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Revista Brasileira de Educação

ISSN: 1413-2478
rbe@anped.org.br
Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Educação
Brasil

de Freitas, Marcos Cezar


Economia e educação: a contribuição de Álvaro Vieira Pinto para o estudo histórico da tecnologia
Revista Brasileira de Educação, vol. 11, núm. 31, janeiro-abril, 2006, pp. 80-95
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação
Rio de Janeiro, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=27503107

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Marcos Cezar de Freitas

Economia e educação: a contribuição


de Álvaro Vieira Pinto para o estudo
histórico da tecnologia

Marcos Cezar de Freitas


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política, Sociedade

Introdução “arcaico”. Esse arcaísmo resultava, no seu entender,


do manuseio de técnicas pouco elaboradas, ou seja,
Este artigo analisará a lenta construção do con- resultava de uma realidade subdesenvolvida que ne-
ceito de “trabalho tecnologicamente elaborado”, de- gava à juventude a apropriação, em proveito próprio,
senvolvido no transcorrer de três décadas por Álvaro de tecnologias mais sofisticadas.
Vieira Pinto, intelectual de grande prestígio no início Sua forma de entender e valorizar o contínuo
da década de 1960. envolvimento com a tecnologia no quotidiano das
Vieira Pinto atuou principalmente no Rio de Ja- pessoas “rústicas”, e o caráter socialmente emanci-
neiro, na antiga Faculdade Nacional de Filosofia pador que atribuía à distribuição social das técnicas
(FNFi) e no Instituto Superior de Estudos Brasileiros mais sofisticadas, despontaram em sua obra após um
(ISEB), fundado em 1956 e fechado em 1964, após o longo percurso de leitura e produção solitária de tra-
golpe militar. Foi também pesquisador visitante do tados filosóficos.
Centro Latinoamericano de Demografia, do Chile. Desde a publicação de Consciência e realidade
O texto abordará, principalmente, o longo per- nacional (1960) até a publicação recentíssima de O
curso investigativo do autor, que examinou exausti- conceito de tecnologia (2005), passando por Ciência
vamente o conceito de “amanualidade” originado nas e existência (1979) e por El pensamiento crítico en
filosofias existencialistas européias e o submeteu demografía (1979), sua obra abrigou uma densa re-
àquilo que denominava “realidade nacional”. O con- flexão sobre o significado social da filosofia em lu-
ceito de amanualidade permitiu ao autor de Ideologia gares pobres. Essa densa reflexão, contudo, enfren-
e desenvolvimento nacional (1956) pensar continua- tou e enfrenta grandes obstáculos para chegar ao
mente nos temas técnica, tecnologia e educação. conhecimento de um público mais amplo. Um exem-
O objetivo deste trabalho consiste em elucidar plo disso é que somente agora seu magnífico estudo
suas expectativas em relação ao jovem considerado O conceito de tecnologia foi editado. Isso significa

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que gerações discutiram o tema desenvolvimento sem publicamente o chamava de “mestre”. Outros tantos
conhecer um dos mais completos tratados sobre o tema chegaram indiretamente aos seus escritos com a me-
e, principalmente, sem considerar a dimensão políti- diação da produção acadêmica que se apresentou a
ca que autor atribui à disseminação do trabalho tecni- partir da década de 1980 (Franco, 1985; Rodrigo,
camente elaborado em sociedades pobres, como a 1988; Paiva, 1986; Toledo, 1982, 1986).
nossa. Predomina no conjunto de dissertações, teses e
O autor, perplexo diante das possibilidades que livros que abordaram sua obra a opinião, apresentada
enxergava para a juventude brasileira, procurou em com maior ou menor benevolência, conforme o caso,
Hegel e depois em Marx argumentos com os quais de que Vieira Pinto deveria ser compreendido como
pudesse recusar a crença de que a tecnologia “neces- expressão do “seu contexto”. Sobre o autor paira a
sariamente” se vincula à opressão social. sombra de uma situação histórica cujas marcas no pa-
Considerando o trabalho tecnologicamente ela- norama intelectual do Brasil do século XX, na opi-
borado um direito e uma prerrogativa da juventude nião de muitos, indicam que a sintonia entre o “ho-
brasileira, indicava a importância de desmistificar a mem de pensamento”1 e o momento em que desfrutou
rusticidade em defesa daquilo que chamava de “inte- de maior visibilidade se deu porque o professor de
resse nacional”. Para desmistificar as muitas falas que história da filosofia, mesmo com um temperamento
na década de 1960 produziam uma espécie de elogio reconhecidamente reservado, foi capaz de protagoni-
da rusticidade, criticou energicamente a filosofia zar o papel de “ideólogo do desenvolvimento”.
heideggeriana. De forma sintética, pode-se dizer, então, que
É desse percurso analítico que este artigo trata, estamos diante de um intelectual lembrado pelo con-
tendo por pano de fundo o contexto que possibilitou a texto do “desenvolvimentismo” do após Segunda
reelaboração dos conceitos de desenvolvimento e sub- Guerra, e que, segundo a maior parte dos seus analis-
desenvolvimento no Brasil e na América Latina. tas, seus escritos foram produzidos como panfletos
destinados à defesa do desenvolvimento econômico
As origens de um argumento para a consolidação de um projeto nacional. De for-
ma ao mesmo tempo inversa e complementar a esse
A obra quase clandestina de Vieira Pinto obede- tipo de opinião, alguns acrescentam que, na realida-
ceu a uma lógica de construção argumentativa contí- de, o autor defendia um projeto nacional como única
nua e complementar, a qual, vista no seu conjunto, alternativa viável para alcançar o assim chamado de-
revela o paciente esforço dedicado à construção soli- senvolvimento econômico (cf. Roux, 1990).
tária de um portentoso projeto: enunciar as implica- Na maioria dos estudos que se ocuparam com a
ções antropológicas e antropomórficas do conceito trama da qual Vieira Pinto foi personagem, o ponto
“trabalho”. de partida do intelectual acaba assumindo a condição
Seus livros foram publicados com intervalos não de ponto de chegada, ou seja, o autor é lembrado por-
menores que uma década, e cada um apareceu como que teve a oportunidade de se expor nas atividades do
se fosse mais uma peça de quebra-cabeça, que, uma Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), fun-
vez encaixada, revelava os traços de seu desenho dado em 1955 e aberto ao público em 1956, na cidade
interpretativo: um mundo visto de baixo para cima, do Rio de Janeiro. Lá pôde publicar um estudo com
com especial destaque àquilo que os homens conse-
guem fazer com os instrumentos que têm ao alcance
das mãos. 1
A expressão “homem de pensamento” não é casual. O edi-
Alguns se lembram de seu nome associando-o à tor Ênio Silveira, seu admirador confesso, dizia que Vieira Pinto
formação filosófica do educador Paulo Freire, que era a antítese perfeita do “homem de ação”.

