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178 ENSAIO | ESSAY

O cuidado em saúde mental no Brasil: uma


leitura a partir dos dispositivos de biopoder
e biopolítica
The mental health care in Brazil: a reading from the biopower and
biopolitics devices

Valquiria Farias Bezerra Barbosa1, Fernanda Martinhago2, Ângela Maria da Silva Hoepfner3,
Patrícia Kozuchovski Daré4, Sandra Noemi Cucurullo de Caponi5

RESUMO O presente artigo objetiva problematizar o cuidado em saúde mental no Brasil à luz
dos conceitos de biopoder e biopolítica, enunciados por Michel Foucault. A análise das práti-
cas de cuidado instituídas no âmbito dos serviços que compõem a rede de atenção psicossocial
no Brasil, através de artigos publicados em periódicos nacionais, revelou a transversalidade do
cuidado em saúde mental com relação a estratégias disciplinares e de controle das populações,
limitando as possibilidades de resgate da concepção de sujeito e subjetividade no processo de
produção do cuidado às pessoas em sofrimento psíquico.
1 Instituto Federal de
Educação Ciência e
Tecnologia de Pernambuco PALAVRAS-CHAVE Saúde mental; Padrão de cuidado; Desinstitucionalização.
(IFPE) – Pesqueira (PE), Brasil.
valquiria@pesqueira.ifpe.
edu.br ABSTRACT This article aims to problematize the mental health care in Brazil in the light of the
2Universitat Rovira i Virgili concepts of biopower and biopolitics, announced by Michel Foucault. The analysis of care prac-
(URV), Antropología y tices imposed in the scope of the services that compose the psychosocial care network in Brazil,
Comunicación - Cataluña,
Espanha. Universidade through articles published in national journals, revealed the mainstreaming of mental health
Federal de Santa Catarina care regarding disciplinary and control populations strategies, limiting the possibilities of rescue
(UFSC) – Florianópolis (SC),
Brasil. of the subject and subjectivity conception in the process of care production to people in psycho-
martinhagofernanda@gmail.com logical suffering.
3 Secretaria Municipal de

Saúde - Joinville, (SC), Brasil. KEYWORDS Mental health; Standard of care; Deinstitucionalization.
angelahoepfner@hotmail.com

4 Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC) –
Florianópolis (SC), Brasil.
patriciakdare@gmail.com

5 Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC) –
Florianópolis (SC), Brasil.
sandracaponi@gmail.com

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 40, N. 108, P. 178-189, JAN-MAR 2016 DOI: 10.1590/0103-1104-20161080015
O cuidado em saúde mental no Brasil: uma leitura a partir dos dispositivos de biopoder e biopolítica 179

Introdução na idade média a partir de um movimen-


to de exclusão social. A chamada ‘Nau dos
A reorientação do modelo de atenção à saúde Loucos’ é um exemplo dessa exclusão.
mental no Brasil proporcionou notáveis Pessoas consideradas ‘loucas’ eram coloca-
avanços na organização e na concepção dos das nos porões dos barcos e lançadas ao mar
serviços. No entanto, as resistências de supe- durante as travessias transoceânicas.
ração do modelo biomédico, no âmbito dos
processos de cuidado, mais especificamente, A internação é uma criação institucional pró-
nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) pria ao século XVII. [...] Como medida eco-
têm sido amplamente debatidas. nômica e precaução social ela tem valor de
Esse contexto exige dos profissionais de invenção. (FOUCAULT, 2008A, P. 78).
saúde, que desenvolvem sua atuação técnica e
seu protagonismo social em serviços de saúde Os hospitais existentes desde a idade
mental uma aguçada vigilância epistêmica, média, não eram voltados para a cura, e
num constante processo de ação-reflexão- a prática médica não fazia parte das in-
-ação, no sentido de evitar a persistência do tervenções realizadas nestas instituições.
antigo modelo de poder psiquiátrico, pré-mo- Hospitais eram destinados apenas a acolher
derno e pré-capitalista, resíduo das práticas os desabrigados, pobres e doentes, como
norteadas pelo poder soberano (CAPONI, 2012). uma instituição de caridade que prestava
É nessa perspectiva que o presente artigo assistência material e religiosa e que, por
tem como objetivo tecer uma reflexão teórica consequência, contribuía para evitar a disse-
sobre os aspectos limitantes dos processos minação das doenças, protegendo a popula-
de cuidado às pessoas em sofrimento psíqui- ção. O hospital era o lugar para se receber os
co no âmbito dos serviços de saúde mental últimos cuidados e o último sacramento, um
brasileiros, à luz dos conceitos de biopoder e morredouro. No entanto, as precárias condi-
biopolítica enunciados por Michel Foucault. ções de higiene e a inexistência de medidas
Inicialmente faz-se uma incursão sobre a de assepsia, fizeram dos hospitais foco cons-
história do hospital, para compreender de tante de desordem, devido às doenças que se
que forma os manicômios tornaram-se o dis- proliferavam em seu ambiente, assim como
positivo central de medicalização da loucura. nas cidades (FOUCAULT, 2011).
Na sequência, problematizam-se as condi- Entre os séculos XVII e XVIII, o ocidente
ções que possibilitam ou não a consolidação vivenciou a transição entre duas formas de
do modo de atenção psicossocial no Brasil, à poder: o poder soberano e o biopoder. Isso
luz do dispositivo de segurança e da biopo- quer dizer que os fenômenos próprios da
lítica das populações, articulando os textos vida humana entraram na ordem do saber
clássicos em que Michel Foucault discute e do poder, no campo das técnicas políti-
biopolítica e poder psiquiátrico. São também cas, assumindo duas formas imbricadas de
apresentados alguns autores contemporâ- poder: i) o adestramento dos corpos como
neos que recorrem ao autor para ampliar as máquinas, ampliando suas aptidões para a
discussões sobre diferentes aspectos relacio- força de trabalho, extorquindo suas forças,
nados ao cuidado em saúde mental. acentuando sua utilidade e docilidade, pela
integração em sistemas de controle eficazes
e econômicos, assegurado por procedimen-
A institucionalização da tos de poder disciplinares; ii) a biopolítica
loucura das populações, admitindo-se uma série
de intervenções e controles reguladores no
A institucionalização dos loucos teve início corpo-espécie, no corpo transpassado pela

