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transformar
O caso
do município
de Irecê
Formar para
transformar
O caso
do município
de Irecê
Concepção e Realização
Avante – Educação e Mobilização Social
Conselho Técnico
Gestão Institucional
Maria Thereza Marcilio
Comunicação Institucional
Andréa Fernandes
Administrativo Financeiro
Maria Célia Falcão
Equipe do Projeto
Coordenação do Projeto
Maria Thereza Marcílio
Equipe de Formação
Marília Dourado
Ana Luiza Buratto
Salete Silva
Solange Leite
Mônica Samia
Rita Margarete
Publicação
Organização e Revisão
Maria Thereza Marcílio
José Carlos Meirelles
Ao Professor,
nossa eterna admiração e amizade.
Apresentação
Maria Thereza Marcílio
Membro da Avante - Educação e Mobilização Social,
onde é coordenadora do Núcleo de Desenvolvimento Institucional
Esta publicação reúne quatro textos que descrevem e analisam momentos e ações muito
importantes na história da Avante – Educação e Mobilização Social. Quero reafirmar aqui o
que já tive oportunidade de dizer antes. Este trabalho traduz um desejo longamente
acalentado: o de narrar o cotidiano do professor. Não o professor isolado, porque, assim
como a andorinha, ele sozinho não faz verão, mas o professor como coletivo, parte de um
grande e diverso conjunto e, nessa circunstância, como sujeito, aprendiz, autor e autônomo,
agente principal da qualidade da educação. É para esse profissional, tão necessário quanto
pouco valorizado, que nossos pensamentos, nosso olhar, nossa atenção estão dirigidos.
Para que ele possa reconhecer-se, entusiasmar-se, sentir-se participante desta caminhada e
estimulado a tornar suas práticas cada vez mais reflexivas e produtivas.
O primeiro texto – Formando e Transformando em Irecê – escrito por Maria Helena Souza da
Silva, com a colaboração de José Carlos Dantas Meirelles, conta a memorável experiência
vivida pela Avante naquela cidade baiana, no período compreendido entre 1996 a 2000,
com o projeto “Todos pela Educação no Município” – Um Programa de Formação
Continuada de Professores e de Assessoramento à Gestão da Educação que, aliás, mereceu o
Prêmio Itaú/UNICEF 1999, Menção Honrosa na categoria “Formação de Professores”. O
texto narra como, após realizado um diagnóstico da realidade educacional do município,
foram definidos objetivos e diretrizes voltadas para: 1)melhoria da qualidade do ensino,
com opção pela linha da pedagogia socioconstrutivista e adoção da pedagogia de projetos;
2)valorização do profissional de educação, a partir do redirecionamento do seu papel e do
valor social do professor; 3)democratização do ensino, incluindo o estabelecimento de
mecanismos de envolvimento de toda a comunidade escolar; 4)valorização da cultura do
município, mediante a inclusão das raízes e traços socioeconômicos e culturais na práxis
pedagógica. O texto é rico em informações, testemunhos – de professores, coordenadores,
gestores, alunos, funcionários, consultores – e de dados, dentre os quais, por exemplo, os
que demonstram que, em Irecê, a matrícula aumentou de 6 345 alunos, em 1996, para
10.360, em 1999 e a evasão de 19,9% caiu para 6,9%, sendo que a distorção idade-série que
chegava a 67%, entre os alunos das quatro séries iniciais do ensino fundamental, em um
ano, passou para 13%; o índice de repetência, igualmente, passou de 15% para 3,2%.
Por sinal, uma bela história pessoal e profissional de professor(a), plena de valiosas reflexões,
está contada e analisada no terceiro texto – Como Venho me Tornando Professora -- de Rita
Margarete Moreira Santos. Nele, a autora relata, dentre outros episódios muito
interessantes, o seu primeiro contato com a Avante, quando esta foi convidada a oferecer
consultoria pedagógica à escola onde ela trabalhava. A instituição de ensino dizia sentir a
necessidade imperiosa de rever suas praticas pedagógicas. Segundo a autora, no processo
da consultoria, à medida que o grupo de professores era desafiado a refletir, explicar e
teorizar sobre sua prática tendia a eclodir um certo movimento de reação e resistência aos
esforços de reconstrução da identidade profissional. Analisa como, ao contrário de boa
parte de seus colegas, ela foi sendo tomada por uma sensação de deslumbramento com o
novo, mas, ao mesmo tempo, por uma grande perplexidade e angústia. Parte interessante
também da “história de professora” é aquela em a autora compara sua formação inicial e
sua formação continuada, o significado de cada uma delas no seu desenvolvimento pessoal
e profissional, e a importância desta última ao propiciar a oportunidade de “tematização de
situações práticas e pensamento prático-reflexivo”.
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3 4
Como Venho Consolidando e
me Tornando Institucionalizando
Professora a Transformação
da Escola Municipal
A nova proposta
curricular de Irecê
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Formando e
Transformando
em Irecê
Maria Thereza Marcílio
COLABORAÇÃO
José Carlos Dantas Meirelles e
e Maria Helena Souza Silva
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
INTRODUÇÃO
“Posso assegurar que o maior prêmio é o
resultado lá na ponta...” 1
1 Aloísi Carlos de Oliveira – Diretor da Escola Municipal Luiz Viana Filho – em entrevista, jul./2001
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FORMANDO E
TRANSFORMANDO EM IRECÊ
A AVANTE – Qualidade, Educação e Vida – que conta esta história, é parte dela. Parceira ativa
da educação do município, desde o início de 1997, ano I desta experiência, que em 1999
concorreu e recebeu a Menção Honrosa do Prêmio ITAU/UNICEF, destinado a iniciativas
educacionais, na categoria “Formação de Professores”, com o projeto “Todos pela Educação
no Município – Um Programa de Formação Continuada de Professores e de Assessoramento
à Gestão da Educação em Irecê”. Um prêmio pleiteado por 732 projetos educacionais de
todo o país, ficando o trabalho de Irecê entre os 14 primeiros colocados.
O prêmio viabilizou esta publicação, cuja intenção é sistematizar a experiência, enfocando e
discutindo os principais pontos inovadores, sem tecnicismos - buscando reconstruí-la
na sua singularidade e ser fiel às suas dores e cores - através do testemunho e das reflexões
dos envolvidos no projeto, e da análise cuidadosa dos registros, estabelecendo
aproximações e conexões que possam ser úteis para quem lida com a vida escolar, em
especial professores, coordenadores, diretores, gestores municipais e todos os que fazem o
cotidiano das escolas, interagem com o seu rico contexto e gostam de “transformar em
sabedoria” as suas práticas.
O sucesso dos alunos nas escolas municipais de Irecê tornou-se uma realidade. A matrícula
aumentou de 6.345 alunos em 1996 para 10.360 em 1999; a evasão caiu de 19,9% para
6,9%; a defasagem que chegava a 67% entre os alunos das quatro séries iniciais do ensino
fundamental, em um ano caiu para 13%, manteve a tendência de queda e hoje está em 8%.
O índice de repetência caiu de 15% para 3,2%
É importante lembrar que falamos de uma região em que as possibilidades de uma vida
escolar regular, sem interrupções, ainda são uma utopia para boa parte das famílias que
dependem da oferta de ensino gratuito. Os períodos de colheita do feijão e mamona, são
também os mais férteis em presença dos alunos nas escolas de Irecê2. Na seca, as famílias
migram em busca de trabalho que lhes garanta a sobrevivência.
O êxodo rural, um fenômeno desestruturante na história de vida e na escolaridade de
milhões de brasileiros, tema de profundo significado, portanto, na trajetória e no “destino”
pessoal e familiar dos alunos, torna-se tema estruturador para a realização de descobertas
autênticas que lhes possibilitam a construção de novos conhecimentos. Isto, provocado
pela escola, desde a atividade de sala de aula e a partir da apropriação processual da
“pedagogia por projetos”, numa rotina de trocas coletivas, envolvendo todos os professores
e gestores, onde se tem em perspectiva um trabalho em rede. Neste contexto, são muitos as
iniciativas e projetos que surgem, se expandem e se consolidam, processo que vai se
fortalecendo na medida em que se supera o medo de errar e em que se instaura e dissemina
o desejo e a liberdade de experimentar. Alguns desses projetos estão descritos por seus
protagonistas, professores, coordenadores, diretores.
2 Em julho de 2002, quando realizamos as entrevistas em Irecê, havia uma expectativa da chegada da bolsa-escola no
mês seguinte. O município já se habilitara para recebê-la. É possível que, de alguma forma, a adoção da bolsa-escola
possa melhorar este quadro. Trata-se de uma política compensatória que, sem dúvida, por si só, não resolverá o problema.
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FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
3 MELLO, Guiomar Namo de – “Educação Escolar : Paixão, Pensamento e Prática”, cap. “Política Educacional,
- Um Início de Conversa”, documento sobre as diretrizes para uma política educacional, submetido à discussão
dos educadores do ensino público municipal de São Paulo, em julho de 1986 - Editoras CORTEZ e
Autores Associados, 2a ed., págs. 89 a 101, São Paulo, 1987.
4 As medidas referidas por Guiomar no texto são: implantação da escola única de oito anos, transformação do 2º grau
em curso profissionalizante, instituição de funções técnicas e habilitações profissionais (pág. 92)
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FORMANDO E
TRANSFORMANDO EM IRECÊ
1 ANTECEDENTES
1.1
O Velho e Conhecido Contexto
“A gente sabia da situação, mas quando viu, escola por escola ... era triste. Ambiente
desprezado, instalações elétricas e hidráulicas quebradas... Este lugar aqui, onde nós
estamos, era uma creche e era pintada de preto,até mais da metade da parede, para os
meninos não sujarem... e assim eram várias escolas ... Tentávamos achar um documento, a
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vida escolar do aluno, não achávamos ... Não existia alma de escola, não havia memória”
“Não encontramos nenhuma proposta pedagógica, nada escrito ...Na Secretaria só havia o
Secretário e uma coordenadora para fazer todos os serviços. Encontramos a maior escola de
Irecê fechada, desde o mês de julho ... o ano letivo foi interrompido em outubro – quando
houve eleição municipal - e não foi concluído ... pra você ter uma idéia, numa escola com 130
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crianças matriculadas na 1a série, 119 tinham perdido o ano ...”
“Recebemos a escola de Angical com 292 alunos, da alfabetização à 8a série, em março de
97, numa comunidade com mais de 2000 pessoas. Fizemos um levantamento e tinham mais
de 500 jovens em idade escolar ... havia capacidade física e havia público mas os alunos não
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estavam lá”.
“Na minha sala tinha castigo e palmada. Se não conseguisse soletrar ou não tivesse a tabuada
todinha na cabeça levava palmada na mão. Eu não cheguei a levar palmada, mas cheguei a
ficar com os olhos vendados e os braços abertos no recreio todinho ... todo mundo passava e
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me olhava ...”
“...Entrei na escola há 3 anos e não sabia nada de ler e de escrever. Eu aprendo muito porque
as professoras são muito dedicadas. Acho que o professor tem que ser uma pessoa muito
paciente com os seus alunos porque senão eles não ficam na escola. Eu gosto muito de ler
várias coisas: livros, cartazes, gibis, gosto de escrever e de participar da biblioteca. Meu dia na
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escola não tem nada de ruim, só a tentação de alguns colegas ...”
“...Antes na escola eu só apanhava. 'Às vezes chegava em casa com as mãos inchadas de tanto
apanhar. E não era só eu. Desde que eu fui ficar com professora Jane comecei a aprender a ler
e escrever e logo desenvolvi. Gosto de escrever cartas de participar de peças. Participei da
Branca de Neve e foi muito legal. Quero ser professora, ensinar numa escola e passar tudo que
já aprendi pras outras pessoas. O professor que não respeita os seus alunos não devia ser
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professor. Todo mundo deve ser respeitado. Mudei muito e quero mudar mais ainda....“
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FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
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FORMANDO E
TRANSFORMANDO EM IRECÊ
1.2
Educadores em Cena -“Sonhos na Letra”
Nas eleições municipais de 1996, Irecê faz uma opção política de ruptura com aquela cultura
e articulada com as aspirações dos movimentos sociais locais. Os educadores participam,
têm apoio, ocupam a cena política e assumem o seu papel de liderança nas mudanças
educacionais. Durante a campanha mobilizam amplamente a sociedade ireceense para esse
debate e promovem um amplo seminário, apoiado pela Prefeitura e por empresas locais.
Reúnem-se os sindicatos dos professores, educadores diversos, entidades, governantes,
bispos, pastores, promotores, juízes e demais interessados na educação de Irecê.
“Queríamos ouvir da comunidade o que esperava da educação no novo governo, que a partir
de janeiro estaria assumindo a Prefeitura. As pessoas disseram tudo o que esperavam. E nós
apresentamos o que a gente conhecia e sabia que estava dando certo na educação - Belo
Horizonte, por exemplo... havia uma grande esperança, mas tinha também um certo
pessimismo, especialmente de quem já trabalhava com educação... talvez não sonhassem
com uma mudança tão grande, principalmente na prática do professor ... mas havia um
sonho que a gente sabia que era de todo mundo ... então nós apresentamos experiências que
estavam acontecendo, mostrando que era possível fazer uma escola de inclusão, onde os
alunos da escola pública aprendiam de fato ... demonstrando que tinham a mesma
capacidade dos outros ... precisavam de uma escola que acreditasse nisso... e as pessoas
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acreditaram que ia ser diferente mesmo...”
“...Sabíamos o que queríamos, e com as idéias que iam surgindo sobre a escola que se queria,
a gente traçou um plano e escreveu um documento ... recuperando tudo o que foi dito pela
comunidade ... ficou tudo no papel e no sonho ... Essa sintonia e esse sonho conjunto fizeram
com que o plano contivesse uma projeção bem abrangente, prevendo muito do que já
aconteceu e do que está ainda por acontecer na educação . A comunidade encontrou
alternativas, por exemplo, uma ajuda financeira para que os pais fossem aliados para
matricular e manter os meninos na escola, algo parecido com a bolsa escola, que surgiu
14
depois. ..”
Esse seminário deu fundamentos para nortear a educação em Irecê, sintetizados no Projeto
“Escola e Criança de Mãos Dadas” . Foi realizado um diagnóstico da realidade educacional,
incluindo um levantamento das necessidades de cada escola, cada comunidade – quantas
crianças e adolescentes estavam fora? Foram definidos os objetivos e políticas prioritárias,
assim expressos no Plano de Ação 15:
12 LENT, Carmen – “Mutações Psíquicas: do particular ao universal” in “Transformação”, vários autores, organização
de Rosiska Darcy e Carmen Lent, Editora Diferença, Rio de Janeiro, RJ, 1993.
13 Emanuela Dourado e Soraia Pinto Dourado – 1997/1998 – relatos do documento que sistematiza o seminário,
em entrevista – jul. 2001.
14 Emanuela Dourado e Soraia Pinto Dourado – Coordenadoras – 1997/1998, relatoras do documento que sistematiza
o seminário, em entrevista – jul.2001
15 Documento “Escola e Criança de Mãos Dadas” – Relatório da Secretaria Municipal de Educação de Irecê - 1997
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FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
Valorização da Cultura do Município, através de: inclusão das raízes e traços sócio-
econômicos e culturais na práxis pedagógica, como forma de resgate dos nossos valores
históricos; programas para o desenvolvimento de vivências com os alunos, baseado em
calendário com datas significativas da história do povo da região; desenvolvimento de
parceria com grupos culturais e artísticos da cidade para realização de trabalhos com os
alunos , estimulando a compreensão da escola como espaço para o prazer; criação de um
espaço para oficinas permanentes de artes.
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FORMANDO E
TRANSFORMANDO EM IRECÊ
1.3
Aproximando Intenções e Gestos, Descobrindo Identidades
e Alimentando a Utopia
O 1o Encontro dos Dirigentes Escolares do Município de Irecê
Referindo-se ao movimento de mulheres - que se estruturou a partir de pequenos grupos de
reflexão sobre o cotidiano feminino, e em pouco tempo ganhou mundos, revelando e
instigando a superação de tabus milenares – e reportando-se à “efervescência existencial e
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FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
intelectual por ele gerada”, a escritora Rosiska Darcy16 traz à lembrança um mito indiano,
que reproduzimos com o intuito de estreitar a nossa aproximação à energia que
movimentava o planejamento, a organização e a realização do 1o Encontro de Dirigentes
Escolares da Rede Municipal de Irecê, naquele mês de março de 1997:
“...um faquir, depois de preparar cuidadosamente um laço na ponta de uma corda, joga-a
para o alto e, seguro de que o laço se prendera em algum lugar além nuvens, tranqüilamente
sobe por ela. E, diante do pasmo dos incréus, desaparece nas alturas, seguro na corda que se
prendera, quem sabe em sua esperança...”
“...Porque a esperança é assim. Parece ilusória, mas essa ilusão vai impregnando a realidade e
constituindo-a, força atuante que é dentro dela...”.
“ O movimento de mulheres foi – é – para mim, para minha geração, essa corda em que
subimos para provar que, ao alcance da mão, se oferece a nós um mundo mais tenro, mais
suave. Se assim não for, o fato de termos podido imaginá-lo já nos terá aproximado, talvez, de
um objetivo mais modesto, mas quão precioso, o de inaugurar relações humanas em que a
aceitação da diferença sem desigualdade reconcilie homens e mulheres e ponha fim ao
desencontro das mulheres consigo mesmas...”.
Se tivéssemos que escolher um símbolo para representar o clima que deu o tom ao 1o
encontro de dirigentes das escolas de Irecê, escolheríamos a corda desse faquir ou uma
âncora, símbolo da esperança. Ambas, ao alcance das mãos, podem nos permitir ir
desfazendo os nós, ou enfrentando o mau tempo, cujas ondas nos empurram para a deriva e
dificultam a realização da utopia de uma humanidade melhor e mais harmônica.
O som de Chico Buarque e Milton Nascimento fez texto e contexto na sensibilização e
integração dos participantes, na 1a manhã do Encontro, aberto solenemente na Escola
Nossa Senhora Aparecida, com presença do prefeito e secretários.
... “Tirar do trigo o milagre do pão
E se fartar de pão ...
Decepar a cana,
Recolher a garapa da cana,
Provar da cana a doçura do mel
17
Se lambuzar de mel”
16 OLIVEIRA, Rosiska Darcy de – “Elogio da Diferença – O Feminino Emergente”, pág.17, Ed. Brasiliense,
a
3 ed., São Paulo, SP, 1993.
17 NASCIMENTO, Milton e BUARQUE, Chico – “Cio da Terra”
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FORMANDO E
TRANSFORMANDO EM IRECÊ
O que na verdade parece orientar este Encontro, além da capacitação técnica propriamente,
é a consciência da necessidade de construir uma positiva interação das equipes escolares, e
da importância do papel dos diretores junto aos professores, funcionários, alunos, famílias e
comunidade. O debate tinha como pano de fundo perguntas substantivas para quem lida
com educação, com foco no aluno: Afinal, pra que serve a Escola? Quem e o que somos nós
dentro (e fora) dela?”
Confrontam-se idéias sobre modelos de escola, autonomia e função social da escola,
práticas pedagógicas comuns aos educadores, orientações didáticas. Aponta-se a
necessidade de um marco curricular comum “para orientar os olhares e as atitudes”.
Falam as leituras dos participantes, feitas em Avaliação, no final do Encontro;
“...Foi o marco inicial para que a educação municipal de Irecê alcance patamares condizentes
com as expectativas da comunidade: uma educação que eduque e que contribua para o
desenvolvimento do ser humano como pessoa, constituída de direitos, deveres e senso crítico,
capaz de intervir e transformar sua realidade ... eu, pessoalmente, não medirei esforços para
19
contribuir com essa transformação... o primeiro passo foi dado. Agora, mãos à obra...”
“....Com tudo que aprendemos, desde o momento inicial de integração e nos debates, fica
uma corrente positiva... Enfim chegou o momento da criança ter sua liberdade de pensar, criar
20
... parabéns pelo 1º Encontro .“
“...Os trabalhos desenvolvidos nesse encontro serão como um marco curricular para que
todos nós, participantes, possamos sair do senso comum e ser realmente um elo daquela
corrente que será a educação de Irecê. Que Deus nos ilumine para que possamos, com
21
sabedoria maior ... levar avante todas as dificuldades que, com certeza, encontraremos ...”
Esse encontro começa a construir uma nova cultura na rede, marcada pela consciência da
dimensão social da função do dirigente escolar, em contraposição à cultura anterior,
influenciada pelas concepções “menoristas”22 , que orientaram o olhar e a pedagogia no
trato com crianças e jovens, especialmente das classes populares, entre nós.
18 O UNICEF – que já tinha sido procurado pela gestão municipal, contribuiu na concepção e realização deste seminário,
especialmente no desenvolvimento das temáticas sobre Sistema, Gestão, Planejamento e Projeto de Escola, através da
participação de uma consultora da AVANTE. Também foi apresentada e discutida a proposta “Pedagogia do Sucesso”
do Instituto AYRTON SENNA, com o qual o Município iniciava um convênio, voltado para os alunos em defasagem.
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O caso do município de Irecê
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O caso do município de Irecê
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A nosso ver, esses versos evidenciam também desejos de universalidade com qualidade, o
que reforça sua pertinência para o momento da educação em Irecê.
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FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
Antes mesmo da reabertura das aulas podemos afirmar que a educação em Irecê já não
é mais a mesma: a descrença na transformação do quadro do ensino municipal começava
a fazer parte do passado. A “linha do desejo”30 na educação estava traçada: construíra-se
com a comunidade a direção a tomar, já se tinha um diagnóstico com as necessidades
de cada escola; um plano como referência para os principais rumos; alguns pontos de
chegada estabelecidos e lideranças motivadas pela aventura de alcançá-los, conscientes da
dimensão social do seu papel. Muitas dúvidas e algumas firmes crenças fundamentavam e
impulsionavam a caminhada:
”...A gente estava, todo mundo, arregaçando as mangas, com muito entusiasmo, muitos
obstáculos e dificuldades, entraves políticos, mas a garra era maior... O Plano de Metas era
nossa referência para tudo. Nossas primeiras preocupações eram com o professor e com o
foco no aluno, no ensino e na aprendizagem e não só no ensino, por si só. Fizemos uma
proposta de realizar concurso público e foi realizado, depois do encontro dos dirigentes
escolares. Entre o encontro e o concurso, sentamos para ver a que íamos dar prioridade na
rede... A gente queria mexer com a sala de aula. Sabíamos que queríamos alunos
competentes, críticos, autônomos , politizados, que pudessem mudar a sua própria
comunidade e que essa transformação tivesse reflexos diretos na sociedade... Queríamos
31
desenvolver a pedagogia de projetos... A gente não sabia direito como fazer tudo isto”
O início do ano letivo em 1997 foi retardado para abril. Foi dada ampla publicidade à
matrícula: “ESCOLHA A ESCOLA E VÁ SE MATRICULAR, SE NÃO TIVER ESPAÇO, A GENTE VAI
PROVIDENCIAR” e, como esperado, houve um grande aumento do número de alunos
matriculados, já nesse primeiro ano. Os novos chegavam numa situação mais complexa, em
termos de dificuldades e defasagem, do que aqueles que já estavam na escola.
Duas grandes prioridades no combate ao fracasso definiram os convênios realizados com a
Avante e com o Instituto Ayrton Senna. Com a Avante, voltado para a formação continuada
dos professores, coordenadores e gestores para que se fortalecessem como lideranças,
mediante o desenvolvimento e apropriação de instrumental teórico e técnico capaz de lhes
permitir impedir a produção de novas séries de repetentes e evadidos, e com o Instituto
destinado a desenvolver projeto específico para corrigir o fluxo escolar.
Além destas parcerias foram sendo realizadas várias outras, na área de educação, para o
desenvolvimento de diversos projetos, inclusive parcerias de iniciativa das escolas, de salas de
aula, que serão reveladas na medida em que sejam analisados os projetos a que deram origem.
Embora o foco proposto neste livro seja o projeto Formação Continuada de Educadores e
Gestores da Educação em Irecê que, como outros, tem seu universo singular, e resulta de
uma parceria específica, qualquer projeto educacional, desenvolvido no período de 1997
para cá, pode ser objeto de referência e análise. Interagindo no mesmo contexto eles se
30 Expressão comumente utilizada por pessoas que trabalham com planejamento urbano, especialmente na área de
transporte e trânsito, para identificar pontos onde devem instalar determinados equipamentos e serviços de uso público.
Pesquisam-se os movimentos de pedestres e veículos, para conhecer e localizar as linhas do desejo e escolher onde
investir os esforços e os recursos.
31 Soraia Pinto - entrevista em julho de 2001
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FORMANDO E
TRANSFORMANDO EM IRECÊ
vinculam – alguns são suscitados pelas ações desenvolvidas por outros projetos e parcerias –
e se complementam, constituindo a complexidade da trama educacional. Como, frequente-
mente, foram concebidos a partir de processos de reflexão coletiva, por vezes, a própria
autoria se confunde, e não é possível separar com exatidão o que deu origem a quê. São
frutos de relações de trocas e descobertas autênticas, geradas em situações singulares de
necessidades das escolas, dos alunos, das direções, que amadurecem em novas idéias e
propostas e “ganham pernas” com lideranças que exercitam sua criatividade e suas
competências para adaptar e criar projetos adequados às realidades de suas escolas.
Dessa forma, resgatar esses projetos é buscar recuperar, o mais concretamente possível, os
processos que lhes deram origem – as razões, os problemas e os pensamentos que moviam
as decisões de realizá-los, em cada caso.
Assim como a produção do fracasso escolar não resulta de uma ação isolada, mas de um
conjunto de ações que fazem um sentido e têm uma lógica, a sua desconstrução supõe
também uma lógica que se lhe contraponha, a orientar múltiplas frentes de atuação
articuladas e direcionadas. Dessa forma, se não cometemos exagero ao afirmar que hoje
podemos traçar uma linha de atuação padrão para a superação do fracasso – ela já é visível
nas leis que organizam o ensino no país – cometeríamos um engano, ao pretender nivelar os
programas e projetos que se alimentam nesta fonte, como se ela fosse mágica, e estivesse
acima da complexidade de cada contexto humano concreto.
Podemos identificar, em cada realidade, investimentos mais (ou menos) estruturantes e, como
tais, capazes de gerar processos transformadores mais duradouros. Em Irecê é fácil localizá-los
porque são verbalizados por seus protagonistas (quando se referem ao que aprenderam, o
que foi importante, os resultados obtidos, enfim, eles são uma constante nos depoimentos
dos participantes dos diferentes segmentos). Em geral, os projetos com longa duração,
destinados à formação de pessoas têm essa capacidade, mas isso não basta, como veremos.
3 VIABILIZANDO O SUCESSO
“De nada adianta pedir aos professores que digam a seus alunos
vocês podem! Se nós, da Universidade, dizemos a eles: vocês nada
entendem de aprendizagem” 32
Desde o início de 1997 o combate ao fracasso escolar é alvo, sentido e cenário dos esforços
dos gestores e educadores de Irecê – nos seminários que antecedem o ano letivo (de 1997),
no plano de ação, nas parcerias buscadas.
32 DE LA TAILLE, Yves - in Prefácio ao livro de MANTOVANINI, Maria Cristina – “Professores e Alunos Problema:
Um Círculo Vicioso”, Casa do Psicólogo Livraria e Editora Ltda, SP, 2001.
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FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
3.1
Fracasso Escolar – alguns aspectos relevantes do debate sobre suas causas
Como produção escolar, o fracasso para ser superado exige mais do que o investimento
nos alunos que já estão defasados. É preciso agir nas suas fontes geradoras, intervindo na
sua produção.
Há, sem dúvida, uma multiplicidade de condições que interagem, constituindo o “habitat”
para que o atraso escolar se reproduza, geração após geração, em contextos e ambientes
tão diversos quanto o nosso território brasileiro, a nossa cultura, as origens do nosso povo.
Essas condições, e sua diversidade, têm oferecido campo para muitas explicações: a desi-
gualdade social, a fome, a violência doméstica, as migrações constantes, o desemprego,
aliadas a um contexto de crescimento desordenado da população escolar; isto é, a realidade
em que vivemos, serviu e serve para oferecer muitas e ricas explicações para o fracasso da
escolaridade das nossas crianças.
Freqüentemente, essas explicações – que se limitam a fatores externos à escola - estão
associadas a concepções que centram nas próprias crianças a responsabilidade pelo
fracasso: a sua origem familiar e as precárias condições das vidas que levam interfeririam
decisiva e negativamente sobre o seu potencial orgânico e emocional, comprometendo o
desenvolvimento da sua capacidade cognitiva, a ponto de impossibilitar-lhes uma
adaptação ativa e criativa diante das exigências da escolaridade.
Concentrar a compreensão e explicação para o fracasso escolar em tais condições, que não
são superáveis em curto prazo, contribuiu, de certa forma, para distanciar o olhar sobre o
próprio ambiente escolar e sobre as condições em que se produz a aprendizagem. A máxima
“para mudar a realidade da escola é preciso mudar antes o sistema econômico e social, as
prioridades do Estado, etc.” atuou sobre a nossa mentalidade. Serviu também como uma
espécie de justificativa e como um grande “guarda-chuva”, a proporcionar um certo
conforto, necessário para a adaptação (humanos que somos), diante do sofrimento em lidar
com situações complexas e frustrantes nas tentativas autênticas de obter o sucesso dos
alunos. O raciocínio é o seguinte: estando as razões do fracasso fora da escola, a solução
depende de mudanças de fora do contexto escolar, sendo talvez inalcançável, enquanto não
transformarmos a sociedade, superarmos a seca, a fome e outras mazelas sociais (que não
nos faltam no país inteiro, interferem em todos os contextos, inclusive na escola, e cuja
superação, de fato, exige o empenho de cada um e de cada instituição - pública ou privada-
em diferentes níveis).
A geração de educadores que atuou nas escolas e órgãos centrais de educação nos anos 70 e
80 vivenciou muito fortemente a influência desta compreensão no dia-a-dia da educação
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FORMANDO E
TRANSFORMANDO EM IRECÊ
3.2
Irecê: Foco na sala de aula, fé no professor
Já vimos como o Plano de Ação, elaborado antes do início do ano letivo, sob a liderança dos
educadores e com ampla participação da comunidade, traçou diretrizes gerais para a
educação em Irecê, enfatizando algumas prioridades, que foram reforçadas no encontro de
diretores e vice-diretores: localizar o foco das ações na transformação das salas de aula e das
escolas, sustentadas pela ênfase em ações de valorização do professor, a partir do
redimensionamento do seu trabalho, como forma de conscientizá-lo do seu papel social. 33
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FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
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TRANSFORMANDO EM IRECÊ
39 Ver pág.15
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FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
“Não deve haver duas Histórias, uma da ação moral e política e outra da teoria política e
moral, porque não houve dois passados, um povoado apenas por ações e outro só habitado
por teorias. Toda ação é portadora e expressão de convicções e conceitos mais ou menos
carregados de teorias; toda construção teórica e toda expressão de convicção é uma ação
41
moral e política”
Neste capítulo pretendemos proporcionar o conhecimento do projeto, tal como ele foi
pensado inicialmente – com todos os seus componentes.
Em seguida, centraremos o nosso foco no formato adotado em Irecê, abordando suas duas
linhas de ação – formação continuada de professores e formação continuada de gestores de
educação, visando possibilitar a compreensão de suas principais dimensões e abrangência,
seus fundamentos teórico-metodológicos e seu desenvolvimento. Pretendemos recuperar,
tanto quanto possível, os desafios que movimentaram a sua implantação e realização.
40 In “Gilberto Gil – todas as letras” - “O Receptivo”, pág.13, org. Carlos Rennó, São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
41 MacINTYRE, Alasdair - After Virtue, pág. 61, “Governança, o Banco Mundial e a Teoria Liberal”, in WILLIAMS, David
e YOUNG, Tom - Political Studies, 1994
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FORMANDO E
TRANSFORMANDO EM IRECÊ
Para isto são reproduzidos trechos das entrevistas realizadas com professores e diretores e
de relatórios regularmente encaminhados pelos coordenadores à Avante, buscando, a um
só tempo, sistematização e reconstrução do contexto do trabalho e do que foi significativo
para a transformação da escola de Irecê, ficando explícito que essa transformação supõe
processos de mudanças significativas na vida dos participantes, pessoas e grupos envolvidos
nessa aventura, que nos parece sem volta.
Finalmente, são analisados alguns dos projetos que foram ou estão sendo postos em prática
e que, a nosso ver, têm vínculos históricos com o aprendizado de valores, atitudes e
procedimentos, suscitados pela experiência de “formação continuada de professores e
gestores de educação” – um valor em si – que, se, provavelmente. já existia em Irecê, tornou-
se tônica, multiplicou-se e agora pertence a grande parte dos educadores e gestores da
educação pública daquele município. Por aí se pode entender por que hoje se vive uma
“disputa” – certamente salutar - por esses educadores, entre a rede particular e a rede
pública da cidade. Isto está revelado em vários depoimentos colhidos em 2001 entre
educadores que participaram do trabalho desde o início, como o da então coordenadora
pedagógica da Secretaria e o de uma professora, ex-docente da rede pública, atualmente
lecionando numa instituição de ensino particular de tempo integral, e que em 1999
apresentou para outros educadores, em Salvador, a sua experiência na rede pública de
Irecê42 e produziu texto, gravou vídeo - “junto com duas colegas e a diretora da escola” –
relatando a experiência:
“Hoje os profissionais da rede são disputados pelas escolas particulares. A gente tem que ficar
brigando para a escola particular não ficar levando os nossos professores. Eles têm a
consciência da dimensão social do que estão fazendo. Hoje, no discurso do professor, na fala
do aluno, em sua produção, não tem nenhuma escola que não tenha a influência desse
43
trabalho de formação continuada.”
“É uma rotina totalmente diferente. Não deixo de aplicar o que aprendi na capacitação, não
dá para voltar atrás. Trabalho com a pedagogia de projetos. Eu gosto mas ... sinto falta,
principalmente dos cursos. Acho importante a gente estar discutindo em grupo, debatendo,
ouvindo, trocando idéias, os professores com seus relatórios, dando sugestões sobre o que
está acontecendo na sala... a gente tem uma idéia assim, vaga, e chega alguém, faz um
44
questionamento que aquela idéia cresce ...”
42 “Trocando em Miúdos” – momentos de trabalho, com a duração de 24 horas, em geral – com um formato fixo:
de aprofundamento do conhecimento – mediante palestras temáticas, com profissionais escolhidos, seguido de
“Relatos de Práticas Bem-Sucedidas”, regularmente realizados pela Avante, incluindo experiências desenvolvidas
com consultoria da própria organização e de organizações parceiras, destinado a um público específico de
professores, coordenadores e gestores da educação. Contempla a participação de profissionais da rede pública
e da rede privada
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FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
4.1
A Proposta Inicial 45
O projeto inicial envolvia, além da formação continuada de professores e gestores
educacionais, o assessoramento à UNDIME – União dos Dirigentes Municipais de
Educação46. O objetivo era desenvolver uma ação de abrangência estadual. Tendo Irecê
como município-piloto, o projeto estenderia suas ações diretas a mais 18 municípios47,
Avante e Unicef alimentavam esta idéia e pretendiam desenvolver o projeto nesse formato, a
partir de experiência de alguns membros da equipe da Avante com a educação municipal,
iniciada desde a década de 80. No período (1986-1989), uma das profissionais que vieram a
fundar esta Ong48 ocupou a Coordenação de Ensino do Município de Salvador, onde
implantou um trabalho, fundamentado no sócio-interacionismo e construtivismo, àquela
época ainda pouco estudado e praticado em municípios brasileiros. Enfrentou muitas
resistências, pois propunha mudanças profundas na organização e funcionamento da
escola fundamental e especialmente no exercício da prática docente.
