entre nós de uma cultural nacional-popular
Um outro fator negativo que não pode absolutamente ser democrática e pluralista."
subestimado - tanto mais que reproduz uma das tendências mais Não quero de modo algum traçar um quadro unilateralmente
negativas na formação da intelectualidade brasileira - é que a pessimista. Apesar dessa tríplice oposição - da censura/repressão,
indústria cultural monopolista aparece como um novo e poderoso da herança elitista da intelectualidade, da expansão monopolista
meio de cooptação dos intelectuais pelo sistema de dominação, da indústria cultural -, seria absolutamente equivocado ignorar
do qual essa indústria cultural é hoje peça de destaque. Em a presença da corrente nacional-popular, ou, mais amplamente,
outras palavras: essa nova indústria cultural aparece como uma de uma corrente cultural de oposição democrática durante os
nova e eficiente forma de cortar a ligação dos intelectuais com anos do regime militar. Essa presença foi decisiva sobretudo em
a realidade nacional-popular, da qual estes poderiam ser - se os termos qualitativos. O que de mais expressivo se criou nessa
organismos culturais da sociedade civil fossem mais pluralistas época - do Inquisitorial de José Carlos Capinam ao Poema Sujo
- uma "articulação orgânica", como disse Gramsci. Os altos de Ferreira Gullar, do Quarup de Antônio Callado a Gota d'água
salários pagos pelos monopólios da cultura funcionaram como de Paulo Pontes e Chico Buarque, da Revista Civilização Brasileira
um poderoso atrativo. Por outro lado, a divulgação da cultura às pesquisas do grupo CEBRAp, para darmos apenas alguns
requer agora um "capital mínimo" (Marx) impensável em épocas exemplos - inclui-se certamente, através de uma ampla
an teriores, quando predominavam métodos que poderíamos pluralidade de estilos e de orientações ideológicas, na tendência
chamar de artesanais ou serni-artesanais. Desaparece assim em cultural que definimos como nacional-popular.
grande parte a possibilidade, para o produtor de cultura, de E não só isso: até mesmo a parcela mais significativa dos
manter-se autônomo e, como tal, independente; de profissional autores (consciente ou inconscientemente) ligados a correntes
liberal, o produtor da cultura torna-se cada vez mais assalariado "intimistas" não hesitou em se colocar claramente em oposição
de grandes empresas, submetido em última instância à "lógica" às tendências totalitárias e antipluralistas da "política cultural"
do lucro máximo e às exigências .anticul turais de tais empresas. da ditadura. E essa postura, em muitos casos, foi além do
É certo que se trata de um processo contraditório, já que também engajamento desses intelectuais enquanto cidadãos, envolvendo
a indústria cultural apresenta "brechas" e tolera margens de também a sua produção cultural como tal. Vejamos um exemplo
manobra; e essas "brechas" e margens poderão ampliar-se concreto. Sob muitos aspectos, o movimento tropicalista em seus
substancialmente à medida que o processo de transição para inícios - na medida em que tendia a desistoricizar as contradições
um regime de liberdades democráticas avance em nosso País, concretas da realidade brasileira e a etemizá-Ias numa abstração
ou seja, à medida que diminua a ação repressiva direta do Estado alegórica e irracionalista (o Brasil como "absurdo", etc.) - pode ser
sobre os mass media e estes se vejam obrigados - pela própria
pressão dos consumidores - a satisfazer demandas culturais de 37 Sobre o caráter contraditório da liberdade de criação no capitalismo, cf. o belo ensaio
de G. Lukács, ''Arte livre ou arte dirigida?", in id., Marxismo e teoria da literatura. Rio
uma sociedade civil mais aberta e pluralista. Mas seria perigoso de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 255-275.
esquecer, em nome dessas contratendências, o fato de que a
74 Cultura e sociedade no Brasil Cultura e sociedade no Brasil 75

considerado expressão do "intimismo", Mas não se deve deixar maioria - os nossos intelectuais. Mas reflete também, ao que
de registrar a presença, na evolução do tropicalismo, de um parece, o processo de complexificação e de diferenciação que o
saudável esforço no sentido de conquistar para a arte brasileira desenvolvimento do capitalismo introduziu na sociedade brasileira
novos meios expressivos e, sobretudo, de figurar uma nova e, por conseguinte, na própria camada de intelectuais. Esse
temática, resultante do modo "prussiano" de implantação do processo começa a se manifestar já antes de 1964; o crescimento
CME entre nós (coexistência de um sofisticado capitalismo de de uma sociedade civil mais rica e articulada, apoiada em grande
consumo com a conservação do atraso nos meios rurais e nas parte na dinamização do movimento de massas, é responsável
periferias urbanas). Malgrado um elemento de unilateralidade, pela radicalização política dos intelectuais a partir do final dos
a produção "tropicalista" - como podemos avaliar hoje, muitos anos de 1950, uma radícalízação que - malgrado alguns limites
anos após seu aparecimento - contribuiu para superar os evidentes nacionalistas ou "populistas" - apontava no sentido de inverter a
limites de um "populisrno" que se comprazia em "cantar" um hegemoriia até então desfrutada pelas correntes "intimistas''.
otimismo ingênuo e em última análise desmobilizador, na (É um período no qual, por exemplo, o Instituto Superior de Estudos
esperança vazia de que esse "canto" exorcizasse o "escuro" Brasileiros - ISEB e o Centro Popular de Cultura - CPC exercem
dominante. N a verdade, o tropicalismo não se opunha ao um papel importantíssimo na produção cultural e artística.)
nacional-popular, mas aquilo que antes chamamos sua "doença Assim, o regime implantado em 1964 já encontra os intelectuais
infantil". Essa dialética interna do movimento tropicalista - numa posição de hostilidade e mesmo de oposição aberta.
a contradição dinâmica entre a conquista de uma nova temática É certo que as medidas imediatamente tomadas pelo novo
c seu tratamento ainda tendencialmente alegórico - levaria os regime - desde o restabelecimento aberto de um modo de
seus melhores representantes a abandonar progressivamente, dominação política imposto de cima para baixo, até a tentativa
em muitas de suas produções, a alegoria irracionalísta, e a optar ditatorial de quebrar a autonomia dos organismos da sociedade
por uma dura crítica, nada populista nem ingênua, da civil (partidos, sindicatos, Universidades, associações profissionais,
cotidianidade capitalista moderna que o CME ia implantando organismos culturais etc.) - representaram um duro golpe nos
em nosso País. Foi assim que produções como Janelas abertas de pressupostos que se vinham criando, ainda que de modo
Caetano Veloso (para darmos apenas um exemplo) convergiram embrionário, no sentido de uma hegemonia cultural das correntes
objetivamente com Sinal Fechado de Paulinho da Viola ou com democráticas ou nacional-popularea" Direta ou indiretamente,
Cotidiano de Chico Buarque (e também aqui me limito a o novo regime lutou para impor as condições favoráveis ao
exemplos singulares) para criar em nosso País uma música predomínío da cultura elítista. Mas foram vários os fatores que
nacional-popular de alto nível, adequada - em seu pluralismo e obstacularizaram, no conjunto do período iniciado em 1964,
em sua complexidade - às necessidades dos novos tempos. a emergência efetiva dessa hegernonia cultural do "intimismo".
Essa tendência oposicionista predominante na cultura Antes de mais nada, cabe recordar a resistência ideológica e
brasileira pós-1964 reflete, antes de mais nada, o fato de que o
regime militar jamais desfrutou de um consenso estável junto às JS Sobre a natureza e os limites dessa "hegemonia da esquerda" na vida cultural
camadas médias urbanas, de onde provêm - em sua esmagadora brasileira da época, cf. Roberto Schwarz, "Cultura e política, 1964- 1969", in id.,
O IJai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz c Terra, 1978, p. 61-92.
76 Cultura e sociedade no Brasil Cultura e sociedade no Brasil 77

política, ativa ou passiva, da esmagadora maioria dos intelectuais. de uma minoria tecnocrática privilegiada, vai se ampliando um
E, em segundo lugar, deve-se lembrar que a própria modernização setor da intelectualidade - particularmente o setor ligado às
econômica promovida pelo regime - ainda que fosse uma chamadas "humanidades", ou seja, à produção ideológica e à
rnodemizaçâo conservadora, de tipo "prussiano" e dependente criação artística - para o qual a expectativa de cooptação perde
e, por isso, antipopular e antinacional - abalou seriamente uma inteiramente sua razão de ser." Em sua grande maioria, os
das bases sociais mais sólidas da cultura "intimista'': o caráter intelectuais passam a compreender, mais ou menos dífusamenre,
de "favor" pessoal de que se revestiam os processos de cooptação que seu destino pessoal está ligado organicamente ao fim da
da intelectualidade pelo sistema dominante. "via prussiana": à construção de uma sociedade efetivamente
O mercado de força de trabalho intelectual - impulsionado democrática, onde a riqueza e o pluralismo da sociedade civil
pela emergência da indústria cultural monopolizada - faz com abram espaços para a sua atuação autônoma; à realização de
que os intelectuais não mais sejam, pelo simples fato de serem um "modelo" de desenvolvimento econômico não rnarginalizador,
intelectuais, "mandarins" privilegiados aos quais a posse da que tenha nas camadas assalariadas da população (nas quais os
cultura fornece prestígio e status. A generalização das relações intelectuais estão hoje incluídos) o seu destinatário e o seu
capitalistas no âmbito da cultura os vai convertendo, no momento sujeito.
mesmo em que aumenta seu número e complexifica suas funções, Em suma: criaram-se os pressupostos infra-estruturais para
em trabalhadores assalariados a serviço da reprodução do capital. uma identificação entre os intelectuais e o povo-nação. Mas o
Ora, se ainda existe cooptação, essa opera agora através dos que fazer para que tais pressupostos se convertam em resultado,
mecanismos impessoalizados do mercado; e esse mercado produz, levando a uma efetiva democratização da cultura brasileira?
en tre ou tras coisas, diferenciações salariais extremadas entre as Antes de mais nada, há uma batalha a travar no próprio plano
diferentes categorias intelectuais. E isso para não falarmos no da cultura. E a tarefa primordial dessa batalha ideológica, no
surgimento do que poderíamos chamar de "exército cultural de Brasil de hoje, é precisamente a de contribuir para a superação
reserva", que se expressa no amplo desemprego ou subemprego do elitismo cultural e para uma transformação em sentido
de intelectuais, contribuindo ademais para rebaixar os salários nacional-popular da cultura e da intelectualidade brasileiras.
dos que conseguem. obter uma colocação.'? Assim é que, ao lado Estimulando as obras que se encaminham no sentido do
nacional- popular e revelando ao mesmo tempo o beco sem saída
'" O problema do desemprego de diplornados - com a conseqüente formação de um (ideológico e estético) da visão do mundo elitista ou "intimista",
"exército cultural de reserva" - é um dos frutos da desastrosa e demagógica política
universitária do regime militar. É certo que, em parte, o espetacular aumento das
vagas universitárias ocorrido após 1964 correspondcu às exigências do desenvolvimento 40 Por outro lado, até mesmo os intelectuais privilegiados que obtêm altos salários
capitalista. Mas um dos objetivos da política de aumento das vagas foi a de criar tendem a não mais encarar a sua "cooptaçâo" como um "favor" dos poderosos. É certo
entre .is camadas médias uma expectativa de mobilidade social ascendente, que que podem surgir nesse caso fenômenos de corrupção intelectual; mas o {aro é que a
pretendia servir h ampliação de uma atitude favorável ao regime entre tais camadas. situação de assalariado leva espontaneamente ao estabelecimento de conflitos de
O colapso dessa política não se manifesta apenas no desemprego de diploma dos (que interesse entre os intelectuais bem remunerados (mas subordinados ao capital) e os
resulta na negação daquela expectativa); revela-se também na deterioração radical patrões. Em muitos casos, tais conflitos podem assumir a forma de uma luta desses
das condições do ensino universitário, que se tornou majoritariamente ministrado intelectuais pela sua autonomia enquanto produtores de cultura. Em suma: o conceito
e111instituições privadas, com prejuízo inclusive de sua função na reprodução do de "aristocracia intelectual", aplicado sem meditações, é tão problemático quanto o
sistema econômico social vigente. de "aristocracia operária".
78 Cultura e sociedade no Brasil Cultura e sociedade no B'rasil 79

8 CntIC::!- se feita no quadro do respeito ao pluralismo e à ao fato de que correntes originariamente "intimistas", como o
diversidade, que são traços inelimináveis de toda cultura tropicalismo, contribuíram decisivamente para a superação do
autêntica - poderá contribuir para a expansão hegemônica de "populismo" e para o amadurecimento do nacional-popular na
uma nova cultura brasileira efetivamente democrática, arte brasileira de hoje; uma mesma argumentação poderia ser
efetivamente nacional-popular. Essa crítica não pode se basear desenvolvida em relação ao papel do modernismo na evolução
em critérios estéticos estreitos e normativos; não se trata de da literatura brasileira posterior a 1922.)42
impor aos criadores certas "regras" arbitrariamente escolhidas. Mas, como a própria colocação de Gramsci deixa claro, os
Gramsci coloca a questão com grande lucidez: "Parece evidente problemas da democratização da cultura não se esgotam na
que devemos falar de luta por uma nova 'cultura' e não por uma definição de uma justa perspectiva para a batalha das idéias.
'nova arte' (em sentido imediato). (00') A arte é sempre ligada a Há todo um quadro social, econômico e político que tem de ser
determinada cultura; e é lutando para reformar a cultura que criado para que a cultura brasileira possa efetivamente se
se chega a modificar o 'conteúdo' da arte, não de fora desenvolver de forma não elitista. É o quadro de uma democracia
(pretendendo uma arte didática, de tese, moralista), mas sim pluralista de massas. Enquanto regime que assegura as liberdades
de dentro, porque assim se modifica o homem inteiro, na medida formais fundamentais, a democracia de massas garante o clima
em que se modificam seus sentimentos, suas concepções, bem necessário para o amplo florescimento da liberdade de criação e
como ::1S relações elas quais o homem é expressão necessária"." de crítica, um clima no qual a influência ou hegemonia dessa
Por outro lado, lutar pela expansão hegemônica de uma ou daquela corrente se processe cada vez mais segundo os
orientação cultural - no caso, da orientação nacional-popular critérios imanentes ao próprio mecanismo da dialética cultural.
- não pode significar de nenhum modo a negação do pluralismo. Por outro lado, na medida em que assegura os canais necessários
A luta pela hegemonia respeita o pluralismo e dele se alimenta para que a produção cultural responda aos problemas colocados
em dois níveis. Em primeiro lugar, concebe a unidade do nacional- pelas grandes massas e retome a elas para enriquecer-lhes a
popular como uma unidade na diversidade, como uma unidade autoconsciência, a democracia de massas faz com que o
que retira sua força e sua capacidade expansiva da mais ampla pluralisrno da cultura seja expressão do pluralismo dinâmico e
variedade de manifestações individuais. E, em segundo, não só da riqueza efetiva da vida concreta das várias classes e camadas
reconhece a necessidade social e o direito à existência de nacionais. Finalmente, já que seu caráter progressivo (de constante
correntes não nacional-populares, mas também - mesmo no ampliação e aprofundamento) leva a democracia de massa a
quadro de uma crítica global de seus eventuais limites artísticos
42 Já em 1957, Palmiro Togliatti - o dirigente comunista italiano - se valia de
e /ou ideológicos - admite a possibilidade concreta de que produções
possibilidades desse tipo para defender a liberdade de criação nos países socialistas:
culturais "intimistas" possam contribuir para o desenvolvimento "Há outro motivo que aconselha, nesse campo, a não pôr freios à investigação e à
de aspectos de uma arte ou de uma concepção do mundo criação artística; e é que uma determinada orientação de pesquisa formal, por
exemplo, m.esmo se no momento se apresenta estéril e negativa, e como tal pode e
efetivamente ligadas à vida da nação e do povo. (Já nos referimos deve ser criticada, poderá amanhã aparecer como uma etapa que foi necessário
atravessar para atingir novas e mais profundas formas de expressão c portanto um
progresso de toda a criação artística" (P.Togliatti, Opere scelte. Roma: Riuniti, 1977,
·11 A. Gramsci, QLICulcmi, O/J. CiL, p. 2.109.
p.869).
80 Cultura e sociedade no Brasil

propor concretamente a democratização da economia, com a


luta para pôr fim à dominação dos monopólios, ela abre com isso
a possibilidade concreta de que os produtores de cultura se
apropriem socialmente dos meios de difusão cultural de massa,
hoje em grande parte sob poder dos monopólios; e não é preciso
dizer o que isso significaria no sentido de tornar real e efetiva a
liberdade de criação assegurada no plano formal.
Em outras palavras: só a construção de uma democracia de
massas pode quebrar definitivamente os estreitos limites de 111.Dois momentos brasileiros
casta em que a "via prussiana'' emparedou a grande maioria
dos nossos intelectuais e, desse modo, criar um novo tipo de da Escola de Frankfurt
relacionamento - de dupla mão - entre os intelectuais e o
povo-nação; momento decisivo nesse processo será assegurado
pela au togest âo dos organismos de difusão cultural pelos
próprios produtores culturais associados. Ora, nesse ponto, a
"questão cultural" - convertendo-se em momento privilegiado
ela "questão democrática" - encontra a base para a sua solução.
Lutando pela democratização da cultura, os intelectuais
combatem efetivamente pela renovação democrática da vida
nacional em seu conjunto; e, 30 mesmo tempo, lutando por
essa renovação democrática, asseguram condições mais
favoráveis à expansão e flores cimento de sua própria práxis
cul turaL.

(1977 -1979)
t

••
Dois momentos brasileiros da Escola de Frankfurt 83

Uma definição sumária da Escola de Frankfurt é tarefa


irrealizável: não somente por causa da riqueza dos tentas
abordados por seus integrantes (que vão dos pressupostos
epistemológicos da teoria social à sociologia da música, do
conceito de Estado autoritário às relações entre psicanálise e
marxismo, da filosofia da história à indústria cultural), mas
também - e talvez sobretudo - por causa da variedade de posições
assumidas por seus principais representantes. Felizmente, para o
objetivo destas notas (o de examinar alguns aspectos da recepção
da Escola no Brasil), posso deixar de lado essa definição,
tomando como pressuposto a unidade relativa da problemática
frankfurtiana: ou seja, a crítica da cultura moderna à luz de
algumas categorias (como as de reificação e alienação) recolhidas
essencialmente da tradição hegeliano-rnarxista que se inicia
com História e consciência de classe, a obra juvenil de Lukács.'
Mas, se não é aqui o local adequado para uma avaliação das
diversidades internas da Escola (tanto sincrônicas quanto,
sobretudo, diacrônicas), parece-me importante começar por
registrá-Ias: .na medida em que a influência de Frankfurt no
Brasil levou, como veremos, a resultados substancialmente
diversos, cabe perguntar se tal diversidade é fruto da própria
heterogeneidade imanente à Escola, se é motivada pela variação
histórica do contexto em que ocorreu entre nós a recepção dos
frankfurtianos, ou - o que me parece mais verossímil - se resulta

~1
J
de uma combinação
da unidade relativa
das duas coisas. O fato é que,
que indicamos acima, a Escola de Frankfurt
no interior

passou no Brasil da condição de estímulo intelectual à


contracultura irracionalista, no início dos anos 70, para a de base

I Uma visão fortemente crítica da Escola de Frankfurt, apontada COI11.O manifestação


de Kulturkritik romântica, pode ser encontrada em J. G. Merquior, Westem marxismo
Londres: Paladin, 1986, p. 111-138,155- 185. Embora concorde em muitos pontos com
a análise de Merquior, não sou tão cético quanto ele sobre o valor analítico positivo
de muitas formulações "crítico-culturais" da Escola de Frankfurt, como se verá em
seguida.
84
Cultura e sociedade no Brasil
Dois momentos brasileiros da Escola de Frankfurt 85

teórica de uma vigorosa defesa da razão contra o surto irracionalista


com trabalhos de Lukács, Gramsci, Goldmann, Althusser, Baran
do atual "pós-moderno". A contradição parece à primeira vista
e Sweezy, Adam Schaff e muitos outros.
tão gritante que cabe indagar se, por trás das aparências, não
haverei pelo menos algum elemento de continuidade. Foi a peculiar situação brasileira dessa agitada segunda
metade dos anos 60 que determinou, em grande parte, o modo
como se deu essa primeira recepção na Escola entre nós. Por exem.plo:
1. Marcuse e a contracultura tupiniquim
dependeu dessa situação, e não da eventual superioridade
A Escola de Frankfurt chegou ao Brasil no final dos anos 60. intrínseca dos textos de Marcuse, o fato de que esse autor tenha
Ao lado de muitos livros de Marcuse, foram então publicados desfrutado, na vida intelectual brasileira da época, de uma
importantes ensaios de Benjamin, Adorno e Horkheimer; na influência incomparavelmente superior à de seus companheiros
mesma época, Roberto Schwarz empregava com brilho categorias de Escola. Já conhecido internacionalmente como uma das
frcmkfurtianas em suas análises literárias, e José Guilherme principais fontes ideológicas das rebeliões estudantis européias
Merquior - então heideggeriano - publicava o primeiro estudo e norte-americanas. Marcuse chegava ao Brasil no momento
brasileiro de conjunto sobre os principais pensadores da Escola.? em que um amplo setor da intelectualidade de esquerda não
O processo se inseria numa saudável tendência à abertura do julgava mais encontrar nas posições do Partido Comunista
pensamento social brasileiro para as mais importantes correntes Brasileiro (e da cultura marxista que lhe era próxima) uma
da cultura universal contemporânea, uma tendência que, apesar resposta adequada aos desafios da realidade. A "Grande Recusa"
do golpe de 1964, manifestou-se com intensidade ao longo de proposta por Marcuse parecia contribuir para o encontro de tal
toda a década de 60. Para falarmos apenas no marxismo, foi esse resposta, naquele clima de "impaciência revolucionária":' em
o período em que - quebrando um quase monopólio anterior que estava imersa boa parte da nossa intelectualidade. Assim,
dos man uais soviéticos - a bibliografia marxista brasileira se num primeiro momento, um Marcuse lido apressadamente
enriqueceu não só com os textos h-ankfurtiano citados, mas também tornou-se componente não secundário da sopa eclé tica que
formou a bagagem teórica da pretensa "nova esquerda" brasileira:
2 De l-!crberr Marcusc, foram publicados no Brasil, entre 1968 e 1973, os seguintes misturado com Mao, Oebray e Althusser, com os quais pouco ou
livros: O homem unidimcnsional, Eras e civilização, Idéias sobre uma teoria crítica da
sociedade, Contm-rcvoluçc!o c revolta (todos pela Zahar), O fim da utojJia (Paz e Terra), nada tinha em comum, Marcuse parecia fornecer elementos para
O marxismo soviético e Razâo c rcvoluçâo (pela Saga, depois Paz e Terra). De Walter uma contestação radical que envolvia, ao mesmo tempo, a
Benjamin, ,lpareceram pelo menos três versões do ensaio ''A obra de arte na época de
ditadura (ídentíficada tout court com o capitalismo) e o establishment
sua rcprodl.ltibilidaele técnica" e, em 1975, lima coletânea, A modemidaile c os modernos
(Rio de Janciro: Tempo Brasileiro), que COntém um importante estudo sobre marxista encarnado pelo "velho" PCB (que, embora em alguns
13atldelaire. De Horkheimer e Adorno, foi publicado um capítulo da Oialektik der casos buscasse renovar seu patrimônio cultural com autores como
At4Kldn-m;; sobre "A indústria cultural"; e, do último, além ele duas versões elo ensaio
"Moda sem tempo: sobre o jazz" e de uma do texto "Idéias para uma sociologia da
Lukács e Gramsci, continuava essencialmente preso às tradições
música ", :lparcccu em 1975 uma coletânea de ensaios, Notas de literatura. Rio ele esclerosadas da Terceira Internacional). Se, no plano político,
janeiro: Tcmp.: Brasileiro. Os ensaios de Roberro Schwarz estão em A sereia e o
a tática da "acumulação de forças" proposta pelo PCB aparecia
descunfiado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965; e o estudo de Merquior é
Arte c s()ciedade em Marcuse, Adorno e Bcnjamin. Rio ele Janeiro: Tempo Brasileiro,
1969. Ess» bihliogr,lfb nâo pretende ser exaustiva.
) O termo foi cunhado pelo I ukacsiano alemão Wolfgang Harích, Critica dell'imjJazienza
rivoluzionaria. Milão: Feltrinelli, 1972.
86
Cultura e sociedade no Brasil
Dois momentos brasileiros da Escola de Frankfurt 87

a esses intelectuais como reformismo Oportunista, o racionalismo


Não posso me deter na questão de saber até que ponto a
humanista de Lukács e o projeto nacional-popular de Gramsci
obra de Marcuse foi lida corretamente pelos que a transformaram
e ra m vistos, no plano da cultura, como demasiadamente
em base ideológica do irracionalismo "contracultural". Diria
vinculados a propostas estético-ideológicas conservadoras e/ou
apenas, brevemente, que - se tomarmos os ensaios marcusianos
populistas. Não é assim de surpreender (embora talvez seja de
dos anos 30 (não casualmente inéditos, em sua esmagadora
lamentar) que Marcuse, cujas edições se multiplicavam, tenha
maioria, no Brasil da época) - essa leitura unilateralmente
sido certamente bem mais lido na época do que Lukács ou
"contracultural" dificilmente se sustenta: apoiado numa
Gramsci, que tinham suas traduções
estantes de saldo a preço de banana.
brasileiras vendidas em
i interpretação hegeliana do marxismo, Marcuse fornece nesses
ensaios importantes contribuições para uma crítica concreta das
Com o rápido fracasso da luta armada, à qual alguns desses
tendências totalitárias que vê florescer no "capitalismo
intelectuais "impacientes" aderiram e com a qual muitos
organizado" da época, indicando com precisão as suas raízes
simpatizaram, o espírito da "Grande Recusa" sofreu uma alteração
culturais. Contudo, se analisarmos seus textos mais divulgados
profunda. Por um lado, a vertente althusseriana _ sob a cobertura
entre nós, Eras e civilização (1955) e O homem unidimensional
ele um falso revolucionarismo teórico que se reduzia a decretar
(1964), as coisas se complicam: identificando desenvolvimento
"cortes epistemológicos" radicais - refluiu para uma escolástica
científico-tecnológico com dominação repressiva, valorizando
acadêmica e estéril que, combinada e fundida com a do
Orfeu e Narciso contra Prometeu, desqualificando o trabalho
estruturalismo, passou a dominar uma parte substancial da
produtivo (para ele, necessariamente alienado) em nome de
produção universitária e editorial no campo das ciências
um trabalho lúdico ou libidinal, pregando uma "sexualidade
humanas. Por outro lado, entre os que mantiveram o espírito da
polimórfica" e uma "nova sensibilidade" como antídotos contra
"Grande Recusa", a "impaciência revolucionária" rapidamente
a repressora razão instrumental, esses trabalhos de Marcuse -
assumiu uma nova feição: de oposição política (ainda que
malgrado os seus indiscutíveis pontos de interesse - deitam raízes
equivocada) a uma opressão concreta, ela se converteu numa
numa concepção do mundo essencialmente romântica e
rejeição tão global quanto abstrata à "cultura" em geral. O mal
irracionalista. Não foi assim casual que a contracultura brasileira
já não era tanto a ditadura ou mesmo o capitalismo enquanto
dos anos 70 se tenha valido abertamente de Marcuse (basta
formação econômico-social: era t~do um legado cultural que,
pensar nos artigos de Luiz Carlos Maciel, publicados sobretudo
baseado na razão e na ciência, funcionaria essencialmente como
em O Pasquim);4 e se, no final, esta contracultura terminou por
uma instância repressora da subjetividade humana. E foi então
se tornar cada vez mais "orientalista" e abertamente mística em
que a obra de Marcuse, lida talvez com mais atenção, serviu
suas formulações teóricas, a ponto de não mais se reconhecer
como ponto de partida para essa passagem do gauchisme ao
na inegável sofisticação teórica "ocidental" de Marcuse, isso
irracionalismo aberto: de estímulo para a contestação armada à
ditadura, Marcuse tornou-se fonte de inspiração para os
movimentos da chamada contracultura, ou, mais precisamente, 4 Os artigos de Luiz Carlos Maciel foram depois recolhidos em Nova consciência,
}omalismo contraculturaI1970/1972. Rio de Janeiro; Eldorado, 1973. Lendo-se essa
daquela versão tropicalista da Kulturhit/<. romântico-anticapitalista coletânea, pode-se facilmente perceber a "evolução" da contracultura brasileira de
que floresceu e se desenvolveu aqui no início dos anos 70. Marcuse e Reich para Heidegger e o orientalismo.
88
Cultura e sociedade no Brasil
Dois momentos brasileiros da Escola de Frankfurt 89

não anula o fato de que o autor de Eras e civilização desempenhou


2. Rouanet e a defesa da razão
um papel importante no florescimento do irracionalismo brasileiro
dos anos 70. Um irracionalismo com o qual, diga-se de passagem, O ocaso de Marcuse foi também, por algum tempo, o ocaso
o dos anos 80 - malgrado todas as inovações "pós-modernas" _ da Escola de Frankfurt entre nós." Com a reativação da vida
conserva uma marcante linha de continuidade. política a partir de meados dos anos 70, o espaço intelectual -
que era essencialmente "estético-cultural" no período anterior,
Deve ser creditada à lucidez de Marcuse a sua preocupação
em função da dura censura ditatorial - foi ampliado com o
final, expressa sobretudo em Contra-revolução e revolta (1972,
retorno de temas explicitamente políticos. É o momento, por
ed. brasileira de 1973), no sentido de denunciar os excessos
'exemplo, em que Antonio Gramsci - que fora quase esquecido
anti-mcionalistas que ele agora enxergava nos movimentos
durante todo o período que vai de 1968 a 1976 - emerge como
contraculturais da outrora "nova esquerda" internacional. Mas,
um dos pontos obrigatórios da reflexão marxista entre nós.?
infelizmente, quando esse livro foi publicado no Brasil, a
Parece-me supérfluo insistir no valor positivo dessa ampliação
influência marcusiana já entrara aqui em franco declínio.
ternática para a reflexão intelectual no Brasil e, em particular,
(A defesa da razão entre nós, na sombria primeira metade dos
para a reflexão que se inspira no marxismo. Mas cabe também
anos 70, foi em grande parte - embora, decerto, não exclusivamente
registrar que, num curioso movimento pendular, ocorreu por
- obra dos lukacsianos: escolhendo travar uma luta em duas
algum tempo uma excessiva "politização" do espaço cultural,
frentes, contra a "miséria da razão" dos estruturalistas e Contra
com uma relativa "desativaçâo" das problemáticas estéticas e
o aberto irracionalismo da contracultura, os lukacsianos
crítico-culturais que marcaram as polêmicas do período anterior.
brasileiros, então ligados ao PCB, terminaram isolados e, nesse
Decerto, essa transitória "desativação" era resultado da urgência
isolamento, não foram infreqüentes da parte deles manifestações
de encaminhar e aprofundar a transição da ditadura à
de sectarismo e de intolerância.)5 Por conseguinte, o primeiro
democracia, urna tarefa na qual se empenhou a grande maioria
momento de Frankfurt no Brasil - um momento ligado
da intelectualidade, independentemente da diversidade de suas
essencialmente ao nome de Marcuse - serviu sobretudo ao
concepções do mundo e da cultura. Mas era também natural
fortalecimento do irracionalismo. Um analista superficial jamais
que, uma vez alcançado um regime de liberdades democráticas,
poderia prever que o seu segunda- e atual momento, capitaneado
a polêmica especificamente cultural e ideológica voltasse à
essencialmente pelo brasileiro Sérgio Paulo Rouanet, viesse
superfície e reconquistasse o lugar que lhe é de direito no espaço
vinculado a uma radical defesa da razão; e a uma defesa que se
intelectual brasileiro. Digo "de direito" porque, sem polêmica
manifesta, como veremos, no combate a tendências culturais
sobre concepções do mundo e da cultura, não há luta pela
que, em alguns casos, podem ser apontadas como seqüelas da
antiga influência marcusiana.
6 Há, pelo menos, duas exceções. Nesse período, Roberto Schwarz publica o seu excelente
ensaio sobre o primeiro Machado, Ao vencedoras batatas (São Paulo: Duas Cidades,
1977), onde utiliza amplamente categorias frankfurtianas. E Flávio R. Kothe
5 O grupo lukncsiann brasileiro era formado na época por Leandro Konder, Luiz Sérgio publica Benjamin &Adomo: confrontos (São Paulo: Ática, 1978), onde talvez exagere
Hcnriqrrcs, José Paulo Nerto, Gilvan P. Ribeiro e por mim. O leitor perceberá que, se um pouco na oposição entre Benjamin e o restante da Escola de Frankfurt.
:l obscrv:tç:lo acima comporta um auto-elogio, comporta também uma autocrítica. 7 Cf. C. N. Coutinho, "A recepção de Gramsci no Brasil", in id., Gramsci. Um estudo
sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p. 279-305.
90
Cultura e sociedade no Brasil
Dois momentos brasileiros da Escola de Frankfurt 91

hegemonia; e, sem luta pela hegemonia, não existe uma vida


Rouanet colocou a Escola de Frankfurt no centro de uma das
política saudável, ou seja, democrática e pluralista.
mais importantes polêmicas culturais deste início da mal
É precisamente nesse quadro de reativação do debate chamada "Nova República". É a esses artigos que vamos dedicar
especificamente ideológico-cultural que tem lugar o segundo o restante deste ensaio.
momento brasileiro da Escola de Frankfurt. Cabe notar, antes
De certo modo, o que primeiro poderíamos dizer, num
de mais nada, que esse segundo momento é muito mais amplo e
comentário sobre esses artigos polêmicos de Rouanet, é que neles
diversificado do que o primeiro: ao invés do quase monopólio
Frankfurt se pôs contra Frankfurt: quando Rouanet critica o
marcusiano de final dos anos 60 e início dos 70, vemos agora
irracionalismo que entrevê em muitas "subculturas jovens", que
serem editados no Brasil alguns dos mais importantes trabalhos
reconstituem "a polarização clássica entre a vida e a teoria que
de Horkheimer, Adorno, Habermas e, sobretudo, Beniarnín."
floresceu (... ) no romantismo", certamente está criticando uma
Por Outro, com Sérgio Paulo Rouanet, a Escola se "naturalizou"
ressurreição "pós-moderna" da velha contracultura brasileira dos
definitivamente: seus últimos livros," de marcada inspiração
anos 70, a qual, como vimos, sofreu forte influência do
frankfurtiana, contribuem não somente para consolidar a elevação
frankfurtiano Marcuse. Talvez possa ser interpretado como um
da ensaística brasileira ao nível de sua melhor congênere
"ato falho" o fato de que Rouanet, quando enumera as vertentes
internacional, mas chegam mesmo, em minha opinião, a dar
teóricas que estariam na raiz dessas "subculturas" antí-racionalistas,
lima significativa contribuição para o enriquecimento da
cite explicitamente Foucault e os nouveaux philosophes, mas omita
problemática frankfurtiana em termos universais. E mais: com
o nome de Marcuse e (por que não lembrar?) de um certo
seus instigantes artigos sobre a cultura brasileira de hoje,"?
Benjamin fascinado por suas experiências com drogas. E é curioso
H 'I1Il1bém sem nenhuma pretensão exaustiva, citaria: de Horkheimer e Adorno, Dialérica
que o único Marcuse a que ele se refira seja o do último período,
do esclarecimento (Rio de Janeiro: Zahar, 1985); de Benjamin, Haxixe; ÜTigem do drama precisamente o Marcuse auto crítico de Contra--revolução e
"arroco alemão e Obras escolhidas, vols. 1, 2 e 3 (todos pela Brasiliense: São Paulo,
revolta. Todavia, recordar tais omissões pode aparecer como uma
1984-1989); de Habermas, Conhecimento e interesse (Zahar), Para a reconstrução do
materialismo histórico (Brasiliense), Mudança estrutural da esfera ['ública e Crise de mesquinharia diante do que é mais importante nos ensaios de
IC[;itimidadeno caPitalismo tardio (Tempo Brasileiro). Cabe ainda registrar duas antologias, Rouanet: eles nos recordam que a Escola de Frankfurt, liberada
sobre Habennas (organizada por S. P. Rouanet e B. Freytag) e sobre Benjamin (por
Flávio R. Korhe), publicadas na coleção "Grandes Cientistas Sociais", da editora
de seus momentos mais "dionísíacos", mais romântico-anticapitalistas,
Ática, São Paulo, respectivamente em 1980 e 1985, bem COll10a coletânea de textos possui alguns instrumentos eficientes para denunciar o
frankfurtianos publicados pela Abril Cultural, São Paulo, na coleção "Os Pensadores",
voI. XLVIII, 1975, com várias reedições posteriores.
irracionalismo e propor soluções culturais bastante próximas da
9 Refiro-me a Édipo e () anjo. Itinerários freudianos em Walter Benjamin (Rio de Janeiro:
tradição dialético-racionalísta que me parece estar contida na
Tempo Brasileiro, J 98 J); Teoria crítica e /Jsicanálise (Rio de Janeiro-Fortaleza: Tempo produção de Gramsci e do melhor Lukács da última fase. E é a
Brasileiro-Universidade Federal do Ceará, 1983); A razão cativa (São Paulo: Brasiliense,
essa vertente frankfurtiana - que se propõe liberar a razão das
1985) e As ra,cJcs do i/uminismo (São Paulo: Companhia das Letras, 1987).
repressões que a aprisionam, e não identificá-Ia com a repressão
10 CF Sérgio Paulo Rouanet, "Verde-amarelo é a cor do nosso irracionalismo", in
Folhetim, 17 de novembro de 1985; e id., "Blefando no molhado", ioiá., 15 de dezembro e, portanto, condená-Ia sumariamente - que Rouanet pertence.
de 1985 (repllblicados em As razões do iluminismo, cit., p. 124-146). Mas cf também a
cnrrevistn de Rouaner publicada em Veja, de 29 de janeiro de 1986. Todas as citações
São muitos os pontos em. que concordo plenamente com
de Rouanet contidas neste ensaio são retiradas desses seus três trabalhos. Rouanet. Por exemplo: quando ele aponta no "nacionalismo
92
Cultura e sociedade no Brasil Dois momentos brasileiros da Escola de Frankfurt 93

cultural", na crítica xenófoba à cultura universal, uma manifestação que se expressa através das obras culturais. Decerto, ele nos adverte
não só irracionalista, mas objetivamente reacionária. I I Compartilho para o fato de que "a alta cultura e a cultura popular são as duas
igualmente seu combate ao chamado "pós-moderno", ou seja, metades de uma totalidade cindida"; mas, ao mesmo tempo, afirma
seu empenho em conservar a necessária distinção entre a alta um pouco resignadamente que essa totalidade "só poderá
cultura, por um lado, e, por outro, a cultura popular e de massas: recompor-se na linha de fuga de uma utopia tendencial". Em
somente através da alta cultura (e, muito em particular, da segundo lugar, revelando uma forte influência adorniana, parece
grande arte) é possível ao indivíduo elevar-se à autoconsciência considerar corno essencialmente alienada toda a cultura de
de sua participação no gênero humano, na medida em que por massas (que ele distingue corretamente da cultura popular),
meio dela se apropria dos instrumentos capazes de romper a falsa isto é, a cultura gerada pelos modernos meios de comunicação."
consciência alienada e particularista que o impede de desenvolver É o que me parece resultar de sua afirmação de que "a ameaça
uma adequada postura crítica diante do mundo em que vive. à sobrevivência da literatura de cordel não é o Finnegans Wake,
Também me parece corresponder a uma política cultural e sim a telenovela". Uma análise menos abstrata, mais diferenciada,
efetivamente democrática - e, mais que isso, socialista - sua deveria não só levar em conta a possibilidade de que a
atitude em face da língua culta (que me recorda o combate consciência alienada e o irracionalismo se manifestem também
similar de Gramsci pela língua nacional e contra o fetichismo no interior da alta cultura (e esse me parece precisamente o caso
do dialeto); ou sua corajosa denúncia das manifestações de da obra de Joyce tomada como exemplo por Rouanet), mas
antiintelectualismo que vicejam hoje entre alguns setores do também, inversamente, como veremos a seguir, a possibilidade de
movimento operário brasileiro (em particular, mas não apenas, que obras da cultura de massa (como algumas telenovelas)
em algumas correntes minoritárias do PT). Em todos esses pontos, expressem elementos de urna consciência crítica e não alienada.
que são decisivos em seus ensaios, Rouanet demonstra que pode Embora certamente não seja essa a intenção de Rouanet, o fato é
haver uma convergência de princípio entre uma postura que sua posição frankfurtiana conduz a um certo imobilismo: por
gramsciana-Iukacsiana em face da cultura e um frankfurtianismo um lado, devemos proteger a cultura popular, que ele identifica,
"apolíneo", baseado no que há de mais lúcido nas reflexões de em mais de urna oportunidade, com o folclore (literatura de cordel,
Adorno, de Benjamin e de Haberrnas.
artesanato nordestino, etc.); por outro, trata-se de valorizar os
Mas, de um ponto de vista gramsciano (que, diga-se de produtos da alta cultura, operando extraculturalmente (por meio
passagem, pode e deve ser enriquecido com algumas reflexões da democratização da sociedade) no sentido de que o povo tenha
lukacsianas), sinto-me tentado a levantar algumas objeções às acesso a seus produtos. E, finalmente, cabe proteger ambas contra
formulações da Escola de Frankfurt, mesmo em seus melhores
momentos. Antes de mais nada, diria que a colocação geral de IIAlém dos explícitos motivos de crítica tendencialmente marxista, creio que não é
Rouanet pressupõe distinções demasiado rígidas entre os vários difícil perceber na radical oposição de Adorno à indústria cultural também uma
níveis da cultura e, mais concretamente, da consciência social posição elitista, ou seja, um indisfarçável mal-estar diante do "agradável", do mero
divertissement. É interessante observar que, em sua Estética (Turim: Einaudi, vol. 2,
p. 1.288-1.336), Lukács também insiste na substancial distinção entre o "agradável"
e o "estético"; mas Lukács não condena o uso do agradável em obras culturais, mas
II Cf. C. N. Coutinho, "Cultura e sociedade no Brasil", supra, p. 39 e ss.
sim a sua confusão com o especificamente estético.
'..
94 95
Cultura e sociedade no Brasil Dois momentos brasileiros da Escola de Frankfurt

"a cultura de massas, nacional ou estrangeira", adornianamente círculo restrito. Por outro lado, para o autor dos Cademos do
concebida como o reino da alienação e da manipulação. cárcere, essa obra de difusão e renovação cultural não só não é
Com Gramsci, eu diria que uma política cultural democrática incompatível com a grande arte, mas é mesmo uma de suas
- sem deixar de lado, evidentemente, os fatores extraculturaís condições: "É lutando por uma nova cultura - diz ele - que se
de democratização - deve operar de modo a que a "recomposição chega a modificar o 'conteúdo' da arte"."
da totalidade cindida" se processe também por meio de um Ora, no mundo moderno (que deve certamente ser criticado,
progressivo potenciamento das virtualidades de pensamento mas não romanticamente recusado em bloco), a difusão de massa
crítico contidas nos níveis culturais inferiores. Mais explicitamente: de uma cultura crítica pode encontrar nos meios eletrônicos de
o que Rouanet designa como cultura popular é, essencialmente, comunicação um instrumento privilegiado. Refiro-me, em
o que Gramsci chama de "folclore", ou seja, um amálgama bizarro primeiro lugar, ao caráter positivo da difusão pela mídia de obras
de elementos heterogêneos provenientes da cultura superior do culturais de nível superior (algo com o que o próprio Rouanet
passado (é o caso, muito claramente, do romance de cordel, talvez concorde, já que afirma que "até certo ponto a indústria
citado por Rouanet}. Através dessa cultura popular, forma-se o cultural é neutra em matéria de conteúdos"); com o perdão de
que Gramsci chama de "senso comum": um conjunto de Adorno, citado por Rouanet, parece-me muito importante que
concepções do mundo heterogêneas e mesmo contraditórias, milhares de pessoas escutem a Nona Sinfonia pelo rádio ou pela
que organizam a práxis dos "simples", fornecendo-Ihes normas televisão, mesmo que essa audição se dê entre duas propagandas
para ação. Para Gramsci, a luta por uma nova cultura (momento de dentifrício, caso a alternativa para isso seja a de que jamais
da luta por uma nova hegemonia) implica um esforço no sentido a escutem, por não poderem freqüentar uma adequada sala de
de "depurar" o "senso comum" e elevá-lo ao nível do "bom senso", concertos. Mas, em segundo lugar, penso também na possibilidade
ou seja, a uma concepção do mundo mais organizada e de que determinados gêneros culturais criados pelos meios de
siste má tica que, liberta de anacronismos e mesclas bizarras, comunicação possam contribuir para elevar progressivamente o
coloque-se à altura da modernidade e se converta em gosto artístico popular (tornando assim menos utópica a
instrumento de uma práxis crítica. Todos sabem o imenso papel "recomposição da totalidade cindida") e, sobretudo, para operar
que Gramsci atribuía aos "grandes. intelectuais" - e, como tal, à aquela difusão massiva de determinadas concepções do mundo
alta cultura - nesse processo de elevação da consciência de teor crítico desejada por Gramsci. Gostaria de sublinhar que
folc!orista ao nível do bom senso (ou, se quisermos, da cultura se trata de uma possibilidade, que coexiste com a (e é freqüentemente
nacional-popular). Mas tal processo não pode ser confiado à derrotada pela) possibilidade contrária, ou seja, a de que tais
simples esperança numa "utopia tendencial": sem jamais propor gêneros sirvam para difundir uma cultura alienada, regressiva e
o desprezo ou o abandono da alta cultura, Gramsci chega a manipuladora. (Grarnsci apontou uma ambigüidade similar
dizer que - no nível da consciência social - o fato de que uma quando analisou o romance-folhetim e o melodrama italiano.)
concepção do mundo já elaborada seja difundida entre as massas,
13 Resumo aqui conceitos gramscianos expressos nos Quademi dei carcere. Turim: Einaudi,
tornando-se "bom senso", é mais importante do que a realização
1975. Nas velhas edições brasileiras, eles podem ser encontrados em Concepção
ele uma descoberta teórica específica que reste limitada a um dialética da hist6ria; Uteratura e vida nacional e Os intelectuais e a organização da culcura
(Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, respectivamente 1966, 1968 e 1968).
96
Cultura e sociedade no Brasil Dois momentos brasileiros da Escola de Frankfurt 97

Entretanto, se admitirmos que, apesar de tudo, ou seja, de suas


Por tudo isso, no plano da política cultural, a concepção
limitações intrínsecas e de seu atual controle pelos monopólios,
gramsciana de uma inter-relação dinâmica e retro-alimentadora
os meios eletrônicos de comunicação comportam aquela
entre os vários níveis culturais me parece mais fecunda do que
possibilidade positiva, então se trata de lutar para que ela se converta
a visão estática e, em última instância, conservadora que resulta
em realidade, suplantando a possibilidade negativa contrária.
das concepções de Horkheímer-Adorno, É nesse ponto que julgo
Quando falamos em gênero criado pela mídia eletrônica, é entrever uma linha de continuidade, no seio de uma marcada
claro que logo nos vem à mente, no caso brasileiro, a telenovela, descontinuidade, entre os dois momentos da recepção de
aliás fartamente citada por Rouanet. Ao contrário do que supõe Frankfurt no Brasil: na medida em que opta por trabalhar num
o radicalismo de Horkheimer e Adorno, para os quais não há nível demasiadamente abstrato, "filosófico-universal", a Escola
diferença entre Victor Mature e Charles Chaplin, ambos submetidos de Frankfurt - seja em sua versão "contracultural" marcusiana,
à barbárie de uma indústria cultural que eles vêem como seja em sua atual figura racionalista encarnada por Rouanet _
globalmente alienada e alienante, considero um progresso que tende a deixar de lado muitas meditações sociais concretas,
as telenovelas brasileiras não sejam mais escritas por Glória sem as quais é impossível realizar uma análise histórico-
Magadan e sim, digamos, por Dias Gomes. Não posso me alongar materialista da cultura e, como conseqüência, propor uma
aqui sobre a questão, mas creio que muitas de nossas recentes política cultural democrática e socialista, que não perca de vista
telenovelas, com todas as insuperáveis limitações formais do a questão da luta pela hegemonia entre diferentes blocos de
gênero e com todos os esquematismos que sempre podem ser classe. Porque, afinal, quando Rouanet nos diz que o
apontados em seus conteúdos concretos, difundem um grande irracionalismo brasileiro "se apropriou (... ) das três tendências
número de elementos culturais críticos, os quais - embora óbvios mencionadas (anticolonialista, antielitista e antiau toritária),
ou mesmo banais para os que são familiarizadas com a alta cultura usando-as para seus próprios fins", não me parece manifestação
- chegam através delas, pela primeira vez, a uma massa de milhões de sociologismo vulgar lembrar-lhe que o "írracionalismo" não
de telespectadores. Produções desse tipo podem diminuir a tem fins, mas que é apenas a manifestação ideológica de uma
defasagem entre o folclorismo anacrônico, hoje predominante na classe (ou de um bloco de classes) historicamente concreta.
cultura do povo, e uma consciência nacional-popular mais rica e A que interesses sociais serve o irracionalismo que Rouanet tão
desenvolvida. Nesse sentido, considero manifestação de elitismo lucidamente denuncia e combate? Na medida em que o
a condenação prévia da telenovela enquanto gênero, sob a marxismo frankfurtiano, com sua declarada predileção pela
alegação de que, por operar no nível do agradável e não do estético, crítica cultural "epocal", deixa inteiramente de lado a questão
ela jamais poderá alcançar o patamar artístico-ideológico de obras da luta de classes, não é de surpreender que não haja nos ensaios
como, por exemplo, Doutor Faustus ou Viva o povo brasileiro. 14 de Rouanet nenhuma resposta a essa questão.
Seria unia ilusão ingênua supor que se possa fazer uma
H Um discurso semelhar, te seria também válido, certamente em maior medida, para a
"reforma intelectual e moral" (Gramsci) de modo exclusivo, ou
nOSS:1música popular: num país onde a alta literatura quase sempre expressou um
escasso grau de consciência nacional-popular, foi através dessa música _ de Noel automaticamente, através da difusão propiciada pela mídia
Rosa a Caetano Veloso e Chico Buarque - que grande parte da população encontrou eletrônica: devemos à Escola de Frankfurt, e em particular a
instrurnenros para forjar o seu "bom senso", ou seja, a sua consciência crítica.
98 Cultura e sociedade no Brasil

Horkheimer e Adorno, uma consciência mais lúcida e perspicaz


dos imensos riscos regressivos contidos na indústria cultural.
A adoração basbaque das virtudes da mídia, tão bem denunciada
por Rouanet, é certamente uma manifestação equivocada, que
deve ser duramente combatida. Mas também me parece perigoso
ignorar as potencialidades dos meios de comunicação de massa,
quando submetidos à l)ressão e ao controle de uma sociedade civil
forte e democrática, no processo de elevação do senso comum
folclorístico ao "bom senso" crítico. Enquanto aparelhos de
hegemonia, também os meios eletrônicos são terreno de uma
IV. O significado de Lima Barreto
"guerra de posições" entre blocos sociais conflitantes. Numa
em nossa literatura
vertente frankfurtiana diversa daquela de Adorno, foi essa a
conclusão a que chegou Benjamin, em seu belo ensaio sobre
A obra de arte na éboca de sua relnodutibilidade técnica. Se
quisermos evitar o espírito de Kulturkritk romântica que condena
inapelavelmente o desenvolvimento tecnológico, e se temos de
reconhecer que a expansão dos meios de comunicação é algo
inexorável no mundo moderno, então temos de atualizar,
parodiando, a lição de Benjamin: diante das tentativas de
pseudo-I'este tização" da mídia a serviço da alienação e do
ernbrutecimento, a resposta do comunismo é politizar a cultura
de massas. Contudo, para que essa arriscada operação não se
converta em populismo, ou mesmo em cinismo ("se o estupro é
inevitável, relaxe e aproveite"), mas se mantenha gramscianamente
no nível de uma proposta nacional-popular aberta à alta cultura
e aos seus insubstituíveis valores estéticos e ideológicos, as
advertências da Escola de Frankfurt são indispensáveis. E temos
de agradecer a Rouanet por nos tê-Ias recordado, com lucidez e
coragem.

