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Ü S O DO SUÇUARÂO
BIBLIOTECA PESSOAL
APRESENTAÇÃO
ATA DE 1987
I I — DOPASSE
A Escola antecipa a nominação de Analista da Escola e a fará vigorar no
momento em que o dispositivo do passe for estabelecido.
A.E. — Analista da Escola: aquele que, tendo realizado sua formação nesta
Escola, decidiu dar testemunho de sua experiência de análise através do
dispositivo do passe, e foi aceito.
2. Do C olegiado
A direção funcionará como um colegiado de cinco membros, tendo cada
um deles a seu cargo um setor, a saber:
a) O rganização e planejam en to, responsável por:
— Administração Geral da Secretaria e Tesouraria;
— Convocação da Comissão deEntrevistas;
— Coordenação das entrevistas dos proponentes às atividades de
transmissão da Psicanálise.
b) E nsino e Sessão Clínica, responsável por:
— Programação anual do Ensino;
— Coordenação dos professores;
— Coordenação da Sessão Clínica.
c) D ivulgação e B iblioteca, responsável por:
— Divulgação das atividades da Escola;
— Organização da Biblioteca e das referências bibliográficas de Freud e
Lacan;
— Divulgação e contato com outras instituições do Campo Freudiano.
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3. Do C onselho
Institui-se, a partir da presente data, e por um período de 5 anos, um
Conselho da Escola formada por três membros indicados por aqueles que
assinam esta Ata. Sua função consistirá em assegurar a continuidade do discurso
teórico-clínico da Escola, podendo tanto ser consultado como ser levado a
pronunciar-se, sempre que necessário, junto ao Colegiado, ao Cartel de Garantia
ou à Assembléia de Membros.
Dos Cartéis
A Escola segue constituindo-se sobre a estrutura de cartel, lugar de trabalho
privilegiado na transmissão da psicanálise, onde se impõe situar a ética que
sustenta a posição do analista.
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V — DA ATA
Os dispositivos instituídos pela presente Ata serão submetidos, após quatro
anos de funcionamento, à reflexão e à crítica decorrentes da experiência, tarefa
de que se incumbirão os membros, em cartéis especialmente constituídos para
tal fim. Essa avaliação determinará a manutenção dos dispositivos, sua alteração
parcial ou mesmo a elaboração de uma Ata que possa vir a reger o funciona
mento posterior da Escola.
FUNDAÇÃO DA
ESCOLA FREUDIANA DE PARIS
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(1) Aquilo que, no Brasil, é mais comumente chamado de supervisão. Mantemos o termo
“controle”, tão próximo do-con trôle francês, no intuito de evitar a carga semântica
imaginária contida em “super-visão”(N.T.)
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NOTA ANEXA
1) DODIDATA
Um psicanalista é didata a partir da realização de uma ou mais psicanálises
que se revelaram didáticas.
E um reconhecimento de fato, que se passou sempre assim nos fatos, não
dependendo de nada além de um anuário que confirme os fatos, sem que se
possa pretendê-lo exaustivo.
A utilização do consenso dos pares tornou-se caduca por haver permitido a
introdução recente do que se chama “a lista”, já que uma sociedade pôde utilizá-
la com fins que desconheciam, da maneira mais clara, as próprias condições da
análise a ser empreendida como análise em andamento.
Condições onde o essencial é que o analisado seja livre para escolher seu
analista.
2) DA CANDIDATURA À ESCOLA
Uma coisa é a candidatura a uma Escola; outra coisa, a qualificação de uma
psicanálise didática.
A candidatura à Escola exige uma seleção estabelecida segundo seus
objetivos de trabalho.
O cargo será preenchido, a princípio, por um simples comitê de recepção,
chamado Cardo, ou seja, dobradiça em latim, o que indica seu espírito.
Lembremo-nos de que a psicanálise didática só é exigida para a primeira
seção da Escola, embora seja desejável para todas.
3) DA PSICANÁLISE DIDÁTICA
A qualificação de uma psicanálise como didática foi feita, até o momento,
por meio de uma seleção, da qual, para julgá-la, é suficiente constatar que, desde
que existe, não permitiu articular nenhum de seus princípios.
Ninguém tem mais chance de se afastar no futuro, salvo rompendo
primeiro com um hábito que se presta ao desdém.
O único princípio certo a ser proposto, principalmente por ser desconhe
cido, é o de que a psicanálise se constitui como didática pelo querer do sujeito, e
este deve ser advertido de que a análise questionará esse querer na medida em
que se aproxime do desejo que guarda em segredo.
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5) DO ENGAJAMENTO NA ESCOLA
O engajamento na Escola se dá agora por dois acessos.
1 - O grupo constituído por escolha mútua segundo a Ata de Fundação, e
que se chamará cartel, se apresenta à minha aprovação com o título do trabalho
que cada um pretenda realizar.
2 - Os indivíduos que queiram fazer-se conhecer por qualquer projeto
encontrarão o caminho útil junto a um membro do Cardo: os nomes dos
primeiros a aceitarem o cargo segundo minha demanda serão publicados antes
de 20 de julho. Eu mesmo encaminharei a um deles, que me fará a demanda.
6) DO ESTATUTO DA ESCOLA
Minha direção pessoal é provisória, embora prometida por quatro anos, os
quais nos parecem necessários para colocar a Escola em ação.
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verdadeira; nesse caso, a etiqueta que eles degradam com termos que têm sob
sua guarda para o empreendimento que não é, de forma alguma, a mola-mestra
da economia reinante, mas é cômodo o acondicionamento daqueles que em
prega, mesmo nos altos escalões: a orientação psicológica e seus diversos ofícios.
Assim, a psicanálise está demasiadamente à espera e os psicanalistas
demasiadamente fora de prumo para que possam desatar o suspense em outro
lugar que não seja o próprio ponto do qual se afastaram: a saber, na formação de
psicanalista.
Não é que a Escola não disponha daquilo que lhe assegura não romper
nenhuma continuidade: a saber, psicanalistas irrepreensíveis sob qualquer ponto
de vista, já que lhes teria bastado, assim como para o resto dos sujeitos formados
por. Lacan, renegar seu ensino para serem reconhecidos por uma certa “Inter
nacional”, e é notório que só deve à sua escolha é ao seu discernimento o fato de
terem renunciado a esse reconhecimento.
E a Escola que volta a questionar os princípios de uma habilitação patente e
do consentimento daqueles que notoriamente a receberam.
No que se afirma ainda freudiana, o termo Escola vem agora a nosso exame.
Deve ser tomado no sentido que nos tempos antigos queria dizer certos
lugares de refúgio, e até bases de operação contra o que já podia chamar-se de
mal-estar na civilização.
Se nos limitarmos ao mal-estar da psicanálise, a Escola pretende dar seu
campo não somente a um trabalho de crítica: à abertura do fundamento da
experiência, ao questionamento do estilo de vida no qual ela desemboca.
Os que se engajam aqui sentem-se o bastante sólidos para enunciar o estado
de coisas manifesto: que a psicanálise atualmente não tem nada mais seguro para
valorizar seu ativo do que a produção de psicanalistas — deixando esse balanço
bastante a desejar.
Não se trata de nos estarmos deixando levar por alguma auto-acusação.
Estamos conscientes de que os resultados da psicanálise, mesmo cm seu estado
de duvidosa verdade, têm aspecto mais digno do que as flutuações da moda ou
as premissas cegas nas quais se fiam tantas terapêuticas no domínio em que a
medicina não terminou de se delimitar quanto aos critérios (os da recuperação
social são isomorfos aos da cura?), e parece até atrasada quanto à nosografia:
dizemos a psiquiatria, transformada numa questão para todos.
É até muito curioso ver como a psicanálise serve aqui de pára-raios. Como,
sem ela, se levaria a sério aquilo que se orgulha de opor-se-lhe? Daí um statu
qu o no qual o psicanalista fica à vontade mesmo que se saiba de sua insufi
ciência.
A psicanálise se distingue, no entanto, por permitir um acesso à noção de
cura em seu domínio, ou seja: devolver seus sentidos aos sintomas, dar lugar ao
desejo que eles mascaram, retificar de modo exemplar a apreensão de uma
relação privilegiada — ainda poderíamos ilustrar distinções de estrutura que
exigem as formas de enfermidade, reconhecê-las nas relações do ser que
demanda e que se identifica com essa demanda e com essa identificação.
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Jacques Lacan
PARTE III
PROPOSIÇAO DE
9 DE OUTUBRO DE 1967
Que a Escola possa garantir a relação do analista com a formação que ela
ministra, está então estabelecido.
Ela pode, e portanto deve fazê-lo.
É aqui que aparece o defeito [défaut]1, a falta [m an q u e] de inventividade
para exercer um ofício (por exemplo, aquele do qual se vangloriam as sociedades
existentes), encontrando assim caminhos diferentes que evitem os inconve
nientes (e os prejuízos) do regime dessas sociedades.
A idéia de que é necessária a manutenção de um regime semelhante para
regulamentar o gradus deve ser destacada em seus efeitos de mal-estar. Esse mal-
estar não basta para justificar a manutenção da idéia. E meriossainda seu retorno
prático.
A existência de uma regra do gradus está ainda mais implicada numa
Escola, certamente, do que numa sociedade. Pois, afinal, numa sociedade não há
necessidade disso, quando a sociedade não tem outros interesses além dos
científicos.
Mas há um real em jogo na própria formação do psicanalista. Sustentamos
que as sociedades existentes se fundam sobre esse real.
Partimos também do fato, que parece verossímil, de que Freud as quis
assim como elas são.
O fato não é menos patente — e para nós concebível — que esse real
provoque o seu próprio desconhecimento, e inclusive produza sua negação
sistemática.
E claro, então, que Freud assumiu o risco de uma certa detenção. Talvez
mais: que ele a tenha considerado a única proteção possível para evitar a
extinção da experiência.
Que nos defrontemos com a questão assim colocada, não é privilégio meu.
É a conseqüência, digamo-lo pelo menos para os analistas da Escola, da opção
que fizeram pela Escola.
Estão nela agrupados por não haverem querido, mediante um voto, aceitar
o que este implicava: a pura e simples sobrevivência dejum ensino, o de Lacan.
Todo aquele que siga dizendo alhures que se tratava da formação de
analistas, mentiu. Pois bastou que-se votasse no sentido querido pela I.P.A. para
que obtivessem seu ingresso nela a todo vapor, com a ablução recebida por um
curto tempo de uma sigla m ad e in English (não se esquecerá o french-group).
Meus analisados, como se diz, foram até especialmente bem-vindos, e o
seriam ainda se o resultado pudesse ser o de fazer-me ficar calado.
Isto é recordado todos os dias a quem quiser escutar.
É então a um grupo para o qual meu ensino era suficientemente precioso,
inclusive essencial, a ponto de que cada um, deliberando, tenha marcado
preferir sua manutenção à vantagem oferecida — isto sem ver mais longe, da
mesma forma que, sem ver mais longe, eu interrompia meu seminário depois do
(1) Note-se que défau t admite as traduções: “defeito” e “falta”, o que matiza notavelmente
as frases seguintes (N.T.)
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mencionado voto — , é a esse grupo com dificuldades para encontrar uma saída
que ofereci a fundação da Escola.
Nessa escolha, decisiva para os que estão aqui, marca-se o valor da aposta.
Pode haver aí uma aposta que tenha para alguns suficiente valor a ponto de ser-
lhes essencial, e é o meu ensino.
Se dito ensino é sem rival para eles, o é para todos, como demonstram
aqueles que se lançam aí sem ter pago seu preço, ficando-lhes suspensa a
questão do lucro que lhes é permitido.
Sem rival aqui não quer dizer uma estimativa, mas um fató: nenhum ensino
fala do que é a psicanálise. Em outros lugares, e de forma explícita, só existe a
preocupação de que esta seja conforme as normas [elíe soit conform e]. ®
Existe solidariedade entre a pane, inclusive os desvios que a psicanálise
mostra, e a hierarquia que nela reina, — e que nós designamos, benevolente
mente, nos permitirão dizer, como a de uma cooptação de sábios.
A razão disso reside em que essa cooptação promove um retomo a um
estatuto da prestância, conjugando a pregnância narcisista com a astúcia
competitiva. Retorno que restaura, pelos reforçamentos do relapso, aquilo que a
psicanálise didática tem por fim liquidar.
É o efeito que põe sua sombra sobre a prática da psicanálise — cuja
terminação, objeto, e inclusive meta se revelam inarticuláveis após meio século
pelo menos de experiência continuada.
Remediá-lo entre nós deve fazer-se a partir da constatação do defeito
[défaut] que assinalei, longe de pensar em ocultá-lo.
Mas é para tomar nesse defeito [défaut] a articulação que falta [manque].
Ela não faz outra coisa senão recortar o que se encontrará em qualquer
lugar, e que é sabido desde sempre — não é suficiente a evidência de um dever
para cumpri-lo. É pelo viés de sua hiância Ibéance] que ele pode ser posto em
ação, e o é todas as vezes que se encontra o meio para usá-lo.
Para introduzi-los nisso, me apoiarei nos dois momentos da junção do que
chamarei respectivamente, nesta dedução, de psicanálise em extensão — quer
dizer, tudo o que resume a função de nossa Escola na medida em que ela
presentifica a psicanálise no mundo, — e a psicanálise em intensão, ou seja, a
didática, — na medida em que não faz outra coisa senão preparar aí operadores.
Esquece-se, com efeito, sua razão de ser pregnante, que é a de constituir a
psicanálise como experiência original, levá-la até o ponto que representa a sua
finitude para permitir-lhe o aprés-coupz, efeito de tempo que, sabemos, lhe é
radical.
Essa experiência é essencial ao isolá-la da terapêutica, que não distorce a
psicanálise apenas por relaxar seu rigor.
wsk.
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(3) Prímum non n ocere (latim): o primeiro é não causar dano (N.T.).
(4) Isso que se chama comumente: o psicanalisado, por antecipação (Nota d e Jacq u es
Lacan).
