Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
195
GUILHERME MISUGI
Mestre em Direito Econômico e Socioambiental (PUCPR) com Bolsa Capes.
Pós-graduado em Direito Empresarial (FGV).
RESUMO: O presente estudo visa à análise da boa-fé objetiva, seus deveres anexos, e
função social do contrato em face da autonomia da vontade na resilição de contratos
firmados entre pessoas de direito privado e que permanecem vigentes durante longo
período de tempo (ou por prazo indeterminado). Por meio de método dialético, em que
se parte de levantamento bibliográfico para estudo de caso, busca-se a harmonização
destes institutos e a análise crítica de sua apreciação pelo Poder Judiciário. Demonstra-
se, portanto, que os valores apresentados pela Constituição Federal devem nortear as
relações contratuais no âmbito privado para que a resilição unilateral desses contratos
não se concretize em divergência à boa-fé e seus deveres anexos.
The objective good faith in the rescission of long-term contracts and the fulfill-
ment of the social function
ABSTRACT: This study aims to analyze the objective good faith, its related duties, and
contract social function in the face of freedom of choice in contract rescission signed
between private persons that endured for a long period of time (or for an indefinite
period). Thus, through dialectical method - on which a bibliographical survey is used
as a basis for the case study - an attempt to harmonize these institutes is made
as well as a critical analysis of its appreciation by the Judiciary. It demonstrates,
therefore, that the values presented by the Federal Constitution should guide the
contractual relations in the private sector so that the unilateral rescission will not
materialize conflicting with good faith and its related duties.
KEYWORDS: Good faith and related duties Social function of the contract
Contracts’ rescission on an exclusive relationship Long-term contracts.
RESUMEN: Este estudio tiene como objetivo analizar la buena fe objetiva, sus
deberes anexos, y función social del contrato de frente a la autonomía de la voluntad
en la terminación de contratos firmados entre los particulares y que permanecen en
vigor por un período largo de tiempo (o por tiempo indefinido). De este modo, por
medio del método dialéctico, que parte de un levantamiento bibliográfico para el
estudio de caso, se busca logar la armonización de estos institutos y el análisis crítica
de su apreciación por el poder judicial. Demuestra, por lo tanto, que los valores
presentados por la Constitución Federal deben guiar las relaciones contractuales en
el sector privado a fin de que la terminación de estos contratos no se materializará
en conflicto con la buena fe y sus deberes anexos.
PALABRAS CLAVE: Los derechos de buena fe y deberes anexos Función social del
contrato Terminación de los contratos en una relación de exclusividad Contratos
a largo plazo.
1 Introdução
1 Neste sentido, vide: Aguiar Júnior (2004, p. 12, 79); Assis (2013, p. 60-82).
Tais práticas devem ser combatidas pelo Poder Judiciário como forma de dar
efetividade aos princípios constitucionais que norteiam o direito privado, bem como
pelos motivos que serão explicitados a seguir.
Esse movimento doutrinário veio a modificar a disciplina dos contratos com uma
série de valores que ultrapassam a vontade do particular. Esclarecedora a afirmação
realizada por Alinne Arquette Leite Novais:
Em outras palavras, o contrato deixa de ser mero instrumento que expressa única
e exclusivamente a vontade individual para passar a atender à finalidade coletiva.
Assim, apesar de o contrato se originar da declaração de vontade das partes
(de modo que o contrato não se afasta totalmente da sua finalidade original) e
possuir força obrigatória para as mesmas, a autonomia da vontade não possui as
mesmas dimensões que tinha anteriormente, posto que passou a sofrer as limitações
impostas pelos novos ideais do Estado Social.
É certo que os Poderes Legislativo e Judiciário devem intervir de maneira a
proteger os valores sociais que, apesar de não expressos pelas partes contratantes,
estão presentes nos termos que são corriqueiramente ajustados pelos particulares.
Comportamento estatal ativo condizente com sua natureza social que, inclusive, foi
elucidado por Gustavo Tepedino:
Note-se, por meio desta nova ideologia, que se pretende submeter a ordem
econômica aos critérios sociais mediante a harmonização da liberdade individual
com os interesses da coletividade, ou seja,
Justamente com vistas a atender a esses novos ideais do Estado Social, o art.
422 do Código Civil passou a prever que os contratantes concluam, interpretem e
executem o contrato segundo as regras da lealdade, cooperação e da boa-fé objetiva.
Para iniciar a exposição sobre este tema, é importante destacar o conceito de
boa-fé objetiva ensinado por Judith Martins-Costa:
4 Julgamento pelo STJ de recurso que tratou da denúncia de contrato sob a ótica
da boa-fé objetiva e seus deveres anexos
2 “ Não se quer com esse posicionamento afirmar que os contratos devem ser mantidos a todo custo,
sem observância da vontade das partes. A opção de contratar e manter-se em um contrato é expressão
máxima da autonomia da vontade, que não desapareceu, é evidente. Porém, deve-se ter em mente
que, partindo-se do fato de que há um contrato de longa data, a faculdade de distrato exercida de
forma disfuncional, anormal, imoderada ou distanciada da boa-fé e dos bons costumes comerciais,
pode acarretar danos a outrem que devem ser reparados em sua plenitude”. (BRASIL, 2010a, p. 17).
