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EDUCAÇÃO
Introdução
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De acordo com Le Goff (2003, p. 12) a Historiografia é um ramo da História, enquanto Ciência, que estuda seu
próprio movimento histórico. “[...] a própria ciência histórica é colocada numa perspectiva histórica com o
desenvolvimento da historiografia, ou história da história.” Assim, entende-se a Historiografia da Educação
como a História da História da Educação.
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Para uma melhor compreensão do conceito de campo vale salientar a efetiva contribuição de Bourdieu e sua
teoria dos campos: “Os campos se apresentam à apreensão sincrônica como espaços estruturados de posições (ou
de postos) cujas propriedades dependem das posições nestes espaços, podendo ser analisadas independentemente
das características de seus ocupantes (em parte determinadas por elas). (BOURDIEU, 1983, p. 89)”.
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Jacques Le Goff, historiador de ofício, nasceu em janeiro de 1924 em Toulon, na França. É considerado um dos
maiores medievalistas do mundo. Seu trabalho destaca-se especialmente nas últimas décadas, com o movimento
da Nova História, a partir dos anos 1970, exercendo grande influência no “fazer histórico” (FRÓES, 2005).
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históricos da História da Educação, tais como: o conceito de História e de Memória.
Considera-se o autor supracitado de influência marcante na Historiografia da Educação no
Brasil, uma vez que suas obras estão presentes nos trabalhos de pesquisa e docência nas
universidades brasileiras. Dessa forma, a contribuição de Le Goff, intelectual medievalista de
expressão no meio acadêmico, na definição dos conceitos aqui analisados, possibilita
avançarmos para além dos estudos históricos e adentrarmos na especificidade e/ou na
apropriação da História da Educação desses conceitos. Assim, este estudo se consubstancia
em uma perspectiva contemporânea de conceitos apropriados pela História da Educação na
atualidade, fundamentada por Le Goff, o qual busca nos ensinamentos do medievo os
conhecimentos que embasam suas análises. Vejamos, então, seu contributo.
História
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“o que os homens realizaram” sendo o tema central ou objeto de procura; e a História como
uma narração, verdadeira ou falsa, fundamentada na “realidade histórica” ou no imaginário.
O século XIX é considerado por Le Goff como o século da História, pois “[...] inventa
ao mesmo tempo as doutrinas que privilegiam a história dentro do saber – falando, como
veremos, de ‘historismo’ ou de ‘historicismo’ – e uma função, ou melhor, uma categoria do
real, a ‘historicidade’ [...]” (LE GOFF, 2003, p. 19). Para o autor, do ponto de vista
epistemológico, a historicidade possibilita refutar, no plano teórico, a noção de “sociedade
sem história”, refutada, por outro lado, pela forma empírica com que a etnologia estuda as
sociedades.
Le Goff (2003, p. 19), fundamentado em Certeau, observa que “Há uma historicidade
da história que implica o movimento que liga uma prática interpretativa a uma práxis social”.
E, estudando o filósofo Paul Ricoeur, o qual observa um paradoxo no fundamento
epistemológico da História, desdobrando-a em um modelo de acontecimentos e em outro
modelo estrutural, concorda que “[...] é sempre na fronteira da história, no fim da história que
se compreendem os traços mais gerais da historicidade” (LE GOFF, 2003, p. 20).
Sobre o conceito de historicidade, Le Goff (2003) afirma que este possibilita a
“entrada” de novos objetos da História no campo da Ciência Histórica. Elementos como a
História Rural, História da Loucura, entre outros, ainda não reconhecidos, passam a ser
tratados. Por outro lado, essa abertura para novos objetos da História, na concepção do autor,
acaba por descaracterizar o ideal que se tem de História, ou, em suas palavras “[...] a
historicidade exclui da História com H maiúsculo: ‘Tudo é histórico, logo a história não
existe’” (idem, ibidem).
Neste sentido, evidencia-se uma preocupação do autor com os diferentes “sentidos”
que a história possa apresentar. Le Goff (2003) chama atenção para as possíveis confusões
grosseiras e mistificadoras, entre os significados desses “sentidos”, observando a
diferenciação existente entre a Ciência da História e a Filosofia da História, da qual suspeita.
