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Alberto Consolaro*
A palavra gene foi criada em 1909 por Wi- citoplasma, suas mitocôndrias e o material gené-
lhelm Johannsen para substituir o conceito das tico que carrega em sua estrutura –, assim como
unidades da hereditariedade conhecidas como o organismo como um todo, e a complexidade do
“gêmulas”, criadas por Charles Darwin. Antes meio ambiente.
de Darwin, predominava o conceito de “deter- O significado didático da palavra gene im-
minantes”, criado por August Weismann. Antes plica em traduzi-lo como um fragmento do
dos determinantes, predominava o conceito de DNA que guarda uma informação completa
“pangenes”, inicialmente proposto por Hugo de relacionada à função celular. No corpo humano,
Vries9,13. temos em média 337g de DNA1. Alguns anos
Os conceitos das gêmulas, dos determinan- atrás, supúnhamos que o homem teria o maior
tes e dos pangenes tinham um princípio embu- número de genes entre as espécies. Hoje, sabe-
tido: eram pré-formacionistas, pois tudo estaria mos que temos menos genes do que o arroz ou
pré-determinado. Mas, Johannsen sabia que isso a vaca ou, ainda, que o rato. Imaginávamos que
estava equivocado: a transmissibilidade das ca- possuíamos 100 mil genes, mas tudo leva-nos a
racterísticas de uma geração para outra não era crer que temos aproximadamente entre 25 e 30
bem assim e, para tirar essa conotação, criou-se mil. O baixo número de genes mostra que a bio-
o termo gene9,13. logia é mais complicada do que muitas pessoas
A criação do conceito de gene acabou por gostariam, afirmou Craig Venter, o fundador da
gerar o determinismo genético: as característi- Celera Genomics, empresa que tem a sua ver-
cas dos seres vivos são determinadas por unida- são do genoma humano8. O início e o fim de um
des hereditárias chamadas genes. Esse conceito, gene na estrutura filamentar do DNA podem ser
por ser muito incisivo e fechado, acabou por ser permeados por um outro gene que usa apenas
dogmaticamente utilizado. A transmissibilidade parte desse gene. Os genes estão imbricados e
das características de um ser para outras gerações superpostos uns aos outros e, talvez, essa seja a
não depende exclusivamente dos genes; devemos razão de um certo sentimento de frustração gera-
considerar a célula como um todo – com o seu do com o anúncio do sequenciamento feito pelo
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Consolaro, A.
projeto genoma humano1,8,9,13. De certa forma seu meio ambiente podem acontecer sem que
espetacular, esperava-se conclusões como: “[...] seus nucleotídeos, ou “letras”, sejam alterados, os
aqui estão os genes, distribuídos dessa forma em genes podem ser simplesmente desligados.
cada cromossomo e com cada função definida”. A diferença entre a epigenética e uma mu-
Nesse projeto, detectou-se o sequenciamento tação está no fato de que essa última altera a
do filamento do DNA, mas não onde se iniciam sequência das letras, ou dos nucleotídeos, dos
e terminam todos os genes envolvidos na forma- genes geralmente por ação de fatores externos,
ção e funcionamento do homem. Isso ainda está como agentes químicos ou físicos, durante o
sendo feito, ou pelo menos tentando-se fazer. processo de reduplicação do genoma, ou por
Para mostrar a complexidade desse sistema, ainda um mero acidente bioquímico.
tem-se os genes saltatórios, que podem mudar de Entre os fatores epigenéticos mais citados
posição no filamento do DNA no contexto dos estão os fatores ambientais como alimentação,
cromossomos. Esses apresentam maior dificulda- poluição, drogas e exercícios, que podem modi-
de de identificação e isolamento. ficar o padrão de liga e desliga de nossos genes
durante a divisão celular. Em 2001, muitas frus-
A epigenética influencia na inexata trações aconteceram com o anúncio do sequen-
transmissibilidade das características ciamento do genoma humano, pois esperava-se
dentárias e maxilares muitas respostas para doenças como obesidade,
A transmissibilidade de nossas características diabetes e câncer. Porém, elas não vieram, pois
sofre muitas influências externas aos genes. Não os genes representam mais um dos fatores en-
há o determinismo genético e, cada vez mais, se volvidos, sendo que existem muitos outros re-
ressalta a importância do conceito da epigenética lacionados ao funcionamento celular ainda não
a partir das ideias de quatro grandes geneticistas: desvendados. Entretanto, a epigenética começa
Lewontin, Keller, Parentoni e Piza9,13: a explicar essa variabilidade.
