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Natureza da ética e ética

da natureza:
pensar, fazer, subjetivar,
4
julgar e decidir no
socioambientalismo
Dimas Floriani
Sociólogo, Universidade Federal do Paraná — UFPR

INTRODUÇÃO

A gênese conceitual que confere aos humanos do Ocidente o poder de


indagar sobre as razões de uma vida que valha a pena ser vivida pode ser
localizada nas origens do pensamento filosófico grego que apresentava a
parcimônia e a justa medida como uma virtude da sabedoria do bem viver.
Desde essa origem greco-ocidental, a ética das escolhas de vida deve dar-se
em comunhão com os demais, no espaço da política.
Já desde a primeira seção deste capítulo, colocamos em pauta a discus-
são sobre valores, uma vez que são a matéria-prima das ações morais e cons-
tituem os referenciais da ética no balanço histórico e crítico desse campo de
conhecimento.
Apresentamos um debate sobre ética, tendo como mediação a relação
dos seres humanos com a natureza, os limites e as potencialidades de sua
criação em escala progressiva desde suas origens evolutivas; dessa tensão
permanente, estabelecemos algumas das perguntas sobre o passado e o futu-
ro da condição do Homo sapiens, como um ser dotado de capacidade moral.
Os fatos ou ações morais debatidas no campo da ética podem ser enten-
didas e explicadas pelos modos de pensar, de fazer e de agir, agenciados pelos
mecanismos de subjetivação, propostos pela leitura feita por Deleuze (2013a)
e Butler (2015) das obras de Foucault que tratam da produção desse sujeito
individual e coletivo no Ocidente. Daí a importância para nosso debate da
política relacional, a fim de deslocar a ética do campo do subjetivismo indi-
vidual, elevando-a para o domínio da ação política pública.
76 ÉTICA SOCIOAMBIENTAL

Na produção de si como sujeito e a fim de aproximar-nos de uma ética


socioambiental, é necessário analisar historicamente os modos de subjetivação
em torno das concepções de natureza, da corporeidade, das formas de apro-
priação e usos feitos pelas sociedades e dos conflitos decorrentes das diferentes
leituras e sistemas de práticas produzidos ao longo do tempo histórico.
Essa trilogia (modos de pensar, de fazer e de agir) pode e deve ser apre-
sentada em perspectiva histórica pela qual seja possível identificar regulari-
dades e rupturas desses diversos modos de subjetivação. Por isso, a atividade
de subjetivação é aqui central para a discussão de uma filosofia da ética e, por
meio desse instrumental analítico, poderemos nos aproximar da melhor
maneira possível da problemática socioambiental. Os componentes desses
diversos modos de subjetivação são apresentados na seção “A produção de si
mesmo e o trabalho de subjetivação pela relacionalidade”.
Por essas e outras razões é que a ética se relaciona com distintas, mas
integradas, esferas do pensamento, do conhecimento, da ação e da cultura,
desenvolvidas ao longo da história das sociedades humanas e que lhe impõem
a necessidade de estar dialogando com os avanços da ciência e da técnica,
além de saber extrair das culturas seus saberes enraizados em suas práticas
materiais e simbólicas, em diálogo com a natureza. Esses elementos são de-
batidos na seção “Hibridação da ética com as demais esferas do social e do
individual”.
Diante dos desafios e dilemas civilizacionais da modernidade, a questão
socioambiental emerge como um grande desafio para o desenvolvimento de
uma consciência ecológica vinculada a uma ética socioecológica, ou da natu-
reza, e que se apresenta como um novo modo de subjetivação para as socieda-
des contemporâneas, em espaços inicialmente indetectáveis que excedem a
norma e o sujeito, mas que emergem como criatividade potencial, por meio
da ação de operadores de subjetivação, abordados na seção “As condições de
produção e de subjetivação de uma ética socioecológica ou da natureza”.
E na seção que antecede às considerações finais, são apresentados os
fundamentos dessa nova ética socioecológica, com base no pensamento com-
plexo do saber e da racionalidade ambiental, reunidos no “Manifesto pela
vida – por uma ética para a sustentabilidade”, pelo qual são elencados os tó-
picos que sustentam uma epistemologia da ética da natureza: produção para
a vida; conhecimento e diálogo de saberes; cidadania global, espaço público
e movimentos sociais; governabilidade global e democracia participativa;
direitos, justiça e democracia, bens comuns e Bem Comum; diversidade cul-
tural e política da diferença; paz e diálogo para a resolução de conflitos e ser
e tempo da sustentabilidade.
NATUREZA DA ÉTICA E ÉTICA DA NATUREZA 77

ORIGENS GRECO-OCIDENTAIS DA ÉTICA DESDE


A FILOSOFIA E SEUS ECOS NA MODERNIDADE1

Os filósofos gregos, desde os pré-socráticos, se indagavam a propósito da


condição e dos destinos humanos, sua relação com o ser, o mundo material
e simbólico, a transcendência da alma, os conflitos existenciais traduzidos por
alegorias, escritos teatrais, poemas e narrativas literárias.
Algumas dessas reflexões foram cunhadas em alguns fragmentos de fi-
lósofos pré-socráticos (1964) e com Platão (1993) foram imortalizadas pelos
Diálogos socráticos, nos quais se podem localizar muitos dos fundamentos e
dos debates sobre o significado de ética.
Em Fedro já são enunciados alguns desses fundamentos, em que essa
matéria é referida como o resultado de uma relação com o outro: “conhecer
ao outro por si mesmo”. Dessa maneira, é inconcebível tratar da ética sem
remeter-se ao outro, ao tu. Por isso, para os gregos, uma comunidade ética
é autêntica quando os indivíduos se remetem ao coletivo, ao outro, à koi-
nonía. Em oposição à essa comunidade virtuosa, os gregos representavam
os indivíduos isolados a quem designavam por idiotas, ou seja, alienados
da vida.
Outro par de oposições considera a interface entre indivíduo e comu-
nidade da seguinte maneira: o valor do indivíduo, como tal, representa a
liberdade; o valor da comunidade aparece como justiça. A formação históri-
ca grega definiu o regime de enunciados sobre a ética como resultante de
decisões emocionais, mais o trabalho do pensamento.2 Para Aristóteles (1991),
a ética é representada pelo binômio sabedoria e ação.
A vida moral traduz alguns dos valores éticos (o que me é permitido
fazer, o que é bom e justo em oposição ao mau e injusto); como a vida moral
é uma vida de risco, ela pode ser imaginada, mas também realizada na vida
real e singular. Uma escolha moral nunca é automática nem espontânea;
sempre está acompanhada de angústias, indecisões e perigos; daí ser tema da

1
Sou devedor, em algumas das principais passagens desta introdução e em seções
seguintes, das sábias aulas da filósofa mexicana Dra. Juliana González, em seu curso à distân-
cia sobre Ética y naturaleza humana (EaD), nas quais apresenta um modelo interpretativo na
qual a ética não está separada das teorias filosóficas, científicas, religiosas, políticas e estéticas,
em que se situa o debate desde os gregos antigos e as ciências da natureza e da vida contem-
porâneas. Para seguir as aulas, pelo site da UNAM, visitar http://www.grandesmaestros.unam.
mx/; acessado nos meses de agosto e setembro de 2017.
2
Para um maior aprofundamento sobre o debate acerca dos conceitos de “formação
histórica”, “regime de enunciados” e “visibilidade”, consultar Deleuze (2013a)
78 ÉTICA SOCIOAMBIENTAL

estética em suas diversas modalidades (teatro, cinema, literatura, pintura,


escultura) e na formação dos discursos e práticas religiosas, ao longo da his-
tória da humanidade. Na medida em que os seres humanos exercem virtudes
(práxis), eles ou elas estão produzindo uma experiência ética.
Já que o conteúdo de uma situação ética implica expressar valores, por
meio de juízos morais e de atitudes frente à vida, já estamos diante de cir-
cunstâncias que merecem ser questionadas: o que são esses valores, como são
estabelecidos e internalizados? De onde saem a bondade e a maldade? O que
nos torna maus ou bons? A exemplo das cores, onde estão os valores, como
são constituídos e percebidos?
Em um grau de complexidade crescente, podemos formular outra per-
gunta derivada das anteriores, o que supõe estruturar outras estratégias
analíticas como resposta: a Ética é universal ou está circunscrita a fatores
histórico-políticos e culturais que a definem como sendo circunstancial,
singular ou ocasional?3
Por exemplo, a concepção de vida derivada da ciência tem a mesma
pertinência do conceito de vida para populações culturalmente orientadas
por valores diferentes daqueles expressos pelos discursos e práticas científicas?
Heráclito (1964) já percebia a relação entre desejo, proibição e preço a
ser pago pela alma quando se é obrigado a lutar contra ou a favor desses
impulsos. No Banquete, Platão faz referência a Aristófanes que, ao tratar dos
seres humanos e dos seus poderes exagerados, em suas origens, valeu-lhes ser
cortados pela metade pelos deuses, e dessa amputação surgiu o vazio que só
pode ser preenchido pelos outros. Daí que cada um de nós é símbolo do
outro, e o outro é o ser alheio que rouba meu ser; cada ser humano é o com-
plemento do outro. Uma vez mais a referência ao outro suscita, para os gregos,
a ideia de que a virtude ética é sempre realizada em comunidade pelos indi-
víduos, numa relação com o outro.
A vida das circunstâncias é então a que conta. Para Sócrates, uma vida
sem exame não merece ser vivida, pois não há um mal possível para o homem
de bem; ou seja, sempre é possível contrapor-se ao mal. Contudo, o mal nos
alcança antes da morte, pois o mal é constitutivo da condição humana e é
aqui que podemos encontrar-nos com a ética, uma vez que o confronto entre
bondade e maldade faz parte daquilo a que Sócrates se reporta: se passamos