Em francês: le psy ch an aly san t. O termo “psicanalisante”, além de ser mais fiel ao
original, sugere uma intervenção mais ativa que o gerúndio “psicanalisando”, tão comum
em português. Cf. analogias com termos presentes no vocabulário lacaniano como
“amante”, “passante”, etc. (N.T.).
33
S > S“
j ( s l s 2, . . . , S n)
(5) Pun (inglês): jogo de palavras, articulado por homonímias e/ou homofonias, do qual a
própria frase em francês é um exemplo:... à fa ir e p in c e p o u r le s saisir du pun... (N.T.)
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(6) S u pposan t — aquele que supõe; não havendo equivalente em português, utilizamos o
gerúndio "supondo”, que em francês tem a mesma forma. Observe-se a etimologia do
verbo supor (idêntica em ambos idiomas): p ô r sob — que certamente Lacan teve em conta
ao construir as noções que o incluem (N.T.).
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Em que lugar se disse melhor do que o faz ali Alcebíades que as armadilhas
do amor de transferência não têm outro fim senão o de obter aquilo sobre o qual
pensa que Sócrates é o continente ingrato?
Mas quem sabe melhor do que Sócrates que ele só possui a significação que
ele engendra ao reter esse nada, o que lhe permite remeter Alcebíades ao
destinatário presente de seu discurso, Agatão (como por acaso): isso para
ensinar-lhes que, ao obsecar-se pelo que lhes concerne do discurso do
psicanalisante, vocês ainda não estão aí.
Mas isso é tudo? quando aqui o psicanalisante é idêntico ao cryocX|ia, a ma
ravilha que nos ofusca, a nós, terceiros, em Alcebíades. Não é para nós a ocasião
de ver ali isolar-se o puro viés do sujeito como relação livre ao significante,
aquele do qual se isola o desejo do saber como desejo do Outro?
Como todos esses casos particulares que constituem o milagre grego, este só
nos apresenta a caixa de Pandora fechada. Aberta, é a psicanálise, da qual
Alcebíades não tinha necessidade.
(8) Motus (latim) : movimento, agitação, abalo, revolta, paixão, entusiasmo, revolução
política, etc. (N.T.)
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Essa sombra espessa que recobre a junção [raccord] que me ocupa aqui —
aquela em que o psicanalisante passa a psicanalista — eis o que nossa Escola
pode dedicar-se a dissipar.
Não estou mais longe do que vocês nessa obra, que não pode ser conduzida
a sós, posto que a psicanálise constitui o seu acesso;
Devo contentar-me aqui com precedê-la com um ou dois flash es.
Na origem da psicanálise, como não recordar aquilo que Mannoni
finalmente produziu entre nós: que o psicanalista é Fliess, quer dizer, o medi-
castro, o coçador de narizes, o homem a quem se revelam o princípio macho e o
princípio fêmea nos números 21, 28: não lhes desagrada, em suma, esse saber
que o psicanalisante — Freud, o cientificista, como se exprime a boquinha das
almas abertas ao ecumenismo — rejeita [rejette] com toda a força do juramento
que o liga ao programa de Helmholtz e de seús cúmplices'.'
Que esse artigo haja sido entregue a uma revistá que não permitia de modo
algum que o termo "sujeito suposto saber” aparecesse, a não ser perdido no meio
de uma página, não o despojado valor que pode ter para nós.
Em nos recordando “a análise original”, ele nos remete à base da dimensão
de miragem em que se assenta a posição do psicanalista, e nos sugere que não é
(9) R efusé — termo que parece estar aqui descrevendo o mecanismo da forclu sion
(Verwerfung em Freud), segundo o veredicto lacaniano: o forcluído no simbólico,
reaparece no real. Neste caso, seria esperável encontrar aí a forma fo r c lo s em lugar de
refusé, já que se trataria da psicose.
Utilizamos o verbo rechaçar, entretanto, não impregnado por usos anteriores, levados pela
mesma oscilação que se observa em Lacan quanto ao mecanismo e ao fenômeno descritos.
Cf. nota (10) (N.T.).
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seguro que esta seja reduzida enquanto uma crítica científica não houver sido
estabelecida em nossa disciplina.
O título se presta à observação de que a verdadeira original só pode ser a
segunda, ao constituir a repetição que da primeira faz um ato, já que é ela que
introduz aí o aprés-cou p característico do tempo lógico, que se marca pelo fato
de que o psicanalisante passou a psicanalista. (Quero dizer o próprio Freud, que
sanciona aí não haver feito uma auto-análise).
Permito-me, por outro lado, lembrar a Mannoni que a escansão do tempo
lógico inclui o que chamei momento de compreender, justamente do efeito
produzido (que ele retome o meu sofisma) pela não-compreensão, e que
eludindo em suma o que coiístitui a alma do seu artigo, ajuda a que se o com
preenda desviadamente.
Lembro aqui que qualquer um por nós recrutado na base de “compreender
seus doentes” se engaja em um mal-entendido que não é sadio como tal.
(10) R efus — Já aqui esse rechaço, ou repúdio, ou recusa, como poderia traduzir-se, está
referido explicitamente à Verleugnung, mecanismo descrito por Freud das perversões — o
qual é geralmente mencionado em francês como dénie. Cf. nota (9) (N.T.).
(11) Sicut p a le a (latim ): como a pragana (N.T.)
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De qualquer jeito, essa experiência não pode ser evitada. Seus resultados
devem ser comunicados: primeiro à Escola, para críticas, e correlativamente
postos ao alcance dessas sociedades que, por haver-nos excluído, não deixam de
nos concernir.
O júri em funcionamento não pode então abster-se de fazer um trabalho de
doutrina, para além de seu funcionamento como seletor.
O segundo ponto está constituído pelo tipo existente, cuja facticidade desta
vez é evidente, da unidade: sociedade de psicanálise enquanto coroada por um
executivo em escala internacional.
Já dissemos, Freud assim o quis, e o sorriso embaraçado com que retrata o
romantismo da espécie de Komintern clandestino ao qual deu, de início, carta
branca (cf. Jones, citado em meu Écrit), só faz sublinhá-lo mais.
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(12) Massenpsychologie und Ichanalyse — Psicologia das massas e análise de eu; Masse:
massa (N.T.).
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O fim deste documento precisa o modo pelo qual poderia ser introduzido
aquilo que, abrindo uma experiência, só tende a tornar finalmente verdadeiras as
garantias buscadas.
Deixamo-las inteiramente nas mãos daqueles que tenham aquisição.
Não esqueçamos, entretanto, que eles são os que mais padeceram nas
provas impostas pelo debate com a organização existente.
Aquilo que o estilo e os fins dessa organização devem ao blecaute realizado
iaa função da psicanálise didática é evidente a partir do momento em que é
possível dar uma olhada nisso: daí o isolamento com que ela se protege.
As objeções que a nossa proposta encontrou não dependem, em nossa
Escola, de um temor tão orgânico.
O fato de que tenham sido exprimidas sobre um tema motivado já mobiliza
a auto-crítica. O controle das capacidade não é mais inefável por requerer mais
justos títulos.
E numa prova como essa que a autoridade se faz reconhecer.
Que o público dos técnicos saiba que não se trata de contestá-la, mas de
extraí-la da ficção.
A Escola freudiana não deveria cair no tough14 sem humor de um
psicanalista que encontrei em minha última viagem aos E.U.A.: “Eu não atacarei
jamais as formas instituídas, disse-me ele, porque elas me asseguram sem
problemas uma rotina que constitui o meu conforto”.
Jacques Lacan
DISSOLUÇÃO
. C A R T A D E D IS S O L U Ç Ã O
. 0 O U TRO FA LTA
. D 'É C O L A G E
. SE N H O R A.
. LUZ !
. 0 M A L -E N T E N D ID O
CARTA DE D ISSO LU ÇÃ O
(1) Jogo fonético entre dis, de je dis (eu digo), e a primeira sílaba da palavra dissolu tion
(N.T.).
46
Jacques Lacan
Guitrancourt, 05 de janeiro de 1980
(2) A hom ofonia com a frase anterior (p ersévère ) aqui também pode ser lida assim “S e eu
sou um pai severo, é porque a experiência feita...” (N.T.).
47
O O U TR O FALTA
15 de janeiro de 1980
24 de janeiro de 1980
Jacques Lacan
50
D 'ÉC O LA G E 7
(7) A partir do título, e em todo o texto do seminário, Lacan joga com a homofonia entre
d 'écolag e (neologismo derivado de école, que optamos por traduzir como descolarização),
e d eco lla g e (descolagem, ou ainda: decolagem). Não escapará ao leitor que o jogo gira em
torno da dissolução da É cole, da qual Lacan se "desgruda” e "sai voando” (N.T.).
(8) A expressão francesa, usada geralmente como o nosso “adivinhei certinho”, alude aqui
também à quantidade de cartas recebidas (N.T.).
(9) Latim: de D elen da est Cartago (Catargo deve ser destruída). Frase com que Catão
terminava seus discursos durante o confronto entre Catargo e Roma (N.T.).
(10) No sentido de despojado dos vícios da É cole. Em leitura oral também pode ser
entendido como: “salvo que tenha se desgrudado, seriamente”, ou ainda: “que haja
decolado seriamente”(N.T.j.
51
Dirijo-me aos outros, que não têm que fazer esse trabalho por não haverem
participado da minha Escola — sem que por isso não se possa dizer que não
tenham sido também intoxicados.
Com eles, sem demora, dou partida à Causa Freudiana — e restauro em seu
favor o órgão de base retomado da fundação da Escola — ou seja, o cartel — do
qual, feita a experiência, aprimoro a formalização.
Primeiro — Quatro se escolhem para levar a cabo um trabalho que deve ter
seu produto. Preciso: um produto próprio de cada um, e não coletivo.
Segundo — A conjunção dos quatro se faz ao redor de um Mais-Um [PIus-
Un] que, se é qualquer um, deve ser alguém. Será encarregado de velar pelos
efeitos internos do empreendimento e de provocar sua elaboração.
Terceiro — Para prevenir o efeito de cola [de co lle]u , deve-se realizar a
permutação no prazo estabelecido de um ano, no máximo dois.
Quarto — Não se espera outro progresso senão o de uma periódica
exposição dos resultados, assim como das crises do trabalho.
Quinto — O sorteio assegurará a renovação regular dos limites demarcados
com o fim de vetorizar o conjunto.
A Causa Freudiana não é Escola, e sim Campo — onde cada um terá
liberdade para demonstrar o que faz com o saber que a experiência decanta.
Campo que os da E.F.P. reencontrarão desde que tenham se desembaraçado
daquilo que atualmente os incomoda mais do que eu.
(11) Oralmente, também pode ser entendido como: efeito da escola [d'école] (N.T.).
52
11 de março de 1980.
Jacques Lacan
53
Senhor A.
O senhor A., filósofo, que apareceu não sei de onde sábado passado para
apertar-me a mão, fez ressurgir para mim um título de Tristan Tzara.
E da época Dada, ou seja, nada da futilidade que começou com Littérature
— revista à qual não forneci nem uma linha.
E imputado a mim de boa vontade um surrealismo que está longe de ser de
meu agrado. Provei isto só contribuindo a ele de forma lateral, e muito tardia
mente, para deixar zangado André Breton. Devo dizer que Eluard me enternecia.
O Senhor A. não me enternece, pois me fez recordar o título: Senhor Aa., o
anti-filósofo.
Isso me deixou estupefacto.
Então, quando dei a Tzara, que se alojava na mesma casa que eu, na rua de
Lille No.5, A Instância da Letra, ele não lhe prestou grande atenção. Eu achava,
no entanto, estar dizendo algo que devia interessar-lhe.
Pois bem: nem um pouco. Vejam só como a gente se engana.
Tzara só delirava com Villon. E assim mesmo desconfiava desse delírio.
Eu não tinha a menor necessidade de que ele delirasse sobre mim. Já havia
bastante gente que fazia isso. O que ainda continua.
Como não estiveram todos vocês comigo no sábado e no domingo, porque
graças a Deus não são todos da minha pobre Escola, não têm idéia de até onde
pode chegar o delírio sobre mim.
O que me dá esperança é o fato de Tzara ter deixado François Villon cair,
assim como, por outro lado, a mim também.
(12) Ma foudre: alusão ao raio de Júpiter, atributo do Deus e sua arma, lançada nos
momentos de cólera contra quem provocava a sua fúria (N.T.).
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A Causa Freudiana não tem outro móvel a não ser minha caixa de correio.
Indigência que tem muitas vantagens: ninguém pede para fazer um seminário na
minha caixa de correio.
E preciso que inove, disse — salvo que acrescentando: n ã o sozinho.
Vejo isto assim : que ca d a um p o n h a a í algo d e seu.
Vamos. Reúnam-se vários, grudem-se o tempo necessário para fazer alguma
coisa, e depois dissolvam-se para fazer outra coisa.
Trata-se de que a Causa Freudiana escape do efeito de grupo que eu lhes
denuncio. De onde se deduz que ela só durará pelo aspecto tem porário — quero
dizer: se se desligam antes de ficarem grudados irremediavelmente.
Isso não requer grande coisa:
— uma caix a d e correio, ver acima;
— um correio que faça saber o que, nessa caixa, se propõe como trabalho;
— um congresso, ou melhor, um fóru m onde isso se intercambie;
— enfim, a p u b lica çã o inevitável, para o arquivo.
Também é necessário que, com isso, eu instaure um turbilhão, um
movimento em hélice que lhes seja propício.
Isto, ou o grude assegurado.
Vejam como coloco isto através de pequenos toques. Dou-lhes seu tempo
para compreender.
Compreender o quê? Eu não me gabo de fazer sentido. Tampouco do
contrário. Pois o real é o que se opõe a isso.
Prestei homenagem a Marx como inventor do sintoma. Marx é, no entanto,
o restaurador da ordem pelo simples fato de ter reinsuflado no proletariado a
dimensão [dit-m ension]13 do sentido. Para isso, foi suficiente que ele deno
minasse como tal o proletariado.
