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O único animal que tem consciência de que morrerá é o humano. [...] Para ele, viver
e sobreviver não são apenas realidades biológicas, pois adquirem conteúdos
específicos relativos a cada cultura e a cada momento histórico [...] De certo modo,
a morte existe para dar sentido à vida.
José Carlos Rodrigues
Condição última de todo ser vivente, a morte marca o término da vida. Ter
consciência da própria morte é ter consciência do limite da própria existência. É
entender-se finito em meio à finitude das coisas, dos seres, dos processos cósmicos,
mas diante da perenidade da Vida. Apesar de vida e morte, respectivamente,
poderem ser compreendidas como a “não morte” e a “não vida”, uma não é
necessariamente negação da outra. Ao contrário, são aspectos complementares do
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que é, que tudo é, e nesse ser reside algo em comum entre todas as coisas. A
curiosidade pelo saber possibilitando ao homem5 dar forma ao desconhecido,
tangenciando verdades, vislumbrando possibilidades e erigindo realidades, mesmo
se através de contornos, em prol de sua sobrevivência e da de seus pares. A
dinâmica saber-poder, tão bem trabalhada por Foucault, começava a ganhar
contornos. Mas a morte, ainda que não enquanto ideia, objeto de pesquisas
antropológicas e especulações filosóficas, já estava lá. Desde sempre esteve lá. E,
de modo singular ao animal político aristotélico, a morte traz consigo problemas de
ordens diversas, a começar por um corpo imóvel que antes era movimento e
interação. Um corpo que mesmo estagnado, de maneira aparentemente paradoxal,
começará a se mover em direção ao desaparecimento, à decomposição.
É extremamente importante destacar que tais problemas somente existem
quando observados do ponto de vista do coletivo, isto é, do social. Ninguém é
integralmente isolado da sociedade. Mesmo nos casos extremos há sempre uma
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Seja do ponto de vista dos seus estilos particulares de acontecer aos indivíduos, seja
do ponto de vista de sua rejeição pelas práticas e crenças, seja sob o ângulo de sua
apropriação pelos sistemas de poder, a morte é um produto da história. Ao mesmo
tempo, a história, tanto quanto produto da vida dos homens em sociedade, é resultado
da morte deles. As sociedades se reproduzem porque seus membros morrem. Têm
história porque não se reproduzem exatamente como eram antes. Atingem novos
estados porque, de certa forma, morrem para seus estados anteriores. Por isso, a
morte tem um lugar de relevo na feitura e na interpretação da história. E a história,
de sua parte, é em grande medida produtora de morte: das mortes-eventos e das
concepções sociais que tentam compreendê-las e domesticá-las. (RODRIGUES,
2006, p. 101).
5
Ao longo deste trabalho somente quando indicado explicitamente é que o termo “homem” fará
referência ao gênero masculino. Em todos os outros casos, “homem” irá designar o conjunto de seres
humanos.
21
que cada indivíduo já estaria, desde antes de seu nascimento, inserido no sistema
de representações de seu grupo. A premissa é verdadeira, especialmente no caso
das crenças e práticas de cunho religioso, uma vez que estas são oriundas de uma
potência moral que ultrapassa em muitos casos o indivíduo. Corrobora ainda com
essa ideia a máxima durkheimiana de que “os fatos sociais são, em certo sentido,
independentes dos indivíduos e exteriores em relação às consciências individuais”
(Durkheim, 1970, p. 26). Quer dizer, é necessário que os indivíduos, por meio de
suas atividades em sociedade, ajudem a manter acesos os valores do coletivo do
qual fazem parte. Isoladamente, o indivíduo não possui capacidade de transformar
os paradigmas morais de seu grupo6.
Acreditamos que cabe aqui mencionar e destacar a íntima e ancestral relação
existente entre morte e poder. Enquanto o último lida com questões políticas, com
relações de família e gênero, permeando todos os extratos e nuances de qualquer
sociedade – ocidental ou não, industrial ou não –, a primeira garante a continuidade
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dos cenários, das sociedades e da cultura diante da finitude dos indivíduos. Para
ilustrar de modo singular essa ideia, retomemos a pesquisa apresentada em Vigiar
e Punir (Foucault, 1975/2004). Vislumbraremos o que a economia dos corpos – a
docilização destes, a domesticação das mentes –, atrelada aos procedimentos
penais, suplícios e inúmeros dispositivos de controle, possibilitou ao poder. Neste
sentido, toda sociedade deve se estruturar contra a morte, com a morte e através da
morte, preenchendo as lacunas deixadas pelo desaparecimento de seus personagens,
seus indivíduos, dos papéis sociais, da matriz-referência de suas relações, em suma,
de um exercício de poder (Rodrigues 1983/2006).
