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Niterói
2016
C198 Campos, Luis Gustavo Rosadas
Do higienismo à gentrificação, as semelhanças e
singularidades no processo de exclusão social na cidade do Rio de
Janeiro: o bairro da Lapa / Luis Gustavo Rosadas Campos –
Niterói: UFF, 2016.
155f.: il.
Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) –
Universidade Federal Fluminense, 2016.
Orientador: Sônia Maria Taddei Ferraz
1. Política pública. 2. Espaço urbano. 3. Exclusão social. 4.
Gentrificação. 5. Lapa (Rio de Janeiro, RJ). 5. Produção
intelectual. I. Ferraz, Sônia Maria Taddei. II. Universidade Federal
Fluminense, Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e
Urbanismo, 2016. III. Título.
CDD 320.981
UFF – UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
PPGAU – PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO
Niterói
2016
LUIS GUSTAVO ROSADAS CAMPOS
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Sônia Maria Taddei Ferraz (orientadora)
UFF - Universidade Federal Fluminense
____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Cristina Lontra Nacif
UFF - Universidade Federal Fluminense
____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Carolina Moreira de Hollanda
UNIGRANRIO - Universidade do Grande Rio
Dedico esta dissertação aos que perderam o direito de morar, que tiveram as
relações com seu lugar reificadas pelas intervenções urbanas gentrificadoras
abastecidas pelo capital. Aos que tiveram seus pertences roubados ou destruídos –
mesmo que papelões ou cobertores de flanelas – pelos agentes do Estado. Aos que
precisam morar de favor na casa de amigos ou parentes.
Dedico este trabalho também àqueles que não puderam arcar com os custos da
gentrificação e das remodelações, não podendo pagar os preços gananciosos de uma
sociedade cínica e conivente com as desigualdades.
Ainda, aos que foram marginalizados e sofreram agressões físicas nas ruas por
fascistas. E assim, por sua condição racial e social, não puderam se camuflar no
espaço, antes público e agora privado.
Dedico às vítimas invisibilizadas pela sociedade de consumo e aos que, sem
poder simbólico, são jogados para fora dos limites da fronteira da cidade, pela avidez
revanchista dos que almejam privilégios e não direitos.
A todo aquele que além perder bens materiais, foi desumanizado na sociedade
capitalista contemporânea.
AGRADECIMENTOS
Aos amigos especiais: Ellen e Paulo; Bernardo (meu guri) e Marcelle Risadas;
Cássio André Felipe.
Aos amigos: Rosi, Jaime Núñez, Priscila Gonçalves, Leticia, Roberth, Ricardo
Pirata.
Aos tios Jorge, Sandra, Marilisa e Marcos e aos primos Carol, Felipe, Vinícius e
Vanessa.
Às Violets!!!
Ao MNLM-RJ
Ludwig Van Beethoven também ajudou muito.
[...] E se todos os outros aceitassem a mentira
imposta pelo Partido — se todos os registros
contassem a mesma história —, a mentira tornava-se
história e virava verdade. “Quem controla o passado
controla o futuro; quem controla o presente controla o
passado”, rezava o lema do Partido. E com tudo isso
o passado, mesmo com sua natureza alterável,
jamais fora alterado. Tudo o que fosse verdade agora
fora verdade desde sempre, a vida toda. Muito
simples. O indivíduo só precisava obter uma série
interminável de vitórias sobre a própria memória.
“Controle da realidade”, era a designação adotada.
Em Novafala: “duplipensamento”.
(ORWEL, 2009)
RESUMO
APRESENTAÇÃO ....................................................................................................11
INTRODUÇÃO...........................................................................................................13
Higienismo.......................................................................................................83
3.1 A QUESTÃO DA HABITAÇÃO NO RIO DE JANEIRO: SÉCULO XIX .................85
3.2 AS EPIDEMIAS E A LIMPEZA URBANA NO RIO DE JANEIRO .........................87
3.3 O DISCURSO HIGIENISTA DE PEREIRA REGO COMO GUIA PARA AS
INTERVENÇÕES DE PASSOS .................................................................................90
3.4 AS INTERVENÇÕES DE PASSOS .....................................................................93
3.5 CONSIDERAÇÕES SOBRE AS INTERVENÇÕES DE PASSOS ......................101
3.6 O HIGIENISMO E A LAPA: UM ANTECESSOR DO PROCESSO DE
GENTRIFICAÇÃO ...................................................................................................103
APRESENTAÇÃO
com esse trabalho”, nos deixa a pista para o aprofundamento de temas a serem
pesquisados. Freire ensina ainda que não nascemos prontos, que nos construímos
com as experiências do mundo e só assim progredimos.
É nesse conjunto de conhecimento que o mestrado acadêmico se torna
fundamental para o meu processo de aprendizado, possibilitando um mergulho na
origem do processo de exclusão social na cidade do Rio de Janeiro, na compreensão
de que o modo de produção capitalista se utiliza da cultura a fim de perpetuar seu
processo de acumulação.
13
INTRODUÇÃO
PARTE 1
1
Tradução nossa, do original: La problemática urbana se anuncia. ¿Qué saldrá de ese hogar, de este fogón de brujas, de esta
intensificación dramática de las potencias creadoras, de las violencias, de ese cambio generalizado en el que no se ve qué es lo
que cambia, excepto cuando se ve excesivamente bien: dinero, pasiones enormes y vulgares, sutilidad desesperada? La ciudad
se afirma, después estalla”. (LEFEBVRE,1976, p.114 Apud Delgado, 2015, p.5)
18
2
Marx, Karl. O Capital. p. 206-207. 2013 - O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de
que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do
trabalho, como propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação social dos produtores
com o trabalho total como uma relação social entre os objetos, existente à margem dos produtores. É por meio desse quiproquó
que os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sensíveis-suprassensíveis ou sociais. [...] No ato de ver, porém, a
luz de uma coisa, de um objeto externo, é efetivamente lançada sobre outra coisa, o olho. Trata-se de uma relação física entre
coisas físicas. Já a forma-mercadoria e a relação de valor dos produtos do trabalho em que ela se representa não tem, ao
contrário, absolutamente nada a ver com sua natureza física e com as relações materiais [dinglichen] que dela resultam. É apenas
uma relação social determinada entre os próprios homens que aqui assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação
entre coisas. Desse modo, para encontrarmos uma analogia, temos de nos refugiar na região nebulosa do mundo religioso. Aqui,
os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, como figuras independentes que travam relação umas com
as outras e com os homens. Assim se apresentam, no mundo das mercadorias, os produtos da mão humana. A isso eu chamo
de fetichismo, que se cola aos produtos do trabalho tão logo eles são produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável
da produção de mercadorias.
20
como Ruth Glass descrevia. Com isso, nossa abordagem buscará compreender o
movimento de capital entre as escalas urbana, estado nação e global, afim de melhor
compreender o processo de produção de cidades.
O espaço urbano
A reestruturação do espaço na escala urbana é a base da abordagem de Neil
Smith sobre o desenvolvimento desigual. Essa reestruturação tem no
“redesenvolvimento, da gentrificação e do crescimento não metropolitano a mais
acabada e aparente ilustração do processo” (1988, p. 223) de desenvolvimento
desigual. Desse modo, o processo de gentrificação, segundo o autor, é um movimento
de capital passageiro e não duradouro que uma área da cidade pode experimentar e
“a menos importante a longo prazo” (Ibidem).
Além disso, a produção das desigualdades espaciais na escala urbana, dadas
também por localização da força de trabalho afastadas das áreas mais valorizadas,
expressam o caráter desigual do capitalismo, já que “o subdesenvolvimento de áreas
específicas eventualmente conduz precisamente àquelas condições que faz uma área
altamente lucrativa e susceptível de rápido desenvolvimento” (SMITH, 1988, p. 213).
O uso do solo urbano se transforma de modo a gerar mais acumulação, sendo o que
mais evidencia esse processo, sobre o qual o autor afirma: “o capital tenta fazer um
vaivém de uma área desenvolvida para uma área subdesenvolvida, para, então, num
certo momento posterior voltar à primeira área que agora se encontra
subdesenvolvida, e assim sucessivamente” (Ibidem).
O caráter desigual também expressa o capital como praga de gafanhotos: “eles
se estabelecem em um lugar, devoram-no e então se deslocam para praguejar outro
lugar. E, melhor dizendo, no processo de sua recuperação após uma praga, a região
ficava pronta para outra” (HARRIS, 1983 apud SMITH, 1988, p. 217). Ainda segundo
Smith, são nas características do valor de uso e valor de troca que se evidenciam as
tendências para a diferenciação e igualização do espaço geográfico dentro do
capitalismo que:
21
vez que o lixo global é descarregado na rua onde você vive; e você já ouviu
falar muitas vezes dos perigos derivados da underclass; e ouviu dizer também
que a maioria dos imigrantes é parasita de seu welfare e até terroristas em
potencial, e que cedo ou tarde acabarão por mata-lo. Nesse caso, viver com
estrangeiros é uma experiência que gera muita ansiedade. Por conseguinte,
é melhor evitar essa experiencia, e pessoas resolveram transmitir esse
instinto de evitar às gerações futuras, colocando seus filhos em escolas
segregadas, em que podem viver imunes a esse mundo horrendo, ao impacto
assustador de outras crianças provenientes de famílias do tipo errado. (2009,
p. 87).
desse pedaço de chão” (Ibidem). Dinheiro e território interagiam numa escala local e
ordenados pela necessidade local, onde esta relação de valor de uso era regida pelo
território. Para Santos, o papel da troca “começa a ganhar uma enorme mudança na
história dos lugares e do mundo, deslocando da primazia o papel do uso, e até mesmo
comandando o uso, ao revés do comando anterior da troca pelo uso” (Ibidem). Assim,
com o passar do tempo, o uso do chão perde o seu papel e passa a ter mais
importância como objeto de troca.
Outro autor que trata da valorização do solo urbano é Paul Singer. Ele mostra
que o processo de expansão das cidades possibilita “novos focos de valorização do
espaço urbano” (1982, p. 29) e que nesse processo de expansão “o crescimento
urbano implica necessariamente uma reestruturação do uso das áreas já ocupadas”
(Ibidem). O autor põe em evidencia que as necessidades das classes sociais mais
altas se mantêm separadas do restante da sociedade, gerando uma “demanda de solo
urbano para fins de habitação”, que “também distingue vantagens locacionais
determinadas, principalmente, pelo maior ou menor acesso a serviços urbanos”
(Ibidem).
Esta é, portanto, uma análise indispensável para a compreensão dos processos
de higienismo, de gentrificação e da transformação do espaço em mercadoria. A
análise de Singer nos ajuda a compreender a formação do valor de troca do solo
urbano. Em sua abordagem, o autor aponta que o mercado de terras possui caráter
especulativo, incorporando à cidade glebas antes agrícolas, onde o custo de
produção:
[...] é, nestes casos, equivalente à renda (agrícola) da terra que se deixa de
auferir. Mas não há uma relação necessária entre este "custo" e o preço
corrente no mercado imobiliário-urbano. Como a demanda por solo urbano
muda frequentemente, dependendo, em última análise, do próprio processo
de ocupação do espaço pela expansão do tecido urbano, o preço de
determinada área deste espaço está sujeito a oscilações violentas, o que
torna o mercado imobiliário essencialmente especulativo. Quando um
promotor imobiliário resolve agregar determinada área ao espaço urbano, ele
visa a um preço que pouco ou nada tem a ver com o custo imediato da
operação. (1982, p. 23-24)
Com relação às empresas que nada investem no solo urbano, o autor diz que
“a renda diferencial paga por elas será maior na medida em que o novo serviço lhes
permite reduzir seus custos de produção e/ou de circulação” (Ibidem). Além disso, a
demanda dos moradores que é possibilitada pelo “novo serviço atrai famílias de renda
mais elevada e que se dispõem a pagar um preço maior pelo uso do solo, em
comparação com os moradores mais antigos, de renda mais baixa” (Ibidem). Singer
evidencia, assim, o movimento de capital nas áreas da cidade e a valorização do solo
urbano.
Para mostrar a diferenciação das classes em áreas de solo mais valorizado,
de acordo com o poder aquisitivo de cada classe, Smith analisa a localização da
produção e da mão-de-obra, na cidade, a partir do princípio de “propriedades
espaciais como elementos integrantes do valor de uso” (1988, p. 128). Citando Marx,
Smith esclarece que:
de lugar [...] Sua existência espacial é alterada, e com isto ocorre uma
mudança no seu valor de uso, desde que seja alterada a localização desse
valor de uso. Seu valor de troca aumenta na mesma proporção em que a
mudança no valor de uso exige trabalho. (MARX, 1969 apud SMITH, 1988,
p. 128)
o novo serviço”, a cidade preparada pelo Estado, “vai servir aos novos moradores e
não aos que supostamente deveria beneficiar” (1982, p. 34).
Voltando às reflexões de Smith, temos que as relações espaciais
complementam a compreensão do valor do espaço. O autor mostra que com o
aumento do poder produtivo, “torna-se cada vez mais necessário que um número
progressivamente maior de trabalhadores esteja concentrado espacialmente nas
proximidades do lugar de trabalho” (1988, p. 132). A produção de espaço se torna
fundamental no modo capitalista de produção, seja espaço para os trabalhadores, seja
espaço para as classes mais ricas. O espaço passa a ter um valor financeiro,
relativizado pela oferta de serviços e infraestrutura que nele foram inseridos. O autor
ainda esclarece que o espaço geográfico como um todo seria a totalidade:
[...] das relações espaciais organizadas, num grau maior ou menor dentro de
padrões identificáveis, que adequadamente constituem a expressão da estrutura
e do desenvolvimento do modo de produção. Como tal, o espaço geográfico é
mais do que simplesmente a soma das relações separadas compreendidas em
suas partes. Assim, a divisão mundial em mundos subdesenvolvido e
desenvolvido, embora inexata, somente pode ser compreendida em termos de
espaço geográfico com um todo. Ele envolve a padronização do espaço
geográfico como uma expressão da relação entre o capital e o trabalho. Do
mesmo modo, a integração do espaço pode ser entendida como expressão da
universalidade do valor, se olharmos não para as relações espaciais específicas,
mas para o espaço geográfico como um todo. (1988, p.130)
Ele ainda afirma que pelas ações “a sociedade não mais aceita o espaço como
um receptáculo, mas sim o produz; nós não vivemos, atuamos ou trabalhamos no
espaço, mas, sim, produzimos o espaço, vivendo, atuando e trabalhando” (1988, p.
132). O papel de mercadoria que assume o espaço, como já apontado anteriormente,
expressa o caráter dessa sociedade que o produz através do seu trabalho. A ideia de
espaço como mercadoria ganha enfoque ideológico para o processo de reprodução
do modo de vida capitalista. Desta maneira, Smith explicita que esse enfoque visa:
[...] menos ao processo de produção, e mais à reprodução das relações
sociais de produção que, diz ele, "constitui o processo central e oculto" da
sociedade capitalista, e este processo é essencialmente espacial. A produção
das relações sociais de produção não ocorre somente na fábrica, nem
tampouco numa sociedade como um todo, de acordo com Lefebvre, "mas no
espaço como um todo"; "o espaço como um todo tornou-se o lugar em que a
reprodução das relações de produção se localiza". As relações espaciais são
geradas "logicamente", mas tornam-se "dialeticizadas” através da atividade
humana no espaço e sobre ele. É este espaço "dialeticizado" e de conflito […]
que produz a reprodução, introduzindo nele suas múltiplas contradições."
