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CmNCIA POLlTICA

A CRISE BRASILEIRA LANÇA UM "ULTIMATUM"


PAULO BONAVIDES
(Da Universidade do Ceará)

Bum1rio: 1. No Caminho das Reformas enquanto é Tempo. 2. A


Infeliz Técnica Presidencial de Govêrno. 3. O ~sidencialismo e o
Pesadelo das Crises. 4. Reação e Corrupção no Estado Social Bra-
sileiro, Ingerência do Poder Econômico e Necessidade de o Estado
Amparar Financeiramente o Sistema Partidário. 5. A Reforma como
Instrumento de Conservação. 6. A Democracia Cristã e a Questão
Social no Brasil. 7. As Duas Faces da Constituição Brasileira: Pre-
ceitos Progressistas e Técnicas Reacionárias.

1. No Caminho das Refonnas, enquanto é Tempo. Quan-


do uma bala no coração pôs termo à existência de Vargas, a
manhã de sangue daquele trágico 24 de agôsto foi objeto de
muitas reflexões pertinentes à crise política que então abalou
o País.
De todos os que interpretaram a tragédia, ninguém foi
mais lúcido que o Pro!. Hermes Lima, quando reexaminando suas
crenças e posições anteriores em matéria de organização polí-
tica e técnicas de govêrno, chegou à conclusão de que estas
desempenham efetivamente na vida dos povos um papel muito
mais importante e essencial do que lhe fôra dado à primeira
vista perscrutar. E no sacrifício do caudilho lendário, viu êle
tombar ao mesmo passa, em irremediável malôgro, sessenta e
tantos anos de experiência do presidencialismo no Brasil, desde
a República de 1891.
Seria estultícia confinar a crise brasileira, de tão profun-
das raízes sociais, a simples variações do sistema governativo.
Promove o País sua revolução industrial, tendo, como não ti-
veram outros países na idade dessa transição, que atravessar
uma tempestade ideológica tão violenta quanto esta que faz
boiar à supercície dos acontecimentos aparências meramente

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ilusórias do conflito, cuja profundidade jamais se alcançará
preterindo o envolvimento da questão social.
Ontem, na recente década dos cinqüenta, os problemas
dessa mudança se disputavam em têrmos acadêmicos e doutri-
nários. Desde 1960, a fase de saber se as reformas devem ou
não ser feitas já passou. Agora, pergunta-se com impaciência
qual a reforma que se fará, entrando a sociedade brasileira na
crise mais aguda de combate pela aplicação das fórmulas pre-
conizadas. Se não andarmos com muita pressa, os fatos toma-
rão a dianteira, de nada valendo as receitas preparadas, pois
a opção paz ou guerra ocorerrá nas ruas, sem o consentimento
ou o contrôle dos que responsàvelmente deveriam estar à testa
da mudança irreprimível.
Mas êstes se omitem no meio dessa baderna de opiniões,
onde um côro de vozes reacionárias dá a falsa impressão de
que uma crise existe porque está sendo subversivamente fo-
mentada por agentes agitadores quando a verdade se acha
precisamente no contrário: é a crise mesma que faz pulular os
agitadores, tôda essa casta de promotores ostensivos da solu-
ção violenta, que o patriotismo nos impõe prevenir a todo o
custo. Como preveni-la, pois? Arvorando as bandeiras da re-
forma coeial, cclocando-as nas mãos dos que têm idoneidade
para promovê-la. Desarmando o elemento sedicioso. Tirando-
lhe as razões, o argumento, o combustível, a crítica certa com
que poderão levar-nos ao desfecho incerto, em suma, acabando
com a crise para podermos então acabar com a agitação.
Os cooperadores reacionários que sustentam a contra-re-
forma deviam romper a espêssa névoa de preconceitos que lhes
tolda a visão social, tomando alguma lição útil no exemplo da
China de Chiang-Kai-Schek e daquela Cuba do general Batista.
Estão êsses fanáticos mais próximos de Fidel Castro e Mao-
Tse-Tung do que poderia parecer à primeira vista pela distân-
cia ideológica em que o seu extremismo aparentemente os co-
locou.
O maior reformista do continente é o presidente Kennedy.
No caso brasileiro as horas contam por meses. Cada dia que
perdemos, equivale a anos de atraso na solução social do gra-
víssimo problema nacional. Cada procrastinação que o esfôrço
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anti-reformista faz poderá custar-nos imensamente caro; pode-
rá tornar irremediável o que ontem seria fácil, o que hoje é
difícil, o que amanhã será impossível. E dêste amanhã que
vertiginosamente nos acercamos. O País está entrando no ca-
minho da violência; armas rebeldes se estão levantando contra
a ordem constitucional, os quartéis se acham inquietos, a au-
toridade se desmancha, a inflação, que roeu as resistências
tradicionais, que minou as instituições mais respeitáveis, lança
já no meio da desordem o «ultimatum~ político de tôdas as
espirais inflacionárias: a revolução ou a ditadura.

Quem fôr cego tomará o recente episódio de Brasília como


banalissimo protesto de minoria insurgente, que atentou sedi-
ciosamente contra a majestade de um tribunal supremo. Tão
fácil visão das coisas cortaria a questão com as medidas disci-
plinares que tais fatos impõem. Mas o episódio é apenas um
entre muitos que virão, a pretextos diversos, movidos pelas
fôrças instintivas do descontentamento social, da insegurança
econômica, da intranqüilidade financeira e das abundantes in-
justiças que por aí campeiam.
O tempo que já esperdiçamos em larga parte discutindo a
reforma que não se fêz, suspensa entre as resistências obsti-
nadas do elemento reacionário e a impaciência demagógica da
frente comuno-caudilhista, começa de exaurir-se. Vemos o País
semiconvulsionado, sem poder sair do fundo do abismo, com
o poder democrático e as liberdades públicas por um fio.
Se recuperarmos nos meses vindouros a necessária paz e
omitirmo-nos outra vez na consecução do programa reformista,
o abalo que vier (oxalá já não estejamos no meio dêsse abalo)
não deixará tempo a ninguém para refletir naquilo que a pru-
dência manda fazer logo, nesta hora que pode ser a última
da democracia, da liberdade, da paz. Como nos conservamos
imobilizados pela esterilidade do mêdo, da desconfiança e dos
sofismas! Cada vez mais dificultosa e complicada fica, pois a
solução do problema social brasileiro, em face de tanta inde-
cisão e adiamento do que é inevitável.
Quando a folhinha política marcar um nôvo agôsto de
1961, faremos então essas reformas - e isto se Deus ainda fôr
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brasileiro. Mas elas se farão do mesmo modo que fizemos a
reforma da Constituição nos turvos e sombrios dias da renún-
cia presidencial: a toque de caixa, como solução de emergência,
precária e ruinosa, evitando ou talvez apenas adiando o pior.

•••
Tornemos, porém, ao ponto de partida: a técnica de go-
vêrno de que dispomos é má e embaraçosa. Solidária com a
reação e o caudilhismo no programa anti-reformista se acha o
sistema presidencial de govêrno. Eis o que intentaremos de-
monstrar, em apreciações subseqüentes.

