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Ref.

MELLO, Gláucia B. R. de. Yurupari. O mito entre os Povos Indígenas do Alto Rio Negro-
AM. Artigo de comunicação oral publicada nos Anais da 28ª. Reunião Brasileira de
Antropologia. São Paulo - SP: PUC-SP, 02-07/07/2012 [ISBN 978-85-87942-07-4].
Disponível em:
http://www.abant.org.br/conteudo/ANAIS/CD_Virtual_28_RBA/programacao/grupos
_trabalho/artigos/gt04/Glaucia%20Buratto%20Rodrigues%20de%20Mello.pdf

Resumo
Através desta comunicação apresento alguns elementos de pesquisa sobre o complexo
cultural das flautas sagradas dos povos indígenas do Alto Rio Negro-AM. Entre os objetivos
da pesquisa está o de trazer aporte antropológico para estudos musicológicos sobre o tema,
com a análise das implicações sociais e da eficácia simbólica deste mito, expressas no
comportamento das mulheres desana (grupo tukano) e baniwa (grupo aruak). No centro deste
complexo, portador da tradição cultural e interdito às mulheres, Yurupari é dotado de
enorme complexidade cultural e apresenta-se como um dos principais mitos ameríndios,
prestando-se a variadas versões e interpretações. Ele aparece na cosmologia dos povos do
Alto Rio Negro com diversas denominações e algumas alcunhas importantes como “dono das
flautas sagradas”, “dono do xamanismo”, “dono do rito de puberdade masculina”, “dono de
cantos e danças”; em uma palavra, ele representa a essência da tradição cultural daqueles
povos. A pesquisa tem caráter exploratório e está baseada nas etnografias disponíveis e em
trabalho de campo, realizado em São Gabriel da Cachoeira-AM e no distrito de Iauaretê-
AM. Os fundamentos teóricos e metodológicos tomados da teoria antropológica do
imaginário de G. Durand sustentam as análises simbólica e comparativa das variantes do
mito de Yurupari nas versões tukano e aruak, associadas às cerimônias rituais e ao
xamanismo, destacando, aqui, alguns elementos estruturais para a eficácia simbólica e a
influência social do mito.
Palavras-chave
Yurupari; Jurupari; Desana; Baniwa; Povos indígenas do Alto Rio Negro-AM; Complexo
cultural das flautas sagradas; Mitologia indígena
Abstract
Through this communication I present some elements of postdoctoral research, hosted by the
Research Group GPMIA/ICA/UFPA, which concentrates its studies on the relation between
myth and music on the indigenous peoples of the Upper Rio Negro-AM, pointed on the
complex of the sacred flutes. The objective of the research is to bring an anthropological
contribution to the theme, with the analysis of the social implications and the symbolic
efficacy of this myth, expressed in the behavior of women desana (tukano group) and baniwa
(aruak group). In the center of this complex, bearer of cultural tradition and interdicted to
women, Yurupari is endowed with enormous cultural complexity and presents itself as one of
the main Amerindian myths, lending itself to various versions and interpretations. He appears
in the cosmology of the peoples of the Upper Rio Negro with various denominations and some
important nicknames as "owner of the sacred flutes", "owner of shamanism", "owner of the
rite of male puberty", "owner of songs and dances"; in a word, it represents the essence of the
cultural tradition of those peoples. The research is exploratory and based on available
ethnographies and fieldwork, carried out in São Gabriel da Cachoeira-AM and in the district
of Iauaretê-AM. The theoretical and methodological supports taken from the anthropological
theory of the imaginary of G. Durand support the symbolic and comparative analyzes of the
variants of the Yurupari myth in the Tukano and Aruak versions, associated with ritual

1
ceremonies and shamanism, highlighting here some structural elements for the symbolic
efficacy and the social influence of myth.
Key words
Indigenous peoples of the Upper Rio Negro-AM; Cultural complex of the sacred flutes;
Amerindian myths; Yurupari; Jurupari

2
Yurupari. O mito entre os povos indígenas do Alto Rio Negro-AM1

Gláucia Buratto Rodrigues de Mello2

Introdução

O alcance e importância das publicações de livros sobre mitologias cujos autores são
indígenas apoiados por antropólogos foram apresentados e discutidos por Andrello (2010) no
caso específico das publicações da FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Rio
Negro) na ‘Coleção Narradores Indígenas do Alto Rio Negro’, coleção que está no seu oitavo
volume, relativos a versões das mitologias dos Desana, Tukano, Tariano e Baniwa, povos
indígenas do Alto Rio Negro. A iniciativa vem atendendo ao interesse dos indígenas e dos
estudiosos das mitologias indígenas pela autenticidade das narrativas, ao mesmo tempo em
que representa uma preservação cultural para as novas gerações indígenas. Foi dessa coleção
que extraímos as versões que servem para análise desta comunicação, mais especificamente,
do volume 7, intitulado Livro dos Antigos Desana – Guahari Diputiro Porã3, e do volume 3,
intitulado Waferinaipe Ianheke. A Sabedoria dos nossos Antepassados. Histórias dos
Hohodene e dos Walipere-Dakenai do Rio Aiari4, acrescentando a elas dados de extensa
literatura etnográfica sobre o assunto e dos trabalhos de campo realizados nos períodos de
30/01/2011 a 20/02/2011, na região de São Gabriel da Cachoeira e de 11/10/2011 a
08/11/2011 nas regiões de São Gabriel da Cachoeira e Iauaretê, no noroeste do Estado do
Amazonas, onde pudemos estabelecer aproximação com aquela realidade sociocultural.
A escolha das versões do mesmo mito nestes dois volumes se justifica pelo foco da
nossa reflexão no campo da etnomusicologia com uma contribuição antropológica aos estudos
sobre o complexo das flautas sagradas, fortemente expressivo na versão desana. Buscamos na
versão baniwa do mesmo mito estabelecer um contraponto comparativo nas atividades
xamâmicas, mais fortemente expressivas naquela versão do mito, entendendo-as naturalmente