A Igreja tirou daí o exemplo, foi o que lhes disse no dia 5 de janeiro.
Saibam que o sentido religioso vai ter um boom do qual vocês não têm a menor
idéia. Porque a religião é a moradia original do sentido. Isto é uma evidência que
se impõe. Aos que são responsáveis na hieraquia mais que aos outros.
Tento opor-me a isso para que a psicanálise não seja uma religião, como é
sua tendência irresistível desde o momento em que se imagina que a inter
pretação não opera a não ser pelo sentido. Eu ensino que a sua mola-mestra está
alhures, especificamente no significante como tal.
A isso resistem aqueles aos quais a dissolução provoca pânico.
A hierarquia só se sustenta por gerir o sentido. E por isso que eu não dou
um empurrãozinho a qualquer responsável, na Causa Freudiana. É com o
turbilhão, com a hélice que eu conto. E, devo dizê-lo, com os recursos de
doutrina acumulados em meu ensino.
(13) Jogo de palavras em torno da homofonia entre dim en sion (dimensão); d it m an sion
(mansão do dito); e dit-m ention, (dita menção) (N. T.).
55
18 de março de 1980
Jacques Lacan
(14) Em português, o texto de Freud aludido é traduzido por: As p u lsões e seu s d estin os
ou ainda: ... e su as vicissitudes (N.T.).
57
LU Z !
“Faça-se a luz !”
E o que vocês crêem que aconteceu ? A luz se fez !
E certamente incrível que isto faça a entrada na escritura. E o que eu
chamaria um sintoma-tipo do real.
Pois é justamente da luz em seu real que se fez a trilha da ciência. Não
unicamente, é certo, mas entre outras coisas.
Vocês sabem também que a luz — a noção de sua velocidade, mais
precisamente, é única em nos dar um absoluto mensurável do real. E no mesmo
golpe se demonstra sua relatividade.
Que golpe de sorte para os crentes, o tal incrível ! Mas isso não lhes suscita
necessariamente, sabe-se, um gosto particular pelas Luzes, no sentido de
Aufklãrung.,5
Não se deixem impressionar demais por esse golpe de sorte. Para que vocês
se recomponham, constatem só o que se esclarece après-coup: um desconheci
mento total da diferença radical das “luminárias”, Lua e Sol, em relação à luz
aludida.
O que mais me chateia é que a ênfase dada à palavra [parole] criativa vai no
sentido do que eu penso.
Só que é uma aposta perdida atribuir à palavra o insuportável da luz. E isto
não vai de modo algum no sentido do que eu penso.
O que o inconsciente demonstra é algo totalmente diferente, ou seja, que a
palavra é obscurantista.
Atribuo defeitos demais à palavra para dispensá-la desse obscurantismo. E
seu benefício mais evidente.
Já indiquei nos primeiros tempos do meu ensino a função, no trilhamento
do simbólico, dessas luzinhas chamadas estrelas. As estrelas não dão muita luz.
No entanto, é através delas que os homens se iluminam, o que lhes permitiu
manifestarem a felicidade que experimentam pela noite transparente.
Devo dizer que nada havia pedido à pessoa que me escreveu isso, pela
simples razão de que ela não vem há longo tempo ao meu seminário.
Françoise Dolto, pois trata-se dela, enviou-me uma cartinha que me distraiu
durante estas férias, as quais, aliás, eu não tirei.
E uma cartinha “para dissipar o mal-entendido”.
Ela me ama tanto, diz-me em resumo, que não pode suportar que a Escola
seja dissolvida.
E por que, não adivinham? Porque a Escola sou eu.
E seu axioma. De modo que, forçosamente, dissolver a Escola seria anular a
mim mesmo. E isso é o que ela não quer.
Há um detalhe, é que sou eu quem dissolve a Escola. Isso não a detém, não
há nada que a detenha.
Ela imagina que eu m e auto-destruo. E por isso que, de acordo com seu
princípio filantrópico, vem em meu socorro.
Estão vendo como tudo isso se sustenta. É lógico. Vê-se que não sacrifica
nada à verossimilhança.
Se fosse exato, isso faria de mim um sujeito do tipo de Sócrates. Sócrates a
desejou, a sua morte, e a obteve da mão daqueles mesmos sobre quem espalhou
seus benefícios.
Isso não lhe foi, aliás, tão mal-sucedido, já que sua morte tornou-se
exemplar.
Mas, felizmente para mim, eu não disse jamais que a Escola freudiana sou
eu. Também poderia ter dito que... Madame Dolto sou eu.
Há gente, ao que parece, que acredita niáso. Bem, é um erro. Eu não me
identifico em absoluto com Françoise Dolto, e muito menos com a Escola
freudiana. E isso o que me justifica precipitar-me ao trabalho para construir a
Causa freudiana.
15 de abril de 1980.
Jacques Lacan
(16) "... não se sabe de bonde” [on n e sait zou\~ provável ln..r, A..
d ’où (não se sabe de onde), sendo zou expressão onnmi™ - l avras com on ne sa,t
significa: rápido; vamos (N.T.). P 3° onomat° P ^ francesa, regional, que
O M AL-EN TEN DIDO
Não digo que o -verbo seja criador. Digo uma coisa bem diferente, porque
minha prática a implica: digoçque o verbo é inconsciente, ou seja, mal
entendido.
Se crêem que tudo pode ser revelado, bem, vocês se dão mal: não pode. Isso
quer dizer que uma parte não se revelará jamais .
E precisamente disso que a religião se gaba. E é o que dá sua muralha à
Revelação, da qual se vale para explorá-la.
Quanto à psicanálise, sua exploração consiste em explorar o mal-enten-
dido. Com uma revelação, ao final, que é de fantasma.
Isso é o que lhes passou [refilé] Freud. E que filão [filon]!, tenho que dizer.
Tantos quantos vocês são, que são vocês senão mal-entendidos?
r
61
(17) parlêtrait — condensação lacaniana de parlant (falante) e être (ser), com que produz
o seu parlêtre (ser-falante), aqui conjugado como “ser-falaria" (N.T.).
(18) parlêtre — ver nota anterior (N.T.).
62
Pois bem.
Alguém me chamou a atenção para o fato de que o seminário deste ano não
tinha título. E verdade. Vocês já verão porquê. O título é: Dissolução!
Evidentemente, não poderia tê-lo dito a vocês em novembro, pois meu
efeito teria falhado. Pode-se dizer que é um significante que os prendeu.
Consegui interessá-los de tal forma que não há nada mais além disso.
Alguém me recrimina porque não o faço muito a seu gosto. Está em seu
direito, porque ele não vem a mim. E o contrário: tem a bondade de acolher-me
quando não estou longe.
Então, forçosamente, o escuto. Ele quer um ritmo mais continuado, e eu
estou de acordo. E do que cuidarei — depois do verão.
A Causa freudiana começa a existir por si só, pelo fato de ser invocada
[qu ’on s ’en réclam e], o que quer dizer que já se fez propaganda [une reclam e]
dela.
O que bastaria agora? — um correio, um pequeno boletim que faça o enlace.
Éric Laurent haverá de querer lançar-se ao trabalho para que isso exista, e para
que os novos cartéis, que abundam, se façam conhecer.
10 de junho de 1980.
Jacques Lacan
PARTE V
Transcrição das discussões das Jornadas sobre Cartéis (abril/1975), publicada em Lettres
de l'École Freudienne de Paris, n° 18 —1976.
65
67
Não se pode deixar de reconhecer, nesse “mais uma”, aquilo que eu não lhes
disse, evidentemente, da última vez, porque não posso chegar sempre num
seminário a dizer tudo o que trazia, mas, enfim, que se refere estritamente a isso
que escrevi: x + 1 é jjrecisamente o que define o nó borromeano, e é a partir de
reiterar esse 1 — que no nó borromeano é qualquer um — que se obtém a
individualização completa, ou seja, que do que sobra — a saber, do x em questão
— não há mais que um por um.
A questão que Martin lhes propôs, em suma, é opinar sobre esse um — não
digo que vocês tenham se interessado até agora, mas não é razão para que não
lhes peça alguma resposta — esse um, que parece sempre possível como
enlaçando toda a cadeia individual, como concebê-lo? Certamente eu disse
coisas sobre o que Martin acaba de evocar, quer dizer, o “um a mais”. Na época
eu o tinha tratado sob a forma do que constitui o sujeito, que é sempre um “um a
mais”.
Eu pediria que declare quem quiser, já que não posso interrogar cada
pessoa e transformar isso em resposta obrigatória. Pelo menos, que declarem
sobre este tema as pessoas que quiserem: em suma, o que lhe evoca, o que lhe
sugere essa “pessoa” que trato de isolar do grupo, o que não quer dizer que não
possa ser qualquer uma delas.
Certamente o cartel fez, pouco a pouco, seu percurso dentro da Escola;
fizemos grupos, seminários. O que constitui a vida própria de um cartel tem, na
verdade, uma relação estreita com o que tento articular neste instante, no
seminário.
Eu sei o que gostaria de obter como funcionamento dos cartéis; se o limitei,
dizendo que de três a cinco, obtém-se no máximo seis, deve ter uma razão. Não
é, contudo, um enigma.
Deveria normalmente sugerir, pelo menos a alguns, àqueles que têm mais
prática, uma resposta, não estou completamente seguro, mas enfim, essa palavra
tem algum conteúdo: cartel, que pôr si só já evoca quatro1 quer dizer, três mais
um, é, de qualquer maneira, o que considerei que permitiria elucidar o seu
funcionamento, e para chegar até seis, a coisa teria que ser posta à prova; usei a
palavra cartel, mas, na verdade, é a palavra cardo2 que está atrás, quer dizer, a
palavra “dobradiça”. Eu já tinha me referido a essa palavra cardo, evidentemente
esperando que cada um procurasse o que quer dizer. Preferi finalmente a palavra
cartel, porque, ao mesmo tempo, era uma precisão, e a descrição que eu dava em
seguida, falando de no mínimo “três mais um”, permitiria esperar um jogo
eficaz, fazer não só que sejam mais, mas que haja quem desempenhe seu papel,
não só numa das seções que tinha previsto para serem três também, e vale a pena
que se note que fazendo três seções, implica também “mais uma”, ou seja, uma
quarta. Isso quer dizer que a Escola, talvez, não tenha começado ainda a
isso, eu nunca tinha pensado assim antes, acontece que esse grupo é clínico, mas
as mesmas pessoas desse grupo clínico se encontravam num grupo que não era
clínico, que estava centrado sobre o estudo de outra coisa, da matemática...
JACQUES LA CA N -— Vocês eram o quê? Vocês eram um grupo já um pouco
csclarccido [cfecrassé] matematicamente, se se pode dizer? Porque é verdade, é
preciso passar por isso para saber como é que é, quero dizer, ter tido pelo menos
,um esboço de formação matemática. E muito especial, específica, a formação
matemática. ' - -
MAUMCE ALFAND ARI— É difícil responder sobre o grau de sujeira
[crasse] que tínhamos; eu acho que alguém entre nós estava bastante avançado,
mais que nós, e depois havia o nosso professor, que estava longe de tal sujeira, o
nosso professor era alguém apto para nos levar por essa via; o grupo já dura dois
anos. Então, eram quase as mesmas pessoas nesse grupo teórico, matemático, e
no grupo clínico. Penso no grupo clínico, onde acho que os efeitos não são
visíveis, não se pode delimitá-los muito facilmente, mas simplesmente se pode
delimitá-lo pelo fato de que, para mim, por exemplo, não era possível levar nada
a um certo nível de elaboração fora desse grupo. Isso era possível para mim, mas
eu não saberia dizer em que momento: é a função, na verdade, do grupo.
JACQUES LACAN — Quando os matemáticos se juntam, há esse “mais
uma” incontestável. Quero dizer que é verdadeiramente incrível, mas os
matemáticos, poder-se-ia dizer, não sabem do que falam, mas sabem de quem
eles falam; falam da matemática como se fosse uma pessoa.
Poder-se-ia dizer que, até certo ponto, o que eu chamava de “meus votos”
era o funcionamento de grupos, que funcionassem como um grupo de
matemáticos qualquer.
MICHEL FENNETAUX — Gostaria de dar minha opinião porque trabalho
no grupo de que falou Alfandari. Na verdade, eu nunca me tinha perguntado
sobre o “mais uma”, mas posso dizer o que ele me faz pensar, já que se trata
disso.
JACQUES LA CA N — Isso lhe faz pensar o quê?
MICHEL FENNETAUX— O “mais uma" é, por um lado, efeito do grupo, ou
seja, como disse Alfandari há pouco, o fato de poder reencontrar periodicamente
um certo número de pessoas permite, me permitiu, aprofundar ou poder
formular um certo número de coisas sobre a minha experiência, que eu não
conseguiria fazer só. O segundo sentido que vejo atualmente nesse “mais uma” é
que efetivamente acho que, num grupo, um de nós assume, muitas vezes,
provavelmente por sua experiência mais extensa, essa posição de líder de que se
falou há pouco.
Enfim, há um terceiro sentido; teríamos que falar antes de “menos uma”
que de “mais uma”, da seguinte maneira: nos encontramos entre pessoas que
têm entre si uma relação de confiança e que podem falar desse fato, como disse
Kahn há pouco, indo bem longe em seu relacionamento na prática; esse “menos
uma” é, no fundo, a ausência de supervisor, quer dizer, a ausência desse efeito
de atordoamento que há nos grupos mais importantes, formados por pessoas
72
cujo nome é conhecido na Escola, e onde tem muito mais importância do que
num grupo pequeno o problema do reconhecimento. Num grupo pequeno, como
o cartel, a demanda de reconhecimento pelos outros é, em grande medida,
anulada.
É por isso que o terceiro sentido de “mais uma”, eu definiria melhor como
“menos uma”.
