Vous êtes sur la page 1sur 8

DOI: 10.5433/2237-9126.2013ano6n13p24 A fotografia mortuária no contexto familiar: estudo de retratos produzidos em Bela Vista de Goiás ...

Introdução

Falar sobre a morte é uma tarefa difícil em uma cultura na qual a maioria das
pessoas prefere nem mesmo pensar sobre ela. O homem urbano ocidental se sente
atemorizado pelo fato de que a morte é certa, definitiva e repleta de mistérios. Numa era de
tantos avanços técnicos e científicos, a morte parece ser a única capaz de desafiar a capacidade
do ser humano atual de dominar todos os territórios e assuntos. Então, torna-se mais cômodo
não pensar sobre ela. Segundo Rodrigues (1983, p. 66),

[...] tudo o que representa o insólito, o estranho, o anormal, o que está à margem das normas, tudo
o que é intersticial e ambíguo, tudo o que é anômalo, tudo o que é desestruturado, pré-estruturado
e anti-estruturado, tudo o que está a meio caminho entre o que é próximo e predizível e o que é
longínquo e está fora de nossas preocupações, tudo o que está em nossa proximidade imediata e
fora de nosso controle, é germe de insegurança, inquietação e terror: converte-se imediatamente
A fotografia mortuária no contexto em fonte de perigo.

familiar: estudo de retratos produzidos A morte e tudo o que se refere a ela é localizado, pela nossa cultura, numa zona intersticial,
sobre a qual as estruturas culturais não têm pleno domínio. Isto é resultado de um longo
em Bela Vista de Goiás (1920-1960) processo que se iniciou no século XVIII. Neste período, segundo Menezes (2004, p. 28),
consolida-se “[...] a mudança de paradigma que instituiu a racionalidade anátomo-clínica como
Déborah Borges fundamento da medicina. [...] A medicina, seu saber e sua instituição tornam-se referências
centrais no que se refere a saúde, vida, sofrimento e morte”. Desta forma, o doente, o
moribundo e a morte passam a ser cada vez mais confinados ao hospital, permanecendo longe
Graduada em Jornalismo pela Universidade Federal de Goiás (2004). Mestre em Cultura Visual
pela Universidade Federal de Goiás (2008). Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Arte do cotidiano imediato das pessoas. A autora aponta ainda que ao longo do século XX “[...] a
e Cultura Visual pela Universidade Federal de Goiás. Professora do curso de Jornalismo da Pontifícia estrutura de personalidade dos indivíduos é alterada com o esvaziamento dos rituais seculares e
Universidade Católica de Goiás. 
um controle individual maior sobre a expressão dos sentimentos face ao sofrimento e à morte”
Resumo (MENEZES, 2004, p. 35). Enfim, pode-se afirmar que a atitude ocidental contemporânea de
Este trabalho propõe análises sobre as maneiras pelas quais famílias enlutadas utilizaram repúdio à proximidade com a morte resulta destes dois processos: a medicalização da vida
os retratos de pessoas falecidas no período de luto. Para isto, fixamos a cidade de Bela e da morte, sobretudo com a transferência cada vez mais frequente do moribundo para o
Vista de Goiás como espaço para a investigação, tentando estabelecer relações entre o
hospital, e a crescente desvalorização dos rituais, principalmente os religiosos, como meio de
conteúdo expresso nas fotografias, produzidas entre as décadas de 1920 e 1960, e o
contexto cultural que cercava a produção e os usos destas imagens. Assim, esta pesquisa gerenciar a morte e o período de luto.
busca contribuir com as discussões acerca das mentalidades coletivas sobre morte e rituais O objeto das análises propostas neste trabalho causa estranheza e repulsa a muitas pessoas
de morte, além de refletir sobre um tipo específico de uso da fotografia num processo de na contemporaneidade. Quando se trata da fotografia de um defunto, o homem ocidental
construção de memórias familiares.
Palavras-chave: Morte; Fotografia; Bela Vista de Goiás.  contemporâneo muitas vezes não compreende e até mesmo condena quem produz esses
retratos. E não só quem pratica, mas também quem estuda a foto mortuária tem sido alvo
Abstract de críticas na contemporaneidade, segundo Ruby (1995). Como se tais pessoas nutrissem
This paper proposes analysis about the ways in which bereaved families used the portraits um reprovável gosto para o mórbido.
of deceased persons in mourning. For this, we fix the town of Bela Vista de Goiás as Percebe-se, desta forma, que atualmente a morte é um assunto mais incômodo até do
the space for research, trying to establish relations between the content expressed in
the photographs produced between the 1920s and 1960s, and the cultural context que o sexo nas culturas ocidentais. De acordo com Maranhão (1986, p. 9),
surrounding the production and use of these images. Thus, this research aims to contribute
to the discussions about collective mentalities on death and death rituals, and reflect on [...] no espaço destas últimas cinco décadas assistimos a um fenômeno curioso na sociedade industrial
a specific type of use of photography in the process of building family memories.. capitalista: à medida que a interdição em torno do sexo foi se relaxando, a morte foi se tornando um
Keywords: Death; Photography; Bela Vista de Goiás.  tema proibido, uma coisa inominável. A obscenidade não reside mais nas alusões às coisas referentes
ao início da vida, mas sim aos fatos relacionados com o seu fim.
Recebido em: 03/09/2013 Aprovado em: 28/10/2013

24 Domínios da Imagem, LonDrina, v. 7, n. 13, p. 24-38, jul./dez. 2013 domínios dA imAgem, londrinA, v. 7, n. 13, p. 24-38, jul./dez. 2013 25
Déborah Borges A fotografia mortuária no contexto familiar: estudo de retratos produzidos em Bela Vista de Goiás ...