(1986)
o significado de Lima Barreto em nossa literatura 101

A fortuna crítica da obra de Lima Barreto é um dos fenômenos


mais desconcertantes da historiografia literária nacional. Com
efeito, desde o seu aparecimento até hoje, no momento em que
transcorre o cinqüentenário da morte do escritor, essa obra vem
despertando reações extremamente contraditórias, que vão do
entusiasmo apaixonado de alguns à rejeição mais ou menos
categórica de muitos. Deve-se ainda observar que esse
entusiasmo se expressa freqüentemente sob a forma de uma
simpatia calorosa mas pouco atenta ao essencial, enquanto a
rejeição assume muitas vezes o aspecto de um desprezo
"aristocrático" pelas pretensas debilidades "formais" do grande
romancista popular.
O modo pelo qual se processa essa fortuna, assim, evidencia
em primeiro lugar como o pensamento progressista brasileiro -
apesar dos avanços realizados - ainda está distante de uma
correta e adequada reavaliação crítica de nossa própria herança
.
)
~
" cultural. Na verdade, mesmo da parte de seus admiradores,
habitualmente situados à esquerda, a exata significação de Lima
passou despercebida; o autor de Triste fim de Policarpo Quaresma
- uma das poucas obras-primas com que conta o romance brasileiro
- é elogiado enquanto notável "cronista" do mundo urbano
carioca, enquanto corajoso defensor das camadas populares, etc.,
mas sem que se avalie o seu significado real no fortalecimento e
aprofundamento de uma tradição realista autenticamente
nacional-popular. Por outro lado, tal como ocorre diante de
Graciliano Ramos, não são poucos os que insistem erroneamente
no caráter "mernorialista" da obra de Lima, na pretensa natureza
biográfica dos seus romances; esse biografismo, ademais, em mãos
de analistas superficiais, leva à afirmação de que o caráter
profundamente crítico da obra de Lima decorreria dos
"ressentimentos de um derrotado", das "amarguras de um homem
de cor", dos "desequilíbrios de um alcoólatra", etc. Em suma, mesmo
nos casos em que se ressalta o valor documental de suas "crônicas"
r---------------,
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102 Cultura e sociedade no Brasil
o significado de Lima Barreto em nossa literatura 103

ou O interesse humano de suas "confissões", deixa-se de lado o de "via prussiana" e Gramsci designou como "revolução passiva".
que distingue Lima do naturalismo populista que caracteriza Ao invés das velhas forças e relações sociais serem extirpadas
grande parte da literatura brasileira "de esquerda". através de amplos movimentos populares de massa, como é
Em segundo lugar, é interessante observar como a intermitência característico da "via francesa", a alteração social se fez aqui
do seu prestígio e de sua influência pode ser tomada como claro mediante conciliações entre o novo e o velho, ou seja, se
indício do quadro geral apresentado, em cada época concreta, consideramos o plano imediatamente político, mediante um
pela cultura brasileira. Assim, nos períodos em que se destaca a reformismo "pelo alto", que excluiu inteiramente a participação
função crítico-social da literatura, o papel que ela desempenha popular. Como conseqüência desse "modelo" de evolução,
na formação da autoconsciência da humanidade, Lima Barrete difunde-se a impressão de que a mudança social assemelha-se
encontra o elevado posto que lhe é devido no quadro de nossa a um "destino fatal", inteiramente independente da ação
literatura. Ao contrário, nas épocas em que floresce uma visão humana; e, como contrapartida desse fatalismo, ganha força em
forma lista ou esteticista da arte, desce sobre a obra do romancista outras áreas a suposição - igualmente equivocada - de que
um absoluto silêncio, interrompido apenas pelas desdenhosas aquela mudança resulta tão-somente da ação singular de
afirmações de que ele desconheceria os "instrumentos específicos "indivíduos excepcionais". No quadro desse profundo divórcio
da escrita". Isso não é absolutamente casual. Lima Barrete não entre povo e nação, torna-se assim particularmente difícil o
pode ser "reinterpretado", ou seja, mutilado ou empobrecido a surgimento de uma autêntica consciência democrático-popular.
fim de servir aos propósitos das correntes esteticistas ou Esse fato, decerto, tem profundas repercussões negativas
reacionárias no campo da literatura; o inequívoco caráter realista também na formação e no caráter da intelectualidade brasileira.
e democrático-popular de sua obra se impõe com tal evidência, Desenvolveu-se entre ela, praticamente desde os inícios do Brasil
de modo tão absolutamente insofismável, que os cultores independente, uma forte tendência a situar-se naquilo que
brasileiros do esteticismo só podem reagir diante dela com o Thomas Mann, referindo-se aos intelectuais alemães, chamou
silêncio ou a mistificação. de "intimismo à sombra do poder".' Descrentes da possibilidade
de influir decisivamente sobre as mudanças sociais, que se
1.
processam sempre mediante acordos de cúpula entre as classes
A exata determinação do significado de Lima Barreto na dominantes, os intelectuais tendem a evadir-se da realidade
evolução da literatura brasileira requer, como condição concreta, a colocar-se num terreno aparentemente autônomo,
preliminar, o estabelecimento - ainda que sumário - de algumas mas cuja autonomia é respeitada precisamente na medida em
linhas de terminantes dessa evolução, não apenas no específico
campo dos problemas estéticos, mas igualmente no que se refere 10 termo aparece no ensaio manniano Grandeza e sofrimento de Richard Wagncr, citado
ao quadro histórico-social em que ela se processa. e comentado por Georg Lukács, Thomas Mann. Paris: Maspero, 1967, p. 162 e ss. Este
conceito foi amplamente utilizado por Lukács em suas análises literárias (sempre em
O caminho do povo brasileiro para o progresso social - um relação com o problema da "via prussiana"), servindo-lhe como fio condutor na
compreensão de muitos problemas da história literária alemã e húngara. No presente
caminho lento e irregular - ocorreu sempre no quadro de uma
ensaio, valho-me dessas idéias e sugestões lukacsianas, na tentativa de esclarecer
conciliação com o atraso, seguindo aquilo que Lênin chamou problemas específicos da cultura brasileira.
104 Cultura e sociedade no Brasil o significado de Lima Barreto em nossa literatura 105

que não se põem em jogo as questões decisivas da vida social, de que o "modelo" prussiano seja algo permanente na evolução
as concretas relações sociais de poder. Essa situação é agravada brasileira, por sua vez, explica a razão porque essas duas
pelos traços característicos da formação social de nossa tendências anti-realistas - sob formas estilísticas extremamente
intelectualidade: num período em que predominava uma radical variadas - se manifestam ao longo de toda a nossa história cultural.
separação entre as classes e em que o trabalho permanecia sob o Tomemos inicialmente o caso do nosso romantismo em
estigma da condição servil, os intelectuais - oriundos quase sentido estrito. Nélson Wemeck Sodré descreveu com acuidade
sempre da classe média - utilizavam a cultura como meio de os complicados meios pelos quais a insatisfação romântica inicial,
diferenciação, de prestígio e elevação social, acentuando assim expressa em sua tentativa de desvincular-se do passado colonial,
() seu isolamento com relação à concreta realidade nacional- terminou por desembocar numa forma específica daquilo que
popular. Se a isso acrescentarmos o fato de que os intelectuais antes chamamos de "intimismo à sombra do poder". Na opinião
dependiam para o seu sustento, quase sempre, de uma integração de Sodré, o indianismo - voltado contra o elemento colonial
no aparelho burocrático do Estado, teremos as linhas histórico- encarnado pelo português - ocultava na verdade um desprezo
sociais gerais da específica modalidade brasileira do "intimismo pela realidade social concreta do então presente brasileiro, pelo
à sombra do poder". Do romantismo ao concretismo, sob formas elemen to popular encarnado na figura do escravo negro."
aparentemente variadas, essa tendência caracterizou uma corrente Transformando o índio no autêntico representante da nação
significativa e quase sempre dominante da intelectualidade brasileira, o indianismo ressaltava o seu valor ideal - expresso
brasileira.
através das deformações de um subjetivismo romântico - em
Contudo, seria prova de esquematismo entender essa oposição à mesquinha e prosaica realidade da época; mas, ao
tendência como manifestação de uma clara adesão imediatamente mesmo tempo, cumpria uma função social claramente escapista,
político-ideológica ao poder estabelecido, às formas mais ao deixar na sombra as contradições sociais concretas do Brasil
reacionárias de dominação social, embora também essa adesão de então. O culto romântico de um índio mitificado (que vemos
ocorresse em muitos casos. O "intimismo à sombra do poder" se expressar tão claramente na prosa de José de Alencar ou na
combinou-se freqüentemente com um inconformismo declarado, lírica de Gonçalves Dias) situava-se perfeitamente no interior
com um mal-estar subjetivamente sincero diante da situação daquela esfera de suposta autonomia tolerada pelo poder
social dominante. O que determina os limites do "intimismo", estabelecido. Por outro lado, nos casos em que o pathos romântico
em última instância, é o fato de qUF.ele capitula diante dos voltava- se para os problemas do presente, ele servia claramente
preconceitos ideológicos gerados espontaneamente pela a finalidades de ocultamento das contradições essenciais da
"via prussiana", ou seja, por um lado, ao subjetivismo extremado realidade (como ocorre nos romances de Joaquim Manuel de
que vê nos indivíduos excepcionais as únicas forças da história Macedo) ou à expressão quase exclusiva de problemas privados
e, por outro, ao fatalismo pseudo-objetivo que amesquinha ou e superficiais de uma subjetividade isolada (como em grande
dissolve o papel da ação humana na criação histórica. Facilmente
se perceberá que esses dois preconceitos, no plano estético, dão 2 Cf. Nélson Werneck Sodré, História da literatura brasileira. Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1964, p. 199-294; bem como o belo ensaio do mesmo sobre José de Alencar,
origem respectivamente ao romantismo e ao naturalismo. O fato
em Ideologia do colonialismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965, p. 41-59.
106
Cultura e sociedade no Brasil
o significado de Lima Barreto em nossa literatura 107

parte da nossa lírica romântica). Em todos esses casos, o


Do ponto de vista estético, deve-se observar que o naturalismo
romantismo não escapa essencialmente aos limites estreitos do
brasileiro revelou-se absolutamente incapaz de criar autênticos
"intimismo à sombra do poder".
tipos humanos, que pudessem se inscrever na autoconsciêricia
Uma tendência similar revela-se também em nosso nacional; essa incapacidade congênita do naturalismo já havia
naturalismo, embora fosse pretensão explícita da corrente sido observada por Paul Lafargue, ao comparar os personagens
naturalista a ruptura com o monopólio romântico da época. de Balzac com os de Zola, mas acentua-se decisivamente no
É indiscutível que o naturalismo europeu, em seus melhores Brasil, em decorrência da pobreza humana objetiva e da escassa
representantes, como Émile Zola, parte de uma recusa subjetiva integração nacional que caracterizavam nossa sociedade
da prosaica realidade do capitalismo. No caso brasileiro, essa semicolonial. E, do ponto de vista ideológico geral, essa resignação
recusa volta-se contra o Segundo Reinado, no qual predomina final implícita na figuração naturalista do mundo, ainda que muitas
um estagnado equilíbrio de classes, com predomínio da pseudo- vezes involuntariamente, desembocava numa nova versão do
aristocracia rural escravista. Mas, no plano objetivo da criação "intimismo à sombra do poder": as contradições sociais e humanas,
artística, o naturalismo capitula diante do aspecto imediato desta fruto das vicissitudes histórico-concretas de nosso país, aparecem
estagnaç50, ao considerar a realidade que descrevia - a repressão no naturalismo como produto de uma "fatalidade" ambiental e
c alienação das mais íntimas potencialidades humanas _ como biológica, sobre a qual a ação efetiva dos homens não teria
algo eterno e imutável. O predomínio fatalista do "ambiente" nenhum poder. Assim, no sentido ideológico mais profundo,
fetichizado sobre a ação humana, que foi ainda mais intenso no o episódio naturalista - tanto em suas versões urbanas quanto nas
naturalismo brasileiro que em sua matriz européia, terminava "sertanistas" - não representa uma ruptura essencial com a tradição
por transformar o protesto originário dos naturalistas em conformismo romântica. Essa continuidade, ademais, expressa-se igualmente no
real, numa resignada aceitação das misérias humanas que nível estético-formal, dado que - como já se observou repetidas
descreviam em seus romances. Essa tendência à resignação e ao vezes - o nosso naturalismo herda não apenas a ênfase romântica
imobilismo conformista aparece, em última instância, como urna no plano do estilo, mas igualmente a preferência ternática (também
capitulação da intelectualidade diante do aspecto fatalista que de origem romântica) pelo pitoresco e pelo exótico.
a "via prussiana" emprestava ao nosso desenvolvimento. O fenômeno
Em tais condições sociais, ou seja, nas condições de um país
é bastante evidente no mais importante (inclusive sob o aspecto
semicolonial imerso na "via prussiana" de desenvolvimento,
estético) de nossos romances naturalistas, ou seja, O cortiço de
a criação de autênticas obras estéticas realistas torna-se muito
Aluísio Azevedo. Descrevendo as desumanas condições em que
difícil. A quase completa estagnação social, a impossibilidade
vive a população pobre do Rio de Janeiro, o romancista descreve
de captar no plano fenomênico imediato ações humanas
ao mesmo tempo a paulatina capitulação de todos os personagens
significativas (capazes de servir de objeto à figuração artística),
às pressões díssolutoras do "ambiente", à pretensa fatalidade de
acentuam ainda mais a tendência dos criadores a situar-se no
leis de hereditariedade entendidas de modo fetichista, com o
plano do "intimismo à sombra do poder". O romantismo, por um
que termina por amesquinhar e empobrecer radicalmente todas
lado, busca na evas âo subjetivista diante do prosaísmo
as figuras humanas que constrói.
desumanizante da realidade concreta o seu específico material
108 Cultura e sociedade no Brasil o significado de Lima Barreto em nossa literatura 109

poético, ao passo que o naturalismo, por outro lado, recusando romance numa época em que a mobilidade social parecia tornar-
o subjetivismo dessa evasão, limita-se a descrever a estagnação se uma possibilidade concreta, ou seja, na época imediatamente
e a considerá-Ia como algo "fatal" e imutável. anterior à Independência, Almeida consegue emprestar a seus
Contudo, essa m arcada oposição à arte que surge personagens - quase sempre provenientes das camadas populares
espon tane arnente da atrasada realidade brasileira apresenta da época - uma sagacidade prática e uma alta capacidade de
influências diversas em cada gênero literário específico. No caso iniciativa, o que faz de Memórias o digno representante brasileiro
dos gêneros "objetivos", como a épica e o drama, que se centram das melhores tradições do romance picaresco universal. Mais
na representação de ações humanas significativas, esse prosaísmo concretamente: o romance de Almeida aproxima-se da forma
anri-ar tístico derrota ou prejudica seriamente a maioria dos aberta do grande realismo inglês do século XVII, em particular
artistas brasileiros. Mas na lírica, que se constrói a partir da de Fielding (Tom ]ones) e de Defoe (Moll Flanders), ou seja, de
explicitação de uma subjetividade elevada à universalidade um tipo de romance que é expressão de uma época na qual o
concreta, as tendências aludidas - tanto o "intimismo à sombra capitalismo - liberando as potencíalidades humanas reprimidas
do poder" quanto a pobreza humana objetiva da realidade social pelo feudalismo e incentivando uma ampla mobilidade social -
- podem mais facilmente ser contornadas, dando lugar a algumas ainda não revelara inteiramente suà face contraditória e
expressivas "vitórias do realismo". (Reside aqui a razão de dois repressora da individualidade. Se as Memórias conseguem
fatos até agora inexplicados: a superioridade estética da lírica no alcançar um. tão significativo nível de realismo, isso se deve
seio da literatura brasileira; e, em estreita relação com isso, a antes de mais nada ao fato de que Manuel Antônio de Almeida
., existência de uma expressiva continuidade evolutiva no caso desse conservou-se fiel às promessas de progresso anunciadas no
gênero, continuidade inteiramente inexistente no plano do período das lutas pela Independência, sem comprometer-se com
romance e, em particular, do drarna.) Essas "vitórias do realismo" as formas "prussianas" que caracterizaram efetivamen te a
ocorrem freqüentemente já na lírica de inspiração romântica, realização da Independência e que já dominavam soberanamente
onde um intenso pathos subjetivo de recusa e inconformismo na época em que ele viveu e criou. A profunda verdade estética
diante do sufocante ambiente imposto pela "via prussiana" de Leonardo - o primeiro tipo autenticamente nacional-popular
encontra em muitos casos um elevado teor poético e humano; na literatura brasileira - decorre precisamente dessa específica
embora o realismo de Castro Alves apareça muitas vezes mesclado verdade do seu conteúdo histórico e humano. E isso acentua
com uma retórica romântica abstrata, a obra abolicionista do poeta ainda mais o elemento fortemente crítico do realismo de
baiano pode ser apontada como um concreto exemplo de Almeida: o seu romance figura concretamente, de modo
superação lírica dos limites impostos pelo "intimisrno" dominante. imediatamente estético, as alternativas democráticas do povo
brasileiro, as potencialidades humanas que poderiam florescer
Aqui nos interessam mais de perto - dadas as suas relações
caso fossem efetivamente rompidas as ataduras retrógradas e
com a obra de Lima Barrete - as "vitórias do realismo" que se
sufocantes impostas pela "via prussiana".
expressam no plano específico da criação épico-narrativa.
A primeira delas aparece em Memórias de um sargento de milícias, Bem mais complexo e completamente diverso (em seus
de Manuel Antônio de Almeida. Situando a ação de seu aspectos estéticos e ideológico-históricos) é o modo pelo qual
110 Cultura e sociedade no Brasil o significado de Lima Barreto em nossa literatura 111

Machado de Assis, em sua obra da maturidade, logrou alcançar preciso: indicar o fato de que não existe entre os dois romancistas
uma plena e profunda vitória do realismo. Machado não se vale nenhuma continuidade orgânica, que os seus meios estilísticos
do anacronismo histórico de Almeida para escapar às dificuldades e os seus recursos ideológicos - embora se orientem em ambos
impostas pelo prosaísmo de sua época; a matéria de seus romances os casos para o realismo e para o humanismo - são basicamente
é o tempo presente, a época do Segundo Reinado, na qual as diversos. Em outras palavras: o modo pelo qual cada um deles
devastações humanas causadas pela "via prussiana" haviam alcança a vitória do realismo aparece como um fenômeno
alcançado um ponto extremo. Na sufocante atmosfera de uma singular e .rrepetível, carente de qualquer exemplaridade.
falsa "segurança", parece não mais haver lugar para nenhuma ação É indiscutível que não existe, na literatura universal, nenhum
humana independente e significativa, capaz de revelar esteticamente exemplo de continuidade homogênea, de exemplaridade
o núcleo humano dos homens. Graças à universalidade da sua absoluta; não ocorre jamais, por parte dos realistas expressivos,
concepção do mundo e do homem, porém, Machado tornou-se uma simples repetição das soluções estéticas e ideológicas
o implacável crítico romanesco dessa falsa segurança, dessa encontradas pelos seus antecessores. Mas, nos países que
insensata forma de vida baseada no "intimismo à sombra do seguiram uma via não prussiana de desenvolvimento, nos quais
poder"; com uma aguçaria sensibilidade realista para a distinção a contínua intervenção popular na criação da vida nacional
entre a máscara superficial e a essência íntima, dos homens, assegura a formação de um amálgama sócio-humano
I~:

:::'
Machado vai paulatinamente revelando - através da espantosa relativamente homogêneo e contínuo, a literatura apresenta
descoberta de Bentinho, das amargas experiências de Brás Cubas também uma marcada continuidade: os novos escritores tomam
:j e de Rubião - como eram hipócritas e precárias as bases daquela como ponto de partida, ainda que para s upe r á-Ios
o,.

estabilidade obtida às custas do aprisionamento numa dialeticarnente, os problemas e as soluções encontrados por
mesquinha vida privada. Derrubando com seu humor sereno seus antecessores. Basta aqui lembrar, como exemplos, as linhas
mas explosivo as paredes que protegiam aquele "intimismo à que levam de Balzac a Roger Martin du Gard, na literatura
sombra do poder", Machado foi capaz de emprestar às suas figuras francesa, ou de Púshkin a Górki (ou ainda de Dostoiévski a
a universalidade concreta requerida pela autêntica configuração Soljenitsin), na literatura russa: apesar de grandes diversidades,
épica do mundo. A similaridade te mática imediata com o os romancistas franceses e russos evidenciam uma mar cante
naturalismo de tipo flaubertiano não deve ocultar esta diferença unidade e homogeneidade, que decorre essencialmente da
essencial: Machado atinge o núcleo essencial dos problemas que profunda ligação entre eles e a vida nacional-popular de seus
aborda, enquanto o naturalismo limita-se à descrição de suas respectivos países.
cascas superficiais. Uma continuidade desse tipo inexiste nos países que
adotaram a "via prussiana" ou a "revolução passiva" como forma
2. de desenvolvimento. Em primeiro lugar, isso decorre da radical
Essa rápida alusão à obras de Manuel Antônio de Almeida e separação entre os intelectuais e o povo-nação; em segundo, da
de Machado de Assis, os dois maiores exemplos de vitória do fragmentação e da heterogeneidade sociais decorrentes da
realismo na arte narrativa brasileira do século XIX, tem um objetivo ausência de um sujeito nacional-popular unitário, que intervenha
112 Cultura e sociedade no Brasil o significado de Lima Barreto em nossa literatura 113

continuadamente na criação da história (gerando, entre outros, para o interior de sua obra criativa.' Aquela excepcionalidade
o fenômeno da divisão do país em "regiões" mais ou menos que caracteriza o realismo brasileiro, aliada às conciliações
autônomas); e, finalmente, como conseqüência, da ausência exteriores e a essa característica ideológico-estilística de sua obra,
de tipos humanos exemplares que se expressem através de ações impediram que Machado de Assis exercesse uma influência
independentes e significativas. Por isso, em tais países, o positiva imediata no sentido de dissolver a continuidade das
realismo assume quase sempre um caráter excepcional, não tendências "intirnistas", nas quais se situara (e continuava a
apenas no sentido estrito de não habitual, mas também naquele situar-se) a maior parte da intelectualidade brasileira.
de fenômeno irrepetível. Assim, não se pode dizer que Machado Reside aqui a razão profunda dos ataques que Lima Barreto,
tenha recolhido a tradição de Manuel Antônio de Almeida, ao longo de sua vida, não cessou de dirigir a Machado de Assis.
ou seja, que tenha adequado aos novos tempos - como O ponto central desses ataques não seria, como ocorreria pouco
Soljenitsin em relação a Dostoiévski, ou como Martin du Gard após entre os primeiros modernistas, o pretenso passadismo da
em relação a Balzac - os meios estilísticos e ideológicos linguagem romanesca de Machado. Lima Baneto - empenhado
utilizados pelo autor de Memórias. Na verdade, ele recriou num combate desapiedado e quase solitário contra todas as
por sua própria conta (a partir, quando muito, de certas manifestações do "intimismo à sombra do poder", contra todas
constelações estil ísticas e ideológicas da literatura universal) as formas de esteticismo aristocratizante - escolheria um outro
instrumentos basicamente diversos dos de Almeida em sua alvo: o que lhe desagrada, no autor de Brás Cubas, é precisamente
tentativa de alcançar o realismo. a aparente falta de humanidade, o suposto abandono das
É essa a razão essencial por que a obra de Machado, apesar específicas funções sociais e humanistas da literatura. Numa
de profunda influência imediata que exerceu, não foi capaz de carta a Austregésilo de Ataíde, escreveu Lima: "Gostei que o
inverter a tendência dominante, ou seja, a tendência a cultivar senhor me separasse de Machado de Assis. Não lhe negando os
a arte no estéril terreno do "intimismo à sombra do poder". Esse méritos de grande escritor, sempre achei no Machado muita
efeito liberador tornou-se ainda mais problemático por ter sido secura de alma, muita falta de simpatia humana, falta de
Machado, obrigado a lutar contra grandes obstáculos pessoais e entusiasmos generosos, uma porção de sestros pueris. Jamais o
sociais, impelido a algumas conciliações exteriores, assumindo imitei e jamais me inspirou. Que me falem de Maupassant, de
enquanto personalidade literária certas formas daquele Dickens, de Swift, de Balzac, de Daudet - vá lá, mas Machado,
"intimisrno à sombra do poder" que, em seus romances e novelas, nunca! Até em Turguenieff, em Tolstói, podiam ir buscar os meus
desmistificara impiedosamente. (Nesse sentido, o destino pessoal modelos; mas, em Machado, não!'"
de Machado aproxima-se bastante das vicissitudes de outro
humanista, ou seja, de Goethe.) Mais do que isso: a "serenidade" J A crítica desses equívocos pode ser encontrada em Astrojildo Pereira, Machado de
e a distância irônica do estilo machadiano, instrumentos de sua Assis. Rio de Janeiro: São José, 1959, particularmente p. 89-112. Mas certamente a
mais lúcida "leitura" de Machado de Assis já produzida no Brasil é aquela contida
crítica social mordaz e profunda, foram freqüentemente em Roberto Sch warz, Ao vencedoras batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1977, e id.,
confundidas com desumanidade, com uma "iml)assibilité" Um mestre na /Jerifel'ia do capitalismo. São Paulo: Duas Cidades, 1990.
f1aubertiana equivocadamente transposta de sua vida pessoal ; Carta a Austregésilo de Ataíde, 19/01/1921, in Lima Barrete, Concspondência. São
Paulo: Brasiliense, 1956, tomo JI, p. 256-257.
114
Cultura e sociedade no Brasil
o significad o de Lima Barreto em nossa literatura 115

Não é casual que Lima, ao buscar um modelo para opor a


mais podiam ocupar o lugar dominante. Lima extrai, ainda que
Machado, indicasse o nome de sete escritores estrangeiros.5
sem plena clareza teórica, as conclusões desse fato, capacitando-se
Isso evidencia até que ponto ele estava consciente do seu
assim - como diria Francisco de Assis Barbosa - a "inaugurar
isolamento, da singularidq,de de sua missão literária no quadro
revolucionariamente a fase do romance moderno no Brasil"."
de uma literatura em que o realismo era algo excepcional, ao
passo que as tendências/contínuas e permanentes orientavam-se A prática demostraria, ademais, que a conservação do
decisivamente para o escapismo e para o anti-realismo. Assim, modelo machadiano além das condições concretas que lhe
embora objetivamente injusto, o combate de Lima à herança deram origem deveria conduzir paulatinamente ao seu
machadiana faz parte de sua luta mais geral, histórica e esvaziamento maneirista. Os três grandes romances machadianos,
esteticamente correta, por um autêntico realismo crítico nacional- precisamente aqueles que inscrevem o seu nome no cume da
popular. Carecendo de instrumentos teóricos adequados (que, literatura nacional (Brás Cubas, Quincas Barba e Dom Casmurro),
em sua época, ninguém possuía no Brasil), ele não foi capaz de têm como objeto imediato de sua figuração a época da
perceber o fato de que a obra de Machado representava estabilização imperial, embora tenham sido publicados no período
objetivamente um movimento na mesma direção. que vai da desintegração do Segundo Reinado à República pós-
ílorianista. Entretanto, Machado já percebe o modo pelo qual
Todavia, além dessa justificativa geral, a compreensão por
os elementos capitalistas modernos penetram no velho mundo
parte de Lima Barreto do seu antagonismo em relação a Machado
escravocrata; e indica como essa penetração, longe de
manifesta ainda um outro elemento correto. Embora de modo
representar uma ampliação dos horizontes humanos, contribui
confuso, Lima captou um traço essencial da diferença estilística
para reforçar - na medida em que se processa nos quadros da
(determinada em última instância por questões de conteúdo)
"via prussiana" - a miséria humana da vida social brasileira.
cntre sua própria práxis literária e aquela de Machado. Os efeitos
Desse modo, a extraordinária universalidade de sua obra é
da "via prussiana" sobre o desenvolvimento literário brasileiro
paradoxalmente beneficiada pelo aparente desconhecimento das
manifestavam-se concretamente: a criação de um novo realismo,
agitações ideológicas e políticas republicanas que se iniciariam
éldequado aos novos tempos, não podia se fazer a partir de
já a partir dos anos 70; ao abandonar essas agitações superficiais
Machado, mas implicava a necessjdade de um tompirtienio com
(que muito prometiam mas que cumpriram tão pouco) em troca
a sua herança. Mais corretamente: o desenvolvimento da
da representação da continuidade da "via prussiana", Machado
hcr anç» realista de Machado requeria, paradoxalmente, o
captou um traço essencial e duradouro da evolução histórica
completo abandono de sua temática, de seu estilo e de sua visão
brasileira. Contudo, quando o ingresso do Brasil na era imperialista
do mundo. A nova realidade impunha um estilo menos sereno,
(que coincide com o advento da República) aguça intensamente
menos "equilibrado", no qual 3S preocupações "artísticas" não
as contradições, levando o "modelo prussiano" a uma nova fase,
o equilíbrio assegurado pela ironia e pelo distanciamenro com
i N:l litcrnrura universal, Lima sentia-se particularmente ligado aos russos. Assim, em
curta a UI1l escritor estreante, escrita em 19/08/19 I9, dizia ele: "Leia sempre russos:
os quais Machado forjara o seu estilo da maturidade deveria
Dostoiévski, Tolstói, Turguenieff, um pouco de Górki; mas, sobretudo, o Dostoiévski
d:) Casa dos monos e do Crime e Castigo" (ibid., p. [7 I). 6 Francisco de Assis Barbosa, "Prefácio" a Lima Barrete, Recordações do escrivão lsaías
Caminha. São Paulo: Brasiliense, 1970, p. 14.
116 Cultura e sociedade no Brasil o significado de Lima Barreto em nossa literatura 117

romper-se. Isso já se revela na própria obra machadiana; com avaliar corretamente a pobreza estética e humana dessas novas
efeito, é inegável que em seus últimos romances, particularmente versões, cada vez mais envilecidas, do "intimismo à sombra do
no Esaú e Jacó, no qual pretende captar mais de perto as agitações poder", Diz-nos ele, no Gonzaga de Sá: "A nossa emotívidade
republicanas dos novos tempos, o grande realista não mais literária só se interessa pelos populares do sertão unicamente
alcança o mesmo nível estético e a mesma verdade histórico- porque são pitorescos e talvez não se possa verificar a verdade
humana de seus três romances citados. de suas criações. No mais, é uma continuação do exame de
Ainda mais significativo, todavia, parece ser o completo português, uma retórica a se desenvolver por este tema sempre
esvaziamento que o estilo de Machado - rompido o equilíbrio o mesmo; Dona Dulce, moça de Botafogo em Petrópolis, que se
dialético de seus vários componentes (equilíbrio assegurado pela casa com o Doutor Frederico. O comendador seu pai não quer,
especificidade do conteúdo que expressava) - haveria de sofrer porque o tal Frederico, apesar de doutor, não tem emprego. Dulce
em mãos dos seus inúmeros imitadores da época parnasiana. vai à superiora do colégio das irmãs, Essa escreve à mulher do
Temos aqui uma comprovação negativa, mas altamente expressiva, ministro, antiga aluna do colégio, que arranja um emprego para
daquela descontinuidade a que aludimos: para continuar o rapaz. Está acabada a história (... ). Está aí um grande drama
efetivamente o realismo de Machado, era preciso - como Lima o de amor em nossas letras, e o tema do seu ciclo literário. Quando
intuiu - romper decisivamente com a sua herança imediata. tu terás, na tua terra, um Dostoiévski, uma George Elliot, um
" Com efeito, na obra dos epígonos, o "distanciarnento" machadiano Tolstói - gigantes desses, em que a força da visão, o ilimitado
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será acentuado, mas com inteiro abandono da cortante crítica da criação, não cedem passo à simpatia pelos humildes, pelos
I· •.
·
social que ele expressava originariamente; a "serenidade" ganha humilhados, pela dor daquelas gentes donde às vezes não vieram
"
10·
a fisionomia da pose aristocrática, ao ser esvaziada da - quando?"?
universalidade histórico-humana que assumia em Machado; e, É evidente que Lima se propõe a criação de uma literatura
finalmente, a "artisticidade" converte-se num objetivo em si, desse tipo (cujos modelos, sintomaticamente, vai mais uma vez
numa nova versão do "intimismo à sombra do poder", não mais buscar na literatura universal), ou seja, de uma literatura que
aparecendo como o resultado estilístico (não artificialmente conjugue indissoluvelmente a grandeza estética com um profundo
buscado) de uma profunda verdade do conteúdo humano e ideal. espírito popular e democrático, com uma aberta tomada de
Tudo isso desembocaria na concepção de Afrânio Peixoto posição em favor dos "humilhados e ofendidos", Ao contrário
da literatura como o "sorriso da sociedade", concepção contra da maioria dos seus contemporâneos, ele está consciente da
a qual Lima - com lucidez crítica exemplar - combateria necessidade de encontrar, para a adequada representação dos
implacavelmente. novos tempos, um estilo diverso daquele que caracteriza a obra
Reagindo contra a herança imediata de Machado, Lima machadiana.
Barreto expressa a sua categórica rejeição do "intimisrno" e, ao Com efeito, o início da Primeira República - na medida em
mesmo tempo, lança as bases de sua luta - solitária na época - que dera seguimento à "via prussiana", promovendo apenas um
pela retomada da linha realista no que ela tinha de essencial.
Como poucos críticos profissionais de seu tempo, Lima soube ) Lima Barrete, Vida e morre de M.]. Gonzaga de Sã. São Paulo: Brasiliense, 1956, p. 133- 134.
118
Cultura e sociedade no Brasil o sign ificado de Lima Barreto em nossa literatura 119

reagrupamento de forças no seio da oligarquia dominante _ captaria corretamente a essência c!assista do novo regime: "Sem
frustrara decisivamente as esperanças de renovação democrática ser monarquista, não amo a república (",), O nosso regímen
vividas pelos melhores representantes da geração de 70. (Como atual é da mais brutal plutocracia, é da mais intensa adulação
vimos, já na época, Machado tivera a lucidez de acolher com aos elementos estranhos, aos capitalistas internacionais, aos agentes
ceticismo essas esperanças e ilusões.) A simples mudança de de negócios, aos charlatães tintos com uma sabedoria de
regime político, como Lim.a sempre ressaltou, em nada alterara pacotilha"."
os vícios fundamentais da formação histórica brasileira. Mas O aguçamento dessas contradições reflete-se também na
isso não significa, de nenhum modo, que o período desconheça .literatura brasileira, A sutil ironia machadiana deve ser substituída
a irrupção de fatos novos. Ao contrário: coincide com a pela amarga sátira contra os poderosos, uma sátira que não
implantação da República tanto o aguçamento da dependência hesite em converter-se em impiedoso sarcasmo, O "dístanciamento",
brasileira ao capital internacional, inclusive através da
o peculiar modo encontrado por Machado para se manter
indústria nascente, quanto o tumultuado surgimento das
fiel ao humano numa época em que as camadas populares
primeiras lutas de classe entre o proletariado e a oligarquia
permaneciam esmagadas e imobilizadas pelo regime do
" dominante. O país ingressava na era capitalista (que já atingia
\ " trabalho escravo, tem de se converter agora numa clara
r },
, " no plano mundial a fase imperialista) sem ter resolvido os
tomada de posição em. favor das classes sociais que apontavam
I :.
impasses históricos decorrentes da "via prussiana". Com isso,
para um caminho novo, em favor daqueles "humilhados e
f
(
:f
"
dissolver-se -i a m inteiramente os aparentes traços de
ofendidos" que já começavam a se anunciar corno sujeitos
"estabilidade" da época imperial, ainda hoje louvados pelos
!.•
políticos, Não é casual que Lima Barreto seja contemporâneo
historiadores reacionários, que os assumem como fetiches
do s urgimento das primeiras manifestações do proletariado
(basta pensar no mito d a "democracia coroada"). Com a
organizado em nosso país; somente esse surgimento podia
República, iniciava-se uma época aguda de contradições
possibilitar ao escritor aquele "ponto de Arquimedes" situado
sociais tornadas evidentes; o fim do regime de trabalho escravo,
fora da "via prussiana", capaz de revelar-lhe a integralidade
com o conseqüente surgimento de uma classe de trabalhadores
das contradições sociais e humanas decorrentes dessa via,
assalariados, fazia ingressar um novo protagonista na história
Em sua tomada de posição diante da realidade social, Lima
brasileira, o que, pela primeira vez, fundava a possibilidade
Barreto não se situaria apenas, como muitos dos seus
objetiva de se encontrar uma alternativa concreta para a "via
contemporâneos progressistas, ao lado dos "industrialistas"
prussiana". A tentativa "republicana" de prosseguir nessa via
modernizadores contra o passadismo "agrarista''. Ele não se
antidemocrática já não podia mais se processar no quadro de
limitou a denunciar a aliança entre a "moderna" República
uma aparente "estabilidade social"; as formas burocrático-
nascente e o imperialismo; enxergou também a tendência de
ditatoriais da "via prussiana" deveriam substituir as
"agraristas" e "industrialístas" a se fundirem numa nova coalizão,
modalidades "paternalistas" próprias do Segundo Império. Do
continuadora da tradicional "via prussiana", ou seja, uma
seu ângulo de visão profundamente naCional-popular, alheio a
qualquer conciliação com o "modelo prussiano", Lima Barreto
8 Lima Barrete, Coisas do Reino do}ambon. São Paulo: Brasilicnsc, J 956, p. 80.
120 Cultura e sociedade no Brasil o significado de Lima Barreto em nossa literatura 121

coalizão que continuaria a excluir qualquer autêntica especificamente estético, a realidade social de seu tempo.
participação popular. (Essa nova coalizão, após inúmeros atritos Em sua obra, ele não se limita a apontar algumas "mazelas" sociais,
entre os seus componentes, chegaria ao poder com a Revolução de capazes de correção por meio de reformas no interior do sistema,
1930.) Decerto, não pretendemos afirmar que Lima tenha como freqüentemente ocorre no naturalismo brasileiro (basta
compreendido e assimilado uma visão marxista ou mesmo mencionar aqui, como exemplo, o interessante romance
correntemente socialista do mundo; nem tampouco que, em sua O Ateneu, de Raul Pompéia). A sua demolidora denúncia da
simpatia pelas classes populares, tivesse alcançado uma clara imprensa, da burocracia, das formas políticas da época
consciência do papel específico que nelas desempenhava o republicana, inclusive do militarismo tlorianista, são momentos
proletariado industrial. Não apenas isso seria praticamente impossível dessa crítica histórico-universal, feita em nome de um novo
em seu tempo, como - o que é mais importante - não era de modo caminho alternativo para a evolução brasileira. É assim possível
algum condição necessária para o êxito realista de sua obra. Esse que ele tenha, algumas vezes, tratado com demasiado" rigor"
êxito podia ser alcançado através de seu anarquismo mais ou menos certas manifestações culturais ou políticas que, vistas à luz
sentimental, de seu bizarro "maxirnalismo", pois eles expressavam a das tarefas imediatas do período (consolidação da forma
íntima adesão de Lima à uma perspectiva nacional-popular republicana de governo), desempenhavam um papel
decisivamente contrária a qualquer conciliação com a "via relativamente positivo. Talvez seja o caso do jornal que
prussiana", <)
escolheu pa r a combater (no Isaías Caminha) e, mais
A determinação dos problemas ideológicos e históricos vividos amplamente, do movimento florianista (contra o qual se volta
por Lima Barreto não é de modo algum tarefa externa à análise particularmente no Policarpo Quaresma). Mas essa aparente
imanente de sua obra literária; com efeito, é a partir dessa recusa "injustiça", que podia ser problemática para um dirigente
global do "modelo prussiano" - tanto em suas versões tradicionais político, não o prejudica absolutamente enquanto romancista:
quanto "modernizadoras" - que Lima figura e critica, no plano ao contrário, faz dele não um interessante "cronista" da época
ou da cidade, não um panfletário de valor relativo e transitório,
.) De qualquer modo, Lima nunca hesitou em apontar no capitalismo a origem de todos mas um dos maiores representantes da linha humanista e
os nossos males e de defender a revolução dos "maximalistas" (ou seja, dos bolcheviques),
democrático-popular na literatura brasileira.
desejando." também para o Brasil. Num arrigoescriro em maio de 1918, ele diz: "Nós,
os brasileiros, devemos iniciar a nossa Revolução Social (...) Confesso que foi a revolução
russa que me inspirou tudo isso. (... ) A face do mundo mudou. Ave Rússial (...)" (Lima
Bnrreto, BaRateias. São Paulo: Brasiliense, 1956, p. 96). Em março de 1919, volta ao 3.
rema: "Todo o mal está no capitalismo, na insensibilidade moral da burguesia, na sua
ganfinci'l sem frcio de espécie alguma, que só vê na vida dinheiro, dinheiro, morra Entretanto, apesar de intuir corretamente os problemas
quem morrer, sofra quem sofrer (...). Cabe bem aos homens de coração desejar e apelar estéticos e ideológicos da literatura da nova época, Lima nem sempre
para uma convulsão violenta que destrone e dissolva de vez esta 50cieras scclcvis de
conseguiu resolver adequadamente, em sua práxis criativa, as
políticos, comerciantes, industriaí«, prostitutas, jornalistas ad hoc, que nos saqueiam,
nos cstaimam, cmboscados atrás das leis republicanas. É preciso, pois não há outro meio tarefas que se propusera. Seria uma explicação equivocada -
de cxtcrrniná-la" iibid., p. 163-164). Sobre a ideologia de Lima, cf. o belo ensaio de diante do autor de Triste fim de Policarpo Quaresma, uma das
!\strojildo Pereira, "Posições políticas de Lima Barrero", incluído em Crítica im!Jura. Rio
de janeiro. Civilização Brasileira, 1963, p. 34-54. maiores realizações estéticas da literatura brasileira - falar em
122
Cultura e sociedade no Brasil o significado de Lima Barreto em nossa literatura 123