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mecânica do ser vivo e como suporte de pro- tratamento dos doentes mentais passou a
cessos biológicos (FOUCAULT, 1994). ser a hospitalização integral – o isolamen-
Assim, na sociedade disciplinar, as insti- to (FOUCAULT, 2011). A exclusão ocorre através
tuições modernas – como a prisão, a escola, da internação, que é o que caracteriza a
as fábricas e o hospital – passaram a ser o institucionalização.
locus do adestramento dos corpos com O contexto político e histórico de emer-
vistas a potencializar suas forças e aumen- gência da psiquiatria enquanto ciência
tar sua eficiência, sendo que, nesse contex- médica foi o da sociedade disciplinar do
to, mais precisamente em torno de 1780, o século XVIII. Em 1809, Philip Pinel es-
hospital passou a ser uma espécie de ins- creveu seu ‘Traité Médico-Philosophique
trumento terapêutico, propiciando o surgi- sur l’Aliénation Mentale’, obra que serviria
mento de uma nova proposta de trabalho: a de referência para os alienistas e psiquia-
prática da visita e da observação sistemática tras dos séculos XIX e parte do século XX.
e comparada, com o objetivo de cura. Nesse Estabeleceu as bases para um novo projeto
processo, a necessidade de reorganização de saber bem como as estratégias de inter-
hospitalar ganhou legitimidade uma vez que venção para a psiquiatria clássica, ciência
o direito à cidadania, reivindicado no con- e prática médica por ele fundada. Pinel
texto da Revolução Francesa, exigia que se fundou as premissas do ‘tratamento moral’,
regularizasse a situação dos enclausurados. isto é, as estratégias disciplinares desenvol-
Surge, então, “um novo olhar sobre o hos- vidas no interior do asilo psiquiátrico, tais
pital considerado como máquina de curar e como as duchas, o cárcere, o isolamento e
que, se produz efeitos patológicos, deve ser a camisa de força, como forma de normali-
corrigido” (FOUCAULT, 2011, P. 101). zar os doentes e permitir a dominação das
As práticas de reorganização hospitalar paixões e a recuperação da razão (CAPONI,
por meio da disciplina – técnica de exercí- 2012).
cio de poder – passaram a ser confiadas ao Quando Pinel libertou os loucos, rea-
médico, o que consequentemente contribuiu lizou a denominada primeira reforma do
para a transformação do saber e do exercício tratamento da loucura, utilizando o mesmo
da medicina. Para Foucault (2011), a disciplina discurso moral que ainda hoje é possível
caracterizava-se, naquela época, como uma observar nas várias práticas terapêuticas
arte de distribuição espacial dos indivíduos; (CASTEL, 1991).
uma técnica de poder que implicava uma Só foi possível para Pinel reconhecer a
vigilância constante e permanente, assim existência da loucura e propor o tratamento
como um registro contínuo de informações moral, devido ao fato de que para ele “em
sobre o indivíduo; “poder de individuali- toda loucura permanece sempre um resto de
zação que tem o exame como instrumento razão” (PINEL, 1809 APUD CAPONI, 2012, P. 41).
fundamental” (FOUCAULT, 2011, P. 106-107). Desde a Idade Média, com a fundação dos
Desta forma, o médico tornou-se o res- primeiros hospitais nos monastérios, as prá-
ponsável pela organização hospitalar que, ticas de cuidado deixaram a privacidade dos
por sua vez, tornou-se um laboratório de domicílios para serem exercidas também
pesquisas, espaço de exames, tratamento, no espaço público. Os cuidados foram ins-
ensino-aprendizagem da medicina e saber titucionalizados por sua vinculação a uma
sobre as doenças. A instituição que era fi- instituição pavimentada por relações disci-
lantrópica passou a ter um novo caráter: o plinares de hierarquização vertical. A partir
de hospital médico. Em decorrência destas do século XVIII, com a institucionalização
transformações nascem os primeiros hos- da loucura, os cuidados passaram a exercer
pitais psiquiátricos cujo princípio para o uma função disciplinar (FOUCAULT, 2011).