Isso não implica na não aceitação desse tipo de reflexão, pois “[...] a fronteira entre as duas
disciplinas, as duas orientações, não está estritamente traçada nem é traçável (em última
hipótese). O historiador não pode concluir que deve evitar uma reflexão teórica, necessária ao
trabalho histórico (LE GOFF, 2003, p. 20).
Sobre esse aspecto, o autor apresenta o estudo da revista “History and Theory. Studies
in the philosophy of History”, a qual aborda a questão da proximidade da Filosofia e da
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História provando que “[...] a possibilidade e o interesse duma reflexão comum de filósofos e
historiadores, assim como da formação de especialistas informados, no campo da reflexão
teórica sobre a história” (LE GOFF, 2003, p. 21). Avalia ainda, que “[...] é legítimo que nas
margens da ciência histórica se desenvolva uma filosofia da história, como outro ramo do
saber” (idem, ibdem).
De acordo com Le Goff (2003), a história apresenta algumas ambigüidades e
paradoxos, tais como: a história é uma ciência do passado ou só existe história
contemporânea?; a questão do saber e poder; sobre a objetividade e manipulação do passado;
e ainda, a questão do singular e universal, generalizações e singularidades da história.
Observa-se que o autor considera a discussão de tais ambigüidades e paradoxos como
fundamentais para a definição de sua concepção de história, pois os explicita de forma
detalhada.
Sobre o primeiro aspecto, Le Goff (2003) adentra na concepção de Marc Bloch4, o
qual entende a História não como uma ciência do passado, mas como a ciência dos homens no
tempo, dando a mesma um caráter mais humano. Para Bloch, a história “[...] é um esforço
para um melhor conhecer uma coisa em movimento” (BLOCH, 1965, p.29) e, “[...] não se
explica um fenômeno histórico fora do estudo de seu movimento” (BLOCH, 2001, p.60). A
concepção de Bloch, apresentada, é a de que considerava a história como uma ciência a ser
estudada não apenas como o estudo do presente para compreender o passado, mas, também,
uma forma de compreender o passado pelo presente. Essa é uma outra forma de olhar para a
História, uma História não linear, mas de rupturas e descontinuidades, às vezes
inultrapassáveis.
Outra questão, apresentada por Le Goff (2003), refere-se à História contemporânea. O
autor lembra a famosa frase de Benedetto Croce em que considera que “toda a história” é
“história contemporânea”, entendendo que por mais que pareçam estar afastados, os
acontecimentos de que trata na realidade, no tempo, a história sempre está em sintonia com
situações presentes. Para Croce, segundo Le Goff (2003), a história é conhecer um eterno
presente, e isso significa negar a história. O autor considera o passado “[...] uma construção e
uma reinterpretação constante e tem um futuro que é parte integrante e significativa da
história” (LE GOFF, 2003, p. 25).
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Marc Bloch, historiador de ofício, foi, em 1929, um dos fundadores da revista Annales.
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Neste sentido, evidencia-se uma preocupação de Le Goff acerca da dependência da
história do passado em relação ao presente:
Sobre o segundo aspecto, é perceptível um dos anseios que Le Goff (2003, p. 29)
coloca na história ao escrever que ”[...] ela deve esclarecer a memória e ajudá-la a retificar os
seus erros”, e ainda se perguntando se o historiador está preparado para enfrentar o imenso
desafio, o qual chama de doença, se não do passado, então do presente.
O autor demonstra por meio de exemplos, que “[...] a objetividade histórica não é a
pura submissão dos fatos” (LE GOFF, 2003, p. 32). Salienta que a imparcialidade exige do
historiador apenas honestidade, já a objetividade demanda um pouco mais, acrescentando
ainda que:
A contradição mais flagrante da história é sem dúvida o fato do seu objeto ser
singular, um acontecimento, uma série de acontecimentos, de personagens
que só existem uma vez, enquanto que o seu objetivo, como o de todas as
ciências, é atingir o universal, o geral, o regular (LE GOFF, 2003, p. 34).
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repetirá. É nesse sentido, que Le Goff argumenta três conseqüências do reconhecimento da
singularidade do fato histórico: a primazia do acontecimento, o privilegiar os grandes homens,
e a sua redução a uma narração.
