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ensaio-memória - - - - - - -
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Primeiro semestre de 2019. Ano de intensa instabilidade política no Brasil, lugar onde
acontecem as experiências deste ensaio-memória. Mal começado o ano, será fácil encontrar
entre as pessoas um sentimento crescente de estresse, insegurança e, não raro, raiva
generalizada. É que este cenário já vinha se desenhando há algum tempo. Liberam-se armas,
cortam-se verbas, escândalos de corrupção tão comuns quanto mosquitos em dia quente,
desemprego que cresce vertiginosamente, mais pessoas mortas por ano nessa suposta
democracia do que em países em situação de guerra, prisões políticas, liberação de
agrotóxicos, a natureza consumida em plástico.
É importante situar. Se tratamos do sensível, do incognoscível, se pretendemos falar
do que é humano e subjetivo, precisamos ser submersos pelo contexto. No ano em que esse
ensaio-memória acontece, é preciso dizer que todos ao meu redor estão instáveis. Talvez não
necessariamente tristes, mas preocupados. Atentos. Estressados. Planos que não se
concretizam, realidades aparentemente sólidas transformadas em névoa, todo mundo está
criando para si mesmo versões de futuro com planos A, B e C. Mais uma vez, é importante
situar: estou em Salvador, na Universidade Federal da Bahia, estudante da grande área de
Artes, sou branca, lésbica, natural do estado de São Paulo, classe média. Ao meu redor,
realidades diferentes. Quase todas giram em torno da universidade. Aponto essas coisas pois
é possível supor que realidades distintas tenham também seus problemas e visões
particulares. Aqui, na universidade, na área de artes, no universo LGBTQ+, temos ansiedade
e medo e parece que a expectativa de futuro não aponta boas novas.
Entro na sala. Tatame grosso no chão, cheiro de suor engarrafado, não é grande nem
pequena, a sala, e o ar-condicionado barulhento deixará de funcionar em algum momento da
metade do semestre letivo, que dura quatro meses. Aqui, um grupo de cerca de quinze
pessoas, entre discentes de graduação e pós-graduação, professores e convidados, se reunirá
uma vez por semana durante três horas e meia. A disciplina, registrada como Poéticas
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Holísticas em Movimento, se realizará na forma de pequenas oficinas, ministradas por
diferentes pessoas, na maioria das vezes convidadas. Cada encontro trata uma nova temática.
Começo a participar dos encontros com um pouco de atraso, provavelmente perdendo
as primeiras discussões sobre a disciplina, sua abrangência. São mais de dez práticas
diferentes previstas para as próximas aulas, a contar de minha primeira participação.
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Outro fragmento. Estamos no Estúdio Physio Pilates, na Ondina. Uma vista para o
mar devora as janelas da sala, recheada por uma maquinaria colorida e acolchoada que parece
uma mistura de parque de diversões dos bebês com instrumentos de tortura medieval. São as
modernas versões das invenções de Joseph Pilates para o seu método homônimo, que trabalha
com controle muscular e é usado, entre outras coisas, para tratamento e prevenção de
problemas físicos.
Momento de fazer exercícios e massagens no pé com uma bola de tênis, de torcer o
corpo e exigir de si um pouco de força e precisão. E nisso, o holístico, a conexão através do
tempo. Pois passo a acreditar que seja holístico, também e principalmente, voltar-se para
dentro. Para o dentro onde mente e corpo não se separam, o lugar onde o encontro faz nascer
um silêncio cheio de possibilidades. Voltar-se para si.
Não carregamos, nós mesmos, o nosso próprio Todo? Não é inegável que exista entre
nós algum tipo de relação, um vínculo, já que possuímos corpos que, em suas diferenças, são
evidentes de sua semelhança?
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De pé, realizo respeitosa e momentaneamente a representação imagética (ou até, quem
sabe, uma breve representação energética?) da avó materna de Ícaro Bittencourt, um de meus
colegas da disciplina. Estamos em uma sessão/experimento de Constelação Familiar. Estar
ali, de pé, representando um ancestral de uma daquelas pessoas... Uma viagem interna me
captura para minha própria linha do tempo invisível. Como quem se serve de migalhas,
recolho os lapsos de memória até as evidências começarem a desaparecer, lá pela transição
entre avós e bisavós. Evidências, eu digo, mas elas são mesmo é histórias, nomes de pessoas
que são rememorados em suas breves andanças rumo ao esquecimento.
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Busco o mais profundo, para além das evidências, além das palavras, dos nomes, das
histórias. Imagino meus ancestrais como que numa linha diante dos meus olhos. Uma linha
que atravessa verticalmente a minha história. Eles ali, parados em suas duplas, e seus
respectivos progenitores que formam duplas atrás deles, e atrás de cada um dos progenitores
ainda outros progenitores, e outros e outros, duplas e duplas e duplas e duplas, como um
galho de uma árvore que se ramifica. Então busco encaixar nessa imagem as linhas
horizontais, as irmãs e irmãos. Levando em conta apenas os mais recentes: minha mãe tem
nove irmãos e irmãs, meu pai tem quatro irmãs, e a imagem só cresce. Vejo uma imensa
árvore genealógica disposta no formato imaginado de dezenas de pessoas alinhadas a sumir
de vista… Imagino que me olham naquele segundo e que comigo se comunicam através do
tempo, todas elas, aquelas que eu conheci e aquelas que morreram centenas de anos antes que
meu nascimento fosse possível.
Quem será que foram elas, aquelas pessoas? E, daqueles encontros, dos quais novas
pessoas nasceram, como teriam sido aqueles encontros? O que, daqueles encontros, daquelas
pessoas, permanece comigo, no meu DNA e quem sabe de quantas outras formas que ainda
nos são desconhecidas? A reflexão transforma o tempo numa unidade viva, pulsante.
