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A morte e o luto na experiência do Ocidente

O único animal que tem consciência de que morrerá é o humano. [...] Para ele, viver
e sobreviver não são apenas realidades biológicas, pois adquirem conteúdos
específicos relativos a cada cultura e a cada momento histórico [...] De certo modo,
a morte existe para dar sentido à vida.
José Carlos Rodrigues

Condição última de todo ser vivente, a morte marca o término da vida. Ter
consciência da própria morte é ter consciência do limite da própria existência. É
entender-se finito em meio à finitude das coisas, dos seres, dos processos cósmicos,
mas diante da perenidade da Vida. Apesar de vida e morte, respectivamente,
poderem ser compreendidas como a “não morte” e a “não vida”, uma não é
necessariamente negação da outra. Ao contrário, são aspectos complementares do
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binômio vida-morte; a morte como espelhamento da vida e a vida como


espelhamento da morte revelam-se não fatores intercambiáveis, termos com
semelhanças semânticas, mas realidades com potência de trazer à luz o
questionamento de seu antípoda de maneira indireta e quase que imediata.
A vida é tudo que há. O céu, as flores, pessoas, ruas. O coração que pulsa, os
sentimentos, as indagações, assim como os problemas e as contradições. Uma
multiplicidade de significados que parece abarcar o todo e, nesse sentido, somente
poderia ser rivalizada pela morte, que longe de mera antítese da vida, traz consigo
não somente tudo que não é, mas principalmente o que não se pode dizer que é. É
a dificuldade em definir a morte que a torna tão inapreensível e paralelamente
fascinante. Ela não permite precisão conceitual, mas, ao contrário, uma diversidade
de interpretações cercadas de simbolismos que se misturam e se alteram em
diversos momentos ao longo da história humana. Mesmo beirando o inefável, a
morte possui muitas representações, inclusive, o aparente paradoxo de poder ser
vida após a vida – a ressurreição, por exemplo.
Nesse sentido, é através de uma extensa polissemia que podemos observar
que a morte ocupa posição de destaque entre quase todas as sociedades conhecidas.
Seja de modo direto, através de uma estrutura social que privilegia a convivência
com essa realidade, ou indireto, em casos em que se busca afastá-la dos que vivem
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– é importante ter em mente que a ausência é, em grande medida, uma forma de


presença. É ela que, em última instância, faz os indivíduos e o próprio corpo social
refletirem sobre seus atos, seus costumes e seus valores. É ela que, de certo modo,
direciona a moral de grande parte das comunidades. É ela que, sendo uma
“desconhecida” tão familiar, permite aos homens fazer da vida um acontecimento
único. Ou, nas palavras de Leonardo Boff (2007, p. 86), “A morte não nega a vida.
Ela é uma invenção inteligente da própria vida para possibilitar a si mesma uma
religação maior com a totalidade do universo”.
Não podemos nos esquecer, no entanto, que as tentativas de compreender,
explicar e conceituar a morte a fazem uma questão exclusivamente dos vivos (Elias,
1982/2001). Se encarada somente como finitude, torna-se então algo partilhado não
somente por seres humanos, mas por tudo o que há. Se, num exercício de abstração,
deslocarmo-nos para a grandeza de uma galáxia como a Via-Láctea, poderemos
visualizar uma forma de finitude. Em linha reta, a luz, que tem velocidade de
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aproximadamente 300 mil quilômetros por segundo, necessita de algo em torno de


100 mil anos (100,000 LY) para percorrê-la. Nela se encontram a Terra, o Sol, a
Lua e todo o resto do nosso sistema solar. Nela reside, até que se prove o contrário,
tudo o que a humanidade foi, produziu e conheceu até o presente. Estima-se,
entretanto, que o que é não era e essa estrutura espiral, formada por poeira de
estrelas, hidrogênio, hélio e outros compostos nos quais “flutuamos”, foi criada há
pouco mais de 13 bilhões de anos. Obviamente esse é um exemplo dos mais
radicais, difícil de assimilar. Poderíamos tentar o mesmo com o nosso planeta,
resultado da lei da gravitação e do choque entre protoplanetas por ela produzido há
pouco mais de 4,5 bilhões de anos. Ainda radical.
No caminho inverso, indo do macro ao micro, poderíamos elencar a mosca
drosophila, inseto pequeníssimo e comumente encontrado em cachos de banana,
que vive por um período proporcional ao seu tamanho, pouco mais de vinte dias.
Essa operação de abstração para se pensar a finitude poderia contemplar qualquer
coisa: ideias, relacionamentos, corpos celestes, estruturas arquitetônicas, seres
vivos ou não. De todo modo, o que é importante reter aqui é que assim como não
sabemos – ao menos não de modo “extra-alegóricos” – de cigarras questionando-
se acerca de suas vidas, também não temos conhecimentos de estrelas que o façam.
Ainda assim a comparação ajuda a compreender. Tanto que parece ter sido
dessa perspectiva que o espanto filosófico (thauma) se originou: observando-se o
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que é, que tudo é, e nesse ser reside algo em comum entre todas as coisas. A
curiosidade pelo saber possibilitando ao homem5 dar forma ao desconhecido,
tangenciando verdades, vislumbrando possibilidades e erigindo realidades, mesmo
se através de contornos, em prol de sua sobrevivência e da de seus pares. A
dinâmica saber-poder, tão bem trabalhada por Foucault, começava a ganhar
contornos. Mas a morte, ainda que não enquanto ideia, objeto de pesquisas
antropológicas e especulações filosóficas, já estava lá. Desde sempre esteve lá. E,
de modo singular ao animal político aristotélico, a morte traz consigo problemas de
ordens diversas, a começar por um corpo imóvel que antes era movimento e
interação. Um corpo que mesmo estagnado, de maneira aparentemente paradoxal,
começará a se mover em direção ao desaparecimento, à decomposição.
É extremamente importante destacar que tais problemas somente existem
quando observados do ponto de vista do coletivo, isto é, do social. Ninguém é
integralmente isolado da sociedade. Mesmo nos casos extremos há sempre uma
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mínima organização social que respalda a chegada e a partida de um novo


indivíduo. A mãe, a parteira e o coveiro seriam exemplos suficientemente bons para
ilustrar isso, pois tanto “mãe” quanto “parteira” e “coveiro” são papéis sociais. Mas
somente o são na medida em que são interdependentes de outros papéis, como
“filho”, “bebê” e “defunto”, respectivamente. Dito de outro modo, como afirma o
antropólogo José Carlos Rodrigues (1983/2006), a morte é um produto do social.

