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Elaine Barbosa
Prof. Dr. Luciana Boiteux
RIO DE JANEIRO
Agosto / 2017
Da Criminologia Crítica à outras perspectivas: Controle Social
Punitivo a partir de cartas de mulheres encarceradas.
Elaine Barbosa1
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo evidenciar o estudo sobre cartas advindas dos
presídios femininos recepcionadas pelo Instituto de Cultura e Consciência negra Nelson
Mandela, pela perspectiva da análise teórica pautada nos aportes epistemológicos que
privilegiam a Criminologia crítica sob o prisma do Controle Social Punitivo e a
Criminalização da pobreza. Contextualizaremos as mazelas e opressões oriundas do
Sistema penitenciário feminino no Rio de janeiro analisando o controle social dos corpos
submetidos a este sistema. A intencionalidade é dialogar com autores que desvelam a
estrutura clássica sobre as penitenciárias que permeiam a lógica de uma sociedade
excludente que alimenta um Sistema penitenciário perverso em contraponto com a leitura
Crítica que valorize a construção social das sujeitas apenadas que seletivamente, por
serem, em sua maioria, mulheres negras e pobres, vem ocupando vertiginosamente o
cárcere brasileiro em proporções crescentes.
Palavras-chave: Mulher encarcerada, Sistema carcerário, Controle social punitivo,
Cartas
1
Formada em Direito pela Universidade Gama Filho, Advogada, Pós- graduada em Direitos Humanos .
Membro da Comissão de Igualdade Racial e Escravidão negra no Brasil pela OABRJ. Mestranda em
Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
Diversos países da América Latina, dentre eles o Brasil, vêm apresentando, nos
últimos anos, altas taxas de encarceramento conhecidos pelas mídias, pelos órgãos
institucionais punitivistas e principalmente pelos jovens, negros e pobres. O número cada
vez maior de indivíduos reclusos tem sido acompanhado de um crescente sucateamento
do sistema prisional, o que prejudica sensivelmente as condições mínimas adequadas para
atender aos requisitos da tutela de presos ou de cumprimento de penas nos termos das
exigências legais e estabelecidas em convenções internacionais. Portanto, nos fazendo
refletir criticamente o papel do Estado frente a este quadro devastador do encarceramento
direcionado pela seletividade de um grupo específico que vem ocupando as celas das
prisões brasileiras.
O sistema penitenciário assenta-se sobre a punição como forma real e simbólica
de solução do problema, propondo, em tese, a ressocialização dos detentos, porque supõe
que o “desrespeito” às normas esteja relacionado a uma falta de disciplina moral para o
convívio em sociedade. Tais premissas que não passam de pretensões falaciosas, anulam
a subjetividade de determinados cidadão gradeados intencionalmente pelo sistema
capitalista vigente.
Sendo assim, seja no Brasil, Estados Unidos, Europa, embora apresentem
particularidades no contexto histórico atual sobre o funcionamento estrutural do sistema
penitenciário, deve-se convir que o interno penitenciário é, em sua grande maioria,
excluído de direitos sociais relevantes e faz parte de toda uma estrutura punitivista com a
finalidade de controlar determinados corpos e criminalizar a pobreza.
Neste sentido, segundo a corrente teórica fundamentada na Criminologia Crítica,
a qual entendemos ao propósito de estudar o crime e seu controle, assentados na estrutura
das classes sociais. Usando do método dialético, aponta as desigualdades econômicas e
outras mazelas sociais na origem e persecução da conduta criminosa. Daí parece correto
supor que o sistema penal foi instituído socialmente com o objetivo de aprisionar as
mazelas sociais, escamoteando a exclusão social e a ganância por poder de determinados
agentes empresarias e políticos. Conforme afirma Wacquant (2001), em detrimento de
uma política social investe-se demasiadamente em uma política de execução penal.