A reflexão, à primeira vista, parece agradável e acolhedora. Como um lago cuja
superfície espelha o céu e ondula suavemente ao sabor da brisa. Você pode ter vontade de dar
um mergulho. Mal seus pés tocam a margem, a sensação de estabilidade da terra é substituída
por um desagradável chapinhar na lama, que desliza gelada entre os dedos dos seus pés. O
fundo do lago parece estar cheio de folhas mortas, mas você prossegue como quem caminha
em geléia, pensando que aquele momento ruim vai acabar a qualquer momento. O lago não
parecia maravilhoso? Você avança um pouco mais, sedento pelo mergulho, mas a lama
alcança seus joelhos e suas coxas e seu quadril, lama forte como areia movediça, lama que te
prende e que te arrasta, que te suga para baixo, para baixo, para o fundo, o fundo. Tudo se
agita enquanto você luta pela sobrevivência, água espirrando para os lados, seus braços
desesperados procurando um auxílio que não chega nunca. Então você é submerso, água
entrando pela sua boca seus pulmões estômago coração, um sepultamento aquático, vivo,
invisível. Quando você desaparece, o lago volta a parecer plácido, agradável, tranquilo.
A minha história é uma narrativa da violência. Olhar para trás, para a infindável lista
de progenitoras e progenitores, é uma rememoração do abuso e da profunda misoginia. Não
sou ingênua nem tenho anseios de mártir: essa é também a história de todos os outros, com
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algumas improváveis exceções, que eu na verdade não acredito que existam. Os filmes de
romance só existem para que possamos fantasiar com nossa própria submissão. Se um
exemplo prático torna as coisas mais visíveis, posso oferecê-lo na forma de evidências:
casaram minha avó materna aos catorze anos com um cara de quarenta, que a aprisionou
dentro de casa através de uma matilha de dez filhos, um seguido do outro, aos quais, é até
desnecessário dizer, ele dispensava pouco mais do que a mínima atenção. As evidências
contam que ele era um homem violento, autoritário, destrutivo. Que ele exercia um papel de
tirano, que aterrorizava a família. Minha avó, ela também, contam as evidências, era uma
figura autoritária e raivosa, famosa pelos castigos medievais a que submetia seus filhos. É
muito extensa a lista de evidências de agressões físicas, verbais, sexuais, morais, éticas,
psicológicas...
Não me iludo. Essa história é como todas as outras. E quanto mais para trás, numa
perspectiva cronológica, me soam ainda mais bárbaras as evidências desconhecidas. Não
posso não pensar nessas coisas, o ano é 2019, estou prestes a completar 25 anos, sou uma
mulher cisgênera lésbica que está, pelo menos, num tempo histórico em que se pode fazer
reflexões escritas sobre esses assuntos. Posso e preciso pensar as mulheres. Posso e preciso
repensar a história, abrir os olhos, escutar os sussurros.
A grande árvore genealógica, o paredão de ancestrais que há pouco parecia a
representação suprema da força e do acolhimento imersos numa névoa de beleza ingênua, ela
é como mergulhar no lago límpido e naufragar na lama.
O que será que significa isso de estarmos carregando conosco tanta violência? Quais
serão as repercussões de uma história da raiva e do abuso repetido? Será que estamos
repetindo os mesmos erros, de uma maneira modernizada? Será que é possível encerrar tudo
isso, caminhar em direção ao amor, o respeito e a compreensão?
Tenho muitas reflexões sobre esse assunto, mas penso que não servem a esse
relato-memória. Elas são muito rizomáticas e não têm nada de holístico.
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Seria fácil continuar esse ensaio-memória indefinidamente. As questões que me
atravessam durante o percurso com a disciplina são inesgotáveis, da raiz do profundo e do
sensível, que não podem ser respondidas. São tantas as viagens do imaginário, tantas
conexões inusitadas, sentimentos, percepções para as quais não se tem palavra que expresse.
Se é preciso que o ensaio-memória termine, me parece inevitável que o fim esteja entrelaçado
ao começo, para que possa estar a repetir-se infindavelmente.
Primeiro semestre de 2019, estamos no Brasil, temos ansiedade e medo e raiva e
alegria e novas ideias, somos um grupo de quinze pessoas que se reúne dentro de uma
universidade uma vez por semana durante quatro meses e propomos uns aos outros
experimentações de métodos criados por seres humanos, que buscaram, repetidamente e
através do tempo, conectar-se a uma ideia de Todo. Estamos num momento em que a
humanidade, apesar de perceber os estragos que fez ao equilíbrio da vida no planeta Terra,
continua a fazê-los enquanto calcula o tempo de sua sobrevida. Temos um passado e um
presente de violência.
Qual proposição poderia ser mais acertada para o momento do que um convite à busca
pela conexão com o Todo? Se não somos indivíduos isolados, restritos aos nossos próprios
ganhos e perdas individuais, se em vez disso somos parte de um organismo tão grande e
complexo que não conseguimos vê-lo, o tempo urge para que repensemos nossas escolhas de
vida. Para que nos atiremos irrestritamente em busca da reparação do encontro silencioso que
acontece dentro do nosso Eu, em busca da reparação do nosso planeta, da reparação do nosso
passado-presente de violência e morte.
Por isso, as reflexões proporcionadas por essa disciplina me parecem pertinentes,
conectadas às necessidades do momento e aos caminhos do futuro. Aliás, talvez eu esteja
sendo pouco abrangente, permita-me a nova tentativa. É que estou aprendendo a ver
organismos cada vez maiores, maiores, maiores. Recomeço: me parece que as reflexões
proporcionadas por essa disciplina são pertinentes à vida humana desde o seu primário
acontecimento.
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