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UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO - UPE

Pedro Henrique de Barros Falcão


Reitor da Universidade de Pernambuco

Maria do Socorro de Mendonça Cavalcanti


Vice-reitora da Universidade de Pernambuco

Direção Multicampi Garanhuns


Rosângela Estevão Alves Falcão
Adauto Trigueiro de Almeida Filho

Coordenação Pedagógica - Campus Arcoverde


Jaziel Lourenço da Silva Filho

Coordenação Administrativa - Campus Arcoverde


Hericson Bezerra Gueiro

Coordenação – Bacharelado em Direito Campus Arcoverde


Homero Bezerra Ribeiro
Vice-coordenação – Bacharelado em Direito Campus Arcoverde
Hugo de Barros Chianca

Comissão Organizadora
Prof.º Msc. Fernando Cardoso
Prof.ª Dra. Clarissa Marques
Prof.ª Dra. Isabele D'Angelo
Prof.ª Dra. Rita de Cássia Tabosa
Prof.ª Msc. Andréa Motta
Prof. Dr. Pablo Falcão
Prof. Dr. Venceslau Tavares
Anne Gabriele Alves Guimarães
Antônio Lopes de Almeida Neto
Caio Emanuel Brasil Fortunato
Dallete Janyele de Lima Oliveira
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Joan Kleber Amorim da Silva
Joane Roberta da Costa Flores
João Marcos Tenorio de Britto Cavalcante
João Victor da Silva Pereira
Juliana de Barros Ferreira
Maria Vitória Lima de Melo
Maria Luiza Rodrigues Dantas
Maria Rita Barbosa Piancó Pavão
Martha Karolyne Silva Sousa Paulino
Paula Tenório Britto Galindo
Rodrigo Lima de Freire Mariz
Comissão Científica
Prof.ª Msc. Andréa Motta (UPE)
Profº. Msc. Caio Sousa (UL)
Prof.ª Dra. Clarissa Marques (UPE)
Prof.ª Dra. Denise Luz (UPE)
Profª. Msc. Elba Ravane (ASCES-UNITA)
Profª. Msc. Emmanuele Bandeira (FIR)
Profº. Msc. Felipe Villa Nova (UPE/ASCES-UNITA)
Prof.º Msc. Fernando Cardoso (UPE)
Profº. Msc. Homero Ribeiro (UPE/UFPE)
Prof.ª Dra. Isabele D'Angelo (UPE)
Profº. Dr. Issac Reis (UNB)
Profº. Msc. José Antônio Albuquerque (FACHUSC)
Profº. Dr. Miguel Ângelo (UPE/UNILEÃO)
Prof. Dr. Pablo Falcão (UPE)
Profª. Msc. Paloma Almeida (UFPE)
Profª. Msc. Pollyanna Queiroz (UFPE)
Prof.ª Dra. Rita de Cássia Tabosa (UPE)
Profº. Dr Silvano Flumignan (UPE)
Profª. Dra. Suely Emília de Barros (UPE)
Profª. Dra. Tárcia Regina (UPE)
Prof. Dr. Venceslau Tavares (UPE/UFPE)
Profª. Msc. Vera Cabral (UNIFAVIP)

ARCOVERDE
2019
CARDOSO, Fernando da Silva; et al.
Anais do III Congresso Pernambucano de Ciências Jurídicas
– Universidade de Pernambuco - Campus Arcoverde. –
Arcoverde: O Autor, 2019.

1.106 fls. Vol. III, 2019 – ISSN - 2526-5938 (CD-Rom)


Agência Brasileira de ISSN.

1. Direitos humanos. 2. Interdisciplinaridade. 3.


Contemporaneidade. 4. Sociedade. 5. Estado. 6. Direitos
Fundamentais.
SUMÁRIO

GT 1 - MEIO AMBIENTE, SOCIEDADE E DIVERSIDADE

DIREITO AMBIENTAL E PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA ANCESTRAL: uma


análise da tutela jurídica às comunidades remanescentes de quilombos em Pernambuco
Joan Kleber Amorim da Silva e Maria Luiza Rodrigues Dantas.............................................12

VAQUEJADA: pela preservação de uma cultura sem maus tratos aos animais
Marcus Vinícius Cardoso de Arruda, Flávia Renata Feitosa Carneiro e Laura Stéphanie
Ferreira de Melo.....................................................................................................................27

A AFROCENTRICIDADE E ENSINO RELIGIOSO: uma análise a partir da Lei n.


10.639/2003
Maria Isabel Queiroz dos Santos............................................................................................39

TRANSPOSIÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO COMO MEGAEMPREENDIMENTO:


relações entre indústria da seca, desenvolvimento e novas territorialidades
Anne Gabriele Alves Guimarães, Maria Luiza Rodrigues Dantas e Clarissa
Marques..................................................................................................................................50

A EXPERIÊNCIA DO PROJETO DIREITOS EM MOVIMENTO NA COMUNIDADE


QUILOMBOLA MUNDO NOVO
Maria Roberta da Silva, Isaene de Arruda Santos e Clarissa Marques...................................65

AS FALHAS DE MERCADO E OS DANOS AMBIENTAIS NO SETOR DE


PETRÓLEO: uma questão de conveniência
Marília Gabriela de Araújo Melo Pereira de Lira e Marcos Antônio Rios da
Nóbrega..................................................................................................................................79

GT 02 - ASPECTOS FILOSÓFICOS, SOCIO-ANTROPOLÓGICOS, HISTÓRICOS E


HERMENÊUTICOS DO DIREITO

A MODERNIZAÇÃO DA MENTIRA NA POLITICA: reflexão do fenômeno das fake


news através de conceitos arendtianos
João Victor Silva Pereira e Rita de Cássia Souza Tabosa Freitas...........................................94

CONCEITO DE LABOR E TRABALHO: Perspectiva Arendtiana na


Contemporaneidade
Renan de Oliveira Sousa e Antônio Justino de Arruda Neto..................................................107

LINGAGUEM JURÍDICA: Juridiquês como barreira à compreensão e acesso à justiça


Isabelle Christine Soares Torres...........................................................................................126
GT 3 – DIREITO, TRABALHO E SAÚDE

O PERFIL DA ESCRAVIDÃO CONTEMPORÂNEA VIVENCIADA NO POLO


TÊXTIL DO AGRESTE DE PERNAMBUCO
Sarah Caroline de Andrade Firmino e Aline Sousa Santos...................................................146

TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO: as formas de opressão e a violência de


gênero no mercado de trabalho
Bruna Ribeiro do Nascimento, Julia Beatriz de Moura Chaves e Marcelo Araújo
Correia..................................................................................................................................157

LIMITAÇÕES POSTAS AO DIREITO DE GREVE NO BRASIL NOS ÚLTIMOS


ANOS
Manoel Paulino da Silva Neto e Ronald Dias Falabella Neto...............................................175

REFORMA TRABALHISTA E A DIGNIDADE HUMANA: prevalência do negociado


sobre o legislado em face da Lei n° 13.467/2017
Jacson Emanuel Silva Santos e Marcos Alves de Vasconcelos..............................................188

A REFORMA TRABALHISTA E A SITUAÇÃO DA MULHER


GESTANTE/LACTANTE: Uma análise dos impactos da Lei nº 13.467/17 e a
potencialidade lesiva à saúde da mulher e do feto em ambiente laboral insalubre
Sandy Emily Leite da Silva....................................................................................................199

IMPACTOS DA REFORMA TRABALHISTA E A SITUAÇÃO DA


TRABALHADORA GESTANTE NESSE CONTEXTO
Marcos Henrique Carneiro Fonseca e Larissa Fernanda Vasconcelos Coutinho................220

A ECONOMIA DE COMPARTILHAMENTO E A PRECARIZAÇÃO DO


TRABALHO: o caso da Uber
Marxwell José Albuquerque Alves da Silva...........................................................................234

ANTAGONISMO SOCIAL DO PRINCÍPIO DA NÃO-DISCRIMINAÇÃO: luta pela


igualdade X inversão do preconceito
Maria Júlia Cabral de Vasconcelos Arruda e Marina Piotrowski Oliveira Dias..................252

O CRIME DE TRÁFICO DE PESSOAS: Uma Análise Sobre a Eficácia dos


Instrumentos Legais e Institucionais em Pernambuco
Alcione Flor de Oliveira e Ivone Maria da Silva...................................................................272

GT 4 – GÊNERO(S) E DIVERSIDADE SEXUAL NO DIREITO

A APLICABILIDADE DA PREVIDÊNCIA SOCIAL FRENTE À DIVISÃO SEXUAL


DO TRABALHO: uma análise crítica e histórica da situação das donas de Casa e das
empregadas domésticas à luz da teoria do Reconhecimento e da Redistribuição de Nancy
Fraser
Thaís Rodrigues Lira.............................................................................................................290
ANÁLISE DA ADI 4277: equiparação da união estável homoafetiva à união
heteroafetiva
Maria Eduarda Brasil de Carvalho.......................................................................................306

ESCRITÓRIO DE DEFESA DA MULHER: uma análise do perfil das vítimas de


violência doméstica e familiar no município de Arcoverde
Dállete Janyele, Denise Luz e Micheline Valério..................................................................320

VIOLÊNCIAS: Um novo habitus deve surgir


Jônatan David Santos Pereira...............................................................................................330

JUDITH BUTLER NUA: intersecções entre performatividade, corporeidade e vidas


precárias
Maria Vitória Lima de Melo e Fernando da Silva Cardoso..................................................343

ESTRATÉGIAS E VOCAÇÕES METODOLÓGICAS PRESENTES NA PRODUÇÃO


DO CONHECIMENTO JURÍDICO NO BRASIL (2007-2016): novas epistemologias
para as questões de gênero?
Caio Emanuel Brasil Fortunato e Fernando da Silva Cardoso.............................................356

CAIU NA REDE É VIOLÊNCIA DE GÊNERO? Uma abordagem crítica do revenge


porn a luz da Criminologia Feminista
Monique Dayane Zumba Elihimas, Beatriz Izabelli Zumba Elihimas e Renata Celeste
Sales......................................................................................................................................377

INSTITUCIONALIDADE DE GRUPOS DE PESQUISA, SUBÁREAS DO


CONHECIMENTO E LINHAS DE PESQUISA SOBRE GÊNERO E DIREITO NO
BRASIL
Anne Gabriele Alves Guimarães e Fernando da Silva Cardoso............................................392

CASAMENTO CIVIL E UNIÃO ESTÁVEL DE CASAIS HOMOAFETIVOS: uma


análise da tutela estatal dos direitos de minorias sob a perspectiva do ativismo judicial
Maria Isabelle Vitorino de Freitas, Thaminne Nathalia Cabral Moraes e Silva e Daniel
Pereira dos Santos................................................................................................................411

MULHER E RELIGIÃO: os desafios das mulheres em grupos religiosos na discussão da


igualdade de gênero
Gényffe Adryane Alves da Silva e Tamyres Paulino da Silva.................................................430

SUJEITO, GÊNERO E BINARISMO SEXUAL À LUZ DE BUTLER: ressignificações


dos padrões hegemônicos
Isaene de Arruda Santos........................................................................................................441

VIOLÊNCIA CONTRA MULHER: estudo através da perspectiva histórica feminista


Lillian Rebeca Lemos Santos, Ana Larissa de Oliveira Vidal e Elba Ravane Alves
Amorim.................................................................................................................................454
VIOLÊNCIA DE GÊNERO: a violência psicológica contra a mulher sob a ótica da Lei
Maria da Penha
Maryane Caroline Pedroza de Almeida, Laiz Mendes Souza e Melo e Sarah Caroline de
Andrade Firmino...................................................................................................................466

WE CAN DO IT: Verás que uma filha tua não foge à luta
Cícero Paulo Bezerra da Silva Filho, Kénnya Karolynne Marques Galvão e Cícera de Souza
Ribeiro..................................................................................................................................476

GT 5 – DIREITOS HUMANOS, DEMOCRACIA E GRUPOS VULNERÁVEIS

FEMINISMO E NEOLIBERALISMO: a apropriação da bandeira de emancipação da


mulher pelo capitalismo
Maria Gessica Martins de Queiroz.......................................................................................495

DA SELEÇÃO NATURAL À SELEÇÃO POLICIAL: a exclusão de vulneráveis


Diego Marques da Silva........................................................................................................513

IMPEACHMENT, VIOLÊNCIA POLICIAL E A CRISE DE AUTORIDADE


ESTATAL: uma análise à luz dos conceitos de Hannah Arendt
Lucas Henrique Leite de Morais e Juliana Marina de Oliveira Souza..................................530

A CONCEPÇÃO JURÍDICA DO SISTEMA DE COTAS RACIAIS PARA O ACESSO


À UNIVERSIDADE
Flávia Renata Feitosa Carneiro e Laura Stéphanie Ferreira de Melo..................................541

EDUCAÇÃO E FRATERNIDADE: direitos humanos para reconhecimento dos


oprimidos e efetivação do acesso à Justiça
Nivaldo Souza Santos Filho e Flávia Moreira Guimarães Pessoa........................................558

JUIZ DE FORA, 06 DE SETEMBRO DE 2018:uma facada na democracia


André Soares da Silva...........................................................................................................568

JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL: desafios e permanências


Yasmin Costa de Almeida e Samuel Pablo Costa de Almeida................................................578

LIBERDADE SINDICAL, DIREITOS HUMANOS E MEMÓRIA: Um Estudo Sobre a


Intervenção do CONSINTRA - Conselho Sindical dos Trabalhadores de Pernambuco
Manoel Severino Moraes de Almeida....................................................................................590

DIREITO ANTIDISCRIMINATÓRIO E INCLUSÃO SOCIAL DE PESSOAS COM


DEFICIÊNCIAS NA CIDADE DE ARCOVERDE-PE
Rebeka Cristina Rosa Borges, Ana Carolina de Luna França e Rayssa Gomes de
Carvalho...............................................................................................................................610
GT 6 - MOVIMENTOS SOCIAIS, EDUCAÇÃO E ARTE

A MUSICALIDADE NEGRA TRADUZIDA PELO SAMBA DE COCO E RAÍZES DE


ARCOVERDE
Iris Daniele Marcolino da Silva............................................................................................628

PERSPECTIVA ARENDTIANA SOBRE EDUCAÇÃO: Crise no Ensino Jurídico


Nacional
Jenniffer Karyne Arruda Silva...............................................................................................641

OBSERVATÓRIO DAS CONTRIBUIÇÕES DO PROJETO DE EXTENSÃO


UNIVERSITÁRIA DHIALOGUE – DIREITOS HUMANOS, FAMÍLIA E
TRABALHO – PARA A SOCIEDADE DE GARANHUNS – PE
José Antônio de Melo Bisneto, Kleber do Nascimento Coelho e Bruna Maria Jacques Freire
de Albuquerque.....................................................................................................................656

A EVOLUÇÃO DOS DIREITOS DA MULHER NA LEGISLAÇÃO CIVIL E


CONSTITUCIONAL
Larissa Fernanda Vasconcelos Coutinho e Yasmin Costa de Almeida.................................667

LINGUA DE SINAIS COMO ATO CONSTITUTIVO DE INCLUSÃO SOCIAL


BRASILEIRA
Maria Eduarda Henrique Mascarenhas, Gustavo Leite Neves da Luz e Jorge Yuri Souza
Aquino Leite Rodrigues Lins.................................................................................................680

NUANCES DA EDH E A EXTENSÃO NO ENSINO SUPERIOR: A EDH como


transformadora da realidade social
Artur Felipe de Melo Silva, Alanna Laís de Assis Costa e Marco Aurélio da Silva
Freire....................................................................................................................................694

GT 7 – CIÊNCIAS CRIMINAIS, CÁRCERE E DROGAS

CULPADOS: O uso da força estatal mitigando o princípio da presunção de inocência


para a preservação do mecanismo de poder
Rodrigo Jordão.....................................................................................................................708

O ENCARCERAMENTO DOS INVISÍVEIS: um olhar sobre a atuação do sistema de


justiça criminal em relação à população em situação de rua
Nathalia De Biase Mulatinho................................................................................................728

MULHERES “MULAS”, VÍTIMAS DO TRÁFICO, DA LEI E DA SOCIEDADE


Bruna Ribeiro do Nascimento e Julia Beatriz de Moura Chaves...........................................740

AS DIMENSIONALIDADES PENAIS DO GÊNERO E DO TRÁFICO DE DROGAS:


notas introdutórias
Élida Gleice de Lima Oliveira e Glebson Weslley Bezerra da Silva......................................757

DESCOLONIALIDADE DO SABER EM RELAÇÃO À CRIMINALIDADE NA


AMÉRICA LATINA
Daniella Karla Souza e Silva e Taís Ferreira de Souza Cavalcanti.......................................770

AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA: uma análise sobre a eficiência desse instituto dentro da


realidade do sistema carcerário pernambucano
Roberta Julliane de Lima Santos Lira e Brunno Monteiro Lira............................................783

SEGURANÇA PÚBLICA E DIGNIDADE HUMANA COMO DUPLO ALICERCE DO


DIREITO À PAZ: o devido aproveitamento do tempo do condenado
Aléxia Aianne de Moura Rodrigues.......................................................................................803

CONDENADAS AO ESQUECIMENTO: a mulher vítima do poder punitivo do estado


Ingrid Oliveira Arcanjo.........................................................................................................819

MULHERES PRESAS: reflexões a partir do movimento feminista


Iully Magalhães C. Gomes Elba Ravane Alves Amorim........................................................834

É SENSACIONAL: a transgressão de direitos a partir da comercialização do crime nos


meios de comunicação, uma análise do caso “chorôrô na delegacia”
Letícia Andrade Santos e Benick Taypto de Santana.............................................................846

REPERCUSSÕES DO ENCARCERAMENTO POR TRÁFICO DE DROGAS NO


BRASIL: sobre a posição social de mulheres mulas
Luísa Vanessa Carneiro da Costa, Carmem Emmanuella Santos Costa e Maria Rita Barbosa
Piancó Pavão........................................................................................................................862

GT 8 – ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS EM DIREITO PÚBLICO E PROCESSO

DOS BENS IMPENHORÁVEIS E DA EQUIPARAÇÃO DO FUNDO PARTIDÁRIO A


ESSA CATEGORIA
Ylany Pachêco Padilha, Danilo Aquino da Silva e Reinaldo Alves.......................................878

OMISSÃO LEGISLATIVA: O voto do conscrito alistado como eleitor


Kaio Ryan Conrado da Costa, Danilo Henrique de S. Melo e Antonio Justino de arruda
Neto.......................................................................................................................................894

IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA: da (im)penhorabilidade do bem de


família do fiador nos contratos de locação
Rafael Elias de Menezes, Carliane Ferreira Bezerra e Reinaldo Alves Pereira..................907

UMA ANÁLISE JURÍDICA DA EXECUÇÃO FISCAL DO FIES: ACERCA DOS


PROFISSIONAIS RECÉM-FORMADOS
Daniella Tenório de Lacerda Melo Alves e Marcello Borba M. A. Borges..........................920

“INTIME-SE”; “CUMPRA-SE”; “ARQUIVE-SE”: decisões estruturantes e o risco do


empoderamento do judiciário
Vinícius Wanderley Soares Cavalcanti.................................................................................932
LUGARES DE MEMÓRIA E O PRINCÍPIO DA IMPESSOALIDADE NA
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Gilson José Julião.................................................................................................................948

A CONCESSÃO LIMINAR INAUDITA ALTERA PARTE DA TUTELA DE


EVIDÊNCIA FUNDADA EM PRECEDENTE VINCULANTE: análise da possível
inconstitucionalidade
Larissa Dourado de Oliveira e Bruna Maria Jacques Freire de Albuquerque......................961

A MEDIAÇÃO NO ÂMBITO DA ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO FRENTE AS


NOVAS PERSPECTIVAS DOS PRINCÍPIOS DA INDISPONIBILIDADE E
SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO
Ana Maria Gomes Ferreira e Angelíka Souza Verissímo da Costa.......................................973

O COMPLIACE COMO FERRAMENTA PREVENTIVA AO COMBATE À


CAPTURA POLÍTICA DAS AGÊNCIAS REGULADORAS
Tâmara Suelen Brasil dos Santos e Ana Maria Gomes Ferreira...........................................991

GT9 – ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS EM DIREITO PRIVADO

INFIDELIDADE VIRTUAL: conjugando o verbo tindar, entre outros


Giorge Andre Lando e Isabele Moraes D’Angelo..............................................................1.006

A OBRIGAÇÃO DE PRESTAR ALIMENTOS POR OCASIÃO DA RUPTURA DO


VÍNCULO CONJUGAL
Raiane Priscila dos Santos Olimpio e Sheyla Canuto Barbosa Freire...............................1.018

O PODER SIMBÓLICO DO NÃO RECONHECIMENTO JURÍDICO DAS


ENTIDADES FAMILIARES POLIAFETIVAS: Dominação, criação de espaço de não-
direito e negação de subjetividades
Ana Catarina Mendes Barbosa Diniz.................................................................................1.038

PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS E O DIREITO A PRIVACIDADE: Descrição e


contexto da LGPD e GDPR
Ana Cecília Rodrigues da Luz Neri e Wellida Valois Alves................................................1.052

O PROJETO DE CÓDIGO CIVIL DE COÊLHO RODRIGUES: O Início de uma


Unificação do Direito Privado
Gabriel de Carvalho Marroquim Medeiros e Vanessa Viana de Melo Wu.........................1.065

GT 10 – ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS EM DIREITO INTERNACIONAL

A NECESSIDADE DA ANALISE DA LEI DE ANISTIA E DO CASO GOMES LUND


PARA A IMPLEMENTAÇÃO DE UMA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO
Gustavo Leite Neves da Luz, Jorge Yuri Souza Aquino Leite Rodrigues Lins e Maria Eduarda
Henrique Mascarenhas......................................................................................................1.078
AS CONCEPÇÕES CONTEMPORÂNEAS DE SOBERANIA ESTATAL: perspectivas
para a efetiva proteção jurídica internacional dos refugiados
Rute Oliveira Passos, Nivaldo Souza Santos Filho e Flávia Moreira Guimarães
Pessoa................................................................................................................................1.091
DIREITO AMBIENTAL E PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA ANCESTRAL: uma
análise da tutela jurídica às comunidades remanescentes de quilombos em
Pernambuco1

Joan Kleber Amorim da Silva2


Maria Luiza Rodrigues Dantas3

RESUMO

A presente pesquisa busca apresentar os resultados da investigação acerca do tratamento


jurídico dado à preservação da memória e cultura ancestral quilombola no Brasil, em especial
no estado de Pernambuco. Foram utilizados o método dedutivo e a metodologia bibliográfica
e documental. A consagração da tutela jurídica das Comunidades Remanescentes de
Quilombos se deu inicialmente na CF/88 e posteriormente nos Decretos nº 4.887/2003 e nº
6261/2007. Já os programas Brasil quilombola e Pernambuco Quilombola representam a
consolidação dos marcos da política de Estado em benefício das CRQs e objetivam o
desenvolvimento e fortalecimento destas no que tange às suas demandas sociais, econômicas,
políticas, ambientais e culturais. Contudo, existem comunidades com problemas relacionados
à demora no reconhecimento e regularização da posse sobre o território, bem como em razão
das tentativas de retrocessos de direitos, gerando um cenário de insegurança. Portanto, o Poder
Público deve cumprir sua função no que tange a proteção das comunidades e do território
tradicional quilombola, conforme prevê a CF/88. É necessário que haja razoabilidade no
tempo de duração dos processos para se evitar a violação de direitos dos povos quilombolas e
prejuízos para as comunidades em razão da demora no reconhecimento enquanto CRQ.

Palavras-chaves: Quilombos. Colonialidade. Regularização fundiária. Agenda social


quilombola.

INTRODUÇÃO

A abolição da escravidão no Brasil não pôs fim à necessidade de resistência da


comunidade negra, principalmente no que diz respeito às dificuldades enfrentadas no processo
de territorialização. A manutenção de seus territórios ainda encontra barreiras, inclusive, nas
posturas adotadas pelo Poder Público, não raramente, marcadas pela tendência em definir com
fortes traços coloniais-patrimoniais aquilo que considera como "proteção à cultura" das
populações tradicionais.
Nesse sentido, com vistas à regulamentação do processo de demarcação e

1
GT 1 - Meio Ambiente, Sociedade e Diversidade.
2
Graduando de Direito pela Universidade de Pernambuco (UPE Campus Arcoverde), bolsista PIBIC
UPE/CNPq, membro do Grupo de Pesquisas Transdisciplinares Sobre Meio Ambiente, Diversidade e Sociedade
(UPE/CNPq) e do Coletivo Direitos em Movimento (DIMO/UPE/CNPq), e-mail: kleberamorim96@gmail.com.
3
Graduanda de Direito pela Universidade de Pernambuco (UPE Campus Arcoverde), bolsista PIBIC UPE/CNPq,
membro do Grupo de Pesquisas Transdisciplinares Sobre Meio Ambiente, Diversidade e Sociedade (UPE/CNPq)
e do Coletivo Direitos em Movimento (DIMO/UPE/CNPq), e-mail: malurod05@gmail.com.
territorialização das comunidades quilombolas, foi promulgado o Decreto nº 4.887/2003, o
qual tem o intuito de reconhecer juridicamente a existência quilombola e regularizar o direito
de tais povos. Entretanto, há uma tentativa de criação de dispositivos e propagação de
discursos alheios à Constituição, os quais representam um retrocesso aos direitos que visam
proteger as etnias e a ancestralidade.
No rastro do pensamento colonial, a ADI 3239, proposta em 2004, julgada
recentemente pelo Supremo Tribunal Federal, buscava declarar inconstitucional o Decreto
acima mencionado, questionando alguns critérios estabelecidos neste, como o
autorreconhecimento, que permite a uma comunidade declarar-se quilombola. Tal ação foi
julgada improcedente pelo STF, fortalecendo não somente o processo de territorialização das
comunidades quilombolas, como também da articulação e promoção de políticas públicas em
benefício dos que ali habitam.
Cabe ressaltar que os mecanismos que propõem o retrocesso dos direitos desses povos,
são operacionalizados por meio de discursos que dão sustentação à manutenção do poder pelos
que historicamente detêm a hegemonia política, econômica e social. Consequentemente, os
povos tradicionais mantêm-se em uma condição de vulnerabilidade.
Neste contexto, o problema de pesquisa que orienta este estudo é “Qual o tratamento
dado pelo Direito ambiental à preservação da memória e cultura ancestral quilombola no
Brasil?”. O objetivo geral é analisar qual o tratamento dado pelo Direito ambiental à
preservação da memória e cultura ancestral quilombola no Brasil.
Os objetivos específicos são relacionar a problemática da territorialização e a violação
dos direitos fundamentais à memória e cultura das CRQs, identificar as etapas e requisitos
para o processo de certificação das Comunidades Remanescentes Quilombolas a partir da
análise da Instrução Normativa nº 57/2009 do INCRA, instrumento legal responsável pelo
procedimento de titulação, e investigar qual a participação política e programas oferecidos
pelo estado de Pernambuco para o desenvolvimento socioeconômico local das CRQs.
O método de pesquisa utilizado foi, principalmente, dedutivo, partindo-se da norma
geral para os casos particulares das comunidades quilombolas do Estado de Pernambuco que
não foram certificadas ou estão com processo de certificação em andamento. A abordagem
foi bibliográfica e documental. A fonte primária da pesquisa foi a legislação e jurisprudência
brasileira sobre a matéria a partir de 1988.
Já no que diz respeito a fonte secundária, utilizou-se a pesquisa bibliográfica da
doutrina jurídico-ambiental, estudos descoloniais e quilombolas, periódicos on-lines e
notícias, além de dados fornecidos pelas plataformas on-line de instituições governamentais,
programas de desenvolvimento de políticas públicas e sistema de monitoramento (Fundação
Cultural Palmares, da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística, etc).
A pesquisa documental possuiu como objeto de análise a Constituição Federal de
1988, o Decreto nº 4.887/2003, a ADI 3239/2004, o Decreto nº 6261/2007, a Instrução
Normativa nº 57/2009 do INCRA, a Convenção n. 169 da OIT. Assim, a pesquisa documental
é de significativa importância, visto que os documentos subsistem ao longo dos anos,
tornando-se uma importante fonte de dados (GIL, 2002).
Assim, revela-se a importância do estudo sobre os povos das comunidades
quilombolas e o processo de territorialização para a proteção dos direitos de um grupo que foi
historicamente e continua até os dias de hoje sendo subjugado. O século XX enxergou a
diferença colonial a partir da distinção centro-periferia. Hoje, a diferença está em toda parte,
“nas periferias do centro o nos centros da periferia” (MIGNOLO, 2003). Sendo assim, a
resistência em nome da diferença torna-se um enorme desafio diante da tela na qual as
desigualdades e a exclusão são traços marcantes e nem sempre coloridos, tornando cada vez
mais necessárias as lutas assumidas pelos debates sobre raça, etnia, preservação ambiental,
território, seja a partir do Direito ou fora dele.
O presente artigo é fruto da pesquisa referente de iniciação científica (IC
PIBIC/UPE/CNPq 2017-2018) inicialmente desenvolvida por aluna Maria Luiza Rodrigues
Dantas e depois concluída por Joan Kleber Amorim da Silva, ambos discentes regulares do
curso de Bacharelado em Direito da Universidade de Pernambuco – Campus Arcoverde.

1 CONSAGRAÇÃO DA TUTELA JURÍDICA DAS COMUNIDADES


REMANESCENTES DE QUILOMBO

Os direitos fundamentais, em sua maioria, foram impostos politicamente em meio a


um processo de ruptura, composto por lutas, revoltas e revoluções, bem como em momentos
de subversão das minorias sociais e grupos vulneráveis. As comunidades remanescentes de
Quilombos seguem essa premissa e possuem um histórico de luta, mesmo após a abolição da
escravatura. Entretanto, deixando de ser a mercadoria, o propósito da luta passou a ser a terra.
Os colonizadores não buscaram regulamentar as terras quilombolas, tornando-as objeto de
cobiça de grandes proprietários de terras (WOLKMER, 2016).
Nas disposições transitórias da Constituição Federal de 1988 veio o primeiro ato de
reconhecimento das Comunidades Quilombolas, regularizando o direito à posse.
Posteriormente, surgiu o critério da autoatribuição com a Convenção n. 169 da OIT: “A
consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério
fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente
Convenção”.
Nessa perspectiva, são os próprios grupos que se autorreconhecem, conforme sua
identidade e memória étnica, o que possibilita o sentimento de pertencimento à terra. A
preservação da comunidade passa pela proteção à terra, no intuito de não apenas resguardar a
memória, mas, também, possibilitar que a tradição seja mantida e com ela os valores ancestrais
(DA SILVA; SOUZA FILHO, 2010). Por meio da autodeterminação, a história oral, os
depoimentos, as lembranças, os relatos e as vivências são colocados dentro de processos
administrativos e judiciais, na busca pela justificação da territorialidade, da ancestralidade, da
convivência em comunidade, da religião e utilização da propriedade (BALDI, 2014, p. 59).
Nesse sentido, para contribuir com o processo de demarcação e territorialização das
comunidades quilombolas, o Decreto nº 4.887/2003 buscou reconhecer a existência
quilombola e regularizar seus direitos desde a abolição da escravatura. Em contrapartida, a
criação de dispositivos e discursos alheios à Constituição, representa uma tentativa de
retrocesso dos direitos que protegem as etnias e a ancestralidade.
Um claro exemplo disto é a ADI 3239, proposta em 2004 e julgada recentemente pelo
Supremo Tribunal Federal, que buscou declarar inconstitucional o Decreto acima
mencionado, questionando alguns critérios estabelecidos neste, como a auto-identificação, a
qual permite que uma comunidade se declare quilombola. Encontrava-se, ainda, na mesma
Ação Direta de Inconstitucionalidade a chamada "tese do marco temporal" que representa,
dentre outras coisas, uma ameaça ao território das comunidades tradicionais, visto que apenas
garantiria às comunidades quilombolas o direito às terras que ocupavam desde que tal
ocupação tenha se dado a partir da promulgação da Constituição Federal em 1988.
Esse raciocínio temporal e reducionista contrapõe-se à proteção dos direitos humanos
e fundamentais no que diz respeito às comunidades remanescentes de quilombos, uma vez
que se distancia de valores como "cultura ancestral" e aproxima-se de garantias patrimoniais
no intuito de fortalecer o direito individual e liberal à propriedade privada. Logo, perder-se-á
o sentido de proteção à ancestralidade quilombola caso esse vínculo ancestral passe a ser
analisado a partir de um marco temporal. Destaca-se ainda que a referida tese dificulta a
comprovação de existência de comunidades que não eram enxergadas pelo Estado até 1988,
o que fortalece a invisibilidade de muitos quilombos.
Entretanto, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a validade do Decreto
4.887/2003, garantindo a titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades
quilombolas. A decisão foi tomada na sessão do dia 08 de fevereiro de 2018, no julgamento
da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3239, julgada improcedente por oito ministros.
Votaram pela improcedência integral da ação oito ministros, somado ao ministro Luís
Roberto Barroso, cujo voto foi além, pelos direitos à terra àquelas comunidades que tiverem
sido forçadamente desapossadas, vítimas de esbulho renitente. Rosa Weber dispôs acerca do
objeto do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), reforçando
o direito dos remanescentes das comunidades dos quilombos de ver reconhecida pelo Estado
a sua propriedade sobre as terras por eles histórica e tradicionalmente ocupadas.
Na sequência, completou o ministro Fachin, expondo como legítima a opção
administrativa pela instauração de processo de desapropriação das terras eventualmente na
posse ou domínio de terceiros para assegurar a propriedade das comunidades quilombolas às
terras que tradicionalmente ocupam. Quanto à autoatribuição, o ministro Luís Roberto
Barroso também considerou legítimo o critério, lembrando que não é o único, mas o princípio
de todo o procedimento, incluindo laudos antropológicos e outros, os quais tornam possível
afastar eventuais fraudes.
A improcedência da ADI promove a articulação de outros decretos promulgados, em
favor das Comunidades Quilombolas, como o Decreto nº 6040/2007, que busca Instituir a
Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais.
Não obstante, vale reafirmar a relação entre a população quilombola, o território e o meio
ambiente de natureza específica.
Nesse sentido, temos que comunidades encontram-se em determinados territórios por
uma questão histórica e social, por descenderem de “populações refugiadas ou marginalizadas
social e economicamente pela escravidão” e à época da abolição, esses territórios não
despertaram o interesse do capital (ARRUTTI, 2006, p. 40 apud BALDI, 2014, p. 63).
Outro Decreto de importância para os direitos das comunidades quilombolas é o nº
6261/2007 que dispõe sobre a gestão integrada para o desenvolvimento da Agenda Social
Quilombola no âmbito do Programa Brasil Quilombola. Este consiste em ações que deverão
ser desenvolvidas de forma integrada pelos diversos órgãos do Governo Federal responsáveis
pela execução de ações voltadas à melhoria das condições de vida e ampliação do acesso a
bens e serviços públicos das pessoas que vivem em comunidades de quilombos no Brasil, sob
a coordenação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR).
Sendo assim, a Agenda Social Quilombola compreenderá ações voltadas para alguns
eixos, como o acesso à terra; à infraestrutura e qualidade de vida; à inclusão produtiva e
desenvolvimento local; e à cidadania. Alcançando prioritariamente as comunidades
quilombolas com índices significativos de violência, baixa escolaridade e em situação de
vulnerabilidade social.
Apesar do reconhecimento e da conquista de direitos por muitas comunidades
remanescentes de quilombo, ainda existem tentativas de retrocesso em face dos povos
quilombolas, a exemplo da ADI 3239. Tal situação é fruto principalmente do processo
colonizador que resultou na inserção do espaço quilombola em um paradigma de
subalternização, marginalizando sujeitos cujas vozes não podem ser ouvidas (SPIVAK, 2010).
Consequentemente, há uma negação de direitos às populações quilombolas, principalmente
em relação ao acesso à terra e ao exercício pacífico da posse sobre o território.
Neste cenário, resta demonstrada a necessidade de uma efetiva aplicação do disposto
no ordenamento jurídico brasileiro acerca da tutela das comunidades remanescentes de
quilombo, para que se cumpram os preceitos estabelecidos tanto na Constituição Federal
quanto nos Decretos promulgados posteriormente. Ainda, cabe destacar também a
importância da agenda social quilombola, que através de programas como o Brasil
Quilombola contribuem para o fortalecimento das CRQs, bem como para a valorização de
seus aspectos histórico-culturais.

2 O ACESSO À TERRA E OS REQUISITOS PARA TITULAÇÃO

Em virtude do processo de colonização, houve a internalização dos valores da cultura


dominante, neste caso, do homem branco europeu. A tomar por esse parâmetro, sob a
perspectiva civilizadora e desenvolvimentista baseada na filosofia moderna eurocêntrica
(DUSSEL, 1993), fora criado um processo de aculturação, na forma de valores advindos da
catequização colonial. Dessa maneira, as relações coloniais de exploração e dominação foram
fortalecidas pela tríade superioridade-subalternidade-exclusão. Ao lado disso, o Direito serviu
de instrumento de dominação. As normas jurídicas tinham sua criação e aplicação com
objetivo de manutenção do poder colonial, limitação e controle dos indivíduos e grupos
originais, incluindo-se o reconhecimento apenas do clássico modelo de propriedade privada.
Nesse sentido, a relação colonizadora com a terra está interligada ao lucro, enquanto
para o quilombola há uma relação de vínculo cultural. Não obstante, sendo vitimas do
processo colonizador, esses povos foram reduzidos a uma imagem de indivíduos sem cultura,
fraternidade e conhecimentos sobre a natureza (MARÉS, 2010). Contudo, mesmo que tenha
perdido grande parte da diversidade, a natureza continuou vigorosa e os povos remanescentes
quilombolas, às vezes chamados de camponeses, vivendo geralmente escondidos, e não raro
sendo confundidos ou dissimulados, continuaram resistindo, recriando, inovando e,
teimosamente, mantendo seus sagrados ancestrais e seus modos originais e tradicionais.
A reconstrução da identidade quilombola é feita por meio dos territórios culturais.
Nesse sentido, para Enrique Leff (2014), a territorialização é uma forma de resistência e a luta
pela identidade cultural é a luta pelo “ser diferente”, por um território com um espaço para ser
e desenvolver a cultura que é própria do diverso (p. 276). Eis a essencialidade em reconhecer
o vínculo quilombola com a terra como um valor ancestral e cultural, uma memória cuja
preservação parece ainda não mobilizar os atos e discursos jurídico-positivos.
Sendo assim, um dos eixos do programa Brasil Quilombola é o acesso à terra, cujo
objetivo é sistematizar o procedimento de territorialização. O primeiro passo é buscar a
certificação por meio da Fundação Cultural Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura
(FCP/MinC), cuja atribuição legal é realizar e articular ações de proteção, preservação e
promoção do patrimônio cultural das comunidades remanescentes de quilombos (BRASIL,
2014).
Deverá o requerente, para obter a Certificação, enviar para a Fundação Palmares a
Solicitação de Reconhecimento como Comunidade Remanescente de Quilombo, juntamente
com o relato histórico com fotos, reportagens e estudos que tratem da história do grupo ou de
suas manifestações culturais. Bem como, é necessário o envio da ata de reunião ou assembleia,
na qual os membros da comunidade aprovam, por maioria, o pedido de reconhecimento
(INCRA, 2009).
Após o recebimento da documentação na Fundação Palmares, é encaminhada a
abertura de processo para posterior análise técnica. Se a documentação estiver correta, o
próximo passo é a visita técnica de um membro da Fundação que fará reunião com a
comunidade para conhecer a realidade da comunidade e elaborar relatório. Concluída essa
etapa, a publicação do ato será encaminhada para o reconhecimento da comunidade como
remanescente de quilombo, no Diário Oficial da União (BRASIL, 2014).
Visando o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade em conjunto ao
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, fica por responsabilidade do Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) o processo de regularização fundiária.
Assim, a comunidade passa existir legalmente como proprietária da terra na qual se localiza e
da qual tira sua subsistência. Ademais, primeiramente deverá ser elaborado o Relatório
Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), cujo objetivo é identificar os limites das terras
das comunidades (INCRA, 2009).
Após a publicação, os interessados poderão contestar em 90 dias na Superintendência
Regional do Incra. A fase de identificação é encerrada com a publicação da portaria do
presidente do INCRA no Diário Oficial da União e dos Estados. Por fim, o presidente do
INCRA realizará a titulação mediante a outorga de título coletivo, imprescritível, em nome da
associação legalmente constituída, sem nenhum ônus financeiro. Cabe destacar, ainda, que é
proibida a venda e penhora do território, e nos casos de desapropriação o processo é mais
longo, pois necessita de publicação de Decreto Presidencial de Desapropriação por interesse
social (INCRA, 2009).
De acordo com os dados do INCRA, há hoje 1.715 processos de regularização abertos,
sendo 977 no Nordeste, 142 no Norte, 118 no Centro-Oeste, 327 no Sudeste e 151 no Sul.
Ainda, segundo relatado pelo mesmo órgão, o resultado anual de 2005 a 2017 foi de 259
Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTID) do território, 82 Decretos, 141
Portarias e 116 Títulos. Não obstante, segundo dados da Fundação Cultural Palmares,
atualizados até a portaria nº 122 de 26 de abril de 2018, atualmente existem 3.040
Comunidades Remanescentes de Quilombos (CRQs) certificadas.
Em Pernambuco há 156 comunidades remanescentes de quilombos certificadas e 57
processos abertos. Ainda, segundo dados da Fundação Palmares, atualizados até 16 de janeiro
de 2018, existe no estado pernambucano 17 Comunidades Remanescentes de Quilombos com
processo de certificação em andamento, das quais uma está aguardando visita técnica,
enquanto as outras 16 necessitam de complementação da documentação.
Neste contexto, cabe destacar que a comunidade de Novos Olhares, em Orocó, a qual
ainda está aguardando visita técnica, teve o processo aberto em 2015 e até então não houve
expresso andamento do mesmo. Pode-se observar também, por meio da análise das tabelas
sobre as comunidades em Pernambuco cuja documentação não foi apresentada
completamente, que o caso mais preocupante é o da comunidade de Umbuzeiro, em Afogados
da Ingazeira, uma vez que esta iniciou o processo em 2005 e ainda faltam a ata e o histórico
para que haja a certificação.
Dentre as demais comunidades, cabe mencionar a de Carnaíba (Sitio Travessão do
Caruá) e São Caetano (Sítio Jardim da Onça) cujo início do processo foi em 2012 e ainda falta
documentação. Bem como os casos do Sítio Mundo Novo (Buíque) e da Serra Verde
(Caruaru), que dentre os processos em tramitação são mais recentes, tendo sido iniciados em
2015.
Os problemas na realização da titulação bem como dos procedimentos posteriores para
se garantir aos povos quilombolas o acesso à terra bem como a posse pacífica sobre o território
estão relacionados principalmente à demora na resolução dos processos por parte do poder
público. Muitas comunidades iniciaram o processo há anos e ainda aguardam conclusão. Esta
situação resulta em um cenário de insegurança, pois, somente através da regularização
fundiária das CRQs é que o exercício de direitos pelos quilombolas sem nenhum tipo de
interferência externa de terceiros será garantido.
Além disso, nas comunidades remanescentes, a titularidade dos direitos relacionados
à posse e propriedade é coletiva e, como visto, há um vínculo cultural dos indivíduos com o
território. Neste sentido, é importante que se leve em consideração os aspectos culturais e
ancestrais dos povos quilombolas, uma vez que o direito de propriedade também influencia
outros direitos como a manutenção da identidade cultural e a própria sobrevivência daquele
povo. Resta justificada, então, a necessidade mais acentuada no contexto quilombola de
razoabilidade no tempo transcorrido nos processos e de uma postura mais efetiva do Estado
na garantia do acesso à terra.

3 PROGRAMAS BRASIL QUILOMBOLA E PERNAMBUCO QUILOMBOLA E SUA


RELEVÂNCIA SOCIOAMBIENTAL

A pobreza é considerada uma forma de violência, na medida em que, a população


pobre é vítima preferencial da marginalização, ficando alheia a qualquer processo de
desenvolvimento (COSTA, 2005). Neste cenário, as ações do Programa Brasil Quilombola
buscam propor medidas de enfrentamento ao distanciamento social e à alienação, à
discriminação e à estigmatização que recaem sobre a pobreza, bem como elaborar e implantar
políticas públicas quilombolas e monitorar as ações implantadas.
No Brasil, há um enorme déficit do Poder Público no combate à pobreza, bem como
no oferecimento de oportunidades de emprego, estudo e qualificação para as classes menos
favorecidas (COSTA, 2005). Na perspectiva Quilombola, esta questão relaciona-se com a
terra, visto que o seu principal recurso socioeconômico é a agricultura. Assim, muitos
remanescentes de quilombos acabam buscando um emprego temporário na cidade para suprir
a carência alimentícia (WOLKMER, 2016).
Englobam-se aí os eixos 2 (infraestrutura e qualidade de vida) e 3 (desenvolvimento
local e inclusão produtiva) do Programa Brasil Quilombola, o qual se articula com outros
programas como o “Luz Para Todos”, para desenvolver a infraestrutura local e proporcionar
o desenvolvimento dessas comunidades. A articulação se dá procurando também atingir
grupos com problemas específicos, a exemplo do programa “Água para todos” ou “Cisternas”,
cujo objetivo é favorecer comunidades na região semiárida (BRASIL, 2013).
Dentro do eixo de inclusão produtiva, houve em 2009 a criação da marca “Selo
Quilombolas do Brasil”, que visa atribuir identidade cultural aos produtos de origem
quilombola. Esse programa tem um resgate ao modo de produção dos colonizados e do vínculo
que as comunidades possuem com a terra. Tal procedimento é de competência do Ministério
do Desenvolvimento Agrário (MDA) conforme as regras já existentes para o Selo da
Agricultura Familiar, mas para associar-se deve ter a inclusão apenas da Certidão de
Autodeterminação, fornecida pela Fundação Cultural Palmares.
O último eixo do programa diz respeito a Direitos e Cidadania. Nesse contexto, é
necessário identificar que apesar de existir um imperialismo ocidental, o discurso jurídico
pode e é capaz de representar outras culturas não-ocidentais. Assim, o direito para essas
comunidades quilombolas representa não apenas a existência de povos que vivem fora do
“projeto global”, este representa promover a inclusão deles na ordem global se assim
desejarem (DA SILVA; SOUZA FILHO, 2010).
Não obstante, o programa atua também com vistas à ampliação e à melhoria da rede
física escolar, através da formação continuada de professores e implementação das Diretrizes
Curriculares Nacionais para oferta de educação escolar quilombola. Traz ainda a possibilidade
de capacitação de gestores para implementação das Diretrizes Curriculares Quilombolas para
educação escolar quilombola, bem como a instituição nas comunidades remanescentes de
quilombos de medidas como o programa nacional de alimentação escolar (PNAE), o programa
nacional de acesso ao ensino técnico e emprego (Pronatec), o programa bolsa família (PBF),
o programa saúde da família (PSF), documento básico e registro civil (BRASIL, 2014).
Em articulação com o Programa Brasil Quilombola (PBQ), foi lançado pelo Governo
do Estado, no ano de 2016, o Programa Pernambuco Quilombola (PPQ), o qual possui como
principal base legal o Decreto nº 38.960, de 17 de dezembro de 2012 – que instituiu a Política
Estadual de Regularização Fundiária e Desenvolvimento Sustentável das Comunidades
Quilombolas. O objetivo geral do Programa é:

[...] consolidar a política do Governo do Estado de Pernambuco, no sentido de


reduzir as desigualdades raciais, com ênfase na população quilombola, nos âmbitos
rural e urbano, por meio da elaboração de propostas e da adoção de ações associadas
às políticas universais, tornando-as visíveis para o Triênio (2016/2019). (Plano
Estadual Pernambuco Quilombola, 2016).

Seguindo a linha do PBQ, o PPQ também se divide em quatro eixos de


desenvolvimento: Acesso à Terra (eixo 1), Infraestrutura e Qualidade de Vida (eixo 2),
Inclusão Produtiva e Desenvolvimento local (eixo 3) e Educação (eixo 4).
O primeiro eixo tem como aspectos principais a certificação das Comunidades
Remanescentes de Quilombos, cuja responsabilidade é da Fundação Cultural Palmares, bem
como a regularização fundiária, processo a ser executado pelo INCRA em parceria com o
Instituto de Terras de Pernambuco (ITERPE) e Secretaria de Patrimônio da União. Por meio
deste processo a comunidade passa a existir legalmente como proprietária da terra na qual está
constituída.
O eixo 2 (infraestrutura e qualidade de vida) tem como principais objetivos o
fornecimento de água de qualidade para as CRQs, a construção de cisternas, a priorização
destas comunidades na perfuração de poços artesianos, como também a pavimentação das
estradas de acesso às CRQs, e o estímulo aos municípios para construção e implantação de
Unidades de Saúde da Família (USF's) com equipes de saúde da família fixas.
No que diz respeito ao terceiro eixo, visa principalmente estimular e fortalecer a
produção sustentável nas Comunidades Remanescentes de Quilombos, apoiando as iniciativas
produtivas e artesanais, proporcionando aos povos quilombolas o acesso a cursos nos âmbitos
de produção sustentável e desenvolvimento local. Além disso, o eixo 3 possui também como
preocupação a saúde da população negra e quilombola, tendo como objetivos a incorporação
da atenção à saúde dessa população dentro do Sistema único de saúde (SUS), e, além disso,
visa também o fortalecimento das iniciativas culturais quilombolas e das identidades e
tradições socioculturais, entre outras propostas.
Em relação à Educação (eixo 4), o programa visa criar as diretrizes estaduais de
educação escolar quilombola; bem como elaborar a matriz curricular da educação escolar
quilombola, em parceria com a Comissão Estadual de Articulação das Comunidades
Quilombolas e Educadores Quilombolas da Rede Estadual de Ensino. Ainda, objetiva a
viabilização para se realizar ao menos anualmente um Encontro Estadual
(Educação/Educadores) Quilombola e também a priorização das Comunidades Quilombolas
na execução de campanhas educativas de enfrentamento à violência doméstica.
Estes programas representam a consolidação dos marcos da política de Estado em
beneficio das Comunidades Remanescentes de Quilombos. As ações propostas são de extrema
necessidade visto que em razão do processo de colonização ao qual o Brasil foi submetido e
da colonialidade (QUIJANO, 2005) – enquanto traço moderno da lógica de dominação –
estabeleceu-se um paradigma de discriminação que reitera o espaço quilombola como
subalterno.
Em meio a um cenário no qual impera o racismo, a invisibilização da cultura dos povos
tradicionais, bem como a tentativa de retrocesso dos direitos quilombolas, tais programas
representam uma forma de enfrentamento a essa realidade, sendo indispensáveis para o
desenvolvimento e fortalecimento das CRQs no que tange às suas demandas sociais,
econômicas, políticas, ambientais e culturais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O direito, no que diz respeito à tutela dos povos tradicionais, para além da igualdade
formal, tem o papel de garantir que haja um tratamento equânime quanto aos mesmos. Em
razão das consequências históricas dos projetos civilizatórios, aos quais os povos quilombolas
foram submetidos, o direito deve atuar como agente reparador, proporcionando a reconstrução
da cultura perdida no processo de colonização, sendo promotor do pluriculturalismo, e
garantindo aos povos quilombolas o direito de resistir à ordem global.
As marcas do poder colonial refletem-se no passado e no presente das comunidades
quilombolas no Brasil, tendendo a refletirem-se também no seu futuro. Isto porque a
manutenção da identidade étnica depende da ancestralidade, da preservação do passado e da
garantia futura da formação cultural desse povo, sendo o vínculo com a terra originária inter-
relacionado à territorialidade.
Entretanto, como visto, ainda há uma tendência ao retrocesso politico-jurídico no que
tange aos direitos de minorias sociais, o qual fortalece a marca da subalternidade e manutenção
de estigmas. Assim, o direito muitas vezes representa uma fonte de manutenção de poder, de
modo que aqueles que não possuem voz continuam descartados e subalternizados,
vivenciando a exclusão.
Hoje ainda existem muitas comunidades com problemas no que diz respeito ao
reconhecimento enquanto remanescentes de quilombos e à regularização da posse sobre o
território, tendo como causa principalmente a demora na resolução dos processos. Em razão
disso, as comunidades têm complicações para exercer a posse pacífica sobre o território, uma
vez que só após o reconhecimento e a confecção e aprovação do Relatório Técnico de
Identificação e Delimitação (RTID) do território é que ocorrerá a desintrusão dos ocupantes
não quilombolas.
Além do mais, tal situação tem como consequência também a dificuldade dos povos
quilombolas no acesso aos programas governamentais como o Brasil Quilombola e o
Pernambuco Quilombola, no âmbito estadual, que são de extrema importância para o
fortalecimento e desenvolvimento das CRQs.
Neste cenário, o Poder Público deve cumprir sua função no que tange ao
reconhecimento da posse do território tradicional quilombola, conforme prevê a Constituição
Federal de 1988. É necessário, então, que haja razoabilidade no tempo de duração dos
processos para se evitar a violação de direitos dos povos quilombolas e prejuízos para as
comunidades em razão da demora no reconhecimento enquanto CRQ.
Não obstante, também deve se articular caminhos para que a cultura quilombola não
seja apagada, tendo em vista a importância histórica e social dos povos tradicionais, e suas
contribuições em diversas áreas, como, por exemplo, no desenvolvimento sustentável e
preservação da natureza.

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Maria Cristina Vidotte Blanco. O que são quilombos. Os direitos territoriais quilombolas:
além do marco Territorial. Coord: Antonio Carlos Wolkmer, Carlos Frederico Marés de Souza
Filho, Maria Cristina Vidotte Blanco Tarrega. Goiânia: Ed. da PUC Goiás, 2016. 196 p.
VAQUEJADA: PELA PRESERVAÇÃO DE UMA CULTURA SEM MAUS TRATOS
AOS ANIMAIS4

Marcus Vinícius Cardoso de Arruda5


Flávia Renata Feitosa Carneiro6
Laura Stéphanie Ferreira de Melo7

RESUMO

A vaquejada surgiu no Brasil a partir do momento em que os coronéis sentiram a necessidade


de reunir o seu gado, criado de forma extensiva. A partir de então foram desenvolvidas
habilidades de captura exercida pelos homens que eram designados a cumprir tal serviço,
chamados Vaqueiros, tal atividade tornou-se uma competição que, posteriormente, veio a
integrar a cultura nordestina, entrelaçando-se ao seu folclore, bem como à religiosidade e a
um modo de vida tradicional. No entanto, com o advento da Lei nº 9.605 de 12 de fevereiro
de 1998, essa cultura foi erroneamente reduzida a um mero esporte que maltrata, mutila e mata
animais. Segundo a Lei de Crimes Ambientais, tais tormentos podem culminar em uma pena
variável de três meses a um ano de detenção e multa. Considerando-se que os Direitos
Culturais estão previstos expressamente na Declaração Universal de Direitos Humanos, que é
adotada pelo Brasil no artigo 215 da Constituição Federal de 1998, em seu caput e parágrafo
primeiro.

Palavras-chave: Animais. Maus tratos. Vaquejada. Esporte. Cultura.

INTRODUÇÃO

O presente artigo visa discutir e ampliar os pensamentos a respeito do tema da


Vaquejada. Esse tema é de bastante repercussão entre os admiradores e amantes dessa
modalidade esportiva como também cultural. Esse é um tema bastante repercutido também
quando se trata dos defensores dos animais.
Esse estudo teve como base o método dialético, desdobrando-se em pesquisa
bibliográfica e descritiva.
Existe uma necessidade de se discutir e trabalhar tal tema. Nesse sentido formulou-se
a seguinte pergunta de pesquisa: É possível que esta manifestação cultural possa ser mantida

4
GT 1- Meio Ambiente, Sociedade e Diversidade.
5
Marcus Vinícius Cardoso de Arruda. Graduado em Direito – Centro Universitário Tabosa de Almeida- ASCES-
UNITA. Pós-Graduando em Trabalho e Processo do Trabalho – Escola Superior de Advocacia de Pernambuco-
ESA PE. E-mail: mvcarruda39@gmail.com.
6
Flávia Renata Feitosa Carneiro. Graduada em Direito – Universidade Católica de Pernambuco-UNICAP.
Graduada em Odontologia – Universidade Federal de Pernambuco-UFPE. MBA em Gerenciamento de Projetos
– Faculdade Estácio. Pós-Graduada em Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa – Universidade Federal
Rural de Pernambuco-UFRPE. Mestranda em Direito – Faculdade Damas. E-mail: flavia.renata.ses@gmail.com
7
Laura Stéphanie Ferreira de Melo. Graduada em Direito – Centro Universitário do Vale do Ipojuca- UNIFAVIP.
Pós-Graduanda em Penal e Processo Penal – Escola Superior de Advocacia de Pernambuco- ESA PE. Mestranda
em Direito – Faculdade Damas. E-mail: stephanie-afc@hotmail.com.
sem os maus tratos aos animais?
Com a presente pesquisa, buscamos responder nosso objetivo geral: Estudar a
possibilidade que esta manifestação cultural possa ser mantida sem os maus tratos aos animais.
E, para instrumentalizá-lo, delimitaram-se os seguintes objetivos específicos: 1)
compreender a evolução das discussões a respeito da preservação da cultura da vaquejada; 2)
discutir sobre os maus tratos aos animais e a legislação protetiva; 3) compreender a vaquejada
como um esporte e a cultura de um povo.
Diante do exposto, justifica-se a escolha do presente tema em razão da sua importância
e pelo grande debate acerca da inconstitucionalidade das vaquejadas e consequentemente o
fim de uma modalidade cultural que se faz presente a mais de cem anos onde a mesma é
genuinamente brasileira e nordestina. Assim sendo, a justificativa social para esse estudo é
mostrar que a vaquejada faz parte da cultura de um povo e que por meio desse esporte, muitas
famílias conseguem tirar o seu sustento.
Já no que tange à justificativa pessoal o desejo de tratar desse tema veio a partir do
momento em que foi possível notar a grande importância desse esporte para a preservação da
cultura de um povo.
A principal finalidade deste estudo é mostrar que a vaquejada é uma manifestação
cultural, por isso a vaquejada deve adequar-se às normas vigentes na lei, sem gerar nenhuma
mal estar aos seus participantes. E que prevaleça o bom senso, daqueles que direto ou
indiretamente organizam os eventos e os que lidam com os animais.

1. LEI DE CRIME AMBIENTAL E AS ESPÉCIES DE MAUS TRATOS


DIFERENCIANDO-AS DA VAQUEJADA

Neste tópico serão mostrados os principais pontos de discussão a respeito do tema


vaquejada, sendo discutida também a legislação da Lei de Crimes Ambientais.
O primeiro item à de se tratar os conceitos e definições de meio ambiente. No segundo
item será explanada a legislação que trata da Lei de Crimes Ambientais. Por ultimo, o terceiro
item à de se tratar das definições de maus tratos aos animais.

1.1 Conceito e Definições de Meio Ambiente

O meio ambiente tem sido a grande preocupação de todos os países nas últimas
décadas, devido às mudanças provocadas pelo homem na natureza, cujas consequências, têm
afetado negativamente o próprio homem.
O meio ambiente é um bem fundamental e indispensável à existência humana, tanto
que a Constituição Federal no seu texto no art. 225, caput, reconhecer o direito a um meio
ambiente sadio, como sendo uma extensão ao direito à vida. Isso faz com que o Poder Público
e a coletividade tenham uma maior responsabilidade pela proteção ambiental, dando uma
maior sustentação ao objetivo da Lei nº 6.638 de 31 de agosto de 1981, denominada de Política
Nacional do Meio Ambiente, a qual seja, torná-la um patrimônio público protegido, visando
o uso coletivo. Assim prevê o dispositivo da Carta Magna:
Assim prevê o dispositivo da Carta Magna:

Art. 225 - Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem
de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder
Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para os presentes e
futuras gerações.

Como se pode ver, o conceito de meio ambiente é amplo, onde o legislador optou por
um conceito jurídico indeterminado, cabendo ao intérprete o preenchimento do seu conteúdo.
A biota é formada pela fauna e flora e fazem parte do meio ambiente, o art. 225 da
CF/88 pode ser aplicado para proteger os animais, especialmente os silvestres. Porém, quando
os animais não são silvestres esse artigo pode ser afastado.
Animais não silvestres, como os domésticos e o gado, não são, em regra considerados
“meio ambientes”, pois foram isolados do mesmo sem que possam interagir com o ambiente
de forma a promover os processos ecológicos que renovam a biosfera. Por isso, estes animais
podem ser considerados como recurso (ambiental ou natural, ou mesmo, um produto
manipulado), no entanto, não servem ao bel prazer de seus donos, pois existem normas que
regulamentam a forma de tratamento, no caso da lei de crimes ambientais.

1.2 Lei de Crimes Ambientais (9.605/98)

Antes do governo de Getúlio Vargas não existia nenhum decreto ou lei que defendesse os
animais no território brasileiro. Assim sendo, foi assinado um decreto de número 24.645 de
10 de Julho de 1934, no qual o artigo primeiro estabelece que todos os animais existentes no
país são tutelados do Estado. Essa foi a primeira “medida” em face de proteção aos animais
adotada no Brasil. Antes da Lei nº 9.605/98 entrar em vigor, a codificação de proteção ao
meio ambiente era muito esparsa.
Porém, a difícil aplicação de tais leis e até mesmo as inconsistências existentes em seu
conteúdo dificultavam a efetividade de suas penalidades, como pode ser observado no
seguinte exemplo: matar um animal silvestre para se alimentar era considerado crime
inafiançável, ao passo que a prática de maus tratos era tida apenas como contravenção penal.
Com o advento da referida Lei de Crimes Ambientais, a legislação de meio ambiente e a
proteção ao meio ambiente unificaram-se, trazendo força para as penalizações.
Assim, as penas se uniformizaram, definindo, dessa forma o que configura tais infrações
e aplicando, penas mais severas. Dessa forma, os tormentos causados a animais configuram-
se como crime, sujeitando o infrator à prisão. Todavia, matar animais, desde que seja para
saciar a fome do agente e/ou de sua família, é permitido por lei.
As penas previstas na Lei de Crimes Ambientais são aplicadas diante da gravidade da
infração cometida. Ou seja, quanto mais reprovável for conduta, mais rígida será a punição.
Tais penas não são dirigidas apenas às pessoas físicas, como estendidas também às pessoas
jurídicas, com a aplicação de multa e/ou restrições de direitos, dentre os quais a suspensão
parcial ou total das atividades, interdição temporária de estabelecimentos, obra ou atividade e
a proibição de contratar com o Poder Público. Também é possível que haja uma prestação de
serviço à comunidade, através de custeio de programas e de projetos ambientais.
Nesse sentido temos no artigo 32 da referida lei que: “Praticar ato de abuso, maus
tratos, ferir ou mutilar animais silvestre, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos”
resta claro que o ato de mutilar animais, seja eles de qualquer “categoria”, traz uma sanção,
que é a detenção variável de três meses a um ano, mais multa. Porém essas penalidades são
ainda muito brandas, como também é o caso do artigo 14, inciso I da referida lei, que atenua
a pena simplesmente pelo fato de que o transgressor tenha um baixo nível de escolaridade.
Isso, contudo, não quer dizer que ele não será punido, mas apenas que terá uma atenuante.
Nas vaquejadas, o fato de arrancar o rabo do boi poderia ser enquadrado no artigo 32,
visto que o animal sofre uma mutilação. Porém não é aplicado nenhum tipo de sanção a este
ato. Embora haja a mutilação, acredita-se que esse ato seja pequeno em relação às crueldades
que os seres humanos submetem todos os animais como, por exemplo, o estresse dos bois nos
currais de matadouros, a crueldade com os bezerros para se obtiver uma carne macia, “a
famosa vitela”, o tormento de confinar porco em cubículo onde o animal apenas se deita e fica
em pé, entre outros.

1.3 Maus tratos a animais

Maltratar significa submeter os animais a situações que coloquem em perigo a sua vida e
à saúde.
Segundo Custódio:
Abrange numerosas práticas cruéis, e que submetem os animais a sofrimento
perverso e prolongado sem a devida justificação, sendo assim, desnecessário ou
desmotivado. Causadas pelas crescentes condutas desumanas e lesivas aos animais
em geral, flagrantemente contrárias à moral, aos bons costumes e aos princípios
integrantes do sistema jurídico (1995, p. 48).

Foi durante a Época Colonial, no século XVI, que os primeiros animais


desembarcaram em nosso território. E foi através deles que a colonização se expandiu e se
alimentou. Os bois que puxavam os carros eram utilizados como “motores”, porque era por
meio deles e de sua força que se arava a terra e se movimentavam os moinhos. Além do mais,
os cavalos e burros eram utilizados como meio de transporte, e as galinhas e porcos como
parte da alimentação.
George Orwell (2007. p. 12.) faz uma comparação de forma figurada, de como os animais
eram tratados durante esse período:

Então, camaradas, qual é a natureza desta nossa vida? Enfrentemos a realidade:


nossa vida é miserável, trabalhosa e curta. Nascemos, recebemos o mínimo de
alimento necessário para continuar respirando, e os que podem trabalhar são
exigidos até a última parcela de suas forças; no instante em que nossa utilidade
acaba, trucidam-nos com hedionda crueldade... A vida do animal é feita de miséria
e escravidão: essa é a verdade nua e crua.

Os tais tormentos não param por aí. Os animais foram grandes colaboradores para a
ciência e, supostamente, para a “arte”. Na área da ciência, foram utilizadas cobaias para a
descoberta de doenças, teste de remédios, tratamentos e até na indústria de cosméticos.

2 A CULTURA DA VAQUEJADA EM UMA REGIÃO

Neste tópico será descrita a cultura da vaquejada, a importância do esporte e o seu


importante significado para algumas regiões.

2.1 A Cultura e o Patrimônio Cultura Imaterial

A palavra cultura pode ter vários significados, dando, assim, um sentido ao mundo que
cerca um indivíduo e à sua respectiva sociedade.
De acordo com o conceito antropológico, cultura está ligada à personalidade e à vida
social do indivíduo. Nesse contexto:

Para nós, “cultura” não é simplesmente um referente que marca uma hierarquia de
“civilização”, mas a maneira de viver total de um grupo, sociedade, país ou pessoa.
Cultura é, em Antropologia Social e Sociologia, um mapa, um receituário, um
código através do qual as pessoas de um dado grupo pensam, classificam, estudam
e modificam o mundo e a si mesmas. (DA MATTA, 1986, p. 123)

Tal cultura representa os padrões de comportamento de um povo, as expressões de sua


maneira de viver, as suas características. Graças às peculiaridades, o Estado deve garantir a
todos, o acesso a tal atividade, apoiando-a e valorizando-a, conforme prevê o artigo 215,
caput, da Constituição Federal.
Podemos olhar para cultura como algo incorporado no meio de vida de um povo, suas
crenças, suas peculiaridades, seu modo de agir, ou seja, de certa maneira é o modo de vivencia
de um povo.
Nesse contexto cultural temos o Patrimônio Cultura Imaterial que é diretamente ligado
aos bens imateriais que são as crenças, os comportamentos, entre outros.
Organização para a Educação, a Ciência e a Cultura das Nações Unidas (UNESCO)
trata do Patrimônio Cultural Imaterial como sendo uma das expressões de vida e tradições dos
indivíduos e das comunidades, passando os seus conhecimentos a seus descendentes, ou seja,
diz respeito à produção cultural dos povos, encontrada em seus saberes, no folclore, nas
línguas, nas festas, nos hábitos, entre outros, que são transmitidas de uma geração para outra.
Esse tipo de patrimônio é vulnerável pelo fato de estar em constantemente mudança.
Devido a isso, a Comunidade Internacional adaptou a Convenção para a Salvaguarda do
Patrimônio Cultural Imaterial em 2003. Nos últimos vinte anos a UNESCO tem se preocupado
com a importância desse patrimônio, para que seja este espalhado para todos os povos, devido
à sua importância e complexidade, visando, assim a sua proteção. Para isso, tem estimulado
os Entes Governamentais, bem como as Organizações Não Governamentais (ONGs) e
também as próprias comunidades para valorizarem o seu patrimônio intangível.
Em 1989, foi estabelecida pela organização a Recomendação sobre Salvaguarda da
Cultura Tradicional e Popular, a qual fornece elementos para a identificação, preservação e
continuidade desse patrimônio.

2.2 A Cultura da Vaquejada no Nordeste

A cultura do Nordeste brasileiro desenvolveu hábitos próprios com relação ao mundo


e às manifestações culturais, herdados de gerações passadas.
Dito isso, temos a vaquejada que pode ser considerada uma manifestação cultural
tipicamente nordestina. Essa prática foi desenvolvida nos tempos em que os coronéis criavam
seus gados de forma extensiva, ou seja, não havia cercas que separassem as terras, e em uma
determinada data do ano, reuniam-se os coronéis com os vaqueiros.
No início, originalmente a vaquejada marcava o fim de uma etapa de trabalho, que
incluía as marcações, as castrações, o desmochar, o cuidar das feridas, entre outros, trabalhos
essenciais dos vaqueiros. Após a separação dos animais, começava a vaquejada que, a
princípio, era considerada uma Festa de Mourão, que nada mais é do que a demonstração das
habilidades dos vaqueiros e de seus cavalos com a lida do gado.
No ano de 1940, os coronéis e os senhores de engenho passaram a organizar as disputas
de vaquejada, onde estes realizavam apostas nos vaqueiros. Com o tempo essas pequenas
disputas tornaram-se maiores e mais profissionais.
Como foi dito anteriormente a vaqueja teve início no tempo dos coronéis e senhores
de engenho por volta da década de 1940 aproximadamente, esses homens eram os maiores
incentivadores e organizadores dessa atividade. Nessa época não existia premiação para os
competidores e sim um pequeno agrado.
Na década de 1950 a vaquejada ganha as ruas das cidades. Ou seja, migram das
fazendas para os centros urbanos, deixando de ser exclusividade dos coronéis para ser
apreciados por toda a população. Nesse tempo, as pistas eram improvisadas como, e em
consequência disso havia acidentes envolvendo os vaqueiros e animais, tanto cavalos como
bois pelo fato da pista não ser forrada e não ter a faixa demarcada para derrubar o boi. Ganhava
quem derrubava mais rápido o novilho.
Na década de 1960 e 1970 as primeiras vaquejadas utilizavam faixas de 6 metros, essa
época ficou conhecida pela a fase do boi de arrasto, porque era permitida a derrubada do boi
e arrastá-lo para dentro da faixa, prevalecendo a força física sobre a técnica. Desde então
surgiram grandes nomes da música popular como Luiz Gonzaga, Marinês, dentre outros.
Na década de 1980, surgiram regras em que a faixa passa a ter 10 (dez) metros e a
técnica passa a ser de fundamental importância. Surgindo as grandes premiações como os
carros e motos. E grandes shows, como Jorge de Altinho e Dominguinhos entre outros. E a
partir da década de 1990 a vaquejada passa a se profissionalizar, através de parques com
grandes estruturas e equipes de vaqueiros.
Hoje, essa manifestação cultural abrange um grande número de espectadores e
participantes, sendo, inclusive, uma grande fonte de geração de trabalhos e renda, sejam elas
de forma direta ou indireta.
No estado de Pernambuco, as maiores festas e competições se concentram nos Parques
Milanny, em Caruaru, Rufina Borba em Bezerros e o João Galdino em Surubim. Onde, neste
último em uma de suas edições da vaquejada, a família de João Galdino homenageou a
memória do ex-governador do Estado de Pernambuco Eduardo Campos, dando o seu nome à
pista de competição, que agora se chama Pista Governador Eduardo Campos. O filho mais
velho do ex-governador, Pedro Campos, foi a Surubim na ocasião, como representante da
família Campos e demonstrou toda a gratidão em virtude da homenagem feita a seu pai. Com
seu discurso, mostrou a sua afeição ao esporte e à cultura oriunda da vaquejada, deixou claro,
o quanto considera importante para a manutenção das tradições nordestinas.
Tal manifestação cultural é tão apaixonante e encantadora que acaba por receber
atenções de escritores e cineastas que têm interesse em mostrar ao público o valor e a
importância da mesma. Prova disso é o filme “Valeu Boi”, protagonizado pelo ator global
Juliano Cazarré, sendo a maior parte de suas cenas gravadas no Parque Ivandro Cunha Lima,
na Paraíba. Ao passar pelo período de treinamento para a realização do longo, o ator se viu
completamente envolvido pela carga tradicional que a vaquejada traz.
Assim comentou em entrevista (2014, p. 20):
Não conhecia o esporte, já tinha visto alguma coisa pela televisão, mas descobri que
se trata de uma grande e importante manifestação cultural nordestina, que precisa
cada vez mais respeitada e incentivada. Além de ser um esporte cultural, é também
um grande negócio, que gera empregos e renda, sem falar impulso que traz ao
turismo de eventos da região. Encontrei aqui gente de diversos Estados do País,
numa prova de que a Vaquejada vem conquistando o Brasil.

Dessa forma, é perceptível o quanto esse esporte faz parte da cultura do nordeste, sendo
graças a isso que são atraídos milhares pessoas, dentre os quais inúmeros competidores,
amadores ou profissionais, onde o público principal é a família, que junto aos amigos,
prestigiam essa cultura tão rica. Contudo, há aqueles que alegam que esse mesmo público só
frequenta esses locais devido às bandas de sucesso do momento. Entretanto, podemos notar
que isso é um pensamento preconceituoso tendo em vista as arquibancadas que estão sempre
lotadas.
O interesse em conservar a cultura evoluiu para um comprometimento com o bem-
estar animal, desenvolvendo uma consciência em relação às regras, as quais passaram também
a proteger os animais.
Outra forma de cultura que é encontrada nas vaquejadas são as construções de versos,
também conhecidos como toadas ou aboios.
Os vaqueiros não utilizam técnicas complexas, pelo contrário, usam apenas uma luva
de couro, como está no anexo, para proteção do seu punho. E aqueles mais habilidosos,
utilizam uma técnica que se chama “Saída de Sela”, na qual o vaqueiro sai totalmente da sela
do cavalo e, se equilibrando em apenas em um dos estribos e segurando no pescoço do cavalo,
derruba o boi, como representa o anexo. Essa habilidade só pode ser executada por
profissionais qualificados, devido ao fato de que, qualquer erro ocorrido na sua execução,
pode levar o vaqueiro à queda.
Outra técnica é dos treinos tanto dos homens quanto a dos animais. Principalmente
esses últimos são submetidos periodicamente a treinos no qual nem sempre o gado é
derrubado. Esse treinamento para os cavalos consiste no “alinhamento”, que nada mais é do
que acostumarem os cavalos no pé do mourão para que dessa forma eles estejam calmos, já
que no novo regulamento não é permitido o fechamento da porteira depois de aberta.
Antigamente, essas técnicas consistiam na derrubada dos animais no mato ou até
mesmo em locais não apropriados, porém com o passar dos anos e com o novo regulamento
isso mudou.
Como dito anteriormente, um dos maiores Parques na qual a sua vaquejada pode ser
considerada uma das melhores do Estado de Pernambuco é o Parque Milanny na cidade de
Caruaru. Essa festa gera renda ao município com a geração de empregos diretos e
indiretamente, além do mais, movimenta o turismo. Já que boa parte dos competidores são de
outros Estados.

2.3 A Regulamentação da vaquejada e as regras de bem estar animal afastando os maus


tratos aos animais

A vaquejada é praticada principalmente nas regiões Norte e Nordeste do Brasil e


alguns Estados, como a Paraíba, Ceará e Roraima já regulamentaram a vaquejada como
atividade desportiva e cultural.
Em Alagoas, o Deputado Estadual Dudu Hollanda do Partido Social Democrático
(PSD) aprovou na Assembleia Legislativa no dia 26 de dezembro de 2012 a realização de
rodeios e vaquejadas em todo o Estado.
Dessa forma, a constituição traz no seu texto a regularização da profissão do vaqueiro
e garante a todos o direito ao acesso a cultura. Assim sendo, a vaquejada deve ser mantida e
protegida uma vez que a mesma tem mais de cem anos de existência. Além do mais essa
modalidade de cultura está se adequando com a modernidade como a criação de proteção de
cauda, regras de bem estar animal e regras que unifiquem todas as vaquejadas para tranquilizar
os competidores e principalmente para os animais, causando o mínimo possível de sequelas,
tendo em vista que muitos dos bovinos após as competições serão destinados para os
frigoríficos.
E para que haja proteção para os animais a Associação Brasileira de criadores de
Cavalos Quarto de Milha- ABQM e Associação Brasileira de Vaquejada- ABVAQ criaram as
regras de bem-estar animal visando uma adequação e que sejam reconhecidas legalmente
como fator cultural da sociedade.
E como dito a cima, as regras de regulamentação de competições criadas pela ABQM
visaram fazer com que os maus tratos ocorridos antes, não sejam mais permitidos, muito
menos tolerados fazendo que as duplas de vaqueiros tenham como penalidade a sua
desclassificação.
Os responsáveis por essa regulamentação visaram uma adequação para que os animais
não se enquadrarem na tipificação do caput do artigo 32 da lei 9.605/98. O artigo da lei crimes
ambientais traz no seu caput palavras que antes poderiam ser praticadas nas vaquejadas, mas
com o advento das regras a ABQM implantaram transformações essa realidade da seguinte
forma: antes qualquer ferida apresentadas pelos os animais sejam elas devido às provas ou
qualquer outro motivo irrelevantes. E antes não havia nenhuma preocupação a esse respeito.
Dessa forma estava tipificada a conduta do art. 32 de ferir, hoje isso não mais acontece,
já que qualquer sangramento, o animal estará desqualificado conforme o item 18 desse
regulamento.
Além do mais, qualquer pessoa poderia constatar que antes os vaqueiros agrediam os
cavalos sem nenhuma necessidade, isso era chamado de açoite, o que fazia com que o animal
ficasse estressado e lesionado. Era mais uma forma de abuso de maus tratos, hoje isso não é
mais permitido graças ao item 19 e 20 do mesmo regulamento, caso sejam descumpridas essas
regras terá como consequência a desclassificação da dupla.
Mas essas conquistas não apenas se restringem aos equinos, uma vez que os bovinos
também saíram protegidos. A dupla que conduz o boi entre os cavalos podia estimular a
carreira do mesmo batendo no seu lombo com o chicote, caso isso aconteça mais uma vez terá
como penalidade a desclassificação.
Porém a proteção para os bovinos não param por aí. Antes existia um limite mínimo
para o peso desses animais, ou seja, era usado qualquer tipo de boi seja ele pequeno ou não,
dessa forma era mais uma tipificação do art.32 o qual seria abuso, já que muitos desses animais
não tinham condições para correr. É estabelecido que o peso deva ser no mínimo de 10 arrobas
no qual uma arroba equivale a 15 quilos.
Além do mais existem as regras de bem estar animal, as quais podem ser encontradas
no seite oficial da ABQM. Este Regulamento contém regras de bem-estar Animal nos eventos
de concentração que envolvam equinos e bovinos, definindo procedimentos e estabelecendo
diretrizes e normas para a garantia de atendimento aos princípios de bem-estar animal.
Um ponto de fundamental importância dessa regulamentação é a proibição do uso da
espora, chicote e principalmente do freio de metal que é usado nos cavalos, ou seja, esse ferro
não poderá mais ferir o focinho e para que isso não ocorra é necessário que a cortadeira esteja
totalmente encapada. Assim afasta mais uma fez o artigo 32 da lei 9.605/98

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo chega à conclusão de que a cultura é um direito constitucional, e o


dever do Estado é preservá-lo. Posto isso, cabe ao Estado fiscalizar os parques de forma que
estes cumpram com suas obrigações, tanto no respeito ao trabalhador, nesse caso, o vaqueiro,
quanto aos cuidados com os animais. Difícil é aceitar que uma sociedade que se diz
democrática, que diz respeitar as mais diversas opiniões queira acabar com uma atividade
cultural tão importante para algumas regiões do país.
As relações humanas, inclusive as interações com os animais, podem produzir culturas.
Por isso, o operador do direito não pode se valer apenas da literalidade de uma lei, sem
considerar as possibilidades existentes, nem avaliar que a proteção de um bem jurídico possa
extinguir uma cultura.
As vaquejadas, ao contrário de outras “manifestações culturais”, como as touradas e a
farra do boi, não têm como objetivo maltratar, mutilar ou matar os animais. Na realidade, a
vaquejada é a forma de manifestação de uma cultura cunhada nas interações entre o boi, o
cavalo e o homem nos tempos coloniais e que esse permanece viva até hoje. Porém na
atualidade, vem-se adequando as normas e valores vigentes.
Portanto, conclui-se que a vaquejada é uma cultura indenitária do sertanejo nordestino,
na qual onde o vaqueiro é um profissional regulamentado por lei, e que o objetivo da
vaquejada e do vaqueiro não é maltratar animais, por isso, a vaquejada deve ser preservada,
no entanto, os maus tratos contra os animais devem ser efetivamente combatidos.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, Brasília:


Senado, 1988.

CUSTÓDIO, Hélita Barreira. Crueldade contra animais e a proteção destes como


relevantes questões jurídico-ambiental e constitucional. Revista de direito ambiental. São
Paulo: p. 48, jul. 1997.

DA MATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

_______. Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e


administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras
providências. Planalto: Brasília, 12 de fevereiro de 1998. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9605.htm> Acesso em 20 de ago. 2018.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini Aurélio: o dicionário da língua


Portuguesa/ Aurélio Buarque de Holanda Ferreira; coordenação de edição de Marina Baird
Ferreira. 8.ed. Curitiba: Positivo, 2010.

LEVAI, Laerte Fernando. Direito dos Animais, 2.ed. ver. ampl. e atual pelo autor- Campos
do Jordão, SP: Editora Mantiqueira, 2004.

ORWELL, George. A revolução dos animais. 29. ed. São Paulo: Companhia das letras, 2007.
p. 12.

______________. Deputado vaqueiro aprova projeto. Disponível em


<http://www.portalvaquejada.com.br/noticias/2012/12/27/deputado_vaqueiro_aprova_projet
o_> Acessado em: 29 de ago. de 2018

_____________. Parque. Disponível em:


</www.portalvaquejada.com.br/noticias/2014/09/22/parque_j_galdino_homenageia_
eduardo>. Acessado em 25 de ago. 2018.

___________. Representação da Unesco no Brasil. Disponível em:


<http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/culture/world-heritage/intangible-heritage/
>Acessado em: 29 de ago. 2018.
A AFROCENTRICIDADE E ENSINO RELIGIOSO: uma análise a partir da Lei n.
10.639/2003 8

Maria Isabel Queiroz dos Santos9

RESUMO

O presente trabalho busca analisar como a afrocentricidade aplicada ao ensino religioso educa
para as relações étnico-raciais, utilizando para isso, conceitos que emergiram durante o
processo da diáspora africana, além daqueles que apresentam hoje de forma explícita o
racismo na sociedade brasileira. Propõe-se analisar durante a pesquisa, o conceito de
afrocentricidade relacionando-o a educação, além de observar o ensino religioso de caráter
confessional como forma de segregação das religiões afro-brasileiras e de matrizes africanas,
apontando possíveis consequências negativas dessa estrutura de ensino no meio escolar. Além
disso, a pesquisa busca analisar o processo de formação histórica e social a partir da diáspora
africana para observar de que modo se afirmou na efetivação do direito à educação no Brasil,
conforme as previsões da Lei Federal n.10.639/03, ou se permanece como particularidades
ignoradas cuja memória não é transmitida. Para tanto, será utilizada pesquisa bibliográfica e
documental a qual possuirá como objeto de análise a Lei n. 10.639/03, além das Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira.

Palavras-chave: Educação. Ensino Religioso. Afrocentricidade. Religiões afro-brasileiras.

INTRODUÇÃO

A educação como direito constitucional10 de qualquer cidadão é à base do respeito


mútuo entre as diferenças. É a partir dela que podemos adentrar em realidades que não
vivenciamos sem discriminar ou segregar pessoas das mais variadas culturas e costumes. É
partindo dessa ideia que surge a necessidade em inserir no meio escolar os ensinamentos sobre
culturas e histórias que não sejam apenas europeias, como forma de trabalharem o respeito à
diversidade.
No ensino religioso, por exemplo, o aluno tem o direito de conhecer e estudar a história
de diversas religiões, caracterizando assim a diferença entre ensino religioso e educação
religiosa, esta que deve ser trabalhada dentro da opção do aluno em suas instituições religiosas

8
Trabalho submetido para o Grupo de Trabalho 1 (Meio Ambiente, Sociedade e Diversidade) do III Congresso
Pernambucano de Ciências Jurídicas.
9
Graduanda em Direito, Universidade de Pernambuco, Campus Arcoverde, Bolsista de Iniciação Científica
UPE-CNPq, integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas Transdisciplinares sobre Meio Ambiente, Diversidade
e Sociedade - GEPT/UPE-CNPq. Trabalho orientado pela Profa. Clarissa Marques.
mariaiqueirozsantos@gmail.com
10
Art. 6º, CF/88 São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o
lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados,
na forma desta Constituição.
e no seio familiar (DINIZ, LIONÇO, CARRIÃO, 2010). É incomum, no entanto, que a
maioria das escolas adote a postura de lecionar sobre mais de uma religião, tendo em vista que
o país de maioria cristã ainda detém a ideia de religiões menos importantes ou “seitas”
utilizando para isso da discriminação religiosa. Para isso, é necessário que haja a
desconstrução da ideia de superioridade cristã, dando espaço para as lições de outras religiões,
como as afro-brasileiras e de matrizes africanas.
A discriminação empregada às religiões afro-brasileiras tem pilares raciais, não se trata
apenas de uma religião diferente em meio a uma maioria cristã, mas de religiões com fortes
influencias africanas, oriundas de um continente de maioria negra, por isso a denominação de
racismo religioso. É devido à ideia de inferioridade negra que há a incidência do racismo
epistemológico, que segundo Renato Nogueira (2015, p.6) significa “a recusa em reconhecer
que a produção de conhecimento de algumas pessoas seja válida por duas razões: 1º) Porque
não são brancas; 2º) Porque as pesquisas e resultados da produção de conhecimento envolvem
repertório e cânones que não são ocidentais” como no caso dessas religiões que embora hoje
possam ser cultuadas em um estado laico, sofrem diariamente com a discriminação racial e
religiosa.
Nesse sentido, a problematização do presente trabalho volta-se para o questionamento
sobre como a afrocentricidade aplicada ao ensino religioso educa para as relações étnico-
raciais e como a lei 10.639/03 age enquanto forma de combate ao racismo epistémico. Como
objetivos específicos, a pesquisa busca analisar o processo de formação histórica e social a
partir da diáspora africana para observar de que modo se afirmou na efetivação do direito à
educação no Brasil, conforme as previsões da Lei Federal n.10.639/03, ou se permanece como
particularidades ignoradas cuja memória não é transmitida, além de apontar possíveis
consequências sociais da aplicação do ensino religioso de caráter confessional, hoje
amplamente aplicado no Brasil. Para tanto, será utilizada pesquisa bibliográfica e documental
a qual possuirá como objeto de análise as Leis n. 10.639/03 e 11.645/08, além das Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira.
A justificativa do trabalho se dá pela necessidade em implementar no meio acadêmico
um problema que há tempos exclui e segrega pessoas do meio social, como é o caso do
racismo. Busca-se, portanto, alternativas através da educação afrocentrada para a diminuição
da discriminação racial no ambiente escolar, seja básico ou de nível superior, trazendo com
isso a entrada de estudos sobre as matrizes históricas africanas como forma de militância
profissional, acadêmica e política.

EDUCAÇÃO ÉTNICO-RACIAL E ENSINO RELIGIOSO NO BRASIL

Na realidade brasileira, o processo de colonização – no qual houve um sistema de


tráfico e escravização da população negra – resultou no estabelecimento de um paradigma de
discriminação baseado primordialmente na cor da pele dos indivíduos como fator de
vitimização. Assim, pessoas negras eram vistas como indivíduos bárbaros, inferiores, ou até
mesmo tinham sua humanidade desconsiderada, sendo alvo dos mais diversos tipos de
violências, em razão de seus aspectos raciais (BARROS, 2006).
Juntamente com a identidade do negro que veio escravizado para o Brasil, suas
religiões foram proibidas e marginalizadas, sendo permitido a eles apenas os cultos e crenças
ao catolicismo, que se tornaram obrigatórias a partir da chegada da Companhia de Jesus,
conhecida como jesuítas, para “a consecução do projeto português de colonização das terras
brasileiras” (SHIGUNOV, SHIZUE, 2008, P.171) trazendo a conversão do índio e dos
escravos à fé católica por meio da catequese. Diante da imposição de uma nova forma de vida,
a miscigenação de povos e crenças deu início a um sincretismo que originou diversas religiões
no Brasil, além das que foram trazidas através da chegada de diferentes povos, essas que
permaneceram por muitos anos reunidos como seitas de classes subalternas e de irrelevante
conhecimento. Não obstante, esta situação não se encerrou no pós-abolição, ao contrário, foi
se consolidando ao longo do tempo, uma vez que um dos principais aspectos do racismo é a
sua capacidade de se adaptar de acordo com as diversas circunstâncias em que se manifesta
(BARROS, 2006).
Sabe-se que no Brasil, o modelo de desenvolvimento eurocêntrico impediu que
milhões de pessoas tivessem acesso à escola, afastando, por exemplo, aquelas que não eram
desejadas no meio social, criando as periferias como consequência da exclusão daqueles em
estado de vulnerabilidade, a maioria negra. Além de impedir que essas pessoas alcançassem
o ensino básico, através do material didático, excluiu também a luta de classes e as lutas raciais
como forma do alunado não ter acesso à verdadeira história do país, que tinha como herói não
o opressor, mas o oprimido, deixando explícito que nem na história do próprio povo negro e
indígena eles aparecem como protagonistas, pois essa história é contada sobre os olhos do
colonizador, “não bastaria assim, quando se ensina nas escolas a história dos
afrodescendentes, falar dos escravos como vítimas, mas haveria que ressaltar as histórias de
resistências, as lutas por liberdade e as contribuições político-culturais dos povos negros.”
(CASTRO (coord.), ABRAMOVAY (coord.), 2006, p.35). Segundo Nilma Lino Gomes
(2018):

Na luta pela superação desse quadro de negação de direitos e de invisibilização da


história e da presença de um coletivo étnico-racial que participou e participa da
construção do país, o Movimento Negro, por meio de suas principais lideranças e
das ações dos seus militantes, elegeu e destacou a educação como um importante
espaço-tempo passível de intervenção e de emancipação social, mesmo em meio às
ondas de regulação conservadora e da violência capitalista. (GOMES, Nilma, 2018,
p. 25)

Foi o Movimento Negro que alertou a sociedade e o Estado quanto à desigualdade


racial no Brasil, e como isto não é apenas resultado do passado escravista nacional, mas “um
fenômeno mais complexo e multicasual, produto de uma trama complexa entre o plano
econômico, político e cultural (SILVÉRIO, 2002, apud, Gomes, Nilma, 2018). É notável que
as crianças ainda sofram no meio escolar com a discriminação racial, isso inclui os momentos
de diversão, assim como atividades extra-sala e não somente dentro da sala de aula. Portanto,
além da dificuldade em inserir as pessoas negras no meio escolar, por motivos de exclusão já
citados, também existe a dificuldade em combater o racismo para que essas pessoas
permaneçam nas escolas, de forma que os alunos que não são negros entendam e respeitem a
diversidade do país. Ou seja, segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana:

A relevância do estudo de temas decorrentes da história e cultura afro-brasileira e


africana não se restringe à população negra, ao contrário, diz respeito a todos os
brasileiros, uma vez que devem educar-se enquanto cidadãos atuantes no seio de
uma sociedade multicultural e pluriétnica, capazes de construir uma nação
democrática. (DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS PARA A
EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E PARA O ENSINO DE
HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA, 2004).

A educação é direito social explícito na Constituição Federal de 1988 e tem suas bases
estabelecidas pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que traz em seu art. 3º, I, “a
igualdade de condições para o acesso e permanência na escola” além de “respeito à liberdade,
e apreço a tolerância” previsto no inciso IV do mesmo parágrafo. No entanto, é na práxis que
se encontra a dificuldade da aplicação dessas normas. Na realidade brasileira a desigualdade
e a diferença de condições se fazem presentes, muitas vezes atreladas à ideia de raça. “Assim,
o processo educativo que ocorre nas relações entre os homens não pode ser feito por meio da
dominação do outro, mas de relações de igualdade, mediadas pelo diálogo” (CARLOS,
ESCARIÃO, p. 179).
São as religiões afro-brasileiras e de matrizes africanas que ainda hoje não alcançam
espaço no meio escolar dentro da disciplina de ensino religioso. Como apontam Débora Diniz,
Tatiana Lionço e Vanessa Carrião (2010) os estados criaram um ensino religioso que ignora
o pluralismo do Brasil. Portanto, há a necessidade em implementar no meio escolar a
discussão sobre as religiões afro-brasileiras e de matrizes africanas, para que haja uma
diminuição na falta de informação sobre essa cultura, visando a própria diminuição do racismo
religioso, tendo em vista que “o principal desafio ético do ensino religioso nas escolas públicas
é a garantia da justiça religiosa e da liberdade de crença” (DINIZ, CARRIÃO, LIONÇO, 2010,
p.59).
Segundo levantamento feito pelas supracitadas autoras, nas editoras religiosas do país
e também aquelas que produzem e comercializam os livros didáticos mais distribuídos pelo
governo federal para as escolas públicas, “para cada componente afro-brasileiro há em torno
de vinte componentes cristãos” em dados, significa que a presença de grupos religiosos
cristãos nos livros analisados representam 609 aparições, cerca de 65%, enquanto que de afro-
brasileiras representam apenas 30, algo em torno de 3% das aparições. Além disso, ao tratar
sobre a frequência da imagem de líderes religiosos e seculares nos livros, as autoras apontam
que Jesus Cristo foi citado 81 vezes em 192 possíveis, enquanto entre os 23 outros líderes
citados nas outras 111 menções, não há nenhuma liderança de religiões afro-brasileiras ou
mesmo líderes negros brasileiros de outras religiões. (DINIZ, CARRIÃO, LIONÇO, 2010,
p.59). Diante disso, houve a necessidade em reconhecer as religiões afro-brasileiras como de
igual valor diante das demais e iniciar um processo de aceitação da identidade negra – auto
definição - e da identidade atribuída - definição dos outros- (MUNANGA, 1996).

ENSINO RELIGIOSO DE CARÁTER CONFESSIONAL

O ensino religioso está previsto na Constituição Federal de 1988 em seu artigo 210,
§1º onde aponta que “O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos
horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.” Além da previsão do artigo
33 da LDB:

Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação


básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas
de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do
Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.
No entanto, o ensino religioso de caráter confessional tem sua previsão em
uma decisão tomada pelo STF, que tornou possível este tipo de ensino. A característica
principal do caráter confessional é a possibilidade de seguir em sala de aula os ensinamentos
de uma religião específica. Segundo o ministro Roberto Barroso, em voto proferido a favor
do ensino não confessional a única forma de realizar o princípio da laicidade estatal,
garantindo a liberdade religiosa e a igualdade é com o ensino confessional sendo ministrado
de forma neutra e objetiva. “Como não há parâmetros nacionais para a disciplina, não existe
um mecanismo que contribua para que o conteúdo do ensino religioso seja transmitido sem
proselitismo e com respeito à liberdade religiosa dos alunos em todas as escolas de ensino
fundamental no Brasil.” (BARROSO). Segundo DINIZ, LIONÇO E CARRIÃO, 2010:

O objetivo do ensino, segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), deve


ser o de garantir a formação básica comum e promover a diversidade, sendo que a
restrição ao proselitismo religioso demarca a fronteira entre ensino religioso e
educação religiosa, entre conhecimento e dogma, entre igualdade e discriminação,
ou seja, entre o que deve ou não compor os conteúdos de ensino religioso nas escolas
públicas. Nesse raciocínio, não pode haver ensino religioso confessional, pois o
estatuto de verdade de cada religião não é compartilhado, além do quê a
confessionalidade não promove o pluralismo razoável, mas as crenças de
comunidades específicas. (DINIZ, CARRIÃO, LIONÇO, 2010, p.59).

É inegável a imensa possibilidade de que o ensino confessional possa influenciar e


intervir no direito de crença e credo dos alunos. Pode-se perceber que, como afirmam as
autoras Débora Diniz, Tatiança Lionço e Vanessa Carrião (2010), que todo material de apoio
institucional precisa ser avaliado pelo Programa Nacional do Livro Didático, com exceção
apenas do material vinculado ao ensino religioso, esse não precisa da citada avaliação.
Segundo DINIZ, LIONÇO E CARRIÃO, 2010:

Como garantir a justiça religiosa é parte do desafio ético a ser enfrentado pela
regulação do ensino religioso nas escolas públicas. Não basta apresentar diversas
religiões a partir de um ponto de vista específico: a justiça religiosa pressupõe a
igualdade discursiva para todos os grupos. A consideração equitativa entre
diferentes pontos de vista morais em matéria de religião não se reduz à menção de
determinadas crenças como outras, ou tendo seu sentido apreendido a partir de uma
referência que lhe é exterior. É essa posição ética diante da diversidade – a do
reconhecimento da alteridade como fundamento da democracia – que garantirá que
o ensino religioso nas escolas públicas não comprometa a laicidade do Estado
brasileiro. (DINIZ, LIONÇO, CARRIÃO, 2010, p.100-101)

Dessa forma, há o risco eminente de que se haja ao invés de um ensino religioso, uma
educação religiosa, essa que deveria ser feita não no âmbito escolar, mas dentro de cada
instituição religiosa a qual pertença o aluno. Como indicam Carlos e Escarião (2017, p. 198)
as expressões ‘educação/ensino’ e ‘educação religiosa/ensino religioso’ indicam conceitos
distintos que acabam por determinar o modo como o conhecimento é organizado na disciplina
de ensino religioso. Ou seja, ao confundir a educação e o ensino, a escola acaba por estabelecer
uma forma de lecionar que abrange uma única religião na maioria das vezes, que não condiz
com a ideia de diversidade que deve ser seguida na disciplina de ensino religioso.

A AFROCENTRICIDADE E A LEI 10.639/03

A dominação europeia sobre o mundo, por séculos impôs um paradigma civilizatório


que trouxe para os povos influenciados por ele uma distorção de identidade, visto que
observam sua própria história a partir dos olhos dos colonizadores. Diferentemente desta
perspectiva, a afrocentricidade coloca os africanos como agentes do seu próprio processo
histórico. (BENEDICTO, 2016). Segundo Ricardo Matheus Benedicto, “é necessário colocar
em xeque esta crença, ideologia, paradigma, para que o africano possa desenvolver uma
identidade positiva e assumir o controle –agência- de suas vidas”. Segundo Noguera (2010,
p.6):

Uma proposta de educação afrocentrada deve estar assentada em fundamentos


apoiados na história dos povos africanos, numa linha filosófica africana, em
investigações sociológicas que analisem as em sociedades africanas e
afrodiaspóricas, e numa psicologia afrocentrada. (NOGUEIRA, 2010, p.6)

Ao tratar sobre a afrocentricidade na educação, segundo Renato Noguera (2010, p.6)


“não se trata, somente, de identificar os padrões hegemônicos; mas, de propor e sustentar a
afrocentricidade. É preciso conceber a natureza a partir de um lugar africano em todos os
aspectos da vida”. Ou seja, não basta que saibamos que existe uma educação estruturada a
partir do eurocentrismo, é necessário que se sustente um modelo diverso daquele estabelecido,
não de forma a substitui-lo, pois a afrocentricidade não pretende “tomar o espaço” do
eurocentrismo, mas de forma pluriversal para que o povo negro possa olhar sua história sob
um viés que não seja do homem branco colonizador.
O Movimento Negro, nas suas mais diversas formas de expressão e de organização é
responsável, apesar dos desafios e dos limites impostos a ele, por muito do que se fala hoje no
Brasil sobre raça, numa perspectiva crítica. Não fosse por ele, as políticas de promoção da
igualdade sequer teriam sido construídas e implementadas, como é o caso da obrigatoriedade
do estudo da história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas públicas e particulares da
educação básica (GOMES, Nilma, 2018). Apesar de o Brasil ser um estado pluriétnico, que
propaga a ideologia de viver uma “democracia racial” (JESEN, 2001) foi necessária à criação
de uma lei (10.639/03) que instituísse o ensino da história e cultura afro-brasileira, tornando-
a obrigatória nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, no
intuito de valorizar a identidade negra e de combater a discriminação racial em meio a um
cenário no qual o racismo ainda representa um desafio e permanece institucionalizado nos
diversos âmbitos da sociedade (BARROS, 2006), como no caso das religiões afro-brasileiras,
que raramente compõem o currículo escolar da disciplina de ensino religioso. Como apontam
as Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o
ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, ao tratar sobre o Movimento Negro:

Os diferentes grupos, em sua diversidade, que constituem o Movimento Negro


brasileiro, têm comprovado o quanto é dura a experiência dos negros de ter julgados
negativamente seu comportamento, idéias e intenções antes mesmo de abrirem a
boca ou tomarem qualquer iniciativa. Têm, eles, insistido no quanto é alienante a
experiência de fingir ser o que não é para ser reconhecido, de quão dolorosa pode
ser a experiência de deixar-se assimilar por uma visão de mundo que pretende
impor-se como superior e, por isso, universal e que os obriga a negarem a tradição
do seu povo. (DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS PARA A
EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E PARA O ENSINO DE
HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA, 2004).

A lei 10.639/03, como consequência “de vários dispositivos legais presentes na


Constituição e na Lei de Diretrizes e bases da Educação Nacional (LDB) e de reivindicações
legítimas de diversos movimentos sociais, como o Movimento Negro” (NOGUEIRA, 2010,
p.7) estabelece as diretrizes e bases da educação nacional para acrescentar no currículo oficial
escolar a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-brasileira”, que inclui o estudo
da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e
o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas
social, econômica e política pertinente à História do Brasil. Essa lei surgiu no intuito de
valorizar a identidade negra e de combater a discriminação racial em meio a um cenário no
qual o racismo ainda representa um desafio e permanece institucionalizado nos diversos
âmbitos da sociedade (BARROS, 2006). Sendo assim “uma educação afrocentrada se
configura como uma possibilidade de cumprimento do marco legal” (NOGUEIRA, 2010, p.7).
Ainda há certo distanciamento entre o proposto pela legislação e a realidade nos
ambientes escolares. De uma forma geral o ensino sobre a cultura afro-brasileira nas escolas
ainda é reduzido, limitando-se a datas e fatos específicos, como por exemplo, a Lei Áurea e a
violência física sofrida pelos negros durante a escravidão. Há uma omissão quanto às demais
lutas enfrentadas pela população negra e de sua contribuição para a construção social e cultural
brasileira, resultando numa formação superficial dos alunos quanto à história do Brasil. Outro
aspecto que influencia na permanência desta situação é a reprodução do mito da democracia
racial amplamente difundido no Brasil – que possui como pano de fundo a valorização da
miscigenação e uma possível igualdade entre brancos e negros, o que, por outro lado,
representa um discurso de dominação simbólica (GUIMARÃES, 2008) e a consequente
manutenção dos negros como sujeitos subalternos (QUIJANO, 2005).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pôde-se observar que a partir do processo de exclusão da população negra brasileira,


o acesso a educação tornou-se limitado. Sua presença em sala de aula foi tão marginalizada
quanto a sua história quando apresentada pelo material didático. Sua cultura, sua religião e
seus costumes foram transformados em pseudosaberes e o mito da democracia racial instalou
na população a ideia de que havia se solidificado uma igualdade entre brancos e negros.
A afrocentricidade na educação reflete a necessidade de alterar o modelo de ensino
eurocêntrico instalado no Brasil, para que se considerem as lutas, histórias e culturas dos
povos africanos sob o olhar da própria África e não sob os olhos do colonizador.
Ao tratar sobre as religiões afro-brasileiras pôde-se concluir que há um distanciamento
entre a lei 10.639/03 e a realidade escolar no que diz respeito ao ensino religioso, tendo em
vista que a citada lei não atinge apenas as disciplinas de história e geografia, mas todo o
currículo escolar. Além disso, a educação escolar reflete na formação da personalidade da
criança. A presença do ensino confessional faz com que ela se vincule a uma única religião,
mesmo que de sua escolha e não participe de debates sobre outras crenças, distanciando o seu
convívio com a pluralidade.
Outra possibilidade frente à utilização do ensino confessional caracteriza-se pela
impossibilidade de a criança manter sua escolha desvinculada à de seus pais, o que faz com
que de certa forma, não haja liberdade religiosa quando for imposta pelos responsáveis a
escolha de uma religião específica no ensino religioso. Diferentemente, quando há o ensino
não confessional, o professor responsável lecionará uma pluralidade de religiões e suas
características, fazendo com que isso possibilite a escolha pessoal da religião que o aluno
desejar seguir, ou não, abrindo espaços para aqueles que desejam não professarem fé alguma.
Por fim, a aplicação da lei 10.639/03 é uma forma de afrocentrar o currículo escolar,
possibilitando um estudo em África que antes só era possível sob um viés europeu, que
apresenta a África com misérias e ignorância.

REFERÊNCIAS
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suspeição. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco. CFCH. Ciência
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BRASIL. Lei nº 10.639/03. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que


estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da
Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e
dá outras providências. Brasília: Diário Oficial da União, 9 de janeiro de 2003.

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TRANSPOSIÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO COMO
MEGAEMPREENDIMENTO: relações entre indústria da seca, desenvolvimento e
novas territorialidades11

Anne Gabriele Alves Guimarães12


Maria Luiza Rodrigues Dantas13
Clarissa Marques14

RESUMO

O presente trabalho busca compreender de que modo o padrão desenvolvimentista e a atuação


do Estado neoliberal interferem na vida de grupos de pessoas, principalmente os mais
vulneráveis. Para isso, analisa-se o megaempreendimento da Transposição do Rio São
Francisco e suas articulações entre agentes públicos e privados. Parte-se do pressuposto de
que o cenário geopolítico do Semiárido nordestino, marcado pela concentração fundiária e de
poder, contribui para formar a “indústria da seca”, sendo este o argumento utilizado para
efetuar intervenções econômicas na região. O referido macroprojeto, considerado funcional
aos ditames do capitalismo, ainda não foi concluído, mas já deixa impactos negativos. Para os
fins aqui delineados, destacam-se os deslocamentos forçados de muitas famílias camponesas.
Ao deixarem suas antigas propriedades em nome do desenvolvimento estatal, sacrificaram
também a autonomia e o modelo de produção agrícola de subsistência, submetendo-se a um
modo de vida completamente diferente em um contexto de novas territorialidades e perda de
identidade.
Palavras-chave: Transposição do Rio São Francisco. Neoliberalismo.
Megaempreendimento. Indústria da seca. Territorialidade.

INTRODUÇÃO

O fetiche por superlativos, no Brasil, passa a ganhar uma nova configuração quando o
Estado, vendido às lógicas do capital, legitima os chamados megaempreendimentos. Estes
grandes projetos são operacionalizados pelas confluências entre agentes públicos e privados,
tendo como principal objetivo o lucro.
Estado, mercado e empreiteiras ou grandes empresas encontram no modelo neoliberal
as bases de que precisam para gerar a acumulação capitalista e movimentar o excedente
produtivo. Neste sentido, as intervenções econômicas pautadas no padrão desenvolvimentista

11
Trabalho submetido ao GT 1 – Meio Ambiente, Sociedade e Diversidade.
12
Graduada em Direito pela Universidade de Pernambuco (UPE ARCOVERDE). Integrante do Grupo de
Estudos e Pesquisas Transdisciplinares sobre meio ambiente, diversidade e sociedade (GEPT/UPE/CNPq).
Integrante do Coletivo Direitos em Movimento (DIMO/UPE). E-mail: annegabrielebj@hotmail.com
13
Graduanda em Direito pela Universidade de Pernambuco (UPE ARCOVERDE). Integrante do Grupo de
Estudos e Pesquisas Transdisciplinares sobre meio ambiente, diversidade e sociedade (GEPT/UPE/CNPq).
Integrante do Coletivo Direitos em Movimento (DIMO/UPE). E-mail: malurod05@gmail.com
14
Pós-Doutora na The New School of Social Research – NY. Professora da UPE Arcoverde. Coordenadora do Grupo de
Estudos e Pesquisas Transdisciplinares sobre meio ambiente, diversidade e sociedade (GEPT/UPE/CNPq).
Coordenadora do Coletivo Direitos em Movimento (DIMO/UPE). E-mail: marquesc2504@gmail.com
são consideradas louváveis, pois colocam os países na rota do consumo.
Entretanto, é também o desenvolvimento que gera contradições, invisibilizando mal-
estares. No contexto do megaprojeto aqui apresentado, a Transposição do Rio São Francisco,
utiliza-se a falácia de que o verdadeiro desenvolvimento exige sacrifícios, desde que os
sacrificados sejam os mais vulneráveis, os “outros”. Esta é a primeira consideração a ser feita:
o padrão desenvolvimentista adotado pelos Estados neoliberais é discriminatório ao passo que
mantém relações sociais dominantes.
A Transposição, por exemplo, está localizada em um cenário de concentração
fundiária, de renda e poder, liderado por elites locais, sendo este fenômeno um legado do
processo de colonização. Apesar da injusta estrutura fundiária, o Semiárido nordestino, onde
está localizada a referida obra, é muito mais conhecido pelo imaginário de desterro ligado à
seca. É esta última a responsável pelas precariedades da região, afirmam os
desenvolvimentistas, valendo-se da “indústria da seca”.
Ignoram-se os grandes latifundiários – porque o objetivo é manter as relações sociais
dominantes - e criminaliza-se a estiagem prolongada. Por isso, as decisões políticas tentam
combater a seca, perpetuando o modelo de segregação. São decisões influenciadas pela
megalomania e pelo desejo de atender às demandas ferozes do capital, sem se importar com
as interferências nas vidas das pessoas.
Assim nasceu o megaempreendimento aqui estudado, como solução para garantir
segurança hídrica ao sertão. Após 11 anos, o projeto, ainda em andamento, traz muitas
promessas não cumpridas e expõe o quadro de vulnerabilidade acentuado pela passagem dos
canais. A Transposição expandiu as fronteiras do agronegócio, desterritorializando famílias
camponesas. A água não chegou para quem mais precisa, comprovando que o Estado
neoliberal desenvolvimentista, idealizador de obras monumentais, só se interessa pelos fluxos
de dinheiro.
A justificativa ao presente trabalho reside nas pesquisas desenvolvidas pelo Grupo de
Estudos e Pesquisas Transdisciplinares sobre meio ambiente, diversidade e sociedade
(GEPT/UPE/CNPq) e pelo grupo de extensão Coletivo Direitos em Movimento (DIMO/UPE),
que atuam juntamente com a extensão TransVERgente (UPE campus Garanhuns e Fiocruz).
A parceria permitiu uma visita às regiões afetadas pelos canais da Transposição em Sertânia
- PE. A partir do diálogo, as comunidades camponesas foram ouvidas, trazendo relatos de
angústia e tristeza oriundos da megaobra.
Como estudantes e pesquisadores das mais diversas áreas (Direito, Psicologia,
Medicina e Enfermagem) – a parceria integra estes cursos – sentiu-se diretamente o impacto
da pesquisa de campo, viu-se o processo de desterritorialização e como as grandes obras
afetam, sobretudo, os mais vulneráveis. Correção realizada de acordo com as considerações
dos avaliadores.
Diante do exposto, a pesquisa apresenta como objetivo geral compreender de que
modo o padrão desenvolvimentista e a atuação do Estado neoliberal interferem na vida de
grupos de pessoas, principalmente os mais vulneráveis. Como objetivo específico, se propõe
a explicar este modelo predatório de desenvolvimento, analisando a Transposição do Rio São
Francisco enquanto macroprojeto. Já ao fim, discorre-se sobre indústria da seca e novas
territorialidades no sertão. A metodologia utilizada tem abordagem qualitativa, com viés
exploratório e descritivo.

O PADRÃO DESENVOLVIMENTISTA E A ATUAÇÃO DO ESTADO A PARTIR DA


ÓTICA NEOLIBERAL

O desenvolvimento, em princípio, é um processo natural. Plantas, animais e humanos


se desenvolvem a partir de uma semente, um ovo, um embrião, até que se alcance a
maturidade. Para a natureza, este é um processo cíclico. Tal simbolismo, entretanto, acabou
servindo de inspiração ao presidente dos Estados Unidos Harry Truman, cujo discurso de
posse, em 1949, lançou ao mundo o binômio “desenvolvimento” e “subdesenvolvimento”
(LANG, 2016).
Desde então, as sociedades ou economias são descritas através deste “referencial”, ou
seja, o desenvolvimento, sob a ótica neoliberal, implica um processo linear e ilimitado,
despertando associações positivas. Opor-se ou obstaculizar o desenvolvimentismo é visto
como uma espécie de absurdo, algo sem sentido.
Apesar das propagandas neoliberais, há múltiplas razões para se desfazer do
“desenvolvimento” como referente positivo. Conforme Lang (2016, p. 26):

Por um lado, em retrospectiva, sabemos que tem sido uma promessa enganosa para
a grande maioria da população de regiões do Sul geopolítico. Até hoje, a chamada
“cooperação ao desenvolvimento” transfere muito mais recursos do Sul para o Norte
do que vice-versa. Ou seja, é um bom negócio para as economias que supostamente
são “doadoras”, não para as que deveriam receber.

Prometeu-se ao Sul global que, por meio do “desenvolvimento”, este poderia participar
do modo de vida dos países industrializados do Norte, mas esqueceram de dizer que o modo
de vida destes países “só é possível por causa das relações coloniais – históricas e atuais”
(LANG, 2016, p. 28).
Garantir uma vida baseada no acesso a bens materiais significa saturar o meio
ambiente em sua capacidade de absorver dejetos, indicando que o luxo de poucos é construído
sobre a espoliação de muitos. Os níveis de consumo atuais são possíveis, neste sentido, porque
outras culturas foram extirpadas e outros modos de vida foram negados com o objetivo de
tornar os “territórios funcionais às lógicas do capital” (LANG, 2016, p. 28).
O binômio “desenvolvimento versus subdesenvolvimento” se constitui em um modelo
que remete às colônias versus países centrais. A diferença reside na substituição de patamares
legitimadores: antes, falava-se em superioridade biológica e cultural; agora, fala-se em “ajuda
contra a pobreza” ou “cooperação ao desenvolvimento”.
Em suma, a meta do chamado padrão desenvolvimentista é incluir territórios,
notadamente aqueles não permeados pelas lógicas capitalistas, aos circuitos de acumulação
de capital, transformando cidadãos em consumidores. Está-se diante de uma grande máquina
de expansão do consumo capitalista, ratificada pelos governos. Estes últimos, por sua vez,
impulsionam o “desenvolvimento” moderno segundo os ditames neoliberais.
O neoliberalismo, então, consiste em um conjunto de processos econômicos, políticos
e culturais que permitem a um pequeno número de interesses particulares controlar a maior
parte possível da vida social. As consequências dessas políticas são as mesmas em todos os
lugares: crescimento da desigualdade econômica, aumento marcante da pobreza absoluta entre
as nações e uma bonança sem precedente para os ricos. Para Chomsky (2002, p. 22),
“resumidamente, as suas regras básicas são: liberalização do mercado e do sistema financeiro,
fixação dos preços pelo mercado (‘ajuste de preços’), fim da inflação (‘estabilidade
macroeconômica’) e privatização”.
A atuação estatal, ao ser conivente com a conjuntura acima, acaba perpetuando
relações sociais dominantes (BRAND, 2016). Neste imperativo superposto de continuar o
processo de acumulação é que “o Estado não é um ator neutro que atua independentemente
da sociedade, formulando a vontade geral e solucionando problemas” (BRAND, 2016, p.
131). Acredita-se, portanto, que as confluências entre Estado e capital financeiro se inserem
na perspectiva de manutenção, agora mais acentuada, da estrutura colonial capitalista, pois
legitimam os interesses do capital.
Tal análise faz pensar sobre como o Estado colonial – com suas estruturas normativas
- é uma instituição cuja gestão “se orienta historicamente a homogeneizar as políticas sem se
importar com as culturas diversas que habitam os territórios nacionais, sem incorporar outras
formas de ser, pensar e habitar os territórios” (MARTÍNEZ et al., 2016, p. 367).
O Estado permite e é condição de possibilidade para a reprodução de capital, para sua
circulação e para a apropriação de riqueza por setores específicos da sociedade. Neste ínterim,
“as relações entre empreiteiros privados, empresários e Estado, e suas formas de captação da
renda, são um elemento comum que acaba definindo planos, políticas e agendas em função
dos interesses do capital privado” (MARTÍNEZ et al., 2016, p. 375), fomentando o projeto
desenvolvimentista.
As entidades e os grupos de capital têm influência em setores da institucionalidade.
Por isso, é impossível, no marco neoliberal, propor reformas ou políticas públicas sem
considerar as empresas e os capitais que monopolizam certas áreas da economia.
O desenvolvimento, nas circunstâncias concebidas por Truman em 1949, tem como
um dos aliados o Estado, sujeito responsável por fazer concessões ao poder oligárquico, sendo
sua atuação forjada no ideal neoliberal de segregação dos muitos pelos poucos.
Em um mundo de privação e opressão, existem problemas novos convivendo com
antigos: pobreza, necessidades essenciais não satisfeitas, violação de liberdades, ampla
negligência estatal diante dos interesses dos mais vulneráveis e ameaças constantes ao meio
ambiente. Estes são indícios de que o padrão civilizatório hegemônico e desenvolvimentista -
de crescimento sem fim e baseado na mercantilização das dimensões da vida – passa por uma
crise, cujo término é tão incerto quanto destrutivo.

A TRANSPOSIÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO COMO


MEGAEMPREENDIMENTO E SUAS ARTICULAÇÕES ENTRE AGENTES
PÚBLICOS E PRIVADOS

O Brasil é um país de superlativos. Diz-se que “o culto à grandiosidade é um traço


característico do povo e da política brasileiros que se expressa nos mais diversos âmbitos da
vida do país” (GLASS, 2016, p. 407 - 408). Neste sentido, fala-se em melhor futebol do mundo
(numa perspectiva histórica) e na maior festa popular (o carnaval). O país tem a maior cidade
da América Latina (São Paulo), a maior floresta tropical, a maior biodiversidade e o maior
reservatório de água doce, a Amazônia (GLASS, 2016).
A conexão com a grandiosidade, sendo real ou não, tem sido bastante explorada em
benefício do projeto desenvolvimentista aqui mencionado. Isto porque diversos governos, ao
longo da história recente, associam realizações de setores da economia a “um certo fetichismo
nacionalista que lhes garante benevolências supraideológicas” (GLASS, 2016, p. 408). Ser
grande, para o padrão desenvolvimentista neoliberal, significa, inclusive, abafar as críticas
que apontem para possíveis fissuras do sistema.
Questiona-se, então, ainda de acordo com Glass (2016, p. 408), se é motivo de orgulho

sermos os maiores produtores de soja e cana do mundo; sermos os maiores


exportadores de carne vermelha e termos o segundo maior rebanho bovino; termos
a segunda maior hidrelétrica (Itaipu) e estarmos construindo a terceira (Belo Monte);
ser brasileira a maior mineradora (Vale) e a maior mina de ferro (Carajás).

Este imaginário megalomaníaco brasileiro define um “modelo” de país que invisibiliza


modos de vida, possibilidades, pessoas e futuros. Tal modelo prioriza a acumulação do capital,
valendo-se da atuação estatal para alcançar seus intentos. É sob o lema “ser
grande/maior/melhor” que se constroem os chamados megaempreendimentos.
Por megaempreendimentos, entendem-se os grandes projetos cujo elemento central é
o “reposicionamento competitivo das cidades frente às transformações econômicas do
capitalismo pós-fordista” (ROLNIK, 2015, p. 242). Identificam-se, nestes macroprojetos, a
espoliação dos ativos dos mais pobres e a construção da hegemonia do capital financeiro,
como sempre com o patrocínio do Estado (ROLNIK, 2015).
Podem-se considerar os megaempreendimentos como verdadeiras expressões
materiais da lógica desenvolvimentista, pautados em uma transformação do modelo político
de governo. Este último passa a ser forjado sob a captura contratual dos fundos públicos a
partir de estruturas de gestão com participação de investidores/empreiteiras (ROLNIK, 2015).
O modelo político de governo neoliberal, portanto, transforma as políticas públicas em
megaempreendimentos, sendo seus impactos sociais desastrosos. É neste sentido que reside o
risco ou, conforme coloca Kowarick (2009), o “viver em risco”. Significa que as decisões
macroeconômicas geram dimensões de precariedade que se multiplicam “de forma que os
mais vulneráveis, como aqueles que vivem em condições de pobreza ou em situação de
insegurança da posse, estão mais propensos a viver em áreas sujeitas a desastres naturais”
(ROLNIK, 2015, p. 237).
Viver em risco define a vulnerabilidade socioeconômica, política e civil de grupos de
pessoas, consideradas, assim, invisíveis15 e postas como as mais afetadas pelos
megaempreendimentos por ocuparem lugares no território geralmente discriminados segundo

15
Faz-se alusão ao documentário “Invisíveis” (2017), resultado da pesquisa do professor e pesquisador em Saúde
Pública André Monteiro (Fiocruz/PE), financiada pelo CNPq, que documenta os processos de vulnerabilização
dos diversos grupos sociais afetados pela Transposição do Rio São Francisco.
a ótica capitalista. A discriminação associada à vulnerabilidade incide nos impactos oriundos
de tais projetos, resultando em violações de direitos.
Como exemplo de megaprojeto, analisa-se a Transposição do Rio São Francisco.
Também conhecido como Velho Chico, ele é um dos mais importantes do Brasil. Pela sua
extensão e relevância, também é chamado de rio da integração nacional, atravessando
paisagens diversas, como os biomas da Mata Atlântica, Cerrado e Caatinga. Por ser o único
rio perene do Nordeste Setentrional, propicia agricultura irrigada, pecuária e pesca, o que o
torna responsável pela subsistência das comunidades em seu entorno (CARTA EDUCAÇÃO,
2017).
A Transposição é um megaempreendimento em andamento, sob a responsabilidade da
federação, com o objetivo de direcionar parte das águas do Rio para o Semiárido nordestino.
O clima seco do semiárido é, a priori, determinado pela imprevisibilidade e má distribuição
do volume de precipitações de chuvas ao longo do tempo, revelado pelos longos períodos de
estiagem (SUASSUNA, 2002). Outro aspecto singular da região é a vegetação de caatinga,
resistente ao clima com raízes espalhadas e caules espessos para uma melhor captação e
armazenamento de água, além de folhas pequenas que reduzem a transpiração (SILVA, 2007).
Apesar das obras terem se iniciado em 2007, a ideia da transposição é muito mais
antiga: começou a ser discutida em 1847 por intelectuais do Império Brasileiro de Dom Pedro
II.

No modelo atual, prevê o desvio de 1% a 3% das suas águas para abastecer rios
temporários e açudes que secam durante o período de estiagem. Para isso, conta com
a construção de mais de 700 quilômetros de canais que farão o desvio do volume. A
obra divide-se em dois grandes eixos. O Eixo Norte se encarrega de captar as águas
em Cabrobó (PE) e levá-las ao sertão de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande
do Norte. O Eixo Leste, por sua vez, realiza a captação das águas em Floresta (PE)
a fim de beneficiar territórios de Pernambuco e Paraíba (CARTA EDUCAÇÃO,
2017, online).

Fala-se que a segurança hídrica para a região semiárida brasileira está entre os
principais benefícios de tamanha obra. O aumento do abastecimento das áreas secas
culminaria na elevação da produção de alimentos, queda da mortalidade de rebanhos e,
portanto, favoreceria diretamente a vida no campo.
Entretanto, após 11 anos, o cenário é outro: nas regiões afetadas pela Transposição, os
impactos socioambientais são evidentes. O macroprojeto tem promovido uma série de
agressões à vida das pessoas que vivem ou viviam nas comunidades rurais por onde passam
os canais. Existem relatos de doenças psíquicas, indenizações irrisórias, deslocamentos
forçados das famílias camponesas (desterritorialização), violência de gênero e uso de drogas,
gerando mudanças drásticas de modos de vida16.
Os danos se relacionam à fauna, flora, ao solo e aos valores culturais de modo geral.
As ações compensatórias oferecidas no início do projeto não se concretizaram. Além de
prejuízos ao meio ambiente e das promessas não cumpridas, problemas como investimentos
em empreendimentos particulares e perdas de acesso a alguns locais antes transitáveis estão
na lista das consequências negativas. Conta-se que uma das condicionantes no julgamento do
Ministério Público para instalação da obra seria o avanço do processo de demarcação da terra,
o que não ocorreu (COMBATE RACISMO AMBIENTAL, 2017).
Outro aspecto já apontado é a intervenção direta deste megaprojeto na vida das
pessoas. Destaca-se, com preocupação, o índice de mulheres, sobretudo adolescentes, que
tiveram gravidez indesejada e ficaram sem a assistência dos pais das crianças, os soldados do
Exército e trabalhadores das empreiteiras. A proliferação do uso de drogas ilícitas nas
comunidades rurais localizadas no entorno dos canteiros de obras e quadros de depressão
também constam nos relatos (COMBATE RACISMO AMBIENTAL, 2017).
Neste ínterim, a violência de gênero, as consequências à saúde mental e socioambiental
e os danos patrimoniais e simbólicos foram graves prejuízos àquelas populações. Outro
argumento é o de que a Transposição serviu para expandir as fronteiras do agronegócio,
beneficiando, principalmente, latifundiários, pois grande parte dos canais passa por fazendas.
“Apenas 4% da água será destinada à população local, 26% ao uso urbano e industrial e 70%
para irrigação da agricultura” (CARTA EDUCAÇÃO, 2017, online).
O discurso que justifica a Transposição do Rio São Francisco, assim como os demais
superlativos brasileiros, é uma das mais perversas manifestações do colonialismo interno “que
permeia não apenas as políticas de Estado do governo, mas o imaginário de uma numerosa
parcela predominantemente urbana da sociedade brasileira” (GLASS, 2016, p. 422).
A falácia de que o “desenvolvimento” da nação exige seus sacrifícios - desde que os
sacrificados sejam os outros, os invisíveis, os que estão acostumados a viver no limbo - ocorre
em um contexto de descaso planejado. Nestas grandes obras, por exemplo, as previsões do
EIA/RIMA (Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto ao Meio Ambiente)17
geralmente não são cumpridas. Assim o foi com a Transposição.

16
O documentário “Invisíveis” (2017) apresenta um apanhado de depoimentos e imagens sobre as populações
vulnerabilizadas nos territórios de abrangência do projeto de Transposição do Rio São Francisco.
17
O Relatório de Impacto Ambiental do Projeto de Integração do Rio São Francisco está disponível em:
<http://www.integracao.gov.br/documents/10157/3678963/Rima+-
São as confluências entre Estado e agentes privados, ambos na posição de
personificações centrais da acumulação de capital, que apresentam fins duvidosos - para a
parcela mais vulnerável da população – suplantando com uma surpreendente naturalidade
princípios humanitários em nome do “padrão desenvolvimentista”.

A DESTERRITORIALIZAÇÃO DAS FAMÍLIAS CAMPONESAS NO CONTEXTO


DA TRANSPOSIÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO: DA INDÚSTRIA DA SECA AOS
TERRITÓRIOS DE ESPERA TUTELADOS

Neste ponto do presente trabalho, busca-se analisar um dos impactos sociais oriundos
da Transposição. Diante do cenário de desterro e desolação já descrito no tópico anterior, o
destaque à desterritorialização das famílias camponesas visa demonstrar que a intervenção
compulsória na vida delas fez emergir problemas complexos, intensificados pela morosidade
da etapa de finalização das obras.
A desestabilização do poder territorial, a desconstrução do modo de produção familiar
camponês, a descaracterização da identidade camponesa e, por fim, a desvitalização da
autonomia, fragilizando as possibilidades de escolhas e decisões sobre a vida e a saúde, estão
entre estes problemas.
A transferência dos grupos de pessoas para os territórios de espera (ou Vilas Produtivas
Rurais, no contexto da Transposição) se constitui em um evento vulnerabilizante legitimado
pelo Estado. Isto remete à falácia de que o modelo de desenvolvimento exige sacrifícios, desde
que os sacrificados sejam os considerados “invisíveis” pelo próprio sistema. Assim funciona
a atuação neoliberal estatal, alimentada pelo capital financeiro e pelos agentes privados
(empreiteiras), cujo objetivo é o lucro.
Antes de discutirmos sobre os territórios de espera, para onde muitas famílias
camponesas foram levadas quando os canais deste megaprojeto tomaram suas antigas casas,
faz-se necessária uma breve descrição do processo de conformação social e econômica do
Semiárido nordestino, “visto que, a partir disso, se revela o legado colonizador desta região,
expresso pela tenacidade dos grandes latifúndios” (DOMINGUES, 2016, p. 15).
Neste ínterim, deve ser dito que a estrutura da organização econômica do sertão
nordestino se engendra a partir não somente da natureza física do lugar, mas também da
distribuição fundiária e de propriedade e divisão social do trabalho (ANDRADE, 2011).

+Relat%C3%B3rio+de+Impacto+Ambiental.pdf/4324863d-cbff-4522-9bd0-eab9d34b8fe2>.
Desde o período colonial, a economia sertaneja se fundamenta na criação de gado e
outros bichos. A agricultura, por sua vez, é restrita a pequenas áreas, servindo para o
abastecimento das populações locais, formadas por núcleos familiares (DOMINGUES, 2016,
p. 16). É, portanto, o caráter geográfico do sertão determinante nas formas de atividades de
subsistência e sobre os meios de produção da população residente. Domingues (2016, p. 16 -
17) assevera:

Parece evidente que a (re)produção dos modos de vida das populações locais
dependem das possibilidades da ação humana sobre as adversidades, que incutem
condições limitadoras à vida no semiárido. Nesta direção, aponta-se para a
responsabilidade do Estado em planejar e prover ações que solucionem ou,
minimamente, mitiguem as desigualdades sociais que agravam o desafio de viver
com a semiaridez.

O grande problema é atribuir ao fenômeno da seca a responsabilidade exclusiva sobre


a miséria instalada no lugar, ocultando elementos estruturais perpetuadores de injustiças e
desigualdades. Quando tal perspectiva reducionista fomenta o combate à seca, as decisões
políticas sobre o assunto acabam se fundamentando em três dimensões, segundo Silva (2007,
p. 471): “a finalidade da exploração econômica; a visão fragmentada e tecnicista da realidade
local; e o proveito político dos dois elementos anteriores em benefício das elites políticas e
econômicas regionais”.
A seca, colocada nacionalmente como um grave problema, converte-se em argumento
político quase irrefutável para conseguir recursos, obras e outras benesses que seriam
monopolizadas pelas elites dominantes locais (SILVA, 2003).
As classes dominantes, assim, aproveitam o cenário de precariedade do Semiárido
nordestino para auferir vantagens oferecidas pelo Estado, criando as relações promíscuas da
indústria da seca. Esta última, conforme Menezes e Morais (2002, p. 60), se caracteriza como
“um arranjo de certos segmentos das classes dominantes que se beneficiam indevidamente de
subsídios e vantagens oferecidos pelo governo”.
As políticas públicas e decisões políticas historicamente implementadas no Nordeste
brasileiro representam o paradigma de combate à seca, com consequente reprodução da
concentração de terra, poder e riquezas (CAMPOS, 2014). Quando se fala que “o problema
do sertão não é a seca, é a cerca”, faz-se menção à concentração fundiária, de renda e poder,
legados da colonização e responsáveis por manter as insalubres condições de vida da região.
Acredita-se que a seca encobre interesses escusos vindos de quem possui influência
política ou econômica. Logo, é “a persistência das desigualdades sociais que está na base da
reprodução secular das condições de miséria que fragilizam as famílias sertanejas, impedindo-
as de resistir aos efeitos das estiagens prolongadas” (SILVA, 2007, p. 471).
Através da indústria da seca, o Semiárido é mais uma vítima do processo
desenvolvimentista, que se concretiza por meio da atuação do Estado enquanto instituição
capitalista e pós-colonial. O sistema dos grandes latifúndios, de um lado, e das parcelas
minúsculas de terra para agricultores, de outro, é predatório, pois concentra terra e miséria ao
passo que mantém o coronelismo e o poder político das mesmas famílias.
A Transposição do Rio São Francisco, portanto, foi forjada sob este paradigma
neoliberal, servindo-se da vulnerabilidade de tantos sertanejos calejados pela secular e
desigual estrutura fundiária.
Ainda no contexto do megaempreendimento aqui estudado e tendo em vista a situação
social e geográfica do Semiárido, foram ofertadas como “solução” de reassentamento para
uma parcela das populações desapropriadas as Vilas Produtivas Rurais (VPRs). Estas
disposições estão no Projeto Básico Ambiental (PBA) n° 818.
Vale salientar que as propostas de reassentamento diversificam-se em algumas
modalidades, entra as quais se encontram as VPRs. Consoante Domingues (2016, p. 61 – 62):

A opção pelo reassentamento rural coletivo foi prescrita para famílias proprietárias
de terras e/ou benfeitorias e de não proprietárias com benfeitorias, que atendam os
critérios de elegibilidade, não claramente explicitados no referido PBA. De acordo
com o documento oficial: os que optarem por essa modalidade farão a permuta do
valor indenizatório da casa em que residem pelo reassentamento.

Cada família camponesa realocada nas Vilas possui direito a uma extensão territorial
que totaliza cinco hectares de terra. O programa de medidas mitigatórias deve assegurar o
acesso das famílias reassentadas aos serviços primários de educação e saúde, assim como
assistência técnica rural.
Ainda que se fale em medida mitigadora ou compensatória, o processo de
reassentamento por meio das VPRs é considerado desterritorialização compulsória ou

18
O Projeto Básico Ambiental (PBA) foi elaborado a partir das recomendações das medidas mitigadoras,
compensatórias, de monitoramento e controle ambiental do Projeto de Integração do Rio São Francisco com
Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional – PISF, descritas no Estudo de Impacto Ambiental (EIA) do
empreendimento, sendo assim, subdividido em Programas específicos, como o Programa de Reassentamento
das Populações apresentado pelo Ministério de Integração Nacional – MI ao Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, com vistas à emissão da Licença de Instalação do
empreendimento.
deslocamento forçado, porque “vincula-se a uma condição externa e obrigatória de ser
desapropriado e (re)territorializar-se em outro local” (DOMINGUES, 2016, p. 74).
A intervenção compulsória sofrida por essas famílias impõe mudanças drásticas nas
formas de organização material e imaterial da vida, afetando, sobretudo, a territorialidade
camponesa. Assim sendo, acredita-se que todo território humano é uma construção social e
histórica, de natureza simbólica e concreta, onde a vida acontece e ganha significação. O
espaço é base primeira de reprodução social, portanto, substrato de vida (DOMINGUES,
2016).
Considerando, conforme já dito, a relação entre o caráter geográfico do sertão e as
formas de atividades da população residente, a Transposição em si pode ser enquadrada como
uma forma de destruição dos modos de vida rurais, seja quando oferece uma indenização
injusta, seja com a possibilidade de reassentamento. Este último, ao transferir grupos de
famílias que viviam do campo, causou impactos na relação homem-espaço-tempo.
Neste sentido, as Vilas Produtivas Rurais são territórios de espera tutelados, segundo
denominação feita pelo geógrafo Alain Musset, pelo sociólogo Dominique Vidal e pelo
historiador Laurent Vidal (2011). O reassentamento em um local completamente diferente
daquele a que pertenciam - na contramão do previsto no PBA – deu origem a espaços ou zonas
de espera que se estendem no tempo. Lugares onde a temporalidade é suspensa. Neles, as
pessoas não fazem outra coisa senão ‘empurrar o tempo’ (AGIER, 2015a, p. 73, grifo do
autor). São tutelados porque o Estado é o responsável por impedir a continuidade das relações
de produção.
Nas VPRs, então, não existe apropriação simbólica, sentimento de pertencimento ou
memórias. Conforme entendimento de Florêncio da Silva (2016, p. 94), “as vidas estão em
suspensão, não só juridicamente”.
O megaempreendimento condenou as famílias camponesas sujeitas ao processo de
reassentamento ao “limbo existencial que consiste na espera pela conclusão das obras para,
então, prosseguir em retomada dos seus modos de produção” (DOMINGUES, 2016, p. 86).
Há Vilas, cujos moradores ainda não receberam os lotes produtivos irrigados e de sequeiro,
tornando o trabalho camponês inviável devido à privação dos meios básicos de produção
(DOMINGUES, 2016).
Em suma, ao confiscar o antigo território (base de subsistência), o Estado, atuando sob
o manto neoliberal desenvolvimentista, impediu a continuidade das relações de produção e
passou a “compensar” o desmonte do modo de produção familiar com a oferta mensal de uma
Verba de Manutenção Temporária (VMT).
Foi o Estado, aproveitando-se da indústria da seca, que propiciou os territórios de
espera da Transposição do Rio São Francisco (ou VPRs), territórios do não pertencer,
territórios da exceção. Esta excepcionalidade jurídica, criada territorialmente, tem o intuito de
controlar as populações consideradas “indesejadas”, segundo afirma Florêncio da Silva
(2016). Não importa se para alcançar tal intento, novas e árduas territorialidades devam ser
construídas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Analisar a Transposição do Rio São Francisco como megaempreendimento, fruto das


relações entre Estado e agentes privados, significa evidenciar seus impactos socioambientais.
Isto porque esta obra megalomaníaca teve efeitos devastadores sobre a vida e a autonomia de
grupos de pessoas, principalmente os mais vulneráveis.
Percebe-se que o Estado fomenta a acumulação do capital quando permite que o
mercado e as empreiteiras dominem as decisões políticas e as intervenções econômicas. Os
entes envolvidos se valem dos pressupostos neoliberais para implantar o modelo de
desenvolvimento predatório e discriminatório.
Num verdadeiro culto à grandiosidade, constroem-se os megaempreendimentos ou
macroprojetos, entre eles a Transposição, estudada juntamente com as articulações feitas entre
agentes públicos e privados. Vendida como garantia de segurança hídrica para o Semiárido
nordestino, calejado por estiagens longas, a obra, após 11 anos, revela seu lado mais obscuro
com promessas do EIA/RIMA não cumpridas e agravamento da situação de vulnerabilidade
de famílias camponesas.
Deslocadas compulsoriamente de suas propriedades devido à passagem dos canais,
foram reassentadas em Vilas Produtivas Rurais ou territórios de espera tutelados. Neste
processo, há um afastamento entre os sujeitos e seu saber originário, entre os sujeitos e o
espaço, entre os sujeitos e o tempo. As famílias camponesas sofrem, então, com a
inviabilização das atividades tradicionais de agricultura e criação de animais.
O desmonte dos modos de produção familiar parece tangenciado por um mecanismo
que obedece ao formato padrão de implantação de grandes obras desenvolvimentistas nos
territórios locais.
Em outras palavras, a implantação do megaprojeto legitimou-se através de manobras
que acionaram interesses materiais e imateriais, vinculados à situação de miséria do sertão,
como também inflamaram as representações simbólicas sobre a seca.
Nota-se, diante do cenário descrito, certo intento de subverter a região semiárida ao
contexto econômico nacional e internacional do agronegócio. Por isso, frisa-se a necessidade
de aprofundar o entendimento sobre o desenovelar das escolhas políticas nos territórios
atingidos e suas repercussões na vida das famílias camponesas desterritorializadas
compulsoriamente.
As escolhas e decisões políticas, sob a égide de resolver os problemas relacionados à
seca, se encontram circunscritas em paradigmas que norteiam o caráter das intervenções
socioeconômicas neoliberais, permitindo que grandes latifundiários nordestinos beneficiem-
se de investimentos realizados e dos créditos bancários concedidos à região, enquanto os
trabalhadores ficam vulneráveis, ou melhor, são violentamente invisibilizados.

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A EXPERIÊNCIA DO PROJETO DIREITOS EM MOVIMENTO NA
COMUNIDADE QUILOMBOLA MUNDO NOVO19

Maria Roberta da SIlva20


Isaene de Arruda Santos21
Clarissa Marques22

RESUMO

Diante das dificuldades históricas, enfrentadas pelas comunidades quilombolas, de terem seus
direitos reconhecidos e efetivados, mesmo após a Constituição de 1988 que dispõe no artigo
68º, ADCT a proteção desses direitos. O presente artigo propõe-se analisar a importância do
desenvolvimento da pesquisa etnográfica para a criação do projeto de extensão “Direitos em
Movimento”, como forma de ultrapassar os muros da universidade e promover uma
transformação social na Comunidade Mundo Novo. Nessa perspectiva, são levantadas
também as questões da importância do reconhecimento da comunidade como remanescente
quilombolas, bem como a importância de garantias de direitos e assistencialismo a
comunidades historicamente marginalizadas. Ademais, aborda-se a temática da demarcação
do território como uma forma de reconhecer o vínculo das pessoas com a terra, a
territorialidade.

Palavras-chave: Quilombo. Mundo Novo. Etnografia. Coletivo Direitos em Movimento.

INTRODUÇÃO

Devido às fugas em massa da população negra dos engenhos, o termo quilombola foi
cunhado em 1722, no Regimento dos Capitães-do-Mato, de Dom Lourenço de Almeida,
inicialmente, como algo a ser inibido. Essa regulamentação jurídica permitiu uma repressão
mais intensificada às comunidades quilombolas. Apenas em 1988 o termo “quilombola” foi
ressignificado e, com isso, obtiveram o direito a regulamentação, identificação,
reconhecimento e delimitação de suas terras. Após a criação da Fundação Cultural Palmares,
ganhou-se mais um aliado governamental que atua nos serviços de garantias da manutenção
desse povo e de sua inclusão social.

