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Copyright | W , 1951,1953, 1954,1955 by M i l l Berlin

Copyright C 1958, I960, 1961, 1962, 1964,1965, 1968,1969, W7I, wyi, 197.1,
1974, 1975,1976,1978,1979,1980,1988. 1990 by Isaiah Ucrlllt
( iopyright da seleção dos ensaios 0 1997 by Henry Hardy c Roger I loushccr
Copyright do préfacio Q 199J, 1997 by Nod Annan
(Copyright da edição © 1997 by Henry Hardy
Copyright da introdução ® by RogerHausheer
Proibida a venda cm Portugal

Para maiores informações sobre fcaidJt Berlin, vwitc: http://berhn.wolf.ox.ac.uk

Tit ulo original


The Proper Study of Mankind— An Anthology of Essays
Capa
Joio Batista da Costa Aguiar
sobre foto de Isaiah Berlin
Preparação
Elianc dc Abreu Santoro

índice remissivo
Maria Claudia Carvalho Mattos
Revúáo
Carmen S. da Costa
Ana Maria Barbosa

Dados Internacionais dc C&talogaçSo na Publicado (cip)


(Clmara Btasifara do Livro. sf. Brasil)

Berlin. Uaiah. Sir., 1*09-1997


Estudos sobre a humanidade : uma antologia de ensaios /
Isaiah Berlin ; editado por Henry Hardy e Roger Hausheer ; ptefó-
a o de Noel Annan c indroduçSo dc Roger Hausheer ; tradução
Rossura Eichcnberg — S5o Paulo : Companhia das Letras. 2002

Título onginal: The proper study of mankind: An


anthology of essays
ISSN 85-359-030&-9

t. Antropologia filosófica 2. História-Filosofia 3. Política*


Filosofia 4 . Seres humanos i. Hardy. Henry, li. Hausheer, Roger. iu.
Annan. Noel, rv Tltuío. v. Titulo: uma antologia de ensaios.

02-6066 COO-192

índice* para catálogo sistemático:


1. Berlin, Isaiah: Obras filosóficas 192
2. Filosofia Inglesa 192

[2002]
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA SCHWARCZ LTDA.
Rua Bandeira Paulista 702 çj. 32
04532-002 — São Paulo — SP
Telefone (11) 3167-0801
Fax (11) 3167-0814
www.companhiadasletras.com.br
Know then thyself, presume not God to scan;
The proper study o f Mankind is Man.
[Conhece a ti m esm o, não te atrevas a sondar Deus;
O estudo próprio da Hum anidade é o H om em .]
Alexander Pope, An Essay on Man, ii i
Dois conceitos de liberdade

Se os hom ens nunca discordassem sobre os objetivos da vida, se nossos ances­


trais tivessem perm anecido im perturbados nojardim do Éden, os estudos a que se
dedica a Cadeira Chichele de Teoria Política e Social não poderiam ter sido conce­
bidos.1Pois esses estudos nascem e prosperam na discórdia. Alguém pode questio­
nar essa afirmação alegando que até num a sociedade de anarquistas religiosos, em
que não há possibilidade de ocorrerem conflitos sobre os propósitos suprem os,
alguns problemas políticos, po r exemplo, questões constitucionais ou legislativas,
ainda poderiam acontecer. Q uando há consenso sobre os fins, as únicas questões
que restam se referem aos meios, e essas não são políticas, mas técnicas, isto é, pas-
síveis de serem resolvidas por especialistas ou máquinas, com o discussões entre
engenheiros ou médicos. É por isso que aqueles im buídos de um a fé em algum
imenso fehôm eno transform ador do m undo, com o o triunfo final da razão ou a
revolução proletária, devem acreditar que todos os problem as políticos e m orais
podem ser com isso transform ados em tecnológicos. Esse é o significado da fam o­
sa frase de Engels (parafraseando Saint-Simon) sobre "substituir o governo de pes­
soas pela administração de coisas",2e das profecias marxistas sobre o desapareci­
m en to do Estado e o com eço da verdadeira história da hum anidade. Essa
perspectiva é cham ada de utópica por aqueles que consideram a especulação sobre
um a condição de perfeita harm onia social a representação de um a vã fantasia.

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Ainda assim, um m arciano que visitasse hoje qualquer universidade britânica— ou
am ericana — talvez fosse perdoado se sustentasse a im pressão de que seus m em ­
bros vivem em algum estado m uito sem elhante a essa condição inocente e idílica,
apesar de toda a atenção séria que os filósofos profissionais dispensam aos proble­
mas fundam entais da política.
No entanto, isso é tão surpreendente com o perigoso. Surpreendente porque
talvez não haja nen h u m a época na história m o d ern a em que um n ú m ero tão
grande de pessoas, tanto no O riente com o no O cidente, tenha tido suas noções e,
de fato, suas vidas tão profundam ente alteradas, e em alguns casos violentam ente
convulsionadas, por doutrinas sociais e políticas defendidas com tanto fanatismo.
Perigoso porque, quando as idéias são negligenciadas por aqueles que deviam exa­
miná-las — isto é, que foram treinados para pensar criticam ente sobre as idéias — ,
elas às vezes adquirem um momentum desenfreado e um poder irresistível sobre
m ultidões de hom ens que podem se to rn a r dem asiado violentos para serem
influenciados pela crítica racional. Há mais de cem anos, o poeta alem ão H eine
alertou os franceses para não subestim arem o poder das idéias: os conceitos filosó­
ficos nutridos na quietude do escritório de um professor poderiam destruir um a
civilização. Ele falava da Crítica da razão pura de Kant com o a espada com que o
deísm o alem ão fora decapitado e descrevia as obras de Rousseau com o a arm a
m anchada de sangue que, nas m ãos de Robespierre, havia destruído o antigo regi­
me; e profetizou que um dia a fé rom ântica de Fichte e Schelling seria voltada,
pelos fanáticos seguidores alem ães deles, contra a cultura liberal do O cidente,
gerando efeitos terríveis. Os fatos não desm entiram inteiram ente essa predição;
mas, se os professores podem realm ente brandir esse poder fatal, não serão so­
m ente outros professores ou pelo m enos outros pensadores (e não governos ou
com itês do Congresso) que poderão desarmá-los?
Nossos filósofos parecem estranham ente inconscientes desses efeitos devas­
tadores de suas atividades. Talvez porque, em briagados por suas magníficas reali­
zações em reinos mais abstratos, os m elhores dentre eles olhem com desdém para
um campo em que há m enos probabilidade de serem feitas descobertas radicais e
de ser recom pensado o talento para a análise m inuciosa. No entanto, apesar de
todo o esforço para separá-las, conduzido por um pedantism o escolástico cego, a
política continua indissoluvelm ente entrelaçada com todas as outras form as de
investigação filosófica. Negligenciar o campo do pensam ento político porque seu
tem a instável, de limites enevoados, não pode ser apreendido pelos conceitos fixos,

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m odelos abstratos e finos instru m entos adequados à lógica ou à análise lingüística
— exigir um a unidade de m étodo na filosofia e rejeitar tudo o que o m étodo não
possa tratar com sucesso — é apenas permitir-se ficar à m ercê de crenças políticas
prim itivas e não criticadas. Só um m aterialism o m uito vulgar nega o poder das
idéias e afirm a que os ideais são m eros interesses m ateriais disfarçados. Talvez,
sem a pressão de forças sociais, as idéias políticas sejam natim ortas: o certo é que
essas forças, a não ser que se cubram de idéias, continuam cegas e sem direção.
A teoria política é um ram o da filosofia m oral que parte da descoberta, ou
aplicação, de noções m orais na esfera das relações políticas. Não quero dizer, com o
acho que alguns filósofos idealistas talvez tenham acreditado, que todos os movi­
m entos históricos ou conflitos entre os seres hum anos são redutíveis a m ovim en­
tos ou conflitos de idéias ou forças espirituais, nem m esm o que são efeitos (ou
aspectos) delas. Mas quero dizer que com preender esses m ovim entos ou conflitos
é, acima de tudo, com preender as idéias ou atitudes para com a vida neles envolvi­
das, as únicas que tornam esses m ovim entos um a parte da história hum ana, e não
m eros acontecim entos naturais. Palavras, noções e atos políticos não são inteligí­
veis exceto no contexto das questões que dividem os hom ens que os em pregam .
C onseqüentem ente, é provável que nossas próprias atitudes e atividades conti­
nuem obscuras para nós se não com preendem os as questões dom inantes de nosso
m undo. A m aior dessas questões é a guerra aberta que está sendo travada entre
dois sistemas de idéias que dão respostas diferentes e conflitantes ao que tem sido
há m uito tem po a questão central da política — a questão da obediência e da coer­
ção. "Por que devo (ou alguém deve) obedecer a outro alguém?" “Por que não devo
viver conform e m inha vontade?” “Devo obedecer?” “Se desobedeço, posso ser coa­
gido?” “Por quem , em que medida, em nom e do quê e por causa do quê?”
Com base nas respostas à pérgunta dos limites permissíveis de coação, visões
opostas são defendidas no m undo atual, cada um a alegando ter a adesão de m ulti­
dões. Parece-me, portanto, que qualquer aspecto dessa questão é digno de exame.

Coagir u m hom em é privá-lo da liberdade — liberdade de quê? Quase todo


moralista na história hum ana tem elogiado a liberdade. C om o a felicidade e a bon­
dade, com o a natureza e a realidade, a liberdade é um term o cujo significado é tão

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poroso que não parece capcw dc resistir a m uitas das interpretações. Não proponho
discutir a história dessa palavra protéica ou seus mais de duzentos sentidos regis­
trados pelos historiadores de idéias. Proponho exam inar não mais que duas de suas
acepções — mas elas são centrais, com m uita história hum ana atrás de si e, ouso
dizer, ainda por acontecer. O prim eiro desses sentidos políticos de liberdade (free-
dom ou liberty — vou usar essas duas palavras para significar a m esm a coisa), que
(conform e m uitos precedentes) vou cham ar de sentido “negativo", está implicado
na resposta à pergunta: "Qual é a área em que o sujeito — um a pessoa ou grupo de
pessoas— é ou deve ter perm issão de fazer ou ser o que é capaz de fazer ou ser, sem
a interferência de outras pessoas?”. O segundo, que vou cham ar de sentido "posi­
tivo", está implicado na resposta à pergunta: "O que ou quem é a fonte de contro­
le ou interferência capaz de determ inar que alguém faça ou seja um a coisa em vez
de outra?". As duas perguntas são claram ente diferentes, m esm o que as respostas
possam coincidir parcialm ente.

A noção de liberdade negativa

N orm alm ente sou considerado livre na m edida em que nenhum hom em ou
g rupo de hom ens interfere com a m inha atividade. A liberdade política nesse sen­
tido é sim plesm ente a área na qual um hom em pode agir sem ser obstruído por
outros. Se outros m e im pedem de fazer o que do contrário eu poderia fazer, não
sou nessa m edida livre; e, se essa área é restringida por outros hom ens além de
certo valor m ínim o, posso ser descrito com o coagido ou, talvez, escravizado. A
coerção não é, entretanto, um term o que abranja qualquer form a de incapacida­
de, Se digo que sou incapaz de pular para cima mais de três m etros ou que não
posso ler porque sou cego, ou que não consigo entender as páginas mais enigm á­
ticas de Hegel, seria absurdo afirm ar que sou nessa m edida escravizado ou coagi­
do. A coerção implica a interferência deliberada de outros seres hum anos na m inha
área de atuação. Só não tem os liberdade política quando outros indivíduos nos
im pedem de alcançar um a m eta.1A m era incapacidade de alcançar um a m eta não
é falta de liberdade política.4 Isso é manifestado pelo uso de expressões m odernas
com o "liberdade econômica" e sua contrapartida, "escravidão econômica". Afir­
ma-se, m uito plausivelmente, que, se um hom em é dem asiado pobre para obter
algo isento de proibição legal — um pão, um a viagem ao redor do m undo, um
recurso aos tribunais —, ele é tão pouco livre para conseguir esse intento quanto o

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seria se a lei proibisse sua ação. Se a minha pobi*eza fosse um tipo de doença que me
impedisse de com prar pão ou de pagar a viagem ao redor do m undo ou de conse­
guir que m eu caso fosse julgado, assim com o o fato de ser m anco me im pede de cor­
rer, essa incapacidade não seria naturalm ente descrita com o um a falta de liberda­
de, m uito m enos falta de liberdade política. É apenas porque acredito que minha
incapacidade de obter determ inado objetivo se deve ao fato de que outros seres
hum anos fizeram arranjos pelos quais sou impedido, enquanto outros não o são,
de ter bastante dinheiro para pagar o que desejo possuir, que m e considero um a
vítima de coerção ou escravidão. Em outras palavras, esse uso do term o depende
de um a teoria social e econômica particular sobre as causas de m inha pobreza ou
fragilidade. Se m inha falta de meios materiais se deve a algum a falta m inha de capa­
cidade m ental ou física, só posso pensar em falar que sou privado de liberdade (e
não sim plesmente sobre pobreza) se aceito a teoria.5Se, além disso, acredito que
minha carência está sendo mantida por um arranjo específico que considero injus­
to ou iníquo, falo de escravidão ou opressão econômica. A natureza das coisas não
nos enlouquece, só nos enlouquece a má vontade, disse Rousseau.6 O critério da
opressão é o papel que acredito estar sendo desem penhado por outros seres hum a­
nos, direta ou indiretam ente, com ou sem intenção, para frustrar m eus desejos. Ser
livre, nesse sentido, para mim significa não sofrer a interferência de outros. Q uanto
m aior a área de não-interferência, mais ampla a minha liberdade.
Isso é o que os filósofos políticos ingleses clássicos queriam dizer quando usa­
vam essa palavra.7Discordavam sobre o grau de am plitude que tal área poderia ou
deveria ter. Supunham que, diante das circunstâncias, ela não poderia ser ilimita­
da, porque, se o fosse, geraria um a situação em que todos os hom ens poderiam
interferir ilim itadam ente na vida de todos os outros hom ens, e esse tipo de liberda­
de "natural" levaria ao caos social en^'que as necessidades m ínimas das pessoas não
seriam satisfeitas; ou então as liberdades dos fracos seriam suprimidas pelos fortes.
Percebendo que os propósitos e as atividades hum anos não se harm onizam auto­
m aticam ente e atribuindo (quaisquer que fossem suas doutrinas oficiais) alto valor
a outras metas, com o justiça, felicidade, cultura, segurança ou graus variáveis de
igualdade, eles estavam prontos a restringir a liberdade em proveito de outros valo­
res e até da própria liberdade. Pois, sem isso, era impossível criar o tipo de associa­
ção que achavam desejável. C onseqüentem ente, esses pensadores propõem que a
área de livre ação do hom em deve ser lim itada pela lei. Mas da m esm a form a
supõem , especialm ente libertários com o Locke e Mill na Inglaterra, e C onstant e

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Tocqueville na França, que exista certa área m ínim a de liberdade pessoal que não
deve ser violada de m odo algum, pois, do contrário, o indivíduo se verá num a área
dem asiado estreita até para aquele desenvolvim ento m ínim o de suas faculdades
naturais que é o único a possibilitar a busca, e até a concepção, dos vários fins que
os hom ens consideram bons, corretos ou sagrados. Segue-se que é preciso se tra­
çar um a fronteira entre a área da vida privada e a da autoridade pública. Em que
ponto ela deve ser traçada é um a questão a ser discutida — na verdade, a ser rega­
teada. Os hom ens são em grande parte interdependentes, e nenhum hom em é
capaz de agir de form a tão com pletam ente privada a ponto de nunca interferir, de
m aneira algum a, na vida de outros. "Liberdade para o peixe g raú d o significa
m orte para o peixe m iúdo”;* a liberdade de alguns deve depender da repressão de
outros. A liberdade para um professor de Oxford (sabe-se que outros acrescenta­
ram ) é algo m uito diferente da liberdade para um cam ponês egípcio.
Essa proposição tira sua força de algo que é tanto verdadeiro com o im portan­
te, mas a própria expressão continua um a parlapatice política. De fato, oferecer
direitos políticos ou salvaguardas contra a intervenção do Estado a hom ens sem i­
nus, analfabetos, subnutridos e doentes é zom bar de sua condição: eles precisam
de ajuda médica ou educação antes de poderem com preender ou aproveitar um
aum ento em sua liberdade. O que é a liberdade para aqueles que não a podem
empregar? Sem as condições adequadas para o uso da liberdade, qual é o valor dela?
As coisas mais essenciais vêm em prim eiro lugar: há situações em que — para usar
um ditado que Dostoiévski satiricamente atribuiu aos niilistas— as botas são supe­
riores a Púchkin; a liberdade individual não é a necessidade prim ária de todos. Pois
a liberdade não é a m era ausência de frustração — isso inflaria o sentido da palavra
até ela significar de mais ou de m enos. O cam ponês egípcio precisa de roupas e
remédios antes da liberdade pessoal e mais das roupas e dos rem édios do que de
liberdade pessoal, mas a liberdade m ínim a de que ele necessita hoje, e o m aior grau
de liberdade de que pode vir a necessitar am anhã, não é um a espécie de liberdade
que lhe é peculiar, mas é idêntica à de professores, artistas e milionários.
O que perturba a consciência dos liberais ocidentais não é, a m eu ver, a con­
vicção de que a liberdade buscada pelos hom ens difere segundo suas condições
sociais ou econômicas, mas a de que a m inoria que a possui conquistou-a exploran­
do ou, pelo m enos, evitando contem plar a im ensa m aioria que não a tem . Eles
acreditam, com boas razões, que, se a liberdade individual é um fim m áxim o para
os seres hum anos, nenhum hom em deveria ser privado, por outros, da liberdade,