Desta forma, diversas práticas fúnebres e Fotografia mortuária e memória Europa e nas Américas, a ponto de muitos a importância desse tipo de retrato nos
de luto, assim como tudo o que se relacione deles publicarem anúncios em veículos primórdios do desenvolvimento da técnica
ao tema da morte, vêm sendo cada vez mais Para Riera (2006) a fotografia mortuária de comunicação, propagandeando suas fotográfica.
afastadas do cotidiano do homem ocidental se refere a todos os tipos de fotos realizadas habilidades em fazer belos retratos de Na verdade, fazer um belo retrato de um
urbano contemporâneo. Vê-se a morte em após a morte de alguém, incluindo as que pessoas falecidas. Mellid (2006) e Riera defunto não era uma das atividades mais
filmes, livros, jogos eletrônicos e veículos de são encomendadas pelos familiares, as que (2006) afirmam que os retratos mortuários complicadas dos daguerreotipistas, visto que,
comunicação, diariamente. Mas a morte, se utilizam nos veículos de comunicação e as tiveram considerável importância para o como ressalta Mellid (2006, s/p., tradução
enquanto fenômeno biológico desencadeador imagens forenses, por exemplo. Entretanto, próprio desenvolvimento da fotografia, tanto da autora),
de uma série de manifestações e sentimentos esta pesquisa considera “[...] as imagens que os defensores da nova técnica faziam
socialmente compartilhados, não se insere no referência aos bons resultados obtidos nos [...] tratavam-se dos melhores modelos nesse
post mortem tomadas como recordação
momento em que os tempos de exposição
dia-a-dia das pessoas no Ocidente. A morte, familiar do falecido, ou seja, fotografias retratos de defuntos para exemplificar as necessários eram muito grandes. A quietude
não o sexo, é o grande tabu contemporâneo. encomendadas por particulares para sua qualidades da nova tecnologia. dos falecidos favoreceu em alguma medida
Conforme expõe Maranhão (1986, p. 10), utilização ou exibição privada, em geral, De fato, segundo Bolloch (2002), o a proliferação deste tipo de retratos, já que
o fotógrafo não tinha que tomar precauções
dentro do próprio lar” (RIERA, 2006, s/p., retrato mortuário foi praticado desde o
para que o modelo não saísse tremido e, além
[...] a permanente popularidade dos filmes advento da daguerreotipia, até mesmo
tradução da autora). Trata-se, portanto, de disso, tinha certa liberdade de manipulação,
de terror e o aparecimento de um novo culto
da violência nas produções cinematográficas fotografias produzidas com um fim específico como oportunidade de aprendizado e como se se tratasse de uma natureza morta.
confirmam esse deslocamento do tabu. e diferente de todos os outros tipos de aperfeiçoamento da nova técnica pelos
A morte, não o sexo, é agora o tabu que imagens que representam pessoas mortas. artistas da época. Assim, o autor relata que Portanto, havia, de certa forma,
violamos – a “pornografia da morte” causa-
Seu uso se associa ao processo de luto, que em considerável liberdade criativa do fotógrafo,
nos excitação.
é uma experiência vivenciada, sobretudo, que poderia fazer o retrato em algum
14 de outubro de 1839, ou seja, alguns meses ambiente dentro da casa do falecido ou
Neste contexto de rejeição da temática da dentro de um núcleo familiar; daí o fato de
após a apresentação à academia de ciências
ser restrita a um certo número de pessoas a do método desenvolvido por Daguerre e
mesmo em seu próprio estúdio fotográfico,
morte, propor uma reflexão sobre a fotografia
visualização das fotografias dos mortos de dois meses após a sua divulgação, as Atas sem precisar se preocupar muito com os
mortuária não é tarefa fácil. Com o propósito
uma determinada família. entregues à Academia de Ciências fazem tempos de exposição necessários. Assim,
de analisar os sentidos de retratos fúnebres exposição da leitura de uma carta assinada
Ruby (1995) utiliza em seu trabalho poderiam utilizar-se inúmeros arranjos de luz,
produzidos em Bela Vista de Goiás no pelo doutor Alfred Donné: “Eu tenho a honra
o termo mortuary portraits, que pode ser de vos enviar as novas imagens Daguerrianas poses e diversos atributos a fim de embelezar
período de 1920 a 1960, faço inicialmente
traduzido por retratos mortuários. Isto se gravadas pelo procedimento cujos primeiros o morto e a cena.
uma reflexão sobre o que é a fotografia ensaios apresentei à Academia”. O autor
deve, em parte, ao fato de que o autor aborda Além da publicidade feita pelos fotógrafos
mortuária e suas tipologias mais comuns elabora uma lista de obras em questão: “Eu já
em sua pesquisa outras imagens de mortos obtive um ótimo resultado tomando a imagem
sobre suas habilidades em retratar defuntos,
ao longo do tempo, buscando percebê-la
além das fotografias. Entretanto, todas elas de uma pessoa morta”. Infelizmente nenhum também era comum que, no século XIX,
como artefato elaborado socialmente. Em
têm em comum o fato de serem retratos1, vestígio deste daguerreótipo foi encontrado. esses profissionais discutissem em veículos
seguida, unindo esse referencial teórico aos (BOLLOCH, 2002, p. 112, tradução de
sejam pinturas, daguerreótipos, fotografias especializados sobre as técnicas para a
relatos fornecidos pelos proprietários das Carolina Diomara)
em papel ou porcelana. produção de boas fotografias de mortos.
fotografias cedidas para esta pesquisa, busco
A fotografia mortuária é uma prática Segundo Ruby (1995, p. 110, tradução da
analisar os sentidos, os usos e as funções da Entretanto, por este depoimento
que teve início quando do advento do autora), “[...] fotógrafos profissionais eram
fotografia mortuária no contexto belavistense percebemos que o ato de retratar uma pessoa
daguerreótipo, na Europa, cuja descoberta regularmente solicitados para retratar o
do período analisado. Assim, espero oferecer morta pôde ser comunicado abertamente
foi anunciada oficialmente em 1839 (AMAR, morto. Eles anunciavam o serviço em jornais
uma contribuição à compreensão das pelo doutor Alfred Donné, sem a preocupação
2001). Durante todo o século XIX, fotografar e mantinham discussões profissionais nos
relações entre a fotografia e a morte, em em se tornar alvo de críticas. Isto aponta para
os mortos foi uma atividade desempenhada seus jornais sobre o melhor meio de realizar
especial como a linguagem fotográfica se o fato de que no século XIX o ato de registrar
c o r re n t e m e n t e p e l o s f o t ó g ra f o s n a a tarefa”.
mostra adequada, no contexto familiar, à as feições de um morto era socializado
Fotografar os mortos era, pois, uma
necessidade de expressão de uma série de 1 “Representação tangível, em duas ou na Europa Ocidental. Além disso, a fala
prática aceita socialmente no século XIX,
sentimentos relacionados à morte e ao luto. três dimensões, da fisionomia de uma mencionada por Bolloch (2002) demonstra
pessoa” (LEMOS, 1983, p. 49). embora não tenha chegado a constituir uma