LAURENCE BATAILLE — Eu já participei de um bom número de grupos
que não eram justamente cartéis, e acho que essa pessoa que tem, digamos, um
status diferente, que não chega a ser um semelhante, se encarna sempre numa
das pessoas do grupo. Mas não tenho a impressão de que seja um líder, e sim de
que há uma pessoa no grupo a quem a gente se dirige, a quem se faz testemunha
de alguma coisa, e de quem se espera efetivamente uma espécie de aprovação;
mas, na realidade, isto não cumpre o papel que deveria cumprir, quer dizer, que
esses grupos acabem sempre — enfim eu digo sempre... — então o “a mais”
muda, porque se espera essa mudança de um outro. Eu também experimentei
isso, realmente, de maneira completamente evidente, e quando falei disso num
dos grupos, porque tinha a impressão de que eles também se dirigiam a uma
pessoa em particular, que não era a mesma para todos, parecia que sonhei ou
imaginei que eles olhavam sempre para a mesma pessoa quando falavam.
De repente vamos fazer um grupo, e a gente diz que esse “a mais”
poderíamos fazê-lo funcionar impondo, no fim de cada reunião, a escrita do que
foi o essencial, mesmo que seja só uma frase, e que isso ficaria como
testemunho, se se pode dizer, e faria que o trabalho avance e não se dilua em
pequenas idéias que não podem se desenvolver.
Não sei se isto pode cumprir esse papel, porque a gente deve se reunir
segunda-feira próxima pela primeira vez.
JACQUES LACAN — Eu lhe agradeço.
SOL RABINOVITCH — O que gostaria de dizer sobre o cartel em que
trabalhei é que éramos cinco, cinco membros que nunca faltaram; houve um
sexto que faltou muito e que, além disso, foi substituído por outra pessoa, que
faltou muito também.
O que gostaria de dizer, sobretudo, é que isso não me parecia ser a função
do “um a mais” mas, pelo contrário, a função do “mais um”, que era sustentada
justamente pelos membros presentes e que não faltavam nunca naquele grupo,
quer dizer, como uma função que seria a do ponto cego, uma função de
desconhecimento; há sempre, num determinado momento, alguém; nunca o
mesmo, é claro; sempre é alguém que está lá, que diz; eu não entendo nada, isto
não serve para nada, não estamos produzindo...
JACQUES LA CA N — E isso o “mais uma"? Aquele que não entende nada?
Por que não? [risos).
SOL RABINOVICH — É alguma coisa assim, mas preciso que é uma função
perfeitamente intercambiável; é um papel que se desloca. Teríamos que articular
isso com o fato de que o trabalho de um cartel é um trabalho analítico, portanto
há transferência; é tudo o que queria dizer.
73
ALAIN DIDJER WEILL — Tenho uma idéia sobre esse “mais uma”, em rela
ção a esta pergunta: por que diferentes cartéis de que participei não alcançaram
o objetivo que achávamos justo alcançar no começo?
Tomemos como exemplo de um cartel onde se faz um comentário de texto:
pode-se dizer que o que nos reúne, nesse caso, é que estamos situados num
contexto metonímico e que, nesse contexto, devemos suportar a palavra de um
Outro, Freud, Lacan. Nesse contexto metonímico, o quê se tornará o ser falante?
Pela primeira vez me ocorre que talvez o “mais uma” seja alguém que tem
relação com o passador [passeur]: o “mais um” poderia ser o lugar onde está, no
esquema L, o $, quer dizer, o testemunho de um atravessar possível do eixo a - a ’,
de um atravessar possível que vai de A a $.
Em outras palavras, o “mais um”, se ele ocupa esse lugar de $, não seria
seguramente um sujeito suposto saber, mas um sujeito que testemunharia que
isso passou, que a mensagem passou, que houve metaforização, que foi
reencontrado, além daquilo que se recebe como adquirido (dessas “idéias
recebidas” que Flaubert acumulava no seu dicionário de "idéias chiques”), o
ponto nevrálgico de onde esse contexto metonímico surgiu de um texto
inaugural metafórico.
JUAN DAVID NASIO — Partirei da experiência de dois cartéis dos quais
participo, experiências diferentes, mas que, em relação às questões do “mais
um”, esse "mais um” está presente nos dois casos.
JACQUES LACAN— Está sempre presente, mas sempre desconhecido.
E é o que eu queria sugerir nesse pequeno texto: é o que os analistas po
deriam se aperceber; ele é sempre desconhecido porque isso é o Outro do Outro,
esse “mais um” está sempre presente, sob formas diferentes onde ele se encarna;
o caso do líder é manifesto, mas os analistas poderiam se aperceber de que, num
grupo, há sempre um “mais um”, e dirigir sua atenção para isso.
JUAN DAVID NASIO — Não sei se vocês estarão de acordo em se apoiar
numa das fórmulas lacanianas mais conhecidas, ou seja, que o desejo do homem
é o desejo do Outro. O “mais um” é aquele que sustenta, no grupo, o desejo do
Outro. Sustentação do desejo que pode ser feita de mil maneiras, falando,
calandó-se, emprestando a sua casa para a reunião, etc. Há mil maneiras de ser
“mais um ”. Mas há uma outra maneira de dar conta disso. Pensando no
conteúdo do cartel, eu penso no saber do analista. O saber do analista, se é
válida a hipótese de que é isso que está em jogo no cartel — falo dos cartéis de
analistas, pois não se deve esquecer que há cartéis onde não há analistas. O saber
do analista é um saber compartilhado, mas não um saber para intercambiar, acho
que é uma das nossas fórmulas, esta idéia de compartilhar faz referência ao fato
de que só há analistas, seria aí que eu me uniria — não sei se Alain Didier estaria
de acordo — à sua idéia de metonímia. Eu falaria, mais precisamente, sobre a
sucessão das séries; em relação a um analista haverá sempre um outro, um “mais
um”. Se há dois, haverá um terceiro. Nesse momento, haverá quatro. Em suma,
sempre haverá um que estará presente a mais, e essa presença eu a colocaria
como presença daquele que sustenta, no trabalho do grupo, o desejo do outro.
74
como lugar público, e interessá-los pelo assunto. Quero dizer isto que, depois de
tudo, vocês chegam à idéia de que é uma pergunta. É uma pergunta, certamente,
que eu só faço porque tenho a resposta, e tratarei de dizê-la em seguida; quero
dizer o mais rápido possível, claro; não tenho tantos seminários pela frente este
ano, portanto vou tentar fazê-lo.
Mas acho interessante que a pergunta esteja presente na Escola, porque
pode ser considerada, talvez, como o-que eu pretendia fazer com esse texto,
como o ponto nodal para a formação de um pequeno grupo, e o fato de ser
pequeno é essencial para seu funcionamento. Se eu disse que não podia passar
de seis, foi pelas melhores razões, por razões teóricas, mais profundas. A tarefa
de um grupo muito amplo comporta limitações tais, é o que eu penso pelo
menos, que não há grande coisa a se esperar para um progresso real sob os
efeitos da análise.
E isto que me inspirou quando fiz essa Ata de Fundação, à qual não tenho
nenhuma razão para pensar que vocês deviam ser por princípio resistentes; não
vejo em absoluto o que poderia motivar essa resistência, sobretudo se o que
tratei de obter de um certo número, agradeço a todos igualmente, o que tratei de
obter de um certo número; pô-la na ordem do dia.
Haverá uma reunião amanhã de manhã que dará continuidade à de hoje.
(4) Figuras da mitologia grega que — por haver assassinado seus maridos na noite de
núpcias — foram condenadas a encher de água um barril sem fundo. (N.T.)
79
isso não interessava a ninguém e, por outro lado, que minha formulação era
ainda insuficiente.
PIERRE MARTIN — Com o único fim de retomar a discussão, eu queria
lembrar o que me chocou pessoalmente na leitura da Ata de Fundação. É o
número três. Ontem eu sublinhei a “mais uma” pessoa. Hoje gostaria de destacar
o que, repito, prende minha atenção há bastante tempo, que é o numero três
dessa Ata de Fundação. Assinalaria, no segundo parágrafo, o que se poderia fixar
sobre o trabalho que a Escola deve cumprir, onde o autor faz três propostas. Eu
as citei ontem. Essas propostas são seguidas pela organização de três seções.
Cada uma das seções inclui três sub-seções.
E direi, para terminar meu dizer atual, mas de maneira alguma para tirar
uma conclusão sobre o que provoca essas preocupações, que no centro desse
número três, o que retém minha atenção é o “mais uma”.
NICOLE LEV Y— Alguma coisa me incomoda e eu gostaria de comentá-la.
Trata-se de uma espécie de abuso, de uma distorção quando, a propósito do
“mais um”, se fala agora de “mais uma”. Claro, isso pode querer dizer “mais
uma” pessoa, mas eu me perguntava se é disso que se trata, se se trata de uma
pessoa, como se diria “mais um” membro do grupo, e eu me questionava se o
“mais um" não funcionaria para nós como um significante.
A esse respeito, pensava que, no seminário sobre os Quatro con ceitos
fu n dam en tais da psican álise, Lacan introduz desde a abertura um outro sob a
forma do “eu não busco, eu encontro” que preside, de alguma maneira, à
instauração dos quatro conceitos fundamentais. E isso que ele denomina o
achado, isso a que ele se refere, não poderíamos entendê-lo no mesmo registro
que esse “mais um”, ou seja, como algo da ordem do significante? Poderíamos
dizer um significante que funda o desejo, do mesmo modo que podemos lembrar
que esse “mais um” se escreve a partir e numa Ata de Fundação.
GENNIE LEMOINE — Eu gostaria de depor sobre o trabalho feito desde a
reunião de Montpellier no nosso seminário.
Reencontramos naturalmente o caminho que conduziria aos “três” de
Martin. Com o anúncio desse seminário se formou uma multidão e nos
esforçamos por fazer nele um trabalho analítico. A primeira intervenção foi no
sentido de organizar um grupo menor, deslocando-o para que só as pessoas
interessadas pudessem comparecer. Isso foi o grupo das terças-feiras, onde
constituímos finalmente, depois de três anos de trabalho, o que poderia começar
a parecer um cartel. Logo depois, num dos cartéis de quatro pessoas, foi dito que
cada um acabou falando de sua análise, e que então esse trabalho não podia ser
levado à sessão plenária. Mas se falou também que o trabalho do cartel era
justamente chegar a que cada um deixasse de se expor, ou que não tivesse a
sensação de arriscar a vida cada vez que se fala da própria análise, porque se
chega a um certo nível de teoria que se transforma, justamente, nesse terceiro
termo que faz com que o trabalho do cartel permita a cada um passar ao outro
lado, ou, pode-se dizer, enfrentar a castração sem risco de morte. E esse o
trabalho analítico de nossos cartéis: chegar a dar um certo passo e fazer um
80
trabalho analítico. De tal maneira que esse terceiro termo me parece ser
simplesmente um analista.
Nosso trabalho foi transformar esses grupos em cartéis. Demoramos mais de
três anos. Agora... em quarenta ou cinqüenta pessoas, há talvez dois pequenos
grupos que parecem cartéis, um de quatro pessoas e outro de cinco. E somente
um desses dois pequenos grupos perguntou sobre o fato de um sujeito se expor
quando fala.
Eu retomo o termo da Sra. Ménard. O problema é que a gente não se expõe
mais porque fala de um terceiro, ou tem o lugar de um terceiro, que é um outro
grau, o grau da teorização.
NICOLE PEPIN— Num trabalho de cartel, já que se trata de um trabalho
psicanalítico, o que importa é encontrar a mesma estrutura de um trabalho
psicanalítico, ou seja, que a estrutura do inconsciente seja mantida.
Em relação ao número de participantes, o número mínimo, obrigatoria
mente, seriam três. O “mais um” me parece muito importante, mas que sejam
cinco ou seis, no meu ponto de vista, não tem importância, salvo que dentro dos
três haja a m ais aquele que possa cumprir o papel de “um a mais”.
Esse papel de “o um a mais”, o que é ? Para que vai servir essa pessoa
acrescentada aos três? Para mim, quando penso nesse número três, sempre é o
simbólico, o real e o imaginário, que funcionariam numa relação de triangulação
edípica. O importante, num cartel, se situa não só ao redor da escolha do tema
do trabalho, mas também, e talvez ainda mais, no nível da escolha dos
participantes.
Porque, para que haja trabalho psicanalítico, é necessário que as pessoas
escolhidas não sejam quaisquer pessoas. Não penso que quaisquer pessoas
possam obter esse lugar, que vai permitir elaborar o discurso psicanalítico —
pois se tratará, aí, de um discurso psicanalítico. Pode-se ver quando as pessoas
se impuserem, como foi colocado ontem por alguém que dizia que havia sido
nomeado como responsável de um sub-grupo. Ele havia precisado que, a seu ver,
nesse caso nada podia funcionar.
O que não fica ainda muito claro para mim é o papel exato que cumpriria a
pessoa a mais. De acordo com as experiências que tive até agora dos cartéis — e
foram tão fugazes! (na medida em que, até agora, eu não tive a impressão de que
as condições necessárias para o funcionamento de um cartel tenham sido
respeitadas) — eu acho que essa pessoa a mais é aquela que vai permitir a busca
da coisa, que vai permitir essa articulação, e vai fazer com que haja sempre o
desejo de achar de novo a coisa que será mantida no grupo.
Mme X... — Não entendi por que ontem se fez uma diferença entre os
grandes grupos e um grupo mais restrito. Se os grupos de matemáticos tinham
uma idéia do modo de funcionamento possível dos cartéis, como pode ser que as
regras lógicas que funcionavam para os cartéis não sejam aplicáveis ou
extensíveis a grupos integrados por mais do que um número limitado de seis
pessoas?
GENNIE LEMOINE — Pela razão que creio já haver dito. Passa-se do
81
trabalho da análise própria, da qual se fala num grupo pequeno com a sensação
de se expor, a um nível em que não se arrisca mais e onde se pode passar ao
grupo grande, se se quer, e ainda assim não vejo nenhum interesse. Isso acontece
de uma maneira ou de outra. Mas, a princípio, é essa passagem que se deve
assegurar, e isso só pode ser feito a partir do pequeno grupo de três ou quatro.