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m ulto m enos que alguns a deveriam desfrutar às custas de outros. Igualdade de
liberdade: não tratar os outros com o eu não gostaria que me tratassem ; o paga­
m ento de m inha dívida para com aqueles que m e proporcionaram liberdade, pros­
peridade ou esclarecimento; justiça, na sua form a mais simples e mais universal—
esses são os fundam entos da m oralidade liberal. A liberdade não é o único objeti­
vo dos hom ens. Posso dizer, com o o crítico russo Belinsky, que, se outros devem
ser privados da liberdade — se m eus irm ãos devem perm anecer na pobreza, misé­
ria e prisão — , então não a desejo para m im mesm o, rejeito-a com am bas as mãos
e prefiro infinitam ente com partilhar o destino deles. Mas nada se ganha com um a
confusão de term os. Para evitar a desigualdade gritante ou a desgraça generaliza­
da, estou pronto a sacrificar parte da minha liberdade ou toda ela: posso agir desse
m odo voluntária e livremente; mas é à liberdade que estou renunciando em prol
de justiça, igualdade ou am or pelos hom ens com panheiros meus. Eu seria ator­
m entado pela culpa, e com razão, se não estivesse disposto, em algumas circuns­
tâncias, a fazer esse sacrifício. Mas o sacrifício não é u m aum ento do que está sendo
sacrificado, a saber a liberdade, por m aior que seja a necessidade m oral ou a com ­
pensação pelo sacrifício. Tudo é o que é: liberdade é liberdade, não é igualdade,
eqüidade, justiça ou cultura, felicidade hum ana ou um a consciência tranqüila. Se
m inha liberdade ou a de m inha classe ou nação depende da desgraça de outros
seres hum anos, o sistema que prom ove tal coisa é injusto e imoral. Mas se restrin­
jo ou perco m inha liberdade para dim inuir a vergonha dessa desigualdade, e com
isso não au m en to m aterialm ente a liberdade individual de outros, ocorre um a
perda absoluta de liberdade. Isso pode ser com pensado por um ganho em justiça,
felicidade ou paz, mas a perda perm anece, e é um a confusão de valores dizer que,
em bora m inha liberdade “liberar', individual seja jogada fora, algum o u tro tipo
de liberdade — "social" ou "econôm ica” — é aum entada. Ainda assim continua
i
verdadeiro que a liberdade de alguns déye ser às vezes restringida para assegurar
a liberdade de outros. Com base em que princípio isso deveria ser feito? Se a liber­
dade é um valor sagrado, intocável, não pode haver tal princípio. Um ou outro de
tais princípios ou regras conflitantes deve ceder, pelo m enos na prática: nem sem ­
pre p or razões que podem ser claram ente expressas, quanto mais generalizadas
em regras ou máximas universais. Ainda assim, um com prom isso prático tem de
ser encontrado.
Alguns filósofos com uma visão otim ista da natureza hum ana e um a crença
na possibilidade de harm onizar os interesses hum anos — filósofos com o Locke,

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Adam Smith ou, em alguns estados de espírito, Mill — acreditavam que a h arm o ­
nia e o progresso sociais eram compatíveis com a possibilidade de reservar um a
grande área para a vida privada, que nem ao Estado nem a qualquer outra autori­
dade seria perm itido invadir. Hobbes e aqueles que concordavam com suas idéias,
especialmente pensadores conservadores ou reacionários, argum entavam que, se
os hom ens deviam ser impedidos de se destruir uns aos outros e de to rn ar a vida
social um a selva ou um deserto, maiores salvaguardas precisavam ser instituídas
para mantê-los em seus devidos lugares; conseqüentem ente, ele queria aum entar
a área de controle centralizado e dim inuir a do indivíduo. Mas am bos os lados con­
cordavam que algum a parte da existência hum ana deveria perm anecer indepen­
dente da esfera de controle social. Invadir essa área reservada, em bora pequena,
seria despotismo. O mais eloqüente de todos os defensores da liberdade e privaci­
dade, Benjamin C onstant, que não se esquecera da ditadura jacobina, declarou
que, no mínimo, a liberdade de religião, opinião, expressão e propriedade tinha de
ser garantida contra um a invasão arbitrária. JefFerson, Burke, Paine, Mill com pila­
ram diferentes classificações de liberdades individuais, m as o argum ento para
m an ter a autoridade em xeque é sem pre substancialm ente o m esm o. Devemos
preservar um m ínim o de liberdade pessoal, se não quiserm os "degradar ou negar
nossa n atureza” / Não podem os perm anecer totalm ente livres e devem os abrir
m ão de alguma liberdade própria para preservar o resto. Mas a rendição total do eu
é a derrota do eu. Qual então deve ser esse mínimo? Aquele de que um hom em não
pode abrir mão sem ofendera essência de sua natureza hum ana. Qual é essa essên­
cia? Quais os padrões nela implicados? Isso tem sido e será talvez sem pre um a ques­
tão de infinitos debates. Mas, qualquer que seja o princípio que norteie a área de
não-interferência a ser traçada — seja o da lei natural, o dos direitos naturais, da uti­
lidade, das manifestações de um im perativo categórico, da santidade do contrato
social ou o de qualquer o utro conceito com que os hom ens têm procurado escla­
recer e justificar as suas convicções — , a liberdade nesse sentido significa livrar-se
àc\ ausência de interferência além da fronteira mutável, m as sem pre reconhecível.
“A única liberdade que m erece esse nom e é a de buscar o nosso bem à nossa m anei­
ra” , disse o mais célebre de seus defensores.10Nesse caso, a coação pode se justifi­
car? Mill não tinha dúvidas de que sim. C om o a justiça exige que todos os indiví­
duos tenham direito a um m ínim o de liberdade, todos os outros indivíduos devem
ser necessariamente coibidos, se preciso for pela força, de privar alguém da liber­
dade. Na verdade, toda a função da lei era a prevenção exatam ente dessas colisões:

233
o Bstado era reduzido ao que Lassallc descreveu desdenhosam ente com o as fun­
ções de um vigia ou de u m guarda de trânsito.
O que tornava a proteção da liberdade individual tão sagrada para Mill? Em
seu famoso ensaio, ele declara que, a m enos que o indivíduo tenha perm issão de
viver com o deseja na "parte [da sua conduta] que interessa unicam ente a si
m esm o ",11 a civilização não pode progredir; p o r falta de um livre m ercado de
idéias, a verdade não virá à luz; não haverá oportunidades para a espontaneidade,
a originalidade, o gênio, a energia m ental, a coragem m oral. A sociedade será
esmagada pelo peso da "mediocridade coletiva*'.12T udo o que é rico e diversifica­
do será esm agado pelo peso do costum e, pela constante tendência hum ana à con­
formidade, que gera apenas faculdades "m irradas", seres hum anos "m esquinhos e
tacanhos", "acanhados e tolhidos". A "auto-afirm ação pagã” é tão digna quanto a
"negação cristã de si m esm o".u "Todos os erros que [um hom em ] é propenso a
com eter apesar de todos os conselhos e avisos são sobrepujados pelo mal de per­
m itir que outros o sujeitem ao que consideram ser o seu bem ."’4A defesa da liber­
dade consiste na m eta "negativa" de evitar a interferência. Ameaçar um hom em de
perseguição caso ele não se subm eta a um a vida em que não escolhe seus objeti­
vos; bloquear à sua frente toda porta exceto um a, não im portando a nobreza da
perspectiva para a qual abre ou a benevolência dos m otivos dos que arranjaram tal
coisa, é pecar contra a verdade de que ele é um hom em , um ser com um a vida pró­
pria a ser vivida. Essa é a liberdade com o foi concebida pelos liberais no m undo
m oderno desde os dias de Erasmo (alguns diriam de Occam) aos nossos. Toda rei­
vindicação de liberdades civis e direitos individuais, todo protesto contra a explo­
ração e a hum ilhação, contra o abuso da autoridade pública, ou a hipnose de massa
do costum e ou da propaganda organizada, nasce dessa concepção individualista e
m uito controvertida acerca do hom em .
É possível n o tar três fatos sobre essa posição. Em prim eiro lugar, Mill confun­
de duas noções distintas. Uma é que toda coerção, na m edida em que frustra dese­
jos hum anos, é ruim em si mesma, em bora possa ter de ser aplicada para prevenir
outros m ales maiores; ao passo que a não-interferência, que é o oposto da coerção,
é boa em si m esm a, em bora não seja o único bem . Essa é a concepção "negativa"
da liberdade em sua form a clássica. A outra noção é que os hom ens devem procu­
rar descobrir a verdade ou desenvolver certo tipo de caráter aprovado por Mill —
crítico, original, imaginativo, independente, não conform ista ao ponto da excen­
tricidade, e assim por d iante— e que a verdade pode ser encontrada, e esse caráter

234
pode ser cultivado, apenas em condições de liberdade. Essas duas noções são visões
liberais, mas não são idênticas, e a conexão entre elas é, quando m uito, empírica.
N inguém afirm aria que a verdade ou a liberdade de expressão podem florescer
quando o dogm a esmaga todo e qualquer pensam ento. Mas as evidências históri­
cas tendem a m ostrar (como, na verdade, foi afirm ado po r James Stephen em seu
formidável ataque a Mill no seu livro Liberty; equality, fraternity) que a integridade,
o am or à verdade e o individualismo inflamado crescem pelo m enos tão freqüen­
tem ente em com unidades de disciplina severa — com o, por exemplo, entre os cal-
vinistas puritanos da Escócia ou da Nova Inglaterra — ou sob a disciplina militar,
quanto em sociedades tolerantes ou indiferentes; e, sendo assim, cai por terra o
argum ento de Mill sobre a liberdade com o um a condição necessária para o cresci­
m ento do gênio hum ano. Se suas duas m etas se revelassem incom patíveis, Mill
seria confrontado com um dilema cruel, sem falar nas outras dificuldades criadas
pela incoerência de suas doutrinas com o utilitarism o estrito, até na sua própria
versão hum anitária dessa doutrina.'1
Em segundo lugar, tal doutrina é relativamente m oderna. Não parece haver
quase nenhum a discussão -acerca da liberdade individual com o um ideal político
consciente (em oposição a sua existência real) no m undo antigo. C ondorcet já
observara que não havia a noção de direitos individuais nas concepções legais dos
rom anos e gregos; isso parece valer igualm ente para os judeus, os chineses e todas
as outras civilizações antigas que desde então vieram à luz,16O dom ínio desse ideal
tem sido a exceção em vez da regra, m esm o na recente história do Ocidente. Nem
a liberdade nesse sentido gerou com freqüência um grito de união para as grandes
massas da hum anidade. O desejo de não ser coagido, de ser deixado em paz, tem
sido um a marca de alta civilização tanto da parte dos indivíduos com o das com u­
nidades. O próprio senso de privacidade, da área de relações pessoais com o algo
sagrado por seus próprios méritos, provém de um a concepção de liberdade que,
apesar de todas as suas raízes religiosas, é pouco mais antiga, no seu estado desen­
volvido, do que a Renascença ou a R eform a.'7 Mas seu declínio marcaria a m orte
de um a civilização, de toda um a perspectiva moral.
A terceira característica dessa noção de liberdade é de m aior im portância. É
que a liberdade nesse sentido não é incom patível com alguns tipos de autocracia
ou pelo m enos com a ausência de autogoverno. A liberdade nesse sentido preocu-
pa-se principalm ente com a área de controle, não com sua fonte. Assim com o a
dem ocracia é capaz realm ente de privar o cidadão individual de m uitas liberdades

*35
de que ele poderia desfrutar em alguma ouira form a de sociedade, assim é perfei­
tam ente concebível que um déspota de m ente liberal concedesse a seus súditos
uma grande liberdade pessoal. O déspota que perm ite a seus súditos um a ampla
liberdade pode ser injusto, encorajar as desigualdades mais loucas, pouco se im por­
tar com a ordem , a virtude ou o conhecim ento; mas, desde que não reprima a liber­
dade dos súditos, ou pelo m enos a reprim a m enos que m uitos outros regimes, ele
satisfaz a especificação de M ill.18 A liberdade nesse sentido não está ligada, ao
m enos do ponto de vista lógico, com a dem ocracia ou o autogoverno. Em geral, o
autogoverno pode fornecer um a m elhor garantia da preservação das liberdades
civis que os outros regim es e tem sido defendido com o tal pelos libertários. Mas
não há nenhum a ligação necessária entre a liberdade individual e a regra dem ocrá­
tica. A resposta à pergunta "Q uem m e governa?" é logicam ente distinta da que
seria dada à pergunta "Até que ponto o governo interfere na m inha vida?". É nessa
diferença que reside afinal o grande contraste entre os dois conceitos de liberdade
positiva e negativa.19Pois o sentido "positivo" de liberdade vem à luz se não tenta­
mos responder a pergunta "O que tenho a liberdade de fazer ou ser?", mas à per­
gunta “Por quem sou governado?" ou "Q uem deve dizer o que devo ou não devo
ser ou fazer?". A ligação entre dem ocracia e liberdade individual é m uito mais
tênue do que parecia a m uitos advogados de ambas. O desejo de ser governado por
m im m esm o, ou pelo m enos de participar do processo que controle m inha vida,
pode ser um desejo tão profundo quanto o de um a área livre para a ação e talvez
historicam ente mais antigo. Mas não é o desejo da m esm a coisa. Tão diferente é,
na verdade, que acabou por gerar o grande confronto de ideologias que dom ina
nosso m undo. Pois é isso, a concepção "positiva" de liberdade, não a libertação de,
mas a libertação para — levar um a form a prescrita de vida — , que os adeptos da
noção "negativa" consideram , em certas ocasiões, nada mais do que um disfarce
capcioso para um a tirania brutal.