26 Domínios da Imagem, LonDrina, v. 7, n. 13, p. 24-38, jul./dez. 2013 Domínios Da imagem, lonDrina, v. 7, n. 13, p. 24-38, jul./dez. 2013 27
Déborah Borges A fotografia mortuária no contexto familiar: estudo de retratos produzidos em Bela Vista de Goiás ...

obrigatoriedade entre os ritos mortuários Já no século XX, embora a fotografia fúnebres realizados na ocasião. Esta função atores sociais.
existentes no período. Os familiares poderiam mortuária tenha continuado a ser praticada, do retrato mortuário permanece nos dias Ver o morto no contexto mesmo de sua
optar por fazer, ou não, retratos de seus os profissionais já não anunciavam o serviço atuais, conforme Ruby (1995) e Koury morte, seja para lembrar de uma experiência
mortos. Não há evidências da existência de e tampouco discutiam técnicas específicas (2001), embora num outro contexto de vivida ou para formular outro tipo de
um dever moral ou religioso desta natureza para a produção destes retratos. Ruby produção e consumo, diferente do que experiência de dor e pesar pela morte de
nas sociedades cristãs ocidentais, como (1995) atribui este silêncio sobre a fotografia existia no século XIX e na primeira metade um parente ou amigo: seja qual for o uso
ocorria, por exemplo, com o uso de roupas mortuária na primeira metade do século XX do século XX. que a fotografia mortuária possa ter tido,
pretas como marca de luto numa família, ao fato de que a existência da prática de Além de sua importância no processo parece haver uma forte ligação entre a
comportamento com regras cuja observância fotografar os mortos se tornou tão conhecida de luto, destaco também uma função de prática de retratar os mortos e a construção
deveria ser bastante rígida. Apesar de Riera e aceita socialmente que era desnecessário comunicação desempenhada pela fotografia e a manutenção de memórias. A relação da
(2006) afirmar a existência de uma quase anunciar tais serviços ou discutir sobre sua mortuária que, segundo Ruby, ainda é fotografia com a lembrança e a memória,
“obrigatoriedade” das famílias em fazer produção publicamente, uma vez que já se verificada nos círculos sociais onde persiste em especial a de família, não se restringe
retratar seus mortos no século XIX, considero encontravam estabelecidos certos modelos a prática de retratar os mortos. Há vários aos retratos mortuários. Entretanto, como
mais acertado falar numa grande aceitação para a produção destas imagens. casos em que a comunicação da morte o ato de recordar, de (re)construir memórias
social desse tipo de imagem. A popularização Com relação às motivações para a de alguém foi feita por meio de retratos é inerente ao processo de vivência da dor
dessa prática provavelmente fez com que realização de fotos mortuárias e seus usos, fotográficos do morto enviados a parentes da perda durante o período de luto, a
houvesse certa expectativa das pessoas em podemos dizer que tanto no século XIX quanto que não puderam comparecer ao velório. preservação da memória é uma das razões
encomendarem fotografias de seus entes no XX, tanto na Europa quanto nas Américas, Conforme expressa Ruby (1995, p. 161), “[...] mais fundamentais para se fazer a fotografia
queridos mortos, não propriamente em não são fatores morais, religiosos ou sociais a fotografia foi tomada como um substituto de um defunto. Para Sontag (2003, p. 96),
cumprimento a uma exigência sociocultural os principais justificadores desta prática. para a experiência – obviamente uma das
mas, antes, pelo reconhecimento de um certo A imagem de um morto particularizado é mais básicas funções da fotografia”. [...] recordar é um ato ético, tem um valor ético
em si mesmo e por si mesmo. A memória é, de
valor em perpetuar uma última imagem do concebida e utilizada, sobretudo, dentro Na complexa relação que as pessoas forma dolorosa, a única relação que podemos
morto. de um contexto de vivência da dor pela tentam estabelecer com seus mortos, ter com os mortos. Portanto a crença de que
O costume de fotografar os mortos perda de um ente querido. Para Ruby portanto, a fotografia, enquanto objeto recordar constitui um ato ético é profunda
em nossa natureza de seres humanos, pois
persistiu com maior força na cultura cristã (1995), não há dúvidas de que as pessoas de rememoração, tem uma considerável
sabemos que vamos morrer e ficamos de luto
ocidental até meados do século XX. Segundo encomendavam retratos assim porque importância, segundo Ruby. Entretanto, por aqueles que, no curso normal da vida,
Koury (2001, p. 107), elas sentiam a necessidade de uma última o mesmo autor chama a atenção para morrem antes de nós – avós, pais, professores
lembrança visual de seus parentes e amigos. a existência de poucos estudos sobre os e outros amigos. Insensibilidade e amnésia
[...] a fotografia mortuária surge logo após o parecem andar juntas.
É importante destacar que esta necessidade usos da fotografia, de modo geral, nos
aparecimento da fotografia como arte e como
técnica de registro e fixação de um presente
se manifestava não apenas como um desejo processos de luto. Quanto à foto mortuária,
Ora, segundo o raciocínio da autora,
passado específico. Sua popularização, de reter apenas os traços fisionômicos do ente particularmente, ao menos no século XIX
contudo, vai se dar entre os anos de 1920 e
podemos perceber o quanto é difícil e
querido falecido, mas, mais do que isso, ter e na primeira metade do século XX, sua
1950, quando é utilizada por várias camadas também necessária a relação dos vivos com
um registro permanente do morto enquanto importância e seus usos parecem ter sido
da população. seus mortos. Nenhum grupo humano mantém
morto. Nas palavras de Koury (2001, p. 68), socializados de forma harmoniosa tanto
indiferença no tratamento dispensado aos
a foto mortuária “[...] visa deter os traços da na Europa quanto nas Américas. A prática
Entretanto, embora o hábito de fotografar defuntos. Bayard (1996, p. 43) expressa
morte e da deterioração posterior do cadáver, de fotografar um morto e a posterior
os mortos tenha se mantido na passagem a importância deste comportamento
amenizando a dor dos que ficam, quando da contemplação desse retrato como meio de
do século XIX para o XX, Ruby (1995, p. 55, afirmando que “[...] o homem é o único
evocação do morto através do registro”. elaborar a perda e reverenciar a memória do
tradução da autora) aponta uma diferença animal que acende fogo e enterra mortos”.
O uso da fotografia mortuária, então, falecido não eram alvos de críticas. No século
na prática desse tipo de representação O fato de nutrir sentimentos em relação a
estava relacionado ao processo de vivência XIX, ainda que os usos e a exibição das fotos
nos dois séculos. Segundo o autor, “[...] no seres que deixaram de existir neste mundo
da morte, na medida em que permitia aos mortuárias nem sempre se estendessem
século dezenove os fotógrafos anunciavam diferencia o homem dos outros animais. E a
familiares recordarem os acontecimentos para fora do círculo familiar, a prática era
e discutiam abertamente a prática”. maneira básica pela qual essa relação entre
relacionados a essa passagem e aos ritos conhecida e aceita por fotógrafos e demais