Seja do ponto de vista dos seus estilos particulares de acontecer aos indivíduos, seja
do ponto de vista de sua rejeição pelas práticas e crenças, seja sob o ângulo de sua
apropriação pelos sistemas de poder, a morte é um produto da história. Ao mesmo
tempo, a história, tanto quanto produto da vida dos homens em sociedade, é resultado
da morte deles. As sociedades se reproduzem porque seus membros morrem. Têm
história porque não se reproduzem exatamente como eram antes. Atingem novos
estados porque, de certa forma, morrem para seus estados anteriores. Por isso, a
morte tem um lugar de relevo na feitura e na interpretação da história. E a história,
de sua parte, é em grande medida produtora de morte: das mortes-eventos e das
concepções sociais que tentam compreendê-las e domesticá-las. (RODRIGUES,
2006, p. 101).

A crença na imortalidade, na vida após a morte, parecia então estar difundida


de maneira coletiva, isto é, entre as práticas culturais de cada comunidade, de modo

5
Ao longo deste trabalho somente quando indicado explicitamente é que o termo “homem” fará
referência ao gênero masculino. Em todos os outros casos, “homem” irá designar o conjunto de seres
humanos.
21

que cada indivíduo já estaria, desde antes de seu nascimento, inserido no sistema
de representações de seu grupo. A premissa é verdadeira, especialmente no caso
das crenças e práticas de cunho religioso, uma vez que estas são oriundas de uma
potência moral que ultrapassa em muitos casos o indivíduo. Corrobora ainda com
essa ideia a máxima durkheimiana de que “os fatos sociais são, em certo sentido,
independentes dos indivíduos e exteriores em relação às consciências individuais”
(Durkheim, 1970, p. 26). Quer dizer, é necessário que os indivíduos, por meio de
suas atividades em sociedade, ajudem a manter acesos os valores do coletivo do
qual fazem parte. Isoladamente, o indivíduo não possui capacidade de transformar
os paradigmas morais de seu grupo6.
Acreditamos que cabe aqui mencionar e destacar a íntima e ancestral relação
existente entre morte e poder. Enquanto o último lida com questões políticas, com
relações de família e gênero, permeando todos os extratos e nuances de qualquer
sociedade – ocidental ou não, industrial ou não –, a primeira garante a continuidade
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dos cenários, das sociedades e da cultura diante da finitude dos indivíduos. Para
ilustrar de modo singular essa ideia, retomemos a pesquisa apresentada em Vigiar
e Punir (Foucault, 1975/2004). Vislumbraremos o que a economia dos corpos – a
docilização destes, a domesticação das mentes –, atrelada aos procedimentos
penais, suplícios e inúmeros dispositivos de controle, possibilitou ao poder. Neste
sentido, toda sociedade deve se estruturar contra a morte, com a morte e através da
morte, preenchendo as lacunas deixadas pelo desaparecimento de seus personagens,
seus indivíduos, dos papéis sociais, da matriz-referência de suas relações, em suma,
de um exercício de poder (Rodrigues 1983/2006).
Uma vez que cada sociedade possui características e organização próprias, o
modo como cada uma irá lidar com a morte e com seus mortos pode diferir no
tempo e no espaço, tanto em relação às demais, como em relação a si própria. Além
disso, as formas de morrer são várias, podendo-se morrer “de velhice”, por “morte
repentina”, “matada”, “violenta”, entre outras (Rodrigues 1983/2006). Cada tipo de
morte também será tratado de maneira diferente por cada sociedade, bem como por

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Um exemplo esclarecedor provém do linguista genebrino Ferdinand de Saussure ao explicar que a
língua “é, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de
convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos
indivíduos” (Saussure, 2006. p. 17); é “a parte social da linguagem, exterior ao indivíduo, que, por
si só, não pode nem criá-la nem modificá-la; ela não existe senão em virtude de uma espécie de
contrato estabelecido entre os membros da comunidade” (Ibid., p. 22).
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seus integrantes, de modo a constituir e lançar mão de variados repertórios


semiológicos, muitas vezes distintos, para representar e superar cada uma delas. Se
uns são enterrados em posição fetal, outros são sepultados com a cabeça em direção
ao nascer do sol. Se alguns carregam artefatos para suas tumbas, há os que nada
levam. Se há os abandonados à própria sorte no final da vida, existem os que
recebem homenagens até muito tempo depois de morrerem. Há cremação,
exposição, inumação, mumificação, bem como túmulos de terra, gelo, pedra ou não.

[...] as culturas poderão escolher uma imagem maternal da morte (a vida do aqui é
como a vida de um feto, a morte é o verdadeiro nascimento); ou uma imagem de
sono (a morte é repouso, é o último sono – ‘cemitério’ em sua origem grega
significava ‘lugar onde se dorme’); ou construir uma teoria de metempsicose (ideia
de uma vida que se estende no tempo, passando através de vários corpos); ou uma
gramática de reencarnações (que supõem uma continuidade consciente da
personalidade através de vários renascimentos); ou ainda acreditar na ressurreição
(restabelecimento da existência humana depois da morte: ‘re-viver’), e assim por
diante (RODRIGUES, 2006, p.39)
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Percebemos então que para cada morto existe uma morte, uma forma de
representá-la, e mesmo de processá-la e restabelecer a normalidade à sociedade à
qual ele pertencia – vivos cá, mortos lá. Em suma, é preciso que as sociedades se
organizem junto às transformações provocadas pela morte, em especial contra a
desestabilização provocada por esta e em favor da ideia de que a realidade seja algo
estável e até certo ponto inabalável (Rodrigues, 1983/2006; Berger e Luckmann,
1966/2011; Matos-Silva, 2011/2014).
Além disso, a morte, de certo modo, continua mesmo depois de o corpo estar
morto, proporcionando aos que ficam a experiência de desligamento gradual que
ocorre graças aos ritos fúnebres pertinentes a cada sociedade. Reside aí uma das
principais, se não sua principal função: separar os mortos dos vivos e reinseri-los
na sociedade através da memória, da história, da reprodução social – “uma crise,
um drama e sua solução” (Rodrigues, 2006, p. 21).
Ainda que os ritos de passagem, caso dos ritos fúnebres, se apresentem de
modo tão variado quanto as sociedades nas quais existem, há uma estrutura formal
coincidente em todos eles. Segundo Rodrigues, apoiando-se em Van Gennep7, tal
estrutura é composta pelos seguintes momentos: a) separação, caracterizada pela