II

A noção de liberdade positiva

O sentido "positivo" da palavra “liberdade" provém do desejo que o indivíduo


nutre de ser seu próprio senhor. Desejo que m inha vida e m inhas decisões depen­

136
dam de m im mesm o, e não de forças externas de qualquer tipo. Desejo ser o instru­
m ento de m eus próprios atos de vontade, e não dos de outros hom ens. Desejo ser
um sujeito, e não um objeto; ser movido pela razão, por objetivos conscientes, que
são meus, e não por causas que me afetam com o que de fora. Desejo ser alguém , e
não ninguém ; um agente — decidindo, e não deixando que outros decidam — ,
guiado por m im m esm o e não influenciado pela natureza externa ou por outros
hom ens com o se eu fosse um a coisa, um animal ou um escravo incapaz de desem ­
penhar um papel hum ano, isto é, de conceber m etas e políticas próprias e de reali­
zá-las. Isso é pelo m enos parte do que quero dizer quando afirm o que sou racional
e que é a m inha razão que m e distingue com o ser hum ano do resto do m undo.
Acima de tudo, desejo ser consciente de mim m esm o com o alguém que age, tem
vontade e pensa, responsável por m inhas escolhas e capaz de explicá-las a partir de
m inhas idéias e m eus propósitos. Sinto-me livre na medida em que acredito que
isso seja verdade, e escravizado na medida em que sou convencido do contrário.
A liberdade que consiste em ser o seu próprio senhor e a liberdade que consis­
te em não ser impedido p o r outros hom ens de escolher com o agir podem parecer,
diante das circunstâncias, conceitos não tão distantes entre si do ponto de vista
lógico — nada mais do que as formas negativa e positiva de dizer mais ou m enos a
m esm a coisa. No entanto, as noções "positiva" e "negativa" de liberdade desenvol-
veram-se historicam ente em direções divergentes, nem sem pre por passos logica­
m ente respeitáveis, até entrarem por fim em conflito direto um a com a outra.
Um m o d o de to rn a r isso claro é trata r do momentum independente que a
m etáfora do autodom ínio, inicialm ente talvez bem inofensiva, adquiriu. "Sou
m eu próprio senhor”; "Não sou escravo de nenhum hom em "; mas não posso ser
(com o os platônicos ou os hegelianos tendem a dizer) um escravo da natureza? O u
de minhas paixões "desenfreadas"? Essas não são algumas das espécies do idêntico
gênero "escravo” — algumas políticas ou legais, outras m orais ou espirituais? Os
hom ens não experim entaram a libertação da escravidão espiritual ou da escravi­
dão à natureza, e ao longo desse processo não se tornaram conscientes, de um lado,
de um eu que dom ina e, de outro, de algo dentro deles que é controlado? Esse eu
dom inante é identificado de diversas formas: com a razão, com a m inha "natureza
mais elevada”, com o eu que calcula e visa ao que o satisfará a longo prazo, com o
m eu eu "real”, "ideal” ou "autônom o”, ou com o m eu eu "na sua m elhor forma";
que é então contrastado com o im pulso irracional, os desejos não controlados, a
m inha natureza "mais baixa", a busca de prazeres imediatos, o m eu eu "em pírico”

237
ou "h eierô n o m o ”, varrido p o r todo assom o dc desejo e paixão, precisando ser
rigorosam ente disciplinado se quiser algum dia elevar-se à plena altura de sua n atu ­
reza "real”. No presente, os dois eus podem ser representados com o que divididos
por um a lacuna ainda m aior; o eu real pode ser concebido com o algo mais am plo
que o individual (com o o term o é norm alm ente com preendido), com o um "con­
ju n to ” social do qual o indivíduo é um elem ento ou aspecto: um a tribo, um a raça,
lima Igreja, um Estado, a grande sociedade dos vivos e m ortos e dos nascituros,
lissa identidade é então identificada com o o eu "verdadeiro0 que, im pondo sua
vontade coletiva ou "orgânica” única sobre seus recalcitrantes "m em bros”, alcan­
ça sua própria liberdade "mais elevada” e, portanto, tam bém a deles. Os perigos de
se usarem m etáforas orgânicas para justificar a coerção de alguns hom ens por
outros, a fim de alçá-los a um nível "mais elevado” de liberdade, têm sido freqüen­
tem ente apontados. Mas o que confere a esse tipo de linguagem a sua plausibilida­
de é o fato de que reconhecem os ser possível, e às vezes justificável, coagir os
hom ens em nom e de algum a m eta (vamos dizer, a justiça ou a saúde pública) que
cies próprios buscariam atingir se fossem mais esclarecidos, mas que não o fazem
porque são cegos, ignorantes ou corruptos. Isso torna fácil que eu me imagine coa­
gindo outros para o bem deles, no interesse deles, e não no m eu. Estou assim afir­
m ando que sei, mais do que eles próprios, do que eles verdadeiram ente precisam.
O que isso — quando m uito — acarreta é que eles não resistiriam a mim se fossem
racionais, tão sábios quanto eu e com preendessem seus interesses com o eu os
com preendo. Mas afirm aria m uito mais do que isso. Posso declarar que eles visam
realm ente àquilo a que, em seu estado ignorante, conscientem ente resistem, po r­
que existe dentro deles um a entidade oculta — sua vontade racional latente ou seu
"verdadeiro” propósito — e que essa entidade, em bora desm entida por tudo o que
eles m anifestam ente sentem , fazem e dizem , é seu eu "real”, do qual o pobre eu
empírico no espaço e tem po talvez pouco ou nada saiba; e que esse espírito interior
é o único eu que m erece ter seus desejos considerados.20 Uma vez adotada essa
visão, estou em posição de ignorar os desejos reais dos hom ens ou das sociedades,
de am edrontá-los, oprim i-los, torturá-los em nom e e no interesse de seus eus
"reais”, com base no conhecim ento seguro de que tudo o que é a verdadeira m eta
do hom em (a felicidade, o desem penho do dever, a sabedoria, um a sociedade justa,
a auto-realização) deve ser idêntico à sua liberdade— a escolha livre de seu eu "ver­
dadeiro”, ainda que freqüentem ente subm erso e inarticulado.

238
Esse paradoxo tem sido freqüentem ente apontado. Uma coisa é dizer que sei
o que é bom para X, enquanto ele próprio não o sabe; e até ignorar seus desejos por
causa disso — e para o bem dele —; e outra coisa m uito diferente é dizer que ele to
ipso o escolheu, na verdade não conscientem ente, não com o ele parece ser na vida
diária, mas no seu papel de eu racional que o seu eu empírico talvez não conheça —
o eu "real” que discerne o bem e não pode deixar de escolhê-lo, um a vez revelado.
Essa personificação m onstruosa, que consiste em igualar o que X escolheria se
fosse algo que não é, ou pelo m enos que ainda não é, com o que X realm ente p ro ­
cura e escolhe, está no âm ago de todas as teorias políticas da auto-realização. Uma
coisa é afirm ar que posso ser coagido para o m eu bem , o qual sou dem asiado cego
para ver: isso pode m e beneficiar ocasionalmente, até talvez aum entar o alcance
de minha liberdade. O utra coisa é afirm ar que, se é para m eu bem , não estou sendo
coagido, pois teria determ inado essa escolha, sabendo disso ou não, e sou livre (ou
"verdadeiram ente" livre) m esm o quando m eu pobre corpo terren o e m inha
m ente tola a rejeitam am argam ente e lutam de form a desesperada contra aqueles
que procuram , em bora benevolam ente, impô-la.
Essa transform ação m ágica, ou prestidigitação (que fazia W illiam Jam es
zom bar com tanta razão dos hegelianos), pode ser sem dúvida realizada com igual
facilidade com o conceito "negativo” de liberdade, em que o eu que não deve sofrer
interferência já não é o indivíduo com seus desejos e necessidades reais com o são
norm alm ente concebidos, mas o hom em “real" interior, identificado com a busca
de algum objetivo ideal não sonhado pelo seu eu empírico. E, com o no caso do eu
"positivam ente” livre, essa entidade pode ser expandida para algum a entidade
suprapessoal — um Estado, um a classe, um a nação ou a m archa da própria histó­
ria, vista com o um sujeito de atributos mais "real” do que o eu empírico. Mas a con­
cepção "positiva” de liberdade com o autodom ínio, com a sua sugestão de um
hom em dividido contra si m esm o, de fato tem se prestado com mais facilidade,
com o um a questão de história, doutrina e prática, a essa divisão dúplice da perso­
nalidade: o controlador dom inante, transcendente, e o feixe empírico de desejos e
paixões a serem disciplinados e controlados. Esse fato histórico é que tem sido
influente. Isso dem onstra (se é necessária a dem onstração de um a verdade tão
óbvia) que as concepções de liberdade derivam de visões do que constitui um eu,
um a pessoa, um hom em . Uma m anipulação perfeita da definição do hom em e da
liberdade é capaz de fazer com que ela signifique qualquer coisa que o m anipula­

239
dor deseje. A história recente tem deixado m uito claro que a questão não é m era­
m ente acadêmica.
As conseqüências de distinguir entre dois eus se tornarão ainda mais claras se
considerarmos as duas formas principais que o desejo de ser guiado por si m esm o—
guiado pelo eu ‘ verdadeiro” — tem historicam ente assumido: a primeira, a da abne­
gação para alcançar independência; a segunda, a da auto-realização ou a total auto-
identificação com um princípio ou ideal específico para alcançar o m esm o fim.

in

A retirada para a cidadela interior

Sou aquele que possui a razão e a vontade; concebo os fins e desejo buscá-los;
mas, se sou im pedido de alcançá-los, já não m e sinto dono da situação. Posso ser
im pedido pelas leis da natureza, por acidentes, pelas atividades dos hom ens ou pelo
efeito, freqüentem ente não prem editado, das instituições hum anas. Essas forças
podem ser demais para mim. O que devo fazer para evitar ser esm agado p o r elas?
Devo m e libertar dos desejos que não posso concretizar. Desejo ser o senhor de
m eu reino, mas m inhas fronteiras são longas e inseguras, portanto eu as lim ito para
reduzir ou elim inar a área vulnerável. Com eço p or desejar a felicidade, o poder, o
conhecim ento ou a realização de um objetivo específico. Mas não posso dom iná-
los. O pto por evitar a derrota e a perda, e assim decido não lutar por nada que eu
não esteja seguro de obter. Decido não desejar o que não pode ser alcançado. O
tirano m e ameaça com a destruição de m inha propriedade, com a prisão, com o
exílio ou a m orte daqueles a quem amo. Mas se já não m e sinto ligado à proprieda­
de, se já não me im porto se estou ou não na prisão, se m atei dentro de m im m eus
afetos naturais, então ele não pode me curvar à sua vontade, pois tudo o que resta
de mim não se encontra mais sujeito a m edos ou desejos empíricos. É com o se eu
tivesse realizado um a retirada estratégica para um a cidadela interior — m inha
razão, m inha alma, m eu eu "num ênico” — que, façam o que quiserem , nem a força
cega externa, nem a m aldade hum ana podem abalar. Eu m e retirei para dentro de
mim m esm o; ali, e tão-som ente ali, estou seguro. É com o se eu dissesse: "Tenho
lima ferida na perna, Há dois m étodos para m e livrar da dor. Um é curar a ferida.
Mas se a cura é dem asiado difícil ou incerta, há um outro m étodo. Posso m e ver

240
livre da ferida cortando fora a perna. Se m e educo a não querer nada que torne a
posse da perna indispensável, não vou sentir falta dela"\ Essa é a auto-em ancipação
tradicional dos ascéticos e quietistas, dos estóicos e sábios budistas, hom ens de
várias religiões ou nenhum credo, que fugiram do m undo e escaparam do jugo da
sociedade ou da opinião pública por algum processo de autotransform ação delibe­
rada que os torna capazes de já não se im portarem com nenhum de seus valores,
de perm anecerem , isolados e independentes, em suas margens, já não mais vulne­
ráveis a suas armas.11Todo isolacionismo, toda autarquia econômica, toda form a
de autonom ia tem em si algo dessa atitude. Elimino os obstáculos de m eu cam inho
abandonando o caminho; retiro-m e para minha própria seita, minha própria eco­
nom ia planejada, m eu próprio território deliberadam ente isolado, onde não é pre­
ciso escutar as vozes do exterior e onde as forças externas não produzem nenhum
efeito. Essa é um a forma da busca pela segurança; mas tem sido igualm ente cha­
m ada de busca pela liberdade ou independência pessoal ou nacional.
Q uando aplicada aos indivíduos, essa doutrina não fica m uito longe das con­
cepções daqueles que, com o Kant, não identificam a liberdade com a eliminação
dos desejos, mas com a resistência a eles e com o controle sobre eles. Eu m e iden­
tifico com o controlador e escapo da escravidão do controlado. Sou livre porque e
na m edida em que sou autônom o. Obedeço às leis, mas eu as impus sobre m eu p ró ­
prio eu não coagido, ou nele as encontrei. A liberdade é obediência, mas, nas pala­
vras de Rousseau, "obediência a um a lei que prescrevem os a nós m esm os",22 e
nenhum hom em é capaz de escravizar a si mesm o. A heteronom ia é a dependên­
cia de fatores externos, o risco de ser um joguete do m undo exterior que não posso
controlar plenam ente e que pro tanto m e controla e "escraviza”. Sou livre apenas
na medida em que m inha pessoa não é "agrilhoada" po r nada que obedeça a forças
sobre as quais não tenho controle; não posso controlar as leis da natureza; a m inha
atividade livre, portanto, deve ser alçada, ex hypothesi, acima do m undo em pírico
da causalidade. Este não é o lugar para discutir a validade dessa antiga e famosa
doutrina; apenas desejo observar que as noções relacionadas de liberdade com o
resistência (ou fuga) ao desejo não realizável e com o independência da esfera da
causalidade têm desem penhado um papel central tanto na política com o na ética.
Pois, se a essência dos hom ens é que eles são seres autônom os — autores de
valores, de fins em si m esm os, cuja autoridade suprem a consiste precisam ente no
fato de serem determ inados livrem ente — , então nada é pior do que tratá-los com o
se não fossem autônom os, mas objetos naturais, m ovidos p or influências causais,

241
criaturas à m ercê de estím ulos externos, cujas escolhas podem ser m anipuladas
por seus regentes, quer po r ameaças de força, q u er p o r ofertas de recom pensa.
'I ratar os hom ens dessa m aneira é tratá-los com o se não fossem autodeterm ina­
dos. "Ninguém pode me com pelir a ser feliz à sua m aneira", disse Kant. O paterna­
lismo é "o m aior despotism o im aginável",23pois é tratar os hom ens com o se não
fossem livres, mas um m aterial hum ano para que eu, o reform ador benévolo, o
modele de acordo com m eu próprio propósito livrem ente adotado, e não com o
deles. Claro, essa é precisam ente a política que os prim eiros utilitários recom enda­
vam. H elvétius (assim com o Bentham ) não acreditava em combater, mas em usar
a tendência dos hom ens a serem escravos de suas paixões; desejava acenar com
recompensas e castigos para os hom ens— a forma mais aguda possível de heterono­
mia — se por esse m eio pudessem tornar os "escravos" mais felizes." Mas m anipular
os hom ens, empurrá-los na direção de metas que você— o reform ador social— per­
cebe, mas eles talvez não, é negar a essência hum ana deles, é tratá-los com o obje­
tos sem vontade própria e, p o rtan to , degradá-los. É p o r isso que m entir aos
hom ens, enganá-los, isto é, usá-los com o um m eio para m eus fins independente­
m ente concebidos, e não para os deles, m esm o que seja para o benefício desses
hom ens, é com efeito tratá-los com o subum anos, com portar-se com o se os fins
deles fossem m enos suprem os e sagrados do que os meus. O que justifica que eu
force os hom ens a fazer o que não queriam fazer, nem consentiam em fazer? Ape­
nas algum valor mais alto que eles próprios. Mas se, com o sustentava Kant, todos
os valores são criados pelos atos livres dos hom ens, e cham ados de valores apenas
na m edida em que assim são, não há valor m aior do que o indivíduo. Portanto,
fazer tal coisa é coagir os hom ens em nom e de algo m enos suprem o do que eles
próprios— curvá-los à minha vontade, ou a determ inado desejo alheio de felicida­
de, proveito, segurança ou conveniência (para o bem dessa pessoa alheia ou deles
próprios). Estou visando a algum a coisa desejada (por q u alq u er m otivo, não
im porta quão nobre seja) por m im ou m eu grupo, e para isso estou usando outros
hom ens com o meios. Mas isso é um a contradição do que sei que os hom ens são —
isto é, fins em si mesm os. Todas as formas de interferir nos seres hum anos, atingi-
los, moldá-los contra a vontade deles por um padrão alheio, todo controle de pen­
sam ento e todo condicionam ento25 é, p ortanto, um a negação daquilo que nos
hom ens os torna hom ens e seus valores, supremos.
O indivíduo livre de Kant é um ser transcendente, fora do reino da causalida­
de natural. Mas em sua forma empírica — na qual a noção de hom em é a da vida