Uma vez que cada sociedade possui características e organização próprias, o
modo como cada uma irá lidar com a morte e com seus mortos pode diferir no
tempo e no espaço, tanto em relação às demais, como em relação a si própria. Além
disso, as formas de morrer são várias, podendo-se morrer “de velhice”, por “morte
repentina”, “matada”, “violenta”, entre outras (Rodrigues 1983/2006). Cada tipo de
morte também será tratado de maneira diferente por cada sociedade, bem como por
6
Um exemplo esclarecedor provém do linguista genebrino Ferdinand de Saussure ao explicar que a
língua “é, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de
convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos
indivíduos” (Saussure, 2006. p. 17); é “a parte social da linguagem, exterior ao indivíduo, que, por
si só, não pode nem criá-la nem modificá-la; ela não existe senão em virtude de uma espécie de
contrato estabelecido entre os membros da comunidade” (Ibid., p. 22).
22
[...] as culturas poderão escolher uma imagem maternal da morte (a vida do aqui é
como a vida de um feto, a morte é o verdadeiro nascimento); ou uma imagem de
sono (a morte é repouso, é o último sono – ‘cemitério’ em sua origem grega
significava ‘lugar onde se dorme’); ou construir uma teoria de metempsicose (ideia
de uma vida que se estende no tempo, passando através de vários corpos); ou uma
gramática de reencarnações (que supõem uma continuidade consciente da
personalidade através de vários renascimentos); ou ainda acreditar na ressurreição
(restabelecimento da existência humana depois da morte: ‘re-viver’), e assim por
diante (RODRIGUES, 2006, p.39)
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Percebemos então que para cada morto existe uma morte, uma forma de
representá-la, e mesmo de processá-la e restabelecer a normalidade à sociedade à
qual ele pertencia – vivos cá, mortos lá. Em suma, é preciso que as sociedades se
organizem junto às transformações provocadas pela morte, em especial contra a
desestabilização provocada por esta e em favor da ideia de que a realidade seja algo
estável e até certo ponto inabalável (Rodrigues, 1983/2006; Berger e Luckmann,
1966/2011; Matos-Silva, 2011/2014).
Além disso, a morte, de certo modo, continua mesmo depois de o corpo estar
morto, proporcionando aos que ficam a experiência de desligamento gradual que
ocorre graças aos ritos fúnebres pertinentes a cada sociedade. Reside aí uma das
principais, se não sua principal função: separar os mortos dos vivos e reinseri-los
na sociedade através da memória, da história, da reprodução social – “uma crise,
um drama e sua solução” (Rodrigues, 2006, p. 21).
Ainda que os ritos de passagem, caso dos ritos fúnebres, se apresentem de
modo tão variado quanto as sociedades nas quais existem, há uma estrutura formal
coincidente em todos eles. Segundo Rodrigues, apoiando-se em Van Gennep7, tal
estrutura é composta pelos seguintes momentos: a) separação, caracterizada pela
7
VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 1978.
23
retirada dos signos da identidade prévia (cabelos raspados, unhas cortadas, roupas
rasgadas etc.); b) margem, caracterizada pelo aparecimento de símbolos intersticiais
e ambivalentes (gruta, tumba, escuridão etc.), conotam o lá e o cá ao mesmo tempo
– e o nem lá nem cá; e c) agregação, caracterizada pela imposição dos símbolos
relativos à posição final de destino do morto (coroação, novas vestimentas etc.). A
cada uma dessas etapas, a cisão (entre mortos e vivos) e a subsequente reintegração
(do morto à sociedade junto ao “panteão” e dos sobreviventes à vida comum)
ocorrem, restabelecendo aos poucos a normalidade do grupo.
