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(PARTE 1)
Londrina
UEL
2012
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
S471a Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Métodos, Acervos, Cartografias (2.: 2011: Salvador, BA)
[Anais do] II Seminário Brasileiro de Poéticas Orais : Métodos, Acervos, Cartografias / Edil Silva
Costa, Felipe Grüne Ewald, Frederico Fernandes (orgs.) – Londrina: UEL, 2012.
478 p.
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-7846-101-0
CDU 82-1.09
COMISSÃO ORGANIZADORA
Edil Silva Costa
Presidente
Frederico Fernandes
Vice Presidente
Vanusa Mascarenhas
Secretária
Osmar Moreira
Coordenador do Pós- Critica
COMISSÃO CIENTÍFICA
Ana Lúcia Liberato Tettamanzy (UFRGS)
Andrea Betania da Silva (UNEB)
Arivaldo de Lima Alves (UNEB)
Denise Barata (UERJ)
Frederico Augusto Garcia Fernandes (UEL)
José Guilherme Fernandes (UFPA)
Josebel Akel Fares (UEPA)
Margarete Nascimento dos Santos (UNEB)
Mario Cesar Leite (UFMT)
Silvio Roberto dos Santos Oliveira (UNEB)
Edilene Matos (UFBA)
Yeda Pessoa de Castro
REALIZAÇÃO
Universidade do Estado da Bahia
APOIO
Comissão Baiana de Folclore
ÍNDICE
APRESENTAÇÃO 9
PARTE 1
PARTE 2
APRESENTAÇÃO
Organizando a apresentação dos trabalhos a partir dos objetivos elencados e dos temas
inerentes a eles, o II Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: métodos, acervos,
cartografias conseguiu promover um grande encontro de pesquisadores do país e do exterior,
professores universitários, graduandos, mestrandos, doutorandos, professores da rede pública
e privada, artistas e pessoas da comunidade.
A programação, composta por conferências e mesas-redondas, contou com a presença
de membros fundadores do GT como a Professora Idelette Muzart Fonseca dos Santos
(Université Paris X), convidados internacionais como Antoni Russell (Universidade
Autónoma de Barcelona) e Paula Cristina Villas (Buenos Aires), além de representantes do
Norte a Sul do país, dentre outros, Frederico Augusto Garcia Fernandes (UEL), Ana Lúcia
Liberato Tettamanzy (UFRS), José Jorge Carvalho (UnB), Mário Cezar Silva Leite (UFMT),
Josebel Akel Fares (UEPA), Maria Ignêz Ayala (UFPB), Marcos Ayala (UFPB), Edilene
Matos (UFBA), Heloísa Helena Costa (UFBA), Yeda Pessoa de Castro (UNEB). Desse modo,
promoveu-se um profícuo debate, superando as análises dicotômicas que separam
popular/erudito, e os estudos folcloristas mais tradicionais que enfrentam seus objetos com o
olhar do exótico.
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Resumo: Em espaço formal, educandos podem ser estimulados ao prazer de ler, escutar,
contar histórias e aprimorar o uso da Língua Portuguesa, ouvindo, lendo e criando textos,
enfocando a ética e a cidadania através de obras literárias africanas e afrobrasileiras e outros,
como os de Literatura de Cordel, que fazem parte da cultura local, enriquecendo o
conhecimento destes, mostrando a sua riqueza, tendo esses, mensagens ligadas a temas como
o amor ao próximo e a natureza, o autoconhecimento, a paz e outros, que objetivam
sensibilizar aos educandos a uma consciência de si e da importância em viver em
comunidade.
Em espaço formal, muitos professores se queixam que os seus alunos não leem ou não
têm estimulo para fazer isso. Crianças e adolescentes de comunidades carentes e com poucos
recursos econômicos se veem no dilema de ter de ler para cumprir uma exigência da escola
que coloca em seu currículo livros que são obrigatórios, mas não os estimula a tal coisa ou
torna esta atividade um ato desprazeroso ou como muitos definem: “chato”. É preciso que os
educadores tenham a sensibilidade de estimulá-los com textos que sejam interessantes para
estes e que contenham mensagens significativas, levando-os a ter prazer pelo hábito de leitura
e incentivá-los a ler textos variados que possuam significado para sua vida, procurando
trabalhar a auto-estima deles, aprimorando a linguagem formal e a sua escrita e fala,
enriquecendo seus conhecimentos literários tendo como fonte vários textos que fazem parte
da cultura dos mesmos, tais como de Literatura Africana e Afrobrasileira, de cordel,
trabalhando a ética e a cidadania para melhor interação social em sua comunidade.
Segundo SALES LOPES (2009) é de grande importância que o trabalho de leitura
esteja incorporado às práticas cotidianas da sala de aula, visto-se tratar-se uma forma
carinhosa e prazerosa para o conhecimento. Essa variável de constituição de experiências
possui propriedades positivas que devem ser discutidas e consideradas quando se trata de ler
diferentes tipos de textos. O estimulo a leitura envolve exercícios de reconhecimento das
propriedades que matizam um tipo particular de leitura, sendo possível evitar uma série de
equívocos, de fantasmas que costumam estar presentes nas escolas em relação às leituras. O
prazer de ler é uma técnica que se adquire no decorrer dos anos, tendo em vista que o prazer
da leitura vem aos poucos e contribue para a formação de leitores capazes de reconhecer as
sutilezas, as particularidades, os sentidos, a extensão, a profundidade do texto lido. A leitura é
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uma partitura musical e as palavras são as notas. Se aquele que lê é um artista, se ele domina a
técnica, se ele surfa sobre as palavras, se ele está possuído pelo texto – a beleza acontece.
Assim, quem ensina este ofício, isto é, aquele que pratica o ato da leitura para que seus alunos
tenham prazer no texto, tem de ser um artista. Nas escolas, deveria ser estabelecida a prática
de “concertos de leitura“, com os alunos experimentando os prazeres do ler. A culpa de
muitos jovens não gostarem de ler não são deles, pois foram forçados a aprender tantas coisas
sobre os textos - gramática, usos da partícula “se“, dígrafos, encontros consonantais, análise
sintática –que não houve tempo para serem iniciados na única coisa que importa: a beleza
musical do texto literário, foi-lhes ensinada a anatomia morta do texto e não a sua vitalidade.
Para o autor, a leitura é definida como o ato de fazer amor com as palavras e essa transa
literária se inicia antes que as crianças saibam os nomes das letras, sem saber ler elas já são
sensíveis à beleza e o papel do professor é indispensável neste processo.
Mas a leitura não deve ser imposta pelo educador, e sim negociada. Uma sondagem
oral pode ser realizada no primeiro dia que as aulas formais começarem, sendo que esta deve
ter caráter descontraído, perguntando aos alunos se eles leem, como o fazem, que tipo de
obras e qual a freqüência. Muitos dos educandos dizem que pouco lêem, mas reconhecem a
sua importância. Isto demonstra a emergência para uma política voltada ao incentivo à leitura.
Alguns romances, contos e outros textos curtos podem auxiliar na escola, mas estes devem ser
focados para um objetivo maior, o de enriquecê-los culturalmente e levá-los a se
questionarem sobre as coisas que acontecem em sua comunidade, respeitando a cultura do
aluno, pois de acordo com SOARES (1993, p. 14) todo e qualquer grupo social possui cultura
pois esta significa a maneira pela qual o grupo social se identifica, através de seu
comportamento, valores, costumes, tradições, comuns e partilhados. Por isso, este ato deve
levar em consideração estes fatos culturais que fazem parte do grupo social que o aluno está
inserido.
Essas aulas podem ser ministradas com obras da Literatura Africana, enfocando
autores consagrados, como exemplo, a escritora angolana Alda Lara, servindo como
referencial de uma mulher negra que através de sua poesia denuncia o preconceito racial e
transmite a sensibilidade de uma pessoa que usa suas obras para revelar as belezas de sua terra
natal. Convém ressaltar que esta escritora sofreu muito o preconceito dela ser mulher e negra
em uma época que escrever era coisa de homem e não era permitido às pessoas da mesma cor
de pele dela o fazer e do mesmo sexo da escritora, pois o preconceito racial naquela época era
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muito forte e institucionalizado. Também pode ser referida a contista Isabel Ferreira que com
seus trabalhos, nos mostra os hábitos e costumes africanos da região de onde ela veio, Angola,
nos dando dados que podem ser interligados aos nossos, baianos, através de sua linguagem
própria. Segundo ela,“ A linguagem faz parte da expressão cultural e Individual de cada ser
humano” (FERREIRA, 2008, p. 10). Este referencial é de suma importância para os alunos
porque resgata o que muito tempo foi tentado encobrir, a cultura africana e sua importância
para a formação da nossa identidade nacional e cultural. Outra autora reconhecida
mundialmente e faz parte do universo feminino africano é Paulina Chiziane, autora de várias
obras literárias reconhecidas em vários países, tem como tema os hábitos e costumes de sua
nação, Moçambique. Esta contista moçambicana sofreu muito, assim como as duas outras
referidas acima, o preconceito de ser mulher e negra em sua época . Estes são referenciais que
podem abrir o debate para temas transversais como sexualidade, cidadania e outros em sala de
aula.
A Literatura Afrobrasileira também pode ser estudada e interligada com a africana,
fazendo um paralelo entre essas duas, enfocando as contribuições que o continente africano
tem para o Brasil e especialmente para a Bahia, dando referências de pessoas que fazem parte
da nossa cultura, como exemplo, Mestre Didi, contista e artista plástico soteropolitano. A sua
obra “Contos Crioulos da Bahia” pode servir de referencial para mostrar aos alunos que um
homem negro vindo de uma família humilde, superou todos os obstáculos e ascendeu
socialmente, sendo reconhecido internacionalmente. Suas obras são admiradas em vários
países, tais como França e Estados Unidos, sendo este ganhador de vários prêmios nestes
países e outros e consagrado como um dos maiores escritores e escultores do mundo. Elas
podem ser analisadas, interpretadas e interligados com a cultura baiana, trabalhando a ligação
Literatura Africana em língua portuguesa com a Literatura Afrobrasileira e a realidade do
aluno.
O objetivo desta intervenção, interligando estas duas culturas, é reforçar a consciência
étnica do aluno e trabalhar a sua auto-estima através da valorização da riqueza do legado
literário africano e sua conexão com a comunidade que o aluno está inserido, procurando
fazer os educandos a se reconhecer nestas, pois “Os coletivos diversos que fazem parte de
nossa formação social e cultural vêm reivindicando o direito de conhecer-se em sua
identidade e cultura, memória e história” (ARROYO, 2008, p. 49). Em sala de aula, este
conhecimento e reconhecimento identitário do aluno é importante para reforçar sua cultura e
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identidade e abrir espaço para o diálogo de referenciais que hoje estão sendo debatidos na
sociedade em que este está inserido.
Pode-se colocar referenciais femininos, como exemplo, a rainha Nzinga, rainha
que viveu durante um período em que havia o tráfico de escravos africanos, sentindo a
opressão da época da escravidão colonial. Esta guerreira, se revoltou contra o domínio
português, negociando com estes um tratado de paz. Ela se converteu ao catolicismo e adotou
o nome português de Dona Ana de Souza. Ganhou notoriedade durante a guerra por liderar
pessoalmente as suas tropas e por ter proibido-as de a tratarem como "Rainha", preferindo que
se dirigissem a ela como "Rei". Esta mulher guerreira pode ser associada com as brasileiras
que tanto lutaram e contribuíram para a formação cultural do povo brasileiro, mostrando sua
força, inteligência e sensibilidade feminina, dando referenciais de mulheres que lutam até hoje
pelo espaço que muito a foram negado, assim como Mãe Aninha, do Ilê Axé Opô Afonjá,
comunidade-terreiro localizada na territorialidade do Cabula fronteira com Arenoso, a qual,
segundo CORREIA (2010, p.10) ,uma senhora que se opôs a todo tipo de exclusão ao
continuo civilizatório dos povos africanos que vieram para a Bahia. Ela, junto aos
movimentos negros e as comunalidades africano-brasileiras não se calaram ao longo da
história.
Através da leitura, interpretação e reelaboração destes textos em sala de aula de
Língua Portuguesa, pode-se buscar também o aprimorar da linguagem formal escrita e falada,
através da análise, crítica e recriação destes, pois a língua portuguesa é a que os brasileiros se
interagem, se comunicam, expressando os seus sentimentos, ideologias e construindo sua
identidade própria. PRAH (2000) aponta que “A língua serve também de instrumento de
opressão e imposição da cultura dominante”, sendo assim o que e como vai ser lido deve ser
analisado com cuidado, para que não seja instrumento de opressão e sim o ensino da norma
culta como forma de aprimore linguistico. A utilização da língua na forma culta é um meio de
especialização do indivíduo que o possibilita a galgar melhores empregos e se destacar mais
na sociedade, havendo um enfoque nas palavras que os educandos não conhecem, trocando-as
por seus sinônimos ou antônimos, trabalhando-se em sala de aula a parte semântica contidas
nos textos literários.
Trabalhar também a Redação após a leitura e interpretação de textos diversos, através
de métodos que deixem os alunos questionar e dar sua opinião, servindo de base para a
criação daqueles de sua própria autoria, incentivando a criatividade de forma lúdica, expondo
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jornais e revistas com palavras erradas. É preciso entender que o aluno vai para sala de aula
com saberes e experiências vividas em sua comunidade e isso reflete na sua produção escrita.
A produção escrita do aluno depende também dos textos que o mesmo lê. É de suma
importância não limitar o educando a ler e escrever somente um tipo de texto, como somente
a prosa, mas também poesia. O intuito é de sensibilizar e chamar a atenção para a beleza e
grandiosidade deste gênero. A poesia pode ajudar na sensibilização e chamar a atenção para a
construção de textos mais humanos, como temas direcionados ao amor ao próximo, possuindo
uma riqueza no seu interior de mensagens que servem para a reflexão sobre o viver em
comunidade e o respeito ao ser humano, o convívio com a mãe natureza e com os nossos
irmãos, filhos desta bela e rica matriarca. A prática desta escrita e leitura em sala de aula pode
estar atrelada a vida cotidiana de seus alunos e suas representações.
A pesquisa feita por BULHÕES (2010), sobre a relação entre divergentes formas de
saber, especificamente da representação que alguns sujeitos de grupos populares urbanos
mantêm sobre as suas práticas de escrita na vida cotidiana, considerando que esta pode ter
significação diferente e representar aspirações singulares de pessoas divergentes, sendo que o
fenômeno da representação é social e simbólico, e que diversas modalidades dela trazem à
tona diferentes formas de saber. Esta revela que estes não reconhecem as leituras bíblicas que
realizam ao falar, tanto as particulares quanto as compartilhadas em voz alta, enquanto tal.
Eles veem este fato como ação de formação religiosa. Os textos que circulam na sua vida
diária na comunidade são vistos pelos que os escrevem ou leem não como instrumento para a
sua formação de leitor e redator, sendo que alguns menos escolarizados citam clássicos da
literatura ao falarem de suas experiências com a escrita. Eles justificam e valorizam a sua
pouca experiência escolar, sendo que um deles justificou o domínio da escrita com a última
reforma ortográfica. Esta pesquisa também demonstrou que os mais jovens não relacionavam
a leitura e redação de textos digitais como experiências de escrita, enquanto os mais
escolarizados aproximam-se mais da escrita escolar, acadêmica. Os saberes e experiências de
escrita entre sujeitos são compartilhados entre eles que convivem em um espaço popular
urbano, aproximando-se e muitas vezes se conflituando com um modelo hegemônico de
escrita. Eles privilegiam gêneros tradicionais de escrita próprios do contexto escolar,
acreditando que saber a língua é dominar regras da gramática tradicional. A escrita, vista
deste ângulo, limita-se à sua condição de código, sendo representada por um mecanismo
‘neutro’ cujo objetivo é atender as necessidades funcionais do Estado. A autora aponta a
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atenção do aluno e melhor fixar o assunto, pois através dela o assunto proposto vai ser
interligado a algo que o aluno gosta e que o faz com prazer.
Outros recursos utilizados são contos, romances, revistas, filmes. Todos de diversos
gêneros com temas voltados para o crescimento espiritual e intelectual do educando. Estes
devem ser ligados com a realidade deste, possuindo um valor significativo na sua vida em
comunidade .
Crianças e adolescentes de escola pública e moradores da comunidade podem
participar e devem fazê-lo, envolvendo as pessoas que se relacionam culturalmente com estes
educandos, construindo o currículo. Este não são conteúdos prontos a serem passados aos
alunos, e sim “... uma construção e seleção de conhecimentos e práticas produzidos em
contextos concretos e em dinâmicas sociais, políticas e culturais , intelectuais e pedagógicas”
(ARROYO, 2008, p.9). Eles não devem ser obrigados a participar das aulas, mas sim
estimulados a serem sujeitos ativos e a fazerem parte dela.
Através destes textos literários, os envolvidos no processo educacional em Língua
Portuguesa podem retirar neles os assuntos e temas necessários para aprimorar o
conhecimento e melhorar a ortografia e a semântica. A Literatura vai servir de objeto para
melhor entender a língua estudada e seus mecanismos. Através de mensagens contidas neles e
de sua grandiosa e rica sensibilidade contida em seu interior, aluno e professor encontram nela
um terreno fértil para melhor entender a Língua Portuguesa e tornar as aulas mais leves e
interessantes, sem o “peso” de analisar mecanicamente o texto e retirar elementos para fazer a
análise sintática ou morfológica, e sim de poder compreender melhor como funciona a língua
e seus elementos comunicativos. Essas mensagens contidas nestes textos literários podem ser
usadas para servirem de debate em sala de aula para objetivar uma mudança no
comportamento de seus integrantes, pois através desses diálogos, pode-se discutir a
convivência no espaço comunitário e o que este representa neste planeta rico em beleza e
cheio de oportunidades para crescer espiritualmente, dialogando o fato de não podermos viver
isolados e que é possível caminhar juntos na construção de um mundo melhor, no qual a
literatura (arte da palavra), da intervenção linguística e elaboração textual feita pelo aluno,
pode-se sensibilizar, não só o educando, mas também o educador, levando-o, através de
mensagens que possam despertá-los, e se fazer reconhecer em sua cultura, como filhos dessa
generosa e rica mãe natureza, a reverenciá-la e admirá-la, despertando o interesse dos
participantes deste processo educacional a atentar a importância do amor ao próximo e a
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sensibilidade para reconhecer as coisas lindas do mundo, tentando não mudar o mundo, pois
isto é utopia, mas tendo certeza que pode-se colaborar para algo se transformar, porque os
pequenos atos com amor podem levar a grandes resultados, por eles terem em seu interior a
semente que ao ser plantada, pode ser germinada e afetar a vida de outros, através de
mensagens contidas na Arte de Viver.
REFERÊNCIAS
ANTUNES, Gabreila. Estórias Velhas, roupas novas. Portugal: Edições Asa, 2000.
BAGNO, Marcos. Preconceito lingüístico. São Paulo: Edições Loyola, 2001. ISBN
8515018896.
CASTRO, Yêda Pessoa. A influência das línguas africanas no português brasileiro. 1990
CASTRO, Yeda Peddoa de. Falares Africanos na Bahia. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001.
DIDI, Mestre. Contos Crioulos da Bahia. Salvador: Núcleo Cultural Niger Okàn, 2004.
PRAH, Kwesi Kwaa. Between Distiction and Extiction. CASAS : South África, 2000.
HTTP://WWW.EMACK.COM.BR/SAO/WEBQUEST/SP/2004/AFRICA/MITO.HTM. Acessado em
21/07/2006
SOARES, Magda. Linguagem e escola: Uma perspectiva social.10 ed. Editora Ática: São
Paulo, 1993.
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Especialização UniJorge
anafatimadossantos@yahoo.com.br
Temas são constatados nas narrativas sobre religiosidade, saúde, educação formal,
identidade quilombola, reforma agrária, grupos culturais de música e danças regionais,
discussão racial e divisão de gênero no trabalho comunitário. Observa-se que a maioria das
falas no filme documentário é feita por mulheres, acima de cinquenta anos, o que legitima
também a importância dos mais velhos e suas memórias. São os anciãos contadores de
história, bibliotecas vivas sobre a trajetória do negro no mundo.
As narrativas são ferramentas de análise que apontam a construção identitária dos
sujeitos que as reproduzem e das pessoas que as observam e guardam na memória. Discutir a
visão socioconstrucionista do discurso e da identidade social é interessante ao focalizar como
a narrativa, um tipo de organização discursiva que usamos para agir no mundo social,
funciona, como instrumento cultural, na mediação do processo de construção das identidades
sociais (MOITA LOPES, 2002, pg. 59). É uma linguagem universal ligada às formações de
pertencimento local e global, individual e coletivo capaz de circular em diferentes grupos
étnicos.
O conceito de identidade no Brasil deve ser considerado cuidadosamente a depender
da ciência de estudo a qual se vincula ou ao propósito de sua definição: se é biológica ou
cultural. Há de se considerar que a identidade popular é algo que motiva assuntos
diferenciados e relevantes para uma exploração científica. Porém, o que estaria por trás de tal
interesse? As relações de poder? É em busca destas relações que o termo conceitual
identidade vem sendo discutido no ambiente acadêmico desde o século XVIII, alcançando
grande relevância na contemporaneidade. O discurso deve ser visto como uma forma de
coparticipação social, visto que os participantes discursivos constroem o significado ao se
envolverem e ao envolverem outros no discurso, em circunstâncias culturais, históricas e
institucionais particulares (MOITA LOPES, 2002, p.30).
O jogo de identidades está presente na sociedade, em diversas sociedades, de forma
que a depender da circunstância o indivíduo se posiciona politicamente com diferentes marcas
identitárias. Moita Lopes (2002) expõe esse fenômeno na mesma leitura de Hall (2001) como
identidades fragmentadas, onde os sujeitos são construídos discursivamente a partir de
histórias contadas na escola envolvendo os acontecimentos mutáveis da modernidade tardia.
O sujeito se constitui de uma identidade incompleta, sempre em processo. Formada
continuamente na e por meio da linguagem. É neste momento que se faz necessário o respeito
às diferenças entre os sujeitos através de seus discursos firmados em bases ideológicas
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diversificadas de acordo com as diferentes construções sociais dos indivíduos que interagem
no ambiente escolar.
negligenciado pelo Estado e aponta suas formas de manutenção dos costumes, saberes
populares e memória coletiva de uma trajetória histórica de descendentes afrobrasileiros.
A narrativa inicial do documentário é realizada pelo diretor a fim de contextualizar e
direcionar o olhar do espectador sobre a relevância dos quilombos como local de resistência,
referência da memória negra brasileira desde a era escravocrata. Além de denunciar o descaso
dos órgãos públicos quanto à legitimação desses territórios, seu tombamento e fornecimento
de recursos básicos para uma vida digna dos moradores. Serão descritos a seguir as narrativas
de mulheres de diferentes quilombos visitados pela equipe cinematográfica em 2004 no
estado da Bahia.
M M : “v g çã f ”
Descendente de uma família de catadeiras, Maria Madalena, de Nilo Peçanha –
Quilombo Jatimane - compartilha seu orgulho em ser de uma família de africanos que
mantiveram sua força para o trabalho e o contínuo do trabalho com piaçaba de ‘geração em
geração’ pelas mulheres. Desde os cinco anos de idade lida com a produção de materiais com
Piaçaba.
Os trabalhos manuais muito comum entre mulheres têm além do caráter comercial o
valor cultural e familiar de passar uma “herança” aos seus descendentes. Assim é com a
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produção nas casas de farinha, onde famílias inteiras crescem e envelhecem ensinando de pais
pra filhos o ofício de fazer farinha de mandioca, ou entre as lavadeiras que levam suas filhas
desde crianças pra lida na beira dos rios.
D :“ h f í uC z ”
Conhecida como Ana, Delci faz parte da família fundadora da comunidade de
Cinzento, em Planalto. Sua avó iniciou a população do local havendo, então, a família dos
Pinheiros e dos Pereiras. O legado que perpassa gerações inteiras no território é o histórico de
Diabetes a qual ocasiona problemas de visão com a maioria dos quilombolas no lugar: ponto
relevante devido a uma constatação médica sobre a incidência numerosa dos casos de
Diabetes na população afrodescendente. Estando essa em maior concentração no estado
baiano, os territórios quilombolas têm dados quantitativos sobre a frequência elevada da
doença. Questiona-se desse modo a ausência da Saúde Pública até a referida data (2004) com
um atendimento incisivo junto à população.