242
com um — essa doutrina se encontrava no âm ago do hum anism o liberal, tanto
m oral com o político, que foi profundam ente influenciado por Kant e Rousseau no
século xviiL Em sua versão a priori, é um a form a de individualism o protestante
secularizado, em que o lugar de Deus foi assumido pela concepção da vida racio­
nal e o lugar da alma individual que se esforça para unir-sc com Deus é substituído
pela concepção do indivíduo dotado de razão, esforçando-se para ser governado pe­
la razão e tão-som ente pela razão, e a não depender de nada que pudesse desviá-lo
ou enganá-lo cativando sua natureza irracional. Autonom ia, e não heteronom ia:
agir e não sofrer a ação. A noção da escravidão à paixão é — para aqueles que p en­
sam nesses term os — mais do que um a m etáfora. Livrar-me do medo, do am or ou
do desejo de m e conform ar é libertar-m e do despotism o de algo que não posso
controlar. Sófocles, que segundo o relato de Platão teria dito que apenas a velhice
o libertou da paixão do a m o r— o jugo de um senhor cruel — , está falando de um a
experiência tão real quanto a da libertação das garras de um tirano hum ano ou de
u m senhor de escravos. A experiência psicológica de m e ver cedendo a um im pul­
so "baixo”, agindo por um m otivo que me desgosta, ou fazendo algo que no pró­
prio m om ento da ação eu talvez deteste, e refletindo mais tarde que eu não era "eu
m esm o” ou não estava "no controle de m im m esm o” quando assim agi, pertence a
esse m odo de pensar e falar. Eu me identifico com meus m om entos críticos e racio­
nais. As conseqüências de m eus atos podem não im portar, porque não estão sob
m eu controle; apenas os motivos estão. Isso é o que crê o pensador solitário que
desafiou o m undo e em ancipou-se das cadeias dos hom ens e das coisas. Nessa
forma, a doutrina pode parecer prim ariam ente um credo ético, nem um pouco polí­
tico; ainda assim, suas implicações políticas são claras, e ela entra na tradição do indi­
vidualismo liberal pelo m enos tanto quanto o conceito "negativo” de liberdade.
Talvez valha a pena observar que, em sua form a individualista, o conceito do
sábio racional, que fugiu para a fortaleza interior de seu verdadeiro eu, parece sur­
gir quando o m undo exterior se revela excepcionalm ente árido, cruel ou injusto.
"É verdadeiram ente livre", disse Rousseau, "quem deseja o que pode realizar e faz
o que deseja. Nu m m undo em que um hom em em busca de felicidade, justiça ou
liberdade (em qualquer dos sentidos) pouco pode fazer, porque descobre bloquea­
das m uitas vias de ação, a tentação de retirar-se para dentro de si m esm o pode se
to rn ar irresistível. Talvez tenha sido o que aconteceu na Grécia, onde o ideal estói­
co não pode ser inteiram ente desligado da queda das dem ocracias independentes
diante da autocracia m acedônia centralizada. Assim foi em Roma, por razões aná-

243
Iogas, depois do fim da República." Esse Icnôm eno ressurgiu na A lem anha no
século xvu, durante o período da mais profunda degradação nacional dos Estados
germ ânicos que se seguiu à G uerra dos Trinta Anos, quando o caráter da vida
pública, particularm ente nos pequenos principados, forçava aqueles que preza­
vam a dignidade da vida hum ana, não pela prim eira, nem pela últim a vez, a um a
espécie de em igração interior. A doutrina que sustenta que devo m e educar a não
desejar aquilo que não posso ter, que um desejo elim inado ou com batido com
sucesso é tão bom quanto u m desejo satisfeito, é um a form a sublime, mas, a m eu
ver, inequívoca da doutrina das uvas verdes: aquilo que não posso ter certeza de
obter, não posso verdadeiram ente querer.
Isso torna claro p or que a definição da liberdade negativa com o a capacidade
de fazer o que se deseja — que é, com efeito, a definição adotada por Mill — não
servirá. Se descubro que sou capaz de fazer pouco ou nada do que desejo, preciso
apenas reduzir ou extinguir meus desejos, e assim torno-m e livre. Se o tirano (ou
o "persuasor oculto”) consegue condicionar seus súditos (ou clientes) convencen­
do-os a abandonar seus desejos originais e adotar ("internalizar") a form a de vida
que inventou para eles, terá conseguido, nessa definição, libertá-los. Sem dúvida
terá feito com que se sintam livres — com o Epicteto se sente mais livre do que seu
senhor (e diz-se que o proverbial hom em bom se sente feliz na tortura). Mas o que
ele criou é a própria antítese da liberdade política.
A abnegação ascética pode ser um a fonte de integridade, serenidade e força
espiritual, mas é difícil entender com o pode ser considerada um aum ento de liber­
dade. Se escapo de um adversário retirando-m e para dentro de casa e trancando
qualquer entrada e saída, posso continuar mais livre do que se tivesse sido captura­
do pelo inimigo, mas sou mais livre do que se o tivesse derrotado ou capturado? Se
vou longe demais, se m e contraio num espaço dem asiado pequeno, vou sufocar e
m orrer. A culm inação lógica do processo de destruir tudo o que pode m e ferir é o
su Icldio. Enquanto existo no m undo natural, jam ais posso estar inteiram ente segu­
ro. A liberação total nesse sentido (como Schopenhauer percebeu corretam ente)
só é conferida pela m o rte.“
líu m e descubro num m undo em que encontro obstáculos à minha vontade.
Aqueles que adotam o conceito "negativo” de liberdade talvez possam ser perdoa­
dos se pensam que a abnegação não é o único m étodo de superar obstáculos; que
í tam bém possível superá-los removendo-os: no caso de objetos não hum anos,
pela ação física; no caso da resistência hum ana, pela força ou persuasão, com o

244
quando induzo alguém a m e dar espaço em seu carro ou conquisto um país que
am eaça os interesses do m eu. Tais atos podem ser injustos, envolver violência,
crueldade, a escravização de outros, m as não se pode negar que com isso o agente
é capaz, no sentido mais literal, de aum entar sua liberdade. É um a ironia da histó­
ria que essa verdade seja repudiada por alguns daqueles que a praticam m uito vio­
len tam en te, hom ens que, m esm o enq u an to conquistam poder e liberdade de
ação, rejeitam o conceito "negativo” de liberdade em favor de sua contrapartida
"positiva”. Tal visão rege m etade de nosso m undo; vam os ver em que fundam en­
to metafísico repousa.

IV

Auto-realização

O único m étodo verdadeiro de alcançar a liberdade, dizem , é pelo uso da


razão crítica, a com preensão do que é necessário e do que é contingente. Se sou um
colegial, todas as verdades da m atem ática, exceto as mais simples, introm etem -se
com o obstáculos ao livre funcionam ento de m inha m ente, com o teorem as cuja
necessidade não com preendo; são declaradas verdadeiras por alguma autoridade
externa e apresentam-se a mim com o corpos estranhos que devo absorver m eca­
nicam ente no m eu sistema. Mas quando com preendo as funções dos símbolos, os
axiomas, a form ação e transform ação das regras — a lógica que perm ite se chegar
a conclusões — e entendo que essas coisas não podem ser de outra m aneira, po r­
que parecem derivar de leis que regem os processos da minha razão,4*então as ver­
dades m atem áticas já não se in tro m etem com o entidades externas im postas à
m inha m ente, as quais devo aceitar querendo ou não, mas com o algo que agora
desejo livrem ente no curso do funcionam ento natural de m inha atividade racio­
nal. Para o m atem ático, a prova desses teorem as faz parte do livre exercício de sua
capacidade natural de raciocinar. Para o músico, depois que leu a partitura e to r­
nou seus ôs objetivos do com positor, a execução da m úsica não é obediência a leis
externas, um a coação e um a barreira à liberdade, m as um exercício livre e desim ­
pedido. O intérprete não está preso à partitura com o um boi ao arado ou um ope­
rário à m áquina. Ele absorveu a partitura no seu sistem a, identificou-a consigo

245
m esm o ao compreendê-la, transforniou-n do um em pecilho à livre atividade num
d e m e n to dessa própria atividade.
O que se aplica à m úsica ou à m atem ática, dizem, deve em princípio aplicar-
se a todos os outros obstáculos que se apresentam com o tantos pedaços de m ate­
rial externo bloqueando o autodesenvolvim ento livre. Esse é o program a do racio-
nalism o esclarecido desde Spinoza aos mais recentes (às vezes inconscientes)
discípulos de Hegel. Sapere ande. Se continuam os racionais, não podem os desejar
que o que conhecemos, aquilo cuja necessidade com preendem os — a necessidade
racional — , seja de outra forma. Pois querer que algo seja diferente do que deve ser,
ciadas as premissas — as necessidades que regem o m undo —, é serpro tanto igno­
rante ou irracional. As paixões, os preconceitos, os medos, as neuroses nascem da
ignorância e assum em a feição de mitos e ilusões. Ser governado por mitos, quer
nasçam da imaginação vívida de charlatões inescrupulosos que nos enganam para
nos explorar, quer de causas psicológicas ou sociológicas, é um a form a de h etero ­
nomia, de ser dom inado por fatores externos num a direção não necessariamente
desejada pelo agente. Os determ inistas do século xvm supunham que o estudo das
ciências naturais, com a criação das ciências sociais segundo o m esm o m odelo, tor­
naria a operação dessas causas transparentem ente claras, e assim capacitaria os
indivíduos a reconhecer seu papel no funcionam ento de um m undo racional, frus­
trando as expectativas apenas quando mal compreendidas. O conhecim ento liber­
ta, como Epicuro ensinou há m uito tempo, elim inando autom aticam ente m edos
e desejos irracionais.
Herder, Hegel e Marx substituíram os m odelos mecânicos mais antigos da
vida social por seus vitalistas, mas acreditavam, não m enos que seus opositores,
que com preender o m undo é ser libertado. Eles m eram ente diferiam dos anteces­
sores por enfatizar o papel desem penhado pela m udança e pelo desenvolvim ento
naquilo que tornava hum anos os seres hum anos. A vida social não podia ser com ­
preendida por um a analogia tirada da m atem ática ou da física. Devia-se tam bém
com preender a história, isto é, as leis peculiares de desenvolvim ento contínuo,
quer pelo conflito "dialético”, quer por outra form a, que regem os indivíduos e
grupos em sua interação entre si e com a natureza. N ão com preender isso é, segun­
do esses pensadores, cair num tipo particular de erro: a crença de que a natureza
hum ana é estática, que suas propriedades essenciais são as mesm as em toda parte
e em todas as eras, que ela é regida por leis naturais invariáveis, sejam elas concebi­
das em term os teológicos ou materialistas, o que acarreta o corolário falacioso de

146
que um legislador sábio pode criar, em princípio, um a sociedade perfeitam ente
harm oniosa em qualquer época por um a educação e legislação apropriadas, pois
os hom ens racionais, em todos os tem pos e países, devem sem pre exigir a m esm a
satisfação inalterável das m esm as necessidades básicas inalteráveis. Hegel acredi­
tava que seus contem porâneos (e na verdade todos os seus predecessores) com ­
preendiam mal a natureza das instituições porque não com preendiam as leis— leis
racionalm ente inteligíveis, pois nascem da atuação da razão— que criam e alteram
as instituições e transform am o caráter hum ano e a ação hum ana. Marx e seus dis­
cípulos sustentavam que o cam inho dos seres hum anos não era só obstruído por
forças naturais ou pelas imperfeições de seus caracteres, mas, até mais, pela opera­
ção de suas instituições sociais, as quais eles tinham originalm ente criado (nem
sem pre conscientem ente) para certos fins, mas cujo funcionam ento passavam sis­
tem aticam ente a com preender m al,Me assim tornavam -se obstáculos ao progres­
so de seus criadores. Marx oferecia hipóteses sociais e econômicas para explicar a
inevitabilidade dessa com preensão errônea, em particular da ilusão de que esses
arranjos criados pelo hom em eram forças independentes, tão inescapáveis quanto
as leis da natureza. C om o exemplos dessas forças pseudo-objetivas, ele apontava as
leis da oferta e dem anda, a instituição da pobreza, a eterna divisão da sociedade em
ricos e pobres, em proprietários e operários, com o tantas categorias hum anas inal­
teráveis. Só depois de term os atingido um estágio em que o feitiço dessas ilusões
pudesse ser desfeito — isto é, só depois que um núm ero suficiente de hom ens che­
gasse a um estágio social que fosse o único capaz de fazê-los com preender que essas
leis e instituições eram elas próprias a obra de m entes e m ãos hum anas, historica­
m ente necessárias no seu tem po e mais tarde consideradas erroneam ente poderes
inexoráveis e objetivos — é que o velho m undo poderia ser destruído e substituído
por um a m aquinaria social mais adequada e libertadora.
Somos escravizados por déspotas — instituições, credos ou neuroses — que
só podem ser afastados pela análise e compreensão. Somos aprisionados por espí­
ritos m aus que nós próprios criam os — ainda que não conscientem ente — e só
podem os exorcizá-los conscientizando-nos e agindo apropriadam ente: na verda­
de, para Marx, com preender é a ação apropriada. Sou livre se e som ente se plane­
jo m inha vida de acordo com m inha vontade; os planos acarretam regras; um a
regra não m e oprim e, nem me escraviza, se a im ponho a mim m esm o consciente­
m ente ou se a aceito livrem ente depois de tê-la com preendido, quer tenha sido
inventada por m im , quer por outros, desde que seja racional, isto é, desde que se

247
conform e às necessidades das coisas. C om preender p or que as coisas devem ser
com o devem ser é querer que assim sejam. O conhecim ento não liberta oferecen­
do-nos mais possibilidades abertas de escolha, mas preservando-nos da frustração
de tentar o impossível. Q uerer que leis necessárias sejam diferentes do que são é ser
presa de um desejo irracional — o desejo de que aquilo que deve ser X tam bém
deveria ser não-X. Ir além, e acreditar que essas leis são diferentes do que necessa­
riam ente são, é estar louco. Esse é o âm ago metafísico do racionalismo. A noção de
liberdade nele contida não é a concepção "negativa" de um cam po (idealmente)
sem obstáculos, um vácuo em que nada m e obstrui, mas a noção de direção e con­
trole próprios. Posso fazer o que quiser co m o que é m eu. Sou um ser racional; tudo
o que posso dem onstrar a m im m esm o com o necessário, com o incapaz de ser dife­
rente num a sociedade racional — isto é, num a sociedade governada por m entes
racionais, em direção a m etas com o as que um ser racional alim entaria —, eu,
sendo racional, não posso desejar que seja varrido de m eu caminho. Eu o assimilo
na minha substância com o faço com as leis da lógica, da m atem ática, da física, as
regras da arte, os princípios que governam tudo aquilo a partir do qual com preen­
do, e portanto desejo, o desígnio racional, desígnio que jam ais me frustrará, pois
não posso querer que seja diferente do que é.
Essa é a doutrina positiva da libertação pela razão. Suas formas socializadas,
apesar de am plam ente díspares e opostas um a à outra, encontram -se no âm ago de
m uitos dos credos nacionalistas, com unistas, autoritários e totalitários de nossos
dias. Ao longo de sua evolução, ela pode ter vagado bem longe de seus ancoradou­
ros racionalistas. Ainda assim, é sobre essa liberdade que se discute nas dem ocra­
cias e ditaduras, e pela qual se luta em m uitas partes da Terra hoje em dia. Sem ten­
tar traçar a evolução histórica dessa idéia, gostaria de com entar algumas de suas
vicissitudes.