(1988, p. 140)
28
Desenvolvimento desigual
A produção de espaço no capitalismo é parte fundamental na análise de Smith,
no que tange o desenvolvimento desigual. É importante pensar como a produção do
espaço público e a produção desigual de partes da cidade compõem com o movimento
de capital a dinâmica urbana.
Smith encaminha para uma abordagem econômica a fim de compreender a
essência do desenvolvimento desigual do capital. Em sua concepção do
desenvolvimento desigual, o autor mostra que “o desenvolvimento social não ocorre
em todas as partes nem com a mesma velocidade nem na mesma direção 3” (2012, p.
140). Smith continua afirmando que:
[...] o desenvolvimento desigual deveria ser concebido como um processo
bastante específico que possui lugar exclusivamente nas sociedades
capitalistas e que se encontra diretamente enraizado às relações sociais
fundamentais desse modo de produção. Sem sombra de dúvida, o
desenvolvimento social em outros modos de produção também pode ser
desigual, mas por razoes muito diferentes, possui uma transcendência social
distinta e tem como resultado paisagens geográficas também diferentes. [...]
No capitalismo, a relação entre áreas desenvolvidas e subdesenvolvidas
constitui a manifestação mais óbvia e importante de desenvolvimento
desigual, acontecendo não apenas na escala internacional mas também na
escala regional e urbana [...] (Ibidem) 4.
3
Tradução nossa, do roiginal: “[...] el desarrollo social no ocurre en todas partes ni con la misma velocidad ni en la misma
dirección.” (SMITH, 2012, p. 140)
4
Tradução nossa, do original: “el desarrollo desigual debería ser concebido como un proceso bastante específico que tiene lugar
exclusivamente en las sociedades capitalistas y que se encuentra directamente enraizado en las relaciones sociales
fundamentales de este modo de producción. Sin lugar a dudas, el desarrollo social en otros modos de producción también puede
ser desigual, pero lo es por razones muy diferentes, tiene una trascendencia social distinta y da como resultado paisajes
geográficos también diferentes. [...] En el capitalismo, la relación entre zonas desarrolladas y subdesarrolladas constituye la
manifestación más obvia e importante del desarrollo desigual, y esto ocurre no sólo a escala internacional sino también a escala
regional y urbana [...]” (Ibidem).
29
de uma forma ele se põe a reproduzir em outra” (1988, p. 201). Com “uma certa
acumulação primitiva do espaço [...], começando no campo, oferece a condição
essencial para se transformar a geografia do feudalismo em geografia do capitalismo”
(Ibidem). Segundo o autor, a alteração específica da geografia pelo modo de produção
capitalista transformou o mercado mundial baseado na troca “numa economia mundial
baseada na produção e na universalidade do trabalho assalariado” (Ibidem).
A partir da escala global, a produção do espaço estaria ligada “a diferenciação
geográfica do globo, de acordo com o valor da força de trabalho” (SMITH, 1988, p.
203), no qual há “uma acentuada divisão internacional do trabalho e uma
diferenciação sistemática entre a composição orgânica do capital em áreas
desenvolvidas e subdesenvolvidas” (Ibidem). O desenvolvimento desigual na escala
global necessita da desigualdade produzida em determinados pontos do mundo,
sendo desigual porque produz avanços e integração onde convém.
A precarização do trabalho e o empobrecimento da força de trabalho são
características importantes no processo de desigualdade do modo de produção
capitalista. Como aponta Smith, é expresso na economia e se materializa nas cidades
quando a “geografia global do capitalismo” representa a vulgarização do
“desenvolvimento do subdesenvolvimento” (1988, p. 202), ou seja, um modo uniforme
de produzir as desigualdades. O autor evidencia que:
Quanto mais a força de trabalho é mercadorizada na economia mundial, mais
o valor da força de trabalho se torna um instrumento de ruptura de tendência
para a integração espacial. Ele se torna, assim, tão aparente que o
fundamento político do capital mundial é a principal barreira ao maior
desenvolvimento social. (1988, p. 204)
da classe trabalhadora.
Smith elucida que a existência do Estado “se desenvolve para realizar essas
tarefas, assim como para defender o capital militarmente, onde seja necessário”
(1988, p. 205). Tais tarefas seriam as “várias bases infraestruturais e de leis
comerciais, a regulamentação da reprodução de força de trabalho e apoio para o
dinheiro local” (Ibidem). A partir de então, é determinado “um conjunto de jurisdições
territoriais que são colocadas na paisagem, com arame farpado e postos
alfandegários, cercas e guardas de fronteiras” (Ibidem), loteando o mundo em
diversas nações.
Com relação à divisão do trabalho, esta é garantida internacionalmente pela
demarcação de fronteiras dos Estados, possibilitando a defesa das regiões mais
desenvolvidas do fluxo de mão-de-obra de regiões menos desenvolvidas. Assim,
interno ao Estado, a colonização de certas áreas mais desenvolvidas sobre as menos
desenvolvidas garante a divisão interna do trabalho, territorializando-o inclusive nos
centros urbanos.
A divisão do trabalho, e sua distribuição no território do Estado, se torna
relevante para nós quando Smith mostra a sua expressão espacial nesta escala. O
autor põe em evidencia os diferentes setores da economia nacional e internacional, já
que:
[...] estão concentrados e centralizados em certas regiões. Isto é o que
geralmente chamamos de divisão territorial do trabalho. Ela opera numa
escala maior do que a urbana, que é um único mercado de trabalho
geográfico, mas abaixo da divisão internacional do trabalho, onde a
mobilidade do trabalho entre diferentes nações-Estados é severamente
restringida. Apesar desta última diferença, a cristalização de regiões
geográficas distintas na escala nacional tem a mesma função que a divisão
global entre o mundo desenvolvido e o mundo subdesenvolvido. Ambos
constituem fontes geograficamente fixas (relativamente) de trabalho
assalariado, um na escala internacional e o outro sob o controle mais direto
do capital nacional. (1988, p. 207-208)
5
Segundo Marx: “O produto não é mais uma mesa, uma casa, um fio ou qualquer outra coisa útil. Todas as suas qualidades
sensíveis foram apagadas. E também já não é mais o produto do carpinteiro, do pedreiro, do fiandeiro ou de qualquer outro
35
trabalho produtivo determinado. Com o caráter útil dos produtos do trabalho desaparece o caráter útil dos trabalhos neles
representados e, portanto, também as diferentes formas concretas desses trabalhos, que não mais se distinguem uns dos outros,
sendo todos reduzidos a trabalho humano igual, a trabalho humano abstrato”. MARX, Karl. O capital: Crítica da economia política.
Livro I: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013
6
Como visto anteriormente no item 2.1, subitem O espaço como mercadoria.
36
acontece por fatores como “tamanho, forma de superfície, utilização atual, [...] e sua
relação com outros melhoramentos e lugares (centro da cidade, transporte, rede de
esgotos)” (Ibidem). Este sistema, segundo ele, deveria nivelar:
[...] o espaço urbano à dimensão de valor de troca, mas o faz como um meio
de então coordenar e integrar o uso dos espaços individuais dentro do espaço
urbano como um todo. A igualização do espaço urbano na estrutura de renda
do solo torna-se o meio para sua diferenciação. Os usos competitivos são
geograficamente selecionados, em primeiro lugar, através do sistema de
renda do solo. Entretanto, não há certamente garantia alguma de integração
efetiva. (Ibidem).
7
Conceito de Ruth Glass, encontrado na obra de Neil Smith (p. 73). La nueva frontera urbana. Ciudad revanchista y
gentrificación. Madrid: Ed. Traficantes de Sueños, 2012.
40
O que é a Gentrificação
Para melhor compreender o processo de gentrificação, é preciso entender o
significado e a origem desta palavra. Em um breve estudo etimológico, identificamos
que a palavra gentrificação tem origem na palavra inglesa gentry8, com significado de
classes média alta, pequena nobreza e até mesmo, aristocracia. Sabemos também
que a palavra deriva do francês antigo genterie, que designa uma classe de pequena
nobreza, de poder aquisitivo.
A partir desta origem da palavra, surgiu na Inglaterra o termo gentrificação
8
Disponível em: <http://www.wordreference.com/definition/gentry>. Acesso em: 12/12/2016.
42
voltando para casa, e para alguns dos que se encontram em seu caminho, não se
trata de algo agradável 9” (Ibidem), especialmente, para as classes mais pobres que
vivem nestes bairros.
Entretanto, inicialmente o processo de gentrificação foi apresentado carregado
de características simbólicas que ajudaram em sua aceitação, como aponta Smith:
A gentrificação inicial dos fins da década de 1950 e início da década de 1960
adquiriu rapidamente um significado simbólico, se certamente superou sua
importância econômica e geográfica sobe o terreno. A gentrificação, uma
válvula de escape modesta, mas de alta visibilidade para o capital produtivo
em busca de um lugar de descanso rentável, parecia prometer uma
alternativa à decadência e à descentralização residencial do pós-guerra. As
ideologias da gentrificação se entrelaçaram fortemente aos bairros
prósperos, outrora decadentes; o benefício, onde havia pobreza, a classe
média voltava à cidade: a gentrificação era uma coisa boa 10. (2012, p. 197)
9
Tradução nossa, do original: “La gentrificación es el proceso, comenzaba a explicar, por el que los barrios pobres y proletarios,
ubicados en el centro de la ciudad, son reformados a partir de la entrada del capital privado y de compradores de viviendas e
inquilinos de clase media – barrios que previamente habían sufrido una falta de inversión y el éxodo de la propia clase media.
Los barrios más humildes de classe trabajadora están en proceso de reconstrucción; el capital y la alta burguesia están volviendo
a casa, y para algunos de los que se encuentran a su paso, no se trata precisamente de algo agradable”. (Ibidem)
10
Tradução nossa, do original: “La incipiente gentrificación de finales de la década de 1950 y comienzos de la de 1960 adquirió
rápidamente una aceptación simbólica, que seguramente superó su importancia económica y geográfica sobre el terreno. La
gentrificación, una válvula de escape modesta pero de alta visibilidad para el capital productivo en búsqueda de un lugar de
descanso rentable, parecía prometer una alternativa a la decadencia y a la descentralización residenciales de la postguerra. Las
ideologías de la gentrificación se aferraron rápidamente a los barrios prósperos, antes decadentes; al beneficio, donde había
pobreza; la clase media volvía a la ciudad: la gentrificación era algo bueno” (SMITH, 2012, p. 197).
.
44
11
Tradução nossa, do original: “depreciación y la desvalorización del capital invertido en los barrios residenciales de las zonas
urbanas deprimidas” (SMITH, 2012, p. 125-126).
12
Tradução nossa, do original: “produce las condiciones económicas objetivas que hacen que la revalorización del capital
(gentrificación) se vuelva una respuesta racional por parte del mercado. Aquí resulta de fundamental importancia aquello que
denomino diferencia potencial de renta” (Ibidem).
46
13
Tradução nossa, do original: “La diferencia de renta es la diferencia entre el nivel de la renta potencial del suelo y la renta
actual capitalizada del suelo bajo el actual uso del suelo [...]. La diferencia potencial de renta viene producida, principalmente,
por la desvalorización del capital (lo cual disminuye la proporción de renta del suelo disponible para ser capitalizada) y también
por la expansión y el continuo desarrollo urbano (que históricamente han hecho aumentar la renta potencial del suelo en las
zonas urbanas deprimidas)” (SMITH, 2012, p. 126).
14
Tradução nossa, do original: “se inicia la gentrificación en un barrio determinado por alguno de los diferentes actores del
mercado inmobiliario y del mercado de suelo” (SMITH, 2012, p. 127).
15
Tradução nossa, do original: “a gran parte de la temprana gentrificación en Estados Unidos como una continuación de los
proyectos de renovación urbana” (SMITH, 2012, p. 127). “los subsidios y el auspicio estatal a la gentrificación siguen siendo
importantes” (Ibidem)
47
16
Tradução nossa, do original: “[...] del mercado privado: una o más instituciones financieras modifican radicalmente una
prolongada política de no concesión de créditos y promueven activamente un barrio en tanto mercado potencial para los
préstamos e hipotecas a la construcción. Todas las preferencias de los consumidores en el mundo serán inoperantes a menos
que esta fuente de financiación, que ha estado largo tiempo ausente, reaparezca; de un modo u otro, el capital hipotecario
constituye un prerrequisito. Por supuesto, este capital hipotecario debe ser prestado a consumidores desejosos que ejerciten una
preferencia u otra. Pero estas preferencias pueden ser, y son en gran medida, creadas socialmente. Junto con las instituciones
financieras, los promotores inmobiliarios profesionales han actuado, por lo general, como la iniciativa colectiva que está detrás
de la gentrificación. Como de costumbre, un promotor inmobiliario compra no una sino una proporción importante de propiedades
desvalorizadas en un barrio, para remodelarlas y venderlas. Una excepción de importancia a este predominio del capital colectivo
en el processo de dar curso a la gentrificación tiene lugar en los barrios adyacentes a zonas ya gentrificadas. Allí es, incluso,
común encontrar gentrificadores individuales que pueden ser muy importantes en los comienzos de la remodelación”. (Ibidem)
17
Tradução nossa, do original: “la capitalización de la renta del suelo mejorada y el beneficio sobre la inversión de capital
productivo (bastante diferente de la ganancia de la constructora)” (2012, p. 128).
18
Tradução nossa, do original: “[...] promotores inmobiliarios que ocupan sus propiedades son más activos en la rehabilitación
que cualquier otro sector de la construcción de viviendas. Cuando el terreno ya ha sido edificado y se ha establecido un intrincado
patrón de derechos de la propiedad, no siempre resulta fácil para el promotor profesional reunir suficiente suelo y propiedades
como para hacer que la intervención merezca la pena. Incluso los promotores inmobiliarios arrendatarios tienden a rehabilitar
varias propiedades de forma simultánea o una después de la otra. La fragmentada estructura de la propiedad de los edificios ha
hecho que los promotores que ocupan sus propiedades, quienes suelen ser operadores ineficientes en la industria de la
construcción, se conviertan en un convincente vehículo para la reconstrucción de los barrios desvalorizados”. (Ibidem)
48
Segundo o mesmo autor, o papel do Estado passa a ser regulado pelo mercado
imobiliário, quando o poder público se imiscui em questões do capital financeiro e
mostra que “A ausência de participação significativa do Estado nacional na ajuda à
gentrificação dos anos oitenta foi substituída, nos anos noventa, pela intensificação
da parceria entre o capital privado e os governos locais” (2006. p. 76). Sob essa lógica,
as realizações iniciais da “iniciativa municipal se desenvolveram como canais de
investimentos financeiros no urbano” (Ibidem), consolidando as parcerias público-
privadas como norma, mas com “o equilíbrio dos poderes ligando os setores privado
e público havia mudado no decorrer do processo” (Ibidem). E no lugar de “a razão
política acompanhar a economia, ela agora se curva inteiramente diante dela”
(Ibidem). Para Smith, o crescimento econômico não é mais regulado pelas políticas
urbanas, essas políticas “se encaixam nos trilhos já instalados pelo mercado, à espera
de contrapartidas mais elevadas, seja diretamente, ou na forma de arrecadação de
impostos” (Ibidem).