"falta de talento". 10 As causas dos desníveis internos que podemos dos próprios recursos para a conquista do amadurecimento
indicar na produção narrativa do romancista devem ser buscadas humano e expressivo, ou seja, carentes de uma sólida tradição
num ponto mais profundo, ou seja, naquela ausência de onde se apoiar, os realistas brasileiros - até mesmo os de maior
continuidade substancial na evolução do realismo brasileiro, grandeza - estão sempre sujeitos a esses desníveis e fraturas.
ausência que impõe uma linha fragmentária e cheia de altos e
Nesse sentido, a irregular trajetória de Lima não é um fato
baixos. Essa descontinuidade obriga o escritor a recomeçar
excepcional. O pleno amadurecimento obtido no Po/icarpo
sempre "do início", a descobrir por sua própria conta os meios
Quaresma representa um cume a dividir uma interessante e
estético-ideológicos adequados à reprodução da realidade; e,
significativa (Gonzaga de Sá, Isaías Caminha) de
via ascendente
mais que isso, ela insinua-se freqüentemente no próprio interior
um período final extremamente problemático (Numa e a ninfa, Clara
da Produção de cada escritor tornado isoladamente. Assim,
dos Anjos). Não estou negando, decerto, que o extremo isolamento
forçando um pouco a mão, poderíamos dizer que "recomeçar do
de Lima, aliado à forma autodissolvente (o alcoolismo) que
início" não vale apenas para cada escritor singular, mas até
encontrou para reagir à hostilidade crescente do meio, influíram
mesmo para cada obra singular (ou, pelo menos, para cada etapa
, de algum modo sobre essas fraturas internas, sobretudo na medida
singular na produção do escritor, como é o caso em Machado de
.!. em que contribuíram para diminuir-lhe a força criativa nos últimos
Assis). Em outro local, analisando a obra de Graciliano, mostrei
anos de vida. O que estou afirmando é que essa problemática
não apenas o evidente desnível existente entre Caetés e os
pessoal é em grande parte o efeito, na vida do escritor, daquelas
demais romances, mas indiquei também o fato de que São
tendências histórico-sociais hostis à arte, características da
Bernardo, Angústia e Vidas secas, cada um a seu modo, recriam
sociedade brasileira. Ou, em outras palavras: que tanto a problemática
f /.•• diferentes estruturas romanescas, surgidas na literatura universal
pessoal do .escritor quanto os desníveis da sua obra, sem deixarem
em épocas históricas bastante diversas. II Uma mesma defasagem,
de se influenciar reciprocamente, devem ser relacionadas enquanto
muuuis mutandis, Ocorre entre a etapa romântico-juvenil de
momentos parciais à totalidade concreta da vida social e cultural
Machado e o seu período da maturidade. Dependendo apenas
brasileira. Por outro lado, devemos recordar que, embora a plena
realização estética de Lima só tivesse ocorrido no Po/icarpo, isso não
10Em seu péssimo ensaio sobre Lima Barreto, Eugênio Gomes (Aspecws do romance brasileiro.
S<llvador: Progresso, 1958, p. 153-173) nâo se limita a defender essa tese insustentável. anula a importância e a significação - inclusive estéticas - dos
Afirma ainda que Lima seria consciente dessa sua "falta de talento", representando na demais romances do escritor carioca. Ainda que tenhamos a
ridícula figura de Floc - um cronista literário que, no [saías Caminha, se suicida ao
convencer-se de suas debilidades criativas - a própria problemática pessoal. Mas o intenção de concentrar nossa análise no Po/icarpo, aludiremos aqui
absurdo das análises de Eugênio Gomes não pára aí: nas vinte páginas do seu ensaio, brevemente às demais tentativas romanescas de Lima.
nem sequer uma vez é mencionado oPolicar}xJ Quaresma, enquanto o único texto de Lima
que, 11<lopinião do crítico, apresentaria indícios de talento literário seria ... o Gonzaga Gonzaga de Sá - publicado em 1919, mas concluído ao que
de Sá. Não me parece casual que um prerenso "machadiano", como era Eugênio Gomes, tudo indica em 1906-1907 - pode ser considerado o primeiro
preferisse o Gonzaga, nem tampouco que, a partir de suas concepções estéticas
"ínumíscas", deixasse inteiramente de lado o Policarpo. Esse ensaio pode ser tomado
romance de nosso autor. Além dos dados documentais de que
assim como um claro sintoma da incapacidade dos críticos conservadores, mesmo quando dispomos hoje, contribui para estabelecer essa cronologia a
sensíveis e inteligentes (como é o caso de Eugênio Gomes), de compreenderem e aceitarem
constatação de uma contradição interna que vemos na obra:
a obra de Lima Barreto no que ela tem de específico.
II Cf. "Graciliano Ramos", infra, p, 159. com efeito, embora já assuma no conteúdo as tarefas "participantes"
124
Cultura e sociedade no Brasil
o significado de Lima Barreto em nossa literatura 125

da literatura da nova época, Gonzaga de Sá se apresenta ainda


medida em que criavam pseudo-ações em torno dos problemas
sob a decisiva influência dos preconceitos estéticos impostos pelo
"petropolitanos" de dona Dulce e do doutor Frederico, Lima -
epigonismo machadiano, ou seja, pela idéia equivocada de que a
que evita completamente essa mistificação, mas que permanece
serenidade e o distanciamento são a única forma concreta
influenciado pelo mito da "serenidade" estilística - termina por
(independentemente do conteúdo) para o romance, ou mesmo
alcançar essa "serenidade" ao preço de abandonar qualquer
para a arte em geral. Assim, de modo certamente involuntário,
tentativa de figuração romanesca. O novo conteúdo - o marcado
Lima pagou nesse primeiro romance um pesado tributo ao "culto
protesto humanista contra a burocracia, contra as classes
machadiano" então em vigor, embora já o denunciasse _ até
dominantes, etc. - não encontra ainda uma forma adequada.
mesmo no interior de Gonzaga de Sá - como um profundo
descaminho. Temos aqui um caso, para parodiarmos o famoso É curioso constatar que Lima, embora reconhecesse
conceito de Engels e de Lukács, de "derrota do realismo". explicitamente o caráter "desequilibrado" do Isaías Caminha,
escrito quase simultaneamente ao Gonzaga, tenha preferido
Pode-se observar, ao longo de Gonzaga de Sá, a completa
publicá-lo primeiro que este último. Numa carta que escreveu
incapacidade do autor para criar uma "fábula" romanesca, para
dispor a narrativa de tal modo que o protagonista pudesse a Gonzaga Duque, em 7 de fevereiro de 1909, explicando as
explicitar na ação e através da ação os conteúdos humanos e razões dessa preferência, Lima coloca em evidência alguns
ideológicos (profundamente críticos) de sua personalidade. problemas estéticos essenciais de sua produção inicial: "Era um
Decerto, Lima já evidencia ter percebido na bizarrice _ na tanto cerebrino, o Gonzaga de Sá, muito calmo e solene, pouco
extravagância do caráter - um traço típico do peculiar modo acessível, portanto. Mandei [para publicação] as Recordações
brasileiro de reagir ao ambiente mesquinho imposto pela do Escrivão Isaías Caminha, um livro desigual, propositalmente mal
sociedade. (Essa problemática, como veremos, irá ocupar o centro feito, brutal por vezes, mas sincero sempre (... ). [Ele] tenciona
do Policar/)o.) Mas, apesar disso, ainda se revela incapaz de dizer aquilo que os simples fatos não dizem, de modo a esclarecê-
estru turar um mundo concreto no qual essa bizarrice possa se los melhor, dar-lhes importância, em virtude do poder da forma
explicitar de modo autenticamente romanesco. Para obter a literária, agitá-los, porque são importantes para o nosso destino.
aparência de "serenidade", para encontrar um estilo Querendo fazer isso e fazer compreender aos outros que há
"equilibrado", Lima deve renunciar inteiramente à figuração importância em questão que eles tratam com tanta ligeireza, eu
não me afastei da literatura, conforme [a] concebo (... )".12
de ações concretas e à estrLlturação efetivamente narrativa de
um enredo; ao contrário dos romances de Machado, onde essa Vemos aqui, como sempre, uma correta intuição de Lima: o
ação e esse enredo ocupam o posto central, no Gonzaga de Sá Isaías Caminha, ainda que "desigual", correspondia melhor não
vemos uma coleção fragmentária de comentários do autor e de apenas à própria concepção que o autor tinha das tarefas da
"opiniões" do personagem, aos quais o "cenário" exterior _ a literatura ("agitar questões importantes para o nosso destino"),
calorosa e terna descrição da cidade do Rio de Janeiro _ não mas também e sobretudo às necessidades objetivas da arte e da
consegue fornecer um quadro épico orgânico e adequado. Assim, sociedade brasileiras da época. Em suma: o Gonzaga pode ser
enquanto os epígonos de Machado simulavam a "serenidade" na
12 Lima Barreto, Correspondência, cit., tomo l, p. 169-170. Os grifos são meus.
126
Cultura e sociedade no Brasil
o significado de Lima Barreto em nossa literatura 127

considerado, apesar da novidade do seu conteúdo, como um


- na primeira parte dessa obra - constrói um rico e articulado
prolongamento epigonal da velha concepção "calma" e "solene"
mundo romanesco, colocando seu personagem em contato com
do ofício literário; o [saias, ao contrário, marca o início de uma
alguns tipos significativos do ambiente social metropolitano, os
nova etapa - especificamente moderna _ do realismo brasileiro
quais, na medida em que expressam alternativas humanas
e, graças a isso, já expressa o concreto significado de Lima
Barreto no seio de nossa evolução literária. concretas, vão educando o protagonista - no bem e no mal - a
ver o mundo sem ilusões. O romancista lança as bases de um
As Recordações do escrivão Isaías Caminha podem ser importante "romance de formação" brasileiro.
consideradas como tentativa de criar um romance brasileiro de
Nessa sua trajetória de desilusões, o jovem Isaías termina
"ilusões perdidas". Com efeito, nele Lima propõe-se figurar o
por ingressar, como contínuo, num dos principais jornais da
modo pelo qual a mesquinha sociedade da época destrói
grande cidade. Trata-se de uma excelente oportunidade para
paulatinamente os projetos de realização humana e de elevação
Lima apresentar, com um tom de devastador sarcasmo, o quadro
social do protagonista. Como Lucien de Rubempré, o personagem
humano e social da imprensa capitalista moderna. Não parece
I
I~;~
de Balzac, Isaías é um moço pobre provinciano que _ confiante
casual que Lima tenha escolhido, como fonte de inspiração
, nas promessas democráticas da época republicana e na
;, .J
para essa apresentação, precisamente o mais moderno jornal
! :: mobilidade social prometida pela ascensão do capitalismo _
( ';' dirige-se para a metrópole na tentativa de expandir sua
brasileiro da época, no qual os traços capitalistas se evidenciavam
(' :f com maior destaque, não apenas no estrito sentido técnico-
:" '~ personalidade, de {ruir adequadamente as potencialidades
l 4:':' jornalístico, mas também no que se refere à sua posição política
i pessoais que experimenta subjetivamente, E, tal como em Ilusões
!oo '",
"modernizadora". Mas o jornal tomado como modelo serve-lhe
f .'
!)erdidas, as desilusões se sucedem: não apenas a "brilhante"
apenas de pretexto para a criação de um autêntico símbolo
sociedade metropolitana vai revelando paulatinamente sua
realista: ao contrário do que afirma a maioria dos críticos,
essencial vacuidade interna, sua mesquinhez objetiva, como
essa escolha não prejudicou - antes favoreceu - a universalidade
também o mito democratizante da elevação social evidencia
concreta, o nível de particularidade realista com a qual ele
dolorosamente seu caráter meramente ideológico. E o romance
figurou o fenômeno humano e social da imprensa moderna,
de Lima introduz um elemento especificamente brasileiro nessa
Assim, Lima é capaz de perceber e evidenciar esteticamente
problemática universal das "iÍusões perdidas": as vicissitudes de
alguns dos traços mais caraterísticos da imprensa capitalista,
Isaías comprovam que as afirmações "oficiais" sobre a igualdade
tais como a intencional manipulação da opinião pública a
social dos negros brasileiros, difundidas na época republicana,
serviço de mesquinhos interesses, a corrupção e a prostituição
pós-abolicionista, escondem os mais desumanos preconceitos
de grande parte dos jornalistas, etc. Ademais, apesar do
raciais. O jovem provinciano mulato, apesar da superioridade
modo caricatural ("misto de suíno e símio", etc.) através do
que apresenta diante dos bem-nascidos que encontra, apesar
qual representa a maior parte dos integrantes do jornal, não
da sua sagacidade e inteligência, deve permanecer sempre numa
são poucas as autênticas figuras humanas, elevadas à
posição subalterna, sujeito a constantes humilhações, Com a
condição de tipos realistas, que ele nos apresenta na segunda
habilidade compositiva de um grande romancista, Lima Barreto
parte da obra.
128
Cultura e sociedade no Brasil
o significado de Lima Barreto em nossa literatura 129

Gostaríamos de recordar aqui o diretor do jornal, Ricardo


ao contrário, até aprofundando - o amplo e harmonioso realismo
Loberant, no qual se misturam sugestivamente traços de
do seu notável romance. Por outro lado, também seria errado
generosidade paternalista com uma constante tentativa de
atribuir a fratura interna do lsaias ao seu indiscutível caráter de
manipular despoticamente os seus empregados. Oscilação
roman à ele], visto que, como dissemos, Lima consegue elevar os
bastan te expressiva do caráter contraditório, simultaneamente
tipos e as situações reais ao nível de símbolos estéticos realistas.
progressista e reacionário (ou, numa palavra, "prussiano"), da
burguesia brasileira. (Nesse sentido, Loberant é um precursor As razões dessa fratura interna do Isaías Caminha devem ser
de Paulo Honório, o protagonista de São Bemardo de Graciliano buscadas, ao contrário, num defeito interno da cornposição
Ramos.) Podemos também lembrar a figura e o destino de Floc, estrutural, do qual Lima - ao referir-se a seu romance como
um medíocre colunista literário - inteiramente envolvido no sendo "desigual" - revela estar consciente: tão logo Isaías ingressa
ambiente do "intimismo à sombra do poder" - que termina por no jornal, o romancista altera inteiramente o seu foco narrativo,
encontrar no suicídio um meio de escapar à dolorosa praticamente abandonado o personagem e concentrando-se na
autoconsciência de sua mediocridade. Em suma: não apenas na apresentação dos bastidores do jornal. Por um lado, a evolução
figuração de alguns tipos, mas inclusive na explicitação das de Isaías não mais se processa, na segunda parte da obra, em
características humanas e sociais da imprensa moderna, o Ísaias orgânica relação com a realidade social objetiva; ele se torna
Caminha alcança um alto nível de realismo, de universalidade um quase espectador dos eventos, não sendo assim casual que o
estética. seu destino final - ou seja, sua completa desilusão pessimista
diante do mundo - decorra praticamente de uma crise de
Mas, apesar disso, o romance não consegue elevar-se, no
melancolia puramente subjetiva, que coincide (de modo
conjunto da composição, à totalidade orgânica que caracteriza
paradoxal) com o momento no qual obtém, graças à
a grande arte épico-narrativa. Em sua cuidadosa biografia do
"generosidade" paternalista de Loberant, a tão ambicionada
romancista, Francisco de Assis Barbosa observa argutamente:
ascensão social. E, por outro lado, a figuração da vida no jornal
"Da história do fracasso de um rapaz de cor, inteligente, bom e
- apesar dos momentos típicos e realistas que apresenta _
honesto, enfim, com todas as qualidades para vencer na vida, o
termina, em última instância, por se tornar a mera descrição
livro como que se transforma, do meio para o fim, num verdadeiro
naturalista de uma objetividade morta, na exata medida em
panfleto contra a imprensa da época, em contraste, até certo
que aparece como simples cenário exterior desligado da ação
ponto chocante, com o desenvolvimento harmonioso dos
do protagonista. Ao invés da firme integração épico-narrativa
primeiros capítulos"." Esse caráter desarmonioso, porém, não
entre o herói e o mundo, que vemos no citado romance de Balzac
reside tanto no modo "panfletário" pelo qual Lima desmístífica
(assim como no romance realista em geral), temos no Isaías
impiedosamente o fenômeno social da imprensa moderna; em
Caminha uma fratura com positiva que prejudica essencialmente,
Ilusões perdidas, Balzac realiza uma desmistificação similar, talvez
sobretudo em sua segunda parte, a verdade estético-humana e
ainda mais implacável, sem com isso comprometer em nada _
o poder evocativo do romance.
li Francisco de Assis Barbosa, A vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro: Civilização Isso não significa, todavia, que esse romance de estrela
Brasileira, 1964, p. 251.
represente, como é o caso do Gonzaga de Sá, um completo
130 Cultura e sociedade no Brasil o significado de Lima Barreto em nossa literatura 131

fracasso. No quadro de uma literatura objetivamente pobre, da bizarrice, aludida a propósito da interessante figura de
como a nossa, o [saías - ao colocar com profundidade realista Bogóloff. Todavia, muito mais que o Isaías Caminha, esse folhetim
alguns problemas decisivos da nossa vida social em sua nova ressente-se dos defeitos do roman à eleJ, de uma vinculação
fase - desempenha um destacado papel na formação de uma demasiadamente estreita aos "eventos do dia", aproximando-se
autoconsciêncía estética brasileira efetivamente nacional-popular. bem mais de uma reportagem satírica dos costumes políticos da
Além disso, nunca será demais insistir sobre a sua fecunda novidade, época do que de uma autêntica figuração romanesca do real.
e não apenas estilística, no quadro de nossa evolução literária; O seu interesse, assim, é puramente documental.
com o Isaías, pela primeira vez, surge na literatura brasileira Já Clara dos Anjos - onde o autor resume numa novela suas
uma criação estética valiosa e moderna, isto é, adequada aos
ambições juvenis de um amplo romance histórico sobre os
novos tempos, na qual a vida social é representada à luz de uma
problemas raciais do povo brasileiro, que chegara a conceber
perspectiva ideológica concretamente nacional-popular." como um Germinal negro - apresenta uma problemática diversa.
Todavia, é inegável que a primeira tentativa de Lima no sentido Parece que Lima o projetou como uma das suas obras mais
de elaborar o novo estilo exigido pela época - um estilo "participante",
importantes, nela colocando todo o seu ódio plebeu contra a
"antiartístico", "brutalmente" realista - não alcança plenamente
injustiça, o calor do seu generoso pathos de solidariedade aos
o justo termo médio aristotélico entre as "exigências do dia" e humilhados e ofendidos. Mas, apesar do profundo interesse
as leis estéticas universais da grande arte.
humano da novela, centrada sobre a sedução de uma jovem de
Isso aconteceria, como já dissemos, no Policarpo Quaresma. cor por um personagem branco e rico, é impossível considerá-Ia
Mas, antes de analisarmos esta obra-prima mais de perto, corno uma realização estética bem sucedida; Lima perde-se
gostaríamos de fazer algumas breves observações sobre as duas frequentemente na simples acusação, o que o impede de criar
mais ambiciosas produções do último período de Lima (posteriores tipos humanos autênticos. A figura de Cassi, por exemplo, na
ao Policar!Jo), ou seja, Numa e a Ninfa e Clara dos Anjos. Publicado qual se centra a novela, não consegue atingir o poder de
em folhetins num jornal da época, Numa e a Ninfa pretende convicção literária, já que se trata de mera caricatura, incapaz
desmistificar os figurões da Primeira República, denunciando o de ganhar autonomia diante do demolidor ódio que o romancista
modo covarde e mesquinho pelo qual capitularam diante das experimenta contra ele. Clara, por sua vez, aparece como urna
pressões militaristas contidas na candidatura Hermes da Fonseca; vítima indefesa, sem afirmar em nenhum momento urna
muitos dos seus temas, ademais, são retomados claramente do interioridade própria, uma autenticidade humana convincente.
Poucaip«, como é o caso do combate ao bonapartismo militarista Uma concepção rnaniqueísta do mundo atravessa a novela,
e à insensatez burocrática, para não falarmos na problemática prejudicando decisivamente o seu nível de realismo. Há, porém,
urna figura que - pelo seu poder evocativo - eleva-se sobre as
1·1 Que me seja permitida uma comparação anacrônica: apresentando desequilíbríos demais: a digna figura do bizarro Marramaque. Como vemos,
estéticos similares, o romance Quarup, de Antônio Callado, publicado em 1966,
apresenta um" importância e possui um significado do mesmo tipo que os do lsaías, na desde Gonzaga de Sá até Clara do Anjos, passando sobretudo
medida em que assinala o reinício de uma nova etapa realista em nossa literatura, pelo Policarpo, o tema da bizarrice desempenha um papel decisivo
situando-se em clara oposição a um período marcado pela influência das versões
"vanguardistas" do velho "intimismo à sombra do poder".
no universo estético de Lima. Mas o que significa exatamente,
132 Cultura e sociedade no Brasil o significado de Lima Barreto em nossa literatura 133

tanto no plano social objetivo quanto na obra de Lima, essa que se torna humanamente necessária) não pode ultrapassar -
questão da bizarrice? É o que tentaremos esclarecer agora, por causa de sua incompatibilidade socialmente determinada -
analisando mais de perto a sua obra-prima. os limites de uma interioridade abstrativa mais ou menos
deformante. Disso decorre que o caráter desemboca na
4. excentricidade, na extravagância" .15

Antes de mais nada, cabe afastar alguns possíveis equívocos: Pode-se já constatar como a descoberta e a figuração da
a transformação da bizarrice em leitmotiv, ao longo de toda a problemática da bizarrice indicam a profundidade com que Lima
obra de Lima Barreto, não expressa uma simples preferência penetrou no âmago da realidade social brasileira, criticando em
pessoal elo autor, algo como uma idiossincrasia; tarnpouco pode sua atividade romanesca as específicas deformações humanas
ser vista, ao modo dos defensores do caráter "memorialista" da decorrentes da "via prussiana" seguida pelo Brasil. Mais que
produção do romancista, COlT10 a imediata transposição para a isso: a figuração das deformações bizarras da ação humana, que
obra de uma experiência pessoal. Não há dúvida de que a ocorrem necessariamente nesse quadro histórico-social
personalidade de Lima - como se pode ver não apenas em seu "prussiano", indicam o modo peculiar através do qual Lima
modo extravagante de tentar conservar a dignidade pessoal, alcançou uma expressiva vitória do realismo. Com efeito, no
mas também na sua singular e contraditória ideologia política _ seio de uma realidade marcada pela fragmentação nacional,
apresenta alguns traços marcadamente bizarros. Mas não é difícil pelo caráter "espontâneo" das transformações sociais, as ações
perceber que essa bizarrice pessoal de Lima é somente a humanas significativas - capazes de simbolizar esteticamente a
expressão, na vida do escritor, de um fenômeno social, objetivo essência da realidade - tendem a assumir formas extremamente
mais amplo. A expressão literária desse fenômeno, assim, decorre peculiares, muitas vezes bizarras, requerendo do romancista que
cio profundo realismo do autor do Policarpo (de sua figuração as quer descobrir e representar uma grande sensibilidade
estética da realidade objetiva) e não de uma abstrata tendência artístico-ideológica. Diante dessas dificuldades, deveriam.
ao autobiografismo. capitular em maior ou menor medida, como vimos, os
Será útil definirmos, desde logo, o fenômeno que aqui nos românticos (que se refugiaram numa "ação" mítíca puramente
interessa. E, para fazê-lo, recorreremos a Lukács: "Com efeito, a subjetiva) e os naturalistas (que substituem a ação pelo
bizarrice é uma certa adaptação, que se faz no interior elo sujeito "ambiente" fetichizado). Por outro lado, as vitórias do realismo
e que decorre das possibilidades de prática social própria que obtidas por Manuel Antônio de Almeida e por Machado de
lhe é permitida pela ordem. específica da realidade. Mais Assis basearam-se em meios expressivos que já não podiam
corretamente: decorre do fato de que, se um homem pode se servir aos propósitos específicos (historicamente determinados)
revelar capaz, em seu foro íntimo, de enfrentar a transformação que norte aram a práxis criativa de Lima Barreto.
negativa das formas fenomênicas dadas de uma sociedade ( ... ), Já observamos como a época da Primeira República,
de modo tal que sua integridade interior, ameaçada por tais acentuando os impasses e os limites estruturais da "via prussiana",
formas, consiga resistir à prova, se isso ocorre, então a conversão
dessa recusa num prática social propriamente dita (conversão I; Georg Lukács, Soljenitsyne. Paris: Gallimard, 1970, p. 122-123.
Cultura e sociedade no Brasil o significado de Lima Barreto em nossa literatura 135
134

impusera o abandono das formas estilístico-narrativas de Almeida superada "para cima", no sublime, como ocorre no Quixote, ou
ou de Machado. A necessidade de criar um novo realismo, "para baixo", na mera patologia individual, como em muitos
fundado clara e diretamente na crítica social, impôs a Lima a romances naturalistas; mas que pode também constituir, como
tarefa de encontrar, no seio da realidade brasileira, uma forma no citado romance de Dostoiévski, nas obras de Soljenitsin, no
de ação que se revelasse objetivamente contrária ao modelo de Opiniões de um clown de Heinrich Bõll ou na obra-prima de
desenvolvimento dominante, mas que conservasse simultaneamente Lima Barreto, um correto particular dialético de tipo simbólico-
a sua tipicidade, ou seja, que correspondesse a uma possibilidade realista.)
social concreta e não a um desejo subjetivo do escritor. Pela A bizarrice aparece assim, para empregarmos a terminologia
descrição de Lukács, vimos que a bizarrice representa uma do jovem Lukács, como um modo peculiar de manifestação do
manifestação peculiar do caráter humano, decorrente da "herói problemático", ou seja, daquele herói que busca valores
necessidade (livremente adotada) de atuar objetivamente num autênticos em um mundo degradado, mas que, precisamente
meio social cujas formas fenomênicas obstaculizam ou impedem por causa dessa degradação objetiva, relativiza ou deforma os
a atividade autônoma comunitariamente respaldada, isto é, próprios valores autênticos que norte iam subjetivamente sua
; ,~.
a atividade capaz de explicitar sem conflitos o núcleo humano ação.'? É precisamente através dos seus traços bizarros que
t ,; do agente. A bizarrice, assim, é um modo peculiar pelo qual se Policarpo Quaresma eleva-se à universalidade concreta do
f '~ manifesta a incapacidade - histórica e socialmente determinada autêntico tipo romanesco realista, ou seja, converte -se em "herói
1;! - de adequar esse núcleo humano subjetivamente preservado a problemático" . E Lima obteve essa elevação, essa correta realização
t o'-j

{ 'S
r
i ,í'
um mundo social objetivamente alienado. Em sua luta para das leis estéticas do gênero romanesco, na exata medida em que
~~ conservar a autenticidade subjetiva sem isolar-se completamente o seu tipo expressava adequadamente, simbolicamente, uma
F "'
do mundo, o bizarro sofre uma deformação de personalidade relação humano-social específica e peculiar da realidade
que o aproxima da extravagância, da excentricidade, até mesmo brasileira. Enquanto tipo bizarro, Policarpo Quaresma torna-se
da patologia. Desde o Dom Quixote de Cervantes até os principais o símbolo das contradições humanas impostas pela "via prussiana"
romances de Soljenitsin ou de Heirinch Bõll, passando por seguida pelo Brasil: através da figuração do seu "triste fim", Lima
O idiota de Dostoiévski, essa,possibilidade de deformação bizarra concretiza - com meios especificamente artísticos - uma
da personalidade ocupa um destacado papel no mundo da demolidora e implacável crítica àquela sociedade que condena
figuração romanesca. Mais que isso: nos casos em que a ao ridículo, à extravagância e à bizarrice as mais profundas e
defasagem entre interior idade e exterioridade assume formas autênticas inclinações do nosso povo no sentido da realização
extremadas, o que ocorre nas épocas de intensa alienação social, humana e, mais concretamente, da realização humana através
é quase inevitável que o romance realista - fundado na da participação criadora no melhoramento da sociedade.
representação de ações significativas em relação com o mundo O invulgar talento que Lima evidencia no Policarpo não se
objetivo - assuma, na configuração dos seus personagens, a revela apenas nessa sua apreensão da bizarrice como tema
representação de comportamentos mais ou menos bizarros.
(É evidente que a bizarrice é uma ampla faixa que pode ser 16 Georg Lukács, La théorie du romano Genebra: Gonthier, 1963,
136 Cultura e sociedade no Brasil o significado de Lima Barreto em nossa literatura 137

privilegiado de um romance crítico-realista especificamente é evidente que essa "totalidade de objetos" não pode ser figurada,
brasileiro. Essa apreensão já aparece no Gonzaga de Sá, sem impedir como supõe o naturalismo, através de uma catalogação extensiva
que esse projeto de romance, apesar do seu interesse documental, de todos os seus traços. O romance realista deve selecionar os
represente objetivamente um completo fracasso estético. Esse momentos significativos, hierarquizando-os em função da específica
talento revela-se, sobretudo, na habilidade com que Lima problemática humana típico-simbólica que pretende abordar; com
constrói agora o quadro épico-narrativo da ação do seu tipo essa seleção e hierarquização, o mundo criado no romance pode
bizarro, cumprindo assim, simultaneamente, as duas exigências elevar- se à condição de "microcosmo", de símbolo evocador de
básicas do gênero romanesco; por um lado, essa relação com o uma totalidade intensiva de relações humanas. Ora, esses
mundo objetivo explícita, tanto em sentido positivo quanto procedimentos seletivos de composição estão na base do Po!icarpo;
negativo, o núcleo subjetivo do herói, ou seja, no caso concreto, com efeito, o que interessa a Lima, na totalidade extensiva da
aquela complexa dialética pela qual a bizarrice, surgida sociedade brasileira, são aquelas conexões capazes de expressar,
subjetivamente a partir da luta para conservar o núcleo da do modo mais significativo possível, os traços do "modelo
personalidade, desemboca objetivamente - num movimento que prussiano" que pretende combater. Esquematizando um pouco,
vai da comicidade à mais profunda tragicidade - no completo poderíamos dizer que essas conexões expressivas, tal como se
;~ esfacelamento desse núcleo; e, por outro, com a construção desse configuram no universo do Po!icar!Jo, são a burocracia (que aparece
~ quadro épico, Lima nos apresenta a "totalidade de objetos" que concretamente, no romance, não apenas na representação do
,I
3 Hegel e Lukács apontam como exigência da representação mundo das repartições burocráticas, mas também através das
~ romanesca do mundo, ou seja, apresenta aquele quadro humano- defonnações que esse mundo impõe a vários personagens
~
•...
institucional no qual e através do qual ganha conteúdo e sentido, secundários) e o militarismo (ou, mais propriamente, aquela
no bem como no mal, a interioridade do herói. A ausência dessa manifestação de "transformação pelo alto", sem participação
"totalidade de objetos" é a principal razão do fracasso do Gonzaga popular, que é representada aqui no movimento florianisra). Tanto
de Sã, dado que - ao limitar-se à descrição dos aspectos subjetivos a burocratização quando a "transformação pelo alto" são formas
de bizarrice - essa obra converte esse traço humano em algo sociais voltadas para a eliminação das massas populares na criação.
puramente singular, incapaz de simbolizar a realidade concreta; da história: aparecem assim como expressões ernblernáticas da
e no outro extremo, a autonomização dessa "totalidade de "via prussiana", da "revolução passiva", e, desse modo, manifestam-se
objetos" em face da trajetória do herói, que vemos ganhar corpo também, de forma acentuada e típica, na vida social brasileira.
na segunda parte do lsaias Caminha, pode ser apontada como a Já no início do romance, Lima nos apresenta a figura do
causa estético-estrutural do caráter problemático desse Major Policarpo como a de um homem que, incapaz de explicitar
importante e significativo romance. seu núcleo no vazio mundo burocrático em que é forçado a viver,
No Triste fim, ao contrário, encontramos a síntese orgânica do desenvolve no isolamento de sua subjetividade um profundo
herói e do mundo, da ação individual representativa e da "totalidade amor pelo seu país, um profundo desejo de empregar seus talentos
de objetos", síntese que aparece como condição estética básica da e capacidades a serviço do progresso nacional. Assim, ironizado
vitória do realismo no romance. Mas cabe ainda uma concretização: pelos que querem "levar ao ridículo aqueles que trabalham em
138 Cultura e sociedade no Brasil o significado de Lima Barreto em nossa literatura 139

silêncio para a grandeza e a emancipação da Pátria", 17 o herói assume traços objetivamente degradados. Já nessa primeira parte,
de Lima Barreto vai "levando a vida, metade na repartição portanto, assistimos aos momentos iniciais da crítica humanista que
[burocrática], sem ser compreendido, e a outra metade em casa, Lima faz da bizarrice, uma crítica que - sem ocultar as qualidades
também sem ser compreendido". Suas melhores qualidades humanas preservadas pela bizarrice - indica os seus limites
humanas, a inteireza de caráter e um profundo desejo de participação essenciais. Trata-se, mais que de uma crítica, de uma profunda
social, conseguem se manter incólumes diante daquilo que Lukács auiociitica, fundada na tentativa democrática de compreender a
chamou de "transíormaçâo negativa das formas fenomênicas dadas razão dos fracasses em que têm culminado as melhores ações do
da sociedade"; mas o preço dessa manutenção, precisamente povo brasileiro. Ao contrário, a crítica de Lima à burocracia -
por causa do isolamento da personalidade (obrigada a se ocultar que também já se expressa na primeira parte do romance - é
por trás dos papéis sociais objetivos impostos pela vida burocrática), simples e direta: a burocracia é apresentada como força social
esse preço é a deformação bizarra daquelas qualidades. Desligado essencialmente contrária ao humano, como um elemento próprio
do contato criador com a realidade, incapaz de explicitar-se do mundo da alienação. Não é casual que, enquanto a crítica à
numa práxis social adequada, o !Jathos nacional-popular de burocracia assume estilisticamente a forma do sarcasmo, a
Policarpo assume a forma extravagante de um nacionalismo autocrítica da bizarrice pode ser expressa através do humor.
, fanático, ufanista, fundado em mitos romântico-reacionários.
~ Voltando à figura de Policarpo, podemos ver como a sua
"J Ainda que sem jamais pôr em dúvida a retidão subjetiva do primeira tentativa de converter o bizarro núcleo interior em ação
...;,~ seu personagem, Lima Barreto dissolve no humor os elementos objetiva imediatamente social (a proposta de adoção do tupi-
.
.j' equivocados
essa crítica
desse nacionalismo.
autenticamente
O importante
democrática
é ressaltar
ao falso nacionalismo
que guarani como língua nacional) desemboca no absoluto fracasso
tragicômico. Rompe-se o seu precário equilíbrio, até então
ufanista assumido por Policarpo é realizada com meios assegurado por seu isolamento, pela redução do personagem aos
especificamente estéticos, ou seja, através da figuração narrativa limites de um "pequeno mundo" puramente pessoal: essa ruptura
de SU8 completa inadequação à realidade (que assume leva Policarpo às portas da loucura, da patologia. Porém, graças
estilisticamente a forma do humorismo); essa inadequação culmina aos seus recursos interiores e à solidariedade de um reduzido
na proposta, claramente bizarra, de adoção do tupi-guarani como círculo de amigos e parentes, ele retoma rapidamente o seu
língua nacional brasileira. Deve-se observar que, na representação equilíbrio psicológico perdido. Mas essa "cura" de Policarpo,
dessa ambivalêncía do herói, expressa nacontraditoriedade entre como a de Dom Quixote no início do romance cervantino, é
suas corretas intenções de participação social e os conteúdos apenas aparente: a sua fuga no campo não impede o prosseguimento
equivocados que ela assume, Lima figura aquele elemento da dialética da bizarrice, a qual, pouco depois, iria conduzi-lo
"problemático" assinalado por Lukács na personalidade dos heróis novamente à ação e, mais uma vez, à ruptura - desta feita
romanescos, nos quais a busca de valores autênticos, em função definitiva - de seu superficial equilíbrio. Com excepcional
da solidão e do isolamento a que são socialmente condenados, talento compositivo, Lima utiliza esse período da tentativa de
"cura" para ampliar decisivamente a figuração crítica da
17 Salvo indicação em contrário, todas as citações daqui para a (rente são extraídas de
"totalidade de objetos" na qual se processa ação do herói.
Lima Barrcto, O trislC fim de Policar/JoQuaresma. São Paulo: Brasiliense, 1956.
140 Cultura e sociedade no Brasil o significado de Lima Barreto em nossa literatura 141

Tão logo abandona o hospício, o Major Policarpo, aconselhado de "um governo forte até a tirania". Em outras palavras: o major
pela afilhada, resolve instalar-se no campo. Mas a manutenção "descobrira" - e, em sua bizarrice, assumira com um exacerbado
da bizarrice revela-se desde o início: enquanto a afilhada pathos subjetivista - a problemática da "revolução pelo alto", ou
supunha que a ida para o campo iria afastá-lo de seus antigos seja, da típica modalidade de transformação social nos países que
propósitos, Policarpo aproveita a oportunidade para pôr novamente seguem a "via prussiana". Essa modalidade implica a crença de
em prática suas teses nacionalistas abstratas. Pretende demonstrar que alguns indivíduos excepcionais, ou quando muito uma elite
de modo concreto as "maravilhas" do solo brasileiro, pois - tal esclarecida, podem substituir - enquanto sujeito histórico - as massas
como os ufanistas - está convencido de que temos uma terra na populares, que se supõe condenadas à apatia e à ignorância. Não
qual "em se plantando tudo dá". Paulatinamente, porém, esse há dúvida de que essa "solução" aparece e se difunde, muitas
nacionalismo ufanista - em contato com a prática concreta do vezes, entre círculos "progressistas"; no plano objetivo, contudo,
trato da terra - começa a sofrer importantes alterações: o major ela reforça a continuidade da "via prussiana", na medida em
não apenas descobre a falácia objetiva dos mitos ufanistas, como que conserva o povo afastado das grandes decisões histórico-
começa a descobrir também, o que é mais importante, as causas políticas. Trata-se, em suma, apesar das eventuais aparências
,
. reais do atraso brasileiro. Assim, enxerga com clareza o problema em contrário, de uma solução reacionária e antipopular .
social da terra: "E a terra não era dele [de quem a trabalhava]. É evidente, porém, que Policarpo - como muitos dos
!~

~ Mas de quem era então, tanta terra abandonada que se encontrava integrantes do movimento florianista - não tem clara consciência,
~':..:;
~ .;1 por aí! Ele vira até fazendas fechadas com as casas em ruínas ... num primeiro momento, dessas limitações essenciais do
,{ ~
i, ..í: '
Por que esse acaparamerito, esses latifúndios improdutivos:" "despotismo iluminado". Movido pela coerência e retidão subjetivas
Além disso, descobre que as instituições jurídicas consagram e do seu caráter bizarro, o major não hesita em passar imediatamente
defendem o latifúndio: "Aquela rede de leis, de posturas, de à ação concreta, tão logo elabora suas novas posições. Uma
códigos e de preceitos, nas mãos desses regulotes, de tais caciques aparente coincidência - mas que Lima explora corno elemento
se transformavam em potro, em polé, em instrumento de suplícios estrutural rigorosamente necessário no quadro do romance -
para torturar os inimigos, oprimir as populações, crestar-lhes a iniciativa permite-lhe essa passagem: a sua "segunda incursão" no mundo
e a independência, abatendo-as e desmoralizando-as". da ação processa-se agora no seio do amplo quadro histórico-
Mas, embora já perceba alguns elementos essenciais da social definido pelas lutas entre o movimento florianísta (que
problemática social brasileira, a visão do mundo de Policarpo está defendia a República recém-instaurada) e os membros rebela dos
longe de libertar-se das deformações impostas pela sua bizarrice e da Armada (que se punham a favor da monarquia). Policarpo
pelo seu isolamento (no plano subjetivo) e pela "prussianização" julga descobrir em Floriano o Henrique IV brasileiro, ou seja, o
da sociedade brasileira (no plano objetivo.) Em vez de enxergar déspota iluminado capaz de promover a "revolução pelo alto"
num caminho democrático-popular, numa autêntica transformação necessária ao progresso social da Pátria. Sem a tentar para
"a partir de baixo", a solução para os problemas que agora percebia, mesquinhos interesses egoístas ou para sua comodidade pessoal,
Policarpo - em função de sua falta de vinculações concretas o major - cheio de novas esperanças e ilusões - dirige-se ao
com a vida social - começa a se tornar entusiástico defensor telégrafo e escreve: "Marechal Floriano, Rio. Peço energia. Sigo já.
142 Cultura e sociedade no Brasil o significado de Lima Barreto em nossa literatura 143