O templo de Sarastro

Aqueles que acreditavam na liberdade com o autogoverno racional estavam


fadados, mais cedo ou mais tarde, a considerar que isso não se devia aplicar apenas
à vida interior de um hom em , mas a suas relações com os outros m em bros de sua

248
sociedade. Até os mais individualistas dentre eles — e Rousseau, fíant c Fíchte cer­
tam ente com eçaram com o individualistas— passaram , em algum ponto, a se per­
guntar se não seria possível um a vida racional, não só para o indivíduo, m as tam ­
bém para a sociedade, e, nesse caso, com o isso deveria ser alcançado. Desejo ser
livre para viver conform e ordena m inha vontade racional (m eu "eu real"), mas
tam bém livres devem ser os outros. C om o evitar colidir com suas vontades? Onde
está a fronteira entre m eus direitos (racionalm ente determ inados) e os direitos
idênticos dos outros? Pois, se sou racional, não posso negar que aquilo que é um
direito m eu deve ser, pelas m esm as razões, direito para outros que são racionais
com o eu. Um Estado racional (ou livre) seria um Estado governado por leis que
todos os hom ens racionais aceitariam; isto é, leis que eles próprios teriam decreta­
do se lhes tivessem perguntado o que — com o seres racionais — solicitavam; por
isso, as fronteiras seriam aquelas que os hom ens racionais considerariam as fron­
teiras corretas para os seres racionais.
Mas quem de fato deveria determ inar essas fronteiras? Os pensadores dessa
doutrina argum entavam que, se os problem as m orais e políticos fossem genuí­
nos — com o certam ente eram — , tinham de ser em princípio solúveis; isto é, tinha
de existir um a única solução verdadeira para cada problem a. Todas as verdades
poderiam ser em princípio descobertas por qualquer pensador racional e dem ons­
tradas tão claram ente que todos os outros hom ens racionais não poderiam deixar
de aceitá-las; na verdade, isso já acontecia em grande m edida nas novas ciências
naturais. C om base nesse pressuposto, o problem a da liberdade política era solú­
vel, estabelecendo um a ordem justa que daria a cada indivíduo toda a liberdade a
que um ser racional tinha direito. Minha reivindicação de um a liberdade sem gri­
lhões às vezes não é passível de ser conciliada primafa d e com a reivindicação igual­
m ente irrestrita de outro; m as a solução racional de um problem a não pode colidir
com a solução igualm ente verdadeira de outro, pois duas verdades não podem ser
logicam ente incompatíveis; portanto, um a ordem justa deve ser em princípio veri­
ficável — um a ordem cujas regras possibilitem soluções corretas para todos os pos­
síveis problem as que nela poderiam surgir. Essa situação ideal e harm oniosa era às
vezes im aginada com o um Jardim do Éden antes da Q ueda do H om em , um Éden
do qual fomos expulsos, mas que ainda desejam os intensam ente; ou com o um a era
dourada ainda p or vir, em que os hom ens, tendo se tornado racionais, já não serão
"governados-por-outros", nem se "alienarão" ou frustrarão m utuam ente. No#
sociedades existentes, a justiça e a igualdade são ideais que ainda exigem certa dose

249
de coerção, pois a suspensão prem atura dos controles sociais poderia levar à oprcs-
s5o dos mais fracos e estúpidos pelos mais fortes, mais capazes, mais enérgicos e
inescrupulosos. Mas é apenas a irracionalidade dos hom ens (segundo essa doutri­
na) o que os leva a desejar oprimir, explorar ou hum ilhar os outros. Os hom ens
racionais respeitarão o princípio da razão uns nos outros e não desejarão com ba­
ter ou dom inar os demais. O desejo de dom inar é ele próprio um sintom a de irra­
cionalidade e pode ser explicado e sanado por m étodos racionais. Spinoza apresen­
ta u m tipo de explicação e rem édio; Hegel, outro; Marx, um terceiro. Algumas
dessas teorias talvez possam se com pletar m u tu am en te em algum grau, m as
outras não são combináveis. No entanto, todas pressupõem que num a sociedade
de seres perfeitam ente racionais o desejo de dom inar outros hom ens não estará
presente nem será efetivo. A existência da opressão ou o anseio pela opressão será
o prim eiro sintom a de que não se terá alcançado a verdadeira solução para os pro­
blem as da vida social.
Isso pode ser dito de outra maneira. A liberdade é autodom ínio, a eliminação
de obstáculos à m inha vontade, sejam quais forem esses obstáculos— a resistência
da natureza, de m inhas paixões sem governo, das instituições irracionais, dos dese­
jos ou do com portam ento opostos de outros. Sempre posso m oldar a natureza,
pelo m enos em princípio, por meios técnicos, e adaptá-la à m inha vontade. Mas
com o devo tratar os recalcitrantes seres hum anos? Se possível, devo tam bém lhes
im por m inha vontade, "moldá-los” segundo m eu padrão, atribuir-lhes papéis em
m inha peça. Mas isso não significará que apenas eu sou livre, ao passo que eles são
escravos? Eles serão escravos se m eu plano nada tiver que ver com seus desejos ou
valores, mas apenas com os meus. Mas, se m eu plano é plenam ente racional, vai
perm itir o pleno desenvolvim ento de suas "verdadeiras” naturezas, a realização de
sua capacidade de tom ar decisões racionais, de "desenvolver o m elhor de si m es­
mos" — com o um a parte da realização do m eu "verdadeiro” eu. Todas as soluções
verdadeiras para todos os problem as genuínos devem ser compatíveis: mais do que
isso, devem ajustar-se num único conjunto, pois isso é o que significa chamá-las de
racionais, e o universo, de harm onioso. Cada hom em tem caráter, habilidades,
aspirações, fins específicos próprios. Se não apenas com preendo o que tais fins e
naturezas são, mas tam bém com o todos se relacionam uns com os outros, posso,
pelo m enos em princípio, se tiver conhecim ento e força, satisfazê-los a todos, desde
que a natu reza e os propósitos em questão sejam racionais. A racionalidade é
conhecer as coisas e as pessoas pelo que elas são: não devo usar pedras para fazer

250
violinos n em tentar obrigar violinistas natos a tocar flauta. Se o universo for gover­
nado pela razão, não haverá necessidade de coerção; um a vida corretam ente pla­
nejada coincidirá com a plena liberdade — a liberdade da autodireção racional —
para todos. Assim será, se e apenas se o plano for o verdadeiro plano — o único
padrão que preenche as reivindicações da razão. Suas leis serão as regras que a
razão prescreve: só parecerão tediosas àqueles cuja razão estiver adorm ecida, que
não com preenderem as verdadeiras "necessidades" de seus eus "reais". Desde que
cada ator reconheça e desem penhe o papel que lhe foi estabelecido pela razão — a
faculdade que com preende sua verdadeira natureza e discerne seus verdadeiros
fins — , não há com o haver conflito. Cada hom em será um ator liberto e dirigido
p o r si m esm o no dram a cósmico. Assim Spinoza nos diz que as crianças, em bora
coagidas, não são escravas, pois obedecem a ordens que lhes são dadas em seu p ró ­
prio interesse, e que o súdito de um a verdadeira nação não é escravo, pois os inte­
resses com uns devem incluir os seus.’' Da m esm a forma, Locke diz que "Onde não
há lei, não há liberdade” porque a lei racional é um a direção para os "interesses pró­
prios" de um hom em ou para o "bem geral"; e acrescenta que, com o a lei assim é
o que "unicam ente nos protege dos pântanos e precipícios", ela "não m erece o
nom e de confinam ento'Y 2 e m enciona os desejos de fugir à lei com o irracionais,
formas de "desordem ", "bestiais",” e assim por diante. M ontesquieu, esquecendo
seus m om entos liberais, não fala da liberdade política com o a perm issão de fazer o
que quiserm os, nem m esm o o que a lei perm ite, mas apenas com o "o poder de
fazer o que devemos querer",54o que Kant virtualm ente repete. Burke proclam a o
"direito" de o indivíduo ser reprim ido em seu próprio interesse, porque "o supos­
to consentim ento de toda criatura racional está em uníssono com a ordem predis­
posta das coisas"/5
O pressuposto com um desses pensadores (e de m uitos escolásticos antes
deles e de jacobinos e com unistas depois deles) é que os fins naturais de nossas "ver­
dadeiras" naturezas devem coincidir, ou serem levados a coincidir, por mais violen­
tam ente que os nossos pobres eus, ignorantes, dom inados pelos desejos, apaixona­
dos, empíricos, possam gritar contra esse processo. A liberdade não é a liberdade
de fazer o que é irracional, estúpido ou errado. Forçar os eus empíricos a se adap­
tar aos padrões corretos não é tirania, mas libertação.“ Rousseau me diz que, se
entrego livrem ente todas as partes da minha vida à sociedade, crio um a entidade
que, por ter sido construída a partir de um igual sacrifício de todos os seus m em ­
bros, não pode querer ferir nenhum deles; num a sociedade desse tipo ninguém

251
pode ter interesse eni causar dano a outra pensoa. "Ao me dar a todos, n3o m c dou
a ninguém ”iTe recupero tanto quanto perco, com bastante força nova para preser­
var m eus novos ganhos. Kant nos diz que, quando "o indivíduo abandonou intei­
ram ente sua liberdade desregrada e sem leis, para encontrá-la de novo, intata, num
estado de dependência segundo a lei”, essa é exclusivamente a verdadeira liberda­
de, r pois tal dependência é obra da m inha vontade agindo com o legisladorV* A
liberdade, m uito longe de ser incompatível com a autoridade, torna-se virtualm en­
te idêntica a ela. Esse é o pensam ento e a linguagem de todas as declarações dos
direitos hum anos no século xviii e de todos aqueles que consideram a sociedade
um projeto construído segundo as leis racionais do legislador sábio, ou da n ature­
za, da história, do Ser Supremo. Bentham, quase sozinho, passou a repetir obstina­
dam ente que o propósito das leis não era libertar, mas restringir: toda lei é um a
infração da liberdade’9— m esm o que essa infração leve a um aum ento da liberda­
de total.
Se os pressupostos subjacentes estivessem corretos— se o m étodo para resol­
ver os problem as sociais se assemelhassem ao m odo com o são encontradas as solu­
ções para os problem as das ciências naturais, e se a razão fosse de fato aquilo que
os racionalistas diziam s e r— , tudo isso talvez se inferisse. N um a situação ideal, a
liberdade coincide com a lei: a autonom ia com a autoridade. Um a lei que m e proí­
ba de fazer o que eu, em pleno juízo, não poderia concebivelmente desejar fazer
não é um a restrição a m inha liberdade. Na sociedade ideal, com posta de seres intei­
ram ente responsáveis, as regras, um a vez que delas eu não teria consciência, defi­
nhariam aos poucos. Apenas um m ovim ento social foi suficientem ente ousado
para to rn ar esse pressuposto bem explícito e aceitar as suas conseqüências — o
anarquismo. Mas todas as formas de liberalismo fundadas num a metafísica racio-
nalista são versões mais ou m enos aguadas desse credo.
No seu devido tem po, os pensadores que voltaram suas energias para a solu­
ção do problem a segundo essa linha de pensam ento viram-se confrontados com a
questão de com o, na prática, os hom ens deveriam se tornar racionais dessa m anei­
ra. Claram ente eles tinham de ser educados. Pois os não-educados são irracionais,
heterônom os e precisam ser coagidos, nem que seja para to rn ar a vida tolerável
para os racionais — se esses querem viver na m esm a sociedade e não ser obrigados
a se retirar para um deserto ou algum m onte olímpico. Mas não se pode esperar
que os não-educados com preendam ou cooperem com os propósitos de seus edu­
cadores. A educação, diz Fichte, deve operar inevitavelmente de tal m aneira que

252
"você reconhecerá mais tarde as razões pelo que estou fazendo agora”.40 N ão se
pode esperar que as crianças com preendam por que são obrigadas a ir para a esco­
la, nem que os ignorantes— isto é, por enquanto, a m aioria da hum anidade — sai­
bam por que são obrigados a obedecer às leis que farão deles, no futuro, seres racio­
nais. "A coação é tam bém um a espécie de educação.”41Aprende-se a grande virtude
da obediência a pessoas superiores. Se alguém não consegue com preender seus
interesses com o um ser racional, não se pode esperar que eu o consulte ou aquies­
ça em seus desejos durante o processo de torná-lo racional. Devo finalm ente for­
çar esse alguém a se proteger contra a varíola, m esm o que ele não o deseje. Até Mill
se dispõe a dizer que posso usar a força para im pedir um hom em de cruzar um a
ponte se não há tem po de avisá-lo que ela está prestes a desm oronar, pois sei ou
tenho razões para supor que ele não deseja cair na água. Fichte sabe o que o alem ão
não-educado do seu tem po deseja ser ou saber provavelm ente m elhor do que sabe
isso para si mesm o. O sábio conhece um a pessoa m elhor do que ela conhece a si
m esm a, pois ela é vítima de paixões, um a escrava vivendo um a vida heterônom a,
obtusa, incapaz de com preender seus verdadeiros objetivos. Ela quer se to rn ar um
ser hum ano. É objetivo do Estado satisfazer esse seu desejo. "A coação é justifica­
da pela educação para um a com preensão futura."42A razão dentro de m im, se qui­
ser triunfar, deve elim inar e suprim ir m eus instintos "mais baixos”, m inhas paixões
e desejos, que m e to rn am um escravo; da m esm a form a (a transição fatal do con­
ceito individual para o social é quase imperceptível) os elem entos mais elevados na
sociedade — os mais bem educados, os mais racionais, aqueles que "possuem a
com preensão mais elevada de seu tem po e povo”4J — podem exercer coação para
racionalizar a seção irracional da sociedade. Pois — assim Hegel, Bradley, Bosan-
quet freqüentem ente nos asseguraram — , obedecendo ao hom em racional, obe­
decem os a nós próprios: não realm ente com o somos, m ergulhados em nossa igno­
rância e nossas paixões, criaturas fracas atorm entadas por doenças que necessitam
de alguém que as cure, pupilos que requerem um guardião, mas com o poderíam os
ser, se fôssemos racionais; com o poderíam os ser até agora, se ao m enos escutásse­
m os o elem ento racional que existe, ex hypothesi, dentro de cada ser hum ano que
m ereça assim ser chamado.
Os filósofos da "Razão Objetiva", desde o Estado "orgânico”, inflexível, rigo­
rosam ente centralizado de Fichte ao liberalismo am eno e hum ano de T. H. Green,
certam en te su punham estar satisfazendo, e não com batendo, as necessidades
racionais que, em bora rudim entares, devem ser encontradas no peito de todo ser

253
consciente. Mas posso rejeitar esse otim ism o dem ocrático c, afastando-m e do
determ inism o teleológico dos hegelianos para algum a filosofia mais voluntarista,
conceber a idéia de im por à m inha sociedade — para seu aperfeiçoam ento — um
plano m eu, que na m inha sabedoria racional elaborei; e que, se não ajo por m inha
própria conta, talvez contra os desejos perm anentes da imensa maioria de m eus
concidadãos, esse plano talvez nunca chegue a ser realizado. Ou, abandonando
com pletam ente o conceito de razão, posso m e conceber com o um artista inspira­
do que m olda os hom ens segundo padrões determ inados à luz de sua visão singu­
lar, assim com o os pintores com binam as cores, ou os com positores, os sons; a
h um anidade é a m atéria-prim a sobre a qual im ponho m inha vontade criativa;
m esm o que m uitos hom ens sofram e m orram no processo, eles são com isso ele­
vados a um a altura a que jam ais poderiam ter se erguido sem m inha violação coer­
civa — mas criativa — de suas vidas. Esse é o argum ento usado por todo ditador,
inquisidor e tirano que busca um a justificação moral, ou m esm o estética, para sua
conduta. Devo fazer pelos hom ens (ou com eles) o que não podem fazer por si m es­
mos, e não posso lhes pedir permissão ou consentim ento, porque eles não estão
em condição de saber o que é m elhor para eles; na verdade, o que vão perm itir e
aceitar talvez signifique um a vida de m ediocridade desprezível, ou quem sabe até
sua ruína e suicídio. Deixem-me citar mais um a vez um trecho do verdadeiro pai
da d o u trin a heróica, Fichte: "N inguém tem [...J direitos contra a razão ” . "O
hom em tem m edo de subordinar sua subjetividade às leis da razão. Ele prefere a
tradição ou o arbítrio/*44Ainda assim, ele deve ser subordinado.45Fichte apresenta
as reivindicações do que ele chamava de razão; Napoleão, Carlyle ou os autoritá­
rios rom ânticos talvez cultuem outros valores e vejam no seu estabelecim ento pela
força o único cam inho para a "verdadeira" liberdade.
A mesm a atitude foi agudam ente expressa po r Auguste Com te, que pergun­
tava p o r que, se não adm itim os o livre pensam ento na quím ica ou na biologia,
deveríamos perm iti-lo na m oral ou na política.46Por que realmente? Se faz sentido
falar de verdades políticas — afirm ações de fins sociais que todos os hom ens, por
serem hom ens, devem concordar que, um a vez descobertos, são fins sociais — ; e
se, com o acreditava Com te, o m étodo científico vai no seu devido tem po revelá-
los; então com o se pode defender a liberdade de opinião ou ação — pelo m enos
com o um fim em si m esm o, e não m eram ente com o um clima intelectual estim u­
lante — , quer para os indivíduos, quer para os grupos? Por que tolerar um a condu­
ta que não seja autorizada por especialistas apropriados? C om te disse com rudeza