3
A psicanálise e a antropologia tratam desta questão pela abordagem do mito ou do
arcaico que está presente no inconsciente humano e válido para a condição humana, indepen-
dentemente das circunstâncias histórico-culturais: o inconsciente não teria história, segundo
Lacan, da mesma maneira que a ideologia para Althusser.
NATUREZA DA ÉTICA E ÉTICA DA NATUREZA 79

em brancas nuvens, sem examinar o sentido das escolhas, a vida não merece
ser vivida.
O maior desafio seria então evitar o mal, pois este representaria a des-
proporção. Emerge então a seguinte pergunta para o filósofo: onde encontrar
o meio justo? Uma vida equilibrada seria aquela defendida por Aristóteles,
que consegue associar o prazer à virtude e que se traduz em uma vida mis-
ta, composta pela ética, pela política e pela contemplação. Dessa maneira,
uma conduta ética nos exortaria a não nos exceder, estabelecendo um equi-
líbrio entre o embate representado por Dionísio (o irracional) e por Apolo
(o racional).
A conduta da desproporção, do excesso, do viver sem limites pareceria
antecipar o alerta sobre a forma de viver, de produzir e de consumir dos
modernos, especialmente se levarmos em conta como vivemos nossas expe-
riências com a natureza usada como recurso produtivo, pelo produtivismo
exacerbado de mercado.
Embora ética e moral tendam a ser confundidas, consideradas como
designações inseparáveis uma da outra, suas matrizes conceituais respondem
a princípios bastante diferentes, segundo a perspectiva filosófica adotada;
nesse sentido, Deleuze reivindica o argumento de Spinoza a esse respeito: “a
Ética, isto é, uma tipologia dos modos imanentes de existência, substitui a
Moral, que se refere sempre à existência e a valores transcendentes. A moral
é o juízo de Deus, o sistema do Juízo. Porém a Ética solapa o sistema do juízo.
Substitui a oposição dos valores (bem-mal) pela diferença qualitativa dos
modos de existência (bom-mau)” (Deleuze, 2013b, p. 34). Outra diferença
possível reside talvez na maneira como são vividos e representados os valores,
embora seja possível considerar ambas (ética e moral) como partes de uma
mesma moeda.
Em princípio, quando se é instado a defender ou a aceitar um determi-
nado valor que envolva crença e identificação sobre determinada posição
assumida frente à realidade (questões de princípio, de preferências, de
simpatia e antipatia frente a um conjunto de sentimentos morais e políticos)
não se questiona o porquê dessas escolhas; ocorre apenas uma aceitação ou
rejeição de tais escolhas, muitas vezes incondicionais. Esses modos diferen-
tes de subjetivação, abordados mais adiante, além de culturais, fazem parte
de uma coleção de valores que se expressam por meio de justificativas
frente à realidade e, em muitos casos, assumem aspectos ideológicos sobre
crenças políticas e religiosas. No limite, podem funcionar como mecanismos
de reforço ao racismo, rejeição ao diferente e caldo de cultivo para formas
de dominação autoritária e repressiva. Sendo assim, e uma vez que os valo-
80 ÉTICA SOCIOAMBIENTAL

res são construídos culturalmente, formam um sistema de crenças suprain-


dividuais e em certa medida socialmente coercitivos, segundo algumas
concepções sociológicas.4
Voltamos aqui à pergunta sobre o que são e onde afinal residem os valo-
res? Uma vez identificada a origem desses valores (na religião, no direito, ou
em outros sistemas normativos e culturais), aquilo que serve de respaldo para
justificar uma crença, acaba assumindo uma dimensão transcendente. Não
importa se esse valor tem uma fonte religiosa ou então um código de precei-
tos estabelecidos desde outra fonte (pelo sistema educacional, por exemplo).
Preservar a vida, por exemplo, pode ser um preceito tanto religioso quanto
não confessional, transmitido socialmente pela educação.
Embora a ética seja constitutiva de fatores e dimensões históricas e cul-
turais, estabelecendo vínculos entre indivíduos e o coletivo, definindo deter-
minados padrões de conduta que são assimilados pelas instituições sociais e
nos códigos do direito, sempre é possível avaliar o sentido desses valores,
compará-los com outras culturas, definir padrões alternativos e até questio-
ná-los quando se tornam entraves para introduzir alternativas de comporta-
mentos e mudanças nas normas legais que definem os códigos escritos do
sistema jurídico e de direito de uma determinada sociedade. Nesse caso, então,
ao se avaliar criticamente a função e o conteúdo da conduta moral, é que se
pode dizer que entra em cena a dimensão teórica da ética que rege as condu-
tas individuais e coletivas de determinada sociedade ou civilização. Por isso
a ética, como sistema de pensamento estruturado, se apresenta como a teoria
da moral.
De todas as maneiras, os mecanismos que definem a organização de um
sistema ético vinculam-se a aspectos filosóficos, culturais, religiosos, cientí-

4
Durkheim (2014) dirá a esse respeito que a moral regula o sistema jurídico da aplica-
ção do direito, especialmente nos aspectos penais: na medida em que a aplicação de uma pena
mais severa é diretamente proporcional ao grau de repulsa que determinados crimes provo-
cam nas pessoas; o sistema de tabus (incesto, antropofagia, culto aos mortos etc.) é uma ma-
neira indireta ou arcaica de regular o sistema de normas das sociedades.
Por outro lado, nas sociedades ocidentais contemporâneas, os mandamentos dos valores
morais representam uma espécie de liquidez baumaniana, especialmente no domínio com-
portamental, seja na adoção de padrões em desacordo ou até radicalmente opostos aos da
religião, como no caso da sexualidade, estrutura e composição familiar, denúncia a assédios,
direito ao aborto etc.
Assim, o que pode ser admissível em um tempo histórico ou em determinadas culturas,
pode ser ou tornar-se objeto de reprovação em outros contextos. Tal é o caso dos limites que
um sistema social define como aceitável, por exemplo, na exploração dos recursos naturais e
nas ameaças de extinção de espécies animais.
NATUREZA DA ÉTICA E ÉTICA DA NATUREZA 81

ficos, cognitivos, políticos, estéticos, institucionais e comportamentais. Cum-


pre a mesma função descrita por Platão quando se indagava das razões hu-
manas do filosofar (Jaspers, 1951); nesse sentido, buscava por uma dessas
razões e identificava sua fonte na perplexidade do humano frente ao cosmos,
à razão de viver e de seus mistérios. Igualmente Sócrates, avançando sua
discussão sobre ética, indagava sobre o lugar do humano no cosmos e o que
cada um de nós cumpre nele.
Contudo, o complicador para pensar a condição humana na ética ou
da ética como condição humana, levando-se em conta os princípios da
proporção, da exaltação ao comedimento frente aos excessos da vida, pro-
postos por alguns dos clássicos gregos, é que das espécies vivas, apenas o
Homo sapiens é que pode romper os limites, ultrapassando-os pelos excessos
na forma de viver, de apoderar-se da natureza, transformando-a em recursos
para uso ilimitado, de produzir a guerra para fins de dominação, de perseguir
e aniquilar o diferente por razões religiosas, políticas, culturais, econômicas
e morais. Uma pergunta adicional, mas conexa ao sentido anterior: a evo-
lução da espécie humana (se é que se pode falar nesses termos), culmina no
Homo sapiens?
Essa indagação pode ser trivial se for compreendida apenas desde uma
perspectiva evolucionista, quer dizer, de que o ser humano é resultante de um
longo processo evolutivo, ou seja, um mamífero dotado de inteligência, de
linguagem e que desenvolveu historicamente uma diversidade cultural e
tecnológica complexa. No entanto, a pergunta deixa de ser trivial se agregar-
mos à sua condição natural de Homo sapiens novas aquisições tecnológicas
pela bioengenharia, medicina genética, nanotecnologia e inteligência artificial
capazes de ser incorporadas nas condições de vida, a tal ponto de alterar a
própria condição corpórea da espécie humana.
O debate sobre essa nova condição humana representa, por si só, tema
de disputa ética. É legítimo então perguntar: seríamos assim capazes de pro-
duzir novos sentidos sobre nossa condição humana, a tal ponto de considerar
que estaríamos já no limiar de um novo paradigma e que essa ruptura impli-
caria reinventar valores éticos ou modificá-los substantivamente em relação
aos atualmente vigentes? Aliás, esta matéria é objeto de novas abordagens, tais
como as propostas pela bioética, pela arte e ficção científica.5

5
O filme Gattaca: a experiência genética (EUA, 1997) refere-se ao futuro (não muito
distante!), no qual Gattaca é uma empresa que realiza viagens espaciais. O DNA humano é
analisado para determinar toda a vida da pessoa desde o nascimento, por exemplo, e a que
doenças cada uma delas está propensa. Mais do que simplesmente apresentar o que represen-
82 ÉTICA SOCIOAMBIENTAL

Por sua vez, concepções de ética que consideram a condição natural


como formadora da existência humana junto com a condição cultural do
Homo sapiens, em que pese sua longa metamorfose na escala evolutiva,
levam em conta uma linha de continuidade entre passado remoto e presen-
te. Por acreditar-se que no arcaico atualizado residem os sinais da maldade
e da bondade humanas e do terror,6 instalaram-se conflitos com tanta ra-
dicalidade entre o sagrado (a perplexidade pelo desconhecido, pela morte
e pelo destino), o religioso (o poder instituído para gerir esses destinos) e
o científico (com uma nova agenda de interferência na condição natural de
vida) ao longo da constituição das sociedades humanas e daquilo que está
por vir.7

tam os avanços da ciência sobre a mudança do padrão comportamental humano, o importan-


te para nosso debate é como o filme lida com os conflitos éticos vividos e enfrentados pelos
personagens do filme. Além do controle exercido pela empresa sobre os viajantes, para impor
um novo padrão artificializado “humano”, o filme se remete à eugenia, ou seja, a uma nova
forma de ser humano que surgiria da programação genética, diferente da condição natural e
que como tal é chamado no filme de “filho de Deus”.
6
A filósofa mexicana Dra. Juliana González afirma textualmente em uma de suas au-
las sobre ética e natureza: “El terror y el horror están en lo arcaico. Traemos al batracio (la
bestia más antigua) y los más cercanos (delfines, monos etc.) en nuestros cerebros evoluti-
vos (un momento del universo). Traemos las experiencias arcaicas en nuestro cerebro: so-
mos cocodrilos, ratas, ranas y bacterias también. Sus miedos, sus horrores fieros los traemos
adentro del cerebro. Estamos configurados con una trinidad: el cerebro de reptiles, mamí-
feros y humanos” (González, 2012, Curso de Educação à Distância, Ética y naturaleza. Mó-
dulo 11, Cuerpo, alma y pensamiento en el mundo de la ética. Série Grandes Maestros. Méxi-
co, UNAM, 2012. Disponível em: http://www.grandesmaestros.unam.mx/; acessado em:
ago./set. 2017).Esta abordagem sobre a natureza humana e os efeitos da tecnologia sobre a
produção de outra condição humana e, consequentemente sobre a ética, será retomada mais
adiante, no final da seção “Hibridização da ética com as demais esferas do social e do indi-
vidual”.
7
As modernas sociedades, em escala global, desde o século XVI desenvolveram seus
mecanismos de exclusão, não apenas para controlar a perversidade e a maldade humanas, mas
para separá-las do convívio dos demais, em manicômios, asilos, prisões e outras formas de
confinamento, pelo cumprimento de longas penas e de execuções aos irrecuperáveis ou pra-
ticantes de crimes hediondos. A história dessa epopeia às avessas nos é contada pela obra de
Foucault, como já quase todo mundo sabe. Nesse sentido, talvez não coubesse mais a pergun-
ta: o que vamos fazer com a maldade humana? Não pelo acerto das medidas adotadas, mas
justamente pelo absurdo das soluções encontradas, como condenar antecipadamente ao exí-
lio perpétuo os excluídos do sistema. De tempos em tempos, as sociedades reagem ao que elas
mesmas apresentam como solução; tal é o caso hoje do absurdo de como o sistema penal e
carcerário é praticado pelo Estado ou pelo sistema privado de administração das cadeias. A
produção da criminalidade, por sua vez, não deixa de traduzir novas formas de violação de
normas sociais, correspondendo ao modelo global de sociedade existente; o sistema de droga-
dição não é senão uma dessas expressões.
NATUREZA DA ÉTICA E ÉTICA DA NATUREZA 83