- Quaresma". Essa feliz passagem humorística não deve ser vista coerentemente nem mesmo os preconceitos ideológicos que
como uma simples boutade: o modo pelo qual Policarpo manifesta defendem e difundem. Esse modo especificamente romanesco de
sua adesão ao florianismo é o meio estilístico encontrado por criticar as ideologias dominantes não é uma peculiaridade de
Lima para evidenciar, com notável força plástica, a continuidade Lima: em seus romances, Balzac e Stendhal- para ficarmos apenas
da bizarrice como traço ainda dominante na nova fase de em exemplos maiores - efetuam uma crítica semelhante, na
atuação objetiva que se abre para o personagem. medida em que mostram como a sociedade do capitalismo
Neste ponto, seria interessante chamar a atenção para um individualista deve condenar ao fracasso todos os personagens
elemento do romance, bastante expressivo da aguda sensibilidade que assumem o individualismo, de modo amplo e conseqüente,
estético-ideológica de Lima: tanto em seu nacionalismo ufanista como norma vital e como conteúdo da ação. Lavando as
quanto em sua adesão à "revolução pelo alto", o Major Policarpo contradições da ideologia nacionalista abstrata ao seu paroxismo,
apenas radicaliza - de modo bizarro - os elementos ideológicos Policarpo Quaresma torna-se uma encarnação viva da insensatez
degradados da realidade que o envolve. O que o diferencia humana da "via prussiana" seguida pelo povo brasileiro.
radicalmente dos personagens "médios" do romance, ou seja, Mas voltemos às vicissitudes do nosso personagem ..
dos conformistas e dos acomodados, é o fato de que ele assume A participação de Policarpo no movimento florianis ta é uma
tais elementos com radical sinceridade subjetiva, com completa trajetória de desilusões, explicitando amplamente a dialética
coerência, não hesitando em conduzi-los às últimas instâncias. entre a bizarrice subjetiva e a ação objetiva no mundo social:
O nacionalismo ufanista, nos burocratas, era apenas a capa a integridade do personagem. choca-se duramente com as
ideológica para cobrir hipocritamente o atraso social objetivo "acomodações" do meio. A bizarrice, tratada por Lima no nível
da Nação; em Policarpo, ao contrário, torna-se uma crença do humor, vai convertendo-se paulatinamente numa dolorosa
profunda, que o leva a propor o tupi-guarani como língua consciência trágica, tal como sucedera outrora ao Cavaleiro da
nacional brasileira. O mesmo se pode dizer do florianismo: Triste Figura. Muito cedo, Policarpo desilude-se com a eficácia
enquanto a maioria dos seus aderentes visa apenas a objetivos da "revolução pelo alto". Cheio de esperanças, o major elaborara
egoístas, Policarpo o assume como o real caminho para a "salvação um memorial sugerindo medidas concretas para enfrentar os
da Pátria". A bizarrice, portanto, não reside tanto no conteúdo problemas nacionais, sobretudo os agrários; mas, ao expor
das posições de Policarpo (que são, na verdade, elementos pessoalmente seus projetos ao Marechal-Presidente, este -
ideológicos próprios da realidade contra a qual se choca), mas tomado pelo "aborrecimento mais mortal" e revelando urn espírito
sim na forma pela qual tais elementos são assumidos. Essa profundamente antipopular ("mas pensa você, Quaresma, que
similaridade de fundo entre Policarpo e a sociedade ainda mais eu hei de pôr a enxada nas mãos de cada um desses vadios?") -
acentua a crítica radical implícita no romance de Lima: a termina por definir secamente o seu então entusiástico partidário
radicalização das ideologias dominantes através da bizarrice do como um simples "visionário".
major não revela apenas a falácia objetiva delas, o seu caráter de E as decepções se acentuam, culminando no momento em
meras ideologias, mas também acentua a hipocrisia burocrática que Policarpo, já convencido da insensatez no movimento de
dos personagens conformistas, que não são capazes de assumir que fazia parte, assume conscientemente o risco de denunciar
144
Cultura e sociedade no Brasil o significado de Lima Barreto em nossa literatura 145

abertamente, numa carta ao Presidente, o massacre dos marinheiros parte do "herói problemático" do caráter ilusório de sua busca
revoltosos. Nesse momento, sua ação e sua personalidade superam solitária de valores autênticos num mundo (Iegradado - não é
os quadros da bizarrice, conservando dessa - o que não é casual apenas uma singularidade de Policarpo Quar. sma. Trata-se, ao
- tão-somente a correção e a retidão interiores. Lima revela contrário, de uma característica estrutural permanente do gênero
aqui, com profundo realismo, a complexa dialética da bizarrice: romanesco, como podemos ver não apenas no Quixote, mas
a extravagância como forma solitária de conservar o núcleo também nas obras de Balzac, Stendhal, Dostoiévski, Thomas
humano revela os seus limites essenciais no exato momento em Mann, etc. Porém, através desse elemento formal, Lima pôde transpor
que - sem alteração da estrutura bizarra e, conseqüentemente, para o seu universo romanesco um importante conteúdo de sua
do isolamento em face de qualquer sujeito social efetivamente visão do mundo: aquele amplo internacionalismo humanista
comunitário - passa-se ao domínio da ação objetiva no "grande que, embora de fundo anárquico-libertário, permitiu-lhe assumir
mundo" da vida social. Nesse momento, a bizarrice pode uma posição correta diante da Primeira Guerra Mundial (cujo
converter-se em simples patologia (como ocorre em O idiota de conteúdo imperialista enxergou com clareza) e da Revolução
Dostoiévski) ou em tragédia (é o caso do Policarpo Quaresma). Socialista de 1917 (que saudou com entusiasmo).
Ao abandonar a ação romanesca em troca da "serenidade" do Do ponto de vista imediato, a crítica de Lima à realidade
,.'~ estilo, o Gonzaga de Sâ não pudera figurar essa dialética. No social brasileira concentra-se no movimento florianista. Coloca-se
~ Policarpo Quaresma, ao contrário, onde a explicitação da bizarrice
:~
'1 processa-se em ligação orgânico-narrativa com a "totalidade
aqui uma importante questão: até que ponto é historicamente
,~
)
justa a caracterização do florianismo (e, em particular, do próprio
~ dos objetos", a verdade estética e a verdadedo conteúdo humano
•.. Marechal Floriano) empreendida por Lima? Antes de mais nada,
encontram uma exemplar síntese realista .
••.
' ri
é preciso repetir algo bem conhecido: a verdade poética, que
Essa dialética da bizarrice articula-se assim, no romance de eleva os eventos ao nível da universalidade concreta, do símbolo
Lima, com uma dernolidora crítica social das misérias e dos evocador da autoconsciência humana, não se identifica
impasses humanos da sociedade brasileira. A autocrítica de me cani carnen te com a verdade historiográfica. Como já
Policarpo - expressa não apenas na patética carta à irmã Adelaide, Aristóteles observara, não interessa ao artista o que efetivamente
mas sobretudo em suas reflexões finais antes de ser executado _ ocorreu, a singularidade em sua nudez factual, interessa-lhe
converte-se numa violenta acusação à realidade social "que se sobretudo o que poderia - e, dadas certas condições, até mesmo
vai fazendo inexoravelmente, com sua brutalidade e fealdade". deveria - ter ocorrido. Em outras palavras: a arte autêntica não
Embora já demasiadamente tarde, Policarpo descobre no fim do H figura a realidade imediata, mas sim o "verossímil", aquilo que
romance - tal como Quíxore - que norte ara a sua vida por uma il
/:i, Hegel chamou de "possibilidade objetiva", que é um modo
il usào: o seu fanático nacionalismo ufanista, como ele agora f' ontológico mais essencial e mais profundo da realidade como
compreende, baseava-se num mito, em um conceito de pátria um todo. Por outro lado, a grande arte não apenas reproduz o
f
que "certamente era uma noção sem consistência racional e que real, como ocorre nas ciências (inclusive na história), mas também
precisava ser revista". Essa tardia autoconsciência da inutilidade - e simultaneamente - avalia e julga a realidade a partir de um
dos próprios esforços - ou, em outras palavras, a compreensão por ponto de vista genericamente humano (histórica, classística e
146
Cultura e sociedade no Brasil
o significado de Lima Barreto em nossa literatura 147

nacionalmente determinado). Assim, quando um fato histórico


universal, o florianismo não apresentou nenhuma ruptura
aparece em uma obra de arte, o que interessa não é saber se os
seus detalhes estão fielmente reproduzidos, mas sim até que ponto essencial com a "via prussiana" antidemocrática seguida pelo
o artista representou corretamente a relação entre o fato nosso país; além de não tocar na questão do monopólio da terra,
histórico (entendido em sua dimensão essencial, universal que era na época a base da dominação oligárq uica de tipo
concreta) e o desenvolvimento do gênero humano (da classe, prussiano, tampouco criou os elementos necessários para
da nação, etc., através das quais esse gênero se concretiza encaminhar uma efetiva participação popular na vida pública
historicamente) . brasileira. Mais que isso: com O florianismo, inaugurou-se entre
nós uma nova variante do "caminho prussiano", da "transformação
Tomemos um exemplo concreto: é evidentemente "injusta",
pelo ato") ou seja, o militarismo aberto, Como muito poucos na
do ponto de vista biográfico-historiográfico, a caracterização que
época, Lima enxergou plenamente os perigos dessa variante.
Tolstói nos apresenta, em Guerra e Paz, da figura de Napoleão
Logo após o Po/icarpo, voltaria a denunciar asperamente o
Bonaparte. O general que conquistou a Europa e consolidou as
militarismo em Numa e a ninfa, tomando já aqui como pretexto
aquisições essenciais da Revolução Francesa não poderia,
:,~ a candidatura presidencial de Hermes da Fonseca, (No mesmo
~, evidentemente, ter sido aquela mesquinha figura que André
'~ :k l sentido, deve ser entendida a sua adesão política à campanha
Bolkonski contempla. Todavia, isso não anula a verdade superior
~':; "civilista" de Rui Barbosa). Assim, ao "esquecer" os eventuais
p dessa caracterização, se a analisarmos no contexto estético-
,. '\ lados positivos do florianismo e ao concentrar-se na representação
p humano da obra de Tolstói; essa verdade decorre da justeza
n essencial da posição tolstoiana, expressa esteticamente ao longo
de sua essência antidemocrática, Lima estava expressando, como
c~
"
'.
.11' fi do romance, segundo a qual o verdadeiro sujeito da história, o
Tolstói no caso de Napoleão, uma verdade humana superior:
combatendo o movimento florianista, o escritor combatia - com
real criador dos valores humanos, não é o "indivíduo superior",
um pressentimento histórico-universal digno de um grande realista
mas sim a própria comunidade popular em movimento. Assim,
- os impasses e as deformações humanas geradas por essa variante
à luz do desenvolvimento do gênero humano, bem como das leis
militarista da "via prussiana". (Seria um equívoco entender o
estéticas que expressam esse desenvolvimento, aquela "diminuição"
antiflorianismo de Lima, como alguns já o fizeram, ligando-o ao
de Bonaparte aparece como uma .'
colocação correta e fecunda.
suposto mas jamais comprovado "monarquisrno" do escritor.)
Se avaliarmos o Policarpo em nome de uma mesquinha
Mas, embora esteja no centro da ação, a figuração crítica da
exatidão documental, talvez possamos considerar injusta a crítica
dialética da bizarrice (em suas relações com o "caminho
de Lima ao florianismo, bem como exagerada e "caricatural" a
prussiano") não esgota o universo histórico-estético criado pelo
sua figuração do chamado "Marechal de Ferro". Com efeito,
Policarpo Quaresma. O caráter participante do realismo de Lima
sob alguns aspectos imediatos, o florianismo apresentou traços
impunha-lhe a busca de alternativas concretas, a elaboração de
progressistas, sobretudo na medida em que Contribuiu para
uma perspectiva de superação, através da criação estética de tipos
consolidar definitivamente, contra a revolta restauradora da
e de destinos humanos. No quadro da estagnação social da
Armada, as formas republicanas de governo. Mas também é
Primeira República, era bastante difícil, sem cair numa utopia
inegável que, visto à luz de uma perspectiva nacional histórico-
romântica, encontrar figuras humanas positivas capazes de

L
148
Cultura e sociedade no Brasil
o significado de Lima Barreto em nossa literatura 149

representar essa alternativa.18 O movimento operário, como


é a simpática figura de Ricardo Coração dos Outros. O poeta
vimos, já era suficiente para fornecer ao romancista um "ponto
popular é uma clara expressão daquilo que Marx, a partir de
de Arquimedes" situado fora do "caminho prussiano", ou seja,
observações de Goethe, designa como "plenitude limitada": um
para lhe fornecer uma base ideológica histórico-universal para
tipo popular que, embora incapaz de se apropriar amplamente
a sua crítica radical de nossa sociedade. Mas essa base era ainda
de todas as potencialidades do gênero humano em dada época
na época bastante abstrata; alheio ao romantismo, Lima não
(apropriação que, nos períodos de alienação, permanece como
poderia encontrar no mundo proletário de então, que mal
concreta possibilidade apenas para alguns indivíduos
começava a nascer, a universalidade concreta requerida para a
excepcionais), logra não apenas conservar o núcleo humano,
criação de autênticos tipos realistas. Na verdade, somente na
mas também evitar as unilateralidades provocadas pela divisão
década de 30, em particular no romance nordestino, a classe
do trabalho e, desse modo, desenvolver-se harmoniosamente no
operária começa a aparecer, como força humana autônoma, em
interior de certos limites socialmente determinados. Ao contrário
nossa literatura realista; mas, mesmo então, não é casual o fato
do bizarro, cuja tentativa solitária de ultrapassar os limites
de que esse aparecimento quase sempre Ocorra no quadro de
conduz ao desequilíbrio de caráter, o tipo popular "limitadamente
tendências românticas (como no primeiro Jorge Amado), nem
pleno" alcança urna harmonia capaz de convertê-lo, muitas vezes,
~, tampouco - o que é o outro lado da medalha - que o proletariado
u
-, numa figura relativamente exemplar. O camponês Platão
continue ausente ria obra da figura máxima do romance
,[ Karataiev, que aparece em Guerra e paz de Tolstói como uma
.\
.1 nordestino, Graciliano Ramos. Ligado profundamente ao mundo
~ concreta alternativa popular à vacuidade humana dos indivíduos
:1 urbano, por outro lado, Lima não poderia enxergar alternativas
aristocráticos ou burocratizados, é talvez a mais bem realizada
concretas no mundo camponês, como freqüentemente o fariam
concretização literária desse tipo humano. O encontro entre
- e aqui com pleno êxito realista - os romancistas nordestinos.
ele e Pie rr e Bezukhov, ocorrido no final do romance,
Entretanto, no mundo das cidades, particularmente entre
representa para este último uma profunda experiência moral,
os "humilhados e ofendidos" com os quais está a simpatia plebéia
um exemplo alternativo a indicar novos caminhos, embora tanto
de Lima, surgem alguns tipos humanos que aparecem
Pierre quanto o próprio Tolstói compreenderam claramente as
objetivamente como alterna,tivas concretas à vacuidade e à
limitações desse tipo humano. Em outras palavras: a exemplaridade
deformação ética que vemos se manifestar nos membros das
reside na harmonia, enquanto a limitação encontra-se no
classes dominantes e dos meios burocráticos. A maior expressão

I
"prirni tivismo", na ausência de desenvolvimento de certas
literária dessa alternativa popular, no mundo romanesco de Lima,
potencialidades já alcançadas pelo gênero humano.!?

IK Para evirar mal-entendidos: não é necessário que o realismo fonnule alternativas concretas.
Em muitos casos, basta-lhe propor - como diria Tchekhov _ "questões razoáveis", que 19 De passagem, poderíamos lembrar que um dos principais defeitos ideológicos e
ponham em causa as soluções falsas elo mundo que descreve; para citarmos um exemplo estéticos da última fase de Jorge Amado (a que se inicia com Gabriela) é precisamente
concreto, é este o C<lSO de Machado de Assis. Todavia, no tipo de realismo proposto por deixar de lado esses limites, aceitando de modo mais ou menos acrítico todas as
Lima (ou seja, no realismo fundado na explícita tomada de posição), que corresponde formas vitais e ideológicas assumidas pelo povo. Esse "populísmo" esquemático, embora
a períodos históricos marcados por contradiçóc, sociais intensas, a formulação de nem sempre impeça Amado de criar algumas figuras significativas (em particular, o
altcrn:ltivas torna-se elemento estrutural necessário da composição. Pedro Arcanjo de Tenda dos milagres) .Ieva-o a sérias limitações estéticas e ideológicas.
150
Cultura e sociedade no Brasil o significado de Lima Barreto em nossa literatura 151

Essa duplicidade, essa complexa dialética de plenitude e


observou corretamente: "O desenvolvimento da produção
limitação, aparece claramente na figura de Ricardo Coração
capitalista, fundado sobre o fator puramente quantitativo do
dos Outros. Manifesta-se, por exemplo, no fato de que a sua
valor de troca, eliminou progressivamente a compreensão dos
extraordinária simpatia por Policarpo (em quem reconhece
homens para os elementos qualitativos e sensíveis do mundo
imediatamente a generosidade de caráter) não se faz acompanhar
natural. A sensibilidade para tais elementos tornou-se cada vez
por uma adequada compreensão da problemática humana do
mais o privilégio 'dos poetas, das crianças e das mulheres', ou
amigo; por outro lado, essa limitação se revela na incapacidade
seja, dos indivíduos situados à margem da vida económica'V?
de Rícardo em orientar-se adequadamente no complexo mundo
A conservação do núcleo humano em Olga, a sua sensibilidade
no qual vive, em dar respostas para além do seu "pequeno
para os problemas éticos, têm suas raizes nessa possibilidade
mundo" pessoal. Mas que a sua "plenitude limitada" o coloque
marginal contida no desenvolvimento do mundo da alienação;
eticamente acima da "sagacidade" maquiavélica dos exploradores
desligada da vida econômica, Olga consegue afirmar eticamente
e dos burocratas é algo que Lima evidencia, Com notável força
a sua interioridade, colocando em segundo plano mesquinhas
plástica, através da ILmpida decisão final de Ricardo de colocar-
considerações de interesse egoísta. (Nesse sentido, Olga pode
se firmemente ao lado do major em desgraça. Enquanto todos
ser considerada como uma precursora do humanismo que marca
os fetlsos amigos de Policarpo afastam-se dele, pretextando
a atuação de Madalena, importante personagem de São Bemardo,
"dificuldades pessoais" ou apelando para um "bom senso"
de Graciliano.) Encarnando essas possibilidades, ela aparece
conformista, Ricardo - ao lado apenas de Olga - não hesita em
no mundo de Lima Barreto - um escritor falsamente acusado
empenhélr-se, mesmo com o risco de prejuízos pessoais, na luta
do misoginia " - como um autêntico tipo positivo. Desde o início,
para salvar o major. Através do paralelo entre a covarde reação
somente Olga compreende adequadamente o Major Policarpo;
de Genelício e do Dr. Armando, que se pretendem "sábios" e
somente ela é capaz de perceber, por trás ou através das aparências
intelectuais, e a correta decisão moral de Ricardo, um ingênuo
bizarras, a infinita grandeza humana do seu padrinho, mas
e simplório cantor popular, Lima Barreto expressa _ com meios
distanciado-se ao mesmo tempo, com sagacidade e lucidez, dos
puramente literários, de caracterização - sua clara e decidida
conteúdos equivocados em que se manifesta essa grandeza. Incapaz
tomada de partido: apesar de suas Ii,mitações, a "plenitude"
de romper com a mesquinhez e o convencionalismo da "boa"
popular é uma efetiva alternativa humana à corrupção moral
das classes dominantes. sociedade em que vive, Olga assume exteriormente, durante
algum tempo, as aparências do conformismo e da alienação
É também diante da decisão moral ocasionada pela prisão
de Policarpo que a figura de Olga - cuja inteireza humana
20 Lucien Goldmann, Recherchesdialecciques. Paris: Gallimard, 1959, p. 77.
aparecera até então de modo claro, mas ainda discretamente _
21 É surpreendente que até mesmo Francisco de Assis Barbosa, a quem devemos um
assume a sua plena explicitação. Seria dar provas de um sociologismo importantíssimo trabalho de levantamento biográfico e de difusão da obra de Lima,
vulgar e esquemático querer determinar essa inteireza moral da afirme o seguinte: "Ao contrário dos personagens masculinos, de traços vigorosos,
gente viva, de carne e osso, as mulheres que transitam nos seus romances são apenas
afilhada do major a partir de sua vinculação com essa ou aquela desenhadas, vagas, imprecisas, faltando-lhes a densidade, por causa talvez desse
classe social. Lucien Goldmann, analisando o fenômeno da reificação, desconhecimento da alma feminina" (Barbosa, A vida de Lima Barreto, cit., p. 278).
O biógrafo, naturalmente, esqueceu-se da figura de Olga.
152
Cultura e sociedade no Brasil o significado de Lima Barreto em nossa literatura 153

(casamento de conveniência, etc.): mas, apesar dessa resignação, Olga e Ricardo, com efeito, significam para o romancista
conserva íntegro o núcleo humano, o seu agudo senso moral, alternativas concretas à mesquinha atmosfera burocrática que
que se explicitariam plenamente por ocasião da sua aquiescência dissolve a humanidade dos homens. É fruto da justeza estética e
ao pedido de Ricardo para ajudar o major depois de sua prisão. ideológica da concepção de Lima o fato de que Olga seja
Já anteriormente, quando todos ironizavam a adesão bizarra escolhida para encarnar a perspectiva final - de confiança no
de Quaresma ao florianismo, Olga havia sido capaz de avaliá-Ia humano - esboçada pelo seu romance. Embora reconhecendo
corretamente, embora as suas simpatias estivessem com os os méritos da "plenitude limitada" de Ricardo, embora afirmando
opositores de Floriano: "A moça adivinhou logo o motivo, o modo inequivocamente a grandeza ética oculta pela bizarrice de
de agir e reagir do fato sobre as idéias e sentimentos de Policarpo, Lima enxerga ao mesmo tempo os limites e as
Quaresma. Quis desaprovar, censurar: sentiu-o, porém, tão contradições essenciais dessas duas possibilidades humanas.
coerente com ele mesmo, tela de acordo com a substância da vida Mas seria quase impossível, sem cair no romantismo, construir O
que ele mesmo fabricara, que se limitou a sorrir complacente: _ seu romance em torno da figura de Olga: em contato direto
O padrinho ... ". O que a moça admira no Major Quaresma é com a alienação vigente, a inteireza do seu caráter sofreria
, "~ exatamente essa capacidade de fabricar por si mesmo a substância deformações (como é o caso de Policarpo) ou perderia aquela
~ !, da própria vida, essa dispOSição interior que o faz - contra a capacidade de simbolizar a conservação do núcleo humano.
~;~ aceitação conformista e alienada da moral burocrática vigente Assim, é graças à lucidez artística de Lima que a dialética da
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f. ~j
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- conservar-se
compreensão
preso à essência
da problemática
humana
de Policarpo
dos homens.
prepara
Essa aguda
Olga para a
bizarrice ocupa o centro da composição,
íntegra e harmoniosa do humano aparece
enquanto
de modo
a conservação
marginal,
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sua decisão de enfrentar o marido, de romper finalmente com a ainda que para assumir no fim da obra o sentido de uma ampla
crosta da alienação sob a qual vivera, afirmando também ela _ perspectiva histórico-universal.
mas neste caso sem nenhuma bizarrice - o próprio núcleo Deve-se observar que a trágica e pessimista autocrítica de
conservado íntegro. Não é casual que, ao aceitar a proposta de Policarpo (que desemboca num desespero sem perspectivas) não
Ricardo para ajudar o padrinho, Olga tenha motivado no aparece como desfecho do romance. Para esse posto e função,
trovador (apesar das profundas diferenças sociais entre ambos) Lima escolheu as considerações finais de Olga, posteriores à
as seguintes reflexões: "Ele então pensou com admiração naquela sua fracassada tentativa de ajudar o major, considerações que,
moça que, por simples amizade, se dava a tão arriscado sacrifício, de acordo com a concepção do mundo do romancista, orientam-se
que tinha a alma tão ao alcance dela mesma; e a sentiu bem longe para o futuro. Após ouvir ofensas ao seu padrinho, chamado de
desse mundo, desse nosso egoísmo, dessa nossa baixeza, e cobriu "traidor" e de "bandido", Olga "ergueu-se orgulhosamente e
a sua imagem com um grande olhar de reconhecimento". teve vergonha de ter ido pedir, de ter descido do seu orgulho e
O encontro desses dois personagens, simbolizando a aliança de ter enxovalhado a grandeza moral do padrinho com o seu
entre a "plenitude limitada" das camadas populares e a revolta pedido. Com tal gente, era melhor tê-lo deixado morrer só e
contra a alienação, não é simples casualidade: expressa-se aqui, heroicamente num ilhéu qualquer, mas levando para o túmulo
de modo concretamente estético, a visão do mundo de Lima Barreto. inteiramente intacto o seu orgulho, a sua doçura, a sua personalidade
154 Cultura e sociedade no Brasil o significado de Lima Barreto em nossa literatura 155

moral (... ). Saiu e andou. Olhou o céu, os ares, as árvores de esteticistas e escapistas predominantes em sua época, propôs
Santa Teresa, e se lembrou que, por estas terras, já tinham errado teórica e praticamente um novo realismo. Seria bastante oportuno,
tribos selvagens, das quais um dos chefes se orgulhara de ter no nesse sentido, compará-lo com o movimento modernista, que
sangue o sangue de dez mil inimigos. Fora há quatro séculos. continua a ser considerado - com um radicalismo unilateral -
Olhou de novo o céu, os ares, as árvores de Santa Tereza, as o único iniciador da literatura contemporânea no Brasil.
casas, as igrejas: viu os bondes passarem; uma locomotiva apitou; O modernismo, na verdade, teve o mérito de pressentir e propor
um carro, puxado por uma linda parelha, atravessou-lhe na a necessária renovação de nossa literatura; mas, pelo menos em
frente, quando já a entrar no campo. Tinha havido grandes e seus mais significativos representantes iniciais, colocou as
inúmeras modificações. Que fora aquele parque? Talvez um questões ligadas a essa renovação em bases preponderantemente
charco. Tinha havido grandes modificações nos aspectos, na formalistas." Lima Barreto, ao contrário, compreendeu e formulou
fisionomia da terra, talvez no clima ... Esperemos mais, pensou a necessidade também de uma renovação do conteúdo humano,
ela: e seguiu serenamente ao encontro de Ricardo Coração dos ligada a uma transformação revolucionária da sociedade. Propôs
Outros". assim aos escritores a tarefa, que continua atual, de relacionar
-:...
organicamente a literatura às grandes questões humanas e
: < Para além das trágicas contradições que ainda dilaceram a
'"
:!,
I.: sociedade, Lima nos ensina a confiar nos recursos de que a histórico-sociais da nação e do povo brasileiros.
)~
humanidade dispõe para superar tais contradições. Como Olga, Nessa oposição, por conseguinte, é que deve ser buscada a
..
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também sem alimentar ilusões, pôde ele concluir seu romance razão do frontal ataque que Lima, num dos seus últimos artigos,
~~
.,.. com uma afirmação de confiança na humanidade.
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dirigiu à Semana de Arte Moderna e, mais concretamente, à
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versão futurista do então nascente vanguardismo." Não é casual
5. que esse ataque, em muitos pontos, se aproxime essencialmente
Com Lima Barreto, iniciou-se para a literatura brasileira uma da autocrítíca do modernismo realizada em 1942 por Mário de
nova etapa - moderna e popular - do realismo. Tanto em sua Andrade," que já então - graças ao seu profundo hurnanismo -
obra estética quanto em sua produção jornalística, o romancista afastara-se decisivamente das tendências "experimentalistas"
carioca rompe decisivamente com qualquer versão do "intirnismo que dominavam a obra e a agitação literária de Oswald de
à sombra do poder", afirmando com clareza a dimensão hurnanista Andrade, o mais expressivo e talentoso representante de nosso
do ofício literário. Diante de todas as questões que enfrentou, "vanguardismo". Enquanto o modernismo, na figura de Oswald,
como escritor ou periodista, ele sempre tentou encontrar (e, na tornava-se o precursor da nova vanguarda brasileira, Lima
esmagadora maioria dos casos, efetivamente encontrou) uma
resposta autenticamente democrática e popular, capaz de abrir li Não é aqui o lugar para uma avaliação exaustiva da problemática do modernismo.
novos horizontes - ideológicos e estéticos - para a cultura e Valiosas indicações nesse sentido estão no ensaio de Luís Sérgio N. Henriques,
"Contradições do modernismo", incluído em Vários Autores, Realismo e anti·realismo
para a arte de nosso país.
na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974, p. 57·74.
Lima Barreto é assim um divisor de águas na evolução lJ Cf. Lima Barreto, Feiras e mafuás. São Paulo: Brasiliense, 1956, p. 67·68.
literária brasileira. Rompendo radicalmente com as tendências 14 Mário de Andrade, Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins, 1943.
156 Cultura e sociedade no Brasil

Barreto inaugurava uma linha oposta, a linha do realismo crítico


nacional-popular, na literatura contemporânea de nosso país,
Infelizmente, os antigos obstáculos histórico-sociais à
formação de uma trajetória contínua na evolução do nosso
realismo não foram inteiramente removidos após a morte de Lima.
Apesar de já encontrar agora resistências maiores, a "via
prussiana" terminou sempre por predominar nos movimentos de
transformação ocorridos nos últimos cinqüenta anos, impedindo
consequentemente a continuidade da linha realista. O romance
nordestino - o mais expressivo movimento realista em nossa
história literária do século XX - não pôde partir diretamente da
v. Graciliano Ramos
temática urbana de Lima; mas é indiscutível que recolhe dele
(consciente ou inconscientemente) tanto a visão do mundo
democrático-popular quanto o conceito "participante'! do ofício

l:li
~p
literário, O pioneirismo de Lima evidencia-se quando observamos
o seguinte fato: depois dele, já não mais foi possível construir o
d'li'
realismo crítico com base na "serenidade" estilística ou no
~,; humanismo "distanciado" de Machado de Assis. Em José Lins
Ir'
do Rêgo ou em Graciliano Ramos, em Antônio Callado ou no
r" último Érico Veríssimo, podemos sempre constatar a retomada
do espírito "participante" e da profunda consciência social que
marcaram a práxis literária do autor do Po/icarpo Quaresma,
Nesse sentido, Lima continua a ser um modelo - o que não
implica evidentemente a idéia de "cópia" ou "imitação" - para
o realismo brasileiro de hoje, Retirar Lima do injusto esquecimento
em que o querem sepultar, reexaminar sua obra em função dos
problemas gerais da literatura brasileira, não são assim tarefas
acadêmicas ou meramente "literárias": fazem parte da necessária
e urgente reavaliação crítica de nossa herança cultural
progressista, entendida como ponto de partida para a construção
de uma nova cultura brasileira democrática e nacional-popular.

(1972)
Graciliano Ramos 159

Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.
(... ) Ilhas perdem o homem.
Drummond

1.
A obra romanesca de Graciliano Ramos abarca o inteiro
processo de formação da sociedade brasileira contemporânea,
em suas íntimas e essenciais determinações. Nada existe nele
em comum com aquele regionalismo estreito que foi uma das
manifestações brasileiras do naturalismo "sociológico". O destino
de seus personagens, seu modo de agir e reagir em face das
I~

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situações concretas em que se encontram inseridos, são
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manifestações típicas de toda a realidade brasileira. No "regional",
:(' a Graciliano, interessa apenas o que é comum a toda a sociedade
'~
:1~ brasileira, o que é "universal". Mas não um universal abstrato e
~
(f
~.. absoluto, pretensamente válido em qualquer circunstância; a
universalidade de Graciliano é uma universalidade concreta,
que se alimenta e vive da singularidade, da temporalidade social
e histórica. O que lhe interessa não é a exemplificação, através
da literatura, de teses e concepções apriorísticas; é a narração
do destino de homens concretos, socialmente determinados,
vivendo em uma realidade concreta. Por isso, pôde ele descobrir
e criar verdadeiros tiPos humanos, diversos tanto na média
cotidiana como da caricatura abstrata.
A crise da sociedade brasileira apresentava-se no Nordeste com
cores mais vivas e intensas do que no resto do Brasil. Os movimentos
de renovação e de transformação que começavam a esboçar-se
(apenas a esboçar-se) por todo o País - expressando-se, entre
outras coisas na chamada Revolução de 1930 - chocavam-se
no Nordeste com barreiras mais firmes, com obstáculos quase
intransponíveis. As esperanças de renovação democrática da
160
Cultura e sociedade no Brasil Graciliano Ramos 161

sociedade eram violentamente cortadas; a ausência de uma formação de uma verdadeira comunidade humana, de uma vida
classe social efetivamente (e não apenas potencialmente) pública democrática, afastando o povo de qualquer participação
revolucionária condenava os que pretendiam lutar por uma nova criadora em nossa história. A estagnação social condenava os
comunidade à solidão e à incompreensão. De certo modo, na homens a uma vida medíocre, ao cárcere de um "pequeno
medida em que aí as contradições eram mais "clássicas" {no mundo" restrito e sem perspectivas, separado de uma autêntica
sentido de Marx) , o Nordeste era a região mais típica do Brasil; vida social e comunitária por paredes bastante espessas. Esta
a sua crise expressava, em toda sua crueza, a crise do conjunto realidade mesquinha, que impunha aos indivíduos urna radical
do País. Não é assim um fato do acaso que tenha sido o romance alienação, afastando-os da evolução histórica concreta, era
nordestino da década de 30 o movimento literário mais genérica a todas as classes sociais brasileiras; mas enquanto umas
profundamente realista da história de nossa literatura. E, no se sentiam à vontade nos estreitos limites deste "pequeno
seu interior, Graciliano é a figura mais alta e representativa. Foi mundo", outras compreendiam que só com a destruição de tal
ele quem mais radicalmen te se libertou da mistura de romantismo cárcere seria possível a abertura para uma vida autêntica e
(" revol ucionário" ou reacionário) e de naturalismo que ainda humana.
vemos existir em grande parte de seus contemporâneos. Neste
O desenvolvimento do capitalismo, que se processava sem
I~: 'I. sentido, Caetés funciona, em sua produção literária, como uma
rupturas com a economia pré-capitalista e dependente, não
'I:; í catarse: escrevendo-o, Graciliano se liberta do naturalismo,
ir percebendo na prática as suas limitações para representar as
apresentava as mesmas características revolucionárias que tivera
:d na Europa Ocidental: ao invés de contribuir para romper as
~, I,

determinações mais profundas da realidade humana do povo


~
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paredes daquele "pequeno mundo", mais ainda as fortalecia,
brasileiro. Com São Bemardo, Graciliano marca - em sua obra e
colaborando para transformar o isolamento e a solidão passivos
na história do romance brasileiro posterior a Lima Barreto _
em individualismo ativo e prático. Impossibilitada de realizar a
a passagem da crônica à história concreta, a superação de um
sua revolução democrática, a nossa burguesia jamais chegou a
naturalismo que se contentava em descrever a superfície da
tentar a criação do citoyen (do homem que sintetiza em si a vida
realidade por um realismo verdadeiro como a vida.
pública e a vida privada) ou da comunidade humana autêntica
Na época, a sociedade brasileira se apresentava como uma (na qual os interesses individuais e os interesses coletivos formam
formação social semicolonial em crise. O esgotamento das uma totalidade orgânica). Estes sonhos do humanismo burguês
potencialidades de nossa economia pré-capitalisra não fora europeu revolucionário revelaram-se, com o processo de
seguido por uma renovação radical, pela criação de uma forma desenvolvimento de economia capitalista, uma ilusão utópica:
moderna de economia e de relações sociais. A ausência de uma o egoísmo individualista da luta pelo lucro, a cisão radical entre
economia integrada, estruturad8 em torno de um mercado o bourgeois e o citoyen, a redução do homem a simples mecanismo
interno único, era causa e efeito da inexistência de uma classe de produção capitalista, o conseqüente fracionamento da
burguesa orgânica, que estivesse em condições de promover uma comunidade - eis o que substituiu, na realidade, os ideais
au têntica revol ução dem.ocrática. A fragmentação de nossa grandiosos do homem total e da comunidade democrática.
sociedade, típica de uma economia pré-capitalista, impedia a Contudo, a simples formulação desta ideologia humanista, bem

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162 Cultura e sociedade no Brasil Graciliano Ramos 163

como as trágicas tentativas de levá-Ia radicalmente à prática com o triunfo da burguesia sobre o proletariado em 1848 e com
(Robespierre, etc.), marcaram profundamente a realidade a trivialização ou abandono do antigo humanismo clássico, o
européia. Mesmo como ideologia utópica, o humanismo romance tende cada vez mais ao naturalismo estreito, à mera
revolucionário desempenhou um papel ativo nas sociedades descrição do "pequeno mundo"; só com o realismo russo, com o
ocidentais, ensinando os homens a ver além dos estreitos surgimento de um herói não individualista - expressão de uma
horizontes de um "pequeno mundo" filisteu. A tragédia dos que época de crise radical dos valores burgueses -, é possível a
pretenderam, mesmo após a vitória do "burguês" sobre o recriação de uma nova estrutura romanesca realista. Entre nós,
"cidadão" no interior da revolução democrática, guiar suas vidas a penetração e evolução do capitalismo ganha características
por essas ilusões grandiosas de realização humana, vem bastante originais, pela existência simultânea e contraditória
representada nos realistas franceses do século XIX, em Balzac, de vários de seus estágios: em determinados casos, ele representa
Stendhal e Flaubert (que se pense nos destinos de Lucien de um estímulo à perpetuação de nossa velha sociedade estagnada;
Rubempré, de julien Sorel e de Frédéric Moreau). em outros, apresenta-se como possibilidade de renovação e de
No Brasil, bem como na quase generalidade dos países progresso; finalmente, revelando prematuramente as suas
coloniais ou dependentes, a evolução do capitalismo não foi naturais limitações e contradições internas, cria condições para
antecedida por uma época de ilusões humanistas e de tentativas a abertura de uma perspectiva - ainda abstrata nos anos 30 -
- mesmo utópicas - de realizar na prática o ideal do "cidadão" rumo à nova sociedade pela qual será superado, o socialismo.
e da comunidade democrática. Os movimentos neste sentido, Assim, não obstante todas as suas limitações, o capitalismo não
ocorridos no século passado e no início deste século, foram sempre deixou de trazer elementos novos para o quadro de nossa realidade.
agitações superficiais, sem nenhum caráter verdadeiramente Estes elementos 'constituíam o novo que brotava no seio da velha
nacional e popular. Aqui, a burguesia se ligou às antigas classes sociedade semicolonial: contra a estagnação e a inércia dominantes,
dominantes, operou no interior da economia retrógrada e surgem aqui e ali determinados indivíduos inconformados,
fragmentada. Quando as transformações políticas se tornavam possuídos por uma força interior que os leva a romper com uma
necessárias, elas eram feitas "pelo alto", através de conciliações existência mesquinha e a buscar um sentido autêntico, ainda que
e concessões mútuas, sem que 9 povo participasse das decisões individualista, para as suas vidas. Esta "inquietação", este
e impusesse organicamente a sua vontade coletiva. Em suma, o "inconformismo" - que o jovem Lukács, usando a terminologia de
capitalismo brasileiro, ao invés de promover uma transformação Goethe, chama de "demonismo" -, tem uma de suas fontes
social revolucionária - o que implicaria, pelo menos principais, aqui como na Europa, no desenvolvimento do
momentaneamente, a criação de um "grande mundo" capitalismo. O fato de que Graciliano tenha percebido este
democrático -, contribuiu, em muitos casos, para acentuar o elemento novo - e que o tenha configurado artisticamente em
isolamento e a solidão, a restrição dos homens ao pequeno mundo suas devidas proporções, sem exageros românticos ou reduções
de lima mesquinha vida privada. naturalistas - é mais uma prova do seu profundo realismo.
Tudo isso torna extremamente problemática, entre nós, a A contradição entre um mundo alienado e indivíduos
criação de autênticas obras épicas realistas. Também na Europa, inconformados que lutam contra a alienação, aliás, é o conteúdo
164 Cultura e sociedade no Brasil Graciliano Ramos 165

essencial do gênero romanesco. Quebrando as barreiras e as desenvolvimento de todos".' (Está em jogo, naturalmente, a
estratificações fossilizadas da sociedade feudal, superando a verdadeira realização individual - que implica o homem total,
mediocridade da vida rural, contribuindo para a unificação do harmonicamente desenvolvido, não alienado - e não a falsa
mundo em torno de um mercado único, promovendo o domínio "realização" burguesa, que consiste numa autoflagelação e
e a conquista da natureza, o capitalismo representou um autolimitação consentidas.) Goldmann observou argutamente
formidável estímulo às potencialidades criadoras do homem. a existência de uma homologia entre a forma romanesca, descrita
Por ou tro lado, estabelecendo uma sociedade rigidamente pelo jovem Lukács, e a estrutura da sociedade capitalista, bem
individualista, dilacerada pela luta de todos contra todos pelo . como entre a evolução desta forma e a evolução do capitalismo.'
lucro e pela riqueza pessoal, esta formação social fracionou a O próprio Lukács, em sua fase marxista, fala da "estreita conexão
comunidade humana, destruiu a solidariedade e a fraternidade, entre a forma romanesca e a estrutura específica da sociedade
condenando os homens a uma vida solitária. Qualquer capitalista", com a vantagem - em relação a Goldmann - de
transcendência - seja religiosa, seja histórico-geral- é destruída: acrescentar que esta conexão "de modo algum significa que o
os valores universais desapareceram no céu vazio do homem romance possa simplesmente refletir esta realidade tal como ela
,
.~
·r
'1
burguês. O sentido da vida - outrora dado ou pela participação se apresenta direta e empiricamente"."
.J.)
na comunidade humana (como na Antigüidade clássica), Ora, como veremos, é precisamente esta a forma estrutural
ri)
\ ou pela crença em dogmas religiosos (como na Idade Média) _
dos romances de Graciliano Ramos. Representando uma
"

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é agora uma busca individual e solitária, voltada para valores realidade fragmentada (a nossa sociedade semicolonial
mediatos e problemáticos.
~
... penetrada por elementos capitalistas), que desconhece um
O jovem Lukács definiu a estrutura deste novo gênero épico, "grande mundo" comunitário, Graciliano representa também as
surgido com o advento da burguesia e do capitalismo, como lutas individuais por descobrir, no interior deste mundo alienado
uma pesquisa de valores autênticos em um mundo convencional ou em oposição a ele, um sentido para a vida. Através da
e vazio, por parte de heróis problemáticos; 1 ou, numa linguagem estrutura romanesca clássica, ele representa a realidade profunda
histórico-concreta, como uma luta pela realização individual - e não apenas as aparências empíricas - da sociedade brasileira,
num mundo burguês, no qual inexiste a comunidade humana na qual a lenta evolução do capitalismo, em alguns casos,
e o homem está condenado à alienação e à solidão. Lukács entrava em contradição com o nosso ancien régime, em outros
nos informa ainda que esta busca de valores é sempre contribuía para solidificá-Ia, e, finalmente, já começava a
condenada ao fracasso enquanto inexistir a comunidade apresentar o seu caráter limitador e a determinar uma abertura
humana autêntica (diríamos: o socialismo ou a luta concreta para o sistema social que o superará. Esta evolução determinava
peia sua criação), já que a realização humana individual só é
possível em uma sociedade comunitária na qual, como diria Marx, Z Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto do !Jartido comunista, in Vários Autores,
"o livre desenvolvimento de cada um é pressuposto para o livre O Manifesto comunista 150 anos depois. Rio de Janeiro-São Paulo: Contrapomo-
Fundação Perseu Abramo, 1998, p. 29.
3 Lucien Goldmann, Pour une sociologie du romano Paris: Gallimard, 1964, p.16-37.
I Georg Lukács, La théorie du romano Genebra: Gonthier, 1963, em particular p. 49-89. 4 G. Lukács, Le roman historique. Paris: Plon, 1965, p. 156.