254
o que estivera implícito na teoria rationalista da política desde os seus amigos pri­
m órdios gregos. Em princípio, só pode haver um a m aneira correta de vida; os
sábios a levam espontaneam ente, é por isso que são cham ados sábios. Os desavisa-
dos devem ser arrastados nessa direção po r todos os meios sociais em poder dos
sábios; pois p or que tolerar que o erro dem onstrável sobreviva e procrie? Os im a­
turos e os ignorantes devem ser forçados a dizer para si mesmos: 'Apenas a verda­
de liberta, e a única m aneira de aprender a verdade é fazer cegam ente o que você,
que a conhece, me ordena ou m e força a fazer, sabendo com toda a certeza que ape­
nas assim alcançarei sua clara visão e serei livre com o você”.
Temos certam ente vagueado bem longe de nossos prim órdios liberais, Esse
argum ento, em pregado por Fichte em sua últim a fase, e depois dele por outros
defensores da autoridade, desde os mestres-escolas e os adm inistradores coloniais
até o ditador nacionalista ou com unista mais recente, é precisam ente tudo aquilo
que a m oralidade estóica ou kantiana com bate mais am argam ente em nom e da
razão do indivíduo livre que segue sua própria luz interior. Nesse cam inho o argu­
m ento racionalista, com seu pressuposto de um a única solução verdadeira, tem
levado — por passos que, se não logicam ente válidos, são histórica e psicologica­
m ente inteligíveis — de um a doutrina ética da responsabilidade individual e do
aperfeiçoam ento individual a um Estado autoritário obediente às diretrizes de
um a elite de guardiães platônicos.
O que pode ter gerado um a inversão tão estran h a— a transform ação do seve­
ro individualismo de Kant em algo próxim o a um a doutrina totalitária pura por
parte de determ inados pensadores, alguns dos quais afirmavam ser discípulos kan­
tianos? Essa questão não é de interesse m eram ente histórico, pois não são poucos
os liberais contem porâneos que passaram pela m esm a evolução peculiar. É verda­
de que Kant insistia, seguindo Rousseau, que todos os hom ens tinham a capacida­
de para um a autodireção racional; que não poderia haver especialistas em questões
m orais, pois a m oralidade não era um a questão de conhecim ento especializado
(como tinham afirm ado os utilitários e os philosophes), mas de uso correto de um a
faculdade hum ana universal; e, conseqüentem ente, que aquilo que tornava os
hom ens livres não era agir de certas maneiras que os aperfeiçoavam a si m esm os
(o que eles podiam ser coagidos a fazer), mas saber por que deviam agir assim, o
que ninguém podia fazer por outra pessoa ou em nom e de outra pessoa. Porém
m esm o Kant, quando passa a tratar de questões políticas, reconhecia que nenhu­
ma lei — desde que fosse de tal m odo que eu, com o ser racional, se consultado,

255
devia aprová-la— poderia mc privar de quulquerparcela de minha libealade racio­
nal. C om isso estava escancarada a porta para o poder dos especialistas. N ão posso
consultar todos os hom ens sobre todas as leis o tem po todo. O governo não pode
ser um plebiscito contínuo. Além disso, alguns hom ens não são tão bem afinados
com a voz de sua razão quanto outros: alguns parecem singularm ente surdos. Se
sou um legislador ou um governante, devo presum ir que se a lei que im ponho é
racional (e só posso, para isso, consultar m inha própria razão) ela será autom atica­
m ente aprovada por todos os m em bros de m inha sociedade na m edida em que são
seres racionais. Pois, se a desaprovam, devem ser,pro tanto, irracionais; então será
preciso que sejam reprim idos pela razão: a deles ou a m inha, não im porta, pois as
m anifestações da razão devem ser as mesm as em todas as m entes. D ou m inhas
ordens e, se alguém resiste, encarrego-m e de reprim ir o elem ento irracional nessa
pessoa que se opõe à razão. A m inha tarefa seria mais fácil se a pessoa reprimisse o
irracional em si mesm a; tento educá-la para que aja desse modo. Mas sou respon­
sável pelo bem -estar público, não posso esperar até que todos os hom ens sejam
inteiram ente racionais. Kant pode objetar que a essência da liberdade do sujeito é
que ele, e apenas ele, deu a si m esm o a ordem para obedecer. Mas isso é u m ideal
de perfeição. Se a pessoa não consegue se disciplinar, devo fazer isso por ela; e ela
não pode se queixar de falta de liberdade, pois o fato de que o juiz racional de Kant
a tenha m andado para a prisão evidencia que ela não escutou sua razão interior;
que, com o um a criança, um selvagem, um idiota, não está m adura para a autodi-
reção, ou é perm anentem ente incapaz disso.47
Se isso leva ao despotismo, ainda que dos m elhores ou dos mais sábios — ao
tem plo de Sarastro em A flauta mágica — , mas ainda um despotismo, que se revela
idêntico à liberdade, será que há algo errado nas premissas do argumento? Q ue os
próprios pressupostos possuem falhas em algum lugar? Deixem-me expor esses
pressupostos mais um a vez: primeiro, que todos os hom ens têm um único propósi­
to verdadeiro, e apenas um , o da autodireçâo racional; segundo, que os fins de todos
os seres racionais devem necessariamente ajustar-se num único padrão universal e
harmonioso, que alguns hom ens podem ser capazes de discernir mais claram ente
do que outros; terceiro, que todo conflito, e conseqüentem ente toda tragédia, se
deve unicam ente ao confronto da razão com o irracional ou o insuficientem ente
racional— os elem entos im aturos e não desenvolvidos na vida, seja individual, seja
com unal — e que esses confrontos são em princípio evitáveis e, para seres inteira­
m ente racionais, impossíveis; finalm ente, que, ufna vez tornados racionais, todos

256
os hom ens obedecerão às leis racionais de suas próprias naturezas, que são as m es­
m as em todos, e assim serão ao m esm o tem po inteiram ente respeitadores da lei e
inteiram ente livres. Será que Sócrates e os criadores da tradição central ocidental
na ética e na política que o seguiram com preenderam mal, por mais de dois m ilê­
nios, que a virtude não é conhecim ento, nem a liberdade idêntica a nenhum dos
dois? Que, apesar do fato de reger a vida de mais hom ens do que nunca em sua
longa história, nenhum dos pressupostos básicos dessa famosa visão é dem onstrá­
vel ou, talvez, até verdadeiro?

vi

Abuscaporstatus

Há ainda o utra abordagem historicam ente im portante desse tópico, que, ao


confundir a liberdade com suas irmãs, igualdade e fraternidade, leva a conclusões
sim ilarm ente iliberais. Desde que a questão foi proposta, perto do final do século
xviii, a pergunta do que se quer dizer com um "indivíduo" tem sido form ulada per­
sistentem ente e com um efeito cada vez maior. Na medida em que vivo em socie­
dade, tudo o que faço afeta inevitavelmente o que os outros fazem e é afetado por
isso. Até o esforço vigoroso de Mill para m arcar a distinção entre as esferas da vida
social e privada desm orona sob exame. Virtualm ente todos os críticos de Mill têm
apontado que tudo o que faço pode ter resultados prejudiciais a outros seres hum a­
nos. Além disso, sou um ser social num sentido mais profundo do que o da intera­
ção com os outros. Pois não sou o que sou, em algum a medida, em virtude do que
os outros pensam e sentem que eu sou? Quando me pergunto o que sou e respon­
do u m inglês, um chinês, um m ercador, um hom em sem im portância, um m ilio­
nário, um condenado, descubro pela análise que possuir esses atributos implica ser
reconhecido com o p erten cen te a um g ru p o ou um a classe determ inados por
outras pessoas de m inha sociedade, e que esse reconhecim ento é parte do signifi­
cado da m aioria dos term os que denotam algumas das minhas características mais
pessoais e perm anentes. Não sou um a razão desencarnada. N em sou Robinson
Crusoé, sozinho em sua ilha. Não é som ente que m inha vida m aterial dependa da
interação com os outros hom ens, nem que eu seja o que sou com o resultado de for­
ças sociais, mas é que algumas de m inhas idéias — talvez todas elas — sobre m im

257
mesm o, em particular a consciência acerca de m inha própria identidade m oral e
social, só são inteligíveis em função da rede social na qual sou u m elem ento (a
m eiáfora não deve ser levada longe demais).
A falta de liberdade de que se queixam os hom ens ou os grupos im porta fre­
qüentem ente em falta de reconhecim ento próprio. Posso não estar procurando o
que Mill gostaria que eu procurasse — ou seja, segurança contra a coerção, a pri­
são arbitrária, a tirania, a privação de certas oportunidades de ação, ou um espa­
ço no qual legalm ente não devo contas a ninguém acerca de m eus m ovim entos.
Igualmente, posso não estar procurando um plano racional de vida social, nem a
perfeição de um sábio desapaixonado. O que talvez busque evitar é sim plesm en­
te ser ignorado, tratado com superioridade, desprezado ou sem receber a devida
atenção — em suma, não ser tratado com o um indivíduo, não tendo m eu caráter
único suficientem ente reconhecido, sendo classificado com o um m em b ro de
algum am álgama sem características, um a unidade estatística sem feições e pro ­
pósitos próprios especificam ente hum anos e identificáveis. Essa é a degradação
contra a qual m e encontro lu tan d o — não estou procurando igualdade de direitos
legais, nem a liberdade de fazer o que desejar (em bora tam bém possa querer tudo
isso), mas um a condição em que possa sentir que sou, porque assim sou conside-
rado, um agente responsável, cuja vontade é levada em conta porque a isso tenho
direito, m esm o se sou atacado e perseguido p o r ser o que sou ou po r escolher o
que escolho.
É um desejo ardente por status e reconhecim ento: "O mais pobre indivíduo
da Inglaterra tem um a vida para viver assim com o o m aior indivíduo”.4*Desejo ser
com preendido e reconhecido, m esm o que isso signifique ser im popular e antipa­
tizado. E as únicas pessoas que podem me reconhecer dessa m aneira, e com isso
me dar a consciência de ser alguém, são os m em bros da sociedade a que, histórica,
moral, econômica e talvez eticam ente sinto que pertenço.49 O m eu eu individual
não é algo que posso separar da m inha relação com os outros, nem daqueles meus
atributos que consistem na atitude deles para comigo. C onseqüentem ente, quan­
do peço para ser libertado, digamos, do status da dependência política ou social, o
que espero é um a alteração da atitude que têm para comigo aqueles cujas opiniões
e cujo com portam ento ajudam a determ inar m inha im agem de m im mesmo.
E o que vale para o indivíduo vale para os grupos, sociais, políticos, econôm i­
cos, religiosos, isto é, para os hom ens conscientes das necessidades e dos propósi­
tos que possuem com o m em bros desses grupos. O que as classes ou nacionalida-

258
des oprimidas em geral dem andam não é sim plesm ente um a liberdade desim pedi­
da de ação para seus m em bros, nem , acima de tudo, igualdade de oportunidade
social ou econômica, ainda m enos a designação de um lugar num Estado orgânico
e sem atritos projetado pelo legislador racional. O que freqüentem ente desejam é
apenas o reconhecim ento (de sua classe ou nação, cor ou raça) com o um a fonte
independente de atividade hum ana, com o um a entidade com vontade própria,
pretendendo agir de acordo com essa vontade (quer seja boa ou legítim a, quer
não), e não ser governado, educado, guiado, ainda que pelo mais leve poder, com o
alguém não plenam ente hum ano e, portanto, não plenam ente livre.
Isso confere um sentido m uito mais am plo do que puram ente racionalista à
observação de Kant de que o paternalism o é “o m aior despotism o imaginável". O
paternalism o é despótico, não porque seja mais opressivo do que a tirania m ani­
festa, brutal, não esclarecida, nem m eram ente porque ignore a razão transcen­
dental em m im encarnada, mas porque é um insulto a m inha concepção de m im
m esm o com o ser hum ano, determ inado a levar m inha vida de acordo com m eus
propósitos (não necessariam ente racionais ou benévolos) e, acima de tudo, com
o direito de ser assim reconhecido pelos outros. Pois, se não sou reconhecido,
posso deixar de reconhecer m inha reivindicação de constituir um ser hum ano ple­
nam ente independente, posso ter dúvidas a esse respeito. Pois o que sou é, em
grande parte, determ inado pelo que sinto e penso; e o que sinto e penso é d eter­
m inado pelo sentim ento e pensam ento predom inantes na sociedade a que per­
tenço, da qual, na concepção de Burke, não form o u m átom o isolável, mas um
ingrediente (para usar um a m etáfora perigosa, m as indispensável) num padrão
social. Posso sentir que não sou livre, no sentido de não ser reconhecido com o um
ser hu m an o individual que se autogoverna; mas tam bém posso m e sentir sem
liberdade com o m em bro de um g ru p o não reconhecido ou insuficientem ente
respeitado: nesse caso, desejo a em ancipação de toda a m inha classe, com unida­
de, nação, raça ou profissão. Tanto posso desejar tal coisa que talvez prefira, no
m eu anseio am argo porstatus, ser oprim ido e m algovernado p o r algum m em bro
de m inha própria raça ou classe social, p o r q u em sou reconhecido com o um
hom em e um rival — isto é, um igual — a ser tratad o bem e com tolerância por
alguém de um g rupo mais elevado e rem oto, alguém que não m e reconhece pelo
que desejo sentir que sou.
Esse é o núcleo do grande grito por reconhecim ento da parte de indivíduo e
grupos, e, em nossos dias, de profissões e classes, nações e raças. Em bora talvez não

259
consiga liberdade “negativa” nas mãos dos m em bros de m inha sociedade, ainda
assim eles são m em bros de m eu grupo; eles m e com preendem , com o eu os com ­
preendo; e essa com preensão cria dentro de m im a sensação de ser alguém no
m undo. É esse desejo de reconhecim ento recíproco que às vezes leva as dem ocra­
cias mais autoritárias a serem conscientem ente preferidas por seus m em bros a oli­
garquias mais esclarecidas, ou às vezes faz com que o m em bro de algum Estado
asiático ou africano recém -liberto reclame m enos hoje em dia, quando é rudem en­
te tratado por m em bros de sua própria raça ou nação, do que quando era governa-
do por algum adm inistrador cauteloso, justo, bondoso, bem -intencionado do exte­
rior. A m enos que esse fenôm eno seja com preendido, os ideais e o com portam ento
de povos inteiros que, no sentido da palavra estabelecido por Mill, sofrem a priva­
ção de direitos hum anos elem entares e que, com toda a aparência de sinceridade,
afirm am desfrutar de mais liberdade do que quando possuíam um a gam a mais
larga desses direitos, tornam -se um paradoxo ininteligível.
Mas não é com a liberdade individual, no sentido "negativo” ou "positivo” da
palavra, que esse desejo por status e reconhecim ento pode ser facilmente identifica­
do. É algo de que os seres hum anos precisam não m enos profundam ente e pelo qual
apaixonadamente lutam — algo afim à liberdade, mas que não é a própria liberda­
de; em bora acarrete liberdade negativa para todo o grupo, está mais intim am ente
relacionado à solidariedade, fraternidade, com preensão m útua, necessidade de
associação em term os iguais, tudo o que é às vezes— mas de m odo desorientador—
cham ado de liberdade social. Os term os sociais e políticos são necessariam ente
vagos. A tentativa de fazer com que o vocabulário da política seja demasiado preci­
so pode torná-lo inútil. Mas não serve à verdade o em prego vago da palavra além do
necessário. A essência da noção de liberdade, nos dois sentidos — "negativo” e
“positivo" — , é m anter distante algo ou alguém — outros que invadem minha área
ou afirmam sua autoridade sobre mim, obsessões, medos, neuroses, forças irracio­
nais —, intrusos e déspotas de qualquer tipo. O desejo de reconhecim ento é o dese­
jo de algo diferente: de união, compreensão mais íntima, integração de interesses,
iimn vida de dependência com um e sacrifício com um . É apenas a confusão do dese­
jo de liberdade com esse anseio profundo e universal por status e compreensão, con­
fundido ainda mais por ser identificado com a noção de autogoverno social em que
o cu a ser liberado já não é o indivíduo mas o "conjunto social”, que torna possível
que os homens, em bora se subm etendo à autoridade de oligarcas ou ditadores, afir­
m em que isso em algum sentido os liberta.

