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A NOIVA DA MALDIÇÃO
Thomas Altman

Tradução de
Clélia Regina Ramos

Digitalização & Revisão:


ÐØØM SCANS

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Título original: The True Bride
Copyright © 1982 by Ink Creations Inc.
Copyright © da tradução brasileira:
Livraria Francisco Alves Editora S.A.

Reservados todos os direitos

Proibida a venda para Portugal

ISBN 85-265-0205-0

Revisão dos originais:


Júlio César da Rocha
Revisão das provas:
Marco Aurélio Pina
Jorge Luiz Luz
Wilson Pereira da Silva

1990
Livraria Francisco Alves Editora S.A.
Rua Sete de Setembro, 177 ― Centro
20050 ― Rio de Janeiro ― RJ
Telefone: (021) 221-3198

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“Olhe para trás, olhe para trás,
há sangue no sapato.
O sapato é pequeno demais,
não é a noiva certa que vai sentada atrás.”

Irmãos Grimm: Cinderella

Primeira Parte

O Sétimo Mês

Prólogo

Faca.
Afiada, reluzente. Sua face refletida na lâmina.
Como em um espelho. Um espelho de parque de di-
versões, distorcido. Sua face.
Seu vestido branco estufa, incha na água quen-
te da banheira. Você sente a água penetrando atra-
vés das roupas, pressionando contra sua pele. A
água quente escorrendo pelo tecido. Você olha
para a faca e pensa...
Pensa nas coisas perdidas, na música silencia-
da, em flores caindo. Violetas, cravos e rosas.
Pensa em amor e perda, e o pensamento cresce
e se expande, até que enche seu cérebro e o empur-
ra fortemente contra o crânio, dando a sensação
de que está caindo num abismo de dor, de uma dor
terrível. Você pensa: Ele não quis o bebê. Você
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pensa: Algo deve ler acontecido com ele. Não é
possível, ele perdeu o senso das coisas. Ele confun-
diu o tempo. Nada. Nada mesmo.
Explicações.
Você olha fixamente para seus lábios vermelhos
refletidos na lâmina da faca.
Lábios vermelhos. Você abre sua boca, empur-
ra a língua contra os dentes e escorrega mais fun-
do na água quente da banheira para tentar aliviar
a dor em seu cérebro. Mas a pressão cresce dentro
da cabeça e não adianta nem mesmo chorar.
Lágrimas não são respostas, não são soluções. O
mundo parece quebrar-se em mil pedaços. Como
uma casca de ovo esmagada por um pilão.
Você move a mão, deslizando até os joelhos e
depois subindo até o ventre. Empurra o vestido
molhado contra a barriga. Move as pernas, e sua
calcinha branca flutua como um pensamento per-
dido. Você poderia afogar-se agora, é a sua chan-
ce. Você esfrega a palma da mão sobre o ventre.
Mas nada aparece ainda. Nada aparece. Nada.
Você pensa em amor. Seu pobre amor, está tão
perdido... Alguma coisa aconteceu com ele. De re-
pente vem à sua mente um som parecido com músi-
ca fúnebre e você começa a golpear repetidamente
o estômago submerso na água, e o som que agora
ecoa em seus ouvidos é o de vozes cochichadas em
um salão imenso, e os sussurros vão aumentando
de intensidade até que você coloca as duas mãos
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sobre os ouvidos, tentando em vão parar o baru-
lho, porque não consegue pensar em mais nada; a
pressão aumenta.
Um barulho. Você ouve vozes no andar de bai-
xo da casa e de repente vem uma lembrança estra-
nha à sua mente. Você não sabe onde se encontra,
você existe apenas como uma angustiante pressão,
a pressão da dor e da perda. Você pega a faca e a
coloca com a ponta voltada para o seu corpo. Um
corte. Um insignificante corte na coxa. Mas a faca
é bem afiada, e logo uma pequena mancha verme-
lha flui pela água. Seria mais fácil... fazer um corte
nos pulsos. Mas não. Não é bem isso. O bebê. Ele
queria você, não o bebê. Ele não queria o...
Pobre amor, você imagina que ele voltará, re-
lembra as promessas, as palavras e os sussurros de
amor, e como o amor é uma coisa eterna. Sua me-
mória se preenche com o cheiro dos cabelos dele e
com a maneira de ele sorrir e olhar para o vazio
depois de fazerem amor. Naquele momento mágico,
você consegue trazer de volta tudo que estava pre-
sente naquele sorriso. Você não esqueceria. Você
não esqueceria aquele sorriso, nunca. Olha agora
para baixo e fixa o olharem seu pelos pubianos
imersos n’água. Oh! amor! Você sabe que ele vol-
tará. Você sabe que ele voltará. Sua ausência e o
vazio...
Você quer saber por que está deitada nesta ba-
nheira. Por que seu vestido branco está levantado
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até acima do estômago com uma faca pousada so-
bre o umbigo? Lembre-se. Você faz um coite. Um
corte como se estivesse traçando uma linha entre
dois pontos.
Agora sabe onde fazer o corte.
Vozes novamente. De outra parte da casa. Elas
ecoam.
Onde ela está? Alguém a viu sair?
Você ouve passos nas escadas. Rápidos. Tem
que fazer a coisa depressa. Faça, faça o corte, em-
purre a lâmina bem fundo, olhe o sangue. Você
pressiona a ponta da faca contra o umbigo, empur-
ra com força e, então, sangue e pedaços de carne
começam a descer em direção ao osso pubiano. Ali
você tenta fazer uma linha rela, uma incisão. Mas
você fica cega de dor, a dor é muito grande em
você, a pressão é inimaginável, seu sangue borbo-
reja em direção à borda da banheira, mais c mais,
e a faca afiada e terrível ― a faca continua estra-
çalhando pedaços de carne e gordura, cortando,
rasgando, furando os intestinos, rompendo e des-
pedaçando, e a dor é como fogo lhe consumindo.
Luzes fracas vêm e vão, você abre a boca, nenhum
som é emitido, talvez um murmúrio, mas tudo o
que você quer é gritar bem alto... e a faca continua
se entranhando através do seu corpo. Nada é pior.
Nada nunca poderia ser pior.
Exceto perder o amor.
Você está cega, mesmo assim olha para baixo e
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pode ver o sangue formando espirais na água junto
com farrapos de pele pendentes, destacados pela
lâmina. A dor é como um dardo indo diretamente
contra o seu coração. Você sente a escuridão vindo
em sua direção. Então aparece uma luz. Mais luz.
Finalmente você penetra num caminho confuso e
escuro...
Onde diabos ela está? Ela trancou-se no banhei-
ro?
Caminho confuso e escuro.
Movimento. Ligada a você, parte de você move-
se através da secreção, do sangue e das tiras de
carne. Move-se para fora como um girino defor-
mado tentando nadar para sobreviver, cego, deba-
tendo-se, mexendo-se, descarnado e medonho, na
água, a água turva pelo sangue. Então você rasteja
em direção à terrível escuridão das coisas, sub-
mergindo na água, sente que ela entra em sua
boca, sente-se sufocar naquela água sangrenta. E
aquela coisa ainda flutua na superfície, debatendo-
se e morrendo a cada segundo em sua cegueira c
deformidade.
Você pensa ouvir alguma coisa do outro lado
da porta.
Você pensa que ouviu.
Sua cabeça afunda-se na água.
Alguma coisa esmurrando a porta, gritando.
Ela está trancada aí dentro... Aí dentro...
Você sente aquilo escorregar pelas suas coxas,
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descendo; há tão pouco tempo uma parte de você,
apenas outro pedaço dos muitos que você perdeu...
E você pensa: Amor, pobre amor.
Onde está você agora?

Um

3 de julho

Construído às margens de um lago artificial, o


restaurante estava lotado. Ellen podia ver as luzes
das casas tremulando no reflexo da água escura,
barcos atracados balançando levemente como se
empurrados por uma maré artificial. Se você fe-
chasse os olhos e fantasiasse um pouco, poderia
acreditar que estava sentada perto de uma praia, em
vez de nesta cidade centrada no deserto. Uma ima-
gem romântica ― algumas vezes você tinha que se
permitir tais devaneios. Ela levantou os olhos, que
fixavam a mesa, o prato ainda coberto com metade
da refeição de frutos do mar, e olhou em direção a
Eric. Uma vela ardia entre eles. Havia também uma
rosa vermelha num vaso solitário.
Eric pousou seu garfo ao lado da casca oca de
uma batata cozida. Ele a observou por um momen-
to, sorrindo. Então, estendeu sua mão através da
mesa e colocou seus dedos sobre o pulso de Ellen.
― Você não terminou seu jantar ― ele disse.
Eric a estaria repreendendo? Ellen balançou a
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cabeça, dizendo:
― Estou satisfeita.
― Eles fazem um delicioso bolo de queijo aqui
― Eric tentou animá-la. ― Ouvi dizer que muita
gente caminha descalça sobre as montanhas só para
colocar suas mãos sobre esta maravilha...
Ela sorriu para o marido, olhando depois para o
ventre: o bebê estava se mexendo. Ela imaginava o
feto movimentando-se em sua barriga, uma peque-
na figura incolor colidindo contra os suaves muros
do seu útero. Bolo de queijo: ela sentia-se o próprio
dirigível. Em algum lugar da estrada a frágil jovem
mulher chamada Ellen havia simplesmente desapa-
recido, eclipsada atrás das formas inconvenientes
de um Zepelim. Ela olhou para o rosto de Eric, sen-
tiu a expressão de expectativa, como se sua decisão
em aceitar ou não o bolo de queijo fosse a mais im-
portante coisa no mundo naquele momento.
― Eu não posso, Eric. Não posso comer mais
nada.
― Nem uma lasquinha? ― insistiu ele.
― Não mesmo.
Eric recostou-se em sua cadeira, brincando ner-
vosamente com o guardanapo, enquanto Ellen no-
vamente se distraía com as águas escuras do lago.
Alguma coisa movia-se na superfície, uma sombra,
nada visível. Depois de um segundo de observação,
a sombra desapareceu e a água ficou novamente pa-
rada. Um pato, ela pensou, algum tipo de ave
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aquática. Eric estava entretido com o vinho, segu-
rando a garrafa sobre a borda do copo de Ellen. Ela
o cobriu com a mão.
― Eu não acho que o dr. Phelps aprovaria ―
recusou Ellen.
― Por que não? É um vinho muito decente.
― Você entendeu muito bem o que eu quero di-
zer. Ele está sempre lembrando que eu agora como
por duas pessoas, mas nunca falou nada sobre be-
ber por dois ― respondeu ela erguendo a taça, sor-
vendo o último gole que restava.
Dava a impressão de que o pouco que havia be-
bido já a deixara alta: era como se bolhas multico-
loridas flutuassem em sua cabeça. Uma sensação
gostosa, morna, romântica. Mais dois meses, ela
pensou. Sete já se foram e ainda dois por vir.
Ela olhava Eric derramar o vinho branco na
taça. Por um instante ele permaneceu pensativo, le-
vantou a taça e sorrindo brindou:
― À nossa. A nós três.
“A nós três.” Ellen tocou de leve a borda de sua
taça contra a dele.
A nós três. Era uma frase estranhamente mara-
vilhosa, uma reestruturação de velhas palavras ade-
quando-se a formas inéditas. Ela olhava para o seu
marido, sentindo a criança mover-se delicadamente
e desfrutando daquele lugar que parecia uma cons-
piração de elementos românticos ― a vela, a rosa,
o reflexo das luzes na água, a expressão do rosto de
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Eric. Um mundo de raiozinhos quentes, um mundo
de coisas brilhantes no qual você se deixa enganar
voluntariamente. Mesmo aquela dorzinha leve cau-
sada pelo bebê, que devia estar esticando um braço,
movendo uma perna, era apenas outro aspecto do
mesmo sonho. Amor, amar, ela pensou, não existe
nada além disso.
Ele disse então:
― Sabe de uma coisa? Você está demais. Você
parece estar muito bem.
Demais, ela pensou. Como ele podia falar isto
com tanta clareza e sinceridade? Ela estava incha-
da, gorda demais, seus tornozelos enormes e os sei-
os intumescidos. Mas, por um momento, ela pôde
imaginar que estava magra, ágil c delicada.
― Deve ser a roupa que estou usando ― ela
respondeu.
― Roupas não têm nada a ver com isso ― Eric
discordou. ― E uma coisa que vem de dentro.
― Você está parecendo o senhor Rogers falan-
do.
― Mesmo o senhor Rogers tem seus momentos,
amor.
Ela sorriu e afagou as mãos de Eric, observando
que sua aliança estava mais apertada do que de cos-
tume, quase machucando o dedo; meu Deus, as
mãos dela tinham inchado tanto?
― Eu gosto da sua blusa ― Eric observou. ― É
nova?
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― Às vezes eu acho que você vive de olhos fe-
chados, Eric. Nós estávamos juntos quando com-
prei esta roupa. Você não se lembra do que eu disse
sobre ter sido a primeira bata decente que já tinha
visto? Pelo menos não faz com que eu pareça com
uma barraca. Você na hora disse ter gostado...
― Este tom de azul vai muito bem em você.
Ela tocou os punhos estreitos da bata. Esta cor
realmente lhe caía muito bem; criava uma moldura
escura para a sua palidez. Ellen apreciava o toque
da seda. E o corte, que conseguia disfarçar sua gra-
videz ao máximo.
A ponta do dedo indicador de Eric corria pela
borda da taça. Ela percorreu com os olhos o restau-
rante. Era estranho perceber que era a única mulher
grávida no ambiente ― fazia Ellen sentir-se como
um membro de um grupo minoritário, um clã em
extinção.
― Eu ainda acho que você poderia beber mais
um pouquinho de vinho ― Eric tentou persuadi-la.
― Phelps...
― Phelps... ― ele disse sorrindo. ― Phelps é
um pouco antiquado. Às vezes eu acho que ele gos-
taria de ser aquele tipo de médico que não existe
mais: o clínico geral, atendendo chamados de casa
em casa.
Ela lembrou da falta de jeito com que Phelps
havia conversado sobre as necessidades sexuais dos
futuros pais e de como eles se tinham divertido len-
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do juntos na cama o folheto explicativo que Phelps
lhes dera.
Levando a mão à boca, para tentar em vão sufo-
car um bocejo, Ellen murmurou:
― Acho que o vinho me fez um pouco mal. Es-
tou cansada.
― Você quer ir para casa?
Ela assentiu com a cabeça:
― Eu me diverti muito, verdade.
― Então está na hora de celebrar ― falou Eric.
― Celebrar?
― Todas as futuras mamães deveriam ser cele-
bradas agora e sempre! ― ele insistiu inclinando-se
sobre a mesa, beijando-a de leve nos lábios.
Quando Eric tornou a sentar, ela notou em seus
olhos uma expressão de pura adoração. Depois,
ajudando a esposa a levantar da cadeira, o mesmo
sentimento. Adoração, celebração, atenção, consi-
deração ― era como se cada um desses sentimen-
tos pudesse ajudar a formar uma espécie de escudo
em torno dela, um talismã contra todas as energias
negativas.
Do terraço do restaurante eles olharam para as
luzes no lago: o céu deserto estava limpo, as estre-
las com um brilho incomum. Aqui, mesmo que ape-
nas por um momento, você poderia esquecer o ca-
lor seco do verão, persistente ao longo da noite.
Eles andaram em direção ao estacionamento,
Eric abriu a porta do Datsun para Ellen, ajudou a
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esposa a entrar no carro, deu a volta e abriu sua
porta. Girou a chave na ignição, acelerou e foi em
frente.
Tudo aconteceu tão repentinamente que ela não
se deu conta do perigo, ela não tivera consciência
dessa possibilidade de colisão até mais tarde. As lu-
zes fortes dos faróis de um carro cegaram-na abrup-
tamente, crescendo em intensidade conforme o car-
ro aproximava-se em alta velocidade, como se o
motorista estivesse bêbado ou cego ou imaginasse
que não havia nenhum obstáculo em sua frente.
Eric pisou fundo nos freios, e no último instante
possível o outro automóvel passou pela esquerda
cantando os pneus, com as lanternas ardendo num
vermelho vivo.
― Jesus Cristo! Eu não posso acreditar... ― e
Eric deixou a frase inacabada.
Ellen agarrou sua barriga com os braços. Ela
sentia-se um pouco mal com a freada brusca, com a
guinada súbita do carro. Mesmo abrindo seu vidro
totalmente, Ellen só podia sentir o ar quente e para-
do da noite. Ela estava suando, podia sentir a trans-
piração brotando das raízes dos cabelos, escorrendo
pela testa. O bebê estava quieto dentro dela. Você
livrou-se de um belo desastre, pensou. Você livrou-
se do que poderia ter sido uma catástrofe.
Eric estava muito nervoso. Ele berrou:
― Só existe uma palavra para este tipo de mo-
torista.
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― Mais que uma palavra ― Ellen completou. E
começou a tremer. Ellen podia sentir vários nervos
trabalharem dentro de seu corpo como frenéticos
impulsos elétricos. O choque, o acidente, um mo-
mento de loucura e tudo acaba em sangue ― ela fe-
chou os olhos, mas ainda podia ver os faróis lumi-
nosos aproximando-se por detrás de suas pálpebras,
como a marca feita por um ferro em brasa.
― Maníaco ― bradou Eric.
― Isto é a coisa mais delicada que me vem à
mente ― ela replicou.
― Você tem certeza de que está bem?
― Claro.
Eric deu um profundo suspiro e girou a chave
na ignição, dizendo:
― Algumas pessoas por aqui ainda pensam que
estão no Velho Oeste.

Algo a despertou.
Primeiro ela achou que tinha sido o barulho do
ar-condicionado jogando lufadas de frio pelo apar-
tamento, mas o aparelho estava desligado.
Ellen imaginou se o bebê teria se mexido ou
dado algum chute em sua barriga. Mas ela não sen-
tia nenhum movimento. Sentada na beirada da
cama, passou os dedos pelos cabelos. Estavam res-
secados. Andando pelo corredor, olhou em direção
à cozinha. Uma luz fraca iluminava o fogão.
Ela estava com sede e encheu um copo de água.
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A água estava tépida, com um sabor químico.
Como podem os habitantes deste imenso deserto
beber um líquido com gosto de ferrugem? Levou o
copo até a sala e, sentando-se no sofá, passou a ob-
servar os detalhes do cômodo, inventando figuras
estranhas a partir da mobília fracamente iluminada
pela luz vinda da cozinha. A moldura de metal do
quadro de Gorman chamou sua atenção. (Foi um
presente de Eric no dia em que lhe contei que ele
iria se tornar pai, ela pensou.)
Ellen bocejou, ainda pensando no que a tinha
feito acordar, querendo saber como conseguiria
dormir novamente. Dr. Phelps a havia aconselhado
manter-se distante dos tranquilizantes e dos remé-
dios para dormir.
Mesmo que a insônia lhe estiver fazendo subir
pelas paredes, Ellen, remédios são dispensáveis.
Muitas mulheres grávidas não podem dormir por-
que se preocupam demais com seu futuro bebê. É
perfeitamente natural preocupar-se. Será que a
criança nascerá perfeita? E se nascer morta? Re-
laxe. Apenas siga os exercícios propostos pelo ma-
nual.
Exercícios propostos.
Ela bocejou novamente. Caminhou até a porta
de vidro que levava à sacada. Afastou as cortinas e
só então percebeu que a porta de vidro de correr já
estava entreaberta.
Ellen colocou sua mão sobre a garganta como
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se algo a tivesse assustado. Por que a porta estava
aberta? Será que Eric havia esquecido de fechá-la e
trancá-la? Ou talvez ela própria a esquecera aberta?
Da sacada, Ellen olhou para o escuro estaciona-
mento do condomínio. Havia uma lua cheia, uma
lua amarela do deserto, criando sombras por entre
os carros. Ela podia ver os contornos das palmeiras
em torno da piscina e o tremular da luz azul por
dentro da água.
Nenhuma brisa. Nada se move. O escuro céu da
noite.
Apenas a tenacidade do calor persistindo. Entre,
Ellen. Beba um pouco de água gelada, coloque o
ar-condicionado no máximo e volte a dormir.
Mas ela não se mexeu. Via algo. Virou o rosto
para o lado. Uma gota de suor escorreu para dentro
do seu olho, ardendo. Ela esfregou os olhos com os
nós dos dedos e, ainda piscando, voltou sua atenção
para a piscina.
Um movimento. Alguma coisa de cor branca
passou pelas grades de ferro da cerca em volta da
piscina. Uma sombra que tanto poderia ser o rastro
de um gato vira-latas, como um pedaço de jornal
voando com o vento ― mas não havia vento, ela
pensou. Nada se move nesta noite. Uma noite en-
clausurada em seu calor silencioso, as palmeiras es-
tão imóveis...
Ela inclinou-se para frente e fixou o olhar num
ponto.
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Era uma pessoa. Alguém indo em direção à pis-
cina. Alguém vestido com uma roupa branca. Ellen
forçou a visão. A figura havia parado debaixo de
uma grande palmeira, mascarada pelo luar, indistin-
ta na sombra. Não era possível identificar o sexo, a
altura, não era possível identificar nada, exceto a
vaga suspeita de que a figura elevara seu rosto para
cima e a estava observando.
Não, Ellen pensou. Ninguém está me observan-
do. Ninguém está parado debaixo daquela palmeira
e vigiando.
Vigiando.
Ela deu de ombros e voltou para dentro da casa,
empurrando a porta para fechá-la e trancá-la. Seu
corpo estava coberto de suor.
Ellen dirigiu-se para o quarto e ouviu a voz de
Eric. Ele estava sentado, seu rosto era pouca coisa a
mais que uma sombra contra a fronha branca do
travesseiro.
― Não está conseguindo dormir? ― ele per-
guntou.
Ellen sentou-se na beirada do colchão e respon-
deu:
― Eu queria saber por que aqui não refresca à
noite como acontece em qualquer outro lugar do
mundo.
Ela o ouviu rir. Eric, ela quis falar, Eric, por
que você me carregou para esta desgraçada cidade
do deserto se eu era plenamente feliz na fria e ve-
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lha Maine?
― Eu fui até a sacada para respirar um pouco e
não pude encontrar nenhum arzinho ― ela disse ao
invés daquilo que pretendera. ― A porta da varan-
da estava aberta.
Por que este acontecimento banal continuava
aborrecendo Ellen?
― Estava?
― Você esqueceu de trancá-la?
Ele ficou em silêncio por um momento.
― Acho que não. Nem mesmo me lembro de ter
ido lá fora.
― Deve ter sido eu mesma ― ela replicou.
Ellen cerrou os olhos e guiou seu rosto na dire-
ção do peito nu de Eric. Os pelos claros fizeram có-
cegas nela. Por um instante refugiou-se em Eric,
porque havia carinho e solidariedade em sua pre-
sença física, uma doce sensação de segurança, onde
ela poderia deixar seus medos e preocupações de
lado. Deformado. Natimorto. Os medos são piores
na primeira gravidez, Ellen. Toda vez que o bebê
se mexe você imagina que ele está saindo do seu
corpo.
Ela mudou de posição, tentando encontrar algu-
ma mais confortável.
― Estou me sentindo tão gorda ― Ellen falou.
As vezes me sinto como um balão. Estou inchada,
meus tornozelos parecendo troncos de árvores,
meus seios estão vazando leite, e estas roupas sem
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forma não ajudam nada...
― Ei, por que este assunto agora?
― Eu não sei. Um pouco de medo. Estou assus-
tada com a dor do parto; então, começo a pensar
que o garoto poderá ter pés-de-pato ou ser cego de
um olho, você entende?
Ela ficou um momento em silêncio e retomou:
― Eu pensei ter visto alguém quando estava lá
fora na varanda. Alguém que estava me observan-
do.
Eric sorriu. Ela entendeu que era uma simples
tentativa de aliviar suas tensões, acalmá-la de seus
temores absurdos.

Mas ela não relaxava. Dor de parto, pés de pato,


alguém no escuro do estacionamento olhando para
você ― todas estas coisas pareciam estar juntas, di-
versas camadas da mesma ansiedade.
Eric pegou as mãos dela. Seus longos dedos en-
volvendo os dela. Ellen pensava sobre sua paciên-
cia, sua doçura, era quase como se ele tivesse um
dom mágico que absorvia os defeitos dela e os
transformava em qualidades. Ela pressionou seu
rosto contra o peito do marido em reconhecimento,
ele era o centro das coisas, o âmago, sem ele, os so-
nhos podiam se esvair, e tudo tornar-se caos. Agora
ele estava afagando as costas das mãos dela.

Seu toque pareceu enervá-la, fazendo lembrar


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talvez como era fazer amor no passado e quão de-
sajeitado era o contato físico entre eles atualmente.
Culpa minha, ela pensou. Não dele. Como poderia
ser culpa dele quando eu mesma não sinto desejo?
Quando meu próprio corpo conspira contra o amor?

― Sexo ― disse ela. ― Estou pensando sobre


como nós gostávamos de sexo.
― Relaxe. Eu não quero que você comece a se
preocupar com isso agora.
― Mas, e você? ― ela perguntou.
― Eu o quê?
― Você deve sentir-se frustrado...
― Isso a gente supera. Não me pergunte como.
O desejo parece evaporar-se. Não sei, não dá para
explicar.
Ela lembrou das palavras do médico, dizendo
que para muitas mulheres a gravidez era um tempo
de grande desejo sexual, enquanto que para outras
o ato era impossível.
Ellen recordava-se também da última vez em
que ela e Eric tinham feito amor e como ela ficara
amedrontada com a penetração, revivendo seu des-
conforto e pânico, pela possibilidade de um aborto.
Ela adoraria saber se Eric estava inteiramente certo
sobre não sentir-se frustrado ou se ele simplesmen-
te estava se esforçando para ser paciente.
Ellen murmurou:
― Daqui a dois meses...
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Ele colocou o dedo indicador sobre os lábios da
mulher, dizendo:
― Daqui a dois meses nós voltaremos ao nor-
mal, minha criança.
Normal: ela quase já esquecera o que era sentir-
se desta maneira.

Um forte pontapé do bebê acordou Ellen na pri-


meira luz do amanhecer. O quarto estava quente, a
lua havia desaparecido e o céu estava chamejante.
Outro dia infernal, ela pensou. Outro bafo da forna-
lha. Ela caminhou em direção à janela. Aquela dro-
ga de porta da sacada ― por que ela não conseguia
lembrar-se de tê-la deixado aberta? Talvez amnésia
fosse apenas mais uma das consequências da gravi-
dez. Talvez você esqueça de coisas triviais porque
toda a sua vida gira agora em torno do seu umbigo.
Ellen voltara da janela quando ouviu um gemi-
do de Eric.
Meu Deus, não. Não.
Ele estava se remexendo, enrolando os lençóis
em volta do corpo. Cristo! Eric estava coberto de
suor, ela podia ver gotas no peito, braços e no buço.
E o som do gemido, preenchido com a angústia
que parecia sentir o sonhador, era familiar a ela.
O pesadelo, o recorrente pesadelo, o sonho mau
que periodicamente o assombrava, as imagens que
ele nunca conseguia lembrar no dia seguinte. Por
vezes, no meio do sonho, quando ele gemia, suava
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e estremecia, era como se as ilusões criadas pela
sua mente o estivessem esquartejando.
Isso a assustava sempre. Um sonho mau. Algo
perverso. Algo entalhado pela mente, dando forma
a uma escultura de má qualidade. Os sonhos eram
tão íntimos, o sonhador tão fechado em sua própria
realidade ― como você poderia realmente interfe-
rir? Ela ajoelhou-se na beirada da cama e afagou a
testa de Eric.
Jesus, faça com que ele acorde. Ajude-o a sair
desse horror.
Ele não parava de se mexer, como se tentasse
escapar de uma entidade, de um monstro que
preenchia seu sono e irradiava sombras escuras.
Por favor, por favor, faça com que isso passe, seja
o que for.
O pesadelo ― por que ele se repete assim com
tanta frequência? Ele nunca se lembrou de nada, a
despeito do número de vezes que ela perguntara.
Talvez aquilo fosse algo de que ele precisava es-
quecer, alguma liberação selvagem da mente. Tal-
vez.
Com a ponta do lençol ela secou o suor do rosto
de Eric. Ele se agitou, revirou-se, suas mãos esta-
vam apertadas numa posição de espasmo.
Ela quis contê-lo. Salvá-lo dos seus próprios
fantasmas. Salvar a si mesma do terror que a aco-
metia ― ele era um estranho para ela, um homem
aprisionado numa cela onde ela nunca teria acesso.
24
Por favor, acorde. Por favor, acorde.
Ellen inclinou-se e beijou-o de leve nos lábios.
Ele abriu os olhos repentinamente e fixou-os na
mulher, parecendo não reconhecê-la ― aquilo era
pior do que o pesadelo. Por um longo tempo ele
não disse nada.
― Aconteceu de novo? ― finalmente ele per-
guntou.
Ela assentiu com a cabeça:
― Você não lembra de nada? Nada de nada?
― Nada. Com que diabos eu posso ter um pesa-
delo do qual nunca consigo lembrar nada?
― Não sei, Eric.
Ela gostaria de que aquilo fosse apenas uma
brincadeira de mau gosto, algo sem importância.
Mas acontecia tão frequentemente ele acordar dessa
forma, empapado de suor e enfraquecido.
― Não seria alguma coisa preocupando você?
No trabalho, quem sabe?
― Nada que eu me lembre ― ele respondeu.
― O bebê? Talvez a preocupação com a minha
gravidez?
Ele a olhou seriamente por um bom tempo e de-
pois disse:
― Eu apenas sei que alguma coisa acontece e
eu sinto este pavor. Não posso lembrar de detalhes.
Não consigo imaginar cenas deste sonho. Só lem-
bro estar morrendo de medo. Cristo, é de enfurecer!
É como se existisse um outro Eric, alguém que
25
estivesse vivendo em outra galáxia, ela pensou. De-
cidida a mudar de assunto, falar sobre qualquer coi-
sa para esquecer o pesadelo, brincou:
― Seu herdeiro me chutou de novo e acabou
acordando a mãe dele. Ele realmente me socou des-
ta vez.
― Ele está impaciente para vir ao mundo ―
Eric falou tossindo. Ele parecia exausto, estava
pálido.
― Ele vir ao mundo?
― Estou com um leve pressentimento de que
temos um garotinho escondido aí dentro.
― Vamos ter que esperar para ver, não é?
Ellen olhou por um bom tempo para o marido e
depois foi em direção do corredor.
Já na cozinha, encheu uma chaleira com água e
a colocou no fogo. Um garoto, ela pensou. Não me
importa que seja um garoto ou uma menina, apenas
que seja saudável. Então, como se estivesse vendo
a criança, como se pudesse tocá-la e niná-la em
seus braços, Ellen sentiu um sentimento muito forte
de amor. Algo do tipo sangue circulando, algo
quente caminhando dentro dela, partindo direto do
coração e se espalhando por todo o corpo. Um lu-
gar distante do pesadelo, um sentimento intocável
pelo pesadelo.
Mais dois meses, ela pensou.
Mais dois meses.

26
Dois

6 de julho

Julho no deserto; os raios de sol pareciam pla-


cas incandescentes estendendo-se sobre tudo, luz
ofuscante refletindo nos prédios, nas folhas das pal-
meiras, brilhando no azul das águas paradas das
piscinas, tudo aquilo criava uma atmosfera na qual
até mesmo os mais sérios cidadãos poderiam afir-
mar ter visto objetos voadores não-identificados:
um tipo de ilusão provocada pelo sol enorme, intu-
mescido. Para Ellen era intolerável. Uma espécie
de inferno, ela pensou, um inferno onde a simples
existência de poros em sua pele basta para que você
se desintegre como se fosse um boneco de cera de-
formado. Sempre que dirigia pelas ruas do centro
de Scottsdale, Ellen percebia que, mesmo com as
janelas de seu Opel abertas, nenhum vento penetra-
va no carro, o verão era sufocante, um terrível sufo-
co de um sonho de afogamento.
Ela dirigiu rumo ao norte, como sempre maravi-
lhada com a capacidade pioneira daqueles que ha-
viam plantado cidades em lugar tão hostil, espanta-
da, como sempre, de como aquela tenacidade viera
acompanhada por tamanha falta de gosto. A cidade
parecendo um pesadelo de arquitetura coletiva que
contasse com a participação de vendedores de car-
ros, de tipos de lojinhas de comércio barato que
27
gastam noites e noites em bordéis mexicanos da ci-
dade ― o resultado era uma frota de carros usados
parecendo ter saído diretamente de funerárias, e
prédios que lembram ranchos mexicanos. Os no-
mes dos condomínios talvez rendessem homena-
gem à Espanha da época neandertal. O lugar onde
ela e Eric moravam era chamado, por exemplo, de
Casa Manzanita: você podia acenar para Pancho
Villa quando ele dava seu mergulho matinal na pis-
cina.
À sua esquerda, ela via uma nuvem incerta ao
redor de Phoenix, a cidade: Scottsdale era um
apêndice estranho, uma reflexão tardia. Por que,
quando ela pensava em Phoenix, imaginava uma
prostituta solitária piscando no escuro da noite?
Transpirando, Ellen procurou o interruptor do ar-
condicionado e bateu de leve nele. Como sempre,
quebrado: ela deveria ter lembrado Eric de con-
sertá-lo. Ela deveria ter também lembrado Eric de
que não tinha nenhuma intenção de passar o resto
da vida naquela terra árida, onde encontrara uma
imitação grotesca da natureza, um lugar em que as
pessoas jogam tênis à meia-noite sob as luzes de
holofotes e fazem churrascos no quintal no dia de
Natal, onde neve era tão raro quanto um camelo em
Vermont.
Ela chegou às redondezas de Paradise Valley,
autoproclamado município de Scottsdale. Era um
local que, para Ellen, tipificava a prosperidade do
28
Arizona. Os jardins urbanizados, as casas de dois
quartos vendidas por mãos avarentas a 750 mil dó-
lares, as igrejas estilizadas com seus fundos pratos
de coleta. Aqui se encontrava a verdadeira sordidez
do dinheiro novo. Aqui era a terra, como dizia Eric,
o início do deserto, das garotas de famílias ricas
que tinham o esgazeado olhar de um androide des-
cuidado, que tinham os dentes arrumados à custa de
um aparelho e seus cabelos cor de palha de milho
arrumadinhos, para as quais se davam Corvettes ou
Thunderbirds quando completavam dezessete anos.
A terra do conjunto de duas peças em azul esfuma-
çado para passear, jóias de turquesa chacoalhando
nos pulsos, camisetas com estampas florais decota-
das até o umbigo, caros cinturões combinando com
mocassins em couro importado.

Ela desviou o carro em direção ao conhecido


caminho que levava a um elegante portão em ferro
batido. A casa do outro lado ficava num vale, e a
arquitetura com suas portas em arcos criava um es-
tilo mexicano. Ellen estacionou o carro próximo à
vindima Bentley, uma brilhante visão marrom-aver-
melhada forjada pela selvagem luz do sol, e cami-
nhou tão rápido quanto pôde em direção da sombra
proporcionada pela casa. Sentindo o suor cobrir
todo seu corpo; a umidade em suas axilas, entre
suas coxas, no couro cabeludo, entre seus dedos,
colando seus pés às sandálias. O bebê moveu-se
29
quando ela se apressou. Remexeu-se dentro dela,
como um Houdini em miniatura procurando esca-
par de uma armadilha; veio então um lampejo de
dor parecendo com uma queimação na espinha.
Bebê, bebê, por favor, fique quieto. Mesmo à som-
bra a temperatura deveria estar acima de 40 graus.
Ela viu uma porta aberta diante dela e Hattie
Dalrymple parada em suas calças de cetim negro e
uma blusa rosa fosforescente. Seus óculos jaziam
dependurados numa corrente ao redor do delgado
pescoço. Ellen lhe dirigiu um sorriso e seguiu Hat-
tie para dentro da casa escura e fresca.
― Esta não é a estação ideal para uma gravidez
― disse Hattie.
Exatamente, Ellen pensou. Ela sentia-se como
se estivesse carregando uma bola acorrentada aos
seus tornozelos. Sentou-se numa poltrona e esticou
as pernas. O tecido da sua bata de grávida aderiu às
coxas.
― Como está você? ― Hattie perguntou.
― Ótima.
― É o que está parecendo ― resmungou Hattie.
Era difícil descobrir a idade dela. Ellen estima-
va que estava por volta dos 40 ― talvez um pouco
mais, um pouco menos. Algumas rugas começavam
a se espalhar a partir dos cantos dos olhos; prova-
velmente eram marcas deixadas por alguma velha
tristeza, algum aspecto do passado que ela nunca
mencionara.
30
― Sua mãe ainda não está acordada. Ela deci-
diu tirar uma soneca depois do almoço. Aliás, eu
acho que ela dorme demais.
Ellen colocou a palma da mão sobre sua testa.
Sentiu uma fraqueza repentina e fixou os olhos no
chão ladrilhado da sala. A tampa do piano estava le-
vantada e fez com que ela imaginasse uma asa de
abutre.
Hattie perguntou:
― Você aceitaria algo para beber?
― Por favor, água poderia salvar minha vida...
Com seu tênis branco mal tocando o chão, Hat-
tie virou-se e abandonou o cômodo. Ellen obser-
vou-a saindo, seu corpo miúdo movendo-se leve-
mente como se anos atrás tivesse tido aulas de dan-
ça. Mas Ellen sabia muito pouco acerca do passado
de Hattie, exceto que ela entrara na vida da mãe há
seis meses, ocupando o cargo de dama de compa-
nhia, uma de longa lista de acompanhantes contra-
tadas pela mãe de Ellen desde que enviuvara dez
anos antes. Você deve ter algo de masoquista, Ellen
pensou, para ser dama de companhia de minha
mãe. Por um momento Ellen cerrou os olhos e,
quando resolveu abri-los, Hattie estava diante dela
com um copo de água gelada.
― Obrigada ― agradeceu, pegou o copo e sor-
veu o líquido.
Hattie, com a boca cerrada, os lábios contraídos,
fixou atentamente os olhos nela. Seu olhar dirigiu-
31
se para baixo, para a barriga de Ellen, onde perma-
neceu. Ellen resplandecia a gravidez. Mas, qual se-
ria a vantagem nisso? Você dificilmente pode enco-
lher a barriga, dificilmente poderá fingir que não
está carregando um bebê na barriga.
― Deve ser terrível com este calor ― Hattie fa-
lou. ― Eu acho que não gostaria de estar grávida
com este tipo de clima. Aliás, não tenho certeza se
gostaria de estar grávida em qualquer tipo de clima
― Hattie completou, emitindo um risinho nervoso.
Ellen surpreendeu-se com o som agudo que a
outra fez. Talvez um casamento malsucedido perdi-
do no passado ― um casamento estéril. Pura espe-
culação, pensou.
― Eu nunca me imaginei com algo crescendo
dentro de mim ― Hattie insistiu.
― Você conseguiria ― respondeu Ellen, ironi-
camente.
― Acredito que sim.
Hattie dirigiu-se distraída para a janela e uma
faixa de sol, um raio de luz teatral, atingiu sua ca-
beça dando a impressão de que seus cabelos casta-
nhos incendiavam-se. Ela virou-se e, então, o fogo
morreu.
― Como vai seu marido?
― Ele está bem ― Ellen assegurou.
― Ele nunca vem nos visitar. Nós nunca o vi-
mos.
Ellen ficou quieta por um momento. Havia um
32
leve tom de lástima na voz de Hattie. É simples, ela
pensou, Eric não vem porque sabe que não é bem-
vindo.
― Este calor miserável ― mudou de assunto
Hattie. ― Se a sua mãe não quisesse estar perto de
você por causa da gravidez, nós ainda estaríamos
em Maine. Eu não gosto daqui. Nem desta casa.
Não sei por que ela não alugou um lugar em vez de
comprar.
― Você conhece minha mãe, Hattie. Toda casa
vazia é um investimento em potencial.
Por que, afinal, tinha a mãe dela migrado? No
início havia o pretexto de “procurando novos inves-
timentos” ― mas, quando o embuste não mais con-
vencera, ela havia declarado que o real interesse era
o bem-estar da filha. Eu não preciso da sua ajuda,
Ellen pensou. Já estou bem grandinha. Tenho 27
anos.
Por que a mãe não conseguia reconhecer o fato?
Muitos pais não podem, isso é tudo ― eles não
conseguem conviver com a realidade do crescimen-
to de seus filhos; talvez aquilo os fizesse lembrar a
sua própria idade.
Um som de passos atrás de Ellen ressoou na ce-
râmica. Ela girou no banquinho onde estava senta-
da. Sua mãe movia-se na entrada, empurrando seu
andador em metal cinza ― como uma pequena gai-
ola ― diante dela.
― Ellen, Ellen, Ellen ― disse sua mãe antes de
33
parar para respirar como que tentando mostrar quão
sofrida era sua vontade de viver.
A linguagem dos mártires, Ellen pensou. A artri-
te nas pernas que exigia o auxílio do andador. Le-
vantando-se do banco, dirigiu-se para beijar sua
mãe. O rosto dela estava frio, a pele tinha a tempe-
ratura de um papel de arroz recentemente tirado da
geladeira. Ela estava, como sempre, imaculadamen-
te maquilada, com as faces levemente coloridas, os
lábios elegantemente róseos, os olhos delicadamen-
te delineados.
― Este calor, querida. Este terrível calor. Dê-
me sua mão, sim?
Ellen carregou a mãe até uma poltrona próxima
à janela. Com um grande esforço, a velha senhora
sentou-se. Ellen observou-a por um tempo, perce-
bendo o fato de que Hattie havia saído da sala si-
lenciosamente. Sua mãe apanhou uma cigarrilha do
bolso do cardigã e a acendeu; aquela era uma das
suas cultivadas excentricidades, como tocar ragtime
no piano, como desafiar o imposto a fazer auditoria
em seus negócios anualmente, como colecionar
exóticas gravuras eróticas japonesas. Eram o tipo
de excentricidades que dependiam de dinheiro e do
senso de perversidade que vem, naturalmente, com
a riqueza.
Ellen perguntou:
― Como você está indo?
― Você pode ver. Algumas coisas não mudam.
34
O andador e eu formamos um casal perfeito, queri-
da. Como você está indo?
― Não tenho do que me queixar, mãe.
― Você não está tentando.
Ellen sorriu e sentou-se no braço da poltrona da
mãe.
― Eu tenho meus altos e baixos. Alguns dias
são ótimos. Outros, péssimos.
A velha senhora segurou a cigarrilha num ângu-
lo que apontava para baixo:
― E como está o Eric?
― Está bom. Ele trabalha duro. Parece que ele
gosta de viver com este sol todo.
― Ele ainda está fazendo a mesma coisa? Con-
seguindo dinheiro para caridade?
― A mesma coisa ― respondeu Ellen.
Silêncio. Ellen olhou para a mãe franzindo as
sobrancelhas: ela sabia que Eric não seria jamais
completamente aceito, que, no senso de ordem da
sua mãe, Eric estava no lado errado de uma estrada
imaginária, que não tinha uma linhagem de sangue
azul para recomendá-lo.
Ela também entendia que seria o mesmo com
qualquer homem que a tivesse esposado ― uma
leve desconfiança, uma frágil, mas nunca mencio-
nada suspeita.
Nenhum homem seria bom o suficiente para mi-
nha filha querida. Ellen suspirou: havia limites
para o maternalismo. Sua mãe os ultrapassara há
35
tempos.
― Vocês ainda se dão bem?
― Claro que sim ― Ellen respondeu vivamen-
te.
A velha senhora apagou a cigarrilha e permane-
ceu em silêncio antes de mudar de assunto:
― Fale-me sobre o seu médico.
― Phelps? Falar o que sobre ele?
― Ele é bom? É competente? Está tratando di-
reitinho de você?
― Ele é ótimo...
― No meu tempo, querida, um médico era o
médico. Não estes especialistas fechados em seus
mundinhos, você sabe. Deus nos livre dos especia-
listas. Eu ainda gostaria de que você tivesse ido até
o homem recomendado por mim...
― Mãe, Phelps é bom. Realmente.
― Ainda acho...
Ellen virou o rosto. Esse protecionismo tão for-
te, ela pensou, eu não serei este tipo de mãe, não
vou interferir na vida do meu filho, não o cercarei
tentando impor meus julgamentos.
― É apenas porque eu me preocupo com você,
querida. Isso é tudo. Você descobrirá, logo, logo,
que mesmo quando nossos filhos crescem não dei-
xamos de ser suas mães. E, em alguns casos, até
fica mais forte este sentimento. O mundo lá fora...
Ela hesitou, ficou em silêncio, deixando os
monstros lá de fora por conta da imaginação de El-
36
len. Lâminas de barbear dentro de maçãs oferecidas
às criancinhas nas festas de Halloween, capas de
chuva abotoadas sobre corpos nus, homens com lá-
bios finos escondendo-se entre arbustos com balas
nas mãos. O mundo daquela mulher estava cheio de
tubarões voadores.
Ellen levantou-se do braço da cadeira e cami-
nhou até a janela. Eu aprovo meu médico, ela pen-
sou. Eu amo meu marido. Eu quero este bebê. Es-
tou fazendo tudo absolutamente bem, mãe. Você
não pode ver?
O bebê ― de repente ela sentiu a tranquilidade
da criança em seu útero, dormindo, descansando,
flutuando na segurança do saco amniótico. E ela
imaginou o rosto dele. Pela primeira vez, Ellen
pôde visualizar o rosto da criança, a delicadeza das
pálpebras, o azul dos olhos, a carne das bochechas
e dos lábios. Ela colocou as palmas das mãos sobre
o umbigo. Por sete meses eu venho carregando
você, meu amor. E eu o adoro desde antes de co-
nhecê-lo.
Ellen virou-se ao ouvir o tap-tap do andador de
sua mãe. A velha senhora movia-se em direção a
uma antiga mesa perto do piano. Abriu uma gaveta,
apanhou um envelope e o estendeu para a filha.
― Estes são os papéis para você assinar, queri-
da.

Ellen pegou o envelope e o abriu. Papéis de ne-


37
gócios, palavrório de homens e mulheres que se
sentam em salas decoradas em mogno, inventando
hieróglifos que só podem ser entendidos por inicia-
dos. Ellen colocou os papéis de volta na mesa e,
sem lê-los, assinou seu nome. Duas vezes por ano
havia esse tipo de coisa a fazer: aquilo era parte do
legado, a ciranda de fundos de renda e suas taxas e
o caos generalizado que seu pai deixara para trás.
Em silêncio, Hattie Dalrymple apareceu no vão
da porta.
― Você fica para o chá, Ellen?
― Não tenho tempo, obrigada.
A mãe de Ellen disse:
― Você corre demais...
― Eu não fico correndo o tempo todo...
― Todo mundo parece apressado hoje em dia,
Ellen. E você não é uma exceção. Obrigada pelos
papéis.
Ellen encolheu os ombros, beijou a mãe e cami-
nhou em direção à porta.
― Volto breve.

Não houve resposta. A velha senhora começou a


tocar ao piano: o ritmo sincopado do ragtime perse-
guiu Ellen até que Hattie abrisse a porta para ela.
O calor a atingiu com a força de um inesperado
ataque do coração. Antes mesmo que Hattie fechas-
se a porta da casa, Ellen já suava. Dirigiu-se até o
local onde seu Opel estava estacionado e teve, por
38
um momento, a impressão de que o carro flutuava
no ar, elevado por uma ilusão de ótica.
A maçaneta da porta estava quente. Ellen preci-
sou envolvê-la com a bainha do vestido antes de
poder tocá-la. Abriu a porta e sentou-se diante do
volante. Um péssimo erro.
O estofamento em couro queimou a parte de
dentro das suas coxas com tanta violência que qua-
se gritou. Numa tentativa de se livrar da agonia,
tentou agarrar o volante para levantar-se, mas en-
controu um ferro em brasa no lugar dele e retirou as
mãos, ofegando. O suor empapou-lhe o rosto, ela
podia até mesmo sentir-lhe o gosto. Afundando a
chave na ignição, ouviu o motor dar a partida; to-
cando de leve a direção, manobrou o carro em dire-
ção à estrada.
Mas parou.
Havia um pequeno carro negro bloqueando a
via de acesso. Estava parado. Em função da clarida-
de, Ellen não conseguia ver o motorista, não podia
garantir que lá havia alguém: o para-brisa parecia
arder em fogo. Ela aguardou. O carro negro não se
mexeu. Permanecia parado e ― qual seria a pala-
vra? Como descrever a sensação?
Ameaçador.
Ela chacoalhou a cabeça. Ameaçador. Somente
porque você raramente vê carros negros nesse lugar
do sol eterno. Eles retêm o calor, Eric havia expli-
cado certa feita. Eles guardam o calor como os ava-
39
rentos guardam dinheiro. Por que essa droga de
coisa não se mexe?
Ela continuou seu trajeto até que mais um metro
a faria bater no outro carro. Mexa-se, mexa-se, des-
graçado.
O carro permanecia parado. Seu escapamento
tremia. Ellen tocou a buzina com força. Mexa-se,
por Deus!
Então ele moveu-se, vagarosamente, arrastando-
se como que carregando um peso terrível. Depois,
deu meia-volta e colocou-se na direção da estrada
seguindo sua própria fumaça, um repentino nevoei-
ro cinzento. Ellen deu marcha à ré em seu Opel e
parou no acostamento. Motorista desgraçado, ela
pensou. Aqui no deserto eles têm os piores motoris-
tas do mundo. Lembrou-se do louco no estaciona-
mento lotado da outra noite. Os piores do mundo.
Ellen engatou a primeira e acelerou.
Enquanto dirigia, olhou para o céu. O sol pare-
cia um olho malvado e solitário que cegava com
sua rudeza. Percebeu então que o que ela desejava
não era um dia de chuva, de frio, ou mesmo uma
manhã fresca. O que ela desejava ardentemente era
um eclipse total daquele sol.
Você a viu novamente hoje. Você a viu e ficou
repleta de algo mais do que simples aversão, algo
negro e insensato, um sentimento profundo e mal
destilado pelo seu coração. Mais do que simples
aversão.
40
Você a viu e pensou...
É um engano. Um erro do coração. Um tipo de
amnésia emocional.
Ele não a ama. Você sabe.
Como é que você sabe? Porque... Porque ele
não poderia amar nunca outra além de você.
Você se senta em seu quarto escuro e olha para
as mãos pousadas em seu colo e ouve o som dos
carros lá fora na noite. Por vezes o som lembra vo-
zes cochichando, que vão aumentando e aumentan-
do até que você deseja que seu cérebro fosse à pro-
va de som.
Mas as vozes vêm e vão. Maldosas, malevolen-
tes, agressivas.
Ele nunca a amou de verdade. Ele apenas teve
piedade de você. Apenas piedade. Tudo começou
errado.
Não, você sabe que não é verdade, você sabe
que ele a ama, ele sempre a amou.
Você esfrega as cicatrizes em seu estômago. Le-
vanta-se da poltrona e abre as cortinas. A noite es-
cura do deserto. Você sorri e as vozes param de lhe
acuar.
Você colocará tudo em seus lugares novamente.
Você colocará nos lugares em que estavam an-
tes.
Meu amor, você pensa. Meu doce amor.

Três
41
8 de julho

Ela estava lendo O livro dos nomes. Era um ne-


gócio complicado escolher o nome certo para o
bebê. Havia o mistério do sexo, por um lado. Você
poderia decidir por Gregory, poderia ficar encanta-
da com
O som deste nome ― e vir uma garota. Ela de-
sejou que a coisa fosse diferente: o bebê poderia
nascer e dizer com seus próprios lábios — mamãe,
eu sou o Tracy!
Do outro lado da sala, Eric estava escondido
atrás de um exemplar de A Gazeta de Phoenix.
― Nós nunca voltaremos para o Leste? ― ela
perguntou.
Eric continuou oculto atrás do jornal.
― Você quer?
― Às vezes. Não quero me acostumar a viver
aqui. Espero. Não quero ficar seduzida por este lu-
gar. E como se eu não pudesse pertencer de verdade
a este chão, você me entende?
Ele colocou seu jornal no chão.
― É frio por lá...
― Sei...
― Você lembra que a gente usava os cartões de
crédito para raspar o gelo no para-brisa? Lembra
como era difícil abrir caminho na neve para sair de
casa pela manhã? E aquele dia que perdemos a cor-
42
respondência num monte de neve?
― Não me lembro de perder nenhuma corres-
pondência ― respondeu Ellen. ― O que eu me
lembro é como eram lindos os verões.
― Eram úmidos e você suava em bicas...
― E os outonos. Os outonos eram realmente
demais...
― Um pequeno intervalo antes dos terrores do
inverno, claro.
Ellen deu de ombros. Fechou os olhos e recor-
dou a época em que fizeram uma viagem de carro
através do estado de New York, no outono, antes de
casarem ― a luxúria sombria do Adirondacks, a in-
crível sequência de cores nas Thousand Islands,
pinceladas cor de ferrugem, amarelo e ouro saídas
da palheta de um artista delirante. Ela se lembrou
do estranho sentimento de tristeza que experimen-
tara por todo o caminho de St. Lawrence até a fron-
teira canadense, como se aquele outono em particu-
lar pudesse iludir ambos ― sua câmera fotográfica
e ela, para depois desaparecer em sua memória.
Noções românticas, ela pensou. Sempre associava
aquelas experiências ao fato de estar apaixonada
por alguém, o curioso e possessivo sentimento de
querer ficar com ele para o resto da vida.
Eric e ela não eram mais uma dupla, um casal,
um par. Ellen agora pensava neles como um trio,
uma família. Expectativas. Tocou seu estômago di-
latado bem de leve e experimentou um momento de
43
tranquilidade, um momento de amar, de amor. Se
ela pudesse ter a capacidade de guardar esta sensa-
ção para sempre enquanto vivesse e só passá-la
como herança, ela o faria.
Uma dor aguda passou através da base da sua
coluna. Ela enfiou os dedos nas alças do sutiã,
afrouxando-as. O bebê, ela pensou ― que terríveis
responsabilidades as de um bebê, e o pequeno dia-
brete no ventre não entende nada, nada sabe sobre
vitaminas, da abstinência do cigarro e do álcool,
dos malditos exercícios de alongamento que devem
ser feitos religiosamente ― como se ela estivesse
se preparando para as olimpíadas das grávidas. O
Alongamento de Pescoço, O Alongamento com
Movimento de Rotação, A Rotação dos Quadris. O
Exercício Kegel. Não se esqueça dos seus Kegel,
Ellen. Eles são importantes para os músculos da
pélvis. A lista dos remédios proibidos ou suspeitos
grudados na porta da geladeira.
Cloromicetina.
Estreptomicina.
Dilantin.
Compazine.
De acordo com o roteiro que Phelps havia lhe
fornecido, algumas drogas podiam gerar um tipo de
icterícia no recém-nascido que causariam danos ce-
rebrais.
Danos cerebrais, Jesus!
Eric sorriu para ela, com uma mão começou a
44
fazer-lhe cafuné nos cabelos e com a outra ligou o
vídeo em outro episódio de Jornada nas estrelas.
Ele tinha uma biblioteca completa dos livros da
série Jornada nas estrelas ― não as edições bara-
tas e infantis, como ele dizia, mas as compilações
referentes à feitura das séries, à filmagem, até mes-
mo os mapas estelares que descreviam as viagens
feitas pela nave Enterprise. Um viajante das estre-
las, ela se deu conta: sou a mulher de um danado de
um viajante das estrelas. Talvez aquilo fosse uma
coisa nostálgica, saudades do passado que o faziam
escravo destas tolices. Talvez ele estivesse procu-
rando por um elo perdido.
Ela deu um impulso, então, tesa, levantou-se.
― Acho que é hora de fazer meus Kegel ― ela
disse.
Ele pareceu não ouvir.
― Estarei no quarto ― ela completou.
Ele observava a tela sem responder.

Os exercícios cansavam-na mais agora do que


habitualmente. Seus braços e pernas doíam, seus
músculos abdominais estavam sensíveis. Quando
terminou, deitou-se na cama e olhou para o teto. O
bebê estava quieto dentro dela. Como ele podia
dormir assim durante a movimentação dos exercí-
cios? As viradas, as mexidas, a tensão muscular?
Pequenina coisinha do contra, ela pensou ― você
agita quando eu estou tentando relaxar, mas nem se
45
move quando sua casa está trepidando.
Ellen virou-se de lado. Suas pálpebras estavam
pesadas, tremendo, fazendo pressão contra os
olhos. Visualizou no fundo do corredor a cristaleira
de vidro com sua coleção de bonecas antigas, seus
rostos de uma opacidade frígida, como se estives-
sem para todo o sempre examinando os limites de
seus mundos em miniatura. Elas tinham, esculpi-
dos, rostos suaves, boquinhas perfeitas, delicados
cílios, vestiam roupas vitorianas bordadas. Inocen-
tes, ela pensou, com expressões de tão terrível sere-
nidade em seus lábios de porcelana. Ela não gosta-
va das bonecas porque sugeriam criaturas embalsa-
madas vivendo vidas inventadas por algum taxider-
mista num acesso de fúria. Mas elas tinham sido
um presente da mãe, que as tinha herdado de sua
avó. Herança, Ellen ― mais do que herança, que-
rida, elas são um investimento; o simples fato de fi-
carem aí paradas já as está valorizando. Algum
dia, Ellen pensou, venderei toda esta corja.