Não se pode de entrada falar da própria análise numa multidão.
M me X... — Eu tinha a impressão de que, quando regras lógicas não se
impunham à estruturação de um grupo restrito, isso era válido para um grupo
pequeno e não para um grupo maior, e fazendo uma diferença entre esses dois
tipos de grupos, diferença que mesmo no campo da psicologia social, que se
interessa por grupos, não se reconhece, nesse momento não se tinha meios
críticos ou de elaboração e construção do grupo grande.
GENNIE LEMOINE — Por que você quer construir o grupo grande?
STEPHANE Dl VITTORIO — Essa é a questão: por que construir o grupo
grande? Se eu posso mencionar algumas reflexões que fiz desde ontem, o que
mais me deu certa luz sobre o cartel foi essa evocação do grupo de matemáticos.
Lacan nos disse ontem que, se os tomássemos como exemplo, eles tinham aquela
noção do “um a mais".
O controle não é, tampouco, uma situação onde se fala da própria análise.
Na situação de controle, isso de que se fala é de certa maneira limitado a uma
relação especial, que é o que sucede entre o paciente e o analista. Será que o
cartel não é também uma coisa que implica um assunto bem delimitado, que é o
compartilhar de um saber ser?
Há toda uma série de perguntas que eu faço. A única que não respondi é
aquela do limite superior que se debate neste momento. Constato que a outra
questão que aparece é esta: não se pode fazer um cartel com qualquer um. Acho
que é porque não se pode compô-lo com pessoas que são muito próximas, nem
com pessoas que estão longe demais. Porque o que se trata de compartilhar é
essa produção de discurso necessária, e tenho a impressão de que, se num cartel
há alguém que lhe seja muito próximo, você não pode compartilhar esse saber
que não quer comunicar aos outros, por exemplo.
É por isso que a expressão de Lemoine: se expor, expor a própria análise...
será que num controle se expõe a própria análise? Não se expõe, isso só acontece
se se relaciona de maneira incidental o que se passa entre tal paciente e tal
analista-Mas um controle nunca foi identificado com uma análise, e penso que é
no mesmo sentido que, por exemplo, se dizia em Roma: o controle adquiriu na
Escola Freudiana uma dimensão que não tinha antes, que não tinha em nenhum
outro lugar. Penso que é nessa linha que o cartel se inscreve também. O cartel é
uma invenção específica da Escola Freudiana. É na linha desse desenvolvimento
do controle, mas apoiado sobre outra coisa, quer dizer, sobre o discurso
científico. Por que os matemáticos têm a impressão tão evidente de que há
alguém a mais? Porque eles estão certos de que o discurso matemático é
necessário, que está aí e que cada um extrai o que percebeu dele. Será que o
cartel não consiste também em fazer surgir um discurso necessário, a partir do
82
Deixei isso de lado escutando tudo que foi dito desde ontem à noite.
O que gostaria de trazer, desse grupo, é o seguinte:
Esse grupo se reduziu, éramos uma dezena, a princípio, e agora somos seis;
tenho a impressão de que a eliminação, diria quase a auto-eliminação de um
certo número de participantes, foi acompanhada de uma certa eliminação
justamente dos efeitos de grupo, quer dizer, do que ressaltava do ensino sob a
forma tradicional, dito de outra maneira, do “fazer valer”. Justamente o que
tornou possível esse grupo que agora, creio, se transformou em cartel, foi
justamente o expor-se — não necessariamente contar sua análise — mas se
expor, quer dizer, arriscar-se; foi nesse momento que se arriscaram no sentido de
se expor, o que não é a mesma coisa que se exibir.
JEAN JACQUES MOSCOVITZ— Gostaria de dizer uma palavra a propósito
da situação em que estamos, gostaria de formular um preceito, um conceito.
Quer dizer, do preceito de formar um cartel onde vamos tentar perceber como
funciona, como de alguma maneira se poderia transformá-lo em conceito.
Realmente, esse “mais um” ou “mais uma” foi proposto de tal maneira que,
a meu ver, esse “mais uma” seria aquela pequena coisa destacável do todo,
aquilo que definiria todo o resto; mas que também definiria ou permitiria
definir, num momento dado, a idéia de finitude do cartel. Aquela coisa que faria,
por exemplo, num certo momento, com que os participantes do cartel
decidissem que aquilo não é mais um cartel, que teria que parar, parar pelo
menos de chamar-se cartel.
Há aí um problema bem particular, que só se pode tratar superficialmente,
na medida em que, quando o cartel se forma, se concretiza um código entre os
participantes com sua própria história no interior do cartel. Em determinado
momento, provavelmente, alguma coisa acontecerá, o que fará com que aquilo se
termine. Teríamos, talvez, que definir quais são as condições mínimas para fazer
nascer um cartel, e, talvez, delimitar as condições extremas que fariam com que
deixasse de ser um cartel.
Creio que o aspecto mais complicado é o de definir qual é o consenso entre
os participantes do cartel. Isto remete àquela problemática extrema da hipnose,
ou seja, da submissão ao saber do outro, e de aceitar deixar o outro agir o tempo
necessário para poder, num momento dado, dar sinais dessa recepção, dessa
acolhida, desse saber.
Nesse sentido, penso que o “mais uma” poderia definir-se da seguinte
maneira: é aquele que, num momento dado, é um pouquinho mais psicanalista
que todos os outros. Nesse momento, ele se situou de tal maneira que pode se
assombrar com o que se passa, e fazer a pergunta sobre o que está fazendo aí; de
maneira que pode, talvez, partir ou estar ausente na próxima vez; fazer com que
ele próprio seja uma pergunta, sem talvez sabê-lo. Há aí uma coisa que trabalha
na realidade, e é saber se o relativo ao cartel se define verdadeiramente cm
relação ao “mais uma”, e se podemos fazer disso um conceito.
Gostaria de precisar, antes de passar a palavra, duas coisas: primeiro,
ontem se discutiu durante uma hora e meia que o “mais uma” estava sempre
85
presente, e que se tratava de uma pessoa, e não creio que sua função poderia ser
outra senão a de incitar, estimular, provocar o desejo do Outro, entendendo aí
que se trata do cartel.
Ora, vocês sabem, somos analistas; e este estímulo, fazer com que o desejo
seja o desejo do Outro, sustentá-lo, isto pode ser feito por qualquer um, essa é
justamente a capacidade do significante.
É um ponto que me parece muito importante; ontem chegamos a dizer que
não se tratava de alguém que estava ausente, nem de alguém que seja mais
analista do que outro; tratava-se, mais exatamente, de um elemento que atua
num cartel portado por um sujeito, mas me parece também que existe:outra coisa
importante para conduzir a discussão — uma lembrança também do texto; é que
o cartel não é uma criação ex-nihilo, o cartel faz parte das estruturas da Escola
Freudiana; quer dizer, o cartel se situa — dizia agora mesmo — como uma
unidade na estrutura da Escola Freudiana.
É um ponto importante também para discutir. Há no texto uma referência
que se repete, a de que a Escola pode ser considerada como uma experiência
inaugural; será que hoje, onze anos depois, podemos continuar usando o termo
experiência inaugural?
NICOLE PEPIN — Gostaria de continuar ainda com o que dizia há pouco;
na cifra 3 m ais 1 pessoas, o importante para que funcione é a pessoa a mais, e é
aí que não se pode errar na escolha dessa pessoa. Se não, isso não funciona (!),
caso eu tenha razão quando penso que essa pessoa a mais vai fazer com que seja
mantida, num trabalho teórico, a busca da coisa.
Penso que o trabalho de cartel é um avanço; um primeiro passo para a
elaboração teórica, além da análise pessoal.
Não é o caso, creio, de expor sua análise pessoal num trabalho de cartel, é
para além disso que a coisa se situa. Para precisar o interesse que tem a escolha
da pessoa a mais: é só mais tarde, num segundo tempo, deixamos o trabalho de
cartel para reencontrarmo-nos num trabalho a dois (mesmo que o grupo fique -
sendo de 4, 5 ou 6).
Para a elaboração de um trabalho psicanalítico é necessário, obrigatoria
mente, que um analista tenha o retorno de sua palavra por outro analista; de
outra forma, penso que uma elaboração teórica psicanalítica não é possível.
Ainda o tema da escolha da pessoa — e nos reencontramos, talvez, numa
situação de controle — terá a maior importância, porque não é qualquer pessoa
que poderá sustentar esse papel; é bem evidente que não é qualquer analista que
poderá sustentar esse papel para qualquer outro analista; eu diria que essa
pessoa, a mais, deve ser o "tudo em uma”, que essa pessoa sozinha deve poder
solicitar o desejo inconsciente, essa busca que permitirá, dentro de certo tempo,
uma elaboração teórica.
NICOLE GUILLET— Gostaria de resumir duas ou três coisas que creio ter
compreendido há muito tempo sobre os cartéis. A função do “um a mais” me
interessa particularmente hoje, parece-me que isso foi muito importante em 64,
quando houve essa fundação, e creio que isso não foi bastante discutido na
Escola. É uma coisa, essa espécie de formação de cartel que evita todos os
fracassos, todos os obstáculos que os grupos políticos, entre outros, encontraram
e encontram ainda.
Acho que para um cartel é necessário, primeiro, um desejo de trabalho em
comum de um certo número de pessoas — veremos ainda o número; são
necessários, evidentemente, interesses comuns, uma pesquisa teórica; é uma
espécie de máquina de despertar as cabeças juntas, de querer encontrar juntos,
tem um efeito de estimulação, etc.
Em segundo lugar, é preciso, evidentemente, transferência. Quer dizer, não
se pode trabalhar com pessoas que não são pares,escolhidas como tais,
semelhantes; que possamos falar com elas sem ir à guerra, poder escrever
qualquer coisa, aprender a escrever, elas estão aí porque isso lhes interessa como
a mim, decidiram suportar, me suportar, etc. A gente se escolheu.
Terceiro, há o analítico, quer dizer, existem regras: primeiro, há ritmos de
trabalho, regulares, nenhum cartel pode funcionar sem algum ritmo, é
importante sé se falta, é importante se não se respeita esse ritmo. Há regras, entre
outras a regra do número de pessoas, esse garfo de três a seis pontas me parece
extremamente importante, é o que chamarei de boa consistência subjetiva. Quer
dizer, três, evidentemente, é a família, é dois contra um, etc., e ainda por cima é
a massa, ou seja, qualquer um pode dormir, sonhar, se transformar em um vaso
de flores, enfim, todas as resistências são possíveis, enquanto seis — não sou
bastante experiente, mas me parece que nos pequenos grupos que fazíamos com
freqüência em La Borde, os UTB, etc... se respeitou sempre isso, sem sabê-lo
bem. Por experiência, sempre encontramos esse número, chegávamos até sete,
mas eram coisas diferentes
Quarto, me parece que é preciso o “um a mais”, quer dizer, é o que assegura
que o cartel não vai tornar-se um cartel de cosmonautas, ou não sei o que quer
dizer isso, vai dar uma abertura; uma abertura sobre o quê? Sobre o exterior do
cartel, dos cartéis da Escola Freudiana, hoje se pode dizer que o que fazemos é o
“um a mais” em relação a todos os cartéis, cujos participantes falam hoje. Por
exemplo, me parece que o trabalho que foi explicado ontem de manhã pela Sra.
Soler era interessante, porque o fato de relatar um trabalho funcionou, no cartel
deles, como “um am ais”. Acho que se isto não ocorre, os cartéis fazem rom-rom;
mesmo sendo seis, há uma possibilidade de rom-rom, de funcionar de maneira
fechada, que não é austera — não gosto da palavra produção, produtivo, gosto
mais de “abertura" — e marcada, pontuada por nosso pertencer à Escola
Freudiana.
Nos pequenos grupos que fizemos em La Borde, me parece, evitava-se o
obstáculo do rom-rom porque podia funcionar, ou o fato de estar lá para cuidar
dos loucos poderia funcionar, como disse Lacan ontem, para a matemática. Quer
dizer que isso fazia o “um a mais”, éramos obrigados a encontrar algo, porque
havia a exigência dos sintomas do louco que molestava. Mas fomos obrigados a
criar um grupo, que chamávamos “grupo dos grupos”, que tinha a função
unicamente de controlar os cartéis, saber o que um cartel fazia; se o outro não se
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dito, depois da introdução de Nasio — que é uma experiência única. É uma coisa
única: não é nem a base, nem o controle, nem a situação analítica. Mas merece
de qualquer forma um esclarecimento, porque são então dois analisantes e um
analistai e não o analista com os analisantes: trocam-se os papéis, se é ao mesmo
tempo analisante e analista.
Os números 3 — 6, nesse sentido, me pareceram também essenciais; mais
do que seis, constatamos que nãd funciona, há sempre um sobrando, ou dois
sobrando, etc., então o ideal seria entre 3 e 6.
Ainda restam perguntas no que concerne à explicitação de como isso
funciona, me parece misterioso. à
JUAN DA VID NASIO — Gostaria de responder lendo uma citação da Ata de
Fundação: m a is um a — continuo a citação que M. Martin fez ontem —
encarregada da seleçã o , da discu ssão e d o destino reservado a o trabalh o de
ca d a um ... a p ó s um certo tem po d e funcionam ento, se proporá a o s elem en tos
de um grupo sua p erm u tação p a ra outro.
Quer dizer que há um trabalho, um movimento de permutação, não só
inter-cartéis, mas também no interior do cartel, e há ainda algo mais a acres
centar: o cargo da d ireção n ã o constituirá um caciqu ism o [ch efferie], cujo
serviço p restad o se capitalizaria p e lo a cesso a um grau superior, e ninguém se
con sid erará reba ix a d o p or entrar no nível d o trabalho de base.
PIERRE BASTIN — O que ouvi ontem à noite, a propósito da experiência
de um certo número de grupos, é que eles terminavam tornando-se qualquer
coisa, as pessoas ficavam amigas e conversavam sobre temas triviais; em suma,
isso não funcionava.