As transformações então experimentadas vieram a revelar-se precursoras das linhas de
fundamentação, e de muitos dos dispositivos da legislação que organiza nacionalmente o
ensino fundamental, assim como de programas nacionais, desenvolvidos para implementá-
la. São exemplos: eliminação da seriação; mudança de foco das ações do órgão central,
enfatizando os investimentos na escola e na sala de aula; valorização do profissional da
educação, incluindo a criação de espaços permanentes de capacitação na escola, dentro da
jornada de trabalho e valorização da participação e integração da comunidade. Em Salvador
essas iniciativas integravam o Programa de Educação Pública Municipal – “Escola pra Todos,
Todos pra Escola”.
Ao deixar a Secretaria Municipal de Educação, continuou com o trabalho com educadores e
gestores da rede privada, enriquecendo-o.
Em 1997 , quando se iniciou o trabalho de formação continuada em Irecê, o contexto
nacional era de fortalecimento dos municípios, como entes executores das políticas
públicas, não mais exercendo um papel complementar ou subalterno ao estado, em especial
na educação. A promulgação da LDB no ano anterior deu um novo ânimo, evidenciando a
urgência de intervenções profundas para mudar o quadro da educação pública brasileira e
superar suas deficiências e ineficiências sistêmicas e históricas. O contexto era o de
realização de reformas democráticas, preocupação com eqüidade na distribuição dos
recursos com definição de prioridade para o ensino fundamental, especificação das
atribuições da educação entre os diversos âmbitos da administração pública, estímulo à
criação de mecanismos de participação da comunidade na escola, definição de critérios para
47 América Dourada, Barra do Mendes, Barro Alto, Cafarnaun, Canarana, Central, Gentio do Ouro, Ibipeba, Ibititá,
Itaguaçu da Bahia, João Dourado, Jussara, Lapão, Mulungu do Morro, Presidente Dutra, São Gabriel, Uibaí, Xique-Xique
48 Maria Thereza Marcílio, Coordenadora do Núcleo de Educação da AVANTE
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FORMANDO E
TRANSFORMANDO EM IRECÊ
a distribuição dos recursos públicos federais destinados ao ensino. Tudo isso associado ao
compromisso dos estados e municípios com o cumprimento de determinados requisitos
mínimos, relacionados à qualidade do funcionamento do ensino, como elaboração e
implantação de plano de carreira, regimentos e conselhos escolares, dentre outros.
O município de Irecê foi escolhido pelo UNICEF para a implantação do projeto por ter
assumido compromisso com a educação como meta estratégica de governo, por estar se
mobilizando para a realização de parcerias externas – tendo inclusive procurado o próprio
UNICEF para isto – além da sua importância na economia regional e influência sobre o
entorno, que lhe permitia ser um ponto multiplicador de iniciativas de implantação de
políticas sociais inovadoras.
A UNDIME foi indicada, por ser o fórum de dirigentes municipais de educação da Bahia que
tem, dentre outras, a atribuição de desenvolver e acompanhar programas locais, voltados
para a melhoria da qualidade do ensino e para a articulação dos âmbitos locais e regional
com o nacional. É uma das entidades integrantes do Conselho Nacional de Educação e do
Conselho de Acompanhamento e Fiscalização do Fundo de Valorização do Magistério.
Naquela época já participava de iniciativas nacionais importantes, a exemplo do PRASEM 49
junto aos secretários municipais de educação, realizadas pelo MEC – Projeto Nordeste em
parceria com o UNICEF e o Banco Mundial.
Não foi possível, porém, a realização das ações diretas do projeto da maneira extensiva que
se havia pensado, envolvendo 19 municípios. O UNICEF, que praticamente bancou o projeto
durante todo o primeiro ano não teve, naquele momento, disponibilidade de recursos para
realizá-lo integralmente como desejaria. A partir do segundo ano – 1998 - a Prefeitura de
Irecê assumiu o financiamento.
Dessa forma, o modelo foi mantido e desenvolvido em suas duas linhas principais apenas em
Irecê. E o município, de fato, comprovou e fortaleceu a sua vocação de liderança regional nas
políticas públicas educacionais, tanto que hoje é a sua Secretaria Municipal quem está
coordenando a implantação nas 19 cidades da região, os projetos de âmbito nacional –
oriundos do MEC - a exemplo do projeto de implantação dos PCNs (Parâmetros Curriculares
Nacionais) e do PROFA (Pró - Alfabetização).
49 O PRASEM – Programa de Assessoramento aos Secretários Municipais de Educação - desde 1997 realiza regularmente
seminários intensivos com palestras e oficinas, contemplando secretários municipais de educação de todo o Brasil, com
o objetivo de transmitir e discutir as novas bases da organização da educação nacional e capacitá-los para exercerem
papel de liderança na implementação das transformações previstas na legislação, bem como em programas nacionais
de melhoria da escola pública. Elabora e utiliza para os municípios um material didático de utilidade para gestores
educacionais, em forma de manuais e guias de orientação, destrinchando temas como orçamento, elaboração de plano
de carreira do magistério, criação de conselhos do FUNDEF, regimentos escolares, dentre outros.
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FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
4.2
Formação Permanente de Professores das Séries Iniciais do
Ensino Fundamental da Rede Municipal de Ensino de Irecê.
Descrição do Projeto, seu modelo50
Partimos da crença de que todo projeto e toda ação trazem implícita uma concepção ou
modelo. Ao se realizar contém também um potencial capaz de atuar sobre esse modelo,
alterando-o, relativizando-o, confirmando e/ou negando, no todo ou em parte, os seus
pressupostos. Assim, a cada vez que se implementa um projeto, abre-se a possibilidade de
enriquecê-lo, atualizá-lo, completá-lo. Uma descoberta, que supõe a realização de uma re –
flexão sobre o acontecido, uma retomada dos pressupostos anteriores ao fato e uma re-
visão, num constante ir e vir, ver, rever para ir além das aparências e compreender. A partir
dessa concepção fazemos a descrição do projeto na forma como ele foi aprovado em 1997,
considerando que, substancialmente, a experiência em Irecê o enriquece e confirma o
modelo adotado.
Dissemos que um dos segredos primários para superar o fracasso da escola parece ser
conjugar princípios de participação e solidariedade, em todos os níveis e relações.
A formação continuada em serviço desenvolvida em Irecê enfatiza a importância de
persegui-los. Convidamos o leitor a uma leitura investigativa desse modelo e da sua
execução em Irecê, desejando que, como propomos, possa ratificar essa afirmação,
enriquecê-la e estabelecer conexões que façam sentido na sua prática.
O desenvolvimento do projeto desde o início contemplou todos os alunos da alfabetização e
1a série, envolvendo diretamente todos os docentes atuantes nesses níveis. Inicialmente
este universo atingia 80 professores, ampliando-se para 160 no ano seguinte e atingindo
227 a partir de 1999, com inclusão do 2º ciclo do ensino fundamental e do segmento da
educação infantil. No primeiro ano não havia na Secretaria uma coordenação pedagógica
estruturada. Havia uma diretora da área pedagógica e uma diretora de convênios. Na
medida em que foi se formando a equipe de coordenação pedagógica da Secretaria, o
universo foi sendo ampliado, incluindo coordenadores, inicialmente apenas cinco (1997) e
no ano seguinte 18 (fim de 1998), número que se mantém até hoje (2002). A quantidade de
professores foi ampliada para 250, sendo 144 deles concursados (foram realizados 3
concursos públicos) e 9 professores leigos51. A quantidade de alunos beneficiados passou de
6.345 para 10.452 entre 1997 e 2000.
OBJETIVOS GERAIS
50 Conforme proposta apresentada e aprovada em 1997, constante do anexo I do relatório do mesmo ano
51 In Proposta Curricular da Rede Municipal de Ensino de Irecê, vol.I,dez. 2000
35
FORMANDO E
TRANSFORMANDO EM IRECÊ
OBJETIVOS ESPECÍFICOS
PRINCÍPIOS NORTEADORES
36
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
Metodologia
“O que move um professor a mudar é a reflexão da prática, embora ele custe a acreditar
que isso funcione (...) A teoria apenas não é suficiente, só funciona se, de fato, estiver muito
ligada à prática, servindo para iluminá-la e para voltar a ela através da própria prática”
52
(Thereza Marcílio)
52 In Mônica Martins – “Formar para (Trans)formar” – Monografia apresentada, como requisito para obtenção do título
de Especialista, ao Curso - “A Formação do Professor Alfabetizador: Leitura e Linguagem”, orientação –
Profa. Ângela Kleiman, (AVANTE/UNEB)
37
FORMANDO E
TRANSFORMANDO EM IRECÊ
38
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
6. Seminário Final
Objetivo - Avaliação do processo de capacitação
Educação Infantil
Em 1999 o trabalho se estende ao segmento da educação infantil, envolvendo todos os seus
professores e diretores. Começou-se por debater a função da educação infantil, tendo como
referência a nova Lei de Diretrizes e Bases, que especifica muito claramente a função
complementar, do atendimento integral e a função eminentemente educativa, rompendo
com a visão tradicional, assistencialista e determinando a responsabilidade dos municípios
em prover esse nível de ensino. Foram realizados seminários em dois módulos, cujos
objetivos principais - de debater e reconstruir com os educadores e gestores o seu conceito
de “educação infantil” e apontar para a criação de uma coordenação pedagógica específica
para o segmento na Secretaria Municipal de Educação - foram plenamente atingidos. Mais
uma vez, as falas dos participantes são testemunhos mais efetivos desse processo, que
embora tenha se fortalecido no ano III do projeto, com a realização dos seminários e a
estruturação de uma coordenação, desde o ano I é influenciado pelo contexto geral de
mudanças na educação pública de Irecê:
“O grupo cresceu muito na visão do que é educação infantil. Antes, a idéia que se tinha, até
97, era de que a criança vai para o infantil pra se alimentar, limpar as unhas, porque os pais
precisam trabalhar, uma visão muito assistencialista. Hoje, quando a gente vê crianças de 4 e 5
anos produzindo textos, gostando dos livros ... sabe que a criança não vai lá só pra comer, vai
para aprender ...54
39
FORMANDO E
TRANSFORMANDO EM IRECÊ
...”Lá em Irecê, como na grande maioria dos outros municípios, a educação infantil era
entendida de forma restrita, como função de assistência. Era um atendimento muito
pequeno, como é comum nos municípios e um atendimento basicamente feito pelo Estado,
nas classes de pré-escola, de 4 a 6 anos, e também por associações de moradores e órgãos
filantrópicos. Então a gente começou por estabelecer uma discussão a partir da análise da
legislação atual, que determina a educação infantil como uma responsabilidade da escola,
enfatizando o caráter educativo, e por se tratar de crianças pequenas tem que ser também um
atendimento associado às questões da saúde e assistência, mas a função é essencialmente
educativa. Na formação, além de trabalhar para construir o conceito, era nossa intenção
provocar a criação da coordenação da área na Secretaria, de modo a dar continuidade,
desenvolvendo uma capacitação continuada. Foi criada a coordenação e houve significativa
expansão do número de alunos de educação infantil. Como sabemos, o FUNDEF não cobre a
educação infantil e assim eles não tinham recursos para dar a devida prioridade a esse
segmento. Mas os encontros realizados foram muito proveitosos, havia uma mobilização dos
participantes, trabalhamos bastante os referenciais curriculares da educação infantil, tivemos
uma visão geral sobre a área: primeiro, uma visão legal, uma visão da história, o que tinha
acontecido e o que estava diferente agora, por que se chegou ao momento atual. Esses
referenciais teóricos devem ser tomados pelos educadores como parâmetros mesmo, de
estudo contínuo e sistemático. A criação da coordenação visava a continuidade desse
processo... Tem um detalhe: há algo de especial naquele povo, naquelas mulheres, uma
paixão pelo que fazem ... Encontrei em Irecê um terreno muito fértil, muito propício, é algo
diferente de outros municípios, um compromisso e envolvimento que facilitam a superação
das dificuldades. É uma cultura que desenvolveram, onde é muito forte a necessidade de
capacitação e aperfeiçoamento constante... Então, tentamos fortalecer a coordenação para
que assumisse esse papel que a consultoria assume de início –estabelecer uma rotina de
estudos, num programa de formação continuada. Não tenho acompanhado A existência
desse trabalho continuado de formação, nessa linha de implementação dos parâmetros com
o funcionamento da coordenação é um dos indicadores para avaliar a nossa intervenção na
55
educação infantil “...
“Entrei na educação infantil este ano e estou adorando. O problema inicial era o ensino
fundamental, o infantil era para as classes mais ricas. Hoje há de fato, na educação pública de
Irecê um apoio, uma força para a educação infantil que não havia antes. As reformas mesmo
na educação infantil foram dos seminários da Avante para cá e desde o ano passado começou
a haver capacitação regular da educação infantil”. Este ano (julho de 2001) está acontecendo
a capacitação regular dos professores da educação infantil. É regular, semanal, e se dá dentro
da realização do PROFA e do trabalho com os PCNs. Fizemos uma manhã de estudos há quinze
dias e elaboramos um projeto de leitura, escrita e criação que ainda está em rascunho. |Um
projeto de empreendimento para trabalhar até o final do ano, muitos ficaram com livrinho,
outros com reconto, outros com a parte de história infantil, outros com recriação da própria
historinha de vida deles ... São coisas que quem está fora da educação infantil não imagina
que as crianças de 4, 5, 6 anos são capazes de fazer. Cada dia a gente acredita mais que eles
55 Solange Leite – Formadora da Avante responsável pela coordenação do trabalho de formação dos educadores do
segmento da educação infantil realizado em Irecê (1999-2000).
40
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
4.3
Alguns aspectos importantes na realização das atividades regulares do
modelo de capacitação em serviço adotado
56 Leila, Josenai da Silva Vasconcelos, foi professora de da classe- laboratório da Escola Duque de Caxias em 1997.
Hoje é coordenadora.
57 No primeiro ano foram identificadas duas escolas-piloto para implementação do modelo de capacitação: as escolas
Duque de Caxias (Diretora Lirian Dourado, sala da Profa. Jane) e Nossa Senhora de Aparecida (Diretora Luzinete Libório
e Profa. Leila. Em 98, foi escolhida a escola Sinésia Caldeira (Diretora Odaléia Dourado, sala da Profa Valéria Lopes, em 99 –
Escola Padre Cícero – Diretora Orlaneide Malaquias e Profa. Márcia e em 2000 – Escola Marcondes Batista Félix –
Diretora Vilma e Profas Dilma Néris e. Marcicleide (1º e 2º ciclos)
41
FORMANDO E
TRANSFORMANDO EM IRECÊ
com a própria carne. Ressalvados os exageros, o exemplo é útil para compreendermos uma
característica importante que está implícita nesse modelo: não se trata, nos encontros com o
grupo, de expor um tema, escutar e discutir casos acontecidos em outras realidades, com os
quais aquele corpo de professores em formação não tem envolvimento direto. Por
conseqüência, a sua prática, se surgir como tema na discussão, aparece de forma secundária
e fragmentada. Pode ocorrer também uma atividade desse tipo mas, fundamentalmente,
nesses encontros trata-se das realidades dali, do cotidiano da sala de aula de Irecê, daquele
corpo de professores presente na formação.
O que se expõe e problematiza é a realidade vivida nas escolas locais – com a ajuda de
referenciais teóricos compartilhados desde o Seminário, e de um trabalho sistemático de
observação e registro (dos professores, dos coordenadores e do consultor); de
acompanhamento e planejamento conjunto. Expõe-se a prática – em todos os momentos da
sua construção, desde o planejamento, as hipóteses estabelecidas e sendo experimentadas
por um dos integrantes do grupo, expõe-se o que foi observado pelo consultor, pensado em
conjunto e transformado em situação didática, e por que foi escolhida aquela situação.
Apresenta-se e discute-se o que foi aprendido nos processos de ensino e de aprendizagem
(professor - alunos e professor – consultor). Dessa forma, no encontro geral – coordenado
pelo consultor - ampliam-se as chances de evitar a fragmentação e facilita-se o
conhecimento da seqüência do trabalho realizado, assegurando-se uma melhor
compreensão da integridade dos processos, com seus problemas, soluções e indagações.
O lugar do formador é de parceiro, co-construtor do trabalho, profissional que compartilha
a responsabilidade pela sua execução e tem a missão de contribuir para a conquista da
autonomia pelos integrantes da formação.
“...O desafio do formador é planejar boas estratégias de tematização, a partir de um modelo
de ensino que pressupõe uma problematização...” “...Este é, sem dúvida, o papel do
formador, instaurar o conflito, organizar um ambiente favorável à aprendizagem e criar
mecanismos para que a problematização, encarada como fonte de aprendizagem, se
transforme em conhecimento novo, construído em interação e nas relações estabelecidas
58
entre teoria e prática....”
Para cumprir essa missão não basta ao consultor saber transferir conhecimentos e técnicas
da sua especialidade. Ele deve ser capaz de favorecer a criação de ambientes onde se respire
e transpire a confiança, se estimule a valorização da liberdade, solidariedade e
responsabilidade; de estabelecer vínculos que proporcionem ao grupo e a cada pessoa a
construção de determinadas atitudes de relação consigo mesmo e com o outro, que
envolvem uma opção pessoal/profissional e uma escolha ética – marcada pela cooperação;
baseada no respeito mútuo, na capacidade de escutar e de observar, como condições para
intervir com pertinência, com adequação entre objetivos e situação concreta; de estar atento
às diferenças e saber valorizá-las, descobrir o acerto no erro, os conceitos nos pré-conceitos
58 Solange Leite – Formadora da Avante responsável pela coordenação do trabalho de formação dos educadores do
segmento da educação infantil realizado em Irecê (1999-2000).
42
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
(e vice-versa), enfim o implícito nas aparências. São capacidades que se adquire exercitando-
as e são construídas com a participação de todos. Tudo isto é importante para que o
professor desempenhe a sua função social, atento à complexidade da sua tarefa, enquanto
liderança, exemplo de autoridade que é para seus alunos, tenha ou não consciência disso.
No modelo, o formador e todos os participantes da capacitação são convocados a esse
exercício e o que finalmente interessa aos formadores (consultores) é construir a sua
substituição por uma equipe de coordenadores pedagógicos formados numa prática sócio-
construtivista.
Realizar este trabalho requer competências e habilidades que - além do conhecimento e
experiência com o instrumental teórico - lhe permitam proporcionar aos participantes
apropriar-se do seu “know how” de consultor e para isto problematizá-lo, dispor do seu
talento. É o próprio modelo que se quer transferir. A postura do consultor é bem diferente da
assumida pelo consultor especialista, que cumpre um papel também importante, mas de
natureza diferente. Seu compromisso se realiza ao problematizar e trazer informações
esclarecedoras de uma determinada área de conhecimento específico, sobre a qual detém
um saber singular porque a estuda, pesquisa e experimenta.
Na segunda parte deste livro, a formadora Mônica Samia descrevendo o modelo de
formação da Avante, destaca a importância dos seminários no processo de capacitação:
“embora o objetivo seja alinhar o grupo conceitualmente, a forma como os seminários são
organizados está ancorada nos pressupostos teóricos da formação ... não se trata de uma
exposição de conhecimentos, mas de situações que ajudem o professor a identificar quais as
teorias que sustentam sua prática, além, é claro, de ampliar seus conhecimentos... ... A
realização dos seminários incorpora a cultura do estudo na escola, estimula a formação dos
grupos de estudo, que ocorrem independente dos encontros de formação. Assim, o
princípio da formação para a autonomia se concretiza, na esperança de que cada vez mais o
professor possa apropriar-se dos saberes necessários à sua profissão, percebendo-os como
provisórios, e, portanto, necessitando de constante atualização...”.
As observações em sala, os registros escritos e o vídeo são instrumentos estratégicos de
apoio, fundamentais para realizar todo o trabalho e para o desempenho das funções dos
formadores no projeto. Os professores são estimulados a fazer o registro do seu cotidiano,
tentando problematizá-lo. As questões formuladas nesses registros são entregues ao
consultor, antes da reunião de capacitação. Esses instrumentos são matéria-prima da
produção de conhecimentos e do constante e criativo confronto dos referenciais teóricos
com os problemas do dia-a-dia da sala de aula. O professor é instigado a pensar sobre os
referenciais da sua própria prática e seu significado e a arriscar transformá-la, de forma
intencional e direcionada, realizando conscientemente suas improvisações e adaptações e,
nesse processo, vai recuperando a sua inventividade, errando e acertando, aprendendo.
Operar com as atividades do projeto, cumprindo a sua seqüência – construção de conceitos
compartilhados, experimentação da sua utilidade em processos reais de ensino e
aprendizagem, com observação, registro e avaliação resultantes de trocas conjuntas e
43
FORMANDO E
TRANSFORMANDO EM IRECÊ
44
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
com o fato de a escola sob sua direção estar sendo foco das nossas atenções. Os professores
refletiam bem o espírito da diretora, embora a insegurança frente ao novo, tão comum, não
tenha sido lá uma exceção. Todos se mostraram desestabilizados frente à nossa exposição
sobre o que vinha a ser o trabalho de capacitação que, na verdade, tem o propósito de criar
um espaço para estudo, discussão e análise da prática escolar, em intervalos periódicos de 15
dias, ao longo dos quais o consultor faz observações em sala, identifica o problema que
59
merecerá ser objeto de reflexão e análise, transformando-o numa situação didática....”
“O seminário inicial ajuda muito a instalar a discussão e mobilização no grupo. Os professores
saíram muito mexidos – porque, de fato, é uma concepção de ensino e de aprendizagem
muito diferente do que estava instaurado lá no município... A partir de um diagnóstico da
rede, propusemos e iniciamos o modelo de capacitação, escolhendo a escola-piloto, cuja
experiência seria multiplicada com todos os professores.. Inicialmente apenas 1º e 2º ciclos do
ensino fundamental e depois incluindo o 3º e 4º. A idéia era: já que não podíamos estar perto
de todos permanentemente, então estaríamos próximos de um grupo que implemente as
ações de mudança com mais rapidez e faça reflexões constantes com contrato didático,
construção de vínculos. Essa coisa da afetividade foi muito trabalhada para haver confiança e
respeito mútuos para que o professor abrisse as portas da sua sala de aula e se sentisse à
vontade para lidar com um 3º olho dentro de sua sala, o que inicialmente não é muito fácil e aí
60
é que foi um trabalho de muitas conquistas...”
“É difícil traduzir em palavras o que acontece com as pessoas com esse modelo, com a
experiência da classe-laboratório... Quando cheguei o terreno já estava preparado. Cheguei
com uma proposta de trabalho com professores de 1º e 2º ciclos na área de matemática e era
um desafio enorme porque os professores já tinham desde 97 o trabalho na área de língua.
Na escola Padre Cícero, a transformação foi muito grande com o trabalho de formação
continuada. O modelo é muito visceral, muito invasivo, extremamente desestabilizador...
Você entra na sala da professora e além de estar lá dentro, leva essa sala para mais 200
professores da rede assistir, então,se você pensar descontextualizadamente é muito invasivo,
mas traz para as pessoas uma possibilidade de realmente refletir sobre a prática e sobre uma
prática real, que é delas, não é de outra pessoa, de outra cidade ... porque a tematização da
prática, ela já é um modelo de formação e a gente sabe que tem muitos. ... mas em geral não
se discute tendo como centro a situação do cotidiano de uma sala de aula do grupo com toda
complexidade dela. Discute-se muito situações externas, que não fazem parte da história dos
professores dali, das escolas dali. Por isso a relação fica muito visceral porque todo mundo
começa a torcer muito porque aquilo faz parte da história delas, não se trata de analisar a
história do outro, é analisar a sua história. É você se ver fazendo história... ”61
59 Valéria de Felice – Formadora da Avante – Registro da situação observada durante três dias em permanência em Irecê
em abril de 1997, incluindo o Seminário Pedagógico inicial, visitas a escolas e entrevistas com diretoras.
60 Marília Dourado – consultora da Avante, responsável pela execução do projeto em Irecê. A coordenação era realizada
com Thereza Marcilio, a partir do estabelecimento de uma interlocução constante, onde eram definidos e planejados
os desdobramentos do trabalho. Thereza e Marília exerceram suas funções desde a implantação do projeto em 1997
até a sua conclusão em 2000.
61 Mônica Samia – também consultora da Avante. Integra a coordenação do trabalho em Irecê a partir de 1999,
quando inicia o acompanhamento à classe-piloto de Márcia, na Escola Padre Cícero.
45
FORMANDO E
TRANSFORMANDO EM IRECÊ
Continua Marília - ... Na maioria das vezes a classe escolhida como piloto era a que mais
desafiava, em que todos achavam que não era possível ter sucesso na educação por ter
situações bem adversas. Por exemplo, a 1a classe é a de Jane, que tinha meninos de 6 a 14
anos, na mesma sala, que era chamada classe de alfabetização – eles ainda tinham a
concepção de que precisava preparar os meninos para a entrada no ensino fundamental ... A
classe tinha índices de repetência e evasão altíssimos e não ficava na escola, ficava num
anexo, uma sala alugada no fundo de uma escolinha privada.... os alunos eram
discriminados, as professoras também.... Eram meninos rotulados porque na classe a maioria
estava fora da faixa. Então escolhemos essa turma pelo desafio, sabendo que era possível
fazer educação de qualidade, que é possível fazer os alunos aprenderem... percebemos que
eles podiam ser recolocados nos grupos, resgatando a auto-estima poderiam ir, não para uma
1a série mas para uma 2a ou 3a ...
Jane, a professora da classe-piloto em 97, era concursada e estava iniciando a sua carreira
profissional. Desde o início percebemos que ia funcionar bem no programa porque era muito
curiosa e questionadora, uma pessoa com muita vontade de aprender. Ao mesmo tempo
tinha uma história característica do povo da cidade, filha de feirantes, morou até os 16 anos
na zona rural e estava na cidade há pouco tempo... Nós planejávamos todo o processo de
ensino e aprendizagem em parceria. A professora é sempre apoiada pela equipe de
consultoria, no sentido de estar experimentando práticas pedagógicas na perspectiva
discutida com todos os professores.
Sobre a observação em sala de aula, registros dos professores, o encontro quinzenal com
todo o grupo:
A observação em sala era feita quinzenalmente. A professora previamente planejava uma
situação que considerasse, dentro de tudo que já vínhamos discutindo, de relevância e eu ia
para a sala de aula por duas horas, como um 3º olho. Em seguida sentávamos, por mais duas
horas e discutíamos desde as questões mais simples e periféricas até as mais centrais do
processo de ensino e aprendizagem: a postura dela, se era uma postura centralizadora,
autoritária, parceira, solidária, a atitude dos meninos, se começavam a arriscar, se se sentiam
encorajados para aprender ou se estavam temerosos e tímidos em relação ao objeto de
conhecimento, e a gente percebia, a cada encontro, que muita coisa precisava ser feita e
começávamos a idealizar e planejar os desdobramentos desse projeto. Em seguida tínhamos
um encontro com todos os professores da rede (a cada 15 dias), onde essa experiência ia ser
relatada e ia ser passado um vídeo com o planejamento da aula (que eu recebia em Salvador).
Eu fazia uma análise crítica da atividade e planejava o encontro com todos os professores que
estariam me esperando.... Nós começávamos o encontro com o filme, todos assistiam –
inclusive os de outros grupos, desejosos em discutir as transformações na educação ... As
professoras faziam registros escritos diários da prática delas, um registro reflexivo, não
meramente descritivo, onde analisavam criticamente a própria ação e nós dávamos uma
devolução por escrito para que cada vez elas se sentissem mais inseridas nesse contexto. ... Nós
falávamos para todos que a reflexão escrita era importante, porém, efetivamente, cobrávamos
apenas da sala laboratório e da escola-piloto, já que não tínhamos como ser interlocutoras de
todos os professores da rede, mas espontaneamente os professores faziam e queriam que nós
lêssemos e déssemos um retorno ao que eles estavam escrevendo e isto é muito interessante e
46
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
demonstra que se acreditava que era possível e que dependia de um esforço pessoal para que
a transformação ocorresse ... O objetivo dos registros era de que o professor, ao sair da sala de
aula, fizesse o registro, analisasse criticamente tudo que aconteceu, tentando perceber se, de
fato, ele estava criando boas situações de ensino e aprendizagem. Esse registro seria também
para elaborar o que seria desenvolvido. Tanto que os professores colocavam a produção do
aluno colada nos registros, analisando quando o aluno escreveu aquilo, que intervenção ele
fez. E aquilo era distribuído com todos. A professora da classe-laboratório tinha um apoio
diferenciado dos demais, mas a experiência dela era compartilhada com todos. Tanto a reflexão
que ela fazia como a devolução que eu fazia....
47
FORMANDO E
TRANSFORMANDO EM IRECÊ
É interessante ver que o trabalho tem um padrão, mas é como se esse padrão não se repetisse
e estivesse sendo revisto, questionado, reconstruído pelas pessoas a cada vez que ele
acontece. Isto porque o filme vai servir para disseminar e refletir uma prática dali. É diferente
de chegar com modelos de outras realidades e expor. Isto também pode ser rico, mas é outra
história, em termos da aproximação entre as pessoas e o objeto de conhecimento.
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FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
concepção de erro não se sustenta nesse modelo (e isso não é fácil mesmo). A riqueza do
modelo, que é “um padrão que não padroniza” vem justamente da possibilidade de
particularizar os temas da formação porque cada município tem a sua realidade e é essa
realidade que é analisada, então não tem como você dizer assim: Ah! mas isso não sou eu, eu
não faço parte disso, não tenho nada a ver com isso... porque quando você vê um outro vídeo e
aquilo não lhe agrada você desiste, mas nesse modelo fica mais difícil, mesmo que não seja
você o assunto que tá sendo filmado, mas você faz parte. A gente trabalha para construir um
sistema de rede e uma rede significa exatamente isso: o que uma faz repercute em todo o resto.
É interessante também ver a aprendizagem delas com os meninos. Porque a formação inicial do
professor o leva a centrar o foco no “o que dar” , “o que levar” para os meninos. E o distancia
do conhecimento didático, da estrutura da matéria e do conhecimento do sujeito, que eu
penso que é onde o professor é menos preparado porque, de alguma forma –
equivocadamente ou não – a formação inicial ajudou o professor a focar o ensino. Então,
mesmo que ele esteja equivocado, está preocupado com isso: “o que eu vou fazer?, como é
que eu vou fazer com que a criança aprenda? A grande questão do construtivismo é que o
professor descubra que esse foco no ensino não tem nenhum sentido se ele não usa este
conhecimento na aprendizagem. E esse é um desafio do formador. Mas isso causa muito
estranhamento nos professores... quando a gente diz assim: olha, nesses primeiros encontros
não vamos falar de ensino, só vamos falar de aprendizagem – como é que o sujeito aprende ...
o processo que eles passam até valorizarem esse conhecimento também não é um percurso
muito fácil não, porque a pergunta dos professores, normalmente é COMO? Não é POR QUE?“.
Nas entrevistas os professores referiram-se muito aos “por quês e para quês” cobrados pela
formadora Marília, e dizem que ficavam perdidos, inicialmente, mas reconhecem que era
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FORMANDO E
TRANSFORMANDO EM IRECÊ
necessário que fosse assim. Na mesma linha, a formadora Mônica refere-se às solicitações
insistentes sobre o “como fazer”:
“...É uma marca do trabalho, equilibrar os conteúdos de aprendizagem E às vezes chega a ser
irritante porque eles dizem assim:” mas a Avante não dá os ”comos” ... Dá, mas não tem um
como – padrão, fechadinho, que sirva para toda situação. Não existe pronto e acabado, não há
uma receita, eles têm que construir com nossa ajuda ... Então, esse movimento focado na
aprendizagem, “como é que meu aluno aprende a língua, a matemática?, como é que ele
aprende a ser investigador? E a partir daí, entender como ele aprende, pensar como é então
que se vai ensinar, .isso leva um tempo para ser aprendido. No decorrer do processo eles
aprendem a valorizar porque começam a perceber que muitas vezes estavam remando contra a
maré, contra a correnteza, um barco que estava indo contra a natureza do conhecimento por
parte do sujeito e que é por isso também que tem tanta repetência, tanto fracasso. Porque o
menino tem uma estrutura cognitiva e muitas vezes o professor vai num movimento que é
contrário a ela ... porque tem muito pouco tempo que a escola se pergunta como é que o
sujeito aprende, não é?... Então esse movimento, de tornar-se construtivista, querer conhecer o
sujeito em 1º lugar, supõe uma mudança de atitude, de mentalidade, e do próprio olhar de
cada um para a criança.... e sentir que o erro dela está me dizendo”. alguma”. coisa que ele
pensa, entender e valorizar o erro como um ato inteligente ... quando o professor descobre
isso, quer seja nele, quer seja nos alunos, aí o caminho está aberto. O resto é conseqüência ...
Sobre essa percepção do erro é interessante observar um fenômeno que comumente ocorre.
Na relação com crianças pequeninas, em geral se tem a atitude referida, de valorização do
erro como um ato inteligente. É o que se observa quando uma criança começa a levantar ou a
dar um passo e cai. O que se destaca nesse gesto é o avanço: “ela levantou”, “ela andou”.
Valoriza-se o progresso da criança. Mas quando ela começa a ter mais autonomia, essa
atitude se modifica. Também quando começam a falar, como observa Mônica:
“Quando são bebês e começam a falar tudo “errado”, a gente só vê os acertos .. E o modelo de
formação ajuda muito o professor a se ver no lugar de quando ele erra, ele aprende, quando ele
erra, ele pensa, ele fez um esforço e, apesar de todo o esforço feito, errou ... Que bom que as
pessoas reconhecem que isso é natural e quando transferem para a sua compreensão dos
alunos ... Mas isso não é uma coisa muito simples. Teoricamente é muito bonito (e
praticamente mais ainda) mas não é fácil e leva tempo para isso acontecer porque a matriz da
gente é um negócio de louco ... porque não é uma matriz só profissional, é de natureza social
e a sociedade não aceita o erro. Se fosse só profissional talvez fosse menos complexa ... Então,
monitorar esse processo como formadora é mesmo um desafio enorme.
Participar como professora não parece ser um desafio menor. Nas entrevistas realizadas todas
as professoras sintetizam os momentos iniciais usando expressões como “insegurança“,
“incerteza” “desestruturação”, “perda do chão”, “desequilíbrio”, “acho que não vou dar
conta”, “nada do que aprendi me serve mais”, “angústia” “ansiedade” e termos semelhantes,
revelando a vivência de profundos questionamentos. Isto é generalizado nas falas. Em
alguns casos, estendem à vida pessoal, às relações com filhos, companheiros, família. Todos
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FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
nós já vivemos situações novas em que nos sentimos desafiados a transformar algo na vida
profissional ou pessoal, diante das quais vivemos sentimentos semelhantes que nos deixaram
mais inseguros, ansiosos, tensos, situações estas que superamos nos adaptando ou das
quais fugimos.