Em A Solidão dos Moribundos (1982/2001) o sociólogo alemão Norbert Elias
destaca duas formas básicas de o homem ocidental lidar com a inevitabilidade da
morte. A primeira e mais antiga seria a encontrada nas mitologias presentes em
ideias sobre outra vida. A segunda seria a maneira contemporânea: a tentativa de
evitar a ideia da morte afastando-a de nós tanto quanto possível – tornando o tema
um tabu, investindo na crença cega nos poderes da medicina, etc. – e/ou crendo na
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imortalidade. Para Elias (2001, p. 12), “não há uma noção, por mais bizarra que
seja, na qual as pessoas não estejam preparadas para acreditar com devoção
profunda [...] desde que lhes dê a esperança numa forma de vida eterna”. De fato,
não obstante a clássica leitura freudiana que afirma que “a própria morte é também
inconcebível [...] que no inconsciente cada um de nós está convencido de sua
imortalidade” (Freud, 1915/2010, p. 230), especificamente no caso das sociedades
contemporâneas ocidentais um tabu encontra-se instalado desde meados do século
XIX aproximadamente, de especial interesse para este trabalho: o tabu da morte.
Diferentemente de períodos anteriores da história do Ocidente, o tema da
morte foi aos poucos sendo silenciado e hoje é considerado mórbido, fora de
contexto, assumindo tom quase sempre negativo e pessimista. Porém, recorreremos
ao clássico História da morte no Ocidente, do historiador francês Philipe Ariès,
para apresentar nas próximas páginas os principais estágios deste longo processo.
Mostraremos que as atitudes diante da morte das sociedades contemporâneas
industrializadas/pós-industrializadas guardam distinções significativas, em parte
inéditas, em relação a seus precedentes históricos.
24
1.1.
A morte domada
Sono esse que teria um fim somente no dia do Grande Despertar, quando “homens
e mulheres acordariam todos ao mesmo tempo [...] iriam se erguer gloriosamente
de suas sepulturas, mil anos sentidos como se apenas uma noite houvesse passado”
(Rodrigues, 2013, p. 8). Ao representar a morte como um sono profundo as
sociedades medievais buscavam não somente prosseguir com a alegoria explicativa
de uma vida após a morte, readequar suas crenças e enriquecer seu legado cultural.
Junto a essa representação residia também, ainda que de modo tácito, a finalidade
de tornar mais próximo o desconhecido, o inominável, o inefável8. Ao relacionar a
morte a um sono a sociedade aplacaria a angústia deixada por aquela, de maneira
que até no ritual de passagem, realizado junto à cama, pouco antes de morrer, o
moribundo era cercado por seus familiares. Assim, todos partilhavam de uma
experiência coletiva da morte, reforçando ao mesmo tempo uma prática cultural e
os laços sociais entre os indivíduos.
Na cena mais ou menos padronizada de morte na Idade Média, pelo menos como foi
fixada e idealizada na literatura e na iconografia, a pessoa que ia morrer recolhia-se
ao leito, cercando-se de amigos, parentes, vizinhos e mesmo de animais. Ouvia os
participantes. Oral e publicamente saldava dívidas, regularizava contas e dizia seu
8
Tal intento pode ser compreendido através da colocação de Serge Moscovici (2012, p. 54), que diz
que “a finalidade de todas as representações é tornar familiar algo não familiar, ou a própria
familiaridade”.
25
testamento. Fazia a confissão de seus pecados de modo que todos pudessem escutar
(RODRIGUES, 2013, p. 9)
Em épocas mais antigas, morrer era uma questão muito mais pública do que hoje. E
não poderia ser diferente. Primeiro porque era muito menos comum que as pessoas
estivessem sozinhas. Freiras e monges podem ter estados sós em suas celas, mas as
pessoas comuns viviam constantemente juntas. As moradias deixavam pouca
9
Não custa recordar que representações são signos que sempre falam de signos, e através de signos,
numa cadeia que tende ao infinito.
26
escolha. Nascimento e morte – como outros aspectos animais da vida humana – eram
eventos mais públicos, e, portanto, mais sociáveis, que hoje; eram menos
privatizados. (ELIAS, 2001, p.25)
evocação triste e discreta dos seres e das coisas amadas; b) o perdão dos presentes:
o moribundo recomenda os presentes, em especial os familiares e amigos, a Deus;
c) o gesto dos penitentes: uma prece dividida em duas partes (a culpa e a
commendatio animae); e d) a remissão dos pecados: o único ato propriamente
religioso da cerimônia (Ariès, 1977/2012). Ao final, o moribundo aguardava em
silêncio a sua hora chegar, cerrando os olhos ou mesmo cruzando suas mãos por
sobre o corpo. Imediatamente após a morte, a dor e as emoções dos presentes eram
expressas de maneira excessiva. Não obstante, rapidamente cessavam.