19
Artigo Submetido ao Grupo de Trabalho Meio Ambiente, Sociedade e Diversidade
2020
Graduanda de Direito pela Universidade de Pernambuco (UPE), Campus Arcoverde, membro do Grupo de
Pesquisas Transdisciplinares Sobre Meio Ambiente, Diversidade e Sociedade (GEPT-UPE/CNPq), Membro do
Coletivo Direitos em Movimento. E-mail: betabeck17@gmail.com.
21 21
Graduanda de Direito pela Universidade de Pernambuco (UPE), Campus Arcoverde, membro do Grupo de
Pesquisas Transdisciplinares Sobre Meio Ambiente, Diversidade e Sociedade (GEPT-UPE/CNPq), Membro do
Coletivo Direitos em Movimento. E-mail: isaenearsan@gmail.com
22
Professora da Universidade de Pernambuco e da Faculdade Damas (Recife/PE), Coordenadora do Grupo de
Estudos e Pesquisas Transdisciplinares sobre Meio Ambiente, Diversidade e Sociedade (GEPT/UPE/CNPq),
Coordenadora do Coletivo Direitos em Movimento e do Grupo de Pesquisa Historiografias Decoloniais: direito,
natureza e coletividades na América Latina. E-mail: marquesc2504@gmail.com
Todavia, apenas em novembro de 2003, com o Decreto nº 4.887, que foi
regulamentado o processo de identificação desse povo, assim, classificam-se remanescentes
do quilombo através da autodefinição da comunidade que é certificada pela Fundação Cultural
Palmares. Ademais, o processo de delimitação fundiária e a garantia dessas terras segue uma
série de procedimentos e requisitos os quais precisam de pareceres técnicos que são realizados
com base em estudos antropológicos da comunidade. O órgão responsável por esse processo
de delimitação das terras quilombolas é o Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (INCRA) que é regido, também, pelo referido decreto.
Contudo, atualmente, muitas comunidades ainda não possuem o título de
remanescentes do quilombo nem a regulamentação de suas terras. Essa é a situação da
Comunidade Quilombola Mundo Novo, situada em Buíque, no Sertão pernambucano. Embora
os moradores da comunidade tenham se esforçado nos últimos anos para conquistar seu
reconhecimento, as instituições responsáveis por esse processo ainda estão omissas. Além
disso, a comunidade sofre com uma crise identitária o que dificulta mais ainda, seu processo
de certificação.
Dessa forma, realizamos um trabalho etnográfico na Comunidade Mundo Novo e
foram observadas diversas vulnerabilidades, dentre elas a falta do Certificado de
Reconhecimento como Comunidade Remanescente de Quilombo, que é emitido pela
Fundação Cultural Palmares, e é de fundamental importância para as conquistas e
reivindicações de direitos voltados às necessidades das comunidades tradicionais.
Diante dessa realidade, vislumbrou-se a necessidade de ir além da pesquisa
etnográfica, com o objetivo de colocar “os direitos em movimento” e fazer a Universidade
levar, o que é desenvolvido no meio acadêmico, até os povos subalternizados. Assim, através
da etnografia, surgiu a necessidade de auxiliar essa comunidade de maneira efetiva, indo além
do âmbito da pesquisa, momento em que a pesquisa inspirou o Projeto de Extensão "Direitos
em Movimento". O presente trabalho relata a trajetória de atuação do projeto Direitos em
Movimento, que atua com o objetivo de promover uma modificação social na realidade da
Comunidade Mundo Novo e propõe romper com a limitação acadêmica, para que a
universidade pública cumpra o seu papel social de retornar o conhecimento produzido no meio
acadêmico pra a sociedade. Dito isso, a problemática enfrentada pelo presente trabalho é de
que maneira esses estudos sobre a comunidade Mundo Novo podem ultrapassar as barreiras
acadêmicas e realizar transformações na Comunidade? Esse parágrafo é o da justificativa?
Este artigo tem como objetivo geral elucidar como os estudos desenvolvidos sobre o
Mundo Novo puderam transpassar os muros da universidade e promover significativas
transformações sociais na comunidade. Bem como, especificamente, discorrer sobre a
importância do reconhecimento e demais etapas de regulamentação de terras e proteção dos
direitos para as comunidades tradicionais e a atuação do projeto de extensão Direitos em
Movimento (DIMO) nesses processos dentro da Comunidade Mundo Novo. Para tanto a
metodologia utilizada foi o hipotético-dedutivo que vai unir a racionalidade do método
dedutivo com o empirismo do método hipotético. Os autores Quijano (2005), Mignolo (2005)
e Dussel (1993) serviram de referencial teórico.

COMUNIDADE QUILOMBOLA MUNDO NOVO: RELATOS DE UMA HISTÓRIA


MARCADA PELA INVISIBILIDADE

Em uma perspectiva metodológica, o método de procedimento etnográfico é definido


como “um modo de investigar naturalista, baseado na observação, descritivo, contextual,
aberto e profundo.” (EISMAN; ET AL, 1997, p.258). Este método tem o objetivo de conciliar
o ponto de vista do observador interno e externo a fim de descrever e interpretar a cultura,
segundo Marconi e Lakatos (2010, p.94). Esse é o método em que nossa pesquisa mais se
encaixa por se tratar de um estudo de campo e, assim como o anterior, também foi adotado
pelos mecanismos de compreensão e descrição dos contextos sócio-culturais que ele dispõe.
Inicialmente, ao tomarmos conhecimento da crise identitária que a Comunidade
Mundo Novo passava, foi estabelecido que a pesquisa seguiria etapas elaboradas que
iniciavam-se com coletada de dados e entrevistas, além da elaboração de questionários. Ao
entrar em contato com os moradores, nos deparamos com uma realidade totalmente diferente
da esperada, pois além de uma grande quantidade de pessoas analfabetas, impossibilitando a
coleta de informações por meio de questionários, esse contato nos permitiu enxergar um
quadro de vulnerabilidade que não permitiu nos limitar a elaboração de uma mera pesquisa
etnográfica e não causar mudanças, de fato, na comunidade.
A Comunidade Quilombola Mundo Novo, objeto da pesquisa etnográfica iniciada em
2017.2, está localizada no Sítio Mundo Novo, parte do distrito de Guanumbi na cidade de
Buíque, que se situa no Sertão pernambucano. O município tem uma população de 52.105
habitantes, segundo dados do Instituto Brasileiro Geográfico e Estatístico (IBGE, 2010). O
Sítio Mundo Novo, juntamente com suas comunidades circunvizinhas, representam as
localidades que possuem o maior número de pessoas negras da região. Coincidentemente - ou
não - a comunidade corresponde também, a parte mais carente do município, apresentando
renda média mensal de R$ 168,35 por pessoa, segundo o mesmo censo.
Por estar situado em uma região de clima semiárido, o Quilombo possui solo seco e
vegetação xerófila, essa situação afeta diretamente as plantações e a criação de animais, que
são as atividades que garantem a subsistência dos moradores da comunidade. Em relação a
fauna local, os moradores nos informaram da existência de lobos-guará e gatos-selvagem,
conhecidos como gatos do mato. Além dessas características, percebemos que as casas são
um pouco afastadas umas das outras e não existe iluminação entre elas e nas estradas, o que
dificulta encontros e reuniões noturnas prejudicando a comunicação entre eles, um problema
recorrente que pudemos observar.
A história do Quilombo iniciou-se com a fuga de 12 negros escravizados no Quilombo
dos Palmares - situação que permite analogia a de Prudêncio, na obra de Machado de Assis,
o qual, após alforriado, comprou para si um escravo - após viajar cerca de um mês, finalmente
chegaram a região que hoje compreende ao Mundo Novo, posterior à sua chegada, eles se
dispersaram permanecendo apenas um dos remanescentes, o qual casou-se e constituiu
família. Dessa união, foram gerados 11 filhos, os quais também se dispersaram ao longo do
tempo, permanecendo, no final, apenas uma filha que tornou-se matriarca do Quilombo.
Os escravos fugitivos passaram suas vidas escondendo-se de seus senhores. Os
quilombos eram locais geralmente distantes e sem habitantes por perto, serviam como
refúgios, esconderijos. Em razão do medo de ser descoberto, o fundador do Mundo Novo não
permitia que a cultura fosse praticada. Dessa forma, a comunidade foi se formando e
crescendo sem reproduzir sua tradição, restando apenas os relatos que eram contados pela
matriarca aos seus descendentes. Há alguns anos atrás, após a morte da matriarca, os
quilombolas decidiram resgatar sua cultura.
Todavia, devido esse recorte temporal onde não se praticava a cultura, muitos traços
se perderam, e, embora os mais velhos tenham lembranças de alguns, é preciso que seus
costumes sejam ensinados novamente. Entre os traços culturais que foram perdidos e que
representa uma forte característica do Mundo Novo, está o Samba de Côco. Essa dança surgiu
do hábito de reunir a comunidade para a construção das casas de taipa, que era feita com
batidas dos pés no barro. Enquanto as pessoas pisavam no barro, entoavam vários cantos, em
um momento de celebração. Atualmente, não se mantém o costume de construir as casas, a
única que sobrou daquelas feitas pelos ancestrais do Quilombo, funciona ainda como centro
de reunião da comunidade para dançar o Coco.
Entretanto, devido às condições de instalação e a falta de espaço, os moradores
construíram, próxima à casa de tabique, uma superfície (barracão) para que pudessem
prosseguir com as celebrações. Vizinha a ela, encontra-se uma construção que deve funcionar
como um novo centro da Associação dos Moradores do Quilombo Mundo Novo. Contudo, as
obras estão paradas devido à falta de recursos e assistência, impossibilitando a existência de
um núcleo organizacional que reúna os quilombolas a fim de firmar uma representatividade
com força para clamar por melhorias e gerar visibilidade.
Por situar-se, aproximadamente, a 20 km do centro de Buíque, ainda sem um transporte
público adequado e sem estradas asfaltadas que facilitem a dinâmica de deslocamento da
população, a comunidade vive em isolamento, o que implica diretamente em seu acesso a
políticas públicas. Além de gerar obstáculos para a participação do Quilombo na dinâmica
social, que se acentua, ainda mais, no âmbito econômico.
A economia da cidade de Buíque é movida, especialmente, pela agropecuária familiar.
Inicialmente, os habitantes do quilombo comercializavam os produtos de suas plantações, com
destaque para a mandioca. Entretanto, com a agravação da seca, as condições de manter o
plantio e a criação de animais foi ficando cada vez mais difícil. Atualmente, os quilombolas
do Mundo Novo, em sua predominância, utilizam da agropecuária para sua subsistência.
Ademais, outro fator relevante para economia da localidade é a emigração de pessoas
da comunidade para outras regiões do país, especialmente o sudeste, em busca de emprego
para garantir o sustento da família. Todavia, após conseguirem um valor monetário suficiente
para se manterem no Quilombo por um período de tempo, eles retornam e complementam sua
renda com empregos informais em sítios vizinhos. Quando os recursos que garantem mais sua
subsistência, partem novamente em busca de melhorias. Desse modo, assim segue um ciclo
vicioso em que pessoas, constantemente, se veem obrigadas a abandonar seu lar e sua cultura
para garantir que tenham as mínimas condições de existir.
Diante desse quadro de pobreza, ao conversar com membros da comunidade, nos foi
relatado que muito do que se tem é advindo de doações. Descobrimos também, que algumas
instituições desempenham a função de assistência social, atuando onde o Estado se faz ausente
- a única iniciativa governamental que tivemos ciência foi a construção de cisternas nas casas
da região -. Entre elas, encontra-se a Cáritas Diocesana de Pesqueira que auxilia no processo
de reconhecimento do Quilombo, uma ONG - a qual os moradores não souberam nos informar
seu nome - que fornecia leite para as crianças da localidade através de um cadastro e controle
por casa. Entretanto, uma de nossas entrevistadas conta que o cadastro não foi atualizado e
desde então, o leite não é mais fornecido nem se teve nenhum outro contato com a
Organização.
Além dos quadros de vulnerabilidade já mencionado, poucos meses atrás, a
Comunidade não era reconhecida pela Fundação Palmares como Remanescente de Quilombo
o que impossibilitava, além da reivindicação por um assistencialismo do governo voltados às
necessidades da comunidade, bem como restringia o número de convites para as apresentações
do Samba de Coco da Comunidade. Isso porque, a falta de visibilidade somada a ausência de
reconhecimento, desvaloriza e invisibiliza a luta do Mundo Novo.

O NECESSÁRIO RECONHECIMENTO COMO COMUNIDADE REMANESCENTE


DE QUILOMBO E O FORTALECIMENTO DA IDENTIDADE

Tendo em vista as vulnerabilidades observadas na Comunidade Mundo Novo, a falta


da certificação pela Fundação Cultural Palmares é de extrema importância, de um lado por
ajudar a sanar tais dificuldades - oferecendo benefícios e programas governamentais como o
Minha Casa Minha Vida Rural, o Luz para Todos, o Programa Nacional de Fortalecimento da
Agricultura Familiar (Pronaf) e o Programa de Bolsa Permanência - e, por outro, a fortalecer
a identidade quilombola e possibilitar a demarcação territorial realizada pelo INCRA.
Assim, após finalizarmos a nossa pesquisa etnográfica, sentíamos que era preciso fazer
mais pela Comunidade, agir de maneira efetiva para trazer melhorias. Dessa forma, a partir da
atuação do Coletivo Direitos em Movimento (DIMO), foi possível finalizar o pedido de
certificação que já havia sido iniciado pelo Mundo Novo em 2015, e, no dia 17 de agosto de
2018, foi emitida a Certidão de Reconhecimento do Mundo Novo pela Fundação Cultural
Palmares, passando a ser chamada, agora, de Comunidade Remanescente de Quilombola do
Sítio Mundo Novo e Façola - CRQ.
Percebe-se o lapso temporal de três anos desde que foi pedida a certificação até quando
ela foi de fato emitida. Essa situação evidencia a dificuldade de muitas Comunidades e o
estado de negligência no qual elas se encontram, destacando como os direitos se fazem
omissos em relação aos grupos em maior situação de vulnerabilidade. Diante disso, a
conquista do reconhecimento mostra-se, na verdade, apenas uma pequena parte da luta. É
preciso iniciar, agora, o pedido de titularização das terras.
Segundo o Decreto Federal Nº 4.887, que regulamenta os procedimentos para:
identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e das terras. A titulação só será
emitida após as avaliações técnicas que serão feitas naquele território a partir de características
espacial, econômica, ambiental e sociocultural da localidade em questão. Portanto, seu
processo de identificação está ligado diretamente a relação que esse grupo tem com a
ancestralidade, terra, práticas culturais e tradição.
Diante do exposto, o desafio passa a ser o fortalecimento da identidade cultural do
Mundo Novo, que foi invisibilizada por um histórico de violência racial, a qual destinou essa
população à condição marginalizada, que precisa agora provar sua ancestralidade, apesar dos
processos violentos que a apagaram, para garantir a proteção de seu próprio território. Volta-
se, portanto, a refletir acerca do negligenciamento com as comunidades tradicionais. Para
tanto, faz-se necessário compreender os processos históricos que criaram e mantiveram essa
estrutura.
De início, é importante entender o imaginário do mundo moderno/colonial que é
abordado por Mignolo (2005). Para ele, a imagem que temos do Ocidente hoje, é fruto de uma
construção simbólica que não é formada apenas com a definição que os ocidentais afirmaram
sobre si, mas também, a partir das respostas das comunidades que foram envolvidas nesse
processo de autodescrição (MIGNOLO, 2005, p.35-36). Dessa forma, a reação dos
colonizados ao processo de colonização, é visto aqui, como ponto importante para
compreender a constituição do mundo moderno/colonial.
Quijano (2005, p.108-109) afirma que a supremacia europeia tem origem no comércio
nas regiões do Atlântico, devido ao poder de mercado que foi adquirido pelos europeus que
partir de então, atribuíram - de maneira quase aristotélica - a cada raça um tipo de trabalho. O
trabalho assalariado era restrito aos brancos e o não assalariado (escravo) aos negros. Nesse
contexto, percebemos aqui o momento em que os brancos fizeram a distinção entre brancos,
negros e orientais, então se autodenominaram como uma raça superior que teria o direito de
controlar a vida das outras raças “inferiores”.
Surge então a noção de diferença colonial, que, para Mignolo (2005, p.40), é articulada
a partir de questões etno-raciais. É possível perceber aqui, que existem duas versões da
colonização: a que é vista por quem sofreu esse processo e por quem o realizou. O que nos
permite compreender a negligência que sempre se teve com o povo quilombola. Inicialmente,
perseguidos e depois, abandonados. Não se vê grandes mobilizações para atender às demandas
do quilombo, porque nós, enquanto seres que reproduzem os valores coloniais, não
reconhecemos os danos causados pelo processo de colonização.
A partir dessa discussão e voltando ao enfoque territorial, é importante ressaltar que a
formação dos quilombos ocorreu ao longo da história e por diversas razões e maneiras. Sendo
assim, por estarem subordinados a esse contexto de inferiorização, mesmo após conseguir
fixar moradia e se relacionarem com o local que se estabeleceram, as comunidades
quilombolas sempre enfrentaram perseguições, invasões e desapropriações, que os tiram de
suas origens e impedem a manutenção dos costumes e ancestralidade desses povos
tradicionais.
Acentua-se, portanto, a discussão sobre a importância do território para a identidade
quilombola, a qual configura-se em uma relação de pertencimento. Para isso, é importante
mencionar que o conceito de território ao qual nos referimos não se limita apenas ao lugar
físico, dentro de uma definição geográfica, e sim, de uma construção histórica de processos
políticos e sociais (LITTLE, 2002).
Essa relação entre identidade e território é o que configura a territorialidade que, em
um conceito mais bem definido, consiste no “esforço coletivo de um grupo social para ocupar,
usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico,
convertendo-se assim, em seu território” (LITTLE, 2002, p. 3). Assim, pontua-se que a
construção identitária quilombola parte de uma construção econômica, cultural, social e
política das relações que ocorrem no território, e com o território, unindo o aspecto simbólico
ao geográfico.
Essa relação é ainda abordada por Di Méo (2004, p. 343), o qual afirma que em
“tempos em que a dimensão ideológica e política dos territórios influem sobre a sua
consistência objetiva, econômica ou material, a identidade fornece um ingrediente de primeira
ordem para a sua produção”. Essa ligação entre os dois aspectos é denominado por Haesbart
(2014) de "identidade territorial".
Podemos perceber, então, que território acaba complementando a noção de identidade
quilombola, tornando-se parte dela. A identidade, por sua vez, atribui significação ao
território. Portanto, pode-se afirmar que não se pode falar de identidade quilombola sem
considerar seu sentido de territorialidade. Conclui-se, dessa forma, que a atuação do INCRA,
na Comunidade Mundo Novo, não só será importante para manter os costumes e a cultura,
mas também, a partir da proteção de seu território, permitir o resgate de traços perdidos de
sua ancestralidade.

O PROJETO DE EXTENSÃO "DIREITOS EM MOVIMENTO" E A


CERTIFICAÇÃO DA COMUNIDADE QUILOMBOLA MUNDO NOVO

O Projeto de Extensão "Direitos em Movimento" tem pretensão de desenvolver-se ao


longo de três anos a partir de perspectivas independentes e complementares, sendo a primeira
etapa, desenvolvida ao longo de 2018, voltada especificamente à orientação jurídica à
comunidade Mundo Novo, localizada no município de Buíque - PE no intuito de apoiá-la
durante seu processo de regularização como comunidade remanescente de quilombo.
Fundamenta-se a partir da emergência de uma produção acadêmica interessada no
fortalecimento efetivo de um diálogo Sul-Sul, entre as "várias Américas Latinas" e África,
mediado por uma análise da produção científica em matéria jurídica e sociológica, discutida
durante as atividades do Grupo de Pesquisa que inspirou a presente proposta de Extensão
(Grupo de Estudos e Pesquisas Transdisciplinares sobre Meio Ambiente, Diversidade e
Sociedade - GEPT/UPE/CNPq). Essa é a justificativa do trabalha como um todo?
A ideia consiste em investir na visibilidade de grupos, marcados como minorias e
vulneráveis, por meio de ações críticas formuladas a partir de seus próprios anseios e sujeitos,
acompanhadas do suporte jurídico necessário para o fortalecimento e legitimação de Direitos.
Nesse sentido, o Projeto, utilizando-se de uma rede de colaboradores (docentes, discentes,
egressos, órgãos públicos e outras instituições), pretende em anos posteriores movimentar-se
e apoiar outras comunidades, quilombolas ou não, marcadas pelos traços da vulnerabilidade.
Vislumbra-se, por meio do aporte decolonial, reconhecer nas aproximações
ambientais, sociais e culturais, entre os espaços americano e africano, a oportunidade de
(re)pensar epistemologias a partir de suas próprias experiências históricas e ir além do Direito,
colocando-o em "Movimento" no intuito de permitir que a Universidade movimente-se em
favor daqueles os quais enfrentam o esquecimento e permanecem acortinados por um olhar
subalternizado.
É por estranhar o não investimento nas particularidades afrodescendentes no contexto
jurídico-administrativo brasileiro que se justifica a ideia do projeto. A pouca visibilidade da
contribuição africana nos estudos do Direito resulta no distanciamento de conhecimentos
necessários para compreender o caráter multiconstitutivo do espaço mestiço latino-americano
incluindo-se o Brasil. No entanto, essa expansão apenas pode tornar-se possível a partir da
ampliação de redes que oportunizam o conhecimento de particularidades ignoradas, inclusive,
as ignoradas pelo arcabouço jurídico-normativo, eis o papel a ser assumido como desafio pelo
Projeto "Direitos em Movimento".
Maria Lugones (2014), à luz de Aníbal Quijano, entende que o poder capitalista,
eurocêntrico e global está organizado, distintamente, em dois eixos: o poder da colonialidade
e a modernidade. Enquanto a modernidade foi imaginada como experiências e produtos
exclusivamente europeus, o poder colonial foi estruturado em relações de dominação,
exploração e conflito, o que terminou por proporcionar os meios e caminhos necessários à
formação da dita "modernidade" europeia (QUIJANO, 2005), mantendo-se, em certa medida,
até os dias de hoje quando assume o papel não mais de colonialismo, mas de colonialidade.
Essas relações, segundo o autor, foram criadas na colonização latino-americana, cuja
legitimação deu-se por meio da exploração dos povos tradicionais e africanos, e por que não
afirmarmos que deu-se por meio da invenção do ideal de "raça”, operacionalizado a partir da
distinção da estrutura biológica e linguística (DUSSEL, 1993). Assim, o chamado “novo
mundo”, considerado imaturo e incivilizado (DUSSEL, 1993), foi marcado por um período
colonial escravocrata, fundado na exploração dos negros e comunidades indígenas a partir da
imposição de um status de inferioridade dito “natural” (QUIJANO, 2005, p. 2), aqui assumido
a partir da denominação "subalternidade".
Nesse sentido, o capitalismo desenvolveu-se como um novo padrão global de controle
da mão de obra, por meio de uma estrutura articulada de controle de recursos naturais,
produtos e trabalho. O ideal de raça teve intrínseca contribuição para o desenvolvimento
econômico hegemônico, visto que associou-se à natureza dos papéis sociais e ao espaço
territorial (lugar), transformando o negro não apenas em mão-de-obra barata, bem como em
mecanismo para o lucro (QUIJANO, 2005). Em outras palavras, o colonizador europeu
desenvolveu uma dominação marcada pela apropriação de espaços e pela exploração extensa
de recursos naturais e dos povos os quais por eles foram considerados mercadoria.
Deu-se uma internalização dos valores da cultura dominante, neste caso, do homem
branco europeu. A tomar por esse parâmetro, é possível identificar um processo de
aculturação, na forma de valores advindos da catequização colonial, a qual trazia uma
perspectiva civilizadora e desenvolvimentista baseada na filosofia moderna eurocêntrica
(DUSSEL, 1993). Dessa forma, as relações coloniais de exploração e dominação foram
fortalecidas pela tríade superioridade-subalternidade-exclusão. Ao lado disso, o Direito serviu
de instrumento de dominação. As normas jurídicas tinham sua criação e aplicação com
objetivo de manutenção do poder colonial, limitação e controle dos indivíduos e grupos
originais, incluindo-se o reconhecimento apenas do clássico modelo de propriedade privada
deixando minorias e grupos vulneráveis à margem do Direito ao longo da história. Eis mais
uma razão para colocar os "Direitos em Movimento".
O discurso moderno soube dar sustentação ao sujeito, através das retóricas de
igualdade, liberdade e fraternidade. Todavia, os sinais apontam para um diagnóstico jurídico-
iluminista instável, na medida em que a política contemporânea é contrariada pela
desigualdade, na qual ainda prevalece a falta de liberdade em muitos aspectos e sobressai o
individualismo na esfera da sociedade civil (CARRETERO, 2007). Ao lado desse cenário de
contrates é possível observar a seleção dos discursos dominantes, incluindo-se os discursos
jurídico-positivos, organizados de modo que favorecem procedimentos de exclusão social e
reforçam a vulnerabilidade de certos grupos e minorias. Assim, as falas ainda hegemônicas
refletem uma "dominação relativa" na qual a figura do “subalterno” torna-se evidente, grupos
considerados dominados, os quais, não raramente, trazem como características a diversidade
e heterogeneidade (BIDASECA, 2010). Ou seja, os quilombolas, além de terem passado pelo
processo de exploração com a escravidão, permanecem excluídos, pois não integram os atos
de fala dominantes, daí a relevância de seu reconhecimento formal-administrativo como
comunidades remanescentes de quilombos. A dominação, outrora justificada pelo critério
biológico ou linguístico dos povos tradicionais e africanos (DUSSEL, 1993) os quais não se
encaixavam no molde ocidental-colonial, deixou como uma espécie de herança permanente a
subalternidade, legitimada muitas vezes pelo sistema jurídico.
Destaca-se que por ser fruto da modernidade, a ideia inicial de direitos humanos foi
edificada a partir de paradigmas modernos, com pretensões de universalidade e veracidade
absoluta. Dessa forma, o subalterno não tem voz, não encontra legitimação no discurso
humanitário (BIDASECA, 2010). Somado a isso, a ideologia de branqueamento criou um
racismo sofisticado, no qual internalizam-se os valores distantes da pluralidade originária,
distante, portanto, dos subalternizados, fortalecendo a supremacia dos grupos hegemônicos.
Essa observação leva à discussão sobre a diferença apontada por G. Spivak (2010), acerca da
articulação problemática da “representação”. Para a autora a representação existente na
política é classificada como “falar por”, não representando, dessa forma, o grupo oprimido.
Os que falam pelos subalternos não enfrentaram ao longo do tempo as marcas da
subalternidade, logo, a representação torna-se frágil. Mais uma vez destaca-se a importância
da regularidade formal dessas minorias subalternizadas no intuito de fortalecer suas
representações, a importância de colocar seus direitos "em movimento".
Assim, a diferença proposta na colonialidade pelas máximas da liberdade, igualdade e
fraternidade encontraram lugar ativo no mundo moderno, mas somente após movimentos de
descolonização dá-se a travessia para o lugar antes tido como passivo (MIGNOLO, 2005), é
nessa travessia que fundamenta-se o Projeto ora apresentado, "Direitos em Movimento". Isto
não quer dizer que ainda não haja um paradoxo no que tange à normatização dos direitos
quilombolas, uma vez que essas vozes subalternas ainda dependem da benevolência do
legislador ordinário, bem como, do olhar atento da Administração Pública.
Nesse sentido o Projeto apresenta como objetivo geral promover a participação da
equipe de discentes, sob a orientação da Professora Clarissa Marques, em parceria com uma
rede de atuação a ser construída ao longo das atividades (Ministério Público de PE, Secretaria
de Meio Ambiente de PE, OAB/PE e outras), no processo de formalização da comunidade
Mundo Novo como Remanescente de Quilombo - CRQ. Podemos afirmar que o objetivo geral
foi alcançado na medida em que a parceria com o MP-PE foi construída, destacando-se como
uma de suas consequências diretas a realização de reuniões entre o Ministério Público e a
comunidade Mundo Novo.
Como objetivos específicos o DIMO tem: 1. Capacitar a equipe DIMO para atuar no
apoio à comunidade Mundo Novo em seu processo administrativo de formalização como
CRQ; 2. Construir uma rede de apoiadores por meio de parcerias com órgãos e instituições
que possam colaborar com as orientações ao Processo administrativo de formalização da
comunidade Mundo Novo como CRQ e em futuras Ações do Projeto DIMO; 3. Levantar o
andamento do Processo administrativo de formalização da comunidade Mundo Novo como
CRQ, iniciado em 2015 e ainda não finalizado e construir estratégia jurídico-administrativa
de atuação para finalização positiva do processo; 4. Apoiar a comunidade Mundo Novo na
execução das etapas previstas como necessárias à sua formalização como CRQ no intuito de
alcançar a certificação almejada. Considerando que os objetivos foram cumpridos já na
primeira etapa do Projeto, a equipe está voltando suas atividades para colaborar no
fortalecimento da identidade quilombola do Mundo Novo. Imagina-se que esse fortalecimento
será fundamental na trajetória da comunidade em busca da territorialidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para além de limitar o trabalho com a Comunidade Quilombola Mundo Novo à


elaboração da pesquisa etnográfica, a proposta do Coletivo Direitos em Movimento (DIMO)
permitiu uma humanização dos estudos elaborados no meio acadêmico. Pois, trata a produção
de pesquisa como um conhecimento que deve retornar para a sociedade e trazer algum tipo de
modificação social e não restringindo o objeto de pesquisa, a algo que deve ser apenas
observado, cumprindo com a própria função da Universidade.
Partindo desse pressuposto, é possível compreender a importância da elaboração da
pesquisa etnográfica como uma contribuição para a modificar a realidade da Comunidade
Quilombola Mundo Novo. Inicialmente, o primeiro contato com a comunidade possibilitou,
além do reconhecimento do local, a compreensão da realidade vulnerável a qual estão
inseridos os quilombolas. A partir dessa percepção, a pesquisa instigou o interesse em realizar
transformações na Comunidade para mudar a realidade lá observada.
Dessa forma, a partir dessa inquietação, surgiu a ideia de construir um projeto de
extensão com essa Comunidade. Assim, foi pensada a criação do Coletivo Direitos em
Movimento que trouxe, inicialmente, a visita do Ministério Público ao Mundo Novo e
articulou a formação de uma comissão para o acompanhamento do processo de Certificação
de Comunidade Remanescente de Quilombo, emitido pela Fundação Cultural Palmares, além
de atender à solicitação da comunidade para que o Coletivo auxiliassse no processo de
fortalecimento da identidade e ancestralidade da comunidade.
Após essas estratégias e articulações, o primeiro objetivo de conseguir a certidão pela
Fundação Cultural Palmares foi conquistado. Cabe, então, continuar as ações de
fortalecimento identitário com a Comunidade, para que seja pedido a demarcação e
titularização das terras, processo realizado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (INCRA).
Faz-se importante ressaltar que essas medidas de asseguramento dos direitos das
comunidades tradicionais, em especial o direito à terra, é fundamental para a manutenção da
ancestralidade dessas comunidades, tendo em vista que sua identidade relaciona-se com o
território, no processo chamado de territorialidade. Ou seja, é no território que as comunidades
constituem e reproduzem seus costumes e modos de produção, adicionando a ele significados.
Ademais, salienta-se que toda e qualquer ação de proteção e assistencialismo aos povos
tradicionais nada mais é que a reparação de um histórico de invisibilidade e negligência.

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2010.
AS FALHAS DE MERCADO E OS DANOS AMBIENTAIS NO SETOR DE
PETRÓLEO: uma questão de conveniência23

Marília Gabriela de Araújo Melo Pereira de Lira24


Marcos Antônio Rios da Nóbrega25
RESUMO

O trabalho referido tem como objetivo apresentar a ineficiência agenciária na fiscalização do


setor petrolífero, apontando danos ambientais perpetuados em razão da participação
econômica como verdadeiros jogadores, analisados sob a Teoria Econômica dos Contratos,
apontando que os aspectos econômicos, como as falhas de mercado, não raras vezes,
perpassam a reflexão necessária sobre as políticas ambientais, deixando o Direito Ambiental
em segundo plano, eis que embora se trate de um direito de todos, parte da sociedade superpõe
a economia sobre os Direitos Constitucionais, como este inserido no art. 225 da Constituição
Federal de 1988, comprometendo um ambiente ecologicamente saudável e digno, assim como
colocando em risco a qualidade de vida das futuras gerações diante destes danos ambientais
de grande proporção. Será abordada a temática sob o prisma da análise econômica do Direito,
apresentado as falhas existentes no mercado, e as consequências que isso pode gerar no plano
jurídico ambiental, com base na metodologia bibliográfica.
Palavras-chave: Regulação. Dano ambiental. Petróleo. Falhas de mercado. Análise
econômica

INTRODUÇÃO

Muito se tem questionado sobre o fator econômico como a bússola da atividade


regulatória, eis que define onde se deve mexer na economia do país, seja por meio da atividade
normativa ou através da política fiscal.
A questão da ineficiência agenciaria se vê cominada também com os problemas
relativos ao mercado e o seguimento ao direito desencadeia um cálculo probabilístico em
relação ao fisco e à potencial perda econômica, pois sendo algo improvável de fiscalização
desinteressa ao indivíduo seguir o direito à risca.
Muitas vezes o direito se defronta com situações estratégicas, tal como se fosse um verdadeiro
jogo, assim caracterizando os jogadores, as estratégias de cada jogador e os payoffs (ganhos
ou retornos) de cada jogador para cada estratégia, conforme a Teoria dos Jogos (COOTER E
ULLEN, 2010).
Contudo, a escolha individual não raras vezes depende de fatores como o tempo, a
energia, o conhecimento, a cultura pessoal, e principalmente a renda limitada, pois todos irão

23
Grupo de Trabalho : Meio ambiente, sociedade e diversidade
24
Doutoranda pela UFPE. UFPE. MGAMP_DIREITO@HOTMAIL.COM
25
Pós-doutor em Harvard. UFPE. MARCOS-NOBREGA@HOTMAIL.COM
determinar o que o consumidor pode escolher dentro das suas limitações de acordo com a
Teoria da Escolha Racional (COOTER E ULLEN, 2010).
Para implementar tal trabalho, foram utilizadas técnicas de abordagem hipotético-
dedutiva, partindo de uma perspectiva teórica, com análise de dados bibliográficos em busca
da solução ao problema da regulação brasileira, bem como a arbitragem em meio às parcerias
público privadas.
Afora isto, adotou os métodos histórico e comparativo, posto ser
imprescindível à compreensão dos sistemas jurídicos os fatores históricos, sociológicos e
econômicos cambiantes na própria estrutura da administração, apontando as semelhanças e
dessemelhanças entre os modelos em outros países.
A linha de pesquisa foi teórica, com a busca de uma explicação dos quadros
teóricos de referência, por meio de leituras e interpretações.
Quanto à técnica empregada na produção dissertativa, foi realizada uma
pesquisa bibliográfica, em meio à análise de livros, artigos, revistas, periódicos, legislações e
jurisprudências correlatas.
Enfim, através da pesquisa foi avaliado o problema pautando uma contribuição
social rumo a um regramento a atitude nociva das falhas de mercado em relação ao meio
ambiente e às soluções referentes a este controle efetivo inerente num Estado Democrático de
Direito.

DESENVOLVIMENTO

A questão das falhas de mercado justifica a atividade interventora do Estado sobre a


economia, pois as primeiras sempre existirão diante da impossibilidade de manutenção de um
mercado perfeito, mediante o pensamento de Arthur Pigou (ANPEC, 2005).
A primeira falha que merece comentário é a questão do monopólio e do poder de
mercado, o qual ocorre quando as empresas do ramo específico realizam conluio entre elas e
seus fornecedores de insumos impedindo a competitividade sadia, elevando o preço dos
produtos e fornecendo baixa quantidade do ponto de vista da eficiência, dificultando a
eficiência do mercado. Em virtude destes monopólios, pode ocorrer o pouco incremento
tecnológico em razão da exclusividade do produto fornecido, ou prática de cartéis
prejudicando a população consumidora.
É certo que é faculdade da União, conforme o art. 177, I, §1º da CF/88, contratar as
atividades que constituem seu monopólio a outras pessoas jurídicas, podendo ou não
flexibilizar esta atividade, mas a concorrência no mercado é extremamente benéfica ao
consumidor, uma vez que instiga a qualificação dos produtos e serviços ofertados.
No Brasil, a Petrobrás, sociedade de economia mista, cujo capital majoritário pertence
à União, atua como empresa concessionária de serviço público detentora na prática do
monopólio na exploração do petróleo e seus derivados, classificados como commodities em
virtude da padronização em relação à produção e ao preço em âmbito internacional, e carteliza
o produto final proporcionando altos custos para o consumidor.
Apesar de ter havido a flexibilização do mercado, em meio a EC nº9 de 09 de
novembro de 1995, o novo marco regulatório do pré-sal estabeleceu basicamente o retorno
do monopólio da Petrobrás para participar unicamente na exploração destas áreas, ou ao
mínimo num consórcio em que tenha participação garantida de 30%, o que já proporcionou
prejuízos à sociedade, em razão da fuga dos investidores estrangeiros no serviço de
exploração, não obstante ainda não ter sido efetivada nenhuma rodada de licitação sob esta
nova modalidade contratual, a partilha de produção.
No regime anterior esta impossibilidade de concorrência entre a Petrobrás e demais
empresas de médio e pequeno porte interessadas na exploração do petróleo muitas vezes se
dava por conta da necessidade de vultosos montantes de capital, uma vez que a
implementação tecnológica demanda um aparato técnico de custo bastante elevado, tornando
tais recursos inalcançáveis em relação à realidade de menores empresas, corroborando com a
tomada do mercado pela Petrobrás, que mesmo em caso de interesse de grandes empresas
estrangeiras, tinha o privilégio de escolher os melhores campos a explorar, sempre dominando
o mercado.
São cruciais pesquisas eminentemente técnicas em geologia e geofísica no local para
a extração da jazida petrolífera, e como há grande limitação de oferta de mão-de-obra, por
conta da estrita especialidade existe dificuldade de acesso às empresas nacionais menores.
Além disso, a burocracia no processo de licenciamento ambiental, apesar de imprescindível,
serve como mais um obstáculo à inserção no mercado (ANP, 2011).
Os custos totais provenientes da perfuração dos poços equivalem de 40% a 80% dos
custos totais da exploração, depreende-se com isto que a atividade geológica é caracterizada
como uma das principais para o sucesso da exploração (INFOPETRO, 2002).
Esta deficiência de pessoal tem provocado a firmação de convênios entre a ANP e as
universidades nas áreas de geologia, geofísica, engenharia de petróleo, química, direito e
economia, cuja concessão de bolsas de estudos foi em torno de 3.300 unidades no ano de
1999 e 2004 (ANP, 2011).
A menor capacitação dos funcionários leva as empresas a exercerem menor
competitividade, o que pode levar a comprometer projetos, efetuar perfurações não
autorizadas diante da má interpretação de informações (ANP, 2011).
Estes custos por sua vez variam conforme a região, pois a perfuração no mar pode
custar até quatro vezes mais do que a em terra (ANP, 2011), e em razão do elevado risco na
atividade as instituições financeiras raramente financiam a exploração, o que exige capital
próprio da empresa concessionária para investir de forma isolada ou por meio das joint
ventures, enfatizando a difícil competitividade no setor (ARAUJO, 2004).
Além disso, a perfuração pode provocar erupções de óleo ou gás e assim danificar os
equipamentos, bem como gerar incêndio e explosão, provocando danos pessoais e ambientais,
transgredindo o Direito Fundamental ao meio ambiente saudável e equilibrado (ANP, 2011).
Para minoração destes acidentes, são utilizados equipamentos denominados ESCP –
Equipamentos de Segurança de Cabeça de Poço, os quais possibilitam o controle de
fechamento do poço por meio de válvulas especiais, como o blowout preventer (BOP) (ANP,
2011).
Frente a todos estes infortúnios, existe o risco de insucesso em razão da não
apresentação de condição comercializável pela jazida encontrada, tornando os investimentos
efetuados pela empresa irrecuperáveis (BULHOES, 2008).
O que leva a demasiada perfuração danificando o meio ambiente. No Canadá, por
exemplo, foram furados entre o ano 2000 e 2005, 20.500 poços por ano, o equivalente ao
dobro do número de perfurações deste país nos anos 90. Neste mesmo ano 36.321 poços
foram perfurados nos Estados Unidos (BULHOES, 2008).
Apesar de a EC 09 de 09 de novembro de 1995, ter aberto espaço para as empresas
internacionais participarem das licitações, as barreiras enfrentadas são muitas, por exemplo,
a diminuição do tamanho dos blocos para dar condições às médias e pequenas empresas
adentrarem na exploração, desinteressou-as na participação de novas licitações, continuando
somente com os blocos maiores já licitados (BULHOES, 2008).
Com isto a Petrobrás passou a exercer suas atividades em caráter monopolístico,
atuando em blocos na exploração e desenvolvimento, submetendo-se apenas às
determinações da ANP, na dicção do art. 21 da Lei 9748, ao definir que todos os direitos
referentes ao petróleo e gás natural são monopólio da União, administrados pela ANP
(BULHOES, 2008).
Todavia, a Lei do Petróleo, no art. 65 determinou a construção de uma subsidiária da
Petrobrás, para as atividades de transporte por meio da criação de dutos e embarcações, o que
trouxe a Transpetro – Petrobrás Transporte S. A. para exercer esta atribuição específica.
A Lei 9748 para coibir abusos mercadológicos determina a proteção ambiental, bem
como a racionalização da produção, conforme art. 44 da Lei Federal, pois a busca desmedida
por poços pode levar a exploração de campos marginais, os quais são denominados
economicamente campos de pequeno porte produtores de petróleo no limiar da inviabilidade
econômica, diferente dos campos maduros que são tecnicamente assim chamados pelo
declínio na produção em função de sua idade (ANP, 2011).
Esta atividade por causar impactos ambientais se submete ao processo de
licenciamento de compêtencia do IBAMA e de órgãos estaduais, os quais indicarão os níveis
de exigências para a indústria do petróleo.
O art. 63 do Decreto-Lei 6514, de 22 de julho de 2008 determina que a ausência de
autorização, permissão, concessão ou licença para extração de recursos minerais caracteriza
infração ambiental, da mesma forma o art. 66 enfatiza que a implementação de
estabelecimento para atividades potencialmente poluidoras sem o devido crivo administrativo
incorre no ilícito. O art. 64 aborda o comércio e produção de substância tóxica ou nociva ao
ambiente, condutas que também configuram infração ambiental, cujas penas de multa variam
em torno de 500 a 10 milhões de reais.
Os custos no setor são de grande monta em razão da escassez de mão de obra
especializada, a baixa oferta de cursos de formação e capacitação na área e a insuficiência de
preenchimento de seus quadros. Acrescem-se ainda os gastos com o aluguel das sondas
utilizadas nas perfurações que variam em torno de 50 a 400 mil dólares diários. O aporte
financeiro, por exemplo, para viabilizar o pré-sal foi estimado em torno de 600 bilhões de
dólares (ANP, 2011).
A adequação às práticas internacionais na indústria do petróleo se torna exigível,
principalmente no que tange a importação de mão de obra e a ênfase na atração de
investimentos ao setor. Um claro exemplo se dá na indústria sueca Volvo, cuja inovadora
tecnologia SCR (Selective Catalytic Reduction) ou Redução Catalítica Seletiva, servirá para
atender às exigências da legislação através da solução denominada ARLA 32.
Segundo o Presidente da empresa no Brasil, Roger Alm, esta novidade serviu para
amenizar os danos ao ambiente, pois a nova frota de caminhões terá baixo consumo de
combustível e alta produtividade, além disso, atenderá à legislação de emissões Proconve P7-
Euro 5, Conama P7 (TRANSPORTABRASIL, 2011).
A mudança consiste em acrescentar um tanque com o aditivo ARLA32, o qual
corresponde ao AdBlue utilizado na Europa, uma bomba de sucção, uma unidade injetora e
um catalisador, reduzindo os níveis de óxido de nitrogênio através do pós tratamento dos
gases ao converter o NOx em nitrogênio e vapor d’água. Entretanto há uma geral resistência
das transportadoras em virtude da necessária redução da carga por conta da implantação da
nova aparelhagem. Reivindicam do governo revisão no valor fretado para as empresas,
evitando que o ônus ambiental recaia unilateralmente.
Uma outra falha de mercado, diz respeito à questão dos bens públicos, os quais são de
propriedade unicamente estatal em virtude da ausência de credibilidade sobre o particular na
disposição dos serviços a sociedade. Na questão do petróleo, este fator é preciso na medida
em que a Constituição Federal atribui a jazida do petróleo e seus derivados ao monopólio da
União, conforme art. 176 da CF/88, privatizando apenas o direito de explorar através da
concessão, mediante art. 175 da CF/88.
Não obstante, há controvérsias em determinar a natureza jurídica da atividade de
exploração. Carlos Ari Sundefeld, por exemplo, defende a não referência ao art. 175 da
CF/88, não sendo caracterizado como um serviço público, opondo-se a corrente publicística
em função da privatística. Mas na verdade seria um contrato de concessão mista porque têm
ambos os interesses, público e privado (SUNDFELD, 2000).
Outro fator influenciador no desvirtuamento do mercado se dá em função da incerteza
dos Direitos de Propriedade, pois este pode não possuir uma definição clara em relação aos
seus deslindes impedindo o desenvolvimento e o investimento.
No que tange à parcela do lucro proveniente da produção do petróleo ou gás natural,
conhecido vulgarmente como royalties, esta deve ser repassada da União para os Estados,
Distrito Federal e Municípios detentores da área onde a jazida foi explorada, bem como deve
haver repasse do percentual destes lucros aos proprietários dos terrenos explorados, inclusive
indenizá-los em virtude da servidão administrativa e por danos ali proporcionados pela
atividade de extração.
No caso de haver exploração em terras privadas, o repasse é denominado tecnicamente
pelo art. 52 da Lei do Petróleo como pagamento de participação ao proprietário da terra. O
fato é que por vezes estes valores não lhe são repassados adequadamente.
No que pertine aos valores pertencentes às Pessoas Jurídicas de Direito Público, não
há uma divisão isonômica entre eles, gerando locais receptores de parcelas maiores que
outras, e assim impedindo o desenvolvimento equânime e concomitante, eis que a natureza
jurídica dos royalties se trata de uma compensação pela exploração efetivada no local e assim
provocadora de danos à região que perde tais riquezas em prol da sociedade.26
Isto tem gerado a aparição de municípios riquíssimos, os quais ao invés de se
desenvolverem e crescerem por meio da recepção dos royalties, utilizam os lucros para
aumentar os gastos correntes do ano se tornando dependentes de barganha política, enquanto
outros continuam na extrema pobreza (SUNDFELD, 2000).
Para tentar coibir tal discrepância, foi elaborado um projeto de lei para repartição dos
royalties de maneira igual entre os estados produtores e não produtores, e usá-lo para
investimentos em saúde e educação, ocorrem que outro problema surge, pois para isto existem
os repasses constitucionais obrigatórios às áreas de extrema importância e que, no entanto
não são obedecidos pelo governo federal, que prefere concentrar tais verbas para efetivar
superávit econômico.
Isto tem gerado diversos questionamentos e até ADINs questionando a
inconstitucionalidade da modificação na repartição dos royalties, eis que deveriam ser
direcionados apenas a contratos futuros e não aplicados em contratos já em andamento
prejudicando o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e assim a segurança jurídica.
Aos opositores, o argumento é no sentido de que não existe direito ad quirido no
âmbito destes contratos, podendo ser modificados a qualquer momento em prol do interesse
público.
Apesar da CF no art. 20 determinar os royalties como bens da União, quando define
“participação no resultado da exploração do petróleo ou gás natural”, nenhum recurso é a ela
direcionado até o momento, todo o aporte financeiro é dividido entre Estados, Distrito Federal
e Municípios, havendo impropriedade técnica no §1º do referido artigo, bem como da Lei

26
No caso da lavra em terra, se a parcela a ser repartida for de 5%, deverá corresponder a 70% dos estados
produtores, 20% dos municípios produtores, 10% dos municípios com instalações de embarque e desembarque
de petróleo e gás natural. Se a parcela for maior que 5% a repartição será de 52,5% para os estados produtores,
25% para o Ministério da Ciência e Tecnologia, 15% para os municípios produtores e 7,5% para os municípios
afetados por instalações de embarque e desembarque de petróleo e gás natural. Já em relação à lavra na
plataforma continental, a parcela de 5%, deverá ser de 30% aos estados confrontantes com poços, 30% aos
municípios confrontantes com poços e suas respectivas áreas geoeconômicas, 20% ao Comando da Marinha,
10% ao Fundo Especial (estados e municípios) e 10% aos municípios com instalações de embarque e
desembarque de petróleo e gás natural. Quanto à parcela acima de 5%, 25% ao Ministério da Ciência e
Tecnologia, 22,5% aos estados confrontantes com campos, 22,5% aos municípios confrontantes com campos,
15% ao Comando da Marinha, 7,5% ao Fundo Especial (estados e municípios), 7,5% aos municípios afetados
por instalações de embarque e desembarque de petróleo e gás natural. ANP. AGÊNCIA NACIONAL DO
PETRÓLEO, GÁS NATURAL E BIOCOMBUSTÍVEIS, 2001, Guia dos Royalties do Petróleo e do Gás
natural. Rio de Janeiro: ANP. Disponível em: <http://www.anp.gov.br/doc/conheca/Guia_Royalties.pdf>.
Acesso em 20 jan. 2008.
7.990/89 (28/12/89) ao classificá-los como compensação financeira, o que culmina na
caracterização dos royalties como objeto de um sub-contrato de estipulação em favor de
terceiro dentro do contrato de concessão e não a imprecisa compensação definida em lei
(MANOEL, 2003) 27.
Sendo assim, a “maldição dos recursos naturais” (GUIZZO, 2009, p. 59) é aventada
em razão de nem sempre os royalties beneficiarem o local receptor dos recursos para
crescimento e desenvolvimento. A aludida doença holandesa se caracterizou pela crise vivida
na Holanda na década de 70 em razão da desindustrialização, desvalorização dos produtos
industrializados e supervalorização dos produtos primários, gerando descompasso na
competitividade entre os produtos internos e externos (NAKAHODO, 2006).
Bresser Pereira afirma que “existe uma razão estrutural para a apreciação artificial do
câmbio no Brasil: a ´maldição dos recursos naturais´ (...) a doença holandesa que atinge o
país resulta da apreciação artificial do câmbio em conseqüência do baixo custo de produtos
exportados que utilizam recursos naturais baratos” (UOL, 2012).
Conforme Silveira Neto, a excessiva entrada de dólares no Brasil é incompatível com
sua economia, porque sua liquidez interna refletirá sobre o câmbio, provocando a
desvalorização da moeda interna o que gerará a inflação e queda nos níveis de exportação
(UFRN, 2012).
Como uma ferramenta de política macroeconômica, foi elaborada uma lei na condição
de criar um fundo específico para resguardar os lucros provenientes do pré-sal, denominado
Fundo Soberano Brasileiro. Com estas reservas seriam efetivadas aplicações em ativos
externos, em títulos públicos de países centrais, preservando a renda diante de oscilações do
preço e da desvalorização ou até mesmo esgotamento das reservas de petróleo (CARVALHO,
28
2008) .
Ainda no que pertine ao Direito de Propriedade, há miscelânea quanto à definição do
detentor limítrofe do bloco onde se encontra a jazida em exploração, o que leva a necessidade
da unitização, ou seja, individualização da produção. Isto se dá em razão das inúmeras
perfurações, o que leva a regiões limítrofes capturarem ao máximo o petróleo encontrado
independente do percentual de participação na jazida comum (BUCHEB, 2008).
Um outro fator relevante para o direcionamento da economia é a questão das
externalidades, as quais nada mais são do que os custos da troca que poderão refletir em outras
partes, é a ação de um agente econômico que interfere em outro, cabendo ao governo interferir
tributando ou regulando para minorar estes reflexos. Essas como custos não intencionais a
sociedade podem se dar, por exemplo, em razão da poluição, mas também podem servir como
benefícios a sociedade através do investimento tecnológico, gerando efeitos em ambos os
casos a todos indistintamente.
Com relação ao uso intensivo do petróleo na geração de energia as externalidades
negativas estão presentes, promovendo danos a todos por meio da poluição e em função da
finitude desta energia, entretanto o lucro faz cega a sociedade produtora.
Como dizia Malthus, o crescimento da produção não acompanha a necessidade da
população, pois a primeira cresce em progressão aritmética e a segunda em progressão
geométrica. No caso do petróleo, como fonte não renovável, a exponencial demanda por este
fóssil tenderá em certo tempo ao seu esgotamento, contrariando a garantia dos recursos às
futuras gerações e assim a ideia de sustentabilidade.
Marx por sua vez, define o capitalismo como não sustentável em virtude de sua
destruição ambiental: "A produção capitalista, portanto, só desenvolve a técnica e a
combinação do processo social de produção, exaurindo as fontes originais de toda a riqueza:
a terra e o trabalhador” (MARX, 1971, P. 579).
No mercado de carbono dá-se o direito de poluir aos países que compram os créditos
de outros, gerando o custo a toda sociedade provocando a tragédia dos comuns:

“One of the most famous market failure stories is that of the tragedy of the
commons. According to this story, community resources held in common such as
grazing land inevitably suffer explatation and degradation. Suggested remedies
include transfer of the resources to a single government agency or privatization”
(MC CURDY, 1999, P. 558-578) 29.

Para que o governo intervenha na contenção destas externalidades ele tende a calcular
o custo vs. benefício na situação em tela, pois os custos de intervenção tem que ser menores
que os benefícios, caso contrário é inviável economicamente este controle governamental, o
estado agirá por meio de um behavior economist.
Conforme autores30 da “civilização do gás” dentre os fósseis, o que causa menor
impacto ambiental é o gás natural, diminuindo a emissão de gases de efeito estufa, o

29
Tradução: Uma das mais famosas falhas de Mercado da história é a tragédia dos comuns. De acordo com a
história, os recursos comuns, realizados em comum tais como pastagens, inevitavelmente sofrem exploração e
degradação. Soluções sugeridas incluem a transferência dos recursos para uma agência do governo ou
privatização.
aquecimento global, o esgotamento das reservas e a dependência das reservas em áreas
sensíveis (SCIELO, 2012).
Apesar de seu uso vir crescendo vertiginosamente, de 1,3 para 6,7 milhões de metros
cúbicos por dia, com crescimento anual de 38% entre 2001 e 200631, servindo como uma
alternativa na propagação de energia, ainda é mister investimento tecnológico e cultural no
tocante ao uso de energias alternativas, bem como incentivos governamentais na
implementação de tais recursos, eis que os custos elevados impedem sua fácil aceitação. Isto
se justifica pela preferência energética ao petróleo diante de sua maior eficiência em relação
às demais fontes energéticas (SCIELO, 2012).
No mundo, a grande maioria dos meios de transporte são movidos por petróleo e seus
derivados. Além do combustível, diversos outros produtos são elaborados a partir do petróleo,
como plásticos, borrachas sintéticas, adesivos, produtos farmacêuticos e tintas.
A alternativa utilizada para o uso, por exemplo, do etanol no Brasil, foi misturá-lo ao
combustível, numa proporção que varia entre 20% e 25%, conforme dados apresentados pela
escola de Harvard (OIL & GAS, 2011). No tocante a energia hidráulica a ineficiência se dá
em razão das grandes perdas sofridas neste tipo de energia. E quanto a nuclear, a construção
de Angra III perdura desde 2007, iniciaram-se as obras apenas em junho de 2010 (OIL &
GAS, 2011).
A produção brasileira de petróleo em 2009, conforme a Statistical Review of Wolrd
Energy tradução?em junho de 2010, foi de 12,9 bp bbl, o equivalente a 0,8 da produção
mundial. Para o BMI (Business Monitor International) a previsão da produção brasileira em
2015 na América Latina será de 29,58%, situando-se como um dos principais exportadores
junto ao México e a Venezuela. Estimou-se o uso de 7,88milhões de barris por dia na América
Latina em 2010 e um aumento na demanda global do petróleo de 1,6% em relação a 2010 ou
14 milhões de barris por dia em 2011 e de 1,68% entre 2011 e 2015 (OIL & GAS, 2011).
Um outro aspecto que dificulta a regulação em razão de falha mercadológica são as
assimetrias informacionais, as quais gravam desequilíbrios de informação entre as partes
envolvidas no contrato, concessionário-concedente, provocando a realização de contratos
incompletos e conseqüências drásticas quanto à responsabilidade contratual.
Os pré-editais formados pelas empresas servem de ideias para tentar minorar estas
assimetrias, mas o universo de disposições relativas à atividade é extremamente complexo, o
que transforma a Petrobrás numa imensa holdingem função da desverticalização do setor de
energia, produzindo, transportando e comercializando.
Muitas vezes o risco é assumido unicamente pelo concessionário, e no caso de
qualquer infortúnio o prejuízo provavelmente desembocará na sociedade, como os acidentes
internos de Enchova, Roncador e Duque de Caxias, e o acidente de Macondo, cuja
repercussão internacional foi significativa, apesar de não envolver a Petrobrás.
Não é à toa que a carga tributária incidente nos combustíveis são altíssimas,
provocando práticas ilegais resultantes em adulterações e fraudes e mais uma vez
prejudicando a coletividade. Além disso, o papel da ANP se resume à fiscalização da
exploração, produção, importação, exportação e transporte até os citygates. Sendo assim, o
governo deveria garantir a segurança operacional e ambiental, concedendo enforcements ao
concessionário nos contratos elaborados.
A descoberta de novas jazidas de petróleo é o apogeu de diversos países que até então
não possuíam nenhuma economia de mercado internacional, tais como os países árabes, mas
a conquista deste mercado tem provocado inúmeras guerras, a questão ambiental fica em
segundo plano, e a solução é afastar paulatinamente as nações na elaboração de acordos, assim
há uma forte tendência na erosão dos acordos internacionais comerciais multilaterais por
conta da difícil adesão de todos os membros ao grupo, destruindo o Principio da Não-
Discriminação, defendido por Leal-Arcas (LEAL-ARCAS, 2010).
Um exemplo claro da inaplicabilidade dos acordos multilaterais se deu na elaboração
do Protocolo de Kyoto em 2005, o qual não obteve a adesão dos Estados Unidos com alto
índice de emissão de gases poluentes, nem da Austrália, dificultando o atingimento das metas
de redução e corroborando com a loucura planetária com a qual estamos vivendo em nosso
clima.
A adoção de medidas de políticas públicas vai depender do grau de interesse estatal
em intervir num determinado setor da economia. Sendo compensatório economicamente,
serão emanados atos a regularem a matéria.
Alguns pontos tentam ser minorados por meio de teorias, como a definição dos
Direitos de Propriedade, a qual serve para internalizar as externalidades nos custos do bem
ou do serviço. Devendo haver incentivo para o uso socialmente equilibrado dos recursos, de
modo a evitar as externalidades negativas assim como a tragédia dos comuns (VIEGAS,
2010).
A Teoria Econômica da Responsabilidade contratual também tem como cerne trazer
para os contratos danos que estão fora dos acordos privados, as externalidades, as quais para
o Teorema de Coase são obstáculos para a barganha em virtude dos custos de transação
elevados.
Ronald Coase defende a importância da firma para o mercado, “The Nature of the
Firm,” Coase explained that firms exist because they reduce the transaction costs that emerge
during production and exchange, capturing efficiencies that individuals cannot”32;. E
defende que o direcionamento dos recursos dependem diretamente do mecanismo de preços.

“Outside the firm, price movements direct production, wich is co-ordinated through
a series of exchange transactions on the market. Whitin a firm, these markets
transactions are eliminated and in place of the complicated market structure within
exchange transactions is substituted the entrepeneu-coordinator, who directs
production” (COASE, 1937, P. 02) 33

A questão do uso desregrado dos recursos naturais é bem demonstrada quando se


fala em mudanças climáticas, em razão da irracional poluição ambiental mais acentuada em
virtude das nações mais ricas que não desaceleram a produção, mas continuam com o direito
de poluir através da compra dos créditos disponibilizados pelas nações mais pobres.
Stavins critica a postura dos países emergentes: “while some of those emerging
economies plus most developing countries insist that the rich countries go first, and possibly
compensate developing countries for climate damages” (STAVINS, 2010) 34.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Análise Econômica do Direito é imprescindível quando se traz à baila a questão da


ineficiência regulatória, pois a Economia também elenca os fundamentos que guiam o Direito,
a doutrina adorna seus aspectos principais, criticando e justificando a razão mercadológica
atrelada ao agente regulador.
É impossível haver uma administração pública funcionando eficientemente
garantindo um desenvolvimento sustentável diante de vícios que fogem do seu controle, é
impossível ter um mercado naturalmente saudável perante as condutas expansivas dos agentes

33
Tradução: Coase explica que as empresas existem porque reduzem os custos de transação que emergem durante
a produção e troca, capturando a eficiência que os indivíduos não possuem. E acrescenta: fora da empresa, o
movimento de preços de produção direta, é coordenado através de uma série de operações de cambio no mercado.
Sem uma empresa, essas operações no mercado são eliminadas e no lugar da estrutura de mercado complicado
dentre operações de câmbio é substituído pelo coordenador da empresa, que dirige a produção.
34
Tradução: “embora algumas economias emergentes, países em desenvolvimento insistem que países ricos vão
primeiro, e possivelmente compensam os países em desenvolvimento por danos climáticos”.
econômicos na luta pela conquista da maior e melhor fatia no mercado a qualquer custo.
O mercado apresenta bastantes falhas imanentes em seu sistema, impedindo o alcance
do ponto de equilíbrio ótimo em que todos os agentes participantes se deem por satisfeito, de
acordo com o ótimo de Pareto, em virtude da busca incessante pelo acúmulo de capitais frente
à globalização, provocando a exploração dos recursos de forma irracional.
O desenvolvimento sustentável deve ser suplantado na economia mundial como uma
maneira de restaurar ou estagnar a exploração dos recursos naturais, ao invés de ser
visualizado como um instrumento sancionatório às condutas desconformes com as
imposições legais.
No caso peculiar do petróleo, o respeito aos objetivos subscritos no art. 1º da Lei do
Petróleo, bem como a proteção ambiental constitucional servirão como balizamentos à
extração excessiva, efetivando o ofício dos entes reguladores, para que fiscalizem de maneira
díspare de politizações ou interesses puramente econômicos.
É certo que a riqueza decorrente do petróleo tem o condão de desenvolver nações,
todavia é fundamental que haja uma exploração ambientalmente salutar à sociedade, para que
o crescimento e o desenvolvimento sejam de forma solidária às civilizações futuras.

REFERÊNCIAS

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https://www.ogj.com/articles/2011.html. Acesso 20 de fevereiro de 2011.


35A MODERNIZAÇÃO DA MENTIRA NA POLITICA: reflexão do fenômeno das
fake news através de conceitos arendtianos36

João Victor Silva Pereira37


Rita de Cássia Souza Tabosa
Freitas38

RESUMO

O principal desígnio deste trabalho é relacionar conceitos arendtianos, sobre a mentira na


política, com fatos concretos e atuais, capazes de demonstrar o potencial de manipulação por
parte da informação. O principal re39ferencial teórico utilizado na construção do texto se
encontra no ensaio “A Mentira na Política – Considerações sobre os Documentos do
Pentágono” presente na obra “Crises da República”, de Hannah Arendt. Sabido o princípio
da construção da argumentação, visa analisar as influências de notícias falsas, veiculadas por
mídias virtuais, no contexto político. Essa análise terá como base a crescente onda de
utilização das chamadas fake news para influenciar, por exemplo, eleições presidenciais.
Desse modo, buscamos responder tal questionamento: a produção de notícias fraudulentas, no
meio virtual, interfere diretamente no cenário político? Para isso, analisaremos mecanismos
virtuais, os principais veículos de comunicação na era digital, com o intuito de perceber a
relação da manipulação ideológica com conceitos arendtianos de embuste e auto-embuste na
política. Para tal, será utilizado o método dedutivo, para uma pesquisa bibliográfica e
documental de caráter explicativo.

Palavras-chave: Hannah Arendt. Mentira. Política. Manipulação. Fake news.

INTRODUÇÃO

Os processos de eleições, em regimes democráticos principalmente, vêm sofrendo


graves mudanças, frutos de avanços multifatoriais. A mudança que aqui será tratada diz
respeito às dinâmicas sociais desenvolvidas nos ambientes virtuais, tendo em vista a grande
(re)evolução causada pelas redes sociais. Todos esses aspectos foram percebidos com o
aumento da participação virtual dos eleitores nas últimas eleições. Os debates políticos
tomaram novos caminhos, espaços e dinâmicas, terreno fértil para fraude.
Nesse sentido, devemos nos situar em relação a realidade com a qual essa sociabilidade
se desenvolve, na tentativa de entender as influências exercidas pelo que vem a ser a pós-
verdade, como também pelo modus operandi do mundo virtual. Assim é possível perceber a

35
36
GT 02 - Aspectos Filosóficos, Socio-antropológicos, Históricos e Hermenêuticos do direito.
37
Graduando em Direito. Universidade de Pernambuco – Campus Arcoverde. Membro do Grupo (In) Tolerância
e Violência: Reflexões a partir do conceito de amor mundi em Hannah Arendt. joaovspereira17@gmail.com.
38
Doutora em Filosofia do Direito, docente do Curso de Direito da UPE Arcoverde e Coordenadora do Grupo
(In) Tolerância e Violência: Reflexões a partir do conceito de amor mundi em Hannah Arendt. Universidade de
Pernambuco – Campus Arcoverde. rita.tabosa@bol.com.br.
39
falta de afinidade com a situação, de certo modo disruptiva, por parte até de autoridades.
Entender novos comportamentos demanda da sociedade conhecimentos específicos, só assim
será possível se adequar ao momento.
Dessa forma, Arendt esclarece a postura da mídia, quando afirma: “[...] na medida em
que a imprensa é livre e idônea, ela tem uma função enormemente importante a cumprir e
pode perfeitamente ser chamada de quarto poder do governo” (ARENDT, 2013, p.46). É
nítido, então, notar a necessidade de analisar a participação da mídia, seja ela qual for, na
esfera política, admitindo antecipadamente, a intensa relação existente entre tais campos, tal
análise necessita da luz de conceitos arendtianos.
Acompanhando o processo de mudança ao qual a humanidade se sujeitou, ficando
mais nítido atualmente pelos avanços tecnológicos responsáveis por modificar a sociabilidade,
especificamente as redes sociais, a imprensa mencionada por Arendt toma novas formas, mas
não se aparta de antigos papéis. Desses papéis, merece atenção aquele assumido de maneira
obscura, o de agente manipulador.
A reflexão aqui estabelecida se mostra importante e atual, na medida em que se vê
contextualizada em um período conturbado, de popularização das fake news, as ditas notícias
fraudulentas. O regime democrático, comum em diversos países, se vê ameaçado diante desse
novo fenômeno, por isso, órgãos de diversas instâncias buscam conhecer, entender e inibir
suas consequências, com o intuito de preservar o Estado democrático.
Vários são os casos, já reportados, suficientes para denunciar influências políticas do
fenômeno das fake news. Eleições presidenciais, no Brasil em 2014, nos Estados Unidos em
2016, são exemplares nessa matéria. Nesses episódios, os sujeitos interessados em manipular
as opiniões assim fizeram por meio de redes sociais, fake news, e até forjaram militância
virtual, com perfis falsos. Dentre tantos outros meios.
Portanto, se mostra mais que pertinente perceber o fenômeno aqui apresentado através
de um arcabouço cientifico, com o fim de conceber entendimento completo, para a partir disso
ser possível coibir, na medida do possível, a manipulação. A exemplo, fica clara a ausência
de aprofundamento teórico a respeito do fenômeno por parte dos tribunais eleitorais, dada a
perplexidade a frente de um tema inovador, por isso tamanha necessidade prática do estudo.
Com essa breve apresentação do contexto que será estudado, devemos traçar meios, e
objetivos a serem atingidos, na finalidade de responder o problema de pesquisa que norteia o
estudo: a produção de notícias fraudulentas, no meio virtual, interfere diretamente no cenário
político?
Sendo, então, o objetivo geral da nossa pesquisa analisar as influências de notícias
fraudulentas, veiculadas por mídias virtuais, no contexto político. Para alcançar isso,
definimos como objetivos específicos, entender o diálogo entre os conceitos arendtianos de
embuste e auto-embuste com o fenômeno das fake news nas redes sociais, capazes de
influenciar o contexto político. Assim como, compreender a existência da imprensa como
quarto poder do governo, devido ao seu poder de influência em tais assuntos, podendo assim,
favorecer a manipulação.
O método dedutivo mostra-se mais adequado nessa abordagem, a partir do momento
que partiremos de conceitos e pensamentos gerais, com a finalidade de compreender o
fenômeno especifico. Será, portanto, uma pesquisa bibliográfica, dada a utilização de
referenciais teóricos, além de documental, que nos dará base para apresentação de fatos, por
fim, é necessário explicitar o cunho explicativo da pesquisa, que se compromete em esclarecer
o contexto estudado.

NOVOS RUMOS DA MENTIRA

A história não se propõe a respeitar uma linearidade. Percebemos, durante o percurso


histórico da humanidade, muito mais renovações ao invés de simplesmente inovações. É esse
o princípio da reflexão aqui iniciada. Nesse mesmo raciocínio, nota-se o desenvolvimento da
era da pós-verdade, conhecida pela supervalorização de informações apelativas ao emocional
em detrimento da veracidade dos fatos (DE SOUSA, 2017). Nesse sentido, o fenômeno aqui
em foco não é novo, mas advém de uma modernização. A mentira na politica agora toma
novos rumos.
Percebemos que a internet é um campo mais novo do que pensamos, ainda não foi
possível entendê-la por completo, nem conseguimos regrar inteiramente a socialização virtual,
dada sua grande volatilidade; o Direito comprova isso, buscando cada vez mais mediar
conflitos virtuais. Um dos efeitos colaterais desse desenvolvimento virtual, analisando essa
nova era digital, é o intenso fluxo de informação, esse aspecto não se mostra totalmente
proveitoso. Eduardo Bittar e Guilherme de Almeida elucidam perfeitamente o cenário,
apregoando que: “A poluição informacional é um dos traços de desnorteamento da sociedade
‘dígito-técnica’” (BITTAR; DE ALMEIDA, 2015, p.815). O excesso informacional
confunde, não sendo apto o usuário, muitas vezes, para dirimir de modo satisfatório a respeito
da qualidade de certas informações.
Ocorrem, de fato, mudanças paradigmáticas em conjunto com o avanço tecnológico.
Notícias que antes levavam dias para serem de conhecimento geral, agora são dispostas
instantaneamente. A questão preocupante, nesse sentido, é o prejuízo que a quantidade gera à
qualidade. São tantas informações, muitas de qualidade duvidosa, veiculadas de maneira
igualmente duvidosa, resta admitir que, de fato, é um terreno fértil para fraudes.
Diante disso, é preciso adquirir conhecimento prévio do funcionamento das redes
sociais, a fim de entender o caminho da manipulação através de fake news. A exemplo de
muitas redes sociais, os algoritmos que ditam como será a experiência do usuário. Nessas
redes, então, são criadas bolhas ideológicas, o usuário tende a receber mais conteúdo sobre o
que é partidário, limitando, de certo modo, o fazer democrático. Mas isso é ignorado,
majoritariamente, pelo Direito Eleitoral do Brasil.
O Tribunal Superior Eleitoral, Resolução nº 23.551, de 18 de dezembro de 2017
(BRASIL, 2017), permite aos candidatos realizar impulsionamento de conteúdo e até mesmo
delimitar o público alvo. Isso significa que as páginas dos candidatos em redes sociais, como
a mais popular, o Facebook, podem pagar para ter seu conteúdo de propaganda visualizado
por mais pessoas, indo além do seu eleitorado, assim o usuário terá em sua rede social a
invasão de conteúdos de propaganda eleitoral. Implica ressaltar que a delimitação de público
alvo viabiliza a propaganda utilizando o perfil do usuário para aprimorar a aderência do
conteúdo, sendo ele munido de veracidade ou de fraude.
Esse tipo de decisão apenas evidencia o conhecimento raso a respeito do fenômeno.
Ignora-se que é esse o melhor caminho, o meio mais fácil para disseminação de fake news.
Um apoiador de certo candidato residindo em sua bolha ideológica é muito mais suscetível à
noticias fraudulentas a respeito da oposição, ao mesmo passo que restringe sua percepção
panorâmica do cenário político.
Diante do exposto, deve-se notar que a expressão “fake news” passou por um processo
de popularização, principalmente devido ao episódio das eleições presidenciais dos EUA em
2016. Esse caso foi marcado por escândalos, uns alegaram envolvimento russo, outros
denunciaram manipulações em redes sociais, dentre tantas outras justificativas para explicar
um desastre irreparável, Donald J. Trump eleito presidente da maior potência mundial.
Segundo pesquisas, fake news favoráveis a Trump tiveram muito mais repercussão em
comparação com as noticias fraudulentas que apoiavam Hillary (ALLCOTT; GENTZKOW,
2017). Há de se perceber, de fato, as influências causadas por fake news, que deixam em
evidência fatos que não condizem com a realidade, sendo manipuladas por interesses
específicos e com fins programados, exercendo o poder da propaganda de maneira desonesta.
Com base nisso, é preciso se remeter ao estudo filosófico e político do fenômeno, a
partir, principalmente, de conceitos arendtianos. O primeiro deles, no momento, de suma
importância é o conceito de embuste por Hannah Arendt, “[...] falsidade deliberada e a mentira
descarada [...]” (ARENDT, 2013, p.14) como assim define a autora, se mostra como uma
prática extremamente ligada e institucionalizada à política, desde a origem desta (ARENDT,
2013).
Como assevera Arendt, quando trata da mentira como instrumento político, no ensaio
“Verdade e Política” na obra “Entre o Passado e o Futuro”: “Sempre consideraram as mentiras
como ferramentas necessárias e justificáveis ao ofício do político ou do demagogo, como
também do estadista.” (ARENDT, 2016, p.282). Fica mais claro ainda, entender a mentira
enquanto instrumento, extremamente interligada ao fazer político. Esse raciocínio nos permite
compreender o porquê da enorme onda de fake news em curso, e o porquê de não impactar
tanto a população.
Em relação ao Brasil, é prudente admitir a enorme crise de representatividade. A
politicagem se sobressai à política, fazendo com que a população fique descrente e apática
diante deste cenário, repetindo jargões do tipo: “rouba, mas faz”. Esse comportamento nos
leva a concluir que a população aceita a mentira, o engodo, o embuste, e permite, em certo
grau, ser enganada. É por ser a mentira um instrumento de notório conhecimento público que
o eleitor sabe que seu candidato propaga notícia fraudulenta e continua o apoiando, mantendo
o status quo.
Deve-se, também, retomar a atuação das notícias fraudulentas nas eleições
presidenciais nos Estados Unidos. Para isso, devemos nos remeter a um dos vários conceitos
de fake news, adequado para traduzir o foco aqui tratado. “[...] pode ser conceituado como a
disseminação, por qualquer meio de comunicação, de notícias sabidamente falsas com o
intuito de atrair a atenção para desinformar ou obter vantagem política ou econômica.”
(BRAGA, 2018, p.205). Com o fim de obter vantagens, em consonância ao conceito
apresentado, fica claro o efeito das fake news favoráveis a Donald Trump e sua imensa
repercussão, como supracitado.
Com efeito, há de compreender que o fenômeno aqui tratado é responsável por
manipular a verdade factual, e não a verdade racional, aquela que depende de testemunhas, ou
seja, eventos (ARENDT, 2016). Nesse sentido, é possível enxergar a violência nessa prática,
capaz de mudar a história dos fatos, de causar prejuízos e ferir pessoas, as testemunhas dos
fatos, como expõe Odilio Aguiar (2009) a respeito da possibilidade de a mentira gerar
violência contra as testemunhas, assim como a destruição de documentos. É possível até
mesmo aniquilar para sempre o fato, quando se consolida o auto-embuste, posto por Arendt.
Pois quando ocorre realmente o auto-embuste, o criador do embuste já não se lembra da
verdade alvo de seu engodo, eliminando esta do mundo (ARENDT, 2016).
Hannah Arendt, reflete, nesse contexto mentiroso da política, a respeito de um
fenômeno recorrente e pertinente à análise, o auto-embuste. “[...] pode-se concluir que quanto
mais bem-sucedido seja o mentiroso, quanto mais gente tenha convencido, mais provável é
que acabe por acreditar em suas próprias mentiras.” (AREDT, 2013, p. 38). No processo de
construção da mentira, o auge é a ilusão do próprio criador, esse processo é muito recorrente,
remete a concretização do embuste.
Nesse mesmo sentindo, o até então candidato à presidência da República, Jair Messias
Bolsonaro (PSL) em entrevista ao Jornal Nacional, da emissora Rede Globo, constrói uma
fake news, proveniente de uma bandeira de campanha, igualmente falsa, verificada pela
agência brasileira de fact-cheking, Lupa (MARÉS; BECKER, et al., 2018). Nesse simples e
corriqueiro fato, podemos compreender o processo aqui ressaltado. O primeiro é que está mais
do que claro que faz parte do establishment brasileiro a mentira, o embuste, plenamente
perceptível quando em toda entrevista dos candidatos à presidência, agências de fact-cheking
(responsáveis pela checagem dos fatos) emitem reportagens esclarecendo as fraudes.
Nessa ocasião, é preciso notar o embuste produzido pelo candidato Jair Bolsonaro
(PSL) quando entrevistado em período de campanha presidencial. Em breves palavras, o
candidato desde o começo de sua pretensão a candidatura, criou uma visão fraudulenta, a qual
o mesmo se refere por “ideologia de gênero”, criando o fato de que aquela ideia, seria
apresentada enquanto proposta governamental de educação básica por opositores.
Em entrevista, Bolsonaro prova do auto-embuste, capaz de se iludir com a própria
mentira, e de matar um fato por meio da sua manipulação, e se refere a um “9º Seminário
LGBT infantil” com a finalidade de exemplificar a fraude por ele propagada. Essa fala
representa apenas o princípio do montante de fake news presentes no seu currículo, e foi
apenas a chance de apresentá-las em cadeia nacional, pois foram disseminadas em larga escala
nas redes sociais.
Claramente foi desmentido por agências de fact-cheking no Brasil (MARÉS;
BECKER, et al., 2018), nunca houve o que o candidato afirmou. Fica claro, então, o processo
de construção do auto-embuste, a entrevista para a Rede Globo esclarece tal conceito, onde o
candidato é sucumbe ao próprio embuste.
Dessa maneira, é possível entender que as fake news, extremamente populares nos dias
de hoje, fazem parte de um processo de modernização da mentira na política. Nessa nova
vertente de manipulação factual, podem ser vistos vários aspectos em comum com as outras
práticas, como na análise preliminar baseada em reflexões arendtianas. Porém, é preciso se
aprofundar ainda mais, para entender por completo o fenômeno.

TEMPOS DE FAKE NEWS

Seguindo a ressonância da pós-verdade, anteriormente abordada, devemos entender,


juntamente com o mecanismo de produção da mentira, aqui a fake news, a resposta do cidadão
frente ao fenômeno. Matthew D’Ancona, jornalista britânico, perplexo com o cenário de
degradação da comunicação, expõe a mudança paradigmática dessa nova fase, em que fatos
não superaram a força da emoção (D’ANCONA, 2018). Na atual perspectiva política, então,
aparece em vantagem não aquele que expõe o fato, ou simplesmente o dado, mas sim o dono
da melhor história.
Em obra, D’Ancona (2018) apresenta episódios de repercussão mundial, anteriormente
citados, que merecem nova menção. O Brexit e a eleição americana de 2016, na qual surgiu
de fruto Donald J. Trump eleito presidente dos Estado Unidos. O fator analisado pelo autor,
muito caro para nosso raciocínio, é a análise abrangente da relação de manipulador e
manipulado.
Em breve exposição, e para isso utilizaremos tais cenários devido às proporções que
tomaram, como também por representarem fortes sintomas da nova era analisada, a pós-
verdade. Primeiramente o manipulador inverte a importância empregada no panorama ao qual
se está inserido. Exemplo disso é o insaciável desejo do presidente dos EUA de aparecer diante
das câmeras. Como exposto, não interessa ao candidato se ligar aos eleitores por meio do que
é de fato política, mas sim através da “marca”, o eleitor preferirá saber do candidato ao invés
das propostas, da história criada, em detrimento do fato. D’Ancona ainda expõe o Brexit como
exemplo da influência emocional. A campanha favorável a permanência da Grã-Bretanha na
União Europeia se apresentava mais sólida, apresentava os fatos e os dados, esses que apesar
de verdadeiros eram ignorados pelos cidadãos. Em contrapartida, a campanha favorável a
saída da União Europeia contava e criava histórias e marcas (D’ANCONA, 2018). Ambos os
cenários são recheados de fake news, responsáveis por contaminar as redes sociais, e ambos
preocupam pela apatia, ou seja, pela inércia daqueles que se deixam ludibriar pelo embuste.
Por esse lado, vale remeter ao texto base da reflexão, quando Arendt apresenta uma
figura importante ao funcionamento da política no período tratado, em que houve o vazamento
dos documentos do Pentágono, os resolvedores de problema, em tradução literal. Odílio
Aguiar traduz perfeitamente,“[...] os Problem-solvers acabam se dissociando da realidade e
gastando suas energias na descoberta de fórmulas capazes de lidar com a realidade humana
como se fosse matematizável, manipulável e previsível.” (AGUIAR, 2009, p.15).
A partir daí é possível notar o desejo por descobrir o funcionamento do raciocínio do
eleitor, ou em alguns casos da população em geral, isso parte das agências de propaganda,
responsáveis por campanha eleitoral, servindo atualmente como resolvedores de problemas.
Atualmente é mais fácil perceber a postura de apatia política, em geral, e essa é uma tentativa,
por parte de agências, de prever comportamentos e saber a suscetibilidade a certas estratégias
de propaganda, para assim direcioná-las.
Esse sentimento de indiferença, percebido inclusive pelos que deste se beneficiam,
frente ao embuste, à mentira, de fato assevera a possibilidade de causar prejuízos, e influenciar
opiniões. Esse reflexo é facilmente comprovado pelos exemplos aqui citados. Todavia, a
maior responsabilidade por estar em curso esse inédito comportamento entre cidadãos, pegos
de surpresa com a renovação de um velho fenômeno, está de fato ligada aos que utilizam a
ferramenta e aqueles que a manipulam.
Em 2014, no Brasil, ocorreram as eleições presidenciais, na ocasião a maior disputa
estava entre Dilma Rousseff e Aécio Neves. Investigações reveladas pelo respeitado veículo
de comunicação BBC (GRAGNANI, 2017) apontaram o uso de falsa militância virtual por
ambos. As redes sociais dos candidatos foram utilizadas para criar a impressão de haver mais
militância em apoio aos dois candidatos, na intensão de provocar o “efeito manada”. Ou seja,
apesar de ter como quebra de paradigma o marco de 2016 com os EUA e o Brexit, tal
fenômeno vem passando por uma crescente.
Desse modo, é preciso entender como que a verdade se relaciona na prática com a
política. Convencionalmente, é perceptível a ameaça que a transparência representa ao fazer
político, nisso Arendt pontua:

[...] de um ponto de vista político, a verdade tem um carácter despótico. Ela é por
isso odiada pelos tiranos, que temem, com razão, a concorrência de uma força
coerciva que não podem monopolizar; e goza de um estatuto relativamente precário
aos olhos dos governos que repousam sobre o consentimento e que dispensam a
coerção. (ARENDT, 2016, p.298)

Em consonância, deve-se entender o risco eminente que a verdade, por deter caráter
quase pétreo, representa para aqueles que necessitam da volatilidade do fato para perpetuar
um poder não fundamentado na essência, ao contrário, no embuste. Por mais que os episódios
aqui apresentados sejam retratados em democracias, a tirania denunciada pela autora só muda
de aparência, todavia perdura na essência. A tirania da mentira se sustenta no fracasso da
verdade, daí é possível entender a grandeza do que está sendo estudado.
Nessa mesma linha de raciocínio, Hannah Arendt busca tratar de pontos extremamente
presentes no cerne da discussão, e para isso podemos expor em concordância que, ao tratar da
mentira, também é importante se ater à omissão de informações, ou seja, aos segredos de
Estado, dos quais o vazamento sempre gerou traição (ARENDT, 2016). Desde os reinados
mais remotos da história, até os dias atuais tivemos a figura do “traidor da corte”, retaliado
com perversidade, até mesmo em contexto democráticos, denunciando a incoerência da fina
aliança firmada entre governo e cidadão.
Ainda tratando da intrínseca relação governamental com a imprensa, a autora afirma
ter essa o poder de criação de uma realidade diversa daquela que se propõe a manipular
(ARENDT, 2018). Arendt trata, então, do aspecto de imparcialidade, para ela de suma
importância ao aspecto qualitativo da opinião, assim como da labuta jornalística, que aqui
toma novos rumos.
Contudo, a imparcialidade possui uma variabilidade “[...] mero enunciado de fatos não
conduz a nenhuma espécie de ação e tende até, em condições normais, à aceitação das coisas
como elas são.” (ARENDT, 2016, p.310). Desse modo, a mídia mostra-se extremamente
importante no papel de informar o cidadão, tendo como importante aspecto a imparcialidade,
devendo esta ser tratado com parcimônia, para evitar manipulações, mesmo gerando
banalidade.
Desse modo, é possível compreendera interferência da mídia no contexto político. É
viável, nesse sentido, admitir com veemência a coerência do que Hannah Arendt expõe sobre
o potencial da imprensa, aqui as mídias virtuais em analogia. É, em justa medida, necessário
entender a manifestação, a passos lentos, de um contra movimento, na pretensão de inibir as
consequências das fake news, alvo de maiores combates. Tais movimentos nos leva a buscar
compreender um pouco mais da ação comunicativa, de Jürgen Habermas, através do
entendimento do professor doutor José Marcelino de Rezende Pinto (1995)
Da ação comunicativa habermasiana, é possível dialogar com o contexto apresentado
relacionando com os meios intensamente procurados para resolução da problemática aqui
enfrentada. Habermas propõe a coesão social através da integração entre a sociedade, através
da integração social e da integração sistêmica (PINTO, 1995). No primeiro momento,
entendendo a integração social como a busca da coesão através de meios essencialmente
comunicativos, como a própria interação desenvolvedora de consensos sociais. E a integração
sistêmica, fruto não de interações individuais, mas sim de mecanismos paralelos, como o
mercado (PINTO, 1995)
Nesse sentido, é plenamente possível observar esse tipo de integração em movimentos
dispostos a minimizar os efeitos da fake news. Campanhas realizadas por redes sociais, a
exemplo do Facebook, em parceria com a faculdade Mackenzie marcam profundamente um
traço de integração social, parindo o consenso através da comunicação entre as partes
envolvidas que entendem o poder nocivo das fake news. Em contrapartida, o melhor exemplo
para figurar a integração sistêmica seria o mercado. Profundamente sensível ao fenômeno,
marcado por mudanças de acordo com o cenário político, é mais que razoável a integração
desse para a promoção da coesão social em busca da prática da ação comunicativa. Seria essa
então, a relação prática da teoria com o caso aqui abordado.
Sendo assim, Jürgen Habermas busca tratar problemas sociais e humanos por meio da
comunicação, percebendo o espaço público como cerne da comunicação e, por conseguinte o
meio pelo qual a sociedade pode buscar a integração e coesão necessária para a resolução de
questões (BITTAR; DE ALMEIDA, 2015). Ao mesmo passo que Hannah Arendt percebe, ao
tratar do cenário de queda do totalitarismo, que a perda de crenças em instituições maiores,
responsáveis por guiar ao futuro, dá base ao anseio do cidadão de tomar lugar no espaço
público, e por si, influenciar no caminho para o futuro (TELLES, 1990).
Analisando, o fenômeno central do estudo, percebe-se a necessidade observada pela
sociedade de tomar o espaço público para tratar das mais variadas questões. As fake news, e
seu gigantesco potencial de interferência causaram perplexidade aos mais variados cidadãos,
nos mais variados lugares do planeta, e esses cidadãos se remetem ao espaço público como
tomada de controle, como também um meio de assumir funções anteriormente negligenciadas
que precisam de integração e coesão, apontadas pelo pensamento habermasiano.

CONCLUSÃO

Diante do exposto, é de extrema importância inferir conclusões, na busca de responder


ao questionamento principal. Ficou claro, durante o trabalho realizado acerca, principalmente
do fenômeno das fake news, a intensa ruptura paradigmática a qual estamos sujeitos
diariamente. A era da pós-verdade marca essa disruptividade apresentada. Frente a isso não
basta entender razoavelmente, deve-se procurar entender os mais diversos reflexos do
fenômeno.
Inicialmente, é possível responder afirmativamente ao questionamento norteador do
estudo. De fato, as fake news, ou seja, as notícias fraudulentas criadas com o intuito de
conceber vantagens econômicas ou políticas, em breve menção ao conceito anteriormente
citado, têm poder de influenciar diretamente os cenários políticos.
Afirmar com tal veemência se torna possível quando se analisa o contexto, do plano
mais radical, como as análises arendtianas basilares ao estudo, até o mais superficial, como os
exemplos práticos mencionados, comprovadores das influências, importantíssimos para
denunciar uma nova sistemática daquilo que fora percebido desde os primórdios, e agora toma
novos rumos.
Nesse mesmo caminho, apesar de tomar novos rumos, percebemos grande relação com
as origens da mentira na política. Muito antes das grandes mudanças realizadas pelas redes
sociais, Hannah Arendt percebia o mecanismo de manipulação da política. A autora versa
sobre a figura do embuste, peça importante para o funcionamento da política,
convencionalmente aceito pela sociedade, ou pelo menos presume-se pela apatia, assim como
denuncia a figura do auto-embuste, capaz de enganar o agente do embuste, e corrompê-lo até
submeter-se à verdade falseada (ARENDT, 2013).
Nesse ponto, fica mais claro perceber o processo de modernização da mentira na
política ao entender o fenômeno das fake news. Muito mais que algo inédito, representa uma
nova face, com os mesmos elementos, e as mesmas preocupações. O embuste e o auto-
embuste, postos por Hannah Arendt na metade do século XX se mostram mais atuais do que
nunca, em tempos de tanta incerteza.
A partir de então, podemos inferir na preocupação seguinte do estudo, a percepção do
grandioso poder da imprensa frente ao contexto político, no entendimento arendtiano, a
expectativa desta ser o quarto poder do governo. Por meio da explanação a respeito da ativa
participação da imprensa, seja em qual meio for analisada, é nítida a importância agregada a
sua atividade. A imprensa, por meio de propaganda clara ou velada, é capaz de eleger
candidatos improváveis ou nortear escolhas que ignorem as previsões de qualquer especialista.
O projeto Media Ownership Monitor (MOM), promovido pela organização Repórteres
sem Fronteiras (Alemanha), executado no Brasil em parceria com o Intervozes – Coletivo
Brasil de Comunicação Social, promoveu uma análise do marco regulatório da mídia
brasileira, na finalidade de entender o plano de fundo da manipulação aqui analisada. Em
breve apresentação, o redator Daniel Fonsêca expõe a suja relação estabelecida na mídia
brasileira, analisando principalmente a mídia televisiva, nessa análise percebe-se o controle
majoritário da mídia por parte de poucos grupos, detentores de grandes negócios (FONSÊCA,
2017). Essa denúncia reflete o esperado, a imprensa guarda grandes oportunidades de
manipulação, trágica marca de fragilidade e grande oportunidade para fake news, assim como
para a nociva omissão. Resta o questionamento, ao qual está começando a ser entendido:
Quem controla a mídia? E por mídia entende-se todos os tipos.
Por fim, é necessário reafirmar a relação existente entre a mentira e a política,
brilhantemente percebida por Hannah Arendt. O fenômeno das fake news, aqui estudado em
primeiro plano, precisa ser entendido enquanto vertente de tantos outros mecanismos de
manipulação midiática, esses que são responsáveis por interferir diretamente na política.
Assim, deve-se notar a fragilidade causada à democracia por meios capazes de manipular
escolhas. Apesar de estar havendo renovações, os caminhos percorridos hoje nos levam de
volta à tirania, dessa vez a tirania da mentira.

REFERÊNCIAS

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Perspectiva, 2013.
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en&nrm=iso>. Acesso em: 02 set. 2018.
CONCEITO DE LABOR E TRABALHO: Perspectiva Arendtiana na
Contemporaneidade

Renan de Oliveira Sousa40


Antônio Justino de Arruda Neto41

RESUMO

A obra “A condição Humana” de Hannah Arendt mostra como o ser humano, agindo como
indivíduo, se comporta diante do mundo e o “mundaniza”, de forma a fazer dele sua casa.
Dentro dessa obra, este artigo destaca as discussões metateóricas, que versam sobre o conceito
de labor e trabalho, considerando analisar razões e motivos pelas quais vemos certos
problemas dentro de nossa sociedade, além de tentar fornecer explicações sobre alguns pontos
da qual o ser humano exprime desde que evoluiu para um ser dotado de consciência,
diferenciando-se assim dos outros animais. A busca principal do artigo será o questionamento
e a dicotomia dos processos Labor e Trabalho na Contemporaneidade, todavia, problemas
como depressão, ansiedade e o medo, possuem de fato, relação com o Trabalho e o Labor?
Será que tais problemas são resultados da desvirtuação do processo do trabalho e o
endeusamento do ‘ciclo vital’ do labor na sociedade do consumo? E tais processos possuem
relação com a política? Tais questionamentos englobarão toda a análise da qual o artigo
procurará dar motivos de existência e soluções a partir do pensamento arendtiano. Assim,
parte-se de uma análise a partir do método hipotético dedutivo tendo uma abordagem
bibliográfica com ênfase na obra de Arendt e seus comentadores.

Palavras-chave: Hannah Arendt. Labor. Trabalho.

INTRODUÇÃO

Quais as características que o ser humano possui que o diferem dos outros animais? É
uma pergunta extremamente complexa que sua resposta não pode ser inteiramente dada, muito
menos certificada (até o momento). Todavia, certos pontos podem ser enunciados e analisados
de forma a encontrar certas similaridades, certos padrões de comportamento que o fazem ser
diferente.
Aqui quero retratar e analisar uma das características que deram forma a este mundo
“mundano” humano, que são as atividades do “Labor” e do “Trabalho”, e, como eles
funcionam organicamente na sociedade atual, além de citar a Grécia Antiga, a Revolução
Industrial inglesa e a Contemporaneidade, para tal faço uso da análise do capítulo 3 e 4 da
obra “A Condição Humana” através de uma pesquisa explicativa da qual retiro citações e
conclusões acerca dos problemas que aqui proponho explanar, além usar comentadores como
Karl Marx, Sara Granemann e Odílio Alves Gonçalves.

40
Graduando em Direito pela UPE - campus Arcoverde.
41
Graduado em Direito pela UPE e mestrando em Filosofia pela UNISSINOS.
Assim sendo, o presente artigo transcorrerá a partir do método hipotético-dedutivo
através do qual poderá basear conjecturas que darão forma e explicação acerca dos problemas
que aqui se busca explanar e resolver a partir do pensamento arendtiano.
Tal estruturação permitirá uma melhor análise acerca do pensamento arendtiano e dos
seus objetivos, aqui não se buscará trazer uma perspectiva única e absoluta acerca não só do
seu pensamento, mas das conjecturas históricas aqui apresentadas, pois são possíveis
diferentes pontos de vista e de análises da qual se poderá criar conjecturas parecidas, mas não
iguais, haja vista a complexidade do indivíduo humano, da sociedade, e os processos que o
integram como ser político.
Antecipo também que, não resisto aqui em lincar tal assunto com um autor específico,
Zygmunt Bauman, principalmente com a sua obra “Tempos Líquidos” (2007), já que
naturalmente o decorrer das suas obras interseccionará de forma esplêndida com as
consequências previstas neste capítulo da obra de Hannah.
Partindo da análise de Arendt e de outros autores, me deparo com certos problemas
icônicos da contemporaneidade, problemas de depressão, ansiedade e medo reinam sobre uma
sociedade onde o trabalho perde grande parte do seu valor prático, servindo apenas para
alimentar um sistema econômico que vicia o indivíduo alienando-o ao consumismo. Assim,
proponho-me a discursar sobre tais ‘consequências’ das diferentes interações sociais que
compõem o mundo humano, de forma a buscar, acima de tudo, o ideal na qual Arendt se pôs
a desenvolver para que o homem seja capaz de ser um ser independente e racional.

1 LABOR E TRABALHO

O conceito apresentando por Arendt sobre o que seria trabalho? A autora demonstra
em seu livro “A Condição Humana” como: “trabalho é o metabolismo do homem com a
natureza – O trabalho se incorpora ao sujeito” (ARENDT, 2007, p. 110).
O Labor, em sua essência, segundo Arendt trata-se de “um processo vital, cíclico, sem
começo e fim, destinado exclusivamente à sobrevivência” (2007, p. 91); assim diz Aristóteles,
“indivíduos que com o corpo atendem às necessidades da vida” (ARISTÓTELES, Política
1254b25 apud ARENDT, 2007, p. 90). Ao praticante da ação do labor dar-se-á a denominação
de Animal Laborans. Sobre o conceito de labor, há destaque para o conceito em sentido
arendtiano, haja vista que já houve a explicação do que é o Labor e do que ele produz, o
mesmo não gera qualquer “vestígio ou obra digna de ser lembrada” (ARENDT, 2007, p. 91),
já que, “é típico de todo labor nada deixar atrás de si” (ARENDT, 2007, p. 98).
Então, visto que é um processo cíclico praticado por todo e qualquer ser, o labor são
as simples ações do dia-a-dia destinadas única e exclusivamente à sobrevivência do ser que a
pratica. Dessa forma, todo e qualquer ser que busca a sobrevivência pratica, nem que seja
involuntariamente, a atividade de laborar, existindo como um Animal Laborans, já que é uma
atividade fundamental na sociedade.
Em relação ao trabalho é o processo de fabricação utilizado pelo ser humano para
produzir artifícios e objetos, segundo Marx (1982) “O trabalho é, antes de mais, um processo
entre homem e natureza, um processo em que o homem medeia, regula e controla a sua troca
material com a natureza através de sua própria ação” (MARX, 1982, pag. 326), tais artefatos
provêm através do seu uso à facilidade da vida humana, assim possuem um fim previsível.
Segundo Arendt, “o próprio trabalho sempre requer algum material sobre o qual possa
ser realizado e que, mediante a fabricação, que é a atividade do Homo Faber, será
transformado em objeto mundano” (2007, p. 102). Logo, o trabalho seria, então, a expressão
do ser humano que o permitiu se diferenciar do restante da vida animal, segundo Granemann
em seu atigo “O processo de produção e reprodução social: trabalho e sociabilidade” (2009),
trabalho é “a dimensão capaz de criar uma natureza humana, isto é, a atividade capaz de nos
tornar seres portadores de uma natureza diversa da dos outros seres naturais”
(GRANEMANN, 2009, p. 3).
Sua definição pode parecer simples, mas ao adentrar na sua esfera de ação percebe-se
que a ação do trabalho foi fundamental para consecução do estilo de vida humano, por quê?
Sobre o questionamento há uma análise do produto do trabalho, o seu resultado final é o
‘Objeto de Uso’, e, como o próprio nome diz, foi elaborado para o uso humano.
O homem faz uso dos elementos naturais refinando-os e destinando-os a um fim
previsível, “o elemento natural se converte em órgão de sua atividade, um órgão que ele
acrescenta a seus próprios órgãos corporais, prolongando sua forma natural” (MARX, 1982,
p. 329), ou seja, o trabalho é capaz de alterar a natureza, o mundo externo, e o próprio ser
humano, nesse sentido “o trabalho é criação, é motor de civilização e fonte de realização das
potencialidades da natureza social do homem que ao criar o trabalho é recriado e modificado
pela atividade a que deu vida” (GRANEMANN, 2009, p. 6).
Se hoje temos tais ‘Objetos de Uso’, haja vista que ele se aperfeiçoou de forma extrema
nos últimos trezentos anos, o homem poderia manter seu mundo sem tais artifícios? Com
certeza não, logo, “são tão fundamentais para a familiaridade do homem com o mundo e para
seus costumes” (ARENDT, 2007, p. 106), quanto os ‘Bens de Consumo’ são para a vida
animal, “o que os bens de consumo são para a vida humana, os objetos de uso são para o
mundo do homem” (ARENDT, 2007, p. 106).
Por outro lado, os Bens de Consumo, que são produtos do processo de Laborar,
diferentemente do produto resultante do trabalho são menos duráveis, como dito por Hannah
(2007) “as coisas menos duráveis são aquelas necessárias ao próprio processo da vida. Seu
consumo mal sobrevive ao ato de produção” (ARENDT, 2007, p. 107), eles não são capazes
de gerar qualquer mudança significativa no mundo humano, já que são rapidamente utilizados,
de forma que não conseguem nem ser o aporte para a geração de costumes, nem para gerar
familiaridade do homem com o seu mundo e, nem para servir de hábitos de intercâmbio entre
indivíduos humanos. Servindo assim, única e exclusivamente para a manutenção das
atividades biológicas.
O mundo humano diverge do mundo animal, como bem dito por Granemann (2009):

A constituição dos seres sociais tem no trabalho como ação orientada para um
determinado fim o fundamento da natureza humana porque pela atividade laborativa
os homens puderam diferenciar-se do mundo orgânico e, inclusive, passaram a
submetê-la, a manipulá-la e a dela se distanciar com uma relativa autonomia
(GRANEMANN, 2009, p. 4).

Por mais que as leis naturais se apliquem ao ser humano tendo assim semelhança entre
os mundos apenas na esfera biológica, é somente dentro do mundo humano que o movimento
cíclico da natureza se manifesta como crescimento e declínio produzido pelo trabalho,
enquanto entende-se por mundo natural o mundo animal, este preferencialmente produzido
pelo labor, dessa forma “pelo trabalho humano a natureza é constrangida, dirigida a oferecer
aos seres sociais elementos materiais que o trabalho converterá em bens para o provimento
das necessidades sociais dos humanos” (GRANEMANN, 2009, p. 5).
Assim, o ser humano, mesmo sendo um ser bem mais desenvolvido em relação ao
restante da vida animal, também a ela pertence de forma que, labora para sobreviver, e trabalha
para viver. O labor é “a mais natural e a menos mundana das atividades do homem”
(ARENDT, 2007, p. 107), e o Trabalho “a menos natural e a mais mundana das atividades”
(ARENDT, 2007, p. 107). Todavia, com certos adventos e acontecimentos ocorridos durante
a recente existência humana, aliado principalmente a Revolução Industrial, percebe-se certas
inversões nas práticas de tais atividades, de forma que acabam por gerar diversos problemas
sociais que estão culminando para um eventual colapso, pois não apenas o próprio ser humano
sofre com tais fatores, a natureza, entidade da qual se retira matérias primas para a construção
do mundo humano está com reais perigos de existência, segundo Granemann:
Claro está que os processos de manipulação da natureza, em especial no modo de
produção capitalista, não carregam a preocupação de preservar a vida já que a
crescente conversão de todas as esferas da sociabilidade humana em processos
apropriados pelo capital e tornadas mercadejáveis propiciaram incessantes produção
e consumo de mercadorias que têm ameaçado de destruição o planeta (2009, p. 4).

Veremos com passar dos períodos humanos, como analisado por Marx (1982), a
inversão de valores, e a substituição das concepções das atividades de trabalho pela das
atividades de labor e sua aplicabilidade para com não só a sociedade, mas com a política.
Segundo Márcia Vieira e Simone Pinto (2008) percebe-se que,

[...] o labor estava restrito à esfera privada, porém, com o deslocamento das questões
privadas, “caseiras”, “do interior do lar” e da organização da sociedade para o
âmbito público, o processo de manutenção da vida foi captado pela esfera pública
(VIEIRA; PINTO, 2008, p. 46)

Ou seja, o labor, antes preso ao constante vício do processo vital encontrou no ser
humano “moderno” uma brecha para libertar-se, já que o social, criado a partir da
modernidade assimilou certos fatores da esfera privada do indivíduo à esfera pública, de forma
que, segundo Aguiar, “as atividades executadas privadamente passaram a ter importância
pública e o que era típico do público passou a ser luxo” (2004, p. 10),

A mais clara indicação de que a sociedade constitui a organização pública do próprio


processo vital talvez seja encontrada no fato de que, em tempo relativamente curto,
a nova esfera social transformou todas as comunidades modernas em sociedades de
operários e de assalariados; em outras palavras, essas comunidades concentram-se
imediatamente em torno da única atividade necessária para manter a vida - o labor
(ARENDT, 2007, p. 56).

Tal processo tem início com as cortes francesas pré-revolução de 1789, todavia ganha
força com a Modernidade que começa a suplantar o reino do consumismo desenfreado que a
sociedade Contemporânea presencia.

2 O LABOR E O TRABALHO NA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL

Antes de iniciar com a questão dos períodos modernos será necessários retratar um
pouco da Antiguidade Grega, pois Arendt (2007) dá uma importância grande a tal época e a
certas características de tal sociedade. Como dito em capítulos anteriores, haja vista que já
houve a explicação do que é o Labor e do que ele produz o mesmo não gera qualquer “vestígio
ou obra digna de ser lembrada” (ARENDT, 2007, p. 91) já que, “é típico de todo labor nada
deixar atrás de si” (ARENDT, 2007, p. 98). Como analisado por Aristóteles42 e expresso por
Arendt (2007), se é vital apenas para a sobrevivência do corpo, logo é servil, digna de uma
condição meramente animal. “O desprezo pelo labor [...] generalizou-se na medida em que as
exigências da vida na polis consumiam cada vez mais o tempo dos cidadãos e com a ênfase
em sua abstenção de qualquer atividade que não fosse política” (ARENDT, 2007, p. 91).
Em uma sociedade onde todas as semelhanças entre o homem e o ser animal eram
abolidas, logo o Labor como uma atividade existente entre todos os seres seria naturalmente
desprezada, fator que, mesmo sendo, era necessária a vida, sendo sua “servidão” suprimida
através da instituição da escravidão. “Laborar significava ser escravizado pela necessidade,
escravidão esta inerente às condições da vida humana” (Arendt, 2007, p. 94). Vieira e Pinto
complementam que:

Arendt discorda da perspectiva trazida pelos historiadores de que o labor e o trabalho


eram desqualificados na Antiguidade porque eram exercidos pelos escravos. Na
verdade, a questão é muito mais profunda, pois se acreditava na necessidade de ter
escravos para a realização de atividades de manutenção da vida, consideradas de
natureza servil (2008, p. 46).

Questão esta bem mais profunda, pois não se buscava o lucro ou à imposição de
trabalhos desnecessários, “Diferentemente da escravidão na modernidade, que foi utilizada
para fins de lucro, na Antiguidade foi uma forma de abolir o labor da vida humana” (VIEIRA
e PINTO, 2008, p.46). Há de deixar claro que: “Não negava que os escravos pudessem ser
humanos; negava somente o emprego da palavra “homem” para designar membros da espécie
humana totalmente sujeitos à necessidade” (ARENDT, 2007, p. 95).
A sociedade grega prezava pela esfera pública, um espaço de ações e palavras onde os
homens eram capazes de guiar a polis a partir da verdadeira política, mas tal noção de política
é diferente da admitida na contemporaneidade, segundo Aguiar “Na perspectiva antiga a
esfera pública é o espaço que entram as ações (práxis) e palavras (lexis) que dignificam o
homem, que o tornam distinto do animal humano” (AGUIAR, 2004, p. 9). A vida activa
dignificava o homem de forma que o indivíduo fundamentava sua liberdade de ação e
pensamento, ou seja, não é apenas unicamente um processo ativo como o trabalho que irá
distinguir o homem do animal, mas também o instituto da política, este capaz de libertar o
homem da sua ‘natureza’. Um é um processo fonte de materiais da qual o homem cria o mundo
humano, sendo, o outro, um processo de manutenção dessa vida ‘mundana’.

42
Hannah Arendt retrata Aristóteles tendo como fonte seu livro “A Política”.
Arendt (2004) adentra tais questões, pois a sociedade moderna atingiu níveis de
individualidade e ausências de pensamentos independentes que as sociedades humanas nunca
experimentaram. Ela dá extrema importância à esfera pública porque na contemporaneidade
tal esfera de ação e pensamento está tão vinculada ao consumismo que perdeu quase que
completamente seu propósito inicial, de através da razão e da civilidade promover a
‘evolução’ do homem.
A questão da apropriação iniciada no período moderno promoveu inicialmente uma
busca não só por mais lucro, mas principalmente por mais propriedade e, como trunfo,
buscava-se uma atividade que tivesse a característica de apropriar-se do mundo e cujo
questionamento de privatividade estivesse fora de dúvida. Desta forma, qual propriedade é
mais privada ao indivíduo que o próprio corpo humano? Afirma Arendt: “E esses meios –
corpo, mãos e boca – são os apropriadores naturais, vistos como não pertencem em comum à
humanidade, mas são dados a cada homem para seu uso privado” (ARENDT, 2007, p. 123).
É justamente nessa esfera que recairá a consecução de leis e garantias do indivíduo sobre a
própria vida e, principalmente, o seu próprio corpo.
Neste período tem por destaque, autor e filósofo da época que serviram de base para o
entendimento de Arendt sobre o período, ele explicou como a sociedade humana se organiza
e como o capitalismo age sobre elas, Karl Marx, já que como visto por ele, o capitalismo, por
mais que seja capaz de gerar riquezas, necessita de um limite, já que se tornou uma máquina
predatória a nível mundial.
À luz da época, eram condições de vida que, por mais que houvesse seu aumento na
qualidade, eram extremamente ruins e prejudiciais à vida humana, todavia há de se afirmar
que foi um período extremamente importante para os acontecimentos do mundo
contemporâneo, já que deu as bases para a formação dos Estados Sociais que temos hoje, além
de dar forma ao movimento comunista, inclusive este liderado por Marx.
Neste período destacam-se certas contribuições de Marx que, posteriormente foram
absorvidas e refinadas por Hannah. Ou seja, entender como o capitalismo funciona é entender
como o trabalho existe na sociedade humana, trabalho este que Marx se projetou a entender e
procurar a solução, já que ele entendia que o capitalismo escravizava as pessoas e, dessa
forma, se deveria procurar outra forma de existência econômico-social para a humanidade.
Dessa forma, Marx entende que o labor, que era tido como uma ação improdutiva na
Antiguidade possui sim sua produtividade própria, e essa produtividade é a “Força Humana”
que não se esgota e é capaz de produzir um “excedente” (mais que o necessário à sua
produção). Desta forma, o labor acaba por se tornar o motor precursor da produtividade do
próprio trabalho, já que dele se torna capaz a criação da ‘Força Humana’ (arheitskraft), como
dito por Arendt,

Ao contrário da produtividade do trabalho, que acrescenta novos objetos ao artifício


humano, a produtividade do labor só ocasionalmente produz objetos; sua
preocupação fundamental são os meios da própria reprodução; e, como a sua força
não extingue quando a própria reprodução já esta assegurada, pode ser utilizada para
a reprodução de mais um processo vital, mas nunca produz outra coisa senão vida.
(2007, p. 99).

Logicamente, tal dedução é extremamente válida, já que nenhum indivíduo é capaz de


trabalhar sem completar um ciclo biológico fundamental para sua sobrevivência, tal qual
comer ou dormir. Ao fazer tais ações, através de um ciclo biológico, o corpo é capaz de gerar
a energia necessária para o emprego do trabalho, o que, consequentemente, dirá que a força
motriz do trabalho é a produtividade do próprio labor. Essa força humana criada pelo labor
ensejou a elaboração por parte de Marx sobre a teoria da mais-valia que mais posteriormente
será desenvolvida em um dos seus livros que integram a coleção “O Capital” (1867).
Arendt dirá que “labor nunca produz outra coisa senão vida” (2007, p. 99), além de
que “pode ser canalizada de tal forma que o labor de alguns é bastante para a vida de todos”
(2007, p. 99), ou seja, o labor de alguns pode ser suficiente para as necessidades laboriosas do
geral. Nesse sentido Marx buscava uma “sociedade completamente socializada, cuja única
finalidade fosse à sustentação do processo vital” (ARENDT, 2007, p. 99), busca que ela
criticava, posto que entendesse que desta forma todo labor se tornaria trabalho, já que todas
as ações seriam resultantes do processo vital. Assim, resta-nos a escravidão produtiva e o
trabalho improdutivo.
Dentro deste período da Era Moderna, Arendt destacará certos tipos de Trabalho que
segundo ela e Marx ficam evidentes, o Trabalho Produtivo e o Improdutivo, já retratados aqui
como o próprio trabalho e o labor, o trabalho Qualificado e o não-Qualificado, o que segundo
eles é uma contradição já que todo trabalho possui certo grau de qualificação, que obviamente
varia de cada um, todavia, o mercado gera o que se chama de ‘atomização’ do trabalho, ou
seja, os indivíduos sem especializam em uma pequena coisa, segundo Arendt, analisando
Marx o mercado resulta em “[...] o que é comprado e vendido no mercado de trabalho não é a
qualificação individual, mas a “força de trabalho” (labor), da qual todo ser humano deve
possuir aproximadamente a mesma quantidade” (ARENDT, 2007, p. 101).
Exceto quando este tipo de trabalho é analisado na esfera do Labor, já que o mesmo
não necessita de qualquer qualificação. E finalmente o Trabalho Manual e o Intelectual, da
qual Hannah discorre pouco, já que segundo ela o trabalho intelectual é menos produtivo que
o labor, já que não deixa nada tangível, pois o processo de pensar e o de trabalhar nunca
chegam a coincidir tendo o indivíduo para transformar seu pensamento em matéria, deixar de
pensar e rememorar utilizando as mãos para transcrever suas ideias em um material já
fabricado anteriormente, por isso o trabalho intelectual não é valorizado tal qual um trabalho
manual, já que para o mercado, o mesmo não chega nem perto em ter a mesma capacidade de
produtividade, para Arendt:

[...] toda ocupação deveria demonstrar sua utilidade para a sociedade em geral, e
como a utilidade das ocupações intelectuais se tornara mais que duvidosa dada a
moderna glorificação do trabalho, era apenas natural que também os intelectuais
desejassem ser considerados como membros da população trabalhadora (2007, p.
103).

Sobre certas características do Labor na sociedade, no sentido arendtiano destaca sobre


a questão do contratualismo de Locke, em especial sobre o estatuto social, ou seja, a
convivência das partes, com isso Arendt apresenta:

Do ponto de vista das exigências do próprio processo vital - a “necessidade de


substir”, como o chamava Locke – o labor e o consumo seguem-se tão de perto que
quase chegam a constituir um único movimento – movimento que, mal termina,
deve começar novamente. A “necessidade de substir” comanda tanto o labor quanto
o consumo; e o labor, quando incorpora, “reúne” e “mistura-se” fisicamente às
coisas fornecidas pela natureza, realiza ativamente aquilo que o corpo faz mais
intimamente quando consome o alimento (2007, p.111).

Todavia, devido ao caráter desgastado do labor houve a criação do dinheiro, já que o


mesmo não estraga, haja vista que em uma sociedade capitalista, de “consumo” gradualmente
vai se havendo a transferência de produção entre Bens de Uso, para Bens de Consumo, sendo
suas consequências mais analisadas na próxima seção.
Não só isso, a mistura da vida social com a privada imposta pelo ‘social’ que aqui
ganha destaque, inicia o que Arendt chama de ‘sociedade de massas’, onde Aguiar (2004)
aponta,

Os homens são reduzidos à função de suporte do ciclo vital a partir de onde se tornou
possível seu controle. Por via da funcionalização e do consumo, foram aumentadas
a previsão, a padronização e o controle sobre a capacidade humana de agir e
transformar (p. 11).

Ou seja, o indivíduo moderno gera aqui uma transformação no seu sentido “político”,
onde existente numa sociedade “liberalizada” do seu ciclo vital (labor) e há a abundância de
recursos para tal, ele pode se dedicar à plena satisfação e ao vício das suas necessidades, o que
será tratado adiante. Pode-se perceber que a modernidade buscou em outros meios o que os
Antigos também buscaram, a emancipação do homem da própria atividade de laborar
ensejando a produção para o consumo, todavia,

A abundância não implica o surgimento de cidadãos. Ao contrário, as sociedades


consumistas estão mostrando uma sofisticação enorme na manutenção do homem
como meros consumidores (AGUIAR, 2004, p. 17).

Relações entre consumismo e consumidor que ensejarão o mundo contemporâneo. Arendt ao


verificar a análise da sociedade de consumo por parte de Marx o critica, pois a atenção de
Marx reside no fato de que, ele acreditava que a força de trabalho do indivíduo, se não fosse
gasta nas tarefas do dia-a-dia, seria utilizada para outras tarefas que o “evoluíssem”, todavia,
as horas vagas do animal laborans são gastas em consumir, aumentando-a proporcionalmente
ao tempo livre do mesmo, o que dá aporte para a Sociedade de Consumo,

Fracassou a utopia de que a sociedade, ao se engajar exclusivamente na geração de


abundância, iria produzir uma situação de liberdade uma vez que a ‘laborização’
invadiu também o tempo livre como, por exemplo, na forma de industrialização do
entretenimento (AGUIAR, 2004, p. 10).

Percebe-se então que Marx olha até de uma forma inocente em relação ao homem, já
que não percebe a capacidade do mercado do consumo no que tange a sua viciabilidade,
podendo facilmente compará-lo a um vício excruciante com que certas drogas assim são
capazes, todavia, a sociedade de consumo, como se verá, será capaz de prender o ser humano
através da limitação ‘política’ da mente.

3 A ‘LIQUIDEZ’ DAS NOVAS RELAÇÕES

Nesta seção, um comparativo em relação aos pensamentos de Arendt e de Bauman no


seu livro “Tempos Líquidos” (2007) de forma que se procurará a explicação de certos
problemas que enfrentamos na atualidade.
Hoje, como dito por Bauman, a “globalização negativa” permitiu que todo o mundo
humano fosse conectado de um canto a outro, de forma que um acontecimento em um
continente abala outro tal qual acontecesse no mesmo, ou até mesmo “no quintal da casa das
pessoas”. Bauman se refere à globalização como “[...] pressões voltadas à perfuração e à
quebra de fronteiras” (2007, p. 12).
A globalização adquiriu um caráter nunca visto antes pela humanidade devido ao
Capitalismo crescente, que teve um dos auges nas Revoluções Industriais, e outro agora em
período recente pós-guerra fria, haja vista que Bauman evidencia o fator sobre o capitalismo
que não mostrava seu caráter predatório devido à existência de um concorrente à sua altura na
época, o próprio comunismo, concorrente este que hoje inexistente não limita mais o
capitalismo a mostrar suas garras.
“Uma sociedade aberta é uma sociedade exposta aos golpes do destino” (BAUMAN,
2007,p 13), e que ‘destino’ é esse? Nada mais é do que a vontade do mercado, em um mundo
plenamente ‘globalizado’, onde não existem mais fronteiras e povos, as assimilações sociais
e culturais tomam proporções nunca antes vista. A sociedade de mercado homogeniza todos
os povos de forma a deixar apenas duas classes sociais, o acumulador e o consumidor de bens,
onde uma ‘voz’ misteriosa sopra e incentiva a todos não só a trabalhar, mas a ser bem-sucedido
e ‘apostar no mercado’, entregando-os a um destino no mínimo incerto. Incerteza essa
ensejada, como dito por Bauman, pela separação e o iminente “divórcio” entre o Poder e a
Política, “[...] o poder se afasta do Estado Moderno e migra para um espaço politicamente
descontrolado, enquanto a política é incapaz de operar efetivamente na dimensão planetária,
já que permanece global” (BAUMAN, 2007, p. 8).
O Estado, incapaz de operar efetivamente já que o poder está além da sua esfera de
ação, se tornou uma máquina ineficiente e ineficaz, fazendo com que Direitos Sociais e outras
medidas tomadas pelo Estado Moderno para garantir a existência do indivíduo como cidadão
e dar a mesma certa segurança e estabilidade, tornou-se maioria das vezes ineficiente “[...]
transformando-se em um playground de forças globais que se encontra além do alcance do
controle político e da capacidade de os afetados reagirem adequadamente a elas” (BAUMAN,
2007,p. 19).
O poder agora se concentra nos mercados, e os mercados não reconhecem e nem
possuem fronteiras, nem territórios. O que resta ao ser humano? O sacrifício da liberdade em
prol da segurança, segurança esta que permite aos países “desenvolvidos” e as organizações
por eles coordenadas o cerceamento das liberdades de outros Estados, nesse caso, Bauman
apresenta:

Tal como dinheiro vivo pronto para qualquer tipo de investimento, o capital do medo
pode ser usado para se obter qualquer espécie de lucro, comercial ou político. E é.
Isso acontece também com a segurança pessoal que se tornou um grande, talvez o
maior, ponto de venda em toda espécie de estratégia de marketing (2007, p. 18).

Este “medo” operante no ser humano contemporâneo fez com que a moralidade de
movimento aliado à frequência extremamente rápida das informações gerasse o “mal do
século”. Esse mal contemporâneo pode ser visto na própria psique humana, a ausência de
informações concretas que possuem um ciclo de conteúdo constantemente re-preenchido
interpelado pelo e para o consumo dominam a vida cotidiana. A internet ao mesmo tempo em
que se tornou uma ferramenta de informação, tornou-se uma ferramenta de volatilidade e
problemas relativos à psique humana, ela reflete a liquidez que domina o mercado de trabalho
e a consequente esfera social, já que, o trabalho, tornou-se a função mais importante da
contemporaneidade.
Alvim comenta que o empregado contemporâneo mantém “laços relacionais similares
àqueles mantidos com suas igrejas, por fanáticos fiéis” (2006). O emprego se tornou a alma
do homem moderno, o contrato psicológico firmado enseja o comprometimento e o vínculo,
principalmente dos mais jovens, à causa inequívoca da empresa onde não garante qualquer
tipo de segurança ao empregado já que se trata de um contrato psicológico,

Corroborando esse pensamento, poderíamos pensar a cultura organizacional como


um processo “homogeneizador” de condutas, que aciona os sistemas cognitivo,
afetivo e motor, para promover uma aprendizagem coletiva acerca de como pensar
a organização, sentir a organização e viver a organização. Se o indivíduo não
exercita sua capacidade de individualização, o direito à diferença, sua consciência
crítica, sua volta a si mesmo, deixa-se dominar e controlar pela disciplina (ALVIM,
2006).

“O mundo visto pela TV parece ser constituído de cidadãos-cordeiros protegidos de


“criminosos-lobos” por uma polícia de cães-pastores” (BAUMAN, 2007, p. 19). O mercado
gerou a ideia de “cada um por si e Deus por todos”, ou seja, atomizou a sociedade, ideia essa
que permite que cada vez mais as pessoas se tornem cada vez mais ‘povo’ e menos “cidadão”,
ocasionando a passagem da fase social ‘sólida’ para ‘líquida’, “as organizações sociais não
podem mais manter sua forma durante muito tempo, se decompõem mais rápido que o tempo
que leva para moldá-las” (BAUMAN, 2007, p. 7).
Por outro lado, para analisar o mundo moderno a partir de Arendt é necessário perceber
como o capitalismo alterou o processo de labor e trabalho na sociedade.
Do que se trata o capitalismo predatório? É uma máquina voraz que busca refinar a
tudo e a todos buscando satisfazer e garantir a sobrevivência do mercado de consumo apenas
existente numa sociedade onde a capacidade ‘política’ do indivíduo é limitada e destinada
unicamente ao ciclo vital (laborar). Houve dessa forma, uma alteração em relação aos
processos de laborar e trabalhar, principalmente entre seus produtos, destaque aqui ao bem de
consumo.
O Bem de Consumo, nada mais é do que o produto da atividade de Laborar, e, por
definição, como já visto, “não é capaz de deixar nenhum vestígio ou obra digna de ser
lembrada” (ARENDT, 2007, p. 3).
Ora, mas como se produz bens de consumo se o mesmo é apenas produzido pela
atividade de Laborar, haja vista que o capitalismo utiliza como atividade principal o trabalho
e o mesmo produzem bens de uso, e não de consumo? Segundo Arendt (2007, p.138) para
atingir o limite de abundância (da produtividade), a sociedade começou a tratar os objetos de
uso como objetos de consumo deturpando assim a própria ideia de trabalho como um processo
já que se tornou uma mera função da engrenagem capitalista, nas palavras de Aguiar (2004)
“o trabalho como capacidade de oferecer objetos e artefatos que tornassem o mundo um abrigo
em relação à natureza tornou-se mera função” (p. 11), fazendo com que os produtos da função
‘trabalho’ tornem-se de uso fugaz e contínuo. Não apenas os materiais, Aguiar (2004) também
vai expor o pensamento de Arendt que não apenas os objetos e artefatos se tornaram fluidos,
mas o próprio homem também se tornou fluído.
Este caráter de superfluidez da vida chegará a um ponto que nenhum objeto ou
indivíduo estará livre do mercado e da aniquilação total através do consumo, gerando a
economia do desperdício. Isso significa “o fim da liberdade de agir, começar algo novo, fundar
comunidades, e o cerceamento da dimensão espiritual, da capacidade de descondicionamento
inerente ao exercício da faculdade de pensar” (AGUIAR, 2004, p. 13). O ser humano torna-
se uniforme, componente funcionalista de um coletivo mudo e à parte do indivíduo político43.
Até mesmo a arte, que Arendt dá tanta importância foi afetada, “mesmo a arte, de
atividade encarregada de provocar a reconciliação crítica com o mundo e embelezá-lo,
transformou-se em instância apaziguadora e de entretenimento” (AGUIAR, 2004, p. 11).
Se os objetos de uso criam a familiaridade, a “mundanidade” do homem com o mundo,
o que acontece se este for tratado com objeto de consumo, que não tem durabilidade suficiente
para que haja qualquer tipo de conexão entre o homem e o seu ‘mundo’? As consequências
são vastas e com isso há o aparecimento da função da substituição. Assim a sociedade enfrenta
a ‘cultura de massas’ tendo como profundo problema o que ela chama de “infelicidade
universal”, “e a expansão da solidão e da alienação nas classes abundantes” (AGUIAR, 2004,
p. 17), ou, como dito por Bauman, “uma população heterônoma, infeliz e vulnerável,
confrontada e possivelmente sobrepujada por forças que não controla” (BAUMAN, 2007, p.
13).
Segundo Arendt, a sociedade contemporânea surgiu não em decorrência da
emancipação das classes trabalhadoras, mas da emancipação política da própria atividade do

43
No sentido grego da palavra, capaz de pensar e sentir por si só, incapaz de ser engolido por um funcionalismo
de classe.
labor (2007, p. 139). O resultado disso é que “reina a unidade muda, consenso anônimo,
opinião única e de ninguém, inviabilizadora do aparecimento de comunidades políticas que
tornem possíveis as relações entre pessoas e conexões entre seres humanos livres e ativos”
(AGUIAR, 2004, p. 12).
Como dito por Bauman, o capitalismo é “uma cobra que se alimenta do próprio rabo”
(2007, p. 34), “Rosa Luxemburgo divisou um capitalismo morrendo por falta de alimento:
morrendo por ter devorado o último pasto de alteridade em que se alimentava (BAUMAN,
2007, p.34), já que se considera que:

As organizações não capitalistas fornecem um solo fértil para o capitalismo: o


capital se alimenta das ruínas dessas organizações e, embora esse ambiente não
capitalista seja indispensável à acumulação, esta avança, não obstante, à custa desse
meio, devorando-o [...] ele avança assimilando a própria condição capaz por si só
de garantir a sua existência (BAUMAN, 2007, p. 33).

Prevê-se um capitalismo morrendo por falta de substância pela qual sobrevive, um


capitalismo sufocado pela falta de materiais, pela falta de objetos para consumo, com isso não
é possível saber uma fórmula que se empregada dê ‘certo’, apenas podem ser empregadas
previsões filosóficas e lógicas.
Como retrata Aguiar, “A política, reduzida a governo, passou a se restringir em
elaborar e administrar estratégias para o livre desenvolvimento do progresso” (AGUIAR,
2004, p. 11). Em lógica a política constitui-se de indivíduos, tais indivíduos agora servem a
uma sociedade consumista onde o individualismo padronizado demanda cada vez mais
garantias de existência e de “progresso”, a consequência direta é o que se iniciou na
modernidade e tem na contemporaneidade seu auge; a política, com o poder que lhe restava
depois de acumulado por toda a história humana, durante a modernidade foi utilizada como
meio de “elaborar e administrar estratégias para o livre desenvolvimento do “progresso”
(AGUIAR, 2004, p. 11), na contemporaneidade ela gasta toda sua iniciativa e se vê em
colapso.
Também se percebe a alteração na consciência de mercado e empresarial da sociedade
com um movimento iniciado na década de 80. A Cultura organizacional se desenvolveu com
propostas acerca de uma nova visão da empresa para com o indivíduo empregado, esse tipo
de ‘cultura’ permeia o mercado atual principalmente o que tange à administração de empresas.
Tal tipo de ‘cultura’ é definida como,

Um conjunto de modos de pensar, sentir e agir - originado a partir de uma


aprendizagem coletiva – o qual tem uma função integradora, que envolve
subjetividade e diferenças, formando um todo complexo e multidimensional
composto por elementos que estão em relação dialética constante e que tem um
sentido de identidade sustentado e mantido por elementos universais (ALVIM, 2006
apud ALVIM, 2000, p. 39).

Pode-se dizer que,

A fórmula: economia liberal + mercado globalizado e competitivo + avanço


tecnológico + velocidade na transmissão e comercialização de tecnologia traz como
resultado a necessidade das organizações passarem a se apoiar nas pessoas como
solução para obter um diferencial de competitividade (ALVIM, 2006).

Ou seja, com as novas crescentes necessidades de mercado pode-se afirmar que a


realidade na qual Marx estava inserido, e assim promoveu a análise do capital, teve sua
atuação alterada. Agora o que interessa ao mercado não é em si mais a mercadoria ou a força
de trabalho, mas criatividade do capital humano em gerar novas formas de captação de capital.
Após tantos períodos utilizando a mesma técnica de atuação os mercados necessitaram se
reinventar, a corrida tecnológica e industrial foi capaz de gerar descobertas avanços que se
tornaram saturados, dessa forma encaixa-se a busca empresarial pela criatividade, onde
investindo agora no indivíduo as empresas podem abarcar novas formas de atuar no mercado
de forma a alcançarem seus objetivos por vias ainda não-saturadas e pioneiras.
Assim os mercados tornaram-se participativos de forma que inserem o trabalhador em
laços psicológicos com a empresa, onde há “o compartilhamento de credos, valores, missão,
objetivos e metas organizacionais” (ALVIM, 2006). Orgulho, auto-estima e desejo de
afiliação permitem que o mercado penetre ainda mais na vida privada (sentimental) do ser
humano, sendo assim, dessa forma, uma sofisticação das estratégias de dominação e controle,
que promovem a introjeção e a retroflexão, alimentando junto aos reforçadores sociais a
sociedade do espetáculo que é vivenciada na contemporaneidade.
Introjetivo por que força o indivíduo, não conferindo ao mesmo poder de escolha, a
conduta e os objetivos a serem seguidos, e Retroflexivo por que o indivíduo se divide e age
manipulando a si próprio como se fosse o meio, ou seja, nestas duas formas do agir social
percebe-se uma alienação ideológica e individual que atomiza e ao mesmo tempo valoriza o
indivíduo de forma quase narcótica ao agir empresarial.
O trabalho ganha uma nova via de importância como se percebe, essa importância
define a busca e a vida-carreira do ser humano contemporâneo definindo-o com bem sucedido
ou mal sucedido, onde o ‘medo’ constante de ser deixado para trás mantém o indivíduo
‘acordado’ sobre as ‘atualizações sociais’ e disposto ao sacrifício constante cada vez mais
custoso fisicamente e/ou psicologicamente. Fazer parte e se sentir parte da maioria são buscas
rotineiramente almejadas, onde o indivíduo ‘diferente’ é rapidamente descartado ou ignorado,
Conforme Arendt, com a questão social, o sentimento se torna mais significante do
que a opinião na esfera política. A piedade, a decisão de unir silenciosamente a
própria vontade à vontade da humanidade sofredora transformou-se numa virtude
política (AGUIAR, 2004, p. 16).

A ‘massificação’ alcançou um patamar nunca antes visto, a educação que deveria tirar
o homem da barbárie e levá-lo aos trilhos do progresso o prendem ainda mais a um sistema
integrante de um ciclo vicioso de consumo. A política por trás de tais fatores resguarda esse
sistema onde, buscando o ‘progresso’, esconde-se na confortabilidade proposta pelo sistema
de mercado e assim exclui-se da vida humana. A efemeridade do sistema, das coisas, a
indurabilidade, a ausência de ‘vida’ dos objetos, o estresse, a depressão, o medo, todos estão
correlacionados, de forma que podem ser quase confundidos nominalmente, todos com
interseccionamentos produzidos pelo consumismo em nível predatório que atropela as etapas
de desenvolvimento individual e político do indivíduo, criando assim a ‘massificação’ e os
mecanismos de controle por ele mantido, o mundo ‘sólido’ torna-se enfim ‘líquido’, adaptável
e amorfo.
Convulsões sociais dão forma ao período. As relações humanas tornam-se
insustentáveis, impedidas e consequentemente quase inexistentes, mantendo apenas o mínimo
necessário para o desenvolvimento dos mercados. As informações e o consumismo atropelam
as suas lentas e progressivas etapas necessárias para qualquer desenvolvimento das relações
humanas. O interseccionamento dos problemas citados encontra um aporte filosófico que
antecede à própria consciência humana, haja vista que mesmo atrelado às tecnologias
contemporâneas, continua vinculada à sua esfera natural, ‘laborial’, que a antecede, assim
prendendo-a a etapas de aprendizado e desenvolvimento onde seu pulo acarreta as convulsões
sociais que caracterizam a contemporaneidade. Relações sociais como língua, cultura, política
e a própria dialética de ideias necessitam ser praticadas e respeitadas visando uma sociedade
bem encaminhada para o ‘progresso’, todavia o conceito de ‘progresso’ contemporâneo é
deturpada, de forma que enseja um sistema que aliena a tudo e a todos.
O social tornou-se à busca pelo objeto, a vida tornou-se efêmera e passível de
esquecimento, onde o inevitável ‘medo’ de ser esquecido em meio a tantas obrigações sociais
encontra um ponto de destaque e finaliza sua ação em gritos inaudíveis de desespero que são
e serão todos engolidos pela máquina tecnológica industrial.
A radicalização do Social encontra ensejo na relação do privado com o Bem Social,
onde o espaço público tornou-se particular,
A absolutização da questão social ocasionou enorme estreitamento do conceito de
Bem Comum. O Bem Comum transformou-se nos elementos necessários ao bem-
estar da população. Bem como passou a ser coisas e não o mundo comum que nasce
da consciência livre dos cidadãos, campo da memória e da imortalização (AGUIAR,
2004, p. 17).

O meio político ganha um caráter privado, tendo-se assim apenas exibições públicas
de atos privados onde, não há em nenhum momento um meio político de caráter cidadão, já
que a própria ideia de cidadão torna-se obsoleta, haja vista a ‘massificação’ social. O ser
político, antes capaz de pensar por si só, na contemporaneidade ganha um sistema para pensar
por ele, elevando-o à qualidade de deus, já que a sua única preocupação será a de saciar cada
vez mais e repetidamente suas necessidades relativas ao processo vital ao custo de apenas um
fator, a sua liberdade, condicionando-os repetidamente ao ciclo do consumo e do trabalho.
Um golpe tão baixo que é capaz de entorpecer o mais forte dos indivíduos e deixá-lo incapaz
de perceber a realidade de o circunda, podendo até mesmo aceitar como naturais as diversas
brutalidades da vida natural e mundana cotidiana, a isso Arendt chamará de “Banalização do
Mal”,

Na sociabilidade atual, na qual a esfera dos padrões provenientes do social estão em


vigor o exercício da faculdade de julgar é dificultado, prevalecendo um horizonte
meramente funcional e condicionado (AGUIAR, 2004, p. 9).

Assim resta ao indivíduo a mera existência efêmera como um deus controlado por
forças que desconhece e o compelem ao trabalho, ao consumo e a uma venda, paga a preço
de consumo, da sua própria auto-suficiência política e física.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Seria a política um mero espectador da sociedade contemporânea ou apenas mais um


meio de coerção social utilizado pelos verdadeiros detentores do poder? Durante a história
humana não se tem dúvidas que a política foi em certas sociedades um meio de coerção
econômica e moral dos indivíduos, todavia na contemporaneidade percebe-se uma troca em
relação à sua aplicabilidade e consequências diretas de tal fator na sociedade, o cidadão não
sabe o que fazer já que percebe que não é mais capaz de controlar certos fatores que
influenciam sua vida diretamente. O acontecimento em um país ou continente influencia o ser
humano tal qual tivesse acontecido no quintal da sua casa, esse medo, essa insegurança gera
convulsões sociais que culminam na formação de grupos extremistas que a
contemporaneidade conhece bem.
A influência dos fenômenos contemporâneos e modernos não se restringiu como já
visto, aos meros devaneios comerciais e positivistas iluministas, o trabalho perde
características de estágio, de um processo humano, e torna-se uma mera função do sistema
econômico capitalista, onde a produção ganha o papel de protagonista no mercado e o labor e
seu ciclo vital agora é sustentado pelo consumismo desenfreado que, respondendo a um vício
natural concernente a todo ser vivo, alcançou um feito que a Antiguidade grega buscava abolir,
que é a servidão do indivíduo ao próprio corpo, tido pelos gregos como um empecilho para a
independência racional do ser humano, fator plenamente verificável na conjuntura social
contemporânea onde a simples ideia de atuação ‘cidadã’ é de difícil empregabilidade.
Dessa forma, labor e trabalho encontraram alterações no seu processo no decorrer das
sociedades humanas, na contemporaneidade percebe-se que tais alterações em certas linhas
geram diversas consequências na psique e no bem-estar social onde a ‘mundanidade’ do
mundo humano é colocado em graus constantes de variação, já que os objetos não duram
tempo suficiente. Em uma sociedade em processo constante de heterogenia buscam-se certas
soluções concretas para problemas que existem na abstração e na ‘mente’ do social, soluções
materiais para problemas imateriais, o que resulta na ineficácia e na ineficiência de ações
tomadas não só pelos Estados como pela própria população constantemente indignada e
insegura.
Em outras palavras, Arendt acredita plenamente que apenas a capacidade política do
indivíduo humano é capaz de promover as mudanças necessárias na sociedade de forma que
seja capaz de se desvencilhar da escravidão promovida pelo vício e total dedicação ao ciclo
vital econômico contemporâneo podendo assim conquistar a aretê dos Antigos, a excelência
humana. Fator que de fato na contemporaneidade faz falta, o debate político consciente, a
busca pelo bem-geral, e até mesmo a simples efetividade do indivíduo em sua capacidade de
se reconhecer como cidadão é colocado em questão, demonstrando a rigidez com que o
sistema trata a esfera política, talvez por que no fundo tenha consciência do poder que a
racionalidade aplicada na política ‘liberta’ seja capaz de produzir a polis contemporânea.
É apenas a partir da plena dialética de ideias e do exercício do saber que o ser humano
é capaz de tornar-se independente em relação à, não só ao seu próprio ‘ciclo vital’44, mas
também, principalmente, às diversas ‘armadilhas de mentes’ sociais. Na contemporaneidade
cita-se a adoção45 de personalidades políticas e a ‘massificação’ social que o consumismo foi

44
No sentido não estar preso a ele, como na própria concepção grega de homem político.
45
Aqui no sentido de ‘adotar’ para si, onde tal personalidade refletiria plenamente a existência do indivíduo que
e é capaz de proporcionar. O ser político, quase uma ideia puramente abstrata para a
contemporaneidade, pode assim ser de fato, considerado um indivíduo, cidadão e livre.
Portanto, é importante a atenção aos processos de ‘massificação’, onde ideias
generalizadas encontram aportes para gritos sem conteúdo e expressão, discursos de ódio e
propagandas indignas de produzir qualquer tipo de processo benéfico aos indivíduos e à
sociedade. A análise de Arendt traz uma racionalidade e busca pelo ser político que havia sido
deixado na Antiguidade grega, suas análises englobam a contemporaneidade de uma forma
geral, o capitalismo não altera suas bases e seus objetivos, altera apenas os meios humanos e
tecnológicos para tal.
Mesmo que tais análises feitas demonstrem um alto grau de ceticismo em relação ao
futuro, tal como Bauman, o mesmo deve ser visto com certo otimismo, o ser humano sempre
achou meios para resolver problemas, a preocupação reside no fato que não se sabe ainda qual
a solução para tais problemas e nem quanto tempo ou qual o custo será necessário para ser
possível atravessar tais dificuldades.

REFERÊNCIAS

AGUIAR, Odílio Alves. A Questão Social em Hannah Arendt. Trans/Form/Ação, São Paulo,
vol. 27, no. 2, p. 7-20, 2004.

ALVIM, Mônica Botelho. A relação do homem com o trabalho na contemporaneidade: uma


visão crítica fundamentada na gestalt-terapia. Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 6, n.
2, p. 122-130, dez. 2006.

ARENDT, Hannah. A Condição Humana; tradução de Roberto Raposo. - 10.ed. - Rio de


Janeiro: Forense Universitária, 2007.

BAUMAN, Zygmunt. Tempos Líquidos. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

GRANEMANN Sara. O processo de produção e reprodução social: trabalho e


sociabilidade. Rio de Janeiro: Serviço Social, 2009.

MARX, Karl. O Capital. Moscovo: Edições Progresso Lisboa, 1982.


VIEIRA, Márcia Guedes; PINTO, Simone Rodrigues. Visões e significados do trabalho: um
olhar histórico. Revista de Estudos e Pesquisas sobre as Américas, Brasília, v.2, n. 2, p. 45-
51, 2008.

o ‘adotou’, sendo tal ser não passível de erros.


