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UFF – UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

PPGAU – PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LUIS GUSTAVO ROSADAS CAMPOS

Do Higienismo à gentrificação, as semelhanças e singularidades no processo de


exclusão social na cidade do Rio de Janeiro: o bairro da Lapa

Niterói
2016
C198 Campos, Luis Gustavo Rosadas
Do higienismo à gentrificação, as semelhanças e
singularidades no processo de exclusão social na cidade do Rio de
Janeiro: o bairro da Lapa / Luis Gustavo Rosadas Campos –
Niterói: UFF, 2016.
155f.: il.
Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) –
Universidade Federal Fluminense, 2016.
Orientador: Sônia Maria Taddei Ferraz
1. Política pública. 2. Espaço urbano. 3. Exclusão social. 4.
Gentrificação. 5. Lapa (Rio de Janeiro, RJ). 5. Produção
intelectual. I. Ferraz, Sônia Maria Taddei. II. Universidade Federal
Fluminense, Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e
Urbanismo, 2016. III. Título.
CDD 320.981
UFF – UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
PPGAU – PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LUIS GUSTAVO ROSADAS CAMPOS

DO HIGIENISMO À GENTRIFICAÇÃO, AS SEMELHANÇAS E SINGULARIDADES


NO PROCESSO DE EXCLUSÃO SOCIAL NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO: O
BAIRRO DA LAPA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Arquitetura e Urbanismo da
Escola de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para obtenção do Grau de
Mestre.
Área de Concentração: Arquitetura e
Urbanismo

ORIENTADORA: Prof.ª Dr.ª Sônia Maria Taddei Ferraz

Niterói
2016
LUIS GUSTAVO ROSADAS CAMPOS

DO HIGIENISMO À GENTRIFICAÇÃO, AS SEMELHANÇAS E SINGULARIDADES


NO PROCESSO DE EXCLUSÃO SOCIAL NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO: O
BAIRRO DA LAPA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Arquitetura e Urbanismo da
Escola de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para obtenção do Grau de
Mestre.

Aprovada em 8 de março de 2017.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Sônia Maria Taddei Ferraz (orientadora)
UFF - Universidade Federal Fluminense

____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Cristina Lontra Nacif
UFF - Universidade Federal Fluminense

____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Carolina Moreira de Hollanda
UNIGRANRIO - Universidade do Grande Rio
Dedico esta dissertação aos que perderam o direito de morar, que tiveram as
relações com seu lugar reificadas pelas intervenções urbanas gentrificadoras
abastecidas pelo capital. Aos que tiveram seus pertences roubados ou destruídos –
mesmo que papelões ou cobertores de flanelas – pelos agentes do Estado. Aos que
precisam morar de favor na casa de amigos ou parentes.
Dedico este trabalho também àqueles que não puderam arcar com os custos da
gentrificação e das remodelações, não podendo pagar os preços gananciosos de uma
sociedade cínica e conivente com as desigualdades.
Ainda, aos que foram marginalizados e sofreram agressões físicas nas ruas por
fascistas. E assim, por sua condição racial e social, não puderam se camuflar no
espaço, antes público e agora privado.
Dedico às vítimas invisibilizadas pela sociedade de consumo e aos que, sem
poder simbólico, são jogados para fora dos limites da fronteira da cidade, pela avidez
revanchista dos que almejam privilégios e não direitos.
A todo aquele que além perder bens materiais, foi desumanizado na sociedade
capitalista contemporânea.
AGRADECIMENTOS

Às mulheres da minha vida: minha mãe Márcia e Caroline Pitta.

Aos amigos especiais: Ellen e Paulo; Bernardo (meu guri) e Marcelle Risadas;
Cássio André Felipe.

À orientadora: Sonia Maria Taddei Ferraz.

Em especial: Maria Gabriela Verediano.

Às mestras: Cristina Lontra Nacif, Fernanda Sanchez.


Ao mestre: Juarez Duayer.

Aos amigos: Rosi, Jaime Núñez, Priscila Gonçalves, Leticia, Roberth, Ricardo
Pirata.
Aos tios Jorge, Sandra, Marilisa e Marcos e aos primos Carol, Felipe, Vinícius e
Vanessa.

À professora convidada Carolina Moreira de Hollanda.

Às Violets!!!
Ao MNLM-RJ
Ludwig Van Beethoven também ajudou muito.
[...] E se todos os outros aceitassem a mentira
imposta pelo Partido — se todos os registros
contassem a mesma história —, a mentira tornava-se
história e virava verdade. “Quem controla o passado
controla o futuro; quem controla o presente controla o
passado”, rezava o lema do Partido. E com tudo isso
o passado, mesmo com sua natureza alterável,
jamais fora alterado. Tudo o que fosse verdade agora
fora verdade desde sempre, a vida toda. Muito
simples. O indivíduo só precisava obter uma série
interminável de vitórias sobre a própria memória.
“Controle da realidade”, era a designação adotada.
Em Novafala: “duplipensamento”.
(ORWEL, 2009)
RESUMO

A dissertação trata da compreensão de semelhanças e singularidades do processo


de exclusão social na cidade do Rio de Janeiro, tendo a região da Lapa como estudo
de caso. A abordagem faz o recorte temporal a partir do início do discurso de
higienismo, datado de 1850, passando pelas demolições das décadas de 1960 e
1970, e o processo de gentrificação a partir da década de 2000. A crítica à produção
de cidade e às desigualdades presentes no modo de produção capitalista é o ponto
central desta dissertação, sabendo que desde a metade do século XIX, é que se
operam as transformações urbanas na cidade do Rio de Janeiro. A análise do
processo de exclusão social e de como o sistema capitalista se beneficia dele, se dá
pela comparação entre os discursos institucionais e midiáticos, identificando as
semelhanças e singularidades dos processos de transformações urbanas que
aconteceram na região central do Rio de Janeiro, mais especificamente, na região da
Lapa. O processo de produção das cidades está associado à forma e às condições
de articulação dos modos de produção. Assim, para que haja a exclusão social, é
necessário e fundamental que haja a desigualdade característica do modo de
produção capitalista. Essas desigualdades estão expressas na paisagem urbana,
onde o movimento de pessoas em situação de fragilidade econômica é fator crucial
para este processo de caráter classista. Desta forma, o espaço urbano é objeto
fundamental e, sob a mirada da acumulação capitalista, passa a ser reproduzido sob
sua lógica excludente.

Palavras-chave: exclusão, higienismo, gentrificação, revanchismo, lapa.


ABSTRACT

The understanding of the similarities and singularities of the process of social


exclusion in the city of Rio de Janeiro, with Lapa as a case study. The approach makes
the temporal cut from the beginning of the hygienic discourse, dating from 1850,
through the demolitions of the 1960s and 1970s, and the process of gentrification from
the 2000s to the present day. The criticism of the production of the city and of
inequalities present in the capitalist mode of production is the central point of this
dissertation, knowing that since the mid-nineteenth century, urban transformations in
the city of Rio de Janeiro have been operating. The analysis of the functioning of the
process of social exclusion and how the capitalist system benefits is done by analyzing
and comparing institutional and media discourses, finding the similarities and
singularities of the processes of urban transformation that took place in the central
region of Rio de Janeiro , More specifically in the region of Lapa. The process of
production of the cities is associated with the form and conditions of articulation of the
modes of production. Thus, in order for social exclusion to exist, it is necessary and
fundamental that there be the characteristic inequality of the capitalist mode of
production. These inequalities are expressed in the urban landscape, where the
movement of people in situations of economic fragility is a crucial factor for this process
of class. In this way, urban space is a fundamental object and, under the watchful eye
of capitalist accumulation, begins to be reproduced under its exclusionary logic.

Keywords: exclusion, gentrification, hygienism, revanchism, lapa.


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ....................................................................................................11
INTRODUÇÃO...........................................................................................................13

PARTE 1 - REFERENCIAL TEÓRICO CONCEITUAL: O MODO DE PRODUÇÃO


CAPITALISTA E A IDEOLOGIA NA PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO ...........17

1. OS PROCESSOS DE PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO ..............................18

1.1 O DESENVOLVIMENTO DESIGUAL ..................................................................20


O espaço urbano .............................................................................................20
O espaço como mercadoria ............................................................................23
Desenvolvimento desigual ..............................................................................28
A mobilidade do capital e a produção do espaço urbano ...............................31
O movimento de capital nas escalas – o “vaivém” da desigualdade ..............37
1.2 A CIDADE REVANCHISTA E A GENTRIFICAÇÃO ............................................41
O que seria a Gentrificação .............................................................................41
Do acaso à estratégia .....................................................................................45
Os excluídos – a cidade revanchista ...............................................................51
As camuflagens sociais ...................................................................................53
1.3 O ESPAÇO PÚBLICO COMO DISCURSO ..........................................................57
1.4 A IDEOLOGIA, PODER SIMBÓLICO E DISCURSO – AS FORMAS DE
DOMINAÇÃO .............................................................................................................64
Ideologia ..........................................................................................................65
O poder simbólico ............................................................................................66
Características do discurso .............................................................................69
1.5 PONDERAÇÕES A RESPEITO DOS DISCURSOS, IDEOLOGIA E PODER
SIMBÓLICO ...............................................................................................................70
Relação poder simbólico e espaço público ......................................................70
Relação poder simbólico e gentrificação ..........................................................72

PARTE 2 - A PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO: A LAPA COMO ESTUDO DE


CASO PARA COMPREENDER OS PROCESSOS DE EXCLUSÃO SOCIAL ........74

2. O DISCURSO DE ÓDIO AOS POBRES DESDE O BRASIL COLÔNIA ..............75


2.1 A ORIGEM DO DISCURSO DE ÓDIO AOS POBRES ........................................75
Feudalismo à brasileira: o colonialismo ...........................................................75
2.2 AS CLASSES PERIGOSAS .................................................................................79

3. HIGIENISMO: UM PROCESSO HISTÓRICO DE REMODELAÇÃO ...................83

Higienismo.......................................................................................................83
3.1 A QUESTÃO DA HABITAÇÃO NO RIO DE JANEIRO: SÉCULO XIX .................85
3.2 AS EPIDEMIAS E A LIMPEZA URBANA NO RIO DE JANEIRO .........................87
3.3 O DISCURSO HIGIENISTA DE PEREIRA REGO COMO GUIA PARA AS
INTERVENÇÕES DE PASSOS .................................................................................90
3.4 AS INTERVENÇÕES DE PASSOS .....................................................................93
3.5 CONSIDERAÇÕES SOBRE AS INTERVENÇÕES DE PASSOS ......................101
3.6 O HIGIENISMO E A LAPA: UM ANTECESSOR DO PROCESSO DE
GENTRIFICAÇÃO ...................................................................................................103

4. AS DÉCADAS DE 1960 E 1970 E O FIM DO BAIRRO DE DEGENERADOS:


DISCURSOS, DEMOLIÇÕES E REMOÇÕES NA LAPA BOÊMIA ........................109

4.1 DA BOEMIA À DECADÊNCIA DA LAPA .......................................................... 109


4.2 O PROCESSO CIVILIZATÓRIO BRASILEIRO: A VIDA URBANA COMO AMEAÇA
..................................................................................................................................110
4.3 OS PLANOS URBANOS E O DISCURSO DA LAPA DECADENTE .…….…....112
4.4 O DISCURSO DO BAIRRO DE DEGENERADOS …………………........……....116

5. A GENTRIFICAÇÃO COMO ESTRATÉGIA DE PLANEJAMENTO: A VOLTA DA


BOÊMIA À LAPA ....................................................................................................123

5.1 A GENTRIFICAÇÃO COMO DISCURSO DO PLANEJAMENTO URBANO .....124


5.2 O ESPAÇO PÚBLICO NOS DISCURSOS MIDIÁTICO E INSTITUCIONAL:
ESPAÇO DE DISPUTA ............................................................................................131
5.3 QUEM PODE COMPRAR A CIDADE: SOBRE YUPPIES E HYPSTERS .........137
5.4 NÃO POSSUIR UM TETO: SER INTRUSO NUM MUNDO DE STATUS ..........139

6. PONDERAÇÕES A RESPEITO DO PROCESSO DE EXCLUSÃO SOCIAL NA


LAPA ............................................................................................................….......145

7. FONTES BIBLIOGRÁFICAS ..............................................................................151


11

APRESENTAÇÃO

Este estudo foi desenvolvido durante os dois anos do mestrado acadêmico do


programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal
Fluminense – PPGAU UFF – na linha de pesquisa “Projeto, planejamento e gestão da
Arquitetura e da cidade”. As reflexões sobre o processo de gentrificação foram
desenvolvidas no primeiro ano e junto ao grupo de pesquisa Arquitetura da Violência,
quando coordenei os seminários semanais internos sobre o tema, sendo objeto central
da minha pesquisa.
Essas reflexões sobre questões que se desdobram em processos de exclusão
social tiveram início antes do meu ingresso no mestrado. Sendo eu ex-morador, de
longa data, do bairro da Lapa, sou observador e testemunha das mudanças que a
região sofreu durante as décadas de 1980, 1990 e 2000. Assim, o aprofundamento
teórico e conceitual se tornou obrigatório para melhor compreender o processo de
exclusão das classes mais pobres e, principalmente, dos sem-teto que por lá estavam.
A análise pessoal passou a contar com o apoio teórico oferecido pelo PPGAU, além
da construção de uma bibliografia que tratasse dos processos de gentrificação. Nesse
momento, a obra de Neil Smith surgiu revelando que este processo de desigualdade
e exclusão social não é uma novidade. À obra de Smith foram somados outros autores
que complementam suas ideias, principalmente, Manuel Delgado, quando aborda o
espaço público como ideologia.
O processo de reflexão durante o mestrado me possibilitou amadurecimento
como observador e pesquisador, a fim de fazer as conexões entre a produção de
espaço público e o processo de gentrificação, que caminham em consonância. Foi
também importante decidir o momento de fazer escolhas, de traçar caminhos,
entender que o processo de aprendizagem consiste em priorizar temas centrais em
relação aos subjacentes.
O mestrado, possibilitou ainda, o conhecimento de autores importantes para a
pesquisa e uma possível futura carreira docente. Paulo Freire (2006), ao afirmar que
“não basta saber ler que 'Eva viu a uva’. É preciso compreender qual a posição que
Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra
12

com esse trabalho”, nos deixa a pista para o aprofundamento de temas a serem
pesquisados. Freire ensina ainda que não nascemos prontos, que nos construímos
com as experiências do mundo e só assim progredimos.
É nesse conjunto de conhecimento que o mestrado acadêmico se torna
fundamental para o meu processo de aprendizado, possibilitando um mergulho na
origem do processo de exclusão social na cidade do Rio de Janeiro, na compreensão
de que o modo de produção capitalista se utiliza da cultura a fim de perpetuar seu
processo de acumulação.
13

INTRODUÇÃO

O objetivo desta dissertação é compreender as semelhanças e singularidades


nos processos históricos de exclusão social na cidade do Rio de Janeiro, usando o
bairro da Lapa como estudo de caso. Para isso, questões importantes surgiram a fim
de nos guiar durante o processo de pesquisa: na primeira busca compreender como
o modo de produção capitalista se apropria do processo de produção de cidades. Em
seguida, nos debruçamos sobre quais seriam as semelhanças e singularidades entre
três momentos a serem definidos mais adiante. Finalizando com a abordagem da
história: quem estaria incluído e quem seria excluído.
Dessa maneira, para melhor delimitar nossa abordagem, definimos como recorte
temporal o início do discurso de higienismo, datado de 1850, estendendo-se até os
dias atuais. Assim, a partir da colocação de Corrêa (1989, p. 6), em que mostra “o
espaço urbano, como qualquer outro objeto social, pode ser abordado segundo um
paradigma de consenso ou de conflito”, o abordaremos sob o paradigma do conflito
no espaço urbano.
A crítica ao modo de produção capitalista será o fio condutor desta dissertação.
Pelo modo de produção capitalista, desde a metade do século XIX, é que se operam
as transformações urbanas na cidade do Rio de Janeiro. A fim de compreender como
esse processo de transformação urbana funciona, como opera sua produção e como
o sistema capitalista se beneficia, é preciso analisar através de bases conceituais
qualificada e da comparação entre discursos – institucional e da mídia –, buscando as
semelhanças e singularidades entre as intervenções urbanas nos períodos a serem
estudados.
Para melhor aprofundamento das questões acima citadas, escolhemos três
períodos da história do Rio de Janeiro: o Higienismo de Pereira Rego a Pereira
Passos, circunscrito entre 1850 e 1905; a época das demolições na Lapa e o discurso
dos degenerados, entre as décadas de 1960 e 1970; a gentrificação como processo
global, entre as décadas de 2000 e 2010.
O processo de produção das cidades está associado à forma e às condições de
articulação dos modos de produção subjacentes. Para haver os processos de
14

exclusão social é necessário e fundamental que haja a desigualdade. O geógrafo


escocês Neil Smith (1988) elucida que a desigualdade social está expressa na
paisagem urbana, na qual o movimento de pessoas em situação de fragilidade
econômica é um dos fatores que configuram o caráter classista desse processo.
Assim, o espaço urbano estaria sob a mirada da acumulação capitalista, produzindo
um movimento de capital na escala urbana.
Além das questões econômicas, é necessário que haja uma forma de se
propagar e de reafirmar o processo de produção das cidades, sob a ótica capitalista.
Desta maneira, há a necessidade de promover esta forma de cidade repleta de
ideologia e símbolos. Assim, o discurso midiático é necessário, e aliado importante,
na substituição de uma classe sem poder aquisitivo por uma outra classe capaz de
consumir o estilo de vida traçado pelo capital.
Na execução dessa forma de cidade, os conflitos entre as classes que vão
absorver e consumir o espaço público se evidencia. O conflito se expressará através
de uma classe que poderá consumir a área inundada de símbolos, e outra, em
contrapartida, que caminhará para fora da área ressignificada. A partir daí o modelo
de cidade mascarará os conflitos sociais, naturalizando a condição daqueles que são
incapazes de pertencer ao novo lugar, em um processo sócio-econômico-cultural
excludente e de caráter desigual.
Neil Smith nos fornecerá os elementos para compreensão do movimento de
capital entre as escalas global, estado-nação e urbana, nas quais se expressam o
caráter desigual do modo de produção capitalista, com a reprodução das
desigualdades espaciais na escala urbana. Smith (1988) aponta que esse processo
de produção de cidades é revanchista, por agir de maneira violenta contra as classes
mais pobres, já que as elites dominantes acreditam num suposto roubo das regiões
centrais pelas classes menos favorecidas.
Outro autor que também oferece elementos teóricos importantes, e centrais,
para nossa abordagem é o sociólogo espanhol Manuel Delgado. O autor trata o
espaço público como um modo de viver e de ditar comportamento – e estilo de vida –
para as classes que vão consumir as áreas da cidade em processo de revitalização.
Delgado aborda a construção de uma ideia de cidadania como forma de controle e de
15

supressão dos conflitos sociais, tornando o cidadão modelo um consumidor e um


propagador dessa ideologia.
Complementando as ideias de Delgado e Smith, será com Pierre Bourdieu que
vamos compreender o poder simbólico como uma característica do indivíduo. Esse
indivíduo, ao ignorar voluntariamente a perversidade desse sistema, apropria-se dos
símbolos oferecidos pela ideologia, aproveitando-se dos benefícios. Junto à
abordagem de Bourdieu, somam-se Michel Lowy e José Luiz Fiorin para
compreendermos as questões da produção do discurso e ideologia, fundamentais
como suporte ao processo de reprodução das cidades.
Além dos autores centrais, os brasileiros Paul Singer, Caio Prado Junior e Celso
Furtado, vão complementar a ideia de mercantilização do solo urbano, mostrando que
as desigualdades sociais são um processo histórico em nosso país. Os geógrafos –
também brasileiros - Milton Santos, Maurício de Abreu, Roberto Lobato Corrêa e
Marcelo Lopes de Souza, além de autores como Arlete Moysés Rodrigues, Ana Fani
Carlos, mostram como um processo global interfere em nosso país e como ganha um
caráter singular e desigual na reprodução dos modelos das nossas cidades.
Para a pesquisa prática, sobre o universo da análise bibliográfica, utilizamos a
abordagem de autores que se especializaram na análise da cidade do Rio de janeiro.
Jayme Larry Benchimol, Robert Moses Pechman, possibilitam um mergulho na
história e na origem dos problemas sociais da cidade.
Como apoio para compreensão e análise do discurso midiático, pesquisamos
periódicos com acervo digital, a fim de entender como o apelo midiático foi relevante
na afirmação e fortalecimento da venda de ideologias em todos os períodos
supracitados. Sendo um deles o acervo digital atual e passado do jornal O Globo –
jornal com maior tiragem na cidade e no Estado do Rio de Janeiro. Além do discurso
midiático, pesquisamos o discurso institucional da prefeitura do Rio de Janeiro,
buscando analisar se há consonância entre eles.
Entretanto, nossa abordagem não é uma análise histórico-econômica. O que a
pode tornar peculiar, é o fato de buscarmos localizar o caráter humano que se perde
em cada demolição de edifício e em cada remoção forçada. Assim, buscamos
evidenciar o subjetivo perdido no tempo, o indivíduo anônimo que se foi junto com as
16

histórias conhecidas, o anônimo que se instala na calçada e como – durante esses


períodos – a mídia o tratou como o indesejável a ser odiado. Foi necessário que –
durante os dois anos de pesquisa – a orientação nos guiasse com autores que
aprofundaram nas questões humanas: os clássicos Karl Marx e Friedrich Engels,
David Harvey, o próprio Neil Smith, Zygmundt Baumann, Milton Santos, Paulo Freire,
Vladimir Lenin, Loic Wacquant, Richard Sennet, nos mostram que o patético outro, o
indesejável, o repugnante, possuem um endereço diferente do que a grande mídia
destaca.
Desta forma, os desajustados, desprovidos do senso de humanidade, não são
os que se instalam nas ruas ou que seguem os rumos da pobreza, mas os que estão
no topo do sistema opressor, desprovidos de humanidade. A ausência de princípios
de solidariedade e empatia permeiam os sujeitos que orquestraram, que perpetuaram
a mudança e a afirmação da forma capitalista de cidade. A ganância, a exclusão social
e a acumulação de capital, são as semelhanças entre os processos de cada período.
A financeirização da economia, a fase inicial do Capitalismo, o Imperialismo, são as
singularidades do processo de reprodução de cidades em cada período.
Para isso, nossa pesquisa se debruçará sobre o caminho em que seguem os
excluídos e explorados neste jogo de cartas marcadas, buscando desmistificar a
condição de indesejáveis e obstáculos à sociedade louvável e de consumidores,
cínica e cega por opção – muitas vezes – conivente com a alienação que o
desenvolvimento desigual e a cidade revanchista produzem.
17

PARTE 1

REFERENCIAL TEÓRICO CONCEITUAL: O MODO DE PRODUÇÃO


CAPITALISTA E A IDEOLOGIA NA PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO

[…] A problemática urbana se anuncia. O que


resultará desse lugar, deste caldeirão de bruxas,
desta intensificação dramática das potências
criadoras, das violências, dessa mudança
generalizada onde você não pode ver o que
muda, a não ser quando se vê extremamente
bem: Dinheiro, paixões enormes e vulgares,
sutileza desesperada? A cidade se afirma, depois
explode”. (LEFEBVRE,1976 apud DELGADO,
2015, p.5) 1

A partir da comparação entre nomes dados ao processo de produção de


cidades, torna-se necessário uma análise do processo e do rótulo que lhes é dado.
Para melhor compreender o conceito de gentrificação, da forma como Smith o estuda,
buscamos nesta parte inicial compreender as origens de termos e como eles estariam
ligados ao modo de produção capitalista.
A respeito do processo de gentrificação, não se trata apenas da produção de
espaço nas sociedades capitalistas. Entende-se que a questão gira em torno do
processo de reprodução desses espaços e das estratégias de dominação de massas,
que levam à adoção ou aceitação dos métodos de sua reprodução. Sob essa ótica,
entendemos que o poder simbólico, como Bourdieu abordará, é o suporte para a sutil
dominação, como elo entre o físico-espaço e o ideológico-alienação, relacionando-se
com outros elementos a fim de conferir a assimilação de um modo de viver-consumir.

1
Tradução nossa, do original: La problemática urbana se anuncia. ¿Qué saldrá de ese hogar, de este fogón de brujas, de esta
intensificación dramática de las potencias creadoras, de las violencias, de ese cambio generalizado en el que no se ve qué es lo
que cambia, excepto cuando se ve excesivamente bien: dinero, pasiones enormes y vulgares, sutilidad desesperada? La ciudad
se afirma, después estalla”. (LEFEBVRE,1976, p.114 Apud Delgado, 2015, p.5)
18

1. OS PROCESSOS DE PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO

Para melhor compreensão dos processos de produção do espaço urbano,


traremos alguns autores – geógrafos, sociólogos e arquitetos urbanistas – a fim de
suscitar um diálogo a respeito desta temática. Iniciamos com uma análise bibliográfica
pautada na obra do geógrafo Neil Smith e na obra do sociólogo Manuel Delgado como
autores centrais da reflexão, além da crítica ao modo de produção capitalista como o
elemento central desta reflexão.
Iniciamos buscando compreender o processo de gentrificação.
Semanticamente gentrificação é uma palavra com significado que pode ir desde o
processo global de desenvolvimento das cidades, de enobrecimento dos bairros
operários, de movimento de capital, até ferramenta de planejamento estratégico. O
debate a respeito desse assunto se dá, grosso modo, pela crítica ao capitalismo como
beneficiário no processo de produção e do desenvolvimento das grandes cidades.
Gentrificar era o processo de enobrecer dada área da cidade pela eliminação
das classes mais pobres. Entretanto, a discussão sobre o real significado da palavra
gentrificação (gentry) variava: de um lado os pobres, em suas lutas contra as forças
do mercado imobiliário, entendendo a gentrificação como um processo excludente; do
outro, os agentes imobiliários dando novo sentido a palavra – gentrificação entendida
como algo maravilhoso, inclusive para a classe pobre, além de muita propaganda.
Com a generalização do uso dessa palavra, ora como processo excludente e
pejorativo, ora como um processo de desenvolvimento para as cidades, a
compreensão adequada do processo se tornava complexa.
Neil Smith já questionava esse processo desde a década de 1970, observando-
o como movimento de capital dentro das cidades e em escala global. O movimento se
dava com investimentos e desinvestimentos em determinadas áreas da cidade,
principalmente, nos bairros pobres próximos ao centro. O autor ainda falava em uma
“retomada”, numa “volta para casa” da classe média alta em relação a esses espaços
desocupados e abandonados no pós-guerra, como se pertencessem à classe média
por direito, ignorando os moradores substituídos.
A partir da retomada era necessário que houvesse um discurso para
19

impulsionar e legitimar o processo. Todavia, algo o transpassava desde o início até a


atualidade: a mudança do perfil socioeconômico de um bairro. Esse discurso se tornou
importante para a aceitação popular, principalmente sob os rótulos de higienização
dos bairros.
Mas o discurso não visa apenas uma aceitação, já que é parte de uma
estratégia de produção de espaço – não só de habitação – nas grandes cidades. A
estratégia tinha por objetivo a negociação de habitação, de comércio de terras, de
comércio específico, visando atender à demanda de uma classe específica: a classe
média e classe média alta.
A nova classe, detentora de um capital simbólico – consumidora de espaços e
serviços característicos das grandes cidades globais – e pautada em um estilo de vida
fetichizado 2 na cidade rica em cultura e símbolos, passa a consumir as áreas
produzidas pelo movimento de capital na cidade.
Contudo, para que o bairro, rua ou esquina receba essa classe média, é preciso
que a estrutura física da cidade ofereça itens de desejo fundamentais para o seu estilo
de vida. Como evidencia Paul Singer ao falar da “valorização diferencial do uso do
solo”, os serviços oferecidos pelo Estado são “usufruídos apenas por aqueles que
podem pagar o seu preço incluído na renda do solo” (1982, p. 36). Junto, o espaço
público entra como uma peça fundamental do processo: o elo de valorização entre o
comércio e os usuários desse modo de vida.
A gentrificação, a partir da década de 1980, havia assumido um papel
importante no processo de produção de cidade, entrelaçava-se ao poder público – o
provedor das obras de infraestrutura – e juntava-se à mídia pela propaganda de um
novo estilo de vida. A gentrificação passa a ser generalizada e não mais ocasional,

2
Marx, Karl. O Capital. p. 206-207. 2013 - O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de
que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do
trabalho, como propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação social dos produtores
com o trabalho total como uma relação social entre os objetos, existente à margem dos produtores. É por meio desse quiproquó
que os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sensíveis-suprassensíveis ou sociais. [...] No ato de ver, porém, a
luz de uma coisa, de um objeto externo, é efetivamente lançada sobre outra coisa, o olho. Trata-se de uma relação física entre
coisas físicas. Já a forma-mercadoria e a relação de valor dos produtos do trabalho em que ela se representa não tem, ao
contrário, absolutamente nada a ver com sua natureza física e com as relações materiais [dinglichen] que dela resultam. É apenas
uma relação social determinada entre os próprios homens que aqui assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação
entre coisas. Desse modo, para encontrarmos uma analogia, temos de nos refugiar na região nebulosa do mundo religioso. Aqui,
os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, como figuras independentes que travam relação umas com
as outras e com os homens. Assim se apresentam, no mundo das mercadorias, os produtos da mão humana. A isso eu chamo
de fetichismo, que se cola aos produtos do trabalho tão logo eles são produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável
da produção de mercadorias.
20

como Ruth Glass descrevia. Com isso, nossa abordagem buscará compreender o
movimento de capital entre as escalas urbana, estado nação e global, afim de melhor
compreender o processo de produção de cidades.

1.1 O DESENVOLVIMENTO DESIGUAL

O espaço urbano
A reestruturação do espaço na escala urbana é a base da abordagem de Neil
Smith sobre o desenvolvimento desigual. Essa reestruturação tem no
“redesenvolvimento, da gentrificação e do crescimento não metropolitano a mais
acabada e aparente ilustração do processo” (1988, p. 223) de desenvolvimento
desigual. Desse modo, o processo de gentrificação, segundo o autor, é um movimento
de capital passageiro e não duradouro que uma área da cidade pode experimentar e
“a menos importante a longo prazo” (Ibidem).
Além disso, a produção das desigualdades espaciais na escala urbana, dadas
também por localização da força de trabalho afastadas das áreas mais valorizadas,
expressam o caráter desigual do capitalismo, já que “o subdesenvolvimento de áreas
específicas eventualmente conduz precisamente àquelas condições que faz uma área
altamente lucrativa e susceptível de rápido desenvolvimento” (SMITH, 1988, p. 213).
O uso do solo urbano se transforma de modo a gerar mais acumulação, sendo o que
mais evidencia esse processo, sobre o qual o autor afirma: “o capital tenta fazer um
vaivém de uma área desenvolvida para uma área subdesenvolvida, para, então, num
certo momento posterior voltar à primeira área que agora se encontra
subdesenvolvida, e assim sucessivamente” (Ibidem).
O caráter desigual também expressa o capital como praga de gafanhotos: “eles
se estabelecem em um lugar, devoram-no e então se deslocam para praguejar outro
lugar. E, melhor dizendo, no processo de sua recuperação após uma praga, a região
ficava pronta para outra” (HARRIS, 1983 apud SMITH, 1988, p. 217). Ainda segundo
Smith, são nas características do valor de uso e valor de troca que se evidenciam as
tendências para a diferenciação e igualização do espaço geográfico dentro do
capitalismo que:
21

[...] assume muitas formas, mas fundamentalmente expressa a diferenciação


social que é a verdadeira definição do capital: a relação entre capital e
trabalho. À medida em que o desenvolvimento desigual se torna crescente
necessidade para se evitar as crises, a diferenciação geográfica se torna
cada vez menos um subproduto e mais uma necessidade central para o
capital. A história do capitalismo não é simplesmente cíclica, mas é
profundamente progressiva e também se expressa na paisagem. Na medida
em que as crises cíclicas não purgam o sistema de suas contradições e a
taxa decrescente de lucro não é atenuada, o desenvolvimento desigual do
capitalismo torna-se mais intenso, à medida em que o processo de
acumulação se intensifica e, com ele, as tendências para a diferenciação e
igualização. A fragilidade da lógica econômica por trás do desenvolvimento
desigual é graficamente revelada na crise, quando a aguda necessidade de
reestruturar o espaço geográfico é bloqueada pelos padrões existentes de
desenvolvimento desigual. (1988, p. 217-218)

O autor mostra a diferenciação do espaço pelo tipo de atividade produtiva, em


que “a divisão do trabalho em atividade industrial e atividade agrícola libera parcela
do trabalho produtivo das restrições espaciais imediatas, e essa divisão social
manifesta-se na separação espacial da cidade e do campo” (1988, p.125). Dessa
maneira, no espaço urbano, a localização da força de trabalho e dos locais de
produção (próximos ou afastados entre si) estão determinados. Entretanto, não há um
congelamento dessas relações e a mudança de uso, ou a ressignificação das cidades,
pode acontecer como aponta o mesmo autor, onde:
[...] embora as próprias cidades sejam espacialmente fixas, as atividades que
ocorrem dentro delas e as regras que comandam tais atividades sociais não
são completamente fixas, espacialmente. Elas podem ser generalizadas de
uma cidade para outra ou, por outro lado, a mesma cidade em períodos
históricos diferentes pode exercer atividades completamente diferentes e
operar sob regras sociais completamente distintas. (Ibidem)

Essa flexibilidade de usos ganha força a partir do momento em que o Estado


“dividiu as pessoas em razão de objetivos públicos, não por grupos de parentesco,
mas por lugar comum de residência” (SMITH, 1988, p. 125-126). A partir dessa
divisão, as pessoas passaram a ser agrupadas por objetivos públicos em detrimento
dos laços familiares que as unia, evidenciando a defesa dos interesses das classes
dominantes, apontados por Smith. Assim, o movimento das pessoas pelo espaço
urbano pautadas pelo interesse no uso do solo, mostra que "o território permanecera,
mas as pessoas haviam-se tornado móveis, necessitando de uma nova divisão da
sociedade baseada no controle do território” (Ibidem). Os vínculos familiares entre as
pessoas, assim como qualquer outro tipo de vínculo com o espaço, eram eliminados,
22

tornando-as removíveis pela sua fragilidade econômica. Smith complementa dizendo


que:
Esta organização dos cidadãos do Estado de acordo com o território é comum
a todos os Estados […] Somente o domicílio era agora decisivo, não a
associação de um grupo de parentesco. Não as pessoas, mas sim o território
se tornava dividido: os habitantes tornaram-se um mero apêndice político do
território. (Ibidem)

Acrescentamos a visão de Roberto Lobato Corrêa, quando trata do espaço


urbano capitalista fragmentado e articulado ao mesmo tempo, para melhor entender
o controle social. O autor evidencia que essa ideia é reforçada com a desigualdade
do espaço – na cidade capitalista – pela forma variada das relações que as unidades
espaciais mantêm entre si. Corrêa diz que “por ser reflexo social e porque a sociedade
tem sua dinâmica, o espaço urbano é também mutável, dispondo de uma mutabilidade
que é complexa, com ritmos e natureza diferenciados” (1989, p.8).
Mesmo entendendo a mutabilidade do espaço urbano, para Lefebvre a
produção do espaço deveria atender às necessidades da sociedade como um todo, e
não apenas a uma parcela. O espaço, segundo ele, é um elemento primordialmente
de sociabilização e não um objeto. Assim, para o autor, o espaço não é uma coisa
entre coisas, bem como:
[...] não é um produto entre outros produtos: em vez disso, concorda com as
coisas que são produzidas e abrange suas inter-relações em sua
coexistência e simultaneidade – a sua ordem ou seu caos. É o resultado de
uma sequência e de um conjunto de operações, e, portanto, não pode ser
reduzida à posição de um mero objeto. (LEFEBVRE, 1991, p. 73)

No entanto, na cidade capitalista, o espaço adquire valor de troca e se


transforma em mercadoria. Além de atender à necessidade da sociedade, Corrêa
elucida que o “espaço urbano assume assim dimensão simbólica” (1989, p. 9) e,
também, “o cenário e objeto das lutas sociais, pois estas visam [...] o direito à cidade,
à cidadania plena e igual a todos” (Ibidem).
Além disso, na cidade capitalista, há um afastamento entre as pessoas,
explicado por Bauman como mixofobia (o medo da mistura entre diferentes), que
contribui para que o espaço perca o sentido de campo interacional entre elas. O autor
explica que, do mesmo modo que existe o desejo em conviver com as diferenças, há
assim, de outro lado a mixofobia:
Você convive com estrangeiros e tem preconceitos em relação a eles, uma
23

vez que o lixo global é descarregado na rua onde você vive; e você já ouviu
falar muitas vezes dos perigos derivados da underclass; e ouviu dizer também
que a maioria dos imigrantes é parasita de seu welfare e até terroristas em
potencial, e que cedo ou tarde acabarão por mata-lo. Nesse caso, viver com
estrangeiros é uma experiência que gera muita ansiedade. Por conseguinte,
é melhor evitar essa experiencia, e pessoas resolveram transmitir esse
instinto de evitar às gerações futuras, colocando seus filhos em escolas
segregadas, em que podem viver imunes a esse mundo horrendo, ao impacto
assustador de outras crianças provenientes de famílias do tipo errado. (2009,
p. 87).

Com isso, o espaço urbano deixa de ser o lugar onde as necessidades da


sociedade se expressam, possibilitando novo significado a ele, tornando-o
mercadoria.
Esse pensamento de Bauman reforça a ideia de Smith quando aponta que o
espaço passa a perder importância para as trocas sociais devido aos avanços
tecnológicos, políticos, culturais e econômicos, pois à medida em que:
[...] as relações econômicas, tecnológicas, políticas e culturais se
desenvolvem e se expandem, a base institucional para manipular as relações
também torna-se mais complexa e perde, progressivamente, qualquer
definição espacial intrínseca. Contudo, quanto mais a sociedade se liberta do
espaço, mais o espaço pode ser transformado numa mercadoria, no seu
sentido mais estrito. (SMITH, 1988, p. 127)

Complementando a ideia da produção do espaço urbano como mercadoria,


Corrêa mostra que o espaço urbano é também um local de disputas entre agentes
donos dos meios de produção, já que “os grandes proprietários industriais e das
grandes empresas comerciais são, em razão da dimensão de suas atividades,
grandes consumidores de espaço” (1989, p. 13).

O espaço como mercadoria


Milton Santos esclarece que “a vida material de algum modo se impunha sobre
o resto da vida social, e o valor de cada pedaço de chão lhe era atribuído pelo próprio
uso desse pedaço de chão” (1999, p.9). Assim, o espaço urbano se torna mercadoria
e passa a ser apropriado seja por grandes proprietários dos meios de produção e por
proprietários de grandes parcelas de solo, seja por donos de pequenas parcelas de
solo.
O autor salienta que “a vida material de algum modo se impunha sobre o resto
da vida social, e o valor de cada pedaço de chão lhe era atribuído pelo próprio uso
24

desse pedaço de chão” (Ibidem). Dinheiro e território interagiam numa escala local e
ordenados pela necessidade local, onde esta relação de valor de uso era regida pelo
território. Para Santos, o papel da troca “começa a ganhar uma enorme mudança na
história dos lugares e do mundo, deslocando da primazia o papel do uso, e até mesmo
comandando o uso, ao revés do comando anterior da troca pelo uso” (Ibidem). Assim,
com o passar do tempo, o uso do chão perde o seu papel e passa a ter mais
importância como objeto de troca.
Outro autor que trata da valorização do solo urbano é Paul Singer. Ele mostra
que o processo de expansão das cidades possibilita “novos focos de valorização do
espaço urbano” (1982, p. 29) e que nesse processo de expansão “o crescimento
urbano implica necessariamente uma reestruturação do uso das áreas já ocupadas”
(Ibidem). O autor põe em evidencia que as necessidades das classes sociais mais
altas se mantêm separadas do restante da sociedade, gerando uma “demanda de solo
urbano para fins de habitação”, que “também distingue vantagens locacionais
determinadas, principalmente, pelo maior ou menor acesso a serviços urbanos”
(Ibidem).
Esta é, portanto, uma análise indispensável para a compreensão dos processos
de higienismo, de gentrificação e da transformação do espaço em mercadoria. A
análise de Singer nos ajuda a compreender a formação do valor de troca do solo
urbano. Em sua abordagem, o autor aponta que o mercado de terras possui caráter
especulativo, incorporando à cidade glebas antes agrícolas, onde o custo de
produção:
[...] é, nestes casos, equivalente à renda (agrícola) da terra que se deixa de
auferir. Mas não há uma relação necessária entre este "custo" e o preço
corrente no mercado imobiliário-urbano. Como a demanda por solo urbano
muda frequentemente, dependendo, em última análise, do próprio processo
de ocupação do espaço pela expansão do tecido urbano, o preço de
determinada área deste espaço está sujeito a oscilações violentas, o que
torna o mercado imobiliário essencialmente especulativo. Quando um
promotor imobiliário resolve agregar determinada área ao espaço urbano, ele
visa a um preço que pouco ou nada tem a ver com o custo imediato da
operação. (1982, p. 23-24)

Desta forma, Singer mostra que a valorização “da gleba é antecipada em


função de mudanças na estrutura urbana que ainda estão por acontecer” (Ibidem)
denotando a ação especulativa, onde o especulador aguarda o momento em que o
25

Estado promova as condições propícias de melhoramentos da terra.