E depois se fez a alusão, sem ir além, ao esquema L, ao eixo a-a’. Isto me
leva a fazer uma pergunta: será que a função da “pessoa a m ais” não é,
primeiramente, criar um obstáculo à intersubjetividade, quer dizer, a um grupo
de amigos, onde tudo o que pode funcionar sem uma pessoa a mais pode
instaurar uma relação puramente imaginária, produzir um discurso puramente
linear, e que, na perspectiva do esquema L que foi evocada, essa pessoa a mais se
encontraria sobre o outro eixo, o eixo da transferência: S-A, o que dá a esse
grupo a possibilidade de produzir, de metaforizar, para que uma coisa diferente
possa surgir?
Outras reflexões como: três mais um igual a quatro, e, no esquema L, há
quatro termos; nos quatro discursos: universitário, do analista, da histérica e do
mestre, é também o jogo de quatro termos que, intercambiando-sc, produzem
discursos diferentes. Não posso dizer mais, mas constato que aí também há
quatro termos.
Para responder a uma coisa dita há pouco, a “pessoa a mais” não é um
chefe, não é igual, mas cumpre uma certa função na estrutura desse cartel.
Agora, como é que a “pessoa a mais” vai cumprir essa função?
A propósito da escolha, penso que está bem claro, na Ata de Fundação, que
se trata de pessoas que conversavam sobre um desejo de fazer alguma coisa
juntas; a partir daí, não penso que haja qualidades particulares para ser a pessoa
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a mais, salvo ter sido escolhida por outras três, por consentimento mútuo, para
que, imediatamente, alguma coisa funcione.
MARIA VELISSAROPOULOS — Gostaria simplesmente de sublinhar que se
falou dos quatro discursos; penso que o cartel é o que permite articular alguma
coisa do funcionamento da Escola com os quatro discursos, mas não penso que o
“mais uma” seja o quarto termo dos quatro discursos. Penso que é o que permite
a passagem pela metáfora, a metaforização.
Agora mesmo estava muito admirada de que se fale de uma pessoa, da
escolha de uma pessoa, não sei se é disso que se trata, mas penso que o “mais
uma” pode ser entendido na definição do significante: “o%ignificante é o que
representa o sujeito para um outro significante”, é no nível do “para” que se
encontra o “mais um”.
DOMINIQUE POISSONIER — Gostaria de continuar um pouco o que dizia
Bastin agora mesmo, no sentido de que duas coisas me parecem importantes na
maneira em que percebemos esse “mais um”. Trata-se, ao mesmo tempo, de um
“mais um” que está sempre presente, queiramos ou não, isto me faz pensar que,
numa análise, não há mais que duas pessoas, não se está sobre um eixo
imaginário, e se trata aí de situar esse "mais um”.
Essa delimitação é talvez mais importante, e consiste em que o “mais um”
encontre o seu lugar e permita que algo seja dito nesse nível.
Por outro lado, Nasio o lembrava há um instante, há uma pessoa que se diz
o “mais um”, a quem se confia certas tarefas, certas servidões, e isto evoca em
mim a função do “passa-umbral” [passe-seuil]7: será que a constituição do “mais
um”, em relação ao grupo, não é análoga à situação organizada no passe, onde
um ou dois passadores [passeurs] estão em tal posição que o que diz ao passante
[passant] se perderia em outro lugar; chegamos aí à noção de abertura de
produção, de “para um outro significante”, de alguma coisa que se faz para a
Escola, de maneira também a sair de um discurso fechado, que ficaria entre os
“eu-eu-eu”, em níveis imaginários.
JOSÉ GUEY — Por outro lado, essa questão do “uma a mais” gira em torno
de um lugar ocupado por uma pessoa diferente. Creio que o que foi dito aqui é
que, num cartel, escolhido ou não, não é evidente que seja sémpre a mesma
pessoa que, no interior do cartel, ocupa esse lugar.
Há uma pessoa que ocupa esse lugar, a quem se dirigem, mas só depois,
num prazo mais ou menos longo, a transmissão do trabalho deve fazer-se frente a
outras pessoas da Escola e, mais tarde, por que não, fora da Escola; é assim que
isso funciona, me parece.
Foi importante também esse controle e essa crítica interna e externa.
Por outro lado — e me uno ao exemplo dos matemáticos, que falam da
matemática como de uma pessoa — me parece que se deve marcar o que causa
esses cartéis e, afinal, a própria Escola; é a psicanálise.
(7) Seuil, além da acepção de um umbral, pode ser entendido, em sentido figurado, como
entrada, ingresso, etc. A referência aqui, como se verá, é ao passe (N.T.).
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sempre algo a preservar que colocará obstáculos a que a “pessoa a mais” possa
cumprir totalmente seu papel.
O papel da “pessoa a mais” se situa, como já disse, no nível da busca da
coisa. Ela vai levar essa busca no sentido de uma provocação — peso minhas
palavras — porque me parece que a pessoa a mais teria que manter a dimensão
da morte para que o discurso teórico e a elaboração teórica possam ser feitos.
Se eu falava há pouco de algo além da situação de cartel, chegando à
situação de controle para dizer que há aí o risco de que a pessoa a mais seja o
“tudo em uma”, é que só nessa situação o analista, que trata de realizar uma
elaboração teórica, é mantido no;.“ser para a morte”: só nessas condições uma
elaboração teórica é possível.
JACQUES CRÉPIN— Gostaria de falar de algo que não chamarei de cartel,
mas de um grupo: o grupo de Amiens -St.^Quentin.
Creio que, a partir destas reuniões de estudo, serão feitas perguntas;
estamos descobrindo, por exemplo, que ainda que tenhamos refletido sobre o
número de pessoas que poderia constituir esse cartel, as reflexões nunca foram
muito longe. Somos atualmente, e desde o começo, nove; confesso que foi só
ontem à noite que começamos a colocar-nos o três e o seis. Direi também que
nunca tínhamos refletido sobre a questão do “mais um” ou do “mais uma”,
provavelmente porque, no momento de instituir-nos como cartel, não tínhamos,
na verdade, lido as Atas de Fundação dos cartéis.
Queria simplesmente indicar que não nos fazemos muitas perguntas, e —
me parece que isso surgiu uma ou duas vezes aqui — uma questão que não foi
colocada (uma questão muito subjacente, mas que está sempre presente) é que
no nosso grupo há dois casais, esta é a questão, que talvez não seja específica
desse grupo, gostaria de assinalar, a título de curiosidade, que a única vez que
houve uma ausência nesse grupo foi quando a nona pessoa partiu para casar-se.
Conto isso a título de episódio, sobre as perguntas que vamos seguramente
formular-nos quando voltemos a Amiens-St.-Quentin, logo mais.
JUAN DAVÍD NASIO — Posso lhe perguntar quais são as coisas que vocês
projetaram, pensaram, depois da discussão de ontem à noite?
JACQUES CRÉPIN —r Só nos encontramos de forma individual, não
estamos todos aqui; há uma coisa, no entanto, que gostaria de dizer também, que
me ocorre enquanto falo: na constituição do cartel, o que nos assombra
posteriormente (provavelmente por isso não somos um cartel), é que, afinal, o
tema escolhido para dar um nome, uma insígnia, ao nosso cartel, foi algo que se
deu muito rápido, como uma espécie de formalidade; falando isso, hoje, me dou
conta de que essa formalidade tem o seu porquê. Chegaria a dizer que o “um a
mais”, para formulá-lo assim, se manifesta no nosso grupo sob a forma de dois
líderes, e não por acaso esses líderes são as duas pessoas que escolheram o tema,
logo aceito pelos sete outros participantes, sem que nunca tivesse sido
questionado. O tema era o primeiro Discurso de Roma.
COLETTE VAN DE POORTER — Você falou de matemática como se fala de
uma pessoa, e disse que é certo e curioso que, quando os matemáticos se
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retomada, para muitos, de uma análise; tantas questões se levantaram, sem que,
naturalmente, eu respondesse diretamente.
MUSTAFÁ SAFOUAN — O que acabo de escutar me faz indagar a quê
responde, de onde surge a necessidade do “mais um” ? A sua pergunta: "Será
que o analista pode trabalhar isolado?”, também mexeu cm alguma coisa. Meu
sentimento é de que se trata de uma função que consiste num segundo olhar, um
segundo olhar lógico sobre o discurso, suas conseqüências lógicas, não sua
significação, mas se pode assinalar a um sujeito, por exemplo, suas contradições
ou as conseqüências secundárias às que ele mesmo não presta atenção.
Nesse sentido, diria que é uma função como a maiêutica socrática, mas
verdadeira, porque se sabe que no diálogo há muita simulação, é o exemplo
típico; pretende-se ignorá-lo para descobri-lo logo, mas pode haver lugar para
uma função verdadeiramente socrática, e é nesse sentido que me parece que
pode haver espaço para o “mais um”. Pessoalmente, nunca tive dificuldade com
coisa alguma, quero dizer que quando não se trabalhava, a gente ia embora, c
isso era tudo.
JACQUES LA CA N — O que prova, senão a sua intervenção, pelo menos o
seu consentimento. Quem quer ainda tomar a palavra?
RADMILA ZYGOURIS — Como cheguei tarde, não sei se já fizeram a
pergunta: quando se faz o trabalho que se faz (se é que isso se pode chamar de
trabalho), essa coisa estranha que se faz quando se é analista, será que se pode
falar disso a mais de duas, três ou quatro pessoas de uma vez? E o que se passa
com o que se fala, que tipo de discurso se sustenta? Tenho a impressão de que
antes mesmo de que o cartel estivesse verdadeiramente constituído, quando se
queria falar do que se fazia como analista, falava-se por telefone, mas não se liga
nunca para mais do que um punhado de pessoas. Depois, quando se pede para
fazer um trabalho, participar de um congresso, trata-se de um outro tipo de
discurso, que faz com que tanta gente se recrimine sempre nos congressos: “Não
é isso, não é isso, é universitário”; será que o analista pode escapar do discurso
universitário quando fala numa assembléia ou quando escreve? A questão que eu
queria colocar é a diferença entre o escrito e o não-escrito. Não é porque se fala
que não é escrito, cada vez que a gente se reúne, que trabalha, está presente um
ou outro aspecto: “com dois isso não funciona”, se está numa relação de iden
tificação: “como você faz e como eu faço”, se está no savoir-faire unicamente,
falta algo, uma referência comum, e essa referência comum, que status ela tem?
JACQUES LACAN— A sessão está suspensa.
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JUAN DAVID NASIO ■— Não é minha intenção fazer um resumo do que foi
dito de manhã. Só vou tentar pontuar algumas referências que extraí da
discussão.
Nós consideramos, pois, no que se refere aos cartéis, dois registros que
Lacan resumiu ao separar, por um lado, a estrutura, a vida do cartel, e, por outro,
o trabalho que se executa, a produção.
Quanto à sua organização, o problema do “mais um” fica por ser
desenvolvido. Nós sublinhamos a diferença entre “um a mais” [un en plus] e o
“mais um” [plus un], sem dar-lhes ainda uma consistência definitiva.
Esse “mais um ” foi situado na articulação do cartel com o resto da estrutura
da Escola. Sobre este ponto, acrescento agora que esse “mais um”, enquanto
ligado à Escola, faz eco com a fórmula “não existe Outro do Outro”, na medida
em que ele detém qualquer relação infinita. Isto coloca o “mais um”como o corte
que promove a passagem do cartel à Escola.
Por outro lado, foi afirmado por Girard que tal organização poderia evitar
os riscos de um certo totalitarismo ou da igualdade fictícia do liberalismo. Ele
deixou perceber suas dúvidas sobre a eficiência dos cartéis para chegar, como
laço social, mais além de um agrupamento comandado pela figura do chefe ou
dirigido pelo reforçamento dos “egos”.
O segundo aspecto, o do conteúdo, da produção, foi assunto de diferentes
intervenções. Em particular, a noção analítica de “trabalho” tem servido de
referência.
O cartel apareceu como lugar de um trabalho em comum, mas pode-se
dizer que a comunidade analítica encontra nessas unidades seu ponto de
realização? Lembremos que nenhuma sociedade psicanalítica está organizada
sobre essa base.
Desse ponto de vista, temos um termo que mostra o caráter inovador dos
cartéis, que é “ato”.
JACQUES LACAN — Eu lhe ágradeço muito pelo esforço de fazer este
resumo.
Não encontrei na sessão desta manhã o interesse que tinha a de ontem,
presidida por Martin, onde vocês não fizeram outra coisa senão colher seus
resultados.
Espero que Safouan contribua com alguma coisa, ficaria contente se você
falasse.
MUSTAFÁ SAFOUAN — Tive tempo de ler a Ata de Fundação e percebi
que tinha esquecido o texto.
JACQUES LA CA N— Você não é o único!
MUSTAFÁ SAFOUAN — A impressão que fica, no que concerne à origem
dos cartéis, é de que se trata de uma ordem marcada pela preocupação de não
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dívida simbólica no “mais uma”; essa pessoa a mais ou esse “algo" é que
possibilita uma retroação da palavra. Por isso ele é ator, ou seja, organizador de
uma possibilidade de trabalho em cartel, porque isso faz ato, essa pessoa a mais
que é quem escuta.
Eis aí algumas idéias. Poderia contar-lhes todas as dificuldades que
encontrei nos diferentes cartéis nos quais trabalhamos. E isso era cada vez que se
tratava justamente da barra, ou seja, de abandonar o imaginário, que é subjacente
à possibilidade de ser abandonado. E necessário que exista o imaginário para
que se possa abandoná-lo. A dificuldade de abandonar o imaginário é que
produziu, na maioria das vezes, obstrução no trabalho do cartel.
GENNIE LEMOINE — É a palavra “empírico” que me chamou a atenção em
Safouan. Não penso que se proponha três ou quatro porque não se pode
trabalhar com vinte, se não se acha uma outra razão para esse número. Acho que
se se trabalha com três, quatro ou seis, isto significa que é o desdobramento da
situação analítica que se faz efetivamente entre duas pessoas, mas talvez entre
quatro pólos. É o desdobramento, no nível social.