No fim de seu relato, Ana canta uma ladainha para Santa Luzia, protetora dos cegos. É
uma forma de expressar a cultura do meio, a musicalidade também é uma narrativa que neste
caso, legitima seu discurso sobre o mal que acomete à comunidade.
No continuo, é ilustrada a fala de uma senhora do território de Bananal expondo a
riqueza local: o Menengó (tipo de dança regional de origem africana). A musicalidade cantada
por mulheres negras está ligada ao Samba-de-roda, lembrando fatos passados com os negros
africanos durante a escravidão ou histórias para divertir. Dessa forma, configura-se um espaço
de socialização e diversão dentro da comunidade onde não existe delimitação de faixa etária
nem gênero (masculino e feminino) para participar da roda.
M : “b v p ”
Moradora do Quilombo Tijuaçu, em Senhor do Bonfim, D. Maria Bernardina conta
que sua família era toda de etnia nagô – também chamada por ela como sinônimo de africano.
Seus antepassados eram respeitados porque sabiam lidar com magia, eram curandeiros,
detentores de segredos ligados à energia da natureza. O poder sob as energias da natureza, sob
o desconhecido é um exemplo de estratégia algumas pessoas negras utilizavam para se
manterem vivos, respeitados perante os demais.
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Maria das Dores (Dendê – Cachoeira) e Hilda Costa (Lage dos Negros – Campo Formoso)
Maria das Dores, 70 anos, relata sobre a necessidade de assistência em infraestrutura,
educação e saúde na comunidade de Dendê. Neste momento, a câmera do cinegrafista realiza
uma passagem de Plano Geral numa escola simples mantida pelos moradores. As condições
de educação são precárias, porém prevalece a vontade de exercitar o letramento como direitos
seus enquanto cidadãos.
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Hilda Costa, 42 anos, aponta uma realidade diferenciada. Narra ser a primeira
universitária dentro da comunidade, cursando Pedagogia, sexto período. Sua escolha está
voltada para os objetivos locais porque pretende, ao concluir o curso, retornar à comunidade
para aplicar seus conhecimentos da área, além de incentivar e fortalecer a educação escolar no
quilombo. Há um desejo de desenvolver capacidades e valores artísticos, consciência política
e uma organização de coletividade maior dentro do seu território através da educação formal,
científica.
Como ainda é escassa a presença de universidades ou Instituições de Ensino Superior
na adjacência, quilombolas como Hilda almejam adaptar o conhecimento comunitário que
têm com o método acadêmico legitimado pela elite brasileira. É uma estratégia que começa a
ser comum por parte de remanescentes de quilombo visando à preservação da memória local e
dos seus antepassados. Também se caracteriza como um elo entre a linguagem escrita e a
linguagem oral não assumindo a forma de “apagamento da tradição”, mas sim, registro e
manutenção da mesma.
Jardelina da Cruz (Capim da Raiz) e Izabel Pereira (Junco): o mundo está mudado
D. Jardelina da Cruz, 70 anos, relembra a existência de terras de engenho até a década
de 60, mas que depois dessa data foram destruídas acabando-se as produções de cana-de-
açúcar, elemento este que foi significativo na formação de territórios quilombolas no entorno
dos engenhos e Casa Grande. De outra maneira, este discurso também é registrado pelo
pesquisador Nei Lopes (2008) que faz a seguinte referência ao trabalho nos engenhos de cana:
Em 1550 desembarcam em Salvador, Bahia, os primeiros escravos
destinados ao trabalho nos engenhos de cana no nordeste. E com o
desenvolvimento da lavoura açucareira a partir da década de 70 desse
século, o nordeste passa a receber cada vez mais escravos, oriundos
principalmente do Reino do Congo, do Dongo e de Benguela.
(LOPES, 2008, p. 159)
O rio que abastecia o local secou a partir da década de 80 e, assim, a seca passou a
dividir morada com os quilombolas de Juazeiro e com ela, a fome. Outras comunidades
também são atingidas pela seca e vivem sob a precariedade do recebimento de água através de
carros-pipa.
Sobre as transformações ocorridas a partir do novo milênio, D. Izabel Pereira de 95
anos questiona a alteração dos hábitos, o desinteresse pelos costumes dos mais velhos, a falta
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Considerações finais
As mulheres quilombolas das comunidades exemplificadas simbolizam as demais
mulheres nordestinas e/ou brasileiras, contadoras de histórias que representam a resistência do
saber popular descendente dos povos africanos habitados no país a partir do século XVI. A
manutenção da cultura e alegorias sociais de diferentes origens étnicas é, de certa maneira,
preservada de outra forma: com a presença do audiovisual. Este registra, interpreta e socializa
a memória de um povo baseado na oralidade como meio de comunicação e salvaguarda de sua
história. Logo, a tradição oral faz parte da vivência de todo indivíduo negro no Brasil, da
cultura nesse país construída e nas identidades regionais que consideram a pessoa negra
africana como protagonista no processo formador da nação brasileira.
Segundo Florentina Souza e Maria Nazaré Lima fortalecem a significância do
contador de histórias na tradição oral como alguém que inicia a vida de outro alguém, aponta
a estrutura fundante do sujeito para que o mesmo transmita esses conhecimentos de seu povo
aos descendentes tornando o aprendizado coletivo e interativo:
O contador de história, nessa tradição, é um mestre, um iniciador da
criança, do jovem e até do adulto. Trata-se de uma iniciação para a
vida. As histórias míticas são contadas e recontadas e funcionam
como mapas que encaminham os sujeitos nas suas possibilidades de
convivência, sem prescrever conselhos, fazendo valer o arbítrio e o
jeito de ser de cada um. Ou seja, os conhecimentos produzidos nessas
culturas e seu aprendizado sempre podem favorecer a convivência ou
uma utilização prática. (SOUZA; LIMA, 2006, p.79-80).
É por meio da oralidade, da voz da (o) narradora (o) que a palavra ganha vida, a
História é incorporada à dinâmica de vida dos indivíduos e os mitos junto aos rituais são
transmitidos por gerações garantindo a “revivência” de elementos culturais locais e globais.
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REFERÊNCIAS
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Aplicada no Brasil. In: FREIRE, Maximina; ABRAHÃO, Maria Helena Vieira; BARCELOS,
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SOUZA, Florentina; LIMA, Maria Nazaré (Orgs.). Literatura afro-brasileira . Salvador:
Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006.
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Resumo: A presente comunicação pretende mostrar a importância do uso dos gêneros orais
nas salas de Educação Infantil. Resulta da observação e intervenção em uma sala de Educação
Infantil da rede pública do município de Feira de Santana, atividade acadêmica solicitada pela
disciplina “Fundamentos e ensino da leitura, escrita e produção de textos”. Ao passo que a
observação acontecia e aplicávamos o projeto de intervenção, pudemos observar a
importância da oralidade para o desenvolvimento das práticas sociais no processo de
alfabetização. A contação de histórias durante as aulas, principalmente o trabalho com contos,
podem favorecer as relações existentes entre a oralidade e a aquisição da prática social da
leitura e da escrita por crianças.
INTRODUÇÃO
“Compete ao homem, ser lingüístico, nomear as coisas”. Com essa afirmação de
Regina Zilberman no texto Memória entre oralidade e escrita, iniciamos nossa apresentação.
Sob diversos pontos de vista (o de Regina Zilberman ao referir-se a Walter Benjamin,
por exemplo), compreendemos que o conto, mesmo em sua forma escrita, mantém, digamos
assim, os laços subjetivos entre a memória e os processos de aquisição de conhecimentos.
Afirma-nos a pesquisadora que: A oralidade é o modo mais notório da relação entre o nome e
a coisa, mas a escrita, originalmente, não tem como objetivo romper essa unidade.
Como lembra-nos, referindo-se também a Paul Zumthor, a oralidade é uma abstração,
“pois somente a voz é concreta”. A pesquisadora opta inclusive pelo termo vocalidade.
Considerando essas ponderações, e apesar da propriedade delas, foi a partir da
concepção mais divulgada de oralidade que construímos a nossa experiência. Considerando
também que tão concreta quanto a voz, a escrita de certo modo deposita a memória em um
registro (com todos os seus perigos e soluções).
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A escola, pensamos nós, ainda tenta lidar com esses sintomas e desafios. A nossa
experiência, no fundo, é mais uma pequena tentativa de reativar nossas memórias,
reaprendendo a lidar com a escrita e a contação de histórias enquanto suportes.
Os gêneros orais são importantes para o desenvolvimento da leitura e da escrita
enquanto práticas sociais, principalmente na educação infantil, fase em que as crianças
baseiam sua aprendizagem na oralidade e nos aspectos visuais. Assim, o trabalho com contos
pode favorecer as relações existentes entre a oralidade e a aquisição da prática social da
leitura e da escrita por crianças.
O primeiro passo para o trabalho com gêneros orais é a seleção daqueles que
especificamente poderão ser utilizados. Escolhido o gênero oral a ser trabalhado, o professor
deve proceder tal e qual no momento que organiza sua aula, identificando todos os elementos
estáveis que determinam a ocorrência do gênero, refletindo sobre esses elementos e
analisando-os com os alunos. Ao levantar esses elementos com os alunos, reforçando os
aspectos de oralidade sem esquecer o apoio na escrita, eles tomarão consciência da situação
em que se envolverão e terão melhores resultados no uso dos gêneros orais como valiosos
instrumentos para a prática social da língua.
Nesta perspectiva a presente comunicação é fruto de um trabalho realizado com o
gênero textual conto. Através da contação de histórias (contos) trabalhamos as relações
existentes entre oralidade e escrita. O conto foi escolhido por ser um tipo textual que se
caracteriza por ser uma narrativa curta, em prosa, que se mostra eficaz em reduzido número
de páginas ou mesmo linhas, facilitando a aprendizagem, que, na infância, é basicamente
visual e oral, como já dito anteriormente.
O trabalho com os aprendizes da Educação Infantil deve estar pautado na ludicidade.
A literatura infantil possibilita a esses sujeitos a ordenação das experiências existenciais. De
acordo com Aguiar (2001),
[...] a literatura infantil, a exemplo de outras modalidades de arte, lida
com a compreensão do real e pode conceder ao pequeno leitor a
possibilidade de desdobramento de suas capacidades afetivas e
intelectuais, desde que bem-adaptada às condições da criança.
(AGUIAR, 2001 p. 77)
Deste modo o conto pode favorecer o desenvolvimento cognitivo das crianças, visto
que partindo desse tipo de leitura outros aspectos são explorados de modo a enriquecer o
universo infantil. Durante o trabalho com estes outros aspectos advindos da leitura é que os
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professores estão trabalhando leitura e letramento com seus educandos. Portanto, diversas
leituras de mundo e novos conhecimentos surgem durante a exploração da história contada.
Pautadas nesta discussão é que construímos o projeto de intervenção, intitulado o
conto como instrumento para o auxilio na aquisição da prática social de leitura e de
escrita na educação infantil do qual resulta este artigo. Considerando, enfim, que fazem
parte do trabalho de alfabetização a valorização da oralidade e o letramento, tal projeto foi
aplicado em uma Sala de Educação Infantil grupo 05 de uma escola da rede municipal,
localizada em Feira de Santana, Bahia. Foi parte de uma pesquisa de campo solicitada pela
disciplina “Fundamentos e ensino da leitura, escrita e produção de textos”.
A contação de histórias durante esta atividade nos permitiu a confirmação da importância
da oralidade para o desenvolvimento das práticas sociais de leitura e escrita no processo de
alfabetização.
tem sido vinculada à escolarização da criança. E se a escola não tiver um olhar atento pode
muitas vezes não consegue o objetivo de fazer com que a criança adquira a linguagem escrita.
A aquisição da linguagem oral pela criança ocorre de forma não sistemática.
Entretanto, existem situações em que a criança pode refletir sobre a linguagem; como
exemplo temos: as situações em que alguém as corrige (dependendo dos moldes da correção).
São momentos em que, de certa forma, a criança está elaborando uma reflexão
metalinguística, pois confronta suas hipóteses com a nova informação que lhe é passada.
Na linguagem escrita, por outro lado, predomina a aprendizagem sistemática, porém
não existe o impedimento de que a criança enquanto sujeito ativo na construção do
conhecimento incorpore elementos do seu ambiente sócio-cultural. Segundo Cardoso (2000) é
assim que as crianças aprendem determinadas características da escrita, sem um método
sistemático e sem que alguém lhe ensine. Pode-se afirmar que linguagem oral e escrita
possuem relação com o social.
A linguagem escrita, enquanto atividade fundada e incorporada em
processos dialógicos, envolve em sua produção, todo um movimento
determinado pelas experiências da criança em “registrar sua fala”, nas
quais desempenham papel importante os interlocutores e as condições
de produção. Assim, o processo de produzir um texto não se encerra no
produto que fica visível. Ao contrário, a situação que desencadeia a
atividade influencia e prefigura o texto, na medida em que estabelece
contornos, tais como o objetivo da tarefa e o destinatário do texto.
(CARDOSO, 2000, p. 135)
Assim, trabalhar com leitura e escrita na Educação Infantil tem um sentido muito mais
amplo, não é a mera transferência do sistema fonológico para o sistema ortográfico. É preciso
tornar os sujeitos aptos a produzir textos variados, de acordo com as exigências do contexto.
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Nos estudos sobre alfabetização Soares (2010) traz que “alfabetização é a ação e
alfabetizar, de tornar alfabeto”, ou seja, é tornar o sujeito capaz de ler e escrever. E as leituras
de Coelho (1991) possibilitam acrescentar que tal ação de tornar o sujeito capaz de ler e
escrever pressupõem intrínsecas relações entre oralidade e escrita. Trata-se fundamentalmente
de processo em que a língua escrita torna-se uma habilidade que se acrescenta as formas de
comunicação da criança, formas esta que o professor deve buscar sempre ampliar.
O fato de a criança sair de um mundo predominantemente oral evoca muitos outros
aspectos além da simples decodificação. A criança passa a pensar processos que envolvem
oralidade, escrita e suas implicações. O professor deve ai aproveitar a história contada e
provocar reflexões e novas aprendizagens, de forma a alfabetizar as crianças na perspectiva
do letramento, onde escrita, leitura e oralidade vão ter uma função social, não serão apenas
meras decodificações de signos.
METODOLOGIA
Este trabalho está baseado em uma metodologia empírica, uma vez que é embasado
numa discussão teórica a qual analisa o estudo das ações sociais, individuais e grupais no que
tange relações entre oralidade e escrita. E a partir de tal perspectiva ações foram
desenvolvidas para as crianças do grupo 05, da Educação Infantil, com foco na oralidade,
leitura e escrita.
O objetivo do trabalho realizado era Ampliar o repertório de contos conhecidos pela
turma e utilizar a linguagem oral, adequando-a a uma situação comunicativa formal. Assim
utilizamos reconto e reescrita de contos para trabalhar com os alunos. Aproximando cada vez
mais a relação entre oralidade e escrita. Dessa forma as seguintes atividades foram realizadas:
1° dia – Explicou-se o que é conto; fez-se a leitura do conto Porque a galinha
’ g p b ? de Rogério Andrade Barbosa; o texto trabalhado foi levado
copiado em papel metro; e foi perguntado as crianças sobre as palavras desconhecidas do
conto. Assim, neste primeiro dia foi pretendido explorar o conto oralmente e as palavras
desconhecidas.
2° dia – Dividiu-se as crianças em grupo e foi pedido que elas contassem um conto
para explorar o mesmo; desta forma cada conto dos grupos foi escrito em papel metro para
que as crianças tivessem acesso a leitura do outro.
3° dia -Retornar a leitura que eles contaram no dia anterior e fazer desenhos ou grafias
que ilustrem tais contos.
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RESULTADOS
No primeiro dia, ao apresentarmos o conto “Por que as galinhas d’angola tem pintas
brancas?” de Rogério de Andrade Barbosa. Percebemos que as crianças ficaram inquietas,
mas ao mesmo tempo admiradas ao ver a capa do livro. Perguntamos se alguém já tinha visto
ou escutado a historia e todos em coro disseram que não. A contação ganhou um caráter mais
dinâmico, quando questionávamos as crianças sobre os possíveis porquês das pintas da
galinha. Chegado o final da contação, trabalhamos com o conto que estava escrito em uma
folha de papel metro, onde identificamos e destacamos com as crianças algumas palavras
diferentes e a colocamos no mural.
No segundo dia, brincamos com a oralidade e a imaginação das crianças que foram
divididas em grupo. Pedimos que elas contassem alguma historinha e, a cada historia contada,
percebemos que muitas crianças tinham outras versões para o Chapeuzinho Vermelho,
Cinderela e os Três porquinhos e o que nos chamou atenção foi que muitas começavam a
contar a história com personagem da outra, mas seus colegas intervinham, diziam que estava
errado e dava continuidade à história.
Retomamos as histórias contadas no dia anterior e pedimos para que as crianças
ilustrassem as mesmas com a construção de desenhos que seriam colocados em painel que
seria construído no ultimo dia. Os resultados obtidos nesses dias revelaram que as histórias
contadas para as crianças são internalizadas pelas mesmas e colabora na construção de
valores.
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Decidimos então no quarto dia levar um novo conto “Porque o porco tem focinho
curto?” de Rogério de Andrade Barbosa, para que pudéssemos contribuir com o
enriquecimento do repertório literário das crianças. Com a contação da história, percebemos
que as crianças fizeram ligações com o conto trabalhado anteriormente, já que muitas diziam
“olha agora é a do porquinho”, demonstrando que perceberam as semelhanças existentes
entres os personagens principais, que ambos pertenciam ao reino animal.
No quinto e último momento, trabalhamos o reconto do conto, no qual as crianças
eram instigadas a falarem sobre a história que tinha escutado anteriormente. Decidimos então,
finalizar as atividades com a construção de um painel utilizando os desenhos e textos que
tinham sido construídos anteriormente e a colagem de imagens dos contos trabalhados nestes
dias, demonstrando que com estas atividades despertamos, mesmo que de modo imparcial, o
gosto pela leitura, seja ela das palavras ou das imagens, e também o gosto de ouvir histórias.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Fica notório assim que o trabalho com histórias suscita o imaginário infantil, responde
indagações, enriquece o vocabulário, favorece a reflexão crítica, auxilia na leitura e na escrita,
propicia o respeito aos turnos de fala e o conhecimento de aspectos da própria cultura
possibilitando, também, a interação social.
Essa experiência nos proporcionou perceber como o trabalho com narrativas, fundadas
na oralidade ou a ela relacionadas, por tradição ou na contação de histórias, reativa a
memória, recuperando a competência fundamental do ser humano que, em sendo lingüístico,
nomeia e instaura a sua realidade. Acreditamos que esse movimento de reaproximação com o
contar e o ouvir histórias favorece os processos de aquisição de conhecimentos.
A escola talvez nunca venha a compensar a grande falta ou distância que a sociedade,
da forma como foi estruturada, suscitou em nossas subjetividades. Mas despertar a criança
para hábitos ou atividades antes tão comuns talvez possa ao menos possibilitar o reencontro
desses sujeitos com algo tão presente e paradoxalmente tão ausente: a nossa própria memória.
REFERÊNCIAS
AGUIAR, Vera Teixeira de [et al.]. Era uma vez na escola: formando educadores para
formar leitores. Belo Horizonte: Formato editorial, 2001.
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BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: _____.
Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985.
COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Ática,
1991.
SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. 4 ed. – Belo Horizonte: Autêntica,
2010.
ZILBERMAN, Regina. Memória entre oralidade e escrita. In: Letras de Hoje. Porto Alegre,
v. 41, n. 3, p. 117-132, setembro, 2006
“ ”: V J X
CORDÉIS A MULHER QUE ENGANOU O DIABO E PELEJA DE MANOEL RIACHÃO
10
COM O DIABO
Resumo: Neste artigo, discutem-se as imagens do Diabo presentes nos cordéis A mulher que
enganou o Diabo, de Manoel D’almeida Filho, e Peleja de Manoel Riachão com o Diabo, de
Leandro Gomes de Barros, buscando entender como esse personagem é representado nos
cordéis supracitados. A imagem do Diabo, em contato com o solo da cultura popular
nordestina, ganha novas interpretações e narrativas que demonstram a coragem e a resistência
do povo nordestino frente às adversidades rotineiras da vida. Para tanto, utilizam-se, como
aporte teórico, Nogueira (1986), Pontes (1979), Góis (2004), Albuquerque Jr (1999), dentre
outros. Tais análises demonstraram que os preceitos cristãos estão bastante enraizados no
cotidiano nordestino e que as características presentes na composição da imagem do Diabo
cristão se misturam com as peculiaridades da religiosidade popular sertaneja, o que possibilita
a construção da figura do Demônio nas mais diversas narrativas.
10
Trabalho apresentado ao XIII Seminário Interdisciplinar de Pesquisa do VI Semestre noturno do
curso de Licenciatura em Letras: Habilitação Língua Portuguesa e Literaturas da Língua Portuguesa da
Universidade do Estado da Bahia - UNEB- Campus XXIV, orientado pelo Prof. Ms. João Evangelista
do Nascimento Neto.
11
Graduando do curso de Letras vernáculas da Universidade do Estado da Bahia UNEB, Campus
Professor Gedival de Sousa
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A primeira desobediência dos homens para com Deus desencadeia as mais diversas
ramificações do pecado na terra, e acaba por reforçar a imagem do Diabo como a entidade de
maior representação do mal. Com isso, torna-se perceptível que o cristianismo foi e é o
12
Manuel d´Almeida Filho nasceu em 1914, no município de Alagoa Grande, próximo a Campina
Grande. Escreveu romances de amor e aventuras passados no Nordeste, biografias de cangaceiros,
histórias baseadas em produções diversas da cultura de massa, bem como contos de encantamento, de
exemplo e faceciosos, alguns desses, de cunho erótico, publicados com o pseudônimo Adam Fialho.
(http://www.casaruibarbosa.gov.br).
13
Leandro Gomes de Barros, paraibano nascido em 19/11/1865. Foi um dos poucos poetas populares a
viver unicamente de suas histórias rimadas, que foram centenas. Leandro versejou sobre todos os
temas, sempre com muito senso de humor. Começou a escrever seus folhetos em 1889.
(http://www.casaruibarbosa.gov.br).
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principal disseminador da imagem satânica que se ramifica nas mais diversas crenças.
Ao entrar em contato com o solo da cultura popular nordestina, a imagem maléfica do
Diabo acaba ganhando novas interpretações. Nos versos de cordel, o Demônio ganha ares de
personagem do humor e do entretenimento dos seus leitores. Nessa perspectiva, o Diabo passa
a transitar por espaços diferentes dos que os dogmas cristãos catalisam, ganhando novas
características e novas histórias.
No cordel de Manoel D’almeida Filho, percebe-se que no Nordeste é comum a
pronúncia do nome do Diabo e de outros xingamentos quando o nordestino vê-se em uma
situação desagradável ou até em momentos comuns:
Apesar de ser bonita
Casou com um preguiçoso
Que, além de não trabalhar,
Chamava pelo tinhoso14...
Maria todos os dias
Reclamava do esposo: (D’ALMEIDA FILHO, 1986, p. 4)
14
Grifo nosso.
15
Nomeações populares da imagem do Diabo, disponível em: http://cubano.ws/info-atual/diabo.
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16
Grifo nosso.
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Essas semelhanças encontram-se mais presentes em animais que causam medo nas
pessoas. Além de assemelhar-se à crença popular nordestina que narra a possibilidade de o
Diabo transformar-se em um bode e outros animais, características presentes nessas capas.
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Essa imagem maléfica criada pelos preceitos cristãos a fim de convencer seus adeptos
a seguirem incessantes seus ensinamentos, em solo popular, acaba que sucumbindo às
narrativas de cordel. Na obra de Manoel D’almeida Filho, o Diabo perde essas nomenclatura
e reinventa-se pela coragem dos personagens nordestinos.