28 Domínios da Imagem, LonDrina, v. 7, n. 13, p. 24-38, jul./dez. 2013 Domínios Da imagem, lonDrina, v. 7, n. 13, p. 24-38, jul./dez. 2013 29
Déborah Borges A fotografia mortuária no contexto familiar: estudo de retratos produzidos em Bela Vista de Goiás ...

vivos e mortos se processa é pela memória. entrelaçados, de onde pende um rosário. Ora, caso dos Estados Unidos (RUBY, 1995). Em pessoa viva.
Alimentar esta memória é a função primordial é perfeitamente possível a compreensão de geral, associa-se a noção da boa morte com Por que isto acontecia? Não é fácil
de construções tumulares, monumentos que esta criança está morta, uma vez que a a doutrina católica, mas este é um conceito encontrar uma resposta exata para esta
funerários e da fotografia mortuária, dentre de alguma forma desenvolvido em diversas questão. Afinal, como bem expressa Riedl
outros objetos confeccionados no contexto culturas. Se a doutrina protestante não (2002, p. 171), “[...] para o ato de fotografar os
de vivência do sofrimento pela morte do permitia as figuras dos santos e da Virgem – mortos não há necessariamente uma relação
ser amado. E, sendo a recordação um quanto mais contemplá-las como exemplos causal entre origens e efeitos”. Entretanto,
ato ético, segundo Sontag (2003), ao de boa morte! – com o advento da fotografia podemos supor uma explicação para pelo
edificar um túmulo ou tirar uma foto de seu os retratos mortuários serão amplamente menos parte dos casos de fotografias do
morto, o ser humano expressa determinados utilizados entre fiéis desta vertente religiosa estilo “Vivo, embora Morto”. Em diversas
valores morais, religiosos e culturais que são tanto na Europa quanto na América do Norte. situações o que ocorria era que o retratado
socialmente compartilhados. A ideia da morte como sono foi mantida morria sem nunca ter tirado uma fotografia
entre os protestantes como um repouso entre em vida. Assim, a foto mortuária acabava
a morte individual e a ressurreição. Segundo sendo o único registro visual disponível para
Tipologias Silva (1993, p. 143), os familiares. Daí, talvez, a necessidade de
produção da cena evidencia isto pela presença utilizar uma série de estratagemas para fazer
Segundo Jay Ruby (1995), é possível de elementos que aludem aos ritos funerários [...] de acordo com o espírito reformado, só com que o defunto parecesse estar vivo
existiam dois lugares para as almas após a
identificar três estilos de representação do da época, tais como as flores e o rosário. morte: o Paraíso, onde repousavam as almas
nestas fotografias, como, por exemplo, utilizar
Fig. 1: Fotografia mortuária do tipo Último Sono. Século
defunto nos retratos fotográficos mortuários dos justos e não precisavam da intervenção uma colherinha de café para abrir os olhos do
XIX. In: http://www.thanatos.net, acesso em 20 jul. 2007.
do século XIX. Segundo o autor, “[...] dois dos vivos pois estavam ao lado de Deus, e morto e, depois, recolocá-los corretamente
o Inferno, de onde as almas condenadas
tipos foram elaborados para ‘negar a morte’, na órbita ocular (RIERA, 2006). Em outras
A s s i m , é p o s s í ve l d e s t a c a r u m a jamais sairiam. Desta maneira, as almas não
ou seja, para simular que o falecido não retornavam de onde estavam como também situações, como ocorre na figura 2, podia-se
ambiguidade com relação à pose denominada
estava morto, enquanto uma terceira variação não adiantavam orações ou sufrágios especiais também pintar os olhos abertos na fotografia
“Último Sono”. Aparentemente, havia um
retrata o falecido com os enlutados” (1995, para os mortos. após a fixação da imagem, ou apenas efetuar
desejo de retratar o morto como se não
p. 63, tradução da autora). No primeiro retoques em retratos onde os olhos do
estivesse morto, mas dormindo. Entretanto,
estilo, denominado por Ruby como “O Sendo assim, podemos supor que a defunto já estivessem abertos.
o enlutado que fazia uso de uma imagem
Último Sono”, representa-se o morto como boa aparência do morto na foto seria
assim tinha consciência de que o retratado
se estivesse, na verdade, repousando. A figura uma necessidade ainda maior entre os
estava, de fato, morto. Percebemos, aí, a
1 mostra um exemplo desta tipologia. Nela protestantes do que entre os católicos. Ora,
importância da bela aparência do defunto e
percebemos uma intenção de registrar a se não há nada que os sobreviventes possam
da associação da morte com o sono dentro
criança morta como se estivesse repousando. fazer para contribuir com a salvação da alma
da mentalidade ocidental sobre a morte no
A pequena defunta foi colocada numa cama de seus entes queridos, então não é de se
século XIX. Ora, estas imagens cumpriam
enfeitada por um rico enxoval branco, mesma estranhar que os protestantes necessitassem
um papel no processo de elaboração do luto
cor das vestes da menina. O esmero com que de algum tipo de garantia de que seus
e, neste sentido, fazia-se necessário cuidar
foi feito o arranjo da cena chama a atenção. parentes e amigos tiveram uma boa morte,
para que o último registro visual da pessoa
O lençol que cobre parte do corpo da criança digna do reino dos céus.
morta reforçasse nos sobreviventes a crença
foi cuidadosamente esticado; as flores foram Talvez ainda mais ambíguas possam
de que seu ente querido desfrutava de uma
distribuídas de maneira harmoniosa ao redor parecer as fotografias mortuárias do segundo
boa morte.
da pequena morta. Entretanto, esta imagem estilo definido por Ruby (1995), denominado
Vale lembrar que a fotografia mortuária,
possibilita uma interpretação de que a “Vivo, embora morto”. Nestas imagens
de modo geral, e especialmente a pose
retratada esteja morta, e não simplesmente pretende-se eternizar a figura do morto como
do “Último Sono”, foi prática comum em
repousando. As mãos da menina estão se, na verdade, estivesse vivo; não dormindo, Fig. 2: Fotografia mortuária do tipo Vivo, embora morto.
países predominantemente protestantes, Século XIX. In: http://www.thanatos.net, acesso em 20
postas em pose de oração, com os dedos mas posando para a objetiva como uma
jul. 2007.