Portanto, não existe casualidade no atual processo de gentrificação. Os
processos de desvalorização de capital no século XIX, em bairros com queda na
atividade econômica, junto ao crescimento urbano “durante a primeira metade do
século XX, combinaram-se para produzir as condições nas quais o reinvestimento
rentável se torne possível” (SMITH, 2012, p. 128), serviram de base para o processo
de gentrificação contemporâneo.
Como já mostrado anteriormente, foi na região dos centros urbanos que a
gentrificação se originou. Em sua teoria da diferença potencial de renda (rent gap),
Smith traz à tona a seguinte questão:
Se esta teoria da diferença potencial de renda da gentrificação está correta,
poderia esperar que a remodelação começara onde a diferença e os
rendimentos eram maiores, quer dizer, em bairros especialmente próximos
ao centro da cidade e em bairros onde a sequência de baixa de valores se
efetivou. Mas pode-se supor muito de tais expectativas. Empiricamente,
gentrificação tendeu, de fato, para abraçar o centro da cidade, pelo menos
durante as primeiras etapas; entrando aqui em jogo muitas questões em
ralação com as causas imediatas da gentrificação de um bairro em particular,
a torná-lo possível estabelecer uma correlação entre o grau de degradação e
a propensão para gentrificação 19. (Ibidem)
19
Tradução nossa, do original: “[...] durante la primera mitad del siglo XX, se han combinado para producir las condiciones en las
que la reinversión rentable resulta posible. Si esta teoría de la diferencia potencial de renta de la gentrificación es correcta, podría
esperarse que la remodelación comenzara allí donde la diferencia y los rendimientos disponibles fueran mayores, es decir, en
barrios especialmente cercanos al centro de la ciudad y en barrios donde la secuencia de valores a la baja ya haya culminado
49
Smith deixa claro que os promotores imobiliários vão atrás de áreas “que
ofereçam rendimentos mais baixos mas ainda substanciais – ou ainda zonas que
apresentem menos obstáculos ao reinvestimento 20” (2012, p. 129) e tais zonas são
encontradas “afastadas do centro da cidade e em zonas onde a decadência avançou
em menor quantidade” (Ibidem).
O processo econômico chamado gentrificação não se deu apenas com as
novas edificações e com a valorização do solo, cuja abrangência bem ressalta Smith:
Mais que edifícios reabilitados e apartamentos reformados, a gentrificação
abrange cada vez mais os novos restaurantes e as vias comerciais do centro,
os parques em frente ao rio e os cinemas, as torres dos edifícios das marcas
famosas, os museus das grandes fundações, os locais turísticos de todo o
tipo, os complexos culturais, em resumo, todo um leque de grandes
operações na paisagem das áreas centrais. (2006, p. 72).
su curso. Pero podría suponerse demasiado a partir de estas expectativas. Empíricamente, la gentrificación ha tendido, de hecho,
a abrazar el centro de la ciudad, al menos durante las primeras etapas; entran aquí en juego demasiadas cuestiones en relación
con las causas inmediatas de la gentrificación de un barrio en particular, como para que resulte posible establecer un correlato
entre el grado de decadencia y la propensión a gentrificar ” (SMITH, 2012, p. 128)
20
Tradução nossa, do original: “que ofrezcan rendimientos más bajos, pero aún así sustanciales —o bien zonas que presenten
menos obstáculos a la reinversión. Esto implica zonas más alejadas del centro de la ciudad y zonas donde la decadencia há
avanzado en menor medida” (SMITH, 2012, p. 129)
21
Tradução nossa, do original: “La geografía de la frontera fue proyectada y creada como un recipiente para todos estos
significados acumulados; el borde de la frontera geográfica era un excelente medio para reproducir las diferencias sociales entre
el nosotros y el ellos, para la diferenciación histórica entre el pasado y el futuro, para la diferenciación económica entre el mercado
existente y la oportunidad de ganancia. Esta densa capa de significados ha sido expresada, agudamente, en la cambiante línea
de frontera” (SMITH, 2012, p. 296-5).
50
22
Tradução nossa, do original: “La frontera de la gentrificación absorbe y retransmite el destilado optimismo de una nueva ciudad,
la promesa de la oportunidad económica, la ilusión combinada del romance y la voracidad; es el lugar donde se crea el futuro.
Estas resonancias culturales crean el lugar, pero el lugar aparece como una frontera debido a la existencia de una línea
económica muy afilada dentro del paisaje. Detrás de la línea, la civilización y el lucro se cobran su peaje; pasada la línea todavía
campan la barbarie, la promesa y la oportunidade”. (SMITH, 2012, p. 296)
23
Tradução nossa, do original: “[...] en la que se invierte tal abundante cantidad de expectativas culturales, es un lugar
visceralmente real, inscrito en el paisaje urbano de los barrios gentrificados. De hecho, se la puede cartografiar. Y, al
cartografiarla, espero dejar al descubierto la ideología de la nueva frontera urbana, tan efectivamente movilizada para justificar,
no sólo la gentrificación, sino también en términos más generales la reestructuración urbana. Tras los cargados y evocativos
atractivos culturales de la nueva frontera urbana, subyace una verdad económica más prosaica que otorga al imaginario de la
frontera una apariencia de legitimidad. (Ibidem)
24
Tradução nossa, do original: “El poder simbólico de la gentrificación implica que estas generalizaciones de su significado sean,
sin duda, inevitables, pero incluso cuando esto sucede desde una perspectiva crítica tienen tanto aspectos favorables como
negativos. Tal y como sucede con todas las metáforas, el término gentrificación puede ser utilizado para brindar una entonación
crítica (o no tan crítica) a experiencias y hechos radicalmente diferentes. Pero, llegado el momento, la propia gentrificación viene
afectada por su apropiación metafórica, hasta el punto en el que la gentrificación se generaliza para representar la eterna
inevitabilidad del renacimiento moderno y de la renovación del pasado, dejando a oscuras las profundamente polémicas políticas
de clase y raza de la gentrificación contemporánea. La oposición a la gentrificación, aqui y ahora, debe ser rápidamente
desechada, tal y como el cazador-recolector rechazó el progreso. De hecho, para aquéllos que se han visto empobrecidos, que
han sido desalojados o han perdido sus hogares a su paso, la gentrificación es realmente una palabrota y debería seguir
siéndolo.” (SMITH, 2012, p. 78-79)
51
gentrificação é afetado pela apropriação excessiva que lhe é dado, até o ponto em
que ele próprio “se generaliza para representar a eterna inevitabilidade do
renascimento moderno e da renovação do passado [...]” (Ibidem).
O mesmo autor evidencia que é preciso rechaçar a gentrificação urgentemente,
já que para aqueles que estão empobrecendo e “que tem sido desalojados ou perdido
seus lugares por onde passa, a gentrificação é realmente um palavrão e deveria
continuar a ser” (Ibidem). Aqueles que não têm condições de arcar com os custos da
nova vida nos bairros em processo de gentrificação são empurrados para além da
nova fronteira.
25
Tradução nossa, do original: “[...] de finales del siglo XIX en Francia, quienes iniciaron una vengativa y reaccionaria campaña
contra las clases populares francesas”.
26
Tradução nossa, do original: “Este antiurbanismo revanchista representa una reacción contra el supuesto robo de la ciudad,
una desesperada defensa de la falange de privilegios desafiados, envuelta en el lenguaje populista de la moralidad cívica, los
valores familiares y la seguridad barrial. La ciudad revanchista expresa, por encima de todo, el terror de raza/clase/género sentido
por los blancos de la clase media dominante, un grupo social que repentinamente ha sido puesto en su lugar por un mercado
inmobiliario asolado, la amenaza y la realidad del desempleo, la aniquilación de los servicios sociales y la emergencia de las
minorías y los inmigrantes, así como también de las mujeres, en tanto poderosos actores urbanos. La ciudad revanchista augura
52
una feroz reacción contra las minorías, la clase trabajadora, las personas sin hogar, los desempleados, las mujeres, los
homosexuales y las lesbianas, los inmigrantes. La ciudad revanchista ha sido escandalosamente reafi rmada por la programación
de televisión. (SMITH, 2012, p. 325).
27
Tradução nossa, do original: “[...] una reacción frente a un urbanismo definido por oleadas recurrentes de un peligro y una
brutalidad sin tregua, impulsada por una pasión venal e incontrolable” (SMITH, 2012, p. 326).
28
Gilmore, R. (1993), Terror austerity race gender excess theater, en B. Gooding-Williams (ed.), Reading Rodney
King/Reading Urban Uprising, Nueva York, Routledge. Tradução nossa, do original: “[...] donde la reproducción de las relaciones
sociales ha fracasado de un modo estrepitoso, y en el que la respuesta constituye una virulenta reafirmación de muchas de las
mismas opresiones y prescripciones que crearon el problema en un principio. En Estados Unidos, señala Gilmore citando a Amiri
Baraka, donde las relaciones sociales reales e imaginarias son expresadas rígidamente en jerarquías de raza y género, la
“reproducción” es realmente una producción y sus derivados, el temor y la furia, están al servicio del “mismo cambio”: el apartheid
local del nacionalismo estadounidense.”
53
As camuflagens sociais
Sobre essa capacidade de esconder certos traços, Manuel Delgado trata da
capacidade de camuflagem de todo – ou quase todo – indivíduo. O autor afirma que
“um número importante de indivíduos podem modular os níveis de critério” (2011, p.
60), podendo até mesmo assumir “aparências que indicam de forma inequívoca um
determinado rótulo ideológico, estético, sexual, religioso, profissional, etc” (Ibidem).
Desta forma, os indivíduos podem transitar pelos espaços públicos, adequando-se de
acordo com a ocasião.
Quando o autor afirma que um número importante de indivíduos – e não todos
54
29
Tradução nossa, do original: “[...] externos-fenotípicos, fisiológicos, aspectuales en general, aunque sean circunstanciales- que
hacen de ellos seres marcados, la relación con los cuales es problemática puesto que han de arrastrar todo el peso de la ideologia
que los reduce permanentemente a la unidad y les fuerza a permanecer a toda costa encapsulados en ella”. (DELGADO, 2011,
p. 60)
30
Tradução nossa, do original: “[...] en inaceptablemente raros, forasteros, diferentes, inválidos, inferiores, desviados, disidentes
[…], y que no han podido o no han querido disfrazar quiénes son en realidad - es decir, en qué lugar de una estructura social
asimétrica están situados - quedan colocados en un estado de excepción que los inhabilita total o parcialmente para una buena
parte de intercambios comunicacionales. (DELGADO,2011, p. 61).
31
Tradução nossa, do original: “[...] tienen más posibilidades de ejercer esa indefinición mínima de partida que permite escoger
cuál de un repertorio limitado de roles disponibles se va a desarrollar en presencia de los otros” (DELGADO,2011, p. 61).
55
do anonimato, que sai apenas para atuar como um ser de relações. Trata-se,
nesse caso, de praticar uma certa promiscuidade entre mundos sociais
proximos ou interseccionados, de travestir-se para cada ocasião, mudar de
pele em função das necessidades de cada encontro 32. (Ibidem)
Essa classe, acima citada, pode exercer seu anonimato quando desejar. Isso
só é possível porque a urbanidade moderna se baseia nas mudanças de
comportamento “no que diz respeito aos encontros não programado entre
desconhecidos que [...] deixaram de confiar uns nos outros, escolhendo por não se
dirigirem a palavra e não da atenção recíproca 36” (DELGADO, 2011, p. 63), optando
por deixar apenas a informação necessária para as relações dignas de confiança,
32
Tradução nossa, do original: “[...] se espera que escojan el rol dramático más adecuado para resultar procedentes, es decir,
aceptables en relación con lo que un determinado escenario social espera de ellos Y que ellos deberán confirmar. En eso consiste
precisamente lo que ya se ha reconocido como mundanidad, que se basa en una deseada abstracción de la identidad, ese grado
cero de sociabilidad que se espera que sea el ejercicio de un anonimato del que se sale sólo para actuar como ser de relaciones.
Se trata, en ese caso, de practicar una cierta promiscuidad entre mundos sociales contiguos o interseccionados, travestirse para
cada ocasión, mudar de piel en función de los requerimientos de cada encuentro. (Ibidem)
33
Tradução nossa, do original: “[...] que se suponía conformando la matéria primera de la experiencia urbana moderna y que, a
su vez, se situaba también en el subsuelo fundador de la noción política de ciudadano” (DELGADO, 2011, p. 62)
34
Tradução nossa, do original: “[...] cuya mera presencia es en teoría merecedora de derechos y deberes en relación con los
cuales la identidad social real es o debería ser un dato irrelevante y, por tanto, soslayable” (Ibidem)
35
Tradução nossa, do original: “[...] a no dar explicaciones, a mostrarse sólo lo justo para ser reconocida como apta para
presentarse en sociedad, en encuentros con gente que también ha conseguido estar a la altura de las circunstancias, es decir,
resultar predecible, no ser fuente de incomodidad o alarma, brindar garantías de conducta adecuada. (, 2011, p. 62-63).
36
Tradução nossa, do original: “[...] por lo que hace a los encuentros no programados entre extraños que [...] dejaron de confiar
los unos en los otros y optaron por no dirigirse la palabra y no prestarse mutua atención” (DELGADO, 2011, p. 63),
56
apenas pelas aparências visuais. Assim, a perspectiva de Sennet reflete sobre o fato
de passarmos a usar a visão como a forma de adquirir “a maioria de suas informações
diretas sobre os desconhecidos” (SENNET, 1995 apud DELGADO, 2011, p. 63). Logo,
quando a cidade caiu em silêncio, o olhar se converteu:
[...] no principal órgão pelo qual as pessoas adquiriam a maioria de suas
informações diretas a respeito dos desconhecidos. Que tipo de informação
se tem acesso um olhar observando ao redor? Nessas condições o olhar
pode tentar organizar sua informação a respeito dos desconhecidos de forma
repressiva [...]. Examinando uma cena complexa e não familiar, o olhar
procura ordenar rapidamente o que vê usando imágens que correspondem a
categorias simples e gerais, extraidas de esrereotipos sociais 37 (Ibidem)
37
Tradução nossa, do original: “[ ...] el ojo se convirtió en el principal órgano a través del cual las personas adquirían la mayoría
de sus informaciones directas acerca de los desconocidos. A qué tipo de información accede un ojo mirando su alrededor? En
tales condiciones, el ojo puede estar tentado a organizar su información acerca de los desconocidos de manera represiva […]
Examinando una escena compleja y no familiar, el ojo procura ordenar rápidamente lo que ve usando imágenes que
corresponden a categorías simples y generales, extraídas de estereotipos sociales. (SENNET, 1995 apud DELGADO, 2011, p.
63)
38
Tradução nossa, do original: “[...] cada personaje de cada cuadro escénico social sabe bien que el mínimo desliz, la menor
salida de tono o paso en falso delataría de manera automática el fraude que toda identidad representada implica” (2011, p. 66).
