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da natureza:
pensar, fazer, subjetivar,
4
julgar e decidir no
socioambientalismo
Dimas Floriani
Sociólogo, Universidade Federal do Paraná — UFPR
INTRODUÇÃO
1
Sou devedor, em algumas das principais passagens desta introdução e em seções
seguintes, das sábias aulas da filósofa mexicana Dra. Juliana González, em seu curso à distân-
cia sobre Ética y naturaleza humana (EaD), nas quais apresenta um modelo interpretativo na
qual a ética não está separada das teorias filosóficas, científicas, religiosas, políticas e estéticas,
em que se situa o debate desde os gregos antigos e as ciências da natureza e da vida contem-
porâneas. Para seguir as aulas, pelo site da UNAM, visitar http://www.grandesmaestros.unam.
mx/; acessado nos meses de agosto e setembro de 2017.
2
Para um maior aprofundamento sobre o debate acerca dos conceitos de “formação
histórica”, “regime de enunciados” e “visibilidade”, consultar Deleuze (2013a)
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3
A psicanálise e a antropologia tratam desta questão pela abordagem do mito ou do
arcaico que está presente no inconsciente humano e válido para a condição humana, indepen-
dentemente das circunstâncias histórico-culturais: o inconsciente não teria história, segundo
Lacan, da mesma maneira que a ideologia para Althusser.
NATUREZA DA ÉTICA E ÉTICA DA NATUREZA 79
em brancas nuvens, sem examinar o sentido das escolhas, a vida não merece
ser vivida.
O maior desafio seria então evitar o mal, pois este representaria a des-
proporção. Emerge então a seguinte pergunta para o filósofo: onde encontrar
o meio justo? Uma vida equilibrada seria aquela defendida por Aristóteles,
que consegue associar o prazer à virtude e que se traduz em uma vida mis-
ta, composta pela ética, pela política e pela contemplação. Dessa maneira,
uma conduta ética nos exortaria a não nos exceder, estabelecendo um equi-
líbrio entre o embate representado por Dionísio (o irracional) e por Apolo
(o racional).
A conduta da desproporção, do excesso, do viver sem limites pareceria
antecipar o alerta sobre a forma de viver, de produzir e de consumir dos
modernos, especialmente se levarmos em conta como vivemos nossas expe-
riências com a natureza usada como recurso produtivo, pelo produtivismo
exacerbado de mercado.
Embora ética e moral tendam a ser confundidas, consideradas como
designações inseparáveis uma da outra, suas matrizes conceituais respondem
a princípios bastante diferentes, segundo a perspectiva filosófica adotada;
nesse sentido, Deleuze reivindica o argumento de Spinoza a esse respeito: “a
Ética, isto é, uma tipologia dos modos imanentes de existência, substitui a
Moral, que se refere sempre à existência e a valores transcendentes. A moral
é o juízo de Deus, o sistema do Juízo. Porém a Ética solapa o sistema do juízo.
Substitui a oposição dos valores (bem-mal) pela diferença qualitativa dos
modos de existência (bom-mau)” (Deleuze, 2013b, p. 34). Outra diferença
possível reside talvez na maneira como são vividos e representados os valores,
embora seja possível considerar ambas (ética e moral) como partes de uma
mesma moeda.
Em princípio, quando se é instado a defender ou a aceitar um determi-
nado valor que envolva crença e identificação sobre determinada posição
assumida frente à realidade (questões de princípio, de preferências, de
simpatia e antipatia frente a um conjunto de sentimentos morais e políticos)
não se questiona o porquê dessas escolhas; ocorre apenas uma aceitação ou
rejeição de tais escolhas, muitas vezes incondicionais. Esses modos diferen-
tes de subjetivação, abordados mais adiante, além de culturais, fazem parte
de uma coleção de valores que se expressam por meio de justificativas
frente à realidade e, em muitos casos, assumem aspectos ideológicos sobre
crenças políticas e religiosas. No limite, podem funcionar como mecanismos
de reforço ao racismo, rejeição ao diferente e caldo de cultivo para formas
de dominação autoritária e repressiva. Sendo assim, e uma vez que os valo-
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Durkheim (2014) dirá a esse respeito que a moral regula o sistema jurídico da aplica-
ção do direito, especialmente nos aspectos penais: na medida em que a aplicação de uma pena
mais severa é diretamente proporcional ao grau de repulsa que determinados crimes provo-
cam nas pessoas; o sistema de tabus (incesto, antropofagia, culto aos mortos etc.) é uma ma-
neira indireta ou arcaica de regular o sistema de normas das sociedades.