LINGAGUEM JURÍDICA: Juridiquês como barreira à compreensão e acesso à justiça

Isabelle Christine Soares


Torres

RESUMO

O presente artigo pretende discutir os efeitos gerados pelo costume da utilização dos vícios de
linguagem dentro do âmbito jurídico, pelos operadores do direito. Trata sobre o conceito do
que seria o “juridiquês”, demonstrando mediante vários exemplos, como ele é
corriqueiramente aplicado dentro da esfera jurídica. Busca identificar as causas e os meios
pelos quais é possível sanar os vícios de linguagem, bem como, relatar as consequências
negativas advindas do uso inadequado das palavras jurídicas, de modo a causar o
distanciamento e obstacularização daqueles que necessitam do auxílio da justiça. Pretende,
através da realização de uma pesquisa de campo, buscar na realidade a verdadeira efetividade
da comunicação da linguagem jurídica e se essa comunicação tem garantido o acesso à justiça
e o exercício ao direito de cidadania para aqueles que dependem do Poder Judiciário. Aborda
além de maneiras de sanar os vícios de linguagem, meios pelos quais possam ser hábeis para
uma melhor compreensão da linguagem jurídica, seja através da simplificação da linguagem,
cartilhas jurídicas ou previsão legal específica sobre o tema, de modo a tornar a linguagem
mais clara, simples e compreensível, utilizando a pesquisa bibliográfica através de artigos
científicos já publicados, obras dentro da referida temática, como também, pesquisa de campo,
utilizando o método indutivo.

Palavras-chave: Linguagem jurídica. Juridiquês. Poder Judiciário.

INTRODUÇÃO

Para aqueles que não estão habituados, a linguagem do Direito pode ser, muitas vezes,
um grande desafio na compreensão do que o texto pretende transmitir. Assim sendo, o
presente trabalho busca, através do estudo do “juridiquês”, evidenciar quais as causas para
esse acontecimento, identificando as consequências prejudiciais ao mundo jurídico,
promovendo assim, propostas para reparação do uso inadequado da linguagem, através da
simplificação da linguagem jurídica e identificando as repercussões da utilização dos vícios
de linguagem na esfera jurídica.
Ao refletir sobre as considerações acerca do “juridiquês” e suas repercussões, podemos
observar que a linguagem jurídica não cumpre com seu papel democrático na garantia do
“direito para todos”, visto que, o uso desnecessário de expressões jurídicas, constitui um
impasse ao acesso à justiça, gerando uma violação à igualdade e exclusão daqueles que não
possuem qualquer conhecimento jurídico, causando prejuízos a democratização do direito e
ao exercício da cidadania.
Deste modo, pretende-se analisar e discutir, mediante o estudo da linguagem jurídica,
o “juridiquês”: Quais as repercussões que o uso inadequado da linguagem produz na esfera
jurídica? E quais elementos podem auxiliar para sanar as consequências prejudiciais e sua
importância? Desta forma, a pesquisa tem como objetivo geral analisar e identificar, através
do estudo da linguagem jurídica, quais as implicações ocasionadas pelo uso inadequado da
linguagem para aqueles que são leigos, quando se trata de matéria relacionada a esfera
jurídica.
A metodologia utilizada para a presente pesquisa é de caráter explicativo, relacionando
o uso inadequado da linguagem jurídica, com suas causas e efeitos na esfera jurídica. Utiliza-
se de pesquisa bibliográfica, e também de materiais já elaborados. O trabalho apresenta ainda,
uma abordagem quantitativa, ao realizar uma análise dos resultados obtidos em pesquisa de
campo, realizada no Instituto Federal de Educação, Ciências e Tecnologia (IFPE).
A pesquisa justifica-se por demonstrar a relevância da discussão do tema, com a
necessidade de identificar se a comunicação da linguagem jurídica está de fato, sendo
efetivada, garantindo a compreensão da linguagem. É válido ressaltar que o trabalho aborda
ainda, as causas e os efeitos decorrentes do uso exagerado de termos técnicos e jargões
jurídicos, evidenciando a importância da simplificação da linguagem jurídica.
Neste sentido, se faz necessário compreender os conceitos que envolvem o fenômeno
em questão, identificando os vícios na comunicação da linguagem forense e quais os meios
eficazes para sanar os vícios decorrentes do “juridiquês”, de modo a entender quais os
posicionamentos acerca do referido tema.

1 LINGUAGEM JURÍDICA: JURIDIQUÊS

Para que se possa desenvolver a linguagem é necessária que se tenha previamente um


pensamento abstrato para que então seja alcançado o objetivo maior que é a comunicação. Ao
longo dos séculos, o ser humano tem desenvolvido formas de se comunicar, seja através de
gestos, símbolos, ou mesmo pela fala, com o intuito de interagir com outras pessoas, a fim de
traduzir suas ideias, pensamentos e emoções. “Assim, por linguagem, tradicionalmente
entende-se, um sistema de sinais empregados pelo homem para exprimir e transmitir suas
ideias e pensamentos”. (PETRI, 2009).
Assim como bem afirma Petri, desde os tempos mais remotos o homem tenta se
comunicar seja mediante gestos, sinais, símbolos ou fala com o intuito de manifestar ações e
projetar signos que traduzam a sua realidade, a fim de expressar seus desejos, emoções, ideias
e pensamentos. A linguagem é, portanto, um conjunto de sinais com regras de combinações
resultantes da expressão de uma sociedade.
A linguagem tem papel fundamental como instrumento de transmissão de ideias e na
esfera jurídica essa afirmação não deixa de ser verdadeira. A linguagem seja escrita ou verbal,
é uma ferramenta essencial para o Direito, pois, é através dela que processos são elaborados,
audiências são desenvolvidas, pareceres e termos judiciais são publicados.
A linguagem é, portanto, um instrumento fundamental para o exercício do direito. Sem
a linguagem, não há direito, como preleciona Moreno & Martins em seu livro Português para
convencer:

A linguagem é o instrumento de todos os operadores jurídicos. É por meio dela que


se alcança a justiça. Além de ter o direito, você tem de saber expressá-lo de forma
precisa, adequada e facilmente compreensível. A justiça e o direito materializam-se
através da linguagem (MORENO, 2011, p. 24).

Com o intuito de traduzir as manifestações ocorridas na esfera jurídica, o direito


apresenta uma linguagem com termos técnicos específicos de forma que a tornam única. A
linguagem jurídica é uma forma de expressão, seja ela verbal ou não verbal evidenciada no
mundo jurídico. Assim como cada ramo profissional apresenta sua linguagem específica, o
direito também contém uma linguagem própria.
Dentre as diversas dificuldades enfrentadas pelos alunos graduandos de Direito ao
adentrar na universidade é, certamente, o primeiro contato com a linguagem jurídica. Termos
como “doutrina”, “jurisprudência”, “pretório excelso” são frequentes nos textos jurídicos e
demandam certo tempo para que o aluno adquira tal hábito e compreenda aquilo que o texto
quer transmitir. “Todos os alunos de direito passam pela desagradável experiência de ler a
decisão de um tribunal sem conseguir entender quase nada, justamente porque não estão
acostumados com a linguagem forense”. (DIMOULIS; DIMITRI, 2006, p. 133).
Por assim dizer, a linguagem jurídica é composta por um denso vocabulário de
palavras técnicas, expressões latinas e argumentações jurídicas que devem ser muito bem
utilizadas pelo operador do direito. À medida que o jurista não opera a linguagem de forma
adequada, consequências podem incorporar e até influenciar de diversas formas na esfera
jurídica refletindo no termo chamado “juridiquês”.

1.1 O que é “Juridiquês”?

Um dos fatores que derivam da inadequação da linguagem jurídica é o chamado


“juridiquês”. Trata-se de um “vício de linguagem” decorrente do uso inadequado da
linguagem jurídica. Caracteriza-se por ser o uso exagerado de jargões jurídicos ou termos
técnicos utilizados de forma desnecessária. “é , isto é, o emprego de uma palavra equivocada
para determinada situação – equívoco que geralmente reflete um domínio precário dos
conceitos jurídicos” (MORENO, 2011, p. 27).
O é a burocratização do entendimento jurídico que tem sido impulsionado pela
complexidade e obscuridade da linguagem nos textos e diálogos forenses. O excesso de
jargões técnicos, o rebuscamento da linguagem, a incompreensão empregada, a obscuridade
da língua e a falta de objetividade, faz com que a linguagem forense por vezes seja
incompreensível por aqueles que dela fazem uso. Segundo NedrianeScaratti:
O juridiquês, portanto, são termos usados entre profissionais do Direito e classificados
como exagero de jargões, uso de gírias ou até uma forma rebuscada de se apresentar. São
usados como adornos, enfeites para embelezar as expressões usadas no processo, mais
precisamente denominados como arcaísmos (SCARATTI, 2010, p. 143).
O “Juridiquês” está presente de forma recorrente nos textos jurídicos, como decisões
judiciais, processos, em diálogos, consultas jurídicas, como também nas audiências. Pode ser
aplicado por aqueles que estão no meio jurídico, geralmente advogados ou magistrados, quer
seja os mais antigos em suas funções, bem como os mais novos, que detém o poder de
argumentar, fundamentar peças e decisões que por vezes tornam-se confusas e ilegíveis. Como
argumenta Almeida Guimarães:

É fato que algumas peças jurídicas são redigidas de maneira que é impossível a
alguém que não seja parte do meio jurídico compreendê-las. Esse estilo rebuscado,
denominado, juridiquês, impede qualquer possibilidade de conhecimento, ao invés
de permitir a compreensão sobre o assunto tratado. (GUIMARÃES, 2012, p. 176-
177).

Se para os alunos de Direito que estão iniciando seus estudos na esfera jurídica, a
linguagem é vista como um desafio, o que dizer daqueles que não estão habituados a este
mundo jurídico, como médicos, engenheiros, enfermeiros, donos (a) de casa, que não possuem
vínculo direto com tal linguagem e que, consequentemente, torna-se um entrave, por ser de
difícil compreensão e, por vezes, obscura e de uma complexidade inigualável.
O Direito por manter uma relação muito próxima com suas tradições apresenta ainda
uma linguagem conservadora, e por vezes distantes daqueles que não tem conhecimento
jurídico suficiente, tornando-se inalcançável. A linguagem jurídica não mais se encontra
emRever este espaçamento.sincronia com a atualidade e por isso tem deixado de alcançar seu
maior objetivo fundamental que é a comunicação. Assim a inadequação da linguagem jurídica
é apontada como um grande óbice a compreensão e entendimento do público em geral, sendo
alvo de grandes discussões e posicionamentos que se colocam contra e a favor do referido
tema. Correção realizada parcialmente sobre a questão dos exemplos para corroborar o
sentido do “Juridiquês”

1.2

A discussão que envolve o referido tema tem sido frequentemente alvo de vários
questionamentos como o caso do juiz da 4º Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 4º
Região (RS), João Batista de Matos Danda que, como forma de chamar a atenção do referido
tema, proferiu uma sentença de forma coloquial, com termos jurídicos simplificados onde
salientou que: “Foi apenas uma forma de refletir sobre a possibilidade de simplificarmos
alguns termos jurídicos (...). Não precisamos chegar a este ponto. Mas substituir expressões
em latim ou escrevermos termos técnicos de forma mais clara é possível”.
Em oposição a este pensamento existem aqueles que afirmam não haver esse
rebuscamento excessivo na linguagem jurídica, sustentando ainda a necessidade do uso de
terminologias técnicas específicas.
Diante das discussões que envolvem o tema, surgem dois principais posicionamentos.
O primeiro defende que é necessária uma maior objetividade na linguagem, de forma que
venha existir uma maior simplificação da linguagem jurídica com a finalidade de torná-la mais
acessível ao público em geral. E o segundo posicionamento sustenta que o rebuscamento da
linguagem forense nada mais é que um estilo próprio e peculiar do Direito.
que concerne a este primeiro posicionamento, aqueles que buscam uma maior
simplificação da linguagem jurídica, visam dirimir as incompreensões, as dificuldades e
dúvidas que surgem ao ler um texto judicial. Buscam, deste modo, tornar mais acessível a
qualquer pessoa leiga no assunto, a entender o que transmite o texto, passando a ser mais
universal e abrangente, de forma que a linguagem jurídica não acabe sendo restrita a
determinados grupos que possuem entendimento sobre o assunto. Portanto, “o advogado deve
se comunicar com clareza e eficiência, usando a linguagem técnica somente quando for
necessário e jamais utilizando o juridiquês”. (MORENO, 2011, p.12).
Em contrapartida, na perspectiva do segundo posicionamento, o “juridiquês” não seria
visto como obstáculo à linguagem jurídica, mas sim, como um “estilo” específico resultante
da identidade própria da esfera jurídica, sendo fundamental o uso de termos técnicos. O atual
ministro do Superior Tribunal de Justiça, Napoleão Nunes Maia “rechaçou a existência de um
rebuscamento excessivo na linguagem usada pelo Poder Judiciário, alegando não acreditar
que haja dificuldade na percepção da linguagem no Direito”. (MOZDZENSKI, 2003, p.133).
Assim, entendem que a simplificação da linguagem jurídica poderia provocar, ainda, um
empobrecimento da linguagem, como também não faria sentido, por exemplo, o papel do
advogado para traduzir as decisões proferidas ao cliente.
A despeito das críticas para aqueles que defendem os jargões jurídicos, não é de hoje
a preocupação em relação à simplificação da linguagem jurídica. Além da campanha
desenvolvida pela AMB em 2005, houve ainda outros debates a respeito do mesmo tema,
como o que ocorreu em Recife/PE no ano de 2003, o “Simpósio Nacional de Direito e
Imprensa” realizado para discutir formas de simplificação da linguagem jurídica. Foi com a
mesma preocupação que chegou a ser desenvolvido um projeto de lei pela então Deputada
Federal Maria do Rosário (PT/UF). A PL 7.448/06 que veio a ser aprovada no Congresso, mas
vetada no Senado Federal em que tratava basicamente uma forma mais clara, objetiva e precisa
quanto à elaboração de sentenças judiciais.
Sendo a linguagem jurídica um instrumento essencial para a efetivação da
comunicação e para que o operador do direito possa desenvolver as atividades corriqueiras do
dia a dia na esfera jurídica, a inadequação da linguagem jurídica, além de comprometer a
comunicação, pode ainda, gerar petições mal elaboradas, sentenças judiciais
incompreensíveis, interpretações incoerentes e ainda comprometer a carreira do próprio
advogado. Sendo assim, é fundamental que o operador do direito faça o uso correto da
linguagem, utilizando de forma adequada a sua estruturação, visto que é através da linguagem
jurídica que o cliente pode compreender sobre as questões que envolvem a esfera jurídica e
ainda ter a garantia da efetividade da comunicação entre o operador do direito e seu cliente.
Vale salientar que, embora parte dos operadores do Direito entendam que o uso dos
jargões é necessário, não ocasionando dificuldade de interpretação, a dificuldade na
linguagem jurídica existe, de forma que é possível, ainda, a simplificação da linguagem sem
que se deva deixar de utilizar termos técnicos que são fundamentais, tanto na área do Direto,
como em qualquer outra. A proposta de simplificação não implica que a linguagem se torne
coloquial, mas que seja compreensível e de fácil entendimento para aqueles que dependem da
via judiciária.

1.3 Previsão no ordenamento

Não existe no ordenamento jurídico uma previsão legal específica a fim de combater
o “juridiquês”. Foi discutido ainda na Câmara dos Deputados a possibilidade de um projeto
de lei a PL 7.448/06 criado pela Deputada Federal Maria do Rosário (PT/UF) que pretendia
alterar o artigo 458 do antigo Código de Processo Civil de 2002, com a finalidade de facilitar
o entendimento da linguagem jurídica utilizada nas sentenças judiciais.
A alteração proposta pelo projeto de lei (PL 7.448, 2006) que não chegou a ser aprovado,
previa incluir no artigo da antiga lei de processo civil, algumas passagens como:

IV - a reprodução do dispositivo da sentença em linguagem coloquial, sem a


utilização de termos exclusivos da Linguagem técnico-jurídica e acrescida das
considerações que a autoridade Judicial entender necessárias, de modo que a
prestação jurisdicional possa ser plenamente compreendida por qualquer pessoa do
povo”.
“§ 1º A utilização de expressões ou textos em língua estrangeira deve ser sempre
acompanhada da respectiva tradução em língua portuguesa, dispensada apenas
quando se trate de texto ou expressão já integrados à técnica jurídica
(PL.7.448/2006).
Infelizmente a proposta não foi aprovada quando chegou ao Senado, em vista que
já havia sido aprovado o projeto do novo Código de Processo Civil e por esse motivo
não era mais possível ratificar tal projeto. Mesmo não sendo aprovada a proposta no
Senado, a Constituição Federal já prevê de forma geral em seu artigo 59, parágrafo
único, regulamentado pela lei complementar n. 95, a disposição sobre algumas
regras a respeito de uma maior precisão, objetividade e ordem lógica nos textos
jurídicos, como consta:
Art.59 As disposições serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica,
observadas, para esse propósito, as seguintes normas:
I – Para obtenção da clareza:
a) usar palavras e as expressões em sentido comum, salvo quando a norma
versar sobre assunto técnico, hipótese em que se empregará a nomenclatura própria
da área em que esteja legislando;
b) usar frases curtas e concisas;
c) construir as orações na ordem direita, evitando preciosismo, neologismo e
adjetivações dispensáveis;
d) buscar uniformidade do tempo verbal em todo o texto das normas legais,
dando preferência ao tempo presente ou ao futuro simples do presente;
usar os recursos de pontuação de forma judiciosa, evitando os abusos de caráter
estilístico (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988).

Diante o exposto, fica ainda visível a relevância de uma previsão legal que trate
especificamente sobre o tema de forma a modificar a realidade da linguagem jurídica ao qual
estamos habituados. À medida em que se cria uma previsão legal ao referido problema, o
judiciário passaria a ver com outros olhos a forma de se comunicar, principalmente para
pessoas leigas que não tem se quer nenhuma familiaridade com a linguagem jurídica.

1.4

Diversos são os elementos que influenciam na linguagem jurídica tornando-


aincompreensível e diante destas questões que envolvem o “juridiquês” e de todo panorama
apresentado, é fundamental entender quais elementos refletem os vícios de linguagem que
geram defeitos de compreensão e tornam os textos jurídicos obscuros.
Entre as causas mais frequentes está a utilização de termos técnicos de forma
exacerbada, principalmente nos processos, termos que muitas vezes fogem do dia a dia forense
e que são utilizados pelos operadores do Direito para “enfeitar” o texto ou a fala, como observa
Viana “Era comum encontrar nas petições iniciais expressões latinas para embelezar a
linguagem jurídica, para argumentar e para fundamentar um determinado raciocínio”.
(VIANA, 2010, p. 87).
Inclui-se ainda os estrangeirismos, latinismos, como também os arcaísmos, que são
palavras que já não se encontram mais no vocabulário atual. Além desses elementos, a falta
de domínio sobre a gramática no geral, também são causas da produção de textos obscuros,
como erros de construção, erros relativos ao vocabulário, colocação equivocada de palavras e
erros de pontuação de acordo com as palavras de Moreno & Martins:

Erros de grafia são imperdoáveis, em vista dos modernos corretores ortográficos


(...). Erros de concordância e de regência, embora um pouco mais sutis, são também
injustificáveis (...). O erro mais comum, no entanto, é o erro de inadequação, isto é,
o emprego de uma palavra equivocada para determinada situação – equívoco que
geralmente reflete um domínio precário dos conceitos jurídicos (Moreno & Martins
2008, p. 27).

Outros elementos que também prejudicam a linguagem jurídica é produção de textos


vagos, discursos vazios e repetitivos. Textos e discursos longos, ou mesmo com linguagem
fechada, de difícil compreensão logo na primeira leitura, também constituem formas que
tornam a linguagem jurídica confusa, auxiliando na formação dos vícios de linguagem. A
seguir serão discutidos ponto a ponto os elementos que geram os vícios da linguagem jurídica.

1.4.1 Arcaísmos

Como bem afirma Almeida Guimarães “O Direito é uma ciência que mantêm uma
relação muito próxima das suas tradições” (ALMEIDA GUIMARÂES, 2012, p. 179) e por
esse motivo a linguagem jurídica pode parecer muitas vezes conservadora e tradicional, por
decorrência do uso de arcaísmos em sua linguagem que torna o texto rebuscado. Os arcaísmos
são palavras que perderam sua utilidade, caindo em desuso numa determinada língua, o que
torna o texto indecifrável e com uma linguagem cansativa. Pode ser citado como exemplo
quando é perguntado se o advogado já perlustrou os autos, na verdade o que se quer
transparecer é se o advogado já leu os autos.
Desta forma, seguindo o entendimento de Joseval Martins Viana (VIANA, 2010) em
seu livro Manual de Redação Forense e Prática Jurídica, é imprescindível que seja evitado o
uso de arcaísmos na linguagem jurídica, para que não torne o texto cansativo e
incompreensível de forma que ao realizar a leitura do texto jurídico o leitor tenha ciência do
que o texto pretende transmitir. É necessário ainda, que haja atualização do vocabulário
jurídico, pois à medida em que o Direito se renova, é fundamental que a linguagem jurídica
também seja remodelada, evoluindo de forma que o operador do direito esteja atento a estas
mudanças.

1.4.2

Os estrangeirismos e latinismos são utilizados pelo magistrado, às vezes, para


demonstrar conhecimento ou memorização abortando tais termos quando, em muitas
situações se faz desnecessário o uso. Muitos juristas utilizam expressões estrangeiras ou
latinas com o intuito de enriquecer ou “embelezar” o texto jurídico, mas se torna um problema
quando o mesmo é utilizado exageradamente e de forma inadequada.
Alguns exemplos podem traduzir a complexidade em entender as expressões latinas e
estrangeiras, como chamar a denúncia de peça inaugural da “persecuio criminis” que significa
“persecução criminal”, ou ainda, pela utilização de expressões como “data vênia” que
significa “dar permissão”, “custos legis” como sendo “defensor da lei”, “dominus litis” que
significa o “Parquet”, termo utilizado como sinônimo dos representantes do Ministério
Público, entre outros.

1.4.3

Entre as mais diversas causas que geram vícios na linguagem jurídica os mais comuns
segundo o entendimento de Moreno & Martins são os erros relacionados a grafia. Segundo o
autor “falhas na redação e no uso do português facilitam a vida do oponente”(MORENO,
2008, p. 28). Os erros mais corriqueiros estão relacionados a concordância, a regência, como
também a inadequação.
A falta de observação a estas regras gramaticais pode gerar confusões e muitas vezes
a incompreensão da linguagem jurídica. É necessário que o operador do direito tenha o
mínimo de familiaridade com a gramática. O autor ainda cita alguns exemplos:

Um bom exemplo está nos advogados que escrevem, desastradamente, “impetrei


uma liminar”, “entrei com uma liminar” ou “vou mover uma liminar”. (...) Assim,
devemos escrever: pedimos liminar em mandado de segurança ou na ação há um
pedido liminar de reintegração de posse ou, ainda, liminarmente postulei a inscrição
no concurso (MORENO, 2008, P.28).

1.4.4 Vagueza e ambiguidade


Outros dois elementos que contribuem para incompreensão da linguagem jurídica é a
vagueza e a ambiguidade. Como preleciona Warat: “As incertezas designativas/denotativas
dos termos da linguagem natural são estudadas pela Filosofia da Linguagem Ordinária como
problemas de vagueza e ambuiguidade dos termos gerais”(WARAT, 1995, p. 76). A vagueza
compreende no que não se pode transmitir com exatidão determinado argumento e a
ambiguidade é caracterizada pela incerteza, quando um termo possui mais de um significado.
Buscando solucionar as questões acerca dos problemas destacados, Alexandre Freitas
Câmara argumenta, sobre os embargos de declaração dentro do Direito Processual Civil:

Pode acontecer de uma decisão judicial ser obscura, tendo seu texto sido elaborado
de forma total ou parcialmente incompreensível ou ambígua. Neste caso, os
embargos de declaração se apresentam como meio hábil a permitir que se confira ao
pronunciamento judicial a clareza que deve ser compreendida como requisito de
qualquer ato judicial decisório (CÂMARA, 2016, p.552).

Assim, para que seja possível solucionar as questões que envolvem a ambiguidade e
os textos vagos, foi criado um instrumento jurídico conhecido como embargos de declaração,
ao qual a parte poderá se utilizar para que prolatada sentença onde exista incertezas, dúvidas,
obscuridade ou vagueza, de forma a ser suprimida esclarecendo assim, aspectos da decisão
que foi proferida.

1.5 Consequências negativas para o mundo jurídico

É perceptível que a produção de equívocos linguísticos de alguma forma influencie na


vida prática, trazendo consequências e efeitos no âmbito jurídico e fora dele. Uma vez
conhecida às causas que geram os vícios da linguagem jurídica, deve ser observada quais as
consequências negativas e os impactos que tais vícios derivam na esfera do mundo jurídico.
Identificado estes elementos causadores de vícios linguísticos, o que podem provocar a
princípio é a incompreensão da ideia que se quer transmitir. “O acúmulo de palavras difíceis
prejudica a inteligibilidade da peça processual. O mesmo acontece com o rebuscamento.
Quanto mais rebuscada for a peça processual, maior a possibilidade ela terá de não ser
compreendida pelo leitor”. (VIANA, 2010, p. 230)
Segundo Petri “É a partir dos objetivos de leitura e do constante confronto entre o
conhecimento prévio do leitor e os dados do texto que se constrói o sentido, que se processa
com a compreensão” (PETRI, 2009, p. 32). Assim à medida que o leitor tem o primeiro
contato com a linguagem jurídica um dos primeiros efeitos ocasionados pela inadequação do
“juridiquês”, quando o texto vem acompanhado de vícios linguísticos é a incompreensão
daquilo que o texto jurídico quer transmitir. “Esse estilo rebuscado, denominado “juridiquês”,
impede qualquer possibilidade de conhecimento, ao invés de permitir a compreensão sobre o
assunto tratado”. (GUIMARÃES, 2012, p.177).
Uma vez gerada essa incompreensão outro elemento fundamental é atingido: a
comunicação. Havendo a compreensão do texto jurídico, haverá também a comunicação
efetiva daquilo que o texto jurídico quer passar, uma vez atingida a incompreensão, como
consequência fática, também comprometerá a comunicação que quer ser transmitida. Assim
nas palavras de Almeida Guimarães:

Pode-se deduzir, então, que a linguagem jurídica, em várias situações, não está
alcançando o objetivo básico de toda e qualquer forma de linguagem: a
comunicação. A maneira excessivamente culta que alguns profissionais insistem em
utilizar só agrada a dois tipos de pessoas: a quem dela faz uso e a quem não entende
nada, mas acha tudo muito bonito (, 2012, p.177).

Além da incompreensão ocasionada, como também leitura cansativa e dúvidas acerca


de decisões prolatadas em sentenças, por exemplo, a figura do advogado e até mesmo seu
cliente, podem ser vítimas em decorrência dos vícios de linguagem. O custo da linguagem
inadequada utilizada pelo advogado pode de certa forma influenciar na decisão de
determinado caso, pelo simples fato de não ter tido a clareza necessária, deixando dúvidas
quanto ao pedido ou razões de um recurso.
Outro fator decorrente dos vícios da linguagem jurídica é o afastamento do orador ao
seu público, de forma que dificulta a acessibilidade do direito para o público em geral. “Não
se pode esquecer que uma linguagem carente de atualização afasta o orador de seu
público”(GUIMARÃES, 2012, p. 177). À medida que se cria essa distância entre o orador e
o seu público outro elemento ressurge que é a dificuldade ao acesso à justiça daqueles que não
tem conhecimento da área, gerando ainda uma exclusão por parte daqueles que entendem a
linguagem jurídica etem domínio sobre ela, guardando para si tal conhecimento, em
detrimento das pessoas quenão tem conhecimento algum.
forma como a linguagem jurídica é utilizada pelos juristas, muitas vezes cria um
idioma que só é acessível para aqueles que tem conhecimento do mundo jurídico distanciando
a acessibilidade de pessoas leigas ao entendimento do corpo textual e também a garantia do
direito que pleiteia. “A linguagem usada por advogados, por juízes e pelas próprias leis – o
chamado “juridiquês” – constitui um “idioma estrangeiro”, hermético, ininteligível, um
mistério só acessível a iniciados” (MOZDZENSKI, 2003, p. 133).
“É possível observar que as normas transitam entre universos distintos de usuários,
devendo, consequentemente, ser acessíveis a todos. Ademais, a compreensão de determinados
termos jurídicos e de seu contexto é que garantem o exercício da cidadania”(MOZDZENSKI,
2003, p. 135). Portanto, embora ainda tem aqueles que defendem a utilização de jargões
jurídicos como sendo parte da identidade do Direito, não se pode esquecer que o abuso deles,
tem gerado vícios linguísticos que trazem consequências significantes para a realidade, seja
ela jurídica ou não, principalmente para aquelas pessoas que dependem da justiça para tutela
de seus direitos.

1.6 Formas de sanar os vícios da linguagem jurídica

À medida em que é identificado um problema, é imprescindível que deva ser sanado.


Por isso, diante das dificuldades que rodeiam a linguagem jurídica e que geram consequências
negativas ao mundo jurídico, é evidente que estes impasses devam ser superados. Assim, é
necessário que seja observado quais os elementos que resultam nos vícios de linguagem, para
que então, sejam sanados.
Primeiramente, uma das formas de sanar os vícios da linguagem jurídica é através da
simplificação da linguagem jurídica. Ela surge para tornar a linguagem do mundo jurídico
mais clara, objetiva e de fácil dedução, traduzindo palavras que muitas vezes são rebuscadas,
obscuras e indecifráveis, facilitando assim, o entendimento do cidadão e garantindo sua
efetiva compreensão. Portanto, segundo Almeida Guimarães:

(...) quando primamos pela simplificação da linguagem jurídica, não estamos


defendendo a vulgarização dela, nem estimulando o desuso de termos técnicos
necessários ao contexto forense, mas sim, combatendo os excessos que podem
facilitar o entendimento do cidadão, ficando mais acessível para todos
(GUIMARÃES, 2012, p.175).

Escrever bem, não é escrever difícil. Portanto, a simplificação da linguagem jurídica


surge para que seja possível haver uma transformação da linguagem, tornando simples o que
antes era incompreensível. Assim, o que antes passava a ser um estilo simplificado, começa a
se tornar uma exigência operacional devido as inquietações acerca do referido tema.
Outra forma de dirimir os vícios da linguagem jurídica é mediante a proposta de
criação de cartilhas jurídicas, simplificando informações a serem passadas à população, de
forma a garantir o acesso universal das informações a toda sociedade, resumindo a lei ou
explicando-a, de forma mais clara e objetiva, a fim de orientar a população e
consequentemente assegurar um maior entendimento sobre as questões que o Direito aborda.
O objetivo das cartilhas jurídicas é de traduzir a linguagem jurídica para que seja comum a
todas as pessoas que de alguma forma tenham contato com o mundo jurídico. Assim afirma
Mozdzenski que:

Algumas iniciativas isoladas, tanto de entidades públicas quanto privadas, propondo


tornar a lei mais acessível ao cidadão comum, procuram transformar o “monótono”
texto legal em um gênero mais atraente, moderno e, em princípio, descomplicado.
Surgem assim as cartilhas jurídicas (...) (2006, p.49).

Assim, as cartilhas jurídicas são caracterizadas por divulgar informações que são de
utilidade pública, mediante textos verbais explicativos e ilustrações que chamam a atenção do
leitor. “A ideia de tornar o texto mais agradável de ser lido ou mesmo de ajudar a fixação do
conteúdo legal através de elementos imagéticos”. (MOZDZENSKI, 2006, p.75).
Sugestões semelhantes como a criação de campanhas pela simplificação da linguagem,
promoções de cursos, criação de revistas, são apresentadas pela Juíza Oriana Piske do 4º
Juizado Especial Cível de Brasília ao tratar sobre Simplificação da linguagem jurídica:

Nesse sentido, temos as seguintes sugestões para que tribunais e comarcas adotem
uma linguagem mais compreensível: campanhas de simplificação da linguagem
jurídica; a promoção de cursos de atualização da linguagem jurídica que integrem
uma percepção simplificadora; criação de revistas que contemplem peças jurídicas
que contenham exemplos de expressões substituídas por alternativas mais simples
(PINTO, ORIANA PISKE, 2006, online).

Outro elemento capaz de reparar as causas do “juridiquês” é a necessidade da criação


de uma lei para regulamentar especificamente sobre o referido tema. O ordenamento jurídico
brasileiro não possui lei que regulamente, de forma específica, a simplificação da linguagem
jurídica, contendo apenas algumas previsões gerais. Assim, ao passo que o ordenamento
jurídico brasileiro adota regras que regulamentem a simplificação da linguagem, fica evidente
que seria vantajoso, facilitando a compreensão para aqueles que não tem conhecimento da
área.
Um exemplo desse processo de simplificação da linguagem jurídica através de
regulamentação em lei foi o que ocorreu na França. Houve no país, a criação de uma lei que
visava a simplificação da linguagem para buscar uma melhor compreensão da linguagem
jurídica. Portanto, como bem afirma Dimitri Dimoulis:

É interessante que na França foi editada em 2009 a lei 526 “para simplificação e
melhor compreensão do direito e facilitação dos procedimentos”. A lei modifica
centenas de dispositivos legais para facilitar sua compreensão e aplicação, tendo em
particular eliminando termos jurídicos incompreensíveis (DiMOULIS, 2011, p.
142).

Ainda nas palavras do ilustre doutrinador Dimitri Dimoulis:


Quanto mais rigorosa for a linguagem jurídica, menor será o espaço deixado à
polissemia, à ambiguidade sintática, à vagueza e às avaliações subjetivas e maiores
serão as garantias para a segurança jurídica. Em outras palavras, a tecnicidade e o
rigor da linguagem jurídica objetivam minimizar os problemas da comunicação
(...)(DIMOULIS, 2011, p.141).

Desta forma, para que possa haver a simplificação da linguagem jurídica, é


indispensável que as causas que dão origem ao “juridiquês” como ambiguidades, vagueza dos
textos jurídicos, os latinismos, estrangeirismos, erros gramaticais, arcaísmos entre outros,
deverão ser abolidos, a fim de alcançar uma linguagem jurídica mais clara, objetiva, com a
adoção de termos técnicos de forma moderada e de fácil compreensão, para sociedade como
um todo, garantindo também a segurança jurídica.

2 IMPORTÂNCIA DA SIMPLIFICAÇÃO DA LINGUAGEM JURÍDICA

O Direito tem como ferramenta fundamental para o seu exercício, a linguagem, de


modo que os operadores do direito não interagem apenas entre si. A linguagem jurídica
alcança não só aqueles que fazem uso dela constantemente nos tribunais, mas também, aqueles
que são os seus receptores, ou seja, a sociedade, como ocorre constantemente nas audiências
públicas.
Assim, pela linguagem jurídica ser uma linguagem pública, é imprescindível que deva
ser acessível a todos os públicos, uma vez que se encontra manifesta de todas as formas: em
audiências, diários oficiais, pareceres, sentenças, leis. Neste sentido, é preciso que haja uma
democratização do discurso jurídico através da simplificação da linguagem jurídica.
“Reconhecer a necessidade de simplificação da linguagem jurídica é o primeiro passo para a
real democratização e pluralização da Justiça” afirmou a juíza OrianaPiske do 4º Juizado
Especial Cível de Brasília.
Simplificar a linguagem jurídica significa traduzir de modo mais compreensível
palavras que são irreconhecíveis no mundo jurídico, buscando um modo mais fácil de tornar
a linguagem mais acessível, transparente e objetiva, afim de alcançar a efetiva comunicação
entre o emissor e o receptor. A simplificação da linguagem jurídica surge, portanto, para tornar
o que antes era incompreensível, obscuro e ininteligível, numa linguagem compreensível com
termos mais simples, sem que seja necessário perder a precisão técnica, objetivando assim, a
aproximação de quem faz justiça a quem a ela recorre.
Desta forma é perceptível a relevância que a simplificação da linguagem jurídica
apresenta para o mundo jurídico. Por meio da simplificação da linguagem é que se pode
alcançar o acesso à justiça, auxilia também na desmitificação do juridiquês, contribui para o
entendimento da linguagem jurídica e na desburocratização da linguagem jurídica, sendo
fundamental para o exercício da cidadania. Conforme Pereira “Ademais, a compreensão de
determinados termos jurídicos e de seu contexto é que garantem o exercício da cidadania”.
(2003 apud MOZDZENSKI, 2001, p. 135).
“Portanto, a simplificação da linguagem jurídica passa a ser um instrumento
fundamental (...) que oportuniza o acesso à Justiça e contribui, efetivamente, para a
compreensão do funcionamento e da atuação do Poder Judiciário como um todo”. Sendo
assim, a simplificação da linguagem jurídica torna ainda efetiva a compreensão e a
comunicação, abolindo o monopólio da linguagem jurídica criada e contribui também para o
funcionamento do Poder Judiciário.

3 “JURIDIQUÊS” COMO UM IMPASSE AO ACESSO À JUSTIÇA

Diante de todas as causas existentes que dão surgimento aos vícios de linguagem, é
perceptível a importância da simplificação da linguagem jurídica. Além daqueles elementos,
outros agravantes comprometem a linguagem. A elitização da linguagem jurídica e o uso
tradicional de expressões jurídicas, cultuando expressões tradicionais no âmbito jurisdicional,
causam um certo distanciamento entre aquele que profere o diálogo para aquele que escuta,
comprometendo a comunicação entre as duas partes e monopolizando a linguagem jurídica.
Afirma assim, Vito Giannotti:

O resultado inconsciente de quem continua falando esta linguagem é não comunicar


com quem está fora do seu círculo. É dialogar do lado de dentro da muralha da corte.
Para os homens da corte. É ficar entre os nobres, ser aceito pelos nobres, por quem
fala a sua linguagem (2004, p.115).

Esse distanciamento tem gerado barreiras dentro da linguagem jurídica. Este mesmo
assunto, tem sido abordado pelo autor Vito Gianotti em sua obra Muralhas da Linguagem,
onde o ilustre autor relaciona as desigualdades sociais como fator substancial das dificuldades
encontradas dentro da linguagem, havendo uma divisão entre aqueles que fazem parte do
grupo da Casa Grande e outro que integra o grupo da Senzala. “Há uma língua falada e
entendida pelos da Casa Grande. Os da Senzala não a entendem. E há outra falada pelos que
têm quinhentos anos de Senzala nas costas. São dois mundos incomunicáveis (...)”
(GIANNOTTI, 2004, p. 16).
Partindo deste pressuposto, o autor ainda menciona elementos de modo a considerar
como barreiras que dificultam o entendimento da linguagem e que consequentemente se
transformam em grandes muralhas da linguagem que são difíceis de serem vencidas. Dentre
elas, está a barreira da escolaridade. Devido as desigualdades sociais, nem todos tem acesso a
um estudo de qualidade, resultando numa escolaridade deficiente. O analfabetismo, como
também, a evasão escolar são fatores que contribuem para a precariedade do quadro
educacional do Brasil, assim como bem alude o autor Vito Giannotti:

Há várias barreiras que dificultam a compreensão de um discurso ou de um texto. A


maior delas, aquela de Itaipu, é a da escolaridade insuficiente, deficiente ou falha.
A pobreza, o abandono, o descaso, o desinteresse pela educação que é dada para os
filhos da Senzala impedem uns 80% da população de compreender o significado das
palavras (...) (2004, p.98).

Em contrapartida, há também, aqueles que tiveram condições e acesso a alta


escolaridade de modo a ter oportunidade de estudar por anos, são aqueles que fazem parte do
grupo da Casa Grande. Neste caso, o problema em destaque é o chamado “intelectualês”,
utilizado por aqueles que cultuam um linguajar elaborado, só compreendido por aqueles que
pertencem ao mesmo grupo, portanto, sendo assim considerado uma barreira que exclui os
demais que se encontram no grupo da Senzala. “No intelectualês, a exclusão é ativa. Quem
usa, a menos que esteja falando com seus pares, exclui milhões de outros que não pertencem
ao seleto grupo de quem sabe, de quem fala, ou de quem lê uma linguagem de poucos” (VITO
GIANNOTTI, 2004, pag. 98).
Com base neste fundamento, entende-se que a incompreensão causada em decorrência
do uso exacerbado de expressões jurídicas desatualizadas, constituem um impasse ao acesso
à justiça, uma vez que, é uma garantia de todos previsto constitucionalmente e à medida que
seu exercício não é efetivo, isso pode gerar violação à igualdade, exclusão dos menos
favorecidos, bem como, causar prejuízos a democratização e ao exercício de cidadania. Entre
os diversos obstáculos ao movimento do acesso à justiça, existem três ondas resultantes de
fatores que dificultam o exercício da justiça, entre as três ondas, a primeira está intimamente
ligada às dificuldades envolvendo a pobreza e assistência jurídica as pessoas menos
favorecidas, caracterizada como a porta de entrada do acesso ao judiciário. De acordo com
Maria Tereza Aina Sadek:

(...) a primeira onda torna visíveis os problemas e as dificuldades decorrentes da


pobreza. (...) Os autores apontam ainda, dentre as barreiras para o real acesso à
justiça, o linguajar hermético por parte dos operadores do direito, procedimentos
complicados, o excesso de formalismo, e os ambientes que provocam intimidação,
como a suntuosidade dos tribunais ( 2014, p. 58).

Outro fator decorrente da primeira onda de dificuldade do acesso à justiça, é o quadro


de desigualdades cumulativas, no qual abrange as desigualdades de renda, deficiência de
políticas públicas, atingindo ainda outros campos, como os baixos níveis de escolaridade,
saúde e precariedade dos serviços públicos. Todos estes fatores comprovam o juridiquês como
um verdadeiro impasse ao acesso do Poder Judiciário. Como bem alude Maria Tereza Aina
Sadek:

A desigualdade de renda combinada com graves deficiências nos resultados de


políticas públicas visando à garantia de direitos sociais gera uma estrutura social
baseada em desigualdades cumulativas. Isto é, um sistema de exclusões alimentado
por limitações na rede de proteção social e pela precariedade dos serviços públicos.
Assim, as assimetrias de renda se reproduzem e impulsionam as diferenças nos graus
de escolaridade, no acesso e qualidade de moradia e na saúde, enfim, em padrões de
bem-estar social. (...)A escolaridade desempenha um papel fundamental, tanto como
fator que opera no sentido da diminuição das desigualdades sociais, quanto como
motor para o conhecimento de direitos e como pleiteá-lostribunais(2014, p. 58-59).

Assim, é perceptível que entre os elementos já mencionados, a baixa escolaridade, as


desigualdades de renda, a precariedade na educação e em políticas públicas, bem como a falta
de informação, combinados com a aplicação tradicional de uma linguagem arcaica dentro da
esfera do direito, contribuem para que as pessoas que não tem conhecimento na área judicial,
não tenham o mínimo de entendimento sobre a linguagem jurídica utilizada, criando um
distanciamento e inacessibilidade à justiça, como também, o desconhecimento dos direitos
básicos que em teoria, são garantidos a todos.
Para que seja possível compreender a veracidade destas informações, foi realizada uma
pesquisa de campo no Instituto Federal de Educação, Ciências e Tecnologia (IFPE). O
questionário foi aplicado levando em consideração quatro diferentes categorias escolares,
oensino fundamental, ensino médio, ensino superior e pós-graduados, dentre eles, alunos,
funcionários e professores, afim de identificar a necessidade da simplificação da linguagem
jurídica, como também, as dificuldades enfrentadas pelas pessoas que tiveram contato com
este tipo de linguagem.
Dentre os resultados obtidos do total de 60 pessoas questionadas, 26 participantes que
tiveram contato com a linguagem jurídica, seja através de textos processuais, audiências ou
consultas jurídicas, afirmaram ter tido dificuldades na compreensão da linguagem jurídica
utilizada. Também foi apresentado um pequeno trecho jurídico, no qual indagava o
participante se era possível entender a mensagem do texto judicial e surpreendentemente 52
participantes afirmaram não entender o que estava expresso no corpo do texto. Ao final da
pesquisa foi questionado ao participante, se em sua opinião deveria haver uma simplificação
da linguagem jurídica, o resultado do questionamento foi que, todas as pessoas eram
favoráveis à simplificação da linguagem.
Analisando cuidadosamente os questionários da pesquisa, observamos ainda, um
comentário realizado por um dos participantes e que retrata a veracidade das hipóteses
levantadas, quanto a questão da necessidade da simplificação da linguagem jurídica:

Muitas palavras utilizadas, se trata de português arcaico ou de palavras com


etimologia estrangeira. Na maioria das vezes o vulgo não entende o linguajar
jurídico, o que deveria ser o contrário. Qualquer pessoa que lesse um parecer
jurídico, deveria compreender perfeitamente as palavras, ainda que estivessem
escritas no português formal.

Com fundamento em todos estes elementos, é notória a necessidade do Poder


Judiciário em adotar medidas, afim de disseminar o distanciamento causado pela
inacessibilidade da linguagem jurídica e que influência diretamente na vida daqueles que não
compreendem o juridiquês, em decorrência não só, das desigualdades sociais, mas também de
outros elementos que dificultam a acessibilidade à justiça, mediante a simplificação da
linguagem jurídica, visto que a prática do uso dos vícios de linguagem tendem a prejudicar a
democratização, gerando principalmente prejuízo a pluralização do acesso à justiça para
aqueles que procuram o Poder Judiciário, tornando-se um óbice ao exercício da cidadania.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Segundo o autor Vito Giannotti “Uma das condições essenciais, embora não suficiente
por si só, para se vincular uma mensagem é começar a oferecer um texto escrito de maneira
simples, direta. Um texto para ser lido e que (...) garanta, no mínimo, uma fácil compreensão”(
GIANNOTTI, 2004, p. 56). Em contrapartida, operadores do direito ainda insistem em
perpetuar uma linguagem jurídica arcaica, redundante e sobrecarregada de vagueza e
superficialidade.
Todos estes efeitos geram consequências para aqueles que de alguma forma dependem
do Poder Judiciário, em vista que a incompreensão decorrente do uso exacerbado do
“juridiquês” provoca um distanciamento, bem com uma obstacularização ao acesso à justiça.
Por este mesmo motivo, é essencial que a linguagem jurídica possa ser clara, eficaz e objetiva
quanto a mensagem que se pretende transmitir, o que não significa transformá-la em uma
linguagem coloquial e vulgar. Sendo possível a simplificação da linguagem para que ela seja
compreendida por todos aqueles que venham a ter contato com a esfera jurídica.
Deste modo, a simplificação da linguagem jurídica é uma medida prioritária para
garantia de uma maior compreensão da linguagem dentro da esfera jurídica e
consequentemente para maior democratização e acessibilidade à justiça, afim de contribuir
para o melhor funcionamento do Poder Judiciário. Diante o exposto, é fundamental que haja
a adoção de medidas para simplificação da linguagem para garantir uma maior efetivação do
exercício de cidadania por aqueles que buscam a via judiciária.

REFERÊNCIAS

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Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil. – 2. ed. – São Paulo: Atlas, 2016.

DIMOULIS, Dimitri. Manual de Introdução ao Estudo do Direito. 4. ed. rev. atual e ampl.
São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2011.

GIANNOTTI, Vito. Muralhas da Linguagem. 2. ed. Rio de Janeiro. Mauad, 2004.

GUIMARÃES, Luciana Helena Palermo de Almeida. A simplificação da linguagem jurídica


como instrumento fundamental de acesso à justiça. Publ. UEPG Hum. Ci. Soc. Apl. Ling.
Letras e Artes, v. 20, p. 173-184, 2012.

MOREIRA, NedrianeScaratti. Linguagem Jurídica: termos técnicos e juridiquês. Ed.


Unoesc & Ciência – ACSA, v. 1, n. 2, p. 139-146, 2010.

MORENO, Cláudio. Português para convencer: comunicação e persuasão em direito /


Cláudio Moreno, Túlio Martins. 2. ed. São Paulo: Ática, 2011.

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discursivos e multimodais. Recife. 2006. Disponível em:
<http://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/7843?show=full>. Acesso em: 09.ago.2017.

MOZDZENSKI, Leonardo Pinheiro. O juridiquês, em bom português. Revista do Tribunal


de Contas de Pernambuco, Recife, v. 14, p.132-136, 2003.

PRETI, Dino. Sociolinguística :Os níveis de fala: Um estudo sociolinguístico do diálogo na


literatura brasileira. 9. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003. Disponível
em: <https://www.livrebooks.com.br/livros/sociolinguistica-dino-preti-gray6vkj81ac/baixar-
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PETRI, Maria José Constantino. Manual de linguagem jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva.
2009. Disponível em: <https://www.passeidireto.com/arquivo/6758833/manual-de-
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VIANA, Joseval Martins. Manual de redação forense e prática jurídica. 6. ed. Ver e
atualizada. São Paulo. MÉTODO, 2010.

SADEK, Maria Tereza Aina. Acesso à justiça: um direito e seus obstáculos. Revista USP, n.
2014
O PERFIL DA ESCRAVIDÃO CONTEMPORÂNEA VIVENCIADA NO POLO
TÊXTIL DO AGRESTE DE PERNAMBUCO 46

Sarah Caroline de Andrade Firmino47


Aline Sousa Santos48
RESUMO

O cenário vivenciado na sociedade contemporânea pátria demonstra a presença de condições


análogas à de escravo, com enfoque no Polo Têxtil do Agreste de Pernambuco, à nível de
recorte metodológico. Posto isso, pode-se observar a afronta em face da Constituição Federal
de 1988, visto que viola amplamente as garantias fundamentais previstas, impondo ao
indivíduo uma condição degradante, cerceando a sua liberdade de locomoção e subjugando-o
a jornadas exaustivas sem o mínimo de respeito e dignidade. Diante dessa perspectiva,
pretende-se analisar o alcance de estratégias que buscam defender o comando maior pelo
controle do trabalho escravo. Como forma de melhor compreender o objeto desse trabalho, há
de se pontuar as diferenças entre a escravidão clássica e a escravidão contemporânea,
analisando a evolução legislativa, de como a previsão era no pretérito para entender o que
sucede no presente, bem como demonstrar o entendimento do Poder Judiciário sobre o tema.
É relevante mencionar que inicialmente, em sua versão clássica, o trabalho escravo só era
configurado diante da privação de liberdade, tendo em vista a condição do trabalhador como
verdadeira propriedade, vindo a ser abolida com a Lei Imperial n. º 3.353, conhecida como
Lei Áurea.

Palavras-chave: Escravidão Contemporânea. Polo Têxtil. Agreste de Pernambuco.

INTRODUÇÃO

O presente artigo propõe a análise do alcance da legislação como meio de controle do


trabalho escravo vivenciado no agreste de Pernambuco. Para tanto, verificar-se-á a que ponto
a legislação direcionada a questão do trabalho escravo está contribuindo com a população para
incentivar entre outros, a saúde e a segurança do funcionário e, assim, garantir o direito de
todos os cidadãos de possuir um trabalho digno dentro de um meio saudável, concretizando
sua qualidade de vida.
Será que em pleno século XXI, ainda permanece o trabalho escravo, em sua forma
análoga, no polo têxtil do agreste de Pernambuco? Nessa pergunta reside a problemática do
tema e com base nisso se objetiva, com essa pesquisa, entender a proteção oferecida pela
legislação brasileira aos trabalhadores nessas condições, a evolução entre os conceitos da
escravidão clássica e contemporânea e a análise do perfil do trabalho escravo no agreste
pernambucano e se os direitos dos trabalhadores se encontram salvaguardados pela atuação

46
GT 3 – Direito, Trabalho e Saúde
47
Graduanda em Direito. Universidade de Pernambuco. E-mail: sarahcaroline27@hotmail.com
48
Graduanda em Direito. Universidade de Pernambuco. E-mail: alinesousa2303@gmail.com
do Estado brasileiro.
O método utilizado para propiciar as bases lógicas da investigação é o dedutivo,
possibilitando que a observação de uma parcela suficiente de casos gerais permita a conclusão
de uma verdade particular. Tal método se baseia num raciocínio como explicado por Gil
(1999, p. 28):
O método dedutivo, de acordo com a acepção clássica, é o método que parte do geral
e, a seguir, desce ao particular. Parte de princípios reconhecidos como verdadeiros
e indiscutíveis e possibilita chegar a conclusões de maneira puramente formal, isto
é, em virtude unicamente de sua lógica.

A metodologia escolhida quanto aos meios de investigação é a bibliográfica, na qual


as fontes escolhidas para coleta de dados foram livros e revistas especializadas, artigos, teses,
dissertações, anais de eventos científicos, monografias, tanto da área de direito, quanto de
outros ramos científicos, fato este que denota o caráter interdisciplinar do estudo. A proposta
de seleção das leituras é seletiva e crítica. Desse modo, permitirá a ratificação ou invalidação
das hipóteses e proposições levantadas no artigo.
A metodologia escolhida quanto aos fins é explicativa que “tem como principal
objetivo tornar algo inteligível, explicar-lhe os motivos” (VERGARA, 2009, p. 42). A técnica
utilizada é indicada pelo método observacional em que se busca observar os fatos que já
ocorreram e os que estão em acontecimento, para em seguida analisar os resultados advindos
dessa investigação.
O tema foi escolhido como apresentação de resultado parcial do nosso projeto, de nome
“As Mãos que Costuram: o trabalho no polo têxtil do agreste pernambucano e a exploração
do trabalho escravo contemporâneo”, aprovado pelo edital de IC PFA de 2018 da
Universidade de Pernambuco (UPE). O assunto pesquisado aborda a importância do trabalho
digno, o qual é um tema relevante e de fundamental importância para a vida em sociedade.
Ao analisar o tema, se percebe um impacto em certas áreas de estudo da nossa graduação em
Direito, pois é englobado viés das áreas, constitucionalista, trabalhista e penalista.
A relevância do tema reside na garantia do direito de todos os cidadãos de possuir um
trabalho digno dentro de um meio saudável concretizando sua qualidade de vida, visto que a
questão do trabalho escravo contemporâneo retira a dignidade, saúde e a segurança do
funcionário. Assim, a escolha do conteúdo abordado reside na necessidade de aumentar a
pesquisa e os escritos dessa matéria. Dessa forma, esperamos trazer certo acréscimo no
conhecimento para as pesquisas que virão a ser feitas futuramente e auxiliar na constante
batalha de combate ao trabalho análogo à escravidão.
I. O TRABALHO ESCRAVO E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Segundo o explanado por Hans Kelsen (1998, p. 221), “[...] todo e qualquer conteúdo
pode ser Direito.” Baseando-se nesse preceito kelseniano, far-se-á uma análise do trabalho
escravo enquanto matéria de direito do trabalho, regulada por diversos dispositivos legais e
pela Constituição Federal de 1988.
A Constituição Federal de 1988 disciplina sobre determinados valores que, de modo
direto ou indireto, repudiam o trabalho escravo no país. Sendo assim, o presente tópico
destina-se à análise dos dispositivos fundamentais previstos pela Carta Magna que se aplicam
ao trabalho escravo e regulamentam a legislação pátria infraconstitucional.
A dignidade da pessoa humana vem lastreada através do art. 1º, inciso III, da CF/88.
Segundo o dispositivo, a República Federativa do Brasil tem a dignidade humana como um
dos seus fundamentos, sendo, portanto, a base de todo o ordenamento jurídico.
Tal princípio representa uma das maiores conquistas em prol da valorização da pessoa
humana, tendo ganhado notoriedade após as atrocidades ocorridas contra a humanidade
durante a II Guerra Mundial. Dessa forma, além de o Brasil inseri-lo em seu Texto Maior,
também é signatário de diversos tratados internacionais que buscam promover a dignidade da
pessoa humana.
Tratando-se de um conceito abrangente, a seguinte definição pode ser apresentada:

Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada


ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do
Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e
deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de
cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais
mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação
ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão
com os demais seres humanos." (SARLET, 2007, p. 62)

Dessa forma, o princípio constitucional em questão visa a proteção de todos, tratando-


se de tutelar a pessoa humana ao possibilitar-lhe uma existência digna, aniquilando os ataques
tão frequentes à sua dignidade (Pelegrini, 2004, p. 05). Como o trabalho escravo insere
indivíduo a condições degradantes, trabalhos forçados e jornadas exaustivas, atenta-se contra
a dignidade da pessoa humana. Por isso, a norma exprime uma repressão a qualquer inserção
de trabalhadores a condição análoga à de trabalho escravo.
Ademais, o preâmbulo e o art. 5º da CF/88, em seu caput, afirmam que a liberdade se
constitui como garantia aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país. O alcance da
dignidade pressupõe a garantia individual de liberdade ao ser humano, contrapondo-se ao
trabalho escravo pelo fato de este, muitas vezes, cercear o direito de ir e vir do empregado.
Além disso, o inciso III do artigo supracitado afirma que nenhum ser humano será submetido
a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. Já o inciso XLVII, alínea c, determina
que nem mesmo o Estado tem poder de forçar alguém a trabalhar, mesmo que em atividade
lícita. Objetiva, com isso, proibir o trabalho forçado como meio de pena.
Ainda no artigo 5°, o inciso X torna possível vislumbrar a existência de defesa da honra
do trabalhador, ao assegurar o dever de indenizar quando ocorrer o dano moral. Ou seja,
qualquer violação aos direitos da personalidade do indivíduo, decorrentes da relação laboral,
devem ser averiguados e retidos na forma de indenização referentes aos danos sofridos pela
vítima.
O art. 7º, por sua vez, garante aos trabalhadores condições mínimas para o exercício
de sua profissão, exigindo dignidade, respeito e possibilidade de ascensão intelectual e
pessoal. Através desse dispositivo, percebe-se que toda pessoa, ao exercer atividade laboral,
deve ser respeitada e integrada num ambiente propício, capaz de lhe possibilitar um
desenvolvimento tanto na esfera intelectual quanto pessoal, não ferindo, assim, sua dignidade
humana.
Faz-se imprescindível, ainda, destacar a Emenda Constitucional nº 81 de 2014 como
um importante passo para o combate do trabalho escravo no país. A EC incorporou uma nova
redação ao artigo 243 da CF/88, prevendo a expropriação de imóveis rurais ou urbanos em
que se verifique a prática de trabalho escravo, sem direito a indenização. Com isso, busca-se
definir com mais rigor a proibição do trabalho escravo no meio rural brasileiro, que é o que
maior promove a exploração do trabalhador em atividades voltadas à agropecuária ou extração
de matéria-prima.
Posto isso, pode-se observar a afronta que a exploração do trabalho escravo representa
em face da Constituição Federal de 1988, visto que viola amplamente o princípio da dignidade
da pessoa humana e os demais artigos apresentados ao impor ao indivíduo uma condição
degradante, cerceando a sua liberdade de locomoção e subjugando-o a jornadas exaustivas
sem o mínimo de respeito e dignidade.

II. DIFERENÇAS ENTRE A ESCRAVIDÃO CLÁSSICA E CONTEMPORÂNEA

Nesse tópico, se objetiva analisar a evolução legislativa na definição do trabalho


escravo, especificamente, diferenciando a escravidão clássica da contemporânea, analisando
os dados atuais sobre o assunto para entender como o judiciário tem decidido sobre o tema.
Para tanto, é relevante mencionar que inicialmente, em sua versão clássica, o trabalho
escravo só era configurado com a situação de trabalho com privação de liberdade. Nesses
casos, o trabalhador era considerado uma verdadeira propriedade. Tal situação só veio ser
abolida com a Lei Imperial n.º 3.353, sancionada em 13 de maio de 1888, conhecida como a
Lei Áurea. Foi considerado por Roberto da Matta que:

No nosso sistema, tão fortemente marcado pelo trabalho escravo, as relações entre
patrões e empregados ficaram definitivamente confundidas. Não era algo apenas
econômico, mas também uma relação moral onde não só um tirava o trabalho do
outro, mas era seu representante e dono perante a sociedade como um todo (1986,
p. 22).

O Brasil foi o último país independente do continente americano a abolir


completamente a escravatura, sugerindo uma passagem excepcionalmente conservadora para
o assalariamento e hoje, em 2018, já se passaram 130 anos desde a abolição. Ainda assim, o
país se apresenta com esses mesmos problemas, com grandes dificuldades na batalha contra
o trabalho escravo, só que dessa vez não se caracteriza apenas com a privação de liberdade,
sem ofertar soluções eficientes e oportunidades alternativas para as pessoas que se encontram
na condição de trabalhos subalternos em condições degradantes.
O Código Penal brasileiro tipifica a definição do trabalho escravo contemporâneo em
seu Art. 149, segundo o tal:

Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos


forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de
trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida
contraída com o empregador ou preposto:
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à
violência.

Ou seja, o CP apresenta uma visão bem mais ampla para o enquadramento do crime,
abordando tanto a restrição ao direito de ir e vir e o trabalho forçado, quanto os trabalhos em
condições degradantes e sem respeito ao número máximo de horas que podem ser trabalhadas
sem ocasionar exaustão física.
Assim, importa analisar como a jurisprudência brasileira tem lidado com o assunto,
para isso tomamos por base o artigo no prelo feito por Isabele Bandeira de Moraes D’Angelo
e Pablo R. de L. Falcão os quais realizaram uma análise dos julgados do STF em matéria de
Trabalho Análogo ao de Escravo no Brasil entre o período de 2010 até 2016. Nesse artigo,
intitulado “AS RAZÕES DAS DECISÕES JUDICIAIS: um estudo sobre as barreiras
ideológicas e culturais que impedem as condenações por crime de redução à condição análoga
à de escravo pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro”, os autores conseguiram chegar a
conclusão de que:

Dito isso, resta provado que em 50% (cinqüenta por cento) dos votos proferidos pelo
Supremo Tribunal Federal entre os anos de 2010 e 2016 (4 de 8 votos), na metade
deles, os Ministros julgaram pela não significação do significante “Trabalho
Análogo ao de Escravo” em razão de, ao lerem a expressão “escravo”, remeterem-
se à imagem típica da escravidão clássica. Assim, pelas amostras encontradas,
observou-se que as decisões judiciais se limitaram a aceitar a ocorrência de trabalho
escravo contemporâneo quando da restrição à liberdade de locomoção, em sentido
estrito. Este tem sido, pelo todo pesquisado, o único elemento fático considerado
pelos julgadores quando da aplicação do direito penal. (D’ANGELO; FALCÃO,
2018, no prelo).

Ou seja, resta provado que os juízes não vêm decidindo de acordo com a definição do
Código Penal, e sim ainda associando o trabalho escravo com a restrição de liberdade. O que
antigamente era aplicado com a privação de liberdade das pessoas da raça negra,
cotidianamente se mostra por meio de formas diversificadas, atingindo pessoas
principalmente de baixa escolaridade, mas independentemente de sexo, etnia ou religião.
Todavia, até mesmo a escravidão brasileira clássica não se caracterizava apenas com a
restrição de liberdade, segundo Agostinho Malheiro:

Mesmo nas cidades e povoados alguns permitem que os seus escravos trabalhem
como livres, dando-lhes, porém um certo jornal; o excesso é seu pecúlio: – e que até
vivam em casas que não as dos senhores, com mais liberdade. (MALHEIRO, 1866,
p. 55)

Isto é, mesmo naquela época, o regime escravocrata poderia ser reconhecido mesmo
quando a liberdade de ir e vir do subordinado era mantida.
Assim, fica claro que o não reconhecimento das novas características do trabalho
escravo leva a uma defasagem lógica entre a nova definição do conceito e o que vem sendo
aplicado pelos juízes. Isso gera um atraso na definição dos valores que caracterizam o trabalho
digno, insegurança jurídica, uma vez que o que se encontra na legislação não é reconhecido
por alguns juízes, e desamparo estatal, dado que as pessoas nessa situação não têm seus
direitos reconhecidos.

III. O TRABALHO ESCRAVO NO PÓLO TÊXTIL DO AGRESTE DE


PERNAMBUCO

Este tópico destina-se à análise do perfil do trabalho escravo no agreste pernambucano.


Dessa forma, buscar-se-á elucidar as questões referentes ao trabalho no polo têxtil, apontando-
o como potencial causa do trabalho análogo à escravidão na região em comento.
Segundo um estudo publicado pelo Estadão (2013), na última década, houve uma
expansão territorial do polo de confecções do agreste de Pernambuco, cujo motor se concentra
nas cidades de Toritama, Caruaru e Santa Cruz do Capibaribe, registrando um aumento de
oito mil novos empreendimentos ligados ao setor. Considerado o segundo maior polo do país,
perdendo apenas para o de São Paulo, o empreendimento oferece cerca de 100 mil empregos
e produz, em média, 900 milhões de peças por ano.
Contudo, de acordo com Edílson Tavares, integrante do Núcleo Gestor da Cadeia
Têxtil e de Confecções de Pernambuco, embora a maioria das empresas sejam formais, é
possível observar, de forma evidente, uma deficiência no âmbito de produção, que permite a
terceirização. Esta diminui as limitações à exploração do trabalhador e, assim, dá margem à
perpetuação do trabalho análogo à escravidão.
Em 2013, o Ministério Público do Trabalho flagrou confecções e lavanderias do polo
têxtil no agreste, mais especificamente na cidade de Santa Maria do Cambucá, em condições
irregulares, com fiação elétrica exposta e com funcionários dividindo pequenos espaços.
Algumas lavanderias foram interditadas e, numa delas, houve o resgate de um trabalhador
encontrado em condição análoga à de escravo (G1, 2013).
O Observatório Digital do Trabalho Escravo, lançado em 2017 pelo Ministério Público
do Trabalho (MPT) e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), contextualiza a
escravidão contemporânea no território brasileiro entre 2003 e 2017, com o intuito de
fortalecer a prevenção e a erradicação do trabalho análogo à escravidão.
Analisando a plataforma, observa-se que a oferta do trabalho escravo é desenhada com
base nos locais de naturalidade de trabalhadores egressos e relaciona-se ao grau de
vulnerabilidade de determinados segmentos da população. Dessa forma, a vulnerabilidade
socioeconômica facilita o aliciamento e a submissão dos indivíduos mais vulneráveis por
exploradores. A curva de oferta do trabalho escravo está condicionada à fatores como pobreza
e desigualdade socioeconômica.
A demanda de trabalho escravo, por sua vez, relaciona-se aos locais em que já houve
resgate de trabalhadores encontrados em condições análogas à escravidão. Constatou-se que
tais localidades estão situadas em territórios que apresentam um crescimento produtivo e
econômico recente, onde há ofertas de emprego com salários baixos e sem que haja
necessidade de qualificação profissional.
Em Caruaru, de acordo com o registro do Observatório, evidencia-se que não houve
nenhum resgate exercido durante este período, tendo apenas quatro egressos naturais, que
trabalhavam no setor da agropecuária. Apenas uma operação contra o trabalho escravo
contemporâneo foi realizada. Além disso, apenas quatro fiscalizações de trabalho infantil
ocorreram em 2014, sendo este o último ano com registro de fiscalização.
Já em Santa Cruz, registram-se apenas dois egressos naturais, também do setor
agropecuário, não tendo ocorrido nenhum resgate de trabalhadores em condições análogas.
Não houve nenhuma operação realizada contra o trabalho escravo e nenhuma fiscalização a
fim de verificar a ocorrência de trabalho infantil nesta localidade.
Por fim, na cidade de Toritama, não foram registrados naturais egressos, porém foram
resgatadas sete pessoas encontradas em situação análoga à de escravo. Uma operação foi
efetivada e, desde 2013, não foram constatadas fiscalizações quanto à existência do trabalho
infantil.
Importa ressaltar que tanto Toritama quanto Caruaru não possuem programas ou ações
municipais voltadas ao combate ao uso de trabalho forçado, de acordo com o registro do
Observatório, feito em 2011. Somente Santa Cruz do Capibaribe apresentou tal mecanismo
de prevenção e enfrentamento.
Através da análise feita, percebe-se que são mínimas as fiscalizações e estratégias
utilizadas para combater o trabalho escravo na região. Embora seja evidente e crescente a
ocorrência do fenômeno no polo têxtil do agreste pernambucano, nenhum dos trabalhadores
resgatados ou egressos pertenciam a tal segmento.
Além da ausência de estratégias municipais capazes de focar efetivamente no combate
à prática, o corte de verbas no Governo Temer fez a fiscalização despencar drasticamente. Em
2016, foram resgatadas 885 pessoas no Brasil em condição de trabalho análogo e, até setembro
de 2017, somente 167 indivíduos foram libertados (EL PAÍS, 2017). De 3,2 milhões de reais
previamente alocados, na Lei Orçamentária Anual, para as fiscalizações, o valor foi reduzido
para 1,6 milhões de reais, sendo que 1,4 milhões já haviam sido gastos até setembro e o
restante já estaria comprometido, segundo documento do Instituto de Estudos
Socioeconômicos (Inesc).
Com isso, o número de estabelecimentos fiscalizados diminui e, consequentemente,
não há resgate (JUS BRASIL, 2017). A mitigação da fiscalização contra a escravidão
contemporânea acaba facilitando a violação de incontáveis incisos previstos no art. 7º da
Constituição Federal de 1988, como é o caso da extrapolação da jornada de trabalho permitida.
Entende-se, assim, que as políticas de combate ao trabalho escravo contemporâneo são
falhas. O fenômeno no polo têxtil do agreste pernambucano é uma realidade e necessita de
uma fiscalização contínua e adequada, tendo em vista a enorme quantidade de trabalhadores
ali existentes. Os indicativos do Observatório Digital do Trabalho Escravo corroboram com
tal ideia à medida que denuncia o contexto de maior incidência de trabalho escravo. São
regiões onde há pessoas vulneráveis, desigualdade socioeconômica e oferta de emprego em
locais com crescimento produtivo recente em que não há exigência de qualificação do
empregado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho escravo contemporâneo engloba, além da privação de liberdade, o trabalho


forçado e a condição degradante. Nesta senda, pôde-se observar, através dessa pesquisa, que
a escravidão contemporânea encontra barreiras quanto ao reconhecimento de sua incidência
pelo fato de muitos juízes brasileiros ainda remeterem o fenômeno à sua forma análoga,
identificando-o somente como privação de liberdade.
No polo têxtil do agreste de Pernambuco, embora já tenham sido encontrados
trabalhadores em situação análoga à de escravo e a região estar enquadrada nas localidades de
característica ocorrência de trabalho escravo, de acordo com o extraído do Observatório
Digital do Trabalho Escravo, pode-se afirmar que praticamente não existem mecanismos ou
investigações capazes de salvaguardar os direitos dos trabalhadores. Estes ficam à mercê de
trabalho em ambientes que ferem a dignidade da pessoa humana nas mais diversas formas de
incidência da escravidão contemporânea.
Tal ausência de mecanismos ou fiscalizações ocorre tanto pela insuficiência de
estratégias governamentais ou municipais quanto pelo corte de verbas ocorrido no Governo
Temer, que diminuiu drasticamente as fiscalizações realizadas nos estabelecimentos de todo
o país.
Dessa forma, observa-se que a escravidão contemporânea viola os mais diversos
dispositivos constitucionais, sendo, portanto, uma afronta ao princípio da dignidade da pessoa
humana e à Carta Magna de 1988. Faz-se necessário combater o trabalho escravo a fim de
garantir os direitos fundamentais dos indivíduos. Para tanto, as fiscalizações são essenciais e
devem ser constantemente incentivadas e realizadas, inclusive no polo têxtil do agreste
pernambucano, que vem apresentando um aumento exponencial de produção e trabalhadores.

REFERÊNCIAS
ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas. NBR 16583: Informação e
documentação. Trabalhos Acadêmicos - Apresentação. Rio de Janeiro: ABNT, 2017.

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<https://jus.com.br/artigos/12944/analise-didatica-do-trabalho-escravo-no-brasil/2>. Acesso
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CHADE, Jamil. Escravidão atinge 40 milhões de pessoas no mundo, diz ONU. Disponível
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em: <https://www.conjur.com.br/2009-jan-
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D’ANGELO, I. B. M.; FALCÃO, P. R. L. As razões das decisões judiciais: um estudo sobre


as barreiras ideológicas e culturais que impedem as condenações por crime de redução
à condição análoga à de escravo pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro, XI GPTEC,
Belo Horizonte, 2018. No prelo.

DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? 1. Ed, Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
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preocupa. Disponível em:
<https://brasil.elpais.com/brasil/2017/12/30/politica/1514589772_157662.html>. Acesso em:
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em: <http://g1.globo.com/pernambuco/noticia/2013/03/em-pe-polo-textil-e-fiscalizado-para-
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GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 5. ed. São Paulo: Atlas, 1999.

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LACERDA, Angela. Agreste tem 2º maior polo têxtil do país. Disponível em:
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MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. 1866 A escravidão no Brasil: ensaio histórico,


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VELLOSO, Gabriel & FAVA, Marcos Neves. Trabalho escravo contemporâneo: o desafio
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SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na


Constituição Federal de 1988. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO: AS FORMAS DE OPRESSÃO E A
VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO MERCADO DE TRABALHO49

Bruna Ribeiro do Nascimento50


Julia Beatriz de Moura Chaves51
Marcelo Araújo Correia52

RESUMO

A presente pesquisa analisa o trabalho escravo contemporâneo e as formas de opressão e


violência de gênero no mercado de trabalho brasileiro. Tendo como objetivo geral analisar as
formas de opressão e violência de gênero como fator importante para a inserção das mulheres
no mercado de trabalho em condições análogas à escravidão. Os principais autores que
fundamentaram esta pesquisa foram: Palma (2015), Magalhães (2017), Costa (2017), Carmo
(2018). A metodologia se dá a partir de uma abordagem quali-quantitativa, sendo ainda
bibliográfica-explicativa, onde a análise de dados se dá pela análise de conteúdo. A
disparidade de gênero referente a remuneração salarial confere fator de suma importância para
a inserção das mulheres em empregos informais, sem garantias e com remuneração muito
baixa. Dessa forma, constatamos, com os argumentos obtidos na pesquisa que as causas e
circunstâncias em torno do atual contexto de desigualdade no mercado de trabalho e de
restrição de direitos demonstram, portanto, agravantes para a escravidão contemporânea.

Palavras-chave: Trabalho escravo contemporâneo. Gênero. Mercado de trabalho.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho apresenta um estudo sobre violência de gênero no mercado de


trabalho, refletindo acerca de como isso influencia na escravidão moderna. Teve-se como
problema de pesquisa: De que modo as formas de opressão e a violência de gênero no mercado
de trabalho contribuem para a escravidão contemporânea? A metodologia se dá a partir de
uma abordagem quali-quantitativa, sendo ainda bibliográfica-explicativa, onde a análise de
dados se dá pela análise de conteúdo.
Nosso objetivo geral foi o de: compreender como as formas de opressão e violência
de gênero no mercado de trabalho contribuem para o trabalho escravo contemporâneo no
Brasil. Como objetivos específicos: discutir sobre as desigualdades de gênero no mercado de
trabalho relacionando com a incidência das mulheres no trabalho análogo ao de escravo;
estudar sobre trabalho escravo contemporâneo e questões de gênero; e analisar as estatísticas
de gênero, escolaridade, faixa etária para fundamentar a pesquisa.

49
GT3 – Direito, Trabalho e Saúde
50
Graduanda em Direito – Universidade de Pernambuco – UPE. Email: nascibru.7@gmail.com
51
Graduanda em Direito – Universidade de Pernambuco – UPE. Email: juliachaves752@gmail.com
52
Graduando em Direito – Universidade de Pernambuco – UPE. Email: celoac94@gmail.com
Isoladamente, a questão de gênero, a falta de oportunidades no mercado de trabalho e
a escravidão contemporânea são temas de relevância e interesse, uní-los, através da proposta
do congresso se mostrou como algo inerente à atividade de pesquisa. Visto que no mercado
de trabalho há uma escassez de empregos e ainda se reproduz tanto a desigualdade salarial
quanto a de tratamento entre homens e mulheres, temos como escopo demonstrar que a falta
de oportunidade e de informação fomenta a escravidão contemporânea.
Almejamos, a partir dos dados coletados, expor que o combate à escravidão
contemporânea precisa considerar as especificidades de cada vertente, como o gênero. Por
muitas vezes, vai ser a característica que definirá o modo de utilização abusivo da força de
trabalho. Além disso, é de suma relevância identificar que os dados são escassos e que a
pesquisa nesse âmbito deve ser contínua para que o combate seja mais efetivo.
O cerne social é o de revelar a verdadeira situação dos trabalhadores em condições
análogas a de escravo, em que os mesmos não têm ciência de que se encontram nesse contexto.
Ademais, considerando que o senso comum é de a figura do escravo está relacionado a cor da
pele e ao cerceamento da liberdade, o nosso foco é quebrar esse paradigma de invisibilidade.
No Brasil, apesar da abolição da escravidão ter ocorrido desde 1888, não é possível
afirmar que essas práticas foram extintas na sociedade contemporânea. Diante disso, o
fenômeno da exploração do trabalho humano se modificou e, atualmente, está mascarado
através do cerceamento de direitos e da dignidade.
Ao longo dos anos, inúmeros direitos trabalhistas foram conquistados pelos
trabalhadores, firmando-se como meios de proteção do exercício ao trabalho digno. Nesse
contexto, estão inseridos os direitos e garantias fundamentais substancialmente protegidos
pela Constituição Federal, tal como o princípio da dignidade da pessoa humana. Ainda
existem acordos e convenções internacionais fixados pelas nações, com intuito de determinar
o exercício ao trabalho digno. Dessa maneira, temos como propósito o aprofundamento acerca
das constantes violações dos direitos trabalhistas que ocorrem com o fenômeno da escravidão
contemporânea.

DESENVOLVIMENTO

O que é trabalho escravo?

A palavra “trabalho”, do ponto de vista histórico e etimológico, decorre de algo


desagradável: dor, castigo, sofrimento, tortura. O termo “trabalho” tem origem no latim –
tripalium formado pela junção dos elementos tri, que significa “três”, e palum, que quer dizer
“madeira”, espécie de instrumento de tortura que pesava sobre os animais. Desse modo,
originalmente, "trabalhar" significa “ser torturado”.
A partir do latim, o termo passou para o francês travailler, que significa “sentir dor”
ou “sofrer”. Com o passar do tempo, o sentido da palavra passou a significar “fazer uma
atividade exaustiva” ou “fazer uma atividade difícil, dura”. Só no século XIV começou a ter
o sentido genérico que hoje lhe atribuímos, qual seja, o de aplicação das forças e faculdades,
energia física ou intelectual empregadas pelo homem para alcançar um determinado fim
produtivo, sendo uma atividade própria dele.
Para Lívia Miraglia, há um processo de desumanização do indivíduo, na qual ele é
desprovido, na prática, de direitos que lhe conferiram a necessária dignidade. Ele, em tese,
tem status jurídico de cidadão, é sujeito de direitos e obrigações e deveria estar sendo
protegido. É aquele que se realiza mediante a redução do trabalhador a simples objeto de lucro
do empregador.

“Considera-se trabalho realizado em condição análoga à de escravo a que resulte


das seguintes situações, quer em conjunto, quer isoladamente: a submissão de
trabalhador a trabalhos forçados; a submissão de trabalhador a jornada exaustiva; a
sujeição de trabalhador a condições degradantes de trabalho; a restrição da
locomoção do trabalhador, seja em razão de dívida contraída, seja por meio do
cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, ou por
qualquer outro meio com o fim de retê-lo no local de trabalho; a vigilância ostensiva
no local de trabalho por parte do empregador ou seu preposto, com o fim de retê-lo
no local de trabalho; a posse de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, por
parte do empregador ou seu preposto, com o fim de retê-lo no local de trabalho.”
(MINISTÉRIO DO TRABALHO, 2015)53

A posição tradicionalista dos magistrados sobre o conceito de escravidão

Ao longo dos anos, a escravidão contemporânea foi revelada em todos os Estados


brasileiros, nas carvoarias, na agricultura, na pecuária e na mineração. Nos centros urbanos,
recentemente foram flagrados casos na construção civil e nas confecções. Tanto no meio rural,
quanto no urbano, as histórias se repetem. Os trabalhadores são submetidos a condições
humilhantes, degradantes e exaustivas de trabalho. Como elementos comuns, os trabalhadores
são constantemente ofendidos em sua dignidade, coagidos, ficam sem receber os seus
pagamentos, endividados e impedidos até moralmente considerando as dívidas de deixarem o
emprego.

53
Disponível em http://trabalho.gov.br/index.php/fiscalizacao-combate-trabalho-escravo
Em comparação ao número de vítimas resgatadas no país, existem poucas ações
judiciais por crimes de trabalho forçado. As multas, por serem baixas, não funcionam como
instrumentos de dissuasão. Foi a partir de 2003, com as reformulações do artigo 149 do CPB,
que o Governo Brasileiro começou a adotar medidas severas para combater o trabalho forçado
e a impunidade no Brasil.
Desde 1997, cerca de 2.500 empresários foram flagrados cometendo esse crime. No
entanto, até 2016, nenhum deles cumpriu pena até o fim. Hoje, no Brasil, ninguém está preso
por submeter empregados a um regime análogo à escravidão. Os processos, muitas vezes, são
arquivados ou prescrevem.

“Por morosidade ou má vontade da Polícia Federal, inquéritos demoram anos antes


de serem concluídos. [...] Multas não são pagas, nem provavelmente cobradas. O
valor das multas é irrisório [...]”, enumera a Comissão Pastoral da Terra. A
impunidade é um incentivo para que criminosos sigam submetendo trabalhadores a
condições desumanas de trabalho. (NEXO JORNAL LTDA, 2016)54

No levantamento feito por Mariana Armond Dias Paes, mestre em Direito pela
Universidade de São Paulo (USP), em sua dissertação, ela analisou 52 apelações criminais ao
Tribunal Regional da Primeira Região (TRF-1) relativas a decisões de primeira instância que
absolveram os réus acusados de explorar trabalho escravo. Dessas, em 54% dos casos os
desembargadores mantiveram a decisão de inocentar o empregador, alegando ausência de
provas ou discordância com o conceito de trabalho análogo à escravidão definido no artigo
149 do Código Penal.

“A visão de escravidão deles é a das correntes, a do escravo passivo, que já está


superada inclusive do ponto de vista histórico”, problematizou a pesquisadora.
“Nem no século 19 a escravidão no Brasil se caracterizava pela restrição total da
locomoção do trabalhador ou sua total submissão ao empregador. Então, por que
tentar definir trabalho escravo no século 21 a partir de uma visão estereotipada?”
(PAES, 2010)55

A jurisprudência a seguir serve para exemplificar como o assunto é tratado pelo


Judiciário:

AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1.236.225 - PA (2018/0009080-7)


RELATOR : MINISTRO REYNALDO SOARES DA FONSECA AGRAVANTE:
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL AGRAVADO : WILSON DE OLIVEIRA
AGRAVADO : JOSE CRISTINO DE SOUZA FILHO ADVOGADO:

54
Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/explicado/2016/04/12/O-trabalho-escravo-%C3%A9-uma-
realidade.-Mas-as-puni%C3%A7%C3%B5es-n%C3%A3o
55
Disponível em: https://pt.scribd.com/document/240453787/Mariana-Armond-Dias-Paes-O-Estatuto-Jur-Dico-
Dos-Escravos-Na-Civil-Stica-Brasileira-libre
DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO DECISÃO Agrava-se de decisão que não
admitiu recurso especial interposto com fundamento no artigo 105, inciso III, alínea
a, do permissivo constitucional, contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 1ª
Região, assim ementado: PENAL E PROCESSUAL PENAL. REDUÇÃO A
CONDIÇÃO ANÁLOGA A DE ESCRAVO (ART. 149 - CP). REDAÇÃO
ANTERIOR A LEI 10.803/2003. CERCEAMENTO DA LIBERDADE DO
TRABALHADOR. OMISSÃO DE DADOS DO SEGURADO NA CTPS.
COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL. DESPROVIMENTO DA
APELAÇÃO. 1. A sentença, analisando o material informativo dos autos, nele
incluído o relatório da equipe de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego,
relativo à Fazenda Santa Emestina, em Santa Maria das Barreirinhas/PA, julgou
improcedente a ação penal, absolvendo os acusados da prática do crime de "redução
a condição análoga à de escravo" (art. 149 - CP), por não ver configurado o crime,
e determinou a remessa dos autos à Justiça Estadual em relação ao crime do art. 297,
§4º do Código Penal. (STJ, 2018)

Trabalho escravo, gênero e a legislação brasileira

A Convenção nº. 29 (de 1930)56 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre


o trabalho forçado ou obrigatório, ratificada pelo Brasil em 1957, define trabalho forçado
como “todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual
ela não tiver se oferecido espontaneamente”. Além disso, a Convenção nº. 105 (de 1957) 57 -
sobre a Abolição do Trabalho Forçado estabelece que o trabalho forçado jamais pode ser
utilizado para fins de desenvolvimento econômico ou como instrumento de educação política,
de discriminação, disciplinamento através do trabalho ou como punição por participar de
greve. Ambas as convenções foram ratificadas pelo Brasil, respectivamente em 1957 e em
1965.
De acordo com essas convenções, o trabalho forçado não pode simplesmente ser
equiparado a baixos salários ou a más condições de trabalho, mas inclui também uma situação
de cerceamento da liberdade dos trabalhadores. Portanto, toda a forma de trabalho forçado é
trabalho degradante, mas a recíproca nem sempre é verdadeira. O que diferencia um conceito
do outro é a questão da restrição da liberdade.
No caso brasileiro, a restrição da liberdade dos trabalhadores decorre dos seguintes
fatores: apreensão de documentos, presença de guardas armados com comportamentos
ameaçadores, isolamento geográfico que impede a fuga e dívidas ilegalmente impostas. Por
esses motivos, os trabalhadores ficam impossibilitados de exercer seus direitos de ir e vir, de
sair de um emprego e ir para outro (MARTINS, 1999, p. 162).

56
Convenção nº 29 sobre o Trabalho Forçado ou Obrigatório.
57
Convenção nº 105 sobre a Abolição do Trabalho Forçado.
O artigo 149 do Código Penal Brasileiro (CPB), reformulado em 2003 pela lei 10.803,
além de utilizar a expressão “condição análoga à escravidão”, caracteriza o “trabalho escravo”
abrangendo as diferentes formas pelas quais uma pessoa pode ser, hoje, reduzida a essa
condição. Desse modo, o artigo 149 do CPB criminaliza práticas que levem os trabalhadores
a condições degradantes de trabalho, ou a jornadas exaustivas de trabalho, ou ao trabalho
forçado ou ao cerceamento da liberdade por dívida ou isolamento. A definição de trabalho
escravo contida na lei não requer a combinação desses fatores para caracterizar o crime, a
presença de um desses fatores isoladamente já se caracteriza o crime. O artigo encontra-se
hoje especificado nos seguintes termos:

Redução a condição análoga à de escravo


Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a
trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições
degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção
em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: (grifos nossos)
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à
violência.
§1o Nas mesmas penas incorre quem:
I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim
de retê-lo no local de trabalho;
II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos
ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
§2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:
I – contra criança ou adolescente;
II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.

A condição análoga a de escravo refere-se a trabalhos forçados e ao trabalho


degradante. Enfatiza, portanto, não só o cerceamento da liberdade do trabalhador, mas a
garantia de sua dignidade. As formas contemporâneas de escravidão ferem o princípio da
dignidade humana, motivo pelo qual o artigo 149 está descrito no capítulo VI do CPB, que
cuida de crimes contra a liberdade individual. Para que o delito seja configurado, não há
necessidade do trabalhador ser transferido de um lugar para outro, embora o isolamento da
vítima facilite a exploração e dificulte o resgate.
Com a reforma trabalhista e os projetos de terceirização, a configuração das más
condições de trabalho vem ficando mais difícil de tipificar e como dito acima menos empresas
são processadas e o trabalhador continua desprotegido. Outro elemento que deveria ser
tipificada na legislação é o de diferenciar as condições de trabalho entre homens e mulheres,
já que ao longo deste trabalho estamos tratando justamente de como essas diferenças
contribuem para que ocorram mais casos de trabalho escravo.

Reflexões acerca das desigualdades no mercado de trabalho


A participação da mulher no mercado de trabalho brasileiro tem sido marcada pela
desigualdade de gênero, tendo em vista problemas como a segmentação ocupacional, que
acabam por limitar as possibilidades de emprego. Os aspectos das transformações estruturais
da distribuição do trabalho no Brasil proporcionaram uma divisão ocupacional do trabalho
entre os gêneros. Desse modo, segundo a OIT, as mulheres ocupam com maior frequência
empregos informais, precários e empregos domésticos com déficits em direitos trabalhistas.
Mediante o exposto, busca-se elucidar melhor a explicação:

Mulheres e homens possuem diferentes possibilidades de inserção no mercado de


trabalho em função das estruturas discriminatórias que podem estar presentes em
seus contextos sociais. Da mesma forma, possuem diferentes graus de
vulnerabilidade e vivenciam formas diferenciadas de exploração do trabalho.
(VASCONCELOS; BOLZON, 2008, p. 69)

Além disso, é imprescindível ressaltar as diferenças salariais em termos de gêneros,


pois as mulheres não recebem o mesmo reconhecimento que os homens. Nesse contexto, foi
realizada uma pesquisa pela Catho neste ano, classificando a desigualdade salarial por: nível
de escolaridade, cargos ocupados e área de atuação. No que se refere ao nível de escolaridade,
a pesquisa identifica que mulheres com fundamental incompleto ganham 21,22% a menos que
os homens com a mesma formação. Levando em consideração a média salarial em reais
significa que enquanto um homem recebe R$1.861,25, uma mulher recebe R$1.466,36.
Referente a área de atuação, o levantamento aduz que mulheres na área industrial recebem
30,41% a menos que os homens (CATHO, 2018)58.
É possível afirmar que as complexas dinâmicas nas quais se assentam as relações de
gênero na sociedade brasileira fornecem elementos para as diferentes modalidades de
exploração. Sendo assim, a condição de gênero exerce um papel significativo na distribuição
de trabalho, de forma que essa característica confere situações de desvantagens. No cenário
da atual crise econômica brasileira, as desvantagens são intensificadas e há uma maior
competição por postos de trabalho, dando margem para que essas mulheres se submetam a
empregos que restringem os direitos trabalhistas.
Ademais, o contexto de desemprego no país sinaliza tendências no âmbito do mercado
de trabalho que contribuem para a fragilização da observância e do respeito a direitos

58
Disponível em: https://g1.globo.com/economia/concursos-e-emprego/noticia/mulheres-ganham-menos-que-
os-homens-em-todos-os-cargos-e-areas-diz-pesquisa.ghtml
fundamentais das trabalhadoras. Diante disso, tal situação representa uma continuidade dos
padrões de exploração no trabalho ou, ainda, o surgimento de novas formas exploração.

O perfil dos escravizados no Brasil

A explanação do perfil das pessoas que se encontram em condições análogas às de


escravo se faz necessária para o entendimento de como elas entram nesse meio e não
conseguem sair. A situação econômica, o grau de escolaridade estão entre os principais
motivos pelos quais as pessoas se sujeitam a trabalhos forçados. Quando se fala em escravidão
a ideia ainda se remota tanto ao escravo negro quanto à época escravocrata, entretanto, uma
desconstrução precisa ser feita nos dias atuais.
Os perfis de egressos com naturalidade apurada e com residência declarada tendem a
ser similares. Há uma imensa maioria de homens (94,8%) entre os egressos, mais da metade
são negros, um em cada três é analfabeto, e outros 40,2% não concluíram o 5º ano, ou seja
70% dos trabalhadores egressos não concluíram o ensino fundamental, a demonstrar mais uma
vez que a vulnerabilidade para as piores formas de exploração do trabalho humano se
intensifica quanto menor é a instrução. (MPT, 2017) 59
O Observatório Digital do Trabalho do Brasil elaborou uma pesquisa entre os anos de
2003 a 2017 e formularam índices sobre raça, gênero e grau de instrução dos trabalhadores
em condições, entretanto, notou-se que:

“Os dados destacam uma invisibilidade do trabalho escravo feminino, tanto em


razão da falta de inspeções em ocupações tidas como femininas, no âmbito da
divisão sexual do trabalho - como profissionais do sexo e trabalhadoras domésticas
– quanto pela falta de um olhar específico sobre questões de gênero que perpassa
toda a política de combate à escravidão contemporânea no Brasil.” (SISACTE,
2017)

Entretanto, dados do livro “Global estimates of modern slavery: forced labour and
forced marriage”60 demonstram que o número de casos de trabalho escravo feminino no
mundo é superior ao masculino.
Gráfico 1:

59
Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---americas/---ro-lima/---ilo-
brasilia/documents/gen
ericdocument/wcms_555892.pdf
60
Disponível em:
https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/@dgreports/@dcomm/documents/publication/wcm
s_575479.pdf
Fonte: GENEVA, 2017
Outrossim, o trabalhador escravo é o produto da sociedade na sua ineficiência em lidar
com a desigualdade tanto na distribuição de renda, quanto na de terras no país, além de ser
fruto das disparidades entre os Estados que fornecem a mão-de-obra. Apesar de ser possível
atestar isso pelo histórico, torna-se um desafio individualizar quem são os “escravos”, pois a
lógica da acumulação capitalista é indissociável da idéia do mais fraco e do mais forte e a falta
de estatísticas atualizadas agrava os problemas na identificação de perfis específicos da
população que carecem de uma maior proteção por estarem mais vulneráveis.

A situação de subnotificação dos trabalhadores, baixa escolaridade e desemprego

É notório que quanto maior o grau de instrução da população, mais ela tem noção dos
seus direitos, de como exercê-los e de como requerer que sejam respeitados. Dentre os
inúmeros problemas que a falta de uma educação adequada pode gerar na sociedade, há o da
não constatação por parte do trabalhador do seu próprio enquadramento em uma condição
análoga a de um escravo. Somado ao problema da escolaridade, temos o do desemprego que,
segundo o IBGE61, no primeiro semestre de 2018, atingiu mais de 13 milhões de pessoas no
Brasil.
O artigo 149 do Código Penal Brasileiro afirma, em seu caput, que para incorrer em
uma condição análoga à de escravo, basta que um indivíduo seja submetido a trabalhos
forçados, a uma jornada exaustiva, a condições degradantes de trabalho ou que sua locomoção
seja, por qualquer meio, restrita com base em dívida contraída com empregador ou preposto,
não sendo necessário que tais situações coexistam. Portanto, em tese, bastaria o simples
conhecimento da existência de tal dispositivo legal para que a ação dos que buscam se

61
Disponível em: https://www.ibge.gov.br/
aproveitar da forma contemporânea de trabalho escravo fosse mitigada. Porém, não basta a
análise exclusiva, mesmo que de grande relevância, do fator educação, pois, sem trabalho, a
população acaba se sujeitando mais facilmente ao que lhe for apresentado como alternativa à
miséria.
De acordo com o Observatório Digital do Trabalho Escravo62, durante o período de
2003 (ano de lançamento do I Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo) a
novembro de 2017 (quando houve a última atualização do sistema do Observatório) os
registros feitos em relação ao grau de instrução dos trabalhadores resgatados revelam que,
dentre eles, a porcentagem de pessoas que completaram o ensino fundamental (4,26%) é cerca
de vinte vezes menor do que a soma dos que não completaram (87,56%). Em síntese, os dados
atestam que quanto maior é o grau de instrução, menor é a incidência das pessoas nas
condições análogas à escravidão.
Seguindo a trilha que o déficit na educação indica, e ainda em conformidade com o
Observatório, mais de 90% dos trabalhadores resgatados entre 2013 e 2017 são oriundos de
localidades onde o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) de 1991 era tido
como “muito baixo”, sendo alarmante o fato de muitos desses municípios continuarem a
apresentar índices baixos ou muito baixos de desenvolvimento. Faz-se necessária uma visão
que conjugue essa falta de qualidade de vida apontada pelo IDH-M e o altíssimo nível de
desemprego, para que se perceba que o seu resultado será, por vezes, o da reincidência dos
resgatados em ocupações análogas às de escravo.
Quanto à reincidência, cabe a utilização de um outro dado colhido pelo sistema: em
15 anos, 613 trabalhadores foram resgatados mais de uma vez. Trabalhadores se tornam livres
para buscar oportunidades de um trabalho decente mas continuam presos em uma realidade
sem oportunidades e, na urgência de garantir o seu sustento e de seus familiares, sujeitam-se,
novamente, à “escravidão”.
No que tange a questão de gênero, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA)63, a partir de dados coletados pelo IBGE referentes ao período do primeiro
trimestre de 2018, temos que o desemprego entre as mulheres foi de 15%, enquanto que o dos
homens foi de 11,6%. Apesar de não ser possível afirmar que todos sofrerão os prejuízos da
inserção no mercado do trabalho forçado, a probabilidade é alta dessas pessoas se submeterem
à jornadas empregatícias exaustivas, à condições laborais insalubres e outras situações que

62
Disponível em: https://observatorioescravo.mpt.mp.br/
63
Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/
diminuam sua dignidade como pessoa humana. Ademais, uma estimativa da Alliance 8.764
quanto ao trabalho escravo moderno em escala global aponta que mulheres e meninas
correspondem a 99% das vítimas de trabalho forçado na indústria do comércio sexual e 58%
em outras áreas. Já os homens, principalmente os de baixa escolaridade e oriundos de
comunidades onde o IDH-M é baixo, são mais comumente encontrados em situação de
endividamentos gerados por seus “superiores”, que os condicionam ao trabalho forçado e
exaustivo sob o argumento de que deverão arcar com os custos que geraram.
Em suma, o que todos os dados apresentados mostram é que, para mudança do
panorama atual, são necessários esforços nos setores do ensino, da promoção de oportunidades
dignas de trabalho e do combate sistêmico e estrutural às práticas escravistas modernas,
considerando suas peculiaridades e especificidades, incluindo as de gênero.

While a focus on female victims should not come at the expense of male victims,
who must also be supported and empowered, an understanding of the gender
differences in victimisation can shed light on where prevention and victim
identification efforts should start. (LARSEN, 2018, p. 22).65

As formas de aliciamento

Diversos são os meios pelos quais o trabalhador pode acabar se inserindo em trabalhos
cujas condições são tidas como análogas às de escravo, seja pela precariedade do ambiente
laboral, pela inexistência de remuneração ou pelo cerceamento do seu direito de ir e vir. Cabe,
então, uma análise da primeira instância do processo de escravidão moderno, o aliciamento.
O fator que merece destaque no estudo do tópico é o da vulnerabilidade, a qual possui
inúmeras definições de acordo com a área do conhecimento posto em voga. Porém, apesar de
toda uma pluralidade conceitual, o melhor entendimento da possibilidade de um grupo ou
outro ingressar mais facilmente no mundo do trabalho escravo contemporâneo se dá sob a luz
do conceito de vulnerabilidade social, que para Palma e Mattos (2001, p. 9), seria “todo e
qualquer processo de exclusão, discriminação ou enfraquecimento de grupos sociais”. O
importante é perceber a integralidade dos sujeitos em situação de vulnerabilidade, que traz a
constatação de que tais sujeitos possuem demandas e necessidades específicas por se

64
Alliance 8.7 é uma parceria global cujo objetivo é erradicar o trabalho forçado, a escravidão contemporânea e
o tráfico humano, além de desenvolver métodos para eliminar formas de exploração infantil.
65
Tradução: “Embora o foco nas vítimas femininas não deva vir às custas das vítimas masculinas, que também
devem receber suporte e empoderamento, a compreensão das diferenças de gênero na vitimização pode lançar
uma luz onde a prevenção e o esforço na identificação de vítimas deveriam começar”.
encontrarem em contextos de desigualdades e injustiças sociais. (CARMO; GUIZARDI,
2017, p. 9).
Dentre todas as formas de aliciamento, daremos enfoque ao aliciamento por dívidas,
pois este pode ocorrer em diversos segmentos do trabalho análogo ao de escravo, desde a
exploração no campo até a que ocorre nas grandes cidades. Segundo o Ministério do Trabalho
em seu “Manual de Combate ao Trabalho em Condições Análogas às de Escravo” (2011),
esse tipo ocorre quando o trabalhador recebe, no momento em que firma o “contrato”, uma
antecipação em dinheiro sob o pretexto de ser uma ajuda para sua família ou para que utilize
tal quantia no pagamento de alimentação, transporte e hospedagem utilizados desde o local da
contratação até o local do trabalho.
Entretanto, o endividamento não necessariamente precisa ocorrer nesse momento
inicial, podendo ser induzido no decorrer da prestação laboral, quando o trabalhador acaba
sendo obrigado a comprar itens, propositalmente vendidos acima do preço do mercado, para
conseguir continuar exercendo sua função. Além deste subtipo, há ainda a possibilidade do
empregador escolher algum estabelecimento onde o trabalhador compre “fiado” e cuja
garantia seja seu salário, que é pago em valores reduzidos e nunca no tempo devido ou que
não é pago.
A partir dessa antecipação, venda superfaturada e/ou criação de crédito, o indivíduo
passa a ser vítima de uma rede que se fecha cada vez mais ao seu redor, quer seja pela pressão
moral que sente quanto à necessidade de pagar sua dívida, quer seja pela coação psicológica
ou física, que envolvem desde a realização de ameaças até danos efetivamente causados à sua
vida e a de seus familiares.

(...) é a própria condição de vida do trabalhador o elemento “coercitivo”


utilizado na arregimentação. A situação de miséria do obreiro é o que o leva
espontaneamente à aceitação das condições de trabalho propostas. Ela é estímulo
para o estabelecimento da relação e costuma ser a origem da escravidão por dívida
(BRASIL, 2011, p. 13).

Cada ramo de atividade ao qual o trabalhador acaba sendo submetido tem suas próprias
características e as formas como os seus aliciadores concentram seus esforços também podem
ser individualizadas. Entretanto, cada formato e estratégia que adquirem têm em comum o
fato de sempre visar atingir seus objetivos explorando a resiliência do âmago humano na busca
por uma vida melhor, fazendo-se presente, por mais uma vez, a relação entre baixa qualidade
de vida e a entrada na vida análoga à de escravo. Atesta-se que o modelo biológico tradicional
é reconhecido pela vulnerabilidade, mas que, ainda assim, há a busca por superá-lo.
(SÁNCHEZ; BERTOLOZZI, 2007, p. 3).

Saúde, dignidade humana e sua relação com a reforma trabalhista

Atualmente, o fator de cerceamento da liberdade nem sempre é visível, pois não se


utilizam mais correntes, todavia, as ameaças físicas e/ou psicológicas se fazem presentes.
Sento-Sé (2000) salienta que tal cerceamento da liberdade do trabalhador se dá não somente
pelo constrangimento físico, mas também moral, partindo da deformação do seu
consentimento ao celebrar o vínculo empregatício, à proibição de rescindir o contrato de
trabalho quando melhor lhe aprouver.
Segundo o MTE, SIT (2005), embora o escravo não seja mais uma propriedade de seu
dono, não se reconhece nele nenhum elemento de cidadania. Verificam-se extensas jornadas
de trabalho, salários irrisórios, discriminação e precariedades, tendo em vista que existem
poucas alternativas de um trabalho considerado “melhor”, os indivíduos aceitam essas
condições de subemprego que comprometem a sua saúde.

No Direito do Trabalho, como corolário dessa norma-princípio fundamental, as


relações jurídico-trabalhistas devem sempre preservar e resguardar a dignidade do
trabalhador – até porque o trabalho digno é, indiscutivelmente, um dos principais
instrumentos de solidificação da dignidade do ser humano. Todavia, não são raros,
infelizmente, no cotidiano, os vários exemplos de afronta a esse princípio geral
fundamental, como acontece nos casos de trabalho escravo. (PALMA; GEREMIAS,
2015)

Em meio a esse contexto, a reforma trabalhista implantada em 2017 dificultou ainda


mais o combate ao trabalho escravo ao legitimar inúmeras situações que antes eram
consideradas violações de direitos, como a possibilidade de aumento na jornada de trabalho e
de diminuição nas horas de descanso. O que não se pode esquecer é que uma das
características do trabalho escravo contemporâneo, como apontado pelo nosso Código Penal,
já citado anteriormente, é o da submissão do trabalhador à uma jornada exaustiva que acaba
por comprometer sua saúde.
Somando-se às novidades advindas da reforma trabalhista, que dificultam o combate,
está a ampliação da terceirização, que prejudica a precisa e correta responsabilização do
grande empregador. O que ocorre é que este empregador passa a recorrer à contratação de
uma empresa que, por sua vez, contratará o trabalhador ou até mesmo outra empresa que
controle o serviço de terceirizados, o que é chamado de “quarteirização” (MAGALHÃES,
2017). Como concluiu Costa (2017, p.11), “a terceirização, no caso brasileiro, mais que uma
estratégia de especialização, constituiu-se no principal mecanismo de redução dos custos do
trabalho por permitir que as empresas transferissem para terceiros as responsabilidades legais
da contratação”. Cria-se, então, uma cadeia de difícil rastreamento e identificação da culpa
por prejuízos que o trabalhador venha a sofrer, seja pelas condições do ambiente de trabalho
em si ou pela exploração exaustiva da força de trabalho, comprometendo a dignidade humana
em prol de uma maior rentabilidade.

Operações de fiscalização e erradicação do trabalho escravo no Brasil

Em 2003, o governo brasileiro introduziu o Plano Nacional para a Erradicação do


Trabalho Escravo, tendo como principal ponto as ações de fiscalização. Prevê também a
inclusão dos trabalhadores libertos em políticas públicas compensatórias e criação de
estruturas públicas e da sociedade civil de forma a criar um cenário que impeça a prática
criminosa da submissão de trabalhadores à condição análoga a de escravos.
Entre 1995 e 2017, foram realizadas apenas 4.529 inspeções de resgate dos
trabalhadores (COETE)66, aferindo-se que há uma grande dificuldade em garantir a
fiscalização das condições de trabalho e de realizar resgates mais efetivos, pois só foram
resgatados 49.321 trabalhadores nesse período.

As fiscalizações são desencadeadas pelo recebimento e triagem de denúncia,


desdobram-se na ação de fiscalização propriamente dita nos locais indicados e na
autuação. No caso de comprovada a prática de trabalho escravo, o Ministério
Público do Trabalho pedirá ação civil pública com pedido de indenização por dano
moral aos trabalhadores junto à Justiça Federal. O Ministério Público Federal, por
sua vez, proporá a competente ação penal junto à Justiça Federal. (ANTERO, 2008)

A tabela a seguir apresenta dados de suma relevância para comprovar a escassez de


operações por Unidade da Federação:

Tabela: Quadro das operações de fiscalização para erradicação do trabalho escravo67

66
COETE é o sistema de controle de erradicação do trabalho escravo. Foram utilizados os dados para o
Observatório.
67
A referida tabela demonstra a insuficiência na realização das operações de fiscalização e a necessidade de
intensificação do controle do trabalho escravo, tendo em vista que só ocorreram 115 operações, em todo o Brasil,
de janeiro 2016 ao início de 2017. Dessa forma, é possível afirmar que a principal falha do Plano Nacional
consiste na impunidade.
Fonte: Ministério do Trabalho e Emprego, Secretaria de Inspeção do Trabalho - Atualizado até 13/03/2017

Por conseguinte, a tabela exprime o número de trabalhadores em condições análogas


às de escravo totalizando apenas 885 indivíduos, todavia, a realidade enseja uma má precisão
na contabilização desses dados, pois as pesquisas nessa área são limitadas. Sendo assim, não
é possível afirmar com exatidão esses números, levando em consideração o desemprego no
país, as regiões de difícil acesso para a realização das fiscalizações e a falta de investimentos
do governo para sanar essa problemática.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Fica evidenciado que o direito à dignidade humana sofre mitigações ao percorrer um


caminho que passa pela ausência de fatores imprescindíveis ao seu devido exercício, como a
saúde e a educação, e pela exploração daqueles que se aproveitam seja da ausência de uma
devida assistência governamental, seja da regulamentação estatal da relação abusiva entre
empregado e empregador, configurada na ampliação da subcontratação pela reforma
trabalhista.
Em meio a tantas intempéries sociais, aliadas à carência de oportunidades, a
vulnerabilidade de determinados grupos se acentua, principalmente no que tange a condição
de subnotificação em que se encontram as pessoas em situações análogas à de escravo, onde
o conceito de trabalho abusivo é abafado pelo de necessidade.
Nota-se, portanto, que apesar de medidas continuarem sendo tomadas por diversos
grupos e, em parte, pelo governo, para inibir a recorrente utilização dessas pessoas no trabalho
escravo contemporâneo, há uma falta de especificidades nas medidas tomadas. Decorrente de
um vácuo informacional no que diz respeito aos grupos de risco, ocorre uma generalização no
teor das propostas apresentadas e, por conseguinte, não há efetividade, o que se comprova
pela reincidência de trabalhadores já “resgatados” nos postos de trabalho que denigrem sua
dignidade.
Desse modo, o vácuo informacional, fruto do uso falho dos esforços fiscalizatórios, é
muito prejudicial quando se fala em questões de gênero neste deturpado mercado de trabalho.
Perceber que homens e mulheres são utilizados de forma diferente pelos que se aproveitam de
sua força de trabalho é analisar detalhadamente onde devem se concentrar as diligências
abolicionistas contemporâneas. É no desenvolvimento de planos de atuação individualizados,
que considerem especificidades, que o combate será ganho.

REFERÊNCIAS

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Planalto, 1940.

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LIMITAÇÕES POSTAS AO DIREITO DE GREVE NO BRASIL NOS ÚLTIMOS
ANOS68

Manoel Paulino da Silva


Neto69
Ronald Dias Falabella
Neto70

RESUMO

Trata o referido trabalho sobre o direito de greve no Brasil, buscando trazer a importância da
sua garantia no ordenamento jurídico para o trabalhador, e como esta coletividade é capaz de
ganhar força diante do poder aquisitivo e econômico face ao patrão. Debruçaremos sobre a
questão histórica e das lutas travadas por movimentos sindicais face a melhores condições de
emprego e o aumento de seus vencimentos. Mas, como todo direito posto, há limitações no
direito de greve e se buscará trazer as limitações trazidas a esse instituto nos últimos anos no
país, visto que por omissão, o legislativo deixou de regulamentar várias vezes o tema, o que
acarretou em séries de provocações ao judiciário. Para isso a importância de tratar das visões
doutrinárias e jurisprudenciais, para que se compreenda o entendimento do próprio judiciário
sobre o tema. Irá versar também sobre o lockout no Brasil e suas principais implicações, como
proteção do trabalhador e possível direito do empregador, não permitido no território nacional.

Palavras-chave: Direito de Greve. Lockout. Trabalhador. Limitações.

INTRODUÇÃO

Em consonância ao que define Alexandre de Moraes (2018) sendo a greve o direito de


autodefesa do movimento operário, o direito de greve apresenta-se enquanto garantia
fundamental no texto constitucional. Como bem afirma o doutrinador, essa autodefesa vem
através de paralisação coletiva e voluntária das atividades de trabalho, com o objetivo de obter
direitos, benefícios, melhores condições de trabalho ou até mesmo para evitar a perda de
algum benefício.
Por se tratar de uma prática tão intrínseca nas relações de trabalho, há várias
fundamentações acerca da greve, pois até em vínculos escrativistas existem relatos de
paralisações coletivas. Observava-se ali a única forma de pressionar para se obter qualquer
tipo de benefício, onde não havia direito algum.
Ao longo do tempo a greve foi passando de um crime, a uma liberdade, até que se
firmasse como um direito. O que se viu foi que pessoas não são máquinas e que para conseguir

68
GT 03 – Direito, Trabalho e Saúde.
69
Discente do 3º período do curso de Direito. Universidade de Pernambuco - UPE. manoelp43@gmail.com.
70
Discente do 5º período do Curso de Direito. Universidade de Pernambuco - UPE. ronald98dado@gmail.com.
algo do lado mais forte (empregador), era preciso alguma atitude coletiva, e mais, deveria o
ato grevista ser positivado e garantido por lei.
Finca-se, então, o direito de greve, na dignidade da pessoa humana, princípio
amplamente defendido e basilar na fundação da república, pois o indivíduo busca melhores
condições de vida. Sendo assim, não é o direito de greve um fato social de menor importância,
mas um ato de grande repercussão econômica, jurídica e social.
Entretanto, há diversos entendimentos quando a abrangência desse instituto, vamos
buscar trabalhar tendo como base vários pontos de pensamentos e interpretações, para que
possa ocorrer assim comparações doutrinárias a respeito dessa garantia de valor constitucional
Dado o exposto, analisaremos aqui em matéria de jurisprudência, pois não tento sido
o direito à greve regulado por parte do legislativo, algumas vezes teve o judiciário que intervir
para preencher as respectivas lacunas, tendo como exemplo o tema da greve dos servidores
públicos que teve de ser tutelada em sede de mandado de injunção.
Consoante importância tem também no que se pese sobre lockout, pois mesmo que
tenha sido regulado expressamente na lei para proteger o trabalhador, no vínculo
empregatício, foi o entendimento sobre esse instituto ampliado a toda e qualquer forma de
paralisação que ensejasse alguma busca de aspirações por parte do empregador perante o
Estado.
Logo, visamos responder ao questionamento que dar impulso ao raciocínio traçado
neste trabalho: Quais as perspectivas legais e jurisprudenciais do direito de greve? Sendo parte
do percurso traçado o objetivo geral é analisar o panorama legal e jurisprudencial do direito
de greve. Assim como faz-se necessário traçar objetivos específicos, tais como: perceber a
importância do direito de greve nas relações de trabalho e compreender as limitações desse
direito fundamental nos últimos anos, em nosso país.
O método dedutivo parece o mais apropriado para a presente amostragem, a partir do
momento que partiremos de preceitos gerais para compreender o fenômeno específico.
Portanto, será uma pesquisa bibliográfica, tendo em vista as referências teóricas, além de
documental e jurisprudencial, que nos ajudará na apresentação dos fatos e por fim, é
necessário que se explicite o cunho explicativo da pesquisa, que tem o intuito de esclarecer o
assunto estudado.

DIREITO DE GREVE

Sobre a origem da greve, fala Alexandre de Moraes “A doutrina indica que o


surgimento da palavra greve deve-se a uma praça de Paris, denominada Place de Grève, na
qual os operários se reuniam quando paralisavam seus serviços com finalidades
reivindicatórias” (MORAES, 2018, p.313), a palavra significava, originalmente “terreno
plano composto de cascalho ou areia à margem do mar ou do rio", disso então se originou o
nome da praça, por ser às margens do rio Sena. Por outrora não ser garantido esse direito
formalmente, a paralisação cessava apenas quando algum dos lados vencia e se consumava
ou com os trabalhadores voltando à rotina com medo do desemprego, sem a consolidação das
reivindicações, ou com os empregadores cedendo total ou parcialmente as proposições.
Vê-se então, que o Direito de greve, mesmo que não positivado ou garantido, ou
sequer imaginável como um direito, já era implícito nas relações de trabalho. Se imaginarmos
épocas mais remotas da civilização, onde não havia previsões do que seriam direitos
trabalhistas ou até mesmo da dignidade da pessoa humana, a única maneira cabível da busca
de alguma melhoria das condições de trabalho seria através dessa paralisação coletiva, que em
tempos remotos não se encontravam na Praça de Paris.
Nas palavras de Cassio Mesquita Barros:

O direito de greve, sob o ponto de vista da teoria jurídica, se configura como direito
de imunidade do trabalhador face às consequências normais de não trabalhar. Seu
reconhecimento como direito implica uma permissão de não cumprimento de uma
obrigação (BARROS, p. 39).

Ou seja, é o Direito de Greve um fenômeno atípico, é um aval, uma autorização para


que o empregado faça algo não autorizado, que seria faltar às suas atividades normais.
Observa-se então a importância da coletividade da ação, já que se for uma ação de apenas um
agente ou de um pequeno grupo de trabalhadores, pode o empregado sofrer retaliações, pois
o que dará força e legitimidade ao movimento grevista é justamente a adesão de várias
pessoas, assim o “prejuízo” que sentirá o empregador será maior e há uma maior
previsibilidade de concessão das reivindicações.
A doutrina não é pacífica quanto a natureza do direito de greve, alguns vão dizer que
seria a greve um fenômeno social, enquanto para outro seria um fato jurídico, a questão é que,
é sim a greve um fato social de grande repercussão e progressão na sociedade, mas por todo
impacto já citado acima, é natural que se perceba também um fato jurídico, por toda
interferência que pode haver no campo do Direito. Deve-se compreender também que muitos
movimentos grevistas acabam em ensejos judiciais, onde o judiciário servirá como mediador
direto.
GREVE NO BRASIL

Antes de discorrer sobre as previsões e garantias do direito de greve no Brasil, faz-se


importante analisar a sua evolução histórica. Um dos grandes marcos para o início da
consolidação das leis trabalhistas foi a Lei nº 3.353 de 13-05-1888, a chamada Lei Áurea, que
extinguiu o modelo de escravidão no país. O direito de greve começa inicialmente no território
brasileiro como uma liberdade, posteriormente passa a ser um delito e mais à frente começa a
ser um direito.
A primeira menção à greve no ordenamento jurídico brasileiro vem em 1890, no
Código Penal, onde era considerada como ilícita, mas por força dos partidos operários, que
ganhavam força naquela época, o Marechal Deodoro da Fonseca após 2 meses, resolveu
revogar tal medida através de decreto, passando apenas a ser ilícito os atos praticados por meio
de violência ou constrangimento.
Mas na prática a medida não foi acatada completamente, como bem observa Evaristo
de Moraes Filho:

As autoridades policiais, administrativas e também as judiciárias continuaram a


negar esse direito, como se nenhuma modificação tivesse havido no Código recém-
promulgado. Qualquer espécie de greve, por mais pacífica e ordeira que fosse, era
proibida e violentamente reprimida, presos os grevistas, dispensados dos seus
empregos e alguns estrangeiros expulsos do país (MORAES, 1905).

Chama a atenção o fato de que Vargas, mesmo sendo um dos governantes mais
populares entre a classe trabalhadora e sendo conhecido por muitos como “o pai dos pobres”,
tendo regulamentado várias garantias a classe trabalhadora, não se preocupou com a greve,
tendo considerado na CF/37, um instrumento antissocial. Tenha-se em vista, porém, que à
época dos fatos não se havia um senso sobre a importância dessa previsibilidade legal. No
último parágrafo do art. 139 da Constituição de 1937 diz: “A greve e o lock-out são declarados
recursos antissociais nocivos ao trabalho e ao capital e incompatíveis com os superiores
interesses da produção nacional”.
Este entendimento que permeou no Brasil levou a manifestações internacionais, pois
não era cabível ou sequer compreensível que uma das garantias mais fundamentais do
trabalhador fosse considerada antissocial e até criminosa. Nessa ótica, encontramos no livro
Direito de Greve, de Norma Izabel Ribeiro Martins (1964), um texto do Serviço de informação
Legislativa de 1945 que relata:

Ainda agora, na conferência de Chapultepec, os delegados de nosso País ficaram


isolados, durante a discussão do item 10º da Carta Econômica das Américas, que
recomenda a aceitação, por todas as Repúblicas americanas, do direito de greve a
ser assegurado aos trabalhadores. (...) Depois, houve uma reunião privada dos
representantes brasileiros, da qual resultou o seguinte: a delegação de nosso país
aceitaria a proposta, com a ressalva de não se aplicar a mesma aos países cujas
Constituições proíbam as greves, o que constitui um disparate (MARTINS, 1964,
p.19).

Partiremos agora para a nossa Carta Magna vigente que diz em seu Artigo 9º: “É
assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de
exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender”.
O artigo 9º faz parte do Título II da Constituição, que trata “Dos Direitos e Garantias
Fundamentais”, ou seja, não é uma mera previsão legal, houve a preocupação do constituinte
originário de elencar e garantir o direito de greve, por entender que seja esse direito uma das
garantias mais fundamentais do trabalhador.

O art. 9º da Constituição Federal assegura o direito de greve, competindo aos


trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que
devam por meio dele defender e determina que a lei definirá os serviços ou
atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da
comunidade, inclusive responsabilizando os abusos cometidos (MORAES, 2018,
p.314).

Para Alexandre de Moraes, é o direito de greve autoaplicável e não deve ser restringido
ou diminuído por legislação infraconstitucional, ressaltando, porém que como se trata de
direito exercido pela coletividade, não é vedada a votação em assembleias ou sindicatos para
que fomente no movimento grevista.
O direito de greve, como é previsto na constituição, tem um sentido amplo e desta
forma deveria ser aplicado e eventuais limitações ou decisões que visem limitar essa garantia,
devem ser vistas com preocupação. Sob a ótica do sentido abrangente desse direito diz José
Afonso da Silva.

Vê-se, pois, que ela (a greve) não é um simples direito fundamental dos
trabalhadores, mas um direito fundamental de natureza instrumental e desse modo
se insere no conceito de garantia constitucional, porque funciona como meio posto
pela Constituição à disposição dos trabalhadores (...) para a concretização de seus
direitos e interesses (DA SILVA, 2008, p.305).

Consoante ao entendimento de Gomes Canotilho e Vital Moreira (1991) que entendem


que a caracterização constitucional do direito à greve como um dos ‘direitos e garantias’, faz
com esse direito não deva ser proibido, nem limitado; tendo eficácia imediata nas entidades
privadas e não podendo depender o exercício deste direito de qualquer lei para se concretizar.

GRANDES MOVIMENTOS GREVISTAS NO BRASIL


O Brasil é marcado por grandes movimentos grevistas dos trabalhadores, e em julho
de 1927 ocorreu no país a primeira greve geral, que começou na cidade de São Paulo e se
espalhou por todo o estado, naquela época, como já apreciado no presente trabalho, não se
tinha o direito da paralisação como uma forma de garantia fundamental e era reprimida a
reunião de trabalhadores, por qualquer motivo, pelos policiais. Há registro de violência e
morte tanto do lado dos policiais, como dos grevistas, foi a greve geral de 17 um grande marco
para os trabalhadores, sendo cessada após algum tempo com a concessão de algumas
reinvindicações por parte dos empregadores.
No ano de 1968, nos estados de São Paulo e Minas Gerais, foram registrados os
primeiros movimentos grevistas dos metalúrgicos, que reivindicavam melhores condições de
trabalho e aumento salarial, já que o aumento do salário não acompanhava o aumento do preço
dos alimentos.
Um dos lugares de maior representatividade desses movimentos é o ABC paulista, e
lá, no ano de 1979, Luiz Inácio Lula da Silva, presidente do sindicato dos metalúrgicos na
época, liderou um movimento que paralisou cerca de 80 mil trabalhadores. Lula afirmava que
não era apenas a busca por melhores condições ou salários, mas era principalmente a busca
por melhores condições na própria forma de fazer sindicados, ele não concordou com a
proposta aceita em assembleia e que deu fim à greve. Em 1980 foi fundado o Partido dos
Trabalhadores (PT), e pouco tempo depois teve início mais uma paralisação. Foi em 1º de
Abril de 1980 que foi retomado o movimento, tendo cerca de 140 mil trabalhadores
participantes, após a intervenção do governo por conta do impacto que a greve fulminou, Lula
foi preso durante 31 dias. Nove dias antes de ele ser solto, a greve teve fim, decidindo os
trabalhadores boicotar a produção até que as negociações recomeçassem.
Um ponto importante a respeito desses movimentos e na criação do Partido dos
Trabalhadores, é que o então presidente do sindicato, o Lula, resolveu ser candidato pelo PT,
após a redemocratização, a Presidente da República; tendo chegado no segundo turno e
perdido aquele pleito para Fernando Collor de Mello (PTB). Ele concorreu outras duas vezes,
em 1994 e 1998, tendo perdido as duas eleições para Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
No ano de 2002, após três tentativas, Lula foi eleito Presidente do Brasil, tendo a proposta de
governar não apenas para metalúrgicos e trabalhadores, mas sim para todos os brasileiros.
José Sarney adotou uma política de congelamento dos salários e era a grande a
variação dos preços de produtos básicos para a população durante o seu governo, com uma
inflação que chegava a mais de 1700%. Tudo isso culminou em uma paralisação em 12
capitais, gerando um prejuízo de cerca de 1,6 bilhões de dólares (valores da época), no
segundo dia de greve o então presidente aceitou rever e negocias a política do congelamento
dos salários e deu fim à greve.
Durante o governo Fernando Henrique ocorreu a que ficou conhecida como ‘a última
greve geral’ e teve baixa adesão, sendo praticada apenas por setores mais organizados dos
trabalhadores, como o sindicato dos metalúrgicos do ABC paulista.
Na atualidade, em 2018, ocorreu uma das greves de maior impacto da história do
país, a ‘greve dos caminhoneiros’, onde foram bloqueadas centenas de rodovias em todo o
Brasil. A paralisação durou 11 dias e abalou todos os setores da economia e deixou, segundo
o Ministério da Fazenda, um prejuízo de R$ 15,9 bilhões. O movimento não tinha uma
liderança clara, o que virou uma problemática na hora das negociações, pois não ficava claro
qual eram as reinvindicações dos caminhoneiros, após esse período o governo cedeu e mudou
a política de preços do diesel da Petrobras, além de outros pontos das reclamações.

JUDICIALIZAÇÃO DA GREVE

Importante frisar que apesar do conceito amplo do artigo nono da Carta Magna, em
seus parágrafos subsequentes ela vai trazer algumas limitações, mas limitações estas que não
vão caber nas relações privadas de trabalho, e sim no tocante aos serviços essenciais de Estado,
diz o parágrafo primeiro: “A lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre
o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade” (BRASIL, 2018, p. 11). Como
posteriormente nenhuma lei ordinária foi feita para dispor sobre a greve do serviço público,
decidiu o STF, em sede de mandado de injunção, determinar que fosse aplicada
analogicamente a lei de greves que cabia ao setor privado. Porém, não pode a lei que trate
desse direito, definir quais seriam as hipóteses das quais caberiam esse direito, pois a própria
Carta Política do País já definiu tais situações.
Com o nível Constitucional, a tutela desse direito fica muito ampla e caberiam variadas
formas de judicialização, porque como, em regra, todo ato de greve seria permitido e a lei
definidora de direitos essenciais não foi criada, sempre que um grupo de trabalhares tem a
tutela desse direito fundamental colocado à prova, o judiciário é provocado e mesmo que não
subsista uma norma, precisa ele tomar uma decisão.
Um exemplo dessa manifestação do judiciário, foi a votação da ARE654432, que em
sede de repercussão geral, tratou sobre o direito de greve das forças de segurança do Estado,
para que se note a dificuldade do entendimento do valor imperativo do instituto, podemos
observar o que explanaram nos votos alguns ministros. O relator do caso, ministro Edson
Fachin, que teve seu voto vencido por 7 votos a 3, ponderou que

Em meu modo de ver, a solução para o presente caso pode e deve ser diversa.
Embora a restrição do direito de greve a policiais civis possa ser medida necessária
adequada à proteção do devido interesse público, na garantia da segurança pública,
a proibição completa do exercício do direito de greve acaba por inviabilizar o gozo
de um direito fundamental (FACHIN, 2017).

Nota-se a preocupação do Ministro Relator com a garantia e imediata aplicabilidade


do direito de greve, pois se tratando de um direito positivo, o Estado apenas não deve interferir,
como tem a obrigação que se garanta a pratica pacifica do direito.
No voto divergente ao de Fachin e no caso, o que prevaleceu como
entendimento do STF, o Ministro Alexandre de Moraes afirmou que “(...) a carreira policial é
o braço armado do Estado, responsável pela garantia da segurança interna, ordem pública e
paz social. E o Estado não faz greve. O Estado em greve é anárquico. A Constituição não
permite” (MORAES, 2017, p.14).
Ou seja, no entendimento divergente dos ministros, muda-se a abrangência do
instituto, pois quando para um a tutela do direito fundamental não podia ser limitada de uma
forma tão direta pelo Estado, para o outro, seria a polícia o próprio Estado, o que faz sentido
já que no entendimento de vários autores, é o Estado o próprio poder e não apenas o detentor
dele.
E quando tratamos de forças que não são propriamente o Estado há limites. Para essa
percepção dos fatos iremos analisar um fato recente e citado acima como uma das greves de
maior impacto e repercussão no país, que foi a ‘greve dos caminhoneiros’, pois não há vínculo
direto entre a determinada classe e o Estado. Sobre o tema foi provocado em sede de medida
liminar o STF, pelo presidente da República, e o ministro relator foi o Ministro Alexandre de
Moraes.
Fica explícita na ADPF519 a divergência da abrangência desse direito, quando em seu
despacho, ao falar o que arguiu o requerente, têm-se:

(...) aponta (o requerente) a divergência entre as decisões proferidas pela Justiça


Federal, que ora deferem liminares para permitir o desbloqueio de rodovias federais,
autorizando medidas indispensáveis para garantir o resguardo da ordem pública, ora
indeferem tais requerimentos, o que revela a urgente necessidade de uniformização
do entendimento aplicável à matéria.

O ministro deu cabimento a liminar, mandando assim que fossem liberadas as vias,
note-se que no caso era justamente a sobre medida de um direito fundamental em detrimentos
de outros direitos e garantias, proferiu na decisão:

Dessa maneira, como os demais Direitos Fundamentais, os direitos de reunião e


greve são relativos, não podendo ser exercícios, em uma sociedade democrática, de
maneira abusiva e atentatória à proteção dos direitos e liberdades dos demais, as
exigências da saúde ou moralidade, da ordem pública, a segurança nacional, a
segurança pública, da defesa da ordem e prevenção do crime, e o bem-estar da
sociedade; (...) (MORAES, 2018, p.10).

É divergente o entendimento sobre os temas tratados, pois é a greve a medida de


autodefesa do trabalhador, como afirma o próprio Ministro em seu livro, mas não pode ficar
a sociedade a mercê, sem proteção do que seria o Estado. Porém, é cabível o entendimento
diverso de que não pode a classe de segurança pública trabalhar, por exemplo, com salários
atrasados. Mas o entendo majoritário é que se preserve o bem comum da sociedade e que
nesses casos deve o judiciário servir como árbitro nessas relações, fazendo com que se
solucione sem maiores transtornos a sociedade.
No movimento dos caminhoneiros, há poucas divergências no tocante as limitações,
pois é harmônico que se preserve a o bem-estar social e os direitos e garantias individuais de
cada pessoa, não pode uma classe buscar seu direito em detrimentos de outrem. Prevalece-se
cada direito harmônico e por si só, respeitando-se um ao outro.

LOCKOUT

Nas palavras de Maurício Godinho Delgado (2014, p. 194) Lockout “é a paralisação


provisória das atividades da empresa por determinação empresarial, objetivando frustrar
através de pressões as negociações coletivas ou dificultar o atendimento das reivindicações
coletivas obreiras”.
Para que seja o lockout tipificado é necessário que cumpra ele algumas características,
como o ato de vontade do empregador, bem como a paralisação, que ela dure determinado
tempo e que se tenha objetivos a serem alcançados por parte do empregador. Nota-se uma
ambiguidade quando olhamos os elementos constitutivos do lockout, pois se é a greve um
direito coletivo, visa o lockout apenas o direito do empregador, mesmo que a externalidade
do ato em si seja por meio da coletividade dos empregados.
Esse tipo de lockout, onde o empregador usa seus funcionários na paralisação é o
lockout político, onde visa a empresa fazer pressão perante o poder público para que seja
garantida a sua continuidade.
Mas tem a paralisação em si, na maioria das vezes, o objetivo de enfraquecer as
reivindicações dos trabalhadores, sendo inclusive possível a simulação de falência para
exercer mais pressão por parte dos empregadores (GODINHO, 2014, p.195).
Para o professor Renato Saraiva (2008, p. 381), em sua obra sobre direito do trabalho,
“têm o empregado, pela lei de greve, o direito de receber todos os seus vencimentos durante
o período da paralisação, visto que é aquele ato mera interrupção do vínculo empregatício”.
No mesmo entendimento segue Henrique Macedo Hinz (2009, p.127), pois para ele
“os trabalhadores que possuem a titularidade do movimento grevista, não podendo ser esse
movimento tutelado por parte do empregador, visto que este possui o poder empregatício e
isso tiraria a isonomia do processo, fazendo prevalecer a parte mais forte”.
O artigo 17 e respectivo parágrafo único da lei 7.783/89 dispõe que fica vedado à
“paralisação das atividades por iniciativa do empregador, com objetivo de frustrar a
negociação ou dificultar o atendimento de reivindicações dos respectivos empregados
(Lockout)”.
Em alguns outros ordenamentos jurídicos, porém, é permitida a prática do lockout,
como é o caso da Bolívia e da Costa Rica, onde se exige, porém, que atinja mais de um
empregador. A Carta Social europeia o admite indiretamente, ao afirmar que “o direito dos
trabalhadores e empresários a ações coletivas em casos de conflitos de interesses (§ 4.º do art.
6.º). No Chile, a observação é que se respeite prazo de até 30 dias.
Vale ressalvar que fala o nosso ordenamento expressamente da vedação da paralisação
que vise atingir diretamente o trabalhador, não se debruçando sobre as outras espécies como
é o caso do lockout social ou político.
Muito se debateu durante a ‘greve dos caminhoneiros’ se a paralisação era lockout ou
não. Em uma leitura sintética da lei, observa-se que trata da proteção do vínculo entre o patrão
e o empregado, deste modo não poderia ser considerado lockout o apoio dos empregadores a
paralisação dos seus trabalhadores, porque se não podem as empresas exercerem pressões
sobre o lado mais forte dessa relação, que seria o Estado, como teriam os empregadores a
própria tutela da autodefesa.
Porém, para o professor de Direito da USP, Otávio Pinto Silva, faz-se um
entendimento mais abrangente deste entendimento, de modo que fica vedada qualquer tipo de
paralisação que seja para reivindicação do empregador. Afirma o professor que “o setor
empresarial pode se reunir para fazer manifestações e colocar suas pautas em discussão. Isso
é legítimo. O que não é lícito é uma entidade paralisar a atividade produtiva para pressionar o
governo” (SILVA, 2018).
Porquanto, mesmo que se reconheça na vedação do locaute a preocupação da
resguarda do trabalhador e em uma violação aos desígnios constitucionais, é no mínimo
questionável, no que tange a lockout político, pois se a vedação a esse tipo de paralisação na
relação empregador - empregado é justamente a proteção do lado mais fraco, seria possível
ser o instrumento válido para a autodefesa na relação empresa - Estado, onde nesse vínculo,
não é a empresa o lado mais forte.

CONCLUSÃO

Conclui-se então, que como visto, é o direito de greve um direito absoluto e


imperativo, que busca a proteção do trabalhador, que pode exercer a sua força através da
coletividade. É uma acertada maneira de ir de encontro aquele que detém o poder econômico
e empregatício.
Nos últimos anos vem o Brasil moldando cada vez mais esse direito, através de
decisões, que as vezes até como ativistas, para preencher lacunas na lei que o Legislativo não
se preocupou em fazer. Desta feita, com a série de provocações ao poder judiciário, veio este
trazer as limitações a este direito, porque não poderia ser essa garantia encimada as outras e
posta como direito absoluto.
A posição de certos limites, porém, como a proibição de greve aos setores de
segurança, ou até mesmo a cessação de um movimento que cause detrimento ao país, não é
por si decisão por si só ativista, pois encontra o judiciário apêndices de proteção destes
direitos, tanto de segurança, quanto em liberdades individuais como o direito de ir e vir.
Quando entra de choque a greve com essas garantias, tende ela a não prevalecer, porque um
entendimento claro das decisões em sede de jurisdição tomadas pelo Estado é justamente que
não haja a superposição desse direito em relação a outros.
A respeito do lockout, é imprescindível a sua vedação com o objetivo de proteção ao
trabalhador, é questionável, porém o entendimento posto atualmente sobre a abrangência do
artigo e na sua vedação de utilização por parte de empregadores para pressionar o Estado, para
uma baixa nos impostos ou desburocratização do sistema, desde que se respeite integralmente
aos direitos e vencimentos do trabalhador.
Por fim, tem-se a harmonização do valor imperativo do direito de greve com as suas
limitações postas, tem os empregados total autonomia para exercer o seu direito, desde que
não se quebre o bem-estar social.

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REFORMA TRABALHISTA E A DIGNIDADE HUMANA: prevalência do negociado
sobre o legislado em face da Lei n° 13.467/201771

Jacson Emanuel Silva Santos72


Marcos Alves de Vasconcelos73

RESUMO

O presente estudo tem por objetivo fazer uma análise acerca da modernização da
legislação trabalhista, tendo como ponto de partida a Lei nº 13.467/17 que alterou vários
dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho e o princípio constitucional da dignidade
da pessoa humana e sua eficácia na praxe das relações jurídicas trabalhistas. Destarte, a
temática abordada faz uma reflexão sobre a supressão do patamar mínimo civilizatório que se
encontra explícito em um rol de direitos elencados no artigo 7º, da Constituição Federal de
1998 em um rol de incisos que dispõe sobre o mínimo necessário a uma condição digna de
trabalho. Com o advento da Lei nº 13.467/2017 - Reforma Trabalhista, permite-se
extraordinariamente que as negociações coletivas de trabalho (normas jus autônomas)
sobreponham-se ao legislado, normas estatais (normas jus heterônomas). A discussão sobre o
tema encontra-se, hodiernamente, assentada em jurisprudência expedida pelo STF (Supremo
Tribunal Federal) pacificando o entendimento, que outrora era alvo de grandes repercussões
motivadas de críticas por parte de juristas e doutrinadores.
Palavras-chave: Dignidade da pessoa humana. Patamar civilizatório mínimo. Negociação
coletiva de trabalho. Adequação setorial. Reforma trabalhista.

INTRODUÇÃO

O trabalho faz parte da essência humana onde o prestador de serviço se submete a


prestação de algum ofício visando um retorno possível, com isso surgiu o dever de reger tais
relações onde o trabalhador não ficasse sujeito a qualquer condição de trabalho visando
sempre à dignidade da pessoa humana com preceito fundamental a ser posto de forma
primordial. Dito isso, foi criado a CLT na era Vargas, visando organizar e estabelecer regras
trabalhistas e suas relações de trabalho, com observância a Constituição Federal e aos
princípios do direito do trabalho. Na constituição federal é vedado o retrocesso, com isso a
CLT que deve observância a Lei Maior mesmo assim com a nova reforma as leis trabalhistas
se flexibilizam em alguns aspectos a relação de trabalho de certo modo prejudica o
trabalhador, em geral a reforma apresenta pontos positivos como o fim da contribuição
sindical obrigatória e a regulamentação do home-office (teletrabalho) que inclui o trabalho
realizado a distância equiparáveis a trabalhos tradicionais reconhecendo a relação de emprego.

71
GT 3 – Direito, Trabalho e Saúde.
72
Graduando em Direito. Faculdades Integradas de Patos - FIP. jacsonemanuelss@gmail.com.
73
Graduando em Direito. Faculdades Integradas de Patos - FIP. vasconcelosmarcos90@gmail.com.
A reforma trabalhista é necessária e vantajosa para a economia, mas apresenta meios
extremamente danosos ao trabalhador como a possibilidade de gestantes trabalharem em
locais insalubres, fim das horas in intinere e o contrato intermitente, vale salientar que a
vontade do negociador prevalece sobre o legislador, sendo extremamente perigoso, pois a
condição hipossuficiente do trabalhador poderá ser coagida de algum modo mediante a sua
necessidade do vínculo empregatício, é necessário o legislador mesmo depois da aprovação
da reforma analisar de maneira minuciosa buscar sanar tais problemas, que só causa malefícios
aos labutadores.
Destarte, o direito ao trabalho é considerado um direito fundamental, inerente à
dignidade da pessoa humana, firmado pela Constituição Federal e por esta, tido como
primado. A dignidade da pessoa humana está vinculada indissociavelmente à necessidade de
o indivíduo exercer uma atividade laboral, para que assim, busque por meio desta, os seus
ideais. Sem dúvidas, com o trabalho, há uma valorização do indivíduo enquanto "pessoa"
sendo a maneira mais viável e mais razoável para se alcançar satisfatoriamente o bem estar na
hodierna conjuntura social. Para reger sua vida laboral os indivíduos gozam da garantia
constitucional para utilizar de instrumentos normativos de caráter autônomo. Os sujeitos
laborais, representados pelas entidades sindicais podem negociar direitos objetivos, não
alcançando, esta negociação, direitos absolutamente indisponíveis, a exemplo daqueles
inerentes a uma vida digna. A própria Constituição Federal de 1988 garante um patamar
civilizatório mínimo elencado em um rol de direitos previstos no art. 7º e seus incisos,
garantidores de melhores condições de vida e de trabalho. O instrumento normativo negociado
para que tenha efetividade precisa necessariamente da presença das entidades representativas
dos interesses das categorias e observar os limites previstos na Constituição Federal, conforme
se depreende da análise do princípio da adequação setorial negociada, segundo Maurício
Godinho Delgado (2017). Com o advento da Lei 13.467/2017 (Lei da Reforma Trabalhista).
O patamar civilizatório mínimo fica afetado, pois permite que o trabalhador disponha de
direitos mínimos através de negociações coletivas que se sobrepõem às normas estatais,
mitigando a dignidade humana dos trabalhadores. A abordagem temática este artigo foi
realizado mediante uma pesquisa do tipo exploratória, que nos dizeres de (GIL, 2008) tende a
“proporcionar maior familiaridade com o problema (explicitá-lo), [...] Geralmente, assume a
forma de pesquisa bibliográfica”. Nessa premissa, o método de abordagem utilizado é o
método dedutivo que nos aspectos que lhe são peculiares é que “A questão fundamental da
dedução está na relação lógica que deve ser estabelecida entre as proposições apresentadas, a
fim de não comprometer a validade da conclusão” (MEZZAROBA; MONTEIRO, 2003, p.
65). A pertinência do tema para com o atual cenário no âmbito do Direito Laboral que assume
dentro do contexto social e econômico é justamente a transação de parcelas trabalhistas de
cunho relativo no procedimento da negociação coletiva, onde dá espaço a problemática que
a presente pesquisa visa expor. De todo modo, para que os instrumentos normativos
negociados, isto é acordos e convenções coletivas de trabalho resultado da negociação tenham
validade e passe a incidirem na vida laboral dos envolvidos é necessária a observância sem
suprir as melhores condições já estipuladas pelas normas estatais.