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No entanto, ressoava nessa época a 2012, P. 175).


questão de que a psiquiatria fosse uma
medicina na qual o corpo estaria ausente, Embora as intervenções preventivas di-
uma vez que os corpos neurológicos e ana- recionadas ao tecido social, com o objetivo
tomopatológicos lhe fogem (CAPONI, 2012). Os de antecipar e prevenir os desvios de com-
diagnósticos psiquiátricos buscavam, então, portamento e patologias cerebrais, fossem
sustentação em três elementos: os inter- apregoadas pela psiquiatria moderna, não
rogatórios, a hipnose e as drogas. Por essa houve avanços em termos de novas terapêu-
razão, Foucault (2006) fala de um diagnóstico ticas substitutivas ao hospital psiquiátrico,
absoluto da psiquiatria em oposição ao diag- posto que, como não se acreditava na cura
nóstico diferencial da medicina clínica, de das doenças mentais, o isolamento tera-
um ‘corpo ampliado’ como base para a cons- pêutico continuava tendo sua legitimidade
tituição do saber-poder da psiquiatria com (CAPONI, 2012).
relação à loucura. Some-se a isso a compreensão biologicis-
A psiquiatria se transformou em uma es- ta dos degeneracionistas sobre as doenças
tratégia biopolítica que percorre o espaço mentais, que as reduz à unicidade das causas
social. O campo de ação dessa ‘psiquiatria orgânicas, restringindo a compreensão do
ampliada’ refere-se, fundamentalmente, sofrimento psíquico dos pacientes, despre-
às populações. O conceito de degeneração, zando seus relatos e a escuta terapêutica.
instaurado a partir do século XIX, marca- Em outras palavras, tudo que diz respei-
damente por influência de Morel (1857 APUD to às questões subjetivas dos sofrimentos
CAPONI, 2012), entre outros expoentes da teoria humanos foi considerado sem utilidade
degeneracionista, como Cabanis e Magnan, para a elaboração do diagnóstico e substi-
embora transvertido por denominações tuído pelas novas classificações nosológicas
modernas, afirmou-se como uma premis- (CAPONI, 2012, P. 160). O mote passou a ser “co-
sa da psiquiatria moderna kraepeliniana e nhecer para classificar” em detrimento do
neo-kraepeliniana. “conhecer para cuidar”.
Para Caponi (2012), a nova variedade clas- Ao longo dos séculos XIX e XX, paralela-
sificatória de doenças e anomalias permitiu mente ao desenvolvimento das instituições
a proliferação de um conjunto de doenças no modo capitalista de produção, entre as
relacionadas a comportamentos e à institui- quais, na área de saúde, o hospital tem lugar
ção de uma medicina do não patológico, uma central, ocorreu a consolidação do modelo
vez que os degeneracionistas defendiam que asilar como hegemônico na psiquiatria. Esse
a hereditariedade (herança mórbida) era o modelo caracterizou-se pela ênfase nas de-
veículo de transmissão progressiva de toda terminações orgânicas das doenças mentais;
forma de degeneração adquirida. pela negação da existência de um sujeito;
Entre as certezas da psiquiatria moderna, pela dissociação entre o indivíduo doente,
legitimadas pela teoria da degeneração seu sofrimento e seus contextos social e
podemos enumerar como características cultural, fato que resultou na anulação do
que ainda hoje persistem: sujeito como participante do tratamento –
eminentemente medicamentoso e dirigido
[...] o caráter hereditário [...], a impossibilida- ao organismo doente (AMARANTE, 2007).
de de cura [...], a origem biológica e a locali- Ao final da II Guerra Mundial, as con-
zação cerebral dos transtornos psiquiátricos; dições de ausência de dignidade humana
a introdução do discurso sobre a prevenção oferecidas aos pacientes psiquiátricos nos
e o risco no âmbito da saúde mental. (CAPONI, hospícios despertaram preocupações com

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relação à impotência terapêutica da psi- de cuidado em saúde