1
Pesquisa realizada no período de pós-doutoramento em Artes, concentração na área de Etnomusicologia, no
Programa de Pós-Graduação em Artes (PPGArtes), do Instituto de Ciências da Arte (ICA), da Universidade
Federal do Pará (UFPA), em Belém-PA, com apoio do Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD/CAPES),
no período de janeiro/2011 a fevereiro/2013, com o desenvolvimento de Projeto intitulado: Yurupari, o Dono
das Flautas Sagradas dos Povos do Rio Negro-AM. Mitologia e Simbolismo, com as supervisões da Dra. Líliam
Barros (UFPA) e do Dr. Robin Wright (DR/CLAS/University of Florida).
2
Antropóloga e socióloga. Pós-Doutoranda, bolsista CAPES/PNPD PPGArtes/UFPA, 2011-2013.
3
Páginas 27 a 71, narrado por Tõrãmu Bayaru (Wenceslau Sampaio Galvão) e Guahari Ye Mi (Raimundo
Castro Galvão).
4
Páginas 52-73, narrado por Ricardo Fontes, de Ucuqui Cachoeira.

3
como adjuvantes, complementares, prestando-se aqui, ambas as versões, à nossa investigação
sobre a eficácia simbólica e suas implicações sociais no comportamento das mulheres
indígenas, determinado pelo mito.
Yurupari é um nome que os missionários religiosos deram ao ser sobrenatural que eles
identificaram, mas não souberam bem compreender e, equivocadamente, associaram ao
demônio, por sua potência essencialmente ambígua e por sua importância entre os povos que
eles buscaram evangelizar. O nome Yurupari é uma corruptela do termo “Yurupari”, que vem
do nheengatu, que associa yuru (boca) + pari (cercadura, armadilha para peixe) e que
podemos simbolicamente associar com “boca fechada”, aproximando assim o mito de uma
verdadeira “instituição do segredo”, tal como o antropólogo Darcy Ribeiro (1982) teria
apreendido. Naturalmente, os indígenas têm suas próprias denominações para esta entidade
poderosa, mas o nome Yurupari passou a ser corrente nas comunicações entre as sociedades
indígenas e as não-indígenas, sobretudo nestas últimas, nas quais o seu espectro foi
consideravelmente ampliado e desgastado.
Mesmo considerando a inadequação do nome Yurupari para a entidade que passo a
analisar, assumi o risco de utilizá-lo aqui, devido à necessidade de um nome genérico e
popular para tratar do mito em sua acepção generalizada e para abordá-lo nas suas
especificidades. O Yurupari dos Desana é denominado Miriá Porâ Masú, sendo
sobrevalorizado5 como o dono6 das flautas sagradas (Mello, 2011) e o Yurupari dos Baniwa é
denominado Kuwai, sendo sobrevalorizado como o dono do xamanismo7. Em ambas as
versões, Yurupari é um dos grandes sustentadores do conhecimento e tradição do complexo
cultural dos povos do Alto Rio Negro.

Metodologia
Para a análise comparativa, extraí os relatos míticos originais do mito de Yurupari nas
versões desana e baniwa das fontes mencionadas e procedi à fragmentação e reestruturação
dos mesmos em mitemas (Lévi-Strauss), de forma a obter as menores unidades de sentido nas
narrativas míticas, e a poder, assim, melhor identificar os elementos comuns e os elementos
particularizados, bem como os símbolos e arquétipos (Jung) estruturadores das narrativas para

5
A sobrevalorização indica aqui um foco mais pontual para efeito de análise; mas, em ambas as versões
etnológicas, Yurupari é responsável por cantos, danças, música, cerimônias, doença e cura.
6
O termo “dono” é amplamente utilizado por eles para designar o responsável por; o criador de.
7
Robin Wright coloca o acento de todo o seu trabalho de algumas décadas sobre os Baniwa neste aspecto do
mito.

4
a análise simbólica, apoiada pelos fundamentos teóricos e metodológicos da teoria
antropológica do imaginário de G. Durand (1992), aplicados às narrativas míticas. A análise
dos arquétipos nas versões permitiu a apreensão e aproximação mais generalizada sobre a
eficácia simbólica do mito; e a análise dos símbolos culturais permitiram a aproximação mais
particularizada sobre as implicações sociais do mito no comportamento das mulheres
indígenas. Ambas as narrativas do mito de Yurupari puderam ser seccionadas em quatro
episódios fundamentais, a saber:
a) a circunstância extraordinária do nascimento de Yurupari;
b) a instituição do rito de puberdade masculina;
c) o surgimento das flautas sagradas e a conquista delas pelas mulheres;
d) o primeiro rito de iniciação feminina e a disputa pela posse das flautas sagradas.
Devido à extensão do mito, não pude transcrever as versões integrais. No entanto, a
apresentação do que há de comum e de alguns dos elementos distintivos ou particularizados
entre ambas as versões deverão prestar-se à apreensão do mito e permitir o seu
acompanhamento na análise que apresento. É preciso reforçar que a complexidade do mito
não se esgota aqui, nem nas numerosas narrativas recolhidas, nem nas interpretações diversas
dos vários pesquisadores que se dobram sobre o tema, com contribuições nos campos da
antropologia, etnologia, lingüística e etnomusicologia. Reforço, por último, que esta
comunicação é parte da pesquisa em andamento, sendo, portanto, provisória e passível de
revisões e correções.

O que há de comum entre as versões desana e baniwa sobre o mito de Yurupari

a) A circunstância extraordinária do nascimento de Yurupari


O Mundo começa no Centro. Um dos Seres Primordiais quis a geração da
humanidade. O ipadu é fundamental para a concepção. As mulheres não tinham vagina -
canal para a concepção e para o nascimento. O Ser Primordial faz vagina na mulher. Sai o
Primeiro Sangue. A mulher não vê o nascimento do seu Primeiro Filho e ele lhe é tirado.
Yurupari é o filho desta mulher. Yurupari é um ser diferente do esperado: ele tem o corpo
cheio de furos por onde saem sons. Yurupari se estabelece no Alto.