57
39
Tradução nossa, do original: “Es eso lo que convierte a todo ser mundano, señala Isaac Joseph (1999), en un ser apegado a
su línea de fuga, un traidor, un agente doble, alguien que sufre un terror de la identificación, un impostor crónico y generalizado,
ser sociable en tanto que es capaz de simular constantemente, exiliado de sí mismo, siempre en situación crítica - a punto de
ser descubierto - adicto a una moral situacional, en todo momento indeterminada, basada en la puesta entre paréntesis de todo
lo que uno es más allá del contexto local en que se da el encuentro.” (JOSEPH, 1999 apud DELGADO, 2011, p. 66)
40
Tradução nossa, do original: “[...] trabajan de una forma no menos ideologizada - aunque nunca se explicite tal dimensión - la
cualificación y la posterior codificación de los vacíos urbanos que preceden o acompañan todo entorno construido, sobre todo si
éste aparece como resultado de actuaciones de reforma o revitalización de centros urbanos o de zonas industriales consideradas
58
O autor aponta que a questão central está sobre a ideia de que o espaço público
se restringiu ao “campo das discussões teóricas na filosofia política e, com a relativa
exceção da identificação do modelo grego com a ágora, não tinha sido associado a
uma região ou extensão física concreta 44” (2011, p. 19-20). A expressão espaço
público era aplicada apenas como rua ou cenário, onde a “diferença do íntimo e do
privado, as pessoas estão à mercê dos olhares e iniciativas dos outros” (Ibidem).
Entretanto, a partir do momento em que é incorporado “como ingrediente retórico
básico a apresentação de planos urbanisticos e as publicações governamentais da
temática cidadã” (Ibidem), o autor aponta que:
[...] foi transcendendo a distinção básica entre público e privado, que se
limitaria a identificar o espaço público como espaço de visibilidade
generalizado, nos quais os co presentes formam uma sociedade, por assim
dizer, visual na medida em que cada uma de suas ações está submetida a
consideração dos demais, portento um território de exposição com duplo
sentido de exibição e de risco. O conceito vigente de espaço público quer
dizer algo mais que espaço em que todos e tudo é perceptível e percebido 45.
(Ibidem)
Seria ainda público, de acordo com o autor, o “âmbito de e para o livre acordo
entre seres autônomos e emancipados que vivem, enquanto nele se enquadram, de
cargado o investido de moralidad a lo que se alude no sólo cuando se habla de espacio público en los discursos institucionales
y técnicos sobre la ciudad, sino también en todo tipo de campañas pedagógicas para las buenas prácticas ciudadanas y en la
totalidad de normativas municipales que procuran regular las conductas de los usuarios de la calle. (2011, p. 19)
44
Tradução nossa, do original: “[...]campo de las discusiones teóricas en filosofía política y, con la relativa excepción de la
identificación del modelo griego con el ágora, no había sido asociado a una comarca o extensión física concreta” (2011, p. 19-
20)
45
Tradução nossa, do original: “Cuando lo ha hecho ha sido trascendiendo de largo la distinción básica entre público y privado,
que se limitaría a identificar el espacio público como espacio de visibilidad generalizada, en la que los copresentes forman una
sociedad, por así decirlo, óptica, en la medida en que cada una de sus acciones está sometida a la consideración de los demás,
territorio por tanto de exposición, em el doble sentido de exhibición y de riesgo. El concepto vigente de espacio público quiere
decir decir algo más que espacio en que todos y todo es perceptible y percebido”. (Ibidem)
46
Tradução nossa, do original: “[...] esfera de coexistência pacífica y armoniosa de lo heterogéneo de la sociedad, evidencia de
que lo que nos permite hacer sociedad es que nos ponemos de acuerdo en un conjunto de postulados programáticos en el seno
de los cuales las diferencias se vem superadas, sin quedar olvidadas ni negadas del todo, sino definidas aparte, en ese otro
escenario al que llamamos privado”. (2011, p. 20)
60
47
Conceito ou construção teórica, puramente mental, elaborada ou sintetizada com base em dados simples, a partir de
fenômenos observáveis, que auxilia os pesquisadores a analisar e entender algum aspecto de um estudo ou ciência.
2 - Conhecimento ou concepção da realidade derivado das percepções de um indivíduo, como resultado de suas experiências
particulares anteriores (ou presentes). Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=constructo>
Acesso em: 12/12/2016.
48
Tradução nossa, do original: “[...] se ve reconocido como tal en la relación y como la relación con otros, con los que se vincula
a partir de pactos reflexivos permanentemente reactualizados”. (DELGADO, 2011, p.20)
49
Tradução nossa, do original: “Ese fuerte sentido eidético, que remite a fuertes significaciones y compromisos morales que
deben verse cumplidos, es el que hace que la noción de espacio público se haya constituido en uno de los ingredientes
conceptuales básicos de la ideología ciudadanista, ese último refugio doctrinal al que han venido a resguardarse los restos del
izquierdismo de clase media, pero también de buena parte de lo que ha sobrevivido del movimiento obrero”. (2011, p. 20-21)
50
2 - Relativo ou pertencente à essência das coisas e não à sua existência ou à sua presença. 3 - Relativo ou pertencente às
imagens visuais produzidas por um ato voluntário, com nitidez quase fotográfica. Disponível:
<http://michaelis.uol.com.br/busca?id=V1Wz>. Acesso em: 12/12/2016.
61
(Ibidem). A partir desta ideia, uma moral desejada, o reconhecimento pacífico entre
indivíduos, o respeito quase que imposto, enquadram-se dentro de um projeto cultural
de modernidade. Para isso, Delgado elucida que:
[...] o que Habermas apresenta como paradigma republicano – diferenciado
do liberal – o processo democrático é a fonte de legitimidade de um sistema
determinado e determinante de normas. A política, segundo esse ponto de
vista, não só media mas conforma e constitui a sociedade, entendida como a
associação livre e igualitária de sujeitos conscientes de sua dependência em
relação aos outros e que estabelecem entre si vínculos de reconhecimento
mútuo 51. (Ibidem)
Logo, o autor põe em evidência o espaço público como o “domínio em que esse
princípio de solidariedade comunicativa se encena” (Ibidem), o local onde é possível
e necessário o acordo de interação entre os indivíduos, onde “uma conformação
discursiva coproduzida” (Ibidem) também se torna fundamental.
Com relação à ideia de cidadania, o autor a trata como “o dogma de referência
para um conjunto de movimentos de reforma ética do capitalismo” (2011, p. 22), numa
tentativa de amenizar a agressividade deste sistema, intensifica-se os “valores
democráticos abstratos e um aumento das competências estatais que as tornam
possíveis” (Ibidem). Utilizado por governos com o objetivo de esvaziar o sentido das
lutas de classe, tratando-as como casualidade, entendendo que “a exclusão e o abuso
não são fatores estruturais, mas meros acidentes ou contingências de um sistema de
dominação que se acredita possível melhorar eticamente” (Ibidem). Por conseguinte,
a ideia de cidadania não visa eliminar o modo de produção capitalista, pelo contrário,
suas estratégias são mobilizações transitórias, performáticas, artísticas, onde o
espaço público é o lugar ideal para que aconteçam a tentativa de reforma.
Assim, simbiose entre Estado-Cidadão mascara as diferenças entre instituição
e indivíduo, alimentando a ideia de que o cidadão faz parte do Estado, eliminando,
assim, qualquer conflito social.
Para isso, e de modo a utilizar elementos de legitimação simbólica, tratado por
51
Tradução nossa, do original: “[...] el moralismo abstracto kantiano o la eticidad del Estado constitucional moderno postulada
por Hegel. Según lo que Habermas presenta como "paradigma republicano" - diferenciado del "liberal"-, el proceso democrático
es la fuente de legitimidad de un sistema determinado y determinante de normas. La política, según ese punto de vista, no sólo
media, sino que conforma o constituye la sociedad, entendida como la asociación libre e igualitaria de sujetos conscientes de su
dependencia unos respecto de otros y que establecen entre sí vínculos de mutuo reconocimiento”. (DELGADO, 2011, p. 21)
62
Delgado como antonomásia 52, o termo espaço público carregaria o sentido de espaço
democrático. O protagonista deste espaço dotado símbolos seria “é esse ser abstrato
a quem chamamos de cidadão” (2011, p. 22), assimilando as regras e normas postas
pelo Estado, expressas no espaço público. Essa ideologia seria o espaço público
como elemento agregador, lugar no qual as diferenças e os conflitos seriam
dissolvidos. Apontado por Delgado ao utilizar a crítica feita por Marx ao Estado, o
discurso de cidadania denotaria toda sua ideologia quando busca conciliar o cidadão
e o Estado, na tentativa de estabelecer a mediação:
[...] que expressa uma das estratégias ou estruturas mediante as quais se
produz uma conciliação entre sociedade civil e Estado, como se uma coisa e
a outra fossem de certo modo a mesma coisa, como se tivesse gerado um
território em que houvera cancelado os antagonismos sociais 53. (Ibidem)
A crítica do autor evidencia essas estratégias que servem “segundo Marx, para
camuflar toda relação de exploração, todo o dispositivo de exclusão” (Ibidem), onde a
função dos governos seria de “encobridores e fiadores de todos os tipos de
assimetrias sociais” (ibidem). Desta forma, o discurso de cidadania induziria à
hierarquização:
[...] dos valores e significados, uma capacidade de controle sobre sua produção
e distribuição, uma capacidade para fazer tornar-se influente, ou seja, para
executar os interesses de uma classe dominante, e para fazer bem escondido
sob o disfarce de valores supostamente universais. A grande vantagem que
possuía – e continua possuindo – a ilusão mediadoras do Estado e as noções
abstratas com que argumenta sua mediação é que ele poderia apresentar e
representar a vida em sociedade como uma questão teórica, por assim dizer,
à margem do mundo real que podia ser feito como se não existisse, como se
tudo dependesse do uso correto de princípios elementares de ordem superior,
capazes por si mesmos – a forma de uma nova teologia – de subornar a
experiencia real (feitos de tantos casos de dor, raiva e sofrimento) de seres
humnos reais que mantêm entre si relações sociais reais 54. (2011, p. 23-24)
52
Antonomásia: Figura de linguagem que consiste na substituição do nome de um objeto, pessoa, entidade etc. por um epíteto
ou qualidade que lhe é inerente, por um nome mais comum, mais sugestivo, irônico, explicativo ou pejorativo etc., de modo a
caracterizá-lo pelos traços mais conhecidos ou imediatamente identificáveis: Redentor por Cristo; Poeta dos Escravos por Castro
Alves; Romeu por homem apaixonado; pronominação. Disponível em:
<http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=antonomasia>. Acesso em: dez. de 2016.
53
Tradução nossa, do original: “[...] mediación, que expresa una de las estrategias o estructuras mediante las cuales se produce
una conciliación entre sociedad civil y Estado, como si una cosa y la otra fueran en cierto modo lo mismo y como si se hubiese
generado un territorio en el que hubieran quedado cancelados los antagonismos sociales”. (DELGADO, 2011, p. 22)
54
Tradução nossa, do original: “[...] de los valores y de los significados, una capacidad de control sobre su producción y
distribución, una capacidad para lograr que lleguen a ser influyentes, es decir, para que ejecuten los intereses de una clase
dominante, y que lo hagan además ocultándose bajo el aspecto de valores supuestamente universales. La gran ventaja que
poseía - y continúa poseyendo- la ilusión mediadora del Estado y las nociones abstractas con que argumenta su mediación es
que podia presentar y representar la vida en sociedad como una cuestión teórica, por así decirlo, al margen de un mundo real
que podía hacerse como si no existiese, como si todo dependiera de la correcta aplicación de principios elementales de orden
superior, capaces por sí mismos - a la manera de una nueva teología - de subordinar la experiencia real - hecha en tantos casos
de dolor, de rabia y de sufrimiento - de seres humanos reales que mantienen entre sí relaciones sociales reales. (2011, p. 23-24)
63
Delgado finaliza com a ideia da produção das cidades por uma elite que deixa
em evidência a ligação entre as escalas urbana e estado-nação, para o melhor
movimento de capital. Assim, ele mostra a ideologia presente no discurso de cidadania
55
Tradução nossa, do original: “[...] a lo que en el pensamiento político griego – tan inspirador del modelo ágora en que afirma
inspirarse el discurso del espacio público – era un poder que se ejercía sobre un rebaño de individuos diferenciados y
diferenciables – dispersos, dirá Foucault – a cargo de un jefe que debía – y hay que subrayar que lo que hace es cumplir con su
deber – calmar las hostilidades en el seno de la ciudad y hacer prevalecer la unidad sobre el conflicto. Se trata, pues, de disuadir
y de persuadir cualquier disidencia, cualquier capacidad de contestación o resistencia y – también por extensión – cualquier
apropiación considerada inapropiada de la calle o de la plaza, por la vía de la violencia si es preciso, pero previamente y sobre
todo por una descalificación o una deshabilitación que, en nuestro caso, ya no se lleva a cabo bajo la denominación de origen
subversivo, sino de la mano de la mucho más sutil de incívico, o sea, contraventor de los principios abstractos de la buena
convivência ciudadana”. (Ibidem)
64
Sua ideia nos remete ao período das políticas de Pereira Passos – com o
discurso higienista – e nos dá suporte para refletir sobre os discursos atuais que
valorizam a revitalização urbana e a gentrificação.
Com isso, o discurso do espaço público funciona como elemento de controle
social exercido pelo Estado e iniciativa privada, através de campanhas midiáticas
onde a ideia de cidadania é o modo de se comportar nesse espaço. O espaço público
passa a ser utilizado como elemento ideológico, tornando-o mais do que delimitação
de elementos físicos da cidade e do comportamento interpessoal.
Ademais, para o cidadão, o espaço público seria o lugar de exposição, no qual
nos exporíamos ao olhar do outro e sob sua ação. Estaríamos sujeitos ao julgamento,
interação e a tudo o que diz respeito ao oposto do privado.
56
Tradução nossa, do original: “[...] de que la modelación cultural y morfológica del espacio urbano es cosa de élites profesionales
procedentes en su gran mayoría de los estratos sociales hegemónicos, es previsible que lo que se da en llamar urbanidad –
sistema de buenas prácticas cívicas – venga a ser la dimensión conductual adecuada al urbanismo, entendido a su vez como lo
que está siendo en realidad hoy: mera requisa de la ciudad, sometimiento de ésta, por medio tanto del planeamiento como de su
gestión política, a los intereses en materia territorial de las minorías dominantes”. (2011, p. 27)
65
Ideologia
Smith fala sobre a ideologia da gentrificação – com visto acima – onde a
fronteira de desenvolvimento da gentrificação. Tona-se necessário compreender a
visão que esse autor utiliza do termo ideologia.
Para isso, temos na abordagem de Michael Lowy sua apresentação de
ideologia, como “visão social do mundo”, como conjuntos estruturados de “valores,
representações, ideias e orientações cognitivas. Conjuntos esses, unificados por uma
perspectiva determinada, por um ponto de vista social, de classes sociais
determinadas” (1991, p. 13). Em sua análise, o autor elucida a visão social do mundo
que pode ser entendida ideologicamente, afirmando a visão de mundo posta em
prática pela classe dominante. Mas também poderia ser de maneira utópica, quando
ainda está no campo das ideias, projetadas para o futuro.