--
166 Cultura e sociedade no Brasil Graciliano Ramos 167

uma nova tomada de posição por parte das classes sociais e de indivíduos médios (cotidianos). Trata-se da primeira
brasileiras, fazendo surgir, em algumas delas, o "inconformismo" manifestação literária da decadência burguesa, isto é, de uma
e a "inquietação" que tornam possível o aparecimento do "herói época na qual a rígida divisão capitalista do trabalho, alienando
problemático", que não mais aceita passivamente a estagnação os homens com relação à história, difículta-lhes uma visão de
e o marasmo da sociedade anterior, do "mundo convencional e conjunto da realidade global. O naturalismo limita-se a
vazio". A diferente natureza desta reação contra a alienação, reproduzir a superfície da realidade, jamais transcendendo (pelo
desta busca de valores autênticos, bem como o seu resultado, menos de uma maneira orgânica) o fenômeno empírico imediato.
decorrem da diferente classe social a qual se vincula o "herói Ora, a realidade imediata de uma sociedade capitalista é a total
problemático". Nesta fusão de indivíduo e classe, reside um dos mutilação do indivíduo, sua transformação em "coisa", em
pontos mais altos do realismo de Graciliano. Seus personagens joguete de um determinismo fatalista; a maioria dos homens
são sempre tipos autênticos precisamente na medida em que adapta-se às condições de alienação vigentes, aceitando
expressam em suas ações o máximo de possibilidades contidas passivamente a sua redução a meras peças de uma engrenagem
nas classes sociais a que pertencem. A obra de Graciliano, em que eles não compreendem e que, por isso, os determina do
sua totalidade, apresenta-nos um painel destes diferentes "heróis exterior. Assim, descrever apenas a realidade cotidiana, como
problemáticos", ou seja, uma representação literária das diversas pretendem os naturalistas, significa mutilar a realidade global,
atitudes típicas das classes sociais brasileiras (com exceção do desconhecendo as forças-que reagem - mesmo que de uma forma
proletariado) em face do "mundo alienado". igualmente alienada - contra a alienação capitalista. Em outras
palavras, significa desconhecer aquele "inconforrnismo", aquela
2. inquietação "demoníaca", aquela manifestação evidente de uma
r •....
práxis humana criadora, que não aceita passivamente a alienação
Caetés, o primeiro romance de Graciliano, foi escrito entre
e que representa, conseqüentemente, um outro momento da
1925 e 1928. Esta época representa, na história do romance
totalidade do real. Só uma literatura que represente estes dois
brasileiro, um período de domínio quase incontrastado do
momentos - a saber, o mundo alienado e os homens que lutam
naturalismo, que encontrara no "regionalismo" modernista, isto
contra a alienação, podendo esta luta ser trágica, cômica,
é, na reconstrução superficial de ambientes e de costumes
tragicômica ou vitoriosa - está capacitada a reproduzir a
exóticos, um forte incentivo. Embora contenha elementos que
díalética essencial da contraditória realidade moderna.
anunciam o vigoroso realismo da década de 30, Caetés é - em sua
estrutura, em seu conteúdo e nas técnicas literárias que manipula Esta negação da práxis humana criadora leva o naturalismo
- um romance naturalista. a considerar os homens como mecanicamente determinados
pelas circunstâncias exteriores, notadamente pelo "ambiente",
O naturalismo representa, com relação à estrutura romanesca
entendido como um fetiche independente da ação humana.
clássica, a supressão de uma das duas dramati personae que
compõem o grande romance realista: o herói problemático. As obras
É o que ocorre a Graciliano, em Caetés. O universo deste
romance não ultrapassa a representação da superfície da
estruturalmente naturalistas limitam-se à descrição do mundo
realidade; trata-se de uma crônica, do relato quase jornalístico
convencional e vazio, isto é, à reprodução superficial de ambientes
168 Cultura e sociedade no Brasil Gracili ano Ramos 169

de uma cidade do interior nordestino. Um tênue enredo, disposto romance realista, tem como fundamento o movimento do herói
em torno de um [ai: divers, não consegue organizar e unificar o problemático, que vai da ascensão (decorrente da eslJerança em
universo do romance, criando-lhe uma estrutura que fosse triunfar na luta contra o mundo) ao desfecho desta luta (pela
análoga à estrutura global do real. Naturalmente, parcelas da derrota, ou - em casos muito raros - pela relativa vitória). Este
realidade, isoladas do conjunto, estão reproduzidas em Caetés; movimento torna possível, por um lado, o desenvolvimento épico
não, porém, o movimento da totalidade do real, único conteúdo da ação e, por outro lado, o "fechamento" da forma, a necessária
que pode permitir ao escritor a construção de uma forma épica resolução dos problemas contidos no desenvolvimento da ação.
verdadeiramente artística. Insistimos: a estrutura romanesca -
lnexistindo em Caetés este "movimento" do herói, o romance
com seus dois momentos: o herói problemático e o mundo alienado
resulta em mero acúmulo inorgânico de fatos superficiais, sem
- é a única capaz de reproduzir, do ponto de vista da grande
ligações íntimas entre si. Na busca de uma forma que "feche" o
arte narrativa moderna (literária ou cinematográfica), a essência
universo do romance, o naturalismo é obrigado a praticar aquilo
da realidade contemporânea. Abandonando um daqueles
que Hegel chamou de má infinitude: a totalidade poética é
momentos, tanto o conteúdo quanto a forma se fragmentam,
confundida com a catalogação de múltiplos eventos singulares,
,c dando origem a uma obra problemática ou inteiramente
busc ada numa extensão impossível e não na concentração
"
li fracassada.
intensiva das tendências essenciais. Por isso, não obstante o
~\ Os personagens de Caetés são todos determinados mecanicamente conflito central que existe em Caetés, o narrador é obrigado -
~
;J pelo ambiente em que vivem, inteiramente adaptados ao "pequeno em sua tentativa de abarcar a totalidade, requisito da narração
R
i~ mundo" filisteu que é sua realidade imediata. Preocupado apenas épica - a inserir no romance uma infinidade de eventos sem
em fazer o inventário de um ambiente provinciano, Graciliano nenhuma ligação com a ação central, destinadas somente a
passa a nos representar uma coleção de figuras inexpressivas, reproduzir o "ambiente" (a descrição do banquete na casa de
todas elas passivas e acomodadas em face da inércia do meio Vitorino, as relações entre Marta Varejão e o pai, o noivado do
em que vivem. João Valério, que narra a ação, é o personagem promotor, etc.). Além dos eventos "inúteis", há também os
central. Esta centralização não decorre, contudo, como nos personagens "inúteis", que nenhuma importância apresentam
romances realistas, de uma' verdadeira hierarquização do real, para o desenvolvimento e o desfecho da ação central: nesse
isto é, de uma escolha consciente do autor entre os indivíduos sentido, aliás, são inúteis quase todos os personagens de Caetés,
de que trata no sentido de contrapô-los uns aos outros, como mesmo os mais bem caracterizados (como Evaristo Barroca, por
representantes de diferentes atitudes típicas em face da exemplo).
realidade. O tipo central realista, por isso, é sempre excepcional:
Nem mesmo no apagado e tênue conflito central (o amor de
representa, contra os demais personagens do romance - muitos
Valéria pela mulher de seu patrão) é expressa uma tendência
dos quais, como tipos cotidianos, encarnam o mundo
profunda da realidade, ou tampouco revelada, através dele, uma
convencional - um outro aspecto do real, uma possibilidade de
atitude que se opusesse à cotidianidade superficial e imediata.
ação contra a alienação implícita no próprio movimento da
Por isso, Graciliano não consegue atingir nenhuma generalização
sociedade. Esta hierarquia, condição básica da composição do
artística verdadeira e orgânica: a ação se restringe ao mundo
171
170 Cultura e sociedade no Brasil Graciliano Ramos

convencional, aos faits divers da vida cotidiana. A atitude estabelece, em São Bernardo, entre o desenvolvimento
inesperada de Adrião Tavares, suicidando-se ao saber que é psicológico da ambição de Paulo Honório e a construção da
"traído", é realmente uma quebra do cotidiano, um fato fazenda em todos os seus aspectos objetivos). Tendo como
excepcional; contudo, tal como vem descrita no romance, esta finalidade principal não a descrição de tipos vivos e concretos,
atitude é inexplicável: a partir da vida do personagem, nada mas a reprodução de "ambientes", Caetés faz uso exagerado das
poderia justificar tal comportamento. Ademais, a sua ocorrência técnicas descritivas, aptas a reproduzir coisas (ou homens-
não lança nenhuma luz sobre os outros problemas aflorados no coisas), mas não concretas ações humanas.
romance; ao que me parece, o fato foi inserido com a única Lukács, no mesmo ensaio." também nos fala sobre a estreita
finalidade de, fazendo Luísa viúva, colocar João Valério diante ligação entre o método descritivo naturalista e as tendências ao
de uma nova realidade, que comprovasse mais uma vez a sua formalismo abstrato, alegórico. Após ter reduzido a realidade à
mesquinhez e a sua fraqueza humana (as quais, no romance, sua pura ímediaticidade fenomênica, o naturalismo coloca-se
são apresentadas como decorrendo apenas das limitações do em face da necessidade de generalizar os eventos descritos, os
"ambiente"). Apresentando uma realidade estática, que não se quais, como vimos, não possuem íntimas ligações dialéticas entre
move em nenhuma direção, Caetés apresenta também si; ao invés de uma generalização concreta, obtida pela relação
personagens estáticas, sem nenhuma modificação essencial do dos eventos com uma ação típica, que seja a síntese lJarticular
princípio ao fim do romance; como principal conseqüência desta do singular e do universal, o naturalismo é obrigado a recorrer a
estaticidade, tais personagens não têm uma gênese social alegorias, isto é, a transformar o evento singular fetichizado em
concreta, não tem nem pré-história nem história. A ação e as simples portador de uma idéia abstrata, existente apenas na
situações não são mais do que pretextos para que características consciência do autor. O Graciliano naturalista não fugiu à regra:
apriorísticas se manifestem exteriormente. Ao contrário do obrigado a generalizar a miséria moral do "pequeno mundo" dos
romance realista, que é sempre simultaneamente uma biografia personagens, a brutalidade e a selvageria de Valéria, ele recorre
do herói problemático e uma crônica social (como será o caso de à imagem dos caetés, estabelecendo um paralelo não orgânico
São Bemardo e de Angústia), Caetés é apenas uma crônica. entre a realidade presente e a vida dos índios selvagens. Aquele
Além disso, ou por .isso mesmo, Caetés se caracteriza pelo "romance histórico" sobre os caetés que João Valéria inutilmente
predomínio quase absoluto do que Lukács chamou de "método tentava escrever - e cuja existência no romance não apresentava
descritivo". Desconhecendo a unidade do real, o método nenhuma ligação com a caracterização do personagem. ou com
descritivo reproduz uma série de quadros isolados, servindo a a ação central, sendo um mero evento solto e isolado - revela a
ação (que é o objeto da épica) como mero pretexto para ligar sua "necessidade": tratava-se de uma alegoria, de um recurso
entre si estes fragmentos autônomos, que podem ser psicológicos, não-orgânico de que o autor lança mão para tentar uma
sociológicos, etc. Já o "método narrativo", que predomina nos generalização e provar uma tese.
romances realistas, tudo reduz à ação, englobando nela todos os
momentos - exteriores e interiores - do personagem e do mundo
5 G. Lukács, "Narrar ou descrever?", in id., Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro:
dos objetos (que se pense na relação orgânica que o narrador Civilização Brasileira, 1968, p. 47 -99.
172 Cultura e sociedade no Brasil Graciliano Ramos 173

Comparado com a generalidade dos nossos romances ela permitiu perceber com mais precisão as forças sociais em
naturalistas, Caetés revela indubitavelmente um saldo positivo. choque na realidade brasileira, revelando o quanto era aparente
Inexiste nele, o que é um dos seus maiores méritos, aquela e superficial a solidez daquela sociedade estagnada e mesquinha
tendência a superar a mediocridade naturalista através da e indicando as tendências renovadoras latentes e encobertas.
descrição de quadros patológicos e exóticos. O romance Em estreita ligação com estes movimentos de renovação,
apresenta uma contenção estilística positiva, uma reação salutar Graciliano passa a ter uma ação efetiva na vida social, não só
contra a "ênfase" romântica dos nossos naturalistas. Por outro exercendo cargos públicos, como tomando posição prática em
lado, a profunda ironia do autor revela uma atitude crítica em face dos problemas do seu tempo.
face da realidade, uma insatisfação em face da estagnação social. Esta passagem da observação à participação, ao que nos
Mas esta insatisfação é apenas do autor, já que não se encarna parece, é o aspecto pessoal - socialmente determinado - do
concretamente em nenhum personagem: Graciliano ainda não processo que conduz Graciliano do naturalismo pessimista ao
percebera o novo que brotava da velha realidade brasileira, não realismo crítico e humanista. Sempre que o escritor se coloca
conseguindo transcender, por isso, a simples descrição de um em face de sua sociedade como um simples observador, ainda
"pequeno mundo" estático e morto. O próprio Graciliano, que irônico, perde a possibilidade de utilizar os critérios seletivos
posteriormente, foi um dos que mais acentuaram as fraquezas que lhe permitiriam superar o contingente e o inessencial no
do seu primeiro romance. Contudo, mais importante do que isso sentido de uma penetração profunda no real e da descoberta
é o fato de ter ele realizado uma autocrítica também prática, e das forças essenciais que o determinam; o verdadeiro realismo
de nos ter dado, após Caetés, três das maiores obras-primas do cede lugar às vulgares descrições naturalistas ou às "profundas"
realismo crítico brasileiro.
pseudo-análises psicológicas." Só a defesa dos valores humanistas
- a luta contra as forças que mutilam o homem, destruindo sua
3. integridade - pode lhe permitir a criação de uma estrutura
Com São Bemardo, publicado em 1934, opera-se uma completa romanesca orgânica e viva (não importa se o escritor está ou
reviravolta na obra de Graciliano. superando a visão ideológica não consciente de que defende estes valores). Tal como na arte
e artística do seu primeiro romance, ele cria uma das obras mais em geral, também no romance o fundamento da universalidade
autenticamente realistas da literatura brasileira. Penetrando nas artística é a defesa da humanitas contra a alienação.
determinações essenciais de nossa realidade, Gr aciliano Esta defesa é o núcleo de São Bemardo. À transformação do
reencontra a estrutura romanesca clássica e a visão humanista conteúdo corresponde, em Graciliano - como em todo verdadeiro
que haveria de ser o fundamento de sua práxis artística ulterior. artista -, uma transformação formal: a composição frouxa e
Ao lado das razões biográficas que tornaram possível esse salto, inorgânica de Caetés cede lugar a uma intensa concentração
acreditamos que foram as próprias transformações ocorridas dramático-novelística, a uma estrutura "fechada" e análoga à
na realidade brasileira a sua causa fundamental. Entre Caetés estrutura global do real. Ao invés da descrição extensiva de
e São Bemardo, situa-se a Revolução de 1930: apesar de suas
6 Sobre o vínculo entre "observação" e "descrição", por um lado, e entre "participação"
notórias limitações, de seu caráter de transformação "pelo alto",
e "narração", por outro, cf. G. Lukács, "Narrar ou descrever?", cito
Cultura e sociedade no Brasil Graciliano Ramos 175
174

fragmentos do real (como em Caetés), São Bemardo apresenta - do capitalismo nascente; o crescimento da mobilidade social,
como seu núcleo central - o conflito que opõe, por um lado, as o rompimento com as barreiras coaguladas do pré-capitalismo.
forças que reduzem o homem a uma vida mesquinha e miserável Esta luta pela ascensão social, naturalmente, é uma luta solitária
no interior da alienação do "pequeno mundo" individual e, por e individualista; ela define os valores que regem a atividade de
outro, as que impulsionam o homem a descobrir um sentido para Paulo Honório, ou seja, a propriedade sobre as coisas e sobre os
a vida mediante uma "abertura" para a comunidade e a homens. Ora, quando inexiste o nós, a fraternidade e a solidariedade,
fraternidade e na conseqüente superação da solidão. Em suma, a relação entre os indivíduos - como Hegel brilhantemente
trata-se do conflito entre as forças da alienação e do humanismo, observou - não pode deixar de ser a relação entre o Servo e o
encarnadas nas classes sociais brasileiras. Esta captação Senhor," Paulo Honório reduz tudo ao seu interesse egoísta: os
concentrada do movimento da realidade deve se estruturar em homens são apenas instrumentos de sua ambição, meios que ele
torno de tipos excepcionais, superiores à média cotidiana, que utiliza para a obtenção do próprio fim, ou seja, a realização
encarnem em si o máximo de possibilidades concretas contidas individual a que se propõe.
em cada uma daquelas forças sociais em contradição. É o que A construção de um burguês: eis o conteúdo da primeira
I, ocorre em São Bernardo: Paulo Honório e Madalena são verdadeiros parte de São Bemardo. Note-se que Graciliano, ao contrário
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símbolos de suas classes precisamente na medida em que dos naturalistas, não nos apresenta um burguês acabado, estático
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expressam, em suas ações decisivas, as atitudes típicas mais e definido de uma vez por todas: ele narra a evolução psicológica
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'~ profundas que elas comportam. Não é o mero "ambiente" externo, de Paulo Honório, o desenvolvimento de sua violenta e apaixonada
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desligado da ação concreta dos homens, que determina o ambição, em estreita ligação com a "totalidade dos objetos" que
universo e a problemática humana deste romance; é justamente torna possível a realização de seus desejos. Esta desenfreada
enquanto reagem ao "ambiente" que os tipos criados se definem ambição capitalista é o conteúdo do "demonismo" de Paulo
e modelam a sua personalidade. O background de São Bemardo Honório. Sua necessária solidão determina a unilateralização
é um ambiente humano: a história concreta em sua evolução de sua personalidade: ele aliena-se à fazenda, é possuído por
contraditória, a oposição de homens contra homens, de classes sua própria paixão. A construção de um burguês: esta construção
contra classes (encarnadas.concretamente em indivíduos singulares), é, simultaneamente, a criação de um novo "pequeno mundo"
e não a adaptação de homens-coisas a um determinismo mecânico de paredes tão espessas quanto o anterior, que a inquietação de
e exterior. Paulo Honório superara. Neste novo "pequeno mundo", contudo,
É na luta contra o seu primitivo status quo, a miséria e a baixa ele se julga por algum tempo inteiramente realizado.
condição social, que Paulo Honório começa a definir sua Trata-se, porém, de uma trágica ilusão. Levado ainda por
personalidade. Ele não aceita passivamente a realidade dada: uma finalidade egoísta, típica de um proprietário, Paulo Honório
su a ambição poderosa, onde estão evidentes os traços da pretende se casar: é preciso ter um filho que seja o herdeiro das
penetração capitalista em nossa sociedade, leva-o a buscar na
riqueza e no domínio - em suma, na ascensão social - o sentido
) "O individual perante o individual só se conserva mediante o sacrifício do outro"
para a sua vida. Graciliano captou aqui um dos traços essenciais (Hegel, Estética. Lisboa: Guimarães, 1959, torno I, p. 97).
176 Cultura e sociedade no Brasil Graciliano Ramos 177

riquezas que acumulou. Não é o amor que o move, pois os egoístas da realidade, o que decorre por sua vez da diferente classe social
não conhecem o amor; ele busca a mulher como quem busca a que pertencem. São Bernardo é um romance de "ilusões
um objeto, uma propriedade. Este fato corriqueiro, porém, é perdidas": por um lado, da ilusão de que uma vida solitária e o
transformado por Graciliano num momento rigorosamente pequeno mundo do proprietário possam proporcionar uma
necessário no desenvolvimento da ação romanesca: através dele, realização humana digna e autêntica; por outro, da ilusão em
revela-se toda a limitação dos valores egoístas construidos por conciliar um ideal de solidariedade humana com a existência
Paulo Honório. Madalena, a esposa que escolhe, é o seu oposto solitária no interior de um mundo vazio e prosaico. Desta forma,
radical: para ela, uma vida verdadeiramente humana se confunde Graciliano - mesmo reconhecendo e analisando os aspectos
com a superação do egoísmo na realização da fraternidade positivos do capitalismo - põe a nu seu caráter contraditório e
autêntica. O sentido de sua vida é por ela buscado no rompimento autolimitador, sua incapacidade de destruir efetivamente, e não
com o "pequeno mundo", na abertura para uma autêntica apenas aparentemente, o cárcere de solidão. Contudo, por outro
comunidade humana; seu profundo humanismo chega mesmo a lado, não podem ainda deixar de ser abstratas as perspectivas
implicar, ainda que abstratamente, a aceitação do socialismo. que apontam para um mundo novo. Na ausência de uma classe
Deformado e mutilado pelo seu egoísmo, Paulo Honório não social verdadeiramente revolucionária, permanecem solitários
compreende e não se integra com Madalena. Desenvolve um e impotentes os indivíduos que se opõem ao capitalismo:
~
~\ ciúme doentio - que é próprio dos que vêem a pessoa amada o socialismo aparece ainda como uma pura aspiração subjetiva,
~ como um objeto, como uma posse -, impedindo assim Madalena sem encontrar na realidade as possibilidades concretas de sua
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~ : :
de levar uma vida autêntica, conforme às suas convicções.
Personagem trágica, dilacerada entre um mundo vazio e alienado
execução. O humanismo abstrato de Madalena, típico de setores
progressistas .de nossa classe média urbana, apesar de apontar
e um ideal (ainda) utópico de solidariedade, Madalena recusa para um futuro mais humano, revela-se igualmente incapaz de
o compromisso com a inautenticidade e se suicida. Este ato quebrar as paredes do pequeno mundo da prosa cinzenta e
repercute, na vida de Paulo Honório, através de uma dolorosa alienada da sociedade brasileira da época.
tomada de consciência: sua solidão ainda mais se acentua O caráter excepcional de Paulo Honório, entre ou tras coisas,
(inclusive com O abandono da fazenda por parte dos outros expressa-se na complexa integração dos valores pré-capitalistas
personagens), e ele percebe a inutilidade de seus esforços, e dos valores capitalistas que formam a sua personalidade.f
centrados na busca de uma realização humana apoiada na pura Movido por uma sede de lucro e de domínio que é própria do
ambição egoísta. Seu "pequeno mundo" revela-se como um cárcere, capitalista, Paulo Honório é - no essencial - um burguês típico;
como uma "danação". O momento trágico encerra o romance: mas permanecem em sua mentalidade certos aspectos arcaicos,
nem Paulo Honório nem Madalena conseguem se realizar
humanamente.
8 Nelson Werneck Sodré, referindo-se a Paulo Honório, observa que seu "ciúme
Este desfecho trágico, embora formalmente idêntico para ambos, traduz o sentimento possessivo de uma figura em que se verifica a influência de
possui uma natureza social e humana inteiramente antagônica. lima fase de mudança de relações capitalistas substituindo velhas relações de
serni-servidâo" (N. W Sodré, Ofício de escritor. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
Esta diversidade decorre da diferente atitude de ambos em face 1965, p. 20).
178
Cultura e sociedade no Brasil
Graciliano Ramos 179

como, por exemplo, o seu apego à vida rural e a sua incapacidade


sociedade a partir de um ponto de vista globalmente hegemônico
de ambientação na cidade. Ora, limitado pela estreiteza do meio
e inovador - é obrigado a conciliar com o velho e o caduco,
rural brasileiro, ainda essencialmente dominado por relações
com as forças que mantém o nosso atraso secular, e a se opor,
pré-capitalistas, ele está impedido de dirigir a sua ambição
conseqüentemente, às novas forças verdadeiramente renovadoras.
"demoníaca" para horizontes mais amplos, tão amplos quanto
Em suma, o capitalismo brasileiro, desde o seu surgimento, já
pudesse permitir o capitalismo urbano; por isso, mais ainda se
apresenta manifestações de crise estrutural, convivendo com a
acentuam as paredes de seu pequeno mundo e de sua solidão.
gestação de perspectivas que o transcendem. O herói do romance
Mas, precisamente por causa desta permanência de valores
europeu da época de consolidação da burguesia podia se basear,
arcaicos, Paulo Honório é o representante típico da burguesia
em sua luta contra o filisteísmo e a vacuidade do mundo burguês
brasileira, de uma burguesia que se ligou organicamente à
triunfante, nos valores do humanismo individualista da burguesia
mesquinhez da sociedade pré-capitalista e que renunciou, talvez
revolucionária. O Brasil, como vimos, não conheceu sequer um
definitivamente, aos princípios democráticos e humanistas do
esboço deste humanismo; mesmo os mais conseqüentes entre os
seu período de ascensão revolucionária nos países hoje
nossos burgueses, os que encarnam a mais alta possibilidade de
de São Bemardo,
( I

1'I'1' ' desenvolvidos. Na estrutura romanesca Paulo


,LI'
ambição e de progresso contida em sua classe, são obrigados a
j:J "
Honório representa - se visto do ângulo de Madalena - o "mundo
itJ
conciliar com o cárcere do "pequeno mundo, a limitar os seus
"
p.,\. convencional e vazio", aquela espessa realidade que condena
,ir esforços ao restrito campo permitido pelo desenvolvimento
, ,~
ao fracasso as melhores aspirações do "herói problemático".
5J •.,. vacilante e conciliador de sua classe (referimo-nos, naturalmente,
Ao mesmo tempo, porém, ele também é um "herói problemático",
~ :: precisamente na medida em que os elementos capitalistas que
aos indivíduos que, embora excepcionais, mantêm-se no interior
•... , ~. das possibilidades burguesas, sem romper com esta classe e buscar
formam a sua personalidade condicionam a busca de um sentido
horizontes mais amplos fora dela). Assim, a força que se opõe e
novo para a vida, fundado em sua ambição de elevação social,
derrota as suas ambições não é apenas, como no romance europeu
busca que o leva a chocar-se com o mundo estagnado e a adotar
do princípio do século XIX, a realidade circundante: essa força
uma atitude diversa da média cotidiana dos demais fazendeiros.
é sua própria limitação interior, a incapacidade - que é a de sua
Esta originalidade estrutpra] do romance de Graciliano _ classe - de superar o que neles existe de "mundo convencional
a saber, que um mesmo personagem seja simultaneamente e vazio", ou seja, o "pequeno mundo" da solidão e do egoísmo, a
elemento do "mundo convencional" e "herói problemático" _ conciliação interior com o atraso social.
tem suas raízes na própria realidade brasileira, em sua
Aliás, o próprio Paulo Honório - que é o narrador fictício de
especificidade com relação à européia. Decorre, a meu ver, do
São Bernardo - adquire, no final do romance, urna rigorosa
duplo caráter da nossa burguesia e de nosso capitalismo nascente:
consciência de sua condição e de sua problemática (consciência
ao mesmo tempo em que representa um papel progressista,
que é a determinante direta daquilo que o jovem Lukács chama
criando condições para o surgimento do "inconformismo" em
de "conversão", isto é, da descoberta da inutilidade de seus
face da estagnação anterior, o capitalismo brasileiro - por causa
esforços anteriores). Assim, ele nos diz: "Coloquei-me acima da
de sua fraqueza e de sua incapacidade de organizar a inteira
minha classe, creio que me elevei bastante (... ). Julgo que me

...:.;J.
180
Cultura e sociedade no Brasil Graciliano Ramos 181

desnorteei numa estrada (... ). Não consigo modificar-me, é o a grandeza e a autenticidade que ainda possuía nos personagens
que mais me aflige (... ). Os sentimentos e os propósitos [de de Balzac e Stendhal (grandeza e autenticidade que permitiam
MadalenaJ esbarraram com a minha brutalidade e o meu a estes escritores a criação de autênticos "heróis problemáticos")
egoísmo. Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão e dissolvendo-se nos conflitos mesquinhos e limitados de que
é que me deu qualidades tão ruins".?
iria se alimentar o naturalismo. Só no realismo russo,
Ou, em outras palavras, o tributo pago à "elevação" acima notadamente em Tolstói e Dostoiévski, vemos surgir um novo
da própria classe - à inquietação "demoníaca" - é a condenação tipo de "herói problemático" (ao lado de uma renovação do
a viver na solidão e no egoísmo. O destino trágico de Paulo antigo tipo): o indivíduo que busca realizar-se através da
Honório é o destino típico da burguesia brasileira, incapaz _ integração na comunidade humana, superando o individualismo,
pelas próprias limitações sociais e humanas - de superar o mas que - graças à inexistência objetiva desta comunidade -
"pequeno mundo" do interesse privado e de abrir-se para uma está também condenado ao fracasso (que se pense na trágica
vida comunitária e autenticamente humana. derrota do Príncipe Mishkin e na impotência de Aliocha
Madalena, ao contrário, apresenta uma problemática Karamazove de Nekludhov).!? Esta modificação da estrutura
humana inteiramente diversa. Ela se opõe radicalmente ao romanesca corresponde ao período de crise radical dos valores
~ mundo alienado, buscando um sentido para a vida, uma burgueses, notadamente os do humanismo individualista.
~\
:i' . verdadeira realização humana, na fraternidade e na solidariedade Ao que nos parece, Madalena é um "herói problemático" do
:~
~ I~ com os seus semelhante. Este é, naturalmente, um tipo novo na segundo tipo. Sua impotência trágica decorre, igualmente, de
'j .-

I. -, história da evolução da estrutura romanesca: o do "herói sua solidão: mas de uma solidão socialmente diversa daquela
problemático" individual que pesquisa um valor autêntico de Paulo Honório. Ela é solitária porque ainda não existe, como
comunitário e transcendente. Os heróis individualistas do grande fato objetivo e histórico, a comunidade humana autêntica; ou,
realismo francês do século passado são problemáticos na medida em outras palavras, sua solidão decorre da inexis têricia, na
em que, ignorando os valores transindividuais, centram o sentido sociedade brasileira de então, das classes sociais que tornariam
de suas vidas - e de sua oposição ao mundo prosaico e alienado possível, se não o estabelecimento, pelo menos a possibilidade
- na realização individual.: na ambição de progresso pessoal. concreta da criação efetiva de uma nova sociedade, de um
Ora, toda realização individual autêntica (isto é, não filístéia) "grande mundo" humanista e democrático. Neste sentido, ela é
no mundo burguês, onde inexiste a comunidade humana e onde o oposto de [ulien Sorel, o protagonista de O vennelho e o negro:
a alienação se tornou a realidade imediata, é impossível, estando a solidão de [ulien, seu total distanciamento do mundo e dos
a luta por ela condenada necessariamente ao fracasso. Com a demais homens, resulta da fidelidade que manteve ao jacobismo
evolução da sociedade burguesa na Europa Ocidental, com a tardio, encarnado na figura de Napoleão, que a evolução histórica
estabilização sempre maior do capitalismo, este individualismo já havia superado e destruído. Em Madalena, pelo contrário,
se transforma cada vez mais em egoísmo filisteu, perdendo assim
10 Examinei mais detalhadamente esta problemática em meu ensaio "Atualidade de
"Graciliano Ramos, São Bcmardo. São Paulo: Martins, 1964, p. 165-167. Dostoiévslci", incluído em Literatura e humanismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967,
p.191-215.
182 Cultura e sociedade no Brasil Graciliano Ramos 183

a solidão decorre do seu caráter pioneiro, do fato de ter ela na caracterização de sua problemática, o que não ocorre no
antecipado os valores que ainda permaneciam implícitos na classe caso da problemática do herói trágico; trata-se do tempo que
social (ou conjunto de classes) a que ela se ligava: sua tragédia vai da esperança e da ilusão que ela inicialmente alimenta, ao
é a tragédia do revolucionário - no caso, do revolucionário casar com Paulo Honório, à perda destas ilusões, à compreensão
possível - que se antecipa à história. Por outro lado, ao contrário da vacuidade de suas esperanças. Graciliano figura aqui, como
de Padilha (assim como J ulien Sorel ao contrário de alguns heróis grande realista, o triunfo da necessidade social objetiva sobre
balzaquianos}, ela não aceita o compromisso com a realidade as aspirações e os sonhos meramente subjetivos. Ao tomar
vigente, a adequação (mesmo que momentânea e apenas tática) consciência do caráter ilusório de sua busca de realização
à vacuidade e a imoralidade do "mundo convencional". Urna humana, Madalena prefere o suicídio à conciliação com a
autenticidade apenas parcial, pela metade, é para ela - corno inautenticidade; mas, como em todo grande romance, há também
para os grandes heróis da tragédia, tal corno esta foi estudada aqui uma evolução que a conduz, da falsa consciência inicial,
pelo jovem Lukács e por Goldrnann!' - sinônimo de uma total à consciência de si como personagem trágica.
inautenticidade. O universo dos seus valores é regido pela Madalena, como dissemos acima, é a expressão extrema das
categoria do "tudo ou nada"; este radicalismo impotente é a possibilidades contidas em um segmento da classe média urbana,
expressão, ao que nos parece, de uma das atitudes típicas da que tinha como ideologia um humanismo sincero mas abstrato,
classe média, de indivíduos solitários que, desligados da história e que - por sua própria condição de classe média e pelas condições
concreta, não compreendem as suas mediações dialéticas, aquilo do atraso brasileiro - permanecia isolada e desconhecia os
que Lênin chamou de "astúcia do real".
meios de levar à prática os seus ideais de solidariedade e de
É bastante problemática, a partir de uma tal caracterização, fraternidade. Em São Bemardo, nos personagens secundários,
a criação de um personagem romanesco realista, não romântico. vemos ainda encarnadas outras atitudes típicas de nossa classe
A profundidade de Graciliano, sua fidelidade simultânea aos média: em "seu" Ribeiro, o saudosismo impotente da classe média
princípios da arte e à realidade que pretende expressar, afasta rural; em Padilha, o recalque e a frustração como bases para a
este problema. Em primeiro lugar, fazendo de Madalena um aceitação, ainda abstrata, do socialismo; em D. Glória, o auto-
personagem central, por certo, mas secundário com relação a sacrifício pela família como forma de emprestar um sentido à
Paulo Honório; e, principalmente, em segundo lugar, vida, etc. Por não terem interesse direto na determinação da
apresentando-a inicialmente como portadora de uma ilusão - estrutura romanesca de São Bemardo, deixamos de analisar aqui
e, como tal, de uma esperança -, qual seja a de poder viver com mais vagar estas atitudes e estes personagens.
autenticamente, sem compromissos, no interior de um mundo Dois conflitos dialeticamente inter-relacionados - o conflito
inautêntico e alienado. Com isso, inclui-se a dimensão temporal entre Paulo Honório e Madalena e o conflito entre as forças da
reação e do progresso tal como se apresentavam em nossa
" Cf. G. Lukács, "Metafisica della tragedia", in id., Lanima e le forme. Milão:
realidade - formam o núcleo de São Bemardo. O desenvolvimento
Sugar, 1963, p. 305-347; e L. Goldmann, Le dieu caché. Paris: Gallimard, 1955,
p. 71-94. Há uma diferença, para a qual chamo a atenção do leitor, entre o herói desigual e duplamente contraditório do nosso capitalismo,
da tragédia (do gênero literário específico) e o destino trágico do herói problemático, determinado uma especificidade nas contradições humanas e
isto é, do herói do romance.
184 Graciliano Ramos 185
Cultura e sociedade no Brasil

sociais, leva Graciliano à criação de uma estrutura romanesca Este novo conteúdo, em Angústia, expressa-se por uma
bastante original, onde - em orgânica síntese dialética _ acentuação dramática das paredes do "pequeno mundo", do
coexistem elementos de dois níveis diversos da evolução da forma cárcere da solidão e da impotência em que está encerrado o
romanesca: o "herói problemático" individualista, típico do homem brasileiro. Em Caetés, há sempre a perspectiva - ainda
romance francês da primeira metade do século XIX, e o "herói que tênue e mal esboçada - de que a superação do
problemático" que busca valores comunitários, ainda que de provincianismo, a ida para uma grande cidade, possa propiciar
forma abstrata e solitária, surgido com o realismo russo da uma realização h uma na, uma expansão das potencia lidades
segunda metade do mesmo século. Apesar disso, ou exatamente esmagadas pela limitação no meio rural. Tipos cotidianos e
por isso, São Bernardo me parece ser o mais perfeito, o mais médios, nenhum personagem de Caetés dispõe-se a realizar a
"clássico" dos romances de Graciliano: foi nele que, com maior experiência, abandonando o interior agreste e atrasado pela vida
perfeição, o romancista alagoano soube encontrar - para em uma metrópole. O humanismo de Madalena e a eclosão de
expressar a contraditória realidade brasileira - urna estrutura um movimento revolucionário, em São Bemardo, podem fazer
romanesca orgânica e profundamente realista. crer que - embora a vida no meio rural esteja necessariamente
condenada ao fracasso e ao estancamento - talvez na cidade,
4. de onde vem Madalena e onde se inicia a "revolução", exista
alguma esperança, alguma perspectiva de abertura para uma vida
Após a "classicidade" de São Bemardo, pode parecer estranho,
mais rica e autêntica. Na realidade, o universo de São Bemardo
~ :::t ao leitor superficial, que Graciliano tenha escrito um romance
não autoriza esta crença: é evidente que aquela "revolução"
bastante diverso do ponto de vista técnico, no qual são mais
mudou muito pouco (por exemplo, permanecem intactas as
evidentes as afinidades com a chamada "vanguarda". Na
relações de propriedade rural) e que Madalena, também na
realidade, Angústia é um romance tecnicamente "vanguardista":
cidade, era uma solitária, obrigada a ir para o interior em busca
além do uso freqüente do monólogo interior, em sua forma da
da estabilidade econômica mínima. Contudo, São Bemardo não
livre associação de idéias, encontramos nele uma radical
é o romance das contradições que o capitalismo traz à vida nas
fragmentação do tempo, o que o aproxima das mais audaciosas
cidades, dos problemas específicos da nossa classe média urbana,
experiências do romance de vanguarda. Contudo, se aprofundarmos
de nossos "humilhados e ofendidos". Angústia seria este romance.
nossa análise, superando o nível imediato dos processos técnicos,
Situando os problemas num nível mais avançado do
reencontraremos em Angústia a estrutura clássica acima descrita,
desenvolvimento capitalista - embora para isso não seja
o respeito pelas leis universais de grande arte épica: em suma, o
necessário um avanço no tempo, mas apenas um deslocamento
profundo realismo que Graciliano, com São Bernardo, já
no espaço sócio-geográfico -, este romance já nos mostra a
introduzira na literatura brasileira contemporânea. Como o
impossibilidade da própria ascensão social individual, que ainda
dissemos acima, nenhuma inovação formal importante, num
fora possível no caso de Paulo Honório.
verdadeiro artista, é pura experimentação: ela decorre da
necessidade de expressar um conteúdo novo, de concretizar Angústia é o relato da história de Luís da Silva, último membro
artisticamente o enfoque de um novo ângulo da realidade. de uma família rural em decadência, que tenta "vencer na vida"
186 Cultura e sociedade no Brasil Graciliano Ramos 187

"
abandonando o campo pela cidade. Ele logo compreende o qualquer'l.F Graciliano, através do seu auto-irônico narrador
caráter ilusório desta tentativa; nem em Maceió, nem mesmo fictício, descreve com exatidão a vida mesquinha de seu
no Rio de Janeiro, Luís da Silva consegue se afirmar. Ao contrário: personagem, dividido entre a repartição onde trabalha
aí ele conhece a miséria mais extrema, inclusive a mendicância. mecanicamente e a redação do jornal onde vende, não sem
Trata-se de um novo elemento na obra de Graciliano, o da miséria conflitos íntimos, a sua consciência. Um fato novo, contudo,
econômica; nem em Caetés (onde inexiste qualquer ligação entre surge neste aparente marasmo, quando ele já não mais alimenta
a situação econômica e o destino dos personagens), nem em ilusões: Marina. É sem dúvida um fato importante, digno de
São Bemardo (já que Paulo Honório ainda pôde superar a sua registro, que tanto em São Bemardo como em Angústia tenha
inicial condição de miséria, ascendendo na escala social), a sido a tentativa mais imediata de superar o isolamento e a solidão,
miséria desempenha um papel decisivo na tragédia dos a ligação amorosa individual, a causa imediata da tragédia dos
personagens centrais. Não é o caso em Angústia (como não o dois personagens centrais. Naturalmente, Graciliano não nos
será em Vidas secas); aqui, as deformações psíquicas do quer dizer que foi a ligação amorosa em si o agente de terminante
personagem, sua frustração agressiva e sua incapacidade de da tragédia dos personagens; ela não faz mais do que tornar
equilíbrio, estão todas centradas sobre a sua miséria, sobre a sua realidade o que já era uma possibilidade implícita em ambos, a
inferioridade econômica e social. As dificuldades econômicas saber, a incapacidade de superar a solidão, de quebrar as paredes .1
"".
(
<'o •. , haviam-no levado a prostituir todos aqueles valores que do cárcere do egoísmo, descobrindo a verdadeira comunidade
Madalena, por viver desligada da necessidade de sustento ou
:\
com os outros homens. Pois nenhum dos dois conhece realmente ..•1
;1:::/ ..(
por ter sido amparada por D. Glória em sua juventude, pudera o amor, a integração com a pessoa amada em uma verdadeira
;i :)
conservar: a solidariedade humana, a honra, a dignidade pessoal. comunidade espiritual e sensual. Em Paulo Honório, o casamento
•..." "'~

Para conseguir um precário equilíbrio econômico, Luís da Silva se confunde com a transmissão da propriedade (e o desejo de
foi obrigado às mais graves concessões e compromissos: a bajular, amar vem muito tarde para modificá-lo): em Luís da Silva, com
a se vender como jornalista e como artista. A se tornar em suma, o puro erotismo. Onde inexiste a comunidade humana e os
um "bicho", uma "coisa", como ele mesmo diz. Obrigado a um homens estão atomizados entre si, como na sociedade burguesa,
trabalho alienado (ou diretamente a serviço de convicções que também o amor sexual se torna cada vez mais problemático.
não eram as suas, enq~anto jornalista, ou inteiramente Ele tende, agora, a ser a exclusividade dos que o fundamentam
desprovido de sentido criador, como era o trabalho burocrático), em uma comum identidade de projetos, dos que buscam uma
Luís da Silva é obrigado a renunciar às suas esperanças integração da vida privada com a vida pública (evitando que o
anteriores, a destruir o "dernonismo" que o havia feito migrar amor se transforme em uma paixão mórbida e monomaníaca),
para a cidade e buscar a própria realização como intelectual. dos que conseguem superar o egoísmo e o individualismo.
É nesta acomodação aparente com o "pequeno mundo", com Os solitários e os egoístas não conhecem o amor; e Paulo Honório
a alienação e o filisteísmo, que encontramos Luís da Silva antes e Luís da Silva, bem como Marina, são solitários e egoístas.
de conhecer Marina - "um cidadão como os outros, um diminuto
cidadão que vai para o trabalho maçador, um Luís da Silva 12 G. Ramos, Angústia. São Paulo: Martins, 1961, p. 18.
188 Cultura e sociedade no Brasil 189
Graciliano Ramos

Com o aparecimento de Marina, Luís da Silva volta a autêntica possível de romper com a alienação: "Nas redações,
experimentar uma esperança, superando o marasmo em que se na repartição, no bonde, eu era um trouxa, um infeliz, amarrado.
encontrava: durante algum tempo, a idéia de casamento domina Mas, ali, na estrada deserta, [Julião Tavares] voltar-me as costas
seus pensamentos. Reduzido a não poder ambicionar senão como a um cachorro sem dentes! Não. Donde vinha aquela
pequenas coisas, Luís da Silva aprende que nem mesmo estas grandeza? Por que aquela segurança? Eu era um homem. Ali eu
lhe são permitidas: Marina é seduzida por [ulião Tavares, um era um homem ( ... ) A obsessão ia desaparecer. Tive um
rico comerciante acidentalmente ligado a Luís; fascinada pelos deslumbramento. O homenzinho da repartição e do jornal não
prazeres mundanos e pelo dinheiro que Tavares lhe oferecia, ao era eu ( ... ). Tinham-me enganado. Em trinta e cinco anos
contrário de Luís, ela desfaz o casamento, não sem antes haviam-me convencido de que só me podia mexer pela vontade
consumir as parcas economias do "noivo". Toda a carga de dos outros. Os mergulhos que meu pai me dava no poço da
frustração e de agressividade que Luís da Silva recalcara e Pedra, a palmatória do mestre Antônio [ustino, os berros do
disfarçara através de uma vida mesquinha e "acomodada" agora sargento, a grosseria do chefe da repartição, a impertinência
volta à tona: J ulião Tavares lhe aparece, numa contraditória macia do diretor, tu do virou fumaça". I3

dialética psicológica, como aquilo que no fundo ele ambicionara


Aqui, como em todos os grandes romances do realismo
ser e, ao mesmo tempo, como tudo o que despreza e repugna.
crítico, manifesta- se o caráter ambíguo, simultaneamente
Nessa atitude, Graciliano retrata magistralmente a psicologia
a u tên rico e degra dado, do valor pesquisado pe 10 herói
típica do pequeno-burguês: a luta por atingir a condição de
problemático. Em um mundo do qual, como diria o jovem Lukács,
grande burguês, por subir na hierarquia social, e o profundo
Deus está ausente - ou seja, onde inexistem valores universais,
recalque que decorre da constatação de que é impossível esta
onde não tem lugar a comunidade autêntica -, toda pesquisa
ascensão (salvo em casos cada vez mais raros), o que conduz à
de valores é sempre demoníaca, necessariamente marcada pela
revolta e à frustração agressiva. Esta revolta se acentua na luta
degradação, pelo caráter puramente negativo e inessencial
que Luís empreende por não cair nas esferas mais baixas, por
(o jovem Lukács chega mesmo a dizer que o herói do romance
não se proletarizar inteiramente: o seu passado de mendicância
ou é louco, ou criminoso). Esta degradação decorre da solidão
e a presença decadente de "seu" Ivo estão em face dele,
do herói, de sua impotência, de seu desligamento da vida popular,
permanentemente, como possibilidades ameaçadoras.
de seu egoísmo: a luta contra o mundo hostil não é revolucionária,
Luís da Silva, após o rompimento do noivado, agarra-se a coletiva, mas sim a manifestação de uma revolta individual,
uma idéia fixa, torna-se um monomaníaco: só destruindo o seu necessariamente marginal. Contudo, apesar das formas degradadas
rival - e julião Tavares personifica tudo o que ele não é, tudo que assume, essa luta "demoníaca" é uma manifestação do que
aquilo que o conduziu a uma vida inútil e sem sentido - é há de mais humano no homem: sua insatisfação em face do real
possível recuperar o equilíbrio perdido, afirmar-se como homem alienado, sua busca desesperada da realização individual
autêntico, superar a sua condição de coisa inerte e desprezível. autêntica. A ação de Luís da Silva - o assassinato de Juliâo Tavares
O assassinato lhe parece como a única maneira de afirmar uma - revela, com evidência, esta ambigüidade a que nos referimos.
liberdade sempre desejada e jamais alcançada, a única forma
lJ Ibid., p. 176-177.
190 Cultura e sociedade no Brasil 191
Graciliano Ramos

Ela contém o que de melhor existe em Luís: a sua aspiração à puramente individual de Luís da Silva não altera a realidade,
liberdade e à autonomia, o seu ódio contra a opressão e a nem sequer a sua própria realidade individual. Os indivíduos,
indignidade. Mas, ao mesmo tempo, a solidão do personagem _ enquanto átomos, são impotentes: a possibilidade de mudar o
que o impede de transcender o aparente e encontrar os fundamentos curso das coisas, de influir sobre a realidade e sobre si mesmo,
essenciais de sua aspiração e de seu ódio - condena-o a uma ação está intimamente ligada à participação na vida social, ao fato
degradada e impotente: liquidando Tavares, um simples indivíduo, de não mais ser o indivíduo um sujeito isolado, mas um momento
Luís da Silva não destruirá a máquina capitalista de exploração, do sujeito histórico coletivo. A concepção do mundo subjacente
a deificação do dinheiro, que são os fatores que possibilitam a à "vanguarda" literária, ao fazer da solidão e do isolamento do
existência e a ação do repelente comerciante; nem tampouco _ indivíduo uma realidade metafísica e "eterna", eleva igualmente
e este é o conteúdo da "conversão" final de Luís, da tomada de o desespero e a impotência à condição de realidades eternas,
consciência da inutilidade de seu ato gratuito - lhe permitirá não apenas históricas e sociais. Em Graciliano, como no realismo
reconquistar a dignidade perdida, atingir a liberdade e a em geral, esta solidão e esta derrota - embora socialmente
verdadeira realização individual. Extinto o brilho passageiro de necessárias a partir da "situação" concreta em que determinados
sua ação extrema, Luís da Silva recai na monotonia de sua vida personagens estão engajados - não são transformadas em
mesquinha, na absoluta e integral falta de sentido em que já o metafísica condição humana; decorrem de certas condições
encontráramos antes dos eventos descritos no romance. objetivas e históricas, notadamente da posição de classe dos
Imediatamente após o assassinato, já ele nos diz: "( ... ) Veio-me tipos representados e da alienação do mundo em que vivem.
zr a certeza de que me havia tornado velho e impotente. - Inútil, Desta forma, o pequeno-burguês, enquanto pequeno-burguês,
1:;\ tudo inútil"."
não pode se libertar da miséria e da limitação do "pequeno
Assim, aquela possibilidade de libertação e de realização, mundo". Historicamente solitário, ele está socialmente
que havia consumido as melhores energias ainda existentes em condenado à impotência e a uma liberdade puramente abstrata.
Luís da Silva, revela-se uma possibilidade abstrata, falsa e E Luís da Silva é um típico representante de nossa classe média;
inconsistente. Nesta distinção entre possibilidade concreta e típico, inclusive, na medida em que - transcendendo com sua
possibilidade abstrata, re side uma das características mais ação a média cotidiana de sua classe - encarna uma possibilidade
profundas do realismo de Graciliano. Ao contrário do romance máxima de manifestação contida na revolta individualista. Seu
anti-realista - que, desligando o personagem da concreta ódio à burguesia, à indignidade e à corrupção moral não o conduz
realidade humana e social, não mais tem critérios (senão os a uma atitude verdadeiramente revolucionária, mas à revolta
puramente subjetivos) de hierarquizar as ações humanas, pelo vazia e à frustração agressiva. A condição de revolucionário -
seu confronto com o real-, Graciliano sabe relacionar a aspiração de efetivo transformador da realidade e, como tal, de homem
com a realidade, distinguindo entre a possibilidade puramente verdadeiramen.te livre - é própria dos que, transcendendo a
subjetiva e abstrata e a possibilidade objetiva e concreta. Assim, solidão e o individualismo, colocam-se do ângulo de uma
ele nos mostra que, longe de conduzir a uma solução, o ato comunidade revolucionária, de uma consciência-práxis de classe,
já que só um sujeito-totalidade pode penetrar e transformar a
14/bid., p. 179.
192 Cultura e sociedade no Brasil Graciliano Ramos 193

totalidade do real: só enquanto participante de uma comunidade subjetivo é um processo já antigo no romance, sendo uma das
é que o homem pode se realizar integralmente, abrindo livre características de muitas narrativas de "vanguarda". A partir
curso à manifestação da integralidade de suas possibilidades. do momento em que, colocando-se passivamente em face da
Como Madalena e Paulo Honório, ainda que por razões diversas, alienação do indivíduo com relação ao mundo histórico
Luís da Silva permanece solitário - e a solidão, determinando a (alienação que é o nível imediato da realidade no capitalismo),
radical impotência, equivale a uma "danação", a um inapelável alguns romances de "vanguarda" transformam a subjetividade
fracasso. individual fetichizada na única matéria de suas análises,
desaparece também - ao lado do mundo e da realidade - o tempo
Como Caetés e São Bemardo, também Angústia é um romance
histórico no qual se inserem as ações humanas, tempo do qual o
narrado na primeira pessoa. Esta aparente identidade, porém,
tempo subjetivo é apenas um momento subordinado, Por isso, a
não nos deve fazer perder de vista as radicais diversidades. Em
fragmentação e o estilhaçamento - que são apenas a expressão
Caetés, a narração na primeira pessoa tem a única finalidade de
de um ponto de vista subjetivo sobre o real - tornam-se a própria
destacar um personagem, fazendo dele o tipo central; como vimos,
realidade: a restrição do indivíduo à sua estreita subjetividade
trata-se de um processo de composição inteiramente arbitrário
não é apenas o tema central, mas o princípio de composição
Em São Bernardo,
I~)