Por isso, o “acesso a serviços urbanos tende a privilegiar determinadas
localizações em medida tanto maior quanto mais escassos forem os serviços em
relação à demanda” (SINGER, 1982, p. 27). Desse modo, as áreas que recebem as
melhorias executadas pelo Estado passam a ter um valor diferenciado. E assim, o
mercado imobiliário se apropria dos benefícios da ação do Estado e “faz com que a
ocupação dessas áreas seja privilégio das camadas de renda mais elevada, capaz de
pagar um preço alto pelo direito de morar” (Ibidem). Resta aos pobres as áreas mais
baratas da cidade e com menor, ou nenhum, investimento do Estado.
Singer diz que o Estado assume papel determinante na demanda pelo uso e
preço do solo urbano, já que sempre que o poder público:
[...] dota uma zona qualquer da cidade de um serviço público, água encanada,
escola pública ou linha de ônibus, por exemplo, ele desvia para esta zona
demandas de empresas e moradores que anteriormente, devido à falta do
serviço em questão, davam preferência a outras localizações. Estas novas
demandas, deve-se supor, estão preparadas a pagar pelo uso do solo, em
termo de compra ou aluguel, um preço maior do que as demandas que se
dirigiam à mesma zona quando esta ainda não dispunha do serviço. Daí a
valorização do solo nesta zona, em relação às demais. (1982, p. 34)

Com relação às empresas que nada investem no solo urbano, o autor diz que
“a renda diferencial paga por elas será maior na medida em que o novo serviço lhes
permite reduzir seus custos de produção e/ou de circulação” (Ibidem). Além disso, a
demanda dos moradores que é possibilitada pelo “novo serviço atrai famílias de renda
mais elevada e que se dispõem a pagar um preço maior pelo uso do solo, em
comparação com os moradores mais antigos, de renda mais baixa” (Ibidem). Singer
evidencia, assim, o movimento de capital nas áreas da cidade e a valorização do solo
urbano.
Para mostrar a diferenciação das classes em áreas de solo mais valorizado,
de acordo com o poder aquisitivo de cada classe, Smith analisa a localização da
produção e da mão-de-obra, na cidade, a partir do princípio de “propriedades
espaciais como elementos integrantes do valor de uso” (1988, p. 128). Citando Marx,
Smith esclarece que:

No transporte de pessoas ou de mercadorias, diz ele, "uma mudança material


é efetuada no objeto do trabalho — uma mudança espacial, uma mudança
26

de lugar [...] Sua existência espacial é alterada, e com isto ocorre uma
mudança no seu valor de uso, desde que seja alterada a localização desse
valor de uso. Seu valor de troca aumenta na mesma proporção em que a
mudança no valor de uso exige trabalho. (MARX, 1969 apud SMITH, 1988,
p. 128)

Assim, a mão-de-obra passa a ocupar um lugar determinado no espaço, que é


portador de um valor simbólico e um preço. Fortalecendo a ideia do espaço não
produzido ocasionalmente, seja na rede urbana ou na intraurbana, Corrêa acrescenta
que sua produção “não é resultado da mão invisível do mercado, [...] ou de um capital
abstrato que emerge de fora das relações sociais” (2016, p. 43). A produção do espaço
é consequência de agentes “sociais concretos, históricos, dotados de interesses,
estratégias e práticas espaciais próprias, portadores de contradições e geradores de
conflitos entre eles mesmos e com outros segmentos da sociedade” (Ibidem).
A partir do momento em que há o emprego de trabalho em melhorias –
infraestrutura – o espaço passa a possuir sentido e valor. David Harvey elucida a
forma de funcionamento da dinâmica do mercado de terras, como os agentes deste
sistema participam na produção do espaço urbano e como seu lucro e renda se
reproduzem:
Os proprietários de terra recebem renda, os empresários recebem aumentos
na renda baseados nas melhorias, os construtores ganham o lucro do
empreendimento, os financistas proporcionam capital monetário em troca dos
juros, ao mesmo tempo que podem capitalizar qualquer forma de receita
acumulada pelo uso do ambiente construído em um capital fictício (preço da
propriedade) e o Estado pode usar os impostos (atuais ou antecipados) como
suporte para investimentos que o capital não pode ou não vai realizar, mas
que não obstante expande a base para a circulação local do capital. Esses
papéis existem, não importa quem os desempenha. Quando os capitalistas
compram terra, viabilizam-na e constroem sobre ela usando seu próprio
dinheiro; então eles assumem papéis múltiplos. Mas quanto mais capital eles
adiantam nesse tipo de atividade, menos eles terão para investir diretamente
na produção. Por essa razão, a produção e a manutenção dos ambientes
construídos com frequência se cristalizam em um sistema extremamente
especializado, vinculando os agentes econômicos que desempenham cada
papel separadamente ou em combinações limitadas (2013b, p. 389)

Essa relação econômica da produção de espaço se cristaliza nas cidades e se


torna uma oportunidade de ganhos para os capitalistas.
Além disso, Singer aponta que “a elevação do preço dos imóveis”, e também
dos terrenos, “pode deslocar os moradores mais antigos e pobres, que vendem suas
casas, quando proprietários, ou simplesmente saem quando inquilinos, de modo que
27

o novo serviço”, a cidade preparada pelo Estado, “vai servir aos novos moradores e
não aos que supostamente deveria beneficiar” (1982, p. 34).
Voltando às reflexões de Smith, temos que as relações espaciais
complementam a compreensão do valor do espaço. O autor mostra que com o
aumento do poder produtivo, “torna-se cada vez mais necessário que um número
progressivamente maior de trabalhadores esteja concentrado espacialmente nas
proximidades do lugar de trabalho” (1988, p. 132). A produção de espaço se torna
fundamental no modo capitalista de produção, seja espaço para os trabalhadores, seja
espaço para as classes mais ricas. O espaço passa a ter um valor financeiro,
relativizado pela oferta de serviços e infraestrutura que nele foram inseridos. O autor
ainda esclarece que o espaço geográfico como um todo seria a totalidade:
[...] das relações espaciais organizadas, num grau maior ou menor dentro de
padrões identificáveis, que adequadamente constituem a expressão da estrutura
e do desenvolvimento do modo de produção. Como tal, o espaço geográfico é
mais do que simplesmente a soma das relações separadas compreendidas em
suas partes. Assim, a divisão mundial em mundos subdesenvolvido e
desenvolvido, embora inexata, somente pode ser compreendida em termos de
espaço geográfico com um todo. Ele envolve a padronização do espaço
geográfico como uma expressão da relação entre o capital e o trabalho. Do
mesmo modo, a integração do espaço pode ser entendida como expressão da
universalidade do valor, se olharmos não para as relações espaciais específicas,
mas para o espaço geográfico como um todo. (1988, p.130)

Ele ainda afirma que pelas ações “a sociedade não mais aceita o espaço como
um receptáculo, mas sim o produz; nós não vivemos, atuamos ou trabalhamos no
espaço, mas, sim, produzimos o espaço, vivendo, atuando e trabalhando” (1988, p.
132). O papel de mercadoria que assume o espaço, como já apontado anteriormente,
expressa o caráter dessa sociedade que o produz através do seu trabalho. A ideia de
espaço como mercadoria ganha enfoque ideológico para o processo de reprodução
do modo de vida capitalista. Desta maneira, Smith explicita que esse enfoque visa:
[...] menos ao processo de produção, e mais à reprodução das relações
sociais de produção que, diz ele, "constitui o processo central e oculto" da
sociedade capitalista, e este processo é essencialmente espacial. A produção
das relações sociais de produção não ocorre somente na fábrica, nem
tampouco numa sociedade como um todo, de acordo com Lefebvre, "mas no
espaço como um todo"; "o espaço como um todo tornou-se o lugar em que a
reprodução das relações de produção se localiza". As relações espaciais são
geradas "logicamente", mas tornam-se "dialeticizadas” através da atividade
humana no espaço e sobre ele. É este espaço "dialeticizado" e de conflito […]
que produz a reprodução, introduzindo nele suas múltiplas contradições."
(1988, p. 140)
28

Assim, a produção do espaço é parte de um modo de produção. Vai além de


um lugar de relações afetivas entre o indivíduo e o espaço. Deixa de ser abstrato,
isolado na escala urbana ou somente uma expressão da sociedade, não podendo ser
entendido apenas como local de enclausuramento de corpos. É produzido e
negociado como mercadoria dentro do modo de produção capitalista.

Desenvolvimento desigual
A produção de espaço no capitalismo é parte fundamental na análise de Smith,
no que tange o desenvolvimento desigual. É importante pensar como a produção do
espaço público e a produção desigual de partes da cidade compõem com o movimento
de capital a dinâmica urbana.
Smith encaminha para uma abordagem econômica a fim de compreender a
essência do desenvolvimento desigual do capital. Em sua concepção do
desenvolvimento desigual, o autor mostra que “o desenvolvimento social não ocorre
em todas as partes nem com a mesma velocidade nem na mesma direção 3” (2012, p.
140). Smith continua afirmando que:
[...] o desenvolvimento desigual deveria ser concebido como um processo
bastante específico que possui lugar exclusivamente nas sociedades
capitalistas e que se encontra diretamente enraizado às relações sociais
fundamentais desse modo de produção. Sem sombra de dúvida, o
desenvolvimento social em outros modos de produção também pode ser
desigual, mas por razoes muito diferentes, possui uma transcendência social
distinta e tem como resultado paisagens geográficas também diferentes. [...]
No capitalismo, a relação entre áreas desenvolvidas e subdesenvolvidas
constitui a manifestação mais óbvia e importante de desenvolvimento
desigual, acontecendo não apenas na escala internacional mas também na
escala regional e urbana [...] (Ibidem) 4.

Para ao desenvolvimento desigual, as ideologias burguesas universalizam “as


formas e as relações sociais específicas do modo de produção capitalista em relações
permanentes, naturais” (SMITH, 1988, p. 151), da mesma forma que acontece no

3
Tradução nossa, do roiginal: “[...] el desarrollo social no ocurre en todas partes ni con la misma velocidad ni en la misma
dirección.” (SMITH, 2012, p. 140)
4
Tradução nossa, do original: “el desarrollo desigual debería ser concebido como un proceso bastante específico que tiene lugar
exclusivamente en las sociedades capitalistas y que se encuentra directamente enraizado en las relaciones sociales
fundamentales de este modo de producción. Sin lugar a dudas, el desarrollo social en otros modos de producción también puede
ser desigual, pero lo es por razones muy diferentes, tiene una trascendencia social distinta y da como resultado paisajes
geográficos también diferentes. [...] En el capitalismo, la relación entre zonas desarrolladas y subdesarrolladas constituye la
manifestación más obvia e importante del desarrollo desigual, y esto ocurre no sólo a escala internacional sino también a escala
regional y urbana [...]” (Ibidem).
29

desenvolvimento desigual. Pela ideologia, controla-se e se propagam as formas de


produção de espaço.
Acrescentando a visão de Marcelo Lopes de Souza, que compreende o espaço
social como produto condicionador das relações sociais, temos que:
[...] não é só o espaço em seu sentido material que condiciona as relações
sociais! Também as relações de poder projetadas no espaço (espaço
enquanto território) e os valores e símbolos culturais inscritos no espaço
(espaço como espaço vivido e sentido, dotado de significado pelos que nele
vivem), tudo isso serve de referência para as relações sociais: barreiras e
fronteiras físicas ou imaginárias; espaços naturais ou construídos que, por
razões econômicas, políticas ou culturais, resistem ao tempo e às investidas
modernizantes; imagens positivas ou negativas associadas a certos locais
[...] (2005, p. 99-100)

A visão de Sousa mostra o espaço como um elemento modelador da


sociedade, pelos símbolos e sentidos de que é dotado.
Entretanto, o desenvolvimento desigual tem como principal fator, segundo
Smith, a localização da força de trabalho no espaço urbano e a divisão do trabalho.
Segundo o autor (1998, p. 164) a separação entre cidade e campo é a base histórica
para a divisão social do trabalho, e assim, “somente com a libertação dos camponeses
da terra e com sua migração para a cidade é que se consuma a separação final entre
a cidade e o campo e, então, “somente quando o proletariado estivesse livre da
necessidade e da responsabilidade de produzir seus próprios meios de subsistência
é que essa divisão do trabalho poderia progredir como o fez”.
Apesar desta separação ser também a base para a divisão do trabalho, seria
ainda a base para a produção excedente, e “numa economia mais desenvolvida, a
apropriação das vantagens naturais deixa de ser acidental” (SMITH, 1988, p. 152),
não sendo o desenvolvimento desigual um acaso, mas um projeto de desigualdade
saudável para a economia capitalista.
Outro ponto relevante na teoria de Smith é a produção de cidades dentro do
desenvolvimento desigual. Assim, é preciso saber que o “investimento de capital no
ambiente construído está em sincronia com o ritmo cíclico mais geral de acumulação
do capital” (1998, p. 181). O autor assinala que o capital investido no ambiente físico
é de suma importância para o capitalismo, devido ao longo período de fixação do
capital na paisagem urbana. Desvaloriza parcial ou inteiramente o ambiente urbano –
com porte de investimentos distintos – deixando em evidência a ausência de
30

casualidade, na qual “o ritmo histórico do investimento no ambiente construído forja


padrões geográficos específicos que, por sua vez, influenciam fortemente o programa
de acumulação do capital” (Ibidem). Dessa forma, as crises de superacumulação
podem gerar desvalorização de áreas inteiras onde o capital fixo é vulnerável,
inclusive no espaço urbano. Para isso, Smith explica que:
[...] a desvalorização é localmente específica e isto cria a possibilidade de que
áreas inteiras do ambiente construído sofram uma desvalorização rápida e
ampla. Harvey distingue três tipos de crises que eventualmente resultam
desse processo: parciais, que são localizadas (por setor ou por área) em seu
efeito, crises de transferência, nas quais o capital devia setores ou áreas
inteiras em favor de outras e crises globais, nas quais todo o sistema
capitalista fica até certo ponto afetado. (Ibidem)

As crises fazem o movimento de capital e vice-versa. Nas cidades, ou no


planejamento da produção de espaços, as épocas de grande investimento antecedem
as épocas de crise. Como aponta o mesmo autor, após os períodos de
superacumulação, seguem os períodos de desvalorização. E com o apoio de Marx,
Smith aponta:
Marx sugeriu uma explicação para esta relação entre novos setores de
produção e as crises, em sua discussão sobre o capital fixo. Embora
diferentes capitais tenham diferentes períodos de movimentação e sejam
investidos em diferentes pontos, "o ciclo de movimentações inter-
relacionadas que se realiza em alguns anos, no qual o capital é mantido
seguro por sua parte constituinte fixa, fornece uma base material para as
crises periódicas". É por esta razão, diz ele, que a crise sempre forma o ponto
de partida de grandes e novos investimentos. (1988. p. 186)

Se o solo e o capital fixo se desvalorizam com as crises, passariam a ser


absorvidos e, posteriormente, entrariam na dinâmica de movimento de capital? Smith
evidencia que “a obsolescência de velhas tecnologias e o surgimento de novas, tão
vital para o capitalismo, é simultaneamente a transformação de velhas estruturas
espaciais em novas” (1988, p.187). Quando o capital fixo se torna desvalorizado, ele
passa a representar uma possibilidade de volta do capital circulante para um espaço
determinado desse projeto de cidade.
Dessa maneira, as crises capitalistas favorecem os projetos de planejamento
estratégico, onde a cidade – espaço urbano – passará a representar uma forma de
acumulação de capital. Segundo o Smith, nesse período de expansão:
31

[...] o capital circulante meramente facilita o investimento em capital fixo que


agora assume sua missão histórica, como a alavanca da acumulação; cria-
se uma nova e harmoniosa paisagem para a produção. Mas essas condições
idílicas para o capital (e para a teoria da localização) são sempre e somente
temporárias. (1988, p. 189)

É nesse momento que se evidencia o movimento de capital dentro da cidade.


Smith, ao analisar Harvey, deixa claro que "o equilíbrio espacial, no sentido burguês
(igualização), é impossível sob as relações sociais do capitalismo, por razões
profundamente estruturais” (1988, p. 192). Seja com o nome de higienismo, seja como
a gentrificação, ou de qualquer outro termo inundado de ideologia, o capital precisa
dessas roupagens a fim de mascarar o seu real caráter desigual.

A mobilidade do capital e a produção do espaço urbano


Ainda sobre a análise de Smith a respeito do desenvolvimento desigual, é
interessante observar o movimento que percorre o capital pelas escalas variadas. A
articulação entre as escalas é relevante para melhor compreender a expressão do
modo de produção capitalista na produção do espaço urbano.
Maria Encarnação Sposito traz nova reflexão a respeito da articulação entre
essas escalas, afirmando que:
Toda a compreensão requer a articulação entre as escalas, ou seja, a
avaliação dos modos, intensidades e arranjos, segundo os quais os
movimentos se realizam e as dinâmicas e os processos se desenvolvem,
combinando interesses e administrando conflitos que não se restringem a
uma parcela do espaço, mesmo quando os sujeitos sociais, que têm menor
poder aquisitivo, parecem atados a territórios relativamente restritos. (2016,
p. 130)

Da mesma forma, Smith entende que as escalas são fundamentais para a


saúde do modo de produção capitalista, já que “o capital produz escalas espaciais
distintas [...] dentro dos quais o impulso para igualização está concentrado” (1998, p.
211). O autor elucida que a oscilação entre elas acontece porque “não são
impermeáveis; as escalas urbanas e nacionais são produtos do capital internacional
e continuam a ser moldadas por ele. Mas a necessidade de escalas separadas e de
sua diferenciação interna é fixa” (Ibidem).
Escolhemos explicar, em primeiro lugar, a escala global, que estaria ligada à
mundialização da economia, como mostra o mesmo autor, onde: “o que o capital herda
32

de uma forma ele se põe a reproduzir em outra” (1988, p. 201). Com “uma certa
acumulação primitiva do espaço [...], começando no campo, oferece a condição
essencial para se transformar a geografia do feudalismo em geografia do capitalismo”
(Ibidem). Segundo o autor, a alteração específica da geografia pelo modo de produção
capitalista transformou o mercado mundial baseado na troca “numa economia mundial
baseada na produção e na universalidade do trabalho assalariado” (Ibidem).
A partir da escala global, a produção do espaço estaria ligada “a diferenciação
geográfica do globo, de acordo com o valor da força de trabalho” (SMITH, 1988, p.
203), no qual há “uma acentuada divisão internacional do trabalho e uma
diferenciação sistemática entre a composição orgânica do capital em áreas
desenvolvidas e subdesenvolvidas” (Ibidem). O desenvolvimento desigual na escala
global necessita da desigualdade produzida em determinados pontos do mundo,
sendo desigual porque produz avanços e integração onde convém.
A precarização do trabalho e o empobrecimento da força de trabalho são
características importantes no processo de desigualdade do modo de produção
capitalista. Como aponta Smith, é expresso na economia e se materializa nas cidades
quando a “geografia global do capitalismo” representa a vulgarização do
“desenvolvimento do subdesenvolvimento” (1988, p. 202), ou seja, um modo uniforme
de produzir as desigualdades. O autor evidencia que:
Quanto mais a força de trabalho é mercadorizada na economia mundial, mais
o valor da força de trabalho se torna um instrumento de ruptura de tendência
para a integração espacial. Ele se torna, assim, tão aparente que o
fundamento político do capital mundial é a principal barreira ao maior
desenvolvimento social. (1988, p. 204)

Além dessa abordagem da escala global, a internacionalização do capitalismo


contribui para o fortalecimento do estado-nação capitalista, sendo esta mais uma
escala de análise. O conjunto de leis que fazem a gestão do Estado, possibilita e
protege as formas de reprodução do capitalismo, como as “leis comerciais, a
regulamentação da reprodução de força de trabalho e apoio para o dinheiro local, os
quais são todos necessários no nível do capitalista coletivo mais do que no do
individual” (SMITH, 1988, p. 204). Dessa maneira, o Estado passa a oferecer as
condições ideais para a manutenção do modo de produção capitalista, oferecendo
não só leis, mas, também, os elementos que protegerão o capital contra os interesses
33

da classe trabalhadora.
Smith elucida que a existência do Estado “se desenvolve para realizar essas
tarefas, assim como para defender o capital militarmente, onde seja necessário”
(1988, p. 205). Tais tarefas seriam as “várias bases infraestruturais e de leis
comerciais, a regulamentação da reprodução de força de trabalho e apoio para o
dinheiro local” (Ibidem). A partir de então, é determinado “um conjunto de jurisdições
territoriais que são colocadas na paisagem, com arame farpado e postos
alfandegários, cercas e guardas de fronteiras” (Ibidem), loteando o mundo em
diversas nações.
Com relação à divisão do trabalho, esta é garantida internacionalmente pela
demarcação de fronteiras dos Estados, possibilitando a defesa das regiões mais
desenvolvidas do fluxo de mão-de-obra de regiões menos desenvolvidas. Assim,
interno ao Estado, a colonização de certas áreas mais desenvolvidas sobre as menos
desenvolvidas garante a divisão interna do trabalho, territorializando-o inclusive nos
centros urbanos.
A divisão do trabalho, e sua distribuição no território do Estado, se torna
relevante para nós quando Smith mostra a sua expressão espacial nesta escala. O
autor põe em evidencia os diferentes setores da economia nacional e internacional, já
que:
[...] estão concentrados e centralizados em certas regiões. Isto é o que
geralmente chamamos de divisão territorial do trabalho. Ela opera numa
escala maior do que a urbana, que é um único mercado de trabalho
geográfico, mas abaixo da divisão internacional do trabalho, onde a
mobilidade do trabalho entre diferentes nações-Estados é severamente
restringida. Apesar desta última diferença, a cristalização de regiões
geográficas distintas na escala nacional tem a mesma função que a divisão
global entre o mundo desenvolvido e o mundo subdesenvolvido. Ambos
constituem fontes geograficamente fixas (relativamente) de trabalho
assalariado, um na escala internacional e o outro sob o controle mais direto
do capital nacional. (1988, p. 207-208)

Quanto mais centralizado é o capital “mais importante se torna o nível de


diferenciação geográfica, uma vez que maiores capitais estão operando na escala
nacional e internacional” (SMITH, 1988, p. 209). Conforme se subdivide em
corporações “pode acentuar mais ainda a divisão territorial” (Ibidem) do Estado-
Nação. Assim, como exemplo dessa repartição interna dos Estados, regiões recebem
34

mais recursos para pesquisa e desenvolvimento científico devido à especialização e


ao nível de instrução da população da mão-de-obra. Em contrapartida, as linhas de
produção podem ser localizadas em regiões “com grande disponibilidade de
trabalhadores não-especializados” (Ibidem), criando diferenças sócias devido a essa
localização geográfica dos investimentos em educação dentro do mesmo Estado-
nação. Eis aqui a desigualdade no Estado: garantir os mecanismos do capital e sua
movimentação dentro da nação, possibilitando a criação da exploração de áreas mais
pobres do Estado-Nação por ele mesmo.
Na análise da escala mais próxima a nós, a produção do espaço urbano
acontece com a centralização da atividade produtiva no modo de produção capitalista.
Smith mostra que o capitalismo herda estruturas do espaço urbano presentes em
sociedades pré-capitalistas como a divisão entre cidade e campo, mas evidencia que
“a riqueza econômica centralizada e a atividade representada pela cidade pré-
capitalista resultaram primordialmente da necessidade de um sistema organizado de
mercado de trocas ou ainda das funções religiosas ou de defesa” (1988, p. 197). De
centro comercial a uma nova forma urbana, onde o mercado de trabalho passa a
exercer o controle geográfico da escala urbana, o autor mostra que unicamente com:
[...] o desenvolvimento e a expansão do capital industrial é que a
centralização da atividade produtiva veio superar a função de mercado como
a determinante do desenvolvimento urbano. Se a escala urbana enquanto tal
é a expressão necessária da centralização do capital produtivo, os limites
geográficos à escala urbana [...] são determinados, em primeiro lugar, pelo
mercado de trabalho local e pelos limites ao deslocamento diário para o
trabalho. Com o desenvolvimento da cidade capitalista, há uma diferenciação
sistemática entre o local de trabalho e o local de residência, entre o espaço
da produção e o espaço da reprodução. (Ibidem)

Para o capitalismo há a necessidade de concentração da mão-de-obra próximo


aos lugares de produção, já que “a importância do deslocamento para o trabalho e
dos limites à transferência em massa da força de trabalho não é simplesmente uma
questão física” (SMITH, 1988, p. 198). Assim, nesse sistema “o custo do deslocamento
para o trabalho é um componente – do valor da força de trabalho e um componente
que assume importância – crítica na expressão geográfica do valor da força de
trabalho” (Ibidem). O deslocamento desse trabalho abstrato 5 é necessário para que o

5
Segundo Marx: “O produto não é mais uma mesa, uma casa, um fio ou qualquer outra coisa útil. Todas as suas qualidades
sensíveis foram apagadas. E também já não é mais o produto do carpinteiro, do pedreiro, do fiandeiro ou de qualquer outro
35

espaço urbano tenha caráter de produção e de reprodução da força de trabalho,


afirmando-se, assim, como mercado de trabalho. O autor aponta que:
[...] os limites geográficos aos mercados de trabalho diários expressam os
limites à integração espacial na escala urbana: onde os limites urbanos se
tornaram super-estendidos, surge a ameaça de fragmentação e desequilíbrio
na universalização do trabalho abstrato; onde são por demais restritos
geograficamente, a força de trabalho urbana é comparativamente limitada e
a oportunidade surge da estagnação prematura no desenvolvimento das
forças produtivas. A expansão do espaço urbano não é somente uma questão
de aumento na centralização das forças produtivas ou da escala na qual
ocorre o sistema diário de trabalho concreto. Ele deveria ser antes
interpretado como a expansão da esfera geográfica diária do trabalho
abstrato. (Ibidem)

A partir da ideia do espaço urbano como mercado de trabalho, o uso do solo


assume o papel central na valorização do espaço. A mudança do valor de uso pelo
valor de troca fez do solo mercadoria 6, assumindo valores variados e correspondentes
à demanda da economia. O solo passa a atender a demanda da sociedade,
estrategicamente moldada pela ideologia, gerando renda. Assim, Smith mostra na
medida em que:
[...] o uso residencial, industrial, de lazer e outros usos do solo são
diferenciados e coordenados no nível intra-urbano, a coesão do espaço
urbano resulta da cooperação de uma função diferente do capital. Por mais
que o fenômeno do desenvolvimento urbano resulte da centralização do
capital de produção, sua diferenciação interna resulta da divisão entre este e
outros usos do solo, sendo dirigido através do sistema de renda do solo.
(1988, p. 199)

O autor deixa em evidencia o movimento de capital como resultado “direto do


funcionamento da renda do solo, um eixo binário – desde baixas rendas do solo na
periferia até altas rendas no centro – é organizado através dos padrões mais
complexos de diferenciação urbana” (Ibidem).
Entretanto, o solo não se valoriza por si só e não é uma mercadoria, em
princípio, fruto de uma linha de produção. Smith aponta a unidade básica do espaço
urbano como “o espaço absoluto individual da propriedade privada e cada um desses
espaços tem preço na forma de renda do solo” (1988, p. 200). Essa renda do solo

trabalho produtivo determinado. Com o caráter útil dos produtos do trabalho desaparece o caráter útil dos trabalhos neles
representados e, portanto, também as diferentes formas concretas desses trabalhos, que não mais se distinguem uns dos outros,
sendo todos reduzidos a trabalho humano igual, a trabalho humano abstrato”. MARX, Karl. O capital: Crítica da economia política.
Livro I: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013
6
Como visto anteriormente no item 2.1, subitem O espaço como mercadoria.
36

acontece por fatores como “tamanho, forma de superfície, utilização atual, [...] e sua
relação com outros melhoramentos e lugares (centro da cidade, transporte, rede de
esgotos)” (Ibidem). Este sistema, segundo ele, deveria nivelar:
[...] o espaço urbano à dimensão de valor de troca, mas o faz como um meio
de então coordenar e integrar o uso dos espaços individuais dentro do espaço
urbano como um todo. A igualização do espaço urbano na estrutura de renda
do solo torna-se o meio para sua diferenciação. Os usos competitivos são
geograficamente selecionados, em primeiro lugar, através do sistema de
renda do solo. Entretanto, não há certamente garantia alguma de integração
efetiva. (Ibidem).

Além disso, os ganhos financeiros pelas características geográficas são


potencializados a partir do momento em que o governo promove a infraestrutura
urbana, a fim de “manter as condições para um desenvolvimento ordenado do espaço
urbano, o Estado (no âmbito local ou nacional) geralmente intervém, desde que seja
capaz de mudar os rumos do mercado imobiliário” (Ibidem). A partir de então, passa
a alterar os interesses do mercado imobiliário e com o planejamento urbano, cria as
diferenças na geografia da cidade. Assim, “a ordem do mercado imobiliário é
modificada em nome de uma ordem coletiva para o capital, mas o resultado efetivo
poderia bem ser a desordem” (Ibidem).
Passando para valor de troca, o solo urbano é uma mercadoria para o mercado
imobiliário. O solo urbano passa a ter definitiva importância no sistema capitalista
como um todo, perdendo, assim, a função de atender necessidades das classes mais
pobres. Essa última, passa a sofrer com os preços altos praticados nos centros (e não
só nos centros), sendo empurradas para a periferia das grandes cidades, onde o solo
é menos valorizado – o que não implica prejuízo para os proprietários da terra –
dificultando o acesso dessas classes mais pobres às partes mais enobrecidas da
cidade. A renda do solo, não é comprometida, somente deslocada para as escalas
estado-nação e global, como aponta Smith:
Na medida que a renda do solo se torna expressão da taxa de juros com o
desenvolvimento histórico do capital, a estrutura da renda imobiliária se
interliga à determinação do valor no sistema como um todo. Apesar disto, e
na medida em que a própria terra se torna objeto de troca e desenvolvimento
especulativo, a função integradora da renda do solo é perturbada. Reagindo
ao estímulo da especulação, a renda do solo é sistematicamente impedida
de integrar e coordenar o desenvolvimento urbano de uma forma condizente
com as exigências da universalização do trabalho abstrato. As contradições
se deslocam para cima e para fora. (1988, p. 200)
37

Como já apontado, o movimento de capital entre as escalas acontece de


maneira dinâmica, o que nos faz perceber que tais escalas não representam barreiras
ou limites para o modo de produção capitalista. Pelo contrário, são favoráveis à sua
saúde. Além disso, apontamos também que a mobilidade do capital entre as escalas,
não confere acesso às classes mais pobres, ao contrário, cria mais barreiras e
desigualdades.

O movimento de capital nas escalas – o “vaivém” da desigualdade


Smith apresenta a ideia do movimento em vaivém do capital, como a
acumulação em poucas mãos, em um lugar, e a retirada de capital de muitas outras
mãos, de outros lugares. Portanto, a desigualdade é explicada por ele da seguinte
maneira:
Se a acumulação do capital acarreta o desenvolvimento geográfico e se a
direção desse desenvolvimento é guiada pela taxa de lucro, então podemos
pensar no mundo como uma "superfície de lucro" produzida pelo próprio
capital, em três escalas separadas. O capital se move para onde a taxa de
lucro é máxima (ou, pelo menos, alta), e os seus movimentos são
sincronizados com o ritmo de acumulação e crise. A mobilidade do capital
acarreta o desenvolvimento de áreas com alta taxa de lucro e o
subdesenvolvimento daquelas áreas onde se verifica baixa taxa de lucro. Mas
o próprio processo de desenvolvimento leva à diminuição dessa taxa de lucro
mais alta. (1988, p. 212).

O autor emprega o termo superfície de lucro para o espaço urbano. Já


havíamos apontado anteriormente que o espaço possibilita lucro e, ao nos localizar
no espaço, tornamo-nos parte dessa valorização como indivíduos que consomem e
vendem a força de trabalho, garantindo ou influenciando (pelas lutas por direitos) a
variação da taxa de lucro. Esse vaivém de capital se move “para onde a taxa de lucro
é máxima (ou, pelo menos, alta), e os seus movimentos são sincronizados com o ritmo
de acumulação e crise” (Ibidem).
Assim, em todas as escalas, expressa a necessidade de desigualdade para a
saúde do modo de produção capitalista. Os investimentos em áreas outrora
degradadas nada mais são do que oportunidades esperadas de aumento das taxas
de lucro. Smith explica o vaivém de capital da seguinte maneira:
O subdesenvolvimento, como o desenvolvimento, ocorre em todas as escalas
espaciais e o capital tenta se movimentar geograficamente de tal maneira que
continuamente explora as oportunidades de desenvolvimento, sem sofrer os
38

custos econômicos do subdesenvolvimento. Isto é, o capital tenta fazer um


"vaivém" de uma área desenvolvida para uma área subdesenvolvida,
para então, num certo momento posterior voltar à primeira área que
agora se encontra subdesenvolvida, e assim sucessivamente. Na
medida em que o capital não pode encontrar um fixo espacial na produção
de um ambiente imóvel para a produção, ele recorre à completa mobilidade
como um fixo espacial. Novamente, a fixidez espacial e a a-espacialidade não
são senão faces de uma mesma moeda. O capital busca não um equilíbrio
construído na paisagem, mas um equilíbrio que seja viável precisamente em
sua capacidade de se deslocar nas paisagens de maneira sistemática. Este
é o movimento em vaivém do capital, que está subjacente ao processo mais
amplo de desenvolvimento desigual. (1988, p. 213) – Grifos nossos.

A sociedade é, então, espacializada pela localização da força de trabalho nos


diversos lugares da cidade, onde o valor do solo é condizente com a classe à qual
pertence. As desigualdades fazem parte do vaivém do capital, mas no que tange os
limites do estado-nação, a teoria diz que as diferenças tendem a ser minimizadas.
Contudo, na prática, as desigualdades regionais no Estado também estão
presentes. É na escala urbana onde mais se expressam as desigualdades geradas
por esse modo de acumulação. Elas acontecem pela valorização do solo nas áreas
periféricas, ao mesmo tempo em que o solo da região central se desvaloriza, e vice-
versa.
Quando o mesmo autor expõe o caso das cidades norte americanas, onde “a
descentralização geográfica do capital na construção dos subúrbios levou ao
subdesenvolvimento do centro da cidade” (1988, p. 214), deixa claro que, mais uma
vez, o solo representa uma fonte de acumulação capitalista, pois o capital era atraído
pelo crescimento acelerado da renda do solo “que acompanhava o desenvolvimento
suburbano e o centro da cidade, com níveis de renda do solo já elevados e com baixas
taxas de retorno, deixava sistematicamente de receber capital” (Ibidem) nessas
cidades norte americanas.
Nesse movimento financeiro, a queda do valor do solo se torna um ponto
fundamental para viabilizar o retorno às áreas centrais. Mas isto levava a uma
desvalorização contínua “de áreas inteiras do centro da cidade e ao porte obsoleto do
seu uso comercial ou residencial” (SMITH, 1988, p. 214-215). Entretanto, essa queda
não serviria para favorecer as classes que iriam comprar as casas, apartamentos,
lofts, escritórios ou lojas, serviria para potencializar o lucro dos agentes do mercado
imobiliário.
39

Há que se considerar ainda que é o Estado quem realiza as obras de


infraestrutura, pós aquisição dos terrenos a preço baixo. Com isso, de acordo com
Smith:
[...] a desvalorização do capital faz baixar o nível de renda do solo
suficientemente para que a diferença entre a renda do solo real e a renda do
solo potencial (dado um uso "mais elevado") torne-se suficientemente grande
para que o re-desenvolvimento e a volta da população de nível social mais
elevado se torne possível. O centro da cidade, que estava subdesenvolvido
com a suburbanização da capital, agora se torna um novo lugar de
desenvolvimento (ou melhor de re-desenvolvimento). A reestruturação
contemporânea dos Estados Unidos e, em menor escala, das cidades
europeias, envolve a concentração no centro urbano de usos do solo
recreacionais e residenciais de classe média alta, juntamente com atividades
profissionais e administrativas e aumento na suburbanização das atividades
industriais e das atividades rotineiras de escritório. (Ibidem)

Esse movimento é crucial para melhor compreendermos o que mais à frente


Smith chamará de gentrificação 7, para melhor diferenciar os processos de higienismo
e gentrificação e buscar os pontos de semelhança entre eles. Mesmo a escala urbana
sendo o nosso objeto de estudo, não podemos ignorar as marcas deixadas pelo
transito do capital nesta escala, devido à permeabilidade entre as escalas, justificando
o interesse em compreender os processos nas escalas estado-nação e global.
Na escala estado-nação, Smith aponta que o vaivém do desenvolvimento
desigual acontece quando “o crescimento metropolitano prossegue firmemente na
escala das definições regionais, então, de fato, as diferenças regionais tornam-se
diferenças entre diferentes centros urbanos” (1988, p. 215). Os centros urbanos
passam a ser desiguais internamente, pois sua produção atende à demanda da
produção – industrial e tipo de comércio específico – da região que pertence. A
igualdade estaria no desenvolvimento das regiões “na medida em que a igualização
de condições e níveis de produção é realmente realizada, então o nível de
diferenciação regional diminui” (Ibidem).
Na escala Internacional “a riqueza e o desenvolvimento capitalistas estão
concentrados em algumas prósperas e poucas nações e a pobreza capitalista está da
mesma forma segregada” (SMITH, 1988, p. 216), onde o capital não apresenta um
vaivém como na escala urbana e na escala do Estado. Nela, a mobilidade do capital,

7
Conceito de Ruth Glass, encontrado na obra de Neil Smith (p. 73). La nueva frontera urbana. Ciudad revanchista y
gentrificación. Madrid: Ed. Traficantes de Sueños, 2012.
40

“mas, especialmente, da mão-de-obra, é restringida pela rigidez das fronteiras das


Nações-Estado e pelas condições rigidamente opostas do desenvolvimento e do
subdesenvolvimento” (Ibidem). Assim, o espaço absoluto, o modelo de
desenvolvimento desigual na escala urbana, é que garante o caráter ideológico do
capitalismo de produzir desigualdade pela igualdade.
Smith mostra os limites de sua teoria justamente pela análise na escala
mundial. Por mais que o vaivém do capital seja evidente na escala urbana, e muito
pouco evidente na escala internacional, sugere limites a esta teoria do
desenvolvimento desigual. A partir disso, nosso foco passa a ser a escala urbana,
mas sem dissociá-la das demais.
A produção das desigualdades na escala urbana é dada na medida em que a
“diferenciação do espaço geográfico assume muitas formas, mas fundamentalmente
expressa a diferenciação social que é a verdadeira definição do capital: a relação entre
capital e trabalho” (SMITH, 1988, p. 217). Dessa maneira é que o capital busca
“diferenciar o espaço abaixo da escala global como um meio de controle político, bem
como de sobrevivência econômica” (SMITH, 1988, p. 218). Resta, então, à classe
trabalhadora “lutar pela igualização em escala global” (Ibidem).
No entanto, a classe trabalhadora terá que enfrentar algo mais: a ideologia
burguesa, cujo argumento central tem no socialismo um elemento de supressão das
individualidades, onde “tudo e todos estão reduzidos à uniformidade – ao mínimo
denominador comum. Tudo é igual; a diversidade foi extinta; o socialismo é
entediante” (SMITH, 1988, p. 219). Essa ideologia burguesa é equivocada, segundo
o autor, propositadamente, pois “a noção de que no socialismo tudo será a mesma
coisa surge não de uma compreensão do movimento socialista, mas de uma projeção
das realidades do capitalismo” (Ibidem). Assim, o autor conclui que ela nasce da
incapacidade previsível e vulgar de:
[...] enxergar a distinção entre valor de uso e valor de troca, previsível porque
essa incapacidade está nas raízes da ideologia burguesa. A tendência para
a igualização sob o capitalismo representa a vitória do valor sobre o valor de
uso; é a igualização, em termos de valor de uso, como uma imposição do
valor. O advento do socialismo lança as bases sobre as quais os valores de
uso podem se libertar do valor, na realidade, ao invés de o serem apenas na
mente da burguesia. (Ibidem)

A partir desta ótica, os processos de exclusão social – como o higienismo e a


41

gentrificação – acontecem pelo movimento de capital na escala urbana,


operacionalizado pela ressignificação do espaço, deixando claro a essência classista
desse processo. Assim, a desigualdade é fator fundamental para viabilizar a
gentrificação. O autor mostra que a gentrificação é característica do desenvolvimento
desigual, pois “é a desigualdade social estampada na paisagem geográfica e é
simultaneamente a exploração daquela desigualdade geográfica para certos fins
sociais determinados” (1988, p. 221). É o capitalismo que reproduz as desigualdades
na escala urbana, resultando na exclusão social com o modelo de reprodução de
cidades.

1.2 A CIDADE REVANCHISTA E A GENTRIFICAÇÃO

Segundo Neil Smith, a gentrificação não é isoladamente uma questão de


movimento de capital. Para que aconteça, é preciso que uma classe acompanhe o
caminho traçado pelo capital. Nenhuma área estaria imune à desvalorização e à
gentrificação, assim como um processo econômico não pode sofrer uma
desgentrificação – o que existe são as condições necessárias para o movimento de
capital – já que o vaivém de capital precisa e produz o subdesenvolvimento. Desta
maneira, estudaremos as teorias de Smith sobre a gentrificação e a cidade
revanchista, com apoio de outros autores.

O que é a Gentrificação
Para melhor compreender o processo de gentrificação, é preciso entender o
significado e a origem desta palavra. Em um breve estudo etimológico, identificamos
que a palavra gentrificação tem origem na palavra inglesa gentry8, com significado de
classes média alta, pequena nobreza e até mesmo, aristocracia. Sabemos também
que a palavra deriva do francês antigo genterie, que designa uma classe de pequena
nobreza, de poder aquisitivo.
A partir desta origem da palavra, surgiu na Inglaterra o termo gentrificação

8
Disponível em: <http://www.wordreference.com/definition/gentry>. Acesso em: 12/12/2016.
42

empregado, pela primeira vez com sentido essencialmente positivo de recuperação


urbana:
Um após o outro, numerosos bairros operários londrinos foram invadidos pelas
classes médias alta e baixa. Locais degradados ou com casinhas modestas,
com dois aposentos no térreo e dois em cima, foram retomadas quando os
contratos de aluguel expiraram e se tornaram elegantes residências de alto
preço. Residências vitorianas maiores, que tinham mudado de função - ou
seja, haviam passado a ser utilizadas como pensões familiares ou sublocadas
- recuperaram novamente um bom nível de status. Esse processo de
gentrificação, uma vez começado em um bairro, se estendeu rapidamente até
que quase todas as camadas populares que aí moravam originalmente
tivessem deixado o lugar e que todas as características sociais tivessem
mudado. (GLASS, 1964 apud SMITH, 2006. p. 60)

Considerando, portanto, a origem etimológica de gentrificação, seu processo


precisaria dessa classe - gentry - capaz de se comportar de maneira socialmente
aceitável e com o poder de consumir o que estiver dentro de um espaço com sentido
ressignificado – com moradias populares transformadas em habitações para atender
as necessidades da classe média alta – e organizado para ela.
Para Smith, Glass conta “a novidade desse novo processo através do qual a
nova gentry (pequena nobreza) urbana, isto é, as famílias de classe média, tinham
transformado os bairros operários” (2006. p.60) de forma quase poética, relatando as
mudanças como algo positivo. Assim como Glass, Smith vai fazer uso conceitual do
termo para refletir e esclarecer os mesmos movimentos de população descritos por
Glass. Entretanto, há discordâncias entre os dois autores, as quais ficam claras
quando Smith expõe sua primeira definição de gentrificação.
Desta maneira, o autor põe em evidência como um processo que se consolida
por movimento, antes de tudo, de expulsão territorial das camadas de menor renda
dos bairros decadentes, está em favor da expansão do mercado imobiliário “em que
os bairros pobres e proletários, localizados no centro da cidade, são reformados a
partir da entrada do capital privado” (2012, p. 74).
Assim, a retomada pelas classes mais abastadas, ou seja, de “compradores de
habitação e inquilinos de classe média” (Ibidem) não se dava em qualquer bairro.
Esses bairros que “previamente haviam sofrido falta de investimento e o êxodo da
própria classe média” (Ibidem), expressam a ideia de Smith a respeito do movimento
de capital na escala urbana. O autor evidencia como o “capital e a alta burguesia estão
43

voltando para casa, e para alguns dos que se encontram em seu caminho, não se
trata de algo agradável 9” (Ibidem), especialmente, para as classes mais pobres que
vivem nestes bairros.
Entretanto, inicialmente o processo de gentrificação foi apresentado carregado
de características simbólicas que ajudaram em sua aceitação, como aponta Smith:
A gentrificação inicial dos fins da década de 1950 e início da década de 1960
adquiriu rapidamente um significado simbólico, se certamente superou sua
importância econômica e geográfica sobe o terreno. A gentrificação, uma
válvula de escape modesta, mas de alta visibilidade para o capital produtivo
em busca de um lugar de descanso rentável, parecia prometer uma
alternativa à decadência e à descentralização residencial do pós-guerra. As
ideologias da gentrificação se entrelaçaram fortemente aos bairros
prósperos, outrora decadentes; o benefício, onde havia pobreza, a classe
média voltava à cidade: a gentrificação era uma coisa boa 10. (2012, p. 197)

Os estudos do autor a respeito da gentrificação mostram que esse processo


tomou proporções maiores do que se esperava. Era um processo que se apresentava,
no pós-guerra, de maneira ocasional em cidades de portes variados, tornando-se
objeto de programas ambiciosos do mercado imobiliário. Segundo Smith, o processo
de gentrificação partia do acaso para um sistema complexo, no qual sua evolução
aconteceu “rapidamente em importância e em diversidade, a ponto de fazer parecer
pitorescos os simples projetos de reabilitação residencial”, tão típicos da década de
1960, “não somente na paisagem urbana como na literatura sobre teoria urbana”
(2006, p. 61-62).
Entretanto, o autor deixa claro que, atualmente, as “experiências de
gentrificação são bastante diferentes e desiguais, e muito mais diversificadas do que
nos primeiros casos europeus ou norte-americanos”. O contexto sociocultural e
econômico da localidade da escala urbana “se conectam de maneira muito complexa
com as economias nacionais e globais” (2006, p. 62) e acrescenta:

9
Tradução nossa, do original: “La gentrificación es el proceso, comenzaba a explicar, por el que los barrios pobres y proletarios,
ubicados en el centro de la ciudad, son reformados a partir de la entrada del capital privado y de compradores de viviendas e
inquilinos de clase media – barrios que previamente habían sufrido una falta de inversión y el éxodo de la propia clase media.
Los barrios más humildes de classe trabajadora están en proceso de reconstrucción; el capital y la alta burguesia están volviendo
a casa, y para algunos de los que se encuentran a su paso, no se trata precisamente de algo agradable”. (Ibidem)
10
Tradução nossa, do original: “La incipiente gentrificación de finales de la década de 1950 y comienzos de la de 1960 adquirió
rápidamente una aceptación simbólica, que seguramente superó su importancia económica y geográfica sobre el terreno. La
gentrificación, una válvula de escape modesta pero de alta visibilidad para el capital productivo en búsqueda de un lugar de
descanso rentable, parecía prometer una alternativa a la decadencia y a la descentralización residenciales de la postguerra. Las
ideologías de la gentrificación se aferraron rápidamente a los barrios prósperos, antes decadentes; al beneficio, donde había
pobreza; la clase media volvía a la ciudad: la gentrificación era algo bueno” (SMITH, 2012, p. 197).
.
44

[...] o que se deve sublinhar aqui é a rapidez da evolução de um processo


urbano particular ainda tão marginal, primeiramente identificado nos anos
sessenta, e sua transformação em uma dimensão marcante do urbanismo
contemporâneo. (Ibidem)

Durante a segunda metade do século XX, observamos que o processo de


gentrificação se desenvolveu gradativamente em direção de estratégias de
planejamento urbano nas grandes cidades. A análise de Smith mostra a mudança
para o caráter econômico, ao pesquisar a gentrificação na cidade de Nova York. Em
sua análise, ele põe em evidencia como o processo de gentrificação aconteceu nessa
cidade, revelando também o caráter esporádico durante os anos de 1950 e 1960. Isso
se deveu ao fato de que a “reabilitação das construções degradadas já tinha ocorrido
de modo regular ao longo dos séculos anteriores” (Ibidem). Assim, a “gentrificação
nascente” foi ofuscada pela “migração contínua, branca, em direção do periurbano, e
pelo fechamento ou deslocamento de empresas obsoletas do distrito central de
negócios” (Ibidem). Além disso, o esvaziamento das regiões do Sul de Manhattan
potencializou o insucesso inicial.
Ainda observando esse período, a transição do processo de gentrificação
começa a se apresentar com mais frequência por toda a ilha, não ficando circunscrita
ao sul. Smith ressalta que o processo aconteceu em outras áreas de Nova York, mas
que é “[...] somente nos anos setenta que o selo made in London da gentrificação
começa a circular em Nova York como critério de análise do novo processo” (2006, p.
64). O autor mostra que já neste período, apresentavam-se os conflitos entre classes
sociais e os agentes produtores de cidade:
Para os urbanos incondicionais, ele foi acolhido como um signo tangível de
renovação econômica e cultural depois de décadas de declínio urbano
aparente, enquanto que os locatários, os militantes da habitação e numerosos
moradores das classes populares viam com desconfiança um processo que
ameaçava expulsá-los de seu bairro (2006, p. 65).