Nas suas estrofes, a mulher movida pela coragem propõe-se a enfrentar o Demônio e,
para ela, não há necessidade de poderes equivalentes aos dele, e sim a força que a palavra
exerce sobre as pessoas, sendo tão poderosa a ponto de fazer o diabo ser vencido pelos
humanos:
E digo mais – fique certo –
Com a fé que tenho em Deus,
Se o Diabo vier aqui
Com os falsos planos seus,
Há de perder o trabalho
Para os argumentos meus. (D’ALMEIDA FILHO,1986, p. 6)
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Esses versos pincelam o nordestino como um indivíduo religioso que atribui todas as
suas façanhas ao poder de Deus. O personagem Manoel Riachão caracteriza as faces de um
povo que, mesmo sofrendo as adversidades enfrentadas em seu cotidiano, mostra-se
batalhador e profundamente cristão, depositando sua confiança em Deus.
Nos cordéis analisados, a presença do Demônio dá-se de maneira a mostrar a astúcia
do nordestino que, em condições diferentes, demonstra-se capaz de improvisos que lhes
colocam em vantagem em situações críticas. Nessa conjuntura, colocar o Diabo em solo
nordestino contribui para afirmar o Nordeste como um lugar onde o sofrimento e a seca são
tão presentes que se pode assemelhar tais características às crenças de Inferno.
Tais obras desenham a criatividade de um povo que em meio à seca e à fome que
castigam essa região conservam-se dispostos a procurar formas de divertir-se até mesmo
contra as peripécias do “capeta”. A narrativa do cordel A mulher que enganou o Diabo mostra
que, além de ser forte e sagaz, o nordestino também é preocupado com o seu semelhante.
A personagem principal engana o Diabo e o faz construir uma cidade para abrigar os
mais necessitados, aproveitando-se assim de poderes malévolos do Demônio para causas
benéficas:
Quero que vá procurar
Pessoas necessitadas,
Pobres, famintas, sofridas,
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REFERÊNCIAS
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BÍBLIA SAGRADA. Tradução de Ivo Stomiolo e Euclides Martins Balacin. São Paulo:
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D’ALMEIDA FILHO, Manoel. A mulher que Enganou o Diabo. São Paulo: Luzeiro. 1986.
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NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O Diabo no Imaginário Cristão. São Paulo: Ática, 1986.
PONTES, Mario. Doce como o Diabo: O Demônio na Literatura de Cordel. Rio de Janeiro:
Codecri, 1979.
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Universidade do Estado da Bahia - 31 de agosto a 2 de setembro de 2011 - ISBN:978-85-7846-134-8
Ceres Vittori
Universidade Estadual de Londrina
ceresvittori@gmail.com
Como ponto de partida é preciso analisar as obras de Klauss Vianna e Antonin Artaud
à luz destas novas perspectivas em teatro, no intuito de auxiliar a compreensão e
contextualização de seus paradigmas.
A pesquisa que dá fundamento a este artigo compõe-se de uma reflexão sobre a
palavra escrita e a dramaturgia do corpo sonoro no processo de criação de uma performance.
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Entende-se aqui que uma palavra não começa sendo uma palavra – “é o produto final iniciado
a partir de um impulso, estimulado por atitude e comportamento, por sua vez ditados pela
necessidade de expressão” (BROOK, 1970, p.5). A palavra que se sente e que é percebida
como um movimento, como uma “vocalidade não domada, que carrega sua presença no
mundo” (ZUMTHOR, in MENEZES, 1992, p.100).
Essa presença, ainda conforme Zumthor é a do indivíduo corporalmente vivo
repensado a partir de sua relação física e sensorial com o ambiente em que vive. É o corpo do
performer como produtor de poesia e de seus significados. Neste projeto o conceito de
performance é discutido como articulação estética da poesia viva do corpo sonoro.
Entendendo criação pela perspectiva do movimento e da voz, a pesquisa fomenta a ideia de
corpo sonoro como linguagem poética, principiada no estudo das ressonâncias, que seriam os
impulsos corporais geradores de ações vocais. (ALEIXO, 2002). Com isso, o exercício vocal
com palavras e textos ganha uma dimensão sensível de sonoridades corporais, corpo tal,
imprescindível à criação da performance.
Na tentativa de alavancar algumas hipóteses de trabalho que permitam a discussão,
análise e reflexão pretendidas aqui, a pesquisa abordará a obra de Antonin Artaud, e, mais
objetivamente os conceitos de dramaturgia do corpo e de poesia no espaço propostos pelo
autor. O escopo do projeto é o estudo da peça radiofônica “ b V z Juíz
D u ”, a partir da qual se pretende criar uma via de mão dupla entre a palavra escrita e a
poesia sonora.
Serão incluídas também as cartas escritas por Artaud, relativas à proibição de sua obra,
e o dossiê da peça radiofônica, no qual ele descreve como devem ser as características sonoras
da transmissão. Analisar a peça radiofônica a partir das relações vivas de dependência entre
palavra escrita e a poética oral é objetivo geral do trabalho. Para tal discussão, a análise da
peça radiofônica será orientada pela perspectiva de Paul Zumthor sobre a oralidade e os
aspectos comparativos entre a letra e a voz propostos pelo autor.
Em termos aplicativos o projeto visa possibilidades de transcriação de textos de
Artaud pela via da ampliação de conhecimento dos princípios específicos da dramaturgia do
corpo. A “performance da oralidade teatral”, conforme designação de Marlene Fortuna (2000)
parece termo adequado pra identificar o viés performático que caracteriza o trabalho. A
pesquisa levanta a hipótese de que é possível que a performance leve à percepção plena de um
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texto literário, dado que entre a performance e a leitura solitária e silenciosa há, em vez de
corte, uma adaptação progressiva. (ZUMTHOR, 2007)
Apresentar os autores que dão referência ao objeto desse estudo se faz necessário, com
vistas a situar suas principais aproximações e distanciamentos, contextualizando-os. É
importante ressaltar o caráter contestador de ambos, assim como o viés paradigmático
presente aos seus trabalhos. A poesia viva desses autores que se debruçam sobre a arquitetura
do artista é atemporal e garante a relevância de estudos como os que se apresentam no artigo.
Antonin Artaud (1986 – 1948) nasceu em Marselha, no dia 4 de setembro de 1896, e
faleceu em Paris, no dia 4 de março de 1948. Foi poeta, ator, roteirista e diretor de teatro
francês. Em Rodez, além de suas cartas (lettres au docteur Ferdière) ele elabora uma prática
vocal, apurada dia a dia, associada a manifestações mágicas. Em 1937, Antonin Artaud é tido
como louco. Internado em vários manicômios franceses, cujos tratamentos são hoje
duvidosos, foi transferido para o hospital psiquiátrico de Rodez, onde permaneceu ainda três
anos. Artaud voltou a Paris em 1946, onde, dois anos depois, foi encontrado morto em seu
quarto no hospício do bairro de Ivry-sur-Seine. Neste período, além de uma importante
produção literária ele desenhou, preparou conferências e realizou a emissão radiofônica Para
acabar com o juízo de Deus (Pour en finir avec le jugement de dieu), na qual sua vontade
expressiva se alia a um formalismo cuidadoso (TOLENTINO, s/d).
Klauss Vianna (1928-1992) foi bailarino, criador de uma técnica de princípios e
domínio do movimento. Apesar de seguir sistemas de regras e códigos da dança, sua técnica
transcende a arte para ser entendida como um caminho de autoconhecimento para a expressão
do homem no mundo. Nascido em Belo Horizonte, estudou dança e desde pequeno se
interessou pelo teatro. Dedicou quarenta anos de sua vida para a pesquisa e o ensino do
movimento corporal, contribuindo para a evolução da dança e do teatro no Brasil. Estudou e
trabalhou em Belo Horizonte, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e por onde passou
revolucionou a técnica e a linguagem da dança no Brasil.
Coreografou, entre outros, espetáculos como Roda Viva, Hoje é dia de Rock, Mão na
Luva, Clara Crocodilo, Dadá Corpo, Bolero e foi preparador corporal de grandes nomes do
teatro brasileiro tais como Marília Pêra e Marco Nanini. Dirigiu a Escola Oficial de Teatro
Martins Penna, no Rio de Janeiro, o Instituto Estadual das Escolas de Arte (INEARTE) e a
Escola de Bailados do Teatro Municipal de São Paulo. Recebeu vários prêmios, dentre eles o
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do gesto, compondo uma relação íntima com o ritmo, o espaço, o desenho das emoções, das
sensações e das intenções.
A associação entre as considerações de Zumthor e Vianna fomenta a ideia de corpo-
sonoro (ALEIXO, 2002), pela via do estudo das ressonâncias, os impulsos corporais
geradores de ações vocais. Com isso, o exercício vocal com palavras e textos ganha uma
dimensão sensível de sonoridades corporais. Artaud afirma em uma das cartas ao sr. René
Guilly, sobre a emissão da peça radiofônica, que “esta emissão era a busca de uma linguagem
que qualquer padeiro ou merceeiro teria compreendido, que pela via da emissão corporal
trazia em si as mais elevadas verdades metafísicas” (ARTAUD, 1975, p.86).
Quanto à referência às sonoridades corporais, Peter Brook (1970) apresenta, tomando
como exemplo a produção de Shakespeare, a seguinte afirmação: “As palavras de
Shakespeare são documentação das palavras que ele queria que fossem faladas, palavras
destinadas a sair em forma de sons, dos lábios de gente viva, com um tanto de entonação, de
pausa, de ritmo e gesto que deviam fazer parte integrante de significado verbal. Uma palavra
não começa sendo uma palavra - é o produto final iniciado a partir de um impulso, estimulado
por atitude e comportamento, por sua vez ditados pela necessidade de expressão”. (BROOK,
1970, p. 5). Tal exemplo se aplica com igual propriedade à peça radiofônica e aos documentos
relativos à sua transmissão. Artaud documenta em palavras escritas aquilo que ele queria
como voz, como poesia sonora.
Em Artaud, encontramos este novo sentido da palavra. Para ele, o teatro é considerado
como sinônimo de “poesia em ação”, poesia realizada, aplicada. É poesia pelo teatro. Ela é a
consagração da revolta. É anarquia. Trata-se de uma forma de expressão espacial, concreta.
Artaud enfatiza a materialidade dessa nova linguagem, sua exterioridade física, sólida,
sensível, efetiva. Não o texto dialogado que se dirige ao intelecto, mas uma expressão
concreta que se dirija ao corpo, à sensibilidade. Não letra imóvel dos livros, mas livres ações
na vida (ARTAUD, 2006).
“Quem sou eu?
De onde venho?
Sou Antonin Artaud e mal digo isto
como só eu o sei dizer
imediatamente vereis o meu corpo actual
voar em estilhas
e refazer sob dez mil formas
um corpo novo
no qual jamais
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para o teatro. Pavis corrobora tal intenção ao discutir como “texto e cena são percebidos ao
mesmo tempo e lugar, sem que seja possível declarar que um seja anterior à outra.” (PAVIS,
1998, p. 94) (tradução nossa).
O corpo humano, conforme já citado em Vianna (1990, p.88), é a expressão de seus
impulsos interiores em seus movimentos. Expressão num determinado movimento dos
recursos e da história deste corpo e não a repetição desatenta. (NEVES, 2008, p.39). A relação
de sentido é potencializada no campo das experiências do indivíduo, não somente no campo
semântico de interpretações.
Sua experiência nos incita a buscar questões para além do nível técnico, ampliando
novas possibilidades criativas de movimento, sem perder de vista as necessidades de cada
novo ser que se propõe a perceber e compreender os processos evolutivos da “dança que está
em cada um de nós”, segundo fala do próprio Klauss. A individualidade contida nos conceitos
da técnica faz com que cada intérprete possa registrá-la em seu corpo na forma de movimento
expressivo, sendo essa dança, o próprio ser que a executa. A própria palavra viva da qual fala
Zumthor.
Assim como, para a psicanálise, o sujeito é um sujeito "esburacado", intermitente, com
"responsabilidade limitada", também o ator contemporâneo já não é encarregado de mimar
um indivíduo inalienável; já não é um simulador, mas um estimulador, ele "performa" suas
insuficiências, as suas ausências, a sua multiplicidade. Também já não é obrigado a
representar uma personagem ou uma ação de maneira global e mimética, como uma réplica da
realidade. Ele sugere a realidade por uma série de convenções que serão percebidas e
identificadas pelo espectador (PAVIS, 2010).
Por sua vez, a partir de suas observações e estudos sobre o corpo, Vianna desenvolveu
justamente uma técnica que busca aprofundar a consciência do corpo e do movimento em
função de ampliar as possibilidades de movimento e expressão. O intuito dessa consciência
corporal é a sensibilização de cada parte do mapa corporal, estimulando a propriocepção. A
percepção pela pessoa do seu próprio movimento amplia sua sensibilidade proprioceptiva. As
informações recolhidas pelos órgãos dos sentidos atuam sobre as atitudes, os movimentos que
permitem a postura, o ajustamento dos atos e ao que mais importa ao ator: a cinestesia –
sensação e percepção do movimento. Aí se localiza a dramaturgia do corpo. “Fazei enfim
dançar a anatomia humana”. (ARTAUD, 1975, p.55)
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Klauss pretendia a busca de bases reais, apoios no corpo e no espaço, que se projetam
no nível emocional tanto quanto no físico. Dizia, em aulas, que não se pode dançar se não se
tem um corpo. Roach apresenta uma hipótese de funcionamento acerca da performance
contemporânea que amplia a relevância do trabalho corporal na cena. Ele apresenta a
cinestesia como a nova mimesis: “o movimento expressivo está se transformando em uma
língua franca, na base de uma cognição afetiva e uma empatia corporal, só recentemente
experimentada. Mimesis, enraizada no drama, imita a ação; cinestesia a incorpora”. (ROACH,
2010). (tradução nossa).
Os autores de referência nesse artigo legitimam a ideia anterior, ocupando-se de uma
linguagem concreta, na qual a cena é um lugar físico e concreto que pede para ser preenchida
por objetos materiais, entre eles, e, principalmente, o ator. Ao falar de Vianna, observa-se que
sua técnica de consciência de movimento se propõe a ser utilizada para descobrir uma dança
“que já está na pessoa” (VIANNA, 1990). Percebe-se em suas palavras um entendimento de
que o corpo não produz nenhum instrumento senão suas próprias possibilidades de
movimentação e significação nesta mesma movimentação.
Seu trabalho é engendrado a partir da percepção das individualidades, com o posterior
enfrentamento de limites pessoais que, ao invés de se transformarem em impedimentos,
passam a construir subsídios importantes para a construção de uma imagem corporal real. Um
corpo vivo, pois o espaço cênico é lugar de ações e sentidos, que só acontecem na relação
ator/espectador, mas que, assim como na vida, permanecem na memoria daqueles que
compartiram do evento.
Quando se trata da percepção de individualidades e do enfrentamento de limites isso
se refere profundamente a um ser global que se espelha em seu corpo para conhecer-se e
trabalhar com sua autoimagem e autoestima na busca do desenvolvimento dos processos
cognitivos no corpo. Essa proposição define um corpo liberto e, ao mesmo tempo, consciente
de suas capacidades significativas.
Vianna enfatiza que em cada parte de nosso corpo existe uma tensão que guarda uma
memória, chamada de memória muscular. Para Artaud, essa memória corporal é chamada de
Musculatura Afetiva, que corresponde a “localizações físicas dos sentimentos”. (ARTAUD,
2006, p. 151). Em Artaud, descobrimos a importância de se tomar consciência das
localizações do pensamento afetivo. O ator é um ser sensível, capaz de abrir seus canais de
percepção.
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que interpreta. “Não ao espetáculo representação, de uma noite para a outra uma peça tem de
se mexer”. (ARTAUD, 1975, p.102)
Artaud convida a um retorno às fontes da linguagem, a abandonar o aspecto discursivo
da palavra e recuperar seu sentido físico e afetivo. Na peça radiofônica, ele decompõe as
palavras, transportando-as a um novo patamar: o do corpo sonoro, a palavra que se sente, que
é percebida como um movimento. (TOLENTINO, S/D.) Esse é exatamente o ponto de
encontro dessa pesquisa, o qual suscita a imagem de uma via de mão dupla, cuja dinâmica
está ligada ao caráter performático, característico da poética da ação cênica.
Neste sentido, a dramaturgia do ator inscreve-se numa teoria da encenação e, de modo
mais geral, da recepção teatral e da produção do sentido: o trabalho do ator sobre si mesmo,
em particular sobre as suas sensações, só tem sentido na perspectiva do olhar do outro,
portanto do espectador que deve ser capaz de ler os indícios fisicamente visíveis assumidos
pelo ator.
Em O Teatro e seu Duplo, obra na qual apresenta o conjunto de ideias que
constituíram o teatro da crueldade, Artaud defende uma linguagem que pudesse exprimir
objetivamente verdades secretas. Uma linguagem mais concreta do que aquela que fala à
esfera psicológica: mudar a finalidade da palavra, servindo-se dela em um sentido concreto e
espacial, manipulá-la como um objeto, capaz de abalar as coisas, inicialmente no ar, e em
seguida em um domínio mais misterioso. (ARTAUD, 2006).
Ambos apresentam como inseparáveis as experiências de criação e de recepção da
dramaturgia para aquele que cria. O criador é também receptor desta experiência.
(TRAGTENBERG, 2008). É partir destas experiências que se observa, tanto em Artaud como
em Vianna, vida e arte se fundirem e se alimentarem.
Exatamente por isso Klauss Vianna inicia sua técnica em sua própria vida, pois
considera que é o corpo quem conta nossa história - através dos músculos, da postura, do
modo de andar, etc. De acordo com Vianna, o “ser humano que existe no bailarino tem que
estar atento e perceber tudo lá fora. É impossível dissociar vida da sala de aula”. (VIANNA,
1990, p. 31). Muito de sua vida, suas experiências, sua visão de mundo é levado para dentro
da técnica, não há como ignorar as emoções e sentimentos na sala de aula, pois “dançar é estar
inteiro”, nas palavras do próprio Klauss Vianna. (VIANNA, 1990, p. 25).
Artaud propõe ainda uma cultura que seja inseparável da vida. A ação do homem é o
homem no conflito com o destino. Uma cultura que se constrói continuamente e que não dá
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para se encerrar e se fechar em livros sobre ela. Uma cultura em vida, em movimento, em
ação que se faz e se refaz nesse vir-a-ser que não conhece saciedade nem cansaço: “esse meu
mundo dionisíaco de eternamente criar a si mesmo, esse meu para além do bem e do mal, sem
alvo... vontade de potencia”. (ARTAUD, 2006).
Compreender que o corpo não é apenas um sistema biológico, mas também social e
cultural: esta tem sido a preocupação atual de áreas do saber que se dedicam a investigar os
fluxos informacionais intersistêmicos. O que consiste o complexo que denominamos ‘corpo’
requer a derrubada de muros e fronteiras estabelecidas. Uma vez que é entidade cultural,
portanto história, resultado de um percurso, sua essência não está na permanência, mas na
mudança. Sua natureza não é aleatoriamente mutável, mas impõe limites de flexibilidade
apenas moderada. Como meio de comunicação, sua essência consiste em produzir, veicular e
armazenar informações, gerando textos dentro dos quais se projetam, inclusive, a si próprios.
Assim, corpo é vida biológica, é texto (tecido de cultura), é gerador de códigos
comunicativos e ele próprio linguagem formadora de redes sociais e culturais nas quais se
insere. Cabe, assim, compreender o “texto” corpo, mídia primária, como intersecção de fluxos
de diversa e múltipla natureza. A entidade “corpo biológico” fornece um substrato importante,
mas não exclusivo; “corpo social” é uma expansão do corpo biológico, gerado e gerador dos
vínculos que mantém viva uma sociedade; o “corpo cultural”, aquele que a história do
imaginário humano idealiza e gera. Texto cultural por excelência. (BAITELO, 1998, pg 11).
De acordo com Artaud, ao assistir o espetáculo do Teatro de Bali, este apresentava
traços de dança, canto, pantomima, música, e muito pouco do teatro psicológico,
“recolocando o teatro em seu plano de criação autônoma e pura, sob o ângulo da alucinação e
do medo”. Os temas eram vagos, abstratos, extremamente gerais. O que lhes dava vida era o
desenvolvimento complicado de todos os artifícios cênicos, os quais impunham ao espírito
como que a ideia de uma metafísica extraída de uma nova utilização do gesto e da voz
(ARTAUD, 2006).
Artaud observou que em todos aqueles gestos, atitudes, gritos lançados ao ar, através
das evoluções e das curvas que não deixam inutilizada nenhuma porção do espaço cênico,
surgia o sentido de uma nova linguagem física baseada nos signos e não mais nas palavras
(ARTAUD, 2006).
Ao enfatizar os elementos que admirava dentro do espetáculo do teatro de Bali, Artaud
faz referência à importância da precisão na partitura das ações, mas deixa claro que essa
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exatidão não está ligada ao automatismo. Tanto quanto Klauss, Artaud entende que as
emoções têm bases orgânicas e é nestes apoios concretos que se situa a vida do teatro: “o
segredo consiste em exacerbar esses apoios como uma musculatura que se esfola. O resto se
faz com gritos”. (ARTAUD, 1984, p.170).
Klauss igualmente se propõe a perceber e compreender o processo evolutivo do corpo.
O homem consciente ocupa espaços conscientes. Você projeta o que você é. Uma pessoa
alienada projeta alienação, por isso é necessária uma imagem real do nosso corpo. Esse
processo do conhecimento das intenções e desenvolvimento da memória muscular se traduz
em tônus, o qual, frequentemente, é esquecido e/ou compensado erradamente em forma de
tensões. Klauss propõe um método de trabalho a partir das percepções dos espaços internos do
corpo, construindo uma imagem interna. Sua dança surge das oposições entre esses espaços.
Do conflito surge uma nova imagem, uma nova forma de expressão, um novo movimento.
Essa imagem tende a se tornar real em todos os sentidos, enquanto se amplia e se define a
partir do corpo e nele gera um espaço de vida, de significação.
Conhecer as razões do funcionamento do corpo é imprescindível para se descobrir as
intenções deste e distribuir equilibradamente seu tônus. Para a construção de um corpo que
busque a significação pessoal e expressividade é imprescindível a disciplina e a auto-
organização. Para tornar orgânica a fluência do gesto é necessário alcançar o domínio das
articulações e possibilidades de movimento. Domínio esse, fundamental para a expressão da
liberdade do impulso criativo. Esse processo evolutivo é individual e, portanto, permite que
seja utilizado nas mais vastas intenções do ser humano, possibilitando que aquele que utiliza a
técnica projete em seu corpo o seu desejo, como ele é concebido.
No trabalho de ator, tal nível de consciência e complexidade de movimentos vai
possibilitar ao performer a precisa expressão de suas intenções e a caracterização exclusiva.
Neste momento, é fundamental que o intérprete se veja e perceba que seu movimento não terá
vida se não vier embasado por uma técnica que alavanque o sentido, a motivação de partes do
corpo. A criação nasce do entendimento no corpo, de uma imagem corporal plena de
significados. Essa harmonia gera uma força ativa, receptiva, compreendida tanto por quem
executa como por quem assiste.
Essa provocação parece fundamental a estes estudos desde a evolução em
complexidade solicitada ao ator até os questionamentos que pode trazer à plateia, tanto quanto
a interface que se estabelece. Cúmplices, ambos os lados são atingidos por um signo que
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mobiliza tanto intérprete quanto plateia, em um único processo criativo. “Não é possível
excluir o receptor do processo de reflexão sobre a existência e os efeitos que o discurso
sonoro provoca” (TRAGTENBERG, 2008).
Parece que a noção de linguagem que pertenceria apenas ao teatro poderia confundir-
se com a noção de uma linguagem no espaço, tal qual se pode produzir no palco e oposta à
linguagem das palavras. Uma linguagem sonoro-imagética, múltipla em significados. A
linguagem do teatro é em suma a linguagem do palco, que é dinâmica e objetiva. Ela participa
de tudo aquilo que poder ser posto sobre um palco em matéria de objetos, de formas, de
atitudes, de significações. Mas à medida que todos esses elementos se organizam e, ao se
organizarem, se separam do seu sentido direto, visando criar assim uma verdadeira linguagem
baseada no signo em vez da palavra. Na representação, não na tradução literal. (ARTAUD,
1995).
A “Técnica Klauss Vianna” é um instrumento para a expressividade, não um fim,
também visando a um corpo sígnico. Está conectada com o indivíduo e com o tempo em que
se insere. Num primeiro momento, observar-se sem crítica é o início do domínio da técnica.