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mais de mil páginas intitulado Consciência e realida- guração cultural do povo brasileiro e no horizonte
de nacional. político da sua juventude.
Basta percorrer os escritos da maioria dos seus A teia analítica que teceu ao redor do conceito
analistas, os que “aplaudiram e os que vaiaram”, para trabalho, no transcorrer de duas décadas, custa a apa-
perceber que o autor é lembrado como integrante de recer porque os escritos estão/estavam dispersos e
um instituto e como autor de um livro que suposta- somente agora se pode colocar sobre a mesma mesa
mente expressaria o “espírito de um tempo”, para usar as quatro pontas do quadrilátero que oferecem a si-
uma expressão de Karl Mannheim, autor prestigiado tuação de conjunto com a qual se pode esquadrinhar
no circuito isebiano. sua plataforma conceptual: Consciência e realidade
Como será exposto a seguir, tanto o ISEB como nacional, El pensamiento crítico en demografía, Ciên-
o livro Consciência e realidade nacional exibem ape- cia e existência e, mais recentemente, O conceito de
nas um trecho do seu périplo ao redor do continente tecnologia.
que decidiu circunavegar: o conceito trabalho. O ISEB O conceito de tecnologia, por exemplo, originou-
desgrudou-o de sua circulação inicial entre os inte- se de um manuscrito de quase 1.500 páginas que tal-
lectuais católicos, como o circuito Alceu Amoroso vez não tivesse sido escrito sem a produção prévia das
Lima, por exemplo. Este avalizou sua contratação na 1.070 páginas de Consciência e realidade nacional.
Faculdade Nacional de Filosofia, onde se tornou ca- Para compreender a relação entre o primeiro e o
tedrático em 1951 defendendo uma tese sobre a quarto livros no seu círculo conceitual, é preciso pres-
cosmogonia de Platão, escrita na França. tar atenção ao momento inicial da circulação do “idio-
O ISEB aproximou-o de sociabilidades mais ma cepalino” produzido pela Comissão Econômica
abertas à mobilização política, como os estudantes, para América Latina (CEPAL), na década de 1950,
por exemplo, e também das atividades voltadas ao no Chile.
diálogo com os segmentos populares. A Editora Civi- É necessário perceber a apropriação dos pressu-
lização Brasileira confiou a ele a direção do projeto postos da CEPAL na origem dos escritos mais densos
“Cadernos do povo brasileiro”.2 Já o livro Consciên- de Vieira Pinto. Reconhecida a apropriação singular
cia e realidade nacional lhe proporcionou a oportu- do léxico cepalino formulado a partir dos escritos de
nidade de lançar, em 1960, as bases de sua herme- Raul Prebisch (1950, 1951), o que ocorria em vários
nêutica, essenciais para o entendimento de seus futuros ambientes intelectuais, muito especialmente no ISEB,
escritos e, por isso mesmo, insuficientes para o efeito ver-se-á que Vieira Pinto encontrou, naquela econo-
de síntese de sua tumultuada trajetória. mia política que nascia, um “lugar argumentativo”
É bastante provável que seus principais escritos para desaguar seu incomensurável acervo de leituras
tenham sido elaborados entre 1955 e 1975, período filosóficas e sociológicas.
no qual dedicou sua sistemática e disciplinada capa- Não é correto simplesmente atribuir a Vieira Pin-
cidade de escrever à tarefa de entrelaçar conceitos, to a condição de filiado teórico aos escritos de Prebisch
expostos em trabalhos distintos, com os quais se man- e nem mesmo de Celso Furtado, o qual, em seus depoi-
teve fiel a um propósito investigativo: compreender mentos autobiográficos, disparou críticas contundentes
o lugar do trabalho e da forma de trabalhar na confi- àquilo que chamava de “nacionalismo exacerbado de
Vieira” (Furtado, 1985). Todavia, é necessário obser-
var que algumas novidades teóricas cepalinas introdu-
ziam um estruturalismo analítico (Bielschowsky, 1995)
2
Vieira Pinto escreveu o Caderno de n. 4, intitulado Por que que sugeria uma dinâmica interpretativa complemen-
os ricos não fazem greve?, que lhe rendeu alguma popularidade tar entre a análise do subdesenvolvimento econômico
no meio estudantil. e os repertórios da filosofia familiares a Vieira Pinto.

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Se a teoria cepalina se projeta a partir dos concei- mercado. Nesse jogo desigual, deteriorado, a perife-
tos “centro e periferia”, a plataforma conceptual de ria tudo entregava e o centro tudo recebia.
Vieira Pinto projetou-se com as respostas que ofereceu O mesmo argumento é defendido por Vieira Pin-
para a seguinte questão: o que é trabalhar na periferia to, que, em companhia de Roland Corbisier, advoga-
sob a dominação econômica e cultural do centro? va a tese de que a periferia “exportava o seu ser e
Tanto nos escritos cepalinos quanto nos escritos importava o não-ser”, alimentando, em termos pre-
de Vieira Pinto, a dicotomia centro/periferia oferece bischianos (1951), a convicção de que naqueles mol-
condições para uma compreensão singular do impac- des a divisão internacional do trabalho era uma fonte
to da propagação do incremento tecnológico e da uti- de disparidades incontornáveis.
lização da técnica para a substituição do trabalho ma- Vieira Pinto compartilhava da tese de que, no
nual. O que se verá adiante é que, na acepção de Vieira centro, o crescimento industrial havia tocado amplos
Pinto, o centro capturava para si um dos significados setores da sociedade, acrescentando, de uma forma
da tecnologia e ideologicamente o proclamava como mais homogênea, produtividade e qualidade de vida
universal, reservando ao mundo da periferia a condi- às populações envolvidas com o mundo do trabalho
ção de “paciente receptor” das inovações técnicas, assalariado, renovando especialmente a participação
quando, na verdade, já se pronunciava uma “fase his- da juventude nos processos contínuos de desenvolvi-
tórica” na qual já era possível atuar como “agente mento econômico.
propulsor” do próprio desenvolvimento, sem aguar- Já na periferia, apenas os setores envolvidos com
dar as demandas do capital externo. a industrialização do centro, especialmente exportado-
Em ambos os escritos, os cepalinos e os de Vieira res de matéria-prima, beneficiaram-se de forma con-
Pinto, as noções de centro e periferia eram usadas centrada dos avanços tecnológicos. Com isso se pro-
para descrever uma situação assimétrica na apropria- duziu, em decorrência, um distanciamento abissal em
ção de ganhos originados na “divisão internacional relação às outras esferas de trabalho assalariado e não-
do trabalho”. assalariado da periferia. Vieira Pinto encontrará nesses
Essa divisão internacional do trabalho não se sus- setores privilegiados algo que denominará “consciên-
tentava mais como hipótese descritiva e conceitual à cia ingênua”, que será retomada mais à frente.
medida que, com a recusa dos cânones da economia No âmbito da circulação do idioma cepalino,
clássica, a análise cepalina identificava um processo Vieira Pinto interveio com o propósito de explicitar
de severo distanciamento entre ricos e pobres, fican- os efeitos da passagem do subdesenvolvimento para
do o centro num plano de desenvolvimento inal- o desenvolvimento no mundo do trabalho. Empreen-
cançável pela periferia. Isso se dava à medida que se deu essa intervenção com o conceito de “amanuali-
percebia que, quanto mais o centro se apropriava dos dade”.
benefícios da produção industrializada, mais a peri-
feria chafurdava no contínuo empobrecimento a que Da idéia de trabalho elaborado
estava condenada.
Na interpretação de Prebisch (1950), o processo Segundo Vieira Pinto, o homem “necessariamen-
de empobrecimento derivava de uma “deterioração te” trabalha, e quanto mais elaborada é a sua capaci-
nos termos de troca” em virtude da qual a periferia dade de trabalhar, mais humanizado ele se torna. O
tudo transferia para o centro, inclusive seus parcos fruto de seu trabalho é a fonte básica para o estudo
ganhos, sem que se realizasse o princípio defendido antropológico de sua existência, uma vez que na rela-
por David Ricardo de que o desnível entre as partes ção entre homem e utensílio se apresenta o “grau de
teria um ponto de compensação assegurado pela trans- domínio” que o sujeito tem sobre o objeto, ou, inver-
ferência de benefícios e ganhos através dos jogos de samente, o “grau de subordinação” que a situação lhe