Quando acordou algumas horas mais tarde, a


luz do abajur sobre a mesa de cabeceira estava apa-
gada e Eric adormecido ao seu lado. Ele roncava
suavemente, os lábios entreabertos. Ellen apoiou-se
em um cotovelo e observou o marido. Paz no re-
pouso.
Uma luz brilhava na sala de estar e Ellen diri-
giu-se lentamente para lá. Estranho ― Eric deixara
46
a tevê ligada. Era algo que ele nunca fizera.
Antes de desligar o aparelho, fixou o olhar por
um momento na tela sem imagens. Sentada no sofá,
olhou ao redor e aquilo aconteceu ― uma sensa-
ção, uma vaga identificação que algo não estava
certo, algo estava fora do lugar. Mas, o quê? Era
mais uma intuição do que algo concreto, como se
tivesse entrado na sala no exato momento em que
alguém de lá saíra, percebendo algum vestígio do
estranho ausente, o invasor. Ellen parou, andou por
todo o cômodo. Nada. A mobília não tinha sido me-
xida. As mesmas pinturas ainda pendiam cm seus
pregos nas paredes. Os livros nas prateleiras esta-
vam em ordem, tocou de leve a lombada de dois
deles, sentindo uma poeira fina aderir em seus de-
dos. Os primeiros nove meses de vida. Dieta para
um pequeno planeta. O mundo da Jornada nas es-
trelas. O que estava errado? O que era aquilo que
ela sentira?
Suando, dirigiu-se à varanda. Pegara no sono
com as roupas de ginástica ― calça e blusa largas,
que agora colavam contra a pele. Lá fora, o céu es-
tava como sempre, vasto e estrelado. Aquilo a dei-
xava estonteada, pequena. Amparando-se na grade
da varanda, olhou para baixo, para o estacionamen-
to. Silêncio.
Então, de repente, ela entendeu. E desejou rir de
si mesma, desejou rir da sensação que tivera lá den-
tro, a sensação de algo estar fora do lugar. As rou-
47
pas lavadas, nada além do que roupas lavadas; ela
esquecera de tirá-las da secadora na lavanderia
onde as colocara após o jantar ― nada de sinistro,
nada fora tocado ou removido por uma mão invisí-
vel. Nem duendes nem sombras, apenas uma falha
em seus arquivos de memória. Talvez seu cérebro,
como o restante do corpo, esteja fugindo do contro-
le, criança. Camisas amassadas. Nada mais que um
inconveniente doméstico.
Ellen saiu do apartamento e desceu as escadas
em direção à lavanderia comunitária. O pátio da
Casa Manzanita era arborizado, rodeado pelos qua-
tro prédios do condomínio. No centro havia uma
fonte, iluminada por uma luz azul muito brilhante.
Apanhou sua chave no bolso da calça e abriu a por-
ta da lavanderia. O lugar era branco, cintilante e in-
toleravelmente quente, mesmo nesta hora da noite.
Por que não instalavam um ar-condicionado neste
lugar?
Ela encontrou a secadora intacta e retirou suas
roupas ― principalmente as camisas de Eric, uma
das quais ele estaria, com certeza, procurando na
manhã seguinte. Ellen dobrou-as com cuidado sob
a luz fosforescente que iluminava o local e já esta-
va saindo quando uma garota beirando os 18 anos
entrou. A jovem, sacudindo seus cabelos loiros num
gesto quase arrogante para aquele lugar informal,
correspondeu ao sorriso de Ellen e colocou sua ces-
ta sobre a mesa.
48
― Eu gosto deste horário noturno para cuidar
das roupas ― ela disse. ― É quieto e você não en-
tra em disputas como acontece quando este lugar
está cheio.
Que dentes brancos, Ellen pensou.
Dentes brancos engastados em gengivas rosadas
e brilhantes. Pernas perfeitas, coxas emolduradas
por um short branco e apertado. Um bustiê cor-de-
rosa, seios fartos. Cabelos loiros curtinhos cintilan-
do sobre os braços nus. Um esplêndido espécime
do deserto. Ellen afastou seu rosto daquela visão,
daquele corpo elegante.
Polidamente, ela falou:
― Eu nunca a vi antes nesta hora da noite por
aqui.
Meu Deus, eu invejo esta garota. Invejo este
corpo delgado.
― Você vai gostar ― continuou a jovem, sor-
rindo, com os olhos fixos em Ellen.
Ela percebeu que os olhos da garota estavam
vermelhos ― o vermelho dos dopados. O mundo
da maconha, dos mascadores notívagos, divertindo-
se nas lavanderias vazias. O máximo...
― E para quando é? ― perguntou, olhando
para o estômago de Ellen.
Um olhar crítico, desaprovador, ou o quê? Ellen
queria saber.
― Setembro ― ela respondeu.
― Uau, que demais! ― a menina vibrou. ― Eu
49
gostaria de ter bebês um dia, sabe? Só que o casa-
mento é um porre.
Ellen não respondeu nada. Olhou para a pilha
de camisas de Eric.
― Eu acho que funciona para certas pessoas ―
a jovem completou.
― Claro.
A garota sorriu ― havia algo de condescenden-
te naquela expressão. Ela voltou à carga:
― Meu nome é Anna Rosenberg. Sei que isso
soa a judeu. Sempre as pessoas acham engraçado,
você sabe, se elas só tiveram a oportunidade de fa-
lar comigo ao telefone ― e sabendo meu nome, e
depois me conhecem pessoalmente. E inevitável.
Você não parece judia, com este cabelo e estes
olhos azuis. É engraçado. As pessoas chegam às
conclusões mais estranhas, não é?
― Eu acho que sim ― respondeu.
― Qual é o seu nome?
― Ellen.
― Bonito nome. Soa tranquilo.
― Obrigada.
― Eu me interesso por nomes. Gosto de imagi-
nar as pessoas a partir dos seus nomes. Qual é seu
sobrenome?
― Campbell.
A jovem ficou em silêncio por um momento.
Do bolso do short, retirou uma barra de chocolate e
desembrulhou-a. Enfiou uma ponta na boca e co-
50
meçou a chupá-la. Ellen pensou: ela está brincando
com o chocolate, está tendo uma relaçãozinha oral
com ele.
Anna Rosenberg tirou o chocolate da boca e o
contemplou com atenção.
― Diga, seu marido é um tipão bem gato que
dirige um Datsun vermelho? Ele tem cabelos pre-
tos?
― Ele dirige um Datsun vermelho ― respon-
deu Ellen.
O que esta mocinha estava pensando sobre
Eric?
― Eu já o vi por aí. Tenho certeza de que já.
― Acredito que sim.
Indiferença, um pequeno toque de frieza, será
que ela conseguiria manter em sua voz?
― Qual é o nome dele?
― Nome dele? ― Ellen, que estava juntando as
camisas, perguntou virando-se para a garota. Por
que eu não consigo simplesmente sair e dizer: Pre-
ocupe-se com os seus próprios infames problemas!
Educada demais, suave demais, bem-nascida de-
mais.
― Oh, sim, o nome dele. Se você não se impor-
ta em dizê-lo.
― Eric ― Ellen respondeu.
― Er-ic ― repetiu Anna Rosenberg, como se o
som estivesse partindo uma bala em sua boca.
Ellen apanhou as camisas e dirigiu-se para a
51
porta. Odiou-se. Que vacilo era aquele, entregar de
bandeja para uma linda jovenzinha que o achava
um gato? Na saída ela virou-se. Anna Rosenberg
estava chupando sua barra de chocolate novamente,
observando Ellen com os olhos vidrados.
― Ele é bem gatinho ― a garota insistiu.
― Estou feliz que você pense assim.
O gelo, mantenha a frieza em sua voz, Ellen.
― Eu sempre imagino que, se casar um dia, não
vai ser com alguém muito bonito. Eu não gostaria
de que outras mulheres tentassem colocar as mãos
nele.
Ellen não sabia o que responder. Olhou para a
garota e desejou saber se havia um toque de mole-
cagem, uma insinuação maliciosa naquilo que a jo-
vem estava dizendo. Você está gorda e grávida, El-
len, e talvez não esteja excitante para seu marido;
portanto, abra os olhos ― será que ela estava que-
rendo dizer algo parecido com isso?
― Eu realmente não presto atenção na aparên-
cia dele ― Ellen observou por fim. ― Eu vejo algo
além disso nele.
Ela não pretendia que aquelas palavras soassem
pomposas, pretensiosas, mas ficou com medo que
isso tivesse acontecido.
A garota parou de chupar seu chocolate por um
momento.
― Talvez a gente se encontre de novo, Ellen.
― É um mundo pequeno ― Ellen respondeu. E
52
retirou-se, virando em direção ao seu bloco. Deu-se
conta, então, de que estava caminhando muito rapi-
damente, o peso do bebê fazendo com que ela se
arrastasse. Precisou parar próximo à fonte para res-
pirar um pouco. Pensou: Meu Deus, você está com
ciúmes. Você está simplesmente com ciúmes. Você
está roliça, deformada e deselegante nestes últimos
meses de gravidez e permite que uma drogadinha
mimada do deserto lhe toque, lhe assuste com uma
réplica da loirosa de olhos verdes.
Sua idiota, você permitiu que ela lhe fizesse
sentir ciúmes.
Ciúmes. Foi sobre este assunto que a enfermeira
de Phelps, Grabowski, disse uma vez: Você se sente
mais gorda do que parece, Ellen. Você se sente
mais pesada do que realmente está. E você acha
que seu marido está olhando para cada coisinha
magra que aparece na frente dele. Um dos piores
efeitos da gestação é a insegurança.
De jeito nenhum, ela pensou. Eu não ficarei in-
segura. De jeito nenhum.
Ofegante, ela subiu as escadas. Dentro do apar-
tamento, trancou a porta. Entrou na sala de estar,
jogou a camiseta no tapete. Mais dois meses ―
como podiam dois pequenos meses trazer esta des-
confortável sensação de eternidade?
Na cama, Eric estava ainda adormecido, na
mesma posição anterior. Ela tirou o restante das
roupas e deitou-se lentamente na cama, ao lado
53
dele. Ciúmes, ela pensou: que saco! Que coisa cha-
ta! Eric é leal. Eric não estaria interessado em outra
mulher, e certamente não em uma criança como a
senhorita Rosenberg. Ele não tinha falado uma vez
uma frase que você jamais esquecera, que a confi-
ança é a única fórmula verdadeira para um relacio-
namento? Eu não minto, Ellen. Os mentirosos pre-
cisam ter memória de computador. Eu nunca menti-
rei para você.
Ela colocou os braços ao redor dos ombros dele.
Eu amo você, ela pensou.
Amo você.

Quatro

11 de julho

Vicky disse:
― A única coisa que eu realmente detesto quan-
do venho lhe visitar neste apartamento é o jeito
com que você sempre olha através deste olho mági-
co antes de abrir a bendita porta. Faz-me sentir um
peixe no aquário ou algo parecido.
Ellen, sorrindo, fechou a porta depois da amiga
entrar.
― Eric instalou a coisa, você sabe. Para minha
própria segurança, ele disse.
Vicky entrou pelo corredor, retirando seu cha-
péu azul de brim e balançando seus longos cabelos,
54
dirigindo-se para a sala de estar.
Que passos largos, Ellen pensou. Sempre com
pressa. Com que diabos ela espera que a siga?
― Segurança é uma ilusão, menina ― ironizou
Vicky.
Ela já estava sentada no sofá. Da bolsa, apanhou
um cigarro e colocou-o numa pequena piteira desti-
nada a diminuir o teor da nicotina.
― Diga-me, o que está a salvo num mundo
como o nosso? Você sabia que ninguém está real-
mente a salvo?
― Esta é uma questão teórica ou você quer que
eu responda? ― Ellen perguntou.
Vicky deu uma tragada rápida, vigorosa.
― Desculpe-me. Estou mal-humorada esta ma-
nhã. Recebi uma carta do meu ex-marido, Stan, na
qual ele, polidamente, informa que deseja ficar com
a nossa filha por duas semanas além do legalmente
estabelecido para este período. Eu adoraria saber
por que diabos nós precisamos ter passado por uma
longa batalha na justiça juntos, quando ele resolve
por conta própria estender os períodos. Eu deveria
processar aquele cuzão gordo.
Ellen sentou-se em frente a Vicky. As chegadas
da amiga eram sempre acompanhadas por alguma
explosão de energia, um turbilhão de palavras, um
brilho de turquesa, um fulgor de raio, uma névoa de
fumaça de tabaco. Às vezes Vicky dava a impres-
são de que estava a ponto de explodir em alguma
55
dimensão desconhecida, dragando você com ela.
Possuía o rosto bonito, queixo quadrado, as maçãs
do rosto altas e dominadoras. Seus cabelos negros
pendiam espessos sobre os ombros, e sua camisa
branca, seus jeans azuis eram feitos sob medida,
bem justos.
― Ele tem saudades da filha ― argumentou El-
len.
― Eu tenho saudades dela também ― respon-
deu Vicky. ― Basicamente, eu não aprovo a nova
mulher de Stan, aquela hippie. Não gosto do tipo
― tem a idade mental de oito anos e acha que é
uma das mais maravilhosas mães da face da Terra,
cujo destino é seguir tendo filhotes e viver numa
montanha de farinha láctea.
Ellen deu de ombros. Imaginou ter detectado
uma ponta de ciúmes na voz de Vicky.
― Você não deveria deixar esta história afetá-la
dessa maneira.
― Eu sinto saudades de Kim. Quero minha fi-
lha comigo de volta. Não gosto de sabê-la viajando
por alguma comunidade hippie ou onde quer que
Stan viva. Mas chega de falar de mim. Como está
você? Como está o bebê?
― Continuando na luta.
― Esperando o grande dia, certo?
― Esperando. Temendo.
― Não há nada o que temer. Pode confiar. Uma
garota de boa saúde como você, com estes hábitos
56
alimentares de New England ― você passará por
isso com sucesso. Acredite em mim.
Ellen sorriu:
― Espero que sim.
Vicky acendeu outro cigarro.
― E como está o Eric?
― Está bem. Acho que ele gosta do calor ―
respondeu Ellen.
Vicky silenciou. Olhou para Ellen, dando a im-
pressão de estar a ponto de fazer outra pergunta so-
bre Eric, mas não a fez.
― O bom dr. Phelps está cuidando bem de
você? ― ela perguntou ao invés disso.
― Ele é um pouco antiquado, mas eu gosto
dele.
― Antiquado? Ah, eu sei. Ele me mandou um
panfleto sobre sexo para futuros pais.
― Eu também recebi.
Vicky riu com vontade.
― E aquele que sugere que você pratique sexo
oral depois de proteger sua boca com o diafragma?
Ellen sorriu:
― Quase isso. Vou fazer um café. Quer?
― Claro. Vou fazer-lhe companhia na cozinha.
Posso dar uma força?
― Obrigada. Eu preciso sim.
Ellen ligou a máquina de fazer café e Vicky a
seguiu, arrastando uma linha de fumaça de cigarro.
A primeira perguntou:
57
― Como vão os negócios?
― Os tempos estão difíceis ― respondeu
Vicky. ― Ainda estou penando o fato de você e seu
marido não terem comprado aquela casa tão conve-
niente comigo. Um bom preço, uma localização tão
elegante. Acabou comigo quando um dos meus
concorrentes entrou no meio do negócio e vendeu
para vocês este apartamento bem embaixo do meu
nariz.
Vicky silenciou. Depois disse:
― De qualquer maneira, o que sobre de bom
pesa mais do que estas coisas. Nós somos amigos,
apesar disso. Num mundo como esse, com que se
pode contar senão com uns poucos amigos?
Ela estendeu os braços e impulsivamente deu
um abraço rápido em Ellen. Quando retrocedeu,
braços ao largo, ela sorria ― e Ellen desejou muito
saber por que sentira um leve constrangimento pelo
abraço. Um pouco daquela dureza de New England
na alma, talvez. Alguns traços da frieza ianque no
sangue novamente. Ela observava a água fervente
pingando do filtro de café. Uns poucos amigos no
fim das contas, ela pensou: Vicky era a melhor, tal-
vez a única amiga cm todo o Arizona. Dobrou os
braços sob os seios, sentindo seu tamanho e peso.
Vicky estava bisbilhotando na cozinha, os saltos
das botas de caubói faziam uma barulheira danada
no ladrilho.
― Pois bem. Fale-me sobre sua vida social atu-
58
al ― perguntou Ellen.
― Engraçado você perguntar. Tenho saído com
um cara que vende equipamentos para musculação.
Ele tem tanto bíceps, quanto a Dolly Parton tem
seios.
Ellen olhou para a amiga. Havia toda uma histó-
ria de infelicidade em torno dela: desde o divórcio,
Vicky embarcara em sucessivos relacionamentos
banais com homens casados. Eric havia dito uma
vez que era óbvio que ela procurasse homens casa-
dos, porque, na verdade, não desejava manter ne-
nhuma ligação séria.
Ligações ― isto faz a pessoa parecer um aspira-
dor de pó.
― Não posso chutar um homem porque ele é
casado, não é?
Ellen começou a colocar café nas xícaras.
― Às vezes eu adoraria saber ― não encare
isso como uma crítica. Por que esse interesse por
homens casados, Vicky? Os relacionamentos pare-
cem ir a lugar nenhum...
Vicky jogou a ponta do cigarro na trituradora de
lixo, deixou correr um pouco de água e depois li-
gou o aparelho: um barulho de lâminas girando foi
ouvido por instantes.
― Estou detectando um leve tom de desaprova-
ção em sua voz, Ellen?
A outra balançou a cabeça:
― Claro que não. Não sou juiz, que droga! É
59
apenas que estas coisas que você arranja nunca pa-
recem levar a nada. Eu acho que você merece mais.
Homens casados, ela pensou. O mundo dos ho-
mens casados. E voltou seus pensamentos para
Eric: O que você faria se descobrisse que Eric esta-
va tendo um caso? Se você descobrisse que ele tem
alguém, como está acontecendo com a Vicky? Ela
gostava de imaginar seu altruísmo em entender e
perdoar, ela apreciava a idéia de ser generosa ―
mas havia outro lado que ela nunca visualizava: o
ciúme, o choque da inveja, a dor, a reconstrução vi-
sual de uma cena ― Eric fazendo amor com outra
mulher. (Anna Rosenberg. Por que aquela criança
cabeça-oca aparece sempre para irritá-la? Por que
não consegue ter controle sobre a própria mente?)
― A verdadeira razão de eu vir aqui ― Vicky
disse ― foi apanhá-la para almoçarmos. Mesmo
que eu tenha que arrastá-la daqui.
― Arrastar-me? Você não precisa fazer isso.
Apenas dê-me uns minutos para trocar de roupa.
Ellen entrou no quarto, abriu a porta do armário
e parou melancólica olhando para os vestidos e cal-
ças que não mais usava, pendurados juntos num
canto, como se tivessem sido rejeitados ― gulosei-
mas colocadas diante de alguém em dieta de ema-
grecimento, fora do alcance. As roupas de grávida
eram sem graça e deselegantes. Ela retirou a bata
azul que vestira no jantar com Eric, depois a devol-
veu. Vou guardá-la para outra celebração, ela pen-
60
sou, e decidiu-se por um vestido vinho que odiava.
Saindo da sua própria reflexão, escovou rapida-
mente os cabelos e enfiou suas sandálias abertas.
Ok, ela disse para si mesma, tempo de enfrentar o
calor do Arizona.
Na sala de estar Vicky esperava em pé ao lado
das estantes, folheando as páginas do livro Jornada
nas estrelas de Eric.
― Estou pronta ― Ellen falou.
― Vou usar seu banheiro antes de irmos ―
Vicky disse.
Ellen observou sua amiga movendo-se pelo cor-
redor na direção do quarto. Ouviu o som da porta
fechando, seguido pelo ribombo de água correndo,
a descarga. E então ― então houve um grande si-
lêncio. Ellen esperou impacientemente batendo os
pés no tapete. O que estaca detendo Vicky? Quanto
tempo seria possível gastar-se no banheiro? Ela foi
até o quarto justamente quando Vicky saía.
― Aquelas bonecas devem valer uma fortuna
― Vicky perguntou. ― Eu estava olhando para
elas, devem ser antigas.
― Você está interessada em comprá-las? ― El-
len perguntou.
― Comprar bonecas, eu? Ninguém nunca expli-
cou para você? Garotas grandes não brincam com
bonecas.

Vicky dirigia com uma dose de insanidade cal-


61
culada, costurando no trânsito como se os outros
carros fossem simplesmente inconveniências me-
tálicas, sem o direito de estarem na mesma rua que
ela. Algumas vezes, Ellen quase chegou ao ponto
de se inclinar e tomar a direção ― este comporta-
mento pareceu não ser percebido por Vicky. Quan-
do elas chegaram ao restaurante, Vicky manobrou o
Mustang alucinadamente no estacionamento, coli-
dindo com o demarcador de vagas. Ellen sentiu o
bebê pular dentro dela, um rápido lampejo de dor, a
imagem do feto acomodando-se no saco amniótico
como lenha sendo carregada por uma forte corrente
de água. Ela gemeu quando Vicky terminou de es-
tacionar o carro.
― Perdão, menina. Eu esqueci quem estava no
banco ao lado, está tudo ok?
― Tudo bem ― respondeu Ellen. Mesmo sem
olhar-se num espelho ela sabia estar branca.
― Eu tenho este estranho desejo de dar à luz na
segurança de um hospital. Eu gosto do seu Mus-
tang, mas não o vejo como um quarto de materni-
dade adequado, certo?
Vicky colocou as costas da mão teatralmente na
testa.
― Eu sou uma desajeitada às vezes. Perdoe-me.
― Você está perdoada.
Ellen começou a caminhar debaixo do forte ca-
lor do estacionamento. Poucos segundos depois
pôde sentir o asfalto quente penetrando através das
62
solas de suas sandálias. Ela correu até a sombra
proporcionada pelo prédio do restaurante o mais
rápido possível. Vicky vinha correndo atrás. Logo
estavam dentro de uma sala grande e fresca, cheia
de plantas; através das janelas em finos vitrais o sol
ficava misericordiosamente ofuscado e difuso, o
calor e o brilho roubados pelas vidraças coloridas.
Ellen analisou o cardápio. Seu antigo apetite ti-
nha sumido. Quando a comida chegou, ela mal a
tocou ― estranho, ou era essa inapetência ou a
vontade de comer por dois —, passando a maior
parte do tempo olhando Vicky devorar seu hambúr-
guer com fritas. Ela comia do mesmo jeito que diri-
gia, com uma displicência surpreendente.
Mais tarde, após o término do almoço, tomando
um café, Vicky acendeu um cigarro e perguntou:
― Sem fome?
― Apenas não estou com vontade de comer
muito estes dias.
― Fiquei assim também quando estava grávida
de Kim. Aliás, outros apetites foram embora mais
cedo. Como a vontade de dormir com Stan.
Ellen olhou fixamente para o café. Não tinha
certeza de querer ouvir os detalhes íntimos da vida
de Vicky, mas a outra, no entanto, parecia gostar de
contá-los. Ellen levantou a xícara e tomou-a num
só gole, enquanto Vicky continuava:
― Durante o último estágio da minha gravidez,
Stan colocou na cabeça que iria me trair. E teve a
63
decência perversa, Deus tenha pena dele, de me
contar tudo quando eu ainda estava na primeira se-
mana do resguardo. Nada foi o mesmo depois dis-
so. Ellen deu uma olhada para a amiga por sobre a
borda da xícara.
Um nervo estava teso dentro dela. Não, ela pen-
sou. Você não tem que ir nessa direção.
Eric.
Eric não o faria. Eric nunca faria uma coisa des-
sas. Se você não depositar crédito e confiança, você
não obterá o que pretende. O casamento estava in-
tacto. Havia amor. Nada estava em vias de se per-
der para fora dos limites. Nada.
― Que inferno! ― exclamou Vicky. Para ser re-
alista e verdadeira comigo mesma, eu acho que an-
tes até do bebê nós já estávamos no fim da linha
um com o outro.
Ellen não disse nada. Confissões. Despindo a
alma. Por que ela sempre sentia o mesmo padeci-
mento incômodo quando Vicky confidenciava os
fatos da sua vida? Ela se apanhou na defensiva e,
quase contra sua vontade, disse:
― Nosso casamento é bom, nós nos amamos.
Pretensão ― havia um tom pretensioso em sua
voz? Ela esperava que não.
― Então vocês têm sorte ― Vicky retrucou,
mexendo com o filtro do cigarro. Depois de chamar
o garçom para pedir a conta, completou:
― Vocês têm realmente sorte.
64
Sorte, Ellen pensou. Ela sentiu-se corar, uma
sensação de calor subiu às faces. Não foi uma sen-
sação ruim ― e, diante do desconforto que sentiu
depois, devido ao ângulo peculiar que o bebê assu-
miu em seu ventre, foi uma coisa de nada. Sorte-
sortesorte. Mais do que isso, muito mais. Ela em-
purrou sua cadeira, preparando-se para sair.
Vicky perguntou:
― Tem uma coisa que eu gostaria de saber...
― O quê?
― Você teve aulas de como corar naquelas chi-
quérrimas escolas particulares lá no Leste? Ou é
natural de você?
Ellen fez uma bola com seu guardanapo de pa-
pel e atirou com delicadeza na direção de Vicky.
Sua amiga desviou-se, o míssil quase atingiu o
garçom que se aproximava.
― Da próxima vez ― brincou Ellen. ― Eu
pego você da próxima vez.
― Você vai ter que melhorar muito para fazer
isso ― Vicky sorriu.

Você vai até a janela, abre as cortinas, penetra


no escuro da quase noite. O sol deixou um singular
raio rosa-avermelhado bem leve no céu. Você ob-
serva o fenômeno, até que ele desaparece, e a es-
curidão é total. A tesoura brilha em sua mão. Afia-
da e brilhante.
Você queria saber agora se o zelador a viu, se
65
ele sentiu que você o estava vigiando quando ele
deixou o escritório e atravessou o pátio, chegando
até a fonte. Se ele viu, pelo canto do olho, sua som-
bra movendo-se em direção à porta aberta do pe-
queno escritório. Se ele percebeu a chave perdida.
O que ele pensaria se tivesse percebido? Nada. Ele
imaginaria tê-la perdido, tê-la colocado em outro
lugar. Você sabe que não tem que se preocupar
com isso. Você sabe.
Você não tem que se preocupar com nada, a
não ser esperar.
Esperar pelo momento certo. Pela oportunida-
de.
Você fecha seus olhos. Sua testa toca o vidro
quente da janela. O calor aprisionado no painel.
Você fecha os olhos e sonha que vê o rosto dele,
você o imagina abrindo a porta, entrando neste
quarto, seu quarto, atravessando em direção a
você, envolvendo-a com os braços e a beijando.
Você imagina tudo isso neste único, maravilhoso e
doce momento.
E você pensa: logo, logo, logo, meu amor.
Meu amor.
Meu Eric.
Você gira a tesoura em sua mão.

Cinco

12 de julho
66
Ele estava atrasado. Aquilo não era do seu feitio
― quando ele sabia que demoraria mais um pouco
no trabalho, sempre ligava —, mas esta noite o te-
lefone estava silencioso. Ela começou a preparar
um dos pratos prediletos de Eric e, mesmo que sua
atenção não estivesse ali, mesmo que a idéia de co-
mer tal coisa a horrorizasse, não obstante todas es-
tas razões, gastou um tempo considerável batendo
as costeletas de vitela com a parte côncava da co-
lher de pau e colocando-as numa mistura de molho
de soja e alho. No momento, as costeletas estavam
no forno, sendo viradas constantemente, dourando
― como num processo de alquimia ― passando de
algo que um cachorro rejeitaria para algo comestí-
vel.
Onde diabos estava ele? E por que não ligava?
Ela sentou-se na sala e fixou os olhos nas luzes
tremulantes das duas velas que acendera na mesa
preparada para o jantar. Cera derretida. Pingos es-
corriam, endurecendo no linho da toalha. Sua impa-
ciência pouco a pouco tornou-se preocupação. O
que ela visualizava era uma cinzenta foto de jornal
com um automóvel destruído na estrada ― bom-
beiros tossindo em meio às ferragens retorcidas da-
quilo que até recentemente fora um carro, as luzes
dos carros de polícia iluminando o acidente, como
avisos luminosos refletindo no chão. Ellen cami-
nhava de um lado para outro, indo e voltando até a
67
varanda, procurando um sinal do Datsun. Nada.
Começou a sentir cansaço, uma fadiga nervosa, e
sentou-se mais uma vez no sofá, tentando encontrar
uma posição na qual ficasse um pouco mais confor-
tável. Pensar a pior coisa primeiro, ela lucubrou.
Imagine que ele está morto num carro acidentado.
Alguém teria telefonado para contar. Um tira teria
chamado, certo? Talvez. Desculpe-me senhora
Campbell, como a senhora está se sentindo por ter
enviuvado? Meu Deus. Como ela podia ficar o tem-
po todo alimentando esse tipo de besteira na cabe-
ça? Más notícias caminham depressa, não se esque-
ça. Muito bem, se não ocorreu um acidente, então
tinha a ver com o trabalho. Uma volta de emergên-
cia ao escritório. Talvez. O que poderia fazê-lo vol-
tar? Uma reunião extraordinária do conselho? A
chegada repentina de auditores que encontraram
algo duvidoso nos livros-caixa?
Um gosto ruim subiu através da garganta de El-
len. Nenhum acidente. Uma emergência no escritó-
rio. Difícil. O quê, então? O quê?
Sem nenhuma razão aparente, apanhou-se lem-
brando quando ele pediu sua mão em casamento.
Neve, vento gelado e queda de temperatura, o sel-
vagem Atlântico descarregando sua fúria através de
uma tempestade por toda a costa de New England.
Eles bebiam vinho num restaurante quando Eric,
subitamente, inclinou seu copo para a frente ―
quase derramando a bebida, ela recordou, fazendo
68
com que o mesmo girasse a ponto de derrubá-lo ―
e colocou A Questão diante dela.
Nós realmente não nos conhecemos, Eric...
O que mais nós precisamos saber? Nós somos
bons um para o outro. Somos bons juntos. O que
mais precisamos saber? Eu amo você. Você não me
ama?
Ela lembrou como ficara olhando para o copo
de vinho, sentindo uma estranha vertigem, removi-
da do espaço físico do restaurante. Recordou como
ficara olhando para a janela, a neve grudada no vi-
dro. Na sua cabeça, a coisa aconteceria num pro-
cesso mais longo, algo menos espontâneo, um na-
moro mais duradouro, o tradicional casamento che-
gando depois de um período adequado de tempo.
Tradicional, período adequado, um namoro dura-
douro. O que ela estava pensando? Aquelas eram
palavras e termos que sua mãe usaria. Era como se
tivesse sido involuntariamente mergulhada na ma-
neira de olhar a vida de sua mãe. Reflexos condici-
onados, comportamento adquirido. Eu não estou
desposando minha mãe, ela pensara.
Eu amo você, Eric.
Eu ouço sobre um lugar.
Eu não estarei lá para ser uma...
Houve então uma pausa, um corte na conversa.
Ela tinha um trabalho interessante numa companhia
de seguros em Bangos. Seu próprio apartamento.
Um carro novo. Como se ela tivesse que dar impor-
69
tância para essas coisas, as coisas que possuía,
como defesas contra a dependência, maneiras de
escapar do castelo da mamãe. O que aconteceria se
aceitasse Eric, se baixasse a guarda?
Amor. A força do amor. Uma coisa intocável
como o vento, imprevisível como o olho de um fu-
racão. Foi amor que ela pôde recuperar enquanto
houve a pausa. Amor definido, com suas linhas de-
lineadas, com forma e substância. Ela preencheu os
espaços brancos.
Ellen esticou-se por cima da mesa e segurou as
mãos de Eric. Sussurrou então aquilo que ele dese-
java ouvir. Neve, vinho tinto, o pedido, o consenti-
mento: sob o som da lenha queimando na lareira, os
detalhes pareciam ter sido plagiados de um antigo
filme romântico. Sim, ela respondeu ― e por algu-
ma estranha razão, principiou a rir, riu até seus
olhos umedecerem.
Ellen foi até o banheiro e olhou-se no espelho.
Você está rindo porque se sente ótima. Por que se
sente tão terrivelmente ótima. Porque neste instante
único, com o som desta palavra única; você está
exultante diante de como conseguiu superar os li-
mites impostos às emoções através da educação.
Você está realmente livre, livre e solta.
Depois disso, Eric viajou por três dias para visi-
tar seus pais, para informá-los sobre o casamento.
Aqueles dias foram preenchidos com o mais agudo
vazio que jamais sentira. Ele não telefonou. Não es-
70
creveu. Ela ficara em seu apartamento esperando o
telefone tocar. Quando ele voltou, não falou muito
sobre a visita. Ela, por sua vez, não fizera muitas
perguntas ― simplesmente intuiu que, por algum
motivo, eles não teriam ficado felizes com a esco-
lha. Talvez tenha sido uma surpresa muito grande
para eles, talvez nutrissem outras ambições. Como
poderia saber? Não os conhecia, jamais vira nenhu-
ma fotografia, e Eric não falava sobre eles. E como
se estivessem esquecidos em algum canto obscuro
da vida dele e ela não interferia. Igualmente, por
seus próprios motivos mesquinhos, sua mãe não
comparecera ao casamento.
Agora, ao pensar no passado, a solidão do apar-
tamento a assustava. Ela observava em volta os ob-
jetos familiares ― os quadros nas paredes, a estúpi-
da coruja tecida em macramé, a televisão, o caro
aparelho de som de Eric ― e acabou por perceber
que eles haviam perdido muito de sua familiarida-
de, tinham se tornado objetos estranhos a ela. Estas
coisas não significam nada quando ele não está
aqui, Ellen pensou. Estas coisas perderam seu sig-
nificado, pensou ela esfregando as mãos nervosa-
mente. Sua aliança de casamento parecia sem senti-
do. Até mesmo o bebê em sua barriga não parecia
fazer parte dela.
Quando apagou as velas, o cheiro de cera derre-
tida penetrou em suas narinas. Olhou para a salada,
intacta na travessa. Onde diabos ele estava? (Mor-
71
to? Ele não pode estar morto. Eric não pode.) Apa-
nhou uma folhinha de alface murcha e soltou-a
dentro da salada novamente. O bebê moveu-se. Ele
parecia estar virando em volta de si mesmo lá den-
tro, enrolando-se no cordão umbilical: ela imaginou
um astronauta flutuando no espaço, ligado à cáp-
sula-mãe por uma corda salva-vidas bem tênue.
Não agora, ela pensou. Não comece a bagunçar
agora. Dirigiu-se ao quarto e de lá ao banheiro.
Embora Phelps a tivesse prevenido contra aquilo,
ela apanhou o vidro de Valium e engoliu um com-
primido a seco. Relaxe. Tente relaxar. Existe algu-
ma boa razão para a ausência dele.
Ela voltou à sala de estar.
Pânico. Era estranho como vinha devagar, como
começava por um caminho tão estreito e então, fei-
to um balão sendo enchido com gás hélio, crescia e
crescia. Pânico ― sempre ardiloso, sempre domi-
nador. Ela fechou os olhos e esperou pela ação do
Valium. Havia uma dor aguda pressionando seu
peito, uma sensação desagradável que lembrava in-
digestão. Se eu conseguisse dormir, ela pensou. Se
eu pudesse dormir até que ele volte.
Isso é bobagem. E realmente absurdo. Você tem
que se acalmar. O homem está duas horas atrasado
e você já está se imaginando no necrotério para
identificar o corpo.
Loucura, teatro, causando um pânico ridículo
como este. Ela olhava o farol dos carros atravessan-
72
do o estacionamento. Abriu a porta da varanda e
saiu. O calor da noite era sufocante. Do outro lado
da piscina estava a quadra de tênis iluminada por
fortes holofotes, chapados e brilhantes. Ellen podia
ouvir o som da bola sendo jogada de lá para cá, e a
risada debochada de uma garota (Anna Seiladas-
quantas. Alguém como Anna poderia jogar neste
calor, parecendo, sem dúvida, muito bem debaixo
deste chapéu molengo. Suas coxas bronzeadas de-
viam estar luzindo sob o reflexo das luzes.)
ERIC CAMPBELL DEIXA UMA VIÚVA, EL-
LEN, 27, E UM FILHO POR NASCER. Páginas
do cinzento obituário, as estatísticas de morte, o
rosto pálido sobre a lápide de mármore e a notícia
fria exsudada sem nenhum sentimento numa página
de jornal.
Desgraça! Ela podia sentir o sono chegando
agora, mas quis combater a sensação. Como, em
nome de Deus, ela podia dormir numa hora dessas?
O efeito do remédio. Uma sensação de flutuar em
mar calmo. Os músculos relaxando na água tépida.
Esforçou-se para se colocar numa posição ereta.
Sentou-se e esticou as pernas.
Ela ouviu algo.
A chave girando na fechadura.
A porta abrindo. Fechando.
O som de um assobio suave.
Eric.
Como se ele não estivesse atrasado, como se
73
não a tivesse colocado fora de si, parou no vão da
porta, sorriu e depositou sua pasta sobre o tapete. A
despeito de si mesma, ela sorriu: recriminação só
depois de sentir alívio. Ele atravessou a sala e pas-
sou os braços em torno dela. Por um bom tempo ela
não disse nada. Simplesmente o abraçou. Deu-lhe
um abraço apertado. O marido percebeu que chora-
va. Ao afastar-se dele, viu seu rosto como se esti-
vesse através de um vidro fosco, enevoado.
― Ei! ― exclamou, segurando o queixo da mu-
lher. ― Ei! ― repetiu.
― Existem telefones. Trabalham com simples
fichinhas. Você já ouviu falar deles, eu acho.
Eric suspirou. Ajoelhando em frente à esposa,
virou-se nos calcanhares:
― Eu sei, eu sei.
Não o interrogue, ela disse a si mesma. Não seja
a Esposa Censuradora, a Super dona-de-casa Preo-
cupada. Não encha seu saco, pelo amor de Deus.
― Eu acho... você poderia estar esmagado sob
o carro. Você poderia estar estendido em alguma
maldita enfermaria, Eric.
Ela ouviu sua própria voz aumentando de volu-
me, aumentando. Queria controlar-se, calar sua his-
teria. Mas não conseguia.
― Com que diabos eu poderia imaginar que es-
tava tudo bem? Eu não sou médium, não fui brinda-
da com nenhum senso de clarividência! Apenas
sentei aqui e esquentei meus miolos. Foi tudo o que
74
fiz. Esquentei os infelizes dos meus miolos.
Você está se lamuriando, ela pensou. Lamurian-
do, xingando e queixando-se. Deixe ir, apenas dei-
xe ir.
Ele começou a esfregar os ombros dela.
― Eu deveria ter ligado, eu sei...
― Desgraçadamente certo.
― Realmente não pude, Ellen.
― Não exigiria muito, não é? Eu acho que você
apenas teria que apertar alguns botões e falar umas
poucas palavras, Eric. Não demora tanto fazer uma
simples chamada telefônica.
Eric levantou-se.
― Eu estava lá no escritório. Faltavam apenas
uns dois minutos para as cinco horas, certo? Eu es-
tava me aprontando para vir para casa, quando adi-
vinha quem aparece? “Ele”. “Ele” quer discutir
uma totalmente nova estratégia de levantamento de
fundos. A dois malditos minutos para as cinco,
lembre-se. “Ele” não tem pressa de ir para casa.
“Ele” não tem uma esposa, muito menos uma espo-
sa grávida. “Ele” pode sentar-se lá, com seus pés
sobre sua mesa e tagarelar por horas a fio. Seu ma-
rido teve que sentar-se imóvel e ficar girando os de-
dinhos, inquietar-se, ir ficando cada vez mais preo-
cupado com você. Enquanto isso, “Ele” ainda está
resmungando.
“Ele” era o nome que Eric dava ao diretor da
empresa, Ralph Houseman.
75
― Tudo bem, eu entendo ― ela disse. ― Eu
posso ver a cena. Mas você não poderia ter-se des-
culpado e telefonado?
― E interromper “Ele”? Eu não cometeria esta
blasfêmia. É como se eu fosse a uma igreja e cus-
pisse no altar, amor.
― Tudo bem, eu posso entender isso também.
Mas quando você saiu do escritório, poderia dar
uma ligadinha, não? Eu apenas queria saber que es-
tava tudo certo. É só o que eu queria saber. Não faz
sentido?
― Claro que faz sentido. Mas eu estava com
pressa de chegar. Eu dirigi como se estivesse sendo
perseguido pelas Eríneas.
― O ponto é...
― O ponto é, eu não liguei ― completou Eric
enquanto procurava pelas mãos dela, segurava-as e
a beijava no rosto. ― Eu não irei aborrecê-la nova-
mente. Eu prometo. Eu juro.
Ellen segurou as mãos dele e as manteve entre-
laçadas com as dela, observando por um bom tem-
po os pelinhos negros que havia na base dos dedos
do marido.
― Como você pode aturar uma velha gorda
chorona como eu? ― ela perguntou.
― É moleza.
― Sério?
― Claro que é.
Ela riu ― havia calma agora, o nervosismo se
76
fora. Ela sentiu como se estivesse olhando para um
lugar recentemente devassado por uma tempestade.
Calma, paz, uma sensação de contentamento.
― Como você se sente sobre duas costeletas de
vitela completamente queimadas?
― Acho que não tenho nenhum sentimento a
respeito.
― Eu posso fazer uma omelete. Posso bater al-
guns ovos.
Eric balançou a cabeça.
― Tenho uma idéia melhor.
― O quê, por exemplo?
― Eu poderia levá-la para jantar. Lembra-se da-
quele lugar que faz fondues?
Ela assentiu.
― Ótimo. Quero apenas cinco minutos para me
trocar.
― Você parece bem desse jeito.
― Estou me sentindo feia.
Ele sorriu, sentou-se no sofá e olhou para ela. A
expressão de Eric ― como poderia descrevê-la?
Ele parecia resplandecente, como se estivesse mui-
to orgulhoso do que via. Minha mulher, ela pensou.
Minha família. Nós três. Era isso que a expressão
dele dizia.
Ela sentou-se diante da sua penteadeira. Pelo
canto do olho sentia o olhar das bonecas. Ellen vi-
rou-se, fixou-se nelas, odiando a cena
― enfileiradas e bonitinhas como androides
77
malvados. Pálida, ela pensou, pálida como uma da-
quelas bonecas de porcelana. Elas tinham riscos ne-
gros sob os olhos ― de uma cor entre o anil e o vi-
oleta. Com as mãos entrelaçadas, levantou-se e di-
rigiu-se ao closet. Desabotoou a saia e, ao tirar a
blusa, percebeu veias em seu busto inchado. Imagi-
nou o sangue percorrendo todo seu corpo, viajando
através da intrincada rede de artérias e veias, bom-
beado pelo coração com o propósito mágico de sus-
tentar duas vidas.
Ellen abriu a porta do armário e começou a
olhar suas roupas. Lentamente procurava através
dos cabides. Tudo parecia grande, folgado, sem
graça, tudo singularmente monótono, apesar da ten-
tativa desesperada dos estilistas pincelando cores
brilhantes naquelas oferendas disformes.
Uma blusa azul com mangas fofas e, os tão na
moda, punhos justos.
Onde ela está se escondendo? Apareça, apareça,
ela pensou.
Onde diabos está?
Quando definitivamente não pôde encontrá-la,
Ellen ainda pensou que a bata poderia ter escorre-
gado pela prateleira e abaixou-se para olhar, reme-
xendo em algumas caixas de sapato, sacolas de
loja, malhas de inverno devidamente ensacadas em
papel-celofane. Nada. Nem sinal da blusa. Diabos.
Levantou-se resmungando um pouco, com bolinhas
coloridas passando diante dos olhos. Olhou nova-
78
mente na prateleira. Não havia nenhuma bata azul.
Ellen virou-se ao ouvir Eric entrar no quarto.
― Eu estava a ponto de mandar investigar o seu
desaparecimento ― ele brincou.
― Estou procurando minha bata azul.
Onde ela se escondeu?
― Posso ajudar?
― Azul, azul, azul ― ela respondeu. ― Novi-
nha em folha. Eu a vesti no jantar outro dia. Você
se lembra?
― Claro, respondeu Eric aproximando-se do
closet. ― Eu não a vejo.
― Tenho certeza de que ela estava pendurada
aqui ontem ― ela insistiu, passando os dedos pelas
roupas colocadas nas prateleiras. Nada. Voltou-se
para Eric, então:
― Será possível que eu a tenha mandado para a
lavanderia hoje?
Por que não conseguia se lembrar?
― Eu estava no trabalho. Não posso saber.
Eric parecia não ter dado importância ao caso:
uma blusa perdida não era um problema sério. Ele
disse:
― Vai aparecer. Tudo aparece no final das con-
tas.
― Eu espero ― finalizou Ellen, apanhando um
vestido vermelho-escuro de algodão do cabide e
enfiando no corpo.
― Enquanto isso, eu morro de fome.
79
Eles comeram no terraço do restaurante. Ela
mergulhava pedaços de aipo na panela do fondue
de queijo e os ia comendo devagarinho. Eric, por
sua vez, comia vorazmente. Quando ele terminou,
acendeu o cigarro e recostou-se na cadeira, olhando
para o céu da noite. Ela estava cansada, cansada
por conta dos efeitos do Valium e do nervosismo
que sobrara da ansiedade sentida.
― Nomes ― ela disse, olhando para os pedaços
enrijecidos de queijo que haviam caído sobre o pra-
to. ― Nomes são um problema.
Ellen olhava para as outras mesas cheias no ter-
raço. Você tem que percorrer o alfabeto para deci-
dir-se por um nome, começando pela letra A ― e
então apanhou-se pensando em Anna Rosenberg. A
mente manda em si mesma, pensou. Eu não preciso
lembrar-me de Anna Rosenberg.
Ellen sorriu e inclinou-se sobre a mesa.
― A propósito, você sabe que tem uma admira-
dora no condomínio?
Ele não disse nada.
― Uma garota loira muito bonita. Eu a conheci
na lavanderia e ela começou a falar sobre quão bo-
nito você é.
― Ela tem bom gosto.
― Eu concordo. Só não sei se devo ficar lison-
jeada ou temerosa...
Vai com calma, Ellen, ela pensou. Vai com cal-
80
ma, brincando, uma ponta de malícia.
― Fique lisonjeada. É mais fácil lidar com esse
sentimento.
― Você já viu a garota? É Anna qualquer coisa.
― Acho que devem ter umas vinte Annas mo-
rando no condomínio. Quando elas vão dormir, são
apenas 10, mas, por um processo misterioso, multi-
plicam-se durante a noite. Pronto, acordam e já são
20.
― Eu apenas achei que você gostaria de se sa-
ber admirado.
― Estou interessado apenas em sua admiração,
Sra. Campbell.
Eu amo você, ela pensou. Eu amo você por toda
a vida.
Veio então uma brisa, espalhando as migalhas
de comida pelo chão, sacudindo as toalhas das me-
sas. Eric levantou-se, ajudando Ellen a ficar em pé.
Ele colocou a mão na boca, cobrindo o bocejo.
― Foi um dia longo ― disse.
Um longo, longo dia, ela pensou.

Ellen fechou os olhos enquanto ele dirigia de


volta para casa, levada por uma sonolência bem
leve. Quando abriu os olhos novamente, o marido
já estava parando o Datsun no estacionamento. De-
pois, saiu do carro e ajudou Ellen a fazer o mesmo.
― Sabe o que seria bom agora? ― ele pergun-
tou.
81
― Sentar-se à beira da piscina ― Ellen respon-
deu.
― Como você adivinhou?
Ele a conduziu por entre a cerca de arame que
refletia um brilho suave da noite. As mesas em tor-
no da piscina estavam vazias. Velas tremeluziam
dentro de pequenos jarros vermelhos. O casal sen-
tou-se e em silêncio ficou observando as luzes in-
ternas da piscina e as marolas eventuais que apare-
ciam na superfície da água: era como se uma mão
invisível deixasse cair pedrinhas em intervalos re-
gulares. Hipnótico, gostoso, tranquilizador. Ela quis
mergulhar suas mãos na água, refrescar seus dedos,
seus pulsos. Mas não se mexeu, apenas observava.
É como se fosse uma lareira líquida ― Eric dis-
se. ― Dá o mesmo efeito que se olhar para um
tronco queimando, você não acha?
Ellen concordou.
― Quando eu era criança...
Ele parou.
― Quando você era criança, o quê?
― Nós costumávamos fazer estas fogueiras, tí-
nhamos sempre madeira para queimar, troncos. Eu
quase me esquecera disso.
― Você nunca fala do seu passado ― ela obser-
vou.
― Eu não existia até conhecer você, existia?
Ele olhou fixamente para a esposa, seus olhos
refletiam a suavidade das velas. Eric sorria ― e ela
82
deu-se conta de que já não via há algum tempo este
olhar de ternura em seu rosto. Ellen procurou pelas
mãos do marido por sobre a mesa. Desejou pergun-
tar mais. Porém, desconfiou que não era a hora cer-
ta. E algo mais envolveu sua mente, a intuição de
que alguma tragédia acontecera no passado do ma-
rido, um evento que o tocava profundamente ― tal-
vez há muito tempo ― e que ele preferia esquecer.
Ela gostava dessa pitada de mistério. Gostava da
possibilidade de que um dia ele viesse a lhe contar
tudo. Romantismo, Ellen disse a si mesma. Você é
uma romântica inveterada.
Ela sorriu e voltou o rosto para a piscina.
Flutuava como uma água-viva disforme, restos
mortais de um mar profundo. Flutuava em silêncio
para lá e para cá. Boiando, inchada pela água, a
coisa movia-se lentamente, como se empurrada por
alguma maré reticente. Muito timidamente, aquilo
parecia esbofetear os ladrilhos azuis da piscina. El-
len cutucou o marido, apontando em direção à coi-
sa, nada falando. O objeto, destacando-se na luz,
intumescido pela água, parecia estar o tempo todo
afundando e reaparecendo em outro lugar, levado
pelos movimentos da água traiçoeira.
― O que é aquilo? ― ela perguntou.
― Não sei.
Ellen levantou-se e foi na direção da coisa. A
meio caminho entre a mesa e a beirada da piscina
descobriu o que já sabia. Ela confirmou o que era
83
aquilo encostado nos ladrilhos. As velas das mesas
pareciam agora estar com suas chamas mais vivas,
fortes. Como? Como, em nome de Deus? Ela cami-
nhou rapidamente, detendo-se no primeiro degrau
acima da água.
Ela soube.

No segundo degrau ela sentiu a água em seus


tornozelos. Quando atingiu o terceiro, a água lam-
beu-lhe os joelhos, infiltrou-se em seu vestido fa-
zendo com que aderisse à sua pele. A coisa, por sua
vez, parecia fugir do seu alcance. Seus pés tocaram
o fundo antes de ela perceber o que estava fazendo,
por que estava fazendo. Ao longe, Ellen ouvia o
som dos passos de Eric vindo ao seu encontro, o
som da voz de Eric chamando seu nome. Ela conti-
nuou indo em direção ao objeto. Um sonho, ela
pensou. Um sonho. Como isso poderia acontecer?
A água pressionava contra seu corpo. Quando a
coisa ficou, então, a poucos centímetros de suas
mãos, Ellen esticou-se com vigor para alcançá-la e
acabou escorregando e caindo com o rosto na água.
Viu as luzes internas da piscina explodirem ao seu
redor, a coisa que flutuava avançar pouco a pouco
sobre ela. Esforçou-se para recuperar o equilíbrio: o
cloro feria seus olhos, obstruía as narinas, os cabe-
los. Ela esticou-se novamente em direção ao objeto,
agarrou-o e trouxe a coisa para perto de si, perce-
bendo, naquele instante, que Eric estava agora tam-
84
bém na piscina e que a agarrava pelas axilas. Pelo
amor de Deus, pelo amor de Deus, estava dizendo.
Por que ele não entendia? Por que ele não reconhe-
cia o objeto? Por que ele tentava a todo custo tirá-la
dali? Mas ela segurava a coisa por entre os dedos,
apertando firmemente enquanto Eric a puxava até
os degraus. Sem respiração, ela sentou-se no último
degrau. O tecido fino, manchado e encharcado, ja-
zia em suas mãos. Ela olhou para aquilo, tentou es-
tendê-lo sobre seu colo, procurando não ouvir as
perguntas de Eric: O que é isso? Por que diabos
você entrou na água? Ela continuava tentando esti-
car a coisa, mas a umidade fazia com que o tecido
grudasse em suas pernas.
Ellen cerrou os olhos. Queria chorar.
Como alguém poderia fazer uma coisa dessas?
Uma coisa tão sem sentido, tão maldosa? Sem
ação, ela agora olhava para o marido. Ele tentava
separá-la da coisa, mas não conseguia.
Você não sabe o que é isso, Eric?
Você não se lembra de estar comigo na noite
que eu a vesti?
Você não sabe, não sabe, não sabe?
Ellen virou-se e, com as mãos tremendo, depo-
sitou o objeto na beirada da piscina, alisando o que
sobrara dele. Eric, parado, pingando, olhando para
a mulher, espantado.
Você se lembra agora, Eric? Lembra?
E olhava para o que sobrara do tecido azul-claro
85
manchado pela água, branqueado pelo cloro, despe-
daçado em tiras por algo afiado ― uma navalha,
uma faca de trinchar, algo bastante afiado. Ela
olhou para aquilo que fora uma bata de grávida.
Então, fechou os olhos e abaixou o rosto.

Azul.
Azul-claro.
O azul dos olhos do bebê.
Você se senta bem quietinha no quarto escuro
com a tesoura nas mãos e por um momento assus-
tador não consegue lembrar o motivo pelo qual
você a está segurando, e então a memória volta,
volta e você levanta-se e caminha em direção à
penteadeira. Você vê seu rosto branco por um mo-
mento no espelho. Você coloca a tesoura sobre o
azul: percorre com ela os botões.
Azul.
Vê a tesoura através do azul.
Vê a tesoura slash slash slash através do azul.

Seis

13 de julho

Ela não conseguia parar de tremer. Mesmo com


a caneca de café quente que Eric colocara entre
suas mãos, mesmo com as roupas secas que ele a
fizera vestir, ela não conseguia parar com aqueles
86
calafrios ridículos correndo por todo o seu corpo.
Ellen sentou-se à mesa da cozinha, as mãos
crispadas em torno da caneca de café, os olhos fi-
xos na fumaça que nascia da superfície negra, pen-
sando na blusa ― na sua blusa ― e em como flutu-
ava, rasgada e retalhada, na piscina. Quando ela fe-
chava os olhos, tudo o que podia ver eram as luzes
da piscina e o tecido empapado, arrastando seus pe-
daços rasgados como um polvo agonizante.
Ela olhou para Eric. Ela tiritava. O marido esta-
va parado encostado na geladeira com um cigarro
por entre os dedos. Ellen observou a maneira que
ele inalava a fumaça rapidamente, expelindo-a em
forma de nuvenzinhas finas. Ele estava tenso: havia
algo de furioso na maneira como fumava, como se
estivesse atacando o cigarro. O relógio sobre o fo-
gão registrava as horas em forma de dígitos ―
12:23. Depois de meia-noite. Um novo dia. Ela le-
vou a mão até a boca e apertou com vigor os lábios.
A bata, alguém veio até aqui, entrou no aparta-
mento, foi até o quarto, apanhou a bata, cortou-a
com fúria e a jogou na piscina ― alguém, meu
Deus. Quem? Quem? Por que fez isso?
Ellen olhou novamente para Eric. Por que ele
estava tão silencioso? O que estaria pensando? Por
que ele não fazia alguma coisa positiva, alguma
coisa ativa, como por exemplo chamar a polícia?
Ela levantou-se da mesa e passou por detrás de
Eric, indo em direção ao tanque. A bata jazia amas-
87
sada e descolorida por sobre a porcelana. Ellen esti-
cou as mãos para tocá-la, mas logo retirou os de-
dos. Tentou imaginar a lâmina dilacerando o tecido,
tentou quantificar a energia necessária para realizar
tal ato ― mas ela não conseguia colocar as idéias
em ordem, não conseguia retê-las. Imaginou-se, en-
tão, dentro da blusa quando o ataque aconteceu, a
lâmina perfurando sua pele, rasgando suas veias.
Cerrou os olhos, estremecida, ouvindo o som da fu-
maça sendo expelida por Eric. O que ele está pen-
sando? Que diabos estão passando por sua mente
agora? Insensatez, a coisa toda era muita tolice. El-
len pousou as mãos sobre seu estômago e pensou
no bebê: esta delicada criatura ligada tão precaria-
mente a ela, amarrada apenas por um frágil cordão
de carne e sangue. Pensou sobre quão silencioso ele
tinha vindo. Quieto. Imóvel objeto boiando numa
maré parada. Olhou de relance mais uma vez para
Eric e foi caminhando pela sala, o corredor, até
chegar ao quarto. Deitou-se e olhou através da ja-
nela escura. Depois, virando um pouco a cabeça,
pôde visualizar por uma fresta seu closet.
A bata.
Eric entrou no quarto, pigarreando.
Explique-me, Eric. Explique-me em termos cla-
ros e simples. Faça-me entender esta história.
Ellen olhou para o marido. Ele aproximou-se da
cama, deitou-se ao seu lado, cobrindo as mãos dela
com as suas.
88
Ela passou a língua nos lábios e perguntou:
― O que aconteceu? O que isto significa?
Ele não respondeu. Em vez disso, entrelaçou
seus dedos com os da esposa. E foi como se aquela
situação tivesse revertido, de alguma maneira estra-
nha, como se ele estivesse esperando uma explica-
ção por parte dela.
― Diga-me o que está se passando em sua ca-
beça, Eric ― sussurrou Ellen. ― Diga-me.
Ele suspirou:
― Estou tentando avaliar ― respondeu. ― Es-
tou tentando pensar.
― Você não percebe que existe alguma coisa
muito estranha nessa história de a minha roupa,
pendurada em seu cabide dentro do armário, magi-
camente sair pela janela fechada e cair dentro da
piscina? Isso, ao mesmo tempo que sofre uma ope-
ração cirúrgica? Você não percebe, Eric?
Esta nota em minha voz, ela pensou, no limite
do medo, quase pânico, terror.
― Alguém esteve aqui ― ela afirmou. Sua voz
parecia a dela própria, era como se não houvesse li-
gação com seu eu. Como uma boneca de ventrílo-
quo.
― Alguém esteve aqui e apanhou a droga da
blusa e a fez em tiras...
― Quem, por exemplo? ― ele inquiriu. ―
Quem poderia fazer tal coisa? Que estranho tipo de
ladrão faria isso? Eu nunca ouvi falar sobre nin-
89
guém entrando escondido em um apartamento ape-
nas para roubar uma blusa. Há uma porção de coi-
sas aqui com um valor bem alto ― nenhum arrom-
bador em sua sã consciência passaria pelo perigo de
invadir uma residência sem levar nada...
― Quer dizer que ninguém entrou aqui, Eric?
Ele suspirou novamente.
― Eu não sei. Eu olhei. Eu chequei a porta de
entrada. Eu chequei a porta da varanda. Não conse-
gui encontrar nenhum sinal de arrombamento.
Arrombamento, ela pensou. O que ele sabe de
sinais de arrombamento?
― Você acha que ninguém entrou aqui, Eric?
Você está me dizendo isso?
Ele balançou a cabeça. Sorriu com seu jeito qui-
eto e passou as mãos nos cabelos castanhos.
― Estou apenas tentando encontrar alguma ex-
plicação lógica, é tudo. Estou tentando encontrar
uma outra explicação que não envolva este arrom-
bamento invisível.
― Como o quê, por exemplo?
Explique-me, amor. Estou assustada e estou es-
perando esta explicação.
― Tudo bem. Talvez você tenha perdido a blusa
por acaso. Você poderia, por exemplo, tê-la levado
para a lavanderia e deixado cair no caminho. Quem
sabe, algumas crianças a tenham encontrado e cor-
tado, não sei para quê, mas cortaram. Uma traves-
sura. Molecagem. Você sabe o que eu quero dizer.
90
Depois elas a jogaram na piscina.
― Eu não levei nenhuma bata para a lavande-
ria, Eric. Ela é de seda, Eric. E eu não me lembro
de tê-la perdido. Ela era novinha em folha, pelo
amor de Deus. Por que eu ia perdê-la e não perce-
ber?
― Estou falando de um simples engano, Ellen.
Ela pode ter sido misturada com o lixo, talvez.
― E aí entram em cena os garotos travessos,
certo?
― Eu não estou dizendo que foram os tais garo-
tos, Ellen. Estou apenas mostrando a você que po-
dem existir explicações racionais, apenas isso.
Explicações.
Hipóteses.
Por que ela estava gastando tanta energia preo-
cupando-se com um grupo de meninos que se di-
vertiram em estraçalhar uma blusa?
― O que há de errado com um arrombador,
Eric? Um arrombador vulgar?
― Porque não poderia ser um ladrão, querida.
Seria outra coisa. Um ladrão teria levado outras
coisas...
Outra coisa, ela pensou. Alguém. Quem?
― Nós deveríamos chamar a polícia ― ela dis-
se.
― Você sabe o que um tira diria? Ele quereria
saber se a sua máquina de escrever estava intacta,
se o seu aparelho de som tinha sido roubado ou ain-
91
da se desapareceram dinheiro, jóias, coisas de va-
lor. Isso é tudo o que ele faria. Você vai falar sobre
bata na piscina e ele rapidinho vai fechar seu livro
de anotações.
Tudo bem, ela pensou. Eu deveria aceitar isso.
Deveria acreditar que está tudo certo e dizer que eu
joguei a blusa no lixo por engano junto com todos
os detritos da casa e que algumas crianças malucas
encontram-na e fizeram o serviço com suas tesouri-
nhas. Eu deveria assentir com a cabeça e sorrir e
concordar ― porque nada seria melhor do que ima-
ginar alguém entrando aqui na minha ausência e
deliberadamente roubar uma blusa em especial, de-
liberadamente destruí-la e deliberadamente jogá-la
na piscina. Nada seria melhor do que tentar imagi-
nar o rosto deste anônimo... brincalhão. Brincalhão,
ela pensou. Um tipo bem malvado de brincalhão.
Um ato de caso pensado.
Eu vi a bata ontem ou anteontem.
Eu toquei nela. Eu toquei nela quando Vicky es-
teve aqui.
Eu estava pensando em vesti-la.
Vicky.
Eu vou usar seu banheiro antes de sairmos...
Esta idéia é tão estúpida quanto obscena. Na
verdade, Vicky entrou no quarto, usou o banheiro.
Na verdade, ela ficou sozinha por alguns minutos.
Mas por que Vicky, de todas as pessoas do mundo,
quereria roubar uma blusa? Por que cortaria a bata
92
inteirinha? Não faz sentido. Quanto mais você fica
imaginando explicações, mais sem sentido elas vão
se tornando. Acredite na idéia de Eric sobre os ga-
rotos travessos. Acredite na história da perda aci-
dental da bata. Acredite. Eu não me lembro de ter
perdido nada...
Vicky.
Você está grávida, Ellen.
Você está preocupada.
Você não pode ter certeza de perceber cada de-
talhe. Você não pode ter certeza disso. Sua cabeça
está em outro lugar, distraída. Talvez a amnésia e o
esquecimento e ainda alguns equívocos sejam ape-
nas mais uma face do estado em que você se encon-
tra.
Ellen ouviu Eric mexendo sua cabeça no traves-
seiro.
― Você tem certeza de que era sua bata?
― Tenho certeza.
― Eu compreendo ― mas como você pode ter
certeza. O cloro a manchou. Ela estava totalmente
rasgada. Como você pode não ter nenhuma dúvida?
― insistiu Eric.
Ela se encolheu. Ele apenas estava tentando
acalmá-la, tentando se acalmar. Eu entendo. “Eu
não posso afirmar sem nenhuma dúvida, ter certe-
za, Eric. Mas, quando eu encontro uma blusa que
parece com a minha e ao mesmo tempo a minha
blusa não está pendurada no cabide, então, não es-
93
tou fazendo nada mais senão somar dois e dois.”
Ellen gostaria de pensar: Ele está certo. A bata
não é a minha afinal. Foi um engano. A minha está
pendurada em algum lugar. Algum dia eu irei en-
contrá-la e me perguntarei o porquê desta crise his-
térica, certo?
Certo. Ellen. Você precisa acreditar nisso.
Ela saiu da cama. Na cozinha, parou ao lado do
tanque e olhou para a bata dentro dele. Lentamente,
estendeu a mão, apanhou o trapo e o esticou. A eti-
queta ainda estava intacta. Ela manteve o nome
Sacks costurado. Sacks. O lugar onde eu comprei a
blusa. A mesma loja. A mesma bata. Ellen largou a
coisa e olhou com atenção para os pedaços rasga-
dos, as tiras dilaceradas. Mais nenhuma dúvida.
Ela olhou e olhou.
Mesmo neste estado de ruína total, mesmo ras-
gada e recortada, cheia de buracos, ela percebeu al-
guma coisa estranha.
Os botões. Os botões azuis.
Ellen apertou o tecido entre seus dedos, retiran-
do a água, e jogou a bata no lixo.
Os botões azuis, ela pensou.
Não havia mais nada para cortar ou destroçar na
coisa ― entretanto, alguém tinha se dado o traba-
lho de cortar fora cada botão. Cortar ― aquela não
era a palavra: toda a blusa tinha sido cortada, mas
os botões pareciam ter sido removidos sistematica-
mente e com mais cuidado, quase como se fossem
94
arrancados, bem deliberadamente, com a tesoura.
Ellen bateu a porta da área de serviço com força
e ficou uns minutos na cozinha, olhando com aten-
ção ao redor ― procurando sinais de outros possí-
veis pequenos vandalismos, indícios da passagem
do intruso. Não encontrou nada fora do normal.
Alguém remove os botões cuidadosamente e en-
tão começa o frenesi, talvez de uma maneira bas-
tante leve no começo; então, cresce, cresce e cresce
e acaba num grau muito elevado.
Não havia nada diferente.
Nada, afinal.
No quarto, Ellen ouviu quando Eric elevou sua
cabeça e percebeu sua sombra refletida da janela.
― Eu joguei a bata fora ― ela contou. Pela se-
gunda vez, ela pensou, só que eu não me lembro da
primeira.