Pela via da ideologia, fica claro a forma de uma sociedade definida pelo caráter
com o qual foi construída. Não pode ser oposta às bases sobre as quais foi criada,
não pode ser decretada livre, se foi criada de maneira autocrática. Lowy diz que:
[...] uma sociedade livre só pode ser resultado de um ato de liberdade. Uma
sociedade desalienada só é possível se for ela mesma um processo de
desalienação. A maneira de constituir-se a nova sociedade decide, em última
análise, o caráter que ela tomará. Essa primeira observação de Marx explica
por que a única forma verdadeira de libertação é a autolibertação da classe
explorada. (1991, p. 24)
Esse autor traz para a discussão a questão do conteúdo simbólico. Mesmo que
brevemente, ele trata o caráter oculto do símbolo, que não foi revelado ou que está
claro. Ele associa essa característica ao comportamento humano, na medida em que
o pensamento acontece “de uma forma não-imediata, ou seja, não-direta no assunto,
mas por meio desse mecanismo inconsciente, que é o mecanismo simbólico” (1985,
p. 22). Ele destaca que a ideologia é repleta de símbolos que interagem entre si.
Com base nas reflexões dos autores citados acima, entendemos a ideologia
como conjunto de normas, símbolos, comportamentos, moral, impostas pelas classes
dominantes – a burguesia –, visando controlar as classes subalternas. Pela cultura
disseminada por pensadores via mídia, com símbolos que agem de maneira
subliminar, a ideologia se propaga sutilmente, conduzindo-nos a agir da maneira que
deseja a classe dominante.
O poder simbólico
Bourdieu afirma que nas entrelinhas reconhecidas, mas ignoradas
voluntariamente pelos que gozam em ser dominados, é que reside o poder simbólico.
Refere-se, em seu estudo, como o simbólico controla aqueles que desejam se manter
em posições de privilégio dentro do status capitalista. Assim, ora é sucinto e sutil, ora
é dominador e marcante. O autor afirma que “é necessário saber descobri-lo onde ele
se deixa ver menos, onde ele é mais completamente ignorado, portanto, reconhecido”
(2002, p. 7-8), mostrando que o poder simbólico transita através do discurso e da
maneira como determinada classe se move, de forma imaterial, transcendendo,
assim, a materialidade. Assim, ele “só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles
que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exerçam” (Ibidem).
O autor chama à atenção para elementos que estruturam o universo simbólico
– como mito, língua, arte, religião – tendo estes instrumentos a função de construir o
mundo dos objetos. Contudo, é preciso que haja um meio, uma forma com que a ideia
se expresse. Para isso, um sistema estruturado onde “a língua é fundamentalmente
tratada como condição de inteligibilidade da palavra, como intermediário estruturado
que se deve construir para se explicar a relação constante entre o som e o sentido”
(2002, p. 9).
67
57
Harvey, David. A condição pós-moderna. 2013a, p. 269. “Se vemos a cultura como um complexo de signos e significações
(incluindo a linguagem) que origina códigos de transmissão de valores e significados sociais, podemos ao menos iniciar a tarefa
de desvelar suas complexidades nas condições atuais mediante o reconhecimento de que o dinheiro e as mercadorias são eles
mesmos os portadores primários de códigos culturais. Como o dinheiro e as mercadorias dependem inteiramente da circulação
do capital, segue-se que as formas culturais têm firmes raízes no processo diário de circulação do capital. Por conseguinte,
devemos começar pela experiência cotidiana da moeda e da mercadoria, mesmo que mercadorias especiais ou mesmo sistemas
de signos completos possam ser retirados da vala comum e transformados no fundamento da "alta" cultura ou da "imaginação"
especializada que já tivemos a oportunidade de comentar”.
68
Características do discurso
É importante compreender como esses elementos ideológicos e simbólicos
conseguem ser passados, ora de maneira sutil, ora mais evidentes. Para isso Fiorin
elucida como o discurso funciona, como está impregnado de sentido ideológico e
“assim como a frase não é um amontoado de palavras, mas é uma cadeia construída
segundo certas regras, o discurso não é um amontoado de frases” (1990, p. 17). Logo,
o discurso é estruturado e construído com instrumentos de linguagem.
O autor anda evidencia como esses elementos fazem com que o discurso seja
mais objetivo ou subjetivo. Dessa forma, o caráter pessoal pode ser suprimido
dependendo da forma com que se constroem as frases.
Fiorin diz que há no discurso o campo da manipulação, podendo ser consciente
ou inconsciente: pela sintaxe discursiva, onde o falante utiliza “estratégias
argumentativas e de outros procedimentos [...] para criar efeitos de sentido de verdade
ou de realidade com vistas a convencer seu interlocutor” (1990, p. 18). Ainda nessa
modalidade, o falante usa um repertório de imagens – a imagem que faz do
interlocutor, a imagem que crê o interlocutor fazer dele, e a que deseja passar – e,
então, faz a escolha de usar tal ou qual argumentos.
Além disso, existe o discurso que transmite como o mundo é visto a partir de
uma formação social. A isto, o autor chama de semântica discursiva:
Esses elementos surgem a partir de outros discursos já construídos,
cristalizados e cujas condições de produção foram apagadas. Esses
elementos semânticos, assimilados por cada homem ao longo de sua
educação, constituem a consciência e, por conseguinte, sua maneira de
pensar o mundo. Por isso, certos temas são recorrentes na maioria dos
discursos: os homens são desiguais por natureza; na vida, vencem os mais
fortes; o dinheiro não traz a felicidade etc. A semântica discursiva é o campo
da determinação ideológica propriamente dita. Embora esta seja
inconsciente, também pode ser consciente. (1990, p. 19)
70
Com isso, temos que o discurso possui caráter social, carrega temas e figuras
condizentes com o contexto social ao qual está inserido. O autor elucida o discurso
como o lugar das coerções sociais, não sendo autêntico nem único, mas que utiliza
elementos de outros discursos, repetindo a sua estrutura, dissimulando a liberdade e
a individualidade para se mascarar. Assim, o autor mostra que:
Ao realizar essa simulação e essa dissimulação, a linguagem serve de apoio
para as teses da individualidade de cada ser humano e da liberdade abstrata
de pensamento e de expressão. O homem coagido, determinado, aparece
como criatura absolutamente livre de todas as coerções sociais (1990, p. 41)
58
Como vimos em Smith (1988) as questões sobre o movimento de capital na escala urbana.
71
59
Tradução nossa, do original: “En paralelo a esa idea de espacio público como complemento sosegado de las operaciones
urbanísticas, vemos prodigarse otro discurso también centrado en ese mismo concepto, pero de más amplio espectro y con una
voluntad de incidir sobre las actitudes y las ideas mucho más ambicioso todavía. En este caso, el espacio público pasa a
concebirse como la realización de un valor ideológico, lugar en el que se materializan diversas categorías abstractas como
democracia, ciudadanía, convivencia, civismo, consenso y otros valores políticos hoy centrales, un proscenio en el que desearía
ver deslizarse a una ordenada masa de seres libres e iguales que emplea ese espacio para ir y venir de trabajar o de consumir
y que, en sus ratos libres, pasean despreocupados por un paraíso de cortesia. Por descontado que en ese territorio corresponde
expulsar o negar el acceso a cualquier ser humano que no sea capaz de mostrar los modales de esa clase media a cuyo usufructo
está destinado.” (DELGADO, 2011, p. 10)
60 Conceito exposto por Otília Arantes (1988): “[...] um fenômeno pós-utópico, pois enquanto se pretendeu remodelar a sociedade
através da planificação global, uma tal megalomania simultaneamente inibia o desenvolvimento da ideologia de artista. O
estrelato cresce na razão direta do declínio de tais ilusões. Vão nesta direção as observações de François Chaslin a propósito
da ronda internacional das vedetes - Venturi, em Londres, Bofill em Pequim, Gregotti em Berlim etc. É que, depois da utopia, a
arquitetura basculou no terreno movediço da pura aparência”.
72
duplo sentido, onde é bom para quem se beneficia e maléfico para quem é removido.
De acordo com Delgado, “o idealismo do espaço público aparece hoje a serviço
da reapropriação capitalista da cidade” 61 (2011, p. 10-11). Desta forma o autor
corrobora com Smith ao sintetizar a dinâmica do processo, mostrando que:
[...] os elementos fundamentais e recorrentes são a conversão de grandes
áreas do espaço urbano em parques temáticos, a gentrificação de centros
históricos de onde a história tem sido expulsa, a conversão de bairros
industriais inteiros, a disseminação de uma miséria crescente, que não se
consegue esconder, o controle sobre o espaço público cada vez menos
público, etc. Esse processo acontece em paralelo a uma renúncia de agentes
públicos e de sua hipotética missão de garantir direitos democráticos
fundamentais - desfrutar a rua em liberdade, de habitação digna para todos,
etc. - e a desarticulação dos restos do que um dia se presumiu o Estado de
bem estar social. (Ibidem)
61
“Lo que bien podría reconocerse como el idealismo del espacio público aparece hoy al servicio de la reapropiación capitalista
de la ciudad, una dinámica de la que los elementos fundamentales y recurrentes son la conversión de grandes sectores del
espacio urbano en parques temáticos, la genfrificacion de centros históricos de los que la historia há sido definitivamente
expulsada, la reconversión de barrios industriales enteros, la dispersion de una miseria creciente, que no se consegue ocultar,
el control sobre un espacio público cada vez menos público, etc. Ese proceso se da en paralelo al de una dimisión de los agentes
públicos de su hipotética misión de garantizar derechos democráticos fundamentales - el del disfrute de la calle en libertad, el de
la vivienda digna y para todos, etc.- y la desarticulación de los restos de lo que un día se presumió el Estado del bienestar.”
(DELGADO, 2011, p. 10-11)
74
PARTE 2
A PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO – A LAPA COMO ESTUDO DE
CASO, PARA COMPREENDER OS PROCESSOS DE EXCLUSÃO
SOCIAL
62
Chico Buarque. Homenagem ao malandro, em Opera do malandro, 1977/1978. Disponível em:
<http://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=opera_77.htm>
75
Esse discurso depreciativo aos braços livres, em fins do século XVIII e início do
XIX, empregava o adjetivo vadio para qualificar os trabalhadores semi livres.
Guimarães traz alguns exemplos:
Havendo por toda parte muita casta de vadios, que cometem insultos e
extravagâncias inauditas, não é de admirar que no Rio de Janeiro, onde a
maior parte de seus habitantes se compõe de mulatos e negros, se pratiquem
todos os dias grandes desordens que necessitam ser punidas com
demonstrações severas.[...] Eu disse que há vadios, isto é, ladrões que
perseguem os lavradores e destroem as suas sementeiras [...] o grande
número de gentes que habitam nas Cidades e Vilas sem ofício, e a que
verdadeiramente se pode dar o nome de vadios [...] São tantos aqui os
desocupados que se costuma chamá-los como a uma classe: a dos vadios.
78
(1981, p. 133-134)
Dessa maneira, o mito criado durante todo o século XIX, era de que o
trabalhador semi livre não gostava e não tinha aptidão física para o trabalho braçal.
Entretanto, o que se entende na obra de Guimarães é que:
Milhões dos chamados ociosos, os quais se recusavam a trabalhar nas
fazendas e nos engenhos para evitar enquadrar-se na terrivelmente
opressiva Lei da Locação de Serviços, em vigor na sua primeira versão de
1830, ou para fugir dos desmandos dos senhores de terra, possuídos da
ignóbil mentalidade comum a todos os proprietários de escravos, começavam
a inquietar os Poderes Públicos, que não haviam ainda achado uma saída
para tão grave problema. (1981, p.136)
63
Para Guareschi (2001), essas são as relações centrais do modo de produção capitalista, presente até os dias de hoje: “Já com
a Revolução Industrial uma nova relação surgiu: algumas pessoas passaram a ser os donos do capital, isto é, das máquinas e
das fábricas. Proclamou-se, então, a "liberdade" do trabalhador: o que o proprietário contratava não eram mais as pessoas, como
na escravatura e no feudalismo, mas era o "trabalho" das pessoas: supostamente, só trabalhava quem quisesse. As pessoas
80
também presente nos dias de hoje – surge o que o autor chama de relações de
exclusão 64. O seu pensamento mostra que a automação da produção, ou seja, as
novas tecnologias “criam instrumentos que substituem a mão-de-obra humana. Os
robôs, por um lado, e os processadores eletrônicos por outro, executam a maioria dos
serviços que eram antes feitos por mãos humanas” (2001. p.144), potencializando o
desemprego e negando às massas o acesso ao trabalho. Desse modo, ele salienta
essa relação de exclusão onde as pessoas são:
[...] simplesmente excluídas do trabalho, excluídas da produção.
Evidentemente, não estamos dizendo que o trabalho acabou. O que acabou,
ou diminuiu substancialmente, é o tipo de trabalho, e de emprego, que era
central até agora. Isso exatamente porque nesse novo mundo que está
surgindo, grande parte das pessoas não chegam "mais ao mercado de
trabalho". A sociedade, em geral, e o mundo do trabalho, em particular, estão
se estruturando a partir de mecanismos que impossibilitam, por princípio, o
acesso de grande parte das pessoas ao mundo do trabalho. É essa a
novidade hoje. A isso se chama de exclusão, e é dentro desse contexto
histórico fundamental que ela deve ser entendida. (Ibidem)
eram "livres", para trabalhar ou não. Mas não se perguntava como as pessoas que não fossem trabalhar poderiam sobreviver.
Quais, então, as relações que passaram a ser centrais em tal formação social, ou em tal modo de produção? Entre as pessoas
houve uma cisão profunda: algumas se tornaram "donas", proprietárias; outras, passaram a oferecer a única coisa que possuíam:
o trabalho. A essa relação se costuma chamar de dominação. E, na maioria das vezes, quase como uma consequência disso,
as que possuíam os meios de produção passaram a explorar a mão-de-obra do trabalhador: a isso se costuma chamar de
exploração.(GUARESCHI, 2001. p.143)”
64
“O leitor deve estar se perguntando qual a razão das considerações acima. Pois vamos à questão. Tais considerações são
necessárias, pois passa a ser central, hoje, uma nova relação, que cada vez mais se torna definidora do tipo de sociedade em
que passamos a viver: é a relação de exclusão” (GUARESCHI, 2001. p.144).
81
Higienismo
A paisagem urbana por todo o século XIX, seja na Europa, seja na América
Latina, sofreu intervenções guiadas pelo discurso higienista e da modernidade.
Pechman mostra que a cidade sob a ótica da higiene “sofria de confusão e
imobilidade, e convinha diferenciar o indistinto e fazer circular o que era estagnante”
(PECHMAN, 1999, p. 378). Para a cidade de corpo doente, o remédio seriam as
intervenções urbanas pautadas no higienismo.
Sob forma de discurso, o higienismo se propunha como o remédio salutar ao
corpo doente da cidade. Harvey mostra que as metáforas “da ciência da higiene e da
cirurgia eram poderosas e convincentes65” (2008, p. 335) e, desse modo, quando o
Barão de Haussmann “se referia às funções metabólicas da cidade (a circulação do
ar, da água, aos desperdícios) concederia a cidade papel de corpo vivo cujas funções
vitais deveriam ser cuidadas 66” (Ibidem). Entretanto, o efeito colateral desse remédio
amargo é a exclusão social, o estado embrionário da gentrificação.