quiatria, evidenciada pelos altos índices mental à luz dos conceitos
de cronificação das doenças mentais e de de biopoder e biopolítica
incapacitação social, o que ocasionou o sur-
gimento de movimentos de contestação do
em Michel Foucault
saber e das práticas psiquiátricas no cenário
mundial, na tentativa de redimensionar seu Os processos de desospitalização e desins-
campo teórico-assistencial (AMARANTE, 2007). titucionalização que se desenvolveram a
A história das reformas psiquiátricas partir desse período produziram um des-
aponta para um cenário de tentativas de locamento do encarregar-se das popula-
reformulação dos modelos adotados pela ções mediante o isolamento ‘terapêutico’
psiquiatria clássica: i) a psicoterapia ins- em instituições totais, nas quais a interna-
titucional e as comunidades terapêuticas ção poderia perdurar por toda a vida, para
investiram em reformas restritas ao âmbito uma nova noção de continuidade median-
asilar; ii) a psiquiatria de setor e a psiquia- te o tratamento comunitário. Produziu-se
tria preventiva representaram um nível uma relação espaço-temporal descontínua,
de superação das reformas referidas ao expandindo-se a proteção da saúde mental
espaço asilar; iii) a antipsiquiatria e a psi- para o espaço social, a fim de assegurar a to-
quiatria democrática italiana, por sua vez, talidade das intervenções sobre uma pessoa,
instauraram rupturas com os movimentos desde a prevenção até a pós-cura (CASTEL, 1987).
anteriores, colocando em questão o próprio O lócus de atuação do psiquiatra não estaria
dispositivo médico-psiquiátrico e as insti- mais situado no hospício, mas na cidade, no
tuições e os dispositivos terapêuticos a ele território (BONNAFÉ 1960 APUD CASTEL, 1987).
relacionados (AMARANTE, 2007). Esse movimento deixou-nos como legado
Essas tentativas de reformas psiquiá- a possibilidade de ressignificação social da
tricas foram fundamentais no processo de loucura, mas, sobretudo, nos apresentou
fomento à crítica ao modelo asilar e à psi- o desafio de rever os paradigmas que até
quiatria. Diante deste panorama, a Reforma então deram base às práticas assistenciais
Psiquiátrica Brasileira teve como principal no campo da psiquiatria. Foi a partir desse
influência a experiência de Franco Basaglia contexto que cada campo científico, seja o da
e colaboradores de rompimento com o saúde, seja o das ciências sociais precisou in-
sistema asilar institucional e a psiquiatria vestir esforços na produção de novas formas
tradicional, fato que culminou na Reforma de enfrentar as questões relativas ao sofri-
Psiquiátrica Italiana. Nesse processo, mento psíquico, de modo a atender às novas
desde a década de 1970, vêm-se discutin- concepções introduzidas pelas políticas de
do as práticas centradas no modelo hospi- saúde mental. Não obstante, Amarante (2007)
talocêntrico e a implantação de modelos faz pensar que, ao mesmo tempo em que se
substitutivos no Brasil, sob fortes debates, configurou a possibilidade de estabelecer
buscando gradativamente promover a um paradigma radicalmente novo, é também
superação do modelo asilar, pois a saúde verdade que por muitas vezes houve trans-
“não é a medrosa luta contra a ‘doença’ ou posições mecânicas que não transcenderam
o ‘desvio’, mas produção de vida, arte de a essência do modelo asilar, mesmo que sob
(de)subjetivação, potência do encontro” novas fisionomias.
(LANCETTI, 2008, P. 11). Nessa perspectiva de contradições e dis-
putas inscritas num contexto social e do
saber em estruturação, passou a ser proposta
Reflexões sobre o processo a problematização do processo de cuidado às

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pessoas em sofrimento psíquico na rede de em torno da doença mental estivessem de


serviços substitutivos brasileira no sentido acordo com a proposição do novo modelo
de avançar em busca de sua mais ampla com- de atenção psicossocial, também foram des-
preensão, a partir da identificação de seus veladas nas frases temáticas muitas concep-
aspectos limitantes e potencializadores. ções representativas do modo tradicional
Para o alcance desse objetivo seleciona- psiquiátrico (LEÃO; BARROS, 2008).
mos seis artigos publicados em periódicos Ambos os estudos estão em concordân-
nacionais, que discutem a prática cotidia- cia com a pesquisa realizada por Martins
na da atenção psicossocial nos dispositivos e Amarante (2008) num Caps do município
prioritários da rede de atenção psicossocial do Rio de Janeiro, que objetivou verificar a
brasileira. Uma vez que se trata de uma forma como se organiza o cotidiano desse
análise ancorada em referencial teórico fou- serviço e as possibilidades de suas ações,
caultiano, a intenção foi atender à recomen- tanto no seu interior quanto com relação ao
dação do autor de nunca perder de vista a território. Os autores observaram que a temá-
referência a um exemplo concreto que sirva tica da atuação territorial era pouco presente
de campo para a análise, de modo a elaborar nas discussões dos técnicos e no cotidiano do
reflexões históricas, teóricas e conceituais serviço. Para os autores isso seria decorrente
que permitam compreender esses exemplos de uma dinâmica institucional na qual as ati-
referidos a nosso presente. vidades encontravam-se centradas na clínica
O estudo de Tavares et al. (2003) com a tradicional. Os profissionais não estavam en-
equipe multiprofissional de um Caps da volvidos o suficiente para promover a parti-
cidade de Niterói, Rio de Janeiro, identificou cipação da equipe nos contextos vivenciados
que, entre as tecnologias de cuidar desenvol- cotidianamente pelos usuários, assim como
vidas no Caps, as que ocorriam com maior não havia mobilização de pessoas para a ar-
frequência eram “atividades que indicam ticulação de redes sociais, responsabilidades
que a prática de cuidar ainda é influenciada e potenciais de ação (MARTINS; AMARANTE, 2008).
pelo modelo tradicional de atendimento” Desta forma, estes autores sugerem que o
(TAVARES ET AL., 2003, P. 345). O autor conclui que, Caps se coloca como um serviço que convive
embora exista uma mudança na relação dos com o manicômio e o realimenta. É justa-
usuários com o serviço, fazendo-os sair de mente essa discussão política e estratégica
uma posição passiva para uma condição mais da relação com o território que se encontra
ativa, as atividades desenvolvidas no Caps ainda pouco presente no entendimento do
priorizam a medicalização e o atendimento papel do Caps, que se posiciona como inter-
individual, em detrimento da oferta de tec- mediário na relação com o hospital psiquiá-
nologias geradoras de maior autonomia do trico, pois
usuário (TAVARES ET AL., 2003).
Em outra investigação realizada no mu- da arquitetura hospitalar, que exerce seu po-
nicípio de São Carlos, São Paulo, sobre as der de controle e de formação de corpos dó-
práticas de inclusão social dos serviços subs- ceis pela anulação das possibilidades de exis-
titutivos em saúde mental, Leão e Barros tência própria, ao espaço aberto do território,
(2008) identificaram algumas dificuldades o tema ainda é a convivência com um poder
desses serviços no que se refere à reabilita- invisível e onipresente, e a ampliação da ca-
ção psicossocial, por ainda centralizarem as pacidade de singularização de pessoas e de
ações em atendimentos clínicos e ambula- grupos. (MARTINS; AMARANTE, 2008, P. 106).
toriais e, em menor, proporção nas práticas
de reinserção social. Os autores sinalizaram Na mesma direção, Yasui e Costa-Rosa
que embora alguns conceitos e afirmações (2008) fazem uma reflexão sobre os desafios