Por outro lado, nas sociedades ocidentais contemporâneas, os mandamentos dos valores
morais representam uma espécie de liquidez baumaniana, especialmente no domínio com-
portamental, seja na adoção de padrões em desacordo ou até radicalmente opostos aos da
religião, como no caso da sexualidade, estrutura e composição familiar, denúncia a assédios,
direito ao aborto etc.
Assim, o que pode ser admissível em um tempo histórico ou em determinadas culturas,
pode ser ou tornar-se objeto de reprovação em outros contextos. Tal é o caso dos limites que
um sistema social define como aceitável, por exemplo, na exploração dos recursos naturais e
nas ameaças de extinção de espécies animais.
NATUREZA DA ÉTICA E ÉTICA DA NATUREZA 81
5
O filme Gattaca: a experiência genética (EUA, 1997) refere-se ao futuro (não muito
distante!), no qual Gattaca é uma empresa que realiza viagens espaciais. O DNA humano é
analisado para determinar toda a vida da pessoa desde o nascimento, por exemplo, e a que
doenças cada uma delas está propensa. Mais do que simplesmente apresentar o que represen-
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Não há como separar modos de pensar dos modos de fazer e dos modos
de subjetivação, para utilizar uma expressão de Foucault (cuidados de si) re-
tomada por Deleuze (2015). O amálgama desses atributos no modo de ser
social e, portanto, cultural das sociedades humanas, segundo suas singulari-
dades, define os contornos ou os padrões ontológicos diferenciados entre
modos de viver, modos de perceber e nomear o mundo e de se apropriar
material e simbolicamente dele. Contudo, esses contornos e essas regras que
definem os padrões ontológicos de cada cultura são facultativos e não mecâ-
nicos, embora expressem ou conformem padrões.8
Como fundamento, nota-se nos modos de pensar de cada uma das cul-
turas (orientais, ocidentais, africanas, latino-americanas, oceânicas, polinésias
etc.) que se aparentemente trata-se de mecanismos lógico-simbólicos com
similitudes, o que define essas diferentes formas são de fato os processos de
significação e de identificação cultural com a natureza e a maneira de repre-
sentá-la desde as práticas materiais de sua apropriação e transformação. Vale
repetir, a esse respeito, o que já foi dito por outros autores: não há natureza
isenta de cultura, e a natureza é a expressão cultural da matéria.
Nesse sentido, Deleuze (2015) refere-se a um autor e agrônomo francês,
André Haudricourt (1962) que, juntamente com Louis Hédin (1943), opõe
dois tipos de pensamento filosófico: o ocidental, marcado pela transcendên-
cia, e o oriental, marcado pela imanência, de acordo com as formas de culti-
vo dos alimentos, ou seja, pelo tratamento diferenciado em relação aos vín-
culos e trocas com as práticas de transformação da natureza.
As filosofias da imanência que caracteriza o Oriente estão ligadas ao
cultivo do arroz e não à criação de ovelhas, como no Ocidente.9 Evidentemen-
8
Nosso objetivo neste texto não é examinar exaustivamente as implicações da ética no
conjunto desses elementos adiantados nesta apresentação da discussão; o intuito dessa refe-
rência é sinalizar que as interfaces que correspondem a esse quadro analítico associam-se a
uma complexidade crescente de discussão da ética. Nesta passagem, nos contentaremos a
abordar sumariamente a relação que a ética mantém com os modos de pensar, os modos de
fazer e os modos de subjetivação, uma vez que são fatores constitutivos indissociáveis e que
condicionam o que se pode considerar como elementos ontológicos dos modos (de subjeti-
vação, do fazer e do saber ou pensar), mas variáveis em cada circunstância histórica e cultural
das sociedades humanas. Ontológica, nesta acepção, significa o que constitui a estrutura e
organização das formações históricas das sociedades, sendo referidas aqui como “modos”.