260
Muito tem sido escrito sobre a falácia de considerar os grupos sociais literal­
m ente pessoas ou eus, cujo controle e cuja disciplina de seus m em bros não é mais
do que autodisciplina, autocontrole voluntário que torna livre o agente individual.
Porém , m esm o na visão "orgânica", seria natural ou desejável cham ar a dem anda
por reconhecim ento e status um a dem anda por liberdade em algum terceiro senti­
do? É verdade que o grupo ao qual se dem anda reconhecim ento deve ter ele p ró ­
prio um a dose suficiente de liberdade "negativa” — ser livre do controle de qual­
q u er autoridade externa — , senão o reconhecim ento que conferir não dará ao
reclam ante o 5tatu5 que busca. Mas a luta por um status mais elevado, o desejo de
escapar de um a posição inferior, deve ser cham ado de um a luta pela liberdade? É
m ero pedantism o confinar essa palavra aos sentidos principais discutidos acima,
ou correm os o risco, conform e suspeito, de cham ar a qualquer m elhoram ento da
situação social que favorece um ser hum ano um aum ento de sua liberdade, e isso
não to m ará esse term o tão vago e distendido a ponto de tom á-lo virtualm ente inú­
til? Ainda assim, não podem os sim plesmente desconsiderar esse caso com o um a
m era confusão da noção de liberdade com a de status, solidariedade, fraternidade,
igualdade, ou alguma com binação dessas noções. Pois o anseio por status está, em
certos aspectos, m uito próxim o do desejo de ser um agente independente.
Podem os recusar a essa m eta o título de liberdade; ainda assim, seria superfi­
cial um a visão que supusesse que as analogias entre indivíduos e grupos, as m etá­
foras orgânicas ou os vários sentidos da palavra "liberdade” fossem m eras falácias,
devidas a afirmações de sem elhança entre entidades em alguns pontos nos quais
não são semelhantes, ou a um a simples confusão sem ântica. O que é desejado por
aqueles que estão dispostos a trocar sua liberdade de ação individual ou a de outros
pelo status de seu grupo não é apenas um a desistência da liberdade por segurança,
p o r algum lugar assegurado num a hierarquia harm o n io sa em que todos os
hom ens e todas as classes conhecem seu lugar e estão dispostos a trocar o doloro­
so privilégio da escolha — "a carga da liberdade” — por paz, conforto e relativa des­
preocupação de um a estru tu ra autoritária ou totalitária. Sem dúvida há desses
hom ens e desses desejos, e sem dúvida essas renúncias à liberdade individual
podem o co rrer e têm , na verdade, freqüentem ente ocorrido. Mas é um a com ­
preensão profundam ente errônea da índole de nosso tem po supor que é isso o que
torna o nacionalism o ou o m arxism o atraente a nações que são governadas po r
senhores estrangeiros, ou a classes cujas vidas foram dirigidas por outras classes
num regim e semifeudal ou em algum outro regim e hierarquicam ente organiza­

261
do. O que eles procuram é mais afim ao que Mill chamava de "auto-afirm ação
pagã”, mas num a form a coletiva, socializada. Na realidade, m uito do que ele diz
sobre suas razões para desejar liberdade — o valor que atribui à audácia e ao não-
conform ism o, à afirm ação dos valores do indivíduo em face da opinião predom i­
nante, a personalidades fortes e autoconfiantes livres das andadeiras dos legislado­
res e instrutores oficiais da sociedade — tem bem pouco a ver com sua concepção
de liberdade com o não-interferência, mas m uito com o desejo dos hom ens de não
terem suas personalidades fixadas num valor dem asiado baixo, supostam ente
incapazes de um com portam ento “autêntico", autônom o, original, m esm o que
esse com portam ento seja confrontado com opróbrio, restrições sociais ou legisla­
ção inibitiva.
Esse desejo de afirm ar a “personalidade" de m inha classe, m eu g ru p o ou
m inha nação está ligado tanto com a resposta quanto com a pergunta "Qual deve
ser a área da autoridade?" (pois o grupo não deve sofrer interferências de senhores
de fora) e, até mais estreitam ente, com a resposta à pergunta "Q uem deve nos
governar?” — governar bem ou mal, liberal ou opressivamente, mas acima de tudo
"Quem ?”. E respostas com o "Os representantes eleitos por m inha escolha livre ou
pela de o u tros”, "Todos nós reunidos em assembléias regulares”, "Os m elhores”,
"Os mais sábios”, "A nação encarnada nestas ou naquelas pessoas ou instituições”,
ou "O líder divino” são respostas logicam ente, e às vezes tam bém política e social­
m ente, independentes da extensão de liberdade "negativa” que dem ando para
m inhas próprias atividades ou para as de m eu grupo. D esde que a resposta a
"Q uem deve me governar?” seja alguém ou algo que eu possa representar com o
"m eu”, com o algo que m e pertence ou a quem pertenço, posso descrevê-la, usan­
do palavras que transm item fraternidade e solidariedade, bem com o certa parcela
da conotação do sentido "positivo” da palavra "liberdade” (que é difícil de especifi­
car com mais precisão), com o um a forma híbrida de liberdade; pelo m enos, com o
um ideal que talvez seja mais proem inente do que qualquer outro no m undo de
hoje, mas ao qual n enhum term o existente parece se ajustar com precisão. Aque­
les que a com pram ao preço de sua liberdade "negativa”, à la Mill, certam ente afir­
m am ser "libertados” po r esse m eio, nesse sentido confuso m as ardentem ente
experim entado. “A quem servir é a perfeita liberdade” pode ser dessa m aneira secu-
larizado, e o Estado, a nação, a raça, um a assembléia, um ditador, a minha família
ou meio, ou eu próprio podem os substituir a Divindade, sem com isso to rn ar a
palavra "liberdade” inteiram ente desprovida de sentido.”

262
Sem dúvida toda interpretação da palavra "liberdade0, por mais inusitada que
seja, deve incluir um m ínim o do que tenho cham ado de liberdade "negativa". Deve
haver um a área dentro da qual eu não seja frustrado. N enhum a sociedade suprim e
literalm ente todas as liberdades de seus m em bros; um ser impedido por outros de
fazer qualquer coisa por sua própria conta não é absolutam ente um agente m oral
e não poderia ser considerado, nem legal, nem m o ralm ente, um ser hum ano,
m esm o que um fisiólogo ou um biólogo, ou até um psicólogo se sentissem inclina­
dos a classificá-lo com o um hom em . Mas os pais do liberalismo — Mill e C onstant
— querem mais do que esse mínimo: dem andam o m áxim o grau de não-interfe-
rência com patível com as dem andas m ínim as da vida social. Parece improvável
que essa extrem a dem anda por liberdade tenha sido algum a vez apresentada por
alguém exceto um a pequena m inoria de seres hum anos altam ente civilizados e
conscientes de si mesmos. Na maioria das vezes, a m aior parte da hum anidade tem
certam ente se disposto a sacrificar isso a outras metas: segurança, status, prosperi­
dade, poder, virtude, recom pensas no outro m undo; ou justiça, igualdade, frater­
nidade e m uitos outros valores que parecem inteira ou parcialm ente incom patí­
veis com a obtenção do m aior grau de liberdade individual e que certam ente não
precisam disso com o um a precondição para sua própria realização. Não é um a
dem anda por Lebensraum para cada indivíduo que tem estim ulado as rebeliões e
guerras de libertação, pelas quais os hom ens se dispuseram a m orrer no passado
ou até no presente. Os hom ens que lutam pela liberdade têm com um ente lutado
pelo direito de serem governados p o r si m esm os ou por seus representantes —
severam ente governados, se necessário, com o os espartanos, com pouca liberdade
individual, mas de um a m aneira que lhes perm itia participar, ou pelo m enos acre­
ditar que estavam participando, na legislação e adm inistração de suas vidas coleti­
vas. E os hom ens que têm feito revoluções referem-se freqüentem ente à liberdade
apenas com o a conquista de poder e autoridade por determ inada seita, po r um a
classe ou p or algum outro grupo social, velho ou novo. Suas vitórias certam ente
frustravam aqueles a quem destituíam , e eles às vezes reprimiam, escravizavam ou
exterm inavam enorm es núm eros de seres hum anos. Ainda assim, em geral esses
revolucionários achavam necessário argum entar que, apesar disso, representavam
o partido da liberdade, ou da "verdadeira" liberdade, ao reivindicar universalidade
para seu ideal, algo que os “eus reais" até daqueles que lhes ofereciam resistência
tam bém estavam alegadam ente buscando, em bora tivessem supostam ente perdi­
do o rum o para atingir a m eta ou se enganado a respeito da própria m eta por causa

263
de um a cegueira m oral ou espiritual. Tudo Isso tem pouco a ver com a noção de
liberdade de Mill, lim itada apenas pelo perigo de causar danos a outros. É o não-
rcconhecim ento desse fato psicológico e político (à espreita por trás da aparente
ambigüidade do term o ''liberdade") que talvez tenha cegado alguns liberais con-
Iem porâneos para o m undo em que vivem. Seu pleito é claro, sua causa é justa. Mas
cies não adm item a variedade das necessidades hum anas básicas. N em ainda o
engenho com que os hom ens podem provar a seu próprio contento que o cam inho
para u m ideal tam bém leva ao seu oposto.

VII

Liberdade e soberania

A Revolução Francesa, com o todas as grandes revoluções, foi, pelo m enos na


sua form ajacobina, exatam ente um a dessas erupções do desejo de liberdade "posi­
tiva" de autodireção coletiva por parte de um grande grupo de franceses que se sen­
tiam libertos com o nação, m esm o que o resultado fosse, para m uitos deles, um a
severa restrição de liberdades individuais. Rousseau falara exultante do fato de que
as leis da liberdade poderiam se revelar mais austeras do que o jugo da tirania. A
tirania é serviço a senhores hum anos. A lei não pode ser um tirano. O significado
de liberdade não era para R ousseau a liberdade "negativa" de o indivíduo não
sofrer interferência dentro de um a área definida, mas o fato de a totalidade, e não
apenas um a parte, dos m em bros plenam ente qualificados de um a sociedade pos­
suir um a participação no poder público autorizado a interferir em qualquer aspec­
to da vida de cada cidadão. Os liberais da prim eira m etade do século xix previram
corretam ente que esse sentido "positivo" poderia destruir facilmente m uitas das
liberdades "negativas" que eles consideravam sagradas. Apontaram que a sobera­
nia do povo poderia destruir facilmente a dos indivíduos. Mill explicou, paciente e
inapelavelmente, que o governo pelo povo não era, no sentido que dera ao term o,
necessariamente liberdade. Pois aqueles que governam não são necessariam ente
as mesm as "pessoas" que aqueles que são governados, e o autogoverno dem ocrá­
tico não é o governo "de cada um po r si", mas, na m elhor das hipóteses, o "de cada
um por todo o resto V Mill e seus discípulos falavam da "tirania da maioria" e da
tirania da "opinião e sentim ento predom inantes"/2e não viam grandes diferenças

264
entre esse e qualquer oucro tipo de tirania que invade as atividades dos hom ens
além das sagradas fronteiras da vida privada.
Ninguém com preendeu m elhor o conflito entre os dois tipos de liberdade —
ou expressou-o com m aior clareza — do que Benjamin Constant. Ele apontou que
o fato de um aum ento bem -sucedido de autoridade ilimitada, com um ente cham a­
do soberania, transferir o poder de um grupo para outro não aum enta a liberdade,
m as apenas desloca a carga da escravidão. Perguntava com razão po r que um
ho m em deveria se im p o rtar profundam ente se era esm agado po r um governo
popular ou p or um monarca, ou até por um conjunto de leis opressivas. Via que o
principal problem a para aqueles que desejam a liberdade individual, "negativa”,
não é quem maneja essa autoridade, mas quanta autoridade deve ser colocada em
qualquer gru p o de poder. Pois a autoridade ilimitada nas m ãos de qualquer um
estava fadada, assim acreditava, mais cedo ou mais tarde, a destruir alguém. Sus­
tentava que em geral os hom ens protestavam contra esse ou aquele conjunto de
governantes por serem opressivos, quando a causa real da opressão residia na m era
acumulação do próprio poder, em qualquer ponto em que por acaso estivesse, pois
a liberdade era ameaçada pela simples existência da autoridade absoluta com o tal.
"Não é contra o braço que se deve v i t u p e r a r escreveu, "mas contra a arma. Algu­
m as cargas são dem asiado pesadas para a m ão h u m a n a . A dem ocracia pode
desarm ar um a dada oligarquia, um dado indivíduo ou conjunto de indivíduos pri­
vilegiado, mas ainda pode esm agar indivíduos tão im piedosam ente quanto qual­
quer governante anterior Um direito igual de oprim ir— ou interferir— não é equi­
valente a liberdade. N em o consentim ento universal para a perda da liberdade a
preserva de algum m odo miraculoso, apenas por ser universal ou por ser consenti­
m ento. Se consinto em ser oprimido, ou aceito m inha condição com distanciam en­
to ou ironia, sou m enos oprimido? Se me vendo com o escravo, sou m enos escravo?
Se me suicido, sou m enos m orto porque acabei com m inha vida deliberadamente?
"O governo popular é apenas um a tirania espasmódica; a m onarquia, um despotis­
m o mais centralizado.”54 C onstant via em Rousseau o inimigo mais perigoso da
liberdade individual, pois ele havia declarado que "Ao m e dar a todos, não m e dou a
ninguém '".” C onstant não com preendia por que razão, m esm o que o soberano
fosse “alguém ”, ele não oprimiria um dos "m em bros” de seu ser indivisível, se assim
o decidisse. Eu talvez prefira, é claro, ser privado de m inhas liberdades por um a
assembléia, um a família ou um a classe na qual sou m inoria. Isso talvez me dê a opor­
tunidade de um dia persuadir os outros a fazer para m im aquilo a que sinto ter direi­

265
to. Mas ser privado de m inha liberdade nas mãos de m inha família, meus amigos ou
concidadãos ainda é ser privado da liberdade com igual eficácia. H obbes foi ao
m enos mais sincero: ele não fingia que um soberano não escraviza; justificava essa
escravidão, mas pelo m enos não tinha a desfaçatez de chamá-la de liberdade.
Ao longo de todo o século xix, os pensadores liberais sustentaram que, se a
liberdade implicava um limite aos poderes de qualquer hom em para me forçar a
fazer o que eu não queria nem poderia querer fazer, então, qualquer que fosse o
ideal em nom e do qual fui coagido, eu não era livre; que a doutrina da soberania
absoluta era um a doutrina tirânica em si mesma. Se desejo preservar m inha liber­
dade, não basta dizer que ela não deve ser violada, a não ser que um a ou outra pes­
soa — o governante absoluto, a assembléia popular, o rei no parlam ento, os juizes,
algum a com binação de autoridades ou as próprias leis (pois as leis podem ser
opressivas) — autorize sua violação. Devo estabelecer um a sociedade na qual haja
certas fronteiras de liberdade que a ninguém fosse perm itido cruzar. Pode-se dar
nom es ou naturezas diferentes às regras que determ inam essas fronteiras: podem
ser chamadas de direitos naturais, palavra de Deus, direito natural ou exigências da
utilidade ou dos “interesses perm anentes do hom em "; posso acreditar que sejam
válidas a priori, ou afirm ar que são m eus fins suprem os ou os fins de m inha socie­
dade ou cultura. O que tais regras ou m andam entos têm em com um é que são
accitos tão am plam ente e estão estabelecidos tão profundam ente na natureza real
desenvolvida pelos hom ens ao longo da história, que já são a esta altura um a parte
essencial do que pretendem os dizer quando nos referim os a ser um hom em n o r­
mal. A crença genuína na inviolabilidade de um m ínim o de liberdade individual
gera algum as dessas posições absolutas. Pois está claro que não pode esperar
m uito do governo das m aiorias; a dem ocracia com o tal não está logicam ente
com prom etida com esse m ínim o de liberdade e historicam ente às vezes falhou
em protegê-lo, ainda que perm anecendo fiel a seus próprios princípios. Poucos
governos, tem -se observado, encontraram grandes dificuldades em fazer com
que seus súditos desenvolvessem qualquer vontade desejada pelo governo. O
triunfo do despotism o é forçar os escravos a se declarar livres. Talvez não seja
necessária a força; os escravos podem proclam ar sua liberdade com total sinceri­
dade; mas não deixam de ser escravos. Talvez o principal valor dos direitos políti­
cos — “positivos” — de participar do governo seja, para os liberais, o de ser um
meio de proteger aquilo que eles consideram um valor suprem o, a saber, a liber­
dade individual — "negativa".