30 Domínios da Imagem, LonDrina, v. 7, n. 13, p. 24-38, jul./dez. 2013 Domínios Da imagem, lonDrina, v. 7, n. 13, p. 24-38, jul./dez. 2013 31
Déborah Borges A fotografia mortuária no contexto familiar: estudo de retratos produzidos em Bela Vista de Goiás ...

Além disso, podia-se colocar a pessoa outras pessoas, além do núcleo familiar. Isto
morta sentada, com as pernas cruzadas, [...] fixar para a eternidade o prestígio do demonstra o quão socialmente aceitos, e
morto e dos seus familiares que ficam, para a
segurando algum objeto, ou fazer com que comunidade à qual pertencia. [...] Fotografias
até mesmo obrigatórios, em certa medida,
ela permanecesse de pé apoiada em outras que consolidavam não apenas o prestígio eram essas celebrações. Um único relato
pessoas ou em outros tipos de suportes mais social, político e econômico do morto, mas a exemplifica bem o quanto a sociedade
sua continuidade através da família (KOURY,
elaborados (esta última pose é mais rara). belavistense demonstrava solidariedade
2001, p. 85-86).
Enfim, percebemos que para com a família enlutada, por meio do
cumprimento dos costumes mortuários.
Assim, em diversos casos, parece haver
Maria Adélia, ao relembrar a morte de seu
[...] costumava-se dar completa liberdade à
um interesse em registrar a opulência dos
filho Domingos, na madrugada de 21 de maio
pessoa encarregada de tomar a imagem para funerais, captando na fotografia a riqueza
vestir e dispor o corpo como considerasse
de 1941, vítima de difteria, conta o seguinte:
das vestes e dos adereços de mortos e
apropriado. Muitos dos fotógrafos daquela
vivos, a exuberância dos adornos utilizados [...] todos se comoveram com esta morte. Os
época se converteram em autênticos
especialistas da maquiagem, chegando a na decoração da cena e a presença de parentes, os amigos, os vizinhos. [...] Naquele
obter-se resultados muito espetaculares em pessoas ilustres ao velório, como estratégia tempo, a escola participava da vida da família
alguns casos e bastante patéticos em outros. e a Naíca parou às duas horas da tarde à nossa
de perpetuação de uma memória do morto
(RIERA, 2006, tradução da autora) porta com todos os alunos uniformizados, para
como integrante de um determinado grupo acompanhar o enterro. Domingos tinha sete
social. anos e sete meses (ARANTES, 2007, p. 344).