9
“Há também uma diferença radical em termos de sistemas de criação de animais. Por
quê? [...] O Ocidente acabou tendo uma vantagem tecnológica considerável. Soube resolver
84 ÉTICA SOCIOAMBIENTAL
São como dois modos que fazem intervir inclusive a maneira pela qual o
homem pensa a si mesmo. Posso dizer que o homem ocidental, tanto em sua
agricultura como na criação de animais, pensa-se de uma certa maneira. Sob
que forma? É muito curioso que o homem ocidental irá pensar-se sob a forma
de pastor. Ou de semeador, que é similar. O semeador é o pastor dos grãos, não
é? Tomem o modelo político de Platão: o político é o pastor dos homens. Jamais
se atreveria Platão a dizer que é o jardineiro dos homens. Eu diria que a forma-
criação de animais foi determinante nas formações ocidentais para pensar o
homem. A forma-jardinagem, que é uma forma vegetal, e de certa relação com
o vegetal, o vegetal como linhagem pura, o vegetal como o que se enterra, im-
plica uma maneira completamente diferente de pensar o homem. Então Hau-
dricourt extrairá uma ideia: que as filosofias ocidentais da transcendência estão
ligadas a isso. Daí seu resumo fulgurante: a transcendência é a ovelha. Enquan-
to as filosofias da imanência, as filosofias do Oriente, estão ligadas a essa outra
situação. (Deleuze, 2015, p. 42-3)
com rapidez seu problema de coexistência entre criação de animais e agricultura. Enquanto
no Oriente essa coexistência e sua rivalidade apresentaram problemas consideráveis. [...] No
caso da Oceania e China, é preciso manter fechado o porco para evitar que se apodere do
alimento humano. [...] Isso explicará muitas coisas, por exemplo, sobre duas características:
que a alimentação não seja à base de carne no Oriente e a importância do arroz e a ausência
de utilização da tração animal” (Deleuze, 2015, p. 42).
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Ao buscar respostas à pergunta “por que a filosofia nasceu na Grécia e possui uma
relação com a Grécia?” Deleuze (2015, p. 83 e segs.) identifica 3 tipos de respostas: a primeira,
NATUREZA DA ÉTICA E ÉTICA DA NATUREZA 85
de ordem filosófica, se refere à revelação do ser; resposta esta dada por Hegel e Heidegger
conforme Deleuze (2015); a segunda resposta é de ordem histórica (Vidal-Naquet, Vernant e
Detienne, citados por Deleuze, 2015) e, segundo ela, não é que na Grécia se revela o ser, mas
que aí aparece ou se organiza um novo espaço cósmico e social; finalmente, a terceira respos-
ta, que não é estritamente filosófica nem histórica, nos é dada por Nietzsche, segundo ainda
Deleuze, que afirma que os filósofos gregos inventaram novas possibilidades de vida; trans-
formaram o pensamento em arte.
11
Hannah Arendt é um dos espíritos mais esclarecidos sobre a relação entre o mundo
clássico e o mundo moderno ocidental. Em A condição humana (2007), nos apresenta os
fundamentos da modernidade, assim como o seu ocaso agônico.
12
A ideia de trabalho humano é tardia e corresponde à emergência do trabalho assala-
riado na época da revolução industrial; o debate sobre o papel do trabalho livre e assalariado
dominou o debate da economia política (Smith, 1983; Ricardo, 1982 e Marx, 1980) e se esten-
deu ao longo dos últimos 200 anos. Não causa surpresa que o debate sobre a importância da
economia na vida das pessoas no capitalismo passa pela sua dimensão ética. Smith refere-se
aos sentimentos morais e às vantagens da divisão técnica do trabalho para defender a ideia de
eficiência e da criatividade humanas. Max Weber trata dessa questão na conduta moral das
motivações religiosas, considerando que as profissões funcionavam como equivalentes à vo-
cação ou chamamento religioso na ética protestante.