Mesmo assim, antes da década de 1970, a gentrificação se mantinha de forma


esporádica “e em escala restrita, porque as instituições financeiras não se mostraram
interessadas por investimentos importantes em zonas ainda consideradas
decadentes” (Ibidem). Neste período, também não houve interesse do poder público,
ficando para a década seguinte a transição entre o acaso e a estratégia.
45

Do acaso à estratégia – o “rent gap”


A evolução do processo de gentrificação, a partir da década de 1980, a leva do
acaso para um sistema de consórcio Estado/Empresa. Acompanhando as reflexões
de Smith, o processo de gentrificação acontecia em uma dinâmica na qual “o papel
dos atores individuais, que eram os compradores de casas na primeira fase” (2006, p.
66-67) passava a ser ofuscado pelo papel do Estado, a partir do momento em que “a
municipalidade se jogou de cabeça nos novos programas e financiamentos de
reabilitação de habitações” (Ibidem). Assim, o autor esclarece que a origem da
gentrificação está na mobilidade geográfica do capital:
[...] e nos modelos históricos do investimento e do desinvestimento no campo
urbano: o investimento nas áreas periurbanas em detrimento da região
central, dominante no século XX, criou condições espaciais de
reinvestimentos sobre locais específicos do centro, tomando a forma de
gentrificação. (Ibidem).

Assim, Smith, mais uma vez, ressalta o caráter econômico da gentrificação em


seu movimento de capital na escala urbana, afirmando que o mecanismo subjacente
a esse processo reside na “Depreciação e na desvalorização do capital investido nos
bairros residenciais das zonas urbanas degradadas11” (2012, p. 125-126). E reitera
que a desvalorização produz as condições econômicas:
[...] objetivas que fazem da revalorização de capital (gentrificação) uma
resposta racional por parte do mercado. Isso é de fundamental importância,
o que eu chamo de diferença de renda potencial 12. (Ibidem)

Assim, o autor aponta para a desvalorização como fruto do desinvestimento


nas áreas centrais, cria as “condições espaciais de reinvestimento sobre locais
específicos do centro tomando a forma da gentrificação” (2006, p. 66). Esse sistema
passa a ser apropriado pelas instituições financeiras que, oferecendo baixos juros aos
promotores imobiliários, faz com que o real interesse passe a ser o potencial futuro
valor do imóvel na revenda, ou seja, o valor de troca em detrimento do valor de uso.
Como já apontado anteriormente, a gentrificação é um processo econômico de

11
Tradução nossa, do original: “depreciación y la desvalorización del capital invertido en los barrios residenciales de las zonas
urbanas deprimidas” (SMITH, 2012, p. 125-126).
12
Tradução nossa, do original: “produce las condiciones económicas objetivas que hacen que la revalorización del capital
(gentrificación) se vuelva una respuesta racional por parte del mercado. Aquí resulta de fundamental importancia aquello que
denomino diferencia potencial de renta” (Ibidem).
46

acumulação de capital. Logo, o caráter econômico se expressa ainda mais, quando


Smith explica o rent gap como a diferença de renda obtida por diferentes usos de uma
mesma terra:
A diferença de renda é a diferença entre o nível da renda potencial do solo e
a renda atual do solo capitalizado sob o uso atual do solo [...]. A diferença
potencial de renda é produzida, principalmente, pela desvalorização do
capital (o qual reduz a proporção de renda de solo disponível para ser
capitalizado) e também pela expansão e o contínuo desenvolvimento urbano
(que historicamente têm aumentado a renda potencial de terra em áreas
urbanas degradadas) 13 (2012, p. 126)

Smith nota que neste período as origens da gentrificação consistem no


movimento de capital, ou seja, na mobilidade geográfica do capital, ora gerando
investimento nas regiões centrais e desinvestimento nas periurbanas, ora o oposto.
Dessa maneira, quando a diferença potencial de renda (rent gap) se tornar grande o
bastante, “inicia a gentrificação em um bairro determinado por algum dos diferentes
atores do mercado imobiliário e do mercado de solo 14” (2012, p. 127).
Para que a gentrificação mudasse seu caráter ocasional, era necessário que
houvesse um agente que arcasse com despesas de melhoramento de terra – e até
mesmo um aparato legal – para essa metamorfose. Assim, o Estado foi o ator principal
que deu início “a grande parte da gentrificação inicial nos Estados Unidos como
continuação dos projetos de renovação urbana 15” (SMITH, 2012, p. 127). Apesar de
assumir na atualidade, um papel de menor destaque “os subsídios e o patrocínio
protetor estatal a gentrificação continua a ter importância” (Ibidem). Entretanto, os
agentes imobiliários assumiram o papel central neste processo e, desta forma, com a
entrada desses agentes, o autor realça que hoje é mais comum a gentrificação:
[...] do mercado privado: uma ou mais instituições financeiras modificam
radicalmente uma prolongada política de não concessão de créditos e
promovem ativamente um bairro como mercado potencial para os
empréstimos hipotecários e de construção. Todas as preferencias dos
consumidores no mundo serão ineficazes à menos que esta fonte de
financiamento, muito tempo ausente, reapareça, sendo de um modo ou de

13
Tradução nossa, do original: “La diferencia de renta es la diferencia entre el nivel de la renta potencial del suelo y la renta
actual capitalizada del suelo bajo el actual uso del suelo [...]. La diferencia potencial de renta viene producida, principalmente,
por la desvalorización del capital (lo cual disminuye la proporción de renta del suelo disponible para ser capitalizada) y también
por la expansión y el continuo desarrollo urbano (que históricamente han hecho aumentar la renta potencial del suelo en las
zonas urbanas deprimidas)” (SMITH, 2012, p. 126).
14
Tradução nossa, do original: “se inicia la gentrificación en un barrio determinado por alguno de los diferentes actores del
mercado inmobiliario y del mercado de suelo” (SMITH, 2012, p. 127).
15
Tradução nossa, do original: “a gran parte de la temprana gentrificación en Estados Unidos como una continuación de los
proyectos de renovación urbana” (SMITH, 2012, p. 127). “los subsidios y el auspicio estatal a la gentrificación siguen siendo
importantes” (Ibidem)
47

outro, o capital hipotecário um pre-requisito. Naturalmente, esse capital


hipotecário deve ser oferecido à consumidores desejosos de exercer uma
preferência ou outra. Mas essas preferencias podem ser, e são muitas vezes,
criadas socialmente. Junto das instituições financeiras, os promotores
imobiliários profissionais tem atuado, de modo geral, como a iniciativa
coletiva que está por detras das gentrificação. Como de hábito, um promotor
imobiliário compra não apenas uma mas uma proporção importante de
propriedades desvalorizadas em um bairro, para as remodelar e as vender.
Uma exceção importante a esse predomínio de capital coletivo no processo
de dar continuidade à gentrificação, tem lugar nos bairros adjacentes às
zonas já gentrificadas. Mesmo alí é comum encontrar gentrificadores
individuais que podem ser muito importantes no inicio da remodelação 16.
(Ibidem)

O retorno dos investimentos desses agentes está no preço de venda da


propriedade pronta. Smith mostra que existem duas modalidades de lucro distintas
que compõem rendimento pela venda, sendo “a capitalização da renda do solo
melhorada e o retorno da aplicação de capital (bastante diferente do lucro da
construtora) 17” (2012, p. 128). O autor prossegue e afirma a relevância de promotores
profissionais e arrendatários, ressaltando para o fato dos “promotores imobiliários que
ocupam suas propriedades são mais ativos na reabilitação do que qualquer outro setor
da construção de habitação” e:
Quando o terreno já está edificado e estabeleceu-se um complexo padrão
dos direitos de propriedade, nem sempre é facil para o promotor profissional
reunir terrenos e propriedades suficientes para que o investimento valha a
pena. Até mesmo os promotores imobiliários arrendatários tendem a reabilitar
varias propriedades simultaneamente ou uma depois da outra. A fragmentada
estrutura da propriedade dos edificios fez com que os promotores que
ocupam suas propriedades, que muitas vezes são operadores indceficientes
na industria da construção, converteram-se em um convincente veículo para
a reconstrução dos bairros desvalorizados 18. (Ibidem)

16
Tradução nossa, do original: “[...] del mercado privado: una o más instituciones financieras modifican radicalmente una
prolongada política de no concesión de créditos y promueven activamente un barrio en tanto mercado potencial para los
préstamos e hipotecas a la construcción. Todas las preferencias de los consumidores en el mundo serán inoperantes a menos
que esta fuente de financiación, que ha estado largo tiempo ausente, reaparezca; de un modo u otro, el capital hipotecario
constituye un prerrequisito. Por supuesto, este capital hipotecario debe ser prestado a consumidores desejosos que ejerciten una
preferencia u otra. Pero estas preferencias pueden ser, y son en gran medida, creadas socialmente. Junto con las instituciones
financieras, los promotores inmobiliarios profesionales han actuado, por lo general, como la iniciativa colectiva que está detrás
de la gentrificación. Como de costumbre, un promotor inmobiliario compra no una sino una proporción importante de propiedades
desvalorizadas en un barrio, para remodelarlas y venderlas. Una excepción de importancia a este predominio del capital colectivo
en el processo de dar curso a la gentrificación tiene lugar en los barrios adyacentes a zonas ya gentrificadas. Allí es, incluso,
común encontrar gentrificadores individuales que pueden ser muy importantes en los comienzos de la remodelación”. (Ibidem)
17
Tradução nossa, do original: “la capitalización de la renta del suelo mejorada y el beneficio sobre la inversión de capital
productivo (bastante diferente de la ganancia de la constructora)” (2012, p. 128).
18
Tradução nossa, do original: “[...] promotores inmobiliarios que ocupan sus propiedades son más activos en la rehabilitación
que cualquier otro sector de la construcción de viviendas. Cuando el terreno ya ha sido edificado y se ha establecido un intrincado
patrón de derechos de la propiedad, no siempre resulta fácil para el promotor profesional reunir suficiente suelo y propiedades
como para hacer que la intervención merezca la pena. Incluso los promotores inmobiliarios arrendatarios tienden a rehabilitar
varias propiedades de forma simultánea o una después de la otra. La fragmentada estructura de la propiedad de los edificios ha
hecho que los promotores que ocupan sus propiedades, quienes suelen ser operadores ineficientes en la industria de la
construcción, se conviertan en un convincente vehículo para la reconstrucción de los barrios desvalorizados”. (Ibidem)
48

Segundo o mesmo autor, o papel do Estado passa a ser regulado pelo mercado
imobiliário, quando o poder público se imiscui em questões do capital financeiro e
mostra que “A ausência de participação significativa do Estado nacional na ajuda à
gentrificação dos anos oitenta foi substituída, nos anos noventa, pela intensificação
da parceria entre o capital privado e os governos locais” (2006. p. 76). Sob essa lógica,
as realizações iniciais da “iniciativa municipal se desenvolveram como canais de
investimentos financeiros no urbano” (Ibidem), consolidando as parcerias público-
privadas como norma, mas com “o equilíbrio dos poderes ligando os setores privado
e público havia mudado no decorrer do processo” (Ibidem). E no lugar de “a razão
política acompanhar a economia, ela agora se curva inteiramente diante dela”
(Ibidem). Para Smith, o crescimento econômico não é mais regulado pelas políticas
urbanas, essas políticas “se encaixam nos trilhos já instalados pelo mercado, à espera
de contrapartidas mais elevadas, seja diretamente, ou na forma de arrecadação de
impostos” (Ibidem).
Portanto, não existe casualidade no atual processo de gentrificação. Os
processos de desvalorização de capital no século XIX, em bairros com queda na
atividade econômica, junto ao crescimento urbano “durante a primeira metade do
século XX, combinaram-se para produzir as condições nas quais o reinvestimento
rentável se torne possível” (SMITH, 2012, p. 128), serviram de base para o processo
de gentrificação contemporâneo.
Como já mostrado anteriormente, foi na região dos centros urbanos que a
gentrificação se originou. Em sua teoria da diferença potencial de renda (rent gap),
Smith traz à tona a seguinte questão:
Se esta teoria da diferença potencial de renda da gentrificação está correta,
poderia esperar que a remodelação começara onde a diferença e os
rendimentos eram maiores, quer dizer, em bairros especialmente próximos
ao centro da cidade e em bairros onde a sequência de baixa de valores se
efetivou. Mas pode-se supor muito de tais expectativas. Empiricamente,
gentrificação tendeu, de fato, para abraçar o centro da cidade, pelo menos
durante as primeiras etapas; entrando aqui em jogo muitas questões em
ralação com as causas imediatas da gentrificação de um bairro em particular,
a torná-lo possível estabelecer uma correlação entre o grau de degradação e
a propensão para gentrificação 19. (Ibidem)

19
Tradução nossa, do original: “[...] durante la primera mitad del siglo XX, se han combinado para producir las condiciones en las
que la reinversión rentable resulta posible. Si esta teoría de la diferencia potencial de renta de la gentrificación es correcta, podría
esperarse que la remodelación comenzara allí donde la diferencia y los rendimientos disponibles fueran mayores, es decir, en
barrios especialmente cercanos al centro de la ciudad y en barrios donde la secuencia de valores a la baja ya haya culminado
49

Smith deixa claro que os promotores imobiliários vão atrás de áreas “que
ofereçam rendimentos mais baixos mas ainda substanciais – ou ainda zonas que
apresentem menos obstáculos ao reinvestimento 20” (2012, p. 129) e tais zonas são
encontradas “afastadas do centro da cidade e em zonas onde a decadência avançou
em menor quantidade” (Ibidem).
O processo econômico chamado gentrificação não se deu apenas com as
novas edificações e com a valorização do solo, cuja abrangência bem ressalta Smith:
Mais que edifícios reabilitados e apartamentos reformados, a gentrificação
abrange cada vez mais os novos restaurantes e as vias comerciais do centro,
os parques em frente ao rio e os cinemas, as torres dos edifícios das marcas
famosas, os museus das grandes fundações, os locais turísticos de todo o
tipo, os complexos culturais, em resumo, todo um leque de grandes
operações na paisagem das áreas centrais. (2006, p. 72).

Deste modo, a gentrificação abrange diversos fatores a fim de proporcionar


uma nova vida às áreas centrais, um novo estilo onde equipamentos urbanos e
serviços se aliam à moradia. Essa renovação simboliza “a gentrificação da cidade
como uma conquista altamente integrada do espaço urbano” (Ibidem), em que não se
pode dissociar racionalmente o fator residencial “das transformações das paisagens
do emprego, do lazer e do consumo” (Ibidem). Portanto, “a gentrificação não
representa mais uma simples estratégia residencial, mas aparece na proa da
mudança metropolitana nas áreas centrais da cidade” (Ibidem). A cidade gentrificada
passa a ser uma conquista classista.
Além do caráter econômico, a gentrificação possui ainda caráter ideológico. A
ideia de fronteira é usada como recipiente de significados acumulados, onde às
margens da “fronteira geográfica era um excelente meio de reproduzir as diferenças
sociais entre nós e eles 21” (SMITH, 2012, p.295-6), a fim de favorecer ao mercado e
possibilitar lucro com a expansão das cidades.

su curso. Pero podría suponerse demasiado a partir de estas expectativas. Empíricamente, la gentrificación ha tendido, de hecho,
a abrazar el centro de la ciudad, al menos durante las primeras etapas; entran aquí en juego demasiadas cuestiones en relación
con las causas inmediatas de la gentrificación de un barrio en particular, como para que resulte posible establecer un correlato
entre el grado de decadencia y la propensión a gentrificar ” (SMITH, 2012, p. 128)
20
Tradução nossa, do original: “que ofrezcan rendimientos más bajos, pero aún así sustanciales —o bien zonas que presenten
menos obstáculos a la reinversión. Esto implica zonas más alejadas del centro de la ciudad y zonas donde la decadencia há
avanzado en menor medida” (SMITH, 2012, p. 129)
21
Tradução nossa, do original: “La geografía de la frontera fue proyectada y creada como un recipiente para todos estos
significados acumulados; el borde de la frontera geográfica era un excelente medio para reproducir las diferencias sociales entre
el nosotros y el ellos, para la diferenciación histórica entre el pasado y el futuro, para la diferenciación económica entre el mercado
existente y la oportunidad de ganancia. Esta densa capa de significados ha sido expresada, agudamente, en la cambiante línea
de frontera” (SMITH, 2012, p. 296-5).
50

A discussão sobre a gentrificação apresenta a cidade como fronteira, onde o


caráter cultural se evidencia. O autor aponta, assim, que as repercussões culturais
criam os lugares, mas que “o lugar aparece como uma fronteira devido a existência
de uma linha econômica muito demarcada na paisagem 22” (2012, p.296). Assim, a
produção do lugar estaria subordinada às questões econômicas, com um limite claro
onde todos os serviços são adequados às classes que podem consumir os espaços.
Entretanto, “cruzada a linha se apresentam a barbárie, a promessa e a oportunidade”
(Ibidem). A relação de oposição entre os dois lados da linha fronteiriça revela o caráter
ideológico da gentrificação. Esse lugar é a fronteira para a gentrificação, que “absorve
e retransmite o otimismo destilado de uma nova cidade, a promessa da oportunidade
econômica, a ilusão combinada do romance e da voracidade, o lugar onde se cria o
futuro” (Ibidem) e desta maneira, esta fronteira:
[...] em que se investe número abundante de expectativas culturais, é um
lugar visceralmente real, inscrita na paisagem urbana dos bairros
gentrificados. Em verdade, ela pode ser mapeada. E, ao mapeá-la, espero
expor a ideologia da nova fronteira urbana, tão eficazmente mobilizada para
justificar não apenas a gentrificação, mas também de forma geral a
reestruturação urbana. Após as carregadas e evocativas atrações culturais
da nova fronteira urbana, subjaz uma verdade econômica mais vulgar que
confere ao imaginário da fronteira uma aparência de legitimidade 23. (Ibidem)

O autor aponta que o poder simbólico da gentrificação está nas generalizações


de seu significado. Como toda metáfora, “o termo gentrificação pode ser utilizado para
manifestar uma entonação crítica - ou não tão crítica - a experiências e
acontecimentos completamente diferentes24” (2012, p.78-9). Contudo, o conceito de

22
Tradução nossa, do original: “La frontera de la gentrificación absorbe y retransmite el destilado optimismo de una nueva ciudad,
la promesa de la oportunidad económica, la ilusión combinada del romance y la voracidad; es el lugar donde se crea el futuro.
Estas resonancias culturales crean el lugar, pero el lugar aparece como una frontera debido a la existencia de una línea
económica muy afilada dentro del paisaje. Detrás de la línea, la civilización y el lucro se cobran su peaje; pasada la línea todavía
campan la barbarie, la promesa y la oportunidade”. (SMITH, 2012, p. 296)
23
Tradução nossa, do original: “[...] en la que se invierte tal abundante cantidad de expectativas culturales, es un lugar
visceralmente real, inscrito en el paisaje urbano de los barrios gentrificados. De hecho, se la puede cartografiar. Y, al
cartografiarla, espero dejar al descubierto la ideología de la nueva frontera urbana, tan efectivamente movilizada para justificar,
no sólo la gentrificación, sino también en términos más generales la reestructuración urbana. Tras los cargados y evocativos
atractivos culturales de la nueva frontera urbana, subyace una verdad económica más prosaica que otorga al imaginario de la
frontera una apariencia de legitimidad. (Ibidem)
24
Tradução nossa, do original: “El poder simbólico de la gentrificación implica que estas generalizaciones de su significado sean,
sin duda, inevitables, pero incluso cuando esto sucede desde una perspectiva crítica tienen tanto aspectos favorables como
negativos. Tal y como sucede con todas las metáforas, el término gentrificación puede ser utilizado para brindar una entonación
crítica (o no tan crítica) a experiencias y hechos radicalmente diferentes. Pero, llegado el momento, la propia gentrificación viene
afectada por su apropiación metafórica, hasta el punto en el que la gentrificación se generaliza para representar la eterna
inevitabilidad del renacimiento moderno y de la renovación del pasado, dejando a oscuras las profundamente polémicas políticas
de clase y raza de la gentrificación contemporánea. La oposición a la gentrificación, aqui y ahora, debe ser rápidamente
desechada, tal y como el cazador-recolector rechazó el progreso. De hecho, para aquéllos que se han visto empobrecidos, que
han sido desalojados o han perdido sus hogares a su paso, la gentrificación es realmente una palabrota y debería seguir
siéndolo.” (SMITH, 2012, p. 78-79)
51

gentrificação é afetado pela apropriação excessiva que lhe é dado, até o ponto em
que ele próprio “se generaliza para representar a eterna inevitabilidade do
renascimento moderno e da renovação do passado [...]” (Ibidem).
O mesmo autor evidencia que é preciso rechaçar a gentrificação urgentemente,
já que para aqueles que estão empobrecendo e “que tem sido desalojados ou perdido
seus lugares por onde passa, a gentrificação é realmente um palavrão e deveria
continuar a ser” (Ibidem). Aqueles que não têm condições de arcar com os custos da
nova vida nos bairros em processo de gentrificação são empurrados para além da
nova fronteira.

Os excluídos - a cidade revanchista


Assim, interessa compreender quem são os excluídos “empurrados para além
das novas fronteiras” e como o movimento de capital também cria um movimento de
classes na escala urbana.
O termo cidade revanchista se origina das classes revanchistas “dos fins do
século XIX na França, que iniciaram uma vingativa e reacionária campanha contra as
classes populares francesas 25” (RUTKOFF, 1981 apud SMITH, 2012, p. 325).
A partir da origem do termo, Smith explica que o urbanismo revanchista
consiste numa reação contra “o suposto roubo da cidade, uma desesperada defesa
da falange de privilégios contestados, envolvidos na linguagem populista da
moralidade cívica, dos valores familiares e da segurança da vizinhança” (2012, p.
325), como expressa o autor:
[...] o terror de raça/classe/gênero sentido pelos brancos de classe média
dominante, um grupo social que tem sido repentinamente posto em seu lugar
por um mercado imobiliário devastado pela ameaça e a realidade do
desemprego, da aniquilação dos serviços sociais e o srugimento das minorias
e dos imigrantes, assim como também das mulheres, como poderosos atores
urbanos. A cidade revanchista anuncia uma feroz reação contra as minorias,
a classe trabalhadora, as pessoas sem teto, os desempregados, as mulheres,
os homossexuais e as lesbicas, os imigrantes. A cidade revanchista tem sido
escandalosamente reafirmada pelos programas de televisão 26 (Ibidem).

25
Tradução nossa, do original: “[...] de finales del siglo XIX en Francia, quienes iniciaron una vengativa y reaccionaria campaña
contra las clases populares francesas”.
26
Tradução nossa, do original: “Este antiurbanismo revanchista representa una reacción contra el supuesto robo de la ciudad,
una desesperada defensa de la falange de privilegios desafiados, envuelta en el lenguaje populista de la moralidad cívica, los
valores familiares y la seguridad barrial. La ciudad revanchista expresa, por encima de todo, el terror de raza/clase/género sentido
por los blancos de la clase media dominante, un grupo social que repentinamente ha sido puesto en su lugar por un mercado
inmobiliario asolado, la amenaza y la realidad del desempleo, la aniquilación de los servicios sociales y la emergencia de las
minorías y los inmigrantes, así como también de las mujeres, en tanto poderosos actores urbanos. La ciudad revanchista augura
52

Assim sendo, a cidade revanchista representa “uma reação frente a um


urbanismo definido por ondas recorrentes de um perigo e uma brutalidade sem trégua,
impulsionada por uma paixão corrupta e incontrolável 27” (SMITH, 2012, p. 326).
Segundo Gilmore 28, trata-se de um lugar onde:
[...] onde a reprodução das relações sociais fracassou de um modo
estrondoso, e que a resposta constitui uma rancorosa reafirmação de muitas
das mesmas opressões e extinções de direitos que criaram inicialmente o
problema. Nos Estados Unidos, [...] onde as relações sociais reais e
imaginárias são expressas rigidamente em hierarquias de raça e gênero, a
‘reprodução’ é na verdade uma produção e seus derivados (o medo e a raiva)
estão a serviço da ‘mesma mudança’: o apartheid local do nacionalismo
norteamericano” (apud SMITH, 2012, p. 326)

A respeito dos impulsos revanchistas, como ações de repulsa de classe, e da


localização das classes mais pobres, tanto Smith – quando afirma que a cidade
revanchista foi escandalosamente afirmada pela televisão – como Wacquant afirmam
que, no caso estadunidense, “a temática da underclass se expande pelas mídias
desejosas de representações sensacionalistas do gueto, consonantes com o racismo
estereotipado pelo conservadorismo crescente neste país” (2001, p. 95), evidenciando
que:
Essa (re)construção híbrida, metade administrativa e metade jornalística, vai
pesar sobre a pesquisa científica, assegurando tão bem meios financeiros e
ressonância midiática aos trabalhos dos que a adotam, que suplanta
rapidamente a problemática antiquada da cultura de pobreza. (Ibidem)

A cultura da pobreza pressupõe a eliminação, ou a evacuação rápida dos sem


teto das áreas centrais, favorecendo o livre movimento de capital que orienta a
caminhada desses indesejáveis – considerados como incapazes de assimilarem a
cultura da gentrificação e consumirem o novo estilo de vida – em direção à periferia.
O movimento pendular de capital guia, assim, para dentro da fronteira, as classes

una feroz reacción contra las minorías, la clase trabajadora, las personas sin hogar, los desempleados, las mujeres, los
homosexuales y las lesbianas, los inmigrantes. La ciudad revanchista ha sido escandalosamente reafi rmada por la programación
de televisión. (SMITH, 2012, p. 325).
27
Tradução nossa, do original: “[...] una reacción frente a un urbanismo definido por oleadas recurrentes de un peligro y una
brutalidad sin tregua, impulsada por una pasión venal e incontrolable” (SMITH, 2012, p. 326).
28
Gilmore, R. (1993), Terror austerity race gender excess theater, en B. Gooding-Williams (ed.), Reading Rodney
King/Reading Urban Uprising, Nueva York, Routledge. Tradução nossa, do original: “[...] donde la reproducción de las relaciones
sociales ha fracasado de un modo estrepitoso, y en el que la respuesta constituye una virulenta reafirmación de muchas de las
mismas opresiones y prescripciones que crearon el problema en un principio. En Estados Unidos, señala Gilmore citando a Amiri
Baraka, donde las relaciones sociales reales e imaginarias son expresadas rígidamente en jerarquías de raza y género, la
“reproducción” es realmente una producción y sus derivados, el temor y la furia, están al servicio del “mismo cambio”: el apartheid
local del nacionalismo estadounidense.”
53

médias e médias altas, em direção ao consumo da região gentrificada. As classes


com poder aquisitivo elevado e simbólico “contribuem para formação de identidades
de classe através de um espectro de classes significativo, ainda que de maneiras
muito diferenciadas” (SMITH, 2006, p. 73). A eliminação das classes indesejáveis se
torna uma das características da cidade revanchista. Para as classes médias:
[...] reconquistar a cidade implica muito mais do que somente obter um
apartamento gentrificado. Uma nova gentrificação complexa e institucional
inaugura agora uma renovação urbana de dimensão classista. Essa
gentrificação classista complexa conecta o mercado financeiro mundial com
os promotores imobiliários (grandes e médios), com o comércio local, com
agentes imobiliários e com lojas de marcas, todos estimulados pelos poderes
locais, para os quais os impactos locais, para os quais os impactos sociais
serão doravante mais asseguradas pelo mercado do que por sua própria
regulamentação: a lógica do mercado, e não mais os financiamentos dos
serviços sociais, é o novo modus operandi das políticas públicas. (2006, p.
79).

Wacquant, ao expor sobre a underclass urbana americana, mostra que os


indivíduos vitimados por esse discurso estão incrustados nas regiões mais pobres da
cidade, nos guetos racialmente definidos, com um nível econômico e cultural muito
baixo. São classificados como uma classe de sujeitos que se afastam das regras, “que
só devem estar amalgamadas desse modo pelo fato de serem percebidas como
geradoras de uma ameaça, ao mesmo tempo física, moral e fiscal, à integridade da
sociedade urbana” (2001, p. 93-94). Na cidade revanchista, as classes mais pobres
precisam ser eliminadas, já que não possuem a capacidade de esconder certos traços
repulsivos para as outras classes.

As camuflagens sociais
Sobre essa capacidade de esconder certos traços, Manuel Delgado trata da
capacidade de camuflagem de todo – ou quase todo – indivíduo. O autor afirma que
“um número importante de indivíduos podem modular os níveis de critério” (2011, p.
60), podendo até mesmo assumir “aparências que indicam de forma inequívoca um
determinado rótulo ideológico, estético, sexual, religioso, profissional, etc” (Ibidem).
Desta forma, os indivíduos podem transitar pelos espaços públicos, adequando-se de
acordo com a ocasião.
Quando o autor afirma que um número importante de indivíduos – e não todos
54

- é capaz de modular seus níveis de discrição, ele já aponta para a relativização de


que para alguns não há opção viável, dado que:
[...]características observáveis, fisiológicos, de aparência em geral, embora
circunstanciais – que fazem deles seres marcados, a relação com as quais é
problemática uma vez que têm de arrastar todo o peso da ideologia que os
reduz permanentemente à unidade e os força a permanecer a todo custo nele
presos 29. (Ibidem)

Há casos em que a camuflagem não funciona, como a cor da pele. Um negro


terá sempre dificuldade de homogeneizar-se aos padrões eurocêntricos
esteticamente aceitos na sociedade racista. Os traços raciais são incamufláveis.
Assim, dentro da cidade revanchista, a capacidade de camuflagem se torna
algo relevante. Lembrando que – de acordo com Smith (2012) – nesta cidade, negros,
pobres, sem teto, são tratados como indesejáveis. Segundo Delgado, aos olhos da
hegemonia social esses indesejáveis são convertidos de forma pejorativa em:
[...] inaceitavelmente raros, forasteiros, diferentes, inválidos, inferiores,
desvalidos, dissidentes [...], e que não puderam ou não quizeram desfarsar
quem realmente são – isto é, onde, em uma estrutura social assimétrica estão
localizados – são colocados em um estado de exceção que os incapacita total
ou parcialmente para uma boa parte de trocas comunicacionais 30 (2011, p.
61).

A possibilidade de se camuflar acontece a partir do capital financeiro e


simbólico que as classes médias e médias alta possuem. Segundo Delgado, as
classes médias “têm mais possibilidades de exercer essa indefinição mínima inicial
que permite escolher qual em um repertório limitado de papéis disponíveis vai se
desenvolver na presença dos outros31” (Ibidem). Com isso, os indivíduos de classe
média conseguem se camuflar, tornando-se indivíduos normatizados. O autor conclui
que, dos normais espera-se que escolham o papel dramático mais adequado:
[...] aceitáveis em relação com o que um cenário social espera deles, sendo
confirmado mutuamente. É aí que se encontra precisamente o que já foi
reconhecido como o mundanismo, que se baseia em uma desejada abstração
de identidade, esse grau zero da sociabilidade esperado para ser o exercício

29
Tradução nossa, do original: “[...] externos-fenotípicos, fisiológicos, aspectuales en general, aunque sean circunstanciales- que
hacen de ellos seres marcados, la relación con los cuales es problemática puesto que han de arrastrar todo el peso de la ideologia
que los reduce permanentemente a la unidad y les fuerza a permanecer a toda costa encapsulados en ella”. (DELGADO, 2011,
p. 60)
30
Tradução nossa, do original: “[...] en inaceptablemente raros, forasteros, diferentes, inválidos, inferiores, desviados, disidentes
[…], y que no han podido o no han querido disfrazar quiénes son en realidad - es decir, en qué lugar de una estructura social
asimétrica están situados - quedan colocados en un estado de excepción que los inhabilita total o parcialmente para una buena
parte de intercambios comunicacionales. (DELGADO,2011, p. 61).

31
Tradução nossa, do original: “[...] tienen más posibilidades de ejercer esa indefinición mínima de partida que permite escoger
cuál de un repertorio limitado de roles disponibles se va a desarrollar en presencia de los otros” (DELGADO,2011, p. 61).
55

do anonimato, que sai apenas para atuar como um ser de relações. Trata-se,
nesse caso, de praticar uma certa promiscuidade entre mundos sociais
proximos ou interseccionados, de travestir-se para cada ocasião, mudar de
pele em função das necessidades de cada encontro 32. (Ibidem)

Ele ainda trata desse indivíduo como o desconhecido “que se supunha


formando a matéria prima da experiencia urbana moderna e que, por sua vez, situava-
se também no subsolo fundador da noção de cidadão 33” (2011, p. 62), sendo ele um
corpo abstrato “cuja mera presença é, em teoria, merecedora de direitos e deveres
em relação com os quais a identidade social é, ou deveria ser, um dado irrelevante e,
portanto, evitável 34” (Ibidem). O cidadão seria um indivíduo padrão, com suas
diferenças sufocadas por um desejo de fazer parte de um todo, e ser um elemento
anônimo.
O autor diz ser a imaginaria pequena burguesia universal, a classe possuidora
das condições em reclamar as virtudes e direitos do anonimato, seria a detentora do
direito a não se identificar:
[...] a não dar explicações, a mostrar-se só o necessário para ser reconhecido
como apto para se apresentar em sociedade, em encontros com pessoas que
também conseguiram estar à altura das circunstâncias, isto é, ser previsível,
não ser fonte de desconforto ou alarme, oferecer garantias de comportamento
adequado 35. (2011, p. 62-63).

Essa classe, acima citada, pode exercer seu anonimato quando desejar. Isso
só é possível porque a urbanidade moderna se baseia nas mudanças de
comportamento “no que diz respeito aos encontros não programado entre
desconhecidos que [...] deixaram de confiar uns nos outros, escolhendo por não se
dirigirem a palavra e não da atenção recíproca 36” (DELGADO, 2011, p. 63), optando
por deixar apenas a informação necessária para as relações dignas de confiança,

32
Tradução nossa, do original: “[...] se espera que escojan el rol dramático más adecuado para resultar procedentes, es decir,
aceptables en relación con lo que un determinado escenario social espera de ellos Y que ellos deberán confirmar. En eso consiste
precisamente lo que ya se ha reconocido como mundanidad, que se basa en una deseada abstracción de la identidad, ese grado
cero de sociabilidad que se espera que sea el ejercicio de un anonimato del que se sale sólo para actuar como ser de relaciones.
Se trata, en ese caso, de practicar una cierta promiscuidad entre mundos sociales contiguos o interseccionados, travestirse para
cada ocasión, mudar de piel en función de los requerimientos de cada encuentro. (Ibidem)
33
Tradução nossa, do original: “[...] que se suponía conformando la matéria primera de la experiencia urbana moderna y que, a
su vez, se situaba también en el subsuelo fundador de la noción política de ciudadano” (DELGADO, 2011, p. 62)
34
Tradução nossa, do original: “[...] cuya mera presencia es en teoría merecedora de derechos y deberes en relación con los
cuales la identidad social real es o debería ser un dato irrelevante y, por tanto, soslayable” (Ibidem)
35
Tradução nossa, do original: “[...] a no dar explicaciones, a mostrarse sólo lo justo para ser reconocida como apta para
presentarse en sociedad, en encuentros con gente que también ha conseguido estar a la altura de las circunstancias, es decir,
resultar predecible, no ser fuente de incomodidad o alarma, brindar garantías de conducta adecuada. (, 2011, p. 62-63).
36
Tradução nossa, do original: “[...] por lo que hace a los encuentros no programados entre extraños que [...] dejaron de confiar
los unos en los otros y optaron por no dirigirse la palabra y no prestarse mutua atención” (DELGADO, 2011, p. 63),
56

apenas pelas aparências visuais. Assim, a perspectiva de Sennet reflete sobre o fato
de passarmos a usar a visão como a forma de adquirir “a maioria de suas informações
diretas sobre os desconhecidos” (SENNET, 1995 apud DELGADO, 2011, p. 63). Logo,
quando a cidade caiu em silêncio, o olhar se converteu:
[...] no principal órgão pelo qual as pessoas adquiriam a maioria de suas
informações diretas a respeito dos desconhecidos. Que tipo de informação
se tem acesso um olhar observando ao redor? Nessas condições o olhar
pode tentar organizar sua informação a respeito dos desconhecidos de forma
repressiva [...]. Examinando uma cena complexa e não familiar, o olhar
procura ordenar rapidamente o que vê usando imágens que correspondem a
categorias simples e gerais, extraidas de esrereotipos sociais 37 (Ibidem)

Dessa maneira, a necessidade do indivíduo de se tornar visível o leva a


interpretar um papel e assumir a imagem que precisa. Na verdade, trata-se de um
jogo de e entre aparências, onde “não só – como anteriormente foi notado –
aparecem, mas acima de tudo parecem ou querem parecer” (DELGADO, 2011, p. 64).
O desejo de nos tornarmos normais, de sermos anônimos, serve para que nos
tornemos socialmente aceitáveis.
Escondemos as nossas características mais inaceitáveis, principalmente
aquelas que “ não nos faria aceitáveis ou pertencentes, o que faria manifesta a
presença, também em cada um de nós, de motivos para a exclusão” (DELGADO,
2011, p. 65). Assim, o autor constata que enquanto se nega aos estigmatizados e
indesejáveis, ou seja, “aquele que não pode dissimular os motivos de sua
desqualificação” (Ibidem), aos demais é assegurado “a possibilidade e, portanto, o
direito à mentira, às duplas linguagens e à dissimulação” (Ibidem). Para os preteridos
portadores de características incamufláveis, resta assistir a cena social no espaço
público, de longe.
No entanto, o autor afirma que “cada personagem de cada cena social sabe
bem que o mínimo deslize, a menor mudança de tom ou passo em falso, delataria de
maneira automática a fraude que toda identidade representada implica 38” (2011, p.

37
Tradução nossa, do original: “[ ...] el ojo se convirtió en el principal órgano a través del cual las personas adquirían la mayoría
de sus informaciones directas acerca de los desconocidos. A qué tipo de información accede un ojo mirando su alrededor? En
tales condiciones, el ojo puede estar tentado a organizar su información acerca de los desconocidos de manera represiva […]
Examinando una escena compleja y no familiar, el ojo procura ordenar rápidamente lo que ve usando imágenes que
corresponden a categorías simples y generales, extraídas de estereo­tipos sociales. (SENNET, 1995 apud DELGADO, 2011, p.
63)

38
Tradução nossa, do original: “[...] cada personaje de cada cuadro escénico social sabe bien que el mínimo desliz, la menor
salida de tono o paso en falso delataría de manera automática el fraude que toda identidad representada implica” (2011, p. 66).
57

66). Na verdade, o que oculta esses indivíduos capazes de se camuflarem são as


informações suscetíveis de “gerar desconfiança ou mal-estar no interlocutor” (Ibidem).
Dessa maneira, as classes que possuem o poder de se camuflar, se convertem
numa farsa ambulante, em um ser “apegado ao seu distanciamento, um traidor, um
agente duplo, alguém que sofre um terror da identificação, um impostor crônico e
comum” (Ibidem). Este indivíduo normal, ou como Delgado define, este cidadão
sociável que dissimula constantemente, está “afastado de si mesmo, sempre em
situação crítica – a ponto de ser descoberto – viciado em uma moral circunstancial,
em todo momento indefinida 39” (JOSEPH, 1999 apud DELGADO, 2011, p. 66). O que
esse cidadão é, “está além do contexto local onde acontece esse encontro”, num
campo de ilusões fora do espaço público em que está inserido.

1.3 O ESPAÇO PÚBLICO COMO DISCURSO

Manuel Delgado, Sociólogo espanhol, publicou um estudo intitulado El espacio


público como ideologia. Nele, o autor mostra que, para os arquitetos e urbanistas, o
significado de “espaço público quer dizer hoje vazio entre construções a ser
preenchido adequadamente aos objetivos dos promotores e autoridades, que são
muitas vezes os mesmos, por certo” (2011, p. 9).
Prosseguindo com as reflexões de Delgado, o conceito de espaço público se
generalizou nas últimas décadas como “ingrediente fundamental tanto dos discursos
políticos relativos ao conceito de cidadania, quanto a realização dos princípios
igualitários atribuídos aos sistemas chamados democráticos” (2011, p. 15-16), quanto
uma urbanização e arquitetura que, conectadas aos orçamentos políticos:
[...] trabalham de uma maneira não menos ideológica – embora nunca se
explicite essa dimensão – a qualificação e codificação posterior dos vazios
urbanos que precedem ou acompanham o entorno construído, especialmente
se ele aparece como resultado de medidas de reforma ou revitalização de
centros urbanos ou zonas industriais consideradas obsoletas, em processo
de reestruturação 40. (Ibidem)

39
Tradução nossa, do original: “Es eso lo que convierte a todo ser mundano, señala Isaac Joseph (1999), en un ser apegado a
su línea de fuga, un traidor, un agente doble, alguien que sufre un terror de la identificación, un impostor crónico y generalizado,
ser sociable en tanto que es capaz de simular constantemente, exiliado de sí mismo, siempre en situación crítica - a punto de
ser descubierto - adicto a una moral situacional, en todo momento indeterminada, basada en la puesta entre paréntesis de todo
lo que uno es más allá del contexto local en que se da el encuentro.” (JOSEPH, 1999 apud DELGADO, 2011, p. 66)
40
Tradução nossa, do original: “[...] trabajan de una forma no menos ideologizada - aunque nunca se explicite tal dimensión - la
cualificación y la posterior codificación de los vacíos urbanos que preceden o acompañan todo entorno construido, sobre todo si
éste aparece como resultado de actuaciones de reforma o revitalización de centros urbanos o de zonas industriales consideradas
58

Logo, o discurso contemporâneo sobre o espaço público é portador de


ideologia, e, muitas vezes, está escondido nas entrelinhas dos projetos urbanos e
arquitetônicos, sendo reproduzidos em diversas cidades por todo o mundo.
No mesmo livro, Delgado apresenta algumas definições de espaço público
tratadas por outros autores. Entre elas, a conceituação de Lofland que define
fisicamente o que pode ser considerado como espaço público: “àquelas áreas de uma
cidade em que, de modo geral, todas as pessoas têm acesso legal. Me refiro às ruas
da cidade, seus parques, seus locais de acomodação pública 41” (LOFLAND, 1985
apud Delgado, 2011, p. 17). O autor conclui que:
[...] espaço de e para as relações em público, isto é, para aquelas que
acontecem entre indivíduos que coincidem fisicamente, passando por lugares
de trânsito, que precisam realizar uma série de consensos e ajustes mútuos
para se adaptarem a associação efêmera que estabelecem 42 (Ibidem).