5
b) A instituição do rito de puberdade masculina
Yurupari e Sol8 são protagonista e antagonista desse episódio. Eles querem iniciar
meninos nos conhecimentos tradicionais. Esta formação acontece no Centro do mundo. O
Centro do mundo é a casa do Sol, em Uapuí Cachoeira9. Yurupari é chamado para ensinar
música, cantos, danças, rezas e benzimentos. Yurupari exige a observância de rigoroso jejum,
à base de frutas cruas. Yurupari leva os meninos para colher as frutas no mato. Yurupari sobe
numa Árvore. Sob a Árvore há um Fogo. Uma fruta é assada. A fumaça/cheiro da fruta assada
desperta o lado ogresco de Yurupari e uma grande animosidade contra os meninos. Yurupari
devaneia e fala que ele só poderá ser destruído pelo Fogo de certas lenhas. Yurupari manda
uma Chuva grande. Yurupari transforma-se em Casa de Pedra, numa caverna. Os meninos
são atraídos para lá para se protegerem da chuva e são assim engolidos por Yurupari. Menos
um deles, que volta para a proteção de Sol. Yurupari foge para o Céu, sem concluir a
formação dos meninos.
Sol decide festa de caxiri e convida Yurupari. Yurupari sabe sobre as intenções de Sol
e aceita o seu destino. Sol manda buscar as lenhas especiais. Yurupari vai à festa de caxiri.
Ele canta, dança, reza, benze, ensina, termina o jejum. Fora da casa, preparam uma Fogueira
para ele. Yurupari é queimado sobre o Fogo. A alma de Yurupari vai para o Alto. No lugar
onde Yurupari foi queimado, brota uma paxiúba especial.

c) O surgimento das flautas sagradas e a conquista delas pelas mulheres


A paxiúba é o corpo de Yurupari. É para Sol fazer Flautas especiais. A paxiúba sobe
até a Casa do Universo. Sol corta o tronco da paxiúba. Sol fabrica flautas de vários tamanhos.
Sol guarda as flautas dentro d’água e volta para casa. Sol manda seu filho ao porto, bem cedo,
banhar-se e pegar as flautas. As mulheres ouvem as orientações de Sol. O filho de Sol não
consegue acordar-se cedo. As mulheres vão antes dele ao porto. As mulheres encontram as
Flautas. As mulheres aprendem a tocar as flautas. As mulheres tomam as flautas para elas.

d) O primeiro rito de iniciação feminina e a disputa pela posse das flautas sagradas
Os homens se revoltam contra as mulheres: eles querem as Flautas. As mulheres
começam a andar pelo mundo. As mulheres vão encontrando tudo o que precisam para as

8
Ainda que, na versão baniwa, o antagonista Nhãpirikuli não seja exatamente Sol, Wright esclarece que
Nhãpirikuli se manifesta enquanto Luz; ele se apresenta como a luz solar. Assim, por extensão, Nhãpirikuli pode
ser representado aqui como Sol.
9
Uapuí Cachoeira é local de estabelecimento dos Baniwa.

6
cerimônias. As mulheres aprendem os benzimentos e as rezas. As mulheres fazem uma Casa
de Iniciação e passam a presidir as cerimônias. Os homens passam a perseguir as mulheres
para tomarem as Flautas de volta. Os homens descobrem a Casa das Mulheres e planejam um
ataque. Os homens vencem, conseguem tomar de volta as Flautas e reconquistam o
conhecimento tradicional. Os homens dispersam/banem as mulheres para o mundo.

Aspectos distintivos ou particularizados entre ambas as narrativas míticas

Na versão Desana, Sol é Abe. Abe e Miriá Porã Masú são irmãos, filhos da Primeira
Mulher, Bupu Mago. Abe e Miriá Porã Masú pertencem à mesma geração, sendo que Miriá
Porã Masú nasceu primeiro; ele é, portanto, irmão maior de Abe. Na versão Baniwa,
Nhãpirikuli não é Sol, é a manifestação do Sol. Amaru não é a primeira mulher, ela é um
arquétipo de mulher. Segundo o mito, Wright nos esclarece, Amaru é tia de Nhãpirikuli.
Kuwai é o primeiro filho “biológico” de Amaru e é a “criança” de Nhãpirikuli, uma vez que
não contou, da mesma forma como na versão desana, com a participação biológica masculina.
Então, sendo a criança de Nhãpirikuli, Kuwai pertence a uma geração posterior à de
Nhãpirikuli. Em ambos os casos, no entanto, Yurupari não tem pai, ele é um ser híbrido, que
tem mãe biológica fecundada com o consórcio do sobrenatural e aparece em gerações
diferentes nas versões apresentadas.
Na versão Desana, o mundo começa na cabeceira do igarapé Macucu, no rio Papuri,
que é local tradicional de estabelecimento dos Desana; mas, no segundo episódio do mito, a
festa de iniciação acontece no Centro do Mundo, onde mora Abe, e o mito situa esse lugar em
Uapuí Cachoeira, na cabeceira do rio Aiari, local tradicional de estabelecimento baniwa; já no
terceiro episódio, quando Abe traz a paxiúba das Flautas, ele vem descendo o rio Papuri
novamente, trazendo as Flautas e encontrando os elementos de cultura. Na versão Baniwa, o
Centro do mundo está no Hipana ou Uapuí Cachoeira, no rio Aiari; lá, Kuwai é queimado e é
lá que cresce a paxiúba das Flautas. Este dado nos permite pensar, como alguns pesquisadores
(Wright, inclusive), que o mito tenha origem aruak.
Na versão Desana, Miriá Porã Masú nasce e vai, de livre vontade, para o Alto, morar
na Casa do Universo. Na versão Baniwa, Nhãpirikuli manda-o para o Céu porque ele é Kuwai
– não é como Nhãpirikuli queria. Kuwai é assim banido por Nhãpirikuli. Este dado revela
uma certa sujeição de Kuwai por Nhãpirikuli e confirma a autoridade deste sobre aquele,
ausente na versão desana.