Modos de pensar, modos de fazer e de agir e modos


de subjetivação

Não há como separar modos de pensar dos modos de fazer e dos modos
de subjetivação, para utilizar uma expressão de Foucault (cuidados de si) re-
tomada por Deleuze (2015). O amálgama desses atributos no modo de ser
social e, portanto, cultural das sociedades humanas, segundo suas singulari-
dades, define os contornos ou os padrões ontológicos diferenciados entre
modos de viver, modos de perceber e nomear o mundo e de se apropriar
material e simbolicamente dele. Contudo, esses contornos e essas regras que
definem os padrões ontológicos de cada cultura são facultativos e não mecâ-
nicos, embora expressem ou conformem padrões.8
Como fundamento, nota-se nos modos de pensar de cada uma das cul-
turas (orientais, ocidentais, africanas, latino-americanas, oceânicas, polinésias
etc.) que se aparentemente trata-se de mecanismos lógico-simbólicos com
similitudes, o que define essas diferentes formas são de fato os processos de
significação e de identificação cultural com a natureza e a maneira de repre-
sentá-la desde as práticas materiais de sua apropriação e transformação. Vale
repetir, a esse respeito, o que já foi dito por outros autores: não há natureza
isenta de cultura, e a natureza é a expressão cultural da matéria.
Nesse sentido, Deleuze (2015) refere-se a um autor e agrônomo francês,
André Haudricourt (1962) que, juntamente com Louis Hédin (1943), opõe
dois tipos de pensamento filosófico: o ocidental, marcado pela transcendên-
cia, e o oriental, marcado pela imanência, de acordo com as formas de culti-
vo dos alimentos, ou seja, pelo tratamento diferenciado em relação aos vín-
culos e trocas com as práticas de transformação da natureza.
As filosofias da imanência que caracteriza o Oriente estão ligadas ao
cultivo do arroz e não à criação de ovelhas, como no Ocidente.9 Evidentemen-

8
Nosso objetivo neste texto não é examinar exaustivamente as implicações da ética no
conjunto desses elementos adiantados nesta apresentação da discussão; o intuito dessa refe-
rência é sinalizar que as interfaces que correspondem a esse quadro analítico associam-se a
uma complexidade crescente de discussão da ética. Nesta passagem, nos contentaremos a
abordar sumariamente a relação que a ética mantém com os modos de pensar, os modos de
fazer e os modos de subjetivação, uma vez que são fatores constitutivos indissociáveis e que
condicionam o que se pode considerar como elementos ontológicos dos modos (de subjeti-
vação, do fazer e do saber ou pensar), mas variáveis em cada circunstância histórica e cultural
das sociedades humanas. Ontológica, nesta acepção, significa o que constitui a estrutura e
organização das formações históricas das sociedades, sendo referidas aqui como “modos”.
9
“Há também uma diferença radical em termos de sistemas de criação de animais. Por
quê? [...] O Ocidente acabou tendo uma vantagem tecnológica considerável. Soube resolver
84 ÉTICA SOCIOAMBIENTAL

te, se compararmos com a atualidade, deve-se atribuir um alcance geográfico


mais restrito ao Oriente e Ocidente de 2 ou 3 milênios atrás, apesar da exis-
tência já de imensos impérios naquela época.

São como dois modos que fazem intervir inclusive a maneira pela qual o
homem pensa a si mesmo. Posso dizer que o homem ocidental, tanto em sua
agricultura como na criação de animais, pensa-se de uma certa maneira. Sob
que forma? É muito curioso que o homem ocidental irá pensar-se sob a forma
de pastor. Ou de semeador, que é similar. O semeador é o pastor dos grãos, não
é? Tomem o modelo político de Platão: o político é o pastor dos homens. Jamais
se atreveria Platão a dizer que é o jardineiro dos homens. Eu diria que a forma-
criação de animais foi determinante nas formações ocidentais para pensar o
homem. A forma-jardinagem, que é uma forma vegetal, e de certa relação com
o vegetal, o vegetal como linhagem pura, o vegetal como o que se enterra, im-
plica uma maneira completamente diferente de pensar o homem. Então Hau-
dricourt extrairá uma ideia: que as filosofias ocidentais da transcendência estão
ligadas a isso. Daí seu resumo fulgurante: a transcendência é a ovelha. Enquan-
to as filosofias da imanência, as filosofias do Oriente, estão ligadas a essa outra
situação. (Deleuze, 2015, p. 42-3)

Dessa maneira, nos modos de pensar entre temporalidades e culturas


diferentes, é razoável supor que há rupturas de continuidade entre modelos
e estilos de pensamento, assim como formas dominantes que se estabelecem
em cada uma das respectivas culturas. Os pensadores clássicos gregos instau-
raram um estilo diferente de pensamento, criando um sistema de notação e
de raciocínio lógico diferente das etapas anteriores caracterizadas, segundo
alguns intérpretes dessas culturas, como sendo mágico-religiosas ou mitoló-
gico-sagradas, traduzidas pela linguagem poética; a inauguração desse novo
estilo de pensamento desenvolveu outra estratégia discursiva ao buscar des-
locar a verdade de um campo semântico para outro, ou seja, da verdade
mágico-religiosa para a verdade filosófica10 (Deleuze, 2015).

com rapidez seu problema de coexistência entre criação de animais e agricultura. Enquanto
no Oriente essa coexistência e sua rivalidade apresentaram problemas consideráveis. [...] No
caso da Oceania e China, é preciso manter fechado o porco para evitar que se apodere do
alimento humano. [...] Isso explicará muitas coisas, por exemplo, sobre duas características:
que a alimentação não seja à base de carne no Oriente e a importância do arroz e a ausência
de utilização da tração animal” (Deleuze, 2015, p. 42).
10
Ao buscar respostas à pergunta “por que a filosofia nasceu na Grécia e possui uma
relação com a Grécia?” Deleuze (2015, p. 83 e segs.) identifica 3 tipos de respostas: a primeira,
NATUREZA DA ÉTICA E ÉTICA DA NATUREZA 85

As diversas maneiras de se expressar, ora pela prevalência de um modo


de pensar, ora de outro, ou até mesmo a coexistência hermenêutica de diver-
sos modos simultâneos e concorrentes, é uma característica marcante da
modernidade ocidental e que corresponde à emergência de sistemas políticos
que garantem essa diversidade de interpretações da realidade, não sem coer-
ção e repressão por parte do Antigo Regime.
As revoluções inglesa, francesa e norte-americana e o surgimento das
organizações autônomas operárias e da sociedade civil, críticas do sistema de
exploração do capitalismo industrial, da escravidão e do feudalismo, mais o
surgimento de movimentos utópicos e revolucionários, incluída aí a luta pela
expansão do direito das mulheres, constituíram o novo cenário ou a arena na
qual se enfrentavam as disputas de interpretação do mundo, com os respec-
tivos valores que legitimaram o surgimento dessa novidade.11
Quando nos referimos aos modos de fazer dos indivíduos em sociedade,
estamos nos reportando às atividades humanas ou aos sistemas de práticas
materiais que os vinculam com o que os teóricos sociais clássicos denomina-
vam de divisão social do trabalho (Marx, 1966; Durkheim, 1999, 2014), ou
seja, à relação ser humano-natureza, mediada pela técnica ou pelos instru-
mentos de trabalho, e ao princípio da cooperação na execução de tarefas
complexas, como as do sistema fabril.12 Contudo, o sistema de práticas, quan-
do limitado apenas às atividades econômicas e, em que pese sua centralidade
em sociedades produtivistas (de mercado), não consegue cobrir os demais

de ordem filosófica, se refere à revelação do ser; resposta esta dada por Hegel e Heidegger
conforme Deleuze (2015); a segunda resposta é de ordem histórica (Vidal-Naquet, Vernant e
Detienne, citados por Deleuze, 2015) e, segundo ela, não é que na Grécia se revela o ser, mas
que aí aparece ou se organiza um novo espaço cósmico e social; finalmente, a terceira respos-
ta, que não é estritamente filosófica nem histórica, nos é dada por Nietzsche, segundo ainda
Deleuze, que afirma que os filósofos gregos inventaram novas possibilidades de vida; trans-
formaram o pensamento em arte.
11
Hannah Arendt é um dos espíritos mais esclarecidos sobre a relação entre o mundo
clássico e o mundo moderno ocidental. Em A condição humana (2007), nos apresenta os
fundamentos da modernidade, assim como o seu ocaso agônico.
12
A ideia de trabalho humano é tardia e corresponde à emergência do trabalho assala-
riado na época da revolução industrial; o debate sobre o papel do trabalho livre e assalariado
dominou o debate da economia política (Smith, 1983; Ricardo, 1982 e Marx, 1980) e se esten-
deu ao longo dos últimos 200 anos. Não causa surpresa que o debate sobre a importância da
economia na vida das pessoas no capitalismo passa pela sua dimensão ética. Smith refere-se
aos sentimentos morais e às vantagens da divisão técnica do trabalho para defender a ideia de
eficiência e da criatividade humanas. Max Weber trata dessa questão na conduta moral das
motivações religiosas, considerando que as profissões funcionavam como equivalentes à vo-
cação ou chamamento religioso na ética protestante.
86 ÉTICA SOCIOAMBIENTAL

sistemas de ação social que compreendem atividades culturais, políticas, reli-


giosas, estéticas, científicas, técnicas, morais e que envolvem processos ou
modos de subjetivação aos quais nos referiremos logo em seguida.