DESENVOLVIMENTO

1 A DIGNIDADE HUMANA COMO PRINCÍPIO NORTEADOR DAS


RELAÇÕES SOCIAIS LABORAIS

O Estado democrático de Direito tem como fundamentos "a dignidade da pessoa


humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa" (art. 1º, incisos III e IV,
Constituição Federal de 1998). Hodiernamente, a dignidade humana é o princípio que
fundamenta toda a estrutura do sistema constitucional e da organização estatal. Para tanto, a
dignidade humana é, sem dúvidas, um princípio inerente ao próprio homem, enquanto ser
social. Assim sendo, torna-se um instrumento de carga axiológica, afastando
significativamente quaisquer ideias de hierarquia entre os homens.
O princípio constitucional da Dignidade da Pessoa Humana constitui, na verdade, a
maior razão de ser dos direitos denominados como da personalidade, sendo, portanto, um
corolário lógico que a proteção de tais bens jurídicos tenha se dado em nosso ordenamento,
para além de outros diplomas infraconstitucionais, ou seja, no próprio seio da Carta da
República — conforme pode ser verificado por meio do inciso X do art. 5º — ante a relevância
dos valores aos quais estão ligados, quais sejam: a intimidade, a vida privada, a honra e a
imagem (BRANCO, 2007, p. 71).
No plano internacional à Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 em
art 1.° expõe que "todos os seres humanos nascem livres em iguais em dignidade e direitos".
A Constituição Federal de 1998 contempla o princípio que fundamenta toda a estrutura do
sistema constitucional e a organização estatal no art. 1°, inc. III, "a dignidade da pessoa
humana", como fundamento do Estado Democrático de Direito.
A doutrina majoritária na linha horizontal do pensamento é equânime neste sentido.
Sobre a dignidade da pessoa humana, bem discorre o ilustre Marcelo Novelino (p.363, 2014):

[...] a dignidade é uma qualidade intrínseca de todo ser humano, e não um direito
conferido às pessoas pelo ordenamento jurídico. A consagração como fundamento
do Estado brasileiro não significa, portanto, a atribuição de dignidade às pessoas,
mas sim a imposição dos poderes públicos do dever de respeito, proteção e
promoção dos meios necessários a uma vida digna.

Em consonância com o exposto acima, Alexandre de Moraes (2003, p.60) conceitua a


dignidade da pessoa humana como sendo:

[...] um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta


singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que
traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se
em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que
apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos
fundamentais, mas sempre sem menosprezar necessária estima que merecem todas
as pessoas enquanto seres humanos.

Sendo assim, reafirma o ser humano enquanto ser social com carga axiológica com
o escopo de propiciar a este a garantia dos direitos fundamentais para exercer plenamente os
direitos sociais indispensáveis a promoção de suas necessidades, sendo para tanto um conceito
jurídico não solidificado, mas passível de interpretação, claro com a tendência de favorecer o
homem em todas as suas plenitudes por meio de um sistema jurídico que preveja essa
segurança, através de normas jurídicas hábeis a essa finalidade.
Maurício Godinho Delgado reforça o que fora dito acerca do trabalho em condições
dignas dispondo que:

[...] a ideia de dignidade não se reduz, hoje, a uma dimensão estritamente particular,
atada a valores imanentes à personalidade e que não se projetam socialmente. Ao
contrário, o que se concebe inerente à dignidade da pessoa humana é também, ao
lado dessa dimensão estritamente privada de valores, a afirmação social do ser
humano. A dignidade da pessoa fica, pois, lesada caso ela se encontre em uma
situação de completa privação de instrumentos de mínima afirmação social.
Enquanto ser necessariamente integrante de uma comunidade, o indivíduo tem
assegurado por este princípio não apenas a intangibilidade de valores individuais
básicos, como também um mínimo de possibilidade de afirmação no plano social
circundante (DELGADO, 2006, p. 43-44).

Esse reconhecimento do trabalho como direito social garante a preservação humana


em todos os aspectos como: familiar, social e individual. Sendo o instrumento que viabiliza a
inserção do homem no seio familiar e na sociedade.
Tal posicionamento demonstra que o direito ao trabalho acarreta a afirmação social
do individuo perante a sociedade como um todo, sendo assim um dos principais instrumentos
estabelecidos no texto constitucional de concreta consolidação da dignidade humana.
Desse modo, os direitos fundamentais do trabalhador arrolados no art. 7º da
Constituição Federal de 1988 se constituem como verdadeira expressão da dignidade humana
deste.
Nesse diapasão a dignidade da pessoa humana expressa no texto constitucional em
consonância com a possibilidade dos atores da relação coletiva de trabalho devidamente
assistidas pelas entidades de representação dos respectivos interesses, ou seja, os sindicatos
das respectivas categorias de empregados e empregadores, a ordem jurídica confere a
possibilidade da criação de instrumentos que irão reger a vida laboral, essa possibilidade está
fundamentada na autonomia privada coletiva, isto é, a possibilidade de as próprias partes
disporem, ou melhor, transacionar parcelas trabalhistas de caráter relativo, direitos estes
passiveis de negociação, tais como: turno ininterrupto de revezamento, salário, jornada de
trabalho.
O elemento de vontade nesse caso é imprescindível à negociação decorrente da
autonomia privada coletiva, encontrando na própria legislação limitações a direitos que
constituem objeto ilícito que não se inserem no rol daqueles que podem ser objeto das
negociações. Tais direitos são considerados normas de ordem pública, impossíveis de serem
transacionadas, a exemplo das normas sobre segurança e medicina do trabalho e outros
previstos em um rol no art. 611-B da Consolidação das Leis do Trabalho.
Daí, que qualquer negociação envolvendo tais direitos deve atender ao referido
princípio, tornando, assim, o exercício da autonomia privada coletiva limitada aos direitos de
indisponibilidade relativa, conforme assevera Delgado (2015). Convém ressaltar que a
autonomia privada coletiva consiste na mais legítima forma de solução de conflitos sociais
nas relações de trabalho, onde os próprios sujeitos, representados pelas entidades sindicais,
podem criar regras que, possivelmente, irão reger as relações de trabalho.
Em regra, a função da negociação coletiva é buscar algo melhor para o trabalhador
além do que já existe no texto da lei ou aquilo que ainda não foi regulado pelo Estado,
salientando-se que, a negociação in pejus é excepcionalmente admitida.
Destarte, no que tange aos direitos de indisponibilidade relativa, tem-se em vista que
estes podem ser objetos de disposição através da negociação entre entidades sindicais
representativas da categoria profissional (trabalhadores) e da categoria econômica
(empregadores) e/ou empresas. Por outro lado, devem ser respeitadas as normas de ordem
pública, estas de indisponibilidade absoluta, as quais são inderrogáveis ao talante das partes.
2 LIMITES À NEGOCIAÇÃO COLETIVA DE TRABALHO

Há uma limitação à autonomia privada coletiva, ou seja, as partes não podem dispor
sobre os direitos mínimos estabelecidos pela norma estatal, tendo respaldo os direitos
elencados no art. 7º da CF/88, salvo exceções previstas no texto constitucional referente à
salário, jornada de trabalho e turno ininterrupto de revezamento e o que está consolidado na
legislação trabalhista que encontra precisão no art. 611-A, artigo este inserido na CLT pela
Lei n° 13.467/2017. No entanto, é conferida às partes a prerrogativa de negociarem sobre
melhores condições de trabalho, respeitando os limites impostos. Não podem assim, suprimir
o mínimo civilizatório que norteia uma efetiva concretização da dignidade humana. contudo,
salienta-se que o ordenamento jurídico brasileiro reconhece que a negociação coletiva é livre,
e inclusive, a própria Constituição Federal de 1998 no art. 7º, inciso XXVI, prevê o
reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho.
A Convenção nº 154 da OIT, ratificada pelo Brasil em 10 de julho de 1992 e
Promulgada através do Decreto nº 1.256, de 29 de setembro de 1994 no DOU em 30 de
setembro de 1994 dispõe sobre o incentivo à Negociação Coletiva, nos seguintes termos:

Art. 2.º – [...] "negociação coletiva" compreende todas as negociações que tenham
lugar entre, de uma parte, um empregador, um grupo de empregadores ou uma
organização ou várias organizações de empregadores, e, de outra parte, uma ou
várias organizações de trabalhadores, com o fim de:
a) fixar as condições de trabalho e emprego; ou
b) regular as relações entre empregadores e trabalhadores; ou
c) regular as relações entre os empregadores ou suas organizações e uma ou várias
organizações de trabalhadores, ou alcançar todos estes objetivos de uma só vez.

A negociação coletiva de trabalho é obrigatória no ordenamento jurídico brasileiro,


não podendo as partes se abster em negociar quando provocados, para tanto essa negociação
é uma fase preliminar em que tem como faculdade a criação do acordo e convenção coletiva
de trabalho. Ademais, para que sejam válidos os acordos e convenções coletivas de trabalho
é necessária que a categoria profissional (trabalhadores) esteja devidamente representada
pelos seus respectivos sindicatos e, de outro lado, a categoria econômica representada pelo
sindicato patronal ou diretamente pela empresa, atendendo, assim, ao princípio da
interveniência sindical.
As prerrogativas conferidas aos sujeitos coletivos na negociação coletiva se fazem
mediante a criatividade jurídica, conforme leciona Delgado (2015, p. 1417):

O principio da criatividade jurídica da negociação coletiva traduz a noção de que os


processos negociais coletivos e seus instrumentos (contrato coletivo, acordo co-
letivo e convenção coletiva do trabalho) têm real poder de criar norma jurídica (com
qualidades, prerrogativas e efeitos próprios a estas), em harmonia com a
normatividade heterônoma estatal.

Nesse prisma, as partes podem chegar a um consenso para que sejam atendidas as
melhores condições de trabalho, claro em consonância com o que está previsto na legislação
e na própria Constituição Federal. É imprescindível que os instrumentos normativos
negociados obedeçam os limites impostos pela Lei. Nesse contexto, há direitos de caráter de
indisponibilidade absoluta que são normas de ordem pública que, portanto constituem objeto
ilícito de negociação, tais como: segurança e medicina no trabalho e regras sobre anotação da
carteira de trabalho e previdência social. Ademais, os instrumentos coletivos tem força de
norma jurídica.
Ainda, de acordo com Delgado (2015, p. 1420) para que as normas autônomas
incidam e tenha efetividade é necessário que sejam ajustadas. Assim, pelo princípio da
adequação setorial negociada deve haver limitação jurídica da negociação coletiva de trabalho
e harmonia entre as normas oriundas da negociação coletiva e das normas estatais. Nesse
sentido, é possível entender que a adequação setorial negociada pretende objetivar, justamente
para:

[...] Incidirem sobre certa comunidade econômico-profissional podem


prevalecer sobre o padrão geral heterônomo jus trabalhista desde que respeitados
certos critérios objetivamente fixados. São dois esses critérios autorizativos: a)
quando as normas autônomas jus coletivas implementam um padrão setorial de
direitos superior ao padrão geral oriundo da legislação heterônoma aplicável; b)
quando as normas autônomas jus coletivas transacionam setorialmente parcelas jus
trabalhistas de indisponibilidade apenas relativa (e não de indisponibilidade
absoluta).

Portanto, devem às normas negociadas elevarem o padrão das normas estatais,


atendendo ao patamar mínimo civilizatório expresso pela Constituição Federal de 1998 no
art° 7, são direitos que concretizam a dignidade humana e que devem ser observados. Nesse
contexto, há possibilidade de relativizar certos direitos, tais como: jornada de trabalho, turno
ininterrupto de revezamento, salário, etc.; mas os direitos de indisponibilidade absoluta não
podem adentrar como objetos da negociação por previsão legal.
Portanto, como afirma Maurício Godinho, pelo princípio da adequação setorial
negociada, as normas entabuladas entre patrões e empregados podem prevalecer em relação
às normas estatais nas situações acima expostas, elevando o padrão geral heterônomo e
“quando as normas autônomas transacionam setorialmente parcelas trabalhistas de
indisponibilidade relativa (e não absoluta)”.
O ordenamento jurídico brasileiro prevê a livre negociação coletiva no tocante aos
direitos de indisponibilidade relativa, ou seja, parcialmente indisponíveis. Ou seja, respeitadas
as normas de ordem pública.
Assim, o Direito do Trabalho contém normas de ordem pública, estas, de interesse
fundamentalmente público de modo que o próprio trabalhador não pode abdicar de direitos
alimentares em qualquer tipo de negociação fora do âmbito de proteção da CLT. São direitos
de indisponibilidade absoluta ao arbítrio das partes. Neste contexto, se inserem as normas
referentes à segurança e medicina do trabalho, sob nenhuma possibilidade podem ser objeto
de negociação pelas partes.
A Convenção nº 154 da OIT ratificada pelo Brasil em 18 de Novembro de 1995 assim
enuncia no art. 4°: “[...] Negociação voluntária entre empregadores ou organizações de
empregadores e organizações de trabalhadores, com o objetivo de regular, por meio de
convenções coletivas, os termos e condições de emprego”.
Neste aspecto a norma heterônoma deve prevalecer diante dos direitos absolutamente
indisponíveis, quais sejam: o patamar mínimo civilizatório. Muito embora o entendimento
doutrinário seja pacífico no sentido que deve prevalecer a norma mais favorável ao
empregado, em decorrência do princípio da proteção, inerente ao Direito do Trabalho, em
consonância com o artigo 7º, caput, da Constituição Federal.
Através da negociação coletiva admite-se a flexibilização dos direitos trabalhistas,
nos limites impostos pela Constituição Federal de 1988, em seu art. 7º,, incisos VI, XIII e
XIV, os quais tratam, respectivamente da redução de salário, compensação e redução de
jornada de trabalho e turnos ininterruptos de revezamento sob a justificativa dos objetivos de
proteção do emprego e de adaptação às atuais condições sociais e econômicas. A referida
Carta reconheceu ainda, no inciso XXVI as convenções e acordos coletivos como
instrumentos normativos decorrentes da autonomia coletiva privada.
Tais instrumentos normativos negociados encontram-se previstos na Consolidação
das Leis Trabalhistas em seu art. 611, caput e § 1º, in verbis:

Convenção Coletiva de Trabalho é o acordo de caráter normativo, pelo qual dois ou


mais Sindicatos representativos de categorias econômicas e profissionais estipulam
condições de trabalho aplicáveis, no âmbito das respetivas representações, às
relações individuais do trabalho.
§ 1º - É facultado aos sindicatos representativos de categorias profissionais celebrar
acordos coletivos com uma ou mais empresas da correspondente categoria
econômica, que estipulem condições de trabalho, aplicáveis no âmbito da empresa
ou das acordantes respectivas relações de trabalho.
Percebe-se pelo exposto que a legislação celetista buscou diferenciar os dois institutos
e ainda e tratou de enunciar a prevalência do acordo sobre a convenção coletiva conforme
dispõe o art. 620, da CLT, com redação dada pela Lei nº 13.467/2017.
A referida Lei (13.467/17) introduziu os artigos 611-A e 611-B na Consolidação
das Leis do Trabalho (CLT). Desse modo, o art. 611-A da CLT visa elencar, em rol
meramente exemplificativo, como se observa pela expressão ''entre outros'', as matérias que
podem ser objetos de flexibilização.
Convém destacar, que ao inserir o art. 611-A na Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT) a Lei 13.467/17 tratou de enunciar os direitos que poderão ser objetos de negociação
através do acordo ou convenção coletiva de trabalho e instituiu a prevalência do negociado
sobre o legislado dando margens a negociação in pejus para o trabalhador, quando possibilitou
a negociação sem contrapartidas como se depreende da leitura do § 2º do referido artigo.
Esclareça-se que tal disposição quando concretizada através da negociação coletiva
poderá violar direitos fundamentais do trabalhador de modo a ter repercussões negativas na
nas condições de vida e de trabalho, ferindo assim, a sua dignidade humana.
O fim das horas in itinere afeta o trabalhador de maneira crucial visando o princípio
da primazia da realidade o trabalhador que vende sua mão-de-obra a prestação de serviços
como mineração, empresas hidroelétricas que são muitas vezes distante da zona urbana fica
fragilizado, como assim dispõe a redação da Súmula nº 90 do Tribunal Superior do Trabalho,
que dispõe:
A súmula nº 90 do TST dispõe o seguinte:

90 – Horas “in itinere”. Tempo de serviço.


I – O tempo despendido pelo empregado, em condução fornecida pelo empregador,
até o local de trabalho de difícil acesso, ou não servido por transporte público
regular, e para o seu retorno é computável na jornada de trabalho. (ex-Súmula nº 90
– RA 80/1978, DJ 10.11.1978)
II – A incompatibilidade entre os horários de início e término da jornada do
empregado e os do transporte público regular é circunstância que também gera o
direito às horas “in itinere” (ex-OJ nº 50 – Inserida em 01.02.1995).

Essa situação que de tal modo o mesmo perde várias horas no deslocamento de sua
casa para o trabalho não será mais remunerada contabilizando como sua jornada de trabalho
isso é um retrocesso, pois as leis trabalhistas que tem o dever/garantir de tutelar o trabalhador
e suas relações se omite, com isso o trabalhador fica fragilizado.

CONCLUSÕES
A Constituição Federal de 1998 reconheceu os acordos e as convenções coletivas de
trabalho como expressão da autonomia privada coletiva, para que estes possam reger os
próprios interesses subjetivos dando ênfase à criação de normas para serem aplicadas às
relações individuais de trabalho. Vale ressaltar que, apesar do reconhecimento, pela
Constituição Federal de tais prerrogativas sindicais, não será possível que certos direitos
possam ser objetos de negociação. Em contraponto, faz-se necessário que as normas de
negociação coletiva de trabalho sempre sejam mais benéficas do que as normas estatais
impostas à classe profissional, vislumbrado sempre a proteção ao trabalhador.
Assim sendo, a autonomia privada coletiva é um instrumento eficaz para as relações
laborais, pois sem dúvida alguma poderá diretamente os interesses subjetivos dos
trabalhadores, porém há direitos que não podem objeto de negociações, ou seja, os direitos
inerentes a uma condição digna de trabalho, patamar mínimo civilizatório, em consonância
com o princípio da dignidade da pessoa humana, a qual deve ser protegida na relação de
trabalho.
A Reforma Trabalhista possibilitou ao empregado dispor de direitos essenciais a uma
vida laboral "digna", satisfatória, lesando o patamar civilizatório mínimo de direitos
fundamentais que tem o escopo de proporcionar a garantia da efetividade do princípio
fundamental da dignidade da pessoa humana nas relações jurídicas de trabalho. A própria
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) é equânime no entendimento. Por outro
lado, sob a ótica constitucional há limites impostos à disponibilidade dos direitos
fundamentais por parte do empregado, sendo resguardadas as normas de ordem pública e as
matérias de competência exclusiva do Estado. Portanto, não pode o trabalhador lesar sua
própria "dignidade", negociando, através da entidade sindical representativa dos seus
interesses, os direitos fundamentais, relativizando o patamar civilizatório mínimo, afastando
as normas estatais garantidoras desses direito em razão da prevalência do negociado sobre o
legislado.

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NOVELINO, Marcelo. Manual de direito constitucional. 9. ed. rev. e atual – Rio de Janeiro:
Forense; São Paulo: MÉTODO, 2014.
A REFORMA TRABALHISTA E A SITUAÇÃO DA MULHER
GESTANTE/LACTANTE: Uma análise dos impactos da Lei nº 13.467/17 e a
potencialidade lesiva à saúde da mulher e do feto em ambiente laboral insalubre 74
Sandy Emily Leite da Silva 75
RESUMO

O presente artigo científico tem por objetivo a análise da Reforma Trabalhista, bem como
pontuar e esclarecer, utilizando como arcabouço teórico a produção acadêmica dos autores da
teoria feminista do direito, através de uma reflexão crítica, com o intuito de demonstrar os
pontos prejudiciais da Lei 13.467/17, no tocante à situação da mulher gestante/lactante no
mercado de trabalho, que, com o advento desta, tem a possibilidade de exercer suas funções
laborais em ambientes insalubres em grau médio e leve, a critério do empregador, sendo tal
permissivo legal uma clara afronta ao direito social, constitucionalmente garantido, qual seja,
o de proteção à maternidade, assim como tal medida é um claro instrumento de perpetuação
de uma sociedade patriarcal. Restou demonstrado que a alteração do artigo 394 - A, tornará
difícil a preservação da saúde da mulher, bem como a saúde do feto expostos a tais ambientes,
já que é de questionar se os atestados médicos serão reais garantias de proteção à saúde do
feto e da gestante, posto que os médicos não avaliarão o ambiente de trabalho para constatar
se há agentes nocivos. A pesquisa foi feita através de método qualitativo crítico do conteúdo
proposto, com base em procedimento de pesquisa bibliográfica.

Palavras chave: Teoria Crítica Feminista. Reforma Trabalhista. Insalubridade.

1 INTRODUÇÃO

A Lei nº 13.467/17, ora em análise, deixa inúmeras dúvidas quanto à sua


aplicabilidade e os seus posteriores efeitos que só serão, de fato, evidenciados a partir da
práxis, isto é, ainda que se tenha uma mínima noção dos impactos, ocasionados pelo advento
da lei, tais consequências, camuflada por uma suposta ideia de proteção e neutralidade da
norma, só se mostrará na concretude das relações de trabalho.
Nos capítulos iniciais, desta pesquisa, busca-se traçar as linhas gerais do aporte
teórico ora utilizado, isto é, define-se os conceitos e os ensinamentos dos teóricos críticos,
diante da capacidade desta em criticar os movimentos sociais, com o fito de evidenciar que o
direito não é capaz de emancipar os vulneráveis e fazer com que percebam seu lugar em um
todo socialmente estruturado, sendo necessária a revolução, a quebra do estoicismo da
sociedade, para que se modifique a estrutura econômica e social dominante.
O último capítulo, utilizando-se desta teoria, examinou a Reforma Trabalhista sob o
viés da discriminação de gênero, é que a mulher gestante/lactante possui necessidades e

74 Grupo 3: Direito, Trabalho e saúde.


75 Graduanda do curso de direito. Universidade de Pernambuco -UPE. sandy.emily112@gmail.com
especificações próprias, como será explicado em momento oportuno, que tal permissivo legal
não leva em consideração, bem como faz com que ou dificulte a possibilidade de admissão e
manutenção do emprego das mulheres ou, aquelas que estão dispostas a se submeterem a tal
situação, sofrerão sérios problemas de saúde, assim como seu feto, tudo isto sob o pretexto de
diminuição dos custos do empregador, diante de uma recessão econômica.
Diante das mudanças legislativas trazidas pela referida lei ao ordenamento jurídico
brasileiro, bem como nas relações de trabalho e principalmente no tocante às mulheres
gestantes/lactantes, a presente pesquisa científica procura analisar e demonstrar os impactos
negativos da referida lei, trazendo a lume um exame crítico da hodierna reforma trabalhista,
partindo do seguinte problema de pesquisa: após uma análise crítica da situação da mulher no
mercado de trabalho, questiona-se, quais impactos na saúde da mulher gestante/lactante e do
feto com a exposição a ambiente laboral insalubre, a simples exigência de um laudo médico,
para ambientes insalubres, em grau médio e leve, será verdadeiramente eficaz à proteção da
mulher?
O objetivo desta pesquisa é identificar como a cultura patriarcal e machista de nossa
sociedade ainda influencia diretamente as relações obreiristas, subjugando as mulheres às
condições de trabalho degradantes à saúde delas, sem considerar as características
peculiaridades de uma mulher gestante/lactante, visto que a prática jurídica costuma acobertar
a verdadeira intenção discriminatória, sob o manto de uma suposta neutralidade.
Utilizando como arcabouço conceitual a Teoria Crítica Feminista, metodologia de
pesquisa qualitativa crítica e procedimento bibliográfico, demonstrarei os danos que serão
gerados, nas relações de trabalho, com a adoção deste permissivo legal, em comento, bem
como os prejuízos a saúde da obreira, já que a mulher será exposta à condição de trabalho
prejudicial, sem quaisquer garantias de proteção, e sem que tenha nenhum instrumento de
defesa, visto que dificilmente contestará as decisões de seu empregador.

2. Breve conceituação da “Teoria crítica”

A teoria crítica é um movimento ideológico que desenvolve uma autocrítica das


transformações sociais, na busca por entender suas patologias, buscando possibilidades de
emancipação social do sistema de dominação vigente. Por outro lado, a teoria crítica é referida,
segundo Nobre, como um modelo que “[...] traz consigo um determinado ‘diagnóstico’ do
tempo presente e um conjunto de ‘prognósticos’ de possíveis desenvolvimentos, baseados em
‘tendências’ discerníveis em cada momento histórico determinado.” (NOBRE, 2004, p. 23,
grifos nossos).
Isto é, conforme entendimento do mesmo autor, os princípios que norteiam e
caracterizam a teoria crítica é a orientação para a emancipação e o comportamento crítico no
que diz respeito ao conhecimento que foi produzido sob a égide do capitalismo e perante a
própria realidade social que esse conhecimento produzido pretende concentrar.

3. Evolução histórica da Teoria Crítica e os grandes expoentes que desenvolveram esta


teoria

Foi a partir, portanto, das ideias produzidas por Karl Marx que surgiram novos
teóricos e, posteriormente, a Escola de Frankfurt, desenvolvendo teorias com tendência a
estimular uma emancipação social sólida e pautada na análise de onde o capitalismo, já que
se apresentava como o sistema dominador, fracassou, na prática. Com o surgimento da Escola
de Frankfurt emerge, na teoria crítica, uma ideia de esclarecimento com o objetivo crucial de
incentivar a sociedade a desenvolver uma percepção mais nítida entre a relação de ações que
tendem a manter um status quo de um sistema dominante.

3.1 Escola de Frankfurt

A Escola de Frankfurt, criada em 03 de fevereiro de 1923, tinha o objetivo, a priori,


de ser um projeto para fomentar discussões em torno da ampliação do marxismo, tornando
claro o objetivo de ampliar e solidificar o pensamento de esquerda. Grandes nomes que
integraram a referida Escola e que fomentaram a “Teoria Crítica” de modo geral são: Max
Horkheimer, Theodor Wiesengrund Adorno, Herbert Marcuse, Walter Benjamin, Eric
Fromm, Jurgen Habermas, entre outros.
De acordo com Assoun (1991, p.21), a teoria crítica faz a intermediação entre a crise
existente entre a história e a crise da obra do Conceito quando sugere que “[…] vai começar
a funcionar com uma tomada de posição em relação ao idealismo alemão, que fornece ao
mesmo tempo o ponto de partida e a linguagem da sua própria refutação”.
Em síntese, Max Hokheirmer e Theodor Adorno construíram a chamada dialética do
esclarecimento que tentava investigar a racionalidade humana e as formas de razão e interação
social. Objetivaram encontrar uma forma de esclarecimento capaz de emancipar o indivíduo,
proporcionando-lhe participação política e social mais crítica (NOBRE, 2003).
No desfecho, concluíram que, na sociedade capitalista, a “razão instrumental” é a
forma que solidifica e estrutura a racionalidade social. “Para Hokheimer e Adorno, a
racionalidade como um todo reduz-se a uma função de adaptação à realidade, à produção do
conformismo diante da dominação vigente” (NOBRE, 2003, p.11).

(...) o indivíduo, sobre o qual a sociedade se apoiava, trazia em si


mesmo sua mácula; em sua aparente liberdade, ele era o produto de
sua aparelhagem econômica e social. O poder recorria às relações de
poder dominantes quando solicitava o juízo das pessoas a elas
submetidas. Ao mesmo tempo, a sociedade burguesa também
desenvolveu, em seu processo, o indivíduo. Contra a vontade de seus
senhores, a técnica transformou os homens de crianças em pessoas.
Mas cada um desses progressos da individuação se fez à custa da
individualidade em cujo nome tinha lugar, e deles nada sobrou senão
a decisão de perseguir apenas fins privados. O burguês cuja vida se
divide entre o negócio e a vida privada (...), rompido consigo e com
todos, já é virtualmente o nazista que ao mesmo tempo se deixa
entusiasmar e se põe a praguejar, ou o habitante das grandes cidades
de hoje, que só pode conceber a amizade como social contato, como
contato social de pessoas que não se tocam intimamente. É só por isso
que a indústria cultural pode maltratar com tanto sucesso a
individualidade, porque nela sempre se reproduziu a fragilidade da
sociedade (HORKHEIMER, M.; ADORNO, Th.,A Indústria
Cultural. In Dialética do Esclarecimento. p.145 et. seq.).

As conclusões a que esses teóricos chegaram, aproximam-se do materialismo


marxista, colocando-os em um ciclo sem término exato, uma aporia melhor dizendo, com base
na dialética do esclarecimento. Já que a única racionalidade capitalista é a instrumental, ou
seja, só vale a análise daquilo que mantêm o status de dominação, não há margem a sua
utilização como forma de emancipação social.
Isto é, o direito não é capaz de emancipar os dominados e fazer com que percebam
seu lugar em um todo socialmente estruturado, sendo estritamente necessária a revolução, a
quebra da resiliência da sociedade, para que se modifique a estrutura econômica e social, ou
quiçá as próprias crises internas do capitalismo para que haja uma verdadeira mudança de
paradigmas.
Quanto ao pensamento de Habermas, pode-se dizer que ele defende a razão sob um
aspecto “ético-comunicativo”, agrupando em si um mundo objetivo e a intersubjetividade de
cada sujeito que pensam e agem conforme a subjetividade de cada um (NOBRE, 2003).
É valido ressaltar que Habermas não nega o pensamento dos teóricos Horkheimer e
Adorno, defendendo, sobremaneira, a análise de uma sociedade dominada pela lógica
capitalista, no entanto, diz que eram incompletos, já que alguns aspectos importantes da
sociedade são ignorados:

(...) Habermas formulou um novo conceito de racionalidade. Para


Habermas, a “racionalidade instrumental” identificada na dialética do
esclarecimento como racionalidade única dominante e, por isso,
objeto por excelência da crítica, não dever ser demonizada, mas é
preciso, diferentemente, impor-lhes freios. Para tanto, Habermas irá
formular uma teoria da racionalidade dupla face, em que a
racionalidade instrumental convive com um outro tipo de
racionalidade, a comunicativa. (NOBRE, 2003, p.13).

De fato, como todos os pensadores da Escola de Frankfurt, Habermas tem como


objetivo encontrar meios para a emancipação social contra a racionalidade instrumental do
sistema capitalista vigente.
O ponto de início dá-se com as teorias marxistas e Habermas conseguiu um relativo
avanço no esclarecimento dos possíveis meios para a tão desejada emancipação. Ainda assim,
suas conceituações mostraram-se mecânicas demais ao longo do tempo, já que a divisão entre
“racionalidade comunicativa” e “mundo da vida”, esconde os conflitos políticos e sociais e,
segundo Honneth, o principal revisor das teorias Habermasiana, em seu livro Luta por
Reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais (2003), a razão comunicativa está
auxiliando o sistema, mas a mesma não é dada anteriormente aos conflitos sociais, no intuito
de harmonizá-lo, já que são os conflitos quem constituem a razão comunicativa (NOBRE,
2003, p.13).

O que mostra, por sua vez, que também o outro lado da dostinção, a
racionalidade comunicativa, foi pensada por Habermas como prévia
ao conflito, de modo que a realidade social do conflito-estruturante da
intersubjetividade, para Honneth -passa a ocupar um segundo plano,
derivado, em que o fundamental está nas estruturas comunicativas.
Com isso, o que é o elemento no qual se move e se constitui a
subjetividade e a identidade individual e coletiva- a luta por
reconhecimento- é abstraído da teoria, tornando-a desencarnada. Se
Honneth concorda com Habermas sobre a necessidade de se construir
a Teoria Crítica em bases intersubjetivas e com marcados
componentes universalistas, defende também, contrariamente a este,
a tese de que a base da interação é o conflito, e sua gramática, a luta
por reconhecimento. (NOBRE, 2003, p.17)

Em resumo, Adorno e Horkheimer entendem e constroem uma Teoria Crítica


partindo da premissa ética na sua construção, afirmando que a sociedade do capital é incapaz
de possibilitar uma vida boa a toda uma sociedade, porquanto Honneth e Habermas entendem
a teoria sobre um viés moral, permitindo uma evolução moral dessa sociedade.
Vale mencionar que a ideia de um “sociólogo observador”, longe na esfera social
que busca analisar, não será aqui defendida. Aquele ancorado numa posição privilegiada de
acesso à verdade, posição esta induzindo, possivelmente, o teórico a uma visão “paternalista”
e a “uma espécie de platonismo político segundo o qual se deve observar a sociedade de um
lugar que não existe e modificá-la usando um ponto arquimediano”, pretende-se, portanto,
analisar de forma factível os danos sociais trazidos pela adoção da Lei nº 13.467/17 (REGO;
PINZANI, 2013, p.29).

4. Teoria Crítica Feminista

O feminismo surge como uma ferramenta de relevante importância na luta contra a


posição de desfavorecimento que a mulher ocupa na sociedade, estando, as correntes
feministas, em constante desenvolvimento e aprofundamento de suas ferramentas de análise.
Tendo como eixo basilar de reflexão a situação de opressão e de produção de desigualdade
social em decorrência do sexo/gênero, como fonte das investigações críticas dos contextos
sociais.
No trabalho intitulado de “O Outro Generalizado e o Outro Concreto: a Controvérsia
Kohlberg- Gilligan e a Teoria Feminista”, a autora Seyla Benhabib entende que existam dois
axiomas essenciais para a teorização feminista, quais sejam, que a dicotomia do gênero-sexo
é “um modo essencial pelo qual a realidade social é organizada, simbolicamente dividida e
vivenciada na prática”, bem como “os sistemas gênero-sexo historicamente conhecidos têm
contribuído para a opressão e exploração das mulheres” (BENHABIB, 1987, p. 91).
Conceitua, por conseguinte, que o sistema gênero-sexo é “a constituição simbólica
sócio-histórica, e a interpretação das diferenças anatômicas dos sexos”, afirmando que é por
meio da ideia incorporada socialmente que o indivíduo externa sua identidade, seja física,
mental e simbolicamente, sendo, também, através dessa noção de gênero-sexo que cada
sujeito é apresentado no meio social e reproduzidas em diferentes culturas (BENHABIB,
1987, p. 91).
Destarte, a autora impõe como obrigação à Teoria Crítica Feminista entender e
esclarecer os sistemas que oprimem e exploram as mulheres no intuito de “desenvolver uma
política que seja emancipatória e reflexiva” (BENHABIB. 1987, p.91). Essa atribuição pode
ser concretizada, de acordo com a referida teoria, tanto com base em um “estudo crítico,
social-científico”, por meio de uma “análise explicativa-diagnóstica da opressão das mulheres
através da história, cultura e sociedades” (BENHABIB, 1987, p. 91), assim como, por meio
de um estudo mais “normativo e filosófico” desenvolvendo uma “crítica previsiva-utópica das
normas e valores da nossa sociedade e cultura atuais, de modo a projetar novos modos de
aglutinação, de relacionamento entre nós e com a natureza no futuro” (BENHABIB, 1987,
p.91).
Nesse sentido, pode-se afirmar que a teoria crítica feminista procura, sobremaneira,
emancipar as mulheres das suas próprias convicções, secularmente construídas e arraigadas
na ideologia machista e patriarcal, bem como identificar os sistemas de opressão, tanto
institucional quanto socialmente apresentadas, que impossibilita a igualdade de gênero,
principalmente no âmbito do trabalho.
De acordo com a autora Fraser, apud Maria Eduarda Ota (2014, p.17), em
contraponto às ideias defendidas por Habermas, informa que ele se ateve a um “subtexto de
gênero” ao distinguir o sistema e o mundo da vida, “reprodução material e simbólica”, não se
atendo a ideia de subjugação de um gênero dominante (qual seja, masculino) sob o dominado
(a saber, feminino) no “mundo da vida” influencia, sobremaneira, a esfera pública e as
atividades econômicas. Afirma, a referida autora, que não podemos “colocar a família nuclear
de dominância masculina e a economia oficial regulada estatalmente em lados opostos da
principal divisão categorial”, é necessário, destarte, reuni-las “do mesmo lado da linha como
instituições que, embora de modos diferentes, impõem a subordinação das mulheres”
(FRASER, 1987, p. 64).
É por esta razão que a teoria crítica apresenta-se como primordial para a luta
feminista no intuito de buscar a tão almejada igualdade de gênero, já que é uma teoria que
procura criticar as ideias internas e externas à própria doutrina, procurando, continuamente,
autocriticar-se, diante das constantes dificuldades de emancipação de uma coletividade
historicamente oprimida e que, por vezes, oprime, por convicção, aderindo aos ditames de seu
próprio agressor.
Válido é ressaltar a ideia trazida por Carloto (2004, p. 152) apud Maria Eduarda Ota
(2014, p. 18), que diferencia a ideia de políticas públicas que visam a perspectiva de gênero e
as que apenas tem como alvo as mulheres, tendo em conta que os programas com perspectivas
de gênero requerem ações que, de fato, alterem as desigualdades de gênero, enquanto que
muitos programas apenas existem para manter o status quo, no intuito de instrumentalizar e
reforçar os papeis sociais preponderantes.
Ainda que a ideia do que é moral, hodiernamente, tenha sido ampliado, bem como as
discussões de gênero estejam mais presentes na sociedade, já que muitas questões, antes
privadas, agora, estejam sendo tratadas em âmbito público, a forma como estas questões vêm
sendo enfrentadas, pela coletividade, deixa latente as constantes tensões que ainda perpassam
as questões de gênero e, em demasia, não flui à realização da emancipação das mulheres, pelo
contrário, influi para a permanência das desigualdades e para um enfrentamento, pelo poder
público e pela sociedade em geral, aparente dessas desigualdades.
4.1. A Teoria Crítica Feminista no direito

A práxis do direito costuma mascarar a verdadeira intenção discriminatória, por


intermédio de uma suposta pretensão à neutralidade e à objetividade, tanto nas leis como nos
direitos naturais e sua hermenêutica, ao definir essas noções como dogmas e usando-os à
legitimação de suas normas no meio social, tendo como base a ideia Kelseniana de pureza
metodológica e a imparcialidade de quem aplica o direito, desvinculado das ideias políticas e
culturais.
No entanto, como uma forma de resposta ao fenômeno jurídico, desenvolveu-se as
análises críticas do direito e, consequentemente, a teoria feminista do direito, contrapondo-se
ao ideário de uma aplicação neutra do direito, buscando evidenciar as apropriações das
conquistas feministas, assim como para viabilizar as alterações que, evidentemente, é
estabelecida para manter a situação de opressão das mulheres. Essa teoria busca, ab initio,
analisar como as discriminações de gênero influenciam, sobremaneira, a elaboração das leis,
sua aplicação, doutrinas e jurisprudências (SERAFIM, 2010, p. 322).
Assim afirma a autora Serafim (2010, p. 323):

Ao associar a teoria à prática, esse tipo de produção acadêmica


demonstra a preocupação em ser uma forma de práxis e de se opor à
arraigada crença- calcada numa racionalidade falocêntrica na
incapacidade feminina de possuir ou de ser verdade e de proceder a
abstrações, Não diferentemente, a teoria feminista do direito prima
também por esse uso de práticas discursivas, pela desconstrução de
preconceitos, pela aproximação com a realidade social.

Outrossim, o direito, como mais um ramo da sociedade ancorada no ideário


patriarcal, reflete e realimenta a situação de subordinação das mulheres, sempre nessa aporia
de dominação-exploração (SERAFIM, 2010, p. 323).
Diante disso, deve-se esclarecer que a pedra de toque da teoria feminista do direito é
o patriarcalismo, a análise das regulações legais que buscam manter e legitimar as opressões
de gênero, o machismo que repercute, em demasia, na esfera jurídica e, inevitavelmente,
encontra-se arraigada no meio social, institucionalizada, por assim dizer, bem como o senso
de justiça do direito sob a ótica feminina.
É válido mencionar que existem diversas subdivisões da teoria feminista do direito
que possibilita a discussão e análise das diversas particularidades dos grupos femininos, sendo
as principais correntes a liberal e a marxista, dentre tantas outras.
O grande questionamento da teoria feminista liberal que se faz é o porquê da ausência
de uma abertura do direito às mulheres, possibilitando que usufruam da mesma condição
normativamente imposta e que, injustificadamente, é direcionada apenas os homens e, neste
diapasão, ressaltando que não se deve tomar como parâmetro a dicotomia homem/mulher
como único critério para a diferenciação da proteção jurídica (SANTOS, 2015, p. 298).
Quanto a teoria feminista ancorada na perspectiva marxista em que as divisões
sociais, tratando não só da subordinação de classe, mas, sobretudo, da subordinação sexual,
inserindo a mulher no mundo do trabalho, é um reflexo do capital e das distinções materiais
da sociedade, sendo que os bens produzidos, e necessários à vida humana, reproduzem a
exploração as mulheres (SANTOS, 2015, p. 299).
Essa corrente feminista percebe no direito a manutenção do patriarcado, sendo este
um “sistema de pensamento e uma prática social de afirmação do poder dos homens contra as
mulheres, que se expressa principalmente sobre o corpo delas” (RABENHORST, 2011).
Tendo em conta que há uma imposição no ambiente de trabalho por uma divisão sexual, que
desde os primórdios o homem é remunerado por seu esforço físico, sendo responsável pela
produção e desenvolvimento social, enquanto à mulher restam os cuidados do lar e dos filhos,
sendo lhe imposta uma condição de subordinação ao marido, na esfera familiar.
Marina França Santos (2015, p. 300) explica da seguinte forma:

Contribuem as teorias feministas marxistas, desse modo, para o


aprofundamento das reflexões jurídicas, a partir da crítica do poder
masculino e da produção da alienação em relação às mulheres, na
medida em que identificam o papel do Direito, produto dessa
infraestrutura, como reprodutor da dominação e da exploração
capitalista (SANTOS, 2015, p. 300).

Assim, vê-se que a estrutura jurídica é eminentemente masculina, exercendo um


papel importantíssimo para a perpetuação das discriminações de sexo/gênero, buscando a
teoria crítica feminista do direito analisar e provocar o pensamento sobre a prática jurídica em
relação as diversas identidades que ele “produz, reforça e oprime” (SANTOS, 2015, p. 305),
tentando estabelecer, com base na diversidade de sujeitos, uma alternativa para a
emancipação. Assim, conclui Santos (2015, p. 307):

As críticas feministas ao Direito agregam, assim, à Filosofia do


Direito, a habilidade de expor contradições dos discursos jurídicos e
estruturas de poder e de detectar pontos de vista e perspectivas
silenciadas na prática jurídica. A contribuição central do feminismo
ao Direito como ferramenta analítica crítica consiste, em suma, no
discernimento da invisibilidade das mulheres como sujeitos de direito,
da naturalização dessa invisibilidade nos discursos de elaboração, de
interpretação e de aplicação do Direito, e das consequências
prejudiciais e contrárias aos próprios postulados jurídicos de garantia
de direitos e de concretização de uma sociedade substancialmente
democrática.

Após esta breve análise das teorias críticas feministas mais relevantes,
principalmente, para a análise do sistema de trabalho brasileiro, teoria esta utilizada como o
aporte teórico deste artigo, passaremos a esmiuçar as mudanças trazidas pela lei nº 13.467/17,
que atinge direta ou indiretamente a relação de trabalho das mulheres e que perpetuam as
desigualdades de sexo/gênero, pautadas ainda num ideário patriarcal de sociedade.

5. Reforma trabalhista e as questões de gênero

5.1. Conciso histórico das conquistas femininas no mercado de trabalho

Durante a evolução social das civilizações humanas e das formas de sobrevivência,


foi possível perceber o quão arraigado e dominante é o sistema patriarcal. O desenvolvimento
da agricultura, no início da história, mostra, de maneira latente, o nascedouro das
desigualdades de gênero.
Isto é, nos primórdios, tanto a mulher quanto o homem eram responsáveis pela coleta
e caça, ambos contribuíam igualmente com bens econômicos para a mantença familiar, visto
que um fator importante, nesse período, era a baixa natalidade.
Outrossim, leciona Stearns o que segue (2010, p.32):

O deslocamento da caça e coleta para a agricultura pôs fim gradualmente a um


sistema de considerável igualdade entre homens e mulheres. Na caça e na coleta,
ambos os sexos, trabalhando separados, contribuíam com bens econômicos
importantes. As taxas de natalidade eram relativamente baixas e mantidas assim em
parte pelo aleitamento prolongado. Em consequência disso, o trabalho das mulheres
de juntar grãos e nozes era facilitado, pois nascimentos muito frequentes e cuidados
com crianças pequenas seriam uma sobrecarga. A agricultura estabelecida, nos
locais em que se espalhou, mudou isso, beneficiando o domínio masculino. À
medida que os sistemas culturais, incluindo religiões politeístas, apontavam para a
importância de deusas, como geradoras de forças criativas associadas com
fecundidade e, portanto, vitais para a agricultura, a nova economia promovia uma
hierarquia de gênero maior. Os homens agora eram responsáveis, em geral, pela
plantação; a assistência feminina era vital, mas cabia aos homens suprir a maior
parte dos alimentos. A taxa de natalidade subiu, em parte porque os suprimentos de
alimentos se tornaram um pouco mais seguros, em parte porque havia mais
condições de aproveitar o trabalho das crianças. Essa foi provavelmente a razão
principal de os homens assumirem a maior parte das funções agrícolas, já que a
maternidade consumia mais tempo. Dessa forma, as vidas das mulheres passaram a
ser definidas mais em termos de gravidez e cuidados de crianças. Era o cenário para
um novo e penetrante patriarcalismo.

Isto é, a mudança da caça e da coleta para o sistema agrícola fez surgir a divisão de
tarefas em que a mulher, com o desenvolvimento das religiões ligadas a fecundidade, passou
a ter a obrigação de cuidar dos filhos já que, quanto mais o casal tivesse descendentes, melhor
seria, enquanto o homem, por consequência, passou a ser o provedor do lar (STEARNS,
2010).
Com o passar do tempo, e diante da evolução social, é perceptível a fortificação desse
sistema de dominação masculina, visto que quanto mais se desenvolvia as civilizações menos
poder a mulher tinha, isto é, a mulher deveria ter respeito ao pai, no início de sua vida, ao
esposo, posteriormente, sendo sempre subordinada a alguma figura masculina do ciclo
familiar. Tanto é que as mulheres eram sempre educadas a serem submissas ao homem, sem
qualquer direito igual ao deste. Conforme se extrai do entendimento de Nicolson (1996 apud
Nogueira, 2001, p. 132):

Embora o conceito de patriarcado possa ter uma variedade de definições, apesar de


originalmente ter sido usado para descrever a autoridade do pai na família, é
atualmente a forma mais comum de descrever o contexto e o processo através dos
quais os homens e as instituições dominadas por homens promovem a supremacia
masculina.

A situação da figura feminina no mercado de trabalho nem sequer foi considerada


durante um bom tempo. Ocorre que, com as guerras mundiais, enquanto os homens iam para
o campo de batalha, as mulheres passaram a ocupar os postos de trabalho para a manutenção
e desenvolvimento econômico, importante salientar que, num primeiro momento, os salários
pagos às mulheres eram inferiores aos que eram pagos aos homens, além de elas não serem
reconhecidas ou valorizadas. Sabe-se, também, que as mulheres se submetiam a qualquer
condição para não perder seu emprego, inclusive, às jornadas de trabalho excessivas. Com o
fim da guerra e o consequente retorno dos homens, elas tiveram que ceder seus postos de
trabalho, agora conquistados, por força de pressões sociais, passando a, novamente, cuidar
dos afazeres domésticos (NOGUEIRA, 2001).
As vitórias das mulheres no mercado de trabalho se deram pela luta do movimento
feminista, que exerce forte significado e lidera as lutas em busca do reconhecimento dos
direitos femininos no mundo. Com o auge dos embates sociais a partir dos anos 1960 o
feminismo passa a ser considerado como um movimento social que vem trazendo conquistas
consideráveis à luta feminina (NOGUEIRA, 2001).

5.2. Evolução histórica da legislação pátria evidenciando as conquistas femininas no


ambiente laboral

A busca pela igualdade e do reconhecimento universal de tal igualdade de gênero, no


intuito de evitar a distinção por sexo, cor, raça, religião, atinge, inevitavelmente, o âmbito
laboral. A primeira Constituição Brasileira que tratou sobre a questão foi a de 1934, em seu
artigo 113, inciso I, abordava a igualdade de todos, não admitindo privilégios nem
discriminações de qualquer origem. Nas palavras de Alice Monteiro de Barros, (apud BRITO,
p. 14. 2017):

Assegurava a igualdade de salário entre homens e mulheres e proibia o trabalho


destas últimas em condições insalubre, preconizava a assistência médica e sanitária
à gestante, garantindo-lhe um descanso antes e depois do parto, sem prejuízo do
salário e do emprego, preceitos estes já consagrados no Decreto n. 21.417-A,
de1932.

O conteúdo material da constituição, supramencionada, ainda abarcava a proibição


de diferenças de salário, na mesma atuação laboral, seja por motivo de idade, nacionalidade,
estado civil ou mesmo do sexo. Tal constituição, foi a responsável pelos sensíveis avanços,
posteriores, à proteção da trabalhadora. Com a ratificação pátria da Convenção nº 3 da
Organização Internacional do Trabalho, garantiu-se a licença maternidade à mulher, além do
intervalo para a amamentação, percebendo remuneração mesmo no referido período de
afastamento (BRITO, 2017).
Ocorre que, com a Constituição de 1937 a ideia de proibição de diferenças salariais,
tendo por justificativa o sexo, foi desmontada, com o Decreto-lei nº 1.396 de 1937, trazendo
explicitamente a possibilidade de diferença salarial, em franca discriminação à trabalhadora.
É que tal constituição, embora tenha trazido a ideia de “igualdade formal”, o
mencionado decreto, em contrapartida, expôs a possibilidade de redução salarial de 10% (dez
por cento), tendo por “justificativa as medidas de higiene e proteção que por si só oneravam
o trabalho feminino” (BRITO, 2017).
Nesse mesmo ano, foi ratificada a Convenção nº 4 da OIT, proibindo o trabalho
noturno às mulheres nas indústrias, sejam públicas ou privadas, sendo tal proibição
promulgada pelo Decreto-lei, acima informado, evidenciando o caráter patriarcal e moralista
de tal medida.
Mais uma vez, a Constituição Federal de 1946, trazia, em seu bojo, a ideia de
igualdade entre todos perante a lei, assim leciona Thereza Cristina Gosdal (apud, BRITO,
2017):

A Constituição de 1946 trouxe importantes medidas para os trabalhadores em geral,


mas nenhuma inovação no tocante ao trabalho da mulher. O texto relativo ao
princípio da igualdade constante da Constituição de 1937 foi mantido pela de 1946,
nos mesmos termos.
Já no ano de 1965, com a ratificação da Convenção nº 103, pelo Brasil, e a Convenção
nº 100, houve notório avanço na conquista das mulheres por igualdade de gênero em ambiente
laboral, é que, a primeira Convenção tratou do amparo à maternidade da obreira, e a segunda
dedicou-se a igualdade salarial entre homens e mulheres, quando exercendo as mesmas
atividades laborativas.
No mesmo sentido a Convenção nº111, tratando sobre discriminação em matéria de
emprego, assim dispôs: “toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo,
religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir
ou alterar a igualdade de oportunidade ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão”,
tal conceito se mostrou, à época, bastante democrático.
A Constituição de 1967 continuou preservando a “igualdade sem distinção de sexo,
raça, trabalho, credo e a Emenda Constitucional nº 1 de 1969 proibiu a diferença salarial por
motivo de sexo ou estado civil e também que mulheres trabalhassem em locais insalubres”
(BRITO, p. 17, 2017).
No ano de 1979 com a Convenção Internacional que tratou da eliminação de formas
de discriminação contra a mulher foi um importante avanço para as conquistas dos direitos
femininos, em âmbito trabalhista, já que tal Convenção evidenciou a situação de
vulnerabilidade em que a mulher estava sujeita, já que o constrangimento e a violência eram
constante, ocasionando desigualdade social, política e econômica. Trouxe, ainda, a
importância de os Estados efetivarem medidas de salvaguardar e efetivar os direitos. Vejamos
como o Brasil ratificou essa Convenção (BRITO, p. 17, 2017):

A Convenção foi ratificada pelo Brasil em 1984 com algumas ressalvas, como do
artigo 15, parágrafo 4º e artigo 16, parágrafo 1º, alíneas a,c,g e h. Apenas no ano de
1994, o Decreto nº 26 de 1994 aprovou integralmente o texto da Convenção. Dentre
os direitos que o Estado se comprometeu a assegurar estão: igualdade perante a lei,
direito de voto, direito de participação, direito ao acesso a serviços de saúde, direito
ao trabalho e oportunidades nas mesmas condições que os homens.

A Carta Magna de 1988 foi elaborada com o intuito de acabar com as discriminações
em razão do sexo garantindo igualdade de forma ampla, carreando o princípio da isonomia
tanto sob o aspecto formal como sob o aspecto material. Assim leciona Delgado (p. 880,
2017):

O Direito do Trabalho das últimas décadas, influenciado pelo advento da


Constituição de 1988, tem ainda descortinado um novo largo campo de proteções:
as que se voltam contra discriminações no âmbito da relação de emprego. É bem
verdade que normas justrabalhistas antigas já previam o combate à discriminação
de salários no contexto interno da empresa, através do instituto da equiparação
salarial. Contudo, hoje, no caso brasileiro, após a Constituição de 1988, têm se
alargado significativamente os temas postos em conexão com as ideias
antidiscriminatórias, gerando um campo de estudo novo e relevante no atual Direito
do Trabalho.

Os direitos dos trabalhadores trazidos pela Constituição Federal de 1988, em seu art.
7º, inciso XX, diz ipsis litteris que a “proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante
incentivos específicos, nos termos da lei”. No referido inciso, verifica-se que a Carta Magna
dá tratamento diferenciado à mulher, com o fito de, efetivamente, salvaguardar e garantir uma
maior proteção do mercado de trabalho feminino, igualdade esta não apenas formal, mas
principalmente material à confirmação do direito da mulher. No decorrer de todo o artigo,
verifica-se inúmeros outros direitos de índole protecionista ao mercado de trabalho feminino,
bem como a igualdade de gênero no ambiente laboral.
A Consolidação das Leis Trabalhistas, por seu turno, em seu texto original, proibia o
trabalho noturno pela mulher, a prorrogação do horário de trabalho sem a devida autorização
médica, os trabalhos subterrâneos, mineração, pedreiras, obras, sendo públicas ou privadas,
além de impedir, expressamente, o trabalho feminino em atividades perigosas ou insalubres,
sendo todas essas proibições revogadas pela lei nº 7.855/89. Tais modificações também foram
no sentido de proibir a interferência marital ou paterna no contrato de emprego da mulher.
Para Godinho,

Vários dispositivos da CLT foram revogados por não se compatibilizarem com a


Constituição, alguns expressamente retirados e outros de forma tácita. Nessa
consideração, o artigo 384 foi tacitamente revogado pela Carta Magna, uma vez o
que preceito é claramente discriminatório.

Por fim, a lei 13.467.17, conhecida como “Reforma Trabalhista”, objeto desse artigo,
trouxe, em seu bojo, diversos dispositivos com a finalidade de alterar a CLT, adequando a
legislação às novas relações de trabalho. Constata-se que tal normativa legal, e que melhor
discutiremos adiante, é um retrocesso dos direitos trabalhistas femininos até então
conquistados.

5.3. Ambiente laboral insalubre

Antes de adentrarmos na análise das mudanças trazidas pela legislação, em comento,


no tocante às mulheres gestantes/lactantes, é válido tecer algumas considerações do que vem
a ser um ambiente de trabalho insalubre e o que seria o adicional de insalubridade que aquelas
perceberão, visto que trabalharão nessas condições.
Ora, a preservação de um ambiente de trabalho saudável está intrinsecamente ligada
à saúde do trabalhador. Para o autor Ingo Sarlet a ideia de Dignidade da Pessoa Humana
caracteriza-se como um conceito em constante e permanente processo de reconstrução,
mostrando-se como uma noção que se estrutura através da evolução “histórico-cultural”.
Dessa forma, a referida dignidade humana também abarca o bem-estar ambiental,
importantíssimo para uma vida saudável e segura. Isto é, a preservação de um ambiente de
trabalho saudável vai muito além de uma garantia trabalhista, mas sim de um direito
fundamental (TRENTIN, 2017).
O artigo 7º, XIII, da Carta Magna de 1988, garante ao trabalhador a percepção do
adicional de insalubridade nos casos em que o obreiro atua em atividades penosas, insalubres
ou perigosas a sua saúde, na forma da lei, causando-lhe riscos próprios daquele exercício
laboral. A Consolidação das Leis do Trabalho em seus artigos 189 a 197, trata das atividades
insalubres e perigosas, só ensejando a percepção do referido adicional quando se enquadrem
nas atividades listadas no Ministério do Trabalho como sendo, de fato, insalubre ou perigosa,
consoante o art. 190 da CLT, bem como as Orientações Jurisprudenciais 4 e 173 da SDI-I do
TST (GODINHO, 2017).
A insalubridade no ambiente de trabalho é aquela que gera prejuízos a saúde do
trabalhador, acarretando doenças pela atribuição laboral que o mesmo exerce, expondo o
obreiro a agentes que são nocivos acima do que é tolerado. A CLT prevê o conceito de
insalubridade em seu artigo 189, em simetria com a noção de higiene do trabalho, estando o
trabalhador inserido nesse ambiente tem o direito à percepção de um salário maior, com a
inclusão do adicional de insalubridade, como uma forma de indenização pelos prejuízos por
ele sofridos. Tal previsão legal foi fortificada com a Norma Regulamentadora NR-15 da
Portaria nº.214/78 do MTE, regularizando os critérios objetivos à caracterização de tais
condições ambientais que dão ensejo ao adicional de insalubridade (TRENTIN, 2017).
Quanto ao grau de insalubridade, este é definido consoante o tipo do agente indutor
da condição prejudicial, a saber, o agente ruído, pelas suas peculiaridades, gera um adicional
de 20% (vinte por cento), porquanto o agente poeira, por ser de grau máximo, gera adicional
de 40% (quarenta por cento).

5.4 Modificações da reforma trabalhista permitindo erroneamente que a mulher


gestante/lactante trabalhe em ambiente insalubre
Ab initio, é válido mencionar a conclusão permitida pelo art. 3º, “e” , da Convenção
76

155, conforme indica que a saúde do trabalhador não significa, somente, ausência de
enfermidade, mas, do mesmo sentido, indica a inexistência de quaisquer circunstâncias
relacionadas ao labor que agrida a integridade física ou mental do obreiro, ainda que não
evidenciada através de sintomas (BELTRAMELLI, p. 197).
Ou seja, a proteção da saúde do trabalhador vai muito além de enfrentar as
consequências de um local de trabalho que cause prejuízos à saúde deste, isto é, da doença
instalada ou da lesão já ocorrida, abrangendo, também, a exclusão de toda situação de
exposição a risco. Diante disto, não se sustenta de per si a possibilidade de a mulher
gestante/lactante laborar em um ambiente insalubre, já que o potencial lesivo atinge não só
sua saúde, mas, principalmente, a saúde do feto. É, imperioso trazer a lume o seguinte trecho:

Pode-se projetar, pelas novas regras em discussão no Congresso Nacional, a


considerável ampliação do tempo de labor sem qualquer contrapartida, mesmo que
econômica, com óbvios impactos para a saúde física e mental do trabalhador. Além
disso, situações relacionadas à exposição do obreiro ou da obreira (inclusive
gestante) a agentes físicos, químicos e biológicos teve sua tolerância expandida e
seu nível de proteção legal reduzido ou passível de redução por pactuação
coletiva.(BELTRAMELLI, p. 200)

Com a aprovação da Lei nº13.467/1, que trouxe diversas mudanças no tocante aos
direitos da trabalhadora gestante/lactante, o que mais chama a atenção, objeto deste trabalho,
é o permissivo legal possibilitando que a gestante/lactante trabalhe em ambiente insalubre em
grau baixo ou médio, sendo afastada apenas no caso de insalubridade em grau máximo.
Vejamos, ipsis litteris:

Art. 394-A. "Sem prejuízo de sua remuneração, nesta incluído o valor do adicional
de insalubridade, a empregada deverá ser afastada de: I - atividades consideradas
insalubres em grau máximo, enquanto durar a gestação; II - atividades consideradas
insalubres em grau médio ou mínimo, quando apresentar atestado de saúde, emitido
por médico de confiança da mulher, que recomende o afastamento durante a
gestação; III - atividades consideradas insalubres em qualquer grau, quando
apresentar atestado de saúde, emitido por médico de confiança da mulher, que
recomende o afastamento durante a lactação".
§ 3º - "Quando não for possível que a gestante ou a lactante afastada nos termos do
caput deste artigo exerça suas atividades em local salubre na empresa, a hipótese
será considerada como gravidez de risco e ensejará a percepção de salário-
maternidade, nos termos da Lei no 8.213, de 24 de julho de 1991, durante todo o
período de afastamento § 3º".

O texto reformado do artigo 394-A da CLT, dizia que: “A empregada gestante ou

76 “Art. 3º Para os fins da presente Convenção: [...] e) o termo ‘saúde’, com relação ao trabalho, abrange não
só a ausência de afecções ou de doenças, mas também os elementos físicos e mentais que afetam a saúde e
estão diretamente relacionados com a segurança e a higiene no trabalho”.
lactante será afastada, enquanto durar a gestação e a lactação, de quaisquer atividades,
operações ou locais insalubres, devendo exercer suas atividades em local salubre”.
Tal mudança legislativa traz uma mudança significativa, pois, a partir de então, a
gestante que estiver laborando em ambiente insalubre, em grau baixo e médio, precisará de
um atestado de saúde, emitido por um médico de sua confiança, que confirme sua capacidade
ou incapacidade em trabalhar em ambiente que possua elemento nocivo à saúde, sem que seja
uma pressuposto lógico de tal condição gestacional.
Já no que se refere à lactante, a norma traz um tratamento diferente. Isso pois,
quando no período de amamentação, a mulher só se afastará do exercício de suas atividades e
operações em ambientes insalubres, em qualquer grau, "quando apresentar atestado de saúde,
emitido por médico de sua confiança, do sistema privado ou público de saúde, que recomende
o afastamento durante a lactação", sem a presunção de afastamento quando no grau máximo,
necessitando apresentar o documento médico para que possa se afastar das suas funções.
Ora, é fato que a situação única da mulher gestante e, principalmente, da saúde do
feto não foram levados em consideração na reforma trabalhista, é que impor condições para a
concessão do afastamento compulsório, impossibilitará que as mulheres procurem o referido
direito, podendo causar futuros danos à saúde dela e de seu filho. Isto é, a nova disciplina legal
demonstra claro retrocesso na salvaguarda jurídica da vida e da saúde da gestante e do
nascituro ao inverter uma presunção absoluta de dano (MELO, 2017).
Outrossim, tal tolerância de que a gestante labore em ambiente insalubre, ainda que
seja em grau baixo ou médio, só demonstra o descaso da novel legislação no tocante aos
direitos trabalhistas, mostrando-se totalmente em descompasso com a evolução do direito das
trabalhadoras até então alcançados, é que, é notório que a trabalhadora, na defesa de sua
mantença, inclusive no caso de estar com mais uma responsabilidade a caminho, como é o
caso da gestante, não irá se contrapor aos desejos e devaneios do empregador e não irá atrás
de laudo médico para se afastar do local de trabalho que lhe for designado, com permissivo
legal para tanto.
Conforme leciona o Procurador Regional do Trabalho, aposentado, Raimundo Simão
de Melo, em seu artigo científico “Reforma erra ao permitir atuação de grávida e lactante em
local insalubre”, pode-se questionar, com tais condições impostas por esta lei, se os atestados
médicos serão reais garantias de proteção à saúde do feto e da mulher, já que “o médico pode
não ter o conhecimento específico necessário sobre segurança no trabalho e não ir examinar
o local de trabalho”. De fato, o profissional médico que der o referido atestado afirmando que
a mulher tem permissão de trabalhar em local insalubre, sem quaisquer riscos para ela e para
o nascituro, assumirá uma exorbitante responsabilidade, tanto no âmbito civil quanto no
âmbito penal. É o que se extrai do seguinte trecho (BRITO, p. 34, 2017):

Para a Associação Nacional de Medicina do Trabalho, ANAMT, o dispositivo


transfere a responsabilidade para a gestante e o médico, que nem sempre tem as
informações necessárias para tomar esse tipo de decisão52. A Associação Paulista
de Medicina do Trabalho, APMT, entende que, embora a lei fale em um profissional
de confiança da mulher, somente um médico do trabalho tem condições de dizer se
o nível de insalubridade de atividade pode ou não oferecer riscos à gravidez um
profissional de fora não tem como conhecer a realidade de uma empresa, o que
apenas dificulta a liberação desse atestado. Ambas as associações acreditam que as
grávidas não deveriam ser expostas a locais insalubres.

Sabendo que, para se resguardar, os médicos terão que “examinar o ambiente de


trabalho e ouvir as duas partes e colegas de trabalho da mulher.” Por conseguinte, sob esse
aspecto, será difícil a aplicação na prática dessa alteração legislativa (MELO, 2017).
Outro ponto levantado pelo referido autor, diz respeito ao fato de que, o trabalho em
ambiente insalubre, pode não só afetar a saúde da mulher, como também a saúde dos recém-
nascidos e quiça manifestar as consequências de tal situação laboral quando já adultos,
promovendo-se, em decorrência, “padrão predatório da força de trabalho já antes do
nascimento dos futuros trabalhadores, quando começarão a ser atingidos por agentes
contaminantes de adoecimento”(MELO, 2017).
Isto é, os recém-nascidos expostos aos mais diversos locais com graus de
insalubridade seja médio ou leve, poderão ser afetados por doenças advindas dessa exposição
no ambiente laboral de forma secundária, com consequências drásticas e, até mesmo,
irreversíveis (BRITO, 2017).
Tendo como fulcro o previsto no artigo 6º, que dá proteção à maternidade, no mesmo
patamar das cláusulas pétreas do artigo 60 da Constituição Federal de 1988, sem adentrar nas
diversas discussões doutrinárias sobre o tema, não há que se falar da possibilidade de recepção
formal do conteúdo do artigo 394-A da referida reforma trabalhista, ora tal dispositivo está
em franco confronto com o texto constitucional, já que submeter uma trabalhadora gestante
ou lactante a locais insalubres, independentemente do grau de insalubridade do ambiente
laboral, não se mostra como uma proteção à maternidade, pelo contrário, evidencia-se como
uma clara violação(BRITO, 2017).
Ora, tal permissivo legal, ora em análise, nada mais é que uma forma de perpetuação
das desigualdades de gênero e subjugação da mulher aos ditames patriarcais, visto que terá
que abdicar das conquistas históricas e arriscar o bem-estar seu e de seu filho/a para garantir
a mantença familiar e não perder o emprego. Permitir que a gestante/lactante submeta-se a
ambiente de trabalho insalubre coloca em evidência a inescrupulosa indiferença social aos
direitos das mulheres, já que a estrutura jurídica é eminentemente masculina, exercendo, com
louvor, o papel de manutenção e ampliação das discriminações de sexo/gênero,

6. Considerações Finais

Como já foi mencionado as relações de trabalho sofreram gradativas alterações,


durante o curso da história. Foram inúmeras as lutas pela igualdade de gênero e de
reconhecimento das mulheres e de seu papel social. É cediço que a mulher foi silenciada,
durante anos, por uma sociedade dominada por preceitos masculinos, ela foi marginalizada e
privada de muitos direitos, a inserção feminina no mercado de trabalho foi tardia e marcada
por essa ideia de divisão entre trabalho remunerado e o trabalho doméstico, este último sempre
exercido pela mulher.
As conquistas no âmbito jurídico, além de demorarem para ocorrer, foram frutos das
mais diversas lutas no movimento feminista e serviram para proteger as mulheres e combater
a discriminação, sempre tão latente. Como vimos, a CF/88 é um valioso instrumento na
constante busca pela igualdade fática, já que restou consagrada a igualdade de gênero formal
e material.
No entanto, mesmo após tantas conquistas e lutas diárias das mulheres, a
desigualdade fática ainda persiste, é nesse sentido que se percebe que existe a necessidade de
avaliação das consequências dessa reforma trabalhista que trouxe inúmeros prejuízos à classe
trabalhadora, conquanto deixou evidente os benefícios aos empregadores. O permissivo legal,
objeto desse trabalho, que possibilita a mulher gestante/lactante trabalhar em ambiente
insalubre evidencia sobremaneira o caráter predatório do capitalismo tão questionado pela
teoria crítica, mostrando-se uma medida instrumentalizada de gerar capital para os grandes
empresários.
A Lei nº 13.467/17 é uma clara afronta aos ditames constitucionais de proteção à
classe trabalhadora, mostrando-se como um verdadeiro retrocesso social e, como analisado,
os impactos aos direitos femininos foram ainda maiores. O Ministério Público do Trabalho
(MPT), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Nacional dos Magistrados
da Justiça do trabalho (ANAMATRA) dentre outros, se pronunciaram contra a Reforma
Trabalhista publicando notas de repúdio, visto que tal lei careceu de participação popular e
acarretará danos irreparáveis à classe trabalhadora.
7. Referências bibliográficas
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IMPACTOS DA REFORMA TRABALHISTA E A SITUAÇÃO DA
TRABALHADORA GESTANTE NESSE CONTEXTO 77

Marcos Henrique Carneiro


Fonseca78
Larissa Fernanda Vasconcelos
Coutinho79

RESUMO

Trata-se de uma abordagem crítica à Reforma Trabalhista, Lei nº 13.467, buscando


compreender os impactos dessa legislação para os trabalhadores, com enfoque especial na
mulher gestante e lactante. O texto se desenvolve por meio de uma linha crítica, a partir de
cuidadosa seleção bibliográfica, propondo, em uma abordagem sucinta, trazer um panorama
geral desde os princípios que norteiam o direito do trabalho até a reforma propriamente dita,
bem como discutir seus deslindes e ecos de repercussão dentro do mundo jurídico. Ademais,
são feitas considerações sobre a Medida Provisória 808/2017, levando-se em conta a tentativa
que esta representou de minimizar as críticas à reforma, especificamente em matéria de direito
da mulher gestante, âmbito que se tornou alvo de discussões acerca de constitucionalidade.
Torna-se nítida, sob a ótica do rol de fontes consultadas, a existência de flexibilizações no
campo do direito trabalhista, de modo que nos parecem legítimos tais questionamentos que
reverberam entre os estudiosos da esfera jurídica em questão.

Palavras-chave: Reforma Trabalhista. Impactos. CLT. Mulher Gestante. Lactante.

1. INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 revolucionou o direito brasileiro, trazendo grandes


inovações em seu texto e representando importante avanço social. Imprescindível citar, pois,
o Princípio da Isonomia, incorporado pela Constituição explicitamente em seu art. 5º, caput e
inciso I, que iguala mulheres e homens, deixando claro não haver entre eles distinções quanto
aos direitos ou deveres.
Pois bem, partindo dessa premissa, foi possível observar que o Direito do Trabalho
tentou se adequar à nova realidade constitucional do país, ao ponto que buscou dirimir as
discriminações acerca do trabalho da mulher, o qual tinha uma série de restrições, a exemplo
de não poderem trabalhar em horário noturno ou não fazer hora extra. Essa conquistas levaram

77
Grupo de trabalho: Direito, Trabalho e Saúde
78
Graduando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Estagiário do Tribunal Regional do
Trabalho - 6ª Região. Email: marcos-hcf@hotmail.com.
79
Graduanda em direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Estagiária do Ministério Público de
Pernambuco. Email: larissa.x8@hotmail.com.
a mulher a ascender no âmbito trabalhista tendo não só uma ampliação na sua área de atuação,
como também nos direitos atinentes ao gênero, que englobam a proteção das gestantes e a
lactantes.
Diante desse panorama de sucessivos avanços no direitos das mulheres, surge em 2017
um Projeto de Lei nº 6787/2016, de autoria de Michel Temer, que tinha como objetivo realizar
uma Reforma na Legislação Trabalhista, com animus de modernizar e simplificar as relações
de trabalho, além de possibilitar uma redução no texto legal buscando diminuir a sua
complexidade. O PL 6787/2016, então, tramitou no Congresso e foi sancionado em 2017, se
tornando a Lei 13.467, mais conhecida como Reforma Trabalhista, sendo esta objeto de
inúmeros questionamentos, figurando como problema central da presente pesquisa.
Nesse contexto, visualizamos na Lei 13.467/2017 um campo amplo para o debate e
buscamos evidenciar algumas controvérsias que surgiram após a sua vigência. Além disso,
procuramos discutir brevemente acerca da frustrada Medida Provisória 808/2017, que tentou
atenuar o novo texto trazido pela Reforma e os impactos disso para a sociedade.
No mais, o presente trabalho tem como escopo uma análise crítica acerca da Lei nº
13.467/2017, partindo de um panorama geral sobre as consequências e mudanças
implementadas pela Reforma Trabalhista no âmbito laboral do trabalhador através das mais
diversas e atualizadas fontes doutrinárias, trazendo os diferentes entendimentos e
posicionamentos acerca das alterações advindas da Lei 13.467.
Nesse sentido, buscamos esmiuçar o posicionamento desses estudiosos do Direito do
Trabalho no que tange à implementação da Reforma Trabalhista, dando um recorte especial
na pesquisa para compreender e refletir acerca dos impactos da reforma para a trabalhadora
gestante ou lactante e nos propomos, principalmente, a proporcionar uma maior reflexão
acerca dos impactos e consequências da nova Lei Trabalhista para os diversos setores da
sociedade.

2. VISÃO GERAL ACERCA DOS PRINCÍPIOS DO DIREITO DO TRABALHO

O Direito do Trabalho emerge em um contexto pós desenvolvimento burguês,


enquanto a sociedade passava por uma insurreição econômica e cultural graças à Revolução
Industrial que teve início no século XVIII, transformando os meios e a carga de trabalho, além
da remuneração e demais garantias dos trabalhadores que eram explorados e submetidos à
jornadas desgastantes de trabalho e condições desumanas. Em observância aos anseios sociais
da época, o Estado passa a intervir nas relações de trabalho buscando proteger o trabalhador
da exploração e dos abusos do empregador através de uma legislação protecionista do elo mais
fraco da relação empregatícia. (GARCIA, 2018)
É nesse contexto que surgem as bases para as legislações que buscam salvaguardar o
direito dos hipossuficientes com a consagração de princípios norteadores e basilares do Direito
do Trabalho que, segundo Godinho (2017, p. 201), traduzem proposições fundamentais que
se formaram na sociedade e nos grupos sociais da época, ao se deparar com a realidade da
exploração capitalista, que buscou compreender e recriar essa realidade.
Godinho (2017) traz à tona uma generalidade de princípios norteadores do direito
como um todo, que também se aplicam ao Direito do Trabalho, tais como a inalterabilidade
dos contratos, o pacta sunt servanda, a lealdade e, ainda, o princípio da boa-fé. Contudo, nos
interessa dar maior ênfase aos princípios que norteiam o Direito do Trabalho e balizam a
elaboração das normas, o entendimento das decisões jurisprudenciais e primam pela proteção
do hipossuficiente, sendo esses também consagrados na Constituição Federal.
Nesse diapasão, faz-se mister destacar alguns dos princípios basilares das relações
trabalhistas da atualidade. São eles: princípio da proteção, que engloba três vertentes: i) in
dubio pro operario, do qual se depreende que no caso de uma norma jurídica ser entendida de
vários modos a interpretação deve ser em favor do empregado; ii) aplicação da norma mais
favorável, ou seja, diante de diversas normas válidas, prevalecerá a que for mais benéfica ao
trabalhador; iii) condição mais benéfica, que implica na manutenção, durante o contrato de
trabalho, da prevalência dos direitos mais vantajosos para o trabalhador (GARCIA, 2018, p.
75-77).
Além do princípio supracitado, Garcia (2018) ainda menciona a existência do princípio
da irrenunciabilidade, que consiste em não se admitir que o empregado renuncie direitos
assegurados pelo sistema jurídico. Ele disserta, ainda, sobre o importante princípio da
primazia da realidade, que busca fazer prevalecer a realidade dos fatos, de forma que relações
contratuais, mesmo que não sejam formalmente consagradas, mas que preencham os
requisitos, sejam reconhecidas pelo ordenamento jurídico e o empregado possa gozar dos
direitos que lhe são devidos. Saliente-se, ainda, o princípio da continuidade da relação de
emprego, consagrado também na Constituição Federal em seu art. 7º, inciso I, o qual prevê a
proteção do trabalhador contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa pelo empregador.
Godinho (2017, p. 218) traz, também, o princípio da inalterabilidade contratual lesiva,
o qual dispõe que as convenções outrora firmadas pelas partes não podem ser unilateralmente
modificadas no curso de sua vigência, principalmente para condições que prejudiquem o
trabalhador, colocando-o em condição precária ou inferior em relação ao que possui no
contrato já firmado.
Entretanto, com o advento da Reforma Trabalhista, consolidada através da Lei
13.467/2017, muitos desses Princípios acima mencionados e antes tidos como verdades
fundantes e balizadoras de todo um sistema normativo trabalhista se viram relativizados e
flexibilizados por uma mudança radical no sistema de regulação do trabalho no Brasil, o que
nas palavras da desembargadora do TRT 4, Magda Biavaschi (2017, p.195), proporcionou
uma “caminhada de regresso a tempos anteriores”.

3. REFORMA TRABALHISTA: AVANÇO OU RETROCESSO?

O contexto globalizador, sustentáculo notório dos impulsos contemporâneos de


fenômenos sociais e econômicos sob uma ótica macro, encontra ecos de influência inegáveis
nas renovações de estruturas jurídicas verificadas nos últimos anos. No direito trabalhista
brasileiro, ipso facto, tem-se visualizado um panorama renovatório ligado a um quadro
econômico nacional que, afligido por crise, tende por um processo no meio jurídico deveras
temeroso, no qual fica nítida uma certa contraposição à caminhada vivenciada ao longo do
século XX em direção à constitucionalização de direitos sociais, flexibilizando-se direitos
trabalhistas (SARLET, 2015).
Nessa senda, tem-se um contexto de paulatino processo de perda de autoridade dos
mecanismos do direito, o qual aparece na conjuntura do fenômeno de globalização
(SARMENTO, 1999). As várias modificações propostas pela Reforma, continuamente
denunciadas no meio jurídico como inconstitucionais, se mostram, nesse bojo, fruto da
emergência de sanação de pressões econômicas, recaindo sobre mecanismos de direitos
sociais instrumentalizados na CLT.
A Reforma, pois, encontrou o início de sua curta tramitação na proposta do Projeto de
Lei nº 6.787 de 2016. Aprovado na Câmara, seguiu para o Senado, recepcionado sem novas
alterações, sob expectativas de uma posterior medida provisória (que, a posteriori, se
mostraram frustradas na MP 808 não votada) e encontrava alicerces nas contínuas
justificativas apoiadas na alegada necessidade de modernização da legislação trabalhista, e
urgência de minimização de índices de desemprego e sopro na economia nacional.
A reforma, materializada na Lei nº 13.467, é, pois, passível de ser considerada,
conforme aludem Paulo e Alba Silva (2017, p. 2) como o fato mais importante na história
brasileira do Direito do Trabalho desde o marco da criação da CLT. Uma das mais notáveis
novidades trazida no bojo da reforma é a prevalência do negociado sobre o legislado,
aparecendo como um instrumento com o intento de frear os altos índices de desemprego. Em
parecer elaborado pela Comissão Especial sobre o projeto de lei que originou a reforma,
defendeu-se tal alteração como de grande relevância para uma ampliação de negociações,
apontando a participação de sindicatos nos últimos anos. Propugna-se, assim, no relatório, a
necessidade de fortalecimento das estruturas sindicais a fim de superar as alegadas
hipossuficiências existentes nas negociações, de modo a “não fechar os olhos para a outra
realidade”.
“A outra realidade”, no entanto, destacada pelo relator, se mostra caracterizada pela
falta de representação de vários sindicatos, bem como, nas palavras do mesmo, com a
proliferação de “sindicatos de fachada”. Trata-se, pois, de uma realidade, sobre a qual a
referida alteração pode representar um peso negativo sobre a garantia dos direitos trabalhistas
de classes que se encontram “representadas” por defasadas estruturas de organização, de modo
que a alteração se mostraria benéfica apenas a algumas parcelas de trabalhadores.
O Ministério Público do Trabalho, em relevante nota técnica, durante a tramitação do
projeto que gestou a reforma, se manifestou no sentido de dar destaque às situações de
preocupantes problemas existentes na realidade brasileira da atuação sindical, as quais erigem
vários óbices à discussão de uma possível prevalência do negociado sobre o legislado
conforme estabelece a reforma. Faz oposição, então, à aludida premissa de que os sindicatos
dispõem de todos os mecanismos para a concretização da defesa de suas categorias. A
realidade das atividades sindicais se mostra, por outro lado, manchada por práticas
antissindicais, conforme aponta o órgão, de modo que este se depara cotidianamente com
atuações tendentes a sufocar atividades livres e independentes da estrutura sindical, assédio a
trabalhadores inseridos em assuntos dos sindicatos, impedimentos ao exercício de greve etc.
Adriane Reis de Araujo e Marcelo José Ferlin (2017, p. 26), em excelente explanação,
destacam, na reforma, uma pretensão de redução do poder fiscalizatório do Poder Judiciário,
em um quadro caracterizado pelos autores como de grande “permeabilidade do Estado
brasileiro ao poder econômico’’. Aludem os autores, nesse sentido, ao princípio da proteção,
segundo o qual prevalece a condição mais benéfica e a norma que seja mais favorável ao
trabalhador devendo, em caso de dúvida, incidir uma interpretação em favor deste, o qual foi
alvo de uma série de rearranjos hermenêuticos. Nessa senda, conforme prelecionado pelo
Ministério Público, sob a ótica da consideração do panorama geral, a reforma abriu portas
para um desmantelamento de direitos trabalhistas.
4. FRUSTRAÇÃO DA MEDIDA PROVISÓRIA 808 E SUAS CONSEQUÊNCIAS

A Reforma Trabalhista, materializada na Lei 13.467/17, teve sua publicação no Diário


Oficial no dia 14 de julho de 2017, contudo, só passaria a ter vigência em 11 de novembro do
mesmo ano. Nesse ínterim, muitos foram os questionamentos acerca das modificações
trazidas pela Lei 13.467/17 à legislação trabalhista e ficaram evidentes diversos dispositivos
dissonantes dos princípios gerais do Direito do Trabalho e que, claramente, feriam diversos
direitos consagrados dos trabalhadores urbanos e rurais.
Diante desse cenário, surge a Medida Provisória 808/2017 que veio com o intuito de
minimizar os danos causados pela Reforma Trabalhista e, nas palavras de José Aparecido dos
Santos (2017, p.53), introduzir novas modificações aos textos anteriores transformando a
reforma em um “emaranhado complexo de difícil sistematização”.
Poucos dias após o início da vigência da reforma, a Medida Provisória 808/2017 veio
ao mundo jurídico, contudo, mesmo o Congresso Nacional possuindo 04 (quatro) meses para
aprovar a Medida, restou silente e não a apreciou, o que fez com que a mesma viesse a caducar
por força do excesso de prazo. Insta destacar que as consequências jurídicas e sociais da
inércia do Congresso Nacional em relação à Medida Provisória são imensas e nefastas, visto
que uma série de distorções implementadas com a Reforma, que seriam atenuadas com a
Medida Provisória, se consagraram, em decorrência da inércia dos Deputados e Senadores
(SOUTO MAIOR, 2018).
Nesse sentido, é interessante destacar alguns pontos importantes tocados pela MP 808,
que traziam uma diferença significativa e prática para os trabalhadores. Dentre os principais,
estão a jornada de trabalho com o horário de 12x36 - a qual seria objeto somente de
negociações coletivas - e com o texto da Reforma podem também ser negociadas por meio de
acordo individual entre o empregado e o empregador.
Ressalte-se, ainda, outro ponto importante mencionado pela MP 808/2017, o que se
refere ao trabalhador autônomo, que como satisfatoriamente salienta o professor Paulo Sérgio
João (2018), houve um trabalho esmiuçado em relação às suas condições e garantias que, no
entanto, sem a aprovação da Medida, se limitam ao art. 442-B da CLT, que restringe e cria
obstáculos ao gozo de direitos e garantias por parte desses trabalhadores.
Além desses pontos, para o presente trabalho, é imprescindível destacar os impactos
da frustração da Medida Provisória 808/17 para a trabalhadora gestante, no que tange às
questões da insalubridade e afins. Pois bem, a mulher em situação de maternidade - gestante
ou lactante - sempre gozou de uma proteção maior no âmbito jurídico e social que se refletia
também na Consolidação das Leis Trabalhistas, em razão da situação de maior fragilidade que
se encontra quando grávida ou lactante. Entretanto, com a Reforma, muitas dessas garantias
foram mitigadas e as mulheres foram expostas a uma situação de maior vulnerabilidade. Com
base nesse contexto, a MP 808/2017 procurou reduzir os impactos da Reforma para esse grupo
proibindo o trabalho em ambientes insalubres em qualquer grau, obrigando o empregador a
transferir a mulher gestante ou lactante para ambientes salubres com a perda do adicional de
insalubridade. Paulo Sérgio João (2018) destaca que com a caducidade da MP 808, a
possibilidade do trabalho em locais insalubres de graus mínimo e médio retornam, só podendo
ser afastadas com recomendação de médico de confiança da gestante. Acrescente-se, ainda,
no quesito da permanência do trabalho da mulher em condições insalubres, o fato de que a
empregada continuaria recebendo o adicional relativo à essa situação, além de que haveria a
compensação - para fins previdenciários - na folha de pagamento, o que não desconstrói ou
minimiza todo o potencial dano gerado à mulher e ao feto submetidos a essas condições.
O exposto acima evidencia apenas alguns pontos dissonantes da Lei 13.467/2017 com
as normas que protegem o trabalhador e que seriam mitigados com a Medida Provisória
808/2017 a qual, por inércia do Congresso Nacional, não foi apreciada.

5. IMPACTOS DA REFORMA TRABALHISTA NA EMPREGADA GESTANTE

Entre as alterações advindas da Lei 13.467 está o disposto no artigo 394-A, o qual abre
novas possibilidades de efeitos negativos da reforma, especificamente no âmbito da
maternidade, ao autorizar a exposição de gestantes e lactantes à insalubridade no trabalho. A
discussão no meio jurídico sobre a temática em voga é intensa, com notórias alegações de
inconstitucionalidade sobre a letra da lei do citado dispositivo, o qual se faz mister registrar,
in verbis:

Art. 394-A. Sem prejuízo de sua remuneração, nesta incluído o valor do adicional de
insalubridade, a empregada deverá ser afastada de:
I - atividades consideradas insalubres em grau máximo, enquanto durar a gestação;
II - atividades consideradas insalubres em grau médio ou mínimo, quando apresentar
atestado de saúde, emitido por médico de confiança da mulher, que recomende o
afastamento durante a gestação;
III - atividades consideradas insalubres em qualquer grau, quando apresentar atestado de
saúde, emitido por médico de confiança da mulher, que recomende o afastamento durante
a lactação.

O artigo alterado pela reforma estabelece uma autorização em relação ao trabalho de


mulheres grávidas e lactantes em locais insalubres que sejam de grau médio ou leve, desde
que não haja a apresentação um atestado médico proibindo a atividade. Nesse âmago, Claudia
Brum Mothé (2017) destaca que não é possível afirmar que todos os atestados médicos, ou a
falta deles, carregarão uma garantia, considerando situações em que o médico não tenha
conhecimentos sobre a segurança no trabalho mais específicos, nem garantia de que o médico
poderá proceder a uma análise in loco, indo até o local de trabalho.
Ainda no prisma da insalubridade, cabe pontuar, entre os impactos à gestante, a
possibilidade de enquadramento do grau de insalubridade através de acordos ou convenções
coletivas. O artigo 444, teve acréscimo do parágrafo único (pela Lei 13.467) o qual estabelece
a possibilidade de estipulação sobre a matéria em convenção coletiva e acordo coletivo de
trabalho, conforme as hipóteses do artigo 611-A (entre elas está o grau de insalubridade) e no
caso de ser portador de diploma de nível superior e que perceba salário mensal igual ou
superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.
Vólia Bonfim (2017, p. 22), nessa senda, alerta para a indisponibilidade de direitos trabalhistas
com previsão em lei, além do fato de serem irrenunciáveis e intransacionáveis. Ainda, na seara
da maternidade, tal artigo foi alvo de atividades interpretativas na 2ª Jornada de Direito
Material e Processual do Trabalho (Enunciado 55) no sentido de entender pela proibição, por
parte de gestantes, de estipulação de direitos firmados na Constituição Federal que afetem a
sua integridade (citando o enquadramento de grau de insalubridade e prorrogação de jornada),
mesmo que sejam “hipersuficientes” (nas prerrogativas de ter diploma e nível de salário que
o artigo 611-A estabelece.
Especificamente em relação à mãe trabalhadora, o artigo 396, o qual estabelecia o
direito a dois descansos de trinta minutos, teve seu enunciado modificado pela reforma,
incluindo expressamente a hipótese do filho adotivo. Já o seu parágrafo 2º, acrescido pela
reforma, estabelece que os horários de descanso serão definidos em acordo individual com o
empregador, o que dá azo à concretização de obtenção de vantagens por parte de
empregadores em tais acordos.

5.1. Violação dos princípios e normas gerais do direito do trabalho com enfoque na
mulher gestante e lactante

As mulheres vêm ganhando espaço no âmbito trabalhista ao longo das décadas e, com
isso, avançam também com direitos e garantias destinados a preservar o espaço feminino nesse
contexto, mas, principalmente, para consagrar o ideal de Igualdade entre os sexos
implementado pela Constituição Federal de 1988.
Gustavo Garcia (2018, p. 904-905) destaca que inúmeras foram as Convenções da
Organização Internacional do Trabalho (OIT) que estabeleceram normas e paradigmas
voltados à proteção e a igualdade da mulher, em especial, das gestantes e lactantes. Dentre
elas, ele salienta a Convenção 103, de 1952, que estabelece proteção à maternidade, sendo
revisitada pela Convenção 183, de 2000; ou, ainda, a Convenção 171, de 1990, que dispõe
sobre uma proteção especial às mulheres, apenas em razão da maternidade.
Nas palavras de Garcia (2018), a proteção da mulher gestante e da maternidade não
figuram como uma violação ao Princípio da Igualdade, constitucionalmente consagrado, ao
contrário, representa uma forma de garantir a igualdade material entre as trabalhadoras que
estão em condição especial, dada a sua importância para a sociedade.
Conforme alhures mencionado, um dos pontos de maior dissidência em relação à
Reforma Trabalhista com a trabalhadora e a maternidade foi a questão do trabalho em
condições insalubres em grau leve ou médio passarem a ser admitidos, excetuando-se os casos
em que as gestantes disponham de laudo de médico de sua confiança recomendando o
afastamento.
Ora, antes da reforma, não era possível que as empregadas gestantes ou lactantes
fossem submetidas ao trabalho em áreas insalubres de qualquer grau, devendo exercer suas
atividades em locais salubres, segundo o art. 394 da CLT. Com as inúmeras alterações trazidas
pela Lei 13.467/17 é notório que muitos dos princípios norteadores do Direito do Trabalho
foram violados, posto que a condição em que a legislação nova os coloca é de visível posição
de prejudicialidade além de inobservar a hipossuficiência em que os destinatários delas se
encontram.
Nesta senda, nos importa destacar alguns dos princípios gerais e do Direito do
Trabalho que foram frontalmente violados, sendo o principal deles, a proibição do retrocesso,
tal ponto é uníssono na doutrina majoritária e entre os estudiosos do direito, de que “a reforma,
longe de solucionar os problemas da desigualdade no país, tende a gerar mais distorções e
iniquidades” (BIAVASCHI, 2017. p. 202), além disso, as entidades têm “se posicionado
contrárias à reforma por seus aspectos de violação dos princípios que fundamentam o direito
do trabalho e as conquistas incorporadas pela CLT” (Ibidem, 2017. p. 197), ou seja, toda uma
legislação trabalhista, paulatinamente construída, que incorporou com o passar das décadas
vários direitos e princípios, observa seu esfacelamento diante de uma Reforma imatura,
percebida por muitos como “redutora de direitos” (LIMA, 2017. p. 32), além de figurar, para
outros tantos, como verdadeiro “retrocesso social” (Ibidem. 2017. p. 73).
Insta salientar, ainda, outro princípio violado com a possibilidade do labor em local
insalubre pela Reforma para mulher gestante e lactante (SANTOS, 2017), que é o princípio
da inalterabilidade contratual lesiva, que evidentemente restou prejudicado, visto que a mulher
agora poderá ser submetida pelo empregador a exercer atividade laboral em locais insalubres,
salvo quando resguardada por atestado de médico de sua confiança, o que transfere a
responsabilidade para o médico e para gestante ou lactante, visto que caberia ao médico - que
não seria necessariamente um médico do trabalho, mas qualquer um de confiança da gestante
- aferir o grau de insalubridade do local onde estaria laborando a gestante e determinar se é
ou não seguro para ela trabalhar naquelas condições, mesmo que ele não tenha todos os
subsídios necessários para precisar tal fator ou possa fazer uma análise in loco do ambiente
ao qual a gestante ou lactante será exposta (COSTA, COSTA, CINTRA, 2018).
Acrescente-se que o próprio princípio da proteção restou violado, visto que a
hipossuficiência da trabalhadora gestante e lactante e a condição especial em que se encontra
não foi respeitada, mitigando a ideia de que as normas mais favoráveis ao trabalhador se
aplicariam no caso concreto, além de que, a condição mais benéfica para trabalhadora também
não encontraria eco, restando inteiramente prejudicado tal princípio, expondo uma verdadeira
flexibilização de direitos já conquistados.
Nessa breve explanação, buscamos discutir as consequências e as violações
consagradas Lei 13.467/17, em face da mulher gestante e lactante, que além de ferir
frontalmente princípios basilares do Direito do Trabalho, também viola normas de caráter
geral, demonstrando suas dissonância com o ordenamento jurídico e suas diretrizes. Contudo,
a desarmonia da Reforma Trabalhista não se resume ao campo das normas infralegais, mas se
estende também ao campo Constitucional.

5.2. Inconstitucionalidade da Reforma Trabalhista em face da mulher gestante e


lactante

Como já abordado, a Lei 13.467/2017 tem sustentado debates acalorados no meio


jurídico, sendo a parcela de disposições com matéria de abordagens acerca de direitos da
trabalhadora gestante alvo de críticas que evocam a inconstitucionalidade da reforma, as quais
se faz mister expressar com mais detalhes. A MP 808, que vinha ao socorro da reforma, como
um amparo que suavizasse as críticas à constitucionalidade, restou inócua diante de sua
frustração, não tendo sido votada pelo Congresso, contexto que impulsionou novas ondas
reacionárias face à reforma. A Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos, nesse
contexto, trouxe a discussão em torno da redação do artigo 394-A da CLT, em especial os
incisos II e III da CLT, ensejando o primeiro questionamento por via de ADI (ADI 5938,
ainda em tramitação no STF) sobre o dispositivo modificado, de modo a considerá-lo um
retrocesso à luz de direitos humanos, seja da mulher, do nascituro, bem como do recém-
nascido, diante da exposição a ambiente insalubre.
Conforme bem lembra Garcia (2017, p. 116) ao tratar do trabalho da mulher perante a
reforma, o ideal seria que todos os empregados estivessem sujeitos a trabalhos em condições
adequadas, além de seguras e salubres, abalizando-se no artigo 7º da Constituição Federal.
Ademais, é na falta de compatibilidade com as prerrogativas constitucionais que a supracitada
Confederação erige a fundamentação a fim de impugnar o artigo 394-A, alegando a existência
de uma subversão ao valor da proteção da saúde da mulher. Um dos deslindes da regra é que
o ônus de comprovação da condição de vulnerável diante da insalubridade fica a cargo da
trabalhadora.
Nesse ínterim, tal disposição também recebeu críticas à sua constitucionalidade na 2ª
Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, com participação da Anamatra na
organização. Entre os enunciados aprovados, é válida a menção ao Enunciado 50:

“TRABALHADORA GESTANTE E LACTANTE. ART. 394-A DA CLT


A autorização legal permitindo o trabalho da gestante e lactante em ambiente insalubre é
inconstitucional e inconvencional porque violadora da dignidade humana, do direito À
redução dos riscos inerentes ao trabalho, da proteção integral ao nascituro e à criança e do
direito social à saúde. Ademais, o meio ambiente do trabalho saudável é direito
fundamental garantido pela Constituição da República, revestido de indisponibilidade
absoluta. Incidência dos arts. 1º, III; 6º, 7º, XXII; 196; 200; 201, II; 203, I; 225; 226 e 227
da Constituição Federal; Convenção 103 e 183 da OIT; arts. 25, I e II da DUDH.”

Não só nessa seara de direitos trabalhistas em questão, como também em outros


enunciados de dispositivos acrescentados ou alterados pela lei 13.467/2017, visualiza-se um
reforço de uma vertente que havia ganhado espaço na década de 90, com tendências à
desregulamentação de direitos sociais e forte flexibilização das relações de trabalho,
desaguando em uma redução de prerrogativas de proteção social (GODINHO, 2017).
A antiga redação do artigo 394-A registrava, inegavelmente, maior proteção para
gestantes e consequentemente ao feto em desenvolvimento, de modo que a empregada nas
condições de gestante ou lactante deveria ser afastada durante gestação ou lactação de
atividades em local insalubre, exigindo-se o exercício de atividades em local salubre. Com a
reforma, fica possível o trabalho em locais de insalubridade média ou mínima, somente
podendo haver afastamento se o médico da mulher recomendar, mediante a apresentação de
atestado, demonstrando ecos de incompatibilidade com princípios basilares do direito do
trabalho. Para Godinho (2017, p.73), ademais, a reforma veicula um processo de
desarticulação de proteções inseridos no Sistema Internacional de Direitos Humanos, com
nítidos aspectos de desregulamentação na Lei 13.467/2017 e violação à estrutura
constitucional de proteção ao trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A reforma trabalhista se insere em um contexto de urgências econômicas com a


divulgada expectativa de dinamizar relações de trabalho e frear o crescente desemprego, de
modo que a citada permeabilidade do Estado ao poder econômico acabou por resultar em um
projeto de lei com nítida falta de compatibilidade, seja com a Constituição ou com o sistema
internacional de direitos humanos, com uma rápida tramitação não condizente com a atenção
necessária para a avaliação de dispositivos que tocam em importantes pontos do direito
trabalhista, muitos de caráter principiológico. São evocadas, pois, críticas sobre a
constitucionalidade da Lei, sobre as quais foi disposta, no presente artigo, certa atenção sobre
os deslindes da reforma sobre os direitos da mulher gestante. O artigo 394-A, é nítido exemplo
da situação, carregando incompatibilidades com conteúdo de princípio da proteção e saúde
no trabalho, resvalando, inclusive para o campo de direitos humanos.
Ademais as reações contrárias à reforma têm aberto campo fértil a amplos debates
jurídicos, havendo, portanto, expectativas de sedimentar interpretações que rezem pela
prevalência das prerrogativas constitucionais, as quais demonstram uma perspectiva de frear
novos ataques ao direito trabalhista brasileiro, seja por meio de aplicação do direito trabalhista
com prevalência das disposições constitucionais, bem como da consolidação de enunciados
que orientem uma construção jurisprudencial sem tendência à inconstitucionalidades.

REFERÊNCIAS

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STF. Ação Direta de Inconstitucionalidade: ADI 5938 0069830-37.2018.1.00.0000.


Relator: Min. Alexandre de Moraes. Portal STF, 2018. Disponível em:
<http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5447065> Acesso em: 13 set. 2018.
A ECONOMIA DE COMPARTILHAMENTO E A PRECARIZAÇÃO
DO TRABALHO: o caso da Uber80
Marxwell José Albuquerque Alves da Silva81

RESUMO

O presente trabalho tem como propósito compreender através da economia compartilhada o


processo de precarização do trabalho no caso específico da Uber, uma discussão atual sobre
as distorções de horas trabalhadas, baixa remuneração e ausência de regulamentação por parte
de municípios; Pretende ainda analisar de que forma esse modelo de negócio no aspecto da
Uber, de que modo vem influenciando para a precarização nas relações de emprego, qual o
papel da Uber nesse sistema, de que forma é possível associar aspectos tradicionais da relação
de emprego com a Uber; buscará ainda apresentar algumas decisões judiciais que demonstram
ou vinculação de emprego na relação motorista x Uber, de modo a abarcar decisões recentes
no Brasil, e no direito comparado decisões nos Estados Unidos e Inglaterra; Além disso,
pretende-se analisar a Lei 13640/2018, quanto aos avanços para o transporte individual de
passageiros. No artigo exposto foi aplicada como metodologia a revisão de bibliografia
recente do direito trabalhista: Doutrinas, artigos científicos, monografias, e livros específicos
sobre a respectiva temática; assim como uma análise interpretativa dialética da discussão em
questão.

Palavras-chave: Precarização. Uber. Economia Compartilhada. Trabalho

1 INTRODUÇÃO

A era da tecnologia da informação vem repercutindo de forma rápida e abrangente nos


padrões de comportamento e atitudes na realidade social, com isso emergindo novas
plataformas digitais que estão mudando o modo de pensar e agir da sociedade.
A Economia Compartilhada também denominada por diversos conceitos como
“Economia de Plataforma”, “Consumo Colaborativo”, vem provocando mudanças estruturais
em todo mundo. A ideia do movimento surge em meados de 2008 no momento da grave crise
econômica que passava os Estados Unidos, com o intuito de fortalecimento da ideia de
comunidade, do compartilhamento, consumo consciente e a colaboração online. Aplicativos
como Uber e Airbnb, por exemplo, vem promovendo mudança de comportamentos e
consumos no que se refere ao mercado de transportes e hospedagens, dentre outros ramos.
No que tange a Uber, referindo-se especificamente, sobretudo ao modelo de negócio,
existem divergências quanto a trabalho, forma em que os motoristas, denominados pela
Plataforma como “parceiros”, tem na sua relação a precarização do seu trabalho, sendo esta,

80
GT3 – Direito, Trabalho e Saúde
81
Bacharelando em Direito. Faculdade Estácio do Recife. E-mail. marxwell_albuquerque@yahoo.com.br
uma tecnologia disruptiva as legislações trabalhistas tradicionais.
O presente trabalho tem como objetivo central o reconhecimento do fenômeno da
economia compartilhada no âmbito da Plataforma Uber, no que se refere a precarização do
trabalho; pretendendo-se compreender o fenômeno da economia compartilhada quanto ao seu
conceito, suas perspectivas e contradições tendo como cerne a Uber, apresentar conceitos e
características das relações de trabalho e emprego no âmbito do direito de trabalho tradicional;
analisar aspectos da precarização das relações laborais provocadas pela Uber; perfazer uma
breve analise no que tange a Lei 13640/18, quanto aos avanços e carências para o transporte
coletivo individual, e além disso, compreender algumas decisões judiciais recentes no direito
trabalhista brasileiro quanto o reconhecimento e o não reconhecimento de vínculo de emprego
dos motoristas de Uber, finalizando através do direito comparado decisões judiciais nos
Estados Unidos e Inglaterra sobre decisões que versam sobre a regulamentação laboral do
motorista de Uber.
A pesquisa teve como metodologia aplicada, a revisão de bibliografia recente do
direito trabalhista: Doutrinas, artigos científicos, monografias, e livros específicos sobre a
respectiva temática, e além disso, abordou um estudo dialético, com caráter descritivo-
explicativo. Dessa forma, têm-se o arcabouço para compreensão dos aspectos que levaram a
tal pesquisa.

DESENVOLVIMENTO

2 A ECONOMIA COMPARTILHADA NA SOCIEDADE ATUAL: PERSPECTIVAS


X CONTRADIÇÕES

2.1 CONCEITO DE ECONOMIA COMPARTILHADA

A Economia compartilhada está alicerceada no consumo colaborativo, ou seja, sua


ênfase está no acesso e não no que tange a propriedade dos recursos, tornam as práticas e
qualidades personificadas, em que o indivíduo tem por base o consumo consciente, a partilha,
a cooperação entre pares e comunidade, atos voluntários que beneficiem uns aos outros, este
alicerce tem como aspectos a colaboratividade digital, o compartilhamento entre pessoas, e a
ideia de sustentabilidade.
De acordo com o que preceitua, (SLEE, 2017, p. 247):

As trocas na economia de compartilhamento precisam ter dois componentes:


“economia” refere-se a uma troca de mercado entre um fornecedor de serviço e um
consumidor, mas “compartilhamento” evoca uma troca de caráter mais pessoal e
empática, como vizinhos ajudando vizinhos. Dinheiro está envolvido, mas a troca
se refere a algo mais do que dinheiro: trata-se de conexões e de comunidade.

Esta economia é apresentada em tempos atuais como meios para uma sociedade mais
sustentável, vida em comunidade, de trocas, simbioses e intercâmbios, tendo como premissa
“o que é meu é seu” e rompendo com formas de negócios tradicionais, tornando as pessoas
livres, realizando o compartilhamento e intercâmbio diretamente umas entre as outras, através
de meios técnicos informacionais com o advento da explosão da cultura digital.
Esta nova era do compartilhamento em sociedade leva ao processo de Disrupção,
aplicado no contexto da economia, como uma forma de inovação e rompimento de processos
tradicionais, como as relações de consumo, de negócios e até mesmo de emprego,
desmembrando um modelo padrão. Nesse sentido, TEODORO et al. (2017), abordam que a
Disrupção de modo geral é consequência dos avanços tecnológicos, no entanto isso não
significa dizer que toda inovação tecnológica tem o poder disruptivo, de tal modo nem toda
disrupção se presume ser através da tecnologia.
Nesse interim, a ideia de economia compartilhada parte da premissa que uma pessoa
pode oferecer um determinado serviço ou ação a outra pessoa de algo que seria
tradicionalmente privado, é o exemplo clássico do Uber, oferece um serviço de transporte que
até então era exclusivamente oferecido por táxi. Outro exemplo é o segmento da hotelaria,
antes um pacote de diárias de hospedagem em qualquer lugar cujo se deslocasse para uma
viagem, necessariamente passaria por uma determinada rede hoteleira. Com a premissa da
“pessoa por pessoa” na economia compartilhada, que é o exemplo Airbnb, aplicativo digital
onde um indivíduo pode alugar um imóvel de outro por uma determinada temporada e curto
espaço de tempo. Aplicativos de música como Deezer e Spotfy revolucionaram o mercado da
música mundial, em que os as pessoas atualmente conseguem acessar os últimos lançamentos
de discos dos seus artistas favoritos diretamente da Plataforma digital, sem ter custos
adicionais com compra de Cds, Dvds e outras mídias.
Por outro lado, há também muitas interrogações quanto aos ideais e o produto final
que de modo geral vem se desenhando na economia compartilhada. A ideia de Economia
Compartilhada apesar de sua origem na década de 1990, veio a eclodir a partir de 2008 com a
crise econômica nos EUA, tendo as maiores startups do mundo que conglomeram as
plataformas digitais no Vale do Silício na Califórnia, entendem e estão comprometidos na
ideia de que comércio, negócios e compartilhamento ocupam o mesmo espaço. Apesar do
modelo de negócio enaltecer as redes de pessoas para pessoas, a linha de negócio em
intermediar as relações entre indivíduos nas plataformas digitais, como um mecanismo de
auferir lucro por negócios individuais, colocam indagações sobre a real posição sobre de fato
tratar-se de uma economia compartilhada, TEODORO et al. (2017), discorre sobre essa
intermediação de negócios pessoas para pessoa da seguinte maneira:

A partir do momento em que a intermediação existe pura e simplesmente para lucrar


através do trabalho de quem presta serviço, tal característica torna-se inconciliável
com a ideia de compartilhamento ou colaboração ou de negócio de pessoa para
pessoa, tornando-se um modelo de peer to business – de pessoa com o negócio,
como exemplo da Amazom, Ebay, etc.

Para (SLEE, 2017, p. 285), em um curto espaço de tempo após sua eclosão, a economia
de compartilhamento partiu premissa do “o que é meu é seu” para “o que é seu é meu”, de
modo que os valores tidos como não comerciais pela economia compartilhada foram deixadas
de lado, ou estando exclusivamente restritas as práticas de difusão propagandistas.
A proposta de tornar o mundo mais coorporativo ao invés de cooperativo do que se
entendia inicialmente, é o reflexo mais agressivo do capitalismo, uma vez que diante desse
contexto, cristalizam-se a desregulamentação estatal, novas alternativas de consumismo, a
precarização do trabalho. Acaba assim, corroborando com a interpretação de que a economia
de compartilhamento está recorrendo às ideias de cooperativismo e relações mais sustentáveis
com o espectro para angariar grandes fortunas privadas, ruir comunidades cooperativistas, e
incentivar novas formas de consumo para a criação de um futuro mais desigual que em
qualquer época (SLEE, 2017).

2.2 A UBER E O SEU PAPEL NA ECONOMIA COMPARTILHADA

Os criadores da Uber, Travis Kalanick, ex-CEO da empresa, teve na Uber a pretensão


de criar uma plataforma em que apenas um click, seria possível solicitar uma viagem, e de
luxo, tendo como slogan “o motorista privado de todo mundo”, não tendo inicialmente
qualquer relação de parceria com a companhia de plataformas da economia de
compartilhamento, Peers. Segundo dados do próprio Uber, atualmente já se fazem presente
em mais de 66 países e 514 cidades do mundo.
A Uber inicialmente relutou para ter-se vinculada a economia do compartilhamento,
tendo em vista a natureza inicial de oferecer um serviço de carro particular de luxo, de 2009
a 2013 a empresa cresceu rapidamente nas cidades em que passou a ser utilizado, de modo
que outras empresas que atuam no mesmo ramo, aplicavam preços mais baixos.
Nesse sentido, compreendendo ser impossível derrotar as outras empresas, se juntou
as mesmas, ao insere em seu repertório serviços mais populares através do UberX, tornou-se
crescente utilizar-se a plataforma como uma das companhias digitais que compõem o grupo
de economia de compartilhamento, sendo bastante beneficiada com esta nova classificação,
uma vez que se tornou parte da Companhia de Rede e Transporte na Califórnia.
Atualmente três tipos de serviços dominam os ramos de atuação que se denominam
como economia de compartilhamento, sendo 43% em hospedagem (apesar de no Brasil não
ser o maior dos campos de atuação), 28% transporte (sendo majoritário no Brasil) e 17% no
que tange a educação.
Desse modo, pode-se dizer que o papel da Uber na economia compartilhada é endossar
a ideia do peer-to-peer (pessoa para pessoa), de vontades livres e autônomas para condução
dessas relações, no ponto de vista conceitual do respectivo modelo de negócio, utilizando
plataformas digitais como base nessa interação, aplicativos facilitadores nesse aspecto.
O êxito da Uber na Economia de Compartilhamento, para os entusiastas, passa pela
eficiência da plataforma digital na conexão entre passageiros e motoristas, no entanto não se
pode atribuir exclusivamente o sucesso a esse fator, uma vez que a Empresa otimiza seus
custos quando de modo isenta-se dos custos com seguros, impostos, e inspeções de veículos,
e o fator também do oferecimento de um serviço que é plenamente acessível. Além disso, tem
a habilidade no oferecimento de um serviço de baixo custo. Concluindo assim, que o êxito da
Uber se deve a inoperância e parasitismo das cidades em que estão implantados (SLEE, 2017).

3 CARACTERÍSTICAS DA RELAÇÃO DE TRABALHO E EMPREGO

3.1 CONCEITO DA RELAÇÃO DE TRABALHO x RELAÇÃO DE EMPREGO

De acordo com JÚNIOR (2016, p 156), a relação de trabalho é latu sensu, ou seja,
trata-se do gênero de prestação de serviços, na qual originam-se várias espécies. Nesse
sentido, sempre que houver a prestação de um trabalho por uma pessoa para benefício de
outra, tanto no que se refere a meio ou resultado, estará caracterizada uma espécie de relação
de trabalho. Acrescenta ainda que

Se existe a prestação de serviço em favor de outra pessoa, a presunção (hominis) é


de que se trata de uma relação empregatícia, conclusão a que se chega por força da
aplicação dos princípios norteadores do Direito do Trabalho, uma vez que não há,
na legislação trabalhista pátria, norma expressa nesse sentido.

DELGADO (2017, p. 311), define relação de trabalho como uma condição essencial
do ser humano, que compõe aspectos físicos e psicológico dos indivíduos. Tratando-se assim
de uma gama de atividades, podendo ser tanto produtivas como criativas, que é exercida pelo
homem para obtenção de uma determinada finalidade.
Ademais, cumpre destacar que MARTINEZ (2017) traz relação de emprego como um
contrato de vínculo de que a norma garante direito a outra pessoa, para com isso gerar
legitimidade quanto a posição de sujeitos. A relação de emprego remete-se diretamente ao
contrato de emprego, de modo que a relação de emprego é a constituição de um ato jurídico
necessário para provocar materialização de medidas tutelares.

3.2 ELEMENTOS FUNDAMENTAIS DA RELAÇÃO DE EMPREGO

3.2.1 Onerosidade

Trata-se de uma retribuição por serviços prestados em caráter de subordinação, em


face do empregador, percebendo o empregado uma contraprestação do empregador
denominada salário, que em grande parte dos casos é a única fonte de renda de caráter familiar,
ressalta JÚNIOR (2016, p. 152).
Sobre este elemento, MARTINEZ (2017), traz sua perspectiva “[...] reiterando o
quanto antes sustentado, todo contrato de trabalho é oneroso. Afirma-se isso porque para todo
trabalho haverá sempre uma retribuição, ao contrário do que acontece com alguns negócios
jurídicos de “ atividade em sentido estrito””.

3.2.2 Pessoalidade

Para MARTINEZ (2017), o conceito de pessoalidade:


[...] Existe, portanto, a ideia de intransferibilidade, ou seja, de que somente uma
específica pessoa física, e nenhuma outra em seu lugar, pode prestar o serviço
ajustado. Assim, toda vez que se verificar que, contratualmente, um trabalhador
pode ser substituído por outro no exercício de suas atividades, não estará ali presente
um contrato de emprego, mas sim ajuste contratual diverso.

DELGADO (2017, p. 323) aduz o caráter essência da pessoalidade para a configuração


da relação empregatícia, uma vez que a relação do trabalho tem caráter infungível, no que
refere ao trabalhador contratado para tal serviço, já que a relação jurídica nesse caso é entre a
pessoa da prestação do serviço e o seu empregador.
Cumpre observar que LEITE (2017, p. 166), destaca a pessoalidade, como uma
característica em que o empregado deve prestar pessoalmente sua atividade laboral, no entanto
em casos tidos como exceções, e havendo permissão, tácita ou expressa por parte do
empregador, admite-se a substituição da pessoa que presta trabalho.
3.2.3 Subordinação

O empregado tem uma relação de subordinação perante o empregador, este detentor


do poder de direção na relação de emprego. Através de ordens específicas ou gerais, o
empregador orienta a forma da prestação de serviço ao trabalhador, nesse sentido o mesmo
tem a perda parcial de liberdade para execução de atividades, JUNIOR (2016, p. 152)
DELGADO (2017, p. 326) expressa que se trata de uma situação jurídica que deriva
do contrato de trabalho, em que o empregado se obriga a estar à disposição do poder diretivo
do empresário, no que remonta a prestação do serviço, decorrendo assim limitação da
autonomia da sua vontade.

3.2.4 Pessoa Física

De acordo com o entendimento de JÚNIOR (2016, p. 152), é que este elemento é


omisso da norma, em que se pese a relação de emprego só deve ser firmado no caso do
prestador de serviços tratar-se de pessoa física, e que tal objeção não é aplicada ao empregador
ou empresário.

3.2.5 Não eventualidade

Quando se trata de prestação de serviços na relação empregatícia, a não eventualidade


é uma característica fundamental nessa relação, não significando que o empregado precise
estar todos os dias no local de trabalho, a atividade desenvolvida na empresa é que vai
determinar o caráter eventual da relação, explica JÚNIOR (2016, p.152).
DELGADO (2017, p.318), aborda a controvérsia no sentido do conceito da não
eventualidade no direito trabalhista, aludindo de tal modo que:

[...] A dissensão apresenta‑se na doutrina, na jurisprudência e nos próprios textos


legais. Nesse último plano, há que se destacar a circunstância de a CLT eleger a
expressão “serviços de natureza não eventual” (art. 3º, caput; grifos acrescidos) para
traduzir o referido elemento fatico‑juridico em enfoque; em contraponto a isso, a
legislação reguladora do trabalho doméstico prefere se valer de expressão distinta,
a saber, “serviços de natureza contínua” (art. 1º, caput, Lei n. 5.859/72; grifos
acrescidos) ou “serviçosde forma contínua” (art. 1º, caput, LC n. 150/15; grifos
acrescidos).

4 O FENÔMENO DA UBER E A PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO

4.1 UBER X ASPECTOS DA RELAÇÃO DE EMPREGO: A PRECARIZAÇÃO


4.1.1 O conceito de Uberização

Diante dos aspectos já mencionados pode-se observar que a Uber está inserida em um
modelo de negócio que valoriza o peer to peer, envolvendo a minimização de custos
operacionais. Nesse interim é que vem aludida a conceituação de Uberização, esta trata-se da
mudança estrutural das relações de trabalho, tornando trabalhadores em nanoempresários,
denominados de parceiros/ colaboradores, trabalhadores just–in-time, ondemand,
selfemployement, termos em inglês, mas que caracteriza em um novo modelo de trabalho: Sob
demanda, sempre que for necessário, e autotrabalho. Portanto, significa dizer que a forma de
remuneração passa a ser um custo variável, ou seja, só terá existência, caso haja a realização
daquele determinado trabalho.
O termo “Uberização” já vem sendo adotado por várias categorias profissionais, no
status quo, significa dizer que o trabalhador vem passando por uma ruptura dos padrões
tradicionais da relação de vínculo empregatício, desconfigurando desse modo, direitos
salvaguardados na CLT.
Na visão de GOMES (2017), a Uberização “Trata-se de modelo de organização
laboral, que tem como característica marcante a flexibilização do trabalho através de
tecnologias disruptiva. ”
82
No entanto, a flexibilização de trabalho através da tecnologia não significa que o
trabalhador esteja livre de não ter um chefe, no caso da Uberização, é característico a
manutenção das formas de controle, fiscalização e gerenciamento sobre os trabalhos
executados.
Em 2016, por exemplo, foi sancionada a Lei Federal Nº 13.352, que veio a flexibilizar
as relações de trabalho em salões de beleza, de modo a ser observada como uma forma de
Uberização, tornando os profissionais que exercem atividades de Cabelereiro, Barbeiro,
Esteticista, Manicure, Pedicure, Depilador e Maquiador como “parceiros” de pessoas jurídicas
registradas como salão de beleza. Nesse interim, os proprietários de salões de beleza passam
a não serem obrigados ao reconhecimento de vínculo empregatício desses profissionais. Nesse
novo arranjo legal os empresários do ramo têm a responsabilidade de prover as condições de
infraestrutura para que os profissionais possam executar o seu trabalho, tratando-se agora de
meros prestadores de serviços.

4.1.2 A Uber e a reverberação dos efeitos da precarização do trabalho


A Uber utiliza como premissa maior o argumento uniforme em todo lugar que atua
como “plataforma de tecnologia”, tal discurso faz com que seja eliminada qualquer
interpretação de que a Uber seja uma Empresa que executa serviços de transporte individual
de passageiros, mas sim que é uma mera plataforma de tecnologia, facilitadora nas relações
entre motorista e cliente.
Consequentemente este discurso vem fazendo com que a Uber consiga driblar
habilmente das legislações nacionais, diante desse contexto TEODORO, D’FONSECA e
ANTONIETA (2017), argumenta que:

[...] a Uber tem sido exitosa em escapar das regulações governamentais do mercado
em que atua, além de facilmente esquivar-se do alcance das legislações trabalhistas,
angariando ainda os frutos de um evidente efeito em cascata, pois sempre que um
interlocutor é convencido, ele, assimilando o discurso, passa-o adiante, e assim a
Uber tem conquistado a simpatia de milhões de pessoas, entusiastas de seu modelo
de negócio.

Com a fácil condição de lidar com estas regulações governamentais, a Uber vem
reverberando na precarização do trabalho, com o trabalhador em pleno desequilíbrio em
relação a empresa, de modo que é perceptível compreender características na relação
“parceiro” x Uber que se assemelham às relações tradicionais de emprego, demonstrado no
estudo de TEODORO, D’FONSECA e ANTONIETA (2017):
Subordinação: Manifesta-se quando os motoristas rejeitam corridas, obtendo
avaliações mais baixas, podendo ser suspensos por um tempo do aplicativo, e até mesmo com
punição máxima a exclusão (não levam em consideração preceitos fundamentais como
contraditório e ampla defesa); Avaliação e feedback dos clientes quanto ao serviço prestado
(atendimento do motorista, forma de condução nas vias, conforto e limpeza do veículo),
avaliações vão de 1 a 5 estrelas, e caso o motorista tenha avaliação abaixo de 4,6 é excluído
do aplicativo.
Pessoa Física: Para tornar-se um “parceiro” Uber, a Empresa faz o diagnóstico do
motorista através dos seus antecedentes criminais, a regulamentação documental do veículo e
o mínimo de tempo do mesmo.
Pessoalidade: O serviço só pode ser executado pelo motorista devidamente cadastrado
e admitido pela Plataforma, isso fica evidente no aplicativo, o nome do motorista, sua imagem,
não podendo ser o serviço realizado por alguém que não seja cadastrado na no mesmo.
Não Eventualidade: A Uber para muitos motoristas surgira para prover uma renda
extra, no entanto em muitos países como o Brasil, é a fonte de renda principal de muitos,
deixando de configurar-se como um trabalho esporádico e passando a ser um trabalho
contínuo, tendo a Uber como a única provedora econômica.
Onerosidade: Se apresenta em subjetividade como um aspecto em que se visualiza a
intenção do motorista colher como resultado um ganho financeiro pelo trabalho executado.
A Uber traz no seu bojo a transferência para os trabalhadores uma gama de custos e
riscos, por tratar-se de um trabalho amador, não confere uma profissão, fazendo com que o
motorista utilize seu próprio veículo. Além disso, se beneficia da regularização de tributos,
manutenção dos veículos que é de responsabilidade do próprio motorista, se isentando de todo
e qualquer imposto, taxa e seguro que porventura seja obrigado a constituir para o carro estar
regular. ARMSTRONG (2016), faz uma observação crítica no que tange ao motorista de Uber
no cenário brasileiro:

[...] com o surgimento do Uber, os motoristas parceiros ficam em uma situação de


interseção entre as categorias, no instante que consegue cumprir requisitos presentes
em todas as categorias de trabalhador, falta-lhes algum essencial para manter-lhes,
ao passo que se adequa em tudo, não pertence a nada. ”

Além disso, observa-se que a Uber dita o comportamento dos motoristas, das maneiras
mais peculiares possíveis, no entanto não assumi qualquer responsabilidade a partir do
momento em que situações estejam dando errado. Pelo aspecto já mencionado da Uber se
colocar no mercado como um aplicativo facilitador de contatos entre motoristas e
passageiros.-
De acordo com SLEE (2017), a Uber traz regras definidas sobre o aspecto de que o
motorista é ou não empregado, isso tomando como exemplo, normas da Receita Federal do
Canadá. Em suma, os trabalhadores que exercem atividade no contexto da economia de
compartilhamento em outros ramos, vêm encontrando os mesmos problemas nesta questão.
Isso faz com que, na indústria de construção civil, por exemplo, classificar como contratante
independente vem a esquivar uma determinada empresa dos pagamentos de direitos
trabalhistas, bem como seguir os padrões de emprego, sub-rogando integralmente os riscos da
atividade ao contratado.
Conforme externado por GUIMARÃES (2017), estudos realizados nos Estados
Unidos pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), realizado em 2017 com 1100
motoristas, demonstra que não é mais atrativo ser motorista por plataformas digitais como a
Uber e Lyft, de modo que, os pesquisadores observaram que o valor da hora de um motorista
de aplicativos é em média U$$ 3,37, estando 74% dos motoristas entrevistados na pesquisa,
ganhando menos que um salário mínimo, e 30% com a efetiva perda de dinheiro. Isso deve-
se ao fator da responsabilidade integral do motorista como as despesas com o carro, que vão
desde ao abastecimento aos gastos com manutenção do veículo, gerando despesas de 30% de
boa parte do faturamento dos motoristas.

4.2 A UBER NO BRASIL E A LEI FEDERAL 13.640/2018: ASPECTOS GERAIS

4.2.1 O surgimento da Uber no Brasil

A Uber iniciou suas atividades no Brasil no ano de 2014, na cidade do Rio de Janeiro,
posteriormente São Paulo e se estendendo paulatinamente em diversas capitais e cidades do
país. A Plataforma digital se insere no país, num ambiente de crise econômica e o aumento de
desemprego, ganhando em curto prazo espaço grande capilaridade, tanto no que se refere ao
crescimento vertiginoso de usuários (clientes), quanto a ascensão do número de motoristas
(parceiros).
A empresa conseguiu adentrar no país com grande aceitação da população, uma vez
que, em termos conceituais de economia compartilhada, a Uber vem a promover em um
ambiente de precariedade no transporte público, instabilidade nos preços de combustíveis,
extrema dificuldade na mobilidade urbana e os preços excessivos no mercado automobilístico,
faz com o termo “sustentabilidade” e “mobilidade urbana”, sejam associadas pela grande
imprensa a aceitação da Uber no consumo local brasileiro.
A Uber do Brasil Tecnologia Ltda., sociedade de responsabilidade limitada, possui
sede situada na cidade de São Paulo. De acordo com KOJIKOVSKI (2017), o país atualmente
é o segundo maior mercado da empresa, perdendo apenas para os Estados Unidos. Hoje,
segundo a Uber, 15 milhões de brasileiros realizam ao menos uma viagem por mês, está
presente em mais de 70 municípios do país, e 54% dos usuários de plataformas de transporte
no país utilizam a Uber, outros usuários dividem-se nos demais aplicativos concorrentes como
99, e Cabify. Em 2017 verificou-se que por ano a empresa cresce em 900% de novos
motoristas cadastrados, e que o número no país já está em 500 mil motoristas, só no Estado
de São Paulo chega a 150 motoristas, na região metropolitana do Estado.

4.2.2 A Lei Federal 13640/2018: Avanços na perspectiva do transporte individual de


passageiros?

A Lei 12.587/2012, é o marco inicial para a Política Nacional de Mobilidade Urbana


no Brasil, no que se refere a transporte urbano dentre outras modalidades. No entanto, a partir
de 2014 com a inserção da Uber e posteriormente outras plataformas digitais de transporte
individual no país (como Cabify, 99, dentre outros), o respectivo diploma legal não fez
referência a essas novas abordagens, restando na sociedade uma lacuna jurídica quanto a essas
novas plataformas digitais de transportes individual.
Em face das cobranças de motoristas de táxis pelo País através de diversas
paralizações, pressões estas exercidas ao legislativo e executivo dos municípios, fez com que
muitos desses passassem a legislar pela proibição dos serviços de transporte individual
oferecidos pelas plataformas digitais. Ao modo que tais legislações iam sendo sancionadas
nos municípios, as leis municipais iam sendo julgadas improcedentes por Tribunais através
das Ações Diretas de Inconstitucionalidade – ADIN, pelo fato de afrontarem princípios
basilares da Constituição Federal, tais como a livre iniciativa consoante art. 1º, IV da CF/88,
a liberdade do exercício da profissão, diante exposto no art. 5º, XIII da CF/88, e além disso,
no que tange a livre concorrência, celebrado no art. 170, IV da CF/88.
Nesse sentido, a Lei 13.640/2018, vem a ser sancionada com o objetivo de preencher
em partes, as lacunas do transporte individual de passageiros, uma vez que a respectiva Lei
delega aos municípios e ao Distrito Federal, competência exclusiva para a regulamentação e
fiscalização do serviço individual de passageiros. Sendo, portanto, as legislações municipais
a integralidade do preenchimento das lacunas no que tange ao transporte remunerado privado
de passageiros.
Fica sob a responsabilidade dos municípios com as sanções das respectivas leis: A
cobrança de tributos municipais pela execução do serviço; a obrigatoriedade de os motoristas
contratarem o seguro de Acidentes Pessoais a Passageiros (APP) e ao Seguro Obrigatório de
Danos Pessoais causados por Veículos Automotores de Via Terrestre (DPVAT); A inscrição
do motorista como contribuinte individual do INSS, conforme art. 11, V, h, da Lei 8.213/91.
Além disso, traz exigências particulares aos motoristas que trabalham com transporte
individual utilizando as plataformas digitais, tais como: Possuir a Carteira Nacional de
Habilitação na Categoria B ou superior, com a informação que o mesmo exerce atividade
remunerada; Obrigatoriedade na condução de veículos que atendam exigências no tocante ao
ano de fabricação do mesmo; A obrigatoriedade da emissão atualizada do Certificado de
Registro e Licenciamento de Veículo (CLRV); A apresentação da certidão negativa de
antecedentes criminais.
Além disso, é importante se ressaltar, que os Municípios e Distrito Federal não podem
legislar de forma contrária ao disciplinado pela Lei 13.640/2018, uma vez que a respectiva
Lei veio a reconhecer o transporte individual de passageiro mediante utilização das
plataformas digitais. As Leis que poderão serem sancionadas pelo Ente Federado mencionado
traz a regulamentação da atividade no que se refere às questões funcionais.
Portanto, ante o exposto, compreende-se que a Lei 13.640/2018 colocou fim a uma
celeuma jurídica no que tange a regularização do transporte individual de passageiros
mediante utilização das plataformas digitais, de modo que garante independentemente da
sanção de lei dos Municípios ou Distrito Federal a utilização de tal modalidade de transporte.
Observa-se também que a competência delegada pela União aos Municípios e Distrito Federal
teve como premissa a regulamentação funcional do transporte individual em suas
circunscrições, não havendo qualquer possibilidade na elaboração de Lei local vedando o uso
do transporte individual via aplicativo.
No entanto, percebe-se a inércia dos Municípios pela regulamentação definitiva em
suas circunscrições, diante de inúmeras pressões, tanto exercidas pelos motoristas de
plataforma digital, como pelos próprios taxistas no que tange a não regularização. Nesse
sentido, segundo a Uber, apenas 28 municípios do país até maio de 2018, sancionaram lei
regularizando o transporte individual de passageiros.

4.3 VÍNCULO DE EMPREGO DO MOTORISTA DE UBER: JULGADOS DA


JUSTIÇA DO TRABALHO E O DIREITO COMPARADO

4.3.1 Os julgados no Brasil: O caso de Minas Gerais e de São Paulo

Em 2017 a Uber passou no Brasil a ampliar a margem de preocupações, seguindo uma


lógica do direito comparado, tribunais brasileiros passaram a reconhecer vínculo empregatício
aos motoristas de Uber, tendo sido a 33ª Vara da Justiça do Trabalho de Minas Gerais, do
Tribunal da 3ª Região, a primeira do país a dar provimento ao reconhecer vínculo de emprego
entre Uber e motorista. A sentença foi proferida no dia 13/02/2017 pelo juiz Márcio Toledo
Gonçalves, corroborando em sua decisão aspectos quanto: Ao cadastramento mediante
documentos pessoais, certificados do veículo, e atestados de antecedentes criminais como uma
análise minuciosa para integração do motorista no aplicativo, com um modus operandi de
contratação, com a característica da pessoalidade; além disso a remuneração por corrida
percebida, o pagamento de prêmios devido a alcance de condições anteriormente estipuladas,
no que tange a onerosidade; Também segundo o magistrado ficou percebida a relação de
subordinação, uma vez que o motorista estava às ordens de controles contínuos, e também
está eminentemente em risco de sanções disciplinares no caso de não seguir as normas
estipuladas pela Uber.
No entanto, o Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais (TRT-MG), revogou a
decisão anterior do Juiz da 33ª Vara do Trabalho, sob a alegação de que o motorista que faz
uso do aplicativo Uber não é funcionário da empresa, e com isso não faz juz aos direitos
salvaguardados na legislação trabalhista.
Recentemente, em 24/08/2018, Decisão é da 15ª turma do TRT da 2ª região deu parcial
provimento ao reconhecer vínculo de emprego entre o motorista e a empresa Uber, tendo em
1º grau sendo os pedidos julgados improcedentes pelo juízo da 38ª Vara do Trabalho de São
Paulo.
Os Magistrados da 15ª turma recursal do TRT da 2ª Região, em acordão, deram
provimento parcial ao Recurso Ordinário, declarando vínculo de emprego entre o motorista e
a Uber, no período de 14/07/2015 a 14/06/2016, condenando a mesma ao pagamento de aviso
prévio, décimo terceiro e férias proporcionais, acrescidas do 40% de multa do FGTS. Esta é a
primeira decisão no país em 2ª instância que dar provimento a relação de emprego entre a
Uber e motorista.

4.3.2 Os julgados do direito comparado: O caso dos Estados Unidos e Inglaterra

Uma decisão recente da Corte nos Estados Unidos no Estado da Califórnia, deverá
abrir precedentes para motorista de startups como o caso da Uber, que utilizam como discurso
a “parceria” entre motorista e a empresa. A respectiva Corte, compreende que algumas
empresas podem classificar equivocadamente seus colaboradores, de forma independente para
prover lucros, esquivando de impostos ou dos encargos trabalhistas. Nesse caso, observam o
parceiro/colaborador como um funcionário efetivo.
A Justiça Norte Americana, observa o fato de que colaborador/ parceiro participam do
negócio principal de uma determinada empresa, contribuindo sensivelmente com seu
faturamento, além da regularidade no labor, as exigências e imposições para serem realizados
os trabalhos, assim como número de serviços prestados. Com esse entendimento, no caso de
a justiça julgar procedente aos trabalhadores à situação de contratação, as empresas precisarão
atender as legislações estaduais, que irão depender de estado para estado em que as operações
ocorram. A exemplo da Califórnia, que fixa um pagamento mínimo por hora trabalhada, não
obstando a performance do trabalhador, a empresa queda-se obrigada ao fornecimento de
benefícios aos seus funcionários.
Tal decisão não visa a ser exclusiva as plataformas de transporte como a Uber, Lyft,
dentre outras, mas os startups do Vale do Silício de modo geral, que utilizam o modelo de
negócio da autonomia.
Já o Tribunal de Justiça de Londres decidiu no dia 10/11/2017, pela obrigação da Uber
em considerar seus motoristas como seus empregados e pagá-los o salário mínimo. A
Inglaterra é um país que possui um forte movimento sindical de motoristas independentes, e
a respectiva ação vem contando com pleno apoio do sindicato de motoristas independentes da
Grã-Bretanha.
Além disso a Uber vem sofrendo dificuldades para manter suas atividades na
Inglaterra, uma vez que a companhia Inglesa de Transportes cassou a licença da empresa para
atuar no país.

5 CONCLUSÃO

Por todos os aspectos mencionados, pode-se observar que as plataformas digitais no


âmbito dos serviços, estão se tornando mecanismos de grandes repercussões sociais, no que
se refere ao mercado de hospedagem, transportes, alimentações, construção civil, dentre
outros, este conjunto de tecnologias e plataformas formam a Economia de Compartilhamento.
A Economia compartilhada, surge de forma emergente numa sociedade global em
ambiente de crise, sobretudo no que tange a economia e ao meio ambiente. Nesse sentido,
pauta-se no consumo consciente e colaborativo, numa relação de pessoas de forma
cooperativista, que venha a beneficiar uns aos outros, utilizando como recurso fundamental
as plataformas digitais como modo de tornar essa colaboratividade e compartilhamento
acessível democraticamente a todos (as).
Observa-se na ideia de Economia Compartilhada, que tais fundamentos não tem uma
definição que traga uma conclusão contundente no que tange as perspectivas de futuro para a
humanidade. No entanto, verifica-se alguns fatores de incongruência na ideia de cooperar uns
aos outros, a partir do momento que ampliam suas relações junto ao mercado financeiro,
deixando para trás o cooperativismo, e entrando no mercado, tendo como consequência o
aumento exacerbado do consumo, e até mesmo a precarização nas relações de trabalho.
O modelo de negócio da Uber, vem sendo aplicado em outros ramos profissionais,
constituindo assim, a chamada “Uberização”, este termo é empregado para a recorrentes
rupturas de relação de emprego tradicionais, com a inserção da flexibilização, impessoalidade,
e o caráter de prestação esporádica do serviço, de trabalhadores a empresas, com isso há uma
grande preocupação quanto a ruptura das relações tradicionais de emprego.
Também se percebe na revisão bibliográfica realizada acerca da temática supracitada,
as correlações diretas das espécies que compõem a relação de emprego com características
convencionais da Uber com o motorista, o qual chamado de “parceiro”, características da
relação de emprego como pessoalidade, onerosidade, não eventualidade, subordinação,
quedam-se paralelamente equivalentes a relações entre a empresa Uber e o motoristas que se
cadastra e passa a realizar transporte individual de passageiros com o intermédio da plataforma
digital. Com isso também, é possível se observar a responsabilidade integral da empresa Uber
atribuída ao motorista, que vai desde ao abastecimento, a manutenção, pagamento de taxas
obrigatórias do veículo para que o mesmo esteja em plenas condições de circulação, o que se
demonstra a precariedade em que o motorista está inserido numa relação de pleno
desequilíbrio, promovendo um parasitismo urbano, nas cidades em que estão inseridos.
No que se refere a regulamentação da Uber nos municípios brasileiros, diante da
complexidade dos gestores públicos buscarem resolver em definitivo os impasses provocados
pela lacuna legislativa, ressalta-se a importância da Lei 13.640/2018 para a regulamentação
do transporte individual de passageiros, uma vez que coloca por fim indefinições quanto a
legalidade do exercício da atividade.
No entanto, tem sido cada vez mais recorrentes questionamentos quanto a ausência de
vínculo empregatício de Uber e motoristas, uma vez que tais discussões vêm sendo ampliada
nos tribunais e sistemas jurídicos, tanto internacionalmente, como também no judiciário do
País. Sabendo-se que não há um consenso quanto essas definições.

REFERÊNCIAS BLIBLIOGRÁFICAS

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2017.

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coletivas do trabalho. 7ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2016

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Regulamentação dos apps de transporte privado será sob muita pressão de todos os
lados, disponível em:
https://jc.ne10.uol.com.br/blogs/deolhonotransito/2018/05/15/regulamentacao-dos-apps-de-
transporte-privado-sera-sob-muita-pressao-de-todos-os-lados/, acesso em: 09/09/2018

Motorista do Uber tem vínculo reconhecido, disponível em:


https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI286269,101048-
Motorista+de+Uber+tem+vinculo+empregaticio+reconhecido, acesso em: 09/09/2018
Justiça do Trabalho de Minas Gerais decide que motorista tem vínculo empregatício
com Uber, disponível em: https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/justica-do-trabalho-de-
mg-decide-que-motorista-tem-vinculo-empregaticio-com-uber.ghtml, acesso em: 09/09/2018

Justiça do Trabalho de Minas Gerais decide que motorista da Uber não é funcionário
da empresa, disponível em: https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/justica-do-trabalho-de-
mg-decide-que-motorista-da-uber-nao-e-funcionario-da-empresa.ghtml, acesso em:
09/09/2018

Decisão judicial nos Estados Unidos pode transformar motoristas de apps em


funcionários, disponível em: https://canaltech.com.br/juridico/decisao-judicial-nos-eua-
pode-transformar-motoristas-de-apps-em-funcionarios-112946/, acesso em: 09/09/2018

Justiça manda Uber reconhecer motorista como funcionário e pagar salário mínimo em
Londres, disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/justica-manda-uber-
reconhecer-motorista-como-funcionario-e-pagar-salario-minimo-em-londres.ghtml, acesso
em: 09/09/2018
ANTAGONISMO SOCIAL DO PRINCÍPIO DA NÃO-DISCRIMINAÇÃO: LUTA
PELA IGUALDADE X INVERSÃO DO PRECONCEITO83

Maria Júlia Cabral de Vasconcelos Arruda84


Marina Piotrowski Oliveira Dias85

RESUMO

Introdução. Este artigo aborda a evolução da participação das mulheres no mercado de


trabalho ao longo da história, analisando as modificações do papel social da mulher. Apesar
da igualdade formal advinda do ordenamento jurídico, as mulheres ainda enfrentam a
desigualdade de gênero por meio da diferença salarial e do assédio. Chegando-se ao panorama
atual, percebe-se uma migração da população economicamente ativa feminina para o trabalho
especializado voltado para outras mulheres. Objetivos. Busca-se examinar se essa migração
seria prejudicial, pautando-se na análise do princípio da não-discriminação contido no Direito
Constitucional e do Trabalho, de forma a se examinar se esta ação viabiliza o instituto do
preconceito inverso. Método. A busca por uma resposta realizou-se através de revisão de
literatura, mediante a técnica da pesquisa bibliográfica e do método hipotético-dedutivo.
Resultados e conclusão. Por fim, apesar de parecer uma forma de discriminação no mercado
de trabalho, esse microssistema de trabalho especializado não deve ser assim classificado,
visto que não suprime os direitos dos mais favorecidos socialmente. Ao contrário, deve ser
estimulado, pois é um mecanismo que fortalece e protege as mulheres.

PALAVRAS-CHAVE: Desigualdade de gênero. Mulher no mercado de trabalho. Princípio


da não-discriminação. Trabalho especializado feminino.