7
Na versão Desana, Abe toma a iniciativa de preparar uma festa de caxiri para fazer a
transformação da gente – a festa dos iniciantes. Então, ele convida seus irmãos, convida os
primeiros iniciantes (uma nova geração de meninos) e convida Miriá Porã Masú para ensinar-
lhes os cantos e a música das Flautas. Abe não tem aqui a autoridade e reconhece a
propriedade do conhecimento de Miriá Porã Masú. Ele tem então a iniciativa de convidar
Miriá Porã Masú para a festa de iniciação dos meninos, que é uma forma de introduzi-los na
cultura, na humanidade. O encontro dos meninos, ameaçado pela potência ambivalente de
Miriá Porã Masú, requeria já uma primeira iniciação dos meninos; esta sim, da
responsabilidade dele, Abe. Na versão Baniwa, não há convite: os meninos estavam mexendo
com “coisas de Kuwai” (zumbido, canto, dança, chicote) e, desta forma, eles atraem Kuwai;
são os próprios meninos que pedem que Kuwai lhes ensine os cantos. Nhãpirikuli não tem
participação, até que ele descubra que Kuwai está ensinando os meninos. Kuwai não queria,
tampouco, a participação de Nhãpirikuli, tanto que ele pede segredo aos meninos. Mas, depois
que descobre, Nhãpirikuli passa a colaborar, de forma secundária.
Na versão Desana, Miriá Porã Masú se apresenta dentro da casa, no escuro, ou de
forma reservada. Na versão Baniwa, Kuwai se apresenta primeiramente como homem não-
indígena, depois ele passa a aparecer no centro da aldeia e, por último, dentro da casa; ele
vem voando do Céu, quando o Sol está a pino.
Na versão Desana, adoecem e morrem duas gerações de meninos que Abe não
conseguiu preparar para ver Miriá Porã Masú. Abe prepara uma terceira turma, mas pede que
Miriá Porã Masú não a estrague, portador que ele é, de doenças que vêm do cheiro ou do ar
pestilento e mal cheiroso que se desprende do seu corpo de Gurumuye, que é uma outra
denominação de Miriá Porã Masú, quando ele revela seu lado mais primitivo. Esta terceira
turma é composta por doze meninos; destes, dois se salvam. Na versão Baniwa, os meninos
são quatro: três meninos e um “menorzinho”. Depois que aceitam o jejum, eles já podem ver
Kuwai; dos quatro meninos, apenas o “menorzinho” se salva.
Na versão Desana, Miriá Porã Masú se propõe ensinar os cantos e a música das
Flautas, com a condição dos iniciantes observarem o jejum de frutas cruas. O relato não
menciona o açoite ritual que compõe tradicionalmente a iniciação dos meninos ou o rito de
puberdade masculino dos povos indígenas do Alto Rio Negro. Na versão Baniwa, Kuwai
também vem para ensinar cantos, danças, benzimentos, rezas, especialmente o kalidzamai10,
mas impõe, explicitamente, o jejum e o açoite, que os meninos aceitam prontamente.

10
Reza com poder, especial para o rito de iniciação (Wright).

8
Na versão Desana, os meninos são engolidos, menos um, que não entra na caverna, e
há um outro menino, que está no ventre de Gurumuye, e não morre. Ele vira periquito e foge;
ambos vão buscar a proteção de Abe. O primeiro conta-lhe o acontecido e o segundo conta
sobre as lenhas e o fogo, únicos recursos para “acabar” com Gurumuye. Na versão Baniwa, os
meninos são engolidos, menos o “menorzinho”, que volta para contar tudo para Nhãpirikuli.
Kuwai vomita os meninos no Ehnípan (Jandu Cachoeira, no rio Içana) e foge para o Alto. Em
ambas as versões, a iniciação é assim interrompida.
Na sequência, na versão Desana, Miriá Porã Masú é convidado por Abe para uma
festa de caxiri, entendida como uma festa de vingança pelos meninos devorados por
Gurumuye, e não há detalhes sobre o final da formação dos meninos. Na versão Baniwa, fica
explicitada a preocupação de Nhãpirikuli, para que Kuwai volte, para benzer a comida e
terminar assim o jejum e a formação dos meninos. Nhãpirikuli busca enganar e agradar Kuwai
para que Kuwai volte. Kuwai sabe sobre as intenções de vingança de Nhãpirikuli e aceita
voltar para concluir a iniciação, benzer e liberar o jejum e poderem comer pimenta e peixes. A
narrativa sugere que a regra social de vingança por ato de antropofagia é bem conhecida por
todos.
Na versão Desana, Miriá Porã Masú é cientificado de que será queimado e ele aceita o
seu destino. A maneira como ele é queimado é cuidada: primeiro de costas, depois de bruços,
para que a alma dele não suba para a Casa do Universo, mas ela sobe. Na versão Baniwa,
esperam que Kuwai esteja embriagado de caxiri e não lhe dizem nada sobre a intenção de
queimá-lo. Aguardam, apenas, que o Sol esteja a pino e, então, ele é empurrado para o Fogo.
Kuwai sobe com a fumaça, cantando/deixando seu canto de vingança. Interessante comentar
aqui que, sendo morto por vingança e não tendo parentes (descendência direta, filhos) para
vingá-lo, ele deixa o seu canto de vingança e as doenças.
Na versão Desana, no local onde Miriá Porã Masú foi queimado, nascem pés de
pimentas diversas, dois tipos de cipós e uma paxiúba se levanta para cada grupo dos
ancestrais, ou seja, as paxiúbas especiais são várias. Na versão Baniwa, no local onde Kuwai é
queimado, fica a sua pele, seu veneno, a sua vingança, e brota uma paxiúba, apenas uma.
Na versão Desana, as mulheres que descobrem e tomam as Flautas surgem do vômito
de Kisibi, que é filho de Abe. Kisibi vomitaria apenas homens, se ele tivesse se acordado e ido
vomitar no porto na hora certa, às duas horas da madrugada; mas, ele dormiu muito e se atrasa
para ir ao porto. Do vômito dele, saíram primeiro duas mulheres. Estas duas mulheres são as
que vão descobrir e tomar as Flautas. Elas estarão à frente das mulheres na disputa com os
homens pelas Flautas. Há dois Kisibi: o filho de Abe e aquele que saiu do terceiro vômito,