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cotidianos das instituições de saúde mental a comunidade (YASUI; COSTA-ROSA, 2008).


que buscam implantar o novo modelo assis- No Caps Arthur Bispo do Rosário, lo-
tencial, apesar de se depararem com práti- calizado no Complexo Juliano Moreira
cas hegemônicas do paradigma que tentam na cidade do Rio de Janeiro, foi realizada
superar. Para eles esse tipo de organização uma pesquisa com os profissionais, cujo
da assistência hierarquizada, não é capaz de objetivo foi compreender a transição entre
produzir os modelos assistenciais por meio dos sen-
tidos, do imaginário e das experiências de
qualquer impacto na lógica hospitalocêntri- prazer e sofrimento presentes na realização
ca; pelo contrário, produziram um aumento do trabalho em saúde mental. Os profis-
na demanda de internações ao ampliar o sionais sentem-se sobrecarregados ante o
acesso da população às consultas psiquiátri- desafio de transformar as práticas em saúde
cas. (YASUI; COSTA-ROSA, 2008, P. 31). mental. A falta de investimento profissional,
com as restrições de recursos agrava as vi-
Seguem afirmando que a divisão social vências de sofrimento, constituindo-se em
do trabalho no campo da saúde gera uma mais um obstáculo para a mudança das prá-
hierarquização das relações, na qual o saber ticas, uma vez que a precariedade das con-
médico persiste em imperar sobre outros dições de trabalho permanece (VASCONCELLOS;
saberes, que cumprem um papel secundá- AZEVEDO, 2010). Nesse sentido, pode-se afirmar
rio, o que reproduz a divisão típica do modo que há ainda uma grande ineficiência nos
capitalista de produção. A consulta do psi- modos de gestão dos serviços de saúde, o
quiatra continua a ser tomada como a ati- que denota uma dissociação entre políticas
vidade prioritária e essencial, fato esse que de governo e políticas públicas.
gera uma agenda exagerada, atendimentos Numa abordagem apresentada por
de curta duração visando à produtividade, Coelho Sampaio et al. (2011) sobre o trabalho
medida pelo número de consultas médicas em saúde mental no contexto da reforma
realizadas. Além disto, a consulta ou as ati- psiquiátrica no estado do Ceará, é possível
vidades com outros profissionais da equipe refletir sobre as transformações ocorridas
reproduzem modelos tradicionais de aten- na organização dos processos de trabalho,
dimento, a exemplo do psicólogo que repete em decorrência dos avanços referentes
o modelo da prática liberal típica, geralmen- à implantação dos serviços substitutivos
te, atendendo individualmente, o que gera ao modelo psiquiátrico clássico e à recon-
uma longa lista de espera, assim como, as figuração do objeto de intervenção e das
atividades em grupos de orientação, coor- práticas. O autor chama atenção para as
denados pela enfermeira ou pela assistente contradições identificadas no funciona-
social, com conotação apenas pedagógica, o mento dos Caps, evidenciadas por disso-
que negligencia na maior parte das vezes as nâncias entre as diretrizes da política de
demandas subjetivas específicas dos sujei- saúde mental e a operacionalidade dos ser-
tos (YASUI; COSTA-ROSA, 2008). viços, apontadas pelos trabalhadores.
As práticas tradicionais dos profissionais Entre os diversos problemas que têm
de saúde têm se delineado em detrimento limitado a resolutividade dos Caps foram
de outras formas de cuidado compatíveis mencionados:
com o paradigma da desinstitucionalização,
tais como o estímulo à constituição de redes a ausência de uma rede de saúde mental es-
de cuidado ao sujeito em sofrimento psíqui- truturada e devidamente articulada com as
co no território que fortaleçam alianças de demais redes assistenciais, [...] a dificuldade
solidariedade entre os sujeitos, as famílias e de contenção de crises [...]. (COELHO SAMPAIO