Entendendo as questões das metáforas, do modo como explica Smith, onde “o
uso de metáforas espaciais, longe de proporcionar imagens inocentes e evocativas,
na verdade, entra diretamente nas questões do poder social” (2000, p. 140), temos
que a ideia de Haussmann não tem o caráter de remédio, como o discurso higienista
propagava. Pechman mostra que a cidade e seu corpo doente, tinha no higienismo:
65
Tradução nossa, do original: “de la ciencia de la higiene y de la cirugía eran poderosas y convincentes”. (2008, p. 335)
66
Tradução nossa, do original: “se refería a las funciones metabólicas de la ciudad (la circulación del aire, del agua, de los
desechos) iba a otorgar a la ciudad el papel de cuerpo viviente cuyas funciones vitales debían ser cuidadas” (Ibidem)
84
[...] o remédio mais adequado, mas após o tratamento, verifica Didier Gille,
"não foi bem uma cidade curada que surgiu aos nossos olhos, foi a cidade o
modelo de todas as cidades, o que unicamente pode ser uma cidade, o que
deve ser uma cidade". Parecia tratar-se de um problema de cura através de
remédios, mas a questão mostrou ser de estrutura, isto é, a cidade "não tinha
cura", era preciso redefini-la pela base. (1999, p.378)
O autor mostra que a hipótese de cidade higienista, tinha outros objetivos além
de sanar questões da higiene e das epidemias. Podemos ver que, dentro do período
higienista, Engels entendia que “a burguesia só tem um método para resolver a
questão da moradia do seu jeito - isto é, resolvê-la de tal maneira que a solução
sempre volta a suscitar o problema” (2015, p.104). O método era denominado de
Haussmann. Engels explica o método da seguinte maneira:
Entendo por Haussmann aqui não só o jeito especificamente bonapartista do
Haussmann parisiense, ou seja, o de abrir ruas retas, longas e largas através
da aglomeração de casas dos bairros de trabalhadores e cercá-las de ambos
os lados de prédios luxuosos, procurando atingir, ao lado da meta estratégica
de dificultar a luta de barricadas, o objetivo de formar um proletariado da
construção civil especificamente bonapartista e dependente do governo, além
de conferir um aspecto luxuoso à cidade. Entendo por "Haussmann" a práxis
generalizada de abrir brechas nos distritos dos trabalhadores, em especial
nos distritos localizados no centro de nossas grandes cidades, quer tenha
sido motivada por considerações de saúde pública e embelezamento, pela
demanda por grandes conjuntos comerciais localizados no centro ou pela
necessidade de circulação, como a instalação de ferrovias, ruas etc. O
resultado em toda parte é o mesmo, não importa qual seja o motivo alegado:
as vielas e os becos mais escandalosos desaparecem sob a enorme
autoglorificação da burguesia em virtude de tão retumbante êxito, mas
reaparecem imediatamente em outro lugar e muitas vezes na vizinhança mais
próxima. (Ibidem)
Além disso, o uso nada uniforme do espaço urbano caracterizado por comércio,
serviços, bancos e indústria compunha o panorama da cidade do Rio de Janeiro – ou
a região do centro – junto com a moradia. Não havia um ordenamento e a cidade se
desenvolvia menos regulada, podendo-se morar junto às oficinas de trabalho. Esse
fato nada tinha de novo, já que Engels apresentava o retrato da classe trabalhadora
que por toda a Inglaterra, a qual a lasse trabalhadora carioca se assemelhava, sendo
da mesma forma explorada pelo modo de produção capitalista. Ilustrando melhor essa
ideia de precariedade de moradia/local de trabalho, Benchimol assinala a desordem
nos quarteirões do Rio de Janeiro da seguinte forma:
[...] recortados por um dédalo de ruas estreitas e congestionadas, erguiam-
se, indiferenciadamente, pequenas oficinas e fábricas - uma ou outra
mecanizada; casas de cômodos, cortiços, estalagens e hospedarias, onde se
alojava a maioria da população trabalhadora da cidade e o contingente
numeroso e flutuante aos estrangeiros que nela se detinham por tempo
limitado; armazéns e os mais variados estabelecimentos varejistas; moradias
particulares; edifícios públicos; escritórios de grandes companhias e bancos.
(1992, p. 112-113).
67
Extraída de BENCHIMOL, 1992, p.135.
87
o melhor momento para obter renda maior da terra ou dos imóveis insalubres, seja
pela demolição dos prédios, seja pela localização em bairros nobres ou no próprio
centro. E, conforme Benchimol, para as futuras desapropriações, o ganho com a terra
e com a propriedade de cortiços estava garantido da seguinte maneira:
Quando não explorava diretamente o cortiço, o proprietário desfrutava de
uma renda e da possibilidade de obter ganhos especulativos importantes com
o terreno, sobretudo quando localizado em áreas que tendiam a se valorizar,
como o centro e a zona sul. Caso o imóvel fosse desapropriado - como na
época de Pereira Passos - podia obter uma indenização vantajosa, sob a
forma de dinheiro ou então de títulos que lhe asseguravam a permanência de
sua renda. (1992, p.135).
mobilidade pela cidade, estando próxima, assim, dos seus lugares de trabalhos.
A penúria das habitações do centro da cidade do Rio de Janeiro podia ser
percebida por conta da situação de seus habitantes, citados incansavelmente pelos
sujeitos que desejavam eliminar a pobreza, as doenças e os miseráveis dessa região.
Segundo Benchimol, as epidemias eram constantes, e o discurso da necessidade de
limpeza era frequente. Além disso, os cortiços se proliferavam por conta da demanda
por habitação e por uma baixa oferta, acarretando um preço elevado nos aluguéis.
Assim, na metade do século XIX, começam a surgir leis e normas que regulam a
sociedade, como elucida Benchimol:
Em agosto de 1855 - ano em que irrompeu na Corte a primeira grande
epidemia de cólera-morbo, com mais de 4 mil vítimas - o fiscal da freguesia
de Santa Rita, alarmado com o aumento do número de cortiços em sua
jurisdição, fato que atribuía aos "preços elevadíssimos das moradias na
Capital", apresentou à Câmara Municipal da Corte um projeto de postura
estabelecendo normas destinadas a preservar a salubridade, a moralidade
pública e a "faculdade de existência dos pobres". (1992, p. 128)
68
Bairro da região do centro da cidade do Rio de Janeiro.
89
Rua da Misericórdia, nas vizinhanças das praias dos Mineiros e do Peixe, e para as
bandas da Prainha e da Saúde” (1992, p.113).
É nessa época – 1850 – que surge a primeira tentativa de sanar as questões
de saúde pública na cidade, com a criação de “uma Junta de Higiene Pública,
encarregada de propor e executar as medidas necessárias à preservação da saúde
pública na corte e nas províncias” (Ibidem), composta por engenheiros.
Assim, surgem os discursos de limpeza urbana pautados na medicina social,
onde a prevenção às epidemias era a principal característica. Mas essa prevenção se
dava de uma maneira peculiar, já que “a medicina situa as causas da doença não no
próprio corpo do doente, mas naquilo que o cerca [...] no meio ambiente”
(BENCHIMOL, 1992, p. 116). Assim, o autor elucida que além das questões
geográficas – clima, relevo e umidade – os médicos intervieram na sociedade e no
contexto urbano ao responsabilizar:
[...] a desordem urbana pela degeneração da saúde não só física como
"moral" da população, a medicina social diagnosticava causas naturais,
relacionadas às peculiaridades geográficas do Rio de Janeiro, e, sobretudo,
causas sociais, tanto no nível do funcionamento geral da cidade como de
suas instituições. (Ibidem)
na capital.
O autor mostra que a “penúria e carestia das habitações para a grande massa
dos pobres irrompeu no Rio de Janeiro no momento em que se desarticulou a
escravidão urbana, com a extinção do tráfico” (1992, p. 128). Além disso, a crise
habitacional se instalava e permanecia como característica latente, avivando-se e
sendo “confundida com os surtos epidêmicos” (Ibidem). Atribuía-se ao miserável a
culpa pela desordem da cidade e pela ausência de condições adequadas de moradia.
O discurso higienista, embasado na medicina social, tornou-se eficaz:
[...] ao formular um discurso sobre o urbano, cujos argumentos principais e
conceitos chaves repetem-se, até o início do século atual, com notável
regularidade, em tudo o que disseram ou escreveram os engenheiros,
políticos, governantes, jornais e capitalistas sobre a cidade, antes que Pereira
Passos e o governo federal a submetessem à grande cirurgia reclamada
pelos médicos desde isso. (1992, p. 118)
69
Orquestradas pelo capital estrangeiro e nacional imiscuídos nas empresas de transporte público.
94
Assim, esse ato se tornou histórico, pois foi a primeira vez que a isenção de
impostos às empresas privadas havia sido concedida. Neste decreto, era livre de
impostos a empresa que construísse moradias higiênicas para seus funcionários, fato
que possibilitou as vilas operárias. Pouco tempo depois, no mesmo ano da Lei Áurea,
o governo isentava de impostos as importações de materiais de construção, o que
proporcionava benefícios ao setor privado da construção civil, possibilitando a
expansão e a manutenção do exército de reserva de mão de obra. Essas medidas, na
prática, privatizavam a reprodução da força de trabalho e aumentando a acumulação
para o capitalista, já que trabalho e habitação estavam relacionados a ele.
Temos assim que a mais-valia extraída do trabalhador habitante das vilas
operárias, passa a não ter gastos com habitação e, já que os gastos com habitação
deveriam sair do seu salário, o industrial não precisará pagar um salário maior. Assim,
beneficiando-se dessas medidas, na última década do século XIX, a empresa de Artur
Sauer já havia construído cinco vilas operárias, como visto em Abreu (2008).
Como exemplo da proposta higienista, temos as imagens a seguir:
98
Mas mesmo com essas ações, o problema dos cortiços e da sua insalubridade
não havia declinado. Com o novo século, o novo ideal pôde ser posto em prática, onde
os mais pobres passam a ser realocados na Zona Norte, seguindo o fluxo das vias
férreas abertas. O centro e o sul não poderiam mais abrigá-los, ficando evidente a
divisão da cidade, o lugar de cada classe e o lado que o governo iria favorecer.
A Era Passos, das grandes intervenções viárias no centro da cidade, dos
desmanches de morros e de cortiços, chega junto com a república. À essa época, o
capital já estava num emaranhado processo com o poder público, com a elite
intelectual – os médicos higienistas – e absorvido pela opinião pública. Assim, Passos
não encontrou dificuldades em limpar de vez a pobreza e privilegiar os investidores
nacionais e internacionais. O traçado de suas intervenções, como mostra o mapa
70
CARVALHO, Lia de Aquino. Contribuição ao estudo das habitações populares. Rio de Janeiro: 1886-1906.
99
A partir daí o centro antigo não poderia mais abrigar a força de trabalho pobre
que lá vivia. O novo centro seria mais que o modelo a ser reproduzido pela cidade,
seria o palco de uma nova maneira de viver.
Desta forma, já no período das intervenções de Passos, a Lapa figurava como
coadjuvante pronta para tomar o papel principal na história da boemia da cidade.
Devido sua posição geográfica, situada numa região de ligação entre a zona sul e a
zona norte, em 1890 a Lapa e o centro da cidade:
[...] já estão recortados pelas linhas de bondes puxados por animais,
substituídos em 1894 pelos elétricos. Na Lapa passavam os bondes que iam
para a zona sul e Santa Teresa, e entre o Passeio Público e a Glória o mapa
assinala o “Caes Novo da Glória”. Entre os anos de 1889 e 1905 o litoral da
Baía da Guanabara em frente à área estudada era denominado de Praia da
Lapa. É a primeira vez que o nome Lapa aparece sozinho designando a
região litorânea e desvinculado da denominação da Igreja de Nossa Senhora
do Carmo [...]. (JARA CASCO, 2007, p. 126-127)
71
Passou a ser bairro em 2012, e conforme Rosemere Maia: “Além de toda uma “identidade” que se busca construir/resgatar em
relação à Lapa - muito pautada em elementos relacionados à cultura, ao lazer, às práticas sociais que marcaram a área ao longo
do tempo -, em 2012, por força de lei, a Lapa foi “emancipada” do Centro, tornando-se um bairro, o que vem contribuindo, ainda
mais, para o reforço de muitos de seus atributos/qualidades “especiais”, sua vocação para o turismo e, também, para a moradia,
além de justificar ações/intervenções mais incisivas, o que ficaria mais complicado caso houvesse a necessidade de diluí-las por
toda a área central – que não compartilha, em igual medida, de todos os atributos conferidos ao citado bairro” (MAIA, 2015. p.13).
72
Estudada no item 2.1 dessa dissertação.
73
Como visto em (DELGADO, 2011).
104
verossímeis.
Numa breve história da Lapa, a expansão da cidade levou as classes mais
abastadas para a zona Sul – como vimos anteriormente – e Gutterman mostra que
“os sobrados residenciais das famílias abastadas se transformem em habitações
coletivas como casas de cômodos ou cortiços” (2014, p. 25). O fim do Século XIX a
Lapa estaria experimentando uma fase de decadência – associada, por alguns
autores, a imagem de um local degenerado e sujo –, com ruas estreitas devido ao
processo orgânico de ocupação (Ibidem).
Como no plano de abertura da antiga Avenida Central, Pereira Passos também usou a
mesma lógica higienista das demolições para as intervenções – no mesmo período – na
Lapa: no projeto de abertura da Mem de Sá vias largas em detrimento dos casarões
antigos. As demolições levaram a arquitetura colonial e trouxeram a arquitetura eclética,
além de levar os indesejados e trazer as classes mais altas.
Sabemos que esta não é uma história verídica, mas o que se sabe de Lima
Barreto é que a “transformação histórica do bairro emerge das páginas de Aluísio
Azevedo e Lima Barreto” (LUSTOSA, 2001, p.15). Lustosa diz que podemos perceber
como que “a Lapa passou de bairro honesto habitado por boas famílias a lugar da
mais variada prostituição e de mais desvairada boemia” (Ibidem).
Além de Lima Barreto e seus contos, encontramos no trabalho de Mario Lago
as memórias de sua vida na Lapa. Este autor elucida a existência do receio das
“pessoas consideradas de bem” em se estar, ou morar, próximo aos limites da boemia.
E como conta o autor a respeito de sua vivência:
Nasci um pouco distante de seus limites, na Rua do Rezende, mas não tanto
que até lá não chegassem seus ecos e fluidos. Entre as casas de família se
misturavam pensões de mulheres, mais ou menos do conhecimento de todos.
Enquanto cresci mudamos de moradia e rua não sei quantas vezes e, a cada
mudança, mais íamos nos aproximando daqueles limites que as pessoas
consideradas de bem olhavam com preconceito, mal disfarçando certo horror.
A Lapa foi chão de todos os meus passos. Na busca de caminhos e atalhos
que descaminham. Na primeira ânsia e no ultimo nojo, no ultimo desencanto
e na primeira afirmação. Conheci-a em muitas realidades e diversos tempos.
(LAGO, 1976 apud LUSTOSA, 2001, p. 95)
107
O ódio às classes pobres não foi percebido nesses contos e poemas, mesmo
sabendo que aconteciam, como relatado anteriormente por Guimarães. Mas também
poderiam ser o embrião deste discurso de ódio aos que não se adequam ao padrão
da sociedade em cada período. Assim, notamos que a Lapa era retratada, em fins de
XIX e início de XX, como um lugar de disputa de classes por território dessa importante
fatia do centro antigo.