86 ÉTICA SOCIOAMBIENTAL
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A obra crítica e expositiva sobre os processos de subjetivação em Foucault, fruto de
um curso ofertado por Deleuze nos idos de 1986, dois anos após a morte daquele autor, foi
publicada em 3 livros: o primeiro sobre o poder, o segundo sobre o saber e o terceiro sobre a
subjetivação. Nesse livro sobre a subjetivação (Deleuze, 2015), entre as páginas 111 e 126, mas
recorrentemente retomado ao longo do mesmo, é apresentado o processo de constituição da
subjetivação, por meio da teoria da dobra (pli em francês), sua relação com a força e com o
saber, como duas expressões de efetivação do poder. Três diferentes perguntas (O que posso?
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O que sei? O que sou?) respondem a três problemas interligados: do poder, do saber e da
subjetivação (p. 141). Contudo, a leitura que Deleuze faz da subjetivação é que esta possui seu
próprio modo de ser e que surge da própria invenção e, em muitos casos, do seu desvio em
relação ao poder.
88 ÉTICA SOCIOAMBIENTAL
Se for de fato verdade que somos, por assim dizer, divididos, infundados
ou incoerentes desde o princípio, será impossível encontrar fundamentos para
uma noção de responsabilidade pessoal ou social? Argumentarei o contrário,
mostrando como uma teoria da formação do sujeito, que reconhece os limites
do conhecimento de si, pode sustentar uma concepção da ética e, na verdade,
da responsabilidade. Se o sujeito é opaco para si mesmo, não totalmente trans-
lúcido e conhecível para si mesmo, ele não está autorizado a fazer o que quer ou
a ignorar suas obrigações para com os outros. Decerto o contrário também é
verdade. A opacidade do sujeito pode ser uma consequência do fato de se con-
ceber como ser relacional, cujas relações primeiras e primárias nem sempre
podem ser apreendidas pelo conhecimento consciente. Momentos de desconhe-
cimento sobre si mesmo tendem a surgir no contexto das relações com os outros,
sugerindo que essas relações apelam a formas primárias de relacionalidade que
nem sempre podem ser tematizadas de maneira explícita e reflexiva. Se somos
formados no contexto de relações que para nós se tornam parcialmente irrecu-
peráveis, então essa opacidade parece estar embutida na nossa formação e é
consequência da nossa condição de seres formados em relações de dependência.
(Butler, 2015, p. 32-3)
tos, já que ao tratá-la como simples objeto de uso e de exploração, fere sua
vulnerabilidade; ao ferir sua vulnerabilidade, estamos ferindo a do ser huma-
no, que é indissociável das condições materiais e naturais que regem a vida.
Nesse sentido, uma teoria da ética voltada à dimensão da natureza envolve
um amplo debate filosófico sobre o que se entende por natureza e por ser
humano.14 O reconhecimento desse fundamento cria as condições de uma
reivindicação ética.
Os modos de subjetivação em relação à natureza e à vida seguem, da
mesma maneira que os demais códigos e normas morais, os regimes de ver-
dade reconhecidos pelos sujeitos individuais e coletivos, segundo a lógica
anteriormente desenvolvida em relação às teorias de Foucault, apresentadas
por Deleuze (2013a) e Butler (2015).