•••
2. A infeliz Técmca pI'leSidoocial de Govêmo. No sistema
presidencial de govêrno é consideràvelmente mais difícil que no
parlamentarismo abrir a via constitucional para as reformas
indispensáveis ao País.
Um dos traços marcantes dessa forma de govêrno vem a
ser a separação rígida ou acentuada de podêres, uma incomu-
nicabilidade relativa, um certo grau de equilíbrio - quando
o sistema presidencial funciona a contento - entre os três
ramos básicos da atividade estatal: o executivo, o legislativo
e o judiciário.
Em conexões ideológicas, o presidencialismo é técnica de
govêrno com mais de cento e cinqüento anos de atraso. Ex-
prime por excelência a concepção de organização política do
Estado liberal, com o dogma de Montesquieu relativo à sepa-
ração de podêres, a obsessão de salvaguarda judiciária de
direitos individuais prevalecendo contra o interêsse social e
o federalismo, mal entendido, como fôrça de contenção do
poder estatal.
Hão de retorquir-nos que o sistema parlamentar também
traduziu históricamente uma fase na concepção do Estado li-
beral. Com efeito, tanto o presidencialismo como o parlamen-
tarismo foram mecanismos da democracia limitada, da demo-
cracia temperada, da «democracia governada» (Burdeau), da
democracia liberal, como todo seu esplendor do século XIX.
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Mas como técnicas iniciais da democracia representativa,
tiveram ambas desenvolvimento distinto. Ao passo que o par-
lamentarismo se mostrou extraordinàriamente flexível, o mes-
mo não se deu com o presidencialismo.
Aplicado à democracia liberal, o sistema parlamentar tra-
zia em si mesmo o germe de uma evolução que sOmente o colo-
caria em máxima autenticidade quando põsto a serviço da de-
mocracia representativa na linha final de seu desdobramento,
como democracia política inteira, democracia do sufrágio uni-
versal, por isso mesmo «democracia governante», segundo a
usual terminologia do publicista francês já referido. Esta a
razão pela qual, ao contrário do que se diz em alguns com-
pêndios, o século XX - e não o século XIX - é o verdadeiro
século do parlamentarismo, quer dizer, do parlamentarismo
adulto, do parlamentarismo que amadureceu, que cresceu, che-
gando, conforme o exemplo da Inglaterra, à máxima perfeição
e ao mais extenso emprêgo de tôdas as suas faculdades de ser-
vir de veículo à condução do pensamento político em bases ri-
gorosamente democráticas.
Já o presidencialismo é de sua índole a versão mais aca-
bada do antigo poder liberal. Os «Pais da Constituição» ame-
ricana de Filadélfia eram gênios políticos. O código constitu-
cional que elaboraram consagrcu aquela técnica, consciente-
mente concebida, racionalmente formulada, cientificamente pre-
parada na solidão das leituras e reflexões de gabinete, com
relativa tranqüilidade, e proposta depois no debate tempestuoso
da Convenção, onde imperava, porém, a unanimidade ideoló-
gica do liberalismo, que fàcilmente permitiu edificar uma pá-
tria modêlo das novas idéias.
Vê-se na história americana como o presidencialismo res-
ponde com dificuldades à mudança dos tempos, ao desafio das
crises, ao reequilíbrio periódico das instituições, face a novas
exigências do comportamento político e social.
A história constitucional dos Estados Unidos é sucessiva-
mente a história de um «govêrno de juízes» (as eminências
pardas da «ditadura togada», aquêles intocáveis que barraram
por quase um século o advento da justiça social, aquêles «guar-
Rev. DiT. públ. e Ciência Politica - Rio de Janeiro - Vol. VI, n. '3 - set./dez. 1963
diões:. da Constituição, que, segundo um autor, «nunca se apo-
sentam e raramente morrem:. ... ), logo seguida de «govêrno
congressionab, a que alude amargamente Wilson, empregan-
do-o por título de uma de suas obras clássicas, «govêrno con.
gressionab, pois, em que o Presidente americano viu todo seu
trabalho a favor da paz internacional desfeito com a recusa
senatorial de ratificação do Tratado de Versalhes, desastre
político cujas conseqüências arredaram os Estados Unidos do
campo europeu e fizeram possível na Europa a proliferação
das ditaduras nazista e fascista do primeiro após-guerra; e,
por último, no período mais raro dos homens fortes, dos Pre-
sidentes de personalidade enérgica, «govêrno presidenciab, a
um. passo já da onipotência, da ditadura, dos abusos da auto-
ridade pessoal.
São três podêres que concorrentemente disputam a hege-
monia em épocas distintas da história política americana, po-
dêres rivais, cordialmente desafetos, a se embaraçarem reci·
procamente em campanhas que, por vêzes, deixam desorientada
e extenuada a opinião pública do País.
E êste modêlo de luta é o paradigma da democracia re~
presentativa de cunho presidencialista. Se deixamos a pátria
do presidencialismo e entramos nas áreas que lhe copiaram o
retrato, o quadro é irremediàvelmente doloroso e repugnante.
Haja vista a América Latina. Que fêz aqui o presidencialismo?
Engendrou duas pragas da opressão política: o militarismo e
o caudilhismo; fêz desta parte do continente um sombrio quin-
tal do despotismo, onde durante mais de século e meio a fome
das ambições imperialistas se cevou fartamente, tranqüilamen-
te, no confisco da riqueza colonial, com a intervenção econô-
mica estrangeira garantida pelas próprias annas dos povos
subjugados.

•••
Vejamos agora o Brasil e sua infeliz técnica presidencial
de govêrno. Nós que podíamos haver constituído uma exceção
digna nesse quadro de tanta desonra política, desperdiçamos o
pouco que o Império nos deu de bom: o rudimento da expe-
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riência parlamentar de govêrno, expenencia tantas vêzes em·


baraçada e comprometida pela dilatação do poder pessoal do
Imperador, mas de qualquer forma comêço inquestionàvelmente
seguro e sério, que o tempo se incumbiria de melhorar c aper-
feiçoar.
A violência mais comprometedora de nosso futuro não foi,
a nosso ver, a de Deodoro desembainhando a espada republi-
cana e cortando o poder da monarquia na proclamação do cam-
po de Santana. Foi, sim, o golpe silencioso, que passou quase
despercebido, dado dois anos depois, quando o texto da Cons-
tituição republicana trasladou para o País as instituições polí-
ticas do presidencialismo norte-americano, rompendo definiti-
vamente, irreparàvelmente, com a tradição semiparlamentar
do Império, aquela que já se acercava de meio século de vida,
e nos dera um largo e confortável período de estabilidade ins-
titucional.
O presidencialismo era algo tão estranho, tão anômalo,
tão fora do conhecimento da própria liderança política procla-
madora da República que Rui Barbosa levou mais de um de-
cênio de infatigável magistério constitucional a educar doutri-
nàriamente os primeiros homens do nôvo regime, ensinando-
lhes os princípios e a prática do sistema presidencial adotado
de surprêsa, recebido dos Estados Unidos e gravado na Cons-
tituição pátria pelo punho daquele que foi o maior luminar de
nossa história política.
Rui Barbosa fêz uma Constituição para doutores, para um
povo de cidadãos, e nós éramos ainda um povo de escravos. A
Constituição ficou, pois, com as elites, elas mesmas ignorantes
c pernósticas, privilegiadas e retrógadas. O presidencialismo
outra coisa não viria aqui fazer senão essa copiosa e conhecida
estatística de insurreições, levantes armados e golpes de Es-
tado, que enchem os três períodos principais da história repu-
blicana do País.
•••
3. O Prmidencialismo e o Pesadelo das Crises. Um dos
argumentos escamoteadores e sofísticos empregados largamen-
te na campanha de que resultou o plebiscito contra o Ato Adi-
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cional foi o de que o presidencialismo deitava no Brasil raízes
históricas e populares. Isto é rigorosamente falso, conforme já
assinalamos em reflexões antecedentes. A menos que essas
raízes se buscassem na história do cesarismo político nacional,
nas sedições, nas violências, nos atentados perpetrados contra
a Constituição; na freqüente e monótona série de golpes de
Estado, no pesadelo da crise permanente em que a Nação se
viu mergulhada desde a primeira Constituição republicana, nos
graves riscos de comprometimento da estrutura democrática
do País, em face da vocação ditatorial do Presidente da Repú-
blica, que tem sido em quase todos os períodos da história pá-
tria menos a figura de um Chefe de Estado que a de um con-
jurado contumaz.
Se a raiz histórica e popular fôr por conseqüência êsse
triste rosário de conspirações contra o poder da República, de
quarteladas e motins, de cenas que vão de deposição. ao sui-
cídio dos Presidentes, à quebra da legalidade, à infração dos
preceitos constitucionais, então o presidencialismo era real-
mente digno de ser restituído ao povo como sistema de orga-
nização política, mas unicamente nos têrmcs em que Platão
irônicamente colocou a questão das formas de govêrno, a sa-
ber, cada povo tem o govêrno que merece ...