266
Mas se as dem ocracias, sem deixar de ser dem ocráticas, podem suprim ir a
liberdade, pelo m enos com o os liberais têm em pregado a palavra, o que tom aria
verdadeiram ente livre um a sociedade? Para C onstant, Mill, Tocqueville e a tradi­
ção liberal a que pertencem , nenhum a sociedade é livre se não for governada pelo
m enos por dois princípios inter-relacionados: prim eiro, que nenhum poder pode
ser considerado absoluto, apenas os direitos o podem , de m odo que todos os
hom ens, qualquer que seja o poder que os governa, têm o direito absoluto de se
recusarem a ter um com portam ento desum ano; e, segundo, que há fronteiras, tra ­
çadas de m odo não artificial, dentro das quais os hom ens devem ser invioláveis,
sendo essas fronteiras definidas em função de regras aceitas há tanto tem po e de
form a tão difundida que seu cum prim ento já passou a fazer parte da própria con­
cepção do que é um ser hum ano norm al e, portanto, tam bém do que é agir desu­
m ana ou insanam ente; regras das quais seria absurdo dizer, p o r exem plo, que
poderiam ser revogadas po r algum procedim ento formal da parte de um tribunal
ou órgão soberano. Q uando falo de um hom em com o sendo norm al, o que em
parte quero dizer é que ele não poderia quebrar essas regras facilmente, sem um a
vertigem de repulsa. São regras com o essas que são quebradas quando um hom em
é declarado culpado sem julgam ento, ou punido por um a lei retroativa; quando
crianças recebem ordens de denunciar os pais, os amigos de trair uns aos outros, os
soldados de usar m étodos bárbaros; quando hom ens são torturados ou assassina­
dos, ou então m inorias são massacradas porque irritam um a m aioria ou um tira­
no. Esses atos, m esm o que legalizados pelo soberano, causam h orror até nos dias
de hoje, e isso provém do reconhecim ento da validade m oral — independente­
m ente das leis — de algum as barreiras absolutas à im posição da vontade de um
ho m em sobre outro. A liberdade de um a sociedade, um a classe ou u m gru p o ,
nesse sentido de liberdade, é medida pela força dessas barreiras e pelo núm ero e
pela im portância dos cam inhos que elas m antêm abertos para seus m em bros — se
não para todos, pelo m enos para um a grande parcela deles.5*
Isso está quase no pólo oposto dos objetivos daqueles que acreditam em liber­
dade no sentido "positivo"— de autogoverno. Os prim eiros querem refrear a auto­
ridade com o tal. Os últim os a querem colocada em suas próprias mãos. Essa é um a
questão cardinal. Não são duas interpretações diferentes de um único conceito,
mas duas atitudes profundam ente divergentes e irreconciliáveis para com os fins
da vida. Vale reconhecer essa divergência, m esm o que na prática seja freqüente­
m ente necessário chegar a um a solução de com prom isso entre as duas. Pois cada

267
um a faz reivindicações absolutas. Essas reivindicações não podem ser todas plena­
m ente satisfeitas. Mas é um a profunda falia de com preensão social e m oral não
reconhecer que a satisfação que cada um a busca é u m valor suprem o que, tanto his­
tórica com o m oralm ente, tem igual direito de ser classificado entre os interesses
mais profundos da hum anidade.

VIII

0 Um e o Múltiplo

Um a crença, mais do que qualquer outra, é responsável pela m atança de indi­


víduos nos altares dos grandes ideais históricos — justiça, progresso, a felicidade
das futuras gerações, a missão ou emancipação sagrada de um a nação, raça ou clas­
se, ou até a própria liberdade, que exige o sacrifício dos indivíduos para a liberdade
da sociedade. Tal crença é a de que em algum lugar, no passado ou no futuro, na
revelação divina ou na m ente de um pensador individual, nas declarações da histó­
ria ou da ciência, ou no coração simples de um hom em bom não corrom pido, exis­
te um a solução final. Essa antiga fé baseia-se na convicção de que todos os valores
positivos em que os hom ens têm acreditado devem ser afinal compatíveis, e talvez
até ocasionar uns aos outros. "A natureza une a verdade, a felicidade e a virtude por
um a cadeia indissolúvel”, disse um dos melhores hom ens que já viveu e que falou
cm term os sem elhantes de liberdade, igualdade e justiça.57
Mas isso é verdade? É lugar-com um que nem a igualdade política, nem a orga­
nização eficiente, nem a justiça social são compatíveis com mais do que um pouco
de liberdade individual, e certam ente não são com patíveis com um laissez-faire
irrestrito; que a justiça e a generosidade, as lealdades públicas e privadas, as dem an­
das do gênio e as reivindicações da sociedade podem entrar em violento conflito
m útuo. E não é grande a distância disso para a generalização de que nem todas as
coisas boas são compatíveis, m uito m enos todos os ideais da hum anidade. Mas em
algum lugar — é o que nos dirão — e de algum m odo deve ser possível que todos
esses valores coexistam, pois, se assim não for, o universo não é um cosmos, nem
lima harm onia; se assim não for, os conflitos de valor podem ser um elem ento
Intrínseco e inamovível na vida hum ana. Adm itir que a realização de alguns de nos-
s<>s ideais é capaz, em princípio, de impossibilitar a realização de outros é dizer que

268
a noção de realização hum ana total é um a contradição formal, um a quim era m eta­
física. Para todo metafísico racionalista, de Platão aos últim os discípulos de Hegel
e Marx, esse abandono da noção de um a harm onia final em que todos os enigm as
são resolvidos, todas as contradições conciliadas, é um em pirism o tosco, um a abdi­
cação diante dos fatos brutos, um a intolerável bancarrota da razão perante as coi­
sas com o elas são, um fracasso em explicar e justificar, em reduzir tudo a um siste­
ma, o que a "razão" indignadam ente rejeita.
Mas, se não tem os um a garantia apriori da proposição de que um a harm onia
total dos valores verdadeiros deve ser encontrada em algum lugar — talvez em
algum reino ideal cujas características não podem os, em nosso estado finito, nem
sequer conceber — , devemos voltar aos recursos com uns da observação empírica e
do conhecim ento hum ano com um . E esses não nos dão nenhum a justificativa para
supor (ou até com preender o que significaria dizer) que todas as coisas boas ou, no
caso, todas as coisas ruins são conciliáveis umas com as outras. O m undo que encon­
tram os na experiência com um é um m undo em que som os confrontados com esco­
lhas entre fins igualm ente suprem os e reivindicações igualm ente absolutas, e a rea­
lização de algumas dessas escolhas e reivindicações deve envolver inevitavelmente
o sacrifício de outras. Na verdade, é por causa dessa situação que os hom ens atri­
buem valor tão imenso à liberdade de escolha; pois, se tivessem certeza de que em
algum estado perfeito, alcançável pelos hom ens na Terra, nenhum dos fins por eles
buscados jam ais entraria em conflito, a necessidade e a agonia da escolha desapare­
ceriam, e com elas a im portância central da liberdade de escolha. Q ualquer m éto­
do para tornar esse estado final mais próxim o pareceria então plenam ente justifica­
do, não im porta quanta liberdade fosse sacrificada para estim ular seu avanço.
Uma certeza dogm ática desse tipo, não tenho dúvida, é que tem sido respon­
sável pela convicção profunda, serena e inabalável, nas m entes de alguns dos mais
im piedosos tiranos e perseguidores na história, de que os atos que praticaram
eram plenam ente justificados pelo seu propósito. N ão afirm o que o ideal de per­
feição própria — seja para indivíduos, nações, Igrejas ou classes — deva ser conde-
nado em si m esm o, nem que a linguagem usada em sua defesa tenha sido em todos
os casos o resultado de um em prego confuso e fraudulento de palavras, ou a con­
seqüência de um a perversidade m oral ou intelectual. Na verdade, tenho tentado
m ostrar que é a noção de liberdade no seu sentido "positivo” que se encontra no
centro das dem andas por um autogoverno nacional ou social que anim am os movi­
m entos públicos mais poderosos e m oralm ente justos de nosso tem po, e que não

269
reconhecer tal coisa é com preender erroneam ente os fatos e as idéias mais vitais de
nossa era. Mas parece-m e igualm ente que a crença de que é em princípio possível
encontrar alguma fórm ula única, pela qual todos os diversos fins hum anos possam
ser harm oniosam ente realizados, é dem onstravelm ente falsa. Se, com o acredito,
todos os fins hum anos são m uitos, e nem todos são em princípio compatíveis uns
com os outros, então a possibilidade de conflito — e de tragédia — jam ais pode ser
inteiram ente eliminada da vida hum ana, pessoal ou social. A necessidade de esco­
lher entre reivindicações absolutas é portanto um a característica inevitável da con­
dição hum ana. Isso confere o seu valor à liberdade com o Acton a concebia— com o
um fim em si mesmo, e não com o um a necessidade tem porária, nascida de nossas
noções confusas e de nossas vidas irracionais e desordenadas, um predicam ento
que um a panacéia poderia um dia endireitar.
Não desejo afirm ar que a liberdade individual seja, até nas sociedades mais
liberais, o único critério ou m esm o o critério dom inante da ação social. C om pe­
limos as crianças a serem educadas e proibimos as execuções públicas. São certa­
m ente freios à liberdade. Nós os justificam os alegando que a ignorância, um a edu­
cação bárbara ou prazeres e em oções cruéis são piores para nós do que a restrição
necessária para reprimi-los. Esse julgam ento depende, por sua vez, de com o deter­
m inamos o bem e o mal, isto é, de nossos valores m orais, religiosos, intelectuais,
econôm icos e estéticos; que estão, po r sua vez, ligados à nossa concepção do
hom em e das dem andas básicas de sua natureza. Em outras palavras, a nossa solu­
ção para esses problem as baseia-se em nossa visão, pela qual somos consciente ou
inconscientemente guiados, do que constitui um a vida hum ana realizada, em con­
traste com as naturezas “acanhadas e tolhidas", "m esquinhas e tacanhas" de Mill.
Protestar contra as leis que regem a censura ou a m oral individual, por serem vio­
lações intoleráveis da liberdade pessoal, pressupõe a crença de que as atividades
que essas leis proíbem são necessidades fundam entais dos hom ens com o hom ens,
numa sociedade boa (ou, na verdade, em qualquer sociedade). Defender essas leis
6 considerar que tais necessidades não são essenciais ou que não podem ser satis­
feitas sem sacrificar outros valores mais elevados — que satisfazem necessidades
mais profundas — do que a liberdade individual, determ inados por algum padrão
que não é m eram ente subjetivo, um padrão para o qual um status objetivo— em pí­
rico ou a priori — é reivindicado. /
A extensão da liberdade de um hom em ou d^ um povo para escolher a vida
desejada por ele ou pelo grupo deve ser pesada contra as reivindicações de m uitos

270
outros valores, dos quais a Igualdade, ajustiça, a felicidade, a segurança ou a ordem
pública são talvez os exemplos mais óbvios. Por essa razão, não pode ser ilimitada.
R. H. Tawney nos lem bra com razão que a liberdade dos fortes, seja sua força físi­
ca ou econômica, deve ser restringida. Essa máxima exige respeito, não com o con­
seqüência de alguma regra apriorística, pela qual o respeito pela liberdade de um
hom em acarreca logicam ente respeito pela liberdade dos outros; mas sim plesm en­
te porque o respeito pelos princípios de justiça, ou o opróbrio pela desigualdade
grosseira de tratam ento, é tão básico nos hom ens quanto o desejo de liberdade.
Que não podem os ter tudo não é um a verdade contingente, mas necessária. O ape­
lo de Burke pela necessidade constante de compensar, conciliar, equilibrar; o apelo
de Mill p o r novos "experim entos de vida" com sua perm anente possibilidade de
erro — o conhecim ento de que não é apenas na prática, mas em princípio im pos­
sível obter respostas bem definidas e certas, m esm o num m undo ideal de hom ens
inteiram ente bons e racionais e idéias inteiram ente claras — pode enlouquecer
aqueles que buscam soluções finais e sistemas únicos e abrangentes, de eternidade
garantida. Ainda assim, é um a conclusão a que não podem fugir aqueles que, com
Kant, aprenderam a verdade de que "Da m adeira torta da hum anidade, nada direi­
to jam ais foi feito".”
Praticam ente não é necessário enfatizar o fato de que o m onism o e a crença
num único critério sem pre se revelaram um a im portante fonte de satisfação tanto
para o intelecto quanto para as emoções. Q uer o padrão de julgam ento provenha
da visão de um a perfeição futura, com o nas m entes dosphilosophes no século xvm
e de seus sucessores tecnocráticos em nossos dias, quer esteja arraigado no passa­
do — la terre et les morts — , com o sustentam os historicistas alemães ou os teocra-
tas franceses, ou ainda os neoconservadores nos países de língua inglesa, ele está
fadado, desde que bem flexível, a en contrar algum desenvolvim ento h u m an o
imprevisto e imprevisível, ao qual não se ajustará; e será então usado para justificar
as barbaridades apriori de P rocrusto— a vivissecção das sociedades hum anas reais
em algum padrão fixo ditado pela nossa com preensão falível de um passado em
grande parte im aginário ou de um futuro inteiram en te imaginário. Preservar nos­
sas categorias ou nossos ideais absolutos às custas de vidas hum anas ofende igual­
m ente os princípios da ciência e da história; é um a atitude encontrada em igual
medida nas facções de direita e esquerda em nossos dias, não sendo conciliável com
os princípios aceitos por aqueles que respeitam os fatos.

271
O pluralism o, com a dose de liberdade “negativa" que acarreta, parece-m e
um ideal mais verdadeiro e mais hum ano do que as m etas daqueles que buscam nas
grandes estruturas disciplinadas e autoritárias o ideal do au to d o m ín io 4positivo"
por parte de classes, povos ou de toda a hum anidade. E mais verdadeiro, pois pelo
m enos reconhece o fato de que as m etas hum anas são muitas, nem todas com en­
suráveis, e em perpétua rivalidade umas com as outras. Supor que todos os valores
possam ser graduados num a única escala parece-me falsificar nosso conhecim ento
de que os hom ens são agentes livres, representar a decisão moral com o um a opera­
ção que um a régua de cálculo poderia, em princípio, executar. Dizer que em algu­
ma síntese suprema — que a tudo concilia, mas que ainda assim pode ser realizada
— o dever é interesse, ou a liberdade individual é pura democracia ou um Estado
autoritário, equivale a lançar um cobertor metafísico sobre o auto-engano ou a
hipocrisia deliberada. É mais hum ano porque não priva os hom ens (como o fazem
os construtores de sistema), em nom e de algum ideal rem oto ou incoerente, de
m uito que eles têm considerado indispensável para sua vida com o seres hum anos
que imprevisivelmente se transform am a si m esm os.” N o final, os hom ens esco­
lhem entre valores supremos; e assim o fazem porque sua vida e seu pensam ento
são determ inados po r categorias e conceitos m orais fundam entais que são, pelo
m enos ao longo de grandes extensões de tem po e espaço, um a parte de seu ser, pen­
sam ento e senso de identidade— um a parte do que os torna hum anos.
Talvez o ideal da liberdade de escolher os fins sem reivindicar validade eterna
para eles e para o pluralism o de valores ligado a essa idéia seja apenas o fruto tar­
dio de nossa civilização capitalista em declínio: um ideal que as eras rem otas e as
sociedades primitivas não reconheceram e que a posteridade vai considerar com
curiosidade, até simpatia, mas pouca com preensão. Talvez seja assim, mas não me
parece implicar conclusões céticas. Os princípios não são m enos sagrados porque
sua duração não pode ser garantida. Na verdade, o próprio desejo de um a garantia
de que nossos valores sejam eternos e seguros em algum céu objetivo é talvez ape­
nas um desejo intenso das certezas da infância ou dos valores absolutos de nosso
passado primitivo. "Perceber a validade relativa de nossas convicções", disse um
escritor admirável de nosso tem po, “e ainda assim defendê-las com firm eza é o que
distingue um hom em civilizado de um bárbaro."60Pedir mais do que isso talvez seja
um a necessidade metafísica profunda e incurável; mas perm itir que ela determ ine
nossa prática é um sintom a de uma im aturidade política e m oral igualm ente p ro ­
funda e mais perigosa.

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