7
VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 1978.
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retirada dos signos da identidade prévia (cabelos raspados, unhas cortadas, roupas
rasgadas etc.); b) margem, caracterizada pelo aparecimento de símbolos intersticiais
e ambivalentes (gruta, tumba, escuridão etc.), conotam o lá e o cá ao mesmo tempo
– e o nem lá nem cá; e c) agregação, caracterizada pela imposição dos símbolos
relativos à posição final de destino do morto (coroação, novas vestimentas etc.). A
cada uma dessas etapas, a cisão (entre mortos e vivos) e a subsequente reintegração
(do morto à sociedade junto ao “panteão” e dos sobreviventes à vida comum)
ocorrem, restabelecendo aos poucos a normalidade do grupo.
Em A Solidão dos Moribundos (1982/2001) o sociólogo alemão Norbert Elias
destaca duas formas básicas de o homem ocidental lidar com a inevitabilidade da
morte. A primeira e mais antiga seria a encontrada nas mitologias presentes em
ideias sobre outra vida. A segunda seria a maneira contemporânea: a tentativa de
evitar a ideia da morte afastando-a de nós tanto quanto possível – tornando o tema
um tabu, investindo na crença cega nos poderes da medicina, etc. – e/ou crendo na
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imortalidade. Para Elias (2001, p. 12), “não há uma noção, por mais bizarra que
seja, na qual as pessoas não estejam preparadas para acreditar com devoção
profunda [...] desde que lhes dê a esperança numa forma de vida eterna”. De fato,
não obstante a clássica leitura freudiana que afirma que “a própria morte é também
inconcebível [...] que no inconsciente cada um de nós está convencido de sua
imortalidade” (Freud, 1915/2010, p. 230), especificamente no caso das sociedades
contemporâneas ocidentais um tabu encontra-se instalado desde meados do século
XIX aproximadamente, de especial interesse para este trabalho: o tabu da morte.
Diferentemente de períodos anteriores da história do Ocidente, o tema da
morte foi aos poucos sendo silenciado e hoje é considerado mórbido, fora de
contexto, assumindo tom quase sempre negativo e pessimista. Porém, recorreremos
ao clássico História da morte no Ocidente, do historiador francês Philipe Ariès,
para apresentar nas próximas páginas os principais estágios deste longo processo.
Mostraremos que as atitudes diante da morte das sociedades contemporâneas
industrializadas/pós-industrializadas guardam distinções significativas, em parte
inéditas, em relação a seus precedentes históricos.
24

1.1.
A morte domada

Primeiramente, é importante dizer que o período histórico a ser abordado em


nossa trajetória tem início na Alta Idade Média, que se inicia com a queda do
império romano, por volta do século V, e se estende até o século XI. É possível
encontrar na literatura, em achados arqueológicos, em pesquisas de historiadores e
antropólogos, entre outros, uma série de características comuns a boa parte das
sociedades europeias sobre o modo como estas lidavam com a morte. Isso permite
que os ritos fúnebres sejam agrupados num mesmo conjunto de observação, mesmo
em lugares com biomas e culturas distintos.
De modo geral, a morte na Idade Média se caracterizou por sua naturalização
no cotidiano das sociedades e não era interpretada como uma brusca ruptura.
Produto das condições adversas encaradas pelos homens no medievo, como
doenças, fome, acidentes naturais, a morte era concebida como um sono profundo.
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Sono esse que teria um fim somente no dia do Grande Despertar, quando “homens
e mulheres acordariam todos ao mesmo tempo [...] iriam se erguer gloriosamente
de suas sepulturas, mil anos sentidos como se apenas uma noite houvesse passado”
(Rodrigues, 2013, p. 8). Ao representar a morte como um sono profundo as
sociedades medievais buscavam não somente prosseguir com a alegoria explicativa
de uma vida após a morte, readequar suas crenças e enriquecer seu legado cultural.
Junto a essa representação residia também, ainda que de modo tácito, a finalidade
de tornar mais próximo o desconhecido, o inominável, o inefável8. Ao relacionar a
morte a um sono a sociedade aplacaria a angústia deixada por aquela, de maneira
que até no ritual de passagem, realizado junto à cama, pouco antes de morrer, o
moribundo era cercado por seus familiares. Assim, todos partilhavam de uma
experiência coletiva da morte, reforçando ao mesmo tempo uma prática cultural e
os laços sociais entre os indivíduos.

Na cena mais ou menos padronizada de morte na Idade Média, pelo menos como foi
fixada e idealizada na literatura e na iconografia, a pessoa que ia morrer recolhia-se
ao leito, cercando-se de amigos, parentes, vizinhos e mesmo de animais. Ouvia os
participantes. Oral e publicamente saldava dívidas, regularizava contas e dizia seu

8
Tal intento pode ser compreendido através da colocação de Serge Moscovici (2012, p. 54), que diz
que “a finalidade de todas as representações é tornar familiar algo não familiar, ou a própria
familiaridade”.
25

testamento. Fazia a confissão de seus pecados de modo que todos pudessem escutar
(RODRIGUES, 2013, p. 9)

Convocados a interpretar a cada vez e do mesmo modo o que é estabelecido


por sua sociedade na realização de um rito, os indivíduos representam papel de
agentes ativos na manutenção das práticas e crenças coletivas. Ao falar da morte
enquanto sono, esta representação coloca em evidência, concomitantemente, um
repertório sígnico onde pais, mães, amigos, vizinhos e toda uma vasta gama de
outros signos é chamada à cena para validar a representação em questão9: leito,
quarto, casa e família. Como sabemos, as representações “convencionalizam os
objetos, pessoas ou acontecimentos” (Moscovici, 2012, p. 34), da mesma forma que
“são prescritivas, isto é, se impõem sobre nós com uma força irresistível” (Ibid., p.
36).
Ainda que possamos perceber o aspecto convencional de determinada prática,
não podemos nos libertar integralmente de todas as convenções. Elas são
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necessárias para estejamos inseridos em determinado contexto, validando o


universo simbólico e os mapas conceituais de nosso grupo, o que nos permitem
compreender, significar e exercer determinado papel. É também por isso que se
temia nos idos medievais “aquela morte que, por fulminante, prejudicasse o
cerimonial; que, por repentina, contivesse implícita e em filigrana a mensagem de
constituir ruptura com os demais” (Rodrigues, 2013, p. 9).
Feitas as ressalvas acerca da importância das representações para a existência
das sociedades, retomemos nosso caminho. A morte era, então, aos olhos do homem
da Idade Média, um sono profundo que só teria fim com o Grande Despertar, no
Fim dos Tempos, para a vida eterna. Assim como se nascia na cama, morria-se na
cama e ambos os momentos tinham caráter coletivo. Sobre esse último ponto vale
resgatar um comentário de Elias, que traz uma perspectiva não de todo explícita no
trabalho de Ariès, mas que ainda assim reforça essa característica coletiva das
atitudes do homem perante a morte:

Em épocas mais antigas, morrer era uma questão muito mais pública do que hoje. E
não poderia ser diferente. Primeiro porque era muito menos comum que as pessoas
estivessem sozinhas. Freiras e monges podem ter estados sós em suas celas, mas as
pessoas comuns viviam constantemente juntas. As moradias deixavam pouca

9
Não custa recordar que representações são signos que sempre falam de signos, e através de signos,
numa cadeia que tende ao infinito.
26

escolha. Nascimento e morte – como outros aspectos animais da vida humana – eram
eventos mais públicos, e, portanto, mais sociáveis, que hoje; eram menos
privatizados. (ELIAS, 2001, p.25)

Pautada nos romances medievais e na literatura em geral, a paisagem descrita


por Ariès, assim como hoje, apresenta a morte como um destino conhecido e
comum a todos. Porém, para o homem da Alta Idade Média, ela era encarada com
certa resignação. Segundo Rodrigues (2006, p. 104), “é a morte silenciosa, esquiva,
traiçoeira, repentina que é especialmente temível (...) é esta que dilacera a
sensibilidade dos sobreviventes, que é absurda e incompreensível”. Antes de se
abater sobre sua vítima, a morte dava indícios, advertia àquele que ia morrer que
sua hora estava próxima. Nada tão importante para os que viriam a falecer do que
a oportunidade para tomar as providências necessárias de modo a presidir seus
momentos finais numa cerimônia simples e basicamente leiga.
Os atos dessa cerimônia tradicional se dividiam em: a) o lamento da vida:
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evocação triste e discreta dos seres e das coisas amadas; b) o perdão dos presentes:
o moribundo recomenda os presentes, em especial os familiares e amigos, a Deus;
c) o gesto dos penitentes: uma prece dividida em duas partes (a culpa e a
commendatio animae); e d) a remissão dos pecados: o único ato propriamente
religioso da cerimônia (Ariès, 1977/2012). Ao final, o moribundo aguardava em
silêncio a sua hora chegar, cerrando os olhos ou mesmo cruzando suas mãos por
sobre o corpo. Imediatamente após a morte, a dor e as emoções dos presentes eram
expressas de maneira excessiva. Não obstante, rapidamente cessavam.

Assim se morreu durante séculos ou milênios [...] A antiga atitude segundo a qual a
morte é ao mesmo tempo familiar e próxima, por um lado, e atenuada e indiferente,
por outro, opõe-se acentuadamente à nossa, segundo a qual a morte amedronta a
ponto de não mais ousarmos dizer seu nome (ARIÈS, 2012, p. 40)

1.2.
A morte de si mesmo

Ao longo de toda a Idade Média a morte terá um papel capital na pedagogia


das sociedades, operando junto às artes, aos jogos e à decoração. Entre os séculos
V e XI/XII, principalmente, as pessoas tinham o cemitério como um ponto de
encontro para “manifestações profanas e sagradas que a igreja não pudesse
27

comportar” (Rodrigues 2006, p. 110). As sepulturas compunham o cenário por onde


homens, mulheres e crianças se reuniam em festas semanais e comemorações
tradicionais para reproduzir uma cultura que tinha a morte como personagem
principal. Longe de um ambiente ermo, silencioso e até mesmo abandonado como
a ideia contemporânea de um cemitério, o lugar dos mortos muito provavelmente
foi o lugar mais agitado das cidades – ao menos até começarem as surgir proibições
explícitas dessas atividades10.
Os primeiros efeitos do deslocamento de uma concepção coletiva diante da
morte em direção a uma mais individual começam a surgir nessa época e podem ser
percebidas de muitas formas diferentes. As inscrições funerárias, que haviam
desaparecido ao longo da Alta Idade Média, começam a reaparecer por volta do
século XII. Da mesma forma, o retorno dos túmulos individuais e o começo da
personalização das sepulturas podem ser destacados, assim como as estátuas
fúnebres que representavam o falecido, o aparecimento dos temas macabros e o
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surgimento do interesse pela iconografia da decomposição (Rodrigues, 1983/2006;


Ariès, 1977/2012).
Talvez a principal pista para se compreender essa fase, que Ariès designa
como a da morte de si, possa ainda ser encontrada no entorno do leito do moribundo.
As cerimonias coletivas foram dando lugar a ritos individuais, já que no imaginário
da época cada pessoa se tornava cada vez mais proprietário de si e adquiria
responsabilidade exclusiva por seus atos. A propriedade de si conduziu
necessariamente à realidade em que cada indivíduo se preocupava principalmente
com a sua morte e com a sua salvação.

Símbolos novos apareceram em cena, expressando a maneira recente de encarar o


após a morte. Um exemplo é o julgamento final representado por uma balança: em
um dos pratos, depositadas as boas ações; no outro, os cometimentos ruins do
moribundo. O lado que mais pesasse definiria uma eternidade de penas ou de
venturas [...] Outra imagem nova foi a de um livro como significante da ‘vida’. O
liber vitae transmitia a mensagem de que o viver de cada um corresponderia mais ou
menos a um texto que vai sendo escrito, palavra por palavra, linha por linha, página
por página. Enquanto se escreve, nada está decidido: em cada página está a
oportunidade de construir uma vida admirável; mas também em cada linha é possível
colocar tudo a perder (RODRIGUES, 2013, p. 10)

10
Em História da Morte no Ocidente (2012), Ariès menciona o Concílio de Rouen (1231), quando
se proibiam as danças nos cemitérios e nas igrejas e aponta um texto de 1657 que questiona a
coexistência de sepulturas e atividades populares no mesmo lugar. Contudo, as constantes proibições
ao longo da história, sugerem que elas não eram observadas.
28

A morte começa a ganhar um sentido pessoal e dramático. A mudança do


Juízo Final, escatologia dos primórdios do cristianismo, para o fim da vida do
indivíduo foi o principal operador dessa transformação. A autonomia e a
independência de cada pessoa estavam sendo catapultadas para outro patamar pelas
condições propiciadas pelos primórdios do capitalismo, em um contexto que
“favorecia que os indivíduos esquecessem de que ainda pertenciam a uma
comunidade” (Rodrigues, 2013, p. 10). Cristo, ladeado pelos quatro evangelistas,
ressurge no quarto do moribundo com o liber vitae em mãos – livro cósmico,
inventário do universo, mas ao mesmo tempo um livro de contas individual. O
momento da morte, uma cerimônia antes presidida por aquele que ia morrer, vai se
tornando cada vez mais um ato de cunho religioso.
Estas transformações, que têm início por volta dos séculos XI/XII, vão se
acelerando e tornam, com o passar do tempo, mais e mais estreita a relação entre a
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morte e a biografia do indivíduo. “Nos séculos XIV e XV torna-se definitiva [...]