o Ato Adicional, na perspectiva em que nos colocamos, foi


dos mais atrozes crimes que o presidencialismo já cometeu
contra o povo brasileiro. A pior talvez de suas tragédias. Im-
possibilitou sem dúvida por quarenta ou cinqüenta anos, senão
para sempre, o ensaio da experiência parlamentar de govêrno
neste País. Naquela semana trágica de agôsto houve a con-
versão em massa dos presidencialistas históricos do Brasil ao
parlamentarismo. Saíram êles, os cristãos novos da reforma
constitucional, empunhando solução suspeita, aparentemente
parlamentar. Procriaram um ser híbrido, a que deram batismo
nobre.
O arremêdo parlamentarista mal sobreviveu o primeiro
ano de aplicação. Debaixo da crise que o sepultou, o povo viu
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enganadamente a agonia do Ato Adicional. Em verdade, quem
agonizava, quem continua agonizando com as instituições do
País é o presidencialismo.
Debaixo daquele parlamentarismo de fachada perduravam
na Constituição quase intactos os podêres do Presidente da
República, suas prerrogativas pessoais, sua capacidade de fa-
zer o mal.
O presidencialismo dormiu alguns meses e cêdo se levan-
tou para sufocar a contrafação parlamentarista que lhe salvara
a vida, numa noite de incerteza legislativa, quando todos os
ideais do dr. Pila, tôdas as suas receitas doutrinárias haviam
sido nominalmente chamadas a curar o País enfêrmo.
A idéia parlamentarista atraiçoada debelou naquele mo-
mento as influências sediciosas do elemento reacionário e anti-
constitucional, que estêve a pique de desencadear no Brasil a
guerra t!ivil ideológica. E a paga que lhe deram foi o malicioso
texto do Ato Adicional, o crime perfeito do presidencialismo,
sistema de sombria rigidez, que joga novamente com as insti-
tuições e os destinos da Nação, que deflagrou a luta dos po-
dêres, o conflito do Executivo com o Congresso e do Judiciário
com o Executivo, êsse conflito que poderá incendiar o Brasil,
impedir reformas essenciais, arrebatar ao povo a democracia
precária e ameaçada, conduzir o País a sofrimentos cada vez
mais imprevisíveis, envolver em sangue a questão social, de-
sembocar enfim na revolução, na ditadura, na opressão.
O presidencialismo brasileiro continua em 1963 vivendo a
mesma crise de que redundou o suicídio de Vargas e a renúncia
de Jânio Quadros: uma disputa mortal entre o Executivo e o
Legislativo, uma desconfiança capital entre o Presidente da Re-
pública e o Congresso, uma concentração de ódios, como jamais
se viu, pondo as reformas em têrmos ideológicos quase inarre-
dáveis.
Está o Brasil cada vez mais próximo de confirmar o fim
de todos os regimes presidenciais da América Latina: a suble-
vação e a ditadura. Ditadura que em nossos dias desemboca
invariàvelmente nesse gravíssimo desfecho: a mudança do re-
gime envolvendo a implantação de nova ordem social. Foram-se
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os tempos em que o presidencialismo, ao decompor-se, tinha
apenas por efeito o fechamento de Congressos e a entrega do
poder, arrebatado em quarteladas sem sangue, a alguns cau-
dilhos de farda ou casaca.
O povo deixou de ser mero espectador dêsse drama do
poder. lr:: o grande protagonista político que tem direito a insti-
tuições mais sábias, que possam conduzi-lo pacificamente ao
atendimento de suas exigências de justiça sociaL Do contrário,
fará o imprevisível.

.. "
A forma parlamentar de govêrno, marcando «os minutos
da opinião», como já disseram seus propugnadores é, no qua-
dro das instituições democráticas, o sistema tecnicamente mais
adequado a desobstruir de resistências procrastinadoras a es-
trada da reforma social. A energia das assembléias represen-
tativas, dispondo de plenos podêres, já fêz histôricamente mi~
lagres de ação, trabalho e capacidade. As casas legislativas são
no parlamentarismo a mobilização geral e permanente dos po-
dêres políticos do povo.
No parlamentarismo, não estaria a opinião pública assis-
tindo sem participação a êsse trágico estremecimento de dois
podêres que a rivalidade, a estreiteza de vistas e a desconfiança
mútua separaram irremediàvelmente, ficando o País sem meios
de conter a crise.
A essa crise se prendem tanto os princípios sociais em
disputa como também os instrumentos de que dispomos para
encaminhar o povo brasileiro a pronta solução do problema da
metamorfose institucional. Tais meios se repartem nas mãos
do Executivo e do Legislativo, que fazem todavia do preceito
constitucional do artigo 36 a mais dolorosa irrisão.
A opinião maciça do povo brasileiro é reformista. Mas essa
opinião no sistema presidencial se faz algo inoperante; chega
quase sempre lenta, tardia, ineficaz a produzir efeitos. Quando
se aquece às mais elevadas temperaturas, sua ebulição põe em
perigo as instituições; é mais de temer-se, que de preconizar,
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porquanto a insensibilidade de governantes e legisladores para


logo a transformar em arma de um poder contra outro.
Ordinàriamente nessa competição quem sai mais sacri-
ficado é o Poder Legislativo: o que se desprestigia com mais
facilidade, caindo no leviano desprêzo das camadas intencional-
mente trabalhadas pelos copiosos e irresistíveis recursos de
propaganda e persur.são de que dispõe o Executivo.
O poder de cima estando dividido, corre sério risco o re-
gime. Essa divisão no presidencialismo brasileiro é institucio-
nal. Quando se acende a fogueira de uma crise política e social,
há sempre um poder devorado. Quer se trate do Executivo ou
do Legislativo, a conseqüência nunca varia, é uma só: revolu-
ção, golpe de Estado, ditadura, queda da ordem democrática,
fim das liberdades públicas. Foi assim em 1937. Poderá ser
assim em 1963.