A produção de si mesmo e o trabalho de subjetivação pela


relacionalidade

O tema da operação da subjetividade, pelo trabalho de subjetivação na


constituição do sujeito individual e coletivo na modernidade, cujo debate é
central para a discussão da filosofia da ética contemporânea, assume diferen-
tes interpretações e consequências políticas nos conflitos de valores, segundo
diversas correntes de pensamento, tais como a fenomenologia e as teorias do
discurso, dentre as quais se situam as correntes vinculadas à tradição foucaul-
tiana e a alguns de seus intérpretes posteriores.
Interessa-nos aqui apresentar alguns desses referenciais que levam em
conta as concepções sobre processos e modos de subjetivação, a fim de ex-
trairmos posteriormente algumas dessas contribuições, tendo em vista o
debate associado com os temas vinculados à relação sociedade-natureza e à
problemática socioambiental desde o ponto de vista do debate ético.
Para adentrar no sistema conceitual dos modos de subjetivação, escolhe-
mos dois autores, Gilles Deleuze (2015) e Judith Butler (2015), que fazem um
inventário prévio desse sistema teórico e a partir do qual buscaremos estabe-
lecer conexões relevantes com o objetivo principal deste capítulo, qual seja,
de identificar como ocorre a produção do modo de subjetivação no caso da
crise socioambiental atual em termos ético-políticos.
Deleuze (2015, p. 103, 105, 133) repete que foram os gregos que consti-
tuíram o sujeito, mas não da maneira dos modernos, pois para os primeiros,
o sujeito é sempre derivado e facultativamente derivado; quando se trata de
relacionar esse sujeito ao poder, só aquele que sabe governar a si mesmo, como
homem livre, é que será capaz de governar os demais; caso contrário, estamos
produzindo a tirania. Aprender a governar-se a si mesmo(a) é a arte de si,
uma relação consigo mesmo(a), ou seja, a subjetivação.13

13
A obra crítica e expositiva sobre os processos de subjetivação em Foucault, fruto de
um curso ofertado por Deleuze nos idos de 1986, dois anos após a morte daquele autor, foi
publicada em 3 livros: o primeiro sobre o poder, o segundo sobre o saber e o terceiro sobre a
subjetivação. Nesse livro sobre a subjetivação (Deleuze, 2015), entre as páginas 111 e 126, mas
recorrentemente retomado ao longo do mesmo, é apresentado o processo de constituição da
subjetivação, por meio da teoria da dobra (pli em francês), sua relação com a força e com o
saber, como duas expressões de efetivação do poder. Três diferentes perguntas (O que posso?
NATUREZA DA ÉTICA E ÉTICA DA NATUREZA 87

Na teoria da constituição da dobra, entendida por suas 4 formas de do-


brar-se (ou exteriorizar a interioridade) do sujeito, Deleuze (2015, p. 111-3)
as apresenta da seguinte maneira: a primeira dobra atende à pergunta: em
que parte te dobras como sujeito, ou como te produzes como sujeito? Essa
pergunta está associada com o governar-se a si mesmo pelo próprio corpo,
quer dizer, o que rodeia a parte material de mim mesmo(a). A segunda dobra
está ligada com a regra pela qual é feita a dobra: é uma lei divina, revelada
em um texto? É uma lei natural válida para todo ser vivente? É uma lei ra-
cional? É um princípio estético de existência? Para os gregos, essa regra seria
o logos. A terceira dobra se dá como sujeito, em vias de sua constituição com
a verdade,embora não se trate de questionar o que seja essa verdade que
difere de cultura para cultura e de suas temporalidades. A quarta dobra
constitui a interioridade de espera. O que espero? Seria o mesmo esperar ser
digno de lembrança, esperar pela imortalidade, por uma morte feliz, pela
liberdade etc.?
Como a subjetivação não é necessariamente individual, esse processo,
além de coletivo, é histórico. Assim, em cada formação histórica, é possível
observar modos diferentes de subjetivação que entram em relação seja para
estabelecer compromissos, seja para opor-se às relações de poder e de saber
existentes. Contudo, Foucault pensa os problemas de subjetivação em termos
de grandes dobras e de grandes periodizações, o que acaba obscurecendo os
processos mesmos de constituição de rupturas, pelo que nos diz Guattari
(apud Deleuze, 2015, p. 149) e que vai nomear de transversalidade os novos
tipos de lutas, ancoradas em alternativas que promovem o novo e pelo qual
as lutas transversais unem agentes heterogêneos. Esse mecanismo ocorre por
meio de operadores de subjetivação completamente novos e considerados por
Deleuze como criatividade potencial (2015, p. 163), ou seja, como algo novo
antes de que se saiba o que é esse novo.
Aqui é que nos confrontamos com os problemas que provocam a reflexão
realizada no campo da ética ambiental. Esses problemas reúnem atores hete-
rogêneos, que expressam sentidos diferenciados sobre determinadas formas
de representar a natureza e seus usos sociais, entre as quais as hegemônicas,
que associam esses usos às lógicas produtivistas de mercado. A ética ambien-
tal emerge, pois, como resposta aos riscos e danos da modernidade e que

O que sei? O que sou?) respondem a três problemas interligados: do poder, do saber e da
subjetivação (p. 141). Contudo, a leitura que Deleuze faz da subjetivação é que esta possui seu
próprio modo de ser e que surge da própria invenção e, em muitos casos, do seu desvio em
relação ao poder.
88 ÉTICA SOCIOAMBIENTAL

correspondem a signos negativos civilizacionais. Essa resposta produz novos


sentimentos morais sobre as atitudes humanas diante da natureza e que exi-
gem um tratamento ético e político diferente sobre a maneira de as socieda-
des e os governos conduzirem os assuntos socioambientais.
Dessa maneira, a resposta da ética, em relação à questão ambiental, não
se reduz apenas aos dilemas das escolhas morais oriundas de processos de
subjetivação que depositam na consciência individual a responsabilidade
exclusiva da escolha, embora nela possa atualizar e desencadear uma ação
moral, uma vez que a força da moral está na base da produção do sujeito, de
acordo com Adorno, segundo Judith Butler (2015, p. 20).
Mais adiante analisaremos os modos de subjetivação sobre problemas,
valores e escolhas vinculadas à questão socioambiental, elemento novo que
não se apresentava ainda com toda intensidade como é o caso dos atuais
conflitos no debate moral sobre a vida, a natureza, o saber cuidar e as amea-
ças da ação humana e do sistema econômico sobre as condições materiais de
reprodução da vida no planeta, as práticas do buen vivir, a defesa de um
consumo responsável e do respeito à diversidade cultural dos povos tradicio-
nais, detentores de um saber capaz de dialogar com a natureza, respeitando
seus limites e suas potencialidades.
Para Butler (2015, p. 28-9), tanto Nietzsche como Foucault consideram
que a moral reorganiza um impulso criativo. No entanto, a gênese desse im-
pulso se localiza diferentemente para ambos os autores. Nietzsche supõe que
a moral surge como resposta aterrorizada ao castigo; em sua obra inicial,
Foucault trata o sujeito como um “efeito” do discurso, para depois considerar
que o sujeito se forma em relação a um conjunto de códigos; nesse sentido, a
realização ética de si mesmo não é uma criação que surge do nada, pois esse
trabalho sobre si mesmo vai se dar no contexto de um conjunto de normas
que precede e excede o sujeito. Mas a norma não produz o sujeito como seu
efeito necessário, da mesma maneira que o sujeito não é totalmente livre para
desprezar a norma que instaura sua reflexividade. Dessa maneira, a ação
ética não é totalmente determinada nem radicalmente livre.
Estabelece-se aqui um certo paralelismo sobre a gênese dos condicionan-
tes do agir ético, para Butler (2015, p. 27), entre as visões de Nietzsche e
Foucault: enquanto o primeiro considera que o impulso ético obedece a uma
privação ou ameaça de castigo, para o segundo uma ação é possível, parado-
xalmente, pela persistência da condição primária de falta de liberdade, quan-
do o sujeito se defronta com as condições não escolhidas da vida. Em ambos
os casos, o agir ético se apresenta ou se constitui a partir da ideia de restrição
ou de privação.
NATUREZA DA ÉTICA E ÉTICA DA NATUREZA 89

Butler (2015, p. 31) apresenta essa maneira de surgimento de uma ação


ética por restrição ou privação, como uma forma de dificuldade de postula-
ção de um sujeito, por meio de expediente positivo, levando em conta que
essas condições de surgimento enfrentam obstáculos de explicação; a autora
aproveita então para perguntar se esses impedimentos não subtrairiam do
sujeito a possibilidade de assumir responsabilidade ou ter condições para
relatar a si mesmo:

Se for de fato verdade que somos, por assim dizer, divididos, infundados
ou incoerentes desde o princípio, será impossível encontrar fundamentos para
uma noção de responsabilidade pessoal ou social? Argumentarei o contrário,
mostrando como uma teoria da formação do sujeito, que reconhece os limites
do conhecimento de si, pode sustentar uma concepção da ética e, na verdade,
da responsabilidade. Se o sujeito é opaco para si mesmo, não totalmente trans-
lúcido e conhecível para si mesmo, ele não está autorizado a fazer o que quer ou
a ignorar suas obrigações para com os outros. Decerto o contrário também é
verdade. A opacidade do sujeito pode ser uma consequência do fato de se con-
ceber como ser relacional, cujas relações primeiras e primárias nem sempre
podem ser apreendidas pelo conhecimento consciente. Momentos de desconhe-
cimento sobre si mesmo tendem a surgir no contexto das relações com os outros,
sugerindo que essas relações apelam a formas primárias de relacionalidade que
nem sempre podem ser tematizadas de maneira explícita e reflexiva. Se somos
formados no contexto de relações que para nós se tornam parcialmente irrecu-
peráveis, então essa opacidade parece estar embutida na nossa formação e é
consequência da nossa condição de seres formados em relações de dependência.
(Butler, 2015, p. 32-3)