Mas afinal, após Le Goff realizar toda uma trajetória de estudos a fim de explicitar a
sua concepção de História, o que pensa ser o trabalho histórico e a própria história? O autor
nos deixa de forma clara o seu pensamento quando afirma que “[...] o trabalho histórico tem
por fim tornar inteligível o processo histórico e que esta inteligibilidade conduz ao
reconhecimento da regularidade na evolução histórica” (LE GOFF, 2003, p. 44-45). Quanto à
história, esta é posta como a ciência do tempo, “Está estritamente ligada às diferentes
concepções de tempo que existem numa sociedade e são um elemento essencial da
aparelhagem mental dos seus historiadores” (LE GOFF, 2003, p. 52).
Memória
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medida em que os resultados das pesquisas empíricas evidenciam uma relação intrínseca da
memória com “[...] resultados de sistemas dinâmicos de organização” (LE GOFF, 2003, p.
421).
O autor afirma que os estudos recentes vêm sendo desenvolvidos apontando para uma
aproximação da memória com a linguagem. Ora, antes de uma idéia ser falada ou escrita,
precisa primeiramente estar armazenada na memória. Além disso, com o desenvolvimento da
biologia e da cibernética, psicólogos e psicanalistas passaram a estudar a memória de uma
forma mais teórica e não somente empírica. Esses pesquisadores observaram que os
sentimentos inerentes ao homem, como o desejo, a afetividade, a censura, podem manipular a
memória individual, consciente ou inconscientemente. Em relação à memória coletiva,
observaram que esta pode ser manipulada pelos grupos que objetivam exercer o poder em
determinados momentos históricos.
Le Goff (2003) divide seu estudo sobre a memória histórica em cinco partes, a saber,
memória étnica; desenvolvimento da memória da Pré-História à Antiguidade; memória
medieval; progressos da memória escrita e os desenvolvimentos atuais da memória.
Mas o que este autor entende sobre memória? Le Goff (2003) defende que a cultura
dos homens com escrita é diferente da cultura dos povos sem escrita, todavia, não
radicalmente divergente. Os povos sem escrita cultivam suas tradições por meio de narrativas
mitológicas, transmitidas às demais gerações pelos homens – memória, personagens
responsáveis pelo cultivo da história de seu povo. No entanto, essa prática não lança mão de
estratégias de memorização, não é uma prática mecânica, diferentemente da escrita. E Le Goff
acrescenta: “Transmissão de conhecimentos considerados secretos, vontade de manter em boa
forma uma memória mais criadora que repetitiva; não estarão aqui duas das principais razões
da vitalidade da memória coletiva nas sociedades sem escrita” (LE GOFF, 2003, p. 426).
Do período em que se deu o desenvolvimento da memória pela oralidade até o
aparecimento da escrita (da Pré-História até a Antiguidade), Le Goff (2003, p. 427) afirma
que houve uma “transformação da memória coletiva”, a partir do momento em que os homens
passaram a inscrever suas aventuras, vitórias e conquistas em monumentos epigrafados. No
entanto, quando a escrita passa a ser organizada em documentos escritos, um outro avanço
acontece: a capacidade de registrar, marcar, memorizar, reordenar, reexaminar, etc. Todo esse
desenvolvimento não esteve separado, segundo o autor, do crescimento dos centros urbanos
que ampliaram as necessidades e condições dos homens.
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A escrita, assim, possibilitou o aparecimento, ou melhor, a criação de exercícios de
memória. No entanto, a história dos gregos demonstra que, apesar de letrados, havia entre eles
uma preocupação com a prática de exercícios artificiais de memorização. Os gregos
enalteciam a prática natural da memória, que independe da escrita. Isso não impedia, contudo,
que praticassem exercícios de rememoração baseados na linguagem escrita.
Na Idade Média, com a difusão do cristianismo e com o monopólio intelectual da
Igreja, a memória coletiva modifica-se, visto que as religiões judaica e cristã têm como base
de sua fé a memorização, a recordação. Traços dessa transformação são: o desenvolvimento
da memória dos mortos, o papel da memória no ensino articulando o oral e o escrito, a divisão
da memória coletiva entre memória litúrgica e memória laica, desenvolvimento da memória
dos mortos, entre outros (LE GOFF, 2003).