A partir das perspectivas de Delgado e Lofland, temos os tipos de interações


que acontecem para que o espaço seja público, além das definições do espaço físico
da cidade que podem ser entendidos como público. Portanto, espaço público carrega
em si a necessidade de se estabelecer um determinado comportamento nas
interações interpessoais no espaço da cidade, na qual todos, em tese, teriam acesso.
Entretanto, Delgado afirma que nenhuma das acepções de espaço público é a
que encontramos em vigência na atualidade. Por isso, a utilização deste conceito por
gestores, arquitetos e urbanistas, durante as últimas três décadas, é uma
sobreposição de visões que existiam independentes umas das outras, ou seja:
[...] a do espaço público como um conjunto de lugares de livre acesso e do
espaço público como zona em que se desenvolve uma determinada forma
de vinculo social e de relação com o poder. Ou seja, é o topográfico carregado
ou investido com a moralidade mencionada não só quando se fala de espaço
público nos discursos institucionais e técnicos sobre a cidade, mas também
em todo o tipode campanhas educacionais para as boas práticas cidadãs, e
todos os regulamentos municipais que procuram regular as condutas dos
usuários das ruas 43. (2011, p. 19)

obsoletas y en proceso de reconversión. (Ibidem)


41
Tradução nossa, do original: “[...] a aquellas áreas de una ciudad a las que, en general, todas las personas tienen acceso legal.
Me refiero a las calles de la ciudad, sus parques, sus lugares de acomodo públicos” (LOFLAND, 1985 apud Delgado, 2011, p.
17)
42
Tradução nossa, do original: “[...] espacio de y para las relaciones en público, es decir, para aquellas que se producen entre
individuos que coinciden físicamente y de paso en lugares de tránsito y que han de llevar a cabo una serie de acomodos y ajustes
mutuos para adaptarse a la asociación efímera que establecen (Ibidem).
43
Tradução nossa, do original: “[...] la del espacio público como conjunto de lugares de libre acceso y la del espacio público como
ámbito en el que se desarrolla una determinada forma de vínculo social y de relación con el poder. Es decir, es lo topográfico
59

O autor aponta que a questão central está sobre a ideia de que o espaço público
se restringiu ao “campo das discussões teóricas na filosofia política e, com a relativa
exceção da identificação do modelo grego com a ágora, não tinha sido associado a
uma região ou extensão física concreta 44” (2011, p. 19-20). A expressão espaço
público era aplicada apenas como rua ou cenário, onde a “diferença do íntimo e do
privado, as pessoas estão à mercê dos olhares e iniciativas dos outros” (Ibidem).
Entretanto, a partir do momento em que é incorporado “como ingrediente retórico
básico a apresentação de planos urbanisticos e as publicações governamentais da
temática cidadã” (Ibidem), o autor aponta que:
[...] foi transcendendo a distinção básica entre público e privado, que se
limitaria a identificar o espaço público como espaço de visibilidade
generalizado, nos quais os co presentes formam uma sociedade, por assim
dizer, visual na medida em que cada uma de suas ações está submetida a
consideração dos demais, portento um território de exposição com duplo
sentido de exibição e de risco. O conceito vigente de espaço público quer
dizer algo mais que espaço em que todos e tudo é perceptível e percebido 45.
(Ibidem)

Para o autor, o conceito de espaço público é mais do que um simples desejo


de descrever, mas também “veicula uma forte conotação política” (Ibidem). Delgado
aprofunda o caráter político, quando supõe que espaço público quer dizer:
[...] esfera de coexistência pacífica e harmoniosa do heterogêneo da
sociedade, evidência de que o que nos permite fazer sociedade é estarmos
de acordo em um conjunto de pressupostos programáticos no seio dos quais
as diferenças são superadas, sem serem esquecidas e muito menos
negadas, mas definidas à parte nesse outro cenario que chamamos
privado 46. (2011, p. 20)

Seria ainda público, de acordo com o autor, o “âmbito de e para o livre acordo
entre seres autônomos e emancipados que vivem, enquanto nele se enquadram, de

cargado o investido de moralidad a lo que se alude no sólo cuando se habla de espacio público en los discursos institucionales
y técnicos sobre la ciudad, sino también en todo tipo de campañas pedagógicas para las buenas prácticas ciudadanas y en la
totalidad de normativas municipales que procuran regular las conductas de los usuarios de la calle. (2011, p. 19)
44
Tradução nossa, do original: “[...]campo de las discusiones teóricas en filosofía política y, con la relativa excepción de la
identificación del modelo griego con el ágora, no había sido asociado a una comarca o extensión física concreta” (2011, p. 19-
20)
45
Tradução nossa, do original: “Cuando lo ha hecho ha sido trascendiendo de largo la distinción básica entre público y privado,
que se limitaría a identificar el espacio público como espacio de visibilidad generalizada, en la que los copresentes forman una
sociedad, por así decirlo, óptica, en la medida en que cada una de sus acciones está sometida a la consideración de los demás,
territorio por tanto de exposición, em el doble sentido de exhibición y de riesgo. El concepto vigente de espacio público quiere
decir decir algo más que espacio en que todos y todo es perceptible y percebido”. (Ibidem)
46
Tradução nossa, do original: “[...] esfera de coexistência pacífica y armoniosa de lo heterogéneo de la sociedad, evidencia de
que lo que nos permite hacer sociedad es que nos ponemos de acuerdo en un conjunto de postulados programáticos en el seno
de los cuales las diferencias se vem superadas, sin quedar olvidadas ni negadas del todo, sino definidas aparte, en ese otro
escenario al que llamamos privado”. (2011, p. 20)
60

experimentar uma desfiliação em massa” (Ibidem). Campo de interação das relações


entre indivíduos que formam a sociedade, onde todos podem se expressar e ser
respeitados pelas suas opções, de maneira independente, mas deixando as
diferenças no âmbito do privado, o qual seria o cenário ideal para conter as diferenças
superadas – veladas – no espaço público.
Outro ponto importante para o discurso, seria a noção de que o espaço público
é um ambiente no qual a democracia se expressa. Delgado explica que a esfera
pública seria um constructo 47, onde cada ser humano “se vê reconhecido como tal, no
relacionamento e relacionados com outros, com os que se vincula a partir de pactos
reflexivos permanentemente reatualizados48” (Ibidem). É este o espaço institucional
cuja a base “se assenta a possibilidade de uma racionalização democrática da
política” (Ibidem). E conclui:
Esse forte sentido eidético, que remete a fortes significações e compromissos
morais que devem se ver cumpridos, é o que faz da noção de espaço público
está constituída num dos ingredientes conceituais básicos da ideologia da
cidadania, esse último refúgio doutrinário a que têm vindo a se resguardar os
restos da esquerda de classe média, mas também de boa parte do que
sobrevivera do movimento trabalhista 49. (2011, p. 20-21)

Complementando, o sentido de eidética 50 expressa o caráter imaterial


representado por campos de imagens não materializadas. No espaço, paira um
comportamento e uma moral, postos a ditar o ritmo da vida. Essa é a base central
para que a ideia de cidadania possa acontecer.
O discurso de cidadania acontece como “democratismo radical que trabalha na
perspectiva de realizar empiricamente o projeto cultural da modernidade na sua
dimensão política” (DELGADO, 2011, p. 21), onde a democracia não seria apenas
uma forma de governo, mas sim “como modo de vida e como associação ética”

47
Conceito ou construção teórica, puramente mental, elaborada ou sintetizada com base em dados simples, a partir de
fenômenos observáveis, que auxilia os pesquisadores a analisar e entender algum aspecto de um estudo ou ciência.
2 - Conhecimento ou concepção da realidade derivado das percepções de um indivíduo, como resultado de suas experiências
particulares anteriores (ou presentes). Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=constructo>
Acesso em: 12/12/2016.
48
Tradução nossa, do original: “[...] se ve reconocido como tal en la relación y como la relación con otros, con los que se vincula
a partir de pactos reflexivos permanentemente reactualizados”. (DELGADO, 2011, p.20)
49
Tradução nossa, do original: “Ese fuerte sentido eidético, que remite a fuertes significaciones y compromisos morales que
deben verse cumplidos, es el que hace que la noción de espacio público se haya constituido en uno de los ingredientes
conceptuales básicos de la ideología ciudadanista, ese último refugio doctrinal al que han venido a resguardarse los restos del
izquierdismo de clase media, pero también de buena parte de lo que ha sobrevivido del movimiento obrero”. (2011, p. 20-21)
50
2 - Relativo ou pertencente à essência das coisas e não à sua existência ou à sua presença. 3 - Relativo ou pertencente às
imagens visuais produzidas por um ato voluntário, com nitidez quase fotográfica. Disponível:
<http://michaelis.uol.com.br/busca?id=V1Wz>. Acesso em: 12/12/2016.
61

(Ibidem). A partir desta ideia, uma moral desejada, o reconhecimento pacífico entre
indivíduos, o respeito quase que imposto, enquadram-se dentro de um projeto cultural
de modernidade. Para isso, Delgado elucida que:
[...] o que Habermas apresenta como paradigma republicano – diferenciado
do liberal – o processo democrático é a fonte de legitimidade de um sistema
determinado e determinante de normas. A política, segundo esse ponto de
vista, não só media mas conforma e constitui a sociedade, entendida como a
associação livre e igualitária de sujeitos conscientes de sua dependência em
relação aos outros e que estabelecem entre si vínculos de reconhecimento
mútuo 51. (Ibidem)

Logo, o autor põe em evidência o espaço público como o “domínio em que esse
princípio de solidariedade comunicativa se encena” (Ibidem), o local onde é possível
e necessário o acordo de interação entre os indivíduos, onde “uma conformação
discursiva coproduzida” (Ibidem) também se torna fundamental.
Com relação à ideia de cidadania, o autor a trata como “o dogma de referência
para um conjunto de movimentos de reforma ética do capitalismo” (2011, p. 22), numa
tentativa de amenizar a agressividade deste sistema, intensifica-se os “valores
democráticos abstratos e um aumento das competências estatais que as tornam
possíveis” (Ibidem). Utilizado por governos com o objetivo de esvaziar o sentido das
lutas de classe, tratando-as como casualidade, entendendo que “a exclusão e o abuso
não são fatores estruturais, mas meros acidentes ou contingências de um sistema de
dominação que se acredita possível melhorar eticamente” (Ibidem). Por conseguinte,
a ideia de cidadania não visa eliminar o modo de produção capitalista, pelo contrário,
suas estratégias são mobilizações transitórias, performáticas, artísticas, onde o
espaço público é o lugar ideal para que aconteçam a tentativa de reforma.
Assim, simbiose entre Estado-Cidadão mascara as diferenças entre instituição
e indivíduo, alimentando a ideia de que o cidadão faz parte do Estado, eliminando,
assim, qualquer conflito social.
Para isso, e de modo a utilizar elementos de legitimação simbólica, tratado por

51
Tradução nossa, do original: “[...] el moralismo abstracto kantiano o la eticidad del Estado constitucional moderno postulada
por Hegel. Según lo que Habermas presenta como "paradigma republicano" - diferenciado del "liberal"-, el proceso democrático
es la fuente de legitimidad de un sistema determinado y determinante de normas. La política, según ese punto de vista, no sólo
media, sino que conforma o constituye la sociedad, entendida como la asociación libre e igualitaria de sujetos conscientes de su
dependencia unos respecto de otros y que establecen entre sí vínculos de mutuo reconocimiento”. (DELGADO, 2011, p. 21)
62

Delgado como antonomásia 52, o termo espaço público carregaria o sentido de espaço
democrático. O protagonista deste espaço dotado símbolos seria “é esse ser abstrato
a quem chamamos de cidadão” (2011, p. 22), assimilando as regras e normas postas
pelo Estado, expressas no espaço público. Essa ideologia seria o espaço público
como elemento agregador, lugar no qual as diferenças e os conflitos seriam
dissolvidos. Apontado por Delgado ao utilizar a crítica feita por Marx ao Estado, o
discurso de cidadania denotaria toda sua ideologia quando busca conciliar o cidadão
e o Estado, na tentativa de estabelecer a mediação:
[...] que expressa uma das estratégias ou estruturas mediante as quais se
produz uma conciliação entre sociedade civil e Estado, como se uma coisa e
a outra fossem de certo modo a mesma coisa, como se tivesse gerado um
território em que houvera cancelado os antagonismos sociais 53. (Ibidem)

A crítica do autor evidencia essas estratégias que servem “segundo Marx, para
camuflar toda relação de exploração, todo o dispositivo de exclusão” (Ibidem), onde a
função dos governos seria de “encobridores e fiadores de todos os tipos de
assimetrias sociais” (ibidem). Desta forma, o discurso de cidadania induziria à
hierarquização:
[...] dos valores e significados, uma capacidade de controle sobre sua produção
e distribuição, uma capacidade para fazer tornar-se influente, ou seja, para
executar os interesses de uma classe dominante, e para fazer bem escondido
sob o disfarce de valores supostamente universais. A grande vantagem que
possuía – e continua possuindo – a ilusão mediadoras do Estado e as noções
abstratas com que argumenta sua mediação é que ele poderia apresentar e
representar a vida em sociedade como uma questão teórica, por assim dizer,
à margem do mundo real que podia ser feito como se não existisse, como se
tudo dependesse do uso correto de princípios elementares de ordem superior,
capazes por si mesmos – a forma de uma nova teologia – de subornar a
experiencia real (feitos de tantos casos de dor, raiva e sofrimento) de seres
humnos reais que mantêm entre si relações sociais reais 54. (2011, p. 23-24)

52
Antonomásia: Figura de linguagem que consiste na substituição do nome de um objeto, pessoa, entidade etc. por um epíteto
ou qualidade que lhe é inerente, por um nome mais comum, mais sugestivo, irônico, explicativo ou pejorativo etc., de modo a
caracterizá-lo pelos traços mais conhecidos ou imediatamente identificáveis: Redentor por Cristo; Poeta dos Escravos por Castro
Alves; Romeu por homem apaixonado; pronominação. Disponível em:
<http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=antonomasia>. Acesso em: dez. de 2016.
53
Tradução nossa, do original: “[...] mediación, que expresa una de las estrategias o estructuras mediante las cuales se produce
una conciliación entre sociedad civil y Estado, como si una cosa y la otra fueran en cierto modo lo mismo y como si se hubiese
generado un territorio en el que hubieran quedado cancelados los antagonismos sociales”. (DELGADO, 2011, p. 22)
54
Tradução nossa, do original: “[...] de los valores y de los significados, una capacidad de control sobre su producción y
distribución, una capacidad para lograr que lleguen a ser influyentes, es decir, para que ejecuten los intereses de una clase
dominante, y que lo hagan además ocultándose bajo el aspecto de valores supuestamente universales. La gran ventaja que
poseía - y continúa poseyendo- la ilusión mediadora del Estado y las nociones abstractas con que argumenta su mediación es
que podia presentar y representar la vida en sociedad como una cuestión teórica, por así decirlo, al margen de un mundo real
que podía hacerse como si no existiese, como si todo dependiera de la correcta aplicación de principios elementales de orden
superior, capaces por sí mismos - a la manera de una nueva teología - de subordinar la experiencia real - hecha en tantos casos
de dolor, de rabia y de sufrimiento - de seres humanos reales que mantienen entre sí relaciones sociales reales. (2011, p. 23-24)
63

Sendo assim, o Estado induziria o cidadão que os conflitos de classe são


fatores apenas do campo das ideias, ignorando o ser humano real, que sofre, que
sente raiva e se comporta de maneira diversa.
O autor prossegue e aponta um sutil processo de convencimento através de
campanhas midiáticas, com o ensino nas escolas, com o apoio do cinema e pela
cultura de modo geral. Para isso, Delgado afirma que teríamos hoje em dia “as ideias
de cidadania e – por extensão – de espaço público seriam exemplos de ideias
dominantes” (2011, p. 26-27), como eixos que justificam e legitimam “gestão do que
se tornaria um consenso coercitivo ou uma coerção até um certo limite acordada com
os próprios coagidos” (Ibidem). De maneira subliminar, estes ideais são impostos aos
dominados de modo que sejam coniventes com o dominador.
Logo, o Estado age para que o capitalismo perpetue seus modos de
acumulação, pela doutrinação da ideologia de dominação, sem a violência física. O
autor complementa sua afirmação trazendo uma citação de Foucault que trata do
conceito de modalidade pastoral do poder:
[...] o que no pensamento político grego – tão inspirador do modelo de ágora
em que afirma se inspirar o discurso de espaço público – era um poder que
se exercia sobre um rebanho de indivíduos diferenciados e diferenciáveis –
dispersos, diria Foucault – por um chefe que deveria – e deve-se enfatizar
que faz é cumprir seu dever – acalmar as hostilidades no seio da cidade e
fazer prevalecer a unidade sobre o conflito. Trata-se, pois, de impedir e
persuadir qualquer dissidência, qualquer capacidade de contestação ou
resistência e – também por extensão – qualquer apropriação considerada
inapropriada das ruas ou das praças, pela via da violência se for preciso, mas
previamente e, sobretudo, pela desqualificação e invalidação que, no nosso
caso, não se cumpre sob o nome de origem subversiva, mas da mão muito
mais sutil do incívico, isto é, contraventor de princípios abstratos de boa
convivência cidadã 55. (Ibidem)

Delgado finaliza com a ideia da produção das cidades por uma elite que deixa
em evidência a ligação entre as escalas urbana e estado-nação, para o melhor
movimento de capital. Assim, ele mostra a ideologia presente no discurso de cidadania

55
Tradução nossa, do original: “[...] a lo que en el pensamiento político griego – tan inspirador del modelo ágora en que afirma
inspirarse el discurso del espacio público – era un poder que se ejercía sobre un rebaño de individuos diferenciados y
diferenciables – dispersos, dirá Foucault – a cargo de un jefe que debía – y hay que subrayar que lo que hace es cumplir con su
deber – calmar las hostilidades en el seno de la ciudad y hacer prevalecer la unidad sobre el conflicto. Se trata, pues, de disuadir
y de persuadir cualquier disidencia, cualquier capacidad de contestación o resistencia y – también por extensión – cualquier
apropiación considerada inapropiada de la calle o de la plaza, por la vía de la violencia si es preciso, pero previamente y sobre
todo por una descalificación o una deshabilitación que, en nuestro caso, ya no se lleva a cabo bajo la denominación de origen
subversivo, sino de la mano de la mucho más sutil de incívico, o sea, contraventor de los principios abstractos de la buena
convivência ciudadana”. (Ibidem)
64

e como ela se apresenta para o controle da sociedade. Dada a violência:


[...] que a modelagem cultural e morfológica do espaço urbano é uma questão
de elites profissionais da grande maioria dos estratos sociais hegemônica,
sendo previsível chamar de urbanidade - sistema de boas práticas cívicas -
venha a ser a dimensão comportamental apropriada ao urbanismo, entendida
por sua vez, como sendo realidade hoje: mera expropriação da cidade,
submetendo-a, tanto através de seu planejamento e gerenciamento de
políticas, a interesses territoriais no campo das minorias dominantes 56. (2011,
p. 27)

Sua ideia nos remete ao período das políticas de Pereira Passos – com o
discurso higienista – e nos dá suporte para refletir sobre os discursos atuais que
valorizam a revitalização urbana e a gentrificação.
Com isso, o discurso do espaço público funciona como elemento de controle
social exercido pelo Estado e iniciativa privada, através de campanhas midiáticas
onde a ideia de cidadania é o modo de se comportar nesse espaço. O espaço público
passa a ser utilizado como elemento ideológico, tornando-o mais do que delimitação
de elementos físicos da cidade e do comportamento interpessoal.
Ademais, para o cidadão, o espaço público seria o lugar de exposição, no qual
nos exporíamos ao olhar do outro e sob sua ação. Estaríamos sujeitos ao julgamento,
interação e a tudo o que diz respeito ao oposto do privado.

1.4 A IDEOLOGIA, PODER SIMBÓLICO E DISCURSO – AS FORMAS DE


DOMINAÇÃO

Na escala urbana, notamos que o estilo de vida alienado está representado no


uso dos espaços públicos por determinadas classes de consumidores. Essa alienação
consiste em mascarar as lutas de classe, uniformizando os consumidores. Delgado,
Smith, Fiorin e Bourdieu apresentam reflexões que convergem para a compreensão
da gentrificação como um processo sócio-econômico-cultural excludente, tanto
quanto o caráter desigual do desenvolvimento capitalista.

56
Tradução nossa, do original: “[...] de que la modelación cultural y morfológica del espacio urbano es cosa de élites profesionales
procedentes en su gran mayoría de los estratos sociales hegemónicos, es previsible que lo que se da en llamar urbanidad –
sistema de buenas prácticas cívicas – venga a ser la dimensión conductual adecuada al urbanismo, entendido a su vez como lo
que está siendo en realidad hoy: mera requisa de la ciudad, sometimiento de ésta, por medio tanto del planeamiento como de su
gestión política, a los intereses en materia territorial de las minorías dominantes”. (2011, p. 27)
65

Ideologia
Smith fala sobre a ideologia da gentrificação – com visto acima – onde a
fronteira de desenvolvimento da gentrificação. Tona-se necessário compreender a
visão que esse autor utiliza do termo ideologia.
Para isso, temos na abordagem de Michael Lowy sua apresentação de
ideologia, como “visão social do mundo”, como conjuntos estruturados de “valores,
representações, ideias e orientações cognitivas. Conjuntos esses, unificados por uma
perspectiva determinada, por um ponto de vista social, de classes sociais
determinadas” (1991, p. 13). Em sua análise, o autor elucida a visão social do mundo
que pode ser entendida ideologicamente, afirmando a visão de mundo posta em
prática pela classe dominante. Mas também poderia ser de maneira utópica, quando
ainda está no campo das ideias, projetadas para o futuro.
Pela via da ideologia, fica claro a forma de uma sociedade definida pelo caráter
com o qual foi construída. Não pode ser oposta às bases sobre as quais foi criada,
não pode ser decretada livre, se foi criada de maneira autocrática. Lowy diz que:
[...] uma sociedade livre só pode ser resultado de um ato de liberdade. Uma
sociedade desalienada só é possível se for ela mesma um processo de
desalienação. A maneira de constituir-se a nova sociedade decide, em última
análise, o caráter que ela tomará. Essa primeira observação de Marx explica
por que a única forma verdadeira de libertação é a autolibertação da classe
explorada. (1991, p. 24)

Esse autor explica a visão de Marx, afirmando que “o processo de produção da


ideologia não se faz ao nível dos indivíduos, mas das classes sociais” (1991, p. 95),
como elemento de controle aplicado numa escala afastada do indivíduo. As classes
dominantes são as formuladoras desta visão social do mundo, operam esse sistema
com a cultura a partir de pensadores, poetas e seus intelectuais, guiadas pelos
interesses das classes dominantes.
Consonante com a abordagem de Lowy, Ciro Marcondes Filho segue de
maneira interessante situando a ideologia como um produto das classes dominantes.
Para o autor, a ideologia nos guia quando pretendemos algo e quando “defendemos
uma ideia, um interesse, uma aspiração, uma vontade, um desejo, normalmente não
sabemos, não temos consciência que isso ocorre dentro de um esquema maior”
(1985, p. 20), sendo ela parte de um projeto de sociedade onde somos coadjuvantes.
66

Esse autor traz para a discussão a questão do conteúdo simbólico. Mesmo que
brevemente, ele trata o caráter oculto do símbolo, que não foi revelado ou que está
claro. Ele associa essa característica ao comportamento humano, na medida em que
o pensamento acontece “de uma forma não-imediata, ou seja, não-direta no assunto,
mas por meio desse mecanismo inconsciente, que é o mecanismo simbólico” (1985,
p. 22). Ele destaca que a ideologia é repleta de símbolos que interagem entre si.
Com base nas reflexões dos autores citados acima, entendemos a ideologia
como conjunto de normas, símbolos, comportamentos, moral, impostas pelas classes
dominantes – a burguesia –, visando controlar as classes subalternas. Pela cultura
disseminada por pensadores via mídia, com símbolos que agem de maneira
subliminar, a ideologia se propaga sutilmente, conduzindo-nos a agir da maneira que
deseja a classe dominante.

O poder simbólico
Bourdieu afirma que nas entrelinhas reconhecidas, mas ignoradas
voluntariamente pelos que gozam em ser dominados, é que reside o poder simbólico.
Refere-se, em seu estudo, como o simbólico controla aqueles que desejam se manter
em posições de privilégio dentro do status capitalista. Assim, ora é sucinto e sutil, ora
é dominador e marcante. O autor afirma que “é necessário saber descobri-lo onde ele
se deixa ver menos, onde ele é mais completamente ignorado, portanto, reconhecido”
(2002, p. 7-8), mostrando que o poder simbólico transita através do discurso e da
maneira como determinada classe se move, de forma imaterial, transcendendo,
assim, a materialidade. Assim, ele “só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles
que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exerçam” (Ibidem).
O autor chama à atenção para elementos que estruturam o universo simbólico
– como mito, língua, arte, religião – tendo estes instrumentos a função de construir o
mundo dos objetos. Contudo, é preciso que haja um meio, uma forma com que a ideia
se expresse. Para isso, um sistema estruturado onde “a língua é fundamentalmente
tratada como condição de inteligibilidade da palavra, como intermediário estruturado
que se deve construir para se explicar a relação constante entre o som e o sentido”
(2002, p. 9).
67

O poder simbólico forma a realidade a partir de uma ideia de mundo, aceita


porque há concordância dos indivíduos com o que foi comunicado pelos símbolos.
Tais símbolos agem como elo na integração social, formam o cidadão e a ideia de
cidadania, e controlam a sociedade. Portanto:
Os símbolos são os instrumentos por excelência da integração social:
enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação [...], eles tornam
possível o consensus acerca do sentido do mundo social que contribui
fundamentalmente para a reprodução da ordem social: a integração lógica é
a condição da integração moral. (BOURDIEU, 2002, p. 10)

Para Bourdieu, é na esfera da produção dos símbolos que “a cultura dominante


contribui para a integração real da classe dominante” (2002, p. 10-11). O autor
continua e diz que não se trata apenas de distinção entre as classes, mas um modo
de integração fictício da sociedade em seu conjunto, “portanto, à desmobilização
(falsa consciência) das classes dominadas; para a legitimação da ordem estabelecida
por meio do estabelecimento das distinções (hierarquias) e para a legitimação dessas
distinções” (Ibidem). Agiria assim, como elemento de dominação pela supremacia da
cultura burguesa, suprimindo culturalmente as classes dominadas.
O autor ainda evidencia o efeito ideológico produtor de cultura, que dissimula
“a função de divisão na função de comunicação: a cultura que une (intermediário de
comunicação) é também a cultura que separa (instrumento de distinção)” (Ibidem),
pondo a cultura dominante como ponto de controle. Com isso, compelem “todas as
culturas (designadas como subculturas) a definirem-se pela sua distância em relação
à cultura dominante” (Ibidem).
Assim, a dominação se opera com o poder conferido pelo símbolo, pela cultura
– como Harvey define cultura na pós modernidade 57 –, pelo o que ele representa.
Bourdieu mostra que os erros na interação do indivíduo à cultura consistem:
[...] em reduzir as relações de força a relações de comunicação, não basta
notar que as relações de comunicação são, de modo inseparável, sempre,
relações de poder que dependem, na forma e no conteúdo, do poder material
ou simbólico acumulado pelos agentes (ou pelas instituições) envolvidos

57
Harvey, David. A condição pós-moderna. 2013a, p. 269. “Se vemos a cultura como um complexo de signos e significações
(incluindo a linguagem) que origina códigos de transmissão de valores e significados sociais, podemos ao menos iniciar a tarefa
de desvelar suas complexidades nas condições atuais mediante o reconhecimento de que o dinheiro e as mercadorias são eles
mesmos os portadores primários de códigos culturais. Como o dinheiro e as mercadorias dependem inteiramente da circulação
do capital, segue-se que as formas culturais têm firmes raízes no processo diário de circulação do capital. Por conseguinte,
devemos começar pela experiência cotidiana da moeda e da mercadoria, mesmo que mercadorias especiais ou mesmo sistemas
de signos completos possam ser retirados da vala comum e transformados no fundamento da "alta" cultura ou da "imaginação"
especializada que já tivemos a oportunidade de comentar”.
68

nessas relações e que, como o dom ou o potlatch, podem permitir acumular


poder simbólico. (2002, p.11)

O poder simbólico pode ser acumulado através da obtenção de objetos dotados


de símbolos específicos. Tais objetos conferem poder dentro de uma cultura
específica, ou melhor ainda, dentro da cultura burguesa dominante, fazendo da
acumulação material uma forma de acumulação de poder simbólico. É dessa forma
que, enquanto “instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de
conhecimento que os sistemas simbólicos cumprem a sua função política de
instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação” (Ibidem), a dominação
pela força física não é necessária, pois a dominação é assegurada pela “(violência
simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações de força que as
fundamentam” (Ibidem) como força simbólica de controle legitimando o poder pela
domesticação dos dominados.
As classes dominantes, cujo poder emana do capital econômico, utilizam-se de
intelectuais para propagar suas ideologias e por esse capital acumulado de poder
simbólico, objetiva manter a dominação. Tais intelectuais corroboram com os ideais,
propagando a imagem de que a ideologia das classes dominantes é o que precisa ser
aceita. Pelas diversas formas de símbolos, pela acumulação desses poderes –
inclusive de capital econômico – o autor complementa dizendo que o poder simbólico
é derivado de outras formas de poder, e:
[...] só se pode passar para além da alternativa dos modelos energéticos que
descrevem as relações sociais como relações de força e dos modelos
cibernéticos que fazem delas relações de comunicação, na condição de se
descreverem as leis de transformação que regem a transmutação das
diferentes espécies de capital em capital simbólico e, em especial, o trabalho
de dissimulação e de transfiguração (numa palavra, de eufemização) que
garante uma verdadeira transubstanciação das relações de força fazendo
ignorar-reconhecer a violência que elas encerram objetivamente e
transformando-as assim em poder simbólico, capaz de produzir efeitos reais
sem dispêndio aparente de energia. (2002, p.15)

O pensamento de Bourdieu a respeito do poder simbólico parece muito difícil


de distinguir da abordagem de ideologia – no pensamento de Marx – exposta nesta
seção. Entretanto, nos parece que o capital simbólico se refere a uma característica
do indivíduo que, ao ignorar voluntariamente, apropria-se dos símbolos oferecidos
pela ideologia e se aproveita de seus benefícios. Ele quer fazer parte do sistema,
69

ignora voluntariamente todas as contradições e injustiças, e usa esses símbolos para


tirar proveito quando for oportuno.
No espaço público, o comportamento e o modo de se vestir, seriam o controle
ideológico utilizados pelas classes dominantes. Pelo modo de usar o espaço, controla-
se o consumo dessa ideologia, pondo para fora aqueles que não têm o capital
simbólico para ocupá-lo.

Características do discurso
É importante compreender como esses elementos ideológicos e simbólicos
conseguem ser passados, ora de maneira sutil, ora mais evidentes. Para isso Fiorin
elucida como o discurso funciona, como está impregnado de sentido ideológico e
“assim como a frase não é um amontoado de palavras, mas é uma cadeia construída
segundo certas regras, o discurso não é um amontoado de frases” (1990, p. 17). Logo,
o discurso é estruturado e construído com instrumentos de linguagem.
O autor anda evidencia como esses elementos fazem com que o discurso seja
mais objetivo ou subjetivo. Dessa forma, o caráter pessoal pode ser suprimido
dependendo da forma com que se constroem as frases.
Fiorin diz que há no discurso o campo da manipulação, podendo ser consciente
ou inconsciente: pela sintaxe discursiva, onde o falante utiliza “estratégias
argumentativas e de outros procedimentos [...] para criar efeitos de sentido de verdade
ou de realidade com vistas a convencer seu interlocutor” (1990, p. 18). Ainda nessa
modalidade, o falante usa um repertório de imagens – a imagem que faz do
interlocutor, a imagem que crê o interlocutor fazer dele, e a que deseja passar – e,
então, faz a escolha de usar tal ou qual argumentos.
Além disso, existe o discurso que transmite como o mundo é visto a partir de
uma formação social. A isto, o autor chama de semântica discursiva:
Esses elementos surgem a partir de outros discursos já construídos,
cristalizados e cujas condições de produção foram apagadas. Esses
elementos semânticos, assimilados por cada homem ao longo de sua
educação, constituem a consciência e, por conseguinte, sua maneira de
pensar o mundo. Por isso, certos temas são recorrentes na maioria dos
discursos: os homens são desiguais por natureza; na vida, vencem os mais
fortes; o dinheiro não traz a felicidade etc. A semântica discursiva é o campo
da determinação ideológica propriamente dita. Embora esta seja
inconsciente, também pode ser consciente. (1990, p. 19)
70

Somando a essas ideias, o discurso também pode ser passado de maneira


figurativa, com personagens do mundo real, com exemplos práticos e objetos
concretos, mas também pode ser passado de maneira temática, onde este elemento
semântico “designa um elemento não-presente no mundo natural, mas que exerce o
papel de categoria ordenadora dos fatos observáveis” (FIORIN, 1990, p. 24). O autor
complementa da seguinte maneira:
O discurso figurativo é a concretização de um discurso temático. Para
entender um discurso figurativo é preciso, pois, antes de mais nada,
apreender o discurso temático que subjaz a ele. Ir das figuras ao tema é o
que fazemos quando perguntamos: qual é o tema deste texto; de que trata
ele? (Ibidem)

Com isso, temos que o discurso possui caráter social, carrega temas e figuras
condizentes com o contexto social ao qual está inserido. O autor elucida o discurso
como o lugar das coerções sociais, não sendo autêntico nem único, mas que utiliza
elementos de outros discursos, repetindo a sua estrutura, dissimulando a liberdade e
a individualidade para se mascarar. Assim, o autor mostra que:
Ao realizar essa simulação e essa dissimulação, a linguagem serve de apoio
para as teses da individualidade de cada ser humano e da liberdade abstrata
de pensamento e de expressão. O homem coagido, determinado, aparece
como criatura absolutamente livre de todas as coerções sociais (1990, p. 41)

A farsa do discurso, seja o higienismo, seja a gentrificação, seja da revitalização


ou qualquer outro rótulo, tem o objetivo de mascarar os mecanismos do capital que
(re) produz cidades e faz seu movimento entre as escalas urbana/estado-
nação/escala global. A estratégia – o modo como o capital se reproduz e se
movimenta nas cidades – necessita do discurso ideológico de convencimento para ser
aceita, reproduzida e perpetuada.

1.5 PONDERAÇÕES A RESPEITO DOS DISCURSOS, IDEOLOGIA E PODER


SIMBÓLICO

Relação poder simbólico e espaço público


A produção de espaço passa a ser, como dito, uma ferramenta de produção de
capital58, devido ao uso simbólico conferido ao espaço. A partir daí, transforma-se em

58
Como vimos em Smith (1988) as questões sobre o movimento de capital na escala urbana.
71

algo como mercadoria, passível de receber investimentos e de se tornar negociável.


Entretanto, espaço público não é somente uma fonte de renda, é, também, uma forma
de controle da sociedade. Delgado mostra que junto a essa ideia de valorização nas
operações urbanas, o espaço público:
[...] passa a ser concebido como a realização de um valor ideológico, lugar
em que se materializam diversas categorias abstratas como democracia,
cidadania, convivência, civismo, consenso, e outros valores políticos hoje
centrais, um cenário no qual se desejaria ver desfilar uma massa ordenada
de seres livres e iguais que usa esse espaço para ir e vir do trabalho ou de
atividades de consumo, e que, em seu tempo livre, passeia despreocupada
por um paraíso de cortesia. Por certo que neste território corresponde
expulsar ou negar o acesso às pessoas que não apresentem os modos dessa
classe média para quem esse espaço se destina. (2011, p. 10) 59

De acordo com as afirmações de Bourdieu (2002), as classes dominantes


utilizam a cultura como elemento de dominação de massas, tornando-a comum e
marginalizando as demais. No espaço público, de acordo com Delgado (2011), as
camuflagens seriam uma forma de controle ideológico absorvido pelas classes média
e média alta. Assim, o espaço público passa a ser elemento de controle social, levando
à aceitação desses símbolos culturais, pondo à margem os que não possuem capital
simbólico para lá estar.
A propagar essa abordagem, surgem campanhas midiáticas que reforçam o
significado do lugar, ditando um modo de se comportar e de ser, onde aqueles que
não possuem a capacidade de se camuflar de tal maneira, são excluídos. Para isso,
as classes dominantes acreditam que os espaços vazios, estão postos para receber
esse conteúdo repleto de símbolos consumíveis pelas classes médias.
Para que haja a identificação da classe média com o espaço remodelado,
novos tipos de trabalho, edifícios assinados por arquitetos do star system 60, parques

59
Tradução nossa, do original: “En paralelo a esa idea de espacio público como complemento sosegado de las operaciones
urbanísticas, vemos prodigarse otro discurso también centrado en ese mismo concepto, pero de más amplio espectro y con una
voluntad de incidir sobre las actitudes y las ideas mucho más ambicioso todavía. En este caso, el espacio público pasa a
concebirse como la realización de un valor ideológico, lugar en el que se materializan diversas categorías abstractas como
democracia, ciudadanía, convivencia, civismo, consenso y otros valores políticos hoy centrales, un proscenio en el que desearía
ver deslizarse a una ordenada masa de seres libres e iguales que emplea ese espacio para ir y venir de trabajar o de consumir
y que, en sus ratos libres, pasean despreocupados por un paraíso de cortesia. Por descontado que en ese territorio corresponde
expulsar o negar el acceso a cualquier ser humano que no sea capaz de mostrar los modales de esa clase media a cuyo usufructo
está destinado.” (DELGADO, 2011, p. 10)
60 Conceito exposto por Otília Arantes (1988): “[...] um fenômeno pós-utópico, pois enquanto se pretendeu remodelar a sociedade
através da planificação global, uma tal megalomania simultaneamente inibia o desenvolvimento da ideologia de artista. O
estrelato cresce na razão direta do declínio de tais ilusões. Vão nesta direção as observações de François Chaslin a propósito
da ronda internacional das vedetes - Venturi, em Londres, Bofill em Pequim, Gregotti em Berlim etc. É que, depois da utopia, a
arquitetura basculou no terreno movediço da pura aparência”.
72

alinhados com as premissas da contemporaneidade urbanística e arquitetônica,


restaurantes de cozinha internacional, cinemas, centros culturais e comerciais, são
construídos a fim de atender à demanda desse estilo de vida nas áreas centrais. Esses
são os elementos complementares à moradia, de acordo com Smith, reafirmando a
ideia de que a cidade revanchista é classista.
Vimos também em Bourdieu e Delgado, que o consumidor do espaço
revitalizado é a classe média. Nesse espaço público dotado de elementos simbólicos,
a classe média encontra o espelho de sua nova realidade, cujas representações
tranquilizantes - o seu lugar - está etiquetado e assegurado.

Relação poder simbólico e gentrificação


O espaço público, repleto de códigos e condutas, passa a atrair a classe média
e média alta. Passa a ser o principal atrativo e um ponto de valorização, nos quais
elas terão atendidas suas necessidades, seus símbolos, aumentando seu capital
simbólico em viver num espaço dotado benfeitorias – infraestrutura, comércio elitizado
e serviços culturais.
O processo de gentrificação, de acordo com Smith (2012), apresenta-se como
movimento de capital financeiro na cidade. Dessa maneira, necessita de
consumidores para mais do que habitação. As classes médias e médias altas vão
consumir os serviços de bares e comércio elitizados, vão usufruir dos equipamentos
culturais e transitar pelo espaço público remodelado, tendo atendias assim, suas
necessidades.
Para Bourdieu (2002), o poder simbólico – implícito e sutil nos discursos e
intervenções urbanas – necessita do cinismo e da negação das classes mais altas,
que usufruem e consomem os espaços gentrificados, dentro do status do modo de
produção capitalista. Mas será Smith (2012) quem evidenciará o poder simbólico
contido no processo de gentrificação, pelo poder das metáforas que faz deste palavrão
chamado gentrificação possa ser mais que processo econômico, sendo uma
ideologia.
Ainda sobre o processo de gentrificação, a busca pelo apagamento dos
conflitos dá força ao caráter ideológico e classista. Assim, deixa em evidencia seu
73

duplo sentido, onde é bom para quem se beneficia e maléfico para quem é removido.
De acordo com Delgado, “o idealismo do espaço público aparece hoje a serviço
da reapropriação capitalista da cidade” 61 (2011, p. 10-11). Desta forma o autor
corrobora com Smith ao sintetizar a dinâmica do processo, mostrando que:
[...] os elementos fundamentais e recorrentes são a conversão de grandes
áreas do espaço urbano em parques temáticos, a gentrificação de centros
históricos de onde a história tem sido expulsa, a conversão de bairros
industriais inteiros, a disseminação de uma miséria crescente, que não se
consegue esconder, o controle sobre o espaço público cada vez menos
público, etc. Esse processo acontece em paralelo a uma renúncia de agentes
públicos e de sua hipotética missão de garantir direitos democráticos
fundamentais - desfrutar a rua em liberdade, de habitação digna para todos,
etc. - e a desarticulação dos restos do que um dia se presumiu o Estado de
bem estar social. (Ibidem)

Assim, conforme Smith, é preciso resistir à gentrificação e conter seu avanço,


já que os desalojados e desajustados da cidade revanchista perdem
instantaneamente o direito de usufruir o espaço público e a cidade como um todo.

61
“Lo que bien podría reconocerse como el idealismo del espacio público aparece hoy al servicio de la reapropiación capitalista
de la ciudad, una dinámica de la que los elementos fundamentales y recurrentes son la conversión de grandes sectores del
espacio urbano en parques temáticos, la genfrificacion de centros históricos de los que la historia há sido definitivamente
expulsada, la reconversión de barrios industriales enteros, la dispersion de una miseria creciente, que no se consegue ocultar,
el control sobre un espacio público cada vez menos público, etc. Ese proceso se da en paralelo al de una dimisión de los agentes
públicos de su hipotética misión de garantizar derechos democráticos fundamentales - el del disfrute de la calle en libertad, el de
la vivienda digna y para todos, etc.- y la desarticulación de los restos de lo que un día se presumió el Estado del bienestar.”
(DELGADO, 2011, p. 10-11)
74

PARTE 2
A PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO – A LAPA COMO ESTUDO DE
CASO, PARA COMPREENDER OS PROCESSOS DE EXCLUSÃO
SOCIAL

“[…] Eu fui à Lapa e perdi a viagem


Que aquela tal malandragem
Não existe mais
[…] Dizem as más línguas que ele até trabalha
Mora lá longe e chacoalha
Num trem da Central” 62.

Nas semelhanças e nas singularidades do processo de exclusão social na cidade


do Rio de Janeiro, o bairro Lapa é uma fonte de pesquisa importante para
compreender os mecanismos da exclusão. Desde as grandes intervenções realizadas
pelo engenheiro e prefeito Pereira Passos até as demolições e os processos de
gentrificação (de 1992 até a contemporaneidade) que a cidade sofreu, fica evidente o
discurso de ódio aos pobres, aliado aos discursos institucionais e midiáticos. Evoca-
se, a partir disso, uma reflexão de uma possível origem de tais discursos, como, por
exemplo, uma herança do processo de colonização do Brasil.
Na tentativa de compreender quem eram os habitantes da cidade do Rio de
janeiro, precisaremos entender – mesmo que brevemente – como funcionava a
economia desse período colonial, prestes a se modificar. Durante a segunda metade
do século XIX, antes da década de setenta, a presença do capital estrangeiro
começava a marcar a sociedade carioca. Com os privilégios concedidos pelo império,
a capital “apossou-se de grandes fatias do urbano, penetrou em muitas esferas
básicas para a existência cotidiana de uma população cada vez mais numerosa,
concentrada nos limites exíguos da área central” (BENCHIMOL,1992, p. 112).