9
neto de Abe. Na versão Baniwa, não aparece o episódio do surgimento das mulheres; as
mulheres que encontram e disputam as Flautas são um contingente de mulheres que tem à
frente Amaru, novamente como um arquétipo de mulheres.
Na versão Desana, por duas vezes a preguiça representa faltas masculinas,
contrariando as intenções de Abe – da primeira, Kisibi não se acorda cedo e, por isso, nascem
duas mulheres antes de Kisibi; da segunda, Kisibi (que nasceu do vômito) deveria ter se
acordado cedo para se banhar e pegar as Flautas, mas, novamente preguiçoso, ele não se
acorda cedo e, por isso, as astutas mulheres vão antes dele ao porto e encontram as Flautas.
Na versão Baniwa, a preguiça do filho de Nhãpirikuli contraria as intenções do pai apenas
uma vez, equivalente à segunda da versão desana: o moço deveria ter se acordado cedo para
se banhar e pegar as Flautas, mas ele não se acorda cedo e, por isso, as mulheres vão antes
dele e encontram as Flautas.
Na versão Desana, as mulheres não sabem tocar as Flautas. Os peixes são aliados das
Flautas e dos homens; os peixes deveriam ensinar os homens a tocar as Flautas e virariam
gente. Os peixes se negam a colaborar com as mulheres. Apenas um certo tipo de peixe, o
jacundá, decide ensinar as mulheres a tocar as Flautas grandes e, com efeito, ele sai da água e
vira gente. Na versão Baniwa, Nhãpirikuli tampouco sabe tocar as Flautas; então, ele amarra
no instrumento penas do seu gavião de estimação e consegue obter um som particular. Esta
versão não conta, no entanto, quem ensinou às mulheres tocarem as Flautas; além disso, as
Flautas conquistadas pelas mulheres, nesta versão, transformam-se em armas – elas lançam
dardos envenenados contra os homens, quando elas são perseguidas. Na versão Desana, Kisibi
está à frente dos homens; na versão Baniwa, é Nhãpirikuli quem está à frente dos homens.
Na versão Desana, Kisibi recorre a benzimentos e Flautas que assustam as mulheres.
As mulheres fogem com as Flautas, mas os homens as alcançam e estupram as mulheres.
Kisibi estupra as irmãs dele. Na versão Baniwa, Nhãpirikuli planeja uma “guerra dos homens
contra as mulheres”. Eles usam flechas envenenadas e zarabatanas e, quando da vitória
masculina, não há menção sobre estupros.
Na versão Desana, os homens tomam as Flautas das mulheres e elas são dispersadas.
As duas irmãs de Kisibi partem uma para cada lado e tornam-se, uma e a outra, as donas das
mercadorias (não-indígenas) e as donas dos enfeites (indígenas). Elas não deixam nada para
Kisibi. Na versão Baniwa, Nhãpirikuli dispersa as mulheres, espalhando-as para os quatro
cantos do mundo, restando apenas Amaru (novamente um arquétipo) do rio Aiari. Ele pega as
Flautas e “vira o coração” das mulheres para que elas não se lembrem mais de como eram as

10
Flautas. Ele sopra as Flautas e elas fogem com medo. Nhãpirikuli faz mais Flautas para os
homens.

Análise Simbólica

A eficácia simbólica – ao nível dos arquétipos


O sistema de crenças particularizado de cada cultura apresenta em seus agentes e
elementos estruturadores uma complexidade inerente, “que funciona”. Este funcionamento
deve ser entendido como fenômeno sociocultural, posto que envolve toda a comunidade
através de uma rede de significados, e esta rede orienta as suas visões de mundo e dá sentido
às ações coletivas. Os significados assim, culturalmente particularizados e partilhados,
aparecem expressos nas histórias sagradas ou mitologias locais e atuam através do
simbolismo nas atividades religiosas, ritualísticas e mágicas, com a concorrência do mistério.
Mauss e Hubert (2003) já argumentavam que a magia é objeto de crença, mais do que de
percepção; e Lévi-Strauss (1989) explicitou como a eficácia simbólica deve ser entendida
dentro desse sistema: um estado de alma coletivo que permanece misterioso e eficaz quando
reúne, complementarmente, mecanismos psicofisiológicos e crença em três instâncias: a) do
feiticeiro na eficácia de suas técnicas; b) do cliente que lhe procura porque acredita nas suas
práticas; c) crença coletiva do grupo sobre as práticas mágicas. Em campo, pude observar um
esforço - por vezes consciente, por vezes inconsciente – da parte dos “pajés”11 em sustentar
estas crenças com vigor, através de um mecanismo, do que entendo como uma atividade de
retroalimentação, fundamental nas três instâncias da crença, sem que isso represente um
embuste.
Ainda sobre a eficácia simbólica e sustentando o sistema de crenças, G. Durand
(1993:115-130) apresenta os argumentos sobre como a imaginação simbólica apresenta
função restauradora dos equilíbrios vital, psicossocial, antropológico e transcendental, através
de regimes antagonistas do imaginário e de hermenêuticas instauradoras, trazendo o benefício
necessário ao desenvolvimento da totalidade da cultura humana, entre a fugacidade da
imagem e a perenidade do sentido que o símbolo institui, e mediando perpetuamente a
esperança e a temeridade, em face da finitude ou da condição temporal humana. Na esteira
destas complementaridades equilibradoras e instauradoras, os mitos estudados nos permitem

11
Nome genérico para os agentes de práticas tradicionais xamânicas, entendidas aqui como aquelas de
dançarinos, cantores, benzedores, rezadores, sopradores e raizeiros.

11
apreender pelo menos três pares de elementos simbólicos estruturais e fundamentais para a
narrativa mítica, que passo a destacar:
a) ao nível cosmológico, dois espaços privilegiados: o Centro e o Alto;
b) ao nível de seus agentes, três personagens fundamentais: Yurupari, Sol e a
Humanidade;
c) ao nível das ações transformadoras, dois elementos naturais essenciais: a Água e o
Fogo.