Ressalte-se, contudo, que as atitudes de indignação, de condenação ou
então em seu sentido oposto, de exaltação a outros padrões de conduta, de-
correm dos novos sentimentos sobre a vida, e depois são reafirmados por uma
ação política relacional sobre uma extensa pauta de questões, tais como: o
tratamento dispensado aos animais, às plantas e florestas, aos rios e mares, à
qualidade do ar, ao consumo desenfreado, aos impactos de megaprojetos
sobre a vida de populações nativas, da crítica sobre concepções de desenvol-
vimento e de (in)justiça ambiental, dos riscos provocados pelos mecanismos
econômicos e políticos e seus reflexos sobre as mudanças climáticas. O con-
junto desses fatores constitui alguns dos novos temas que foram paulatina e
socialmente estabelecidos e que tendem a erigir-se em novo regime de verda-
de, não isento de conflitos e confrontos com o regime de verdade imperante.
Dessa maneira, é possível analisar historicamente os modos de subjeti-
vação em torno das concepções de natureza, da corporeidade, das formas de
apropriação e usos feitos pelas sociedades e dos conflitos decorrentes das
14
Deleuze (2013), leitor de Spinoza, nos reporta a seguinte versão desse filósofo do sé-
culo XVII sobre o humano: “Define-se um animal ou um homem não por sua forma nem
tampouco como um sujeito, mas pelos afetos dos quais é capaz. Capacidade de afetos com um
limiar máximo e um limiar mínimo é uma noção comum em Spinoza” (p. 151). Afeto deve
ser entendido aqui como capacidade de afetar (modificar) mais do que possuir apenas capa-
cidade de afeição emocional.
Morin (1984), por sua vez, associa o humano com as dimensões antropo-socio-biológi-
cas: “não se trata em absoluto de reduzir o humano às interações físico-químicas; trata-se de
reconhecer os níveis de emergência. [...] A ciência física não é puro reflexo do mundo físico,
mas uma produção cultural, intelectual, noológica, cujos desenvolvimentos dependem de
uma sociedade e das técnicas de observação/experimentação produzidas por esta sociedade.
[...] É preciso, então, enraizar o conhecimento físico, e igualmente o biológico, em uma cultu-
ra, uma sociedade, uma história, uma humanidade (Morin, 1984, p. 315).
NATUREZA DA ÉTICA E ÉTICA DA NATUREZA 91
O que conta como fato científico não depende apenas do mundo natural,
mas também de onde, quando e por quem é feita a pesquisa. O conhecimento
científico nunca viaja intacto de um ambiente para outro. É constantemente
adaptado e absorvido de maneiras diferentes, pois tem geografias e histórias
diferentes. (Fara, 2014, p. 3)
de vida, seus múltiplos sentidos, por parte dos cientistas que em nome da
objetividade assumem a renúncia de buscar um sentido a ela, contentando-se
em descrevê-la ao desvendar os mais escondidos segredos dos seres vivos. Para
não separar a vida de sua negação, a morte e seus desafios, com a crise da
metafísica do início do século XX, o sociólogo alemão Max Weber (1970)
apresentou essa discussão a partir das reflexões do escritor russo León Tolstoi,
para quem a morte teria perdido seu sentido na modernidade ocidental.
Justamente porque a vida se havia tornado provisória e contingente é que a
morte não faria mais sentido, já que nunca estaríamos saciados para cumprir
com nossa passagem terrena.
Contudo, o debate sobre a negação da vida que é feita hoje, fora do do-
mínio religioso ou metafísico pelas ciências da vida e da natureza, é muito
mais abrangente e integra o debate na termodinâmica sobre a relação matéria
e energia (entropia), sendo retomada pelo debate das ciências ambientais e
de algumas correntes da economia ecológica (Roegen, 1996; Cavalcanti, 2004)
e da ecologia política (Martinez Alier, 2011; Leff, 2014), sobre os limites físi-
cos dos sistemas naturais.
Embora o debate na filosofia da ciência reconheça que o conhecimento
científico não postule questões teleológicas como o discurso religioso, é pro-
blemático afirmar que a ciência é um sistema isento de valores. Se a ciência
aspira a desvendar a realidade tal qual é, não pode evitar de colocar-se ques-
tões conexas, tais como: para que serve o que descobriu, como lidar com
esses resultados, que usos fazer desses resultados etc. O domínio da “verdade”
é invadido por questões outras às quais ela não tem como responder. Nesse
sentido, o alcance do significado de ciência merece também ser discutido.