Acredito que está aí o maior desafio enfrentado pelos professores que, como adultos, são uma
construção sólida, cimentada com fragmentos da sua própria história, não podendo ser
demolidos e erguidos de novo, usando outra argamassa. A “substituição” dos fragmentos que
os sustentam deve ser feita paulatinamente, por outros que também passem a fazer parte da
sua história, através da formação continuada. Uma “substituição que considere a estrutura de
cada professor e, assim, estrategicamente, começar ”trocando” aqueles fragmentos que
apesar de deixá-los bambos, confusos e até desequilibrados garantam-lhes continuar de pé,
descobrindo-se como professores – aprendizes.
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FORMANDO E
TRANSFORMANDO EM IRECÊ
Professores
Nas entrevistas, os professores unanimemente revelam esse sentimento de
desequilíbrio no início do processo da formação continuada, mas também associam
sempre este sentimento a descobertas e transformações relevantes nas suas vidas:
“...Desde criança eu percebi que a minha vocação era ser professora. Estudei para isto com muita
dificuldade. Estudei aqui mesmo, nasci e morei sempre no mesmo povoado e vinha pra escola a
pé todo dia. Sou filha de lavrador, de agricultura sequeira, aquela que não é irrigada, depende da
chuva, então isso já vinha dentro de mim. Só que aprendi, até me formar, receber meu diploma,
que iss o é muito pouco e depois das capacitações, das discussões com os colegas, aí eu vi que a
gente começou a crescer muito, a mudar a nossa prática. A gente achava que as crianças
precisavam saber ler e escrever e viu que a nossa missão é muito maior e hoje eu acho que essa
missão é maior ainda, cada vez que a gente vai aprendendo, vai aumentando a nossa
expectativa... Em 97 foi muito difícil, mas eu diria que foi muito valioso porque aprendi muito...”.
(Professora Jane Machado – Escola Duque de Caxias –
Professora da sala laboratório, depois Coordenadora Pedagógica).
Sou professora desde 95, quando eu estagiei e continuei trabalhando. Hoje eu trabalho com o
grupo de 10 anos mas comecei com o grupo de seis anos A proposta da gente já era
construtivista, mas era aquele construtivismo que a gente não sabia bem o que fazer, aquela
coisa misturada em que acabávamos fazendo muito do tradicional e errando muito, e a partir
de 97 o município começou a mudar em termos de educação e nós fomos capacitadas
regularmente e começamos a refletir a nossa prática e tentar mudar. Foi muito difícil porque em
97 a gente achou que tinha desaprendido tudo o que sabia, que não sabia mais nada, estava
todo mundo baratinado, não sabia o que era certo, o que era errado, ficou aquela confusão na
nossa cabeça mas, aos poucos fomos conseguindo adaptar. Entendemos que a gente estava
aprendendo de novo a forma de trabalhar com as crianças ...
(Professora Jussara Sena Bezerra –
Escola Povoado de Meia Hora).
...”Comecei a ficar desequilibrada. (Pensava) o que eu estou fazendo não tá certo, mas como é
que vou fazer o certo?. Comecei a pensar muito no que fazia. Meu Deus do Céu, TUDO tem um
por que e um para que. Tive muita ansiedade. Depois fui colocando em ordem e participava
com muita alegria. Hoje penso que se a gente não tivesse trilhado esse caminho junto na
formação, as coisas não estariam como estão, com a autonomia que a gente tem. Estamos
fazendo capacitação semanal com todos os professores do infantil e 2º ciclo, ligada ao PROFA e
aos Parâmetros Curriculares, mas acho que isso só foi possível porque a gente trilhou esse
caminho. O grupo cresceu muito. Antes, a idéia que se tinha da educação infantil era muito
assistencialista: a criança da escola pública só ia pra escola pra se alimentar e coisas assim...
Hoje a gente vê crianças de 4,5 anos produzindo texto, lendo, apontando com o dedinho. É
muito legal e ainda temos muito que aprender mas aprendemos muito até aqui e acho que isso
se iniciou com esse trabalhão....”
(Madalena – Professora desde 1997, hoje Coordenadora Pedagógica da
Secretaria Municipal de Educação – julho de 2001)
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FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
“Para a gente foi um choque grande. Foi uma coisa muito nova porque estávamos
acostumadas a trabalhar com o livro didático, em cima dele, só fazia o que o livro propunha.
Surgiu a necessidade de trabalhar com a realidade do aluno que o livro não oferecia. Ninguém
sabia fazer projeto. A Avante nos encorajou e fizemos projetos para trabalhar a realidade do
aluno do nosso povoado, do município e sentimos como era mais fácil, a turma se envolvia....
Hoje, eu te diria que não sei trabalhar mais só com livro didático. Tá longe da nossa realidade. A
gente vai engatilhando, sabendo que não é o livro didático que vai nos dizer por onde ir, e vai
confiando nos alunos e na comunidade e vai perdendo o medo de errar. Hoje a gente passa o
trabalho para os povoados vizinhos (4 ou 5 povoados próximos), toda semana a gente
encontra um dia e planeja junto”
(Sinelândia, professora da rede, desde 1997,
da Escola José Francisco Nunes – povoado de Itapicuru –
entrevista, julho de 2001)
“Comecei em 98 o trabalho na rede, logo que concluí o 2º grau. Estou na Marcondes Batista
Félix desde 98. Esse projeto para mim marcou porque tudo de mais importante que eu sei de
sala de aula começa nele. Foi o pontapé inicial na minha formação. No início era muito difícil,
muito diferente do que eu tinha aprendido na minha cidade (João Dourado). Aqui comecei a
questionar coisas que eu tinha dificuldade em sala de aula, a me expor, tirar minhas dúvidas
sobre como tratar determinadas questões, o que fazer para melhorar. Marília nos deixava muito
à vontade. Na questão do planejamento, por exemplo, antes, eu não planejava, fazia uma
listagem do que eu queria passar, tal dia eu vou passar isso, isso e isso, eu listava os conteúdos e
com a capacitação a gente aprendeu a estar pensando: se eu vou propor atividade, para que
quero, por que eu vou fazer isso, qual a melhor maneira de trabalhar isso com meus alunos. Foi
clareando, começamos a perceber a importância de planejar, e hoje eu chego na sala de aula
segura do que quero, como intervir com meus alunos. Quando eu aceitei ser professora de
classe laboratório, eu não imaginava que ia aprender tanto. Não consigo mais pegar um
caderno e fazer uma listagem de conteúdos. Só serve se eu fizer: objetivo, conteúdo,
procedimento, atitude, desenvolvimento, tudo e envolvendo todas as disciplinas Leva tempo
mas é indispensável e facilita o trabalho. Eu me sinto muito segura ao chegar na sala sabendo o
que quero com cada momento, cada atividade, cada disciplina, saber que intervenção fazer,
antecipar a intervenção e acrescentar na hora o que houver necessidade. Acho que um
professor deve estar sempre preocupado com as questões que surgem dos alunos e
principalmente tratar todos de maneira igual, ter as mesmas atitudes com todos, e ter a atitude
deles como prioridade também.... no planejamento, penso: qual vai ser a atitude de meus
alunos diante de tal atividade que quero propor? E diante de determinados conflitos que
surgem entre colegas? Qual deve ser a minha atitude com eles para não ser injusta? Eu me
preocupo muito em estabelecer relações de forma justa com todos. Às vezes eu estou dando
uma aula e surge alguma coisa que eu acho assim, uma injustiça. Eu paro e converso sobre
atitudes e trabalho com eles sobre direitos e deveres, sempre. Eu fazia muita carta para Marília.
A avaliação também: antes era prova e nota, hoje a gente sabe que o menino não pode ser
avaliado pela nota que tira num dia de prova. Sabe que a avaliação é um processo contínuo,
que toda atividade que eu dou para meu aluno, eu estou avaliando, diariamente. Comecei a
fazer relatórios diários que eu enviava para a Secretaria, que mandava para a Avante. Contava
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FORMANDO E
TRANSFORMANDO EM IRECÊ
tudo que tinha acontecido, tirava minhas dúvidas, pedia socorro quando necessário e Mônica,
que me acompanhava na classe-laboratório era uma parceira, não uma supervisora, uma
companheira. Desde o 1º dia era como se eu já a conhecesse há muito tempo ... Houve
mudança enorme na turma. Meninos assim, que eu achava impossível... pensava: não vou
conseguir colocar eles nem pra sentar e eles não vão aprender nem as letras, e todos
terminaram o ano lendo, todos aprovados e uma coisa nova foi trabalhar com projetos. Eu não
sabia e Mônica e Marília começaram a fazer projetos na escola e ir ensinando a gente a
trabalhar com projetos. Fizemos alguns bons projetos durante o ano, alguns envolvendo a
escola toda e a sociedade...
(Professora Dilma – Escola Marcondes Batista Félix –
profa da sala-laboratório 1º ciclo em 2000).
Iniciei com 18 anos, numa escolinha particular, em América Dourada, minha terra, dando
banca, mas me sentia perdida porque não tinha ninguém pra discutir, pra orientar, não tinha
material, faltava muita coisa pra ter sucesso. Vim para a rede e trabalhei no Acelera em 97 e 98.
Em 2000 fui ser professora da sala laboratório.... No início eu ficava muito insegura ... Meu
Deus, como é que eu vou fazer uma filmagem, se os meninos não participam? Só eu que vou
falar? ... Mas foi um trabalho que me norteou muito ...
Entrevistadora – O que é que você acha importante para que os meninos falem ? Acho que
esta é uma situação vivida por milhões de professoras ...
Professora – Primeiro é dar oportunidade para que eles falem o que querem, da forma deles,
seja o que for, não julgar, e observar. Depois, a gente vai trabalhando a partir daquilo que eles
trazem. Foi assim que consegui. Levantar o conhecimento prévio dos alunos é muito
importante na sala de aula porque tem uns muito tímidos. No início só de olhar pra eles, eles
desviavam o olhar. Depois começaram a falar mesmo, dar opinião. No fim brigavam para um
falar primeiro que o outro e ainda reclamavam porque eu não deixava que falassem ao mesmo
tempo. Foi uma alegria enorme. É muito emocionante esse trabalho, influenciou muito minha
formação e um dos pontos principais foi o incentivo à leitura. Eu não tinha o prazer, que tenho
hoje, de ler, pesquisar coisas novas pra levar pra sala. Isso mudou. Meu material da formação
hoje está todo junto de minha cabeceira...
(Marcicleide – professora da Rede desde 1997 e da
sala-laboratório na Escola Marcondes Batista Félix no ano de2000)
“Eu, como professora tive uma experiência muito forte na minha vida, quando começou esse
trabalho em Irecê e eu pude ver o que é realmente ensinar, o que é aprendizagem... Quando
recordo de tudo que fiz como professora da sala laboratório (em 99), sinto saudade. Foi o
processo em que mais aprendi. Meus alunos hoje têm vontade de aprender, são letrados, tem
alguns que já estão na 4a série e outros, pelo avanço que apresentaram, foram para a 5a e eu
vejo o quanto aprenderam. Na minha prática hoje eu vejo a diferença de quem quer mudar, e
recorro aos projetos, aos textos, à biblioteca, trabalho com textos diversificados. Antes da
capacitação a gente trabalhava com um texto só pra todo mundo porque a gente não tinha a
rotina de leitura do professor e do aluno. Achávamos que o livro-didático era o suporte maior ...
Em relação à matemática também, aquelas continhas decorebas ... não é nada disso. A gente
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FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
aprendeu que tem que extrair da vivência do aluno, através de situações reais”. Aprendemos a
aproveitar a situação que eles vivem para trabalhar a matemática. Eles manuseiam dinheiro,
tem uns que vendem coisas ... Antes a gente planejava anualmente. Fazia aqueles objetivos
anuais e entregava. Achava que o aluno ia aprender com a cartilha, silabando, daquele jeito.
Achávamos que estava certo, mas não estava. Por exemplo, num projeto, a gente envolvia toda
a escola e trabalhava o tema o mês todo como nas datas comemorativas, mas não levava em
conta a aprendizagem, ou a competência das crianças, os conteúdos da aprendizagem,
procedimentais, atitudinais. Não fazíamos a seleção. Achava que com aquilo ali, misturando
tudo, a criança ia aprender de qualquer jeito ... Hoje como professora me sinto realizada. No
início tive momentos de muita ansiedade e de choro, mas quando alguém estende a mão pra
você e você toca e retribui, é sinal de uma aliança, muito forte, baseada na confiança. Foi o que
faltava na minha vida profissional. Vou levar pra toda a vida”
(Márcia Bartira Rodrigues – Professora da Escola
Padre Cícero e da sala-laboratório em 1999)
“A minha trajetória foi cheia de transformações significativas nesse trabalho porque antes dele
eu não tinha tanta autonomia assim, como tenho hoje no município de Irecê. Mudei bastante,
profissionalmente. Não tinha conhecimento, como tenho hoje, de me importar com a
aprendizagem dos alunos, em saber como eles pensam. Eu não valorizava tanto o que eles
pensam e falam. Acho que pensava mais em mim. Não me importava com o planejamento
como me importo hoje, desde 97, quando começou esse trabalho. Havia uma alegria, um
espírito de mudança na nossa formadora, que eu abracei sinceramente. O ensino brasileiro
mudando e, nós em Irecê, estávamos parados no tempo... Eu gosto de ensinar, ver a criança
crescer, sair da fase da garatuja até chegar à alfabética. Quero ser professora eternamente ...”.
(Gleivia Rodrigues, professora da rede desde 1997 da Escola
Padre Cícero e hoje diretora da Escola “Nossa Infância”)
“...Nós aprendemos muito. Saí do município, mas sinto muito quando vejo um professor
perdido. Precisam de uma assessoria mais constante. A gente cresceu foi assim: tendo idéia,
sentando, discutindo, errando, acertando, reunião de planejamento com a coordenação
fazendo aquele trabalho até exaustivo com o professor, seus relatórios, trocando idéias, dando
e ouvindo sugestões sobre o que ta acontecendo na sala...”.
(Maria Rita – foi professora da rede municipal.
Hoje ensina em uma instituição privada de tempo integral)
Aluno
Reproduzimos um trecho maior da entrevista com aquele aluno63 que, no primeiro capítulo,
descreve um castigo que recebeu na escola. Ednaldo que, com 16 anos, em 1997, engraxava
sapatos e era repetente contumaz, participou do projeto Acelera Brasil, estagiou na COELBA64,
63 Ednaldo Moraes Ferreira – entrou no Acelera em 1997, repetente da 3a série, com 16 anos em auto-avaliação, 1997
64 Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia
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FORMANDO E
TRANSFORMANDO EM IRECÊ
Perguntado sobre o que acha que um professor deve/não deve fazer, a sua resposta expressa
um discernimento singular, dando idéia de uma trajetória de reflexão entre o sentido (vivido)
e o pensado, sobre o conhecimento e as relações entre professor e alunos:
...É chegar dentro de uma sala de aula e dar um assunto como se ele fosse o único dono da
verdade daquele assunto. Ele tem que saber o que é que esse assunto vai desenvolver no
pensamento do aluno. Não deve entregar o assunto e falar que é pra prova, sem explicar...
porque eu leio a apostila, mas preciso da explicação do professor, que está mais por dentro. Ele
tem que ver o nosso lado e não só o dele, aí o professor passa a complicar o aluno porque dessa
forma ele não vai aprender mesmo ... eu acho que isso deve ser bem cuidado na sala de aula.
Primeiro tem que ver o assunto junto, desenvolver o pensamento pra depois pensar em fazer
uma prova... Se o professor não vê o aluno, que ele tá ali naquele canto, só conversando com os
colegas, se não dá uma força e só quer dar as ordens, o aluno não se interessa, fica no canto e
não aprende ... Esse é um conhecimento simples que o professor pode ter para dar sua aula...”
Coordenadores Pedagógicos
Nos relatórios encaminhados regularmente à consultora-formadora, os coordenadores
pedagógicos registram seus desafios, suas dificuldades, e caminhos encontrados para
superá-las. Lembramos que a coordenação pedagógica da Secretaria de Educação do
Município foi se formando aos poucos, conseguindo-se ter uma equipe com 18 integrantes
no fim do ano de 1998,, que se mantém. A formação desse grupo tem em mira a construção
da saída das consultoras formadoras. É ele quem vai assumir o papel de consultoria, exercido
pela Avante durante os 4 anos, até a conclusão do projeto: acompanhar e apoiar a prática do
professor, realizando boas intervenções.
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FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
São marcantes nesses relatos manuscritos (em formulário padronizado), a crença no trabalho
que desenvolvem, a vontade e empenho em aprofundar os conhecimentos e aperfeiçoar-se
no exercício da função de consultor. Como já vimos, as coordenadoras foram escolhidas
entre participantes do processo de capacitação em serviço, que apresentavam experiência de
sala de aula, destacado comprometimento com a filosofia adotada e com as ações para a
conquista do sucesso dos alunos da escola pública de Irecê, além de um forte desejo de
aprender, aprender sempre.
Alguns trechos de relatórios das coordenadoras, que trazem problemas, soluções propostas,
e deixam implícitos alguns conteúdos e indagações da rotina de trabalho com as professoras:
“A cada dia que passa, sinto que o trabalho de um coordenador não é nada fácil. A caminhada
tem sido árdua e a necessidade de encontrar soluções para as dificuldades é constante e
angustiante “. Nos momentos de planejamento com os professores tenho percebido que
alguns ainda resistem muito às mudanças, talvez por insegurança ou mesmo por não
acreditarem que funcione, que vale a pena mudar e também pelo comodismo (sinto essa
dificuldade mais com o 3º e 4º ciclos). Como chegar até eles é o meu dilema do momento
porque sinto que não há mudança, se o professor não está disposto a colocá-la em prática...
Uma dificuldade muito grande que estou tendo na (escola) Tenente Wilson é sobre como
ajudar uma professora a motivar seus alunos de 4a. série, grupo 10, que tem alunos de até 17
anos, que já fizeram parte das classes de aceleração, mas ainda apresentam dificuldades na
leitura e na escrita. Observando os alunos, percebo que primeiro é preciso fazer com que os
mesmos se interessem pela escola, queiram ficar na sala de aula, para que sintam o desejo de
sanar suas dificuldades e aceitem a ajuda da professora. Para conseguir isso, estamos pensando
em trabalhar com teatro e a professora de arte do 3º e 4º ciclos vai trabalhar com esses alunos,
frisando um ponto-chave que é a questão da auto-estima. Não sei se é a forma correta, mas
acredito e desejo muito que possa funcionar. Gostaria de outras sugestões para que possa
auxiliar melhor esta professora...
No último planejamento com as professoras, trabalhamos sobre a avaliação, que deve ser
constante no processo de ensino e aprendizagem. E elaborar uma avaliação escrita é motivo de
muitas dúvidas, principalmente quanto ao enunciado das questões, o que pode e o que não
pode ser utilizado. Um outro ponto é a correção das avaliações. Que leitura pode nos orientar
melhor nesse sentido? Um forte abraço.
(Eliete Gomes dos Santos – “Relatório da Coordenadora” –
referente às Escolas Tenente Wilson e Luiz Mário – 11.04.00)
“...Enquanto não tivermos uma escola bem estruturada e de tempo integral, a ansiedade e o
stress serão nossos companheiros. Sei que é preciso um certo nível de stress para produzirmos,
mas quando ultrapassa certos limites, a produção deixa de ser saudável. ... É humanamente
impossível coordenar 3 escolas em localidades diversas atendendo desde a educação infantil ao
ensino fundamental – do 1º ao 4º ciclos... não faz Parte do meu imaginário. Sou uma
professora muito preocupada e comprometida com a qualidade da escola pública e é por isso
que, apesar do mísero salário, dedico-lhe a minha vida.. Como diz o poeta francês Jean Louis, o
domínio do tempo, na verdade, é o domínio de nós mesmos em relação ao tempo. Quando
falamos de tempo queremos dizer vida. Mas, o que fazer? Você sabe que não sou perfil de
“fazer de conta que trabalha” ...
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FORMANDO E
TRANSFORMANDO EM IRECÊ
didáticas, registrando algumas atividades em cada eixo. Foi solicitado também que tentassem
fazer, apoiando-se nos modelos apresentados, um projeto, e na medida do possível seriam
feitos os ajustes necessários com minha ajuda ou até mesmo da equipe de coordenação.
Lembrei que o projeto deveria partir de um problema real da turma. Apenas um professor fez o
projeto e conseguiu fechar o plano semanal. Constatamos a importância da pedagogia por
projeto para a organização do trabalho didático e encaminhamos a produção do projeto como
condição indispensável para o próximo planejamento. Essa reunião teve a duração de 8 horas e
foi positiva em dois momentos: o primeiro, reflexão teórica e apresentação do mesmo
seminário apresentado em Itapicuru, sobre o qual já fiz o relato, anteriormente; o segundo
momento, planejamento dos professores por grupos, onde cada grupo tinha um líder.
O próximo planejamento será em Achado no dia 13.04. O anterior foi 30.03.
Itapicuru (3º e 4º ciclos) é o meu grande desafio. Apesar de terem “acordado”, os professores
precisam construir muitos esquemas referentes aos conteúdos da matéria que ensinam e dos
pressupostos teórico-metodológicos adotados pela rede. O desafio é grande e é pór isso que
quero, como já lhe disse, dedicar-me somente a esse segmento de ensino (3º e 4º ciclos)...
Ao ler o livro de Fernando Hernandez – “A Organização do Currículo por Projeto” – fiquei
maravilhada e cheia de dúvidas pois existem pontos que não consegui dar conta e acredito que
é uma ótima forma (apesar de complexa) de organização do trabalho didático dos 3º e 4º ciclos.
Oportunizei aos professores a xerox do capítulo VII - “Os Projetos e o processo de Tomada de
Decisão: quatro exemplos de projeto, quatro exemplos de problemas”, pedi que lessem,
refletissem e pensassem na possibilidade de realização de um, partindo de um problema real e
atual, orientando-se pelos eixos organizadores da área de conhecimento que ensinam...
Marquei um seminário do capítulo V – “Os projetos de trabalho: uma forma de organizar os
conhecimentos escolares”. Neste capítulo o autor apresenta algumas reflexões acerca do
ensino globalizado e dos aspectos a serem levados em conta no desenvolvimento de um
projeto: a escolha do tema, a atividade do docente após a escolha do projeto, a atividade do
aluno após a escolha do projeto, a busca das fontes de informações, o índice como uma
estratégia de aprendizagem e a realização do dossiê de síntese. Sei que é muita ousadia essa
metodologia para nossos professores, mas a minha maneira “Fernão Capello Gaivota” de ser é
o meu combustível. A propósito, você conhece alguma escola em Salvador que trabalhe com o
referencial metodológico de Hernández? Aguardo com ansiedade o retorno da Avante, pois
acredito que esse ano será de muitas sínteses (esta palavra é a minha cara, você não acha?),
apesar de ser um ano político, pois a equipe está mais madura e autônoma”.
(Relatório da Coordenadora – 05.04.00 - Maryl)
58
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
“...O fato de estar atendendo a 3 escolas de educação infantil, o tempo para estar com as
professoras tem sido cada vez mais curto. Apesar de ter alguns professores que têm maior
autonomia, há outros que precisam de maior apoio ... o tempo que ficamos juntos tem sido
muito proveitoso. Muitos avanços têm acontecido. ..
Gostaria de receber orientações para distribuição das áreas de conhecimento na carga horária
de educação infantil para elaboração da rotina do professor...
(Madalena Damasceno Pereira – Escola de Educação Infantil – 12.04.00)
“...Hoje foi a vez de Débora, grupo 9. Ela preferiu matemática e, como ainda não sabia das
hipóteses dos meninos a respeito dos números, planejamos avaliação diagnóstica com ditado
de números. Ela achou pouco, então planejamos um jogo de baralho (leitura) e uma pesquisa
dos números das casas deles e dos vizinhos... Apesar de Mônica dizer que algumas atividades
podem ser feitas de forma descontextualizada, eu fico preocupada...Tenho tantas dúvidas,
preciso urgentemente de orientações, quer seja via consultoria, quer seja PCN, Zabala, César
Coll, Delia Lerner, etc. Ainda tenho tanta coisa para relatar, mas o cansaço apresenta sinais de
força e por isso preciso parar para logo mais prosseguir na busca de conhecimentos que
alimentem a mim, às professoras, às crianças e às demais pessoas que, direta ou indiretamente,
fazem parte da escola, para lutarmos contra um gigante chamada desigualdade...”.
...Hoje fizemos o planejamento que marcamos na quinta-feira passada. Nele estavam
presentes todas as professoras, exceto a do grupo 10 vespertino. Discutimos como seria a
dinâmica e decidimos fazer o registro ... para avançarmos nas discussões e analisarmos a
prática ... Para iniciar li um texto – Reflexão sobre Ser Pessoa. Fiz esta escolha por achar que o
grupo anda com a auto-estima em baixa. Houve poucos comentários sobre o assunto Em
seguida avaliamos a semana e percebemos que alguns objetivos não foram alcançados, porém
a “culpa” ainda estava localizada no aluno. Como eu tinha levado para estudo um texto – “Por
que fazer planejamento?” achei que a resposta para essa questão poderia vir durante a leitura e
59
FORMANDO E
TRANSFORMANDO EM IRECÊ
discussão do mesmo. Fiquei observando a reação delas durante a leitura. Por algum tempo, o
silêncio tomou conta da sala, mas depois começaram a dar opiniões, cada uma queria falar
sobre o assunto. Depois de darem e ouvirem opiniões mencionaram o desejo de sistematizar
um planejamento. Eu voltei ao assunto da semana anterior e, felizmente elas deslocaram a
“culpa” do aluno. Como o tempo era pouco, resolvemos fazer uma rotina de leitura e escrita
que fosse significativa para o aluno. Discutimos também sobre a diversidade textual na sala e
sobre os gêneros propostos para cada ciclo.
... Após saírem as outras professoras, fiquei com Dilma, que preferiu planejar a área de
matemática. Disse que o seu objetivo era que os meninos aprendessem a ler e escrever
números e resolver problemas, usando o cálculo mental. Ao selecionar os conteúdos percebi
que ela ainda tem muita dúvida. Não consegue selecionar (ainda) quais os que estão na esfera
do saber, do saber fazer e do ser. Às vezes fico pensando, será que isto já está resolvido para
mim? Será que as explicações que eu estou dando estão claras? Num outro momento esta
professora chamou-me para fazer um planejamento diário. Observei que a rotina que fizemos
já estava presente no início do seu planejamento. Ela demonstrou preocupação com três tipos
de conteúdos. A aula era escrever uma carta para os alunos de Queimadas do Floriano, pedindo
uma receita de sabão para matar piolho, sendo esta uma das atividades do projeto sobre piolho
e uma outra atividade era um jogo de boliche com o mesmo objetivo. Sugeri à professora que
propusesse tal atividade aos meninos e meninas, mostrando para quê e como fazer, a fim de
tornarem-se sujeitos de sua própria aprendizagem Discutimos e elaboramos as consignas, bem
como o desenvolvimento das aulas e as formas de avaliar. Ao terminar ela estava quase
convencida de que o planejamento é responsável pelo sucesso e pelo insucesso das aulas...
A professora Marcicleide disse que gostaria de fazer um planejamento sobre questões
ortográficas – r e rr. Usamos como subsídio uma apostila que mostra as etapas69 desse trabalho.
Interrompemos várias vezes para tirar dúvidas. Ao aproximar do final da sistematização, a
professora disse estar surpresa com a complexidade de um trabalho que antes parecia tão
simples. Mais uma vez me questiono: será que estou respeitando as zonas de desenvolvimento
das professoras? Será que o grau de aprofundamento dado às questões está adequado ao grau
de capacidade de compreensão? Será que o meu conhecimento está adequado ás necessidades
da escola? No final do dia, ao refletir sobre as ações, percebo que exercitei muito mais a fala do
que a escuta. No dia seguinte peço para questionarem as minhas perguntas e explicações,
explicitarem suas idéias, mas o resultado não é nada satisfatório e isso me angustia ainda mais.
Ontem uma professora pediu para sair da escola e novamente eu me perguntei: qual foi o
tamanho do desequilíbrio que eu causei nessa pessoa? Até que ponto eu fui guia e orientadora
para ela? Será que não priorizei os conceitos e me esqueci das atitudes e procedimentos?
Necessito de orientação semanalmente, apesar de contar com o apoio da equipe.
Acreditando que o conhecimento se dá por aproximações sucessivas e que toda pessoa é
passível de aprendizagem, espero conseguir alcançar as metas estabelecidas no início desta
missão”. São Gabriel, 11 de abril de 2000.
(Coordenadora Edileuza Silva Rocha - 28.03 e 11.04.00 respectivamente)
60
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
4.4
Alguns aspectos importantes na realização das atividades regulares do
modelo adotado para capacitação dos gestores
“...O trabalho nas escolas da rede deve estar alicerçado nos princípios da vida cooperativa
e da gestão participativa, constituindo-se em um espaço real, aberto a múltiplas e diversas
67
relações com o exterior”
61
FORMANDO E
TRANSFORMANDO EM IRECÊ
quem cabe responder por tudo o que acontece na unidade escolar que dirige – são
responsáveis pelo sucesso/fracasso das políticas educacionais, da escola e dos alunos. Tanto
ou mais do que os profissionais que trabalham no órgão central.
Foi rompida aquela tradição de jogar exclusivamente nas costas do docente a
responsabilidade pelo insucesso dos alunos. Todos têm responsabilidade, exercitando
papéis e funções distintas e complementares. Compreende-se também que o diretor é um
educador e a experiência de sala de aula é importante para que possa exercer melhor o seu
papel e sua liderança junto aos professores, como grande parceiro e incentivador das
iniciativas pedagógicas, da interação constante e sinérgica com familiares e comunidade
para a melhoria da qualidade do ensino, do acesso e da permanência dos alunos na escola,
da integração com a população local, apoiando e realizando atividades e projetos que
fortaleçam a cultura local e contribuam para que a escola seja reconhecida e seja
demandada pela população como um centro produtor de conhecimentos úteis à realização
de projetos de interesse da população e da comunidade em geral.
Em Irecê, no início de 1997, a maioria dos diretores estreava na função. Eram recém
nomeados e quase todos tinham formação de professor. O critério de escolha utilizado era a
confiança. Os que saíram tinham sido escolhidos também por esse mesmo critério,
confiança das autoridades municipais da gestão anterior. Já foi relatada a situação caótica
em que se encontravam as escolas municipais e o total despreparo do Órgão Central da
Educação, em termos de estrutura mínima para funcionar. Todos os diretores e vice-diretores
participavam da capacitação regular, inclusive os dos povoados. O universo total
contemplava 39 diretores e vice-diretores das escolas municipais, 9 responsáveis por escolas
rurais de pequeno porte e 132 integrantes das equipes de apoio operacional e
administrativo da Secretaria.
No seminário inicial – de preparação para a abertura do ano letivo - trabalhou-se
principalmente a função da escola, usando-se para fundamentação o “Raízes e Asas” 68 e
uma publicação do CECIP 69– “Todos pela Educação no Município” – os dois volumes: “Um
Desafio para os Dirigentes Escolares” e “Um desafio para os Cidadãos”, que se constituíam
num programa para mobilização de secretários e da comunidade para a melhoria da
qualidade da educação. A LDB – promulgada no ano anterior – foi fonte permanente
durante todo o trabalho. Também os textos utilizados no PRASEM – na capacitação de
secretários municipais – foram utilizados.
Como se vê, o objetivo principal do primeiro seminário – que, na prática, dá início à
capacitação continuada dos gestores – era mobilizá-los, reacender-lhes o desejo e o
compromisso social com a educação, com o sucesso dos seus alunos e da sua equipe. Fez
parte do projeto, desde o primeiro momento, o estímulo ao desenvolvimento de um
conjunto de competências técnicas, relacionais e políticas que favorecem a construção, o
exercício e o aperfeiçoamento da capacidade de liderança dos processos de mudanças na
68 Conjunto de fascículos produzidos pelo CENPEC – com o apoio do Itaú, do MEC e do UNICEF.
69 Centro de Cultura Popular ONG – com sede no Rio de Janeiro
62
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
Seminário Inicial
Sensibilização para apresentação e discussão do Plano de Educação e introdução a
conceitos básicos para o exercício da gestão democrática da educação e das escolas
do município.
Encontros mensais
Análise e reflexão da prática entre os diretores municipais, a partir das próprias
necessidades levantadas por eles, trabalhando formação gerencial, com momentos de
estudo de textos e troca e discussão das experiências.
Objetivo – análise, troca e sistematização da prática entre os diretores municipais
Metodologia – O desenvolvimento consiste na discussão e análise da rotina do diretor
municipal e no estudo sistemático de temas, necessários ao exercício da sua função.
Cada encontro é precedido da entrega, por parte do diretor, dos seguintes materiais:
Rotina de atividades/planejamento
Uma situação-problema vivenciada e refletida pelo diretor
Seminário Final
Avaliação do processo de capacitação.
Funcionamento
Esse modelo funcionava de forma muito parecida com o da capacitação dos professores,
como descreve a formadora Salete Silva, coordenadora do processo de formação dos
gestores em Irecê:
“Nós tínhamos uma escola-piloto da área de gestão. O diretor dessa escola fazia relatórios
quinzenais para mim e eu fazia a devolução para ele. Eu observava regularmente essa escola,
e reunia com o diretor, discutíamos e no encontro mensal o conteúdo dessas trocas era
exposto como tema, objeto de conhecimento para análise e discussão por todos. Na
exposição, o diretor destacava os desafios que enfrentou, os problemas, as orientações dadas
63
FORMANDO E
TRANSFORMANDO EM IRECÊ
64
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
gestores. Além dos projetos, as falas nos dão a dimensão desse trabalho na vida das pessoas
que se dedicaram a ele, da escola, das famílias e das comunidades de Irecê. Uma das
entrevistadas, formadora da área de gestão educacional, num determinado trecho da
entrevista expressa um traço marcante das relações entre os participantes da formação:
“Sentimento! Acho que o que move Irecê é o coração, coisa de vontade, de determinação e,
claro que juntou isto com as competências. Eles constroem competências com o coração “
Demos um foco muito grande na capacitação dos gestores das unidades, à gestão das escolas
e fizemos um trabalho consistente de fortalecimento das escolas com valorização da sua
autonomia, que gerou subprodutos importantes, de iniciativa dos diretores – os inúmeros
projetos de parceria entre escolas, com envolvimento das famílias, da sociedade. ... O que
acho que aconteceu de mais importante, aconteceu nas escolas, e muito a partir de iniciativas
do diretor, não só da área pedagógica. O diretor em Irecê tem uma característica de quem
sonha, quer mais, de quem não se contenta com “escola de pobre”, quer mais recursos, vai à
luta, consegue parceiros. A questão da autonomia ficou como uma marca em tudo. Ele não se
contenta em ser mero executor de programas e projetos que não discute, não elabora. Quer
70
saber de tudo, tem uma inquietação criativa ...”