Isso se dá quando se abdica do controle do corpo, passando apenas à escuta do mesmo, do
parar sem se ausentar. Não é sair de si, mas entrar em contato consigo mesmo. Somente após
o contato com essa referência interna, pode-se aprender a reconhecer o movimento e
organizar melhor o discurso sobre as relações corpóreas envolvidas, em sua plenitude.
Desta forma, talvez se possa alcançar “a poesia do espaço”, conforme Artaud, quando
diz que o teatro não deve ser composto por palavras, mas sim de gestos articulados no espaço
cênico: “as palavras serão tomadas num sentido encantatório, verdadeiramente mágico – por
sua forma, suas emanações sensíveis e já não apenas por seu sentido”. (ARTAUD, 2006, p.
146).
Assim, no esvaziamento do corpo, na busca de um corpo sem órgãos, na recusa em dar
a ele uma forma prévia, na liberação da escrita de um molde fixado pela sintaxe e pela lógica,
é que se poderia formular a hipótese de um fazer poético: uma via de mão dupla entre
pensadores da arte e da vida que se ocupam de um novo corpo, com uma nova linguagem,
inscrevendo-se no espaço cênico como dono de seus movimentos e como criador de suas
ações, de sua voz e, principalmente, de seus próprios signos dramatúrgicos.
O desenvolvimento da obra de Artaud sob estes novos paradigmas permitirá alcançar
objetivos mais específicos dessa pesquisa como destacar a importância da corporeidade da
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Resumo: Praticamente desde o seu nascimento, as imagens fílmicas foram objeto de interesse
das ciências sociais. Graças à difusão das idéias positivistas no início do século XX, o registro
cinematográfico não-ficcional foi compreendido em perspectiva instrumentalista, concebido
como registro objetivo e palpável de realidades sociais (leia-se espelho fiel, evidente e
incontestável da veracidade das relações e dos fatos). Daí o advento dos primeiros acervos
etnográficos, bancos de imagens e fototecas em escala continental, com fins francamente
museológicos. Entretanto, pouco depois da metade do mesmo século, estudos franceses
descartaram a pretensa neutralidade dos aparatos tecnológicos audiovisuais, comprovando
como seu uso estava – e ainda está – diretamente ligado às concepções e critérios dos
realizadores. Esta espécie de “desmascaramento” dos recursos de gravação levantou inúmeras
questões éticas e metodológicas para os pesquisadores sociais, incluindo os que se debruçam
sobre as poéticas orais e que precisam dos equipamentos para registro de performances
individuais ou coletivas. O presente artigo reconstitui brevemente o percurso histórico da
relação entre pesquisas e meios audiovisuais, sem, no entanto, ater-se a datas precisas (até
porque as mudanças no mundo científico não são instantâneas, nem tampouco simultâneas ou
uniformemente aplicadas em países diversos), abordando tendências predominantes no século
XX até chegar ao contexto atual.
Palavras-chave: Ciências Sociais. Poéticas Orais. Meios audiovisuais.
Primeiras imagens
Tradicionalmente, a exibição de dez brevíssimas películas, a primeira delas A saída da
fábrica, dos irmãos Auguste e Louis Lumière, é considerada o marco inaugural do cinema em
todo mundo. Na verdade, o que os espectadores assistiram no estranho subterrâneo do Grand
Café, em Paris, a 28 de dezembro de 1895, foi uma sucessão de registros cotidianos, com
duração média de 40 segundos cada, que expunham momentos banais da vida de pessoas
anônimas, como o final de um expediente de trabalho ou o banho de um bebê. Fascinados,
estupefatos, muitos dos presentes fizeram menção de abandonar o lugar, por temor de que a
imagem de um trem em movimento fosse uma ameaça real de atropelamento. Estava, assim,
oficialmente lançado o cinematógrafo (SADOUL, 1963, p. 10-21).
Os Lumière, no entanto, não foram os “pais do cinema” ao pé da letra. A sétima arte é
fruto de anos de experimentos desenvolvidos em países diversos, alguns muito similares aos
dos irmãos franceses, a exemplo do que fizeram Léon Bouly ou Max e Emil Skladanowsky. O
que os Lumière apresentaram como inovação, de fato, foi a criação de um ambiente adequado
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à exibição das películas, a saber: a sala escura, o isolamento acústico, a tela de grandes
dimensões, etc. Mesmo assim, eles sequer acreditavam no potencial narrativo ficcional do
novo meio, preferindo investir no cinema como um instrumento a serviço do jornalismo e do
conhecimento científico, sem vislumbrar ali qualquer apelo comercial suficiente para a
estruturação do aparato como indústria.
A exemplo da dupla, uma parcela significativa de pesquisadores viu no cinema uma
oportunidade ímpar de eternizar seus respectivos objetos de estudo. Sem a interferência por
demais “deformadora” do registro verbal escrito, os acadêmicos poderiam, a partir de então,
captar os fenômenos físicos, psicológicos, históricos e sociais tais quais eles se apresentavam
“na realidade” – uma perspectiva baseada na crença de que a técnica excluía toda e qualquer
intervenção subjetivista do indivíduo no processo de filmagem.
Trata-se de uma abordagem instrumental condizente com os propósitos positivistas do
final do século XIX e início do século XX, para os quais o método científico deveria aliar
rigor técnico à objetividade, constituindo um acervo científico destituído de ambiguidades,
racional e alforriado das fantasias metafísicas. Antropólogos, em particular, estavam ávidos
por ilustrar suas pesquisas com imagens verídicas dos hábitos de povos não-europeus, em
estágios civilizatórios “menos avançados”, conforme se acreditava na época. O “exótico”
nada mais era que uma prova de infantilização das comunidades “inferiores” e as imagens em
movimento pareceriam atestar as teorias do evolucionismo cultural de modo contundente e
incontestável.
A despeito do alto custo e das restrições de uso das películas produzidas no período –
muitas vezes mais suscetíveis à combustão que as atuais – rapidamente os acervos imagéticos
de povos “excêntricos” ou “arcaicos” se multiplicaram nos departamentos acadêmicos de
pesquisas sociais. Era necessário organizar, catalogar e, principalmente, hierarquizar os
conteúdos cinematográficos, viabilizando análises sistemáticas e de caráter comparativo.
Jorge Nóvoa descreve bem o frisson causado pelas novas técnicas de registro ao afirmar que o
cinema transformou o nascente século XX em “um gigantesco laboratório de experiências”
(NÓVOA, 2009, p. 160).
Nos museus etnográficos, pinturas, desenhos e esculturas de repente eram dispostas
lado a lado com imagens em movimento curiosíssimas, em que seres humanos “atípicos”
(leia-se não caucaianos) expunham seus extravagantes hábitos “primitivos” às câmeras,
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Desta forma, não apenas as tribos longínquas dos bolsões de miséria africanos eram
focos de interesse, como também as festas populares de pequenos grupamentos europeus em
aldeias de difícil acesso. As técnicas de plantio quase feudais, o preparo do fumo caseiro e as
vestimentas feitas à mão eram registradas para posterioridade, sabendo-se que pouco
durariam. Tudo era como uma breve flagrante de Baucis e Filémo, antes que a máquina
fáustica do progresso lhes desse cabo.
Em resumo, em seus primeiros anos de casamento, cinema e ciências sociais tiveram
uma relação etno-museológica, de tendências heróicas na busca de registro e preservação,
porém, muito voltados à prática e apenas vagamente conscientes das implicações de seu uso
instrumentalizado. A vida convertia-se em museu. Foram necessárias pelo menos duas
décadas para que se esboçassem alterações significativas nesse panorama.
Sem que se possa estabelecer com precisão qual a mais impactante, quatro mudanças
cruciais foram registradas entre as décadas de 1930 e de 1960, com influência direta na
relação entre ciências sociais e cinema. Uma ocorreu no âmbito da Antropologia e atende pelo
termo de Culturalismo. Tendo como um de seus grandes expoentes Franz Boas, a corrente
rejeita a concepção evolucionista, majoritária até então, que apregoava existir uma espécie de
“escala” evolutiva entre povos diversos. Para Boas, não há um processo linear de
desenvolvimento a ser seguido, tampouco as sociedades não-européias estariam em patamares
históricos “atrasados” e na dependência de “salvadores” que os tirariam de um estágio
retrógrado de raciocínio e expressão (BOAS, 2004). Abria-se caminho para o relativismo
cultural. Esse foi um passo importante para que os cientistas e realizadores cinematográficos
rejeitassem viéses caricaturais na retratação de diferentes povos e comunidades.
O princípio do relativismo cultural decorre de um vasto conjunto de
fatos, obtidos ao se aplicar nos estudos etnológicos as técnicas que nos
permitiram penetrar no sistema de valores subjacentes às diferentes
sociedades (HERSKOVITS, 1948 apud ORTIZ, 2009).
Portanto, a coisificação dos poetas e das manifestações poéticas orais, muitas vezes
sugeridas em registros audiovisuais, vai na contramão do que hoje se tem como referencial
teórico. A consciência desse risco, o de perder a autenticidade do registro (um perigo a que
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todos analistas estão sujeitos), torna mais cautelosos os pesquisadores que desejam
representar dignamente seus objetos.
Ainda sobre a performance, quando se inclui o aparato técnico cinematográfico na
equação, o número de incógnitas aumenta exponencialmente, uma vez que, se considerarmos
que um performer atua em interação com seu público (real ou pressuposto), é claro que a
câmera interferirá no processo, ainda que não seja essa a intenção do pesquisador. Foi-se o
tempo em que os indivíduos estavam completamente alheios aos apelos audiovisuais,
destituídos do acesso às mídias eletrônicas. A noção de que há um espectador para quem o
produto é endereçado, mesmo que se trate de um público apenas presumido, está presente no
ato performático. O performer não tem como fugir dessa realidade, seja pela consciência do
posicionamento da câmera, seja nos modos de impostação da voz ou até nas adaptações
discursivas propostas no ato comunicativo. "O ouvinte faz parte da performance, da mesma
forma que o autor e as circunstâncias. O ouvinte é 'interpelado', como se diz, ele intervém"
(ZUMTHOR, 2005, p. 92).
Assim, vê-se que os mecanismos audiovisuais carregam a ideologia de seus
operadores, a obrigatória destruição da crença na objetividade técnica e comportam em si até
mesmo seu público, presente em cada momento em que a luzinha vermelha acesa na câmera
indica o início das gravações.
Tendências contemporâneas
Mas após tantas reviravoltas em um espaço de tempo tão exíguo, que tendências ou
linhas de pensamento atuais podem ser delineadas na relação entre o audiovisual e seu uso em
pesquisas sociais?
A primeira observação é de que o barateamento tecnológico, promovido pelos aparatos
digitais, tende a democratizar o acesso aos meios de registro, o que abre margens de
experimentação para todo aquele que disponha dos aparelhos, o que inclui os pesquisadores.
“Os programas de edição digital estão mudando o modo como as histórias são contadas
porque está mudando também quem as conta” (BRENNEIS, 2002, p. IX). Ora, se antes as
gravações em película eram limitadas pelo elevado preço dos negativos, hoje essa é uma
preocupação a menos para os realizadores. Câmeras e, principalmente, suportes de registro e
reprodução tornaram-se acessíveis a uma ampla gama de pessoas e instituições. O resultado
desse crescimento deverá ser sentido na próxima década, tanto com relação à quantidade de
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material disponível para análise quanto pela velocidade e alcance das conclusões. Projetos
diversos de democratização da comunicação, de cartografia das produções oralizadas, além de
sites e blogs destinados ao estudo da história do cotidiano são provas ainda não totalmente
consolidadas, porém já consistentes do impacto da digitalização sobre as pesquisas em
poéticas orais.
Entretanto, apesar de Brennesis e diversos outros autores apostarem nas novas
tecnologias como alavanca para experiências audiovisuais e analíticas inovadoras, é preciso
destacar que há distância entre o potencial transformador e a transformação em si. Entre o
poder fazer e a prática, nem sempre a interseção é concretizada.
Em segundo lugar, deve-se frisar a emergência ainda sutil, mas gradual, de uma nova
concepção de registros audiovisuais de performances: a que não prega uma abordagem
amadora dos processos de produção, filmagem e pós-produção. Paulatinamente,
pesquisadores e documentaristas iniciam uma jornada rumo à fusão entre um conteúdo crítico
e uma proposta estética mais elaborada. Para que isso ocorra, abandonam-se – ou pelo menos
se relativizam – as concepções de que os produtos midiáticos são meramente para o consumo
massivo banal, orientados para o lucro fácil e imediato. As manifestações “tecnoestéticas”,
como defende Denize Azevedo Duarque Guimarães (2007), mesclam o domínio dos
equipamentos à experimentação de linguagens em busca de um resultado final que mobilize
“as sempre polêmicas relações entre arte, ciência e tecnologia” (GUIMARÃES, 2007, p.8).
Trocando em miúdos, inicia-se um movimento para que a ciência encampe preocupações
estéticas em seus meandros antes exclusivamente pragmáticos.
Conduzindo a discussão para o âmbito as poéticas orais e pensando no registro
audiovisual de performances (sejam elas atreladas aos etnotextos17 ou às vanguardas
artísticas), já se começa a falar em mecanismos de transcriação nas pesquisas sociais. Por
transcriação compreende-se o desdobramento de uma mesma matriz narrativa por intermédio
de múltiplas plataformas midiáticas (HUTCHEON, 2011, p. 11). Lido assim, o conceito não
parece muito diferente da antiga ideia de “adaptação”, no entanto, ele abarca a possibilidade –
lícita e às vezes até esperada – de se fazer ajustes na narrativa “original”, partindo do
17
Discursos que a comunidade desenvolve sobre si mesma, normalmente de circulação oralizada, que
desencadeiam processos de legitimação por meio da reafirmação de valores coletivos e da autoria
anônima (PELEN, 2001, p. 71-72).
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pressuposto de que, em alguns casos, mudar não é corromper, mas sim preservar a ideia-
matriz.
Apenas a título de exemplo, suponhamos que um contador de “causos” tenha especial
aptidão para utilizar o silêncio como elemento de suspense em uma narrativa. Vendo o
resultado das filmagens, contudo, o pesquisador/realizador descobre que o efeito não tem
grande impacto no vídeo, perdendo-se em meio a outros elementos. Como forma de recuperar
a tensão dramática, é possível lançar mão de um artifício técnico, o congelamento do frame,
como equivalente à suspensão temporária do discurso. A pausa explícita pode simular o
silêncio desejado, aproximando o resultado final do relato in loco, sendo assim mais fiel ao
“espírito” da história e da performance que do que a maneira tradicional de manutenção da
imagem tal qual foi captada. Obviamente, é função do pesquisador alertar o público para essas
mudanças, deixando transparentes os mecanismos de intervenção adotados.
É perceptível que a ideia da transcriação aplicada aos estudos sobre as poéticas orais e
ciências sociais em geral suscita discussões éticas acaloradas. Afinal, não é possível precisar o
quanto a manipulação técnica pode servir às pesquisas ou o quanto pode deturpar o conteúdo
ao ponto da descaracterização grave. Uma sugestão viável para superar o impasse seria a de
oferecer ao consumidor do estudo o material bruto de trabalho e o resultado definitivo da
edição. Entretanto, essa ainda não é uma prática contumaz e ainda serão necessários vários
anos de experiências para que um modelo chegue a um patamar mínimo de consenso.
Para agravar ainda mais o quadro, devemos pensar na tendência audiovisual
contemporânea de diluir as fronteiras entre o documental e o ficcional. Manuela Penafria, por
exemplo, defende que a diferença os dois termos não é de natureza, mas de grau, na medida
em que ambos representam o mundo através da manipulação de materiais expressivos
(PENAFRIA, 1999).
Nas produções de caráter documentarista, o que está em jogo é a tentativa de
preservação da autenticidade do registro, mesmo que a manutenção absoluta da experiência
“real” permaneça apenas como meta inalcançável. Afinal, assistir a um registro “autêntico”
também é ter acesso a certa visão de mundo particular de quem realizou a gravação. “Um
documentário é uma intervenção na realidade, é um percurso que se faz e que se partilha com
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o espectador. Um percurso equacionado por uma relação de confronto e/ou uma relação de
compromisso com os intervenientes/personagens” (PENAFRIA, 1999, p. 14)18.
Na ficção, vale para o vídeo a lógica semelhante à que rege as narrativas impressas,
analisadas por Umberto Eco. Para o autor, há “verdades” que só têm vigência entre os muros
de uma obra, graças a um acordo tácito entre autor e leitor – a chamada suspensão da
descrença – construída e mantida a partir de conhecimentos prévios que temos do mundo,
somados ao poder de convencimento de um criador.
Os estudiosos têm discutido amplamente o que significa uma
afirmação ser “verdadeira” numa estrutura ficcional. A resposta mais
razoável é que as afirmações ficcionais são verdadeiras dentro da
estrutura do mundo possível de determinada história. (...) É espantoso
um homem acordar e se ver transformado em inseto; contudo, se
realmente se transformou, tal inseto deve ser as características normais
de um inseto normal. Essas poucas linhas de Kafka constituem um
exemplo de realismo, não de surrealismo (ECO, 1994, p. 84 e 94).
Considerações finais
Todas as indagações propostas no artigo repelem respostas simplistas, mas já estão – e
em num futuro próximo se farão sentir com cada vez mais premência – na pauta das ciências
sociais. Negar o uso dos recursos audiovisuais pela complexidade de questões que eles geram
não nos parece razoável, seria um retrocesso e tanto. Subutilizá-los, ignorando seu potencial,
também não condiz com o pensamento acadêmico atual, interdisciplinar, amplo e agregador.
18
De certa forma, voltamos aqui ao conceito de transcriação.
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Portanto, a saída talvez seja um investimento considerável por parte das instituições e dos
pesquisadores para que analisem, reflitam e, sobretudo, experimentem opções relacionadas ao
vídeo, seja na produção de roteiros coerentes, seja nos processos de filmagem e pós-produção.
Os agentes da ciência ainda têm receio de empregar artifícios criativos19 na análise das
questões sociais, como se a experimentação não fosse também parte do que estudam. Temem
perder a credibilidade, sem muitas vezes notar que rigor acadêmico não é antônimo de
ousadia. Esquecem-se da lição de Friedrich Kekulé, cientista respeitadíssimo, que só
conseguiu resolver a difícil e teoricamente insolúvel questão da estrutura molecular do
benzeno quando abandonou os métodos lineares e convencionais de seus antecessores,
passando a brincar com o enigma, até criar uma forma visual para a substância que estudava
(MACHADO, 2001).
A ciência e seus discípulos talvez possam aprender com as próprias poéticas orais a
lição de equilíbrio entre a cautela e impetuosidade, de maneira a transformar seus registros em
algo mais que simples ilustração esmaecida.
REFERÊNCIAS:
BRENNEIS, Lisa. Visual QuickPro Guide: Final Cut Pro 2 for MAC OS X. Berkeley,
California: Peachpit Press, 2002.
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras,
1994.
MACHADO, Arlindo. O quarto iconoclasmo e outros ensaios hereges. Rio de Janeiro: Rios
Ambiciosos, 2001.
19
Talvez utilizar o termo “artístico” seja muito forte para o caso
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SADOUL, Georges. História do Cinema Mundial, Volume I. São Paulo: Editora Martins,
1963.
ZUMTHOR, Paul. Escritura e nomadismo. Trad. Jerusa P. Ferreira e Sônia Queiroz. São
Paulo: Ateliê, 2005.
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1. INTRODUÇÃO
Este trabalho tem o propósito de mostrar como o estudo da literatura de cordel é
grandioso e agradável. Mostrando o cordel como um gênero que pode ser trabalhado em sala
de aula; abordando a leitura, a escrita e a oralidade como uma prática social; apontando o
cordel como incentivo às práticas de letramento; diferenciando a literatura oral de outros
gêneros literários; apresentando a prática docente no sertão potiguar: focalizando a
memorização, a declamação e a performance. E destacando a literatura de cordel como um
meio de inclusão social.
Sob essa perspectiva, pesquisas atuais no campo da Linguística e da Educação,
buscam compreender as práticas de letramentos (MARCUSCHI, 2001), (MOLLICA, 2007) e
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(SOARES, 2001; 2010). Como também no campo da Literatura busca entender a literatura de
cordel (GALVÃO, 2000), (MAXADO, 1984) e (QUEIROZ, 2002), que a compreendem
como uma literatura popular e social.
O artigo se organiza da seguinte maneira: primeiramente a introdução, que apresenta
os estudos prévios e os objetivos da pesquisa, em seguida, na segunda seção, desenvolve-se o
referencial teórico, buscando compreender a oralidade e o letramento e os papeis das
literaturas oral e escrita. Na terceira seção, salienta sobre a prática docente no sertão potiguar,
através da ação de extensão “Literatura de cordel nas escolas”, focalizando a metodologia de
ensino: da leitura, da escrita, da oralidade, da memorização, da declamação e da performance
e, posteriormente, na quarta seção, aponta a literatura de cordel como um meio de inclusão
social. Por último, as considerações finais.
que a língua escrita não é, de forma alguma, um registro fiel dos fonemas da
língua oral, há também uma especificidade morfológica, sintática e semântica
da língua escrita: não se escreve como se fala, mesmo quando se fala em
situações formais; não se fala como se escreve, mesmo quando se escreve em
contextos informais. (SOARES, 2010, p. 17).
O termo literatura oral, com essa acepção, foi criado pelo estudioso
francês Paul Sebillot, em 1881, para denominar o folclore dos contos,
cantos, fábulas, lendas, mitos, anedotas, anexins, adivinhações,
parlendas, rondas e jogos infantis, enigmas, charadas, provérbios,
orações, canções, frases feitas, autos, receitas, danças cantadas,
desafios, acalantos, aboios, superstições, conselhos, casos, máximas,
aforismas, adágios, ditados, estórias, gestas, xácaras, baladas, enfim,
tudo o que o povo cria e conserva para sua conversação e lazer.
(MAXADO, 1984, p.23).
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Nesse sentido, toda literatura que foi feita para o canto, para a declamação e para a
leitura em voz alta é chamada de literatura oral. De acordo com Cascudo (1984), esta
literatura é movimentada e mantida pela tradição oral. E esta tradição é transmitida de geração
a geração. Assim sendo, a literatura de cordel, que você irá ver adiante e que pode ser oral ou
escrita, se encaixa perfeitamente no que foi dito, ou seja, muitos cordéis são escritos para
serem cantados, declamados e lidos em voz alta. Em suma, conforme assegura, Maxado
(1984), a literatura de cordel são todas essas manifestações populares no formato impresso.
Nesse contexto, é importante para o (a) professor (a) destacar traços de oralidade na
escrita dos alunos, através da leitura reflexiva dos seus textos. Focalizando não só a escrita
formal e/ou informal, mas o sentido do texto. A oralidade é uma prática social, assim como a
leitura e a escrita, portanto é também essencial como método de ensino/aprendizagem.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como se pode perceber pelo exposto ao longo deste artigo, o cordel faz parte da
cultura oral e da cultura escrita. Essa literatura é desenvolvida pelo e destinada ao povo. É
uma literatura viva que usa toda forma de criatividade; é uma literatura que faz o excluído
(analfabeto ou semi-analfabeto) refletir sobre sua vida social e cultural. Diante disso, ver os
métodos de alfabetização através da literatura de cordel como um conhecimento educacional é
ver também o cordel como uma prática social e cognitiva que, metodologicamente, ensina
mais do que diverte. Assim, além do cordel ser uma literatura que incentiva as práticas de
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letramento, é também a literatura que dá ênfase à oralidade, sendo nesse caso, uma literatura
do e para o povo.
REFERÊNCIAS:
CASCUDO, Luiz da Camara. Literatura oral no Brasil. 3. ed. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia;
São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1984.
MOLLICA, Maria Cecilia. Fala, letramento e inclusão social. São Paulo: Contexto, 2007.
SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. 2ª ed. Belo Horizonte: Autentica,
2001.
Introdução
A literatura, antes de ser escrita, foi passada de geração a geração através da oralidade.
Podemos citar os textos homéricos (A Ilíada e a Odisséia), as histórias das mil e uma noites,
as novelas de cavalaria medievais, os contos de Chaucer (The Canterbury Tales) e de
Boccaccio (Decameron). Na esteira de João Guimarães Rosa, que alimentou sua obra escrita
com a oralidade, muitos escritores contemporâneos tais como Ariano Suassuna, no Brasil,
José Saramago, em Portugal, e Mia Couto, em Moçambique, trazem a oralidade para dentro
de suas obras.