cada homem revê sua vida inteira no momento em que morre, de uma só vez.
Acredita-se também que sua atitude nesse momento dará à sua biografia seu sentido
definitivo” (Ariès, 2012, p. 56). Paralelamente e de modo gradual, novas
iconografias – arcanjo são Miguel, Virgem Maria, são João, seres sobrenaturais –
ajudam na modificação desta cena derradeira em que mal e bem passam a disputar
o moribundo.
Outra característica dessa etapa pode ser acompanhada mirando-se o interesse
pelo cadáver decomposto na arte e na literatura, fazendo emergir uma lógica na qual
o amor à morte torna-se signo de amor à vida (Ariès, 1977/2012). Entretanto,
observa Ariès, “o horror à morte física e à decomposição é tema familiar da poesia
dos séculos XV e XVI” (Ibid., p. 58) ainda que este sentido não seja encontrado nos
testamentos da época. De qualquer modo, é importante reter aqui que para o homem
comum a sua condição de mortal fazia cultivar o sentimento de que a morte estava
atrelada à frustração dos desejos, prazeres e projetos. Em uma realidade onde o
amor pelos temporalia, quer dizer, por tudo aquilo que diz respeito à vida material,
possuía uma dimensão quase irracional, a velhice, a morte e a decomposição
assumiam um sentido macabro e tenebroso – o horror era post mortem e intra vitam
(Ariès, 1977/2012).
29

[...] conclusão geral dos primeiros fenômenos observados: o Juízo Final, a última
prova das artes moriendi, o amor pela vida manifesto pelos temas macabros. Durante
a segunda metade da Idade Média, do século XII ao século XV, deu-se uma
aproximação entre três categorias de representações mentais: as da morte, as do
reconhecimento por parte de cada indivíduo de sua própria biografia e as do apego
apaixonado às coisas e aos seres possuídos durante a vida. A morte tornou-se o lugar
em que o homem melhor tomou consciência de si mesmo. (ARIÈS, 2012, p. 61).

Assim como a generalização do uso dos caixões aparecem como novidade e


tendência a partir do século XII (Rodrigues, 1983/2006) as placas tumulares. Estas
trazem consigo uma função importante: evocar o morto. Ao lado da mudança na
forma como o corpo era transportado e enterrado (até o século XII em muitas
comunidades mediterrâneas o rosto ficava descoberto). Surgem também as
máscaras mortuárias de modo a constituir uma espécie de duplo11, apto a sobreviver
por meio da aparência, um retrato feito ao vivo, um retrato feito ao morto (Ariès,
1977/2012). Uma imagem para a posteridade, fixação da memória do falecido
contra o esquecimento dos demais.
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A individualização da vida atinge um novo estágio. Os burgueses foram um


dos principais agentes dessas transformações. No desenvolvimento de suas
atividades, gozarão aos poucos de impressionante influência social, econômica e
política junto aos principais representantes do poder nas cidades e reinos da Europa.
O tratamento do cadáver e o cuidado com as sepulturas também dão prova disso,
começando cada vez mais a sair das alçadas de familiares, amigos e parentes em
direção aos especialistas remunerados (Ariès, 1977/2012; Elias, 1982/2001;
Rodrigues, 1983/2006).
Pioneiros de uma classe então emergente, os comerciantes serão também
símbolo dessa nova mentalidade pautada na individualização, na biografia pessoal,
no acumulo de riquezas e na valorização da perenidade da vida, em contraste com
a aniquilação gerada pela morte. O capitalismo europeu, como lembra Rodrigues
(2006, p. 123), “se funda essencialmente na apropriação ilegítima do corpo do outro
por alguém”, por isso “compreende-se então a significação traumática que a morte
adquire neste contexto: ela é destruição da individualidade e destruição do corpo”
(Idem). Nesse contexto, o afastamento da morte vai ganhando fôlego.

11
O filósofo francês Regis Débray lembra que o molde de cera (imago) do rosto dos mortos era
exigência de uma religião fundada no culto aos antepassados, que deveriam sobreviver pela imagem:
“A imagem é a sombra; ora, sombra é o nome comum do duplo” (Debray, 1993. p. 23).
30

1.3.
A morte do outro

A serenidade com a qual o homem da Idade Média encarava seu suspiro


derradeiro, como uma passagem a um destino natural onde haveria uma nova vida
a ser vivida, será gradativamente substituída por momentos de aflição e desespero.
A partir do século XVIII, as mudanças geradas por essas novas concepções sobre a
morte vão se intensificar e se refletir de muitas maneiras: os cemitérios e as
estruturas que os compõem, como os jazigos, os epitáfios e os adornos sepulcrais
passarão a apresentar novos formatos e significados. As sepulturas, antes simples e
coletivas, passam a ser individualizadas e ganham contornos de morada-pós-morte,
com telhados, vitrais e recintos luxuosos; as estátuas, que inicialmente não estavam
presentes na cena, primeiramente representam alguém que dorme, depois simulam
uma ação com alguém que reza ou lê – e, com o tempo, são substituídas por fotos
dos mortos ainda jovens.
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Ao longo do século XVIII os testamentos vão ficando cada vez mais laicos
em relação à função religiosa que possuíam em séculos anteriores. Esses
documentos eram outrora apenas uma oportunidade de expressão da vontade do
moribundo, uma obrigação moral que assegurava o cumprimento de seus desejos,
uma garantia de não excomunhão e de um enterro em solo santo – próximo ou
dentro das igrejas.

Esse processo de laicização que atinge tanto os domínios da vida como os da morte
é característico do Século das Luzes e encontra sua expressão nuclear na oposição,
que então se desenvolve, em todos os sentidos, entre o corpo e a alma (...) Esta
separação é fundamental para o entendimento da problemática da morte, sobretudo
quando se considera que está no centro de todas as transformações ideológicas,
filosóficas e científicas a que os séculos seguintes irão assistir (...) modificações
radicais: a transformação do corpo humano em objeto, a apropriação da morte pela
medicina e pela família, o desenvolvimento da ideologia da higiene e a consequente
separação entre o cemitério e a cidade. (RODRIGUES, 2006, p. 130).