71
Em entrevista realizada em julho de 2001, o Secretário Municipal da Educação evidencia o
compromisso e a seriedade das pessoas envolvidas no trabalho educacional, em especial os
professores e gestores; a precariedade de recursos; o comprometimento político com os
alunos; o reconhecimento do êxito dos esforços desenvolvidos na educação de Irecê para
além do município:
...”Nós conseguimos reunir aqui um mundo de pessoas superinteressadas. Eu sempre destaco
o papel dos professores e diretores porque nem o salário é lá essas coisas. Os salários
continuam baixos porque, afinal de contas são 363 reais per capita por ano. Pode uma coisa
dessa? Você imagine que nos EUA para uma escola da periferia são 500dólares por aluno –
ano e em outras áreas urbanas (lá eles fazem essa distinção) são 10 mil dólares. Então, com
esses recursos, funcionando como funcionamos rigorosamente os 200 dias letivos e as 800
horas-aula, com qualidade, com resultados práticos na unidade escolar, na sala de aula, no
aluno ... é preciso muita dedicação, compromisso e competência... porque temos que
reconhecer que uma coisa é pegar aquele aluno que já vem de um ambiente onde recebe todo
estímulo na própria casa, tem todas as motivações, outra coisa é o menino do interior, que
passa dificuldades, cujos pais freqüentemente nunca estudaram, esse sim, precisa de mais
atenção para descobrir seu caminho, desenvolver seu potencial...
Estamos fazendo, estamos lutando e este ano assumimos um compromisso com o governo
federal para aplicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais e isso de novo está exigindo
muito da turma, em termos de estudo, de análise... Os próprios técnicos do MEC comentam
que a coisa aqui funciona. Mas funciona porque teve uma base. Isso não é o secretário que
está levantando, está na fala dos professores, dos diretores, dos técnicos do MEC...
Nosso trabalho tem tido repercussão na Bahia e no Brasil. Recebemos a medalha Anísio
Teixeira, menção honrosa do prêmio Itaú-Unicef junto com a Avante, a experiência de Irecê já
65
FORMANDO E
TRANSFORMANDO EM IRECÊ
tem sido analisada em outras localidades... e esta não é uma afirmação de vaidade – mas um
reconhecimento de que passamos a ser referência para os municípios vizinhos. Tanto é que
hoje nós somos a sede do pólo regional para os Parâmetros Curriculares Nacionais. Creio que o
foco no aluno, na escola e o investimento na formação dos jovens educadores e diretores,
como um comprometimento político, é importante para o acerto...
“...A rede municipal é sempre a que está mais próxima e mais identificada com a periferia e
com o aluno carente e os problemas sociais no país alcançam essas famílias, principalmente.
Nós temos experiências exemplares nas escolas: sair à noite para tirar garotas de programas de
prostituição infantil, garotas dentro de caminhão .. nós somos responsáveis por essas
crianças. A escola Padre Cícero, na entrada da cidade tem enfrentado esse problema com
muita sensibilidade e muito compromisso”...
72
O Prefeito do Município num trecho de entrevista sobre o modelo de formação continuada
de professores e gestores (1999 ano III do desenvolvimento desse projeto), observa:
“A experiência de Irecê quebra o paradigma de que os educadores do ensino público são
incompetentes, que as escolas não ensinam, os diretores não funcionam, os alunos pobres
não aprendem, ...”.
Reproduzimos trecho da entrevista com Aloísi Carlos (Carlinhos), diretor da Escola Luiz Viana
Filho, entre 1997 e 2000, hoje dirigindo a Escola Paraíso. A nosso ver esse texto é muito
significativo e emblemático, como síntese de algumas importantes transformações geradas
a partir da capacitação e dos projetos de iniciativa das escolas. Na sua fala, esse diretor nos
faz mergulhar no contexto e nos problemas que movimentaram a escola e nos dá um relato
de três destes projetos: Projeto Democracia, Aluno Solidário e O Mundo Precisa de Paz, este
último dentro do Projeto Escolas Parceiras
“...Tenho treze anos como educador, durante sete fui regente de classe. Na gestão anterior fui
vice-diretor... no começo do trabalho com a Avante a gente sentiu aquele impacto, mas
depois as coisas foram se assentando e nós começamos a elaborar projetos frente ao que o
professor fazia na sala de aula. Como gestor eu não podia ficar inerte e tinha que começar a
provocar a comunidade a ser parceira da escola, até porque eu trabalhava numa periferia
onde se viviam problemas sociais graves... Temos alunos na escola que estudam 3 vezes na
mesma escola porque matricula, passa um mês e sai... começa a safra em Barreiras, corre pra
lá, começa a safra em Goiás, corre pra lá, tem safra em Irecê, volta pra cá ... Em 98, tivemos a
satisfação de ter a escola que eu dirigia, escolhida para ser piloto na área de gestão. Passamos
a ter a orientação de Salete bem de perto. Aprendi demais. Não tinha pacote pronto. Ela
sentava com a gente para discutir os problemas da escola, da comunidade, da associação
comunitária, do que fazer, da Promotoria, de como criar parceiros para a escola. E começamos
a ter a perspectiva de que era possível fazer isso. Lá na escola hoje tem muitos registros,
relatórios, fotos. Toda quinzena eu fazia um relatório das atividades do período e ela me dava
um retorno, um parecer técnico, trocava idéias. Inicialmente a gente fazia um trabalho
interno: direção, pais dos alunos, professor e comunidade e, mensalmente eu fazia a
exposição para todos os diretores, em 40 minutos, na reunião. Aí eles já discutiam, adaptavam
66
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
a sua escola, davam outras idéias ... a escola deslanchou, em todos os sentidos – evasão,
repetência, na forma de lidar com a comunidade. A escola e a comunidade eram dois
mundos, um lá e outro cá. O pai ou a mãe matriculava o filho e sumia. Ia meramente numa
reunião de pais e mestres, e às vezes nem isso, para ouvir queixa do filho, quase sempre.
Começou a mudar e se interessar, a partir de uma ação da escola, intencional para mobilizá-
los... Fizemos muitos projetos. Posso ressaltar 2 ou 3 mais importantes.”
Projeto Democracia, com o seguinte objetivo: trabalhar com o aluno, não apenas o
significado desse termo, mas o desenvolvimento de atitudes democráticas e a compreensão
do todo.Para ele se tornar democrático nas suas relações na escola, em casa, saber partilhar,
ouvir o outro, saber falar e defender suas opiniões. Envolvemos as questões políticas
nacionais. Nossos alunos saíram para o campo, entrevistaram políticos, fizeram pesquisas,
entrevistaram até candidato a presidente da república que esteve em Irecê, fazendo comício.
Todos os deputados da região foram entrevistados por nossos alunos. E nós fechamos esse
projeto em 60 dias com um fato inédito na história de Irecê: a Câmara de Vereadores saiu pela
1º vez de seu recinto e aconteceu uma sessão da Câmara dentro da escola municipal Luiz
Viana Filho com a presença de todos os vereadores. Os alunos discutiram a realidade de Irecê,
a situação do bairro, lançaram proposta de recuperação das casas precárias do bairro, de
construção de quadra poliesportiva. Foi uma grande conclusão. Nas salas de aula todas as
professoras se interessaram e trabalharam, a coordenação deu todo o suporte pedagógico
para que a exploração do tema proporcionasse a aprendizagem dos alunos. O envolvimento
foi desde o grupo 6 até a 8a.série ... Os alunos fizeram eleição simulada, teve diferentes
candidatos com discursos e palanques, cada um fazia sua plataforma política, criavam
argumentos para defendê-las, passavam nas salas, fizeram panfletos, tinham vários partidos.
Faziam textos de propaganda própria, os colegas elaboravam textos para o candidato
discursar. Toda sexta-feira faziam comícios abertos à comunidade...
Projeto Aluno Solidário. A idéia nasceu da leitura de uma revista “Nova Escola”, se não me
engano. Era realizado com alunos excepcionais. E eu vi o desenrolar do projeto e disse: dá de
mão cheia para fazer na nossa escola. Levei a proposta e os professores acolheram de
imediato. Fizemos levantamento de conhecimentos prévios, inclusive eu tenho a pasta dos
alunos da escola com tudo o que eles inicialmente pensavam sobre solidariedade. Com as
informações que os alunos nos deram, a gente começou a elaborar esse projeto, Tínhamos
uma evasão muito grande. Fizemos um levantamento e constatamos que na nossa escola –
72% dos pais eram analfabetos. O comprovante disso era a assinatura no ato da matrícula
com digitais. O pai que ajudava o filho, em geral era querendo pegar na mão dele para que
fizesse a tarefa. Que fizemos? Propusemos aos grupos 9 e 10 serem ALUNOS SOLIDÁRIOS
(intitulamos assim) e estes iam na casa de um aluno do grupo 6, 7 e 8, todos os dias por 30
minutos, ajudá-los nas tarefas de casa. Cada menino maior era padrinho de um menino
menor. Mas ele não caía de paraquedas naquela casa. Primeiro, chamamos as famílias do
grupo 6, 7 e 8 e conversamos para que elas entendessem o objetivo e recebessem essa criança.
A professora da sala tinha acesso à tarefa que aquele outro professor passava e orientava o
aluno solidário. Ele fazia um relatório todo dia, dizendo como foi aquele dia, na sua visão. São
muito ricos esses relatórios e nos aproximam mais dos problemas vividos pelas nossas famílias.
Alguns exemplos: Cheguei na casa de Leandro e a mãe não estava. Ele estava tomando conta
do irmãozinho menor, de três anos. Leandro estava com fome não tinha nem o que comer.
67
FORMANDO E
TRANSFORMANDO EM IRECÊ
Não sei como ele conseguiu fazer a tarefa.” O aluno trazia um relatório – mesmo que às vezes
inconsistente, mas reflexivo. Ele não trazia aquele relatório assim “eu mandei ele fazer o
quesito tal da tarefa e ele fez”. Não, ele podia trazer isso também, mas trazia o contexto. Às
vezes diziam: eu fui na casa do aluno tal e ele não estava. A mãe dele disse que ele tinha ido
matar preá, se não amanhã não tem o que comer”. São relatos de situações que a gente sabe
que existe mas a gente não sabe, na pele, o que é. Ficávamos, a um só tempo tristes e alegres
com os progressos. Nos emocionávamos todos. Esse projeto despertou um sentimento de
cidadania imenso nos alunos, além de estarem trabalhando a escrita, a leitura da realidade, a
reflexão sobre ela. O professor, orientado pela coordenadora, reservava, no seu
planejamento, um tempo para a leitura e discussão dos relatórios e cada aluno ia para a frente
ler o seu. O projeto começou com o acompanhamento de 40 alunos e cresceu para 80, no ano
seguinte envolvendo outro grupo. Na verdade eram mais porque alguns, espontaneamente,
acompanhavam mais de um dos pequenos. Nossas crianças, no turno oposto ao da escola às
vezes ficam perambulando pelas ruas, os pais saem, ou fazem trabalhos domésticos,
varrem,lavam os pratos, cuidam dos irmãos menores, ou pedem esmolas, ou fazem biscate de
carregador, na época do feijão para carregar os caminhões.Às vezes fazem um pouco de tudo
isso. De repente, era importante que se ocupassem de uma coisa que fosse significativa para
seu aprendizado. Durou um ano e meio. Muitos dos pequenos viam o maior como se fosse um
professor deles...”
Nas palavras da consultora Salete Silva “..Na escola-piloto o trabalho foi riquíssimo. Eles
fizeram projetos muito bons.. Tem um projeto – “Alunos Solidários” , que mobiliza alunos para
o combate à evasão. Os recados para os pais não resultavam em nada. E o diretor foi pesquisar
a ficha dos alunos e descobriu que a maior parte dos pais assinavam com as impressões
digitais e pouco podiam ajudar os filhos na aprendizagem escolar. Tudo isso era descoberto e
detectado em processos coletivos. O diretor participava das reuniões com os coordenadores. E
resolveram criar o projeto na escola para enfrentar esses dois problemas: meninos com
dificuldade de aprendizagem e evasão. Os maiores iam ajudar os menores e faziam relatórios
das visitas. Aconteciam coisas do tipo: “não está indo porque está sem sapato e tem vergonha
de ir descalço”; “porque perdeu a chave da casa, a mãe tem que sair para vender tempero na
feira, não tem dinheiro pra comprar outra chave e a casa não pode ficar aberta”, dentre outros
pequenos problemas do cotidiano que criam reais impedimentos para a freqüência à escola.
Iam aos detalhes dos problemas e conseguiam trazer os meninos de volta. A escola, através do
diretor, arrumava os três reais para fazer a chave, conseguia um sapato e assim outras
providências simples, que solucionavam um grande problema. Esses mesmos meninos da 4a.
série faziam banca com os da 1a série nas casas deles. Eram solidários para buscar os evadidos
e para fazer dever com os pequenos. Cada aluno adotava outro. A escola se articulava com as
famílias de ambos, as professoras dos maiores tomavam conhecimento dos trabalhos das
professoras dos menores e orientavam seus alunos.Tudo isso proporcionava muita
integração. Acredito que esse tipo de coisa se aprende para o resto da vida....
68
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
com mais duas escolas, a Marcionílio Rosa e a Marcondes Félix. Junto com os diretores
Agnaldo e Vilma fomos buscar uma solução. Acionamos vários segmentos da sociedade:
Promotoria Pública, inclusive juízes e advogados, a OAB, Comissário de Menor, além dos
professores e diretores das escolas. Fizemos um projeto para durar uns 50 dias, muito rico.
Estudamos, levantamos com todos os alunos o que pensavam sobre PAZ e encontramos
testemunhos fantásticos porque veja, os alunos começaram a ver na escola os assuntos
relacionados à paz, quando viviam um grande contraste, que eram os conflitos em casa,
violências, separações com brigas, muitos desentendimentos entre os pais, irmãos presos,
uma série de conflitos que eles externavam. E a escola trabalhando outras relações, de
solidariedade, amor, despertando o desejo por caminhos diferentes para que a gente se torne
cidadão. Enfim, fomos explorando isso e os alunos trouxeram suas frustrações e nós fomos
aprendendo a lidar melhor com elas. A ponto de acontecerem coisas tipo um aluno de 9 anos
dizer ao pai: “Pai, eu tô trabalhando a paz na minha escola e aqui em casa o senhor bate na
minha mãe?, já entendendo que pode levantar a voz (no sentido de altivez, de autoridade) e
dizer ao pai que aquela atitude contra a mãe não é correta. Havia uma gama de pais que
espancavamm as mães. É demais! Enfim, fizemos várias atividades com os alunos e com os
pais: palestras, vídeos, filmes, vários filmes. Os alunos tinham aula e os pais tinham atividades
sobre a paz. Concluímos esse projeto com uma grande caminhada com alunos, pais, alunos e
professores das três escolas, na praça da Escola Marcionilio Rosa, que é uma praça grande,
com falas do secretário, do prefeito sobre a paz e a cidadania. Na caminhada tivemos quase
quatro mil pessoas. Perguntávamos: será que guerra é só quando há arma, bomba, canhão,
tanque? Quando há um conflito dentro de casa, isso não é uma bomba na vida das pessoas,
das famílias, das crianças?
(Diretor Aloísi Carlos)
Outras Parcerias
...Na rede várias escolas fizeram parceria com o Ministério Público, principalmente no
caso dos evadidos. Se os pais não atendiam nossos apelos, o Ministério Público entrava
em ação e nos ajudava. O fato é que reduzimos a evasão de 69% para 8%, com a ajuda
do Acelera e da Avante.
69
FORMANDO E
TRANSFORMANDO EM IRECÊ
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FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
71
FORMANDO E
TRANSFORMANDO EM IRECÊ
Agnaldo, diretor da Escola Marcionílio Rosa (1999 e 2000), nove anos na educação:
“...de 97 para cá começamos um estudo. Começamos a sistematizar e organizar todo o nosso
trabalho, como a escola deveria funcionar, o que precisava para isto. Criar padrão mínimo –
que a gente já pedia – o básico para que a escola tivesse condição de cumprir o seu papel.
Então foi um trabalho de 4 anos em que a gente viu como significativo, principalmente 97, 98
e 99 porque em 2000 já não foi tão bom, foi atropelado. No início a gente tinha que fazer
tudo porque não tinha nada. E fizemos toda a mudança que a rede precisava: como
administrar uma escola, como lidar com os pais, os projetos, os documentos, tudo. Eu acho
que acompanhei todos os encontros de capacitação, não tive falta. E a gente viu o nosso
crescimento... até 96 a gente tinha uma secretaria com um secretário e os diretores nas
escolas. Tudo a gente tinha que se reportar a ele e a questão pedagógica, cada diretor fazia o
que sabia. Eu, por exemplo, só administrava baseado em preceitos religiosos... Tinha diretores
que liberavam na hora que queriam, a escola não tinha horário certo ... Tinha diretor que
chegava embriagado na escola... Não tinham compromisso com a comunidade. Gosto de
gente, de trabalhar com educação, mudar o que não está dando certo, trazer a família para
dentro da escola, fazer gestão participativa... gosto de fazer avaliação constante, senão os
problemas crescem. Na minha escola eu faço assim, se tenho um problema com professor não
deixo para depois, vamos resolver logo até para que eu possa olhar no olho dele sem estar com
ressalvas. Não está legal, pára e recomeça dos eixos.... Esse trabalho de capacitação foi feito
com respeito à individualidade e tudo que é feito com respeito às individualidades do outro
tem frutos. A gente vê os frutos quando pega as estatísticas de evasão, repetência, então isso é
glória. Nós temos condições meteorológicas que propiciam a evasão. Quando você vê um
professor que era resistente às mudanças e hoje está numa sala de aula em constante
ebulição, é um fruto deste trabalho. Então, começou um trabalho, gerou polêmica, como
tudo que é novo, e hoje a gente vê a importância ... Gestão tem que ser aperfeiçoada e gestor
tem que ser capacitado sempre. Tem que estar o tempo todo revendo prática, avaliando,
criticando, aceitando críticas e vendo que o que a gente faz, se não tiver um aproveitamento
pelos alunos foi em vão.
Para Edvan, ser diretor do Colégio Municipal de Angical, escola onde estudou, foi a primeira
experiência em educação:
“... Entrei na rede municipal em março de 1997, no primeiro encontro de gestores. Era tudo
novidade para mim porque eu não trabalhava na área de educação. A situação da escola era
triste, não tinha nem os registros dos alunos, tinha uma porção de pastas molhadas, a escola
não era nada ...”.
... Havia um voto de credibilidade que a comunidade estava nos dando, com o aumento
repentino do número de matrículas, atendendo aos apelos que fizemos. Resultados foram
conseguidos em curto espaço de tempo... porque foi a sedimentação de um trabalho
plantado no sócio construtivismo. Imagine a proposta de “construção do saber”, numa
situação em que os prédios eram tudo o que existia na rede. Tereza Marcílio, Salete Silva,
Marília foram parceiras para tudo. O projeto de capacitação em serviço foi de uma
importância impar para esse movimento de transformação na educação. Hoje somos o que
somos graças a ele ... A gente encontrou forças que não sabia que tinha. A situação era muito
desafiadora e foi difícil mas, eu, particularmente, não imaginava que pudesse ser tão
gratificante a experiência e tão importante para a minha vida profissional ...
72
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
73
FORMANDO E
TRANSFORMANDO EM IRECÊ
de fazer nos finais de semana, Todas as turmas saíram para pesquisar. E os resultados foram
meio imprevisíveis: jogar e beber eram o grande barato. Não desistimos. Eu disse: “vou
transformar essa escola num grande cassino. Só não entra bebida, mas todos os jogos.
Organizamos uma série de jogos. Um torneio com medalhas para os vencedores em cada
categoria. Fiz uma ficha para os pais se inscreverem nos jogos de sua preferência e colocamos
futebol de salão, sinuca, baralhos, dominós. Trouxemos nesse dia 171 pais e lá ficamos das 6
da tarde até as 3 horas da manhã. O pai que foi campeão da sinuca, quando foi receber a
medalha, a lágrima corria pelo lado do rosto ...
Passamos a acreditar nesse sonho possível e temos colhido muitos frutos. Necessitávamos dar
alguns saltos de qualidade a nível de rede.
O Currículo - “fincar o pé no chão”
Veio a construção de um currículo unificado para a rede e foi um momento muito
importante, quando a gente precisava discutir o futuro da rede, registrar os nossos sonhos,
discutir a nossa realidade, consolidar metas para os próximos anos e até as questões
regimentais, os regimentos que não tínhamos e passamos a discutir em comum: professores,
coordenadores, diretores e sociedade. Nossa escola foi referência e passamos a receber um
acompanhamento maior... O Currículo já nos permite sonhar com uma coisa mais sólida,
transformar sonhos em metas alcançáveis. O Currículo, os projetos pedagógicos que as
escolas passaram a traçar e realizar, aquilo que desejavam já não era mais uma utopia.
Passamos para um momento bem novo, conseguimos fincar o pé no chão a partir daí para que
novos passos sejam conquistados. Levamos um ano para elaborar o currículo. Eram encontros
mensais, nós tínhamos tarefas para casa, por área de conhecimento, visão sistematizada da
idéia, da fundamentação teórica, tudo isso discutido. Tínhamos encontros mensais e
seminários quinzenais sobre a prática educativa sobre o dia-a-dia, sobre a estrutura e isso com
tarefas para que a gente fosse construindo junto. Discutindo a nossa prática é que tiramos o
documento que está nos guiando desde aquele instante. A escola mudou. Passou a funcionar
tendo como centro o aluno. E isso é algo que o tempo não vai apagar...
Agora é a consolidação daquele trabalho que se iniciou com a capacitação. Como diretor
aprendi muito. A convivência com as consultoras, as professoras, coordenadoras me ensinou
muito, tanto na questão da gestão quanto nas questões técnico-pedagógicas, no dia-a-dia da
escola, na forma de me relacionar com meus professores. Passamos a acompanhar os
seminários de educação, perdendo aquele medo de mostrar o que somos e o que fazemos. Foi
um grande trauma no início. As pessoas tinham medo. O prêmio Itaú-Unicef é um grande
orgulho para qualquer pessoa que vivenciou esse período na rede, antes e depois da chegada
da Avante. Eu me senti realizado quando Irecê foi escolhido porque ali estava um fruto das
nossas noites não dormidas..
A escola de Angical passou a ter valorização. O professor passou a receber o mesmo
tratamento em toda a rede. São tão educadores uns quanto os outros. Trabalhavam para a
construção do saber e não para a mera transmissão, uns como outros. Por que parte ficava
pelo caminho? Nós passamos a construir significados para a educação e o prêmio que
recebemos vem consolidar tudo aquilo que a gente esperava ...
74
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
75 ver nota n. 42
75
FORMANDO E
TRANSFORMANDO EM IRECÊ
mas, sem dúvida, não é possível que a escola não o assuma como tema para a construção de
conhecimentos. É indiscutível que este tema, por ser a realidade cotidiana dos alunos das
escolas rurais, sempre esteve dentro da escola, determinando a sensibilidade e povoando o
imaginário das crianças, dos adolescentes e adultos durante as aulas, provavelmente
transportando-os para viagens e portos bem distantes da atividade que estava sendo
proposta pelo professor.
É um projeto que foi iniciado em 1999, em 2000 fizemos novamente e este ano (2001)
estamos recomeçando a trabalhar. É um projeto que a gente não pára porque, infelizmente, o
problema continua...
Foi socializado com o grupo 9, com uma colega minha e teve a ajuda de Edileuza, a
coordenadora. Por ser zona rural, o único meio de vida da população é a roça. São poucos os
que trabalham na sede. Quando passa o período de colheita, e começa a estiagem, não dá
para manter todas as pessoas. Acabou-se o feijão, o mamão, tem que colher, o que vai fazer?
Trabalhar de que? O único meio é sair pra outros lugares e procurar sobreviver. Então é um fato
que já virou rotina para a gente. Eu fui vendo aquilo... tem vezes que a gente está na sala de
aula e tem que parar a aula porque o ônibus vai para Minas, onde está tendo colheita. Chegou
o ônibus e vão sair pais, irmãos de alunos, às vezes o próprio aluno, vão partindo e têm que
sair naquele momento e não sabem quando vão retornar...
Comecei a pensar que isso daria um bom projeto, que era preciso estudar essas questões, tão
fortes na vida do povoado, dos alunos.... Pensar que para os nossos pais isso é visto como
natural, normal: “é Deus quem quer assim” e aí rezam pra São José para a chuva voltar, fazem
novenas e mais novenas, aquela coisa da fé, que o sertanejo tem muito, não é?
Mas eu, como professora, comecei a estudar, a entender melhor da coisa, quis ficar mais por
dentro, vendo que isso acontecia mesmo mas não era normal, natural. Nunca! Junto com
Edileuza, pensamos um projeto de deslocamento populacional que também tinha no PCN ...
A gente começou pesquisando na sala de aula: de onde é que cada aluno vinha? Sabíamos
que muitos vinham de outros povoados, estados e regiões até. Começamos a questionar com
eles. Por que vieram para cá? E as respostas eram as mesmas: “pró, eu vim porque meu pai
tava desempregado”, “vim fugindo da seca”. Começamos a pesquisar por que isso acontece?
Da pesquisa na sala fomos para a pesquisa dentro do povoado. Eles fizeram um censo para
saber quantas pessoas tinham na comunidade, quantas famílias e quantos vieram de fora, de
onde, por que. E sempre batia no mesmo que tinha dado na sala: paraibanos,
pernambucanos, todos vieram para Meia Hora fugindo da seca. Nesse mesmo período, por já
ter passado a colheita, os meninos se disseram: “pró, tem gente daqui saindo pra outros
lugares. Por quê? Porque acabou a colheita e na cidade não consegue emprego”, que se torna
mais difícil porque muitos são analfabetos – outro grande problema da zona rural. Então,
eram pais, irmãos, tios dos alunos, todos saindo pra tentar fugir da seca...
Começamos a acompanhar essas famílias. Às vezes percebíamos um aluno triste,
perguntávamos por que:“Porque meu pai saiu hoje”.Íamos entrevistar a família em casa: para
onde ele foi, se tinha emprego, quanto ia ganhar, se já tinha emprego certo, como é que a
família tinha ficado, se tinha uma forma de sustento ou se ia esperar vir alguma coisa de lá.
Isso era sistemático porque estava acontecendo sempre. Eles pegavam o nome completo da
76
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
pessoa. Uma vez paramos porque ia sair um ônibus e a gente tinha que se despedir, às vezes
iam até parentes nossos, de professores. Nós somos do mesmo povoado.
Questionamento: por que será que todo ano acontece? Por que temos que herdar isso? Já
não temos uma vida fácil. Por que não se tomam providências?
O grande objetivo do projeto não é resolver o problema. É que eles tenham consciência de que
o êxodo rural não é da natureza, não é “Deus quem quer assim”, como os pais da gente
acreditam e eles também acreditavam. Perceberam que não é obrigatório viver desse jeito,
que essa situação pode melhorar. .. Queríamos que eles vissem isso com um outro olhar ...
Se chegasse alguém a gente ia entrevistar. Pesquisamos também quem chegava no povoado.
De onde vinha? Se não desse pra ir lá, trazia a pessoa para a escola e entrevistávamos na sala.
Surgiam informações que a gente nem esperava. Descobriam coisas que nem imaginavam.
Faziam muitas perguntas. Recorríamos ao mapa do Brasil para localizar a região, o caminho
que foi feito. Fomos conhecer a vida nesse estado de onde vinha a pessoa; Foram até a
Rodoviária, levaram ofício. Procuraram saber quantos dias a pessoa levava viajando até chegar
onde ia; calculavam a distância, procuravam saber como era a viagem. Discutiram as
conseqüências desse deslocamento para a zona rural e para as cidades; fizeram gráficos da
escolaridade dessas pessoas, pesquisando para saber me parece que só um, que veio de
Barreiras e foi entrevistado na escola tinha o 2º grau completo. Ele disse que saiu embriagado,
não porque seja cachaceiro, mas porque “estava deixando minha esposa e meu filho e não
sabia como ia ser o futuro”... É uma realidade dura, mas é a realidade. E dava pra trabalhar e
desenvolver aprendizagem em todas as áreas. Trabalhamos também várias músicas: Asa
Branca, Triste Partida, A Volta da Asa Branca, Cidadão... eram meninos de 9 a 13 anos; fizeram
uma dramatização “Seca Malvada”, onde retratavam o que acontecia. Eles soltavam os
sentimentos, pela distância, o sofrimento, e a gente envolvia a família, e no final eles não
tinham aquilo como uma coisa da natureza, normal do destino, mas como uma questão
social, que ia continuar mas tem solução e que depende de decisões de governos, de políticas,
de distribuição de renda melhor para o nordestino ... Acho que esse é o papel da escola, o
papel político do educador: mostrar que as coisas não acontecem porque “Deus quer, porque
é o destino” Acho que conseguimos o principal objetivo e aprendemos muito e a comunidade
participou e se integrou mais. A verdade é que a gente se depara com coisa que pensa que está
fazendo muito bem e da melhor maneira e vai avaliar descobre que não é a melhor, apesar de
tentar fazer ... Valorizar o aluno como um ser. Não aquele cheio de gavetinhas, em que a
gente ia embutindo um assunto aqui e outro ali. Começamos a ver o aluno com um ser que
esperava algo muito bom da gente, mais que bom. ... A gente também se avalia, não como
alguém que está trazendo tudo para o aluno, mas como guia que vai ajudar no seu
crescimento. Acho que a nossa escola saiu do anonimato. O que me deixa muito feliz é que,
quando eu estudava em Meia Hora, eu tinha vergonha de dizer ... e hoje tenho orgulho e os
meus alunos também têm orgulho de dizer que são de lá ... quando estão no ginásio, fazem
questão de dizer que estudaram em Meia Hora, que foram alunos da professora Jussara, da
Professora Margareth, não é? Houve grande mudança: da valorização do ser humano, da
valorização do povoado, do aluno, da professora, da gente não se sentir inferior porque é de
escola de povoado.... O professor tem um papel muito importante: um médico pode estragar
uma vida e o professor pode estragar várias de uma vez só e aos pouquinhos. ... Estamos
continuando a tentar melhorar sempre.
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FORMANDO E
TRANSFORMANDO EM IRECÊ
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FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
Projeto Bibliotecas
A leitura é um valor intrínseco à proposta de trabalho, nos projetos idealizados pela Avante,
um fim em si. Agir intencional e sistematicamente para provocar o desejo de ler, o prazer pela
leitura e desenvolver ações que enfatizem a funcionalidade e a necessidade da leitura são
desafios primários do formador com seus professores e destes com seus alunos. Serem, eles
próprios, leitores, é condição fundamental para cumprir este desafio. O que se testemunha em
Irecê, massivamente, em todos os segmentos envolvidos no projeto, e nas falas reproduzidas
neste livro – sejam de professores, desde a educação infantil, sejam de coordenadores,
diretores, alunos, é uma transformação evidente na relação de todos com o ato de ler.
Despertado o desejo de ler, a ação para concretizá-lo se multiplicou e não se pode mais falar
de um projeto de formação de biblioteca, mas de muitos, surgidos do trabalho de formação
continuada, na primeira sala-laboratório com a turma de alfabetização da professora Jane,
acompanhada pela formadora Marília, e disseminado, adaptado, reinventado em cada sala,
cada escola, para atender às suas necessidades, por iniciativa de professores,
coordenadores, dirigentes escolares. São inúmeros os exemplos: leitura, como atividade
permanente e envolvente desde as turminhas da educação infantil: leitura de poesia,
recitais, música, convite aos poetas e escritores da cidade para irem à escola, leitura de todo
e qualquer objeto que seja de desejo, desde os rótulos, as propagandas, leitura dos livros de
literatura, Cecília Meireles, Vinicius de Moraes e tantos outros. Ao formador cabe liderar,
junto aos professores a construção da necessidade de ler e promover oportunidades para
realizá-lo sistematicamente. Ao professor, o mesmo, com seus alunos, principalmente
cuidando para não frustrar o caráter prazeroso da leitura e sim contribuir para alimentá-lo e
expandi-lo, inventando os meios para isto.
Tradicionalmente a escola não cultiva o interesse pela leitura, como também pela pesquisa.
A adoção do livro didático como fonte principal para novos conhecimentos na sala de aula,
freqüentemente exclusiva, ou de um livro de literatura que obrigatoriamente deve ser lido
por todos os alunos da classe, a ausência de bibliotecas nas escolas e da diversidade de
autores e obras acessíveis, o uso do “texto como pretexto” 76 para a aprendizagem de regras
da gramática são práticas arraigadas, consolidadas. Estão apropriadas como práticas
legítimas e como tais ganham força dentro de cada sujeito, que através delas aprende, segue
na sua vida escolar, sobrevive.
Mudar tais práticas supõe desejo, trabalho, tempo, competência, paciência, solidariedade,
como tudo que mexe com os modelos mentais dos sujeitos, as atitudes e conceitos
socialmente construídos que, de tão costumeiros, ganham ares e força do que é natural.
Entretanto, uma vez superadas estas práticas em processos genuínos de questionamento
que impliquem em novas exigências do sujeito na relação consigo próprio e com o seu meio,
o retorno à situação anterior é improvável. É uma ida sem volta.
Assim, partiram das formadoras as estratégias para provocar, instaurar e disseminar, como
cultura, o hábito de leitura na rede municipal de educação de Irecê, como valor e atitude
76 Expressão usada pela formadora Marilia, citado por professores e coordenadores nas entrevistas realizadas.
79
FORMANDO E
TRANSFORMANDO EM IRECÊ
presentes nos procedimentos educacionais, nas relações da escola com pais e comunidade.
E muitas ações nessa direção foram sistematicamente organizadas e implantadas por
iniciativa das formadoras com os professores, os coordenadores, os gestores em processo de
formação. Estas iniciativas, sempre articuladas a uma metodologia participativa, ao
acolhimento e respeito às práticas de cada integrante, e sem perder de vista a construção da
autonomia das escolas, foram sendo valorizadas e praticadas cada vez mais, tornando-se
comum entre os diversos segmentos participantes dos processos de formação. Aos esforços
das formadoras somaram-se muitos outros. Puderam se desvencilhar da tarefa porque as
práticas estavam incorporadas, as estratégias apropriadas, reinventadas, desenvolvidas e
melhoradas pelos professores, coordenadores e dirigentes nos seus contextos.