•••
4. ~ e Comrpc;ão 00 listado 80cial brasileiro, Ing&-
rência. do Poder econômico e Necessidade de o Estado ampamr
fina.ooei:mmente o S:lSItema partidário. O desprestígio das ins-
tituições em que se cifra a organização política nacional pa-
tenteia crise tão séria que só a percebem plenamente aquêles
que, descendo a análises mais profundas, não ficam na crosta
dos acontecimentos, comentando superficialmente a desordem
social como reflexo do ato impensado de um Presidente que se
suicidou, das obras inacabadas de um faraó que fêz arder a
fantasia popular levantando no deserto a metrópole do Pais,
da deserção de um Messias que renunciou suburbanamente ao
poder, com seis meses de govêrno, ou da inépcia de um gover-
nante, que se fêz herdeiro do mais prestigiado culto póstumo
dêste País e antigo vice, não menos infeliz, cujo poder chega
aparentemente ao fim com as instituições mesmas a que pre-
side. Em suma, o suicídio, a prodigalidade, a renúncia e a inca-
pacidade dos Presidente.s agravaram a crise, mas em maneira
alguma a criaram.
Essa crise alcançou culminação histórica e se vai resolver
em têrmos de opção: ou conservamos a obsoleta e anacrônica
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estrutura social que aí está, com sacrifício definitivo da maio-


ridade econômica do País, e possivelmente de suas instituições
democráticas, ou enveredamos na estrada franqueada às refor-
mas que prometem estabilidade, progresso e paz social.
. Quando a democracia transitou das fórmulas liberais para
as fórmulas sociais, a universalização do sufrágio acarretou a
crise de todo o antigo sistema representativo, que privilegiava
as elites do dinheiro, a plutocracia ilustrada do século XIX,
cujo poder de fato, como poder de decisão social, se sustentou
através de distintas modalidades de sufrágio restrito, que se-
qüestravam o povo de tôda participação efetiva nas vantagens
da revolução burguesa, e faziam do apregoado lema da igual-
dade política um verbalismo inoperante e caduco, uma reminis-
cência vazia e apagada dos ardores revolucionários de 1789,
que vão da Tomada da Bastilha à derribada do trono abso-
lutista.
Quando o povo tomou consciência, porém, de que é sobe-
rano nos têrmos da filosofia de Rousseau, entrou então a repu-
diar a «capitis diminutic» contida no «De l'Esprit des Lois:.
de Montesquieu - que o tinha apenas por apto a designar
quem por êle pensasse e decidisse - para logo pôr de mani-
festo sua fôrça governante, como massa, como fonte suprema
de decisão política.
Com o despertar do gigante popular, o século XIX recuou
assombrado, quebrando os privilégios da participação política.
Concedeu-se nova lei eleitoral incontestàvelmente democrática:
a lei do sufrágio universal. A luta se transferiu por último da
órbita política para a órbita econômica e social. As classes ma-
terialmente carentes, as «bezitslosen KIassen» de Menger, en-
traram a ter voz de direção na atividade governativa.
Veio, pois, a justiça social como fator de acomodação co-
roar a trégua do elemento cbreiro com a burguesia temerosa
e desconfiada. Nos países que ràpidamente se industrializaram
durante o século XIX, não teve a crise até agora o desfecho
previsto nas jeremiadas do socialism~ marxista. Mas com os
países subdesenvolvidos do século XX, o mundo se acha em
presença de cataclismos sociais, que levam por vêzes os povos
mais atrasados a soluções absolutamente distintas daquelas
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enquadradas no usual esquema da democracia política do oci-


dente.
O Brasil é um dêsses países. Do subdesenvolvimento à in-
dustrialização, sua rota é pontilhada de estremecimentos e
desvios políticos que põem em perigo a vida do gigante. Clas-
ses exigentes, dominadas já pela consciência de seus direitos,
emergem das profundezas sociais e clamam por uma participa-
ção cada vez mais enérgica, mais ativa e mais extensa. Com
notória agressividade, demandam em verdade algo acima da
participação, da mera atribuição de quota no escasso contrôle
que o elemento tradicional se disponha a conceder-lhes. Querem
algo mais valioso. Intentam tomar em suas mãos o incontestá-
vel poder de operar a grande mudança. Deliberadas quanto aos
fins, mostram-se inflexíveis também quanto aos meios.
O violento dissídio implica já na lenta guerra civil que
aqui se fere desde o comêço da era de 1930. Há 33 anos que
a democracia liberal se acha em irremediável crise no Brasil.
O privilégio fêz tudo per evitar a queda de suas instituições.
Implantou a ditadura de 1937, fundiu uma ordem totalitária,
coarctou o poder popular, cerrou o Congresso, desbaratou ve-
lhas lideranças políticas e, no entanto, a justiça social saiu
mais fortalecida do interregno absolutista, e escreveu a Cons-
tituição de 1946.
Essa Constituição está fadada a soçobrar à míngua de
aplicação dos direitos sociais que deu ao trabalhador, logo ar-
rebatados pelos impedimentos reacionários que a técnica de
compromisso lhe impôs por parte do elemento conservador,
evitando, como é de fácil verificação, se promovesse até hoje
a reforma agrária, a qual tocaria na massa mais compacta de
privilégios secularmente sedimentados.
O anti-reformismo, feito sustentáculo de todo um edifício
carcomido, emprega no sistema político brasileiro as armas da
corrupção eleitoral. E põe em crise o regime, numa contribui-
ção que só acha paralelo na corrupção que baixa das esferas
governantes.
Tudo isto dramatiza o papel das agremiações políticas,
chamadas a compenetrar-se da importância da missão a que
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foram convocadas. Como partidos democráticos, cabe-lhes ele-


ger entre opugnar as refonnas sociais e promovê-las. Opugnan-
do-as. estarão condenados a morrer sob as paredes do templo
liberal, o desmoronamento social não os pouparia. Promoven-
do-as, salvarão o regime, implantando nova fonna de Estado:
o Estado social da democracia.

•••
Urge, além das refonnas previstas, a refonna eleitoral
incontinente. Qual meta precípua, faz-se mister certa legisla-
ção de partidos, que ponha tênno à ação com que o poder eco.-
nômico desvirtua o regime. As eleições se tornam continua-
mente mais caras e proibitivas. Cada legislatura assinala a
presença de repetidas levas de milionários ignorantes investi-
dos no mandato representativo.
A burguesia, que perdeu a batalha do sufrágio universal,
ganhou novamente o poder das urnas, estendendo sôbre o País
vasta rêde de conspiração financeira, através de capitais par-
ticulares ou oficiais, individuais ou agrupados, que se caracte-
rizam todos por sua inconfessável origem, e cuja intervenção
concentrada tem por imediata conseqüência a contaminação
da vontade democrática, o falseamento do processo eleitoral.
As casas legislativas se esvaziam dos antigos políticos,
cujos mandatos descendiam das situações sociais estáveis, pré-
vias à crise da transfonnação industrial.
Não basta dar lições de moral aos políticos ou ministrar-
lhes conselho de retidão cívica para que se conservem os mes-
mos sempre imaculados do aviltante contacto e dependência do
poder financeiro.
A penúria de meios materiais no processo eleitoral carís-
simo e corrompido já sacrificou consideràvelmente a democra-
cia brasileira, já encerrou brilhantes carreiras parlamentares,
já desterrou da vida pública vocações respeitáveis de homens
públicos, já ocasionou gravíssimos dan~s à ordem democrática.
Os últimos políticos sem compromissos na área financeira da
putrefação se acham debaixo da mesma ameaça iminente, pois
a consciência lhes dita de preferência a deserção da vida par-
Rev. Dir. públ. e Ciência Politica - Rio de Janeiro - ' VoI. VI, n9 3 - set./dez. [963
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lamentar ao constrangimento dos laços e obrigações contraídos