Sete

16 de julho

Ellen demorou-se observando o teto da sala de


espera. Então, ouviu o seu nome sendo chamado.
Irene Grabowski, a assistente do dr. Phelps, es-
tava olhando para ela. Era uma mulher forte, de
aproximadamente 33 anos e um corte de cabelos
que provavelmente teria sido criado por um cabe-
leireiro com seus olhos fechados. Um visual recor-
95
tado. Seu uniforme, de um branco frio como uma
manhã gelada, combinava com os sapatos, deixan-
do por onde passava reflexos de luz.
― Pronta, Ellen?
Ellen concordou e seguiu a enfermeira através
do corredor que levava ao consultório do médico.
As paredes eram cobertas com quadros e posters ―
estágios do desenvolvimento do feto, sugestões de
auxílio durante a gravidez, tabela das vitaminas,
advertências contra as drogas. Cada vez que ela vi-
nha aqui, estes diagramas e listas a faziam sentir-se
um pouco mais culpada ― ela tentava lembrar-se
das prescrições do dr. Phelps para as mulheres em
estado de gestação, mas, invariavelmente, deixava
de lado isto ou aquilo, esquecia dos seus exercícios,
não se lembrava de tomar as vitaminas.
― Como você está se sentindo? ― perguntou
Grabowski.
― Pesada.
― E vai se sentir mais ainda antes que isso ter-
mine.
Ela passava um tom autoritário em sua voz,
uma certa frieza profissional, às vezes. Eu gostaria
de sentir um pouco mais de carinho, Ellen pensou.
Alguns sorrisos simpáticos, quem sabe. Ela olhou
em direção à enfermeira, o rosto magro, o queixo
descarnado. Atualmente, Grabowski era mais do
que apenas uma enfermeira; era também a parteira
que Phelps contratara para auxiliá-lo nos partos. A
96
parteira que deverá estar na sala de partos na hora
do nascimento. Provavelmente a primeira pessoa a
ver meu bebê, Ellen pensou. Talvez antes mesmo
de mim. Era um pensamento esquisito.
A enfermeira rabiscou algo no papel colocado
em uma prancheta e olhou para Ellen.
― É tudo uma questão de paciência, Ellen.
Você tem paciência, não tem?
Aquilo surpreendeu Ellen, era uma questão es-
tranha, de uma certa maneira. Talvez fosse apenas
um jeito de Irene Grabowski falar, ríspida, forte.
Algumas vezes ela parecia esconder-se atrás da sua
postura profissional, quase como se a real persona-
lidade da mulher fosse uma entidade oculta pelo
uniforme branco. Talvez Grabowski pudesse ser al-
guém mais simpática com o tempo.
Phelps estava em sua sala. Ele levantou-se por
detrás da mesa quando Ellen entrou. Franziu as so-
brancelhas ― como sempre. Ela deu-se conta de
que, da mesma forma que existem pessoas que pas-
sam o tempo todo com um sorriso nos lábios, o
médico tinha sempre aquele aspecto auscultador.
― Ellen, você parece bem. Posso dizer que
você parece bem. Alguma queixa? Algo errado?
Era assim que Phelps sempre começava. Ela in-
terpretava este tipo de pergunta inicial como uma
demonstração de humor: um tipo de humor próprio
― Pode ser que eu seja um homem, mas nós esta-
mos juntos nisso, garotas. Sua careca reluzia sob as
97
luzes do consultório, como se o couro cabeludo
fosse lustrado com alguma substância. Ele usava
costeletas grossas que invadiam seu rosto e queixo.
― Nada sério ― Ellen respondeu. ― O de sem-
pre. Fico cansada com facilidade. Tenho me resfria-
do com frequência. Sinto-me um pouco enjoada,
também, acho que com os movimentos do bebê.
Phelps riu, de alto e bom som.
― É um bom sinal quando o bebê é ativo. Você
deveria ficar feliz com isso.
― Eu fico, apenas estou relatando o que você
pediu, é tudo.
Phelps riu novamente. Ellen estava atenta aos
movimentos de Grabowski ao redor dela, com inú-
meros instrumentos nas mãos. Por que ela sempre
se sentia como um pedaço de carne sendo examina-
da por um inspetor sanitário? Você deverá receber
um carimbo azul nas costas das mãos, Grau A, tal-
vez. Ellen tirou sua blusa e calças e sentou-se com
um avental branco enrolado. A pressão sanguínea
foi tirada. Sua temperatura foi checada. Ela teve
que subir na balança para que seu peso fosse auferi-
do.
― Ainda fazendo os exercícios? ― dr. Phelps
perguntou.
― Muitas vezes.
― Você não gostaria de ficar com marcas dessa
gravidez, gostaria?
Phelps inclinou-se sobre ela, pressionando seu
98
abdômen, auscultando com o estetoscópio ao redor
do seu pescoço como se um rosário de alhos pudes-
se proteger alguém com medo de vampiros.
― Espero que você esteja tomando suas vitami-
nas, Ellen. O corpo está submetido a uma pressão
muito grande durante a gravidez. O esgotamento é
alto. Você está dormindo bem?
― Acho que sim. Eu durmo em horas inabitu-
ais, talvez. Às vezes, à tarde, eu morro de sono. Às
vezes acordo antes de o sol raiar.
― Você tentou o chá de camomila que eu suge-
ri?
― Eu não gosto do sabor ― respondeu Ellen.
Chá de camomila. Só de ouvir ela já sentiu o es-
tômago enjoar. Ela não suportava a substância.
― E bom para você ― insistiu Phelps.
Ele estava examinando seus seios agora, gentil-
mente apertou os mamilos. Eles pareciam um vidro
frágil. De repente veio uma idéia em sua mente:
como ele seria na cama? ― ele seria tão gentil
como agora ou, devido ao seu conhecimento siste-
mático do corpo feminino, um simples manipulador
de clitóris, um forjador de orgasmos. Ellen lera que
muitas mulheres apaixonam-se pelos seus ginecolo-
gistas. Phelps endireitou-se, sorriu para ela e, então,
deixou a sala. Esta era uma característica dele ―
havia sempre outras mulheres aguardando por ele
em outras salas de exame: era um princípio básico
da medicina. A porta foi fechada por trás dele. El-
99
len olhou para a enfermeira Grabowski.
― Hora do Doppler ― disse Grabowski.
Ellen temia este momento. O Doppler, o fetos-
cópio, que supostamente amplifica os batimentos
cardíacos da criança, mas ela sempre tinha a sensa-
ção oposta, que aquele aparelho informaria que o
coração do bebê parara. Boas novas, más novas ―
a máquina não tem sentimentos.
Ellen deitou-se de costas, o avental levantado,
observando como Grabowski começava a besuntar
sua barriga com uma geleia eletro-condutora. A
substância era gelada e viscosa, e o toque da enfer-
meira um pouco menos delicado do que o esperado.
Como se ela estivesse espalhando manteiga sobre
um imenso porco. Ellen focou os dedos brancos da
mulher, rodando e rodando, as pontas dos dedos
amassando, as palmas das mãos massageando a su-
perfície da pele. Ela não precisava ser assim tão ás-
pera, precisava? Evidentemente existem maneiras
mais gentis de se aplicar a geleia, maneiras mais
suaves.
― Deite-se absolutamente quieta agora, Ellen.
Ellen contemplou a mulher. Ela mantinha um
pequeno sorriso nos lábios: entretanto, não era uma
expressão agradável ― era como se Grabowski
apreciasse a posição de autoridade que ocupava,
gostasse da desajeitada vulnerabilidade da nudez
das mulheres grávidas deitadas ali, totalmente sem
ação, diante dela. Ellen gostaria que houvesse um
100
lençol sobre si, desejando sentir-se menos exposta.
Ela cerrou os olhos e tentou respirar relaxada-
mente. Grabowski ligou o amplificador e colocou o
microfone metálico sobre o umbigo de Ellen. Não
havia som. Ellen mexeu-se um pouco. Aquilo não
era inusitado, às vezes era necessário esperar al-
guns instantes até que os batimentos do coração do
bebê fossem ouvidos. Ela sentiu o microfone mo-
ver-se sobre sua pele. Nenhum som ainda.
― Difícil encontrar o bichinho hoje ― disse
Grabowski. ― Vire-se em minha direção, Ellen.
Ellen moveu o corpo. Ela abriu os olhos e fi-
xou-os no rosto de Grabowski: uma expressão de
intensa concentração, a boca levemente aberta. O
microfone nas mãos da enfermeira movia-se lenta-
mente de um lado para outro. Nada. Nada ainda.
― Deite-se de lado ― pediu Grabowski.
Desajeitadamente, Ellen torceu o corpo. Ela
pôde sentir o bebê mover-se ao mesmo tempo ―
então por que Grabowski não conseguia encontrar
o coração do bebê? Ela olhou para o microfone. E
se o coração do bebê tivesse parado de bater, e se
o feto tivesse morrido e estivesse começando a
murchar dentro do seu corpo e ela não soubesse?
― Alguma coisa errada?
Grabowski pareceu não ouvir a pergunta. Cabe-
ça inclinada, ela ainda estava concentrada no movi-
mento do microfone.
― Alguma coisa errada? ― Ellen insistiu.
101
A enfermeira olhou em sua direção.
― Nada. Absolutamente nada. A criança está se
escondendo um pouco, é só. Relaxe. Você não está
me ajudando muito ficando tensa, Ellen.
Ellen respirou profundamente. Preocupação é
uma coisa tão tenebrosa, uma nuvem enorme e ge-
lada caindo sobre sua cabeça. Por favor, encontre o
coração do bebê, por favor encontre. Grabowski
moveu o microfone mais uma vez. O silêncio na
sala era sufocante. O amplificador talvez estivesse
quebrado, desligado. Quem sabe uma complicação
simples. Um mau contato. Alguma coisa técnica.
Ellen olhou novamente para a enfermeira: ela gos-
taria de ver Grabowski em seu lugar, a enfermeira
ficaria preocupada como ela ― talvez não, talvez
ficasse em seu perfeito controle, totalmente confi-
ante nas mudanças do seu corpo.
― O que está errado? ― perguntou Ellen. ―
Por que você não consegue encontrar o coração do
bebê?
― Hmmmm ― respondeu Grabowski.
Sem sentido. O hmmmm profissional. Era um
som neutro. Ela sentiu o microfone sendo pressio-
nado contra a geleia.
― Por que você não pode encontrá-lo? ― ela
perguntou novamente.
― Algumas vezes é difícil, Ellen. Você já deve-
ria saber disso.
― Mas esta dificuldade não é comum...
102
― Tente relaxar.
A enfermeira sorriu para ela, mostrando os den-
tes apenas de relance, rapidamente, mas a atitude
não tranquilizou Ellen. Não a consolou. Ela agora
sentia uma tensão insuportável, como se todos os
seus nervos estivessem amarrados, ligados como
metal fundido. O microfone moveu-se uma vez
mais e o amplificador mantinha-se silencioso. En-
contre, pelo amor de Deus, encontre o coração do
bebê.
Nada. Como o som da morte. Silêncio absoluto.
Ellen virou-se novamente de costas e levantou o
rosto para melhor olhar a enfermeira.
― Eu não disse para você se mexer, Ellen...
― Por que você não consegue achá-lo?
― Por favor, Ellen, você não está tornando as
coisas fáceis para mim.
― Não está sendo exatamente fácil para mim
também...
Grabowski estava verificando o microfone.
Ellen perguntou:
― Alguma coisa errada com o aparelho?
― O aparelho está trabalhando perfeitamente.
― Por que você não checa para ter certeza?
― Eu já o fiz ― respondeu Grabowski.
― Por que não o faz novamente?
Aquela entonação em sua voz: era o limite para
o pânico. Ela tentou se controlar.
― Por favor, por que você não checa o amplifi-
103
cador novamente?
Grabowski olhou para Ellen de uma maneira
padrão. Não esboçou nenhum movimento em dire-
ção ao amplificador, pelo contrário, continuou sua
pesquisa com o microfone. Meu Deus, Ellen pen-
sou. Em nome de Cristo, o que está errado? Com
muito esforço, sentou-se na cama. Grabowski afas-
tou o microfone do corpo dela.
― Se você não permanecer deitada, Ellen, eu
não conseguirei achar o som de maneira alguma.
A porta abriu-se e Phelps entrou na sala. Ellen
virou o rosto em direção ao médico e ouviu Gra-
bowski dizendo:
― Estamos tendo alguma dificuldade em locali-
zar os batimentos do feto, doutor.
Phelps tomou o microfone em suas mãos e, com
os olhos semicerrados em atitude de concentração,
curvou-se sobre Ellen dizendo:
― Relaxe, relaxe Ellen, tente ficar absoluta-
mente calma.
Respire fundo, ela disse a si mesma, respire fun-
do, o bebê está bem, o bebê está indo muito bem, o
bebê está vivo, passa bem e está se movendo dentro
de você.
Repentinamente a sala encheu-se com o som
amplificado dos batimentos do coração do bebê.
Bebê, ela pensou. Oh! bebê ― e ela desejou chorar
de alívio e alegria. Era uma alegria frágil aquela
que dependia de algo tão vulnerável quanto os rápi-
104
dos batimentos cardíacos da criança. Um delicado
brinquedo.
― Bom, muito bem ― ele disse.
O médico olhou para a enfermeira e então sorriu
para Ellen:
― Sente-se melhor agora?
Ellen concordou, movendo a cabeça.
― Eu estava preocupada...
― É claro que você estava. Mas o Doppler não
é exatamente infalível. As vezes é um pouco demo-
rado encontrar o coração, Ellen. Você não pode en-
cará-lo como uma resposta definitiva.
Ellen ouvia o som do seu bebê. Ela sentia-se es-
gotada.
Grabowski disse:
― Ela estava muito rebelde, doutor. Não conse-
guia relaxar.
Phelps endireitou o corpo, desligou a máquina,
e a sala ficou em silêncio. Ele anotou alguma coisa
em sua prancheta e depois olhou em direção a El-
len. Seu jeito era calmo, sossegado.
― Você está preocupada com alguma outra coi-
sa além do bebê?
― Nada ― ela respondeu.
A bata na piscina, a blusa azul estraçalhada na
piscina ― ela não pôde impedir que aquela visão
surgisse tão abruptamente, entrasse novamente em
sua mente, colocando-a em perigo. Ela afastou a
idéia, não pretendia preocupar-se com nada além da
105
criança.
Phelps acariciava as costas da mão de Ellen.
― Você tem certeza?
― Tenho.
O médico ficou em silêncio por um instante.
― Você pode se vestir, Ellen. Se puder servir de
consolo, tudo está correndo de acordo com o pre-
visto.
Ela saiu da mesa de exames, apanhou as roupas
e vestiu-se envergonhadamente atrás do biombo.
Ellen ouviu Phelps falar alguma coisa para a enfer-
meira, algo que ela não conseguiu captar. Talvez a
estivesse repreendendo por não ter encontrado o
coração. Talvez fosse alguma coisa parecida com
isso. Ela pensou: aquilo foi minha culpa, foi minha
culpa porque eu estava nervosa, porque eu não fi-
quei calma.
Ela teria que tentar relaxar mais no futuro, era
tudo. Mas não conseguia relaxar, não conseguia
manter-se calma. Quando ela voltou à sala, Phelps
já havia saído.
Grabowski disse:
― Ele está bem, Ellen. O Doppler não é uma
invenção infalível. Você deveria saber disso. Real-
mente não ajuda você entrar em pânico.
― Eu sei ― Ellen murmurou. ― Eu sinto mui-
to.
Grabowski sorria agora, sua expressão tornou-
se mais suave, menos severa.
106
― O primeiro bebê sempre produz estes senti-
mentos ruins, Ellen. E perfeitamente natural. Per-
feitamente natural.
― Espero que sim.
Elas deixaram juntas a sala. Caminharam pelo
corredor.
― Não se entregue aos seus medos ― a enfer-
meira aconselhou.
― Eu tentarei ― respondeu Ellen.
― Vejo você semana que vem ― Grabowski
sorriu uma vez mais, então virou-se e entrou no
consultório.
Lá fora, sob a luz do sol, Ellen olhou através do
estacionamento em direção a seu carro. Eu ainda
estou com medo, ela pensou. Eu ainda estou preo-
cupada. A ausência dos batimentos do coração do
bebê ― que pânico, que sensação de estar repenti-
na e horrivelmente só, em meio à ajuda de médicos
e enfermeiras, isolada num lugar da mais completa
solidão. Foi um sentimento que ela não conseguiu
abandonar enquanto dirigia em direção à sua casa.
De volta ao apartamento, entrou rapidamente no
quarto. Tão logo abriu a porta, precisou deitar-se.
Ela fez isso, jogando-se sobre o colchão com os
braços abertos e as pernas separadas. O som das ba-
tidas do coração do bebê ― como saltos de um co-
elho assustado. Ela pousou a palma da mão sobre o
umbigo e fechou os olhos.
Quando o telefone tocou na cozinha, Ellen teve
107
que esforçar-se para sair do seu estado de sonolên-
cia para ir atendê-lo. Cambaleou em direção à cozi-
nha e apanhou o fone.
Era Eric.
― Você parece estar mal-humorada ― ele dis-
se. ― Um daqueles dias?
― Estive correndo muito. Estou apenas cansa-
da.
Cansada: não, mais do que isso. O medo criava
algo mais do que evidenciar velhos cansaços. Deixa
você no limbo.
― Você foi ver Phelps? ― ele perguntou.
Ela permaneceu em silêncio por um momento.
― Eles não conseguiam encontrar o coração do
bebê naquela máquina Doppler ― ela respondeu.
Havia uma agitação em sua voz, a conexão para a
histeria.
― O que você quer dizer com eles não conse-
guiam achar o coração do bebê?
― Primeiro, Grabowski não pôde encontrá-lo,
eu não sei por quê...
― Mas está tudo bem?
― Está tudo bem agora ― ela afirmou.
Ellen ouviu outro telefone tocando em algum
lugar no escritório do marido e Eric resmungando
algo sobre ter que respondê-lo, deixando-a na linha
por alguns instantes. Uma linha silenciosa, ela pen-
sou. Eles não conseguem encontrar o coração do
bebê e ele tem que atender outra chamada. Havia
108
um estranho senso de prioridades por ali. Ela fe-
chou os olhos. Por que ela estava novamente pen-
sando na piscina, pensando na blusa na piscina,
quando havia prometido a si mesma que tentaria
deixar aquele sentimento ir-se para sempre, apagar
da memória o sótão do cérebro que foi reservado
para aquelas infames imagens? Não, disse a si mes-
ma. Não caia lá novamente. Tente controlar-se e fi-
que calma. Respire profundamente. O mais profun-
damente possível.
Quando Eric voltou à linha, disse:
― Sinto muito sobre isso. A situação aqui está
frenética. Um daqueles dias.
Uma situação frenética. E a minha situação?,
pensou. O seu trabalho é mais importante do que a
minha situação? Ela tentou imaginá-lo em seu es-
critório, o lugar que uma vez ela visitara, mas a vi-
são tinha a consistência de mercúrio derramado.
Ele dividia a sala com um indivíduo de nome Way-
ne Downer, mas Ellen não conseguia lembrar com
o que ele se parecia.
― Está tudo bem? ― Eric perguntou.
Que pergunta era aquela? O que está tudo bem?
Eu não acabei de lhe falar sobre o problema do co-
ração do bebê? Eu não acabei de falar sobre como
eu estou me sentindo? Eric, por que você está tão
distante, inferno?
― É ― ela disse —, acho que estou bem.
Ele pareceu não ter percebido o tom da voz da
109
mulher, a monotonia do som. Ah, mas ele estava
tendo um daqueles dias, não esqueça disso, não es-
queça que a situação está frenética. O telefone to-
cou novamente.
― Ouça, eu acho melhor desligar agora ― ele
disse. ― Vejo você quando chegar em casa, Ellen.
― Tudo bem ― ela respondeu.
Um tudo bem forçado. Um som frio.
Ela colocou o fone no gancho e dirigiu-se à sala
de visitas. Dê-lhe uma chance, Ellen, ela disse a si
mesma, não seja tão ridiculamente dura com ele.
Ele está aborrecido, distraído, é um homem ocupa-
do. Ela encostou o rosto no vidro da porta da varan-
da e, sem saber por quê, começou a pensar sobre o
que preparar para o jantar. Jantar ― talvez fosse a
natureza doméstica a ligação de um casal, os deta-
lhes que seguram a relação e fazem com que você
fique calma. Talvez. Trutas com feijão-verde e ba-
tatas cozidas. Ellen abriu seus olhos e os dirigiu em
direção ao estacionamento.
Um carro escuro, um familiar carro negro, esta-
va deixando a vaga que Eric normalmente ocupava.
Ela observava a cena atentamente, intrigada sobre o
que o automóvel faria na vaga de Eric. Um carro
negro de uma marca anônima ― onde? Onde foi
que ela vira um carro parecido com este antes?
Quando ela conseguiu lembrar-se, afastou-se da
porta como se o vidro a tivesse repentinamente
queimado. Na casa da mãe, na casa da sua mãe em
110
Paradise Valley, o carro estava parado, impedindo
sua saída. Agora ela o via passando sobre o bloque-
ador de tráfego, depois desaparecendo em direção
da saída. O estacionamento estava silencioso, para-
do: tudo que se movia eram os reflexos azuis que as
luzes da piscina jogavam contra a cerca de arame.
O carro negro, o mesmo carro negro que...
Coincidência, ela disse para si mesma.
Simples coincidência.
Melhor ainda, uma falha de memória: não era o
mesmo infame carro afinal, não era o carro que ela
vira em Paradise Valley. O que ela sabia sobre mar-
cas de carro? Ela não podia dizer a diferença entre
um Dodge, ou uma Chevy, ou um Ford. Um carro
parece exatamente com o outro ― a diferença está
apenas na cor.
Ela saiu da frente da porta, esfregando as mãos.
Eu estou nervosa novamente, ela pensou. Repenti-
namente, eu estou nervosa novamente.
A história da blusa. O carro lá fora. O Doppler.
Pequenas conspirações.
Ellen foi até a cozinha e sentou-se à mesa para
esperar Eric.
Começou a pensar no bebê. Imaginou o mo-
mento do nascimento, a primeira vez que seguraria
o bebê nos braços, sentindo a criança mamar em
seus seios, o suave toque das mãozinhas dele sobre
seu corpo; tentou ver o mundo através dos olhos da
criança, um lugar enorme repleto de coisas estra-
111
nhas, encontros inesperados, obstáculos, sons es-
quisitos e cheiros fantásticos. Um mundo inexplo-
rado ― um mundo através do qual ela teria que
guiar a criança e mantê-la a salvo do mal.
Eu não posso me dar o luxo de ficar nervosa,
ela disse a si mesma: esta criança precisa de uma
mãe bem ajustada, equilibrada, digna de confiança.
O tipo de mãe que eu preciso ser.
O telefone estava tocando novamente. Por um
instante ela desejou não atender. Ellen levantou-se
e ergueu o fone: barulho persistente, pessoa insis-
tente. Talvez seja Eric, talvez sua situação frenética
tenha passado.
Ela surpreendeu-se ao ouvir a voz de Ralph
Houseman. Ao fundo, em algum lugar, havia o som
de um piano sendo tocado ― um piano-bar, talvez.
A voz de Houseman estava um pouco arrastada,
como se durante toda a tarde ele estivesse estado
bebendo em lugar de trabalhar.
― Espero que você não se preocupe com minha
chamada, Ellen. Não quero que você pense que eu
estou interferindo. Não é o meu estilo. Não sou dis-
so.
― Interferindo em quê, Ralph?
― Eu sou o chefe de Eric, acho que tenho algo
a ver com a vida dele, certo?
― Tenho certeza, Ralph. Mas eu não estou en-
tendendo o que você está tentando falar sobre Eric.
Ellen estava confusa. O que Houseman estava
112
querendo?
― Eu não consigo convencê-lo de que ele está
trabalhando demais. Eu acho que ele deveria tirar
umas férias. Não quero vê-lo estafado. Todo mundo
precisa de um descanso às vezes, certo?
― Eu não sabiá que ele estava trabalhando tão
duro ― ela respondeu.
― É a minha opinião, Ellen. Fale com ele. Faça
com que descanse uma semana, ao menos. Eu já
ofereci minha cabana nas White Mountains. Será
bom para vocês dois.
― Ele está fazendo alguma coisa errada? Seu
trabalho está ruim?
― Não, nada para você de preocupar. São ape-
nas meus sentimentos. Eu vejo algo de estranho em
seu rosto. Eu sempre tenho boas intuições, Ellen.
Eu tenho faro. Eu sigo meus instintos. Você não
percebeu nada estranho?
― Realmente, não ― Ellen respondeu.
O maldito piano estava encobrindo a voz dele.
Ela não conseguia pensar.
― Você discutiu o assunto com ele?
― Claro que sim. Uma vez ou duas. Diabos, eu
tentei conversar com ele no máximo há poucos dias
justamente para convencê-lo sobre a coisa toda.
― Você tentou convencê-lo sobre o quê?
Que coisa enrolada, difícil: a cabana nas monta-
nhas ― ele nunca mencionara o assunto. Nunca.
― Ele não disse para você que nós conversa-
113
mos? ― Houseman perguntou.
Ele mencionou algo, claro, claro que ele falou,
só que não estava falando a verdade, ele estava
mentindo para mim. Não Eric. Eric não mente, não
é? Ellen sentiu sua mão tremer. Por que ele não fa-
lara nada sobre isso? Teria sido fácil dizer a verda-
de: Olhe, Houseman acha que eu estou trabalhan-
do muito, quer que eu tire uma folga. Teria sido a
coisa mais fácil do mundo, pelo amor de Deus.
Que mentira mais boba. Que mentira estúpida.
Tão completamente fútil.
Talvez ele não quisesse preocupar você, talvez
não quisesse causar nenhum aborrecimento, talvez,
talvez ― mas isso não muda o fato de que ele men-
tiu.
Confiança é a única fórmula verdadeira para
um relacionamento.
― Bem? ― Houseman perguntou. ― Ele não
falou sobre nossa conversa?
― Sim, ele mencionou qualquer coisa...
― Aposto que ele simplesmente colocou de
lado, certo? Isso é bem dele, Ellen. Ele não queria
que você se preocupasse com alguma coisa desse
tipo agora... mas eu ainda acho que ele precisa de
uma parada. Eu não queria estar falando desse jeito.
― Certo ― ela disse. ― Ele simplesmente co-
locou de lado.
Isto é dor. Isto é dor que você não precisa sen-
tir.
114
― Olhe, fale com ele. Você não precisa contar-
lhe que eu telefonei. Apenas diga que você gostaria
de sair por uma semana. Tire-o dessa fogueira.
Você sabe a respeito do que estou falando.
― Sei...
― E, por favor Ellen, não me interprete mal.
Certo? Eli não sou um mexeriqueiro.
― Eu sei, Ralph.
Ela conseguiu então reproduzir em sua mente
um retrato dele ― um homem gordo de cor pálida,
roupa de malha, jóias com pedra turquesa no pesco-
ço e pulso, dedos gordos brilhando com anéis indi-
anos.
― Faça uma tentativa, Ellen. E me ligue. Quero
saber. Eu não quero ver um bom homem entrar em
parafuso.
― Obrigada, Ralph.
Ela fechou os olhos.
Uma pequena mentira. Uma mentira de nada.
Quase nada ― tão insignificante.
Ele quis discutir toda uma estratégia de arreca-
dação de fundos.
Por que, Eric?
Não era a mentira em si ― era o fato de que ele
era capaz de mentir. Estresse e tensão. Ela não ti-
nha percebido nada disso em Eric.
Foi apenas um pesadelo. E ele não fez isso.
Apenas um pesadelo.
Por que uma mentira tão pequena cortava com a
115
ferocidade de um serrote? Por que ela sentia como
se estivesse sangrando? Uma mentira tão pequena
― mas por detrás dela havia uma complicada mis-
tura de fatos.
Foi apenas uma mentira. Mas, e se houvesse ou-
tras? Outras que ela desconhecia?
Ela tamborilava seus dedos sobre a mesa da co-
zinha e buscava saber por que se sentia tão desa-
pontada.
Ela se sentia ferida.
Você tinha apenas que me dizer a verdade, Eric.
E nada além da verdade.

Ela o olhava lendo seu jornal na sala de estar,


sentindo-se como se tivesse engolido uma espinha
de peixe, algo que estivesse parado em sua gargan-
ta. A mentira, a mentira, tudo que ela tinha a fazer
era trazer a história à tona, com nenhuma gravida-
de, introduzir levemente o tema. Mas não o fazia,
ela não tinha a coragem necessária. Ellen permane-
ceu simplesmente olhando para o marido. Você dis-
se que nunca mentira, nem mesmo em assuntos
corriqueiros. Você disse que era sempre sincero.
Ellen, Ellen, você está fazendo da coisa um bicho
de sete cabeças. Você está fazendo a coisa crescer e
crescer, como um balão elástico que acaba explo-
dindo.
Mas, a mentira...
Eric dobrou o jornal, depositou-o sobre a mesi-
116
nha ao lado e recostou-se na poltrona cora os olhos
cerrados. Ellen pensava se o que Houseman dissera
poderia ser verdade. Lógico, ele aparentava cansa-
ço, as pálpebras dos seus olhos pareciam ter a lumi-
nosidade de um copo fosco. E claro, ele trabalhava
muito porque aquela era sua natureza. Mas tão
duro? Ela estudava seu rosto bonito. Quando ele
abriu os olhos ela disfarçou, mas, ao voltar o olhar
para ela novamente, o marido sorria.
― Eu devo desculpas a você ― ele disse.
Ellen ficou tensa. Talvez soubesse que ela des-
cobrira sobre a mentira. Talvez fosse falar algo so-
bre isso, explicar-se, justificar alguma coisa. Ela es-
perou.
Ele então falou:
― Eu fui um pouco brusco no telefone hoje. Eu
sinto muito. Realmente. Às vezes aquele trabalho é
tão pressionante... Eu percebi que você queria uma
palavra de consolo. Mas não era a hora certa.
Eric levantou-se, atravessou a sala de joelhos,
as mãos estendidas. Brusco, ela pensou ― ela já
havia esquecido, tirado da sua cabeça. A mentira, e
sobre a mentira?
― Eu não deixarei isto acontecer novamente ―
ele disse.
O marido esticou-se e beijou Ellen, e, quando
afastou seu rosto do dela, o que ela viu então foi
aquele olhar que poderia descrever como ternura de
amor.
117
― Eu prometo que isso não acontecerá nova-
mente ― ele disse.
Ellen não falou nada. Como poderia?
Simplesmente correu a mão pelos cabelos ne-
gros do marido e, recostando-se em seu lugar, fe-
chou os olhos.

Oito

17 de julho

O calor do meio-dia tinha a força de um milhão


de tijolos caindo, daqueles recentemente saídos do
forno; dentro dela a criança revirava-se e contorcia-
se como um trapezista ou um mergulhador saltando
de um trampolim bem alto. Ellen caminhou rapida-
mente através do estacionamento em direção ao
Opel e, ao chegar próximo, percebeu Anna Rosen-
berg movendo-se ao lado da cerca que contornava a
piscina. A garota loira vestia um maiô inteiriço ver-
melho brilhante. Seu sorriso sobressaía por debaixo
da sombra que a viseira proporcionava ao rosto.
― Hei! ― a jovem disse. ― Como está você?
E o bebê?
Ellen protegeu os olhos contra a luminosidade
do concreto branco e da água azul. Por que o calor
parecia não incomodar a garota? Do lado de lá da
cerca havia inúmeros corpos jovens cintilando na
piscina. O cloro da água em contato com o sol dava
118
efeitos coloridos, como se estivesse segurando os
raios para si, através dos corpos que iam se bronze-
ando.
― Parece que está tudo bem ― Ellen respon-
deu.
A associação do azul, a água e a garota ― por
que ela mais uma vez se lembrava da blusa, quando
havia prometido a si mesma de nunca mais fazê-lo?
Simples ligações era tudo. Não havia nada de sinis-
tro naquele sorriso branco, o corpo saudável, não
havia nada de obscuro naquela criança sob o sol.
― Você nada? ― Anna Rosenberg chegou mais
perto.
― Nadava. Agora eu não consigo entrar no
maiô.
Aquilo não era exatamente a verdade, ela ape-
nas não queria saber como ficaria em um. Uma sal-
sicha muito cozida que estoura no meio ― verme-
lha, deformada.
― É um bom exercício ― a garota afirmou, fo-
cando com a mão a capota do Opel e a retirando em
seguida. ― Quem sabe depois que você tiver o
bebê nós possamos nadar juntas.
― Claro ― Ellen disse.
A mulher apanhou-se admirando a boca da ga-
rota: uma boca perfeita, como se alguém tivesse
pintado em criança. Uma boca destinada a ser bei-
jada. (Por que diabos eu penso nisso?)
Anna Rosenberg quedou-se ali por um instante,
119
como se estivesse relutante em sair. Havia um leve
sorriso em seu rosto. Ellen não pôde definir se ha-
via algo de irônico naquele ato. Talvez a jovem es-
tivesse meio drogada, meio aérea. Ela sentia o suor
escorrendo pela testa, tentando eliminá-lo ao passar
os dedos sobre a água que pingava. Anna Rosen-
berg não deveria nunca suar, Anna Rosenberg devia
manter-se fresca o tempo todo. Miss Perfeição do
Deserto. Ellen desviou o olhar do lindo rosto da ga-
rota e os direcionou para a piscina. Estava convida-
tiva, tão convidativa que dava vontade de saltar do
trampolim em cheio dentro da água. O bebê me-
xeu-se dentro dela novamente, como se tivesse lido
os pensamentos da mãe e os desaprovasse.
― Nós deveríamos nos conhecer melhor ― a
garota disse. ― Morando no mesmo condomínio e
tudo mais.
― Seria ótimo ― Ellen assentiu.
― Seu marido nada? Eu nunca o vi na piscina.
― Claro que ele nada. Eu acho que ele não tem
tempo.
Ellen deu-se conta de que não sabia realmente
se ele podia nadar ou não. Não conseguia recordar-
se de tê-lo visto alguma vez em uma piscina. Você
não pode saber tudo sobre uma pessoa, ela pensou,
mesmo sendo sua esposa. Você não irá preencher
todos os espaços em branco. (A história da mentira
voltou à sua mente. Eu tenho que lidar com isso.
Não posso apenas ignorar. Como?, pensou. Como
120
você lida com uma coisa dessa?) Ao lado do rosto
de Anna Rosenberg, através da cerca de arame, ela
podia ver o grupo de garotas estendidas uma ao
lado da outra na beirada da piscina: elas estavam
rindo, empurravam-se mutuamente para dentro
d’água. Oito ou nove biquínis iluminados pelo sol,
brincando como uma trupe de artistas de circo ama-
dor. Elas caíam desajeitadamente, os braços e per-
nas estendidos deselegantemente, cercadas por altas
risadas.
Biquínis, ela pensou. Eu pareceria uma idiota de
biquíni neste estado. E virou-se em direção a Anna
Rosenberg. Ela não estava usando um biquíni ―
apenas um maiô. Seria alguma nova moda? A mor-
te do biquíni? Talvez Anna se achasse a inovadora
por aqui, privilegiando o maiô em descaso ao bi-
quíni. Talvez ela tivesse algum pequeno defeito que
precisasse esconder ― a cicatriz de uma operação
ou alguma coisa do gênero. Ellen observava a últi-
ma garota a cair na piscina: uma exagerada cor de
laranja refletindo na luz foi consumida pela água.
― Eu nunca o vi na piscina, Anna tinha dito.
Bem, onde mais é que ela o via? E por que ficava
olhando?
Pare, Ellen, disse a si mesma, e abriu a porta do
Opel.
― Bem ― Anna Rosenberg disse. ― Vejo você
por aí, certo?
Ellen fechou a porta do carro e acenou. Avistou
121
a garota no reflexo do espelho, como um ícone
dourado. Dirigindo para fora do estacionamento,
deixou o condomínio.
Porque esta criança me incomoda?
Porque eu permito que ela me incomode?
Seu marido nada?
Qual era a questão em si? Talvez seja a sensa-
ção de familiaridade com que foi perguntada. Tal-
vez seja porque eu não sei a maldita resposta.
Ela desceu com o carro pela Scottsdale Road,
passou pela loja de carros usados, as lojas de arti-
gos para presentes, a difícil vida do comércio do
Oeste na sua contínua batalha com a vegetação do
deserto. Colocando a terceira marcha, ela pensou:
tomara que o deserto vença. Eu desejo que ele ven-
ça no final. Em sua imaginação ela vislumbrou um
retrato do pós-apocalipse ― um cacto solitário
crescendo sobre o entulho de um Cadillac destruí-
do. Já no restaurante, típico italiano com suas toa-
lhas de mesa em xadrez vermelho e velas habilido-
samente derretidas sobre garrafas de vinho ― o
tipo de lugar que você espera ouvir um rapaz de
barba tocando violão e cantando Little Boxes ― ela
perguntou a Vicky:
― Quando você estava grávida era normal es-
quecer coisas?
― Como se as coisas... escapassem deslizando
de sua cabeça?
Vicky acendeu um cigarro e forçou-o para den-
122
tro da cigarrilha com uma leve expressão distante.
― Acho que sim. Uma vez eu esqueci até de
transar com o Stan...
― Não me refiro a esse tipo de coisa, Vicky.
― Desculpe-me, mas você não está sendo clara.
Fica difícil entender o que você quer realmente di-
zer.
Ellen olhou para a mesa. Os restos do seu almo-
ço estavam ainda no prato ― fios de macarrão frio
sobre um molho coalhado.
― É complicado explicar.
― Deve ser ― concordou Vicky.
― Quero dizer, você já fez alguma coisa e de-
pois esqueceu de tê-la feito?
― Me dê um exemplo.
Ellen fez uma pausa. A blusa azul: ela tinha pro-
metido a si mesma não trazer mais o assunto à tona,
mas, por acaso, topara com ele.
― Bem, você alguma vez já perdeu uma roupa,
por exemplo? Eu quero dizer, já levou uma roupa
para lavar e esqueceu de tê-lo feito?
― Stan teve a decência de me dar uma lava-
dora-secadora. Não me sujeitava ao trabalho de ju-
mento que é ir até uma lavanderia.
― Vicky, seja séria, por favor.
― Apenas se você parar de dar voltas.
― Tudo bem. Eu perdi minha bata predileta.
Lembro de tê-la visto e, depois, sumiu.
Como aquilo soou? Bobagem? Ellen olhou para
123
seu prato mais uma vez; ela não falaria do roubo,
não tocaria na história da bata estraçalhada na pis-
cina, pararia antes deste ponto. Ela percebeu que
estava procurando algum tipo de apoio, uma expli-
cação sobre amnésia pré-natal. Pensou que estava
talvez procurando um gancho no qual pendurar a
versão de Eric para o incidente..
― Isso é tudo? ― Vicky perguntou, soprando a
fumaça do cigarro, olhando a espiral que formava.
― Eu estava sempre perdendo coisas, Ellen. Se
eu não tivesse energia para fazer pequenas listas
das coisas, acho que teria esquecido até o nome do
Stan, puxa vida. Você está falando de uma bata?
― Não é grande coisa ― Ellen respondeu enco-
lhendo os ombros.
Você esteve sozinha no quarto por alguns ins-
tantes. Você pode muito bem ter pego a blusa. Que
pensamento ― morda sua língua, Ellen. Ela olhou
para o chapéu de Vicky, a borda meio de lado sobre
a testa. O jeito “vaqueira”. Um conceito do Oeste.
― A gravidez faz coisas estranhas ― Vicky
afirmou.
― Acho que sim.
Mas eu não sou uma pessoa esquecida. Consigo
lembrar dos aniversários das pessoas. Sempre lem-
bro os números de telefone, mesmo que há muito
tempo não ligue para eles. Cristo, deixe isso ir em-
bora. Deixe isso passar. Por que preocupar-me ago-
ra? Ellen pegou seu café e sorveu um gole: estava
124
frio e amargo. Vicky apagou o cigarro, tirou cuida-
dosamente o chapéu e passou uma das mãos pelo
cabelo espesso que tinha. Ellen pensou, ela está
com uma aparência espetacular hoje, mesmo para
ela.
― E o seu caso com o tal homem dos equipa-
mentos para ginástica, vai indo?
― Acabou ― Vicky respondeu. ― Era eu ou os
bíceps dele. Os bíceps venceram. Já estou em outra.
― Outro homem casado?
Vicky, mexendo com o cinzeiro, respondeu:
― Ele é casado, mas acho que desta vez está
acontecendo algo especial...
― Verdade?
― Estou com os dedos cruzados. Vou contar
para você, criança, mas eu tenho experiência que dá
má sorte falar sobre pontes que você ainda não
atravessou. Sabe do que eu estou falando?
― Acho que sim ― respondeu Ellen.
Mas ela não faria tal coisa ― não era como
Vicky, misteriosa sobre seus relacionamentos, não
era sua personalidade. E completou:
― Mas eu não gosto de ficar no escuro.
― Nem eu pretendo deixá-la. Pode me chamar
de supersticiosa dessa vez.
Um sorriso leve, enigmático, um movimento de
mão através do cabelo: Ellen imaginou ter percebi-
do alguma coisa estranha, tanto na expressão quan-
to no gesto.
125
― Se der certo desta vez, você será a primeira a
saber de tudo. Acredite em mim.
Apesar dela mesma, apesar de desejar o melhor
para a amiga, Ellen percebeu-se simpatizando com
a desconhecida esposa da nova conquista de Vicky.
A pobre mulher acordada esperando pela volta do
marido noites afora, sentada no escuro de uma casa
bem cuidada, suspeitando que o marido estivesse
fazendo algo mais do que simplesmente ficando no
escritório até mais tarde. Não, ela não podia deixar-
se levar pela idéia de Vicky como uma destruidora
de lares, ela não podia condenar.
― Eu desejo para você a melhor sorte do mun-
do ― Ellen disse, tentando não soar com falsidade.
― Não soou exatamente convincente ― Vicky
afirmou.
Ainda o mesmo sorriso misterioso.
― Às vezes eu tenho a impressão, Ellen, de que
você não me aprova. Talvez você não concorde
com a minha moralidade.
― Eu não disse isso.
Às vezes você não precisa falar as coisas da
boca para fora para ser ouvida ― Vicky contestou.
De repente o sorriso desapareceu e, jogando a
cabeça para trás, Vicky riu.
― Está muito quente para um papo tão pesado.
Com esta temperatura, você não vai ter energia
para conversa fiada filosófica, vai?
Ellen sorriu. Talvez você não concorde com a
126
minha moralidade. Poderia ser verdade? Provavel-
mente ela estivesse menos próxima do comporta-
mento sexual de Vicky do que simpatizando com as
esposas traídas.
O garçom estava rodeando a mesa com a conta
na mão. Ellen não se importou com a intenção de
Vicky em pagar a conta e levantou-se da mesa indo
em direção à porta. O sol estava forte. (Que chova.
Por favor, que chova.) Vicky parou ao seu lado.
― Você precisa de uma carona?
― Eu vim em meu carro, esqueceu? ― Ellen
disse.
― E você é quem fala em amnésia?
Elas caminharam juntas pelo estacionamento.
Vicky parou ao lado de um carro. Não era o Mus-
tang que normalmente a amiga dirigia. Ellen olhou
para a pintura do veículo ― retinha luz com a tena-
cidade de um miserável. Absorvia c retinha luz com
determinação cega.
― Onde está seu carro? ― Ellen perguntou.
― Na oficina. Algo muito complicado para ex-
plicar. Este cachorrinho é emprestado da compa-
nhia ― Vicky respondeu chutando preguiçosamen-
te o pneu.
Um cachorro.
Um cachorro negro. Ellen sentiu o calor pressi-
onando as pálpebras.
― Ele não corre bem ― Vicky estava dizendo.
― Eu não sei por que a companhia investe nesse
127
tipo de coisa. Alemão e preto. Eu quero dizer, quem
precisa de um carro preto neste tipo de clima. Pare-
ce o carro fúnebre de algum anão desgraçado.
O carro negro. O carro fúnebre de algum anão.
Lentamente. Saindo do estacionamento. O car-
ro negro.
Ellen abriu os olhos. Vicky estava sorrindo.
― Olhe, eu estarei ocupadíssima nos próximos
dias. Chamo você quando vir uma luz no fim do tú-
nel. Certo?
― Certo. Está ótimo.
O bebê se mexeu. Ela imaginou ter ouvido um
eco. Um som abafado, da sua emoção: uma bofeta-
da contra as sensíveis paredes do útero. Vicky bei-
jou a amiga levemente nas faces, que a ficou obser-
vando entrar no carro e engatar a marcha à ré tão
rapidamente que os pneus cantaram. Vicky partiu
acenando, parecendo adorável e indiferente por de-
trás dos vidros do carro.
Ellen dirigiu-se ao Opel. O carro negro. O carro
pequeno e negro. Uma ameixa negra, ela pensou.
Você pode tornar-se uma ameixa seca neste clima
escandaloso. Então, enrugada, seca, você pode sen-
tar-se às noites com outras mulheres do mesmo tipo
desidratado e ficar jogando cartas indolentemente
enquanto criaturas do deserto andam furtivamente,
rastejam, do lado de fora da sua janela. Sua janela
negra.
O volante fervente do carro queimou a ponta
128
dos seus dedos.
Eu não sei nada sobre carros, ela pensou. Não
sei nada de nada. Nada. Não sei nada sobre carros
de nenhuma cor.

Ela percebeu por que não compreendia a razão


da mentira de Eric. Por um lado, a coisa toda pare-
cia, às vezes, tão trivial quanto sem importância;
em outras ocasiões surgia a discussão filosófica so-
bre a verdade em sua mente ― e, então, ficava
mais complicado. Mas ela também sabia que qual-
quer tipo de confrontação, mesmo leve e inocente,
seria prejudicial. Além disso, como uma erva dani-
nha crescendo em negra água parada, existia a pos-
sibilidade de Eric dizer outra inverdade para enco-
brir a primeira mentira ― isso ela odiaria realmen-
te.
Ellen sentou-se com seu marido na varanda de-
pois do jantar. A noite pressionava contra as pare-
des de vidro. A corretora de imóveis tinha dado um
destaque muito grande a este pequeno cômodo por
alguma razão: ela parecia olhar para a peça como
se fosse a principal qualidade da casa. A princípio
Ellen e Eric acharam o lugar bem divertidamente
agradável. Ei, nossa própria varanda! Com vista
para o deserto! O que nós vamos poder avistar da-
qui, hein? Monstrinhos rastejantes? Urubus? Por
fim, eles preencheram o lugar com muitas plantas e
móveis de vime. Durante o dia, quando o sol era
129
abrasador, o cômodo era um forno.
Eric assistira mais uma vez Jornada nas estre-
las ― um episódio intitulado “Sementes do Espa-
ço”, no qual Ricardo Montalban aparecia arrogante
e sobre-humano ― e viera para a varanda com seu
jornal sob o braço. Fumou seu cigarro enquanto a
mulher o olhava com um jeito estranho, procurando
nele algum sinal de cansaço, esgotamento, algo que
pudesse justificar o que Ralph Houseman dissera.
Muito trabalho. Eu não quero ver um bom homem
entrar em parafuso. Eu o observo, ela pensou,
como alguém que faz uma visita a alguém em um
hospital. Eu o observo e odeio fazê-lo.
Ele fechou as páginas do jornal, dirigiu-se até a
mesa de café e apagou seu cigarro. Cercado por
plantas, folhas e caules crescendo sobre as janelas,
ele parecia estranhamente etéreo e bonito, como se
tivesse saído de um quadro romântico. Ela inclinou
a cabeça para um lado e tentou capturar seu olhar,
mas ele parecia ausente. Deixou de lado o livro que
estivera lendo ― um título em atraso que ela pega-
ra na biblioteca, uma novelinha ruim sobre alguma
cidade no interior de New York tomada por uma
força desconhecida ― fechando suas páginas com
um certo barulho.
Eric olhou, sorriu e começou a levantar de sua
cadeira. Ela fechou os olhos por um momento. Por
que, em nome de Deus, era realmente tão difícil
aceitar a mentira? Não é o casamento um tipo de
130
acordo mútuo, de confiança, em que os dois estão
sempre abertos para o aprendizado?
― O que se passa nesta cabecinha? ― ele per-
guntou.
― Eu pareço tão óbvia?
― Desde o jantar. A menos que coloque isso
para fora, acho que você vai ter um ataque.
― Bem... ― ela ainda não conseguia tocar no
assunto.
Eric esperava por ela. Encostado em uma das
paredes de vidro, esperando, com o jeito de um ho-
mem que estivesse a ponto de bater os dedos impa-
cientemente.
― Eric ― ela falou.
― Acertou o nome.
O tom em sua voz: o que era aquilo? Cortante,
afiada, quase gelada. Como ela poderia parar este
tom?
― Eric... ― ela olhou para baixo, para a capa
do livro: azul-escuro com um amarelo-brilhante so-
bressaindo. ― Por que você mentiu?
― Menti? ― ele sorriu levemente. ― Quando
eu menti?
― A noite em que você se atrasou, Eric. Você
mentiu para mim.
O sorriso deixou sua face: pareceu ter sido dali
retirado com a rapidez das mãos de um ilusionista.
― Eu não me lembro...
― Você disse que estava discutindo novas estra-
131
tégias de trabalho com o Houseman...
― Isso...
Eu me odeio por estar fazendo isso, ela pensou.
― Houseman me disse que vocês estavam fa-
lando sobre algo mais. Algo sobre você estar traba-
lhando demais.
Eric riu:
― Você quer dizer que ele foi incomodá-la com
esta conversa fiada?
― Ele disse que estava preocupado.
― Preocupado? Olhe, desde que eu comecei a
trabalhar lá ele está preocupado com o meu ritmo.
Ele acha que eu trabalho demais, que vou ter uma
estafa. Pelo amor de Deus, eu não sei por que ele
incomodou você com estas bobagens.
Ela colocou o livro de lado.
― São bobagens, Eric?
― Pode ter certeza que são ― respondeu ele,
aproximando-se da cadeira da mulher, agachando
ao lado dela e tocando com as pontas de seus dedos
frios as costas de uma mão.
― É besteira mesmo, Ellen. Você não vê? Eu
quero dizer, você está vendo alguém que trabalha
até a morte por aqui? Hum? Pareço para você este
tipo de pessoa? Mostre-me onde está o tremor das
mãos, a palidez doentia e os olhos avermelhados?
Você vê algo parecido com isso?
― Não ― ela respondeu. Ele estava tentando
melhorar as coisas, mudar a situação.
132
― Houseman se preocupa como uma velha, El-
len. Eu estou apenas surpreso que ele invente uma
história dessas para cima de você numa época des-
sa. Não, droga. Eu estou mais do que surpreso. Es-
tou p-da-vida.
Ela olhou fundo em seus olhos. Era difícil dizer
o que ele estava pensando: era difícil segurá-lo,
descobrir onde ele estava ― e ela experimentou
uma sensação de abandono, um pequeno soco em
seu coração. Ele nunca parecera tão distante, ausen-
te, frio. A frieza que aparece às vezes, ela pensou.
Como soprar esta frieza para longe? Eu o quero
como ele é.― Eric, meu marido, meu amor.
― Então, por que você mentiu?
― Uma mentira branca...
― Mentira não tem cor, Eric...
― Foi inofensiva. Inofensiva e irrefletida. Eu
estava tentando livrar você de algum aborrecimen-
to. O que eu deveria dizer ― meu chefe acha que
eu estou a ponto de ter uma estafa? É isso? Com
que diabos eu deveria ser recriminado por não dizer
esta verdade? Você poderia ficar mal com isso, cer-
to?
― Talvez...
― Talvez não. Eu conheço você, Ellen. Eu sei
como você reagiria a este prato.
― Não é nada fácil saber a verdade sobre outra
pessoa, não é?
Eric riu novamente: ― Eu estava tentando pro-
133
teger você. Eu estava tentando resguardá-la da lou-
cura dele. Tire umas férias, ele diz. Você precisa de
descanso, Eric. Por que você e sua doce esposa não
pegam emprestada minha cabana em White Moun-
tains por uma semana? Eu ouço esse papo todo o
tempo, Ellen. Ele está errado. Ele está por fora.
― Você poderia ter-me dito isso. Você não pre-
cisaria mentir, precisaria? ― Ellen insistiu olhando
para o marido.
Ele mantinha os olhos fechados e balançava-se
quase imperceptivelmente de um lado para o outro,
como se o leve movimento pudesse levar a mentira
embora. A mentira ― era um martelo, as pancadas
de um martelo imbecil, quebrando uma superfície
frágil.
― Certo. Eu menti. Com as melhores intenções.
Mas eu menti. Não posso mudar isso.
Eric levantou-se. Ela o ouviu caminhando em
direção à cozinha, o som da água correndo. Um
copo quebrado na pia. Ela não se mexeu. Você está
reagindo emocionalmente, Ellen. Você está fazendo
um drama à toa. Você está se comportando como se
esta mentira fosse uma banana de dinamite coloca-
da sob os alicerces do seu casamento. Ele estava
tentando protegê-la. Era isso o que ele estava ten-
tando fazer. Você deveria amá-lo ainda mais por
esse motivo.
Ele retornou com um copo de água numa das
mãos e um pedaço de gaze enrolada na outra.
134
― Cortei minha mão ― ele disse.
― Deixe-me ver.
― Está tudo bem. Já parou de sangrar. Não é
nada.
Ela olhou para o sangue que manchava a gaze:
― Eu deveria olhar de qualquer jeito...
― Está tudo bem. Já chequei. Não sobrou ne-
nhum pedaço de vidro no corte.
Ela sentou-se em silêncio por um instante, di-
zendo depois:
― Eu sinto muito, Eric.
― Tudo bem. Eu também.
― Eu não quis acusar você ― insistiu Ellen.
― Eu merecia ― respondeu ele, bebendo sua
água com um certo exagero. O líquido descia pela
garganta fazendo barulho.
― Você sempre fez apologia da... verdade.
― Eu farei sempre ― ele disse, sentando-se di-
ante dela. As plantas pareciam novamente emol-
durá-lo. Seu rosto desaparecia na sombra, sombra
de caules e folhas.
― Vamos esquecer ― ela disse. ― Você con-
corda em esquecer?
― Eu concordo.
Ela suspirou. Eric levantou-se de sua cadeira,
caminhou devagar em direção a ela, ajoelhou-se e
colocou as mãos sobre seus ombros. Ele parecia in-
suportavelmente solene:
― Eu não quero que isto aconteça novamente.
135
Eu lhe prometo. Eu não concordo com mentiras. E
não sei mentir muito bem, aliás. Você tem minha
palavra ― não estou estafado como Houseman diz.
Eu acho até que é o contrário.
― Verdade?
― Verdade ― ele respondeu. A seguir levantou-
se, beijou Ellen e dirigiu-se até uma das janelas de
vidro. Colocou as mãos nos bolsos e permaneceu
ali parado por um tempo. Então sorriu e virou-se
em direção a ela. ― Sabe o que nós não fazemos já
faz um bom tempo? Não temos ido ao cinema.
Você gostaria?
― Claro.
Ela bocejou. Não queria ir. Não queria aquela
noite quente despencando sobre ela.
― Qual a sua preferência?
― Algo escapista ― ela respondeu.
― É tudo escapista ― Eric disse, consultando o
jornal.
No quarto, ela sentou-se diante da penteadeira.
A miserável mentira ― por que não conseguia var-
rer para fora como um monte de poeira, uma teia de
aranha? Tinha que ser: simplesmente tinha que
fazê-lo, senão era como uma ferida infeccionando
em silêncio, pronta a submergir em alguma ocasi-
ão, de uma mentira monstruosa.
Ela penteou os cabelos languidamente.

Você avista a luz escura da janela pintada.


136
Atrás da vidraça você percebe sombras que se
mexem. Você vê sombras de plantas.
Então as luzes se apagam. As janelas estão ne-
gras novamente.
Movimento, um movimento repentino.
Você prende a respiração e seu coração bate
forte e você se esconde atrás de um tronco largo de
uma palmeira, enquanto você espera em silêncio e
a noite grita ao seu redor.
Você os vê saindo do prédio. Sombras.
Ele parece tão bonito. Tão bonito. E a mulher
caminhando ao lado, o braço em tomo dele, tão
gorda e repugnante. Você não sabe como ele su-
porta tocá-la. E alguma coisa se revolve dentro de
você...
Escuro, profundo, ardente, você é toda envolvi-
da, arrebatada. Você percebe que precisa retirá-la
de sua existência, acabar com ela. Você compreen-
de o gelo da raiva dilacerando você por dentro,
frio, frio, frio, mais frio do que o mais frio. O re-
trato está errado, tudo errado, ela não combina
com ele, não combina com estar andando ao seu
lado de braços dados, carregando seu filho.
Você sabe que ele não esqueceu. Você percebeu
isso num momento de clareza. Você sabe que ele
nunca esqueceria você. Tempo, você pensa. Apenas
uma questão de tempo.
E você coloca sua mão no bolso.
O que você sente é a chave e a faca.
137
No escuro do cinema estava fresco. Ela sentou-
se e assistiu a uma série de eventos inacreditáveis
que ocorriam na tela e pensou: um filme imbecil.
Eric parecia estar gostando ― afinal, estava senta-
do com os olhos fixos e a palma da mão estava mo-
lhada quando ele segurou a sua. Quando o filme
acabou, ela levantou-se da poltrona e o seguiu:
mesmo o calor da noite parecia preferível ao tedio-
so espetáculo.
― Eu achei bom ― Eric disse.
Ela não quis contradizê-lo. Para quê? E se aca-
basse discutindo e ele se aborrecesse? Jesus, ela
não podia nem mesmo ser natural com seu próprio
marido.
O Datsun de Eric estava estacionado a uma pe-
quena distância dali. Enquanto caminhavam em di-
reção a ele, Eric parou, virou-se para a mulher e
perguntou:
― Você parece mal-humorada; é assim que
você se sente?
Ela deu de ombros e abafou um bocejo:
― Acho que estou um pouco cansada, é tudo.
Eu não gostei do filme, mas isso não era difícil.
Ele abriu a porta do passageiro para ela. Ela
sentou-se bem encostada em seu assento observan-
do as luzes de Scottsdale irem se afastando. Através
da janela aberta vinha um cheiro de comida exalada
pelos restaurantes. Por um instante ela sentiu fome,
138
mas logo passou. Virou-se para Eric, que dirigia em
silêncio.
― Em que você está pensando? ― ela pergun-
tou.
― Estava pensando sobre nosso bebê ― ele
respondeu. ― Estava sentindo uma antecipação do
que será.
Ela deixou a cabeça tombar no ombro do mari-
do. Calor confortável, um lugar seguro ― a preocu-
pação da mentira não combinava com o jeito de ser
deles, não havia um lugar para ela em suas vidas.
Antecipação, ela pensou. Havia algo de delicioso
nesta palavra. Havia um tipo de tranquilidade que
ela sentia na relação deles agora ― amor, seguran-
ça e tranquilidade, a coisa compartilhada, dividida:
nosso bebê. Duas simples palavras tinham o poder
de trazer à tona milhões de sentimentos. Ela fechou
os olhos, o tecido da jaqueta de Eric tocou seu ros-
to. Era um bom momento, um tempo bom. Quando
abriu os olhos novamente, ele estava estacionando
o Datsun no estacionamento do condomínio. Ele
ajudou-a a sair do carro. Ela instintivamente voltou
a olhar para a piscina ― mas não o manteve. Que-
ria apenas subir para sua casa.
Lá dentro, com exceção da luz brilhando sobre
o fogão, o apartamento estava mergulhado em es-
curidão. Caminhando adiante de Eric, Ellen entrou
na sala de estar e acendeu as luzes. Então, como se
tivesse sido atingida por um golpe no estômago,
139
começou a arfar.
Com dificuldade chegou ao sofá, sentou-se, os
olhos percorrendo espantados o ambiente.
Eric rapidamente dirigiu-se para seu lado:
― O que está errado?
Ela abriu a boca para falar. Nada saiu.
― Ellen, que diabos está errado?
― O cômodo... ― ela tentou falar, mas não
conseguiu terminar a frase, não sabia o que falar,
não tinha certeza do que falar e não parecer louca.
Ela apenas olhava para o marido: havia um jeito
apavorado em seu rosto. O bebê, ele acha que eu
estou tendo o bebê.
― O que sobre o cômodo?
― Você não... ― e fechou os olhos, encostando
a cabeça no sofá. Você não vê nada Eric? Não pode
dizer? As palmas das mãos dela estavam úmidas, as
axilas molhadas e ela tremia.
― Eu não o quê, Ellen? Pelo amor de Deus!
Lábios secos como giz, velho deserto difícil de
aguentar...
Ela fez um esforço de memória. Tentou voltar
atrás algumas horas no tempo. Tentou trazer à men-
te o passado imediato. Não conseguiu. Não conse-
guia juntar os pedaços do quebra-cabeças. Um
branco, terrível como um rosto humano sem feições
definidas.
― Este cômodo ― ela finalmente falou.
― Diga-me.
140
― Olhe para ele, Eric. Olhe este cômodo ―
disse ela, levantando-se do sofá e dirigindo-se rapi-
damente até a cozinha.
O mesmo, exatamente o mesmo. Alguém, ela
pensou.
Alguém esteve aqui.
Alguém esteve aqui.
Ela lembrou então da bata azul pendurada no
armário do quarto e que alguém devia ter estado
ali c a tirado e que a pessoa voltou na ausência de-
les e fez isso agora, fez tudo isso.
Ela estava a ponto de desmaiar e arfava muito.
Seus olhos estavam cheios de lágrimas.
Limpo. Os pratos sujos do jantar estavam no se-
cador de louças. As cascas das batatas assadas fo-
ram jogadas fora. A superfície de porcelana da pia
estava limpa. A mesa da cozinha estava arrumada.
Ellen cobriu o rosto com as mãos e pensou: eu não
me lembro de ter feito isto. Eu não me lembro de
nada disso.
Ela voltou à sala de estar, enquanto Eric olhava
para ela com uma cara de espanto.
Cinzeiros esvaziados, limpos.
Os livros nas estantes rearrumados em ordem.
A mesa de café polida.
Revistas e jornais empilhados de uma maneira
que você só vê quando é o primeiro paciente matu-
tino de um consultório médico.
O carpete tinha o aspecto de recentemente aspi-
141
rado.
Havia um cheiro de lustra-móveis no ar.
Eu não me lembro, não lembro, não lembro ter
feito estas coisas.
― Que diabos está errado, Ellen?
― Você não vê? ― sua voz soava entrecortada.
― Eu não vejo nada ― ele respondeu.
Então você está cego, você está cego.
Ela virou-se para o outro lado e dirigiu-se, tão
rápido quanto pôde, em direção ao quarto.
A cama tinha sido feita.
Os vidros de remédios na mesa de cabeceira es-
tavam obedecendo a uma linha imaculadamente
reta ― como se esperando para um exame.
No banheiro, a banheira não apresentava nenhu-
ma mancha, a porcelana reluzia.
Ela sentou-se na cama. Eric estava parado no
vão da porta.
― Você vai me dizer o que está havendo? ―
ele perguntou.
― Responda-me. Quando você chegou hoje do
trabalho, o que eu estava fazendo?
― Você estava se arrumando, eu acho...
― E este apartamento ― qual a impressão que
você teve dele?
Eric encolheu os ombros:
― Realmente, eu não sei.
― Você percebeu a bagunça que estava a cozi-
nha?
142
Ele riu:
― Não tenho exatamente o hábito...
― Estou falando sério, Eric. Esta droga de lugar
estava desarrumado? Estava?
― Eu não percebi, amor...
Ela fechou os olhos:
― Está arrumado agora, não está?
― Acho que sim.
― Está arrumado agora. E eu não consigo lem-
brar de tê-lo arrumado, Eric.
Ele estava em silêncio. Eric disse então:
― Você não pode querer lembrar de tudo, Ellen.
Eu quero dizer, o trabalho de casa é algo tão auto-
mático. Você não o faz pensando nele, faz?
Ellen abriu seus olhos e os fixou nele.
― Eu lembraria, Eric. Eu lembraria alguma
coisa desse tipo.
O marido caminhou em direção à cama.
― Ei, relaxe. Relaxe. Não é um grande proble-
ma, Ellen. Você simplesmente esqueceu-se. Você
teve aqueles problemas todos durante o dia; então,
esqueceu. Isso é tudo.
Não fui eu, ela pensou.
Eu não fiz isso tudo. Outra pessoa arrumou a
cama.
Eu não tenho energia para isso tudo.
Outra pessoa...
Ela afastou o rosto de Eric, sentindo-se repenti-
namente estranha, violada:
143
― Alguém esteve aqui enquanto nós estávamos
fora ― ela afirmou, tentando manter a voz num
tom calmo e racional.
Alguém. Quem? Ela esquadrinhou a mente com
desespero, lutando contra um sentimento de medo,
de um pânico crescente.
Vicky. Por que este nome aparecia em sua cabe-
ça de repente? Vicky, por que Vicky faria tal coisa?
Qual a possível razão que ela teria? Nenhuma. Ne-
nhuma, afinal. Vicky era sua amiga. Sua melhor
amiga. Quem mais poderia ter vindo aqui? ―
Anna, Anna Rosenberg? Onde, que diabos, estaria a
razão? Pense, pense, pense. Talvez Anna Rosenberg
esteja apaixonada por Eric. Talvez ela tenha ficado
doida de ciúmes. Talvez tenha estado aqui com al-
gum estranho ataque de destruição ― há todos os
tipos de loucura, dos mais diferentes tipos.
― Se alguém se deu o trabalho de entrar aqui,
você tem que admitir que é um estranho jeito de in-
vadir casas alheias, Ellen. Olhe ao seu redor. Você
percebe que algo foi roubado? Quero dizer, que
tipo de arrombador é esse que invade um aparta-
mento apenas para ver o lugar bem limpo? ― Eric
ponderou, colocando os braços ao redor da esposa e
a abraçando.
Ela apreciou o gesto de carinho. Ele continuou:
― Eu vou dar uma olhada por aí para ter certe-
za de que nada foi roubado.
― Por favor...
144
Alguém mexeu na minha cama, ela pensou.
Quem comeu meu mingau? Ellen sentou-se na pol-
trona e tentou relaxar. Deixou seus braços caírem
molemente. As pontas de seus dedos tocaram o ta-
pete. Tente lembrar. Tente! Por que nada aparecia
em sua cabeça? Por que o seu cérebro estava tão
vazio, tão abandonado?
Eric voltou de sua busca. Parou no meio do
quarto, mexendo com o pé na ponta do tapete.
― Eu dei uma boa olhada na sala de estar. Não
pude ver nada aparentemente estranho. Tudo pare-
ce como sempre. Sinto muito.
Sente muito? Por que ele sente muito?
― Vou dar uma checada aqui.
― Não se preocupe ― e a voz dela soou rouca,
entrecortada. ― Não foi nada. Eu provavelmente
fiz essa limpeza toda e esqueci.
Eric disse:
― Eu não falei?
― Eu sei, eu sei. Debite isso na minha conta.
Ela olhou para o marido. Ele estava na janela, a
silhueta ressaltada pela cortina transparente. Ela
gostaria de poder ver naquele momento o rosto
dele, sua expressão. Talvez ele estivesse preocupa-
do ― como ela poderia saber? Talvez tivesse a ex-
pressão de um homem que acaba de descobrir que
está sozinho com um maníaco.
Eu simplesmente esqueci de tê-lo feito.
Minha memória está falhando.
145
Não, ela pensou. Impossível.
Ellen percorreu com os olhos o quarto, lenta-
mente. Eu sei. Eu apenas sei. A cama estava estra-
nha. Ela odiava aquela sensação de ver seus objetos
fora de lugar. As lâmpadas. A mesinha de cabecei-
ra. O espelho. O vaso de flores pintado à mão. Eles
estavam estranhos. Tocados. Tocados e alterados.
E não fui eu. Eu não fiz estas coisas.
Eu sei disso.
Ela olhou para a cristaleira que abrigava as bo-
necas antigas. Alguma coisa estava errada, mas, por
um momento, ela não conseguiu saber o quê. Conte
as bonecas, faça a soma delas ― mas do que adian-
tava se não conseguia lembrar-se do número exato
delas?
Onze, Doze ― ela conseguiu lembrar-se.
Eric estava parado no meio do quarto e segura-
va o queixo à maneira dos detetives do cinema.
Ellen dirigiu-se à cristaleira. Novamente não ti-
nha certeza do número exato delas. Voltou para a
cama.
Quantas bonecas, diabos!
Ela deitou-se na cama, olhando para a cristalei-
ra, as facezinhas em porcelana, os lábios de queru-
bim. Se vocês pudessem falar, se alguém viesse
aqui e desse vida a vocês o que vocês me diriam?
Nós vimos alguém aqui. Nós vimos alguém em
seu quarto.
Ela esticou-se sobre o colchão.
146
Algo duro. Algo cortante pressionando contra a
base da espinha. Algo que jazia por debaixo das co-
bertas. Não olhe, ela disse a si mesma. Não puxe os
cobertores para olhar. Tente encarar apenas como
um sonho mau. Você estará bem. Tudo estará nor-
malizado. Abra seus olhos, Ellen.
Meus olhos estão abertos.
Ela esticou uma das mãos e, lentamente, come-
çou a puxar os cobertores.
Devagar. Devagar. De algum modo sabendo que
haveria algo de horrível por debaixo. Que tipo de
horror?
Quando ela retirou os lençóis, a sombra de Eric
foi a primeira coisa que viu. O que ela ouviu foi um
som quase engraçado que ele emitiu, o ar sendo ex-
pelido através dos lábios abertos.
A boneca estava estendida sobre o colchão.
Não ― parte da boneca.
― Jesus, Jesus, Jesus ― Eric estava dizendo.
Parte da boneca. Algo perdido.
E havia ainda algo muito estranho com o col-
chão.
Ele fora rasgado com crueldade, rasgado com
uma violência muito feroz. E dentro do buraco al-
guém enfiara a boneca.
Alguém colocara uma das bonecas antigas den-
tro do buraco ― mas a boneca não tinha cabeça, a
cabeça e o pescoço foram arrancados, então a coisa
que estava ali era senão um torso guilhotinado, as
147
pernas moles, os braços caindo para os lados.
A cabeça perdida.
Ela arregalou os olhos por um instante, então os
fechou.
Escuridão.