Coube às formadoras a iniciativa para que se criassem círculos de leitura, grupos de estudos,
outros espaços específicos, inclusive dentro dos encontros, para a leitura de textos literários,
além dos textos teóricos e técnicos, coluna de recomendações de livros e de apresentação e
comentários de obras técnicas e literárias no Correio Escola, estímulo e apoio técnico e
operacional na busca de parceiros para a aquisição de acervos para as bibliotecas, gibitecas
nas salas, nas escolas, e para o envolvimento dos professores, da escola e dos alunos nesse
processo. Respira-se e transpira-se a leitura como uma constante dentro do projeto. As
formadoras contribuíram especialmente para que as professoras aprendessem a construir
situações didáticas, a partir do projeto e explorassem em sala, proporcionando
aprendizagens de novos conhecimentos e práticas. Nas falas das professoras e diretores
sobre bibliotecas são freqüentes as referências emocionadas sobre a motivação e a alegria
das crianças escrevendo cartas para outras escolas, para editoras, etc. e com as respostas que
recebiam dos distintos parceiros doadores e/ou interlocutores recebendo as respostas às
suas cartas e em muitos casos doações dos parceiros. Abaixo, trechos da fala da professora
Marcicleide sobre o projeto de biblioteca desenvolvido na Marcondes Batista Félix:
“O projeto de biblioteca foi o que mais me emocionou. Os alunos vibravam com cada carta,
cada livro que a gente recebia. No início achavam que as suas cartas não seriam respondidas e
que a gente não ia receber livros e logo quando iniciou eles mandaram uma carta para a
Editora Atica, que nos enviou uns cinco livros. Foi uma festa. Depois disso então é que eles se
motivaram mais. Escreveram para a Avante, para outras escolas e hoje, na biblioteca da
escola, eu acho que temos cerca de 1000 livros. A biblioteca se chama Cecília Meireles, nome
escolhido por eles em votação. A gente sente uma saudade imensa de Marília (formadora que
apoiava a professora). Ela enviava carta, mandava gibis, entrou em contato com outras
escolas de Salvador e sempre mandava material ...”
80
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
“Nós tínhamos uma biblioteca ambulante, a cada encontro os professores trocavam livros, e
não eram só livros técnicos, eram também livros de literatura. E com os alunos também. A
gente fez um projeto na rede que era o Sacolão de Leitura, ainda não tínhamos bibliotecas nas
escolas: umas sacolas com uma quantidade de livros era levada para a sala de aula e se
reservava um momento para leitura. Foi o primeiro momento em que os meninos começaram
a ter contato regular com os livros, contato físico, ter essa visão. Isso já foi fruto da sala
laboratório de Jane 77, foi o primeiro momento de formação de biblioteca. Então lá a gente viu
a necessidade das outras também terem isso. Marília estimulou muito e ajudou muito,
inclusive selecionando livros para as classes iniciais. Começou em 97, melhorou em 98. Hoje,
na rede, as escolas têm bibliotecas. A rede já tem essa cultura, como tem a cultura de trabalhar
por projetos, e trabalham com autonomia”
(Soraya Pinto Dourado – coordenadora de ensino da Séc. Municipal de Educação de Irecê – 1997/1999).
“Antes nós tínhamos um monte de alunos que eram meros receptores de informação e hoje a
gente tem alunos construtores e isso é rico. É uma coisa que “pegou” muito, essa questão da
leitura. Nossos alunos hoje lêem, lêem porque gostam, os professores também, nós não líamos,
não tínhamos motivação para isso. Ler um livro era um tédio. Hoje a gente lê livro assim, como
se estivesse lanchando, comendo uma pizza. Lê com prazer, lê com gosto, todo mundo lê.
Hoje, no dia em que a professora não tem um momento de leitura na sala dela, os alunos
cobram. Gente, nós não tínhamos isso. Teve alunos que leram cerca de 180 livros num ano...”
(Diretor Aloisi Carlos).
“A gente fica feliz mesmo é quando vê um aluno de 6 anos preocupado com literatura,
querendo conhecer a vida de Cecília Meirelles... passamos a ter nas escolas espaços de leitura,
bibliotecas e os alunos começaram a ler, não o ler forçado para dar a lição fragmentada como
era. Dava-se a metade do texto hoje e amanhã se voltava para dar o restante ... Por exemplo,
uma menina de 6 anos de idade fazer a leitura da bíblia nos cultos que a mãe vai, isso num
período de 4 ou 5 meses, uma aluna que chegou na escola fazendo garatuja, desenhando
rabiscos no papel. Isso na zona rural, onde, antes, os professores eram os últimos a receber
porque eram da roça, né?...”
(Diretor Edvanilson)
Muitos outros projetos que foram realizados mereceriam referência. O trabalho por projetos
tornou-se parte da rotina na educação de Irecê. O Projeto Reflorestamento e Preservação
da Natureza por exemplo, desenvolvido na escola Francisco Nunes, povoado de Itapicuru,
81
FORMANDO E
TRANSFORMANDO EM IRECÊ
pelos alunos do Grupo 10 com a professora Sinelândia conseguiu transformar a atitude, não
só dos alunos como também da comunidade na relação com a reserva florestal de Itapicuru,
desenvolvendo o senso de responsabilidade com o ambiente e promovendo a preservação do
solo e da caatinga. A mata era maltratada, depredada e a situação não é mais a mesma.
Começou-se por limpar a mata, pesquisar e descobrir sua importância, sua beleza e seus
problemas, buscar e encaminhar apoios e soluções. Hoje a escola conta com apoio dos
ambientalistas locais – Grupo GAPA e outra consciência quanto ao meio-ambiente e nossa
relação com ele; o Projeto Lixo no Lixo 78, desenvolvido nos Grupos 8 e 9 da Escola Municipal
Duque de Caxias, por iniciativa das professoras Vera Cavalcante e Vera Dourado. A idéia
partiu da necessidade de transformar a atitude dos alunos com o lixo na própria sala e
ampliou-se para os bairros mais próximos, onde os alunos foram observar a limpeza e
pesquisar os problemas, fizeram fotografias, mapeamento do que ocorria nas visitas, fizeram
entrevistas, confeccionaram cartazes, panfletos informativos para a população; Projeto de
79
Correspondência , desenvolvido pelos alunos do Grupo 9 da Escola Municipal Luiz Viana
Filho com as professoras Vandeilda e Dulcinéia, que surgiu da necessidade e da curiosidade
de conhecer e manter contato com crianças de outros lugares, possibilitando um intercâmbio
de novas amizades, socializando entre eles novos conhecimentos e desenvolvendo o prazer
de ler e escrever e proporcionando boas oportunidades de aprendizagens, bem como o
resgate da tradição do uso da carta, a preocupação com a clareza da mensagem para o leitor,
a funcionalidade da escrita e da leitura, possibilitando a construção do conhecimento da
escrita convencional através da revisão da própria carta; Projeto História do Bairro,
desenvolvido na escola Marcondes Batista Félix, através do qual alunos e suas famílias
resgataram a história do Loteamento Félix desde os primeiros moradores, quando a área era
uma fazenda até as últimas casas. Os alunos foram às ruas, às casas dos mais antigos
moradores e faziam entrevistas, como relata a professora Marcicleide.
78 Avante – III Seminário – “A Cultura do Pensamento na sala de Aula – Relato de Experiências Bem-Sucedidas” –
texto de apresentação do projeto.
79 Avante – III Seminário – “A Cultura do Pensamento na Sala de Aula – Relato de Experiencias Bem-Sucedidas” –
texto de apresentação do projeto.
82
2
Formar para
(Trans)formar
O Modelo de Formação
Continuada da Avante
85
FORMAR PARA
(TRANS)FORMAR
Uma das causas da baixa qualidade da educação, que será melhor analisada neste capítulo,
está na deficiência na formação dos professores. As pesquisas apontam um consenso no que
diz respeito à precariedade da formação inicial do professor, bem como a necessidade de
uma formação continuada como inerente à natureza da profissão. Vista como uma ciência,
a educação tem se caracterizado cada vez mais socialmente como um objeto de
investigação, onde os processos de ensino e aprendizagem são analisados perma-
nentemente e o papel do professor deixa de ser o de aplicar métodos e passa a ser o de
decidir, de forma cada vez mais autônoma e reflexiva, suas ações. Diante da provisoriedade
da ciência e das mudanças na sociedade, o professor necessita que a escola se constitua em
um espaço permanente de reflexão e aprendizagem. Portanto, o papel de professor-
aprendiz está caracterizado neste novo perfil profissional.
Mas o fato é que a maioria das escolas não tem um programa de formação interno que
ancore a prática do professor e lhe dê subsídios para uma atitude mais reflexiva, consciente e
segura. Desta forma, a criação de instituições públicas, privadas ou do chamado 3o setor no
sentido de organizar equipes de formadores de professores, tem se constituído em uma
alternativa importante para o fortalecimento e a melhoria da qualificação profissional,
principalmente no que se refere à modalidade formação continuada, que se caracteriza por
ser realizada no exercício da profissão.
O modelo que será apresentado difere das ações de formação, que têm como base a
concepção de treinamento, pois tem como pressupostos os princípios da teoria
construtivista da aprendizagem e foi sendo construído e ajustado ao longo dos anos, a partir
das pesquisas que vêm sendo desenvolvidas em relação à formação de professores e da
própria experiência e reflexão permanente da equipe de formadores.
Portanto, neste capítulo pretende-se identificar as novas demandas do profissional de
educação, refletir sobre a necessidade de formação do professor e apresentar um
modelo específico de formação – a proposta de Formação Continuada da Avante - como
uma estratégia fundamental na melhoria da competência do professor e, consequen-
temente, na qualidade da educação; tecendo algumas considerações sobre seus impactos,
limites e possibilidades.
Este trabalho está focado no Programa de Formação em Serviço desenvolvido em escolas
particulares de Salvador e na rede Sesi (Bahia) entre os anos de 1997 e 2001. No caso das
redes públicas, se mantém algumas ações e são incorporadas outras, como a implantação
de escolas-pilotos e salas-laboratório, a fim de se atender de forma mais efetiva as
demandas que emergem . No 1o capítulo há uma descrição detalhada destas ações e de
seus impactos.
Para escrevê-lo, além do estudo das pesquisas que investigam o processo de aprendizagem
do professor e alternativas de formação, foi essencial ouvir as “vozes” daqueles que
participam do Programa de Formação Continuada proposto pela Avante, usando
depoimentos escritos e orais, cartas ou gravação em áudio. Além disso, os documentos
elaborados a partir dos conteúdos de formação como os planejamentos, reflexões, Diários
86
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
de Bordo, que são utilizados nos encontros também se constituíram em materiais para
análise e fundamentação das idéias aqui representadas.
Nota-se que esta não é uma tarefa fácil! Primeiro porque ao mesmo tempo se está dentro e
fora do processo, pois quem escreve tem o olhar do formador que faz parte do programa e
o do observador que faz um exercício de reflexão sobre sua prática. Além disso, por mais que
a pretensão deste capítulo seja de lançar apenas um olhar sobre a questão, muitas nuances
deixarão de ser consideradas, pois qualquer ato de aprendizagem é extremamente
complexo e envolve aspectos que escapam das possibilidades do investigador. Ao mesmo
tempo, esta foi uma tarefa cada vez mais apaixonante, pois à medida que o caminho foi
sendo traçado, mais amplo se tornava, provocando uma reflexão constante de que quanto
mais sabemos, menos parecemos saber.
É importante ressaltar que neste capítulo não foram analisados dois aspectos igualmente
relevantes quando se trata de formação de professores. O primeiro refere-se à dimensão
pessoal do professor. Esta análise foi abordada no 2O capítulo , que relata a trajetória de
uma formadora e aprofunda esta questão. A segunda está relacionada aos fatores que
refletem nos resultados do processo de formação, pois trata-se de variáveis externas, como
reconhecimento social, profissional, como os planos de cargos e salários, tempo, condições
econômicas, recursos materiais para o ensino, acesso aos bens culturais, etc. Estes fatores
são específicos de cada realidade e, portanto, não é possível fazer uma análise global, pois
corre-se o risco de generalizações inadequadas.
Basicamente, relatos como este são relevantes porque é urgente reconhecer que o professor
necessita de apoios e acompanhamento sistemático do seu trabalho para que possa
compreender e enfrentar com mais segurança o processo de mudança dos paradigmas
educacionais, a fim de que tenha competência para fazer a “transposição didática”2 entre o
conhecimento teórico e a prática. Como a formação anterior à prática na maioria das vezes é
deficitária e como o conhecimento prático do professor é um elemento importante para sua
aprendizagem, torna-se necessário realizar trabalhos de formação permanente em serviço,
buscando dar a ele o suporte necessário para exercer simultaneamente estes dois papéis: de
professor e aprendiz.
2 Este conceito, usado por teóricos como Chevallard e Brousseau, refere-se à capacidade de transformar
o conhecimento teórico em conhecimento didático, utilizando-o em situações específicas.
87
FORMAR PARA
(TRANS)FORMAR
A ideia de desenvolver um Programa de Formação Continuada, surgiu no início dos anos 80,
a partir da experiência e dos estudos da prof. Maria Thereza Marcílio3, quando participava da
coordenação de um programa de Integração da Universidade com o 1o Grau desenvolvido
pelo MEC, junto às instituições de ensino superior e às redes estaduais e municipais, com
foco na capacitação de professores. Este projeto envolvia ações de diferentes formatos.
Um deles, mais conhecido na época, era o que se chamava de treinamento, que tinha como
base a necessidade de atualizar o professor em relação às concepções teóricas e meto-
dologias vigentes. Neste modelo, assim como na escola, o professor, no papel de aprendiz,
recebia uma série de orientações que deveriam ser reproduzidas na sala de aula. O modelo
de formação era um reflexo do modelo de ensino da escola.
Mas foi um outro formato que despertou o interesse da professora Thereza. Um formato
que parecia muito mais próximo às redes, que envolvia maior contato com os professores, e
criação de ambientes de reflexão coletiva. Nas visitas feitas a instituições que realizavam
estes projetos, os resultados pareciam ser muito melhores, pois havia uma proximidade e
periodicidade maior e uma aproximação entre teoria e prática, sendo muito mais funcionais
para o professor. Era visível a diferença entre estes, e os projetos montados na perspectiva de
treinamento, em que os professores tinham encontros pontuais com os formadores e uma
atitude muito mais passiva. No primeiro caso, apesar do envolvimento nos encontros, ao
chegar nas escolas os consultores percebiam que os professores não utilizavam os
conhecimentos adquiridos para transformar e melhorar a prática. Já no segundo modelo, a
mobilização se instaurava no próprio ambiente escolar, envolvendo toda sua complexidade
e portanto tinha um impacto maior na prática do professor.
Em 1986, ao retornar à Bahia e iniciar um trabalho na rede pública municipal como
Coordenadora do Programa de Ensino da Secretaria Municipal de Educação de Salvador, a
prof. Thereza, tinha o desejo de implantar um programa de formação, a partir do modelo
de capacitação em serviço. Nesta época, as pesquisas sobre a Psicogênese da Língua Escrita
já eram bastante difundidas e os contatos com pesquisadores brasileiros e de fora do país
apontavam para a necessidade de transformar a prática do professor em objeto de reflexão,
de fazer o professor pensar sobre o que fazia.
Com o desafio de organizar a rede municipal de Salvador e melhorar a qualidade do ensino,
paralelo a outras ações de diferentes naturezas, como o organização do ciclo básico de
alfabetização e uma re-alimentação da proposta curricular, organizou um programa de
formação em serviço pioneiro no país, com encontros quinzenais, que contava com
uma equipe central que se distribuía por regiões. As reuniões já tinham um foco nas
situações-problemas, com momentos de referência teórica e de reflexão sobre a prática.
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FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
As coordenadoras que faziam parte da equipe central reuniam-se para avaliar os encontros e
planejavam os próximos. Além disso, visitavam as escolas para observar algumas salas e,
naturalmente encontravam muita resistência, pois os professores tinham uma visão de que
o papel da coordenação era de fiscalização e não de apoio à sua prática. Este modelo
provocou a necessidade de instaurar uma nova cultura nas escolas, voltada para a reflexão
sobre a prática.
A partir da necessidade sempre presente de respaldo teórico, eram organizados seminários
que aconteciam ao longo do ano para “alimentar” o projeto. Esta proposta resultou numa
mudança profunda na rede, com a profissionalização dos professores, a partir de uma
atenção e cuidado maior no que acontecia em sala de aula.
Após o período na SEME (Secretaria Municipal de Educação), um novo projeto surgiu a partir
da demanda que emergia das escolas particulares, que também tinham o desejo de
instaurar programas de formação em serviço. Nesta época, em contato com profissionais de
áreas afins que compartilhavam o desejo de atuar em trabalhos ligados à qualificação
profissional, a Avante foi fundada, com o objetivo de atender às necessidades das redes
públicas e privadas e de projetos desenvolvidos por outras organizações como o Unicef e
fundações ligadas à área de educação.
A partir das pesquisas sobre formação de professores e da experiência nos projetos públicos,
montou-se um modelo de formação continuada, mantendo como base os princípios de
reflexão sobre a prática. A esta primeira proposta foram incorporados outros recursos que
vêm sofrendo ajustes, a partir das necessidades específicas de cada projeto, com maior rigor
no acompanhamento do processo, maior objetividade nos instrumentos e flexibilização das
ações a partir das diferentes demandas.
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FORMAR PARA
(TRANS)FORMAR
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FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
6 Este termo é usado por Meirieu para denominar uma pedagogia que se contenta em dar explicações.
(MEIRIEU, 1998, p. 170 – 171)
7 O conceito de competência é definido por Perrenoud como “uma capacidade de agir eficazmente em um
determinado tipo de situação, apoiada em conhecimentos, mas sem limitar-se a eles.”
91
FORMAR PARA
(TRANS)FORMAR
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FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
“Aprender é construir.”
Elaborada a partir da concepção construtivista, a afirmação defende que “aprendemos
quando somos capazes de elaborar uma representação pessoal sobre um objeto da
realidade ou conteúdo que pretendemos aprender “ 8.
Um programa de formação de professores que tem como base esta concepção
epistemológica deverá estar organizado de maneira que favoreça experiências de
construção e reflexão, pois é fundamental que a sua própria organização interna seja um
modelo coerente com a prática pedagógica que se deseja estabelecer na escola.
Este fenômeno, designado homologia dos processos é um “modelo de formação que
consiste em experienciar através de todo o processo de formação, as atitudes, modelos
didáticos, capacidades e modos de organização que se pretende que venham a ser
desempenhados nas práticas pedagógicas com as crianças.” (NIZA,1993, p.30)
Portanto, a forma como o modelo de capacitação da Avante foi construído tem como
pressuposto básico o fenômeno acima citado e a partir desta compreensão ancora-se em
uma série de fundamentos que lhe possibilitam uma coerência entre o currículo de formação
e o currículo que se deseja concretizar na sala de aula.
Para início de conversa é preciso falar de construção de vínculos. O primeiro passo para se
instaurar um programa de formação continuada que pretenda usar como principal
“ferramenta” a própria experiência do professor é estabelecer uma relação de confiança
mútua. Portanto, a primeira grande tarefa do formador é criar espaços em que sejam
favorecidas estas construções. E essa nem sempre é uma tarefa fácil, pois muitas vezes a
instauração de um processo de formação continuada não parte do desejo ou da necessidade
do professor. Na maioria das vezes é a instituição e não os professores que se mobilizam
inicialmente. Por isso, a construção de vínculo supõe um processo de “sedução”. Vincular-se ao
outro significa sentir-se seguro, confiante, solidário, motivado, pois no processo vincular é
preciso abrir-se e correr riscos, ir em direção ao outro, compartilhar expectativas, comunicar-se.
O estabelecimento de vínculos no processo de formação se dá em pelo menos dois âmbitos:
na relação formador – professores e entre os professores.
93
FORMAR PARA
(TRANS)FORMAR
Somos movidos por uma série de sentimentos contraditórios e é assim que muitas vezes se
inicia o processo vincular entre formador e professores. O formador pode representar uma
ameaça, uma esperança, um apoio, uma perspectiva... Isso emerge através de reações
diferentes entre os integrantes do grupo. É importante saber “ler” estas atitudes, investigar
possíveis motivos e lidar com eles de forma produtiva, ou seja, compreender que este é um
processo natural e até certo ponto esperado, para acolher estes sentimentos e monitorar o
processo individual de cada integrante do grupo. Reconhecer as diferenças e atuar a partir
delas é um desafio também para o formador.
Em relação aos professores, o convívio não significa necessariamente a construção de
vínculos. Se constituir em um grupo que compartilha idéias e respeita as diferenças, aprende
com elas e cria um ambiente de confiança a ponto do outro se “expor” não é algo simples. É
preciso que o formador tenha consciência deste processo e saiba utilizar estratégias que
favoreçam um “clima” que seja mobilizador e ao mesmo tempo “confortável” para aqueles
que estão levando sua prática para ser compartilhada com o grupo.
Também é preciso levar em conta a experiência do professor. Toda ação é fruto de uma
concepção teórica, assim, mesmo que não tenha consciência disso, o professor está
reproduzindo um modelo que já faz parte da sua história, pois foi transformado pela sua
experiência e suas crenças pessoais.
Segundo Nóvoa, “a produção de práticas educativas eficazes só surge de uma reflexão da
experiência pessoal compartilhada entre os colegas (...) O resgate das experiências pessoais
e coletivas é a única forma de evitar a tentação das modas pedagógicas.” Nesta perspectiva ,
estimular o professor a escrever sua própria história ajuda-o a monitorar seu processo como
profissional e aprendiz, a descobrir suas crenças interiores e dispara um movimento inicial
de pensar sobre “o que faz, por que faz e como faz”, fundamental para a transformação de
uma prática reprodutora para uma prática reflexiva. Enfim, o resgate da história pessoal do
professor ajuda-o a situar-se, conhecer-se melhor, descobrir suas convicções e incertezas e
posicioná-lo nesta condição essencial de eterno aprendiz.
Utilizar a experiência do professor como uma referência no processo de formação é
considerar um princípio da teoria construtivista sobre a aprendizagem que se refere à
importância dos conhecimentos prévios dos alunos, ou seja, saber que nenhum
conhecimento se constrói a partir do zero. Coll afirma que “quando o aluno enfrenta um
novo conteúdo a ser aprendido, sempre o faz armado com uma série de conceitos,
concepções, representações e conhecimentos adquiridos no decorrer de suas experiências
anteriores, que utiliza como instrumentos de leitura e interpretação e que determinam em
boa parte as informações que selecionará, como as organizará e que tipo de relações
estabelecerá entre elas” 9 .
Este é um dado fundamental para os professores-formadores, pois mais que respeitar a
experiência do professor é necessário torná-la objeto de estudo, avaliar as razões para
94
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
reações que às vezes são aparentemente de intolerância ou pura resistência. Quantas vezes
não são colocadas “em cheque” práticas que fazem parte de anos da história do professor?
É natural e até mesmo esperado que essas reações apareçam. Neste modelo de formação, os
sentimentos gerados por estes momentos de verdadeiros “terremotos” são cuidadosa-
mente analisados e considerados quando se planejam as situações de aprendizagem.
“A principal ferramenta de trabalho do professor é a sua pessoa, sua cultura, a relação que
instaura com os alunos, individual ou coletivamente. Mesmo que a formação esteja centrada
nos saberes, na didática, na avaliação, na gestão de classe e nas tecnologias, nunca deve
esquecer a pessoa do professor.”
( PERRENOUD, 2002. p. 176)
95
FORMAR PARA
(TRANS)FORMAR
“Estabelecer essa cultura, esse entendimento de como se aprende, de como é esse professor-
aprendiz é muito importante, porque determina na sala de aula como as coisas vão acontecer,
e é importante que o professor pense nele como aprendiz e como são as situações em que é
colocado como professor-sujeito-aprendiz, porque se percebendo assim, ele começa a mudar
a relação aluno-aprendiz. A capacitação é importante porque ela transforma esse lugar do
professor que sabe tudo, que não falha, que não erra, para esse sujeito que sabe pouco, que se
pergunta muito e que precisa entender o erro como um processo, para ter um outro olhar na
sala de aula, com o seu colega, estabelecendo uma outra cultura. Esse é o grande ganho da
formação, é o professor se ver de outra forma, incorporar a idéia de ser aprendiz.
( depoimento de Maria Teresa C. Brasileiro – diretora / 2001 )
Nos momentos de observação da sala de aula ou nas análises de vídeo o professor faz um
exercício constante de perceber que não se trata de estar certo ou errado, mas que há uma
série de elementos que precisam ser considerados e analisados para que a prática seja cada
vez mais eficiente, considerando a singularidade e a complexidade de cada ato educativo.
“Dizem que é bom a pessoa sentir angústia, pois prova que está havendo um movimento.
A inquietação conduz à busca da acomodação (no sentido piagetiano), mas é uma sensação
extremamente desconfortante.”
(fragmento do relatório diário da prof. Lícia – 23/03/98)
“Pela primeira vez passo pela experiência de ter a minha aula filmada. Gostaria de expressar
que a situação de filmagem me deixou a vontade, pois tenho claro que esta é uma situação de
aprendizagem e crescimento profissional e que poderei contar com minhas colegas de
trabalho, no sentido de intervirem construtivamente em minhas ações pedagógicas.”
(fragmento da análise reflexiva da situação filmada. Prof. Luciane –2001)
Portanto, para que o professor aprenda efetivamente é necessário que esteja disponível, isto
significa abrir-se para o desconhecido e desvendar o que está “por trás” do que é conhecido,
realizando um movimento contínuo de reflexão sobre a prática.
Um dos desafios mais importantes para que o formador garanta a participação e o
envolvimento do professor no processo é a seleção dos conteúdos da formação. Estes
conteúdos devem ser significativos para o professor para que ele tenha uma atitude
favorável. Uma das formas de concretizar este princípio da significatividade dos conteúdos
é quando se cria um ambiente em que o professor tenha autonomia para decidir que
situação deseja que seja selecionada para ser tema das reflexões dos encontros .
Dentro desta questão, outra que é igualmente relevante diz respeito à forma como estes
conteúdos são tratados. Neste sentido, utilizar as “problematizações” tem se constituído
em um meio de potencializar as aprendizagens, disparando discussões, socializações, enfim,
desencadeando as reflexões.
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FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
10 MEIRIEU, Philippe. Aprender... sim, mas como? Trad. Vanise Pereira Dresh . 7. ed.
Porto Alegre: Artes Médicas,1998. 193p. Tradução de “Apprendre...oui, mais comment”.
11 TISHMAN, Shari. Et alii. A cultura do pensamento na sala de aula. Trad. Cláudia Bucheitz.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1999. 243p. Tradução de “The thinking classroom: learning and teaching in a culture of thinking”.
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FORMAR PARA
(TRANS)FORMAR
ser resolvidas pelo grupo, quais são os elementos externos que interferem no pedagógico e
que precisam ser encaminhados, enfim, constitui-se como um sujeito cada vez mais
autônomo, exercitando o “aprender a aprender”, podendo desta forma constituir-se no
profissional permanentemente reflexivo - objetivo maior do programa de formação.
Por fim, há de se falar em proximidade. Estar próximo significa manter sempre uma marca
de identidade entre formador e grupo de professores, que é constituída pela condição de
aprendiz de ambos. Embora ocupem papéis diferentes, pois o formador problematiza, tece
considerações, apóia teoricamente, orienta, encaminha, é fundamental que não perca a
dimensão de sujeito que aprende, que pensa junto, compartilha seus processos pessoais,
pois como uma referência para o grupo, também ensina quando fala do seu percurso, dos
materiais que produz, das incertezas, das suas expectativas e receios.
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FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
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FORMAR PARA
(TRANS)FORMAR
Agora saímos desta amigável conversa com sentimentos diversos. Algumas estão
paralisadas com a constatação deste fato, outras parecem mobilizadas a
arregaçarem as mangas e ir em busca da superação dos obstáculos. Enfim, hoje
sabemos que não basta apenas admitir que muito precisamos estudar (como já
fazemos há muito tempo) temos que efetivamente ir em busca de alternativas para
diminuir nossa deficiência. Neste momento vale tudo: estudar sozinha, estudar
com o outro, estudar com os outros, estudar, estudar...
O CONHECIMENTO DIDÁTICO
100
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
Os professores estão ávidos para saber como fazer. Como já afirmamos, esta é uma
atitude previsível e até certo ponto esperada, pois tanto a formação inicial quanto
a própria experiência recente apontavam para uma competência ligada muito mais
à execução de postulados metodológicos do que à produção e reflexão do fazer
pedagógico, pautado no processo de aprendizagem do sujeito. A partir das idéias
da teoria Construtivista, emergiu a necessidade de compreender cada vez mais
como a criança aprende, pois este se tornou o ponto de partida para se compreen-
der a “revolução” que ocorreu na didática a partir de então. Podemos afirmar que o
que diferencia o professor que continua repetindo um determinado modelo, ou
porque não dizer, seguindo as tendências da “moda”, de outro que pergunta
porque se faz, é justamente sua compreensão do funcionamento do sujeito,
determinando os caminhos da didática.
“Precisamos reconhecer cada vez mais como as crianças funcionam, recorrendo a
Wallon, descobrindo seu corpo, cada faixa etária, o ser integral e como as crianças
lidam com as questões que a vida lhe proporciona. Esse conhecimento seria mais
um obstáculo?
Assim o nosso ambiente poderia ser repensado, respeitando o modo de ser de cada
um. Um ambiente flexível onde muda-se a forma. Buscando um olhar relativo,
nunca extremos. Ter um olhar relativo seria mais um obstáculo?”
( fragmento de um relatório da prof. Andréa/ 2001)
101
FORMAR PARA
(TRANS)FORMAR
1. SEMINÁRIOS
“Nada mais prático que uma boa teoria”.
A primeira ação deste modelo de formação é a realização de Seminários Iniciais de
alinhamento conceitual. Esta ação consiste em possibilitar reflexões sobre uma questão que
será aprofundada no decorrer do semestre. Por exemplo, se naquele período os encontros
de formação terão o foco na área de Língua, haverá um Seminário específico desta área.
“(...) é impossível contentar-se com uma formação restrita no “campo de ação”. Se é forjando
que se torna ferreiro, para forjar é preciso ter compreendido, por menos que seja, o que
implica o mínimo de deslocamento e de distância necessário para “domar” a tarefa.”
HADJI, 2001, p. 16 (Revista Presença Pedagógica)
Embora o objetivo seja alinhar o grupo conceitualmente, a forma como os seminários são
organizados está ancorada nos pressupostos teóricos de formação descritos nos
“Pressupostos que sustentam a prática”. Portanto, não se trata de uma exposição de
conhecimentos, mas de situações que ajudem o professor a identificar quais são as teorias
que sustentam sua prática, além, é claro, de ampliar seus conhecimentos.
Em alguns casos, principalmente no início do processo de formação, há Encontros de Alinha-
mento Conceitual regulares que variam de 4 a 8 horas, uma vez por mês. Assim como os
Seminários Iniciais têm por objetivo proporcionar momentos de ampliação do referencial
teórico que sustenta a prática, definindo temas específicos de reflexão. Estes encontros são
muito significativos principalmente em contextos em que a cultura do estudo sistemático
não está instaurada.
Abaixo, um exemplo do planejamento de um encontro de 8 horas com uma equipe de
professores que havia iniciado o processo de formação há 2 meses:
102
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
Acolhimento:
A partir do número que tirou no sorteio, escreva um bilhete para a pessoa
correspondente:
Hoje gostaria de lhe dizer...
(escrever o que desejar para esta pessoa, expressando seus sentimentos, etc.)
Entrega dos bilhetes e leitura pelas pessoas que quiserem compartilhar.
Comentários sobre nossas reações diante do texto que nos foi escrito.
Introduzir o tema do encontro.
Disparador:
Fazer um registro pessoal:
Na minha vida...
Que sentimentos me vêm à mente quando penso em escrever?
Quais foram as situações prazerosas de escrita?
Quais foram as situações de escrita que não foram significativas e que
causaram um “afastamento” da escrita?
Socialização das respostas no flip, anotando também os motivos que estão
associados ao prazer e ao desprazer.
Exposição participada:
Transparências:
O que se escreve na vida - O que se escreve na escola - problema didático
(estabelecer relações com as questões da reflexão inicial)
A complexidade da escrita e os aspectos que precisam ser considerados para o
planejamento de boas situações de produção de textos:
- Decidir o tema e a situação de escrita
- Estabelecer claramente a finalidade da escrita
- Decidir o destinatário do texto
- Conhecer as características do texto
Trabalho em grupos
Distribuir 4 orientações didáticas sobre situações de aprendizagem neste eixo
para que o grupo discuta a pertinência; justifique porque é uma boa situação
de aprendizagem e pense nos ajustes necessários para realizá-la.
Socialização.
103
FORMAR PARA
(TRANS)FORMAR
Exposição participada:
Etapas de produção de textos:
- Planejar
- Produzir
- Revisar
Trabalho em grupos:
Com a aproximação do Dia dos Professores, gostaria que vocês escrevessem
textos com o tema: Quem sou eu, professor?
Os grupos devem se organizar da seguinte forma:
- 2 pessoas produzindo
- 2 pessoas observando
Caberá aos observadores anotarem de que forma as produtoras se organizam
para escrever: que decisões tomam, que dificuldades enfrentam, o que fazem
primeiro, como é o percurso da escrita, etc.
Cada grupo escreverá um tipo de texto diferente, que será sorteado:
- Carta para mandar aos outros professores das outras escolas do Sesi
- Notícia para ser enviada ao jornal do Sesi
- Receita para mandar aos professores de Coroatá-MA
- Manual de instruções para os professores da rede pública de Simões Filho
- Propaganda para ser divulgada aos pais
Após a produção, fazer uma troca entre os grupos para que façam uma revisão
do texto.
Socialização dos textos e discussão sobre os aspectos observados.
Avaliação do encontro:
Escrever um bilhete para o colega sorteado contando o que ficou de mais
significativo do encontro.
( A formadora deverá ressaltar as diferenças na função do 1o bilhete e deste último)
104
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
“Para mim a realização dos seminários é muito importante pela oportunidade de ler um livro,
de discutir, de debater com todo o grupo. Não que a gente leia só o livro do seminário, a gente
lê outros, mas pela questão do tempo, do corre-corre, é bom que a gente pare, que tenha
esse momento com este objetivo de troca. As pessoas se encontram e realmente debatem
sobre a teoria e a prática.”
( depoimento da prof. Olívia / julho 2001)
“Um dia estava com dúvidas sobre a escrita e Rita emprestou-me um livro. Eu li e achei muito
importante; um crescimento profissional para mim e minhas colegas e resolvi preparar um
seminário para apresentar para elas. Foi muito bom, de acordo com minhas capacidades; mas
toda essa coragem foi por causa de vocês, da capacitação que foi uma das melhores coisas
que aconteceram na minha vida profissional e pessoal.”
(depoimento da prof. Josenice Araújo – Sesi Coutos/ julho 2001)
“Quando a Avante, com seu modelo de capacitação dava-nos um livro para ler e apresentar;
no início tive muitas dificuldades para entender o que estava lendo e fazer relações com outras
leituras, pois as primeiras leituras que tive foram as que vocês trouxeram (...) Foi então que eu
105
FORMAR PARA
(TRANS)FORMAR
resolvi mudar, eu precisava ler para entender como ajudar meus alunos e entender como eles
aprendem e então fiz uma rotina na minha vida, onde coloquei o horário fixo para estudar e
não só os livros do seminário, mas outros também.”
(depoimento da prof. Josenice Araújo – Sesi Coutos/ julho 2001)
“Hoje há uma preocupação de estar trazendo estas “leituras” para realmente mudar a nossa
prática. Quando o seminário saiu do lugar de que a gente iria ler o livro para apresentar e
começamos a ter um olhar para este livro como uma referência de mudança ele tornou-se
mais funcional, mais significativo e prazeroso.”