Assim se morreu durante séculos ou milênios [...] A antiga atitude segundo a qual a
morte é ao mesmo tempo familiar e próxima, por um lado, e atenuada e indiferente,
por outro, opõe-se acentuadamente à nossa, segundo a qual a morte amedronta a
ponto de não mais ousarmos dizer seu nome (ARIÈS, 2012, p. 40)
1.2.
A morte de si mesmo
10
Em História da Morte no Ocidente (2012), Ariès menciona o Concílio de Rouen (1231), quando
se proibiam as danças nos cemitérios e nas igrejas e aponta um texto de 1657 que questiona a
coexistência de sepulturas e atividades populares no mesmo lugar. Contudo, as constantes proibições
ao longo da história, sugerem que elas não eram observadas.
28
[...] conclusão geral dos primeiros fenômenos observados: o Juízo Final, a última
prova das artes moriendi, o amor pela vida manifesto pelos temas macabros. Durante
a segunda metade da Idade Média, do século XII ao século XV, deu-se uma
aproximação entre três categorias de representações mentais: as da morte, as do
reconhecimento por parte de cada indivíduo de sua própria biografia e as do apego
apaixonado às coisas e aos seres possuídos durante a vida. A morte tornou-se o lugar
em que o homem melhor tomou consciência de si mesmo. (ARIÈS, 2012, p. 61).
11
O filósofo francês Regis Débray lembra que o molde de cera (imago) do rosto dos mortos era
exigência de uma religião fundada no culto aos antepassados, que deveriam sobreviver pela imagem:
“A imagem é a sombra; ora, sombra é o nome comum do duplo” (Debray, 1993. p. 23).
30
1.3.
A morte do outro
Ao longo do século XVIII os testamentos vão ficando cada vez mais laicos
em relação à função religiosa que possuíam em séculos anteriores. Esses
documentos eram outrora apenas uma oportunidade de expressão da vontade do
moribundo, uma obrigação moral que assegurava o cumprimento de seus desejos,
uma garantia de não excomunhão e de um enterro em solo santo – próximo ou
dentro das igrejas.
Esse processo de laicização que atinge tanto os domínios da vida como os da morte
é característico do Século das Luzes e encontra sua expressão nuclear na oposição,
que então se desenvolve, em todos os sentidos, entre o corpo e a alma (...) Esta
separação é fundamental para o entendimento da problemática da morte, sobretudo
quando se considera que está no centro de todas as transformações ideológicas,
filosóficas e científicas a que os séculos seguintes irão assistir (...) modificações
radicais: a transformação do corpo humano em objeto, a apropriação da morte pela
medicina e pela família, o desenvolvimento da ideologia da higiene e a consequente
separação entre o cemitério e a cidade. (RODRIGUES, 2006, p. 130).
após a morte, impondo até mesmo restrições de lugares aos enlutados. As mulheres,
por exemplo, foram por muito tempo proibidas de acompanhar os cortejos de seus
maridos (Ariés, 1977/2012).
Paralelamente, as transformações relativas ao local de inumação e seus
respectivos simbolismos também se aceleraram de modo a proporcionar o
surgimento de estruturas funerárias de considerável porte arquitetônico. O
cemitério passou novamente a ser um lugar de visitas, ainda que em clima mais
solene e menos festivo. Assim como se visita um parente no lar, visitava-se um ente
querido em sua derradeira morada. “Os túmulos tornavam-se signos de sua presença
para além da morte”, conclui Ariès (2012, p. 76) diante do nascimento dessas
“cidades dos mortos”. Quanto a essa nova configuração, é importante mencionar
que ao menos inicialmente os principais visitantes dos cemitérios parecem ter sido
os descrentes, não os fiéis, que preferiam ir à igreja (Ariès 1977/2012).
12
Conforme observa Ariès, outro fator que ajudou a distanciar ainda mais o tema da morte nessa
fase foi o progresso da ciência médica, particularmente ao longo do século XIX, que substituiu a
ideia de morte pela de doença; desde que a condição fosse intratável, estar doente era como estar
morto.
32
1.4.