Nove

18 de julho

Ela podia ouvir as vozes deles na sala de estar


de uma maneira muito imprecisa. Sentou-se à mesa
da cozinha e o mundo em volta dela parecia flutuar,
como se nenhum dos objetos ao seu redor tivesse
uma existência palpável. Em alguns momentos sen-
tia-se flutuando numa sonolência entorpecedora,
em outros com os nervos próximos a um ataque
histérico; outros momentos ainda Ellen sentia-se
como se não fizesse parte dela mesma, como se
olhasse do alto para uma figura confusa na cozinha
branca. A boneca. Alguém cortou a cabeça da bo-
neca. Rasgou o colchão, enfiou a boneca lá dentro
dele de uma maneira obscena. E esta mesma pes-
soa ― quem quer que seja, quem quer que fosse
—, esta mesma pessoa, esta pessoa louca, também
limpou o apartamento. Você poderia olhar e olhar e
você nunca encontraria alguma ligação entre os
dois atos. Você poderia sondar, perscrutar sua men-
te, e não encontraria uma pista. Limpar, então cor-
148
tar. Cortar, então limpar. Ela abriu a boca e colocou
uma das mãos contra os dentes para morder com
força os nós dos dedos.
Quando Eric veio para a cozinha, foi seguido
pelo policial, um homem magro e lúgubre chamado
Patrick McDonald, que segurava seu caderno de
anotações aberto. A outra mão ele colocou num dos
bolsos de sua jaqueta fina, creme e preta. Ellen per-
cebeu que a roupa caía mal nele, como se fosse de
um número maior ou que tivesse dormido vestido.
Por detrás dele, atrás das frestas da janela da cozi-
nha, ela percebia que a escuridão se dissolvia nas
primeiras luzes do dia nascendo. Onde ficara o
tempo exato entre a descoberta da boneca e a che-
gada do policial? Ela simplesmente desconhecia.
Não poderia dizer. Ellen olhou para McDonald e
percebeu que ele e o marido trocavam olhares entre
si, gostaria de saber o que significavam ― seriam
sobre ela e a sua condição? Algum tipo de piedade?
Ellen não teve certeza de ter imaginado aqueles
olhares ou se eles tinham algum significado. Mc-
Donald pigarreou, mas sua voz continuou rouca ao
falar:
― Vocês chegaram do cinema por volta de 11
horas.
Papo furado, ela pensou. Aquilo estava cheiran-
do a papo furado.
― Nós já passamos por isso ― ela irritou-se.
― Para a ocorrência, Sra. Campbell. Eu sei que
149
vocês estão nervosos ― ele respondeu pausada-
mente e olhou para seu caderno de notas. ― Onze.
Vocês encontraram o apartamento limpo, arrumado.
Então acharam a boneca no colchão.
Ela balançou a cabeça e olhou para o tira. Ele ti-
nha um certo sotaque ― devia ser inglês, alguma
coisa na sua maneira carregada de pronunciar os er-
res. Os olhos dele: ela viu uma réstia de simpatia
neles. Uma bondade aborrecida.
― Alguém esteve aqui quando nós estávamos
fora ― ela disse. Será que soou histericamente?
Transtornado?
Eric apagou o cigarro na pia, fazendo um chia-
do irritante.
McDonald sentou-se à mesa, diante dela. En-
quanto olhava para o policial, Ellen pensava se Eric
teria falado com ele sobre a bata azul, porque agora
havia a certeza da existência de uma conexão entre
eles, mesmo que fosse um elo tênue e obscuro.
Eles devem estar ligados, não poderia ser de ou-
tra maneira. Ela olhou para o marido: ele estava
massageando suas sobrancelhas de um jeito cansa-
do.
McDonald fechou seu caderno de anotações,
empurrou a cadeira para trás:
― É estranho. Estou acostumado com coisas di-
ferentes, você sabe, mas essa é uma das estranhas.
O máximo que eu consigo pensar sobre isso é que
tenha sido uma brincadeira de péssimo humor. Há
150
pessoas com um senso de humor muito desagradá-
vel, Sra. Campbell. Você conhece alguém... alguém
com esse jeito?
Ela balançou a cabeça. Quem ela conhecia que
poderia fazer uma coisa dessas? Ela apanhou-se
olhando mais uma vez para Eric. Ele estava recos-
tado silenciosamente na pia de lavar louças. A blusa
― será que ele falou da blusa? Os lábios dela esta-
vam secos e precisavam de água, mas Ellen não ti-
nha energia sequer para pedir um copo de água. O
bebê estava chutando de uma maneira repetitiva,
monotonamente chutando contra o útero.
― Tente pensar, Sra. Campbell. Alguém que a
pudesse odiar. Alguém que quisesse demonstrar sua
hostilidade. Tente pensar.
Ela balançou a cabeça novamente. Ninguém.
Não tinha inimigos. Ela nunca tivera inimigos ―
nenhum que tivesse conhecimento. Mas como po-
deria explicar aquilo? Ela relembrou a noite que
pensou ter visto alguém a vigiando atrás das pal-
meiras, mas como poderia saber? Um engodo da
imaginação. Você se enrolou toda na coincidência
envolvendo carros negros. Você não pode simples-
mente juntar os dados e tirar uma conclusão sensa-
ta.
― Eu sinto muito ― ela disse, sussurrando.
― Alguém invadiu sua casa ― embora “inva-
diu” seja provavelmente uma palavra forte demais,
pois afinal eu não encontrei sinais de arrombamen-
151
to por aqui ― alguém entrou aqui, teve tempo para
fazer uma limpeza no lugar, cortou sua cama, ar-
rancou a cabeça da boneca e a enfiou no colchão...
Ele parou de falar, como se estivesse irritado.
Acendeu um cigarro, com o olhar de Ellen sobre
ele, que observou a boneca sem cabeça estendida
ao seu lado, com as pernas caídas para o lado. Por
que as bonecas parecem tão aterrorizadoras, ela
pensou. Por que bonecas quebradas parecem tão
perfeitamente ser parte de um sonho mau?
McDonald interrompeu seus pensamentos:
― Como eu classifico estes eventos?
É a desgraça do seu trabalho fazer isso, ela pen-
sou. É o que você supostamente faz para viver. Ela
estava olhando para as frestas da janela novamente,
feliz por ver o dia chegar, agradecida pelo fim da-
quela noite ― escuridão não era o que ela precisa-
va agora. Desejou que a luz invadisse tudo, mesmo
que isso significasse a chegada do calor. Ela pode-
ria suportar tudo agora, menos a escuridão.
― Seu marido me informou que não deu conta
do sumiço de nada mais. Ele fez uma checagem mi-
nuciosa por aqui. Nada. Então quer dizer que al-
guém passa por todos os perigos de uma invasão
para roubar a cabeça de uma boneca antiga. Isso
não me parece um roubo, Sra. Campbell. Não pare-
ce com nada. Eu me coloco na pele do larápio ― e
é óbvio o que eu pegaria. Um belo aparelho de
som. Quadros. Jóias. Não perderia meu tempo pre-
152
cioso limpando a casa e cortando cabeças de bone-
cas. Portanto, onde estas deduções nos levam? ―
ele empurrou sua cadeira para trás e sorriu, um pe-
quenino e pesaroso sorriso. ― Vocês sabem, se ti-
véssemos aqui alguma característica de um crime,
seria a existência de alguma coisa dentro da cabeça
da boneca. Narcóticos. Microchips. Quem sabe?
Ellen olhou para o tira. Dava para perceber que
ele estava brincando, uma tentativa de aliviar as
tensões. Ela olhou em direção à pia. Eric estava em
silêncio. Sobre o que estaria pensando?
McDonald ainda estava rindo.
Você está tentando, ela pensou. Eu gosto dessa
sua tentativa em me acalmar. Sinto muito por não
poder colaborar. O tira terminou de fumar seu ci-
garro e olhou em volta procurando um cinzeiro.
― Meu marido comentou com você sobre a
blusa? ― ela perguntou.
― Blusa? ― o policial pareceu surpreso.
Eric, por que você não disse para ele?
― Acho que me escapou da memória no meio
dessa confusão toda ― Eric falou.
― Então, falem-me agora sobre a blusa ― pe-
diu McDonald, cruzando os braços.
Ela lhe contou. No meio da história o tira per-
guntou:
― E você ainda tem a blusa?
― Eu joguei fora.
Ele nada respondeu. Apanhou um elástico do
153
bolso e começou a brincar com ele por entre os de-
dos como se fosse um estilingue. Poderia ser um
teste para a tensão, elasticidade. Finalmente, levan-
tou-se e caminhou pela cozinha em direção ao fo-
gão, olhou seu relógio, conferindo com o relógio
sobre o móvel. Por fim suspirou de uma maneira
fatigada.
― A menos que tenhamos uma terrível coinci-
dência acontecendo por aqui, eu tenho a impressão
de que se trata da mesma pessoa. E esse idiota tei-
ma em vir aqui no seu apartamento com uma só in-
tenção, parece, fazer brincadeira de mau gosto.
Sua voz soava zangada. Esse idiota. Ela apreci-
ou a atitude do tira, demonstrando falta de imparci-
alidade, como se ele não se adequasse à figura tra-
dicional exigida por sua função. Uma pessoa de
verdade, ela pensou.
― Doente, doente, doente ― ele estava falando.
― Por que o senhor não mencionou a blusa, Sr.
Campbell?
― Escapou da memória nomeio dessa confusão
toda... ― Eric parecia na defensiva, como um garo-
tinho apanhado colando no exame.
― Provavelmente escaparia da minha também
― disse o tira.
Ele caminhava de um lado para o outro. Por um
momento, Ellen sentiu como se ele estivesse a pon-
to de desvendar o mistério, numa daquelas visões
de detetive em que toda a charada se desfaz ― mas
154
isso é coisa de livros, pelo amor de Deus. Isso per-
tence ao mundo dos grandes detetives, que gastam
seu tempo cultivando orquídeas.
McDonald olhou para Ellen por um bom tempo:
― Eu quero que cheque seus pertences cuida-
dosamente. Confira suas jóias. Quero saber se algu-
ma coisa de valor foi roubada. Depois, eu gostaria
de que você me chamasse. Vou deixar meu cartão,
certo? ― ele disse, virando-se a seguir em direção
a Eric. Tão logo as lojas abram, quero que compre
uma fechadura nova para a porta da frente.
Suas maneiras se suavizaram repentinamente e
ele se dirigiu novamente a Ellen:
― E você deveria tentar descansar um pouco,
Sra. Campbell. Eu tenho quatro filhos em casa, já
passei por isso. Eu sei como é.
Ela ficou olhando o tira caminhar pelo corredor,
seguido por Eric, e sentiu um certo desapontamen-
to, anticlímax ― isso foi tudo? Nada além de um
interrogatório leve, algumas notas tomadas e um
cartão com o telefone dele? O que você esperava,
Ellen? A imediata apreensão do culpado?
O policial parou no vão da porta e virou-se com
um sorriso, dizendo:
― Eu não deveria estar ajudando alguém com o
sobrenome de Campbell, você deve saber. Eu tenho
na memória racial o que aconteceu em 1692.
― 1692? ― Eric perguntou.
― O Massacre de Glencoe. Você nunca ouviu
155
falar? O senhor não conhece sua história étnica, Sr.
Campbell? Os Campbell chacinaram os McDonald
enquanto estes dormiam. Seus antecessores eram
um tanto sanguinários. Assassinos sistemáticos.
Homens. Mulheres. Crianças. Nada era problema
para os Campbell.
― Eu nunca soube disso ― Eric disse.
McDonald abriu a porta, ainda sorrindo:
― Terei algumas respostas para vocês. Mas não
se preocupem sobre isso agora. Não se preocupem.
Sua mulher precisa descansar. Estarei em contato.
Então ele se foi.

Ela foi até a varanda e olhou McDonald cami-


nhar pelo estacionamento. Então, olhou para o céu
― meio escuro, meio claro, as estrelas enfraque-
cendo-se no lusco-fusco. Não havia ar; a manhã es-
tava quase sem vida, inerte. Quando entrou de volta
para o apartamento, trancou a porta da varanda.
Eric estava sentado no sofá, curvado para frente, as
mãos pendidas por entre as pernas. Ellen olhou
para o marido; ele estava pálido, esgotado. Ela sen-
tou-se ao seu lado e segurou suas mãos. Eric levan-
tou o rosto para olhar a mulher.
― Ele me colocou um pouco de culpa, não é?
― Eric disse.
― McDonald?
― Quando eu esqueci de falar sobre a blusa, eu
acho.
156
― Você apenas esqueceu ― Ellen falou.
Por que ela ficara repentinamente calma? Aqui-
lo não deveria estar acontecendo ― o intruso, a vi-
olação do espaço privado, a destruição insana das
coisas. Os botões da blusa. A cabeça da boneca. O
que estas coisas significavam? Ela poderia estar
olhando um incrível jogo de palavras-cruzadas cu-
jas chaves estivessem numa linguagem estrangeira
para ela. Ellen afagou os ombros.
― Eu não poderia ter esquecido ― Eric disse.
Ellen levantou-se do sofá e caminhou pela sala.
Parecia que ela deixara de lado a fadiga, estava na-
quele ponto em que o cansaço deixa de ser cansaço
e se transforma em outra coisa. Parou diante da es-
tante, quase estendendo a mão para tocar a lombada
dos livros ― mas não conseguiu, não conseguiu
fazê-lo. A estranha sensação de violação a tomava
novamente. Alguém. Alguém tocou estes livros, re-
arranjou-os. Colocou-os em nova ordem. Deixou a
mão cair ao largo pensando se algum dia desapare-
ceria aquela sensação de ter sido criticada, pilhada,
se o apartamento voltaria a ser algum dia sua casa.
Ellen virou-se para olhar o marido:
― O que leva alguém a... ― e a pergunta es-
vaiu-se.

Eric encolheu os ombros e levantou-se. Ela lem-


brou-se de repente de algo que a mãe falara: Lá
fora... querendo se referir aos monstros dos lugares
157
negros. Lá fora. Ellen olhou o sol nascendo, levan-
do embora as últimas sombras da noite. Ela nunca
ficara tão feliz com a chegada do dia.
― Eu não posso entender ― Eric disse. ― Está
fora de mim. Não faz sentido. Eu penso sobre isso e
não importa quão longe eu consiga ir, não posso
imaginar a cena.
Ela bocejou. Aquela energia que restava tinha
ido embora, e Ellen sentiu um profundo cansaço.
Precisava dormir ― mas sabia que não poderia vol-
tar no quarto, olhar para o colchão. Ela não quis re-
tornar aos seus aposentos. Eric havia apanhado o
tronco da boneca no balcão e o estava segurando.
Uma coisa estranha, um travesti, mole em seus de-
dos. Ela cerrou os olhos ― você tem figuras apare-
cendo por detrás das pálpebras, você vê uma som-
bra fechando a porta, mexendo em sua cama, tocan-
do em coisas, mudando coisas, interferindo em par-
tes da sua própria vida, as figuras vão se fundindo
umas nas outras e o que sobra é uma selvagem e
inexplicável sucessão de instantâneos sobrepostos.
Ellen deitou-se no sofá, tentando expulsar as
imagens da cabeça. Eric deixou a sala e retornou al-
guns minutos depois com um lençol, com o qual
cobriu a esposa.
― Onde você vai dormir? ― ela perguntou.
― Na poltrona ― ele respondeu. ― É um lugar
tão bom como qualquer outro, a essa altura.
Ele a beijou levemente no rosto.
158
Ellen olhou para o marido e tentou sorrir. Sabia
que os dois estavam tentando se confortar mutua-
mente, tentando encontrar uma força em comum,
algo que os unisse contra o que quer que tão cruel-
mente entrara em suas vidas.
Foi a primeira vez em semanas e o pior que ela
já houvera testemunhado. Acordou com a claridade
do dia, abruptamente, levantando o rosto para ver
Eric revirando-se, torcendo-se na poltrona. Sua
boca estava aberta, um buraco escuro, e sua testa
estava coberta de um suor de febre. Seus cabelos
estavam úmidos e aderiam ao couro cabeludo. Suas
mãos, agarradas aos lados da cadeira, pareciam es-
tar segurando algo precioso em seus punhos cerra-
dos. Ela levantou-se e caminhou até onde estava o
marido, inclinando-se sobre ele. Os sons que fazia
― um lamento baixinho, associado com dor, o ba-
rulho de alguma perda horrível.
Ellen colocou a mão sobre a cabeça de Eric. Seu
suor era gelado.
Aquele barulho. Aquele som.
Onde ele estaria? Por onde estaria passando? O
que via nessa viagem do seu cérebro? Nuvens, tem-
pestades, erupções ― que coisas terríveis passari-
am lá dentro? Quais seriam as coisas terríveis a que
ele tinha acesso?
Ela tentou colocar os braços ao redor dele e
algo o fez parar com os movimentos. Mas ele esta-
va tenso, enrijecido, duro.
159
Por favor, Eric. Saia desse lugar.
Saia desse pesadelo.
Ela pousou a mão sobre a boca do marido. Mas
pôde apenas abafar o som que ele emitia, não silen-
ciá-lo.
Eric afastou seu rosto da mão de Ellen, a ponta
dos seus dentes se cravando na extremidade da car-
ne macia do polegar da mulher ― uma ligeira dor,
um risco fino de sangue escorrendo pelas linhas da
palma da mão.
Ela colocou as duas mãos no rosto dele e come-
çou a dar pequenos tapas nas bochechas.
Inesperadamente, seus olhos abriram-se.
Mas ela pôde apenas ver a parte branca deles.
As partes brancas, nada mais. Olhos brancos. Para
o que você está olhando, Eric? Onde você está?
Então, as pálpebras fecharam-se novamente.
Ellen afastou-se assustada.
Depois, ele ficou muito quieto. Seu rosto pare-
cia em paz. Suas mãos relaxaram. Por um momento
ela sentiu-se aliviada, mas, então, percebeu um mo-
vimento nos lábios, um movimento estranho, como
se a boca estivesse ligada ao rosto por uma dobra-
diça. Ele disse algo desconexo, espaçado por pau-
sas. Algo que ela apenas reconhecia como sendo a
voz dele.
Ele disse:
― O bebê deveria viver.
Ele disse.
160
Ele disse. O bebê deveria viver.
Ela abriu os olhos quando sentiu as mãos do
marido pousarem sobre seu ombro. Eric estava
olhando para a mulher com uma expressão de quem
houvesse acabado de sair de um sono repousante.
― Aconteceu novamente ― ele disse.
Ela concordou com a cabeça.
― Foi ruim?
― Foi.
― O estranho é que eu não me lembro de nada.
Não consigo lembrar.
Ele beijou ao lado da boca da mulher. Os lábios
estavam frios como o centro de um cubo de gelo.
O bebê deveria viver, ela pensou.
Seria aquela a chave do pesadelo? Uma ansie-
dade oculta sobre o nascimento da criança? Medo
da morte ― um sentimento paternal sobre a vulne-
rabilidade de um natimorto. Era aquilo que vinha
na escuridão do seu cérebro adormecido e o machu-
cava tanto? Um bebê morto.
Ela colocou sua mão sobre a testa de Eric. Uma
dor estúpida atingiu sua cabeça. Seria algo mais,
algo além dessa razão? Mas o quê? Você pode pen-
sar até que seu cérebro se apague. Você pode ima-
ginar razões inumeráveis até que você se atole em
sua própria história. Culpa, ela pensou de repente.
Talvez houvesse uma culpa antiga o remoendo ―
algo que tentou manter afastado, uma coisa que se
rebelasse contra si através desse sonho recorrente.
161
Ela não gostou do caminho que tomava este pensa-
mento, não quis prosseguir por aí. O sonho volta,
volta sempre ― será que isso atingia alguma ques-
tão de consciência não assumida.
Não, Ellen. Não faça isso a si mesma. Ele está
apenas preocupado com o nascimento de um bebê
morto. É perfeitamente natural. Perfeitamente em
ordem. Qualquer pai poderia sentir o mesmo, as
mesmas ansiedades, os mesmos temores reprimi-
dos.
Ela passou a mão por sobre o estômago, acarici-
ando-se de leve e pensou: Você viverá, querido.
Você viverá. E todos os sonhos maus do seu pai de-
saparecerão para sempre.
Ellen sentiu o bebê mover-se dentro dela, um
movimento agradável, quase como se ele estivesse
querendo enfatizar sua existência.
Todos os sonhos maus desaparecerão.

Dez

22 de julho

Ela foi abrir a porta, respondendo à campainha,


imaginando alguns garotos de colégio pedindo do-
nativos ou um jovem pálido com uma enciclopédia
mostruário ― em lugar disso, emoldurado pelo
olho mágico, ela encontrou o tira, parecendo tão
cansado, tão deprimido, como estivera algumas
162
noites atrás.
Umas poucas noites atrás, ela pensou.
O que ela tinha feito para lidar com o episódio?
Como ela tinha feito para manter sua cabeça livre
da coisa toda?
Eu não consegui manter a história de lado, co-
locá-la em alguma caixinha fechada da memória,
anulá-la ― e ela volta com um gosto ruim na gar-
ganta...
Ellen viu o tira voltar-se. Ele mexia com os de-
dos de uma maneira nervosa.
― Eu estava pela vizinhança, Sra. Campbell.
Pensei em dar uma passada por aqui para ver como
vocês estão passando ― ele disse. ― Não quero
que a senhora pense que a estou vigiando ― e sor-
riu de um jeito iluminado. ― Quando vai nascer?
― Lá para setembro. É o estimado ― ela disse.
É bem reconfortante, ela pensou, ter um policial
aqui.
― Eu fiquei um pouco preocupado depois da
outra noite. Fiquei pensando nas coisas que aconte-
ceram.
Ela olhou para as mãos dele. Os dedos eram
manchados de nicotina. O que você descobriu? Ela
queria saber. Encontrou alguma pista vital? Desco-
briu um corpo no baú? Ela observou McDonald
mover-se em direção ao sofá: ele não se sentou.
― A verdade é, Sra. Campbell, a coisa toda me
deixou intrigado. Procurei um caminho e me perdi
163
nele. E não consigo entender a desgraça da coisa ―
ele afirmou parecendo desesperado. ― A senhora
checou para ver se algo mais sumiu?
― Nada mais ― ela respondeu. ― Nada que eu
tenha notado.
― A senhora pensou em seus amigos ― quero
dizer, pensou na possibilidade de que algum deles
pudesse fazer esse tipo de brincadeira com vocês?
Uma brincadeira? Por que diabos ela não era
engraçada, então? Ela balançou a cabeça.
― Eu não tenho muitos amigos, Sr. McDonald.
E os poucos que eu tenho não fariam uma brinca-
deira desse tipo comigo.
McDonald acendeu e depois deu uma tragada
em seu cigarro. Cinza caída em sua jaqueta. Ele ig-
norou aquilo. Ellen imaginou-o gerando sujeira por
onde fosse, derramando café, cerveja, entornando
vidros de tinta. De alguma maneira aquele alhea-
mento, aquela falta de jeito, era cativante: ele a fa-
zia lembrar um adolescente trapalhão. Ela não con-
seguia imaginá-lo dançando com a esposa sem pi-
sar nos sapatos dela.
― Seu marido trocou a fechadura? ― ele per-
guntou.
Ellen assentiu com a cabeça:
― Na manhã seguinte.
― Bom, bom ― ele parecia estar completamen-
te para dentro de si mesmo por um bom espaço de
tempo, contraído em seu próprio silêncio. ― Vocês
164
sempre trancam a porta quando saem?
― Acho que sim ― ela respondeu.
― Eu pergunto por que não encontrei nenhum
sinal de arrombamento naquela noite. Quem quer
que tenha entrado aqui deve ter usado uma chave.
Ou então a porta foi deixada destrancada...
― Como uma pessoa poderia ter a chave? ―
Só existem duas cópias...
Um olhar de irritação leve passou pelo seu ros-
to.
― Por que todo mundo acha que sabe o número
de cópias que sua casa tem? Isso me confunde. Mi-
nha experiência mostra que normalmente existe
uma outra cópia que ninguém se lembra. A chave
que todos esquecem. Por exemplo, o zelador do
apartamento? Ele deveria ter uma chave-mestra,
certo? E se o apartamento veio de uma venda ou
aluguel recente? O corretor teria uma chave, certo?
― Acho que sim...
― Alguém pode ter roubado a chave, feito uma
cópia dela e recolocado no lugar antes que alguém
desse conta. Não estou dizendo que isso aconteceu,
compreenda. Estou apenas apontando para a possi-
bilidade de chaves extras. Você tranca sua porta à
noite e pensa que está a salvo, segura, escondidinha
como uma pulga no tapete, mas esquece esse deta-
lhe das chaves, Sra. Campbell. Todo mundo pensa
assim. A senhora não é exceção.
Ela começou a imaginá-lo diante de uma plateia
165
de donas-de-casa, coordenando estudos sobre a se-
gurança no lar. Ela o viu gesticulando, ficando sé-
rio, expulsando a ameaça da “Chave Oculta”. Gatu-
nos nas moitas, sombras sob as árvores ― ninguém
jamais está salvo, senhoras, ninguém. Policiais e la-
drões. Vicky, ela pensou. Mas Vicky não fora a cor-
retora daquele apartamento. Vicky não estivera en-
volvida com aquela venda em particular.
McDonald disse:
― Eu não gosto de mistérios. Não gosto de blu-
sas rasgadas, colchões destruídos e bonecas quebra-
das. Às vezes tenho que dizer a mim mesmo que
vivemos num mundo cheio de mistérios que não se-
rão nunca resolvidos. Ninguém jamais encontrou a
Tábua dos 10 Mandamentos, encontrou? Ninguém
jamais explicou por que pode cair uma chuva de sa-
pos ou caranguejos do céu, não é? Batalha-se muito
para descobrir, mas tudo isso é ainda um grande
mistério.
Sapos e caranguejos e tábuas, ela pensou.
Olhando para o tira, perguntou:
― É assim que você classifica o que aconteceu
comigo? No mesmo saco em que coloca tábuas e
sapos e coisas que se chocam na noite?
Ele fez um pequeno gesto peculiar com as
mãos: como se dirigisse o trânsito num cruzamento
que estivesse com o sinal quebrado.
― Eu não disse isso, disse? As pessoas sempre
acham que o trabalho de um policial envolve misté-
166
rios, Sra. Campbell. Mistérios e soluções. Mas isso
acontece apenas às vezes. Normalmente, eu me en-
contro perdido na burocracia. Sufocado por relató-
rios.
Ele parou de falar e sorriu:
― Desculpe, perdi-me no meio do caminho.
Ellen sentou-se no sofá.
McDonald continuou:
― Alguma outra coisa estranha aconteceu desde
a última vez que eu a vi?
Ela chacoalhou a cabeça:
― A não ser algo que eu não tenha percebido.
O policial olhou para seu relógio, daqueles anti-
gos com corrente, que ele retirou do bolso da calça.
― Eu tenho um chamado para atender ― ele
disse. ― Apenas queria que a senhora soubesse que
não foi esquecida, se isso ajuda em alguma coisa.
Estou atento ao caso. Não se esqueça de me cha-
mar... ― ele parou de falar, com o rosto iluminado
por um sorriso e as mãos nos bolsos da jaqueta de
tira. Retirou uma coisa de lá e esticou-a na direção
dela. Era um pequeno pacote. Um pequeno enigma.
Ela o apanhou.
― Estava falando com a minha esposa sobre a
senhora ― ele disse. ― Ela me recomendou trazer
isso aí quando viesse por esses lados. Ela recomen-
da para o relaxamento das tensões.
― É muita gentileza sua. E dela.
Ellen olhou o pacote. Chá de camomila.
167
― Vou tentar isso, com certeza ― ela falou.
― Ela mandou dizer para a senhora fazer uma
xícara das grandes dessa infusão, se não conseguir
dormir.
― Você agradecerá a ela por mim?
― Agradecerei.
Agora ele se dirigia para o corredor. Diante da
porta de saída, virou-se e finalizou:
― Chame se precisar.
― Chamarei ― ela completou.
Chá de camomila: o que importa é a intenção.
Ele deu um sorriso e se foi, deixando para trás
um cheiro de fumo velho e o farfalhar da sua jaque-
ta enrugada.
Mais tarde, ela estava relutante sobre ir ao chá
mensal com sua mãe ― um chá ritual, um hábito
que sua mãe, aparentemente, adquirira durante uma
viagem a Londres muito tempo atrás. O lugar esco-
lhido nunca variava: sempre no restaurante de uma
dessas caras galerias de compras de Scottsdale, um
lugar com venezianas brancas e samambaias no
teto, que parecia revigorar sua mãe. Tão logo esta-
cionou o carro, Ellen apressou-se em direção do
atarracado prédio cinza em busca de uma proteção
contra os raios solares. Sua mãe já a esperava e
dava a impressão de um bibelô, com suas muletas
metálicas estacionadas próximo à mesa.
Tão logo Ellen acomodou-se em sua cadeira a
mãe disse:
168
― Você está horrível, querida!
Ellen não respondeu. Observava sua mãe ser-
vindo o chá ― um maravilhoso movimento do pul-
so para segurar o bule, gestos de quem está acostu-
mado com o ato. Sem respingos, gotas derramadas,
desperdícios. Toda a elegância da etiqueta preserva-
da.
― Você tem se alimentado e dormido apropria-
damente, Ellen?
― É difícil dormir, às vezes ― Ellen disse. ―
Arrastar o corpo através desse calor não é exata-
mente uma caixa de risadas.
― Eu entendo. Nada mais está preocupando
você?
A pergunta foi feita quase que com cuidado. El-
len olhou para o rosto da mãe: ela está esperando
que eu diga, Está tudo errado, eu preciso da sua
ajuda, mamãe... Eu não deveria jamais ter crescido,
não deveria ter crescido e casado e concebido esta
criança. Ela apanhou seu chá e sorveu um gole.
Uma camada de creme flutuava na superfície.
Olhou ao redor no restaurante. Todas as outras me-
sas eram de mulheres ― a maioria delas com os de-
dinhos levantados para segurar suas xícaras ― um
visual idêntico, prensadas no mesmo molde: ver-
sões antigas, ela pensou, dos clones do deserto de
Eric.
― Você está com olheiras. Seu cabelo está opa-
co. Você está com uma aparência arrasada, Ellen.
169
― Eu estou grávida, mãe. Não estou exatamen-
te ótima, você sabe. Não sou um modelo de roupas
para gestante.
― Estou simplesmente preocupada com você,
Ellen querida. Mães têm suas preocupações, você
sabe ― ela disse apanhando as mãos de Ellen e co-
locando-as entre as suas.
Os dedos estavam frios.
― As mães podem ver mais do que as pessoas
pensam. Você tem certeza de que não tem nada que
queira me contar?
Blusas e bonecas e um apartamento limpo, ela
pensou. Você abre uma caixinha diante da sua mãe
― e ― na mesma hora ― ela precisará ter o F.B.I.
investigando em sua varanda. Ela tem que interfe-
rir, tudo em nome da preocupação maternal. Ela fi-
xou o olhar em alguns biscoitos delicados em uma
bandeja: pareciam flores etéreas. Ela estava tentada
a apanhar um deles, certa de que iria se esmigalhar
por entre seus dedos. Eram daquele tipo de biscoi-
tos que só podiam ser tocados se você estivesse
vestindo luvas cirúrgicas.
A velha senhora disse:
― Mães e crianças devem manter uma certa
cumplicidade, Ellen. Você descobrirá isso logo.
Pausa. As mandíbulas frágeis mastigavam um
biscoito.
― Você já tentou leite quente antes de dormir?
Você deveria relaxar, querida.
170
― Eu odeio leite quente...
― Nós, frequentemente, odiamos as coisas que
nos fazem bem.
Provavelmente, Ellen pensou. Ela se perguntou
se sua mãe era um compêndio móvel de frases fei-
tas.
― Você sempre pôde odiar leite quente, Ellen.
Você era assim teimosa desde criança. Sempre gos-
tou de cuidar da sua própria vida. Um certo jeito
obstinado.
Por favor, Ellen pensou. Não aquelas narrativas
nostálgicas que acabam invariavelmente numa mis-
tura de meias lembranças factuais e sonhos fabrica-
dos. Lembranças dos vestidos de tafetá, aulas de
dança e piano e das Coisas Como Deveriam Ter
Sido. Ela sentiu a criança pressionando seu corpo,
uma repentina pontada ― poderia ser o joelho. O
bebê deveria viver, ela pensou. E aquela sensação
invadiu novamente sua cabeça: Alguém movimen-
tando-se através do apartamento vazio, espiando,
revirando tudo, talvez nesse mesmo instante em
que ela está sentada aqui futilmente com sua mãe.
Mas a fechadura foi trocada e existem apenas duas
cópias da chave, e Eric está com a outra. Duas cha-
ves.
― Você realmente parece nervosa, querida. Não
tome isso como uma crítica. Você parece aborreci-
da. Suas mãos estão tremendo.
― Não me sinto nervosa, Mãe ― Ellen respon-
171
deu.
A velha senhora suspirou:
― Vou-lhe perguntar diretamente. Eu não estou
querendo me meter ― mas está tudo bem com o
seu casamento?
― O que você quer dizer com isso?
― Quando eu vejo minha filha tão... derruba-
da... gostaria de saber se as coisas vão indo bem
com o coração, como se diz.
O coração? Que coisa antiga...
Não há nada errado. Eu acho que você está ven-
do coisas demais, Mãe.
As vezes eu acho que você gostaria de ver este
casamento desfeito, droga. Aí então você poderia
me mimar, consolar e falar Eu não disse?
― Mesmo que houvesse, Ellen, duvido que
você me contaria.
Ellen olhava para a mãe. Aquele olhar de dor:
era tão melodramático que chegava a ser engraça-
do. Aquele olhar de dor dissimulada queria dizer:
Está certo, deixe-me do lado de fora da sua vida,
não tenho nada a ver com isso, sou apenas sua
mãe, apenas carreguei você por nove dolorosos
meses. Ela sentiu-se subitamente exausta, esgotada
pela temperatura, pela gravidez, pela companhia
imposta da mãe. Ellen olhou para as mãos da velha
senhora cobrindo seu pulso.
― Eu amo você, querida ― ela falou. ― Sinto
muito se eu demonstro isso da maneira errada.
172
Uma candidata nata ao martírio. Sinto muito se
eu demonstro isso da maneira errada.
― Não é isso, Mãe. É que às vezes...
― Às vezes o quê? ― perguntou a velha senho-
ra com as sobrancelhas arqueadas, uma expressão
de espera no rosto.
― Às vezes eu tenho a impressão de que você
gostaria que eu não tivesse saído de casa, que eu
não tivesse casado. Às vezes eu acho que você pen-
sa muito em como eu era e não o suficiente em
como eu sou agora.
― Alguma vez eu já falei estas coisas?
― Não através de palavras, Mãe...
― Então você está lendo nas entrelinhas aquilo
que certamente não existe, Ellen. Acontece de eu
pensar que você poderia ter feito um casamento
melhor, mas não tenho nada a ver com isso. Eu te-
nho a ver com a sua felicidade. É tudo o que me in-
teressa.
Era estranho, pensou Ellen: o martírio da mãe
fazia-lhe o efeito de um sedativo forte. As pálpe-
bras dela começavam a pesar.
― E, se Eric a faz feliz, então está tudo bem
para mim.
― Ele faz, Mãe. Honestamente. Ele me faz fe-
liz.
O que eu estou fazendo, ela pensou. Eu pareço
estar diante do juiz para advogar a minha causa. Eu
não preciso disso.
173
― Eu o conheço tão pouco...
― Você poderia conhecê-lo melhor ― Ellen re-
trucou.
― Suponho que sim.
Sua mãe deu a impressão de estar voando agora,
recordando-se de algo. Então, seus lábios cerraram-
se, esticados por uma linha ― como se tivessem
sido costurados juntos.
― Por outro lado, ele poderia fazer um esforço
para me conhecer melhor.
Mas você o despreza, ela pensou. Você não o re-
cebeu exatamente de braços abertos, não é? Não se
esforçou para fazê-lo sentir-se à vontade. Pelo con-
trário, você o olhou de cima. Você o desaprovou.
Tudo porque ele não é bem-nascido, como você diz
com seu jeito antiquado.
Subitamente sua mãe falou:
― Quando você anunciou sua intenção neste
casamento, meu primeiro impulso... meu primeiro
impulso foi contratar um detetive particular para in-
vestigar o passado dele.
― O quê?
― Eu não fui em frente com isso, é claro. Nin-
guém quer estranhos envolvidos nos problemas de
família, afinal de contas.
Um detetive particular. Isso era imundo e re-
pugnante. Um olhar investigando a vida de Eric,
analisando suas ações, descobrindo seus casos.
Como pôde sua mãe ter considerado tal possibilida-
174
de? Como? Ela sentiu-se zangada: esta pequena e
sórdida confissão da mãe. Era esta a noção que ela
dizia ter de amor, de preocupação?
― Eu acho isso repugnante ― Ellen disse. ―
Não posso acreditar em você.
― Minha querida, eu não fui em frente com
isso.
― Você pensou nisso, pensou...
― Não por muito tempo...
― Quanto tempo é muito, Mãe? É o pensamen-
to que conta, bela droga.
― Não pragueje, Ellen. E, por favor, mantenha
sua voz baixa.
― Está preocupada que eu aborreça as matro-
nas daqui? Que eu provoque um ataque de ansieda-
de nas viúvas?
― Você está muito agitada, querida...
― Um detetive particular, Cristo! Acho difícil
acreditar que você tenha considerado tal coisa!
― Eu estava tentando ser honesta, Ellen.
Honesta, claro. Limpando a sujeira. Tranquili-
zando sua consciência. Se isso é o tal amor de mãe,
dá-me bons argumentos em favor do matricídio.
Ela afastou a cadeira da mesa.
― Acho que vou indo, Mãe.
― Ellen, querida, você não deveria ficar decep-
cionada comigo. Afinal de contas, eu apenas consi-
derei tal possibilidade. O fato de eu não ter coloca-
do o plano em andamento não é algo a meu favor?
175
― Sim ― Ellen disse. ― É algo a seu favor. Eu
gostaria de saber o quê.
― E, afinal, eu contei a verdade para você.
― Pelo qual agradeço-lhe.
Ellen foi-se embora. Ela ouvia os saltos de sua
sandália penetrando no grosso tapete. Um olhar in-
discreto, ela pensou. Era loucura, era terrível imagi-
nar que sua própria mãe pudera ter contemplado tal
possibilidade.
Mas ela não fez isso efetivamente, Ellen.
Ela apenas pensou nisso.
E você irá crucificá-la pelos seus pensamentos?
Não seja tão dura com ela, não a julgue tão
grosseiramente.
Lá fora, o sol queima o dia, deixe isto se dissi-
par.
Ela atravessou o estacionamento e viu o Bentley
marrom da mãe parando ao lado do seu carro, Hat-
tie Dalrymple no volante. O que fazia Hattie lá? Di-
rigindo naquele calor, esperando sua patroa voltar.
Aquilo não era um tipo de vida que Ellen gostaria
de levar e, por um momento, sentiu pena da mulher.
Hattie freou o carro e abriu a janela. Eu não posso
parar para conversar, Ellen pensou. Está muito
quente, muito sufocante.
― Você precisa ir a algum lugar? ― Hattie per-
guntou.
― Estou indo até meu carro...
― Indo? Você parece que está participando de
176
uma corrida, Ellen.
― O calor. Não posso suportá-lo.
― O calor da sua mãe, você quer dizer?
Ellen sorriu quase cordialmente. Perguntou-se
sobre o quanto Hattie compreendia com relação à
sua mãe e Eric, sobre o quanto havia sido falado
para ela. Havia um olhar de onisciência no rosto de
Hattie, uma expressão que fez Ellen sentir-se des-
confortável. Ela transferiu o peso de um pé para o
outro. Ao longe avistava seu Opel.
― Um dia ― Hattie disse. ― Um dia, quem
sabe?
O comentário enigmático pareceu suspenso no
ar.
― Um dia eles poderiam se dar bem.
― E as vacas poderiam voar, Hattie.
Hattie olhou para longe por um instante, aparen-
temente fechada em um pensamento. Quando vi-
rou-se novamente em direção a Ellen, estava sorrin-
do. Hattie disse:
― Você deveria trazer seu marido para casa al-
gum dia, Ellen. Você colocaria os dois frente a fren-
te. Às vezes é necessário dar um empurrãozinho,
você sabe?
Ellen encolheu os ombros. Sentiu-se como uma
planta murchando no calor. O Opel parecia sumir
ao longe. Outra ilusão de ótica.
― O que você acha que o seu marido acharia da
idéia? ― Hattie perguntou, e perguntou de um jeito
177
que era óbvio que não esperava uma resposta.
― Odeio pensar ― Ellen respondeu.
Hattie olhou para ela por um instante e disse:
― Acho melhor eu deixá-la ir até seu carro an-
tes que você derreta, Ellen.
Ellen acenou com a mão de um jeito cansado
enquanto Hattie fechava a janela. O Bentley partiu.
Ela atravessou tão rápido quanto pôde o estaciona-
mento, abriu o Opel e entrou. O interior do carro
parecia a fornalha de um ferreiro. Este inferno, ela
pensou. Este calor, este inferno.

Você pensa: eles trocaram a fechadura. Eles


mudaram a fechadura da porta. Foi provavelmente
sugestão dela. Ele não desejaria jamais deixar que
você ficasse para fora. Não ele, nunca. Você ri.
Esta idéia. Algo tão simples quanto uma fechadura
que não poderia deixá-la fora do coração dele.
Traves ou ferrolhos ou cadeados não poderiam ja-
mais mantê-la fora do lugar que lhe pertence.
Não mais camisas-de-força.
Subitamente uma lembrança antiga surge em
você, afaz retorcer-se. Seus braços se retesam.
Suas mãos paralisam-se.
Camisas-de-força.
Mas nada poderá mantê-la longe dele.
Você não precisa viver no passado. Você sabe
disso. Você traz o rosto dele novamente para den-
tro da sua cabeça e percebe que existe um futuro
178
adiante, um futuro para ambos.
Você sente o calor do dia agora. O sol poderia
não existir. Poderia explodir. E tudo que existe em
volta do estacionamento poderia desaparecer.
Tudo em você é a consciência desse singular senti-
mento de ódio enquanto observa a gorda arrastar-
se em direção ao carro dela.
Desgraçada, puta.
Mas ela ainda não sofreu de verdade, sofreu?

Ellen deitou-se na cama e sentiu o frescor do ar-


condicionado. Ela precisava acalmar-se. Precisava
voltar à rotina, ao corriqueiro. De tão abertas que
estavam suas pernas, Ellen tinha a impressão de
que o ar fresco se movia diretamente para seu um-
bigo. Ao mesmo tempo que desejava dormir, dese-
jou ter energias para ir até a cozinha e preparar algo
para o jantar de Eric. Finalmente, forçou-se a le-
vantar e verificar se havia algo na geladeira: ela en-
controu um pouco de carne para hambúrguer e pas-
sou a prepará-la preguiçosamente. Quando já havia
colocado os bifes no forno, ouviu a campainha da
frente tocar.
Com o olho no visor, cuidadosamente agora, ela
percebeu o rosto de Anna Rosenberg em meio à
distorção das lentes. Confusa, abriu a porta. A garo-
ta, com seus cabelos amarelos presos para trás com
grampos pretos que lhe davam um ar tipo década
de 1940 ― uma do trio, Ellen pensou, estava ves-
179
tindo roupa de banho e tênis. Tinha uma aparência
mais adulta daquela já conhecida por Ellen. O esti-
lo “The Andrews Sisters” talvez; de qualquer jeito,
aparentava estar com seus vinte e poucos anos em
vez dos reais quase vinte.
― Oi, Ellen.
Goma de mascar: um pedaço cor-de-rosa na
boca aberta. Ellen percebeu então que estava ves-
tindo apenas uma combinação, um delicado tecido
prateado que não disfarçava nem um pouco suas
formas.
― É uma surpresa ― Ellen disse.
Ela segurava a porta aberta, tentando a impossí-
vel tarefa de manter seus músculos do estômago
contraídos, puxando o umbigo para dentro. Esta ga-
rota está me afetando de novo, mexendo comigo.
― Você não se importa, não é? Eu quero dizer,
eu pensei em dar uma olhadinha em você. Ver
como você vai indo.
― Que bondade a sua ― respondeu Ellen, en-
quanto a garota entrava pelo corredor afora, em di-
reção à sala, como se soubesse aonde ir. Mas é cla-
ro que ela tinha que saber onde era a sala ― seu
apartamento deveria ser uma duplicata desse. Ellen
seguiu a jovem vagarosamente. A combinação, meu
Deus ― por que não pensou em colocar um robe
ou outra roupa qualquer?
Anna Rosenberg estava esperando no meio da
sala. Por um momento, como se estivesse distraida-
180
mente fazendo um exercício de balé, Anna parou
sobre uma perna só. Depois olhou ao redor como se
estivesse procurando alguma coisa em particular.
Fixou-se primeiramente na lombada dos livros e
depois dirigiu-se ao conjunto de som.
― Ei, que belo material! ― Anna disse, já reti-
rando a capa de plástico preto da vitrola.
― Foi Eric quem escolheu. Ele ó daqueles que
sabem de tudo sobre o assunto.
― Ele teve bom gosto. É um sistema de som
ótimo.
A garota ligou um botão, e logo a seguir um
som de música clássica vindo da rádio FM invadiu
o ambiente. Ellen reconheceu um dos modernos,
talvez Bartok, talvez Schoenberg. Mas não teve
certeza. Ela observava a menina desligar o interrup-
tor.
― Realmente bom. Ele ouve muita música
clássica?
― Eric? Às vezes. Depende do humor.
Por que você quer saber sobre meu marido? Por
que você tem de fazer perguntas sobre ele? Ellen
olhava para o brilho dos cabelos de Anna, a brancu-
ra do seu sorriso. Percebeu como era quase impos-
sível adivinhar a idade da garota ― ela poderia es-
tar entre 17 e 27 anos. Talvez o sol estivesse estra-
gando sua pele, ressecando-a.
― Eu prefiro o rock, acho ― a garota disse. ―
Eu imagino que a música clássica está fora do meu
181
padrão.
Anna franziu o cenho e olhou para Ellen, os
olhos parecendo cair sobre o estômago da outra ―
que expressão. Ellen tentou adivinhar ― o que que-
ria dizer precisamente? Um olhar de triunfo? Esta-
ria a rainha do deserto mentalmente comparando
seu talhe delgado com a gordura de Ellen?
― Eu vejo seu marido sempre ― a jovem con-
tinuou. ― Ele é muito amistoso.
― Estou feliz com isso ― Ellen respondeu.
Muito amistoso. Como ela poderia interpretar isso?
― Ele sempre diz oi quando eu o vejo ― Anna
Rosenberg insistiu.
― Bom.
A garota quedou-se em silêncio por um instante,
olhando para os livros nas prateleiras. Se alguns da-
queles títulos dizia algo para ela, se eles tinham al-
gum significado, ela não disse. De repente, alcan-
çou e retirou os grampos do cabelo e balançou de
tal maneira a cabeça que a cabeleira derramou-se
por sobre os ombros. Ellen observava a cena com
um certo desânimo: ela tinha cabelos magníficos.
Eram quase da cor do sol.
― Que tipo de trabalho ele faz?
― Ajuda a levantar dinheiro para caridade ―
Ellen respondeu.
― É mesmo? Quer dizer que ele trabalha para
algum tipo de fundação?
― Algo do gênero.
182
― No centro da cidade?
― No centro, certo ― Ellen disse. Hora das
perguntas e respostas. Esta criança, ela pensou ―
esta garota parece ter uma paixão juvenil por Eric.
Era óbvio que ela não tinha vindo ao apartamento
de Ellen para ver como a amiga estava indo ― ao
contrário, estava aqui para vasculhar a intimidade
da vida de Eric.
― Eu nunca vou ao centro da cidade ― a garo-
ta afirmou. ― É uma chatice. Trânsito. Calor. Todo
mundo se mexe como se o mundo fosse acabar no
próximo minuto, você sabe? Corre daqui, corre
dali. Eu prefiro algo do tipo ficar por aqui e viver
minha vidinha.
E cheirar as flores, Ellen pensou.
Anna Rosenberg movia-se pelo cômodo.
― Eu gosto da maneira que você colocou este
lugar. Dá uma impressão boa. Calorosa, hospitalei-
ra. Eu gosto disso. Eu tenho sentimentos sobre os
lugares tão logo entro neles. Isso acontece com
você?
― Oh, todo o tempo ― Ellen respondeu.
A garota parou na porta da varanda. Olhou para
fora, aparentemente na direção da piscina. Talvez
estivesse procurando por Eric, Ellen pensou; talvez
planejasse ficar aqui até Eric chegar.
― Ele ganha muito dinheiro?
― Eu acho que ele está feliz com o que faz ―
Ellen disse.
183
― Eu imagino que deveria estar ― a garota re-
plicou virando o rosto e sorrindo. Um sorriso ambí-
guo, Ellen pensou, o tipo de olhar que poderia fa-
cilmente estar contendo um certo duplo sentido.
Ellen ficou em silêncio. A outra presença a esta-
va sufocando, ela desejou ficar sozinha consigo
mesma. Uma desculpa, invente uma desculpa. Por
um momento ela não pôde pensar em mais nada ex-
ceto em alguma coisa que rodava e rodava em sua
cabeça como um pequeno animal preso numa ar-
madilha. Esta garota está interessada em meu mari-
do. Esta garota está clara e obviamente interessada
em meu marido. Ellen sentia-se indefesa, despida
de suas armas emocionais, destituída de atrativos
sexuais ― cm sua cabeça ela estava se consideran-
do uma derrotada. A ponte levadiça está chegando
perto, os guardas já abandonaram seus postos ― e
o castelo tomado é o meu casamento. Bom Deus,
Ellen, o que você está pensando? Eric não tem inte-
resse nenhum nessa coisinha insignificante. Eric
não poderia ter algum interesse. Ela encolheu o es-
tômago.
― Anna ― você não me levaria a mal se eu for
me deitar um pouco? Ordens médicas ― Ellen sen-
tiu-se sorrindo. ― Você sabe como são os médicos.
Por um segundo, a garota pareceu desapontada.
Depois, já recuperada, dirigiu-se para o corredor ―
um movimento rápido, quase um salto.
― Olhe, se você precisar de alguma coisa, se
184
houver algo que eu possa fazer por você, eu moro
no 16-C. Chame a qualquer hora. Geralmente esta-
rei em casa.
Ellen a seguiu até a porta.
― É muito gentil de sua parte, Anna. Não vou
esquecer.
A garota abriu a porta, parou, olhou para trás
com um sorriso luminoso. (Ela deve polir estes
dentes, Ellen pensou. Ou então os pinta com algum
material branco. Você não nasce com esse tipo de
brilho, nasce?)
― Vejo você por aí ― ela disse.
― Vejo você ― Ellen respondeu. Ela cerrou a
porta e apoiou-se nela por um momento, tentando
entender por que a presença daquela garota a deixa-
ra tão tensa.
Ellen ressentia-se dos seus próprios pensamen-
tos selvagens, ressentia-se do aspecto inchado.
Logo, Ellen, logo. Quando você puder exibir suas
novas formas na piscina c mostrar para Anna Ro-
senberg algo que ela não suspeita existir ― isto é,
uma mulher atraente por baixo deste corpo bojudo,
desse cabelo escorrido e esta aparência cansada.
Logo, logo.
Quando o telefone tocou, correu para ele desa-
jeitadamente ― um detetive particular, ela pensou.
A lembrança do caso ainda a irritava, a chateava.
Por um instante não entendeu a voz do outro
lado da linha. Era uma voz de mulher, clara e agra-
185
dável, uma voz acostumada a transmitir suas men-
sagens com rapidez, eficiência e ainda melodia. A
mulher pediu para falar com Sr. Campbell.
― Ele ainda não está cm casa ― Ellen disse.
― Oh... ― a mulher respondeu parecendo sur-
presa.
― Eu posso anotar um recado para ele.
Houve um silêncio. Ellen imaginou ter falado
algo errado, transgredido algo. Ela não sabia como.
― Você é a esposa dele?
― Sim.
Por que isso era importante? Por que ela preci-
sava ser a esposa de Eric para anotar um simples
recado?
― Você poderia avisá-lo que o Dr. Ely não po-
derá vê-lo amanhã à tarde? Você poderia avisá-lo?
― Dr. quem?
― Ely. E.L.Y. Você poderia passar-lhe este re-
cado, Sra. Campbell?
― Claro que sim.
― Obrigada.
A ligação foi então interrompida rapidamente,
como se o que fora combinado tivesse importância
nacional, tipo questão de segurança. Ellen colocou
o fone no gancho, abriu a porta do forno e ficou
olhando para os tristes hambúrgueres. Dr. Ely, ela
pensou. Jamais ouvira Eric mencionar este nome
antes: nunca o ouvira falar sobre consultas com um
médico. O que estava errado com ele? Ela gostaria
186
de saber se haveria talvez algo a ver com a tensão
de que falara Ralph Houseman ― mas Eric dissera
que tudo não passara de ansiedade do próprio Hou-
seman. O que, então? Irritada, bateu a porta do for-
no, experimentando um estranho sentimento de
medo, como se tivesse penetrado num segredo da
vida de Eric, um sentimento tão intenso e tão ines-
perado como aquele que acompanhava as suas pe-
quenas mentiras. Como arrancar as pétalas de uma
margarida ― você conhece este homem, você não
conhece este homem, você conhece este homem,
você não o conhece. Como se tirando os pedaços da
planta e os atirando ao acaso contra o vento poderia
encontrar uma resposta.
Ela sentou-se à mesa da cozinha.
Dr. Ely.
Quem diabos seria este Dr. E.L.Y.?
Ely. Ely. Ely.
Eric estava em casa. Ouviu seu assovio monóto-
no e logo ele estava na cozinha, deixando cair o ca-
saco na entrada. Ellen olhou o marido, feliz por vê-
lo e confusa por sua chegada súbita, de um jeito
que ela não gostou. Eric afrouxou o nó da gravata e
inclinou-se para beijá-la no rosto.
― O que aconteceu? ― ele perguntou.
― Por que você pergunta isso?
― Eu não sei. Você parece...
Ele encolheu os ombros, abriu a porta do forno,
olhou lá dentro. Ellen observou a luz acender e des-
187
ligar automaticamente.
― Como pareço?
― Como você sempre parece quando é o dia do
chá com a mamãe. Ela lhe proporcionou a tarde di-
fícil de sempre, hum?
― Mais que o normal.
Ellen levantou-se e desajeitadamente abriu a ge-
ladeira para olhar o que havia dentro. Teve a sensa-
ção de que as coisas se desfaziam invisivelmente,
como se os agrotóxicos tomassem forma por baixo
dos vegetais frescos. Afinal, o que eu estou fazendo
olhando dentro da geladeira? O que estou esperan-
do encontrar. Ela sentiu Eric tocá-la nos ombros e
gentilmente iniciar uma massagem nos músculos.
― Você está rígida. Está tensa ― ele disse.
― Eu estou tensa?
― Estou sentindo assim. Seu corpo a trai, crian-
ça. Talvez você devesse deixar de lado estes terrí-
veis encontros mensais por um tempo...
― Talvez eu devesse.
Estou ficando boba e mal-humorada, ela pen-
sou. Estou agindo como uma criança malcriada,
uma dona-de-casa mimada. Estou admitindo a pos-
sibilidade de um segredo para arrancá-lo com mi-
nhas mãos. Ela virou-se e encarou o marido. As
mãos deles penderam para os lados.
― Você está doente, Eric?
Ele riu.
― Não que eu saiba...
188
― Então por que você está vendo um médico?
― Que médico?
― E.L.Y. Ely. Como você queira. Por que você
está vendo um médico?
Ele tocou a ponta do nariz de uma maneira ner-
vosa, indo então em direção à pia para encher um
copo de água.
― Não é nada. Aliás, eu quase tinha esquecido
do caso.
Ele engoliu rapidamente a água, encostado na
pia.
― Meus olhos ― ele disse. ― É uma consulta
com um oftalmologista. Eu tenho tido problemas
com minha vista ultimamente, então eu achei que
precisaria de óculos. Quase esqueci.
― O que está errado com seus olhos?
― Quando leio, às vezes fico com dor de cabe-
ça. Às vezes os olhos ficam meio enevoados. Eu
pensei em ir checar. Ligaram do consultório dele?
― Encontro cancelado. Eles querem que você
ligue.
― Tudo bem.
Ele se sentou à mesa da cozinha. De repente pa-
receu tão bonito aos seus olhos que se tornou quase
lindo ― uma palavra que ela jamais associara ao
marido antes. Ellen sentiu-se tomada por um gran-
de desejo, algo que incendiou sua mente, fazendo
com que quisesse que seu corpo encontrasse uma
maneira de se satisfazer.
189
Ele procurou pelas mãos da esposa e segurou
uma delas, os dedos dele preenchendo os espaços
dos dela. Ellen levantou a mão livre e encostou a
palma no rosto dele, dizendo:
― Eu fiquei surpresa por você não ter mencio-
nado este médico antes. Eu não sei o que pensei.
Talvez tenha pensado que você estivesse doente e
não quisesse me falar nada.
Ele riu mais uma vez e terminou de beber a
água do seu copo, sentando-se então sobre a mesa.
― O que você precisa fazer, meu amor, é pregar
um bloco de anotações na parede. Então eu posso
escrever tudo o que acontece de extraordinário an-
tes que me esqueça de contar para você.
Estaria ele fazendo alguma piada? Ela olhou fi-
xamente para o marido e percebeu que não.
― Eu gosto de saber o que está se passando,
Eric. Manter-me informada.
― Eu farei isso com certeza no futuro ― ele
respondeu.
― Odeio me sentir excluída. Pior que isso,
odeio admitir que me senti excluída. Você entende?
― De uma certa forma ― ele disse.
― É apenas mais uma das inconveniências ge-
rais de se estar em minha condição. Estou frágil e
insegura e aqui estão as minhas inseguranças ― e
não estou falando do nosso insano invasor, Eric.
Você poderia me mostrar o caminho da saída
desse poço? Queria saber Ellen. Você poderia olhar
190
para o futuro e nos ver aqui sentados juntos e rindo
dos intrusos, dos invasores, da violência?
― Como você pode aguentar isso tudo comigo?
― Eu amo você. É fácil.
― Você tem certeza?
― Nesse exato instante eu estou sentado aqui
fazendo isso.
Ela sorriu e foi verificar o estado dos hambúr-
gueres, que haviam assumido a forma e aparência
de uma bola de futebol cheia de lama.
― Outra coisa. Não tenho conseguido cozinhar
droga nenhuma estes dias.
― Algumas coisas não mudam.
Ele estava esperando ao lado da mesa com seu
copo vazio na mão. Eric observava a esposa, um
brilho indisfarçável no olhar, de profunda afeição,
de amor. Eu poderia queimar e explodir nesse bri-
lho, ela pensou. Eu poderia inchar até me tomar um
pedaço de vidro incandescente tomando forma.
Ele me ama.
Sem dúvida.