com as fontes suspeitas do financiamento político.
Procedem honradamente êsses que formam a minoria em
despedida. A decisão que tomam de retirar-se do quadro poli-
tico brasileiro acentua tão-somente, no protesto do abandono,
a imperiosa necessidade de reformar o sistema partidário, que,
exposto à ação do poder econômico, fica sensivelmente abalado,
a brindo fendas nos alicerces morais da ordem representativa.
Nada desmoraliza mais a democracia contemporânea que a
representação falseada.
Na crise moral do sistema, o papel que cabe aos partidos
é de extrema importância. Quando o fato delicadíssimo há
pouco referido ocorre na extensão que acabamos de apontar
só há o remédio de que se valem as democracias mais realistas:
o financiamento dos partidos pelo Estado, sob regime de rigo-
rosa fiscalização. Ê o único meio plausível de neutralizar tanto
quanto possível a ingerência indesejável dos habituais podêres
de pressão financeira, que debilitam a ordem democrática, com
dinheiro cuja proveniência nenhuma comissão parlamentar de
inquérito alcançará apurar convenientemente, ou, se o fizer, na
4 mais benigna das hipóteses, ficará sempre desarmada de meios
repressivos quanto à eventual reprodução futura da mesma
prática corruptora incriminada.
41< 41< 41<

Os partidos políticos, segundo podemos constantemente


observar, tendem a omitir-se, substituídos por agrupações par-
lamentares de composição mista, convertidas em máquinas pro-
pulsoras de interêsses de grupos econômicos.
Fora das extremidades ideológicas, as legendas nada signi-
ficam. A distorsão da verdade democrática configura assim
êsse aspecto da crise política: a comunicação cada vez mais
difícil e penosa entre a vontade do eleitor e a vontade de seus
representantes.
Sempre que retomamos a leitura do «Contrato Social»
de Rousseau, mais verdadeira achamos a crítica do filósofo
aos vícios que o sistema representativo comporta, quando,
Rev. Dir. públ. e Citncia Política - Rio de Janeiro - Vol. VI. nO 3 - set./du. 1963
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por sua natureza, consente que o dinheiro compre o poder


político de decisão, a soberania do poder, a sagrada «von-
tade geral». Extraiu daí Rousseau a regra; nós extrairemos
a exceção, e aplicando-a em particular no caso brasileiro, ve-
rificamos que se o pensador, ao invés de malsinar todo o siste-
ma representativo, houvera impugnado apenas uma forma de
representação, seu raciocínio lapidar adquiriria incontrastável
validez.
O que viu êle há duzentos anos é rigorosamente verídico
no século da democracia social, mas verídico unicamente
quando a democracia representativa entra em crise, nos seus
períodos de agonia e desintegração de decadência de institui-
ções tradicionais, tornadas para sempre anacrônicas ou
irregeneráveis.
Abre Rousseau o capítulo XV do livro terceiro do «Con-
trato Social» prognosticando já a morte e ruína do Estado,
quando os cidadãos prezam mais a bôlsa que a si mesmos ou
quando a preguiça e o dinheiro lhes dão «soldados para es-
cravizar a pátria e representantes para vendê-la», denun-
ciando adiante, em amarga apóstrofe, numa posição diame-
tralmente contrária a de Montesquieu, que o povo inglês se
equivoca redondamente quando cuida que é livre e só o é,
todavia, na ccasião em que elege os membros de seu parla-
mento; finda, porém, a operação eleitoral, o povo, que saiu
da escravidão, torna à mesma escravidão. O uso que fêz da
liberdade em curtos momentos bem merece que a perca, diz
Rousseau. E para logo assevera que «a idéia de representan-
tes é moderna: vem do govêrno feudal, êsse iníquo e absurdo
govêrno no qual a espécie humana se degradou e o nome
humano caiu em desonra. Nas antigas repúblicas e mesmo
nas monarquias, jamais teve o povo representantes; essa
palavra nem sequer se conhecia» (J. J. Rousseau, «Du Con-
trat Socia!» , Éditions Sociales, Paris, 1955, págs. 157-159).
No ensaio de democracia social dos países semidesenvol-
vidos, onde a representaçã~nunca exprime a vontade autên-
tica das massas políticas sufragantes, as palavras de Rous-
seau obrigam a profundas meditações.

* * *
Rev. Dir. PÚbJ. e Ciência Política - Rio de Janeiro - Vol. VI, nO 3 - set./dez. 1963
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Sabe-se que a democracia ocidental implica irretorqui-


velmente no princípio do pluripartidismo. f: possível, porem,
falar nesse pluripartidismo, quando os copiosos recursos fi-
nanceiros das elites nacionais e estrangeiras privilegiadas
minam as bases partidárias, elegendo u'a representação que
só nominalmente se diz representativa do povo, mas em ver-
dade contravém essencialmente os mais legitimos interesses
do braço popular? Evidentemente seria quimérica semelhante
democracia. Tal a crise por que passa também a organiza-
ção democrática do poder em nosso país.
Dos mais significativos desenvolvimentos da democracia
dêste século foi, por sem dúvida, o de fazer dos partidos polí-
ticos o principal instrumento de que se serve o povo, na
idade das massas, para gerar e transmitir os anseios da von-
tade popular. A velha democracia liberal ou hostilizava os
partidos políticos ou simplesmente os ignorava, compendian-
do-os pejorativamente sob a designação de facções, reputadas
estas nocivas e atentatórias à concepção da soberania nacio-
nal amalgamada e unitária. Modernamente, na literatura
política dos partidos políticos já se inscrevem contribuições de
pesquisadores respeitáveis e publicistas celebrados, como
Duverger, Michels, Bergstraesser, Koellreutter, Leibholz~
Fcrsthoff e Loewenstein.
Com a extensão do sufrágio a tôdas as classes e os pro-
gressos doutrinários da democracia social, cada vez mais
abraçada ao conceito de soberania popular, tanto nas suas
implicações políticas quanto econômicas sobretudo, acabaram
os partidos por alcançar sólida institucionalização nas regiões
do direito público. E para tanto concorreu também como
fator ponderável a imposição técnica do pluripartidismo,
implícito no sistema da representação proporcional.
Chegamos, por conseguinte, a êsse ponto adiantadíssimo:
os partidos constituem em nossos dias matéria constitucional,
com garantias e restrições expr~sas, gravadas no texto dos
principais códigos políticos da democracia contemporânea.
A Constituição de Bonn dedica-lhes os três parágrafos
do artigo 21, que dispõem sàbiamente acêrca da obrigação dos
Rev. Dir. públ. e Ciência Politioa - Rio de Janeiro - Vol. VI, n" 3 - set./dez. 1963
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partidos de prestarem contas, mediante esclarecimento pú-
blico, da origem de seus recursos.
No parágrafo vm do Artigo 119 da Constituição brasi-
leira lavra-se disposição análoga, ao atribuir-se à justiça elei-
toral competência para conhecer de «reclamações relativas a
obrigações impostas por lei aos partidos políticos, quanto à
sua contabilidade e à apuração da origem dos seus recursos:..
Ocorre, todavia, que em nosso sistema o que mais cumpre
fiscalizar por enquanto não é a fazenda dos partidos, mas
fundamentalmente o dinheiro dos candidatos no financiamento
de suas campanhas. A corrupção não se prende tanto aos
partidos, como às candidaturas, tomadas insuladamente.
A Lei Partidária alemã, que complementou o texto cons-
titucional, foi consideràvelmente inovadora ao admitir a sub-
venção estatal dos partidos, de modo que as três principais
agremiações do País - a União Cristã Democrática Social
(CDU/CSU), o Partido Democrático Livre (FDP) e o Partido
Social DemCX!rático (SPD) - recebem anualmente vinte mi-
lhões de marcos do erário alemão.