Para ir avançando na reformulação de uma teoria do sujeito capaz de


uma ação ética, Butler (2015, p. 37-38) esclarece que a posição foucaultiana
das normas permite identificá-las como sendo e tendo uma primazia social,
ao mesmo tempo que excedem as trocas diádicas (eu/outro-a) que condicio-
nam; por sua vez, o horizonte normativo pode ser alvo de uma abertura
crítica, dado que põe em questão os limites dos regimes de verdade estabele-
cidos. Os regimes de verdade são postos em questão porque o sujeito não se
reconhece nos termos que lhe são disponíveis.
Para seguirmos adiante com a discussão em torno de uma ética da natu-
reza, é necessário partir de uma política relacional, tendo em vista que o outro
inclui também a natureza como sujeito e não apenas o ente humano, pois a
defesa da vida implica reconhecer que a natureza é também um ser de direi-
90 ÉTICA SOCIOAMBIENTAL

tos, já que ao tratá-la como simples objeto de uso e de exploração, fere sua
vulnerabilidade; ao ferir sua vulnerabilidade, estamos ferindo a do ser huma-
no, que é indissociável das condições materiais e naturais que regem a vida.
Nesse sentido, uma teoria da ética voltada à dimensão da natureza envolve
um amplo debate filosófico sobre o que se entende por natureza e por ser
humano.14 O reconhecimento desse fundamento cria as condições de uma
reivindicação ética.
Os modos de subjetivação em relação à natureza e à vida seguem, da
mesma maneira que os demais códigos e normas morais, os regimes de ver-
dade reconhecidos pelos sujeitos individuais e coletivos, segundo a lógica
anteriormente desenvolvida em relação às teorias de Foucault, apresentadas
por Deleuze (2013a) e Butler (2015).
Ressalte-se, contudo, que as atitudes de indignação, de condenação ou
então em seu sentido oposto, de exaltação a outros padrões de conduta, de-
correm dos novos sentimentos sobre a vida, e depois são reafirmados por uma
ação política relacional sobre uma extensa pauta de questões, tais como: o
tratamento dispensado aos animais, às plantas e florestas, aos rios e mares, à
qualidade do ar, ao consumo desenfreado, aos impactos de megaprojetos
sobre a vida de populações nativas, da crítica sobre concepções de desenvol-
vimento e de (in)justiça ambiental, dos riscos provocados pelos mecanismos
econômicos e políticos e seus reflexos sobre as mudanças climáticas. O con-
junto desses fatores constitui alguns dos novos temas que foram paulatina e
socialmente estabelecidos e que tendem a erigir-se em novo regime de verda-
de, não isento de conflitos e confrontos com o regime de verdade imperante.
Dessa maneira, é possível analisar historicamente os modos de subjeti-
vação em torno das concepções de natureza, da corporeidade, das formas de
apropriação e usos feitos pelas sociedades e dos conflitos decorrentes das

14
Deleuze (2013), leitor de Spinoza, nos reporta a seguinte versão desse filósofo do sé-
culo XVII sobre o humano: “Define-se um animal ou um homem não por sua forma nem
tampouco como um sujeito, mas pelos afetos dos quais é capaz. Capacidade de afetos com um
limiar máximo e um limiar mínimo é uma noção comum em Spinoza” (p. 151). Afeto deve
ser entendido aqui como capacidade de afetar (modificar) mais do que possuir apenas capa-
cidade de afeição emocional.
Morin (1984), por sua vez, associa o humano com as dimensões antropo-socio-biológi-
cas: “não se trata em absoluto de reduzir o humano às interações físico-químicas; trata-se de
reconhecer os níveis de emergência. [...] A ciência física não é puro reflexo do mundo físico,
mas uma produção cultural, intelectual, noológica, cujos desenvolvimentos dependem de
uma sociedade e das técnicas de observação/experimentação produzidas por esta sociedade.
[...] É preciso, então, enraizar o conhecimento físico, e igualmente o biológico, em uma cultu-
ra, uma sociedade, uma história, uma humanidade (Morin, 1984, p. 315).
NATUREZA DA ÉTICA E ÉTICA DA NATUREZA 91

diferentes leituras e sistemas de práticas produzidos ao longo do tempo


histórico.

Hibridização da ética com as demais esferas do social


e do individual

O desenvolvimento da ciência também faz parte desse processo maior que


engloba a história das sociedades humanas, a relação que elas mantêm e de-
senvolvem com a natureza e o desenvolvimento da técnica na produção das
condições materiais de vida; no interior desse sistema de produção do conhe-
cimento, ocorrem igualmente os embates filosóficos sobre o significado do
cosmos, da natureza e, consequentemente, dos usos da verdade científica como
expressão desse novo padrão de representação do mundo. Os usos da racio-
nalidade científica servem para defender novas ideias ou atacar posições esta-
belecidas a ponto de serem entendidas como um novo campo representacional
e semântico sobre a verdade pensada, formulada por Tales (Voilquin, 1964),
pois não possuía o laboratório como os cientistas modernos, e a verdade ex-
perimentada, segundo Watson e Crick (citados por Gonzáles, J.), responsáveis
pela descoberta do DNA e que se arvoravam como os grandes descobridores
do segredo da vida; um a mais, diríamos, mas não o único, nem o último!
Podemos afirmar com Patrícia Fara (2014), historiadora da ciência, que
a ciência moderna teve origem não só no conhecimento acadêmico, mas
também no comércio, nas habilidades simples e na prática da magia (2014,
p. 134). Assim, como não existe somente um tipo de ciência, a classificação
do fato científico depende do olhar e da época (2014, p. 53). Por isso, segun-
do essa autora, enquanto Copérnico procurava Deus nas estrelas, Andreas
Vesalius fazia do corpo humano o templo divino na Terra (2014, p. 146).
Assim sendo, a história da ciência é a história de todas as coisas; ciência, tec-
nologia e medicina modernas estão conectadas intimamente às demais ativi-
dades do planeta, em uma espécie de teia gigante (2014, p. 4).

O que conta como fato científico não depende apenas do mundo natural,
mas também de onde, quando e por quem é feita a pesquisa. O conhecimento
científico nunca viaja intacto de um ambiente para outro. É constantemente
adaptado e absorvido de maneiras diferentes, pois tem geografias e histórias
diferentes. (Fara, 2014, p. 3)

Nada mais enganoso, contudo, pensar que a racionalidade científica es-


teja isenta de valores filosóficos. Basta seguir hoje o debate sobre o significado
92 ÉTICA SOCIOAMBIENTAL

de vida, seus múltiplos sentidos, por parte dos cientistas que em nome da
objetividade assumem a renúncia de buscar um sentido a ela, contentando-se
em descrevê-la ao desvendar os mais escondidos segredos dos seres vivos. Para
não separar a vida de sua negação, a morte e seus desafios, com a crise da
metafísica do início do século XX, o sociólogo alemão Max Weber (1970)
apresentou essa discussão a partir das reflexões do escritor russo León Tolstoi,
para quem a morte teria perdido seu sentido na modernidade ocidental.
Justamente porque a vida se havia tornado provisória e contingente é que a
morte não faria mais sentido, já que nunca estaríamos saciados para cumprir
com nossa passagem terrena.
Contudo, o debate sobre a negação da vida que é feita hoje, fora do do-
mínio religioso ou metafísico pelas ciências da vida e da natureza, é muito
mais abrangente e integra o debate na termodinâmica sobre a relação matéria
e energia (entropia), sendo retomada pelo debate das ciências ambientais e
de algumas correntes da economia ecológica (Roegen, 1996; Cavalcanti, 2004)
e da ecologia política (Martinez Alier, 2011; Leff, 2014), sobre os limites físi-
cos dos sistemas naturais.
Embora o debate na filosofia da ciência reconheça que o conhecimento
científico não postule questões teleológicas como o discurso religioso, é pro-
blemático afirmar que a ciência é um sistema isento de valores. Se a ciência
aspira a desvendar a realidade tal qual é, não pode evitar de colocar-se ques-
tões conexas, tais como: para que serve o que descobriu, como lidar com
esses resultados, que usos fazer desses resultados etc. O domínio da “verdade”
é invadido por questões outras às quais ela não tem como responder. Nesse
sentido, o alcance do significado de ciência merece também ser discutido.
Em outros âmbitos da produção e dos usos do conhecimento, tais como
na administração da justiça e do direito modernos, que buscam legitimidade
na ciência, acabam sofrendo o efeito do poder no saber; nesses casos, é evidente
o conflito hermenêutico e político entre a aplicação da norma, que se preten-
de objetiva, e os fantasmas dos valores que orientam o decidir no julgar e no
contexto em que se estabelecem as relações institucionais de poder.15 A dog-
mática jurídica criou uma carapaça pela qual pretende ser neutra frente aos
valores, bastando que se aplique a lei aos fatos, tal qual está formulada em

15
Ao comentar a retomada do poder pelo Estado, nos séculos XVIII e XIX, em Vigiar e
punir de Foucault, antes em mãos do poder pastoral da igreja, Deleuze (2015, p. 120) se inda-
ga a respeito de como o Estado disciplinar toma a subjetividade mais interior nas relações de
poder. Para tanto, constituir-se-ão ciências, ciência moral, ciência do homem; ou seja, saberes
de novo tipo, em que a subjetividade entrará sob um controle e uma dependência que invo-
carão a ciência.
NATUREZA DA ÉTICA E ÉTICA DA NATUREZA 93

seus códigos. Porém, as motivações que conduzem à judicialização de deter-


minadas condutas públicas ou privadas podem muito bem ocultar razões que
em outros contextos poderiam ser passíveis de um tratamento político e não
criminal.
Por outro lado, fatores de ordem do habitus social do corpo de operado-
res do direito do sistema judicial, impregnado pelos valores de formação
educacional, de suas afinidades eletivas com determinadas concepções de
moralidade e de valores políticos, operam decisivamente para decidir sobre
a seletividade das denúncias, por parte dos agentes da justiça pública. A so-
lução para esses problemas não viria apenas de arranjos epistêmicos ou filo-
sóficos, mas de um sistema de contrapeso exercido por instituições democrá-
ticas capazes de regular a pretensa autonomia total do corpo judicial, regido
por imperativos do poder corporativo. O processo de controle democrático
do direito e do sistema de administração da justiça poderia, talvez, seguir os
mesmos procedimentos adotados no controle dos usos da ciência, como é o
caso já de algumas experiências realizadas por alguns coletivos de cientistas
na Europa, juntamente com cidadãos comuns interessados no assunto.16
No entanto, a construção do arcabouço cognitivo pela ciência moderna
e contemporânea, especialmente pelas biociências, pela medicina genômica,
pelas neurociências, pelos estudos sobre a consciência e o cérebro, pelas ciên-
cias cognitivas e inteligência artificial, têm produzido um conhecimento
exponencial sobre os fenômenos da natureza e da vida, o que implica pensar
as consequências sobre os estudos da ética a partir desses avanços.
Diferentemente do debate dos séculos XIX e XX entre o evolucionismo
e o criacionismo, em que se confrontavam duas visões opostas e antagônicas
sobre o papel da evolução da espécie humana, confronto este de caráter mais
ideológico do que científico, ao indicar que o debate hoje é muito mais com-
plexo, desde o ponto de vista da ética; os avanços das tecnociências aplicadas
à genética e à possibilidade de criação artificial da vida implicam a criação de
dispositivos políticos, normativos e éticos. Esses dispositivos devem servir
para definir limites e, assim, fazer valer o princípio da precaução e da respon-
sabilidade moral das agências científicas, dos Estados nacionais e das insti-
tuições internacionais (regimes internacionais), a fim de regular e delimitar
as fronteiras entre as diversas naturezas que emergem desde o contexto da
inovação tecnológica aplicada à produção e reprodução da vida.