;lli "
e inorgânico. jamais o narrador perde a
estrutural, a visão do mundo artística e ideológica. Naturalmente,
.~ )'

objetividade, apesar de tratar de sua própria vida: o fato da


~
,< narração ocorrer após o desenrolar dos acontecimentos garante
o resultado de tal procedimento não pode deixar de ser a
,'"
I~ dissolução da objetividade épica, da relação orgânica entre a
I ~~.: ao narrador a onisciência épica necessária ao processo de
fi; '..,
f~.' IL~
hierarquização e seleção da realidade, isto é, à objetividade
ação do sujeito e a "totalidade dos objetos" do mundo exterior
,\ !:J histórico; como conseqüência, temos a liricização do gênero
",",',01"'''' estrutural do romance. Por outro lado, o duplo tempo - o da
romanesco e a dissolução daquela forma que permite o realismo
ocorrência dos eventos e o da narração - tem por finalidade
verdadeiro e profundo. A arte se confunde então com o
não só garantir esta "distância" do narrador diante dos fatos,
depoimento pessoal.
como também ressaltar a patética "conversão" final de Paulo
Honório. Trata-se, portanto, de dois romances tecnicamente Não é isso o que ocorre em Graciliano. Tal como seu grande
não-problemáticos: um Iigado às técnicas específicas do contemporâneo, Thomas Mann, ele não confunde as técnicas de
naturalismo, outro às do romance realista tradicional. "vanguarda" - o monólogo interior e a fragmentação do tempo -
nem com o conteúdo nem com a forma estrutural. A estrutura
Angústia é um caso inteiramente diverso: aqui, o monólogo
formal de Angústia se funda sobre a dialética do herói (problemático)
interior (em sua forma radical da stream of consciousness) substitui
e do mundo (alienado); e isto, em primeira instância, porque a
freqüentemente, como técnica narrativa, a narração épica
solidão dos seus personagens não é mais do que uma modalidade
tradicional; ademais, o emprego de um tríplice tempo - o da
possível de sua integração no social. Por isso, neste romance, as
narração do presente, o da recordação da infância e do passado
técnicas de "vanguarda" são englobadas pela narrativa épica
e o dos devaneios subjetivos, o tempo subjetivo interior -
tradicional, que representa as ações humanas como uma dialética
introduz-nos em um fantástico universo de fragmentação e
de sujeito e de objeto, de consciência e de realidade.
estilhaçamento. A substituição do tempo real pelo tempo
194 Cultura e sociedade no Brasil 195
Graciliano Ramos

Graciliano relaciona com a realidade - dando primazia a de um homem ontologicamente isolado, sem nenhuma relação
esta - todas as fantasias imaginárias e as evasões subjetivas do orgânica com a realidade objetiva; nem busca tampouco,
tempo interior de Luís da Silva. As fantasias imaginárias através do monólogo interior, a "revelação" alegórica de
decorrem da aspiração, objetivamente explicada, de transcender abstrações vazias e pseudo-profundas. Ao contrário, Graciliano
- ainda que apenas subjetivamente - os limites de sua vida busca precisamente, com o auxílio da stream of consciousness,
mesquinha e miserável: "Esse passatempo idiota dá-me uma tornar imediatamente evidente uma realidade concreta e
espécie de anestesia: esqueço as humilhações e as dívidas, deixo essencial: o desequilíbrio e a dissolução psíquica do
de pensar". Por outro lado, elas sofrem o crivo do confronto com personagem, reproduzindo com maior intensidade dramática
a realidade, o que mostra a sua falsidade e inconsistência (que o seu desespero e a sua derrota socialmente condicionados.
se recorde o próprio assassinato e sua inutilidade): "Quando a Trata-se, portanto, do emprego de uma técnica visando a
realidade me entra pelos olhos, o meu pequeno mundo desaba". acentuar a realidade para melhor narrá-Ia (para reproduzi-Ia
Os recuos no tempo, a narração interpelada da infância e do artisticamente), e não da substituição da realidade essencial
passado do personagem, têm como finalidade a ampliação da pela reprodução mecânica de associações mentais fetichizadas
objetividade épica, isto é, o fornecimento da pré-história do ou por alegorias metafísicas; em suma, em Angústia, o monólogo
personagem, das razões e dos condicionamentos de algumas de interior é sempre um instrumento do realismo, nunca um fim
suas ações atuais. Por exemplo: "Sempre brinquei só. Por isso em si. Por outro lado, nos momentos em que se acentua a
cresci assim, besta e mofino". Além disso, tais recuos se dissolução interior do personagem-narrador, Graciliano - para
r: :' fundamentam também no desejo de evasão do presente, que é evitar a perda da objetividade - recorre à ironia: em face de
' ..•..
uma das componentes psíquicas mais profundas de Luís da Silva suas próprias fantasias e aspirações, Luís da Silva mantém quase
(sendo, por isso, um dos meios usados para a sua caracterização). sempre uma atitude irônica, auto-irônica, que lhe garante,
Também aqui, porém, Graciliano está consciente do caráter enquanto narrador, o necessário "distanciamento".
puramente subjetivo e abstrato dessa evasão, da sua
Assim, através de técnicas vanguardistas, Graciliano constrói
impossibilidade de modificar a realidade presente: "Tenho-me
um dos romances mais realistas da literatura brasileira, cuja
esforçado por tornar-me criança - e em conseqüência misturo
estrutura muito se aproxima da dos romances dostoievskianos
coisas atuais a coisas antigas ( .. ). Procuro um refúgio no passado.
de herói individualista (como Crime e castigo, por exemplo).
Mas não posso me esconder inteiramente nele. Não sou o que
Ao invés da mera descrição paranaturalista ou alegórica da
era naquele tempo. Falta-me tranqüilidade, falta-me inocência,
solidão e do desespero de homens abstratos, como ocorre em
estou feito um molambo que a cidade puiu demais e sujou"."
grande parte dos romances da "vanguarda" subjetivista,
Finalmente, o monólogo interior jamais é aqui um fetiche, Graciliano nos apresenta uma interpretação poética, que implica
um objetivo em si: Graciliano não visa à mera reprodução a representação da gênese social e das conseqüências humanas,
naturalista de uma associação de idéias, dos mecanismo psíquicos da solidão e do desespero de um homem concreto, típico: um
pequeno-burguês brasileiro.
'5Ibid .. respectivamente p. 141,87,107,14-18.
196 Cultura e sociedade no Brasil Graciliano Ramos
197

5. propriedade - fazem deste um nômade, sempre obrigado a


São Bemardo e Angústia, que viemos de analisar, têm como abandonar a terra no momento em que a seca anuncia a destruição.
conteúdo temático a contradição, que se estabelecia em nosso Em suma, inexistem condições sociais (e, consequentemente,
País, entre uma sociedade semicolonial em decadência e o tecnológicas) de resistir vitoriosamente à seca. Esta decadência
desenvolvimento de elementos capitalistas; também estes econômica, aliada à inexistência de uma economia mercantil
elementos capitalistas - por força da especificidade de nossa integrada e integradora, rarefaz ao extremo a realidade social
formação histórica e da natureza geral do próprio capitalismo - que nos é apresentada no romance: os camponeses estão
revelavam desde logo a sua interior ambigüidade e contraditoriedade. condenados a uma vida nômade e solitária, à luta contra um
Já observamos, na análise de São Bemardo, como esta complexa mundo inóspito, cuja hostilidade aparentemente se encarna no
estrutura dialética da realidade determinou, igualmente, o desericadeamenro de forças naturais incontroláveis. Como
nascimento de uma complexa estrutura romanesca, não obstante vemos, embora num universo social bastante diverso, ressurge
a identidade fundamental (na diversidade) entre ela e a do aqui a problemática central de Graciliano. a solidão do homem
romance realista tradicional. Em Vidas secas, seu último romance, como determinante de sua impotência trágica em face dos
Graciliano nos apresenta um setor da realidade brasileira que problemas que a sociedade lhe coloca, como obstáculo que se
ainda não fora (ou o fora apenas em proporções mínimas) opõe à realização humana e a uma vida autenticamente vivida.
penetrado pelos elementos capitalistas em sua forma moderna: O enredo de Vidas secas, correspondendo a esta realidade
a realidade agropastoril da região nordestina assolada pelas secas. relativamente simples e pouco densa, apresenta-se também ele
Em São Bemardo, a fazenda-título é um empreendimento que a simples: ao invés dos longos desdobramentos que caracterizam
ambição de Paulo Honório - através da introdução de inovações o romance realista do período de formação e ascensão da
tecnológicas - transforma num típico exemplo de penetração burguesia, temos aqui uma realidade quase linear, sem conflitos
de elementos capitalistas modernos no campo brasileiro; Vidas dramáticos intensos e restrita a um curto período temporal na
secas, ao contrário, nos apresenta um quadro evidente da vida de uma família de retirantes. Tangidos pela seca,
decadência de nossa estrutura agrária pré-capitalista, Fabiano e os seus migram em busca de uma região mais
decadência que, neste caso, não foi seguida por nenhuma favorável; terminam por se fixar numa fazenda abandonada,
renovação capitalista (inclusive no estrito sentido tecnológico). na qual Fabiano passa a trabalhar após entrar em acordo com
Daí o papel preponderante da seca, o seu caráter de fatalidade o patrão, sempre ausente e distante; com a volta da seca, eles
trágica: os homens concretos que formam a realidade econômica são novamente obrigados a abandonar a fazenda e retomar a
estão socialmente desaparelhados para enfrentá-Ia. A baixa migração. O romance situa a ação entre estas duas secas, isto
rentabilidade econômica da região é causa e efeito do desinteresse é, no período do estabelecimento provisório de Fabiano.
e do conservadorismo do proprietário; as formas serni-servis de A profundidade de Graciliano, entre outras coisas, revela-se
remuneração do trabalho - bem como, na maioria esmagadora no fato de que - neste curto período de tempo e neste limitado
dos casos, o fato de que o trabalhador rural não dispõe de espaço - ele aflorou e reproduziu a totalidade dos problemas
implícitos no desdobramento da ação, sem necessidade de
198 Cultura e sociedade no Brasil Graciliano Ramos 199

recorrer a largos panoramas e ações paralelas, o que não do "soldado amarelo" que representa o governo que garante e
corresponderia ao baixo nível psicológico dos personagens nem protege a dominação latifundiária.
à pouco densa realidade na qual eles atuam. Temos assim, Por isso, Fabiano é obrigado a aceitar e transigir com as
relacionados em uma estrutura organicamente coerente, os vários adversas condições que o mundo lhe impõe. Não pode comprar
problemas que generalizam e tipificam o universo agrário a cama de lastro de couro, única aspiração de Sinhá Vitória;
brasileiro, representados em situações e destinos humanos não pode reagir à cobrança de impostos, manifestação imediata
concretos: a exploração social, a solidão dos personagens, a da ação de um governo do qual não participa e que lhe aparece
consciência contraditória (entre passividade e revolta) do como um fetiche exterior e distante; não pode se livrar da absurda
trabalhador rural brasileiro, a frustração de suas mais ínfimas prisão, daquela kafkiana irrupção em sua vida de um
aspirações, as possibilidades (concretas e abstratas) de transcender ordenamento social que ele não tem condições de compreender,
a situação de miséria, ete. já que não contribuiu para criá-lo. É sua solidão radical, sua
Como dissemos acima, só aparentemente o nomadismo de marginalização involuntária da comunidade humana, sua falta
Il! Fabiano decorre de um fenômeno natural, ou seja, da seca: ele de integração com seus semelhantes, que o tornam impotente e
.1,'<.
«,
>
se liga, em primeira instância, ao fato de Fabiano não ser passivo, obrigado a aceitar e a capitular em face das regras de
',~I
::;l ;., proprietário, o que o impede de vincular-se definitivamente à um jogo absurdo, regras que ele não discutiu, de cuj a confecção
~ \.:, terra; e, em seguida, ao baixo nível tecnológico da exploração não participou e cujos autores ignora. Desligadas do "grande

..
t;~~'
"". ,li.,,:.

)"'" ,
agropecuária, o que torna os homens impotentes na luta contra
os fatores naturais (como a seca). Em suma: a problemática de
mundo" da história, da participação criadora na vida pública,
as camadas trabalhadoras do campo brasileiro - das quais Fabiano
~ i::J',
Fabiano decorre diretamente do caráter retrógrado e é um típico representante - estão igualmente condenadas
improdutivo da nossa estrutura agrária, inteiramente (socialmente condenadas) ao restrito "pequeno mundo" da
inadequada para proporcionar um nível de vida até mesmo solidão, o qual, neste caso, não possui nem mesmo os "refinados
medíocre aos trabalhadores rurais brasileiros. Obstaculizando atrativos" do seu equivalente nas classes dirigentes. Contudo, a
o avanço das forças produtivas e dispersando os camponeses, o passividade se combina em Fabiano com um profundo sentimento
latifúndio - o monopólio da terra - torna-se a causa da de revolta. Este sentimento de insatisfação revela-se
exploração e da miséria no campo brasileiro; é olatifúndio - e freqüentemente: em sua contraditória atitude em face do
não a seca, que só tem efeitos catastróficos por causa da "soldado amarelo" (e do governo que ele representa), no seu
estrutura social de dominação da natureza, que tem no inútil desafio lançado a todos quando está bêbado nas festas da
monopólio da terra a sua peça central - que encarna o "mundo cidade, no seu desejo irrealizado de abandonar aquela vida de
convencional e vazio" que impede Fabiano de levar uma vida miséria e humilhações pelo cangaço, etc. Todas estas atitudes
autêntica e humana. Solitário, conseqüentemente impotente, revelam, certamente, possibilidades de reação ao mundo hostil
Fabiano é presa fácil da exploração e do embuste, e desumano; contudo, ainda que Fabiano não execute nenhuma
impossibilitado de reagir não só às trapaças de seu patrão (nas delas (nem mate o soldado, nem brigue com todos, nem se torne
quais a exploração se faz evidente e imediata), como às violências cangaceiro), sabemos - como também Graciliano - que elas
200 Cultura e sociedade no Brasil Graciliano Ramos 201

não passam de possibilidades abstratas, formuladas a partir de desejo se apresenta nele como uma aspiração problemática, como
um projeto puramente individual e que, por isso, são impotentes uma busca solitária.
para modificar a realidade. A execução de qualquer delas Não levando à prática nenhuma das possibilidades abstratas
revelaria, mais cedo ou mais tarde, sua abstratividade, contribuindo de reação acima expostas, Fabiano permanece disponível para
assim para tornar definitivamente insolúvel a problemática do se engajar na única possibilidade de resolução dos seus problemas
nosso personagem. que, no universo do romance, apresenta-se como concreta: a integração
Apesar da passividade exterior (da não-execução de seus na economia capitalista, ou pelo acesso à pequena propriedade
"planos"), em nenhum momento Fabiano desiste de lutar, de da terra, ou pela sua transformação em operário urbano. Este é
resistir ao mundo hostil, de buscar uma situação que o arranque o conteúdo das reflexões de Fabiano, quando de sua segunda
da condição de animal e o conduza a um mínimo de dignidade "retirada": "Pouco a pouco uma vida nova, ainda confusa, se foi
que torne possível uma vida realmente humana. O conteúdo esboçando (... ). Cultivariam um pedaço de terra. Mudar-se-
de seu inconformismo - a força "demoníaca" que o impele para iam depois para uma cidade, e os meninos freqüentariam escolas,
a frente, mantendo sempre viva a esperança - não é a complexa seriam diferentes deles" .16
busca de valores autênticos (individualistas ou comunitários) Naturalmente, a longo prazo, esta integração no capitalismo
que caracteriza o romance do capitalismo evoluído: é a seria a fonte de novos problemas, que Fabiano ainda não pode
manifestação imediata do que há de mais elementar no homem, perceber. Contudo, dentro do universo do romance, isto é, em
o seu desejo de viver. E é este simples desejo de viver, de face do valor buscado - a vida, pura e simplesmente -, esta
autoconservar-se , que o opõe decisivamente a um mundo perspectiva representa uma possibilidade concreta de superação
~flll'" ,
inóspito, a um sistema de morte e destruição - pois a acomodação dos problemas essenciais que são aí aflorados (ainda que os
ao sistema do latifúndio significa, para o trabalhador rural substitua por outros), já que pode criar as condições que permitam
brasileiro, uma morte lenta e inexorável. A passividade a Fabiano ou aos seus descendentes manterem uma vida
absoluta, a adequação àquele mundo vazio e estático, é uma minimamente digna. Deve-se frisar que esta perspectiva não
opção - consciente ou não - pela autodestruição: para viver, é justa apenas do ponto de vista da estrutura formal de Vidas
para garantir as condiçã.es mínimas que possibilitem a secas, da coerência interna da obra; ela representa o próprio
manutenção da vida humana, é preciso se opor à realidade e movimento essencial da realidade brasileira, na medida em que
buscar uma via que aponte para fora daquele universo de o desenvolvimento capitalista pode - o que não significa
miséria e de morte. Portanto, O valor buscado por Fabiano, necessariamente que o fará - elevar o nível de vida dos
que o leva a contrapor-se a um mundo alienado - busca e trabalhadores rurais, levando-os a uma condição mínima de
contraposição que fazem dele, em sentido bastante lato, um dignidade de que eles hoje não desfrutam. A forma, em. Graciliano,
"herói problemático" -, é simplesmente a vida como realidade é uma maneira justa de representar artisticamente o movimento
imediata. Desligado da classe social à qual pertence, Fabiano e a estrutura da realidade.
não pode compreender claramente os meios através dos quais
é possível a realização do seu desejo de viver. Por isso, este 16 G. Ramos, Vidas secas. São Paulo: Martins, 1963, p. 169.
202 Cultura e sociedade no Brasil Graciliano Ramos 203

Assim, na obra no romancista alagoano, Fabiano é o único se tornando um pequeno proprietário ou um trabalhador urbano.
"herói positivo", não no sentido de que se realize humanamente, Mas sua classe conseguirá - tem a possibilidade concreta de
triunfando na luta contra o mundo hostil aos seus projetos (como fazê-lo - destruir o sistema social que a oprime, atingindo um
o Tom [ones de Fielding, por exemplo); mas no sentido de que é nível de vida com condições mínimas de dignidade. Na medida
o único que tem a possibilidade concreta de fazê-lo, ou seja, o em que o verdadeiro tipo realista é uma fusão dialética (não
único cuja solidão - mesmo no interior de sua situação concreta mecânica) de indivíduo e de classe, de singular e de universal,
presente - não é necessariamente trágica, já que pode ser Fabiano - lll.eSmOenquanto indivíduo - possui a possibilidade
superada, E essa possibilidade decorre, naturalmente, não de de realizar objetivamente os valores mínimos a que se propõe.
Fabiano enquanto indivíduo, mas da classe social à qual Por isso, em Vidas secas, seu futuro é um futuro aberto, contendo
pertence. Pois todo indivíduo, enquanto indivíduo, possui uma a possibilidade da realização ou do fracasso. E esta abertura para
ampla margem de liberdade para adotar este ou aquele ponto o futuro, ao contrário da necessária tragicidade de Paulo Honório
de vista de classe, Ao contrário do que pensa o mecanicismo - e Luís da Silva, é dada - em ambos os casos - pela própria
ou, em literatura, o naturalismo -, a participação do indivíduo realidade brasileira: enquanto a burguesia latifundiária e a classe
).,
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em uma determinada classe social não é um fato mecânico, média tradicional não podem transcender, enquanto classes, o
estabelecido de uma vez por todas. Esta participação revela-se, "pequeno mundo" da miséria brasileira17 - sendo necessariamente
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.:.. I~'~.
,~:.: precisamente, nos momentos decisivos da vida de um homem,
na atitude e na maneira de reagir em face de um problema vital
trágicas ou grotescas em sua tentativa de fazê-lo -, a camada

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colocado pela realidade, atitude e reação que podem diferir
trabalhadora rural é uma classe potencialmente revolucionária,
que participa do conjunto de classes sociais que têm real interesse
•... ,•.. , das assumidas normalmente na vida cotidiana. Desta forma, na destruição da miséria brasileira e na criação de um "grande
Paulo Honório, Madalena e Luís da Silva, enquanto indivíduos, mundo" democrático. Naturalmente, Fabiano - e mesmo toda a
não são aprioristicamente condenados à tragédia; sua tragicidade classe a que pertence - podem fracassar em sua busca de
se torna necessária no momento em que, diante de determinado realização humana, tendo as suas (ainda confusas) esperanças
problema, eles assumem a posição de determinada classe - e convertidas em trágicas ilusões (como tem sido o caso até nossos
esta classe, enquanto classe, não comporta nenhuma perspectiva dias); entretanto, há a possibilidade concreta de que isto não
ou possibilidade (concreta) de solução para o problema em ocorra. Esta possibilidade, assim, é suficiente para permitir a
questão. Paulo Honório não consegue superar o seu egoísmo Graciliano esboçar uma perspectiva claramente otimista em seu
burguês, Madalena permanece em seu radicalismo solitário último romance, sem com isto sair dos amplos limites do
pequeno-burguês e Luís da Silva não transcende a revolta verdadeiro realismo.
marginal e inconseqüente que é a única que o seu isolamento Trata-se de um caso raro, não muito comum na história do
igualmente pequeno-burguês permite: daí a tragicidade de suas romance, essa criação de "heróis positivos", isto é, de heróis
vidas. que realizam os valores implícitos na sua ação, triunfando do
Fabiano, tomado isoladamente, individualmente, pode por mundo hostil, ou que, simplesmente, apresentam uma possibilidade
certo fracassar, não conseguindo resistir à nova seca, ou jamais
17 Uso o termo no sentido em que Heine usou "miséria alemã".
204 eu Itura e sociedade no Brasil Graciliano Ramos 205

concreta de fazê-Io, não tendo a sua "busca" um caráter dramaticidade - aliada à solidão dos personagens, à sua
necessariamente trágico. Este foi o caso, por exemplo, do grande dificuldade de comunicação - determina de imediato, em Vidas
romance inglês do século XVIII (que se pense em Tom [ones, de secas, a supressão quase total do diálogo. A possível "positividade"
Fielding, ou em MoU Flanders, de Oefoe). Tratava-se de uma do herói torna esta composição aberta mais adequada, já que
época de ascensão da burguesia, de rompimento das limitações mais próxima do pathos positivo da epopéia (na qual a "positividade"
feudais, sendo a vitória do herói a expressão da vitória dos valores do herói é absoluta). Além disso, para que o personagem
individualistas da burguesia sobre os valores estratificados do contivesse em si as várias possibilidades, para que fosse um
feudalismo. Quando a sociedade burguesa se solidificou, personagem "aberto" (de positividade possível), Gr aciliano
revelando sua própria limitação e vacuidade, esta vitória do aproxima Fabiano - mais do qualquer outro de seus personagens
indivíduo contra o mundo, contra as formas vigentes da realistas - do universal, da "média". Fabiano não realiza
alienação, tornou-se cada vez mais problemática: o individualismo nenhuma das possibilidades extremas contidas em sua classe
se faz trágico e revela o seu caráter ilusório (que se pense em (por exemplo: a revolta consciente, a adesão ao cangaço, ao
Balzac, Stendhal ou Flaubert}. Graciliano, em Vidas secas, beatismo, etc.); mas, com isso, não perde a sua singularidade, a
reencontra elementos da forma estrutural do romance inglês, sua individualidade, ainda que não seja - como Paulo Honório,
'i.,
naturalmente com diversidades gritantes e profundas: aqui não Madalena e Luís da Silva - um tipo excepcional. Mas ele
se trata, certamente, da concretização de uma vitória, como em tampouco é uma encarnação alegórica de princípios abstratos,
Fielding e Defoe, mas de sua possibilidade (como é o caso, como o são, por exemplo, os "camponeses" do romance Corpo
ademais, de grande parte dos romances socialistas, onde o vivo, de Adonias Filho. Ao lado da exigência formal, estrutural,
combatente pelo novo mundo - mesmo que parcialmente a própria realidade permitia esta caracterização: ela se baseia,
derrotado - tem a possibilidade concreta de triunfo futuro: que sobretudo, na baixa complexidade da psicologia de nosso
se pense, por exemplo, na heroína de A mãe, de Górki); e não trabalhador rural, o que toma difícil e problemática, ainda que
se trata também do capitalismo como realidade efetiva, triunfante não impossível (como o demonstram alguns romances de José
- como no romance inglês -, mas sim como horizonte, como Lin s do Rego), uma caracterização mais singularizada e
perspectiva de solução (pata insistir no paralelo: como o individualizada. Mesmo como tipo médio - e, no caso, talvez
socialismo aparece em alguns romances socialistas). precisamente por isto -, Fabiano é um tipo autêntico e realista,
Esta estrutura e este universo determinam, em Vidas secas, um tipo particular, ainda que mais voltado para a universalidade
novas diversidades técnicas, estilísticas: a concentração do que para a singularidade. (Que se recorde a afirmação de
novelística e dramática, própria dos romances em que fracassam Lukács, segundo a qual a particularidade - a tiPicidade - é um
as tentativas do herói (Balzac, Stendhal, o Graciliano de São ponto cuja fixação varia no interior de um campo, o qual tem
Bernardo e Angústia), cede lugar a uma composição aberta, por limites extremos a universalidade abstrata e a singularidade
relativamente linear, onde as partes possuem uma maior hipostasiada.) 18
autonomia relativa, embora se mantenha a organicidade (como
18 G. Lukács, Introdução a uma estética marxista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
é o caso em Tom Jones e em MoU Flanders). Esta diminuição da 1970, p. 242 e ss.
206 Cultura e sociedade no Brasil Graciliano Ramos 207

6. tipos de Ivã e de Aliocha.) Finalmente, com Vidas secas, temos


Trabalhando sobre uma realidade social e humana o esboço de um "herói positivo" - cuja problematicidade pode
extremamente complexa - que comporta em si, sem situação de se tornar acidental, deixando de ser necessária -, com a
simultânea contradição e integração, sistemas sociais diversos e conseqüente criação de uma estrutura aberta, mais próxima da
em diversas fases de evolução -, Graciliano recorre, em sua composição livre da épica clássica do que da concentração
tentativa de captá-Ia artisticamente, a diversas formas de novelística típica do romance do século XIX. (Este é o caso,
estrutura romanesca. Ele recria, ao reproduzir a totalidade também, do romance picaresco do século XVIII e, em
brasileira em seus vários níveis de evolução, algumas das formas .circunstâncias diversas, de alguns romances socialistas.)
básicas que a estrutura romanesca assumiu em seu processo Em todos este casos, Graciliano procurou transcrever
histórico-sistemático de desenvolvimento. A necessária tragédia artisticamente aspectos da nossa realidade, daquela complexa
do individualismo burguês determina, em São Bemardo e em realidade na qual, em alguns casos, a capitalismo já surge como

"I
Angústia, a recriação da estrutura balzaco-stendhaliana, com o limitação e como fator de redobramento da alienação
"herói problemático" que busca a realização humana a partir da (determinando assim, ainda que abstratamente, uma aspiração i., 'i
própria individualidade, sendo derrotado no combate com o e uma tendência para o socialismo); e, em outros, corno fator de , -'I
mundo alienado e prosaico, mas tomando consciência, no final, progresso e de libertação em face da velha sociedade 11,'
da inutilidade de seus esforços. Esta mesma problemática, ~;' i!!1
semicolonial. O fato de que esta procura tenha sido em
intensificada ao ponto da dissolução interior do indivíduo,
determina em Angús tia a absorção de recursos técnicos
desenvolvidos pela vanguarda (do mesmo modo como, por
exemplo, nos últimos romances de Thomas Mann). A crise do
Graciliano coroada de êxito - graças ao reencontro da estrutura
formal dos grandes clássicos, não como forma vazia e
mecanicamente aplicada, mas como forma concreta de um
conteúdo concreto, como reflexo artístico da realidade brasileira
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individualismo, a luta por encontrar um sentido transindividual - faz dele, ao mesmo tempo, um clássico e um realista, o
para a vida - expressão de um época em que o indivíduo, construtor de uma obra na qual os princípios artísticos universais
enquanto indivíduo, já não é mais valor em si -, encarna-se no e a reprodução do hic et nunc não estão em contradição, mas em '\
tipo de "herói problemático" representado por Madalena, o qual orgânica e viva unidade.
busca um valor comunitário, mas que, dados a inexistência
A relação entre a estrutura romanesca e a realidade,
objetiva da comunidade e o caráter solitário da busca, é
contudo, não é uma relação direta, fundada apenas sobre uma
impotente em face da realidade e fracassa igualmente (este tipo
homologia acidental, mas uma relação dialética mediatizada
de herói surge, no romance moderno, com O Idiota de
por uma visão do mundo. Esta visão não é jamais, no caso da
Dostoiévski). A complexa dialética que relaciona, em São Bemardo,
verdadeira arte, uma visão puramente individual: o verdadeiro
os dois tipos de "herói problemático" fundamenta a criação de uma
sujeito da criação artística (ou cultural em sentido amplo) é o
estrutura romanesca original, que expressa a específicídade de nossa
gênero humano classística e historicamente determinado, isto
contraditória realidade. (Uma originalidade similar pode ser
é, um sujeito-totalidade cujo ponto de vista permita uma visão
encontrada em Os irmãos Karamazov, na relação entre os dois
totalizante das relações humanas globais, garantindo assim a
208 Cultura e sociedade no Brasil Graciliano Ramos 209

universalidade necessária à criação da grande arte. O conteúdo natureza do herói quanto da sua relação com o mundo e com os
mais geral da visão do mundo que se expressa de modo sensível valores implícitos em sua ação. Desde logo, devemos advertir
(não conceitual) nas obras de arte realistas é o humanismo: a que a visão do mundo humanista quase nunca é a expressão da
defesa da humanitas - da integridade e da unidade do homem - consciência real de uma classe, mas de sua consciência possível; 19
contra a alienação e a mutilação do indivíduo e da comunidade isto é, o escritor (ou o artista, ou o pensador) tornam coerente e
autêntica. No caso concreto do romance, este humanismo orgânica, levando às últimas conseqüências, a visão do mundo
expressa-se sobretudo, salvo raras exceções, em sua forma apenas esboçada ou intuída - e sempre heterogeneamente, em
negativa: na crítica radical dos fundamentos de um mundo composições não-orgânicas com outras visões do mundo - pelas
alienado, que obstaculiza ou impede as melhores aspirações do classes sociais das quais são os representantes ideológicos. Daí
homem, condenando-o à solidão e à impotência trágica. porque o romance realista burguês, ou crítico, é o oposto radical
Ao lado deste aspecto negativo e crítico, entretanto, a defesa da visão do mundo real da burguesia dominante; ele se
da humanitas expressa-se também numa forma parcialmente fundamenta ideologicamente no hurnanismo burguês clássico,
positiva na criação do "herói problemático", isto é, na que é o máximo de consciência possível do gênero humano em 'I"
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representação da práxis criadora e prometeica do homem que dada etapa de sua evolução histórica. Da mesma forma, o fq
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não se conforma passivamente à alienação e luta por encontrar romance sccialista - que se baseia no humanisrno militante do II·fl
um sentido autêntico para a vida, mesmo que, em muitos casos, proletariado - fundamenta-se, em muitos casos, na consciência ,hll~.
I
seja esta luta igualmente alienada - porque fundada em seus
próprios recursos individuais - e, por isso, impotente e trágica.
possível da classe operária, sempre que esta classe, por condições
históricas determinadas, aliena-se à ideologia burguesa vulgar
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Em suma, as lutas do herói problemático, sua busca desesperada e trai o humanismo militante que é a sua mais conseqüente ,i ~'
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e sua impotente oposição à alienação - desespero e impotência expressão ideológica.
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decorrentes sobretudo de sua solidão -, constituem um violento Voltemos a Graciliano. Enquanto sua visão do mundo ~!;~
protesto contra a alienação capitalista e uma afirmação, ainda expressava-se em um pessimismo impotente.P que negava a ação
que por vezes igualmente alienada e abstrata, das profundas do homem sobre o "meio ambiente", ele revelou-se incapaz de
aspirações do homem a ~ma vida autêntica e comunitária.
Entendido em sua generalidade, é este h urnanisrn o o 19 Para a distinção entre consciência de classe real e possível, cf. Lucien Goldmann,
fundamento ideológico da estrutura romanesca. Entretanto, com Le dieu caché, ()p. cit., p. 97 -114.
a evolução da vida social, tal humanismo adquire formas 20 De uma maneira errônea, a meu ver, dois inteligentes críticos de Graciliano Ramos
generalizaram este pessimismo para toda a obra do romancista, transformando-o em
concretas e diversas, em relação com a classe social e com a sua visão do mundo geral. Trata-se de Antônio Cândido ("Ficção e confissão", in G.
época histórica que constitui sua infra-estrutura. Em outras Ramos, Caetés. São Paulo: Martins, 1961, p. 53) e Rolando Morei Pinto (Graciliano
Ramos: autor e atoT. Assis, s.e., 1962, p. 25), que falam, respectivamente, em "pessimismo
palavras: o humanismo implícito na forma romanesca como
radical" e em "ceticismo, pessimismo e negatívismo". Além disso, une estes dois
gênero literário está sujeito a variações históricas, que críticos uma acentuação exagerada do aspecto autobiográfico dos romances de
determinam dialeticamente as variações no interior da própria Graciliano - o que, em minha opinião, contribui pouco para a análise literária e
sociológica de tais romances. Não obstante, o belo ensaio de Cândido continua sendo
estrutura romanesca, ou seja, as variações históricas tanto da uma importante contribuição para o conhecimento da obra do romancista alagoano.
210 Cultura e sociedade no Brasil Graciliano Ramos 211

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criar uma verdadeira estrutura romanesca realista: daí o quase necessariamente, no plano da criação artística, a uma
naturalismo, e a conseqüente dissolução da forma, que vemos queda na utopia, à negação radical da realidade e,
em Caetés. Sua verdadeira criação romanesca corresponde ao consequentemente - como foi o caso dos nossos "realistas
período no qual Graciliano assimilou e defendeu os valores do socialistas", como o primeiro Jorge Amado - ao romantismo
humanismo. Mas esta defesa só se tornou possível porque "revolucionário", ao anti-realismo. A adesão à burguesia, em
Graciliano se colocou do ponto de vista de um grupo social que seu sentido estrito, condicionaria limitações não menos
criticava a sociedade, que expressava em sua práxis uma potencial evidentes, já que a nossa burguesia jamais formulara - nem tinha
subversão da ordem vigente, do mundo alienado e do cárcere condições potenciais de fazê-lo - uma visão do mundo humanista
da solidão. Ao que nos parece, o humanismo de Graciliano, sua própria, rigorosamente independente tanto da ideologia do
visão do mundo, são o máximo de consciência possível do povo colonialismo quanto do humanismo militante do proletariado.
brasileiro, isto é, do conjunto de classes sociais que se opõem à Graciliano transcende o humanismo burguês possível à burguesia
realidade semicolonial e que lutam pelo desenvolvimento brasileira, na medida em que' rejeita qualquer compromisso com
independente, nacional e democrático de nosso País, não o mundo decadente, com o colonialismo em crise, com o ]1il
hesitando, nesta luta, em formular uma perspectiva socialista, "pequeno mundo" da solidão e do egoísmo, e em que aceita,
ainda que abstrata (tal como as próprias condições permitiam). ainda que abstratamente, a perspectiva do socialismo; mas i~';I!t
'!Df.'.'f
(,

Acreditamos que só a adesão ao ponto de vista deste conjunto também não atinge, em sua obra da ficção, a concreticidade do Ij1)] 1
I'T',!
de classes poderia permitir, a um escritor brasileiro da década humanismo proletário, já que era impossível, a partir de um ponto
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de 30, a criação de uma estrutura romanesca realista e autêntica. de vista inteiramente crítico do capitalismo nascente, a , 'II,!';'
i~,'r·.".,i.:1
(p!,\,',"j.

A definição por esta ou aquela classe no interior desta frente formação de Uma perspectiva globalizante e a fidelidade ao real. i~q:.I~i,j
1 m.
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única (equivalente brasileira do Terceiro Estado europeu) traria Precisamente na medida em que se apóia sobre um conjunto de i: ~;:!U
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conseqüências altamente problemáticas. A partir da consciência, classes realmente revolucionário - e que não se isola da sociedade,
mesmo possível, do conjunto dos trabalhadores rurais ou da classe não se marginaliza de uma práxis concreta, mas tampouco
média urbana seria bastante difícil a criação de uma grande concilia com a "miséria brasileira" -, Graciliano atinge uma
arte: estas classes não possuíam um ponto de vista global, perspectiva simultaneamente positiva e negativa, sem a qual O
universal, sobre a realidade brasileira, já que estavam interessadas romance realista é impossível. Pois é preciso criticar o mundo
apenas em transformações parciais, em reformas (os trabalhadores em sua degradação, em sua vacuidade alienada; mas é preciso
rurais, por exemplo, não tinham condições de formular reconhecer também que, apesar de tudo, ele é ainda
claramente, pelo menos de imediato, uma perspectiva socialista; suficientemente positivo para permitir e condicionar o
os seus interesses se confundiam com o acesso à pequena nascimento de "heróis problemáticos", isto é, para manter um
propriedade, com uma reforma agrária capitalista). O proletariado, mínimo de valores que fundamentem o "inconformismo
por sua vez, ainda era entre nós uma classe majoritariamente demoníaco" de alguns indivíduos ou grupos.
desorganizada, impotente e marginalizada; a adesão explícita Aliás, a nosso ver, não é Graciliano o primeiro pensador ou
aos seus pontos de vista - à sua consciência possível - levaria escritor a fundar uma visão coerente sobre um conjunto de
212 Cultura e sociedade no Brasil Graciliano Ramos 213

classes (sendo esta visão coletiva diversa das visões particulares para superar a necessária ilusão sobre a qual se assenta: como
das classes que compõem o conjunto). Este é o caso, ttvutatis Rousseau, Graciliano não se recusa a criticar violentamente o
mutandis, de Rousseau e dos revolucionários jacobinos franceses. filisteísmo burguês, jamais confundindo o grande humanismo
A ideologia democrática de Rousseau era o máximo de com a defesa dos interesses particulares da burguesia; como
consciência possível de todo o povo, do Terceiro Estado que se Thomas Mann, este lúcido humanista de nosso tempo,
opunha ao feudalismo e ao filisteísmo cortesão, mas que já Graciliano não se recusa a enxergar no socialismo o horizonte
apontava também para uma crítica do próprio capitalismo. no qual o humanismo burguês, conservando-se e superando-se,
A burguesia repudiou a ideologia democrática do rousseauísmo- desemboca necessariamente."
robespierrista (que se pense na reação termidoriana), enquanto E aqui se coloca um problema fundamental na análise da
o proletariado, em sua evolução, superou-a dialeticamente obra de Graciliano: qual o lugar que ele ocupa na história da
(basta lembrar Babeuf e a Conjuração dos Iguais); disso resultou evolução do realismo? É ele um realista crítico ou um realista-
o trágico isolamento dos jacobinos em 1793, seu dilaceramento socialista? A distinção entre as duas formas de realismo não é,
interior, a manifestação concreta da real contraditoriedade que
Rousseau e Robespierre ignoravam. Mas, apesar deste fracasso
de modo algum, um problema puramente estilístico, ou de tema, :[
"
,< ou mesmo de rnétodo: é um problema de estrutura. No caso do I.

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~f '" prático-político, O democratismo igualitário de Rousseau romance, a passagem do realismo crítico ao realismo socialista I,i" .
~ ." "',';111
iI ....,. representou, em seu tempo, um dos pontos de vista mais elevados tem como principal característica a substituição do "herói
~
r,-·\"
e profundos que a humanidade havia alcançado, o máximo de problemático" individual por um herói comunitário; ou seja, no
consciência possível no interior da sociedade européia de então. realismo socialista, o "herói problemático" que busca valores
Como ideologia, como visão do mundo (e também como fator autênticos, entrando em choque com o mundo vazio e alienado,
de organização da vontade coletiva, como diria Gramsci), apesar não é mais um indivíduo solitário, mas uma comunidade
de seu caráter politicamente utópico, o igualitarismo problemática. Enquanto indivíduos, os principais personagens do
revolucionário - a expressão politicamente mais radical do romance socialista não são mais problemáticos (a não ser na
grande humanismo clássico - cumpriu a sua missão histórica. medida em que a sua problematicidade decorra do caráter
O mesmo pode ser dit? da visão do mundo democrático- problemático da comunidade da qual participam): os seus valores
humanista de Graciliano. Também a realidade brasileira, em
sua evolução, demonstrou a contraditoriedade implícita na lf Esta mesma visão do mundo, ao que me parece, não encontrou uma expressão
aliança das forças antiimperialistas e democráticas; nem por isto, conceitual (filosófica) tão coerente quanto a artística, devida a Graciliano. Isto foi
tentando por alguns teóricos do extinto ISEB, notadamente por Álvaro Vieira Pinto,
contudo, o ponto de vista do humanismo democrático popular
em seu interessante livro Consciência e realidade nacional. Rio de Janeiro: ISEB, 2 vais"
deixou de ser o mais adequado, em dado momento histórico, 1960, Contudo, escrevendo quase trinta anos após Graciliano - num período no qual
para a criação de grandes obras realistas capazes de figurar a as contradições internas entre as classes que compõem o povo brasileiro já haviam
atingido um nível bem mais elevado -, Vieira Pinto parece-me ter elaborado não uma
complexa e contraditória sociedade brasileira. Gostaria "filosofia", ou uma visão do mundo, do povo brasileiro, mas uma expressão do máximo
ainda de observar que, não obstante esta contraditoriedade, de consciência possível dos setores mais radicais da burguesia, Por exemplo, a aceitação
do socialismo é muito mais clara e evidente em Graciliano romancista do que neste
o humanismo de Graciliano abre-se para o futuro e tem os elementos
livro do digno Professor Vieira Pinto.