62
Chico Buarque. Homenagem ao malandro, em Opera do malandro, 1977/1978. Disponível em:
<http://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=opera_77.htm>
75

2. O DISCURSO DE ÓDIO AOS POBRES DESDE O BRASIL COLÔNIA

Como necessidade de manter trabalhadores sempre precarizados, o discurso


depreciativo das classes mais pobres surgiu a fim de qualificar de vagabundas ou
ociosas as classes que representavam ameaças ao sistema latifundiário. Esse
discurso vinha da classe que controlava os modos de produção, já que se sentia
ameaçada pelos braços livres - a mão-de-obra nativa do país. Os trabalhadores, que
mordiscavam as rebarbas do latifúndio, que tentavam ocupar terras improdutivas, que
não se submetiam ao trabalho no latifúndio a fim de não serem escravizados por
dívidas e pelas leis que precarizavam, desde então a relação trabalhador-empregador,
passam a ter sua imagem depreciada.

2.1 A ORIGEM DO DISCURSO DE ÓDIO AOS POBRES

Feudalismo à brasileira: o colonialismo


Desde a colonização em moldes capitalistas, nosso país já apresentava sinais
de que a concentração do modo de produção em mãos de uma elite seria a origem
da exploração das classes mais pobres e, com isso, a origem da pobreza no Brasil.
Para Guimarães, o acesso à propriedade privada – durante os três primeiros
séculos de existência do Brasil – era dificultado pelo poder político exercido das
oligarquias rurais que “nunca permitiram, durante aquele período marcado pela
predominância das formas econômicas e jurídicas feudais de propriedade e de renda,
associadas às relações escravistas de trabalho” (1981, p. 126), o acesso à terra para
os trabalhadores semi livres. Esses trabalhadores “perambulavam ao redor dos
latifúndios sem encontrar ocupação” (Ibidem). Desta forma, “pode-se dizer que a
pequena propriedade ou a pequena exploração, como setor organizado e
representativo na sociedade e na economia” (Ibidem) representou um atraso para a
“história brasileira por todo aquele longo período no qual os processos agrícolas de
cultivo praticamente não sofreram nenhuma evolução de mínima importância”
(Ibidem).
Ao tratar das etapas de transição do desenvolvimento da produção no Brasil –
76

do feudalismo para o capitalismo – o autor mostra que, em primeiro, o latifúndio foi a


única forma de exploração e propriedade da terra. Assim, a propriedade da terra era
tratada “como um privilégio concedido aos homens de qualidades que se associaram
aos representantes abastados do capital comercial na formação do patrimônio de
escravos, animais e equipamentos” (1981, p. 129), e utilizado como monoculturas de
exportação de açúcar e de café. Nesse momento, no Brasil, já podia se notar a
existência de um discurso com homens privilegiados e de mais qualidades que outros.
A segunda etapa se deu quando o sistema escravista iniciou sua lenta
decomposição “até o fim da reforma abolicionista e com a oportunidade aberta ao
trabalho livre de origem estrangeira, e depois relutantemente estendido à mão-de-
obra nacional” (Ibidem). Finalizando as etapas de transição, a sequência das
sucessivas crises do sistema latifundiário permitiu “o retalhamento das grandes
propriedades açucareiras, cafeeiras e outras e o loteamento capitalista de grandes
áreas rurais inexploradas ou pioneiras” (Ibidem).
Guimarães alerta que o trabalhador nacional sempre teve acesso dificultado à
terra, sendo esta prática uma estratégia fundamental do sistema latifundiário, onde as
classes dominantes preservaram permanentemente “um vasto excedente de mão-de-
obra capaz de preencher, nas horas próprias, as vagas abertas pelas necessidades”
(1981, p. 129) sazonais ou temporários, que surgiam no latifúndio. Dessa maneira,
temos que as questões de propriedade de terras e de trabalho sempre tiveram grande
relevância no processo de formação da economia brasileira.
Com relação a mão-de-obra nacional, não escravizada, composta por
indivíduos livres, Guimarães afirma que “por mais doloroso que seja verificar, a
verdade é que o povo, na escala social, como agente da produção, estava colocado
abaixo do escravo. Não seria possível descer a mais” (1981, p. 131). Assim, a política
era feita pelas classes dominantes, cujo empenho se dava em forjar leis que
“transformassem em servos da gleba os trabalhadores que conseguiam sobreviver
desvinculados dos meios” (Ibidem) de produção e de trabalho, já que não podiam
transformá-los em escravos.
A precarização do trabalho e a fragilização das relações empregado-patrão, era
meta constante e ininterrupta das elites brasileiras que, durante todo século XIX,
77

tentaram diversas vezes prender o trabalhador livre ao latifúndio.


Assim, a análise de Furtado vai ao encontro com a de Guimarães, ao afirmar
que, durante o período da mineração nos séculos XVII e XVIII, “nenhum homem livre
lograva alcançar uma verdadeira expressão social” (2003, p. 78). O autor põe em
evidencia que as questões da estagnação da economia açucareira reduziam “as
possibilidades de um homem livre para elevar-se socialmente” (Ibidem). A partir daí
inicia o crescimento de uma “subclasse de homens livres sem possibilidade de
ascensão social, a qual em certas épocas chegou a constituir um problema” (Ibidem).
Da mesma maneira que Furtado elucida a preferência pela mão-de-obra
imigrante, na crença “da superioridade inata do trabalhador europeu, particularmente
daqueles cuja raça era distinta da dos europeus que haviam colonizado o país” (2003,
p. 125), Guimarães esclarece que as condições de trabalho – deflagradas pelos
abolicionistas – dos “milhões de trabalhadores semi livres eram tratados, na realidade,
como escravos; e esta a razão de sua fuga, sempre que podiam, do regime de trabalho
imposto pelo sistema latifundiário” (1981, p. 131). Além disso, “o juízo que desses
ociosos faziam as oligarquias rurais era que se tratava de incapazes para o trabalho
agrícola” (Ibidem).
A partir dessa visão do trabalhador livre nativo, criou-se o mito de que esses
trabalhadores – os braços livres – não gostavam do trabalho, por serem preguiçosos
e não aptos ao trabalho braçal. O autor evidencia que sob motivação moral, procurava:
[...] encobrir-se a evidente e generalizada tendência de tratar como escravo
o trabalhador livre, submetendo-o à mesma disciplina cruel ditada pelo relho
dos feitores; e era a isso que se recusava subordinar-se, obstinadamente, a
imensa maioria daqueles trabalhadores. (1981, p. 135)

Esse discurso depreciativo aos braços livres, em fins do século XVIII e início do
XIX, empregava o adjetivo vadio para qualificar os trabalhadores semi livres.
Guimarães traz alguns exemplos:
Havendo por toda parte muita casta de vadios, que cometem insultos e
extravagâncias inauditas, não é de admirar que no Rio de Janeiro, onde a
maior parte de seus habitantes se compõe de mulatos e negros, se pratiquem
todos os dias grandes desordens que necessitam ser punidas com
demonstrações severas.[...] Eu disse que há vadios, isto é, ladrões que
perseguem os lavradores e destroem as suas sementeiras [...] o grande
número de gentes que habitam nas Cidades e Vilas sem ofício, e a que
verdadeiramente se pode dar o nome de vadios [...] São tantos aqui os
desocupados que se costuma chamá-los como a uma classe: a dos vadios.
78

(1981, p. 133-134)

Dessa maneira, o mito criado durante todo o século XIX, era de que o
trabalhador semi livre não gostava e não tinha aptidão física para o trabalho braçal.
Entretanto, o que se entende na obra de Guimarães é que:
Milhões dos chamados ociosos, os quais se recusavam a trabalhar nas
fazendas e nos engenhos para evitar enquadrar-se na terrivelmente
opressiva Lei da Locação de Serviços, em vigor na sua primeira versão de
1830, ou para fugir dos desmandos dos senhores de terra, possuídos da
ignóbil mentalidade comum a todos os proprietários de escravos, começavam
a inquietar os Poderes Públicos, que não haviam ainda achado uma saída
para tão grave problema. (1981, p.136)

O abolicionista Joaquim Nabuco, citado por Guimarães, deixa em evidencia que


os habitantes do campo, alijados de qualquer acesso à terra ou a qualquer emprego
nos latifúndios, se viravam como podiam e:
[...] não passavam de infelizes sem direção, sem apoio, sem exemplos, não
fazem parte da comunhão social, não consomem, não produzem. Apenas
tiram da terra alimentação incompleta, quando não encontram a caça e a
pesca das coitadas e viveiros dos grandes proprietários.[...] (NABUCO, 1938
apud GUIMARÃES, 1981, p. 136)

O autor ainda aponta a falta de interesse das classes dominantes em


compreender as origens do contingente excessivo que vagava pelo campo. Durante
todo o período escravista, as elites dominantes do Brasil jamais “precisaram conhecer
a fundo as razões de existência da parte desprezível dessa população, desse povo,
em que sequer acreditavam pudesse integrar a sociedade civil” (1981, p. 137, grifo
nosso). O objetivo das classes dominantes era “descobrir a forma de acionar leis que
condenassem ao trabalho forçado, naturalmente mediante o pagamento dos mais
baixos salários, aqueles que fossem apanhados na condição de vadios” (Ibidem).
Assim, o autor conclui:
A noção de que os crescentes efetivos de ociosos, vadios e intrusos eram um
produto da decisão voluntária dos trabalhadores livres ou de que eles
existiam por causa da sua incapacidade para o trabalho que seria intrínseca
à natureza do trabalhador nacional e em geral das classes pobres do campo,
havia sido incorporada à mentalidade das oligarquias rurais do Brasil. Era
também um dos componentes tradicionais da ideologia colonial, que sempre
encontrou para justificá-la as mais diversas teorias, como a da inferioridade
racial, a do fatalismo histórico, do rigorismo do clima tropical e várias outras.
Essas teorias, por incrível que pareça, perduraram, a despeito dos
progressos alcançados pelo conhecimento científico, até pelo menos a
década de 1930. E só começaram a ser discutidas, e contestadas, no plano
79

mundial, às vésperas da segunda guerra, até serem efetivamente destruídas


no pós-guerra, no curso do processo de descolonização, quando cerca de
meia centena de novos países soberanos puderam formular seus próprios
projetos de desenvolvimento independente. (1981, p. 142)

O projeto ideológico colonial tinha o objetivo, através do discurso depreciativo,


aproveitar-se da fragilidade da população perante às classes dominantes
latifundiárias, e, pelas ferramentas das leis, usufruir do benefício da mão-de-obra
barata.

2.2 AS CLASSES PERIGOSAS

Durante anos perdurou o mito – preconceito – de que a mão-de-obra nativa do


Brasil não prestava. Esse discurso fortaleceu as elites dominantes, com o modo de
ocupação da terra – o latifúndio em detrimento da pequena propriedade – e com o
baixo valor da mão-de-obra. Para Guimarães, durante o período colonial, essa foi a
lógica da manutenção do poder, ressaltando as questões raciais com o discurso da
responsabilidade dos homens brancos a fim de “governar aqueles que em teoria não
tinham capacidade de governar-se a si mesmos” (1981, p. 143). Colocada como um
fatalismo, as raças nativas – índios, mestiços e demais – não poderiam ascender
socialmente. Assim, estavam postas as bases para o discurso de ódio no século XX
e início de XXI. Desta forma, o autor pontua que nos períodos mais críticos:
[....] de depressão econômica, seja nos países desenvolvidos, seja nos
países subdesenvolvidos - e principalmente nesses últimos, não só se
deterioram as condições materiais; o comportamento social também se
degrada. Ativa-se o congestionamento das cidades, estimulado pelo
crescimento do êxodo rural, que se expande em ritmo excessivamente rápido;
pioram as condições de moradia, a mortalidade se eleva, o gênero de vida
das classes pobres se torna insuportável, e dentro dessas classes os delitos
antissociais se avolumam. (1981, p. 156)

Somando à visão de Guimarães, onde o povo nativo do Brasil era


estigmatizado pelas questões raciais, temos em Guareschi que, após o surgimento
das relações de dominação e exploração, iniciadas na revolução industrial63 –

63
Para Guareschi (2001), essas são as relações centrais do modo de produção capitalista, presente até os dias de hoje: “Já com
a Revolução Industrial uma nova relação surgiu: algumas pessoas passaram a ser os donos do capital, isto é, das máquinas e
das fábricas. Proclamou-se, então, a "liberdade" do trabalhador: o que o proprietário contratava não eram mais as pessoas, como
na escravatura e no feudalismo, mas era o "trabalho" das pessoas: supostamente, só trabalhava quem quisesse. As pessoas
80

também presente nos dias de hoje – surge o que o autor chama de relações de
exclusão 64. O seu pensamento mostra que a automação da produção, ou seja, as
novas tecnologias “criam instrumentos que substituem a mão-de-obra humana. Os
robôs, por um lado, e os processadores eletrônicos por outro, executam a maioria dos
serviços que eram antes feitos por mãos humanas” (2001. p.144), potencializando o
desemprego e negando às massas o acesso ao trabalho. Desse modo, ele salienta
essa relação de exclusão onde as pessoas são:
[...] simplesmente excluídas do trabalho, excluídas da produção.
Evidentemente, não estamos dizendo que o trabalho acabou. O que acabou,
ou diminuiu substancialmente, é o tipo de trabalho, e de emprego, que era
central até agora. Isso exatamente porque nesse novo mundo que está
surgindo, grande parte das pessoas não chegam "mais ao mercado de
trabalho". A sociedade, em geral, e o mundo do trabalho, em particular, estão
se estruturando a partir de mecanismos que impossibilitam, por princípio, o
acesso de grande parte das pessoas ao mundo do trabalho. É essa a
novidade hoje. A isso se chama de exclusão, e é dentro desse contexto
histórico fundamental que ela deve ser entendida. (Ibidem)

Guareschi deixa claro que “sem uma legitimação ideológica (psicológica e


social), essa relação não consegue se perpetuar por muito tempo e levaria a sérios
conflitos e confrontos sociais” (Ibidem). É preciso que haja um motor, uma ideologia a
fim de impulsionar a exclusão como uma relação na sociedade. A partir daí o autor
deixa em evidência o cinismo neoliberal e seu discurso do progresso da humanidade
pelos avanços tecnológicos, impulsionados “também em razão de um novo
mandamento que deve ser instaurado entre as pessoas, grupos e países, a que
decidiu chamar de competitividade” (Ibidem). O mercado passa a ser dotado de
liberdade, onde a palavra de ordem:
[...] santa e sagrada, agora é competitividade. A competitividade é o "amai-
vos uns aos outros" do novo Evangelho. Mas esquece-se que a
competitividade só é possível, se houver diferenças e exclusões. Falando
com mais clareza: a competitividade exige a exclusão. Essa é a questão
central, que não é discutida quando se fala em competitividade. E essa é uma
questão essencialmente psicossocial. (2001. p.145-6)

eram "livres", para trabalhar ou não. Mas não se perguntava como as pessoas que não fossem trabalhar poderiam sobreviver.
Quais, então, as relações que passaram a ser centrais em tal formação social, ou em tal modo de produção? Entre as pessoas
houve uma cisão profunda: algumas se tornaram "donas", proprietárias; outras, passaram a oferecer a única coisa que possuíam:
o trabalho. A essa relação se costuma chamar de dominação. E, na maioria das vezes, quase como uma consequência disso,
as que possuíam os meios de produção passaram a explorar a mão-de-obra do trabalhador: a isso se costuma chamar de
exploração.(GUARESCHI, 2001. p.143)”
64
“O leitor deve estar se perguntando qual a razão das considerações acima. Pois vamos à questão. Tais considerações são
necessárias, pois passa a ser central, hoje, uma nova relação, que cada vez mais se torna definidora do tipo de sociedade em
que passamos a viver: é a relação de exclusão” (GUARESCHI, 2001. p.144).
81

Sob a visão desse autor, a exclusão, em nossos dias, se torna gritante e se


efetua pela precarização do trabalho e pela dificuldade em conseguir emprego, dentro
de uma sociedade cada vez mais competitiva. Guareschi punha em evidência a crise
ética gerada pela competitividade, com o aumento dos extremamente pobres
acompanhando o aumento dos extremamente ricos. Segundo o ele:
[...] nos dias de hoje nenhuma pessoa em sã consciência pode falar apenas
em "bolsões" de pobreza, quando os bolsões se referem a cerca de 3,2
bilhões de pessoas, 60% da humanidade, que sobrevivem com uma média
de 350 dólares por ano. Isto quando o mundo produz 4,200 dólares por
pessoa e por ano, portanto, amplamente suficiente para todos viverem com
conforto e dignidade. (2001.p.148)

Nessa relação contemporânea, o capitalismo se apropria da fragilidade das


populações sem trabalho, educação e sem perspectivas, transformando-as em seres
humanos empobrecidos que:
[...] na atual conjuntura, o fato maior é, sem dúvida, o cruel predomínio de
uma férrea lógica da exclusão, o clima de indiferença anti-solidária que a
sustenta e, em decorrência, o fato de que uma imensa massa sobrante de
seres humanos descartáveis tenha passado a viver como lixo da história"
(ASSMANN, 1994 apud GUARESCHI, 2001, p.149)

Desta forma, na sociedade onde o individualismo é uma premissa e a


competição é o meio em que ela se expressa, temos “a atribuição do sucesso e do
fracasso exclusivamente a pessoas particulares, esquecendo-se completamente de
causalidades históricas e sociais” (GUARESCHI, 2001, p.150), com o discurso de
culpabilização do indivíduo pelo próprio fracasso, “as pessoas são, individualmente,
responsabilizadas, por uma situação econômica adversa e injusta” (Ibidem). Contudo,
o autor diz que esta lógica da competitividade “não vai poder dar conta de
compreender e explicar irracionalidades globais, tais como a exclusão de milhões”
(Ibidem), já que a sua interpretação – individualista – tão reducionista do ser humano
e de suas análises e justificativas dos fenômenos históricos, “não abrem espaço à
inclusão de uma responsabilidade social” (Ibidem). A lógica neoliberal de
competitividade, é entendida como um impasse ético que:
[...] reside em que se, por um lado, a microética liberal não dá conta de
responder adequadamente às exigências éticas da nova situação em que nos
encontramos, por outro lado, não foi ainda substituída por uma macroética
capaz de conceber e nela incluir a responsabilidade da humanidade pelas
consequências das ações coletivas ao nível da escala planetária. (2001,
p.151)
82

Assim, para a legitimação do processo de exclusão “é necessário encontrar


uma vítima expiatória sobre quem descarregar o pecado de marginalização, ou quase
genocídio, de milhões” (GUARESCHI, 2001, p.154). O excluído carrega a culpa e é
vítima ao mesmo tempo, já que no pensamento neoliberal o sistema – produtor de
toda a exclusão e de toda a pobreza – não é o responsável. Invariavelmente, dentro
da ideologia neoliberal não existe:
[...] espaço para o social. Por isso o ser humano é definido como um indivíduo,
isto é, alguém é um, mas não tem nada a ver com os outros. O ser humano,
pensado sempre fora da relação, é o único responsável pelo seu êxito ou pelo
seu fracasso. Legitima-se quem vence, degrada-se o vencido, o excluído.
(Ibidem)

Como exemplo do processo de exclusão e culpabilização, ao explicar sobre a


underclass urbana norte americana – conceito já explicado mais acima –, Wacquant
mostra que o termo carrega uma ideologia repleta de ódio às classes pobres.
Apesar da underclass ser vista como um grupo “fictício que não é constituído
como tal a não ser pelas e nas práticas de classificação dos eruditos, jornalistas e
outros especialistas na gestão das populações dependentes” (WACQUANT, 2001,
p.105) que acreditam na existência e fazerem parte desta classe, sua exclusão é
mantida. O caráter altamente midiático, usado para gerar pânico, torna-se discurso
onde o autor conclui com os atributos da underclass como sendo uma “classe-imagem
que exibe a todos os que a ela não pertencem um espetáculo assustador de tudo o
que todo bom norte-americano deve esforçar-se para não ser” (Ibidem).
Com o objetivo de justificar medidas conservadoras e severas sobre programas
sociais, as classes pobres - a underclass - passam a ser exemplos a não serem
seguidos. O medo imposto pelo discurso de exclusão gera limites, freando a
transgressão das leis sociais de comportamento. Aos que cruzarem esta linha
comportamental, não serão poupados das sanções e dos julgamentos da sociedade
louvável - das classes dominantes e do Estado.
83

3. HIGIENISMO: UM PROCESSO HISTÓRICO DE REMODELAÇÃO

O discurso de ódio as classes, também aconteceu no Brasil, como vimos


anteriormente. Entretanto, ele toma uma proporção urbana junto ao desenvolvimento
do discurso higienista, em meados do século XIX. Partiremos para uma análise desse
período que promoveu a mudança da forma da cidade do Rio de Janeiro, iniciando
com um panorama do higienismo e aprofundando nas questões mais incisivas nesta
cidade.

Higienismo
A paisagem urbana por todo o século XIX, seja na Europa, seja na América
Latina, sofreu intervenções guiadas pelo discurso higienista e da modernidade.
Pechman mostra que a cidade sob a ótica da higiene “sofria de confusão e
imobilidade, e convinha diferenciar o indistinto e fazer circular o que era estagnante”
(PECHMAN, 1999, p. 378). Para a cidade de corpo doente, o remédio seriam as
intervenções urbanas pautadas no higienismo.
Sob forma de discurso, o higienismo se propunha como o remédio salutar ao
corpo doente da cidade. Harvey mostra que as metáforas “da ciência da higiene e da
cirurgia eram poderosas e convincentes65” (2008, p. 335) e, desse modo, quando o
Barão de Haussmann “se referia às funções metabólicas da cidade (a circulação do
ar, da água, aos desperdícios) concederia a cidade papel de corpo vivo cujas funções
vitais deveriam ser cuidadas 66” (Ibidem). Entretanto, o efeito colateral desse remédio
amargo é a exclusão social, o estado embrionário da gentrificação.
Entendendo as questões das metáforas, do modo como explica Smith, onde “o
uso de metáforas espaciais, longe de proporcionar imagens inocentes e evocativas,
na verdade, entra diretamente nas questões do poder social” (2000, p. 140), temos
que a ideia de Haussmann não tem o caráter de remédio, como o discurso higienista
propagava. Pechman mostra que a cidade e seu corpo doente, tinha no higienismo:

65
Tradução nossa, do original: “de la ciencia de la higiene y de la cirugía eran poderosas y convincentes”. (2008, p. 335)
66
Tradução nossa, do original: “se refería a las funciones metabólicas de la ciudad (la circulación del aire, del agua, de los
desechos) iba a otorgar a la ciudad el papel de cuerpo viviente cuyas funciones vitales debían ser cuidadas” (Ibidem)
84

[...] o remédio mais adequado, mas após o tratamento, verifica Didier Gille,
"não foi bem uma cidade curada que surgiu aos nossos olhos, foi a cidade o
modelo de todas as cidades, o que unicamente pode ser uma cidade, o que
deve ser uma cidade". Parecia tratar-se de um problema de cura através de
remédios, mas a questão mostrou ser de estrutura, isto é, a cidade "não tinha
cura", era preciso redefini-la pela base. (1999, p.378)

O autor mostra que a hipótese de cidade higienista, tinha outros objetivos além
de sanar questões da higiene e das epidemias. Podemos ver que, dentro do período
higienista, Engels entendia que “a burguesia só tem um método para resolver a
questão da moradia do seu jeito - isto é, resolvê-la de tal maneira que a solução
sempre volta a suscitar o problema” (2015, p.104). O método era denominado de
Haussmann. Engels explica o método da seguinte maneira:
Entendo por Haussmann aqui não só o jeito especificamente bonapartista do
Haussmann parisiense, ou seja, o de abrir ruas retas, longas e largas através
da aglomeração de casas dos bairros de trabalhadores e cercá-las de ambos
os lados de prédios luxuosos, procurando atingir, ao lado da meta estratégica
de dificultar a luta de barricadas, o objetivo de formar um proletariado da
construção civil especificamente bonapartista e dependente do governo, além
de conferir um aspecto luxuoso à cidade. Entendo por "Haussmann" a práxis
generalizada de abrir brechas nos distritos dos trabalhadores, em especial
nos distritos localizados no centro de nossas grandes cidades, quer tenha
sido motivada por considerações de saúde pública e embelezamento, pela
demanda por grandes conjuntos comerciais localizados no centro ou pela
necessidade de circulação, como a instalação de ferrovias, ruas etc. O
resultado em toda parte é o mesmo, não importa qual seja o motivo alegado:
as vielas e os becos mais escandalosos desaparecem sob a enorme
autoglorificação da burguesia em virtude de tão retumbante êxito, mas
reaparecem imediatamente em outro lugar e muitas vezes na vizinhança mais
próxima. (Ibidem)

Aprofundando nas origens do discurso higienista, vemos que Haussmann não


foi o inventor desse modo de produção de cidades. Harvey elucida que nos anos que
antecederam Haussmann, houveram diversos planos de intervenções urbanas em
Paris afirmando que “não havia absolutamente nenhuma falta de idéias. A maior parte
dos grandes pensadores do periodo tinham algo a dizer sobre a questão urbana”
(2008, p.109).
Sob esta ótica, desmistificada aqui por Engles, Harvey e Pechman, como
invenção de Haussmann, onde o higienismo “é a expressão da primeira forma de uma
política urbana de enquadramento e controle da cidade” (PECHMAN, 1999, p. 378), é
que estudaremos o caso da cidade do Rio de Janeiro, mais especificamente, o bairro
da Lapa.
85

3.1 A QUESTÃO DA HABITAÇÃO NO RIO DE JANEIRO: SÉCULO XIX

Antes de chegar à Lapa, é preciso compreender o contexto histórico da cidade


do Rio de Janeiro. A cidade, no fim do século XIX, passava por um conjunto de
epidemias que assustava os membros das classes mais abastadas. O Centro da
cidade, com seus cortiços e cabeças-de-porco, era visto como o foco dessas
epidemias e, por isso, já se cogitava por volta de 1870 as remoções da população e a
eliminação dos cortiços. A solução seria jogar o proletariado infectado para longe do
centro da cidade. Esse pensamento seria o embrião do plano que viria a se consolidar
no início do século XX.
Para melhor compreender o panorama da questão habitacional, vale lembrar
que ela é fruto de um processo de exploração que sempre atingiu ao proletariado de
todas as épocas. Engels define a falta de habitação como o “peculiar agravamento
das más condições de moradia dos trabalhadores em razão da repentina afluência da
população às metrópoles” (2015, p. 38), potencializado pelas circunstâncias que se
somam, tais como valor elevado dos aluguéis acrescido da escassez de moradia.
Entretanto, a questão da habitação só se torna evidente porque “não se limitou à
classe dos trabalhadores, mas acabou atingindo também a pequena burguesia”
(Ibidem). Mas o que veremos aqui, brevemente, é o panorama da habitação no centro
do Rio de janeiro.
As crises nas indústrias capitalistas ajudaram a aumentar o exército de reserva
de mão-de-obra, pondo nos casarões do centro das cidades boa parte dessas
pessoas. Como mostra Benchimol, “até as reformas urbanas executadas no início do
século XX” (1992, p. 128), os problemas da habitação se restringiram aos “limites da
Cidade Velha e suas imediações - ou a área central do Rio de Janeiro - onde habitava
e residia grande pane da população trabalhadora” (Ibidem). As classes trabalhadoras
ocupavam o centro da cidade velha e alguns bairros periféricos a ele, aproveitando a
proximidade com a atividade industrial que ali se instalava inicialmente.
Enriquecendo esse panorama, a análise de Benchimol mostra a dinâmica
econômica da cidade colonial, onde a informalidade de serviço era a característica
principal. Assim, para executar os serviços esses indivíduos livres, escravos e
86

trabalhadores imigrantes, punham à venda ou ao aluguel a sua força de trabalho,


realizando bicos ou sendo alugados por seus donos. Além dessas modalidades de
trabalhadores, configuravam o proletário urbano os viajantes com trabalho temporário.
Apesar da modernização introduzida na cidade, o trabalho era precário, pesado e
reproduziam-se:
[...] em escala ampliada, como realidades espacialmente contíguas; as
atividades ligadas à circulação, dependentes do trabalho braçal
desqualificado, e, secundariamente, a estrutura produtiva tradicional, de base
artesanal ou manufatureira. (1992, p.112)

Além disso, o uso nada uniforme do espaço urbano caracterizado por comércio,
serviços, bancos e indústria compunha o panorama da cidade do Rio de Janeiro – ou
a região do centro – junto com a moradia. Não havia um ordenamento e a cidade se
desenvolvia menos regulada, podendo-se morar junto às oficinas de trabalho. Esse
fato nada tinha de novo, já que Engels apresentava o retrato da classe trabalhadora
que por toda a Inglaterra, a qual a lasse trabalhadora carioca se assemelhava, sendo
da mesma forma explorada pelo modo de produção capitalista. Ilustrando melhor essa
ideia de precariedade de moradia/local de trabalho, Benchimol assinala a desordem
nos quarteirões do Rio de Janeiro da seguinte forma:
[...] recortados por um dédalo de ruas estreitas e congestionadas, erguiam-
se, indiferenciadamente, pequenas oficinas e fábricas - uma ou outra
mecanizada; casas de cômodos, cortiços, estalagens e hospedarias, onde se
alojava a maioria da população trabalhadora da cidade e o contingente
numeroso e flutuante aos estrangeiros que nela se detinham por tempo
limitado; armazéns e os mais variados estabelecimentos varejistas; moradias
particulares; edifícios públicos; escritórios de grandes companhias e bancos.
(1992, p. 112-113).

Além da questão da precariedade do traçado urbano e das habitações, o autor


esclarece a situação do trabalhador, que estava preso à exploração do proprietário
dos cortiços. O modo como acontecia a dinâmica da propriedade e aluguel nessas
edificações, fazia do proletariado uma fonte de renda, seja pelo valor abusivo pago
pelos aluguéis, seja pela coação do consumo dos produtos que vendia o proprietário
em seu estabelecimento comercial. Essa análise foi extraída de um levantamento feito
a pedido de Adolfo Bezerra de Menezes67, presidente da câmara na época, e mostra
que havia mais outro tipo de atividade: os pequenos especuladores, que aguardavam

67
Extraída de BENCHIMOL, 1992, p.135.
87

o melhor momento para obter renda maior da terra ou dos imóveis insalubres, seja
pela demolição dos prédios, seja pela localização em bairros nobres ou no próprio
centro. E, conforme Benchimol, para as futuras desapropriações, o ganho com a terra
e com a propriedade de cortiços estava garantido da seguinte maneira:
Quando não explorava diretamente o cortiço, o proprietário desfrutava de
uma renda e da possibilidade de obter ganhos especulativos importantes com
o terreno, sobretudo quando localizado em áreas que tendiam a se valorizar,
como o centro e a zona sul. Caso o imóvel fosse desapropriado - como na
época de Pereira Passos - podia obter uma indenização vantajosa, sob a
forma de dinheiro ou então de títulos que lhe asseguravam a permanência de
sua renda. (1992, p.135).

A partir deste cenário de precariedade da habitação, surgirá – de maneira


concomitante – o agravamento da questão do proletário carioca, dado pelas
epidemias de febre amarela.

3.2 AS EPIDEMIAS E A LIMPEZA URBANA NO RIO DE JANEIRO

A visão higienista foi fundamentada e aceita com facilidade devido ao


panorama da habitação da cidade velha. Precária, exígua, suja, locada em um tecido
urbano com vias apertadas e mal calçadas, em lotes estreitos e mal ventilados,
superlotadas com uma classe indesejada e menos digna e, além disso, o fator
climático da cidade, úmida e quente, foi fundamental para a proliferação de epidemias.
A forma de ocupação do solo, no período antecedente a 1870 foi feita sob os
aterros na região do Estácio e Cidade Nova, consolidando também a ocupação do
bairro de Santa Teresa. Maurício de Abreu mostra que essa ocupação foi feita em
lotes estreitos e profundos, criando um adensamento das áreas próximas ao centro
da cidade, devido à ausência de transporte público de qualidade. Na região da
freguesia da Candelária, o centro da cidade, com a presença do grande comércio,
sede dos bancos e consulados, experimentava-se uma contradição:
Nesse mesmo ano, através da iniciativa de Mauá, a iluminação a gás é
inaugurada no centro, que passa a se beneficiar também, em 1862, do
serviço de esgoto sanitário concedidos à empresa inglesa Rio de Janeiro City
Improvements Company Limited, passando o Rio a ser a quinta cidade do
mundo a possuir esse tipo de serviço. (2008, p.42)

Nessa mesma região, expressando tal contradição, vivia a população mais


miserável da cidade. Era dependente da centralidade devido seu baixo poder de
88

mobilidade pela cidade, estando próxima, assim, dos seus lugares de trabalhos.
A penúria das habitações do centro da cidade do Rio de Janeiro podia ser
percebida por conta da situação de seus habitantes, citados incansavelmente pelos
sujeitos que desejavam eliminar a pobreza, as doenças e os miseráveis dessa região.
Segundo Benchimol, as epidemias eram constantes, e o discurso da necessidade de
limpeza era frequente. Além disso, os cortiços se proliferavam por conta da demanda
por habitação e por uma baixa oferta, acarretando um preço elevado nos aluguéis.
Assim, na metade do século XIX, começam a surgir leis e normas que regulam a
sociedade, como elucida Benchimol:
Em agosto de 1855 - ano em que irrompeu na Corte a primeira grande
epidemia de cólera-morbo, com mais de 4 mil vítimas - o fiscal da freguesia
de Santa Rita, alarmado com o aumento do número de cortiços em sua
jurisdição, fato que atribuía aos "preços elevadíssimos das moradias na
Capital", apresentou à Câmara Municipal da Corte um projeto de postura
estabelecendo normas destinadas a preservar a salubridade, a moralidade
pública e a "faculdade de existência dos pobres". (1992, p. 128)

A partir desses pareceres de representantes públicos, temos ideia desse


cenário onde a habitação acontecia junto aos depósitos e estábulos. A questão
sanitária representava, por conta das recorrentes epidemias, risco à saúde dos
moradores e como mostra o mesmo autor, certo fiscal da freguesia de Santa Rita 68
propunha que as condutas de limpeza ficariam a cargo dos proprietários, já que a
configuração do uso da região central da cidade acontecia irregularmente, sendo:
[...] recortados por um dédalo de ruas estreitas e congestionadas, erguiam-
se, indiferenciadamente, pequenas oficinas e fábricas - uma ou outra
mecanizada; casas de cômodos, cortiços, estalagens e hospedarias, onde se
alojava a maioria da população trabalhadora da cidade e o contingente
numeroso e flutuante aos estrangeiros que nela se detinham por tempo
limitado; armazéns e os mais variados estabelecimentos varejistas; moradias
particulares; edifícios públicos; escritórios de grandes companhias e bancos.
(BENCHIMOL, 1992, p.112-113)

Somadas a isso, a ineficiência do Estado em solver as epidemias,


principalmente a de 1850 causadora de terror tanto para as classes mais pobres
quanto para as mais abastadas. O autor mostra o atraso do Estado no combate à
epidemia – em sua ineficiência depois de relutar em assumir a existência da epidemia
de febre amarela – como a causa da rápida propagação por toda a cidade, desde “a

68
Bairro da região do centro da cidade do Rio de Janeiro.
89

Rua da Misericórdia, nas vizinhanças das praias dos Mineiros e do Peixe, e para as
bandas da Prainha e da Saúde” (1992, p.113).
É nessa época – 1850 – que surge a primeira tentativa de sanar as questões
de saúde pública na cidade, com a criação de “uma Junta de Higiene Pública,
encarregada de propor e executar as medidas necessárias à preservação da saúde
pública na corte e nas províncias” (Ibidem), composta por engenheiros.
Assim, surgem os discursos de limpeza urbana pautados na medicina social,
onde a prevenção às epidemias era a principal característica. Mas essa prevenção se
dava de uma maneira peculiar, já que “a medicina situa as causas da doença não no
próprio corpo do doente, mas naquilo que o cerca [...] no meio ambiente”
(BENCHIMOL, 1992, p. 116). Assim, o autor elucida que além das questões
geográficas – clima, relevo e umidade – os médicos intervieram na sociedade e no
contexto urbano ao responsabilizar:
[...] a desordem urbana pela degeneração da saúde não só física como
"moral" da população, a medicina social diagnosticava causas naturais,
relacionadas às peculiaridades geográficas do Rio de Janeiro, e, sobretudo,
causas sociais, tanto no nível do funcionamento geral da cidade como de
suas instituições. (Ibidem)

Entretanto, se essa fosse a solução para os problemas de toda a grande cidade,


bastava regular o uso do solo e escolher o melhor ponto geográfico – na implantação
das cidades novas – para que tais problemas não acontecessem. Desse modo,
notamos que o discurso médico era desenvolvido para demarcar “a institucionalização
de um novo tipo de medicina que se vinha constituindo desde os anos 30/40 no Brasil”
(BENCHIMOL,1992, p. 115), ou seja, desde antes do início da epidemia. Para tal, a
medicina social se propunha a resolver questões que extrapolavam seu escopo,
ignorando que a formação da cidade se constituiu de problemas socioeconômicos
complexos e de longa data. Para a medicina, bastava eliminar morros, aterrar
pântanos e desalojar as pessoas que ali viviam na cidade velha.
No decorre do fim do século XIX, a dinâmica urbana se torna intrinsecamente
ligada à medicina social, à limpeza urbana, a um modo de comportamento dentro e
fora de casa. Com relação à habitação coletiva, um dos principais alvos da medicina
social – junto à classe que nela habitava – criticava a exploração dos proprietários e
as condições de higiene já mencionadas anteriormente. No que tange a morfologia da
90

cidade, os médicos se aventuraram na análise, tanto em questões arquitetônicas,


quanto na proposta para um novo tipo de cidade, na qual podemos ver a justificativa
– copiada dos ideais de Haussmamm – das intervenções futuras e da expansão:
[...] urbana por bairros considerados mais salubres para desafogar o centro;
imposição de normas para a construção de casas higiênicas; alargamento e
abertura de ruas e praças; arborização; instalação de uma rede de esgotos e
de água; manutenção do asseio em mercados e matadouros; criação de
lugares próprios para despejos etc. (BENCHIMOL, 1992, p. 117)

Esse discurso higienista, com abertura de vias para melhor circular o ar e a


padronização estética das vias pela arquitetura, serviu não apenas para limpar a área
do foco de doenças – o pobre proletário – mas também foi a oportunidade perfeita
para que o capital, estrangeiro e nacional, se instalasse na cidade. Sob a ótica do
higienismo vias eram abertas pelas grandes empreiteiras, além do sistema de
transporte ser operacionalizado sob o interesse dos capitalistas do transporte, aos
quais os planos da cidade se tornaram responsabilidade. O capital transformou,
assim, uma cidade colonial com traçado, arquitetura, economia e toda a sua dinâmica
de mobilidade, em uma cidade capitalista: as empresas operavam, com o Estado sob
sua tutela, provendo incentivos fiscais, doação de terrenos e concessão de exploração
do transporte.
O pobre não mais poderia habitar e circular por esse território capitalista: para
isso, a expansão da malha urbana em direção ao subúrbio foi fundamental. O
arrazoamento dos morros – e mais tarde com Lacerda e Negrão de Lima, na Lapa –
encontrava aí o pretexto fundamental: a sujeira do centro e as epidemias aos quais os
pobres eram os principais responsáveis.

3.3 O DISCURSO HIGIENISTA DE PEREIRA REGO COMO GUIA PARA AS


INTERVENÇÕES DE PASSOS

A análise de Benchimol mostra que, neste período de fim do século XIX, a


cidade se via num conturbado momento. Nos anos de 1870, apesar do cultivo do café
alcançar “auge das suas possibilidades de expansão e o Rio de Janeiro impunha-se
como o grande empório comercial do país” (1992, p. 138), tínhamos na capital do
império uma aglomeração da mão-de-obra e epidemias de febre amarela. A partir
desse momento, começava a se alinhavar o pretexto para as grandes remodelações
91

na capital.
O autor mostra que a “penúria e carestia das habitações para a grande massa
dos pobres irrompeu no Rio de Janeiro no momento em que se desarticulou a
escravidão urbana, com a extinção do tráfico” (1992, p. 128). Além disso, a crise
habitacional se instalava e permanecia como característica latente, avivando-se e
sendo “confundida com os surtos epidêmicos” (Ibidem). Atribuía-se ao miserável a
culpa pela desordem da cidade e pela ausência de condições adequadas de moradia.
O discurso higienista, embasado na medicina social, tornou-se eficaz:
[...] ao formular um discurso sobre o urbano, cujos argumentos principais e
conceitos chaves repetem-se, até o início do século atual, com notável
regularidade, em tudo o que disseram ou escreveram os engenheiros,
políticos, governantes, jornais e capitalistas sobre a cidade, antes que Pereira
Passos e o governo federal a submetessem à grande cirurgia reclamada
pelos médicos desde isso. (1992, p. 118)

O caráter classista da higienização se expressa com o pensamento do médico


Pereira Rego, que vislumbrava uma sociedade marcada e segregada por posição
social e econômica na qual o "aspecto exterior de cada casa deve denunciar o fim a
que é destinada ou a posição social dos que a habitam” (BENCHIMOL, 1992, p. 145).
Essa visão não foi adiante, mas o simples fato de sua existência denota como
indivíduos ocupantes de cargos públicos, com poder de decisão, entendiam a questão
social que se colocava sobre o centro da cidade.
O discurso se dava em tom de propaganda, pelos textos médicos, no qual a
higiene imprimia um novo ritmo de vida. Não se podia mais viver como na colônia, era
necessário, para ser aceito na modernidade, agir como o europeu civilizado e branco.
Agora, o escravo passa a ser o vetor a ser extirpado da vida cotidiana da família e,
pois, na cidade moderna ele não poderia coexistir no espaço da casa. Assim, a visão
médico-política do escravo coincidia com o movimento econômico:
[...] que tendia a suprimi-lo da cena social. Com efeito, o hábito de ter
escravos no serviço doméstico foi sendo dificultado pelas mudanças
econômicas e culturais porque passava o Brasil. Desde a extinção do tráfico
negreiro, os escravos tornaram-se mais caros e mais difíceis de obter. A
família adaptava-se mal a esta situação [...] A higiene, apontando o escravo
como um mal, reforçava a ordem econômica, ensinando a família a prescindir
dele. Transformando a necessidade em virtude, os médicos tornavam o
inevitável, desejado. (COSTA, 1979 apud BENCHIMOL, 1992, p. 121)

Além de marginalizar aquele que usufruía da estrutura da cidade, foi necessário


92

criminalizar os produtores desse modo de cidade: a mão-de-obra desqualificada dos


mestres de obra. A partir de então, essa forma de cidade não poderia ser reproduzida.
Para isso, a medida entrava em consonância com um novo modo de cidade, um novo
modo de vida ao qual esses profissionais dariam lugar aos arquitetos, capazes e
alinhados com o pensamento higienista e as cartilhas de Pereira Rego. O médico
ainda propunha uma cópia do modelo inglês de fiscalização de obras, no qual
engenheiros e arquitetos cumpririam a função, eliminando de vez a desordem.
Benchimol alerta para o que estava implícito nessas medidas: as normas
faziam parte de um incentivo velado para o consumo de um estilo de vida, com
padrões de consumo condizentes à modernidade, diferente da que se vivia na colônia,
onde a institucionalização:
[...] dessas normas implicava mais do que a imposição de novos valores
arquitetônicos e novas relações sociais entre os homens no espaço. A
condenação da velha forma artesanal de produção das casas legitimava a
presença da indústria de construção articulada à importação de uma
infinidade e aparelhos, materiais e objetos de consumo doméstico. (1992, p.
145)

O autor ainda assevera:


Esse discurso infiltrou-se no senso comum das camadas dominantes e das
camadas médias, culturalmente subalternas, que nos anos setenta já
constituíam uma influente "opinião pública", favorável a todo tipo de
melhoramento que transformasse a capital do Império numa metrópole
salubre e moderna. (1992, p. 118)

Com o discurso montado e assimilado, restava a execução do plano que serviu


para o acúmulo de capital dos investidores. Lenin deixa claro, em sua análise sobre o
imperialismo, que os investidores internacionais financiaram as obras de infraestrutura
no Brasil e que o “capital financeiro estende assim as suas redes, no sentido literal da
palavra, em todos os países do mundo” (2011. p. 186). O capital privado se apodera
do urbano e Benchimol evidencia que o "sistema de intercomunicação ou contato
entre elementos circulantes” (1992, p. 118) foi seu principal alvo, mostrando sua
relação com o Estado, onde o capital estava revestido:
[...] do papel de autêntico agente regenerador da cidade, ao lado do Estado,
ao qual cabia essencialmente patrocinar, fiscalizar e coibir, o grande capital
era convocado para diluir os perigosos nódulos de coabitação numerosa e
para expurgar as frações mais mesquinhas do capital mercantil - sob essa
ótica os principais agentes da desordem da mistura urbana. (Ibidem)

Dessa maneira, o Rio de janeiro passa de cidade colonial – com comércio e


93

moradia dividindo espaço com a incipiente industrialização, com escravos sendo


alugados por seus patrões próximos às sedes de bancos, com ruas estreitas e mal
calçadas – para cidade capitalista. Nela, Passos representaria as elites capitalistas
com o discurso higienista construído por Pereira Rego – porta-voz da medicina social
e fundamental para o aceite da opinião pública –, caindo no senso comum a
necessidade dessas intervenções de capital na cidade.
Mas, antes de seguir para as intervenções pautadas na abertura de vias 69, é
preciso acrescentar algo mais sóbrio que produziu o discurso da medicina social. Para
isso, vale lembrar que Pereira Rego – que era médico e vereador – discursava sobre
a eliminação dos cortiços, delimitava o centro da cidade, e a área onde tal tipo de
moradia não poderia mais estar “era basicamente o perímetro da Cidade Velha”
(BENCHIMOL, 1992, p. 132).
Traçava assim, o ilustre médico, o perímetro que durante todo o século XX seria
o espaço a sofrer inúmeras modificações, acompanhando as tendências e arquitetura
de todas essas épocas. O médico definia, assim, duas estratégias, na qual a primeira
seria a questão da higiene e salubridade. A segunda estaria relacionada “ao
embelezamento, expressão que adquiria, naqueles anos, grande ressonância devido
às obras de remodelação de Paris” (BENCHIMOL, 1992, p. 131), tendo Haussmann
como o grande realizador, “a quem Pereira Passos seria comparado meio século
depois” (Ibidem).