( depoimento da prof. Sandra / Julho 2001)
Esta estratégia se constitui na ação mais importante da modalidade de formação que consi-
dera o caráter eminentemente prático da profissão docente. É fundamental favorecer o
desen-volvimento da atitude investigativa e reflexiva , permitindo ao professor um “olhar”
sobre sua prática, transformando-a em objeto de estudo.
Uma das formadoras da equipe da Avante e coordenadora dos projetos de formação afirma que:
“O que move o professor a mudar é a reflexão da prática, embora ele custe a acreditar que isso
funcione (...) A teoria apenas não é suficiente, só funciona se de fato estiver muito ligada à
prática servindo para iluminá-la e para voltar a ela através da própria prática.”
( Thereza Marcílio – coordenadora e consultora da Avante )
106
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
Esta tematização ou reflexão sobre a prática, pode ser feita a partir de documentos como
produções dos alunos, planejamentos; por uma problematização elaborada por um professor
sobre uma situação prática; pela observação da sala de aula ou pela gravação em vídeo.
A seguir, um detalhamento destas possibilidades:
107
FORMAR PARA
(TRANS)FORMAR
Mas não é simples instaurar este modelo exatamente porque as concepções de erro e de
aprendizagem presentes dificultam o entendimento de que não se está analisando a pessoa
do professor, mas a atividade que ele propõe, que de certa forma é referendada pela
instituição. Por outro lado, é preciso ter consciência e convicção que a aprendizagem não se
dá através da transmissão de conhecimentos, mas é construída a partir de problema-
tizações, interações e elaborações internas e portanto demanda tempo e a construção de
um vínculo de confiança e parceria entre os que estão envolvidos.
“O professor ver o outro é muito bom, e ver a si mesmo é melhor ainda. Há uma resistência. Há
uma sensação muitas vezes de que não está se avançando, pois a escola ainda funciona muito
com uma idéia de coisas prontas e acabadas, ou seja, ao terminar um encontro é como se tivesse
que sair dali quase que com um pacote fechadinho do que eu aprendi, do que hoje sou, do que
agora vou fazer diferente. Incomoda muito ao professor e à escola as coisas mais abertas, e a
formação continuada é um processo aberto, não fecha nunca, porque não tem como fechar.
Essa é talvez a maior dificuldade para a escola e para o professor. Entender que é um processo
aberto e que sempre haverá questões, e que são exatamente essas questões que vão fazer
mudar a prática, pois na hora que se responder todas alguma coisa está errada, pois não dá para
responder todas. Vamos encontrar respostas que vão se transformar em novas perguntas, e isso
ainda é muito complicado para a instituição e para os professores pois este é um modelo de
escola e de educação secular e romper com isso não é fácil. Entrar na idéia do construtivismo não
é uma coisa simples – que todo conhecimento é um construto, é algo que é produzido
constantemente, portanto ele é provisório, é relativo, não pode ser fechado... O que não
significa que não se tenha acordos provisórios, não é uma montanha-russa permanente, se tem
patamares, momentos de muita estabilidade, mas o processo de formação continuada existe
para construir esses acordos provisórios coletivos, mas também para instaurar uma reflexão
permanente que por si só vai provocar questões sempre... É preciso continuar perguntando.”
(Relato de Maria Thereza Marcílio – consultora e coordenadora da Avante)
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FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
Nenhum de nós, voluntariamente, se vê como de fato é. Cada um cria uma imagem sobre si e
é natural que se tema desvendar uma imagem verdadeira. O vídeo é um instrumento muito
ameaçador neste sentido, pois possibilita o desvelamento desta imagem. Essa é uma das
razões porque tantos professores reagem tão fortemente a qualquer registro desta natureza.
O depoimento abaixo revela o quanto é difícil incorporar a idéia de construção na escola, a
partir de uma concepção de erro que não seja aquela ligada à crítica. É fundamental
estabelecer um ambiente de confiança, de cumplicidade, para que o objetivo do trabalho
seja alcançado. Mas esta atitude não se constrói facilmente, sendo necessário ser objeto de
reflexão permanente para o grupo.
“A filmagem é realmente muito importante na vida de todo profissional, mas às vezes ela é
usada como forma de criticar o trabalho do outro professor. Se as críticas não são construtivas
elas mobilizam os professores e perde um pouco a união. Tem professor que assiste a
filmagem só para procurar o que criticar, sem validar o que o outro fez de bom. É por isso que
incomoda tanto, porque ele se sente exposto. É o objetivo do professor que tem que ser
analisado e no vídeo não dá para mostrar o trabalho de forma abrangente e isso dificulta (...)
Essa conscientização de que a filmagem tem que ser algo para o crescimento do professor é o
que falta ainda em relação aos profissionais e isso precisa retomar sempre. Porque a gente
“prega” o olhar relativo mas às vezes não exercita.”
(depoimento da prof. Maria Gentila/ Julho 2001)
FIGURA 1
109
FORMAR PARA
(TRANS)FORMAR
Elas aprenderam algo que não estava O que ela ainda precisa saber?
previsto inicialmente?
A partir destas orientações e das discussões e modelos da própria escola, o professor elabora
um planejamento. Esta aula será filmada para posterior socialização com o grupo de
professores da instituição.
O professor filmado deve assistir a fita para que possa ter a possibilidade de refletir sobre sua
prática antes que o restante da equipe o faça. Após ter assistido, elabora um registro escrito
que permite que ele tenha a oportunidade de se distanciar do seu fazer para analisá-lo e
problematizá-lo, instaurando questões para uma reflexão individual e posteriormente coletiva.
Abaixo, exemplos do movimento de reflexão de dois professores no momento de planejar e
posterior à ação.
PLANEJAMENTO
CICLO - 1 | GRUPO - 3 B | TURNO- Matutino
ÁREA - Língua Portuguesa | DATA- 13/09/00
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FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
CONTEÚDOS:
- Participação em uma situação de escrita com função real.
- Colaboração com os colegas compartilhando dúvidas e certezas.
- Produção de legendas.
ORGANIZAÇÃO DA SALA:
1º momento: em roda
2º momento: nas mesas
Obs.: O grupo estará divido em dois, metade na oficina de artes e a outra,
produzindo as legendas.
INSTRUMENTOS DE TRABALHO:
Fotos tiradas durante a visita ao cinema, pilot e papeis de ofício colorido (presos às fotos).
CONSIGNA:
As fotos que tiramos durante a visita ao cinema já chegaram. Que tal expormos lá fora para
que outras pessoas possam ver? Então vamos escrever abaixo de cada foto o que aparece.
Vocês vão trabalhar nas mesas sentando 2 a 2 e eu vou registrar, o que cada um escreveu, no
meu caderno para digitar depois. Alguém quer repetir para os colegas o que vamos fazer?
ORIENTAÇÕES DIDÁTICAS:
- Lembrar os combinados: levantar o dedo quando quiser falar, escutar a idéia do colega,
esperar sua vez...
- Falar a consigna;
- Ouvir as crianças, intervindo quando necessário;
- Distribuir as fotos;
- Planejar a escrita: dizer o que estão vendo e o que vão escrever;
- Produção das legendas;
- Intervir durante a produção.
- Possíveis intervenções: - O que aparece nesta foto?
- O que vocês podem escrever sobre esta foto?
- Precisa escrever o nome das pessoas que aparecem na foto?
- Está bom assim ou precisa escrever mais alguma coisa?
REFLEXÃO
Olha eu aqui outra vez partilhando com vocês minhas dúvidas, receios, angústias... Dessa vez
um pouco mais tranqüila com os “olhares da câmara”, talvez porque tive o tempo e o desejo
ao meu favor. Dentre as atividades já planejadas para serem desenvolvidas junto ao grupo 3B,
escolhi a que pensei ser mais favorável a discussões e enriquecedoras e realmente desejei
apresentá-la.
111
FORMAR PARA
(TRANS)FORMAR
Então vamos a ela. Fiquei feliz ao assistir a fita e perceber o interesse, envolvimento e atuação
das crianças. No entanto, a mesma angústia do dia da filmagem se fez presente. Fico
pensando se não estamos exigindo muito em relação a abstração do pensamento. Me senti
exigindo de Gigi para que escrevesse, notei que ela apresentou avanços na organização do
pensamento revelando o que estava na foto, qual o lugar e o que estava fazendo, mas parecia
não mais à vontade para escrever depois da minha insistência, uma prova, creio eu, foi o fato
de ter usado o desenho (seu velho conhecido) e não tentativa de escrita, como fez antes.
Fico pensando nessas questões e me perguntando se não estamos caminhando para outro
extremo, antes na educação infantil os “textos” eram simples, os exercícios motores eram
prioridade... E agora? Será que estamos planejando atividades que vão além da zona de
desenvolvimento das nossas crianças principalmente no que se refere a produção escrita? E
me preocupa a imagem de escola que estamos permitindo que as crianças construam. Então
lembrei-me de uma citação do livro, O Imaginário no Poder, de Jacqueline Held:
“Senhor, não quero mais ir a escola...
Prefiro escutar o que diz, à noite,
A voz quebrada de um velho que conta, fumando,
As histórias de Zamba e do Compadre Coelho
E muitas outras coisas ainda...
E depois, é realmente muito triste na escola,
Triste como... esses senhores bem educados
Que não sabem mais contar histórias”.
Guy Tirolien
Convido vocês a refletirem comigo e juntos pensaremos em propostas que não abafem a
disponibilidade original para imaginar, fantasiar, criar... diante das imagens, idéias e palavras.
É um grande desafio! Mas estamos aqui para quê?
Beijos,
Marjorie.
PLANEJAMENTO
GRUPO 7 | DATA- 17/04/01
112
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
ATIVIDADE
1a Revisão da Autobiografia
NATUREZA DA ATIVIDADE
CONTEÚDOS
INSTRUMENTO DE TRABALHO
DESENVOLVIMENTO DA ATIVIDADE
CONSIGNA
Hoje iniciaremos a revisão do texto individual que fará parte da coletânea de autobiografias.
Como já conversamos, todo texto precisa ser revisado. Portanto, leia o seu texto com atenção,
releia o planejamento e siga o roteiro anotando as informações que ajudem a melhorar a sua
produção.
Obs.: O ajudante do dia entregará o roteiro de revisão e a professora ficará com 3 alunos
que foram selecionados previamente.
POSSÍVEIS INTERVENÇÕES
- Que informações deverão ser colocadas primeiro? Por que? Essas informações aparecem
no seu texto? O que falta?
- Que palavras você utilizou para marcar o tempo em que os fatos aconteceram?
- Agora, leia o segundo parágrafo. Você acrescentaria novas informações? Quais? Releia o
seu planejamento e veja se tem informações que possam ajudá-lo.
Obs.: Na próxima etapa da revisão, em duplas a professora entregará um roteiro para que a
dupla revise um único texto. Numa outra aula, fará o inverso.
113
FORMAR PARA
(TRANS)FORMAR
REFLEXÃO
Em 17/04/01
Pela primeira vez, passo pela experiência de ter minha aula filmada. Gostaria de expressar que
a situação de “filmagem” me deixou à vontade, pois tenho claro que esta é uma situação de
aprendizagem e crescimento profissional e que, poderei contar com minhas colegas de
trabalho, no sentido de intervirem construtivamente em minhas ações pedagógicas.
A intencionalidade desta atividade foi que as crianças fizessem a revisão do seu texto a partir
de um roteiro, onde, de posse do planejamento e das questões levantadas no roteiro elas
pudessem refletir e propor melhorias sobre a sua própria produção (autobiografia).
Para a realização desta atividade, escolhi previamente, três crianças, objetivando acompanhá-
las mais diretamente, propondo questões em função dos aspectos a serem observados e
reestruturados. Como por exemplo, assegurar a estrutura da autobiografia e o nível de infor-
matividade para clareza, compreensão e aperfeiçoamento do texto.
Refletimos muito acerca da atividade proposta e chegamos a conclusão de que este não era o
momento das crianças fazerem a revisão dos seus próprios textos via um roteiro que envolvia
aspectos muitos genéricos. Por esse motivo, algumas crianças se dispersaram e apenas
responderam na folha guia (roteiro), sem recorrer ao planejamento e a primeira produção
para iniciarem a análise do texto.
Após conversarmos bastante sobre o resultado da atividade de revisão proposta para crianças
de 6 e 7 anos, chegamos a conclusão que o ideal seria levantar intervenções ao longo do
próprio texto do aluno, visando alcançar o nosso propósito. Por isso, planejamos que a
próxima revisão será feita em duplas, onde irão ler e avaliar um texto de cada vez, oportu-
nizando assim, que os alunos se concentrem em reler suas produções e melhorá-las a partir
das intervenções propostas.
“O autor que volta ao seu texto, lendo e que produziu, pode sempre fazer novas
reflexões, alterar idéias, ditado ou escritura. Assim procedendo, alterna os papéis de
escritor e de leitor, submetendo seu próprio texto a provas rigorosas de coerência no
estilo e na gramática. Desta maneira o ato de escrever torna-se uma poderosa
ferramenta para o uso e desenvolvimento da inteligência humana”.
Monique Deheinzelin
114
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
No encontro com o grupo de professores, logo após assistirem a aula em vídeo, o professor
que foi filmado será o primeiro a se pronunciar, seja pela sua reflexão escrita ou seja por
considerações adicionais que achar necessário. Do ponto de vista do professor-formador, o
registro escrito do professor é fundamental no planejamento do encontro, pois
proporciona informações importantes no que diz respeito a sua possibilidade de reflexão,
suas indagações, que questões são observáveis, bem como a análise que faz sobre outros
fatores que envolvem e interferem na dinâmica da aula, como por exemplo o organização da
sala, os recursos utilizados, as relações estabelecidas, o limite do tempo, etc.
O desafio do formador é planejar boas estratégias de reflexão, a partir de um modelo de
ensino que pressupõe a problematização. Segundo Meirieu, “uma pedagogia das situações-
problema deverá esforçar-se para instalar dispositivos em que se articulem explicitamente
problemas e respostas, em que as respostas possam ser construídas pelos sujeitos e
integradas à dinâmica de uma aprendizagem finalizada (...) A explicação nada vale sem a
necessidade que a requer e a ela dá sentido (...) A verdadeira pedagogia explicativa não é o
ensino das explicações mas a cultura, diríamos o culto das necessidades de explicação.”13
Este encontro com todo o grupo de professores da escola, instaura um ambiente de
aprendizagem coletiva, cooperativa e compartilhada. Os professores passam a ter uma visão
mais global do funcionamento da escola e constróem juntos práticas que são referendadas a
partir de uma análise reflexiva e não de uma imposição hierárquica
“Os não saberes a cada dia são especulados e reconhecidos com autonomia, ao mesmo
tempo que nos enchemos de coragem e recomeçamos a busca nas leituras. (...) Perce-
bemos em nosso último encontro que os ranços em matemática estão sendo superados a
partir do momento em que analisamos a nossa prática e a de outrem...”
(Prof. Cássia, Sesi - agosto de 2000)
13 MEIRIEU, Philippe. Aprender... sim, mas como? Trad. Vanise Pereira Dresh . 7. ed.
Porto Alegre: Artes Médicas,1998. 193p. Tradução de “Apprendre...oui, mais comment”.
115
FORMAR PARA
(TRANS)FORMAR
FIGURA 2
Após, leitura do planejamento e formulação de duas perguntas acerca do projeto na qual está
inserida a situação de aprendizagem
Listagem da postura que um professor deve assumir em sala de aula
Quadro comparativo da escola que os professores estudaram para a escola que trabalham
A idéia de cuidado na Educação Infantil:
Listagem dos cuidados que são necessários com as crianças
Listagem de cuidados que o professor tem que ter consigo mesmo
Comparação das duas listagens e discussão em plenária
Formulação de uma pergunta acerca do assistido e em seguida trocas das perguntas para serem
respondidas por uma colega
Troca de idéias em duplas e formulação de uma pergunta para ser apresentada em plenária e debatida
Produção individual de uma reflexão que o filme provocou acerca da sua postura de professor
116
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
Nos encontros com os grupos de professores há pelo menos dois instrumentos que são
sistematicamente utilizados. Um deles é o registro reflexivo que acontece de duas formas.
Na primeira cada professor é estimulado a ter o seu caderno de registro que será usado
durante os encontros e depois, quando deverá fazer um registro mais elaborado das
questões que foram discutidas. Um dos professores fica encarregado em trazer o registro
do último encontro para ser lido no início do posterior. Cada instituição coloca um nome e dá
um formato para este documento. Abaixo, alguns exemplos de reflexões compartilhadas
nos encontros de formação:
DIÁRIO DE BORDO
Relatório da Análise de Vídeo
Com muito prazer reiniciamos, dia 16 de março de 2001, as atividades de observação
desenvolvidas em sala de aula, desta feita analisando um vídeo referente a aula aplicada pela
professora Ana Célia Duarte, do grupo 6, turno vespertino.
A reunião foi iniciada por Rita Margarete, com algumas considerações sobre a necessidade de
começarmos os trabalhos, rigorosamente no horário, a fim de aproveitarmos o máximo
das discussões.
Após a leitura do protocolo, pela própria Ana Célia, Rita propôs duas questões ao grupo, para
serem refletidas durante a exibição do vídeo:
O que mudaríamos, o que manteríamos?
Foi uma atividade isolada descontextualizada, na área de Língua Portuguesa, tendo como
conteúdos, valor convencional do alfabeto, conhecimento e identificação das letras em
contextos significativos e descoberta progressiva da natureza alfabética.
No primeiro momento, com as crianças sentadas em círculo, a professora expôs a consigna
extraindo seus conhecimentos prévios sobre como organizar fichas de nomes, em seguida
solicitou a um dos alunos que a repetisse como forma de esclarecimento para o grupo.
No segundo momento, já em grupos nas mesas, foram apresentadas as fichas com os nomes
dos próprios alunos, enquanto estes eram solicitados a observarem, nomearem e relacionarem
os respectivos nomes à outros que tivessem as letras iniciais iguais.
A atividade prosseguiu com a entrega, para cada criança, da ficha com seu nome para ser
analisada e colocada num cartaz de pregas, enquanto a professora utilizava intervenções a fim
de que o grupo percebesse a existência de uma ordem a ser seguida de acordo com as letras
do alfabeto.
Foi um momento bastante interativo onde as crianças se envolveram com a tarefa, demons-
trando conhecimento elementar sobre a ordem em que os nomes deveriam estar arrumados.
Iniciada a discussão, as questões anteriores, foram retomadas: O que mudaríamos...
Ana Célia ficou com a palavra, dizendo mudar muita coisa, inclusive sugeriu que faria uma
sondagem do grupo para saber sobre os conhecimentos trazidos pelas crianças a fim de que, a
partir daí, as atividades propostas se tornassem desafiadoras.
Sandra prossegue questionando sobre a posição da letra K, que não fora abordada no
conjunto, embora tenha sido referendada por uma das crianças.
Claúdia referiu-se aos conhecimentos que as crianças trouxeram sobre os nomes masculinos e
femininos evidenciados ao arrumarem as fichas no quadro dos nomes da turma.
117
FORMAR PARA
(TRANS)FORMAR
Luciana trouxe como ponto positivo a clareza na consigna e organização da sala, mas
considerou extenso o discurso da professora, a leitura das palavras, fragmentadas,
questionando: O que é ordem alfabética? Para que serve?
Ana Célia contra–argumentou: para facilitar buscas, pesquisas... usa-se nas farmácias,
bibliotecas, dicionários, listas telefônicas, etc...
Antônia Cristina também professora do grupo 6, comentou que usou estratégias diferentes
para mesma atividade, utilizando os classificadores onde as crianças teriam que identificá-los
com o próprio nome e colocá-los também em ordem alfabética, direcionando as intervenções
para os alunos que estão em nível pré- silábico, enquanto recebiam a colaboração dos
companheiros em nível silábico.
Rita retomou referindo-se à consigna como uma estratégia pouco recomendada para uma
sondagem do grupo, sugerindo para tanto, intervenções individualizadas e diferenciadas, para
maior segurança do professor e questionou quais conteúdos são fundamentais para se propor
ao grupo 6, quais são as hipóteses dessas crianças, para nossa reflexão.
Lívia achou um grande desafio para as crianças deste grupo a tarefa proposta, Rita então
reforçou questionando sobre a relevância que há para esta criança conhecer a ordem
alfabética no momento em que ela está construindo sua escrita, ilustrando sua fala com uma
citação de Terezinha Nunes: “recitar até 20, não significa estar contando”, concluindo que
recitar ordem alfabética não implica na construção da escrita, que a organização da lista não
foi um problema das crianças, mas da professora e sugeriu como consigna significativa, a
construção de uma lista para marcar quem já foi ou não ajudante do dia, como tarefa
individual ou em duplas, a professora levaria para casa, as produções e prepararia uma aula de
revisão onde possibilitaria a criança pensar e produzir escrita.
A reunião foi encerrada com sugestões de verdades Coletivas:
Observar pontualidade. (Rita Margarete)
Esperamos aprender muito, também este ano, assim como aprendemos o ano passado,
com as atividades de matemática.(Brito)
Parabéns para Ana, pelo seu jeito espontâneo de ser e pela boa relação que tem com as
crianças. (Claúdia)
É importante pensarmos sobre o papel do professor junto ao grupo 6, e no que vamos
trabalhar. (Luciana)
Estarmos sempre atentos que o problema deve ser da criança, não do professor. (Lívia)
Um mais um, é sempre mais que dois. (Beto Guedes), em relação a este grupo de trabalho.
(Luciana)
Cacilda Braga Regis
DIÁRIO DE BORDO
Quando assumi ser a escriba do diário de bordo, no dia 14/11/00, nosso barco ainda navegava
em águas calmas.
Mal sabia que Marília, no comando do leme, nos conduziria rumo a ventos e tempestades e
nos deixaria em meio ao mar revolto.
Para que o leitor desavisado não julgue mal a nossa comandante, explicarei melhor: é que a
calmaria foi espantada por perguntas provocativas, cujo objetivo era levar a tripulação a refletir
sobre o lugar que a linguagem oral ocupa nos processos de ensino e aprendizagem. E não só
aqui, mas em todos os barcos – escolas que navegam pelos sete mares.
118
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
E a mim, que tarefa difícil coube, pois às vezes me empolgo com as discussões e me esqueço
dos registros de ampliar o uso da linguagem oral, mas nem sempre o professor sabe
potencializar essas situações.
O final da viagem se aproxima e Marília prepara seu desembarque, irá para seu reduto em terra
firme. Nos sentimos mareadas com o vai e vem intenso das ondas, mas não abandonadas.
Ainda no comando, Marília nos convida a tomar o leme, a aprofundar nossos estudos.
Desembarca deixando muitas interrogações em cada cabeça. Antes, porém, começa a traçar
um mapa para nos orientar, aqui traduzido como verdades coletivas. Convido vocês, leitores
do diário de bordo, a seguirem as instruções do mapa:
Assim como a linguagem escrita, a linguagem oral deve ser planejada, produzida e revisada.
Textos narrativos literários não são potencializadores para aprendizagem da linguagem oral.
Nas atividades de linguagem oral é preciso estar atento a forma e ao conteúdo.
Linguagem oral pode e deve ser ensinada.
Após este relato, só me resta desejar a todos uma boa viagem nas leituras, estudos e propostas
de novas atividades envolvendo a linguagem oral. Tomara que, próxima vez, ao refazermos
essa mesma rota, possamos nos sentir “qual cisne branco, que em noite de lua, vai navegando
num lago azul...
Tereza Ernica
DIÁRIO DE BORDO
Salvador, 24 de abril de 2001.
Iniciamos o nosso encontro com mais uma polêmica discussão a respeito da escrita do nosso
diário de bordo. Quem vai fazer? Temos esse desejo? Depois de muitas “lamentações”
realizou-se um sorteio de uma forma muito justa e por coincidência as pessoas sorteadas não
haviam feito esta tarefa ainda. Eu era uma delas e confesso, tinha pela primeira vez o desejo de
escrever, porém vinha a minha cabeça a lista de coisas para fazer e entregar até o dia 8 de maio.
Não tinha mais jeito, até Marília havia me sugerido para este papel e agora estou aqui
buscando relembrar um pedaço da nossa caminhada...
... Marília iniciou com a leitura de um texto muito verdadeiro: “A lição da Borboleta”, que fala
da importância e a necessidade do ESFORÇO em nossas vidas. Foi muito bom receber o texto
como “recompensa” e agora lendo-o mais uma vez vejo que o seu significado é muito maior,
pois fala que vencendo OBSTÁCULOS alcançamos TUDO o que de fato precisamos.
Retomamos o Alinhamento Conceitual e constatamos as possibilidades e limitações do grupo,
além de saber que o nosso espaço é uma realidade e um limite também. Seria um obstáculo?
Precisamos reconhecer cada vez mais como as crianças funcionam, recorrendo a Wallon,
descobrindo seu corpo, cada faixa etária, o ser integral e como as crianças lidam com as
questões que a vida lhe proporciona. Esse reconhecimento seria mais um obstáculo?
Assim o nosso ambiente poderia ser repensado, respeitando o modo de ser de cada um. Um
ambiente flexível onde muda-se a forma. Buscando um olhar relativo, nunca extremos. Ter um
olhar relativo seria mais um obstáculo?
Discutimos a respeito do PODER e o encanto das brincadeiras e do lúdico como forma de
desenvolver os projetos e as situações de aprendizagem, porém lembrando mais uma vez que
não podemos ser extremistas. O brincar seria mais um obstáculo?
119
FORMAR PARA
(TRANS)FORMAR
Tais citações vinham na minha mente como “cutucadas”! Sentir e perceber as cutucadas seria
mais um obstáculo?
Terminamos a proposta e depois de escutar cada dupla, Marília observou que ainda estamos
pensando muito no espaço físico. A escola não é algo uniforme, as atividades devem ter mais
fluência com propósito das crianças compreenderem o mundo. Os grupos ficam muito
isolados, como pequenas ilhas. Importante seria organizar o tempo e o espaço para que as
crianças tivessem maior autonomia e maior trânsito entre os grupos. A importância do
ambiente ser revelador da identidade do grupo. Organizar esse tempo e esse ambiente seria
mais um obstáculo?
Finalizamos com as nossas verdades coletivas:
É preciso ser flexível;
O ambiente não é apenas o espaço físico;
A forma muda o conteúdo;
Mais trocas entre os grupos;
Menos competitividade.
Pensando nestas VERDADES e nos nossos OBSTÁCULOS proponho que nós, com muito
ESFORÇO, possamos sair e nos libertar dos nossos “casulos”...
Com carinho,
Andréa
120
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
Em síntese, esta ação permite que os professores aprendam a partir da análise de sua
prática, tenham oportunidade de interagir com seus colegas instaurando uma cultura
menos solitária e mais solidária, além de poderem ter uma visão mais ampla do
funcionamento da escola, competências fundamentais no desenvolvimento do perfil de
profissional que se busca formar.
“A ação de olhar é um ato de estudar a si próprio, a realidade, o grupo à luz da teoria que
nos inspira. Pois sempre só vejo o que sei (Jean Piaget). Na ação de se perguntar sobre o
que vemos é que rompemos com as insuficiências desse saber; e assim, podemos voltar à
teoria para ampliar nosso pensamento e olhar.”
Madalena Freire
Abrir as portas da sua sala de aula e deixar-se observar não é um movimento fácil para o
professor . Seu processo de aprendizagem começa desde este ato de socializar seu espaço e
torná-lo um instrumento que permita o exercício da reflexão. Levar em conta a prática
significa aceitar falar das dificuldades, dos não-saberes, expor as fraquezas, assumir um
121
FORMAR PARA
(TRANS)FORMAR
Mais uma vez, analisa-se um fragmento com profundidade. Para que esta análise seja mais
produtiva é necessário conhecer o contexto mais amplo em que a situação está inserida. O
planejamento é utilizado como uma referência para o formador e para os demais professores
que observam a aula, portanto deverá ser entregue com antecedência ao formador.
122
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
proposta foi lançada, a reação dos alunos, as intervenções do professor, as concepções que
estão sustentando sua prática, enfim, estes e outros que vão indicando as crenças,
possibilidades e limites presentes na atuação do professor.
Do ponto de vista dos demais professores que estão observando, além de estarem
exercitando sua capacidade de reflexão, estão tendo oportunidades de vivenciarem bons
modelos de atuação. Isso não significa prescrever receitas, mas as boas referências são
importantes em qualquer atividade profissional em que os indivíduos estejam engajados a
pensar sobre o que fazem, por que fazem e como fazem.
O coordenador, que é em síntese um formador, também tem a oportunidade de estar
apurando suas possibilidades de observação, bem como tendo uma referência na condução
destas situações que deverão fazer parte da sua rotina.
Quanto ao formador, é essencial que tenha clareza que nem todas as questões que considera
relevantes serão discutidas, e que antes de mais nada é preciso observar o que não está
explícito, assim como considerar algumas circunstâncias, como a história de vida
profissional do professor, os limites que a própria instituição lhe impõe, sua imagem diante
dos colegas, o ambiente mais ou menos aberto às questões conflitantes, etc.
Após a observação, o grupo se reúne, podendo convidar para a discussão os professores de
séries próximas. O importante é não descaracterizar o caráter mais específico desta ação,
que é justamente um dos pontos que a diferencia da análise de prática em grandes grupos.
Aqui é possível lidar com questões muito mais ligadas àquela determinada série/grupo.
O encontro começa com a socialização do planejamento e o relato oral da professora
observada, que iniciará um processo de reflexão da ação, provocado intencionalmente pela
formadora.
Os questionamentos e observações trazidos pela professora, juntamente com os das demais
e os do professor-formador serão o foco das discussões. Cabe ao formador guiar e orientar
estas discussões, assim como trazer as referências teóricas que possam validar ou
questionar as idéias analisadas. A finalização dos encontros é feita com a socialização e
registro das “verdades coletivas” construídas pela grupo como instrumento de monito-
ramento dos conhecimentos construídos.
“A observação enriquece o trabalho do profissional porque ele passa a ter uma postura
reflexiva diante dos processos de sala, analisando o “como fazer” para que as metas sejam
atingidas de uma forma consciente. Isso é uma otimização do fazer pedagógico, pois a
gente vai percebendo, reaproximando, re-significando, ou seja, ainda não está colocado
totalmente em prática, até porque nada é teminal e definitivo, mas é um processo bem mais
próximo da gente, bem mais claro, ainda que não praticado com toda a profundidade.”
( fragmento do depoimento da prof. Mariglória/ Julho/ 2001)
123
FORMAR PARA
(TRANS)FORMAR
“A observação é uma oportunidade riquíssima para a gente trocar um pouco sobre o trabalho
desenvolvido em sala e estar podendo ouvir um retorno da Avante. Eu acho que as observa-
ções são mais enriquecedoras do que as filmagens do ponto de vista do ciclo, porque a gente
tem um conhecimento maior dos objetivos daquela aula porque as pessoas são do mesmo
ciclo. As observações têm uma possibilidade mais imediata de crescimento.”
( depoimento da prof. Nanci / Julho 2001)
124
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
como tal, assume a função de formador. Aquele que acompanha, problematiza, indica
caminhos, fortalece as relações interpessoais e o espírito de equipe, estabelecendo desta
forma uma relação de parceria com os professores.
Em um momento em que se instauram na escola tantos conhecimentos novos, tantas
inseguranças, tantas possibilidades, é o coordenador que está à frente, liderando este
movimento de busca contínua de novos conhecimentos e aquisição das competências
necessárias ao profissional atual.
“O coordenador pedagógico é um formador de professores, um co-autor do trabalho que
acontece na sala de aula e, simultaneamente, um “alimentador” do processo de
desenvolvimento do projeto educativo e curricular da escola. Cabe a ele não apenas ajudar
no direcionamento do trabalho, responder às dúvidas e inseguranças dos professores,
ajudá-los na busca de respostas, mas também – e talvez fundamentalmente – formular as
questões que perpassam o trabalho da escola e orientam o percurso da equipe no
desenvolvimento de seu projeto pedagógico – às quais ele tem uma condição especial de
compreender por conta do lugar que ocupa. Aprendi que o lugar do coordenador não é,
necessariamente, um lugar de superioridade, nem implica uma relação de dominação.
Mas, por ser um espaço onde se entrecruzam as questões de diferentes naturezas do
trabalho pedagógico institucional, possibilita uma atuação ao mesmo tempo
mobilizadora e aglutinadora de forças em torno de desafios comuns. É um lugar de
articulação da criação e produção coletivas.”
(fragmento do relatório da prof. Neide Nogueira – coordenadora pedagógica /
extraído do livro “O diálogo entre o ensino e a aprendizagem. 1999. p. 123)
125
FORMAR PARA
(TRANS)FORMAR
Às vezes eu me sinto meio impotente diante de algumas questões, às vezes não passa por
mim a decisão. Às vezes eu queria que fosse mais direto, talvez sendo mais direto possa
estar nos ajudando, mas também pode estar interferindo; é muito difícil...
O que limita? A nossa própria postura de fugir dos problemas, de confrontar os problemas,
de colocar todas as questões que estão envolvidas, às vezes pela atribulação do dia-a-dia, às
vezes por que pensamos “eu vou falar de novo nisso?” e esse de novo é muito significativo
porque significar que a gente só olha, fala e não age diante de algumas situações.
( depoimento de Maria Tereza Ernica – coordenadora/ 2001)
Assim como para os professores, esta estratégia de formação causa muito impacto nos
coordenadores, pois como revela o depoimento acima, não recebem respostas prontas, mas
são suscitados a refletir e buscar seus próprios caminhos. A formação para a autonomia é
mais uma vez uma meta da formação. Nos exemplos abaixo, fica evidente o papel do
formador que é o de “alimentar” as reflexões, trazer pistas para avançar e não determinar
caminhos e soluções:
126
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
RELATÓRIO DA COORDENADORA
Salvador, 10 de agosto de 2000
Mônica,
A partir de agora, percebo finalmente o papel que preciso desempenhar dentro de meu cargo.
Percebo também, que essa transparência traz consigo uma enorme responsabilidade, que até
então, não estava muito clara para mim. Sinto uma vontade enorme de buscar, aprender, de
me instrumentalizar. Posso dizer até, que estou um tanto ansiosa. Gostaria de possuir uma
bagagem grande de conhecimentos teóricos (como se isso fosse possível de um dia para o
outro ). Mas pretendo chegar lá.
Bom, voltando à prática, gostaria de retornar a nossa última “conversa” a respeito dos
projetos. Será que colocamos esses projetos em andamento, mesmo que eles ainda não
estejam prontos “no papel” não traz prejuízos aos seus encaminhamentos? Ou se torna mais
fácil a partir do momento que sabemos quais os objetivos e competências que esperamos após
encerrá-los?
Outro ponto que gostaria de discutir com vocês é a respeito do tipo de texto que as crianças
terão de produzir durante esse bimestre, que é o texto informativo descritivo (sei que não se
trata de decidir essa questão com vocês, apenas refletir e discutir sobre). Retomando, esse tipo
de texto cabe, inclusive, dentro do projeto desenvolvido em Ciências Naturais sobre animais. O
que me questiono é: Crianças de 1a série, que ainda se encontram na etapa de contato
sistemático com o texto em questão, serão capazes de criá-lo em um espaço tão curto de
tempo? Terão tido tempo de se apropriarem?