Desde os filósofos gregos do mundo antigo, pretendemos entender e explicar os
modos literários. Em sua Poética, Aristóteles dividiu a arte literária nos modos épico e
dramático. Mais tarde, estudiosos da literatura mudaram para a tríade: modo narrativo, lírico e
dramático. Nesse contexto, interessa-nos apenas o modo narrativo, particularmente a narrativa
oral e seu representante, o narrador oral, mais especificamente, o narrador oral urbano
periférico. Para tanto, as questões que se apresentam são: quais foram os narradores no
passado? Quem são os narradores contemporâneos urbanos? O que narram os moradores da
Restinga?
O xamã representa a própria tradição narrativa ainda como mito-canção, sendo que a
linguagem é um dos principais recursos encantatórios do xamã:
Eles são poetas e cantores. Eles dançam e criam obras de arte. Eles não
são apenas líderes espirituais, mas também juízes e políticos.
Repositórios do conhecimento da História tanto sagrada quanto secular
de sua cultura, eles têm familiaridade com a geografia cósmica, assim
como a física, sabem tudo sobre as plantas, os animais e os elementos.
Eles são psicólogos, recriadores e descobridores de comida. Acima de
tudo, entretanto, os xamãs são técnicos do sagrado e mestres do êxtase.
(SEVCENKO 1988, p. 129-130).
Na África, o termo o griot, refere-se ao membro de uma casta africana que possui a
responsabilidade de perpetuar a tradição oral e a história de sua comunidade ou de sua
família, seja na forma de música, poesia seja na contação de histórias. Sendo assim, ele é o
depositório e transmissor da memória ancestral por meio da tradição oral, como sintetiza
Eudes Leite e Frederico Fernandes (1998, p. 21-22) “o griot é um especialista, escolhido ou
por linhagem, ou por profissão, e só ele detém o conhecimento dos textos mais longos e
especiais, como a epopeia, as genealogias ou a crônica histórica.”
Deste modo, os griots possuem como objeto de trabalho a palavra, e assim constituem
fonte de armazenamento e transmissão, seja de contos iniciáticos, seja anedotas e provérbios,
e outras formas orais anteriormente citadas. É pela voz e pela presença desses griots, que os
sujeitos de todas as idades, aprendem sobre si mesmos, sobre os outros e sobre o mundo. A
figura do griot tem, portanto, uma enorme importância na conservação da palavra, da
narração, do mito, porque canta os mitos dos diferentes povos e também elogia os heróis e
personagens do passado.
Percebe-se, contudo, que, na contemporaneidade, necessariamente na narrativa oral
urbana, aqui exposta, os sujeitos não empregam a música como meio de divulgação em suas
narrativas, a qual é apenas percebida no tom de suas falas. Não são como os xamãs
mediadores entre deuses e homens, entretanto, as mediações ocorrem entre homens e
mulheres, sujeitos ativos na sua comunidade. Ainda, tampouco, homenageiam deuses e
heróis, pois os heróis são eles mesmos em suas lutas diárias pela sobrevivência. Contudo, o
que eles possuem em comum? Os narradores orais urbanos da Restinga têm a missão, embora
não oficialmente, de manter viva na sua memória e na dos moradores suas histórias a respeito
da construção do bairro, as lutas comunitárias envolvidas. Necessitam, portanto, assim como
os xamãs, aedos e griots, da memória como instrumento de perpetuação desse passado e da
palavra como ferramenta de transmissão dessa memória.
O historiador Nicolau Sevcenko (1988, p. 126) parte da pré-história e define a
narrativa pela proximidade com o rito: “A narrativa não é uma exposição do assunto, é o
modo supremo da experiência da vida. Através dela o mito se torna rito e cerimônia, uma
suspensão do tempo, evasão do espaço e libertação dos frágeis limites do corpo mortal e
carente.”
É consenso dizer que narrativa e indivíduo caminham juntos porque “não pode haver
narrativa sem narrador e sem ouvinte.” (BARTHES, 1972, p. 47). Narrando, o sujeito
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constitui a sua identidade, organiza a sua própria existência, conforme sublinha Paul Ricoeur
(1997, p. 426):
Nossa própria existência não pode ser separada do modo pelo qual
podemos nos dar conta de nós mesmos. É contando nossas próprias
histórias que damos a nós mesmos uma identidade. Reconhecemo-nos
nas histórias que contamos sobre nós mesmos. E é pequena a diferença
se essas histórias são verdadeiras ou falsas, tanto a ficção como a
história verificável nos provém de uma identidade.
Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira.
(BENJAMIN, 1994, p.221).
20
Uso imaginário, aqui neste contexto, porque o narrador está afastado do momento vivido, e para
tanto utiliza sua memória, que seleciona do vivido algumas partes, inevitavelmente.
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o “evento narrado” (the events that they recount). Este é um dos princípios organizadores da
etnografia da performance. Segundo Hartmann (2005, p. 126), o “termo é usado para designar
um segmento limitado e culturalmente definido do fluxo de comportamento e da experiência,
que constitui um contexto significativo para a ação.”
Na perspectiva de Bauman (1986, tradução nossa), quando Benjamin (1994, p. 200), a
respeito do narrador, afirmava que este “retira da experiência o que ele conta: sua própria
experiência ou a relatada por outros, e incorpora as coisas narradas à experiência dos seus
ouvintes”, já estava relacionando a radical interdependência do evento narrado e do evento
narrativo.
Sendo assim, o evento narrativo (a situação discursiva da sua narração) para nós,
pesquisadores, é o instante da gravação, quando os narradores contam suas histórias, sejam
narrações que recuperam a memória coletiva, sejam relatos da memória individual. As
histórias de vida destacam-se no âmbito individual, e no coletivo sobressaem-se as histórias
da construção do bairro, da rádio comunitária e uma profunda preocupação com o futuro
educacional e cultural das crianças da localidade Restinga. Consequentemente, essas
narrativas constroem um mosaico de memórias que fazem parte do evento narrado.
Paul Zumthor (2000, p. 98) afirma que “escutar um outro é ouvir, no silêncio de si
mesmo, sua voz que vem de outra parte. Essa voz, dirigindo-se a mim, exige de mim uma
atenção que se torna meu lugar, pelo tempo dessa escuta.” Deste modo, nossa escuta nos
momentos de gravação era bastante atenta e reflexiva, já que, no momento performático, não
éramos apenas interlocutores/ouvintes. Para nós, era também um exercício, o exercício da
escuta, dar a palavra ao outro, e assim, acabávamos refletindo sobre nosso lugar. No final de
tarde, após as reuniões, voltávamos sempre discutindo as performances ocorridas.
Malinoswski (1978), etnógrafo polonês, em sua obra Argonautas do Pacíficio
Ocidental, vai morar na Melanésia, onde convive entre os nativos para melhor entender a
comunidade e redige um dos textos fundadores da etnografia participante. Em nossa pesquisa
de campo, não passamos a conviver na comunidade, apenas convivemos uma tarde por
semana, todavia, é pertinente afirmar que, em nossa convivência semanal por mais de dois
anos (principalmente com o Beleza), conhecemos um pouco melhor suas histórias e as
histórias que ele narra sobre a comunidade, pois, além de participarmos das gravações, para
elaborarmos um estudo teórico, assistimos inúmeras vezes aos DVDs. Nenhum de nós, os
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pesquisadores, mora na periferia, mas essa nossa convivência propicia um entendimento mais
consciente dos mecanismos sociais estabelecidos entre centro e periferia.
Esses mecanismos revelam-se também através da narrativa de Beleza: “Não temos
histórias, nossa cultura, nossas raízes, nossa identidade não está construída.” (Diário de
campo 08/11/07 - Beleza). Ele se refere à adversidade enfrentada pelos moradores da
Restinga, bairro no qual as pessoas, em um número significativo, não escolheram ir para lá,
foram levadas por projetos de “estetização” e “higienização” do centro da cidade.
Sabe-se que, ao narrar, o sujeito conta o que ocorreu, conta a interpretação do que
ocorreu e aquilo que ocorre na relação com o ocorrido, afinal esse é o processo da narração, e,
nesse processo entre a relação passado/presente, ele constitui sua identidade, como explicam
Vich e Zavala (2004, p.18, tradução nossa):
Muitos discursos orais são formas de memória coletiva através das
quais os sujeitos encontram fundamentos para constituir sua identidade
e repensar seu presente. A oralidade é uma das instâncias mediante as
quais as sociedades constroem um arquivo de conhecimento destinado a
interpretar e negociar o passado. Atualizadas em situações concretas,
algumas performances orais funcionam como rituais que cenificam as
experiências vividas e aspiram a intervir nas políticas da memória.
Ainda quanto à classificação, o autor João David Pinto Correia (1993, p. 66) divide a
Literatura Oral Tradicional em macroconjuntos. Dentro desses conjuntos, nomeia-se um
subconjunto de composições de caráter prático-utilitário, onde se classificam provérbios,
sentenças, ditos e expressões e estereotipadas como práticas de sabedoria. Por conseguinte,
muitas das narrativas da Restinga poderiam configurar nessa metodologia classificatória
porque as mesmas estão repletas de expressões como provérbios cristalizados ou
reformulados, ditos, ditados, além de fazerem uso da linguagem poética, por meio do uso de
metáforas.
Concordamos com a perspectiva de Benjamin (1994, p. 200) que salienta a qualidade
inata do narrador, a de saber aconselhar:
A narrativa, ela tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma
dimensão utilitária. Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento
moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma
de vida – de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar
conselhos. [...] O conselho tecido na substância viva da existência tem
um nome: sabedoria.
Da mesma forma, nossos narradores são homens e mulheres que, por meio de suas
experiências de vida, experiências essas calcadas em luta, seja por direitos individuais ou por
lutas da coletividade, não desejam calar-se e acomodar-se, querem ser ouvidos, são desejosos
de apoderar-se da palavra e, por intermédio dela, tentar modificar o ambiente que os circunda.
Seus conselhos não serão transmitidos apenas pela palavra, como o exemplo do uso dos
provérbios, mas também pela narração de suas ações e, principalmente, por intermédio de
ações diárias na coletividade.
Além disso, os narradores criam expressões muito características. Em “As crianças
não são guanxuma” (Diário de Campo 08/11/07 – Alex Pacheco), o narrador utiliza uma
metáfora referindo-se às crianças, que não são plantas tal qual a guanxuma, que se cria
sozinha, elas precisam ser educadas por alguém. Alex salienta também a falta de
protagonismo dos pais, pois, conforme suas palavras: “o ser humano precisa ser construído,
desde a sua concepção no ventre da mãe até depois de adulto mesmo”.
Seguindo essa linha, destaca-se outro exemplo: “Têm pai, têm mãe, elas não nasceram
no asfalto” (Diário de Campo 08/04/08 - Beleza). Essa expressão elucida a situação das
crianças moradoras do bairro, cujos pais, geralmente, não se responsabilizam pela sua
educação, delegando a totalidade dessa intervenção para a escola pública.
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Ainda com relação à educação infantil, Beleza cita que as crianças necessitam “Entrar
dentro da panela e não ficar na borda” (Diário de Campo 15/07/08 - Beleza), expressão
utilizada como sinônimo de exclusão. As crianças necessitam receber uma educação de
qualidade para não serem excluídas, portanto utiliza a palavra panela como representação para
sistema. É visível sua inquietude quanto à problemática das escolas públicas no bairro: “O dia
que tu for dono do teu nariz, tu não bebe água na orelha de ninguém” (Diário de Campo 17 ou
07/08/08 - Beleza). O narrador emprega novamente uma metáfora para propagar seu desejo
de autonomia para as crianças da comunidade, a metáfora “tu não bebe água na orelha de
ninguém” representa, neste contexto, a independência do sujeito.
Segundo Bakhtin (1986, p. 95), “não são palavras o que pronunciamos ou escutamos,
mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou
desagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ideológico ou vivencial.”
Evidencia-se, nessas expressões metafóricas, a vivência e também a maneira de pensar dos
narradores. As metáforas são figuras de linguagem que transpõem o significado de um termo
para o outro em virtude de uma analogia. Nos exemplos citados, as metáforas são construídas
utilizando-se elementos tanto do meio urbano - “asfalto”, como elementos de meio rural -
“guanxuma”, também fazem parte analogias com partes do corpo, como “orelha” e “nariz”,
por exemplo. As construções aqui citadas demonstram o poder criativo dessas pessoas, a sua
sabedoria de dizer as coisas.
Os provérbios
Além das formas metafóricas criadas pelos narradores, estes empregam o provérbio na
sua forma cristalizada. Constata-se também a recriação dessas formas e, ainda, a construção
de outras formas proverbiais, refletindo, desse modo, a vida social do ambiente comunitário
em uma linguagem muito particular.
O provérbio, muito embora seja conhecido por muitos em nossa sociedade, enfrenta
uma dificuldade imensa quando da sua definição. Todavia, é feita uma pequena elucidação de
alguns dos conceitos vigentes para uma maior compreensão a seu respeito neste contexto.
Conforme Lima (1974, p. 14), observa-se o seguinte:
A armadura simples do provérbio permite, por conseguinte, que ele seja
manejado com facilidade pelo falante; sua formação poética promove a
sua retenção; a sabedoria que contém, sua aplicação a um número
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Em “Quando o filho é bonito, todo o morro é pai”, vê-se o provérbio “Quando o filho
é bonito, todo mundo é pai” recriado, ocorre uma substituição lexical, mudando-se a palavra
“mundo” para “morro”. Nas narrativas da Restinga, embora existam morros no bairro, eles
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não são habitados, ocorrendo, algumas vezes, uma analogia entre o bairro e o morro,
remetendo-nos a um espaço físico associado às ideias de exclusão e pobreza.
Note-se assim que, nos exemplos ora trazidos, tanto por intermédio da literatura como
da oralidade, denota-se o caráter universal e democrático das expressões proverbiais, que,
nascidas na oralidade, viajam através do tempo e das consecutivas gerações, ora voz, ora letra,
todavia, sem perder a sua forma e força.
Expressões cristalizadas
Ao reler o diário de campo lembrei-me do conto Os cabelos da China, do livro Contos
Gauchescos, no qual o capitão fala para Blau Nunes: “o ruivo não é trigo limpo!” (2005, p.
65); como se vê no recorte do conto citado:
(...) Depois os dois se abriram e ainda estiveram de cochicho,
rematando as suas tramas.
O capitão montou.
— Bueno!... Vejam o que fazem; eu vou buscar a gente, e, conforme
chegar, carrego. Vocês devem-se arrinconar junto da carreta, para eu
saber. Blau!... não cochiles: o ruivo não é trigo limpo!...
E desandou por entre as árvores. (...) (LOPES NETO, 2005, p. 65)
Sabe-se que Lopes Neto (1865/1916) trouxe a voz dos gaúchos para o texto,
valorizando dessa maneira a história do gaúcho e as suas tradições populares. A expressão
ressaltada “Não é trigo limpo” (Diário de Campo 01/04/08 - Beleza) também é ouvida na voz
dos narradores da Restinga, neste caso, na voz sempre presente do Beleza. Essa expressão é
resquício da cultura do interior do Rio Grande do Sul adquirida pelo nosso narrador, pois ele
nasceu em 1950, em Santo Antônio da Patrulha, onde passou sua infância e adolescência. A
influência da tradição gauchesca também pode ser notada na inscrição “Quem não quer
barulho, não amarra os porongos nos tentos.” (Figura 02) feita por Beleza no banco de sua
casa.
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Diz-se de uma pessoa que não é “trigo limpo” quando não é confiável. Nesse contexto,
o narrador Beleza critica um político. No conto de João Simões Lopes Neto, ele captou da
oralidade suas histórias. Já nosso narrador absorveu a citada expressão de sua experiência
vivida.
Faz-se necessário citar aqui que a ideia de “circularidade da cultura”. Carlo Ginzburg,
(1987, p. 26) em sua obra O queijo e os vermes, foi inspirada na teoria de Bakhtin para
dissertar sobre Menocchio:
A impressionante convergência entre as posições de um desconhecido
moleiro friulano e as de grupos de intelectuais dos mais refinados e
conhecedores de seu tempo repõe com toda força o problema da
circularidade da cultura formulado por Bakhtin.
contraste com o que ela não era, a saber, a cultura letrada e dominante;
que era possível caracterizar “popular” o público de certas produções
culturais; que as expressões culturais podem ser tomadas por
socialmente puras e, para algumas dentre elas, como intrinsecamente
populares.
Em seguida o autor contradiz essas ideias vigentes e assegura que a literatura popular
“não é radicalmente diferente da literatura das elites, que impõem seu repertório e seus
modelos, elas são partilhadas por meios sociais diversos que não são exclusivamente
populares.” (2003, p. 151) As culturas são, simultaneamente, “aculturadas e aculturantes”. A
hierarquia das classes ou dos grupos dominantes não corresponde a uma hierarquia paralela
das produções e dos hábitos culturais.
Ainda na perspectiva de Chartier (2003, p. 153), o autor afirma que, para compreender
a cultura popular necessitamos
situar nesse espaço de afrontamentos as relações estabelecidas entre os
dois conjuntos de dispositivos; de um lado, os mecanismos da
dominação simbólica que visam a fazer reconhecer pelos próprios
dominados as representações e as consumações que, justamente,
qualificam (ou melhor, desqualificam) sua cultura como inferior e
ilegítima; de outro, as lógicas específicas à obra nos empregos, usos,
maneiras de fazer seu o que é imposto.
paus” é uma expressão que designa algo que não tem nenhuma utilidade, apenas uma
presença vazia em sua ação. É nesse sentido que Beleza refere-se aos oficineiros, aos
pequenos projetos culturais existentes, que abrangem apenas um pequeno número de
beneficiários, não dão conta da totalidade das necessidades da comunidade.
Segundo Hartmann (2007), nos relatos dos contadores fronteiriços, muitos se
afastaram, quando ainda eram jovens, do núcleo familiar, e esse é um dos elementos que
compõem o ethos desses sujeitos. Comparando-se os narradores da Restinga com os
narradores da fronteira, ambos possuem essa particularidade, vieram de diferentes lugares do
estado e até do país. O termo fronteira faz-nos refletir sobre um limiar, um lugar entre dois
lugares, mas que não pertence a nenhum dos dois, assim também é a periférica Restinga, um
lugar que não está associado ao centro, está à margem, mas se apropria de elementos do
centro.
Bourdieu (1998) nos diz que o espaço social e as diferenças que nele se desenham
tendem a funcionar simbolicamente como espaço dos estilos de vida. Esses estilos são os
produtos sistemáticos do habitatus que se tornam sinais de distinção social. Como podemos
ver na perspectiva do autor (1998, p. 164):
A capacidade de dominar o espaço, sobretudo apropriando-se (material
ou simbolicamente) de bens raros (públicos ou privados) que se
encontram distribuídos, depende do capital que se possui. O capital
permite manter à distância as pessoas e as coisas indesejáveis, ao
mesmo tempo que aproximar-se de pessoas e coisas desejáveis [...] a
proximidade do espaço físico permite que a proximidade no espaço
social produza todos os efeitos facilitando ou favorecendo a
acumulação de capital social. [...] Inversamente, os que não possuem
capital são mantidos à distância, seja física, seja simbolicamente, dos
bens socialmente mais raros e condenados a estar ao lado das pessoas
ou dos bens mais indesejáveis e menos raros. A falta de capital
intensifica a experiência da finitude: ela prende a um lugar.
Como vemos, Beleza a reescreveu: “Quem come o pão que tem, não come o pão de
ninguém, mas quem come além do que tem, come o pão de alguém.” (fotos de 17/03/2008).
Da quadra original, utilizou apenas o segundo e quarto verso, porém respeitando a rima
alternada ABAB, que é uma das características da obra de António Aleixo. Essa inscrição faz
parte de uma camiseta que Beleza usa, e também de um banco onde pintou as inscrições sobre
os provérbios, como vemos na figura abaixo:
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ocasião que possuem para levar sua experiência da esfera privada para a esfera pública, eles,
nesse momento, também podem se explicar, como nos esclarece Bourdieu (1998, p. 704):
Uma ocasião também de se explicar, no sentido mais completo do
termo, isto é, de construir seu próprio ponto de vista sobre eles mesmos
e sobre o mundo, e manifestar o ponto, no interior desse mundo, a partir
do qual eles vêem a si mesmos e o mundo, e se tornam compreendidos,
justificados, e para eles mesmos em primeiro lugar.
Considerações finais
Como se pode observar, ao longo do presente relato, tentamos demonstrar o caráter
criativo de nossos narradores por intermédio de sua performance ao contar-nos histórias de/na
vida. Eles empregam em suas narrativas provérbios, metáforas e expressões que estão no
mundo, contudo dando a essas declarações um tom singular e individual. É muito importante,
que os professores aproximem as culturas orais e eruditas, a fim de proporcionar ao seu aluno
a significação, ressignificação do aprendizado e o prazer de aprender. Principalmente, nas
classes mais populares, se os professores iniciassem os estudos a partir da oralidade, talvez os
alunos não se sentissem tão excluídos, partissem do universo do aluno, onde ele está inserido,
na fala cotidiana. Por outro lado, acredito ser fundamental também o diálogo com a
comunidade. Sem sombra de dúvidas, o mais enriquecedor de tudo, foi o contato com os
narradores, a experiência e o aprendizado, que somente na vivência é possível obter.
Assim, o narrador oral urbano, que se evidencia aqui, tem a urgência de se fazer
escutar, não deseja falar de lendas de um passado distante, deseja sim falar de suas próprias
lendas, em que é protagonista de sua história. Para essas pessoas da Restinga, faz-se
necessário narrar suas histórias de luta por melhores condições na comunidade, narrar suas
ações diárias para constituírem-se como sujeitos, cidadãos, donos de seu próprio destino.
Revelam-se, assim, por meio das narrativas épicas de Beleza, dos poemas de Jandira, dos
poemas de Alex, suas vozes não desejam se calar seja por intermédio da escrita (letra) seja da
oralidade (voz), esses sujeitos querem o direito à palavra.
Narrar, portanto, faz parte do viver, é a vida. Assim, a narrativa se faz presente na
música, no cinema, na dança, no romance e também entre os moradores da Restinga. Onde há
o humano, há o ato de narrar. Por conseguinte, há a necessidade de se ter um olho no texto,
mas principalmente um olhar mais atento na vida, na vivência, obra-prima em si.
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Universidade do Estado da Bahia - 31 de agosto a 2 de setembro de 2011 - ISBN:978-85-7846-134-8
Sabe-se que o estudo entre língua, sociedade e cultura se relaciona intrinsecamente até
ao ponto de, muitas vezes, tornar-se difícil separar uma da outra ou de estabelecer até onde
uma influencia a outra. Além dessas relações, outro fator entra em campo para introduzir
dúvidas quanto à linguagem utilizada por um determinado grupo sócio-cultural: é o fator
geográfico, regional ou diatópico. Ou seja: seriam todas essas variações próprias da língua,
condicionadas pela sociedade, ou teriam marcas de determinada cultura?
Diante disso, percebe-se que a linguagem é, por excelência, uma prática social, através
da qual a sociedade organiza seus conhecimentos, tornando-a uma possibilidade de fortalecer
e transmitir a cultura popular por meio da inclusão de todos na dimensão estética e social da
vida de tais indivíduos. Nessa perspectiva, a memória oral se torna uma forma de recompor
essa tradição idealizada no cotidiano que se encontra quase extinta na maioria das localidades
baianas. Nesses termos, a transmissão de um saber memorizado a ser resguardado se torna um
percalço para os estudos científicos. Isso porque não se pode conceber uma transcrição exata
do que se enunciou oralmente, visto que os recursos da escrita não readquirem o potencial da
voz e dos gestos empregados na transmissão oral. Assumindo esta perspectiva, Alcoforado e
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Informante número 02 do corpus de entrevistas, o qual reside em Beira de Cerca, tem 73 anos de
idade e freqüenta os ”b ub ” ainda existentes na região.