3.4 AS INTERVENÇÕES DE PASSOS

As intervenções na área da cidade velha representariam grandes conflitos por


conta da complexidade de seus problemas: proprietários de imóveis importantes –
inclusive o Império – e o alto valor nas indenizações por demolição. Desse modo, a
dificuldade de análise dos custos dessa operação fez com que as primeiras
intervenções fossem em direção à Zona Norte – Andaraí e adjacências – e para a
Zona Sul. Benchimol mostra que este não foi o único motivo, já que ninguém queria
enfrentar o problema político que as demolições poderiam gerar. Por isso, a abertura

69
Orquestradas pelo capital estrangeiro e nacional imiscuídos nas empresas de transporte público.
94

das vias aconteceu primeiramente em direção à zona norte da cidade, garantindo a


ocupação desses bairros, além dos ganhos dos capitalistas detentores de terras e das
empresas dos bondes. O autor elucida essa ação da seguinte maneira:
O Canal do Mangue constituía o eixo em torno do qual se alinhavam as
extensas e largas avenidas projetadas, conforme as novas concepções
urbanísticas postas em prática nas cidades europeias, a partir de
Haussmann. Mas ao invés de serem rasgadas no centro densamente
povoado, para desalojar os quarteirões operários, eram traçadas na periferia
da cidade, para induzir a sua ocupação, à semelhança do Bulevar 28 de
Setembro, aberto, pelo Barão de Drumond. E que a construção de avenidas
na área central implicava, naquele momento, um custo financeiro e político
excessivamente elevado. (1992, p.142)

Apesar do crescente interesse pelo controle de expansão da cidade por um


capital incipiente, mas que demonstrava interesse em ordenar o território a sua
maneira, temos que sua clareza de ímpeto se expressa quando Abreu (2008, p. 47)
cita Maria Terezinha Segadas Soares. Essa autora coloca as empresas que
controlavam o transporte nos bairros de São Cristóvão e Jardim Botânico,
respectivamente, como protagonistas nas negociatas políticas a fim de prolongarem
seus negócios.
Além disso, o panorama econômico e político da época se dava pela chegada
da pequena indústria à cidade do Rio de Janeiro. Instalada nos bairros periféricos ao
centro, principalmente, em São Cristóvão devido à infraestrutura que a freguesia
contava, como portos e a linha férrea. Apesar desta lógica expansionista, era o centro
da cidade que seria o principal alvo e modelo, onde o ideal do Belle Époque se
evidenciaria. O ilustre médico Pereira Rego, já havia traçado o perímetro que durante
todo o século XX seria o espaço a sofrer inúmeras modificações, acompanhando as
tendências e arquitetura de todas essas épocas:
Na segunda cláusula abria, porém, algumas exceções; indicava ruas e
morros na área demarcada onde poderiam ser construídas casas
assobradadas: Ruas do Senado, do Espírito Santo, Travessa do Barreira,
Becos do Piolho e do Fiasco, Ruas do Núncio, do Regente, do Costa, São
Jorge, Senhor dos Passos, Estreita de São Joaquim, Lampadosa e Beco da
Moeda. (BENCHIMOL, 1992, p. 132)

Para além da área de intervenção traçada por Pereira Rego, analisando a


evolução urbana no Rio de Janeiro, Maurício de Abreu mostra que o sistema de
transporte teve papel importante na expansão da malha urbana da cidade, justamente
pela introdução de capital estrangeiro nessas empresas. Além disso, como mostra o
95

autor, diversos setores tiveram contribuição:


[...] além da proclamação da república, que retirou de São Cristóvão o status
de abrigar a família imperial, para a mudança de aparência e conteúdo do
bairro. A procura cada vez maior desse bairro para a instalação de indústria
que buscavam uma localização próxima aos eixos ferroviários, ao porto, e ao
centro da cidade foi um deles. Mas o mais importante – e com efeitos não
apenas em São Cristóvão, mas sobre toda a cidade – foi, sem dúvida, a
difusão da ideologia que associava o estilo de vida “moderno” a localização
residencial à beira-mar. Atrás desse movimento estavam as mais variadas
unidades do capital, destacando-se aí a Companhia Jardim Botânico,
interessada em estender o território sobre o qual tinha monopólio de
transporte. (2008, p. 47)

No processo industrial da cidade do Rio de Janeiro no século XIX e na Política


Higienista, percebe-se que o desenvolvimento de um modo de vida ditado por
acontecimentos históricos bem-sucedidos, alteraram a forma urbana da cidade. A
industrialização, também incipiente devido às barreiras criadas pela aristocracia
cafeeira, começava a tomar forma.
Gradativamente, o centro da cidade passava a abrigar fábricas, caracterizadas
por pequena produção industrial quase artesanal de chapéus, móveis, pequenas
fundições e algumas gráficas. Ao fim da monarquia, os casarões de São Cristóvão
passam a abrigar algumas indústrias de porte maior, caracterizadas por pequenas
fundições e por um setor têxtil crescente, que mais tarde passam a caminhar em
direção à Zona Sul e a Zona Norte carioca. Benchimol põe em evidencia que nessa
época a região de São Cristóvão:
[...] ainda era uma área de moradia valorizada, ocupada pelas chácaras e
palacetes da aristocracia do Segundo Reinado, muito embora já fosse
rivalizada por bairros da Zona Sul, como a Glória, Catete e Botafogo. A
intensão de instalar aí as atividades portarias, comerciais e industriais
prenunciava o processo de mudança de conteúdo na ocupação dessa área,
que só se consumaria na década de 1890. (1992, p. 144)

Entretanto, na visão de Abreu, é o transporte público que – com a implantação


das linhas de bonde para a zona sul e norte, os ramais ferroviários também para o
norte, mas representando uma maior penetração e expansão do território, além das
disputas entre as companhias pela manutenção e para novas concessões de linhas –
se torna o fundamental agente transformador da cidade, pois eram essas empresas
que possuíam capital privado nacional e estrangeiro. Assim, o período inicia:
96

[...] em 1858, com a inauguração do primeiro trecho da estrada de ferro dom


Pedro II (atual Central do Brasil) que permitiu, a partir de 1861, a ocupação
acelerada das freguesias suburbanas por ela atravessadas. A partir de 1868,
com a implantação das primeiras linhas de bondes de burro, outro meio de
transporte veio facilitar a expansão da cidade, neste caso em direção aos
bairros das atuais zona sul e norte. (2008, p. 43)

O autor deixa claro que o transporte teve papel fundamental para o


crescimento tanto do capital nacional quanto do capital estrangeiro. Para o capital
proveniente dos produtores de café, o mercado de imóveis era o grande objetivo,
ressaltando que os bondes não vieram:
[...] a atender uma demanda já existente como, em atendendo a essa
demanda, passaram a ter influência direta, não apenas sobre o padrão de
ocupação de grande parte da cidade, como também sobre o padrão de
acumulação de capital que aí circulava, tanto nacional como estrangeiro. O
capital nacional, proveniente de grande parte dos lucros da aristocracia
cafeeira, dos comerciantes e financistas, passou cada vez mais a ser aplicado
em propriedades imóveis nas áreas servidas pelas linhas de bonde. O capital
estrangeiro, por sua vez, teve condições de se multiplicar, pois controlava as
decisões sobre as áreas que seriam servidas por bondes, além de ser
responsável pela provisão de infraestrutura urbana. Os dois, entretanto, nem
sempre atuavam separadamente, aliando seus esforços em muitas
instancias, quando esta associação era desejada, ou mesmo inevitável, como
no caso da criação de novos bairros. (2008, p. 43-44)

Apesar de Abreu explanar sobre a relevância das empreitadas organizadas


pela indústria do transporte na cidade, observa-se que o inchaço populacional se deu
devido ao processo industrial e se tornou um problema, principalmente, nas zonas
com infraestrutura deficitária. O somatório de fatores – industrialização e decadência
da atividade cafeeira – acrescido da imigração estrangeira, ocasionou o aumento da
força de trabalho que vai habitar os cortiços insalubres da região de dentro da cidade,
já que “era o centro, pois, o grande mercado de trabalho” (2008, p. 55).
O processo de abertura dos novos bairros aconteceu, também, sob a ótica das
habitações higiênicas. Seguiam o discurso de Pereira Rego – e de outros médicos
que corroboravam com essa ideologia – a fim de sanar e eliminar os cortiços do centro
do Rio. Benchimol e Abreu mostram que esse processo das construções de habitação
inauguraram uma etapa de isenções fiscais para as empreiteiras:
97

O Estado passa assim a ajudar a empresa privada, cumprindo um papel que


teoricamente não lhe cabia: assumiu pela primeira vez a responsabilidade de
subsidiar, pelo menos em parte, a reprodução da força de trabalho.
O decreto legislativo de 08/2/1888, por sua vez, concedeu privilégios de
isenção de impostos sobre importação de materiais de construção, e de
concessão de terrenos e edifícios, à firma que se propusesse a edificar casas
populares. (ABREU, 2008, p. 57)

Assim, esse ato se tornou histórico, pois foi a primeira vez que a isenção de
impostos às empresas privadas havia sido concedida. Neste decreto, era livre de
impostos a empresa que construísse moradias higiênicas para seus funcionários, fato
que possibilitou as vilas operárias. Pouco tempo depois, no mesmo ano da Lei Áurea,
o governo isentava de impostos as importações de materiais de construção, o que
proporcionava benefícios ao setor privado da construção civil, possibilitando a
expansão e a manutenção do exército de reserva de mão de obra. Essas medidas, na
prática, privatizavam a reprodução da força de trabalho e aumentando a acumulação
para o capitalista, já que trabalho e habitação estavam relacionados a ele.
Temos assim que a mais-valia extraída do trabalhador habitante das vilas
operárias, passa a não ter gastos com habitação e, já que os gastos com habitação
deveriam sair do seu salário, o industrial não precisará pagar um salário maior. Assim,
beneficiando-se dessas medidas, na última década do século XIX, a empresa de Artur
Sauer já havia construído cinco vilas operárias, como visto em Abreu (2008).
Como exemplo da proposta higienista, temos as imagens a seguir:
98

A imagem à esquerda, é um retrato de


típico cortiço carioca, ilustrando a
precariedade das habitações do centro
da cidade, o pouco espaço e a grande
quantidade de moradores.

A imagem à esquerda e a baixo, mostra


um modelo de habitações higiênicas que
seria implantado nesta etapa de
desenvolvimento da cidade do Rio de
Janeiro, onde a indústria da construção
seria aliada no processo das
intervenções higienistas.

Fonte: Foto do X.X: Augusto Malta 70.


Fonte: Abreu (2008) Figura 00 –
Habitações Hygiênicas

Mas mesmo com essas ações, o problema dos cortiços e da sua insalubridade
não havia declinado. Com o novo século, o novo ideal pôde ser posto em prática, onde
os mais pobres passam a ser realocados na Zona Norte, seguindo o fluxo das vias
férreas abertas. O centro e o sul não poderiam mais abrigá-los, ficando evidente a
divisão da cidade, o lugar de cada classe e o lado que o governo iria favorecer.
A Era Passos, das grandes intervenções viárias no centro da cidade, dos
desmanches de morros e de cortiços, chega junto com a república. À essa época, o
capital já estava num emaranhado processo com o poder público, com a elite
intelectual – os médicos higienistas – e absorvido pela opinião pública. Assim, Passos
não encontrou dificuldades em limpar de vez a pobreza e privilegiar os investidores
nacionais e internacionais. O traçado de suas intervenções, como mostra o mapa

70
CARVALHO, Lia de Aquino. Contribuição ao estudo das habitações populares. Rio de Janeiro: 1886-1906.
99

abaixo, oxigena o centro da cidade com um capital evidente e um estilo de vida


cosmopolita copiado das grandes mudanças urbanísticas pela Europa e América do
Norte.

Fonte: Andreata (2008) – Intervenções de Pereira Passos.

As linhas em vermelho, representam os novos eixos viários e, também, por onde


aconteceram as grandes demolições da época. No mapa, podemos perceber como as
intervenções de Pereira Passos alteraram o traçado urbano da região central da cidade,
inclusive na região da Lapa – Praia da Lapa ao Morro de Santo Antônio – onde
posteriormente melhor analisaremos as intervenções.

Complementando a ideia da abertura de novas vias na cidade e da exclusão


de uma classe indesejada, vista como perigosa, Abreu apresenta o caráter de limpeza
social do higienismo de Passos, onde:
[...] o alargamento das ruas centrais e a abertura de novas artérias, que
atravessavam preferencialmente as velhas freguesias artesanais e
industriais, “destruiu os quarteirões de cortiços, habitados pelos proletários, e
os armazéns e trapiches dos bairros marítimos numa extensão de
aproximadamente 13ha”. (LOBO, 1978 apud ABREU, 2008, p. 63).

Assim, a relação Passos/Capital se torna evidente quando entendemos sua


relação política com Paulo de Frontin – também engenheiro e financiado por grandes
construtoras –, junto da relação de ambos com o Clube de Engenharia. Essa relação
política e econômica é evidente no concurso de fachadas para a Avenida Central,
onde somente empresas grandes poderiam participar tornando-a “um cartão postal do
embelezamento do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo em que se torna um catálogo da
capacidade e talento das grandes construtoras” (ROCHA, 1995, p.108-109).
100

Fonte: Abreu (2008) – Projeto da Avenida Central.

O plano de intervenções de Pereira Passos promoveu uma série de demolições para a


abertura da Avenida Central – atual avenida Rio Branco –, inclusive o desmonte do
morro do Castelo, proporcionando, segundo a abordagem higienista, melhor ventilação
e condições de higiene para o bairro. Entretanto, podemos ver no plano acima a
quantidade de casarões demolidos da região da cidade velha cujo discurso higienista
limpou a classe indesejado para os subúrbios.

Essas intervenções – como vistas na imagem acima – sob o pretexto de dar


boas condições a população, mostram-se frágeis. Elas refletem, em verdade,
profundas contradições de linguagem em relação ao seu conteúdo, à forma como se
materializam e ao modo como são financiadas. A higienização tem, na verdade, o
sentido de limpar a pobreza dessa área central de solo supervalorizado, com
edificações que expressam um ideal e com espaços públicos portadores de uma
ideologia. A partir desse discurso higienista, as pessoas indesejadas, vetores da
doença pobreza, foram arremessadas seguindo o caminho da linha do trem, na
direção do subúrbio. E, como mostra Abreu, tiveram que morar com outras famílias,
arcar com custos dos “aluguéis altos (devido à diminuição da oferta de habitações) ou
a mudar-se para os subúrbios, já que pouquíssimas foram as habitações populares
construídas pelo Estado em substituição às que foram destruídas” (2008, p. 66).
Após as obras de remodelação de Pereira Passos, andar no centro do Rio
passou a ser um passeio para quem podia consumir trajes, e se comportar de maneira
condizente ao novo estilo de vida importado.
101

3.5 CONSIDERAÇÕES SOBRE AS INTERVENÇÕES DE PASSOS

O processo de evolução da cidade do Rio de Janeiro, iniciado no fim do século


XIX e - aparentemente - consolidado com Pereira Passos, teve por característica o
movimento de capital dentro da cidade. Sua expansão para os bairros periféricos ao
centro, deveu-se ao ímpeto do capital estrangeiro e nacional. Para a consolidação do
processo, foi necessário contar com a ideologia de ocupar as áreas próximas ao mar
– o status moderno – símbolo de uma vida elitizada.
As transformações durante o fim de século XIX, estavam em fase embrionária,
ainda em projetos, esperando o momento exato para ser executado: a república.
Nesse período, Passos ganha a fama de modelador da cidade, com o discurso de
limpeza urbana, efetuando as obras necessárias para varrer os indesejados da cidade
e dar novo significado ao centro. Pechman afirma que a execução “de uma rede de
circulação e o desamontoamento das atividades na cidade são, portanto, um momento
fundamental de constituição do urbano” (1999, p. 378-379), deixando em evidência
que o higienismo:
[...] é, pois, para Didier Gille, "a forma através da qual devem fluir os
enunciados" da nova realidade urbana, já que ele materializa, ao longo do
século XIX, o desejo de transformação de um corpo doente num organismo
sadio: o Higienismo é a expressão da primeira forma de uma política urbana
de enquadramento e controle da cidade. (Ibidem)

Além disso, os dois preceitos fundamentais do higienismo, a articulação viária


e a beleza arquitetônica diversa, não solucionam os problemas da cidade. Em
verdade, eles criam um novo modelo de cidade a se produzir. Seja como farsa e
depois como tragédia, Lenin, Engels, Benchimol e Abreu, deixam claro que o modo
de produção capitalista – antes mesmo da virada para o século XX – produzia
habitação e cidades como forma de se perpetuar. Para Pechman, os
desenvolvimentos técnicos, como “os grandes aparelhos urbanos de água, esgoto,
eletricidade, etc.” (1999. p.380), marcaram e redefiniram os fluxos da cidade, e
também destruíram:
[...] a territorialidade, na medida que seu objetivo é apenas fazer circular os
fluxos, o que os torna órgãos de um organismo, na medida em que não
ocupam posição no território, apenas espaço na estrutura. Por isso, mesmo,
esse desenvolvimento faz do espaço uma abstração. (Ibidem)
102

Mas a motivação central para as intervenções de Passos na cidade do Rio de


Janeiro foram as epidemias da década de 1870. Essas epidemias favoreceram as
modificações técnicas no centro antigo e, como mostra o autor, na cidade “se
volatiliza, os preceitos do Higienismo (diferenciação e circulação) se impõem e a
representação da cidade se reduz a seus aspectos técnicos de funcionamento”
(Ibidem). O processo ocasionou a ressignificação do centro da cidade, de lugar da
força de trabalho, para lugar das classes mais nobres, provocando uma percepção:
“[...] no âmbito da sensibilidade que o morador tinha de sua cidade é invadida
por dados e cifras, levando a que as representações da cidade se convertam
num conjunto de dados estatísticos, através da qual se lê e se diagnostica os
problemas urbano” (Ibidem).

A partir daí o centro antigo não poderia mais abrigar a força de trabalho pobre
que lá vivia. O novo centro seria mais que o modelo a ser reproduzido pela cidade,
seria o palco de uma nova maneira de viver.
Desta forma, já no período das intervenções de Passos, a Lapa figurava como
coadjuvante pronta para tomar o papel principal na história da boemia da cidade.
Devido sua posição geográfica, situada numa região de ligação entre a zona sul e a
zona norte, em 1890 a Lapa e o centro da cidade:
[...] já estão recortados pelas linhas de bondes puxados por animais,
substituídos em 1894 pelos elétricos. Na Lapa passavam os bondes que iam
para a zona sul e Santa Teresa, e entre o Passeio Público e a Glória o mapa
assinala o “Caes Novo da Glória”. Entre os anos de 1889 e 1905 o litoral da
Baía da Guanabara em frente à área estudada era denominado de Praia da
Lapa. É a primeira vez que o nome Lapa aparece sozinho designando a
região litorânea e desvinculado da denominação da Igreja de Nossa Senhora
do Carmo [...]. (JARA CASCO, 2007, p. 126-127)

Entretanto, o destino dos removidos fazia parte do sistema: remove-se os


indivíduos e os coloca em novas habitações para além da fronteira – como Smith
elucidou anteriormente – seguindo o eixo para o subúrbio. Essa dinâmica consistiu na
reprodução das classes e a força de trabalho, na segregação da sociedade pelo
espaço e a constante acumulação de capital.
103

3.6 O HIGIENISMO E A LAPA: A EXCLUSÃO SOCIAL COMO ANTECESSOR DO


PROCESSO DE GENTRIFICAÇÃO

A fim de compreender melhor os processos de exclusão social pela produção


do espaço, observaremos a Lapa, o bairro 71 mais boêmio do Rio de Janeiro.
Se olharmos pela concepção de Lefebvre, o espaço expressa as necessidades
humanas, servindo ainda como lugar para suprir algumas dessas necessidades. Mas,
a transformação do espaço em mercadoria, faz dele elemento fundamental para o
processo de gentrificação e de comercialização de áreas da cidade. O bairro, a rua ou
uma esquina, tornam-se mercadorias portadoras de ideologia.
Além disso, o pensamento de Smith a respeito do movimento de capital nas
escalas 72, deixa claro a relação histórica do indivíduo com o espaço, fazendo dele um
prisioneiro – como no feudalismo – ou um ser livre, como se pensava nos primórdios
do capitalismo sob ótica liberal. Assim, o modo de produção capitalista faz do indivíduo
um ser dependente ao espaço, não por sua relação de escravidão a um senhor feudal,
mas por sua busca – induzida, quase sempre – incessante por pertencer a grupos
sociais.
Mesmo entendendo que o grupo social é segregado espacialmente – expresso
num bairro pobre ou numa favela, por exemplo – possui relação social, cultural e
política, com as classes que o domina e a quem servem. O desejo de se inserir em
um grupo, ou por passar despercebido no espaço público, faz com que indivíduos
usem seu poder de camuflagem 73. E isto não foi diferente no Rio de Janeiro higienista
do fim do século XIX e início do XX.
Palco de figuras alegóricas e caricatas, a Lapa – com malandros famosos e
anônimos, cenário de artistas e políticos, espaço de imigrantes portugueses,
espanhóis e nordestinos, lugar de corruptos, malandros, artistas e trabalhadores –
ilustrava as páginas de noticiários, livros e poemas com todos os seus personagens

71
Passou a ser bairro em 2012, e conforme Rosemere Maia: “Além de toda uma “identidade” que se busca construir/resgatar em
relação à Lapa - muito pautada em elementos relacionados à cultura, ao lazer, às práticas sociais que marcaram a área ao longo
do tempo -, em 2012, por força de lei, a Lapa foi “emancipada” do Centro, tornando-se um bairro, o que vem contribuindo, ainda
mais, para o reforço de muitos de seus atributos/qualidades “especiais”, sua vocação para o turismo e, também, para a moradia,
além de justificar ações/intervenções mais incisivas, o que ficaria mais complicado caso houvesse a necessidade de diluí-las por
toda a área central – que não compartilha, em igual medida, de todos os atributos conferidos ao citado bairro” (MAIA, 2015. p.13).
72
Estudada no item 2.1 dessa dissertação.
73
Como visto em (DELGADO, 2011).
104

verossímeis.
Numa breve história da Lapa, a expansão da cidade levou as classes mais
abastadas para a zona Sul – como vimos anteriormente – e Gutterman mostra que
“os sobrados residenciais das famílias abastadas se transformem em habitações
coletivas como casas de cômodos ou cortiços” (2014, p. 25). O fim do Século XIX a
Lapa estaria experimentando uma fase de decadência – associada, por alguns
autores, a imagem de um local degenerado e sujo –, com ruas estreitas devido ao
processo orgânico de ocupação (Ibidem).

Fotos - Fonte: IMS Fotos: Marc Ferrez. Consultado em: 31/01/2017.

Vendedoras de miudezas, vassoureiro, jornaleiros, quitandeiras, em contraponto com os


senhores vestidos de preto e as damas com chapéus elegantes. Na última foto, Pereira
Passos posando ao lado do Barão do Rio Branco. No novo centro do Rio de Janeiro
(1890), profissões indesejadas também foram eliminadas da área, já que a cidade
precisava ostentar a imagem de capital do país e ostentar o status cosmopolita.

As intervenções higienistas de Pereira Passos, por todo o centro do Rio de


Janeiro, também deixaram marcas no território da Lapa. No início do século XIX, o
bairro boêmio dos nossos dias – século XXI – ainda não era Bairro. Como mostra
105

Gutterman, a Lapa recebeu novo significado com “ares afrancesados, com a


arborização do Largo, a recuperação do Passeio Público e a construção do
lampadário” (2014, p. 26). Para isso, como mostra o mapa a seguir, “novas vias e
avenidas amplas se faziam necessário, em contraste com as ruas estreitas e becos
que existiam, por vezes consideradas foco de epidemias” (Ibidem).

Plano urbanístico: Fonte: Prefeitura do Rio de Janeiro (2016) Disponível em:


pinterest.com/pin/436778863844186186/>. Consultado em: 31/01/2017
Fotos: Fonte: Pinterest. Av. Mem de Sá em 1905 Disponível em:
<https://br.pinterest.com/pin/436778863844186186/>. Consultado em: 31/01/2017

Como no plano de abertura da antiga Avenida Central, Pereira Passos também usou a
mesma lógica higienista das demolições para as intervenções – no mesmo período – na
Lapa: no projeto de abertura da Mem de Sá vias largas em detrimento dos casarões
antigos. As demolições levaram a arquitetura colonial e trouxeram a arquitetura eclética,
além de levar os indesejados e trazer as classes mais altas.

As demolições – como nas imagens acima – para o novo traçado urbano,


higienista em sua essência, saneava não apenas as ruas estreitas e tortuosas, mas
principalmente os moradores da região, já que neste período a Lapa não vivia mais a
106

fase majestosa de meados do século XIX. Assim, as demolições no bairro


acompanhavam o arrasamento do centro, trocando a arquitetura colonial pela eclética,
os cortiços pelos edifícios e a classe pobre pelas elites.
Podemos também encontrar na literatura da época relatos sobre o processo de
exclusão social e a eliminação dos indesejado. Observamos na obra de Lima Barreto,
em um conto de 1915 chamado Carta de um pai de família ao doutor chefe de polícia,
relatos sobre o deslocamento de meninas da região das novas construções e que se
instalaram numa rua menos mal frequentada anteriormente. Assim, o autor ilustra o
cenário da época:
Acontece Excelência, que de uns dias a esta parte vieram para a minha
vizinhança umas moças que não são bem parecidas com minhas filhas nem
com as primas delas. [...] e andei indagando de que pessoas se tratava e
soube que eram meninas, moradoras nas ruas novas, que a polícia estava
tocando de lá, por causa das famílias. [...] Demais, quando se fez a referida
avenida, elas logo tomaram lugar. Há a favor delas o tal uti possidetis, o que
não acontece com minha triste rua. Vossa Excelência deve meditar bem
sobre o assunto, para não classificar as famílias da Rua Joaquim Silva abaixo
das de Mem de Sá. Não há hierarquia familiar na nossa sociedade. Não é
Doutor? [...] (BARRETO, 1915 apud LUSTOSA, 2001, p.36)

Sabemos que esta não é uma história verídica, mas o que se sabe de Lima
Barreto é que a “transformação histórica do bairro emerge das páginas de Aluísio
Azevedo e Lima Barreto” (LUSTOSA, 2001, p.15). Lustosa diz que podemos perceber
como que “a Lapa passou de bairro honesto habitado por boas famílias a lugar da
mais variada prostituição e de mais desvairada boemia” (Ibidem).
Além de Lima Barreto e seus contos, encontramos no trabalho de Mario Lago
as memórias de sua vida na Lapa. Este autor elucida a existência do receio das
“pessoas consideradas de bem” em se estar, ou morar, próximo aos limites da boemia.
E como conta o autor a respeito de sua vivência:
Nasci um pouco distante de seus limites, na Rua do Rezende, mas não tanto
que até lá não chegassem seus ecos e fluidos. Entre as casas de família se
misturavam pensões de mulheres, mais ou menos do conhecimento de todos.
Enquanto cresci mudamos de moradia e rua não sei quantas vezes e, a cada
mudança, mais íamos nos aproximando daqueles limites que as pessoas
consideradas de bem olhavam com preconceito, mal disfarçando certo horror.
A Lapa foi chão de todos os meus passos. Na busca de caminhos e atalhos
que descaminham. Na primeira ânsia e no ultimo nojo, no ultimo desencanto
e na primeira afirmação. Conheci-a em muitas realidades e diversos tempos.
(LAGO, 1976 apud LUSTOSA, 2001, p. 95)
107

O ódio às classes pobres não foi percebido nesses contos e poemas, mesmo
sabendo que aconteciam, como relatado anteriormente por Guimarães. Mas também
poderiam ser o embrião deste discurso de ódio aos que não se adequam ao padrão
da sociedade em cada período. Assim, notamos que a Lapa era retratada, em fins de
XIX e início de XX, como um lugar de disputa de classes por território dessa importante
fatia do centro antigo.
Da mesma maneira que Smith define as intervenções realizadas em Paris pelo
Barão de Haussmann como proto-gentrificação 74, também podemos ver o embrião da
gentrificação por nossa cidade, dita como a grande capital da América do Sul – mesmo
tendo fama de empesteada e inabitável no século XIX, como mostrou Benchimol – e
que passava por intervenções drásticas no tecido urbano, pautados por princípios
similares aos higienistas de Paris. Mas, o conto de Lima Barreto (1915) acima citado,
aponta outro caráter desse processo, bem explicado por Bauman, sobre a
incapacidade ou ojeriza do ser humano em se misturar com os diferentes. Nesse caso,
um trabalhador, não podia se misturar com moças da vida, que haviam sido expulsas
pelo poder público de uma rua recém-aberta.
O que podemos dizer a respeito desse processo de intervenção pautado na
higienização é que, no Brasil, “levou ao reordenamento do espaço físico, mas esteve
longe de minorar as principais doenças que assolavam a cidade, principalmente as
classes mais pobres” (PECHMAN, 1999, p. 385). Foi uma empreitada de limpeza da
classe pobre que habitava o centro antigo, diferente do modelo europeu, onde a
percepção do progresso social:
[...] dependia das boas condições do meio urbano fez com que o projeto
reformador evoluísse das intervenções isoladas em pontos críticos
emergentes para uma compreensão mais articulada dos problemas urbanos,
e para uma ação mais coordenada (planejada) da expansão urbana que
levasse em conta as condições sociais de vida nos bairros populares, de
forma a minorar suas graves carências. Nesse sentido, a categoria meio
físico, explicativa dos problemas urbanos, começa a ceder lugar para a nova
categoria, meio social, onde as questões urbanas e as questões sociais irão
se articular. É exatamente do cruzamento dessas duas questões que nascem
as primeiras aplicações práticas do Urbanismo como ciência, e que iriam se
traduzir nas garden cities. (Ibidem)

74
En su famoso poema, «Los ojos de los pobres», Charles Baudelaire envuelve una narrativa proto-gentrificación dentro de un
poema de amor y distanciamiento. Ambientado a finales de 1850 y principios de 1860, en medio de la destrucción del París de
clase trabajadora a manos del Barón Haussmann y de su monumental reconstrucción. (SMITH, 2012, p. 79)
108

O caráter classista das mudanças de Pereira Passos fica em evidência quando


Pechman observa as drásticas intervenções no centro “com a destruição de cortiços,
casas-de-cômodo e casas anti-higiênicas ao mesmo tempo que o agravamento da
crise de moradias e a piora das condições de habitabilidade” (1999, p. 385). Por um
lado, “o centro urbano é objeto de intervenção, regulação, instalação de infraestrutura
e embelezamento” (Ibidem), o que não acontece com outras partes da cidade que
crescem “espontaneamente, sem qualquer controle das autoridades reguladoras,
reproduzindo ali os problemas urbanos resolvidos acolá” (Ibidem).
Assim, a experiência urbanística brasileira teve fim “na regeneração do corpo
urbano sem necessitar negociar melhorias nas condições de vida dos grupos que, da
cidade, sobreviviam de seus restos” (PECHMAN, 1999, p. 385). As questões sociais
não eram tratadas da mesma maneira que nos países onde o higienismo foi
implantado, visando um projeto social. Sob este paradigma, o autor mostra que no
Brasil:
[...] apesar dos problemas sociais e urbanos, não tínhamos ainda uma
questão social, e os problemas urbanos haviam enveredado pelas sendas do
embelezamento da cidade e da produção de uma civilidade higienizada, de
tal forma que a cidade consolidava seu papel de capital do país apoiada na
sua vocação para a capitalidade e para o cosmopolitismo. (Ibidem)

Pechman aponta a carência do debate sobre a urbanização nesse período no


que tange os direitos sociais, já que pretendia copiar uma forma de comportamento
espelhado no modelo de comportamento europeu. Mas, diferente do caso europeu
que “traria à baila a questão da degradação do meio social onde viviam os
trabalhadores” (Ibidem), os direitos sociais não figuravam como diretriz relevante nas
intervenções urbanas do início do século XX. A exclusão das parcelas mais pobres do
centro da cidade, até então chamado de antigo, fez-se pela valorização do solo devido
às obras de infraestrutura urbana e de embelezamento, cópia defeituosa e incompleta
do modelo de Haussmann.
109

4 AS DÉCADAS DE 1960 E 1970 E O FIM DO BAIRRO DE DEGENERADOS:


DISCURSOS, DEMOLIÇÕES E REMOÇÕES NA LAPA BOÊMIA.

Entre as intervenções de Pereira Passos e as demolições da década de


1960/1970, a Lapa experimentou o período do auge da boemia, mas também da
decadência. Nestes anos, planos urbanísticos não foram escassos pelo centro da
cidade e o bairro sofreu, além de perdas morais, perdas físicas que alteraram
profundamente o traçado, a memória e o seu futuro.

4.1 DA BOEMIA À DECADÊNCIA DA LAPA

Durante a fase boêmia, figuras ilustres frequentavam os cabarés, as casas de


jogos, os bares e até mesmo moravam nos domínios da Lapa. Moacir Werneck de
Castro relata em texto o panorama do bairro, os personagens reais:
A poucos quarteirões começava o famoso bairro boêmio da Lapa, onde
tinham pontificado Villa-Lobos, Di Cavalcanti, Jaime Ovalle, Noel Rosa,
Orlando Silva e outras figuras do mundo intelectual e artístico. Reduto da
malandragem, tinha como expressão mais célebre, nesse terreno, a Madame
Satã, um homossexual assumido, notável pela valentia máscula demonstrada
nas brigas com a polícia. Naquele bairro batizado por Luiz Martins de
Montmartre Carioca, moravam Manoel Bandeira e Candido Portinari, na rua
Teotônio Regadas. Ambos vizinhavam em boa paz com os bordéis das ruas
Conde de Lage, Taylor e Joaquim Silva, as rues chaudes onde a noite chique
era dada pelas francesas; muitas delas, com hábil e gracioso savoir-faire, daí
a pouco passavam as mundanas de alto bordo, modistas, concubinas de
políticos ou senhoras casadas. (CASTRO, 1989 apud LUSTOSA, 2001, p.
85)

Além desse autor, mais uma vez ressaltamos as memorias de Mario Lago sobre
a boemia no tempo em que frequentava os bordéis, dos cabarés e das ruas tortuosas,
da gente de boa e de má fama. Da briga em que presenciou “oito meganhas cercavam
um mulato, [...] Mas o mulato o escapava das mãos como uma enguia” (LAGO, 1973
apud LUSTOSA, 2001, p. 112) e que, no fim, tratava-se de mais uma briga da Madame
Satã. Entretanto, são as histórias da malandragem que permanecem no imaginário
popular e na literatura, o que dava força à fama de Montmartre Carioca, criando a
fama de lugar de vadios e brigões.
Nesta perspectiva, Guttermann mostra que a Lapa não era apenas de boemia
vadia, já que a “proximidade com várias instituições de ensino e cultura como o
Instituto Nacional de Música, os teatros da Praça Tiradentes e a Universidade
110

Nacional no Largo de São Francisco” (2014, p. 29), propiciava a troca de saberes


interdisciplinar no bares, cabarés e restaurantes, durante o intervalo dos copos.
Mas, as memorias do cotidiano da população que não pertencia à vida boêmia,
não faz parte dessa memória coletiva da Lapa de vida noturna. As memorias
individuais se perdem e o que fica é a memória coletiva, talvez a do senso comum de
que a Lapa foi apena o lugar da boemia.

4.2 O PROCESSO CIVILIZATÓRIO BRASILEIRO: A VIDA URBANA COMO


AMEAÇA.

Junto à remoção da prostituição da região da Lapa para a zona do mangue, um


projeto de nação começava a se consolidar em fins da primeira década e início da
segunda década do século XX. Esse processo é pautado na oposição da ideia da
cidade “que, por um lado, lhe tiram toda a positividade e, por outro, atribuem ao campo
todos os atributos necessários ao engrandecimento da nacionalidade” (PECHMAN,
1999. p.388).
O autor põe em evidência que uma visão anti urbana se vulgarizava no cenário
político da época, coordenando a “organização jurídico-liberal-federativa da República
Velha, vista como defasada da real existência do país” (1999. p.389). Assim, estaria
posto em discussão qual seria o real caráter nacional no fim da década de 1910. Desta
maneira, o caráter ideológico ruralista ultrapassa:
[...] o universo restrito do debate político e penetram nos domínios da moral,
preconizando uma filosofia anti industrialista e anti urbana, ressaltando as
vantagens e a superioridade da vida no campo. Essa ideologia, produzida no
próprio meio urbano, é incorporada pelos principais movimentos ideológicos
e políticos, seja à esquerda ou à direita, pelo pensamento católico e pelas
correntes nacionalistas. (Ibidem)

Pechman mostra que a visão ruralista da sociedade brasileira a respeito da


cidade era de uma sociedade deformada, artificialista e “desvinculada das
necessidades do país e derivada da grande importância que aqui se dava às ideias,
aos valores e aos modelos estrangeiros” (Ibidem). A partir desta concepção, os
ruralistas, segundo o autor, propunham como solução “a reorganização da Nação e a
solução para a questão social” (Ibidem), com a volta e a fixação do homem ao campo,
bases da reestruturação rural.
111

Neste período, formaram-se grupos de distintas orientações ideológicas, como


mostra o autor, na sombra da crise de identidade nacional:
Assim nascem os grupos políticos nacionalistas como a Liga Nacionalista de
São Paulo (1907) e a Ação Social Nacionalista (1920), o grupo católico Centro
Don Vital (1922), o Partido Comunista (1922) e os grupos de corte cultural
como o Grupo Verde-Amarelo (1924) e o Grupo Anta (1924). Várias
publicações surgem, também, nesse período no afã de potencializar a voz
desses grupos no espaço da sociedade nacional, como: a revista Gil Brás
(1919), a Brasiléia (1917), a Ordem (1921), a revista Karon (1922), a Revista
de Antropologia (1928), etc. (1999, p. 389-390)

Dentre estas revistas, temos algumas que se destacam pelo discurso explícito
de desqualificar a vida na cidade, mas de modo sempre seletivo. Pechman mostra
que a revista Brasiléia – intitulada de propaganda nacionalista – profere o discurso
que desqualifica “o Rio de Janeiro (cosmopolitismo) frente a São Paulo (nacionalismo)
e identifica a capital como um centro essencialmente cosmopolita e corrupto, voltado
para fins materiais” (Ibidem). Essa revista se encarrega de divulgar conteúdo
ideológico nacionalista e depreciativo, onde:
[...] o propósito de "defender o brasileirismo puro e integral, colocando a
religião e a moral como verdadeiros alicerces da Pátria", e observa que as
publicações nacionais não têm a preocupação de propagandear o país,
prevalecendo o senso estético ditado pela cultura europeia. A revista critica,
acidamente, a burocracia das cidades (junho/1917), diz que a imprensa se
afunda numa onda infernal de cosmopolitismo (dezembro/1917) e lamenta o
ambiente de imoralidade e libertinagem em que vive a juventude carioca
(janeiro/1918). (Ibidem)

O movimento nacionalista do ruralismo, acreditava que a civilização e a construção


da nação eram qualidades da vida campestre, construindo “pelo seu oposto uma
representação da cidade, aonde esta é o cenário da corrupção da civilização”
(PECHMAN, 1999, p.391). Por fim, as questões da identidade nacional estavam
contidas na oposição Brasil rural ou Brasil urbano, onde o autor mostra que:
[...] os intelectuais não conseguem pensar na questão da "regeneração" do
pais a não ser pelo ângulo do nacionalismo, passando ao largo das questões
do direito à cidade e à cidadania. Por isso, mesmo, veem a questão social
como derivada da construção do Estado, seja pelo viés autoritário, seja pelo
viés democrático, relegando-a a um segundo plano, diante do impasse criado
na definição de um destino - rural ou urbano - para o país. (1999, p. 393)

E desta forma, “a proliferação de ideologias ante urbanas, agraristas,


antiliberais e nacionalistas, haveria de retirar das cidades o tema da política, e
converter o debate sobre o pacto social, numa querela sobre a identidade nacional”
112

(Ibidem).
Não podemos apontar se este foi o movimento norteador do discurso de ódio
aos pobres, que culminou no desmonte do bairro da Lapa. Talvez não seja possível
associar o discurso do ruralismo ao discurso e aos planos urbanos das décadas de
1920 até 1950, já que a Lapa não era o alvo principal nessas intervenções. Mas, é
importante que ressaltemos o discurso ruralista, pois nele se expressava a ideia do
anti urbano, e, a Lapa, como expressão do bairro de degenerados, das prostitutas e
dos malandros, era o exemplo do que os ruralistas chamavam de cosmopolitismo.