Não é qualquer confiança que está tutelada por tal instituto, é necessário que a
confiança gerada na parte adversa seja legítima, conforme entendimento pacífico da
doutrina. Nesse sentido, leciona Anderson Schreiber:
Não basta, todavia, o estado de confiança; é preciso que tal confiança seja
legítima [...]. O nemo potest venire contra factum proprium também não
tutela a confiança do deslumbrado, que obtém financiamentos a juros
elevados e adquire bens de alto valor, por conta dos resultados oriundos
de uma futura contratação que ele tem como certa a partir de um convite
para almoçar. (2012, p. 134).
preenchidos, bem como a necessidade de que o Poder Judiciário utilize tal preceito
com maior frequência afim de reestabelecer a igualdade entre as partes contratantes,
considerando a desigualdade material que ocorre em muitas situações.
Ademais, ao tratar das repercussões desta teoria, o Ministro Relator do caso em
estudo cita os institutos da supressio e da surrectio. Nesse sentido, vale mencionar
trecho do acórdão:
Tais institutos são fundamentais para a elucidação do caso concreto, posto que sua
análise nos permite concluir que a distribuidora de bebidas, ao simplesmente analisar
o reiterado comportamento da fabricante, passou a ter a legítima expectativa de que
os investimentos realizados teriam retorno, ou seja, a fabricante, após sucessivas
renovações contratuais, fez com que a cláusula que autorizava a rescisão imotivada,
fosse suprimida, como bem constatou o STJ, em julgamento da lavra da Ministra Nancy
Andrighi no voto proferido no julgamento do recurso especial no 953389:
Tal voto merece destaque, uma vez que, após o voto-vista do Ministro Ricardo
Villas Bôas Cueva, a Terceira Turma negou provimento ao recurso especial, nos termos
do voto do Ministro Relator, o que infere o início de uma mudança de concepção
jurídica acerca do assunto.
5 Conclusão
A promulgação da Constituição Federal traz consigo uma grande carga
axiológica que gradativamente rompe com o paradigma do Estado Liberal, no qual
se defendia a total autonomia da vontade contratual que passa a ser relativizada. E,
justamente em função da constitucionalização do direito privado é que as relações
contratuais passam a dever observar princípios gerais do direito, como por exemplo
a boa-fé objetiva e seus deveres anexos.
Com a realização da análise do caso concreto demonstrou-se que a situação
se torna especialmente grave para os casos em que a contratação por prazo
indeterminado gera expectativa de que o contrato permanecerá vigente e uma das
partes se torna dependente economicamente da outra.
A partir desse prisma, o ordenamento jurídico deve compreender que a resilição
do vínculo contratual em função da simples vontade de uma das partes também deve
respeitar a boa-fé objetiva de modo a evitar a geração de danos para a parte adversa.
No estudo realizado avaliou-se os deveres anexos da boa-fé com a finalidade
de demonstrar que, além da colaboração e lealdade que devem existir entre os
contratantes, o venire contra factum proprium não permite que a resilição do contrato
de longa duração e com vínculo de exclusividade ocorra abruptamente e inviabilize
a continuidade da atividade empresarial.
Evidencia-se, desta forma, que em casos em que se verifique a inexistência da boa-
fé no momento da extinção do contrato, o Poder Judiciário deve intervir e determinar a
reparação dos danos causados para a parte lesada pela ruptura do vínculo.
Por fim, resta claro a necessidade de que o Poder Judiciário observe as
peculiaridades fáticas do caso concreto para determinar se a resilição contratual
ocorreu de modo adequado, ou seja, sem gerar danos que inviabilizem a atividade
empresarial para uma das partes contratantes e que esteja de acordo com os
princípios insculpidos na Constituição Federal.
6 Referências
AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do
devedor. Rio de Janeiro: Aide Editora, 2004.
AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. 8. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro:
Renovar, 2014.
pressupostos para sua ocorrência. 2011. Tese (Doutorado em Direito Civil) - Faculdade
de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. Disponível em: <http://
www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2131/tde-03092012-095124/>. Acesso em:
13 ago. 2013, 399 f..
ASSIS, Araken de. Resolução do contrato por inadimplemento. 5. ed. rev. e atual. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, v. 3 - Teoria das obrigações
contratuais e extracontratuais. 32. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2016.
FORGIONI, Paula A. Contrato de Distribuição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
GOMES, Orlando. Contratos. 27. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
______. A evolução do direito privado e o atraso da técnica jurídica (1955). Revista Direito
GV, São Paulo, v.1, n.1, p. 121-134, 2005. Disponível em: <http://bibliotecadigital.
fgv.br/ojs/index.php/revdireitogv/article/download/35268/34062>. Acesso em: 16
maio 2016.
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 17. ed. rev. e atual.
São Paulo: Malheiros, 2015, p. 15.
HUGON, Paul. História das doutrinas econômicas. 7. ed. São Paulo: Atlas, 1962, p.
129 et seq.
______. Mercado e solidariedade social entre cosmos e táxis: a boa-fé nas relações de
consumo. In: MARTINS-COSTA, Judith. A reconstrução do direito privado. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2002.
MIRAGEM, Bruno. Função social do contrato, boa-fé e bons costumes: nova crise dos
contratos e reconstrução da autonomia negocial pela concretização das cláusulas
gerais. In: MARQUES, Claudia Lima. A nova crise do contrato: estudos sobre a nova
teoria contratual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. São
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 29. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2016.
TEIZEN JÚNIOR, Augusto Geraldo. A Função Social no Código Civil. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2004.
TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 4. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro:
Renovar, 2008.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato social e sua função. 4. ed. rev. e atual. Rio
de Janeiro: Forense, 2014.
TORRES, Andreza Cristina Baggio. Teoria contratual pós-moderna. Curitiba: Juruá, 2007.