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impõe.3 Há algo da forma-homem na forma-trabalho de que “deve” mudar a realidade. A noção de “dever
e vice-versa. Por isso o conceito trabalho é uma cha- fazer”, adquirível num processo educativo, consoli-
ve de leitura “antropomórfica” da sociedade: da-se num movimento em que o jovem consegue reu-
nir dedução com indução, ou seja, quem precisa mu-
Uma coisa é mexer-se um pouco de barro, outra é dar o mundo descobre “o porquê” no mesmo momento
segurar uma vasilha para beber, e outra ainda é tomá-la nas em que descobre o “como” transformar a realidade,
mãos para apreciar a beleza dos desenhos e do colorido que que passa, então, a ser percebida como mutável.
lhe foi dado pela arte cerâmica. Nos três casos imaginados Se a consciência crítica se faz quando o traba-
como exemplo temos a mesma matéria, mas três graus di- lhador se apropria de um “dever fazer” ao mesmo tem-
ferentes de manuseio, representados por três modalidades po em que explica por que e como realizar seu inten-
de ser, com tudo quanto há de significado particular para to, o que torna crítica essa consciência apropriada é
cada um; e o que determina a diferenciação entre estes três justamente a ação daqueles que precisam efetivamente
modos é a operação do trabalhador, que imprime em cada mudar o mundo.
caso à substância bruta original propriedades que Quem não precisa mudá-lo, porque da imutabili-
condicionam as diferentes possibilidades de manuseio. Com dade se beneficia, ou porque, mesmo percebendo a
efeito, é o trabalho que eleva a realidade a um outro grau de premência da mudança, opta pelos mecanismos tra-
amanualidade. E com essa elevação surgem concomitante- dicionais de progresso e estabilidade, reveste-se da
mente novas características do objeto. (Vieira Pinto, 1960, consciência ingênua que contém o ponto de vista de
p. 69, v. 1) quem não fez da reflexão uma passagem “da cons-
ciência em si para a consciência para si”.
Passar do subdesenvolvimento para o desenvol- Essa maneira de enunciar a presença de uma
vimento, na acepção de Vieira Pinto, significava tro- consciência que já se tem, mas da qual ainda é neces-
car a relação de “amanualidade” entre o homem e o sário “tomar posse”, fez dos primeiros escritos de
mundo, ou seja, proporcionar a cada um a possibili- Vieira Pinto um conjunto argumentativo com o qual
dade de manusear a realidade com recursos cada vez o autor demonstrava sua passagem do continente
mais elaborados. kantiano para o continente hegeliano, onde se insta-
Considerava o homem do povo, o trabalhador lou por muito tempo.
manual, seus filhos e filhas, portadores de uma per- Para expor sua compreensão dos conceitos de tra-
cepção da realidade diferenciada, mas não “menor” balho e de tecnologia, indicou a forma pela qual o
em qualidade quando comparada à visão de mundo conceito de amanualidade deveria ser (re)utilizado no
ostentada pelas classes dominantes. Brasil, retirando-o dos condomínios analíticos do exis-
A consciência crítica, assim como a apresenta tencialismo francês (Vieira Pinto, 1960, p. 68, v. 1).
Vieira Pinto, é sempre um patrimônio das massas. En- Vieira Pinto reconhecia como válida a hipótese
quanto atributo dos trabalhadores, essa consciência de que o mundo se apresenta ao existente humano
torna-se crítica quando o homem passa a ter clareza como campo das ações possíveis. Estas revelam-se
mediante a ação específica sobre os objetos dispostos
ao redor do homem, os quais podem ser tomados como
3
Esse tipo de raciocínio foi utilizado por alguns de seus utensílios (idem, ibidem).
comentadores para demonstrar o quanto Vieira Pinto trouxe para Diante disso, o autor empreende uma operação
os seus escritos perspectivas analíticas originadas nas filosofias conceitual muito assemelhada ao método lukacsiano,
existencialistas. A recriação de uma espécie de “fenomenologia o que lhe permite afirmar que estudar o trabalho e a
da situação” contribuiu também para que ele fosse considerado tecnologia corresponde a investigar a cultura daqueles
“matriz” da obra de Paulo Freire (Paiva, 1986). que têm acesso imediato à realidade, como diria Lukács.

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Sua valorização do trabalho industrial decorria contém, esse traço pode ser reconhecido na atenção
da convicção que tinha de que o homem, ao executar contínua às concomitâncias da sociedade. Trata-se de
tarefas mais elaboradas, especialmente aquelas que outra herança da CEPAL: perceber que o subdesenvol-
são feitas com a mediação da máquina, passa a ex- vimento não é uma situação assemelhada ao passado
pressar sua consciência (já existente) de forma pro- do mundo desenvolvido. É, ao contrário, concomitan-
gressivamente mais clara. Seu diagnóstico sempre foi te a ele e, na maioria dos casos, resultante da deteriora-
contundente: o trabalho exercido sobre o mundo que ção nos termos de troca entre as partes.
está à mão é aquele que o transforma eficazmente Consciência e realidade nacional é o ponto de
(Freitas, 1998, p. 93). partida de um roteiro de considerações que reapare-
Em razão disso, num momento no qual apenas cerá e será complementado nos livros El pensamien-
começava a ler Marx, julgava ser conveniente “adap- to crítico en demografía e Ciência e existência, cul-
tar” algumas conclusões originadas na economia po- minando no amplo painel tecido em O conceito de
lítica marxiana, para que somassem com alguns pres- tecnologia. Esse roteiro, mesmo que de forma indire-
supostos que assimilava do léxico cepalino, e, com ta, quer demonstrar as possibilidades do homem con-
isso, compunha o que considerava ser uma receita siderado (apressadamente) inculto.
adequada às particularidades do “terceiro mundo”.4 A incultura, no seu entender, não corresponde a
Considerava necessidade premente, para a subs- ausência de conhecimento, mas sim a um grau da pró-
tituição de uma etapa inferior por outra superior de pria cultura de um tempo. Um exemplo dos efeitos
desenvolvimento, fazer com que esse processo fosse desse modo de pensar (o qual, inclusive, foi bastante
precedido e acompanhado de uma intensa “acumula- utilizado por Paulo Freire) pode ser obtido na sua de-
ção de trabalho”. Tal noção de acumulação, como que finição de analfabetismo. Segundo Vieira Pinto, e no-
numa volta redonda, derivava de sua concepção de vamente à mercê de Hegel, o analfabetismo não é uma
técnica, considerada por ele “acumulação qualitativa essência em si, mas sim um grau do próprio alfabetis-
de trabalho”. Qualidade, nesse sentido, queria dizer: mo. Ou seja, se existem pessoas plenamente alfabeti-
“fazer o novo como desdobramento do antigo, logo, zadas, existem também aquelas que estão “alfabeti-
desenvolver” (Vieira Pinto, 1960, p. 79, v. 1). zadas em escala zero”. Se a letra e a gramática são
Só há saber novo com avanço técnico. Se uma também bens tecnológicos, o manuseio dessa “tecno-
parte da humanidade já demonstrava usufruir benefí- logia” conduz a um lugar na gradação do alfabetis-
cios da apropriação social da tecnologia, restava ao mo. Como em tudo na vida, o não-manuseio ou o
intelectual engajado explicar as causas dos “entraves manuseio de ferramentas precárias tem como contra-
históricos” ao desenvolvimento nacional em países partida um subdesenvolvimento intelectual responsá-
como o Brasil, rico e pobre ao mesmo tempo. Aliás, se vel pelo “lugar de cada qual” numa escala em que co-
existe um traço peculiar que pode ser atribuído à “ge- existem graus diferentes de avanço e apropriação
ração isebiana”, com todo exagero que essa expressão tecnológica.5
O trabalho e a forma de trabalhar estão na base
daquilo que os alemães chamariam de Weltanschauung,
4
Conceito este que foi decisivo para que Vieira Pinto, na
fase do exílio, ampliasse as bases de sua reflexão, evadindo-se do
5
nacionalismo dos primeiros escritos para adentrar no território Essa é também outra demonstração de apreço e atenção às
político do “internacionalismo terceiro-mundista”, cujas referên- idéias cepalinas. Admite-se a existência “de tempos simultâneos,
cias para ele, no final da década de 1960, provinham de lugares e mas não coetâneos”, aliás, expressão utilizada também no âmbito
de nomes diferentes como Tito, Franz Fanon, Gamal Nasser ou UNESCO de financiamento de pesquisas relacionadas às questões
Bandung, Nova Délhi e Pequim, por exemplo. raciais.