4.3 OS PLANOS URBANOS E O DISCURSO DA LAPA DECADENTE.

Mesmo sabendo que os planos urbanos do início do século XX não tiveram a


Lapa como o principal objeto a ser remodelado, a região sofreu intervenções por conta
desses projetos. Nosso objetivo aqui não é aprofundar no caráter projetual de cada
plano, mas compreender brevemente o contexto histórico deles e como a Lapa estava
inserida nesta atmosfera. O que nos interessa é identificar se houve um discurso de
depreciação da região, que potencializou as demolições e sua eliminação no início da
década de 1970.
Assim, para iniciar nossa análise, vemos em Sampaio que a configuração
urbana do centro da cidade reflete “uma estratificação de paisagens que remonta ao
núcleo colonial, e que se consolida, ao longo de seu processo histórico, a partir de
uma contínua ocupação e reconfiguração decorrente de intervenções urbanas” (2016,
p.194). As intervenções a que a autora se refere, aconteceram sobretudo no período
do nosso recorte temporal – fim do século XIX e início do XX – fato que auxiliou a
construção para a cidade de “uma imagem emblemática a reforçar seu status de
Capital Colonial, Imperial e Republicana” (Ibidem). Onde, era vitrine para a:
[...] implantação e a difusão de modelos socioculturais, que na escala urbana
se apresentaram como propostas de intervenções, justificadas por discursos
pautados nos ideais de progresso e inovação de cada época. Seu processo
urbano foi marcado por intervenções urbanizadoras, remodeladoras e
renovadoras a partir do final do século XIX e, de forma mais sistemática, ao
logo do século XX, ao mesmo tempo em que o ordenamento urbanístico era
pautado por uma sucessão de normas. (Ibidem)
Significativa alteração no bairro da Lapa foi proporcionada pelos desmontes
dos morros do Castelo e de Santo Antônio. A autora destaca que o arrasamento do
113

Morro de Santo Antônio na década de 1950, implicaria em aberturas de vias – como


a Avenida Norte-Sul75 – causando extensas demolições “na Lapa para execução de
obra viária equivalente ao trecho sul da avenida” (2016. p.205). Este projeto, planejado
pelos arquitetos Affonso Eduardo Reidy e Hermínio de Andrade e Silva, ligaria a
esplanada de Santo Antônio à região portuária, como exposto nas imagens a seguir:

Mapa 1 – Fonte: Atlas Andreatta (2008). Mapa 2 – Fonte: Foto 1 – Fonte: Rio que passou 76. Foto 2 – Fonte:
Rio que passou 77.

As imagens e mapas acima, mostram as reformulações do espaço público e a limpeza


das classes que viviam nele, assim como Delgado e Smith abordam. O primeiro mapa
mostra as demolições dos morros que estavam na área da Lapa. O segundo mapa
mostra o plano que seria implementado com os desmontes dos morros, adequando o
centro do Rio aos princípios da modernidade.

Outro elemento que contribui para a análise desse processo é a movimentação


de capital na escala urbana, mesmo sabendo que no período da década de 1940 e
1950, a financeirização da economia ainda não acontecia. Sob esta lógica, Furtado e

75
Não foi executada plenamente, como mostra Sampaio:
76
http://www.rioquepassou.com.br/2011/10/20/parcial-do-centro-anos-50/
77
http://www.rioquepassou.com.br/2005/06/27/av-norte-sul-vi/
114

Rezende, ao analisarem outro trecho da cidade contemporâneo às intervenções


ocorridas na Lapa – a av. Presidente Vargas – mostram que as obras públicas
valorizavam além dos lotes urbanizados, terrenos adjacentes a elas. As autoras
deixam em evidencia não apenas a consciência da valorização destes terrenos, mas
também:
[...] a intenção de recuperar parte dessa valorização, o que nos permite aduzir
que essa disposição, de atuar contra os interesses particulares de
proprietários de terrenos, encontra-se apoiada na característica antiliberal do
Estado Novo (2008, p.123).

Em paralelo, Sampaio enfatiza que o tecido urbano da região do centro da


cidade já havia sido considerado arcaico por urbanistas modernos. Além do mais,
também havia sido preconizado “em projetos anteriores, como o da Avenida Diagonal,
do Eng. José Sabóia Ribeiro” (2010, p.10), sendo substituído posteriormente pelo
projeto da Avenida Norte-Sul.
Mesmo não havendo a execução plena de alguns planos urbanísticos – como
Agache e Doxiadis – a Lapa sofreu profundas modificações não apenas no traçado
urbano, mas também em aspectos sociais. Sampaio mostra que grande parte da “área
condenada não tenha sido varrida do mapa, não foi poupada da decadência física e
social, em função de seu destino incerto” (2016, p. 205).
Paralelo aos planos urbanos, os discursos nos jornais, na década de 1940,
fortaleciam a ideia da renovação urbana, mostrando o que aconteceria com o
arrasamento dos morros e dizendo os porquês dessas drásticas intervenções. O
discurso da necessidade de arrasamento dos morros era frequente nas notícias de
jornal, como nas matérias abaixo publicadas no jornal O Globo:
115

O Globo, 29/11/1940 78: Arrasamento immediato do


morro de Santo Antônio:“[...] A Prefeitura está tomando
todas as providências para dar início ao plano de obras, logo
no começa do próximo ano.
[...] A enchente de ontem veio demonstrar mais uma
vez a urgente necessidade do desmonte do morro de Santo
Antônio, que encheu a cidade de lama durante o temporal”.

O Globo, 17/10/1941 79: Grandioso pretexto para um


maior entrelaçamento continental: “O que será a feira Pan-
Americana, a realizar-se no Rio em 1942: Escolhido para o local
o morro de Santo Antonio - Em seguida, a tradicional colina da
cidade desaparecerá - O prefeito Henrique Dodsworth adeanta
palpitantes detalhes ao O Globo.
[...]Despedida da cidade: Como remate às suas
declarações, o Sr. Henrique Dodsworth aludiu à beleza do ponto
do qual o carioca poderá despedir-se da última elevação do centro da cidade, entre os
esplendores e festejos de uma feira verdadeiramente excepcional”.

O Globo, 11/04/1946: O desmonte do morro de Santo


Antonio: “As áreas serão distribuídas para construções,
logradouros, jardins e espaços livres - alargamento da avenida
Beira Mar - O prefeito Hildebrando de Góes visita a colmeia do
centro da cidade.
O desmonte do morro de Santo Antonio é considerado
uma necessidade para a cidade. Assim consideraram várias
administrações, mas, o morro tem resistido ao desejo de
arrasá-lo. Ocupando vasta área do centro, onde os terrenos são
muito valorizados, sua existência foi considerada de grande inconveniência para o
desenvolvimento da cidade. Perturba o tráfego, prejudica a limpeza urbana, dá ensejo a que
se desenvolva uma favela no coração mesmo da nossa “urbs”. Nos dias de chuva, pelas suas
encostas, desce verdadeiro lençol de lama que enche as ruas da planície, principalmente do
lado da Lapa, interrompendo o tráfego, provocando inundações com o entupimento dos ralos
e invadindo as casas”. (Grifos nossos)

As notícias evidenciam o discurso depreciativo da região do centro da cidade.


O morro seria a fonte de muitos problemas para o centro, desvalorizando o mercado
de solo e prejudicando a imagem da cidade. O evento internacional – a feira Pan-
Americana, a realizar-se no Rio em 1942 – serviria como pretexto para extirpar a fonte
de degradação da região do centro, chamada pelo jornal de a colméia do centro.
Como visto no item 2.4 desta dissertação ao apresentarmos Fiorin, o discurso

78
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=artigo&ordenacaoData=relevancia&allwords=Arrasamento+immediato+
do+morro+de+Santo+Antonio&anyword=&noword=&exactword=&decadaSelecionada=1940&anoSelecionado=1940
Consultado em: 28/01/2017.
79
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=artigo&pagina=&ordenacaoData=relevancia&allwords=entrela%C3%A7
amento+continental&anyword=&noword=&exactword=&decadaSelecionada=1940&anoSelecionado=1941&mesSelecionado=&
diaSelecionado Consultado em: 28/01/2017.
116

tangencia a manipulação com as figuras de linguagem e as imagens utilizadas a fim


de convencer o leitor do jornal a aceitar essas imagens da cidade degradada, dando
apoio às intervenções que potencializariam processo de exclusão social. A
valorização do solo, denota este processo potencializando as futuras demolições na
Lapa.

4.4 O DISCURSO DO BAIRRO DE DEGENERADOS

Voltando às alterações do traçado urbano, as modificações ocorridas na Lapa


durante este período – décadas de 1950 a 1970 – culminaram na etapa dos
arrasamentos, dos desmontes dos morros e das remoções de favelas.
Desta vez, como mostra a notícia abaixo, foi demolida uma histórica área da
cidade e que experimentava um processo de decadência:

O Globo, 09/08/1969 80: Urbanização da Lapa vai


demolir 300 prédios:“[...] Mas a SURSAN acha que a
urbanização não será concluída nos próximos dois anos, uma
vez que há necessidade de demolir cerca de 330 prédios.

A ideologia higienista de limpeza social persiste com o discurso presente nos


jornais, justificando a abertura de novas áreas para um novo modo de vida. Delgado
mostra que a interpretação de espaço público dos arquitetos e urbanistas81 se
expressa em intervenções como da notícia acima, pautadas nas demolições do
casario. Dessa forma, são justificadas “por projetos modernizantes, da avenida Norte-
Sul, ou da urbanização da esplanada de Santo Antônio de inspiração modernista, nos
moldes da Carta de Atenas” (JARA CASCO, 2007, p. 67).
Nas notícias a seguir, notaremos que o discurso da mídia vem apoiar as
intervenções ao expor as possibilidades de modernização do centro da cidade.
Contudo, o discurso contém um elemento depreciativo da vida no bairro, a fim de dar

80
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=artigo&ordenacaoData=relevancia&allwords=urbaniza%C3%A7%C3%A
3o&anyword=&noword=&exactword=&decadaSelecionada=1960&anoSelecionado=1969&mesSelecionado=8 Consultado em:
28/01/2017.
81
Analisada anteriormente no item 1.3.
117

mais força às demolições. A decadência moral, também mostrada por Sampaio


anteriormente, aparece no discurso depreciativo:
O Globo, 16/01/1964 82: Ruas do rio se
transformam em passarelas do pecado:“[...]
Passeando ou encostadas num poste ou portas de
estabelecimentos comerciais, de cigarros na boca,
as mulheres são facilmente distinguidas entre os
transeuntes”.

O Globo, 29/01/1964 83: Amigos da Lapa


pedem à polícia o saneamento moral do seu
bairro:“[...] O Sr. Theonas de Sousa e Silva,
presidente da ‘Sociedade dos Amigos do Bairro da
Lapa’, disse ontem que a reportagem ‘Ruas do Rio
se transformam em passarelas do pecado’,
publicada dia 16, em O Globo, coincidiu com a luta
que vem travando contra a permanência no bairro
de prostitutas, mendigos, anormais e delinquentes”.
[...]Disse que a Sociedade dos Amigos do
Bairro da Lapa, reconhecida como de utilidade pública, vem, desde sua fundação, em
novembro de 1958, lutando pelo bem-estar social do bairro. Nesse sentido, tem trabalhado
insistentemente, junto aos órgãos competentes do Estado, em prol do saneamento moral da
Lapa.
[...]pedindo medidas energéticas para o descalabro imoral, em que se encontram as ruas
da Lapa.
[...]O plano terá como principal objetivo as mundanas e os mendigos da rua do Passeio
e Praça Paris”.
(Grifos nossos)

A capacidade de camuflar, apontada por Delgado mais acima 84, pode ser
exemplificada com a primeira notícia. Mais do que as vestimentas, o gênero e o
comportamento são elementos que identificam a degradação moral noticiada pelo
jornal. Além da caracterização da prostituição exclusivamente feminina, as notícias
também mostram o caráter social, onde os mendigos são alvo das queixas dos que
lutam pelo bem-estar social do bairro.
Ainda sobre este período e fazendo uma comparação com a obra de Smith, o
autor explica as origens da gentrificação nas cidades Inglesas do pós-guerra 85 como
ocasional, onde o movimento de capital e de pessoas acontecia de maneira inicial.
Assim, o autor elucida que décadas mais tarde, as classes médias altas tentariam

82
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=artigo&pagina=&ordenacaoData=relevancia&allwords=passarela+do+p
ecado&anyword=&noword=&exactword=&decadaSelecionada=1960&anoSelecionado=1964&mesSelecionado=&diaSelecionad
o= Consultado em: 31/01/2017.
83
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=artigo&pagina=&ordenacaoData=relevancia&allwords=saneamento+mo
ral&anyword=&noword=&exactword=&decadaSelecionada=1960&anoSelecionado=1964&mesSelecionado=&diaSelecionado=
Consultado em: 31/01/2017.
84
Cf. item 2.2
85
Ibidem.
118

retomar os centros urbanos e expulsar a classe pobre que lá vivia, denominando esta
ação de revanchismo. Completando o nosso paralelo, notamos processo semelhante
nas reportagens onde a necessidade de eliminação de mendigos e mundanas pela
vontade das classes mais moralizadas em não sucumbirem à devassidão.
Dessa maneira, seria possível pensar que se tratava realmente de um processo
de degradação da região da Lapa, ou a mídia, já associada à iniciativa privada,
corroborava para o processo com o discurso de saneamento moral.
Era necessário que instituições conhecidas e renomadas apostassem no
processo das intervenções urbanas, como parte do processo de ressignificação do
bairro – de boêmio mal frequentado, para bairro moderno. Assim:

O Globo, 01/11/1966 86: A ACM aceitou o


desafio e construiu na Lapa lugar bom
para adolescentes:“[...] A decisão da
entidade de se transferir do Castelo para
a Lapa, bairro conhecido pela boemia e
pelo grande número de marginais que o
frequentavam, trouxe estupefação a numerosos amigos da associação.
[...] Ao mesmo tempo, a presença dos jovens estudantes e esportistas acemistas começou
a dar nova fisionomia àquele trecho do bairro.[...] o exemplo da ACM frutificou e vários edifícios
foram construídos perto do nosso, e que não teriam sido ali levantados não fôra a presença do
nosso.
[...] Não somos contra a tradição - disso o presidente da ACM -, somos contra a má
tradição. Falam muito da lapa boêmia, mas na verdade era lá que se refugiavam os rufiões,
cáftens, prostitutas e bandidos. Na Lapa foram cometidos muitos, diversos e brutais crimes. Isso
não é boemia. Boemia verdadeira era a da Colombo, a do Café Nice, do Café Papagaio, das
Livrarias Briguiet, José Olímpio e Francisco Alves. Essa sim, - acrescentou -, é pra ser guardada
com carinho”.

O caráter da ideologia de classes também fica expresso ao caracterizar a Lapa


como refúgio de rufiões, bandidos, prostitutas, mendigos, delinquentes, anormais, cuja
fama sempre é associada a má boemia. Ainda nesse discurso, também podemos
notar a dificuldade em se viver com o diferente – expressa pelo conceito de mixofobia
de Bauman –, fazendo-se presente nessa luta entre o ser degenerado e o moralizado.
Outro ponto importante a se ressaltar seria a mudança de uma classe pela outra,
conceito fundamental na cidade revanchista de Smith e em sua abordagem sobre a
gentrificação. A ACM e o seu jovem acemista, foram parte desse processo de

86
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=artigo&pagina=&ordenacaoData=relevancia&allwords=acm&anyword=&
noword=&exactword=&decadaSelecionada=1960&anoSelecionado=1966&mesSelecionado=&diaSelecionado= Consiltado em:
06/03/2016.
119

mudança: o prédio moderno e o jovem bem-comportado.


É nesse período que as intervenções começam a ser feitas, ao mesmo passo
em que a construção do discurso da Lapa moderna e moralizada ganha força na mídia
impressa:

O Globo, 10/03/1969 87: A Lapa trocará a tradição por um bairro


moderno:“[...] Já está elaborado pela SURSAN e entrará
imediatamente em execução [...], o projeto que vai dar nova feição à
Lapa com características urbanísticas modernas.
[...] De acordo com a programação da Secretaria de obras,
também se inclui nessa etapa a demolição do antigo quartel da Polícia
Militar, na Rua Evaristo da Veiga, cujo terreno será vendido em lotes
para empresas particulares, que, por sua vez, só poderão construir nos
padrões urbanísticos aprovados.
[...] Para que a ligação da Avenida Norte-Sul entre a Rua da Carioca e o Largo da Lapa
seja definitivamente Implantada, torna-se necessária a demolição de numerosos prédios, nas
imediações dos Arcos e no lado ímpar da Rua da Carioca. Em conseqüência, os Arcos ficarão
mais visíveis e as áreas circunvizinhas mais valorizadas. Em seu redor, surgirá uma grande praça
para onde se destinará grande número de veículos.

O Globo, 01/06/1973 88: Largo da Lapa terá praças coloniais: “[...]


Um chafariz de ferro fundido do antigo e o lampadário em pedra e bronze do
atual Largo da Lapa, que será restaurado, serão as principais atrações de
duas praças estilo clássico que o Departamento de Parque vai construir na
Lapa, dentro da reurbanização do bairro determinada pela Avenida Norte-
Sul”.

O Globo, 10/09/1974 89: Na velha Lapa, outro prédio vai ser


derrubado: “[...] O prédio de cinco andares na praça Cardeal
Câmara, na Lapa, onde funcionavam dependência da Secretaria de
Serviços Sociais, começará a ser demolido dia 15 para permitir
término dos trabalhos de urbanização.
[...]Na pintura dos casarões da lapa, que começou a ser feita
ontem, estão sendo utilizadas, tanto quanto possível, as mesmas
cores que tinham em sua origem, para que o local não perca suas
características antigas”.
(Grifos nossos)

O discurso se torna interessante já que sempre há justificativas para as


demolições. Em primeiro surge o nome da ação, um título que remete ao progresso;

87
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=artigo&ordenacaoData=relevancia&allwords=moderno&anyword=&now
ord=&exactword=&decadaSelecionada=1960&anoSelecionado=1969&mesSelecionado=3&diaSelecionado=10 Consultado em:
18/01/2017.
88
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=artigo&ordenacaoData=relevancia&allwords=pra%C3%A7as+coloniais&
anyword=&noword=&exactword=&decadaSelecionada=1970&anoSelecionado=1973&mesSelecionado=6&diaSelecionado=1
Consultado em: 05/03/2016.
89
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=artigo&ordenacaoData=relevancia&allwords=na+velha+lapa&anyword=
&noword=&exactword=&decadaSelecionada=1970&anoSelecionado=1974&mesSelecionado=9 Consultado em: 16/03/2016.
120

depois, temos uma área a ser demolida, causadora de transtorno para a cidade; em
seguida, a valorização dos terrenos e a desoneração do poder público com o repasse
à iniciativa privada dos terrenos; por último, evidencia-se os benefícios com a
demolição ao evocar características modernizadoras e as facilidades que as praças e
largos darão ao bairro.
Assim, a morte da Lapa era anunciada tanto pelos jornais quanto pelos
escritores. Junto ao discurso dessa morte anunciada, vinha o que seria a nova Lapa:
os jardins modernos e os prédios altos – como nas notícias acima –, os terrenos
vendidos à iniciativa privada. A velha Lapa estaria viva somente nas fotos antigas e
na imaginação de poetas ilustres e de moradores anônimos.
Nas notícias que seguem, a imprensa já trata do fim do bairro, restando apenas
memórias:

O Globo, 18/09/1965 90: … e a


Lapa se acabou: “[...] A partir de
então, vai de mal a pior. Com a
construção da Avenida Perimetral,
desaparecerá. O que resta da Lapa
movimentada, boêmia, de cabarés
sempre cheios, dos grandes crimes passionais, dos cafés abertos até de madrugada, é apenas
recordação (ou um esforço de imaginação). Os que costumavam "fazer a Lapa" - escritores,
sambistas, mulheres famosas e valentões - sumiram, procurando novos ares”.

O Globo, 08/08/1966 91: Vence o


urbanismo: Morte da Lapa para que
os arcos voltem a dominar: “[...] A
Lapa vai desaparecer. Em seu lugar
amplos jardins darão novas dimensões
urbanísticas ao local. E por eles
vagarão as lendas e figuras que transformaram aquele cantinho do Rio no “ponto Maior do mapa
do Distrito Federal”.

O Globo, 07/06/1974 92: Lapa:


Roteiro de um ameaçado território
poético. “[...] Cedendo ao progresso, com

90
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=artigo&ordenacaoData=relevancia&allwords=lapa+&anyword=&noword
=&exactword=&decadaSelecionada=1960&anoSelecionado=1965&mesSelecionado=9&diaSelecionado=18 Consultado em:
04/02/2017.
91
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=artigo&ordenacaoData=relevancia&allwords=lapa+&anyword=&noword
=&exactword=&decadaSelecionada=1960&anoSelecionado=1966 Consultado em: 04/02/2017.
92
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=artigo&ordenacaoData=relevancia&allwords=lapa+&anyword=&noword
=&exactword=&decadaSelecionada=1970&anoSelecionado=1974&mesSelecionado=6&diaSelecionado=7 Consultado em:
05/03/2016.
121

seus prédios caindo sob a força de marretadas demolidoras, de tratores, para abertura de novas
ruas, por onde passarão cada vez mais carros, a Lapa carioca, onde Manuel Bandeira (1886-
1968) viveu um pouco de seu mundo imaginário de Pasárgada, vai desaparecendo. Para medo
de seus moradores, que aceitam a evolução mas temem uma total descaracterização do antigo
bairro.

Sua morte é sacramentada melancolicamente por João Antônio da seguinte


maneira:
Essa espécie de Montmartre dos pobres, tantas vezes ameaçada de
desaparecer - tanto pelos boatos, quanto pelos planos oficiais - foi demolida
definitivamente, em 74, para a avenida Norte-Sul passar. (ANTÔNIO, 1989
apud LUSTOSA, 2001, p.139)

E sua decadência:
Essa, a Lapa esfarrapada, na hora da morte, que o século viu nascer e cair
em obediência ao planos oficiais ou em consequência de enchentes e
desabamentos sempre entre andrajos, misérias e decadências.
Mas era a mesma Lapa, que para os doidos, poetas e líricos da noite, seria
sempre uma menina, que insistia e ficava acordada, enquanto não caíram os
cabarés da Mem de Sá, as leiterias do começo do século, os botequins e os
restaurantes da Visconde de Maranguape e persistiram, abertos e impunes,
os hotéis da Travessa do Mosqueira com seus vidros coloridos, fachadas de
ferro batido e seus paralelepípedos ancestrais. (ANTÔNIO, 1989 apud
LUSTOSA, 2001, p. 153)

Nessa época, não foram apenas os malandros que perderam seu espaço
cênico. O processo de limpeza da área da Lapa expulsava mais que indivíduos,
moradores ou cidadãos. Expulsava as profissões que no espaço moderno não se
enquadrariam:

O Globo, 30/03/1970 93: Progresso afasta engraxates de


bancas no Centro: “[...] Domenico Amorelli, um italiano que
deixou seu país aos 19 anos, "para aventurar a sorte no Brasil",
é hoje, aos 54 anos, um dos poucos representantes de uma
classe que o progresso da cidade está fazendo desaparecer aos
poucos: a dos engraxates que trabalham por conta própria, com
sua banca em ponto fixo, à porta de um prédio.

Entretanto, não foram apenas profissões que se tornaram inadequadas ao novo


cenário da Lapa. A evocação por uma moral de ocasião, pelo bem-estar do morador
e por um novo bairro moderno, podem ser questionáveis ao vermos que notícias de

93
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=artigo&ordenacaoData=relevancia&allwords=engraxates&anyword=&no
word=&exactword=&decadaSelecionada=1970&anoSelecionado=1970&mesSelecionado=3 Consultado em: 04/02/2017.
122

extermínio de mendigos foram manchetes em alguns jornais. Estes eram recolhidos


das ruas, não apenas da Lapa, e atirados em um afluente do rio Guandu, principal rio
de abastecimento da Cidade. O discurso de limpeza dos indesejáveis – tratado por
Smith, Davis e Delgado – aconteceu no Rio de Janeiro durante as décadas de 1960 e
1970. Dessa maneira, eram as notícias sobre o extermínio:

O Globo, 14/06/1958 94:


Dezenas de mendigos detidos:
“[...] Os “Comandos” da Secretaria
de Saúde agiram ontem com
sucesso nas imediações do
convento de Santo Antônio e
levados para a triagem no albergue da Boa Vontade.
[...] O problema da mendicância, felizmente, não está sendo mais um caso apenas de
Polícia agora que o Rio, onde proliferaram sempre os profissionais da mendicância, está sendo
objeto de uma campanha dos “comandos” da Secretaria de Saúde sob a supervisão do médico
Francisco de Santana. Ontem, realizou-se uma “blits” contra os falsos mendigos que se
misturaram aos pobres nas portas das igrejas nos dias festivos. O convento de Santo Antônio
recebeu a visita dos “Comandos” que detiveram, para averiguações, dezenas de mulheres,
acompanhadas de filhos, levando-as para o Albergue da Boa Vontade, onde se realiza a triagem
para qualificação dos elementos detidos”.

Correio da Manhã,
21/11/1969 95: 10.000 mendigos nas
ruas do Rio: “[...] Até 1965, também
no Rio a grave questão tinha solução
“mágica”: atirar mendigos no Rio
Guandu e manter a cidade “limpa”. A
divulgação desses crimes obrigou as
autoridades a encararem a
mendicância como um problema social. “O problema é do subdesenvolvimento. Não temos
verbas para executar planos de reintegração”, diz o diretor do CRM. E dez mil vozes repetem o
mesmo refrão”.

Como analisado anteriormente em Smith, o processo de gentrificação teve


início no pós-guerra, desenvolveu-se durante os anos 1960 a 1980, chegando a um
patamar mundial na década de 1980. Desta maneira, entendemos que não foi
diferente no Rio de Janeiro. A cidade experimentou, no período de 1940 a 1970,
reformulações que alteraram seu traçado e proporcionaram ganhos financeiros para
negociantes de terras.

94
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=artigo&ordenacaoData=relevancia&allwords=mendigos+&anyword=&no
word=&exactword=&decadaSelecionada=1950&anoSelecionado=1958&mesSelecionado=6&diaSelecionado=14 Consultado
em: 19/01/2017.
95
Consultado em: 11/11/2016
123

Para a Lapa, que tinha um papel fundamental na dinâmica de revitalização do


centro da cidade, ao contemplar os objetivos expressos no Plano Estratégico da
Cidade do Rio de Janeiro, onde “a condição de ser uma referência histórico-cultural e
a sua perfeita inserção no mercado de moradias destinado a classe média da cidade”
(IRIAS, 2007, p. 49), as alterações implicaram em profundas mudanças no traçado
urbano, e, principalmente, na paisagem da área. Dando suporte à essas alterações
urbanas, a mídia propagava o discurso da decadência moral da Lapa, noticiando as
modificações e intervenções urbanísticas, enaltecendo a melhoria do espaço público.
Entretanto, o destino das famílias removidas e expulsas era ignorado não aparecia
nos jornais.
Dessa forma, o uso do espaço da Lapa passou a ser realizado por uma nova
classe, orientada pelo discurso da mídia. O espaço do bairro, de uso ressignificado,
sofria com o controle social, onde o morador antigo não possuiria mais espaço dentro
do modelo da Nova Lapa.

5. A GENTRIFICAÇÃO COMO ESTRATÉGIA DE PLANEJAMENTO: DA VOLTA DA


“BOEMIA À LAPA” ATÉ A “REVITALIZAÇÃO DA LAPA”

A fase decadente, das demolições e dos desalojamentos sob a pauta da


modernidade, começa a ter fim junto ao projeto do corredor cultural, no fim da década
de 1970. Irias observa que este foi um momento de relevância para o processo de
movimento de capital no centro da cidade. O autor diz que este é o primeiro projeto:
[...] de “preservação” da área central da cidade do Rio de Janeiro que abrange
um conjunto de edifícios dos setores da Lapa, Cinelândia, Largo do São
Francisco, Largo da Carioca, o Saara, Praça XV e imediações; e extrapola a
pura e simples preservação de edifícios isolados. O Projeto foi concebido ao
longo do ano de 1979 com a participação de técnicos da Prefeitura e de
intelectuais junto a Secretaria Municipal de Planejamento e Coordenação
Geral - SMP. Entre 1979 e o momento atual, o projeto passou por diferentes
fases no que diz respeito às suas formas de gestão, à sua inserção
institucional, à sua abrangência territorial, e ao enfoque dos espaços a serem
preservados. (2007, p. 20-21)

A partir daí, analisaremos o discurso midiático durante o início dos anos 2000,
onde a Lapa foi posta em cena novamente. Com os megaeventos – Pan-americano
de 2007, volta do Rock in Rio 2011, Jornada Mundial da Juventude 2013, Copa do
124

Mundo de Futebol 2014, Jogos Olímpicos de 2016 –, o movimento de capital na escala


urbana se acentua, conforme explicado por Smith anteriormente, pondo em
aquecimento o mercado imobiliário e cultural da Lapa. Ressaltando a importância
desses megaeventos, Vainer mostra que a realização, em particular, dos Jogos
Olímpicos de 2016 constitui:
[...] o desenlace de trajetória ao longo da qual uma nova concepção de cidade
e de planejamento urbano se impôs entre nós. Ela expressa também a
consolidação de uma nova coalizão de poder local, que embora submetida a
dissidências, inaugurou-se e conformou-se sob a égide do prefeito Cesar
Maia. Momento simbólico, senão fundador, desta concepção certamente foi
a elaboração do Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro, levada a
cabo em 1993 e 1994. (VAINER, 2011, p.1)

Nossa análise não aborda os megaeventos, mas compreende que a partir do


planejamento estratégico, a cidade do Rio de Janeiro passou a contar com mais um
período de movimento de capital. Assim, nosso objetivo é entender como o discurso
das intervenções urbanas – utilizando termos como “revitalização” e “volta” da boemia
– é empregado na Lapa, a fim de justificar as intervenções no espaço público,
proporcionando a valorização e aumentando os ganhos do mercado imobiliário.

5.1 A GENTRIFICAÇÃO COMO DISCURSO DO PLANEJAMENTO URBANO

No subitem Do acaso à estratégia – o rent gap, no item 2.2, apresentamos os


agentes da gentrificação e a maneira como a parceria Estado e Empresa organizam
a cidade sob suas pautas. Smith mostra que o poder público está associado à
financeirização da habitação, ao mesmo tempo em que a mobilidade do capital na
escala urbana estaria ligada diretamente ao investimento e desinvestimento nas áreas
periféricas e centrais da cidade.
Seguindo a lógica do movimento de capital na escala urbana explicada por
Smith, analisaremos brevemente o mercado imobiliário na região da Lapa.
Inicialmente, em dados obtidos em site de negociação de imóveis, notamos uma
valorização imobiliária neste bairro, da mesma maneira que acontece na cidade do
Rio de Janeiro como um todo. Além de percebermos – segundo os dados do portal
ZAP – que alugar e vender imóveis é mais rentável que investimentos da IBOVESPA,
como veremos nos gráficos a seguir:
125

Índices para a cidade do Rio de Janeiro, ZAP Imóveis, 07/04/2017.

No gráfico acima, podemos ver que a partir de 2008 os rendimentos com imóveis na cidade do Rio de
Janeiro, superaram os rendimentos na Ibovespa. Além disso, a venda de imóveis apresenta lucratividade
maior (250%) do que no aluguel (pouco mais que 100%). Comparando os dados do Rio de janeiro com os
índices nacionais (mostrados nos gráficos abaixo), notamos que os índices de venda de imóveis são
notadamente superiores em relação à média nacional, o que não acontece com os índices de alugueis,
estando esse último levemente acima da média nacional.
Outra informação importante que podemos perceber é que, durante o período dos megaeventos (Copa do
Mundo de Futebol 2014 e Jogos Olímpicos de 2016), a valorização dom imóveis, seja aluguel ou venda,
tiveram seu auge superando a média nacional e, desde o início do das aferições deste índice (Fipe Zap),
batendo o recorde de valorização imobiliária.

O mercado imobiliário representa uma parcela importante da valorização do


solo, entretanto, é na produção e na ressignificação do espaço público que se
encontra o caráter excludente da gentrificação. A partir dessa colocação – além de
saber que a Lapa teve relevância cultural para a cidade do Rio de Janeiro –, os
processos de revitalização do bairro se iniciaram sob a ótica cultural, por agentes
locais, como mostra Irias:
Muitos donos de pequenos comércios, assim como pequenos empresários,
donos de bares, restaurantes, teatros, antiquários e casas de espetáculos, se
reuniram para traçar um conjunto de medidas necessárias ao
desenvolvimento do setor na área. Nesta ocasião, cerca de 70
estabelecimentos assinaram o documento, que por contrapartida, teve
resposta imediata da Prefeitura da cidade, que passou a desenvolver o
projeto de melhorias urbanas da Rua do Lavradio (denominado como
requalificação urbana). (2007, p.33)
126

Gutterman também reforça o fato de que o projeto da revitalização da Lapa


contou com pequenos empresários, ao elucidar que a primeira onda revitalizadora:
[...] não foi baseada em ações estipuladas pelo planejamento estratégico, foi
marcada pela ação de pequenos empresários em busca de aluguéis baratos
e sambistas que atraiam público jovem alternativo. Esse movimento quase
“espontâneo”, sem qualquer intervenção por parte do poder público, foi
fundamental para o início da renovação da imagem do bairro. (2012, p. 41)

Em seguida, a autora mostra que este processo revitalizador, que viria a ter
proporções maiores nos anos seguintes à década de 2000, fazia parte de um
planejamento estratégico iniciado na década de 1990. Para isso, ela afirma que a partir
do ano de 2005:
[...] estabelece-se uma segunda onda revitalizadora, e em diversos aspectos
está se apropria da primeira onda para promover a Lapa como o mais carioca
dos bairros. Essa inflexão aponta para um processo pautado em uma agenda
urbana estabelecida pelo Planejamento Estratégico, passando a ser
fundamental a promoção da imagem do bairro revitalizado (já que o projeto
de revitalização já havia começado na década de 90). (Ibidem)

A partir dessas duas ondas de revitalização, usaremos a abordagem de


Castells e Borja a fim de compreendermos como a Lapa se tornou parte de uma ação
estratégica. Para os autores, o planejamento estratégico se define como “um Projeto
de Cidade que unifica diagnósticos, concretiza atuações públicas e privadas e
estabelece um marco coerente de mobilização e de cooperação dos atores sociais
urbanos” (1996, p.166). Nesse sentido, a região da Lapa seria um exemplo de sucesso
dentro da cartilha de cidade neoliberal, ou do planejamento estratégico, já que estes
autores acreditam que o planejamento estratégico também “deve construir e/ou
modificar a imagem que a cidade tem de si mesma e projeta no exterior” (1996, p.158).
Com isso, a velha Lapa, decadente e com seus conflitos sociais, dá espaço a
uma Nova Lapa global. Para os autores, na medida em que se trata:
[...] de uma resposta a uma sensação de crise, resultado da vontade de
inserção em novos espaços econômicos e culturais globais, e que pretende
integrar uma população que muitas vezes se sente excluída ou pouco levada
em conta, o Projeto-Cidade é um empreendimento de comunicação e de
mobilização dos cidadãos e de promoção interna e externa da urbe. (Ibidem)

A partir desse processo de marketing, onde o bairro de degenerados voltou a


ser o bairro boêmio, nos faz lembra da colocação de Smith a respeito dos promotores
imobiliários irem em busca das áreas desvalorizadas, neste caso, a Lapa das décadas
127

de 1970 e 1980 96. Ao lembrarmos a colocação de Smith 97, evidencia-se a


gentrificação com algo a mais do que a construção de novas moradias e valorização
do solo: trata-se de um processo abrangente, onde os serviços e o comércio precisam
estar em adequação ao novo projeto de bairro.
Sob essa lógica de planejamento, a reconquista classista 98 da Lapa
proporcionada pela gentrificação, deu-se lentamente durante as décadas de 2000 e
2010. Paralelo e complementar a este plano estratégico, um programa de cidadania
tratou de modificar a imagem estigmatizada do bairro, como mostra Gutterman, na
qual o cenário de crise:
[...] (um bairro com estigma de local degradado, violento e poluído) precisava
ser superado, fazendo com que o bairro “voltasse” a atrair olhares de novos
empreendedores e novos consumidores. Era preciso fazer com que a Lapa
voltasse a ser o “coração da cidade”, ser tão emblemática como seu principal
símbolo: os Arcos. (2012, p. 42)

Para isso, era necessário construir a ideia de um espaço onde os cidadãos


cariocas teriam expressas todas as suas necessidades e ideologias. Pertencer a esse
espaço seria o capital simbólico deste cidadão de perfil jovem, despojado, apreciador
das características geográficas da cidade, amante das facilidades de mobilidade
urbana, orgulhoso de pertencer a este lugar. No trabalho de Gutterman, encontramos
este manifesto de cidadania, que ressalta o orgulho de pertencer à Lapa:
Enquanto o Corcovado e o Pão-de-Açúcar são as imagens do Rio de Janeiro
em outros Estados da federação e no exterior, a Lapa faz o papel de principal
ícone da cidade para o carioca da gema. O bairro é carioquíssimo.
Mistura a verdadeira boemia com o despojamento praiano, além de ter um
toque arrematador de cidade do interior, ao mesmo tempo em que está no
centro nevrálgico do Rio de Janeiro. Perto de tudo. Da praia, da floresta, da
Rio Branco, da Zona Sul e da Zona Norte, de Niterói. Do carioca." (Manifesto
Do Movimento Eu Sou Da Lapa,2005, grifo da autora). (2012, p.43)

Assim, a ideia do cidadão de Delgado 99, exemplifica-se de maneira


contundente. Com todos os símbolos legitimados no espaço público, “é esse ser
abstrato que chamamos cidadão” (2011, p. 22), obedecendo seu conjunto de regras,
absorvendo o espaço ressignificado da Lapa. O ambiente agregador, vide seu
manifesto, repleto de ideologia.

96
Como vimos anteriormente no item 2.2
97
(Smith, 2006, p. 72)
98
Abordagem de Smith analisada no item 2.2
99
Item 2.3 desta dissertação
128

Em paralelo e pertencente ao mesmo planejamento, o apoio midiático – como


nos outros períodos estudados anteriormente – é um importante aliado no processo
de aceitação da nova abordagem dada ao bairro. As manchetes deixam claro as
mudanças na abordagem do lugar, onde a mudança no perfil dos funcionários dos
bares serve para satisfazer as necessidades dos novos usuários, além de um
mercado de trabalho em aquecimento:

O Globo, 15/04/2007 100: A Lapa em


novos tempos: “[...] Bairro não para de ganhar
casas noturnas. E empregos.
[...] – Os estabelecimentos têm contratado
chefs renomados para elaborar novos cardápios e
aumentado a qualificação dos garçons, com cursos
de inglês – diz Alexandre Sampaio, presidente do
Sindicato de Hotéis, Restaurantes, Bares e
Similares do município do Rio (SindRio).
[...] O aquecimento imobiliário ainda inclui
reforma de unidades antigas, o que rende trabalho
para muita gente. Isso permite uma valorização
cada vez maior dos imóveis, com moradia e entretenimento. ”
(Grifos nossos)

Ainda sob a visão de cidadania da Nova Lapa, vimos com Fiorin 101 que este
discurso é construído por coerções sociais. Não há autenticidade, muito menos
novidade, no processo de revitalização da Lapa, pois a repetição acontece com as
formas e procedimentos dos elementos de outros discursos. A liberdade, segundo
Fiorin, estaria mascarada no discurso de cidadania de Delgado e materializado no
Manifesto do movimento Eu Sou da Lapa.
Sendo assim, o modo como as notícias da atualidade são dadas, assemelham-
se com a de outras épocas, onde a depreciação do bairro justificaria novas
intervenções do poder público. Nas notícias a seguir, a repetição dos elementos de
desordem, como mendigos, viciados, camelôs, fortalece a ideia de Fiorin sobre a
repetição dos discursos e ausência de novidade:

100
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=pagina&ordenacaoData=relevancia&allwords=a+lapa&anyword=&now
ord=&exactword=&decadaSelecionada=2000&anoSelecionado=2007&mesSelecionado=4&diaSelecionado=15 Consultado em:
26/07/2016.
101
(Fiorin, 1990, p. 41) no item 2.4
129

O Globo, 19/07/2008 102: Um arco de


desordem, sem fiscais: “[...] Mas um dos
principais símbolos da cidade, tombado pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN), é hoje o centro da desordem
urbana que tomou conta da Lapa, como relatou
o empresário da érea cultural Léo Feijó na
coluna “Rio da Gente” de Quarta-feira.
Debaixo de cada um dos 42 arcos, e nas principais ruas do entorno, uma conjugação de
problemas: camelôs, flanelinhas, estacionamento irregular, calçadas ocupadas por mesas e
cadeiras, crianças e adolescentes consumindo drogas, mendigos e iluminação precária. Na noite
da última quarta-feira, tudo isto ocorria à vista de policiais militares e na ausência de guardas
municipais. Um caos que gera insegurança e assusta os turistas.
– Como é uma região vasta em que não mora muita gente, ninguém cuida e qualquer
um ocupa. E como não tem muito voto, parece que as reivindicações não valem muito – resume
Perfeito Fortuna, fundador do Circo Voador e da Fundição Progresso e um dos pais da
revitalização da Lapa, processo que partiu da iniciativa dos próprios comerciantes, a cerca de
dez anos”.
(Grifos nossos)

Para melhor compreensão das intervenções urbanas e o discurso de


revitalização, buscamos entender o significado da palavra revitalizar. Assim,
encontramos em dicionários online, primeiramente, que vitalizar 103 consiste em
“restituir a vida a alguém” e “dar vida nova a, restituir a energia, a vitalidade; fortalecer,
revigorar: vitalizar a fé, vitalizar a democracia”. Já revitalizar, segundo o mesmo
dicionário online 104, significa “revigorar; dar vida ou vigor a”. Entretanto, para um
dicionário online 105 de conceitos, a ideia de revitalizar um bairro consiste numa ação
conjunta entre governo e empresas, onde a revitalização “consistiria na criação de
postos de trabalho/empregos que, por sua vez, fariam que mais pessoas recorressem
ao bairro, fomentando a abertura de outros comércios”.
Curiosamente para os idealizadores da Nova Lapa Revitalizada, não havia vida
no lugar – ou melhor, somente mendigos, usuários de drogas106 –, logo a Lapa seria
ocupada por uma classe expressa no manifesto do movimento Eu Sou da Lapa,
ignorando o morador local, em mais um processo que se assemelha ao Higienismo

102
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=pagina&ordenacaoData=relevancia&allwords=arco&anyword=&noword
=&exactword=&decadaSelecionada=2000&anoSelecionado=2008&mesSelecionado=7&diaSelecionado=19 Consultado em:
26/07/2016.
103
https://www.dicio.com.br/vitalizar/ Consultado em: 07/04/2017.
104
https://www.dicio.com.br/revitalizar/ Consultado em: 07/04/2017.
105
http://conceito.de/revitalizar#ixzz4fx6p59ad Consultado em: 07/04/2017.
106
Como na noticia, vista mais acima, sobre o Saneamento moral da Lapa: O Globo, 29/01/1964: “Amigos da Lapa pedem à
polícia o saneamento moral do seu bairro”
130

de Rego e Passos e ao das demolições das décadas de 1960/70. Como uma repetição
do discurso do passado, mostra-se o bairro em deterioração, quais seriam os
benefícios conquistados pelas intervenções urbanísticas, buscando o apoio popular e
justificando o processo de exclusão das classes indesejadas:

O Globo, 21/08/2010 107: Uma


Lapa revitalizada e com cara de
Ramblas: “[...] Prefeitura planeja
obras na área dos Arcos para
privilegiar pedestres, no melhor estilo do calçadão de Barcelona.
[...] - O projeto nasceu durante o processo de reurbanização do espaço público da Lapa,
em que a prefeitura passou a fechar as ruas nos fins de semana. Em reuniões com moradores
e comerciantes, recebemos sugestões e descobrimos a necessidade de uma melhoria urbana
em vários pontos do bairro”.

Fonte: Imagens da notícia acima.