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manifestações culturais, em especial, o evento “boi roubado”. Para melhor análise desses
aspectos, são selecionados os moradores mais velhos daquelas comunidades e os principais
participantes do evento para nos conceder entrevistas que versam sobre o desenvolvimento
deste evento, do trabalho agrícola, da convivência com a seca, do lazer, da escolaridade, da
religião, das crenças locais e ainda dos meios de sobrevivência – temas abordados nas
cantigas a serem analisadas que refletem o cotidiano nordestino. Estes informantes são
identificados neste trabalho por símbolos convencionados a fim de preservar a voz desses
sujeitos tão importantes para a realização desta pesquisa. Tais dados são gravados e
analisados através de transcrições grafemáticas, além de termos fotografias e filmagens como
complemento e ilustrações deste trabalho. Esse estudo postula, a partir de uma investigação
etnográfica, sobre as cantigas orais e sobre suas performances gravadas em vídeo e
observadas in loco, que este grupo constitui ao ser influenciado em suas ações performáticas
em suas composições musicais por elementos e ritmos de seu meio sócio-cultural,
expressando assim, o cotidiano do nordestino, suas crenças, seus ritos, sua cultura.
Esse trabalho tem em vista apreender a diversidade cultural que envolve o cotidiano
dos trabalhadores rurais da região sisaleira, em específico as cantigas de trabalho que estão
presente no evento “boi roubado”, as quais apontam fortes vestígios de um processo de
resistência cultural ao intenso trabalho realizado no campo, sinalizando ainda a prática
expressiva de manifestações de solidariedade e diversão construídas nessa experiência. Segue
um trecho transcrito grafematicamente dessas cantigas em análise que reflete a multiplicidade
cultural nordestina ao revelar uma abrangência de temas que figuram as cantorias, a
religiosidade e o estima á literatura popular dos cantadores.
Nas horas de Deus, amém
Nas horas de Deus, amém
Quando eu canto essa bandêra
Eu estimo e quero essa bandêra
Eu estimo e quero bem
Vamo dá um passinho pra frente
Para a gente encontrar
A senhora, Dona Gal
Que quêra me perdoá
Nosso amigo é véi
Que está aqui no lugá
Na fazenda de Zenóbio
E nóis queremo aqui está
Uma bandêra bem cantada
Faz quem tem amor chorá
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Frente aos estudos realizados podemos perceber que as cantigas de trabalho são
fundamentais para a continuidade da cultura dos trabalhadores, visto que são capazes de
expressar aspectos históricos, econômicos e sociais dos sujeitos envolvidos nesse evento.
Sabe-se que no Nordeste existem diversos tipos de cantigas, cada uma relacionada a
determinado serviço: são, em muitos casos, organizações coletivas que revelam muito acerca
dos costumes e práticas das comunidades. Esses cantos servem ainda de importantes fontes
históricas, pois versam os aspectos culturais, econômicos e políticos de determinado contexto
social; explanam o ambiente e o período em que foram produzidas, assim como a rotina dos
trabalhadores rurais. Por meio desse elemento lúdico concebido no dia a dia, é que
pretendemos compreender o papel desses trabalhadores como sujeitos culturalmente
históricos.
Nesta perspectiva, num estudo sobre as cantigas de trabalho é possível considerá-las
como um costume existente no espaço do homem rural, em que a ajuda mútua representa um
elemento constituinte da interação entre vizinhos e famílias de lavradores. Dentre essas
práticas destaca-se o mutirão, o batalhão, o boi roubado, que geralmente ocorrem na
agricultura de subsistência em um esforço conjunto com o objetivo de apressar tarefas
agrícolas e, ao mesmo tempo, promover a diversão dos seus participantes.
A festa na vida
De acordo com Guarinello (apud Jancso & Kantor, 2001) a busca por definições
paramentadas ao que poderíamos conceituar como festa é bastante vulnerável, flexível e
própria, esta na perspectiva de que tal definição pode ser influenciada por nossos valores e
nossa visão de mundo, pois um evento pode ser considerado uma festa para determinado
indivíduo, porém, para outro não é articulado da mesma forma. Contudo, o autor afirma que
alguns aspectos são integrados à classificação de um evento como sendo uma festa, como por
exemplo, a presença da manifestação coletiva especificamente popular, caracterizada pelo
riso, pela alegria transbordante, integrada ao cotidiano, à realidade na dimensão da realização
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das relações sociais. Nessa perspectiva, enquadramos o evento “boi roubado” como sendo
uma festa, já que seus participantes realizam sim um trabalho, porém sob as configurações
acima descritas, além de permanecerem durante todo o período de realização da tarefa
cantarolando, muito satisfeitos mesmo estando prestando um serviço não remunerado para o
dono da terra, até soltam fogos e, em contrapartida, o evento prossegue com comidas, bebidas
e muitas danças. Portanto, também exige preparação, planejamento, custos, e é montada
segundo regras peculiares por parte dos organizadores desta forma de ação coletiva.
Assim sendo, a festa é, portanto, um evento do cotidiano demandado por uma ação
coletiva efetivada em tempo e lugar definidos. Portanto, é um ponto de confluência das ações
sociais, cujo fim é a própria reunião ativa de seus participantes. Dessa forma, é produto da
realidade social e, como esta, mostra ativamente essa realidade. Logo, festa se delimita a ser
um espaço aberto no viver social para a reiteração, produção e também negociação das
identidades sociais. O “boi roubado” corrobora com estas características por se fazer presente
a plena exaltação dos sentidos de forma unificada, não apagando, mas unindo os diferentes.
Ao analisar essa expressão cultural, é possível perceber que existem fortes laços de
solidariedade entre os seus moradores, além da capacidade de contarem sua própria história
de vida usando literatura de cordel. Portanto, festa, para o autor, é um trabalho social,
específico, coletivo, da sociedade sobre si mesma, a qual desperta afeto e emoções diferentes
para cada indivíduo. Contudo, ressalta ainda que o senso comum e a maioria dos cientistas
sociais denominam de “festa” o que representa um recorte arbitrário no interior de uma
atividade social, de uma forma de ação coletiva mais ampla e dessa forma envolve a produção
de memória e preservação da tradição.
Ainda é notável e comprovado pelos próprios informantes que essa tradição lúdica está
se perdendo nas novas gerações, pois os jovens, atualmente, buscam novas formas de
entretenimento e melhores meios de sobrevivência, como afirma o informante LPL:
- “Naquele tempo, o boi de roça aqui... era direto, todo
ano tinha cinco, agora... depois vai se acabano, a
mudernage qué sabê de dançá sozinho se esculambano...
se istragano, pulano que nem um lote de... sem cabeça”.
anteriormente sobre a perda dessa expressão cultural lúdica nas novas gerações, pois os
jovens atualmente, como afirma o participante LPL, buscam novas formas de entretenimento
e melhores meios de sobrevivência
Dessa forma, percebemos que língua e cultura são dois instrumentos inseparáveis. A
língua é um instrumento vivo e em constante desenvolvimento que bebe em fontes culturais e
expressa suas manifestações dinamicamente.
Bauman (1977), a concepção de John McDowell (1974) foi importante no sentido de mostrar
que esses traços são elementos chaves para a performance e que, por estarem escondidos por
trás dos códigos que conseguem ser expressos, revelam a clareza da performance como um
modo de fala; e) fórmulas especiais, que se constituem em marcadores de específicos gêneros
textuais tais como o conto e a cantiga que fazem uso de funções referenciais, as quais ainda
contribuem para retomar uma tradição, sendo algo que pré-existe um momento da
comunicação; f) apelo à tradição, uma maneira de sinalizar a suposição de responsabilidade
para fazer apropriado um ato comunicativo pela aceitação da prática passada como um padrão
de referência.
É através desta propriedade vocal em conjunto com as representações coletivas
comportamentais que estão intimamente ligadas ao cotidiano dos moradores que vai se
firmando/formulando a identidade do evento e, consequentemente das tradições deste povo do
semi-árido baiano, visto que, como afirma Hall (2005), essas identidades – entendidas como
um conjunto de caracteres culturais próprios de determinado grupo social – só adquirem
sentido por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais elas são representadas.
No sentido de ratificar o que diz Duranti, (1997, apud Farias Júnior, 2004) que “a linguagem
deve ser entendida como uma prática cultural”, é que explicitamos as ações performáticas
(danças, cantorias) e a produção textual (poesias recitadas, letras de música, canções
populares e tradicionais etc.) que servem como uma possibilidade de traduzir a cultura da
região através do envolvimento de todos os participantes do evento na dimensão estética e
social da vida de tais indivíduos.
Diante do exposto, percebemos que as conexões entre festa e trabalho se mostram de
forma peculiar, visto que não desvincula o prazer da batalha pela sobrevivência; o corpo que
dança do coração que agradece e louva o canto festivo. É dessa forma que se dá continuidade
à tradição, a qual, por sua vez, depende das frágeis relações que se estabelecem nas lideranças
dessa prática cultural entre os mais velhos e os mais jovens, que desde cedo se incorporam aos
grupos, também por laços afetivos e familiares, mas que de certa forma já concebiam
inovação em diversos sentidos, principalmente no que se refere aos recursos da linguagem
que expressam e perpetuam nossa riqueza cultural.
Referências
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Universidade do Estado da Bahia - 31 de agosto a 2 de setembro de 2011 - ISBN:978-85-7846-134-8
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ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a “literatura” medieval. Tradução de Amálio Pinheiro &
Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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Daniel D’Andrea22
INTRODUÇÃO
Estas experiências que começo a narrar aqui é uma tentativa de registro das atividades
do Projeto Contador de Histórias, iniciado na Semana de Educação em novembro de 2003
pela Secretaria de Educação de Guarulhos (SP), passando por diferentes interfaces até agosto
de 2009, onde ocorreram algumas transformações no processo de inauguração dos CEUs, na
atual gestão municipal.
A chegada de um governo democrático de características progressistas em 2001
permitiu implementar políticas públicas dedicadas às camadas populares dos bairros mais
afastados do município que aumentaram significativamente em número de habitantes nas
últimas quatro décadas, por causa da industrialização acelerada em Guarulhos, em
consequência, entre outros fatores, da sua posição privilegiada no início de importantes
rodovias federais, como as vias Dutra e Fernão Dias, assim como também devido ao seu
posicionamento estratégico em relação à construção do Aeroporto Internacional de Guarulhos,
aumentaram as fontes de trabalho em função da instalação de firmas dedicadas ao transporte e
logística, decorrentes da ativação econômica produzida pela instalação deste importante
aeroporto.
22
Are-Educador, recolhe contos de tradição oral , pesquisa contadores tradicionais e organiza grupos
de contadores mirins. Atualmente, na Secretaria de Educação de Guarulhos, SP.
narrarpopular@yahoo.com.br
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Como entender a existência de uma Velha Totonha na obra de Lins do Rego, sem o convívio
da oralidade do nordeste. Ou como conceber o universo mágico do Sítio do Pica-Pau
Amarelo, sem o suporte da Tia Nastácia e do Tio Barnabé, depositários de relatos ancestrais
do Vale do Paraíba, no estado de São Paulo.
Este histórico da presença do contador de histórias no imaginário e memória dos
moradores do município de Guarulhos, que possui uma secular herança caipira renovada por
sua vez nas últimas décadas pelo fluxo migratório de estados vizinhos e principalmente pela
chegada de novos moradores originários do nordeste brasileiro. Estes grupos humanos
possuem um rico acervo de histórias ouvidas em sua infância e adolescência. No entanto, no
espaço urbano em seu novo habitat, diminuíram os lugares e momentos para a narração de
uma boa história. Porém, os contos não desapareceram, apenas ficaram latentes na memória
cultural de uma grande parcela dos habitantes do Município, advindos do interior do Brasil.
Não apenas se contam poucas histórias para os pequenos nas classes sociais
despossuídas, como ainda nas famílias de crianças de classe média contam em raras ocasiões
histórias “de boca”, seus pais preferem levar as crianças em algum fim de semana a assistir
um contador performático em um “espetáculo” pontual que não cria vínculos afetivos e
expressa a “terceirização” do contar histórias nos dias de hoje.
Por este motivo, em nossos cursos de formação permanente para os educadores da
rede municipal de Guarulhos, enfatizamos a necessidade de valorizar a figura do contador de
histórias que marcou a infância dos educadores e dos pais das crianças da comunidade.
Nesta direção, foram organizadas diferentes coletâneas de histórias com os moradores
de nosso município para recuperar as histórias de tradição oral que por falta de ser contadas,
corriam risco de ser totalmente esquecidas.
O questionário apresentado logo abaixo auxiliou os educadores a compreender a
importância do contador de histórias que, de forma empírica, narrava em seus primeiros anos
de vida e influenciou profundamente de modo tal que nos dias atuais se faz necessária a
recuperação de seu estilo, repertório, detalhes das técnicas narrativas e do contexto onde
aconteciam os relatos.
Região de Origem:_______________________________________
Ano aproximado em que a história era contada:________________
Na época, o Contador teria quantos anos?_____________________
Qual era o título que o contador dava ao seu conto?_____________
(caso você não se lembre, dê um título a ele)
O Contador tinha algum jeito especial para chamar a atenção das pessoas, para iniciar e
finalizar as histórias do tipo era uma vez..., Pé de Pato, Pé de Pinto, quem quiser que conte
cinco... ou cantava uma música, dava uma risadinha, acendia o cachimbo e outros?
Comente:
O contador narrava em que lugar da casa?
No Quintal ( ) Próximo da Fogueira ( ) Na Cozinha ( ) Sentado na Cama ( ) Embaixo da
Árvore ( ) Na Roça ( ) Na Praça ( )
Quais outros lugares? ( )________________________
Quando contava?
Quando chovia ( ) Quando acabava a luz ( ) Após o jantar ( ) Nas noites de frio ( )
No quintal nas noites enluaradas ( ) Em qualquer hora ( ) Ele contava sem ler ( )
Às vezes lia ( )
Após contar fazia comentários, tipo:
Moral da História, comentava algum fato, façanha, algo engraçado relativos aos personagens:
Vocês precisavam pedir ou ele contava espontaneamente?
Contava com a mesma voz, ou ficava mais fina, mais grossa, dava paradas, etc?
Tinha expressões ao rosto, piscava os olhos, dava risadinha, fazia caretas, imitações?
Fazia gestos com as mãos, braços, o corpo ou pés?
Duração dos contos: + ou –
Além dos Contos, ele sabia cantigas de ninar ( ) Adivinhas( ) Trava-línguas ( ) Simpatias (
) Cantigas de Roda ( ) Trovas ( ) Quais:
Além de Contador, ele era: violeiro, repentista, cantador, benzedor?
****
Nome do Participante:____________________________________
Nome da Oficina:________________________________________
Data da realização: / / Local:___________________________
II. Toda criança tem direito a pedir aos adultos a narrativa de contos a qualquer hora do
dia, sem desculpas de não saber contar ou eles estarem muito ocupados, mesmo
que seja pedido o mesmo conto sempre e reclamar se não for contado do mesmo
jeito, sendo permitido adormecer ou ficar desperto, sonhando durante a narrativa.
III. Todas as crianças do município têm direito a ouvir contos narrados por avós, tios,
vizinhos, faxineiras, merendeiras, guardas, diretoras, agentes de desenvolvimento
infantil, professores, arte-educadores, bibliotecárias...
IV. Uma vez por semana, meninas e meninos terão direito a que os pais desliguem a
televisão e outros aparelhos para lhes contar aquelas belas lendas e causos que
ouviram na infância e, também, lhes recuperar as brincadeiras da meninice e
construir-lhes pipas e bonecas de pano, entre outros brinquedos e brincadeiras.
V. Todas as crianças do município têm direito a que lhes sejam contadas ou lidas as
histórias dos livros recentemente adquiridos, seja de pano ou apenas de figuras,
com muitas ilustrações, letras e palavras novas, além de poderem manusear, ler em
dupla, de trás para frente, ler um pouquinho e passar para outra história, ver só as
ilustrações e ainda levar nos fins-de-semana, livros emprestados para sua casa para
curtir e valorizar livros e a leitura em família.
VI. Toda criança de Guarulhos tem direito à memória e histórias do próprio município, das
aldeias e tradições orais de nossos indígenas, da cultura e festas de nosso povo
negro, da participação e presença da mulher e da criança na construção da história
guarulhense. Todavia, deverá saber narrativas do ouro de Lavras, da fazenda
Candinha, das boiadas na Juscelino Kubitschek, das quintas de videira, próximas à
Rodovia Fernão Dias, do trenzinho da Cantareira, da carpição de Bonsucesso, da
construção da Via Dutra, da fábrica de pólvora nos Pimentas, da Fazenda Uma nos
terrenos do atual Aeroporto, de todos os caminhos velhos de tropeiros, que são as
atuais avenidas, dos veados e jaguatiricas da Cantareira, das lutas por melhorias
dos bairros, dos grupos musicais e artistas de Guarulhos e das inúmeras histórias
que, como experiência de vida, não devem se perder.
VII. Toda criança de Guarulhos tem direito a inventar suas próprias histórias, criar
novos finais nas velhas histórias, promover o casamento de Cinderela com Pedro
Malasartes, de criar um correio eletrônico entre Chapeuzinho Vermelho e o
Pequeno Príncipe ou uma conversa, via celular, entre o Saci-Pererê e a Loira do
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Banheiro e dar uma bolsa de estudos para a Cigarra para os cursos de Canto-Coral-
Cênico, Danças Brasileira ou outros, assim como montar seus próprios livros com
direito à edição artesanal e tarde de autógrafos.
VIII. Participar da Semana Guarulhense do Contar Histórias em que todo mundo deverá
contar histórias e também da Semana Guarulhense de Valorização do Livro e da
Leitura.
começam a emitir opiniões, pedir a mesma história ou pedir para serem contadas outras
histórias.
Demoramos um tempo para compreender este processo dialético entre o contador e
seus ouvintes, para finalmente, compreender que além da simples narrativa de histórias ou
ações didáticas de promoção à leitura, precisávamos, com as crianças mais interessadas,
formar grupos de contadores mirins que, além de narrar as histórias propostas, também
queriam contar de sua família, contos populares, piadas, lendas urbanas, histórias bíblicas, um
repertório que não passava pela mediação do livro, porém, poderia aproximar estas à
descoberta do mundo da leitura.
O Projeto Contador de Histórias teve diferentes modalidades de atuação, sendo uma
das principais a formação de educadores, que, por sua vez, desenvolveram a proposta nas
diferentes áreas de atuação de ensino: EJA, Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos
(MOVA), Educação Infantil, Inclusiva e no Ensino Fundamental. Outra forma foi a narrativa
de histórias nos Centros de Incentivo à Leitura e o mais marcante como experiência foi a
realização do projeto nas escolas com a presença semanal de um arte-educador trabalhando as
questões da oralidade e a leitura diretamente com os educandos e educadores nas salas de
aula.
O contar histórias é uma atividade cultural e identitária a qual recomendamos ser
realizada de forma diária, ou seja, independentemente das atividades pedagógicas, da
chamada “hora do conto” ou de um projeto pontual temático do calendário escolar. A
narrativa quando é realizada cotidianamente e acompanhada de outras atividades ligadas ao
uso da palavra como a poesia, trava-línguas, adivinhas, cantigas de roda, brincos, brinquedos
cantados, possibilitam entre educadores e educandos um espaço de afetividades, trocas,
interações pessoais e aprendizados mediados pela riqueza de nossas raízes culturais.
A roda de contadores de histórias, cuja disposição circular, é um espaço de
características lúdicas e democráticas, onde se exercitam as artes da palavra, assim como o
momento em que as crianças contam suas histórias de vida, vivências, viagens. Estas
situações ajudam aos alunos na organização do discurso, no uso da expressão verbal e no
respeito à fala das outras crianças.
É parte da metodologia do projeto a utilização do repertório dos contos de tradição
oral, fundamentalmente, aqueles que, por sua origem, possuem elementos “formulísticos”,
partes cantadas, ou cantaroladas, ritmos corporais, onomatopeias, vozes das personagens,
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municípios, onde até hoje prevalecem códigos culturais tradicionais representados pelo
convívio social intenso, redes de ajuda mútua. As crianças escutam e acrescem estas histórias
ao seu repertório, pois a elas resultam familiar, reinterpretando-as na medida em que se
apropriam das matrizes do etno-texto, onde é gerado.
A forte presença das igrejas cristãs, principalmente, evangélica e católica na periferia
das áreas metropolitanas, cujos fiéis recontam histórias bíblicas ou de exemplo, são parte das
conversas informais, nas rodas espontâneas no espaço público de convívio comunitário que é
a rua, o comércio, escolas e igrejas, tornam-se parte do acervo de histórias que a criança se
apropria.
Outra das particularidades dos alunos das escolas entre 8 e 13 anos de idade é a
predileção por histórias divulgadas pela televisão, caracterizadas como “lendas urbanas”, as
quais são uma forma de sincretismo de histórias brasileiras de assombração com elementos de
filmes de terror estrangeiros. O tom coloquial destas histórias que mesclam elementos
cotidianos com fatos sobrenaturais chamam muito a atenção dos pré-adolescentes em face de
conhecimento do mundo, como substituição no imaginário rural do que décadas atrás
concitavam o interesse de gerações passadas, os mitos e lendas originárias do mundo rural,
com sua fauna de monstros, fantasmas e outros seres do imaginário popular.
As crianças, a partir de certa idade, querem tomar a palavra e contar suas vivências e
fundamentalmente suas histórias. Evidentemente, este projeto não é o único do gênero, existe
em outros países; e em nível nacional, diversas experiências. No entanto, a prática é destinada
a ensaiar um texto para ser apresentado numa comemoração ou evento, utilizando
predominantemente as formas literárias quanto ao texto e a linguagem teatral como forma de
ser apresentado.
Nossos contadores mirins estão capacitados a realizar sua performática num palco
diante de centenas de pessoas e até utilizando formas de amplificação da voz humana. No
entanto, onde é ainda mais apreciada a riqueza de sua arte é em pequenos espaços, contando
para dezenas de ouvintes, com possibilidades de interagir com seu auditório, numa forma de
narrar de características comunitárias e a utilização da roda, que Madalena Freire sugere na
“Experiência da Vila Helena” e na “Paixão de Conhecer o Mundo” (FREIRE, 2007).
A partir das empíricas sistematizações de nossas ações, começamos a tomar contato
com outras experiências diferenciadas de narrar histórias no Brasil afora, como o Grupo de
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CONCLUSÃO
Como balanço destas experiências com os grupos de contadores infantis e juvenis, de
educadores e da EJA, fica evidenciada a dificuldade de manter grupos que deem continuidade
a estas ricas experiências como no caso das crianças que na hora ficam mais entusiásticas com
as propostas de narrar em diferentes espaços, coincide com a finalização do ensino
fundamental I, aos 11 anos aproximadamente, momento em que saem da rede municipal de
Guarulhos, onde acontece o projeto, para ingressar na Rede Estadual de Educação, o que
ocasiona a dispersão dos grupos para diferentes escolas estaduais. Tal fato dificulta a
continuidade das atividades de contar histórias.
No fundamental II e no ensino médio, os jovens ingressam em uma cultura de códigos
consumistas, ideologicamente dominada pela mídia de massas, onde são desvalorizadas
práticas artísticas consideradas “não-hegemônicas”, pelo menos nas grandes áreas
metropolitanas.
Os jovens simpatizantes do contar histórias no modelo mais espontâneo e tradicional,
sofrem o embate dos próprios colegas que caracterizam estas práticas de ultrapassadas,
distantes do modelo que propõe a mídia televisiva. Temos ainda um segundo fator
relacionado à família que desencoraja os adolescentes a continuar por entender que estão
desviando a atenção deles dos estudos e não possuir uma utilidade para fins acadêmicos e
profissionais, por isto muitos destes jovens partiram para cursos técnicos para ingressar no
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palavreado regional, enriqueceram o conhecimento das crianças com outras histórias que
nunca estariam possibilitadas sua escuta.
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Turismo do Estado da Bahia, Fundação Cultural, Imprensa Gráfica da Bahia, 1998.
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idosas no MOVA – Guarulhos. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Universidade de São
Paulo / Faculdade de Educação, 2008.
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MONTES, Graciela. El corral de la infancia: acerca de los grandes, los chicos y las palabras.
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PALLEIRO, Maria Inés. Nuevos estudios de narrativa folklórica. Buenos Aires, AR:
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PELEGRÍN, Ana. La aventura de oir: cuentos y memorias de tradición oral. Bogotá: Editorial
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múltiplos territórios em Guarulhos – SP. São Paulo: Annablume; Guarulhos: Sindicato dos
Professores de Guarulhos, 2006.
TAHAN, Malba. A arte de ler e contar histórias. Rio de Janeiro: Conquista, 1961.