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fato este que encontra guarida também na obra de quanto fossem as responsáveis pelo dinamismo da
Vieira Pinto: “o modo pelo qual o homem vê o mun- economia. Com isso, indicava que relações econômi-
do tem como uma das causas condicionadoras a natu- cas e possibilidades tecnológicas mais elaboradas so-
reza do trabalho que executa e a qualidade dos instru- mente se instalariam no momento em que a luta polí-
mentos e processos que emprega” (1960, p. 110, v. 1). tica fosse capaz de evidenciar o esgotamento do
Mas há um dado fundamental que não pode dei- modelo político de sociedade então presente. 6
xar de ser mencionado e que constitui marca distinti- É quando o autor pensa em relações de produção
va da personagem que está sendo aqui analisada: quan- mais elevadas que expressa com maior coerência o
do Vieira Pinto escrevia “trabalho”, na maioria das nexo entre seu corpus conceitual e sua aspiração po-
vezes estava referindo-se a quem trabalha. Ou seja, lítica ao protagonismo dos trabalhadores. Se relações
estamos diante do filósofo que apostou suas fichas de produção mais elevadas não brotam espontanea-
numa transformação radical da sociedade levada a mente, no seu entender elas medram, então, em con-
efeito pelas mãos daqueles que operavam o mundo, seqüência da experiência acumulada somente no mun-
especialmente os jovens entrando nos condomínios do do trabalho. Todo trabalhador, ao participar da
do trabalho. organização do futuro, estaria trazendo ao processo
Mas, nesse caso, como entender sua atenção ao sua grande intimidade com a realidade.
mundo do trabalho, sua aposta política nas mãos dos O problema maior a ser enfrentado, no âmbito
que operam o mundo, se, enquanto analista social, se das lutas pelo desenvolvimento, apresentava-se como
manteve à distância do conceito de classe social? Tra- conseqüência da co-habitação da consciência crítica
ta-se de uma pergunta sem resposta nos textos de com a consciência ingênua. Essa co-habitação era des-
Vieira Pinto. O conceito de classes sociais, quando se crita com a “metáfora do pêndulo”. A realidade brasi-
tornou mais palpável em sua obra, o que veremos mais leira, no entender de Vieira Pinto, comportava-se como
adiante, não emergiu com força suficiente para der- um pêndulo que toca ora as “zonas de aceleração da
rubar um de seus principais pressupostos: o que de sociedade”, ora as “zonas de retenção”. Aceleração
que existem contradições principais e contradições era o mesmo que industrialização e qualificação do
secundárias. trabalho das massas; retenção era o arcaísmo resul-
As contradições entre classes sociais, secundárias tante do conluio entre as elites e o capital estrangeiro.
no seu entender, deveriam ser enfrentadas no sucedâ- Para Vieira Pinto, quanto mais a consciência críti-
neo do enfrentamento da contradição principal. Esta ca conseguisse se estabelecer, ou seja, quanto mais o
resultava do aviltamento que o capital estrangeiro ope- trabalhador recebesse condições mais elaboradas para
rava sobre as nações subdesenvolvidas. Esse aviltamen-
to, inclusive, era o responsável pela falta de acumula-
ção de trabalho tecnicamente mais elaborado, de modo 6
Aqui é possível notar a assimilação que fazia de alguns mo-
que favorecesse uma concentração de arcaísmos con- mentos chave da obra de Marx. Por exemplo, vale frisar o seguinte
veniente à manutenção da miséria social. paralelo: “Uma formação social não desaparece antes que se te-
O filósofo convenceu-se de que o desenvolvimen- nham desenvolvido todas as forças produtivas para as quais esta
to acarretaria e facilitaria a emergência da consciên- formação é suficiente e que novas e mais altas relações de produção
cia crítica que se espraiaria com o processo. Porém, tenham tomado seu lugar; antes que as condições materiais de exis-
considerava que esse seria um processo tanto lento tência destas últimas não tenham se formado no seio da própria
quanto doloroso enquanto as estruturas arcaicas se sociedade [...]. Observando com mais cuidado, sempre se verifica
mantivessem direcionando as decisões macroeconô- que o próprio problema só surge onde já existem as condições ma-
micas do país. Vaticinava que as estruturas mantene- teriais para sua solução ou onde estas condições já estão em proces-
doras do atraso e da miséria não desapareceriam en- so de desenvolvimento” (Marx, 1969, p. 5-6).

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se apropriar do trabalho que já realizava, mais o pên- logia, sofreram o impacto do dramático contexto no
dulo permaneceria retido nas zonas de aceleração, de- qual foram escritos. São textos da experiência de exí-
morando a voltar aos condomínios do atraso, conse- lio que o intelectual viveu inicialmente na Iugoslá-
qüentemente, desmobilizando-o: “à medida que maior via, a partir de setembro de 1964, e que continuou no
número de indivíduos ingressassem nas formas adian- Chile, entre 1965 e 1968.
tadas de produção, ampliando, portanto, sua área de El pensamiento crítico en demografía e Ciência e
contato com a objetividade e aumentando seu interes- existência foram escritos graças à intervenção de Pau-
se na transformação das coisas, o pensamento crítico lo Freire, que conseguiu empregá-lo em Santiago como
passaria a preponderar” (Vieira Pinto, 1960, v. 2, p. 19). pesquisador do Centro Latinoamericano Caribeño de
Ao enunciar suas conclusões, o autor sentiu-se Demografía (CELADE). Pode parecer um despropósi-
obrigado a estabelecer um estatuto epistemológico para to ou apenas uma demanda típica de uma situação de
o processo de aquisição da consciência obtido na assi- emergência acomodar um filósofo da estatura de Vieira
milação de técnicas mais elaboradas de trabalho. Sua Pinto num centro dedicado a estudos demográficos. O
metodologia de análise em muito se assemelhava a uma resultado de seu trabalho, todavia, comprova o acerto
“teoria da história”. Não casualmente a denominava contido na indicação de Freire.
“empírio-historicismo”, com o objetivo de comprovar O CELADE buscava acrescentar às investigações
que a história dos homens é, no fundo, a história do de natureza demográfica recursos analíticos com os
trabalho que fazem, e que cultura é a “forma como fa- quais as populações deixassem de ser consideradas
zem”. Buscava, por exemplo, o “parentesco” entre a apenas expressões numéricas que se comprovam com
pedra lascada e a caldeira na siderúrgica. séries estatísticas.
Quando se tornou um estudioso do trabalho, da Aquilo que Vieira Pinto chamou de conhecimento
disseminação da técnica e da tecnologia, deparou-se crítico em demografia na realidade resultava da soma
com um “desnivelamento universal” das fases de de- de seus estudos nas áreas de antropologia e econo-
senvolvimento e encontrou na ação do trabalhador um mia, os quais, reunidos ao seu vasto acervo de leitu-
estratagema para cobrir “diferenças de etapa”. A in- ras filosóficas, favoreciam a ele apresentar uma pro-
dustrialização, por exemplo, teria o condão de “ace- dução original num campo costumeiramente habitado
lerar o tempo”. Se existia para a humanidade um pro- por números e gráficos.
cesso civilizatório capaz de englobá-la integralmente, Trata-se de um momento singular em sua traje-
o trabalho e a unificação do tempo teriam essências tória intelectual, que nos permite apreciar a forma atra-
complementares. O papel da consciência, então, se- vés da qual Vieira Pinto completou seus estudos so-
ria o de acelerar e desacelerar o tempo, conforme fos- bre Marx. Ao mesmo tempo, é possível constatar que
se crítica ou ingênua (Freitas, 1998, p. 108). o autor conduzia a inserção do conceito de tecnologia
O trabalho artesanal que fazia com os conceitos em seus escritos, indicando, porém, tratar-se de um
foi bruscamente interrompido com os acontecimen- objeto que estava a reclamar uma sistematização sua,
tos de março/abril de 1964. O autor, porém, prosse- própria, longamente argumentada como produto de
guiu investigando o conceito de trabalho, ainda que à sua lavra.
mercê de uma situação bastante desfavorável para o Algo entre a síntese e o ecletismo, as operações
trabalho sistemático de um filósofo. de análise empreendidas pelo ex-professor do ISEB
somavam sua recepção crítica da filosofia européia
A reflexão na diáspora com algumas categorias marxianas. Um exemplo disso
pode ser indicado na utilização da categoria “homem-
Os escritos seguintes de Vieira Pinto, que se em-situação”, cujo alcance ainda convencia plena-
mantiveram ao redor das categorias trabalho e tecno- mente o autor à medida que, segundo seu entendi-