Na Lapa, começa a figura a mudança de usuários a partir as reformas. Assim,


na ideia de cidadania, como mostra Delgado 108, a manutenção do sistema capitalista
estaria garantida na transitoriedade das estratégias de mobilização pois elas também
são performáticas e artísticas, tento o espaço público como lugar ideal para que
aconteçam as revitalizações. A atração da nova classe, com capacidade de consumir
os serviços e a cultura da nova Lapa, estaria ligada a dimensão sociocultural:

[...] profundamente atrelada aos novos discursos culturais que passam a ser
valorizados nesses bairros, em vias de gentrificação, no intuito de atrair esse
novo grupo. E, no cenário carioca, a Lapa se caracteriza como o “bairro” mais
exaltado, comemorado e mercantilizado do Rio de Janeiro. Afinal, o primeiro
ponto de atração e enfoque desse processo de revitalização da Lapa estava
baseado exatamente na atmosfera de “bairro boêmio”, ponto de encontro de
artistas, poetas e músicos, e berço do sentimento carioca. (MOSCIARO,
2012, p. 75-76)

107
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=pagina&ordenacaoData=relevancia&allwords=lapa+revitalizada&anywo
rd=&noword=&exactword=&decadaSelecionada=2010&anoSelecionado=2010&mesSelecionado=8 Consultado em:
13/02/2017.
108
como visto no item 2.4
131

Assim, o processo de gentrificação 109 tem no espaço público – inundado de


códigos e condutas – o atrativo para a nova classe que encontra na Lapa mais que o
lugar de moradia. No Bairro boêmio – onde o carioca da gema tem sua identidade
amalgamada à da cidade –, o poder simbólico coloca o cidadão em um estado de
aceitação das transformações urbanas e das políticas públicas de segurança, a fim
de garantir seu status de pertencer à Nova Lapa.
Para esse cidadão ter assegurado o seu direito à tranquilidade, é preciso que
ele esteja conivente com os processos de exclusão social tão presentes na Lapa. O
poder simbólico, repleto de cinismo, faz com que as classes beneficiadas aceitem as
metáforas – como apontou Smith – da Lapa Revitalizada, da volta da Boemia.

5.2 O ESPAÇO PÚBLICO NOS DISCURSOS MIDIÁTICO E INSTITUCIONAL:


ESPAÇO DE DISPUTA

O discurso propagado pela mídia incorpora o espaço público como um


elemento de triagem, como mostrou Delgado 110, em que os usufrutuários do espaço
são selecionados conforme a sua capacidade de se comportarem e se camuflarem.
As notícias mostram que na Lapa não podem mais viver aqueles que não
possuem condições morais, aqueles que não se comportam e que não possuem
condições de pagar pelos novos serviços vindos com o movimento de capital. O
discurso não é novo, conforme Fiorin, mas reitera a dinâmica de saneamento moral
como no período anteriormente estudado:

109
Cf. item 2.5. Relação poder simbólico e gentrificação.
110
Cf. 2.3 dessa dissertação.
132

O Globo, 09/05/2010 111: O


lado sombrio de um bairro
efervescente: “[...] Rua da Lapa,
que tem pouco mais de 300 metros
de extensão, não acompanhou processo de revitalização da área.
[...] Com pouco mais de 300 metros de extensão e cercada de casarias históricos, a Rua
da Lapa não renasceu com a revitalização do restante do bairro. Pelo contrário: as construções
estão caindo aos pedaços, o comércio não se desenvolveu e os problemas de infraestrutura e
de ordem urbana se acumulam nas calçadas. A prefeitura diz que tenta, com operações diárias,
coibir irregularidades. Mas, na visão de quem ajudou a alavancar parte do bairro, falta
mobilização popular para recuperar o pequeno trecho onde a boemia carioca nasceu.
[...] Mas o chamado "shopping chão" do qual Claudio participa é também motivo de
queixa: - A prefeitura vem e retira eles (sic) das calçadas. Mas, quando os agentes vão embora,
os ambulantes voltam rapidamente. Tem coisa pior, como o esgoto que corre pelo meio da rua,
mas esse comércio de quinquilharias também ajuda a degradação - comentou Jorge Mendonça,
morador da Glória que diariamente passa pela Rua da Lapa”. (Grifos nossos)

Os comerciantes do Shopping Chão, não possuem a capacidade de se


camuflar, além de serem dotados do comportamento inaceitável para a Nova Lapa
revitalizada, representam ameaça ao projeto em que o bairro boêmio carioca
necessita ser semelhante aos bairros das grandes cidades. Delgado mostra que a
expressão espaço público é portadora símbolos e comportamentos específicos.
Assim, na Nova Lapa, o antigo comércio teve o destino definido pela gentrificação, já
que ela “implica no deslocamento dos moradores das classes populares dos centros”
(Smith, 2000, p.63).
O espaço público da Lapa, dentro do projeto de revitalização do bairro, é um
espaço em disputa:

111
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=pagina&ordenacaoData=relevancia&allwords=lapa+revitalizada&anywo
rd=&noword=&exactword=&decadaSelecionada=2010&anoSelecionado=2010&mesSelecionado=5&diaSelecionado=9
Consultado em: 13/02/2017.
133

O Dia, 23/03/2013 112: Abandono faz Lapa


virar ‘casa’ de moradores de rua: [...]
“Comerciantes reclamam que a desordem urbana na
região atrapalha os negócios.
[...] Esmolas fartas, facilidade de acesso às
drogas baratas e sobras de comida. Com tantos
atrativos, os moradores de rua da Lapa resistem às
operações sistemáticas da Secretaria Municipal de
Desenvolvimento Social (SMDS).
[...] Do outro lado, a população de rua reclama
do tratamento e dos abrigos oferecidos pelo estado.
Moradores e comerciantes sentem-se cada vez mais
incomodados com a situação.
[...] A moradora do bairro há 23 anos, Lúcia de
Paula, que ontem desviava o carrinho de seu neto de 10
meses das pessoas que dormiam na rua, conta que, de
dezembro para cá, o número de moradores de rua
aumentou no local. “Com as UPPS, muitos deles
migraram para cá porque aqui tem mais acesso às
drogas”, argumenta”.

Como mostrou a matéria, os moradores do bairro desviam dos corpos estendidos


na calçada transformada em dormitório de moradores de rua que procuram drogas no
bairro. Entretanto, a foto que ilustra a mesma matéria, retrata a ocupação das
calçadas por mesas e frequentadores dos restaurantes que se apropriam livremente
do espaço das calçadas.
Por outro lado, o discurso institucional encontrado na página da prefeitura do Rio
de Janeiro, mostra que o poder público realiza operações de controle e retirada da
população indesejada das ruas do bairro, a fim de garantir o bem-estar dos
frequentadores da Lapa:

112
http://odia.ig.com.br/portal/rio/abandono-faz-lapa-virar-casa-de-moradores-de-rua-1.564044 Consultado em: 04/03/2016.
134

Secretaria de Ordem pública, www.rio.rj.gov.br/web/seop, 08/01/2011: Choque de


Ordem na Lapa acolhe 51 moradores de rua e reboca 18 veículos por estacionamento
irregular: [...] “A operação Choque de Ordem Lapa Legal realizada por agentes da Secretaria
Especial da Ordem Pública (Seop), com apoio de guardas municipais, na tarde de sexta-feira e
na madrugada deste sábado, acolheu 51 moradores de rua, que foram levados para abrigos da
Prefeitura.
[...] A presença da Ordem Pública na Lapa, desde julho do ano retrasado, vem garantindo
mais organização, segurança e tranquilidade aos frequentadores de um dos mais tradicionais
bairros do Rio - disse Alex Costa, secretário da Ordem Pública”. 113

Secretaria de Ordem pública, www.rio.rj.gov.br/web/seop, 05/05/2011: Operação de


acolhimento de moradores de rua é intensificada na Lapa bairro ganha mais um dia de
operação permanente: [...] “O subprefeito do Centro, Thiago Barcellos vai intensificar o número
de operações de acolhimento de população de rua no Centro” 114.

Secretaria de Ordem pública, www.rio.rj.gov.br/web/seop: Choque de Ordem na Lapa


multa 50 veículos e reboca 19 por estacionamento irregular: [...] “Durante a fiscalização, 24
moradores de rua (4 menores) foram acolhidos com o apoio da Secretaria Municipal de Ação
Social (SMAS). Os menores foram encaminhados para o abrigo da Carioca e os maiores, levados
para o abrigo da Prefeitura em Paciência” 115.

A abordagem de acolhimento usada pela prefeitura do Rio de Janeiro, pode ser


questionada na reportagem do jornal O Dia, de 23/03/2013, utilizada na página
anterior116.
A partir deste discurso da mídia, podemos notar que o espaço público passa a
ser disputado por atores com objetivos diametralmente opostos. De um lado, o
mercado imobiliário e cultura, do outro lado, os que não podem arcar com os custos
do processo de gentrificação.
Irias, deixa claro que o tipo de configuração de espaço proposto pelo setor
imobiliário reproduz os condomínios fechados, pouco comuns na Lapa e adjacência.
O autor põe em evidencia que o mercado imobiliário se baseia diretamente no valor
de troca, devido à sobrevalorização das unidades habitacionais e da oferta de “boas
condições de infraestruturas” (2007, p.44) do bairro. Ainda segundo Irias, este grupo
promotor de cidade, deixa claro que seu objetivo é a captação de renda imobiliária.

113
Consultado em: 23/02/2016
114
Consultado em: 23/02/2016
115
Consultado em: 23/02/2016
116
Em entrevistas realizadas com sem teto que se instalavam nas ruas da Lapa e adjacências, percebemos que o tratamento
dado pela prefeitura difere do discurso de sua página oficial. A violência e a perversidade usadas pelos agentes da prefeitura
permearam todas as conversas, desmontando o discurso de acolhimento apregoado nas notícias. Outro fato relevante nessas
entrevistas é quanto às condições dos abrigos, poucos foram os que não regressaram ao centro da cidade devido a precariedade
das edificações e da ausência de condições de ressocialização. Quanto às entrevistas, foram realizadas entre fevereiro de 2013
até agosto de 2014, na região do centro do Rio de Janeiro.
135

Junto ao mercado imobiliário, os empresários da cultura – com a mudança de


uso dos casarões antigos – contam com o apoio da mídia, corroborando com o
discurso da Nova Lapa. Gutterman mostra que a atração “exercida pelo bairro faz
parte de outra particularidade do projeto de revitalização da Lapa, pois a imagem que
está sendo vinculada a esse ideal de área central é o do mais carioca dos bairros
(2012, p.89). Para a autora, a renovação atrai os cariocas “que ajudam a criar a
diversidade e ao mesmo tempo fazem parte da população flutuante que irá ser o alvo
dos 90 empresários locais” (Ibidem). Entretanto, os cariocas em questão seriam parte
de um grupo de cidadãos, conforme Delgado, com características especiais e de
poder aquisitivo, poder simbólico e capacidade de se camuflarem, capazes de
consumirem os novos modos de viver na Lapa.
Nas notícias a seguir, podemos notar ainda o caráter de disputa. Contudo, o
discurso midiático tem um lado definido, quando mostra que os problemas do bairro
consistem no abandono dos edifícios malconservados e da classe que os habita.
Desse modo, intelectuais e empresários dão corpo a esse discurso de limpeza urbana,
ao elegerem as medidas de revitalização como a solução para a Lapa:

O Globo online, 24/01/2016: Lapa ganha hotéis que


apostam em design e sofisticação: “[...] Com a reabertura
do Hotel Bragança, bairro mostra vocação que vai além da
boemia.”
[...] Fajardo chama a atenção para o fato de que não
se pode descuidar da qualidade e da segurança do espaço
público. O mesmo afirma o empreendedor e pesquisador do
Núcleo de Economia Criativa do Instituto Gênesis da PUC-
Rio Leo Feijó, um dos responsáveis pela Lapalê, feira literária do bairro que vai reunir, em sua
segunda edição, em abril, artistas, historiadores e escritores:
— É essencial que esses grupos assumam e reformem os prédios históricos. Imóveis como
o antigo Bragança, quando abandonados, juntam sujeira, agravam questões sociais. A vinda
desses hotéis tende a fazer com que governo e prefeitura fiquem mais presentes. Acredito que
o processo só estará completo quando o poder público der um jeito nas casas abandonadas do
entorno.
Imóveis assim fazem parte da memória do bairro.
— A Lapa é uma marca internacional, e cada vez mais turistas procuram a região — diz Feijó”.
136

1 - A fachada do Hotel Bragança, perto dos Arcos: inauguração deve acontecer em quatro meses - Foto: Fernando Lemos;
2 - O Da Lapa: projeto do arquiteto Hélio Pellegrino que aposta do reaproveitamento - Foto: Fernando Lemos;
3 - A piscina do Vila Galé: hotel fica em terreno de mais de 6 mil metros quadrados - Foto: Fernando Lemos
4 - O lobby do Vila Galé: grupo português resolveu apostar na Lapa e decisão vem se mostrando acertada - Foto: Fernando
Lemos

O Globo online, 02/08/2016:


Lapa ganha oásis residencial
descolado: “[...] Conhecido pela
intensa e diversificada vida cultural,
o bairro, localizado na região central
do Rio, se transforma em ótima
opção também para morar.”
[...] “Sempre que ouvimos falar em Lapa, pensamos em vida noturna e em boemia;
com bares, restaurantes e boates fervilhando de cariocas e turistas.
[...] E nesse cenário histórico e rico culturalmente que a Gafisa acaba de lançar o
moderninho Mood Lapa, que faz parte de uma nova geração de edifícios focados em design,
sustentabilidade e tecnologia.
- A grande vantagem do Mood, além de toda a sua modernidade, é ter uma localização
central, pois fica próximo do Centro e das zonas Sul e Norte da cidade, e com ótimas opções
de mobilidade - diz Gabriel Fidalgo, gerente de negócios da Gafisa.
(Grifos nossos)

Reforçando esse pensamento, as notícias evidenciam o caráter do processo de


gentrificação e do discurso midiático de depreciação do bairro, onde os imóveis
abandonados juntam sujeira e são agravantes de problemas sociais, justificando as
intervenções do poder público/iniciativa privada, a fim de vender a Lapa como marca
internacional. A responsabilidade estaria atribuída a um elemento inanimado e a uma
classe determinada, mascarando as origens do processo de gentrificação: o
movimento de capital na escala urbana.
137

E, como elucida Delgado, é neste território que “corresponde expulsar ou negar


o acesso às pessoas que não apresentem os modos dessa classe média para quem
esse espaço se destina” (2011, p. 10). O processo de gentrificação expressa a
revanche de uma classe que outrora perdeu espaço na centralidade. Esse processo
de exclusão social, prepara a cidade, neste caso a Lapa, para receber a classe capaz
de assumir o papel proposto dentro do modelo de cidade global. Para isso, a classe
média é a classe ideal, pois é capaz de se comportar no espaço público de maneira
cidadã, capaz de consumir os produtos imobiliários e consumir no comércio
condizente a esse estilo de vida.

5.3 QUEM PODE COMPRAR A CIDADE: SOBRE YUPPIES E HYPSTERS

Substituindo o perfil de quem viverá em um bairro, o processo de gentrificação


faz parte de um modelo de cidade onde as diferenças são eliminadas. Para que esse
modo de produzir cidade seja lucrativo e eficiente, os promotores urbanos contam com
um aliado importante: a mídia. Esta se comporta, muitas vezes, como um panfleto de
propaganda no qual um modelo de cidadão, de cidade e de sociedade é difundido.
A partir daí o ímpeto em remover os indesejáveis – ou os que não possuem a
capacidade de se camuflar, conforme Delgado – a qualquer custo do espaço público
e das áreas em processo de gentrificação se clarifica dentro do conceito que Smith
chama de urbanismo revanchista. Assim, o autor mostra que este urbanismo
representa uma reação contra o suposto roubo da cidade:
“uma desesperada defesa da falange de privilégios contestados, envolvidos
na linguagem populista da moralidade cívica, dos valores familiares e da
segurança da vizinhança”. A cidade revanchista expressa, a cima de tudo, o
terror de raça/classe/gênero sentido pelos brancos de classe média
dominante, um grupo social que tem sido repentinamente posto em seu lugar
por um mercado imobiliário devastado pela ameaça e a realidade do
desemprego, da aniquilação dos serviços sociais e o srugimento das minorias
e dos imigrantes, assim como também das mulheres, como poderosos atores
urbanos. A cidade revanchista anuncia uma feroz reação contra as minorias,
a classe trabalhadora, as pessoas sem teto, os desempregados, as mulheres,
os homossexuais e as lesbicas, os imigrantes. A cidade revanchista tem sido
escandalosamente reafirmada pelos programas de televisão 117. (2012, p.
325)

117
Cf. item 1.2 - Os excluídos - a cidade revanchista.
138

A realidade da gentrificação chega a mídia, junto a um novo rótulo dos jovens


trabalhadores da classe média, deixando evidente quem serão os novos usuários dos
espaços requalificados e ressignificados. Os Yuppies, termo usado para os Jovens
Profissionais Urbanos (YUP, em inglês), foram os consumidores dos bairros
gentrificados que se beneficiaram, a partir da década de 1980, com os investimentos
do Estado e do novo estilo das edificações criados pelos agentes imobiliários. Com
isso, “os pioneiros urbanos de Nova York e Londres foram substituídos, com
aprovação do governo, pelos yuppies” (ZUKIN, 2006, p. 86). Além deles,
complementando o cenário dos novos ocupantes, nos dias de hoje, temos uma outra
leva de classe média branca, que se beneficia do processo de gentrificação e ocupa
os espaços: dessa vez são chamados de hypsters 118. Kendzoir elucida que o termo
hipster carrega uma ofensa aos brancos de classe média, alienados, mas que gozam
de privilégios por questões de classe e raça.
Partindo dessa definição, a crítica feita pelo diretor de cinema norte americano
Spike Lee, sobre os novos moradores – brancos e de poder aquisitivo alto – dos
bairros em processo de gentrificação de Nova York, é que se desenrola a matéria de
Sarah Kendzoir, traduzida por Camilla Sbeghen para o portal de arquitetura
Archdaily.com.
Nessa matéria 119, a autora relata o processo de mascaramento da pobreza na
cidade de Philadelphia, com intervenções artísticas nas edificações deterioradas
próximo a uma linha de metrô. Contudo, a matéria dá foco à crítica feita por Spike Lee
às classes que chegam aos bairros mais empobrecidos.
Desta maneira, Kendzoir evidencia a gentrificação como uma localização
racista dos recursos, onde o poder público não esconde sua preferência em atender
com mais presteza à classe que irá consumir o bairro remodelado. A autora mostra
que os críticos da análise de Spike Lee – adeptos e defensores da gentrificação como
uma cultura – ignoram:

118
“Hipster bashing - an acceptable way for middle class (white) people to point out the ways in which they are superior to other
middle class (white) people, esp. prominent in urban environments experiencing gentrification.” Disponível em:
<http://www.urbandictionary.com/define.php?term=hipster%20bashing>. Acesso em: 25 de nov. 2016.
119
KENDZIOR, Sarah. Gentrificação: os perigos da economia urbana hipster. Tradução de Camilla Sbeghen. 2014.
Disponível em: <http://www.archdaily.com.br/br/758003/gentrificacao-os-perigos-da-economia-urbana-hipster>. Acesso em: 17
de dez. 2016.
139

[...] que as declarações de Lee foram uma crítica da localização racista dos
recursos. As comunidades afro-americanas, que se queixam das escolas
pobres e dos serviços públicos terríveis, percebem que estas queixas são
rapidamente ouvidas quando pessoas de renda mais alta se mudam para
esses bairros. (KENDZOIR, 2014)

A respeito dos desejos dessa classe, a autora mostra que os “hipsters querem
escombros com garantia de renovação. Querem mudar uma memória que outros já
construíram” (Ibidem). Como visto em Smith, a autora identifica que os agentes da
gentrificação possuem influência política para:
[...] relocar recursos e reparar a infraestrutura. O bairro é limpo através da
remoção dos seus residentes originais. Os gentrificadores podem desfrutar o
sol na vida urbana: a dilatada história, a nostalgia seletiva, a areia
cuidadosamente salpicada. Ao mesmo tempo, evitam a responsabilidade
sobre aqueles que foram deslocados. (Ibidem)

O movimento de capital na escala urbana, como Smith explicou, fica evidente


neste breve exemplo, onde “os residentes mais antigos são tratados como impurezas
na paisagem e abordados pela polícia por incomodar os recém-chegados” (Ibidem).
Assim, a autora também constata que as classes pobres são lançadas para o subúrbio
e tratadas com desprezo pelos agentes da gentrificação.

5.4 NÃO POSSUIR UM TETO: SER INTRUSO NUM MUNDO DE STATUS

Além dos agentes que promovem o processo de gentrificação, existe outro ator
nesta disputa: aqueles que não podem arcar com os custos da gentrificação,
incapazes de adquirir o poder simbólico e sem a possibilidade de se camuflarem no
espaço público ressignificado, como o cenário da Lapa. Dessa maneira, sob a lógica
do movimento de capital (SMITH, 1988), do poder simbólico (BOURDIEU, 2002) e do
espaço público como ideologia (DELGADO, 2011), o bairro da Lapa passa por um
processo de valorização de seu espaço, de seu solo e de sua cultura.
Da mesma maneira que exemplificado por Kendzoir anteriormente, a parcela
da população sem condições de arcar com o novo estilo de vida da Nova Lapa,
caminha para fora do bairro, geralmente, para a periferia da cidade.
Mas, ainda existem os sem-teto que se instalam nas ruas da Lapa por falta de
recursos econômicos, pela possibilidade de obtenção de alimentos das instituições de
caridade e pelo descarte de alimentos de alguns bares e restaurantes. Esses, com a
140

expansão da fronteira da gentrificação em diversas áreas da cidade do Rio de Janeiro,


passam a ser marginalizados pelas campanhas midiáticas. A necessidade das
remoções dos indesejados se contrapões com a ação humanitária de ajuda à essa
parcela da população:
O Globo, 14/01/2012 120: A Lapa dos
contrastes. Obras de reurbanização
convivem com sujeira e população de rua:
[...] “Em 2011, cerca de 1.300 moradores de rua
foram recolhidos no bairro [da Lapa]. O número
representa 40% de todas as pessoas recolhidas
no Centro. A Secretaria Municipal de Assistência Social diz que diariamente faz operações na
região. E que o fato de voluntários darem comida e oferecerem serviços aos mendigos, como
corte de cabelo, contribui para que eles permaneçam no bairro”.

O Globo online, 13/11/2016 121:


Cortiços indicam necessidade de moradias
no Centro: “[...] Ressalte-se, ainda, que os cortiços ficam próximos ao Boulevard Olímpico,
legado - em que se incluem os museus do Amanhã e de Arte do Rio e o VIT - que, sob hipótese
alguma, pode ficar sob ameaça. Novos moradores, de diversos perfis socioeconômicos,
revitalizariam de fato o bairro, a exemplo do que já aconteceu na Lapa. O movimento nas ruas
aumentaria, e haveria menos chances de decadência porque os residentes cobrariam das
autoridades conservação e serviços”.
(Grifos nossos)

Ferraz aponta que as campanhas midiáticas transformam o sem-teto em um


elemento a ser eliminado, enunciando “cada vez mais categoricamente, a parcela
excluída e população sem-teto (sic) como morador de rua” (2014, p. 611), o que
ocasiona uma falsa interpretação de sua real condição “criando o mito de que essa
população espoliada do direito à moradia, mora” (Ibidem). Deste modo, a
naturalização e criminalização da sua condição, transforma os sem-teto em invasores,
através de metáforas, em que “uma verdade ou um insight revelam-se pela afirmação
de que um objeto, evento ou situação compreendido de modo incompleto é outro”
(SMITH, 2000, p. 141).
As notícias utilizam de uma narrativa sensacionalista, a fim de justificarem as
medidas drásticas:

120
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=artigo&ordenacaoData=relevancia&allwords=+A+Lapa+dos+contrastes
&anyword=&noword=&exactword=&decadaSelecionada=2010&anoSelecionado=2012&mesSelecionado=1&diaSelecionado=14
consultado em: 17/01/2017.
121
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=artigo&ordenacaoData=relevancia&allwords=moradias+no+Centro&an
yword=&noword=&exactword=&decadaSelecionada=2010&anoSelecionado=2016&mesSelecionado=11&diaSelecionado=13
Consultado em: 17/01/2017.
141

Extra Online, 14/1/2012 122:


População de rua triplica no Rio e
prefeitura anuncia medidas: [...] “Uma das
medidas propostas pela nova secretária
municipal de Assistência Social e Direitos
Humanos, Teresa Bergher, é intensificar o
programa "De Volta à Terra Natal". O objetivo
é ajudar no transporte de moradores de rua
que mantêm vínculo familiar e querem voltar
às suas cidades. Hoje, o programa atende em
média 300 pessoas por ano, muito aquém da
real demanda.

A respeito da pobreza urbana e do contingente de sem teto removidos das


áreas nobres da cidade do Rio de janeiro, encontramos em Guareschi a seguinte
ponderação:
Que sobra de tudo isso? Uma multidão de seres humanos empobrecidos e
descartáveis. Como diz Assmann, na atual conjuntura, o fato maior é, sem
dúvida, o cruel predomínio de uma férrea lógica da exclusão, o clima de
indiferença anti-solidária que a sustenta e, em decorrência, o fato de que uma
imensa massa sobrante de seres humanos descartáveis tenha passado a
viver como lixo da história. (ASSMANN, 1994 apud GUARESCHI, 2001, p.
149).

Dentre os que são removidos, seja pela força, seja pela falta de capacidade
financeira para consumir o espaço repleto de ideologia ou para se camuflarem, os
sem-teto transitam pelo bairro da Lapa – invisíveis no espaço dito público e
democrático – e passam representar um obstáculo físico na rua. Vistos como um
elemento de desequilíbrio na paisagem urbana – destoando do cenário da Nova Lapa
e dos novos boêmios –, incomoda aqueles que consomem a cidade e que se
comportam conforme os estereótipos – o carioca da gema – reforçados pela mídia.
Desse modo, os sem teto se tornam ameaça à valorização das áreas e à utilização do
espaço público por aqueles que podem pagar.
As evidências desse processo de eliminação da população indesejável das
ruas do centro do Rio, em especial da Lapa, foram constatadas pelo ministério público

122
http://extra.globo.com/noticias/rio/populacao-de-rua-triplica-no-rio-prefeitura-anuncia-medidas-20750283.html Consultado
em: 17/01/2017.
142

como um processo de higienização devido a forma como as operações de limpeza


urbana são efetuadas. As remoções forçadas, o alojamento em abrigos inadequados
nos subúrbios e a ausência de política de ressocialização da população de rua,
denotam o caráter higienista:

Época Negócios, G1, 10/06/2014 123:


MP constata 'higienização' de moradores
de rua no Rio de Janeiro: [...] “A maioria é
recolhida no Centro, Lapa, Copacabana e
Maracanã, bairros que receberão grande
fluxo de turistas durante o mundial. [...] O
Ministério Público do Rio (MPRJ) constatou a
ampliação de um processo de higienização" pelo recolhimento compulsório de moradores de rua
com a aproximação da Copa do Mundo. Apesar de decisão judicial que impediu novos
acolhimentos no Abrigo Municipal Rio Acolhedor, no bairro de Paciência, na zona oeste do Rio,
entre 20 de maio e 2 de junho, 669 pessoas deram entrada no local. Deste total, 176 deixaram
o abrigo imediatamente”.

Apesar de haver um discurso discriminatório nos principais veículos midiáticos,


há ainda mídias alternativas que discutem o problema social desmistificando alguns
preconceitos contra os sem teto. Como apresenta a matéria publicada pela revista
Fórum, os índices de analfabetismo estão aquém do imaginado, além dos índices de
usuários de drogas:

Revista Fórum online, 16/05/2013 124:


Estudo no RJ mostra que maioria da
população de rua não bebe nem usa drogas:
[...] “O núcleo de Direitos humanos da
Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro
realizou um estudo para traçar um perfil das
pessoas em situação de rua, na região
metropolitana da capital. A pesquisa derrubou
mitos e trouxe à tona outra realidade sobre o perfil dessa população. Somente 13% dos
moradores de rua são analfabetos, 65% não bebem e 62% não usam drogas.
(Grifos nossos)

Ainda na Lapa, sob a vista da grande mídia, durante os jogos olímpicos, os


sem-teto ficaram sem distribuição de alimentos. Curiosamente, em contrapartida à
esta interrupção de serviços, um grupo de chefs internacionais aproveitou para lançar

123
http://epocanegocios.globo.com/Essa-E-Nossa/noticia/2014/06/mp-constata-higienizacao-de-moradores-de-rua-no-rio-de-
janeiro.html Consultado em: 04/03/2016
124
http://www.revistaforum.com.br/2013/05/16/estudo-no-rj-mostra-que-maioria-da-populacao-de-rua-nao-bebe-nem-usa-
drogas/ Consultado em: 04/03/2016
143

uma iniciativa de restaurante gourmet a fim de atender os sem-teto nas imediações


do restaurante popular fechado:

O Globo, 11/08/2016 125: Moradores de


rua do Centro ficam sem distribuição de
comida: [...] Instituição deixa de oferecer
refeições na Lapa durante a Olimpíada.
[...] Desde a última segunda-feira,
aproximadamente 250 moradores de rua do Centro do Rio ficaram
sem uma das principais ajudas oferecidas na região: a Casa das
Missionárias da Caridade, uma instituição religiosa localizada na
Travessa do Mosqueira, na Lapa, deixou de oferecer a refeição
que distribuía de segunda a sexta-feira, sempre às 16h.

O Globo, 08/08/2016 126: Massimo


Bottura abre Reffetorio Gastromotiva na
Lapa: [...] “Eleito o melhor chef do mundo pelo
50 Best, o italiano Massimo Bottura abriu na
manhã desta segunda-feira o Refettorio
Gastromotiva, na Lapa, região central do Rio. O
restaurante vai oferecer refeições gratuitas para a população vulnerável durante e após os Jogos
Olímpicos e Paralímpicos Rio 2016.
(Grifos nossos)

As imagens a seguir, exprimem o caráter ideológico do processo de mudança


de uso do bairro da Lapa, vendendo uma imagem de cidadãos conscientes e de
instituições preocupadas com as questões sociais, aumentando o capital simbólico
desses voluntários. Contudo, as imagens adquiridas na página do restaurante
gourmet, elucidam que a iniciativa privada financiou esta ação, onde os sem-teto
seriam os beneficiários:

125
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=artigo&ordenacaoData=relevancia&allwords=distribui%C3%A7%C3%A
3o+de+comida&anyword=&noword=&exactword=&decadaSelecionada=2010&anoSelecionado=2016&mesSelecionado=8&dia
Selecionado=11 Consultado em: 11/01/2017
126
http://blogs.oglobo.globo.com/luciana-froes/post/massimo-bottura-abre-o-refettorio-gastromotiva-na-lapa.html Consultado
em: 17/08/2016
144

Imagens: http://www.refettoriogastromotiva.org/
As imagens obtidas no site da Ong mostram a ideia de cidadania de Delgado,
com o voluntariado servindo à iniciativa. Também reforçam o conceito de gentrificação
de Smith ao trazer o capital simbólico em servir à uma parcela pobre da sociedade. Outro
ponto interessante do Gastromotiva é o acervo de artistas de renome mundial que
agregam valor ao restaurante.
Entretanto, nas informações obtidas no próprio site do Gastromotiva, 38 jantares
mágicos foram servidos em detrimento de 250 sem teto que perderam a ajuda diária das
refeições.
Como vimos anteriormente em matéria de jornal, a Lapa é uma marca
internacional e empresas passam a investir em iniciativas como o da Gastromotiva. Este
seria mais um caráter da gentrificação

Desta maneira, como mostra Smith a fúria dos que usufruem e lucram com o
espaço público, é com frequência que os sem-teto são contestados por notícias em
jornais e nas ações de remoções pelo poder público. Na região do centro e,
principalmente, na Lapa, o processo de remoção das áreas a serem gentrificadas
arremessa os sem-teto em direção aos subúrbios distantes ou a abrigos também
distantes da região central. Com Smith concluímos que:
145

Expulsos dos espaços privados do mercado imobiliário, os sem teto (sic)


ocupam os espaços públicos, mas sua presença na paisagem urbana é
contestada com fúria. Sua visibilidade é constantemente apagada por
esforços institucionais de removê-los para outros lugares – para abrigos, para
fora dos prédios e parques, para bairros pobres, para fora da cidade, e em
direção a outros espaços marginais. As pessoas expulsas também são
apagadas pelas desesperadas campanhas pessoais dos que têm casa para
não verem os sem teto, mesmo quando tropeçam em seus corpos nas
calçadas. Este apagamento em curso da visão pública é reforçado pelos
estereótipos da mídia que ou culpam as vítimas – e, portanto, justificam sua
invisibilidade estudada – ou afogam-nos num sentimento lúgubre que faz
deles párias sociais, desamparados, o patético outro, eximido de
responsabilidade cívica ativa e com sua condição de pessoa negada. (2000,
p. 135).

A produção de espaço passa a ser uma ferramenta de produção de capital dado


o uso simbólico do espaço público, transformando-o em consumível, passível de
receber investimento e se tornar negociável. Neste espaço, os sem-teto são
elementos a serem removidos.

6. PONDERAÇÕES A RESPEITO DO PROCESSO DE EXCLUSÃO SOCIAL NA


LAPA

Nesta dissertação buscamos compreender a relação entre o capital, a exclusão


social e a reprodução de cidades. Para isso buscamos refletir sobre algumas questões
importantes que nortearam o trabalho.
Na primeira parte, buscamos compreender como o modo de produção
capitalista se apropria do processo de produção de cidades. Como primeira questão,
entendemos que pela relação entre poder simbólico e espaço público – ao transformar
espaço em mercadoria – a produção do espaço passou a ser um elemento auxiliar na
reprodução do capital, segundo os estudos de Smith. Contudo, entendemos o espaço
público não apenas como uma ferramenta de acumulação de capital, mas como uma
eficiente forma de controle da sociedade. Além disso, como aponta Bourdieu, as
classes dominantes se utilizam da cultura como forma de controle das massas, tendo
o espaço público como o palco desta coerção ideológica. É pelo processo de
reprodução do uso do espaço público, como o lugar a se ditar uma ideologia, que
teremos um cidadão padrão, de perfil de classe média e capaz de absorver os
símbolos dessa ideologia feita para controlar a sociedade.
146

Desta maneira, o espaço público se torna um elemento de valorização das


áreas das cidades ao passarem por processos de transformação, atraindo assim
novas classes consumidoras, num movimento de retomada – como mostra Smith na
cidade revanchista – do território perdido. Para isso, esse espaço público
representaria os símbolos de uma classe que deseja, cada vez mais, acumular
símbolos. Como vimos em Bourdieu e Delgado, o espaço público é o principal atrativo
e ponto de valorização da área da cidade – em processo de higienização ou
gentrificação – nos quais as classes médias têm atendidas suas necessidades, seus
símbolos, e, assim, oportunidade de aumentar seu capital simbólico.
Essa abordagem inicial nos possibilitou perceber que, a partir do movimento de
capital na escala urbana – nunca dissociado do movimento de capital nas escalas
Estado-Nação e na escala global – como mostrou Smith, as transformações urbanas
dentro do modo de produção capitalista foram formas fugazes de acumulação de
capital. Contudo, as transformações urbanas em cada época guardavam
características importantes da cultura, do modo de produção capitalista, das
intervenções urbanas e seus processos, da forma política e dos discursos de cada
período da história por nós abordado.
Nossa analise procurou compreender quais seriam as semelhanças e
singularidades entre esses três momentos. E, Embasados na crítica de Marx ao
funcionamento do modo de produção capitalista, buscamos explicar os processos de
exclusão social da cidade do Rio de janeiro, especialmente, no bairro da Lapa.
Durante os períodos analisados, percebemos que a exclusão social aconteceu
repetidamente de maneira semelhante, obedecendo às necessidades de adequação
do traçado urbano à um modelo ideológico.
A fim de elucidar essa constante repetição do processo de exclusão social,
Marx faz um adendo importante à certa passagem de Hegel, alertando que:
[...] todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história
mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes. Ele se esqueceu de
acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. [...] Os
homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e
espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob
as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se
encontram. A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo
que comprime o cérebro dos vivos. (2011, p. 25)
147

Em todos os períodos analisados – o higienismo proposto por Rego e Passos,


as intervenções dos planos urbanos em meados do século XX, e na gentrificação atual
do início do século XXI – foi possível perceber a existência de um novo processo em
curso. Nenhum deles foi obra do acaso, pois existia a ideologia da limpeza urbana,
onde a troca das classes e frequentadores, da valorização de edificações e do solo
urbano na Lapa, permearam todos os períodos estudados.
No higienismo realizado por Pereira Passos, como cópia do modelo europeu
realizado por Haussmann, o discurso de limpeza social teve suas origens meio século
antes das obras serem levadas a cabo. O discurso foi construído por intelectuais,
cientistas e médicos, sendo propagado pelos meios de comunicação. Sua realização
precisava de um agente econômico inexistente no Brasil Colônia e no período
imperial. Assim, somente depois da chegada da República foi possível que os ideais
higienistas fossem postos em prática.
Dentro deste processo de exclusão social, expresso na cidade velha do Rio de
Janeiro, o discurso de higienização contou com a expansão da cidade para a zona
norte e sul, orquestrado pelas empresas de transporte público, o Estado e pelos donos
de terras. Configurava-se assim, o cenário e os atores: as operações consorciadas
entre o poder público e iniciativa privada estaria inaugurada no Brasil. Com este
processo, conforme Abreu, a forma da cidade do Rio de Janeiro era alterada de cidade
colonial para cidade capitalista.
Quanto à Lapa no período Passos, as intervenções urbanas deixaram marcas
pelas ruas tortuosas e pela limpeza social proposta pelos higienistas. Neste período o
bairro já não vivia mais a fase majestosa de meados do século XIX e tinha início o
retorno das classes mais altas para os novos edifícios ecléticos em paralelo à retirada
dos pobres habitantes dos cortiços coloniais. Dando continuidade aos processos de
exclusão social na cidade, os planos urbanos das décadas seguintes, trataram de
eliminar da Lapa os chamados degenerados, junto ao discurso de saneamento moral
que se fez presente até as últimas demolições da década de 1970.
Nesse período é que o discurso se estruturava de maneira a justificar as
demolições. E como vimos acima, tínhamos como forma estrutural do discurso que,
em primeiro surgia o nome da ação, um título que remete ao progresso; depois,
148

delineava-se uma área a ser demolida, causadora de transtorno para a cidade; em


seguida, a valorização dos terrenos e a desoneração do poder público, com o repasse
à iniciativa privada dos terrenos; por último, evidenciava-se os benefícios com as
demolições ao evocar as características modernizadoras e as facilidades que as
praças e largos dariam ao bairro.
Ainda nesse período, a cidade também experimentava mais um processo de
expansão urbana, cada vez mais alargando suas fronteiras em direção à zona norte
e oeste, contanto com a parceria da indústria do transporte e o mercado de terras. Por
outro lado, mesmo a Lapa não sendo o alvo central dos planos urbanos entre as
décadas de 1920 a 1950, passou a sofrer com algumas demolições durante a década
de 1960. Desta maneira, o que realmente diferiu esse período do período de Passos
é que a Lapa passou a sofrer um processo de exclusão social contundente,
culminando na demolição de mais de trezentos edifícios – até o meio da década de
1970 – com o pretexto do discurso da modernidade do centro do Rio de Janeiro.
Posteriormente, já a partir da década de 1990, nossa análise pôs em evidência
o processo de gentrificação. Nele, as mudanças populacionais eram elemento
fundamental, conforme Smith, pois evidenciou o processo de gentrificação como
revanchista, classista e racista. Seus principais agentes foram o mercado imobiliário
e a financeirização da habitação, os agentes culturais e a transformação da Lapa em
cenário cultural novamente, perpetuando o processo de exclusão social desde o
período de Passos.
Mesmo Smith afirmando que o processo de gentrificação não é inevitável, o
capital se movia pela escala urbana de maneira semelhante nos períodos analisados.
Nunca dissociado de outros setores do desenvolvimento urbano, como o sistema de
transporte – maestro da expansão da cidade – e do mercado imobiliário, o capital e
suas formas de reprodução caminharam não mais apenas das regiões centrais para
a periferia. Agora, já enraizado na sociedade pela cultura da vida cidadã no espaço
público, como mostrou Delgado, pelo poder simbólico de se viver em um bairro
glamourizado e visto na grande mídia, o processo se consolidou como algo natural,
como símbolo de progresso. Dessa maneira, a gentrificação caminhou para o
subúrbio, ao mesmo tempo em que expandia as fronteiras tanto para os bairros mais
149

pobres e centrais, quanto para outros bairros da zona norte e oeste. Neste momento
da análise, a fronteira é também o centro da cidade, pela volta do capital e pela luta
em eliminar os indesejados.
Como parte final da nossa dissertação, foi necessário saber quem estaria
incluído e quem seria excluído pelos processos do movimento de capital e reprodução
das cidades.
Como resultado, os processos de exclusão social, onde o movimento de capital
em vaivém pela escala urbana – como mostrou Smith na parte 1, item 1.1 – provocou
um movimento de pessoas em direção às áreas valorizadas da cidade, as quais
receberam investimentos do estado, garantindo o retorno de capital aos agentes
dessa operação.
Assim, o que ficou em evidência nessa operação de consórcio entre estado e
capital foi o sentido diametralmente oposto do movimento de pessoas: em direção às
áreas supervalorizadas, movia-se a classe média portadora e sequiosa do aumento
do seu capital simbólico; na direção oposta, uma classe de indesejados, que não podia
mais arcar com os custos de vida do bairro da Lapa.
Entretanto, não eram apenas pessoas sem capital simbólico ou sem condições
financeiras para arcar com os custos dos serviços e alugueis da Nova Lapa que
perdiam seus lugares. O ponto mais crítico desse processo de exclusão social se
referia àqueles que sequer possuíam um teto, que precisavam se instalar nas
calçadas e marquises de um bairro que se tornou marca internacional. Na Lapa, da
mesma forma como Smith analisou o processo de gentrificação de Nova York, a
presença desses indesejados incapazes de esconder sua miséria – denominados
também como perigosos – era e é contestada com fúria pelas classes dominantes,
com ódio às classes mais pobres. Vistos como obstáculos nas calçadas pela nova
classe que habitaria o bairro, como viciados e elementos a serem removidos, os sem
teto disputavam lugar com as mesas dos novos bares e restaurantes, com os
bicicletários privados e com os equipamentos de um bairro marca.
Nos três períodos estudados (o Higienismo de Pereira Rego a Pereira Passos,
de 1850 e 1905; a época das demolições na Lapa e o discurso dos degenerados, de
1960 e 1970; a gentrificação como processo global, de 2000 e 2010), as classes mais
150

pobres arcaram com os custos das remoções ao serem empurradas para as áreas
periféricas e ao sofrerem com o discurso de ódio.
Entretanto, o que põe em evidência o caráter excludente da gentrificação, em
um nível perverso, é o movimento de capital pela escala urbana (seu movimento de
produção e reprodução de cidades), que além de garantir o retorno financeiro do
capitalista, propagou-se e consolidou-se naturalizada como cultura na produção e
reprodução das cidades.
Dessa forma, as remoções forçadas e a expulsão dos sem teto ganhou novo
título e, como a cópia malfeita de Pereira Passos, e uma espécie de retrato pintado
por Romero Britto – disforme, pós-moderno, mas de grande apelo econômico e
popular – o ex-prefeito Eduardo Paes entra para a história como o gestor que mudou
o significado da palavra acolhimento, que removeu mais pessoas de suas casas do
que seu grande ídolo do passado, e que transformou uma parte da cidade, antes
pública, em propriedade privada, do mercado imobiliário.
Ainda assim, cabe perguntar se, após analisar o processo econômico das
transformações urbanas e a exclusão social resultantes delas, a Lapa protagonizaria
futuramente mais um processo de movimento excludente do capital, já que o bairro
passou por intenso processo de descaracterização física e social durante a segunda
metade do século XX e início do século XXI. Outra pergunta importante seria com a
saída, o movimento ou retração do capital da cidade do Rio de Janeiro, resultaria em
um possível efeito bumerangue de retorno para a Lapa dos sem teto removidos em
função das olimpíadas em 2016. E, como questão final, os sem-teto retomariam o
bairro, ou o atual projeto de sociedade blindou a Lapa contra a reprodução e invasão
das classes perigosas.
Enfim, essas questões se mostraram como de especial relevância e
importância no estudo e pesquisa constantes no que concerne aos processos de
movimento de capital na apropriação dos espaços no centro da cidade do Rio de
Janeiro, em especial no bairro da Lapa, e os seus indissociáveis processos de
exclusão social.
151

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