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ET AL., 2011, P. 4691) a trabalharem no limiar da institucionali-


zação, uma vez que os usuários não têm o
resultando em reinternações psiquiátricas; suporte necessário para uma progressão no
conflitos entre as dimensões da autonomia processo de aquisição de mais autonomia
do sujeito, da tutela e do assistencialismo fora das instituições. (MARTINHAGO; OLIVEIRA,
das políticas de assistência social; entre o 2012, P. 593).
modelo de formação e a atuação na atenção
psicossocial; dificuldade na gestão do terri- Todas essas questões confirmam o que
tório e na gestão dos projetos terapêuticos foi referido anteriormente por Amarante
individuais e coletivos; e terapêutica domi- (2007), segundo o qual, apesar do advento de
nantemente centrada na erradicação de sin- um paradigma radicalmente novo, é pos-
tomas mediante a prescrição massificada de sível identificar a persistência de práticas
drogas. vinculadas ao modelo asilar nos serviços
A pesquisa realizada por Severo e substitutivos em saúde mental.
Dimenstein (2011) em um Ambulatório de Evidencia-se no campo empírico dessas
Saúde Mental (ASM) de um município pesquisas, representativo do dispositivo de
nordestino, destinado a receber usuários saúde mental brasileiro, as formas de biopo-
egressos dos Caps II e sua articulação com a der e biopolítica materializadas no contexto
rede de serviços do Sistema Único de Saúde atual de nossas práticas, a saber, a medica-
identificou que, lização dos sofrimentos cotidianos, a re-
produção de práticas clínicas disciplinares
a grande demanda por consultas e psico- remanescentes do modelo biomédico hos-
trópicos, bem como a preocupação com a pitalocêntrico, a compreensão do território
desassistência em psiquiatria por parte dos apenas quanto à sua abrangência geográfi-
técnicos e usuários quando se fala em alta, ca, a verticalidade das relações profissio-
indica a predominância do modelo médico nais e a concepção biologicista do processo
no ASM. (SEVERO; DIMENSTEIN, 2011, P. 647). saúde-adoecimento mental.
Configura-se o que Lancetti (2008, P. 47)
Frente a isso, sugerem que é necessária denominou como “Caps burocrático” visto
uma grande reflexão sobre o assunto, pois a que os profissionais procuram adaptar os
partir desse contexto, de produção de novas usuários às especialidades, aos modelos
estratégias de acolhimento e cuidado, os terapêuticos já vivenciados. Os usuários é
dispositivos precisam ser constantemente que precisam se adaptar aos serviços ofe-
revistos (SEVERO; DIMENSTEIN, 2011). recidos, não havendo uma preocupação em
Na pesquisa de Martinhago e Oliveira buscar novas estratégias clínicas.
(2012) sobre a percepção dos profissionais
com relação à sua prática nos Caps II do Tal linha de ação foi criando uma corrente
estado de Santa Catarina, os autores identi- tecnocrata e burocrática: os Caps envelhe-
ficaram que, em situações de crise, a prática cem prematuramente, segmentarizam-se,
predominante adotada segue o modelo sua vida torna-se cinzenta, infantilizada e os
clássico da psiquiatria, centrado no contro- profissionais, regidos pelas dificuldades, se
le dos sintomas, vinculado ao controle do enclausuram em diversas formas de corpo-
sujeito, tendo como principais práticas a rativismo. (LANCETTI, 2008, P. 47).
contenção, a medicação e, principalmente,
a internação em hospitais. Concluem que os Quanto a essa questão, das condições de
Caps são induzidos, de acordo com a reali- possibilidade e impossibilidade da consoli-
dade que vivenciam, dação do modo de atenção psicossocial no

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Brasil, as categorias de biopoder e biopolíti- disciplinares (CAPONI, 2012).