INTRODUÇÃO

Ao se analisar a história recente da humanidade pode-se perceber a luta constante


das mulheres na busca pela igualdade entre os gêneros e o fim do rebaixamento do trabalho
feminino. Essas batalhas deram grandes resultados, possibilitando ao sexo feminino a
participação mais ativa na sociedade, podendo exercer funções além das taxadas erroneamente
como femininas por serem menos vigorosas e vinculadas a características passionais.
A busca pela igualdade entre os gêneros é resultado de um longo processo de
evolução histórica, que teve como seu primeiro objetivo tentar retirar da mentalidade da
sociedade a ideia de que a mulher seria inferior ao homem. Outro obstáculo enfrentado pelo

83
GT 3 - Direito, Trabalho e Saúde
84
Graduanda do 8º período do Curso de Direito da Universidade de Pernambuco -UPE, campus
Benfica/FCAP. E-mail:majucva@gmail.com.
85
Graduanda do 8ºperíodo do Curso de Direito da Universidade de Pernambuco -UPE, campus
Benfica/FCAP. E-mail:marinapiotrowski5@gmail.com.
sexo feminino, representado muitas vezes pelo movimento feminista, foi proporcionar às
mulheres os mesmo direitos e deveres que eram dados aos homens. Logo, faz-se valer do
princípio da igualdade, previsto no artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos:
“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão
e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade” (FRANÇA,
1948).
A inserção do sexo feminino no mercado de trabalho é um movimento que ainda se
consolida, pois nem todas as mulheres conseguiram esse feito e as que o alcançaram ainda
lutam pela igualdade material de tratamento. Visando auxiliar a realização dessa meta, o
ordenamento jurídico brasileiro, em sua Constituição Federal - CF e em outras leis
infraconstitucionais, trouxe para a realidade do país a materialização legal da necessidade
dessa igualdade real ao defender e primar pelos direitos da mulher em posição de igualdade
com o homem. Algo que pode ser percebido facilmente ao se analisar o caput do artigo 5º da
CF: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, e o inciso I do
mesmo artigo: “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta
Constituição”. Tal observação foi feita também pelo ex-ministro Joaquim Barbosa Gomes
que: “a Constituição Brasileira de 1988 não se limita a proibir a discriminação, afirmando a
igualdade, mas permite, também, a utilização de medidas que efetivamente implementem a
igualdade material” (BRASIL, 1988).
Essa onda da busca pela igualdade entre os gêneros não se restringiu apenas à lei, a
doutrina brasileira também foi afetada e contribuiu para a propagação desse espírito ao realizar
as interpretações almejando esse objetivo. Nessa análise doutrinária merece destaque o
princípio, abordado pelo Direito do Trabalho, da Não-Discriminação, instituto que merece ser
visto de maneira mais aprofundada, pois como será abordado adiante pode gerar diferentes
consequências para a sociedade, indo além do que aparentemente se pretende. Para se alcançar
esse objetivo, a metodologia utilizada foi a revisão de literatura, na modalidade narrativa (a
partir da análise de diversos artigos, de 2008 a 2016, livros, legislação e notícias recentes), e
do método hipotético-dedutivo, para ao aplicar-se o falsificasionismo proposto por Karl
Popper (POPPER, 1934), seja possível verificar se existe violação ao princípio da não-
discriminação, a medida que a prestação de serviços por mulheres têm como destinatárias,
exclusivamente, outras mulheres.

2 ANÁLISE HISTÓRICA: A MULHER, O TRABALHO E O CASAMENTO


Desde que os seres humanos tornaram-se sedentários, a mulher esteve isolada do
processo produtivo devido à procriação e seu caráter involuntário e natural. Seu tempo foi
ocupado com o cuidado e a socialização das suas crias. A partir do momento em que a família
adquire seu caráter privado, a mulher é encarregada do trabalho doméstico, e, por ser realizado
isoladamente, torna-se um elemento a mais da opressão feminina. A mulher, privada de
qualquer participação social, passa a depender tanto economicamente como emocionalmente
do seu marido e os dois atuam como um instrumento de submissão ao cônjuge e à estrutura
familiar (COSTA, 2014).
Além disso, a instituição do casamento é criada e torna-se uma forma oficial de
opressão. Em quase todas as civilizações o papel social da mulher esteve atrelado à família
embora cada uma desse o seu significado ao casamento. Na Grécia Antiga, o casamento de
homens livres era uma forma apenas de dar filhos legítimos à pátria. Em Roma, visto como
um contrato civil, era um instrumento de controle de transmissão de patrimônio. É no Império
Romano que o patriarcado se consolida e com ele a visão dual da mulher: esposa honrada,
mãe de família, cheia de virtude ou a prostituta, perdida na vida e nociva à sociedade. Para
Agostinho, o casamento representava um mal com a finalidade de manifestar o desejo carnal,
sendo a mulher útil apenas para a procriação. Porém, se no início do cristianismo as mulheres
eram vistas como seres perigosos, após o Concílio de Trento, elas tornaram-se suas guardiãs.
Isso ocorreu quando as mulheres levaram suas devoções religiosas para fora de casa,
espalhando-as, pois a Igreja vislumbrou uma oportunidade de difundir a moral cristã
(NADER, 2014).
Por serem consideradas a base da família, a mulher precisava ser preparada para ser
submissa e ter uma formação que a capacitasse a transmitir a moral cristã. Logo, a educação
torna-se um meio para preparar a mulher para o casamento. Nesse processo, ela é convencida
a desejá-lo e a gostar dele, mesmo que suas consequências não sejam favoráveis a si. A
educação, desse modo, não deve servir para seu crescimento intelectual. O casamento torna-
se, então, um modo de adestrar a sexualidade feminina enquanto todas as instituições sociais
(a mídia, a Igreja, a escola) repetiam que era isso que todas as mulheres desejavam. “O sonho
feminino” passa a ser o único destino para mulheres respeitáveis (NADER, 2014).
Desse modo, casamento e a maternidade acabam por se tornarem instrumentos da
opressão feminina. Enquanto o matrimônio mantém a mulher presa ao seio familiar, a
maternidade e os afazeres domésticos preenchem seu tempo, impedindo-a de conseguir uma
liberdade econômica e social.
As mulheres ocuparam durante muitas décadas a função de serem “donas dos lares”,
ficando incumbido a elas as tarefas domésticas e a educação dos filhos, enquanto os maridos
deviam trabalhar fora e sustentar a família. Essa situação passa a se alterar, no mundo
ocidental, com as revoluções industriais que trouxeram para dentro das fábricas as mulheres
e as crianças, com a função de complementar a renda familiar. Com a Revolução Industrial e
a diminuição da importância da força física, a mulher foi incorporada ao trabalho assalariado.
O trabalho, porém, criou uma falsa imagem de libertação. Embora a dependência econômica
seja um ponto fundamental da submissão feminina, quando essa dependência cessa, a mulher
continua limitada, pois há toda uma ideologia por trás, cheia de estereótipos que caracterizam
a personalidade feminina como consumista, emotiva e passiva (COSTA, 2014). Segundo
Engels (1974, p. 204 apud COSTA, 2014, p. 15):

[...] a emancipação da mulher e sua equiparação ao homem são e continuarão sendo


impossíveis, enquanto ela permanecer excluída do trabalho produtivo social e
confinada dentro do trabalho doméstico, que é um trabalho privado.

Porém, a industrialização reforçou a opressão feminina quando o trabalho


assalariado constituiu-se como uma nova jornada de trabalho, deixando-a com uma dupla
jornada. A condição de inferioridade da mulher torna-se interessante para a acumulação de
capital, pois suas características de submissão e passividade, encucadas durante séculos de
opressão, são utilizadas para submetê-las a salários inferiores e extensas jornadas. Os donos
das indústrias justificavam que, se as mulheres trabalhavam até sem salário, iriam se contentar
em receber menos.
Em um segundo momento, com as duas guerras mundiais, o paradigma social
estabelecido mudou ainda mais, pois os homens estavam nos campos de batalhas sem a menor
certeza de que continuariam vivos. Logo, a função de chefe de família passou a ser das
esposas, que começaram a ocupar, muitas vezes de forma permanente, os postos de trabalho
antes considerados exclusivamente masculinos. Em 1944, na Inglaterra, a força ativa feminina
teve um aumento de 40%, chegando a alcançar metade da força ativa masculina (MYRDAL,
Alva; KELVIN, Viola. Women’s two rules (apud COSTA, 2014)). É importante notar que, se
todas as mulheres que se casassem e exercessem atividades no seu próprio domicílio fossem
consideradas como trabalhadoras economicamente ativas, e não apenas esposas, as taxas
globais de atividade feminina iriam beirar os 100% (NADER, 2014). Isso evidencia como o
trabalho doméstico, exercido em sua maioria por mulheres, é desconsiderado, contribuindo
para a manutenção da hierarquia entre os gêneros.
Apesar de terem começado a minar a barreira de preconceitos, que estipulava a
posição social da mulher como inferior ao homem e com capacidade apenas para lidar com
problemas do ambiente doméstico, as mulheres ainda enfrentam grandes dificuldades para se
inserirem de uma vez no mercado de trabalho. Um dos primeiros obstáculos a serem vencidos
foi justamente a ideologia e o discurso machista que está enraizado nas mentalidades de uma
grande parcela da sociedade.

3 O RECONHECIMENTO DA MULHER NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E NA


CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS TRABALHISTAS

Após analisar o histórico das mulheres e sua inserção no mercado de trabalho, não se
pode deixar de dar destaque às conquistas que foram alcançadas por elas nessa luta pela
igualdade. Amparadas por dispositivos legais que proporcionaram isso, as mulheres passaram
a disputar em pé de igualdade formal as vagas e oportunidades oferecidas.
Como já exposto, a CF de 1988 foi responsável por instituir no ordenamento jurídico
o princípio da igualdade formal entre todos os cidadãos brasileiros, inclusive homens e
mulheres, tendo ambos direitos e obrigações e igualdade de tratamento. Porém, o texto legal
mão se limitou a isso, pois, o artigo 7º, onde estão elencados os direitos dos trabalhadores, o
legislador colocou a mulher em posição de destaque, ao prever no inciso XX a proteção do
mercado de trabalho da mulher mediante incentivos específicos.
O tema supracitado se materializa na Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, que
em vários dispositivos proporciona a igualdade para as mulheres, possuindo, inclusive, um
capítulo para proteção do trabalho feminino.
A igualdade total no que se refere às leis trabalhistas não é a solução adequada, mas
representa à mulher uma discriminação visto que ela está mais exposta às influências do meio
ambiente do que o homem. A verdadeira igualdade, ou a equidade, está em dar iguais
oportunidades de emprego para ambos os sexos, além de igual salário e promoções. A
“igualdade” não pode limitar a possibilidade de inserção no mercado, ou trazer-lhe transtornos
de saúde (COSTA, 2014). Desse modo, merecem ser destacados os institutos do salário,
duração e condições de trabalho, trabalho noturno, períodos de descanso, métodos e locais de
trabalho e proteção ao matrimônio e à maternidade, de forma a serem analisados de maneira
mais aprofundada.
A CF no artigo 7º, XXX, faz a expressa vedação à prática de diferenciar salários devido
à cor, raça, idade ou sexo, convalidando a ideia de que não se pode tratar de maneira
diferenciada duas pessoas que venham a desempenhar a mesma função. A CLT, por sua vez,
reitera a CF no seu artigo 5º, ao dizer que a trabalhos iguais, não deve haver distinção de
salário devido ao sexo, enquanto no artigo 377 afasta a possibilidade de redução do salário
feminino. Destaca-se que a proteção ao trabalho feminino é matéria de ordem pública.
No que diz respeito à jornada de trabalho, as mulheres devem seguir as mesmas 8 horas
diárias que foram estabelecidas para os homens, conforme o que está previsto na CF e
ratificado pela CLT no artigo 373. Além disso, o subsequente, 373-A, veda: publicar anúncio
de emprego no qual haja referência ao sexo; recusar emprego, promoção ou motivar a dispensa
do trabalho em razão de sexo; considerar o sexo como determinante para fins de remuneração,
formação profissional e oportunidades de ascensão profissional; exigir atestado ou exame para
comprovação de esterilidade ou gravidez, na admissão ou permanência no emprego; impedir
o acesso ou adotar critérios subjetivos para deferimento de inscrição ou aprovação em
concursos, em empresas privadas, em razão de sexo; proceder o empregador ou preposto a
revistas íntimas nas empregadas ou funcionárias. Todas essas vedações são necessárias, pois
sem elas podem ocorrer discriminações nas relações de emprego em razão do sexo, como
salários inferiores devido à gravidez ou dispensa do emprego em decorrência do casamento.
Atualmente, o trabalho noturno não é mais vedado para a mulher, sendo permitido em
1989 com a revogação dos artigos 379 e 380 da CLT. Conforme regulado no artigo 381, o
trabalho noturno da mulher deve ter um aumento de, no mínimo, 20% e as horas adicionais
devem equivaler ao período de 52 minutos e 30 segundos, assim como o do homem.
No que diz respeito aos períodos de descanso, assunto tratado pelos artigos 382 a 386
da CLT, não há a regulamentação, passou a ser igual para homens e mulheres, devendo haver
intervalos interjornadas de, no mínimo, 11 horas e intervalos intrajornadas concedidos entre
1 a 2 horas. Tal quadro jurídico, contudo, não foi sempre o mesmo, sendo ele alterado
recentemente com a lei 13.467/2017 que revogou o artigo 384, o qual previa um intervalo de
15 minutos destinados a mulheres que iriam laborar por um período extraordinário. Essa
alteração legislativa parece ser insignificante em uma primeira análise, mas merece atenção,
pois dificulta a materialização da proteção à saúde da mulher, afinal elas já são submetidas
socialmente a uma dupla jornada, fazendo jus, assim, a esse período de descanso.
A mulher não é mais proibida de realizar trabalho insalubre desde 1989, com a
revogação do artigo 387, b. Logo, em se tratando de trabalhos perigosos, insalubres ou
penosos, se aplica às mulheres as mesmas disposições referentes aos homens.
Ainda no que diz respeito ao trabalho realizado em locais insalubres é importante
analisar a grande alteração legislativa realizada pela “Reforma Trabalhista”, tendo em vista
que essa inovou o ordenamento jurídico ao permitir, no artigo 394-A, o trabalho de mulheres
gestantes em locais enquadrados nos graus médio ou mínimo de insalubridade e das mulheres
lactantes que laboram em locais insalubres, independentemente de qual seja o grau da
insalubridade. O texto legal estabelecido pela lei 13.467/2017 representa um grande retrocesso
na luta pelos direitos dos trabalhadores e das mulheres, afinal anteriormente o afastamento da
mulher gestante/lactante era compulsório, afinal é notório que o trabalho em condições
insalubres afeta não só a saúde da gestante, como também a do feto que está sendo gerado ou
da criança que está sendo amamentada. A nova redação dispõe acerca do afastamento do labor
como uma faculdade da empregada e desde que haja recomendação médica, contudo, o texto
se afasta do princípio basilar da proteção do Direito do Trabalho ao desconsiderar a posição
de hipossuficiência do empregado ante a figura do empregador. A nocividade dessa mudança
legislativa fica ainda mais explícita ao se analisar a redação do inciso XXII do artigo 611-A
que estabelece a possibilidade de negociação coletiva sobre a classificação dos graus de
insalubridade. A análise conjunta desses dois dispositivos ilustra o um dos grandes retrocessos
sociais causados pela Reforma de 2017.
O artigo 389 da CLT dispõe sobre as condições mínimas para que as mulheres possam
exercer suas atividades laborais, atendendo nesse dispositivo para as diferenças entre os sexos
e o cuidado especializado que a mulher necessita. Dispõe-se principalmente ao conforto e
privacidade para a mulher. Dentre os requisitos estão: prover medidas concernentes à
higienização dos métodos e locais de trabalho necessários à segurança e ao conforto das
mulheres; instalar bebedouros, lavatórios, aparelhos sanitários, além de cadeiras ou bancos a
fim de permitir às mulheres trabalhar sem grande esgotamento físico; instalar vestiários com
armários individuais para as mulheres, exceto em estabelecimentos em que não seja exigida a
troca de roupa e outros, admitindo-se como suficientes gavetas, onde as empregadas possam
guardar seus pertences; fornecer, gratuitamente, recursos de proteção individual, tais como
óculos, máscaras, luvas e roupas especiais, de acordo com a natureza do trabalho.
Além disso, determina que estabelecimentos com pelo menos 30 mulheres com mais
de 16 anos terão local apropriado onde seja permitido às empregadas guardar sob vigilância e
assistência os seus filhos no período da amamentação. Essa exigência pode ser suprida por
meio de creches distritais mantidas, diretamente ou mediante convênios. Esse ponto merece
grande destaque, pois proporciona e facilita a entrada e permanência das mulheres, que já
tenham filhos, no mercado de trabalho.
Merece menção, ainda, o artigo 390, que veda a admissão de mulheres para exercerem
atividade que necessitem do emprego de força muscular superior a 20 quilos para o trabalho
continuo, ou 25 quilos para o trabalho ocasional. Porém, essa vedação não se aplica se a
mulher usar qualquer aparelho mecânico para realizar essa movimentação.
Ainda tratado sobre as inovações legislativas, a inserção do parágrafo 2º do artigo 396,
prevê a possibilidade de acordos entre as mulheres e o empregador para os períodos destinados
à amamentação uma afronta ao princípio da primazia da realidade. É fácil perceber que tal
previsão legislativa não irá favorecer a empregada, que diante da situação fática não tem poder
para dialogar com o seu empregador, condicionando, assim, o período de amamentação à
vontade do empregador, deixando de lado o objeto dessa legislação que visa resguardar os
direitos dos empregados que estão em posição de hipossuficiência na relação contratual de
emprego.
Por fim, a CLT veda expressamente a despedida por conta de matrimônio ou gravidez,
e ainda concede a gestante a licença maternidade de 120 dias, garantido a ela a estabilidade
provisória prevista na alínea b do inciso II do artigo 10 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias. Se ocorrer despedida sem justa causa ou arbitrária, a gestante terá direito à
reintegração ou ao pagamento dos salários relativos ao prazo legal que lhe é garantido. De
acordo com a Lei n. 11.770/2008, a empresa pode estender o período de licença-maternidade
de 120 para 180 dias, recebendo incentivos fiscais por isso.

4 A MULHER E O AMBIENTE DE TRABALHO: DA INFERIORIDADE SALARIAL


AOS ASSÉDIOS

Apesar de todas essas garantias adquiridas e do ordenamento jurídico assegurar às


mulheres os mesmos direitos concedidos aos homens, a igualdade entre os gêneros ainda não
alcançou a plenitude e a realidade vivenciada pelas mulheres não é mais fácil. Apesar da sua
condição ser melhor do que anteriormente, as mulheres ainda têm de se provar capazes e
competentes o tempo inteiro, lutando por igualdade de oportunidade e tratamento.
Diariamente elas têm que enfrentar a discriminação e problemas como a desigualdade salarial
e violências de diversos tipos no ambiente de trabalho. Essa situação deve ser estudada de
maneira mais específica devido a sua grande importância e relevância para o mundo das
relações trabalhistas.
Dois fatores, um biológico e outro social, contribuíram para justificar uma série de
discriminações que as mulheres enfrentam no universo do trabalho, como a inferioridade
salarial. O biológico diz respeito à maternidade, pois seu trabalho sofre uma redução e sujeita
a mulher a afastamentos periódicos. Ele é reforçado pelo fator social, que impôs à mulher a
responsabilidade de reprodução da espécie quase exclusivamente.
Muitas vezes, quando a mulher consegue alcançar um bom grau de especialização é
contratada para trabalhos inferiores à sua capacidade ou com um salário inferior do que
deveria receber. Além disso, o casamento impõe uma descontinuidade na vida profissional
feminina o que ocasiona uma série de desvantagens à sua participação. A mulher jovem é vista
como um trabalhador pouco estável que logo trocará o emprego pelo casamento e quando ela
tenta voltar ao mercado, está desatualizada da tecnologia vigente e é desvalorizada pela sua
idade. Se a mulher decide não abandonar seu emprego depois de casada, depara-se com uma
série de barreiras como a inexistência de serviços sociais, como creches e lavanderias, ou seu
elevado preço. Além disso, enfrenta o preconceito das empresas em contratá-la ou mantê-la
no quadro de empregados.
Embora realize o mesmo trabalho que o homem, a mulher costuma receber menos.
A ideologia dissemina que o salário feminino é apenas um complemento ao salário do seu
marido, que é o verdadeiro responsável pela manutenção econômica da casa.
A mulher sempre funcionou como um exército de reserva a ser usado quando o
trabalho masculino está escasso ou quando é preciso forçar a baixa dos salários. Durante a 2ª
Guerra Mundial, por exemplo, na Inglaterra, a força ativa feminina aumentou em 40%
(COSTA, 2014). Porém, com o fim da guerra e a retomada da mão de obra masculina, as taxas
da participação feminina retornaram aos níveis anteriores. Isso demonstra como a força de
trabalho feminina é utilizada conforme a oferta de mão de obra masculina.
Com o avanço do desenvolvimento industrial, a mão de obra feminina concentrou-se
no setor terciário e houve a identificação de algumas carreiras como próprias das mulheres,
como a secretária e a professora. Essas carreiras, então, tiveram uma baixa nos seus salários,
além de uma depreciação nas condições de trabalho e a perda do prestígio (COSTA, 2014).
Em 8 de março de 1857, as mulheres fizeram uma greve devido às condições de
trabalho que incluíam uma jornada de 16 horas diárias e um salário que consistia em 40% do
salário masculino. Essa manifestação foi reprimida com brutalidade, e dezenas de
trabalhadoras morreram carbonizadas. Esse fato histórico é uma das origens para o dia
internacional da mulher. Na última década, dependendo da profissão, a mulher costuma
ganhar entre 65% e 75% do que um homem ganha para realizar exatamente a mesma função,
pela mesma quantidade de horas. Porém, se elas ocupam cargos de chefia, o salário é quase a
metade. Se o ritmo continuar o mesmo, serão precisos 100 anos para a equiparação salarial
(KODAMA, 2012).
Não há dúvidas de que o crime de assédio sexual pode ser cometido por ambos os
sexos, contra pessoas do mesmo sexo ou do sexo oposto, porém as mulheres são o grupo mais
diretamente atingido. Acredita-se que as instituições sociais têm uma maior dificuldade de
caracterizar o crime de assédio porque, devido ao padrão cultural que legitima a conduta
predatória do homem, este não é incriminado. Logo, costuma-se tratar o assédio como um
problema das relações de trabalho, não como uma violência contra a mulher (FAKUDA,
2012).
A lei contra, como um tipo penal, o assédio sexual apenas foi regulamentada de 2001,
pela Lei 10.224. Mesmo assim, ela não foi capaz de mudar o cenário. O assédio sexual
caracteriza-se como relacionado e limitado pelo espaço do trabalho. Exclui-se, então, outras
formas de constrangimento ocorridas em outros ambientes de hierarquia ou poder. Além disso,
a legislação é omissa quanto ao constrangimento e à forma de comportamento do agressor
efetivamente. Isso ocorre, pois, ao caracterizar o tipo de constrangimento como aquele cujo
objetivo é obter vantagem ou favorecimento sexual, limita as investidas apenas àquelas
explícitas com uma negativa também explícita da vítima (JESUS, 2001). Logo, pela definição,
nem toda conduta, como as cantadas, são juridicamente entendidas como assédio.
Há também outros elementos nesse cenário que devem ser levados em consideração.
O comportamento da mulher-vítima ao revelar o assédio é na maioria dos casos questionado
por outros quando ela o faz. Por isso as vítimas costumam, antes do confronto direto, afastar-
se da situação para evitar novos constrangimentos. Além disso, a própria relação de poder,
componente de desigualdade necessário para a caracterização do crime, atua como um
elemento inibidor da postura mais enfática da vítima. O silêncio da vítima, desse modo, é
mantido pela necessidade de trabalho, o desconhecimento das leis e a ausência de um órgão
ou pessoa a quem recorrer, pois sabem que, ao tomarem essa medida, devem estar preparadas
para serem dispensadas. A denúncia torna-se uma medida extrema. Outro fato é o Judiciário
que assume um papel mediador, o que acaba por reproduzir as desigualdades da relação.
Logo, é importante enfatizar que a violência contra a mulher provoca um amplo e
desastroso efeito: ela impede e até anula o exercício dos direitos já adquiridos, sejam eles
civis, culturais ou políticos (FAKUDA, 2012).
O assédio moral é toda conduta que, por meio de palavras, gestos ou atitudes, cause
danos à personalidade, dignidade ou integridade física ou psíquica da trabalhadora e por isso
coloque em risco seu emprego ou degrade o ambiente de trabalho (KODAMA, 2009). Na
legislação brasileira o assédio moral não é tipificado.
Mesmo sem regulamentação jurídica, as condutas previstas no artigo 483 da CLT
podem constituir assédio moral. Geralmente são atitudes que vão contrário aos bons costumes
e à ética. O intuito do agressor com essa conduta é humilhar a trabalhadora em frente aos
demais, ensejando uma punição pelas suas opiniões e atitudes manifestas. Como consequência
a autoestima da mulher é atingida, fragilizando-a e levando-a a submeter-se às vontades do
assediador.
O assédio costuma iniciar-se quando a vítima reage ao autoritarismo do chefe ou se
recusa a se subjugar. Essa resistência à autoridade transforma a vítima em alvo. A funcionária-
modelo, desse modo, costuma ser o alvo principal visto que sua eficiência e habilidade
ameaçam a posição de liderança do agressor. Como consequência recebem salários menores,
têm menos acesso a promoções, programas de capacitação e indicações para cargos de
liderança. No serviço público, promoções costumam ser negadas devido à avaliação dos seus
superiores e cargos de comissão ou funções gratificadas são retiradas. Ademais, mulheres
casadas, grávidas ou com filhos pequenos tendem a ser mais atingidas pela agressão
(KODAMA, 2009).
O assédio moral reiterado provoca queda da produtividade, falta de criatividade,
baixa eficiência, até consequências na saúde como depressão, crises de ansiedade, estresse,
insônia e tentativa de suicídio.
A prática do assédio moral possibilita a demissão por justa causa do empregador, ou
seja, devido ao assédio, a empregada pode dar justa causa no patrão. Nesses casos, a
empregada tem direito de pedir indenização relativa ao dano moral. Porém, cabe ao
empregado provar em juízo os motivos alegados na demanda trabalhista (artigo 818 da CLT).

5 MIGRAÇÃO PARA O TRABALHO ESPECIALIZADO FEMININO

Como pôde ser observado ao longo deste artigo, as mulheres receberam prerrogativas
do ordenamento jurídico como uma forma de ingressar e se manter no mercado de trabalho,
exercendo os mesmos deveres e tendo os mesmos direitos dos homens. Contudo, quando essa
situação se materializa na realidade, as mulheres não conseguem alcançar a igualdade e ainda
continuam sendo vítimas de preconceitos e violências dentro do mercado de trabalho.
Fazendo uma análise da sociedade atual, pode-se notar como as mulheres passaram
a encontrar diferentes formas de solucionar esse problema, sendo a mais comum a debandada
para o setor de serviços especializados.
Buscando uma melhor realidade socioeconômica e um ambiente de trabalho mais
saudável, muitas mulheres passaram a abrir seus próprios negócios, muitas das vezes, na
forma microempreendedora, voltados para o público feminino, onde encontraram um mercado
aberto e que buscava um serviço pautado na excelência e na segurança. Como afirma Oliveira,
Nakazone e Coelho (2016, p.1):

Destaca-se a crescente participação feminina quando na análise dos índices


registrados no cadastro do Microempreendedor Individual na região do Estado de
São Paulo, relacionada, principalmente, com negócios voltados a prestação de
serviços direcionados à beleza e à estética.

Pode-se citar, como exemplo desse novo tipo de ramo trabalhista, o aumento
significativo da frota de táxis dirigidos por mulheres. Tal ramo de trabalho visa, de maneira
geral, ao atendimento preferencial de outras mulheres. Elas optam por esse tipo de serviço por
sentirem mais confiança e segurança, pois sabem que as chances de serem alvos de
comentários desnecessários e de violências morais ou físicas diminuem drasticamente. A ideia
promovida pelo aplicativo “99 táxi” lembra o vagão rosa do metrô do Rio de Janeiro e São
Paulo. Nessas mesmas capitais, 400 motoristas de táxis se cadastraram para atender outras
mulheres que solicitarem a corrida. Desde 2015, o número dos clientes não é mais disponível
para os motoristas devido aos assédios que mulheres já receberam de taxistas masculinos. Essa
inovação também protege a motorista, pois ela pode recusar a corrida se for um homem,
embora estes possam pedir corridas se for para alguma mulher.
É importante citar também a criação de um escritório de advocacia, Braga & Ruzzi
Advogadas, em São Paulo que se dedica à análise de causas de mulheres, normalmente
relacionadas a abuso e violência, em que os homens são os sujeitos das condutas ilícitas.
Conforme Braga afirma, apesar do escritório não se fechar para homens, elas não atenderão
agressores. O objetivo desse escritório, como elucida uma de suas fundadoras, em uma
entrevista à revista Carta Capital, é defender os interesses das mulheres, proporcionando a
elas um atendimento sem discriminação e pré-julgamentos, possibilitando dessa maneira, a
prestação de serviço justo e de boa qualidade.
O exemplo supracitado não é apenas um fato pontual isolado. Ele marca uma
tendência do posicionamento das juristas brasileiras que aos poucos vão se tornando adeptas
a esse movimento extremamente recente, que tem como finalidade a defesa dos direitos das
mulheres e a constante busca pela igualdade material.
É importante ressaltar a pluralidade do termo que a questão refere-se: mulheres.
A tentativa de uma unidade, de um sujeito feminino universal, buscando uma base comum
entre as mulheres, é excludente, opressor e dominante. Critica-se a tendência de colocar a
categoria “gênero” ou “sexo” como o que as mulheres têm em comum. Não se trata de excluir
o corpo dessa questão, mas utilizá-lo mais como uma variável do que como uma constante.
Logo, promover a desconstrução do sujeito universal “Mulher” não significa o abandono
dessa categoria, mas sua ressignificação. Uma noção de unidade só poderia ser alcançada
produzindo novas exclusões. Desse modo, o sujeito do feminismo passa a ser entendido como
uma eterna construção e não uma existência pré-discursiva. Essa noção retira a base estável
do gênero, mas não elimina a categoria “mulheres”, apenas redefine-a. A essência dessa nova
forma de trabalho é sobre deixar o ser feminino sentindo-se seguro, contemplado e protegido,
com todas as suas especificidades e diferenças, independente de como ele se apresente
fisicamente.

6 ATIVIDADES DE TRABALHO DE MULHER PARA MULHER: O PRINCÍPIO DA


NÃO-DISCRIMINAÇÃO VERSUS O PRECONCEITO INVERSO

Ao se analisar essa recente tendência social das mulheres migrarem para áreas de
empreendedorismo e passarem a criar serviços que sejam pautados no lema “de mulheres para
mulheres”, pode-se realizar um questionamento acerca dessa atitude. Seria ela uma forma
eficaz de colocar fim à desigualdade ou isso iria desencadear um novo tipo de preconceito?
Jamille Pereira e Darcy Hanashiro fazem uma análise, através de estudos advindos
dos Estados Unidos, de como indivíduos, de grupos favorecidos, reagem com um programa
que promove a diversidade e beneficia as minorias. Observam-se duas atitudes, a primeira de
aceitação e a segunda de negação. Na primeira, esses indivíduos acreditam que as minorias
são grupos que devem ser favorecidos, pois reconhecem que elas são mais vulneráveis ou
estão excluídas. Tais cidadãos acreditam na diversidade e valorizam a diferença, baseados no
argumento da justiça social. Já a segunda atitude ocorre porque os grupos privilegiados
enxergam as medidas ou mudanças como uma ameaça. Esses indivíduos se sentem vítimas
em detrimento do favorecimento das minorias, passando a reclamar a existência de uma
discriminação reversa (PEREIRA; HANASHIRO, 2010).
A resposta para o questionamento foi pautada na análise do princípio da não-
discriminação. Essa análise afasta qualquer interpretação diversa do entendimento de que
essas medidas não passam de formas atuais para que se possa diminuir a desigualdade e a
discriminação entre os gêneros.
O princípio da isonomia está disposto na parte da Constituição dos direitos
fundamentais, estando diretamente vinculado ao Estado Democrático de Direito. Logo, ele
não pode deixar de ser observado, tanto na produção de normas como na sua aplicação, pois
sua não observância resulta em injustiças. Os constitucionalistas atuais, como Cármen Lúcia
Rocha, Celso Antônio Bandeira de Mello e Júnior Cretella, atribuem a esse princípio uma
visão realista, ou seja, reconhecem as desigualdades humanas. Essa visão propõe o respeito
às desigualdades com a finalidade de igualá-los de modo que mesmo os desiguais convivam
de forma igual e sem prestígios.
A igualdade formal, aquela presente nos textos legais, acabou por gerar uma
desigualdade real. Sobre esse momento, Cármen Lúcia (1996, p. 284) tece o seguinte
comentário:

Urgia, pois, que se promovesse constitucionalmente, por uma remodelação da


concepção adotada pelo sistema normativo democrático, a igualdade jurídica
efetiva, a dizer, a promotora de igualação. Os iguais mais iguais que os outros já
tinham conquistado o “privilégio” da igualdade. E os desiguais, ou aqueles histórica
e culturalmente desigualados, sujeitos permanentes do Direito formal, mas párias do
Direito aplicado, que não conseguiam ascender à igualdade jurídica desejada?

Desse modo, a igualdade material entra para equiparar as pessoas, utilizando-se da


premissa “tratar os desiguais na medida das suas desigualdades” para que haja uma igualdade
concreta. Porém, como bem afirma Júnior Cretella (1989, p. 179):

Todos os indivíduos, quaisquer que sejam seus títulos, a sua riqueza e a sua classe
social, estão sujeitos à mesma lei civil, penal, financeira e militar. Em paridade de
condições, ninguém pode ser tratado excepcionalmente.

Seguindo esse raciocínio, a igualdade possui um duplo objetivo: propiciar a garantia


individual contra perseguições e tolher o favoritismo. Logo, é preciso investigar se o critério
discriminatório possui justificativa racional à vista da situação que gera a desigualdade
(SANTANA, 2010). Correlato ao princípio constitucional da isonomia, o princípio da não-
discriminação é aquele visto sob o ângulo das relações de trabalho.
Como visto neste artigo, as mulheres incorporam-se num mundo do trabalho
fortemente masculinizado, em que seus salários são vistos como complementos aos dos seus
maridos. Logo, estão numa posição de constante discriminação, não só de salário, mas
também de condições de trabalho e acesso a empregos (HENRIQUES, 2006). Embora haja,
atualmente, mais mulheres habilitadas com diplomas de graduação, as oportunidades
profissionais não refletem essa realidade. O percentual médio de ingresso até 2013 foi de 55%
de mulheres e, se esse recorte for feito para concluintes, ele sobe para 60% (PORTAL
BRASIL, 2015). Porém, mesmo sendo maioria da população brasileira, sua participação no
mercado formal de trabalho no mesmo ano beira os 43%, apesar do crescimento mais
acelerado (PORTAL BRASIL, 2015). Como afirma Maria do Rosário Ramalho (2003, p.
215):

A temática da igualdade de tratamento entre mulheres e homens no domínio do


trabalho é hoje um problema incontornável para os juslaboralistas, sendo sabido que
um dos domínios em que se verificam mais problemas de discriminação em razão
do género é o do domínio das relações de trabalho.

Tal princípio, inclusive, teve uma aplicação concreta através da lei


AllgemeinesGleichbehandlungsgesetz (AGG), que vigora desde 2006 na Alemanha. A AGG
é uma lei geral de tratamento igualitário, cuja finalidade é proibir, em caráter geral, todas as
discriminações que ocorrem tanto no âmbito trabalhista como no civil. Conhecida como a “lei
antidiscriminação”, seu objetivo principal é impedir ou proibir discriminações injustificadas
baseadas em motivos de sexo, raça, origem étnica, religião ou concepção de mundo,
incapacidade, idade e identidade sexual. No âmbito trabalhista, mediante essa lei, as partes,
os empregadores e os trabalhadores devem evitar futuras discriminações e eliminar as
existentes. Uma das novidades dessa lei é que ela se aplica também ao âmbito privado,
limitando a autonomia privada, ou seja, além de ser aplicada entre os cidadãos e o Poder
Público, ela aplica-se nas relações entre os cidadãos em si.
A AGG proíbe discriminações diretas e indiretas. As diretas ocorrem quando uma
pessoa recebe um tratamento menos favorável que outra, embora ambas estejam na mesma
posição. Já as indiretas existem quando, mediante comportamentos, critérios ou preceitos
aparentemente igualitários, pessoas forem discriminadas. Porém, não há discriminação se os
critérios estejam objetivamente justificados e, para dar sequência a esse objetivo, haja
adequação e necessidade. Dessa forma, são permitidas medidas para a promoção de um grupo
discriminado, desde que seja adequada e idônea, ou seja, respeite o princípio da
proporcionalidade e quando, através dela, elimine-se desvantagens existentes. Um exemplo
da doutrina alemã é o caso de um restaurante asiático, em que o dono pode ter interesse
razoável de manter apenas empregados com um aspecto asiático (MARTÍNEZ-PUJALTE,
2008). Da mesma forma, um escritório de advocacia que admite empregadas apenas do sexo
feminino não estaria promovendo a discriminação, mas criando um ambiente seguro e
confortável para suas clientes mulheres, vítimas de agressões provocadas por homens.
No âmbito civil, o negócio não pode se restringir a determinados grupos de pessoas
baseado em valorizações inapropriadas. Porém, da mesma forma, não há discriminação se
houver uma justificativa objetiva. É justificável, por exemplo, caso projeta a esfera íntima ou
a segurança pessoal ou quando são oferecidas vantagens especiais a fim de proteger grupos
discriminados (MARTÍNEZ-PUJALTE, 2008). Logo, empresas de táxis que criam uma frota
feminina para atender apenas mulheres estão favorecendo a segurança das suas clientes contra
momentos de desconforto, intimidações e até mesmo agressões.
Por isso, a discriminação positiva, ou seja, o tratamento desigual ao favorecer o sexo
sub-representado, é permitido ao visar a igualdade. Aliás, caso houvesse uma lei similar à
alemã no Brasil, essas “discriminações” seriam permitidas visto que são justificáveis. Logo,
as ações que tentam remediar a situação desfavorável que caracterizam a presença feminina
no mercado de trabalho serão admitidas. Os novos trabalhos de mulheres para mulheres que
vêm surgindo não estão promovendo uma inversão do preconceito, mas são uma forma de
discriminação positiva permitida pela nossa legislação com o propósito de alcançar a
igualdade. Ideia essa que é corroborada pelo pensamento do Ministro Gilmar Mendes (2015,
p. 6) ao citar a obra de Robert Alexy no seguinte trecho:

Não se deve esquecer, neste ponto, o que Alexy trata como o paradoxo da igualdade,
no sentido de que toda igualdade de direito tem por consequência uma desigualdade
de fato e toda desigualdade de fato tem como pressuposto uma desigualdade de
direito. (2015)

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como exposto ao longo deste trabalho, a mulher durante vários momentos da história
enfrentou diversas dificuldades para que conseguisse ingressar no mercado de trabalho, tendo
que transpor as barreiras sociais, físicas e ideológicas, que eram impostas pela sociedade
patriarcal. A luta do sexo feminino é facilmente observada ao se analisar as diversas
conquistas alcançadas em âmbito social, como por exemplo, a alteração da visão do instituto
legal do casamento e da própria função social desse gênero, que aos poucos foi conquistando
o mercado de trabalho e dividindo as tarefas domésticas com os homens.
Mesmo depois de ter conseguido ganhar um pouco de espaço na concorrência
empregatícia e ser amparada por institutos legais, passando a ser assegurada a igualdade
material e a contar com diversas prerrogativas, a figura feminina não deixou de lado a
necessidade de ultrapassar obstáculos que as deixavam em posição de inferioridade em relação
ao homem e que continuaram a surgir ao longo dos anos. Essas dificuldades podem ser
facilmente exemplificadas ao se analisar a situação atual da mulher no mercado de trabalho,
que enfrenta, muitas vezes diariamente, problemas como a discriminação, a inferioridade
salarial, e que é vítima de assédios sexuais e morais.
Esse conjunto de fatores têm estimulado as mulheres a recorrerem a diferentes tipos
de emprego, focados no trabalho especializado e voltado para as mulheres, colocando-se em
uma posição diferenciada em comparação com as condições dos homens.
Entretanto, ao que se pode pensar, tal atitude não é um desrespeito ao princípio
constitucional da igualdade e do princípio da não-discriminação, pois está em plena
consonância com a discriminação positiva, tratando de maneira diferenciada os desiguais.
Pode-se extrair dessa situação uma tentativa de consolidar um dos objetivos fundamentais,
previsto no inciso IV do artigo 3º: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (BRASIL, 1988).
Assim como a legislação promove em alguns pontos privilégios, devido às diferenças
existentes, ela não prejudica o homem, mas deixa ambos em uma situação de igualdade. Da
mesma forma, pode-se concluir que essa nova modalidade de trabalho que está sendo
consolidada, não gera um preconceito inverso, mas demonstra uma vitória significativa para
o processo de emancipação feminina.

REFERÊNCIAS

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O CRIME DE TRÁFICO DE PESSOAS: Uma Análise Sobre a Eficácia dos
Instrumentos Legais e Institucionais em Pernambuco86

Alcione Flor de Oliveira87


Ivone Maria da Silva88

RESUMO

Procurou-se analisar neste Artigo o Decreto Estadual nº 37.069/2011, de criação do Núcleo


de Enfrentamento ao Trafico de Pessoas em Pernambuco, traçando um perfil histórico dos
direitos humanos e do crime de tráfico de pessoas no Brasil e no mundo, destacou-se ainda,
os instrumentos legais e institucionais vigentes na legislação brasileira. Sendo assim, a
metodologia empregada fundamentou-se no método observacional, bibliográfica e
documental, desenvolvendo a pesquisa exploratória e de campo junto da Secretaria de Defesa
Social do Estado de Pernambuco. O referido Decreto de iniciativa do Poder Executivo foi o
pioneiro no País na implantação de Órgão específico objetivando a execução de ações de
prevenção e repressão, como também, propor diretrizes das ações governamentais de
prevenção e enfrentamento ao tráfico de pessoas na esfera Estadual. Dessa forma, a temática
desenvolveu-se na expectativa de revelar a importância da pioneira iniciativa do Estado na
prevenção ao crime de trafico de pessoas elencada no art. 149 e 149A do Código Penal
Brasileiro. Neste sentido a sociedade Pernambucana conta um instrumento eficaz na
prevenção e enfrentamento ao trafico de pessoas sendo de fundamental importância a
publicização dos trabalhos específicos, desse órgão que compõe a SDS/PE.

Palavras-chaves: Trafico de Pessoas. Exploração Sexual. Direito Penal.

INTRODUÇÃO

O presente artigo pretende analisar a eficácia dos instrumentos legais e institucionais


da estruturação do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas - NETP em Pernambuco,
visto que a preocupação em torno dessa eficácia e dos instrumentos legais e institucionais está
longe de ser esgotada, pois a importância desse tema reside não só na atualidade, mas também
na abrangência e discussão dentro do contexto da Instituição Secretaria de Defesa Social do
Estado de Pernambuco, com a preparação pela qual se iniciou o NETP/PE, onde vem sendo
efetuado trabalho de prevenção e repressão ainda de forma incipiente, com promoção de
seminários e debates, enfocando a exploração sexual e o trabalho escravo, que são duas
modalidades do crime principal, que é o tráfico de pessoas. Como também, a preocupação em

86
GT3 – Direito, Trabalho e Saúde
87
Mestranda em Educação – As TIC na Educação, pela FUNIBER, Pós-Graduada em Metodologia do Ensino
Superior e Especialista em Educação a Distância, Graduada em Bacharel em Direito eInstrutora da Academia
Integrada de Defesa Social de Pernambuco – ACIDES. E-mail: alcioneflor@hotmail.com
88
Mestranda em Direito – História do Pensamento Jurídico – Historicidade dos Direitos Fundamentais pela
Faculdade Damas, Especialista em Gestão Pública e Controle, Direito Público e Eleitoral, Advogada, contato:
ivmsilva@gmail.com.
constatar que a não-publicização dessa temática, de forma mais ágil e eficaz, acarreta uma não
visibilidade da questão, que acaba perpassando aos olhares da população.
A Metodologia foi desenvolvida a partir de pesquisa exploratória, através do método
observacional, bibliográfica e documental. As fontes de informações se constituíram de
consultas a páginas eletrônicas, filmografia e livros que abordaram o eixo da pesquisa e temas
que perpassam o estudo tais como: violência e Estado; além de documentos de primeira mão,
ou seja, aquele que ainda não receberam qualquer tratamento analítico como, por exemplo,
documentos oficiais disponíveis na Secretaria de Defesa Social e o cumprimento do Decreto
Estadual nº 37.069/2011. Dessa forma, visando uma maior precisão do estudo, realizou-se
também uma pesquisa de campo, para verificar a aplicação dos instrumentos legais e
institucionais em Pernambuco.
Assim, como problema de pesquisa, temos a amplitude do tema afetos a segurança
pública, alertando para a necessidade de qualificação dos profissionais de Segurança Pública
e como resultados esperados, desejamos contar com todos os organismos estaduais de defesa
do estado e das instituições democráticas, elencados no art. 144 CF. que são a PF, PRF, PFF,
PC, PM, CBM e GM, todavia os órgãos operativos integrantes da Secretaria de Defesa Social
do nosso estado, são as Policias civil, Polícia Militar, Corpo de Bombeiro Militar e Policia
Cientifica, devendo estar interligados tanto aos órgãos da Segurança Pública da União, quanto
ao Município, na mesma finalidade que é a prevenção e repressão do tráfico interno e
internacional de pessoas. Como também as unidades de Ensino como escolas públicas
estaduais, municipais e privadas e também faculdades, Universidades, ONGs e Sociedade
Civil.
Preliminarmente, vale salientar que o Estado tem o dever de solucionar e satisfazer os
interesses sociais. Com uma não publicização acarreta uma não visibilidade da questão como
o Trafico de Pessoas, que acaba passando despercebida aos olhares da população, e a falta de
informação configuram-se como um dos obstáculos para essa prevenção, desestruturando
desta forma os interesses estaduais e sociais. Faz-se necessário uma contrapartida para a
prevenção desses serviços: consolidando e fortalecendo o Núcleo de Enfrentamento ao
Trafico de Pessoas do Estado de Pernambuco e a rede de atendimento as vitima instituídas por
lei.
Assim, o objetivo geral é o de analisar se os Instrumentos Legais em nosso Estado, na
prevenção ao crime de tráfico de pessoas elencada no art. 149 e 149-A do Código Penal
Brasileiro, com a instituição do Decreto Estadual nº 37.069/2011, que criou o NETP/PE, com
sede na Secretaria de Defesa Social – SDS/PE, objetivando a execução de ações de prevenção
e repressão, como também, propondo diretrizes das ações governamentais de prevenção e
enfrentamento ao tráfico de pessoas na esfera Estadual, trazendo para a sociedade
Pernambucana um instrumento eficaz, capaz de dizimar toda e qualquer possibilidade ao
Tráfico de Pessoas em Pernambuco, sendo de fundamental importância a publicização desse
órgão que é o NETP, que compõe a SDS/PE.
Assim, como uma das metas do I Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas (I PNETP), a implementação de Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas
(NETP’s) foi reforçada a partir da “Ação 41”, do Programa Nacional de Segurança Pública
com Cidadania (Pronasci) voltada, especificamente, para a criação de Núcleos e Postos
Avançados, em parceria com os Governos estaduais. Atualmente, estão em
funcionamento quinze (15) Núcleos em vários Estados do Brasil.
Todavia, um dos desafios do Governo de Pernambuco,foi a instituição do Decreto que
regulamentasse o Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, para assim, demandar
campanhas, atividades, capacitação entre outras ações previstas na Política Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, prevista no Decreto nº 5.948/2006, conforme os eixos
de atuação abaixo:

Art. 5o. São diretrizes específicas de prevenção ao tráfico de pessoas:


I - Implementação de medidas preventivas nas políticas públicas, de maneira
integrada e Inter setorial, nas áreas de saúde, educação, trabalho, segurança,
justiça, turismo, assistência social, desenvolvimento rural, esportes,
comunicação, cultura, direitos humanos, dentre outras;
II - Apoio e realização de campanhas socioeducativas e de conscientização
nos âmbitos internacional, nacional, regional e local, considerando as
diferentes realidades e linguagens;
III - monitoramento e avaliação de campanhas com a participação da
sociedade civil;
IV - Apoio à mobilização social e fortalecimento da sociedade civil; e
V - Fortalecimento dos projetos já existentes e fomento à criação de novos
projetos de prevenção ao tráfico de pessoas.

Art. 6o. São diretrizes específicas de repressão ao tráfico de pessoas e de


responsabilização de seus autores:
I - Cooperação entre órgãos policiais nacionais e internacionais;
II - Cooperação jurídica internacional;
III - Sigilo dos procedimentos judiciais e administrativos, nos termos da lei;
e
IV - Integração com políticas e ações de repressão e responsabilização dos
autores de crimes correlatos.

Art. 7o. São diretrizes específicas de atenção às vítimas do tráfico de


pessoas:
I - Proteção e assistência jurídica, social e de saúde às vítimas diretas e
indiretas de tráfico de pessoas;
II - Assistência consular às vítimas diretas e indiretas de tráfico de pessoas,
independentemente de sua situação migratória e ocupação;
III - acolhimento e abrigo provisório das vítimas de tráfico de pessoas;
IV - Reinserção social com a garantia de acesso à educação, cultura,
formação profissional e ao trabalho às vítimas de tráfico de pessoas;
V - Reinserção familiar e comunitária de crianças e adolescentes vítimas de
tráfico de pessoas;
VI - Atenção às necessidades específicas das vítimas, com especial atenção
a questões de gênero, orientação sexual, origem étnica ou social,
procedência, nacionalidade, raça, religião, faixa etária, situação migratória,
atuação profissional ou outro status;
VII - proteção da intimidade e da identidade das vítimas de tráfico de
pessoas; e
VIII - levantamento, mapeamento, atualização e divulgação de informações
sobre instituições governamentais e não-governamentais situadas no Brasil
e no exterior que prestam assistência a vítimas de tráfico de pessoas.

A partir da introdução da participação popular, ou seja, Estado e Sociedade Civil na


luta contra o Tráfico de Pessoas, que foi o diferencial quando da criação do Decreto nº
37.069/2011, logo após, com uma plenária livre que ocorreu na UFPE, com programação de
um projeto essencial das ações partindo das necessidades da sociedade e tendo como objetivo
a efetividade das políticas públicas, onde com este trabalho buscou-se mostrar a experiência
prática com a instituição do Decreto nº 37.069/2011, quando da criação do NETP/PE no
Estado de Pernambuco, buscando a efetiva prevenção e possibilidade de identificar as causas
do fenômeno e as formas mais eficazes de combatê-la, uma vez que, a funcionalidade do
NETP, acarreta a disseminação do Tráfico de Pessoas para fins deExploração Sexual do
Estado de Pernambuco.
Para tanto, desenvolveu-se este estudo em três capítulos, os quais foram elaborados
por meio de dissertação. O primeiro capítulo apresentou a Introdução. Já o segundo capítulo
tratou exclusivamente da análise dos dispositivos legais e institucionais em Pernambuco.
Quanto ao terceiro e ultimo capitulo observou-se a aplicação do Decreto nº 37.069, de 02 de
fevereiro de 2011, no Estado de Pernambuco, em face da criação, implementação e instalações
do NETP, para o Enfrentamento do Crime de Trafico de Pessoas, considerando os dados
colhidos na SDS/PE. E logo após traça-se as considerações finais da temática analisada.
Assim, alinhar-se-á a teoria com a práxis ao olhar o panorama do dispositivo em Pernambuco
no que concernem ao Enfrentamento ao Trafico de Pessoas sob alguns aspectos dos
Instrumentos legais e institucionais em Pernambuco, possibilitando a integração da Sociedade
Civil e organizada juntamente com o poder público, no enfrentamento do crime em questão.
Sendo assim, em termos institucionais, sabe-se que o Plano Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (PNETP) foi instituído em 08 de janeiro de 2008, através
do Decreto Federal nº 6.347, sendo, tal norma legal, prevista como um dos instrumentos da
Política Nacional. Também foca sua atuação para a prevenção, atenção às vítimas, repressão
e responsabilização, salientando a perspectiva de defesa dos direitos humanos. Reforça a
necessidade de atuação conjunta entre as várias esferas da vida social, num esforço
permanente que envolve Governo Federal, Poderes: Legislativo e Judiciário, Ministério
Público, Estados, Municípios, Sociedade Civil, Organismos Internacionais, e outros países
envolvidos com a temática.
Uma das conquistas advindas relativo ao Trafico de Pessoas, foi com um instrumento
internacional normativo e legal, o Protocolo Adicional a Convenção das Nações Unidas contra
o Crime Organizado Transnacional Relativo a Prevenção, Repressão e Punição do tráfico de
Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças - Protocolo de Palermo (Decreto nº 5.017, de
12/03/20014), que diz respeito a uma concepção de proteção às vítimas, relativo a prevenção,
repressão e punição de tráfico de pessoas, em especial a mulheres e crianças.
O artigo 6º do referido instrumento prevê que compete aos Estados parte da criação de
medidas de proteção às vítimas de tráfico de pessoas, objetivando desse modo uma
recuperação física, psicológica e social destas. Sendo este Instrumento Normativo, formulado
no ano 2000, entrando em vigor internacionalmente no ano de 2003.
É importante mencionar que, anteriormente à instituição do Protocolo de Palermo,
também conhecido como Protocolo anti-tráfico, existiam ações voltadas para coibir o tráfico
apenas para fins de prostituição, pois o exercício de prostituição não se configura um crime,
entretanto, quando há uma exploração via prostituição, esse sim pode ser definido como tal,
até porque esta prática era vista como uma ofensa aos bons costumes. A partir desse marco
legal, pode-se verificar que é usada a cláusula para “fins de exploração”, abrangendo qualquer
forma de exploração, seja ela sexual ou laboral.
Objetivando potencializar ações em torno de tal questão, o governo brasileiro por meio
da Secretaria Nacional de Justiça – SNJ, lança a Política Nacional de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas - PNETP/SNJ, através do Decreto n° 5.948, de 26 de outubro de 2006. A
partir da aprovação as ações deixam de situarem-se apenas no âmbito do pontual, tornando-
se uma política pública, envolvendo não só a área da justiça e segurança pública, mas
abrangendo todas as esferas que perpassam a temática (educação, cultura, saúde, lazer e etc.).
Ressalta-se o caráter contraditório das políticas sociais, pois ao mesmo tempo em que
atendem as necessidades da classe trabalhadora e são frutos de lutas sociais, acabam que por
ser indispensáveis ao desenvolvimento do próprio capital, tendo em vista que este precisa de
força de trabalho vivo para manter-se, por ser aquela disponível para uma apropriação do
capital e extração da mais-valia, entendida como o valor da mercadoria em que se incorpora
o trabalho não remunerado, e o exército industrial de reserva é indispensável às suas altas
taxas de lucros, pois à medida que aumenta a mão de obra disponível, mais se pode baixar o
valor pago pela força de trabalho, significando mais lucratividade para o capitalista.
Outro ponto a destacar é a hegemonia do projeto neoliberal na sociedade burguesa,
passando o Estado a desresponsabilizar-se no que concerne à garantia dos direitos sociais.
Dessa forma, as políticas sociais ganham caráter cada vez mais focalizado e emergencial,
operando apenas em nível de subsistência, não oferecendo possibilidades para uma
emancipação humana, esta que compreende carências tanto a nível material quanto espiritual.
Assim, a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas estrutura-se em
três grandes eixos estratégicos: 1) prevenção; 2) repressão ao tráfico e responsabilização de
seus autores; e 3) atenção à vítima, no intuito de efetivação dos direitos humanos e cidadania
para todos.
Tendo por base os princípios estabelecidos no Protocolo de Palermo, a Política
Nacional difere deste no tocante ao consentimento dado pela vítima. Segundo o Protocolo o
consentimento descaracterizaria o tráfico. Já na Política este é tido como irrelevante, pois
houve o entendimento de que a vítima de tráfico majoritariamente encontra-se em situação de
vulnerabilidade social, tendendo assim a um consentimento induzido, ou seja, tem íntima
relação com condicionantes sociais, econômicos e políticos. Segundo Leal (2002, p.45), a
palavra induzir significa “[...] levar a persuadir, incutir”. No âmbito do direito é traduzido
como crime que consiste em abusar da inexperiência, da simplicidade ou da inferioridade de
outrem, sabendo ou devendo saber que a operação proposta é ruinosa, ou seja, pode se nociva
a trazer prejuízos.
Nada mais justo que desconsiderar a questão do “consentimento”, haja vista que
nenhum ser humano seria conivente com a ideia de ser explorado, maltratado, ter sua
dignidade reduzida a uma condição subumana. Prova disso é que as redes criminosas, para o
recrutamento das vítimas, atuam de forma a mexer com o imaginário destas pessoas,
convencendo que elas terão uma vida melhor. Sonhos são peças chaves utilizadas para
persuasão das vítimas em potencial. Seria inimaginável uma proposta do tipo: Aceita ficar em
cárcere privado, com alimentação insuficiente, trabalhando jornadas excessivas e sofrer maus-
tratos?
Por fim, também contamos com a Lei 13.344, de 06 de outubro de 2016 no
ordenamento jurídico, que dispõe sobre a prevenção e repressão do tráfico interno e
internacional de pessoas e a melhoria dos acessos aos dados de informações necessária para a
investigação preliminar policial e as mudanças de caráter procedimental, onde a lei aumenta
a integração entre os órgãos de justiças responsáveis tanto no âmbito nacional como
estrangeiro.

1. INSTRUMENTOS LEGAIS E INSTITUCIONAIS DO TRAFICO DE PESSOAS

1.1 Da Criação do Decreto Estadual nº 37.069/2011

O Governo do Estado de Pernambuco, instituiu o Decreto nº 37.069, de 02 de setembro


de 2011, criando o Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas NETP/PE, considerando
que o Brasil é signatário da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado
Transnacional e do Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime
Organizado Transnacional relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Trafico de Seres
Humanos, em especial Mulheres e Crianças (Protocolo de Palermo); assim como, o Decreto
Federal nº 5.948, de 26 de outubro de 2006, com o Plano Nacional de Enfrentamento ao
Trafico de Pessoas, instituído através do Decreto 6.347/2008, juntamente com o Decreto
Estadual nº 31.659, de 14 de abril de 2008, Politica Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas; por fim, o primeiro termo aditivo ao Convenio nº 035/2008, de 26 de junho de 2010,
celebrado entre a União, por intermédio do Ministério da Justiça e o Estado de Pernambuco,
por meio da Secretaria de Defesa Social.
A amplitude do tema afetos a segurança pública, alerta para a necessidade de
qualificação dos profissionais de segurança, novos atores, cenários e paradigmas as politicas
públicas, onde a Secretaria de Defesa Social, através de seu Núcleo de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas – NETP ganhou enorme visibilidade e jamais em sua história, esteve tão
presente em seus debates do enfrentamento ao tráfico de pessoas, onde a SDS tem a missão
institucional de promover a defesa dos direitos do cidadão e da normalidade social através de
seus órgãos de segurança pública, integrando as ações do governo e o NETP de promover
ações nas escolas de rede públicas, faculdades, universidades, ONGs e etc., buscando
conscientizar a população sobre a problemática.
Assim, dentro do contexto de Defesa Social, cabe ao estado, ao mesmo tempo, a
garantia dos direitos individuais e coletivos previsto na Constituição Federal:

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade


de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade
das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

Polícia Federal;
Polícia Rodoviária Federal;
Polícia Ferroviária Federal;
Polícia Civil; (BRASIL, 2012, P.52)
Policias Militares e Corpo de Bombeiros Militares.

§ 8º Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à


proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.
Dessa forma, o objetivo da criação do Decreto nº 37.069/2011, é a execução das ações
de prevenção e repressão, como também, propor diretrizes das ações governamentais de
prevenção e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas na esfera Estadual.
Com o intuito de prevenir e reprimir o tráfico de pessoas e de responsabilizar os autores
dos crimes, como também, garantir a atenção às vítimas, o Governo do Estado de Pernambuco,
através de sua Secretaria de Defesa Social, promoveu uma plenária livre no teatro da
Universidade Federal de Pernambuco - UFPE, no dia 17 de setembro de 2011, onde na
oportunidade, foram discutidas propostas que irão compor o 2º Plano Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Ministério da Justiça, onde a proposta será dividida
em três eixos temáticos: 1) prevenção; 2) atenção às vítimas e 3) repressão e responsabilização
dos autores.
Naquela ocasião, várias entidades não governamentais, representantes de secretarias
estaduais do Governo do Estado de Pernambuco, integrantes do Ministério Público Federal,
entre outros, foram convidados para discutir e elaborar sugestões de modificação ao primeiro
Plano Nacional ao Enfrentamento do Tráfico de Pessoas, através de uma consulta pública,
coordenada pelo Governo Federal na qual, pela primeira vez o tema foi discutido com a
sociedade civil, universidades e especialistas a partir dessa consulta pública em todo o País.
A discussão na troca de experiência e na elaboração das propostas de combate ao
tráfico é que se tem que construir politicas públicas que beneficie a todos sem distinção, sendo
necessário que se exerça os direitos de expressões e de tornarem-se multiplicadores de
informações; desta feita, será mais fácil combater o trafico de pessoas a partir de informações
que causem indignação e gere lutas sociais; como também, para grupos minoritários como
travestis e transexuais, onde, está sendo proposto para que estes integrem o Plano Nacional e
possa atender as categorias mais vulneráveis ao tráfico, por causa da exclusão social.
Pesquisa realizada pelo Ministério da Justiça e o Centro de Referencia de Estudos e
Ações sobre a Criança e Adolescentes – CECRIA aponta a região do Nordeste como a segunda
região na rota do tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual.
Como podemos observar abaixo as rotas do tráfico de mulheres, crianças e adolescentes, no
Estado de Pernambuco: dados extraídos do Relatório do Plano Nacional de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas.

ORIGEM DESTINO
Recife e RMR Alemanha, Suíça, Itália, Espanha, França

Litoral de Pernambuco Alemanha, Suíça, Itália, Espanha

Recife Japão, Israel e Estados Unidos

Recife Belém-Suriname

Divisa PE/PI/MA Cidades-Polo do Nordeste

Zona da Mata de Pernambuco Cidades-Polo do Nordeste

Ouricuri e Serra Talhada Cidades-Polo do Nordeste

Rodovias Federais Cidades-Polo do Nordeste

Caruaru e Garanhuns Cidades-Polo do Nordeste

Polo Gesseiro de Pernambuco Cidades-Polo do Nordeste

Recife São Paulo


(Fonte: Relatório do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, 2010).

A partir da Publicação do Decreto Estadual n° 37.069 o Núcleo de Enfrentamento ao


Tráfico de Pessoas NETP/PE, tem sido uma via bastante ressaltada, obtendo a visibilidade
social em detrimento de outros meios.
A importância desse Decreto fomentou, sobretudo, as formas alternativas de obtenção
de reconhecimentos do NETP/PE, afirmando a necessidade de potencializar a ampliação e o
aperfeiçoamento dos instrumentos para o enfrentamento ao tráfico de pessoas nas instancias
estaduais e órgãos envolvidos na repressão ao crime e responsabilidade dos autores,
como desenhá-los de modo a propiciar as pessoas vítimas de tráfico, não apenas a politica
específica de proteção, mas, igualmente a visibilidade e segurança nacional, no sentido de
integrar, fortalecer e mobilizar os serviços e redes de atendimento.
Apesar dos avanços, o NETP precisa se fortalecer para investir em programas, ou
campanhas de proteção às testemunhas e as vítimas de trafico de pessoas, com a finalidade de
garantir a devida segurança as pessoas envolvidas na luta do trafico de pessoas.

1.2 Do Núcleo de Enfrentamento ao Trafico de Pessoas - NETP/PE

No Estado de Pernambuco, a Prevenção ao Combate ao Tráfico de Pessoas, ocorreu


em três fases: preliminarmente, iniciou-se como um Programa de Prevenção e Enfrentamento
ao Tráfico de Seres Humanos, o qual foi instituído através de Decreto nº 25.594, de 01 de
Julho de 2003, tendo como principal objetivo a melhorar a capacidade do Estado de
Pernambuco em termos jurídicos e medidas preventivas, através, principalmente, da
conscientização das vítimas e da sensibilização da sociedade civil e do Poder Público sobre o
problema.
Desde o início da sua execução, o Programa foi implementado de forma a constituir
uma política pública formada da parceria, já exitosa em outros programas, entre sociedade
civil e poder público no enfrentamento ao crime organizado.
É preciso ressaltar, que o Governo do Estado de Pernambuco foi o primeiro no país a
dar real importância a essa problemática, criando um Programa e uma Gerência, com recursos
materiais e humanos necessários à erradicação do tráfico de pessoas.
Na segunda fase, foi criado em 02 de fevereiro de 2008, a Gerência de Prevenção de
Enfrentamento ao Trafico de Seres Humanos - GPETSH, como decorrência de um programa
bem-sucedido, desenvolvido, por meio de um convênio firmado com a Secretaria Nacional de
Segurança Pública juntamente com o Ministério da Justiça, através do Convenio nº 035/2008
SENAWSP/MJ, onde desenvolveu um projeto intitulado “Articulação Político-Institucional
para Ampliação das Ações do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas”, com prazo
de término para junho de 2010, sendo executado pela Secretaria de Defesa Social do Estado
de Pernambuco - SDS/PE, através da Gerencia Geral de Articulação e Integração Institucional
e Comunitária GGAIIC/SDS, funcionando a Unidade de Prevenção de Enfrentamento ao
Trafico de Seres Humanos – GPETSH/GGAIIC/SDS.
A GPETSH/PE teve a finalidade de executar as ações preventivas previstas no referido
Programa e na Política Estadual criada por meio do Decreto Governamental n° 31.659, de 14
de abril de 2008; com o objetivo de formar, ampliar e fortalecer as redes de assistência às
vítimas do tráfico de pessoas e seus familiares, fortalecendo e estruturando o Comitê de
Prevenção e Enfrentamento ao Tráfico de Seres Humanos, capacitando agentes públicos e
privados envolvidos, ou que poderiam ser envolvidos, em ações de enfrentamento a esse
crime, conscientizando a sociedade sobre a gravidade e a importância do envolvimento social
em ações de prevenção e atendimento, desenvolvendo a Política e o Plano Estadual de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas com base na Política Nacional de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas, mobilizando outros órgãos do Estado de Pernambuco, e, por fim, a
sociedade civil.
A partir de 19 de abril de 2010, cumprindo determinação do signatário, foi definido
um novo local para funcionamento do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas de
Pernambuco e designada nova equipe composta por oito servidores da SDS/PE com a
finalidade de promover a reestruturação administrativa do Núcleo, bem corno, executar as
ações previstas no Pacto Pela Vida, Programa do Governo do Estado de Pernambuco voltado
para Segurança Publica e Defesa Social, referentes ao programa e as Políticas Estadual e
Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.
Dentro desta realidade o Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas vem
articulando, mobilizando e desenvolvendo atividades multidisciplinares para os diversos
segmentos da sociedade, bem como fortalecer o Comitê de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas.
Assim, em 19 de agosto de 2010 foi publicada a Portaria GAB/SDS n° 1598, de
18/08/2010, acrescendo as categorias pornografia infantil, assédio sexual, estupro de
vulnerável, prostituição/exploração sexual, tráfico internacional de pessoa para exploração
sexual e tráfico interno de pessoa para exploração sexual, na lista de naturezas criminais no
Sistema de Informação Policial da Policia Civil de Pernambuco (INFOPOL/PE), com vistas
a permitir a sua inserção pelos policiais no momento do registro da ocorrência.
Atualmente, executa-se a terceira fase: com a publicação do Decreto Estadual n°
37.069, de 02 de setembro de 2011, tem-se a criação efetiva do Núcleo de Enfrentamento ao
Trafico de Pessoas, antes conhecido apenas por um Programa Estadual no ano de 2003, mais
adiante, no ano de 2008, como uma Unidade, da Gerencia de Prevenção e Enfrentamento ao
Tráfico de Seres Humanos, e em 2011, sendo instituído como Núcleo de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas.
Desta forma, a principal atribuição do NETP/PE, continua sendo a de articular e
planejar o desenvolvimento das ações de enfrentamento ao tráfico de pessoas, visando à
atuação integrada dos órgãos públicos e da sociedade civil, com a finalidade de prevenir e
reprimir o trafico de pessoas no Estado de Pernambuco, de maneira que para isso terá que
realizar atividades como: reunir periodicamente com os parceiros para definirem as ações
anuais; participarem de reuniões do grupo gestor quando convidado pela Coordenação Geral
de Enfrentamento ao Trafico de Pessoas da Secretaria Nacional de Justiça, do Ministério da
Justiça/MJ; integrar, fortalecer e mobilizar os serviços e redes de atendimento; celebrar
convênios em entidades governamentais e não governamentais que atuam em apoio a
mulheres, profissionais do sexo e travestis.
Assim, acredita-se que, após a realização de novas Politicas Públicas e , em conjunto
com parceiros institucionais, em especial o próprio Estado, e associando sua utilização de luta
pelos direitos humanos, pode-se obter sucesso com o objetivos do processo de transmissão de
informações, pela reformulação, prevenção e trajetoria sobre esse problema que em muito
afeta a sociedade.

2. A APLICAÇÃO DO DECRETO Nº 37.069/2011

Preliminarmente deve-se considerar o contexto global quanto da aplicabilidade do


Decreto N. º 37.069/2011, sancionado pelo Governo do Estado de Pernambuco.
Considerando as condições existentes na Secretaria de Defesa Social, o Núcleo de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas - NETP, tem cumprido o que preceitua o atual Decreto.
Sendo assim e considerando a Politica Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas, instituída pelo Decreto 31.659, de 14 de abril de 2008:

Art. 2º A politica Estadual de enfrentamento ao trafico de Pessoas é norteada


pelos fundamentos do estado democrático de Direito, nos termos da
Constituição da Republica Federativa do Brasil, bem como pela Declaração
Universal dos Direitos Humanos e seus pactos de Direitos Civis, Políticos,
Econômicos, Sociais e Culturais e em especial o Decreto Federal nº 5.017,
de 12 de março de 2004 e o Decreto Federal nº 2.740, de 20 de agosto de
1998.
http://www.policiacivil.pe.gov.br/imagens/docs/decretos/2008.htm>
acessado em setembro 2011.

Art. 3º Para os efeitos deste Decreto define-se a expressão “tráfico de


Pessoas” como o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento
ou o acolhimento de pessoas, recorrendo a ameaça ou uso da força ou a
outras formas de coação, ao rapto, a fraude, ao engano, ao abuso de
autoridade ou a situação de vulnerabilidade ou a entrega ou aceitação de
pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que
tenha autoridade sobre a outra para fins de exploração. Fonte:
http://www.policiacivil.pe.gov.br/imagens/docs/decretos/2008.htm>
acessado em setembro 2018.

Dessa forma, as regras aplicáveis à instituição do Decreto 37.069/2011, originou-se da


Politica Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, sendo o Brasil, signatário da
Convenção das Nações Unidas contra o crime Organizado Transnacional e do Protocolo
Adicional à convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transacional Relativo
à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Seres Humanos, em Especial Mulheres e
Crianças, bem como, o termo Aditivo ao Convênio nº 035/2008, de 26 de junho de 2010,
celebrado entre a União por intermédio do Ministério da Justiça e o Estado de Pernambuco,
por meio da Secretaria de Defesa Social.
Tal dispositivo confirma a preocupação em garantir a preservação dos direitos e
garantias fundamentais, contudo a parte mais importante é a exigência de que se esgotem todas
as possibilidades de Trafico de Pessoas. O Decreto 37.069/2011 deixa claro, o respeito do
Governo do Estado de Pernambuco no enfrentamento da vítima de trafico de pessoas,
garantindo-se um ambiente de segurança para a sociedade como um todo, o que gera a
confiança em sua população e a garantia de melhores interesses do povo pernambucano pela
temática em questão no sentido de se tornar público a luta do enfrentamento do trafico de
pessoas, que ira buscar sempre o melhor interesse no estado. Sem duvida uma das formas mais
eficazes de concretizar o interno é dar as pessoas a segurança de que serão protegidas de toda
e qualquer forma de crime, além disso, o Estado se preocupa em garantir deveres aos
detentores originários da execução das ações de prevenção e repressão ao tráfico de pessoas
na esfera estadual, sendo ele o Núcleo de enfrentamento ao Trafico de Pessoas –
NETP/SDS/PE.

2.1 Indicadores de qual posição PE estaria em relação ao Brasil e no Mundo

Quanto ao indicador de qual posição o Estado de Pernambuco estaria em relação ao


Brasil e ao mundo. Assim, diante do quadro que se apresenta onde a Secretaria de Defesa
Social trabalha em conjunto com órgão Federais e Internacionais como: Ministério da Justiça,
Polícia Federal, Policia Rodoviária Federal, UNODC, OIT e Ministério Público do Trabalho,
no sentido de construir um indicador para o Brasil e consequentemente para Pernambuco, é
de considerar que a prevenção, sem dúvida é a melhor solução para todos os envolvidos na
luta ao enfrentamento ao tráfico de pessoas, e ainda que Pernambuco necessite fazer algumas
implementações, certamente lhe será mais proveitoso um resultado efetivo dessa prevenção
do que a espera de indicadores que de outra forma seriam devidos durante as ações de
prevenção, além disso, sairá com alguns benefícios diante da faculdade ou exercício de direito
de invocar o poder jurisdicional do estado para fazer valer um direito que se julga ter o NETP
e que para os parceiros por sua vez, seria necessária uma intervenção articulada entre os
diversos países de origem e destinos de pessoas traficadas onde deveria ser analisadas
situações de mudanças de cultura em que se estimula a prevenção, onde em função da
gravidade da temática em questão e obedecendo ao princípio da dignidade da pessoa humana,
pode-se focar suas atenções nesta causa de maior complexibilidade, sendo este um fenômeno
de cariz transacional nas quais se mostrem impossíveis ou mesmo desaconselhável tal prática
ou conduta, enfim a prevenção, repressão e mecanismo de apoio as vítimas é proveitosa a toda
a sociedade.
Buscando estimular a pratica de ações conjuntas, muitos países vêm realizando
campanhas de alcance global possivelmente com a permissão da ONU, onde no NETP,
destacam-se algumas ações como a realização de seminários e pautas temáticas, além da
participação em campanhas comemorativa ao dia nacional de luta contra o abuso e exploração
sexual de criança e adolescente, comemorados todos os anos em 18 de maio como objetivo de
mobilizar a sociedade brasileira e sensibilizá-los para o engajamento no combate desta
violência, data escolhida em homenagem a menina Araceli Santos, Raptada, drogada,
estuprada, morta e carbonizada, falecida neste dia, na cidade de Vitoria do Espirito Santos no
ano de 1973.

2.2 Como se organiza o NETP a partir do Decreto nº 37.069/201

Considerando o teor do Decreto 37.069/2011, o Núcleo de enfrentamento ao Tráfico


de Pessoas – NETP, vem atuando de forma preventiva, promovendo constantemente palestras
em escolas públicas e particulares, Universidades, Faculdades, empresas e ONGs, além de
participar e promover campanhas e seminários com a finalidade de alertar, informar e
sensibilizar a sociedade sobre esse tipo de crime.
Dessa forma, quanto aos casos registrados como tráficos de pessoas para exploração
sexual, a legislação em vigor não permite qualquer divulgação dos dados, em razão de se
privilegiar a preservação da exposição das vítimas.

2.3 O Perfil das vítimas e dos envolvidos do Tráfico de Pessoas

Quanto à definição do perfil das vítimas envolvidas no trafico de pessoas para fins de
exploração sexual em Pernambuco, o Núcleo de enfrentamento ao trafico de pessoal no estado
de Pernambuco, aponta para mulheres, adolescentes e crianças como principais vítimas por
serem mais vulneráveis e pelas promessas vantajosas de melhoria de vida e realização de um
sonho.
Dessa forma, quanto ao tipo de cruzamento de informações ou cadastro interligado a
nível nacional, encontra-se em fase de implementação um cadastro único por parte do
Ministério da Justiça. Atualmente os núcleos e postos do Brasil se reúnem a cada quadrimestre
para troca de informações e experiências.
Diante do exposto, destaca-se que o Decreto Estadual, apesar de recente tem
construindo uma politica preventiva de enfrentamento ao tráfico de pessoas no estado de
forma processual, considerando as ações já existentes apresentadas pelo Núcleo de
Enfrentamento ao Trafico de Pessoas – NETP, levando-se em consideração os fatores e
circunstancias que favorecem este tipo de crime. Para tanto, a integração dos órgãos de
Segurança Pública, é o eixo norteador da Secretaria de Defesa Social, para as ações e
informações absolutamente necessárias ao enfrentamento dos indícios de criminalidade
tipificada no Código Penal Brasileiro (Art. 149 e 149A), Estatuto da Criança e Adolescente
(Art. 239, 240, 241, 241-A, 241-B, 241-C, 241-D, 241-E, 244-A) e o Estatuto do Estrangeiro
(Art. 125, XII), tratando-se na verdade em ampliar a sensibilidade de todo o complexo do
Sistema de Defesa Social de Pernambuco, aos influxos de novas ideias e energias provenientes
da sociedade e de criar um novo referencial que veja na segurança espaço importante para a
consolidação democrática e para o exercício de um controle social de segurança.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O propósito deste trabalho foi trazer uma análise dos instrumentos legais e
institucionais do trafico de pessoas em Pernambuco, mais precisamente junto a Secretaria de
Defesa Social, onde funciona o Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, instituído
através do Decreto nº 37.069 de 02 de setembro de 2011 e no mesmo sentido, verificar as
ações governamentais de prevenção e enfrentamento ao tráfico de pessoas na esfera estadual.
As questões de discussão na troca de experiência e na elaboração das propostas de
combate ao tráfico, construindo politicas públicas que beneficie a todos sem distinção,
incluindo os grupos minoritários, onde esta sendo proposto para que estes integrem o Plano
Nacional e possa atender as categorias mais vulneráveis ao tráfico, por causa da exclusão
social.
Entretanto, após as leituras realizadas observou-se que o enfrentamento do trafico de pessoas
em Pernambuco, representou um anseio da sociedade, fruto de grande mobilização por parte
do Poder Público e da Sociedade Civil Organizada, principalmente no que diz respeito ao
Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – NETP, que em conjuntos com parceiros
institucionais, em especial o próprio estado, tem-se articulado e planejado o desenvolvimento
das ações de enfrentamento e trajetória desse tema que muito afeta a sociedade e perpassa o
poder o Estado na esfera Nacional.
Um ponto importante a destacar, é que o Governo do Estado de Pernambuco, foi
primeiro do país a dar real importância a problemática, tendo como um dos objetivos o de
melhorar a capacidade do Estado de Pernambuco em termos jurídicos e medidas preventivas,
através de conscientização e sensibilização da sociedade civil e do poder público.
Vale ressaltar que a Secretaria de Defesa Social, trabalha em conjunto com os órgãos
federais e internacionais (Ministério da Justiça, Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal,
UNODC, OIT, Ministério Público do Trabalho) no sentido de construir um indicador para o
Brasil e consequentemente para o Estado de Pernambuco no que tange o Tráfico de Pessoas
em relação ao mundo.
Nesse sentido encontra-se em fase de implantação um cadastro único por parte do
Ministério da Justiça, onde as informações ficarão interligadas a nível nacional, com dados
relativos ao tráfico de pessoas de todos os Estados, para isso, atualmente, os Núcleos e Postos
do Brasil se reúnem a cada quadrimestre para troca de informações e experiências sobre a
temática.
O NETP tem cumprido o que preceitua o Decreto n. 37.069/2011, visto que o referido
Núcleo tem o seu foco voltado para a prevenção, ao qual se constatando que os perfis das
vítimas envolvidas no tráfico de pessoas são para fins de exploração sexual apontando as
mulheres, adolescentes e crianças, como as principais vítimas desse tráfico por serem mais
vulneráveis, pelas promessas vantajosas de melhoria de vida e realização de um sonho.
Sendo assim, ações utilizadas pelo NETP/SDS, após a instituição do Decreto n.º 37.069/2011,
para o enfretamento ao crime de tráfico de pessoas no Estado são de caráter preventivo,
promovendo constantemente palestras em escolas, Universidades, Faculdades, Empresas e
ONGs, além de participar e promover Campanhas e Seminários, com a finalidade de alertar,
informar e sensibilizar a sociedade sobre esse tipo de crime.
Nessa perspectiva, o conhecimento da Política Estadual de Enfrentamento ao Tráfico
de Pessoas é de indiscutível relevância ao operador de direito, pois trata de direitos e garantias
fundamentais da pessoa humana, visto que afronta os direitos à vida, à liberdade e à dignidade
e aos direitos humanos.

REFERÊNCIAS

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em: 06 de setembro de 2018.

________. Lei 13.344 de 06 de outubro de 2016. Dispõe sobre prevenção e repressão ao


tráfico interno e internacional de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas; altera a Lei
no 6.815, de 19 de agosto de 1980, o Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código
de Processo Penal), e o Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); e
revoga dispositivos do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal).
Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-
2018/2016/Lei/L13344.htm>. Acesso em 02 de setembro de 2018. Acesso em: 09 de
setembro de 2018.

________. Decreto Nº 37. 069, de 02 de setembro de 2011. Institui, no âmbito do Poder


Executivo Estadual, o Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas - NETP/PE e o
Comitê Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas-CETP/PE. Governo do Estado de
Pernambuco. Policia Civil, Recife/PE, 14 de abril de 2008. Disponível
em:<http://legis.alepe.pe.gov.br/texto.aspx?id=17935&tipo=TEXTOORIGINAL>. Acesso
em: 06 de setembro de 2018.

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________. Diário Oficial do Estado de Pernambuco, ano LXXXVIII, nº 179, Poder


Executivo, Estado e Sociedade Civil na Luta Contra o Tráfico de Pessoas, datado de 17
de setembro de 2011. p.01, 2011. Disponível em:
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DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado: Acompanhado de Comentários,


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SALAS, Antônio. O Ano em Que Trafiquei Mulheres. Tradução Sandra Marta Dolinsky.
São Paulo: Planeta do Brasil, 2007.
A APLICABILIDADE DA PREVIDÊNCIA SOCIAL FRENTE À DIVISÃO SEXUAL
DO TRABALHO: uma análise crítica e histórica da situação das donas de Casa e das
empregadas domésticas à luz da teoria do Reconhecimento e da Redistribuição de Nancy
Fraser. 89

THAÍS RODRIGUES LIRA90

RESUMO

O presente artigo busca compreender as questões relativas à aplicabilidade da Previdência


Social, mormente no que tange a situação das donas de casa e das empregadas domésticas,
frente a uma sociedade historicamente moldada pelo patriarcalismo e constituída por uma
ineficiência da Autarquia Federal do INSS perante os casos que versam sobre o direito dessas
mulheres a seus seguros sociais. Assim, ao compreendermos os impactos negativos causados
pela inter-relação entre o patriarcado e o capitalismo, através de uma análise estatística,
jurisprudencial e doutrinária, constataremos que há um soerguimento da divisão sexual do
trabalho, sustentado por um forte discurso androcêntrico exprimido pela sociedade, presente,
sobretudo, no âmbito legislativo e judiciário de nosso país. Para isso, este trabalho tem como
objetivo tecer críticas a esse contexto histórico e, consequentemente, capitalista da
desvalorização da mulher, introduzindo, primordialmente, a teoria do Reconhecimento e da
Redistribuição de Nancy Fraser como forma de propagar uma crítica à mora legislativa e
judiciária que menosprezaram, e continuam a desprezar, por muito tempo, a força do trabalho
reprodutivo doméstico.

Palavras-Chave: Previdência Social. Empregadas Domésticas. Donas de Casa. Divisão


Sexual do Trabalho. Nancy Fraser.

INTRODUÇÃO

Recentemente, pudemos constatar que a classe feminina trabalhadora continua


resistindo a diversos regressos propostos pelo legislativo referente a seus direitos sociais, nos
quais já haviam sido garantidos pela Constituição da República Federativa Brasileira de 88 e
suas emendas. Junto com a Reforma Trabalhista, a tentativa de impor a PEC 286/2016, que
antevia uma Reforma Previdenciária no país, acirrou as discussões em torno do decréscimo
desses direitos das mulheres, uma vez que o projeto havia a intenção de dificultar, ainda mais,
o sobrepujamento da histórica divisão sexual do trabalho presente na sociedade brasileira.
A PEC 286/2016 propôs um aumento do tempo mínimo de contribuição para as
mulheres – em que de 15 anos de contribuição mínima passaria a ser de 25 anos - para que
estas tivessem pleno acesso ao benefício da aposentadoria por idade (DIEESE,

89
GT 4 – Gênero(s) e Diversidade Sexual no Direito
90
Graduanda em Bacharelado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. E-mail:
thaarlira@gmail.com.
2017).Menosprezando a divisão sexual do trabalho ainda existente, o legislativo quis
incorporar uma lei previdenciária que não amparava as mulheres que exerciam uma dupla
jornada de trabalho, uma vez que há uma dificuldade muito grande das mulheres que exercem
afazeres domésticos acumularem os anos devidos de contribuição (MELO,2017).
Destarte, as mulheres, principalmente as domésticas, necessitam de determinados
privilégios para que, de certo modo, sejam efetivamente enquadradas como juridicamente
iguais aos homens. Logo, esses privilégios precisam ser executados, em virtude de ainda
presenciarmos o gênero feminino ser posto em desvantagem perante o mercado de trabalho,
visto que este mercado permanece efetuando um discurso sexista e preconceituoso, que
corrobora com a manutenção de uma desigualdade de gênero.
Como forma de analisar os impactos causados pela histórica divisão sexual do trabalho,
principalmente no que concerne o direito previdenciário, às mulheres donas de casa e
empregadas domésticas, o presente artigo objetiva criticar a mora do legislativo e do judiciário
que se utilizam, ainda, de discursos androcêntricos para desvalorizar o trabalho
produtivo/doméstico. Assim, pretende este trabalho promover a exposição das garantias
previdenciárias já assentadas às mulheres domésticas, e, com isso, da dificuldade que estas
têm em obter seus direitos perante a Autarquia Federal do INSS, além de propor solução para
minimizar a desigualdade de gênero existente.
Para isso, utilizaremos um levantamento de dados disponibilizados pelo IPEA, assim
como, também, faremos levantamento bibliográfico referente à presença da divisão sexual do
trabalho no Brasil. Outrossim, far-se-á o emprego, predominantemente, neste artigo, da teoria
do Reconhecimento e da Redistribuição de Nancy Fraser, com a finalidade precípua de
confrontar os discursos sexistas ainda emitidos pela sociedade e pelos seus Poderes Públicos.
Por fim, faremos o uso da coleta de jurisprudências, como forma de atentar para a
ineficiência da Autarquia do INSS, no que concerne à falta da concessão de direitos às
mulheres domésticas.

DESENVOLVIMENTO

O surgimento da proteção social: análise da interrelação entre o patriarcalismo e o


capitalismo na Europa

Através da família, como unidade econômica anterior ao próprio capitalismo, verificou-


se a presença preeminente de mitos justificadores da supremacia masculina que elevavam a
submissão e a desvalorização do papel da mulher na sociedade econômica que naquela época
se instaurava. Nada obstante, a invisibilidade feminina costumava ser pior para as mulheres
que não contraíam matrimônio, dado que a incapacidade civil destas dificultava o
engajamento delas no comércio, de modo que, para elas, apenas um marido consolidaria sua
posição social, bem como uma estabilidade e garantia econômica (SAFFIOTI, 1976, p. 33).
Nos burgos da Inglaterra Medieval, por exemplo, a mulher casada podia ser inserida no
comércio, sendo esta, até, responsável pelos atos da pessoa jurídica. Essa circunstância ocorria
em virtude de o casamento com um homem pertencente a uma guilda mercantil conferir à
mulher certos privilégios no comércio. No entanto, era rara a inserção das mulheres solteiras
nessas guildas, uma vez que a inclusão no mercado delas precisaria advir por meio de um
homem (SAFFIOTI, 1976, p.32).
Apesar disso, as mulheres de baixa renda sempre foram fundamentais para a produção
de riquezas para a sua família, as quais exerciam diversas atividades no campo, nas minas e,
inclusive, no comércio, principalmente no ramo têxtil (GUIRALDELLI, 2007). Contudo, esse
papel da mulher nas atividades produtivas acabava sendo reconhecido como menos relevante
que a do próprio homem, de modo que esses trabalhos terminaram por ser vistos como
subsidiários frente ao sustento econômico familiar.
Colocar essas questões em evidência corroboram com a perspectiva de que a mulher,
desde então, tinha como objetivo fundamental encarregar-se de cuidar da família, isto é, dos
deveres domésticos, enquanto o marido iria prover seu sustento. De fato, admitia-se na época
que era inerente das mulheres o traço da fragilidade, o que principia a concepção de que essas
mulheres seriam responsáveis pelas atividades reprodutivas do lar, enquanto os homens
exerceriam as atividades produtivas, apesar de se ter mulheres, sendo que em menor escala,
exercendo algumas atividades produtivas.
Mais adiante, através da instauração de um novo modo de produção, ocorreu a
construção de uma estrutura de classes que gerou uma forte desestabilização social, que
alterou a ordem econômica, política e cultural, globalmente. Assim, observou-se, de modo
intensificado, os burgueses de classe média alta, ocupantes dos centros urbanos, apoderarem-
se do poder em detrimento aos indivíduos de baixa renda. Exercendo atividades em situações
degradantes para receberem pouco pelo seu trabalho, os homens indigentes viam a
necessidade de incorporar suas crianças e suas mulheres nessas indústrias, como forma de
angariar mais recursos para subsistir sua família e seu lar. No entanto, através do paradigma
criado pela estrutura patriarcal anteriormente edificada, as mulheres e as crianças terminavam
por ser consideradas como mãos-de-obra baratas. Ainda, vem a ser mais agravada a situação
das mulheres por verificar que estas são colocadas em funções, dentro dessas indústrias,
menos prestigiosas, as quais exerciam atividades mais repetitivas e fragmentárias, além de
que exerciam a mesma função dos homens, recebiam uma remuneração menor que esses.
(SAFFIOTI, 1976, p.47)
Com o passar do tempo, ao se observar que os proletariados estavam sujeitos a
condições que iam de encontro a sua dignidade, surgiram movimentos sociais durante o século
XIX, inspirados na teoria socioeconômica de Karl Marx, que defenderam uma proteção social
do Estado, frente à situação de trabalho degradante a que eles eram submetidos.
Posteriormente, essa proteção social veio a receber a designação de seguridade social
(JUNIOR, 2011).
Apesar de se verificar que a seguridade social prevaleceu perante os trabalhadores em
suas relações trabalhistas a partir do século XIX com Otto Von Bismarck na Alemanha
(JUNIOR, 2011), apenas em 1942 discutiu-se a ampliação da proteção social para as donas de
casa, através do Relatório Beveridge de Seguridade Social na Inglaterra. (CORDEIRO,2014).
Beveridge, de certo modo, foi um dos primeiros que apontou a importância de salvaguardar
os direitos previdenciários da mulher doméstica, posto que seriam elas que dariam as
condições necessárias para que os homens fossem livres para exercer atividades produtivas.
No entanto, o presente documento restringia o termo “dona de casa” a mulheres casadas.
Beveridge (1942) aponta em seu relatório as 6 (seis) classificações dos segurados:

(ii) In relation to social security the population falls into four main classes of
working age and two others below and above working age respectively, as follows:
I. Employees, that is, persons whose normal occupation is employment under
contract of service.
II. Others gainfully occupied, including employers, traders and independent
workers of all kinds.
III. Housewives, that is married women of working age.91
IV. Others of working age not gainfully occupied.
V. Below working age.
VI. Retired above working age. (Grifos nossos)

E, ainda, o relatório explana sobre a seguridade dessas donas de casa:

(316) Housewives (Class III): These are married women of working age living
with their husbands. An housewife who undertakes paid work as well, either under
a contract of service or otherwise, will have the choice either of contributing in
the ordinary way in Class 1 or Class II as the case may be, or of working as an
exempt person, paying no contributions of her own 92 (BEVERIDGE, 1942) (Grifos
nossos)

91
Em livre tradução: “Donas de casa, que são casadas, com idade para trabalhar”
92
Em livre tradução: “Donas de casa (classe III): são mulheres casadas em idade de trabalhar com seus maridos.
Uma dona de casa que também realiza um trabalho remunerado, seja sob contrato de serviço ou outro, terá a
Como pode ser visto através dos trechos retirados do Relatório de Beveridge, apenas as
donas de casa casadas seriam vistas como “seguradas”, em que teriam sua proteção assegurada
de acordo com a contribuição de seus maridos. Viria a ser por esse aspecto que os empregados
homens receberiam um plano de seguro maior, uma vez que, supostamente, seriam os
responsáveis pela contribuição securitária de suas mulheres e de sua própria.
(CORDEIRO,2014), validando, ainda mais, a existência de uma divisão sexual do trabalho.
Um dos fatores que culminaram na proposta de atribuírem as donas de casa como
seguradas, na Inglaterra, foi de ter ocorrido um aumento de mulheres viúvas que possuíam
filhos, durante a segunda guerra mundial. Assim, por agora serem designadas como uma
classe de “segurados”, essas mulheres viúvas poderiam receber uma pensão por morte e,
assim, conseguir a devida subsistência que não teriam mais com a morte de seus maridos. Ou,
ainda, a mulher poderia ter um resguardo social em caso de estar diante de um processo de
divórcio judicial com seu cônjuge (CORDEIRO,2014). Outrossim, as donas de casa que
viessem a exercer atividades lucrativas, também poderiam receber o seguro-desemprego.
Em tese, seria pela presença de uma forte característica de assistencialismo que diversos
países no contexto da crise do capitalismo que adotariam o modelo beveridgiano.
Nota-se, todavia, que as mulheres solteiras e de baixa renda ainda não eram o alvo desse
protecionismo securitário, de modo que apenas as casadas eram designadas como seguradas.
Aqui, conforme a própria precedência histórica expôs, as mulheres solteiras e de baixa renda
não eram peças significantes para a questão securitária social, uma vez que, supostamente,
seriam inferiores às mulheres casadas, por não terem a proteção de algum homem. Resta
nítido, assim, que ainda havia na época a existência de um discurso predominantemente
androcêntrico na sociedade, em que tornara comum o casamento de mulheres cada vez mais
precocemente.
Já se fôssemos avaliar, paralelamente, a situação do Brasil durante esse período,
verificaríamos que ainda não era realidade no país a existência de uma discussão em torno das
mulheres domésticas, mesmo casadas, receberem uma proteção social, uma vez que o país
ainda não se encontrava na fase das relações trabalhistas capitalistas.

O contexto histórico da previdência social no Brasil e da divisão sexual do trabalho: O


embaraço do acesso à justiça frente aos direitos securitários das donas de casa e das

opção de contribuir da maneira ordinária da Classe 1 ou da Classe II, conforme o caso, ou de trabalhar como
pessoa isenta, pagando sem contribuições próprias”
empregadas domésticas

A Constituição Federal de 88 tornou-se um importante marco jurídico em nosso país,


posto que proporcionou o efetivo reconhecimento da igualdade de gêneros, advindo,
principalmente, através dos arts. 5º, inciso I, 6º e 7º, incisos XX, XXIV, XXX93. Assim, ao
ser deixado de lado a concepção da discriminação entre homens e mulheres nesta Carta
Magna, isto é, da suposta predileção do homem em detrimento a mulher na sociedade, ocorreu
o esmaecimento da ideia de o chefe de família ser necessariamente um homem. A mulher,
nesse caso, auxiliada posteriormente, também, pelas disposições expressas do Código Civil
de 2002, pôde se tornar matriarca da família, mesmo que esta exerça atividades
exclusivamente domésticas. Por exemplo, estudos do IBGE (2015) apontaram que em 2015
havia 27.975 (vinte e sete mil e novecentos e setenta e cinco) mulheres que eram referências
das famílias, nas quais 12.129 (doze mil e cento e vinte e nove) eram consideradas não
economicamente ativas ou, em outras palavras, consideradas mulheres do lar.
Como forma de acompanhar esse aumento significativo de mulheres não
economicamente ativas e que, ao mesmo tempo, são chefes de famílias, precisou-se haver uma
elaboração de certa seguridade social que servisse como entrave às vicissitudes de uma
indigência nessa família. Por isso, a legislação previdenciária brasileira cuidou de abrir um
novo rol de segurados para que abarcassem essas mulheres que, antes, mesmo reputadas como
importantes para a constituição familiar, não eram devidamente consideradas como seguradas,
mas sim, de dependentes para efeitos previdenciários.
Apesar de ter sido criado uma lei de previdenciária a favor dessas mulheres que
desempenham atividades domésticas, apenas houve o seu surgimento no começo do século
XXI, ratificando a percepção de que há uma forte base patriarcal ainda existente em nosso
país, herdada pela cultura escravista colonial.

93
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a
segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma
desta Constituição.
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição
social:
XX - proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei;
XXIV - aposentadoria;
XXX - proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo,
idade, cor ou estado civil;
Repisa-se, portanto, que o cenário brasileiro, quando comparado à conjuntura europeia,
é retratado com um forte atraso estrutural, por ser marcado pela forte exploração colonial
realizado pela Europa dentro do país. Em função disso, o escravismo restou por ser fortemente
difundido pelas colônias europeias, em que introduziam a economia da monocultura da cana-
de-açúcar no território, como forma de prover os anseios europeus. Por um grande período,
assim, prevaleceu uma forte desigualdade de classes, gêneros e raças no país.
Com o passar do tempo, enquanto os países europeus avançaram para o modo de
produção capitalista, o Brasil esteve estagnado na condição de país agrícola, não se
preocupando com as relações trabalhistas e, muito menos, com questões que abarcavam uma
seguridade social.
Hoje, ao revisarmos o contexto histórico que nos foi imposto pelas colônias, podemos
constatar que o atraso estrutural que o país vivenciou, além de ter colaborado para a delonga
em se adentrar ao capitalismo, resultou em um grande entrave para a evolução dos direitos
das empregadas domésticas e das donas de casa, uma vez que os trabalhos reprodutivos ainda
costumam ser relegados para as mulheres de baixa renda, sobretudo às mulheres negras, em
virtude da herança do escravismo. Consequentemente, verifica-se que ocorreu uma mora
legislativa significante em relação às conquistas previdenciárias das mulheres, principalmente
em relação àquelas que exercem o trabalho doméstico (assalariado ou não assalariado), vez
que apenas recentemente houve essa conquista securitária, em virtude da forte postura
androcêntrica que permeia fortemente o meio social.
Com as primícias das indústrias, ocorridas no início do século XX, materializou-se, no
ano de 1923, um decreto instituindo a Lei Eloy Chaves, nome em homenagem ao Deputado
Federal que a criou, em que se teve a primeira norma disciplinando os benefícios securitários
dos empregados das empresas ferroviárias estabelecendo caixa de aposentadoria e pensões
para aqueles (PINTO, 2013).
Mas, apesar de ser o precursor da Previdência Social no Brasil, a Lei Eloy Chaves não
visava a ampliação desse direito securitário às mulheres. As atividades reprodutivas, que,
naquele momento, consistiam na ocupação dessas indústrias, eram inerentes ao homem. Nesse
caso, os poucos benefícios decorrentes da Previdência Social para elas só ocorriam quando
eram casadas, filhas ou eram irmãs solteiras desses trabalhadores, uma vez que, conforme a
lei própria lei implicitamente aduz em seus artigos94, elas seriam caracterizadas como

94
Art. 9º – Os empregados ferroviários, a que se refere o art. 2º desta lei, que tenham contribuído para os fundos
da caixa com os descontos referidos no art. 3º, letra a, terão direito: 1º – a socorros médicos em caso de doença
“dependentes” deles (FILHO, 2010?).
Mesmo após a promulgação desta lei, em que outras empresas aderiram o benefício da
seguridade da aposentadoria e pensão, as mulheres solteiras e de baixa renda, quando não
dependentes de seu pai, conforme já visto, continuavam não sendo reconhecidas para os
devidos fins previdenciários. Apenas com o aumento das indústrias siderúrgicas, petrolíferas,
químicas, farmacêuticas e automobilísticas, após Segunda Guerra Mundial, as mulheres
conseguiram adentrar nas indústrias e, assim, exercer cargos distintos, dado que muitos dos
homens que foram aos campos de batalhas ou não voltavam, ou voltavam inválidos para
exercer seu trabalho (LUZ, 2014?).
Verifica-se, portanto, que naquela época a sociedade pregava como função das mulheres
a de prover seus maridos, a de gerar filhos e de cuidar dos afazeres domésticos, enquanto que,
de outro lado, seus maridos trabalhadores iriam garantir uma proteção social a elas por meio
da dependência previdenciária. Apenas quando se visualizou a invalidez ou a incapacidade
dos homens para exercerem o trabalho, as mulheres puderam ser introduzidas no mercado de
trabalho.
Pois bem. Como fórmula advinda das sociedades capitalistas, o conceito da Previdência
Social no Brasil tornou-se consagrada, apenas, pela Carta Magna de 1988, sendo definida
como um conjunto de medidas preventivas que refreiam o cidadão a cair em indigência. Aqui,
houve uma amplitude muito maior dos setores que se inseriram como segurados. Porém, essa
abrangência trazida pela Constituição de 1988 não fora o suficiente para que abarcassem as
mulheres que exerciam funções domésticas, mesmo que tivesse uma redação explícita que
igualassem os direitos aos homens e mulheres.
De fato, após a CF de 88 vislumbramos legislações que, vagarosamente, tentaram diluir
essa discriminação contra as mulheres, já arraigada aos preconceitos de leis que remontam ao
período imperial (YOSHIOKA, 2014). Este, por exemplo, fora o caso da publicação da Lei
de nº 8212/91, estabelecendo a organização da Seguridade Social, que, respeitando o
entendimento da igualdade de gênero estabelecida pela Carta Magna de 88, em um de seus
artigos possibilitou a interpretação de se ter a mulher como efetiva segurada especial na zona
rural, e não mais como apenas a condição de dependente, de acordo com o que era estabelecido

em sua pessoa ou pessoa de sua família, que habite sob o mesmo teto e sob a mesma economia; 2º – a
medicamentos obtidos por preço especial determinado pelo Conselho de Administração; 3º – aposentadoria; 4º
– a pensão para seus herdeiros em caso de morte.
Art. 33 – Extingue-se o direito à pensão: 1º – para a viúva ou viúvo, ou pais, quando contraírem novas núpcias;
2º – para os filhos, desde que completarem 18 anos; 3º – para as filhas ou irmãs solteiras, desde que contraírem
matrimônio; 4º – em caso de vida desonesta ou vagabundagem do pensionista.
anteriormente à elaboração da referida Constituição.
No entanto, mais recentemente, tentaram impor uma reforma da previdência social, PEC
287/2016, que busca retroceder a igualdade material já garantida às mulheres pelo art.5º da
CF de 88, em que assenta um tratamento desigual de acordo com suas desigualdades, criando
novas regras que fixam os mesmos critérios previdenciários dos homens a elas. Nitidamente,
a reforma fora uma tentativa de ignorar a, ainda, presente divisão sexual do trabalho que é
posta às mulheres.
A Previdência Social apresenta, com base na providência das Leis de nº 8212/91 e
8213/91, um rol de segurados obrigatórios, segurados facultativos e um rol para os segurados
especiais.
Os segurados obrigatórios, conforme aponta Miguel Hovarth Júnior (2011) são aqueles
que “por determinação legal (ex lege), vinculam-se à previdência social pelo fato de
exercerem alguma atividade remunerada, de natureza urbana ou rural, em caráter efetivo ou
de forma eventual”. Sendo assim, estariam caracterizados como estes segurados aqueles que
exercem atividades sob subordinação, vinculados pela CLT, seja por emprego temporário ou
permanente, além de também serem, aqui, incluídos os autônomos, os trabalhadores avulsos
e as empregadas domésticas.
Por outro lado, temos o rol de segurados facultativos que estipula a inclusão de pessoa
física que não possui trabalho remunerado, mas que quer, voluntariamente, contribuir com a
previdência social. Dentro desse rol, deve-se ressaltar, para fins desse estudo, a colocação da
dona de casa, que apresenta a mesma alíquota que um contribuinte individual. Haveria,
portanto, a condição de voluntariedade, uma vez que a exclusividade no exercício de ser dona
de casa é caracterizado como atividade não remunerada.
Por fim, temos o rol dos segurados especiais, que, além de se caracterizar pelos
trabalhadores rurais, homens e mulheres, que produzem em regime familiar, desde que seja
sem a utilização de mão de obra assalariada, teve a incorporação, recentemente, das donas de
casa de baixa renda.
Apesar de termos as duas leis mencionadas, Leis de nº 8212/91 e 8213/91, funcionando
como regulamentação de nossa previdência social e do custeio, as mulheres que exercem as
atividades domésticas tiveram a efetividade de seus direitos muito posteriormente a estas leis.
As donas de casa, por exemplo, apenas tiveram seus direitos previdenciários garantidos em
1998, pela Emenda Constitucional de nº20, em que as estabelecem como seguradas
facultativas, e em 2005, pela Emenda Constitucional nº47, que as incluem, também, como
seguradas especiais.
Se formos observar no que condiz as empregadas domésticas, apesar de serem
consideradas seguradas obrigatórias desde 1991, não havia, ainda, uma ampla garantia de seus
direitos, de modo que apenas em 2013, com a EC nº72, conhecida como a PEC das
Domésticas, e em 2015 pela Lei Complementar nº 150, que regula a PEC das Domésticas,
houve uma efetiva aplicação e regulamentação de seus direitos trabalhistas e previdenciários,
já anteriormente garantidos aos demais tipos de empregados.
Em 2005, pela Emenda de nº47, foram promulgados diversos dispositivos sobre
Previdência Social, dentre as quais houve a elaboração do Sistema Especial de Inclusão
Previdenciária, em que conferiu às donas de casa, de baixa renda, alíquotas e carências
inferiores aos dos demais tipos de segurados. Ressalta-se, ainda, que com a Lei nº.
12.470/2011, essas donas de casa, bem como os microempreendedores individuais tiveram as
alíquotas para 5% do salário mínimo.
Apesar de ter sido uma conquista para essas mulheres, observa-se que várias delas não
têm acesso a essa informação, como é o caso da falta de conhecimento acerca do CadÚnico.
Essa burocracia de atualização e inscrição no sistema eletrônico, portanto, gera uma
dificuldade para essas mulheres de baixa renda conseguirem auferir seus benefícios. O
CadÚnico, em outras palavras, é um instrumento eletrônico de coleta de dados e informações
do governo, que objetiva reunir informes de todas as famílias de baixa renda no país
(GOVERNO DO BRASIL, 2010). No entanto, apesar de receberem a diminuição da alíquota
a 5% do salário mínimo, as donas de casa apresentaram certo obstáculo para auferir seus
benefícios por meio do INSS, dado que a legislação normatizou determinadas exigências
relativas ao CadÚnico (TEOBALDO,2014). Têm-se, como exigências, a renda familiar de até
dois salários mínimos e a ausência de percepção de renda própria. No entanto, como já dito,
a Autarquia do INSS indefere os direitos dessas seguradas domésticas, sem que houvesse
motivação satisfatória para a denegação de seus direitos. Tem-se como exemplo a ementa da
Apelação/Reexame Necessário de nº 0022144-10.2016.4.02.5110 julgado pelo TRF-2:

PREVIDENCIÁRIO. INCAPACIDADE DEFINITIVA PARA O LABOR


APURADA POR PERÍCIA MÉDICA JUDICIAL. DIREITO AO BENEFÍCIO DE
AUXÍLIO-DOENÇA E DE APOSENTADORIA POR INVALIDEZ. CORREÇÃO
MONETÁRIA DESDE AS RESPECTIVAS ÉPOCAS. JUROS DE MORA, A
PARTIR DA CITAÇÃO. APLICAÇÃO DA LEI 11.960/2009 TANTO PARA
JUROS QUANTO PARA CORREÇÃO MONETÁRIA. OBSERVÂNCIA DA
SÚMULA 56 DESTA CORTE. 1. A aposentadoria por invalidez é um benefício que
deve ser concedido quando se constatar que o trabalhador não tem, realmente,
nenhuma condição de exercer a profissão que costumeiramente desempenhava, ou
outras similares, haja vista que, em dado momento, com o devido parecer de um
expert, verificou-se que eram incompatíveis com suas limitações físicas e/ou
psicológicas. 2. O laudo pericial, acostado às fls. 181/186, concluiu que a autora é
portadora de cardiopatia grave, que a torna incapaz total e definitivamente para sua
atividade laboral. Consta no laudo que (i) sua doença pode ser constatada a partir de
julho de 2015, quando sofreu infarto agudo do miocárdio e realizou cateterismo
cardíaco; (ii) a autora tem todas as condições de realizar as tarefas para a vida
independente básicas para sua subsistência, estando apta à vida independente, mas
não para a atividade laboral; (iii) há incapacidade total e definitiva para o trabalho
que realiza, que exige esforço físico. 3. No tocante à qualidade de segurada da
autora e cumprimento do período de carência exigidos para a concessão do
benefício, tais requisitos foram preenchidos, o que pode ser constatado pela
análise do Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS) trazido aos autos
pelo réu (e-fls. 132/139). 4. Quanto à alegação de que a autora não pode receber
auxílio-doença, nos períodos de outubro a dezembro de 2014, por haver
recolhimentos previdenciários, verifica-se, no CNIS de e-fls. 134/135 e 137/139,
que se trata de "recolhimentos facultativo baixa renda" (e-fls. 135 e 139). Tal
recolhimento não gera a exclusão do auxílio-doença, como pretende o apelante.
Conforme consta no site da Previdência Social, facultativo de baixa renda é
uma forma de contribuição ao INSS com o valor reduzido, de 5% do salário-
mínimo. Essa modalidade é exclusiva para homem ou mulher de famílias de
baixa renda e que se dedique exclusivamente ao trabalho doméstico no âmbito
da sua residência (dona (o) de casa) e não tenha renda própria. Assim, o
recebimento do auxílio-doença não gerará enriquecimento ilícito. 5. Com
relação ao dano moral, o presente caso apresenta uma peculiaridade. Os dois
indeferimentos dos pedidos de auxílio-doença ocorreram sob os seguintes
fundamentos: não 1 comprovação da qualidade de segurada (e-fl. 18), e perda da
qualidade de segurada (e-fl. 107). Ocorre que, do simples exame do CNIS, a
autarquia tinha condições de facilmente verificar a qualidade de segurada da
autora. Como se vê, o INSS incorreu em equívoco grosseiro. O sofrimento e a
angústia da autora são presumíveis, tendo em vista o quadro de saúde que
apresentava à época do indeferimento equivocado do requerimento
administrativo. Restou incontroverso e evidenciado pelos documentos
constantes dos autos que a autora teve seu requerimento indeferido em razão
de falha de conduta imputável a agentes públicos da autarquia ré. Restando
caracterizada a ilegalidade da recusa administrativa, impõe-se reconhecer a
aptidão do ilícito para causar à autora injusto padecimento, que em muito ultrapassa
o campo do aborrecimento trivial, alcançando o patamar de dano moral indenizável.
Quanto ao valor estipulado pela sentença (R$ 2.000,00), o mesmo mostra-se
razoável, não merecendo retoques. 6. Deve ser aplicada a Lei nº 11.960/2009, tanto
para juros (contados a partir da citação) quanto para correção monetária (desde as
respectivas épocas), observando-se a Súmula nº 56 desta Eg. Corte. 7. Apelação e
remessa necessária parcialmente providas, para estabelecer que deve ser aplicada a
Lei nº 11.960/2009, tanto para juros (contados a partir da citação) quanto para
correção monetária (desde as respectivas épocas), observando-se a Súmula nº 56
desta Eg. Corte.

(TRF-2 - APELREEX: 00221441020164025110 RJ 0022144-10.2016.4.02.5110,


Relator: MESSOD AZULAY NETO, Data de Julgamento: 25/05/2017, 2ª TURMA
ESPECIALIZADA) (Grifos nossos).

Pois bem. Verifica-se que, de certo modo, ao ter sido colocado essas exigências legais,
há uma abertura ainda maior para que o INSS, inadequadamente, recuse o direito
previdenciário dessas mulheres. Resta prejudicado, portanto, o devido acesso à justiça.
De outro lado, as empregadas domésticas, por apenas terem a plena regulação de seus
direitos previdenciários em 2015, em virtude da concessão dos benefícios previstos na EC de
nº72 influírem diretamente na aposentadoria e nos demais benefícios previdenciários, ainda
sofrem retalhos em seus direitos na prática, em virtude dos comportamentos patriarcais e da
nítida divisão sexual do trabalho que dominam a sociedade. Assim, várias dessas mulheres,
por exemplo, ainda não têm carteira assinada, não recebem suas horas extras ou 13º salário,
interferindo e obstaculizando a plena aplicabilidade previdenciária delas.
Através de dados dos estudos do “Retrato de Desigualdade de Gênero e Raça” pelo
IPEA (2015), por exemplo, verifica-se que houve, de fato, um aumento das trabalhadoras com
carteira assinada com a PEC das Domésticas. No entanto, no ano de 2015 ainda se verificou
que os patamares continuavam baixos. Não era, pois, esperado, que após a ocorrência da
regulamentação de um direito previdenciário das empregadas domésticas, teriam ainda um
alto índice de mulheres sem a devida carteira assinada: verificou-se, no país, que apenas 30,4%
das domésticas tinham carteira assinada Analisa-se, por outro lado, que em virtude da
manifesta herança da escravidão em nosso país, as mulheres empregadas domésticas negras
sofrem maiores retalhos em seus direitos: apenas 29,3% dessas trabalhadoras têm suas
carteiras assinadas, enquanto que, quando comparado, tem-se a porcentagem de 32,5%
referentes às carteiras assinadas de mulheres brancas. Quando regionalizamos para o nordeste,
ainda, verificamos que a situação piora, uma vez que apenas 19,5% das domésticas tinham
carteiras assinadas.
Em suma, denota-se que a escravidão e a própria desvalorização cultural da mulher,
contribuíram para que ocorresse uma falha estrutural na igualdade de direitos entre homens e
mulheres, principalmente no que tange as mulheres domésticas e negras.

A teoria do reconhecimento e redistribuição de Nancy Fraser

A Escola de Frankfurt, assumida por Max Horkheimer em 1931, tornou-se uma das
escolas filosóficas com maiores referências, dada sua característica de elaborar estudos
filosóficos que reúnem outras áreas do saber, como a economia e a sociologia. Assim, ao
estabelecer uma nova abordagem filosófica, foram construídas diversas teorias que
trabalhavam com questões que buscassem compreender a crise da sociedade que estava
ocorrendo naquela época (NASCIMENTO, 2014).
Em 1937, Max Horkheimer publicou sua Teoria Tradicional e Teoria Crítica, em que,
diferentemente das demais teorias sociais, vez que estas apenas apontavam o fenômeno da
crise social, reunia a teoria com a prática, possibilitando a existência de esforços concretos
para que houvesse uma emancipação nessas relações sociais, com base nos diagnósticos
refletidos pela interdisciplinaridade dessa filosofia moderna (TROVO,2010). Assim, a teoria
de Horkheimer acaba sendo uma importante inspiração para a elaboração de diversas teorias
críticas, incluindo a Teoria Crítica do Reconhecimento de Axel Honneth e da Teoria do
Reconhecimento e da Redistribuição de Nancy Fraser.
Por sua vez, Axel Honneth, através de seu escrito “Luta por Reconhecimento. A
Gramática Moral dos Conflitos Sociais”, traz a questão do desrespeito ao homem, na qual
ocorre em virtude de uma afronta à moral desse e, consequentemente, da sua identidade. Por
essa conjuntura do desrespeito, aponta Honneth que ocorre o surgimento de lutas sociais que
buscam embaraçar esse ataque à identidade dos indivíduos (TROVO, 2010). Outrossim, essas
identidades que constroem a moral dos sujeitos são geradas através das relações
intersubjetivas, em que, como a Dra. Maria Caroline Trovo (2010) assinala, fazem com que
os indivíduos sejam reconhecidos como “pessoas autônomas, possuidoras de direitos e
individualizadas”. Será, assim, por meio das experiências do desenvolvimento da
autoconfiança, do auto respeito e da autoestima, advindas dessas relações intersubjetivas, que
o indivíduo construirá sua identidade. Para Honneth, assim, a origem das injustiças sociais
recorrentes na sociedade viriam a ser, primordialmente, ocasionadas pelo desrespeito às
experiências desenvolvidas nas relações sociais, uma vez que a identidade do indivíduo é
construída através do reconhecimento de um outro sujeito de sua autonomia e, portanto, de
suas idiossincrasias. (TROVO, 2010)
No entanto, rebatendo essa centralidade no conceito de “reconhecimento” desenvolvido
por Honneth, a filósofa Nancy Fraser, aduz que, antes de haver um desrespeito à identidade
do indivíduo, há grupos sociais que restam por ser injustiçados, tanto pela falta de distribuição
gerada pelo capitalismo histórico, como pela ausência de representação de determinados
grupos sociais frente à sociedade. Dessa forma, diferente do que aponta Honneth, Fraser
assinala três problemas centrais que provocam as grandes injustiças sociai: a falta da
representatividade, a ausência de uma distribuição justa e uma falta de reconhecimento
(SANTOS, 2012).
Como forma de superar essas lacunas políticas deixadas pela Teoria do Reconhecimento
de Axel Honneth, vem Nancy Fraser expor, em sua teoria crítica, uma perspectiva bifocal, em
que, para além de ser necessário apenas o reconhecimento, seria indispensável a interrelação
entre o reconhecimento e a redistribuição para a análise das relações sociais e,
consequentemente, de uma possível emancipação nas relações sociais. Desenvolve, ainda, que
além de ter grupos que necessitam de uma restruturação político-econômica ou de uma
revalorização de suas identidades desrespeitadas, há grupos que necessitam dos dois ao
mesmo tempo. Para isso, fomenta a filósofa que existem coletividades ambivalentes, como é
o caso dos movimentos feministas. Desse modo, Fraser aponta que há necessidade de ocorrer
uma revalorização do gênero feminino, para combater o androcentrismo predominantemente
existente na sociedade. Engendramos, portanto, ao aspecto referencial do presente trabalho.
Quando evidenciamos as características das mulheres que exercem forças produtivas,
podemos observar as mulheres além de sofrerem com uma desvalorização cultural histórica,
também resistem em torno do preconceito que as envolve no âmbito do mercado de trabalho.
Assim, são vistas como mãos-de-obra baratas, principalmente quando se é apontada a mulher
dentro do exercício produtivo, isto é, como trabalhadora doméstica (seja remunerada ou não).
Será por esse aspecto, por exemplo, que Fraser aponta que as mulheres como grupo
minoritário, diante desse espectro patriarcal existente ainda na sociedade, necessitam serem
reconhecidas, representadas e, consequentemente, precisam auferir uma distribuição paritária
ao do gênero masculino.
Torna-se um discurso, em certo ponto, adverso, por estarmos tratando do art.5º da
Constituição Federal, no que se refere a igualdade material. Assim, não basta apontarmos a
existência de uma divisão sexual do trabalho como modo de combater as injustiças sociais
perante as mulheres que exercem a atividade doméstica, mas, sim, precisamos entender que
há ainda uma forte presença dessa divisão do trabalho e que as mulheres necessitam de certos
privilégios para estarem no mesmo patamar que um homem, seja no aspecto jurídico, inclusive
no âmbito previdenciário, no ramo profissional. Precisa-se, posto isto, de uma representação
maior feminina no Congresso Nacional, como forma de alavancar as questões referentes a
essa desvalorização cultural e histórica da mulher que exerce atividade doméstica. No entanto,
como já dito, as normas brasileiras têm uma forte tendência androcêntrica, dado que essas são
elaboradas, em sua maioria, por homens. (FRASER, 2010)
Denota-se, por fim, que para Nancy Fraser apenas o aspecto do reconhecimento não
concebe a emancipação em meio social, principalmente em contextos que se apresentam cada
vez mais multicultural. No entanto, e é para isso que viria a ser essencial um aspecto bifocal
nos grupos sociais, esse reconhecimento podem vir a auxiliar as lutas por distribuição. No
presente caso, portanto, percebe-se que o reconhecimento da dissemelhança entre os gêneros
e, consequentemente, da necessidade em se ter uma igualdade material, favorece o arranjo
social da redistribuição da mulher no mercado de trabalho. Desse modo, as domésticas, enfim,
viriam a ter uma valorização de suas atividades e, por consequência, uma melhor distribuição
em seus salários.
CONCLUSÃO

Através de todo o exposto, percebemos que as mulheres que exercem funções


domésticas, assalariadas ou não, ainda sofrem diversos tolhimentos em seus direitos,
principalmente pelo fato de estarem inseridas em uma sociedade predominantemente
chefiadas por homens com pensamentos androcêntricos. Assim, para que haja, de fato, uma
efetivação dos direitos dessas mulheres, incluindo a efetiva aplicabilidade da Previdência
Social em suas situações, teria que haver uma redistribuição econômica, isto é, uma
eliminação da pormenorização entre o que seria considerado um trabalho de homem e um
trabalho de mulher, além de uma revalorização da identidade do gênero feminino, trazendo
condições especiais a elas, com o fundamento da igualdade material retratada no Art.5º da
CRF de 88.
Outrossim, faz-se necessário sublevar a dignidade no trabalho dessas domésticas, a fim
de que haja uma efetivação dos direitos previdenciários e trabalhistas trazidas tardiamente
pela legislação brasileira.
Resta necessária, assim, uma forte representatividade dessas mulheres nas mesas
legislativas, para que seus direitos sejam, assim, concretizados, reconhecidos e não
retrocedidos.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Cadúnico. Disponível em: http://www.brasil.gov.br/economia-e-


emprego/2010/03/cadunico. Acesso em: 08 de outubro de 2018.

CORDEIRO, Talita Teobaldo. Conquistas e limites no acesso das mulheres à previdência


social após a constituição federal de 1988: análise da proteção social para donas de casa
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ANÁLISE DA ADI 4277: EQUIPARAÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA
À UNIÃO HETEROAFETIVA95

Maria Eduarda Brasil de Carvalho 96

RESUMO

O presente trabalho visa analisar o voto da ministra Cármen Lúcia, no julgamento da ADI
4277, que trata da união estável homoafetiva, terá como base para a análise do voto os tipos
argumentativos retóricos, envolvendo também pontos do Direito Constitucional e do Direito
Civil. O objetivo geral do presente estudo é analisar os argumentos do voto da ministra
Carmen Lúcia que persuadiram para a procedência da ação. A abordagem de pesquisa é
qualitativa, o método é de caráter indutivo e o tipo de pesquisa aplicado foi o exploratório. A
técnica de coleta de dados é documental e bibliográfica. A análise de discurso foi à técnica de
análise de dados do presente texto, utilizando a retórica analítica (metódica desestruturante)
como corpus teórico. Um dos resultados obtidos por este estudo foi o de que para a
argumentação em um discurso retórico, devem-se usar instrumentos para o convencimento,
não importando quais argumentos, mas a forma argumentativa utilizada. Além disso, nesta
ação estudada por possuir forte relação com a sociedade, a argumentação usada no voto da
ministra Cármen Lúcia atentou para a questão normativa legal, relacionando em conjunto com
os direitos da pessoa humana de forma persuadir através de ambas as esferas. Outro resultado
foi o de que os julgamentos de dispositivos possivelmente inconstitucionais assim como a
ADI 4277, envolvem muitos pontos do direito em seu aspecto principiológico e normativo
legal, o que possivelmente gera certa divergência nas discussões.

Palavras-chave: ADI 4277; retórica; argumentação; união estável homoafetiva.

INTRODUÇÃO

Neste trabalho será discutido o voto da ministra Cármen Lúcia, no julgamento da ADI
4277. Este voto se baseou em tipos argumentativos estudados pela retórica, cabe aqui
compreender como eles foram utilizados para a procedência do pedido da ADI 4277. A
problemática agrega algumas das discussões sobre o Direito Constitucional e o Direito Civil
que possivelmente apresenta um dispositivo inconstitucional, na qual, atende aos modelos de
famílias aceitos pela sociedade, mas deixa à margem uma parcela social. Além disso, apesar
de a decisão ter sido unânime, houve divergências ideológicas entre os ministros, ponto que
será também abordado nesse estudo.
Assim, a problemática de pesquisa que origina esse trabalho é: quais argumentos do
voto da ministra Cármen Lúcia persuadiram para a procedência da ADI 4277? O objetivo

95
GT 4- Gênero(s) e Diversidade Sexual no Direito.
96
Graduanda em Direito pela Universidade de Pernambuco - Campus Arcoverde
eduardabcarvalho@outlook.com
geral do trabalho é: analisar os argumentos do voto da ministra Carmen Lúcia que persuadiram
para a procedência da ADI 4277. Ela está entre os ministros que julgaram a questão com um
dos argumentos mais convincentes, com relação à equiparação da união estável homoafetiva
à heteroafetiva.
O primeiro objetivo específico é estudar os métodos argumentativos para a retórica. O
segundo objetivo específico consiste em explanar o caso da ADI 4277, na qual existem
algumas divergências de posições entre os ministros votantes. A abordagem de pesquisa é
qualitativa, o método é de caráter indutivo e o tipo de pesquisa aplicado foi o exploratório
realizado no discurso argumentativo. A técnica de coleta de dados é documental usando o voto
da ministra Cármen Lúcia, na ação direta de inconstitucionalidade 4277 e bibliográfica usando
a obra de João Maurício Adeodato “A retórica constitucional”. A análise de discurso foi à
técnica de análise de dados do presente texto, utilizando a retórica analítica (metódica
desestruturante) como corpus teórico.
Primeiro será discutida a hermenêutica jurídica retórica argumentativa, segundo será
abordada a fundamentação jurídica que envolve o caso, bem como as diferentes interpretações
sobre o tema, por fim analisar o voto da ministra Cármen Lúcia com base nos tipos
argumentativos retóricos.

1 DA HERMENÊUTICA JURÍDICA E DA RETÓRICA ARGUMENTATIVA

A retórica era uma forma de ensino muito usada na antiga Grécia pelos sofistas, ela se
definia como uma arte discursiva, pela qual mediante a persuasão, o orador convence o
ouvinte sobre o que diz ser verdade a respeito de determinados assuntos, não passível de
contestações.
O filosofo Sócrates desacreditava nesse método por considera-lo duvidoso quanto a
sua produção de conhecimento. Para ele, a forma mais adequada, é pela dialética, na qual há
um debate entre os participantes para se chegar a um entendimento.
Partindo-se da ideia de que, a significação entre indivíduos sobre qualquer assunto ou
situação é diversa, até quando exposto a mesmos contextos, é possível dizer que uma série de
elementos vão interferir na captação da realidade pela pessoa. Esses elementos podem ser, até
mesmo, conceitos linguístico-culturais, pois é relevante o conhecimento que o indivíduo
adquiriu durante as experiências vividas.
A argumentação é a principal ferramenta utilizada pela retórica para vencer o discurso,
“Aristóteles esclarece que há três fatores determinantes da persuasão: a pessoa do orador, os
fatos de que ela fala e o teor dos argumentos, a retórica excluía de seu campo de estudo os
dois primeiros, se concentrando nos argumentos.” (SCHOPENHAUER, 2003, p. 35). Ou seja,
para se alcançar o convencimento é preciso se atentar nos pontos estratégicos.
A retórica argumentativa busca garantir que a percepção individual possa ser
alcançada pelo outro. “o jurista, ao enfrentar a questão da decidibilidade, utiliza modelos em
conjunto dando ora primazia a um deles e subordinando os demais, ora colocando-os em pé
de igualdade” (FERRAZ JÚNIOR, 2012). O termo “em pé de igualdade” faz referência ao
fato de que o orador deve se colocar dentro do entendimento do ouvinte, para assim fazê-lo
raciocinar como ele.
Nas decisões do direito atual, os juristas buscam métodos discursivos para
fundamentar seus argumentos, existe sempre uma construção ideológica embasada por trás, o
que vai fazer com que duas posições antagônicas entrem em um “jogo”. Ganhará sempre a
que os argumentos forem mais convincentes, ou seja, que consigam atingir o auditório de
forma satisfatória.
Dentro deste jogo todas as formas são aceitas, para que se atinja o objetivo principal,
isso significa que não importam os meios, apenas os fins. Essa ideia se parece muito com o
pensamento de Nicolau Maquiavel (2008), ou pelo menos com o entendimento geral que foi
extraído pelos leitores de sua obra “O príncipe”. No livro os meios se referem aos feitos que
seriam justificados pelos objetivos finais; em relação à temática aqui abordada no lugar dos
feitos, estes meios seriam os argumentos utilizados no discurso para persuadir.
A persuasão é uma técnica desenvolvida desde os gregos na Antiguidade Clássica, por
isso, algumas aplicações tecnológicas dessa arte persistem na contemporaneidade. O ethos, o
pathos e o logos são vias clássicas de argumentações adequadas para determinados auditórios
sobre algumas circunstâncias. Por isso, estes conceitos serão importantes na análise de
conteúdo da decisão jurídica.
O ethos pode designar o costume ou o hábito (no sentido de habitar) trazendo
características mais físico-concretas a sua significação. Outra acepção está ligada a postura
humana diante das escolhas, levando a uma ideia de caráter. Este último significado é a
impressão que o orador deixa no seu público e a mais importante dentro dessa pesquisa
(ADEODATO, 2010).
O conceito de pathos significa qualquer emoção, seja de alegria ou dor, para mudar a
decisão de um determinado auditório que em seu modo habitual não decidira daquele jeito
(ADEODATO, 2010). Este argumento pode ser utilizado em uma decisão judicial, mas não é
a regra, já que o auditório desta interlocução possui pessoas do senso esclarecido referente a
matéria jurídica.
O logos é a linguagem em sentido estratégico, ou seja, é a arte (técnica) do discurso
no sentido retórico (ADEODATO, 2010). Sua etimologia pode-se dividir entre: lógoi (ciência)
ou catálogos (topos). As decisões jurídicas preferencialmente devem ter este tipo de
argumento, pois o discurso mais técnico com cadeias argumentativas referenciadas a partir
dos pontos de partida da dogmática jurídica são mais persuasivos ao senso esclarecido
jurídico.

2 DIFERENTES INTERPRETAÇÕES DE UM MESMO TEMA: QUESTÃO DA


EQUIPARARÇÃO

No Brasil, o ordenamento jurídico atual adota o modelo hierárquico Kelseniano, no


qual a Constituição Federal se encontra no topo, por ser esta, fundamento de validade de todas
as demais normas do sistema. Assim, nenhuma norma do ordenamento jurídico pode se opor
à Constituição, sujeita a declaração de inconstitucionalidade. Na Constituição, há normas
constitucionais originárias e normas constitucionais derivadas. As originárias são produto do
Poder Constituinte Originário (o poder que elabora uma nova Constituição); elas integram o
texto constitucional desde que ele foi promulgado, em 1988.
A relação entre a norma que regula a produção de uma outra, e a norma assim regularmente
produzida, pode ser figurada pela imagem espacial da supra-infra-ordenação, bem como uma
hierarquia normativa. A constituição neste entendimento seria a norma originária, ou seja, a
norma superior, e a norma produzida segundo as determinações daquela é a norma inferior. A
sua regulamentação tem dentro da ordem jurídica o caráter de legislação pela Constituição, e
compreende a determinação do órgão ou dos órgãos que são dotados de competência para a
produção de normas jurídicas gerais leis e decretos (KELSEN, 1998, p. 155).
Isso significa que, a partir dela, emanam as demais esferas do direito, melhor dizendo
a partir de seus princípios. Porém, nem sempre essas normas derivadas atendem esse requisito,
é devido a isso que existe o controle de constitucionalidade. Nos casos específicos, que
envolvem as discussões a respeito dessa constitucionalidade das normas, é frequente a
divergência de pensamento entre os juristas.
Muitos juristas vão defender a interpretação por um método gramatical das normas,
visto que se deve atender ao que o legislador, expressamente quis com aquela disposição da
norma jurídica em seu sentido literal ou textual.
Em um primeiro momento o intérprete deverá dominar o idioma em que a norma
jurídica foi produzida e assim estabelecer uma definição; neste primeiro momento
o intérprete buscaria fixar qual o sentido dos vocábulos do texto normativo[...].
Desta forma, o intérprete consultaria um dicionário comum e ainda um dicionário
jurídico para verificar se nos dois universos linguísticos a palavra apresenta o
mesmo significado (VILAS-BÔAS, [200-] p. 9).

Além disso, os juristas que utilizam o método gramatical, o relacionam com um outro;
o histórico no qual o intérprete analisa o que levou à elaboração daquela norma jurídica e
quais os interesses dominantes. Assim, a possível extensão dessa interpretação configura um
desvio de uma função que é do próprio legislador ou até do Congresso Nacional.

Este método foi desenvolvido por Savigny que trouxe para o Universo Jurídico o
método histórico utilizado nas ciências histórica. Este jurista tinha como objetivo
elevar o Direito à categoria de ciência do espírito, daí o nome de sua Escola: Escola
Histórica do Direito (VILAS-BÔAS, [200-] p. 9).

Em contrapartida outros defenderão o método sistemático, que deve haver a extensão


da interpretação a luz dos princípios constitucionais. Dessa forma será respeitada, aquela
supracitada supremacia constitucional.

A interpretação sistemática é a interpretação da norma à luz das outras normas e do


espírito (principiologia) do ordenamento jurídico, o qual não é a soma de suas partes,
mas uma síntese (espírito) delas. A interpretação sistemática procura compatibilizar
a partes entre si e as partes com o todo – é a interpretação do todo pelas partes e das
partes pelo todo (MAGALHÃES FILHO, 2002, p.37 apud VILAS-BÔAS, [200-],
p. 10).

Além disso, ressaltam o fato de que não há expresso em nenhum dispositivo jurídico
a proibição de se reconhecer a união estável homoafetiva. Então, não há vedação em contrário,
cabe aqui lembrar do conceito de que na atividade do particular tudo o que não está proibido
em lei é permitido, em outras palavras a não manifestação da lei implica em uma autorização
tácita. Porém, quando se fala em administração pública o silêncio da lei não autoriza a
realização dos atos.

A legalidade, como princípio de administração (CF, art. 37, caput), significa que o
administrador público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos
mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou
desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se a responsabilidade disciplinar,
civil e criminal, conforme o caso (MEIRELLES, 2014).

Assim, é possível perceber a controvérsia ideológica, em todos existe embasamento


teórico. Mas é a partir da argumentação bem fundamentada que será possível convencer qual
posicionamento irá prevalecer.
O tema abordado pela Ação Direta de Inconstitucionalidade 4277 é a equiparação da
união estável homoafetiva em união estável de pessoas do sexo oposto, e que aquela também
deve ser assegurada pelo Estado, tal como é está última. Logo, é possível perceber que o tema
é passível de divergentes entendimentos, que serão baseados justamente no fundamento
jurídico adotado: se foi o histórico juntamente com o gramatical, que visa a fiel interpretação
do dispositivo feito pelo legislador, ou se foi o sistemático que interpreta de forma extensiva
conforme a constituição.
Primeiramente a ADI 4277 entrou em debate como arguição de descumprimento de
preceito fundamental a pedido do governador do Rio de Janeiro, que afirmou serem restritivos
de direitos aos que vivem em união estável homoafetiva, os incisos II e V do art. 19 e os incisos
I a X do art. 33, todos do Decreto-Lei 220/1975 (Estatuto dos Servidores Civis do Estado do
Rio de Janeiro).
Porém, o Ministro Gilmar Mendes, no exercício da Presidência do Supremo Tribunal
Federal entendeu ser mais adequado uma ADI, por não se tratar de uma ação de preceito
fundamental, mas com o objeto definido; o de interpretar “conforme a Constituição” o art.
1723 do Código Civil “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem
e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o
objetivo de constituição de família” (BRASIL, 2002). Assim, esta disposição foi ratificada
pela Presidência da República, pela Câmara dos Deputados, pela Procuradoria geral e
Advocacia Geral da União e pelo Senado Federal.
Com votação unânime entre os ministros do STF, que teve seu ministro relator Ayres
Britto (2011), a ADI 4277 procurou garantir a o reconhecimento da união entre pessoas do
mesmo sexo como entidade familiar, com base nos princípios constitucionais da igualdade
(art. 5º, caput), da liberdade (art. 5º, caput), dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III,
BRASIL, 1988). Faz desse reconhecimento obrigatório, constituído de segurança jurídica que
afasta as discriminações odiosas. Mesmos fundamentos e pedidos, em última análise pela
ADPF.
A partir desse contexto envolvendo a ação direta de inconstitucionalidade 4277,
mesmo com a votação unânime para a procedência, o questionamento que leva a controvérsias
entre os ministros é com relação a própria equiparação das duas configurações de união
estável. O ponto principal desse embate é se a união estável homoafetiva corresponde a uma
forma equiparada de entidade familiar já existente, ou se na verdade configura um novo
modelo de família.
O fato é que tanto pelo art. 226 da Constituição Federal (BRASIL, 1988) quanto pelo
1723 do Código Civil (BRASIL, 2002), entende-se que a união estável ou casamento, será
assegurada pelo estado com o fim de constituir família. É a partir disso que os ministros
Ricardo Lewandowski (STF, 2011, p. 708) e Gilmar Mendes (STF, 2011, p. 751), vão
questionar a respeito da existência de uma lacuna, pois não há um dispositivo expresso de
família formada por casais do mesmo sexo.
Seria para esses ministros um caso de enquadrar essa configuração de família em uma
nova entidade. Eles entendem que seria um quarto tipo, que difere daquele formado a partir
do casamento, ou da união estável, ou a que se denomina monoparental, justamente pelo fato
de ser formada por duas pessoas do mesmo sexo, o que para eles seria totalmente distinto da
heterossexual.
Por outro lado, na posição dos outros ministros, até mesmo do relator, Ayres Britto
(STF, 2011, p. 625), a união estável homoafetiva deve ser equiparada a heteroafetiva. Pois a
união estável deve ser vista como uma formação familiar em si mesma, ou seja, é uma forma
de atender aos anseios de quem deseja conviver com a outra pessoa por meio laços afetivos.
A partir disso, então, não há o que se falar em enquadrar em uma quarta entidade
familiar ou não, pois a união homoafetiva em nada distingue da heteroafetiva, são igualmente
união de pessoas por vínculos afetivos. Trata-se na verdade, de um dever do Estado em
reconhecer e assegurar as uniões estáveis, sejam elas de pessoas de sexo diferente ou do
mesmo sexo.

3 ANÁLISE DO VOTO DA MINISTRA DO STF CARMEN LÚCIA

A argumentação utilizada pela ministra Cármen Lúcia (STF, 2011, p. 695), visa o
convencimento de que o art. 1723 do Código Civil (BRASIL, 2002), deve ser interpretado
conforme a constituição, de forma a equiparar a união estável homoafetiva à união estável
heterossexual. Visto que, tal artigo estaria violando princípios fundamentais da Constituição
Federal que garantem liberdade, igualdade e dignidade. Nesse contexto, o voto da ministra
elucidou seus objetivos, na medida em que a ADI foi julgada procedente.
Primeiro ponto abordado pela ministra é expor o objeto da ADI, e explicar porque
deve ser acatado. Sobre o art. 1723 do Código Civil: “É reconhecida como entidade familiar
a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e
duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família” (BRASIL, 2002); ao ser
lido, pode-se inferir que apenas homens e mulheres podem celebrar a união estável civil.
Porém, aos olhos da constituição, todos têm garantidos os direitos fundamentais, de
expressar sua sexualidade da forma que desejar, e é dever do direito atender a necessidade de
legitimar a união dos que optam por viver com outra pessoa do mesmo sexo.
Para fortalecer seu argumento a ministra usa o tipo ethos, para qual elucida trechos do
jurista José Afonso da Silva:

o intérprete da Constituição tem que partir da ideia de que ela é um texto que tem
algo a dizer-nos que ainda ignoramos. É função da interpretação desvendar o sentido
do texto constitucional; a interpretação é, assim, uma maneira pela qual o significado
mais profundo do texto é revelado, para além mesmo do seu conteúdo material.
(SILVA, 2010, p. 14 apud. STF, 2011, p.702).

Premissa maior: a Constituição Federal, como fonte hierarquicamente superior, é dotada de


princípios que garantem liberdade, igualdade e dignidade da pessoa humana para todos.
Premissa menor: a interpretação do art. 1723 do Código Civil de 2002, restringe a tutela de
entidade familiar ao homem e a mulher.
Conclusão: logo, a interpretação restritiva do art. 1723 é inconstitucional porque não atende
aos princípios constitucionais de liberdade, igualdade e dignidade da pessoa humana.
A ministra Cármen Lúcia, também, não deixa passar o possível questionamento, sobre
a real finalidade da união estável, que é constituir família. Para fundamentar esse ponto,
novamente, usa do tipo ethos, para qual cita os trechos:

a entidade familiar fundada no casamento, portanto, não é mais a única consagrada


pelo direito constitucional e, por consequência, pela ordem jurídica em geral; porque
é da Constituição que irradiam os valores normativos que imantam todo o
ordenamento jurídico. Ex facto oritur jus – diz o velho brocado latino (SILVA, 2010,
p. 863, apud STF, 2011, p. 702).

No trecho, o citado brocado significa: “do fato nasce o direito”, o que quer dizer que
o direito deve atender às necessidades sociais. Nesse caso, o conceito de entidade familiar
vem se alterando com o passar do tempo, já não é mais apenas aquela gerada pelo casamento.
Sobre esse aspecto o jurista Carlos Roberto Gonçalves pontua dentro do direito de família “a
família é uma realidade sociológica e constitui a base do Estado, o núcleo fundamental em
que repousa toda a organização social” (GONÇALVES, 2011, p. 17).

A realidade é a causadora de representações jurídicas que, até um certo momento,


permanecem à margem do ordenamento jurídico formal; mas a pressão dos fatos
acaba por gerar certo reconhecimento da sociedade, que vai aceitando situações
antes repudiadas, até o momento em que o legislador as disciplina exatamente para
contê-las no campo do controle social. (SILVA, 2010, p. 863, apud STF, 2011, p.
702).

Aqui, é apresentado que a sociedade e seus conceitos do que deve ser aceito,
influenciam diretamente no direito. Mas este tem o dever de alterar suas disposições, quando
tal situação deixa uma parcela social à margem. Principalmente pela questão de que a
sociedade ao longo do tempo sofre mudanças, e estas devem ser levadas em consideração pelo
direito.
Para embasar essa afirmação a ministra se vale do jurista Norberto Bobbio, muito
representativo para o direito “Bobbio afirmou, na década de oitenta do séc. XX, que a época
não era de conquistar novos direitos, mas tornar efetivos os direitos conquistados” (STF, 2011,
p. 695).

