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Sem título ainda

O dia parece bonito lá fora! Ouço o rugido dos carros entrando pela janela, se
infiltrando por entre as persianas, e aproximando sordidamente, a ponto de acordar a
mulher deitada ao meu lado, minha esposa. Levanto-me, vou ao banheiro, jogo água no
meu rosto enrubescido pelo sol de ontem. Dirijo-me pé ante pé até a cozinha para beber
um copo de leite. Passo pela porta do quarto do jovem sentado em frente do
computador, perdido na nova realidade, meu filho. Abro a geladeira e, absorto, bebo o
amargo leite desnatado, apodrecido, ainda assim o consigo suportar. Jogo no lixo o
restante e volto para junto da mulher, minha esposa.
Observo-a demoradamente tentando entender aqueles olhos prescindíveis,
mutantes, que se transformaram nas últimas semanas. Eram tão serenos. Sei que mudei
também. Somos passíveis de mudanças, e, afinal de contas, sou homem, tenho meus
motivos. Eu não queria que fosse assim. A mulher, minha esposa, abriu os olhos. Olha-
me como se aqui não estivesse. Fita-me como se contemplasse o mais longínquo
horizonte, daqueles lunares.
Deito-me novamente na cama, enquanto a mulher, minha esposa, caminha felina
na direção do quarto do jovem, meu filho. Aqui estou, como nunca antes, lembrando
das coisas boas da vida. Do meu namoro. Do meu casamento. Do nascimento daquele
que me chamaria de pai. Estranho, o dia esfria cinzento, meu corpo arrepia e uma
sensação de intranquilidade assola-me pouco a pouco.
Escuto a conversa baixa entre a mulher, minha esposa e o jovem, meu filho,
porém não entendo, porque chega até mim, aqui, deitado ainda, somente os chiados e os
sibilos de cochicho. Não sei do que falam. Olho então para o relógio e noto as horas
passarem timidamente. Uma débil chuva cai sobre a cidade, levantando o cheiro de
poeira que insiste em se imbuir em meu quarto. E eu com essa sensação!
Decido que já é hora de despertar completamente. Dirijo-me à janela, respiro
fundo o ar morno, abro o peito para aquele dia, que morre antes mesmo do seu tempo
natural. Não sei o que me perturba mais: se esta agoniada impressão ou a lembrança
d’Ella. Nunca terei coragem para assumir meus atos, principalmente para a mulher,
minha esposa, porque quero que ela continue sendo minha esposa. Sei que sou fraco, e
até covarde, quando se trata dessa situação. Acredito na impossibilidade da descoberta.
Tenho fé na legitimação dos meus atos e na fidelização que imponho a imponho
sempre. Ella não sabe do meu casamento, muito menos sobre meu lado pater familias.
Minha vida dupla se mantém pela minha discrição e pelo ostracismo da minha família,
presa ao lar construído pela redoma do meu amor, sem ironias das sentimentais.
A viúva da rua não veste mais preto? Desde quando? Sua órfã chora tristemente.
O que aconteceu? Será que ainda pranteia a perda do pai? Ouço o soado longínquo do
sino da matriz a tagarelar mais uma missa de sétimo dia. Minha janela até parece a
janela da minha alma. Aberta para o mundo, apesar de eu estar preso à minha culpa.
Mas que culpa? Como disse, sou homem. E os homens têm dessas coisas.
O jovem, meu filho, se aproxima cauteloso, com olhar enigmático. Chama-me
para o desjejum. O acompanho calmamente, entretanto, ele apressa-se, segue altivo em
minha frente. Olho rapidamente para seu quarto e vejo por entre a porta semiaberta
minha foto no computador, pareço estar em companhia de alguém; numa mesa talvez.
Quem será? Uma mulher? Ao mesmo tempo em que vejo a foto, observo um livro de
capa marrom escrito algo do tipo, “O diário de Jack...”, acho que um novo romance.
Isso em fração de segundos. Foi o tempo de passar pelo quarto e chegar à cozinha.
A mulher, minha esposa, estava junto à pia de costas cortando algo, não consigo Commented [L1]: Parece que entre vírgulas ficaria melhor.

ver. Cabelo preso com um grampo prateado, alguns fios caídos pela nuca, levemente
acariciados pelos dedos. Calcanhar direito servindo de apoio para o pé direito. O jovem,
meu filho, se pôs de costas para mim também. Mesa posta. No entanto, o cheiro do café
fazia-me esquecer das frutas, do bolo, dos doces, da fartura que ornava a mesa.
Para minha surpresa, o jovem, joga um envelope amarelo sobre a mesa grafado Commented [L2]: Sem vírgula

com letras maiúsculas: “Ella: o crime do papai”. Meu coração acelera. Sinto um frio na
espinha. Não estou em mim. Não consigo falar. Seguro-me a mim, sacudo-me por
inteiro. Sento-me a mim na cadeira. Sinto então um peso entrar em mim por detrás.
Meus olhos veem tudo avermelhar ao redor. Outro peso penetrou meu peito. O gosto
amargo escorre pela minha boca lentamente. Lentamente. Ouça a mulher rir baixinho.
Está vermelho. O insistente cheiro de café me enleia. Vejo embaçado a silhueta da
mulher e do jovem ficar mais longínqua ainda. O barulho do carro. O sino. Viúva.
O dia parecia tão bonito!

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