ca das populações, enunciadas por Foucault Nesse contexto, o preventivismo repre-
em ‘Segurança, Território e População’ sentou um projeto de medicalização da
(2008B), oferecem perspectivas elucidativas ordem social, expandindo os preceitos mé-
quanto aos processos de cuidado, tendo em dico-psiquiátricos para o campo das normas
vista a acepção de que as práticas de cuidado e dos princípios sociais; uma atualização e
possuem um atributo relacional e, portanto, uma metamorfose do dispositivo de controle
inscrevem-se num contexto de relações de e disciplinamento social, estabelecendo um
poder. continuum entre a política de confinamento
Para que sejam empreendidas as análises, dos loucos e a moderna promoção da saúde
no âmbito deste artigo, é preciso lembrar que mental; um novo modelo de gestão dos
o poder, para Foucault, refere-se a um con- homens (CASTEL, 1991).
junto de mecanismos ou procedimentos Nessa transição de um modelo de cui-
dados institucionalizado para um modelo
que tem como papel ou função e tema manter comunitário de cuidados em saúde mental,
– mesmo que não o consigam – justamente o outros elementos e atores passaram a operar
poder. É um conjunto de procedimentos [...], de forma a permitir que se pudesse lograr
parte intrínseca de todas as relações, são cir- êxito, tais como a família, a comunidade e
cularmente o efeito e causa delas [...]. (FOU- uma rede de instituições implicadas.
CAULT, 2008B, P. 4). Se os estudos de Michel Foucault são
enunciativos de que o cuidado está impli-
Os conceitos de biopoder e biopolítica cado nesse processo como um componente
estão vinculados a uma forma de governa- das estratégias disciplinares e biopolíticas
mentalidade que se estabeleceu nas socieda- no âmbito da psiquiatria, que se dirigem às
des ocidentais entre os séculos XVII e XVIII, populações na profilaxia de processos de-
quando se deu a transição entre o poder so- generativos psíquicos, é preciso que ques-
berano e o biopoder, como já apresentado no tionemos o estatuto do cuidado nesse novo
início deste trabalho. Enquanto as tecnolo- modelo de atenção comunitária em saúde
gias disciplinares estiveram essencialmente mental.
centradas nos corpos individuais, a partir Sobre a coexistência dos dispositivos
da metade do século XVII, a biopolítica legal, disciplinar e de segurança, Foucault
passou a se dirigir ao corpo-espécie, ao con- (2008b) analisa que não há uma série na qual
junto da população afetada pelos fenômenos os mecanismos jurídico-legais (código legal
da vida. As técnicas disciplinares não se ex- com divisão binária entre o permitido e o
tinguiram, ao contrário, passaram a compor proibido), os mecanismos disciplinares (me-
as novas tecnologias da vida, uma vez que a canismos de vigilância e de correção) e os
biopolítica tinha como foco os fenômenos mecanismos de segurança (dispositivo que
relacionados à natalidade, à morbidade e à insere um fato numa série de acontecimen-
mortalidade possibilitando a formatação de tos prováveis) vão se suceder de forma que
uma medicina que teria por função a higiene um mecanismo apareça e faça seus prede-
e a saúde públicas (FOUCAULT, 1994). cessores desaparecerem. “Não há a era do
As análises de séries estatísticas tiveram legal, a era do disciplinar, a era da seguran-
papel preponderante nesse processo, pois ça” (FOUCAULT, 2008B, P. 106-107). Há, ao contrário,
possibilitaram cálculos, previsões, estima- um sistema de correlação entre os três me-
tivas e, consequentemente, políticas dire- canismos anteriormente mencionados, de
cionadas ao conjunto da população, embora forma que o corpus disciplinar é amplamen-
necessariamente articuladas com as formas te ativado e fecundado pelo estabelecimento