Em outros âmbitos da produção e dos usos do conhecimento, tais como
na administração da justiça e do direito modernos, que buscam legitimidade
na ciência, acabam sofrendo o efeito do poder no saber; nesses casos, é evidente
o conflito hermenêutico e político entre a aplicação da norma, que se preten-
de objetiva, e os fantasmas dos valores que orientam o decidir no julgar e no
contexto em que se estabelecem as relações institucionais de poder.15 A dog-
mática jurídica criou uma carapaça pela qual pretende ser neutra frente aos
valores, bastando que se aplique a lei aos fatos, tal qual está formulada em
15
Ao comentar a retomada do poder pelo Estado, nos séculos XVIII e XIX, em Vigiar e
punir de Foucault, antes em mãos do poder pastoral da igreja, Deleuze (2015, p. 120) se inda-
ga a respeito de como o Estado disciplinar toma a subjetividade mais interior nas relações de
poder. Para tanto, constituir-se-ão ciências, ciência moral, ciência do homem; ou seja, saberes
de novo tipo, em que a subjetividade entrará sob um controle e uma dependência que invo-
carão a ciência.
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16
Consultar a esse respeito as propostas de uma ecologia das práticas na ciência de Isa-
belle Stengers (2002, 2006) e de John Ziman (1996, 2000), sobre o papel da ciência pública e
de seu estatuto epistemológico, entre outros autores.
94 ÉTICA SOCIOAMBIENTAL
É comum hoje ouvir que o respeito cada vez maior à vida é um signo de
civilização. Mas esse efeito civilizatório não corresponde necessariamente a
uma evolução linear nem contínua das sociedades, uma vez que avanços
tecnológicos não possuem correspondência com possíveis avanços na escala
dos valores humanos em relação, por exemplo, ao respeito e à preservação da
vida. Muito pelo contrário, se observarmos o tremendo avanço na produção
de armamento e as dificuldades de promover a paz entre os povos.
17
Em sua resenha, o neurocientista Jesús Ramírez-Bermúdez (2009), assim se refere a
este debate: “O problema corpo-alma tem sido reformulado pela neurociência contemporâ-
nea como problema cérebro-mente. A tese do “homem neuronal”, exposta pelo cientista Jean
Pierre Changeux, representa o materialismo reducionista, discutida pelo fenomenólogo Paul
Ricoeur, que adverte para um dualismo semântico inerente à experiência, e defende o valor
simbólico das narrativas religiosas e a riqueza semântica do discurso metafórico. Ambos os
autores coincidem sobre o valor da arte como promotora de paz” (p. 69).
Para ampliar o debate conduzido pela paleontologia, ciências biológicas, linguística e
antropologia sobre a evolução da anatomia humana, especialmente sobre o esfenoide como
um osso craniano estratégico para as sucessivas adaptações e que permitem o aprendizado e
o desenvolvimento da linguagem, e na perspectiva das consequências futuras para a forma-
tação do homem, consultar o documentário: O homem do futuro – [HD] documentário
dublado, 2017. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=FCX-VcdAVuA: acessado
em: mai. 2017. Adicionalmente, o debate sobre o papel da técnica como uma dimensão in-
trínseca da cultura humana é tratado como modo de existência dos objetos técnicos por Si-
mondon (2001).
NATUREZA DA ÉTICA E ÉTICA DA NATUREZA 95
Nesse sentido, teria razão Lévi-Strauss (1998) em seu texto sobre raça e
história ao afirmar que o bárbaro é antes quem considera o outro como tal?
Na perspectiva das questões socioambientais, o conceito de civilização se
aproximaria mais, então, daqueles modelos de sociedade em que se verifica
um contato direto com a natureza, pouco mediada pela técnica? Resta saber,
então, em que medida as sociedades tecnologicamente desenvolvidas passam
a ser garantia de um maior respeito à vida e à garantia de sua reprodução já
que operam com a segunda ou terceira natureza, ou seja, com uma relação
altamente sofisticada pela mediação tecnológica.
