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RESENHA
ensaio sobre a sociedade neoliberal contradições internas e acatam a crença pro-
gressista segundo a qual todo passo dado pelo
capitalismo é um avanço em direção ao mo-
mento de sua autossuperação. A nova razão do
Felipe Queiroz* mundo se apresenta como continuidade dessa
investigação, apontando como e porque “ainda
não terminamos com o neoliberalismo”, quan-
do muitos autores, no ápice da crise financeira
internacional, como Joseph Stiglitz, anuncia-
Publicado originalmente na França em vam seu fim.
2009, logo após a eclosão da crise financeira O livro está dividido basicamente em
global, A nova razão do mundo: ensaio sobre duas grandes partes: A refundação intelectual
a sociedade neoliberal (Dardot; Laval, 2016) e A nova racionalidade. A primeira parte é, em
apresenta uma profunda análise do neolibe- certo sentido, uma tentativa de retomar o de-
ralismo, mostrando como ele constitui, muito bate aberto por Michel Foucault nos cursos do
além de uma doutrina econômica ou ideolo- Collège de France de 1977-1978 e 1978-1979,
gia, uma nova racionalidade de mundo, que expostos respectivamente nos livros Seguran-
estrutura e organiza tanto as ações dos gover- ça, Território, População e O nascimento da
nantes como a própria conduta dos governa- biopolítica, apontando como se forma o neo-
dos. A obra faz uma genealogia do neolibera- liberalismo, como nova racionalidade do ca-
lismo para mostrar, por um lado, que ele não pitalismo contemporâneo. O ponto de partida
é uma simples continuidade do liberalismo da investigação dos autores é a crise do libera-
clássico do século XVIII, do mesmo modo que lismo, ou crise da governamentalidade liberal,
não é seu extravio nem sua negação, e, por nos termos de Michel Foucault, que dura entre
outro lado, para problematizá-lo a partir de 1880 e 1930. O objetivo é mostrar que o neoli-
suas vertentes e disputas internas, mostrando beralismo não é uma simples continuidade das
como ele passou de uma doutrina econômi- ideias liberais, mas, antes, marca um rompi-
ca para um “sistema normativo que ampliou mento com a versão dogmática do liberalismo,
sua influência ao mundo inteiro, estendendo que via no laissez-faire uma verdade inaliená-
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-49792018000100012
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O objetivo dessa parte não é fazer uma A problemática central de A nova razão
interpretação original do neoliberalismo, do mundo é como a racionalidade neoliberal,
mas apontar as contribuições do pensamen- baseada na concorrência integral em todos os
to dos principais teóricos neoliberais, espe- âmbitos, adquire uma dimensão totalizadora,
cialmente os presentes no Colóquio de Wal- da qual nada escapa, abarcando desde o Esta-
ter Lippmann, para a instauração de uma do até todas as esferas da existência humana.
nova racionalidade a partir da implantação A construção dessa nova racionalidade, ou
dos governos neoliberais da década de 1970, razão-mundo, nos termos dos autores, segue
especialmente o de Margareth Thatcher, na basicamente estes passos: “Da construção do
Inglaterra, e o de Ronald Reagan, nos Esta- mercado à concorrência como norma dessa
dos Unidos. Essa releitura do neoliberalis- construção, da concorrência como norma da
mo a partir das lentes foucaultianas é, por atividade dos agentes econômicos à concor-
um lado, a contribuição de Dardot e Laval rência como norma da construção do Estado e
ao debate teórico do neoliberalismo, e, por de sua ação e, por fim, da concorrência como
outro, elemento que une as duas partes de norma do Estado-empresa à concorrência
A nova razão do mundo. Os próprios auto- como norma da conduta do sujeito-empresa”
res reconhecem que a “racionalidade neoli- (Idem, p. 379).