16
Consultar a esse respeito as propostas de uma ecologia das práticas na ciência de Isa-
belle Stengers (2002, 2006) e de John Ziman (1996, 2000), sobre o papel da ciência pública e
de seu estatuto epistemológico, entre outros autores.
94 ÉTICA SOCIOAMBIENTAL

Dessa maneira, o debate filosófico e epistemológico no contexto desse


novo cenário científico ganha graus de sofisticação, e o conflito de valores
assume a figura weberiana de enfrentamento insuperável entre deuses e de-
mônios; o maior desafio na regulação da desmedida e do excesso já antevistos
pelos gregos é domar a fúria desenfreada da lógica de mercado que pretende
precificar a natureza pela batuta irrefreável do capital, colocando em risco as
próprias condições de vida do planeta Terra.
A ética nesse contexto terá de saber dialogar com concepções de vida que
apostam, por um lado, na possibilidade de que chegará o dia em que o espí-
rito será explicado por uma espécie de cérebro ético (Bartra, 2013) ou pela
nova designação de hominídeos, considerados agora como homem neuronal
– (Changeux, 1985) e outras visões mais apegadas à tradição que entendem
que a mente deve ser sempre entendida em contextos da norma e das insti-
tuições sociais (Ricoeur, 1990).17

As condições de produção e de subjetivação de uma ética


socioecológica ou da natureza

É comum hoje ouvir que o respeito cada vez maior à vida é um signo de
civilização. Mas esse efeito civilizatório não corresponde necessariamente a
uma evolução linear nem contínua das sociedades, uma vez que avanços
tecnológicos não possuem correspondência com possíveis avanços na escala
dos valores humanos em relação, por exemplo, ao respeito e à preservação da
vida. Muito pelo contrário, se observarmos o tremendo avanço na produção
de armamento e as dificuldades de promover a paz entre os povos.

17
Em sua resenha, o neurocientista Jesús Ramírez-Bermúdez (2009), assim se refere a
este debate: “O problema corpo-alma tem sido reformulado pela neurociência contemporâ-
nea como problema cérebro-mente. A tese do “homem neuronal”, exposta pelo cientista Jean
Pierre Changeux, representa o materialismo reducionista, discutida pelo fenomenólogo Paul
Ricoeur, que adverte para um dualismo semântico inerente à experiência, e defende o valor
simbólico das narrativas religiosas e a riqueza semântica do discurso metafórico. Ambos os
autores coincidem sobre o valor da arte como promotora de paz” (p. 69).
Para ampliar o debate conduzido pela paleontologia, ciências biológicas, linguística e
antropologia sobre a evolução da anatomia humana, especialmente sobre o esfenoide como
um osso craniano estratégico para as sucessivas adaptações e que permitem o aprendizado e
o desenvolvimento da linguagem, e na perspectiva das consequências futuras para a forma-
tação do homem, consultar o documentário: O homem do futuro – [HD] documentário
dublado, 2017. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=FCX-VcdAVuA: acessado
em: mai. 2017. Adicionalmente, o debate sobre o papel da técnica como uma dimensão in-
trínseca da cultura humana é tratado como modo de existência dos objetos técnicos por Si-
mondon (2001).
NATUREZA DA ÉTICA E ÉTICA DA NATUREZA 95

Nesse sentido, teria razão Lévi-Strauss (1998) em seu texto sobre raça e
história ao afirmar que o bárbaro é antes quem considera o outro como tal?
Na perspectiva das questões socioambientais, o conceito de civilização se
aproximaria mais, então, daqueles modelos de sociedade em que se verifica
um contato direto com a natureza, pouco mediada pela técnica? Resta saber,
então, em que medida as sociedades tecnologicamente desenvolvidas passam
a ser garantia de um maior respeito à vida e à garantia de sua reprodução já
que operam com a segunda ou terceira natureza, ou seja, com uma relação
altamente sofisticada pela mediação tecnológica.
Sabe-se que não pode haver uma ética que se desentenda com o corpo,
mesmo que a corporeidade represente uma diversidade de aspectos que vão
desde a pesquisa científica sobre sua constituição, especialmente desde as
neurociências, a medicina genética, a biologia molecular, as ciências cogniti-
vas e a nanotecnologia aplicada ao combate de doenças. Dessa maneira,
desvendar as potencialidades do corpo e da mente não deixa de abrir janelas
inovadoras para adentrar-se no domínio do pouco ou quase nada conhecido
sobre o que é afinal o cérebro.
As novas descobertas nesses novos domínios da pesquisa científica per-
mitem, por sua vez, repensar a própria condição da espécie humana e de sua
condição existencial, frente aos mistérios da matéria que se faz vida e que é
expressão dessa grandeza, o que significa em um certo sentido buscar recon-
ciliar-se com a vida, em bases diferentes daquelas que até há pouco impediam
de conhecer os novos avanços.
Portanto, é questionável e relativo pressupor que o avanço tecnológico
por si só favorece a aquisição de um maior grau de felicidade e de bem-es-
tar para todos e em igual escala; de igual maneira, considerar que a vida
atual é melhor do que a do passado nos autorizaria, pelo avanço volumoso
de tecnologias, a reconhecer que, em muitos aspectos, sim. Mas, em relação
às demais vantagens, pode-se fazer a seguinte indagação: até que ponto o
progresso técnico pode nos dizer que nos reconciliamos com a vida e a
natureza?
Ainda, nessa direção, indagamo-nos se é possível afirmar que a ética está
enraizada na natureza, por tudo aquilo que a pesquisa científico-tecnológica
nos tem trazido para conhecer melhor as potencialidades e os limites do
corpo e, consequentemente, tem-se contribuído para ampliar ou questionar,
em bases melhores, o significado da vida. Permanecem então as indagações
anteriores, reformuladas agora da seguinte maneira: se a ciência poderia estar
nos dizendo, como eco daquilo que é mais arcaico no imaginário do ser hu-
mano, de que viver mais, graças ao avanço das tecnologias da medicina, seria
96 ÉTICA SOCIOAMBIENTAL

recobrar aquela parte subtraída dos humanos, pelos deuses, quando os hu-
manos ousaram desafiar os mistérios da vida?
Por outro lado e colocando-nos no lugar devido, para referir-nos a algu-
mas das alegorias ocidentais clássicas, tais como os mitos de Prometeu que
ousou roubar o fogo; de Ícaro que ao voar desafiou o sol, e de Zeus que or-
dena que os homens sejam divididos ao meio por querer igualar-se às divin-
dades, poderíamos nos contentar, afinal, com o paradoxo da privação impos-
ta pelos deuses aos seres humanos, uma vez que daquela privação nasce o
desejo de cada ser humano completar-se no outro, devolvendo-nos nossa
própria condição limitada, dependente e finita!
Uma ética da natureza envolve questões vinculadas ao desenvolvimento
de uma consciência ecológica em triplo sentido:

1) Por um lado, uma consciência cognitiva em torno das condições de


produção, reprodução da vida e do ambiente socionatural (espaço, território,
lugar) no qual os seres humanos desenvolvem suas atividades materiais e
simbólicas; essa consciência cognitiva pode ser alcançada por diversos cami-
nhos, mas principalmente pelo acesso ao conhecimento científico e às demais
formas de conhecimento tradicionais, vinculados às práticas culturais mile-
nares ou seculares de muitas culturas (povos nativos, originários, camponeses,
pescadores artesanais, coletores e extrativistas de florestas, agricultores agroe-
cológicos etc.); por outro lado, o desenvolvimento de uma consciência moral
que contenha valores em torno do saber cuidar, do saber viver e do saber
preservar os bens comuns da natureza.
2) Desde o ponto de vista de uma ética associada à consciência ecológi-
ca, como segundo sentido dessa consciência, um dos primeiros valores que
se destaca é de que existe um mundo que queremos proteger, pois ao prote-
gê-lo, estamos protegendo e assegurando a nossa própria segurança atual e
futura, com a garantia de que podemos continuar vivos, usufruindo do mis-
tério e da beleza da vida, juntamente com os demais seres vivos e não vivos
que compõem a bioesfera.
A aposta pela vida contra a destruição é um desafio humano da vida
contra a morte, do ser contra o não-ser. A consciência moral dessas condições
é produzida socialmente, mas não como destino, senão como capacidade de
entender, perceber e reagir frente aos limites e às potencialidades dos dispo-
sitivos tecnológicos e materiais criados pelos seres humanos, em estreita
vinculação com a natureza. Vale aqui a máxima socrática já indicada: o que
temos de fazer com nossa vida aqui e agora ou de que uma vida sem exame
não merece ser vivida.
NATUREZA DA ÉTICA E ÉTICA DA NATUREZA 97