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Marcos Cezar de Freitas

mento, as ferramentas analíticas de Marx não Em sua argumentação, ainda permanecia válido
infirmavam o poder de síntese desse legado existen- aquilo que dissera em 1960: se o existencialismo eu-
cialista (Vieira Pinto, 1973, p. 44, p. 86 e ss.). ropeu representava a consciência ingênua daqueles
O “homem-em-situação” é o sujeito social que “não precisam” mudar o mundo, a idéia de ama-
morfologicamente confundido com o trabalho que nualidade, ao ser apropriada no mundo subdesenvol-
exerce. Contudo, a mescla entre homem e trabalho vido, tornava-se uma arma da consciência crítica que
não interrompe o contínuo processo de dominação da precisava e queria transformar a realidade (Vieira Pin-
natureza por parte do trabalhador, mesmo porque nesse to, 1960, p. 67, v. 1).
processo está contida a reelaboração constante da pró- Tudo isso contribuía para que sua abordagem no
pria humanidade desse homem (idem, p. 203). campo da demografia se revestisse de originalidade e
Quando o trabalho constitui o homem, a realida- de alguma iconoclastia. Propunha, por exemplo, a
de constitui a sua situação. Nesta última estão pre- minimização do uso das medidas, instrumentos de
sentes as suas reais possibilidades de comunicação aferição e das quantificações, e sugeria, no lugar, o
(idem, p. 86). O trabalho, no seu entender, torna-se a estudo intenso da qualidade de vida das populações
chave de desvendamento da situação concreta, uma pobres (Vieira Pinto, 1973, p. 14).
vez que, por ele e com ele, o sujeito adquire condi- Se o mundo se apresentava cindido em realidades
ções de perceber os limites do sistema social7 em que temporais diferentes, possibilitando o convívio de ní-
está inserido, e também com qual classe social pode- veis de consciência distintos e, além disso, se modos
ria identificar-se, conceito este que passa a figurar no de trabalhar qualitativamente opostos (desenvolvimento
seu léxico, absorvido, porém, de maneira peculiar.8 com subdesenvolvimento) compartilhavam do mesmo
Com isso, afrontava alguns cânones da demo- calendário, não havia situação que pudesse impedir o
grafia e afirmava que o trabalho não poderia ser con- homem de “estar em comunicação” (idem, p. 86).
siderado um dado interno de cada população. Propu- Como conseqüência dessa lógica interpretativa,
nha, ao contrário, que cada população fosse construía uma missão para a demografia cumprir en-
considerada dado interno a uma determinada possibi- quanto “ciência social”, que consistia em captar a auto-
lidade de trabalhar (Vieira Pinto, 1973, p. 244). imagem que cada comunidade forjava de si mesma
Isso tudo ajuda a entender porque, mesmo com (idem, p. 97).
tanto acúmulo e variação de leitura, o conceito de Essa missão se fazia acompanhar de uma pro-
amanualidade não era posto de lado; ao contrário, posta de renúncia. Propunha ao demógrafo do país
sempre que possível o autor renovava sua crença no subdesenvolvido renunciar aos conceitos “inaplicáveis
poder descritivo dessa categoria de análise. ao terceiro mundo”, tais como o de População Eco-
nomicamente Ativa (PEA).
Esse rompimento epistemológico deveria ser ce-
7
A noção de sistema social, reiteradas vezes utilizada em lebrado como conseqüência daquele “estar em comu-
sua obra, corrobora a tese de que Vieira Pinto produzia também nicação”, ou seja, cumpria ao investigador ouvir e
uma antropologia social baseada na análise da apropriação das apreender o significado exato do acesso ao incremento
ferramentas de trabalho. tecnológico no bojo de cada população. Isso porque,
8
Na circunstância em que se encontrava, Vieira Pinto pro- falando em termos semelhantes a Celso Furtado, es-
clamava estar à vontade para “misturar” o repertório de Heidegger cutar a opinião de quem trabalha deveria ser conside-
e Husserl com o de Marx, afirmando ser isso uma decorrência e rado um instrumento fundamental para impedir a ab-
uma necessidade de quem “fala de outro lugar” que não a Europa. sorção de tecnologias “poupadoras de mão-de-obra”.
Esse outro lugar é o mundo subdesenvolvido (Vieira Pinto, 1973, Aqui nos deparamos com um argumento que per-
p. 169-170). mite expurgar qualquer tentativa de fazer de Álvaro