E cada vez mais se poderia, dessa forma, chegar não a uma instituição,
seguramente não, mas a uma sociedade analítica, que devu ser encontrada. Isto
era uma primeira questão, há dez anos: o que é uma sociedade analítica?
MUSTAFA SAFOUAN — Antes de que me esqueça, tenho uma pergunta a
fazer a Jacques Lacan: por que o termo “mais uma” é sublinhado? É o único
termo que está sublinhado nesse texto.
Por que você teve a preocupação de sublinhar este termo?
JACQUES LA C A N — Para que percebam, desde o começo, o que de todo
modo viria mais tarde. Em realidade, só o fato de haver-me expressado assim
deveria ser suficiente para que, “mais uma”, se perceba, ao menos porque não se
pode ver, de outro modo, o porquê de que eu tenha destacado de um grupo esse
“mais um” que se torna um enigma. Enfim, pensei que devia sublinhá-lo
simplesmente para que se detenham nele.
MUSTAFA SAFOUAN — A resposta que achei a esta pergunta é que, na
enumeração dessas funções, a função essencial é a que está indicada pelos
termos da discussão, “encarregado da seleção da discussão”. É o termo
“discussão”, no sentido de que o sujeito, o analista, não está ligado à “mais
uma”, ele está ligado a si próprio. Mas a relação que eu penso ter com o que
tenho ou possa ter a dizer, é uma relação que pode se soltar, e como!...
JACQUES LACAN — Sim, certamente.
MUSTAFA SAFOUAN— Isto não implica a função de amarrar, de alguma
forma, a relação entre ele e os outros membros do cartel, mas sim a de sustentar
a relação que cada um pode ter, no seu trabalho, com o que tem a dizer. E o que
me parece constituir o essencial da função.
JACQUES LACAN — É exatamente o que eu desejava que você, Sibony,
falasse.
DANIEL SIBONY — Escutei algumas palavras como recalque, morte. Isto
me incita a dar-lhes como testemunho algumas reflexões que me surgiram a
101
102
(8) Béanl: grande abertura, derivado de beance, traduzido nos textos lacanianos pelo
neologismo hiância; béant, como adjetivo, pode ter tambóin a acepção de boquiaberto,
surpreso. O verbo de origem é beer. (N.T.)
(9) Res, latim: coisa (N.T.)
i\i
103
(10) Raport sexuel no texto francês: relação, mas também proporção sexual. (N.T.)
105
que na matemática não se sabe de, qüe se fala? Substituindo o “que” por um
“quem”, justamente alguma coisa referente à pessoa; ao sujeito,; será qùe se pode
dizer que, para um matemático, é suportável? v?.... v\h'Jhá
Em outros termos-, pode-se dizer qüe! fazer da matemática-algó transmis
sível; é da ordem de um “quem”? Que a matemática é um :sujeitó? É o “uma a
mais” de todo matemático; Tanto é assim; que toda a comunidade matemática se
rompe se não tem essa “uma a mais”, a matemática, a matemática1comò sujeito.
Bertrand Russell não viu isso porque-estava — o que é curioso para um
matemático centrado no objeto, um objeto que é puro sonho. Não há qualquer
objetividade matemática. Ele o afirmou, o que é bastante curioso para um
matemático. Então, se não é um objeto, o que d ?
DANIEL SIBONY — Gostaria de responder: isso já não é mais um sujeito,
você diz: não se sabe do que se fala, mas se sabe de quem; é o que eu tentava
fazer sentir nessa pulsação pela qual, desde que o “a mais” é adquirido, já está
perdido, quer dizer, desde que entra em função, está caduco.
JACQUES LACAN — Está caduco e, no entanto, é adquirido.
DANIEL.. SIBONY — É adquirido de tal maneira que, fora algumas
satisfações narcísicas importantes— já que falamos do que é. imaginado e não se
fala mais, quer dizer, por um lado não se fala mais — , porém, quanto a saber de
quem se falava, tenho a impressão...falei da mãe obstinada ou da-coisa,-más de
certa maneira não se sabe mais de quem se fala, sob o risco de repetir a tentativa
ou a tentação. E evidente que há um efeito de sujeito. A prova é qùe se pode falar
de três ou quatro, produzir o “a mais”, e então supô-lo.
Se isso interessa, deveríamos chegar a um enunciado como este (só que não
vejo o que se poderia fazer com ele): um grupo de analistas seria então um
conjunto de pessoas com “a mais” a psicanálise ou o objeto da psicanálise. Quer
dizer, seria um grupo de analistas onde cada um se chamaria psicanalista ou
funcionaria como tal.
MUSTAFA SAFO U AN — Em relação essa fórmula, eu não estive aqui
ontem, mas direi que há uma perplexidade que não é única em seu tipo, ou seja,
que, num sentido, não há matemáticos sem matemática, mas não há matemática
sem matemáticos.
Mas quando se propõe a modificação da fórmula que você acabou de dizer
agora, ainda falta explicar o “quem”. É a matemática. Mas o problema volta a
aparecer. A matemática, que seria a “mais uma”, é um sujeito? O que nos dá a
sua especificidade em relação ao matemático, sem o qual não há matemática
possível?
JACQUES LACAN — Sobre isso eu interrogava um matemático. Um mate
mático se defronta, na matemática, com uma pessoa.
DANIEL SIBONY — Sobre isso podemos estar de acordo.
JACQUES LACAN — E por isso que toda essa gente — não é por nada que
no Ornicar? nos foi mostrada uma imagem simiesca da gramática, porque se
imagina que há outras além da matemática. Quanto à gramática, é tão
problemática quanto a análise. Para a matemática, é certo que é uma pessoa. O
107
formado unicamente por cartelizantes. Talvez, com efeito, para sustentar esse
funcionamento, é necessário “uma a mais” em algum lugar, não sendo uma
pessoa, nem uma máscara, que é a própria expressão da pessoa, talvez a morte,
como dizia alguém esta manhã, mas, de qualquer jeito, seria uma função, ou seja,
uma coisa lábil, que se produz numa certa circulação.
JACQUES LACAN (a Daniel Sibony) — Conte o que expressava o seu
sorriso quando eu disse que os matemáticos crêem na matemática. Diga o que
pensa, porque é a única coisa de que se pode dizer que se crê com razão, e que so
apóia nesta fórmula: crer nisto.
Todos os que conheço como matemáticos distinguem bem entre o que é a
matemática e o que não é, e a única coisa em que não crêem, mas na qual crêem,
é na matemática. E o que define um matemático.
A fórmula “crer em” [croire à] lhe parece ter seu peso?
DANIEL SIB O N Y — Se você a utiliza, é que já advertiu seus outros usos,
principalmente crer em Deus [croire en Uieu],
JACQUES LACAN — É isso que me chateia. Está o en. Não é o mesmo que o
à. Crê-se, com efeito, em Deus, quer dizer, no interior desse ser mítico, se é que a
palavra “ser" convém. Dizer “creio em Deus" é perfeitamente adequado, quer
dizer que se está imerso nessa crença. Mas cre à não é a mesma coisa. É por isso
que disse que, no sintoma, se crée à, de maneira que seria levado a pensar que a
matemática é um sintoma, como uma mulher. E por isso que estou contente de
que seja na forma “mais um" que isso se sustenta.
Diga, porque não me considero matemático; se creio em qualquer coisa, não
sou matemático. Mas conheço um certo número deles além de você, que crêem.
Poincaré cria.
DANIEL SIBONY — Talvez isso defina o matemático. É talvez por isso que,
de uma certa maneira...
JACQUES LACAN— O matemático tem a matemática como sintoma.
DANIEL SIBO N Y— Sim, é talvez por isso que produzir matemática não o
define como matemático, ao contrário do que dizia Descartes. Tem que crer. Mas
então, o que séria esse ser, a matemática, que só se sustenta na escritura? O que
seria um sujeito que só se sustentasse na escritura?
JACQUES LA CA N — Será que só se sustenta na escritura? Pode-se apalpar
que se sustenta sempre na escritura. Mas lhe pergunto sobre a diferença entre
mostração e demonstração, é disso que se trata, afinal.
MUSTAFÁ SAFOUAN— Será que um matemático analisado se cura dessa
crença?
JACQUES LACAN — E na verdade uma pergunta. O sintoma matemático é
curável?
DANIEL SIBONY — Queria fazer uma observação; não uma resposta à sua
pergunta...
JACQUES LACAN— Você está curado da matemática ? (risos).
DANIEL SIBONY —- Aí está toda a ambigüidade de crer nela; é que, na
medida em, que ela tem também alguma coisa de jogo, pode-se brincar de crer
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nela. Ou melhor, pode-se permitir que se nos suponha crentes pela escritura que
passa, e uma vez que esta (a escritura ) está terminada, ser o suposto de haver
crido nela. Mas o matemático incurável, um pouco como meu vizinho sugeria,
crê mas não seria livre para não crer.
JACQUES LACAN— Ele é incontestavelmente não livre para não crer.
DANIEL SIBONY — Mas é uma crença bastante esquisita, já que é afinal
toda a função de sujeito dessa escritura, já que ela pode surpreendê-lo, mas não
o pode enganar.
JACQUES LACAN — É verdade.
DANIEL SIBONY — Ela pode surpreendê-lo até o ponto de uma catástrofe,
mas não enganá-lo até a menor angústia. Dito de outra maneira, seria um
sintoma sem angústia.
JACQUES LACAN— Há mil sintomas sem angústia. É nisso que distingo a
angústia do sintoma, como Freud.
Enfim, creio que, de qualquer maneira, de acordo com o pedido de Faladé,
eu confessei o que há detrás desta espécie de proposição duvidosa que
representa o cartel. Isto fará com que se conheça um pouco mais do que eu quero
dizer, pelo menos.
Então, suspendemos a sessão?
não me parecia uma coisa para ser dita, mas todo mundo sabe que, naquela coisa
que serve como símbolo de um certo gaelismo, e até de uma Bretanha que se
desperta, o trískel é uma coisa que realiza essas três pequenas pontas da maneira
como, em geral, eu as desenho no quadro como ponto de partida, e a esse triskel
reduzido, que é tanto um nó borromeano como a forma completa, a esse triskel
estaria agregada a indicação escrita “trinitas”.
O quê, de tudo isso, tem relação conosco? A relação se limita a que, se eu
definisse algo a ser chamado de análise, eu a chamaria não de religião de
qualquer Ser Supremo, como muitos entre nós jamais deixaram de considerar; já
disse que nem sequer estou seguro de não ter sido pego em flagrante de delito de
deísmo, e vocês verão logo: se falo de religião do desejo, e não parece nem
mesmo isso, sobretudo se o desejo me parece ligado não só a uma noção de
buraco, e de buraco onde muitas coisas se turbilhonam a ponto de serem
engolidas, mas só o fato de juntar aí essa noção de turbilhão é, evidentemente,
fazer múltiplo esse buraco, quero com isso dizer: fazê-lo conjunção, pelo menos;
para desenhar um turbilhão, uma hélice, lembrem-se do meu nó em questão; é
necessário pelo menos três para que isso seja um buraco em turbilhão. Se não há
um buraco, não vejo muito bem o que temos que fazer como analistas, e se esse
buraco não é pelo menos triplo, não vejo como poderíamos sustentar nossa
técnica, que se refere essencialmente a algo que é triplo, e que sugere um buraco
triplo.
Em todo caso, no que se refere ao simbólico, é certo que há alguma coisa
sensível que se esburaca. Não só e provável, mas manifesto, que tudo o que se
relaciona com o imaginário, quer dizer, com o corporal — é o que surgiu
primeiro — , aí não só se esburaca, mas a análise pensa nestes termos em tudo o
que se relaciona com o corpo, e toda a questão é saber em quê a incidência da
linguagem, a incidência do simbólico, é necessária para pensar aquilo que, ao
redor do corpo, na análise, foi pensado como ligado, digamos, a diferentes
buracos. Não há necessidade aqui de remarcar como o oral, o anal, sem contar os
outros que achei necessário acrescentar para articular o que é a pulsão, não há
necessidade de remarcar que a função dos orifícios do corpo está aí justamente
para designar que não é um simples equívoco transportar o termo “buraco” do
simbólico ao imaginário.
Sobre o sujeito do real, é claro que tento fazer funcionar esse real a partir
desta simples observação: defini-lo como o universo é impô-lo como cíclico,
como circular, é introduzir aí o Um, pois e essa a noção de universo, é torná-lo
englobante com relação ao corpo que o habita, c fazê-lo mundo. Não estou certo
de que o real faça mundo, e é por isso que tento articular algo que diz, que ousa
enunciar pela primeira vez, que não é seguro que o real forme um todo. E
evidentemente difícil ver que física poderia instaurar-se, se não se admite que
pelo menos algumas porções desse universo são isoláveis, fecháveis [ferm o b les3.
É aí que se assenta, vocês sabem, a própria noção de energia; a idéia de que a
energia é constante é o princípio e a base sobre a qual, em física, pode-se dizer
que repousa a própria noção de lei, e a idéia de que há um todo é algo sem o
224
(11) Latim; “Faça-se a luz”. Frase da Gênese, na qual o Criador estabelece a diferença
entre as trevas e a luz.Usada na metafísica, em referência ao surgimento do ser a partir do
nada (N.T.).
115
trou], e pensem que Freud, enunciando a idéia do inconsciente, não fez outra
coisa. Ele disse logo que havia algo que se faz buraco, que é ao redor disso que se
extende o inconsciente, e que esse inconsciente tem a propriedade de só ser, por
esse buraco, aspirado12, tão bem aspirado que não estamos acostumados a reter
dele nem uma pontinha, ele desaparece inteiro nesse buraco.
Falar da Coisa Freudiana como constituída essencialmente por esse buraco,
esse buraco que tem um lugar, um lugar no simbólico, é dizer algo que, pelo
menos — e posso provar isto —, pode se sustentar por um certo tempo; e como
esse tempo começa a alongar-se [faire une p a y e ], e durante esse tempo não
houve muitas contradições de peso, quero dizer que o que eu enunciava começa
a sustentar-se pelo fato de durar todo esse tempo.