Estes dois primeiros tipos – “O Último


Percebemos, assim, um tipo de relação
Sono” e “Vivo, embora Morto” – ocorreram
Fig. 3: Fotografia mortuária do morto como morto. Fotografias mortuárias de Bela Vista de com a morte bastante diferente da que se
com mais frequência no século XIX, conforme Século XIX. In: http://www.thanatos.net, acesso em 20
jul. de 2007.
Goiás delineia na atualidade, conforme exposto,
Ruby (1995). Já a terceira categoria de
com uma crescente medicalização da morte
fotos mortuárias, que retrata o morto como
Segundo Koury (2001), a fotografia A s f o t o g ra f i a s m o r t u á r i a s, e uma quase ocultação do cadáver durante
morto, surge concomitantemente às outras e
mortuária também teria importância como frequentemente, são inseridas no contexto os ritos finais3.
persiste como principal modelo até meados Fig. 4: Fotografia mortuária do morto como morto.
meio de referenciar socialmente o morto2 de outros ritos fúnebres compartilhados pelos
do século XX. Nestas imagens, encontram- Antônio Faria. Aproximadamente 1945. Acervo
. Assim, um dos propósitos da prática de integrantes de determinadas sociedades. particular – Nair Alves Teles.
se elementos que permitem a interpretação
retratar um defunto seria. Em Bela Vista de Goiás, constataremos 3 Cabe ressaltar que esse processo não tem
exata de que o retratado está, de fato,
a presença de costumes como o uso de ocorrido uniformemente em todos os lugares.
morto. Na figura 3, por exemplo, vemos uma
2 Neste sentido, podemos destacar também a roupas pretas entre os familiares enlutados, o Em Bela Vista mesmo, até hoje, há uma cultura
criança morta dentro de um caixão branco, prática de fazer máscaras mortuárias do defunto, de solidariedade para com as famílias enlutadas
anúncio da morte por meio de badaladas do
mesma cor de suas vestes. A foto foi feita que foi exercida com bastante frequência até o e a permanência de certos ritos, ainda que com
sino da Igreja – cujas variações informavam,
no cemitério onde a menina seria enterrada século XIX, sobretudo para pessoas ilustres. algumas modificações. Se antes o anúncio
também, se se tratava de criança, adulto,
em seguida: no segundo plano, erguem-se Segundo Raynaud (2002, p. 22 e 23, tradução de da morte era feito pelo dobrar de sinos da
Carolina Diomara), “[...] a máscara mortuária é homem ou mulher –, as missas de corpo Igreja e pelo seu sistema de alto-falantes – eu
algumas construções tumulares, e logo atrás
uma evidente manifestação da obsessão macabra presente e as posteriores, de sétimo dia, de mesma me lembro de falecimentos anunciados
do caixão parece haver uma cova aberta.
que assombra os homens do fim da Idade um mês e um ano de falecimento, conforme desta forma, quando eu era criança –, com o
Ora, neste exemplo há elementos mais do
Média. [...] Artifício dos funerais do século serve de testemunho o relato de Maria Adélia crescimento da cidade houve a necessidade
que suficientes para afirmar que a criança XV que celebravam, pela pompa estendida, de realizar essa comunicação por meio de
Mendonça Arantes (2007). Trata-se de rituais
retratada está morta. a glória terrestre do defunto, oferecia outra carros de som que percorrem diversos bairros.
identificados também em outras regiões do
forma de imortalidade a este último permitindo Além disso, se já não é obrigatório o uso de
país.
aos artistas compor retratos póstumos. [...] roupas pretas em sinal de luto, ao menos as
Por trás da máscara perfila-se assim um O que interessa ressaltar, aqui, é o fato de visitas às famílias que perderam um de seus
fenômeno essencial: a afirmação do indivíduo”. que em Bela Vista de Goiás os ritos mortuários membros ainda são praticadas, assim como
Exemplos de máscaras mortuárias podem ser contavam com grande participação de as missas de sétimo dia, um mês e um ano de
encontrados em Normand-Romain (1995). falecimento, entre os belavistenses católicos.

32 Domínios da Imagem, LonDrina, v. 7, n. 13, p. 24-38, jul./dez. 2013 Domínios Da imagem, lonDrina, v. 7, n. 13, p. 24-38, jul./dez. 2013 33
Déborah Borges A fotografia mortuária no contexto familiar: estudo de retratos produzidos em Bela Vista de Goiás ...