beral que realmente se desenvolve nos anos Não há como compreender a razão neo-
1980-1990 não é a simples implementação liberal sem analisar primeiramente as mudan-
da doutrina elaborada nos anos 1930”, numa ças ocorridas na própria concepção de Estado,
espécie de passagem de “teoria para a práti- entre as décadas de 1960 e 1980. O discurso
ca”. Antes, é o resultado de uma “multipli- contra o intervencionismo estatal ganhou o
cidade de processos heterogêneos” que re- centro do debate especialmente após a década
sultam nisso que os autores denominam de de 1970, quando se iniciam os governos neoli-
“nova racionalidade governamental” (Dar- berais de Donald Reagan, nos Estados Unidos,
dot; Laval, 2016, p. 33-34). e Margareth Thatcher, na Inglaterra. Apesar de
A segunda parte do livro A nova racio- haver um forte e contínuo discurso contra o
nalidade analisará o neoliberalismo como ra- Estado, na realidade, o neoliberalismo nunca
zão do capitalismo contemporâneo. Na análise vislumbrou o seu fim, mas sua transformação
dos autores, a construção dessa nova raciona- (Idem, p. 272-274).
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condução do mundo. No âmbito político, a pa- ção” do Estado. Os governos de Blair, Zapatero,
lavra governança, passou a substituir a palavra Schröder e Hollande dão demonstração clara
soberania. Essa mudança é importante de ser de que a “terceira via”, nada mais é do que a
notada, pois resultará não apenas em mudan- “via neoliberal”.
ças não apenas na relação interna do Estado, Essas mudanças na dimensão do Estado
isto é, dentro de seu território e com sua popu- terão como consequência a perda do próprio
lação, mas na esfera internacional, geopolítica significado dos serviços públicos, influencian-
e geoeconômica. do, consequentemente, a própria ideia de su-
Na fase do capitalismo neoliberal, os jeito político. Em última instância, o que está
Estados passam a ser guiados pela lógica em- em jogo é a própria dimensão do que é política,
presarial da concorrência. Desse modo, a con- uma vez que a esfera do coletivo e do bem co-
corrência entra em outro patamar: os países mum é preterida em favor do consumo egoísta
passam a concorrer globalmente pelos capitais imediato.
estrangeiros, e os grandes oligopólios interna- Não é apenas o Estado que se adequa a
cionais exercem grande influência nessa dis- essa nova racionalidade neoliberal, mas toda
puta. A concorrência entre os países na atração a sociedade passa a ser concebida como um
de investimentos externos faz com que legisla- “mercado”, no qual cada sujeito é uma “empre-
ções sejam revistas, acordo entre sindicatos e sa” que está em contínua concorrência. Essa
empresas revogados. Nesse sentido, duas mu- nova racionalidade passa a ser a mediadora de
danças devem ser notadas: a primeira diz res- todas as relações sociais: “o homem neolibe-
peito à relativização do papel do Estado como ral é o homem competitivo, inteiramente imer-
entidade integradora de todas as dimensões da so na competição mundial” (Idem, p. 322). A
vida coletiva. A segunda mudança deriva da competição introjeta-se até na esfera da subje-
primeira: todas as dimensões do Estado pas- tividade dos indivíduos. A vida passa a ser vis-
sam a ser geridas pela ótica da concorrência. ta como uma empresa – um capital a ser con-
Ou seja, o Estado passa a ser mais uma entida- tinuamente valorizado –, na qual o indivíduo
de que busca maximizar seus resultados, como é empreendedor de si mesmo. É interessante
uma empresa. notar como, para analisar o sujeito neoliberal
Nessa perspectiva, o Estado não é con- ou neossujeito, os autores articulam os concei-
siderado uma entidade “exógena” à ordem do tos foucaultianos de governamentalidade, es-
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demais sujeitos empreendedores, são facetas locar em xeque o poder da razão neoliberal”
dessa nova razão-mundo. Em contrapartida, (Idem, p. 290-291), apenas nas últimas páginas
essa mesma razão-mundo exige que o sujeito do livro são apresentados alguns pontos que
neoliberal se supere continuamente, seja fle- podem indicar a construção de “outra razão
xível para acompanhar as mudanças impostas de mundo”, que surgirá a partir da construção
pelo mercado, se adapte às contínuas varia- da razão do comum, em contraposição à razão
ções da demanda do mercado e assuma sem- neoliberal. Na realidade, não fica claro como
pre os riscos. A naturalização da lógica dos pode se dar a construção dessa nova razão do
realities shows (com a eliminação dos mais comum a partir dessas (não especificadas) “for-
fracos e inaptos) e a “uberização” das relações mas inéditas de subjetivação”, uma vez que,
de trabalho, com a “flexibilização” dos “cola- ao longo do livro, especialmente na segunda
boradores”, são exemplos seminais dessa nova parte, a argumentação é de que a racionalidade
razão-mundo. neoliberal é global e totalizadora, não possibi-
Contudo, a impossibilidade de governar litando a construção de tipo algum de subjeti-
um “mundo que se tornou ingovernável, em vidade para além dela.