A) O Centro e o Alto se apresentam no universo cosmológico do mito, distinguindo


os lugares da Humanidade e dos seres divinos. O mundo dos homens começa no Centro,
local de potencialidade criadora partilhada entre os deuses e os homens. Ponto de origem, de
onde tudo parte e não podendo por isso ser considerado como estático; ao contrário, é um
lugar de movimento, como o princípio da vida, que orienta a unidade para a multiplicidade, o
interior para o exterior, o não-manifestado para o manifesto, o eterno para o temporal
(Chevalier e Gheerbrant, 1990). Porque é local de origem, o Centro do mundo são vários. O
Centro do mundo desana está no Igarapé Macucu; e o Centro do mundo baniwa começa em
Uapuí Cachoeira, locais onde estas populações foram tradicionalmente estabelecidas.
Quanto ao Alto, ele aparece nas variantes do mito como Céu e como Casa do
Universo; em qualquer destas denominações, significa essencialmente “aquilo que nenhum
vivente da terra é capaz de alcançar” (Chevalier e Gheerbrant, 1990). Pelo simples fato de ser
elevado, de estar acima, o Alto incorpora a potência do poder transcendente e qualidades do
sagrado, do perene, da imobilidade e da perfeição. O Alto é o lugar dos imortais, lugar de
onde a Humanidade caiu em desgraça, na temporalidade, ao final de uma Idade do Ouro,
devido a uma falta cometida. Desde então, o Alto é o lugar de redenção, para onde querem
voltar todos os que estão no caminho da espiritualidade e é um lugar que é preciso merecer. O
Alto é a morada do Sol, olho do mundo, é o lugar de potências sobrenaturais, de heróis, é o
lugar para onde Yurupari se recolhe, para fugir ao contato humano.

B) Entre o Centro e o Alto, existem personagens que atuam e intermediam esses


lugares e suas atividades. Os Seres Primordiais e a Humanidade constituem um par simbólico
que concorre para o equilíbrio do universo mítico. Além disso, o par Yurupari e Sol se
apresentam como protagonista e antagonista sobre o destino da Humanidade, suscetível aos
seus imprevisíveis humores, que determinam ora proteção, ora ataque. Caprichosos de seus
poderes sobrenaturais, Yurupari e Sol disputam a iniciação dos meninos, ou seja, a introdução

12
da humanidade na cultura, entendida no mito como a transmissão do conhecimento cultural
tradicional. Eis a maneira que eles encontraram para perpetuarem-se na memória coletiva para
sempre, orientando as práticas ritualísticas e sociais. Trata-se de seres essencialmente
contraditórios, polivalentes e destituídos de moralidade. Porque são primordiais, não seguem
nenhum modelo pré-existente e se apresentam como exemplo à humanidade, desde que a
proteja e intervenha por ela no caminho da redenção.
A figura de Yurupari, que está em foco nesta análise, representa a ambigüidade, por
excelência, o imprevisível, o indefinido. Yurupari aparece já como um ser meio-humano,
meio-divino, posto que é criatura de um dos seres primordiais e filho de mulher biológica da
qual verteu o Primeiro Sangue. Nesse lugar, ele transita livremente entre o Céu e a Terra. A
sua aparência e natureza aproximam-no tanto de um animal ogresco, quanto de um angélico
instrumento musical, como a flauta12. Ele aparece legitimamente reconhecido como dono das
Flautas sagradas e do xamanismo, detentor e transmissor do conhecimento tradicional dos
povos do Alto Rio Negro às novas gerações. A Humanidade aparece, então, como a criatura
deste ser que não teve filhos, a receptadora deste conhecimento que deve ser transmitido pelas
gerações. Yurupari é benfeitor e algoz da humanidade; ele traz o conhecimento tradicional e
traz doença, vingança e morte, devidas às suas potências divina e animalesca, que encontram
equilíbrio na natureza secundária e passiva do seu antagonista, o Sol. Sol mantém-se à
distância, mas a tudo observa. A narrativa do mito nos mostra que Sol quis tomar para si o
conhecimento tradicional de Yurupari para passá-lo ao seu filho e às gerações dele. A disputa
pelo conhecimento tradicional é o tema do último episódio deste mito, representado pela
guerra entre o filho de Sol e as mulheres pela posse das Flautas sagradas. Neste sentido,
Yurupari e Sol contrapõem-se e equilibram-se num regime poderoso de forças, entre as luzes
e as sombras.

C) Água e Fogo constituem outro par complementar de elementos arquetipais,


equilibradores das potências criativas e destruidoras do Universo e dos seres que o habitam.
As Águas aparecem no mito como agentes de destruição, necessária para a renovação. Com as
qualidades da Chuva grande que é Dilúvio, o surgimento de outra Terra e seres humanos
melhores, apresenta-se como elemento de purificação. Da mesma forma o Fogo, que assa uma
fruta crua e desperta a ira primitiva de Yurupari contra a Humanidade, será igualmente o

12
A versão baniwa explicita que o corpo de Kuwai é coberto por pelos, como de um bicho preguiça, e ambas as
versões mencionam o seu corpo cheio de furos, por onde passam os ventos e desprendem-se cheiros e os sons
que encheram o mundo.