Onze

26 de julho

Alguém segurava sua mão. Ela sentiu os nós


dos dedos ficarem rígidos. Os ossos pareciam estar
se quebrando por debaixo da fina pele. Ela enfiava
191
as unhas na pele da outra mão. Sobre sua cabeça,
uma luz especial a tudo iluminava, um tipo de luz
que você vê em filmes quando alguém é interroga-
do pela polícia. O calor que dela emanava era con-
centrado, queimando sobre sua pele. E entre suas
pernas...
Entre suas pernas havia a mais horrível sensa-
ção que ela já sentira, a sensação de uma agulha
quente penetrando através do osso pubiano. De
uma maneira desconhecida ela percebia estar san-
grando, só poderia estar sangrando, de que outro
jeito você poderia sentir algo molhado escorrendo
por dentro de suas pernas?
Ellen comprimiu os olhos para olhar contra a
luz. Ela desejava dizer: Por favor, tirem esta luz de
cima de mim, está machucando meus olhos ― mas
percebeu que uma secura salgada em sua boca a
impedia de fazer isso. Suas gengivas estavam en-
torpecidas. Os dentes pareciam não existir. Ela ten-
tou mover a língua por dentro da boca, mas estava
inflexível, tesa, como se anestesiada.
O cômodo era azulejado em branco. Ellen não
conseguia ver muito além do clarão proporcionado
pela lâmpada. Então, algo foi preso em seu rosto
com firmeza. Oxigênio ― seria isso? Respire, El-
len. Respire profundamente. Por um tempo ela rela-
xou, sentiu-se bem, como que flutuando sobre a
mesa onde estava deitada.
Empurre, Ellen. Empurre. Empurre. Empurre o
192
mais forte que você possa, querida.
A voz era da enfermeira Grabowski.
Ellen ouviu a voz de Phelps ao fundo. Havia o
som de luvas de borracha escorregando sobre a
pele, um barulho estranho. E a enfermeira sorria so-
bre ela: Prematuro. Não há problema. Nós somos
experientes nesse tipo de coisa, Ellen.
Prematuro.
A dor era a dor do bebê emergindo.
Ela podia ver Phelps trabalhando entre suas per-
nas levantadas. Ela podia ver as sombras projetadas
no teto pelos seus joelhos, sombras pontiagudas.
Prematuro e empurre.
Não há problema e empurre.
Nós somos experientes e empurre.
O oxigênio foi retirado. E ela ainda estava agar-
rando a mão de quem quer que estava ao seu lado.
Apertando, machucando. Não era Phelps nem Gra-
bowski. Não era tampouco a mão de Eric.
Quem estaria sentado ao seu lado, onde ela não
conseguia ver?
Quem estava segurando sua mão?
Ellen sentiu Grabowski enxugar sua testa com
um pano molhado.
O rosto mascarado da enfermeira. Phelps, tam-
bém, com uma máscara.
Eles pareciam diferentes com aquelas máscaras,
como fugitivos de uma festa à fantasia. Uma sus-
peita passou por sua mente: aqueles não eram afinal
193
Phelps e Grabowski, mas impostores que vinham
roubar sua criança.
Onde estaria Eric? Por que Eric não está aqui na
sala de parto?
Ela perguntou em voz alta?
Grabowski disse: Seu marido está vindo, Ellen.
Ele está a caminho. Empurre com força e você terá
uma pequena surpresa quando ele chegar aqui,
hum?
Empurre. Tente se concentrar. Empurre para
baixo tão forte quanto você possa. Por que Eric não
está aqui para me ajudar com este sofrimento, toda
esta dor? Por que ele demora?
E quem diabos está segurando minha mão?
Ela se ouviu gritando, imaginou a carne dilace-
rada, rasgada, pele arrancada do músculo e ossos e
veias, imaginou sangue correndo por entre suas
pernas e o branco fosco dos ossos aparecendo por
dentro de uma superfície vermelha. Uma amputa-
ção, um membro perdido, algo cortado para sempre
do seu corpo, uma coisa que não pode ser substituí-
da nem mesmo pela prótese mais avançada. Bebê,
bebê, bebê ― salve-me, saia de mim, tire esta dor
de mim.
Eu posso vera cabeça, Ellen. Um pouco mais
de força. Um pouco mais.
Ela forçou o corpo no ar, os quadris enretesados
como no ato sexual, a estranha angústia do orgas-
mo ― e a dor penetrando através dela como uma
194
tesoura cortando papel. Como podia este grito vir
dela, de um ser humano? Eles lhe deram novamen-
te o oxigênio. Devagarinho, muito devagarinho.
Ela fechou os olhos. Seus cabelos estavam mo-
lhados, grudados na testa. O bebê ― por que ainda
havia esta bendita dor? Alguém poderia ter apanha-
do uma lâmina e a cortado lá em baixo: episioto-
mia, é claro, aquele era o nome da operação. Eles
faziam um corte em seu corpo para que a cabeça do
bebê não arrebentasse a abertura não suficiente
para sua passagem. Sangue ― tinha ficado bem,
então. Muito sangue. Ao longe, pensou ter ouvido
um choro de criança.
Ela percebeu que a sala estava vazia agora, tão
vazia quanto seu corpo. Quem quer que estivesse
segurando a sua mão tinha se ido. Phelps e Gra-
bowski tinham-se ido também. A luz ainda a cega-
va. Por que, em nome de Deus, a sala estava vazia?
Onde estava o bebê?
A porta aberta.
Phelps parado lá. Ele estava segurando uma cri-
ança nos braços.
Algo está errado. Algo está terrivelmente erra-
do, ela pensou.
Phelps a estava encarando. A criança que ele se-
gurava estava embrulhada numa manta. Uma eti-
queta com um nome pendia por baixo da manta.
Eu acho que você não quer ver o bebê, Ellen.
Eu realmente acho que você não quer segurar o
195
bebê.
Por que ela ouviu seu coração parar, sua pulsa-
ção ficar em silêncio?
Algo parecido com um coágulo de sangue ade-
ria à sua garganta. Viscoso, mucoso.
Phelps disse: Algumas vezes estas coisas acon-
tecem, Ellen. Nós não sabemos por quê.
Que coisas, que coisas?
Girando. Nuvens de poeira. Caindo na vasta
imensidão do espaço...
Uma anomalia genética, Ellen.
Ela olhou para a coisa deformada que Phelps se-
gurava. Os olhos, invisivelmente, pareciam olhar
para ela com a piedade de uma pequena criatura a
caminho do abatedouro. A cabeça era inclinada
para um lado, igualando-se aos seus pequenos om-
bros. O corpo era coberto com sangue brilhante, e
muco. Os braços pendiam inutilmente soltos. O
tronco inclinava-se para frente sem suporte. Implo-
são ― esta foi a única palavra que veio à sua men-
te. Uma palavra terrível ― implosão. A criança se
debatia, o tronco mole e caído. Bambo. A pele do-
brando-se e esticando-se, o esqueleto caindo para
frente e pressionando a carne que parecia inchar.
Nascida sem a espinha, Phelps disse.
Sem a espinha. Sem. A cabeça balançando, caí-
da, pendida numa postura de morte. Mas os olhos
ainda estavam vivos, ainda olhando para ela cega-
mente, implorativamente. Jesus, Jesus.
196
Necessidades. A acupuntura da dor.
Impossível. Não pode acontecer nada parecido
com isso.
Meu bebê.
Meu bebê.
Ela começou a se debater, esforçando-se, ten-
tando levantar-se da mesa. O mundo não pode ser
tão selvagem, tão sem misericórdia, bondade, tão
fodidamente injusto. Como pode acontecer uma
coisa desta?
Ela colocou a mão na garganta. Um aperto. Não
conseguir engolir. Choque. O pânico vem num re-
demoinho e você mergulha nele e é sugada para um
mar turbulento em que a lama se revira no fundo.
Ela se debatia. Empurrou os lençóis para fora com
os pés.
Os braços de Eric estavam em torno dela. Ele
estava falando algo baixinho, algo terno.
Você não acha que é o suficiente para esta fa-
mília apenas um sonhador de pesadelos? Você está
tentando roubar minha fama?
O bebê, ela pensou. O que aconteceu com o
bebê?
Ela sentou-se na cama. As palmas das suas
mãos aderiam aos lençóis. O bebê morreu.
Ela ouviu Eric se mexer por detrás dela. As
mãos dele iniciaram uma massagem leve em seus
ombros. Ela fechou os olhos. Luz do sol e confu-
são. O que aconteceu com a criança?
197
Ela pousou as mãos sobre a barriga. Havia uma
movimentação em seu ventre, como a de um peixe
deslizando para a água limpa. Oh, bebê, bebê...
Ela deitou-se.
― Você quer falar sobre isso? ― Eric disse.
Um sonho doentio. Um pesadelo. Uma substân-
cia traiçoeira liberada pela mente em seu sono ―
aquilo a envolve, torna a ilusão em realidade, per-
verte todos os fatos do mundo físico. Pesadelo. Ela
olhava para o marido. Ela sentia agora como se
duas frágeis realidades estivessem em rota de coli-
são, dois grupos de leis dirigindo o mundo em
igualdade de condições.
― Foi muito ruim?
― Horrível. O pior que poderia ser.
― Eu tentei acordá-la. Você estava falando so-
bre alguma coisa. Eu fiquei assustado, Ellen.
Ela olhou para dentro dos olhos preocupados de
Eric. Ellen sentia a mão dele segurando as dela.
Sem aviso prévio, você está caminhando de repente
sobre a linha que leva ao terror manufaturado pelas
substâncias químicas do seu cérebro. Você cria seu
próprio teatro da violência. Um sinal da pobre cri-
ança...
― Eu acho que estou apavorada ― ela disse. ―
É o fundo do poço. Eu estou sinceramente apavora-
da. Estou apavorada sobre o bebê. Estou apavorada
sobre todas as coisas que podem estar acontecendo.
Às vezes eu posso superar, posso brigar com a mai-
198
or parte das ansiedades... mas quando minhas defe-
sas estão lá embaixo eu não tenho nenhum controle
sobre nada.
Como os seus próprios pesadelos, Eric. Exata-
mente como neles.
― Phelps disse que estes medos a respeito do
bebê são perfeitamente naturais, não disse? Ele não
disse isso para você?
― O que não significa grande ajuda para mim.
Ela repentinamente lembrou-se sobre o colchão
onde estavam deitados, quase que esperando passar
as mãos sobre alguns calombos, encontrar o corte
― mas eles haviam comprado um colchão novo,
haviam jogado o velho fora. Por que ela esperava
que seus dedos tocassem a fenda? Uma velha lem-
brança que não ia embora, uma mancha sobre tudo.
Deixe ir, ela pensou, deixe o sonho ir-se embora,
deixe as lembranças da violência irem-se. Deixe es-
tas coisas em algum lugar e as esqueça. Então ela
tremeu. A espinha. Sem a espinha. Você não sabe
de onde aquelas imagens vieram ou o que as inspi-
raram ou ainda por que os rostos familiares de
Phelps e Grabowski subitamente estavam modifica-
dos e tudo tornou-se carregado pelo magnetismo da
ameaça. O bebê mexeu-se dentro dela. Ellen pen-
sou: Você não é o bebê-pesadelo, criança. Você nas-
cerá com ótima saúde. Nós daremos a você a fita
azul do mais belo bebê do berçário. Nós lhe dare-
mos um prêmio. Ela começou a esfregar o estôma-
199
go com movimentos lentos e circulares e a pensar
se era possível transmitir amor para um bebê ainda
não nascido, pensar se era possível mandar vibra-
ções de carinho através da pele para o ventre.
Eric colocou um braço ao redor dos ombros da
mulher:
― Você tem certeza de que está bem?
― Você sabe como são os sonhos, Eric. Eles
murcham. Então você começa a não entender por
que eles dão um medo tão grande.
Ellen encolheu os ombros e esboçou um leve
sorriso. (O sonho do bebê surgiu diante dos seus
olhos. Quando tempo até ser esquecido?)
Ela levantou-se da cama e foi até a janela. Seria
mais fácil esquecer o pesadelo do que a lembrança
de alguém entrando neste quarto; seria mais fácil
esquecer... E então, milagrosamente, o sonho come-
çou a desvanecer, as imagens começaram a sumir.
Ellen virou-se e olhou para Eric.
Ela disse:
― Eu amo você.
Ele sorriu para a esposa:
― Eu amo você, também.

Você abre a caixa de metal.


Lá dentro você encontra sete botões azuis e re-
dondos.
Contá-los. Sete, oito, nove. Nove botões azuis.
Você olha para o rosto da boneca. Bonita. Bo-
200
nita de se olhar.
A cabeça do seu martelo soca, soca, soca, e os
pedaços de porcelana chinesa escapam de você e
você as reúne. As reúne bem bonitinho. Então você
se senta, respirando forte.
Você esquece por um instante. O apartamento
limpo. Ele não era limpo antes. Porca, porca. Não
esqueça. Não esqueça das outras coisas que você
ainda tem que fazer. Não as deixe escapar da sua
mente.
As outras coisas.
As outras coisas que você tem que fazer para
Eric.

Segunda Parte

O Oitavo Mês

Doze

5 de agosto

Foi a chamada da garota no escritório de Eric


que a fez correr para seu Opel e dirigir para o cen-
tro da cidade de Phoenix através da fumaça, do
trânsito congestionado, do calor paralisante do iní-
cio de fim de tarde. Arrastando-se pela Camelback
Mountain buzinando o tempo todo, sentindo o suor
riscar seu rosto ― era terrível estar no centro desta
201
insanidade urbana e ansiosa por saber sobre o mari-
do e o telefonema da garota.
Eu não quero que a senhora se preocupe, Sra.
Campbell...
Este era o tipo da conversa fiada que ela poderia
imaginar estar ouvindo no meio da noite, uma liga-
ção de um tira com sua voz doce e solícita com um
jeito desgraçadamente profissional de falar. Ele
está morto. Eu não sei qual seria outra maneira de
lhe contar.
O quê? O que é? Algo está errado?
A garota ficou em silêncio e o telefone pareceu
mudo por um momento, e então, quando ela falou
novamente, sua voz tinha um certo tom calmo ―
uma suavidade no tom que lhe previne que algo de
sério está a ponto de ser dito. Algo que mudará
tudo...
É sobre seu marido...
O fio do telefone estava frouxo e Ellen o enrola-
va no gancho do receptor.
Ela ficou muda por alguns instantes, ouvindo a
voz da outra bem de longe, como se estivesse falan-
do do mais profundo espaço sideral. Meu marido,
meu marido: estas palavras iam formando um louco
círculo ao redor da sua mente.
Repentinamente o trânsito parou à sua frente.
Talvez pudesse encontrar alguma rua lateral
mais vazia e ganhar tempo, mas lembrou-se que
ainda não conhecia a região muito bem, não sabia
202
de atalhos, trilhas opcionais. Você está aqui presa
nesse trânsito que tem a pressa de um cortejo fúne-
bre.
Ellen secou o rosto com a manga da camisa.
Procurou seus óculos escuros no porta-luvas e os
colocou, olhando então para o cair do sol na tarde.
A voz da garota. A horrível voz da garota.
Eu acho que não é nada sério, Sra. Campbell.
Você não pode me dizer o que está errado com
ele? Por favor, diga-me.
Parece que ele desmaiou no escritório, Sra.
Campbell.
Desmaiou?
Desmaiou. Certo. Simplesmente desmaiou, pa-
rece.
Desmaiou? (Não. Eric, não.)
Ele está assustado. Nós não sabemos o que é
isso, Sra. Campbell.
Deixe-me ver isso direito. Deixe-me ver se pos-
so entender isso direito. Você quer dizer que o meu
marido simplesmente... desmaiou?
Sim, ele desmaiou sobre sua mesa. Está se sen-
tindo fraco. Ele quer saber se a senhora poderá vir
apanhá-lo aqui e levá-lo para casa.
E você disse: tão logo eu possa, é claro. Eu esta-
rei aí tão logo possa. Você disse.
Agora está afundada neste funeral cinza do trân-
sito morto, queimando sob o calor violento da tar-
de. Lesmas rastejando, a fumaça condensando-se
203
no ar parado, o ar parado.
Ela parou diante da luz vermelha. O trânsito era
um confuso labirinto de metal. Retirou os óculos
escuros, limpou-os do suor e os recolocou. Eric ―
o quê, em nome de Deus, estaria errado com ele?
Ela tentou recordar-se, encontrar alguns sinais de
estresse ― havia apenas o pesadelo.
A luz mudou.
Ela então virou o carro, entrando numa rua resi-
dencial estreita, em cujas quietas e bem construídas
casas sugeria-se vidas irrepreensivelmente em or-
dem. Ellen manobrou o carro onde a rua se bifurca-
va e viu logo à frente outra avenida repleta de car-
ros parados. Ok, você deu uma mancada: pela últi-
ma vez você tenta cortar caminho pelo acostamen-
to. Um educado velhinho dirigindo uma caminho-
nete sombria permite que ela entre na sua frente
para voltar à rua. Eric. Por favor, não deixe que seja
alguma coisa séria. Por favor, por favor, por favor.
Fique calmo, pelo amor de Deus. Não está mui-
to longe. Não está muito longe do cruzamento que
a levará até o centro, o coração da cidade. Mesmo
de onde estava já podia avistar as altas torres dos
edifícios comerciais que nasciam no âmago do cen-
tro da cidade com a presunção de lugares religio-
sos.
Ellen estava viajando rumo sul dentro do brilho
do tráfego intenso. Quantos prédios até chegar? Ela
não conseguia lembrar nem da aparência do edifí-
204
cio onde o marido trabalhava, nem tampouco o nú-
mero ― a lembrança escorria pela mente, sumia
com a sensação de pânico iminente. Você estará
bem, amor. Você vai estar muito bem. Eu estarei
logo com você.
Logo.
Eu não quero que a senhora se preocupe, Sra.
Campbell...
Por que era sempre aquele tipo de voz que
transmitia más notícias? Por que sempre soava
como uma professorinha falando com as crianças
do jardim de infância ou a bibliotecária mostrando
para a turma de seis anos as complexidades do sis-
tema decimal de Dewey?
Ela contemplou a linha que divisava com o ho-
rizonte dos prédios à sua frente. Qual seria? Alguns
prédios de dezesseis andares em vidro fosco. Tal-
vez. Ela teria que tentar em qualquer um deles esta-
cionar o carro e passar diante de cada um para olhar
seus nomes. Ellen parou o carro muito mal num es-
tacionamento quase vazio e correu tão rápido quan-
to podia até a saída ― no térreo do prédio, amplia-
do pelo tipo de iluminação, que a fez ficar tonta ao
olhar para cima.
Ela empurrou as portas.
Não havia ninguém na mesa da recepção. Ellen
apressou-se a correr os olhos pela lista de empresas
correspondentes aos andares que normalmente fica
afixada nas paredes de um prédio deste tipo. Bran-
205
co ― por um momento de pura perplexidade, bran-
co total. Ela não conseguia lembrar do nome da
companhia de Eric.
Brigue com este branco, Ellen. Repila-o.
Ela olhou para a lista mais uma vez. É claro, é
claro, é claro ― como ela pôde ter esquecido?
Ellen esticou e correu o dedo pela superfície en-
vidraçada do quadro. Lá: Saffron Fund-Raising En-
terprises, Inc. Saffron ― quando ela ouvira pela
primeira vez aquele nome o achara muito excêntri-
co e ainda soava estranho agora.
Um elevador moderno: você parecia não se es-
tar movendo. Ela olhou para os números dos anda-
res irem passando diante dela; então a porta abriu-
se e ela se viu parada num corredor do décimo
quarto andar. Quase que correndo, Ellen tentava
lembrar-se do número da sala do escritório de Eric,
tentando recordar se a porta tinha seu nome inscri-
to.
Todas as salas estavam vazias.
Eles tinham ido embora para casa.
Todos se foram.
Eric já poderia ter ido embora porque ela ficara
presa no congestionamento. Droga. Não, eles teri-
am esperado por ela, estava certa de que o fariam.
Vazio. O lugar todo tinha aquela estranha sensa-
ção de vazio. Ela estava cercada por ausências, te-
lefones que não tocavam, máquinas de escrever si-
lentes. Estava cercada por um certo oco que é dei-
206
xado para trás nos escritórios quando todo mundo
se vai ― uma ausência que parece carregada pelos
murmúrios e ecos de uma atividade recente.
Fantasmagórico.
Completamente fantasmagórico.
Ela estava agora diante da porta da sala de Eric.
Ellen olhava para a inscrição: Eric Campbell. Fun-
dos Gerais. Que diabos seriam Fundos Gerais? Ao
esticar sua mão para tocar na maçaneta, teve um
ímpeto de parar e olhar para trás, vislumbrando o
corredor vazio.
Por que ela estava tendo aquele sentimento de
estar fazendo algo proibido?
Um momento de pânico. Uma sensação de
medo ― como se algum pássaro predador invisível
estivesse voando ao seu redor, esperando para cra-
var suas garras sobre seus ombros.
― Eric ― ela disse. E bateu à porta.
Nada.
Ninguém.
Ela podia ouvir um som metálico ao longe, do
elevador subindo o poço. Parou um instante e de-
pois veio o silêncio.
Eric.
Ela girou de leve a maçaneta, sentiu o clique da
porta se abrindo por entre seus dedos. Agora podia
ver metade da sala ― uma mesa vazia, a janela, o
telefone, a pilha de papéis sobre o arquivo. Ela ba-
teu à porta mais uma vez, abriu-a totalmente e en-
207
trou.
Vazia.
Duas mesas vazias. Cadeiras. Arquivos.
Nada de Eric.
Seu sangue estava subindo, correndo em dire-
ção à cabeça, uma sensação sufocante. Suas pernas
estavam estranhamente fracas. O lugar não parecia
seguro para ela ― é como se estivesse suspenso
por fios de arame, uma estrutura que balançava
para lá e para cá como um pêndulo. Ela precisou
sentar-se e fechar os olhos. Dor por detrás dos
olhos. Uma dor forte como se existissem fibras li-
gando os olhos ao cérebro. Sua garganta estava
seca. O pulso em seu pescoço batia de um jeito que
ela sentiu que poderia ser audível por todos.
Mas não havia ninguém mais.
Ela estava sozinha neste andar. Sozinha no déci-
mo quarto andar.
Então, em nome dos céus, onde estava Eric?
Onde estava seu marido doente?
Eu não quero que a senhora se preocupe, Sra.
Campbell...
Intrusão, uma sensação de transgressão ― por
que ela se sentia assim? Este era o local de trabalho
de seu marido.
Este era o lugar que tomava muito do seu tem-
po.
Seu local de negócios.
A outra metade da sua vida.
208
Pela janela ela avistava as montanhas do sul. O
sol tinha-se ido completamente agora; o céu apre-
sentava-se com listras de um amarelo-pálido e bri-
lhante que a fazia recordar o final de um espetáculo
de fogos de artifício.
Eric ― por que você não poderia ter esperado
por mim? Você pensou que eu não viria? Foi isso
que você pensou?
Ela dirigiu-se para a mesa dele, discou o núme-
ro do telefone de sua casa e deixou tocar. Não hou-
ve resposta. Ele não tinha chegado em casa ainda.
Isso é tudo. Talvez ele estivesse preso no trânsito
em algum lugar. Talvez. Simples: ele sentiu-se me-
lhor, tentou me chamar, eu já tinha partido... não
era tão simples. Por que diabos ele não me esperou
se sabia que eu estava vindo para cá?
Por que, Ellen?
Ela olhava para as pastas e as pilhas de papéis
sobre a mesa dele. Isso está errado, está tudo erra-
do, alguma coisa está horrivelmente errada...
A chamada. A garota. Imaginar Eric desmaian-
do.
Isto não cola. Pense bem.
Mas se ele não estivesse doente, se ele não ti-
vesse desmaiado, então...
Então quem teria feito a chamada? E por quê?
Um engano. Uma brincadeira de mau gosto.
Algo simples, malvado e inconveniente. Mas quem,
então? (Anna Rosenberg? A doçura drogada, Anna
209
querendo ficar alguns minutos sozinha com o boni-
tão Eric no estacionamento? Sim? Por que isso pa-
recia tão terrivelmente insensato?)
Quem diabos assustaria uma mulher grávida e a
mandaria correr por um trânsito congestionado da-
queles, com um calor tremendo ― apenas por
aprontar? Apenas por uma risada?
Ela olhou para dentro da gaveta do marido ou-
vindo o silêncio do prédio. Então percebeu que es-
tava fraca demais para sentir-se tão enraivecida
quanto deveria estar ― ela estava muito fraca, ali-
viada demais pela idéia de que Eric não estava,
apesar de tudo, doente.
Mas algo estava errado.
Então ela ouviu o silêncio do edifício mudar:
havia um som, um vago rumor, uma pequena vibra-
ção. Alguém estava usando o elevador. Alguém es-
tava indo embora.
Ou chegando.
Ela estava quase fechando a gaveta quando per-
cebeu um pedaço de papel dobrado no fundo, meio
escondido. Ela o apanhou, curiosa pelo fato de ter
lido o nome Dr. Ely impresso nele. Sob a luz fraca,
Ellen estendeu o papel sobre a mesa. Era uma re-
ceita médica. Uma receita do médico oftalmologis-
ta de Eric. Estava coberto por aquele tipo de gar-
ranchos que os médicos detêm como uma patente
exclusiva e ela não pôde decifrá-lo. Quando Ellen
ergueu o papel da mesa para ver melhor, ouviu o
210
elevador parar. Uma porta abriu-se no corredor.
Ela levantou-se da cadeira, dirigiu-se para a
porta e espreitou para fora. Sob as luzes fluorescen-
tes o lugar continuava vazio. Ellen viu a porta do
elevador fechar-se e o ouviu começar a descer. Al-
guém simplesmente indo embora, ela pensou. Al-
guém saindo do elevador rapidamente e entrando
em um dos outros escritórios.
O pensamento a paralisou. Aquilo a golpeou e
paralisou.
Alguém me atrai para cá. Alguém que bolou
esta história toda. Alguém que sabe que o lugar es-
taria deserto. Quem deliberadamente me quer sozi-
nha e desprotegida?
Por quê?
Ela afastou-se do vão da porta e olhou pelo cor-
redor vazio. Portas, portas e mais portas, algumas
delas abertas, outras fechadas. Quem diabos teria
vindo com o elevador?
A associação era irresistível: a mesma pessoa
que tinha feito a ligação telefônica. Era ele. O mes-
mo brincalhão.
Brincalhão ― aquela não era a palavra.
Ellen dirigiu-se lentamente para os elevadores.
Quatro portas. Quatro buracos. Ela sentia o som
que suas sandálias faziam em contato com o carpe-
te, arrastando-se, uma pancadinha ocasional. Al-
guém poderia estar esperando por mim ― esperan-
do por trás de alguma porta dos outros escritórios.
211
Alguém. Ninguém.
Não vá pelos elevadores.
Use as escadas.
Use as escadas se você puder encontrá-las.
Ellen virou-se e caminhou de volta por onde vi-
era, incapaz de evitar a sensação de que estava sen-
do observada por trás ― uma sensação que não
deixou de ter mesmo depois de virar-se para olhar e
não ver ninguém.
Saída de emergência.
Ela moveu a trava de metal, encontrando-se en-
tão nas escadas, começando a descer. Ela pensou:
Você está sendo estúpida. Você está imaginando
coisas. Uma brincadeira de mau gosto é uma coisa,
criança, mas intenção maldosa, idéias de um prejuí-
zo físico, é bem outra. Caminhe devagar. Caminhe
bem devagar.
A pessoa que veio pelo elevador ― um traba-
lhador que voltou ao escritório para fazer hora extra
― apenas prova sua dedicação ao emprego e uma
provável promoção bem próxima. Isto é tudo.
Porque descer pelas escadas? Ellen podia sentir
o bebê se mexendo enquanto continuava sua desci-
da.
No décimo andar ela parou, sem fôlego.
Volte para o corredor, ela pensou. Volte para o
corredor, chame o elevador e desça o restante dos
andares.
Sobre sua cabeça, ecoando no andar de baixo,
212
ela ouviu a porta de emergência bater.
Alguém descendo.
Ellen empurrou a porta com força e achou-se ―
ao mesmo tempo que ouvia os passos apressados
no andar de cima ― caminhando pelo corredor do
décimo andar, dirigindo-se aos elevadores. Ela pa-
rou diante deles e pressionou todos os quatro bo-
tões. Depressa, ela pensou. Depressa.
Olhou para trás em direção à saída de emergên-
cia, a porta na cor ocre com suas duas janelas refor-
çadas por uma tela de arame.
O medo transforma-se em eletricidade, trans-
forma-se no fogo seco de um choque elétrico. Ela.
parou perto da parede, tremendo, levantando a ca-
beça o tempo todo para poder visualizar os núme-
ros mudarem acima do elevador. Cinco. Seis, Sete.
Um elevador subindo.
Sete. Sete. Sete.
Por que ele parou no sete?
Alguém entrando? Ou saindo?
Ela olhou mais uma vez para a saída de emer-
gência: havia uma sombra refletida em uma das ja-
nelas.
Mas ela não tinha certeza.
Ela não tinha certeza por causa dos fios de ara-
me fixados sobre o vidro.
Sete. Oito.
A porta de emergência abrindo-se um pouqui-
nho.
213
Oito. Nove.
Nove.
A sombra derramou-se como uma mancha feia
no corredor.
Depressa, depressa, pelo amor de Deus, de-
pressa.
Nove. Dez.
Devagar ― por que o elevador abriu tão deva-
gar?
Ellen olhou uma vez mais para a saída de emer-
gência. Ela estava fechada agora. Rapidamente, ela
entrou no elevador e pressionou o botão do térreo.
Teve então a impressão, enquanto a cabine caía na
escuridão do poço, de que a sombra estava descen-
do pelas escadas, seguindo o elevador.
Você está imaginando coisas, Ellen. Não, você
viu aquela porta aberta. Você viu a sombra escorre-
gar. Nove. Sete. Cinco.
Quando o elevador atingiu o andar térreo, saiu
rapidamente em direção ao saguão vazio e às portas
de vidro que davam para fora do prédio. Ela estava
respirando forte, seus pulmões pareciam oprimidos,
seu corpo estava molhado. Ellen alcançou as por-
tas, abrindo-as. O calor do início da noite veio até
ela com a força de lenha queimando. Mais uma
vez, antes de correr para seu carro, virou-se e olhou
para trás através das portas de vidro e visualizou o
saguão.
Estava vazio, completamente aceso, sem som-
214
bras. Não havia nada.
Ellen parou ao lado do carro e tentou respirar o
ar pesado ao seu redor ― e então percebeu que ain-
da estava segurando a receita de Eric em sua mão
úmida. Sem pensar, guardou-a no bolso de sua ca-
misa de brim.

Ela assustou-se. Assustou-se como um rato


numa ratoeira. Você a vê correr apressada no esta-
cionamento em direção ao seu carro e pensa: Ela
não é para ele. Ela não poderia nunca ser. E você
fecha seus olhos e os pressiona contra a janela,
não mais interessada nela. Agora, você está pen-
sando nele. Você fica lembrando sobre ir até seu
escritório vazio e sentarem sua cadeira atrás da
sua mesa, você relembra sobre esperar até que ele
tenha ido para casa, esperando na escada e segu-
rando sua respiração, você recorda sua ida até o
seu local de trabalho e tocar as coisas sobre sua
mesa, sentindo seu cheiro, reconstruindo-o em sua
mente. Ele trabalha aqui. Ele senta-se aqui. Seu te-
lefone. Seus papéis. Sua mesa. Isto traz de volta
toda a profunda iluminação do amor. Todos os dias
claros do coração. Isto traz de volta um momento
de pureza.
Você pressiona seu rosto contra a janela. Você
percebe que o carro amarelo se vai pelo barulho
que faz. O estacionamento está vazio agora. Ela se
foi. Você sente esta ausência. Seus olhos estão su-
215
bitamente molhados e sua visão embaçada, mas
seu olho vencedor está claro e o que você vê lá é a
imagem de sua barriga cortada e a solitária vida
desgraçada flutuando através da dor, através da
água vermelho-escuro, a vida ligada a você por um
fio tênue.
Querido. Eric, você pensa.
Aquela vida perdida era nossa.
Aquela vida perdida era algo que nós fizemos
juntos, além do amor.

Eric estava parado na porta da varanda quando


ela voltou ao apartamento. Estava com as mãos nos
bolsos, suas pernas esticadas ligeiramente separa-
das. Ela podia ouvir moedas tilintando em seus bol-
sos. Fatigada, sua boca ressecada, seus músculos
desgastados, ela sentiu que não poderia dizer nada
a ele em seu primeiro impulso, não era possível re-
latar-lhe o que havia acontecido. Havia as conse-
quências do seu próprio pavor para lutar contra ―
algum colapso interno, os nervos oscilando entre o
torpor e a vibração. Ele nem mesmo aparenta ter
estado doente, ela pensou. Mas você já convenceu
sua mente de que foi tudo uma brincadeira de mau
gosto ― então, o que você esperava? Eric estendi-
do, pálido, com um termômetro na boca? Com a
cor de um lençol secando ao vento?
Ele abriu os lábios, como se fosse falar, mas
nada saiu. Ele caminhou até a poltrona e, parando
216
por detrás dela, pousou suas mãos sobre os ombros
da mulher e a massageou levemente. Ele não estava
doente. Ele não estivera doente. Alguém lá fora em
algum lugar desejou vê-la em pânico, vê-la sofrer,
ou o que for. Ellen fechou seus olhos e não podia
ver, mas por detrás das pálpebras o que avistava
eram os números no painel do elevador, uma som-
bra escorregando pela porta semi-aberta. Então, sua
cabeça ficou subitamente escura, apagada, um labi-
rinto de janelas cerradas e salas lacradas. De algu-
ma maneira ela soube que teria que viver nesta es-
curidão por um tempo, neste lugar em que não ti-
nha em que pensar, porque pensamentos perdiam-
se e confundiam-se.
― Eu estava preocupado com você ― ele disse.
Ela sentiu seus lábios moverem-se num sorriso.
Preocupado comigo?
― Eu não sabia onde você poderia estar.
Ellen inclinou-se para a frente. Abriu os olhos e
avistou o tapete. A porta da varanda era em vidro
fumê. Dava a impressão de que não havia nada lá
fora. Não existe o mundo lá fora.
Ellen levantou-se da poltrona e caminhou até a
porta de vidro. Noite escura. Apenas a luz azul da
piscina indicava vida. Uma figura passou diante da
luz por um momento.
― Ela falou que você estava doente, Eric. Ela
disse que você tinha desmaiado. Que você queria
que eu fosse até o escritório para apanhá-lo e trazê-
217
lo para casa... ― Ellen parou. Sua própria voz ―
por que ela saía como notas da escala musical?
― Espere. Calma. Quem falou? Quem disse
que eu estava doente?
― A garota do seu escritório. Ela disse que você
estava doente. Eu dirigi até lá para apanhá-lo, mas
o lugar estava vazio ― e Ellen parou.
Ela estava apertando um pedaço da cortina com
o punho cerrado. Uma frase de uma canção de ni-
nar veio à sua cabeça sem razão: Aqui vamos nós
atrás da moita de amoras. Ellen virou-se e olhou
para o rosto do marido.
― Você está falando sério?
― Não, Eric. Eu inventei a coisa toda. Eu sim-
plesmente imaginei uma chamada telefônica de
uma estranha. Eu não fui ao seu escritório. Eu esta-
va tentando ganhar alguns homens estranhos num
barzinho. Por que você pergunta se eu estou falan-
do sério? Você não pode ver que eu pareço séria?
― Deixe-me entender a história. Alguém telefo-
nou e disse que eu estava doente.
― Sim ― foi o que eu disse.
― Ela deu o nome dela a você?
Ellen balançou a cabeça.
― E por que você não pensou em ligar para o
escritório? Por que você não pensou em confirmar
o recado?
― Uma voz informa que o seu marido está do-
ente e na hora o coração sobe até a garganta e toda
218
você só pensa em ir até lá para ajudá-lo. Eu não
tive tempo de sentar e ponderar sobre a coisa toda,
Eric. Eu estava preocupada com você, morta de
medo.
Segure-me, ela pensou. Atravesse a sala e ponha
seus braços ao meu redor e me explique sobre os
problemas psicológicos de quem faz uma brinca-
deira de mau gosto. Diga-me o que leva uma pes-
soa a fazer uma coisa dessas. Eric. Defina-o em
sentenças simples, se você puder. Eu estou um pou-
co lenta estes dias. A natureza humana é um que-
bra-cabeças para mim. Você não irá me ajudar?
A sombra, ela pensou. A escuridão se infiltrando
pela pequena abertura do vidro, preenchendo o es-
paço de meia porta.
Ela não conseguia conter-se para contar a ele
sobre a sombra. Uma miragem ― poderia ter sido
apenas isto?
Não ― aquilo aconteceu. Tudo aquilo aconte-
ceu ― a bata na piscina, o apartamento limpo, o
colchão e a boneca, a chamada telefônica, a figura
por detrás da porta de emergência. As coisas eram
reais. Elas eram desgraçadamente reais.
Alguém está fazendo coisas para mim.
Alguém está roubando coisas de mim.
Você tem o mapa do país, apenas um problema:
os nomes de todos os lugares, todos os rios e todas
as montanhas não aparecem e você tem que adivi-
nhar os lugares apenas pelos seus contornos verdes
219
ou marrons. Este era o jogo. Um jogo de morte.
Alguém está tentando matar-me.
E o diabo disso é que não posso pensar no por-
quê.
Ellen olhou para Eric e se dirigiu para o quarto.
Ele chamou o nome dela diversas vezes, mas ela
não podia responder. A fadiga pesava sobre a mu-
lher. Espalhava-se sobre a superfície do seu corpo
como camadas de uma sujeira bem velha. Ellen es-
parramou-se sobre a cama e ficou olhando para o
teto.
Ele deveria estar chamando a polícia, ela pen-
sou. Neste momento, ele deveria estar discando
para o número de McDonald e contando o último
episódio acontecido: O engraçadinho atacou nova-
mente, McDonald, o que você irá fazer sobre isso?
Nós estamos indo mal com este medo. O povo não
lhes paga pana que dêem proteção?
Ela aguçou os ouvidos, concentrada, esperando
ouvir o som da voz do marido no telefone.
Tudo era silêncio.
Ela sentou-se. Colocou as mãos sobre os seios e
ouviu o estalar de um pedaço de papel. Era a recei-
ta de Eric em seu bolso. Ellen puxou o papel amas-
sado ― querendo saber, quase desejando, que tipo
de prescrição poderia ter passado um médico oftal-
mologista ao seu paciente. A letra era terrível. Ellen
segurou o papel sob a luz da mesa de cabeceira.
Por que eu estou tão curiosa, afinal?
220
O que significaria esta bisbilhotice compulsiva?
Curiosidade mata. Comece a perguntar demais e
você terminará sendo guilhotinada por sua própria
inquisição. Uma receita médica de um oftalmolo-
gista, isso é tudo. Por que ele a teria guardado em
sua mesa sem utilizá-la?
Dr. Ely, seja você quem for, você não sabe es-
crever.
Ellen forçou os olhos olhando para aquela letra
inclinada, garranchos feitos com uma caneta grossa
de tinta negra. Talvez fosse um daqueles medica-
mentos para os olhos que os médicos usam antes de
fazer os exames de vista, do tipo que nublam sua
visão e fazem sua pupila crescer. Por que deveria se
preocupar?

HOWARD G. ELY
Estrada Millar
Scottsdale, Arizona
Tel.: 947-1767

Ela ainda olhava para os garranchos.


30 300mg tabletes.
Tabletes do quê? O que mais está escrito?
E por que um oftalmologista prescreveria 30
não sei o que de alguma coisa? Glaucoma? Catara-
ta? O que mais?
As mãos de Ellen tremiam. Ela fechou os olhos
e tentou não se lembrar da chamada telefônica, da
221
voz da garota, da figura atrás da porta, tentou não
pensar quem estaria ― qual seria a palavra exata
para definir? ― conspirando contra ela. Um cons-
pirador.
O papel fazia um barulho estranho em suas
mãos que tremiam. Balançando: isto era a conse-
quência do medo, a afiada ponta da lança do terror.
Alguém.
Medicação de Eric: ela tentou ler.
A primeira palavra parecia ser Carbonato.
A segunda palavra aparentemente iniciava por
uma letra L.
Lít.
Do corredor que chegava até a porta fechada ela
ouvia Eric se mexer. Havia o som de água correndo
na cozinha.
Lítio?
Ela percebeu que estava sentindo uma estranha
sensação de coisa furtiva, criminosa, como um la-
drão na expectativa de sua prisão iminente. Eu es-
tou espionando, ela pensou. Eu estou abrindo uma
das caixas fechadas da vida de meu marido.
Por quê? Por que eu sinto que são caixas fecha-
das?
Carbono alguma coisa.
Ela ouviu Eric se aproximando da porta do
quarto.
Lítio. Carbonato de lítio.
Ellen escondeu a receita sob o travesseiro no
222
momento exato em que Eric entrou no quarto. Ele
parou no vão da porta com um copo de água gelada
em uma das mãos e um cigarro na outra. Olhou
para o marido e o pensamento voltou com a fúria
de um redemoinho em seu coração: alguém está
tentando me matar.
Eric sorriu e se aproximou da cama, tocando a
mulher nas costas da mão. O sorriso, o sorriso está
ocultando algo, ela pensou, atrás desse sorriso está
uma máscara, escondida, uma coisa secreta que eu
não posso captar.
Tentou abstrair esta sensação, salvar sua mente
dessa intrusão ― mas a sensação voltava, vingati-
vamente persistente, mais uma vez e outra.
― Como você está se sentindo agora? ― ele
perguntou.
Ela não disse nada, mexeu a cabeça de uma ma-
neira entre sim e não. Depois de alguns instantes,
levantou-se e caminhou em direção à cozinha, apa-
nhou as Páginas Amarelas, folheando-as. Parou na
letra M.
Médicos, médicos, quantos médicos em Phoe-
nix. (Então por que os médicos do Norte recomen-
dam o deserto para tantas pessoas?) Médicos. Qual
é mesmo a palavra para o médico dos olhos?
Oftalmologista.
Ela percorreu a lista dos nomes.
Havia o Dulany e depois o Falkenstein.
Não havia nenhum médico entre estes dois, ne-
223
nhum médico cujo sobrenome começasse com a le-
tra E. Não listado? Quem já ouviu falar num médi-
co não listado? Ela folheou as páginas novamente.
Ely, Ely, Ely.
Ela encontrou Howard G. Ely em outra catego-
ria, Médicos e Cirurgiões. Ela precisou então pro-
curar em muitas páginas, lendo rapidamente, verifi-
cando, até encontrar o nome em outra lista de espe-
cialidades.
Howard G. Ely era um psiquiatra.

Treze

9 de agosto

Um vírus? Uma doença?


Ela não estava certa, sabia apenas que uma es-
tranha aflição a envolvia e a induzia à pior letargia
que jamais sentira antes. Ela ficou de cama por três
dias, sendo levada por um sono profundo: sonhos
que ela não conseguia lembrar-se ao acordar ― ela
só podia saber que os sonhos eram sempre ruins.
Nomes e rostos iam e vinham, cada um de uma ma-
neira ou outra familiares a ela.
Gripe. Ela disse ao marido que estava muito gri-
pada. Ele comprou analgésico e cápsulas para des-
congestionamento nasal na farmácia, mas ela não
tomou nada. Ellen sabia que não estava gripada: se
houvesse alguma causa básica para o que estava
224
sentindo se enquadraria à vaga categoria de doença
existencial, ou o que estivesse próximo.
Por que ela não conseguia falar com ele sobre
isso?
As dores no ventre, dores de um tipo que ela
não sentira antes. Por horas se preocupava com o
bem-estar do bebê, mas em outras ― quando a dor
se dissipava ― ela não podia nem mesmo pensar
sobre a criança. Deitava-se sozinha na cama tentan-
do encontrar os caminhos dos seus próprios pensa-
mentos.
Caminhos. Não havia caminhos. Não havia si-
nais indicativos. O mundo tinha assumido a estra-
nheza do lado escuro da lua. Ellen queria dormir
mais do que pensar, descansar mais do que conjec-
turar.
A quem você pode recorrer quando perde sua
maior riqueza? Era difícil olhar para Eric quando
ele entrava no quarto. Howard G. Ely ― o nome do
homem vinha entre ela e o marido com a indefecti-
bilidade da sombra de um cadafalso. Ellen desejou
jamais ter aberto a gaveta da mesa e retirado a re-
ceita, nunca tê-la lido, procurado nas Páginas Ama-
relas. Desejou ter o impossível dom de voltar atrás
no tempo, mudar os relógios, jogando para o passa-
do páginas descartadas do calendário de sua vida.
Eric tinha um aspecto físico diferente ― mais ma-
gro, grisalho, vincos em seu rosto que ela nunca
percebera antes. Ela pensou: Eu casei com um es-
225
tranho? (Talvez esta sensação viesse para todas as
pessoas casadas junto com o beijo gelado do dia a
dia, talvez isso acontecesse a todo mundo vez por
outra num relacionamento). Ele parecia também...
furtivo. Mas, por que não estaria? Ele se escondia
atrás de uma mentira, uma grande mentira. E, se
havia uma mentira, por que não haveria outras?
Montes de mentira, pilhas manchadas de falsidade
cheirando como ferrugem na chuva.
Eric. Quem é você? Por que você não me falou
sobre sua doença?
Ah, a doença. Aqui aparece um quebra-cabeças.
Ela inventava jogos consigo mesma. Vamos co-
locar um nome na doença de Eric. A brincadeira
começa, na casa um, com uma designação geral
bem inofensiva denominada “estado mental” ― e
progride até a esquizofrenia, mania de grandeza,
colapso total. Dementia praecax. Alucinações. Um
curto-circuito total no sistema nervoso.
Como se chama a doença, Eric?
Por que você está indo a um psiquiatra?
Por que você disse que era um oftalmologista?
Por que você mentiu?
A mentira é uma mancha; poderia ter sido como
sangue derramado, espalhando-se sobre o travessei-
ro embaixo do seu crânio.
Quando ele entrou no quarto, Ellen sentiu um
leve calafrio ― como um arrepio de medo, mas não
completamente. Parecia que um estranho estava ca-
226
minhando em sua direção, um estranho do qual ela
usava uma aliança, o homem ao qual estava ligada
pelo coração e pelas leis, e sobre sua história de
vida não sabia aparentemente nada. Ela poderia ela-
borar um questionário.
Onde você estudou?
Por que você sumiu por três dias depois de me
ter proposto casamento e por que seus pais não vie-
ram à cerimônia?
Que estranho golpe do destino foi aquele que
arquitetou nosso primeiro encontro, Eric? Por que
você veio falar comigo na biblioteca só pelo motivo
de eu estar carregando um exemplar do livro cha-
mado A morte em Canaã? (Interessante. Você vai
gostar disso. Eu terminei de lê-lo.)
Por que nós nos transportamos e ao nosso amor
por três mil milhas?
Perguntas e perguntas e perguntas aparecem in-
cessantemente. Elas perseguem umas às outras
como raposas guerreiras o fariam.
Um psiquiatra, meu Deus do céu. Às vezes ela
olhava para o marido desejando saber há quanto
tempo ele frequentava um psiquiatra, esta infideli-
dade médica, esta traição de nervos. Ela sabia agora
que não iria perguntar para ele, antes de entender o
porquê: por um lado havia o problema de admitir
seu pequeno ato de espionagem, mas, mais do que
isso, a razão principal era o fato de que não queria
saber as respostas, nenhuma delas. Ele é o pai do
227
meu filho. E se ele é um mistério, um paciente psi-
quiátrico, um mentiroso? Ele ainda será o pai do
meu filho.
O pai biológico do meu filho ainda não nascido.
E eu o amo. Mesmo sem saber onde começa e
termina a verdade, eu o amo ― e isso é algo que
nem mesmo todas as armações do mundo não des-
truiriam.
Eu o amo.
No segundo dia da doença de Ellen, Eric cha-
mou o dr. Phelps. Ela ouviu a voz do marido no te-
lefone através da porta aberta do quarto. Quando
ele entrou no quarto não disse nenhuma palavra.
Sentou-se na beirada da cama e tomou as mãos dela
por entre as suas, com a cabeça inclinada, olhando
o tapete. Eric disse então: Eu vou chamar o dr.
Phelps amanhã se você ainda não estiver melhor.
Ele me disse para fazer isso. Ela ouvia as palavras
sem sentir nada, por um tempo teve a sensação de
que seu útero estava vazio, murcho e estéril ― e a
criança era um pouco mais que o fantasma de um
cérebro assustado.
Na noite do segundo dia, enquanto ficava deita-
da e acordada ao lado do marido que dormia, Ellen
olhava a lua refletindo na janela e tinha uma sensa-
ção estranha de perigo em tudo que a rodeava.
Perigo.
Escuridão, ameaça.
Havia uma sombra na porta novamente. A garo-
228
ta do telefone, o roubo. Poderia haver fendas cres-
cendo na fábrica da noite e algo perigoso esperando
em cada fissura. Perigo. Ela estaria sozinha nessa
descoberta? Era assim? Por que Eric não chamou a
polícia depois da chamada telefônica? E que terrí-
vel apatia era aquela que a impedia de fazer qual-
quer coisa, qualquer coisa para salvar a si mesma?
A resposta não importava afinal, o que contava
era sair da doença e da letargia da sua vida e sacu-
dir-se internamente para espantar a ameaça da sua
vida ― ela simplesmente não podia ficar ali deitada
esperando por algo que não viria.
Na manhã do terceiro dia, embora ainda estives-
se deitada, levantou-se para atender à campainha.
Encontrou sua mãe na porta.
― Seu marido me disse que você tem estado
doente, Ellen.
― Eu não sabia que ele tinha telefonado.
― Fui eu quem ligou, querida. Eu queria saber
de você. Estava um pouco preocupada desde o nos-
so último encontro, então liguei.
― Não estou mais doente. Estou me sentindo
melhor.
Eu preciso me sentir melhor.
Ellen entrou na cozinha, colocou a chaleira so-
bre o fogão olhando as labaredas vermelhas come-
çarem a arder. Ela estava pensando em McDonald:
eu deveria chamá-lo, eu tenho que chamá-lo, eu te-
nho que contar-lhe sobre o mais recente incidente.
229
A fraqueza, a doença, ter ficado de cama ― você
tem todos os tipos de desculpas para dar a seu fa-
vor. O que aparecia no final era o terror de deparar-
se com a mentira de Eric ― seu pequeno mundo
perturbado por algum brincalhão insano, um brin-
calhão perigoso ― de alguma maneira perigosa, vi-
olada pela falta de verdade de seu marido.
Ela carregou a bandeja de chá até a sala. Sua
mãe estava sentada no sofá, observando a cortina
da porta da varanda. Ellen colocou a bandeja sobre
a mesinha de café e, num momento de fraqueza,
teve o impulso de contar tudo para a mãe. Em lugar
disso, serviu duas xícaras de chá e sentou-se, olhan-
do a mãe tomar o seu.
― Eu esperava encontrá-la às portas da morte,
querida. Então Hattie me trouxe até aqui.
― Onde está Hattie?
― Esperando no carro.
― Neste calor?
― Hattie está acostumada com o calor.
Mais uma vez Ellen ficou curiosa sobre a. vida
de Hattie. Talvez ela estivesse esperando ser lem-
brada no testamento da mãe, algum legado substan-
cial. Mais provavelmente ela ganharia uma poltro-
na de veludo em retribuição a anos de lealdade.
― O que esteve errado com você, querida?
― Um vírus, eu acho.
― Você está tão pálida. Eu nunca a tinha visto
tão pálida.
230
Ellen bebericava seu chá. A fraqueza a debilita-
va. Ela sentia-se sonolenta, desejando deitar-se no
sofá e fechar os olhos.
― O bebê? ― perguntou a mãe de Ellen. ―
Como vai indo meu primeiro neto?
― Chutando bem.
― Você teve seus bons tempos dentro de mim,
querida, quando eu a estava carregando. Eu pensa-
va que você usava botas.
Eu não consigo imaginar-me dentro do corpo de
minha mãe, Ellen pensou. Ela acabou de sorver seu
chá, colocando a xícara na mesa e olhando para a
velha senhora, que perguntava:
― Como vai seu marido? Ele me pareceu um
pouco reticente quando eu telefonei.
― Ele está bem ― Ellen respondeu.
O que eu deveria dizer ― ele está indo a um
psiquiatra e não disse uma palavra a esse respeito
para mim?
Ellen olhou para o lado, desviando da mãe, sen-
tindo-se inábil para enfrentar seu forte olhar; ela
ainda estava sentindo a necessidade de confiar nela
e contar sobre Eric ― um som de pressão sendo li-
berada, vapor assobiando.
― Você sabe, Ellen, você fica com um ligeiro
tremor em sua voz quando mente.
― Um tremor?
― Desde que você era criança, querida.
― Eu não estou mentindo.
231
― Bem, isso não é da minha conta, de qualquer
maneira.
Ellen olhou para a mãe e depois para o outro
lado. Sentia-se tensa internamente, a tensão mais
enrolada e apertada que tudo que já sentira antes.
Era como um único grito que subisse por seu estô-
mago e chegasse até sua garganta aberta, como
uma coluna de sangue errante sendo sugada por um
furacão escarlate.
Não se deixe desmoronar diante dela, ela pen-
sou.
Não a deixe perceber como você está frágil. Eu
não preciso ser sufocada, não agora.
Ela balançou a cabeça para um lado, notando
que seus olhos estavam úmidos.
Maldição, não. Não na frente da minha mãe,
não desse jeito. Ellen levou suas mãos ao rosto,
tentando encobri-lo. E então, para seu horror, ou-
viu-se soluçar ― um som de gemido baixo que pa-
recia preencher a sala, e depois houve um silêncio
enigmático sem graça e embaraçado. Ela levantou-
se, dirigiu-se até a cozinha e assoou o nariz numa
toalha de papel, deixando correr água na pia para
abafar o som. De repente tudo se avoluma dentro
de você, e as tensões vêm à tona. A única coisa que
você pode fazer é deixá-las passar, não importa o
quê, não importam as consequências, o embaraço,
você simplesmente deixa que elas saiam e então to-
das as suas fraquezas se agitam no ar como as pom-
232
bas de um mágico.
Oh, por que, por Deus, por que teve de ser na
frente da minha própria mãe? Ela empurrou seu
corpo contra a borda da pia, sentindo as lágrimas
quentes escorrerem pelas faces e tocar os cantos da
boca. Quem eu devo procurar para me ajudar nesta
confusão? Ellen ouviu o som que o andador da mãe
fazia contra o chão ladrilhado da cozinha. Eu não
vou voltar, ela pensou. Eu não vou voltar e lhe dar
a satisfação de ver meus olhos vermelhos. Minhas
ansiedades. Ou o que quer que ela procura ver no
rosto de sua filha.
― Ellen.
Uma pausa. Ela não podia olhar. Ela odiou-se
por ter agido com tal brutalidade estúpida.
― Ellen. Deixe-me dizer algo. Eu compreendo
que nós temos discordâncias. Eu também com-
preendo que não tenho sido a melhor... nós podería-
mos dizer, a mais calorosa ou afetuosa das mães.
Mas eu quero que você entenda uma coisa. Se você
está com algum tipo de problema, se ― como pare-
ce ― algo a está incomodando, eu quero que você
saiba que pode contar com a minha ajuda. Você
pode contar comigo.
Ellen sentiu a mão materna sobre seu ombro.
― Você pode me chamar, Ellen. A qualquer
hora do dia ou da noite. Eu não farei perguntas até
que você esteja preparada para falar. Você entende?
Ellen concordou com a cabeça.
233
Ela ouviu o som do andador recuar. Ouviu a
porta de saída fechar. Ellen apanhou então outra to-
alha do rolo, colocou-a sob a torneira e depois es-
fregou o papel encharcado sobre o rosto.
Eu serei forte, ela pensou ― um pensamento
que, em si, parecia requerer uma súbita explosão de
energia, de resolução. Eu não vou ter um marido
que mente para mim. Eu não deixarei ninguém de
fora se meter com a minha vida.
Pensando assim, forte e sozinha.
Afinal, ela se enxergava como se estivesse so-
bre o problema, como através dos olhos de uma
aranha indolente pendurada em uma teia sombreada
― inchada pelo bebê. Roupão amassado, cabelo
despenteado, a face lívida. Solitária em sua cozinha
terrivelmente branca.
Não se perceba desse jeito, ela pensou.
Não comece a se deprimir. Alguém ao longo do
caminho falou-lhe sobre pensamento lógico, algum
velho professor decrépito que falou sobre a resolu-
ção do problema. Separar as partes, nunca con-
fundi-las. Dividir e vencer.
Você tem dois problemas.
Você tem Eric. Um.
E lá fora, em algum lugar, nessa gloriosamente
agonizante luz do sol, você tem um jogador brin-
cando uma partida maliciosa. Dois.
Ellen, tome uma atitude.
Subitamente, o primeiro passo para esta atitude
234
ficou perfeitamente claro. Ela não precisava de Eric
para fazer isso, poderia fazê-lo por si mesma. Mas
quando Ellen discou o número que McDonald lhe
dera, ficou sabendo que ele estava doente em casa
já há quatro dias ― uma gripe, ela foi informada.
Outra pessoa poderia ajudá-la? Gostaria de
deixar seu nome? Não, não faria isso ― não confi-
aria em outra pessoa. Quantos tiras acreditariam
que aquelas coisas aconteceram com ela. Seu pró-
prio marido não acreditava. Agora compreendia
que podia ver McDonald como um amigo, um sim-
pático amigo especial, com algo mais a lhe oferecer
que o seu trabalho de policial. E agora ele não esta-
va lá para ajudá-la. Ellen discou então o número do
telefone do escritório de Vicky, pensando que a
amiga poderia auxiliá-la a aliviar um pouco o peso
que carregava: se as duas pudessem sentar-se com
calma c Ellen contasse a sequência de eventos
ocorridos ― afinal, por que ela perdera a confiança
em Vicky? Mas ela não estava no escritório nem
em casa. Ellen deixou uma mensagem com uma se-
cretária cuja voz dava a impressão de que chupava
uma bala puxa-puxa.
Hora de agir. Hora de fazer uma coisinha pe-
quena.
Ela vestiu-se rapidamente, inclinando-se, colo-
cando um jeans e camisão, sandálias e entrando no
calor de matar da tarde desesperada; era um dia
para desmaios nas ruas, um dia para enfartes e der-
235
rames, um dia em que as palmeiras davam a im-
pressão de que murchavam. Os urubus, em sua bus-
ca por um pouco de sombra, perdiam qualquer no-
ção de direção. Ellen manobrou o Opel que parecia
um forno e pensava enquanto dirigia: eu estou fa-
zendo alguma coisa. Estou fazendo algo a respeito
dos acontecimentos, eu sou uma mulher no oitavo
mês de gravidez e estou derretendo neste maldito
calor, sentindo o maior desconforto que já experi-
mentei antes em minha vida, mas estou fazendo al-
guma coisa.
Não era um sentimento ruim. Era bom agir,
mesmo que a ação fosse instintiva e mal calculada.
Era bom fazer alguma coisa. Apenas fazer.
Estou devolvendo os livros emprestados pela bi-
blioteca, ela disse a si mesma, olhando a pilha de
romances amontoados no assento do passageiro.
Um impenetrável Le Carré. Outra inconclusiva por
Diane Johnson. Um policial que ela não conseguiu
terminar. Um ensaio sobre a vida de Albert
Schweitzer. Eu estou devolvendo estes livros, ela
pensou.
Mas não é isso que eu estou realmente fazendo.
E ela retirou a receita do dr. Ely do bolso, olhou
mais uma vez o nome do remédio, decorou-o. Car-
bonato de lítio. Ela iria descobrir o que era aquilo
que Eric estava obtendo de um psiquiatra. Desco-
briria exatamente para que servia o lítio. Uma coi-
sinha pequena, um passo ― mas um passo impor-
236
tante, um movimento na direção do controle dos fa-
tos. A vida não parecia às vezes um bando de cava-
los selvagens que você não consegue domar?
Ela já estava fora da garagem e caminhando em
direção à biblioteca quando parou ― parou sob a
forte luz solar e pensou, droga, eu deixei os livros
no carro. Não importa, eles não eram a razão mais
importante para eu querer visitar a biblioteca, trou-
xera-os porque estavam vencidos em seu prazo,
porque quis matar dois coelhos com uma só cajada-
da, economizar energia, poupar-se de fazer duas vi-
agens. Demais para considerações razoáveis. Eles
podiam esperar.
Debaixo de uma placa escrita INFORMAÇÕES
estava sentada uma jovem. Ellen esperou que ela
levantasse o rosto que fixava em uma pilha de pa-
péis de computador. Quando ela finalmente olhou
sem sorrir para Ellen. era apenas um rosto sem
alma.
― Eu posso lhe ajudar. (A pergunta foi feita
sem um acento interrogativo.)
― Eu quero descobrir algo sobre uma droga ―
Ellen respondeu.
― Uma droga?
― Eu encontrei alguns medicamentos em casa e
não consigo me lembrar para o que servem, então
eu quero descobrir.
Por que a mentira? Ela não tinha que explicar a
história de sua vida para aquela mulher.
237
― É mais seguro jogar a coisa fora ― a biblio-
tecária disse.
― Eu sei. Estou apenas curiosa ― Ellen retru-
cou.
― Procure na prateleira dos livros de referência
― falou a moça apontando para um lugar ao longe.
― Você encontrará o Dicionário de Medicina. Ele
poderá ajudá-la se você souber o nome da medica-
ção.
Ellen olhou em várias fileiras de livros até en-
contrar o volume, uma coisa vermelha, enorme.
Carregou-o até a mesa mais próxima e sentou-se.
Eu não quero abrir isso, ela pensou.
Eu não quero olhar o conteúdo do livro.
O que você descobrirá?
A função da droga, talvez. Isso explicaria Eric
para você? Você aprenderia algo sobre a vida de
Eric a partir de informações técnicas sobre a com-
posição química da medicação?
Ela virou-se em direção à mesa de informações.
A mulher estava rodeada de folhas de computador,
pilha sobre pilha. Não empaque, Ellen. Não pare.
Abra a maldita coisa.
Encontre.
Ela sentiu um zumbido peculiar, um murmúrio
em seus ouvidos. Houve uma pressão de sangue,
um encaloramento no rosto. Você está espionando
Eric.
Apenas por que ele mentiu.
238
De repente ela sentiu uma onda de frio. Olhou
em torno da sala, possuída pela estranha sensação
de que lá estava alguém que ela conhecia, alguém
familiar. Um homem passava os dedos pelas pági-
nas de um livro grande com um jeito meio maluco,
talvez um Atlas. Eu não o conheço, ela pensou. Eu
nunca o vi em minha vida ― então, por que a sen-
sação, o pressentimento estranho? Ela balançou a
cabeça, abriu o Dicionário, virou as páginas.
Ela não conseguia mudar a sensação.
Era estranho, era como se, enquanto ela espio-
nava Eric, alguém mais, alguém fora do seu alcance
de visão, a espionava.
Culpa.
Nada além de culpa. Você se odeia por estar fa-
zendo isso. Ela virou mais algumas páginas. Havia
vários tipos de índices, muito confusos para um não
especialista. Índice alfabético por fabricação. Sem
função para ela. Índice por nome genérico e quími-
co. Ela não poderia desvendar o mistério. Índice al-
fabético por nome farmacêutico. Bom. Ela apanhou
a receita do bolso e a abriu. Carbonato de Lítio.
Página 232.
Não, ela pensou.
Não vá em frente.
Por que você não pergunta francamente ao
Eric?
Porque
Porque
239
Porque você está com medo de não saber real-
mente mais quem ele é.
O pensamento a picou. Poderia ser um inseto
que passava pelo seu cérebro. O pensamento ma-
chuca. Machuca mais do que ela precisava admitir.
Ela encontrou a página que queria.
Bobagem não olhar.
Ellen pousou as mãos sobre a página justamente
sobre as palavras

CARBONATO DE LÍTIO
CÁPSULAS E TABLETES, USP, 300mg.