I
I
d
214 Cultura e sociedade no Brasil Graciliano Ramos 215

são claros, definidos pela sua participação na comunidade. Esta Madalena e Moisés apontam para um universo novo, para uma
comunidade, entretanto, manifesta a sua problematicidade em comunidade humana autêntica. Entretanto, em nenhum dos
dois casos: 1) na medida em que não são inequívocos, mas sim dois romances esta perspectiva se concretiza a ponto de
ambíguos e contraditórios, os meios pelos quais os valores - determinar o inteiro universo da obra, transformando o herói
a revolução socialista e o humanismo proletário - devem ser problemático em uma comunidade e o socialismo em um valor
conquistados na realidade (que se pense na comunidade concreto e efetivo. O humanismo de Madalena é abstratamente
revolucionária dos comunistas chineses, em A condição socialista, contém o socialismo como uma possibilidade, como
humana de Malraux: ela está dilacerada entre o espontaneísmo uma tendên.cia: mas Madalena permanece uma heroína
revolucionário e a disciplina imposta pela Internacional); individual, buscando sua realização humana no plano individual
2) na medida em que a própria formação da comunidade é (ainda que aspirando à fraternidade e à comunidade). Por isso,
problemática, estando ela permanentemente ameaçada de ela é uma solitária, uma impotente, necessariamente condenada
dissolução pelas forças do mundo hostil (recorde-se a difícil à tragédia. Também Moisés, personagem secundário de Angústia,
formação da comunidade dos colcoses, em Terras desbravadas de é um solitário, dissociado da comunidade, antes ansiando pelo
.,.:.
I
J~. Cholokhov). Não importam aqui as variações interiores da socialismo do que lutando concretamente por ele. Graciliano,
"';111.,
estrutura do romance socialista, mas sim sua característica por certo, critica a sociedade capitalista, denuncia a alienação I~!
ir!ll:
diferenciadora essencial: o caráter comunitário, não meramente que lhe é inerente, a brutal redução dos homens aos estreitos 11: "
individual, do "herói problemático"." limites de sua vida privada, pondo a nu as suas insolúveis I
Inexiste na obra romanesca de Graciliano este tipo de "herói contradições (embora evitando, como realista, qualquer
problemático comunitário" (ou, sob outro ângulo, heróis anticapitalismo romântico, isto é, reconhecendo o que o
individuais ligados organicamente a uma comunidade). É certo capitalismo representava de progressista na estagnada sociedade
que dois romances de Graciliano - São Bemardo e Angústia - brasileira). Es ta crítica, no entanto, como é o caso nos realistas
possuem uma clara, embora abstrata, perspectiva socialista: críticos, permanece no interior do universo do capitalismo: a
comunidade humana autêntica e o homem novo (literariamente:
II Coube a Goldmann a descoberta e descrição desta forma estrutural do romance, O herói positivo) são possibilidades, aspirações subjetivas para onde
desenvolvendo e ampliando o esquema geral elaborado por Lukács em 1916, em se dirigem alguns personagens; ainda não são, contudo, uma
A cearia do romance. Em Goldmann, entretanto, tal estrutura é colocada como
momento de transição entre a dissolução do individualismo (Dostoiévski, os primeiros
realidade efetiva, o sujeito da ação romanesca, como é o caso nas
romances de Malraux) e o que ele chama de "romance não-biográfico de sujeito verdadeiras obras-primas do romance socialista (A mãe, Terras
inexistente" (que iria de Kafka ao nouveau-rornan). (Cf L. Goldmann, Pour une desbravadas, A condição humana etc.).
sociologie du mman, op. cit., p. 33, 103 e n. e 193.) A meu ver, esta estrutura - com suas
diversas manifestações - é o momento de transição entre as diversas modalidades de Gostaríamos de sublinhar que este afastamento de Graciliano
realismo crítico e a futura epopéia socialista, isto é, o gênero épico que poderá
do realismo socialista não implica, de nenhum modo, uma
substituir o romance e do qual o Poema pedagógico de Anton Makarenko é o primeiro
esboço. Admitida nossa hipótese, tal momento ganha assim uma grande importância diminuição do seu valor artístico ou ideológico. Um escritor
na tipologia histórico-sistemática das formas romanescas, sendo a estrutura do que socialista não é artisticamente superior, por uma necessidade a
se tem chamado até aqui de "realismo socialista" (cf meu ensaio "Problemas da
literatura soviética", in Literatura e humanismo, op. cu., p. 227-253).
priori, a um escritor realista crítico: cada um deles, quando

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l'

II.lr
216 Cultura e sociedade no Brasil Graciliano Ramos 217

verdadeiro artista, reproduz a essência da realidade através de radicais da burguesia, passando pelo campesinato e pelas classes
destinos e situações típicas, criando a estrutura romanesca médias progressistas - estiveram realmente interessadas em
adequada a reproduzi-Ia. Seria um absurdo colocar Cholokhov destruir o velho Brasil, substituindo o cárcere do "pequeno
esteticamente acima de Thomas Mann pela simples razão de mundo" mesquinho por uma renovação democrática, pelo
ser o primeiro um comunista militante e o segundo um burguês "grande mundo" de uma comunidade autêntica. É esta visão do
humanista e consciente. O humanismo marxista, naturalmente, mundo que permite a Graciliano representar os conflitos
fornece ao artista um ponto de vista mais adequado sobre o humanos típicos de uma sociedade duplamente contraditória,
real, possibilitando-lhe mais facilmente superar a alienação e já .que dilacerada não só pela contradição entre o pr é-

descobrir as relações humanas essenciais; mas isto pode ocorrer, capitalismo caduco e o capitalismo moderno, como também pelas
em determinadas condições históricas, também com o novas contradições internas que o capitalismo traz
humanismo crítico e democrático que se fundamenta numa necessariamente consigo.
concepção burguesa do mundo. Em suma, a evolução histórico- Daí a atualidade permanente do velho Graça, a grandeza
sistemática da estrutura romanesca - do realismo crítico ao do seu realismo vigoroso e profundo. O esmagamento dos l,!,
realismo socialista - não implica uma correspondente evolução I/ I
melhores anseios e das melhores esperanças, a derrota trágica :~, !
do valor artístico, como pensam os marxistas vulgares e os dos que lutam por superar um mundo vazio e alienado e por
zhdanovistas: cada uma destas estruturas, idênticas na encontrar o caminho da comunidade humana democrática, são
diversidade, representa a forma coerente e orgânica de reproduzir constantes na história brasileira. Mas, por sobre as tragédias
artisticamente - através de uma visão do mundo universal _ momentâneas e individuais (embora socialmente necessárias),
I""'i •.
um determinado e específico "estado geral do mundo" (Hegel). Graciliano Ramos ensinou-nos a ver a perspectiva de um futuro
Desta forma, é o universo da obra, sua coerência interna fundada mais brilhante, ainda que sem nos iludir sobre os obstáculos e as
no reflexo da realidade essencial, e não a posição ideológica do dificuldades na luta por alcançá-lo. Analisando o Doktor Faustus
autor - a qual pode, ademais, estar em contradição com a visão de Thomas Mann, Lukács concluiu com uma frase que se aplica,
do mundo subjacente à obra -, é o universo imanente da obra mutatis mutandis, ao nosso caso: "O momento trágico permanece
que define o seu valor artístico.
em toda a sua obscura tristeza: no entanto, observado do ponto
Mantendo-se no interior das estruturas "clássicas" do de vista do desenvolvimento da humanidade, (o romance
romance, centradas sobre o herói problemático individual, manniano) é tão pouco pessimista quanto as grandes tragédias
Graciliano é um realista crítico, o maior dos realistas críticos na de Shakespeare.P
literatura brasileira. Seu otimismo problemático, que compreende
a tragédia como um dos seus momentos dialéticos, é a (1965)
componente fundamental do seu humanismo, de sua visão do
mundo literária; esta visão, como vimos, é o máximo de
consciência possível do povo brasileiro em dada época, isto é,
lJ G. Lukács, "Thornas Mann e a tragédia da arte moderna", in id., Ensaio5 sobre
do conjunto de classes que - do proletariado aos setores mais literatura, cit., p. 249.
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A "imagem do Brasil" na obra de Caio Prado Júnior 221

1.
Embora tenha consagrado a maior parte de sua obra
historiográfica à análise de nosso passado, é inegável que o
objetivo central da reflexão de Caio Prado [únior - o ponto
focal a partir do qual se articula o conjunto de sua ampla
investigação histórica - é a compreensão do Brasil moderno.
Não é casual que o título de sua história geral de nosso país -
prevista para quatro tomos, mas dos quais foi escrito apenas o
primeiro, dedicado à "Colônia" - seja Formação do Brasil
conrernporéneo.! Pode-se traçar uma linha contínua que liga
entre si a identificação do "sentido da colonização", efetuada
no brilhante capítulo com que se inicia essa sua obra-prima sobre
a colônia (de 1942), e as propostas para a "revolução brasileira",
explicitadas em sua última produção significativa (de 1966).
l.
Mesmo quando trata do passado, Caio Prado tem sempre em ./;
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vista a investigação do presente como história, o que implica para
ele, enquanto marxista, uma análise dialética da gênese e das
perspectivas desse presente. :t
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Ora, se esse movimento dialético é o núcleo de sua reflexão ij. ,.
historiográfica, isso indica que nela estão contidos, ainda que
só implicitamente, conceitos de "transição" ou de "modernização".
Se ele quer pensar o presente como história, tem de responder
necessariamente à seguinte questão: de que modo e por que
vias o Brasil evoluiu da situação colonial originária, através do
Império e das várias repúblicas, para a constelação histórico-
social que apresenta hoje? Embora exista em sua obra uma certa
ambigüidade a respeito da caracterização do ponto de partida -
ou seja, do modo de produção e da formação econômica-social

1 Os demais volumes, que estariam "em preparo" em 1957, conforme podemos ler na
"orelha" à 5ª edição de Formação do Brasil Contemporâneo. Colônia. São Paulo:
Brasiliense, 1957 (1. ed.: 1942), teriam os seguintes títulos: 2) ''A Revolução e a
organização do Estado nacional" (1803-1850); 3) "O Império e as instituições do
BrasilNação" (1850-1889); 4) "A República e o Brasil contemporâneo".

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222 Cultura e sociedade no Brasil A "imagem do Brasil" na obra de Caio Prado Júnior 223

vigentes no Brasil antes da Abolição -, é indubitável que o é muito rico. (Essa relativa pobreza é sobretudo evidente em
historiador paulista não hesita em identificar como plenamente suas obras de filosofia.) Nos trabalhos de história, por exemplo,
capitalista o Brasil republicano. Em oposição ao modelo tem pouco peso o conceito de "modo de produção", o que o leva
interpretativo dominante na !lI Internacional e no Partido por vezes a confundir, na análise da Colônia e do Império, o
Comunista Brasileiro (pelo menos a partir de 1930), ele insiste predomínio inequívoco de relações mercantis com a existência
em que nosso País não é e jamais foi feudal ou semifeudal e, por de um sistema capitalista (ainda que "incompleto"), erro
isso, não careceu nem carece de uma "revolução agrária e derivado da prioridade metodológica que ele conscientemente
antiimperialista" para se tornar moderno e capitalista.' Mas, por atribui à esfera da circulação em detrimento da esfera da
outro lado, Caio Prado reconhece traços extremamente produção.' Isso faz também com que ele utilize de modo pouco
peculiares em nosso capitalismo - traços que poderíamos chamar rigoroso a noção de burguesia: seriam "grandes burgueses
de "não-clássicos" -, dedicando boa parte de sua pesquisa a nacionais", por exemplo, os latifundiários escravocratas do
ídentificá-los e descobrir-Ihes a gênese. Nesse sentido, a questão Império." Resulta igualmente do desconhecimento do conceito
que antes formulamos ganha maior concreticidade: quais foram marxista de capitalismo de Estado (ou de capitalismo monopolista
as vias para o capitalismo e que conseqüências tiveram na de Estado) o emprego tardio da imprecisa noção de "capitalismo
constituição de nosso presente? burocrático" - um termo inventado por ex-trotskistas para
N a literatura marxista, existem dois conceitos extremamente definir o regime social vigente na União Soviética stalinista -
fecundos para analisar vias "não-clássicas" de passagem para o em seu esforço para identificar as peculiaridades do presente
capitalismo ou, numa linguagem menos precisa, para a brasileiro."
"modernidade": o de "via prussiana", elaborado por Lênin com Esse registro, naturalmente, não decorre da pretensão - que
o objetivo principal de conceituar a modernização agrária; e O seria mesquinha e ridícula - de submeter retrospectivamente
de "revolução passiva", utilizado por Gramsci para determinar Caio Prado a um exame de marxismo. Ele é feito aqui não tanto
processos sociais e políticos de transformação "pelo alto". Não para indicar os eventuais limites de sua produção, que
há, na obra de Caio Prado, nenhuma referência explícita a tais certamente existem, mas sobretudo para sublinhar a sua
conceitos, nem é de supor que ele os conhecesse, sobretudo a criatividade e os seus extraordinários méritos pioneiros enquanto
noção de "revolução passiva", elaborada por Gramsci nos Cadémos intérprete marxista da história brasileira. Nesse terreno, as
do cárcere e tomada pública somente no final dos anos 40. Caio categorias marxistas de que Caio Prado dispunha - e muitas
Prado jamais cita Gramsci e não é freqüente (se excetuarmos as das que inventou - permitiram-lhe chegar, na maioria dos casos,
referências a O imperialismo) que cite Lênin.
J Em Formação do Brasil contemporâneo, 0/). cit., p. 266, ele diz: "A análise da estrutura
O registro dessa ausência sugere uma observação mais geral: comercial de um país revela sempre, melhor que a de qualquer um dos setores
o estoque de categorias marxistas de que se vale Caio Prado não particulares da produção, o caráter de uma economia, sua natureza e organização."
4 Cf., por exemplo, Evolução política do Brasil e outros estudos. São Paulo: Brasiliense,
1957 (1. ed.: 1933), p. 81, e História econômicado Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1959
2 Essa crítica ao paradigma terceiro-intemacionalista está sobretudo em Caio Prado (I. ed.: 1945),passim.
[r., A revolução brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1987 (1. ed.: 1966), p. 29-75. 5 Cf. A revolução brasileira, cit., sobretudo p. 122 e ss., 232 e 55. e 255 e ss.
Cultura e sociedade no Brasil A "imagem do Brasil" na obra de Caio Prado Júnior 225
224

a análises lúcidas, fecundas e quase sempre justas. Por exemplo: de }unkers ( ... ). Nos Estados Unidos, a transformação foi violenta
a prioridade atribuída à esfera da circulação não o impediu de (... ). As terras [dos latifundiários] foram fracionadas; a grande
definir de modo substancialmente adequado a formação propriedade agrária feudal se converteu em pequena propriedade
econômico-social da era colonial, identificada por ele como um burguesa" .6
escravismo mercantil fundado na grande exploração rural, São aqui indicadas duas vias principais, que Lênin chamaria
produtora de valores-de-troca para o mercado internacional. de "americana" (ou "clássica") e de "prussiana". A via "clássica"
Suas indicações nesse domínio, recebendo um tratamento implica uma radical transformação da estrutura agrária: a antiga
categoria I mais adequado, foram decisivas na elaboração de propriedade pré-capitalista é destruída, convertendo- se em
importantes trabalhos marxistas posteriores, como os de Fernando pequena exploração camponesa. Nesse caso, não só desaparecem
Novaes, Ciro Flammarion Cardoso e Jacob Gorender. Do mesmo as relações de trabalho pré-capitalistas, fundadas na coerção
modo, o desconhecimento de noções como a de "via prussiana" extra-econômica sobre o trabalhador, mas também é erradicada
tampouco foi obstáculo à formulação de contribuições definitivas a velha classe rural dominante, já que são eliminadas as formas
para a compreensão dos processos e das modalidades de econômicas em que ela se apoiava e de cuja reprodução f'
modernização conservadora ocorridos no Brasil. Pode-se mesmo dependia a sua própria reprodução como classe. Diverso é o ,
q;. !
dizer que, graças ao aparte da experiência específica do Brasil e caso da "via prussiana": aqui a velha propriedade rural, li "
de algumas regiões da América Latina, Caio Prado contribuiu conservando sua grande dimensão, vai se tornando
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para o enriquecimento do próprio conceito marxista de vias "não-
clássicas" para o capitalismo.
progressivamente empresa agrária capitalista, mas no quadro
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da manutenção
econômica,
de formas de trabalho
em vínculos de dependência
fundadas na coerção extra-
ou subordinação que
li:
2. se situam fora das relações "impessoais" do mercado, e que vão
Quando Lênin tenta conceituar a diversidade de vias para desde a violência aberta até a intromissão na vida privada do
o capitalismo, inovando em relação ao marxismo evolucionista trabalhador. É evidente que isso permite a conservação
e unilinear da II Internacional, constrói sua tipologia a partir (ou mesmo o fortalecimento) do poder político do velho tipo de
do modo pelo qual o capitalismo resolve a questão agrária. "Marx proprietário rural, que continua a ocupar postos privilegiados
já dizia - recorda Lênin - que a forma de propriedade agrária no aparelho de Estado da nova ordem capitalista.
que o modo de produção capitalista encontra na história, ao O leitor atento de Caio Prado não terá dificuldades em
começar a desenvolver-se, não corresponde ao capitalismo. O próprio reconhecer a proximidade de suas análises da questão agrária
capitalismo cria para si as formas correspondentes de relações brasileira com a descrição leniniana da "via prussiana". Para o
agrárias, partindo das velhas formas de posse da terra (... ). historiador paulista, a modernização de nossa estrutura agrária
Na Alemanha, a transformação das formas medievais de não se deu segundo uma "via clássica"; não se pode falar, no
propriedade agrária se processou, por assim dizer, seguindo a via caso brasileiro, da supressão radical da grande propriedade
reformista, adaptando-se à rotina, à tradição, às propriedades
feudais, que se foram transformando lentamente em fazendas 6 Cf. V I. Lênin, O programa agrário da social. democracia. São Paulo: Ciências Humanas,
1980,p.63.

..":
226 Cultura e sociedade no Brasil A "imagem do Brasil" na obra de Caio Prado Júnior 227

pré-capitalista e de sua substituição pela pequena propriedade "O que existe e tem servido de comprovação e exemplificação
camponesa. Observa ele: "A situação no Brasil se apresenta de do 'feudalismo' brasileiro são remanescentes de relações escraoistas,
forma distinta, pois na base e na origem de nossa estrutura agrária o que é bem diferente, tanto no que respeita à natureza
não encontramos, tal como na Europa, uma economia camponesa, institucional dessas relações, como, e mais ainda, no que se refere
e sim a grande exploração rural que se perpetuou desde os inícios às conseqüências de ordem econômica, social e política daí
da colonização brasileira até nossos dias; e se adaptou ao sistema decorrentes't.f Entre tais conseqüências, Caio Prado enumera
cal)italista de lJrodução através de um processo ainda em pleno inúmeras formas de coerção extra-econômica sobre o trabalhador
desenvolvimento e não inteiramente completado ( ... ) de rural o que cria para esse "uma situação toda especial de
substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre"." dependência e constrangimento que não existe para o
Penso que Lênin não hesitaria em definir como "não-clássica" trabalhador urbano"." o proprietário exerce sobre a pessoa do
essa peculiar adaptação da "grande exploração rural" escravista, seu morador, por exemplo, uma dominação que vai além do uso
herdada da Colônia, ao capitalismo - uma adaptação que de sua força de trabalho adquirida no mercado, já que interfere
conserva, além da grande propriedade, traços servis nas relações na esfera do consumo (obrigação de comprar no "barracão") e
de trabalho. Característica da via "não-clássica", ou "prussiana", no seu direito civil de organizar a própria vida privada I
;

é precisamente essa complexa articulação de "progresso" (impedimento de morar com a família ou de receber visitas, [I:

(a adaptação ao capitalismo) e conservação (a permanência de etc.) . Tudo isso encontra sua máxima expressão - pensa Caio
importantes elementos da antiga ordem). Mas, além de registrar Prado - na completa ausência de direitos social-trabalhistas ir
I

a presença desse processo de "modernização conservadora" no campo, situação que vigorou até recentemente (e, de certo
(na feliz expressão de Barrington Moore [r.) no Brasil, Caio Prado modo, continua a vigorar até hoje). Em seus trabalhos dos anos '1
60, o autor de A questão agrária no Brasil considerava a .~
aponta também seus traços específicos e mesmo singulares, o
que permite distingui-Ia de outros casos igualmente "não- superação dessa situação como a tarefa primordial de
clássicos", como o da própria Alemanha dos Junkers, ao qual se "revolução brasileira" no campo. Cabe registrar que essa
refere Lênin, Ao contrário desse país, o que no Brasil se adaptou modalidade de "via prussiana", além de conservar o poder
"conservadoramente" ao capitalismo não foi um domínio rural político do grande proprietário rural, permitiu ao capitalismo
de tipo feudal, mas sim urna forma de latifúndio peculiar: uma brasileiro exercer uma superexploração da força de trabalho,
exploração rural de tipo colonial (ou seja, voltada desde as origens tanto rural quanto urbana, com o que se manteve um traço
para a produção de valores-de-troca para o mercado externo) e marcante da era colonial: o baixíssimo padrão de vida do
fundada em relações escraoistas de trabalho. produtor direto.

É errado supor - afirma Caio Prado - que os elementos do Um dos principais méritos dessa caracterização caio-pradiana
velho que se conservaram no novo sejam "restos feudais". Diz ele: da natureza de nossa formação social moderna, definida
objetivamente como um capitalismo "não-clássico", foi precisamente
1 Caio Prado [únior, A questão agrária no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1979, p. 158.
Os ensaios contidos nessa colerânea foram publicados na Revista Brasiliense, entre SCf. A revolução brasileira, cir. p. 104.
março-abril de 1960 e janeiro-fevereiro de 1964. 9 Cf. A questão agrária, cit., p. 96 e passim.
Cultura e sociedade no Brasil A "imagem do Brasil" na cbra de Caio Prado Júnior 229
228

a de permitir ao historiador apresentá-Ia como capitalista. Essa Por outro lado, graças à sua utilização tácita do conceito de
não era uma posição consensual entre os marxistas, pelo menos vias "não-clássicas" para o capitalismo, Caio Prado combateu
até os anos 60. Ignorando a problemática das formas "não- corretamente a idéia de que esses "restos servis" constituíssem
clássicas" de transição para o capitalismo (e as peculiaridades óbices ao desenvolvimento do modo de produção capitalista entre
da formação capitalista que dela resulta), os marxistas brasileiros nós, como sempre supôs o dualismo cepaliano e aquele implícito
_ sobretudo os ligados ao PCB - afirmaram durante muitos anos nas propostas do PCB. Antecipando posições que pouco tempo
que o Brasil era um país "semifeudal" e "semicolonial", que se depois seriam retomadas e aprofundadas por Francisco de
Oliveira, Caio Prado afirma que "as sobrevivências pré-
defrontava ainda, por conseguinte, com a tarefa de efetuar uma
capitalistas nas relações de trabalho da agropecuária brasileira,
"revolução democrático-burguesa" ou de "libertação nacional".
Nessa afirmação, estava implícita a noção - falsa - de que para longe de gerarem obstáculos e contradições opostas ao
ser plenamente capitalista um país tinha que seguir uma via desenvolvimento capitalista, têm pelo contrário contribuído para
ele. O 'negócio' da agricultura - e é nessa base que se estrutura
"clássica" de transição e apresentar todos os traços de um
capitalismo igualmente "clássico". Os inúmeros equívocos a a maior e principal parte da economia rural brasileira - não se
mantém muitas vezes senão graças precisamente aos baixos
l
I
que isso conduziu, tanto na teoria como na prática, são apontados 11] ;
por Caio Prado em A revolução brasileira. De particular padrões de vida dos trabalhadores, e pois ao reduzido custo da I? , " t
. mão-de-obra que emprega"." De passagem, poderia recordar T' + •

importância, de resto, é sua clara afirmação de que não só a


que, nessa recusa de uma visão dualista - para a qual o lado
formação econômico-social em geral, mas também a estrutura r
agrária do Brasil é de natureza capitalista: "Os pólos principais
da estrutura social do campo brasileiro - diz ele - não são o
"atrasado" seria um empecilho, e não algo funcional,
desenvolvimento do lado "moderno" -, as investigações de Caio
ao
tj.:.
'latifundiário' ou 'proprietário senhor feudal ou semifeudal', Prado convergem objetivamente com as análises de Gramsci
de um lado, e o camponês, de outro; e sim, respectivamente, acerca da "questão meridional" italiana."
o empresário capitalista e o trabalhador empregado,
assalariado ou assimilável econômica e socialmente ao 3.
assalariado". 10 É possível que, no ardor de uma justa polêmica, Ainda que a questão agrária tenha lugar de destaque na
Caio Prado tenha em alguns casos superestimado a possibilidade determinação da via de transição à modernidade, um posto
de assimilar determinadas formas de remuneração do trabalho central nesse processo pode também ser ocupado, em momentos . ,,
rural (como a parceria) ao assalariamento; 11 mas é inegável determinados, por urna outra "questão nacional", inclusive de
que ele definiu com muito mais rigor do que os defensores da natureza superestrutura!. É essa a posição de Lênin, ao comparar
tese dos" restos feudais" a real natureza da moderna estrutura
agrária brasileira. 12 Caio Prado [r., A revolução brasileira, cit., p. 97 -98. Cf. Francisco de Oliveira,
"A economia brasileira: crítica à razão dualista", in Estudos Cebrap, n? 2, São Paulo,
outubro de 1972, p. 3-82.
10 Cf. A revolução brasileira, op. cit., p. 105.
Il Cf. em particular, os ensaios contidos em Antônio Gramsci, A questão meridional. Rio
11 Cf., para lima crítica dessas posições de Caio Prado, Guido Mantega, A economia
de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
!)o!itica brasileira. São Paulo/Petrópolis: Polis/vozes, 1984, p. 250 e 5S.

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Cultura e sociedade no Brasil A "imagem do Brasil" na obra de Caio Prado Júnior 231
230

a Rússia com a Alemanha: "É a questão agrária que encama de transição ocorre quando uma classe ou bloco de classes
agora na Rússia a questão nacional do desenvolvimento burguês conquista a hegemonia, mobilizando efetivamente as massas
(... ). Na Alemanha, entre 1848 e 1871, ela consistia na unificação populares e conduzindo-as a uma eliminação radical da velha
(na criação de um Estado nacional unificado), e não na questão ordem, a "revolução passiva" consiste numa seqüência de
agrária" .14 Em outras palavras: é o modo de resolver a "questão manobras "pelo alto", de conciliações entre diferentes segmentos
nacional" central que irá indicar se a implantação ou das elites dominantes, com a conseqüente exclusão da
consolidação da formação econômico-social capitalista será de participação popular. Decerto, a "revolução passiva" opera
tipo "prussiano" ou, ao contrário, de tipo "clássico". Lênin mudanças necessárias ao "progresso", mas o faz no quadro da
prossegue: "Os anos 1848-1871 foram (na Alemanha) a época conservação de importantes elementos sociais, políticos e
de uma luta revolucionária e contra-revolucionária entre duas econômicos da velha ordem. As massas, desorganizadas e
vias para a unificação, ou seja, para a solução do problema reprimidas, fazem sentir sua presença, mas sobretudo através de
nacional do desenvolvimento burguês na Alemanha, uma das movimentos sem incidência efetiva, algo que Gramsci chamou
quais conduzia à unificação através da república da Grande de "subversivismo esporádico e elementar". E um dos modos
Alemanha, e a outra através da monarquia prussiana" .15 pelos quais as classes dominantes quebram a resistência à sua
Também a Itália, em meados do século passado, defrontava- dominação, além naturalmente da repressão aberta, é a cooptação li

se com o desafio da construção de um Estado unificado, que era das lideranças dos grupos opositores: um processo que o pensador
então a questão básica de sua transição definitiva para o italiano chama de "transformismo"."
capitalismo. Como se sabe, a solução que predominou foi a de As analogias entre o Risorgimento italiano e os eventos que I.
uma transformação "pelo alto": a casa real do Piemonte, sob a constituem o processo da Independência e da consolidação do I
direção de liberais moderados, liderou um processo de "arranjos Estado nacional no Brasil são significativas. Assim, não é casual
políticos" entre as várias classes dominantes das diferentes regiões que Caio Prado [únior, escrevendo sobre esses eventos em 1933
italianas, algumas das quais baseavam ainda sua dominação em - praticamente no mesmo momento, portanto, em que Gramsci
formas econômico-sociais de tipo feudal; com isso, as massas elaborava no cárcere seu conceito de "revolução passiva" -,
populares da península foram excluídas de qualquer papel tivesse chegado a resultados muito semelhantes aos do pensador
de terminante no novo Estado nacional unificado. Foi buscando italiano. Antes de mais nada, tanto para ele como para Gramsci
compreender as vicissitudes da unificação italiana - o chamado os processos em questão, embora conduzidos "pelo alto", levaram
Risorgimento -, bem como suas conseqüências para o presente a mudanças efetivas: com a Independência, diz Caio Prado, "é
da Itália, que Gramsci elaborou o conceito de "revolução a superestrutura política do Brasil-Colônia que, já não
passiva", vista por ele como um processo de modernização oposto correspondendo ao estado das forças produtivas e à infra-
à revolução popular "ativa" de tipo jacobino: enquanto esse tipo estrutura econômica do país, se rompe, para dar lugar a outras

14 VI. Lênin, "Leme à J. Skovorstsov-Stépanov", in Ocuvrcs. Paris: Ed. Sociales, 1973, 16 Para uma síntese do conceito gramsciano de "revolução passiva", cf. C. N. Coutinho,
vol. 16, p. 122. Gramsci. Um estudo sobre seu penscrnenro político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1999, p. 191-219.
1\ lbid., p. 124.
232 Cultura e sociedade no Brasil
A "imagem do Brasil" na obra de Caio Prado Júnior
233

formas mais adequadas". Essas mudanças, contudo, não anulam expressão "sociedade civil" (mas sim "estrutura política
o fato de que, na nova ordem, "permanece mais ou menos intacta democrática e popular"), Caio Prado indica na ausência de auto-
a organização social vigente" na época colonial. E por que isso organização e de coesão dos grupos subalternos - o que os impede
ocorre! A resposta de Caio Prado é taxativa: ''A forma pela qual
de se tornarem atores políticos efetivos - as raizes da derrota de
se operou a emancipação do Brasil (tem) o caráter de "arranjo uma via "jacobina" para a resolução de nossa questão nacional.
político" (... ), de manobras de bastidores, em que a luta se A principal classe subalterna, os escravos, estava impossibilitada
desenrola exclusivamente em torno do príncipe-regente (... ). por condições objetivas e subjetivas de alcançar um grau efetivo
Resulta daí que a Independência se faz por uma simples de organização: "[Os escravos] não formam uma massa coesa
transferência política de poderes da metrópole para o novo ( ) e, por isso, representam um papel político insignificante
governo brasileiro. E, na falta de movimentos populares, na ( ). Faltavam aos escravos brasileiros todos os elementos para
falta de participação direta das massas nesse processo, o poder
se constituírem, apesar do seu considerável número, em fatores
é todo absorvido pelas classes superiores da ex-colônia (... ).
de vulto no equilíbrio político nacional." O mesmo pode ser
Fez-se a independência praticamente à revelia do povo; e isso
dito da "população livre das camadas médias e inferiores": "não
(... ) afastou por completo sua participação na nova ordem atuavam sobre ela - prossegue Caio Prado - fatores capazes de
política. A independência brasileira é fruto mais de uma classe
lhe dar coesão social e possibilidades de uma eficiente atuação
do que da nação tomada em seu conjunto"." política". E, logo após, ele fornece o diagnóstico dessa situação
Essa explicação da Independência como transformação "pelo de amorfismo, de falta de coesão: ''A economia nacional, e com
alto" - que implica mudança, mas talvez sobretudo conservação ela nossa organização social, assente como estava numa larga
- não esgota os pontos de aproximação entre a análise de Caio base escravista, não comportava naturalmente uma estrutura
Prado e a de Gramsci. Estudando os movimentos populares que política democrática e popular".'? E, se a rebeldia das camadas
marcaram o período de consolidação do Estado imperial, subalternas revelou-se impotente, em função da repressão estatal
o historiador paulista chega a conclusões semelhantes às do autor e da desorganização interna, as contradições no seio das classes
dos Cadernos do cárcere também no que se refere à presença em dominantes podiam ser resolvidas, e efetivamente o foram, pela
tais movimentos de um "subversismo esporádico e elementar". via da cooptação e do transformismo: "Os governos que se seguem
Assim, referindo-se à Balaiada - mas em observação que poderia à Maioridade têm todos o mesmo caráter. Se bem que
valer, mutatis mutandis, para todos os levantes da época regencial diferenciados no rótulo com as designações de 'liberal' e
-, diz Caio Prado: "Em vez de um levante de massa, logo 'conservador', todos evoluíram em igual sentido, sem que essa
aproveitado para a realização de uma política conseqüente, o variedade de nomenclatura tivesse maior significação. Por isso
que vemos (... ) (são) apenas bandos armados que percorrem os mesmo é comum, e mal se estranha, a passagem de um político
sertão em saques e depredações" .18 Embora não use a gramsciana de um para outro grupo".20

17 Caio Prado [r., Evolução 170lítica do Brasil, cir., p. 49-50. 19 Ibid, p. 63.
IR Ibid., p. 74. 20 Ibid., p. 81.
I
J'
234
Cultura e sociedade no Brasil A "imagem do Brasil" na obra de Caio Prado Júnior 235

Poderíamos destacar aqui, numa análise comparativa entre 4.


vias "não-clássicas", uma especificidade brasileira: enquanto Com suas análises da formação do Estado nacional e da

1 na Alemanha a solução "prussiana" da questão agrária precede


a solução igualmente "prussiana" da questão da unificação
evolução agrária brasileira, Caio Prado lançou os fundamentos
para uma adequada compreensão marxista da via "não-clássica"
nacional, e enquanto na Itália as duas questões são resolvidas de transição do Brasil para o capitalismo. Registrou, com
"passivamente" ao mesmo tempo, nota-se no Brasil uma sagacidade e criatividade, as bases materiais e os processos
seqüência cronológica diversa. A solução "pelo alto" da questão políticos que geraram uma formação social certamente
do Estado nacional unificado precede e condiciona a solução capitalista, mas assinalada por características profundamente
"prussiana" da nLOdernização agrária: conservando a grande autoritárias e excludentes. Não creio que nenhum pensador
exploração rural e o domínio político dos proprietários de terra marxista brasileiro da época tenha determinado com tanta
e de escravos, a "revolução passiva" que se inicia com a propriedade as raizes do Brasil moderno. Aliás, na América
Independência e se consolida com o golpe da Maioridade prepara Latina, penso que somente José Carlos Mariátegui (cujo estoque
o desfecho "prussiano" para a questão da adaptação da estrutura categorial marxista, diga-se de passagem, era igualmente
agrária ao capitalismo no plano interno, no momento em que se reduzido e problemático) realizou uma obra semelhante para
esgotam as potencialidades das relações escravistas de trabalho. um país concreto, ao analisar a independência peruana como
Nesse sentido, ambos os m.ovimentos foram importantes degraus uma "revolução abortada" e ao apontar as danosas
na lenta e "não-clássica" marcha do Brasil para o capitalismo, conseqüências desse "aborto" nas várias esferas sociais do Peru
deixando ademais profundas marcas em nosso presente. Caio moderno." E não me parece casual que esses dois pensadores
Prado observa corretamente: "A evolução política progressista tenham realizado suas investigações à margem dos - ou mesmo
do Império corresponde assim, no terreno econômico, à integração em aberta oposição aos - modelos teóricos que a III
sucessiva do país numa forma produtiva superior: a forma Internacional, já sob direção stalinista, tentava impor ao marxismo
capitalista".21 E, quando isso ocorre de modo definitivo, com a latino-americano, através sobretudo de nossos partidos
Abolição e a República, as condições estavam preparadas para comunistas.
mais uma "revolução passiva'~, aquela que leva à criação da Mas, se Caio Prado determinou adequadamente as raizes
república oligárquica. Caio Prado não deixa de registrar o fato, de .nosso capitalismo, não creio que tenha sempre feito o mesmo
ainda que só de passagem, quando observa que a proclamação em relação à caracterização do Brasil de hoje. Neste caso, sua
da República mobilizou tão pouco as camadas populares que interpretação, expressa sobretudo em obras mais recentes,
"uma simples passeata militar foi suficiente para lhe arrancar apresenta pontos problemáticos. As razões dessa problematicidade
[do Império J o último suspiro".n me parecem residir no fato de que, se o historiador paulista
captou com acuidade o momento "conservador" de nossos

21 Ibicl., p. 9l. 13 Cf. J,C. Mariátegui. Sete ensaios de inteT/mtação da realidade peruana. São Paulo: Alfa-
221bicl., p. 94. Ómega, 1975, passim.

\.1
A "imagem do Brasil" na obra de Caio Prado Júnior 237
Cultura e sociedade no Brasil
236

não há "nada (... ) que se assemelhe a um processo de industrialização


processos de transição, tendeu a minimizar e subestimar os
digno desse nome'l."
elementos de "modernização" que eles também trouxeram
consigo. Gramsci, quando trata dos processos de transformação Mesmo quando reconhece a ocorrência de fatos novos, o
"pelo alto", emprega em alguns casos o termo "revolução- historiador paulista tende a tratá-los como "aparências" que não
alteram a "essência" - ou quantidades que não mudam a
restauração", pretendendo com isso indicar que o momento
"restaurador" ou "conservador" desse tipo de transformação não qualidade -, isto é, como manifestações que, longe de implicarem
impede que através dela ocorram também modificações efetivas a superação do passado, contribuem para acentuar seus traços
na ordem social. Diz Gramsci: "As m.odificações moleculares mais perversos. Esse me parece ser o caso, por exemplo, de sua
(promovidas pelas 'revoluções passivas') modificam progressivamente teoria tardia do "capitalismo burocrático"; no Brasil, ao lado de
a composição anterior de forças e, por conseguinte, tomam-se um setor burguês "ortodoxo", que se desenvolve com base no
livre mercado, teria surgido uma burguesia gerada e alimentada
matriz de novas modificações". 24
pelo Estado. Não é difícil perceber que Caio Prado mistura aqui
Embora certamente reconheça que o caminho "não-clássico"
duas ordens de fenômenos. Ele registra corretamente a ocorrência
para o capitalismo brasileiro gerou mudanças em nossa estrutura
entre nós de manifestações de corrupção na máquina estatal, as
social, Caio Prado tende a pôr ênfase maior no momento da
quais, na intensidade com que ocorreram e ainda ocorrem no
conservação, da reprodução do velho. Ainda em 1977, repetindo
Brasil, são em parte resultado de uma visão patrimonialista do
uma idéia freqüentemente expressa em sua obra mais recente,
Estado, que tem suas raizes em nosso passado e são expressões
afirma o seguinte: "Essencialmente, com as adaptações
de nosso "atraso". É justa sua indignação contra tais fatos e, em
necessárias determinadas pelas contingências do nosso tempo,
particular, a crítica que faz a uma certa subestimação dos mesmos
somos o mesmo do passado. Se não quantitativamente, na
pela esquerda.
qualidade (... ). Embora em mais complexa forma, o sistema
colonial brasileiro se perpetuou e continua muito semelhante. Mas essa indignação o impede, por outro lado, de distinguir
Isto é, na base, uma economia fundada na produção de matérias- entre esse fenômeno perverso, mas relativamente marginal, e
primas e gêneros alimentícios demandados nos mercados um traço básico, estrutural, de nosso capitalismo "não-clássico";
internacionais".25 O Brasil não só continuaria essencialmente o processo de industrialização no Brasil, verificando-se
"colonial", mas a agricultura teria ainda, na estrutura global tardiamente em nível mundial, demandou - tal como ocorreu
do país, um. papel de "primordial importância". 26 Ora, para que em ou tros países que seguiram também vias "não clássicas", como
isso possa ser afirmado, Caio Prado é obrigado a contrariar as a Alemanha e o Japão - uma ampla e precoce participação do
evidências empíricas e a concluir que, no Brasil contemporâneo, Estado na acumulação de capital, não só através de processos
de regulação, mas também da criação de empresas diretamente

Z4 A. Gramsci, Quademi ddcarcere.Turim: Einaudi, 1975, p. 1.767.


17 Cf. A revolução brasileira, op. cit., p. 243. De certo modo, essa taxativa afirmação-
2\Caio Prado [r., A revolução brasileira, op. cu., p. 240. feita em 1977 - modifica suas posições anteriores, mais equilibradas, embora sempre
261bicl., p. 30. Essa ccntralidadc do campo é reafirmada em 1978, no prefácio que Caio céticas, sobre a industrialização e suas potencialidades; cf., por exemplo, História
Prado escreveu para sua coletânea sobre A questão agrária, o). cit., p. 12-13. econômica do Brasil, op. cit., p, 263-274.
t

I
1.
238 Cultura e sociedade no Brasil A "imagem do Brasil" na obra de Caio Prado Júnior
239

produtivas. Não é aqui o lugar para tratar em detalhe das Embora tenha sido um dos mais duros críticos do paradigma
especificidades do capitalismo de Estado no Brasil (que a época terceiro-internacionali~ta, pode-se constatar que, na análise do
ditatorial posterior a 1964 contribuiu para transformar em nosso presente, Caio Prado se aproxima em muitos pontos do
capitalismo monopolista de Estado) .28 Mas cabe pelo menos "estagnacionismo" contido em tal paradigma: o desenvolvimento
sublinhar que, ao invés de representar um obstáculo para o brasileiro, sua passagem. definitiva para a "modernidade", estaria
desenvolvimento capitalista "saudável" e de ser uma manifestação bloqueado pelo "atraso", seja nas relações agrárias, seja no setor
de nosso "atraso", como supõe Caio Prado," a intervenção do industrial, um "atraso" proveniente, pensa ele, da limitação
Estado constitui elemento decisivo na acumulação de capital e, estrutural do mercado interno e da dependência ao imperialismo.
em particular, no processo de industrialização, constituindo assim E, além dessa aproximação, ocorreu também uma curiosa
um traço - e um traço substancial - de nossa "modernídade", convergência objetiva entre o Caio Prado tardio e os teóricos
Não é pois casual que a "revolução passiva" que se inicia em do "desenvolvimento do subdesenvolvimento", como André
1930, se fortalece com o Estado Novo e prossegue na época Gunder Frank e Ruy Mauro Mariní, o que levou a um mal-
populista - Ulna "revolução" que, industrializando o País com o entendido no plano político: A revolução brasileira, publicado
apoio da intervenção estatal, consolidou definitivamente o modo em 1966, terminou por alimentar a ideologia da ultra-esquerda
de produção capitalista no Brasil- seja subestimada (ou mesmo no Brasil, a qual se baseava na falsa alternativa entre "socialismo
ignorada) na representação caio-pradiana do Brasil moderno, já" ou "ditadura fascista com estagnação econômica". Essa
Todo esse período parece poder ser subsumido na infeliz expressão alternativa não está absolutamenr- presente no livro de Caio
com que ele caracterizou o governo Goulart: um "período Prado; mas a sua visão do Brasil como estruturalmente atrasado
~. malfadado".lo E tampouco é casual que, em sua tendência a e estagnado podia contribuir objetivamente para alimentá-Ia,
como de fato ocorreu.
subestimar as novidades, ele se refira aos primeiros doze anos da
ditadura militar - que elevaram nosso capitalismo ao estágio de
Finalmente, cabe observar que essa visão "atrasada" parece
capitalismo monopolista de Estado - como um período que "não ser responsável pela insuficiente formulação da questão da
assinala efetivamente ( ... ) nenhum sinal significativo de democracia política nas análises do historiador paulista." Se o
mudança essencial do passado"."

2H Remem, para uma discussão do problema, ao meu ensaiei "O capitalismo monopolista 31 Esse é u 111 dos pontos corretos da crítica dirigida a Caio Prado, em 1966, por Assis
ele Estado no Brasil", in A democracia como valor universal c outros ensaios. Rio de Tavares, pseudônimo sob o qual era então obrigado a se ocultar um importante
Janeiro: Salamandra, 1984, p. 163- 195. dirigente comunista, Marco Antônio Coelho (cf. A. Tavares, "Caio Prado e a teoria
29 CL, por exemplo, A Tcvolução brasileira, 0/). cit., p. 123. da revolução brasileira ", in Revista Civilização Brasileira, n'" 11-12, dezembro de 1966/
março de 1967, p. 79). Também é justa a observação segundo a qual Caio Prado "nem
30 Ibid., p. 23. Também o governo Kubitschek recebeu duríssimas críticas de Caio Prado,
sequer cogitou de examinar as ::amadas médias urbanas" (ibid., p. 77). Essa ausência,
não só em A revolução brasileira, mas já nos ensaios dos anos 50, publicados na Revista
a meu ver, decorre da centralidade que ele atribui ao campo, em conseqüência de
Brmiliense. Creio que ele não só subestimou o inegável desenvolvimento da
sua visão "atrasada" do Brasil. Apesar de observações pertinentes, o artigo de Tavares
industrialização que se processou na era populista, mas ignorou completamente o
- que mereceu uma longa resposta de Caio Prado, incluída nas edições mais
crescimento e ativação da sociedade civil nela ocorrido, sobretudo no "período
recentes de A revolução brasileira - reproduz, no essencial, o paradigma analítico da
malfadado" do governo Goulart. IlJ Internacional.
li Caio Prado [r., A revolução brasileira, oJ!.cit., p. 244.
240 Cultura e sociedade no Brasil A "imagem do Brasil"na obra de Caio Prado Júnior 241

Brasil é plenamente capitalista, mas chegou a essa situação para o capitalismo no Brasil. Se tivesse avançado em sua intuição
através de processos de transição que configuram uma ordem sobre o valor universal da democracia, ter-se-ia tornado também
social excludente e autoritária - como nos ensina Caio Prado -, um estimulador dos que se empenham atualmente em pensar
então a principal tarefa histórica que se coloca hoje ao nosso de modo novo o vínculo estrutural entre socialismo e democracia.
povo, ou seja, o conteúdo da "revolução brasileira", consiste em De qualquer modo, parece-me inegável que, sem a obra de Caio
inverter essa tendência "prussiana" por meio da consolidação Prado, a interpretação marxista do Brasil seria hoje
daquilo que, em sua obra de 1933, o historiador chamava de substancialmente mais pobre.
"estrutura política democrática e popular", agora tornada possível
pela emergência de novas condições objetivas e subjetivas. (1988)
Ao limitar as metas atuais da "revolução brasileira" à modificação
das relações trabalhistas no campo e à "libertação nacional" em
face do imperialismo, Caio Prado pagou um tributo às concepções
terceiro-internacionalistas da democracia, que minimizam os
aspectos especificamente políticos dessa última em favor de seus
pressupostos econômicos e sociais.
Contudo, no final do apêndice que escreveu em 1977
para A revolução brasileira, parece esboçar-se - ainda que só
ernbrionariamente - uma formulação que situa Caio Prado, também
nessa questão, para além do horizonte da III Internacional.
Definindo a democracia como "participação efetiva dos
governados na ação e no comportamento do governo", ele
conclui que "uma democracia só para a burguesia e os
aspirantes a burguês (... ) não é realizável: [a democracia] ou
será de todos ou de ninguém'Li' Se houvesse desenvolvido essa
formulação, Caio Prado teria definido corretamente as tarefas
atuais da "revolução brasileira": somente através da plena
realização da dem?cracia - que não é um valor burguês, mas
sim universal, "de todos" - é que chegaremos ao socialismo.
Caio Prado, como vimos, foi um notável precursor dos marxistas
que hoje buscam entender o caráter "não-clássico" da transição

J.l Caio Prado Jr., A revolução brasileira, cit., p. 267.


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Marxismo e a "imagem do Brasil" em Florestan Fernandes 245

1.
Não são muitos os pensadores sociais que formularam, em
suas obras, o que poderíamos chamar de uma "imagem do Brasil".
Imagens desse tipo articulam sempre juízos de fato com juízos
de valor, na medida em que não se limitam a fornecer indicações
para a apreensão de problemas específicos da vida social de nosso
País (como, por exemplo, o sistema colonial, a industrialização,
:!' a consciência do empresariado, o movimento sindical, etc., etc.),
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.. mas se propõem - para além e/ou a partir disso - a nos dar uma
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I.