O ensino cristão é memória e esta se manifesta, essencialmente, na comemoração de
Jesus, revelada no calendário litúrgico, e em sua cristalização nos santos e mortos: “Os
mártires eram testemunhos. Depois da sua morte, cristalizava-se em torno de sua recordação a
memória dos cristãos.” (LE GOFF, 2003, p. 441).
Segundo Le Goff (2003), a Idade Média venerava os idosos, pois eram considerados
homens-memória. A memória fiel poderia durar até cem anos, uma geração passava sua
memória para outra e, por meio dos escritos, desenvolvidos a par do oral, era possível
estender essa memória por muito mais tempo. Os escritos seriam, então, suportes para a
memória e, para sua conservação, surgiram os arquivos. Assim, “Durante muito tempo, no
domínio literário, a oralidade continua ao lado da escrita, e a memória é um dos elementos
constitutivos da literatura medieval” (LE GOFF, 2003, p. 445).
Ao tratar dos progressos da memória escrita, Le Goff (2003) enfatiza a o aparecimento
da imprensa como fator que revoluciona a memória ocidental. Antes, dificilmente se
distinguia a transmissão oral e a transmissão escrita. A imprensa trouxe a “[...] exteriorização
progressiva da memória individual [...]” (LE GOFF, 2003, p. 452). Para o autor, sobretudo os
tratados científicos e técnicos aceleraram a memorização do saber.
Entre os diversos traços que evidenciam a imensa revolução trazida pela imprensa,
pode-se destacar: a necessidade de festas nacionais, instrumentos de suportes para
comemorações (moedas, medalhas, etc.), a construção de monumentos de lembrança, a
abertura de museus e as fotografias (LE GOFF, 2003).
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Jacques Le Goff, ao abordar os desenvolvimentos contemporâneos da memória, última
parte do seu estudo sobre memória histórica, reflete, enfatizando o século XIX, sobre a
incapacidade de a memória individual abarcar toda a proporção atingida pelos conteúdos das
bibliotecas, um imenso arquivo.
De acordo com o autor, a maior revolução da memória está no século XX, com o
aparecimento da espetacular memória eletrônica. Entretanto, não se pode deixar de salientar
suas conseqüências: “[...] a utilização dos calculadores nos domínios das ciências sociais e,
em particular, daquela em que a memória constitui, ao mesmo tempo, o material e o objeto: a
história [...]” e “[...] o efeito “metafórico” da extensão do conceito de memória e da
importância da influência por analogia da memória eletrônica sobre outros tipos de memória”
(LE GOFF, 2003, p. 463).
Na concepção de Le Goff (2003), toda essa evolução das sociedades, elucida a
relevância do papel que a memória coletiva representa. Ela está presente nas grandes questões
das sociedades desenvolvidas e em desenvolvimento. O autor a defende como “[...] um
elemento essencial do que se costuma chamar de identidade, individual ou coletiva, cuja
busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e
na angústia.” (LE GOFF, 2003, p. 469).
Considerações Finais
A partir das análises expressas neste trabalho, reafirma-se, e agora com mais
propriedade, as questões aqui apresentadas como fundamentais para uma maior compreensão
dos aspectos históricos da História da Educação, uma vez que, delineados os contornos dos
conceitos, a saber, o de História e o de Memória, na perspectiva de Jacques Le Goff, pode-se
aprofundar as diversas formas de apropriação da História e da Historiografia da Educação
acerca dos mesmos, o que vai além dos limites desse trabalho.
Sobre o conceito de História, avalia-se como fundamental, no sentido em que busca
nortear os estudos e métodos do trabalho histórico. O campo da História é complexo, de
controvérsias, desafios e interrogações. Os próprios historiadores estão em um mundo em
crise, de um lado os historiadores “tradicionais”, e de outro os que se orientam pela nova
história (LE GOFF, 2003). Entretanto, é inegável que ambas trazem contributos para a
consolidação da História, sobretudo no alargamento e aprofundamento da história científica.
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Com relação ao conceito de Memória, este é crucial para o desenvolvimento da
própria História, sem ela não haveria estudo nem conhecimento. É preciso, pois, uma postura
dos historiadores para lidarem com esses conceitos: “A memória, na qual cresce a história,
que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro.
Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a
servidão dos homens” (LE GOFF, 2003, p. 471).
Referências:
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NUNES, Clarice & CARVALHO, Marta Maria Chagas de. Historiografia da Educação e
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