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Economia e educação

Vieira Pinto o defensor ingênuo das virtualidades da No bojo de sua argumentação, surgia a necessi-
máquina e da tecnologia. É necessário frisar que sua dade de definir com mais clareza se considerava o
atenção à tecnologia deriva de sua certeza de que pas- trabalho realmente uma possibilidade de libertação
sar do subdesenvolvimento ao desenvolvimento exi- da consciência ou se a retificação marxiana, ao ser
ge manusear o mundo de forma mais elaborada. O acolhida, deveria provocar uma inflexão em seus en-
autor não deixava de perceber que se a chegada da saios e, como conseqüência, conduzir o autor a rela-
máquina inviabilizasse a transformação qualitativa da cionar trabalho com opressão.
“forma de manuseio” (do “grau de amanualidade”) Resolveu esse dilema recorrendo à noção de “fase
em relação à situação ao redor, o trabalhar passaria a histórica”, amplamente discutida nos tempos de ISEB
poupar quem trabalha, roubando desse trabalhador o e que se mantinha bastante viva nas manifestações
controle sobre sua própria qualificação. Sendo assim, políticas e culturais dos movimentos assim chama-
até a proliferação da tecnologia poderia ser uma obra dos de “terceiro-mundistas”. Propunha então, com
da consciência ingênua (idem, p. 69). todas as letras, uma “antropologia existencial para o
O que lhe importava defender é que o lidar dire- Terceiro Mundo”, e explicava que a co-existência de
tamente com a técnica poderia ser um gesto de liber- “populações simultâneas, mas historicamente não
dade para a própria consciência do homem no país coetâneas” (idem, p. 284) facultava a algumas com-
subdesenvolvido: preender o trabalho como instrumento de passagem
da consciência ingênua para a consciência crítica, e a
O trabalho que as massas executam funda sua visão outras compreender o trabalho como expressão da
de mundo. Nas formas inferiores, exploradas, humildes, o opressão de classe contra classe. Seu argumento, en-
trabalhador não chega a ter senão uma noção sensível da fim, acomoda as duplicidades que levanta quando trata
realidade, e, ainda que deseje modificá-la, não alcança com- das questões relacionadas ao trabalho:
preender como isso seria possível. Ao progredir nas formas
de produção, se criam formas superiores de trabalho, reali- Quem vive ao nível da economia de simples subsis-
zado por um volume cada vez maior de pessoas, as quais, tência tem preocupações tão elementares e imediatas que a
pela necessidade de fazê-lo bem, têm que possuir conheci- consciência está ocupada totalmente pelo penoso afã de
mentos amplos. Precisam de instrução técnica e uma for- produzir a vida [...]. Não existem leis gerais sobre a popu-
mação cultural que tende sempre a crescer, sem possibili- lação, válidas para toda a humanidade em todas as épocas e
dade de que interesses na execução do trabalho possam fi- lugares, simplesmente porque cada fase histórica se define
xar-lhe um limite. A consciência do trabalhador, uma vez por condições superestruturais políticas que lhes são parti-
despertada, se descobre como um processo individual sem- culares e condicionam a correlativa configuração do pro-
pre mais independente. Com isso, sua percepção da reali- cesso demográfico, distinguindo-o das caracterizações que
dade se engrandece, e aprofunda o conhecimento das cau- assume em outras épocas... [Na periferia do capitalismo] as
sas de sua situação; e assim o indivíduo é levado a uma nações são um conglomerado de estamentos sociais repre-
interpretação de si mesmo, de seu papel no mundo e na sentativos de fases históricas distintas, coexistindo no mes-
sociedade. (idem, p. 244-245) mo espaço geográfico. (idem, p. 280-283)

Quando considerou que a consciência crítica vis- No bojo dessas considerações, Vieira Pinto indi-
lumbrava a liberdade, Vieira Pinto deparou-se com cou que sua acepção de tecnologia encarecia uma de-
um problema de natureza exegética. Andava às vol- monstração detida e aprofundada das possibilidades
tas com o conceito de ideologia (idem, p. 246-256), e contidas no conceito. Explicar a técnica como “me-
não se esquivava da advertência de Marx sobre o fato mória social do fazer novo” demandava um esforço
de que o próprio homem se tornava bem de produção filológico capaz de orientar seus leitores sobre a im-
para quem dispunha de seu trabalho. portância de um “projeto nacional” capaz de direcionar

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Marcos Cezar de Freitas

as políticas de educação popular para “longe dos pro- É nesse particular que o livro Ciência e existên-
blemas meramente pedagógicos” e para dentro das cia lança as bases de futuros escritos com os quais
demandas de cada fase, antecipando, como consciên- seu relacionamento com Paulo Freire ficaria mais
cia social, o convívio com as alterações materiais res- evidente. É no intento de distanciar-se do pragmatis-
ponsáveis pelo trânsito de uma fase à outra (Vieira mo norte-americano que o autor dá início a uma certa
Pinto, 1960, p. 89, v. 1). “didatização” do seu programa de ciência, com o que,
Governar, no seu entender, supondo sempre um em pouco tempo, se viu envolvido com programas de
governo popular, equivalia também a expandir ciên- alfabetização propriamente ditos.
cia e acumular trabalho industrial na sociedade. Sua De Ciência e existência retirou pressupostos que
concepção de governo-ciência rejeitava o que cha- reapareceriam com outra elaboração noutros estudos,
mava de pedagogia ingênua, segundo a qual incenti- como por exemplo:
var a ciência correspondia a evoluir o país e, a rebo-
que, educar seu povo. Não considerava o povo O primeiro passo para a constituição da autoconsci-
desprovido de ciência, nem de escolaridade. Consi- ência crítica do trabalhador, da qual decorre necessariamente
derava-o, sim, mergulhado em condições precárias de a aquisição da linguagem escrita, está em fazê-lo tornar-se
trabalho, o que não facultava aos governos apresen- observador consciente de sua realidade; destacar-se dela
tar ciência e cultura como se fossem novidades ao para refletir sobre ela, deixando de ser apenas participante
trabalhador (Freitas, 1998, p. 185). inconsciente dela (e por isso incapaz de discuti-la). Tecni-
Essa reflexão de Vieira Pinto foi acompanhada camente, esse resultado é alcançado mediante a apresenta-
de um esforço considerável de organização de uma ção ao educando adulto de imagens de seu próprio meio de
plataforma metodológica a partir da qual outras in- vida, de seus costumes, suas crenças, práticas sociais, ati-
vestigações sobre o papel da ciência, da tecnologia e tudes de seu grupo etc. Com isso, o alfabetizando se torna
do trabalho na organização da sociedade pudessem espectador e pode discutir sua realidade, o que significa
continuar o caminho por ele iniciado. abrir o caminho para o começo da reflexão crítica, do sur-
Nesse sentido, o livro Ciência e existência, para gimento de sua autoconsciência. A alfabetização decorre
além da metodologia do trabalho científico, apontou como conseqüência imediata da visão da realidade, associ-
campos de debate que deveriam ser percorridos para ando-se a imagem da palavra à imagem de uma situação
que a ciência no Brasil pudesse amadurecer e contri- concreta. Posteriormente, a decomposição da palavra em
buir para com a emancipação do país. Vale notar que, seus elementos fonéticos e a recomposição destes em ou-
na organização dos argumentos escolhidos para com- tras palavras se faz sem nenhuma dificuldade e é um pro-
por sua análise a respeito das tensões sociais existentes duto da criação intelectual do próprio educando (e não uma
entre ciência e existência, o autor viu-se obrigado a sugestão externa que lhe é imposta pelo professor). (Vieira
refutar qualquer aproximação entre suas idéias e aque- Pinto, 1991, p. 99)
las relacionadas ao uso dos conceitos conhecimento
científico e de experiência no âmbito do pragmatismo, A reflexão de Vieira Pinto sobre o relacionamento
especialmente aquele difundido nos Estados Unidos por do homem com a realidade, observando a mediação
John Dewey (Vieira Pinto, 1979, p. 446). do trabalho no processo de “transição da consciência
Vieira Pinto considerava que os pragmatismos ingênua para a consciência crítica”, chegou a tal pon-
defendidos até então tomavam a realidade como ponto to de detalhamento que, ao termo, o conjunto vasto
de chegada, enquanto seu trabalho se esforçava por de seus escritos demonstrou que mesmo as
demonstrar que a realidade é um ponto de partida para imprevisibilidades contidas nas conjunturas desfavo-
a compreensão dos processos de aquisição de conheci- ráveis pelas quais passou não conseguiram distanciá-
mento por parte do homem que trabalha (idem, p. 341). lo de seu projeto intelectual primeiro. Sua proposta