Outra coisa, estou confusa em relação ao que seja de fato orientação didática, uma vez que na
última reunião de observação nos foi mostrado que se trata de colocar todo o desenvolvimento
da aula em tópicos, onde estes estejaminiciados com verbos no infinitivo.
Fiquei confusa, pois estávamos adotando esse procedimento desde o início, sem que houvesse
nenhum apontamento a respeito. Mais uma vez, não se trata de queixa e muito menos de uma
censura, apenas gostaria de esclarecer melhor essa questão.
Aguardo ansiosa por nossa conversa.
Até lá.
Eduarda Guimarães Alves,
Coordenadora Pedagógica
1a e 2a Séries
DEVOLUÇÃO DA AVANTE
Salvador, 21 de agosto de 2000
Eduarda,
Quanta disposição e energia!
É olhando para trás que temos a certeza que com esta determinação você continuará
crescendo sempre.
Cada vez o papel do coordenador ficará mais claro para você, o que não significa que os
problemas serão resolvidos, pelo contrário, à medida que tomamos consciência, maiores
127
FORMAR PARA
(TRANS)FORMAR
RELATÓRIO DA COORDENADORA
Marília,
“Tanto que fazer:
Livros que não se lêem
Cartas que não se escrevem
Línguas que não se aprendem,
Amor que não se dá,
Tudo quanto se esquece.
Tanto que fazer!
E fizemos apenas isto.
E nunca soubemos
Quem éramos, nem para quê.”
Cecília Meireles
128
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
Os primeiros dias de aula revelam os gostos dos novos frutos que vamos saborear nesse ano, e
assim, prenunciam a mudança dos ventos. Entretanto, o silêncio de vozes adormecidas começa
a invadir diferentes espaços da nossa infância, enquanto o barco da nossa história prossegue
seguindo a correnteza, enchendo os ares de inúmeros cantos, nas horas frescas do amanhecer.
Como quem olha o mundo pela metade, escondidas por trás das minhas fantasias de educa-
dora, vou digerindo teorias e práticas, fazendo o balanço do ontem, pensando no amanhã. São
muitas necessidades: o alinhamento do trabalho em todo o segmento da educação infantil; a
formalização de encontros sistemáticos com a direção; a devolução do relatório das professoras;
a redação do seu relatório; a maior instrumentalização teórica do grupo; reuniões de
coordenação mais produtivas, do ponto de vista pedagógico; o apoio dos professores.
E muito mais: a farmácia que não tem remédio quando as crianças precisam; a sala de reuniões
que urge ser arrumada, enquanto os pais entram para o nosso primeiro encontro; a água do
chuveiro que acaba e as professoras não sabem como tirar a tinta do corpo das crianças; o
texto para reflexão destinado aos pais, que é entregue para alguns grupos e outros não;
.........que nunca chega no horário para apoiar o grupo 01; o tênis de um aluno que some e a
mãe exige um posicionamento da escola; a mãe que sinaliza a sujeira dos banheiros, com
toalhas encharcadas e sem papel; a criança que transita com um estilete enferrujado nas mãos,
porque alguém deixou esse material exposto ao alcance dos pequenos ou esqueceu de isolar as
“áreas de risco”, as crianças que são encontradas sozinhas pelas instalações da escola, no
horário de saída das mesmas; o incômodo estampado no rosto de Sr......., porque nos
atrasamos não mais do que meia hora na saída da escola... e por aí vai.
De um lado, questões pedagógicas complexas que devem ser foco de atenção constante,
infinita. De outro, questões práticas que, na sua grande maioria, do ponto de vista cotidiano,
não podemos adiar a resolução das mesmas. No meio, o saldo de 15 dias de trabalho. Nesse
período, fui 90% “administradora” e 10% coordenadora, atuando como pólo de ligação entre
dois extremos distintos, porém indissociáveis.
Dia 10/03/01, as 3h 18min da manhã. Depois de listar todas as pendências, organizar o meu
cronograma de observações em classe, a rotina de coordenação, sento para escrever este texto.
Mas, isso faz parte do ser educador: trabalhar além do muro das escolas. Os dias do fim de
semana, noites, madrugadas e feriados acabam tornando-se úteis também. E a reposição das
energias; as horas de sono, de lazer; o exercício do prazer descompromissado, tão salutar para
o bom funcionamento da estrutura humana, tudo isso, e muito mais, vai ficando para depois.
A nós, só cabe prosseguir, enquanto as nossas ansiedades, angústias, inquietações,
preocupações, cansaço vão sendo traduzidos com crises de hipoglicemia, dores de estômago,
gastrites, úlceras, alguns quilos a mais ou a menos, expressões faciais abatidas, silêncios,
isolamento. Lentamente, vamos nos afastando da família, dos amigos, do dia, da noite, do
mundo, da vida...
Eu vou e volto. Mesmo que tenha “culpa no cartório”, atendendo a contendo as solicitações
emergentes, penso que o que pontuo nos parágrafos anteriores insiste em provocar uma
reflexão mais amadurecida. O movimento da escola, jamais será o mesmo depois de 1º de
fevereiro deste ano, com uma entrada significativa de profissionais e alunos novos. Em
contrapartida, o funcionamento de uma parcela respeitável da comunidade escolar continua
sendo o mesmo, em detrimento a todo processo de mudança. No fim das contas, a maioria
que se esforça para fazer valer a crença de que “nada do que foi será, do jeito que já foi um
dia”, acaba por ver os seus esforços ameaçados em meio a um conjunto de comporta-
mentos cristalizados.
129
FORMAR PARA
(TRANS)FORMAR
Assim como insisto na necessidade de uma reflexão mais aprofundada e sistemática das questões
de ordem prática, talvez você insista também na justificativa de que a minha sobrecarga de
trabalho não passa senão pela psicologia social (é essa mesmo?) e os seus papéis complemen-
tares. Será que, de fato, todas as perguntas encontram respostas nessas teorias? No meu enten-
dimento, essa dinâmica aponta lacunas em uma dimensão macro e não em uma dimensão micro,
onde me parece, desde há muito tempo, está centrado o foco das discussões passadas e presentes.
Seja como for, espero que entenda e descarte qualquer possibilidade de um “risco teórico” de
insatisfação particular com a escola. Não tenho dúvidas, que as lacunas vão existir sempre, aqui
e em qualquer outro lugar. Na verdade, o meu sentimento, embora pareça um tanto quanto
pessimista, passa por uma pergunta: Do ponto de vista nacional, a longo prazo, qual será o
reflexo de toda essa vivência na minha trajetória? A formulação desse questionamento é fruto,
creio eu, de uma das piores descobertas que fiz ao longo da minha história profissional, muito
antes de chegar aqui. Sonho, não garante a sobrevivência de ninguém. Um sonho não pode
estar isolado, mas inserido numa espécie de espirito do tempo. Tenho medo de que, algum dia,
precise abrir mão de ser educadora, porque o alimento de que preciso, em todas os sentidos,
deixou de ser suficiente, para que possa dormir com a sensação de dever cumprido e acordar
renovada, pronta e inteira para enfrentar novamente a vida.
Estamos entrando na Quarta semana de aula. O movimento dos grupos que coordeno,
sobretudo o de ....... e ........(G 01); ......, ........, .........(G 02) ainda revelam um movimento
instável. Por parte das crianças, muito choro, vômitos, olhares perdidos e solicitação de colos.
As professoras por sua vez, não reagem de forma muito diferente. Sentem-se inseguras,
impotentes, pedem ajuda de terceiros, caminham sem direção definida.
Vivemos uma situação de emergência. Muitas crianças, principalmente novas transitando
pelas escola.; um espaço físico grande, cheio de atrativos; um número inoperante de
funcionários; um planejamento que não consegue corresponder aos seus objetivos; pais
intranqüilos, fazendo leituras distorcidas do nosso trabalho. Isso é real. Isso é o movimento
atual da escola, no I Ciclo da E.I. , deixando que naveguem sozinhas. Talvez, este seja um dos
poucos lugares no mundo onde tantos sentimentos contraditórios se encontram e se
confundem, enriquecendo a nossa dimensão humana e, conseqüentemente a vida.
Quero dispor de um tempo maior, para contar a pais e a todos os nossos visitantes, um pouco
mais nossa história. Um mundo surpreendente que vai velando-se aos poucos. Qual o papel da
agressividade; construção de conhecimentos? Qual a rotina do segmento da Educação
Infantil? O que as crianças tão pequenas fazem na escola? O que significa a palavra ética
dentro do contexto escolar? O que vem a ser uma Escola de Educação Infantil? Qual a relação,
entre a escola e o mundo?
Qual o papel de fato, de um educador ? E, o melhor de tudo, poder dividir o nosso orgulho
e as nossas conquistas em tão pouco tempo de história. Afinal, ainda não nos encontramos
nem na adolescência!
O sol brilhava, acho que a 40º, quando no final da manhã de Quinta-feira (08/03/01) sentei
para conversar com Sandra, formalizando o nosso primeiro encontro individual no ano de
2001. A conversa girou basicamente, em torno da preservação da identidade da escola. Uma
tarefa que exige esforços. Discutimos a necessidade de alinhamento do nosso discurso e o
cuidado para não elegermos nenhum profissional como bode expiatório. Se existem destinos
ainda permanecem tão desconhecidos para nós porque ainda temos muito o que caminhar.
Entretanto, de todas as maneiras, a escola consegue impor respeito. No encontro de
capacitação ficava muito tempo calada, analisando os mistérios do seu interior. A Escola era
tão encantadora por dentro quanto me parecera por cima do muro, com seu povo, sua cultura,
sua historia.
130
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
Fiquei visivelmente preocupada! Era uma escola fantástica e pensei: nessa viagem é melhor
levar alguém junto comigo que saiba lidar com tantas e tão grandes desafios. Por isso, até hoje,
caminho com você.
Até o próximo!!!
Com carinho,
Taty
DEVOLUÇÃO DA AVANTE
Salvador, 11 de março de 2001
Taty,
“O importante é que, se de fato aprendemos o amor com essas pessoas e com essa
sociedade, podemos desaprender e reaprender; portanto, há uma grande esperança
para nós todos, mas em algum ponto é preciso aprender a amar”.
Léo Buscaglia
Suas palavras são fortes e causaram em mim um grande impacto. Ecoam tão intensamente
que não consigo pensar em outra coisa a não ser no nosso lugar diante da complexidade de
fazer educação, construir e reconstruir a escola, manter relações diversas com diferentes
pessoas, conviver com a natureza humana.
Sandra, Eliana, Patrícia, Mônica, Leck, Madaí, Juliana, Márcia, Viviam, Edelzuita,... Gustavo,
Vanessa,...Helinho, Laíse, Serginho, Cayque,... Letícia, Érica, Rodrigo, Guerra,... Débora,
Angélica,... anônimos desconhecidos, ausentes, presentes, parceiros, distantes!
Histórias! Quantas histórias...
Vidas! Inúmeras...
Fragmentos! Novelos com fios diversos, que tecidos e destecidos fazem o dia-a-dia de
uma escola.
Como ajudar?
O amor tem que está acima de tudo! É preciso alimentar o nosso sonho de educação mesmo
que seja necessário exercitar a “Utopia do Fragmento”.
“O professor muda o mundo, um aluno muda a cada vez”. É este o exercício que precisamos
fazer! Somos professores e também precisamos implantar mudanças.
Por onde começar? Creio que recuar não é o melhor caminho! Vamos eleger prioridades,
definir rotinas, traçar metas, fazer planejamento e avaliar.
Sem dúvida são duas dimensões: a pedagógica e a administrativa. É preciso articulá-las. É
evidente o quanto estão dissociados. Estão de tal maneira que não nos sentimos a vontade
para discutir a escola como todo. Uma instituição não é feita de pedaços preciso uni-los. Penso
que talvez seja necessário tomar a iniciativa.
Me ocorreu neste instante o quanto seria interessante se discutíssemos juntas o livro: “A Escola
como uma organização aprendente”, de Hargraves.
Depois de uma noite de sono, acordo e voc6e alerta-me, ligando e “dizendo” que é preciso
pensar pois a observação de amanhã é no grupo 2 de........... Diante do que você escreve e do
que vou ver, o que dizer? Creio que preciso me preparar. Pego “Aprender e ensinar na Educação
131
FORMAR PARA
(TRANS)FORMAR
Infantil” de Isabel Solé e colaboradores e antes de abrir questiono-me: Será que é deste saber
que preciso para ser interlocutora do grupo?
Creio que não! Vou chegar e discretamente entrar na sala a ser observada, vou deixar o coração
“ler” os diferentes sinais, levando em conta a história que já conheço.
Vamos garantir a identidade da escola, incorporando o contexto deste ano: novos professores,
muitas crianças, variadas famílias, circulação de gente muita gente!
Creio que algumas medidas podem ser tomadas:
Vamos enviar diariamente textos de reflexão para casa. Talvez algumas perguntas e em
seguida um breve comentário.
Organize uma palestra “emergência” sobre o tema em questão: Adaptação! Talvez a
pessoa indicada seja você. Aceita o desafio?
É preciso que as fichas de observação comecem a ser preenchidas o quanto antes. Creio que
fazer uma de cada aluno sobre adaptação, como você comentou, é muito interessante;
É preciso também começar as suas observações pois assim, você pode dar um retorno no
mais específico a cada professora;
Pensei também em indicar alguns livros para os pais mais ansiosos.
Além destes encaminhamentos penso ser interessante tomar algumas medidas a longo prazo,
já pensando em outras situações que podem acontecer. O que? Talvez fazendo uma ficha de
avaliação para que os pais preencham. O que acha?
Por fim, a certeza que a escola é feito algo que gera avanços muito significativos: a reflexão e
análise da nossa prática educativa. Esse movimento tão trabalhoso, que nos exige tanto,
também oferece condições de superação dos entraves e identificação do que precisa ser
ajustado. A fim de compreendermos cada prática respeitamos as singularidades, as diferenças
e características próprias mas precisamos também dar conta da totalidade, da escola como
todo, por isso estamos enfrentando este desafio todo. O trabalho precisa ser entendido a partir
de uma perspectiva que dê conta de pensar a escola na sua essência. Essa certeza resume a
nossa grande ansiedade mas esse é o rumo, vamos em frente!
Com cumplicidade,
Marília
RELATÓRIO DA COORDENADORA
Rita,
No mês de abril, aproveitando um dos encontros organizados para ações das Escolas Parceiras
(tema avaliação e planejamento), reservei um espaço para avaliar, junto com as professoras,
nossa caminhada até aquele momento, e, também, sinalizar questões que não estavam sendo
cumpridas a exemplo do prazo de entrega dos relatórios e planejamentos.
O grupo (exceto ..............e............) queixa-se que o modelo do planejamento dificulta sua
elaboração, por ser muito detalhado, necessita que se recorra a muitas fontes de pesquisa e
atrelado a tudo isso aparece, como fator importante e unânime o tempo.
Quanto ao relatório, argumentam ser difícil fazê-lo diariamente, principalmente dentro do
modelo sugerido, de novo o fator tempo aparece como o vilão.
132
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
Diante dos argumentos pedi ao grupo que decidíssemos naquele momento, então o que
fazer, precisávamos de uma definição; mudando o instrumento, revendo a periodicidade do
relatório, e estabeleci um prazo de 3 dias para que me entregassem como sugestão outros
modelos de planejamento e relatório e assim pudéssemos ajustar.
Para mim está claro que a questão não é o modelo destes instrumentos, mas a importância e o
entendimento que temos. Não sei mais estimular, encaminhar estas questões. Prof. a. ............
levantou a questão que talvez algumas pessoas não sentissem estimuladas a fazer o relatório,
porque algumas das minhas devoluções, talvez, não fossem instrumentalizadoras, não
acrescentava, elas ficavam com as mesmas dúvidas ou certezas (não foi consenso). Argumentei
que devolvia os relatórios considerando sempre para quem estava escrevendo, e, portanto se
não estava trabalhando na zona proximal, isto poderia ser traduzido de duas formas; ou não
conheço o grupo ou o grupo não tem demonstrado o quanto já aprendeu; quaisquer das
alternativas merecem especial atenção.
Quando eu trouxe para o grupo situações que vem ocorrendo que não são dignas do nosso
grupo (conversas na porta da sala na presença dos alunos, decisões autoritárias frente aos
alunos, etc.) houve um pouco de desconforto, natural é do humano. Sinto que as professoras
não têm se sentido muito confortáveis frente a alguns posicionamentos que tenho tomado, o
que também para mim é natural, quem não quer um colo o tempo todo disponível? Estou
mudando, acredito para melhor, minha forma de liderar o grupo, continuo acreditando na
humanização das relações mas sem permissividade.
Depois que li as respostas do grupo para as questões quanto ao planejamento e avaliação o
que era desconfiança virou certeza. O grupo vê o ato de planejar como algo meramente escolar
e sua existência deve-se a necessidade de alguém (coordenação) ter que acompanhar as ações
que acontecem na escola, está atrelado a sacrifício, a desconforto. Agora, meu papel será
tentar construir novos conceitos e assim ir ajustando os entendimentos. Já selecionei muito
material para leitura, em breve apresentarei ao grupo o mapeamento e teremos oportunidade
de discutir um pouco mais sobre este tema.
Margô
DEVOLUÇÃO DA AVANTE
Salvador, 6 de junho de 2001
Margarete,
Assim como os alunos estão em processo de aprendizagem, todos nós estamos, como você
sabe, e neste processo os retrocessos e contradições fazem parte da caminhada.
De fato o tempo é um grande inimigo do professor na realidade que trabalha, entretanto, na
sua fala vejo outro obstáculo maior do que o tempo; a falta de compreensão da funcionalidade
e importância do planejamento a curto, médio e longo prazo para a prática pedagógica. O
relatório também parece que não está sendo valorizado por muitas de suas professoras. Nesta
situação o encaminhamento mais eficaz é retomar as discussões do porquê destes dois
instrumentos.
Acredito que o encaminhamento que voc deu a estas questões, chamando o grupo para
conversar, ouvindo-o e argumentando é o melhor caminho, entretanto por si só não garante
que estas questões se resolvam. Alguns dos textos que foram lidos e discutidos nas reuniões de
coordenação podem ser instrumentalizados para uma reflexão sobre as questões que você traz
como situação - problema.
133
FORMAR PARA
(TRANS)FORMAR
Quanto as devoluções dos relatórios, penso que talvez elas estejam precisando de boas idéias.
Nas devoluções continue instigando-as à reflexão de sua prática e acrescente algumas
sugestões de como poderia ser feito e ou o quê poderia ser feito em substituição ao realizado.
Sua relação com o grupo é muito saudável e de cumplicidade. Você sabe quando deve acolher
e cobrar. O grupo reconhece e verbaliza isto com freqüência. Desta forma todas continuaram
crescendo em ritmo cada vez maior.
Um forte abraço
Rita Margarete
Nos relatórios acima, é possível perceber a atitude reflexiva das coordenadoras, que também
estão num processo de construção de um novo “modelo” de trabalho, baseado na parceria
com os professores e no compromisso de assumirem o papel de líderes de aprendizagem. O
redimensionamento desta prática gera muitos conflitos, inquietações, mas é justamente a
partir deste movimento e do apoio e interlocução da formadora que vai se configurando o
novo papel do coordenador.
As reuniões também são um espaço de estudo e ampliação dos conhecimentos que
ancoram as práticas do coordenador. Um item permanente das pautas é a leitura de um
texto que pode servir para disparar ou aprofundar e referendar as discussões.
Além disso, estes encontros também são um espaço de discussão da rotina do coordenador.
Esta é uma questão fundamental pois como esta função passa por uma redefinição
histórica, muitas vezes no dia-a-dia o coordenador atende as questões emergentes do
ambiente escolar, como as ligadas ao gerenciamento, à burocracia, etc, e as questões que
são prioritárias passam, mesmo a revelia, a serem secundárias. Assim, um dos objetivos do
trabalho de formação é refletir sobre a estruturação desta rotina, de modo que o
coordenador tenha clareza de qual é o seu papel e de quais são as ações que viabilizam e
potencializam este trabalho. Desta forma, ele é orientado para se organizar utilizando ações
semelhantes às do programa de formação. Isto inclui fazer observações sistemáticas na sala
de aula e organizar encontros para dar um feedback para o professor; instaurar uma prática
de relatórios entre os professores, sendo seu interlocutor, a fim de apoiá-lo no exercício do
registro reflexivo; tematizar situações práticas através de atividades e produções dos alunos
para um aprofundamento das questões didáticas; acompanhar o desenvolvimento de
projetos e os planejamentos de curto, médio e longo prazo; instaurar discussões inter-
séries/ciclos, como forma de articular a continuidade do trabalho e socializar práticas;
organizar momentos de estudo; enfim, planejar uma rotina que seja coerente com o papel
que desempenha na instituição.
“As ações do Programa de Formação Continuada criam condições para que o coordenador
se reconheça como um profissional que tem ações que precisam ser realizadas para que se
garanta o sucesso do trabalho didático na escola. Consideramos que é fundamental que o
coordenador possa realizar ações de observação de sala de aula, que ele possa assumir o
papel de 3o olho da prática do professor, olhando aquela prática com olhos de indagação,
134
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
As questões que se colocam neste aspecto do programa de formação são: Que tipo de
comunidades de trabalho são mais adequadas ao desenvolvimento profissional? Em que
tipo de cultura o professor precisa estar inserido para que tenha disposição para aprender?
Que tipo de relações devem ser estabelecidas para que o professor se sinta motivado e
seguro?
Quando perguntamos que tipo de comunidade de trabalho favorece o desenvolvimento do
profissional reflexivo e que tipo de relações devem prevalecer, logo pensamos na questão do
“isolamento”do professor em seu ambiente de trabalho. De certa forma, esta é uma
característica predominante nas escolas há muito tempo. Fatores como a falta de tempo, a
sobrecarga de trabalho e até mesmo a forma como as escolas estão organizadas espacial-
mente, interferem negativamente para perpetuar esta situação. Neste sentido, uma força
poderosa que alavanca as mudanças é justamente quando há uma tomada de consciência
da necessidade de superação deste estado e um esforço para que esta prática deixe de ser
solitária e passe a ser solidária. Fullan14 utiliza uma expressão interessante para definir o
movimento de transformação que têm ocorrido nas escolas denominada de “pensamento
de grupo”. O estabelecimento desta nova atitude pressupõe conversas freqüentes entre os
14 FULLAN, Michael & HARGREAVES, Andy. A escola como uma organização aprendente.
Trad. Regina Garcez. 2. Ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000. 136 p.
Tradução de “What's worth figting for in your school?”
135
FORMAR PARA
(TRANS)FORMAR
professores sobre a prática de ensino, criar uma linguagem comum, observar-se mutua-
mente enquanto ensinam, planejar, avaliar, pesquisar e preparar juntos diferentes materiais.
Esta é uma questão complexa pois envolve uma mudança pessoal por parte dos professores,
pois será preciso vencer padrões e rotinas previamente estabelecidas a fim de se conquistar
este ambiente coletivo. Neste sentido, o Programa de Formação Continuada se constitui em
um elemento favorável, pois pressupõe a formalização destes encontros, o intercâmbio e a
colaboração entre professores e demais profissionais e fortalece o próprio movimento de
mudança, que lhe é peculiar.
“O principal benefício da colaboração é sua capacidade de reduzir a sensação de
impotência dos professores e aumentar sua sensação de eficiência.”
( Ashton & Webb. 1986. in. Fullan.2000. p.63)
15 FULLAN, Michael & HARGREAVES, Andy. A escola como uma organização aprendente.
Trad. Regina Garcez. 2. Ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000. 136 p.
Tradução de “What's worth figting for in your school?”
136
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
Nestas escolas as relações de poder são mais horizontais, pelo menos no que se refere à
tomada de decisões, que deixam de ter uma conotação de imposição e passam a ser
consideradas como ajustes necessários ao desenvolvimento do trabalho coletivo. Desta
forma, o professor passa a ter uma visão mais ampla da escola e das questões que
extrapolam os limites da sala de aula. Isso envolve a ampliação e valorização do processo de
liderança compartilhada, em que as questões da escola são discutidas e analisadas
coletivamente, em que os professores passam a participar das decisões e das reflexões que
orientam os “caminhos” da instituição. Esta atitude não significa uma ameaça aos
diferentes papéis desempenhados pelas pessoas, mas uma redefinição da forma como as
decisões são tomadas e os problemas são resolvidos.
“Nos últimos tempos, temos vivido uma revolução silenciosa nas escolas em geral. De fato
isso tem gerado muita inquietação nas instituições, pois por muito tempo a função da
escola foi de informar, de transmitir conhecimento. A partir do momento que há uma
ressignificação desta função e um reconhecimento de uma função social e socializadora da
escola, tornou-se necessário também ressignificar as relações que são estabelecidas neste
ambiente. Neste sentido o desafio é imenso, até porque nós, brasileiros, estamos
aprendendo a lidar com relações democráticas nestes últimos anos e as escolas muitas
vezes reproduzem modelos sociais e a hegemonia do modelo autoritário da sociedade
também é traduzida no ambiente da escola e isso se revela nas relações altamente
autoritárias, hierarquizadas, em figuras que determinam todos os processos educativos.
Considerando este contexto, é muito desafiador construir uma nova cultura e mobilizar
todos os envolvidos a se constituírem em uma comunidade aprendente, que de fato
estabelece relações mais horizontais, reconhecendo que são diferentes papéis, são
diferentes posições, diferentes funções, mas todos em prol de uma educação de quali-
dade, que de fato promova aprendizagens e , para isso, precisam estar apoiados uns nos
outros, mantendo relações onde a democracia seja uma mola mestra e esteja de fato
alimentando o dia-a-dia dos envolvidos. Hoje, reconhecemos que na comunidade escolar
todos são educadores , portanto, devem estar envolvidos, atuando no sentido de
promover avanços e aprendizagens significativas .(...) Se queremos efetivamente construir
um mundo melhor, sem dúvida, a escola é um espaço para que se aprenda a construir uma
nova cultura, onde as relações estejam estabelecidas em um outro patamar.”
(depoimento de Marília Dourado – consultora da Avante/maio de 2002)
Portanto, este programa de formação tem esta meta “transversal” que é de instaurar ou
fortalecer esta cultura na escola, a fim de que se torne cada vez mais um espaço propício
para a aprendizagem. Para isso, é necessário compreender a cultura que foi construída em
cada instituição, seus valores, formas de funcionamento e, numa relação de parceria,
modelada pelas atividades do programa e pelas ações do formador, “provocar” reflexões
que repercutam positivamente neste modelo de escola como “uma instituição que
aprende”. Uma das grandes contribuições deste modelo de formação para a instauração de
uma cultura mais democrática e que propicia a aprendizagem é justamente a possibilidade
de reconhecer que o profissional de educação é um eterno aprendiz, que os saberes são
transitórios e por isso são transformados, assim como a própria sociedade. Como parte da
137
FORMAR PARA
(TRANS)FORMAR
Isto é feito nos encontros com a equipe de professores, coordenação e direção, na reflexão
sobre os papéis dos demais funcionários da escola, na elaboração compartilhada de
documentos curriculares, na valorização das práticas culturais sociais, na leitura e
compartilhamento dos livros preferidos, na construção de um vínculo de confiança entre os
profissionais e os formadores, enfim, nas relações interpessoais, que extrapolam a dimensão
profissional e valorizam o professor como uma pessoa integral e não apenas como um “feixe
de competências ou deficiências”.
“A formação do professor deve ser pensada levando-se em consideração a importância
que esta atividade tem do ponto de vista da formação dos seres humanos.”
Alícia Fernández
138
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
diversos, que causa um impacto significativo nas instituições e nas pessoas. Mas fica a
certeza, pelo menos provisória, que a forma como o modelo está estruturado é extrema-
mente favorável àqueles que se interessam por boas estratégias de formação e que buscam
uma coerência entre ensinar e aprender.
Também não há dúvida que o professor precisa de apoios nesta trajetória de formação
contínua. Acredito cada vez mais que a escola precisa estar abrindo este caminho, tornando-
se uma instituição que se estrutura de tal forma que favoreça o crescimento daqueles que
nela atuam, tendo uma visão educacional mais ampla, pois o aperfeiçoamento do ensino é
um empreendimento muito mais coletivo do que individual. Isso significa que não basta o
professor querer, é preciso dar-lhe condições.
O desafio de qualquer programa de formação continuada é enorme no contexto da
educação brasileira. Muitas vezes as situações são muito contraditórias: falar de cultura,
com um professor que não tem condições de comprar livros; ter um discurso de formação de
alunos produtores de texto, quando os professores escrevem tão pouco; falar de
aprendizagem significativa e os recursos são escassos, enfim, mesmo sem ter a intenção de
generalizar é preciso considerar este cenário que é real e que dificulta muito o
desenvolvimento profissional, mesmo porque, algumas variáveis estão “fora” das
possibilidades de atuação da formação.
Os modelos de formação continuada precisam considerar a história pessoal e profissional do
professor, respeitando-o como profissional que está sendo convidado, muitas vezes
pressionado, a refletir e ressignificar, num curto espaço de tempo, uma prática que foi
validada pela instituição de ensino e pela sociedade durante muito tempo. Necessitam
compreender e acolher os sentimentos do professor neste complexo exercício de reconstruir
a sua identidade pessoal e profissional e desta forma, ajudá-lo a superar as matrizes do
processo inicial da sua formação docente, saindo do lugar do aprendiz observador, para o
lugar de aprendiz pesquisador.
A contradição existe e é convivendo com ela que estamos transformando a realidade.
Mas, sejamos otimistas, a educação de qualidade para todos, inclusive para os professores já
é realidade em muitas escolas brasileiras, este relato é uma prova de como é possível formar,
qualificar, mesmo considerando a complexidade desta questão. Há muito o que fazer, mas é
preciso reconhecer, que muito já tem sido feito. E este é um momento extremamente
favorável, pois nunca se produziu tanta pesquisa nesta área, nunca se buscou tanto as
respostas para a indagação maior de todo formador que é: como o professor aprende?
Finalmente, inspirando-me mais uma vez em Perrenoud, uma última reflexão parece
necessária. “Somente pode gerir uma formação para a reflexividade um formador
preparado para uma conduta reflexiva; somente pode acompanhar o desenvolvimento
profissional sem prejuízos, o formador que também está em processo de busca e
desenvolvimento do seu “eu”16.
139
FORMAR PARA
(TRANS)FORMAR
Este é sem dúvida, o grande mérito deste capítulo! Possibilitar mais um olhar atento sobre
esta questão, assumindo-a com toda a complexidade que lhe é inerente, e mesmo com a
certeza de não se ter todas as respostas, dar um impulso para que se compreenda um pouco
mais o processo de aprendizagem do professor, conduzindo aqueles que se interessam por
esta questão para o desenvolvimento de uma competência importante para todo formador:
reconhecer seus limites e possibilidades.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
_ . Dez novas competências para ensinar. Trad. Patrícia C. Ramos. Porto Alegre: Artes
Médicas, 2000. 192 p. Tradução de Dix nouvelles compétences pour enseigner.
140
3
Como Venho
me Tornando
Professora
Rita Margarete Moreira Santos
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
“Partir. Sair...
Tornar-se vários, desbravar o exterior,
Bifurcar em algum lugar... Não há aprendizado sem exposição,
Às vezes perigosa, ao outro...
Eu me exponho ao outro, às estranhezas...”
Michel Seres
O CURSO DE MAGISTÉRIO
Era início da década de 1980. Os cursos profissionalizantes estavam na ordem do dia. A
Escola Técnica Federal de Pernambuco era considerada a melhor opção para quem precisava
trabalhar logo cedo (era o meu caso). Mas, justamente por ser a melhor opção para inserção
no mercado de trabalho, a concorrência eliminava os pretendentes menos preparados (que
também era o meu caso).
Depois da Escola Técnica, para as mulheres, a melhor opção era o magistério. Naquela
época, a oferta de emprego e a valorização do professor ainda motivavam as jovens a cursar
o magistério. Os concursos públicos eram freqüentes, muitas vezes com carga horária de 20
horas semanais, ótimo para nós, mulheres adolescentes que, no discurso vigente no meu
contexto sociocultural, logo seríamos donas de casa, mães e esposas. As minhas irmãs,
professoras, ratificavam esta crença, apesar de muitas vezes reclamarem, enfaticamente, do
baixo salário, da falta de reconhecimento e do comportamento inadequado dos alunos.
Embora os comentários das minhas irmãs causassem certa confusão entre as vantagens e
desvantagens do magistério, eu não tinha muitas opções para escolher nem a ousadia
peculiar aos adolescentes para decidir por outra opção profissional que não fosse a mais
indicada para as jovens do meu contexto sócio-econômico. Então, fui matriculada no curso
de magistério em um colégio da Rede privada do Recife.
No primeiro ano, constavam do currículo as disciplinas convencionais do científico – atual
ensino médio – e a disciplina específica literatura infantil. Passei o ano letivo tentando
estabelecer relação entre literatura infantil e as duas dentições da criança. Assunto
abordado durante todo o ano por Cristina - uma professora magricela, de cabelos castanhos
e longos. Uma jovem muito simpática e acolhedora. Apaixonada por seu noivo e por isso
contava os meses que antecediam o casamento.
Talvez porque Cristina estivesse tão apaixonada e a primeira e a segunda dentição fossem
pouco assunto para ser discutido na disciplina de literatura infantil durante todo o ano
letivo, a professora usasse algumas aulas para nos falar do seu noivo, dos planos que
pretendia realizar em breve e de um sobrinho que cismava em afirmar que a lua sempre o
perseguia. Quando ela chegava nesta questão, e sempre chegava, falava um pouco e
vagamente das descobertas de Piaget. No entanto, foi com ela, professora de fala macia e
acolhedora, que eu vi pela primeira vez alguém falar de crianças, com carinho e empolgação.
143
COMO VENHO
ME TORNANDO
PROFESSORA
No segundo ano, recorrendo ao privilégio de ter uma irmã professora da Rede Municipal de
Educação do Recife, consegui uma vaga no centro de referência para o curso de magistério
daquela cidade – Escola Sílvyo Rabello. Estudava em turno integral e recordo-me, com
facilidade, de poucas disciplinas:
Prática Educativa (incluía o estágio) e Didática, das quais Zélia, professora experiente e bem
conceituada na comunidade daquela escola, era titular. Ela era sisuda, exigente, pontua-
líssima e possuía uma enorme sacola de tecido. Mas nada tinha de parecido com a maleta
daquela professora descrita em um conto por Lygia Bojunga: dentro de sua sacola, nas aulas
da disciplina Didática, não havia pacotes de cores diferentes, nós, suas alunas, não ficáva-
mos ansiosas para saber qual seria o assunto da aula. Não aprendíamos com os colegas.
Ainda diferentemente da professora do conto, Zélia, nas aulas de Prática Educativa, abria
sempre o mesmo pacote e retirava o invariável: sucata, hidrocor, cola, tesoura, régua, etc.
material necessário para nos ensinar a confeccionar os flanelógrafos, os personagens que
seriam usados nas futuras aulas a serem ministradas no estágio e as barrinhas para as aulas
sobre unidades, dezenas e centenas, usando o Q. V. L. (Quadro Valor de Lugar).