era suficiente para impedir ou mesmo explicar negra na imagem ao fato de que a falecida
as causas da morte de alguém, como foi o não gostava de fotografias, e jamais se
caso da moça da figura 4. Entrecruzavam- deixou fotografar em vida. Assim, quando
se, no cotidiano das famílias belavistenses, Adelino Roque, fotógrafo que fez a foto,
orientações de origem médica, religiosa revelou o negativo e ampliou o retrato, todos
e, até mesmo, mágica, que serviam para consideraram que se tratava de um sinal
cuidar da saúde de todos os membros da de que a morta não havia ficado satisfeita
família. Embora não seja o objetivo deste com a desobediência de sua família, que
trabalho explorar o imaginário sobre saúde havia contrariado sua vontade de nunca ser
e doença, vale ressaltar que crenças como fotografada.
Fig. 5: Fotografia mortuária do morto como morto.
a manifestada por Dona Nair não surgiam
Adelino Roque. 13/04/1936. Acervo particular – Messias
aleatoriamente, mas na maioria das vezes Ferreira Prego.
apoiavam-se sobre algum tipo de constatação
empírica, por mais precária que fosse.
Para finalizar este artigo, analiso
duas fotografias que são muito ricas em
informações não apenas sobre a mentalidade
vestido com um traje mais sóbrio – parece da morte em Bela Vista na primeira metade
A população belavistense da primeira ser um terno, mas sem gravata. No canto do século XX, mas também sobre o imaginário
metade do século XX, aliás, diversas vezes inferior direito encontra-se a assinatura do coletivo acerca da fotografia e sua relação
não contava com serviço médico nem fotógrafo, Antônio Faria. A foto não me diz com os mortos. Na figura 5 vemos a foto
mesmo para satisfazer suas necessidades muito mais do que isso. mortuária de uma senhora coberta com um
mais imediatas, quanto mais para cuidar dos Entretanto, o relato da proprietária da tipo de manto, disposta sobre um banco
moribundos. A morte em casa era bastante foto, Dona Nair Alves Teles (2006) permite- forrado com tecidos brancos. A cabeça da Na figura 6 temos outro exemplo
comum, conforme se percebe pelos vários nos avançar um pouco além na investigação defunta está apoiada sobre um travesseiro interessante, ainda nesta relação entre
relatos de Maria Adélia (2007) sobre mortes proposta. A fotografada era sua irmã, e o também branco, e seus longos cabelos os mortos e a fotografia, a qual integrava
ocorridas em seu círculo familiar e de retrato foi feito a pedido do senhor que negros foram cuidadosamente penteados e de alguma maneira o imaginário coletivo
amizades. Uma das fotografias mortuárias está junto ao caixão; ele era primo da dispostos sobre seu busto. Ao fundo, sobre belavistense. Na imagem vemos o retrato de
localizadas no município, acompanhada pelo morta e insistiu para fazer a foto, como algum móvel, há alguns vasos com flores, e um casal e, centralizada na foto, atravessando-a
relato de sua proprietária, demonstra bem meio de guardar uma última recordação na parede, um crucifixo. A foto está bastante na horizontal, a foto mortuária de uma
esta carência de serviços médicos, e como da moça. Entretanto, foi ao questionar deteriorada, e apresenta uma enorme mulher. Esta outra imagem se sobrepõe à
isso também acabava interferindo na própria sobre a causa da morte da menina que mancha negra na porção superior, mais à primeira, e sua transparência deixa entrever
mentalidade sobre saúde, doença e morte a proprietária da imagem forneceu uma esquerda da imagem. aspectos do homem e da mulher retratados.
entre os belavistenses. Trata-se da figura 4, informação bastante importante sobre o que A proprietária da fotografia é Dona Esta imagem foi reproduzida a partir de um
na qual vemos o retrato mortuário de uma os belavistenses da época pensavam sobre Messias Ferreira Prego, e a retratada era sua exemplar de propriedade do Senhor Daniel
moça falecida por volta do ano de 1945, saúde e morte: Dona Nair disse que sua irmã mãe. Ela faleceu no dia 13 de abril de 1936, Vieira, mas outra cópia também foi localizada
com 15 anos de idade, aproximadamente. A havia falecido, muito provavelmente, “[...] vítima de um Acidente Vascular-Cerebral, ou na residência de Antônio Faria, que foi o autor
defunta está vestida com uma túnica branca, por ter se molhado na água fria de um rio derrame, como se conhece popularmente da foto. Trata-se de uma imagem cuja história
tendo uma espécie de touca na cabeça, e durante o período menstrual”. Percebe-se, e como a própria Dona Messias (2006) é repetida há décadas entre os belavistenses:
seu corpo foi disposto dentro de um caixão aí, que havia limitações no que diz respeito denomina a enfermidade que acometeu o homem da foto teria matado sua esposa
branco ornamentado com um arranjo de à medicalização da vida dos habitantes do sua mãe. Mas o relato da proprietária traz para poder se apoderar de sua herança e
flores brancas. O caixão está apoiado sobre município da época; apesar de recorrerem aos outra informação importante: os familiares casar-se com sua amante, no caso, a mulher
duas cadeiras e atrás dele há um homem serviços médicos, nem sempre esse socorro da morta atribuíam a presença da mancha retratada a seu lado. Mas, no dia em que se

34 Domínios da Imagem, LonDrina, v. 7, n. 13, p. 24-38, jul./dez. 2013 Domínios Da imagem, lonDrina, v. 7, n. 13, p. 24-38, jul./dez. 2013 35
Déborah Borges A fotografia mortuária no contexto familiar: estudo de retratos produzidos em Bela Vista de Goiás ...