Apesar de assumir uma forma exclusivamente jurídica nessa época, é


importante notar que muitas vezes o testamento também adquiria uma forma oral –
ainda que tal característica também fosse encontrada em épocas anteriores ao século
XII –, segundo Ariès, em virtude da confiança recém-estabelecida entre o testador
e seus familiares. Esse dado dá testemunho do nascimento de um sentimento
familial até então aparentemente inédito na história – se antes o insuportável era a
31

própria morte, agora o intolerável será a morte do marido, da esposa, do filho, em


suma, do outro. Desse modo, tem início um momento em que, diferentemente dos
encontrados nos séculos anteriores, quando era imprescindível que o moribundo se
soubesse enquanto tal, a verdadeira condição de um familiar doente lhe era
vedada12.
O quadro era tal que a dramatização da morte, também impulsionada pelas
ideias românticas, foi gradualmente espelhando a dificuldade crescente em lidar
com a morte de um ente – especialmente quando comparada às reações de
familiares e amigos em períodos anteriores, onde, apesar de excessivas, as
expressões de dor pela perda eram restritas ao momento imediatamente posterior
ao falecimento. Aos poucos, entretanto, as demonstrações de dor e pesar foram se
prolongando mais e mais, chegando mesmo a uma verdadeira encenação. Não
somente soluços, gritos e desmaios davam a tônica dessa teatralidade, mas
igualmente as condições impostas pelo luto, que se prolongava por muito tempo
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após a morte, impondo até mesmo restrições de lugares aos enlutados. As mulheres,
por exemplo, foram por muito tempo proibidas de acompanhar os cortejos de seus
maridos (Ariés, 1977/2012).
Paralelamente, as transformações relativas ao local de inumação e seus
respectivos simbolismos também se aceleraram de modo a proporcionar o
surgimento de estruturas funerárias de considerável porte arquitetônico. O
cemitério passou novamente a ser um lugar de visitas, ainda que em clima mais
solene e menos festivo. Assim como se visita um parente no lar, visitava-se um ente
querido em sua derradeira morada. “Os túmulos tornavam-se signos de sua presença
para além da morte”, conclui Ariès (2012, p. 76) diante do nascimento dessas
“cidades dos mortos”. Quanto a essa nova configuração, é importante mencionar
que ao menos inicialmente os principais visitantes dos cemitérios parecem ter sido
os descrentes, não os fiéis, que preferiam ir à igreja (Ariès 1977/2012).

O culto da memória dos falecidos aponta para a representação de uma sociedade


composta simultaneamente por mortos e vivos [...] As sepulturas passaram a ser
vistas como representações dos entes queridos após seus falecimentos, e o jazigo

12
Conforme observa Ariès, outro fator que ajudou a distanciar ainda mais o tema da morte nessa
fase foi o progresso da ciência médica, particularmente ao longo do século XIX, que substituiu a
ideia de morte pela de doença; desde que a condição fosse intratável, estar doente era como estar
morto.
32

tornou-se, pela primeira vez, uma forma de propriedade perpétua, exclusiva do


defunto e de sua família (MATOS-SILVA, 2011, p.39)

A profusão de monumentos funerários notadamente mais vistosos e


imponentes em certa medida atesta, ou ao menos reforça, a crença na imortalidade.
Se não na imortalidade da alma, no mínimo na imortalidade da memória do morto.
É certo que no bojo das mudanças ocorridas no Século das Luzes, a harmonia da
milenar dualidade corpo e alma fora afetada. De um lado a cosmologia cristã
pregava o apego à alma, uma vez que o corpo, ao se decompor, tornava-se agressivo
e indecente aos olhos – daí a contínua coisificação do cadáver. Por outro, alguns
homens da ciência sentenciavam, diante da inevitabilidade da morte, a inexistência
da imortalidade da alma, dirigindo suas atenções e dedicando seus esforços somente
ao que dizia respeito à vida.
Em todo caso, a eloquência dos novos cemitérios, com seu complexo de
túmulos, sepulturas e mausoléus, acabou por permitir, ao menos para o homem
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comum, certa experiência de imortalidade – até porque, e em último caso, “o


‘morto’ é sempre o elemento que deixou o cenário abusiva e abruptamente, mas que
ainda mantém um elo potente com os que ficaram” (DaMatta, 1997, p. 144).

1.4.
A morte interdita

Finalmente chegamos ao último estágio sobre a história da morte no Ocidente,


tal qual como delineada por Ariès. Os séculos XIX e XX aos poucos testemunharão
a consolidação de um longo processo de afastamento entre o tema da morte e a
sociedade, que culminará com o desaparecimento – ao menos, arrefecimento – de
diversas expressões que por séculos marcaram as representações e atitudes do
homem diante da morte. Cortejos fúnebres vão sumindo, jazigos que outrora
exibiam signos marcadamente direcionados à realidade da morte, idem. Os pêsames
começarão a soar de maneira estranha e as visitas feitas aos familiares do falecido
caducarão.
Os desenvolvimentos socioeconômicos – novas profissões, profissionais e
relações de trabalho – possibilitarão o aparecimento das principais condições de
onde emergirá uma atitude radicalmente diferente de períodos predecessores: o
silenciamento perante o fim da vida. A economia da morte atingirá então um grau
33

inédito de complexidade sob o signo do progresso das sociedades industriais, onde


“antigos marceneiros ou coveiros, bem como proprietários de coches e de cavalos,
tornavam-se ‘empresários’” (Ariès, 2012, p. 92).
Antes público e comunitário, o fim da vida de um indivíduo havia se
tornando um problema quase que exclusivamente privado. Exceto nos momentos
imediatamente após o falecimento onde, como vimos, eram acionados uma série de
especialistas remunerados para tratar do corpo, da inumação, bem como da
construção de caixões e sepulturas, a morte era assunto da família do defunto. Do
mesmo modo, a Igreja, apesar de ainda ter um importante papel na condução de
ritos fúnebres e missas, tinha suas atividades restritas a essas ocasiões. Para os
“modernos”, o luto, o cuidado com os jazigos e a manutenção da memória do morto
diziam respeito somente a familiares e parentes próximos, que deviam resguardar
os demais membros da comunidade de toda dor de que padeciam.
A morte havia se transformado então em objeto de saberes médicos e
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instituições financeiras, isto é, um fenômeno meramente técnico e um negócio


razoavelmente lucrativo ao mesmo tempo (Ariès, 1977/2012). Para aqueles que
diretamente eram afetados pela ausência irreversível de um ente, a saída era a
reclusão, o distanciamento de seus concidadãos, o sofrimento em silêncio e a
solidão. Ainda hoje é possível detectar essa atitude, fruto da percepção da morte
como um assunto de mau gosto, mórbido e desagradável. E quando entendemos a
sociedade como um sistema de comunicação, com suas redes de atores e papéis
sociais, é no mínimo curioso perceber que o silêncio seja a representação mais
comum daquela que já foi a “vida eterna”13.
Para tratar desse aspecto, para aprofundar a investigação deste trabalho, para
“dar voz” (ou ouvir?) os “silenciados”, julgamos necessário dedicar as próximas
páginas para tratar da questão do luto, que em meados do século XX será
interditado. Pois se no amanhecer do mundo moderno o cadáver decomposto era
agressivo aos olhos da sociedade, o meio-dia acrescentará a informação de que
mesmo a ideia, a menção da palavra “morte” também traz um desconforto
indiscutível. Assim, a morte substituirá o sexo como o principal tabu de nosso

13
José Carlos Rodrigues faz uma leitura muito interessante sobre esse fato ao considerar que “um
sistema que represente pelo silêncio é o cúmulo dos paradoxos. E o silêncio sobre a morte em uma
sociedade que tem a morte como sua realidade mais barulhenta é o paradoxo dos paradoxos”
(Rodrigues, 2006, p. 101).
34

tempo. Assim, o que antes era exigido será agora proibido (Ariès, 1977/2012; Elias,
1982/2001; Matos-Silva, 2011/2014; Rodrigues, 1983/2006).