A morte interdita
13
José Carlos Rodrigues faz uma leitura muito interessante sobre esse fato ao considerar que “um
sistema que represente pelo silêncio é o cúmulo dos paradoxos. E o silêncio sobre a morte em uma
sociedade que tem a morte como sua realidade mais barulhenta é o paradoxo dos paradoxos”
(Rodrigues, 2006, p. 101).
34
tempo. Assim, o que antes era exigido será agora proibido (Ariès, 1977/2012; Elias,
1982/2001; Matos-Silva, 2011/2014; Rodrigues, 1983/2006).
1.5.
O luto e suas etapas
Assim como os ritos, o luto pode ser vivido de várias formas, podendo ser
visto como um processo social e como um processo individual. Para a psicóloga
Maria Matos-Silva (2011, p. 46), “assim como a duração do luto é estabelecida
pelos costumes, os sentimentos experimentados ao longo deste período também são
frutos do meio social”, e por isso “a elaboração psicológica do luto está atrelada à
maneira como um grupo social pensa sobre a morte e se comporta diante dela”
(Ibid., p. 49). Há sociedades em que o luto é breve, durando poucas horas, e há
sociedades em que o luto dura semanas, meses e até mesmo anos, não sendo, na
maioria dos casos, uma questão de escolha do enlutado (Rodrigues, 1983/2006).
alguma perda.
Ainda que não tenha aprofundado seus estudos sobre o tema, Sigmund Freud
foi um dos primeiros a falar das questões psicológicas do luto, ao comparar as
manifestações características deste com as da melancolia no clássico texto Luto e
Melancolia (1915/2010). Para o pai da psicanálise, o luto é um processo psíquico
não patológico. Para ele, trata-se de uma “reação à perda de uma pessoa amada ou
de uma abstração que ocupa seu lugar, como pátria, liberdade, um ideal etc.” (Freud,
2010, p. 171).
O que Freud quer dizer com isso? Bem, primeiramente, como mencionado
algumas linhas atrás, ele entende que o processo de luto pode se aplicar a qualquer
tipo de perda, seja ela moral, material ou de qualquer outra ordem. Claro que cada
caso deve ser tomado em sua particularidade, e não estamos aqui comparando – e
nem o autor em questão – a perda de uma chave com a perda de uma mãe. Porém,
a comparação é válida do ponto de vista formal, ou seja, da semelhança entre os
estágios do processo: o reconhecimento da perda; da frustração que disso decorre;
da capacidade de lidar com a potencial irreversibilidade do fato – a chave pode ser
perdida momentaneamente, enquanto um familiar não – e da aceitação da nova
realidade. Podemos falar de chaves, mas também de um emprego, um
relacionamento etc.
36
Embora não seja mais possível estabelecer a duração de um luto ‘normal’, o primeiro
ano de luto é considerado importante. Isso porque, ao longo desse tempo, acontecem
as primeiras vivências de circunstâncias especiais sem a presença da pessoa falecida.
Entre essas circunstâncias estão ocasiões como Natal, ano novo e outras datas
comemorativas, que podem ser dolorosas, pois reforçam a realidade da perda. Estas
experiências que colaboram para que os enlutados sejam capazes de identificar, ao
longo do primeiro ano, padrões de pensamento, sentimento e comportamento que
devem ser abandonados. Aos poucos, por exemplo, deixa-se de ter a sensação de que
o morto estará presente (MATOS-SILVA, 2011, p. 58)
Outros fatores também contribuem para a duração dessas tarefas (ou fases),
tais como: o tipo de morte (homicídio, suicídio, acidente, velhice etc.), de relação
com o morto (pai/filho, irmão/irmã, marido/esposa etc.), a idade do enlutado
(criança, jovem, idoso etc.) e o tipo de rede de apoio a quem está em luto (a pessoa
recebe suporte de amigos e familiares ou fica isolada no processo?). Assim como
há uma parcela de singularidade em cada vida, a forma como cada indivíduo
experimenta a perda de um ente será única, e vai depender de uma série de questões
envolvidas na morte.
38
1.6.
Recapitulando
14
É conveniente resgatar uma observação de Ariès, que recorda que as “designações arcaicas da
palavra dor (douler, dol ou doel) permaneceram na língua, mas com o sentido restrito que
conhecemos a palavra luto (deuil)” (Ariès, 2012, p. 227).