13
elemento que porá fim ao ogre canibal, que sobe para o Alto como fumaça, deixando na Terra
a Música e o Veneno. Água e Fogo se equilibram a um só tempo como elementos de
destruição e renovação, agentes de transformação para a purificação e regeneração
transcendente.
As associações de Yurupari e Sol com o Centro e o Alto, com a Água e o Fogo e com
a Humanidade acomodam o universo mítico de forma sistêmica. Yurupari manda uma Chuva
grande. As Flautas são guardadas dentro d’Água. Os povos do Alto Rio Negro saíram da
Água, como os peixes. Do buraco da cachoeira do Ipanoré e de Uapuí Cachoeira saíram os
ancestrais dos povos do Alto Rio Negro. O Fogo desperta a ira de Yurupari contra a
Humanidade. O Fogo, apenas aquele de “certas lenhas” poderia acabar com Yurupari. Chuva
que é Dilúvio pune uma falta humana e justifica uma falta divina, que foi o canibalismo, e
alavanca a vingança dos parentes dos meninos e a intervenção de Sol. As Águas estão na
Origem da vida, são matriz, e trazem também calamidade, morte, punição. O Fogo aparece no
mito associado à Fogueira, à Fumaça e às Cinzas das quais nascem paxiúbas especiais, que
são os Ossos de Yurupari. Água e Fogo são motores de transformação e transcendência. A um
só tempo, consomem, destroem e purificam. O Fogo transforma Yurupari em Cinzas e ele
volta como Som, como Música, como Flautas especiais, Flautas sagradas.
Por último, é preciso destacar brevemente um arquétipo tão solitário quanto poderoso
que coroa o regime sintético da imagem: a Árvore, que, na narrativa mítica ambientada no
contexto cosmocultural rionegrino, se apresenta como uma palmeira, uma paxiúba. A paxiúba
que brota das Cinzas de Yurupari se presta à fabricação de Flautas sagradas. Cabe ao Sol
confeccioná-las e entrega-las às futuras gerações, como o legado mais precioso do
conhecimento tradicional. De sua materialidade transcendente, vem o Som e a Música;
enquanto Flauta, é Sopro, é Palavra, é Verbo, é Música, é Dança, é Canto, é Benzimento. As
Flautas simbolizam assim uma grande dimensão do sagrado, e também o poder e a expressão
maiores do conhecimento tradicional, objeto de disputa entre os homens e as mulheres.

Implicações sociais – ao nível dos símbolos culturais

Neste segundo momento da análise, destaco alguns elementos simbólicos de natureza


mais particularizada daquelas realidades socioculturais, posto que circulam numa esfera mais
restrita, com significado específico para o sistema cultural em foco. No contexto das tradições
do complexo das flautas sagradas do Alto Rio Negro, o mito apresenta o uso de substâncias
psicoativas que alteram a percepção sensorial e favorecem as práticas xamânicas em

14
atividades ritualísticas, extáticas e curativas. Disponíveis na natureza, o uso cultural dessas
substâncias foi ensinado pelos ancestrais que viveram no Tempo Primordial, criando e
transformando o Caos em Cosmos, ao mesmo tempo em que preparavam as condições
adequadas para a geração da humanidade. O uso do ipadu aparece logo no início da narrativa
mítica, favorecendo a concepção do Primeiro Ancestral da Humanidade, o qual nasceria do
útero de uma mulher: o próprio Yurupari. O ipadu se apresenta como um pó esverdeado,
muito fino, produzido por folhas de coca torradas e moídas. Trata-se de uma substância com
efeito psicoativo, usado de forma ritualística, para ampliar a perspicácia e a capacidade de
assimilar conhecimento. Na versão desana, Baaribo mistura um pouco de ipadu na fumaça de
tabaco e, por meio de benzimento, transforma a fumaça em líquido seminal. Depois, ele tira
osso de sua coxa direita, enfia o osso para dentro do corpo de Bupu Mago e sopra para dentro
dela o líquido daquela forma obtido, e ela fica grávida de Miriá Porã Masú. Na versão
baniwa, Nhãpirikuli pensa onde está Amaru; então, ele come ipadu e ela aparece no
pensamento dele. Ele vê dentro dela, dentro da barriga dela; e então, seu pensamento a
penetra e Amaru fica grávida de Kuwai.
Na origem, os Seres Primordiais são assexuados, ainda que tivessem já uma natureza
essencialmente feminina ou masculina. Conforme a narrativa mítica, o ser feminino não tinha
vagina e foi escolhido para gestar em seu ventre os primeiros seres humanos13. Tudo parecia
ir bem até o momento do parto, quando se fez sentir a falta da vagina, entendida como um
canal para o nascimento. Então, na versão desana, por meio de benzimento, Baaribo faz
adormecer Bupu Mago e corta-lhe uma vagina; na versão baniwa, Nhãpirikuli usa uma tora de
pataua para romper, abrir a passagem, e Amaru desfalece de dor. Em ambos os casos, a
mulher não vê o nascimento do filho. Do parto, verte o Primeiro Sangue, símbolo poderoso na
maior parte das sociedades indígenas, posto que marca o início da vida reprodutiva nas
mulheres, com o ciclo menstrual. O Primeiro Sangue marca a potencialidade feminina para a
vida e para o mistério, desencadeando a inveja masculina.
Na narrativa desana, o Primeiro Sangue começa por virar pariká de kumu, “o primeiro
pariká”, que é outra substância psicoativa e que, da mesma forma que o ipadu, é usado em
práticas xamânicas. Já na versão baniwa, o Primeiro Sangue é a placenta, que vira peixe arraia
e Nhãpirikuli chupa, benze o corpo de Amaru, tirando-lhe a doença. Apesar da sua
importância indiscutível, não é o caso aqui de explorar as implicações simbólicas do Sangue

13
A origem da humanidade é parte de outros episódios do mito; por ora, neste episódio, o mito sugere que trata-
se aqui de uma tentativa, entre outras.