3) E como terceiro sentido ou direção dessa consciência ecológica, é o


que se refere a seu aspecto relacional ou à alteridade; essa consciência ecoló-
gica é englobante, não apenas entre sujeitos singulares ou coletivos, mas
porque essa relação excede o humano e incorpora a relação mais extensa com
aquilo que é inerente ou imanente, inseparável, portanto, de sua própria
condição que é corpórea, ou seja, à dimensão da natureza.18
Contudo, esse aspecto relacional vai depender dos nexos e das mediações
realizadas pelos laços de sociabilidade que instauram ou instituem territórios
de distribuição do poder entre os sujeitos, seus sistemas de normas e as ins-
tituições que regulam a distribuição do controle e do poder entre os membros
das comunidades, dos Estados nacionais, e das demais instituições interna-
cionais de controle e poder.
Como as sociedades contemporâneas pós-industriais e urbanizadas se
caracterizam por uma complexidade crescente em sua composição societal,
designadas metaforicamente como “modernidade líquida”, cujas conexões
materiais e comunicacionais parecem ocorrer por “sinapses”, pois ocultam e
revelam ao mesmo tempo infinitas possibilidades de interações e conflitos,
acabam potencializando as disputas sobre os efeitos das mudanças globais sobre
a natureza, o clima, a política e, consequentemente, os espaços de poder. Nesse
domínio, a consciência ecológica assume, pois, um caráter de ecologia política.
Assim sendo, entende-se, pois, que as questões socioambientais derivam
dos problemas vinculados com a maneira de conceber, viver e transformar as
condições de vida material e cultural, e que o amálgama desses atributos se
remete às concepções e modos de representar e vivenciar (com) a natureza.
Pensar e viver essa dimensão na contemporaneidade significa conviver com
ameaças, riscos, privações e, no limite, promover desastres crescentes, pelo
modo como conduzimos nosso sistema de produção das condições materiais,
simbólicas e culturais de vida (estilos de consumo que excedem nossas ne-
cessidades essenciais). Note-se aqui que foi esquecido, pelas modernas socie-
dades, o apelo dos autores clássicos gregos sobre as virtudes da moderação!
Lembremos das primeiras reflexões feitas pelos teóricos clássicos gregos
sobre ética e política, em que ambas ocorrem como possibilidade de justiça
em comunidade. Pensar eticamente essa comunidade hoje envolve uma ética

18
“Todo leitor de Spinoza sabe que os corpos e as almas não são para ele nem substân-
cias nem sujeitos, mas modos. [...] Se somos spinozistas, não definiremos algo nem por sua
forma nem por seus órgãos e funções, nem como substância ou sujeito. [...] Um corpo pode
ser qualquer coisa, um animal, um corpo sonoro, uma alma ou uma ideia, um corpus linguís-
tico, um corpo social, uma coletividade” (Deleuze, 2013, p. 151 e 155).
98 ÉTICA SOCIOAMBIENTAL

global, já que administrar um sistema de justiça ambiental implica uma espécie


de proclamação de mandamentos, preceitos, leis e normas que regulem
mundialmente os mecanismos de controle e que penalizem os excessos co-
metidos pelas ações implementadas no âmbito dos usos e abusos dos recursos
naturais disponíveis.
A quase totalidade dos Estados Nacionais, em que o controle desses ex-
cessos poderia e deveria ser mais eficaz, é signatária de tratados e declarações
internacionais, no âmbito do direito internacional, sobre aspectos legais e de
questões cruciais para a gestão da biosfera em escala planetária e seus efeitos
sobre a regulação da vida, cuja existência se institui durante o transcorrer do
século XX, com continuidade no século XXI. Entre tais declarações e tratados,
destacam-se os mais conhecidos pela importância dos temas abordados: a
Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948); a Declaração dos Direi-
tos Animais (1978); a Conferência de Estocolmo sobre Meio Ambiente (1972);
a Declaração sobre o Genoma (1997); a Declaração dos Direitos Indígenas
(2007); a Convenção 169 da OIT sobre consulta às comunidades e povos
originários, atingidos por megaprojetos extrativistas e de infraestrutura (1989);
a Convenção sobre Diversidade Biológica (1992); a Convenção sobre as Mu-
danças Climáticas (1992 e 1997 com o Protocolo de Kyoto); a Declaração
sobre Bioética e Direitos Humanos (2005).
No entanto, entre a norma e a vida concreta, surgem espaços inicialmen-
te indetectáveis, justamente aqueles que excedem a norma e o sujeito, a tal
criatividade potencial, no sentido apontado por Deleuze, e que por meio de
operadores de subjetivação abrem possibilidade para outros modos de inova-
ção; territórios de disputas de sentidos do mundo e de valores que orientam
a ação dos sujeitos e instituições. As antigas normas tornam-se assim objeto
de contestação, pela força (poder) emergente e de ressignificação das práticas
e do conhecimento (saber) entre atores e instituições. São nesses espaços
indetectáveis, em um primeiro momento, que se gestam outras alternatividades
a cujos novos modos de pensar correspondem novos modos de agir e de re-
definir, portanto, outros valores éticos que darão suporte à nova racionalida-
de ambiental. Este parece ser o caso anunciado pelo Manifesto pela Vida e que
será abordado logo a seguir.

Por uma ética socioecológica ou da natureza, para um


mundo respirável e solidário: escolhas para o bem viver

Na presente seção, avaliaremos algumas das visões teóricas alternativas


que apresentam concepções éticas desde fundamentações filosóficas e ecopo-
NATUREZA DA ÉTICA E ÉTICA DA NATUREZA 99

líticas embasadas no pensamento complexo do saber e da racionalidade


ambiental (Leff, 2014). Essa fundamentação conduz os argumentos por ca-
minhos bem diferentes aos de uma ética estritamente fundamentada nas
decisões morais ou econômicas atribuídas virtuosamente ao indivíduo (quem
seria afinal esse indivíduo genérico?), ancoradas principalmente em valores
dos imperativos categóricos e das virtudes morais abstratas e a-históricas,
como se os valores brotassem espontaneamente da mente de cada um(a) não
fossem reproduzidos pela ideologia dominante e contestados por valores
diferentes.
Seguindo o Manifesto pela vida – por uma ética para a sustentabilidade
(2002),19 transcrevemos que uma

ética da sustentabilidade implica trocar o princípio do egoísmo individual como


gerador de bem comum por um altruísmo fundamentado em relações de
reciprocidade e cooperação. Esta ética está se arraigando em movimentos sociais
ascendentes, em grupos culturais crescentes, que hoje em dia começam a enlaçar-
-se em torno de redes cidadãs e de fóruns sociais mundiais na nova cultura de
solidariedade. (item 39)

Uma ética socioecológica questiona as bases culturais dos valores hege-


mônicos que buscam legitimidade unicamente em preceitos religiosos, e não
na ampliação do direito como conquista social e coletiva; questiona o precei-
to do “faça o bem a não importa quem” (O que é esse bem? Quem é esse
“quem”?) – por exemplo, perdoar ou não exigir punição aos torturadores,
relevar a violência dos poderosos que expulsam camponeses de suas terras,
omitir-se frente a qualquer tipo de crítica e resistência aos produtos de con-
sumo que causam danos à saúde e ao meio ambiente, julgar a cultura dife-
rente, como inferior etc. Uma ética socioecológica deve opor-se a uma ética

19
Manifesto pela vida – por uma ética para a sustentabilidade, redigido no Simpósio
sobre Ética e Desenvolvimento Sustentável, celebrado em Bogotá, Colômbia, em 2-4 de maio
de 2002 e assinado por 35 intelectuais de 13 países latino-americanos, além de um represen-
tante do PNUD e outro do PNUMA. O manifesto pela vida apresenta 54 itens distribuídos
em 9 eixos temáticos (42 itens), incluindo a Introdução (10 itens) e o Epílogo (2 itens). Os
eixos temáticos apresentam uma fundamentação filosófica dos seguintes princípios e suas
interfaces com a ética: 1) produção para a vida (3 itens); 2) conhecimento e diálogo de sabe-
res (9 itens); 3) cidadania global, espaço público e movimentos sociais (5 itens); 4) governa-
bilidade global e democracia participativa (4 itens); 5) direitos, justiça e democracia (5
itens); 6) bens comuns e Bem Comum (3 itens); 7) diversidade cultural e política da diferen-
ça (5 pontos); 8) paz e diálogo para a resolução de conflitos (4 itens); e 9) ser e tempo da
sustentabilidade (4 itens).
100 ÉTICA SOCIOAMBIENTAL

ingênua e que se curva à inércia das normas impostas; opor-se a uma ética
da resignação que cede diante de uma realidade unilateralmente imposta e
aceita acriticamente.
Muitos dos juízos morais dominantes têm a pretensão de universalida-
de e não questionam as bases sociais e políticas historicamente estabelecidas,
legitimando a desigualdade social, o incitamento à meritocracia em socie-
dades de classe como único valor para os indivíduos (quando a meritocracia
já advém de bases de oportunidades desiguais e elitizadas), creditando uni-
camente aos indivíduos os méritos de mobilidade social, ignorando que o
capital social e o habitus de classe obedecem ao princípio da reprodução
social desigual.
Uma ética socioecológica rejeita a lógica da submissão aos valores domi-
nantes como legítimos e inquestionáveis. Propõe rever e revisar os fundamen-
tos da racionalidade instrumental e da mercantilização da natureza, da vio-
lência contra a diferença e a diversidade cultural. Propõe a resistência das
populações originárias e tradicionais excluídas do sistema social dominante,
que reivindicam para si e para os demais o saber cuidar, a produção de ali-
mentos em bases agroecológicas (soberania e segurança alimentar), zelando
pela saúde, não contaminando a terra de agrotóxicos e defensivos que colocam
em risco o equilíbrio dos ecossistemas. Opõe-se ao extrativismo desenfreado
dos recursos naturais, à mineração e aos megaprojetos, sob a lógica estrita do
capital e das políticas de Estado que sustentam os interesses do grande capi-
tal e ameaçam as formas de vida de povos e comunidades que habitam e
convivem secular ou milenarmente em seus territórios.
Uma ética socioecológica não deve estar desvinculada do debate a res-
peito de uma justiça e injustiça ambientais, em que se apresentem os funda-
mentos sobre o direito de questionar os excessos cometidos pelo sistema
hegemônico de produção, e das salvaguardas e defesa dos setores sociais
historicamente invisibilizados e marginalizados pelo poder de concentração
da riqueza e da propriedade da terra, tais como as populações indígenas,
camponesas, populações urbanas periféricas etc. Essa nova ética, segundo o
Manifesto pela vida (2002) “deve inspirar novos marcos jurídicos institucionais
que reflitam, respondam e se adaptem ao caráter tanto global e regional, como
nacional e local das dinâmicas ecológicas, assim como a revitalização das
culturas e seus conhecimentos associados” (item 31).
Ao caracterizar a crise ambiental atual como uma crise do modelo civi-
lizatório que atinge hoje uma escala global, o Manifesto pela vida (2002), em
sua introdução, responsabiliza o modelo econômico, tecnológico e cultural
pela atual degradação do meio ambiente e as condições de vida; ao subvalo-
NATUREZA DA ÉTICA E ÉTICA DA NATUREZA 101

rizar a diversidade cultural, desconhece o Outro (o indígena, o pobre, a mu-


lher, o negro, o Sul). Procedendo dessa maneira, privilegia-se um modo de
produção e um estilo de vida insustentáveis, tornando-se hegemônico no
processo de globalização (item 1).
Embora em seu subtítulo o Manifesto adote o lema “por uma ética para
a sustentabilidade”, é crítico em relação ao discurso do desenvolvimento
sustentável, uma vez que por esta designação tenta-se reprisar o mito desen-
volvimentista que cede passo ao crescimento econômico como única possi-
bilidade para uma vida adequada para todo(a)s, quando é sabido que o ca-
pitalismo padece de um sistema crônico de distribuição de renda entre países
e os habitantes do planeta, por conta de uma desigualdade histórica entre os
países centrais e os periféricos, além dos mecanismos inerentes a ele, de ser
concentrador de renda no topo da pirâmide dos agentes econômicos privados.
No limite, pensar o desenvolvimento capitalista como crescimento sus-
tentável é um oxímoro, pois a lógica do capital não nasce de uma racionalidade
ambiental preocupada com os usos limitados da natureza, nem da produti-
vidade ecotecnológica. O maior impedimento para tratar a natureza como
um bem comum é de que ela se transformou em propriedade privada para
efeitos de apropriação e exploração. Daí a necessidade de se pensar em uma
reapropriação social da natureza, uma vez que

a ética da ordem pública e os direitos coletivos se contrapõem à ética do direito


privado como maior baluarte da civilização moderna, questionando o mercado
e a privatização do conhecimento –a mercantilização da natureza e a privatiza-
ção e os direitos de propriedade intelectual– como princípios para definir e le-
gitimar as formas de posse, valorização e usufruto da natureza, e como o meio
privilegiado para alcançar o bem comum. (Manifesto, item 38)