* * *
A reforma partidária no Brasil faz imprescindível de igual
maneira a adoção de medidas concretas tendentes a quebrantar
a ação nefasta das potências financeiras, que pervertem as
urnas e corrompem a representação. Do mesmo passo que não
tememos nem repudiamos o intervencionismo do Estado na
vida econômica, quando êsse intervencionismo não busca fins
alheios ou contrários ao interêsse comum, tão pouco depara-
mos razões com que impugnar a legitimidade do auxílio pe-
cuniário do Estado aos partidos políticos, tanto da oposição
como do poder, desde que o financiamento oficial se faça em
estrita observância dos preceitos legais porventura estatuídos
para disciplinar essa ajuda.
Institucionalizada juridicamente semelhante subvenção,
tornada compulsória a publicidade das despesas partidárias,
erigidos meios de fiscalização eficaz e permanente, tudo indíca
ReT. Dir. públ. e Ciência Política - Rio de Janeiro - Vol. VI, n" 3 - set./dez. 1!IôJ
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teríamos chegado de vez ao saneamento da operação eleitoral,
eliminando o impedimento técnico mais grave de corrupção da
verdade democrática em nosso País, que é a presença de finan-
ciamento caudaloso a candidatos e candidaturas, triunfantes
exclusivamente graças às «caixinhas» invisíveis e às fontes
suspeitas e misteriosas do dinheiro escuso.

* * *
5. A Refonna. como Instrumento de Conservação. Todos
os movimentos de sentido reformista que a história política e
social do Brasil registra não se deram sem graves abalos e
apreensões do elemento conservador. Êste, no meio de tôdas as
torrentes reivindicatórias, vislumbrou sempre a iminência de
uma catástrofe ou decomposição nacional.
Mas quando a reforma chegava, por métodos tranqüilos
e pacíficos, que invariàvelmente redundam da recatada índole
do povo brasileiro, de sua paciência perseverante, de seu tem-
peramento privilegiadamente brando e acomodado à ordem, o
que para logo se observava era a iniqüidade de tôdas aquelas
resistências, a sem razão absoluta daqueles temores e assom-
bros, a compreensiva certeza de que a mudança fôra proveitosa
aos superiores e patrióticos interêsses da coletividade suposta-
mente ameaçada.
No século XIX. muitos fantasmas fizeram o pesadelo da
sociedade brasileira, quando se queria extinguir a escravidão.
Essa horrenda forma social do passado, que foi uma nódoa nas
instituições da antigüidade, encontrou em nossa Pátria arden-
t::s apologistas, penas vibrantes de estadistas e escritores que
viram nas bases daquele sistema ominoso a garantia mais
segura da ordem, da riqueza, do bem-estar da família brasi-
leira. Todos os que se abraçaram à idéia reformista pagaram
caro sua adesão ao princípio inovador. As raras individualida-
des suspeitas que esposaram a causa foram ferozmente con-
fundidas com a natureza mesma do movimento. Com isso,
buscava-se mostrar pelo descrédito o caráter malsão da re-
forma e enfrear a corrente que agitou o pensamento de mu-
dança e sàbiamente apontou os rumos incriminadamente
Rev. Dir. públ. e Ciência Política - Rio de Janeiro - VoI. VI, n. 3 - set./dez. 1963
- 47-

revolucionários das transformações mais necessanas e inde-


clináveis daquela quadra histórica de nossa vida política e
social. O que se faz hoje, fêz-se ontem também com a mesma
monotonia e esterilidade. Fêz-se mais até. Homens puros
viram desvirtuados seus desígnios patrióticos e confundida
sua fé na malícia dos críticos que sustentavam a velha e
perempta ordem das instituições servis.
Rui Barbosa e Nabuco inscrevem-se entre os maiores
líderes que propugnaram a causa da Abolição. Desde os
tempos acadêmicos que a eloqüência dêsses dois símbolos do
civismo brasileiro investira implacàvelmente contra a muralha
de preconceitos e ódios conservadores empenhados em cortar
o caminho à legislação social que extinguiria o cativeiro.
l!: a mesma de ontem a prole fanática dos que agora
detestam, por exemplo, a reforma agrária. Temem tudo: desde
a queda do regime à implantação do comunismo. Rui, abolicio-
nista fervoroso, redator, em 1884, d' «O País», escrevia então
com incrível atualidade para os sobressaltos dêstes dias:
«Habituada imemorialmente a ver nas areias inesgotáveis
de África o empório das suas máquinas de trabalho, a classe
afortunada era natural que não concebesse outra organização
econômica. Estancar de repente êsse manancial devia afigurar-
-se-lhe um crime contra a ordem, um ato de revolução, a de-
cretação da indigência geral.
Em 1851 a situação não era mais clara. O afluxo torren-
cial do contrabando, que, em vinte anos, introduzira crimi-
nosamente em nossas plagas não menos de seiscentos mil
cativos, agravara a pujança dos interêsses envolvidos na sub-
sistência da escravidão; e a ostentosa, a escandalosíssima vio-
lação dos tratados e da lei de 7 de novembro, devia ter refor-
çado profundamente, entre os proprietários territoriais, a
persuasão da estabilidade, da invencibilidade, da necessidade
do elemento servil.»
N o mesmo artigo: «De cada vez que, do lado do futuro,
se projeta no horizonte a questão servil, a. ruína da lavoura
começa a anunciar-se entre gemidos e vociferações. A grande
Rev. Dir. públ. e Ciência Política - Rio de Janeiro - voI. V[, no 3 - set./dez. [963
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propriedade, sobressaltada, presta ouvidos, mais ou menos cré-
dula, ao alarido profético dos terroristas. Não obstante, a
energia evolutiva do direito, cuja torrente a resistência mal
aconselhada avolumou, represando acaba por triunfar. A re-
forma efetuou-se. Todavia o nôvo regime, criado por ela, em
vez de aniquilar, prospera a fortuna agrícola.:.

* * *
As mesmas vozes do século XIX prognosticam pois no
País de 1963 o apocalipse agrário da reforma que inevitàvel-
mente se fará. Mas depois da tempestade, como Rui já uma
vez assinalou e realmente aconteceu, veremos a mesma ordem
conservadora agradecer seus destinos de continuidade e pro-
gresso à implantação das reformas obtusamente impugnadas
pela cegueira reacionária. Kennedy e Moscoso no continente
americano são homens um milhão de vêzes mais inteligentes
do que êsses cavalheiros que formam a fina flor da boçalidade
botocuda, aforçurada mais em antecipar vertiginosamente a
convulsão social, com suas posições rígidas e sabotadoras da
idéia reformista, do que em salvar o patriciado rural, cuja
causa tão desastradamente desservem. Entre a mudança legal
, e a mudança revolucionária, estão inquestionàvelmente optando
por esta última.