Por muito tempo, a percepção sobre Sistema Penitenciário evidenciava uma
realidade pouco conhecida. Acreditamos que à medida que o aumento da violência
cotidiana dentro e fora dos estabelecimentos prisionais extrapolaram seus limites e
desafiaram a obscuridade do tratamento dado aos sujeitos ali aprisionados, os debates
vieram ao público em geral. Os movimentos sociais, a sociedade civil vem
paulatinamente tomando conhecimento da degradação estrutural de um sistema
penitenciário falido. Embora, longe de se alcançar um debate crítico que clame por sua
abolição, cada vez mais se constata a necessidade de ampliar a discussão e a pesquisa
sobre o tema interdisciplinarmente nas universidades e na sociedade civil, a fim de
possibilitar subsídios que contribuam para a visibilidade da essência do sistema
penitenciário inserido numa estrutura que movimenta a máquina opressora.
Portanto, é nesta vertente que me dedico a construção de estudos voltados aos
sujeitos encarcerados. Partindo da premissa do convívio pessoal em uma Instituição não
Governamental – Instituto de Cultura e Consciência Negra Nelson Mandela que atua ao
longo dos últimos 28 anos frente a defesa dos Direitos Humanos da População Carcerária
no Estado do Rio do Janeiro. Partindo das premissas educacionais que envolve a pesquisa
em desenvolvimento ao título de Mestre em Educação. Contudo, percebo a necessidade
de assumirmos uma postura crítica aos modelos institucionais estabelecidos a partir de
uma leitura abolicionista e antirracista que possam ajudar na compreensão do crime
socialmente estabelecido, direcionado e seletivo com a finalidade de alcançarmos
mudanças fáticas e reais. Para estas estratégias percebo a importâncias do diálogo com as
teorias da criminologia crítica e suas abordagens tais como a criminalização da pobreza a
partir da seletividade penal direcionado ao olhar que incrimina mulheres no Brasil.
Para isso, foi necessário o exercício na inserção de conhecimentos outros,
possíveis a partir dos aportes epistemológicos diversos relacionados ao Controle Social
Punitivo e a Criminalização da pobreza. Importante mencionar contextualmente a ênfase
voltada para as mulheres em situação de cárcere como pretensão dos estudos e por
posicionamento político sob a perspectiva feminista Latino Americana.
Pretende-se olhar a América Latina sob a perspectiva da crítica pós-colonial.
Questão imprescindível ao entendimento do aprisionamento no Brasil como um país
latino americano que vem mostrando quadros assustadores de aprisionamento de grupos
econômico-racialmente vulneráveis crescentes, em especial, atingindo a população de
mulheres, negras e pobres.
Portanto, para o mundo do crime no sentido clássico, aquele que cometeu algum
ilícito, ou seja, algo que está tipificado como crime em nossa legislação, passará a ser
privado do seu direito para que seja “reeducado” e futuramente retorne ao convívio social,
prevenindo assim, a prática de outros delitos, ressaltando-se que a pena deve ter caráter
pedagógico e sendo aplicada de maneira harmoniosa. Esses são indícios demarcados pela
aplicabilidade da lei que não reverbera na realidade existente no cárcere brasileiro.
E quando nos deparamos com o encarceramento como forma de punição aos
supostos infratores da lei, suposto porque atualmente vivenciamos um sistema complexo
ambíguo de aplicabilidade da lei, que nos impõem a reflexão sobre a justiça que os órgãos
estatais administram diante de um quadro alarmante e crescente da presença de pessoas
presas provisoriamente, ou seja, sem sentença condenatória definitiva superlotando o
cárcere brasileiro. Temos que, de acordo com o pensamento de Rosa Del Omo, em sua
obra, “A América Latina e sua criminologia”, quando nos remete a pensar sobre a
ideologia punitivista, impõem a reflexão: “A prisão em si era considerada a forma mais
imediata e mais civilizada de todas as penas por que reproduzia a ordem social burguesa
sem os elementos que a pudessem a perturbar.”( 2004, p.63)
Diante desta constatação, o que queremos buscar na atualidade, são novas agendas
críticas criminológicas que confrontem com o sistema arcaico vigente. Quando pensamos
em alguns países da América Latina, já presenciamos a repulsão à visão tradicional
positivista acrítica do Direito onde a Criminologia do século XXI está efetivamente
pautada em acepções opostas ao cárcere baseada pela Criminologia Crítica, ou seja,
compreendendo haver na pessoa encarcerada, decorrente da condição de exclusão e
segregação sociais, uma condição de vulnerabilidade e defendendo a promoção da
cidadania, independentemente da necessidade da flexibilização das regras de contenção
do cárcere. Segundo a autora Vera Regina P. de Andrade em reflexão aos ensinamentos
do Criminologista Alessandro Baratta, nos diz:
A Criminologia crítica se desenvolverá, pois, na esteira da criminologia
radical e da nova criminologia, por dentro do paradigma da reação
social e, para além dele, partindo tanto do reconhecimento da
irreversibilidade dos seus resultados sobre a operacionalidade do
sistema penal quanto de suas limitações analíticas macrossociológicas
e mesmo causais. (ANDRADE, 2012, p.52)
Goffman quando reflete sobre “O mundo do internado”, assim como nas prisões no
momento de seu enclausuramento onde o ser é submetido ás regras estabelecidas no modo
de viver, de se portar, de se expressar, nos indica:
Na admissão, a perda de equipamento de identidade pode impedir que
o indivíduo apresente, aos outros, sua imagem usual de si mesmo.