Da mesma maneira que Smith define as intervenções realizadas em Paris pelo
Barão de Haussmann como proto-gentrificação 74, também podemos ver o embrião da
gentrificação por nossa cidade, dita como a grande capital da América do Sul – mesmo
tendo fama de empesteada e inabitável no século XIX, como mostrou Benchimol – e
que passava por intervenções drásticas no tecido urbano, pautados por princípios
similares aos higienistas de Paris. Mas, o conto de Lima Barreto (1915) acima citado,
aponta outro caráter desse processo, bem explicado por Bauman, sobre a
incapacidade ou ojeriza do ser humano em se misturar com os diferentes. Nesse caso,
um trabalhador, não podia se misturar com moças da vida, que haviam sido expulsas
pelo poder público de uma rua recém-aberta.
O que podemos dizer a respeito desse processo de intervenção pautado na
higienização é que, no Brasil, “levou ao reordenamento do espaço físico, mas esteve
longe de minorar as principais doenças que assolavam a cidade, principalmente as
classes mais pobres” (PECHMAN, 1999, p. 385). Foi uma empreitada de limpeza da
classe pobre que habitava o centro antigo, diferente do modelo europeu, onde a
percepção do progresso social:
[...] dependia das boas condições do meio urbano fez com que o projeto
reformador evoluísse das intervenções isoladas em pontos críticos
emergentes para uma compreensão mais articulada dos problemas urbanos,
e para uma ação mais coordenada (planejada) da expansão urbana que
levasse em conta as condições sociais de vida nos bairros populares, de
forma a minorar suas graves carências. Nesse sentido, a categoria meio
físico, explicativa dos problemas urbanos, começa a ceder lugar para a nova
categoria, meio social, onde as questões urbanas e as questões sociais irão
se articular. É exatamente do cruzamento dessas duas questões que nascem
as primeiras aplicações práticas do Urbanismo como ciência, e que iriam se
traduzir nas garden cities. (Ibidem)
74
En su famoso poema, «Los ojos de los pobres», Charles Baudelaire envuelve una narrativa proto-gentrificación dentro de un
poema de amor y distanciamiento. Ambientado a finales de 1850 y principios de 1860, en medio de la destrucción del París de
clase trabajadora a manos del Barón Haussmann y de su monumental reconstrucción. (SMITH, 2012, p. 79)
108
Além desse autor, mais uma vez ressaltamos as memorias de Mario Lago sobre
a boemia no tempo em que frequentava os bordéis, dos cabarés e das ruas tortuosas,
da gente de boa e de má fama. Da briga em que presenciou “oito meganhas cercavam
um mulato, [...] Mas o mulato o escapava das mãos como uma enguia” (LAGO, 1973
apud LUSTOSA, 2001, p. 112) e que, no fim, tratava-se de mais uma briga da Madame
Satã. Entretanto, são as histórias da malandragem que permanecem no imaginário
popular e na literatura, o que dava força à fama de Montmartre Carioca, criando a
fama de lugar de vadios e brigões.
Nesta perspectiva, Guttermann mostra que a Lapa não era apenas de boemia
vadia, já que a “proximidade com várias instituições de ensino e cultura como o
Instituto Nacional de Música, os teatros da Praça Tiradentes e a Universidade
110
Dentre estas revistas, temos algumas que se destacam pelo discurso explícito
de desqualificar a vida na cidade, mas de modo sempre seletivo. Pechman mostra
que a revista Brasiléia – intitulada de propaganda nacionalista – profere o discurso
que desqualifica “o Rio de Janeiro (cosmopolitismo) frente a São Paulo (nacionalismo)
e identifica a capital como um centro essencialmente cosmopolita e corrupto, voltado
para fins materiais” (Ibidem). Essa revista se encarrega de divulgar conteúdo
ideológico nacionalista e depreciativo, onde:
[...] o propósito de "defender o brasileirismo puro e integral, colocando a
religião e a moral como verdadeiros alicerces da Pátria", e observa que as
publicações nacionais não têm a preocupação de propagandear o país,
prevalecendo o senso estético ditado pela cultura europeia. A revista critica,
acidamente, a burocracia das cidades (junho/1917), diz que a imprensa se
afunda numa onda infernal de cosmopolitismo (dezembro/1917) e lamenta o
ambiente de imoralidade e libertinagem em que vive a juventude carioca
(janeiro/1918). (Ibidem)
(Ibidem).
Não podemos apontar se este foi o movimento norteador do discurso de ódio
aos pobres, que culminou no desmonte do bairro da Lapa. Talvez não seja possível
associar o discurso do ruralismo ao discurso e aos planos urbanos das décadas de
1920 até 1950, já que a Lapa não era o alvo principal nessas intervenções. Mas, é
importante que ressaltemos o discurso ruralista, pois nele se expressava a ideia do
anti urbano, e, a Lapa, como expressão do bairro de degenerados, das prostitutas e
dos malandros, era o exemplo do que os ruralistas chamavam de cosmopolitismo.
Mapa 1 – Fonte: Atlas Andreatta (2008). Mapa 2 – Fonte: Foto 1 – Fonte: Rio que passou 76. Foto 2 – Fonte:
Rio que passou 77.
75
Não foi executada plenamente, como mostra Sampaio:
76
http://www.rioquepassou.com.br/2011/10/20/parcial-do-centro-anos-50/
77
http://www.rioquepassou.com.br/2005/06/27/av-norte-sul-vi/
114
78
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=artigo&ordenacaoData=relevancia&allwords=Arrasamento+immediato+
do+morro+de+Santo+Antonio&anyword=&noword=&exactword=&decadaSelecionada=1940&anoSelecionado=1940
Consultado em: 28/01/2017.
79
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=artigo&pagina=&ordenacaoData=relevancia&allwords=entrela%C3%A7
amento+continental&anyword=&noword=&exactword=&decadaSelecionada=1940&anoSelecionado=1941&mesSelecionado=&
diaSelecionado Consultado em: 28/01/2017.
116
80
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=artigo&ordenacaoData=relevancia&allwords=urbaniza%C3%A7%C3%A
3o&anyword=&noword=&exactword=&decadaSelecionada=1960&anoSelecionado=1969&mesSelecionado=8 Consultado em:
28/01/2017.
81
Analisada anteriormente no item 1.3.
117
A capacidade de camuflar, apontada por Delgado mais acima 84, pode ser
exemplificada com a primeira notícia. Mais do que as vestimentas, o gênero e o
comportamento são elementos que identificam a degradação moral noticiada pelo
jornal. Além da caracterização da prostituição exclusivamente feminina, as notícias
também mostram o caráter social, onde os mendigos são alvo das queixas dos que
lutam pelo bem-estar social do bairro.
Ainda sobre este período e fazendo uma comparação com a obra de Smith, o
autor explica as origens da gentrificação nas cidades Inglesas do pós-guerra 85 como
ocasional, onde o movimento de capital e de pessoas acontecia de maneira inicial.
Assim, o autor elucida que décadas mais tarde, as classes médias altas tentariam
82
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=artigo&pagina=&ordenacaoData=relevancia&allwords=passarela+do+p
ecado&anyword=&noword=&exactword=&decadaSelecionada=1960&anoSelecionado=1964&mesSelecionado=&diaSelecionad
o= Consultado em: 31/01/2017.
83
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=artigo&pagina=&ordenacaoData=relevancia&allwords=saneamento+mo
ral&anyword=&noword=&exactword=&decadaSelecionada=1960&anoSelecionado=1964&mesSelecionado=&diaSelecionado=
Consultado em: 31/01/2017.
84
Cf. item 2.2
85
Ibidem.
118
retomar os centros urbanos e expulsar a classe pobre que lá vivia, denominando esta
ação de revanchismo. Completando o nosso paralelo, notamos processo semelhante
nas reportagens onde a necessidade de eliminação de mendigos e mundanas pela
vontade das classes mais moralizadas em não sucumbirem à devassidão.
Dessa maneira, seria possível pensar que se tratava realmente de um processo
de degradação da região da Lapa, ou a mídia, já associada à iniciativa privada,
corroborava para o processo com o discurso de saneamento moral.
Era necessário que instituições conhecidas e renomadas apostassem no
processo das intervenções urbanas, como parte do processo de ressignificação do
bairro – de boêmio mal frequentado, para bairro moderno. Assim:
86
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=artigo&pagina=&ordenacaoData=relevancia&allwords=acm&anyword=&
noword=&exactword=&decadaSelecionada=1960&anoSelecionado=1966&mesSelecionado=&diaSelecionado= Consiltado em:
06/03/2016.
119
87
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=artigo&ordenacaoData=relevancia&allwords=moderno&anyword=&now
ord=&exactword=&decadaSelecionada=1960&anoSelecionado=1969&mesSelecionado=3&diaSelecionado=10 Consultado em:
18/01/2017.
88
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=artigo&ordenacaoData=relevancia&allwords=pra%C3%A7as+coloniais&
anyword=&noword=&exactword=&decadaSelecionada=1970&anoSelecionado=1973&mesSelecionado=6&diaSelecionado=1
Consultado em: 05/03/2016.
89
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=artigo&ordenacaoData=relevancia&allwords=na+velha+lapa&anyword=
&noword=&exactword=&decadaSelecionada=1970&anoSelecionado=1974&mesSelecionado=9 Consultado em: 16/03/2016.
120
depois, temos uma área a ser demolida, causadora de transtorno para a cidade; em
seguida, a valorização dos terrenos e a desoneração do poder público com o repasse
à iniciativa privada dos terrenos; por último, evidencia-se os benefícios com a
demolição ao evocar características modernizadoras e as facilidades que as praças e
largos darão ao bairro.
Assim, a morte da Lapa era anunciada tanto pelos jornais quanto pelos
escritores. Junto ao discurso dessa morte anunciada, vinha o que seria a nova Lapa:
os jardins modernos e os prédios altos – como nas notícias acima –, os terrenos
vendidos à iniciativa privada. A velha Lapa estaria viva somente nas fotos antigas e
na imaginação de poetas ilustres e de moradores anônimos.
Nas notícias que seguem, a imprensa já trata do fim do bairro, restando apenas
memórias:
90
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=artigo&ordenacaoData=relevancia&allwords=lapa+&anyword=&noword
=&exactword=&decadaSelecionada=1960&anoSelecionado=1965&mesSelecionado=9&diaSelecionado=18 Consultado em:
04/02/2017.
91
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=artigo&ordenacaoData=relevancia&allwords=lapa+&anyword=&noword
=&exactword=&decadaSelecionada=1960&anoSelecionado=1966 Consultado em: 04/02/2017.
92
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=artigo&ordenacaoData=relevancia&allwords=lapa+&anyword=&noword
=&exactword=&decadaSelecionada=1970&anoSelecionado=1974&mesSelecionado=6&diaSelecionado=7 Consultado em:
05/03/2016.
121
seus prédios caindo sob a força de marretadas demolidoras, de tratores, para abertura de novas
ruas, por onde passarão cada vez mais carros, a Lapa carioca, onde Manuel Bandeira (1886-
1968) viveu um pouco de seu mundo imaginário de Pasárgada, vai desaparecendo. Para medo
de seus moradores, que aceitam a evolução mas temem uma total descaracterização do antigo
bairro.
E sua decadência:
Essa, a Lapa esfarrapada, na hora da morte, que o século viu nascer e cair
em obediência ao planos oficiais ou em consequência de enchentes e
desabamentos sempre entre andrajos, misérias e decadências.
Mas era a mesma Lapa, que para os doidos, poetas e líricos da noite, seria
sempre uma menina, que insistia e ficava acordada, enquanto não caíram os
cabarés da Mem de Sá, as leiterias do começo do século, os botequins e os
restaurantes da Visconde de Maranguape e persistiram, abertos e impunes,
os hotéis da Travessa do Mosqueira com seus vidros coloridos, fachadas de
ferro batido e seus paralelepípedos ancestrais. (ANTÔNIO, 1989 apud
LUSTOSA, 2001, p. 153)
Nessa época, não foram apenas os malandros que perderam seu espaço
cênico. O processo de limpeza da área da Lapa expulsava mais que indivíduos,
moradores ou cidadãos. Expulsava as profissões que no espaço moderno não se
enquadrariam:
93
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=artigo&ordenacaoData=relevancia&allwords=engraxates&anyword=&no
word=&exactword=&decadaSelecionada=1970&anoSelecionado=1970&mesSelecionado=3 Consultado em: 04/02/2017.
122
Correio da Manhã,
21/11/1969 95: 10.000 mendigos nas
ruas do Rio: “[...] Até 1965, também
no Rio a grave questão tinha solução
“mágica”: atirar mendigos no Rio
Guandu e manter a cidade “limpa”. A
divulgação desses crimes obrigou as
autoridades a encararem a
mendicância como um problema social. “O problema é do subdesenvolvimento. Não temos
verbas para executar planos de reintegração”, diz o diretor do CRM. E dez mil vozes repetem o
mesmo refrão”.
94
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=artigo&ordenacaoData=relevancia&allwords=mendigos+&anyword=&no
word=&exactword=&decadaSelecionada=1950&anoSelecionado=1958&mesSelecionado=6&diaSelecionado=14 Consultado
em: 19/01/2017.
95
Consultado em: 11/11/2016
123
A partir daí, analisaremos o discurso midiático durante o início dos anos 2000,
onde a Lapa foi posta em cena novamente. Com os megaeventos – Pan-americano
de 2007, volta do Rock in Rio 2011, Jornada Mundial da Juventude 2013, Copa do
124
No gráfico acima, podemos ver que a partir de 2008 os rendimentos com imóveis na cidade do Rio de
Janeiro, superaram os rendimentos na Ibovespa. Além disso, a venda de imóveis apresenta lucratividade
maior (250%) do que no aluguel (pouco mais que 100%). Comparando os dados do Rio de janeiro com os
índices nacionais (mostrados nos gráficos abaixo), notamos que os índices de venda de imóveis são
notadamente superiores em relação à média nacional, o que não acontece com os índices de alugueis,
estando esse último levemente acima da média nacional.
Outra informação importante que podemos perceber é que, durante o período dos megaeventos (Copa do
Mundo de Futebol 2014 e Jogos Olímpicos de 2016), a valorização dom imóveis, seja aluguel ou venda,
tiveram seu auge superando a média nacional e, desde o início do das aferições deste índice (Fipe Zap),
batendo o recorde de valorização imobiliária.
Em seguida, a autora mostra que este processo revitalizador, que viria a ter
proporções maiores nos anos seguintes à década de 2000, fazia parte de um
planejamento estratégico iniciado na década de 1990. Para isso, ela afirma que a partir
do ano de 2005:
[...] estabelece-se uma segunda onda revitalizadora, e em diversos aspectos
está se apropria da primeira onda para promover a Lapa como o mais carioca
dos bairros. Essa inflexão aponta para um processo pautado em uma agenda
urbana estabelecida pelo Planejamento Estratégico, passando a ser
fundamental a promoção da imagem do bairro revitalizado (já que o projeto
de revitalização já havia começado na década de 90). (Ibidem)
96
Como vimos anteriormente no item 2.2
97
(Smith, 2006, p. 72)
98
Abordagem de Smith analisada no item 2.2
99
Item 2.3 desta dissertação
128
Ainda sob a visão de cidadania da Nova Lapa, vimos com Fiorin 101 que este
discurso é construído por coerções sociais. Não há autenticidade, muito menos
novidade, no processo de revitalização da Lapa, pois a repetição acontece com as
formas e procedimentos dos elementos de outros discursos. A liberdade, segundo
Fiorin, estaria mascarada no discurso de cidadania de Delgado e materializado no
Manifesto do movimento Eu Sou da Lapa.
