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Valquiria Farias Bezerra Barbosa1, Fernanda Martinhago2, Ângela Maria da Silva Hoepfner3,
Patrícia Kozuchovski Daré4, Sandra Noemi Cucurullo de Caponi5
RESUMO O presente artigo objetiva problematizar o cuidado em saúde mental no Brasil à luz
dos conceitos de biopoder e biopolítica, enunciados por Michel Foucault. A análise das práti-
cas de cuidado instituídas no âmbito dos serviços que compõem a rede de atenção psicossocial
no Brasil, através de artigos publicados em periódicos nacionais, revelou a transversalidade do
cuidado em saúde mental com relação a estratégias disciplinares e de controle das populações,
limitando as possibilidades de resgate da concepção de sujeito e subjetividade no processo de
produção do cuidado às pessoas em sofrimento psíquico.
1 Instituto Federal de
Educação Ciência e
Tecnologia de Pernambuco PALAVRAS-CHAVE Saúde mental; Padrão de cuidado; Desinstitucionalização.
(IFPE) – Pesqueira (PE), Brasil.
valquiria@pesqueira.ifpe.
edu.br ABSTRACT This article aims to problematize the mental health care in Brazil in the light of the
2Universitat Rovira i Virgili concepts of biopower and biopolitics, announced by Michel Foucault. The analysis of care prac-
(URV), Antropología y tices imposed in the scope of the services that compose the psychosocial care network in Brazil,
Comunicación - Cataluña,
Espanha. Universidade through articles published in national journals, revealed the mainstreaming of mental health
Federal de Santa Catarina care regarding disciplinary and control populations strategies, limiting the possibilities of rescue
(UFSC) – Florianópolis (SC),
Brasil. of the subject and subjectivity conception in the process of care production to people in psycho-
martinhagofernanda@gmail.com logical suffering.
3 Secretaria Municipal de
Saúde - Joinville, (SC), Brasil. KEYWORDS Mental health; Standard of care; Deinstitucionalization.
angelahoepfner@hotmail.com
4 Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC) –
Florianópolis (SC), Brasil.
patriciakdare@gmail.com
5 Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC) –
Florianópolis (SC), Brasil.
sandracaponi@gmail.com
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 40, N. 108, P. 178-189, JAN-MAR 2016 DOI: 10.1590/0103-1104-20161080015
O cuidado em saúde mental no Brasil: uma leitura a partir dos dispositivos de biopoder e biopolítica 179
mecânica do ser vivo e como suporte de pro- tratamento dos doentes mentais passou a
cessos biológicos (FOUCAULT, 1994). ser a hospitalização integral – o isolamen-
Assim, na sociedade disciplinar, as insti- to (FOUCAULT, 2011). A exclusão ocorre através
tuições modernas – como a prisão, a escola, da internação, que é o que caracteriza a
as fábricas e o hospital – passaram a ser o institucionalização.
locus do adestramento dos corpos com O contexto político e histórico de emer-
vistas a potencializar suas forças e aumen- gência da psiquiatria enquanto ciência
tar sua eficiência, sendo que, nesse contex- médica foi o da sociedade disciplinar do
to, mais precisamente em torno de 1780, o século XVIII. Em 1809, Philip Pinel es-
hospital passou a ser uma espécie de ins- creveu seu ‘Traité Médico-Philosophique
trumento terapêutico, propiciando o surgi- sur l’Aliénation Mentale’, obra que serviria
mento de uma nova proposta de trabalho: a de referência para os alienistas e psiquia-
prática da visita e da observação sistemática tras dos séculos XIX e parte do século XX.
e comparada, com o objetivo de cura. Nesse Estabeleceu as bases para um novo projeto
processo, a necessidade de reorganização de saber bem como as estratégias de inter-
hospitalar ganhou legitimidade uma vez que venção para a psiquiatria clássica, ciência
o direito à cidadania, reivindicado no con- e prática médica por ele fundada. Pinel
texto da Revolução Francesa, exigia que se fundou as premissas do ‘tratamento moral’,
regularizasse a situação dos enclausurados. isto é, as estratégias disciplinares desenvol-
Surge, então, “um novo olhar sobre o hos- vidas no interior do asilo psiquiátrico, tais
pital considerado como máquina de curar e como as duchas, o cárcere, o isolamento e
que, se produz efeitos patológicos, deve ser a camisa de força, como forma de normali-
corrigido” (FOUCAULT, 2011, P. 101). zar os doentes e permitir a dominação das
As práticas de reorganização hospitalar paixões e a recuperação da razão (CAPONI,
por meio da disciplina – técnica de exercí- 2012).