15
feminino ou do uso das substâncias psicoativas nas práticas ritualísticas. Por ora, basta aqui a
sugestão de que o Primeiro Sangue incorpora o poder e o mistério que geram a vida,
capacidade que se desenvolve exclusivamente no corpo feminino; poder que escapa ao
controle masculino e que não encontra equivalente em seus corpos. A misteriosa capacidade
feminina de geração e transmissão da vida ameaça o poder masculino, despertando inveja e
desejo secreto de perseguição e vingança.
Vingança e inveja são temas ainda pouco estudados, apesar de serem fortemente
presentes no imaginário e nas práticas sociais das sociedades indígenas, podendo mesmo ser
considerados motores de cultura, pelo menos nos primeiros tempos das sociedades indígenas
pós-colombianas14. Os autores mostram como a vingança está na origem das muitas guerras
intertribais e das práticas antropofágicas - comer o inimigo por raiva e esperar deste a
vingança dos seus parentes. Quanto à inveja, ela gera ressentimentos, interdições e rituais
marcados por contendas de gênero, observadas nas práticas sociais indígenas. Podemos
avançar que inveja e vingança estão na origem do complexo das Flautas sagradas,
determinando a disputa das flautas, e a perda desta guerra pelas mulheres justificou a exclusão
das mulheres na transmissão da cultura tradicional, ao mesmo tempo em que conferiu a elas
um papel secundário, observado e estudado por pesquisadores. Dentre eles, Lasmar (2005)
destacou a posição de alteridade da mulher indígena do Alto Rio Negro dentro do seu próprio
grupo, com a instituição das regras de exogamia lingüística e descendência patrilinear. Esta
regra apresenta seu lastro no mito, quando, vencida a guerra pelos homens, as mulheres são
banidas, dispersadas pelo mundo. Na versão desana, as mulheres partem, se espalham:
Diakapiro desce em direção à nascente, Yuhusio vai para o poente. Na versão baniwa,
Nhãpirikuli joga uma mulher para cada um dos Quatro Cantos ou Céus do Mundo, ficando
apenas uma mulher: Amaru, do rio Aiari.

Considerações finais

A título de considerações finais, já que não cabe aqui conclusão alguma, espero ter
apresentado brevemente e de uma maneira generalizada o complexo universo cultural das
Flautas sagradas dos povos do Alto Rio Negro, personificado na figura ímpar de Yurupari e o
simbolismo das Flautas que lhe concernem. A abertura aparentemente infinita de significados
possíveis do simbolismo das Flautas sugere de imediato a consciência do poder que elas

14
Mello, 2006; Carneiro da Cunha & Viveiros de Castro, 1986.

16
representam. De acordo com os planos originais, conforme o mito, a geração dos seres
humanos deveria decorrer do vômito do filho do Sol ou de peixes saídos das Águas. Não foi
assim porque a esperteza feminina suplantou a preguiça masculina em, pelo menos, dois
momentos fundamentais, além da vantagem feminina, dotada que foi, da capacidade de gerar
a Vida. A versão desana sugere que, se o filho do Sol tivesse se acordado na hora certa, ele
vomitaria apenas homens. E depois, se o filho do Sol tivesse ido buscar as Flautas sagradas no
porto na hora certa, as mulheres não teriam chegado primeiro e descoberto as Flautas. A posse
das Flautas representou mais que uma disputa de gênero; marcou o estabelecimento ou o
restabelecimento do matriarcado ou do patriarcado; representou a detenção e a transmissão do
conhecimento tradicional.
As capacidades de deter e transmitir a Vida e o conhecimento tradicional nas mãos das
mulheres representaram certamente muito poder às mulheres e despertaram enorme ameaça e
inveja nos homens. Sobretudo em Sol, que queria guardar o poder de transmissão e geração
para o seu filho e para os homens. O mito mostra como desde o início Sol protege os meninos
e, ao final da narrativa, como persegue e maltrata as mulheres. A posse das Flautas representa
a capacidade de transmissão do conhecimento tradicional, trata-se de uma instituição social
que faculta ou legitima o acesso ao mesmo. As Flautas são o corpo de Yurupari na Terra.
Yurupari é bayá, é kumu e é pajé, o que, nos termos desana, significa que ele é mestre de
cerimônias (cantor e dançarino), ele é soprador (benzedor e raizeiro) e é um conhecedor das
doenças e da cura, um intermediário entre o Céu e a Terra, um oficiante de ritos de passagem
e cerimônias ritualísticas. A disputa pelas Flautas é uma disputa pelo poder político
(matriarcado e patriarcado), pelo poder religioso (oficiar os principais ritos e cerimônias
religiosas), pelo poder social (oficiar as principais festas) e pelo poder biocultural (posse e
transmissão do conhecimento tradicional). Ter as flautas significa ter todos esses poderes.
Não ter as Flautas, a narrativa mítica ensina, significou estar interdito a todos esses poderes,
como foi o desfecho da guerra, com a derrota das mulheres.
O aprofundamento das questões superficialmente abordadas acima, bem como vários
outros aspectos fundamentais do mito, estão aqui limitados e são parte da investigação da
pesquisa e desenvolvimento deste estudo. Assim, dentre outros: a importância social da
hierarquia entre as gerações ou entre “irmão maior” e “outros” irmãos; a instituição dos ritos
de puberdade masculina e feminina pelo mito; a importância da obediência aos ritos de
purificação no mito: jejum e açoite; o motivo de acentos musical ou xamânico mais
fortemente marcados numa ou noutra versões; antropofagia e vingança; inveja, estupro e
incesto; festa de caxiri; a anterioridade do poder político: se matriarcado ou patriarcado; a

17
origem étnica do mito: tukana ou aruak; a origem moral ou a força física masculina
suplantando a capacidade de gerar e a astúcia feminina na posse pelo poder, etc.
Conforme explicitamos acima, esta apresentação traz apenas alguns elementos
da pesquisa e uma pequena e panorâmica apresentação do mito, para a qual a minha
comunicação deve sugerir, apenas, a complexidade do mito. Além disso, esta análise deve ser
entendida como uma interpretação, entre outras. De qualquer forma, eu espero que a minha
contribuição por ora deva ser recebida como um vislumbre da capacidade criadora humana,
sem limites.

Referências
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25, n. 73, 2010
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Lasmar, Cristiane. De volta ao Lago do Leite: gênero e transformação no Alto Rio Negro. S.
Paulo: Ed. UNESP, ISA; R. Janeiro: NUTI, 2005
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Walipere-Dakenai do rio Aiari, volume 3 da ‘Coleção Narradores Indígenas do Rio
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Cachoeira, Santarém e Canadá. O relato utilizado foi narrado por Ricardo Fontes, de
Ucuqui Cachoeira. O volume foi organizado por Robin Wright. S. Gabriel da

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Cachoeira: FOIRN/ACIRA (Associação das Comunidades Indígenas do Rio Aiari),
1999: 52-73

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