Quantos sofrimentos passaram mães solteiras que, com seus filhos, eram
marginalizadas pela sociedade e desprezadas pelo Estado, porque essa comunidade
não era concebida como entidade familiar, porque o sistema constitucional só
reconhecia a família biparental?” (SILVA, 2010, p. 863, apud STF, 2011, p. 702).

Uma das parcelas que ficavam à margem da sociedade, eram as mães solteiras, por não
configurar o padrão aceito de entidade familiar. O direito, então, fica encarregado de alterar
suas disposições em razão dos fatos sociais de necessidade.
A ministra Cármen Lúcia, já prevendo um possível questionamento, faz uma ressalva
de que na própria Constituição seus artigos devem ser interpretados em conjunto com todo o
texto da carta magna. Em seu art. 226 § 3º, ao ser interpretado na forma literal, se obtém um
entendimento restritivo da união estável apenas à homem e mulher resultaria em contradição
com as garantias fundamentais.

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.


§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem
e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em
casamento (BRASIL, 1988)

Assim como o art. 1723 do CC (BRASIL, 2002), aqui a interpretação literal do § 3 do


art. 226 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), exclui os direitos daqueles que escolhem
viver em uniões homoafetivas. Portanto, devem ser interpretados segundo a norma
constitucional, entendida numa largueza maior, fundamentada nos princípios magnos do
sistema.
Nessa cadeia argumentativa, a ministra com intuito de emocionar seu auditório, através
de palavras de significado forte a respeito de violência, repúdio e exclusão. Para isso usa do
tipo phatos. Já no início do seu voto apresenta tal linha argumentativa quando diz:

Faço-o enfatizando, inicialmente, que não se está aqui a discutir, nem de longe, a
covardia dos atos, muitos dos quais violentos, contrários a toda forma de direito, que
a manifestação dos preconceitos tem dado mostra contra os que fazem a opção pela
convivência homossexual (STF, 2011, p. 696)
Mesmo dizendo que o objeto da ADI não é discutir a questão do preconceito contra os
homossexuais, a ministra não deixa de citar essa temática. Essa estratégia de inserir tema
relacionado ao principal carregado de palavras de impacto, é um forte tipo argumentativo.
Essa posição da ministra, mostra-se uma visão moral individual da mesma, na medida
em que não usa fontes ou referências que evidenciem a questão do preconceito em relação aos
homossexuais. Portanto, a sua fala não técnica apresenta um tipo que não é nem ethos nem o
logos, mas sim o phatos por objetivar apenas comover e não comprovar.
“A discriminação é repudiada no sistema constitucional vigente, pondo-se como
objetivo fundamental da República, expresso, a construção de uma sociedade livre, justa e
solidária” (STF, 2011, p. 701). Fica evidente nessa fala da ministra, a intenção de atingir
emocionalmente com o termo “repudiada” para deixar claro a negatividade da discriminação.
E que o não reconhecimento da união estável homoafetiva é uma forma de discriminação,
logo não deve ser admitida.
Ainda usando do tipo phatos, a ministra Cármen Lúcia faz uma argumentação não
para emocionar propriamente os ouvintes, mas para leva-los a refletir sobre a temática e para
isso, elucida um trecho do poeta Guimarães Rosa “Essas são as horas da gente. As outras, de
todo tempo, são as horas de todos...amor desse, cresce primeiro; brota é depois. ... a vida não
é entendível” (STF, 2011, p. 701)
O objetivo da ministra ao citar este trecho é enfatizar o final que diz a vida não
entendível e que sendo assim não se deve buscar entender certas questões, mas apenas
aceitá-las. Nesse contexto a relação com a temática é a de que não é preciso entender as
escolhas do outro para as aceitar. A ministra então completa “pode-se não adotar a mesma
escolha do outro; só não se pode deixar de aceitar essa escolha, especialmente porque a vida
é do outro e a forma escolhida para se viver não esbarra nos limites do Direito.” (STF, 2011,
p. 701)
Um outro tipo argumentativo usado pela ministra é o logos, para que se construa uma
linha argumentativa lógica o que em muito facilita a persuasão. É fato que em todo discurso
se observa o logos, pois é necessário haver uma linha de raciocínio no decorrer do texto,
porém, em alguns pontos sempre fica mais evidente essa técnica argumentativa.
A ministra faz o seu argumento com o logos, com base em uma citação, novamente do
jurista José Afonso da Silva:

“Em outras palavras, o sentido da Constituição se alcançará pela aplicação de três


formas de hermenêutica: a) a hermenêutica das palavras; b) a hermenêutica do
espírito; c) a hermenêutica do sentido – segundo Richard Palmer – que prefiro
chamar de ‘hermenêutica contextual” (SILVA, 2010, p. 14 apud. STF, 2011, p. 699)

A ministra a partir desta citação tece o seguinte argumento: “No exercício desta tarefa
interpretativa, não me parece razoável supor que qualquer norma constitucional possa ser
interpretada fora do contexto das palavras e do espírito que se põe no sistema.” (STF, 2011,
p. 699)
O termo “não me parece razoável” deixa claro a intenção de mostrar que essa forma
de pensar é a mais adequada sobre esse assunto. Ou seja, apresenta o conjunto de ideias que
aparentemente fazem sentido, de forma a conquistar o auditório.

Considerando o quadro social contemporâneo, no qual se tem como dado da


realidade uniões homoafetivas, a par do que se põe, no Brasil, reações graves de
intolerância quanto a pessoas que, no exercício da liberdade que lhes é
constitucionalmente assegurada, fazem tais escolhas, parece-me perfeitamente
razoável que se interprete a norma em pauta em consonância com o que dispõe a
Constituição em seus princípios magnos. (STF, 2011, p. 698)

Nesse trecho também é possível perceber a intenção de convencer que esse raciocínio
é o mais correto. Para fortalecer ainda mais o argumento, usa juntamente além do logos, o
phatos quando diz “reações graves”, de forma a chamar atenção do público sobre o que
acontece com as pessoas que optam por viver em união homoafetiva.
É possível perceber que a linha argumentativa da ministra Cármen Lúcia possui forte
poder de persuasão e tenta atingir o auditório de várias formas, como citado através ethos,
phatos e logos. Porém, ainda que bem fundamentada, apresenta alguns pontos a se questionar,
assim como é na maioria dos discursos argumentativos das decisões.
Um desses pontos a se questionar pode se observar nesse trecho “Para ser digno há
que ser livre. E a liberdade perpassa a vida de uma pessoa em todos os seus aspectos, aí
incluído o da liberdade de escolha sexual, sentimental e de convivência com outrem.” (STF,
2011, p. 700).
Existe um entimema nessa linha de pensamento, pois não há previamente definido o
significado de liberdade e dignidade, então não há como afirmar que um precede o outro.
Resta aqui expor uma linha de raciocínio que deixe clara essa ordem entre essas garantias
fundamentais, visto que nem mesmo a constituição federal traz essa disposição.

Aqueles que fazem opção pela união homoafetiva não pode ser desigualado em sua
cidadania. Ninguém pode ser tido como cidadão de segunda classe porque, como
ser humano, não aquiesceu em adotar modelo de vida não coerente com o que a
maioria tenha como certo ou válido ou legítimo (STF, 2011, p.701).

Nesse trecho também existe o entimema, pois não é conceituado o significado de


cidadão de segunda classe o que dificulta o entendimento para se concluir quem é enquadrado,
pela sociedade, nessa categoria de cidadão. Então, mesmo sabendo que aqueles que optam por
viver em modelos diferente do aceito são vistos com maus olhos, não é possível adotar para
estes o termo “cidadãos de segunda classe”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, na questão abordada bem como todas as decisões dentro do direito, os juristas
utilizam estratégias que são construídas para alcançar a vitória que se expressa no
convencimento. Instrumentos são usados e um deles é a retórica tendo como centro o controle
público da linguagem. Uma vez conquistado o convencimento dos destinatários, faz crer que
se chegou à verdade dos fatos, porém, no contexto retórico só existirá verossimilhança.
Esse tema é considerado complexo pois envolve forte ideologia e padrões sociais do
que é visto como comum e aceito. Devido a isso, mesmo com uma certa unanimidade entre
os ministros, ainda existe divergências em certos aspectos, como foi supracitado, e isso vai
dar início ao jogo da argumentação.
No presente estudo buscou-se analisar os argumentos jurídicos utilizados no voto da
ministra Cármen Lúcia nos quais, envolvia tais como ethos, phatos e logos. Mas o destaque
foi o tipo ethos pois em quase todo seu discurso se vale de trechos das falas do jurista José
Afonso da Silva, na intenção de fortalecer seu texto com uma figura representativa no Direito
Constitucional.
O segundo tipo em destaque no voto da ministra foi o phatos, este tem forte impacto
pois é carregado de emoção. Por se tratar de um tema que afeta diretamente as pessoas, trazer
para o discurso argumentos dessa natureza é uma boa estratégia argumentativa. O último, mas
não menos usado foi o tipo logos, isso porque ele é necessário para que todo texto tenha
sentido e consiga atingir os objetivos. Ele está presente em algumas partes de formas mais
evidente, com intuito de garantir o convencimento.
Apesar do voto estar bem fundamentado e a ADI 4277 ter sido procedente, é possível
perceber os pontos questionáveis a exemplo dos entimemas e também uma certa falta de dados
e referências para comprovar algumas afirmações apresentadas. O fato é que no contexto
retórico, não importam os meios utilizados, o que vale é o desenvolvimento argumentativo
sem contradição no ambiente dialético, desdobrando-se em um ato persuasivo para um
auditório.
Logo não importa se deve ser inserida a união homoafetiva em um novo contexto de
família, ou o que a interpretação literal do art. 1723 do Código civil (BRASIL, 2002) diz, o
que importa é ser plausível a equiparação da união estável homoafetiva à de pessoas de sexo
diferente, para que essa seja assegurada pelo Estado.

REFERÊNCIAS

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e outros fundamentos éticos do direito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

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maio de 2011. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Poder Judiciário, Brasília,
14 out. 2011, p. 611-880.

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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em:
14 jun. 2018.

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Editora Atlas, 2012.).

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Horizonte: Editora Conceito Editorial, 2002, 37 p.

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Malheiros, 2014. 67 p.

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Disponível em:
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SCHOPENHAUER, Arthur. Como vencer um discurso mesmo sem ter razão: em 38


estratagemas (dialética erística). ed. 4. Rio de Janeiro: Editora Topbooks, 2003. 35 p.
VILAS-BÔAS, Renata Malta. Hermenêutica: jurídica: uma questão intrigante. [200-]
Disponível em <http://uniesp.edu.br/sites/_biblioteca/revistas/20170725113015.pdf>. Acesso
em: 13 set. 2018
ESCRITÓRIO DE DEFESA DA MULHER: uma análise do perfil das vítimas de
violência doméstica e familiar no município de Arcoverde97

DálleteJanyele98
Denise Luz99
Micheline Valério100

RESUMO

O presente trabalho tem por objetivos apresentar o Escritório de Defesa da Mulher (EDM),
um programa de extensão do Curso de Direito da Universidade de Pernambuco (UPE) –
campus Arcoverde, o qual, em parceria com a Coordenadoria Municipal da Mulher
(Coordenadoria), órgão integrante do Poder Executivo local, busca contribuir para o
enfrentamento da violência de gênero no Município; assim como analisar o perfil da mulher
vítima de violência doméstica e familiar acolhida nesse contexto. A abordagem metodológica
utilizada é do tipo quantitativa, pois se baseia na coleta de dados e informações numéricos
registrados nas fichas de atendimento, mediante declaração da própria vítima ou obtidos junto
a órgãos e entidades de proteção e auxilio às mulheres e junto às agências de repressão a
crimes dessa natureza, como as polícias civil e militar. O universo analisado é a totalidade dos
atendimentos realizados no intervalo de tempo de março de 2016 a setembro de 2018, o qual
coincide com o tempo de atuação da Coordenadoria desde sua instauração.

Palavras-chave: Gênero. Violência Doméstica. Escritório de Defesa da Mulher – EDM.


Arcoverde

INTRODUÇÃO

O Brasil é o 5º país no mundo onde mais morrem mulheres vitimadas por crimes de
gênero, de acordo com o Mapa da Violência de 2015, coordenado pela Faculdade Latino-
Americana de Ciências Sociais (Flacso). No período entre os anos 2003 e 2013, o número de
mulheres mortas em condições violentas passou de 3.937 para 4.762, o que implica dizer que
13 feminicídios por dia, no mínimo, ocorrem no país. Assim, verifica-se um aumento de 21%
em dez anos. Para mulheres em determinadas situações de vulnerabilidade social, como por
exemplo as mulheres negras, a incidência foi ainda maior: os homicídios, nesses casos,

97
Trabalho apresentado no GT4- III Congresso Pernambucano de Ciências Jurídicas UPE - Arcoverde.
98
Graduanda em direito na Universidade de Pernambuco, Campus Arcoverde (UPE). Membro do Programa de
extensão Escritório de Defesa da Mulher (EDM)- UPE. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas
Transdisciplinares sobre Meio Ambiente, Diversidade e Sociedade - GEPT/DIMO-UPE. Integrante do grupo de
pesquisa Incertae - UPE.. E-mail: dallete.j@gmail.com
99
Professora das disciplinas de direito penal e direito processual penal do Curso de Direito da Universidade de
Pernambuco, campus Arcoverde. Doutora em Ciências Criminais pela PUCRS. Coordenadora do Escritório de
Defesa da Mulher – EDM – da UPE. E-mail:denise.luz@upe.br
100
Coordenadora de Políticas Públicas para Mulher na Cidade de Arcoverde. E-mail: micheline.darl@gmail.com
aumentaram 54, 2% no mesmo período, passando de 1.864 para 2.875 vítimas.
Ao apontar a violência contra mulheres e os fatores que envolvem a temática, revela-
se a urgente necessidade de políticas públicas que visem a conscientização da sociedade, o
acolhimento e o empoderamento da vítimas, a repressão aos crimes e a redução de danos. Faz-
se mister maior engajamento nesta luta por parte de toda a sociedade e do Estado, para
redução ou mesmo erradicação desta chaga social. Nesse contexto e com esses objetivos, o
EDM foi criado no Curso de Direito da UPE, campus Arcoverde, como um projeto de extensão
a ser desenvolvido em parceria com o Município, dotando a Coordenadoria com material
humano composto por alunos, professores e servidores do Curso, para prestarem assessoria e
orientação jurídica para as vítimas.
Este artigo visa apresentar o EDM à comunidade acadêmica e transmitir informações
sobre o perfil das mulheres em situação de violência no Município de Arcoverde, em especial
as assistidas pela Coordenadoria. Para tanto, toma-se como ponto de partida uma breve
explanação sobre o EDM. Em seguida faz-se a contextualização de assuntos relacionados ao
tema, como a Lei Maria da Penha. Por fim, apresentam-se dos dados que permitem identificar
quem é vítima que busca apoio do Poder Público municipal. A abordagem metodológica é a
quantitativa, pois se baseia em uma coleta de dados, correspondente a informações formais
contidas nas fichas de atendimento arquivadas na Coordenadoria. As informações são
prestadas pelas próprias vítimas e complementadas por registros oficiais, se pertinente. Toda
mulher que chega até a Coordenadoria é ouvida por profissionais para compreensão da
situação e definição de medidas a serem adotadas, sempre com a concordância da assistida.
As oitivas são registradas em fichários, os quais ficam arquivados em pastas individuais com
a identificação da vítima. O material analisado nesta pesquisa consiste na totalidade das pastas
arquivadas na Coordenadoria da Mulher, desde março de 2016 até setembro de 2018.

2. O ESCRITÓRIO DE DEFESA DA MULHER – EDM

O projeto de extensão da Universidade de Pernambuco - Campus Arcoverde -


nomeado Escritório de Defesa da Mulher (EDM) foi aprovado no dia 20 de setembro de 2016
pelo Colegiado do Curso de Direito e, posteriormente, registrado na Coordenação Setorial de
Extensão. Trata-se, portanto, de um projeto institucioninalizado na UPE, o qual tem
como público alvo as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar no Município de
Arcoverde atendidas pela Coordenadoria da Mulher. Esta foi criada em no dia 15 de Abril do
ano de 2016, como órgão integrante do Poder Executivo Municipal vinculado diretamente ao
Gabinete da Prefeita, com a finalidade de articular intersetorialmente; fomentar e efetivar
políticas públicas que atendam as especificidades das mulheres. Sua missão é acolher,
fortalecer e empoderar as mulheres arcoverdenses, tendo como bandeira principal o
enfrentamento da Violência doméstica e familiar.
É função da Coordenadoria da Mulher acompanhar os casos de violência doméstica e
familiar no Município de Arcoverde. Os casos chegam até a Coordenadoria por demanda da
própria vítima, denúncias de terceiros, ou por comunicação da Polícia Civil ou do Ministério
Público. Nesse contexto, o EDM dá assessoria e acompanhamento jurídico para as vítimas,
em conjunto com a Coordenadoria. O produto do trabalho da assessoria jurídica é um relatório
ou laudo com parecer jurídico sobre o caso concreto, que é entregue ao Ministério Público,
para que este denuncie criminalmente o agressor ou promova outra medida que entender
adequada.
A metodologia usada na execução do EDM é de pesquisa-ação. A eleição desse trajeto
metodológico decorre do fato de que os membros do EDM atuam diretamente na realidade do
seu objeto de análise teórica, qual seja, violência doméstica e familiar. A opção pelo caminho
da Pesquisa-Ação se dá na busca da integração do ensino, da pesquisa e da extensão,
resignificando o papel da educação superior no sentido não só da universidade transmitir para
a sociedade o conhecimento nela produzido, mas também da assimilação de conhecimento
não erudito produzido pela experiência social e apropriado pela universidade para produção
de novos saberes.
O principal instrumento legal usado para a realização das atividades do projeto é a Lei
11.340/2006, Lei Maria da Penha. Destaca-se que a função do EDM é de prestar assessoria e
orientação jurídica, conforme políticas e prioridades definidas pela Coordenadoria, que é o
órgão capacitado para tanto.

3. LEI MARIA DA PENHA: OCOMBATE A VIOLÊNCIA DE GÊNERO

A Lei 11.340/2006 conhecida como Lei Maria da Penha foi sancionada em agosto de
2006. Ela é resultado de um longo caminho que deixou evidente que a violência contra as
mulheres demandava um novo processo jurídico que protegesse as mulheres, especialmente
nos casos de maior risco. O grande valor dessa Lei consiste no fato de que ela busca lidar com
oS fatores que desafiaram as intervenções em casos de violência doméstica ao longo dos anos.
Passou-se a lidar com a definição de violência contra a mulher com um status diferenciado
dos outros crimes; a facilitar a manutenção das queixas-crime e apresentação de denúncias; a
buscar garantir a segurança da mulher vítima através de medidas protetivas; promover a ação
de uma rede de serviços na prevenção e intervenção em casos de violência contra as mulheres;
e impedir as transações penais, priorizando ações de educação e de ressocialização dos
agressores.
Ao longo da história, as várias formas de violência doméstica, e em especial, a violência contra
a mulher, foram ignoradas. Essa invisibilidade pode ser entendida como um fenômeno de
legitimação da violência perpetrada por homens no espaço doméstico (Bandeira &Thurler,
2008; Araújo, 2003; Ravazzola, 1998). Atuando apenas até o limite das portas das casas, o
Estado, durante muito tempo, absteve-se de intervir nos conflitos domésticos.
O movimento feminista carregou essa bandeira, afirmando a ilicitude das várias formas
de agressão de homens contra mulheres. Esse processo promoveu a criação de condições para
que as mulheres pudessem denunciar a violência ao mesmo tempo em que sensibilizava o
Estado para que não fosse conivente com o patriarcado utilizado como contexto ideológico
justificador de ações violentas, ainda que apenas simbólicas. Sem esse esforço político,
histórico e jurídico seria impensável a definição de uma agressão perpetrada por um cônjuge
como um ato de violência passível de sanção. Na medida em que o movimento feminista
demandou do Estado tratamento específico da violência contra as mulheres e ações
direcionadas ao seu controle e erradicação, foram viabilizadas as condições para que
mulheres, individualmente, percebessem e denunciassem a violência que sofriam.
A omissão do Estado resultou em um risco especial para as mulheres vítimas de
maridos violentos (Bandeira &Thurler, 2008; Dias, 2007; Soares, 1999; Ravazzola, 1998).
Até a década de 70, na intimidade da casa, o homem seguia sendo incontestável em suas
atitudes. O espaço doméstico permaneceu como a configuração social básica do patriarcado e
era legitimado na esfera de ação pública do Estado. Assim, desde os primórdios o meio social
e familiar vem criando ambiente propício para a atual realidade.
No que toca à execução do Projeto, a eficácia da Lei Maria da Penha está na vasta gama
de medidas protetivas admitidas que visam evitar a ocorrência ou a perpetuação desse tipo de
violência e não dependem dos rigorismos probatórios do direito penal para seu deferimento.

4. ANÁLISE DO PERFIL DAS MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA EM


ARCOVERDE

O Município de Arcoverde está situado no estado de brasileiro de Pernambuco na


Microregião do Sertão do Moxotó, a 256 Km de distância capital, Recife, caracterizando-se
por clima semi-árido e pequena economia. A Cidade de Arcoverde é um pólo comercial,
educacional e de saúde na região e possui população de, aproximadamente, 72. 672 habitantes,
sendo 36.420 o número de habitantes do sexo feminino, segundo dados do Senso IBGE do
ano de 2010 (IBGE, 2010).
Apesar desse quantitativo populacional de mulheres, os casos de violência doméstica e
familiar reportados à autoridade policial (Boletim de ocorrência BO) são poucos, conforme
demonstrado no gráfico abaixo.

Observa-se aumento significativo de BOs comparando-se os registrados em março de


2016 e março de 2018. Essa constatação permite afirmar que, desde a instauração da
Coordenadorida da Mulher em Arcoverde até o presente, o número de mulheres vitimadas que
procuraram o Poder Público para denunciar a violência sofrida aumentou, o que,
provavelmente, decorre do trabalho de conscientização, acolhimento e empodaramento da
mulher local pela equipe da Coordenadoria e não do aumento das ocorrências de violência.
Entende-se que a mulher vitimada está mais consciente dos seus direitos e mais segura quanto
à efetiva proteção que recebe da Coordenadoria e, em razão disso, tem denunciado mais. Isso
se deve, provavelmente, às diversas atividades realizadas pela Coordenadoria nas áreas
urbana e rural com fins instrutivos, assim como maior a visibilidade da atuaçao do Poder
Público. Dizendo de outro modo, acredita-se que os casos de violência contra a mulher não
aumentaram nesse período, o que cresceu foi o número de casos denunciados, os quais antes
permaneciam em silêncio incentivando a persistência da violência.
Um trabalho de grande visibilidade que tanto encoraja mulheres a enfrentar a situação
de violência e romper tal ciclo, quanto previne a ação ilícita masculina foi a instituição da
Patrulha Maria da Penha da Polícia Militar, juntamente com a Coordenadoria. Os policiais
militares realizam, de forma integrada com a Coordenadoria, visitas rotineiras às vítmas que
estão agasalhadas por medidas protetivas previstas no artigo 18 e seguintes da Lei Maria da
penha. A presença ostensiva e frequente da Patrulha no local de moradia da vítima é fator
encorajador para esta prossiga com medidas legais de responsabilização do agressor e que,
com apoio da Coordenadoria, consiga romper o ciclo de violência. Ao mesmo tempo, a
providência é agente de prevençao especial de tais ilícitos, na medida em que intimida o
agressor diante da provável responsabilização judicial caso venha a reiterar práticas proibidas.
O gráfico a seguir estampa a distribuição geográfica das vítimas no Município por
bairro.
Com área territorial de 350,9 quilômetros quadrados, Arcoverde é considerada uma
cidade de médio porte, tendo inúmeros bairros e zona rural. O gráfico exibe o bairro São
Cristóvão como sendo o mais violento. Ele é o mais populoso e aglomera micro-bairros e
loteamentos, gerando um ambiente propício a vulnerabilidades sociais latente. Por outro lado,
os índices de violência no Bairro Centro, que pontua em segundo lugar no gráfico, comprovam
que a violência doméstica não está especificamente atrelada a localidades consideradas
periféricas e à população mais de baixa renda. Ao contrário, trata-se de mal presente em todas
as classes sociais.
Já o gráfico a seguir externa uma relação inversa entre o nível de escolaridade da mulher e
violência reportada.

Apesar de haver mulheres denunciantes com nível de escolaridade maior, a violência


continua atingindo com maior ênfase as mulheres de baixa escolaridade. As informações
relativas à denúncia e serviços de auxílio não alcançam mulheres de menor instrução com a
mesma eficácia com que atingem mulheres mais cultas, porém uma abordagem mais
humanizada e pessoal está rompendo barreiras.
O gráfico a seguir demonstra a repartição do atendimento tendo como critério raça e
etnia, o que é definido por auto-declaração da pessoa atendida.
Vê-se que a clientela da Coordenaria, logo do EDM, é majoritariamente composta de
mulheres pardas e negras. Durante todo o tempo de atuação não houve atendimento a nenhuma
mulher branca, o que é um dado importante de se destacar. De outro ponto de vista, é
interessante observar a percepção das equipes da Coordenadoria e do EDM que realizam o
atendimento direto das vítimas. Percebeu-se que a grande parte das mulheres que se declaram
pardas seriam consideradas negras se a indicação da raça fosse atribuição da equipe de
atendimento e não da própria vítima por autodeclaração. Esse aspecto merece estudo
específico para compreensão da autopersepção que essas mulheres têm de si e uma aparente
tendência a procurar se afastar da caracterização afro-descente.
O gráfico seguinte demonstra o perfil etário das mulheres assistidas.
Vê-se que 58% das usuárias do serviço tem entre vinte e quarenta anos de idade. São
mulheres jovens, sexualmente ativas imoladas na maioria por seus companheiros ou ex-
companheiros motivados por ciúme

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Reunindo-se os vários dados analisados, conclui-se persistir a cultura de subordinação


da mulher ao homem.Para enfrentar esta cultura machista e patriarcal são necessárias políticas
públicas transversais que atuem modificando a discriminação e a incompreensão sobre os
direitos das mulheres.
A apuração dos dados, tendo com base os arquivos dos casos das mulheres que
vivenciam situações de violência na cidade de Arcoverde atendidas pela Coordenadoria da
mulher diretamente e pelo Escritório de Defesa da Mulher direta ou indiretamente teve o
intuito de identificar o perfil das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar no
Município de Arcoverde, para que se possa articular e implementar políticas públicas
direcionadas.
Chegou-se a conclusão de que a violência nessa região atinge as mulheres em todas as esferas,
quer seja econômica, política e social, sem deixar de ressaltar que o grupo de maior
vulnerabilidade continua sendo as mulheres negras, jovens, de baixa escolaridade e residente
em áreas periféricas.
Modificar a cultura da subordinação de gênero requer ação conjugada e articulada
entre diversos setores da sociedade e do Poder Público. O EDM se propõe a colaborar nessa
empreitada.

REFERÊNCIAS

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Marcel de T.; LOURENÇO, Lelio M. Inter-relações da violência no sistema familiar:
estudo domiciliar em um bairro de baixa renda. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto
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STREY, Marlene Neves; DE AZAMBUJA, Mariana Porto Ruwer; JAEGER, Fernanda Pires.
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https://www.scielosp.org/article/icse/2007.v11n21/93-103/
VIOLÊNCIAS: Um novo habitus deve surgir101

Jônatan David Santos Pereira102

RESUMO

Este artigo busca refletir as circunstâncias socioculturais da violência contra as mulheres,


baseada no gênero. Para isto, foi necessário expor a concepção de violência simbólica e de
habitus em Pierre Bourdieu, a partir da obra A Dominação Masculina, assim como a
contribuição de outros autores que fundamentam tal perspectiva. No que tange a Lei Maria da
Penha (11.340/06), é dada certa atenção ao art. 7°, que trata das formas de violência doméstica
contra a mulher, assim como o art. 8°, que enfatiza a devida assistência atribuída às mulheres
em situação de agressão familiar. No trabalho, utilizou-se do método dedutivo, para tratar da
violência de gênero contra a mulher no seu caráter amplo até chegar a uma discussão sobre a
vítima de violência doméstica. Em última discussão, o artigo sugere a implantação de um novo
habitus, resolvendo assim a questão da desigualdade entre homens e mulheres, superando a
violência e possibilitando relações mais igualitárias entre os sujeitos sociais.

Palavras-chave: Gênero. Violência. Mulher. Habitus.

INTRODUÇÃO

Embora expressões como “violência de gênero”, “violência contra as mulheres”, e


“violência doméstica”, estejam intrinsecamente ligadas, não apresentam o mesmo significado.
A violência de gênero é mais ampla, sendo uma referência a todo tipo de ato, atrocidade, ação
ou violência contra os indivíduos, submetendo-os a sofrimento físico, sexual, psicológico e
moral, não apenas no âmbito familiar, mas também no ambiente público em razão no gênero.
Quando essas ações se voltam às mulheres, baseadas no gênero e, intrinsecamente, nas
diferenças sexuais, temos a violência contra as mulheres, que é um espelho da desigualdade
social, cultural, política e econômica fundamentado por ideologias sexistas, classistas e
racistas. Como ilustração desta situação, a Fundação Perseu Abramo (FPA), realizou uma
pesquisa, em que retrata que a cada cinco brasileiras (19%) declaram espontaneamente ter
sofrido algum tipo de violência por parte de algum homem, 16% relatam casos de violência
física, 2% citam alguma violência psíquica e 1% lembra o assédio sexual (NÚCLEO DE
OPINIÃO PÚBLICA – FPA, 2001).

101
GT 4 – Gênero(s) e Diversidade Sexual no Direito
102
Graduando do Bacharelado em Direito. Faculdade de Integração do Sertão – FIS.
Jonatan.david13@hotmail.com
Pesquisa realizada pelo Instituto Avon/IPSOS com 1800 entrevistas em 70 municípios
das cinco regiões do país revelou que entre os diversos tipos de violência doméstica sofridos
pela mulher, 80% dos entrevistados citaram violência física, como empurrões, tapas, socos e,
em menor caso (3%), até a morte. Ou seja, a violência física é a face mais visível do problema,
mas muitas outras formas foram apontadas pelos entrevistados. O levantamento "Percepções
sobre a violência doméstica contra a mulher no Brasil" revelou ainda que, na região Centro-
Oeste do país, o medo de ser morta é o principal motivo das mulheres agredidas não
abandonarem seus agressores. O motivo foi apontado em 21 % das entrevistas na região.
Portanto, é perceptível que a maioria dos casos de agressão contra as mulheres
acontece no âmbito doméstico/familiar e seu principal agressor é o próprio cônjuge. Assim,
no momento em que tais agressões passam a ser vivenciadas pelas mulheres dentro de seus
lares, retratamos a violência doméstica103, que na maioria das vezes se manifesta a partir de
seu caráter simbólico.
A violência, na sua perspectiva simbólica, dilui-se no cotidiano e é imposta a partir de
instrumentos de conhecimento e comunicação, centrados em hábitos culturais e históricos,
fazendo com que as mulheres não se percebam como vítimas da violência. Desta forma, elas
se mantêm em situação de subordinação a seus parceiros, a partir de preconceitos ou porque
não dizer estereótipos aplicáveis aos gêneros que são mantidos pelo meio social.
Se tais formas de violência são resultantes de processos culturais e históricos, no
Brasil, por exemplo, podemos perceber notoriamente tal abordagem. Antes mesmo da
República, sobre o pretexto de adultério, o assassinato de mulheres era legítimo. O Código
Criminal de 1830, estabelecia uma atenuação do homicídio praticado pelo marido quando
houvesse adultério, em outra perspectiva, o Código Comercial de 1850, art. 1°, permitia aos
maridos comercializar suas mulheres acima de 18 anos. Já o Código Civil de 1916, art. 6°,
inciso II, retratava que as mulheres casadas, em sociedade conjugal, eram incapazes
relativamente a certos atos da vida civil.
Podemos perceber indícios que a sociedade brasileira antes mesmo de instituir a
própria República, já estava acoplada com diversos valores culturais e patriarcais, que ao

103
Segundo o Relatório Anual Socioeconômico da Mulher (RASEAM), no ano de 2014, constata-se que o ciclo
da violência doméstica contra as mulheres é, em geral, um “continuum” que pode evoluir em um crescendo,
culminando com a morte das mulheres agredidas. Os dados relativos a mortes violentas entre a população
feminina podem estar, desta forma, relacionados a práticas violentas, sexistas e misóginas no âmbito doméstico
e familiar. A relação de causa e efeito entre violência doméstica e estatísticas de mortes violentas entre mulheres
mereceria, assim, uma análise científica aprofundada, a fim inclusive de se poder incidir nas políticas públicas
de enfrentamento à violência contra as mulheres.
passar dos anos foram se instalando na contemporaneidade, manifestados a partir do habitus,
características que:

[...] são inseparáveis das estruturas (habitudines, no sentido de Leibniz) que as


produzem e as reproduzem, tanto nos homens como nas mulheres, e em particular
de toda a estrutura das atividades técnico-rituais, que encontra seu fundamento
último na estrutura do mercado de bens simbólicos (BOURDIEU, 2007, p. 55).

Destarte, é muito difícil identificar as expressões da violência simbólica e propor uma


mudança das práticas sociais através das políticas públicas, porque como retrata Bourdieu, é
uma forma de violência invisível, principalmente para as vítimas. Porém, como confirma o
mesmo autor, é preciso lutar contra qualquer forma de dominação social e a violência contra
as mulheres se constitui numa delas, para tanto é necessário modificar o habitus e propor
alternativas que venham superar essas desigualdades, que se dá principalmente entre homens
e mulheres.

OBJETIVOS

Pretende-se discutir no presente artigo sobre a desigualdade entre gêneros, a cultura


da dominação e o tratamento diferenciado dado as mulheres no convívio familiar e social, a
partir de práticas e valores da cultura machista e patriarcal.
Assim, foi necessário trazer o conceito de violência simbólica de Bourdieu, tal como
seu conceito de habitus, assim como a contribuição de outros autores, para destacar que o
grupo que domina impõe sua cultura aos dominados a partir da composição de uma estrutura
social, e de um conjunto de comportamentos adotados pela sociedade.
O estudo aborda também, certo debate perante os artigos 7° e 8° da Lei Maria da Penha,
salientando as diversas formas de violência doméstica e as políticas públicas que devem ser
feitas em conjunto do âmbito municipal ao nacional, para discutir se as mesmas estão sendo
suficientes no combate ao problema da violência de gênero contra a mulher.

METODOLOGIA

Para melhor desenvolver a discussão, adotou-se o método de abordagem dedutivo,


partindo de argumentos gerais para os particulares, ou seja, do estudo da violência de gênero
no âmbito doméstico, de acordo com embasamento teórico encontrado em Bourdieu, para
tratar das frequentes vítimas de tal violência, as mulheres.
Tal tipo de pesquisa concede uma visão maleável ao estudo, apresentando caráter
geral, ou seja, uma visão do todo, estando contido no “universo de significados, aspirações,
valores, motivos, crenças e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das
relações dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de
variáveis” (MINAYO, 1997, p. 21). Assim “a compreensão das informações é feita de uma
forma mais global e inter-relacionada com fatores variados, privilegiando contextos”
(MEZZAROBA; MONTEIRO, 2009, p.110).

DISCUSSÃO TEÓRICA

Cultura das diferenças entre os sexos: uma questão de habitus

Para entendermos toda essa questão de violência de gênero contra as mulheres,


devemos nos aproximar do conceito de violência e, sobretudo, de gênero. A palavra violência
provém do latim “violentia” e significa “abuso de força”. A sociedade em geral apresenta total
repudio a qualquer tipo de violência, pois vivemos em uma cultura onde todas as formas de
sua manifestação são ruins e devem ser completamente banidas. Contudo, podemos perceber
que tal visão é acima de tudo ingênua, pois, parte do pressuposto de que vivemos em uma
sociedade harmônica, de conceitos holísticos104, tendo, portanto, pretensões complementares
e não contrárias.
O que podemos evidenciar na atualidade é que a violência, principalmente a que exige
certa subordinação e imposição de força, manifesta-se de forma invisível, tanto para os olhos
desatentos dos órgãos estatais, quanto para as vítimas das agressões, tal qual salientava
Bourdieu no seu conceito de violência simbólica:

Violência simbólica, violência suave, insensível, invisível a suas próprias


vítimas, que se exerce, essencialmente, pelas vias puramente simbólicas da
comunicação e do conhecimento ou, em última instância, do sentimento.
Essa relação social extraordinariamente ordinária oferece, também, uma
ocasião única de apreender a lógica da dominação, exercida em nome de um
princípio simbólico conhecido e reconhecido tanto pelo dominante quanto
pelo dominado [...] (BOURDIEU, 1999, p.7-8).

Torna-se perceptível, então, que tal força, ou, como Bourdieu intitula, “dominação”, é

104
Doutrina que privilegia os todos sociais (do grego holos, o todo), o todo na sua inteireza. Em termos gerais,
todas as perspectivas que consideram que o todo é superior à soma das respectivas parcelas. A expressão foi
consagrada por Louis Dumont, nos seus estudos sobre a Índia, ao considerar que o modelo holístico, onde o valor
de uma pessoa deriva da sua inserção na comunidade concebida como um todo, se opõe ao modelo individualista
da sociedade moderna, ocidental, onde o indivíduo constitui o valor supremo.
em suma imperceptível, e foi concentrando-se ao longo dos anos a partir de um processo de
cultura social, valorativo e tradicional conservadora, que se fixou como “verdade
naturalizada”.
Porquanto, é notável que a sociedade apresenta papel fundamental na manutenção
desta dominação, tal qual afirmava Hugo Assmann, a partir das concepções de René Girard105,
em sua obra, René Girard com Teólogos da Libertação: um diálogo sobre ídolos e
sacrifícios com base no conceito de desejo mimético:

O desejo mimético é um processo, um processo histórico, que é o processo da crise


sacrificial. O desejo mimético engendra a rivalidade mimética. Nós desejamos o
mesmo objeto. Vem daí um conflito. Este conflito é contagiante, quanto mais
pessoas desejam o mesmo objeto, tanto mais pessoas haverá envolvendo-se e
agitando-se no círculo da rivalidade. O desejo mimético funciona como um processo
de feedback. Eu imito o meu rival; vendo isso, vai desejar o objeto que, então, ambos
desejamos juntos; mas, portanto, ele vai imitar seu imitador. E o modelo vai tornar-
se o modelo do seu modelo (ASSMANN, 1991, p. 50).

Em outras palavras, o desejo mimético descrito por Girard conduz à reciprocidade da


violência, fazendo com que mais pessoas sejam contagiadas por tal desejo. Desta maneira,
chega-se a uma violência de todos contra todos, a partir daí, é a própria violência que dominará
o jogo das relações, a ponto de desaparecer o objeto que despertou a rivalidade. O desejo no
caso da violência contra as mulheres, é o de igualdade, e se todas as vítimas procuram por tal,
despertará no agressor a vontade de não dar o que já é seu, evitando possíveis rivalidades pelo
mesmo objeto.
Este tipo de abordagem, da não disseminação de igualdade, constitui-se desde a
chamada cultura machista ou patriarcal106. Tal visão patriarcal, no Brasil, teve sua origem no
período colonial, onde o homem tornou-se o senhor do poder e da palavra, ou seja, ele era
considerado o chefe da família e os outros integrantes seus subordinados, onde os mesmos

105
Segundo Girard, os comportamentos sociais são mimeticamente transmitidos. Aprendemos a desejar os
mesmos objetos desejados por alguém que tomamos como modelo. Assim, criamos uma área potencial de
conflito, já que estaremos envolvidos na disputa do mesmo objeto e, desse modo, o modelo se transformará em
rival. As crises miméticas são destrutivas porque envolvem toda a comunidade e não apenas indivíduos isolados.
A rivalidade mimética, geradora do desaparecimento das diferenças, que desemboca na violência, evidencia a
crise mimética, crise de indiferenciação que irrompe quando os papéis de sujeito e modelo são reduzidos aos de
rivais. Para que a mímesis se torne puramente antagonista, “o objeto precisa desaparecer”. Quando o objeto
desaparece, não há mais mediação entre os rivais: o conflito é iminente. Como a violência mimética pôde ser
controlada na ausência de formas de mediação que integram o que denominamos cultura? Através da descoberta
do mecanismo do bode expiatório: a violência coletiva é canalizada contra uma vítima expiatória.
106
Em Casa Grande & Senzala – 1994 [1933]- Gilberto Freyre apresenta a conhecida descrição da família
patriarcal colonial brasileira, uma família chefiada por um patriarca que detém poder sobre seus filhos e esposa
e também sobre agregados e escravos, constituindo uma família extensa. Esta imagem acabou sendo hegemônica
quanto a caracterização do que seria a família no período colonial brasileiro.
deviam obediência ao patriarca.
Já dizia Bourdieu que a “força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela
dispensa justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de
se anunciar em discursos que visem a legitimá-la” (BOURDIEU, 1999, p.18). Analisando tal
citação, é como se fosse atribuído a mulher mais uma vez o estigma de frágil e sensível nas
relações com seus companheiros.
Em outras palavras, Bourdieu entende tal perspectiva em uma relação dos dominantes
com os seus dominados, instaurando assim a violência simbólica. Simbólica, pois não se
encaixa no campo real, está mascarada entre as relações de poder que cada um possui:

Os dominados aplicam categorias do ponto de vista dos dominantes às relações de


dominação, fazendo-as assim ser vistas como naturais […] a violência simbólica se
institui por intermédio da adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao
dominante (e, portanto, à dominação), quando ele não dispõe, para pensá-la e para
se pensar, ou melhor, para pensar sua relação com ele, mais que de instrumentos de
conhecimento que ambos têm em comum e que, não sendo mais que a forma
incorporada da relação de dominação, fazem esta relação ser vista como natural
(BOURDIEU, 1999, p. 46).

Esta visão permite o entendimento de que a violência física não é suficiente para que
os dominantes demonstrem toda sua força e toda a sua ideologia. Assim, eles utilizam da sua
forma simbólica, ou seja, através de símbolos, instrumentos de comunicação e linguagem,
como meios para transmitirem suas ideologias. Desta maneira, essa relação entre o ser
dominador e o dominado, reflete diretamente nas relações afetivo-conjugais, como se o
homem fosse o ditador de regras e as mulheres jogassem a partir de seus ditames.
No entanto, é necessário explanar que está visão deturpada, não passa de uma ideia
mascarada de força ao ego masculino, pois os estereótipos implantados pela cultura patriarcal
de que “a mãe cuida” e o “pai provê”, foram sendo transformados ao longo dos anos. No
mundo moderno as mulheres que estão atreladas a famílias, desempenham tarefas mistas, ou
seja, tanto ajudam no lar, quanto no provimento deste lar. Quando não estão em grupos
familiares, buscam sua própria autonomia financeira e social, provendo seu próprio sustento
e escolhendo a melhor forma em fazê-lo. O que é um grande avanço nesta perspectiva.
Porém, ainda neste campo, a saber, do trabalho, é que está mais presente à questão da
desigualdade de gênero, pois as mulheres se evidenciam neste cenário como os seres
discriminados, principalmente pelas diferenças físicas.

A diferença biológica entre os sexos, isto é, entre o corpo masculino e o corpo


feminino, e, especificamente, a diferença anatômica entre os órgãos sexuais, podem
assim ser vista como justificativa natural da diferença socialmente construída entre
os gêneros e, principalmente, da divisão do trabalho. (BOURDIEU, 1999, p. 20).

Tal orientação pode ser percebida no conceito de habitus dado por Bourdieu. O
habitus, seria a forma como eu enxergo o mundo, como eu me vejo no mundo, assim, em uma
visão patriarcal, teríamos a mulher como submissa e o homem como sendo seu superior, a
partir de uma repetição de comportamentos coletivos, gerando a eternização e a naturalização
destas ações.
Nesta perspectiva, a dominação masculina estaria sendo praticada, como uma
“manipulação inconsciente do corpo”. Destarte, o corpo seria a manifestação da dominação,
pois é partir dele que podemos ver o habitus ganhando forma, ou seja, o modo de andar, falar,
agir, ficar com vergonha ou até mesmo cruzar as pernas de acordo com as adaptações e
influências ao ambiente em que estamos inseridos.
Ampliando a discussão, com foco na sociedade brasileira, podemos perceber a
influência do habitus, no que se refere às questões trabalhistas. Pois, existem profissões
especificamente idealizadas para homens e outras indicadas especialmente para as mulheres,
o que aprofunda ainda mais a dominação masculina e, portanto, a diferença entre os gêneros.
Esta cultura da diferença de gênero arrastou determinada força ao longo da história da
humanidade, através justamente da separação de papéis sociais determinados. É uma espécie
de segunda pele, revestida por regras e estigmas, como que ao homem compete ser forte, viril,
decidido e líder, indicando, ao contrário, a incapacidade da mulher para exercer os mesmos
atributos, inseridos ao gênero masculino.
Mas afinal, o que vêm a ser gênero107? Bourdieu declara que gênero é um conceito
relacional e, portanto, faz parte de uma estrutura de dominação simbólica. O gênero assim
sendo, são figuras antônimas vivendo em uma relação, porém, não qualquer relação, e sim,
relações de poder, onde “o princípio masculino é tomado como medida de todas as coisas”
(BORDIEU, 1999, p. 23).
Esta característica de um poder, ou no caso da violência contra as mulheres, uma
dominação, relaciona-se com a posição de submissão da mulher ao homem que já se tornou
natural na modernidade, justamente pela a eternização de hábitos culturais. A mulher então,

107
Joan Wallach Scott, famosa historiadora estadunidense escreveu uma importante definição a respeito do
gênero. Para ela as relações entre os sexos são construídas no meio social, porém, isto não é tudo, pois não diz
como tais relações são construídas e porque são construídas de forma desigual, dando privilégio ao sujeito
masculino. Assim, ela conclui que: “O núcleo essencial da definição repousa sobre a relação fundamental entre
duas proposições: o gênero é um elemento constitutivo das relações sociais, baseadas nas diferenças percebidas
entre os sexos e mais, o gênero é uma forma primeira de dar significado às relações de poder. ” (SCOTT, 1994,
p. 13).
acaba não reconhecendo sua real posição e não desenvolve seu senso crítico diante da situação
de desvalorização. A respeito desta dominação Bourdieu enfatiza que:

O efeito da dominação simbólica (seja ela de etnia, de gênero, de cultura, de língua


etc.) se exerce não na lógica pura das consciências cognoscentes, mas através dos
esquemas de percepção, de avaliação e de ação que são constitutivos dos habitus e
que fundamentam, aquém das decisões da consciência e dos controles da vontade,
uma relação de conhecimento profundamente obscura a ela mesma. Assim, a lógica
paradoxal da dominação masculina e da submissão feminina, que se pode dizer ser,
ao mesmo tempo e sem contradição, espontânea e extorquida, só pode ser
compreendida se nos mantivermos atentos aos efeitos duradouros que a ordem social
exerce sobre as mulheres (e os homens), ou seja, às disposições espontaneamente
harmonizadas com esta ordem que as impõe. (BOURDIEU, 1999, p. 49-50)

Conquanto, o primeiro passo para a efetivação dos direitos das mulheres, é o


reconhecimento da sua atual posição nas relações com os homens, o que ainda não é suficiente,
mas possibilita a porta de entrada na superação.
Este reconhecimento por parte das mulheres, poderia acabar com piadas do tipo
“mulher no volante, perigo constante”, pois, neste sentido, estamos lidando com um
preconceito intrinsicamente cultural e com viés estritamente de gênero, refletindo mais uma
vez a concepção machista e a subordinação da mulher ao homem, evidenciando notoriamente,
a própria noção de discriminação de gênero, tal qual afirmou Sérgio Ricardo de Souza, em
seu livro, Comentários à lei de combate à violência contra a mulher (2009).
Sérgio Ricardo também retrata que este tipo de preconceito está sendo apontado como
uma das principais causas de violência doméstica, pois “ [...] o homem se sente ameaçado por
posturas de independência da mulher, as quais são interpretadas pelo agressor como
insubordinação ou desprestígios, acionando nele o mecanismo de reação de resposta violenta”
(SOUZA, 2009, p. 38).
Mas de que modo desigualdade de gênero e violência se relacionam? Como foi dito,
para que o dominador exerça toda a sua forma de coerção, é preciso que ele se utilize de
elementos ou instrumentos de dominação que se expressam a partir do habitus, e a violência
é uma destas formas, garantindo toda a subordinação dos dominados pelos dominadores.
Importa dizer no tangente à violência contra a mulher em âmbito doméstico, ou como
conhecida, a violência doméstica, que esta é uma questão que merece o máximo de atenção,
uma vez que este tipo de transgressão é um problema de saúde pública e rompe com todos os
preceitos de lar enquanto lugar calmo e seguro, pois a ocorrência dessa violência se dá em
âmbito familiar, em sua própria casa. A interferência estatal em sua amplitude e a sociedade
como julgadora de tal ato é extremamente fundamental, uma vez que, o quadro de violência
perpassa uma linha tênue até chegar no que conhecemos como feminicídio. O ditado machista
e longe da lógica de proteção à família “em briga de marido e mulher não se mete a colher”,
fomenta a realidade brasileira de base conservadora e ainda falocêntrica, e por óbvio recai
sobre uma ótica legitimadora de tais comportamentos, uma vez que, a mulher encontra-se
vulnerável ao sistema patriarcal familiar. Daí a necessidade de intervenção imediata. Isso não
importa numa invasão e rompimento aos preceitos familiares, diga-se, o Estado não tirará a
liberdade diretiva dos indivíduos ao constituírem suas respectivas famílias, mas, não se pode
deixar que esses quadros violentos transgridam esta instituição.
A desigualdade entre homens e mulheres é visivelmente explícita e se sustenta a partir
de uma estrutura social ditame dos comportamentos e relações sociais. Uma espécie de
hierarquia criada entre homens e mulheres, sendo esta última submissa ao primeiro. Quando
se afirmar essa hierarquia social entre os gêneros, reafirmamos a existência de um sistema
simbólico, onde os homens são superiores às mulheres. Lembrando que o aspecto de
mensuração é o biológico. Senão vejamos:

Esse sistema de ideias pode ser denominado patriarcado e cria relações de hierarquia
entre seres socialmente diferentes, transformando as relações sociais em relações
desiguais e hierarquizadas. As diferenças sexuais são utilizadas como forma de criar
e manter a mulher em uma posição de submissão. (SAFFIOTI, 2004).

O dispositivo legal que prevê e funciona como mecanismo de defesa à mulher é a Lei
Maria da Penha (Lei nº 11.340/06). Essa lei, no seu texto, aborda e conceitua as diversas
formas de violências, dentre as quais encontra-se a violência doméstica. Senão, vejamos:

Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a
mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão,
sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.

Perceba que esse conceito é amplo e discorre sobre os resultados em função dessa
violência, que, ocorrendo, ao indivíduo que praticou o ato lhe será aplicada as sanções aqui
previstas.
Adentrando no contexto histórico da “conquista” por uma intervenção estatal até que
se criassem políticas públicas eficazes no combate à violência de gênero, em especifico, a
violência em âmbito doméstico, é perceptível uma longa e dolorosa jornada, uma vez que foi
necessário a morte de inúmeras mulheres. Talvez esse seja o grande problema no meio social,
tendo em vista que, é necessário que o resultado aconteça para que se investigue a causa e por
fim, a reprima. É uma forma repressiva ao invés de uma preventiva. No entanto, percebemos
um ativismo nas lutas feministas na busca por tais direitos. Parece paradoxal ter que lutar para
não morrer, ainda mais com todos esses direitos legitimados e previstos na Constituição
Federal, mas, é um fato ainda muito concreto diante do sistema estabelecido aqui.
Somente a partir da década de oitenta é que podemos mensurar algumas práxis que
levaram à conquista pelos direitos repressivos em relação à violência doméstica (a
Conferência para Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra Mulher – CEDAW
(1979)108 e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a
Mulher – Convenção de Belém do Pará, 1994)109, mas levaram-se anos até que de fato se
consolidasse uma política pública capaz de punir o agressor (o homem) e proteger a vítima (a
mulher). Essa ação punitiva estatal ainda é falha e necessita de ajustes.
Destarte, é interessante que se tenha em mente o conceito de violência doméstica como
uma espécie da violência de gênero, sendo o proposto pelo artigo e que busca exatamente essa
distinção. Então, tem-se a violência doméstica como uma limitação, especificação do que
temos com mais amplitude ou gênero, a violência de gênero.
A violência de gênero alcança uma amplitude infinda de conceitos acerca das
transgressões e violações ao corpo feminino. A espécie que deriva desse conceito é a violência
doméstica, que aqui, é objeto de análise. Cabe essa diferenciação esmiuçada, tendo em vista,
ainda, uma confusão terminológica em trabalhos de natureza acadêmica que abordam sobre
tais formas de violência, sem ao menos, fazer uma diferenciação coerente.
No entanto, também merece uma atenção o conceito de violência de gênero, uma vez
que engloba as espécies de violências e muitas vezes é confundido com a própria violência
doméstica.
Dentro da sociedade, existe uma diferenciação sobre os papéis exercidos pelo
binarismo sexista, ou seja, pelo masculino e pelo feminino. O sistema que norteia as relações
socias e articula de forma sistêmica a hierarquia entre ambos é o patriarcado. Quando dissemos
que os homens são biologicamente e socialmente superiores as mulheres, afirmamos e
concordamos com uma violência simbólica estabelecida de um gênero para o outro,

108
A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, também
chamada CEDAW (da sigla em inglês) ou Convenção da Mulher, é o primeiro tratado internacional que dispõe
amplamente sobre os direitos humanos das mulheres. São duas as frentes propostas: promover os direitos da
mulher na busca da igualdade de gênero e reprimir quaisquer discriminações contra as mulheres nos Estados-
parte.
109
A Convenção de Belém do Pará, como ficou conhecida a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra Mulher, adotada na referida cidade, em 9 de junho de 1994, conceitua a violência
contra as mulheres, reconhecendo-a como uma violação aos direitos humanos, e estabelece deveres aos Estados
signatários, com o propósito de criar condições reais de rompimento com o ciclo de violência identificado contra
mulheres em escala mundial.
configurando, assim, a chamada de violência de gênero, onde homens se pautam na
reprodução dos comportamentos de uma sociedade heterossexista e violam o corpo feminino
ou as mulheres.
Essa violência se faz presente em todo o país, mas merece uma atenção redobrada
quando falamos de violência de gênero e violência doméstica em algumas partes do país, onde
os índices são alarmantes e recorrentes. Quer um exemplo? Somente em Serra Talhada, em
menos de uma semana, ocorreram dois crimes de feminicídio, tais crimes foram reportados
pelo jornal local, o Farol de Notícias110.
Pegando esse fio, abre-se para uma discussão que merece um respaldo ainda maior,
pois trata-se de políticas de combate à violência em âmbito doméstico. A conceituação da
casa/lar enquanto “lugar seguro”, âmbito privado, liberdade e dentre outros conceitos
definidores reafirmam os dois casos de feminicídio que ocorreram em Serra Talhada em
menos de uma semana. É notória a necessidade de alguma forma de controle e combate a essa
transgressão do instituto familiar, ou ao próprio indivíduo, seu corpo, seu patrimônio, seu
psicológico, sua integridade na mais ampla forma.
É entendível que o Estado não pode estar dentro da casa das pessoas 24 (vinte e quatro)
horas, a polícia não tem controle sobre o momento de consumação do crime, por exemplo. A
lei Maria da Penha (lei nº 11.340/06) é uma política pública eficaz, mas como qualquer outra
política pública, tem suas falhas. Um exemplo claro é o fato do estabelecimento de medidas
protetivas, o agressor não pode ultrapassar 200 (duzentos) metros da vítima. Acontece que o
Estado não tem como fiscalizar isso como deveria. O agressor quebra essa medida protetiva e
põe fim à vida da mulher. Perceba o problema em criar políticas públicas sem uma fiscalização
efetiva.
Portanto, destacaremos algumas políticas públicas significativas no combate à
violência de gênero, violência doméstica. Sendo importante destacar o papel das lutas das

110
Mulher é assassinada pelo esposo em Serra Talhada - http://faroldenoticias.com.br/com-uma-faca-de-
cozinha-mulher-e-brutalmente-assassinada-pelo-esposo-nesta-5a-em-st/.
Homem mata ex-esposa em ST e corta os pulsos - http://faroldenoticias.com.br/homem-mata-esposa-em-st-
fere-cunhado-com-golpes-de-faca-e-corta-os-pulsos/.
mulheres, principalmente, nas décadas de 70 (setenta) e 80 (oitenta). Toda conquista de
direitos advém de muita luta, movimentos sociais, revoluções. Não foi diferente nesse caso.
No Brasil, essas lutas de base feministas levaram à criação em São Paulo, Belo
Horizonte e Rio de Janeiro dos SOS Mulher. Esses órgãos eram responsáveis pela prestação
de serviços jurídicos, abrigos e outras formas de conscientização social junto às sobreviventes
de violência em âmbito doméstico. Com a redemocratização na década de 80 (oitenta), houve
o primeiro debate entre Estado brasileiro e os movimentos feministas. O resultado está logo
ali. Em função desse dialogo, criou-se a primeira Delegacia de Defesa da Mulher (1985) na
cidade de São Paulo. Importante, essa Delegacia foi a primeira política pública voltada para a
mulher, propriamente, a violência de gênero.
Sem dúvida a Constituição brasileira de 1988 foi um grande avanço na alteração dos
moldes sociais, não falamos no sentido de previsões acerca de políticas de combate à violência
de gênero, mas sim de uma revolução na sociedade ao estabelecer a igualdade de gênero. Isso
sobrepõe qualquer padrão heterossexista e sistema patriarcal. É por óbvio que parte dessas
previsões são formais e perpassam a realidade.

REFERÊNCIAS

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ídolos e sacrifícios. Petrópolis: Vozes; Piracicaba: UNIMEP, 1991, p. 50.

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<http://www.compromissoeatitude.org.br/convencao-sobre-a-eliminacao-de-todas-as-
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Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher - Convenção de Belém do Pará, 1994.
Disponível em: <http://www.compromissoeatitude.org.br/convencao-interamericana-para-
prevenir-punir-e-erradicar-a-violencia-contra-a-mulher-convencao-de-belem-do-para-
1994>. Disponível em 10 set. 2018.
JUDITH BUTLER NUA: INTERSECÇÕES ENTRE PERFORMATIVIDADE,
CORPOREIDADE E VIDAS PRECÁRIAS111

Maria Vitória Lima de Melo112


Fernando da Silva Cardoso113

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo refletir acerca das interseções existentes entre três noções
apresentadas pela filósofa Judith Butler, são elas: performatividade, corporeidade e ideia sobre
o que ela nomeia de vidas precárias. É importante salientar que tanto a filósofa, no momento
da elaboração das categorias, quanto o presente artigo, procuram relacionar a temática com as
questões de gênero, de forma ampla. As reflexões apresentadas neste estudo buscam explicitar
a importância desses construtos filosóficos atualmente, problematizando como essas
categorias teóricas apresentam-se nas dinâmicas sociais. O estudo é de natureza filosófica, ou
seja, seu objetivo principal é, tão-somente, problematizar os dilemas e questões de fundo que
emergem neste campo. A leitura do tema apresenta-se importante no que tange ao seu aspecto
desestabilizador, característica base do pensamento da autora. Assim, o assunto tratado nesta
pesquisa fornece a oportunidade de desconstrução de ideias cristalizadas social e
academicamente. Ainda, através da reflexão de alguns parâmetros sociais cristalizadores, a
filósofa contribui para pensar os temas em debate à luz de uma perspectiva crítica e pós-
estruturalista.

Palavras-chave: Performatividade. Corporeidade. Vidas precárias. Gênero. Discurso.

INTRODUÇÃO

As sociedades trazem consigo uma série de construções sociais que ajudam a


consolidar questões problemáticas no seio da coletividade. Acerca disso, é de fundamental
importância dialogar sobre alguns desses arquétipos e expor como ocorre a concretização das
problemáticas, apresentando também como essas diversas concepções estão envolvidas em
uma rede de conexão social.
Os arquétipos coletivos padronizam os indivíduos e acabam por ‘ocultar’ aqueles cujos
fatores de vida o desviam do parâmetro indicado. Desse modo, alguns pesquisadores têm se
debruçado sobre as dinâmicas das construções sociais, para entender como e porque se

111
GT - Gênero e Diversidade Sexual no Direito
112
Graduanda em Direito - Universidade de Pernambuco – Campus Arcoverde. Pesquisadora do Projeto
“Pesquisa e Produção do Conhecimento sobre Gênero e Direito no Brasil” - UPE.
113
Doutorando em Direito - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2016). Mestre em Direitos
Humanos - Universidade Federal de Pernambuco (2015). Especialista em Direitos Humanos - Universidade
Federal de Campina Grande (2015). Bacharel em Direito - Centro Universitário do Vale do Ipojuca (2012).
Professor Assistente, Subcoordenador de Pesquisa e Extensão e membro do Núcleo Docente Estruturante do
Curso de Direito da Universidade de Pernambuco - Campus Arcoverde.
perpetuam, interferindo no convívio entre os sujeitos.
Entre os pesquisadores que buscam entender esses processos sociais, está Judith Butler
(2003). Sua literatura traz à tona três conceitos que serão abordados nesse trabalho:
corporeidade, performatividade e vidas precárias. Aqui, objetiva-se refletir acerca de quais
são as interseções existentes entre estes conceitos dentro da teoria butleriana.
Judith Butler (2003) tem como característica forte a desestabilização do sujeito. Dessa
maneira, ela o insere em um discurso de poder, onde são formadas as identidades por meio da
história. A filósofa é conhecida pela quebra de estabilidade que causam seus questionamentos,
refletindo paulatinamente acerca do que é construído socialmente mediante o sujeito e a
maneira como estas construções se naturalizam.
A desestabilização que a filósofa propõe abrange também a discussão sobre gênero.
Segundo ela, não há relação necessária entre gênero e corpo, ou seja, gênero não é natural.
Ainda, não é o sexo biológico que determina quem é o sujeito, mas sim a maneira como se
performa a sua existência dentro das relações sociais. Entretanto, ainda segundo ela, a ideia
de que o gênero é algo natural acaba se cristalizando dentro da sociedade. Dentro dessa
discussão sobre gênero, interessa-se saber o que a autora define como sendo performatividade,
corporeidade e vidas precárias.
Tendo em vista que toda a construção teórica butleriana que será apresentada neste
artigo estará firmada nas três premissas já mencionadas, pergunta-se: quais são as interseções
existentes entre os conceitos de performatividade, vidas precárias e corporeidade em Judith
Butler? Dessa forma, será entendido como a filósofa constrói suas proposições em torno
dessas três concepções.
O presente trabalho é uma revisão bibliográfica acerca dos três conceitos butlerianos
já citados. Dessa maneira, para que o esclarecimento acerca das ideias apresentadas seja
maior, o artigo trará um ponto para a discussão de cada concepção apresentada. Ao fim, será
formulada a interseção existente entre os três conceitos, e como esta ligação se dá e afeta as
relações existentes dentro do contexto social.
As construções sociais circundam as três concepções que serão apresentadas no artigo.
Em primeiro ponto, serão trazidos os atos performativos, como uma maneira de entender de
que forma se dão esses arquétipos acerca das performances sociais. Assim, o artigo trará o
conceito de performatividade dentro do âmbito de gênero, apresentando como se dão esses
arquétipos dentro das dinâmicas coletivas.
Frente ao processo de performatividade, encontram-se corpos passivos ao discurso
performativo. Desse modo, surge o conceito de corpos na teoria de Butler. Dessa maneira,
para que se construam as identidades baseadas no ideal performativo, o corpo precisa manter-
se apático a todo esse processo. Assim, o conceito de corporeidade estará presente como uma
das etapas do pensamento performativo de Butler, como uma forma de melhor compreensão.
Após a interação entre corpo e discurso, padrões passam a existir. Como decorrência,
as vidas que não se enquadram nesses moldes, perdem sua importância, tornando-se precárias.
O conceito de vidas precárias é trazido para explicitar porque algumas vidas não importam.
Desse modo, esse trabalho pretende apresentar como se dá essa precariedade e dialogá-la com
seus reflexos dentro das dinâmicas sociais.
A pesquisa apresentada utilizará o método dedutivo (MARCONI; LAKATOS, 2010),
de abordagem qualitativa (MARCONI; LAKATOS, 2010). Trata-se de uma revisão de
literatura (MARCONI; LAKATOS, 2010), instrumentaliza a partir de uma pesquisa de
natureza bibliográfica e descritiva (MARCONI; LAKATOS, 2010). Assim, a pesquisa
apresentará uma problematização estritamente teórica, seguida de uma descrição das leituras
de textos, artigos e livros que envolvem o pensamento da autora.
Desse modo, os reflexos das três concepções butlerianas serão apresentados como uma
maneira de ressaltar a importância destas dentro das dinâmicas político-sociais. Isso decorre
das diversas formas de discriminação que se apresentam na coletividade, onde as massas são
diariamente instituídas nos discursos performativos, o que acarreta a precariedade de diversos
corpos.

1 PERFORMATIVIDADE: o sentido do humano na pós-modernidade?

O conceito de performatividade em Butler está centrado em uma questão: os atos


sociais performativos acabam por se cristalizar dentro das dinâmicas coletivas. Por exemplo,
na discussão sobre gênero, este passa a ser algo natural, o que para Butler (2003) não o é.
Assim, a característica desestabilizadora da filósofa objetiva desconstruir a premissa de que o
gênero seja natural e o coloca como resultado de um discurso construído por meio da história
(ENNES; MARCON, 2014).
Ao afirmar que a naturalização do gênero ocorre por meio de um discurso, é
fundamental compreender dois aspectos: como ocorre e porque ele existe. Claro, a
compreensão dessas reflexões será apresentada a partir do ponto de vista teórico de Judith
Butler. No entanto, em primeiro momento, é necessário entender qual a base teórica utilizada
pela filósofa para que se chegue à conclusão apresentada.
Para estabelecer a premissa da naturalização do gênero, Butler se baseia no modelo
foucaultiano de inscrição, como estabelece Salih:

Apropriando-se do modelo foucaultiano de inscrição, Butler estabelece toda


identidade de gênero como uma forma de paródia produzida nas relações de poder.
A lei é incorporada e, como consequência, são produzidos corpos que significam
essa lei sobre o corpo e através do corpo. Logo, os gêneros são apenas efeitos de
verdade (apud ROCHA, 2014, p. 512).

Mostra-se, portanto, que os construtos de identidades estão marcados por uma política
que segue determinadas estratégias com o fim de estabelecer-se e naturalizar estas identidades
formuladas (ENNES; MARCON, 2014).
Ao determinar qual a base utilizada pela autora, define-se agora como ocorre o
processo performativo dentro das dinâmicas sociais. Segundo Butler, os atos performativos
ocorrem utilizando como meio os corpos. Assim, o corpo é despido de suas vontades, e é
apresentando através do discurso. O que acontece, nesse regime, é uma negação do “eu”, para
que se dê lugar ao “outro”, como afirma a autora em Problemas de Gênero:

Os valores culturais surgem como resultado de uma inscrição no corpo, o qual é


compreendido como um meio, uma página em branco; entretanto, para que essa
inscrição confira um sentido, o próprio meio tem de ser destruído — isto é, tem que
ter seu valor inteiramente transposto para um domínio sublimado de valores
(BUTLER, 2003, p.187).

Dessa maneira, o “eu” é jogado para fora, colocando no lugar deste o discurso
implantado através da linguagem (PAULINELLI, 2014). Assim, as identidades individuais
são ocultadas, dando lugar ao que se pode chamar de “outro”. Esse processo de repulsa do
“eu” individual para o “eu” coletivo gera, como resultado, a naturalização daquilo que é
implantado pelos discursos de poder. No âmbito de gênero, este acaba por ser, também,
naturalizado.
Na exposição acerca da negação do “eu” individual, Butler utiliza os termos “eu
interno” e “eu externo”. Dessa forma, a filósofa explica que o primeiro corresponderia às
vontades internas do sujeito, já o “externo” seriam os atos que resultariam do discurso ao qual
o indivíduo está submetido. Nesse processo, segundo ela, o “eu interno” é despido de suas
vontades e dá lugar ao externo, este passando a agir da maneira como lhe é ditada pelo
discurso.
Com a naturalização do gênero, surge mais uma questão: por que os sujeitos estão
propensos a substituir seu “eu” individual pelo coletivo? A aparência de que o gênero é algo
natural (MISKOLCI; PELÚCIO, 2007), faz com que os sujeitos enxerguem este como uma
“humanização”. Ou seja, para se estar dentro do natural ou aquilo que é “humanamente
aceitável”, é preciso que se esteja encaixado em um gênero aceitado e instaurado pelo poder
vigente.
Segundo Butler, o que acontece é que, como o gênero não é algo natural, sua
naturalização ocorre por meio da prática reiterada de ações. Diante disso, a filósofa traz para
o debate a imagem do drag. De acordo com ela, “ao imitar o gênero, o drag revela
implicitamente a estrutura imitativa do próprio gênero – assim como sua contingência”
(BUTLER, 2003). A ação do drag “zomba” da ideia de que a naturalização do gênero é algo
original, e para além, expõe a visão de que o gênero não é nada além de um conjunto de atos
performativos.
A partir da análise de como ocorre o processo performativo (MISKOLCI; PELÚCIO,
2007) e sua naturalização, é fundamental entender o ou os motivos pelos quais existem. Em
primeira análise, tem-se um discurso que, como a própria filósofa aponta, age
estrategicamente. As ações do discurso têm como finalidade manter a estabilidade das
identidades criadas por ele. O mesmo poder que cria as identidades, as protege.
Em se tratando de proteção, percebe-se que esta só está presente quando se trata das
identidades aceitadas e naturalizadas dentro do ambiente social. Dessa forma, estabelece-se
uma hegemonia identitária, onde há uma série de práticas reiteradas que consolidam a
naturalização dos papéis imposto para cada sujeito. Além disso, os sujeitos que não se
enquadram nos padrões hegemônicos, acabam sendo punidos:

Portanto, como estratégia de sobrevivência em sistemas compulsórios, o gênero é


uma performance com consequências claramente punitivas. Os gêneros distintos
são parte do que “humaniza” os indivíduos na cultura contemporânea; de
fato, habitualmente punimos os que não desempenham corretamente o seu gênero.
Os vários atos de gênero criam a ideia de gênero, e sem esses atos,
não haveria gênero algum, pois não há nenhuma “essência” que o gênero expresse
ou exteriorize (BUTLER, 2003, p.199).

Assim, o conceito de performatividade em Judith Butler encontra-se cercado por


aspectos os quais estão intimamente ligados à cultura hegemônica presente nas sociedades. É
mediante estas ações culturais que se constroem os atos performativos, naturalizando os
gêneros, inscrevendo significados aos corpos e, como resultado desse processo naturalizador,
punindo os sujeitos ou classes que não se enquadram nas hegemonias identitárias construídas
ao longo da história.

2 A PROJEÇÃO DO ‘CORPO’ E OUTROS CONSTRUTOS SOCIAIS


Como já citado no tópico sobre performatividade, percebe-se que os corpos são os
principais meios utilizados pelo discurso para que se construam os atos performativos. Assim,
estes meios, apresentam-se despidos de suas vontades. Dessa forma, é necessário analisar de
que maneira o corpo se enquadra dentro desse processo (PINTO, 2002) e como seu papel é
exercido dentro desses arquétipos sociais.
O corpo, dentro do processo performativo (PINTO, 2002), exerce um papel passivo.
Assim, para Butler, os corpos sofrem o processo de inscrição cultural. O corpo, como meio, é
uma superfície pré-discursiva, anterior ao discurso. No entanto, para que este corpo seja
exposto socialmente, necessita de uma inscrição cultural. Ou seja, a prática discursiva diante
do corpo é que torna possível a ‘humanização’ desta superfície (BORBA, 2014).
Ainda, neste cenário de inscrição cultural, a tarefa do discurso é apresentar um corpo
totalmente impresso pela história. Dessa forma, o corpo (meio passivo), é exposto não com
sua identidade própria, mas com uma performance identitária criada no seio da cultura. Ainda,
pode-se chamar de um corpo totalmente marcado pelas inscrições histórico-culturais.
Dessa maneira, volta-se para o debate a teoria foucaultiana de inscrição (SILVEIRA;
FURLAN, 2003), o qual a própria filósofa faz referência, afirmando que “mesmo no ensaio
de Foucault sobre o tema da genealogia, o corpo é apresentado como superfície e cenário de
uma inscrição cultural” (BUTLER, 2003, p.186). Ademais, chega-se à conclusão de que
a filósofa apresenta o corpo como uma superfície passiva (BORBA, 2014), inscrita pelos
acontecimentos e um meio pelo qual se torna possível o discurso.
Dentro desse debate do corpo como concretização do discurso, Butler traz a ideia do
‘eu interno’ e ‘eu externo’, sendo o corpo uma superfície delimitadora, um meio, que separa
os dois meios. Assim, é apresentada a dualidade de identidades. A interna, sendo esta própria
do indivíduo e que acaba sendo despida de suas vontades diante das inscrições culturais, e a
externa apresenta-se como sendo as próprias inscrições aplicadas aos sujeitos.
Nessa discussão acerca da dualidade identitária, nascem as ações que dão origem às
inscrições socioculturais (SILVEIRA; FURLAN, 2003). No entanto, para que isto seja
possível, é necessário que ocorra o que Butler chamará de ‘destruição corporal’, onde o ‘eu
interno’ é destruído, momento no qual fica explícito a situação do ‘corpo’ como despido de
vontades:

Essa destruição corporal é necessária para produzir o sujeito falante e suas


significações. Trata-se de um corpo descrito pela linguagem da superfície e da força,
enfraquecido por um “drama único” de dominação, inscrição e criação (BUTLER,
2003, p.187).

A citação trazida por Butler em sua obra Problemas de Gênero (2003) deixa explícita
a ideia já abordada de que o corpo só é exposto, humanizado e socialmente aceito a partir do
momento que ele se apresenta mediante o discurso performativo, o que também poderia ser
visto como inscrições culturais.
É importante ressaltar que a destruição do meio ‘corpo’ ocorre como uma maneira de
substituição. A identidade do indivíduo é destruída e dá lugar às inscrições culturais. Dessa
forma, para que exista a destruição desse meio, é necessário um processo de negação do
indivíduo. Assim, o ‘corpo abjeto’ é repelido pelo sujeito:

O “abjeto” designa aquilo que foi expelido do corpo, descartado como


excremento, tornado literalmente “Outro”. Parece uma expulsão
de elementos estranhos, mas é precisamente através dessa expulsão que o
estranho se estabelece. A construção do “náo eu” como abjeto estabelece as
fronteiras do corpo, que são também os primeiros contornos do sujeito
(BUTLER, 2003, p.190).

Chega-se à conclusão, portanto, que o procedimento performativo só se concretiza a


partir do momento em que o indivíduo nega sua própria identidade (SILVA; LIMA, 2017). O
‘eu’ passa a ser um sujeito estranho à mim mesmo e a minha identidade passa a não mais fazer
parte do meu corpo, pois é expelida e, com isso, torna-se o ‘outro’. Dentro dessa
perspectiva, Butler corrobora: “Eu expilo a mim mesma, cuspo-me fora, torno-me eu mesma
abjeta no próprio movimento através do qual “eu” afirmo me estabelecer” (BUTLER, 2003,
p. 191).
Na citação do parágrafo acima, a filósofa faz referência a um ‘movimento’. Trazendo
de volta a perspectiva de que com o processo performativo o sujeito passa somente a
reproduzir as inscrições a ele impostas, e que além disso tais inscrições são derivadas de um
discurso que permeia o seio social, percebe-se que o ‘movimento’ citado por Butler (2003) é
o hegemônico que está presente na sociedade.
Além do termo ‘movimento’, a fala da filósofa traz o termo ‘eu’ entre aspas. Desse
modo, inferindo acerca da relação entre o ‘eu’ e o ‘outro’, é perceptível que Butler (2003) traz
um questionamento em sua afirmação: o ‘eu’ que participa desse movimento é realmente o
‘eu indivíduo’, sendo este ‘eu’ isento das inscrições sociais? Dessa forma, a filósofa corrobora
com a ideia trazida no presente artigo, de que o ‘eu individual’ é destruído, trazendo à tona
um ‘eu’ estranho a mim mesmo.
No mais, ainda corroborando o fato de a destruição corporal ser necessária para que se
consolidem as identidades, a filósofa afirma que “a operação da repulsa pode consolidar
“identidades” baseadas na instituição do "Outro”, ou de um conjunto de Outros, por meio da
exclusão e da dominação” (BUTLER, 2003). Logo, as identidades individuais são
consolidadas a partir de um ‘eu’ que, a partir do discurso, substitui o sujeito inicial, com suas
vontades individuais.
Segundo Butler, “é uma “expulsão” seguida por uma “repulsa” que fundamenta e
consolida identidades culturalmente hegemônicas em eixos de diferenciação de
sexo/raça/sexualidade” (BUTLER, 2003, p.191). Sendo assim, o sujeito passa a ser visto
dentro do âmbito social a partir do momento em que sua exposição, que agora é uma
reprodução cultural e histórica, é aceita pelo movimento hegemônico vigente nos padrões
sociais.
Logo, a figura do ‘corpo’ dentro da teoria performativa butleriana assume um papel
fundamental. Isso é decorrente do fato de que o corpo é o meio pelo qual acontecem os
processos performativos, que agem primeiramente com uma negação do ‘eu individual’
seguido de uma substituição reprodutora das relações sociais padronizadas (SILVA; LIMA,
2017). Como resultado, tem-se uma consolidação das identidades individuais idênticas que
acabam por corroborar os sistemas hegemônicos da coletividade.

3 SOBRE A PRECARIEDADE DA VIDA... SOBRE AS VIDAS QUE [NÃO]


IMPORTAM

Como último ponto de discussão acerca das reflexões de Butler, apresenta-se o


conceito de ‘vidas precárias’. Nota-se: último ponto porque este decorre dos dois primeiros já
analisados. Retomando: performatividade e corpo. O corpo é inscrito pelo discurso, sendo este
de origem sociocultural. Através dessa inscrição acontece a performatividade. Ou seja, há uma
padronização das vidas. No entanto, as vidas que não pertencem ao escalão hegemônico, são
ocultadas. Assim, Butler (2010) traz a sua teoria acerca de ‘vidas precárias’.
Segundo Butler, dentro do cenário social, alguns sujeitos não possuem representação
própria, sendo representados pelo discurso. Por outro lado, os indivíduos que estão entre
aqueles que produzem o discurso possuem autorepresentação. A filósofa afirma:

Aqueles que ganham representação, especialmente autorepresentação, detêm


melhor chance de serem humanizados. Já aqueles que não têm oportunidade de
representar a si mesmos correm grande risco de ser tratados como menos que
humanos, de serem vistos como menos humanos ou, de fato, nem serem mesmo
vistos. (BUTLER, 2010, p.24)

Diante do trecho apresentado, nota-se que a filósofa traz a ideia da biopolítica que já é
discutida na literatura foucaultiana. De acordo com esta, existe uma política que determina os
corpos que importam e os que não importam. É dessa política que deriva a autorepresentação e
a ausência dela. Ainda, percebe-se que uma autorepresentação é uma maior garantia de
‘humanização’. Com isso, infere-se que a ‘humanização’ está geralmente presente no
cotidiano dos donos do discurso.
É importante refletir acerca do que a autora denomina como sendo ‘humanização’.
Quando Butler traz a autorepresentação como uma maior oportunidade de humanização, a
autora traz este termo para o que se pode chamar de ‘aceitação social’ (SILVA; LIMA, 2017).
De acordo com a filósofa, a autorepresentação está presente na vida dos detentores do
discurso. Com isso, eles podem deixar explícitas suas vontades individuais e,
consequentemente, passar pelo processo de ‘humanização’ de uma maneira mais natural, não
passando pela negação do ‘eu interior’.
Dentro desse debate, Butler traz a ideia de sermos reportados pelo Outro. Segundo ela, “somos
primeiro dirigidos, reportados por um Outro, antes mesmo que assumamos a linguagem para nós”
(BUTLER, 2010). Dessa forma, percebe-se que a filósofa ainda continua com a ideia do discurso, em
que o sujeito – sujeito que não possui autorepresentação - é apresentado segundo as interpretações
culturais, exprimindo-se suas vontades e sua identidade individual. Ainda, a teoria explicita que
somente quando somos remetidos a um discurso é que podemos fazer o uso da linguagem.
Assim, aparece a prerrogativa da superficialidade, qual seja: a partir do momento em que o
indivíduo é apresentado por um Outro, perde-se sua essência. Como a própria filósofa explica, “aquele
com quem me identifico não sou eu e esse “não sendo eu” é a condição da identificação”
(BUTLER, 2010). Dessa forma, o indivíduo passa a assumir essa postura superficial para que
se enquadre na estrutura de poder. Ainda, é possível interpretar a postura do sujeito, que agora
passa a ser superficial, como uma tentativa de ‘humanização’.
Dentro da perspectiva da superficialidade, as vidas passam a se expressar por meio da
inscrição. A ‘humanização’, nesses casos, deriva da desidentificação do sujeito, que nega sua
identidade. Ou seja, é uma espécie de ‘humanização forjada’, que torna o indivíduo ativo
dentro de um processo que não se refere a ele. De que forma? O sujeito passa a ter expressão
dentro da estrutura de poder através de uma figura que não o representa, que não é a sua
essência. É uma figura que teve origem na negação do seu ‘eu interior’.
No entanto, a questão central, depois de analisados esses aspectos de negação
identitária é se perguntar por que os sujeitos abrem mão de suas identidades, que os tornam
únicos, para que se dê lugar à uma inscrição que deriva de sistemas hegemônicos? Dentro
desse debate, Butler traz a para as questões a figura da vida precária, definindo-a como aquela
que é ocultada. É na tentativa de não ter sua existência ocultada ou representada pelo Outro
que o indivíduo abre mão de si.
Dentre as maneiras de ocultação da vida dos sujeitos, segundo Butler, existem duas:

Estas são duas formas distintas de poder normativo: um opera produzindo uma
identificação simbólica do rosto com o inumano, por meio da forclusão de nossa
apreensão do humano na cena. A outra funciona por meio de um apagamento radical,
como se nunca tivesse existido um humano, nunca houvesse existido uma vida ali,
e, portanto, nunca tivesse acontecido nenhum homicídio. (BUTLER, 2010, p.29)

No primeiro caso, forclusão, é criada a imagem do sujeito. Desse modo, faz referência
à negação de autorepresentação. Quando a autora trata de representação do indivíduo através
do Outro, ela está se referindo ao processo de forclusão. A imagem do indivíduo, a partir do
momento de forclusão, passa a obedecer aos interesses do discurso (SILVEIRA; FURLAN,
2003). Com isso, há uma ‘representação equivocada’, a partir do momento em que o sujeito é
exposto através do discurso, não das suas subjetividades individuais.
A segunda maneira de ocultar a vida do indivíduo ocorre de forma radical. Ou
seja, diferente da forclusão, a vida é realmente ocultada, excluída do âmbito social. Butler, ao
apontar esse segundo processo de exclusão, reporta que “esses esquemas normativos
funcionam precisamente sem fornecer nenhuma imagem, nenhum nome, nenhuma narrativa,
de forma que ali nunca houve morte tampouco houve vida” (BUTLER, 2010). A ideia trazida
pela autora, traduz literalmente como ocorre o procedimento. As vidas que passam pela
segunda forma de exclusão são simplesmente esquecidas.
Ainda, as classes que estão inseridas dentro do processo de exclusão social perdem
suas vozes. Diferente da forclusão, em que as vozes são reportadas pelo Outro, na exclusão as
vozes não existem. Desse modo, “o domínio público da aparência é ele mesmo constituído
com base na exclusão daquela imagem” (BUTLER, 2010). Assim, a imagem dos indivíduos
passa a ser esquecida, tornando o discurso indiferente à essas vidas. De acordo com Butler, o
sujeito passa a ser esquecido dentro das dinâmicas sociais.
É perceptível, após refletir acerca das duas formas de exclusão no meio social, que o
discurso circunda esses processos, para alcançar seus interesses. Segundo Butler “[...] a
política – e o poder – funcionam em parte por meio da regulação daquilo que pode aparecer,
daquilo que pode ser ouvido” (BUTLER, 2010, p. 29) . Esta política, que interfere de maneira
direta nas exclusões trazidas pela autora, oculta as vidas do meio social através do discurso.
O discurso, que é decorrente doas possuidores do poder, é expresso através da mídia
hegemônica. Percebe-se, portanto, como o discurso liga as fases do processo performativo
de Butler (2010): a performatividade só ocorre porque existe um conjunto de práticas
hegemônicas no meio social, esta mesma hegemonia serve como prerrogativa para que a mídia
passe a expor as premissas performadas durante a história. Dessa forma, percebe-se a extensão
de importância que é dada ao discurso dentro da teoria Butleriana.
Essa política discursiva (BORBA, 2014) está presente, além dos processos de
exclusão, em todos os âmbitos sociais. Os padrões hegemônicos acabam constituindo as
formas de viver dentro das sociedades modernas. Assim, as vidas que não se encaixam dentro
desses parâmetros passam a ser excluídas das dinamicidades da coletividade. Nesse percurso
da hegemonia, o discurso possui um papel fundamental para que os interesses das classes
ativas vigorem socialmente.

CONCLUSÃO

Colocando em paralelo o assunto analisado diante das reflexões de Butler com a


realidade das sociedades modernas, tem-se um mundo padronizado. As pessoas sentem cada
dia mais a necessidade de se encaixar nos padrões impostos. Isso é decorrente do processo de
punição recebido por quem não se encaixa dentro dos dogmas estabelecidos socialmente.
Diante dessa perspectiva, dá-se a importância do assunto apresentado no artigo.
Os atos performativos se dão no seio da sociedade com o objetivo de cristalizar os
padrões criados a partir do discurso. Ainda, existe a busca de humanização pelas pessoas
através do encaixe ao discurso. Assim, é perceptível que a literatura da filósofa conversa
diretamente com a realidade social atual, que atua como maneira de normatizar os
comportamentos humanos, deixando as diferenças em segundo plano.
Desse modo, em primeiro plano, é trazida a ideia de performatividade em Butler, onde
ela faz referência ao processo de normatização das pessoas, através do discurso. Com isso,
trazendo a perspectiva para as dinâmicas atuais, tem-se a mídia. Assim, o modelo de inscrição
trazido pela autoria reflete, dentro do âmbito coletivo, no comportamento da mídia que atua
como reprodutora do discurso. No mais, é possível apresentar esse meio de comunicação como
um vetor movido pelos interesses dos donos do discurso.
Os corpos, trazidos por Butler como sendo os meios utilizados para o processo
performativo, são fundamentais para tal. Assim, acontece a negação do sujeito para que este
se identifique dentro dos dogmas sociais. Inferindo um olhar crítico sobre a leitura, é possível
identificar que é exatamente dessa maneira que ocorrem as padronizações impostas pelos
meios midiáticos, responsáveis pelo discurso. Como decorrência, as pessoas passam a temer
as punições aplicadas àqueles que não estão nos padrões.
A maneira de punir as pessoas que não obedecem às normatizações dos meios sociais
é a exclusão. Através do processo de exclusão algumas vidas tornam-se precárias. Com isso,
Butler traz sua teoria acerca das ‘vidas precárias’. Assim, o discurso passa a agir de maneira
a coibir a não adaptação aos padrões socialmente impostos, dificultando ou excluindo estas
pessoas do processo de autorepresentação. Dessa forma, os sujeitos passam a não participar
das dinâmicas sociais.
Para além das questões de gênero, Butler traz na sua literatura debates que tornam sua
leitura fundamental. As conexões que podem ser feitas através das obras da filósofa com a
realidade fornecem a oportunidade de apresentar uma perspectiva mais crítica diante de
diversas discursões. O contato com os conceitos de performatividade, corporeidade e vidas
precárias faz com que o leitor percorra um longo trajeto de desconstruções acerca de ‘verdades
absolutas’ que se cristalizam no meio social.

REFERÊNCIAS

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SILVEIRA, Fernando de Almeida; FURLAN, Reinaldo. Corpo e Alma em Foucault:


Postulados para uma Metodologia da Psicologia. Psicol. USP, São Paulo, v. 14, n. 3, p. 171-
194, 2003.
ESTRATÉGIAS E VOCAÇÕES METODOLÓGICAS PRESENTES NA PRODUÇÃO
DO CONHECIMENTO JURÍDICO NO BRASIL (2007-2016): novas epistemologias
para as questões de gênero? 114

Caio Emanuel Brasil Fortunato115


Fernando da Silva
Cardoso116

RESUMO

O presente trabalho decorre do Projeto de Pesquisa intitulado: “Pesquisa e produção do


conhecimento sobre Gênero e Direito no Brasil”, atualmente em andamento no âmbito do
bacharelado em Direito da Universidade de Pernambuco, Campus Arcoverde e se propõe a
analisar as estratégias e vocações metodológicas das dissertações em Direito depositadas no
Banco de Teses e Dissertações da CAPES, avaliando como estas têm se desenvolvido ao
abordar questões de gênero. Para tanto faz uso dos procedimentos bibliográficos e
documentais, como suporte teórico e metodológico, parte de uma perspectiva de abordagem
mista e quanto aos seus objetivos pode ser caracterizada como exploratório-explicativa, tendo
como escopo prioritariamente o método indutivo. Deste modo busca discutir o atual estado da
pesquisa em Direito nas pós-graduações e se estas têm de fato contribuído para o
desenvolvimento das Ciências Sociais Aplicadas bem como para a sociedade e suas
demandas.

Palavras-chave: Epistemologia. Gênero. Interdisciplinaridade. Feminismo.

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa representa parte do Projeto de Pesquisa intitulado: “Pesquisa e produção


do conhecimento sobre Gênero e Direito no Brasil”, atualmente em andamento no âmbito do
bacharelado em Direito da Universidade de Pernambuco, Campus Arcoverde. O projeto
tronco acima referido volta-se a investigar/compreender o dimensionamento dos estudos no
gênero na pesquisa jurídica brasileira, a partir do estudo da institucionalidade de áreas de
pesquisa e da produção do conhecimento dela decorrente.
A pesquisa jurídica no Brasil recebe há certo tempo críticas quanto ao seu
desenvolvimento. Aponta-se dentre outras coisas a disparidade entre os métodos desta e das
demais ciências sociais, consideradas alheias aos debates estabelecidos no campo do direito.

114
GT 4 - Gênero(s) e Diversidade Sexual no Direito
115
Graduando em Direito pela Universidade de Pernambuco – Campus Arcoverde. Pesquisador do projeto
“Pesquisa e Produção do Conhecimento sobre Gênero e Direito no Brasil” – da mesma instituição. E-mail:
caiobrasilf@gmail.com
116
Doutorando em Direito pela PUC- Rio. E coordenador do projeto de pesquisa “Pesquisa e Produção do
Conhecimento sobre Gênero e Direito no Brasil”- atualmente em desenvolvimento na Universidade de
Pernambuco – Campus Arcoverde. E-mail: cardosodh8@gmail.com
Sendo assim o desdobramento do campo de estudo anteriormente citado se dá, neste
subprojeto, na busca por aprofundar as estratégias e vocações metodológicas presentes na
produção científica sobre gênero e direito (presentes em dissertações e teses), no Brasil.
Para tanto foi eleito o estudo de aspectos metodológicos presentes em produções
bibliográficas disponíveis no repositório da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES), na área do conhecimento do Direito, enquanto universo de análise
sobre as estratégias metodológicas e analíticas que permeiam esse universo. Assim, ao fim,
visa-se refletir acerca dos avanços em relação às estratégias utilizadas à investigação de
questões de gênero na pesquisa jurídica brasileira.
É neste sentido que o presente estudo pretende situar de que modo, a pesquisa no
Direito, tem trabalhado com as questões de Gênero, entendidas aqui como decorrentes de uma
construção social, perquirindo quais as estratégias metodológicas têm sido adotadas e se estas
têm atendido as necessidades práticas dos pesquisadores, bem como discutir de que modo
temas e categorias emergentes do contexto histórico-social podem estabelecer novos pontos
de partida e contribuir com a pesquisa no direito.
Assim, pretende estabelecer um panorama da pesquisa em Gênero no Direito e a partir
das nuances percebidas, debater como outras epistemologias podem ser úteis à pesquisa em
Direito como um todo. Um debate sobre estas re(construções) epistemológicas, todavia,
pressupõe alguns pontos de partida, deste modo far-se-á necessária algumas justificativas da
categoria gênero como objeto de análise.
Um delas é a consideração de que há um perfil científico hegemônico que relegou a
certos sujeitos não só espaços na sociedade como também na produção de conhecimento,
apontada dentre outras coisas como particularista, racista e sexista (RAGO, 1998) proposta
oriunda da crítica feminista as bases teóricas tradicionais.
Consideramos nesta proposta de pesquisa que a produção do conhecimento em suas
dimensões interdisciplinares tem se mostrado como um campo desafiador aos/as
pesquisadores/as sociais, em especial aqueles/as que se dedicam à investigação de questões
inerentes à área dos direitos humanos (CARDOSO, 2014).
Surge então o problema de pesquisa que norteia este subprojeto: Quais os aspectos das
estratégias e vocações metodológicas presentes na produção do conhecimento jurídico no
Brasil, nos últimos dez anos, a partir do Banco de Teses e Dissertações da CAPES? E, ainda,
outras questões secundárias à problemática de pesquisa: Em que medida as pesquisas jurídicas
brasileiras têm dimensionado novas estratégias metodológicas a abordagem do tema gênero?
Há um novo dimensionamento de técnicas e métodos de pesquisa na produção do saber em
direito em relação à categoria gênero?
Os trajetos metodológicos utilizados foram uma abordagem mista, onde o caráter
qualitativo se apresenta através da coleta de dados bibliográfica e o caráter quantitativo nos
gráficos e tabelas apresentados. O método preponderante foi o indutivo, partindo das análises
das produções de conhecimento sobre “direito e gênero” no Banco de Teses e Dissertações da
CAPES. A pesquisa propriamente dita foi exploratório-explicativa (GERHARDT;
SILVEIRA, 2009).

1 EPISTEMOLOGIA DA PESQUISA EM DIREITO: como pensar as questões sociais


desconsiderando a interdisciplinaridade?

A pesquisa jurídica no Brasil, atualmente questionada por outros campos da pesquisa


quanto à sua cientificidade e instrumentalidade de seus métodos investigativos, demanda uma
hoje uma autocrítica, ao passo que demanda ao mesmo tempo uma consideração aos
apontamentos oriundos dos demais campos investigativos. Nestes é apontado dentre outras
coisas a disparidade entre os métodos desta e das demais ciências sociais, consideradas alheias
aos debates estabelecidos no campo do direito.
Essa distância entre Direito e ciências sociais não se resumiu aos processos de
conhecimento e validação deste, sendo percebida em mais duas realidades, uma física,
observada até hoje nas universidades em que o departamento de direito não aparece integrado
com os demais departamentos de sua grande área, e outra teórica, relacionada à postura
autossuficiente dos pesquisadores em direito que apesar de alguns parcos contatos com outras
disciplinas, primam por uma postura consultiva em relação a estas (NOBRE, 2003).
Por esta razão, não se pode afirmar haver um rigor científico ou um caráter
interdisciplinar, diante de uma postura que se assemelha a prática advocatícia, selecionando
argumentos favoráveis, descartando os contrários. Enquanto a ciência demanda, dentre outras
coisas, uma contínua perspectiva dialética, a proposta, a análise e o confronto entre os
postulados estabelecidos (BITTAR, 2003) o que por vezes pode não ir de encontro à hipótese
estabelecida pelo pesquisador, tendo que reavaliar seus pressupostos.
De acordo com Marcelo Neves, numa tentativa de conferir à pesquisa jurídica um
caráter mais didático de compreensão do direito e uma maior relevância social, se estabelece
um amontoado de informações, de diversas áreas sobre este, resultando num fenômeno
classificado como enciclopedismo que contribui para uma produção teórica superficial e de
baixa relevância prática (NEVES, 2005).
Deve-se perceber ainda na experiência nacional uma demanda/imposição de
interdisciplinaridade estabelecida pelos órgãos oficiais de fomento, o que resultou numa
indistinta disciplinarização de interdisciplinaridade (CARVALHO, 2015). Esse fenômeno
pode ser compreendido melhor mediante dois exemplos são eles: a chamada
interdisciplinaridade nas provas da OAB, relacionada às questões do exame que mesclam duas
áreas ou mais áreas ‘do direito’, e a inserção forçosa das disciplinas de economia, sociologia,
filosofia, antropologia e psicologia nas grades curriculares dos cursos de direito.
Para Carvalho (2015) essa inserção deve ser observada com ressalvas pelo fato de
constituírem “campos científicos que não podem ser apreendidos na qualidade de disciplinas
unitárias, isto é, na pretensão de realizar interdisciplinaridade forja-se estrutura curricular na
qual são reduzidas, quando não anuladas, as possibilidades de interdisciplinaridade” (p. 48).
A ausência de uma análise crítica destas ocorrências na pesquisa jurídica inviabiliza
os debates sobre auxiliaridade e interdisciplinaridade, tais considerações se fazem necessárias
a partir do momento em que emerge pro Direito a necessidade de dar respostas a problemas
provenientes da sociedade, estabelecendo uma vertente prática que não deve ser estabelecida
sem uma matriz teórica estruturada e consequentemente sem uma metodologia adequada
(BITTAR, 2003).
Neves (2005, p. 211) destaca que “a interdisciplinaridade impõe-se em face da relação
problemática entre as esferas de saber e da necessidade de aprendizado recíproco”. O autor
afirma ainda que é mediante a autonomia entre os campos do conhecimento correlatos que se
firma a interdisciplinaridade, posto que com o reconhecimento dos limites destes e suas
posições sobre determinado fenômeno, se estabelece o diálogo entre as áreas, cada qual
contribuindo a partir de suas leituras e respostas.
Perceber essas questões sobre a pesquisa jurídica de forma geral remete então a muitas
incompatibilidades com a epistemologia da pesquisa feminista, chave de leitura utilizada no
desenvolvimento deste debate. Reconhece-se a existência de diferenças quanto aos sujeitos e
questionamentos da pesquisa feminista e da pesquisa em gênero em sentido amplo. Todavia,
não se deve desconsiderar que a mesma tem sido recorrentemente utilizada na construção de
novas epistemologias da pesquisa em Gênero.
Deste modo, faz-se a seguinte propositura: como justificar uma pesquisa em Gênero
que desconsidera perspectivas históricas e sociais, ou que as considera de forma superficial,
como a que tem sido desenvolvida em Direito? Neste sentido é importante observar as críticas
decoloniais sobre o modo de produção de conhecimento ocidental, apontado como
eurocêntrico e que desconsidera questões interseccionais como raça, classe e gênero.
Estas questões que remontam então à necessidade de uma reformulação da pesquisa
em Direito e evidenciam a necessidade de ampliação dos seus instrumentos investigativos
para a construção de um lócus que dê lugar a diversos subtemas, notadamente às questões de
gênero (BUTLER, 2008).

2 A CRÍTICA FEMINISTA AO MODO DE PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO


COMO APORTE TEÓRICO PARA AS NOVAS EPISTEMOLOGIAS DA PESQUISA
EM DIREITO E GÊNERO

A escolha metodológica pela teoria feminista e sua crítica ao modo de produção


científica moderno se justifica pela correlação que há entre esta e as epistemologias que se
têm construído sobre as questões de gênero e ao mesmo tempo por questionar pressupostos
clássicos da ciência como, por exemplo, a questão da objetividade, evidenciando a
necessidade de ampliação dos modos de pesquisar, algo próximo do que vem sendo discutido
no trabalho.
É sobre estas especificidades da teoria crítica feminista que o trabalho irá se debruçar,
posto entender a amplitude desse universo de pesquisa e não ter em suas pretensões o
esgotamento da matéria.
Outra explicação necessária diz respeito ao uso da expressão ‘teoria crítica’, concorda-
se com a coexistência de diversas correntes teóricas, remetendo a ‘teorias’, todavia há que
observar que existem pontos comuns entre todas essas teorias, buscando, ao seu modo,
explicar de quais maneiras se mantém estruturas de subordinação. É sobre estes lugares
comuns que se faz referência quando se fala em teoria crítica (BANDEIRA, 2008).
A priori deve-se trazer a recorrente afirmação de que a produção de conhecimento
como tem se constituído, até então, negou as mulheres não só os locais de fala como também
excluiu os debates que se aprofundam e atendem aos seus debates emancipatórios
(SARDENBERG, 2002). A crítica é ampliada a partir do momento em que se percebe a
construção do conhecimento não como legitimadora exclusiva, mas que, em seu espaço
contribui para padrões de subalternização ou preterição de sujeitos, constantemente criticada
na academia.
A referência apesar de fazer destaque às mulheres é ampliada a outros sujeitos, ou
grupos sociais- o que remete a uma perspectiva macro de gênero- por entender que estes
“compartilharam das mesmas exclusões e incertezas relativas a outros grupos sociais, nos
caminhos da construção científica” (BANDEIRA, 2008, p. 211).
Essa ausência de aprofundamento nas discussões é apontada como fruto de um caráter
particularista da ciência, que opera numa lógica de igualdade universal entre os sujeitos
estabelecendo categorias de análise incapazes de pensar a diferença, por desconsiderar a
perspectiva social e a variedade de sujeitos que a integram (RAGO, 1998).
Neste aspecto, a crítica feminista estabelece uma recusa às formas de ciência
universais, posto que essas fórmulas pretensamente universais fixam parâmetros permanentes,
inclusive de poder e desconsideram como a ruptura de paradigmas históricos e sociais influem
na produção teórica. Alternativamente a tal recusa propõe necessidade de reelaboração dos
métodos das ciências humanas, de maneira que considerem as políticas de gênero (DIAS,
1994; BANDEIRA, 2008).
Trazer o debate em torno do método e das políticas de gênero, faz-se mister em
decorrência da noção de que o feminismo como projeto intelectual, surgiu posteriormente e
em decorrência de um movimento de claro viés político e que fora entendido inicialmente por
suas construtoras como uma forma política (KELLER, 2006).
Essa relação entre ciência e política estabelece uma ruptura com os pressupostos
científicos iluministas, fundamentados na neutralidade e objetividade, aproximando ‘fatos’ e
‘valores’, questões duramente criticadas pelos fundamentos básicos da Ciência Moderna o
que evidencia a necessidade do uso de métodos que considerem questões subjetivas,
requerendo, portanto, a construção de epistemologias que possam fundamentar esse “saber
que se quer politizado” (SARDENBERG, 2002).
Cabe ainda ressaltar que essas noções de neutralidade e objetividade, são questionadas
não só pela emergência de um método que relacione teorias e práticas, mas também por
entenderem que há discricionariedade e subjetividade na prática científica desde suas
propostas iniciais, quais sejam: a escolha dos objetos, sujeitos, recortes e estratégias
metodológicas utilizadas.
Discutir a proposta feminista como paradigma para o desenvolvimento da pesquisa em
gênero, escolha metodológica já explicada, permite uma melhor compreensão das críticas que
estas têm feito ao modo de produção de conhecimento ocidental, como um todo, adentrando
nas Ciências Sociais e consequentemente no Direito, subárea na qual têm sido discutidas com
frequência questões de gênero, sendo este vínculo o objeto ultimo desta análise.
Introduzidas tais noções sugerem-se duas propostas, uma de vertente mais teórica e
outra mais prática - que não se desvencilham durante seus respectivos processos de
desenvolvimento – nesse processo de reconstruções epistemológicas. São elas: o
fortalecimento da pesquisa empírica e a inclusão da categoria gênero como objeto de análise.
Mantendo a perspectiva de que as propostas contribuam para o desenvolvimento de
epistemologias que englobam as questões de gênero em sentido amplo.

2.1 A pesquisa empírica como suporte à interdisciplinaridade na pesquisa em gênero e


em Direito

As considerações iniciais feitas tanto sobre a pesquisa em Direito como sobre os


debates em torno das questões do gênero apontaram a necessidade de diálogo com a realidade
prática, ou social, que ambas possuem, posto que deste processo discursivo teorias e práticas
se constroem cotidianamente.
Considerou-se ainda que a ausência de diálogo com outras áreas do conhecimento
importa consequentemente numa observação superficial dessa realidade social, ora
fundamentada numa pretensão de autossuficiência de determinada área, ora na
desconsideração das diferenças que há entre os sujeitos de uma sociedade, firmando a análise
desta em postulados universais, pressuposta na existência de um modelo de sujeito universal.
Logo emerge pras duas áreas a necessidade de práticas que contemplem as
diversidades sociais e estabeleça um debate interdisciplinar de modo que seja possível uma
superação das práticas que hoje são apontadas como entraves ao desenvolvimento da pesquisa
nas respectivas áreas.
É neste contexto que a pesquisa empírica exsurge como uma proposta de aproximação
entre construção acadêmica e sociedade, bem como, de suporte ao diálogo interdisciplinar.
Quer seja pela diversidade de métodos que oferta, quer seja pela necessidade que evidencia
das leituras e propostas ofertadas por outras áreas do conhecimento para a compreensão das
questões oriundas da sociedade e debatidas no cenário acadêmico.
Em sentido favorável, Hortal, Almeida e Chilvarquer (2014), ao comentarem sobre a
experiência de adoção dos métodos empíricos na pesquisa em Direito, sugerem que a
expansão destes em Direito tem caminhado no sentido das abordagens multimedológicas e no
da interdisciplinaridade pela: “crescente adoção e diversificação de métodos de pesquisa
típicos das ciências sociais” (2014, p. 164), frutos da observação das insuficiências
operacionais que o pesquisador por vezes encontra neste campo do conhecimento.
Essa proposta é estabelecida como uma análise feita pelo sistema científico como um
todo – o que remete à questão do local de observação assumido pelo pesquisador, isto é: não
só a observação do Direito sobre o Direito e para o Direito - o que consequentemente
fomentaria um conhecimento sobre o Direito proveniente do sistema científico. Para se
alcançar este intento, todavia, é necessário conhecer os paradigmas, debates teóricos e
métodos das demais áreas. Com isso o pesquisador estaria emancipado do que os autores
convencionaram chamar de “cabrestos dogmáticos do Direito” (HORTAL, ALMEIDA,
CHILVAQUER, 2014).
Assim, seria mediante um constante diálogo entre Direito e Antropologia, História,
Filosofia, Sociologia e tantos outros campos e seus respectivos métodos que se estabeleceriam
estratégias de análise ampliativas sobre os fenômenos sociais, e a partir destas, um diálogo
entre teorias e práticas. O pesquisador se constitui deste modo como uma espécie de ponte
entre as áreas e seus diálogos com teorias e práticas.
Neste sentido é importante destacar que há ainda para os “teóricos e práticos”
(distinção reconhecidamente criticada, pela impossibilidade, ao menos em tese, de
desvencilhar teoria e prática) do Direito uma responsabilidade de oferecer soluções práticas
às situações. Estas soluções, no entanto, não devem estar alheias ao que ocorre na sociedade.
Deste modo, é impossível a concepção de uma teoria que desconsidera a práxis e ao mesmo
tempo de práticas que não sejam orientadas minimamente pela teoria (ADEODATO, 1996).
O desenvolvimento de uma pesquisa empírica em Direito contribuiria também para os
debates que relacionaram Direito e Gênero e que vai de encontro com algumas das críticas
elencadas no ponto anterior. A primeira delas seria que a partir de pesquisas aplicadas, o
pesquisador está mais próximo da realidade social o que lhe possibilita uma melhor percepção
dos sujeitos e particularidades presentes em uma sociedade, o que remonta ao debate sobre o
caráter particularista da ciência.
Essa postura mais ativa do pesquisador importa ainda numa aproximação da
subjetividade que vem sendo proposta pela Crítica. Logo, a partir de etnografias, pesquisas de
campo e demais procedimentos empíricos, o olhar e a percepção do pesquisador passam a
integrar a pesquisa e a constituir novas leituras sobre os fenômenos.
A pesquisa empírica pode além de isoladamente, contribuir para os estudos que
trabalham Gênero no Direito. Posto que como já fora dito, demanda conhecimentos
interdisciplinares, afastando assim estudos que trabalham gênero mas desconsideram sua
construção teórica, seus debates e postulados metodológicos e até mesmo leis que envolvem
questões de gênero e surgem de clamores sociais, mas só se apropriam destas questões em sua
fase inicial, desconsiderando estas em outros momentos da elaboração como por exemplo ao
estabelecer as penas.
Em outras palavras: no momento da criação da lei é absorvido o debate de proteção às
mulheres, por exemplo, no entanto o debate, sob uma perspectiva feminista, não se mantém
no desenvolvimento destas se limitando tão somente ao tempo das penas consideradas como
mais ou menos severas dependendo do seu quantum, algo mais voltado à seara penal.

2.2 O gênero como categoria de análise na pesquisa em Direito

Oriunda dos estudos em história, na qual foi proposta inicialmente outra proposta, já
elencada como de perspectiva mais teórica, é a inclusão da categoria gênero como análise na
pesquisa em Direito.
Tendo como pressuposto as discussões propostas por Joan Scott (1990) e Michelle
Perrot (1984), nas quais estas passaram a debater a possibilidade do desenvolvimento de uma
história das mulheres, considerando suas vivências e pontos de observação, problematizando
as relações entre sexos e de que modo estas influenciam na produção de conhecimento.
As pesquisadoras tinham além da luta política um objetivo que envolvia a pesquisa:
oferecer através da perspectiva de gênero uma mudança no seio de cada disciplina, trazendo
novos temas e questionando os paradigmas científicos até então vigentes (RAGO, 1998;
SCOTT, 1990).
Scott (1990) estabeleceu a partir da análise de diversas obras em que o gênero foi
tomado como ponto de observação de certo fenômeno - junto à raça e classe- que este é um
elemento constitutivo de relações sociais firmado em diferenças decorrentes dos sexos.
Neste sentido, explica que o gênero, enquanto elemento constitutivo de relações
sociais pelas diferenças decorrentes dos sexos implica em quatro aspectos inter-relacionados:
a representação atribuída a símbolos culturais notórios, como por exemplo, Eva e Maria, na
tradição judaico-cristã; os conceitos heteronormativos presentes em grande parte da produção
científica; a presença destas representações binárias de gêneros sob um ponto de vista político,
através da análise das instituições e organizações sociais e o debate e por último, a identidade
subjetiva, definida como as conferências fundantes dessas relações de poder (SCOTT, 1990).
É através dessa percepção de identidade social e culturalmente estabelecida que a
autora traz a noção do gênero como uma construção discursiva e que através de uma análise
desses discursos, nas diversas áreas seria possível uma nova construção histórica, não como
uma história das mulheres, mas como uma contribuição ao modelo de história já existente.
Assim a partir do momento em que se passa a perquirir de que forma o gênero e as
convenções discursivas à respeito deste, influem nas relações sociais e na produção de
conhecimento possibilita novas reformulações epistemológicas.
Essas noções quando oferecidas ao campo do Direito permitem novas proposituras que
vão aparentemente, de encontro ao que já vinha sendo debatido no corpo do texto, quando se
considera a análise interdisciplinar feita pela autora, bem como a percepção de que as
formulações científicas que desconsideram a categoria analítica gênero, total ou parcialmente,
mantém inviabilizada uma ciência que inclui os sujeitos comumente oprimidos.

3 INTERSECÇÕES ENTRE AS ESTRATÉGIAS E VOCAÇÕES METOLÓGICAS


EM ESTUDOS SOBRE GÊNERO NO DIREITO (2007-2016)

Antes de apresentar as análises e descrições propriamente ditas, faz-se necessário


explicar o passo a passo sobre a coleta de dados. O Banco de Teses e Dissertações da CAPES
é uma plataforma que integra as informações e os próprios trabalhos acadêmicos stricto sensu
no Brasil. Portanto, esse banco de dados é o universo de pesquisa do presente trabalho.
A amostragem construída partiu dos seguintes filtros: palavra-chave, anos, grande área
de conhecimento e área do conhecimento. A palavra-chave usada foi o termo “gênero”, a linha
de tempo pesquisada foi de 2007 a 2016 (10 anos), a grande área de conhecimento escolhida
foi “ciências sociais aplicadas” e as áreas de conhecimento assinaladas foram: Direito, Direito,
Direito Constitucional, Direito Processual Civil, Direito Público, Direito público, Direitos
especiais e Teoria do Direito.
Os resultados obtidos foram: 519 produções sobre gênero em Direito, sendo 433
dissertações e 86 teses de doutorado. Neste primeiro momento, por questões de viabilidade da
pesquisa foi delimitado como objeto da análise a produção exclusiva das linhas de mestrado,
isto é, as 433 dissertações já elencadas.
Há que se observar, todavia, que nem todas essas produções são propriamente sobre
gênero: compreendem/investigam a vulnerabilidade de grupos sociais subalternizados a partir
de marcadores ligados a sua condição de gênero e/ou de sexualidade. Boa parte dessas
produções por terem o termo “gênero” em seus resumos acabou ingressando nessa contagem
total, mas possuíam outra finalidade/acepção, qual seja, a dicotomia: gênero/espécie.
Mediante a análise dos resumos e capítulos iniciais destas produções foi feita uma nova
filtragem, destacando assim os trabalhos enquadrados na perspectiva de gênero adotada no
estudo, totalizando 198 dissertações, ponto de partida da presente investigação e das quais
resultaram os dados posteriormente expostos.

3.1 Estratégias e vocações metodológicas da produção de Gênero nas Dissertações


publicadas entre 2007-2016: abordagens, objetivos e procedimentos.

No intuito de aproximar o campo de pesquisa e problema de pesquisa, isto é, os


Trabalhos Publicados no Banco de Teses e Dissertações da Capes sobre Gênero, no período
já exposto e estratégias e vocações metodológicas presentes nestes, foi estabelecida uma
classificação geral que subdivide as produções analisáveis (pois como já fora dito, nem todas
as dissertações localizadas importavam ao nosso estudo, por não estarem na perspectiva de
Gênero trabalhada) em três grandes grupos, pautada nas classificações metodológicas mais
recorrentes, assim os trabalhos foram analisados por: abordagem, objetivo e procedimento;
tendo por base as leituras de Gil (2002).

Quadro 1 - Percentual por abordagens metodológicas da produção em Gênero na área de


avaliação em Direito a partir do Banco de Teses e Dissertações da Capes (2007-2016):
Abordagens Produções por abordagem
Qualitativa 100%
Quantitativa 17,17%
Não especificada 68,68%
Fonte: dados produzidos pelo autor.

A opção pela organização dos resultados em tabela decorre do fato de haverem


trabalhos enquadrados nas duas categorias, logo, em gráfico a quantidade trabalhos totalizaria
mais de 100%. Deve-se ainda perceber a existência de uma terceira categoria chamada “Não
especificada”, que de fato corresponde a 68,68% do total de trabalhos analisados e
corresponde a todas as produções nas quais os autores não delimitaram a abordagem utilizada.
Nestes casos, se procedeu à leitura dos trabalhos, orientada pelas obras de Gil (2002)
e Gerhardt e Silveira (2009) para que mediante esse suporte teórico nos fosse possível elencar
as produções entre as categorias propostas. Esse mesmo fenômeno repetiu-se em outros
momentos da pesquisa, e é no entendimento desta decorrente da ausência de uma
responsabilidade científica dos pesquisadores.
Feitas as devidas considerações iniciais deve-se delimitar quais os entendimentos da
pesquisa a respeito das abordagens qualitativas e quantitativas e como estas se relacionam
com a produção em Direito, de forma geral em Direito e Gênero.
A pesquisa qualitativa está ligada ao aprofundamento da compreensão de um grupo
social, organização, estando, em sua maioria desvencilhada dos resultados numéricos, como
é recorrente em outros campos de pesquisa como a saúde. Os pesquisadores que adotam a
abordagem qualitativa entendem que há mais de um modelo de pesquisa para todas as ciências,
partindo das especificidades de cada uma destas, assim fugindo do modelo positivista esta
abordagem possui carga eminentemente valorativa (GERHARDT; SILVEIRA, 2009), o que,
por vezes, lhe atribui críticas por seu empirismo, subjetividade e envolvimento emocional do
pesquisador (MINAYO, 2011).
Já a pesquisa quantitativa considera aquilo que pode ser aferido numericamente como
a base para o estudo de determinado fenômeno, muito embora sejam recorrentes em áreas do
conhecimento distintas e tenham pressupostos distintos, é possível e até recomendado em
certos, a conjugação dos dois métodos, posto que de acordo com Fonseca (2002) a utilização
conjunta das duas abordagens permite recolher mais informações do que se poderia obter
isoladamente. Há que se observar ainda que por mais que esta abordagem seja mais comum
em outras áreas de pesquisa, guarda relações com o procedimento utilizado, como será
explicado mais adiante.
Assim, os resultados obtidos indicando uma baixa produção de pesquisas qualitativas
(17,17%) podem estar relacionados ao fato de a pesquisa em Direito ainda ser
majoritariamente teórica e documental. O desenvolvimento de pesquisas empíricas seria uma
possibilidade de ampliar o debate teórico e produzir dados que poderiam contribuir para este,
fortalecendo pesquisas que dialogam com as duas abordagens.
A análise das produções, todavia, chamou a atenção para um segundo ponto: grande
parte das obras classificadas pelos autores, ou não (considerando a quantidade de trabalhos
“não especificados”) como de abordagem qualitativa, são enquadradas como tal por uma
questão de mera subsidiariedade, qual seja: não serem de caráter quantitativo.
Tal afirmação decorre do próprio escopo da pesquisa qualitativa, aproximar o leitor e
outros pesquisadores do objeto, através do aprofundamento neste e em suas particularidades,
no mesmo sentido explica Minayo (2017, p. 10) que “uma amostra qualitativa ideal é a que
reflete, em quantidade e intensidade, as múltiplas dimensões de determinado fenômeno e
busca a qualidade das ações e das interações em todo o decorrer do processo”.
Deste modo o que se observa é que as dissertações classificam-se como de abordagem
qualitativa tão somente por não lidarem com dados como premissa inicial, mas que não
assumem a rigor a proposta desta.
A partir do momento que as produções passam a lidar com Gênero, Direito e sociedade
em suas intersecções e não ocorre à aproximação esperada, estas devem ser vistas com
ressalvas, de modo que por deficiências metodológicas não se estabeleça uma falsa percepção
da realidade e as produções deixem de contribuir e até obstem o avanço das áreas, legitimando
e perpetuando um saber excludente.
Outra possibilidade arguida é que há uma intrínseca relação entre abordagem, objetivo
e procedimentos na pesquisa, o que apontaria como reflexo da ausência de profundidade nas
abordagens qualitativas os baixos percentuais de pesquisas descritivas e explicativas que serão
melhor explicadas no tópico seguinte.

Quadro 2 - Percentual dos objetivos da pesquisa na produção em Gênero na área de avaliação


em Direito a partir do Banco de Teses e Dissertações da Capes (2007-2016):
Objetivo Produções por objetivo
Exploratória 92,92%
Descritiva 10,10%
Explicativa 37,37%
Não especificado 72,72%
Fonte: dados produzidos pelo autor.

De acordo com GIL (2002) o traço marcante da pesquisa exploratória é o caráter mais
abrangente que esta adquire no intuito de aproximar pesquisador ou leitor com o problema,
de modo que este se torne mais explícito. Logo faz uso dos mais diversos recursos para
conhecer seu objeto, traçando hipóteses e variando quanto aos procedimentos utilizados.
Esclarece ainda que a maioria dessas pesquisas envolve levantamento bibliográfico;
entrevistas estruturadas e análise de exemplos que estimulem a compreensão.
Por proporcionar mais informações sobre o assunto nas fases iniciais da pesquisa e
possuir planejamento flexível é ponto de partida da grande maioria das pesquisas, podendo
aderir ou não às demais classificações de objetivos, dando origem, por exemplo, a pesquisas
exploratório-explicativas.
Diferentemente da pesquisa exploratória, mais interpretativa, a pesquisa descritiva,
coloca o pesquisador numa posição de observador, este registra e descreve seus objetos de
estudo, sem fazer inferências ou imprimir seus juízos de valor sobre estes. Tendo como escopo
delinear características de certos grupos, fenômenos ou o relacionamento entre certas
variáveis (PRODANOV; FREITAS, 2013).
Deve-se destacar que certas pesquisas descritivas podem aproximar-se da pesquisa
explicativa por não limitarem-se a simples identificação de relações entre variáveis,
estabelecendo também a natureza dessas relações. Este mesmo fenômeno, no qual a pesquisa
descritiva assume características das demais classificações por objetivo ocorre quando as
descrições realizadas terminam por proporcionar novas visões e hipóteses a respeito do
problema, dando base às pesquisas exploratórias (GIL, 2002).
A pesquisa pode ser também quanto aos seus objetivos classificada como explicativa,
nesta há uma preocupação do pesquisador em explicar os fatores contribuintes ou
determinantes à ocorrência do fenômeno. Sendo assim, é apontada como o tipo de pesquisa
que mais aprofunda o conhecimento da realidade, ao explicar a razão e o porquê das coisas
(GIL, 2002).
Estabelece ainda o mesmo autor, que a depender do campo do conhecimento na qual
se desenvolva a pesquisa explicativa poderá fazer uso de procedimentos distintos, em síntese,
pode-se afirmar que nas ciências naturais utiliza-se do método experimental já nas ciências
sociais encontra mais dificuldades recorrendo ao uso de métodos distintos, de modo geral ao
observacional.
Delimitados tais conceitos, retoma-se à análise dos resultados da pesquisa que
apontaram algumas características marcantes das dissertações em Direito e Gênero publicadas
entre 2007 e 2016 e colhidas através do Banco de Teses e Dissertações da CAPES. Destas
pode-se observar um grande percentual de pesquisas exploratórias (92,92%) o que em um
primeiro momento pode guardar relações com a própria natureza preliminar deste tipo de
pesquisa, sendo por vezes o ponto de partida do pesquisador.
A análise inicial dos demais resultados, todavia, apontou notadamente uma
discrepância de percentuais entre pesquisas exploratórias (92,92%), descritivas (10,10%) e
explicativas (37,37%).
Antes, algumas considerações são necessárias: o fato da grande maioria das
dissertações estarem classificados quanto ao objetivo como exploratória, não importa dizer,
necessariamente, o desuso dos demais métodos, posto que a classificação utilizada na
construção da pesquisa levou em consideração o tipo desenvolvido com predominância ao
longo dos trabalhos. E ainda que a soma dos percentuais ultrapassando os 100%, indica
pesquisas com mais de um tipo de objetivo marcante ao longo do texto, o que não encontra
óbice nos fundamentos da metodologia da pesquisa, como já fora explicado.
As porcentagens ofertadas devem ser discutidas sob a óptica dos objetivos da pesquisa,
notadamente de estabelecer de que modo as produções oriundas das pós-graduações
brasileiras, que trabalham gênero e Direito têm se estruturado como ferramentas úteis às
demandas sociais. Considerando a responsabilidade social do pós-graduando, de quem já se
espera um posicionamento crítico e autocrítico (SEVERINO, 2007).
Diante dos resultados e considerações propostas, questiona-se até que ponto produções
que discutem, em sua maioria, violências e discriminações contra mulheres e grupos
vulneráveis em decorrência do gênero, em ambientes de trabalho, leis, tribunais e tantos outros
aspectos, mas não excedem a proposta ou o degrau da pesquisa exploratória.
Ressalte-se que não há uma pretensão de desqualificar este tipo de pesquisa, até mesmo
pelo entendimento de sua importância como ponto de partida na investigação científica,
ocorre, no entanto, que há a possibilidade de mediante métodos que aprofundem mais os
debates, algo almejado na pós-graduação, de que se ofereça novas contribuições às realidades
sociais, o que fica evidenciado diante de um área, como o Direito, em que há uma demanda
de dar resposta aos problemas de uma sociedade.
Não se pode, contudo, afirmar que os resultados obtidos trazem um total panorama da
pesquisa em Direito ou em Direito e Gênero no Brasil, ou ainda, que trazem mais respostas
do que perguntas. Estes podem servir de base à construção de novas hipóteses, passíveis de
refutação e reconstrução, contribuindo deste modo para a produção de conhecimento, bem
como para as discussões sobre reformulação da epistemologia da pesquisa jurídica. O que de
fato, se aproxima da proposta da pesquisa.
Assim é possível trazer ao debate certos questionamentos quais sejam: é possível
relacionar a grande quantidade de pesquisas de natureza exploratória e os procedimentos
utilizados recorrentemente na pesquisa em Direito? O percentual das abordagens qualitativas
e quantitativas sofre influências dos objetivos e procedimentos mais utilizados na pesquisa em
Direito? É possível determinar classificações predominantes na pesquisa jurídica nacional? E
ainda, como os métodos da pesquisa em Direito tem se orientado na pesquisa sobre Gênero?

Quadro 3 - Percentual dos procedimentos de pesquisa na produção em Gênero na área de


avaliação em Direito a partir do Banco de Teses e Dissertações da Capes (2007-2016):
Procedimento Produções por procedimento
Bibliográfica 75,25%
Documental 75,75%
De campo 7,57%
Etnográfica 7,57%
Estudo de caso 8,08%
Experimental -----
Ex-post-facto -----
De levantamento -----
Com survey 1,01%
Participante 1,01%
Pesquisa ação -----
Etnometodológica -----
Não especificado 20,70%
Fonte: dados produzidos pelo autor.

As considerações quanto à opção por tabela e categorias propostas são as mesmas já


apresentadas. Da observação do quadro é possível perceber a baixa ou nenhuma porcentagem
de alguns procedimentos, estes últimos serão discutidos como um grande grupo, não sendo
conceituados unitariamente como os demais, o que se justifica pela extensão já adquirida pelo
trabalho.
A pesquisa bibliográfica, parte da análise de materiais já publicados, abrangendo
livros, revistas, periódicos, artigos científicos, jornais, boletins, monografias, dissertações,
teses, material cartográfico e dados obtidos via internet, estes com algumas ressalvas, devendo
sempre haver uma busca pela procedência e confiabilidade das informações. Por este caráter
abrangente e a possibilidade de inserção do pesquisador nas temáticas é o pressuposto inicial
das pesquisas- posto requererem referencial teórico- que poderão ou não agrupar em si outros
procedimentos.
A pesquisa documental guarda estreitas relações com a pesquisa bibliográfica, não se
confundindo com esta. Para Gil (2002, p. 45-46) o que discerne uma da outra é a natureza e
o tratamento das fontes, por assim dizer, deste modo a pesquisa bibliográfica se vale das
contribuições de diversos autores em sua construção, enquanto a pesquisa documental se
estabelece em materiais que receberam pouco ou nenhum tratamento analítico.
Este procedimento analisa hoje uma diversidade de fontes, são algumas delas: tabelas
estatísticas, jornais, revistas, relatórios, documentos oficiais, cartas, filmes, fotografias,
pinturas, tapeçarias, relatórios de empresas, vídeos de programas de televisão, bem como
documentos, convenções, tratados e entendimentos de tribunais nacionais e internacionais.
A pesquisa de campo é utilizada com o objetivo de adquirir ou aprofundar os
conhecimentos sobre um problema que se queira atribuir resposta, hipótese que se pretenda
comprovar, ou fenômenos e relações entre eles. Neste intento o pesquisador se propõe a
observar fatos e fenômenos, sem fazer intervenções e coletar e registrar, através da observação
direta e entrevistas, os dados a esse respeito (PRODANOV; FREITAS, 2013). Por essas
características requer uma postura eminentemente empírica do pesquisador
A pesquisa etnográfica pode ser estabelecida como aquela que propões ao estudo de
um grupo ou povo, fazendo uso da observação participante, entrevistas, análise de
documentos. Este procedimento oferece ao pesquisador uma série de recursos quanto ao
desenvolvimento da pesquisa por oferecer flexibilidade caso necessite alterar a proposta de
pesquisa, o período de tempo (GERHARDT, SILVEIRA, 2009). Todavia, requer deste um
olhar mais apurado tentando captar aquilo que não é falado e como os sujeitos se portam ao
serem questionados sobre determinados fatos, bem como, a não intervenção deste sobre o
ambiente pesquisado.
O estudo de caso pode ser entendido como o procedimento no qual há um profundo
estudo de uma entidade bem definida que pode ser um programa, instituição, sistema
educativo, pessoa ou entidade social, de modo que se permita estabelecer com profundidade
suas características e motivos fundantes (FONSECA, 2002) nesta, semelhantemente ao que
ocorre na pesquisa etnográfica o pesquisador não intervém na realidade ou contexto estudado.
De acordo com Gil (2002, p. 54) uma das grandes dificuldades nas ciências sociais é
distinção entre os fenômenos e seus contextos, o que, segundo o autor, justificaria o uso
crescente do estudo de caso neste âmbito das ciências.
Há ainda dois procedimentos encontrados nas pesquisas analisadas: a pesquisa com
survey, muito comum em pesquisas de marketing ou política por possui como característica
marcante a obtenção dados visando conhecer as opiniões de grupos de pessoas, fazendo uso,
em sua maioria de questionários; e a pesquisa participante na qual se observa relação ou
envolvimento entre pesquisador e situações e/ou pessoas investigadas, estes dois
procedimentos corresponderam aos menores percentuais obtidos na pesquisa.
Conceituados tais procedimentos, deve-se proceder a análise preliminar dos resultados
obtidos que indicaram haver a predominância majoritária de dois destes, a pesquisa
documental correspondente a 75,75% das dissertações analisadas e a pesquisa bibliográfica
75,25%, indicando a ocorrência simultânea dos dois métodos na grande maioria das pesquisas,
sem se descartar obviamente, a junção de ambas aos demais procedimentos, sendo possível
assim numa mesma pesquisa haver pesquisa bibliográfica, documental e estudo de caso,
estudando, por exemplo, algum programa governamental (pesquisa documental e estudo de
caso) sob a ótica de determinado pensador (pesquisa bibliográfica).
Estes resultados parecem comprovar o que há muito tempo já vinha sendo discutido
sobre a tradição da pesquisa jurídica brasileira, pautada numa grande produção aparentemente
teórica, ligada ao uso dos manuais e legislações nacionais e internacionais e que deixa de lado
os métodos que de algum modo privilegiam a realidade social, a exemplo da pesquisa
etnográfica (8,08%) e as pesquisas de campo e estudos de caso ambas correspondentes a
7,57% das produções avaliadas.
Há que se observar também nesta tradição um aparente apego aos postulados
científicos positivos, desenvolvidos no ponto dois deste trabalho, pela recusa do uso de
procedimentos mais subjetivos, propostos nas epistemologias de gênero e desconsideradas
quando tratadas na pesquisa em Direito. Remetendo novamente à ausência de
interdisciplinaridade desta área do conhecimento, já que não se considera construção teórica,
os debates e postulados metodológicos das questões de Gênero.
De acordo com os maiores percentuais, pode-se afirmar que as dissertações em Direito
e Gênero publicadas entre 2007 e 2016 catalogadas através do Banco de Teses e Dissertações
da CAPES são em sua maioria: qualitativas (100%), exploratórias (92,92%), documentais
(75,75%) e bibliográficas (75,25%).
E que, além disso, há um descuido com a metodologia já que de acordo com as
categorias de análise propostas (por abordagem, objetivo e procedimento) foi recorrente a não
identificação por parte dos autores em ambas as categorias, delimitar estes pontos é um dever
ético do pesquisador, possibilitando o entendimento dos seus posicionamentos e avaliação e
interação com outros pesquisadores (BARROS; BARROS, 2018).
Retomando a classificação geral não se deve desconsiderar que os tipos de pesquisa
mais recorrentes possuem relações o que pode ser melhor demonstrado através de alguns
questionamentos: é possível que haja alguma relação entre os percentuais de pesquisas
explicativas (10,10%) e das pesquisas etnográficos (7,57%), de campo (7,57%) e estudos de
caso (8,08%) procedimentos pautados eminentemente na observação?
As críticas apresentadas nas análises anteriores parecem se repetir no debate sobre os
procedimentos, produções majoritariamente teóricas com base tão somente em produções e
documentos que não inserem leitores e/ou outros pesquisadores com profundidade no
universo de pesquisa analisado e não propõe novas perspectivas ou alternativas no
enfretamento de temas patentemente sociais e de interesse público, por esse caráter é
reducionista pensar este como um debate limitado as questões metodológicas e não ao modo
de produção de conhecimento que tem servido a uma estrutura excludente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho abordou a produção sobre gênero no Direito, tendo como universo
de pesquisa o Banco de Teses e Dissertações da CAPES, analisando as dissertações publicadas
no período de 2007 a 2016 e quais as estratégias e vocações metodológicas amplamente
utilizadas nestas.
Durante o desenvolvimento da pesquisa, no entanto percebeu-se a necessidade de
discutir a construção da pesquisa jurídica nacional, convencionalmente apontada como
atrasada em relação às demais áreas e que esta deve ser reformulada sob uma ótica da
interdisciplinaridade, propondo o diálogo não só com os conhecimentos e conceitos das outras
disciplinas, englobando também a análise dos seus métodos.
Por entender a necessidade de discutir os fenômenos através da interdisciplinaridade
trouxe a epistemologia feminista, como paradigma para o debate sobre questões de gênero e
suas críticas ao modo de produção científica hegemônico da modernidade aproximando a
discussão sobre gênero no Direito, trazendo ainda duas propostas que podem ser úteis no
desenvolvimento desta.
Estes aportes teóricos iniciais possibilitaram uma melhor compreensão da proposta
estudada mediante a noção trazida de que a produção de conhecimento pode servir como um
instrumento de subversão a partir do momento em que se reformula e insere sujeitos excluídos
socialmente em seus debates, assumindo um caráter de ação política, decorrente da
responsabilidade social que pode haver na pesquisa científica.
Assim considera reducionista afirmar que a proposta se resumiu à mera análise
metodológica das produções, sendo esta um fator complementar aos debates estabelecidos
sobre a produção de conhecimento em Direito e Gênero no Brasil.
Catalogar e discutir as estratégias e vocações metodológicas das produções científicas
sob este viés confirma a hipótese de haver uma necessidade de rediscutir e reconstruir a
produção do conhecimento em Direito, para que esta não seja mais um óbice à superação das
questões sociais que excluem os sujeitos dessas próprias sociedades. Não se pode mais
considerar uma produção de conhecimento de poucos para poucos.
Conclui-se que esta necessidade não só de reformulação da pesquisa como também do
debate sobre o seu papel na sociedade remonta à importância do fortalecimento desta, num
contexto em que se desenvolve no país uma clara (ou sombria) agenda de esvaziamento do
ensino superior, notadamente o ensino superior público.

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SEVERINO, Antonio Joaquim. Metodologia do Trabalho Científico. São Paulo: Cortez,


2007.
CAIU NA REDE É VIOLÊNCIA DE GÊNERO? Uma abordagem crítica do revenge
porn a luz da Criminologia Feminista117

Monique Dayane Zumba Elihimas118


Beatriz Izabelli Zumba Elihimas119
Renata Celeste Sales120

RESUMO

O presente trabalho busca cartografar o ambiente virtual, analisando o revenge porn em duas
vertentes: enquanto violência de gênero no contemporâneo, mas que comporta um grau de
historicidade por ser construção do patriarcalismo. A prática revanchista denuncia um
dispositivo de poder e que corresponde a uma urgência histórica. No ordenamento jurídico
brasileiro, o revenge porn não possui lei prévia que o tipifique enquanto crime, sendo a prática
subsumida em ilícitos civis, crimes cibernéticos, crimes contra a honra e demais tipificações
irrisórias que desconsideram problemas de gênero contido no revanchismo pornográfico. O
revenge porn, além de questionar as diferentes atribuições identitárias relacionadas ao sexo
biológico entre o sistema binário masculino-feminino, também põe em xeque qual deve ser o
papel do Direito na tutela penal. Nesse ponto, assume-se uma postura crítica considerando que
a mera tipificação legal não insere as mulheres no ambiente político. O Código Penal vigente
demonstra raízes patriarcais, apontando o problema para a ausência de participação feminina
na política e na elaboração de leis, que acaba por institucionalizar e legitimar o patriarcado. A
presente pesquisa tem por base uma análise na criminologia, utilizando como suporte teórico
as obras de Michel Foucault e Gilles Deleuze.

Palavras-chave: Revenge Porn. Criminologia Crítica Feministas. Dispositivo de poder.


Violência de gênero.

INTRODUÇÃO

As interações socioculturais, por diversas vezes, ocultam preconceitos e delimitam


estigmas121, denunciam estratégias de poder que contribui para a sujeição dos indivíduos. Com
o amplo uso das redes sociais, determinadas práticas históricas patriarcais são perpetuadas
com nova roupagem. Baseado nisso, o presente trabalho busca analisar a prática de
revanchismo pornográfico como uma derivação da estrutura patriarcal socialmente construída.

117
GT 4: Gênero(s) e Diversidade Sexual no Direito.
118
Graduanda em Direito pela Faculdade Damas da Instrução Cristã. Integrante do grupo de pesquisa e iniciação
científica O Cogito e o Impensado: estudos de Direito, biopolítica e subjetividades. E-mail:
monique.zelihimas@gmail.com
119
Graduanda em Direito pela Faculdade Damas da Instrução Cristã. Integrante do grupo de pesquisa e iniciação
científica O Cogito e o Impensado: estudos de Direito, biopolítica e subjetividades. E-mail:
elihimasbeatriz@gmail.com
120
Doutora em Direito pela UFPE. Mestre em Teoria do Direito e da Filosofia do Direito pela UFPE. Professora
da Graduação e do PPGD da Faculdade Damas da Instrução Cristã. Coordenadora adjunta da Graduação e Pós-
Graduação latu sensu. Coordenadora do Grupo de Pesquisa e Iniciação Científica O Cogito e o Impensado:
estudos de Direito, biopolítica e subjetividades. E-mail: renata.celeste@hotmail.com
121
Adotamos o termo estigma numa perspectiva do sociólogo Erving Goffman.
No revenge porn, traduzido no português por “pornografia de vingança”, a vítima tem seu
conteúdo exposto na internet por meio de fotos ou vídeos íntimos sem o próprio
consentimento, mas por sentimentos revanchistas.
A presente pesquisa traz como problemática o estigma das vítimas mulheres no
revenge porn, analisando como as diferentes atribuições de gênero, pautadas no sexo
biológico, refletem em modelos de violência. Como segunda problemática, será investigado
se a ausência de tipificação penal corresponde a uma derivação da estrutura socialmente
construída, onde o modelo patriarcal imposto acaba por afetar a configuração do próprio
Direito Penal.
Os objetivos da pesquisa serão divididos em três ocasiões: em primeiro momento
delimitando a prática do revanchismo pornográfico enquanto uma derivação do modelo
patriarcal, que conduz a uma submissão de gênero. Em segundo momento, objetiva apresentar
como essa configuração patriarcal e a estrutura no ordenamento jurídico preenche o conteúdo
de um dispositivo de poder baseado no gênero. Como fase conclusiva, o terceiro objetivo da
pesquisa é para demonstrar a necessidade de uma ressignificação, uma análise crítica do
Direito Penal à luz de uma criminologia feminista.
Segundo pesquisas feitas pela Vice-Presidente da Cyber Civil Rights Initiative122,
Mary Anne Frank123, no ano de 2016, 90% das vítimas são mulheres, onde o conteúdo é, na
maioria das vezes, exposto por namorados inconformados com o término da relação afetiva.
Posto isso, o revanchismo pornográfico, que traz como vítima o corpo feminino, se revela
enquanto violência de gênero no contemporâneo, mas denuncia a construção apriorística de
uma estrutura social patriarcal, onde a imagem do feminino foi estrategicamente constituída
em submissão ao masculino.
A construção da identidade social feminina engloba atributos que o corpo feminino
deve possuir, que correspondem a determinadas expectativas de gênero. Essas expectativas
possuem relação indissociável com o sexo, que produz uma identidade.
Dessa forma, a problemática do revanchismo pornográfico não se localiza apenas na

122
Cyber Civil Rights Initiative (Iniciativa Cibernética pelos Direitos Civis) é uma instituição não-
governamental, sem fins lucrativos, que visa acolher as vítimas de revenge porn, fornecendo informações e
procedimentos necessários a serem tomados, além de apresentar depoimentos enviados por terceiros – de forma
anônima ou não -. A organização foi criada por Holly Jacobs, que foi vítima de revenge porn. Frequentemente,
a organização também faz levantamentos de dados sobre revenge porn, países que o tipificam enquanto uma
nova violência no campo virtual, a eficácia dessas leis nos respectivos países.
123
Mary Anne Frank is a legislative and Tech Policy Director & Vice-President, Cyber Civil Rights Initiative
Professor of Law, University of Miami School of Law.
violação da integridade corpórea, mas dos significantes estabelecidos através do sexo
biológico e que constituem a identidade feminina na logística patriarcal.
O revenge porn, além de denunciar a identidade social em uma logística patriarcal e
secundária, também revela uma violência de gênero no contemporâneo que conduz a um
dispositivo de poder. É a partir dessa violência de rede que é instaurado o que Michel Foucaulr
intitula por dispositivo de sexualidade (1988), que conduzem a estratégias de dominação.
A pornografia de vingança se mostra enquanto instrumento de controle e de poder,
onde, através do conteúdo divulgado que se operam as curvas de visibilidade e as curvas de
enunciabilidade do dispositivo, como identificou o filósofo Gilles Deleuze (1996). É por meio
do dispositivo que se implanta o controle-sujeição do corpo feminino e o direito (ou sua
negação) ao prazer, produzindo corpos sujeitados.
Atualmente, a prática revanchista pornográfica não constitui crime, pois não possui
previsão legal no Ordenamento Jurídico brasileiro, não podendo ser punido em observância
ao princípio da legalidade. A depender do caso concreto, atuais práticas revanchistas são
interpretadas como ilícitos civis, crimes contra a honra, crimes cibernéticos, pornografia
infantil em casos de vítimas crianças e adolescentes. Essa subsunção, além de representar uma
punição insuficiente, não trata especificamente a causa do revenge porn: os problemas de
gênero124.
Nesse contexto, cabe ao Direito acompanhar as novas demandas sociais. O
ordenamento jurídico não deve ser um conjunto de normas obsoletas e dissociadas ao seu
tempo histórico, mas deve ter o compromisso de regulamentar possíveis demandas do
contemporâneo.
Entre as atuais demandas sociais, o revenge porn expõe a urgência de se repensar a
estrutura do Direito Penal e a localização de uma nova violência de gênero. É importante
pensar que o Código Penal, de data 1940, tem se mostrado insuficiente para compreender e
atuar em face dos novos modelos de valência em uma sociedade de rede.
Contudo, essa ressignificação do Direito Penal passa por uma análise crítica da
participação feminina no cenário jurídico, tanto no cenário que contribui para elaboração das
leis, quanto para sua aplicação. Parece nos crer que a falta de representatividade feminina, de
forma legislativa e jurídicas, acaba por legitimar o modelo patriarcal, visto que o feminino
continuaria sendo regulamentado pelas normas feitas por homens.