Outra atividade freqüente nesta disciplina era o “estudo de caso”, escrito, dirigido e
solucionado pela professora Zélia. Nós tínhamos o papel passivo de responder como
agiríamos diante das situações-problema elaboradas pela professora, mas a palavra final era
sempre dela, independente das respostas que chegássemos. Esta postura de Zélia refletia a
concepção do que era ser professor: profissional que carrega receitas infalíveis e aplicáveis a
todas as situações, situações que inclusive estão previstas e não são afetadas por variável
alguma. Nesta perspectiva, o professor era considerado um mero consumidor dos saberes
produzidos por outrem, assim como todos os alunos eram iguais e sofriam do mesmo “mal”.
Portanto, a mesma receita curá-los-ia.
Desta disciplina eu não gostava. Sentia-me sem jeito e desmotivada para recortar, colar
pintar, plastificar (pincelando com cola) as gravuras recortadas de livros para ilustrar as
histórias que um dia, quando eu estivesse regendo uma sala, talvez contasse para os alunos.
Na disciplina Prática Educativa estava incluído o estágio (observação de aula), uma parte da
carga horária em uma escola privada, outra parte em uma escola municipal. Na Rede privada
o estágio era em uma escola montessoriana (não lembro o nome) e apenas observávamos
as aulas. Chamava-me a atenção o fato das crianças seguirem um ritual de enfiar cadarços,
encaixar peças independentemente das competências já construídas ou da semelhança com
as crianças alvo da pesquisadora montessoriana. Nada nos era explicado ou comentado.
Mas, deduzia que era a metodologia mais apropriada porque a diretora era representava da
OMEP (Organização Mundial para Educação Pré-escolar) no Estado de Pernambuco e a
escola era bastante reconhecida na comunidade da Escola Sílvyo Rabello.
As observações feitas nas escolas públicas, não traziam novidade. O descaso pelo aluno e a
insatisfação das professoras com a realidade em que trabalhavam (faltava material didático,
as crianças não se interessavam por nada, eram mal educadas, falavam errado) eram os
elementos novos, comparando a escola anterior. Estas queixas eram bastante familiares. As
minhas irmãs faziam as mesmas reclamações sempre que falavam de trabalho.
144
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
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COMO VENHO
ME TORNANDO
PROFESSORA
sujeito é basicamente passivo, já que está exposto às influências que vêm do exterior e que
agem sobre ele...”1 Aquela situação me fez lembrar a professora Zélia. Coerente com esta
concepção de aprendizagem, todas nós, professoras, elaborávamos muitos exercícios de
fixação. Principalmente os pontilhados para o aluno cobrir, recortar papéis e colar. Exercício
muito valorizado para desenvolvimento da coordenação motora: o aluno pegar correta-
mente no lápis, aprender a escrever e, bem depois, escrever. Acreditava-se que o aluno
precisava seguir esta seqüência no processo de aprendizagem da escrita. Então, as
atividades de casa eram réplicas das feitas em sala. Ainda assim eram minuciosamente
explicadas para garantir que todos fizessem certo, evitando o máximo possível o erro.
Em 1987 ingressei em uma escola privada de grande porte (três mil alunos) escola de
tradição na cidade de Salvador na qual estudaram grandes personalidades do nosso Estado.
Ao mesmo tempo, fui aprovada num processo de seleção da Rede SESI e passei no vestibular
para pedagogia.
Apesar de tanta conquista, ainda não sabia muito bem porque estava estudando para ser
professora. Talvez por ter gostado de lidar com o poder que o saber de professor parece
oferecer. Talvez por gostar de lidar com crianças. Com certeza não era porque tinha ciência
do meu papel como professora ou, muito menos, da função da escola. Não sabia que “O
professor pode mudar o mundo, um aluno a cada vez.” (escrito na porta de uma sala de aula
que visitei em Toronto).
A Faculdade de Educação da Bahia onde eu cursei a graduação discutia a importância do
professor conscientizar-se da função da escola na transformação da realidade social de seus
alunos. E na bibliografia indicada aos alunos estavam as publicações assinadas por Moacir
Gadotti, Bárbara Freitag, José Carlos Libâneo e outros.
Ao mesmo tempo, na escola da rede privada, onde eu trabalhava, chegaram as interpretações
feitas por Lauro de Oliveira Lima e Ester Pillar Grossi sobre a teoria Construtivista. Conheci
Lúcia Regina, ex-aluna de Ester Pillar e recém chegada do Rio Grande do Sul para assumir
uma das salas de alfabetização. Aos poucos ouvia falar em Psicogênese da escrita, recorria
mais a Piaget, aquele pesquisador de quem Cristina, minha professora noiva, no magistério,
havia falado.
A leitura das produções destes autores foi fundamental para eu refletir sobre a minha
prática. Éramos mais de 30 professoras naquela escola e acredito que refletíamos movidas
2
pela angústia e preocupação de justificar a nossa própria ação, o que, segundo Perrenoud ,
esta reflexão não se constitui numa alavanca essencial de autoformação e, por conseguinte
de construção de novas competências e de novas práticas.
Assim, as discussões sobre a necessidade de rever o como e o que ensinar eram confusas.
Algumas de nós reconheciam a incoerência entre a teoria e a prática da qual estávamos nos
apropriando. Mas, não tínhamos o que Perrenoud chama de lucidez profissional: “saber
analisar e explicar sua prática, tomar consciência do que se faz” 2.
2 PERRENOUD. Philippe, et alii. Formando professores profissionais. Porto Alegre: Artmed, 2001. 224p.
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O caso do município de Irecê
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PROFESSORA
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FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
5 PEREIRA, Júlio Emílio Diniz. Formação de Professores: pesquisa, representações e poder. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. 168p.
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PROFESSORA
6 CIFALI, Mireille. Conduta Clínica, Formação e Escrita. In: Formando professores profissionais:
quais estratégias? Quais competências. 2 ed. Porto Alegre: Artmed, 2001. 224p. cap.6, p.101-114.
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FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
O certo é que a radiografia da professora Rita Margarete, quando posta contra a luz,
transforma-se num caleidoscópio cujas imagens, se observadas atentamente, mostram a
professora Miraci (séries iniciais – fundamental I) fazendo seus ditados rotineiros e
alertando: “[...] na mesma linha, se não der, na outra.” Prova do quanto subestimava os
alunos. Vê-se o professor Laércio (1º ano – ensino médio) exigindo as fichas de leitura das
obras literárias que líamos por obrigação. Pobre mestre! Não sabia que “A literatura não tem
objetivos além de si mesma”.7 Aparece ainda a professora Givanilda (séries iniciais –
fundamental I) exigindo a participação dos alunos nas dramatizações que planejava e seus
constantes sermões, responsabilizando cada um pela pouca aprendizagem. Identifica-se a
professora Mary (1º ensino médio), sapiência em pessoa! Acreditava tanto no seu saber e
adorava imensamente ouvir sua própria voz a ponto de falar, sozinha, os 50 minutos de aula.
Este é o meu “currículo oculto” no processo da minha formação de professora. Para
identificá-lo e compreendê-lo, vou recuperando, também, recordações da convivência com
algumas colegas de trabalhos que contribuíram para a minha formação profissional.
Acredito que este exercício de identificar o impacto das relações com os colegas de trabalho
em nossa formação é fundamental para nós professores que, como afirma Fullan8, não
costumamos fazer parte de um grupo cooperativo; trabalhamos isolados, solitários, longe
dos colegas.
Então, reconheço como a convivência e o acolhimento das colegas de trabalho, no período
de 1987 a 1996, Onely Mabel, Zenóbia Carvalho, Ana Cristina Barata, Ana Bernadete
Menezes, Jôse Guerreiro, Maria de Lourdes Pereira e Jelza Guimarães, foram importantes
para a minha autoconfiança, naquele momento desafiador de ingresso em uma escola de
grande porte. As orientações de como lidar com as crianças, com as famílias, as dicas na hora
do planejamento e elaboração de atividades foram valiosas.
A segunda metade da década de 1990, período que mais refleti sobre a minha prática de sala
de aula. Certamente a equipe da Avante, consultoria pedagógica da escola, ao colocar-se
como parceira das professoras; incentivando, acolhendo e ajudando o grupo a encontrar
possíveis encaminhamentos para as questões levantadas, contribuiu bastante para esta
reflexão. Além disso, contei com o apoio, de Maristela Marques, Neide Silveira, Eugênia
Costa, Lílian Mustafá, Fabiane Brasileiro, Fabianni Rocha e outras colegas. Juntas,
procurávamos valorizar, duvidar, legitimar, partilhar, cooperar, produzir e avaliar conhe-
cimentos. Construímos um espaço importante ara a nossa autoformação, Era um espaço no
qual, nas palavras de Nóvoa: “(...) as práticas e as opiniões singulares adquirem visibilidade e
são submetidas a opiniões de outros”.9
Fazendo parte desse grupo comecei a perceber a profissão de professor de outra
perspectiva, tal como descreve Weisz e Sanchez:
7 ALVES, Rubem, Entre a Ciência e a Sapiência: o dilema da Educação. 2 ed. São Paulo: Loyola, 1999. 148p
8 FULLAN, Michael, A escola como organização aprendente: buscando uma educação de qualidade.
2 ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000. 136p
9 NÓVOA, Antonio. Professor se forma na escola. R. Nova Escola. São Paulo. fevereiro 2001.
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COMO VENHO
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PROFESSORA
“Começamos a perceber a profissão de professor como uma profissão que pressupõe uma
prática de reflexão e atualização constante. [...] Seu papel tende a ser mais exigente: precisa se
tornar capaz de criar ou adaptar boas situações de aprendizagem, adequadas a seus reais
10
alunos, cujos percursos de aprendizagem ele precisa saber reconhecer.”
Na função de coordenadora pedagógica trabalhei com Gisélia Quadros, Lisanete Almeida,
Ana Paiva e Thaís Costa, companheiras que conheciam bem o funcionamento da escola e a
história dos alunos e compartilharam comigo sem nenhuma restrição a minha condição de
recém chegada no grupo. As professoras que coordenei, ávidas por conhecimentos,
trouxeram outro desfio, pois lidar com as questões que facilitam e as que dificultam a
autoformação do professor, do lugar de consultora é diferente de lidar do lugar de
coordenadora que está envolvida na engrenagem de funcionamento da escola.
Falar das trocas que fiz com tantas companheiras de profissão me faz lembrar de Fulann
quando afirma: “Nosso desenvolvimento dá-se através de nossas relações, em especial
daquelas que estabelecemos com pessoas importantes para nós” 10.
Acredito que a formação continuada que prioriza o desenvolvimento do pensamento-
reflexivo mexe com pontos nevrálgicos do professor: conceitos, valores, certezas, auto-
estima, saberes e não saberes. Desafia o professor a ser protagonista da construção de uma
Escola de qualidade para todos - uma empreitada que exige dele a reconstrução da Escola
onde estudou, lecionou e foi reconhecido; Exige que o professor reconstrua o seu fazer.
Assim, provoca sentimentos que têm grande impacto na decisão do professor permanecer
no processo de formação.
Esta formação também instaura um ambiente altamente favorável para a profissionalização
do professor e impõe ao consultor, além da competência técnica, atitudes de respeito,
tolerância, paciência, compreensão, acolhimento, incentivo e cobrança para criar um
ambiente favorável à aprendizagem e à superação dos medos, do isolamento, do receio de
expor-se ao outro. Foi com atitudes como estas que Thereza Marcílio11 foi uma das pessoas
mais importantes para que eu ressignificasse a minha prática. Ela compreende o processo de
aprendizagem complexo e às vezes lento do professor como próprio das reconstruções raras
e singulares do ser humano que está, segundo Nanci Nóbrega, “sempre no gerúndio;
construindo, aprendendo, ressignificando, recomeçando...”12
A análise que faço do meu percurso ajuda-me, no trabalho com formação de professor, a
compreender e encaminhar as questões que eles trazem, pois, como disse Perrenoud:
“Somente pode gerir uma formação para a reflexividade um formador preparado para uma
conduta reflexiva; somente pode acompanhar o desenvolvimento pessoal sem prejuízos o
formador que também está em processo de busca e desenvolvimento do seu 'eu'”.
10 WEISZ, Telma, SANCHEZ, Ana, O diálogo entre o ensino e a aprendizagem. São Paulo: Ática, 2000. 133p.
11 MARCÍLIO, Maria Thereza. Diretora do núcleo de educação da Avante – Qualidade, Educação e Vida
12 NÓBREGA, Nanci
152
4
Consolidando e
Institucionalizando
a Transformação
da Escola Municipal
A nova proposta
curricular de irecê
1 APRESENTAÇÃO
2 JUSTIFICATIVA
10 EDUCAÇÃO INFANTIL
10.1 Objetivos gerais: capacidades
10.2 O trabalho didático na Educação Infantil
e seus fundamentos
10.3 Componentes curriculares: âmbitos de
experiência e sua organização
10.3.1 Formação pessoal e social
10.3.2 Linguagem
10.3.3 Conhecimento de mundo
10.4 Avaliação
11 ENSINO FUNDAMENTAL
11.1 Objetivos gerais: capacidades
11.2 O trabalho didático no Ensino Fundamental
e seus fundamentos
11.3 Componentes curriculares: áreas de
conhecimento, temas transversais e
sua organização
12.3.1 Língua
12.3.2 Matemática
12.3.3 Ciências Naturais
12.3.4 Ciências Sociais
12.3.5 Artes
12.3.6 Educação Física
11.4 Avaliação
12 BIBLIOGRAFIA
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
CONSOLIDANDO E INSTITUCIONALIZANDO
A TRANSFORMAÇÃO DA ESCOLA MUNICIPAL
1. Apresentação
“Não podemos mais olhar para o currículo com a mesma inocência de antes. O currículo
tem significados que vão muito além daqueles aos quais as teorias tradicionais nos
confinaram. O currículo é lugar, espaço, território. O currículo é relação de poder. O currículo
é trajetória, viagem, percurso. O currículo é autobiografia, nossa vida, curriculum vitae: no
currículo se forja nossa identidade. O currículo é texto, discurso, documento. O currículo é
documento de identidade.”
(Tomaz Tadeu da Silva -1999)
O Currículo compreende:
as metas e os objetivos da rede municipal de ensino, a partir da definição da sua Missão;
a organização geral do trabalho didático, a partir dos fundamentos teóricos adotados
e, também, da história e da situação atual da rede municipal de Irecê.
Na organização geral do trabalho didático são apresentados os objetivos, os conteúdos, a
seqüenciação e as orientações didáticas – o que, quando e como se ensina – e, ainda,
orientações, critérios e instrumentos para diagnóstico e acompanhamento do processo - o
que, quando e como se avalia.
155
CONSOLIDANDO E
INSTITUCIONALIZANDO
A TRANSFORMAÇÃO
DA ESCOLA MUNICIPAL
2. Justificativa
156
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
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CONSOLIDANDO E
INSTITUCIONALIZANDO
A TRANSFORMAÇÃO
DA ESCOLA MUNICIPAL
mais da metade da população em idade escolar estava fora da escola, a rede escolar
deteriorada, salários atrasados, profissionais desassistidos no que se refere à formação
permanente, salas de aula superlotadas, práticas pedagógicas arcaicas, índices elevados de
repetência, evasão e defasagem idade/série, situação esta que não era acompanhada do
ponto de vista de dados e informações estatísticas confiáveis.
Em 1997, diagnóstico da situação existente constatou a necessidade urgente de
intervenções para transformação dessa realidade, levando à definição de prioridades
e metas para a educação no município. Era imprescindível buscar caminhos que apon-
tassem para uma educação de qualidade. Foram firmadas, então, as seguintes parcerias
técnicas e iniciados projetos para a instauração de um trabalho pedagógico, conforme se
indica a seguir:
158
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
Além dessas parcerias, o município, realizou as seguintes ações com recursos próprios:
reformas da estrutura física de 24 escolas;
construção de 5 novas escolas;
ampliação de 1 prédio escolar;
aquisição de 134 livros técnicos e de literatura;
realização de 3 concursos públicos para professores e pessoal de apoio;
construção de 2 quadras poliesportivas;
reforma da Biblioteca Municipal;
aquisição de 2 veículos.
3.2
Organização
Promoção 85 % 97 %
Educação Infantil 03
Repetência 15 % 4%
Defasagem 67 % 61 %
Alunos matriculados
(Educação Infantil e Ensino Fundamental)
10.452
1998 1999
Professores concursados 144 Promoção 97 % 94 %
Repetência 3% 6%
Professores contratados 250
Evasão 9% 8%
Professores leigos 09 Defasagem 13 % 3%
159
CONSOLIDANDO E
INSTITUCIONALIZANDO
A TRANSFORMAÇÃO
DA ESCOLA MUNICIPAL
3.3
Perspectivas
Na unidade escolar
Considera-se fundamental o fortalecimento das escolas como comunidades educativas que
integram uma rede, implementando-se:
a construção de rotinas de trabalho para diretores, vice-diretores, coordenador pedagógico e
professores;
a implantação de grupos de estudo e registros freqüentes da ação educativa, que garantam a
análise permanente da prática;
160
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
4. Missão
Assegurar que todos os habitantes do município de Irecê tenham acesso,
permaneçam e tenham sucesso em todos os níveis da educação básica oferecida
com qualidade.
5. Visão
Ser uma rede de ensino de referência para a microrregião de Irecê, pela qualidade
dos serviços oferecidos e pelos resultados alcançados.
6. Metas
Assegurar a oferta de ensino fundamental a 15.000 crianças e adolescentes, até
o ano 2001;
Corrigir a distorção idade-série em 100% das classes do 1o e 2o ciclos do ensino
fundamental, até 2001;
Ampliar o atendimento na Educação de Jovens e Adultos, garantindo a
matrícula de 3.000 alunos, até 2004;
Oferecer formação profissionalizante para 1.000 jovens e adultos, até 2002;
Fazer com que todas as 34 escolas da rede atendam aos padrões mínimos
definidos pelo MEC, até 2003;
Construir 7 quadras poliesportivas e instalar uma biblioteca escolar em cada
escola, até 2004;
161
CONSOLIDANDO E
INSTITUCIONALIZANDO
A TRANSFORMAÇÃO
DA ESCOLA MUNICIPAL
7. Finalidades da Educação
Definir um currículo para uma rede de ensino significa indicar objetivos de aprendizagem e
propor situações de ensino que levem à construção das competências mínimas necessárias à
realização plena do indivíduo e sua participação na sociedade. Para tal é preciso pensar
sobre quais as demandas que se colocam para todos que aspiram a viver bem e
produtivamente, alongando o olhar para o futuro, projetando a sociedade na qual
queremos viver.
Segundo José Bernardo Toro, essas competências e capacidades mínimas, são as seguintes:
domínio da leitura e da escrita;
capacidade de fazer cálculos e de resolver problemas;
capacidade de analisar, sintetizar e interpretar dados, fatos e situações;
capacidade de compreender e atuar em seu entorno social;
capacidade para receber criticamente os meios de comunicação;
capacidade para localizar, acessar e usar melhor a formação acumulada;
capacidade para planejar, trabalhar e decidir em grupo.
Para formar este sujeito é necessário que a escola, enquanto instituição social responsável
pela educação formal, ofereça condições para que ele construa as capacidades e domine as
competências mínimas, possibilitando-lhe ir além, aprendendo a aprender, favorecendo sua
inserção plena e sua participação produtiva na sociedade.
Neste momento da nossa história, percebe-se o anseio da maioria das pessoas por uma
sociedade democrática, justa, aberta à diversidade, produtiva, com capacidade para
relacionar-se e contribuir com outros grupos. Esta sociedade só poderá ser formada por
pessoas que sejam solidárias, participativas, críticas, criativas, reflexivas, cooperativas e
produtivas. É preciso, portanto, ampliar as finalidades da educação, atribuindo a ela parte
significativa da responsabilidade pelo desenvolvimento integral do educando, a formação
de sua consciência, o exercício responsável de sua liberdade, sua capacidade de relacionar-se
com os demais e de respeitar a todos.
Definir um currículo para uma rede de ensino significa, então, fazer a opção por uma função
social do ensino. Tradicionalmente, no Brasil, o sistema de ensino tem servido para
selecionar os que “podem” continuar aprendendo e que deverão chegar até à universidade.
162
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
163
CONSOLIDANDO E
INSTITUCIONALIZANDO
A TRANSFORMAÇÃO
DA ESCOLA MUNICIPAL
de raças, etnias e culturas é essencial à nossa identidade e é um valor a ser reafirmado pela
educação;
a abertura e valorização de formas de conhecimento e de aproximação à realidade que
transcendem a racionalidade instrumental: as linguagens simbólicas, a intuição, a sensibilidade à
vulnerabilidade humana, a recuperação criativa da tradição e a apreciação pela beleza;
a liberdade, entendida – na tradição que Paulo Freire acertadamente recolheu – como uma
conquista sobre nossos egoísmos e os dos demais, como construção da autonomia da pessoa e
de seu sentido de responsabilidade, como superação de todas as opressões mediante a
compreensão do opressor e a disposição de compartilhar com ele a tarefa de construir um mundo
para todos;
trabalho como meio de realização pessoal e portanto direito fundamental, não como
subordinação acrítica aos interesses do capital nem como busca de maximização do lucro;
a busca do outro na construção do “nós”, que fundamente o sentido ético da vida humana e a
presença constante da utopia e da esperança.
9. Referências teóricas
Como ponto de partida é necessário definir a escola como a instituição social cuja função é
educar, instruir e formar os cidadãos para a participação plena e produtiva na sociedade,
para a realização de seus talentos e a busca da felicidade.
A natureza do serviço prestado é portanto educativa, a prática que o caracteriza é a
pedagógica e o conhecimento produzido pela instituição é o conhecimento didático.
Estabelecer esses limites significa ter clareza do papel da escola e poder criar instrumentos e
mecanismos de acompanhamento, controle e avaliação da instituição: significa ainda,
164
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
perceber as relações entre a escola e outras instituições, assim como, as relações entre o
saber didático e outros saberes. É importante reconhecer que por trás de toda e qualquer
prática pedagógica há referências teóricas e, mais ainda, é preciso entender que ensinar é
uma atividade social das mais complexas e delicadas, que requer conhecimento profundo
do objeto de conhecimento, do sujeito aprendiz e da ciência didática.
Segundo Délia Lerner:
“Deste modo, o saber didático, ainda que se apóie em saberes produzidos por outras ciências,
não pode deduzir-se simplesmente deles; o saber didático se constrói para resolver problemas
próprios da comunicação do conhecimento. Resultado, pois, do estudo sistemático das
interações que se produzem entre o professor, os alunos e o objeto de ensino. É produto da
análise das relações entre o ensino e a aprendizagem de cada conteúdo específico, se elabora
através da investigação rigorosa.”
Por tudo isso, ensinar requer atitudes de escuta, de compaixão e de acolhimento – genuína
solidariedade – e de encantamento permanente. Mais ainda, a capacidade de lidar com o
inusitado e de conviver com a insegurança. É, pois, indispensável tornar a prática
pedagógica um objeto de conhecimento a ser estudado, analisado, para que possa ser, a um
só tempo, transformada e transformadora.
Ao se eleger um determinado conteúdo, propor formas específicas de organizar o
conhecimento, sugerir tipos de atividades, escolher entre possíveis seqüências didáticas,
existe uma determinada concepção de homem, de sociedade, de aprendizagem e de ensino
que guia estas ações e decisões. O primeiro referencial para análise da prática está pois
ligado à função social do ensino. As perguntas são: para que educar, para que ensinar? As
respostas a estas perguntas são o que dá sentido ao ato de educar e que, neste documento,
foram apresentadas no capítulo das Finalidades da Educação.
A partir da explicitação das finalidades – garantir as aprendizagens necessárias à formação
de cidadãos autônomos, críticos e participativos, que atuem com competência e responsa-
bilidade na sociedade, resolvendo os problemas com os quais se defrontam – podem ser
definidos os conteúdos a serem trabalhados na escola. Em linhas gerais são eles:
o fortalecimento da identidade do sujeito, o domínio da língua falada e escrita e dos princípios e
fatos da matemática;
a compreensão do funcionamento da sociedade nas suas dimensões espacial e temporal;
os princípios da investigação científica e o uso dos recursos tecnológicos;
o acesso à informação e a possibilidade de apreciar e produzir as diversas expressões artísticas;
o cuidado e o respeito com o corpo e com o ambiente, visando a preservação da vida com
qualidade, sabendo lidar com as transformações sofridas por ambos;
o exercício da convivência no respeito às diferenças.
Proceder a essa seleção, tendo como base uma determinada concepção filosófica, é condição
necessária mas não suficiente para a prática pedagógica. É preciso ainda conhecer e explicitar
uma concepção de aprendizagem e de desenvolvimento humano. A partir dos marcos
teóricos da epistemologia genética (J. Piaget), da teoria sóciointeracionista (Vigostky) e das
165
CONSOLIDANDO E
INSTITUCIONALIZANDO
A TRANSFORMAÇÃO
DA ESCOLA MUNICIPAL
1 Esquema: conceito utilizado por Piaget para descrever a organização da mente. O ser humano
possui ao nascer alguns esquemas relacionados a atos reflexos que lhe permitem sobreviver.
Estes esquemas, no processo adaptativo de assimilação e acomodação, transformam-se progressivamente
através de diferenciações e coordenações nas “organizações” lógicas da inteligência adulta.
166
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
Esta é também a posição de Wallon (1973). Segundo ele, o ambiente e a criança influenciam-
se reciprocamente e cada criança estabelece um sistema próprio de relação com o meio a
cada momento. Isto pode ser observado nas atividades em que ela se envolve, na forma
como interage com os demais, no tempo que dedica a cada atividade, no significado que
atribui a diferentes aspectos da situação, nos locais e objetos que seleciona para brincar.
É fundamental, pois, que o professor observe e identifique cada criança para que possa
organizar o ambiente de maneira que potencialize a aprendizagem.
Qualquer atividade educativa, portanto, principalmente as realizadas pela escola, por sua
intencionalidade, tem que levar em conta o nível de desenvolvimento operatório do sujeito,
para que as atividades planejadas se ajustem às peculiaridades do funcionamento e da
organização mental do aluno.
A teoria sóciointeracionista traz elementos que iluminam esta relação: sujeito aprendiz x
produção de conhecimento. Ela nos permite entender a relação constante, profunda e
dinâmica entre o sujeito e o conhecimento, destacando o papel da cultura, portanto das
interações entre as pessoas e entre elas e as diversas formas de organização social. A partir
dessa referência é possível afirmar que a repercussão das experiências educativas formais
sobre o crescimento pessoal do aluno está igualmente relacionada com os conhecimentos
prévios com os quais ele inicia sua participação nas mesmas. O aluno inicia uma nova
aprendizagem escolar a partir de conceitos, concepções, representações, procedimentos e
valores que foram construídos em uma experiência prévia e os utiliza como instrumentos de
leitura e de interpretação com implicações no resultado da aprendizagem. Levando, pois, em
conta o nível conceitual do aluno é preciso considerar, simultaneamente, os dois aspectos
anteriores mencionados. O que o aluno é capaz de fazer e de aprender depende tanto do seu
estágio de desenvolvimento operatório, como do conjunto de conhecimentos já construídos
em suas experiências prévias de aprendizagem.
Com esse entendimento, o lugar da escola e o papel do professor se definem enquanto
mediadores, guias e orientadores do processo de aprendizagem. O “lugar ideal” da
intervenção pedagógica é aquele em que a criança sabe alguma coisa mas não o suficiente
para resolver o problema com autonomia e em que a ajuda do professor é
instrumentalizadora para a aprendizagem em questão e para a construção das competências
desejadas; trata-se, segundo Vigotsky, de atuar na Zona de Desenvolvimento Proximal da
criança (ZDP), que está entre o que a criança já conhece e sabe (zona de desenvolvimento
efetivo) e o que ela ainda não sabe, que é o nível de desenvolvimento potencial. Desenvol-
vimento, aprendizagem e ensino são três elementos relacionados entre si: o nível de
desenvolvimento potencial determina as possíveis aprendizagens que o aluno pode realizar
graças ao ensino, e, por sua vez, este pode chegar a modificar o nível de desenvolvimento
efetivo do aluno mediante as aprendizagens que promove. Segundo Bruner, o papel do
ensino é o de prover “andaimes” que sustentem a criança na escalada da construção do
conhecimento. Portanto, o ensino eficaz é aquele que parte do nível de desenvolvimento do
aluno, não para acomodar-se e sim para fazê-la avançar através da zona de desenvolvimento
proximal, para ampliá-la e gerar novas zonas de desenvolvimento proximal.
167
CONSOLIDANDO E
INSTITUCIONALIZANDO
A TRANSFORMAÇÃO
DA ESCOLA MUNICIPAL
Um outro princípio teórico que deve nortear as práticas escolares é o que diz respeito ao
caráter significativo que a aprendizagem deve ter. A vida apresenta problemas, propõe
questões que precisam ser resolvidas e enfrentadas pelas pessoas. Aprender é estratégico
para a vida, para a sobrevivência, para a realização pessoal.
Assim, as situações didáticas planejadas devem ser significativas para os alunos. Para tal,
elas precisam cumprir duas condições a seguir mencionadas.
Os conteúdos propostos têm que ser potencialmente significativos. É necessário que eles sejam
organizados e apresentados a partir de uma lógica interna, o que requer conhecimento da estrutura
da matéria. O não respeito a essa condição poderá causar confusão e dificultar a aprendizagem. Há
ainda um outro nível de significatividade que é a psicológica. Para que haja significatividade
psicológica é preciso organizar e apresentar o conteúdo de forma que o aluno possa estabelecer
relações e atribuir sentido ao objeto de aprendizado. Isto significa levar em conta a realidade de
cada aluno, as suas circunstâncias e necessidades, as suas experiências e conhecimentos favore-
cendo a construção, ampliação e transformação de esquemas de conhecimento.
A atitude dos aprendizes deve ser favorável à aprendizagem significativa; isto quer dizer que
o aluno deve estar motivado para relacionar o que aprende com o que já sabe.
Por tudo isso, há um estreito e forte vínculo entre o significado da aprendizagem e a sua
funcionalidade. É fundamental que o conhecimento possa ser utilizado em todas as
circunstâncias em que for necessário. Quanto mais numerosas e complexas forem as
relações estabelecidas entre o novo conhecimento e os elementos da estrutura cognitiva,
mais possibilidades terá de ser assimilado e de provocar acomodações e maior será a sua
funcionalidade pois o sujeito poderá relacioná-lo com novas situações e conteúdos.
Ademais, o processo mediante o qual se produz aprendizagem significativa requer intensa
atividade por parte do aluno. É necessário salientar que a atividade em questão não significa
necessariamente atividade física. Esta pode até existir, principalmente entre crianças
pequenas, mas a atividade da qual se está falando é a atividade mental. Por atividade mental
entende-se o engajamento do sujeito na resolução de uma situação- problema, na
mobilização pela resposta a um desafio, no aguçamento da curiosidade, na formulação de
hipóteses, na busca de comprovação para seu ponto de vista. É preciso, pois, assegurar que
a atividade proposta seja organizada a partir de perguntas reais que sejam suficientemente
importantes para as crianças buscarem respostas.
Nesse contexto torna-se necessário reconsiderar o papel que tem sido atribuído à memória na
aprendizagem escolar. A memorização mecânica, repetitiva, de curta duração, tão
importante em situações de provas e exames, onde é necessário dar a resposta que o
professor espera e que está nos livros, tem muito pouco interesse para situações de
aprendizagem significativa, a não ser como apoio. É maior, por outro lado, a importância da
memória compreensiva ou de longa duração enquanto ingrediente fundamental no processo
de aprendizagem. É ela quem possibilita estabelecer relações, recuperar dados que iluminam
novas questões, produzindo como resultado a transformação e/ou ampliação de esquemas.
168
FORMAR PARA TRANSFORMAR
O caso do município de Irecê
Esses esquemas constituem a estrutura cognitiva do sujeito e podem manter, entre si,
relações de extensão e complexidade diversas. O objetivo da educação escolar é exatamente
a modificação dos esquemas de conhecimento do aluno, seja pelo enriquecimento,
diferenciação, seja pela construção e coordenação progressiva dos mesmos.
Finalmente, assumir estas referências teóricas como fundamento para a prática pedagógica,
pressupõe uma organização didática que as expresse, significa ainda intervenções pedagógicas
que considerem o aluno como sujeito e a sua relação com o objeto de conhecimento como
construção, a partir da necessidade de resolver problemas e de enfrentar desafios. O lugar do
professor na tríade sujeito aprendiz – objeto de conhecimento - professor é, exatamente, o de
organizador de situações, o de formulador de questões, o de informante privilegiado.
A Pedagogia por Projetos é a referência teórica escolhida para a organização didática da
rede. Os fundamentos da Pedagogia por Projetos podem ser encontrados nas obras de
diversos educadores como Freinet, no movimento da escola nova com Dewey e aqui no
Brasil, particularmente, nos livros e nas realizações de Anísio Teixeira. Como representantes
contemporâneos destacamos Fernando Hernandez e Josette Jolibert.
A opção pela Pedagogia por Projetos deve-se à coerência existente entre o trabalho com
projeto e as finalidades da educação da rede de ensino, que visam formar plenamente sujeitos
que se reconheçam como aprendizes, sejam reflexivos, autônomos e críticos em relação a
informação que os rodeia e tenham uma inserção produtiva e transformadora na sociedade.
Para tanto, o trabalho das escolas da rede deve estar alicerçado nos princípios da vida
cooperativa e da gestão participativa, constituindo-se em um espaço real, aberto a múltiplas
e diversas relações com o exterior. Isto significa oferecer aos alunos, professores e demais
envolvidos, condições mais favoráveis de agirem sobre o meio em que vivem, tomarem
decisões coletivas, compartilharem diferentes pontos de vista, assumirem responsabilidades,
projetarem-se no tempo através do planejamento de suas ações e constituírem-se enquanto
sujeitos aprendizes, produzindo conhecimento com sentido e unidade.
Para uma melhor definição da organização dos projetos nas escolas distinguem-se dois tipos:
Projetos de empreendimento: ações complexas em torno de uma meta definida, com uma certa
amplitude e funcionalidade. Os empreendimentos de uma instituição têm fins em si mesmos e o
propósito de oferecer condições aos alunos envolvidos para tomarem decisões, assumirem
responsabilidade e, acima de tudo, agirem em situações reais e envolventes que tenham sentido
para eles;
Projetos de aprendizagem: têm como objetivo sistematizar ações em torno dos objetos de
aprendizagem previstos, respondendo às questões acerca do que, quando e como propor
situações-problemas que propiciem a transformação dos conhecimentos.
Além do uso da Pedagogia por Projetos na organização do trabalho didático, sugerem-se
outras formas de sistematização para o bom funcionamento dos trabalhos. Atividades
permanentes e de rotina, e atividades isoladas contextualizadas ou descontextualizadas
devem ser planejadas e organizadas em torno dos aspectos que porventura não foram
contemplados nos projetos de aprendizagem, ou porque são conteúdos de outro eixo de
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CONSOLIDANDO E
INSTITUCIONALIZANDO
A TRANSFORMAÇÃO
DA ESCOLA MUNICIPAL
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