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O Brasil deve um prêmio a Sérgio Fantini

Enquanto lia os originais do Lambe-lambe, sempre que se entusiasmava com


algum conto, Adriane Garcia me ligava, fazendo questão de ler para mim o texto inteiro,
por telefone. Como ela se entusiasmou com praticamente tudo, escutei através de um
áudio book privilegiado, quase o livro todo. Mas quem já viu a poeta mineira declamar
um texto em voz alta sabe que sua leitura embeleza e dá vigor literário até mesmo a uma
lista de compras de supermercado, de modo que não quis acreditar que o livro fosse tão
bom quanto parecia. Precisava tê-lo fisicamente em mãos para constatar. E constatei.

Acredito ter sido Poe quem inaugurou a lírica erradia do citadino, ao conformar a
imagem do escritor à do detetive secreto, que se mistura à multidão formada no espaço
urbano, com fins de se esconder ou de observar. Desde então, a ligação do escritor com a
cidade onde vive pode se ver refletida como um modelo em sua narrativa: da Dublin de
Joyce ao Rio de Janeiro de Machado; da São Paulo de Piva a Los Angeles de Chandler;
da Paris de Henry Miller à Buenos Aires de Arlt.

Agora chegou a vez da Belo Horizonte de Sérgio Fantini.

Claro que a capital mineira já teve cronistas inesquecíveis, em especial Wander


Piroli, que escreveu sobre uma época em que os policiais usavam chapéus, os jogadores
de baralho bonés, e as prostitutas se apaixonavam pelos clientes (e vice-versa). Mas não
é sobre essa época que Fantini (que é de duas gerações posteriores a Piroli) se debruça,
ainda que seja para a mesma paisagem que seu interesse se incline. Digamos que Fantini
atualize Piroli na medida em que partilha com ele a paixão pela mesma causa perdida. A
verdade é que alguns escritores sofrem de algo que chamo de empatia por aquelas coisas
que estão se extinguindo, e tratam de querer retratá-las para que não sejam esquecidas.
Acredito que com o Lambe-lambe, Sérgio Fantini passe a pertencer a essa categoria.

Não é à toa que a figura emblemática que intitula o livro esteja fadada à extinção
tanto quanto a figura do escritor. Fantini está à vontade para testemunhar o
desaparecimento de ambos, pois se o escritor tem os dias contados, cairá atirando assim
como o fotógrafo ambulante, empunhando retratos que remetem a um tempo em que a
memória e a fruição do tempo contavam tanto quanto a imaginação. No fundo, Fantini
sabe que ambos são os últimos heróis de uma época já antiquada, quando a atenção podia
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ser exercida sem culpa ou pressa: seja para desfrutar da cidade; seja para desfrutar de um
livro. Mas se hoje as pessoas correm atrasadas pelas ruas de Belo Horizonte sem enxergá-
las, podem ficar tranquilas: Fantini já passou antes por elas e quer contar não apenas sobre
a beleza que possuem, mas sobre as pessoas que, um dia, também caminharam por elas.

São cinquenta contos curtos, intitulados pelas figuras emblemáticas que compõem
a paisagem urbana de qualquer cidade: famílias que chegam do interior, mendigos,
velhos, barbeiros, cães, garçons, andarilhos, pregadores, flanelinhas, lixeiros, hippies,
motoristas – nada escapa à lente do escritor; no fim das contas, a última instância capaz
de desenhar a onda de um padrão coeso em todo esse caos, no intuito de encontrar aquele
ponto de semelhança onde todas as coisas possuem uma beleza digna de ser admirada.
Fantini devolve uma cidade ao leitor que a conhece e, àquele leitor que jamais pôs os pés
nela, o escritor oferece um zoom de uma cidade reconstruída pela imaginação, pelos
sonhos da infância e pelo compromisso ético com aqueles que nunca tiveram voz nem
espaço.

Lambe-lambe possui uma unidade formal que concede ao livro a força compacta
de um romance. Os inícios iguais de cada conto (“São esses...”), a manutenção do mesmo
tom de voz do narrador, do mesmo ritmo das frases, da mesma lógica de ideias, tudo
sombreado por uma ironia melancólica que não se aparta da multidão para rir sozinha,
mas que desce do pedestal e se junta a ela para denunciar que os invisíveis existem, que
os invisíveis não estão mortos só porque não conseguimos enxergá-los. Fantini aponta o
dedo para que enxerguemos os “supérfluos”, aqueles que não contam mais para o sistema
nem como consumidores nem como força de trabalho; sua literatura ataca o discurso bem
memorizado das cartilhas liberais, que tentam naturalizar nossa indiferença, na medida
em que nega ao outro o status de sujeito e o inscreve na fileira dos objetos descartáveis.
O que o escritor quer denunciar é que nós, que somos leitores afortunados por termos a
garantia de que nosso estômago terá algo com o que se encher durante todo o dia, não
podemos fingir que não vemos aqueles que diariamente lutam para enchê-lo sem ter a
certeza que conseguirão, sejam eles os malabaristas no sinal, os desempregados, os
andarilhos, os feirantes ou as babás vestidas de branco.