Identifico esse buraco com a topologia; fiz alusão a isso no meu último
seminário. A topologia, acho que já o indiquei, pelo menos fiz sentir a alguns,
não se concebe sem esse nó que, como dizia a outro grupo, não é simplesmente
algo; seja qual for seu aspecto de nó, está no real, mas o interessante é que está
no mental; é a primeira vez que se vê algo que conjuga o mental com o real nesse
ponto; é que no mental isso faz nó também, é verdadeiramente impossível não
situar o nó no mental, e, ao mesmo tempo, perceber que o mental está aí
inadaptado, ou seja, que esse nó ele o pensa tão dificilmente, que não podemos
deixar de ver uma coisa que nos daria o que chamei, no meu último seminário,
algo como um pressentimento, se se pode dizer, do que poderia ser, afinal, o
buraco em questão.
Tudo isso, claro, é uma precipitação , por que não dizê-lo; depois de andar
sem meta, todos sabem que me vangloriei de ser dialético, e que usei o termo
antes de chegar a esse turbilhão, é o caso de perceber que qualquer um que fale
de dialética evoca sempre uma substância. A dialética é sempre predicativa,
produz antinomia, e não há predicado que não se sustente por si mesmo numa
substância; é muito, muito difícil dizer a substantivamente, sobretudo por nos
imaginarmos, cada um de nós, sendo uma substância. E muito difícil,
evidentemente, tirar-lhes isso da cabeça, pois tudo demonstra que vocês são, no
máximo, cada um, um pequeno buraco, um buraco, claro, complexo e agitado,
mas é verdadeiramente muito, muito difícil pensar-se como substância, a não ser
como substância que tem a propriedade de ser pensante, e aí se toma verdadeira
mente desesperante pensar até que ponto seu pensamento é manifestamente
impotente. Parece que é mais sólido referir-se a outras categorias e perceber que,
por exemplo, pode-se enunciar sem dizer absurdos proposições como esta,
anunciá-las com alguma chance de chegar perto e que se existe o indecidível
(evoquei isto há pouco), é um indecidível que se sustenta só nisso: que o
amarremos [not/ons']; que existe o indecidível, mas que a idéia vem dessa
segurança que a matemática dá, precisamente, a de que não há um não-nó, se
posso dizer, pois é a única definição possível do real, e que apertar oá nós só
(12) Aspiré: como em português, pode ser entendido tanto como desejado, ambicionado,
quanto como inalado, absorvido (N.T.)
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serviria para não escorregar indefinidamente, e é para isso que nos esforçamos
na análise. Pois o que é análise, no final das contas? É uma coisa que se
diferencia disso, é que nos permitimos uma espécie de irrupção do privado no
público. O privado evoca a muralha, os pequenos assuntos de cada um, que tem
um núcleo perfeitamente característico, o de tratar-se de assuntos sexuais. É esse
o núcleo do privado. E, de qualquer modo, engraçado que esse “público”, no
qual fazemos emergir o privado, tenha um laço completamente manifesto, para
os etimologistas, com publis 13, ou seja, o público é o que emerge do que é vergo
nhoso, pois como distinguir o privado daquilo de que se tem vergonha?
E claro que a indecência de tudo isso, indecência do que se passa numa
análise, em virtude da castração — da qual a análise foi bem feita para evocar
sua dimensão a partir de Freud — , em virtude da castração, essa indecência
desaparece. Toda a questão é então esta: tirar da castração um gozo, será isso o
mais-de-gozar [plus-de-jouir]? Em todo caso, é tudo o que é permitido até agora,
a qualquer pessoa, se é que a palavra “pessoa” designa pessoa14. Designa uma
substância pensante, sem dúvida, mas o que tentamos, inclusive quando nossas
preocupações não são absolutamente substanciais, nem substantóforas15, o que
tentamos é fazer ingressar isso, essa noção de substância pensante, num real .
Então isso não é tão fácil, porque há um monte de coisas que nos fazem atolar.
Atolamos, por exemplo, na idéia de vida. E uma idéia assim, e é bastante curioso
que, apesar de tudo, Freud tenha promovido o Eros, mas não chegou a identificá-
lo totalmente com a idéia de vida, e distinguiu a vida do corpo e a vida levada
pelo corpo no germe.
A vida, se se pode dizer, apesar do uso que dela fez Freud, tem relação com
aquilo com o que não há nada a fazer, com o que passa por sua antinomia, com a
morte.
A morte, pensemos o que pensemos, é puramente imaginária. Se não
existisse o “corpo” [corps]16, se não houvesse cadáver, o que nos faria a ligação
entre a vida e a morte? Naturalmente essa idéia de cadáveres amarrados como se
fossem legumes, nds nos propomos enlaçar [nouer] isso , é esta a nossa ocupação
principal. Se não houvesse isso e não existissem estátuas, o lado delirante desses
seres chamados humanos para fabricar suas próprias estátuas, ou seja, coisas que
nada têm a ver com o corpo, mas que se parecem a ele. Temos que agradecer às
religiões que proibiram essa obscenidade; além do mais é horrível de se ver! O
que há de mais horrível de se ver do que um ser humano, pergunto! Um ser
humano, uma forma humana. É curioso que... enfim, é necessária a existência da
religião cham ada-católica para achar suas delícias. É evidente que ela tem
(13) Latim: público. Não foi possível encontar a ligação etimológica mencionada por
Lacan. Como hipótese, podemos referir-nos a verbos como pudet : corar, envergonha-se;
ou pudeo: ter ou causar vergonha (N.T.)
(14) Em francês, personne significa: pessoa e ninguém (N.T.).
(15) Neologismo no original francês: substantophores (N.T:)
(16) Corps: século XII: o corpo humano depois da morto. Entre aspas no original (N.T.).
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alguma coisa a ganhar na transa; é patente, vê-se bem o mecanismo, ela aposta
no belo. Por outro lado, o que é toda essa história chata de Evangelho, é o caso
de dizê-lo, senão a exaltação do belo?; mostrarei isso uma outra vez.
Enfim, perinde ac cadaver17; isto quer dizer que a castração, que nós
mesmos chegamos a perceber que é um gozo, por que será um gozo? Vê-se muito
bem; é porque nos libera da angústia. Então, o que é a angústia?
É curioso que não se tenha pego o exemplo do pequeno Hans, de Freud. A
angústia está precisamente localizada num ponto de evolução desse verme
humano, é o momento em que um pequeno bom homem, ou uma futura boa mu
lher percebe o quê? Percebe que está casado com o seu pau. Vocês me descul
parão por chamar isto assim, é o que se chama geralmente pênis ou pinto, e que
aumenta de tamanho quando se percebe que não há nada melhor para fazer falo,
o que é evidentemente uma complicação, uma complicação ligada ao nó, à
existência do nó. Mas se há alguma coisa nas Cinco psicanálises feita para mos-
trar-nos a relação da angústia com a descoberta do peruzinho, chamemos isso
assim também, de qualquer maneira é claro, é concebível que para a menina,
como se diz, isso se extende mais e é por isto que é mais feliz; isso se extende
porque é preciso que ela leve um certo tempo para perceber que não tem
peruzinho; isso lhe produz uma angústia também, mas uma angústia por
referência àquele que está aflito; digo “aflito”, porque falei de casamento e tudo
o que permite escapar desse casamento é evidentemente bem-vindo, daí o êxito
da droga, por exemplo; não há nenhuma outra definição da droga que não seja
esta; o que permite romper o casamento com o peruzinho.
Enfim, deixemos isso de lado e vamos às coisas sérias, quer dizer, não seria
uma maneira ruim de enfrentar o que se chama a vida, a de considerá-la como
parasita? Dizer que ela é parasita da morte seria exagerado, seria fazer um laço
muito apertado no que acabo de dizer, ou seja, que não há a mínima relação, a
não ser esse assunto do corpo que se joga no buraco. E justamente isso que nos
diz o que é a vida, o parasita de algo que só se concebe como buraco, é inclusive
ao redor disso que o real se torna cíclico, e que se pode querer que seja nessa
“cabana” que a vida parasite. Daí tudo se desenrola. Não posso dizer que Freud
chegou até aí, mas ele disse bastante: que o germe é, ao fim das contas, um
parasita, é o que me parece surgir do Além do princípio do prazer. Evidente
mente, não o disse claramente, mas teria feito menos escândalo do que o que eu
faço agora quando o digo. Mas isso teria também tornado as coisas mais leves,
isso lhe teria permitido chamar de outra maneira o princípio de realidade, que é
simplesmente um princípio de fantasma coletivo, dizia ontem à noite ao júri de
recepção [jury d ’accueil]-. “Quais são os seus critérios?” Perguntam-me pelo júri
de recepção, para nomear alguém A.M.E. Vou lhes dizer: é o que se chama bom
(17) Perinde ac cadaver: em latim no original. Expressão com que Santo Inácio de Loiola,
em suas Constituições, prescreve aos jesuítas a disciplina e a obediência a seus
superiores. Literalmente: “como um cadáver” (N.T).
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senso, quer dizer, a coisa mais difundida no mundo. O bom senso é isso: “Nesse
aí, pode-se ter confiança”, nada mais. Não há nenhum outro critério. Há gente
que propomos para A.M.E., e se as pessoas que estão lá — e que foram
escolhidas incontestavelmente pelo voto, porque a gente confiou nelas sob o
aspecto do bom senso — não .garantem qualquer um, é um princípio de puro
fantasma, de fantasma coletivo, sem dúvida. E isso que quer dizer o princípio de
realidade? É absolutamente certo. A gente percebe, no uso, que todos os
pequenos fantasmas privados se juntam, se juntam em feixes, como dizia há
pouco, o que não é surprendente no que se refere à relação da coisa com a morte,
porque é a propósito dela que eu evoquei o bom senso sem entrar em detalhes,
os passos menos perigosos; é isso que se chama princípio de realidade, e que, na
medida em que se opõe ao princípio do prazer, opõe-se muito seriamente porque
o princípio do prazer não tem estritamente mais do que uma definição possível:
aquela do menor gozo, é o que isso quer dizer. Quanto menos se goza, mais isso
vale.
De maneira que isso nos leva a instalar um certo número de duplas para o
que d do real, do imaginário e do simbólico.
! 'i O real é, evidentemente para nós, no uso, antinômico ao sentido, aquilo
que se opõe ao sentido como o Zero se opõe ao Um. O real é estritamente o que
não tem sentido. Nossa interpretação é algo que não tem a ver com o real, salvo
na medida em que a dosamos. Nós a dosamos e a limitamos à redução do
sintoma. Há sintomas que não se reduzem, é absolutamente certo, e, entre
outros, a psicanálise. A psicanálise é um sintoma, um sintoma social, e é assim
que convem conotar sua existência. Se a psicanálise não é um sintoma, não vejo
porque ela tenha aparecido tão tarde. Aparece tarde na medida em que alguma
coisa tem que se conservar (sem dúvida porque está em perigo) de uma certa
relação com a substância, a substância do ser humano.
Então tentemos formular juntos alguma coisa que situe o imaginário em
relação a outra coisa.
O imaginário não tem outro suporte senão o fato de ter o corpo, e enquanto
esse corpo se»dosata do gozo fálico, o imaginário toma consistência. E muito
precisamente enquanto o gozo fálico passava por outro lugar, e é tema da
história notar como ele era escamoteado, é nessa medida que a idéia de mundo
nasceu. Está aí a oposição não de um “zero” e de um “um", mas a de um menos
e um mais. É na medida em que a castração opera onde há menos falo, que o
imaginário subsiste, todo mundo o sabe, já que é por isso que chamam pré-
genitais os estados que constituem o suporte mais habitual de todos os
comportamentos chamados humanos.
'TO-d E o simbólico, então? O simbólico é simples. Ao simbólico não há oposição,
.há o buraco, o buraco original. O simbólico não tem acompanhante a não ser por
um truque. É na medida em que não há Outro do Outro, quer dizer, que o ser e
sua negação são exatamente a mesma coisa, como todo mundo sabe, e os dia
léticos dizem logo: o não-ser existe porque você fala dele, isso prova até que
ponto o não-ser é exatamente o equivalente, é a razão de que justamente a
119
descoberta da análise seja a seguinte: se bem que o ser e o não-ser sejam a mesma
coisa, é necessário um buraco que mantenha o todo em conjunto, e em suma
tudo se resume nisto: só existe criação, cada vez que avançamos uma palavra,
fazemos surgir do nada, ex-n ihilo, uma coisa; é nossa maneira de ser humanos, e
é por isso que não trepamos, salvo alguma exceção, com uma mulher, mas com a
Coisa.
E as mulheres então, elas criam? Escutei há pouco, de alguém que muito
me agradou (não é para dizer que o que Michéle Montrelay dizia antes não me
tenha agradado também), mas há uma, chamada Anne Colot, que me fez
sublinhar que a mulher não estava completamente feita, e o que ela disse era
bastante pertinente. Ela não usou, felizmente, a palavra criatividade. Ela falou da
criação como algo que faz com que, no fundo, uma mulher saiba quem é o seu
bebê, o bebê é como a vida, é patente no ser humano que ele é um parasita, é
algo que começa a existir se você lhe dá justamente um nome; enquanto não tem
nome, o que é? Então a criatividade... Alguém me fez uma reportagem sobre a
criatividade da mulher. Devo dizer que não sou ardente [chaud], não ó necessá
rio que uma mulher seja criativa para ser interessante, é suficiente que ela conte,
é isso que tem seu poso.
Então, resumamos-nos. Um sintoma, o que é? É algo que tem uma grande
relação (é o que se vê na prática) com o inconsciente. Então, do quo ou gostaria é
que a psicanálise, como já disse há pouco, continuasse o tempo necessário, nem
um minuto a mais, é claro, como sintoma, porque é, de qualquer maneira, um
sintoma tranqüilizante. [A plausos).