Depois da admissão, a imagem a imagem que apresenta de si mesmo á
atacada de outra forma. No idioma expressivo de determinada
sociedade civil, alguns movimentos, algumas posturas e poses traduzem
imagens inferiores do indivíduo e são evitadas como aviltantes.
Qualquer regulamento, ondem ou tarefa que obrigue o indivíduo a
adotar tais movimentos ou posturas, pode mortificar o seu eu
(GOFFMAN, 1961, p. 30).
Não é nenhuma novidade que vige, ainda hoje, um sistema penitenciário orientado
ao modelo cruel e desumano no Brasil. Maus tratos verbais e físicos, abusos sexuais, falta
de higiene, superpopulação carcerária, falta de trabalho, educação e cultura, assistência
médica e jurídica precárias. Ou seja, são algumas das mazelas experimentadas pelo
sistema penitenciário nacional. Para exemplificar a existência das mazelas relacionadas
ao sistema carcerário, a superlotação é latente atualmente.
A autora Vera Regina Andrade vem nos alarmar sobre a continuidade do suplício
sobre os corpos que são seletivamente criminalizados, torturados e exterminados. Quando
a mesma discorre sobre o aprisionamento nos países latino americanos, incluindo o
cárcere brasileiro, nos vislumbra que:
Sobre esta mulher, que é em sua maioria jovem, negra, mãe, pobres, chefe de
família, que não tiveram acesso à escolaridade, e exercem atividades informais recai uma
espécie de reprovação moral perante á sociedade que vai além dos crimes praticados,
tornado o fardo mais efetivo e doloroso do que para os homens que se encontram
encarcerados. Desse total, refletido pelas pesquisas, a maioria esmagadora encontra-se
em condições precárias sobrevivendo em amontoados de pessoas sem esperança de
justiça e expectativas de ressocialização. São indivíduos, mulheres ignoradas pela
sociedade hegemônica. Pretender que essas pessoas não existam, que essa população
carcerária é somente um dado estatístico distante de nossa realidade é inútil, perverso e
de forma coletiva, ingênuo.
Diante das acepções levantadas, nada mais oportuno, que a confirmação da análise
da autora Elça Mendonça Lima, “ a prisão será o lugar de se reabilitar a mulher e seus
instintos “positivos” (domésticos) ( LIMA, p. 43, 1983). Mesmo diante do lapso temporal
desta análise, o seu teor permanece contemporâneo. Segundo a análise da referida autora
à época da criação das penitenciárias femininas no Brasil, “ A tarefa da prisão feminina é
de natureza essencialmente diferente da do homem. No caso da mulher, a recuperação é
referida a um espaço restrito da sociedade: o lar.”( LIMA, p.44, 1983). Tais considerações
são importantes, uma vez que, o sistema penitenciário contemporâneo ainda reflete um
ambiente não apropriado para as mulheres.