Embaixo, havia uma letra miúda, algumas colu-


nas de coisas escritas com uma letra miúda. Eu não
posso. Eu simplesmente não posso. Isso é uma for-
ma de traição ― e ela gostaria de saber como se
pode encontrar alguma justiça, alguma igualdade,
respondendo a uma traição com outra.
Ela levantou o rosto e viu que a bibliotecária
não estava em sua mesa. Apenas estava lá a grande
pilha de papéis, sem a bibliotecária. O barulho que
Ellen estava fazendo ao arrancar a página do dicio-
nário era enorme, o papel rasgando da lombada, era
enorme. Parecia impossível que eles não viriam
correndo: O que você está fazendo?
Mas havia apenas o silêncio.
A folha estava livre do volume agora e ela a do-
brava furtivamente, enfiando-a depois no bolso jun-
240
to com a receita. Mais tarde.
Você vai ler isso mais tarde, não vai?
Sim, Ellen. É claro que você irá.
E então Ellen levantou-se da mesa e caminhou
para fora da biblioteca em direção à luz do sol que
logo se tornou insuportável.
O sol queimava seu rosto, a parte de trás do seu
pescoço, mas ela agora sentia isso muito fracamen-
te. Chegou até a garagem, penetrando na sombra, e
começou a lenta escalada até o terceiro piso.
Finalmente chegou até onde o Opel estava esta-
cionado.
Ela abriu a porta e abaixou-se lentamente para
sentar-se no carro: Faça. Simplesmente abra o pa-
pel e leia a maldita coisa.
Ellen apanhou a folha do seu bolso, alisando-a
no joelho.

CARBONATO DE LÍTIO
CÁPSULAS E TABLETES, USP, 300mg

Talvez seja algo simples. Alguma receita antiga


para curar enxaqueca, algo do gênero.
Você está se torturando, Ellen.
Leia.

CARBONATO DE LÍTIO.

Quando ela leu a pequena explicação, teve a


241
sensação de ter sido subitamente imersa em um
fogo dourado que queimava o dia. Respostas inci-
neradas. Incineração do cérebro.
Leia. Leia novamente. Leia novamente, Ellen.
O que era aquela coisa selvagem queimando em
sua mente?
Sua visão escurecida.

Para controle de episódios maníacos em psi-


cóticos maníacos-depressivos.

Maníaco. Psicótico. As palavras eram como


campainhas de alarme tocando de uma maneira tal
que pareciam nunca mais parar. Psicóticos manía-
cos-depressivos. Ellen dentou a folha escorregar do
joelho e pensou: Eric, oh Eric, é por isso que você
está num lugar que eu não posso tocar.
Ela tentou trazer as feições do marido para seu
pensamento, mas não pôde. Eu não lembro, ela
pensou. Eu nem mesmo consigo lembrar como meu
marido é. Eu apenas vejo letras negras impressas na
página do livro, nada mais.
Amor, oh amor.
Ela desejou chorar.
Colocou a mão sobre o rosto, a umidade da pal-
ma aderindo ao suor da sua testa. Querido amor.
Com seus olhos fechados ela ouvia o som que vi-
nha de fora do automóvel, o barulho de um carro
forçando uma primeira marcha. O som a incomo-
242
dou. Ellen massageou as pálpebras: em sua nuca
começava uma dor que ela sabia que iria crescer e
crescer se permitisse. Ela queria chorar, mas não
queria deixar-se levar. Seja forte. Seja forte e enca-
re as coisas de frente. E havia ainda o barulho do
carro ficando mais forte, mais alto, o ronco do mo-
tor aumentando até que você pensaria que a máqui-
na explodiria. Ellen afastou a mão do rosto e olhou
através da janela em direção à linha do horizonte,
exatamente a tempo de ver uma sombra tão negra
quanto o carro atrás do volante de um carro. Ela vi-
rou sua cabeça, tentando avistar o número da placa
do automóvel, mas o carro já tinha desaparecido.
Ellen sentiu uma pressão no peito, como se a ponta
de uma costela quebrada estivesse pressionando
contra seu pulmão. Seus olhos se encheram de
lágrimas.
Seja forte, por Deus, seja forte. Prometa isso a
si mesma.
Ela olhou para baixo em direção ao pedaço de
papel amassado em sua mão.
E então percebeu outra coisa.
O assento do passageiro estava vazio.
Não havia sinal dos livros da biblioteca.

Mesmo agora você, às vezes, sente a dor da ve-


lha cicatriz. Mesmo agora ela dói, machuca você.
Você se curva sobre seu carro estacionado e deixa
que sua cabeça fique pendurada pela janela abai-
243
xada. Por que ela fere você agora? A hora vai che-
gar, muito breve, quando ela não mais ferirá você
afinal, quando todas as dores do passado ter-se-ão
ido e você estará bem novamente, bem e completa.
Este pensamento acalma você, a dor diminui. Você
abre os olhos e olha através da vastidão do deser-
to. Um pássaro grande, um abutre, faz círculos no
céu azul.
Então você folheia os livros. Mas as letras im-
pressas não significam nada. Ela tocou estes livros,
virou as páginas, devorou as palavras. Ela.
Dela.
Mesmo agora é difícil para você admitir que
ela tem um nome.
Diga. Diga alto. Vá em frente. Vá em frente
com isso. Apenas diga o nome.
Diga, Ellen.
Mas você ainda não pode, não é?
Você ainda tem medo de admitir que ela existe.
Mas ela existe. Existe e está em seu caminho.
Tempo. No devido tempo, você pensa, tudo esta-
rá bem novamente.
Uma pequena nuvem passa sobre o sol. O abu-
tre sai do seu campo de visão. O dia parece oco.
Você pensa: ela não ficará no caminho.

Quatorze

12 de agosto
244
Por três dias ela julgou-se estar sempre obser-
vando o marido. Observando-o e esperando que
algo aparecesse, uma rachadura na estrutura dele,
uma abertura através da qual pudesse espiar e de-
clarar para si mesma: sim, este é o sinal, esta é a
loucura pela qual eu vinha aguardando. À noite,
procurava escutar os pesadelos dele, que não ocor-
riam. Escutava o ritmo abafado da respiração de
Eric e esperava que seu sonho tomasse forma e
preenchesse o quarto do casal com horror c pânico.
O sonho não vinha. Por dois dias observou um ho-
mem que parecia totalmente normal em todos os
aspectos ― exceto pelo fato de ter-lhe sido prescri-
to um medicamento para controle de psicose maní-
aco-depressiva. Por dois dias Ellen encetou conver-
sas esporádicas com o marido, respondeu às suas
perguntas de tal modo que, se as conversas tives-
sem sido gravadas, soariam extremamente rotinei-
ras para qualquer ouvinte. Era como estar convi-
vendo com uma bomba silenciosa, uma bomba que
parava o seu tique-taque, mas que, apesar de tudo,
ainda estava ativada. Ela gostaria de saber o quanto
de seu pavio ainda restava e quanto já fora queima-
do.
Uma ou duas vezes pegou o telefone para entrar
em contato com dr. Ely, mas sabia que não conse-
guiria e, mesmo se conseguisse falar, não obteria
nenhuma informação. Privacidade. Ética profissio-
245
nal. Sabia que não conseguiria nenhum esclareci-
mento trilhando por este caminho. Quando Eric
fosse para o trabalho leria e releria aquela página
furtada e, cada vez que o fizesse, vivenciaria uma
situação de pavor. Certas vezes as palavras saltari-
am do texto como se quisessem agarrá-la pelo pes-
coço; outras, obscureceriam qualquer significado
que pudessem possuir.
O Lítio é um elemento do grupo dos metais al-
calinos com número atômico 3, peso atômico 6,94,
e uma faixa de emissão em 671 nm no fotômetro de
chama.
Sem sentido. O que toda essa terminologia cien-
tífica tinha a ver com a criatura de carne e osso que
era o seu marido? Qual a importância que o peso
atômico do lítio tinha para ela?
Sintomas típicos da mania incluem pressão de
oratória. (O que seria isso? O que significava
“pressão de oratória”?) Hiperatividade motora, ne-
cessidade de sono reduzida, idéias fugidias, mega-
lomania, exaltação, julgamento falho, agressivida-
de e possivelmente hostilidade...
Ellen às vezes desejava pegar aquela página e
jogá-la no vaso sanitário, ou queimá-la e esquecer
tudo que aprendera e retornar a uma vida normal,
deixando Eric com seu segredo, sua medicação par-
ticular, seu psiquiatra. Mas então, de alguma forma,
parecia ser mais importante compreender por que
Eric ficara assim, por qual motivo um psiquiatra
246
sentado em seu consultório receitaria uma droga
tão potente. Então, ela faria com que sua mente re-
tornasse, buscando pistas dissimuladas, analisando
cuidadosamente o comportamento dele, procurando
pela essência de tudo isso ― apenas para chegar à
mesma conclusão: Algo da vida de Eric ainda não
me foi revelado. Algo aconteceu em seu universo
antes de mim.
Procurou certas palavras no dicionário.
A definição de psicose já era uma perfeita exibi-
ção de horror ― Desarranjo da estrutura mental
caracterizado pela deficiência ou perda de contato
com a realidade.
Era como olhar através de fendas estreitas na
estrutura das palavras para visualizar seu próprio
marido, quase como se ela o tivesse deixado esca-
pulir para outro local e o tivesse perdido no meio
de uma frase técnica.
Possivelmente hostilidade. Perda de contato
com a realidade. Por que às vezes acreditava que
ela era a única que não percebia a realidade? Re-
volvendo a vida de Eric, fazendo seu próprio traba-
lho amador de arqueologia do coração do marido,
não estava aprendendo nada e perdia tudo que já
sabia. Ellen sentia-se como um urso querendo hi-
bernar, desejando que seu filho nascesse durante
um ciclo de sono profundo, acordar na próxima pri-
mavera como uma nova mulher, revitalizada e revi-
gorada, misericordiosamente desmemoriada. Mas
247
esse tipo de amnésia auto-imposta não era um dom
que ela possuía. Não colocaria esse ou aquele as-
sunto de lado até que descobrisse tudo o que preci-
sava saber.
E então havia um obstáculo no curso que envol-
via o carbonato de lítio. Evidente tremor nas mãos,
poliúria, pode ocorrer sensação de sede na fase
aguda da mania... Diarreia, vômitos, tonteira, fra-
queza muscular e falta de coordenação...
Relacione estas coisas com Eric.
E estas ― Frases inacabadas, pronúncia indis-
tinta, incansabilidade, confusão, letargia, coma.
Visão turva. Boca ressecada.
Fadiga, letargia, vontade de dormir.
Havia contradições violentas entre as Reações
Adversas. Se fossem agrupadas e retratadas todas
de uma só vez, gerariam a imagem desoladora de
um indivíduo muito confuso. Meu Deus, que doen-
ça seria curada com essa droga? Parecia-lhe, quanto
mais ela lia, que a medicação produzia efeitos cola-
terais quase tão perturbadores quanto a psicose que
deveria combater.
Coitado do Eric. O que fizera com que ele che-
gasse a essa situação? Algo que ela desconhecia.
Então, ela o observava e esperava que ele não
percebesse que estava sendo observado. Ela se apa-
nhou contando o número de copos de água que o
marido bebia, esperando que as mãos dele come-
çassem a tremer, esperando por qualquer coisa que
248
estampasse a palavra maníaco-depressivo em sua
totalidade. E se odiava por estar agindo desse
modo. Começou a sentir-se como uma visita que
estivesse passando o tempo com um homem encar-
cerado, ponderando se deveria lhe passar sorrateira-
mente uma limalha de ferro com a qual poderia es-
capar da cela.
Pensou: Talvez Ralp Houseman estivesse com a
razão, mais perceptivo que ela supusera, perceben-
do as características transmitidas livremente pela
personalidade de Eric. Tornou-se quase um vício
observá-lo, buscando a manifestação de um sinto-
ma, qualquer coisa que comprovaria ou não os fa-
tos clínicos que ela lera naquele papel. Tremores,
convulsões.
Reflexos dos tendões hiperativos, o que quer
que isso signifique.
Tudo mesmo.
A tarde já estava findando quando McDonald
chegou ao apartamento. Ela ficou surpresa ao vê-lo;
foi como se repentinamente um outro mundo, uma
sequência de eventos esquecidos tivesse ressuscita-
do para surgir diante dos degraus da sua porta. Os
roubos, as ocorrências estranhas já tinham pratica-
mente abandonado a sua mente por causa da preo-
cupação com Eric, por causa da mentira de Eric.
Olhou para o policial e pensou: hoje deve ser um
dia muito especial, uma comemoração ou um ani-
versário, porque ele está trajando um belo terno ―
249
azul-escuro com finas listras vermelhas, muito bem
talhado, camisa branca e uma gravata de cor escura.
Somente a gravata, mal ajustada, assemelhava-se
ao policial desajeitado que Ellen conhecera anteri-
ormente.
― Acabei de sair de um funeral ― explicou. ―
Pensei em passar por aqui para checar como você
estava. Algum problema?
Ellen sacudiu a cabeça. Estava feliz por ter
companhia. Qualquer pessoa que ela não tivesse
que observar e observar como um guarda de fron-
teira que perscruta o horizonte obscuro buscando
um sinal de vida (Ellen lembrava naquele momento
de ter deixado um recado para Vicky há dois dias:
ela não ligara de volta. Algumas secretárias existem
apenas para obstruir as comunicações. Encontram
uma sensação de triunfo quando conseguem sone-
gar informações.)
― Não me importo de ir a funerais. Algo do
meu sangue celta ― declarou McDonald. ― Na re-
alidade, não que eu os aprecie tanto assim, mas, por
outro lado, também não sinto aquela aversão por
enterros tão típica dos anglo-saxões. Velar o morto
em um quarto dos fundos, sabe o que estou dizen-
do. O que eu detesto é ter que me arrumar todo.
― Era alguém chegado?
McDonald acendeu um cigarro. Removeu um
farelo de tabaco dos seus dentes inferiores e exami-
nou-o por um momento na ponta do seu dedo. Um
250
bom indivíduo, Ellen considerou subitamente. Para
um tira, ele é um excelente indivíduo.
― Um jovem colega de trabalho ― respondeu.
― Você deve ter lido nos jornais. Atiraram nele du-
rante um assalto em uma dessas lojas de utilidades
domésticas. Uma do circuito K, eu acho. Isso é uma
grande droga, eles se mandaram com 18 dólares e
uns trocados. Isso deixa qualquer um de queixo caí-
do, Sra. Campbell. Você começa a se questionar se
vale a pena.
― Quer um pouco de chá? ― Ellen indagou.
McDonald balançou a cabeça negativamente.
― Estou só de passagem. Só vim verificar
como você estava. De fato, a minha esposa vive
perguntando de você. Como vai aquela mocinha
que está esperando um bebê; isso é o que ela quer
saber. Você gostou do chá?
Ellen sorriu.
― Devo confessar. Nem sequer provei. Detesto
aquele negócio.
McDonald emitiu uma gargalhada. Longa e so-
nora.
― Para dizer a verdade, minha mulher também
não o suportava. As sobras ficaram guardadas des-
de a sua última gravidez.
― Eu estava começando a me culpar por isso.
― Não é preciso. Tenho certeza de que ela
achará engraçado.
― Ela é do mesmo país que você?
251
O amor da juventude. A ingenuidade. É isso que
as pessoas comuns recordam quando voltam suas
mentes para o passado. Luzes, jamais a escuridão.
McDonald olhou de relance para a porta da va-
randa; possivelmente estava distraído checando a
fechadura.
― Mesma cidade. Mesmo país. Eu a conheço
desde que era deste tamanho. Se você deseja uma
verdadeira história romântica, essa é daquelas que
vêm desde a infância. Só que tive que afastá-la da
nossa chuvosa e querida Escócia. Ela não queria se
separar da mãe. Mas este não é o momento mais
propício para histórias.
McDonald apagou seu cigarro.
― E aí? ― ele perguntou de um jeito simplório.
― Quais são as novidades?
O que ela poderia lhe contar? Quanto do seu
passado recente ela poderia abordar? Eric ― bem,
poderia deixá-lo de lado, poderia depositá-lo segu-
ramente em uma caixa exibindo um rótulo de parti-
cular. As outras circunstâncias ― estas certamente
interessariam a McDonald. Ellen o observou acen-
der mais um cigarro e novamente remover um fare-
lo de tabaco dos dentes. Era interessante perceber
como o hábito nervoso de fumar acarretara outros
hábitos nervosos como o de puxar pedaços de fumo
dos dentes.
Ela contou:
― Recebi um telefonema esquisito.
252
― Esquisito como? Erótico? Ameaçador?
― Uma voz de mulher disse que meu marido
estava doente. Fui para a cidade. Seu escritório es-
tava vazio. Ele não estava doente. Mas havia outra
pessoa no local. Alguém me seguindo.
― E o que aconteceu?
― Eu saí correndo do prédio. Foi isso que acon-
teceu.
― Você não reconheceu a voz?
Ellen negou com a cabeça.
― Não.
― E você tem certeza de que havia outra pessoa
no prédio?
― Certeza? (Como ela poderia explicar? Som-
bras. Sons. A que ponto se chega quando se acredi-
ta piamente em sua certeza? Pelo amor de Deus, é
óbvio que tenho certeza. Pare de fazer definições
rebuscadas demais.) Mais do que certeza.
― Você viu alguém?
― Somente as sombras.
O casaco de McDonald se abriu. Havia uma
arma dentro do coldre perpassado pelo seu ombro.
Ele abotoou o casaco e pareceu estar envergonhado
pela necessidade de ter que portar uma arma.
― Nada de rostos. Nada de formas? Nada que
você pudesse reconhecer se visse novamente?
― Sinto muito. Não. Não dava para ver nada
muito bem. (Somente consegui dar uma boa espia-
da dentro da escrivaninha de Eric, mas você não
253
gostaria de saber o que encontrei lá.) Ah, o carro
preto. Já tinha reparado nesse carro preto outras ve-
zes. Uma vez eu o vi perto da casa da minha mãe
em Paradise Valley. Então o avistei uma outra vez
no estacionamento daqui do condomínio. E nova-
mente quando os livros que eu levava para a biblio-
teca foram roubados.
― Alguém roubou seus livros?
Ela assentiu:
― Pode ter sido qualquer pessoa. Uma criança
poderia fazer isso. Deixei os livros dentro do meu
carro. Eles não estavam mais lá quando retornei.
Mas, havia um carro negro me ultrapassando em
alta velocidade.
― É sempre o mesmo carro?
Ela deu de ombros.
― Não posso afirmar com certeza.
― Você conhece alguém que possui um carro
preto?
― Na realidade, não.
Ela pensou em Vicky, mas aquele carro perten-
cia à companhia para a qual ela trabalhava, era em-
prestado. E, além do mais, era absurdo envolver
Vicky com toda essa história.
― Por que não me contaram isso? ― McDo-
nald inquiriu.
Subitamente ele pareceu aborrecido com tais fa-
tos, com a falta de comunicação.
― Acho que pretendíamos lhe contar. Daí adoe-
254
ci. E não me lembrei mais. Quando finalmente tele-
fonei, fiquei sabendo que você estava doente.
― Doenças ― ele reclamou. ― Deveriam ter-
me contado, de uma maneira ou de outra, Sra.
Campbell. Posso até considerar os roubos como
ocorrências sem importância, uma pequena vingan-
ça, mas, quando se recebe um trote ameaçador que
lhe conduz a uma situação perigosa, já é outra
questão.
― A ligação não foi ameaçadora...
― Não no seu conteúdo. Mas foi isso o que se
revelou. Atinge-se um ponto em que chegamos
além da brincadeira de mau gosto, compreende?
Atinge-se um ponto em que a situação se altera.
Passa a ser outra coisa. Entende o que estou que-
rendo dizer? Não sei por que não fui informado.
Quer dizer, por que o seu marido não me telefo-
nou?
― Não sei ― Ellen respondeu.
Mas então ela já estava refletindo novamente
sobre a droga que havia sido receitada para seu ma-
rido: ponderava sobre seu estado mental. Qual seria
o estado mental em que ele se encontrava naquele
instante? Os primórdios da megalomania? Princípio
de exaltação? Preso entre a zona letárgica e a incan-
sabilidade? Não sabia. (Por que você está assumin-
do que ele tomou a medicação? Tudo o que você
possui é uma prescrição médica incompleta. Jamais
o viu tomando qualquer droga. Como pode ter tanta
255
certeza?)
McDonald esticou as pernas, espalhadas.
― Os objetos roubados ― disse o policial, mu-
dando de assunto, como se tivesse invadido o terri-
tório de alguma discórdia conjugal. ― Há algo
muito esquisito no que diz respeito aos objetos rou-
bados. Uma blusa.
― Não foi a blusa ― ela interveio. ― Resgatei-
a de dentro da piscina, lembra-se? Mas todos os bo-
tões tinham sido arrancados.
― Botões, blusa, não vejo a menor diferença. O
fato é que a blusa foi roubada. A cabeça de uma bo-
neca antiga. Alguns livros da biblioteca. Não consi-
go estabelecer uma relação entre esses objetos. A
blusa, por exemplo, o que tinha de tão especial?
― Era cara.
― Cara o suficiente para ser roubada e logo de-
pois destruída? Jogada fora? Essa não cola, Sra.
Campbell. E os livros?
― Um era um romance de Le Carré e o outro a
biografia de Albert Schweitzer.
― Eu teria que ser um gênio para descobrir a
conexão existente entre os furtos ― admitiu o poli-
cial. ― E a boneca, meu Cristo. Por que roubar a
cabeça da boneca, e então enfiar o tronco dela em
um colchão destroçado?
Ellen sentiu o bebê se mexer. O efeito da agita-
ção, uma cadeia de pequenos acontecimentos. Ela
mudou ligeiramente a posição do seu corpo.
256
Houve um instante de silêncio. Então ele decla-
rou:
― Temos que assumir a existência de uma liga-
ção entre a pessoa que lhe telefonou e fez com que
você dirigisse até Phoenix e a pessoa que roubou
todos esses negócios. Temos que assumir que foi a
mesma pessoa. E isso é problemático.
― Problemático?
― E claro, basta pensar. Alguém a está obser-
vando. Alguém a está seguindo. Alguém conhece a
hora que você sai e para onde vai. Alguém sabe,
por exemplo, que você foi à biblioteca. Seguiram
você até lá.
Ellen estremeceu. Sei disso, ela admitiu em
pensamento. Sei que ele está com a razão. Observa-
da. Seguida. Sei que ele está certo e não quero pen-
sar nessa hipótese.
― Essa mesma pessoa também conhece o local
de trabalho do seu marido. Isso é problemático,
Sra. Campbell. Sabem quando o escritório do seu
marido está fechado. Quando é mais provável que
ninguém esteja lá. Se agruparmos todas estas infor-
mações, chegaremos à conclusão de que essa pes-
soa conhece um bocado de coisas sobre a sua vida.
Ellen olhou para ele. O rosto do policial tinha
uma expressão drástica. Chá de camomila e exercí-
cios físicos se juntando ao medo da sala de parto ―
Jesus, isso já era mais do que suficiente, para que
ela precisava do resto? Ellen estava apavorada.
257
― Gostaria de lhe apresentar uma teoria, Sra.
Campbell. Eu gostaria de saber o que está ocorren-
do. Não mentirei para você. Não possuo uma pista
sequer.
― Essa é uma confissão bem franca para um
policial.
Ele escreveu algo em uma tira de papel.
― Aqui está. Este é o telefone da minha casa.
Você já tem o número do meu trabalho. Se precisar
de mim, durante o dia ou no meio da noite, disque
qualquer um desses números.
Ela o acompanhou pelo corredor, observou-o
abrir a porta da frente, estudando a nova fechadura
por alguns segundos de modo aprovador.
― De dia ou de noite. Prometa.
― Prometo ― ela garantiu.
E o tira se foi.
Ellen voltou para a sala de estar e caminhou até
a porta da varanda, apreciando a paisagem. Estou
sendo vigiada. Lá fora. Lá fora no deserto, alguém
está me vigiando.
Quem quer que você seja, Vou revidar ― e cor-
reu as cortinas da porta da varanda.
Mas Ellen não sabia como faria.
O sol já tinha se posto quando ela foi até a va-
randa aguardar algum sinal do carro de Eric. O que
ainda restava do dia nada mais era do que uma se-
quência de feixes alaranjados no horizonte: com
uma breve chuva e um pouco de umidade, surgiria
258
um glorioso arco-íris. Ellen olhou na direção dos
holofotes instalados sobre as quadras de tênis, a
marola constante na superfície da água azul da pis-
cina, indicações de que alguém acabara de mergu-
lhar. Poderia ter sido um dia tranquilo e comum, até
mesmo sereno ― um dia quente de verão despe-
dindo-se e abrindo as portas para uma noite agradá-
vel.
Mas não foi.
Ela viu o Datsun entrar na garagem, assistiu ao
Eric estacionando e saindo do carro ― e então, sur-
gindo do nada, lá estava a loira repulsiva em pé ao
lado dele. Anna Rosenberg. Ellen observou sem
sentir absolutamente nada, estava abóbada ― não,
nem mesmo abóbada. Não sentia absolutamente
nada. A garota estava dizendo algo para Eric e ele,
por ser mais alto, inclinou sua cabeça para ouvi-la.
O que quer que tenham falado foi ligeiro. A moça
apontou na direção da piscina. Eric não se mexeu.
Ellen imaginou. Ela o está convidando para nadar.
É isso que ela está fazendo. Instigando-o a cair na
água. Ela não sabe o que eu sei sobre ele. E, se
soubesse, o que pensaria? Eric caminhou em dire-
ção ao prédio com seus passos caracteristicamente
longos, um homem sem tempo a desperdiçar. A ga-
rota se afastou, perdida entre as palmeiras e os ar-
bustos. Você é tão linda quanto uma flor em botão,
Rosenberg. Tão linda quanto uma capeta.
Ellen retornou para o interior do apartamento,
259
correu a porta nos trilhos até que esta se fechou.
Pavor: por Deus, como ela temia ver Eric entrando
no apartamento, temia a visão de seu próprio mari-
do. Era a pior sensação que já conhecera. Sentia-se
um pouco tonta, enjoada, queria saber o que se pas-
sara entre Eric e a jovem, que tipo de conversa ha-
viam travado. Entrou na cozinha, sentou-se à mesa
e aguardou.
Anna Rosenberg. Será que Anna Rosenberg fi-
zera aquela ligação telefônica? Será que ela pene-
trara sorrateiramente no apartamento, roubara os
objetos, rasgara a blusa e a atirara na piscina?
Havia aqui uma linha de especulação que ela
não desejava seguir. Uma linha que conduzia dire-
tamente do espanto ao centro da loucura, aprofun-
dando-se cada vez mais no desequilíbrio. Não é
essa a direção que você deve tomar, Ellen. Não é
assim que você deseja prosseguir.
Ela escutou quando o marido fechou a porta, as-
sobiou e disse alguma coisa. Sentiu Eric se aproxi-
mando pelas suas costas, beijando-a no rosto e in-
dagando Como passou o dia?, e ela, sufocando a
necessidade premente de olhar para o marido, res-
ponderia: Meu dia foi magnífico, recebi um telefo-
nema da rainha da Inglaterra, algo a ver com os
meus honorários não recebidos, chegou uma cada
do presidente com um convite para cortar a fita
inaugural de uma usina hidrelétrica, quantas ocu-
pações! Mas não respondeu nada. A suspeita cresce
260
quando é endossada, torna-se pungente e fortaleci-
da. Então, perde-se o contato e ela se altera, trans-
forma-se em certeza. Meu bom Deus, em que eu
estou pensando?
O que, pelo nome sagrado de Cristo, estou fa-
zendo por aqui?
Seu marido é louco.
Anna Rosenberg é.
É.
Ellen cerrou os olhos. E isso, Eric, vá até a pia e
beba sua água. Engula-a. Apenas não me peça para
conversar como se nada tivesse acontecido.
Anna Rosenberg é a mulher que anda com ele.
Entre os dois há algo se passando e eu não per-
tenço ao esquema.
Não participo do plano de ação que arquiteta-
ram. Sou totalmente descartável.
Os dois planejaram me levar à loucura.
Ellen ergueu-se rapidamente, girou nos calca-
nhares e caminhou para o quarto, daí para o banhei-
ro, trancou a porta e contemplou seu rosto no espe-
lho. Um mundo incompreensível, em constante al-
teração, prosseguia em sua órbita.
Os dois estão fazendo isso comigo porque me
querem fora do seu caminho.
Ele dá a chave para ela, muito simples. Ela vem
até aqui. Faz isso, faz aquilo. Eles se encontram du-
rante o dia, em algum motel. Estão apaixonados. A
esposa gorducha tem que desaparecer, certo? O que
261
poderia ser melhor do que induzi-la a um estado de
insanidade total? E a dedicada Srta. Rosenberg não
está muito bem situada para me vigiar, saber quan-
do saio e quando retorno? Ellen, pare. Por que se
está torturando com uma história digna de um da-
queles filmes exibidos durante a madrugada? Por
que está bancando a Ingrid Bergman no romance
com Charles Boyer? Isso é doentio, as considera-
ções de uma mente deplorável. O estado em que
você se encontra, ela pensou: apenas vislumbre a
cena que você montou para justificar a sua condi-
ção lamentável. Não havia nada de sinistro no fato
de uma jovem considerar o seu marido atraente.
O seu marido maníaco-depressivo.
Ela escutou Eric bater à porta. Escutou o que ele
dizia:
― Você não vai sair, Ellen? Ou terei que entrar
para tirar você daí?

Por favor. Por favor, não tente entrar.


― Só um minuto ― ela pediu.
― Você está bem?
Como ele conseguia fazer com que a sua voz
soasse tão solícita?
― Venha logo ― ele chamou novamente. ― Eu
ainda não disse hoje o quanto a amo.
Ela ponderou: será que ele estaria em um de
seus períodos de exaltação? Ou seria um momento
intenso de hiperatividade motora?
262
Ellen destrancou a porta, olhou para o marido e
disse:
― McDonald esteve aqui hoje.
― Mesmo? O que ele queria?
― Nada demais ― ela sacudiu os ombros dis-
plicentemente. Apenas por causa da falha de comu-
nicação, recordou-se. Pergunte a ele por que não te-
lefonou. ― Ele ficou bastante irritado por não ter-
mos ligado depois daquela história de eu ter ido até
o seu escritório.
― Não compreendo ― Eric se admirou.
― O que você não compreende?
― Eu telefonei. Bem no dia seguinte. Alguém
do departamento disse que ele estava doente. Dei-
xei um recado. Ele não ligou.
Oh, ela refletiu. Você deixou um recado. Você
deixou um recado. Você tentou outra vez, conti-
nuou tentando? Ele não pode estar mentindo se já
sabia que McDonald estava doente, certo? Será
que isso me traz alguma consolação?
― Então, depois, foi você quem ficou doente ―
Eric expôs. ― Acho que fiquei tão preocupado com
você que me esqueci de telefonar para ele nova-
mente. Além do mais, está me parecendo que ele
nunca recebeu o recado.
Você esqueceu de telefonar para ele novamente?
Você esqueceu?
Eu me odeio, esse pensamento distorcido que
venho nutrindo. A minha mente parece um saca-
263
rolhas. Ele telefonou ― ao menos ele tentou telefo-
nar. E então a sua lógica alterada imaginava o mari-
do com Anna Rosenberg, criava uma cena total-
mente incoerente, uma ficção depravada. Pare com
isso, Ellen. Pare imediatamente. Mas como é possí-
vel parar quando continua se defrontando com
mentiras, quando se continua descobrindo mentiras
por todo o canto?
Sentiu a palma da mão dele contra sua boche-
cha.
Ele disse:
― Não sei o que lhe está acontecendo. Simples-
mente não tomei conhecimento do fato e nem sei
por que você não me conta. Você tem estado tão...
nem sei, tão recolhida, fechada dentro de si mesma.
Certas vezes é difícil chegar até você ― Eric hesi-
tou. ― Sei que todo esse negócio que vem aconte-
cendo está afetando você, mas... eu só queria que
você conversasse comigo, só isso.
Mentiroso. Como você consegue impor todo o
lado obscuro da sua vida sobre o nosso casamento
dessa maneira? Confusa, desnorteada, Ellen fechou
seus olhos. Percebeu que estava agarrada ao peito
dele.
Ela se retirou então para um lugar seguro.
Recolheu-se profundamente para dentro de si
mesma.

Conte as flores. Violetas, cravos e rosas. Conte-


264
as caule a caule. Procure recordar-se das flores de
outrora. Por vezes é unia lembrança impossível de
ser resgatada, outras vezes surge tão límpida
quanto a água. Você se lembra ― sim, havia viole-
tas, cravos e rosas, todas as flores se entrelaçando
em um desenho magnífico. Extremamente belo.
Nesse instante, sem o menor motivo, você se en-
contra pensando nela novamente. A imagem lhe
provoca uma fúria interior. Como ele pode ter pe-
netrado naquela mulher e nela ter depositado sua
semente, como conseguiu fazer uma coisa tão des-
leal?
Ele estava iludido, era isso. Estava confuso. Na
verdade, ele jamais compreendeu, coitadinho, o
que estava fazendo. Era isso.
Você olha fixamente as páginas arrancadas dos
livros, algumas enegrecidas pela chama dos fósfo-
ros.
Ele se perdeu. Esqueceu seus sentimentos.
É claro.
Páginas arrancadas, botões azuis, a porcelana
esmigalhada da cabeça de uma boneca.
Branco e preto, azul e rosa.
Então as flores.
Mas isso não é tudo. Ainda há mais uma coisa
que você precisa fazer depois das flores.
Procure não esquecer.
Depois das flores você precisa fazer o mais im-
portante de tudo.
265
Quinze

15 de agosto

Inicialmente Ellen não reconheceu a voz dela.


― Dr. Phelps queria saber como você tem pas-
sado, Ellen. Seu marido telefonou. Estávamos um
pouco preocupados com você. Você não compare-
ceu à sua última consulta.
― Foi um princípio de resfriado ― Ellen expli-
cou. ― Está tudo bem.
(O sonho retornou ― Phelps, Grabowski e o
bebê sem vida. Ellen pensara ter esquecido, mas ele
retornou com a força súbita de um golpe.)
― Tem certeza de que está tudo bem? ― a en-
fermeira insistiu.
― Tenho.
― É importante neste ponto da gravidez que
você não falte às consultas, Ellen. Você atingiu
agora um estágio crítico. Temos que ficar de olho
em você, compreende?
― Eu sei ― Ellen respondeu. ― Estou me sen-
tindo melhor agora. Foi somente um princípio de
resfriado.
― Foi só isso?
Por Deus, Ellen pensou, quantas vezes terei que
repetir a mesma coisa?
― Foi só isso ― respondeu. ― Juro.
266
Nesse momento houve uma pausa um tanto em-
baraçosa. Uma oportunidade, Ellen considerou que
tudo o que ela tinha a fazer era dar o bote.
― Posso lhe fazer uma pergunta?
― Claro, vá em frente.
― Você já ouviu falar de um medicamento à
base de carbonato de lítio?
― Já ouvi sim. Por quê?
― Por um acaso ouvi falar sobre isso...
― Você conhece alguém que o está tomando? É
isso?
― Não, vi esse nome quando estava lendo um
artigo e fiquei curiosa, foi isso.
A enfermeira ficou em silêncio por um momen-
to; então, declarou:
― Eu não conheço muito sobre o assunto. Sei
que é utilizado para controlar alterações de humor
repentinas e violentas. Deve auxiliar o paciente a
manter o equilíbrio entre extremos. Algumas pesso-
as o denominaram de cirurgia sem bisturi. Já ouvi
comentários que equivale a uma pequena loboto-
mia. É um medicamento cheio de controvérsias.
Uma pequena lobotomia. Ellen refletiu. Cirur-
gia sem bisturi. Ela imaginou então Eric desacorda-
do e anestesiado sobre uma mesa, cercado de neu-
rocirurgiões, o topo do seu couro cabeludo aberto
como a tampa de uma lata de conservas.
Grabowski retomou o diálogo.
― Você tem uma outra consulta na semana que
267
vem, Ellen. Acho que você deve realmente compa-
recer dessa vez.
― Irei.
― Promete?
― Prometo.

Por que não consigo tocar nesse assunto com


ele? Ellen perguntou a si mesma enquanto recolo-
cava o fone no gancho. Fale sobre isso abertamen-
te, abra-se, diga algo do tipo: Ei cara, já estou sa-
bendo sobre o seu psiquiatra e sobre o medicamen-
to. Mas ela sabia que nunca o faria porque as coisas
tinham ido além disso. Era pior. Como ela podia ter
a certeza de que ele lhe contaria a verdade? Como
ia saber se ele não inventaria alguma mentira no-
jenta? Só havia um homem a quem ela poderia per-
guntar para obter a verdade: Howard G. Ely. Mas
quando se imaginava sentando no consultório dele
e indagando: Qual é exatamente o problema de
Eric? Ela podia imaginar Howard G. tentando ser
evasivo. Ele tinha jurado preservar em segredo as
confidências dos seus clientes assim como um pa-
dre.
Ellen necessitava conversar com alguém. Preci-
sava se abrir com alguém. Vicky, ela cogitou. Não
conseguia pensar em mais ninguém. Talvez as suas
dúvidas e leves suspeitas quanto a Vicky não tives-
sem o menor cabimento; talvez se considerasse
meio infantil com relação a isso. Quando se chega
268
ao fundo do poço, ela pensou, não tinha mais nin-
guém a não ser Vicky. Depois de uma breve hesita-
ção, pegou o telefone e tentou entrar em contato
com a amiga. Ligou tanto para o trabalho quanto
para sua casa. Não encontrou ninguém. Ellen dei-
xou um recado com a mesma secretária de antes e
ficou imaginando por que Vicky não respondera à
sua ligação. Ocupada, supôs. Muito ocupada mos-
trando imóveis em locais distantes para comprado-
res em potencial.
Nada de Vicky. Só o vácuo. Um espaço vazio.
Alguma coisa. Ela tinha que fazer alguma coisa.
Não podia simplesmente ficar ali vendo a sua vida
se afundar no meio de temores e suspeitas. Tinha
que agir.
Se não o fizesse, o que lhe restaria?
Não foi a melhor idéia do mundo, mas foi a úni-
ca que conseguiu ter, foi o único pensamento que
lhe ocorreu. Não conduziria a parte alguma, mas ao
menos colocava sua mente em movimento, em con-
tato com o mundo exterior, uma sensação de estar
engajada. Por um instante ela era apenas uma mu-
lher inchada, com uma expressão desesperada, via-
jando por uma rua residencial da periferia em um
carro barato. O que viu foi um agrupamento huma-
no que se tornou insignificante devido à luz do sol
e ao calor violento.
Mas você está fazendo alguma coisa, disse a si
mesma.
269
Ao menos pode dizer algo sobre você.
Você está fazendo alguma coisa.
Ellen dirigiu por uma rua onde se erigiam pré-
dios comerciais, algumas casas comuns à classe
média, com as palmeiras características e suas
imensas folhas tostando ao sol.
Ela diminuiu a velocidade do Opel. Tinha en-
contrado o local que procurava, estacionou e saiu
do carro.
Era um desses centros médicos que abrigam to-
das as especialidades médicas. Uma construção
com a forma de um caixote que no lugar de janelas
tinha frestas estreitas como as de uma persiana. El-
len caminhou vagarosamente ao longo das inúme-
ras portas dos consultórios, atentando para os no-
mes e as especialidades. Muitas pessoas trabalha-
vam naquele local à custa dos diversos problemas
existentes no animal humano. Cáries e tipos varia-
dos de câncer, doenças gastrointestinais e ossos
deslocados.
Quando descobriu a porta que estava procuran-
do, ela hesitou. Isso não lhe proporcionará a vitória,
refletiu, não a levará a lugar algum. Você não pode
se dar o luxo de pensar desse modo, Ellen Camp-
bell. Se não for determinada agora, quando o será?
A sala de espera estava deserta. Ela imaginou
Eric sentado em uma daquelas poltronas de couro
branco, quem sabe com o olhar fixo sobre a tapeça-
ria que exibia um grande duende bordado, da mes-
270
ma forma que ela a observava nesse momento. Tal-
vez percorrendo distraidamente seus olhos negros
pelo teto com iluminação embutida, ou apanhando
um exemplar do Sports Illustrated na mesa de cen-
tro. Não era um recinto decorado para animar o seu
estado de espírito: havia um descaso clínico, uma
falta de sensibilidade. Ellen voltou seu olhar para a
janela da recepção ― uma mulher de cabelos rui-
vos a observava. Será que fora ela quem telefonara
há muito tempo?
Ellen quis dar meia-volta e partir. Já vi o local,
pensou. Já vi o suficiente. Mas você não veio até
aqui só para olhar, certo? Só para colher as impres-
sões do lugar em que Eric trata da sua mania? Ela
caminhou até a recepção. A mulher do outro lado
do vidro sorriu, o tipo de sorriso que sempre parece
vir acompanhado da frase: Acho que você veio ao
lugar errado. Por quê? Mulheres grávidas não po-
diam sofrer de psicoses? Ellen acomodou suas
mãos sobre o ventre e meneou o corpo: Estou
grávida, não está vendo? Mereço alguma conside-
ração. De mulher para mulher, membros da mesma
irmandade. Viu a janela ser aberta.
― Posso ajudá-la? ― a moça indagou.
Hesitação. Seja determinada, Ellen. Pense em
algo para dizer.
― Posso ajudá-la?
Novamente: era a mesma voz que Ellen tinha
ouvido ao telefone. Doce e abafada.
271
― Gostaria de ver o dr. Ely ― ela respondeu.
Ellen gemeu, um som que não estava ligado à
situação. O bebê a chutara.
― Você tem uma consulta marcada? ― a mu-
lher espiava na agenda.
― Não ― Ellen replicou.
― Oh, meu anjo. Acho que você terá que mar-
car uma. Você gostaria?
Ellen se encostou na parede.
― Eu quero vê-lo agora.
― Acredito que isso não será possível...
― Por que não?
― Porque ele está ocupado.
― Ele está em seu consultório?
A mulher de cabelos ruivos se levantou. Ela ti-
nha um pescoço enrugado que nenhuma maquia-
gem neste mundo disfarçaria.
― Olhe só, veja...
― Ele está em seu consultório?
― Por favor, não arranje problemas...
― Já estou com bastante problemas ― Ellen
colocou. ― Sou uma maníaca furiosa e preciso de
auxílio profissional.
Uma farsa desesperada, refletiu. Mas, uma vez
que você se lança de cabeça em uma dramatização,
o que fazer para retomar?
A mulher de cabelos ruivos fechou a janela e
Ellen arranhou o vidro com sua aliança de casa-
mento. A recepcionista a fitou, pegou o telefone,
272
apertou um botão. Talvez eles tivessem algum tipo
de sistema por aqui para lidar com emergências ―
talvez isso fosse necessário, caso algum paciente
saísse totalmente fora de controle. Uma porta além
da recepção se abriu e um homem saiu ― um ho-
mem trajando casaco de tweed com couro nos coto-
velos, cabelos louros espigados, óculos, uma covi-
nha no queixo. Ellen observou-o chegar à recepção
e daí caminhar até a sala de espera.
― Você é o dr. Ely?
O homem não respondeu à pergunta. Apenas
disse:
― Por que você não se senta? Por que você não
se senta e relaxa? Talvez possamos discutir esse as-
sunto.
Ellen se conduziu para a cadeira mais próxima.
O homem permaneceu em pé à sua frente, as
mãos enfiadas nos bolsos exibindo autoritarismo.
― Agora, qual é o problema? ― inquiriu.
Ellen não respondeu de imediato. Ela avistou
algo, algo bem depois da cabeça confusa da recep-
cionista ― uma parede repleta de arquivos, em or-
dem alfabética, pastas negras. A de Eric estaria ali.
Como que ela poderia colocar as mãos na pasta de
Eric?
― Preciso ver o dr. Ely ― repetiu.
― Sou Howard Ely. Mas normalmente utiliza-
mos um sistema de consultas marcadas. Faz com
que tudo seja mais organizado, compreende?
273
O típico idiota.
― Não tive tempo de marcar uma consulta.
― Talvez você possa explicar o motivo da sua
urgência ― Ely sugeriu, tocando a pequena cova
no queixo num gesto inconsciente.
― Podemos ir até o seu consultório?
Ele a olhou como se ela pudesse estar carregan-
do uma arma escondida. Então concordou com a
cabeça, checou as horas e disse:
― Tenho cinco minutos. Apenas cinco minutos.
Uma expressão facial foi trocada entre Ely e a
recepcionista: pode ser que ele tenha erguido as so-
brancelhas ou qualquer outro sinal combinado.
Prepare-se para chamar os tiras. Ou algo desse
tipo. O dr. Ely fez um gesto para que ela entrasse
deixando a porta aberta.
Eric vem aqui, pensou. O templo interior e par-
ticular. Vem aqui para exteriorizar seus segredos e
conseguir a manutenção das doses para sua loboto-
mia caseira.
― Você pode começar me dizendo seu nome ―
Ely pediu, checando as horas novamente.
Ele está me incentivando. Que trabalho mais an-
tiquado e sem graça.
― Meu nome é Ellen Campbell ― ela declarou.
― Meu marido é Eric Campbell.
A expressão de Ely não se alterou.
― Eric Campbell ― Ellen repetiu. ― É seu pa-
ciente.
274
― É?
― Você sabe muito bem que sim.
― Tenho um grande número de pacientes.
Palmas para ele: quanto sucesso, grandes coisas.
― Meu marido é seu paciente. Está tomando
carbonato de lítio. Vi as receitas que você prescre-
veu.
― O que foi que seu marido lhe disse, Sra.
Campbell?
Ellen ficou olhando para a janela.
Nada. Como é que eu posso revelar isso?
― Ele mencionou o seu nome ― ela colocou.
― Se ele fosse um dos meus pacientes, sei que
jamais mencionaria o meu nome para você, porque
possui seus próprios motivos para preferir a preser-
vação dos seus segredos, sejam eles quais forem.
― Esse é um jeito bem evasivo de admitir que
ele é seu paciente. E também é um meio um tanto
tortuoso de deixar claro que ele deseja me manter
longe disso, certo?
Ely assentiu.
Havia um sorriso desdenhoso no rosto dele,
uma expressão que ela julgava repulsiva.
Ellen não conseguiu proferir palavra alguma.
― Não posso discutir os problemas dele com
você, Sra. Campbell ― declarou o médico.
― Só quero saber o que há de errado com ele.
Isso é algum crime?
― Sinto muito, realmente sinto muito. Mas não
275
posso lhe dizer nada.
Ellen achou que a charada começava a ser um
pouco decifrada, a sua resolução estava agindo por
si mesma: entrara ali sem qualquer noção, pergun-
tara sem raciocinar, esperando por algum tipo de
ajuda, encorajamento, o que quer que fosse. Mas
não descobrira nada, nem o faria. A mente de Eric
estava guardada a sete chaves.
― Se a sua gravidez não fosse tão evidente,
Sra. Campbell, eu lhe sugeriria um sedativo, um se-
dativo brando como o Dalmane, e uma boa noite de
sono. Você está claramente abalada. Você não tem
nada a ganhar vindo até aqui.
― Você não pode me contar, pelo amor de
Deus? Você não pode me dizer por que ele está to-
mando esta medicação? Por que ele vem até aqui?
Ely sacudiu a cabeça. Sua boca hesitou em dizer
algo. Tirou seus óculos e os dobrou da maneira que
um homem prestes a se lançar em um assunto obs-
curo o faria. Ela virou o rosto para o lado; subita-
mente sentiu-se humilhada e um pouco mais que ir-
ritada. Essa conduta desesperada, vir aqui desse
modo, tropeçando ao acaso, concluindo nada. Um
zero à esquerda.
― Você deveria conversar esse assunto com seu
marido ― Ely ponderou. ― Não consigo pensar
em mais nada que fosse adequado para você. Estou
com as mãos atadas.
Ellen tinha a sensação desconfortável das lágri-
276
mas pressionando seus olhos. Lutou contra elas
com toda a força que possuía. A sua bravura, a sua
determinação levaram-na somente até este ponto,
menina. Até aqui e nada mais além. Ainda há mi-
lhas a serem percorridas. Ela pensou nos arquivos
novamente. Como poderia ter a ficha de Eric em
suas mãos? Isso era impossível. Jamais conseguiria
passar pela recepcionista. Estou me desconcertan-
do. Estou começando a me desestruturar novamen-
te. Que porcaria aconteceu com a minha determina-
ção?
Ouvia-se implorando: Por favor. Por favor,
conte-me. Diga-me algo.
O psiquiatra já estava se afastando dela, reme-
xendo em sua escrivaninha, aglomerando diversos
papéis.
― Já estou atrasado, Sra. Campbell. Sugiro que
se sente com o seu marido e converse com ele.
― Como é que posso conversar com ele se nem
sequer o reconheço mais?
Ely sorriu com simpatia: sorriu da maneira ca-
racterística dos médicos. Os arquivos, ela pensou
mais uma vez. Eles estavam se apossando da sua
mente.
A recepcionista reapareceu. Talvez tivesse cap-
tado uma mensagem telepática. Pense, Ellen. Pen-
se. Coloque os miolos para funcionar. Ely já estava
deixando a sala, afastando-se com passos largos.
Um homem apressado. Um homem com o horário
277
espremido.
Ele disse algo à recepcionista, algo do tipo
acompanhe a Sra. Campbell até a saída, dê-lhe um
dos cartões de Al Lewinsonn, parece ser bem apro-
priado para o caso dela ― e então já estava cru-
zando a sala de espera, passando pelo retângulo da
porta subitamente preenchido pela luz do sol. Ellen
sorriu para a recepcionista.
― Não tive a intenção de causar-lhe qualquer
problema. Sinto muito ― explicou-se. ― Eu estava
preocupada demais, foi só isso. Não sei por que me
comportei de um modo tão inconveniente.
Acompanhada pela mulher, Ellen seguiu para a
recepção. A sala dos arquivos. Parou ao lado de
uma máquina de escrever, lançou um olhar rápido
para as pastas pretas e grossas, notou que estavam
arrumadas em ordem alfabética ― pelas letras, não
pelos nomes. Havia muitas com a letra C. Cada
qual possuía um número, provavelmente um códi-
go. É óbvio: a discrição em um consultório psiqui-
átrico exigia que os nomes dos pacientes não fos-
sem expostos para que todos pudessem vê-los. El-
len sentiu-se como se estivesse caindo, a queda de
um abismo colossal. C1097. C 2234. C 8549. E daí
por diante, talvez seis ou sete com a letra inicial C.
Qualquer uma delas poderia conter os dados de
Eric. Talvez houvesse um sistema de código elabo-
rado. Talvez os nomes iniciados com a letra C esti-
vessem arquivados nos fichários com a letra Z ―
278
como seria possível saber?
Pressionou a mão contra a testa, cambaleou e
afundou-se na cadeira ao lado da máquina de escre-
ver. Gemeu em alto e bom som, ouvindo a mulher
perguntar exasperada. O que há? Qual é o proble-
ma? Está acontecendo algo com o neném? Ellen
movimentou sua cabeça lentamente para frente e
para trás, as mãos entrelaçadas fortemente na barri-
ga. Não quero apavorá-la... mas acho que chegou
a hora. A mulher se agitou de um lado para o outro,
de um jeito perturbado. Ellen considerou: Se você
fosse a recepcionista de um obstetra saberia exata-
mente o que fazer. É mesmo o neném? O que eu
posso fazer, Diga-me, o que eu posso fazer por
você? Ellen resmungou. Desejava passar a impres-
são de uma mulher atormentada, desesperada.
Água, um copo d’água, então telefone para o meu
médico, poderia fazer isso...? A recepcionista pare-
cia ter-se transformado em uma bola de um jogo
eletrônico, arremessada para todos os lados. Colo-
cou as mãos nos cabelos, totalmente desnorteada;
então, saiu às pressas da recepção, escancarando a
porta que saía para um estreito corredor. O banhei-
ro.
Rápido. Seja rápida. Ellen levantou-se da cadei-
ra e remexeu freneticamente os arquivos, as pastas
com a letra C.
Rápido.
E você, por favor não se apresse em voltar do
279
banheiro. Por favor.
Ela puxou a que estava mais próxima. Do lado
interno da capa dura havia uma fotografia colada.
Uma mulher olhava séria para ela. Ellen repôs a
pasta em seu lugar, pegou a que vinha a seguir.
Como poderia conseguir o tempo de que necessita-
va. Ouviu o barulho de água corrente vindo do fun-
do do corredor. Você tem que estar muito desespe-
rada, garota. Tem que estar muito desesperada.
O barulho da água cessou.
Agora a qualquer momento ― a qualquer mo-
mento a mulher retornaria apressada. Ellen escan-
carou a outra pasta. Um homem calvo com um par
de óculos de lentes grossas. Nada de Eric. Ergueu o
braço e encaixou a coisa de volta para apanhar o
próximo.
Aconteceu o que ela não previra. Foi como se
Ellen tivesse puxado a unidade principal que sus-
tentava uma delicada estrutura de uma caixinha
montada com cartas de baralho.
As pastas de capa escura começaram a cair so-
bre ela, espalhando-se por todo o chão. Jesus Cris-
to. Você nem sequer consegue fazer isso sem ser
desastrada. Não conseguiria nem mesmo surrupiar
um arquivo insignificante, certo? Ellen escutou-as
batendo contra o chão ― e então seus olhos se en-
contraram com os da recepcionista que estava em
pé na porta segurando um copo de plástico. Ellen
sorriu vagamente, um pedido de desculpas, incli-
280
nou-se, tocou a barriga e gemeu, esperando que a
mulher pensasse que ela havia perdido o controle e
simplesmente começara a se chocar contra as pare-
des e estantes e provocara um acidente, esperava
que a mulher pensasse o que quisesse, exceto que
fora uma tentativa de roubo. Meu Deus, o que você
fez? O que você FEZ?
Ellen deu de ombros, ajoelhou-se e começou a
remexer as pastas esparramadas como se tivesse a
intenção de ajudar na reorganização das mesmas
nas prateleiras. O copo de plástico escorregou da
mão da outra mulher atirando partículas de água
por toda a cerâmica do chão. Uma comédia dra-
mática, uma grande farsa. Ellen resmungou e mur-
murou algo sobre o bebê. A mulher pulou por cima
da poça d’água e alcançou o telefone dizendo de
imediato que precisava de um guarda de segurança,
que havia uma mulher grávida prestes a dar à luz,
que enviassem alguém com urgência, qualquer pes-
soa. Ellen engatinhou por cima das pastas, abrindo-
as furtivamente, gerando mais desordem e bagunça
à medida que avançava. A mulher recolocou o fone
no gancho e disse:
― Por favor, não toque nas pastas, você já pro-
vocou muitos problemas, eu mesma as arrumarei;
por favor, sente-se e fique quieta.
Ellen fingiu não escutar.
― Eu ajudarei, deixe-me ajudar.
― Você faria o favor de manter as suas mãos
281
desastradas fora disso, você já causou estragos su-
ficientes; agora, sente-se até que alguém venha
para levá-la ao seu médico, POR FAVOR.
Ellen procurou levantar-se, escorregou nas pas-
tas, chutando muitas delas para que se abrissem à
medida que recuperava o equilíbrio: devo parecer
um animal encurralado, ponderou, um urso de qua-
tro. Percebeu que a recepcionista estava juntando as
pastas, ouviu-a reclamar enquanto as agrupava e
pensou: Você não tem muito tempo, Ellen. É me-
lhor achar logo a que procura. A mulher lhe deu as
costas, cambaleando com o peso das pastas, osci-
lando rumo às prateleiras e resmungando. Ellen es-
piou mais uma vez.
Viu o que procurava.
Viu a foto de Eric presa a uma das pastas. Esti-
cou o pé, chutou-a para debaixo da mesa com a
máquina de escrever e então arrastou-se para a
frente. Certificando-se de que a recepcionista não a
observava, pegou a pasta e enfiou-a debaixo da
bata, erguendo-se depois com as mãos segurando a
barriga.
Um homem uniformizado apareceu na sala de
espera, bateu com o dedo na janela de vidro, proje-
tando a cabeça para o lado de dentro:
― Por que telefonaram? ― inquiriu.
A mulher suspirou.
― Esta senhora está prestes a dar à luz. Não te-
mos acomodações aqui para isso. Você poderia fa-
282
zer o favor de tirá-la daqui e levá-la para um lugar
mais adequado?
O guarda sorriu e levantou uma das mãos na di-
reção de Ellen.
― A bolsa d’água já se rompeu? ― o segurança
perguntou.
Ele era um homem pequeno com o queixo qua-
drado; provavelmente não conseguira entrar no de-
partamento de polícia por questão de centímetros.
― Não, ainda não ― Ellen respondeu.
― Quer que eu chame um táxi? Talvez prefira ir
a algum dos médicos do andar de baixo?
Ellen sacudiu a cabeça.
― Estou bem, verdade. Acho que ainda dá para
dirigir até o hospital. A recepcionista exagerou.
― Senhora, posso levá-la até o hospital, se as-
sim quiser.
― Realmente, não é necessário.
O homem tirou seu boné. Havia um anel escuro
de suor em seu interior.
― Tem certeza?
― Sim. Provavelmente foi um alarme falso.
― Assim espero. O que deseja, menino ou me-
nina?
― Apenas alguém com muita saúde ― Ellen
respondeu.
― Esse é um pensamento sensato ― declarou o
guarda. ― Bem, desejo-lhe boa sorte, senhora.
― Obrigada.
283
E ela afastou-se, com os nervos à flor da pele,
caminhando em direção às escadas. Desceu com a
esperança de que a pasta permanecesse em seu po-
der até que tivesse tempo para lê-la.
Ellen atravessou o estacionamento até chegar ao
carro, as mãos ainda pressionando o ventre. Dentro
do Opel pensou que ia desmaiar. Você conseguiu.
Inventou um modo de entrar e sair. Pegou a pasta e
a depositou sobre o banco do carona.
Enquanto dirigia, olhava às vezes para a enca-
dernação escura da pasta: parecia flamejar.
Ellen notou que estava com sede, precisava de
algo bem gelado para beber. Estacionou então em
uma rua transversal e caminhou até uma sorveteria,
um recanto alegre que poderia ser a réplica de al-
gum cenário hollywoodiano. Sentou-se no balcão,
prendendo a pasta de Eric nos joelhos. Nunca mais
deixaria coisa alguma no carro. Não com a sua his-
tória. Pediu um sorvete, um creme espumante de
framboesa, enfiando um canudo no copo.
Enquanto colocava sua boca em volta do canu-
do e sorvia a doçura semi-líquida, Ellen olhou na
direção da janela, para a rua lateral ― um movi-
mento involuntário, despropositado. Um gesto que
não significava coisa alguma.
Percebeu logo depois que, se não tivesse olha-
do, jamais o teria visto. Compreendeu que se não
tivesse escolhido exatamente aquele segundo para
dar uma espiadela pela vitrine da sorveteria perde-
284
ria a visão da cena. Não estava esperando por nada,
por ninguém, não antecipara ver um rosto familiar.
Mas lá estava ele.
Lá estava ele atravessando a rua lateral.
Uma mulher caminhava ao seu lado.
A pasta começou a escorregar entre seus joe-
lhos. Apanhou-a bem a tempo. O fecho se abriu e a
fotografia de Eric surgiu como que a fitando.
Sentiu-se confusa e desnorteada. Uma fenda pa-
recia ter-se aberto no solo. Poderia ter ouvido um
distante trovão e sentido a sua vibração através do
ar quente entrando de algum jeito em seu cérebro,
ricocheteando como um som perpetuamente aprisi-
onado em uma câmara de eco.
Suas mãos pairavam sobre a pasta.
Ellen cerrou os olhos.
Uma alucinação. Talvez uma miragem. Qual-
quer coisa exceto a realidade. Qualquer coisa.
Ellen abriu os olhos e empurrou o sorvete para
o lado. Então, voltou-se mais uma vez para a vidra-
ça e viu que agora estava vazia. Um mundo vazio.
Deixou algumas moedas no balcão, desceu do ban-
co, gemeu quando o neném agrediu indiscriminada-
mente as suas entranhas, e andou vagarosamente
até a saída.
Você não tem que ver isso.
Lembre-se ― você não tem que ver isso.
A escolha é sua.
De repente, ela já estava lá fora, e subitamente
285
todo o seu dia se transformou em um vácuo imen-
so. Não conseguia respirar. Seus pulmões estavam
fechados. Não conseguia sentir que estava andando.
Abafada, sufocada, suspensa acima do seu próprio
corpo. E o ribombar daquele trovão ainda aprisio-
nado em sua cabeça.
Ellen não sentia o suor escorrendo pela sua testa
e pálpebras, embaçando as lentes dos óculos escu-
ros.
Ela não sentia droga nenhuma.
A rua lateral estava cheia de carros estaciona-
dos. Procurou por dois em particular, não os encon-
trando. Não importava.
Faça com que seja irreal. Faça com que seja
uma ilusão.
Havia um bar do outro lado da rua. Ellen cami-
nhou em sua direção. Como num sonho. Como que
em transe.
As portas eram do tipo vaivém, bem apropria-
das para o estilo do Velho Oeste. Ela as abriu lenta-
mente. A escuridão do bar a cegou depois de ter en-
frentado a claridade excessiva da luz do sol.
Piscou.
O que viu...
Os dois estavam sentados juntos numa mesa lo-
calizada em um canto escuro. Copos com drinques
à frente deles. Não a viram. Ele estava inclinado
sobre a mesa, sua boca se movimentava, e ela as-
sentia com a cabeça. Seus longos cabelos negros
286
caíam por cima dos ombros da sua blusa branca.
Absorvidos. Estavam envolvidos um com o ou-
tro.
Pássaros emplumados. Dois pássaros trinando
em uma gaiola dourada.
Ellen observou por instantes. Por que às vezes o
tempo se tumultua, foge do controle, por que pare-
cia ser mais longo, como se de repente todos os re-
lógios do mundo estivessem acionados para cum-
prir a tarefa impossível de marcar alguma baboseira
histórica? Açoitada, sem sentido; não sabia quanto
tempo ficara observando. Eles beberam os drin-
ques. Conversaram. E ela escutava o eco de um an-
tigo comentário, o fragmento de uma conversa en-
cerrada ― se der certo dessa vez, você será a pri-
meira a saber, acredite-me. Acredite-me.
E, então, ela estava na rua novamente, andando
sem direção, apenas andando, sem conseguir detec-
tar o som dos seus próprios passos. Era um mundo
silencioso, sem nenhum som, tudo recaía ao tipo de
barulho que se pode ouvir no coração de uma flor
murcha.
Ellen dobrou a esquina, viu seu carro, caminhou
em sua direção.
Distraidamente.