1.5.
O luto e suas etapas

A morte traz consigo não apenas um corpo a se decompor, mas um extenso


repertório de ritos que variam de sociedade para sociedade e de tempos para tempos,
que visam a separar, direcionar e resgatar o morto. Além de notoriamente
homenagear os mortos, vimos acima que os ritos possuem também a função de
garantir que os falecidos façam sua passagem e descansem onde quer que estejam,
restabelecendo a normalidade dos indivíduos e/ou sociedade. O período
correspondente a esse processo de recuperação, isto é, o tempo passado entre o
falecimento, o estranhamento e a aceitação da morte como um fato consumado, é
chamado de luto.
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Assim como os ritos, o luto pode ser vivido de várias formas, podendo ser
visto como um processo social e como um processo individual. Para a psicóloga
Maria Matos-Silva (2011, p. 46), “assim como a duração do luto é estabelecida
pelos costumes, os sentimentos experimentados ao longo deste período também são
frutos do meio social”, e por isso “a elaboração psicológica do luto está atrelada à
maneira como um grupo social pensa sobre a morte e se comporta diante dela”
(Ibid., p. 49). Há sociedades em que o luto é breve, durando poucas horas, e há
sociedades em que o luto dura semanas, meses e até mesmo anos, não sendo, na
maioria dos casos, uma questão de escolha do enlutado (Rodrigues, 1983/2006).

[...] todas estas expressões coletivas, simultâneas, de valor moral e de força


obrigatória dos sentimentos do indivíduo e do grupo são mais do que simples
manifestações, são sinais, expressões compreendidas, em suma, uma linguagem.
Estes gritos, são como frases e palavras. É preciso dizê-las, mas se é preciso dizê-las
é porque todo o grupo as compreende. A pessoa, portanto, faz mais do que manifestá-
los. Ela o manifesta a si mesma exprimindo-os aos outros e por conta dos outros.
(MAUSS, 1999, p. 332).

Apesar de serem obtidas a partir das observações de rituais orais de cultos


funerários de grupos primitivos australianos, as impressões e as palavras de Marcel
Mauss (1921/1999) ajudam a ilustrar a íntima relação entre a realidade social e
individual. De modo inverso, tomando nosso caso específico, é numa sociedade que
35

interditou o tema da morte, então, que a ausência de “frases e palavras”, ou seja, o


silêncio pode ser compreendido. É o silêncio dos que vão morrer dirigido aos
também mortais que silenciam sobre a morte. Contudo, “este convencionalismo e
esta regularidade não excluem de modo nenhum a sinceridade [...] Tudo é, ao
mesmo tempo, social, obrigatório e, todavia, violento e natural; rebuscamento e
expressão da dor vão juntas” (Ibid., p. 330).
O luto, nesse sentido, também pode ser definido como um processo
socialmente naturalizado que se faz necessário à saúde, principalmente psicológica,
do indivíduo que passa pela experiência da perda de um ente querido. Tal processo,
a exemplo do que encontramos estruturalmente presente em diversos ritos, é
igualmente composto por fases, etapas ou tarefas (Matos-Silva, 2011), onde o
enlutado deve ajudar a si mesmo a se “curar” dos danos causados pela crise a que
é/está submetido. Por isso, o luto pode se fazer necessário não somente em situações
decorrentes de um falecimento, mas em quaisquer circunstâncias em que ocorra
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alguma perda.
Ainda que não tenha aprofundado seus estudos sobre o tema, Sigmund Freud
foi um dos primeiros a falar das questões psicológicas do luto, ao comparar as
manifestações características deste com as da melancolia no clássico texto Luto e
Melancolia (1915/2010). Para o pai da psicanálise, o luto é um processo psíquico
não patológico. Para ele, trata-se de uma “reação à perda de uma pessoa amada ou
de uma abstração que ocupa seu lugar, como pátria, liberdade, um ideal etc.” (Freud,
2010, p. 171).
O que Freud quer dizer com isso? Bem, primeiramente, como mencionado
algumas linhas atrás, ele entende que o processo de luto pode se aplicar a qualquer
tipo de perda, seja ela moral, material ou de qualquer outra ordem. Claro que cada
caso deve ser tomado em sua particularidade, e não estamos aqui comparando – e
nem o autor em questão – a perda de uma chave com a perda de uma mãe. Porém,
a comparação é válida do ponto de vista formal, ou seja, da semelhança entre os
estágios do processo: o reconhecimento da perda; da frustração que disso decorre;
da capacidade de lidar com a potencial irreversibilidade do fato – a chave pode ser
perdida momentaneamente, enquanto um familiar não – e da aceitação da nova
realidade. Podemos falar de chaves, mas também de um emprego, um
relacionamento etc.
36

Em segundo lugar, Freud vê a questão do trabalho realizado durante o luto


como uma transferência de libido de um objeto ao outro, quando da ausência do
elemento amado. Nesse caso, é necessário que as conexões da libido sejam
redirecionadas. Como, em geral, “o ser humano não gosta de abandonar uma
posição libidinal” (Freud, 2010, p. 173), pode acontecer de o indivíduo se afastar
da realidade, buscando incessantemente a reconexão com o objeto perdido – um
quadro que o autor chama de psicose de desejo alucinatória. Apesar de a realidade
tender a ser mais forte, de modo a solicitar que aos poucos o enlutado retorne à
normalidade, isso pode não acontecer. O luto então, em casos extremos, quando não
vivenciado em sua dinâmica “natural”, pode acarretar uma patologia.