124
Adotamos o termo supracitado – problemas de gênero – numa perspectiva da filósofa Judith Butler.
Sendo assim, para que a recepção do novo tipo penal produza resultados eficazes, se
faz preciso uma nova formatação do Direito que acompanhe uma perspectiva de gênero e,
principalmente, insira a mulher no âmbito político, legislativo e jurídico.
Para a construção da pesquisa, os suportes teóricos que sustentam a base do trabalho
serão: a filosofia de Michel Foucault para explicar a lógica de dispositivo de sexualidade e de
poder, ancorada nos trabalhos de Gilles Deleuze, que explica também a noção foucaultiana de
corpo-sujeição e, por fim, usar uma perspectiva contra dogmática, ao abordar a urgência de
uma criminologia crítica feminista.
Em termos de metodologia, a pesquisa apresenta, em primeiro momento, um aspecto
exploratório, usando o levantamento bibliográfico enquanto técnica de pesquisa, a partir de
análise entre artigos, textos livros. Em segundo momento, também será adotado a metodologia
qualitativa, pois foram apresentados determinados levantamentos de dados, baseado em
pesquisas referendadas, as quais a presente pesquisa tecerá críticas valorativas a partir destas.

1. O REVENGE PORN ENQUANTO VIOLÊNCIA DE GÊNERO

A prática de revenge porn, presente na atual ‘era da informação’, mostra-se um novo


tipo de violência, na qual o agressor utiliza-se das redes sociais como meio de propagação do
conteúdo íntimo, visando a exposição da vítima no ambiente virtual e, consequentemente, na
esfera social. Essa forma de violência gera para vítima, além da exposição da própria imagem
sem consentimento prévio, danos psicológicos e materiais, à medida que se forma um
julgamento, geralmente negativo, a respeito da imagem social desta, afetando as diversas
esferas sociais da qual a vítima é pertencente. Afim de elucidar o fenômeno e demonstrar as
diversas consequências deste, o presente artigo utiliza-se de análise de pesquisas realizadas
no Cyber Civil Rights Initiative (CCRI), Instituto Avon e Data Popular, Mary Anne Frank,
além de analisar a prática sob três perspectiva: Agressor, vítima e sociedade. Antes disso, é
preciso firmar o entendimento de que a pratica revanchista consiste em um tipo de violência.
Entender o revenge porn como uma forma de violência é, acima de tudo, assumir que
tal prática não é apenas uma ‘simples exposição’ de conteúdos íntimos, mas uma ação advinda
do inconformismo de algo, que leva o indivíduo a se vingar, utilizando como estratégia de
dominação a exposição da vítima. É assumir que através do conteúdo divulgado pelo
indivíduo, este dotado de autonomia e detentor da relação de poder, é controlado como e de
que forma a informação será vinculada, a vítima pretendida e os possíveis espectadores. É
entender a pratica revanchista como uma forma que o autor encontra para ferir a vítima,
violando a privacidade da mesma com um objetivo prévio. Segundo pesquisa feita pelo Cyber
Civil Rights Initiative (CCRI), realizada no ano de 2013, de 361 pessoas entrevistadas que
afirmam ter sido vítima da prática do revenge porn 90% das vítimas são mulheres; 93% das
vítimas afirmam ter sofrido emocionalmente devido a exposição; 82% das vítimas afirmam
que sofreram prejuízos significativos em termos sociais, ocupacionais ou outras áreas
importantes de funcionamento devido a pratica revanchista. Tais dados demostram a
amplitude de danos que a pratica revanchista pode alcançar. Assumindo e compreendendo que
o revenge porn não é apenas uma exposição, mas o modus operandi escolhido pelo autor para
a prática de um objetivo específico, lesar a vítima, podemos observar que o fenômeno é algo
que necessita que suas consequências sejam reconhecidas.
O revenge porn, da prática às consequências, evidencia a interpretação do fenômeno
como uma nova forma de violência de gênero do contemporâneo. Firmar o entendimento
acerca do revanchismo pornográfico como uma nova forma de violência de gênero vem da
análise do fenômeno sob as esferas autor, vítima e sociedade. Essas esferas são interligadas,
com fatores determinantes para o juízo de valor do corpo a ser condenado socialmente, a
dimensão que terá a exposição virtual, o estigma social da vítima, tempo e durabilidade do
material intimo na internet, os espectadores, as consequências para os envolvidos, que tipo de
violência consiste.
Sob a esfera do agressor, a pratica revanchista funciona como modus operandi do
sujeito ativo. O indivíduo, com animus revanchista - vontade de vingar-se -, decide livremente
pela exposição do material intimo sem o consentimento de todos os envolvidos, se junto com
o material será vinculado informações pessoais (nome, endereço virtual e físico, profissão) e
a dimensão inicial da exposição, com prévio intuito de lesar a integridade e liberdade da
vítima.
Sob a esfera da vítima, a prática revanchista é, essencialmente, uma violência de
gênero no contemporâneo. A divulgação do conteúdo sexual na internet pode ser feita através
de sex tape (vídeo com conteúdo sexual em que há dois ou mais parceiros), podendo exibir a
vítima e o agressor, porém, as consequências da divulgação não são iguais para ambos os
participantes. Para falar sobre os efeitos da prática para os envolvidos e demostrar o por que
se trata de uma violência de gênero, é necessário antes delimitar o perfil predominante das
vítimas e traçar aspectos dos agressores.
Segundo pesquisas feitas pelo Cyber Civil Rights Initiative (CCRI), no ano de 2013,
90% das vítimas são mulheres. No ano de 2014, segundo pesquisa feita pelo Instituto Avon e
Data Popular, 59% dos homens receberam fotos/vídeos de mulheres nuas desconhecidas, 49%
dos homens receberam fotos/vídeos de mulheres nuas conhecidas, 28% repassaram essas
imagens. Tais dados demostram a predominância do perfil masculino como sujeito ativo da
prática revanchista e o perfil feminino como sujeito passivo dessa violência. Para além da
análise destes dados, é possível observar que, quando o homem tem seu conteúdo intimo
propagado na internet, os efeitos para ele é a reafirmação de sua masculinidade, sendo apenas
julgado negativamente quando o mesmo não corresponde as expectativas impostas para seu
gênero. Porém, para a mulher, além de ser estigmatizada e julgada negativamente pelas
diversas esferas sociais, diferente de seu agressor, as consequências da violência sofrida
interferem diretamente na sua forma de viver, somado ao fato que seu agressor, dificilmente,
será responsabilizado pelo dano ao qual foi causado.
A pratica revanchista demostra o patriarcado com raízes ainda presente no
contemporâneo. O patriarcado determina as diferentes visões para os envolvidos no revenge
porn: a vítima feminina estigmatizada que, além de ser lesada, enfrenta a punição social no
momento de divulgação do conteúdo íntimo, pois há uma sociedade que cria regras
socioculturais proibitivas para mulher em relação ao seu corpo, repreendendo o feminino e
negando seu direito ao desejo. O agressor, poupado pela sociedade e com grandes
possibilidades de impunidade pelo ordenamento jurídico, visto que as regras que poderiam o
condenar foram criadas por homens e para os homens, reforçando o sistema patriarcal como
estratégia de dominação e detenção de poder exclusiva para o sexo masculino.

2. O DISPOSITIVO DE PODER

O conceito de dispositivo em Michel Foucault é bastante heterogêneo, pois engloba o


dito e o não-dito, práticas discursivas e não discursivas, que correspondem a uma determinada
urgência histórica. Para Foucault, o dispositivo é:

[...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações


arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos,
proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos
do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos... [e entre
estes] existe um tipo de jogo, ou seja, mudanças de posição, modificações de funções, que
também podem ser muito diferentes, [cuja finalidade] é responder a uma urgência. O
dispositivo tem, portanto, uma função estratégica dominante (FOUCAULT, 1999, p.244-245).

No revenge porn, a noção de dispositivo deve ser também heterogênea, pois engloba
a prática revanchista do agressor – que corresponde a uma relação de poder e dominação -, as
práticas discursivas emitidas a partir da exposição do feminino, o significado contido no corpo
feminino e o masculino. O dispositivo é a rede que comportam as linhas de força, conduzem
a uma relação estratégica de dominação e denunciam as práticas que produzem subjetividades,
criando determinadas representações sobre o sujeito.
Gilles Deleuze, contemporâneo a Foucault, busca aprofundar a noção de dispositivo
desenvolvida, primordialmente, nas entrevistas de Michel Foucault. Com a pretensão de
elucidar e sistematizar a noção de dispositivo, Deleuze destaca os traços que delimitam os
dispositivos. Nesse sentido:

Desenredar as linhas de um dispositivo, em cada caso, é construir um mapa, cartografar,


percorrer terras desconhecidas, é o que ele chama de «trabalho de terreno». É preciso
instalarmo-nos sobre as próprias linhas; estas não se detêm apenas na composição de um
dispositivo, mas atravessam-no, conduzem-no, do norte ao sul, de este a oeste, em diagonal.
(DELEUZE, 1996)

É com a pretensão de cartografar o revenge porn que se faz necessário a observância


das linhas que cruzam as práticas discursivas e os enunciados contido no não-dito, na
significação do corpo, intrinsicamente relacionado ao sexo biológico, que normaliza uma
identidade social de gênero.
Apesar de ser heterogêneo e mutável, Gilles Deleuze sistematiza possíveis linhas e
curvas presentes em dispositivos. Não se trata de uma fórmula, mas métodos de análises com
a pretensão de facilitar, em termos heurísticos, a sistematização do dispositivo foucaultiano.
Entre as dimensões do dispositivo, a primeira, para Gilles Deleuze, são as curvas de
visibilidade, são os holofotes que regulam o que poderá ser visto e o que deverá ser ocultado.
Foucault, ao desenvolver a noção de panóptipo, enuncia que o dispositivo prisional possui
relação sine qua non com um constante sentimento de vigilância, que define as condutas na
cela prisional. Conclui-se que a regulamentação do visto e ocultado possui relação intrínseca
com o controle e poder da normalização dos indivíduos, controle biopolítico e produção da
subjetividade. No revenge porn, onde a vítima tem seu corpo exposto pelo ex-companheiro, a
divulgação do conteúdo sexual são as curvas de visibilidade do dispositivo, que direcionam o
olhar para a vítima feminina, exercendo um controle no corpo da mulher e denunciam a noção
patriarcal, onde o feminino foi construído em submissão ao masculino. Nas palavras de
Deleuze:

Cada dispositivo tem seu regime de luz, uma maneira como cai a luz, se esbate e se propaga,
distribuindo o visível e o invisível, fazendo com que nasça ou desapareça o objeto que sem ela
não existe. Se há uma historicidade nos dispositivos, ela é a dos regimes de luz – mas é também
a dos regimes de enunciado.
A segunda dimensão do dispositivo são as curvas de enunciabilidade, no jogo entre o
dito e o não-dito, representado não somente por práticas discursivas, mas também por
representações e significantes. No revenge porn, as curvas de enunciabilidade constituem um
dos resultados produzidos pela exposição da vítima. Geralmente a imagem feminina,
subjugada na prática de revenge porn, é rotulada por não corresponder às expectativas de
gênero construída socialmente, onde a mulher é privada do direito ao desejo. Essa ruptura de
expectativas produz enunciados que estigmatizam a vítima, que por vezes chega a culpabilizar
a vítima na agressão pornográfica por ter se deixado filmar.
A terceira dimensão do dispositivo foucaultiano, segundo Deleuze, seriam as linhas
de forças. São elas:

Em terceiro lugar, um dispositivo comporta linhas de forças. Dir-se-ia que elas vão de um
ponto singular a outro, nas linhas de luz e nas linhas de enunciação; de algum modo, elas
«retificam» as curvas dessas linhas, tiram tangentes, cobrem os trajetos de uma linha a outra
linha, estabelecem o vaivém entre o ver e o dizer, agem como flechas que não cessam de
entrecruzar as coisas e as palavras, sem que por isso deixem de conduzir a batalha. A linha de
forças produz-se «em toda a relação de um ponto a outro» e passa por todos os lugares de um
dispositivo. Invisível e indizível, ela está estreitamente enredada nas outras e é totalmente
desenredável. É a «dimensão do poder», e o poder é a terceira dimensão do espaço, interior ao
dispositivo, variável com os dispositivos. É uma linha composta com o saber, tal como o poder

No revenge porn, as linhas de força retificam a noção de masculinidade-poder,


transitando entre as curvas de enunciabilidade e visibilidade. A construção social patriarcal,
ao conferir poder ao homem, impõe no corpo “uma identidade e lugar no mundo, que o conduz
no labirinto nas normas e valores sociais e morais” (SWAIN, 2000). Essa identidade, confere
aos gêneros diferentes imagens e formas para diferentes seres no âmbito social. No ambiente
virtual, o revenge porn monopoliza as linhas de forças no domínio masculino, com a pretensão
de perpetuar a modelagem social onde a dominação é predominantemente masculina, sendo
possível falar em termos de dispositivo da sexualidade. Nesse sentido, afirma Michel Foucault
que

O poder seria essencialmente o que, ao sexo, dita sua lei. O que quer dizer, primeiramente, que
o sexo se encontrado por ele sob um regime binário: lícito e ilícito, permitido e proibido. O que
significa, em seguida, que o poder prescreve ao sexo uma ‘ordem’, que funciona ao mesmo
tempo como forma de inteligibilidade: o sexo se decifra a partir de sua relação com a lei. O
que quer dizer, enfim que o poder age pronunciando a regra: a tomado do poder sobre o sexo
se faria pela linguagem ou melhor por um ato de discurso criando, do fato mesmo que se
articula, um estado de direito. Ele fala, e é a regra. ” (FOUCAULT, 1988, p. 119)

A prática revanchista é feita de duas maneiras: divulgando fotos/vídeos onde apenas a


vítima é exposta, ou com fotos/vídeos onde há a imagem da vítima e do agressor – também
conhecido como sex tape. Neste último caso, apesar de exibir dois sujeitos, apenas uma é
estigmatizada. Partindo como análise um sex tape que exiba um casal heterossexual, onde há
a exibição simultânea do corpo masculino e do feminino, apenas a mulher se torna sujeitada.
Ao homem é reforçado a noção de virilidade que enaltece a masculinidade. Essas divergências
de atribuições sociais, que constituem e reforçam expectativas baseadas na identidade de
gênero, preenchem o dispositivo de poder e ratificam as linhas de força – a dominação
masculina – e normalizam determinadas práticas, discursivas ou não discursivas, em torno do
corpo masculino e feminino.

3. O DISPOSITIVO DE GÊNERO

Partindo para a filosofia de Judith Butler, “discursos, na verdade, habitam corpos. Eles
se acomodam em corpos, os corpos na verdade carregam discursos como parte de seu próprio
sangue” (2002). Com a invenção do corpo, foram atribuídos, de forma indissociável,
determinados discursos aos mesmos. É criado uma normatização em torno do corpo, onde lhe
é atribuído expectativas de ações e discursos para performar sua respectiva categoria de
gênero. Esses discursos são naturalizados com base nos argumentos tocantes ao sexo
biológico, como se o gênero feminino fosse obrigatoriamente equivalente ao sexo mulher,
desconsiderando construções sociais na própria esfera do sexo. Nesse sentido, Judith Butler
indaga que:

Resulta daí que o gênero não está para a cultura como o sexo para a natureza; ele também é o
mero discurso/cultural pelo qual “a natureza sexuada” ou “um sexo natural” é produzido e
estabelecido como “pré-discursivo”, anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra
sobre a qual age a cultura (...). Assim, como dever a noção de gênero ser reformulada, para
abranger as relações de poder que produzem o efeito de um sexo pré-discursivo e ocultam,
desse modo, a própria operação da produção discursiva? (BUTLER, 1990, p. 23-24)

Posto isso, o dispositivo de gênero põe em xeque não somente as formas de poder
impostas pelo gênero, mas também a construção do sexo no qual age a cultura. O discurso, no
revenge porn, não é somente quanto às expectativas de gênero que negam à mulher o direito
ao desejo, mas também a problemática do sexo
É socialmente criado que as mulheres não podem ter pulsões sexuais da mesma forma
que os homens, sendo negado a elas o direito ao desejo. Essa construção, por vezes, é afirmada
no aspecto biológico, onde o homem supostamente possuiria um instinto sexual. Já a mulher
possuiria o atributo sexual exclusivamente ligado à reprodução. Nesse sentido, observa
Fabíola Rohden:

O desejo sexual feminino tornou-se potencialmente perigoso, e as mulheres que cedem aos
atrativos sexuais são caracterizadas como fáceis, como aquelas que não obtêm controle sobre
seus próprios corpos e vontades. Consequentemente a autonomia sexual das mulheres é vista
como uma ameaça à moral, à civilização e claro, à família (ROHDEN, 2001)

Esses discursos que são dissimulados pelo suposto saber biológico possuem a
pretensão de estabilizar as atribuições de gênero e o controle ao desejo, reforçando a categoria
identitária intrinsicamente ligada ao sexo biológico que, por consequência, criam supostas
evidências de gênero. Tania Navarro Swain pontua que:

As “evidências” são, também, construídas, de modo que, ao questionar a concretude dos corpos
biológicos, vemos um conjunto em dissolução: um corpo em mutação, atravessado pelo sexo,
invadido por um sentido unívoco do humano. Como o sexo designa uma identidade? Que
significa esse sexo que caracteriza meu ser? Seria o corpo uma superfície pré-discursiva, pré-
existente, que sofre as coerções, as disciplinas, a modelagem social? Ou uma construção social
que lhe confere imagem e forma? (...)

Sendo assim, a sujeição do corpo feminino no revenge porn é um “instrumento de


defesa” do próprio dispositivo. É a ideia na qual o dispositivo de gênero, ao ser ameaçado no
momento em que a mulher demonstra o desejo no ato sexual, responde com a sujeição do
corpo feminino, por representar uma categoria de desvio aos padrões identitários femininos.
O julgamento da mulher vítima do revenge porn busca reforçar a negação ao prazer
que a construção da identidade feminina constrói historicamente. A sujeição do corpo
feminino que detém o próprio direito ao desejo acentua o lugar feminino na submissão em
detrimento da dominação patriarcal, onde a divulgação não consensual da imagem masculina
apenas reforça a virilidade identitária do homem.

4. EFEITOS PARA AS VITIMAS DE REVENGE PORN

Em uma sociedade na qual o bel-prazer feminino é um tabu, havendo normas


socioculturais de essência patriarcal criadas para controlar a mulher e seu desejo sexual,
quando o corpo feminino é vinculado a ideia de autonomia do desejo sexual há uma resposta
negativa para a imagem desta, objetivando inibi-la e coagir a enquadrar-se nas normas sociais
quais foram criadas para seu controle. Tal realidade tem influência direta para as
consequências da vítima do revenge porn. Além de ter a integridade violada, sua intimidade
e liberdade desrespeitada, a vítima feminina da pratica revanchista também sofre um juízo de
valor negativo nas diversas esferas sociais pertencentes por ter um conteúdo propagado nas
redes sociais em que ela exerce sua autonomia sexual, desrespeitando as normas socioculturais
imposta. A sociedade “fecha os olhos” perante o fato de que a mulher teve seu conteúdo
divulgado por seu agressor, de forma não consensual, com objetivo lesar a vítima, e começa
um julgamento negativo, impondo a culpa da violência para a mesma ao momento que
permitiu ser filmada ou fotografada.

“Quando você sofre um crime de internet, sofre três dores: a da traição da pessoa que você
amava, a vergonha da exposição e a dor da punição social. As vítimas deste tipo de crime são
responsabilizadas pela maioria das pessoas, enquanto o agressor ainda é poupado pela
sociedade machista. ”
- Rose Lionel, jornalista e fundadora da ONG Marias da Internet, em depoimento no Fórum
Fale sem Medo de 2014.

Esse julgamento negativo é o que gera as diversas consequências para a vítima do


revenge porn. A partir do momento em que há um julgamento social negativo voltado para
quem sofre da prática revanchista, esse juiz de valor interfere diretamente nas diversas esferas
sociais, nos relacionamentos interpessoais e na forma como a vítima enxerga a si mesma,
podendo chegar ao sentimento de auto-culpabilização, por ter se deixado filmar e ao medo do
que pode vim a acontecer em sua vida devido a propagação do conteúdo íntimo divulgado.

Tabela 1 – Efeitos do revenge porn para as vítimas.


9 Sofreram emocionalmente devido a exposição.
3%
8 Sofreram prejuízos significativos em termos
2% sociais, ocupacionais ou outras áreas importantes de
funcionamento.
5 Tiveram pensamentos suicidas decorrente a
1% exposição do material íntimo.
4 Sofreram assédios ou perseguição online.
9%
3 Sofreram assédios ou perseguição fora da
0% internet.
Pesquisa feita pelo Cyber Civil Rights Initiative (CCRI), realizada no ano de 2013.

A partir das pesquisas acima citadas, é possível deduzir pelos números publicados que
as mulheres vítimas de revanchismo pornográfico sofrem perdas tanto no âmbito privado
como no âmbito público social. Esses efeitos ocorrem devido a amplitude de propagação que
a divulgação do material íntimo alcança, podendo atingir setores sociais diversos, dentro ou
fora das redes sociais. O agressor possui plena consciência das consequências que a prática
revanchista pode causar e ainda assim opta pela exposição online, onde os expectadores
auxiliam na exibição do conteúdo íntimo, no potencial de alcance e lesividade, afetando
diretamente a vítima, como mostram os dados supracitados.

5. POR UMA REFORMA NO DIREITO PENAL


Com a pretensão de assegurar e garantir a isonomia entre os indivíduos, a Constituição
Federal institui o princípio da igualdade. Apesar das acepções entre igualdade formal e
igualdade material, o ordenamento jurídico brasileiro continua em legitimar desigualdades,
sobretudo de gênero. O Código Penal de 1940 demonstra institucionalizar a desigualdade de
gênero, onde não houve a participação feminina para elaboração das leis penais, sendo um
código feito por homens e para os homens. A falta de representatividade feminina na esfera
legislativa acaba por legitimar o patriarcado, visto que o feminino seria regulamentado pelas
normas feitas exclusivamente pelos homens, tanto na esfera social quanto na esfera jurídica.
Sendo assim, não basta somente que as leis sejam feitas para todos, mas que excluam a
participação feminina na elaboração das leis. É preciso, sobretudo, inserir a mulher no espaço
legislativo. Nesse sentido, enuncia Vera Regina Pereira de Andrade:

O discurso feminista da neocriminalização parece encontrar-se imerso na reprodução da


mesma matriz (patriarcal e jurídica) de que faz a crítica, num movimento extraordinariamente
circular. Pois, em primeiro lugar, reproduz a dependência masculina, na busca da autonomia e
emancipação feminina; ou seja, segmentos do movimento feminista buscam libertar-se da
opressão masculina (traduzida em diferentes formas de violência) recorrendo à proteção de um
sistema demonstradamente classista e sexista e creem encontrar nele o grande pai capaz de
reverter sua orfandade social e jurídica (...). Até que ponto é um avanço para as lutas feministas
a reprodução da imagem social da mulher como vítima, eternamente merecedora de proteção
masculina, seja do homem ou do Estado?

Para que o Direito não continue em perpetuar a desigualdade de gênero historicamente


institucionalizada, onde a dominação masculina é feita no dispositivo de gênero, introjetada
na esfera social, institucionalizada e legitimada no ordenamento jurídico brasileiro, é preciso
que haja a participação efetiva das mulheres na vida pública, nas tomadas de decisões
jurídicas, na elaboração legislativa. É nesse sentido que orienta a criminologia feminista125,
como analisa Salo de Carvalho:

A pauta criminológica feminista não apenas evidencia o processo de objetificação da mulher,


que a torna vulnerável à violência no espaço privado, mas denuncia o sexismo institucional,
que reproduz distintas formas de violência contra a mulher na elaboração, na interpretação, na
aplicação e na execução da lei (penal). (CARVALHO, 2017, p. 215)

Atualmente, a participação feminina no atual cenário jurídico ainda é insuficiente,

125
Quanto a criminologia feminista, dizem Heidensohn e Gelsthorpe: “A criminologia feminista, como uma das
especificações científicas da teoria feminista, objetiva “fazer visível o invisível”, trazendo à lente todas as formas
de gênero a partir da evidenciação da lógica patriarcal que rege a cultura” (2007, p. 382).
No revenge porn, a criminologia crítica feminista se faz fundamental por apresentar uma formatação
contradogmática, ao desconstruir a logística patriarcal desde a formatação das leis penais e participação feminina
na elaboração das leis até a participação das mulheres na política. O atual ordenamento jurídico é insuficiente,
tanto por não apresentar tipificação própria para casos de revenge porn, quanto por não dialogar com teorias
feministas acerca da desigualdade de gênero.
sendo a justiça brasileira domada pela aristocracia masculina. Pesquisa feita pelo Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) mostra que, em março de 2017, apenas 37,7% do Magistrado são
mulheres126.

Imagem 1 – Participação das mulheres no Congresso Nacional em 2017.

Fonte: IBGE. Estatísticas de gênero – Indicadores sociais das mulheres no Brasil 08 de junho de 2018.
Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101551_informati vo.pdf> Acesso em 23
set. 2018.

Sendo a participação feminina no cenário político ainda insuficiente, o Direito legitima


o patriarcado, mantendo as decisões pendente aos homens para a manutenção e
institucionalização da dominação masculina. Para que o sistema jurídico brasileiro seja capaz
de compreender as atuais demandas do contemporâneo, como o revenge porn, e dialogue com
as questões de gênero historicamente legitimadas pelo Direito, é preciso uma criminologia
contradogmática, sobretudo reformadora.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O revenge porn na atual “era da informação” é uma nova forma de violência de


gênero que demostra uma sociedade imersa em um sistema patriarcal que molda, desde sua
instauração, aspectos culturais e o ordenamento jurídico vigente. Tal modelagem acaba por
legitimar novas formas de violência de gênero do contemporâneo ao momento que há um
controle do que é considerado ilícito e o que esse ilícito abarca, porém, não abrange as novas
demandas sociais referentes a violência de gênero, havendo uma seletividade no controle do
que é proibido, evidenciando uma estrutura patriarcal presente no ordenamento jurídico que
se mostra ineficaz para atender as novas demandas contemporâneas referentes à violência de
gênero. Por isso, o presente trabalho conclui sobre a importância do reconhecimento do
revenge porn como uma nova violência de gênero vinculado a ressignificação no Direito Penal

126
Levantamento feito pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias (DPJ), órgão do Conselho Nacional de Justiça
(CNJ). O número foi extraído do Módulo de Produtividade Mensal, sistema mantido pelo CNJ e alimentado
regularmente por todos os tribunais.
à luz da criminologia crítica feminista, com o objetivo de desvincular as atuais formas de
dominação imposta ao gênero feminino pela aristocracia patriarcal detentora da posição de
poder que impedem o reconhecimento da importância de atender as novas formas de violência
de gênero.

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20/08/2018.
INSTITUCIONALIDADE DE GRUPOS DE PESQUISA, SUBÁREAS DO
CONHECIMENTO E LINHAS DE PESQUISA SOBRE GÊNERO E DIREITO NO
BRASIL127

Anne Gabriele Alves Guimarães 128


Fernando da Silva Cardoso129

RESUMO

O presente artigo é fruto de estudos desenvolvidos a partir do Projeto de Pesquisa “Pesquisa


e produção do conhecimento sobre gênero e direito no Brasil”, concluído no âmbito do
bacharelado em Direito da Universidade de Pernambuco. Tal projeto teve como problemática
investigar o dimensionamento dos estudos de gênero na pesquisa jurídica brasileira e a
institucionalidade de áreas de pesquisa e produção do conhecimento dela decorrente. A
concepção metodológica foi mista, quali e quantitativa, com viés exploratório e descritivo. Do
mesmo, extraiu-se o subprojeto com a intenção de mapear os Grupos de Pesquisa (GP), áreas
do conhecimento e respectivas linhas de pesquisa que tematizam gênero e direito no Brasil. A
perspectiva adotada foi diversa da que predomina nos estudos bibliométricos habituais, pois
se buscou apresentar o panorama acerca da inserção dos estudos de gênero no direito,
considerando não o que se tem produzido sobre esses campos, mas a institucionalização de
Grupos de Pesquisa (GPs) registrados no Diretório Nacional de Grupos de Pesquisa –
Plataforma Lattes, que possuam linhas de pesquisa direta ou indiretamente ligadas às duas
categorias centrais eleitas (gênero e direito).
Palavras-chave: Gênero. Direito. Grupos de pesquisa. Linhas de pesquisa. Subáreas do
conhecimento.

INTRODUÇÃO

Voltado a investigar/compreender o dimensionamento das pesquisas jurídicas


brasileiras em gênero, a partir da institucionalidade de áreas de pesquisa e da produção do
conhecimento dela decorrente, o projeto “PESQUISA E PRODUÇÃO DO
CONHECIMENTO SOBRE GÊNERO E DIREITO NO BRASIL”, mais amplo, se desdobra
em um subprojeto, no qual se tem a intenção de mapear os Grupos de Pesquisa (GPs), áreas
do conhecimento e respectivas linhas que tematizam gênero e direito no Brasil.
Utilizando-se de concepção metodológica mista, quali e quantitativa, com viés
exploratório e descritivo e da técnica da análise de conteúdo, investiga-se como o corpus
produzido em determinadas áreas do saber tem sido um importante canal a novas pesquisas e

127
Trabalho submetido ao GT 4 – Gênero(s) e Diversidade Sexual no Direito.
128
Graduada em Direito pela Universidade de Pernambuco – UPE Arcoverde. Aluna da Iniciação Científica
Voluntária em Gênero e Direito da UPE Arcoverde sob a orientação do professor Fernando Cardoso. E-mail:
annegabrielebj@hotmail.com
129
Doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica-Rio de Janeiro. Professor da UPE Arcoverde.
Orientador da Iniciação Científica Voluntária em Gênero e Direito da UPE Arcoverde. E-mail:
cardosodh8@gmail.com
à ressignificação do conhecimento científico, sem descurar da caracterização das Ciências
Humanas e Sociais Aplicadas enquanto áreas de vocações teóricas e metodológicas
incipientes em relação às disciplinas das Ciências Exatas e da Saúde.
Neste intento, o presente subprojeto assume uma perspectiva diversa da que predomina
nos estudos bibliométricos habituais, direcionados a realizar o que se convencionou
denominar de “pesquisa na pesquisa”130. Diferentemente, busca-se apresentar o panorama
sobre a inserção dos estudos de gênero no direito, considerando não o que se tem produzido
sobre esses campos, mas a partir da institucionalização de Grupos de Pesquisa (GPs)
registrados no Diretório Nacional de Grupos de Pesquisa – Plataforma Lattes – do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (DNGP)131, que possuam linhas de
pesquisa direta ou indiretamente ligadas às duas categorias centrais eleitas e especificadas
anteriormente.
O texto constrói um panorama sobre os seguintes eixos: i) Identificação dos Grupos
de Pesquisa que se dedicam estudo de questões de gênero no direito, a partir do banco de
dados do Diretório Nacional de Grupos de Pesquisa (DNGP-CNPq); ii) Apresentação das
diferentes subáreas do saber nas quais se insere o estudo questões de gênero no direito, no
Brasil; e iii) Relação das distintas linhas e eixos de pesquisa que se dedicam à investigação da
categoria gênero no Direito no Brasil.
É nesse sentido que a problemática de pesquisa eleita é: Qual o panorama de
institucionalidade de Grupos de Pesquisa, áreas do conhecimento e respectivas linhas de
pesquisa que tematizam gênero e direito no Brasil? Junto a essa questão, outras surgem: A
institucionalidade de GPs sobre gênero e direito no Brasil é diretamente relacionada à pesquisa
em Pós-graduação? Que subáreas são articuladas nos GPs em Direito que tematizam questões
de gênero? O que distribuição geográfica dos GPs revela sobre a pesquisa jurídica em gênero
no Brasil?
A importância em evidenciar como vêm se institucionalizando os espaços de pesquisa
jurídica voltados às questões de/em gênero no Brasil pode contribuir com a visualização dos
níveis, distribuição geográfica e institucional dos espaços dedicados a essa área, assim como,
acerca das subáreas com as quais se têm dialogado, possibilitando compreender as diferentes
interfaces construídas com outras áreas do saber e, principalmente, revelando a inclinação da

130
Ideia de que um conjunto de estudos produzidos pode ser objeto de análise, na busca por investigar-se as
linearidades de um determinado assunto em uma área do saber específica.
131
Endereço oficial: http://lattes.cnpq.br/web/dgp.
pesquisa jurídica contemporânea em dialogar com temas relacionados a minorias sociais.
Assim, o objetivo geral da presente pesquisa é: mapear o panorama de
institucionalidade de Grupos de Pesquisa, subáreas do conhecimento e respectivas linhas de
pesquisa que tematizam gênero e direito no Brasil.
Como objetivos específicos, tem-se: identificar os Grupos de Pesquisa que se dedicam
estudo de questões de gênero no direito, a partir do banco de dados do Diretório Nacional de
Grupos de Pesquisa (DNGP-CNPq); apresentar as diferentes subáreas do saber nas quais se
insere o estudo questões de gênero no direito, no Brasil; e relacionar as distintas linhas e eixos
de pesquisa que se dedicam à investigação da categoria gênero no Direito no Brasil.
Quanto à abordagem, perfazemos a concepção de uma pesquisa mista, quali e
quantitativa. Aqui, as informações alcançadas são categorizadas e analisadas pela dedução e
interpretação das informações, a partir de categorias analíticas. Dialogando com o método e
frente aos objetivos eleitos, se desdobra em um estudo exploratório e descritivo.
Sobre o universo e a coleta de dados, esta pesquisa é delimitada pela análise do registro
de Grupos de Pesquisa no Diretório Nacional de Grupos de Pesquisa – Plataforma Lattes – do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, ligados a área de
conhecimento do Direito, assim, trata-se de uma investigação de caráter bibliométrico (CAFÉ;
BRÄSCHER, 2008). O universo da pesquisa está circunscrito a uma base de dados, a do
DNGP do CNPq, em específico, sobre os GPs na área do Direito que em seu título ou descrição
haja expressa menção ao estudo de questões de gênero. A sistematização quanto à busca e
análise das informações no DNGP se institui a partir de descritores, quais sejam: “gênero”
e/ou “sexualidade”, “direito”.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Considera-se que a análise da institucionalidade de Grupos de Pesquisa, subáreas do


conhecimento e respectivas linhas de pesquisa que se voltam ao estudo de questões de gênero,
no Direito, é essencial ao dimensionamento e no estabelecimento de preocupações
(CARDOSO, 2014; SANTOS, 2003; 2009) que a pesquisa nessa área do saber tem dedicado
a esse tema. Afinal, é neste cenário de (re)construções epistemológicas – e também
institucionais – que os estudos de gênero132 podem e devem assumir lugar privilegiado na

132
O termo “estudos de gênero” é usado neste subprojeto enquanto sinônimo à subárea do saber que se dedica a
compreender/investigar a vulnerabilidade de grupos sociais subalternizados a parti de marcadores ligados a sua
condição de gênero e/ou de sexualidade.
reflexão jurídica sobre a sociedade (LAURETIS, 1989; SCOTT, 1995) e, consequentemente,
buscar possibilitar a consolidação de espaços que afirmem essa agenda renovada de pesquisa
e produção do conhecimento (CARVALHO; CARDOSO, 2015; MIGNOLO, 2006a, 2006b).
A justificativa à realização desta pesquisa é decorrente do conjunto de estudos
empíricos aos quais os autores atualmente têm se dedicado, nos quais tem buscado relacionar
estratégias de análise e de compreensão do Direito, especialmente em suas interfaces com os
direitos humanos e temas interdisciplinares.
Assim, o tema aqui proposto também parte do fundamento de que compreender como
os espaços de investigação jurídica, no Brasil, privilegiam e relacionam em suas linhas e
subáreas de pesquisas as intersecções e temáticas de gênero(s), perfaz uma vertente pouco
explorada nas investigações em direito que se utilizam de estudos bibliométricos, tendo, além
da análise de produções bibliográficas, a compreensão da institucionalidade de espaços,
linhas, afiliação institucional, distribuição geográfica e subáreas do saber como universo
potencial à revelação de importantes dados.
Recuperar os trajetos adotados por instituições e pesquisadores/as brasileiros que se
dedicam ao estudo de questões de gênero no Direito quanto à institucionalidade de Grupos de
Pesquisa e demais elementos que o cercam, pode contribuir com a compreensão das vertentes
e tendências da pesquisa em Direito no Brasil.

TRAJETOS DA PESQUISA NO DIREITO: APONTAMENTOS E DESAFIOS

Fazer pesquisa depende primeiro do esclarecimento dos dilemas, afinidades e escolhas


anteriores à pesquisa. É preciso entender o que a proposta de pesquisa implica para o
pesquisador. Trata-se, segundo Leme de Barros e Barros (2018, p. 28), “de compreender uma
relação necessária entre pesquisa e pesquisador, sem a qual nenhuma produção ocorreria”.
Significa dizer que para oferecer uma definição ou uma descrição do que é direito, é
fundamental escolher um recorte e uma observação que delimitem o campo da pesquisa. A
relação pesquisa-pesquisador reflete, desta forma, tais recortes e observações, variáveis
dependentes de questões, sobretudo, históricas e intencionais do contexto de quem pesquisa.
Por este motivo e aqui já se destaca, são cruciais na pesquisa as experiências vividas
pelo pesquisador, em busca de um sentido para suas aflições e escolhas. No caso da pesquisa
em direito, deveria ser priorizado o trajeto metodológico adotado pelo autor antes do
desenvolvimento dos seus estudos. Diz-se, inclusive, que isto é um dever ético do pesquisador,
pois almeja a interação e avaliação da comunidade acadêmica, numa espécie de feedback do
que se pesquisa e para quem se pesquisa.
Afinal, o ato de fazer recortes epistemológicos e selecionar variáveis/descritores na
investigação jurídica e em outras áreas do saber implicam em estabelecer relações com outros
pesquisadores, “com o propósito de problematizar, descrever e formular em tese explicações
causais ou correlações a partir de diversos programas” (LEME DE BARROS; BARROS,
2018, p. 28).
Neste ponto, já tendo discorrido sobre aspectos gerais, busca-se deixar claro que, no
campo das ciências humanas, existe uma complexa relação entre o mundo no qual se vive e
aquele no qual se pensa. Assim, conforme Leme de Barros e Barros (2018, p. 28):

No direito, os limites e a temporalidade da observação se traduzem em problemas e


explicações que relacionam causas e efeitos jurídicos e em tantas outras relações
entre o direito e a sociedade (economia, ciência, saúde, arte, família, política,
religião entre outros).

Neste ínterim, constata-se que um dos principais diagnósticos acerca da pesquisa


jurídica no Brasil é a baixa qualidade científica dos trabalhos aqui produzidos. A proposta
deste estudo, entretanto, não é encontrar a causa ou as causas que agravam tal déficit, mas
trabalhar com hipóteses que podem ajudar a entendê-lo e, portanto, reduzi-lo. Leva- se em
conta, para tanto, a ideia sempre válida de que a pesquisa, por se destinar a uma relação
dialógica com a comunidade acadêmica, não deve(ria) se preocupar em estabelecer a palavra
final sobre as questões, mas estaria aberta ao debate.
Aponta-se, à título de reflexão, que o déficit acima sinalizado pode decorrer da
confusão metodológica feita pelos pesquisadores, além de fatores históricos. Leme de Barros
e Barros (2018, p. 32) assim acrescentam:

Cumpre esclarecer que a baixa qualidade científica dos trabalhos produzidos é


compreendida como a reprodução pela pesquisa do abismo entre o direito dos
manuais e códigos daquele praticado pelos advogados e tribunais. Há uma ruptura
presente nas descrições entre um direito idealizado e outro empiricamente
constatado. Tal situação é pouco explorada em pesquisas em direito no país,
revelando a fragilidade desses trabalhos.

No mesmo sentido, Nobre (2004) indica que os problemas da pesquisa em direito no


país residiriam no isolamento secular (suposta crença na autossuficiência) dos cursos de
direito em relação às demais disciplinas e uma confusão que é feita entre pesquisa e prática
profissional, remetendo novamente ao abismo entre teoria e práxis nos tribunais.
Em outras palavras, o curso mencionado, voltado essencialmente à formação política,
nunca teve um viés científico. O resultado disso é o surgimento de pesquisas sobre o direito,
visto que oriundas de outras áreas do conhecimento (direito como objeto de estudo).
A lógica mercadológica do ensino jurídico brasileiro, por sua vez, privilegia o estudo
de respostas esquematizadas, “bastando ao aluno repeti-las, tal como ocorre com métodos
focados no preparo para exames ou concursos públicos que se utilizam de avaliações alheias
aos critérios científicos de pesquisa” (LEME DE BARROS; BARROS, 2018, p. 33).
Este modo de ensinar não só compromete a produção científica como impede uma
formação crítico-reflexiva, questionadora do próprio agir jurídico. Sem falar na adoção de
modelos estrangeiros para embasar pesquisas já feitas, indicando um tipo de pesquisa
completamente diferente da realidade institucional (RODRIGUEZ, 2013).
Conclui-se, então, que, diante do panorama exposto, é perceptível a predileção
histórica da academia jurídica em geral por glosa de textos legais em detrimento da produção
científica-jurídica crítica (LEME DE BARROS; BARROS, 2018). O ensino jurídico no Brasil
possui um problema de ordem epistemológica, afirmam Kant de Lima e Lupetti Baptista
(2014): o problema residiria no fato de que, no Brasil, teorias analítico-descritivas estariam
voltadas para reconstruções dogmáticas do ordenamento.
Por óbvio e sem exageros, este óbice congela metodológica e teoricamente novas
possibilidades de investigação e, no presente trabalho, ajudará a entender a problemática
lançada, ou seja, servirá como aporte para investigar o dimensionamento dos estudos de
gênero na pesquisa jurídica brasileira e a institucionalidade de áreas de pesquisa e produção
do conhecimento dela decorrente.

ANÁLISE DOS DESCRITORES UTILIZADOS NA PESQUISA BIBLIOMÉTRICA

Tendo em vista os apontamentos feitos sobre a pesquisa jurídica no Brasil, intenta-se,


neste momento, explicar a escolha dos descritores utilizados no projeto, dialogando com o
propósito lançado na introdução: apresentar o panorama acerca da inserção dos estudos de
gênero no direito, considerando não o que se tem produzido sobre esses campos, mas a
institucionalização de Grupos de Pesquisa (GPs) registrados no Diretório Nacional de Grupos
de Pesquisa – Plataforma Lattes – do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (DNGP), que possuam linhas de pesquisa direta ou indiretamente ligadas às
categorias centrais eleitas: “gênero” e “direito”. Também se utilizou o descritor “sexualidade”
no direito, seja separado ou junto com o descritor “gênero”.
A relevância desses descritores se dá pelo fato de que o diálogo entre
gênero/sexualidade e direito tem, cada vez mais, proporcionado espaços de reflexão na e a
partir de diferentes subáreas do saber jurídico, sendo imprescindível o mapeamento e a
posterior discussão sobre tal cenário. A análise, portanto, parte do pressuposto hipotético de
que a institucionalização de temas relacionados às questões de gênero/sexualidade no campo
do direito possibilita compreender as diferentes interfaces construídas com outras áreas do
saber e, principalmente, revela a inclinação da pesquisa jurídica contemporânea em dialogar
com temas relacionados a minorias sociais.
Consideramos, nesta proposta, que os estudos de gênero, associados à sexualidade,
podem e devem possuir lugar consolidado na reflexão jurídica atual, possibilitando a
construção de espaços que afirmem essa agenda renovada de pesquisa e produção do
conhecimento. Assim, o tema aqui proposto também parte do fundamento de que compreender
como os espaços de investigação jurídica, no Brasil, privilegiam e relacionam em suas linhas
e subáreas de pesquisas as intersecções e temáticas de gênero(s), perfaz uma vertente pouco
explorada nas investigações em direito que se utilizam de estudos bibliométricos, tendo, além
da análise de produções bibliográficas, a compreensão da institucionalidade de espaços,
linhas, afiliação institucional, distribuição geográfica e subáreas do saber como universo
potencial à revelação de importantes dados.
Por ser delimitada pela análise do registro de Grupos de Pesquisa no Diretório
Nacional de Grupos de Pesquisa – Plataforma Lattes – do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico, ligados a área de conhecimento do Direito, trata-
se de uma investigação de caráter bibliométrico (CAFÉ; BRÄSCHER, 2008). Assim, o
universo da pesquisa está circunscrito a uma base de dados, a do DNGP do CNPq, em
específico, sobre os GPs na área do Direito que em seu título ou descrição faça expressa
menção ao estudo de questões de gênero e/ou sexualidade.

EPISTEMOLOGIAS DO SUL: POR UMA RAZÃO DECOLONIAL À PESQUISA


JURÍDICA

Considerando a proposta do trabalho, neste tópico alude-se ao que Santos (1995)


chama de Epistemologias do Sul, considerando três orientações: aprender que existe o Sul;
aprender a ir para o Sul; aprender a partir do Sul e com o Sul. São, portanto, o conjunto de
intervenções – epistemológicas – que denunciam a supressão de saberes ao longo dos séculos,
valorizam os saberes que resistiram e as reflexões que produzem, investigando perspectivas
para um diálogo horizontal e intercultural entre conhecimentos, as chamadas ecologias de
saberes.
Neste ínterim, revisitam-se as epistemologias modernas e assume-se esta perspectiva
Sul-Sul como desafio teórico, ético e político, na medida em que explicita a exclusão e o
silenciamento de sujeitos levados à desumanização, tendo seus saberes e cosmovisões negados
como explicativos e orientadores legítimos de condutas (MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2014).
A tese da “modernidade-colonialidade-decolonialidade” latino-americana acentua a
urgência do diálogo a partir do Sul entre as distintas esferas culturais, contribuindo para uma
ação descolonizadora das subalternidades mediante a ênfase nas experiências singulares, na
tradução e na articulação das diferenças em torno de projetos plurais de reconhecimento de
sujeitos e suas vozes (MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2014).
Santos (2000; 2004) propõe, então, uma teoria crítica pós-moderna que retoma a
esperança pelo exercício da tradução e comunicação das alternativas locais resgatando a força
das resistências e de suas experiências de bem viver.
Sobre o assunto, Miglievich-Ribeiro (2014, p. 68) preleciona:

Ao ressaltar a face oculta da modernidade – a colonialidade – não se despreza a


cosmologia moderna que moldou valores tais quais liberdade, igualdade,
democracia ou os direitos humanos ou propõe um saber dos povos do sul contra os
saberes produzidos no mundo do norte, mas exige, de um lado, a contextualização
das categorias explicativas (e normativas) até então naturalizadas como absolutas,
exibindo a necessidade de sua tradução para os novos cenários cujos agentes,
portadores de outros repertórios, virão ressignificar seus conteúdos [...]

A crítica pós-colonial, ao verificar, na cosmovisão moderna hegemônica, suas


contradições, percebe nesta as operações de exclusão e desumanização mediante a produção
da diferença colonial. O discurso da emancipação colou-se a práticas seculares de violenta
dominação sobre os povos colonizados de maneira que a colonialidade, para além da
colonização política, não é uma história passadista. Diz-se que superamos a colonização, mas
ainda não superamos a colonialidade.
Quijano (2010) permite atentar também para a racialização das relações de poder e
para a internalização da subalternidade nas estruturas subjetivas do colonizado, cujos efeitos
não poderiam ser mais objetivos, a exemplo das desigualdades de gênero, do disciplinamento
dos corpos, da sujeição dos saberes, em pleno século 21, a uma lógica moderna hegemônica
de classificação do mundo e das pessoas no mundo. Isto se coaduna com o presente trabalho,
cuja problemática é investigar o dimensionamento dos estudos de gênero na pesquisa jurídica
e a institucionalidade de áreas de pesquisa e produção do conhecimento dela decorrente em
território nacional, ou seja, por regiões geográficas.
O giro decolonial (BALLESTRIN, 2013) questiona as pretensões de objetividade do
conhecimento dito científico dos últimos séculos e, principalmente, das ciências sociais,
questão discutida no primeiro tópico desta seção. O principal desafio trazido pela razão
decolonial é a consciência da geopolítica do conhecimento, “a partir da qual se trata de rejeitar
a crença iluminista na transparência da linguagem em prol de uma fratura epistemológica”
(MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2014, p. 77-78), sendo esta última responsável por inserir uma
perspectiva inédita e libertadora tanto no campo discursivo como na esfera da ação.
Santos (1995), quando apresenta as Epistemologias do Sul, abre espaço para a
realidade imediata, latências, possibilidades e tendências, nunca esquecendo o colonialismo
enquanto dominação epistemológica que fomentou relações desiguais de saber-poder,
conduzindo ao silenciamento e ocultamento dos povos colonizados.
O giro decolonial (BALLESTRIN, 2013), a partir do diálogo Sul-Sul, permite afirmar
que o regime civilizacional capitalista atua perversamente desde a família ate a religião, do
tempo aos comportamentos cotidianos, numa constante luta entre quem domina e quem é
dominado. O fim do colonialismo político não significou simultaneamente o fim dos espaços
de poder, reprodutores das relações sociais dominantes.
Quando se intitula este tópico “Por uma razão decolonial à pesquisa jurídica”, visa-se
questionar juízos que conferiram à ciência a exclusividade do conhecimento válido, sendo
esta concepção alastrada para um vasto aparato institucional (universidades e centros de
investigação, por exemplo). Com este trabalho e a partir dos pressupostos da crítica
decolonial, compreendendo a geopolítica do conhecimento, tenta-se resistir ao conhecimento
científico que, durante tempos, ocultou os contextos sociopolíticos marcados pelo estigma da
invalidade.
O giro decolonial (BALLESTRIN, 2013) será necessário para entender o porquê de,
no Brasil, e aqui já voltando à realidade da presente pesquisa, a maior parte dos grupos
registrados no Diretório do CNPq está localizada no eixo Sul-Sudeste. Significa que a herança
colonial de concentração de riqueza e poderes foi introjetada no próprio sujeito colonizado,
sendo o Brasil metaforicamente esse sujeito.
Os espaços e agendas de discussão, no país, sobre gênero e/ou sexualidade no direito
têm lugares bem delimitados e ganham conformação nos espaços com maiores apontadores
de renda e industrialização. Se considerarmos que a produção científica também é mecanismo
de poder e dominação, é fácil compreender o fomento à pesquisa majoritariamente nestas
regiões brasileiras. O que existe é uma perpetuação de relações sociais dominantes, da colônia
à contemporaneidade.
Logo, aquela ecologia de saberes, já aqui aludida, está longe de ser efetivamente
construída, pois há uma ausência – escancarada – de diálogo horizontal dentro do próprio país
e uma desproporcionalidade de instituições acadêmicas por região geográfica que mobilizam
agendas e espaços em torno dos descritores “gênero”, “sexualidade” e “direito”.
As constatações feitas derivam de buscas no DNGP do CNPq e foram organizadas em
gráficos e tabelas para melhor leitura. A seguir, serão apresentados os achados da pesquisa.

ACHADOS DA PESQUISA: LEITURA DOS GRÁFICOS E TABELAS

Diante do exposto, apresentaremos os resultados da pesquisa por meio de gráficos e


tabelas. As investigações foram divididas em: percentual de grupos de pesquisa (GPs) que
tematizam gênero/sexualidade e direito no Brasil por descrição, por região do país, por Estado
e por instituição de ensino superior.
Gráfico 01 - Percentual de GPs por descrição
4%

17%

Gênero
Sexualidade
Gênero e sexualidade

72%

Fonte: Dados provenientes da pesquisa.


Este primeiro gráfico traz o percentual de grupos que tematizam os descritores
“gênero”, “sexualidade”, “gênero e sexualidade” (pesquisados juntos) no direito. Os dados
foram contabilizados de acordo com pesquisa na base do Diretório Nacional de Grupos de
Pesquisa, cadastrados no CNPq (DNGP-CNPq).
Nota-se a incidência de grupos de pesquisa em gênero nesta área do saber espalhados
pelo território nacional, o que sugere uma possível ampliação dos espaços de discussão e
reconfiguração de pautas principalmente nas universidades públicas.
Percebe-se, pelo gráfico, a grande quantidade de grupos sobre gênero no direito em
relação aos demais descritores: “sexualidade” e “gênero e sexualidade”.

Gráfico 02 - Percentual de GPs por região do país (Gênero/Direito)


4,1%

26,39% Região Norte


43% Região Nordeste
Região Sul
Região Centro-Oeste
Região Sudeste

13,89%

12,5%
Fonte: Dados provenientes da pesquisa.

A distribuição de grupos de pesquisa em gênero e direito se revela desigual em termos


geográficos: a Região Norte apresenta 3 grupos; a Região Nordeste, 19; a Região Sul, 10; a
Região Sudeste, 31. Por fim, a Região Centro-Oeste apresenta 9 grupos. O percentual de 43%
dos grupos localizados na Região Sudeste (Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito
Santo) revela um maior fomento à pesquisa, o que inclui espaços de reflexão, Mestrado e
Doutorado na área e recursos humanos.
Coincide, portanto, com o desenvolvimento econômico desta região do país. Chama a
atenção o pequeno número de grupos da Região Norte: apenas 3, e a quantidade razoável,
porém ainda tímida, tendo em vista a quantidade de Estados, da Região Nordeste: são 19
grupos.
A disparidade apontada pode ser reflexo da relação entre direito e mudança social. Se
considerarmos que o direito é uma variável dependente, ou seja, passível de mudanças, são as
relações entre os grupos e as classes sociais, definidas principalmente pelo fator econômico,
responsáveis por determinar as estruturas jurídicas. O direito, nestas circunstâncias, é um
produto de interesses sociais, “que dependem das relações de dominação em cada sociedade”
(SABADELL, 2013, p. 91).
Por dominação, alude-se ao poder enquanto instância de controle social, inclusive na
educação e produção científica. O aparato colonial e capitalista se mantém nos dias de hoje,
ratificando desigualdades e gerando assimetrias no que tange à distribuição de recursos para
a pesquisa. A colonialidade do poder e do saber (QUIJANO, 2010) justifica esta má
distribuição, fazendo com que as vantagens obtidas pelos ditos “superiores” (regiões
economicamente fortes do país) sejam maiores que aquelas obtidas pelos considerados
“inferiores” (regiões desfavorecidas do ponto de vista econômico).
Neste gráfico, portanto, pode-se dizer que as formas de poder estão intimamente
associadas ao modo de fazer ciência, adotando poder como “qualquer relação social regulada
por uma troca desigual” (SANTOS, 2000, p. 266).

Gráfico 03 – Percentual de GPs por região do país (Sexualidade/Direito)

17,64%

Região Nordeste
Região Sul
Região Sudeste
58,82% 23,52%

Fonte: Dados provenientes da pesquisa.

Ao mudar o descritor para “sexualidade”, a quantidade de grupos de pesquisa é


reduzida drasticamente. São 17 grupos que tematizam sexualidade e direito, sendo 58,82%
deles localizados na Região Sudeste (Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito
Santo).
Percebe-se novamente uma concentração ainda mais desigual se levarmos em
consideração que duas regiões, de acordo com o DNGP – CNPq, não possuem grupos nesta
área: a Região Norte e a Região Centro-Oeste.
O descritor “sexualidade”, ao ser estudado nos grupos de pesquisa jurídica no Brasil,
sinaliza um aspecto muito importante: já se tem noção de que grande parte das diferenças
entre os sexos não são devidas a diferenças biológicas, decorrendo, assim, de uma construção
social da realidade (SABADELL, 2013). Neste ponto, há certo amadurecimento das pesquisas
quando permitem estudos no direito na perspectiva feminista, ainda que, novamente, os
espaços de discussão se localizem principalmente no eixo Sul-Sudeste.

Gráfico 04 – Percentual de GPs por região do país (Gênero e sexualidade/Direito)


25%

Região Nordeste
50%
Região Sul
Região Sudeste

25%

Fonte: Dados provenientes da pesquisa.

Com os descritores em conjunto “Gênero e sexualidade”, o total é de 4 grupos. Desta


vez, a Região Nordeste apresenta 2 grupos (Bahia e Sergipe), seguida das Regiões Sul (1
grupo – Santa Catarina) e Sudeste (1 grupo – Minas Gerais).
Aqui a situação se repete. São as regiões mais abastadas economicamente e com maior
controle político que apresentam incidência de GPs. Vale salientar que a perspectiva é a
análise de GPs cadastrados no CNPq, cujos estudos estão situados na área do direito. Os
descritores podem estar no nome do grupo ou nas respectivas linhas de pesquisa. De uma
forma ou de outra, não existem mudanças profundas nos lugares considerados como centros
da “cientificidade” brasileira.

Tabela 01133 – Percentual de GPs por Estado (Gênero/Direito)


Estado Nº de GPs Percentual
Rio de Janeiro 15 20,83%
Pernambuco 3 4,17%
Paraná 3 4,17%
Rondônia 1 1,39%
São Paulo 8 11,11%
Distrito Federal 5 6,95%
Bahia 4 5,55%
Santa Catarina 6 8,33%
Goiás 3 4,17%
Espírito Santo 3 4,17%
Acre 1 1,39%
Paraíba 3 4,17%
Piauí 1 1,39%
Minas Gerais 6 8,33%

133
As tabelas trazem uma melhor disposição dos dados estatísticos quando se trabalha com muitas variáveis –
neste caso, com os Estados brasileiros.
Sergipe 4 5,55%
Ceará 2 2,78%
Maranhão 1 1,39%
Alagoas 1 1,39%
Rio Grande do Sul 1 1,39%
Mato Grosso do Sul 1 1,39%
Fonte: Dados provenientes da pesquisa.

De acordo com as pesquisas, em “gênero” e “direito”, 20 Estados apresentam grupos.


Ao todo, são 72 GPs. Destes, o Rio de Janeiro se destaca com 15 GPs, seguido de São Paulo
com 8 e Minas Gerais com 6. Santa Catarina também possui 6. Distrito Federal possui 5.
Sergipe e Bahia, por sua vez, possuem 4. Pernambuco, Paraíba, Paraná, Goiás e Espírito Santo
possuem 3. Ceará possui 2. Os demais, Acre, Rondônia, Piauí, Maranhão, Alagoas, Rio
Grande do Sul e Mato Grosso do Sul, têm apenas 1 grupo.
Percebe-se, mais uma vez, a hegemonia da Região Sudeste, notadamente dos Estados
do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, que alcançam respectivamente 20,83%, 11,11%
e 8,33% do percentual de grupos.
É neste ponto que o giro decolonial (BALLESTRIN, 2013) faz sentido: é preciso
inserir uma perspectiva inédita e libertadora tanto no campo discursivo como na esfera da ação
(MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2014) se quisermos transcender as fronteiras de poder e fomento
científico. Essa ação descolonizadora, urgente na pesquisa jurídica, perpassa também a
tomada de consciência do próprio Estado brasileiro, agente mantenedor de padrões sociais
elitistas e segregacionistas (BRAND, 2016), para que reestruture sua política de distribuição
de programas de pesquisa, bolsas, cursos e profissionais/docentes.
Isto implica em pensar outros mundos dentro do país, voltar o olhar e se convidar para
abranger igualmente as outras regiões, historicamente desprivilegiadas pela cultura colonial-
capitalista.

Tabela 02 – Percentual de GPs por Estado (Sexualidade/ Direito)


Estado Nº de GPs Percentual
Paraná 1 5,88%
Santa Catarina 2 11,76%
Rio de Janeiro 6 35,29%
Bahia 2 11,76%
Paraná 1 5,88%
Minas Gerais 4 23,52%
Sergipe 1 5,88%
Fonte: Dados provenientes da pesquisa.

Com o descritor “sexualidade”, tem-se 17 grupos cadastrados na plataforma. Sete


Estados apresentam GPs, sendo o Rio de Janeiro mantenedor de um percentual de 35,29% de
espaços de reflexão sobre a temática, seguido de Minas Gerais, com 23,52%. De 17 grupos,
portanto, o primeiro Estado tem 6. Já o segundo, possui 4. A Região Sudeste, em termos
geográficos, concentra a maioria destes grupos, seja quando o descritor é “gênero” ou
“sexualidade”.
A crítica estatal também é válida quando o descritor é trocado, pois, ao aplicar um
sistema de normas jurídicas, o Estado regula o espaço de atuação dos poderes sociais
(SABADELL, 2013), legitimando a condição de ocultamento e subalternidade das regiões
Norte, Centro-Oeste e Nordeste.

Tabela 03 – Percentual de GPs por Estado (Gênero e sexualidade/Direito)


Estado Nº de GPs Percentual
Minas Gerais 1 25%
Sergipe 1 25%
Santa Catarina 1 25%
Bahia 1 25%
Fonte: Dados provenientes da pesquisa.

Com os descritores avaliados em conjunto, o Rio de Janeiro curiosamente não aparece


nas pesquisas. Quatro Estados, conforme a tabela, possuem grupos sobre a temática, sendo
um deles da Região Sudeste – Minas Gerais. A Região Nordeste marca presença com 2
Estados – Sergipe e Bahia. A Região Sul figura com Santa Catarina. Todos eles apresentam
apenas 1 grupo, totalizando 4 grupos.
As reflexões aqui revelam um equilíbrio entre as três regiões, mas ainda existe um
claro ocultamento das regiões Norte e Centro-Oeste, o que indica uma fragmentação da
produção jurídica dentro do país: há os centros de poder e os lugares esquecidos,
internalizando a subalternidade nas estruturas subjetivas do colonizado, o Brasil (QUIJANO,
2010).

Tabela 04 – Percentual de GPs por IES (Gênero/Direito)


IES Nº de GPs Percentual
UFF 2 2,78%
Unicap 1 1,39%
UFPR 1 1,39%
UNIR 1 1,39%
USP 3 4,17%
PUC-RIO 4 5,55%
UNICEP 1 1,39%
UPE 1 1,39%
UnB 4 5,55%
Fiocruz 1 1,39%
UNEB 1 1,39%
PUC-SP 1 1,39%
UFPB 2 2,78%
UFBA 1 1,39%
Faculdade CESUSC 1 1,39%
UFG 1 1,39%
FDV 1 1,39%
UFAC 1 1,39%
UFRJ 3 4,17%
UEPB 1 1,39%
UFPI 1 1,39%
UCSAL 1 1,39%
FUNORTE 1 1,39%
UNESP 3 4,17%
UEM 1 1,39%
UFMG 1 1,39%
UFU 1 1,39%
UFS 1 1,39%
UEMG 2 2,78%
UNIPÊ 1 1,39%
UNIT 3 4,17%
FUIT 1 1,39%
PUC-GOIÁS 1 1,39%
ALFA 1 1,39%
UNIFACS 1 1,39%
UFSC 2 2,78%
FGV 1 1,39%
UFES 2 2,78%
UESC 2 2,78%
FLF 1 1,39%
UFC 1 1,39%
UFMA 1 1,39%
Mackenzie 1 1,39%
UFAL 1 1,39%
UNOESC 1 1,39%
POSITIVO 1 1,39%
UNESA 1 1,39%
PUC-RS 1 1,39%
UFMS 1 1,39%
UERJ 1 1,39%
IBMEC RJ 1 1,39%
IDP 1 1,39%
Fonte: Dados provenientes da pesquisa.

Devido ao grande número de instituições de ensino (52 IES) que tematizam gênero e
direito no Brasil, fizemos as análises em tabela. A maioria das instituições aparece apenas
uma vez na pesquisa com 1 grupo (1,39%). O destaque por IES está com a PUC-RIO que
aparece 4 vezes juntamente com a UnB. A UFRJ, a USP e a UNESP figuram 3 vezes na lista.
Repete-se o fenômeno das outras análises: a Região Sudeste demonstrando força nos GPs
sobre gênero e direito. A UNIT, por sua vez, do Grupo Tiradentes, apresenta 3 grupos.

Tabela 05 – Percentual de GPs por IES (Sexualidade/Direito)


IES Nº de GPs Percentual
CESUMAR 1 5,88%
CESUSC 1 5,88%
UFRJ 1 5,88%
UCSAL 1 5,88%
UEM 1 5,88%
UFMG 1 5,88%
UFU 1 5,88%
UEMG 1 5,88%
UNIT 1 5,88%
FUIT 1 5,88%
UFSC 1 5,88%
UFBA 1 5,88%
UERJ 1 5,88%
UFF 2 11,76%
UFRJ 2 11,76%
Fonte: Dados provenientes da pesquisa.

As 15 instituições de ensino que tematizam sexualidade e direito no Brasil apresentam


número uniforme de GPs – 1 grupo por instituição (5,88 %). Apenas a UFF e a UFRJ, ambas
no Rio de Janeiro, apresentam 2 grupos (11,76%).
Percebe-se que há uma equânime distribuição dos GPs com os referidos descritores em
relação às instituições de ensino superior diferentemente do que acontece com os descritores
“gênero” e “direito”.

Tabela 06 – Percentual de GPs por IES (Gênero e sexualidade/Direito)


IES Nº de GPs Percentual
UEMG 1 25%
UNIT 1 25%
UFSC 1 25%
UFBA 1 25%
Fonte: Dados provenientes da pesquisa.

Com ambos os descritores, os percentuais são uniformes. Cada uma das instituições
presentes na tabela acima possui 1 grupo cadastrado no CNPq, o que corresponde a 25% do
total de 4 GPs. As IES são de Minas Gerais, Santa Catarina, Bahia e do Grupo Tiradentes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A distribuição de grupos de pesquisa em gênero e direito se revela desigual em termos


geográficos, sendo a Região Sudeste a maior detentora de GPs. Tal fato coincide, portanto,
com o desenvolvimento econômico desta região do país.
A disparidade apontada pode ser reflexo da relação entre direito e mudança social. Se
considerarmos que o direito é uma variável dependente, ou seja, passível de mudanças, são as
relações entre os grupos e as classes sociais, definidas principalmente pelo fator econômico,
responsáveis por determinar as estruturas jurídicas. O direito, nestas circunstâncias, é um
produto de interesses sociais ou instrumento de poder.
O presente projeto de pesquisa serviu para apontar que os grandes centros de discussão
jurídica, no Brasil, estão localizados nas regiões mais abastadas (Sul e Sudeste). Os incentivos,
instrumentos materiais e imateriais de estudo e bolsas de pesquisa, por exemplo, acabam se
direcionando àqueles lugares.
Fato é que não é possível fazer pesquisa em direito reproduzindo padrões e se isolando.
Uma das principais missões dos pesquisadores pertencentes ao âmbito jurídico é desconstruir
e desnaturalizar representações para consolidar um campo crítico e reflexivo sobre o direito.
Ao mesmo tempo, é fundamental ampliar as experiências de sucesso para outras
regiões do território, para além do eixo Sul e Sudeste, e propor um debate sobre a pesquisa
dentro do novo marco regulatório do ensino jurídico. Há um enfrentamento posto para a
transformação da pesquisa e do pesquisador em nosso país.

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CASAMENTO CIVIL E UNIÃO ESTÁVEL DE CASAIS HOMOAFETIVOS:
uma análise da tutela estatal dos direitos de minorias sob a perspectiva do ativismo
judicial 134

Maria Isabelle Vitorino de Freitas 135

Thaminne Nathalia Cabral Moraes e Silva 136

Daniel Pereira dos Santos 137

RESUMO

Durante o transcorrer dos séculos a humanidade teve como fito precípuo a obtenção de direitos
essenciais para viver com dignidade. Dentre os marcos históricos dessa luta hercúlea, tem-se
a Revolução Francesa e os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, que deram o tom para
os reclames sociais que objetivaram pôr fim as atrocidades cometidas por um governo feroz e
que durante anos tolheu as prerrogativas mínimas do povo. Em virtude dos importantes
remanescentes históricos e sociais desse movimento em contraponto com a inquietude
vivenciada hodiernamente no ordenamento jurídico pátrio, faz-se necessária a análise
pormenorizada das causas e consequências que o impulsionaram. Além disso, torna-se
imperiosa a correlação das dimensões constitucionais com o princípio da dignidade da pessoa
humana, assim como a revisão da atuação contundente do Poder Judiciário em vista do
princípio da separação de poderes. Isso, porque, o presente trabalho tem como objetivo buscar
nas normas jurídicas supramencionadas o aparato necessário para firmar o ativismo judicial
como ferramenta de consolidação dos direitos de minorais, em especial, aqueles cuja
regulamentação estatal esbarram em obstáculos de ordem moral, como, por exemplo, o
casamento civil e a união estável entre pessoas do mesmo sexo.

Palavras-chave: Casamento Civil. União Estável. Homoafetividade. Jurisprudência.


Ativismo Judicial.

INTRODUÇÃO

As mutações sociais requerem por parte do ordenamento jurídico uma evolução que
atenda os seus reclames de modo que os indivíduos que constituem tal corpo social não
estejam desamparados frente as querelas que surjam em suas vidas. Dito isso, não seria uma
hipérbole afirmar que em vista do processo legislativo necessário para a aprovação de uma
lei, bem como, em razão da dificuldade que se tem em provocar o debate no Poder Legislativo
acerca de determinados temas, que é impossível para o sistema normativo acompanhar na

134
Grupo de Trabalho: Gênero(s) e Diversidade Sexual no Direito.
135
Graduanda em Direito pela Autarquia de Ensino Superior de Garanhuns (AESGA). Estagiária do Ministério
Público Federal (MPF) na Procuradoria da República em Garanhuns/PE. E-mail: vitorino.isabelle@gmail.com.
136
Doutoranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE). E-mail: thaminne@gmail.com.
137
Graduando em Direito pela Autarquia de Ensino Superior de Garanhuns (AESGA). E-mail:
daniel.psa00@gmail.com.
mesma velocidade que a sociedade os eventos que nela ocorrem.
Entretanto, ainda que essa seja uma verdade, os pleitos judiciais daqueles que buscam
a solução de lides com conteúdo não previsto na legislação do país precisam obter uma
resposta por parte do Estado-juiz, não podendo o Judiciário quedar-se inerte. Em decorrência
dessa necessidade, o surgimento do fenômeno denominado ativismo judicial começou a ser
observado em alguns países.
Em apertada síntese, para Barroso (2015) esta ocorrência encontra-se conectada a
uma postura proativa do Poder Judiciário, que, através de seus tribunais superiores, formula
pareceres que servem de norte para os juízes de primeiro grau atenderem as suas demandas
com o mínimo de respaldo legal, combatendo assim, uma possível insegurança jurídica.
E é adentrado nessa seara que alcança-se como objeto deste trabalho a análise
jurisprudencial no tocante ao casamento civil e a união estável entre pessoas do mesmo sexo
através dos enunciados elaborados pelo Supremo Tribunal Federal, assim como as disposições
trazidas pelo Superior Tribunal de Justiça e o Conselho Nacional de Justiça. Não obstante,
promover-se-á tal pormenorização por meio da explanação acerca do fenômeno jurídico
denominado ativismo judicial, a fim de ratificar a necessidade de sua utilização para garantir
o acesso de direitos fundamentais pelas minorias.
Para tanto, percorrer-se-á brevemente a história do constitucionalismo a fim de
identificar em suas dimensões possíveis argumentos que possam legitimar as ações desses
órgãos justificando, assim, o ativismo do Judiciário, como também tratar-se-á brevemente da
separação de poderes e dos pareceres constitucionais vinculantes como forma de distinguir os
argumentos das correntes produzidas por esse fenômeno e em última instância, falar-se-á das
circunstâncias em que se deu o ativismo judicial e o resultado disso a partir da análise da
legalização do matrimônio homoafetivo.
Outrossim, destaca-se que a referida análise ocorrerá através do emprego de
procedimento metodológico de cunho exploratório, conforme preceituações de Antônio
Carlos Gil (2017), que informa a utilização de acervo de escritos na elaboração do texto, e
também de Antônio Joaquim Severino (2016), que assevera a importância desta espécie de
metodologia para sedimentar o conteúdo apreendido. Acerca da técnica, empregar-se-á a
pesquisa bibliográfica, que, de acordo com ensinamentos de Lakatos e Marconi (2016), traz
aporte teórico, conferindo assim, lastro à pesquisa exploratória.
Nesse ínterim, buscar-se-á responder alguns questionamentos pertinentes a temática,
de forma a justificar a imprescindibilidade de tratar sobre o tema em comento, dentre os quais,
encontram-se: o princípio da separação dos poderes implica em argumento refreador da
vinculação das decisões extensoras de direitos emitidos pelos tribunais superiores? Se sim, a
sua aplicação plena poderia ocasionar o tolhimento de direitos fundamentais das minorias em
decorrência do obste a legitimidade dessas decisões, como no caso do casamento civil e união
estável entre pessoas do mesmo sexo? Em suma, acredita-se que é salutar trilhar este caminho
para que não só se possa debater sobre um tema que é deveras atual – e polêmico –, como
também, contribuir com toda a comunidade jurídica.

1. CONSTITUCIONALISMO: OS DIREITOS FUNDAMENTAIS ATRAVÉS DOS


TEMPOS

É cediço que desde os tempos mais exórdios fez-se necessária a previsão de


imperativos legais para disciplinar o convívio dos indivíduos em um determinado corpo
social. Todavia, mais do que impor o modo como um povo deveria viver, o transcorrer dos
anos impulsionou a sociedade a notar a necessidade premente que os dispositivos normativos
também delimitassem as prerrogativas que pudessem garantir a manutenção da paz social
através da concessão de direitos que firmasse a existência digna.
Nos países cuja forma de governo se deu por meio da chamada monarquia, esse
aspecto se revelou de maneira muito mais incisiva haja vista que as notórias disparidades entre
os pertencentes à nobreza e ao clero em detrimento da plebe comprovaram que independente
do clamor ainda que silencioso da grande massa, nada mais se faria ouvir senão o eco da
vontade de um monarca que transformaria em lei apenas o que melhor lhe aprouvesse.
Para Uadi Lammêgo Bulos (2014), em um cenário de extrema opressão política onde
os problemas econômicos irradiavam sob a maior parte da população e, em que pese seus
objetivos distintos, alcançavam até mesmo aqueles que possuíam riquezas, mas não prestígio
o suficiente para se fazerem ouvir, ideais que continuam regendo o espírito das constituições
até os dias de hoje tomaram forma e se infiltraram nas mais diversas camadas sociais da
França, originando assim, a denominada Revolução Francesa.
Esse pensamento demonstra que a luta que se travou estava centrada muito mais em
um combate ao absolutismo do que propriamente à monarquia. Isto porque enquanto o rei
fosse tido como recurso inicial e final, não haveria chances dos súditos serem livres não só
para buscar a satisfação das suas necessidades mais básicas, como também, para conquistar o
tratamento paritário que desejavam. A ruptura com o pacto firmado até então seria o meio da
população desempenhar o papel atuante e soberano essencial para modificar o rumo da
história.
Desse modo, o que se estabeleceu na França no Século XVIII deu o verdadeiro
sentido para a palavra revolução, já que o lema liberdade, igualdade e fraternidade transmitia
com precisão a razão de ser da chamada Assembleia Constituinte, conforme assevera Luís
Roberto Barroso (2015).
Outrossim, pode-se dizer que o supracitado lema norteou sobremaneira o
requerimento dos direitos fundamentais pela sociedade a julgar que a sua associação
sequenciada com o espírito das três primeiras dimensões do constitucionalismo não seria de
modo algum um equívoco, consoante as palavras de Paulo Bonavides (2014, p. 576 a 577):
“Em rigor, o lema revolucionário do século XVIII, esculpido pelo gênio político francês,
exprimiu em três princípios cardeais todo o conteúdo possível dos direitos fundamentais,
profetizando até mesmo a sequência histórica de sua gradativa institucionalização […]”.
Porquanto, inicialmente o Estado é intimado a ser omisso, pois diante de todas as
repressões sofridas pela burguesia através da ausência de poder para intervir nas decisões
monárquicas, bem como, da subjugação dos camponeses ao sistema feudal, o que povo mais
queria era liberdade individual para agir da maneira que lhe fosse mais conveniente. De acordo
com Paulo Bonavides (2014), caracterizada pela sua subjetividade, a primeira dimensão dos
direitos fundamentais possui uma natureza negativa que se perfectibilizou com a conquista de
direitos civis e políticos que visavam equiparar os componentes da sociedade, bem como,
limitar o poder estatal através do princípio denominado separação dos poderes.
Apesar dessa forte oposição a interferência estatal, com o transcorrer dos anos
percebeu-se que não bastava ser livre para exercer determinados direitos sem que se recebesse
nenhum tipo de apoio por parte do Estado para que se pudesse fazê-lo com dignidade. Ainda
mais quando há a dificuldade por parte do proletariado em ter seus anseios atendidos por
aqueles que outrora foram colocados na posse do Poder Legislativo para que se manifestassem
a favor do atendimento das suas necessidades. O que observou-se é que após a conquista do
apoio necessário para impulsionar a revolução, a burguesia se desfez dos vínculos com a classe
trabalhadora e passou a agir conforme os seus próprios interesses esquecendo-se daqueles que
deveriam ser representados por ela.
Querendo ser tratada com igualdade, a coletividade se reuniu para pleitear direitos
que pudessem ser desfrutados por todos, tais como, os sociais, os culturais e os econômicos.
O Estado intervencionista voltou à cena, porém, com um objetivo específico, qual seja, o de
proporcionar a população condições de vida digna. No entanto, essa atuação deveria ocorrer
sob critérios rigorosos que não mais permitiriam o abuso de poder por parte dos governantes
e se caracterizariam por sua finalidade altamente reparatória das insatisfações sociais que
podiam ser observadas na época.
Para Gilmar Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco (2012, p. 223, grifos dos autores)
não se pode olvidar que:

O descaso para com os problemas sociais, que veio a caracterizar o État Gendarme,
associado às pressões decorrentes da industrialização em marcha, o impacto do
crescimento demográfico e o agravamento das disparidades no interior da sociedade,
tudo isso gerou novas reivindicações, impondo ao Estado um papel ativo na
realização da justiça social. O ideal absenteísta do Estado liberal não respondia,
satisfatoriamente, às exigências do momento. Uma nova compreensão do
relacionamento Estado/sociedade levou os Poderes Públicos a assumir o dever de
operar para que a sociedade lograsse superar as suas angústias estruturais.

Todavia, é sabido que mesmo com a postura proativa do Estado como prestador de
serviços à sociedade, no transcorrer dos anos uma nova inquietação alcançou o povo, desta
vez, a força propulsora para essa nova movimentação foi a preocupação com o futuro do
mundo. Esse sentimento se tornou evidente com o fim da Segunda Guerra Mundial, pois
percebeu-se que não bastava ter acesso aos direitos fundamentais já conquistados se a paz, a
justiça e o comportamento ético-moral não fossem nortes a ser seguidos pelas Nações. A
fraternidade era, então, o ponto final a ser conquistado da tríplice formada pelo lema originado
na Revolução Francesa.
Considerados majoritariamente pela doutrina como sendo direitos do gênero
humano, essa terceira dimensão recebe o seguinte comentário de Bonavides (2014, p. 584):

[…] Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos de


terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que
não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um
grupo ou de determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero humano
mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos
de existencialidade concreta.

Frente ao neoconstitucionalismo tem-se então a ascensão do denominado Estado


Constitucional de Direito que se caracterizou por seu forte apelo ao fator humanitário que
deveria ser visto sob uma óptica universal. Entretanto, o que se segue ao encerramento desse
ciclo iniciado com a Revolução Francesa em meados de 1789 não é o fim da evolução do
constitucionalismo, pois ainda que o seu reconhecimento não seja unânime por parte da
doutrina, é possível detectar a continuidade da sua história através de outras dimensões que
correspondem de modo fidedigno as preocupações da sociedade moderna.
Dentre os autores que defendem a existência de uma quarta e uma quinta dimensão
de direitos, cita-se Paulo Bonavides (2014) que em seu livro “Curso de Direito Constitucional”
advoga de modo vigoroso nesse sentido. Para ele, na quarta fase do constitucionalismo há uma
dedicação cada vez maior em buscar a garantia do acesso à democracia, à informação e ao
pluralismo como uma forma de firmação do Estado de Direito na era da globalização.
Enquanto que na quinta dimensão dos direitos fundamentais se quer o firmamento da paz
como garantia intrínseca ao ser humano, pois mesmo que este tenha sido abordado
anteriormente, foi relegado ao esquecimento por parte da sociedade ainda que este seja
condição inerente para a efetivação do direito à vida.
Por todo o exposto, cabe ressaltar que durante o processo evolutivo do
constitucionalismo o que mais se buscou foi priorizar a vida com liberdade e dignidade. Em
um primeiro momento isso ocorreu através da ânsia por poder viver livremente a partir de
padrões estabelecidos pelo próprio indivíduo. Depois, se quis condições mínimas para
desfrutar a vida com plenitude através da cobertura estatal para o desenvolvimento digno do
ser humano. Por fim, notou-se que isso não poderia ser feito se não houvesse um mundo
pacificado pautado na ética, na moral e na justiça, e portanto, na tolerância acerca das
individualidades pessoais dos integrantes de um determinado corpo social.
Ulterior a essas conquistas no campo dos direitos fundamentais, a sociedade
contemporânea buscou outros direitos que vieram sedimentar a ideia de vida com finalidades
outras que não apenas a existência por si só. De acordo com Paulo Bonavides (2014), isso
pode ser observado não só através da necessidade de garantias no campo político que
pudessem firmar o pensamento do povo também no que ocorreria com o corpo social nas
gerações que estavam por vir, como também, com o alicerçamento da paz enquanto elemento
essencial para assegurar o cumprimento de todos os direitos já conquistados.

2. BREVES COMENTÁRIOS ACERCA DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS


PODERES E DA VINCULAÇÃO DOS PARECERES CONSTITUCIONAIS

A monarquia absolutista trouxe com ela a ideia de poder ilimitado para o monarca
que se confirmava através da máxima the king can do no wrong. Diante desse quadro de
intensa inconsciência do rei e das condições precárias que o povo vivia, um levante que visava
a derrubada dessa soberania foi feito. Ao sair da denominada era do Estado Absolutista e
adentrar para a de Direito, observou-se uma intensa movimentação intelectual no sentido de
estabelecer para os representantes do povo preceitos norteadores que refreassem os possíveis
abusos e que limitassem a atuação estatal.
Todavia, ainda que o Estado fosse subjugado à Lei conforme conceituava o princípio
da legalidade, havia a necessidade de distribuir o poder para que ele não ficasse concentrado
nas mãos de uma única pessoa como ocorria na época que o rei era tido como instância única
e suprema de um país. Em decorrência disso, deu-se o surgimento da tripartição de poderes
cujo desenvolvimento feito por Montesquieu durante o Iluminismo teve como influência além
de uma antiga ideia concebida por Aristóteles para ser aplicada na pólis, os ensinamentos do
filósofo inglês John Locke, conforme preleciona Bernardo Gonçalves Fernandes (2015).
Acerca da concepção de Aristóteles para a constituição mista, Nuno Piçarra (1989,
p. 35) informa: “[...] será aquela em que os vários grupos ou classes sociais participam do
exercício do poder político, ou aquela em que o exercício da soberania ou o governo, em vez
de estar nas mãos de uma única parte constitutiva da sociedade, é comum a todas.”
Diante do exposto, nota-se que o foco central do princípio da separação de poderes é
atribuir a cada um dos poderes constituídos não só funções típicas para executarem em um
Estado, como também, atípicas, de modo que a cargo do Executivo, Legislativo e Judiciário,
esteja não só no controle da execução das seus próprias prerrogativas, como também, no
exercício do refreamento das demais que não são de sua titularidade.
Tem-se nesse mecanismo uma forma de dar vida à teoria checks and balances, onde
através de um sistema de freios e contrapesos não haja a ameaça da ascensão do absolutismo
sob a égide de um Estado de Direito que visa, sobretudo, a permanência do espírito
democrático, bem como, da liberdade adquirida.
Nesse sentido, para Dirley da Cunha Junior (2008), o poder como limitador do poder
evidencia a necessidade de controle para que não haja um desequilíbrio entre os poderes
estabelecidos pela Constituição, de modo que ainda que cada um tenha as suas próprias
atribuições, possam atuar de modo similar nas esferas que essencialmente não lhe competem.
No que tange à sua recepção pelo direito nacional, é mister salientar que o princípio
da separação de poderes no Brasil é elencado no rol de preceitos fundamentais onde se torna
pilar da organização estatal. Previsto no artigo 2º da Lex Magna e assegurado como cláusula
pétrea no artigo 60, pode-se observar a determinação categórica de que os poderes são
independentes ainda que tenham que agir de forma harmônica entre si.
Se é exato asseverar que o princípio da separação dos poderes vem como uma forma
de acautelar a liberdade e impedir as arbitrariedades por parte do Estado para com o seu povo,
também é certo que a responsabilidade por assegurar a efetivação dos direitos e garantias
fundamentais dos indivíduos da sociedade está vinculada ao Poder Judiciário.
Nesse sentido é o posicionamento de Gilmar Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco
(2012, p. 172): “A vinculação das cortes aos direitos fundamentais leva a doutrina a entender
que estão elas no dever de conferir a tais direitos máxima eficácia possível.” Ao obter essa
atribuição, o Judiciário conquista um papel de destaque quanto às decisões de grande
relevância moral e política para o país.
Barroso (2015) define esse fenômeno como sendo uma judicialização e não como
ativismo judicial como se supõe a priori. Para o autor, a principal diferença entre essas teorias
está naquilo que concerne à interpretação extensiva de direitos deste último em detrimento do
posicionamento de cunho finalista acerca de debates relevantes que caracteriza o primeiro.
De acordo com o doutrinador prefalado (2015, p. 439), a judicialização se origina a
partir das seguintes razões:

Há causas de naturezas diversas para o fenômeno. A primeira delas é o


reconhecimento da importância de um Judiciário forte e independente, como
elemento essencial para as democracias modernas. Como consequência, operou-se
uma vertiginosa ascensão institucional de juízes e tribunais, assim na Europa como
em países da América Latina, particularmente no Brasil. A segunda causa envolve
certa desilusão com a política majoritária, em razão da crise de representatividade e
de funcionalidade dos parlamentos em geral. Há uma terceira: atores políticos,
muitas vezes, preferem que o Judiciário seja a instância decisória de certas questões
polêmicas em relação às quais existe desacordo moral razoável na sociedade. Com
isso, evitam o próprio desgaste na deliberação de temas divisivos, como uniões
homoafetivas, interrupção de gestação ou demarcação de terras indígenas. No
Brasil, o fenômeno assumiu proporção ainda maior, em razão da
constitucionalização abrangente e analítica – constitucionalizar é, em última análise
retirar um tema do debate político e trazê-lo para o universo das pretensões
judicializáveis – e do sistema de controle de constitucionalidade vigente entre nós,
em que é amplo o acesso ao Supremo Tribunal Federal por via de ações diretas.

Ainda que essas razões possam ser observadas nas motivações que circundam o
ativismo judicial, é salutar diferenciar os dois fenômenos para que se entenda o porquê da
judicialização ser aceita enquanto que o papel desempenhado pelos ativistas na atualidade é
rechaçado não só pela sociedade, como também, pelos demais poderes. Nesse sentido, a Corte
Constitucional como órgão balizador do direito almejado daquele possível de ser conquistado
em vista dos que já foram reconhecidos pelo ordenamento jurídico, mostra que, em que pese
os remanescentes históricos onde nota-se a dificuldade do Poder Judiciário em se firmar
138

como poder essencial para atender as exigências feitas pela sociedade ao Estado, o seu
fortalecimento é algo inequívoco.

138 Ultrapassada a fase do Estado Legislativo de Direito, percebem-se importantes acontecimentos históricos
que influenciaram na pleno execução das funções do Poder Judiciário. No Brasil, não se pode olvidar da época
da Ditadura Militar onde o Poder Executivo passou a controlar os demais poderes constituídos de modo a retirar
dos mesmos, grande parte de sua força de atuação.
Um dos marcos para a atuação mais incisiva deste poder no Brasil foi a aprovação da
Emenda Constitucional nº 45 de 2004, que proporcionou uma profunda reforma no Poder
Judiciário, trazendo à Lex Magna, entre outras modificações, a inserção do artigo 103-A que
prevê a criação de súmulas vinculantes por parte do Supremo Tribunal Federal para disciplinar
questões de grande relevância social cujas decisões foram discutidas reiteradamente. Seu
caráter pacificador possui efeito erga omnes, não possibilitando a sua inobservância por parte
139

dos demais juízes sem que isso gere uma consequência para o magistrado após o órgão receber
a reclamação acerca dessa decisão.
Todavia, esse não é o único meio vinculante de posicionamentos do STF. Isso,
porque, através do controle concentrado de constitucionalidade previsto no artigo 102, I em
sua alínea a, tem-se uma importante ferramenta para retirar do ordenamento jurídico qualquer
traço que contrarie os preceitos constitucionais através do processamento e julgamento da
denominada Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), que será melhor compreendida a
partir das inferências pontuadas no tópico infra explanado.

3. ATIVISMO JUDICIAL: AS DECISÕES DO PRETÓRIO EXCELSO A RESPEITO


DAS RELAÇÕES HOMOAFETIVAS

O surgimento do termo ativismo judicial ocorreu por volta da década de 40 quando


o historiador Arthur Schlesinger escreveu uma reportagem para a Revista Fortune onde não
só retratava o clima de tensão na sociedade americana diante da revolução provocada pelo
registro da intensa atuação do Poder Judiciário através das ações da Suprema Corte dos
Estados Unidos – que trabalhou no sentido de gerar jurisprudência amplificativa dos direitos
fundamentais –, como também, sintetizava em um único termo os pareces emitidos pela Corte
na época em que Earl Warren estava à sua frente.
Para Luís Roberto Barroso (2015) não é só ao fato de ter cunhado o termo que
referencia-se à corte americana, haja vista que para o autor foi lá que também se observaram
os primeiros resultados da aplicação desta teoria em meados de 1857, em que esta foi utilizada
para amparar questões referentes à segregação racial.
Entretanto, para se entender o problema da aceitação deste fenômeno não basta
conhecer a sua origem, é necessário avançar os meandros históricos e adentrar no ponto

139 Não se pode olvidar, porém, que há uma lei que regulamenta as súmulas vinculantes, qual seja, a Lei nº
11.417 de 2006. No referido texto legal é possível verificar a possibilidade de modular essas súmulas por parte
dos legitimados.
principal da discussão que se tem acerca do tema: a legitimidade das autoridades judiciais para
atuarem de maneira proativa em face às competências dos demais poderes constituídos.
Dito isso, tem-se em um primeiro momento o atrelamento do grande destaque da
atuação do Poder Judiciário à descrença que se tem no que tange a boa execução das funções
do Poder Legislativo, principalmente no que se refere a inovação das leis de acordo com a
evolução da sociedade e de suas necessidades.
Entre as principais razões que justificam esta ocorrência tem-se o partidarismo
radical – a partir do qual registram-se interferências oriundas dos interesses políticos que se
refletem no modo de atuação dos parlamentares e que conferem ao poder legiferante certa
inércia que cobra por ser reparada –, bem como, as posições ideológicas inerentes a cada um
dos seus componentes que não permitem um posicionamento imparcial acerca de situações
atuais e urgentes, tais como, o aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a utilização
de células tronco embrionárias em pesquisas. Principalmente, porque se posicionar a favor
dessas causas pode representar um risco às suas carreiras dentro do Parlamento ameaçando,
pois, a representatividade dos seus respectivos partidos políticos.
Atribuindo-se ao judiciário a responsabilidade por dirimir a instabilidade social
causada pela ausência de produtividade do Legislativo, tem-se a necessidade inequívoca da
atuação mais incisiva deste poder, iniciando, portanto, a execução do ativismo judicial, que,
nos dizeres de Luís Roberto Barroso (2015, p. 442): “se instala em situações de retração do
Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil,
impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva.”
Em vista do imbróglio causado pelo Poder Legislativo estar em um estado de
negativismo, não são raras as situações em que juízes de todo um país veem seus gabinetes
amontoados de ações judiciais cujos pedidos principais não têm os direitos requeridos
estampados claramente na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, tampouco
possuem previsão legal infraconstitucional em decorrência de uma clara submissão das
necessidades da minoria à discordância expressada por uma maioria que emite suas opiniões
de acordo com preceitos embasados na religião, bem como em padrões sociais pré-
concebidos.
Todavia, mesmo na ausência de um amparo legal efetivo, um dos princípios inerentes
à atividade jurisdicional não permite que o juiz deixe de apreciar a demanda e de resolver a
lide em questão, qual seja: o princípio da inafastabilidade da jurisdição. Ou seja, ainda que o
órgão responsável por legiferar não se posicione acerca de um direito, o Judiciário não poderá
deixar de atender aqueles que buscam o seu amparo tornando sua a responsabilidade de
assumir o protagonismo no que tange a obtenção de direitos.
O princípio supramencionado está previsto no ordenamento jurídico brasileiro e
sacramentado no artigo 5º, XXXV da Constituição Federal de 1988. Do teor do texto legal,
torna-se evidente que a lei não poderá excluir do indivíduo o seu direito de solicitar que o
Estado, enquanto juiz, analise a lesão ou ameaça de lesão que lhe foi imputada de alguma
forma, não podendo ele declinar de sua função pois se o fizesse também estaria obstruindo o
seu acesso à justiça.
No entanto, não basta apreciar, é necessário que a solução mais justa para os
interessados seja fornecida, o que pode ficar em risco com a falta da devida regulamentação
no ordenamento jurídico acerca desses assuntos, já que as decisões judiciais podem se tornar
díspares, causando grande insegurança jurídica. No Brasil, ainda que haja opções para reparar
essas lacunas a partir da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), entre os
litigantes há o sentimento de que estão à mercê da interpretação do juiz que pode partir de um
posicionamento pessoal se não houver uma jurisprudência vinculante.
Ante essa questão, está claro que a insegurança jurídica ainda se faz presente no
Poder Judiciário brasileiro, principalmente em decorrência da pluralidade nos costumes e no
avanço isolado que determinadas regiões possuem em detrimento de outras, dificultando, pois,
a interpretação uniforme da legislação por parte dos juízes. Todavia, este não pode ser um
argumento válido para permitir que esse comportamento se perpetue, sendo necessária uma
maior fiscalização acerca das fundamentações utilizadas no momento da prolação da sentença,
haja vista o conteúdo do art. 93, IX da Constituição Federal.
Corolário a este aspecto é devido o realce de que mesmo as maiores críticas ao
ativismo judicial se originarem nos argumentos dos defensores da separação tripartite de
poderes, o que por vezes queda-se oculto é a insatisfação oriunda de dentro do próprio Poder
Judiciário. Isso porque ao ser gerada uma vinculação por parte dos tribunais superiores,
acredita-se que o juiz comum tem uma das principais características da jurisdição tolhida, isto
é, a atividade criativa.
Entretanto, não se pode colocar esse traço jurisdicional à frente da necessidade da
segurança que a sociedade exige por parte do Judiciário, entendendo-se, pois, como um
atributo que se não relativizada, seja ao menos, vista sob um olhar que traga a fundamentação
da sentença como algo essencial.
Essa exigência na atuação incisiva por parte dos tribunais superiores lhes confere um
caráter expositivo muito maior visto que lhes recai a responsabilidade de não permitir que
injustiças sejam cometidas por falta de um posicionamento a respeito dos clamores sociais. O
jurista italiano Mauro Cappelletti (1999, p. 98) ensina:

Particularmente, de forma diversa dos legisladores, os tribunais superiores são


normalmente chamados a explicar por escrito e, assim, abertamente ao público, as
razões de suas decisões, obrigação que assumiu a dignidade de garantia
constitucional em alguns países, como a Itália. Essa praxe bem se pode considerar
como um contínuo esforço de convencer o público da legitimidade de tais decisões,
embora na verdade ultrapasse frequentemente sua finalidade por ter a pretensão de
apresentar as decisões judiciais como fruto de mera lógica, como puras
“declarações” do direito. De qualquer modo, mantém o seu valor enquanto tentativa
de assegurar ao público que as decisões dos tribunais não resultam de capricho ou
idiossincrasias e predileções subjetivas dos juízes, representando, sim, o seu
empenho em se manterem fieis “ao sentimento de equidade e justiça da
comunidade”. Assim, mediante tal praxe, os tribunais superiores sujeitam-se a um
grau de “exposição” ao público e de controle por parte da coletividade, que também
os pode tornar, de forma indireta, bem mais “responsáveis” perante a comunidade
do que muitos entes e organismos administrativos (provavelmente a maioria desses),
não expostos a tal fiscalização continuada do público.

Essa evidenciação dos membros das cortes constitucionais os coloca em uma posição
difícil quando seus votos tratam de situações sensíveis de serem discutidas pelo corpo social.
Um dos principais exemplos que se tem acerca desta temática encontra-se naquilo que
concerne a união estável e o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo.
Em uma análise preliminar, é possível perceber que nos últimos anos há uma grande
movimentação jurídica no sentido de debater o direito de constituir família dos homoafetivos
por toda a América Latina. Enquanto que em alguns países o avanço se dá ainda que de modo
cauteloso, outras nações como a Argentina, o Brasil, a Colômbia e o Uruguai caminham para
uma importante efetivação do tratamento isonômico dos indivíduos de seu povo.
De acordo com artigo da Revista Veja (2017), não se pode olvidar, porém, que ainda
é detectável uma estagnação do processo de reconhecimento desses direitos em determinadas
localidades, como é o caso da Guiana, que não só proíbe a homoafetividade, como também, a
pune com pena de prisão que poderá, inclusive, ser perpétua.
Ato contínuo, ao esmiuçar a Constituição da República Federativa do Brasil observa-
se que o Capítulo VII traz preceitos basilares acerca da família. No artigo 226, por exemplo,
o constituinte sedimenta a unidade familiar como sustentáculo social, de modo a merecer a
proteção estatal para assegurar a sua existência. Ocorre que em vista do teor do §3º, diversas
discussões acerca da constituição da família foram travadas no transcorrer dos anos,
principalmente, no tocante ao reconhecimento do casamento e da união estável entre pessoas
do mesmo sexo.
Isso, porque, o texto constitucional pontua a entidade familiar como resultado da união
entre o homem e a mulher, ensejando assim, uma possível interpretação extremada na qual o
constituinte vedaria a existência de composição de família diversa dos padrões heterossexuais.
Todavia, hodiernamente esse entendimento encontra-se superado, inclusive, o Supremo
Tribunal Federal ratificou a possibilidade de outras formações de família legítima, apesar da
omissão do constituinte.
140

Nesse sentido, tem-se o excerto da ementa do Recurso Extraordinário 646721 julgado


pelo Pretório Excelso (2017, grifo nosso):

A Constituição brasileira contempla diferentes formas de família legítima,


além da que resulta do casamento. Nesse rol incluem-se as famílias formadas
mediante união estável, hetero ou homoafetivas. O STF já reconheceu a
“inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas
de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico”, aplicando-se a
união estável entre pessoas do mesmo sexo as mesmas regras e mesmas
consequências da união estável heteroafetiva (RE 646721, Relator(a): Min.
MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. ROBERTO BARROSO,
Tribunal Pleno, julgado em 10/05/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO
REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-204 DIVULG 08-09-2017 PUBLIC 11-
09-2017)

Conforme supracitado, o Brasil já avançou na garantia de efetivação do tratamento


isonômico dos homoafetivos dentro da sociedade à qual pertencem. Em solo pátrio, tem-se
como marco o posicionamento do STF diante da ADI nº 4277, de 2011. Essa Ação Direta de
141

Inconstitucionalidade que foi protocolada inicialmente como a ADPF nº 178, visava à


concessão dos mesmos direitos e deveres oriundos da união estável entre casais heterossexuais
para os casais formados por pessoas do mesmo sexo, bem como o reconhecimento da unidade
familiar constituída pelos mesmos.
O relator foi o Ministro Ayres Britto, que votou no sentido de interpretar a Constituição
de modo que pudesse retirar do artigo 1.723 do Código Civilde 2002 qualquer exclusão de
gênero em decorrência das escolhas individuais e pessoais de uma pessoa para formar a sua
família. Britto foi acompanhado pelos demais ministros do Pretório Excelso e assim discorreu
no seu voto da ADI nº 4277 (BRASIL, 2011, p. 17, grifo do autor):

140
Acerca da omissão constitucional supramencionado, o Min. Luís Roberto Barroso no RE 878694 (2016, p. 8)
assevera: "'[...] Não por outro motivo, a Carta de 1988 expandiu a concepção jurídica de família, reconhecendo
expressamente a união estável e a família monoparental como entidades familiares que merecem igual proteção
do Estado. Pelas mesmas razões, esta Corte reconheceu que tal dever de proteção estende-se ainda às uniões
homoafetivas, a despeito da omissão no texto constitucional."
141 Não se deve esquecer, porém, da ADPF nº 132/RJ haja vista que esta arguição teve como argumento
principal o fato de que a não permissão da união homoafetiva violava preceitos fundamentais, devendo, então, o
STF aplicar por analogia o artigo 1.723 aos funcionários públicos do estado do Rio de Janeiro que quisessem
estabelecer esse tipo de união.
[…] este Plenário terá bem mais abrangentes possibilidades de, pela primeira vez no
curso de sua longa história, apreciar o mérito dessa tão recorrente quanto
intrinsecamente relevante controvérsia em torno da união estável entre pessoas do
mesmo sexo, com todos os seus consectários jurídicos. Em suma, estamos a lidar
com um tipo de dissenso judicial que reflete o fato histórico de que nada incomoda
mais as pessoas do que a preferência sexual alheia, quando tal preferência já
não corresponde ao padrão social da heterossexualidade. É a velha postura de
reação conservadora aos que, nos insondáveis domínios do afeto, soltam por inteiro
as amarras desse navio chamado coração.

Ao decidir favoravelmente para a extensão dos direitos da união estável para os casais
homoafetivos, os juristas brasileiros demonstraram com precisão o fito precípuo de garantir
que os indivíduos que vivem no país estejam em uma sociedade não só pluralista como
também respeitosa para com a minoria.
No que se refere ao matrimônio, observa-se uma interessante peculiaridade, qual seja,
não foi a suprema corte que efetivou diretamente este direito, mas sim o Conselho Nacional
de Justiça (CNJ) através da Resolução nº 175 de 2013. Frisa-se o aspecto “direto” visto que
os já referidos posicionamentos do Excelso com relação à união estável consubstanciado com
o julgamento do Recurso Especial de nº 1.183.378/RS por parte do Superior Tribunal de
Justiça (STJ) se tornaram, pois, fundamentos para que o Conselho, de posse da competência
prevista no artigo 103-B da Constituição Federal, vedasse quaisquer argumentos de cunho
discriminatório que coibissem a habilitação de nubentes do mesmo sexo, conforme o artigo
primeiro da referida resolução: “Art. 1º É vedada às autoridades competentes a recusa de
habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento
entre pessoas de mesmo sexo.”
A recusa por parte das autoridades diante da habilitação de casais do mesmo sexo
prevê sanções administrativas, de modo que apesar dos cartórios estarem livres para celebrar
ou não esse tipo de casamento, terão que assumir com isso as consequências que serão
estabelecidas pelos juízes-corregedores (vide art. 2º da supracitada resolução) a partir da
comunicação realizada por parte dos casais que se sentirem prejudicados.
As punições, que variam entre a advertência e a determinação do fechamento do
cartório, vislumbram a garantia de que não haverá recusa por parte destes órgãos, de modo
que seja minimizada a possibilidade de lesão do direito ao matrimônio dos homoafetivos e
que assim possa se tornar real o objetivo do constituinte de promover o bem de todos sem
qualquer forma de discriminação conforme prevê o art. 3º, IV da Constituição Federal de
1988.
Essa ocorrência torna evidente que o silêncio do Legislativo é eloquente no seu
desejo de não levar ao Congresso qualquer tipo de discussão acerca do assunto. Em
decorrência desse estado de negativismo estratégico do poder legiferante, os defensores do
não ativismo judicial tem o seu principal argumento para atacar as decisões do Judiciário no
que concerne a assuntos tão sensíveis a coletividade quanto este que encontra-se em apreço.
No ponto de vista desses críticos, se compete ao Poder Legislativo sancionar leis que
exprimam a vontade do povo, esta estaria sendo traduzida através da sua inércia no tocante
aos direitos dos casais homoafetivos, pois se fosse um desejo da população que houvesse
respaldo legal para essas pessoas, legislações infraconstitucionais já teriam sido aprovadas.
Os adeptos dessa corrente no Brasil evocam além do princípio da separação de
poderes, o parágrafo único do artigo 1º da Carta Magna que informa: “Todo o poder emana
do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta
Constituição.”
Ora, apesar da redação atribuir o exercício do poder do povo aos representantes por
eles eleitos, interpretar de um modo tão limitador de direitos o referido texto é como
considerar como povo apenas a maioria. O que é deveras inadmissível haja vista a incoerência
que se tem ao analisar por completo o conteúdo do Texto Maior que traz, entre outros
princípios, o da liberdade, da igualdade e da dignidade da pessoa humana que devem ser
garantidos também as minorias que compõem o tecido social.
E é nesse cenário onde ocorre o embate entre defensores e opositores à teoria do
ativismo judicial que percebe-se que aqueles que discursam contra uma postura proativa do
Poder Judiciário, principalmente no que tange ao reconhecimento dos direitos de uma parcela
da sociedade com pouca ou nenhuma representatividade, estão nas entrelinhas marginalizando
as minorias em decorrência de um preconceito que se coaduna através da interpretação
limitada do que traz os textos constitucionais.
Ante o exposto, torna-se necessário, pois, o amplo debate acerca desse assunto para
que se possa chegar a uma conclusão que escape o puro positivismo e encontre uma solução
que profundamente sedimentada no princípio da dignidade da pessoa humana – que é norte
de toda e qualquer sociedade alçada ao patamar de justa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise do comportamento dos indivíduos no transcender dos séculos torna evidente


a necessidade da convivência pacífica em uma sociedade. Entretanto, como fazê-lo quando há
uma pluralidade de personalidades e convicções individuais convivendo conjuntamente? Este
impasse revela muito acerca da finalidade que o Direito tem na vida daqueles que
compartilham o mesmo espaço geográfico.
Isso, porque, na ausência de disciplinamento legal, há a possibilidade de ascensão de
um estado de anarquia que oferece risco ao bem-estar social em decorrência do elevado grau
de imperatividade que cada decisão individual tem. Faz-se necessário, portanto, um guia
limitador que não só delimite o que se deve fazer, como também, o que deve ser cobrado à
quem estabelece os limites.
A Constituição Federal é esse norte. É nela que se encontram todas as regulamentações
necessárias para que um indivíduo possa viver com plenitude sem temer a vinda do caos,
conforme ratifica a essência extraída dos esforços empreendidos por cada constituinte na
promulgação de textos constitucionais. É forçoso reconhecer, pois, o intento destes em
pontuar o máximo de assuntos socialmente relevantes para mitigar os riscos de negligência
por parte daquela que é a principal ferramenta de obtenção de direitos e imputação de
obrigações.
Todavia, a velocidade com a qual o corpo social evolui e a força que determinados
assuntos angariam com o decorrer dos anos, torna imprescindível a existência de mecanismos
que possam atuar na análise dos temas sociais mais prementes. Como pôde ser visto neste
trabalho, o próprio texto constitucional traz as formas de reparar essas insuficiências e
assegurar o pleno atendimento da sociedade.
Entretanto, quando um desses meios se encontra em recessão, é natural que a
responsabilidade recaía para outro, de modo que se possa minimizar os efeitos negativos dessa
incúria. Diante disso, mesmo que tradicionalmente o legislativo seja o responsável pela
inovação das leis, seu descuido no tocante a alguns assuntos específicos impele o judiciário a
se posicionar, ainda que para isso, este poder tenha que adentrar em um conflituoso campo de
competências, como é o caso da união estável e do casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Não obstante, é cediço que a principal discussão que se tem sobre essas decisões é que
diferente de outros pareceres, este conflitaria, em tese, com a própria Lex Magna, posto que a
redação traz em seu bojo o reconhecimento da unidade familiar dentro de parâmetros
heterossexuais.
Assim, a forma que o Poder Judiciário encontrou de legalizar essas relações sem ferir
o texto constitucional foi interpretá-lo à luz de princípios como os da liberdade, igualdade e
dignidade da pessoa humana. Isso porque esses são valores que estão entranhados de tal
maneira no espírito do constituinte que seria incoerente um posicionamento excludente e não
meramente exemplificativo em algo tão precioso para o corpo social quanto a formação de
uma família.
Além disso, seria incongruente que após transcorridas tantas lutas para se consolidar
um Estado Constitucional de Direito, a corte responsável por garantir o pleno atendimento dos
direitos fundamentais duramente conquistados permitisse que um grupo minoritário ficasse à
margem da sociedade apenas por possuir uma orientação sexual divergente da que os padrões
sociais consideram como sendo aceitável.
Há de se pensar, portanto, que não há argumento superior a outro quando o assunto é
o ativismo judicial em prol das minorias que estão desassistidas, existe apenas interpretações
distintas daquilo que a Carta Magna traz. Em sociedades tão plurais quanto as atuais, torna-se
um enorme equívoco observar os reclames sociais através do puro positivismo, pois ainda que
se viva sob o império da Lei, faz-se necessário humanizá-la o suficiente para que não haja
desigualdades de tratamento que marginalizem o ser humano em decorrência das escolhas que
o mesmo fez para a sua vida pessoal.
Destarte, ao agir nesse sentido reparatório, o Poder Judiciário alcança um fim não só
garantístico de direitos, como também, de importante inclusão social, de modo que além de
superar os desconfortos causados pela diuturna letargia do Poder Legislativo, o Judiciário dá
mais um passo no caminho de concessão de justiça àqueles que durante décadas estiveram
presos aos grilhões da intolerância e do desrespeito.

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da igualdade de gênero142

Gényffe Adryane Alves da Silva143


Tamyres Paulino da Silva144

RESUMO

O presente artigo tem por objetivo apresentar e refletir acerca do papel da mulher na religião
e os impactos da influência religiosa, considerando as crenças e divergências entre pessoas
religiosas. O resultado da pesquisa é uma importante contribuição na reflexão sobre como os
grupos de mulheres exercem atividade de militância em defesa da igualdade de gênero sem
deixar de lado a vivência de suas religiosidades. Assim, o presente artigo desenvolveu-se a
partir dos seguintes objetivos: 1. Apresentar a visão de religiões dominantes sobre as
mulheres; 2. Refletir o impacto da influência das concepções religiosas nos direitos das
mulheres; 3. Apresentar experiências no campo religioso que buscam romper com a
desigualdade de gênero. O resultado da pesquisa, possibilitou identificarmos algumas
experiências de mulheres feministas organizadas em grupos religiosos, assim seria de
importante relevância que houvesse espaços religiosos alternativos, o qual essas mulheres
possam interagir com a religião diante de novas formas de relação, onde o exercício do
feminismo não entre em choque com o exercício da religiosidade.

Palavras-Chaves: Mulher. Religião. Direitos. Igualdade.

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objetivo problematizar a influência das crenças religiosas
sobre os direitos das mulheres, uma vez é notório a diferenciação geradora de desigualdades
no tratamento entre os gêneros principalmente pelos grandes meios influenciadores de massas
no qual se enquadram as religiões.
Buscou-se os seguintes objetivos específicos:
1. Apresentar a visão de religiões dominantes sobre as mulheres;
2. Refletir o impacto da influência das concepções religiosas nos direitos das mulheres;
3. Apresentar experiências no campo religioso que buscam romper com a desigualdade de
gênero;
Apesar da evolução significativa no que tange a assuntos tratados como “polêmicos”,

142
GT 4 – Gênero(s) e Diversidade Sexual no Direito.
143
Acadêmica do 8º período do curso de direito, Centro Universitário Tabosa de Almeida - ASCES/UNITA. E-
mail: 2015101301@app.asces.edu.br
144
Acadêmica do 8º período do curso de direito, Centro Universitário Tabosa de Almeida - ASCES/UNITA. E-
mail: 2015101213@app.asces.edu.br
dentre os quais incluímos a igualdade entre homens e mulheres, não podemos desconsiderar
que do ponto de vista das religiosidades ainda há um grande misticismo sobre a mulher.
Nossa experiência empírica demonstra que as mulheres frequentam os locais de cultos
religiosos em maior número que os homens, no entanto, na maioria das vezes as palavras que
são proferidas para com elas reforçam ainda mais a sociedade patriarcal, isso porque os
membros que dirigem essas instituições religiosas são quase que unanimemente homens. Isso
não significa que a religião é o que propaga as desigualdades, pois, tem-se diversas
experiências na qual a organização das mulheres em grupos religiosos tem sido lócus de
fortalecimento para empoderamento e emancipação, mas, que líderes religiosos, podem ser
utilizar do espaço de poder que ocupam para reproduzir as bases das desigualdades.
Desse modo nossa pesquisa é uma importante contribuição na reflexão sobre como os
grupos de mulheres exercem atividade de militância em defesa da igualdade de gênero sem
deixar de lado a vivência de suas religiosidades.
A pesquisa foi desenvolvida a partir de uma abordagem qualitativa, que é aquela que se
foca no caráter subjetivo do objeto analisado, estudando as suas particularidades e
experiências individuais, por exemplo. (LOPES, 2016)
Realizamos ainda pesquisa bibliográfica desenvolvida com base em material já elaborado,
constituído principalmente de livros e artigos científicos, utilizando os descritores Mulher e
Religião, Igualdade e Religião, e documental, valendo-se de materiais que não receberam
ainda um tratamento analítico, ou que ainda podem ser reelaborados de acordo com os objetos
da pesquisa. (GIL, 2008).

1. AS RELIGIÕES DOMINANTES E AS MULHERES

O empoderamento feminino está sendo uma questão de amplo debate não só em mesas
redondas sobre feminismo ou em centros acadêmicos, mas por grande parte da população e,
claro, que estas discussões também estão em ambientes canônicos. O que mais é questionado
é: como as mulheres podem exercer mudanças em tais meios? Mudanças essas no âmbito de
exercerem mais no aspecto da liderança e não apenas estejam presentes apenas como adeptas
da religiosidade.
Um ponto importante que se pode observar, por exemplo, é que na maioria das vezes
as igrejas ao redor do mundo atraem fiéis apenas por devoção e não há espaço para
questionamentos. A forma como as escrituras sagradas das religiões ao redor do mundo aborda
a mulher é uma questão importante a ser analisada, visto que as mulheres não são tratadas
com isonomia e, como as religiões exercem um amplo poder sobre os pensamentos e as
diretrizes das pessoas, a forma como as mulheres são vistas na sociedade ainda sofrem sérias
consequências negativas.
Foram realizadas várias pesquisas em relação ao tema em questão, onde em uma delas
é verificado o papel que a mulher desempenha nas diversas tradições religiosas, (HOLMES,
2013), que demonstram os papéis das mulheres em meio a essa diversidade de religiões. É de
extrema relevância abordar alguns dos aspectos tratados nesse tema e os discutir aqui diante
do conhecimento e entendimento adquirido.
Na Igreja Católica, os líderes afirmam de forma categórica que mudanças drásticas não
devem ocorrer na forma como administram os templos – é claro que o atual Papa Francisco
vem desconstruindo um pouco esse pensamento -, mas, enquanto as religiões forem tratadas
de forma patriarcal, as mulheres continuarão a atuar de forma secundária em diversos meios,
já que uma coisa desencadeará outra.
Na religião indígena, as mulheres enfrentam grandes desafios, pois elas são orientadas
para serem esposas boas, uma verdadeira dona do lar, cuidando, educando filhos,
incentivando, mostrando os ensinamentos de preceitos morais e religiosos adquiridos com um
tempo, mulheres essas que são um verdadeiro espelho para as demais, um exemplo de
guerreira, que em momentos dificuldades procuram Deus para se aparar. Assim se tais
mulheres quiserem seguir rumos diferentes provavelmente elas irão se depararam com alguns
preconceitos. (HOLMES, 2013).
Em uma visão diferente, vale ressaltar que o papel do gênero feminino na religião
indígena mundo a fora, se impõe de diferentes situações sociais, se referindo de um modo
geral a seus usos e costumes, bem como por meio de influência da sociedade externa.

Em se tratando da figura da mulher como sendo parte de um sistema maior, ou seja,


a humanidade, essas enfrentam condições sociais hegemônicas ocidentais, tendo
uma particularidade bem específica, isto é, a coisificação da mulher; pornografia;
prostituição entre outras. (HOLMES, 2013)

Calha falar que mesmo estando em pleno século XXI as mulheres passam por alguns
problemas em relação as tradições ou costumes como o supracitado. “Esses enfretamentos
tratam-se da figura do patriarcado, o machismo, mais que preponderante nos dias de hoje,
assim como ritos religiosos que maculem a figura feminina”. (PINTO, 2010).
Ainda com relação a mulher indígena, elas sofrem formas de violência que advém de
conflitos externos e até mesmo no seio doméstico em que convivem. Quando estão em meio
a uma guerra a violação aos direitos humanos da mulher são utilizadas como uma forma de
controlar e macular as pessoas. A discriminação étnica, é um tipo de violência. Tais “mulheres
estão botando em pratica diversas políticas culturais, por meio de discursões, tratando da
cidadania e da nação, assim como, os movimentos indígenas, feminismo, a modernidade e não
menos importante a tradição.” (PINTO, 2010, p. 4/5).
Não se pode deixar de refletir sobre as religiões de matrizes africana onde as mulheres,
tem papel essencial, ou seja, de liderança sendo fundamental para a tradição de seus
seguidores religiosos. Assim sendo, calha ressaltar que em muitas situações a figura da mulher
está acima do homem um dos fatos é a grande quantidade do gênero feminino presente em tal
religião, sem contar a forte influência que elas tinham, tendo o poder de comprar sua liberdade,
eram consideradas boas comerciantes. Essa posição mostra mais em relação ao
posicionamento da mulher presente hoje na religião. “Sendo emancipadas, tais mulheres
tinham como dispor do dinheiro necessário para realização dos cultos africanos.” (BASTOS,
2009, pág. 158).
No Islamismo a mulher preenche um papel de submissão, sendo um dos assuntos mais
contestado hoje, ou seja, elas são obrigadas a obedecer, conforme as leis descritas no alcorão
(livro sagrado); porém diferentemente de algumas outras religiões, nessa ela pode exercer
atividades fora do lar, desde que não implique em problemas com a família de como a dirige,
desempenha e se dedica as suas funções no lar. “O Islã é ignorante para leva em conta
mutações sociais e principalmente hoje com esse mundo moderno, sem contar que não leva
em consideração os direitos humanos.” (HAJJAMI, 2008, pág. 3)
No Catolicismo, religião predominante no Brasil, a maioria das pessoas que seguem
esse culto são as do sexo feminino, exercendo várias funções, em meio a instituição,
especialmente no que se refere as pastorais que muitas vezes são desempenhadas por
mulheres, porém hoje encontra-se homens a frente dessa função, eles que uma de suas funções
é assumir as responsabilidades advindas da igreja, dirigindo-a, ou seja, administrando.
“Algumas mulheres já desempenham o papel de dirigente, é possível enxergar isso
frequentando a cultos em igrejas de diferentes cidades” (HOLMES, 2013).
No Cristianismo em muitas ocasiões a mulher era dispensada para exercer a função de
diversas atividades, já que tudo era desempenhado pelo homem, de modo que o regime
predominante era patriarcal. “No entanto, com o passar dos anos as mulheres foram
estabelecendo e construindo suas próprias conquistas” (HOLMES, 2013).
No Judaísmo a mulher assim como em outras religiões deve cuidar da educação de
seus filhos, a lei judaica não permite que elas atuem em diversas áreas, não podendo
desempenhar o posto de líder da igreja, ou seja, não pode ser rabino-juiz, nome dado ao
dirigente do culto, pois o livro sagrado da religião judaica diz que se faz necessário que a
pessoa tenha uma racionalidade fria e direta para atuar nesse meio, pois qualquer conduta
diversas de preceitos seguidos por determinada religião, poderá ter julgamentos severos
(HOLMES, 2013).
O Budismo é uma religião que não distingue o homem da mulher, o que se reverencia
no budismo não é o gênero masculino ou feminino, sem ter distinção entre sexo, cor, raça e
assim por diante. Todos são tratados igualmente, sem diferenças em direitos e deveres, com
os mesmos privilégios e garantias (HOLMES, 2013).
Com isso, se faz mister ressaltar que ao mostrar os diferentes papéis da mulher em tais
religiões mencionadas. É importante para conhecimento dos leigos, pois faz com que se tenha
uma visão ampliada de temas que não são abordados de forma ampla e muitas vezes há um
pré-julgamento, por acharem que a vida da mulher em determinada religião diversa da sua, é
mais fácil.

2. O IMPACTO DA INFLUÊNCIA RELIGIOSA NOS DIREITOS DAS MULHERES E O


IMPACTO DO FEMINISMO NA RELIGIÃO

Inicialmente se faz mister ressaltar os direitos humanos, mais especificamente a


Dignidade da Pessoa Humana, prevista no Art. 1º, inciso III, da Constituição Federal de
1988, onde seu reconhecimento advém da evolução do pensamento humano, não tratando as
pessoas como mero objeto (BRASIL, 1988). Então reconhecendo os direitos que todos têm
perante a sociedade, pode-se resguardar uma boa convivência entre as pessoas e assim
valorizar a diversidade humana. Boaventura Santos frisa que:

O reconhecimento de direitos humanos objetiva resguardar uma convivência


humana a ser respeitada e promovida na sua diversidade. Como afirma Boaventura
dos Santos: “temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza e
temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a
necessidade de uma igualdade que reconhece as diferenças e de uma diferença que
não o produza, alimente ou reproduza as desigualdades”. (SANTOS, 2003, p. 56).

Em pleno século XXI ainda há mulheres que enfrentam grandes problemas com
violência, que mesmo estando no seio familiar, no cotidiano de seus afazeres, ainda enfrentam
episódios de violência, assim elas passam por constantes lutas pela igualdade, por sua
liberdade, já que a religião por vezes é usada como instrumento eficaz para o controle das
mulheres.
No movimento feminista, as mulheres se organizam para lutar pelos seus direitos. O
movimento feminista e a religião parecem coisa completamente opostas, que não podem
existir de forma amistosa, mas Mary Hunt (2016), teóloga feminista e católica, mostra que é
possível existir congruências entre o feminismo e a religião, e assim ressalva que: "[...]
o problema é que o sexismo está presente em todas as culturas, e o tratamento a mulheres em
igrejas cristãs tende a refletir isso" (MATUOKA, 2016, apud, HUNT, 2016)
Com o fortalecimento desses movimentos feministas, vieram à tona muitas questões
sobre como as mulheres são tratadas em diversos meios sociais e, portanto, as religiões não
ficariam à margem. Abordar tais aspectos é um campo minado, uma vez que há pensamentos
radicais de ambos os lados, além de existirem mais divergências que convergências.
Muitas feministas argumentam que os problemas só serão resolvidos se houver o
desmembramento total da sociedade para com as religiões porque as doutrinas destas são, de
certa forma, imutáveis e não maleáveis para com o sexo feminino.
Assim, ver-se que a teologia feminista, retratada por muitos autores, vem para
promover a igualdade de gêneros, buscando das religiões supracitadas em tópicos anteriores
e muitas outras que existem mundo a fora engajada na perspectiva feminista. Na visão de Rita
M. Gross (1996, p. 29): “Assim como a prática religiosa foi transformada pelas feministas,
também o foram os estudos acadêmicos da religião. Todas as áreas dentro dessa disciplina
foram afetadas pelos métodos feministas, dos estudos bíblicos ao estudo comparado das
religiões. ”
É fundamental, porém, analisar o histórico de religiões que há muitos séculos já possuíam
mulheres presidindo reuniões desses centros, por exemplo. E vale ressaltar que mulheres que
seguem por essa linha de posicionamento são as que não querem deixar de exercer o exercício
da fé por acreditarem que mulheres devem ocupar cargas de liderança em igrejas, templos,
centros.

3. EXPERIÊNCIAS NO CAMPO RELIGIOSO QUE BUSCAM ROMPER COM A


DESIGUALDADE DE GÊNERO

Refletindo a partir do movimento “Católicas Pelo Direito de Decidir” que tem por
objetivo a discussão de temas que a Igreja católica os considera como imutáveis já que são as
cláusulas pétreas canônicas, observa-se que a boa mulher cristã, aos olhos da religião deve
seguir os padrões de gêneros impostos pela doutrina católica e que se as descumprir é
marginalizado pelo meio religioso. (CATÓLICAS PELO DIREITO DE DECIDIR, 2017).
As “Católicas Pelo Direito de Decidir” têm trazido à tona assuntos delicados e
polêmicos, principalmente no Brasil e que é extremamente criminalizado pela Igreja, a
exemplo, o aborto. (CATÓLICAS PELO DIREITO DE DECIDIR, 2017).
Sabe-se que não é permitida a prática do aborto no país sendo inclusive tipificada no
Código Penal na parte que dispõe acerca dos crimes contra a vida. Nesse ponto, o Brasil, que
se diz um estado laico, ainda mantém estreitas relações com a Igreja Católica. Há muitos
grupos religiosos que exercem imensa influência nas decisões que devem ser democráticas e
não visando impor a todas e todos decisões e/ou leis a partir da concepção religiosa de
determinados grupos.
Segundo alguns católicos, o aborto é um crime porque a bíblia dispõe que desde a
concepção já há uma vida cheia do espírito santo:

22. Se alguns homens pelejarem, e um ferir uma mulher grávida, e for causa de que
aborte, porém, não havendo outro dano, certamente será multado, conforme o que
lhe impuser o marido da mulher, e julgarem os juízes.
23. Mas se houver morte, então darás vida por vida (Êxodo 21:22,23)

O movimento Católicas pelo Direito de Decidir, além de tentar quebrar esses


paradigmas que são impostos a séculos, buscam apontar que esse debate deve refletir e
considerar a autonomia das mulheres.
Vale ressaltar que as mulheres que compõem o grupo não são contra a vida. Elas
querem apenas defender o direito de escolher sobre o que querem fazer com seus corpos e de
optar sobre qual é a hora certa para ter filhos ou não, sem que isso obste o direito de exercer
sua fé. (CATÓLICAS PELO DIREITO DE DECIDIR, 2017).
Além de todos os problemas envolvendo as religiões, o aborto é um tema que precisa
ser observado com mais humanidade e cautela pelas organizações de saúde brasileiras. Como
é ilegal tal conduta em nosso país, o número de mulheres que o faz de formas clandestinas é
assustador o que se torna um assunto de políticas públicas. (DINIZ, 2016).
Um dado apresentado, a partir de uma pesquisa do instituto de Lifeway Research,
revelou que 70% das mulheres que fizeram aborto têm ligação com as religiões cristãs. E os
dados ainda mostram a porcentagem de mulheres que afirmam que se sentem de alguma forma
julgadas ou pela rigidez das igrejas ou pelas fofocas internas dos membros, ou seja, além do
impacto físico que muitas mulheres sofrem ao escolherem praticar esse ato, ainda há as
questões sociais que podem causar dados psicológicos para essas mulheres. (CHAGAS,
2015).

4. IGUALDADE ENTRE GÊNEROS E O CONSERVADORISMO RELIGIOSO


Ainda é possível observar, mesmo que estejamos inseridos em um contexto totalmente
contemporâneo e globalizado, ainda é possível enxergar que as mulheres passam por grandes
enfretamentos, entre eles, desvantagens salariais em relação aos homens, mesmo que ocupem os
mesmos cargos. Tais mulheres são discriminadas por serem mais vulneráveis, simplesmente por serem
do sexo feminino.
Além do mais, as mulheres passam pelo desafio de lidar com os conservadores religiosos, os
quais vêm atacando as vitórias e as reivindicações que tal gênero vem lutando para conquistar. Isso se
observa em todos os lugares, já que sempre há aquele que irá criticar, tomar a frente de alguma decisão
para ir contra as mulheres, até mesmo os telejornais mostram vez ou outra a luta das mulheres e as
barreiras pelas quais elas devem passar.
De acordo com pesquisa feita por uma grande agência de empregos, as mulheres ganham em
média 30% menos que os homens. E quanto menor é a exigência de qualificação para o cargo, maior
a diferença salarial. (ANSEL, 2015).
Por ser o Brasil um país em desenvolvimento esse percentual é vergonhoso, visto que as
mulheres já alçaram voos altos e conquistaram tantas coisas, o que não faz sentido serem tratadas de
forma desigual.
Até mesmo na política as mulheres ainda enfrentam desafios diariamente, mesmo que
na última legislatura o número de mulheres para cargos na política tenha crescido
consideravelmente, com 51 deputadas, mais apenas 10% delas representa todas na câmara.
(ANSEL, 2015).
A mídia constantemente mostra que a cada hora enquanto você está em casa vendo
TV, no seu lazer, uma mulher está sendo agredida, violada ou até mesmo coisa pior dentro de
suas próprias casas no mundo a fora:

O Brasil é o número sete de 84 países do ranking de homicídios de mulheres no


mundo. Reconhecendo a gravidade do problema, também pressionado por acordos
internacionais e pelo movimento de mulheres, o governo brasileiro instituiu
recentemente uma lei que tipifica o feminicídio, endurecendo as penas para quem
incorre nesse delito, entre outras medidas. (ANSEL,2015).

Mesmo com tais avanços a luta das mulheres continuam, principalmente quando se
trata de religiões, de direitos sexuais referente ao gênero, os conservadores parlamentares, se
utilizam de discursos religiosos para justificarem os atos que tomam na constância da função
que ocupam.
Em suma, calha reforçar que independentemente da religião que seguir, as pessoas
antes de tudo devem ser tratadas igualmente e os discursos religiosos não podem ser invocados
para manipular a opinião pública e propor medidas que violem os direitos das mulheres e de
outros segmentos sociais, pois, como afirma um dos lemas do Movimento Feminista “O que
é pecado para alguns não pode ser crime para todas”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da sequência histórica, viu-se que as religiões são diversas e assim, as mulheres
ocupam papel diferente, no modo como, elas são vistas em meio a sociedade e como se dá
influência do comportamento do grupo é visto nesta. Ainda no tocante ao papel da mulher em
meio a essa diversidade religiosa, atenta-se para o fato de que muitas religiões são impostas
como uma forma de controle, onde estas não possuem um papel de destaque, em paralelo,
vem o feminismo, onde as mulheres se organizam para lutar pelos seus direitos e extinguir
certas formas de limitação de direitos femininos.
Assim, pode-se concluir que, entre as principais abordagens aqui tratadas, as
preocupações enfrentadas por essas mulheres ainda são constantes, o movimento feminista
como supracitado surge dando sentido à vida dessas mulheres, pois ao se organizarem nele,
elas se articulam e se fortalecem para luta em torno do que consideram uma causa justa de
modo não serem julgadas por seus atos e escolhas.
Portanto, seria de importante relevância que houvesse espaços religiosos alternativos,
nos quais as mulheres possam interagir com sua religião diante de novas formas de relação,
pautadas na garantia de igualdade. Identificando assim que algumas experiências de mulheres
feministas organizadas em grupos religiosos, traz uma bandeira de luta do feminismo e do
direito a religiosidade, direitos humanos que compõe a personalidade da pessoa.

REFERÊNCIAS

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de 2017.
SUJEITO, GÊNERO E BINARISMO SEXUAL À LUZ DE BUTLER: ressignificações
dos padrões hegemônicos145

Isaene de Arruda Santos146

RESUMO

Diante da estruturação da sociedade onde todos os gêneros, sexos, sujeitos, orientações


sexuais e outras representações que não se incluem no padrão de heteronormatividade são
marginalizados e invisibilizados, é preciso analisar essas imposições e sugerir novos modelos
que superem essa lógica. Dessa forma, o presente trabalho propõe-se a debater os conceitos
de sujeito, gênero e binarismo sexual a partir das reflexões bluterianas. Judith Butler, uma
grande teórica dos estudos de gênero, trabalha essas definições compreendendo todas elas a
partir da naturalização da heterossexualidade. Assim, quando aborda o sujeito, a autora volta-
se para o feminismo e a compreensão do sujeito mulher frente à hegemonia masculinista.
Além disso, é em sua obra “Problemas de Gênero” que Butler propõe entender o gênero como
performativo e a descontinuidade do sistema sexo/gênero que refuta a noção de coerência de
gênero falsamente colocada. Ademais, a filósofa aborda o binarismo a partir da crítica a
divisão dualista que assegura a heterossexualidade compulsória.

Palavras-chave: Sujeito. Gênero. Binarismo sexual. Heterossexualidade.

INTRODUÇÃO

Em cada período histórico, lugar e cultura, prevalecem padrões que ditam o


comportamento que as pessoas que ali pertencem deveriam seguir. Se, por um lado, as
construções sociais são importantes para consolidar a identidade de um povo e assim
desenvolver seus outros ramos - política, economia, etc. -, por outro, entende-se que nem
sempre elas são favoráveis para todos aqueles que a elas estão subordinados, isso porque a
pluralidade dos seres torna impossível enquadrar todo mundo dentro de um molde
predefinido.
Diante dessas considerações, na medida em que alguns padrões se consolidaram na
sociedade, criaram estruturas e estabilidades de acordo com a perspectiva hegemônica e a
mantém com a repressão aos que não se sujeitam a ela. De forma análoga, nos moldes
ocidentais que a nós foram instituídos, a heterossexualidade é matriz da qual se regulam as
identidades, gêneros e manifestações, não admitindo as possibilidades que se encontram fora
dessa concepção.
A partir dessa análise, surgiu o interesse de compreender, conceitualmente, os

145
GT - Gênero(s) e Diversidade Sexual no Direito
146
Graduanda em Direito na Universidade de Pernambuco (UPE) – Campus Arcoverde E-mail:
isaenearsan@gmail.com
questionamentos sobre gênero e demais problemáticas que o cercam. Assim, fui levada a
conhecer, um pouco mais a fundo, os estudos da filósofa norte-americana Judith Butler,
conhecida pela crítica ao movimento feminista e a teoria queer. Consequentemente, a partir
de minhas pesquisas, acrescentei alguns outros elementos ao debate. Por fim, o presente
trabalho propõe o seguinte questionamento: de que forma se apresentam os conceitos de
sujeito, gênero e binarismo sexual nas reflexões de Butler?
A obra que serviu como base teórica para essa pesquisa foi o livro “Problemas de
Gênero” publicado nos anos 90. Em um primeiro momento, pode-se estabelecer uma
discussão sobre o próprio título escolhido pela autora. Se por um lado “problemas”, sugerem
as questões e reflexões importantes para o entendimento de gênero e a sua construção, por
outro, o termo pode ser compreendido como uma menção àquelas formas de gêneros tidas
como problemáticas, ou seja, aquelas que fogem dos padrões que impõem a
heteronormatividade e a dualidade dos sexos.
Dito isso, o presente artigo tem como objetivo geral entender de que forma se
apresentam os conceitos de sujeito, gênero e binarismo sexual nas reflexões de Butler.
Outrossim, como objetivos específicos propõe-se interpretar tais conceitos a partir do contexto
patriarcal e heteronormativo no Brasil e analisá-los diante da crescente disseminação dos
discursos de ódio.
O seguinte trabalho, portanto, configura-se em uma releitura das discussões
butlerianas no que tangem, além da conceituação de sujeito, gênero e binarismo, a relação de
identidades, construções e expressões contrárias ao padrão hegemônico. Para os fins desta
pesquisa, foi utilizado o método de abordagem dedutivo, o qual “é essencialmente tautológico,
ou seja, permite concluir, de forma diferente, a mesma coisa” (GIL, 2008, p. 9), tendo como
aporte a pesquisa bibliográfica. Além disso, a interpretação realizada tem caráter qualitativo,
a qual se utiliza de uma análise altamente descritiva (MARCONI E LAKATOS, 2010).

1. REFLEXÕES SOBRE O SUJEITO

As noções de sujeito que aparecem nos estudos de Butler envolvem críticas ao


movimento feminista, a própria constituição do sujeito e, nesse ponto, ainda é tratada a
subversão. É importante mencionar que o pensamento foucaultiano está presente no debate da
filósofa, bem como os estudos de outras autoras feministas como Beauvoir (1980), Wittig
(2006) e Irigaray (1985), as quais serão todas abordadas ao decorrer do seguinte tópico.
De início, a crítica de Butler (2015) ao feminismo é referente à categoria de mulher,
ou seja, uma noção única do que é ser mulher. Faz-se imprescindível reiterar, entretanto, que
a obra “Problemas de Gênero”, foi publicada na década de 90, onde o movimento feminista
buscava abranger todas as questões da mulher sem fazer algumas distinções necessárias. Hoje,
todavia o cenário já sofreu algumas alterações, a exemplo do feminismo negro, no qual
mulheres negras lutam por direitos e espaços que mulheres brancas não precisam conquistar.
Woodward explica que “a representação inclui as práticas de significação e os sistemas
simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como
sujeito” (2007, p. 17). Portanto, a crítica butleriana às políticas de representação faz-se
pertinente, especialmente ao tratar de uma reflexão sobre o feminino e o masculino e salienta-
se, o debate sobre a universalização. Conforme Butler (2015) afirma, é justamente essa busca
por uma identidade comum entre as mulheres que pode servir como instrumento de
manutenção das estruturas de poder que imperam na sociedade.
Dessa forma, se anteriormente, a unidade/coalizão de mulheres foi necessária para
instituir e fortalecer o movimento feminista e conquistar direitos básicos como votar e
trabalhar, hoje, para que mulheres possam ter outros direitos, igualmente importantes,
reconhecidos, Butler (2015) afirma é preciso admitir as fragmentações, sejam elas recortes de
raça, classe social, etnia, construção cultural e o período histórico. Portanto, é necessário
transgredir de identidade para identidades, reconhecendo as pluralidades.
Isso porque o patriarcado não se dá da mesma forma em todos os segmentos. Sobre
isso, Rodrigues (2005, p. 179) afirma que “Butler estaria tentando deslocar o feminismo do
campo do humanismo, como prática política que pressupõe o sujeito como identidade fixa,
para algo que deixe em aberto a questão da identidade, algo que não organize a pluralidade,
mas a mantenha aberta”
Além disso, a filósofa leva em consideração a formação do sujeito. “A identidade do
sujeito feminista não deve ser o fundamento da política feminista, pois a formação do sujeito
ocorre no interior de um campo de poder sistematicamente encoberto pela afirmação desse
fundamento.” (BUTLER, 2015, p. 25). Assim, percebe que a crítica de Butler à representação
dá-se porque não pode ser ela a política principal pelo qual o movimento feminista age.
Ressalva-se, entretanto que a autora não nega a importância da representatividade para o
feminismo.
Ainda na discussão da mulher enquanto sujeito do feminismo, “Problemas de Gênero”
traz o diálogo das afirmações de três autoras feministas: Beauvoir, Irigaray e Wittig. A
pertinência dessa exposição dá-se justamente pela importância de compreender a posição do
sujeito mulher em relação à lógica dominante masculinista. De início, Simone de Beauvoir,
em seu livro “O Segundo Sexo”, cria uma noção do Sujeito e o Outro, para ela, o sujeito, que
é geral/universal, é sempre masculino, enquanto o feminino aparece como seu outro.
Dentro dessa perspectiva, observa-se uma lógica que afirma o feminino como uma
oposição ao masculino. Em seguida, Butler traz as ideias de Irigaray, que se contrapõem à
Beauvoir por afirmar que “a mulher não é o sujeito nem o seu outro”. (BUTLER, 2015, p. 46).
Em outras palavras, Irigaray (1985) defende que a mulher não é um sujeito marcado, nem uno,
refutando, consequentemente, a ideia de que o feminino se apresenta como oposição ao
masculino.
Por fim, Monique Wittig (2006) afirma que o homem é a pessoa, e a marca de gênero
é atribuída à mulher, a qual precisa se reafirmar diante do sujeito universal masculino. Apesar
de demonstrar semelhança com o pensamento de Beauvoir, a análise de Wittig está mais
voltada para a categoria do sexo como fundamento da hegemonia heterossexual. Em síntese,
Butler (2015) traz essa discussão para questionar a lógica dualista dos sexos e a forma como
são pensadas a feminilidade e a masculinidade, que se colocam de forma estática e sempre
consoantes à fêmea e macho.
Faz-se é imprescindível, ainda, mencionar que Butler (2015) em seu livro “Problemas
de Gênero”, não esgota suas reflexões pensando apenas as questões voltadas ao homem x
mulher. Pelo contrário, essa obra marca uma transição desse questionamento, para também
analisar a heterossexualidade x homossexualidade. Dessa forma, o grande nome da teoria
queer apresenta essa discussão dentro de sua noção de subversão, que pode ser compreendida
a partir da constituição do sujeito.
À priori, a concepção butleriana sobre a construção do sujeito recebe influência de
Foucault, o qual afirma que os sujeitos são produtos do sistema e noções jurídicas de poder
ao qual estão subordinados. (FOUCAULT, 1984). Ou seja, são produzidos pelas relações de
poder e interações sociais, sendo delas dependentes. Além disso. Foucault alinha seu conceito
de sujeito com a subjetivação, a qual seria a manutenção do código cultural.
Por sua vez, Butler vai adiante e diferencia-se de Foucault por compreender que o
poder possui não só função jurídica e reguladora, mas também constitutiva do sujeito,
argumentando que “a construção política do sujeito procede vinculada a certos objetivos de
legitimação e de exclusão” (2015, p. 19). Assim, de acordo com a afirmação, os sujeitos que
são construídos e permanecem em conformidade com as normas que imperam – a
heteronormatividade, são aceitos, legitimados e reconhecidos, enquanto aqueles dissonantes
a esse padrão são excluídos, tidos como ininteligíveis.
Entretanto, pode-se questionar, se admitimos que a constituição dos sujeitos submete-
se à determinadas normas, como é possível a formação de identidades subversivas a esse
padrão heteronormativo? Dito isso, para explicar esse processo, Butler apresenta a noção de
agência, aspecto que não foi abordado pelas reflexões foucaultianas e que se configura como
o poder de ação do sujeito.
Diante disso, Butler afirma que “o sujeito não só se forma na subordinação, mas esta
lhe proporciona a sua condição de possibilidade” (2010. p.19). Inicialmente, faz-se necessário
compreender que a subordinação, apontada pela filósofa, se dá mediante a repetição dos
padrões hegemônicos, admitindo a compreensão de um sujeito performativo. Entretanto, da
mesma forma que essa repetição serve manutenção desse sistema, ela também abre espaço
para questionar e combater tais modelos.
Assim sendo, essa possibilidade de alteração ocorre porque, segundo Butler, o poder
não determina completamente o sujeito, bem como a situação contrária não acontece.
Portanto, essas limitações apontadas pela autora, ao mesmo passo em que subordinam, podem
ser alteradas pela ação do próprio sujeito.