virtude de seu próprio caráter global”, e a infi- Nesse sentido, entendemos ser pos-
nita responsabilização dos indivíduos por seu sível fazer ao menos duas possíveis leituras
próprio destino, sempre atendendo ao impera- das conclusões de Dardot e Laval. A primei-
tivo (inalcançável) de ser “bem-sucedido e fe- ra, mais pessimista, compreende a nova razão
liz”, produzem uma sociedade esquizofrênica neoliberal como uma situação aporética, que
e doentia (Dardot; Laval, 2016, p. 344). os indivíduos não conseguem romper, nem
Dardot e Laval iniciam A nova razão do construir novas formas de subjetivação. Essa
mundo discutindo que a crise financeira glo- leitura pode conduzir, em última instância, a
bal não anunciava o fim do neoliberalismo, e uma (não) saída niilista, na qual, após terem
terminam apontando que o neoliberalismo se sido sufocadas todas as tentativas de constru-
tornou hoje a racionalidade dominante, e, por ção de subjetividades alternativas, os indiví-
esse motivo, não será a crise que anunciará duos resignam-se diante da inescapável situa-
seu fim, uma vez que essa racionalidade “to- ção dessa razão-mundo, por um lado. Ou, por
mou corpo num conjunto de dispositivos dis- outro lado, empreendem uma luta quixotesca e
cursivos, institucionais, políticos, jurídicos e incansável contra essa racionalidade, recusan-
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econômicos que formam uma rede complexa do-se – por não conseguir se adaptar ou por es-
e movediça, sujeita a retomadas e ajustes em colha – a aceitar essa “jaula de aço” neoliberal.
função do surgimento de efeitos não desejados, Esse é o dilema que o diretor Ken Loach retrata
às vezes contraditórios com o que se buscava no filme Eu, Daniel Blake.
inicialmente” (Idem, p. 384). A nova razão do A segunda leitura, essa defendida pelos
mundo é uma tentativa bem sucedida de mos- autores, retomará alguns conceitos desenvolvi-
trar que essa razão neoliberal não se restringe dos por Foucault em Hermenêutica do sujeito e
apenas à esfera econômica, mas atravessa e en- História da sexualidade, para argumentar que
volve todas as dimensões da vida humana. “o sujeito está sempre por construir”, e que a
O diagnóstico dos autores conduz, ine- aparente aporia do neoliberalismo traz consi-
vitavelmente, a um pessimismo frankfurtiano, go a construção de novas subjetividades, não
no qual não há uma saída viável no horizonte. baseadas no cálculo individual e egoísta, mas
Apesar de os autores afirmarem que A nova voltadas para a construção do comum. Desse
razão do mundo “não cede lugar a nenhum modo, a análise de A nova razão do mundo
fatalismo”, antes procura “explorar formas deve ser feita dentro de uma construção teó-
inéditas de subjetivação que possibilitem co- rica de Dardot e Laval. Ou seja, as alternativas
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