* * *
6. A Demooracia. cr-".iStã e a Ques1;ãA) social no Brasa
Como assinalou um dos órgãos mais respeitáveis da imprensa
britânica, o pontificado de João XXIII reconciliou o altar com
o progresso social, apagando nas duas cartas circulares - a
«Mater et Magistra:. e a «Pacem in Terris» - aquela antiga
imagem que equivocadamente associava o sacerdócio à Reação,
o poder de Deus ao poder dos privilegiados, e a palavra divina
do apostolado cristão ao destino das situações conservadoras
e retrógradas.
Arvorando a bandeira reformista, as camadas mais lúci-
das do movimento cristão, caminhando com o povo na van-
guarda de sua luta emancipadora, intentam arrebatar aos
Rev. Dir. PÚbl, e Ciência Política - Rio de Janeiro - Vol. VI, n" 3 - set./dez. IIl63
- 49-

círculos ostensivos da subversão extremista uma causa que


lhes não pertence: a da criação de uma sociedade democrá-
tica em têrmos de liberdade e justiça social. Esta a impressão
que nos deixa a orientação seguida por boa parte do episco-
pado brasileiro, identificado com as sábias diretrizes do Su-
premo Pastor desaparecido, de quem será possivelmente con-
tinuador o Papa Paulo VI.
Ocorre, todavia, que o privilégio, com os dias já contados
pela onda reformista, se socorre de expediente que denota
apenas a fraqueza de posições irremediàvelmente abaladas: a
incriminação comunista da reforma, reflexo do ódio ao pensa-
mento social, que prepara o caminho das reformas mais pru-
dentes. Os usufrutuários insaciáveis da desigualdade social
falam linguagem obscurante, sem fôrças nem argumentos com
que contrarestar o movimento reformador. Temem o refor-
mismo cristão de João xxm e intentam atalhá-lo, como se a
lei de congraçamento e fraternidade das encíclicas pudesse
subitamente ab-rogar-se.
Quando ocorreu a morte de João XXIII, observou-se que
homens de tôdas as confissões, no mundo inteiro, tomaram
luto, pranteando a perda daquele pontífice excepcional, que
resumiu nos breves anos de sua magistratura apostólica a
mais condensada e prodigiosa obra de renovação social que
da parte da igreja nunca se esperou em tão curto espaço de
tempo.
As encíclicas do Papa extinto, tocando fundo na essência
do problema político contemporâneo, ficaram como um pro-
grama que valerá por largos séculos para influir no ânimo da
Cristandade a doutrina pura do Cristo, acomodada às vindou-
ras e inevitáveis transformações da sociedade. Suma de justiça
social, tiveram as letras de João XXIII neste século de lutas
políticas e sociais importância que só encontra paralelo, pela
profundidade de sua ressonância e duradoura aplicação a que
vêm fadadas, nos escritos do Santo Tomás de Aquino, quando
êstes moldaram, em fins do período medievo, uma idade,
tanto quanto a nossa, de angustiosa mudança, transição con-
fusa, perplexidade e incerteza.
Rc,·. Dir. Públ. e Ciência Politica - Rio de Janeiro - Vol. VI. n" 3 - set./dez. 1963
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Mal erigira, porém, o edifício de sua doutrina social, expi-


rou João XX1ll aos 82 anos de idade e o mundo auferiu a
impressão de que o Papa da paz morrera como um adolescente,
pois suas idéias eram feitas de mocidade e mais lembravam o
verbo ardente de um jovem, toca de de sublime entusiasmo e
devoção pelos fraternais destinos do gênero humano, do que
a palavra mística de um profeta sisudo que repreende o uni-
verso com sua mensagem de pessimismo e desenganos.
Homem desta estatura, traçou João XXllI como nenhum
mais de seus predecessores a doutrina de justiça social da
Igreja, haurida na experiência do século e vazada em do-
cumentos pontifícios, que foram surpresa e escândalo de todos
os hipócritas, quando êstes supunham a igreja dócil instru-
mento de escravização branca do trabalho, sob a despótica e
desumana predominância do capital O que êle fêz foi muito;
resumiu em breves minutos a obra de largos séculos. Nas en-
cíclicas dêsse Papa a Igreja constrói um evangelho de demo-
cracia, funda o Estado social cristão, abre o diálogo com
tôdas as crenças, aproxima irmãos separados por distâncias
que se encurtam e por ódios ou paixões que se extinguem.

* * *
No Brasil a democracia cristã aderiu decididamente ao
movimento reformista. Seu programa político usa linguagem
desembaraçada e clara, comprometendo nas transformações
sociais que se preludiam o comportamento dos que exprimem
a orientação mais chegada ao pensamento oficial da igreja.
Dispõe-se a facção democrata-cristã a fazer a cruzada das
correntes reformadoras.
A leitura do manifesto lançado êste ano pelo Partido
Democrata Cristão e assinado pelo seu Presidente, o Gover-
nador Ney Braga, do Paraná, não deixa nenhuma dúvida a
êsse respeito. Os têrmos em que tal documento se acha vazado
indicam a posição vanguadeira dos elementos católicos que se
abrigam à sombra de uma radicalização inequívoca.
As reformas ali propostas abrangem a reforma agrária, a
reforma urbana, a reforma eleitoral, a administrativa, tribu-
Rev. DiT. PúbJ. e Ciência Politica - Rio de Janeiro - Vol. VI, n 9 3 - set./dez 1963
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tária, bancária, cambial, de emprêsa, educacional e por último


a da consciência nacional. O Manifesto dos Bispos já mostrara
a profunda preocupação social do clero brasileiro. O papel ela-
borado pela democracia cristã contém pontos que para cum-
prir-se por via parlamentar implicariam autêntica revolução
legislativa, como aquela que derrubou na sessão de 4 de agôsto
de 1789 da assembléia nacional francesa todo o sistema feudal
da velha França dos monarcas absolutos.
As reformas previstas tocam fundo na ordem subsistente,
decretam mudanças inadiáveis, abatem privilégios, superam
anacronismos, renovam estruturas. Vê-se que a parte do clero
brasileiro e seus expoentes políticos que propugnam tais alte-
rações não buscam outro fim senão disciplinar ou fazer correr
no leito da democracia social a impetuosa caudal das reivin-
dicações populares, que, tolhidas por obstáculos artificiais e
inseguros, acabariam tomando a saída revolucionária que se
intenta prevenir, pois as revoluções, como todos estão cansa-
dos de advertir, têm conhecidos os seus pontos de partida, mas
sempre ignorados, obscuros e imprevisíveis os seus pontos de
chegada.
Três itens do apêlo reformista são de capital interêsse
para situar ideologicamente no campo da luta por um Estado
social a posição da democracia cristã brasileira. Ei-Ios:
«Cremos na Democracia como instrumento de revolução
social e não concordamos que, para realizar êste ideal revolu-
cionário. se pretenda extinguir a Liberdade ou sequer res-
tringi-la.
Evocando as lutas gloriosas da Independência, da Aboli-
ção e da República, sustentadas pelos nossos maiores contra
as fôrças da reação, o Partido Democrata Cristão assume o
papel de vanguarda que lhe cabe nesta nova etapa do processo
histórico de libertação do povo. brasileiro do feudalismo, do
colonialismo e do imperialismo.
Defendemos as transformações SOCIaIS sem comunismo.
Mas também não admitimos que a pretexto de combater o
comunismo se procure, por um golpe de mistificação, impedir
ou retardar reformas fundamentais. Para nós, democratas
Rev. Dir. públ. e Ciência Politica - Rio de Janeiro - Vol. VI, n~ 3 - set./dez. 1963
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cristãos, como para tôda a opinião pública esclarecida do País,