Para exemplificar os escritos das referidas cartas, descrevo partes do relato de uma
mulher, que se identifica como negra, presa na penitenciária Nelson Hungria (Bangu 7),
no Estado do Rio de Janeiro:
2
Nome fictício
eficazes que oportunizem o acesso a dignidade da pessoa humana para as mulheres negras
dentro e fora do cárcere.
Nada mais eficaz para um sistema penal punitivista que a mortificação física e
psíquica da apenada para mantê-la sob a égide do controle. Afinal, ela foi capaz de
infringir todas as regras impostas pelo patriarcado, logo, a punição ao extremo ultrapassa
os limites da condenação imposta. Acreditamos que a situação relacionada à saúde nos
presídios femininos é um indício do genocídio anunciado de controle social que eterniza
as maculas das moléstias carcerárias no corpo e mente exposto ao sistema penitenciário.
A seguir exponha-se uma narrativa de degradação humana e desumanização extrema
dentro de uma das penitenciárias femininas no estado do Rio de janeiro:
Carta urgente,
Sr. do Instituto, venho por meio desta carta explicar minha situação.
Com o decorrer do tempo, apareceu uma mancha branca no rosto que
foi alastrando no corpo todo, fiquei desesperada e entrei em depressão.
Até as funcionárias estavam com medo de me dar a corporal. Somente
depois de um ano presa, me encaminharam ao ambulatório porque
estava pior a cada dia, fiz biopsia, tiraram vários pedaços do meu
corpo para fazer exame, já faz muito tempo, e até agora não obtive a
resposta do exame. Mas o médico receitou banho de sol todo os dias 15
minutos de frente e 15 minutos de costas e nada fizeram. Não sei mais
o que fazer, as pessoas só me olham com preconceito, principalmente
as guardas. Fiz todos os exames para condicional e nada ainda. Mas
também, como vou sair assim? Tenho vários apelidos por causa das
manchas, não sei ler e nem escrever e tenho três filhos(...) será que vou
contaminar eles? Só peço que me ajude. Meu marido também está
preso e o Estado está me matando.
(Complexo de Bangu, Janeiro de 2016)
Neste triste e fatídico relato, nos confrontamos com a ausência absoluta do Estado
frente ao desrespeito com a vida da referida apenada. Neste momento, está evidente a
falta de compromisso e o endurecimento do sistema frente as particularidades da detenta,
adquirida sob a tutela estatal. É o retrato de várias opressões operacionadas que
evidenciam a violência contra a mulher, ao considerarmos que a violência atinge o corpo
e o psicológico degradando-as gradativamente. Portanto, acreditamos que a fomento da
violência, de qualquer ordem, também faz parte do escopo do controle social que reforça
as chagas da subalternidade. Neste caso em específico reforçando a descriminação ao
diferente, ao questionamento de não ser letrada numa sociedade que privilegia o
conhecimento, chora ausência dos filhos e também do marido que encontra-se
encarcerado.
O pedido de ajuda, na maioria das cartas que recebemos, é a súplica pela
visibilidade da presa frente ao poder público, súplica para ter os seus direitos
reconhecidos, súplica em vislumbrar uma vida digna. Desta forma, podemos observar que
o caráter social e comunicativo presente na forma em que se apresenta a linguagem, tal
como, a interação entre dois sujeitos historicamente determinados se dá através de uma
relação do “eu com o outro”. Vale dizer que essa sujeita é marcada por uma cultura e
indissociável do contexto, mergulhado de subjetividade, num processo de auto
reconhecimento, permeado pela linguagem e pela angustia do reconhecimento de suas
dores.
Considerações finais
Referências bibliográficas
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para
além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2012.
CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade do Brasil. São Paulo: Selo Negro,
2011.
DAVIS, Angela & DENT, Gina. A prisão como fronteira: A prisão como fronteira: A
prisão como fronteira: uma conversa sobre gênero, globalização e punição. Estudos
Feministas, Florianópolis, 11(2): 360, julho-dezembro/2003.
DAVIS, Angela Y. Are Prisions Absolete?. Seven Stories Press. New York, 2003.
Del Omo, Rosa. A América Latina e sua criminologia/ Rosa del Omo. Rio de Janeiro:
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Loic, Wacquat. Punir os pobres: A nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de
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