Nesse sentido, o Manifesto poderia referir-se explicitamente, em seu tí-


tulo, a uma ética alternativa ao desenvolvimentismo, mantendo assim os
termos uma ética para a vida ou uma ética da natureza. Por essa razão, de
nossa parte, preferimos designar, ao longo deste capítulo, a ética como uma
“ética socioecológica” ou simplesmente uma “ética da natureza”.
Sem a reconciliação entre a razão e a moral, por meio de um novo está-
gio de consciência e comedimento de seus modos de vida, os novos valores
de uma ética ambiental requerem um suporte existencial da conduta huma-
na perante a natureza e a sustentabilidade da vida, por meio da conjugação
de um novo saber, capaz de entender as complexas interações entre a socie-
dade e a natureza, reconectando os vínculos indissolúveis de um mundo in-
102 ÉTICA SOCIOAMBIENTAL

terconectado de processos ecológicos, culturais, tecnológicos, econômicos e


sociais (item 9). Dessa maneira, o saber ambiental modifica as percepções
sobre o mundo, deslocando a episteme de um pensamento unidimensional
para um pensamento da complexidade.
Como as sociedades devem prover da maneira mais eficiente e equilibra-
da as fontes energéticas para a reprodução material das condições de vida, a
orientação mais adequada dessa promoção deveria privilegiar o aproveita-
mento de fontes de energia renováveis, economicamente eficientes e ambien-
talmente amigáveis, como as energias solar, eólica e hidráulica em pequena
escala (item 12).
Uma ética da natureza que se limitasse a apenas criticar o que existe de
problemático não mereceria esse nome se não buscasse identificar propostas
alternativas para opor-se ao que ela considera como unilateral. Nesse sentido,
a crítica para ser verdadeira deve propor alternativas responsáveis. Frente ao
modelo econômico produtivista que persegue apenas o lucro em sua forma
de apropriação e uso da natureza, observamos que a alternativa mercadoló-
gica da produção pode contar, em oposição, com novas formas sustentáveis
de produção, abrindo assim caminho a uma nova racionalidade produtiva,
fundamentada na produtividade ecotecnológica de cada região e no ecossis-
tema, desde os potenciais da natureza e dos valores da cultura (conforme o
item 12 do Manifesto).
Os desafios cruciais sobre como conciliar sistemas de conhecimento e de
valores em sociedades de racionalidade instrumental hegemônica exigem
criatividade, pois são instados a contrapor-se aos sistemas sociais marcados
pela centralidade do mercado, com rígidos controles normativos e políticos
pelas instituições do Estado, com pouca permeabilidade de espaços alternati-
vos para amplos atores sociais subalternos, invisibilizados ou simplesmente
marginalizados. Requer-se assim um esforço hercúleo para colocar em marcha
poderosos contrapesos, a fim de gerar políticas de inclusão ou de coexistência
de sistemas sociais marcados por heterogeneidades histórico-estruturais.
Mais do que apostar apenas na boa vontade intelectual desde um pensa-
mento crítico, essa tarefa dependerá principalmente da mobilização dos próprios
sujeitos históricos, da ampliação de sua consciência ecológica e política. Para
tanto, é necessário garantir os espaços democráticos em que se possam esta-
belecer práticas pedagógicas formais e informais, a fim de implementar um
diálogo de saberes entre diferentes formas de conhecimento; além da criação
de novas instituições interculturais de convivência, plurais, como os sistemas
culturais das populações tradicionais e indígenas, especialmente na América
Latina. O ressurgimento de movimentos de valorização cultural desses povos
NATUREZA DA ÉTICA E ÉTICA DA NATUREZA 103

é um signo positivo que permite implantar novas formas de diálogo intercul-


tural, com garantias democráticas de expressão e existência dessas populações
(Bengoa, 2000; Cusicanqui, 1986; Acosta, 2000; Quijano, 2014 ).
Nesse sentido, o Manifesto, nos itens 23 a 36, reserva um espaço amplo e
central para questões atinentes aos temas do espaço público, da cidadania,
dos movimentos sociais, da governabilidade global, democracia participativa,
direito e justiça. A ideia diretora do questionamento desses temas parte da
constatação de que “a globalização econômica está levando à privatização dos
espaços públicos e de que o destino das nações e das pessoas está cada vez
mais conduzido por processos econômicos e políticos que são decididos fora
de suas esferas de autonomia e responsabilidade” (item 23).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na busca de uma síntese reflexiva final deste capítulo, temos a considerar


os seguintes aspectos: sabemos que a ética não pode tudo, pois ela não opera
no vazio e no silêncio da escuridão cósmica indeterminada. Ela se imiscui na
matéria da vida e da fabricação de ideações humanas, resultante de longos
processos históricos constituídos por jogos de linguagens, imaginários, inter-
dições e desejos de verdade, como constatamos pela discussão que os autores
citados neste capítulo trazem como contribuição ao tema. Dessa maneira,
não se pode exigir que ela nos antecipe a substância da vida e aquilo que
subjaz a seus desígnios. A ética é, portanto, um epifenômeno que ganha ares
de autonomia, mas que se remete a um mundo real, recheado por conflitos e
dilemas, de temporalidades diversas, mas que se projeta também para além
desses limites.
Se ela predica a temperança será preciso, pois, saber dosar os limites das
escolhas, zelando pela manutenção da vida; não podemos exigir dela que viole
a dinâmica imposta pela própria realidade, mas sim posicionar-se frente a ela,
sabendo avaliar as consequências para a continuidade da vida, com base no
diálogo entre razão, emoção e cultura, de tal maneira que não possa rejeitar
a criação humana por aquilo que ela nos traz de novidade. O exemplo mais
emblemático aqui são as inovações tecnológicas e outras invenções no domí-
nio da ciência, da estética, das técnicas, da educação, da saúde e dos demais
estilos de vida. Saber examinar e tirar as melhores lições sobre as promessas
ofertadas pela vida e decidir se estas valem a pena de ser vividas. É uma lição
que deve ser aprendida com aqueles que nos antecederam e deve ser deixada
como legado para quem vier depois de nós. Nesse sentido, a ética tem um
104 ÉTICA SOCIOAMBIENTAL

compromisso com o futuro, pois se abdicarmos dela, estaremos suprimindo


a própria razão de viver no presente.
A questão não é a de colocar-se a favor ou contra de antemão, diante de
qualquer novidade, abdicando do poder do pensamento e da sabedoria, en-
fraquecendo assim a força dos argumentos que podem nos auxiliar a apontar
o melhor quando se trata de escolhas, em benefício da felicidade, da virtude
e do bem viver. Afinal, o domínio da ética reside no âmbito dos valores, mas
valores colocados à prova pela sensatez, pela não exclusão da alteridade que
é sempre necessariamente diferente.
Além disso, a ética não pode ficar circunscrita apenas ao domínio da
subjetividade individual, sob pena de sermos aprisionados pela esquisitice ou
pela idiotice, conforme nos anteciparam os autores gregos clássicos. Por isso,
temos insistido ao longo do capítulo em favorecer uma política relacional, ou
da relacionalidade, que não somente englobe o outro em suas diferenças, mas
também qualifique essas diferenças como estrategicamente solidárias com as
formas de vida que se opõem ao modelo de exploração interminável dos bens
comuns, como quer a racionalidade instrumental do capital.
Daí que a ética se compromete a dialogar com a justiça, mais do que com
o direito, pois este pode servir para legitimar o poder e a exclusão, sem abrir
mão, contudo, dos usos deste instrumento em favor da justiça. Esse compro-
misso deve ser coletivo, no sentido de envolver comunidades e virtudes que
se realizam na esfera pública que hoje é muito mais abrangente, pois não está
confinada apenas ao espaço grego da polis, já que a polis segregava aqueles
que não tinham o direito de participar da vida pública (mulheres, escravos,
crianças, incapazes...).
Nesse sentido, ela lida com o conflito entre o Bom e o Mau, mais do que
com a batalha bíblica do Bem e do Mal, remetendo esta última dualidade a
uma dimensão da transcendência e que opera no domínio da moral religiosa,
para lembrar uma das considerações de Deleuze (2013) sobre essa diferença,
referindo-se ao importante estudo sobre o filósofo Spinoza.
Assim, a ética não pode prescindir da ação do pensamento e de todos os
conhecimentos criados pela engenhosidade humana, sejam científicos ou
não-científicos, como é o caso dos saberes e práticas vernaculares e culturais,
no sentido amplo, e que se remetem ao grande acervo acumulado pelo ano-
nimato humano, principalmente no trato com a natureza e com a imensa
diversidade artística, transmitida de geração à geração.
Mais do que em cumplicidade com esses conhecimentos, a ética deve
saber escolher a sabedoria como guia, pois dela dependem as boas escolhas
que muitas vezes estão aquém ou além desses próprios conhecimentos. Afi-
NATUREZA DA ÉTICA E ÉTICA DA NATUREZA 105

nal, a felicidade não é um assunto apenas de lógica; muito mais do que isso,
é um assunto de coração e das emoções e, na maioria das vezes, lida com a
simplicidade da vida. Na ética da natureza, violar esse princípio é ceder a
uma má escolha.

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