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Economia e educação

de fazer um périplo ao redor do “continente trabalho” interpretativo fechado com o livro transcende qual-
manifestou-se em todos os seus escritos. quer demanda da voz das ruas. É um tratado filosófi-
O movimento circular que empreendeu se com- co de amplo alcance.
pletou no livro O conceito de tecnologia, de certa for- O conceito de tecnologia parece ser, ao mesmo
ma um livro onipresente em toda a sua obra. tempo, o ato conclusivo de Consciência e realidade
nacional, tendo El pensamiento crítico en demografía
O laboratório e a capelinha e Ciência e existência como “entreatos” e também a
forma escrita com a qual o intelectual interveio no
A obra de Álvaro Vieira Pinto poderia ser estu- sentido de oferecer uma fisionomia para o tempo que
dada à luz do conceito de “biografia total” sugerido testemunhava, como diria Walter Benjamim. É um
por Le Goff (1999). Ou seja, poder-se-iam articular texto singular. Nele o autor solucionou impasses teó-
três perspectivas antes de enfrentar seu campo ricos e definiu com qual espectro de autores contou
conceptual. Na primeira elucidaríamos a relação en- para fazer do conceito de amanualidade uma recria-
tre biografia e tempo vivido; na segunda passaríamos ção sua, roubando-o definitivamente do existencia-
“por dentro” da memória construída sobre o autor e lismo europeu.
seus escritos; por fim, na terceira perspectiva abriría- O retorno empreendido neste livro às origens das
mos sua caixa de conceitos como quem abre uma cai- palavras técnica e tecnologia, acompanhado da análi-
xa de ferramentas. se das sucessivas reapropriações dos conceitos, aná-
Estupefatos ante sua caixa de ferramentas, pro- lise esta sempre feita “por dentro” e com familiarida-
vavelmente compreenderíamos o porquê de tantas pá- de com inúmeros clássicos da filosofia, não deve
ginas. Para empreender o movimento analítico que sugerir a produção de um manual da história do uso
Vieira Pinto realizou, chamando ao seu trabalho tan- de um conceito. Embora esbanje conhecimento, a in-
tos interlocutores, são, de fato, necessárias as milha- tenção do autor não é filológica, mas é sim, como
res de páginas que escreveu em ritmo monástico. fazem as tecelãs, um gesto de organização dos fios
Um mérito de um de seus últimos escritos – O com os quais o desenho teórico de sua vida ganhou
conceito de tecnologia – é o de revelar que os textos feição definitiva.
do “ciclo desenvolvimentista” não foram apenas pan- Vieira Pinto recusa a expressão “era tecnológica”,
fletos de uma hora que se apresentava como prenún- que começa a ganhar forma naquele momento, lan-
cio da “revolução brasileira”. çando mão de um argumento direto e contundente: o
Se os panfletos apareceram, especialmente quan- homem não seria humano se não vivesse sempre numa
do Vieira atuou em conjunto com alguns intelectuais era tecnológica.
que se movimentaram do “ISEB para os comícios” Com esse ponto de partida, já podemos antever a
(Freitas, 1998, p.113), os livros propriamente ditos raiz política de O conceito de tecnologia: qualquer
do autor9 não devem ser simplesmente destacados “desnível” entre os povos resulta da apropriação
como se fossem uma parte de um suposto populismo indébita que as nações ricas fazem das riquezas do
inerente ao “interesse pelas massas”. mundo subdesenvolvido. A existência de tempos con-
É verdade que muitos escritos foram concebidos temporâneos, mas não coetâneos, era, antes de tudo,
como instrumentos de mobilização, denúncia e con- diferença de acesso aos avanços tecnológicos, e por
vocação da juventude ao engajamento. Mas o círculo isso Vieira Pinto gastou muitas páginas demonstran-
do seu desconforto para com os argumentos de ori-
gem biológica e racial.
9
Ver especialmente Por que os ricos não fazem greve? (1962) O “desnível” entre sociedades é explicado com
e A questão da universidade (1986). argumentos que tentam desmistificar a presença da tec-

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Marcos Cezar de Freitas

nologia na sociedade, preferindo, ao contrário, indicar O que Vieira Pinto enxerga no contexto em que
que, quanto mais vulgarizado estiver seu uso, mais o analisa a propagação das imagens da “era tecnológica”
homem estaria agindo a favor do controle racional dos é, ao contrário, um mergulho no provincianismo pró-
bens da natureza. Eis sua definição de processo: prio da consciência ingênua: “o laboratório de pes-
quisas, anexo à gigantesca fábrica, tem o mesmo sig-
À medida, porém, que vão sendo compreendidos os nificado ético da capelinha outrora obrigatoriamente
processos naturais e descobertas as forças que os movimen- exigida ao lado dos nossos engenhos rurais” (Vieira
tam, com a conseqüente possibilidade de utilização delas Pinto, 2005, p. 170, v. 1).
pelo homem, para produzir artefatos capazes de satisfazer As conseqüências que o autor retira do esforço
novas necessidades, e essa fabricação se multiplica cons- de debulhar o conceito de tecnologia têm alcance ex-
tantemente, o mundo deixa de ser o ambiente rústico es- pressivo e tocam aspectos dramáticos dos dias que
pontâneo e se converte em ambiente urbano, na casa povo- seguem. Vieira Pinto demonstra que um dos maiores
ada de produtos de arte e, na época atual, de aparelhos que danos causados pelo desnível entre países desenvol-
põem as forças naturais a serviço do homem. (Vieira Pinto, vidos e subdesenvolvidos é a disseminação da crença
2005, p. 47, v. 1) de que grandes problemas resultam somente da inefi-
ciência de gestão e falta de instrumentos adequados
No momento em que o autor demonstra que uma de “engenharias sociais”. Ele sobe o tom e posiciona-
situação de superação em relação ao “rústico espontâ- se: “contra esta errônea e insidiosa uniformização é
neo” acompanha inexoravelmente a utilização dos bens que nos pronunciamos”. (idem, p. 41)
tecnológicos, o texto que agora aparece conclui a ex- E, como em toda a sua obra, diante da necessida-
posição de um argumento que perpassa toda a sua obra: de de recusar imposturas ideológicas, na seqüência o
convém ao pobre usar a tecnologia tanto quanto con- autor abre espaço à antropologia para complementar
vém ao rico. Não se sustenta a análise apresentada por sua argumentação:
alguns de seus críticos mais eruditos de que Vieira Pin-
to poderia ser considerado “expressão da razão bur- Uma das mais nocivas substancializações que come-
guesa” ou “exemplo de retórica messiânica” direcio- temos quase inconscientemente, passando assim desperce-
nada ao homem rústico (Franco, 1985; Paiva, 1986). bida, é a que se refere à cultura. Aparece-nos como uma
Recentemente, Cortes (2003) demonstrou que, realidade em si. Definimos então as técnicas declarando-as
na acepção esperançosa de Vieira Pinto, a democra- pertencentes a certa cultura, substantivada, entificada, quan-
cia é o regime que interessa aos “homens comuns”. do a verdade encontra-se na expressão inversa. [...] Atri-
Essa afirmação pode ser complementada com a leitu- buímos certas técnicas antiqüíssimas por exemplo à cultura
ra de um dos aforismos expressos em O conceito de paleolítica, quando deveríamos dizer o oposto, pois são as
tecnologia: a idéia de “era tecnológica” é uma opera- técnicas executadas em tal fase do desenvolvimento huma-
ção ideológica com a qual cada grupo dominante apre- no que configuram o conceito chamado cultura paleolítica.
senta sua versão de “fim da história”. O momento no (Vieira Pinto, 2005, p. 106, v. 2)
qual se triunfa passa a ser o momento no qual a histó-
ria estaria vivendo seu ápice.10
nos melhores tempos jamais desfrutados pela humanidade. [...]
[Por isso ocorre] a conversão da obra técnica em valor moral.
10
Diz Vieira Pinto: “O conceito de era tecnológica encobre, [Como se] a sociedade capaz de criar as estupendas máquinas e
ao lado de um sentido razoável e sério, outro, tipicamente ideoló- aparelhos atualmente existentes, desconhecidos e jamais sonha-
gico, graças ao qual os interessados procuram embriagar a cons- dos pelos homens de outrora, não pode deixar de ser melhor do
ciência das massas, fazendo-as crer que têm a felicidade de viver que qualquer outra precedente.” (idem, p. 61)