TETTAMANZY, Ana Lúcia Liberato, ZALLA, Jocelito, D’AJELLO, Luís Fernando Telles,
orgs. Sobre as poéticas do dizer: pesquisas e reflexões em oralidade. São Paulo: Letra e Voz,
2010.
TURINO, Célio. Ponto de cultura: o Brasil de baixo para cima. São Paulo: Anita Garibaldi,
2010.
ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. São Paulo: Global Editora, 1987.
RESUMO: Em minha pesquisa discuto diferentes conceitos de poesia a fim de contribuir com
a constituição das Poéticas Orais. Para realizar isso tenho sempre em mente manifestações
conhecidas durante convivência em campo. Esta comunicação tenta dar conta de sistematizar
uma proposição metodológica a partir das práticas experimentadas ao longo de 4 anos de
convivência com moradores da Restinga, bairro periférico de Porto Alegre (RS). Trata-se de
um trabalho desenvolvido junto com os moradores, a partir de suas demandas. Fomos a
campo sem ferramentas delimitadas de investigação, contando com uma alta flexibilidade
metodológica, o que nos permitiu desenvolver um método que se adequasse à situação vivida.
A prática acabou por constituir a metodologia. Chegamos a uma sistemática em que se postula
que a operação poética possível encontra-se justamente em nossa relação, em nossa ação
conjunta. A intervenção da academia assume a criação tanto quanto os moradores. Assim,
poderíamos dizer que o método perfaz a poesia; o pesquisador integra-se na operação criativa.
Os fazeres transitam por diferentes linguagens, sendo a produção audiovisual – bastante
explorada no decorrer do trabalho – o meio em que talvez mais claramente se possa delinear a
mediação promotora de uma síntese do heterogêneo. Nesse sentido, explorarei a ação junto ao
Maragato – sujeito-agente da pesquisa –, exemplo que pode elucidar a discussão
metodológica levantada.
Palavras-chave: Metodologia; Restinga; Relação; Perspectivismo.
Trabalho de Campo
Participo – desde 2006, com alguns períodos de interrupção – de uma pesquisa que
ocorre em parceria com moradores da comunidade da Restinga. Este é um dos bairros mais
populosos da periferia de Porto Alegre-RS, situado a cerca de 30 quilômetros do centro.
Começou a ser formado a partir da década de 60, num processo – muito comum ainda hoje –
de expulsão de populações marginalizadas das áreas centrais da cidade, numa dinâmica que,
se por um lado tende a aproximar do acesso à moradia, por outro provoca o isolamento quanto
aos principais serviços essenciais e dificulta a garantia dos direitos básicos. A luta para
alcançar estes direitos passou a ser uma das marcas identitárias do bairro, que hoje encontra-
se desarticulado e menos coeso e organizado, sendo formado por grupos provenientes das
mais diferentes localidades, de dentro e de fora da cidade23.
O trabalho da pesquisa é impulsionado por demandas mútuas: nós (acadêmicos) nos
propomos a escutar e interagir com membros da comunidade, a fim de relfletir sobre a
narrativa oral e a oralidade em performance; alguns moradores – que tomaram parte ou
seguem participando do trabalho – desejam sistematizar e comunicar a memória do bairro e
envolver a comunidade nesse esforço – o que nos constitui em mediadores de fato desta
memória, para além do papel de mediação etnográfica que nos cabe como pesquisadores.
Abro aqui um pequeno desvio na apresentação do campo, para tocar na questão da
mediação. A apresentação dos discursos do campo nas discussões críticas próprias da
academia não se dá de maneira nenhuma de forma transparente. As correspondências
possíveis entre o texto escrito pelo etnógrafo e o texto oral proferido pelo informante não são
lineares (ROCHA e ECKERT, 2005), mas dependentes de uma tradução que costuma ser
acompanhada de traição e imprecisão. É sob estes termos que se dá a mediação.
23
Informações mais detalhadas podem ser encontradas em Gamalho (2009) e Ewald (2009).
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Perspectivismo
Para introduzir o assunto, apresento na sequência um trecho do conto "Como os
venenos Azá e Ineg, para matar peixe, vieram ao mundo", presente na coleção de Koch-
Grünberg, registrada por este a partir das narrativas dos índios (norte-amazônicos) Akúli (do
povo Arekuná) e Mayuluaípu (do povo Taulipangue). A versão que reproduzo está em obra
organizada por Sérgio Medeiros (2002, p. 93-4, grifo meu):
O rapaz encontrou uma cascavel e gritou: 'Cuidado! Uma cobra!', e
correu. A anta [com quem vivia] correu atrás dele. Então pararam e
disseram: 'Vamos ver'. Voltaram para junto da cobra. Aí a anta disse:
'Isto não é cobra! É meu fogão!; ela explicou: 'Dizem que a cobra
corre atrás para morder. Mas isto não é cobra. Para nós, antas, o
cachorro é uma cobra!' Disse mais: 'A cobra corre atrás da gente e
onde ela morde, dói. A cobra para nós é um fogão. Os homens a
consideram uma cobra e sofrem com a mordida, como nós sofremos
com uma mordida de cão'. E a anta seguiu avante com o rapaz, que
agora sabia que a cobra era um fogão, e não se assustou mais.
Em sua discussão crítica e interpretativa dos contos, Sérgio Medeiros (2002), numa
inspiração estruturalista (que será posteriormente revisada pelo próprio autor em sua obra e
por mim adiante), propõe uma dicotomia de dois ambientes opostos e separados. O primeiro
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deles seria a aldeia, de caráter familiar. O outro a paragem mítica, caracteristicamente não-
familiar, envolta numa atmosfera de sonho e abundância. "O mundo não-familiar é, portanto,
o mundo da metáfora, da imagem, do duplo sentido, da polissemia, enfim, da poesia (p. 233)".
A proposta é interessante e sedutora. Não a descarto completamente. No estanto, este
tipo de abordagem é tipicamente o consenso da nossa crítica tradicional, que parte, mesmo
que não-intencionalmente, de um etnocentrismo, o qual passa a emoldurar o objeto que está
estudando, tomando-o pelo que pensa ser aquilo que tem na frente, entendido por
aproximação com seus objetos tradicionais. O formato de texto acabado fá-lo interpretar os
contos atentando para o nível linguístico e não sua realização ou as peculiaridades para as
quais apontam. A variação se daria nas diferentes formas de organização e elaboração do
conteúdo linguístico. São verificados mundos distintos e exclusivos, um do estritamente
factual e outro do imaginário, enquadrados numa bipolaridade.
Na história citada anteriormente, há um mundo se constituindo, em que vão se pondo
em acordo a anta e o rapaz, utilizando as mesmas, digamos, categorias (aquilo que corre atrás
da gente e morde), que se referem a coisas diferentes (cobras ou cachorros). Prefiro pensar,
então, que não se trata de um modo referente e um modo figurado ou jogo linguístico. São
ambos referências ao mundo.
As explicações são dadas internamente, pela personagem. Vejamos um situação um
pouco diferente, com o exemplo do conto "Como os homens ganharam a rede de dormir",
narrado por Mayuluaípu:
Antigamente, os homens não possuíam redes e dormiam no chão.
Passou muito tempo. Então encontraram um cão que dormia numa
rede. Eles de noite dormiam no chão; o cachorro, porém, dormia na
sua rede. Na manhã seguinte disseram ao cachorro: "Cunhado, vende-
me esta rede!". O cachorro respondeu: "Com o que vão pagar?".
Disseram-lhe: "Não podemos dar nada pela rede!". Então o cachorro
disse: "Podem pagá-la com sakura 24!" (Para o cahorro, o excremento
humano, que ele gosta de comer, é sakura). Aquela gente não
conseguiu entender o que o cachorro estava dizendo.
Naquela noite dormiram com o cachorro, mas saíram da casa para
defecar. O cachorro os seguiu pelo faro, gostou do excremento e o
comeu. Então o cachorro lhes disse: "Bem, vou-lhes dar a minha
rede!". Vendeu-lhes a rede e disse: "Agora vão defecar para pagar a
rede!". Até hoje o cachorro gosta de comer excrementos humanos. O
cachorro, na mesma ocasião, deu também aos homens sementes de
algodão. (MEDEIROS, 2002, p. 101, grifo meu)
24
Há uma nota que explica que sakura é uma massa da mandioca usada para preparar o caxiri.
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25
A questão dos ajustes de sentido, através do que chamei metanarrativa, é explorada por Authier-
Revuz (1998).
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Por fim, especulo que, no que tange à tradução cultural, a que parece mais praticável é
a de explorar a ontologia relativa a um ponto de vista, tentar elucidar como se configura
determinado mundo e tentar expressá-lo de acordo com possíveis equivalentes de acordo com
nossa ontologia. Afinal, um ponto de vista não é uma opinião subjetiva; "não há pontos de
vista sobre as coisas – as coisas é que são pontos de vista" (Ibid., p. 385). A questão não deve
ser qual o ponto de vista das onças sobre o mundo, mas de que mundo elas são o ponto de
vista, que mundo existe no ponto de vista das onças. Iniciando a apropriação: quais as
referências existentes sob o ponto de vista ocupado pelo Maragato.
Maragato
Passo, então, ao sujeito da pesquisa que desejo enfocar e uma de suas produções. Se
aqui se tratasse de uma proposta de viés da tradição crítica, tomaria como corpus seu livro de
poemas Simplesmente Você. Trata-se de uma coletânea de poemas seus, impressa em folha
A4, encadernada com espiral e contando com uma capa ilustrada. Os textos não contam com
algum grau de excepcionalidade. São sinceros e diretos, sem cuidado peculiar com ritmo ou
forma ou correção gramatical. Vejamos como exemplo "Alem do tempo":
Alem do amor,
Alem do tempo,
Alem do sorriso,
Só a paz...
Alem do amor,
Beijo no escuro
Amor sem futuro.
Alem do amor,
Alem do fim. (MARAGATO, s/d, p. 3)
Este encontro com o poeta, muito apropriado para a ocasião, foi relatado neste dia pela
primeira (e única) vez neste dia de 2011. Maragato participa na pesquisa desde 2006.
Pergunto-me por que ele nunca o relatou, considerando que sabia da nossa procedência da
área de Letras. Aqui não estou alegando que ele esteja contando uma mentira. Isto é
irrelevante. Meu interesse está justamente no encaixe apropriado desta história para compor o
quadro do lançamento do livro, concorrendo para sua auto-afirmação como poeta. Minha
aposta é de que esta cena é que institui a poesia, para além do livro.
Desejo aqui retomar o perspectivismo para compreender como o ponto de viste se
encontra na afecção. Temos que o relativismo ocidental é um multiculturalismo que admite
uma diversidade de representações subjetivas e parciais a respeito de uma natureza externa e
universal, indiferente à representação. Já o perspectivismo ameríndio é um multinaturalismo
que propõe uma unidade de representação (apenas pronominal, como marcador enunciativo,
relacional) aplicada a naturezas diversas. "Uma só 'cultura', múltiplas 'naturezas';
epistemologia constante, ontologia variável" (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 379). As
representações são propriedades do espírito, mas o ponto de vista (a diferença) está no corpo;
isso não significa, no entanto, que se trate de uma diferença fisiológica ou anatômica – no
perspectivismo, temos uma ontologia relacional, em que substâncias individuais não são a
realidade última. É uma diferença de afecções e capacidades, ou seja, um conjunto de
maneiras ou modos de ser que constituem um habitus.
O que de certa forma postulo é a presença de uma afecção-Maragato, sob a qual se
constitui um mundo peculiar, em que a realização poética ocupa objetos distintos dos que são
comumente avalizados pela academia. Ou seja, uma vez que o mundo não está dado, os
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objetos poéticos são outros. Não são as várias formas de escrever um livro de ficção que
marcam as diferenças entre "culturas"; os diferentes objetos em que o poético é encarnado é
que marcam as distinções, já que as formas de operar são as mesmas.
No caso específico do Maragato vemos o poético se entranhar nas vivências e
narrativas de si. Diria inclusive que com requintes de ironia e com introduções e orientações
para um público leigo. Ele arma todo um ambiente com o propósito de conformar uma zona
de conforto para os acadêmicos não-iniciados na sua arte. As circunstâncias em que esta se
apresenta são a do lançamento do livro de poesias a que fomos especialmente convidados. Ou
seja, tudo dentro do esperado: aqui há um autor de um livro que está impresso e encadernado,
dentro do qual há poemas; este livro está sendo lançado e você foi convidado para participar
de uma conversa com o autor e inclusive ter o seu exemplar autografado.
Ocorre que essa mise-en-scène constitui o seu ardil. É ela mesma parte da realização
poética, que é complementada por seu discurso. Alguns indícios rompem essa ficcionalização:
os livros não são vendidos, mas doados pelo autor; apenas nós (acadêmicos) comparecemos
ao lançamento; o local é um ponto de cultura que promove o diálogo latinoamericano (como
ruído de fundo no vídeo gravado, temos o alongado discurso do presidente venezuelano Hugo
Chávez, transmitido pela televisão); estamos num salão de refeitório pequeno e não há livros à
volta.
De qualquer forma, é a história de sua fundação, sua constituição como poeta: tanto no
nível do conteúdo (o evento narrado) e da diacronia, numa semelhança com o tom mítico
fundacional, como no nível da forma/performance (o evento narrativo26) e da sincronia, em
que ele executa junto a seus interlocutores a constituição da persona do poeta, pelo evento
mesmo, não apenas pelo texto.
Ou seja, postulo que o que é poético no episódio apresentado, o encontro do Maragato
com o Mário Quintana, não é (apenas) o texto em si, mas especificamente a realização do
relato em presença, de maneira astuciosa, num engate preciso com a situação; é o que deve
perfazê-lo poeta diante de nós. Em paralelo com o perspectivismo ameríndio, é como se
dissesse: 'vocês olham para o que narro e buscam o poético no nível linguístico, enquanto eu
de fato o apresento na concretude do fazer em relação com vocês'. De certa forma, digamos
que a concretude desse encontro com Quintana (imaginado? real?, não importa) o 'contamina'
26
Os termos "evento narrado" e "evento narrativo" são explorados, entre outros, por Richard Bauman
(1986).
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REFERÊNCIAS:
BAUMAN, Richard. Story, Performance and Event: contextual studies of oral narrative.
Cambridge University Press, 1986.
ZUMTHOR, Paul. Performance, Recepção, Leitura. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich. São Paulo: Educ, 2000.
______. Escritura e Nomadismo. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Sônia Queiroz. São Paulo:
Ateliê Editorial, 2005.
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Discutir a metáfora dos “tronco veio”, muito pertinentemente anunciada por Dona
Francisquinha na epígrafe o presente texto, é trazer à baila relações culturais que fazem a
construção do ser quilombola em Coqueiros, (Comunidade remanescente de quilombo27
situada no Município de Mirangaba-Ba, a 270Km da capital do estado da Bahia, Salvador), o
que permite evidenciar a forma constelatória desafiadora de binarismos em cujas teias a
ancestralidade da comunidade é vivenciada, principalmente, no que tange às poéticas orais
limiares em constante processo de continuidade movediça. Neste sentido, faz-se o presente
artigo, considerando como horizonte referencial empírico memórias narradas em entrevistas
semi-estrutudadas, finalizadas em janeiro de 2009, por leitores e leitoras de Coqueiros, a
saber: Dona Francisquinha (82), Dona Elza (63), Aparecida (40) e Socorro (25).
As relações estabelecidas entre oralidade e escrita, enquanto dimensões constitutivas
das culturas pós-modernas, desencadeiam diálogos complexos que repercutem na formação
das identidades, principalmente quando se trata de grupos cujas práticas cotidianas são mais
associadas à oralidade, mesmo estando inseridos em uma sociedade marcada pela onipresença
da escrita e dela fazendo uso. Nesse caso, a oralidade funciona como mediadora privilegiada
no processo de construção do lugar simbólico dos sujeitos sociais, descortinando formas de
ser e pertencer.
Retomando uma judiciosa afirmação de Paul Zumthor (1993, p. 71), pode-se
considerar que, em Coqueiros, “[...] nada teria sido transmitido nem recebido, nenhuma
transferência se teria eficazmente operado sem a invenção e a colaboração, sem a contribuição
sensorial própria da voz [...]”. As orações, as canções, as receitas, as superstições, os rituais,
27
Coqueiros - Comunidade quilombola reconhecida e registrada no Livro de cadastro Geral n°. 06 —
Registro 611 — Fi. 121, em 3 1/05/2006 - Publicado no Diário Oficial da União em 07/06/2006,
Seção 1, no. 108 — Folha 5.
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enfim, as muitas matérias de aprendizagens do cotidiano, todas elas foram, e são, ainda hoje,
em grande parte, dialogadas no âmbito de práticas orais que vão (re)criando tradições e dando
continuidade a modos de ser e viver, que, não estando cristalizados, vão sendo dinamicamente
traduzidos a cada nova geração, no contexto da comunidade.
Os deslocamentos operados funcionam como atualizações necessárias às novas
demandas socioculturais, sem, contudo, negar o valor das construções passadas. Assim, os
processos característicos dessas atualizações podem ser refletidos, na perspectiva
fenomenológica, a partir da dinâmica revigoração de um “já vivido” a perdurar nas relações
intersubjetivas da atualidade, o que permite uma aproximação com as discussões acerca da
ideia de “enraizamento dinâmico”, que nas palavras de Maffesoli (2007, p. 116), “[...] Não se
trata de um saber teórico, mas de uma vivência prática, a da experiência individual que se
enraíza na experiência coletiva. Trata-se de uma espécie de instinto que funda a perduração
societal nos usos e costumes da comunidade”.
Fundamentada na perspectiva de que os conhecimentos mantêm uma ligação com
realidades passadas, por meio dos resíduos deixados por gerações anteriores sendo
reinventados constantemente, a ideia do enraizamento dinâmico ratifica a importância
atribuída à tradição, à renovação do sentimento de pertencer, sem desconsiderar as
ramificações calcadas nas redes de sociabilidade. Nesse sentido, a lógica da construção
teórico-conceitual que rege as relações interpessoais em Coqueiros pode ser considerada a
lógica da vivência prática, da experiência comunitária, da celebração revisionária de
narrativas que seguem fazendo uma coerência social diferenciada para a comunidade em suas
(re)elaborações culturais.
Nesse cenário, as casas das famílias, juntamente com os centros religiosos, a escola, os
ambientes de sociabilidade onde ocorrem as festas sagradas, profanas ou híbridas, funcionam
como ambientes constelatórios capazes de possibilitar experiências significativas, porquanto
sejam espaços elementares de construção de conhecimentos organizadores da vida em
Coqueiros. Dona Francisquinha, tratando da atividade de parteira que exerceu durante muito
tempo na comunidade, evidencia, no aprendizado da profissão, a relevância da observação de
suas familiares como fonte de saber: Foi aprender. Vi, e assim a gente mesmo vê e espera a
vontade de Deus. Ia vendo meus tronco véio.
A expressão os tronco véio, tecida por Dona Francisquinha como referência às
antepassadas que lhe serviram de sustentação na aquisição da profissão, é exemplar para que
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possamos entender como se constrói esse saber cotidiano edificado na experiência dos mais
velhos. Coadunando com Mafesoli, a reflexão de Dona Francisquinha aponta para um
referencial ancestral que perdura na atualidade e em cujas teias faz-se o ressignificar do
passado/presente/futuro. È assim que a própria Dona Francisquinha diz, na continuidade da
entrevista, mas sempre hoje não é mais assim, referindo-se não à lição dos troncos, mas às
condições de existência, aos partos em Coqueiros, em clara referência a uma realidade
dinâmica que não está petrificada. Os tronco véio, enquanto metáfora da ancestralidade, da
memória, da oralidade não é apresentada como árvore perecível, mas como uma lição de
transmutação que pode materializar-se em aprendizagens complexas fundamentadas em
continuidades e rupturas, muitas vezes, paradoxais, que ficam evidentes quando observamos
mais de perto o movimento cultural em andamento na comunidade de Coqueiros. É ação de
lembrar, esquecer, silenciar, dizer, transgredir.
A certeza do tronco a dar uma sustentação existencial não aparece, nas palavras de D.
Francisquinha, como um já dito irrefutável, mas como continuidade da vida em toda a sua
complexidade. Os troco véio dizem dos saberes da experiência, das construções elaboradas na
convivência do dia-a-dia, nas trocas interpessoais, na vida repassada às novas gerações. Nessa
perspectiva, pode-se considerar que as teorias sobre o tempo, sobre as plantações, sobre as
questões metafísicas, sobre as elaborações culturais estão inseridas no universo conceitual de
Coqueiros na forma de um compartilhar cotidiano calcado no “princípio da comunidade”,
para usar um termo de Boaventura Santos (2001) ao discutir os paradigmas dominantes da
ciência moderna.
Nesse contexto, as poéticas da oralidade ocupam lugar de privilégio em Coqueiros,
formando constelações multiformes sustentadas na energia dos tronco véio, que é, também, a
energia da voz. Trata-se da poética do cotidiano, da lida, do viver. E aqui fica evidente a
transmutação de tais construções culturais, visto que muitas delas somente ganham existência
no âmbito da memória. Percebe-se que a comunidade opera uma seleção, voluntária ou
involuntária, de suas continuidades e rupturas, de forma que há construções poético-culturais
sendo esquecidas, e a memória também concretiza-se pelo esquecimento, outras passando por
transformações e outras, ainda, sendo revisitadas e colocadas em evidência. Os cantares
voltados à lida na roça, por exemplo, são hoje performatizados com maior força no âmbito da
memória, embora as atividades de trabalho ainda sejam compartilhadas, em grande parte, por
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meio da oralidade. Aparecida nos conta dos versos cantados e recitados durante a cata do
café:
Cantando, a gente pega café. Agora até que diminuiu mais por causa
que até as coisas mudou mais, até os café não dá mais na época certa.
Aqui nós tem uma roça mesmo, aqui nos Canudo, que, ÔXE, a gente
não sabia onde é que tava cantando roda, porque uma queria cantar
mais alto do que outra.[...] Eu sei que alegrava os café, e, nessa
época, dava DUM JEIto. O povo diz que os café parou de dar depois
que os povo parou de cantar. g z : ‘C f z b x
galha, que eu quero pegar café, cafezeiro eu já te disse meu
qu ’. í qu z uv , u
café, que era pros café se alegrar. Era desse JEito. E mãe mesmo
: ‘V ê oda que é pra alegrar o cafezeiro, que é pra no
p óx ’. ( ) (APARECIDA)
[...]
A riqueza que borbulha a partir dos versos, músicas, adivinhas, causos e contos a
circular cotidianamente, oferecem lições exemplares de vida, criando horizontes conceituais
cuidadosamente moldados através dos tempos e que não podem simplesmente desaparecer.
Quantas histórias povoam o imaginário popular da comunidade e cujo valor incontestável
precisa cultivado, divulgado. São dizeres, muitas vezes, descaracterizados e desvalorizados
em nome do rigor científico perseguido pela racionalidade letrada e que raramente encontram
espaço para fluir. O breve conto narrado, a seguir, por Aparecida funciona como um exemplar
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dos conhecimentos complexos que podem ser comunicados de maneira leve e prazerosa,
possibilitando reflexões e aprendizagens que a própria escola teima em ignorar ou insiste em
tratar como entretenimento e não como conhecimento.
Se eu conto história? Eu só tenho na lembrança uma sozinha, uma
história que pai contava que eu ainda conto pra meus filhos. Uma do
passarinho. Só essa que eu conto, mas as outras eu já me esqueci, e
era muita história que pai sabia, muita MESmo. A do passarinho é
u : ‘D qu h u u h qu h u
passarinho. Ela tinha muito filho e não tinha o que comer. Aí diz que
ela disse assim: - Oh meu filho, hoje nós não tem o que comer, nós
vamo resolver matar esse passarinho pra nós comer. Aí disse que na
hora que ela ia com a mão, o passarinho dizia assim [Cantando]: -
Não me mate, não, lango, lango, lango, que eu sou rei dos pássaros,
lango, lango, lango, se o senhor me matar, lango, lango, lango, o
mundo se acaba. E aí a mulher disse que entristeceu, aí disse que ela
mandava o marido: - Vai pegar, vai, pra ver se ele não diz nada. Aí
disse que quando o marido ia, ele cantava de novo... cantava de
novo... até que ela desistiu p h ’.
E continua:
A gente entendia... eu mesma entendia, assim, que já era um exemplo
de vida, que o passarinho tava cantando pra não matar ele, que ele
precisava de viver. É igualmente hoje, a gente tá vendo mais ou menos
as histórias que os mais velhos contava batendo quase igual com hoje.