Sabe-se que não pode haver uma ética que se desentenda com o corpo,
mesmo que a corporeidade represente uma diversidade de aspectos que vão
desde a pesquisa científica sobre sua constituição, especialmente desde as
neurociências, a medicina genética, a biologia molecular, as ciências cogniti-
vas e a nanotecnologia aplicada ao combate de doenças. Dessa maneira,
desvendar as potencialidades do corpo e da mente não deixa de abrir janelas
inovadoras para adentrar-se no domínio do pouco ou quase nada conhecido
sobre o que é afinal o cérebro.
As novas descobertas nesses novos domínios da pesquisa científica per-
mitem, por sua vez, repensar a própria condição da espécie humana e de sua
condição existencial, frente aos mistérios da matéria que se faz vida e que é
expressão dessa grandeza, o que significa em um certo sentido buscar recon-
ciliar-se com a vida, em bases diferentes daquelas que até há pouco impediam
de conhecer os novos avanços.
Portanto, é questionável e relativo pressupor que o avanço tecnológico
por si só favorece a aquisição de um maior grau de felicidade e de bem-es-
tar para todos e em igual escala; de igual maneira, considerar que a vida
atual é melhor do que a do passado nos autorizaria, pelo avanço volumoso
de tecnologias, a reconhecer que, em muitos aspectos, sim. Mas, em relação
às demais vantagens, pode-se fazer a seguinte indagação: até que ponto o
progresso técnico pode nos dizer que nos reconciliamos com a vida e a
natureza?
Ainda, nessa direção, indagamo-nos se é possível afirmar que a ética está
enraizada na natureza, por tudo aquilo que a pesquisa científico-tecnológica
nos tem trazido para conhecer melhor as potencialidades e os limites do
corpo e, consequentemente, tem-se contribuído para ampliar ou questionar,
em bases melhores, o significado da vida. Permanecem então as indagações
anteriores, reformuladas agora da seguinte maneira: se a ciência poderia estar
nos dizendo, como eco daquilo que é mais arcaico no imaginário do ser hu-
mano, de que viver mais, graças ao avanço das tecnologias da medicina, seria
96 ÉTICA SOCIOAMBIENTAL
recobrar aquela parte subtraída dos humanos, pelos deuses, quando os hu-
manos ousaram desafiar os mistérios da vida?
Por outro lado e colocando-nos no lugar devido, para referir-nos a algu-
mas das alegorias ocidentais clássicas, tais como os mitos de Prometeu que
ousou roubar o fogo; de Ícaro que ao voar desafiou o sol, e de Zeus que or-
dena que os homens sejam divididos ao meio por querer igualar-se às divin-
dades, poderíamos nos contentar, afinal, com o paradoxo da privação impos-
ta pelos deuses aos seres humanos, uma vez que daquela privação nasce o
desejo de cada ser humano completar-se no outro, devolvendo-nos nossa
própria condição limitada, dependente e finita!
Uma ética da natureza envolve questões vinculadas ao desenvolvimento
de uma consciência ecológica em triplo sentido:
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“Todo leitor de Spinoza sabe que os corpos e as almas não são para ele nem substân-
cias nem sujeitos, mas modos. [...] Se somos spinozistas, não definiremos algo nem por sua
forma nem por seus órgãos e funções, nem como substância ou sujeito. [...] Um corpo pode
ser qualquer coisa, um animal, um corpo sonoro, uma alma ou uma ideia, um corpus linguís-
tico, um corpo social, uma coletividade” (Deleuze, 2013, p. 151 e 155).