Sendo assim, o modo como as notícias da atualidade são dadas, assemelham-
se com a de outras épocas, onde a depreciação do bairro justificaria novas
intervenções do poder público. Nas notícias a seguir, a repetição dos elementos de
desordem, como mendigos, viciados, camelôs, fortalece a ideia de Fiorin sobre a
repetição dos discursos e ausência de novidade:
100
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=pagina&ordenacaoData=relevancia&allwords=a+lapa&anyword=&now
ord=&exactword=&decadaSelecionada=2000&anoSelecionado=2007&mesSelecionado=4&diaSelecionado=15 Consultado em:
26/07/2016.
101
(Fiorin, 1990, p. 41) no item 2.4
129
102
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=pagina&ordenacaoData=relevancia&allwords=arco&anyword=&noword
=&exactword=&decadaSelecionada=2000&anoSelecionado=2008&mesSelecionado=7&diaSelecionado=19 Consultado em:
26/07/2016.
103
https://www.dicio.com.br/vitalizar/ Consultado em: 07/04/2017.
104
https://www.dicio.com.br/revitalizar/ Consultado em: 07/04/2017.
105
http://conceito.de/revitalizar#ixzz4fx6p59ad Consultado em: 07/04/2017.
106
Como na noticia, vista mais acima, sobre o Saneamento moral da Lapa: O Globo, 29/01/1964: “Amigos da Lapa pedem à
polícia o saneamento moral do seu bairro”
130
de Rego e Passos e ao das demolições das décadas de 1960/70. Como uma repetição
do discurso do passado, mostra-se o bairro em deterioração, quais seriam os
benefícios conquistados pelas intervenções urbanísticas, buscando o apoio popular e
justificando o processo de exclusão das classes indesejadas:
[...] profundamente atrelada aos novos discursos culturais que passam a ser
valorizados nesses bairros, em vias de gentrificação, no intuito de atrair esse
novo grupo. E, no cenário carioca, a Lapa se caracteriza como o “bairro” mais
exaltado, comemorado e mercantilizado do Rio de Janeiro. Afinal, o primeiro
ponto de atração e enfoque desse processo de revitalização da Lapa estava
baseado exatamente na atmosfera de “bairro boêmio”, ponto de encontro de
artistas, poetas e músicos, e berço do sentimento carioca. (MOSCIARO,
2012, p. 75-76)
107
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=pagina&ordenacaoData=relevancia&allwords=lapa+revitalizada&anywo
rd=&noword=&exactword=&decadaSelecionada=2010&anoSelecionado=2010&mesSelecionado=8 Consultado em:
13/02/2017.
108
como visto no item 2.4
131
109
Cf. item 2.5. Relação poder simbólico e gentrificação.
110
Cf. 2.3 dessa dissertação.
132
111
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=pagina&ordenacaoData=relevancia&allwords=lapa+revitalizada&anywo
rd=&noword=&exactword=&decadaSelecionada=2010&anoSelecionado=2010&mesSelecionado=5&diaSelecionado=9
Consultado em: 13/02/2017.
133
112
http://odia.ig.com.br/portal/rio/abandono-faz-lapa-virar-casa-de-moradores-de-rua-1.564044 Consultado em: 04/03/2016.
134
113
Consultado em: 23/02/2016
114
Consultado em: 23/02/2016
115
Consultado em: 23/02/2016
116
Em entrevistas realizadas com sem teto que se instalavam nas ruas da Lapa e adjacências, percebemos que o tratamento
dado pela prefeitura difere do discurso de sua página oficial. A violência e a perversidade usadas pelos agentes da prefeitura
permearam todas as conversas, desmontando o discurso de acolhimento apregoado nas notícias. Outro fato relevante nessas
entrevistas é quanto às condições dos abrigos, poucos foram os que não regressaram ao centro da cidade devido a precariedade
das edificações e da ausência de condições de ressocialização. Quanto às entrevistas, foram realizadas entre fevereiro de 2013
até agosto de 2014, na região do centro do Rio de Janeiro.
135
1 - A fachada do Hotel Bragança, perto dos Arcos: inauguração deve acontecer em quatro meses - Foto: Fernando Lemos;
2 - O Da Lapa: projeto do arquiteto Hélio Pellegrino que aposta do reaproveitamento - Foto: Fernando Lemos;
3 - A piscina do Vila Galé: hotel fica em terreno de mais de 6 mil metros quadrados - Foto: Fernando Lemos
4 - O lobby do Vila Galé: grupo português resolveu apostar na Lapa e decisão vem se mostrando acertada - Foto: Fernando
Lemos
117
Cf. item 1.2 - Os excluídos - a cidade revanchista.
138
118
“Hipster bashing - an acceptable way for middle class (white) people to point out the ways in which they are superior to other
middle class (white) people, esp. prominent in urban environments experiencing gentrification.” Disponível em:
<http://www.urbandictionary.com/define.php?term=hipster%20bashing>. Acesso em: 25 de nov. 2016.
119
KENDZIOR, Sarah. Gentrificação: os perigos da economia urbana hipster. Tradução de Camilla Sbeghen. 2014.
Disponível em: <http://www.archdaily.com.br/br/758003/gentrificacao-os-perigos-da-economia-urbana-hipster>. Acesso em: 17
de dez. 2016.
139
[...] que as declarações de Lee foram uma crítica da localização racista dos
recursos. As comunidades afro-americanas, que se queixam das escolas
pobres e dos serviços públicos terríveis, percebem que estas queixas são
rapidamente ouvidas quando pessoas de renda mais alta se mudam para
esses bairros. (KENDZOIR, 2014)
A respeito dos desejos dessa classe, a autora mostra que os “hipsters querem
escombros com garantia de renovação. Querem mudar uma memória que outros já
construíram” (Ibidem). Como visto em Smith, a autora identifica que os agentes da
gentrificação possuem influência política para:
[...] relocar recursos e reparar a infraestrutura. O bairro é limpo através da
remoção dos seus residentes originais. Os gentrificadores podem desfrutar o
sol na vida urbana: a dilatada história, a nostalgia seletiva, a areia
cuidadosamente salpicada. Ao mesmo tempo, evitam a responsabilidade
sobre aqueles que foram deslocados. (Ibidem)
Além dos agentes que promovem o processo de gentrificação, existe outro ator
nesta disputa: aqueles que não podem arcar com os custos da gentrificação,
incapazes de adquirir o poder simbólico e sem a possibilidade de se camuflarem no
espaço público ressignificado, como o cenário da Lapa. Dessa maneira, sob a lógica
do movimento de capital (SMITH, 1988), do poder simbólico (BOURDIEU, 2002) e do
espaço público como ideologia (DELGADO, 2011), o bairro da Lapa passa por um
processo de valorização de seu espaço, de seu solo e de sua cultura.
Da mesma maneira que exemplificado por Kendzoir anteriormente, a parcela
da população sem condições de arcar com o novo estilo de vida da Nova Lapa,
caminha para fora do bairro, geralmente, para a periferia da cidade.
Mas, ainda existem os sem-teto que se instalam nas ruas da Lapa por falta de
recursos econômicos, pela possibilidade de obtenção de alimentos das instituições de
caridade e pelo descarte de alimentos de alguns bares e restaurantes. Esses, com a
140
120
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=artigo&ordenacaoData=relevancia&allwords=+A+Lapa+dos+contrastes
&anyword=&noword=&exactword=&decadaSelecionada=2010&anoSelecionado=2012&mesSelecionado=1&diaSelecionado=14
consultado em: 17/01/2017.
121
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=artigo&ordenacaoData=relevancia&allwords=moradias+no+Centro&an
yword=&noword=&exactword=&decadaSelecionada=2010&anoSelecionado=2016&mesSelecionado=11&diaSelecionado=13
Consultado em: 17/01/2017.
141
Dentre os que são removidos, seja pela força, seja pela falta de capacidade
financeira para consumir o espaço repleto de ideologia ou para se camuflarem, os
sem-teto transitam pelo bairro da Lapa – invisíveis no espaço dito público e
democrático – e passam representar um obstáculo físico na rua. Vistos como um
elemento de desequilíbrio na paisagem urbana – destoando do cenário da Nova Lapa
e dos novos boêmios –, incomoda aqueles que consomem a cidade e que se
comportam conforme os estereótipos – o carioca da gema – reforçados pela mídia.
Desse modo, os sem teto se tornam ameaça à valorização das áreas e à utilização do
espaço público por aqueles que podem pagar.
As evidências desse processo de eliminação da população indesejável das
ruas do centro do Rio, em especial da Lapa, foram constatadas pelo ministério público
122
http://extra.globo.com/noticias/rio/populacao-de-rua-triplica-no-rio-prefeitura-anuncia-medidas-20750283.html Consultado
em: 17/01/2017.
142
123
http://epocanegocios.globo.com/Essa-E-Nossa/noticia/2014/06/mp-constata-higienizacao-de-moradores-de-rua-no-rio-de-
janeiro.html Consultado em: 04/03/2016
124
http://www.revistaforum.com.br/2013/05/16/estudo-no-rj-mostra-que-maioria-da-populacao-de-rua-nao-bebe-nem-usa-
drogas/ Consultado em: 04/03/2016
143
125
http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=artigo&ordenacaoData=relevancia&allwords=distribui%C3%A7%C3%A
3o+de+comida&anyword=&noword=&exactword=&decadaSelecionada=2010&anoSelecionado=2016&mesSelecionado=8&dia
Selecionado=11 Consultado em: 11/01/2017
126
http://blogs.oglobo.globo.com/luciana-froes/post/massimo-bottura-abre-o-refettorio-gastromotiva-na-lapa.html Consultado
em: 17/08/2016
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Imagens: http://www.refettoriogastromotiva.org/
As imagens obtidas no site da Ong mostram a ideia de cidadania de Delgado,
com o voluntariado servindo à iniciativa. Também reforçam o conceito de gentrificação
de Smith ao trazer o capital simbólico em servir à uma parcela pobre da sociedade. Outro
ponto interessante do Gastromotiva é o acervo de artistas de renome mundial que
agregam valor ao restaurante.
Entretanto, nas informações obtidas no próprio site do Gastromotiva, 38 jantares
mágicos foram servidos em detrimento de 250 sem teto que perderam a ajuda diária das
refeições.
Como vimos anteriormente em matéria de jornal, a Lapa é uma marca
internacional e empresas passam a investir em iniciativas como o da Gastromotiva. Este
seria mais um caráter da gentrificação
Desta maneira, como mostra Smith a fúria dos que usufruem e lucram com o
espaço público, é com frequência que os sem-teto são contestados por notícias em
jornais e nas ações de remoções pelo poder público. Na região do centro e,
principalmente, na Lapa, o processo de remoção das áreas a serem gentrificadas
arremessa os sem-teto em direção aos subúrbios distantes ou a abrigos também
distantes da região central. Com Smith concluímos que:
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pobres e centrais, quanto para outros bairros da zona norte e oeste. Neste momento
da análise, a fronteira é também o centro da cidade, pela volta do capital e pela luta
em eliminar os indesejados.
Como parte final da nossa dissertação, foi necessário saber quem estaria
incluído e quem seria excluído pelos processos do movimento de capital e reprodução
das cidades.
Como resultado, os processos de exclusão social, onde o movimento de capital
em vaivém pela escala urbana – como mostrou Smith na parte 1, item 1.1 – provocou
um movimento de pessoas em direção às áreas valorizadas da cidade, as quais
receberam investimentos do estado, garantindo o retorno de capital aos agentes
dessa operação.
Assim, o que ficou em evidência nessa operação de consórcio entre estado e
capital foi o sentido diametralmente oposto do movimento de pessoas: em direção às
áreas supervalorizadas, movia-se a classe média portadora e sequiosa do aumento
do seu capital simbólico; na direção oposta, uma classe de indesejados, que não podia
mais arcar com os custos de vida do bairro da Lapa.
Entretanto, não eram apenas pessoas sem capital simbólico ou sem condições
financeiras para arcar com os custos dos serviços e alugueis da Nova Lapa que
perdiam seus lugares. O ponto mais crítico desse processo de exclusão social se
referia àqueles que sequer possuíam um teto, que precisavam se instalar nas
calçadas e marquises de um bairro que se tornou marca internacional. Na Lapa, da
mesma forma como Smith analisou o processo de gentrificação de Nova York, a
presença desses indesejados incapazes de esconder sua miséria – denominados
também como perigosos – era e é contestada com fúria pelas classes dominantes,
com ódio às classes mais pobres. Vistos como obstáculos nas calçadas pela nova
classe que habitaria o bairro, como viciados e elementos a serem removidos, os sem
teto disputavam lugar com as mesas dos novos bares e restaurantes, com os
bicicletários privados e com os equipamentos de um bairro marca.
Nos três períodos estudados (o Higienismo de Pereira Rego a Pereira Passos,
de 1850 e 1905; a época das demolições na Lapa e o discurso dos degenerados, de
1960 e 1970; a gentrificação como processo global, de 2000 e 2010), as classes mais
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pobres arcaram com os custos das remoções ao serem empurradas para as áreas
periféricas e ao sofrerem com o discurso de ódio.
Entretanto, o que põe em evidência o caráter excludente da gentrificação, em
um nível perverso, é o movimento de capital pela escala urbana (seu movimento de
produção e reprodução de cidades), que além de garantir o retorno financeiro do
capitalista, propagou-se e consolidou-se naturalizada como cultura na produção e
reprodução das cidades.
Dessa forma, as remoções forçadas e a expulsão dos sem teto ganhou novo
título e, como a cópia malfeita de Pereira Passos, e uma espécie de retrato pintado
por Romero Britto – disforme, pós-moderno, mas de grande apelo econômico e
popular – o ex-prefeito Eduardo Paes entra para a história como o gestor que mudou
o significado da palavra acolhimento, que removeu mais pessoas de suas casas do
que seu grande ídolo do passado, e que transformou uma parte da cidade, antes
pública, em propriedade privada, do mercado imobiliário.
Ainda assim, cabe perguntar se, após analisar o processo econômico das
transformações urbanas e a exclusão social resultantes delas, a Lapa protagonizaria
futuramente mais um processo de movimento excludente do capital, já que o bairro
passou por intenso processo de descaracterização física e social durante a segunda
metade do século XX e início do século XXI. Outra pergunta importante seria com a
saída, o movimento ou retração do capital da cidade do Rio de Janeiro, resultaria em
um possível efeito bumerangue de retorno para a Lapa dos sem teto removidos em
função das olimpíadas em 2016. E, como questão final, os sem-teto retomariam o
bairro, ou o atual projeto de sociedade blindou a Lapa contra a reprodução e invasão
das classes perigosas.
Enfim, essas questões se mostraram como de especial relevância e
importância no estudo e pesquisa constantes no que concerne aos processos de
movimento de capital na apropriação dos espaços no centro da cidade do Rio de
Janeiro, em especial no bairro da Lapa, e os seus indissociáveis processos de
exclusão social.
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