Quando eu vejo passar no jornal, o pessoal com aqueles passarinho
preso e os policial tem hora que pega e toma e solta, eu lembro dessa
história que pai contava.(APARECIDA)
Não seria possível encontrar aqui pistas textuais necessárias à compreensão das
intricadas relações estabelecidas entre o homem e a natureza, por exemplo? O paradigma da
complexidade que rege as sociedades pós-modernas, em toda sua lógica planetária, holística e
transitória ecoa por meio da sabedoria milenar de vozes ancestrais a ofertar um legado
cultural único em sua dialogicidade conceitual. A história dos passarinhos a cantar para não
morrer também não guarda uma semelhança com um certo povo que se apegou ao canto para
não sucumbir à tristeza e para sobreviver? É nesse sentido que a oralidade precisa ser
compreendida, como tecelã de conhecimentos de valor inestimável; como ofício destinado a
esculpir o ser humano a partir de traços, cores e contornos vivenciais identitários, e não como
marca de primitivismo ou atraso cultural.
Para Nascimento (2003, p. 39), “a análise sociológica contemporânea dos novos
contornos do mundo globalizado vem confirmar a ênfase sobre identidade e comunidade, pois
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outras comunidades remanescentes28, mostram suas poéticas performáticas sendo que o samba
de roda faz-se a atração principal.
Coqueiros, enquanto comunidade remanescente de quilombo, escolheu evidenciar a
herança africana presente no samba de roda, um dos troncos mais expressivos da comunidade,
de forma que esse traço cultural tem se fortalecido, tornando-se o cartão de visita da
comunidade e a forma de representá-la quando seus moradores participam de eventos em
outras localidades. Faz-se mister destacar que é a própria comunidade que elege o samba de
roda como acontecimento mitopoético. Nas palavras de Socorro,
[...] até hoje nós estamos passando de geração em geração... não
temos deixado essa cultura acabar. Sabe que a cultura do quilombola
é o samba, que descobriram tapando a casa. Descobriram que o pé
dava pra sambar, pisando barro, e depois o batuque, através dos
litros que bebiam, dos pratos que comiam; batendo o batuque
descobriram que tinha que ter sido o samba. Do couro do animal
faziam os pandeiros, os tambores. O candomblé aqui mesmo é a raiz
principal. Aqui nunca acabou. O candomblé aqui é de geração em
geração. É menina nova, é pai, é filho, tudo dança. Pai bate pra
mulher sambar, e samba bonito MESMO.
28
Muitos são os grupos, a maioria proveniente de comunidades remanescentes, que lotam ônibus e
chegam para participar das comemorações, trazendo suas manifestações culturais, a exemplo,
tratando-se do ano de 2009, de Tijuaçu, com a apresentação do belíssimo samba de lata, além de
Filadélfia, Antônio Gonçalves, Caém, Senhor do Bonfim, Pindobaçu, Dionísia, Olhos D'água, etc.
29
“[...] conjunto de ações políticas dirigidas à correção de desigualdades raciais e sociais, orientadas
para oferta de tratamento diferenciado com vistas a corrigir desvantagens e marginalização criadas e
mantidas por estrutura social excludente e discriminatória”. (CONSELHO NACIONAL DE
EDUCAÇÃO, 2004, p. 7)
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Para Dona Elza, o samba representa uma forma de “participar dos mistérios dos que já
se foram. Espaço visitado e tempo vivido são fontes de renascimento, de retorno à Unidade,
desde que os antepassados deixaram a herança do experimentado”. (PEREIRA; GOMES,
1988, p. 159) Ela possui o conhecimento a ser continuado, o que a coloca frente a uma
espécie de obrigação a ser assumida na comunidade. É a contribuição que lhe cabe: puxar o
samba, possibilitar o pagamento das promessas a São Gonçalo, festejar os Santos Reis.
O Reizado, a Esmola de São Gonçalo, o samba por prazer ou obrigação religiosa,
inscrevem-se nas encruzilhadas da cultura; seja a voz, (re)criando sentidos que volteiam nos
gestos performáticos a ecoar através dos tempos, seja o corpo, grafando a letra sinuosa das
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reminiscências rasuradas, ambos evocam a metáfora dos tronco véio e imprimem o desafio da
impossibilidade de determinismos quando se trata de cultura, memória e identidade, pois que
os caminhos de sentidos são múltiplos, sinuosos, imprevisíveis.
Considerações finais
No percurso dialógico e polissêmico da história, os arquivos que fazem as poéticas da
oralidade em Coqueiros são (re)criados, (re)significados e (re)visitados fazendo emergir
tessituras simbólicas armazenadas nas memórias individuais e coletivas, nos esquecimentos e
silenciamentos que os constitui. Nesse movimento, práticas culturais são forjadas fazendo
conviver palavra, ritmo, voz, movimento e desvelando subjetividades complexas inscritas nas
reminiscências da oralidade, na textualidade complexa das relações cotidianas, nas
construções mnemônicas do corpo.
O saber oral que tece(u) a vida na comunidade, a memória coletiva - gênese de
comportamentos e valores em constante movimento -, a cultura que materializa a
ancestralidade são a tônica da metáfora dos tronco véio em sua possibilidade de significar a
tradição oral, em cuja arte observa-se o trabalho performático da poética, esgarçando sentidos
múltiplos presentes na cotidianidade de Coqueiros e descortinando o trabalho constelatório
das formações identitárias no devir dos tempos.
Referências
MARTINS, Leda Maria. A oralitura da memória. In: FONSECA, Maria Nazereth Soares
(Org.). Brasil afro-brasileiro. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
NASCIMENTO, Elisa Larkin. O sortilégio da cor: identidade, raca e gênero no Brasil. São
Paulo: Sammus, 2003.
SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente. São Paulo: Cortez, 2001.
ZUMTHOR, Paul. A Letra e voz: a “literatura” medieval. Tradução Amálio Pinheiro & Jerusa
Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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Dura lex, sed lex30. Todos em seus lugares. Declaro abertos os trabalhos desta
pesquisa-inquérito, na sessão do Tribunal da Comarca Divina, instaurada no cordel o Castigo
da soberba, de autoria desconhecida, texto-base para o terceiro ato do Auto da Compadecida,
do escritor Ariano Suassuna. Vai começar o julgamento do homem pelos seus atos. Fiquem
apostos os advogados de defesa e de acusação. De pé para a entrada do Meritíssimo Juiz
Manoel. Que entre o réu e inicie o julgamento.
O jogo de intertexto, apreciado pelo autor paraibano, é visto aqui, nessa instância,
como uma fonte rica de diálogos. A partir dos vieses da religiosidade popular e do
maniqueísmo, a denúncia contra o ser humano ganha visibilidade em sua matriz no cordel
bem como no texto teatral, apoiada em teóricos como Gois (2004), Mota (1955), Nogueira
(1986), Pontes (1979), Vassalo (1993) e Vaz (2004), dentre outros.
1. O juditium accusationis31
30
A lei é dura, mas é a lei.
31
Fase preliminar preparatória e de formação de culpa.
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[...]
Com vinte anos de idade
Ele tomou novo estado,
Aumentou o cabedal
Adespois de ter casado,
Que, antes de interar dez anos,
Sete vez havia herdado.
(MOTA, 1955, p.168)
32
Modo de vida.
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homem respeitado e conhecido vira um ser indesejado e mal visto. Mas se a sorte financeira
muda, varia também seu aspecto afetivo. Sua esposa engravida em meio a tanta miséria, e o
ex-Barão, não reconhece a mão divina em sua vida. Nega-se a relacionar-se com a divindade,
opta por afastar-se mais ainda do Cristo. Como última instauração da justiça divina, o
protagonista morre:
Logo assim quem ele morreu,
Cobriu-se os montes dum véu,
Mas a alma, como invisive,
Chegou às portas do céu,
Em tristeza amortalhada
Para dar contas de réu.
O autor, portanto, apoia-se no romanceiro nordestino, que por sua vez, possui
influências negras, indígenas e ibéricas. Tudo isso permeado pelo forte alcance da
religiosidade popular presente na vida e no imaginário do sertanejo.
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(...) a imagem não cai gratuitamente do céu. Ela é tomada numa história
santa e autenticada por ela. Ela não é exterior à religião, ela não é um
acréscimo supérfluo ou um excitante psicológico de devoção, que um culto
em espírito e em verdade pudesse dispensar.
Ela é interior à religião. Ela faz parte de sua explicação teológica. Ela está
integrada na liturgia. De uma como da outra ela tira uma garantia. De ambas
ela tira também sua vida: é a luz da fé que o ícone desvenda o que se espera
dele representar. Quem não tem essa fé não vê mais nada. É na prece que se
realiza, através da imagem, o contato deificado com o protótipo.
(BENSANÇON, 1997, p. 228-229)
2. O juditium causae33
A partir da apresentação dos personagens do cordel e do texto teatral, dá-se início aos
procedimentos do júri. Há, nesse instante, a oportunidade de observar o meritum causae34,
bem como a inquirição dos réus.
No Castigo da soberba, a Alma do Barão, recém-chegada da terra, apela aos guardiões
do céu pela sua entrada:
- “Ó divino São Miguel,
Vosso nome esculareço,
Valei-me nesta agonia,
Nestas pena em que padeço!”
São Miguel arrespondeu:
- “Alma, eu não te conheço!”
- “Vala-me o Senhor São Pedro
Por ser Apóstolo primeiro,
Foi quem recebeu as chaves,
Que do céu é o chaveiro,
É quem pode ver as faces
33
O julgamento propriamente dito.
34
Mérito da causa.
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Mais que uma súplica, a alma condena-se ainda mais pelo fato de demonstrar
conhecimento da religião e, mesmo assim, negando-se a ser fiel em vida. Seu desespero é
tamanho pelo medo que sente de ir para o inferno por já estar rodeado de demônios a sua
espera:
O “horror diabólico” domina as consciências cristãs. Nas igrejas pregam-se
as penas infernais. [...] O Diabo causa terror e, através de sua figura e de sua
ação no mundo, impõe-se um rígido código moral. As narrações se
intensificam, crescem e ganham corpo, nas formas das visões apocalípticas.
(NOGUEIRA, 1986, p. 66)
Mas ele precisa ser julgado formalmente antes de ser dada sua sentença final. É mister
haver a cross examination35 para que todos os lados sejam ouvidos, todas as provas estudadas,
por isso a Alma do Barão ouve de São Pedro:
- “Alma, eu te abro a porta
Porque tu me vem rogar,
Porém não tenho poder
Pra fazer-te aqui ficar...
Tu recorre a Jesus Cristo
Que é quem jeito pode dar.”
(MOTA, 1955, p. 171)
A Alma adentra ao céu e vê a cena formada: é levado à sala do julgamento, onde estão
presentes o juiz, Jesus Cristo, ao centro. Do seu lado, a Virgem Maria, a advogada de defesa.
Do outro, o Cão, o acusador.
Após a denúncia formalizada, é a hora e a vez de o réu fazer sua petição e de o juiz dar
a sentença:
“Arretira-te, alma ingrata,
Vai pra donde tu andaste,
Que a santa Religião
Tu nunca que procuraste:
Te dei trinta e quatro anos,
Nunca de mim te lembraste.”
(MOTA, 1955, p. 171)
35
Inquirição direta e sucessiva, quando juiz, acusador e advogado tomam a palavra respectivamente.
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para as moradas infernais. Diante do exposto pelo advogado de acusação, o juiz reconhece os
argumentos e as provas convincentes do causídico. A Alma é julgada por não ter feito o bem,
omitindo-se de resolver ou ao menos minorar a problemática da fome no sertão, é acusado de
não ter sido solidário, nem humano, tampouco humilde em sua estada terrena.
Depois de confirmada a sentença infernal à Alma, resta-lhe apenas apelar para a
segunda instância, por isso clama por Nossa Senhora. Segundo Mota (1955), o ”Castigo da
soberba“ espelha bem a confiança que os sertanejos depositam na misericórdia divina (p.168).
Nesse agravo36, o réu compreende que não há salvação para si mesmo se não for através da
misericórdia. Jesus Cristo, o Juiz, não pode desvincular-se de sua função e ignorar as provas
que constam nos autos. Ele precisa agir com equidade, já que é a personificação da Justiça.
Cabe, então, a sua mãe, compadecer-se do homem perdido por distanciar-se de Deus:
(Alma) - “Valha-me, ó Virgem Maria,
Pelo vosso resplandor,
Pelo dia em que nasceu
Pelo nome que tomou,
O nome do vosso filho
Que no ventre carregou!”
O recurso impetrado pelo réu apela não mais para a justiça, já que, por esta, seria
condenado, usa do recurso emocional, do arrependimento tardio para suscitar a compreensão
de Maria. Nesse ínterim, o requerente abandona todas as regras de um júri, quebra os
protocolos a fim de garantir a sua revisão da pena.
Nossa Senhora é chamada para atuar como advogada de defesa pelo fato de estar
ligada intimamente ao ser humano. Ao ser considerada a mãe da humanidade, Maria dirige ao
homem um olhar diferente. É o olhar de amor de uma mãe que é capaz de sobrepujar a tudo e
a todos. Só o pedido de uma genitora pode ser mais forte e mais imperioso que o direito.
Maria, mãe de Jesus, o Amor maior que a Justiça:
(Alma) – “Rainha, Mãe Amorosa,
Esperança dos mortais,
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Recurso contra decisão do Juiz ou Desembargador.
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É desse modo que o homem obtém a salvação, não advinda da Justiça, já que todo ser
humano é pecador e distante da divindade, mas pela misericórdia personificada em Nossa
Senhora, a representante do homem no tribunal celeste, a intercessora de todo ser que a
procura, pobre ou rico, fraco ou forte, preto ou branco. A representação da Grande-Mãe, da
Nossa Senhora é a da divindade mais próxima do homem, aquela que intervém em favor do
homem por ter sido primeiramente humana e alçada ao grau de santa por levar em seu ventre
o Filho de Deus.
Se Cristo, outrora Pai de Amor, agora se consubstancia em Pai da Justiça, é Maria
quem ocupa seu lugar de Amorosa, de Misericordiosa, no imaginário popular nordestino
presente no Castigo da soberba e também recorrente no Auto da Compadecida.
No texto de Suassuna, Nossa Senhora, a Compadecida, é apresentada como o símbolo
de afabilidade e de brandura. Com voz mansa, mas firme, é autora de gestos discretos, embora
significativos. Taxada de bisbilhoteira pelo Encourado, ao declarar que “mulher em tudo se
mete” (1975, 14), o Demônio evidencia o temor que possui de seu desempenho.
O Diabo é cônscio da tradição patriarcal, que eleva a figura da mãe dentro do lar, na
educação dos filhos. Essa veneração que a genitora alcança faz dela um ser poderoso, pois,
aliando doçura e firmeza, consegue ser a personificação da temperança, virtude que a alça ao
lugar de defensora maior de todos os homens, todos seus filhos por adoção:
ENCOURADO: Protesto.
MANUEL: Eu já sei que você protesta, mas não tenho o que fazer, meu
velho. Discordar de minha mãe é que não vou.
ENCOURADO: Grande coisa esse chamego que ela faz pra salvar todo
mundo! Termina desmoralizando tudo. (SUASSUNA, 1975, p. 170-171)
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Acréscimo nosso.
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Acréscimo nosso.
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Grilo é o homem do povo, sofredor, injustiçado, mas também aquele que usou as
mesmas armas que seus algozes. Mentiu, roubou, enganou. Primeiro, por necessidade, depois,
pelo prazer de vingar-se dos ricos e dos poderosos, daqueles que não pensam na causa dos
fracos, mas os oprimem. O Amarelo é também perspicaz para compreender que a única arma
que possui é a palavra. Sseu último instrumento é a voz e sua capacidade de persuadir, de
convencer.
Ali no entre-lugar, entre o céu, o inferno e o purgatório, Grilo vê-se ao lado do
Cangaceiro Severino de Aracaju, seu assassino, acompanhado pelo Padeiro e sua Esposa, seus
patrões sovinas, do Padre e do Bispo, os clérigos pouco afeitos à causa dos menos
favorecidos. Todos agiram contra o Grilo e contra todos Grilo agiu.
Abre-se o livro de registro dos pecados, descortina-se o rol de falhas humanas,
visibiliza-se a lista de desvios sociais:
[...] Simonia, no enterro do cachorro, velhacaria, política mundana,
arrogância com os pequenos, subserviência com os grandes [...] falta de
coleguismo com o bispo [...] preguiça [...] Hipocrisia e auto-suficiência [...]
roubava a igreja. [...] Piores patrões. [...] avareza do marido, adultério da
mulher. [...] Mataram mais de trinta. [...] o amarelo, que enganava todo
mundo. (SUASSUNA, 1975, p. 149-163)
São faltas graves cometidas, que gerariam, certamente, uma sentença condenatória.
Após a acareação do Padeiro e sua Esposa, do Bispo, do Sacristão e do Padre, há a
interferência de João Grilo, que decide atuar como o representante legal dos acusados. Aí,
mais uma vez, o Amarelo apropria-se de sua competência discursiva para, em nome do
cristianismo, conseguir um acordo, com a justificativa de derrotar o Demônio. A pena é
reduzida de ida eterna ao Inferno para uma passagem temporária pelo Purgatório, a fim de
expurgar os erros cometidos e tornarem-se aptos ao céu:
[...] Aqui não se trata de purificar uma coisa, nem mesmo de limpar uma
determinada área. Trata-se, sim, de purificarmos a nós mesmos: com a
morte, o homem, ainda mesmo como pessoa espiritual e moral, adquire
caráter e consumação definitivos. [...] (VAZ, 2004, p. 73).
como uma pena alternativa, livrando os personagens de caírem nas mãos do Encourado e dos
seus carcereiros, os demônios.
É com esse argumento que Grilo consegue livrar os religiosos e seus ex-patrões da
pena máxima:
JOÃO GRILO: Um momento, senhor. Posso dar uma palavra? [...] Os cinco
últimos lugares do purgatório estão desocupados?
MANUEL: Estão.
JOÃO GRILO: Pegue esses cinco camaradas e bote lá!
A COMPADECIDA: É uma boa solução, meu filho. Dá pra eles pagarem o
muito que fizeram e assegura a sua salvação.
JOÃO GRILO: E tem a vantagem de descontentar aquele camarada39 ali que
é pior do que carne de cobra. [...]
MANUEL: Então está concedido. (Auto, p. 180-169)
39
Refere-se ao Encourado.
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Causa da morte.
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mundo, reduzindo o campo de visão do homem, diminuindo as suas opções (ROSA, 2008). O
cristianismo bebeu da fonte do maniqueísmo, adaptando as suas leis a ideia do sim ou não
como únicas respostas viáveis aos cristãos, mas admitindo que há outras soluções possíveis,
mas estas conduzirão o ser humano ao Inferno e ao Maligno.
Para si, o Amarelo não desejava a mesma pena que os demais julgados obtiveram.
Conseguira separar os processos e fora julgado sozinho. Assim, tivera oportunidade de causar
nos membros do júri a dúvida e, nesse caso, in dubio pro reo41:
A COMPADECIDA: [...] Não o condene, deixe João ir para o Purgatório.
JOÃO GRILO: Para o Purgatório? Não, não faça isso assim não. [Chamando
a Compadecida à parte.] Não repare eu dizer isso mas é que o diabo é muito
negociante e com esse povo a gente pede mais, para impressionar. A senhora
pede o céu, porque aí o acordo fica mais fácil a respeito do purgatório.
A COMPADECIDA: Isso dá certo lá no sertão, João! Aqui se passa tudo de
outro jeito! Que é isso? Não confia mais na sua advogada?
JOÃO GRILO: Confio, Nossa Senhora, mas esse camarada termina
enrolando nós dois!
A COMPADECIDA: Deixe comigo. [...] Então fica satisfeito42?
JOÃO GRILO: Eu fico. Quem deve estar danado é o filho de chocadeira.
(SUASSUNA, 1975, p. 183-184)
Ipso facto43, Grilo vence o Diabo, obtendo, entre todos, a melhor sentença. O autor
paraibano, nesse momento, evidencia a força da religiosidade popular, que inclui uma ideia de
reencarnação, rejeitada pelo cristianismo clássico. O Amarelo experimenta a sensação de
imortalidade, prova do desejo humano de ser eterno ao conseguir seu retorno ao sertão. É
vitorioso por pelejar e derrotar o Encourado, bem-sucedido no embate discursivo com
Manuel, produtivo no convencimento de seus argumentos, seja no chão árido de Taperoá, seja
entre os espaços celestiais do julgamento.
Ao obter uma sentença ex tunc44, Grilo agradece a sua advogada pela absolvição dos
pecados, ao tempo em que solicita sua ajuda, visto que é difícil livrar-se de velhos hábitos:
41
Na dúvida a favor do réu.
42
A Compadecida consegue que João Grilo retorne a terra.
43
Em decorrência disso.
44
Os efeitos da sentença retroagem, sendo aplicados aos fatos acontecidos antes da publicação da
sentença.
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GRILO: Com Deus e com Nossa Senhora, que foi quem me valeu!
[Ajoelhando-se diante de Nossa Senhora e beijando-lhe a mão.] Até à vista,
grande advogada. Não me deixe de mão não, estou decidido a tomar jeito,
mas a senhora sabe que a carne é fraca. (SUASSUNA, 1975, p.188)
Os últimos instantes do julgamento de João Grilo são marcados pelo tom de comédia
na fala do personagem. Grilo é um pícaro e, como tal, está condenado a ludibriar as pessoas, é
o que sabe melhor fazer. Sua malandragem é defendida na obra como a estratégia encontrada
pelo homem pobre para sobreviver em meio ao descaso político e religioso. Para tal, usa o
‘jeitinho brasileiro’ como
Uma possibilidade de proceder socialmente, um modo tipicamente
brasileiro de cumprir ordens absurdas, uma forma ou estilo de conciliar
ordens impossíveis de serem cumpridas com situações específicas, e –
também – um modo ambíguo de burlar as leis e as normas sociais mais
gerais. (DAMATTA, 1986, p. 103).
Grilo é a síntese de um Nordeste árido, mas também simboliza um lugar alegre, feliz
apesar das disparidades, dos descasos e dos desmandos. Suassuna, em sua obra, defende que o
‘jeitinho brasileiro’ só existe porque falta uma ação oficial mais contundente, um olhar
diferenciado sobre o Nordeste, especificamente no sertão. Para o autor, a religião é o caminho
alternativo para a resolução dos problemas locais. O catolicismo, vivido em sua plenitude, é o
caminho para o conserto da sociedade e para o concerto do homem com a divindade, já que a
Deo rex, a rege lex45.
Consummatum est46
O castigo da soberba, cordel de autoria desconhecida, corrobora com o Auto da
Compadecida, texto teatral brasileiro mais popular do século XX, na discussão do poder da
religião na vida do sertanejo. Com efeito moralizante, ambos os textos julgam religiosamente
os seus personagens com o intuito de julgar o homem socialmente. A estrutura montada no
céu assemelha-se ao júri terreal; há defesa, há acusação e há apresentação de provas. Mas o
homem é condenado por afastar-se de Deus e, ao fazê-lo, distancia-se de si mesmo e de seus
semelhantes. A visão coletiva, nas obras, sobrepõe-se ao ideal individualista, percebido como
egoísmo e atraso social.
45
O rei vem de Deus, a lei vem do rei.
46
Está consumado.
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Referências
Castigo da soberba. In: MOTA, Leonardo. Violeiros do Norte. Rio de Janeiro: Editora a
Noite, 1955.
GOIS, João de Deus. Religiosidade popular. São Paulo: Edições Loyola, 2004.
NOGUEIRA, Carlos Alberto F. O Diabo no imaginário cristão. São Paulo: Ática, 1986.
ROSA, José Maria Silva. Da cisão extrema, no Maniqueísmo, à identidade como relação, em
Confissões X. Covilhã: Lusofonia, 2008
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. 11. ed. Rio de janeiro : Agir, 1975.
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A coisa julgada é tida como verdadeira.
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VASSALO, Lígia. O sertão medieval: origens europeias do teatro de Ariano Suassuna. Rio de
janeiro: Francisco Alves, 1993.
VAZ, Eurides Divino. Uma reflexão sobre céu, inferno e purgatório. Petrópolis, RJ: Vozes,
2004.