Mas quando os olhos compassivos do narrador se voltam aos detentores do poder,


sua ironia se torna mordaz, a ponto de termos policiais que espancam manifestantes
porque são “distraídos”, políticos com “setecentos dedos de trezentas mãos”, ou esses

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“monstros que a gente vê no espelho” todo santo dia. É o filtro regulador da mordacidade
de sua ironia que indica claramente o lado que o escritor escolheu ficar, não por
coincidência, o lado contrário aos clientes do medo, aos detratores da esperança, aos
resignados cínicos, enfim, a todos aqueles que se conformam em manter os invisíveis
onde estão, seja por cansaço ou porque auferem vantagens com isso. Os cinquenta contos
de Lambe-lambe se situam nessa fonte, nesse lado, cavando trincheiras ali onde seus mais
antigos precursores ergueram barricadas. Mas apesar do seu claro tom de denúncia
política, o livro não adquire, em nenhum momento, a elevação de voz panfletária dos
discursos prontos. A linguagem, a perfeita condução da narrativa e a beleza poética de
muitas descrições têm precedência sobre qualquer possível realismo chão dos partidos.
Fantini resgata, da invisibilidade, figuras que o consenso do poder ou do bom gosto
gostariam de manter desconhecidas, mas esta talvez seja uma das aspirações mais
elevadas da literatura.

No dia do lançamento de Lambe-lambe, na capital mineira, o escritor Cristiano


Rato trouxe, para também ser autografado, um velho exemplar mimeografado de
Bakunin, um dos primeiros livros de Fantini, pertencentes a uma época (início dos anos
oitenta) em que o escritor os vendia de bar em bar. O fato foi interessante, pois me
permitiu compará-los, para notar nos dois o mesmo cheiro de tinta de mimeógrafo, a
mesma liberdade artística, o mesmo compromisso com os que não têm nada ou bem
pouco, a mesma independência. E se hoje um escritor como Sérgio Fantini, com uma
estrada de mais de 40 anos dedicados à literatura, abre mão do circuito das grandes
editoras, das “panelinhas” literárias e dos modismos (que, vira e mexe, retornam com a
promessa de um rótulo que venda fácil) para publicar com editoras menores e manter
controle absoluto sobre aquilo que quer dizer, não pode ser por nenhuma outra razão
senão a reafirmação do seu compromisso com uma ética que transcende os slogans de
qualquer bandeira e reafirma o papel do escritor em uma sociedade cada vez mais
excludente. O resultado é o seguinte: a impressão de que, ao longo de todos esses anos,
Fantini vem coincidindo consigo mesmo naquilo que ele talvez acredite ser sua essência:
a responsabilidade do escritor na construção de uma sociedade mais justa e mais solidária.

Óbvio que essa resenha é parcial e absolutamente afetiva. Tenho o privilégio de


ser amigo de Sérgio Fantini, o escritor sobre o qual (desde que eu morava em São Paulo)
falavam tantas pessoas que admiravam sua literatura, sua ética, sua honestidade
intelectual, sua dedicação com a escrita, com a formação de leitores e de escritores. Claro

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que não é por isso que resolvi resenhar o Lambe-lambe: é um livro que se mantém de pé
sem a presença do seu autor; mas é inegável que, ao passo em que você vai conhecendo
Sérgio Fantini pessoalmente, vai percebendo o quanto homem e obra se enlaçam a ponto
de se confundirem. Escritor íntegro; homem íntegro.

Como se não bastasse, a editora Jovens Escribas caprichou na edição,


transformando o livro em um objeto de admiração à parte. As ilustrações de Guga
Schultze, que separam cada narrativa, são belíssimas. O livro é um grande concorrente
para os próximos prêmios literários e vou torcer por ele. Acredito que será um
reconhecimento mais que merecido. O Brasil deve um prêmio a Sérgio Fantini.

Tadeu Sarmento.

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