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Manifesto pela vida – por uma ética para a sustentabilidade, redigido no Simpósio
sobre Ética e Desenvolvimento Sustentável, celebrado em Bogotá, Colômbia, em 2-4 de maio
de 2002 e assinado por 35 intelectuais de 13 países latino-americanos, além de um represen-
tante do PNUD e outro do PNUMA. O manifesto pela vida apresenta 54 itens distribuídos
em 9 eixos temáticos (42 itens), incluindo a Introdução (10 itens) e o Epílogo (2 itens). Os
eixos temáticos apresentam uma fundamentação filosófica dos seguintes princípios e suas
interfaces com a ética: 1) produção para a vida (3 itens); 2) conhecimento e diálogo de sabe-
res (9 itens); 3) cidadania global, espaço público e movimentos sociais (5 itens); 4) governa-
bilidade global e democracia participativa (4 itens); 5) direitos, justiça e democracia (5
itens); 6) bens comuns e Bem Comum (3 itens); 7) diversidade cultural e política da diferen-
ça (5 pontos); 8) paz e diálogo para a resolução de conflitos (4 itens); e 9) ser e tempo da
sustentabilidade (4 itens).
100 ÉTICA SOCIOAMBIENTAL
ingênua e que se curva à inércia das normas impostas; opor-se a uma ética
da resignação que cede diante de uma realidade unilateralmente imposta e
aceita acriticamente.
Muitos dos juízos morais dominantes têm a pretensão de universalida-
de e não questionam as bases sociais e políticas historicamente estabelecidas,
legitimando a desigualdade social, o incitamento à meritocracia em socie-
dades de classe como único valor para os indivíduos (quando a meritocracia
já advém de bases de oportunidades desiguais e elitizadas), creditando uni-
camente aos indivíduos os méritos de mobilidade social, ignorando que o
capital social e o habitus de classe obedecem ao princípio da reprodução
social desigual.
Uma ética socioecológica rejeita a lógica da submissão aos valores domi-
nantes como legítimos e inquestionáveis. Propõe rever e revisar os fundamen-
tos da racionalidade instrumental e da mercantilização da natureza, da vio-
lência contra a diferença e a diversidade cultural. Propõe a resistência das
populações originárias e tradicionais excluídas do sistema social dominante,
que reivindicam para si e para os demais o saber cuidar, a produção de ali-
mentos em bases agroecológicas (soberania e segurança alimentar), zelando
pela saúde, não contaminando a terra de agrotóxicos e defensivos que colocam
em risco o equilíbrio dos ecossistemas. Opõe-se ao extrativismo desenfreado
dos recursos naturais, à mineração e aos megaprojetos, sob a lógica estrita do
capital e das políticas de Estado que sustentam os interesses do grande capi-
tal e ameaçam as formas de vida de povos e comunidades que habitam e
convivem secular ou milenarmente em seus territórios.
Uma ética socioecológica não deve estar desvinculada do debate a res-
peito de uma justiça e injustiça ambientais, em que se apresentem os funda-
mentos sobre o direito de questionar os excessos cometidos pelo sistema
hegemônico de produção, e das salvaguardas e defesa dos setores sociais
historicamente invisibilizados e marginalizados pelo poder de concentração
da riqueza e da propriedade da terra, tais como as populações indígenas,
camponesas, populações urbanas periféricas etc. Essa nova ética, segundo o
Manifesto pela vida (2002) “deve inspirar novos marcos jurídicos institucionais
que reflitam, respondam e se adaptem ao caráter tanto global e regional, como
nacional e local das dinâmicas ecológicas, assim como a revitalização das
culturas e seus conhecimentos associados” (item 31).
Ao caracterizar a crise ambiental atual como uma crise do modelo civi-
lizatório que atinge hoje uma escala global, o Manifesto pela vida (2002), em
sua introdução, responsabiliza o modelo econômico, tecnológico e cultural
pela atual degradação do meio ambiente e as condições de vida; ao subvalo-
NATUREZA DA ÉTICA E ÉTICA DA NATUREZA 101
CONSIDERAÇÕES FINAIS
nal, a felicidade não é um assunto apenas de lógica; muito mais do que isso,
é um assunto de coração e das emoções e, na maioria das vezes, lida com a
simplicidade da vida. Na ética da natureza, violar esse princípio é ceder a
uma má escolha.
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