O luto profundo, a reação à perda de um ente amado, comporta o mesmo doloroso


abatimento, a perda de interesse pelo mundo externo – na medida em que não lembra
o falecido –, a perda da capacidade de eleger um novo objeto de amor – o que
significaria substituir o pranteado -, o afastamento de toda atividade que não se ligue
à memória do falecido. (FREUD, 2010, p. 173).
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Somos levados a concluir, a exemplo da estrutura formal dos ritos de


passagem sobre a qual já comentamos, que o luto também é composto por etapas
que devem ser cumpridas para que o trabalho de luto ocorra de maneira plena. De
fato, é isso que ocorre de acordo com os estudos dos psicólogos John Bowlby e J.
William Worden. As descrições que constroem para explicar a estrutura do
enlutamento são bastante semelhantes entre si. Tanto um quanto o outro propõe a
existência de quatro momentos a serem vivenciados e superados por aqueles que
buscam se recuperar do abalo causado pela perda de um ente querido (Matos-Silva,
2011).
Apesar de aparecerem em uma sequência no luto, mas além de poderem
eventualmente oscilar, o tempo de duração de cada uma das fases pode variar de
indivíduo para indivíduo. Aliás, “fase” é precisamente o termo utilizado por
Bowlby, que as define da seguinte maneira: a) entorpecimento ou choque
(experimentado imediatamente após o falecimento, quando se questiona a realidade
da morte); b) anseio e busca da figura perdida (razão e emoção se alternam com a
percepção do falecimento como real, ainda que haja sensação de que o falecido está
vivo); c) desorganização e desespero (crença na não superação da perda que pode
vir acompanhada por apatia, angústia e/ou depressão); d) reorganização (a perda é
37

compreendida como algo permanente e o enlutado pode então se restabelecer)


(Matos-Silva, 2011).
Worden, entretanto, se faz valer do termo “tarefa”, ao invés de “fase”, para
descrever os momentos do luto. “Ao utilizar a palavra ‘tarefa’, quer dizer que o
enlutado é ativo, o que é mais condizente com a realidade”, comenta a psicóloga
Marian Matos-Silva (2011, p. 55) sobre a escolha do pesquisador. Para este, o
processo se divide nas seguintes tarefas: a) aceitar a realidade da perda (deve-se
buscar compreender emocionalmente a situação como real e irreversível); b)
elaborar a dor da perda (não se deve evitar a manifestação dos sentimentos); c)
ajustar-se ao ambiente onde a ausência do falecido é sentida (o ambiente sempre
se modifica quando da presença e/ou ausência de uma pessoa); d) reposicionar
emocionalmente o morto e dar prosseguimento à vida (o falecido pode e deve ter
um lugar na vida afetiva do enlutado) (Matos-Silva, 2011).
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Embora não seja mais possível estabelecer a duração de um luto ‘normal’, o primeiro
ano de luto é considerado importante. Isso porque, ao longo desse tempo, acontecem
as primeiras vivências de circunstâncias especiais sem a presença da pessoa falecida.
Entre essas circunstâncias estão ocasiões como Natal, ano novo e outras datas
comemorativas, que podem ser dolorosas, pois reforçam a realidade da perda. Estas
experiências que colaboram para que os enlutados sejam capazes de identificar, ao
longo do primeiro ano, padrões de pensamento, sentimento e comportamento que
devem ser abandonados. Aos poucos, por exemplo, deixa-se de ter a sensação de que
o morto estará presente (MATOS-SILVA, 2011, p. 58)

Outros fatores também contribuem para a duração dessas tarefas (ou fases),
tais como: o tipo de morte (homicídio, suicídio, acidente, velhice etc.), de relação
com o morto (pai/filho, irmão/irmã, marido/esposa etc.), a idade do enlutado
(criança, jovem, idoso etc.) e o tipo de rede de apoio a quem está em luto (a pessoa
recebe suporte de amigos e familiares ou fica isolada no processo?). Assim como
há uma parcela de singularidade em cada vida, a forma como cada indivíduo
experimenta a perda de um ente será única, e vai depender de uma série de questões
envolvidas na morte.
38

1.6.
Recapitulando

Neste capítulo pudemos acompanhar as principais transformações das


atitudes do homem das sociedades ocidentais diante da morte, numa trajetória que
se localiza entre os séculos V e XX aproximadamente. É preciso entender que as
mudanças que acompanhamos não se deram de maneira repentina e isolada. Muitas
levaram séculos para se consolidar, enquanto outras num espaço mais curto de
tempo ficaram evidentes. Muitas vezes, uma representação ou atitude não substituiu
integralmente a outra, mas coexistiu com essa por muito tempo – atesta isso a
variedade dos comportamentos e valores que podem ser encontrados em uma
mesma cultura, mesmo quando se olha para um único grupo, comunidade ou
sociedade.
Seja como for, algumas características gerais podem ser observadas ao longo
desse dilatado e complexo processo. A morte era no início um evento de caráter
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coletivo e público, aos poucos foi tornando-se individualizado e privado. O


moribundo antes organizava e presidia sua própria morte, mas foi aos poucos
perdendo a soberania sobre esta. Os corpos foram enterrados em covas coletivas,
em terreno santo e gradualmente em sepulturas e jazigos particulares. Os cemitérios
que em determinado momento eram palco de jogos, danças e encontros
comunitários cada vez mais foram se distanciando das cidades, ganhando tom
solene. Os cortejos fúnebres que percorriam parte da cidade com o corpo do morto,
em um roteiro pré-estabelecido por este quando em vida, praticamente
desapareceram. As crianças que outrora frequentavam o cômodo de onde o
moribundo fazia sua passagem foram “preservadas” destes rituais impactantes. O
culto aos mortos se transmutou em culto à imortalidade da alma por meio da
reverência à memória dos falecidos, culto às imagens e às estruturas sepulcrais. A
própria morte, enfim, que era um sono profundo, tornou-se julgamento no leito,
vida eterna, decomposição, aniquilação, silêncio...
Ainda que em meio a tamanha riqueza de elementos históricos envolvendo
nosso tema, acreditamos que dois pontos merecem ser destacados aqui. O primeiro
é o de que o tema da morte foi sendo silenciado ao longo dos séculos de modo a
transformar-se no principal tabu de nosso tempo; o segundo, o de que o luto
contemporâneo é uma experiência de solidão que tende a ser encarada como
39

insuportável, de onde somente há de brotar a dor14. Sendo um evento que não se


limita a questões biológicas, mas que paralelamente atinge um eixo interativo de
um grupo, um ser em relação, entendemos que a morte se faz sentir primeiramente
no vazio interacional que produz (Rodrigues, 1983/2006). E será especialmente sob
essa ótica que seguiremos com nosso trabalho.
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14
É conveniente resgatar uma observação de Ariès, que recorda que as “designações arcaicas da
palavra dor (douler, dol ou doel) permaneceram na língua, mas com o sentido restrito que
conhecemos a palavra luto (deuil)” (Ariès, 2012, p. 227).

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