cio de poder – passaram a ser confiadas ao Quando Pinel libertou os loucos, rea-
médico, o que consequentemente contribuiu lizou a denominada primeira reforma do
para a transformação do saber e do exercício tratamento da loucura, utilizando o mesmo
da medicina. Para Foucault (2011), a disciplina discurso moral que ainda hoje é possível
caracterizava-se, naquela época, como uma observar nas várias práticas terapêuticas
arte de distribuição espacial dos indivíduos; (CASTEL, 1991).
uma técnica de poder que implicava uma Só foi possível para Pinel reconhecer a
vigilância constante e permanente, assim existência da loucura e propor o tratamento
como um registro contínuo de informações moral, devido ao fato de que para ele “em
sobre o indivíduo; “poder de individuali- toda loucura permanece sempre um resto de
zação que tem o exame como instrumento razão” (PINEL, 1809 APUD CAPONI, 2012, P. 41).
fundamental” (FOUCAULT, 2011, P. 106-107). Desde a Idade Média, com a fundação dos
Desta forma, o médico tornou-se o res- primeiros hospitais nos monastérios, as prá-
ponsável pela organização hospitalar que, ticas de cuidado deixaram a privacidade dos
por sua vez, tornou-se um laboratório de domicílios para serem exercidas também
pesquisas, espaço de exames, tratamento, no espaço público. Os cuidados foram ins-
ensino-aprendizagem da medicina e saber titucionalizados por sua vinculação a uma
sobre as doenças. A instituição que era fi- instituição pavimentada por relações disci-
lantrópica passou a ter um novo caráter: o plinares de hierarquização vertical. A partir
de hospital médico. Em decorrência destas do século XVIII, com a institucionalização
transformações nascem os primeiros hos- da loucura, os cuidados passaram a exercer
pitais psiquiátricos cujo princípio para o uma função disciplinar (FOUCAULT, 2011).
de mecanismos de segurança. Por sua vez, fundamental: uma clínica baseada no clina-
ocorre uma verdadeira inflação do código mem, uma clínica que inclui o sujeito no seu
jurídico-legal para fazer o sistema de segu- processo de cuidado, de forma ampliada.
rança funcionar. Faz-se mister significar cuidado enquanto
Os argumentos acima formulados levam- um horizonte ético que possa proporcionar
-nos a questionar: quais posicionamentos as condições necessárias para que os Caps
pretendemos assumir sobre os processos de sejam, nas palavras de Lancetti (2008), ‘tur-
cuidado com o sujeito em sofrimento psíqui- binados’1, mediante um conjunto de pro-
co? O que de fato significa cuidar? Ficaremos posições filosóficas, éticas e políticas que
afiliados às ideias reducionistas que limitam reafirmem o compromisso das tecnociências
o campo dos sofrimentos psíquicos a causas da saúde, em seus meios e fins, com a rea-
orgânicas? Vamos restringir a compreensão lização de valores relacionados à felicida-
dos relatos dos usuários e da escuta terapêu- de humana e democraticamente validados
tica a meras formalidades de uma consulta como bem comum (AYRES, 2006).
da clínica tradicional ou autorizamo-nos ao Na percepção de Lancetti (2008, P. 50),
comprometimento com o cuidado integral
dos sujeitos, numa clínica ampliada, consi- a ação combinada, a socialização do conhe-
derando as causas orgânicas, mas não nos cimento e a distribuição de saberes têm a
restringindo a elas? potência necessária para arrancar os Caps
Responder a essas questões não é tarefa de sua reclusão tecnocrática e de sua tristeza
fácil e para tentar encontrar algumas res- burocrática,
postas pode ser de grande ajuda buscar
subsídios na ética. O termo grego Éthos uma vez que um Caps turbinado é um Caps
está relacionado à concepção moralizante, paradoxal, onde a prática ocorre, ao mesmo
designando adesão às regras ou padrão de tempo, dentro e fora das unidades de saúde,
comportamento social. Refere-se ao sentido no território geográfico e no território exis-
de clínica que nas práticas tradicionais em tencial, no domicílio e nos serviços.