fizeram retratar juntos, após o casamento, a do imaginário coletivo adquirem contornos discutir alguns pontos importantes sobre os cristão sobre a morte é visível nas formas de
morta aparece na foto, e seu braço esquerdo nítidos e formas concretas por meio do processos que permitiam a construção dessas representação fotográfica de pessoas mortas.
chamado testemunho fotográfico. Se, por um
parece enlaçar a mulher, como se quisesse lado, o signo é produto de uma construção/ representações no contexto estudado, o qual,
enforcá-la. Perturbado, o homem procura invenção, por outro, a interpretação, não raro, como vimos, era marcado pela religiosidade
a polícia e confessa o crime, informando desliza entre a realidade e a ficção. Tratam-se cristã e por um tipo de sociedade onde havia Referências Bibliográficas
(...) de processos de construção de realidades,
inclusive o local onde havia enterrado o corpo intensa participação de todos os membros
processos esses que sempre existiram.
de sua esposa. nas diferentes comemorações públicas, o que AMAR, Pierre-Jean. História da Fotografia.
Fig. 6: Sobreposição de fotografias. Antônio Faria.
inclui os ritos funerários. Posso dizer que, Tradução de Vitor Silva. Lisboa, Portugal:
Período indeterminado. Acervo particular – Daniel Vieira. Ora, se a interpretação de uma
nesta pesquisa, procurei fazer uma Edições 70, 2001.
fotografia implica em construir realidades,
estabelecendo ligações entre o que está
[...] “desmontagem” do processo de construção ARANTES, Maria Adélia Mendonça. Terra
explícito na imagem e o que se conhece que teve o fotógrafo ao elaborar uma foto,
branca, terra vermelha. Rio de Janeiro:
de seu contexto de produção e uso, das pelo eventual uso ou aplicação que essa
imagem teve por terceiros e, finalmente, Edições Galo Branco, 2007.
histórias dos retratados, das informações
pelas “leituras” que dela fazem os receptores
prévias sobre os referentes imagéticos, ao longo do tempo. Nessas várias etapas
então constatamos que foi exatamente o BAYARD, Jean-Pierre. Sentido oculto dos ritos
da trajetória da imagem, ela foi objeto
que fez a população belavistense nos dois de uma sucessão de construções mentais mortuários: morrer é morrer? São Paulo:
últimos casos analisados: criou realidades,
interpretativas por parte dos receptores, os Paulus, 1996.
quais lhe atribuíram determinados significados,
histórias, a partir do testemunho propiciado conforme a ideologia de cada momento.
por estas fotografias. Realidade e ficção se (KOSSOY, 2005, p. 41) BOLLOCH, Joëlle. Photographie après décès:
Há, nessas duas histórias, vários aspectos misturam de tal maneira nesses casos que, pratique, usages et functions. In: Le dernier
a se considerar. Primeiro, que os erros no no fim das contas, resta-nos apenas verificar Assim, em Bela Vista de Goiás Portrait. Musée d’Orsay, Paris: Réunion des
momento da tomada da foto, da revelação que, definitivamente, dentro do imaginário pudemos verificar que concorriam, para o ato Musées Nationaux, 2002.
do negativo e ampliação das cópias em coletivo belavistense da primeira metade do de fotografar um morto, tanto motivações
papel eram comuns naquela época, por século XX, a fotografia era um valioso campo pessoais dos familiares enlutados quanto HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva.
motivos diversos: má qualidade do material de comunicação entre vivos e mortos – e, fatores sociais, uma vez que o retrato fúnebre São Paulo: Centauro, 2004.
empregado, falhas no momento da tomada da ademais, de transmissão dessas realidades, consistia em prática corrente nesta sociedade.
foto, descuido no manuseio de equipamentos por meio da memória, para as gerações Tecendo relações entre os diversos sujeitos KOSSOY, Boris. Fotografia e memória:
e substâncias, etc. Na própria residência de futuras. envolvidos na prática de retratar os mortos reconstituição por meio da fotografia. In:
Antônio Faria foram encontrados outros pela fotografia, buscando identificar seus SAMAIN, Etienne (Org.). O fotográfico. São
exemplos semelhantes à figura 6, onde parece interesses, creio que pudemos contribuir para Paulo: Editora Hucitec/Editora Senac São
ter havido, na verdade, uma sobreposição de Considerações Finais uma compreensão da fotografia mortuária, Paulo, 2005.
negativos, ou a impressão de duas fotografias em geral, apesar de termos nos limitado a
num mesmo negativo. Para compreender a prática de retratar uma cidade tão pequena, e a um número KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro (Org.).
Por outro lado, é interessante observar que, pessoas mortas, e os usos dessas imagens no relativamente reduzido de imagens. Mas, Você fotografa os seus mortos?. In: Imagem
no imaginário coletivo belavistense, tanto a contexto da sociedade belavistense entre as como bem expressa Halbwachs (2004, p. e memória – ensaios em Antropologia Visual.
figura 5 quanto a figura 6 acabaram ganhando décadas de 1920 e 1960, transitamos entre 56), “[...] um estado pessoal revela assim Rio de Janeiro: Garamond, 2001.
outras interpretações, independentes das diferentes esferas, daquilo que identificamos a complexidade da combinação de onde
questões técnicas da fotografia, mais ligadas como partes de uma memória coletiva saiu”. Podemos considerar, neste caso, que a LEMOS, Carlos A. C. Retratos quase inocentes.
a histórias vividas pelos retratados, contadas sobre a morte até as lembranças mais investigação da prática da foto mortuária em São Paulo: Nobel, 1983.
e recontadas, porventura distorcidas. Como pessoais fornecidas pelos informantes que Bela Vista, por meio dos casos selecionados,
bem expõe Kossoy (2005, p. 45), cederam alguns de seus retratos de família revela a complexidade de uma cultura MARANHÃO, José Luiz de Souza. O que é
para a pesquisa. Com isto, conseguimos ocidental na qual o imaginário coletivo morte. São Paulo: Brasiliense, 1986.
[...] as fantasias da imaginação individual e

36 Domínios da Imagem, LonDrina, v. 7, n. 13, p. 24-38, jul./dez. 2013 Domínios Da imagem, lonDrina, v. 7, n. 13, p. 24-38, jul./dez. 2013 37
Déborah Borges

MELLID, Marisol Romo. Fotografiar a los SILVA, Eliane Moura. Vida e Morte: o homem
muertos. 2006. Disponível em http://www. no labirinto da eternidade. 1993. 247 f.
antecamara.com.mx/nuevo/modules.php?o Tese (Doutorado em História) – Instituto de
p=modload&name=PagEd&file=index& Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
printerfriendly=1&page_id=706. Acesso Estadual de Campinas, Campinas. 1993.
em: 20 jun. 2013.
SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São
MENEZES, Rachel Aisengart. Em busca da boa Paulo: Companhia das Letras, 2003.
morte: antropologia dos cuidados paliativos.
Rio de Janeiro: Garamond: Fiocruz, 2004. TELES, Nair Alves. Depoimento. Entrevista
concedida à autora. Bela Vista de Goiás, jun.
NORMAND-ROMAIN, Antoinette. Mémoire 2006.
de Marbre: la sculpture funéraire en France
(1804-1914). Paris: Bibliothèque histoique
de la Ville de Paris, 1995.

PREGO, Messias Ferreira. Depoimento.


Entrevista concedida à autora. Bela Vista de
Goiás, mar. 2006.

RAYNAUD, Clémence. Du cortège funèbre


au portrait posthume: fonctions et enjeux
du masque mortuaire à la fin du Moyen Age.
In: Le dernier Portrait. Musée d’Orsay, Paris:
Réunion des Musées Nationaux, 2002.

RIEDL, Titus. Últimas Lembranças. Retratos


da morte, no Cariri, região do Nordeste
Brasileiro. São Paulo: Annablume, Fortaleza:
Secult, 2002.

RIERA, Alberto. Introducción a la fotografia


post mortem. 2006. Disponível em http://
www.caborian.com/content/view/574/142/.
Acesso em: 20 jun. 2013.

RODRIGUES, José Carlos. Tabu da morte. Rio


de Janeiro: Achiamé, 1983.

RUBY, Jay. Secure the shadow: death and


photography in América. USA: The MIT
Press, 1995.

38 Domínios da Imagem, LonDrina, v. 7, n. 13, p. 24-38, jul./dez. 2013

Vous aimerez peut-être aussi