estas reformas - instrumento de Governos justos e eficientes
- constituem o único caminho de sobrevivência democrática,
por via da eliminação de tôdas as causas do atraso, da igno-
rância, da fome, da doença, e da miséria, que arruínam a
grande maioria do povo brasileiro e muito justamente deter-
minam o seu deEespêro e a sua revolta.
Vamos demonstrar a vitalidade de nossa vida democrá-
tica, transformando as liberdades públicas em instrumento de
conquista popular das Reformas, que terão de vir com serie-
dade, de maneira rápida, porém conseqüente e ordenada -
para destruir privilégios, nunca para esgotar as últimas
esperanças do povo brasileiro.»

Daqui se conclui que a democracia cristã brasileira já se


definiu perante os movimentos sociais do século XX, numa
opção reformista e progressiva, a que chegou pela palavra
das últimas encíclicas e pelo comportamento dos partidos que
representam a organização política do pensamento cristão.

7. As duas :f1wes da Omstitui~ brasileira: ~


progressistas e técnicas reaciooárias. Não são raros os re-
formistas impacientes que batem na tecla do reacionarismo
da Constituição. Surge, por conseqüência, o problema de situar
ideologicamente a lei fundamental de 1946. Migura-se-nos im-
pugnável o juízo corrente de alguns propugnadores da revisão
imediata das estruturas sociais brasileiras ao fazerem crítica
acerba e pessimista do texto constitucional.
A Constituição de 1946 deve ser a êsse respeito sujeita
a uma apreciação de conjunto e profundidade, que toque mais
com os princípios e o espírito sôbre os quais diligenciou assen-
tar as novas instituições do que propriamente com as técnicas
constitucionais criadas e encaminhadas a prevenir mudanças
súbitas e intempestivas, quando promovidas ao sabor da irre-
flexão, da demagogia ou da irresponsabilidade.
Re\', Di, Públ, e Ci,'nc;" Politica - Rio de Janeiro ,- \'01, \'1. n" :l - s"t./dez, 19fiJ
- 53 -

A obra dos constituintes de 1946 representou evidente-


mente compromisso entre fôrças conservadoras e fôrças pro-
gressistas atuantes, compromisso que repartiu doutrina e
técnicas, ficando a doutrina principalmente com o futuro e
as técnicas preponderantemente com o passado.
Em nossa linguagem, a doutrina compreende sobretudo
aquelas disposições, quer taxativas, quer de teor programá-
tico, que dão a medida do adiantamento das idéias desenvolvi-
das e introduzidas no corpo da Constituição, que a animam, que
abrem na consciência social as vias do futuro, que resumem
as mais ricas possibilidades potenciais de acomodação cons-
titucional com os imperativos da mudança social, que fazem
possível, desejável e recomendável o reformismo nas institui-
ções, que assinalam a efetiva e manifesta presença das cor-
rentes políticas mais adiantadas contrapostas à conservação
e à imobilidade.
Ora, os dois capítulos pertinentes à declaração de direitos
e o longo título referente à ordem econômica e social, com-
pendiam inumeráveis preceitos constitucionais de teor inequi-
vocamente progressivo e renovador, deveras elásticos para
eventual e fecunda aplicação à realidade política, econômica e
social dêste país subdesenvolvido e a braços com histórica e
aguda crise de gestação industrial.
Uma Constituição com as largas conquistas sociais do ar-
tigo 157, que legisla o trabalho e a previdência social, e do ar-
tigo 158, que reconhece o direito de greve, não será nunca
uma Constituição reacionária. No artigo 157 se asseguram o
salário mínimo, a participação obrigatória e direito do traba-
lhador nos lucros da emprêsa (fórmula constitucional do
deputado Sarasate) e o repouso semanal remunerado.
Por outra parte, reúne a Constituição diversas técnicas
que estampam o lado anacrônico e conservador do compro-
misso assumido em 1946.
O artigo 36, que estabelece o princípio da separação de
podêres, traz por exemplo uma velha e desprestigiada técnica
do Estado liberal, um formalismo retórico das Constituições
individualistas do século XIX, u'a arma ultrapassada de con-
Rev. Dir. públ. e Ciência Política - Rio de Janeiro - Vol. VI. n9 3 - set./dez. 1963
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tenção do poder do Estado, uma postulação doutrinária de


Montesquieu, a qual serviu de eficaz instrumento de luta nos
primeiros combates do Estado burguês com a realeza abso-
luta, mas que perdeu já todo o significado histórico.
O parágrafo 16 do artigo 141, que estatui a desapropria-
ção mediante «prévia e justa indenização em dinheiro», erige
aí outro meio técnico de garantia constitucional em proveito
do elemento conservador, quando trata de alcançar o fim an-
tecedentemente disposto - a desapropriação, feita lícita por
interêsse social como ressalva ao direito de propriedade. Essa
desapropriação, que abriria o caminho à reforma agrária au-
têntica, demandada pelas correntes sociais mais radicais, vê-se,
todavia, estorvada por aquêle obstáculo, que foi transigência e
concessão às fôrças agrárias dominantes, tão poderosamente
representadas na Constituinte de 1946.
Possui o elemento conservador por conseguinte meios cons-
titucionais de suma importância com que embaraçar e procras-
tinar a ação dos que intentam acelerar o reformismo social.
Possui êsses meios, mas não possui o espírito da Constituição,
os fins, a doutrina e a vocação de seus melhores preceitos,
todos êles inclinados para o lado social, todos êles programando
o vasto credo das verdades democráticas, que conduzem à
implantação da ordem econômica sôbre as bases da justiça
social. E quem possui o espírito da Constituição há de possuir
também um dia os instrumentos que farão prevalecer êsse
espírito. Urge pela discussão, pelas luzes da crítica, pela com-
preensão, pelo assentimento das fontes democráticas do poder
arrebatá-los das áreas conservadoras que a Constituição, feita,
como vimos, de compromissos, privilegiou a êsse respeito.
'" * *
Em suma, reacionária não é a Constituição. Reacionários
são os que, vencidos pelo tempo, esmagados pelas idéias do
século, engrossam as fôrças que se opõem ao espírito da
Constituição. E o espírito da Constituição, de nossa maltra-
tada Constituição de 1946, não é outro senão o da mais ampla
justiça social. Urge, pois, conhecê-lo, defendê-lo, propagâ-lo,
fazendo da Constituição mesma a melhor cartilha cívica de
alfabetização política do povo.
Re\·. Dir. públ. e Ciência Política - Rio de Janeiro - Vol. \'1. n" :1 - set./dez. 1963

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