!
visão de conjunto, que implica não só a compreensão de nosso
passado histórico, mas também o uso dessa compreensão para
entender o presente e, mais do que isso, para indicar perspectivas
para o futuro. Forçando um pouco os termos, poderíamos dizer
que tais "imagens" contêm sempre uma articulação entre ciência
e "ideologia", ou entre ser e dever-ser, o que nos permite
classificá-Ias - conforme sua perspectiva seja conservadora ou
revolucionária - como de direita ou de esquerda. Para darmos
uns poucos exemplos, há "imagens do Brasil" nas obras de Gilberto
Freyre e de Oliveira Vianna, que são de direita, ou nas de Caio
Prado júnior e de Nelson Werneck Sodré, que são de esquerda.
Florestan Fernandes insere-se entre esses poucos pensadores
em cuja obra podemos encontrar uma "imagem do Brasil". Diria
mesmo que o mais valioso de sua vasta produção teórica - que
abordou com competência tantos e tão variados temas, da
organização social dos tupinambá aos fundamentos metodológicos
da sociologia, dos problemas do negro às mudanças sociais no
Brasil, das questões da escola pública às vicissitudes da revolução
latino-americana - é precisamente essa "imagem do Brasil" que
ela nos fornece. Tal "imagem" é apresentada, sobretudo, em
A revolução burguesa no Brasil, 1 que eu não hesitaria em definir
como a sua obra-prima, entre outras coisas pelo papel central que

I Florestan Fernandes, A revolução burguesa no Brasil. Ensaio de interpretação sociológica.


Rio de Janeiro; Zahar, 1975, a seguir citada no corpo do texto como RBB, seguida,
quando couber, pelo número da página.
246 Cultura e sociedade no Brasil Marxismo e a "imagem do Brasil" em Florestan Fernandes 247

ocupa em sua produção teórica, na qual representa, de resto, um valor a realização de uma pesquisa que situasse a obra de
claro ponto de inflexão. Com efeito, embora Florestan retome Florestan na história do marxismo brasileiro. Como é óbvio, trata-
nesse livro temas já abordados em obras anteriores, o faz em se de uma tarefa que não posso enfrentar aqui. Irei me limitar a
outro nível: trata-se do seu primeiro texto onde o marxismo é propor algumas comparações entre a sua "imagem do Brasil" e
assumido explicitamente como ponto de vista metodológico. aquela de Caio Prado, seu mais brilhante precursor marxista,
Essa centralidade de RBB se confirma, de resto, quando tentando indicar tópicos concretos nos quais Florestan, em minha
constatamos que as análises da sociedade e da vida política opinião, avança com relação ao autor de Formação do Brasil
brasileiras presentes nas produções posteriores de Florestan, contemporâneo. (O que não anula o fato de que sua reflexão,
sobretudo nos livros de combate e nos muitos artigos jornalísticos como também veremos, continua a apresentar aspe ctos
que reuniu em várias coletâneas, inspiram-se indubitavelmente problernáticos.) Como subsídio inicial para encaminhar essa
nas formulações já expostas no livro publicado em 1975. comparação, permito-me lembrar que - tal como em Caio Prado
Antes de mais nada, é preciso sublinhar o fato de que a [r, e outros autores marxistas - o tema central da "imagem do
"imagem do Brasil" proposta por Florestan é uma imagem Brasil" em Florestan é a questão da "revolução burguesa", ou,
marxista e, portanto, revolucionária. Se não é difícil apontar a mais precisamente, 1) dos processos que nos conduziram à
presença hegemônica do método funcionalista nos primeiros "modernidade" capitalista; 2) das especificidades que, em função
trabalhos de nosso autor, é também indiscutível que o seu do modo dessa "revolução burguesa", tornaram-se próprias do
enfoque teórico-metodológico assume, sobretudo a partir de RBB, nosso capitalismo; e, finalmente, 3) das tendências e caminhos
uma explícita e consciente dimensão marxista. Com isso, que apontam para a superação dessa formação econômico-social
Florestan se insere numa tradição que se inicia com Octávio em nosso País.
Brandão (o qual, rnalgrado suas evidentes debilidades teóricas,
é o primeiro a tentar formular uma "imagem do Brasil" à luz do 2.
marxismo) ,2 passa por Caio Prado [únior e pelo Partido Comunista Uma das primeiras observações a fazer, nessa comparação
Brasileiro} e chega até nossos dias. Certamente, seria do maior entre Caio Prado e Florestan, é que ambos divergem, em pontos
substantivos, da "imagem do Brasil" formulada pelo PCB e pela
1 Cf Frirz Mavcr (pseudônimo de Octávio Brandão), Agrarismoe indusrrialismo. Ensaio maioria dos seus "subprodutos". De modo extremamente
marxisrci-/eninisra sobre a revolta deS Paulo e a guerra de classes no Brazil. Buenos Aires
esquemático, poderíamos resumir assim essa "imagem" pecebista:
(na verdade, essa localização visava a confundir a censura), s. e., 1926. Para uma
devastadora crítica desse livro de Braodão. cf. Leandro Konder, A derrota da dialética. para o PCB, o Brasil continuaria a ser um país "atrasado", semicolonial
Rio de Janeiro: Campus, 1988, p. 144·148. e semifeudal, bloqueado em seu pleno desenvolvimento para o
.1 Em 1933, Caio Prado Jr. publica seu primeiro ensaio marxista, Evolução lJolítica do
capitalismo pela presença do latifúndio e da dominação
Brasil. Em 1942 e 1945, respectivamente, publicará Formação do Brasil contemporâneo.
Colônia e História econômica do Brasil. Os três livros conheceram inúmeras reedições, imperialista. Em conseqüência, careceríamos ainda de uma
sobretudo pela Brasiliense, São Paulo. A "imagem do Brasil" presente na trajetória "revolução democrático-burguesa", que deveria ser feita com a
do PCB pode ser rcconstruída a partir dos documentos coletados em Edgard Carone,
participação de uma "burguesia nacional" supostamente
O PCB. São Paulo: Difel, 1982,3 vols. Para urna "imagem do Brasil" próxima àquela
do PCB, cabe também consultar as significativas obras de Nelson Werneck Sodré, antiimperialista e antifeudal. Em grande parte, tratava-se da
sobretudo as escritas a partir da década de 60.
I
248 Cultura e sociedade no Brasil Marxismo e a "imagem do Brasil" em Florestan Fernandes 249

aplicação ao Brasil do modelo de análise dos países periféricos usado para compreender processos de modernização promovidos
elaborado pelo VI Congresso da Internacional Comunista, pelo alto, nos quais a conciliação entre diferentes frações das
realizado em 1928, um modelo cujos principais elementos foram classes dominantes é um recurso para afastar a participação das
extraídos de uma abusiva generalização da realidade chinesa massas populares na passagem para a "modernidade" capitalista.
da época." Independentemente do caráter mais ou menos Embora Caio Prado não conhecesse nenhum desses dois
sofisticado com que foi apresentada essa "imagem" pecebista, o conceitos, certamente chegou em sua obra a muitas conclusões
que se pode constatar é que, em todas as suas variantes, ela análogas às de Lênin e de Gramsci, podendo-se assim dizer que
desconhece o fato de que o Brasil já havia realizado sua revolução ele "reinventou" os conceitos dos dois pensadores marxistas. Basta
burguesa e que, em conseqüência, pelo menos desde a República, recordar aqui, por um lado, suas brilhantes análises da "questão
sua formação econômico-social já era, ainda que com importantes agrária" no Brasil, nas quais mostra como a transição para a
especificidades, de tipo capitalista. Ora, tanto Caio quanto modernidade se deu entre nós não só com a conservação da
Florestan rompem com essa visão: para eles, o Brasil contemporâneo grande propriedade rural herdada da Colônia, mas também com
é um país plenamente capitalista, que já teria experimentado a manutenção de restos pré-capitalistas (corretamente definidos
portanto uma "revolução burguesa", mas - e é esse "mas" que por ele como escravistas e não como feudais); e, por outro, sua
torna tão significativas as suas obras, inclusive no quadro do instigante exposição do processo da Independência brasileira,
nosso marxismo - uma revolução burguesa de tipo "não clássico". definida como uma revolução pelo alto, produzida por meio de
Na tradição marxista, há pelo menos dois conceitos "arranjos" de cúpula entre as classes dominantes, com completa
elaborados para apreender processos de transição "não clássica" exclusão do protagonismo das camadas populares.'
para o capitalismo, ou seja, processos que não seguiram o Decerto, Florestan Fernandes dispõe de um estoque de
paradigma das revoluções inglesas do século XVII ou da Grande categorias marxistas bem mais rico do que aquele utilizado por
Revolução Francesa do século XVIII: refiro-me à noção de "via Caio Prado: Florestan não só conhece muito bem a produção
prussiana", elaborada por Lênin, e à de "revolução passiva", teórica de Marx e Engels," corno também revela ter estudado
cunhada por Gramsci. Em Lênin, a noção serve sobretudo para profundamente Lênin, cuja presença, de resto, é marcante em
definir os processos de transição, para o capitalismo no campo, sua produção teórica a partir de RBB. Nessa obra, encontramos
evidenciando o fato de que, nos casos de "via prussiana", ainda uma referência a Gramsci, autor que Caio Prado, mesmo
conservam-se na nova ordem fundada pelo capital claras em sua obra posterior à publicação dos Cadernos gramscianos
sobrevivências das formas pré-capitalistas, como, por exemplo, (final dos anos 40), parece desconhecer inteiramente. Contudo,
o uso da coerção extra-econômica na extração do excedente mesmo reconhecendo a grande familiaridade de Florestan com
produzido pelos trabalhadores rurais; em Gramsci, o conceito é a literatura marxista, é importante fazer aqui dois registros.

4 Para a exposição e crítica dessa "imagem" pccebísta, cf. Caio Prado [únior, A revolução
brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1987 (1. ed., 1966), sobretudo p. 29 e ss.; e
5 Cf. "A imagem do Brasil na obra de Caio Prado J únior", supra, p. 221.

Jacob Gorender, "A revolução burguesa e os comunistas", in M. A. D'Incao (org.), 6 Basta recordar aqui a longa "Introdução" que Florestan escreveu para o volume sobre
O saber militante. Ensaios sobre Florestan Fernandes. São Paulo: UNESP/Paz e Terra, Marx- Engels. História, Coleção "Grandes Cientistas Sociais". São Paulo: Átíca, 1983,
1987, p. 250-259. p.9-144.
250 Cultura e sociedade no Brasil Marxismo e a "imagem do Brasil" em Florestan Fernandes 251

Embora cite várias obras de Lênin na substanciosa bibliografia evidente, ademais, a analogia entre a "ditadura sem hegemonia"
contida em RBB, é surpreendente que não conste entre elas de Gramsci e sua própria noção (sobre a qual voltaremos em
O lJrograma agrário da social-democracia, escrita em 1907, que é seguida) de "autocracia burguesa". Cabe ainda observar que,
o texto onde o revolucionário russo apresenta de modo mais quando Florestan emprega em sua obra (o que, aliás, faz com
sistemático o seu conceito de "via prussiana", ou seja, de um freqüência) os termos "hegemonia" e "sociedade civil", nunca
caminho "não clássico" para o capitalismo. Talvez por isso, os emprega no sentido específico com que os mesmos são
Florestan - embora se valha em sua análise do Brasil de utilizados na obra de Gramsci.
determinações muito próximas daquelas contidas no conceito De qualquer modo, como já disse, é indiscutível que
de Lênin - jamais empregue explicitamente, como tampouco o Florestan elabora a sua "imagem do Brasil" mediante um estoque
faz Caio Prado, a noção de "via prussiana". Por outro lado, embora categorial marxista bem mais rico do que aquele presente na
o único texto de Gramsci indicado na mencionada bibliografia produção de Caio Prado. Ao contrário de Florestan, que quase
seja o volume da edição temática dos Cadernos do Cárcere sempre se apóia em conceitos, Caio constrói suas análises de modo
referente a Il Risorgimento - ou seja, precisamente aquele onde bem mais "intuitivo", o que as torna muitas vezes ambíguas ou
estão contidas as principais observações do autor italiano sobre pouco precisas. Vejamos um exemplo concreto. Florestan diz
"revolução passiva" -, Florestan tampouco se vale desse conceito explicitamente que o Brasil evoluiu para o presente capitalista a
gramsciano. Mais do que isso, ele parece não ter apreendido partir de uma formação econômico-social que não era capitalista.
corretamente o sentido dessa noção gramsciana, já que afirma No autor de Formação do Brasil contemporâneo, ao contrário, a
(embora com a cautela de dizer "provavelmente") o seguinte: definição da natureza econômico-social de nosso passado aparece
"Se se considerar a Revolução Burguesa na periferia como uma de modo impreciso: atribuindo à circulação a prioridade ontológica
'revolução frustrada', como fazem muitos autores (provavelmente na definição de uma estrutura econômica, uma atribuição que
seguindo implicações da interpretação de Gramsci sobre a contradiz claramente a lição marxiana, Caio Prado parece supor
Revolução Burguesa na Itália), é preciso proceder com muito que o Brasil foi sempre capitalista. Isso, evidentemente, prejudica
cuidado" (RBB, 294, grifo meu). Na verdade, Gramsci não se sua "imagem do Brasil" não só no que se refere ao passado, mas
refere à "revolução passiva" COP.10 uma "revolução frustrada", também ao presente. Por exemplo: embora ele diga, superando os
isto é, fracassada ou inexistente; ao contrário, trata-se para ele limites da "imagem" pecebista, que o Brasil moderno já é
de um tipo específico de revolução exitosa, ainda que feita plenamente capitalista, ainda que conservando "prussianamerite"
através de conciliações pelo alto e da exclusão do protagonismo elementos da velha ordem colonial, termina por subestimar as
popular, o que gera um processo de transformações político- novidades introduzidas em nosso País e por construir assim uma
sociais do qual resulta, em suas palavras, uma "ditadura sem imagem do Brasil contemporâneo onde o que predomina não é
hegemonia".? Ora, é precisamente esse o tipo de revolução a emergência do novo, mas sim a conservação do velho."
burguesa que Florestan julga ter ocorrido no Brasil, sendo
S Para um maior desenvolvimento desses aspectos da reflexão do autor de A revolução
7 Antonio Gramsci, Quademi delcarcere. Turim: Einaudi, 1975, p. 1.824. brasileira, cf. também "A imagem do Brasil na obra de Caio Prado [únior", supra, p. 221.
252 Cultura e sociedade no Brasil Marxismo e a "imagem do Brasil" em Florestan Fernandes 253

Florestan, ao contrário, afirma explicitamente que o Brasil, sociedades até agora tem sido a história das lutas de classe",
nas épocas colonial e imperial, não era capitalista, razão pela qual então é tarefa dos marxistas definir com precisão quais eram as
sua classe dominante - formada pelos latifundiários escravistas - classes sociais que formavam a estrutura do Brasil nas épocas
não se movia, ao contrário do que supunha Caio, com base numa colonial e imperial e corno se processavam as lutas entre elas.
lógica capitalista, mas se orientava por outra "racíonalidade", Na verdade, já em RBB, Florestan não se recusa a enfrentar
chamada por ele de "patrimonialista". É precisamente essa correta essa tarefa: embora se valha de uma terminologia weberiana
percepção que lhe permite constatar a emergência, a partir da ("patrimonialismo", "estamento", etc.), ele nos apresenta nesse
expansão de relações comerciais na época imperial, de duas novas livro uma análise das motivações comportamentais dos senhores
camadas sociais, a dos fazendeiros de café e a dos imigrantes de escravos que se aproxima em muitos casos de urna análise
(RBB, sobretudo 86 e ss.): tais camadas, embora sem romper marxista, já que tais motivações são por ele vinculadas à sua
inteiramente com a "velha ordem" patrimonialista, começam a gênese nas relações sociais de produção. De resto, quando
agir segundo urna racionalidade propriamente capitalista, o que analisa os processos de transição da "sociedade estamental"
lhes possibilita desempenhar o papel de protagonistas principais para o capitalismo, Florestan não deixa de fazer intervir nessa
da "revolução burguesa" que se processou em nosso País. análise a noção da luta de classes, o que novamente o
Mas, com efeito, tampouco Florestan escapa de algumas aproxima do marxismo. Por outro lado, cabe anotar que o uso
ambigüidades. Revelando estar ainda preso ao "ecletismo bem de noções weberianas em RBB restringe-se, essencialmente, às
temperado"? que marca sua produção inicial (mas do qual, a partes I e II do livro, que Florestan nos adverte, na "Nota explicativa"
meu ver, liberta-se quase inteiramente a partir da última parte (RBB, 9), terem sido escritas em 1966; na parte III, redigida em
de RBB), Florestan - seguindo nisso Max Weber - define essa 1973-1974, como ele também nos informa, a noção de "sociedade
ordem pré-capitalista como urna "sociedade estamental e de estamental" cede lugar aos conceitos de "escravismo" ou
casta", reservando apenas para o capitalismo a designação de "escravismo colonial", oriundos da tradição marxista. Tudo indica
"sociedade de classes". Não posso aqui me deter sobre o fato de - mas se trata apenas de uma sugestão para posterior exame -
que, segundo o marxismo - pelo menos depois de A ideologia que, entre 1966 e 1973, Florestan aprofundou os seus estudos
alemã, onde Marx e Engels parecçm ainda supor que classes marxistas, em particular do pensamento de Lênin, cujos
sociais só existem no capitalismo -, a presença de estamentos conceitos, de resto, es tão fortemente' presentes nessa parte III
ou de ordens, isto é, de segmentos fundados numa explícita de RBB, precisamente aquela mais madura do livro em questão.
desigualdade jurídica, não implica de nenhum modo a negação Há ainda um outro tópico no qual Florestan vai certamente
da realidade econômico-social das classes.'? Se é verdade, corno além de Caio Prado. Enquanto esse último deixa o problema da
lemos no Manifesto comunista, que "a história de todas as especificidade de nossa "revolução burguesa" na sombra - mais
sugerindo pistas do que efetivamente formulando conceitos -,
9 Gabriel Cohn, "O ecletismo bem temperado", in O saber militante, cit., p. 48-53.

I
o primeiro coloca explicitamente a questão e busca dar-lhe um
10 Aliás, é isso o que Florestan parece supor em trabalhos imediatamente posteriores a
RBB: "Ao se evitar o emprego simultâneo de conceitos como 'casta', 'estarnento' e tratamento teórico adequado. Ele diz com clareza, tendo
'classe', perde-se aquilo que seria a diferença específica na evolução da estratificação provavelmente corno alvo os autores pecebistas: "Não existe, como
social no Brasil" (F.Fernandes, Circuito fechado. São Paulo: Hucitec, 1976, p. 47).
254 Cultura e sociedade no Brasil
Marxismo e a "imagem do Brasil" em Florestan Fernandes 255

se supunha a partir de uma concepção europocêntrica (válida resolução da "questão agrária". Florestan, ao contrário, sublinha
para os casos 'clássicos' da Revolução Burguesa), um único uma outra característica para explicar a "não-classicidade"
modelo básico democrático-burguês de transformação capitalista. brasileira: para ele, com efeito, a peculiaridade de nossa
(... ) Até recentemente, só se aceitavam interpretativamente revolução burguesa resultaria essencialmente do fato de que a
como Revolução Burguesa manifestações que se aproximassem mesma se processa num país dependente, primeiro do
tipicamente dos 'casos clássicos'. (...) Tratava-se, quando menos, colonialismo, hoje do que ele chama de "imperialismo total".
de uma posição interpretativa unilateral" (RBB, 289-290). Para Florestan, residiria sobretudo nesse caráter dependente e
Florestan coloca assim, com plena consciência, o mesmo problema subalterno de nossa formação social a razão por que não seguimos
já enfrentado por Lênin e por Gramsci, ou seja, o da definição uma "via clássica" para a modernidade; ou, mais precisamente,
de vias "não clássicas" para o capitalismo. foi por termos sempre ocupado uma posição dependente no
Ora, essa consciência lhe permite, sempre em comparação quadro do capitalismo internacional que não pudemos conhecer
com Caio Prado, o uso de recursos teóricos mais precisos para uma revolução burguesa capaz de forjar em nosso País uma
entender não apenas o específico modo da revolução burguesa superestrutura política que, referindo-se a Barrington Moore
no Brasil, mas também a particularidade do capitalismo que irá [r., nosso autor chama de "liberal-democrática". Ao elencar os
resultar dessa revolução. Sem negar que a conservação do "atraso", traços mais perversos do que define como a "autocracia burguesa"
da dependência externa, da "selvagem" exploração do trabalho, brasileira, Florestan nos adverte para o fato de que tais traços
do "autocratisrno", etc., gera importantes determinações específicas "são típicos da organização e do funcionamento da sociedade
de nosso "moderno" capitalismo, Florestan evita porém, ao mesmo de classes sob o capitalismo dependente e subdesenvolvido
tempo, a tendência caio-pradiana de dar prioridade a tais (e não se maniíestarn.da mesma forma onde a Revolução Burguesa
elementos "atrasados" na caracterização de nosso presente: segue seu curso 'clássico' ou liberal-democrático)" (RBB, 327).
graças a uma visão mais mediatizada, ele ressalta também os Além dessa dependência ao colonialismo e ao imperialismo,
traços novos que o capitalismo introduz na vida social brasileira, Florestan menciona também, como fator explicativo da via "não
destacando entre eles a industrialização e a urbanização, o clássica" no Brasil, o caráter tardio de nosso desenvolvimento
revolucionamento do universo "de valores, a nova estratificação capitalista, que se processaria num momento histórico no qual,
social, etc. Com isso, a "imagem do Brasil" elaborada pelo nosso já tendo o socialismo ingressado na agenda política mundial,
marxismo dá um significativo passo à frente, possibilitando uma ocorreria uma batalha de vida ou morte entre ele e o imperialismo
visão mais precisa e complexa não só das contradições do nosso (RBB, 352). Ora, segundo Florestan, isso faz com que a burguesia
presente, mas também das tarefas estratégicas que se colocam brasileira prefira se aliar às velhas classes dominantes e aos
aos que pretendem construir um novo futuro. segmentos militares, ao invés de tentar um compromisso mais
permanente com as classes subalternas, compromisso que, se
3. realizado, implicaria uma am pliação dos direitos de cidadania
Lênin, na definição dos pressupostos de uma via "não- entre nós. Em estreita articulação com a dependência, que torna
clássica" para o capitalismo, recorre sobretudo ao modo de a burguesia brasileira carente de autonomia, o temor ao
255 Cultura e sociedade no Brasil 1 Marxismo e a "imagem do Brasil" em Florestan Fernandes 257

proletariado e ao socialismo contribuiu ainda mais para fazer Ora, a percepção disso é um dos pontos fortes da "imagem do
com que essa classe adotasse, na busca da consolidação de seu Brasil" presente na obra de Caio Prado, que dedicou importantes
domínio, o caminho de uma "contra-revolução prolongada" (RBB, estudos à analise de nossa "questão agrária", i2 nos quais mostra
310 e ss.). que utiliza politicamente formas mais ou menos explícitas que o velho latifúndio se tornou capitalista sem perder muitas
de poder "autocrático". de suas velhas características, em particular o uso e o abuso de
formas de "coerção extra-econômica" sobre o trabalhador. Penso
Decerto, esse caráter dependente e tardio de nosso
assim que a definição florestaniana da especificidade da
desenvolvimento capitalista explica muito do caráter de nossa
"revolução burguesa" no Brasil ganharia ainda mais em
"revolução burguesa", mas - ao contrário de Florestan - penso
densidade se, além das determinações resultantes do caráter
que não explica tudo.!' A Alemanha e o Japão, por exemplo,
dependente e tardio do desenvolvimento capitalista entre nós,
embora não fossem países dependentes, experimentaram vias
incorporasse também as determinações provenientes do modo
"não clássicas" para o capitalismo, marcadas também, pelo menos
de resolução (ou de não-resolução) da nossa "questão agrária",
durante um longo período, pela construção e preservação de
tão bem conceptualizado na obra de Caio Prado.
estruturas políticas abertamente ditatoriais; além disso, embora
em ambos os casos estivéssemos diante de capitalismos "tardios", Mas, independentemente disso, o fato é que, com base em
isso não impediu que Alemanha e ] apáo se tornassem, por sua seu conceito de uma revolução burguesa de tipo "não clássico",
vez, países imperialistas. Como vimos, para Lênin (e, de certo Florestan não só reexaminou momentos essenciais de nosso
passado, mas também propôs uma brilhante interpretação
modo, também para Gramsci), o fator decisivo na geração de
uma via "não clássica" para o capitalismo é um fator interno, marxista - uma das mais lúcidas de que dispomos - daquilo
que, na época em que RBB foi publicado, constituía o nosso
residindo sobretudo no modo pelo qual o capitalismo resolve a
presente histórico. Essa análise florestaniana do presente
"questão agrária": a via clássica implica uma solução
desdobra-se em três complexos problemáticos estreitamente
revolucionária, com a destruição da grande propriedade pré-
articulados entre si. No primeiro deles, Florestan disseca as lutas
capitalista e a criação de um campesinato livre, enquanto o
caminho "não clássico" tem lugar quando a grande propriedade de classe que culminaram no golpe de 1964, por ele corretamente
e a velha classe latifundiária se conservam, introduzindo definido como urna "contra-revolução preventiva", desfechada
por uma burguesia finalmente unificada pelo temor comum de
progressivamente e "pelo alto" novas relações capitalistas.
seus vários segmentos à tumultuosa ascensão dos movimentos
populares no início dos anos 60. No segundo, ele conceitua os
II Parece-me importante registrar que há autores marxistas brasileiros que, embora por
principais traços político-institucionais do regime que resultou
caminhos nem sempre semelhantes aos de Florestan, também insistem em definir
nossa "não-classícidade" na transição para o capitalismo recorrendo prioritariamente 1 do golpe, regime ao qual dá o nome de "autocracia burguesa"; i3
a tais determinações provenientes da dependência do Brasil ao mercado internacional.
É o caso, por exemplo, de J. Chasin (O integralismo de PUnia Salgado. São Paulo:
Ciências Humanas, 1978), de Ricardo Antunes (Classe operária, sindicatos e partido no
I 12 Cf., por exemplo, os textos reunidos em Caio Prado [únior, A questão agJ-ária no Brasil.
São Paulo: Brasiliense , 1979.
Brasil. São Paulo: Cortez-Ensaio, 2. ed., 1988) e de Antonio Carlos Mazzeo (Estado e
11I<rguesiano Brasil. Belo Horizonte: Oficina do Livro, 1989), que se referem a uma "via 1 13 Embora Florestan tenha indicado com precisão os traços essenciais do regime
ditatorial implantando no Brasil depois de 1964. inclusive negando corretamente
colonial" Ou "colonial-prussiana'' para definir a modalidade de nossa "revolução j
burguesa". que ele pudesse ser caracterizado como "fascista" (já que não recorria à organização

j
258 Cultura e sociedade no Brasil Marxismo e a "imagem do Brasil" em Florestan Fernandes 259

segundo Florestan, esse regime - que Gramsci certamente adotando formas mais consensuais ou democráticas (hegemônicas,
subsumiria sob o tipo geral definido por ele como "ditadura sem como diria Gramsci) no exercício do seu poder de classe. Por
hegemonia" - seria a expressão da impossibilidade estrutural da isso, ele nos adverte que "não se pode dizer que tal ditadura de
burguesia brasileira de ampliar minimamente suas bases de classe (implantada em 1964) seja transitória" (RBB, 350). De
consenso junto aos segmentos subalternos, o que a obrigaria a resto, corno veremos, essa negação se mantém em seus escritos
recorrer de modo sistemático e permanente à coerção aberta posteriores a RBB: até sua morte, Florestan sempre supôs que _
contra os "de baixo". embora pudesse alterar alguns traços inessenciais do seu modo
Finalmente, no terceiro de tais complexos problemáticos, de dominação - a burguesia brasileira seria incapaz de renunciar
Florestan já se revelava capaz - embora estivesse escrevendo a estruturas autocráticas de dominação, já que tal renúncia
em 1973-74 - de apontar as principais características do "projeto poria seriamente em risco não só o seu poder, mas a sua própria
de abertura" que então apenas se iniciava, um projeto proposto existência como classe.
pelo regime militar para enfrentar as crescentes dificuldades
econômicas e políticas em que estava sendo envolvido. Para 4.
nosso autor, a implementação desse projeto significaria apenas
Essa suposição me parece estar na raiz de concepções
que "a autocracia burguesa leva a uma democracia restrita típica,
equivocadas presentes na produção teórica e jornalística do
que se poderia designar como uma democracia de cool)wção"
último Florestan. Embora denunciasse com lucidez os limites
(RBB, 358-359). Ou seja: mediante um processo que Gramsci
"transformistas" do projeto de "abertura", Florestan parece ter
chamaria de "transformismo", o regime buscava perpetuar-se
subestimado - em seus trabalhos posteriores a RBB - o fato de
no poder por meio da cooptação de alguns segmentos moderados
que tal projeto foi atravessado e contraditado por um IJTOCeSSO
da oposição, mas sem abandonar - um fato sobre o qual nosso
de abertura, isto é, por um movimento social objetivo que
autor insistia sem vacilações - a sua natureza essencialmente
resultou da ativação da sociedade civil, em particular dos
autocrática. Com base em sua análise das características
segmentos ligados às classes trabalhadoras." O "processo" de
específicas da nossa burguesia, Florestan negava enfaticamente
abertura, atuando de baixo para cima, abriu e conquistou espaços
a possibilidade de que ela pudesse se reciclar estruturalmente,
que nem de longe estavam previstos no "projeto" geiseliario-
golberiano, que previa apenas uma reforma da autocracia "pelo
das massas), parece-me impróprio o seu emprego do termo "autocracia burguesa". alto", com a conservação de suas características essenciais. Ora,
Recorrendo a uma periódica mudança de "Presidentes", o poder ditatorial brasileiro em 1974, no momento em que escreveu a última parte de RBB,
da época não se cncarnou numa única pessoa e, nessa medida, não pode ser chamado
era absolutamente compreensível que Florestan subestimasse
de "autocrático", Indagado sobre as razões do uso desse termo por Florestan, o amigo
Ocrávio Ianní me deu uma explicação convincente: o autor de RBB teria se valido de as potencialidades desse processo de abertura, já que ele só iria
urna expressão cunhada por Lênin para caracterizar a autocracia czarísra C1l1 sua efetivamente tomar corpo e dimensão nacional a partir das greves
última fase, quando - sem deixar de ser autocrático (o czar se dizia mesmo "autocrata
de todas as Rússias") - () czarismo já atuava essencialmente como um Estado burguês.
Insisto, porém, em que a "licença poética" a que Florestan recorreu não anula de
nenhum modo a sua correta caracterização conreudística do poder ditatorial resultante 14 Para a dialética entre "projeto" e "processo" de abertura, cf. C.N. Coutinho, Contra
do golpe de 1964. a corrente. Ensaios sobre democracia e socialismo. São Paulo: Cortez, 2000, p. 87 e 55.
Cultura e sociedade no Brasil
260 Marxismo e a "imagem do Brasil" em Florestan Fernandes 261

do ABC, ocorridas entre 1978 e 1980, e da memorável campanha burguesia vem travando para consolidar entre nós uma nova
pelas "diretas-já", que culmina em 1984. Por isso, também é forma de dominação de classe. Em sua caracterização do período,
compreensível - embora isso expresse mais um wishfull thinking Florestan reteve apenas o momento da "reforma pelo alto", tanto
do que uma análise realista - que a obra-prima de Florestan se assim que designou o contraditório processo de transição como
encerre sugerindo que tínhamos apenas uma alternativa: ou a uma "transação conservadora"; em conseqüência, a nova
permanência da "autocracia burguesa" (ainda que sob as novas institucionalidade lhe aparecia como nada mais do que uma
vestes da "democracia de cooptação") ou a "revolução socialista" enésima manifestação da "autocracia burguesa", ou, em suas
(concebida, de resto, como unia explosão violenta). Vejamos o próprias palavras, como o "último e surpreendente refúgio
que ele diz, no último parágrafo de sua obra-prima: "No contexto (da ditadurar't.!' Por isso, ele continuou a supor até o fim
histórico de relações e conflitos de classe que está emergindo, que o único caminho para a luta pela democracia e pelo
tanto o Estado autocrático poderá servir de pião para o advento socialismo no Brasil seria o de uma revolução explosiva e violenta.
ele um autêntico capitalismo de Estado, stricto sensu, quanto o Num texto escrito em final de 198.~,por exemplo, ele nos diz:
represamento sistemático das pressões e das tensões "O que se destroçou? A ilusão de que um país como o Brasil
antiburguesas poderá precipitar a desagregação revolucionária possa expungir-se de iniqüidades seculares por meios pacíficos
da ordem e a eclosão do socialismo" (RBB, 366). (...). A democracia exige uma revolução social (que) rebenta
Os fatos subseqüentes à publicação de RBB, embora tenham de baixo ( ). Os caminhos pacíficos estão bloqueados e as
confirmado algumas das previsões ali formuladas, parecem ter 'esquerdas' ( ) precisam aprender a avançar revolucionariamente
desmentido outras tantas. Por não ter avaliado adequadamente na direção de sua organização instituciorial"." Desse modo,
as potencialidades do processo de abertura, Florestan continuou Florestan parece não ter vis to que as novas condições abertas
subestimando, em seus últimos trabalhos, o peso que os setores pela derrota da ditadura impunham às forças populares a adoção
populares - e, em particular, a nova classe trabalhadora - tiveram de uma nova estratégia de luta, estratégia que - para usar os
nos fenômenos da transição democrática e, conseqüentemente, . conhecidos conceitos de Gramsci - já não devia recorrer à
na definição das instituições políticas (sobretudo a Constituição "guerra de movimento", ao choque frontal, mas sim à "guerra
de 1988) que dele derivaram. q,ada a concreta correlação de de posição". Se essa minha avaliação é correta, isso implica a
forças que então se manifestou, essa nova institucionalidade foi necessidade de substituir a proposta de uma revolução "explosiva"
fortemente marcada pelas lutas das classes subalternas; a meu e violenta pela de uma revolução "processual", fundada numa
ver, a transição - ainda que, em seu momento resolutivo, tenha luta permanente pela hegemonia.
reproduzido a velha tradição brasileira dos "arranjos" pelo alto Esses limites da "imagem do Brasil" no último Florestan
_ foi também determinada, pelo menos em parte, pelas pressões
que provinham "de baixo". Por isso, não é de modo algum casual I
I
parecem-me resultar, de resto, não só dessa subestimação do

que a Constituição de 1988, que recolheu em seu texto muitas I 15 Flor estan Fernandes, Noua República' Rio de Janeiro: Zahar, 1986, p. 8 e passim.
dessas pressões, tenha se tornado - desde o governo Collor até o

I
Cf. também os artigos e intervenções reunidos em id., A Constituição iTUlcabada. São
atual governo Cardoso - um dos principais alvos da luta que a Paulo: Estação Liberdade, 1989, passim.
16 Florestan Fernandes, Que tiPo de República? São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 54.

1
Cultura e sociedade no Brasil Marxismo e a "imagem do Brasil" em Florestan Fernandes 263
262

processo de abertura na avaliação da nova institucionalidade até nossos dias pode ser caracterizado, a meu ver, como um
construída depois de 1985, mas também de uma discutível contexto no qual a burguesia - constrangida pelas condições
afirmação já presente em RBB, Nesse livro, a correta análise impostas não só pela nova correlação de forças entre ela e as
florestaniana da revolução burguesa no Brasil como manifestação classes subalternas no plano interno, mas também pelo contexto
de uma via "não clássica", que implicou em momentos decisivos internacional - volta a buscar formas hegemônicas para
o uso sistemático de formas abertamente ditatoriais e coercitivas, consolidar sua dominação. Mas, assim como afirma que a época
combina-se com uma generalização problemática, isto é, com, a populista não passou de uma "autocracia burguesa dissimulada",
afirmação de que a nossa burguesia careceu e carecerá sempre, Florestar. também supõe, como vimos, que o período iniciado
para poder exercer seu domínio de classe, dessas formas ditatoriais em 1985 é apenas o "último refúgio da ditadura".
ou "autocráticas" de poder político, (Uma análise empírica Ao fazer essas observações críticas, não pretendo de modo
constata que o recurso a formas "não clássicas" de revolução algum negar o fato indiscutível de que, com seu salutar
burguesa não impede que o país que as adotou conheça, em radicalismo, Florestan desmistíficou muitas das ilusões que
determinadas etapas de sua h.istória, estruturas políticas liberal- dominavam setores importantes da esquerda em sua avaliação
democráticas; basta recordar aqui os casos do Japão, da da situação aberta com a chamada "Nova República", uma
Alemanha, da Itália ou da Espanha.) Essa generalização faz com expressão que, lucidamente, ele sempre fazia acompanhar ou
que Florestan não leve em consideração, em suas análises, alguns de aspas ou de um ponto de interrogação. Quando hoje - à luz
períodos históricos em que a burguesia brasileira se viu obrigada do que agora sabemos sobre os governos Sarney, Collor e Cardoso
a recorrer a formas de dominação que implicam elementos de - reexaminamos a denúncia florestaniana das tendências
hegemonia (no sentido gramsciano), ou seja, à busca de um regressivas e conservadoras contidas na nova fase histórica que
relativo consenso junto às classes subalternas. Penso que um então se iniciava, somos forçados a constatar que muito daquilo
movimento desse tipo ocorreu durante o chamado "período que a alguns de nós parecia na época manifestação do
populista", quando a burguesia - através da ideologia nacional- "sectarismo" do velho Florestan era, ao contrário, a
desenvolvimentista - buscou (e em grande medida obteve) uma confirmação da sua lucidez analítica e da sua capacidade de
hegemonia "seletiva" junto a segmentos das classes subalternas, previsão. Decerto, continuo pensando que as alterna tivas
em particular aos trabalhadores urbanos enquadrados na CLT 17 contidas na conjuntura que se inicia no Brasil depois de 1985
Mas é outra a opinião de Florestan. Para ele, "a 'demagogia não cabem no estreito dilema formulado no final de RBB e
populista' ( ) era uma aberta manipulação consentida das massas reproduzido nos últimos textos de Florestan: ou "autocracia
populares. ( ) Não existia uma democracia burguesa fraca, mas burguesa", ainda que mascarada sob novas formas, ou
uma autocracia burguesa dissimulada" (RBB, 340). Também o "revolução socialista", concebida ademais como um processo
período que se inicia com o "processo de abertura" e que chega explosivo que rompe radicalmente com a nova institucionalidade
que resultou da transição. Essa institucionalidade, que os
11 Sobre eSS8 "hegemonia seletiva" na época populista, cf. C.N, Coutinho, "Crise e trabalhadores contribuíram para criar, parece-me ser o ponto
redefinição do Estado brasileiro", in A.M, Peppe e I. Lesbaupin (orgs.), Revisão de partida da nossa difícil luta para derrotar a reestruturação
constitucional e Estado democrático, São Paulo: Loyola, 1993, p. 84 e 5S.
264 Cultura e sociedade no Brasil Marxismo e a "imagem do Brasil" em Floreslan Fernandes 265

do poder burguês (que agora tenta se consolidar sob a maior contribuição - é uma tarefa sempre em aberto, pelo que
hegemonia do neoliberalismo) e, ao mesmo tempo, para construir jamais poderemos nos satisfazer com os resultados já obtidos.
- por meio de uma estratégia reformista-revolucionária - Para o cumprimento de tal tarefa, Florestan não contribuiu apenas
as condições para a implantação do socialismo em nosso País. com suas brilhantes reflexões teóricas, mas também com o seu
Mas agora sabemos, graças entre outras coisas ao radicalismo extraordinário exemplo moral. O radicalismo com que ele
de Florestan, que a esquerda brasileira não pode travar essa empreendeu sua atividade intelectual e política, sobretudo na
luta se não se libertar de uma dupla ilusão: por um lado, a de última fase de sua vida, é uma lição que nós, intelectuais
que os avanços obtidos na construção de nossa democracia já marxistas (mas não só marxistas), não podemos e não devemos
estejam definitivamente consolidados, mesmo no nível da esquecer. Contra os trânsfugas e os capitulacionistas, contra os
superestrutura política; e, por outro, a de que, ainda que os que optaram pela falsa "democracia de cooptaçâo", o exemplo
consigamos consolidar, tais avanços sejam suficientes para de Florestan Fernandes nos recorda que o lugar dos intelectuais
realizar a verdadeira emancipação humana do nosso povo. dignos desse nome é ao lado das classes subalternas, na difícil
A democracia que começamos a construir na época da mas cada vez mais necessária luta pela revolução democrática e
transição só se consolidará de modo definitivo e só realizará socialista.
plenamente seu valor universal no horizonte da sua progressiva
radicalização, ou seja, da sua transformação em democracia (1998)
socialista.

5.
As críticas que sugerimos aqui, ao tentar analisar a herança
teórica e política de Florestan, não pretendem ser mais (nem
tampouco ser menos) do que propostas de autocrítica. Embora
talvez nenhum marxista tenha elaborado uma "imagem do Brasil"
tão rica e lúcida como a que 'Florestan nos legou, sabemos -
como ele também o sabia - que "o proletariado não deve recuar
diante de nenhuma autocrítica, pois só a verdade pode levá-lo
à vitória e, por isso, a autocrítica deve ser seu elemento vital''."
A tarefa coletiva de elaborar uma "imagem do Brasil" com base
no marxismo - para a qual, depois de Caio Prado [únior e de
Nelson Werneck Sodré, Florestan Fernandes deu certamente a

rs Georg Lukács, História e consciência de classe. Porto-Rio de Janeiro: Escorpião-Elfos,


1989, p. 107.
Nota bibliográfica

Os ensaios reunidos neste livro foram publicados pela


primeira vez, quase sempre com diferentes títulos, nos seguintes
locais:
I. "Os intelectuais e a organização da cultura", in Temas de
ciências humanas. São Paulo, n? 10, 1981, p. 93-110. Conferência
pronunciada em 23 de junho de 1980, em São Paulo, no curso
de História do Brasil promovido pela AUPHIB.
I!. "Cultura e sociedade no Brasil", in Encontros com a
Civilização Brasileira, Rio de janeiro, n? 17, novembro de 1979,
p. 19-48 (reproduzido em A democracia como valor universal. São
Paulo: Ciências Humanas, 1980, p. 61-92).
III. "Dois momentos brasileiros da Escola de Frankfurt", in
Presença. Revista de política e cultura. Rio de Janeiro, nº 7, março
de 1986, p. 100-112.
IV "O significado de Lima Barreto em nossa literatura", in
Vários Autores, Realismo e anti-realismo na literatura brasileira.
Rio de janeiro: Paz e Terra, 1974, p. l-56.
V "Graciliano Ramos", in Revista Civilização Brasileira. Rio
de janeiro, nQ;i5-6, março de 1966, p. 107-150 (reproduzido em
Literatura e humarusmo. Ensaios de crítica marxista. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1967, p. 139-190).
VI. "A imagem do Brasil na obra de Caio Prado [únior", in
Maria Ângela D'Incao (org.), História e ideal. Ensaios sobre Caio
Prado ]únior. São Paulo: Editora da Unesp- Brasiliense, 1989,
p. 115-131.
VII. "Marxismo e imagem do Brasil em Florestan Fernandes",
na revista eletrônica Gramsci e o Brasil. www.artne t.com.br/
gramsci, seção "Textos/Brasil".
Leia e confira ...

o tabu da gestão
a cultura sindical entre contestação
e proposição
Jean Lojkine

o tabu da gestão discute os novos rumos do


sindicalismo, suas opções e principais conflitos
na idade do neoliberalismo, assim como as
reformulações que ele e as próprias empresas são
obrigadas a passar devido a revoluç ão
intormacional.

Feito e a ser feito


As encruzilhadas do labirinto V
Cornelius Castoriadis

Último livro do autor, falecido em


1998, traz um testamento de sua obra.
Mostra com clareza a disposição que o
animava como filósofo comprometido
com a causa humana.

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"imagem do Brasil", na qual não só
se evidenciavam as devastações
t humanas provocados por esse
caminho elitisto e "pelo alto" de
transformação social, mas onde
eram também propostas soluções
alternativas, efetivamente demo-
cráticas e nacional-populares. De
tudo isso resulta, como o leitor
poderá comprovar, uma rica e
original análise de conjunto dos
vínculos entre culturo e sociedade
em nosso País.

Carlos Nelson Coutinho


nasceu na Bahia, em 1943.
É professor titular de Teoria
Política e de Formação Social do
Brasil na UFRJ e autor, entre
outros livros, de Gramsci. Um
estudo sobre seu pensamento
político (Rio de Janeiro, Civili-
zação Brasileira, 1999) e Contra a
corrente. Ensaios sobre demo-
cracia e socialismo (São Paulo,
Cortez, 2000). É também o editor
brasileiro de Cadernos do cárcere
de Antonio Gramsci (Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira, 6
vols., 199gess.).

Xilogravura da capa: "Marcado para


morrer", de Leonardo Leal.
Leonardo Leal, 73 anos, nascido em
~--...
'.-' e, l) .::.:''-.....
Recife, cursou Belas Artes no UFPE.
/- V' .. _ ,", Foi secretório do Federaçõo dos Ligas
~Jf .•.•
'\ '.j "C-j/ '\ Camponesas da Paraiba entre 1960 e
1.'. •• "'"""1"7 \

Impresso nas oficinas da . " 1962. Esta obra retrata a cena da


SEHMOGHAF - ARTES GJ\~I~ICAS E EOITORA :4TOA.
{:/ 'é:'~ emboscada ao líder camponês da

Rua São Sebastião, 199 - Petrópolis - RJ


I\"~ >: Paraíba, Joõo Pedra Teixeira, assas-
, I sinado a mando de latifundiários em
Tel.. (24) 237.;3769 ." \ .». ,,~~ ,
, :")'J, r'( !
""~<:.~-';
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_)1 1962. Essa cena, a nos
ganharia movimento no filme "Cabra
marcado para Morrer"
depois,

do cineasta

O O 7 j 611 EduardoCoutinho.

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