saúde tem uma conotação marcadamen- Nessa mesma direção, Ayres (2006) lança
te assistencial, inerente ao uso médico do luz sobre essa questão do cuidado como
termo originário do adjetivo grego klinikós, prática de saúde, inserindo-o no movimento
segundo o qual alguém administraria seu humano de se lançar ao mundo, numa re-
saber para reabilitar alguém incapacitado de construção constante de si mesmo e desse
cuidar de si. Por sua vez, o termo Êthos, em- mundo. O autor admite que, no campo ope-
pregado pela cultura helênica em seus pri- rativo das práticas de saúde é possível consi-
mórdios, significa morada, abrigo, refúgio, derar como cuidado uma atitude terapêutica
lugar onde somos autênticos e despidos de que busque ativamente seu sentido existen-
defesas, onde estamos protegidos, abrigados, cial, dando ao termo cuidado a
e podemos receber o outro, no sentido que 1 O autor usa o termo
turbinar no sentido de
os seguidores de Epicuro deram à expressão designação de uma atenção à saúde imedia- dar prioridade às pessoas
grega clinamen, entendida como a capacida- tamente interessada no sentido existencial da que estão em situação
mais difícil, em maior
de que cada homem tem para introduzir, a experiência do adoecimento, físico ou mental, risco de morte ou de
qualquer momento, um desvio no curso de e, por conseguinte, também das práticas de violência, a quem está
em grande dificuldade de
sua vida que permita desencadear a criação promoção, proteção ou recuperação da saú- desenvolvimento pessoal
de uma nova ordem (MÜLLER-GRANZOTTO; MÜLLER- de. (AYRES, 2006, P. 22). e social ou de exercício
de cidadania, produzindo
GRANZOTTO, 2007). saúde mental de modo
Propomos, então, a retomada da noção de Conforme discutem Schneider e colabo- intenso, complexo e sempre
renovado. (LANCETTI,
cuidado, fortalecendo aquilo que para nós é radores (2009), o cuidado em saúde mental no 2008, P. 52).
âmbito da rede de atenção psicossocial deve termo originário do adjetivo grego klinikós.
ser vivenciado mediante configurações em Sendo assim, evidenciamos a necessida-
rede. Pressupõem que se estabeleçam redes de de uma constante vigilância crítica sobre
de cuidado que ampliem as possibilidades de os modelos de cuidados propostos, a fim de
acolhimento do usuário e de seus familiares, que possa ser evitada a reprodução das prá-
potencializando o exercício da cidadania e ticas tradicionais do antigo modelo psiquiá-
da inclusão social. Tais redes devem ser com- trico, baseado no poder disciplinador.
postas por entes institucionais (representa- No campo da saúde mental, a intersec-
dos pelos serviços de saúde), ressaltando-se ção entre o biopoder e a biopolítica pode
a importância da requalificação das equipes ser considerada como limitante ao desen-
multiprofissionais de saúde, mas também e volvimento de uma clínica ampliada, que
principalmente por entes não-institucionais contribua para uma nova compreensão do
(representados por associações e grupos processo saúde-sofrimento-adoecimento
comunitários, entre outros) situados no ter- psíquico, bem como com a invenção de
ritório do usuário, de forma a garantir a con- novas práticas de cuidado, consoantes às
tinuidade do cuidado, para além dos muros proposições da Política Nacional de Saúde
dos serviços de saúde. Mental e de acordo com as especificida-
des de cada território na rede de atenção
psicossocial.
Considerações finais A intersetorialidade apresenta-se como
uma estratégia relevante para ampliar o
No cenário atual do campo da saúde mental alcance das redes de cuidado, mediante
brasileira, é preciso investir e ampliar os parcerias com as áreas de educação, justiça,
espaços de reflexão e de invenção de práti- assistência social, segurança, entre outras.
cas que contemplem o cuidado dos sujeitos A proposta deste trabalho foi a de apre-
em sofrimento psíquico, no cotidiano dos sentar as categorias foucaultianas de biopo-
serviços, potencializando a constituição da der, biopolítica e dispositivo de segurança
rede de atenção psicossocial. Para que esse como formas de aplicação aos estudos sobre
desafio seja transposto, é preciso desnatu- o cuidado em saúde mental, permitindo
ralizar as práticas inversamente desenvol- sua eventualização, sua desnaturalização e
vidas, que ampliam a medicalização dos a elucidação de sua episteme, na tentativa
sofrimentos cotidianos, de acordo com um de favorecer novas formulações de cuidado
modelo assistencial, cada vez mais encru- enquanto conceito chave para as práticas de
descido, conforme a tradição oriunda do saúde no âmbito da Atenção Psicossocial. s
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Recebido para publicação em julho de 2015
Versão final em setembro de 2015
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