1) O gene-partícula não existe. Os dentes têm forma, estrutura, tamanho,
2) O cromossomo funciona como um todo. número, cor e posição, além de outras caracte-
3) O citoplasma desempenha papel mais im- rísticas que podem ser, e são, fortemente influen-
portante do que o núcleo nos fenômenos heredi- ciadas por fatores ambientais durante os anos de
tários. Lembremos do RNA, do DNA mitocon- vida extrauterina em que a odontogênese ocorre
drial, das enzimas e proteínas citoplasmáticas. (Fig. 1). Lembremos apenas de quatro dos fato-
4) O meio ambiente para a célula está re- res ambientais ou epigenéticos que podem estar
presentado pelo organismo onde ela vive, e para envolvidos na determinação final das caracterís-
o organismo está representado pelo local onde ticas dentárias6:
esse vive e suas variáveis na interação com o a) As forças do crescimento, que orquestram
mundo exterior. a formatação final dos maxilares. Nesse processo,
A epigenética leva em consideração os fatores os germes dentários – enquanto tecidos moles ou
bioquímicos que ligam e desligam os genes, e isso em fase de mineralização – podem ter sua posição
tem tudo a ver com o meio ambiente onde estão e forma modificadas. A formação da face se inicia
as células e o organismo como um todo. Muitas da quarta à oitava semana de vida intrauterina,
vezes, os genes estão presentes mas são “ligados e período denominado embrionário. Nesse perío-
desligados” por enzimas, proteínas, hormônios e do, há intensa diferenciação e migração celular.
outros mediadores. As adaptações que os genes Forças que devem se originar em decorrência da
sofrem para adequar a célula ou organismo ao formação e do crescimento da face na gênese dos
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O gene e a epigenética: as características dentárias e maxilares estão relacionadas com fatores ambientais
FIGURA 1 - A epigenética pode explicar por que os dentes de um mesmo paciente, em ambos os lados, não são exatamente iguais, muito embora prova-
velmente as informações genéticas que o DNA carrega sejam para formar dentes bilateralmente iguais, mas isso não ocorre por causa da ação de fatores
ambientais. A epigenética deve estar fortemente imbricada na formatação morfológica dos dentes humanos.
processos embrionários podem modificar a po- o mesmo dente do lado oposto no mesmo pa-
sição original e geneticamente determinada dos ciente seja exatamente igual em volume, forma
germes dentários e seu alinhamento harmonioso e posição.
com os germes decíduos, com a crista óssea alve- c) As influências do meio ambiente do orga-
olar e com os demais dentes permanentes. Isso nismo, como produtos derivados da alimentação
deve ocorrer desde os primórdios da odontogê- e drogas enviadas aos tecidos via circulação san-
nese, ainda na fase da lâmina dentária. guínea, as variações de temperatura corporal e os
A lâmina dentária tem a forma de um muro produtos do metabolismo corporal. Esses fatores
epitelial ligado ao revestimento ectodérmico da podem influenciar na cor, na densidade mineral,
boca primitiva e, no espaço, assume a forma de no tempo de formação e na irrupção dentária.
uma ferradura. Em sua margem mais interna, dá d) A carga mastigatória pode interferir na for-
origem aos germes dentários como se fossem fru- ma do terço apical dos dentes. À medida que a
tos redondos, inicialmente pendurados e depois rizogênese ocorre, o dente irrompe, movimen-
soltos. Esses germes se alinham harmoniosamen- tando-se em direção ao plano oclusal. Quando
te no interior do mesênquima que os rodeia para encontra os antagonistas, o dente ainda está por
formar o futuro arco dentário. Forças externas à formar o terço apical da raiz. Em sua extremi-
lâmina dentária e aos germes podem desalinhá- dade, a raiz em formação tem a papila dentária,
los ou, ainda, deslocá-los mais para baixo ou para a bainha epitelial de Hertwig e o folículo dentá-
cima desde os primórdios de sua formação, ainda rio que, juntos, estruturam o “órgão formador da
quando o mesênquima não deu origem ao osso. raiz”. A sua consistência é macia e sua capacidade
b) A migração dos dentes nos maxilares em de penetração no tecido ósseo fisicamente muito
sua trajetória irruptiva. O longo eixo do dente pequena, mas, com seus mediadores químicos,
com desvios pode representar mudanças nessa induz a reabsorção óssea e promove espaço para
trajetória irruptiva pela presença de obstáculos o término apical da raiz. Entretanto, quando en-
representados por áreas de condensação óssea, contra obstáculos – como corticais, esclerose ós-
corticais e até outros dentes, quando houver fal- sea, trajetos de nervos e vasos e até outros dentes
ta de espaço. Isso provavelmente dificulta que –, esses tecidos embrionários podem mudar a sua
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O gene e a epigenética: as características dentárias e maxilares estão relacionadas com fatores ambientais
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