Dezesseis

15/16 de agosto
287
Ellen sentou no apartamento e viu a tarde trans-
formar-se em noite. Viu as sombras crescerem à
medida que o sol mergulhava no horizonte além da
porta da varanda. O recinto parecia frio ― mas de-
via ser a frieza do seu interior o que mais a incomo-
dava. Uma temperatura-glacial: era a superfície
gélida e intransponível da traição. Sentada aguar-
dou, não pensava em nada. Balançava para a frente
e para trás, segurando a barriga como se uma dor a
estivesse atormentando. Mas agora ela estava muito
distante de sentir esse tipo de dor.
Você vê duas pessoas atravessando uma rua
transversal.
Elas entram em um bar.
Você vai atrás delas e abre a porta. De repente,
apanha-se observando o tipo de recinto que jamais
pensou existir, nem sequer suspeitava que existisse.
O rosto do marido.
O rosto da amiga.
Vê dois rostos juntos e esta visão a destrói.
Ellen fita agora a pasta preta pela qual enfrenta-
ra tantos problemas para roubar. Repousando sobre
a mesa da cozinha. Pega-a, arrasta seus pés até o
quarto, senta-se na beira da cama e abre o fecho.
Folheou as páginas. Folheou as páginas bem da-
tilografadas em espaço duplo, que descreviam a
história psiquiátrica do seu marido errante. Não
conseguiria lê-la. Por que iria desejar ler isso agora,
288
agora que isso pouco importava? (Os nervos à flor
da pele. A pulsação fraca retomara como uma febre
estranha. Um inverno capaz de queimar o sangue
quente.) Foi para a última página, saltando, saltan-
do. Havia uma fenda no final da pasta: uma fita
cassete. A voz de Eric, concluiu. Uma sessão grava-
da. Segredos para a posteridade, revelações reduzi-
das a anotações de pé de página escritas em termi-
nologia acadêmica, algo impossível de se ler.
Fechou a pasta. Guardou-a em uma gaveta do
armário de roupas entre blusas, calcinhas e meias.
Você está se precipitando, disse a si mesma. Seja
positiva. Está somando um mais um e encontrando
como resultado a raiz quadrada da infidelidade. A
sua aritmética emocional está errada. (Por que você
interpreta aqueles dois rostos próximos desse
modo? Palavras atentamente ouvidas? Palavras as-
sumindo a forma de beijos, abraços apaixonados?
Por que visualiza a mão dele apalpando a barriga
da outra e descendo vagarosamente para algum
ponto entre as pernas dela, e ela com a cabeça atira-
da para trás, a boca entreaberta, o cabelo esvoaçan-
do, uma expressão em seus olhos de êxtase total?
Por que imagina corpos pálidos em quartos onde as
cortinas foram fechadas e todas as discrições da in-
fidelidade observadas? Por que cria tudo isso em
seu cérebro como leões agressivos? Conclusões.)
Eric e Vicky. Mas isso não se encaixa.
Isso não elucida coisa alguma.
289
Você está tão certa, Ellen. Por que tanta certeza?
Vicky e seu marido. Eric e a frustração de pos-
suir uma esposa cuja graça e atrativos nada mais
são neste momento do que os exibidos por um dro-
medário.
Por que eles não ficavam juntos de uma vez?
Por que Eric não procurava algo que durasse?
Mas.
Mas. E se houvesse algo mais, algo mais inten-
so, amor... e se houvesse? Ellen esfregou as mãos e
caminhou para a janela do quarto.
Você pensou em Anna Rosenberg. Pensou na
Sereia da Piscina. A Queridinha da Quadra de
Tênis. Miss Meia-Noite da Lavanderia. Foi isso
que você pensou. (Não é de admirar que Vicky não
tenha respondido aos seus telefonemas, o recado.
Não é de admirar. Culpa, poderíamos dizer? Culpa
por causa da deslealdade. No meio de tantos ho-
mens casados e ela tinha que escolher Eric.)
A escuridão se alastrava, as sombras se espessa-
vam, os espaços entre as folhas das palmeiras se
adensavam. Os pássaros, percebendo a escuridão,
estavam silenciosos. Ellen fitou o que via da janela
por um longo período, considerando todos os tipos
de pensamento que não queria considerar. Vicky e
Eric ― você continua a imaginá-los juntos, conti-
nua criando fantasias com esse caso (motéis e ho-
téis, restaurantes sombrios e o toque excitante dos
dedos que conduzem ao impulso sexual); você con-
290
tinua se torturando.
Eles estavam apenas bebendo sem maldade al-
guma. É claro.
E mais pensamentos obscenos surgiam com a
ferocidade de uma saraivada de granizos. Ela con-
seguia ouvi-los, martelando, as pancadas contínuas
e multi-direcionadas. Mais e mais, até que o céu de
seu cérebro se tornasse carregado e escurecido.
Pare com isso, pare com as especulações, as diva-
gações, pare imediatamente.
Eles devem estar apaixonados.
Devem estar apaixonados ― e onde eu entro
nessa história?
Um estorvo, menina. Um obstáculo a ser supe-
rado nos caminhos do coração.
Você entra como uma intrusa que transpõe a se-
pultura do seu próprio pensamento. Deposita sobre
a lápide os lírios, os cravos. As flores murcham tão
facilmente quanto o amor. Eles devem se amar com
uma paixão devastadora... como seria possível sa-
ber?
Ellen cruzou o quarto, amorteceu a escuridão
com as luzes, temendo o retorno de Eric. Não que-
ria vê-lo, olhar para ele, sentir a sua presença. (Um
obstáculo. O pensamento era violento. Assolava seu
coração.)
Será que ele chegaria pela porta principal
abruptamente e diria: Adivinha quem eu encontrei
hoje? Adivinha quem me pagou uma bebida? Duvi-
291
do que ele o fizesse. Não diria coisa alguma. Entra-
ria, assobiando, colocaria sua pasta no chão e a bei-
jaria: um toque em seus lábios faria com que recu-
asse como um animal que teme o açoite do seu trei-
nador.
Fazem um belo par, ela pensou.
Não precisam de mim. Sou peso excessivo. Ba-
gagem desnecessária. Simplesmente não precisam
de mim. Eric. Eric, em qualquer época isso teria
sido horrível, mas não poderia existir época pior
do que esta. Não precisam de mim. (As pessoas pe-
dem para se divorciar, não é? Formulam diretamen-
te a questão. Você concorda com o divórcio? Não
ficam rondando por aí com planos preconcebidos
para encurralar o terceiro elemento contra a parede,
certo? De onde saiu esta idéia? Dos seus feixes ner-
vosos, garota. Os seus tensos feixes nervosos, garo-
ta. Os finos cordões retesados que transmitem as
mensagens, como um telégrafo, de uma parte do
corpo para a outra, Ellen. O terceiro elemento.)
Você poderia preferir ignorar tais fatos, certo?
Poderia desligar o sistema que ativa a sua me-
mória, ou programá-lo seletivamente deste modo
no futuro. Quando tentasse se recordar desses mo-
mentos, não se lembraria de nada, a imagem seria
preenchida por um espaço vazio. Sempre um espa-
ço vazio, horas perdidas.
Eric. Eric.
Planos preconcebidos.
292
Por que sempre retornava a esta hipótese? Essa
certeza de uma conspiração, de algo sendo tramado
contra ela?
Ellen afastou tal idéia de sua mente. De repente,
tudo era demais, opressivo demais. Ela gostaria de
ser capaz de continuar vivendo com um piloto auto-
mático e sonhar pelo resto da vida, exercitando
suas funções sem jamais ter que pensar novamente.
Gostaria de ser capaz de aproveitar este momento
para desmaiar, ter um colapso nervoso, permitir que
todo seu sistema psicológico se fragmentasse.
Uma hipótese fatal. Mas as hipóteses fatais sur-
gem das mentes talhadas pelo fio de uma lâmina.
Seu marido é louco. Seu marido está sob o efeito
de uma medicação fortíssima, manutenção do
equilíbrio mental. Pode ser capaz de fazer qual-
quer coisa. Pode ser capaz de fazer algo fatal.
Ellen queria rir de si mesma.
Mas então pensou: imagine.
Imagine isso. Os dois, eles podiam ter resolvido
afastá-la do caminho: imagine ― eles podem ter
maquinado algum esquema para fazer com que ela
pensasse que estava enlouquecendo. Podiam roubar
objetos insignificantes. Elaborar brincadeiras esqui-
zofrênicas. (Cabeças próximas de novo. Será que
estavam inventando uma nova brincadeirinha esta
tarde? Estariam rindo juntos e dizendo: Tenho uma
ótima, vamos roubar o guia da programação de TV
ou enviar uma carta anônima para ela?) Eles po-
293
deriam fazer coisas desse tipo ― as pessoas fazem,
não fazem?
Ela percebeu alguém a observando atrás da
sombra de uma palmeira.
Sob a árvore, alguém se escondia.
Ela tinha certeza disso, tanto quanto poderia
sentir seus próprios batimentos cardíacos.
Ellen escamoteou-se no meio da pálida ilumina-
ção, apoiou-se no parapeito que circundava a va-
randa. Um momento de irritação: Por que você não
sai daí e mostra quem é? Por que você se esconde
desse modo, meu Deus do céu? Quem é você? É
Vicky? Será que os meus loucos pensamentos estão
me conduzindo à direção correta?
Quem quer que você seja, pelo amor de Deus,
apareça.
Mostre-me o seu rosto.
O parapeito pressionava a sua barriga. Ellen
avistou as luzes da piscina azul e o tremular da
água refletindo nas palmeiras; o brilho forte dos ho-
lofotes resplandescentes acima das quadras de
tênis. E, então, estava pensando em um carro preto,
um carro preto ociosamente estacionado em frente
à casa da sua mãe. Vicky possuía um carro preto.
Mas neste instante de pouca luminosidade todos os
carros eram negros. Todos sem cor definida, sem
forma, inertes.
Ela fechou os olhos por um instante. Pensou:
toda a mágoa que você está sentindo provém dos
294
atos da sua imaginação incontrolável. Vê conexões
onde não há nenhuma possibilidade de existir uma.
Compreende o que não existe para ser compreendi-
do, preenche os espaços vazios do seu cérebro com
fantasias.
Mas alguém está me observando agora.
Alguém está me observando do estacionamento.
Ellen retrocedeu e encostou-se na porta de vi-
dro, espalmou sua mão contra a testa úmida pelo
suor. Era uma dor terrível, um momento horroroso
para o bebê chutar com tanta violência. Seus olhos
lacrimejaram. Quando se é atingido por diferentes
sofrimentos, qual deles deveria ser amenizado em
primeiro lugar? Qual deles você aliviaria?
Ela limpou o suor do rosto com a manga da rou-
pa e olhou para o estacionamento lá embaixo. Foi
tomada pela mesma sensação, o mesmo sentimento
que parecia se prolongar além da sua existência e
crescer até que tivesse alterado a textura da própria
escuridão.
Ellen pensou ter visto algo se mexendo entre as
palmeiras. Algo que no momento parecia ser bran-
co. Algo da cor de um lençol.
Mas logo não havia nada a não ser a escuridão e
o barulho dos nadadores e o som distante das bolas
de tênis colidindo contra as raquetes e o grito esga-
niçado de uma moça vindo de algum canto. Tudo
parecia sem contorno, por algum motivo, sem defi-
nição: era como se estivesse escutando um rádio
295
mal sintonizado e captando diversas estações ao
mesmo tempo. A escuridão não produziria nada
para ser fitado, não desistiria da sua consistência:
eram as trevas dentro de um recinto completamente
vedado, as trevas num ataúde impenetrável. Ela
agarrou o corrimão e olhou fixamente a imensa pal-
meira perto do canto da cerca aramada e pensou:
Qualquer pessoa poderia ficar em pé atrás dela.
Qualquer um poderia estar ali.
Mas quem?
Ela saiu da varanda e retornou para dentro do
apartamento e, sem considerar, sem planejar qual-
quer coisa, caminhou pelo corredor até a porta da
frente, abrindo-a silenciosamente ― como se te-
messe que alguém estivesse de tocaia ― e foi em
direção às escadas. Devagar, vagarosamente, des-
ceu. Agora o calor parecia crescer à sua volta. Por
que você está fazendo isso? Por que está saindo?
Você está perseguindo mais fantasmas. Ninguém a
está observando, e McDonald tirou as conclusões
totalmente erradas. Não há tramas, esquemas plane-
jados, roubos, seu marido não está tendo um caso
com a sua amiga ― o mundo está na sua mais per-
feita ordem.
Ellen estava no estacionamento escuro.
Olhou além dos carros, para a cerca, a palmeira
estacada, as sombras fixas debaixo das folhagens.
E daí caminhou naquela direção.
Movimentou-se cautelosamente. Refletiu: estou
296
desequilibrada. É dessa forma que se manifesta
uma crise nervosa, uma estafa, um cérebro mal oxi-
genado, uma sensação de que nada mais importa,
porque nada mais existe.
Ellen percebeu uma agitação debaixo das fo-
lhas. Um vulto branco, visível como a passagem de
um minúsculo inseto ― um vulto, um espectro
branco. (Alguém de branco ― ela vira alguém se-
manas e semanas atrás bem neste lugar na calada
da noite.) Aproximou-se da palmeira, que se curva-
va como que murchando pela desidratação provo-
cada pelo calor, lançando um conjunto de sombras
compactas pelo chão.
Então, ela parou.
Ellen enxergara algo vagamente através da es-
curidão, através de algumas folhas meio iluminadas
nas sombras compactas, meio escondido pelas lar-
gas folhagens e ramificações; viu a coisa tremeluzir
por um segundo, como se fosse etéreo, composto
de nada a não ser pura luz branca. Viu o rosto e as
olheiras azuladas, o rasgo negro que poderia ser a
boca. Em pé, perfeitamente imóvel como um caça-
dor mirando a sua presa, naquele momento glacial
em que a lente é posicionada, com firmeza e total
inércia: perfeitamente imóvel.
Os lábios se movimentaram. Os lábios negros se
movimentaram.
A boca tomou-se um círculo, um buraco vazio.
A escuridão dos olhos sugeria o vácuo infindo,
297
um oceano povoado por mais fantasmas do que
qualquer um pudesse detectar. Então ela se consci-
entizou de que algo mais ― mais do que a forma
semelhante à de um sino ― conscientizou-se da
brancura da vestimenta. A extensa brancura leitosa
fazia com que Ellen lembrasse de um vestido de
noiva, um traje específico, uma indumentária matri-
monial. Não estava bem certa do quê. E havia algo
mais, um objeto escuro erguido no ar por mãos
pálidas, um objeto que parecia um pequeno e pa-
tético buquê de flores, um buquê de noiva, as flores
que uma noiva deve carregar, como se não possuís-
se esperanças, durante a sua entrada e passagem pe-
los bancos de convidados até o altar.
Ellen cambaleou ligeiramente, fechou os olhos,
sentiu algo agarrando seu braço com gentileza.
Voltou seu rosto e viu Eric ao seu lado.
Não falou nada, apenas levantou o braço, apon-
tando para as sombras debaixo da palmeira.
― O quê? ― Eric perguntou ― O que é?
Ela indicou:
― Olhe, olhe lá adiante...?!
Mas não havia ninguém, nada, somente o espa-
ço em que alguém estivera, uma superfície marcada
pela escuridão, livre da brancura estonteante, um
vario daqueles que podem ser observados por um
telescópio em uma noite nublada.
Eric virou sua cabeça para o outro lado.
― O que é? Não vejo coisa alguma.
298
― Alguém estava ali em pé...
― Ellen ― e o tom de voz estava repleto de
prevenção e impaciência.
― Alguém estava...
Eric. Lembre-se de Eric. Ela retirou o seu braço
da mão dele e afastou-se dizendo:
― Não me toque.
Ellen estava consciente de que estava prestes a
fazer uma cena, uma ponta de histeria não permiti-
da em seu comportamento, um ato a ser encerrado
aqui neste estacionamento sombrio.
― Ellen, o que há de errado com você?
Ela não deu nenhuma resposta, tentando se des-
vencilhar dele. Mas foi retida com firmeza pelo
marido, que a trouxe para perto dele.
― Jesus Cristo, Ellen, o que há de errado com
você? O que deu em você nesses últimos dias?
― Você não sabe? Você não tem uma resposta
para esta pergunta?
Havia uma expressão de sofrimento no rosto
dele, seu semblante estava iluminado pela luz tênue
da piscina. Ela não conseguia encará-lo; virou seus
olhos para a palmeira. O que tinha visto? Que tipo
de alucinação fora aquela? Não, por Cristo, não;
aquilo fora real.
Uma mulher estivera naquele local, vestida
como se fosse a um casamento e em seu rosto esta-
va a expressão mais sofrida e angustiada que Ellen
conseguia recordar de já ter visto. Sofrida ― mas
299
essa não era a palavra ― não era o adjetivo mais
apropriado: se houvesse algum sofrimento, era ape-
nas uma expressão estimulada pela loucura, uma
loucura na negritude daquele olhar, a boca escura,
as flores despencando.
― Ellen, por favor ― ele estava dizendo.
Ellen não se virou. Não desejava que ele a to-
casse novamente. O bebê mexeu-se abruptamente,
quase como se estivesse mergulhando entre suas
pernas. Caindo, tomando posição. Eric chegou bem
perto da mulher e ela mais uma vez retrocedeu.
Como é que ele não vira a mulher debaixo da árvo-
re? A menos que isso fizesse parte dos planos dele
― mas ele não tinha nenhum plano, não havia
conspiração alguma, ninguém estava agindo ou
mancomunado contra ela. Lembre-se, Ellen, lem-
bre-se de que você está lidando com um homem
que pode estar desequilibrado.
Jesus, qual de nós é louco? Ambos?
Ela caminhou na direção da árvore, empurrou as
folhagens para o lado, não viu nada: Eric estava
atrás dela, tentando segurá-la pelos ombros.
― Ellen, por favor, vamos subir, você não está
bem...
― É, estou doente. Estou mais doente do que o
capeta. Só Deus sabe, talvez eu esteja tão doente
quanto você, Eric.
― O que você está tentando insinuar?
Ela não replicou. Circundou a palmeira ― ape-
300
nas com a vaga consciência de quão ridícula pode-
ria parecer para qualquer um que estivesse passan-
do. Podia ouvir Eric atrás dela. Inclinou-se para o
lado, ergueu uma das mãos, como se precisasse de
apoio, e indagou:
― Suponho que era a Vicky que estava debaixo
da palmeira, hum? Provavelmente era ela fantasia-
da...
― Vicky... ― ele hesitou. Empurrou a larga fo-
lhagem com a palma da mão. ― Sobre o que você
está falando, Ellen?
Ninguém. Ela não via mais ninguém agora.
Deve ter sonhado com aquela presença, deve ter
encontrado com uma entidade espiritual. E mesmo
o som da sua própria voz nesse momento ― as pa-
lavras que estava proferindo não pareciam consis-
tentes e reais para ela. Você e Vicky, e seus jogui-
nhos. Acha que não sei? ― e ela se deteve, teve
que silenciar a histeria em sua voz e regularizar o
fluxo dos seus pensamentos, pensamentos que a es-
tavam conduzindo cada vez para mais longe da cer-
teza, das coisas que lhe transmitiam segurança.
Eric pousara seu braço em torno do ombro da
esposa e dizia coisas com um tom de voz apazigua-
dor, da maneira com que uma mãe falaria com seu
filho agitado.
O meu mundo está se despedaçando.
Todo o mundo está ruindo, e minhas narinas es-
tão contaminadas pelo cheiro da decadência e da
301
destruição.
Eric está encostando em mim.
Ele está encostando em mim.
Ela sacudiu o ombro tirando a mão do marido e
deu alguns passos à frente dele. Uma dor ardia en-
tre suas pernas.
Eric veio em sua direção.
― Ellen, eu não compreendo você. Não sei do
que você está falando.
Não conseguiria falar com ele, não o faria. Por
que desperdiçar suas palavras? Por que tentar se co-
municar com um homem cujo universo foi distorci-
do pelas mentiras e pela fraude? Um desperdício
total. Ela entrou no prédio mantendo-se à frente
dele. Essa sensação de queda... Pressionou a barri-
ga e acalmou-se rapidamente. Um momento de lou-
cura que já passou, um momento perigoso às suas
costas. Você só precisa pensar no bebê agora, só
pense no bebê, nada mais interessa nesse mundo
completamente distorcido a não ser a segurança do
bebê.
É a sua única responsabilidade.
Nada mais tem a menor importância ― nem as
mentiras, nem as infidelidades, nem as ilusões, nem
os logros.
Somente o bebê importa.
Mantenha este pensamento como o mais rele-
vante em sua cabeça.
Nunca o perca de vista. Não o deixe escapulir.
302
Sua âncora. É o que lhe prende a ura mundo práti-
co, o preto no branco e o bom senso.
O bebê. Deixe o bebê preservar a sua sanidade.
O bebê.
Agarre-se a isso. Pegue-o e ame-o. Sofra em
nome dele.
Nada mais significa coisa alguma.
O bebê é vida. A própria vida. A única força po-
sitiva.
Beleza e vida.
― Não compreendo nada do que você está fa-
lando ― Eric alegou.
Você não importa.
Eu deveria ter percebido quem você era antes.
― Simplesmente não sei o que há com você ―
ele disse.
Ellen começou a subir as escadas. Gostaria de
saber se, na sua ausência, algo mais poderia ter sido
roubado do apartamento. Ela pensou: Talvez te-
nham tirado a lâmpada do lustre lateral. Boa sorte
para eles. Boa sorte para eles, quem quer que se-
jam. Uma lâmpada ― bem possível. Isso não mais
importava.
Não se concentre em mais nada, somente nesta
vida em seu interior. Nada mais.
Ouviu a voz de Eric, pedindo, adulando, supli-
cando. As palavras não atingiam o cérebro dela,
que apenas pensava: Uma lâmpada para iluminar
todas as outras porcarias roubadas. Uma blusa azul,
303
uma cabeça de boneca e alguns livros que peguei
na biblioteca e jamais devolvi.
Eles podem precisar de uma lâmpada para ilu-
minar essa coleção.
Quem quer que sejam. Isso não importa mais.
Ela parou, sem fôlego, do lado de fora da porta
do apartamento que deixara escancarada. Ainda
conseguia ouvir os passos de Eric atrás dela, a voz
dele; Ellen sentia afinal algum tipo de satisfação no
fato de não estar realmente escutando o que ele di-
zia. Pela primeira vez em seu casamento, as pala-
vras dele não significavam absolutamente nada.
Caminhou para dentro do quarto e bateu a porta
ao entrar. Depois, ouviu Eric abri-la. Eu queria que
Deus colocasse uma fechadura na porta deste quar-
to. Sentou-se na cama e olhou fixamente para o ta-
pete. Ele continuava. Ela ouviu o nome de Vicky
ser citado no monólogo do seu marido, mas não es-
tava realmente escutando. Queria olhar para ele
com toda a frieza que seu coração abrigava e dizer:
Eu desconheço você. E isso nem sequer me inco-
moda. Meu amor, pensou. E o pensamento fluiu por
suas veias. Meu querido bebê.
Por que Eric continuava falando desse jeito?
Será que ele não percebia que não a estava alcan-
çando? Que diferença faziam as palavras dele? Ela
tampou os ouvidos com as mãos. Faça-o parar, al-
guém o faça parar.
Você não está interessada em saber que tomei
304
um drinque com a Vicky somente porque estava
preocupado com você ultimamente, somente por-
que queria pedir o conselho dela com relação ao
que fazer com você e com sua conduta. Não houve
nada demais, só queria conversar com ela sobre o
modo esquisito com que você vem agindo, as coi-
sas estranhas que tem feito, a forma com que me
tem observado sem tirar os olhos de mim, talvez
porque esteja sob algum tipo de tensão, o que pos-
so entender, mas é difícil para mim. Por que você
faz com que as coisas sejam tão duras para mim?
Como você pode achar que exista algo entre eu e a
sua melhor amiga?
Eu amo você, meu amor. Eu amo você.
A voz crescia e diminuía, sumia e enfraquecia,
prosseguia.
Ela se afastou. Ausentou-se. Pensou na linda
brancura do rosto do bebê deitado em seu berço, vi-
sualizou sua adorável boquinha em seu seio, sentiu
sua mãozinha quente em seus dedos.
Então se conscientizou de que Eric silenciara.
Tirou as mãos dos ouvidos. Observou quando ele
sacudiu a cabeça e deu-lhe as costas saindo do
quarto, fechando a porta.
Ellen deitou-se de costas na cama e esfregou
sua barriga com suavidade. O bebê salvará sua
vida, pensou. O lado negro e sórdido da vida pode
prosseguir ― a pureza, a novidade trazida por este
bebê é a única coisa que importa.
305
A pureza. A novidade.
Uma nova vida.
Tudo mais são condições.
Fechou os olhos e pensou na mulher que tinha
visto debaixo da árvore. Pensou naquele rosto. Os
olhos.
Aqueles olhos.
Mal parecia lhe importar o modo com que aque-
le rosto era familiar. Familiar ― de alguma forma,
sim.
Ela escutava, ouviu Eric fazendo barulho na co-
zinha. Ponderou: talvez tenha perdido as suas preci-
osas pílulas. Talvez um ataque esteja a caminho.
Foi até o armário e abriu.
Olhou para suas roupas, refletindo: como posso
continuar morando aqui com um homem que des-
conheço? Hesitou somente por um momento antes
de puxar suas roupas e atulhá-las dentro de uma sa-
cola. Foi então até o gaveteiro e pegou algumas
roupas de baixo, colocando-as por cima das outras
peças. Questionou mais uma vez sobre o destino
que daria ao fichário ― precisava dele agora? Será
que aquilo realmente interessava?
Vacilou: de qualquer modo, onde você está
indo? Onde você pode se refugiar?
Deu de ombros e jogou o fichário por cima do
resto das suas coisas na sacola; então, movimentou-
se para a porta do quarto. A TV estava ligada com o
som bem alto ― como se fosse uma manifestação
306
da raiva de Eric. Ou da sua loucura. Ellen cami-
nhou silenciosamente pelo corredor, e com o mes-
mo cuidado destrancou a porta da frente.
Um momento súbito ― de tristeza? Pesar? Você
simplesmente não vai sair de casa sem sentir nada,
mas o que quer que estivesse sentindo passou muito
rapidamente, e quando fechou a porta sentiu-se pa-
ralisada, nada mais.
Tinha tudo o que precisava. Podia estar abando-
nando uma vida, mas tinha tudo o que precisava.
Cruzar o estacionamento, abrir a porta do Opel,
dar partida no motor e engatar a marcha à ré. Essas
rodas a conduzirão a um lugar mais seguro. Logo
dirigiu para a saída do estacionamento com seus fa-
róis rasgando a escuridão.
Foi então que quase perdeu o controle.
O volante correu em suas mãos enquanto as lu-
zes focalizaram a forma de uma mulher vestindo
um longo traje branco, a face coberta por maquia-
gem branca, olhos e boca negros como a noite no
deserto. Ellen girou o volante, freou, sentiu o Opel
derrapar ligeiramente, mas então o vulto já se afas-
tara e sumira nas sombras cerradas do estaciona-
mento. Algo voou à frente do rosto de Ellen, algo
úmido e perfumado pousou sobre a bolsa dela que
estava sobre o assento do carona. Úmido e perfu-
mado. Por um longo tempo não se mexeu, ficou
apenas sentada atrás do volante com sua cabeça in-
clinada para a frente, respirando ruidosamente, irre-
307
gularmente, seus batimentos cardíacos alterados.
Loucura ― você está rodeada pela insanidade.
Podia ter construído um abrigo a sua volta contra
os lunáticos, somente para descobrir que não há
como se proteger. Loucura. Ela fechou os olhos e
aspirou a fragrância no ar; então, ergueu o braço até
a luz interna do veículo e acendeu-a.
Era um buquê de flores que tinha sido atirado
pela janela. Um buquê murcho constituído por mui-
tos tipos de flores.
Desligou a luz e continuou dirigindo, pensando.
Uma louca está por aí me assombrando. Alguém
desvairado que sabe onde moro e para onde estou
indo, alguém que conhece meus horários tão bem
quanto eu.
Você tem que ir para lá.
Não há nenhum outro lugar para ir.
Não pode voltar para Eric e aquele apartamento
carregado de tensão, aqueles cômodos.
Então dirigiu por estradas principais e estreitas
ruas secundárias, seu senso de direção estava abala-
do, como se mesmo agora pensasse que estava sen-
do seguida. Quando chegou à casa de sua mãe em
Paradise Valley, passava da meia-noite. Estacionou
o carro na entrada, mas não saiu do carro imediata-
mente.
Não havia nenhum orgulho em nada disso.
Não havia nenhuma dignidade a ser resguarda-
da.
308
Um vazio. Somente isso. Você corre para a casa
de sua mãe porque nesse momento de desespero
não tem para onde ir. Uma vida em círculos ― sai
de casa, retorna.
Ellen abriu a porta e pegou sua sacola. A luz in-
terna da casa foi acesa. Por um instante terrível foi
tomada pela sensação de que alguém estava se
ocultando no banco traseiro, deitado no chão do
carro. Ninguém. Até mesmo olhou para conferir.
Então fixou seus olhos nas flores. Um buquê. Um
ramalhete.
Violetas. Cravos. Rosas.
Apanhou-as, deixou-as caírem de suas mãos.
Ellen desceu do carro e ficou em pé na estrada
escura com sua bolsa de lado e pensou: há quanto
tempo estas pessoas vêm me seguindo?
E daí se virou, assustada pelo som de um movi-
mento atrás dela. Perscrutou através da escuridão,
tremendo, todo o seu sistema nervoso ativado. Al-
guém se movimentando na noite, alguém atrás dela.
Entreabriu sua boca para dizer algo. Ouviu o
seu próprio murmúrio ininteligível.
― Ellen, é você?
Hattie. Hattie Dalrymple. Era apenas Hattie. Em
sua mão havia algo com um brilho opaco provoca-
do pela fraca luz que vinha da casa.
Tesoura de poda. Tesoura de poda do jardim.
― Ellen, o que você está fazendo aqui?
― Hattie ― a voz dela era fina, aguda. A tesou-
309
ra de poda. Por que Hattie estava com aquela coisa
afiada em sua mão? Sentiu-se tonta, joelhos fracos,
a sacola em sua mão abruptamente pesada. Não
conseguia tirar seus olhos da ferramenta. Observou
Hattie se aproximando e sentiu a mão da mulher
em seu ombro.
― Ellen, o que há de errado com você? Está
com uma péssima aparência. E melhor vir para
dentro, deitar-se. Deixe-me levar a sacola para
você.
Obrigada, Hattie. Obrigada. Mas por que você
está segurando esta tesoura de poda?
Hattie balançou a sacola em uma mão e passou
a sacola para a outra.
― Se eu não a conhecesse, Ellen, diria que você
fugiu de casa.
Tonteira, novamente. Medo. Deixou que Hattie
a conduzisse para a casa, abrisse a porta. Uma en-
chente de luzes elétricas a cegou. Ela apontou a te-
soura de poda e Hattie sorriu.
― Sua mãe tem uma superstição um tanto estra-
nha de que as rosas devem ser podadas à noite. Não
me pergunte por quê.
Ellen assentiu debilmente. De algum canto da
casa conseguia ouvir a voz da sua mãe e o “tap-tap-
tap” do andador atingindo o assoalho de cerâmica.
Estava fraca agora, seus membros pareciam ter-
se tornado um líquido viscoso. O bebê empurrou,
chutou, esticou-se como que entediado com o seu
310
confinamento.
― Hattie ― a voz era a da sua mãe. ― O que
está ocorrendo aí fora?
― É a Ellen ― Hattie respondeu.
É só a Ellen, sou só eu.
E só a sua filha retornando ao lar.

Veja como ela foge. Veja como ela se vai. Ela


não sabe que não pode fugir. Não tem para onde ir.
Nenhum lugar em todo esse mundo.
Você a observa em pé à noite, tremendo até a
morte. Pode sentir o cheiro do medo emanado do
corpo dela. Você vê como a sua barriga enorme
treme. Você pensa: só mais uma coisinha.
A sua expressão assustada lhe traz prazer. O
terror nos olhos dela a deixa maravilhada. Você
sente um poder crescendo dentro de você, uma
doce sensação de controle.
Só mais uma coisinha.
Então tudo estará completo.
Brevemente.

Dezessete

19 de agosto

A mãe de Ellen pediu a Hattie que preparasse o


quarto de hóspedes para a filha. Nenhuma pergunta
foi feita, e Ellen ― agradecida por tão pequena
311
compaixão ― não forneceu quaisquer explicações.
Pendurou suas roupas em um armário vazio; uns
poucos trajes patéticos, algumas blusas. Enfiou as
roupas de baixo em uma gaveta que Hattie forrara
com papel de motivos natalinos. Colocou a pasta de
Eric embaixo da cama e, embora tenha tentado
abri-la inúmeras vezes para ler as páginas datilo-
grafadas, não teve ânimo suficiente para fazê-lo. E
o tempo todo a criança continuava a se posicionar
na descendente, como que pressionando agora para
nascer, para ser libertada da prisão uterina.
Eric telefonou algumas vezes por dia e a cada
vez ela se recusava a falar com ele; havia uma parte
dela que desejava demais conversar com ele, mas
concluiu que não tinha nada a dizer. Durante esses
momentos de solidão em que se deitava no quarto
de hóspedes e folheava revistas, questionava se não
estaria sendo dura demais com ele. Mas as menti-
ras, as suspeitas, as lembranças de Eric e Vicky fa-
ziam com que acreditasse estar agindo da forma
correta. A forma correta ― como se poderia ter cer-
teza disso? Ellen deitou-se na cama e ficou escutan-
do as notas de músicas antigas que a sua mãe toca-
va no piano e refletiu sobre seu casamento, na dete-
rioração que sofrerá, ponderou sobre seu futuro.
Você podia retornar para Eric, poderia dizer para si
mesma: volte e conte-lhe que já sabe sobre Ely e
perdoe-o por causa da Vicky (mesmo que ele negue
o caso e o julgue absurdo) e coloque o seu casa-
312
mento nos trilhos certos. Mas como diabos posso
voltar? Como conseguiria ficar sentada naquele
apartamento à noite quando ele dissesse que ficaria
trabalhando até tarde e nem sequer planejasse um
cenário para resguardar seus atrasos?
Logo Ellen se recusou a atender as ligações
dele, até que julgasse que chegara a algum tipo de
decisão ― contudo, a perspectiva de uma decisão
parecia ter a mesma distância inatingível de uma
miragem sob o sol quente do deserto. Estava exaus-
ta na maior parte do tempo, sentindo o bebê se mo-
vimentar, revirando-se e descendo como que em
um estado de hiperatividade antes do nascimento.
Estava exausta e com medo da dor. Não conseguia
pensar em nada tão grande quanto um recém-nasci-
do passando pela estreita abertura entre as suas per-
nas sem ouvir o som de sua própria carne se dilace-
rando. Você não vencerá o último obstáculo com
esta sensação de medo, pensou. Com Eric, o medo
pode ter se tornado intolerável: sozinha desse jeito,
era terrível.
No terceiro dia na casa de sua mãe, ela telefo-
nou para Patrick McDonald. Ela vinha colocando
este nome de lado em seu pensamento, tentando se
esquecer dos acontecimentos que fazia com que re-
cordasse ― mas, quando se lembrou da mulher de-
baixo da árvore e as flores inevitavelmente apodre-
cendo no assento do carro, sentiu um outro tipo de
medo, um medo diferente. Quando ele atendeu a li-
313
gação, não pareceu surpreso ao escutar a voz dela.
Ele perguntou:
― Como está o bebê?
― Forçando a passagem ― ela explicou.
― Suponho que esteja para chegar a qualquer
momento agora.
― Na realidade a previsão é para o mês que
vem.
― Ah, mas eles são pestinhas que gostam de
contrariar. Possuem o péssimo hábito de escolher a
sua própria hora de nascer.
Um silêncio. Ela pôde escutá-lo riscando um
fósforo. Houve um som de fumaça sendo exalada.
Então ele falou:
― Então, qual ó a novidade? Algo acontecendo
em sua vida enigmática?
Vida enigmática! Quantas charadas tortuosas.
Ela hesitou por um momento e então começou a
contar-lhe sobre a mulher vestida em traje de noiva,
escutou-se relatando sobre o buquê atirado dentro
do seu carro ― aquela voz não parecia ser a sua,
muito menos os acontecimentos relatados pareciam
conectados à sua vida.
Ele ficou silencioso novamente, como que ab-
sorvendo essa nova informação.
― Alice no país das maravilhas ― ele disse. As
vezes eu fico imaginando qual será a sua próxima
forma de me surpreender, sabia? Agora você me sai
com uma mulher vestida de noiva que parece dese-
314
jar se desfazer do seu buquê. Essa pessoa já vem
grudada nos seus calcanhares há muito tempo ―
concluiu. ― Você não tem idéia de quem possa
ser? Não faz realmente a menor idéia? Pense bem.
― Já pensei, acredite. Não consigo descobrir.
― Há algo que está faltando, Sra. Campbell. Há
algo que você está deixando de fora! Deus sabe o
quê, mas tenho certeza de que está bem à frente dos
nossos olhos.
Bem à frente dos meus olhos! Certamente ―
mas que droga era essa? Em que não tinha prestado
atenção? Eric, pensou ― por que ela não abria todo
o jogo e contava a McDonald sobre Eric, seu psi-
quiatra, sobre Eric e Vicky?
Mas quando considerava esta hipótese, visuali-
zava um dramalhão lúgubre se desenrolando em
sua mente e não queria descarregar tal angústia so-
bre o tira.
― Não sei o que dizer, Sra. Campbell. Essa me
pegou, admito. Alguém está fazendo um jogo es-
túpido, apenas gostaria de encontrar um padrão em
todos estes atos. Por que uma mulher sairia por aí
vestida de noiva, por Santo Cristo?
Eu gostaria de saber. Talvez tenha se perdido
quando estava indo para a igreja...
― Ela deve realmente ter-se perdido ― ele
acrescentou.
― Eu acho.
Ela percebeu que secretamente esperava que o
315
policial aparecesse com respostas, mas ele não pos-
suía nenhuma. Sentiu-se sozinha novamente, desa-
pontada, decepcionada.
Ele prosseguiu:
― Ouça. Faça algo para mim. Pense bem em
tudo que vem acontecendo. Procure lembrar-se da
existência de alguém que possa desejar prejudicá-
la. Repasse todos os acontecimentos e busque por
um padrão, veja se consegue encontrar algo que se
projete. Farei o mesmo. E, se algo ocorrer com
você, ligue para mim, OK?
― Obrigada ― ela agradeceu.
A voz dele era seca c monótona. O padrão dos
acontecimentos. Que padrão? Talvez os tiras fos-
sem treinados para perceber o estilo das coisas. Tal-
vez lhes fosse ensinada a percepção de uma totali-
dade lógica. Um padrão ― não havia nenhum. E
quem desejaria prejudicá-la, exceto...
Ela petrificou seus pensamentos. Abra a sua
mão, deixe este passarinho voar em liberdade.
Quando você retornar para Eric, estará retornando
para o desespero. Você não tem a menor necessida-
de de se acomodar a esta situação. Você precisa se
fortalecer para o bebê. Então, por que ela continua-
va retornando para a hipótese de Eric e Vicky esta-
rem implicados cm algum tipo de charada fatal?
Por que imaginava Vicky cm pó debaixo daquela
palmeira? Atirando flores no carro? Era um deva-
neio temerário da sua imaginação. Emergia da má-
316
goa c da traição, de feridas em carne viva e de cica-
trizes recentes.
Na sala de estar, sua mãe estava sentada ao pia-
no. Uma cigarrilha pendia de seus lábios e sua ca-
beça estava empinada para trás, os olhos espremi-
dos contra a coluna de fumaça ascendente. Ela esta-
va batucando as teclas, dedilhando tanto notas dis-
sonantes quanto correias. O cômodo estava frio, e
os toldos nas janelas produziam sombras. Da cozi-
nha vinha o som de Hattie Dalrymple picando algo
com uma faca ― aipo, cenouras, algo consistente.
Sua mãe girou na banqueta do piano. Por um ins-
tante estudou a postura da filha. Então, tirou a ci-
garrilha da boca e apagou-a no cinzeiro sobre o pia-
no.
― Como estamos hoje? ― indagou.
Ellen respondeu:
― Bem, muito bem ― mas sabia que a sua voz
transmitia mau humor.
Ellen afundou-se na poltrona e esticou as pernas
abertas, notando a grossura dos seus tornozelos, a
flacidez das batatas das pernas.
― Seu marido já telefonou duas vezes pela ma-
nhã ― a mãe comunicou. Uma cortina de fumaça
emoldurava seu rosto. ― Disse-lhe que você não
queria falar com ele. Creio que você aprova, não é?
Ellen concordou.
― Essa separação... ― sua mãe hesitou, então
pousou os cotovelos sobre as teclas. Um acorde
317
grosseiro foi ouvido na sala. ― Não é da minha
conta, querida, mas, se quiser me contar, estou
aqui.
Ellen olhou para a velha senhora. Era impossí-
vel fazê-la sua confidente, difícil contar-lhe a ver-
dade. Isso era ter que admitir algo deprimente: Não
posso desabafar com a minha própria mãe. Levan-
tou-se da cadeira e caminhou até a janela, vislum-
brou o jardim dos fundos, a terra transformando-se
em um deserto sob o céu constantemente claro.
Qualquer um que deseje prejudicá-la.
Qualquer um.
Pense bem, Sra. Campbell.
Pense bem.
Poderia pensar até quebrar a cabeça e fritar os
miolos, até dissecar todos os seus pensamentos
como os córregos do deserto.
Poderia pensar até o fim dos seus dias e nunca
surgir em sua mente o nome de alguém que pudes-
se desejar prejudicá-la. (Eric, Eric ― o ciclo conti-
nua em ação, girando sempre em sua direção. Mes-
mo Eric ― não conseguia sequer imaginá-lo dese-
jando prejudicá-la. Conseguia?)
Poderia ter-lhe dado uma chance, pensou. Pode-
ria ter escutado a sua versão e então julgar o caso.
Apressei-me nesta fuga de volta para o ninho. Po-
deria ter tentado compreender seus problemas psi-
quiátricos, quaisquer que sejam. Não fiz isso. Não
lhe dei uma oportunidade, não foi?
318
Pense bem.
Estou pensando, droga. Não vê que estou pen-
sando?
Tinha que se deitar.
Deitou-se de lado, sua cabeça pendurada na bor-
da do colchão. As pontas dos seus dedos brincavam
no chão atapetado. A pasta estava a poucos centí-
metros, ela sabia disso. Também sabia que queria
revisar aquelas páginas datilografadas e ler o que
estava escrito sobre seu marido, sua situação, sua
vida, suas ansiedades ― conhecer o homem que
existia em seu interior. Você só tem que abrir a pas-
ta. Só tem que inspecionar essas páginas. Se é que
tem coragem.
Ellen enfiou a mão debaixo da cama, e seus de-
dos encontraram a encadernação dura. À medida
que tentava erguer a pasta, arrastá-la para a luz do
dia, aparecia uma sensação de algo queimando e
tostando em seu útero. Ela grudou uma das mãos
sobre a boca para conter a necessidade de gritar, o
que sabia estar crescendo dentro dela.
Isso passa, Ellen. Mesmo essa dor passa. Queria
ter algo que pudesse tomar, mas então a voz de
Phelps ecoou autoritariamente: Nada de remédios
desnecessários, Ellen. Nada de remédios desneces-
sários.
Isso passa, lembre-se disso, toda essa dor passa.
Procurar respirar profundamente agora, relaxan-
do os músculos, esperando a dor passar.
319
A pasta estava aberta. A fotografia de Eric.
Olhou fixamente para o rosto dele e refletiu porque
lhe parecia tão pouco familiar. Quem é você? Com
quem me casei?
Eric. Oh, Eric. Por que tudo se reduziu a isso ―
descobrir a verdade sobre você em uma pasta tão
impessoal? Por que você mesmo não me contou?
Primeiramente, ela julgou que estivesse tudo es-
crito em letras arábicas, em um idioma estrangeiro
para proteger a privacidade do paciente. Mas perce-
beu que toda a história psiquiátrica do seu marido
foi escrita em uma máquina de taquigrafia, daquele
tipo usado pelos estenógrafos nos tribunais. Tudo
estava taquigrafado. Uma medida de segurança.
Particularidades. E totalmente inútil para os seus
propósitos. Podia simplesmente ter sido em braile.
Folheou as páginas com violência, amassando-as à
medida que passavam. Passei por toda essa loucu-
ra para roubar algo que nem mesmo consigo ler.
Quando ela atirou a pasta ao chão, ouviu algo
escorregando pela cerâmica do chão. A fita cassete
tinha caído e estava agora um pouco distante da
pasta.
A fita. Ela tinha esquecido da fita.
Ergueu-se da cama e inclinou-se para pegá-la.
A dor, Deus, a dor.
Ellen aprumou-se. Quanto mais conseguiria o
bebê descer? Por favor, agora não. Agora não.
Pegou a fita e saiu do quarto. Percorreu o corre-
320
dor: sua mãe estava ao piano novamente. Clunc,
clunc, clunc. Todos os temas antigos eram assassi-
nados por seus dedos. Espiou para dentro do quarto
da mãe. Em algum lugar havia um rádio-gravador.
Mas onde? Havia plantas e livros por cima da
imensa prateleira ao lado da cama ― mas nenhum
sinal de gravador. Olhou à sua volta e entrou então
no quarto contíguo, o de Hattie. Uma cama, um an-
tigo baú com iniciais entalhadas na lateral, jornais
empilhados no chão. Nada de gravador. Foi para a
cozinha: Hattie estava destrinchando a asa de uma
galinha, cantando enquanto trabalhava. O rádio so-
bre a mesa da cozinha, uma voz masculina em meio
a uma narrativa.
― Hattie, posso pegar o rádio-gravador empres-
tado?
― Estou escutando algo que...
― Por favor, Hattie. Quero pegá-lo emprestado.
Hattie limpou as mãos no avental e olhou para
Ellen, dizendo:
― Por vezes você é realmente Filha de sua mãe,
sabia?
Ellen apanhou o gravador e levou-o para o quar-
to. Inseriu a fita, posicionou o botão correto e sen-
tou-se na beirada da cama para escutar. No início
não havia nada exceto um chiado irritante. Ela co-
meçou a pensar que uma fita virgem fora guardada
na pasta de Eric. Mas então ouviu uma voz que re-
conheceu prontamente como pertencente a Ely.
321
Uma voz monótona e insípida, lendo anotações.
(Talvez em alguns instantes ele comece a falar em
um idioma taquigráfico, pensou. E aí?)

Tópico, Eric Campbell, sexo masculino, cauca-


siano, idade: 30 anos…

Tópico. Que frieza. Que objetividade. Sexo


masculino, caucasiano. Esticou o braço e desligou
o gravador. Estava assustada; subitamente estava
assustada. Não queria saber de nada. Não desejava
mais ouvir o que estava gravado na fita. Primeiro
você espiona seu marido, então você investiga os
seus segredos. Que tipo de pessoa é você, Ellen?
Uma pessoa aterrorizada. É isso o que você é?
Uma pessoa morta de medo.
Ellen estendeu o braço, sua mão tremendo, e
pressionou o botão novamente. A qualidade da gra-
vação era péssima, muito ruim, um psiquiatra bem
remunerado deveria adquirir fitas de melhor quali-
dade.

...um breve resumo da historia em evidência en-


volveria a auto-acusação repetitiva de que o paci-
ente deveria ter-se casado com outra mulher...

Desligou. Estava afundando, caindo em um bu-


raco negro. Não precisava ouvir isso. Não queria
ouvir. Por que continuaria se torturando?
322
Outra mulher.
Outra mulher. Alguém vestida com um traje
nupcial. Um buquê. Andou de um lado para o ou-
tro. Ligações. Conexões. Como o quê? Eles pulsa-
ram. Vinham e partiam como letreiros de neon.
Ellen parou ao lado do gravador c pousou seus
olhos fixos sobre ele, seus dedos suspensos sobre a
tecla Liga. Aperte-a. Prossiga. Você veio até aqui.
Não pode mais esconder os fatos.

...a história do relacionamento com sua esposa


atual está abarrotada de uma sensação de culpa
profundamente enraizada com relação a X, uma
mulher que ele conheceu antes do casamento.

X. Nada de nomes. Apenas um símbolo estéril.


Apenas a citação clínica de uma letra, como se um
ser humano pudesse ser reduzido a qualquer frag-
mento do alfabeto. Jesus. O que dava a pessoas
como Ely o direito de limitar um indivíduo desse
modo?

...Os sintomas de sua situação se manifestaram


da maneira clássica, em extremos de humor…

Nesse ponto Ely pigarreou, limpando a gargan-


ta. Conseguia vê-lo levantar uma mão até a boca e
tossir educadamente.

323
...extremos de humor com os quais frequente-
mente não consegue lidar ou manter sob controle.
Vai da exaltação à depressão sem estágios interme-
diários. Também são clássicos os seus pesadelos
repetitivos com X e com a violência existente na-
quele relacionamento…

Pesadelos. Ele não se recorda dos seus pesade-


los. O bebê deve viver. Os seus pesadelos eram com
o bebê, ansiedade de pai, medo ― e sobre isso são
os seus pesadelos. Que droga é essa que você sabe,
Ely? E violência, que violência? Fitou o gravador,
com uma vontade abrupta de arrancar a fita e es-
magá-la, quebrá-la até que não houvesse conserto.
Não preciso escutar tudo isso.
Ela ouvia os sons produzidos por sua mãe ao pi-
ano. Clunc, clunc, clunc, mais uma melodia antiga.
O bebê desceu mais. Deu uma guinada, proje-
tando-se para baixo. Ellen segurou a barriga com
firmeza. Doce criança. Querida criança, fique quie-
tinha.
A música proveniente do piano da mãe ficou
mais alta, mais errática, um acompanhamento furi-
oso para o relato do gravador. Mas agora o aparelho
estava em silêncio, somente o chiado, e ela julgou
que tivesse chegado ao fim. Aquilo era tudo? Não
havia nada mais? Ela deveria ser entretida com
mais charadas? Então o chiado cessou e ela escutou
Ely dizer Dezesseis de julho, 1981. Tópico Eric
324
Campbell. Um clique como se a gravação tivesse
sido interrompida momentaneamente. Então Ely pi-
garreou e disse: Você seguiu a medicação que pres-
crevi?
Ellen não se mexeu.
A próxima voz que você vai ouvir. A próxima
voz.
Não, eu não gosto de tomar drogas.
A voz dele. A voz dele.
Eric. Eric respondendo à pergunta de Ely.
Era algo fantasmagórico, assombroso, era como
escutar vozes vindas do além, através das habilida-
des de um espiritualista em um recinto envolto na
escuridão. Sentiu-se apavorada, completamente so-
zinha. E o piano emergia em um crescendo insano,
martelando seus ouvidos.
Porque você não seguiu a receita? Só os recei-
tei para ajudá-lo. Você não confia em mim, Eric?
Confio. Só não quero tomar aquelas pílulas,
isso é tudo. Não tenho muita certeza do que elas
podem fazer.
Vão ajudá-lo a controlar seu humor e a depres-
são. Podem mesmo ajudá-lo com os pesadelos.
Acho que você está sendo um pouco hostil, Eric.
Silêncio.
Ellen cobriu os ouvidos com as mãos e desejou
ardentemente que o mundo inteiro caísse em total
silêncio, que tudo vibrasse, retumbasse ou ressoas-
se, desaparecesse no espaço. Quietude ― Jesus,
325
como ela ansiava por quietude.
Não estou sendo hostil. Não gosto de drogas.
Isso é tudo.
Fale-me sobre os pesadelos. Teve algum recen-
temente?
Há uma semana atrás mais ou menos.
E o que consegue se lembrar dele?
Pausa. Papéis sendo remexidos. Algo batendo
na superfície da escrivaninha, uma cadeira rangen-
do.
Não me lembro de muita coisa. Lembro-me de
uma igreja. Um tipo de igreja. Tudo é diferente nos
sonhos. Lá estava ela em pé usando seu vestido de
noiva e carregando fores. Um órgão tocando e eu
estou assistindo lá de cima. De algum lugar acima.
E como se meses tivessem se passado. Talvez anos.
Ellen encostou sua face contra a janela quente.
A dor em seu ventre era intensa agora, uma fúria
selvagem, algo sobre o que ela não tinha controle,
uma labareda lambendo e queimando. O vestido de
noiva. As flores. Sobre o que você está falando,
Eric? Quem é essa X de quem você está falando?
Essa mulher na igreja.
Anos, disse Eric. Então olhei para o rosto dela
e vi teias de aranha em seus olhos. Via a carne
apodrecendo até os ossos. Havia coisas rastejando
sobre a sua pele. Então acho...
Pausa. Um telefone tocou algumas vezes. Outra
pausa. A gravação prosseguiu.
326
A voz fria de Ely: Você continua se acusando,
Eric. E a culpa implica energia emocional de al-
gum tipo ― para onde vai toda essa energia, Eric?
Você a transmite para o seu trabalho. Você a trans-
fere para os seus pesadelos. Você não a libera, cer-
to?
Foi minha culpa...
Como pode ter sido sua culpa você ter-se apai-
xonado por outra mulher? Você pode se culpar por
não ter tido coragem de dizer a ela que não com-
pareceria ao casamento. Mas isso é passado. Ago-
ra você está levando outro tipo de vida. Você não
pode ficar arrastando a bagagem de uma viagem
que já acabou.
Um casamento, Ellen pensou.
Um casamento, o casamento de Eric; exceto que
ele não compareceu.
Ele não apareceu porque se tinha apaixonado
por mim.
E uma mulher ficou aguardando em uma igreja
silenciosa e vazia. Circundada pelas flores. Pela
música do órgão, repetindo infinitamente a mesma
melodia. E o noivo não apareceu.
Um casamento.
Eric disse: Se não posso me culpar por ter rom-
pido com ela, se não posso fazer isso...
Silêncio. Uma interferência, como se uma mos-
ca estivesse voando bem perto do microfone. Mais
silêncio. Ellen conseguia visualizar Ely sentado
327
olhando atentamente para Eric, as mãos entrelaça-
das, olhos frios. Ely esperando.
Eu me culpo pelo acidente.
Acidente? Pode ser um passo na direção certa
se você parar de rotular o incidente de acidente,
Eric. Não foi um acidente e você sabe disso.
Acidente? Ellen gemeu de repente: a agitação
em seu útero estava insuportável agora. Sentiu as
pernas cedendo, agachou-se de joelhos no chão, ge-
mendo, seus olhos mareando. Acidente? Que porca-
ria era essa sobre a qual estavam conversando? Eric
se apaixonara por ela, e por causa desse amor can-
celou seus planos de casamento e não comunicou
esta intenção à noiva. Ele jamais mencionara qual-
quer coisa sobre outra mulher, sobre qualquer aci-
dente.
A voz de Eric: Tudo bem, não foi um acidente...
É melhor encarar dessa forma, Eric. Se não en-
carar isso agora, terá que fazê-lo no futuro. Quan-
do enterramos as coisas, sabe o que acontece com
elas? Passam a ser feridas que nunca se cicatriza-
rão; logo, elas aumentam e, se você não cuidar de-
las a tempo, subitamente você estará enfrentando
uma gangrena e precisando de uma amputação,
Eric. Se não foi um acidente, o que foi?
Foi uma tentativa de suicídio.
Suicídio.
Ellen fechou sua mão e enfiou-a na boca, mor-
dendo as juntas dos dedos para conter a dor que a
328
dominava. As revoluções em seu interior, os em-
purrões, as contrações e os puxões. Estou me desfa-
zendo, sendo destruída de dentro para fora.
Uma tentativa um tanto grotesca, você deve ad-
mitir ― se era suicídio o que ela estava tentando.
Suicídio. A espera de coração partido dentro de
uma igreja, as flores murchando, o desejo de se en-
fiar em um buraco. Ellen gemeu novamente e se ar-
rastou para a cama. Cada movimento que fazia pa-
recia queimar todo o seu corpo.
Eric. Essa mulher encheu a banheira com
água. Estava grávida de três meses. Tinha um feto
em desenvolvimento dentro do seu corpo.
Eu não sabia disso naquela época...
Não importa se você sabia ou não sabia. Ela
encheu uma banheira com água, Eric. Veio para
casa direto da igreja. Não tirou o vestido de noiva,
Eric. Quero que você crie a imagem mental desta
cena, quero que você a visualize, Eric, você precisa
encarar este fato, não tem que enterrá-lo para
sempre. Ela entra na banheira e pega uma faca,
Eric. Pega a faca e faz um corte de um ponto abai-
xo do umbigo até outro acima do osso púbico,
Eric. Procure visualizar isso, lente com força. Ela
pega a faca e executa uma cesariana cruel, impos-
sível e perigosa em si mesma. Consegue ver o san-
gue? Consegue ver o feto saindo no meio de todo
esse sangue, morrendo na água?
Não...
329
Não o quê, Eric? Não quer que eu narre todos
os detalhes gráficos que já estão enterrados em seu
cérebro. Só estou tentando ajudá-lo a trazê-los à
lona, só isso. Apenas estou fazendo com que você
olhe para isso. Encare. Enfie a sua cara direta-
mente nisso, Eric. Se não o fizer, jamais superará a
culpa que está destruindo a estrutura da sua perso-
nalidade. Nunca. Apenas encare o falo de que o
seu filho foi abortado. Encare o fato de que ela foi
salva e carregada rapidamente para o hospital.
Encare essas coisas.
Ellen esticou seu braço e silenciou o gravador.
Uma faca na água: uma faca retalhando as ca-
madas de tecido da pele, deixando o útero desnudo,
pele manchada de sangue pendendo, um feto dis-
forme e vermelho ― sangue boiando na água ver-
melha.
Oh, Jesus, Jesus. Não posso mais ouvir isso.
Não posso mais ouvir.
Uma faca atravessando a carne. Uma noiva ago-
nizando.
A dor cresceu novamente. Podia ser comparada
a um imenso pássaro aprisionado em pânico dentro
de seu útero. Jamais sentira algo tão terrível, nunca.
Uma faca na pele.
Fundo. Fundo.
Um coração partido.
A dor se intensificou, aumentou em seus ouvi-
dos, cantarolando uma música demente em sua ca-
330
beça. As coisas embaraçaram-se, desapareceram, o
céu escureceu, o sol brilhante ficou verde. Seus
olhos vertiam lágrimas, nada enxergava. Eric, você
podia ter me contado, você poderia ter me avisado.
Eu poderia ter compreendido, aceitado.
A mulher, aquela coitada, você poderia ter-me
contado sobre ela, poderia ter-me dito quem era ela.
Quem? Quem era X?
Pôs-se em pé. De repente o som do piano ces-
sou. De repente tudo ficou mortalmente tranquilo.
Então sua bolsa d’água estourou.