92 Revista Brasileira de Educação v. 11 n. 31 jan./abr. 2006


Economia e educação

Olhando mais uma vez para os desníveis entre Seu destaque para o caráter social do incremen-
as sociedades, Vieira Pinto acredita que alguém agres- to tecnológico reaparece em muitas partes de vários
sivamente chamado “primitivo”, vivendo praticamen- textos que escreveu. No caso do livro O conceito de
te ocupado todo o tempo nos afazeres da subsistência tecnologia, a evocação do social foi necessária para
individual e da espécie, está muito mais imerso numa pontuar sua rejeição ao argumento de que a dissemi-
sociedade tecnocrática do que nós, que dispomos de nação da técnica mais elaborada dependerá da gene-
maior liberdade de movimentos. rosidade de quem a usa em benefício próprio. A tec-
Vieira Pinto prefere dizer que quanto mais se de- nologia já pertence aos estratos mais simples da
senvolve a tecnologia tanto mais regride a tecnocra- sociedade. Esses estratos não podem ganhar, na con-
cia. Por isso, recusou-se a ver na disseminação do dição de dádiva, aquilo que já é constitutivo do seu
uso da máquina e do computador um elemento próprio ser social.
comprovador da “qualidade” presente na opção vul- Vieira Pinto, ao longo de todo o texto, tenta cha-
garmente defendida pelas elites de então: entrar na mar a atenção para um elemento que, a seu ver, deve-
era tecnológica para superar a desigualdade. ria ser o organizador das iniciativas voltadas para a
Seu raciocínio, nesse sentido, é lapidar e radi- construção do desenvolvimento econômico. Trata-se
calmente ao avesso: sem acabar com a desigualdade, da percepção, que carrega desde o final da década de
não deixaria de ter importância a ferramenta rústica 1950, quando começou a redigir Consciência e reali-
na sociedade. dade nacional, de que o homem só trabalha para si
quando o faz para a sociedade inteira.11
Considerações finais O livro O conceito de tecnologia é aquele no qual
Vieira Pinto mais concede espaço a Marx para refle-
Diante do exposto, qual a tese de Vieira Pinto no tir sobre a categoria trabalho, estendendo essa aber-
que toca aos benefícios que a máquina traz à socieda- tura a alguns debates especificamente levados a efei-
de? Sua resposta é enxuta: “a verdadeira finalidade to por Engels.
da produção humana consiste na produção das rela- Isso provoca um certo deslocamento no seu modo
ções sociais, a construção das formas de convivên- de entender os efeitos da tecnologia sobre a socieda-
cia” (2005, p. 169, v. 2). de. Na realidade, não ocorre exatamente um desloca-
Com isso o autor retorna, como o faz, aliás, em mento, mas sim uma operação de confirmação de seus
toda a sua obra, ao conceito de amanualidade, para pressupostos políticos, sem prejuízo de sua malha
afirmar que o homem cria o engenho para que este conceptual.
produza melhor os bens, que, por sua vez, irão recriar À medida que Vieira Pinto vai acolhendo em suas
o mesmo homem, no sentido de lhe darem condições próprias páginas, e não só vai acolhendo, como vai
mais convenientes de existência. Na forma como demonstrando familiaridade com os cânones da eco-
Vieira Pinto se apropriou e recriou o conceito de ama- nomia política marxiana, torna-se definitiva a neces-
nualidade, há um dado que merece nossa atenção e sidade de posicionar-se a respeito da questão de fun-
que diz respeito à entrada em cena de uma acepção do: o trabalho aliena ou não o homem? Se parte
de história para pensar socialmente a tecnologia: “as expressiva de sua obra se dedicou a defender a neces-
estupendas criações cibernéticas com que hoje nos sidade de elevar o padrão de qualidade na interven-
maravilhamos resultam apenas do aproveitamento da
acumulação social do conhecimento, que permitiu
fossem concebidas e realizadas. Não derivam das 11
Ele diz, de forma quase singela: “O avião não foi feito
máquinas anteriores enquanto tais, mas do emprego para voar, mas para o homem voar”. (Vieira Pinto, 2005, p. 80,
que o homem fez delas” (2005, p. 9, v. 2). v. 1)

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Marcos Cezar de Freitas

ção do homem sobre a natureza, o desafio exposto na existencialismo pronunciado da periferia para o cen-
teoria da mais-valia sugeriu ao autor uma saída “por tro. Pensou nas condições objetivas de vida e traba-
dentro” de seus próprios labirintos. Ou seja, primeiro lho do povo brasileiro, e atribuiu à juventude um
dedicou-se a refutar qualquer aproximação entre sua protagonismo essencial na procura pelo avesso do
análise sobre o valor da técnica e os argumentos mundo subdesenvolvido. Pensava que os jovens po-
irracionalistas que povoaram o século XX. Da obra deriam renovar a idéia de “projeto nacional”. Pen-
de Oswald Splengler, por exemplo, não sobra pedra sava, fundamentalmente, que as condições de arcaís-
sobre pedra em suas análises. mo e rusticidade na qual boa parte do povo brasileiro
Mas esse processo de revigoração dos próprios se encontrava não deveriam ser interpretadas como
pressupostos, sem procurar estabelecer incompatibi- sintomas de um “povo atrasado”, mas sim como se
lidades com o marxismo, foi operacionalizado no pla- fossem as bases de reconstrução de uma nacionali-
no da política, ou seja, concluiu que o trabalho aliena dade.
quando não pertence mais ao trabalhador. Reconstrução nacional, no seu entender, deman-
Por isso, para surpresa do leitor de sua obra, Vieira dava um esforço considerável no sentido de oferecer
Pinto decide explicitar, como nunca fizera antes, que o para toda a juventude condições de manuseio de tec-
trabalho deveria ser “desalienado” pelas mãos do jo- nologia cada vez mais elaborada. Essa tecnologia se-
vem trabalhador no ato da apropriação da técnica mais ria tanto mais elaborada quanto mais fosse socialmente
elaborada “a seu favor”. Com isso, declara sua distân- disseminada, ou seja, quanto menos estivesse vincu-
cia em relação a outras compreensões do conceito de lada aos mecanismos de acumulação individual de ri-
amanualidade, indicando que a liberdade do mundo do queza.
trabalho não resultaria da recusa em participar do mun-
do tecnológico, buscando na simplicidade e no sim-
Referências bibliográficas
ples “em si” uma forma mais elaborada de vida.
O livro O conceito de tecnologia proporciona ao
leitor testemunhar um denso diálogo com a filosofia BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento econômico brasileiro:
existencialista de Martin Heidegger. O ponto de par- o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. Rio de Janeiro: Con-
tida é simples: se a tecnologia representava a vitória traponto, 1995.
do homem sobre a natureza, não lhe parecia plausível
CORTES, Norma. Esperança e democracia. Belo Horizonte: Edi-
defender o “retorno para ela” como forma de colocar
tora da UFMG, 2003.
o homem no centro da história.
Sua interpelação é contundente: FRANCO, Maria Sylvia Carvalho. O tempo das ilusões. In:
FRANCO, Maia Sylvia Carvalho; CHAUÍ, Marilena. Ideologia

Lamentar o avassalamento da existência pela tecnolo- e mobilização popular. Rio de Janeiro: Paz e Terra / CEDEC,

gia, o perigo a que estão expostos, ou mesmo a que já su- 1985. p. 151-209.

cumbiram os valores humanos, não passa de pura fraseologia FREITAS, Marcos Cezar de. Álvaro Vieira Pinto: a personagem
de escritores impressionistas, alguns com banca montada e histórica e sua trama. São Paulo: Cortez, 1998.
renome de filósofos profissionais. É o caso, por exemplo, de
FURTADO, Celso. Desenvolvimento e subdesenvolvimento. Rio
Martin Heidegger, que declara: a técnica é um malefício de
de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961.
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