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de mecanismos de segurança. Por sua vez, fundamental: uma clínica baseada no clina-
ocorre uma verdadeira inflação do código mem, uma clínica que inclui o sujeito no seu
jurídico-legal para fazer o sistema de segu- processo de cuidado, de forma ampliada.
rança funcionar. Faz-se mister significar cuidado enquanto
Os argumentos acima formulados levam- um horizonte ético que possa proporcionar
-nos a questionar: quais posicionamentos as condições necessárias para que os Caps
pretendemos assumir sobre os processos de sejam, nas palavras de Lancetti (2008), ‘tur-
cuidado com o sujeito em sofrimento psíqui- binados’1, mediante um conjunto de pro-
co? O que de fato significa cuidar? Ficaremos posições filosóficas, éticas e políticas que
afiliados às ideias reducionistas que limitam reafirmem o compromisso das tecnociências
o campo dos sofrimentos psíquicos a causas da saúde, em seus meios e fins, com a rea-
orgânicas? Vamos restringir a compreensão lização de valores relacionados à felicida-
dos relatos dos usuários e da escuta terapêu- de humana e democraticamente validados
tica a meras formalidades de uma consulta como bem comum (AYRES, 2006).
da clínica tradicional ou autorizamo-nos ao Na percepção de Lancetti (2008, P. 50),
comprometimento com o cuidado integral
dos sujeitos, numa clínica ampliada, consi- a ação combinada, a socialização do conhe-
derando as causas orgânicas, mas não nos cimento e a distribuição de saberes têm a
restringindo a elas? potência necessária para arrancar os Caps
Responder a essas questões não é tarefa de sua reclusão tecnocrática e de sua tristeza
fácil e para tentar encontrar algumas res- burocrática,
postas pode ser de grande ajuda buscar
subsídios na ética. O termo grego Éthos uma vez que um Caps turbinado é um Caps
está relacionado à concepção moralizante, paradoxal, onde a prática ocorre, ao mesmo
designando adesão às regras ou padrão de tempo, dentro e fora das unidades de saúde,
comportamento social. Refere-se ao sentido no território geográfico e no território exis-
de clínica que nas práticas tradicionais em tencial, no domicílio e nos serviços.
saúde tem uma conotação marcadamen- Nessa mesma direção, Ayres (2006) lança
te assistencial, inerente ao uso médico do luz sobre essa questão do cuidado como
termo originário do adjetivo grego klinikós, prática de saúde, inserindo-o no movimento
segundo o qual alguém administraria seu humano de se lançar ao mundo, numa re-
saber para reabilitar alguém incapacitado de construção constante de si mesmo e desse
cuidar de si. Por sua vez, o termo Êthos, em- mundo. O autor admite que, no campo ope-
pregado pela cultura helênica em seus pri- rativo das práticas de saúde é possível consi-
mórdios, significa morada, abrigo, refúgio, derar como cuidado uma atitude terapêutica
lugar onde somos autênticos e despidos de que busque ativamente seu sentido existen-
defesas, onde estamos protegidos, abrigados, cial, dando ao termo cuidado a
e podemos receber o outro, no sentido que 1 O autor usa o termo
turbinar no sentido de
os seguidores de Epicuro deram à expressão designação de uma atenção à saúde imedia- dar prioridade às pessoas
grega clinamen, entendida como a capacida- tamente interessada no sentido existencial da que estão em situação
mais difícil, em maior
de que cada homem tem para introduzir, a experiência do adoecimento, físico ou mental, risco de morte ou de
qualquer momento, um desvio no curso de e, por conseguinte, também das práticas de violência, a quem está
em grande dificuldade de
sua vida que permita desencadear a criação promoção, proteção ou recuperação da saú- desenvolvimento pessoal
de uma nova ordem (MÜLLER-GRANZOTTO; MÜLLER- de. (AYRES, 2006, P. 22). e social ou de exercício
de cidadania, produzindo
GRANZOTTO, 2007). saúde mental de modo
Propomos, então, a retomada da noção de Conforme discutem Schneider e colabo- intenso, complexo e sempre
renovado. (LANCETTI,
cuidado, fortalecendo aquilo que para nós é radores (2009), o cuidado em saúde mental no 2008, P. 52).

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âmbito da rede de atenção psicossocial deve termo originário do adjetivo grego klinikós.
ser vivenciado mediante configurações em Sendo assim, evidenciamos a necessida-
rede. Pressupõem que se estabeleçam redes de de uma constante vigilância crítica sobre
de cuidado que ampliem as possibilidades de os modelos de cuidados propostos, a fim de
acolhimento do usuário e de seus familiares, que possa ser evitada a reprodução das prá-
potencializando o exercício da cidadania e ticas tradicionais do antigo modelo psiquiá-
da inclusão social. Tais redes devem ser com- trico, baseado no poder disciplinador.
postas por entes institucionais (representa- No campo da saúde mental, a intersec-
dos pelos serviços de saúde), ressaltando-se ção entre o biopoder e a biopolítica pode
a importância da requalificação das equipes ser considerada como limitante ao desen-
multiprofissionais de saúde, mas também e volvimento de uma clínica ampliada, que
principalmente por entes não-institucionais contribua para uma nova compreensão do
(representados por associações e grupos processo saúde-sofrimento-adoecimento
comunitários, entre outros) situados no ter- psíquico, bem como com a invenção de
ritório do usuário, de forma a garantir a con- novas práticas de cuidado, consoantes às
tinuidade do cuidado, para além dos muros proposições da Política Nacional de Saúde
dos serviços de saúde. Mental e de acordo com as especificida-
des de cada território na rede de atenção
psicossocial.
Considerações finais A intersetorialidade apresenta-se como
uma estratégia relevante para ampliar o
No cenário atual do campo da saúde mental alcance das redes de cuidado, mediante
brasileira, é preciso investir e ampliar os parcerias com as áreas de educação, justiça,
espaços de reflexão e de invenção de práti- assistência social, segurança, entre outras.
cas que contemplem o cuidado dos sujeitos A proposta deste trabalho foi a de apre-
em sofrimento psíquico, no cotidiano dos sentar as categorias foucaultianas de biopo-
serviços, potencializando a constituição da der, biopolítica e dispositivo de segurança
rede de atenção psicossocial. Para que esse como formas de aplicação aos estudos sobre
desafio seja transposto, é preciso desnatu- o cuidado em saúde mental, permitindo
ralizar as práticas inversamente desenvol- sua eventualização, sua desnaturalização e
vidas, que ampliam a medicalização dos a elucidação de sua episteme, na tentativa
sofrimentos cotidianos, de acordo com um de favorecer novas formulações de cuidado
modelo assistencial, cada vez mais encru- enquanto conceito chave para as práticas de
descido, conforme a tradição oriunda do saúde no âmbito da Atenção Psicossocial. s

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Recebido para publicação em julho de 2015
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do Centro de Atenção Psicossocial em sua natureza Suporte financeiro: não houve

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