Terceira Parte

O Parto

Dezoito

19/20 de agosto

Prematuro, prematuro por duas semanas, dez


dias: mas Ellen lembrava-se de Phelps lhe dizendo
certa vez: ― Nunca se afirmam essas coisas com
certeza total, pode-se estar errado por muitos dias
para mais ou para menos.
Podia sentir vagas contrações como se fossem a
pulsação de uma enorme água-viva no centro de
seu corpo. Estavam se manifestando com regulari-
dade, e cada contração parecia exercer uma pressão
331
mais intensa sobre a sua barriga, mais pressão so-
bre o seu osso púbico e a base da espinha. Bebê,
bebê, bebê, continuou pensando. Era tudo em que
queria pensar no momento, a única responsabilida-
de que precisava ter ― porque precisaria de alguma
mulher desvairada, de alguma auto-dilaceração hor-
rorosa, de uma igreja vazia, da lembrança da voz de
um psiquiatra em uma fita cassete: você só precisa
pensar no nascimento do seu filho, na chegada de
algo lindo e saudável, uma criança perfeita. E per-
cebeu que desejava a presença de Eric, apesar de
tudo desejava que ele estivesse com ela, segurando
sua mão no banco de trás daquele carro antigo. Por
que precisaria do alarde e rebuliço de Hattie
Dalrymple e de sua mãe, tentando ser gentis? Você
não precisa de droga nenhuma a não ser chegar ao
hospital em segurança. Colocarão você na sala de
parto e cuidarão de você e da sua dor, das respira-
ções profundas, das contrações c reclamações. El-
len inclinou-se para Hattie e perguntou:
― Você telefonou para Phelps?
Hattie respondeu:
― Claro que liguei. Ele não estava lá.
― Não estava? ― pânico em sua voz.
― Estava fora do consultório. Falei com sua en-
fermeira. Ela foi muito solícita. Disse que Phelps a
encontraria no hospital.
Então sua mãe interferiu:
― Não sei quantas horas se passaram depois
332
que a minha bolsa d’água se rompeu no seu nasci-
mento, querida. Acredito que foi quase um dia. Ob-
viamente, aconselharam-me posteriormente que
não seria seguro eu ter outro bebê, não tinha uma
estrutura suficientemente forte. Não consigo me
lembrar claramente agora.
― Mãe, por favor. Se quer conversar sobre o
nascimento de bebês, comente sobre coisas agradá-
veis. Dá para fazer isso?
A velha senhora virou-se no banco do carona e
sorriu para a filha:
― Foi um enorme prazer vê-la pela primeira
vez. Recordo-me daquele instante como sendo algo
extremamente agradável.
Ellen reclinou-se no encosto com seus olhos
cerrados. Uma faca no ventre de uma mulher. Um
feto flutuando na água vermelho-escura. Eric, Eric.
Você poderia ter-me contado, por que não o fez?
Por quê? Você estava constrangido, pensou que eu
o amaria menos se tivesse me contado a verdade?
O bebê não deveria morrer. Só que ele estivera
pensando em outro bebê ― não o bebê deles, não
aquele que ela estava para dar à luz.
Quando outra contração se iniciou, ela se do-
brou para a frente e segurou a barriga procurando
se lembrar: você está tendo um bebê, deve ser o
momento mais magnífico da sua vida, um momento
que jamais esquecerá ― você não precisa das reve-
lações de um psiquiatra, os detalhes secretos do
333
passado do seu marido. Você pode negligenciar tais
fatos, deixá-los para uma investigação posterior,
pode esconder a ponta afiada da realidade, o bebê é
a sua única realidade neste momento.
Hattie indagou:
― Você disse que era no Hospital Memorial de
Scottsdale, não foi?
― Sim.
Ellen não conseguia conter um ligeiro tom de
impaciência em sua voz. Aquela dor pressionando,
aquele retesamento e contração dos músculos do
abdômen ― mas agora o retesamento parecia se es-
tender às pernas e à parte superior do seu corpo,
como se as contrações fossem provenientes de to-
dos os ângulos imagináveis. Ela girou a cabeça à
medida que Hattie fazia a curva com o Bentley, en-
trando na estrada Scottsdale; começava a agitação
do tráfego vespertino, os malditos trabalhadores
saindo mais cedo dos seus empregos, donas-de-
casa saindo para comprar algo às pressas.
Ellen apertou as mãos contra o estômago e per-
cebeu algo úmido entre as pernas, a expulsão de
algo grudento. A ignorância do parto, a ruptura de
sistemas, as modificações generalizadas no com-
portamento corporal ― ela compreendeu que esta-
va agora indo rumo ao imprevisível, chegou a um
ponto que ultrapassava a sua experiência. E era
uma viagem povoada pelo medo. Não, não fique
com medo, criança, você vai superar isso tudo sem
334
problemas, vai sair tudo bem até o final. Isso ocorre
com todas as mulheres.
Outras mulheres. Uma mulher espera em uma
igreja. Um buquê de flores cai no chão. Um pé o
empurra para o lado com descaso. E o seu amor
não aparece. E o seu amor não vem. Todo um rela-
cionamento entra em colapso com o som insuportá-
vel do silêncio.
E aí, de repente, ela estava pensando em Vicky.
Por que agora?
Vicky, talvez Vicky tenha sido essa mulher. Tal-
vez tenha sido a Vicky que ele deixara esperando
na igreja ― mas como? Como que poderia ser?
Uma cicatriz horrível na barriga. Uma cicatriz.
A cicatriz deixada pela faca.
O que uma cicatriz tinha a ver com o falo de se
estar formando um elo alarmante em sua mente?
Uma garota loura em pé ao lado da grade de
arame em tomo da piscina, uma garota que não
usava biquíni mesmo quando todas as suas amigas
o faziam, uma bonita garota loura com um sorriso
estonteante e uma roupa de banho discreta. Escon-
dendo o quê? Você vê Eric inclinando sua cabeça
na direção da garota, vê os raios solares gerando
uma aura luminosa em tomo deles, constata uma
certa intimidade na conduta dos dois, vê coisas de-
mais, coisas demais...
Sonhe, flutue nos sonhos da dor, deixe-se arras-
tar à falta de consciência.
335
O homem casado que saía com Vicky.
Vicky e Eric juntos.
Vicky sendo tão misteriosa com relação ao seu
amante mais recente. As chamadas telefônicas que
não foram respondidas.
Por que ela não telefonou de volta? Por que não
fez isso?
Vicky...
Você não precisa desses pensamentos agora.
Então você vê um colchão retalhado e uma boneca
decapitada enfiada entre os rasgos, como se aquela
fenda fosse a abertura pela qual o bebê pudesse sur-
gir, uma cópia grotesca do seu próprio corpo.
O vestido de noiva.
Um bebê.
A mulher abandonada em uma igreja.
Isso tem coerência, de um modo selvagem isso
ó coerente, no raciocínio absurdo dos insanos, tudo
isso faz sentido.
Mas qual é o sentido? Exatamente o quê?
Muito cansada, muito dolorida para pensar. De-
vaneie, Ellen. Faça acreditar que não existe sofri-
mento algum, que nada a está magoando. Afaste-se
disso tudo.
O movimento do carro provocava vibrações por
todo seu corpo.
Brevemente.
Tem que ser em breve.
Ele não lhe prometeu tantas coisas, que a ama-
336
ria para sempre e a tomaria em seus braços, cui-
daria de você, dando-lhe todo carinho e atenção e
ele não lhe disse que nada conseguiria interferir
nesse amor, no amor que sentia?
Ele sabia que você sempre voltaria.
Você sabia que vocês terminariam juntos.
Em breve agora.
Você o perdoaria, como se houvesse algo para
ser perdoado.
Por que não faço Hattie parar o carro, para que
possa então telefonar para Eric e pedir-lhe para se
encontrar comigo no hospital?
Por que não faço isso?
A resposta é óbvia, Ellen.
Óbvia, mesmo que me desagrade.
Você ainda não consegue confiar nele. Mesmo
agora, mesmo com as contrações provocadas pelo
nascimento do filho dele, mesmo agora você não
confia nele.
O hospital não é tão distante, pensou: eles sabe-
rão o que fazer para eliminar essa dor. Eles possu-
em todos os tipos de recursos e aparelhagem nos
hospitais, certo?
Ela escutava vagamente a conversa entre Hattie
e a sua mãe: não era exatamente a mais apropriada.
Lembro-me de que a minha prima Daphne teve
um bebê que nasceu com os pés torcidos.
E então Hattie: O primeiro bebê da minha so-
brinha morreu depois de três semanas. Espinha
337
bífida, acho que foi isso o que disseram.
Então, como se tivessem se lembrado de quem
estava sentada no banco traseiro, conversaram so-
bre o clima de um jeito bastante superficial.
Não tenho que escutar coisas ruins, ponderou. E
logo: Oh, Eric, preciso de você. Preciso e não pre-
ciso de você e sinto-me tão sozinha. Algo está erra-
do, cogitou, o bebê está se posicionando da maneira
errada, ou algo está errado ou vai sair errado, eu
sei. Sei que não estou preparada para fazer isso da
maneira indicada, terão que fazer uma cesária e re-
mover o bebê de dentro do seu leito de muco e san-
gue. Não, Ellen. Você tem que respirar fundo e re-
laxar. Bem, Phelps. Você conhece mais uma ou
duas coisas além dos benefícios do chá de camomi-
la, certo?
Chá de camomila. McDonald.
Não tinha tempo para pensar em McDonald
agora. Logo porque a voz dele ecoava em sua cabe-
ça, sua exortação para Pensar Bem. Pensar Bem.
Vai abrir uma fenda em minha cabeça assim como
está para acontecer com o meu corpo.
Pense bem.
O único pensamento era o medo. Um pensa-
mento vago e disforme, uma sensação. Você está
com medo, Ellen, mas toda grávida se sente desse
jeito. Mostre-me uma grávida que não sente medo
e lhe apontarei uma pessoa que não dá a mínima
para o filho. Ela recostou-se no assento e tentou ex-
338
trair algum conforto do lugar macio, procurou afun-
dar nele. Mas então tudo pareceu muito confuso em
sua mente, de uma forma abrupta, toda a dor, as
surpresas, o medo, a vida de Eric e sua história, a
mulher vestida de noiva, a fita do psiquiatra. A voz
de McDonald. Tudo se tornou confuso e truncado.
Pense em bebês. Pense nas alegrias da amamen-
tação. Pense bem. Deixe-me em paz, McDonald.
Deixe-me em paz em um momento como este. Não
me fale de padrões, modelos, totalidade ― tenho
que dar à luz esta criança.
Hoje à noite, amanhã ao alvorecer, ela seria
mãe. Eric seria pai. Poderia ser um acontecimento
repleto de felicidade. (Ligue para ele. Peça para
Hattie fazê-lo. Conte-lhe o que está acontecendo.
Eu amo você, Eric. Não deixei de amá-lo. Posso ter
lhe passado essa impressão, mas não deixei de
amá-lo. Por que estou pensando em alguma garota
desconhecida que retalhou o próprio corpo? Não
quero essa cena em minha mente agora. Não tenho
que lhe dar atenção. A minha mente deve estar sob
meu inteiro controle. Não pise na grama. Aqueles
que transpuserem a cerca serão punidos. Essa terra
é patrulhada. Fique de fora. Um aviso aos intrusos.
Pense bem. Dane-se McDonald. Dane-se por me
interromper quando estou tentando manter meu
corpo e mente em harmonia.)
Tudo estava se apagando de sua memória, tudo
passava ligeiramente e se afastava. Deixou de exis-
339
tir, exceto pela regularidade dos espasmos em seu
ventre. Em breve, em breve você será mãe.
Hattie estava se aproximando da frente do hos-
pital. Parecia maior do que antes para Ellen ― um
imenso templo, tantas janelas, tantas pessoas en-
trando e saindo.
Hattie auxiliou Ellen a descer do carro. Conse-
guia ouvir o tap-tap do andar vagaroso da sua mãe
atrás dela.
― Não esperem por mim ― sua mãe estava di-
zendo. ― Alcançarei vocês, não esperem por mim.
Ellen apoiou-se em Hattie quando passaram
pela porta.
― Acho que há algo errado, parece-me errado
― ouviu-se dizer.
― Bobagem, Ellen. Vai nascer como um anji-
nho.
― Você faria um favor para mim? Telefone para
o Eric e diga-lhe que estou aqui.
― Com muito prazer. É o mais correto a ser fei-
to neste momento. Ficarei encantada em fazer essa
ligação para ele, Ellen. Encantada.
― Se ele não estiver em casa, ligue para o es-
critório. Está no caderninho. Faz isso para mim?
― Prometo ― Hattie tranquilizou-a.
― Você fará isso agora?
― Certamente.
Ela já estava em pé diante de uma mesa dando
seu nome e dados pessoais para a recepcionista que
340
já atendera muitas gestantes na mesma situação.
Depois, foi levada para uma sala de pré-parto, um
local com maca suspensa, onde lhe disseram para
sentar. Em algum canto por ali Hattie desapareceu.
Telefonando para Eric, claro. Não acabei de lhe pe-
dir que fizesse isso?
Uma enfermeira entrou, checou seu pulso, cro-
nometrou as pulsações, falou para que ela relaxas-
se. Relaxar, pensou. Todos me dizem para relaxar,
acalmar. Tranquilizar-se, certo?
Um rosto familiar, precisava de um rosto conhe-
cido. Deitou-se na maca após a saída da enfermeira
e questionou a possibilidade de sua guia de interna-
ção se perder no meio da papelada do hospital e lhe
fosse destinado dar à luz em total solidão. Como
uma cadela e sua cria, lamber os filhotes para
limpá-los.
Ellen ouviu o som do andador da mãe; no mes-
mo instante a velha senhora já estava perto dela
sussurrando palavras de conforto. As luzes fortes fi-
zeram com que piscasse ― por que tinham que ser
tão potentes?
― Tudo vai correr bem, Ellen. Posso lhe asse-
gurar. Você vai se sair muito bem.
Então a mãe também se foi.
O tempo passou. Não estava certa de quantas
horas tinham transcorrido. A dor dos espasmos a in-
vadia. Deitou-se com os braços ao longo do corpo,
assustada, com medo que ninguém a viesse ajudar,
341
temendo a idéia de poder ser esquecida. Uma mu-
lher grávida em um hospital gigantesco ― que di-
ferença fazia isso?
Você poderia ser ignorada. Não seria a primeira
vez.
Quando a porta se abriu novamente, ouviu uma
voz familiar e, ao erguer os olhos, viu a enfermeira
Grabowski entrando no quarto. O sorriso ― nunca
tinha visto um sorriso tão caloroso como este.
― Meu Deus, Ellen. Você pregou um susto em
todos nós. Que coisa mais feia. Era para você entre-
gar o produto somente no mês que vem. Meu Deus,
meu Deus. O médico já está a caminho.
Grabowski estava tomando seu pulso, cronome-
trando o espaço entre as contrações, balançando sua
cabeça afirmativamente.
― Você ainda tem algumas horas pela frente,
Ellen. Acho que podia ter tido um pouco mais de
consideração, não é? Você não poderia ter aguarda-
do até a data prevista?
― Você acha que vai sair tudo bem?
Grabowski sorriu e respondeu:
― Sairá tudo na mais perfeita ordem. Temos
mãos muito experientes com partos prematuros,
querida.
Um eco. O eco de um pesadelo.
Ela não dissera estas mesmas palavras cm um
sonho? Palavra por palavra?
― Você está em boas mãos, Ellen. As melhores
342
― Grabowski afirmou. ― Não tem nada com que
se preocupar.
Ellen sentiu sua mente devanear novamente até
a próxima contração e então começou: o sonho ―
não conseguia lembrar do sonho em detalhes agora.
Coincidência, nada mais. Observou todo o recinto e
viu a enfermeira lavando suas mãos em uma pia.
― E doloroso ― Ellen disse.
― Quem é, o bebê, Ellen? Você ou esse peque-
nino aí dentro? ― Grabowski aproximou-se e
olhou para ela. ― Já falei, você não poderia estar
em melhores mãos. Agora inspire vagarosamente,
depois expire ainda mais devagar. Você vai ficar
bem.
E a mão da enfermeira passou sobre o ombro de
Ellen, dando-lhe leves tapinhas. Quando Phelps
virá? Quando Phelps vai chegar aqui?
Ellen procurou relaxar. Tentou imaginar que era
outra pessoa. Mas o ar parecia irrespirável, estéril,
o tipo de atmosfera que você poderia imaginar
como pertencente à cabeça de algodão de um coto-
nete. Fechou os olhos e escutou Grabowski se mo-
vimentando pela sala, tentando descobrir o que a
enfermeira estava fazendo. Havia um ruído de mu-
lher chorando em algum lugar próximo. A sala de
parto, Ellen concluiu: a sala do sofrimento. A câma-
ra de torturas. Eles não iriam transferi-la para a sala
de parto em algum momento?
Escutou o som da chegada de sua mãe, o baru-
343
lho metálico do seu andador chocando-se contra o
assoalho. A medida que ergueu sua cabeça e olhou
para a mulher, outra contração a golpeou como se a
sua carne fosse uma massa sem consistência e seus
músculos fossem uma enorme mão, apertando-a
sistematicamente. Pela porta entreaberta havia pes-
soas caminhando para lá e para cá ao longo do cor-
redor, enfermeiras com pranchetas, macas, residen-
tes empurrando um doente na padiola, um medico
apressado com o jaleco esvoaçando ― havia vozes
ressoando nos alto-falantes: dr. Candless, centro ci-
rúrgico. Dr. Nair, quarto 337.
― Como você está, Ellen? ― Sua mãe estava
em pé à sua frente dando leves tapinhas em sua
mão.
― Um pouco melhor ― Ellen lamuriou nova-
mente.
― Não vai demorar muito agora.
Como se eu estivesse esperando um ônibus. Ela
faz com que a minha situação se pareça com isso.
― Estarei na sala de espera ― sua mãe comuni-
cou. Se precisar de mim, grite.
Então ouviu sua mãe saindo, e Grabowski já a
estava observando novamente, checando seu pulso,
cronometrando as contrações. Quanto tempo leva
isso? Ellen lembrou-se então de histórias horroro-
sas sobre mulheres que ficaram na sala de parto por
36 horas. Imagine 36 horas nessa agonia: imagine
que loucura, dor, angústia ― pelo menos agora sa-
344
bia que não seria negligenciada, o sistema não per-
mitiria que ela se diluísse naquela imensidão.
Houve um longo período de dormência sem
contrações ― simplesmente interromperam sem
preservar a sua regularidade.
Ellen bocejou:
― Deus, sinto-me exausta.
― Talvez você consiga dormir um pouco. Em-
bora eu duvide que você o faça ― e Grabowski
sorriu.
Ellen cerrou os olhos e procurou imaginar que
não se encontrava em um hospital, tentou levar
seus pensamentos além do nascimento da criança
para um ponto em que a criança já estivesse limpa,
vestida e com um nome, para o momento em que já
estivesse levando o seu bebê embora daquele lugar.
Era algo bom de se pensar. Bocejou pela segunda
vez, queria estar mais desperta, tentou virar-se de
lado ― mas lhe pareceu que seu corpo estava pesa-
do e mole demais para qualquer esforço.
Bocejando, bocejando: Cristo, como queria que
tudo isso já tivesse terminado. Outra contração ―
esta parecia atingir seu baixo-ventre.
Gemeu, e Grabowski foi para seu lado.
― Você está bem?
― Acho que sim ― Ellen replicou.
― O bebê depende de você, Ellen. Guarde suas
forças.
Tentarei, Ellen pensou. ― Deus, tentarei.
345
Você se recorda de como se deitavam juntos na
relva acima do lago e lá havia árvores que preen-
chiam o céu como se estivessem gritando para os
deuses, como era intenso o amor que sentiam, oh,
você se recorda de tantas coisas.
E ele sabia que você sempre retomaria.
Ele sabia.
Você não permitirá que lembranças sombrias
povoem a sua memória agora.
Você não quer saber da faca em sua carne, o
sangue na banheira.
Você estava tão doente naquela época.
Agora está melhor.

Sozinha com seu sofrimento, queria saber se


Hattie tinha conseguido falar com Eric e quanto
tempo levaria para ele chegar aqui. Por favor, che-
gue antes que eu vá para a sala de parto. Por favor,
venha logo.
Queria se levantar e caminhar pelo quarto, mas
não tinha mais energia para isso. Quando a porta se
abriu, Grabowski entrou: estava carregando um
avental hospitalar em um dos seus braços.
― Quero que vista isso, Ellen.
― Só se você fechar a porta ― Ellen impôs.
Grabowski sorriu e empurrou a porta com seu
pé. Ellen viu um objeto pontiagudo na mão da en-
fermeira.
346
― Para que é o aparelho de barbear?
― Você já ouviu falar sobre os preparativos, su-
ponho.
Ellen concordou.
― Bem, vou prepará-la. Não fique tão tensa. Já
fiz isso algumas vezes e me saí muito bem, exceto
pela minha mão ter escorregado... uma vez a cada
vinte... ― Grabowski pilheriou.
Ellen se esforçou para tirar a bata, jogou-a no
chão e vestiu o avental do hospital que Grabowski
lhe dera.
― Você poderia me ajudar abrindo as pernas
um pouco mais.
― Isso é realmente necessário?
A enfermeira começou a manejar o aparelho de
barba entre as pernas estiradas de Ellen.
― Isso reduz a possibilidade de infecção bacte-
riana. Essas ameaças microscópicas encontram um
ambiente perfeito nos pelos pubianos. Não quere-
mos que o bebê pegue nada ruim de imediato, cer-
to? Não seria a melhor saudação de boas-vindas.
― Acho que está com a razão ― Ellen admitiu
com tristeza. Era uma sensação muito esquisita ter
uma mulher raspando seus pelos pubianos. Quando
Grabowski terminou, ficou em pé com as mãos nos
quadris e olhou para Ellen.
― Agora vou ter que dopá-la.
― Dopar?
― Uma antiga prática.
347
― Tem que ser feito isso?
Grabowski confirmou e começou a puxar de um
canto um suporte sobre rodas do qual pendiam um
recipiente invertido e um longo tubo.
― Pense nisso como uma coisa amistosa, Ellen.
É apenas água e glicose, mas pode vir a ser muito
benéfico.
O tubo foi atado ao braço de Ellen com um pe-
daço de fita adesiva: ela o observou percorrendo
toda a extensão do seu braço até o frasco de soro.
Uma bolha apareceu no líquido, ascendeu, estou-
rou.
― Agora você está pronta ― Grabowski decla-
rou.
Outra contração. Quantas mais? Ellen queria
não se sentir tão sonolenta. E Grabowski não fora
tão gentil com os preparativos entre suas pernas,
porque agora ela se sentia dolorida e exposta. Fe-
chou os olhos.
― Quando a hora chegar, vamos levar você
para a sala de parto ― esclareceu a enfermeira.
― Espero que seja logo.
Grabowski sorriu.
― Eu também.
O tempo passou lentamente. As contrações vi-
nham e iam. O sono parecia tão urgente quanto a
necessidade de dar à luz; tudo o que queria era dis-
por apenas de alguns minutos sem nenhuma dor
para que pudesse fechar os olhos e se ausentar,
348
mas, a cada vez que tentava, a dor a despertava.
Percebeu que jamais se sentira tão sozinha. Onde
está Eric? Será que está a caminho c ficou preso no
trânsito? Quando se deitou novamente, perguntou:
― Meu marido chegou?
Grabowski balançou a cabeça negativamente.
― Quando chegar, vou arrastá-lo para cá imedi-
atamente. Agora apenas tente relaxar, Ellen.
Imagine se ele não vier, pensou: e se ele achar
que o casamento acabou? Ela repeliu o pensamento
― quem precisa ficar mais insegura agora? Então
quis saber novamente se Hattie teria conseguido
entrar em contato com ele. Talvez não. Talvez Hat-
tie nem mesmo tivesse tentado. Mas por que faria
isso? Minha mãe, Ellen refletiu, talvez minha mãe
de algum modo tivesse impedido que Hattie ligasse
para Eric. Também não preciso desta hipótese.
Grabowski estava ao seu lado olhando para bai-
xo. Isso é um autêntico pesadelo, Ellen recordou.
Exatamente como no meu pesadelo.
― Quero que você tente empurrar um pouco,
Ellen.
Empurrar?
― Suavemente. Ajude o bebê. Deixe-me ver
como você faz isso.
Empurrar. Quase igual ao sonho horrível.
Ellen sentia sua consciência ir e vir. Pensou nos
instrumentos nas mãos da enfermeira Grabowski e
na tesoura de poda de Hattie. Instrumentos pontia-
349
gudos e afiados, alguém cortando sua própria barri-
ga, a imagem do carro preto, o rosto esbranquiçado
sob a palmeira. Vestida para um casamento. Um ca-
samento sem noivo. Pensamentos ao acaso, refle-
xões indo e vindo como a maré.
Ellen abriu os olhos e viu Phelps entrando na
sala. Ele se aproximou, sorriu, tocou nas costas de
sua mão. Ela procurou devolver o sorriso, mas sa-
bia que seu olhar estava vitrificado pelo sofrimento
contínuo.
― Como estamos, Ellen? Chegando ao final da
linha, certo?
Ellen entreabriu sua boca, mas os lábios esta-
vam secos demais para comentários. Observou
Phelps se afastando e sussurrando algo para Gra-
bowski no canto da sala. Ela queria saber o que te-
ria falado ― será que os olhos experientes do
médico tinham identificado algo de errado? Tinha
que ser isto. Algo estava errado. Mas quando
Phelps virou seu rosto para vê-la, ainda estava sor-
rindo.
Como no sonho novamente.
Houve um súbito e violento acesso de dor bem
nesse instante e ela girou sua face para o lado: por
quanto tempo estou deitada nesta sala de parto?
Uma hora?
Duas?
Não tinha certeza. Sentia-se confusa novamen-
te. Abriu sua boca para perguntar se Eric havia che-
350
gado, mas tinha a sensação de um chumaço de al-
godão estar grudado em seu céu da boca. Como que
movida pela intuição, Grabowski veio até a maca e
ofereceu-lhe um gole d’água em um copo plástico.
Estava quente, mas não importava. Novamente per-
guntou por Eric, mas Grabowski já estava carregan-
do o copo para a pia e não respondeu à sua pergun-
ta. Há algo de errado? Será que pode haver algo
de errado?
Não, Ellen. Apenas empurre com gentileza
como lhe aconselharam. Não permita que a sua
mente elabore mais jogos, você não tem mais ener-
gia mental para joguinhos. Arqueou seus quadris e
empurrou. Grabowski observava-a sorrindo. E dis-
se, Boa menina Ellen, boa menina.
Quanto tempo se passara nesse recinto que mais
parecia uma sauna?
― Você está se saindo muito bem, Ellen, fan-
tástica ― Phelps disse quando saía da sala.
Ellen cogitou por que ele estava deixando a sala
novamente em tão pouco tempo. Por um momento
sentiu-se abandonada, quase como se Phelps tives-
se se lembrado de outro compromisso de repente e
estivesse com pressa para respeitá-lo.
― Ele retornará quando for a hora ― Gra-
bowski explicou. ― Não fique tão deprimida, El-
len. Tudo está ótimo. Você tem sido muito paciente,
Ellen, apenas continue empurrando.
Ela suspendeu uma mão e limpou o suor. Então
351
sentiu algo escorrer entre suas pernas.
― O que é isso? Sangue? ― indagou.
― É chamado de vestígio róseo. É normal.
Ellen se esforçou para olhar para baixo. Viu um
pequeno traço róseo em sua pele. Parecia sangue
aguado.
Eric. O que o está detendo? Talvez tivesse deci-
dido não vir. Talvez tivesse seus próprios motivos,
não fosse capaz de suportar o momento, algo desse
estilo ― ou talvez não estivesse em seu escritório
nem no apartamento e Hattie não conseguia con-
tatá-lo.
Ela estava muito assustada.
Queria saber se eles haviam deixado as provi-
dências para os últimos instantes antes de levá-la
para a sala de parto. Considerou a possibilidade de
eles desfrutarem de todo esse suspense. Onde está
Phelps, droga?
Afastamento. A imersão e surgimento de lascas
de madeira largadas ao mar. O movimento das al-
gas de acordo com a maré.
Uma blusa azul flutuando na piscina.
X. X penetrou no apartamento algumas vezes. A
história de Eric. Se foi X, se, se, se ― se foi a mes-
ma mulher infeliz, desajustada pela desagregação
de um amor tão acalentado. Por que roubou aquelas
coisas?
O apartamento arrumado.
Você pode compreender isso tudo de um modo
352
distorcido. Ela acredita ser a sua noiva verdadeira.
Seria parte das suas obrigações matrimoniais lim-
para casa dele. Uma de suas funções como esposa
de Eric.
Mas as coisas que ela roubou.
Aquelas coisas esquisitas.
Uma blusa azul. (Uma crise ― talvez tenha des-
truído a roupa em uma crise de ciúmes. Mas por
que aquela blusa? E por que cortar fora todos os
botões?) Tudo por acaso, tudo executado em um
acesso de loucura?
Uma blusa.
O rosto de uma boneca antiga.
Livros da biblioteca.
Padrões, Cristo. McDonald estava deslocado.
Que padrões? Não conseguia pensar em nenhum:
não conseguia pensar sequer em um simples que-
bra-cabeças que fizesse sentido. Fica ao seu dispor,
McDonald. Tudo ao seu dispor. Pode ficar com
tudo.
A sua noiva verdadeira.
Logo, qual é o meu lugar nesta insanidade?
Ouviu a voz de Phelps na sala. Ele estava tra-
jando o jaleco branco agora, seu estetoscópio de-
pendurado no pescoço.
Ele pediu que Ellen afastasse um pouco as per-
nas. Obedecendo, sentiu os dedos dele a tocarem ―
ela retorceu o rosto e se queixou.
― Desculpe-me se isso foi um pouco rude ―
353
ele disse. ― Mas acho que já estamos quase no
ponto.
No ponto? Por fim?
― Ótimo ― complementou Grabowski.
Agora havia mais alguém na sala, um atendente
com seu uniforme hospitalar verde. Então já estava
sendo carregada ao longo de um corredor branco e
pálido, passando abaixo de um letreiro que dizia
SALA DE PARTO, cruzando portas duplas acin-
zentadas, chegando à sala em que daria à luz seu fi-
lho.
Em breve, Phelps estava dizendo. Muito em bre-
ve.
E Grabowski estava resmungando. Empurre,
empurre.
Isso não é um sonho, Ellen, isso é real.
Seus pelos púbicos foram cortados e raspados e
alguém enfiou o dedo em suas entranhas, seu san-
gue aguado escorre pelas coxas e você grita com a
dor disso tudo, você tolera os olhares repulsivos
dos estranhos e escancara as suas pernas para per-
mitir que seu filho nasça em uma sala repleta de
pessoas que você mal conhece, Grabowski e
Phelps, um atendente com jaleco verde, pessoas
usando máscaras. Máscaras agora, metade dos ros-
tos eclipsados de um modo sinistro. Intrigante. Hu-
milhante e intrigante. Por que algum dia você cogi-
tou a possibilidade de isso ser caloroso e agradá-
vel? E logo haverá sangue e muco envolvendo uma
354
criança; então, a placenta virá depois como um se-
gundo tipo de nascimento ― o corpo não parecia
nada além de um sistema de evacuação, um produ-
tor de materiais descarregados. Como uma linda
criança podia emergir de todo esse horror?
Phelps e Grabowski, mascarados agora, olha-
vam fixamente para ela.
Então Ellen percebeu suas pernas sendo suspen-
sas e encaixadas em suportes que pendiam de al-
gum ponto acima da sua cabeça. A desgraça final
― ser tão exposta, raspada e exposta, nesta sala in-
sípida.
Phelps a estava tocando novamente. Dois dedos
a abriram. Ela poderia se considerar um ossinho da
sorte pronto para se partir.
Ellen abriu os olhos. Ao pé da mesa havia um
enorme espelho: posso me ver, concluiu. Posso es-
piar essa criança surgindo das profundezas do meu
corpo. Posso ver tudo.
Em algum ponto daquele percurso o atendente
parecia ter desaparecido e agora ela estava sozinha
com Phelps e a sua enfermeira.
Algumas palavras como dilatação, posição e
oxigênio eram ouvidas com frequência.
Então Phelps estava debruçado sobre ela com
algo em sua mão.
Era o sonho se repetindo novamente.
― Vou colocá-la no oxigênio por poucos segun-
dos, Ellen. Não entre em pânico quando eu pressio-
355
nar contra o seu rosto, certo? Tudo está na mais
perfeita ordem. Sem problemas. Inspire novamente.
O aparelho foi posicionado em seu rosto. Respi-
rou e sentiu-se flutuando acima da sala, apreciando
lá embaixo esse mundinho mesquinho povoado por
pessoas mascaradas.
Não era totalmente como no sonho, ponderou.
No sonho havia um terceiro indivíduo, um estranho
invisível que segurava sua mão. Não foi assim que
tinha acontecido? Aqui estavam somente duas pes-
soas além dela mesma. Phelps e Grabowski. O ve-
lho, bom e confiável Phelps e sua assistente.
Estou em boas mãos.
As melhores.
Tudo vai acontecer magnificamente.
O oxigênio foi aplicado novamente e agora as
crises de dor já não mais faziam parte do seu ser,
eram remotas, geradas no ambiente etéreo, materia-
lizações que não a atingiam. Pense bem, Sra.
Campbell.
Por que ela achava que era tarde demais para
chamar Patrick McDonald?
Concentrou-se na sensação de relaxamento.
Considerou: uma blusa azul e uma boneca anti-
ga. Alguns livros da biblioteca. A aglomeração dos
fatos a fez julgar-se ainda mais idiota do que antes.
Oxigênio ― era um meio decente de se ficar alto,
era muito bom.
Uma blusa azul.
356
Uma boneca antiga.
Livros emprestados.
Qual seria o padrão?
Errado.
Já não estava mais flutuando. Estava caindo ra-
pidamente do seu ponto de observação do teto. Viu
suas pernas balançando nos suportes.
Errado.
Algo está errado.
Espiou as suas pernas erguidas e separadas no
espelho. Percebeu um movimento lá embaixo, um
movimento sombreado. Bebê, bebê.
Por que algo está errado?
Alguma coisa azul
Alguma coisa antiga.
Você vê padrões, tem que buscá-los e organizá-
los dentro deste mosaico confuso de acontecimen-
tos, mas às vezes, quando procura, você os enxerga
próximos demais e isso a deixa apavorada.
Uma mulher vestida de noiva.
Noivas. Casamentos. Tradições.
Alguma coisa antiga. Alguma coisa azul.
Errada. Você deve estar errada.
Alguma coisa antiga. Alguma coisa azul.
Emprestado.
Antigo, azul e emprestado e algo mais pairando
bem por trás de tudo isso ― algo mais tomando
forma nos recônditos dopados do seu cérebro. Es-
tou me conscientizando e estou terrificada, con-
357
cluiu.
O seu padrão perfeito, McDonald.
Antigo e azul e emprestado e
E o quê?
Olhou entre suas pernas e urrou, empurrou e
forçou com disposição. Esforçou-se até que a sua
espinha pareceu ter-se desarticulado. Observou
uma cabeça emergir no espelho, uma cabeça cober-
ta de sangue.
Bebê, bebê.
Uma nova vida.
Alguma coisa nova.

Continue se esforçando, Ellen. Continue em-


purrando. Posso ver uma cabeça perfeita. Lindo,
lindo. Não é como no sonho, Ellen pensou. Agora é
diferente do sonho. O bebê é lindo.
Alguma coisa nova.
A mulher levara as outras coisas e agora ela ia
levar alguma coisa nova.
Imagens fragmentadas no espelho, um braço
dobrado e róseo.
Vestígios de cabelo em um crânio tão frágil.
Ellen empinou a cabeça para trás com a inten-
ção de dar o impulso final, o último esforço. E
questionou se através de todo esse sofrimento o
processo poderia ser revertido, se de algum modo
poderia puxar o bebê de volta para dentro de si,
onde estaria seguro e protegido dos males da loucu-
358
ra.
Volte para dentro de mim, volte.
O espelho escureceu. A cabeça de Phelps ficou
na frente da luz e a imagem sumiu por um instante.
Ellen entrou em pânico porque não conseguia ver o
bebê.
O choro ― ela havia imaginado o choro?

E agora você vai lidar com a última parte.


Você vai lidar agora com a última de todas as
coisas.

Ellen abriu a boca. Observou Phelps e Gra-


bowski. Estavam ocupados entre as suas pernas.
Queria contar-lhes, não conseguia mais encon-
trar forças, não havia palavras em seus lábios.
Novo.
Uma nova vida.
O padrão.

― É um menino, Ellen. É um menino saudável


e bonitão.
Phelps, desejava pronunciar. Não leve o bebê.
Ela viu o recém-nascido ― um bebê chorão e des-
pido. E Grabowski estava sorrindo, um sorriso de
orgulho, resplandecente, quase como se ela mesmo
tivesse acabado de dar à luz.
O bebê nasceu nos braços de Phelps. Ellen ob-
servou-o. Sinos, havia sinos tocando, dobrando
359
dentro de sua cabeça. Poderiam ter sido luzes, luzes
vermelhas, luzes de perigo. Ela começou a tremer,
a adrenalina começou a fluir violentamente por seu
corpo com a velocidade de um ciclone. Jamais per-
cebera seu sangue gritar tão alto.
Phelps está segurando o bebê, Grabowski está
sorrindo. Não há nenhum perigo por aqui, não
nesta sala segura, não há nada mesmo.
Então por que...
Porque pressinto e percebo e sei que além de
qualquer dúvida está correndo perigo, porque essa
certeza, de onde vem esta intuição, de onde?

Ela movimentou seus olhos para Phelps, para o


bebê, para Grabowski, para a porta fechada da sala
de parto. Era uma sombra o que ela via pelo vidro
opaco, alguém em pé bem do outro lado.
Dê-me o bebê, Phelps. Dê o bebê para mim.
Phelps, ainda entretido, não se mexeu. A enfer-
meira, sorrindo, sorrindo, ficou bem quieta. Será
que eles não percebiam? Será que nenhum dos dois
percebia aquela sombra pressionada contra a porta?
Será que eles eram cegos? Tão desgraçadamente
cegos?
Berrar, deixem-me berrar, deixem-me berrar.

O choro de um bebê.
A pele rosada e macia de um bebê.
Ele ficará feliz em vê-la com o bebê.
360
Feliz em vê-la de novo, de amá-la novamente.
Tão feliz.
E então aquela separação jamais teria impor-
tância. Você esquecerá, A ausência. A enfermidade.
A época em que ele foi visitá-la quando disseram
que você estava doente. Eles disseram, eles, eles,
eles.
Eles nunca souberam.
E você não vai retomar para ele de mãos vazi-
as.
Levará páginas de livros.
Botões de uma blusa.
Fragmentos de porcelana antiga.
E finalmente este bebê, lindo na morte, na des-
truição.
Este bebê. O seu último presente para ele.
E tudo será maravilhoso novamente.
E você será a verdadeira noiva.

Seus olhos marearam, sua boca escancarou-se,


sua boca estava seca como areia no deserto. Ellen
ergueu uma das mãos e apontou para a porta na di-
reção da sombra, mas nem Phelps nem Grabowski
estavam vendo mais nada a não ser o bebê.
Grabowski dizia:
― Oh, ele é perfeito. Simplesmente perfeito.
Justamente o que desejávamos.
― Por favor ― Ellen sussurrou.
Oh, por favor. A porta está se abrindo, apenas
361
uma fresta, a sombra se movimenta para a extremi-
dade do vidro opaco.
Por favor, olhem,
Mas eles não se viravam, estavam sorrindo para
o bebê.

O meu bebê.
Você tateia em busca da faca.
Faca. Afiada. Pontiaguda. Escondida debaixo
das suas roupas.
Espeta seu dedo extraindo-lhe sangue, e a dor
lhe traz de volta antigas lembranças brutais.
Você pega a faca, empunha-a, puxa-a para fora
de suas roupas.
Agora, agora, agora, a hora é agora.
Para você querido Eric, um bebê morto.
Para nós, um novo início. Um novo casamento.

A porta se escancarou, a sombra iluminada pe-


las costas devido à fria fluorescência das luzes hos-
pitalares, penetrou no recinto. Ellen tentou sentar-
se. Por um instante pregou os olhos em Grabowski
― a expressão que lá existia era de beatitude, orgu-
lho, seus olhos flamejavam.
Grabowski, por favor, vire-se e veja, alguém
está entrando aqui. Alguém que quer o meu bebê.
Por favor, olhe.

A faca. O aço frio na transparência do ar. Frio


362
e mortífero aço.

Phelps se inclinou para frente e carinhosamente


pousou o bebê nos braços de Ellen.
Esse amor suave e magnífico, carreguei-o por
nove meses, ninguém irá machucá-lo. Phelps disse
algo como ótimo, muito, muito bem.
Estas foram as últimas palavras que pronunciou
em sua vida.

Pelo ar cruzou o relâmpago produzido pelo aço


iluminado. Ellen escutou o zunido, viu a lâmina re-
fletir os holofotes ofuscantes, observou o metal ge-
rando um arco-íris esmaecido à medida que se pro-
jetava, tornando-se líquido como uma catarata tro-
vejante, arqueada e retorcida e encontrando a sua
própria trajetória cruel e inevitável. O aço deslum-
brante. Deslumbrante como o metal recentemente
forjado, ainda uma brasa vindo do fundo de uma
terrível fornalha. Queimando. Queimando. E o san-
gue criou uma nascente abrupta, um grotesco jato
vermelho ― a faca, o bisturi, o que quer que fosse,
resvalou pelo pescoço do médico e ele gemeu em
silêncio enquanto tombava ― primeiro contra a
mesa de parto, uma expressão de reconhecimento
chocado em seus olhos, então para o chão, onde ro-
lou e tentou conter o fluxo que saía da enorme fen-
da em seu pescoço. Ela conseguia escutá-lo: perce-
beu que jamais ouvira um som mais terrível em sua
363
vida.
O gemido, os esforços derradeiros, podiam ser
provenientes diretamente do coração da vítima,
como se o coração possuísse a própria voz.
Ela se paralisou, a visão ofuscada pelos holofo-
tes, mesclada com formas esbranquiçadas, tanta
brancura, e uma poça enorme de sangue. Você está
sonhando, pensou. Este é o local em que já esteve,
essa é mais uma parte do seu pesadelo. O bebê, tal-
vez o bebê também não seja real ― mas ele estava
chorando de encontro ao seu seio, pequenas mãos
dobradas se agitando desajeitadamente. Você não
conseguiria sonhar com este choro, não poderia
conceber em sonho a presença deste ser infinita-
mente vulnerável, esta nova pessoa, aninhada em
você.
Grabowski retirou sua máscara.
Familiar. Talvez este fosse mais um eco do seu
sonho.
A porta da sala de parto estava escancarada, El-
len percebeu com o canto do olho, uma percepção
fragmentada, porque agora estava atenta ao brilho
no olhar de Grabowski, enxergando ali algo inatin-
gível, algo inominável. Grabowski concluiu.
Talvez Ellen tenha gritado o nome. Talvez tenha
se imaginado gritando. Estava imersa em um mun-
do sem sensações, um lugar silencioso, um lugar
distante. Então tudo se passou em câmera lenta.

364
Você quer o bebê. Quer levar o bebê para ele.
A última das lembranças do casamento.
A última tradição.
Você precisa do bebê.
Teve que esperar.
Agora a espera acabou e você tem o amor à
sua frente.

Ellen envolveu o bebê em seus braços, girou


seu corpo para escudá-lo, escutou seus gritos estou-
rando seus tímpanos. E subitamente percebeu algo
mais importante do que qualquer outra coisa em
todo esse mundo maldito. Eu morreria por este
bebê. Daria minha vida com muito prazer. Olhou
dentro dos olhos de Grabowski: estavam vazios,
sem expressão, mas ainda existia uma determina-
ção em seu rosto, uma expressão de insanidade e
dor.
Você! Ellen pensou.
Você! Você retalhou sua barriga. Você ficou es-
perando na igreja. Você. Meu bom Deus. Você.
Este novo ser precioso: você não o terá.
Nunca. Jamais o terá.
Não conseguia desviar seus olhos daquela mu-
lher.
Um momento ― tudo poderia ter cessado
abruptamente. Arrasada. Nuvens mancharam o céu,
e o sol bateu em retirada e as marés se coligaram e
capturaram. Aqueles olhos, aqueles negros olhos
365
perdidos. Ellen percebeu que estava encarando os
limites máximos da paixão, aquele lugar em que o
coração perde totalmente a razão, onde o amor é o
companheiro da insanidade, em que a realidade é
algo palpável apenas se houver a intenção de alterar
o seu curso, se quisesse modificá-la e corrompê-la.
Este bebê, não, pensou.
Não importa o que você faça, não machucará
esta criança.
Viu o aço resplandecer novamente e o braço da
mulher começou a se erguer. Mexa-se Ellen, mexa-
se ― afaste-se do brilho hipnótico deste objeto na
descendente. Desta lâmina assassina.
E virou-se de lado, surpreendida pela súbita
sensação de vazio, inconsistência e esclarecimento.
Ellen girou-se e arqueou seu corpo para proteger o
bebê que agora estava deitado debaixo dela. Um
lindo bebê. Mais lindo do que um dia poderia ter
sonhado. Mais maravilhoso do que qualquer coisa
que sua imaginação pudesse elaborar. O amor a in-
vadia. Era um amor pelo qual você morria sem
qualquer pergunta.
Ela podia perceber a faca se aproximando. Mas
penetraria na sua carne, não encostaria na criança,
ao menos não perfuraria a carne macia daquela cri-
ança.
Mataria somente ela e isso pouco importava.
Poderia salvar seu bebê.
Mesmo que fosse a última coisa que fizesse.
366
Fez do seu corpo um abrigo por cima do recém-
nascido. Uma frágil tenda, um escudo fraco, muito
fraco para fazer mais do que atrasar o inevitável.
Retesou-se ― aterrorizada —, aguardou, aguardou.
Aguardou e aguardou com seus olhos fechados
pelo instrumento que se enterraria em suas costas
expostas.
De algum lugar veio o barulho de uma porta se
abrindo. A sombra atrás do vidro ― quem estava
esperando ali? Isso não importava mais. Isso sim-
plesmente não importava nada. Vou ser morta.
Esperando. Esperando para morrer.
Escutando o choro do bebê debaixo dela.
Esperando, escutando.
E nada.
Nada aconteceu salvo pelo som de algo metáli-
co chocando-se contra o piso de cerâmica.
Por quê?
Eric estava na sala de parto, de algum modo
Eric havia entrado no recinto e estava falando man-
samente com a mulher, acariciando a sua face com
a ponta dos dedos. (Eric, Eric, a sombra atrás da
porta.) Acariciando, aquilo poderia ter sido um ges-
to de profunda intimidade e amor, um ato pessoal
de ternura. Ellen segurou o bebê em seus braços e
olhou por toda a sala. Eric estava esfregando os
braços da mulher. Inclinou-se então para a frente e
a beijou suavemente na testa. Ellen fechou os olhos
e apontou o bebê contra seu corpo. Isso não aconte-
367
ceu ― apague, sonhei isso tudo, criei isso tudo de-
vido a um delírio característico às minhas condi-
ções, ao meu estado febril. Isso não aconteceu, e
Phelps vai entrar pela porta a qualquer instante. E
Grabowski ― Grabowski não fez nada disso, ela
não é a mulher da culpa de Eric, inventei isso tudo,
gerei a minha própria ficção atormentada.
Quando conseguiu abrir seus olhos, pôde ver
Phelps no chão, olhos abertos, a boca caída, uma
das mãos torcida debaixo de seu corpo.
Não olhe. Se você não sonhou isso tudo, não
tem que olhar.
Mas é real. E real. Você sobreviveu a todo esse
sofrimento.
Você está segurando o seu bebê.
E X é Grabowski, Grabowski que a animou du-
rante sua gravidez, que lhe deu conselhos, que foi
gentil e carinhosa com você.
E fora disso tudo, esta nova vida, este menino.
Sentiu lágrimas se acumulando em seus olhos.
― Querida Irene ― Eric estava dizendo.
A enfermeira não falava. Que tipo de passado ti-
nham compartilhado? Que tipo de amor levara esta
pobre mulher a uma loucura criminosa?
Agora ele a estava tocando, consolando-a, re-
movendo-a de sua fantasia. Estava sendo paciente,
tolerante e carinhoso, estava sendo compreensivo;
fazia com que ela se lembrasse de alguém tentando
desarmar uma bomba ativada.
368
Mas essa já explodiu.
Olhou para o corredor além da porta aberta: ha-
via inúmeros atendentes e enfermeiras na passa-
gem. Cautelosamente começaram a entrar na sala
de parto. Um rapaz com jaleco branco pegou a faca
do chão. Uma outra pessoa cobriu Phelps com um
lençol.
Pobre Phelps.
Então, vindo do nada, havia dois tiras.
Eric disse:
― Irene, quero que você vá com estas pessoas.
Eles cuidarão de você.
― Quando vou ver você? ― ela indagou.
― Em breve. Daqui a pouco tempo.
― Promete?
― Prometo ― Eric afirmou.
Beijaram-se.
Seus lábios se tocaram.
A mulher virou seu rosto e olhou para Ellen.
O que havia naquele olhar? Ellen gostaria de sa-
ber.
O que ela identificara ali?
Não era o vazio, nem a inconsistência, não era a
luz distante da insanidade. Era a expressão cortante
do triunfo, o olhar que rasga, o olhar que diz: Ele é
meu, sempre será meu, nunca será integralmente
seu.
Ladeada pelos policiais, a mulher saiu da sala
sem olhar para trás.
369
Eu imaginei essa expressão, Ellen pensou.
Apenas a imaginei.
E segurou o bebê ainda com mais firmeza con-
tra si, observando acima da sua frágil cabecinha o
rosto do seu marido.
Ele parecia transtornado, pálido, como alguém
que acabou de concluir uma jornada longa e árdua.
Este é seu filho, Ellen pensou.
Estou segurando o seu filho nos braços.

Ellen foi internada em um quarto particular. Em


intervalos regulares traziam o bebê. Levavam-no de
volta para pesá-lo, fazer verificações, testes, tinham
que se certificar de que ele era saudável. Ela com-
preendia tudo isso: o que não compreendia era a
sensação de vazio que a tomava a cada vez que le-
vavam o bebê embora. Era uma sensação nova,
algo com o qual tinha que se acostumar ― uma
nova sensação de proteção que surgira em seu inte-
rior, um novo senso de perda por antecipação.
Eric chegou com as flores. Colocou-as na mesi-
nha de cabeceira. Beijou a mulher no canto da
boca. Ela olhou para as flores ― tão frágeis. Quan-
do Eric viu o bebê pela primeira vez, quando lhe
permitiram que ele o segurasse o fez de um jeito
meio sem prática, como se a criança fosse de vidro.
Foi a expressão no rosto dele que a encantou ―
não conseguia sequer recordar-se de já tê-lo visto
com uma aparência tão terna, tão totalmente envol-
370
vido, tão orgulhoso. Orgulhoso, pensou. Isso fazia
com que ela se sentisse bem. Quando uma enfer-
meira entrou e carregou o bebê, Eric ficou sentado
em silêncio por muito tempo, suas mãos oscilando
entre as pernas. Ellen o observou: surpreendia-a to-
talmente perceber quanto o desejava, o queria com
tamanha urgência, queria o seu amor. Mas havia
um período de resguardo, um período de celibato
forçado ― lembrava-se de Phelps comunicando-lhe
isso certa vez.
Phelps. Pobre Phelps.
Eric disse:
― Isso nunca passou pela minha mente. Nunca
me ocorreu conectar Irene com o que estava acon-
tecendo conosco. Como poderia? Não sabia que ela
recebera alta. Jamais cogitei a possibilidade de ela
retornar à minha vida...
Ele fitava o chão, esfregando os dedos de um
modo nervoso. Ellen notou o fato assim que o viu
apanhando um lenço do bolso, viu que estava cho-
rando. O que significavam aquelas lágrimas?
Medo? Alívio? Pura satisfação por causa do bebê?
Ela esticou seu braço e segurou a mão do marido;
seus dedos estavam macios e quentes. Quando ele
pôde falar novamente, sua voz estava entrecortada:
― Sei que deveria ter-lhe contado há muito
tempo. Deveria ter-lhe contado tudo. Mas às ve-
zes... não sei exatamente como dizer isso. Às vezes
me parecia que nada daquilo ocorrera, era como um
371
sonho. E por vezes eu ficava tão assustado de poder
perder o seu amor se lhe contasse sobre Irene...
― Você nunca conseguiria perder o meu amor
― ela respondeu.
Esfregou as juntas dos dedos dele. Eu o desejo,
pensou. Eu o quero tanto.
― Isso não importa agora ― Ellen o tranquili-
zou. Descobri a verdade da pior maneira possível,
não foi?
― Realmente, da pior maneira ― ele concor-
dou.
Ellen fitava as faixas escuras entre as fendas da
persiana da janela. Cerrou os olhos ― não viu a
faca cortando o pescoço de Phelps, o que via em
vez disso era a imagem de uma mulher desesperada
retalhando seu próprio ventre com uma faca, um
feto morrendo. Antigo, azul, emprestado e novo.
Em algum ponto da versão deformada da realidade
para aquela mulher havia um casamento idealizado,
ela e Eric reunidos em votos de sangue. Sangue:
por que não conseguia tirar aquela imagem de
Phelps de sua mente agora? Permanecia em sua
memória como uma mácula.
Olhou mais uma vez para Eric e refletiu sobre o
quanto ele sofrerá, considerou a culpa, a mina de
auto-recriminação sendo aprofundada cada vez
mais. Procurou imaginar como seria manter tanto
sofrimento em segredo, ocultando-o em algum
compartimento trancafiado em seu cérebro.
372
Tudo se libertou agora, uma hora tudo tem que
se soltar, nunca se consegue conter esse tipo de so-
frimento.
― O que você sente por ela agora? ― Ellen
perguntou.
― Acredito que sinto um tipo de amor. Um tipo
de pena. E muito difícil de definir. O que sei e isso:
sempre me sentirei responsável por ela de alguma
forma. Uma parte de mim sempre se sentirá assim.
Uma parte de você, ela pensou.
Uma parte da sua história que não posso alterar.
Não posso voltar no tempo e apagar um aconteci-
mento com o qual tenho que conviver.
― Fui vê-la uma vez depois que ela tentou se
mutilar ― ele contou. ― Bem um pouco antes de
nós nos casarmos. Não sei por que fui até lá. Sim-
plesmente fui tomado por aquela antiga sensação
de culpa, suponho. Ela estava trancada em um
quarto e a mantinham sob forte medicação. Irene
me observou por um longo período e pareceu, subi-
tamente, ter-me reconhecido. Sempre me recordarei
do que ela me disse... ― ele hesitou, havia um ar
de ausência em seu rosto, quase como se estivesse
lembrando de um sonho. ― “Sempre amarei
você”, ela falou, “Eu amarei você até o final dos
tempos.” Foi isso que ela me disse.
Até o final dos tempos, Ellen refletiu.
Você a deixou esperando na igreja. Você a dei-
xou por minha causa. Eu nunca soube, nunca sou-
373
be.
― O que farão com ela agora?
― A enviarão de volta ao Maine, creio. De vol-
ta para o sanatório.
Portas fortalecidas. Fechaduras poderosas. Cha-
ves pesadas.
Por que sinto tanta pena dela, mesmo agora?
Eric disse:
― Nunca serei capaz de lhe dizer o quão mal eu
me sinto por causa disso tudo.
― Eu gostaria de tentar esquecer este assunto
por completo ― Ellen respondeu.
Esquecer isso tudo ― seria possível? Será que
algum dia isso seria possível? Tinha que fazê-lo.
Tinha que se empenhar ao máximo para fazê-lo.
A porta do quarto se abriu e uma enfermeira en-
trou carregando a criança. Ela colocou o bebê nos
braços de Ellen. Por um instante houve silêncio no
recinto. Então, Eric, espiando por cima do cobertor
que envolvia o bebê, disse:
― Ele é lindo. Ele é tão lindo.
― Ele até mesmo possui dez dedinhos nas mãos
e dez dedinhos nos pés ― Ellen brincou. ― Eu os
contei.
Eric sorriu.
― Ele se parece com você, meu amor.
― Pensei que fosse com você.
Eric pousou suavemente a ponta do seu indica-
dor na bochecha do bebê, a pele nova e macia.
374
― Já decidimos qual será o nome? ― ela ques-
tionou.
― Estou considerando.
Ficaram em silêncio por um momento. O bebê
bocejou, mexeu seus minúsculos dedinhos. A porta
do quarto se abriu novamente e Ellen levantou os
olhos para ver McDonald em pé junto à porta, um
pequeno ramalhete de flores pendendo desajeitada-
mente em suas mãos. Aproximou-se da cama lenta-
mente, parecendo um pouco mais amarrotado que
de hábito, seu terno branco manchado e enrugado
aqui e ali com nódoas de cinza de cigarro. Colocou
as flores na mesa de cabeceira. Não se sentou; em
vez disso ficou ao lado da cama com a expressão
ansiosa de um fumante inveterado preso em um
elevador, rodeado de avisos de E Proibido Fumar.
― O bebê é adorável ― disse com uma voz
tranquila. ― Congratulações. Para ambos.
Ellen sorriu para o tira. Ele estava balançando
sua cabeça de um lado para o outro. Uma expressão
de exasperação passou pelo seu rosto.
― Chame-me de estúpido ― ele colocou.
― Estúpido?
― Toda a minha vida fui treinado para procurar
padrões ― esticou as mãos, observando-as. ― En-
tão alguém esfrega um deles em sua cara, você não
enxerga. Eu deveria ter percebido. Deveria ter visto
claramente.
O tira se inclinou mais próximo do bebê. Sua
375
sombra caiu sobre o rosto da criança. Ele contou:
― Eu os adoro quando acabam de nascer. Não
sei por quê. Talvez porque sejam macios e despro-
tegidos.
Ele pareceu um tanto envergonhado pelas suas
próprias palavras. Seu embaraço sensibilizou Ellen:
percebeu subitamente o quanto significaram o
apoio e preocupação de McDonald ― o que impor-
tava agora se ele não tinha conseguido resolver
aquele enigma a tempo? O que isso importava?
Houve um final. O bebê estava vivo, saudável.
― Já pensaram em como irão chamá-lo? ― o
tira perguntou.
Ellen recostou-se contra os travesseiros com
seus olhos fechados por alguns segundos. Brincou
com o nome mentalmente: conseguia escutá-lo e
soava agradavelmente.
Abriu os olhos e fitou Eric por um breve instan-
te.
― Acabamos de decidir ― ela declarou. ―
Bem antes de você passar por aquela porta.
Ela hesitou, apreciando o leve olhar desnortea-
do no rosto de Eric.
Ellen completou:
― Decidimos chamá-lo de Patrick. Patrick
Campbell.
McDonald esfregou a mandíbula com a palma
da mão e se virou
para a porta, quando parou.
376
― Gosto do primeiro nome. Gosto um bocado
deste nome. Não tenho muita certeza quanto ao so-
brenome, contudo.
― A velha história ― Ellen brincou.
McDonald assentiu, como que incerto quanto à
observação que fizera.
― Retornarei como investigador mais tarde.
Nesse momento, entretanto, você tem uma sala de
espera repleta de visitantes. Pessoalmente, acredito
que faria melhor descansando.
Ele estava quieto quando abriu a porta. Então
disse para si mesmo ― Patrick Campbell ― e sor-
riu à medida que se retirava.
Ellen fitou a passagem da porta deserta. No cor-
redor mais além podia avistar sua mãe sentada em
um banco com Hattie ao seu lado, em pé. Olhou
para elas c sorriu. Viu então Vicky segurando um
enorme ramo de flores contra seu corpo.
Eric levantou-se e fechou a porta muito calma-
mente.
― Mais tarde ― ele disse. ― Neste instante
quero você só para mim.
Ela o observou atravessar o quarto. Ele sentou-
se na beirada da cama e a envolveu com seu braço.
― Patrick ― ele pronunciou.
― Você consegue pensar em algo melhor? ―
Ellen perguntou.
Ele balançou a cabeça negativamente. Suspen-
deu a beirada do cobertor do bebê e disse:
377
― Patrick, você é lindo.
Ellen fechou os olhos e refletiu. Este é um mo-
mento perfeito, uma ligação perfeita, um pequeno
milagre.

FIM

*
* *

ÐØØM SCANS
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