O poder que dá origem ao sujeito não mantém uma relação de continuidade com o
poder que constitui a sua potência (capacidade de ação). Quando o poder modifica
o seu estatuto, passando a ser condição de potência, converte-se em a própria
potência do sujeito (constituindo uma aparência de poder na qual o sujeito aparece
como condição de seu próprio poder), se produz uma inversão significativa e
potencialmente permitida. (BUTLER, 2010, p. 23).

Dessa forma, pode-se afirmar que a potência de mudança do sujeito provém do poder
que a formou e o qual ele pode se opor, ou seja, ele usa o mesmo poder que o constituiu para
ressignificá-lo e realizar transformações.
Por fim, Butler (2015) ainda expõe uma noção de desejo. Retomando o conceito de
agência, ela remete à transformações ou ainda transmutações no paradigma hegemônico, uma
resistência ao poder. Por sua vez, o desejo é apresentado pela filósofa como o motor da
agência, é ele o que faz as pessoas se insurgirem, especialmente por ele não ser estático.
Seguindo a discussão, ainda é apontada a consciência reflexiva, ou seja, o momento em que o
sujeito dá-se conta de si.
Entretanto, ressalta-se que, para Butler (2015), o desejo antecede a consciência
reflexiva, assumindo, de certa forma, papel de condicional a ela. Nesse caso, inicialmente, o
sujeito possui o desejo, que vai impulsionar a mudança (agência), e de modo quase sequencial,
tem-se a consciência reflexiva e, por fim, a agência que assume o papel da resistência de fato,
como o poder de fazer.

2. CONCEITO DE GÊNERO, RELAÇÃO SEXO/GÊNERO E BINARISMO SEXUAL

Judith Butler construiu suas críticas ao sistema sexo-gênero influenciada pelo pós-
estruturalismo de Derrida e Foucault. Dessa forma, Mariano (2005), afirma que as teorias pós-
estruturalistas rompem com o padrão binário e hierárquico das tradições filosóficas ocidentais
a partir do questionamento das categorias universais e por tratar conceitos tidos como naturais,
como históricos (NARVAZ, 2010). Nessa perspectiva, o gênero é compreendido como
produção discursiva inscrita em uma rede complexa de relações de poder, como “a própria
noção de pessoa, posicionada na linguagem como sujeito” (BUTLER, 2015, p. 30-31).
Com efeito, a prática de naturalização da relação sexo-gênero é veementemente
questionada por Butler em suas reflexões. Para Salih (2012), na obra Problemas de Gênero,
a filósofa se propõe a combater a metafísica das substâncias, rompendo com o entendimento
de sexo e corpo como entidades naturais e autoevidentes. Além disso, no que se refere ao
gênero, essa atribuição substancial - o que o gênero é - mantém a concepção de gênero estável,
que, para Butler, é irreal e inviável.
Nessa perspectiva, a filósofa afirma que o sistema sexo-gênero sugere uma
“descontinuidade radical entre corpos sexuados e gêneros culturalmente construídos”
(BUTLER, 2015, p. 26). Isso porque, Butler não admite a naturalização, como uma relação
de causa e efeito entre sexo e gênero. Pode-se observar essa concepção a partir de sua reflexão
sobre a afirmação de Beauvoir que “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”, a qual Butler
admite não haver nenhuma evidência que o ‘ser” que se torna mulher é, necessariamente, do
sexo feminino.
Portanto, a autora propõe um questionamento sobre a própria “construção” do gênero.
Diferente, do que prega a teoria feminista humanista, a qual compreende o gênero como um
atributo da pessoa, Butler entende que ele seria um “fenômeno inconstante e contextual, que
não denota um ser substantivo, mas um ponto relativo de convergência entre conjuntos
específicos de relações, cultural e historicamente convergentes" (2015, p. 33).
Ademais, Butler em sua obra trata da ordem compulsória sexo/gênero/desejo, a qual
seria compreendida como uma relação causal entre esses três elementos. Para melhor dizer, o
sexo exige o gênero - dentro do sistema de oposição binária - que por sua vez, reflete o desejo,
o qual é sempre heterossexual. Dito isso, tem-se o exemplo da ultrassonografia, assim que é
descoberto o sexo da criança, é atribuído a ela, de maneira sequencial e naturalizada, um
gênero - masculino ou feminino - e, a partir dele, também será designado o seu desejo - de
acordo com a matriz heterossexual.
Dessa forma, a partir dessa compreensão são instituídas normas de inteligibilidade dos
gêneros. Nesse contexto, são considerados gêneros inteligíveis aqueles que apresentam
“continuidade e coerência entre o sexo biológico, gênero culturalmente constituído e a
‘expressão’ ou ‘efeito’ de ambos na manifestação do desejo sexual por meio da prática sexual”
(BUTLER, 2015, p. 43). Portanto, todas aquelas configurações alheias ou dissonantes do
padrão heteronormativo são tidas como desordens.

Os limites da análise discursiva do gênero pressupõem e definem por antecipação


as possibilidades das configurações imagináveis e realizáveis do gênero na cultura.
Isso não quer dizer que toda e qualquer possibilidade de gênero seja facultada, mas
que as fronteiras analíticas sugerem os limites de uma experiência discursivamente
condicionada. Tais limites se estabelecem sempre nos termos de um discurso
cultural hegemônico, baseado em estruturas binárias que se apresentam como
a linguagem da racionalidade universal. (BUTLER, 2015, p. 30-31).

O binarismo sexual provém de uma sexualidade heteronormativa estrutural que


categorizou o mundo em masculino e feminino (NARVAZ, 2010). Para Butler, “a instituição
de uma heterossexualidade compulsória e naturalizada exige e regula o gênero como uma
relação binária em que o termo masculino diferencia-se do termo feminino, realizando-se essa
diferenciação por meio das práticas do desejo heterossexual.” (BUTLER, 2015, p. 53). Essa
interpretação do dualismo feminino x masculino, é criticado pela autora, sobretudo, por
designar o feminino como identidade fixa oposta ao masculino.
Ainda de acordo com Butler (2015, p. 47), “a regularização binária da sexualidade
suprime a multiplicidade subversiva de uma sexualidade que rompe as hegemonias
heterossexual, reprodutiva e médico-jurídica.” Acrescenta-se, desse modo, que os sistemas
binários consistem nas concepções dualistas de homem x mulher, masculinidade x
feminilidade, macho x fêmea, heterossexual x homossexual, que servem de respaldo para a
manutenção da falsa noção de existência de apenas dois sexos fixos e coerentes. Em Bodies
that Matter, a filósofa faz o seguinte pronunciamento:

Neste livro meu propósito é chegar a uma compreensão de como aquilo que foi
excluído ou desterrado da esfera propriamente dita do “sexo” – entendendo que essa
esfera se afirma mediante um imperativo que impõe a heterossexualidade – poderia
ser produzido como um retorno perturbador, não somente como uma oposição
imaginária que produz uma falha inevitável na aplicação da lei, senão como uma
desorganização capacitadora, como a ocasião de rearticular radicalmente o
horizonte simbólico no qual há corpos que importam mais que outros (BUTLER,
2002, p.49).
De acordo com a afirmativa, portanto, a heterossexualidade compulsória e,
consequentemente, o binarismo sexual atuam com a exclusão, ou ainda inadmissão ou não
reconhecimento das expressões não binárias. Nesse contexto, Butler alega que a
desnaturalização e a desconstrução do sistema masculino/feminino contestaram as identidades
fixas e estáveis dos corpos, dos desejos e dos sujeitos (BUTLER, 2015). Sobre isso, a autora
Tina Chanter explica que os transgêneros – gêneros que se encontram fora do padrão binário
– já rompem com a própria noção conhecida de gênero por contestarem “fórmulas femininas
já testadas e confiáveis, que equiparam o gênero com a sociedade (ou cultura, ou história) e o
sexo com a biologia (ou fisiologia, ou natureza)” (2011, p. 7).
Diante disso, Díaz vai afirmar que “ponto central da análise de Butler, determina que
a busca de uma identidade hermeticamente coerente é o motivo principal da exclusão de
posições que se percebem como abjetas enquanto são consideradas uma ameaça para a
coerência do sujeito.” (DÍAZ, 2013, p. 458). Por fim, tem-se a asserção da autora: “O gênero
é o mecanismo pelo quais as noções de masculino e feminino são produzidas e naturalizadas,
mas ele poderia ser muito bem o dispositivo pelo qual estes termos são desconstruídos e
desnaturalizados” (BUTLER, 2006, p. 59).
Diante disso, esses dois processos - manutenção e resistência - assumidos pelo gêneros
são abordados por Butler à luz da performatividade. Butler, ao conceber a performatividade,
estabelece uma reinterpretação/ressignificação do gênero fora da estrutura padrão e binária de
sexo/gênero.

A performatividade é um ato que faz surgir o que nomeia e constitui-se na e pela


linguagem. Apropriando-se do modelo foucaultiano de inscrição, Butler estabelece
toda identidade de gênero como uma forma de paródia. O conceito de
performatividade torna possíveis encenações de gênero que chamem atenção para o
caráter construído de todas as identidades, sobretudo aquelas mais estáveis.
Algumas dessas encenações são mais paródicas que outras, como o drag, que revela
a natureza mimética de todas as identidades de gênero. (ROCHA, 2014, p. 512)

À priori, Butler defende que a performatividade “deve ser entendida não como um ato
singular e deliberado, senão antes como a prática reiterativa e referencial mediante a qual o
discurso produz os efeitos que nomeia” (2002, p.18). Dito isso, no que tange a perspectiva
performática da construção, ela deve ser compreendida como um processo de reiteração e
citação no qual existem condições para a formação, tanto para a desestruturação das
concepções de sexo e gênero, desestabilizando, por conseguinte, o sujeito sexuado e
‘generizado’.
Em síntese, o gênero é produzido através de práticas repetitivas, de atos e gestos que
remetem a determinadas encenações performáticas. Faz-se importante mencionar, todavia,
que Butler compreende a heterossexualidade como um ato tão performativo quanto as outras
configurações de gênero. Por fim, ratifica-se que as atuações de gênero são constantemente
reafirmadas ou (re)negociadas a partir de determinadas possibilidades que instauram, em cada
tempo, diferentes normas de gênero.

3- ANÁLISE SOBRE A DISSEMINAÇÃO DOS DISCURSOS DE ÓDIO NO BRASIL

Ao transcorrer sobre os conceitos butlerianos abordados neste trabalho, foi possível


observar que as reflexões da filósofa, não por acaso, apresentam-se sempre partindo da
heteronormatividade e possibilidades de se insurgir a ela. Dito isso, nesse tópico, será
discutido o discurso de ódio, bem como sua crescente disseminação, a partir da construção
heteronormativa no Brasil e suas consequentes tragédias.
A princípio, elenca-se o próprio conceito de discurso de ódio, o hate speech. Acerca
disso, muitos autores elencam definições que englobam intimidar, repreender, incitar a
violência… a partir de parâmetros raciais, sexuais, religiosos e identitários. Entretanto, não se
tem um conceito determinado em razão das exposições dos teóricos apresentarem
incompletudes, especialmente por não abranger todas as interseccionalidades.
Admite-se, todavia, a carga ideológica que serve de fundamento para todo discurso de
ódio. De acordo com Struchiner, “podemos usar [...] uma consciência afiada das palavras para
aguçar as nossas percepções dos fenômenos.” (2006, p. 336). Nessa situação, portanto,
discurso de ódio se constrói a partir da concepção de inferiorização das minorias e grupos
vulnerárias.
Complementando essa compreensão, Rosenfeld (2001) vai analisar esse fenômeno a
partir da diferenciação entre hate speech in form e hate speech in substance, a primeira trata
das alegações explicitamente odiosas, enquanto a segunda refere-se à disseminação de um
discurso de ódio pautado, ou ainda disfarçado, pela moralidade. De forma análoga, é essa
segunda configuração que reflete a situação do Brasil.
Para melhor compreender, retomamos aquela percepção (falsa) do Brasil como um
lugar que acolhe as diversidades, quando na verdade, a história do país é marcada pela
reafirmação dos padrões hegemônicos. Isso porque, a violência com os grupos marginalizados
é estrutural e institucional, levando à sua naturalização. Por conseguinte, o ódio é velado pelas
afirmações dos “valores morais” e a pregação de uma tolerância que em nenhum momento
trata o respeito ou aceitação dos sujeitos e expressões contrários aos padrões aceitos.
Estabelecemos então a distinção entre preconceito – não sendo compreendido como
um conceito prévio -, que representa a ideia, a construção social e ideológica dominante e
opressora, e a discriminação que refere-se ao ato, à prática da violência. Essa relação é
importante, pois, em tese, o preconceito, enquanto não externado, não causa danos a ninguém.
Entretanto, questiona-se até quando ele vai permanecer internalizado. Dessa forma, é essa
problemática que circunscreve a crescente disseminação dos discursos de ódio no Brasil, que,
salienta-se, é signatário de um acordo internacional contra essa prática.

Os Estados comprometem-se a prevenir, eliminar, proibir e punir, de acordo com


suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, todos os atos e
manifestações de discriminação e intolerância, inclusive: I. apoio público ou privado
a atividades discriminatórias ou que promovam a intolerância, incluindo seu
financiamento; II. Publicação, circulação ou difusão, por qualquer forma e/ou meio
de comunicação, inclusive a internet, de qualquer material que: a) defenda, promova
ou incite o ódio, a discriminação e a intolerância; e b) tolere, justifique ou defenda
atos que constituam ou tenham constituído genocídio ou crimes contra a
humanidade, conforme definidos pelo Direito Internacional, ou promova ou incite a
prática desses atos; III. Violência motivada por qualquer um dos critérios
estabelecidos no artigo 1.1; [...] (OEA, 2013, p. 4).

Delimitando a análise para recorte de sexo e gênero, interesse dessa pesquisa, o Brasil
é o país que mais mata transexuais e travestis no mundo, dados do Grupo Gay da Bahia (GGB)
mostram que a expectativa de vida dessa população é, em média, 35 anos, ainda menos que a
metade da média geral do país de 75 anos. Além disso, os dados de 2016 apontam que um
LGBT é morto a cada 25 horas.
Em continuidade, pode-se citar os assassinatos brutais de Dandara em Fortaleza,
Matheusa no Rio de Janeiro e Thadeu em Salvador todos eles pessoas trans. Percebe-se,
portanto, o ódio, a indiferença e o descaso com aquelas identidades que fogem do padrão de
inteligibilidade que Butler (2015) já abordava em suas reflexões sobre o gênero. O que
acontece, nesse contexto é a exterminação das “desordens de gênero”, para manter a
estruturação do sistema dualista de sexos.
Faz-se importante, contudo, analisar esse quadro de violência e repressão contra a
comunidade LGBT, a partir própria história do país. Dito isso, as considerações começam
desde a colonização, quando os portugueses instituíram o cristianismo, que admite apenas a
heterosexualidade, como a religião oficial - a única possível. Assim, seguiu-se quinhentos
anos com esse mesmo imaginário. Além disso, outro fator determinante é que a Constituição
Federal tem apenas 30 anos, e foi instaurada duas décadas depois do Brasil ser governado por
militares. Portanto, todo esse quadro histórico é responsável pelo extremo conservadorismo e
moralismo que combatemos hoje.
Por fim, é imprescindível comentar sobre o quadro das eleições presidenciais que
ocorrem nesse ano, no qual o extremismo e a intolerância estão tomando cada vez mais espaço,
especialmente pelo apoio de parcela da população a um candidato que representa todos os
ideais heteronormativos repressivos e que é responsável pelo aumento recente da difusão dos
discursos de ódio. O cenário brasileiro, de forma sintética, reflete uma verdadeira guerra que
busca e extinção de sujeitos, expressões corporais e identidades que não se localizam dentro
dos padrões da matriz heterossexual.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Acerca dos conceitos que esse trabalho se propõe a debater, elenca-se alguns
elementos essenciais para a compreensão de cada um deles. A percepção do sujeito em Butler,
é abordada, sobre a identidade e a universalização do sujeito, dentro de uma crítica ao
feminisno, que para ela precisa ser superada, pois essa prática ajuda a manter as estruturas
hegemônicas. A crítica butleriana consiste na impossibilidade de se estabelecer uma categoria
de mulher. Dentro de uma visão foucaultiana, a autora afirma que o sujeito é produto das
relações de poder. Dessa forma, em cara sociedade, de acordo com as normas imperantes, o
sujeito vai obedecer diferentes normas de constituição, o que impede a sua compreensão
enquanto unidade.
Assim, a filósofa sugere como superação desse problema, que sejam considerados as
fragmentaridades dos sujeitos. Outro aspecto, elucidado pela filósofa, que serve para
compreender tanto o sujeito, quanto o gênero, é a performatividade, ou seja, a reiteração e
citação dos padrões. Assim, formado a partir da repetição das normas hegemônicas, essa
repetição permite a própria ressignificação das práticas reguladoras que constituíram o sujeito,
e também o gênero, pois a explicação de subversão de gênero também é definida pela autora
como uma possibilidade oferecida pelos atos performativos, pois, a partir da apropriação das
normas para repetição, é possível transformá-las e assim reconfigurar os contornos de gênero.
Seguindo a conceituação de gênero, Butler aborda, principalmente, a relação
sexo/gênero, onde o sexo é sempre pensado como algo natural e o gênero culturalmente
construído, sendo que essa relação segue uma lógica coerente e contínua. O binarismo, por
sua vez trata das relações homem x mulher, masculinidade x feminilidade, etc. Assim, a
relação sexo/gênero coerente forma a mulher/feminino que é fixo e oposto homem/masculino.
Portanto, conclui-se, sobre as definições de gênero e binarismo, que um, de certa
forma, é responsável pela estruturação do outro. Isto é, pode-se considerar que o sistema
binário serve como instrumento de limitação do gênero, que distingue e limita as relações de
gênero entre masculino x feminino - sendo um sempre em oposição ao outro – assim, Butler
constrói o debate sobre gênero questionando essa posição e elencando as outras possibilidades
de configuração de gênero.
Além disso, outro ponto central para entender as reflexões de Butler é
heterossexualidade compulsória, ou seja, a colocação da heterossexualidade como inclinação
natural a todos os seres humanos. Essa perspectiva desemboca a crítica da filósofa à imposição
heteronormativa de coerência entre sexo/gênero/desejo, instituindo o que ela chama de
gêneros inteligíveis. Por fim, conclui-se que é partir dessa inteligibilidade de gênero que se
compreende os ataques e disseminação dos discursos de ódio contra LGBTs, que colocam o
Brasil como um dos países mais violentos para essa população,

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VIOLÊNCIA CONTRA MULHER: estudo através da perspectiva histórica feminista
147

Lillian Rebeca Lemos Santos148


Ana Larissa de Oliveira
Vidal149
Elba Ravane Alves
Amorim 150

RESUMO

O presente artigo trata acerca da evolução histórica dos direitos femininos conquistados
mediante os movimentos feministas, e faz importantes menções acerca do patriarcado na
sociedade brasileira e o machismo introduzido desde épocas passadas. Além disso, discorre
sobre a violência contra a mulher e a evolução das políticas públicas, bem como, menciona a
situação da mulher brasileira antes da promulgação da Lei Maria da Penha e o âmbito atual.
Somado a isso, o artigo menciona a importância do empoderamento das mulheres,
principalmente, nos seus ambientes de trabalho. Ademais, trata a respeito dos órgãos que
acolhem as mulheres vítimas de violência e a importância da disseminação dos direitos das
mulheres, mencionados na Lei Maria da Penha, para a proliferação do combate a violência
contra à mulher através de ações educativas, como por exemplo, aquelas realizadas em creches
e universidades. Sendo assim, o artigo busca explanar sobre a luta das mulheres para vivermos
em uma sociedade sem violência contra esse gênero, pois, muitas ainda são violentadas,
mesmo com a proteção da Lei nº 11.340/2006, o número de mulheres que possuem medo de
fazer a denúncia ainda é enorme, por isso, a importância da divulgação das proteções dadas a
elas.

Palavras-chaves: Gênero, Feminismos, Violência Contra Mulher.

INTRODUÇÃO

No Varal da minha casa, não tem lugar diferente. Ao lado de uma cueca, há uma
calcinha presente. Demarcando um território, que nada tem de transitório. É uma
conquista permanente.
(Dalinha Catunda, estrofe extraída da Peleja Papo de Mulher)

147
Artigo submetido ao grupo GT 4- Gênero(s) e Diversidade Sexual no direito no III Congresso de Pernambuco
de Ciências Jurídicas
148
Estudante do 4 período de Direito da ASCES UNITA, integrante do Núcleo de Gênero da ASCES UNITA, e-
mail: rebecasantos057@hotmail.com
149
Estudante do 4 período de Direito da ASCES UNITA, integrante do Núcleo de Gênero da ASCES UNITA, e-
mail: lariissa_oliveira123@hotmail.com
150
Mestra em Direitos Humanos pela UFPE, Advogada OAB/PE 29.700, pós-graduada em Segurança Pública e
Cidadania pela ASCES, professora universitária das graduações em Direito e Administração Pública. Compõe a
Coordenação Colegiada do Projeto de Extensão da Administração Viva do Curso de Administração Pública
(ASCES UNITA) e a Coordenação Colegiada do Núcleo de Estudos em Gênero da ASCES UNITA. Ex-
Secretária Especial da Mulher e Direitos Humanos de Caruaru 2011/2014. Ex-Assessora Jurídica do
PRORURAL/Secretaria de Agricultura de Pernambuco-Brasil e Atualmente Coordenadora da ONG Diversa:
Centro de Pesquisa em Direitos Humanos, Gênero e Democracia. Pesquisadora do Instituto de Capacitação e
Pesquisa de Pernambuco, e-mail: elbaamorim@asces.edu.br.
Para que seja possível construir uma sociedade livre da violência contra a mulher é
preciso categorizar essa violência, ou seja identificar essas práticas, realizar um
estudohistórico, pois as raízes dessa problemática foram estruturando-se ao longo do tempo.
Sendo assim, é valido salientar que a violência contra a mulher não se restringe a agressão
física, está presente também na violência psicológica, sexual, patrimonial e moral. Importante
refletir que tem contribuído com essas manifestações de violência, de acordo coma
perspectiva histórica aspectos como os costumes, o formato político do Estado, o modelo
familiar e concentração de poder nos homens, fatores que foram decisivos na perpetuação do
patriarcado.
Desse modo, esse sistema social “objetificou” a mulher, desprezando sua humanidade
e tornando sua vida propriedade do homem (pai, marido, filho). Sem poder decisão, todo o
controle das vidas das mulheres era do homem, desde questões pessoais como o próprio corpo
ou orientação sexual até participação política. Somado a isso, elas eram doutrinadas para
procurar satisfação plena e inquestionável no casamento e na maternidade (MIGUEL, 2014,
p. 28),como afirma Betty Friendan (2001), no livro The feministemystique"para uma garota
não é muito inteligente ser muito inteligente”.
Outrossim, o feminismo surge como um “grito” dessas mulheres, tendo sua origem na
Europa. No Brasil teve um início tímido e assustado, liderado por Bertha Lutz, a primeira
fase(1920-1930) do feminismo brasileiro questionava pouco o patriarcado na esfera privada,
detendo-se a luta por direitos civis. Na segunda fase(1920-1930), o movimento ganhou outra
liderança Maria de Lacerda Moura e tornou a realidade social das mulheres em pautas de
discursão e luta, as particularidades das mulheres e sua vida na esfera privada também
precisava de atenção. Sendo assim, Bertha Lutz e Maria de Lacerda Moura eram
contemporâneas, e desencadearam vertentes diferentes do feminismo, mas que possuíam
como princípio principal considerar a mulher como ser humano. A terceira fase, do
feminismo, que é a atual, se caracteriza por feminismo que luta pela ocupação de espaços
institucionais e pela constituição de marcos legais. Diante disso, é preciso destacar que algo
ao longo do processo histórico do feminismo brasileiro, sugiram barreiras dentro do próprio
movimento, como a classe social das mulheres, os diferentes níveis de escolaridade de suas
integrantes, as especificidades das mulheres negras, a diversidade sexual (PINTO, 2003).
Apesar das conquistas feministas o machismo ainda se faz presente na sociedade,
embora não possuindo mesmo formato do passado ele ainda hoje viola a dignidade das
mulheres. Por isso o empoderamento da mulher é essencial, ou seja, garantir as mulheres o
acesso a mecanismos de empoderamento, para que mulheres consigam identificar a violência
e denuncia-la. Mas esse poder só é obtido através da educação, as conscientizando da seu
passado histórico e direitos vigente, e através de políticas públicas, que garantam a proteção
dos seus direitos. Além disso, a luta contra o machismo não pode ser algo restrito às mulheres,
precisa ser algo vivenciado por toda sociedade, pois é um problema que atinge não só o grupo
das mulheres, mas todo o convívio social.

1 PERCURSO METODOLÓGICO

Esse artigo é o resultado de uma pesquisa bibliográfica e documental (CERVO E


BERVIAN, 1983, p. 55), que se desenvolve com o objetivo de colher informações e dados
para a análise da violência contra mulher, problematizando o estudo histórico e as conquistas
feministas no âmbito social e jurídico. Na análise de conteúdo, focamos nas etapas
evolucionais dos movimentos feministas, discorrendo desde a chegada das discussões
feministas no Brasil até os dias atuais. Utilizamos as seguintes categorias analíticas para o
estudo:
1. Feminismos
2. Patriarcado
3. Violência contra mulher
4. Políticas Públicas
A pesquisa é de abordagem qualitativa, que “[...] se ocupa, nas Ciências Sociais, com
um nível de realidade que não pode ou não deveria ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com
o universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores [...]. ”
(MINAYO, 2010, p.21/22)

2. DESENVOLVIMENTO TEÓRICO

2.1 Feminismos: revisitar o passado, compreender o presente e lançar desafios para o


futuro

O feminismo tem como principal objeto históricoa decisão das mulheres de lutarem
por direitos iguais. Pesquisas apontam que é no século XVIII, que as mulheres iniciam o
processo de articulação coletiva para instituírem uma sociedade justa, já que, o machismo
coloca o homem em uma posição de superioridade em relação à mulher (PINTO, 2003).
Os grupos feministas tiveram um grande impulso com a Revolução Francesa (1789)
com o lema igualdade, fraternidade e liberdade, na qual foi observada uma contradição, pois,
as mulheres continuavam sem ter voz e, a partir disso, as mulheres passaram a denunciar a
Revolução que assegurou igualdade e liberdade apenas para os homens.
Analisando a situação da mulher brasileira, é possível identificar que apesar das
especificidades do nosso território, elas viviam em situação semelhantes que as mulheres
europeias, a submissão ao homem. Foi uma época em que eram vistas como meros objetos,
que tinham seus donos, vivendo assim, sem liberdade e condições materiais para acessarem a
cidadania. Ademais, elas não eram vistas como possuidoras de direitos, como menciona Céli
Regina J. Pinto (2003, p.13), no livro Uma história do feminismo no Brasil: “A não-inclusão
da mulher no texto constitucional não foi mero esquecimento. A mulher não foi citada porque
simplesmente não existia na cabeça dos constituintes como um indivíduo dotado de direitos”.
Diante disso, as famílias da classe dominante mandavam suas filhas para estudar em
outros países, e por consequência, essas mulheres tiveram acesso as ideias feministas. E é
dentro dessas oportunidades dadas a algumas mulheres que se manifestam as primeiras vozes
femininas contra a opressão(PINTO, 2003). Desse modo, o grupo restrito que teve acesso aos
debates feministas especialmente o feminismo europeu, encontrou no Brasil um ambiente
hostil para pôr em prática suas ideias. Ou seja, mesmo o feminismo tendo pouco alcance, ele
ainda era reprimido.
Além de serem reprimidas, o Estado não interferia na vida privada nem diante da
violação de direitos, essa não intervenção absoluta, acabou por legitimar a violência contra
mulher ocorrido no âmbito doméstico.
Primeiramente, no Brasil, o movimento procurou debater direitos políticos, liderança
feminina que se destacou nesse período foi Bertha Lutz (1920-1930), a militância resultou em
leis que garantiu direito de voto feminino e igualdade de direitos políticos (PINTO, 2003).
Esse período foi marcado pela liderança de mulheres pertencentes a elite, sendo assim, o
movimento primeiramente reivindicava a inclusão das mulheres no processo político sem
questionar o papel da mulher no âmbito familiar e a dominação do homem em relação a
liberdade da mulher.
A segunda vertente do movimento, apesar de contemporânea a primeira fase, buscou
tratar da educação da mulher, que só era possível se elas buscassem estudos fora do Brasil, o
que tornava as mulheres da classe popular mais vulnerabilizadas e submetidas à opressão dos
homens, visto que estas não tinham condições de estudar na Europa o que as impossibilitava
também de entrar em contato com as ideias feministas da época, não as inviabilizando de a
partir da dororidade desenvolverem processos e experiências de resistências contra as
opressões machistas. Foi a partir do retorno das mulheres estudantes que retornavam da
Europa que o feminismo começou a ser difundido.
Em contrapartida, Maria de Lacerda Moura(1920-1930) colocou em discussão no
movimento feminista a necessidade de reivindicar a desestruturação do patriarcado, pois, só
assim seria possível atender aos interesses de todas as mulheres, as mulheres pobres,
trabalhadoras e donas de casa que sem condições de acessarem o direito ao voto eram
excluídas do conceito de cidadania. Naquele momento, o feminismo difundido por Maria de
Lacerda Moura busca em primeiro lugar a liberdade pessoal de cada mulher, o que se
acreditava que ocorria através de uma educação não sexista (PINTO, 2003).
Questões como sexualidade, violência doméstica, saúde feminina, aborto e controle de
natalidade começaram a ser discutidas, o que ocasionou uma grande ruptura com o
patriarcado, pois agora elas lutavam para conhecer e se sentirem donas do seu próprio corpo,
escolher ter filhos ou não, e se optassem por ter, que pudessem colocá-los em creches para
que a maternidade não representasse a exclusão do mundo do trabalho, pauta que ainda
continua atual (PINTO, 2003). A partir daí,as mulheres passam a denunciar que não mais
aceitaram serem submetidas a condição de propriedade dos homens, reivindicavam sua
posição de pessoas humanas e lutavam para serem tratadas com dignidade o que exigia serem
incluídas no conceito de cidadania.
No contexto da ditadura militar (1964-1985), as lutas sociais e as lutas contra o
governo, e até na própria esquerda, acabou por sufocar o movimento feminista. Desse modo,
a ditadura tornou a luta feminista ainda mais difícil, já que, conseguiu restringir o espaço
avançado pelo movimento. Trazendo um sentimento de insegurança, e a até mesmo de culpa,
pois as mulheres se juntavam para discutir desde as questões pessoais(PINTO,2003, p. 51) até
políticas e as questões colocadas como pessoais não eram tidas pelos demais movimentos
como questão política e as feministas eram acusadas e culpabilizadas de fragmentar a luta de
classe. Por outro lado, foi nesse período que a pauta da sexualidade, timidamente, começou a
ser debatida, como destaca Celi Regina Pinto (2003):

Enquanto, no resto do mundo ocidental as mulheres procuravam discutir sua posição


na sociedade, seu corpo e seu prazer, um punhado de mulheres brasileiras fazia a
mesma coisa, mas pediam desculpas. A complicada relação do feminismo no Brasil
com o campo político justifica essa postura como veremos no decorrer da história
(PINTO, 2003).
Atualmente as lutas e conquistas históricas das feministas possuem uma visibilidade
maior, o movimento saiu de grupos fechados para uma atuação concreta na sociedade. Além
disso, as mulheres ocuparam lugares que eram seus por direito, mas sempre foram ocupados
por homens. A luta alcançou espaço em dois âmbitos distintos, porém complementares, o
privado e público. A fronteira que dividia esses dois espaços foi redefinida, o pessoal passou
a ser político (BIROLI, 2014).
Então, no terceiro momento do movimento feminista, podemos caracterizá-lo como o
pertencente nos dias atuais. Essa fase é marcada por um combate na exploração na luta de
classe, o que segue os pensamentos de Marx, bem como, na desigualdade salarial e nas
oportunidades de emprego. Em virtude disso, as mulheres negras são as que mais são
oprimidas, devido ao preconceito existente na sociedade, e no ditame moldado por uma
sociedade que acredita ser democrática, mas cria barreiras contra a democratização. Diante do
mencionado, o feminismo moderno é caracterizado pela ida das mulheres à rua na luta por
maior participação de mulheres no Congresso Nacional, já que, o patriarcado ainda prevalece,
embora de maneira mais implícita e, isso pode ser observado nas condutas tipificadas como
crime, como por exemplo, o estupro. Em diversos casos, as próprias instituiçõespúblicas,
como delegacias, culpabilizam a vítima.

2.2 Patriarcado: a base da violência contra mulher

O patriarcado possui uma influência histórica nas famílias brasileiras, por um longo
período foi perpetuado o modelo familiar em que o homem era chefe da família e o único que
poderia decidir, trabalhare falar (PINTO,2003,p.51). Somado a isso, ele tinha como
propriedade as mulheres (as escravas, a esposa, a filha), todas que estivessem sob o seu poder.
Podendo submetê-las, ao abuso sexual, à violência física, a exploração de seu trabalho, tudo
era lícito e moral, pois, a mulher para sociedade era igualada a coisa.
A falta de desestruturação da base cultural patriarcal, faz com que o Brasil não avance
e que a prática de condutas ilícitas se perpetue, de modo que a luta feminista torna-se na
atualidade ainda tão necessária. Fazendo uma analogia às ideias de Rudolf Von Ihering (2001,
p. 07), em seu livro, “A luta pelo direito”, podemos identificar que

[...] todas as grandes conquistas que a história do direito registra: - a abolição da


escravatura, da servidão pessoal, liberdade da propriedade predial, da indústria,
crenças, etc., foram alcançadas assim à custa de lutas ardentes, na maior parte das
vezes continuadas através dos séculos; por vezes são torrentes de sangue, mas
sempre são direitos aniquilados que marcam o caminho seguido pelo direito. O
direito é como Saturno devorando os seus próprios filhos; não pode remoçar sem
fazer tábua rosa do seu próprio passado (IHERING, 2001, p.07)

A luta pela igualdade do gênero precisa ter uma participação dos homens, para que o
princípio da dignidade da pessoa humana seja efetivado e a sociedade possa evoluir com as
garantias de um Estado democrático de direito, pois, a opressão ainda existente causa efeitos
colaterais para toda a sociedade.
Percebendo que para influenciar a política não é preciso ocupar cargos eletivos, mesmo
sendo importante, mas que, a pressão social também é eficaz, as mulheres organizadas nos
movimentos sociais consegues trazer para a sociedade novas pautas de discussão. Nesse
processo de afirmação da cidadania, os problemas sofridos por elas deixaram de ser algo
restrito de pessoas que se denominavam feminista, e ganhou um caráter social. Pessoas que
não se denominavam feministas ou nem sabiam o que era feminismo científico, defendiam
ideias decorrentes desse movimento social. Assim, é importante destacar que as lutas
feministas devem ser compreendidas como todos os processos de resistência de submissão
das mulheres à ordem hierarquicamente organizada para a oprimir e não apenas a
denominação teórica. A lavadeira, a costureira, a empresária, a católica, a evangélica, a
indígena, a mãe-de-santo, a agricultora, talvez nunca tenham ouvido falar de feminismos, mas,
diariamente exercem a sororidade, articulam-se para salvar-se e salvar outras das entranhas
do patriarcado. Diante do que foi mencionado, a mulher vem tentando se empoderar cada vez
mais. Observa Elba Ravane Alves Amorim “[...] sororidade é o termo que não existe no
dicionário da língua portuguesa, dicionário este marcado pelo sexismo. O termo, no entanto,
é bastante usado por feministas, significando união entre as mulheres. Tem dimensão ética e
política.” Maiara Moreira de Rios observa que fraternidade é a harmonia entre os homens, já
sororidade representa a harmonia entre as mulheres, convéns ressaltar que as duas palavras
vêm do latim, sóror irmãs e fraterirmãos (RÍOS, 2013).
Sendo preciso ainda, muitos passos o empoderamento para a maioria das mulheres
brasileiras, já que, os direitos só são adquiridos através da luta e a mídia junto com as técnicas
do capitalismo, vem criando rótulos para as mulheres seguir.
O Patriarcado, tem ainda sido a base para estruturação de modelos de relacionamento
que acabam submetendo mulheres a ciclos de violências. Ciclo esse que se inicia em um
relacionamento abusivo, onde a mulher é proibida de usar determinadas vestimentas, e
obrigadas através de ameaças a se afastar do seu ciclo de amizade e família, fazendo com que
elas sejam isoladas e não tenham com quem contar diante das violências, e muitas vezes, a
partir desses abusos, se tem início às agressões física e sexual.
Portanto, é de suma importância que as mulheres se unam cada vez mais para
conscientizar-se e conscientizar a sociedade que embora tenhamos obtido muitos avanços, a
igualdade de gênero ainda é um Direito à ser efetivado. Os direitos femininos precisam ser
reconhecidos e exigidos. Muitos sabem da importância da Lei Maria da Penha introduzida em
2006 no nosso ordenamento jurídico, mas a falta de conhecimento sobre as medidas protetivas
ainda impede as mulheres de acessarem.
Os direitos precisam ser conhecidos através de ações sociais em parceria com o Estado,
para que possam ser efetivados, pois, a desigualdade presente no país faz com que a falta de
mecanismo de acesso aos serviços público se torne uma barreira a ser enfrentada pelas classes
mais populares. Direito é sinônimo de luta e a luta pelo fim da violência contra a mulher exige
políticas públicas que vão da garantia de serviços a garantia do Direito à Educação para todas
as pessoas, para que assim os direitos fundamentais não sejam violados e quando essa violação
ocorrer para as minorias políticas, tal violência não seja legitimada pela cultura machista
alicerçada em uma educação que nega a igualdade de gênero. Um grande exemplo de
reconhecimento e eficácia de direito quando a questão é mais debatida no campo da educação,
foi o crime contra o racismo, que tem diminuído, pois, se tornou algo que todos possuem
conhecimento.

2.3 Políticas públicas de enfrentamento à violência contra mulher: pelo direito à uma
vida sem violência

Devido as violências enfrentadas pelas mulheres, se fez necessário a criação de ações


do governo, as denominadas políticas públicas. As mulheres, continuam no século XXI a
terem a liberdade individual violada, pois, os homens continuam administrando a vida
particular de cada uma, as proibindo de trabalhar e até mesmo de possuir contato com
integrantes da família. Isso faz com que elas vivam totalmente à mercê dos seus companheiros
pois, o medo, as ameaças e a violência faz com que elas se tornem “escravas”. Vale salientar,
que a luta contra à violência doméstica teve grandes avanços, porque não havia lei específica
sobre esse tipo de violência e era permitido a aplicação de penas com cesta básica e multa
para os agressores, o que resultava no avanço contínuo de violência.
Diante dos problemas enfrentados pelas mulheres, surgiu a lei nº 11340/06 (Maria da
Penha) que assegura a integridade física, moral e psicológica das mulheres. Sendo assim,
estabelece assistência e medidas protetivas nos casos de violência doméstica e familiar
(disposições preliminares). Além da violência física, existe a violência psicológica, sexual,
patrimonial e moral. A psicológica, podemos entender como aquela que causa
constrangimentos, humilhações, ameaças entre outros. É quando se inicia a violência e
consequentemente passará para uma violência física. Na violência sexual, a mulher é obrigada
à prática sexual ou outros atos libidinosos. Esse tipo de violência ocorre no sexo forçado, no
abuso infantil entre outros. Também é considerada violência sexual quando a mulher é
obrigada pelo seu companheiro a usar anticoncepcionais ou fazer o aborto. Já a violência
patrimonial, podemos mencionar como aquela em que o agressor destrói os bens patrimoniais
da mulher. Como por exemplo: carro e objetos de uso pessoal. Por fim, a violência moral
ocorre quando a mulher sobre calúnia, injúria ou difamação.
Tendo mencionado os tipos de violências enfrentadas pela mulher, é importante
salientar os mecanismos de atendimento e denúncia pelos órgãos responsabilizados. São eles,
a Central de Atendimento à Mulher que serve de orientação a respeito dos direitos assegurados
às mulheres nessas situações, os Centros Especializados de Atendimento à Mulher em
Situação de Violência que são espaços de acolhimentos e de orientações jurídicas, os Serviços
de Abrigamento servem de abrigo para as mulheres que estão sob risco de morte e Delegacias
Especiais onde as mulheres solicitam medidas protetivas de urgência.
Somado a isso, vale mencionar que a introdução de políticas públicas que trata a
respeito da mulher ocasionou um grande avanço na vida de todas mulheres. Além do
reconhecimento do papel da mulher e no avanço do empoderamento feminino, buscando total
igualdade de gênero. Pois, a cada década, a mulher consegue um grande espaço na sociedade,
como por exemplo, maiores oportunidades de empregos. Apesar dos direitos adquiridos, a luta
por uma sociedade igualitária em uma sociedade machista é constante, pois, os números de
violência contra à mulher ainda são grandes. Dados coletados pela Organização Mundial de
Saúde comprova que entre o período de 2006 a 2010 o Brasil esteve entre os 10 países com o
maior número de homicídios femininos. Portanto, as políticas públicas precisam ser mais
efetivas, sendo preciso criar meios com uma maior agilidade e resultados imediatos. (OMS,
2010).
É preciso que seja feita uma divulgação mais intensa sobre as medidas protetivas e os
centros de apoio dados àquelas mulheres que sofrem repressão de seus maridos, e até mesmo
daquelas pessoas que possuem mesmo laço sanguíneo.

2.4 As ações educativas previstas na Lei Maria da Penha como estratégias de


enfrentamento à violência contra a mulher
Analisando a formação histórica da luta feminista e em contrapartida as diferentes
formas da manifestação da violência contra a mulher é notório que a discursão sobre esses
temas enfrentou e continua a enfrentar várias dificuldades, tendo como a principal delas o
preconceito protagonizado pelo machismo (PINTO,2003). Outrossim, a lei Maria da Penha e
as políticas públicas por ela proporcionadas trouxeram maior visibilidade para questões como
a violência contra a mulher, o empoderamento feminino, a importância da mulher na história
e os direitos femininos, transformando em pauta problemas da vida privada das mulheres não
só na esfera política, mas também na social (MIGUEL, 2014, p. 28)
Desse modo, os espaços educacionais (creches, escolas, universidades) são essenciais
em proporcionar um ambiente acolhedor para que esse tema seja entendido e debatido. Pois,
um dos primeiros ambientes em que os seres humanos começam a pôr em prática suas
experiências sociais são as creches e as escolas. Muito do comportamento desses indivíduos
no futuro é reflexo do seu convívio familiar e social (PINTO,2003). Ou seja, a forma como a
escola adverte uma “brincadeira” ou comentário machista pode refletir na dizimação ou não
daquele ato. Sendo assim, também é função dos educadores desmistificar a ideia de
normalidade do machismo, já que é a partir dele que a violência conta a mulher é perpetuada
(MIGUEL,2014). Dito isso, não é preciso ser mulher para lutar contra o machismo. Desse
modo, as aulas também podem ser usadas para que os alunos desenvolvam um senso crítico
em relação a desigualdade de gênero, através da análise histórica e rodas de diálogo. Nessa
perspectiva, é de suma importância tratar desse tema nas universidades. Projetos de extensão
como o Escola legal da ASCES/UNITA, Caruaru-PE, que proporciona nas escolas públicas
debates sobre temas como racismo, desigualdade de gênero, aborto, entre outros; proporciona
além da integração entre os alunos da universidade com os das escolas, o desenvolvimento da
análise crítica sobre esses temas e o enfoque em uma sociedade igualitária. Outro projeto de
extensão e estudo da mesma faculdade referida é o NUGEN (Núcleo de Estudo de Gênero),
que discorre temas como feminismo, violência, machismo, entre outros para discussão dentro
e fora da universidade. Tendo a Lei Maria da Penha estudada nos debates e tratada em lugares
frequentados por mulheres, como por exemplo, as creches.
Em suma, podemos dizer que a educação é o melhor meio para a conscientização e
reflexão de homens e mulheres. Por mais que já se tenha grandes avanços na Lei Maria da
Penha, é preciso que a educação assegure o combate à violência contra a mulher. Esse combate
deve existir desde enquanto crianças, onde o machismo já é implantado. Políticas igualitárias
devem ser aplicadas nas escolas, e reuniões precisam ser feitas com os pais para que eles
aconselhem da melhor forma o tratamento a ser seguido no combate ao machismo. No ano de
2015, até os dias atuais, percebemos que a divulgação dos direitos das mulheres na educação
teve um grande empenho, pois, o Exame Nacional de Ensino Médio (ENEM) cobrou em sua
redação o seguinte tema: “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”.
Com a implantação do assunto nessa prova, que seleciona os alunos para as Universidades, o
tema em questão começou a ter uma valorização maior nas escolas e grupos de estudos
voltados aos vestibulares.
Diante do mencionado, eis a questão: Mas porque ainda existe a persistência da
violência contra a mulher na sociedade brasileira?. Podemos mencionar que a falta de
historização sobre as mulheres que fizeram parte e impulsionaram as conquistas dos direitos
femininos, e o não reconhecimento de suas lutas, histórias e escritos, fez com que a sociedade
só começasse a se preocupar com a violência contra a mulher no momento da implantação da
Lei Maria da Penha. Com essa falta de divulgação desde o início do combate à violência, abriu
um espaço para que os homens tratassem as mulheres como se elas estivessem no século
passado, onde eram donas de casa e oprimidas. Isso acontece muito quando tratamos da
violência sexual, onde os abusadores acusam as mulheres de estarem vestindo roupas
inapropriadas, e dizem que elas estão merecendo tal atitude dos mesmos. Bom, nesse caso,
podemos fazer uma comparação as vestimentas que as mulheres eram obrigadas a utilizar nos
séculos passados, onde não tinham liberdade nem para usar certas roupas.
Apesar do travamento no combate à violência, devido a não conscientização na
educação e, principalmente, devido a atitudes tardias do governo, a mulher tem ganhado
grande espaço na sociedade. E, podemos mencionar que, uma mulher já foi Presidenta do
Brasil. Esse reconhecimento e o apoio da sociedade, fez com que as mulheres ganhassem mais
voz. Embora algumas mulheres ainda tenham medo de fazer as denúncias de violências porque
dependem financeiramente dos seus maridos, estamos avançando cada vez mais no mercado
de trabalho e graças aos trabalhos empenhados na educação estamos tendo nossos direitos
concretizados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de tudo o que foi exposto, é possível perceber que a luta das mulheres e o
engajamento nos movimentos feministas se deu pela necessidade de desestruturar as bases da
opressão em que viviam, decorrentes de um patriarcado que acreditamos ter sido de origens
da sociedade brasileira, desde a época do Brasil colônia, onde a escravidão foi vivenciada por
séculos, dando margem a formação de uma sociedade opressora. Portanto, se fez
indispensável a luta por uma igualdade de gênero.
A mídia com seus jornais, e a rádio com a divulgação para um número maior de
pessoas, foram grandes impulsionadoras no início do movimento feminista. Visto que, as
mulheres donas de casa, passaram a se empoderar a partir de seu próprio reconhecimento
diante de uma liberdade que era controlada pelos companheiros ou por aqueles que possuíam
o mesmo laço sanguíneo. Sendo assim, os grupos de reuniões começaram a ser formados com
mulheres líderes de movimentos de empoderamento feminino.
Com esses avanços, as mulheres começaram a ter mais voz, e podemos dizer que a
“ousadia” foi crucial para as conquistas que foram adquiridas. Se teve início com a luta pelo
direito ao voto, e a partir daí uma luta por empregos se fez constante, fazendo com que as
mulheres saíssem de casa e trabalhassem. Consequentemente, a luta contra a violência
doméstica e familiar se fez presente, ganhando grande respaldo com o surgimento de uma lei
específica, a Lei Maria da Penha, na qual trouxe uma proteção as mulheres.
Mesmo com a implantação de políticas públicas como as medidas protetivas e à luta
pela igualdade, a mulher ainda não possui o mesmo espaço do homem na sociedade. Vale
salientar que a educação nos núcleos de aprendizado (escolas, ambientes familiares, igrejas)
seria uma grande percussora para o reconhecimento da igualdade. Sendo assim, políticas
públicas voltadas a educação com tema “sociedade igualitária” faria com que o patriarcado
fosse dissolvido, e as mulheres tivesse o mesmo espaço. Portanto, a luta por uma sociedade
igual, deve ser feita por todos os cidadãos.

REFERÊNCIAS

AMORIM, Elba Ravane Alves. Casa-abrigo para as mulheres em situação de violência


doméstica em Pernambuco: sob a ótica das mulheres pós-abrigadas. UFPE CAA. 2015.
Disponível em
https://repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/15003/1/RAVANE%2C%20ELBA%20-
%20DISSERTAÇÃO%20COMPLETA.pdf. Acessado em 1 de agosto de 2018.

CERVO, Amado Luiz; BERVIAN, Pedro Alcino. Metodologia científica: para uso dos
estudantes universitários. São Paulo: MCGraw-Hill do Brasil, 1983.

MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio do conhecimento. São Paulo: Hucitec, 2010.

IHERING, Rudolf Von. A luta pelo direito. São Paulo: Martin Claret, 2001.

MIGUEL,Luis.BIROLI,Flávia.Feminismo e política. São Paulo: Boitempo, 2014.


PINTO,Celi. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
2003.

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y de los. Sororidad. In: GAMBA, Susana Beatriz. Diccionario de estúdios de género y
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SERPRO.Programa de equidade de gênero e raça. Disponível em: <http://serpro.gov.br/>.


Acesso em 1 de agosto de 2018.
VIOLÊNCIA DE GÊNERO: a violência psicológica contra a mulher sob a ótica da Lei
Maria da Penha151

Maryane Caroline Pedroza de Almeida152


Laiz Mendes Souza e Melo 153
Sarah Caroline de Andrade Firmino 154

RESUMO

O presente artigo visa discorrer acerca da violência de gênero e está inserido no contexto da
violência contra a mulher. Nesta ocasião, será analisada a violência doméstica e mais
especificamente a violência psicológica sofrida por tal grupo social. O estudo será realizado
sob a perspectiva da Lei nº 11.340/2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha, e serão
verificados, para uma abordagem mais esclarecedora e elucidativa, inúmeros dispositivos
contidos neste diploma legal. A lei supracitada pode ser considerada como o marco temporal
para maiores e mais sérias discussões acerca do referido tema, do mesmo modo, pode ser vista
como uma alternativa para que as mulheres possam buscar a reparação dos danos a elas
ocasionados decorrentes da violação de seus direitos, bem como a punição legal aos seus
agressores. Sendo assim, a temática introduzida pela Lei Maria da Penha pode ser traduzida
como uma forma de revalorizar as garantias fundamentais da mulher como ser humano, já que
até o dado momento, não haviaproteção jurídica específica que estabelecesse medidas de
assistência às mulheres no âmbito doméstico e familiar.

Palavras-chave: Violência. Psicológica. Proteção. Mulheres. Lei 11.340/06.

INTRODUÇÃO

O presente artigo científico intitulado “Violência de gênero: a violência psicológica


contra a mulher sob a ótica da Lei Maria da Penha” dispõe sobre uma análise a respeito da

151
GT 4 – Gênero(s) e Diversidade Sexual no Direito
152
Graduanda no Curso de Bacharelado em Direito, 8º Período – Pela Universidade de Pernambuco (UPE) -
maryanepedroza@hotmail.com
153
Graduanda no Curso de Bacharelado em Direito, 8° Período – Pela Universidade de Pernambuco (UPE) –
laizmsm@gmail.com.
154
Graduanda no Curso de Bacharelado em Direito, 5° Período – Pela Universidade de Pernambuco (UPE) –
sarahcaroline27@hotmail.com.
violência doméstica, com foco na violência psicológica, verificando os dispositivos abarcados
na Lei nº 11.340/06, mais conhecida como Lei Maria da Penha.
O objetivo geral desta pesquisa visa entender a razão de o número de mulheres
agredidas psicologicamente ter crescido exponencialmente nos últimos 5 anos, por mais que
a referida Lei esteja em vigor desde o ano de 2006. Além de proporcionar à população a
possibilidade de se entender a dualidade existente entre o mecanismo da Lei Maria da Penha
e seus reais efeitos, de forma aprofundada e palpável, isto é, próxima da realidade em que se
encontram as mulheres agredidas.
Nessa perspectiva, os objetivos específicos giram em torno de estudar a Lei Maria da
Penha e as suas diretrizes, visando entender sobre o que ela dispõe, ratifica, prevê e se tal
dispositivo normativo possui real eficácia social; efetivar os direitos sociais concernentes à
mulher e divulgar para a sociedade as inúmeras situações de abusos vividas por elas,
pretendendo não só informar à população acerca da situação crítica em que se encontra esse
gênero, mas também a respeito da proteção jurídica que a tal legislação oferece como forma
de solucionar e minimizar o número de casos de violência doméstica.
A abordagem da pesquisa, no que tange à violência doméstica sofrida pela mulher, não
é algo recente. Há 12 anos a Lei Maria da Penha foi criada com o objetivo de coibir e prevenir
agressões e abusos contra esse gênero, que até o dado momento, não detinha proteção jurídica
específica que disciplinasse formas de erradicar a discriminação, estabelecendo medidas de
assistência e proteção às mulheres no âmbito doméstico e familiar e punindo os seus autores.
Outrossim, na Lei nº 11.340/06, há um dispositivo legal que dispõe a respeito dos tipos
de violência e suas subdivisões, que abrange o tema de forma satisfatória e regula a penalidade
imputada ao agressor. Entretanto, o problema de pesquisa consiste no fato de que o número
de casos de agressão contra a mulher tem aumentado cada vez mais, sendo necessário
questionar a eficácia da lei supracitada e verificar se o Estado está garantindo o devido amparo
e a assistência protetiva a este grupo social. Além de examinar a atuação da população frente
aos casos de abuso, identificando se há a denúncia por parte da sociedade e se ela está
cumprindo a sua função social de forma ativa.
A reflexão acerca dessa temática tão atual e de calamidade pública é imprescindível,
uma vez que as informações que dispõe sobre a violência doméstica são gritantes, pois, na
maioria das situações, o abuso à mulher costuma ser praticado por quem está presente no seu
ciclo de proximidade e pelas pessoas com ela mantém um vínculo social e afetivo. Dessa
forma, o estudo a que se propõe este artigo visa proporcionar um olhar crítico a respeito,
principalmente, da violência psicológica no Brasil, o qual será o universo de pesquisa do
presente artigo.
Na pesquisa em questão, o método utilizado é o indutivo, aquele que parte de dados
particulares para concluir uma verdade geral, e nesse caso, parte da observação de casos
recorrentes de agressões e abusos contra a mulher para chegar a conclusão de que há uma
violência de gênero institucionalizada na realidade social que abarca um número considerável
de famílias.A pesquisa é exploratória e descritiva, que consiste em esclarecer e descrever ao
máximo uma realidade de conhecimento notório.
A técnica de coleta, bem como a de análise de dados se deu através de estudo
documental, bibliográfico e estatístico acerca do referido tema.
Na violência doméstica, está inserido o tema da violência psicológica, uma vez que o
agressor corrói a autoestima da mulher constantemente antes de praticar uma agressão física.
Desta forma, esse artigo se justifica como sendo uma fonte de conhecimento extremamente
necessária sobre o assunto, tendo por finalidade alertar à sociedade sobre a complexa situação
vivenciada por tal gênero. Ademais, busca apresentar essa temática à população com o intuito
de proporcionar maior visibilidade a esse problema, haja vista a escassez de trabalhos
acadêmicos focados em tais questões, por mais que a violência de gênero esteja cada vez mais
presente na sociedade. Por fim, tal estudo configura-se como forma de provocar um olhar
crítico para modificar essa dura realidade.

1 VIOLÊNCIA DE GÊNERO: A VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA CONTRA A MULHER


SOB A ÓTICA DA LEI MARIA DA PENHA

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a violência é definida como:


“O uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra
outra pessoa ou contra um grupo/comunidade, que resulte em lesão, morte, dano psicológico,
deficiência de desenvolvimento ou privação”. (OMS, 2002).
A partir dessa definição, é possível conceituar a violência de gênero como um tipo de
violação à direitos humanos constituída em agressões físicas, sexuais e psicológicas. Nesse
sentido, a Organização Mundial da Saúde (OMS) faz uma breve explanação, dispondo que:

A violência contra as mulheres é um grande problema de saúde pública, uma questão


de desigualdade de gênero e uma grave violação aos direitos humanos. Inclui
violência física, sexual e psicológica por parte do parceiro e também violência
sexual por parte de não parceiros. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima
que uma em cada três mulheres em todo o mundo já sofreu violência física e/ou
sexual, cometida principalmente pelo parceiro. (OMS, 2017).
Sob a ótica da Lei Maria da Penha, entende-se como violência contra a mulher todo o
rol elencado no artigo 5º da referido diploma legal, que dispõem: “Para os efeitos desta Lei,
configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada
no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral
ou patrimonial.”. Abarcando, dessa forma, a violência psicológica como um tipo de dano
contra a mulher.
A violência psicológica é o tipo de violência contra a mulher que mais cresce, porém
identificar a sua ocorrência ainda é difícil, uma vez que ela é subjetiva e, na maioria dos casos,
tal violência não chega a ser reconhecida como um tipo de agressão e por isso, não dispõe da
atenção necessária. O artigo 7º, da Lei nº 11.340/06, tipifica esse tipo de violência como:

A violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano
emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno
desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos,
crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação,
isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem,
ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio
que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.

Ainda sobre a violência psicológica, faz-se necessário ressaltar que é um tipo de


agressão que não costuma ocorrer sozinha, isto é, ela costuma aparecer juntamente com outros
tipos de agressões, como por exemplo, a física. É também configurada como uma “porta
inicial” para que outros tipos de violências ocorram. Dessa forma, (DAY, 2003, p. 10) afirma
que:

A violência psicológica inclui toda ação ou omissão que causa ou visa causar dano
à autoestima e à identidade da pessoa, mas temos que compreender que esta é a
forma mais subjetiva. É comum estabelecer a associação de agressões psicológicas
com as agressões físicas, sendo que a violência psicológica é uma forma silenciosa,
a qual deixa profundas marcas que podem comprometer a integridade mental da
mulher vítima de violência doméstica.

Nesse sentido, no que se refere a Lei nº11. 340/06, por mais que esta esteja em vigor
desde o dia 22 de setembro de 2006, o número de casos de violência contra a mulher, e,
principalmente, violência psicológica contra a mulher, ao invés de estarem diminuindo, estão
crescendo. Ademais, de acordo com a pesquisa feita pelo Instituto AVON/IPSOS, cerca de
60% dos homens já falaram mal e agrediram verbalmente as suas companheiras e por volta
de 53% desses homens já cometeram algum outro tipo de agressão contra elas. Além disso,
tal pesquisa afirma que:
Para uma violência física acontecer, é porque já ocorreram várias outras violências
de forma psicológica, moral. São essas as que mais danificam a relação e
principalmente a saúde mental das mulheres – e dos homens também. Muitos
homens nem sabem quando aconteceu isso, porque não encaram essa violência
como alguma coisa construída, acham que é natural. A mulher também só vai
perceber quando entra em depressão, começa a ter ansiedade ou insônia. Mas isso
não é natural, foi construído dentro das relações sociais. (AVON/IPSOS, 2001,
p.12).

Contudo, por mais que ainda existam números de casos crescentes e gritantes, é
inegável que tal Lei alcançou algo antes inimaginável e muito importante, que é dar uma maior
visibilidade à violência doméstica, proporcionando um maior investimento em pesquisas e
estudos acerca do tema e oferecendo suporte e ajuda às vítimas, e punição aos agressores.
Além disso, a pesquisa do Instituto AVON/IPSOS mostrou que 92% dos homens são
favoráveis à Lei Maria da Penha, enquanto apenas 35% dizem desconhecer a lei (total ou
parcialmente), sendo assim um grande avanço à sociedade e ratificando o quanto a
disseminação da Lei nº11. 340/06 foi eficaz e que hoje a maior parte da população conhece
tal dispositivo normativo.

1.1 Tipos de violência contra a mulher

É importante entender quais os tipos de violência que a Lei Maria da Penha dispõe,
para que seja possível “sair” do senso comum que considera a existência de um único tipo de
violência, o que não é verdade, uma vez que a violência doméstica é um gênero que dispõe de
subdivisões, isto é, tipos de violência que precisam ser divulgadas para o real conhecimento
da sociedade. A violência física ocorre quando alguém causa ou tenta causar dano por meio
de força física, de algum tipo de arma, ou instrumento que possa causar lesões internas,
externas ou ambas (DAY, 2003, p. 10).
A violência sexual é toda ação na qual uma pessoa, em situação de poder, obriga outra
à realização de práticas sexuais, utilizando força física, influência psicológica ou uso de armas
e drogas (DAY, 2003, p. 10).
A violência Patrimonial, de acordo com Fonseca (2006, p.12):

Resulta em danos, perdas, subtração ou retenção de objetos, documentos pessoais,


bens e valores da mulher. Esta forma de violência pode ser visualizada através de
situações como quebrar móveis ou eletrodomésticos, rasgar, roupas e documentos,
ferir ou matar animais de estimação, tomar imóveis e dinheiro, ou, até, não pagar
pensão alimentícia.

A violência psicológica, já comentada anteriormente e objeto desse artigo, é aquela na


qual segundo Fonseca (2006, p. 12):
É evidenciada pelo prejuízo à competência emocional da mulher, expresso através
da tentativa de controlar suas ações, crenças e decisões, por meio de intimidação,
manipulação, ameaças dirigidas a ela ou a seus filhos, humilhação, isolamento,
rejeição, exploração e agressão verbal. Sendo assim, é considerado violento todo ato
que cause danos à saúde psicológica, à autodeterminação ou ao desenvolvimento
pessoal, como por exemplo, negar carinho, impedi-la de trabalhar, ter amizades ou
sair de casa. São atos de hostilidade e agressividade que podem influenciar na
motivação, na autoimagem e na autoestima feminina.

Por fim, é preciso ressaltar que existem tipos de violência contra a mulher, que são
elencadas na Lei Maria da Penha, e que traduzem-se em vários tipos de agressões manifestadas
ao mesmo tempo. Ratificando essa ideia, tem-se que:

Ressalta-se que a violência contra a mulher compreende um ciclo vicioso que inicia-
se com a construção da tensão, no qual ocorre uma gradual escalada da tensão
acarretando o aumento dos atritos, como ofensas e ameaças. A segunda etapa do
ciclo compreende a tensão máxima que é o momento em que ocorrem as agressões
físicas e, por fim, o agressor desculpa-se e a mulher acreditando na mudança de
comportamento proposta pelo agressor, aceita a reconciliação. (BIANCHINI, 2012,
p.2-3).

Essa passagem mostra um dos grandes problemas que cerca o tema da violência
feminina, que é o perdão. Muitas das mulheres que sofrem agressão, por acreditar que isso
não vai voltar a ocorrer, ao invés de fazer uma denúncia efetiva, relevam. E dessa forma, isso
acaba por se transformar em um ciclo vicioso no qual o psicológico dessa mulherfica tão
abalado que chega a um ponto tão alto e constante de agressões, no qual é quase impossível
que esse quadro seja revertido, por parte da agredida. Além disso, de acordo com a pesquisa
feita pelo Instituto AVON/DATA (2011, p. 9) aproximadamente 52 milhões de brasileiros
conhecem um homem que já foi violento com a sua parceira.
Tais dados comprovam o quanto é gritante e desesperadora a situação em que se
encontram milhares de mulheres, uma vez que a maioria dos casos de agressão ocorre dentro
de casa e esses casos são causados pelos próprios cônjuges, isto é, pelo companheiro dessa
mulher.
Por fim, é necessário ressaltar que a mulher que passa por qualquer tipo de violência
sofre danos psicológicos e à saúde que talvez nunca possam ser superados e revertidos. E que
passar por uma situação de abuso reflete e transparece diariamente na vida da vítima,
mostrando, dessa forma, a situação de calamidade em que se encontra essa parcela da
população e a urgência de que a violência doméstica seja, de fato, combatida. Assim, Fonseca
(2006, p. 11) categoriza e pontua que:

Os sintomas psicológicos frequentemente encontrados em vítimas de violência


doméstica são: insônia, pesadelos, falta de concentração, irritabilidade, falta de
apetite, e até o aparecimento de sérios problemas mentais como a depressão,
ansiedade, síndrome do pânico, estresse pós-traumático, além de comportamentos
autodestrutivos como o uso de álcool e drogas, ou mesmo tentativas de suicídio.

Assim, esta temática visa revalorizar as garantias e direitos fundamentais da mulher


como ser humano.

2 A CORRELAÇÃO ENTRE A VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA E O FEMINICÍDIO

Infelizmente, um dos grandes problemas da modernidade, continua sendo a violência


contra mulher, atingindo a classe feminina do Brasil, sem distinção de etnia, idade ou classe
social, assim como afirma a porta voz da ONU Mulheres no Brasil, Nadine Gasman: “A
violência contra mulheres é uma construção social e resultado da desigualdade de força nas
relações de poder entre homens e mulheres e reproduzida pela sociedade”. (GASMAN, 2014,
on-line)
O cerne do problema se encontra no fato de que, durante um longo período histórico,
a mulher esteve em uma posição de obscuridade frente à sociedade. Essa realidade persiste
contemporaneamente e pode ser observada no âmbito familiar,na medida em que algumas
mulheres, ao entrarem em um relacionamento, passam a ter atuação restrita ao espaço
doméstico, sem priorizar a ascensão profissional. Todavia,tal cenário não deve ser estimulado,
tendo em vista a competência das mulheres para atuar em diversos ramos,fundamentando a
construção histórica, social e cultural, tal como prelecionou a psicóloga Maria Lúcia Rocha
Coutinho:

Faz-se necessário remover a mulher da posição de obscuridade em que ela se tem


mantido por séculos nos livros e compêndios tradicionais da história. Afinal sem ela
a história mesmo como tem sida escrita em seu sentido mais amplo e convencional,
fica incompleta e, inevitavelmente, incorreta. (ROCHA-COUTINHO, 1994, p.15)

Dessa forma, com a retirada da mulher dessa mencionada situação de obscuridade, ela
estará menos propícia à violência psicológica e, consequentemente, física, sendo um pequeno
passo, mas extremamente importante para diminuir os casos de feminicídio.
Tal violência ocorre de forma tanto psicológica quanto física e representa a
exteriorização das desigualdades, visto que a mulher é o ser mais vulnerável nos
relacionamentos, não somente pela diferença corporal biológica, mas também devido a sua
sistemática opressão histórica e tal problema mostra-se recorrente no Brasil. Levando em
consideração as informações supracitadas, nesse tópico será analisada a relação entre a
violência psicológica contra as mulheres e sua correlação com o feminicídio, termo utilizado
para definir o crime de ódio que se traduz no assassinato de mulheres em razão do gênero.
Os efeitos de tal ato repercutem em um problema de saúde pública, todavia só foi
abordado pelo legislador brasileiro tardiamente pela Lei n° 13.104/2015,que alterou a redação
original do Código Penal de 1940, acrescentando ao art. 121, o §2°- A, no qual é preconizado
que:

Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:


I - violência doméstica e familiar;
II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Tomando por base o exposto acima, é possível perceber que a violência psicológica,
em grande parte das relações socioafetivas, se transforma em física, o que pode resultar na
morte de inúmeras mulheres, aumentando o número de feminicídio. Nesse sentido, o Instituto
Maria da Penha (IMP), constatou que a cada 2 (dois) segundosuma mulher é vítima de
violência física ou verbal e a cada 2 (dois) minutos uma mulher é vítima de arma de fogo no
Brasil. (IMP, 2018, on-line). Desta forma, observa-se que o Brasil ainda se caracteriza como
um país no qual a taxa de violência contra a mulher é crescente, o que acarreta,
consequentemente, em um elevado índice de feminicídio.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo foi de elevada importância, pois o combate à violência contra mulher
é de interesse público e foi analisado que as medidas protetivasdos dispositivos do sistema
legal brasileiro não tem sido eficiente no combate à violência feminina. Desde a entrada em
vigor da Lei Maria da Penha em 2006, o número de casos na categoria estudada aumentou.
Assim, para que esse controle seja mais efetivonão é necessário apenas uma mudança
legislativa, para impedir tais acontecimentos, mas também uma mudança na visão da
sociedade a respeito das mulheres.
É preciso compreender que, em grande parte dos casos de violência, o agressor está
próximo à vítima, o que dificulta a efetiva denúnciaquanto à agressão sofrida. Assim,a
violência torna-se cada vez mais frequente, ocorrendo de forma contínua e gradual.
Nesse sentido, o presente artigo enfatizou a violência psicológica, tendo em vista que
esse tipo de agressão é a “porta de entrada” para ocorrência das demais formas de violência.
Assim, observa-se que, por afetar a vítima psicologicamente, o agressor a desestabiliza,
deixando-a em uma situação de vulnerabilidade.
Por fim, cabe ressaltar que é dever do Estado combater a discriminação em razão do
gênero e garantir que haja direitos iguais para todos.Nessa perspectiva, tanto a Lei Maria da
Penha quanto a Lei do Feminicídio, estão vigentes no ordenamento jurídico brasileiro como
mecanismos para proteger a mulher e reparar, com a imputação de penas específicas para cada
tipo de agressão, os danos sofridos pelas vítimas. Destarte, é necessário que haja a criação de
políticas públicas educacionais que visemo combate à violência contra a mulher, e também
que exista um maior estímuloao uso dos artifícios normativos supracitados, como forma de
reverter essa situação alarmante, possibilitando, assim, uma efetivatransformação social.

REFERÊNCIAS

BIANCHINI, Alice. Os ciclos de violência contra a mulher e o perdão: série novela Fina
Estampa. Disponível em: <http://atualidadesdodireito.com.br/alicebianchini/2011/12/08/os-
ciclos-de-violenciacontra-a-mulher-e-o-perdao-serie-novela-fina-estampa/>. Acesso em:
15/09/2018.

BRASIL. Lei Maria da Penha (2006). Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Brasília, DF;
Senado Federal, promulgada em 7 de agosto de 2006.

COUTINHO, Maria Lúcia Rocha. Tecendo por trás dos panos. Editora Rocco, 1994.

DAY, Vivian Peres. Violência doméstica e suas diferentes manifestações. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/rprs/v25s1/a03v25s1>. Acesso em: 15/09/2018.

FONSECA, Paula Martinez da; LUCAS, Taiane Nascimento Souza. Violência doméstica
contra a mulher e suas consequências psicológicas. 2006. 21 f. Monografia (Curso de
Graduação em Psicologia). Salvador/BA: Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, 2006.
Disponível em: <http://newpsi.bvspsi.org.br/tcc/152.pdf>. Acesso em: 16/09/2018.

GASMAN, Nadine. Violência: nascer mulher define existência social, diz ONU.
Disponível em: <https://www.terra.com.br/noticias/mundo/violencia-nascer-mulher-define-
existencia-social-diz-onu,1f73983035526410VgnVCM3000009af154d0RCRD.html>
Acesso em: 10/09/2018

IMP - Instituto Maria da Penha. Relógios da Violência. Disponível em:


<https://www.relogiosdaviolencia.com.br/> Acesso em: 01/10/2018
INSTITUTO AVON/IPSOS. Percepções sobre a violência doméstica contra a mulher no
Brasil; pesquisa de 2011. Disponível em: <http://compromissoeatitude.org.br/wp-
content/uploads/2012/08/Avon-Ipsos-pesquisa-violencia-2011.pdf>. Acesso em: 16/09/2018.

ORGANIZAÇÃO PAN- AMERICANA DA SAÚDE. A OPAS/OMS apoia os 16 dias de


movimento pelo fim da violência contra as mulheres. Disponível em:
<https://www.paho.org/bra.../index.php?option=com_content&view=article&id=4734:a-
opas-oms-apoia-os-16-dias-de-movimento-pelo-fim-da-violencia-contra-as-
mulheres&Itemid=820>. Acesso em: 30/09/2018.
ORGANIZAÇÃO PAN- AMERICANA DA SAÚDE. OMS lança novo manual com
objetivo de fortalecer sistemas de saúde para responder melhor às mulheres
sobreviventes de violência. Disponível em:
<https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5552:oms-
lanca-novo-manual-com-objetivo-de-fortalecer-sistemas-de-saude-para-responder-melhor-
as-mulheres-sobreviventes-de-violencia&Itemid=820> Acesso em: 30/09/2018.
WE CAN DO IT: verás que uma filha tua não foge à luta.155

Cícero Paulo Bezerra da Silva Filho 156


Kénnya Karolynne Marques Galvão 157
Cícera de Souza Ribeiro 158

RESUMO

O presente trabalho instrumentaliza-se através de uma análise do reconhecimento do feminino


sob a ótica da obra “Mulheres e Poder – Um Manifesto” de Mary Beard, professora da
Universidade de Cambridge, especializada em história antiga. São observadas as formações
sociais de base patriarcal e machista de forma crítica e reflexiva, desenvolvendo um
pensamento substancial das questões elucidadas, a fim de questionar as construções de
gêneros estruturadas sistematicamente. Casos, exemplos e informações históricas, sociais,
culturais e políticas constantes na obra eixo da pesquisa são dissecados e discutidos em
complementação com outras produções literárias, pensamentos e exemplos de modo a tecer
uma perspectiva de multivisualização das consequências do patriarcado perpetuador dos
costumes de inferiorização e subordinação da mulher. O respeito à personalidade, papel,
espaço, integridade e direitos será insistentemente debatido de maneira dinâmica e com
aspecto renovado a cada capítulo, tratando dos olhares impostos sobre a participação feminina
no lar, casamento, mercado de trabalho, poder e política, cenários quais são compostos pela
autonomia, autoridade e discurso, elementos altamente deslegitimados pelo patriarcado
quando relacionados ao feminino como sujeito da ação principal.

Palavras-chave: Empoderamento. Mulheres e Poder – Um Manifesto. Mulher. Patriarcado.

INTRODUÇÃO

Patriarcalismo, discriminação, misoginia, desigualdade, omissão, subjugação. Século


após século, década após década, a mulher não é apenas posta em segundo plano, mas sim em
plano algum, qual não seja o dos afazeres domésticos. Esta, durante anos, sofre uma castração
social, política e econômica.
Perseguida e limitada pelo chauvinismo masculino fora e é impedida de ocupar
espaços e posições de poder, e quando o faz, é silenciada, obscurecida, desrespeitada.
Inúmeras são as histórias não contadas sobre os feitos femininos, incontáveis são os abusos e
violências sofridas, incontáveis são as censuras à voz, corpo e personalidade feminina,
incontáveis são as línguas cortadas por um cale-se que não será servido neste artigo. Longe
desse cale-se envenenado, esta produção tem como essência e obra eixo o livro “Mulheres e

155
GT4 – Gênero (s) e Diversidade Sexual no Direito.
156
graduando em Direito. UNINASSAU. ciceropaulofilho@gmail.com
157
graduanda em Direito. UNINASSAU. kennyagalvao@gmail.com
158
graduanda em Direito. UNINASSAU. cicerasr@gmail.com
Poder – Um Manifesto”, da escritora e professora de Cambridge, Mary Beard.
Fonte inspiradora do presente trabalho, O livro “Mulheres e Poder – Um Manifesto”
carrega mensagens e valores indispensáveis para a reflexão sobre o contexto social atual a
partir de um espelho histórico e cultural, assim forma-se o problema desta pesquisa: uma
análise do papel social e reconhecimento do feminino sob a ótica da obra “Mulheres e Poder
– Um Manifesto”.
Alimentando uma busca contra qualquer ideia que subordine o feminino ao masculino,
o objetivo geral do escrito é refletir sobre as determinações sociais e políticas que resultam a
misoginia sofrida pela mulher enquanto ser de força, postura e discurso, elementos quais nada
mais são do que partes integrantes do poder em sua completude. Concomitantemente, o
objetivo específico apresenta-se como a pretensão de através de prismas históricos, culturais
e sociais, observar causas do silêncio e omissão costumeiramente sofridos sempre que uma
mulher tenta cobrir-se com as vestes do poder, liderando uma comunidade, sociedade ou até
a si mesma.
Para uma construção coesa e estruturada da pesquisa, a análise descritiva e opinativa
da obra eixo foi somada a pesquisa bibliográfica de estudos científicos e literários, e além de
esforços metodológicos no campo teórico para complementação do conhecimento empírico e
filosófico, empregou-se o uso de pesquisas de órgãos e instituições em áreas políticas e sociais
tendo como universo mulheres participantes da política, democracia e mercado de trabalho. A
abordagem das pesquisas utilizadas é quantitativa e traduz-se em dados estatísticos aqui
expostos e relacionados ao tema do escrito de modo a integrar o entendimento e análise do
problema levantado, enquanto o próprio trabalho possui abordagem qualitativa.
Linha de pesquisa firmada em congressos e eventos jurídicos, a discussão de gênero
da qual este trabalho faz parte justifica-se por sua própria natureza e finalidade. Natureza de
combate à primeira linha desta introdução (patriarcalismo, discriminação, misoginia,
desigualdade, omissão, subjugação) e finalidade, que nesse sentido é sua não utilidade, pois a
discussão de gênero com sua natureza combativa só tonar-se-á inútil quando os fenômenos a
serem combatidos não mais existirem. Assim, este trabalho se funda e se justifica nos
anuladores de tais fenômenos, quais sejam primordialmente a igualdade e a liberdade.

1 Telêmaco, o eterno

O primeiro exemplo do livro “Mulheres e Poder- Um Manifesto” retrata uma passagem


da obra Odisséia de Homero, que indica a existência do patriarcalismo desde a Roma Antiga.
Penélope, “esposa leal” de Ulisses, logo percebe a continuidade da não relevância de sua
autoridade quando o menino Telêmaco, seu filho, na falta de seu pai toma para si o poder
familiar e diz para Penélope, ao ela pedir a troca do canto de uma festa em sua casa, voltar aos
seus aposentos e trabalhar em seu tear, por discursos em público serem para homens. Logo
em seguida, Penélope obedecendo-o volta aos seus aposentos.
Telêmaco marca a sua superioridade ao pedir que Penélope se cale, sendo essa ação
para ele, a materialização do poder familiar. Significa dizer que uma das muitas características
do amadurecimento de um homem é silenciar a mulher. Ainda nessa perspectiva, um menino
torna-se homem quando assume o lugar do pai, mesmo que precocemente, pois seria
inaceitável dar a mulher uma posição de decisão, de autoridade, de fala. Assim, a detenção do
poder família é passada de geração em geração como herança exclusivamente masculina,
dando à mulher as funções de procriar, educar as crias e zelar pelo ambiente doméstico.
A permanência de um menino no lar até a ausência de seu pai, implica na atribuição
da chefia familiar a este, e sua saída durante a permanência de seu pai implica neste como
possuidor do poder familiar em outro núcleo, no qual a esposa, por sua vez, será a nova
subordinada.
A mulher torna-se a nova subordinada do menino que agora é homem, deixa de ser
propriedade do pai para ter sua posse transferida para o marido, afinal, seria inconcebível a
saída de uma mulher do seio familiar originário para viver de forma autônoma ou como
solteira, visto que, mulher que não divide o lar com um homem na realidade cultural não é
solteira, é “mulher sozinha”, diferentemente do homem, que além de solteiro tem a liberdade
de ser “garanhão”.
Para que a mulher não adquira o temido status de “mulher sozinha", é ensinada desde
a infância a aspirar ao casamento, para que o ciclo patriarcal não se quebre. A nigeriana
ChimamandaNgoziAdichie, em seu livro “Sejamos Todos Feministas” nascido de uma
palestra para o TED, esclarece com luz solar o processo do ciclo patriarcal:

Já que pertenço ao sexo feminino, espera-se que almeje me casar. Espera-se que faça
minhas escolhas levando em conta que o casamento é a coisa mais importante do
mundo. O casamento pode ser bom, uma fonte de felicidade, amor e apoio mútuo.
Mas por que ensinamos as meninas a aspirar ao casamento, mas não fazemos o
mesmo com os meninos? (ADICHIE, 2012, p. 34).

E para estruturar a aspiração ao casamento, as meninas são treinadas sem perda de


tempo, já na infância, a serem belas, recatadas e do lar, com brinquedos e brincadeiras ligadas
aos atos de cuidar, cozinhar, limpar, somados a histórias e contos que denotam a fragilidade,
fraqueza, passividade, formando uma espécie de profissionalização da empregada doméstica
perfeita, que representa uma continuação da maternidade para o tão sonhado esposo, ao
mesmo passo que, os meninos são estimulados a serem ativos, heroicos, fortes, ágeis, astutos.
ChimamandaNgoziAdichie, em um outro livro intitulado Para Educar Crianças Feministas,
originado de uma carta enviada a uma amiga que lhe pedia ajuda para educar a filha fora do
alcance das diretrizes machistas e patriarcais, estabelece a questão da imposição dos papéis
de gênero a partir de uma observação:

Olhei a seção de brinquedos, também organizada por gênero. Os brinquedos para


meninos geralmente são “ativos”, pedindo algum tipo de “ação” — trens, carrinhos
—, e os brinquedos para meninas geralmente são “passivos”, sendo a imensa maioria
bonecas. Fiquei impressionada com isso. Eu não tinha percebido ainda como a
sociedade começa tão cedo a inventar a ideia do que deve ser um menino e do que
deve ser uma menina. Eu gostaria que os brinquedos fossem divididos por tipo, não
por gênero (ADICHIE, 2017, p. 11).

Percebe-se de tal modo, que a verdadeira ideologia de gênero é pertencente ao


patriarcado, uma ideologia machista e heteronormativa, com uma imposição de papéis de
gênero tão forte que se caracteriza como um paradigma que reverbera interminavelmente, não
só em âmbito doméstico, mas em todos os grupos compositores da sociedade contemporânea,
preparando então o homem para ser um dominador inquestionável.
O livro “Mulheres e Poder – Um Manifesto” faz menção às ameaças sofridas por
mulheres que são consideradas atrevidas nas redes sociais, especificamente no Twitter.
Ameaças de estupro e decapitação por esse canal são a expressão do domínio masculino citado
originado das raízes clássicas, como aponta a obra, que dominam a idade média e se estendem
a idade moderna.
Um notável exemplo de mulher vítima do patriarcado, apesar do seu status social
elevado pela natureza de seu casamento, é o da Duquesa Georgiana Cavendish que casou
muito nova, conforme os costumes patriarcais da época, com William Cavendish, percebam
que o sobrenome adotado por ela foi o dele, mais um exemplo de característica do patriarcado.
Juntos tiveram três filhos, esperando a cada nascimento por um filho homem, o terceiro filho,
que seria o herdeiro socialmente merecedor das riquezas e títulos. Além dos filhos vindos do
casamento com Georgina, o Duque tivera uma filha com uma de suas empregadas, filha qual
fora cuidado por Georgina, e uma relação com Lady Elizabeth, amiga de Georgina, que
aproveitou o apoio do Duque em seu problema conjugal, pois estivera proibida de relacionar-
se com seus filhos, assim como Georgiana também esteve, quando se apaixonou por um
político da época, o senhor Fox. Apesar do exemplo não ser a premissa central do artigo, está
diretamente ligada a ela e faz-se importante frisar que a situação acima exposta repercutiu na
participação das mulheres na política inglesa.
Indiscutivelmente, os casos supracitados não são isolados, estão imersos junto a
inúmeros outros casos e situações na cultura patriarcal e sexista ocidental, que fez do Brasil
colônia organizada a partir da matriz patriarcal, semeada por Portugal colonizador e cultivada
pelo povo colonizado. Uma grande demonstração do cultivodopatriarcalismo é a conquista do
voto femininoem 1932, no governo Getúlio Vargas, quando o voto era condicionado a
autorização do marido àquelas mulheres casadas ou para as viúvas e as solteiras com renda
própria tendo como regra inicial a obrigatoriedade do voto somente para os homens, quer
dizer, o acesso democrático fornecido as mulheres é extremamente recente, não completando
nem cem anos.
Além do atrasado e condicionado direito ao sufrágio, a obtenção de outros direitos
indicam a desigualdade causada por uma sociedade fundada no patriarcado. A igualdade
salarial, a igualdade na atribuição de funções, igualdade de tratamento em ambientes
profissionais e acadêmicos. O que é inadmissível levando em consideração o bem-comum e
o sentimento constitucional expresso no Texto Maior de 1988, em seu art. 5°, I:

Art 5°, I, CF/88 – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos
termos desta Constituição.

Porém, é sabido que a igualdade formal por si só não garante a igualdade material,
muitas vezes essas duas igualdades não se conversam, pois enquanto uma é essencialmente
dever-ser, outra diz respeito à realidade, ao alcance da igualdade substancial, o que remete ao
pensamento de Ferdinand Lassalle em sua obra “A essência da Constituição”, qual trata como
uma simples folha de papel o texto escrito que não condiz com a realidade. É preciso
harmonizar ambos a partir de direitos e obrigações, que tenham evidentemente, o seu ápice na
conquista da igualdade real(LASSALE, 2000).
Se assim não for, a ignorada Srta.Trigs trazida em charge por “Mulheres e Poder – Um
Manifesto", charge qual será discutida mais a frente, não sofre apenas por “não ser homem o
bastante” para a fala, mas também por “não ser homem o bastante” para ocupar determinado
cargo ou exercer determinada função, “não ser homem o bastante” para receber o mesmo
salário que os homens, mas sem dúvidas terá que ser a famosa “mulher que dá conta de tudo",
que além de trabalhar recebendo até menos chegando a um contraste de 72% do faturamento
para homens e 28% para mulheres em cargos mais altos, por obrigação ainda terá a dupla
jornada de trabalho, ou tripla, ou quarta, por ter que cuidar da casa, filhos e marido, lavar,
passar, cozinhar, lidar com os horários, tudo recai sobre a pobre não homem Srta.Trigs.
Essa é a característica do patriarcalismo contemporâneo. O acesso ao mercado de
trabalho deixa de ser um passo para o fim do patriarcado para se tornar uma releitura deste.
Uma releitura convencionada a partir do capitalismo que precisa de mão de obra, que precisa
de recursos humanos e claro, convencionado pela crise, em que dinheiro em casa será sempre
bem-vindo, mas a divisão das funções domésticas continua a ser responsabilidade da agora
mulher de negócios. Assim aconteceu na Revolução Industrial, assim aconteceu na Segunda
Grande Guerra quando a indústria bélica precisava da mão de obra feminina, a partir daí nasci
o slogan hoje adotado por feminismos: “Wecan do it!”.159
É nessa releitura e modernização insistente da cultura patriarcal que Telêmaco se
eterniza e o homem Narciso também exposto em “Mulheres e Poder – Um Manifesto”
continua androcentricamente encantado com sua própria imagem e crendo vaidosamente que
as experiências socialmente construídas como masculinas são uma verdade absoluta capazes
de definir quem são as mulheres, como estas devem se comportar e o que estas mulheres
merecem.

2 A vaca apenas mugi

Um dos exemplos postos em "Mulheres e poder - Um Manifesto" trata do


silenciamento da mulher ligado diretamente ao desenvolvimento histórico e cultural baseado
na predominância da vontade masculina. Io, transformada em vaca por Júpiter, sofreu
fisicamente o que a mulher contemporânea sofre socialmente (conjunto físico, moral,
psicológico e econômico). Emudecida ou não compreendia, em muitos casos as mulheres
atuais se assemelham ao de Io, e em verdade, resultam dele, já que este é uma
expressão cultural do povo que influenciou todo o Ocidente. O silêncio e a não compreensão
são resultados da cultura de superioridade da vontade e necessidade masculina, que não
passam de releituras dos valores da antiguidade, vivemos numa contemporaneização do
sistema patriarcal.
As mulheres são visivelmente reprimidas pelos homens que além de se sentirem
ultrajados, sentem-se ameaçados pela capacidade feminina, pela força, atitude, liberdade,
por isso tentam calar aquelas que se pronunciam publicamente, não só repreendendo como
também alardeando a repreensão, fazendo disso seu adorno de macho viril. Não basta calar,

159
Nós podemos fazer isso.
precisam calar publicamente, não só para se afirmar, como para mostrar as outras mulheres o
lugar de cada uma delas. Quando um homem fere qualquer das liberdades das mulheres, fere
toda uma história de luta e toda a comunidade feminina permeada de sororidade160.
Continuando a dissecar o silenciamento feminino, como referido no primeiro capítulo,
“Mulheres e Poder - Um Manifesto” traz uma charge do escritor Punch que mostra a cena de
um escritório em que estão presentes cinco homens e apenas uma mulher com a seguinte
legenda: “Excelente sugestão, Srta. Triggs. Talvez um dos homens aqui presente queira
executá-la”.
A charge aborda o sexismo corporativo que atribui os cargos de poder aos homens
assim como a execução de funções e planos que carregam destaque, a Srta. Triggs apesar de
criativa jamais poderá ser creditada e mostrar sua competência. É cultural não permitir que
mulheres alcancem cargos de chefia, especificadamente no setor privado em cargos de chefia
ou direção. Em relação aos cargos de liderança uma pesquisa da “Women in Business 2015”
houve o aferimento de que apenas 5% são ocupados por mulheres CEOs e possuem ainda
dificuldade de se manter nos cargos e de trabalhar com autonomia, sendo fiscalizadas com
maior rigor. (THORNTON, 2015)
Na administração pública o número de mulheres em cargos elevados é igualmente
afetado, o poder judiciário é um exemplo disso. Em que seu órgão de cúpula, Supremo
Tribunal Federal, entre os onze ministros estão duas mulheres que assim como outras são
interrompidas em suas falas pela extensão da sensação de superioridade em todas as áreas e
níveis de conhecimento. A ministra Cármem Lúcia, relatou em uma das sessões do Supremo
Tribunal (HUFFPOST, 2017)uma pesquisa feita por Tonja Jacobi e Dylan Schweers, da
Escola de Direito Northwestern Pritzker School of Law, de Illinois, em Chicago, nos Estados
Unidos que constatou que as mulheres da corte têm sua fala interrompida de maneira bem
mais acentuada que os homenstêm as suas. O estudo demonstra quanto o gênero das
magistradas influencia interrupção feita, por exemplo, por advogados e que nem o mais alto
nível social está livre do manterrupiting161 ou do mansplaining162.

160
Sentimento de união entre a comunidade feminina na busca por realizações da classe. Termo comumente
usado pelos movimentos feministas.
161
Interrupção desnecessária feita por um homem durante uma fala feminina, não permitindo que ela conclua
seu raciocínio. Geralmente com o objetivo de praticar o mansplaining.
162
Explicação de um homem para uma mulher sobre algo óbvio, que ela possui propriedade, como se ela nada
soubesse.
Além do silenciamento literal, em debate, a história testemunha o silenciamento que
ocorre de inúmeras outras maneiras, através de perseguição, cárcere, tortura e morte. Os casos
de silenciamento fundado no gênero estão evidenciados aos montes.
Olympe de Gouges, escritora do primeiro documento de caráter feminista Declaração
dos Direitos da Mulher e da Cidadã de 1971 e de peças e manifestos de cunho social, foi uma
pensadora inquieta quanto às condições da mulher não alcançada
pelo“liberté, egalité, fraternité” da Revolução Francesa. Foi presa por colocar em dúvida
valores republicanos e guilhotinada acusada de ser contra-revolucionária, o que se mostra
irônico considerando que Olympe criticava fortemente o regime anterior (CAMPOI, 2011).
Olympe é uma das mulheres de toda uma trajetória de dor e sangue,
de memórias silenciadas que, hoje se unem a outros clamores exclamados, ou em tentativa de
exclamação. A inferiorização do feminino mostra-se efetiva silenciadora, é o centro do
sexismo. Por ser considerada inferior a mulher é silenciada, por ser
considerada inferior é menosprezada, diminuída, ridicularizada, violada, violentada, é por ser
considerada inferior que a violência de gênero é um dos grandes problemas da nação e
persiste tanto pela cultura de dominação e objetificação quanto pela cultura de silenciamento.
Filomena relembrada em “Mulheres e Poder – Um Manifesto”, representa a cultura de
silenciamento da qual o Brasil está repleto, a mulher não sofre corte de uma faca que a fere
com sua ponta ou extremidade cortante, sofre o corte de uma espada que a cortaem um
movimento de vai e volta. Isso porque não é apenas violentada, ou apenas silenciada, ela é
violentadae silenciada. Silenciada pela moral, que revela não uma diretrizdo bem comummas
um verdadeiro paradoxo, seja moral social ou familiar. Um exemplo de materialização do
silêncio causado pela moral social formula-se quando a mulher vê a necessidade de apoio
policial para contenção e afastamento do agressor, mas não o denuncia pensando
na “vergonha” que passará quandoos agentes de polícia chegarem em sua casa e os vizinhos
de suas portas assistirem a todaabordagem. O homem violador, não se sente alvo de vergonha
e não será o ponto chave da opinião geral.
A sociedade patriarcal além de gerar violentadores corta a língua de cada mulher
violentada quando a mulher vítima se torna na opinião geral a causadora da culminância da
violência. A mulher é reprovada, nominada de “safada que gosta de apanhar”. Antes da
empatia que deveria ser o primeiro sentimento e sensibilização pela mulher agredida, surgem
os questionamentos sujos vindos do fundo da lama do machismo que atingem a superfície na
busca por uma justificativa para as ações do agressor. “O que será que ela fez?”, “Ele estava
bêbado?”, “Algum motivo houve pra ele fazer isso, né?”, “O que ela disse a ele para chegar a
esse ponto?”, “Ela deveria ter ficado calada”, eles dizem. Há um engajamento
para intitular um elemento como justificativa, elemento que para os mergulhados na referida
lama, jamais será a construção social patriarcal.
E a moral familiar gera um peso na consciência da vítima que se preocupa com o que
seus pais vão pensar, com o que os pais do agressor pensarão, com o que os irmãos, cunhados,
primos pensarão. “Estou com ele há 10 anos”, “É certo fazer isso com os pais dos meus
filhos?”, “Eu deveria ter ouvido minha mãe, o que direi a ela agora?”. A
família machista sente pena do agressor. “Ele está passando por dificuldades financeiras”,
“Ele nunca deixou faltar o pão”, “Ele é tão trabalhador”. Todas as considerações e elogios
possíveis são elaborados no intuito de diminuir a gravidade dos danos causados.
As expressões de machismo infindam o ciclo de violência e a cada novo episódio os danos são
maiores, até que o silêncio seja irreversível, até que a mulher de língua cortada não emita mais
som algum, é então aí que o agressor passou a ser feminicida. Quando conseguiu calar a
mulher irremediavelmente depois de tanto a fazer de vassala, de outro, não do mesmo, como
Simone de Beauvoir traça em“O Segundo Sexo: Fatos e Mitos".
A expressão antes tarde do que nunca nesse jogo de violência, aproveitamento,
diminuição, subordinação não faz sentido, nunca se deve esperar, é impossível distinguir o
cedo ou tarde, pois é imprevisível quando o assédio na empresa se tornará estupro, é
imprevisível no Brasil, quando um cale a boca em debate se tornará uma cuspida, atentado a
integridade física ou a vida, é imprevisívelsaberquandoas mulheres maioria caracterizadas
como minoria terão a voz pública respeitada. Por isso é impreterível que essa mulher grite,
ecoe, reverbere. Reverbera mulher. Tua voz e força. Reverbera mulher negra, mulher pobre,
mulher negra e pobre, mulher periférica, mulher violada e silenciada socialmente,
domesticamente. Não deixe que te estuprem e ainda cortem tua língua, não permita que o
Júpiter do patriarcado te transforme em vaca, pois a vaca apenas mugi.
Integrando o contexto de incentivo ao despertar, à fala,faz-semenção a Marie Gouze,
a anteriormente discutida Olympe de Gouges. Ativista, feminista, revolucionária,
abolicionista, este trabalho revive-a por meio da conclusão da Declaração de Direitos da
Mulher e da Cidadã:

Mulher, desperta. A força da razão se faz escutar em todo o Universo.


Reconhece teus direitos. O poderoso império da natureza não está mais
envolto de preconceitos, de fanatismos, de superstições e de mentiras. A
bandeira da verdade dissipou todas as nuvens da ignorância e da usurpação.
O homem escravo multiplicou suas forças e teve necessidade de recorrer às
tuas, para romper os seus ferros. Tornando-se livre, tornou-se injusto em
relação à sua companheira.(GOUGES, 1791, p. 4)

3 Medusa é decaptada todos os dias

O livro “Mulheres e Poder – Um Manifesto” investe de maneira emblemática na


reflexão sobre a relação entre as candidaturas políticas da última eleição presidencial Norte
Americana, na qual estava Hillary Diane Rodham Clinton de um lado e
Donald John Trumpdo outro, e o sexismo evidente fincado na cultura dos Estados Unidos,
aludindo às origens ocidentais clássicas. O raciocínio toma forma a partir da análise da
campanha de Donald contra Hillary, que tinha como recurso gráfico a reprodução da cabeça
de Medusa nas mãos de Perseu, herói grego que decapitou a temida mulher monstro dos
cabelos de cobra.
Indiscutivelmente a escolha do tema para a campanha eleitoral de Trump possuía um
caráter sexista por definir bem a construção social do patriarcado para posição da mulher, não
apenas na política, mas no poder como um todo. A cabeça arrancada de Medusa com rosto de
Hillary nas mãos de Perseu com rosto de Trump, remetem a ideia de triunfo do homem forte,
guerreiro, valente, sobre a mulher poderosa que, na verdade, se torna destrutiva justamente
pelo poder que lhe é dado, mulher destrutiva por ser “pouco objetiva”, “instável”, dois dos
poucos adjetivos empregados a mulher pelo patriarcado, ou seja, a visão expressa é que mulher
e poder são dois componentes heterogêneos, que não devem jamais se misturar, mesmo que
essa mulher use terninhos e tenha cabelo curto, como Hillary.
É nessa ótica que para a parcela machista e androcêntrica de seu eleitorado, Trump
torna-se a personificação de Perseu, o herói vilanizador da Hillary Medusa, que não aponta
apenas para Hillary em sua individualidade, mas sim a unificação da personalidade feminina
como incabível no mundo político. Uma aceitação que não é de cunho separadamente político
e momentâneo, mas cultural e imortalizado, assim como a horrenda medusa revivida pela arte
em suas várias dimensões.
Com a força cultural da campanha, não é espantoso que a mesma tenha atingido um
nível doméstico, estampado em canetas, camisas, quadros, fazendo parte da decoração de
inúmeros lares americanos, demonstrando a naturalidade do ato de reduzir a mulher a pouco
ou quase nada ou levá-la ao extremo de Medusa, instrumento de destruição da boa política
masculina.
Uma situação dotada de tamanha naturalidade não surgiria do nada, não entraria em
casas por entrar, isso acontece por uma sistematização do patriarcado, que propícia a
popularização e individualização do duelo Hillary x Trump, de modo que, toda mulher que
almeja o poder e luta por ele enfrenta esse sistema opressor. O cenário político nada mais faz
do que expor como corroboradorda conduta já existente do homem que se sobrepõe a mulher
que tentar inserir a si em meios de domínio masculino.
No Brasil o contexto político não apresenta disparidade quanto à cultura patriarcal
ocidental e possui uma representatividade feminina baixíssima, contando inclusive com
candidatas laranja para cumprimento da cota do mínimo de mulheres em partidos políticos,
14.417 mulheres candidatas não receberam voto algum, nem o próprio. Continuando no
âmbito político, constata-se que após as eleições de 2018 apenas 15% da totalidade da Câmara
e 13% do Senado são formados por mulheres, o que é contraditório, já que o eleitorado
brasileiro feminino corresponde hoje a 52% do eleitorado total. Os dados confirmam o
despertencimento feminino a causas que lhe deveriam ser caras, pois mulheres também são
tocadas pelo machismo e acreditam na sua inferioridade, é como reflete coerentemente
HeleiethSaffiot em “O Poder do Macho”:

A força desta ideologia da "inferioridade" da mulher é tão grande que até as


mulheres que trabalham na enxada, apresentando maior produtividade que os
homens, admitem sua "fraqueza". Estão de tal maneira imbuída desta ideia de sua
“inferioridade”, que se assumem como seres inferiores aos homens. (SAFFIOT,
2001, p.12)

A citação além de indicar uma das causas do despertencimento, ainda ilustra que o
poder como elemento do labor, não se restringe ao âmbito político, é parte da atividade de
trabalho em outras áreas, em outras escalas sociais e nessas outras também há a sensação de
inferioridade que resultam tanto na perseguição de gênero quanto na não reação a essa
perseguição, pela crença que ela seja natural e devida. Mulheres sofrem perseguição de gênero
pelo poder implicado pela função, pela estigmatização da profissão escolhida, pela vontade
de ascender em determinada carreira, por qualquer fator que não se enquadre na determinação
social. Desde sempre a maioria dos cargos de poder são ocupados por homens que fabricaram
e moldaram a posição de poder a sua maneira, fazendo com que esse espaço se tornasse
característico da figura masculina.
É com essa premissa que “Mulheres e Poder – Um Manifesto” desenvolve um
pensamento a cerca do que é o poder e como participar dele já que a mulher é vista como uma
invasora da mansão elitista e sexista do poder. Os reis em seu castelinho decidem por suas
súditas como, quando e até que andar do castelo as plebéias chegarão e é crível dizer que a
analogia se enquadra perfeitamente já que o presidencialismo brasileiro, assim como o lobo
disfarçado de vovó, é uma republica disfarçada de monarquia, extremamente patriarcal e
vampiresca. Destarte, não apenas a expressão do poder é patriarcal, mas toda a estrutura que
o carca, incentivando a visão da mulher como estranha a essa estrutura, não como igual,
legítima.É tão natural expelir a mulher da estrutura construída que até sua inserção é
corrompida por esse pensamento, pois quando se fala na participação feminina, se fala em
quebra de barreiras, queda de muros, o que pressupõe um movimento de fora para dentro. A
própria participação feminina elucida a natureza da problemática, tanto em suas expressões
para a retomada de poder (usa-se a expressão retomada porque a tomada de poder tem
implicitamente a ideia de pegar ao algo que não é seu, retomar ao contrário, traduz o ato de
pagar novamente aquilo que lhe pertence) quanto o exercício das funções nesse poder.
Assim como em “Mulheres e Poder – Um Manifesto” não são desmerecidas aqui
nenhuma das “questões femininas”, mas é válido o pensamento: Além da dificuldade de
acesso ao poder, quando esse acesso ocorre é direcionado as questões femininas, questões
quais são determinadas a partir da construção social patriarcal. É como dizer que uma mulher
deve apenas administrar problemas diretamente ligados a outros grupos de mulheres, e não da
sociedade como um todo, ou dizer que se recebe poder será, por exemplo, na área da educação,
não nas finanças. Um grande exemplo disso é o cargo de Ministro da Fazenda, que foi ocupado
por uma mulher apenas uma vez, durante o governo Collor, Zélia Cardoso de Mello, ministra
de 15 de março de 1990 até 15 de maio de 1991.
Além da área financeira e econômica, a mulher, por exemplo, demorou também para
integrar as forças militares Brasileiras. O exército recebeu a primeira mulher em seu quadro
em 1823, mas não como ato de incentivo a igualdade, mas como por engano, pois a nordestina
Maria Quitéria de Jesus candidatou-se como Medeiros, usando o nome do seu cunhado e
apenas em 1943 as mulheres tiveram participação oficial, sendo 73 enfermeiras e 6
especialistas em transporte aéreo. Apesar de ser Maria Quitéria conhecida como uma das
heroínas da independência, morreu no anonimato e não tem seu nome e atuação como um
objeto de estudo frequente do ensino regular.
Este é apenas um dos muitos exemplos de esquecimento escolar, um dos muitos casos
de Medusas culturalmente decapitadas em casa, no trabalho, na política e é triste saber disso,
é triste constatar que a ocupação do poder por mulheres é uma exceção, não uma regra como
é para os homens, é triste saber que mulheres são assediadas na construção de sua carreira, é
triste que as mulheres que buscam o poder sejam comparadas a Medusa como símbolo de
destruição, é triste que sejam discriminadas, julgadas, desconsideradas, humilhadas. Mas a
tristeza é importante, pois ela faz parar, refletir. É a tristeza que antecede a reação. E é com
tristeza que se encerra este capítulo. Não com uma tristeza que paralisa, vitimiza, sim com a
tristeza que fez Elizabeth I reagir e reinar mesmo contra vontade da maioria sem um rei
consorte, sendo o segundo reinado mais longo da história da Inglaterra, sim com a tristeza que
moveu Alicia Garza, PatrisseCullors e OpalTometi a fundarem um dos movimentos políticos
mais influentes dos últimos tempos, o Black LivesMatter. É sim com essa tristeza que inflama
revoluções que se encerra este capítulo.

4 Dilmas e Kolindas

A participação das mulheres nos cargos de poder é pouca, consequentemente a


participação na política também, mesmo que o eleitorado brasileiro seja majoritariamente
feminino, como observado no capítulo anterior. Tal cenário é somado aos preconceitos,
discriminações e assédios sofridos pelas mulheres que lutando contra a maré social, alcançam
cargos de relevância política. Não é apenas uma questão de chegada ao poder, mas de manter-
se nele de forma digna, como indivíduo de respeito e autoridade.
Como parâmetro de análise serão usadas duas figuras políticas que tem em comum o
maior cargo de seus respectivos países, Dilma Vana Rousseff ex-presidente da República
Federativa do Brasil e candidata ao Senado por Minas Gerais, discutida no livro “Mulheres e
Poder – Um Manifesto", e KolindaGrabar-Kitarovic atual presidente da República da Croácia,
não tratada na obra mas indispensável para reflexões que se ramificam da mesma.
Durante toda sua campanha eleitoral, Dilma Rousseff fora alvo de críticas sobre sua
capacidade de gestão e discurso, contudo, o problema não se apresenta pela existência de
críticas a sua forma de governo, mas sim na natureza dessas críticas, que são expressamente
sexistas, abusivas e acediosas e obviamente destrutivas, eivadas de ignorância e ódio.
Em todos os posts de seu Instagram oficial existiam comentários contendo
discriminação sexual, chamando-a de "sapatão” afirmando que a então candidata "precisaria
de sexo", discriminação estética sustentando que “se ela não consegue nem ajeitar os dentes,
não tem como consertar o País" e que ao lado do ator Henri Castelli em um dos posts ela teria
ficado "ainda mais feia", ao final, como aponta um dossiê produzido pela UFMG
(Universidade Federal de Minas Gerais), a minoria dos comentários eram direcionados a sua
forma de governo e organização, que são os reais elementos de relevância para a discussão
política e administrativa, discussão inclusive, que se mostra carente de educação política,
jurídica e fiscal, o que denota ainda mais a ignorância um dos grandes problemas da nação e
o outro, a vontade de permanecer nela.
Sabendo dessaformação socialignorante,sexista e machista as mulheres participantes
da política recorrem a estética masculinizada para que possam transmitir a ideia de autoridade
e capacidade discursiva, mantendo-se na naturalização da expressão de poder como
masculina, Dilma assim como Hillary, fez uso dessa tática e ainda assim sofreu represálias
ligadas diretamente a sua sexualidade, tendo a interpretação dessa masculinização estratégica
como tradutora da sua orientação, o que não se mistura considerando que gênero, orientação
e sexo são completamente distintos. Contudo, a massa mal informada além de não ser educada
quanto a perspectiva de gênero ainda anseia pela realização do sonho brasileiro em suas vidas
e agradam-se quando o candidato objeto representa a materialização desse sonho. Marcela
Tedeschi, que não será chamada aqui pelo sobrenome Temer como forma de oposição a mais
uma imposição patriarcal, esposa de Michel Temer, vice-presidente na época, foi elogiada por
sua classe e beleza, que combinam com o status de primeira dama, mas não de presidente.
Naquele momento, Michel Temer representava o sonho brasileiro da maioria do eleitorado
masculino: dinheiro, poder e uma oficial mulher linda.
KolindaGrabar-Kitarovic, atual presidente da Croácia, ao que parece, enquadra-se nos
padrões de beleza dos espectadores mundiais que voltaram seus olhos a ela durante a Copa do
Mundo Fifa de 2018 e seria na visão machista a primeira dama perfeita, bela e feminina, as
características da imaginada mulher troféu, compositora do sonho masculino brasileiro posto
acima. Sendo Kolindaagradável aos olhos do mundo, livrou-se das condenações machistas,
certo? Errado.
Como dito, Kolinda representa para os machistas o troféu, a primeira dama perfeita,
não a detentora de poder, sim a acompanhante do detentor do poder. Assim, sua imagem foi
extremamente sexualizada ao ponto de ser alvo de uma “fakenews" em que estava em uma
praia vestida com biquíni e esbanjando curvas e volume. Após revelação da farsa, posts em
alguns sites trouxeram o seguinte título: Presidente da Croácia é confundida com modelo
"gostosona". O que representa apenas mais uma forma de assédio que se estende aos
comentários nos quais alguns internautas desejavam ver mais de Kolinda, desconsiderando
toda a representatividade e importância de sua figura, o rosto e corpo de mulher sujeito de
direitos de privacidade, e também de um povo, uma nação.
Neste ponto, há uma dualidade no quesito estético que muito dificilmente pode ser
resolvida, mas facilmente pode ser entendida: Masculinizar-se e ser discriminada ou se manter
feminina e ser assediada?Odesrespeito asqueroso e desprezível, fortificado pelas posições que
o patriarcado atribuiu ao homem e a mulher,se esgueira para qualquer lado a ser seguidocomoa
sombra inseparável da mente sexista e em ambos os casos a mulher será violada, seja por sua
masculinização, seja por sua feminilização. Mas qual seria a real causa dessa violação? A
mulher ser feminina demais ou masculina demais? Ter a voz grossa demais ou fina demais?
Marina Silva, por exemplo, presidenciável na eleição de 2018, sofre por não engrossar
a voz ou não ter sem seus cartazes uma ilustração tão viril quanto às amazonas guerreiras de
braços fortes e estrutura masculinizada. Em uma das aulas no curso de Direito, um colega de
classe afirmou que Marina possuía uma voz fraca, que não se agradava da fala da candidata,
que a mesma não o passava confiança. Ele é mais um dos que precisam de uma voz masculina
para suprir seus anseios machistas, mais um dos pelos quais as candidatas do sexo feminino
precisam masculinizar sua voz e aparência, mais um dos que nunca leram “Mulheres e Poder
– Um Manifesto” ouSaffioti, que fala no livro “O Poder do Macho”, dentre outros pontos,
sobre a naturalização das posições sociais como masculinas ou femininas, sobre a ideia de
inferioridade do sexo feminino, sobre a igualdade de oportunidades em qualquer que seja a
área.
E respondendo o porquê acontece violação, discriminação, é pela condição de ser
mulher, não biologicamente falando, mas socialmente falando, pelo fato de serem “mulheres
atrevidas”, que deixaram de não ter direitos políticos para irem além de falar de política, não
só participando dela, como a comandando. O ser machista não suporta admitir que existe uma
mulher capaz, inteligente, astuta, ativa, atuante, chefe de governo, de estado e da sua vida,
uma mulher que não é fria, sim firme. Dilma Rousseff inclusive declarou através de seu
Twitter ser vítima dessa não aceitação machista durante seu mandato e processo de
impeachment, acreditando seus adversários políticos que ela não conseguiria aguentar a
pressão sobre ela, e quando se mostrava forte, os mesmos a denominavam como uma mulher
muito dura, não de pulso ou postura, mas dura:

“Eu era ‘obsessiva compulsiva com trabalho’, homem é ‘empreendedor e trabalhador’. O


jogo da misoginia é muito bem feito por quem o usa”;
“Tinha também a linguagem machista: ‘a Dilma é uma mulher dura, o homem é firme; a
Dilma é emocionalmente instável, o homem é sensível’”;
“Pediram que eu não fosse ao Senado me defender porque seria agredida. Pensavam que
me atemorizariam. Atemorizariam se eu os respeitasse”.

Dilma A Medusa nacional, em frente à obra de Caravaggio, não teve a sorte de com
seus cabelos de serpente poder transformar seus oponentes machistas em pedra, suas cobras
com a peçonha do “mimimi” não alivraram de ser vítima de discriminações de seus opositores
políticos e civis, ao contrário, acentuaram-na como aquela que destrói o que toca. Nem a
prática de sexo,como sugeriram os eleitores inconformados poderiadesconstruira imagem
sexista formada, de mulher “feia” e “incapaz”, de “sapatão” e “dentuça”. É entristecedor fazer
tal consideração, mas infelizmente esta é a tradução da realidade brasileira. Na qual o discurso
não é criticado exclusivamente por sua coesão, mas sim pelo gênero de seu orador, remetendo-
nos a Grécia dos discursos públicos próprios dos homens, na qual as mulheres que eram
retratadas no poder tinham suas imagens masculinizadas e as femininas eram subordinadas,
assediadas, estupradas. Esse é o berço cultural ocidental no qual não existe apenas uma Dilma
ou uma Kolinda, mas várias, Dilmas e Kolindas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Todo escrito científico e literário possui uma página final, toda produção necessita de
um encerramento e com o mesmo sentimento com qual o leitor concluiu livro “Mulheres e
Poder – Um Manifesto” os autores encerram esse trabalho. Explicando esse sentimento, a
conclusão da obra eixo dá-se pela presunção do destino de Herland, uma terra integralmente
feminina, perfeita, que recebe a primeira criança do sexo masculino, futuro dominador do
local pela lógica patriarcal. Assim funda-se o sentimento de insatisfação ao saber que a
realidade patriarcal está longe de ser superada, contudo, mesmo com o pesar da insatisfação
pela constatação citada, é preciso dizer que um problema que está longe de ser superado não
é insuperável, mas carece de dedicação em longo prazo. Essa é raciocínio da formulação de
soluções de problemas culturais. E, antes desse escrito ir-se por completo, considerações finais
devem ser feitas.
A sociedade brasileira edificada a partir de uma base patriarcal não só se sustenta
sobre ela, como faz dela sua matriz de formação de valores. Antes de considerar o mérito, os
feitos, habilidades, considera o gênero, sexo, orientação, como se essas características fossem
determinantes do espaço a ser ocupado e se essa imposição não é respeitada, os indivíduos
são constrangidos pala ignorância e ausência de empatia. Como se nesse jogo da injustiça de
gênero houvessem duas opções irrecorríveis, ser dominado e/ou ser ridicularizado. É dessa
forma que a mulher é vista como uma subespécie, menos evoluída, menos digna, não sujeito
de direitos, objeto alvo da inferiorização.
Se os valores da Revolução Francesa não se estendiam às mulheres em sua
deflagração, o sistema patriarcal cuidou para que a aplicação desses valores continuasse a ser
precária. Trazer essa consideração não é dizer que não houveram conquistas, mas sim dizer
que ainda há muito para ser conquistado. O que há de se querer não é uma releitura ou
relativização do patriarcado, mas o fim dele. Mascarar o patriarcado de nada serve se não para
fazer com que este continue a se esgueirar pelas sombras do preconceito, tentando afugentar
a igualdade, liberdade e fraternidade, direitos quais são integrantes do basilar princípio da
Dignidade da Pessoa Humana, protagonista do sentimento presente na da Constituição Federal
de 1988.
Mesmo com os fatores indicadores da não materialização dos direitos constitucionais,
ainda há quem diga que o problema de gênero não existe, que não passa de uma invenção para
implantação de uma “ideologia”. Durante as aulas de Direitos Humanos desenroladas em
formato de debate, um acadêmico esbravejou contrariedade a educação de gênero, afirmando
que o Brasil é um país livre e que por exemplo, quem “quiser” ser homoafetivo pode fazê-lo
sem problemas, sem julgamento.
Primeiro destaca-se a dificuldade de percepção da realidade de nosso país, que em
nada é livre de preconceitos e discriminação; Segundo percebe-se a falta de propriedade sobre
a temática, haja visto que não fala-se em “querer”, em opção, mas em orientação que é um
dos pontos de estudo da educação de gênero, não por influenciar a algo, sim por incentivar o
respeito e humanização; Em terceiro verifica-se o costume brasileiro de não reconhecimento
do ódio e violência integrantes inseparáveis de toda a nossa história como aponta tão bem
Leandro Karnal no livro “Todos Contra Todos”. Em quarto, parece absurdo, mas ainda é
preciso frisar que negar a existência de um problema de gênero é negar o sofrimento feminino
e LGBTQI+. E quinto, essa pessoa, assim como a grande massa que carrega as mazelas do
patriarcado, preconceito, sexismo, irá atribuir a expressão de sua vontade democrática, ou
seja, o voto, a um presidenciável que represente esses valores, sem o menor senso de empatia.
Apesar de o problema de gênero ser um problema de todos e precisarmos melhorar, estudar,
desenvolver o senso crítico e reflexivo para que os oprimidos por esse sistema não
permaneçam como massa manipulada, como Paulo Freire traz em “Pedagogia do Oprimido”.
Com o conhecimento como ferramenta da força os oprimidos conseguirão reverter o
andar do quadro patriarcal e deixar para as futuras gerações uma cultura de respeito, igualdade,
liberdade e empatia. Tão somente por este caminho o Brasil não continuará a reproduzir o
final de Herland. Unicamente por esta trilha obras como “Mulheres e Poder – Um Manifesto”
serão lidas com orgulho e não com uma inquietação por descontentamento, exclusivamente
desta maneira as mulheres brasileiras vencerão a guerra contra o patriarcadoe se libertarão das
correntes da misoginia e do machismo.
“É chegada a guerra contra uma cultura de conduta. Desistir não é opção, verás que
uma filha tua não foge à luta”.

REFERÊNCIAS

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Paulo: Companhia das Letras, 2017.

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2018.
FEMINISMO E NEOLIBERALISMO: a apropriação da bandeira de emancipação da
mulher pelo capitalismo163

Maria Gessica Martins de Queiroz164

RESUMO

Neste artigo, está sendo historicizada a emancipação da mulher, desde a primeira onda do
feminismo até o século XXI. Há a descrição de como o neoliberalismo se apropriou de cada
fase dessa autonomia buscada pelas mulheres que vai desde a crise de 1929, com a obra da
autora Betty Friedan, a Mística Feminina, cujo interesse do mercado era o de influenciar a
mulher a permanecer como dona do lar. Passando pela segunda onda do feminismo, com
Simone de Beauvoir, é analisado o papel das mulheres no século XX. Há um diálogo entre
autores mostrando como a plurivocidade dos movimentos feministas quebra com essa lógica
neoliberal, já que as propagandas midiáticas só se destinam a um estereótipo de mulher branca.
Busca-se, através da história e de pensadores que a marcaram, apresentar, para o leitor, uma
análise de como tem se constituído as relações de gênero e de como o capitalismo tem
interferido, sendo esse o problema de pesquisa. Foi feito o uso da pesquisa qualitativa,
indutiva, bibliográfica, histórica e comparativa. Por fim, a pesquisa teve como resultado a
análise de que o assédio e abandono das mulheres pelo capitalismo geram crises entre as
mulheres e uma desvalorização com uma consecutiva subordinação.
Palavras-chave: Feminismo. Neoliberalismo. Mística Feminina

INTRODUÇÃO

O presente artigo possui como objetivo geral descrever como o neoliberalismo se


apropria da bandeira de emancipação da mulher no modo de produção capitalista, para isso,
foram desenvolvidos objetivos específicos, sendo preciso apresentar como o neoliberalismo
surge no modo de produção capitalista, relacionar o projeto clássico do movimento feminista
com o modo de operação neoliberalista e relatar como a plurivocidade dos movimentos
feministas quebra com essa lógica neoliberal.
Foi analisada a obra da autora Betty Friedan, a Mística Feminina, para entender como
o sistema agia para gerar lucro no contexto do livro, em que mulheres eram influenciadas a
permanecerem como donas de casa e a comprarem produtos oferecidos pelo mercado com o
objetivo de suprir o vazio que era não participar de questões cíveis da sociedade e,
consequentemente, gerar capital para a indústria.
O contexto social do livro foi após a crise de 1929 e mobilização para a Segunda
Guerra Mundial. A obra foi considerada a mais importante do século XX e serviu como

163
GT 5 – Direitos Humanos, Democracia e Grupos Vulneráveis
164
Graduando pela Universidade de Pernambuco, Campus Arcoverde. mgessicamqueiroz@gmail.com
esclarecimento, para as mulheres da época, da influência e manipulação as quais eram
submetidas.
A dúvida a ser sanada é qual seria o objetivo da indústria em querer persuadir as
mulheres a serem ou permanecerem como donas de casa. Analisando isso, Betty Friedan
relatou em seu livro, que as mulheres, nos Estados Unidos, eram as principais clientes em
todos os setores, sendo assim, a indústria observando esse dado, constatou que as mantendo
no lar, estas consumiriam mais graças a seus anseios insaciáveis, que caracterizam a dona do
lar. “Nos Estados Unidos a mulher é a grande consumidora. Ela compra 80% de tudo. Lá
como aqui, o homem ganha e a mulher gasta. Por isso, quase toda a propaganda é dirigida a
ela.” (FRIEDAN, 1971, p.9).
O problema de pesquisa desenvolvido foi em relação ao poder do neoliberalismo de se
apropriar da bandeira de emancipação da mulher ou, que o mesmo, de certa forma, possuiu o
poder de dificultar esse processo de independência. Para isso, foi feita uma análise cronológica
com o objetivo específico de observar o processo da autonomia das mulheres ao longo do
tempo, para que, assim, se construa uma análise completa sobre a problemática.
A metodologia utilizada foi, quanto ao método de abordagem, indutiva, isso porque
foram analisados fatos particulares para se construir uma conclusão geral, isto é, foram
analisadas as condições das mulheres no contexto social do século XX e especificamente no
contexto social do livro de Betty Friedan para se obter uma conclusão geral da condição da
mulher em face da manipulação do neoliberalismo. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, justo
porque, foi feita uma observação do contexto social de cada época obtendo um estudo a partir
disso, observando as particularidades dos sujeitos do gênero mulher, e, assim, interpretou-se
dados não quantificáveis.
Também, se fez uso do método de pesquisa bibliográfica, já que essa se classifica
como “a que se desenvolve tentando aplicar um problema, utilizando o conhecimento
disponível a partir das teorias publicadas em livros ou obras congêneres” (KOCHE, 2015, p.
122).
Betty Friedan relata que eram preparados artigos que visavam à manipulação das
mulheres para comprar certos produtos, fazendo-as achar que isso fortaleceria sua
feminilidade e sua capacidade de ser dona do lar, junto a isso, adquiriam lucros em favor do
meio capitalista, usando, assim, o feminismo em prol da obtenção de vantagens.
A população da época não considerava que a mulher se interessava ou podia entender
questões de política e direito civil, ou seja, aspectos importantes para a sociedade. Assim,
julgavam que esse papel era do homem, já que, este era o responsável por estruturar a família,
sendo a mulher responsável por cuidar do lar e junto com isso edificar sua família, aspecto
esse pregado também por religiões.
As novelas, os filmes, sobretudo americanos, idealizavam a mulher perfeita e
influenciavam-nas para que comprassem seus produtos. Havia influência nas roupas,
calçados, ou, até mesmo, no corpo perfeito. Havia uma indústria de manipulação que tornava
os objetos cada vez mais descartáveis para que houvesse a compra e consecutivamente a
renovação no que chamavam de dona de casa.
Estabelecia-se a ideia de que a partir do momento que a mulher decidisse ir trabalhar
fora de casa, estava fazendo a tarefa do homem, sendo assim, masculinizada, ou seja, perderia
sua feminilidade. Isso, segundo os machistas, poderia destruir o casamento, além de que
destruiria a ideia de separação de tarefas. Sendo assim, o feminismo era considerado como
destruidor da família tradicional.

Agora, por necessidades também económicas, mas não mais das próprias mulheres
ou da sociedade e sim da grande indústria, eis que a sua atuação fora de casa é
desvalorizada e «revalorizada» ao máximo a sua feminilidade, a sua maternidade,
como se participar na construção da sociedade fosse incompatível com a sua
condição de mulher. (FRIEDAN, 1971, p.9).

Ao se estabelecer o estigma de que a mulher era criada para ser dona de casa, quanto
mais ela fosse intelectualizada, seria pior na ótica machista. Isto porque possuindo
conhecimento, cultura, leitura e estudo, esta não aceitaria, facilmente, ser manipulada e
submissa ao outrem, o que, não era interessante para a sociedade patriarcal.
Contudo, foi também analisado o século XX, contexto social em que se inseriram as
revoluções feministas e a entrada da mulher no campo de trabalho fora do lar, momento
histórico para a história de emancipação da mulher que se iniciou com a II Guerra Mundial,
quando as mulheres ocuparam os cargos de trabalhos dos homens, os quais estavam
impossibilitados de executar tal serviço justo porque estavam guerreando para defender sua
pátria. Para isso, foram analisados os estudos de Simone de Beauvoir, autora que retratou o
papel da mulher no século XX.
Além disso, buscou-se identificar, como outro objetivo específico, como o
neoliberalismo se apropriou, especificamente, da transição da mulher de dona do lar para
participante da sociedade cível, com o objetivo de gerar lucro para o sistema.
Por último, foi feita uma descrição breve da plurivocidade dos movimentos feministas,
os classificando, e justificando o porquê dessa variedade desconstruir a lógica neoliberal, já
que essa última visa apenas o feminismo europeu de mulheres brancas, possuidoras, em sua
maioria.

1 O VAZIO EXISTENCIAL COMO PONTO DE DISCUSSÃO DA PRIMEIRA ONDA


FEMINISTA

O mercado se aproveitava das angústias das donas de casa, fundadas na falta de


participação de questões importantes da sociedade, e oferecia a elas meios que supostamente
solucionariam e trariam alegria para sua vida, isto é, a felicidade se encontraria na compra de
um objeto novo para a casa ou, até mesmo, um filho, para que esta se mantivesse ocupada
com o que supostamente, nessa ótica, seria sua tarefa como mulher.
Os anúncios de televisão que traziam propagandas com objetos para mulher possuíam
como finalidade fazer com que esta encontrasse sua identidade, essa que era difícil de achar
já que todas as mulheres possuíam características parecidas por serem donas de casa. Assim,
através da insegurança das mulheres consigo mesmas, os anunciantes ofereciam uma
construção de uma brilhante imagem pública com o objetivo de solucionar cada detalhe do
cotidiano vazio das mulheres.
Mas é importante mencionar, para uma melhor compreensão do problema de pesquisa
abordado, o surgimento do movimento feminista, com a Revolução Francesa, essa que trouxe
para humanidade, ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, isto porque esse movimento
modificou o pensamento vigente na sociedade até então. A partir disso, as mulheres passaram
a ter consciência de seus direitos e começaram a se mobilizar com o objetivo de garanti-los.
Essa foi a primeira onda do feminismo, que aconteceu entre o final do século XIX e início do
século XX.

O feminismo aparece como um movimento libertário, que não quer só espaço para
a mulher - no trabalho, na vida pública, na educação -, mas que luta, sim, por uma
nova forma de relacionamento entre homens e mulheres, em que esta última tenha
liberdade e autonomia para decidir sobre sua vida e seu corpo. Aponta, e isto é o que
há de mais original no movimento, que existe uma outra forma de dominação - além
da clássica dominação de classe -, a dominação do homem sobre a mulher - e que
uma não pode ser representada pela outra, já que cada uma tem suas características
próprias. (PINTO, 2010, p.16).

Nessa época, as mulheres reivindicaram o direito ao voto, à participação na vida cível,


à igualdade entre os gêneros, questionando, assim, o papel imposto pela sociedade e a divisão
de tarefas, onde protestaram por estar socialmente construído que sua função seria unicamente
cuidar do lar e da família.
O feminismo, como movimento social visível, tem vivido algumas “ondas”. O
feminismo de “primeira onda” teria se desenvolvido no final do século XIX e
centrado na reivindicação dos direitos políticos – como o de votar e ser eleita –, nos
direitos sociais e econômicos – como o de trabalho remunerado, estudo,
propriedade, herança. (PEDRO, 2005, p. 79).

No Brasil, especificamente, as mulheres também construíram movimentos feministas,


contudo, diferentemente do movimento feminista europeu que criticava uma educação já
existente, as brasileiras lutavam por uma educação primária liberta de preconceitos, já que o
mesmo acontecia desde a alfabetização.

Quando começa o século XIX, as mulheres brasileiras, em sua grande maioria,


viviam enclausuradas em antigos preconceitos e imersas numa rígida indigência
cultural. Urgia levantar a primeira bandeira, que não podia ser outra senão o direito
básico de aprender a ler e a escrever (então reservado ao sexo masculino). A primeira
legislação autorizando a abertura de escolas públicas femininas data de 1827, e até
então as opções eram uns poucos conventos, que guardavam as meninas para o
casamento, raras escolas particulares nas casas das professoras, ou o ensino
individualizado, todos se ocupando apenas com as prendas domésticas. (DUARTE,
2003, p.152).

Contudo, construía-se uma imagem deturpada das feministas que até hoje algumas
pessoas possuem. Com o objetivo de permanecer com os privilégios, o patriarcado
influenciava a população e, inclusive, as próprias mulheres a acharem que o movimento lutava
contra os homens, quando, na verdade, lutava a favor da igualdade de direitos entre homens e
mulheres, pensamento equivocado que é comum para algumas pessoas do século XXI.
A sociedade atual é composta de uma construção social ao longo do tempo. As
mulheres eram educadas para cuidar do lar, assim, para muitos, não possuíam a capacidade
psíquica de exercer as mesmas profissões que os homens. Logo, consideravam as vagas
ocupadas por mulheres nas universidades um desperdício. Consecutivamente, esse
preconceito reflete na sociedade contemporânea e pode ser observado se levado em
consideração o número menor de mulheres bem sucedidas.
Até mesmo nos meios universitários, quando as mulheres finalmente conseguiram ter
acesso a isso, eram ensinadas a não serem críticas para que, assim, pudessem concordar com
a opinião imposta, evitando revoluções. Observa-se, desde cedo, a presença de um sistema
que oprime, inferioriza as mulheres e reforça apenas sua função biológica de procriação e
dever de cuidado com a casa.
É importante mencionar que, segundo Betty Friedan (1971), a entrada das mulheres
nas universidades se deu graças a um interesse comum, o qual, inicialmente, não era o desejo
de adquirir conhecimentos, mas sim de arrumar seus futuros maridos. Constata-se que a
sociedade produzia uma cultura de criar as mulheres para o casamento, fato esse que se
constituía como o objetivo das vidas das mulheres.
O meio que garante que a população adquira consciência de direitos iguais para
homens e mulheres é a educação, contudo, é lastimável o número de pessoas que não fazem
uso disso. A consequência de tal ato é a construção de uma sociedade alienada por ideologias
historicamente construídas, mas, também, por uma acomodação na busca de seus próprios
direitos.

A chave da armadilha é, naturalmente, a educação. A mística feminina deu uma


conotação suspeita aos estudos superiores, acusando- os de desnecessários e até
perigosos. Mas creio que só a educação salvou e pode salvar a americana dos perigos
ainda maiores que a mística. (FRIEDAN, 1971, p.306).

Percebe-se, então, a constituição de uma Modernidade Líquida, teorizada por Zigmunt


Bauman, onde a sociedade não se une com o objetivo de procurar uma solução eficaz, ainda
que demorada, para a solução da problemática. Estabelece-se, assim, consecutivamente, uma
sociedade de consumo alienada pelo sistema, onde o objetivo é nunca suprir o vazio
existencial das mulheres. “Para uma sociedade que proclama que a satisfação do consumidor
é seu único motivo e seu maior propósito, um consumidor satisfeito não é motivo, nem
propósito — e sim uma ameaça mais apavorante” (BAUMAN, 2008, p. 126).
Por causa da discriminação e preconceito quanto à capacidade da mulher em
desenvolver tarefas que exijam pensar, havia uma ideia de ineficiência das mesmas. Junto a
isso, consecutivamente, havia uma desvalorização salarial para com as mulheres, fazendo com
que muitas refletissem se era válido deixar de ser dona do lar, sendo aplaudida pela sociedade,
a querer conquistar o campo do trabalho recebendo menos do que merece e sendo
discriminada pela sociedade por sua falta de feminilidade.
Percebe-se que era interessante para o sistema que as mulheres permanecessem como
donas do lar, contudo, o questionamento é qual seria o objetivo disso. Observando os
comportamentos e a vida, em geral, das mulheres, foi constatado que manter a mística
feminina, isto é, a idealização de mulher como dona do lar, geraria lucros para o capitalismo,
já que as mesmas eram as principais clientes em todos os setores, já que eram mantidas em
um anseio indefinido característico de donas de casa.
O comércio manobrava as mulheres para que, através da aquisição de produtos
domésticos obtivessem um senso de identidade maquiado e obtivessem realização. Isso
explica porque não era interessante, para o sistema capitalista, que as mulheres tivessem
profissões, já que se supõe que não seriam influenciadas por essa ótica.
A solução criada pela indústria do consumo em relação à insatisfação das mulheres
com os afazeres domésticos foi modernizar a elas. Criou-se uma ideia de mulher moderna,
esta que não trabalharia fora de casa, compraria utensílios domésticos que seriam capazes de
fazer quase todo o trabalho doméstico e manteria o domínio sobre o lar, sem precisar de
criticidade.

Já que a Dona de Casa Equilibrada representa o mercado de maior potencial futuro


seria conveniente para o fabricante desses objetos convencer a um número cada vez
maior de mulheres das vantagens de pertencer a esse grupo, e educá-las, anunciando
que é possível ter interesses externos conservando-se alerta a influências intelectuais
mais amplas (sem se tornar uma Profissional). A arte de dirigir o lar deveria ser o
objetivo de toda mulher normal. (FRIEDAN, 1971, p.183).

O meio utilizado para manipular a compra de produtos para a casa foi a propaganda.
Esta era constituída por mulheres felizes e realizadas pelo fato de adquirirem um novo produto
de limpeza. A estratégia era mostrar, ainda na propaganda, uma família feliz por ter uma mãe
e esposa que cumpre com as obrigações do lar, que deveria servir de exemplo para as outras
mulheres.
Construiu-se a ideia de que a dona de casa precisava de produtos especializados para
exercer seu trabalho, assim, não o tornaria tedioso, e mais que isso, encontraria nele sua
identidade junto ao prazer de manter a casa limpa com os melhores produtos destinados a tal
coisa. O mercado foi se amoldando aos interesses de seu público e o influenciando a ter
necessidade de obter seus produtos para a realização da nova mulher moderna.
Era comum a ocorrência de casamentos prematuros, ou seja, muitas mulheres casavam
aos 18 anos na busca de felicidade e realização no ato conjugal. Pela pouca idade e
inexperiência, em alguns casos, ocorria a frustação de o casamento não ser o que se era
esperado. Pensando nisso, os publicistas canalizaram essa falta de realização na compra de
produtos para a casa, já que, segundo dados, as mulheres recém-casadas são mais fáceis de
serem manipuladas.
As lojas precisavam satisfazer muito mais do que apenas a obtenção de um objeto para
casa, mas sim a necessidade da mulher de participar da cultura da sociedade, de se sentir ativa
e importante para sua família e ser reconhecida pelo valor que possui. Campanhas midiáticas
visavam corresponder a esses anseios e fabricavam seus produtos na intenção de sanar essa
problemática e, consecutivamente, gerar lucro.
As mulheres passaram a ocupar os postos de trabalho na Segunda Guerra Mundial,
onde houve a necessidade de pessoas para substituir os homens no mercado de trabalho, já
que esses precisaram ir à Guerra para defender os interesses de sua pátria. Assim, surgia a
oportunidade de que as mulheres ganhassem autonomia financeira.
Contudo, é questionável essa conquista alcançada pelas mulheres, já que, após o
retorno dos homens aos lares, as mulheres voltaram aos seus afazeres costumeiros, sendo
classificadas como donas de casa novamente. Conforme analisa Joana Maria Pedro (2005,
P.89) “as mudanças ocorridas foram apenas provisórias, e que, após a guerra, presenciou-se
um retorno aos antigos significados do gênero, com reforço na rigidez das afirmações da
diferença.”.
Embora haja esse questionamento, é imprescindível constatar que esse momento
histórico possuiu grande valor para a construção do processo de empoderamento da mulher e
a consecutiva aquisição de direitos, mesmo que não tenha, na época, gerado plenamente, a
desconstrução social de divisão de tarefas, mas por ser considerado importante para uma
solução que necessitava ser aprimorada ao longo do tempo.
Logo, é preciso entender o que é o neoliberalismo para que, assim, possa se
compreender como esse surge no modo de produção capitalista, se apropriando de todos os
aspectos da vida em sociedade para gerar lucro e se amoldando a cada situação inovadora para
consumar seu objetivo de acumular riquezas.
Foi um movimento que surgiu após a II Guerra Mundial sendo nova ordem mundial,
esta marcada pelo livre comércio e a intervenção mínima do Estado, fazendo parte da Terceira
Revolução Tecnológica. A globalização adquire um aspecto de acumulação de capital, além
disso, a apropriação de riquezas é resultado de atividades especulativas do mercado financeiro.
Essas ideias foram fluentes durante a ditadura militar no Brasil, onde, foram
transformados serviços de educação e saúde em meios de acumulação de capital e o
consecutivo financiamento do capital privado. Segundo Emílio Rafael Poletto (2009, p.2) “Foi
uma reação teórica, política e ideológica contra o Estado intervencionista e do Bem-Estar.”.
Na contemporaneidade, o neoliberalismo se alimenta de aspectos diferentes, de acordo
com a situação social a qual a população se encontra.

Atualmente, podemos citar, entre outras medidas, as privatizações das empresas


estatais, os incentivos aos agronegócios (principalmente a soja) em detrimento da
agricultura familiar, os incentivos às exportações, o enfraquecimento dos sindicatos
e da classe trabalhadora, a diminuição de investimentos em infra-estrutura e em
serviços básicos (BORON, 2006, p. 155).

Com isso, é possível constatar que o neoliberalismo tem como objetivo, no século XXI,
incentivar as privatizações e o mercado de trabalho externo, fato esse que sofreu modificações
ao longo do tempo, já que, esse sistema se amolda às transformações sociais. Esse mesmo
objetivo não pode ser encontrado na mística feminina, já que, em seu momento histórico era
interessante para o sistema manter as mulheres como dona de casa, como já mencionado.

2 MULHERES E SOCIEDADE DE CONSUMO: UM NOVO PARADIGMA

O contexto social do século XX recebeu algumas modificações em relação ao século


passado, já relatado, para isso, as formas de produzir capital precisaram se amoldar às nuances
sociais. O período, agora, é marcado por mais revoluções feministas e a valorização da mulher.
A informação fez com que houvesse uma evolução e conscientização quanto ao papel da
mulher na sociedade.
As mulheres começaram a ocupar, cada vez mais, os postos de trabalho e,
consecutivamente, possuir autonomia. O neoliberalismo precisava, então, lidar com esse
contexto e formular como produziria lucro para o sistema capitalista. Com isso, a indústria
passou a incentivar a entrada de mulheres para o mercado de trabalho privado.
Todavia, a divisão de tarefas e preconceitos contra o gênero não estagnaram por
completo, justo por que as transformações econômicas tem reconstruído essa divisão, o que
pode ser considerado como um retrocesso para o avanço da humanidade.

O género não se encontra, de modo algum, isolado de outros aspetos da vida social.
Por conseguinte, as transformações económicas, como a criação de economias
industriais ou de redes mundiais de comércio, implicam ações de reconstrução de
divisões de trabalho baseadas no género. E as grandes mudanças culturais
reconstroem as ideologias de género, por vezes drasticamente. (CONNELL, 2015,
p.283).

As relações de gênero foram estabelecidas desde o colonialismo, contudo, nova forma


de violência de gênero tem sido estabelecida com o neoliberalismo e a sua necessidade de
gerar lucro que mascara a real permanência de violência, trazendo-a com uma nova
perspectiva.

Em particular, as relações de género são reformuladas no colonialismo e na


globalização pós-colonial, eles próprios processos genderizados. Na reconfiguração
do poder, tem vindo a emergir um novo tipo de classe dominante, organizada à
escala mundial, e a sua liderança masculinizada é articulada com patriarcados locais
na nova economia. O desenfreado poder neoliberal conduz a novos níveis de
mercantilização dos corpos e a novos padrões de violência de género. A resistência
e a oposição também necessitarão de novas configurações políticas. (CONNELL,
2015, p.281).

Ainda no século XX, preocupada com o papel da mulher na sociedade, Simone de


Beauvoir (1980) escreveu a sua obra, O Segundo Sexo, em que se tem uma das frases mais
importantes e revolucionárias historicamente nas relações de gênero, “Ninguém nasce mulher,
torna-se mulher”.
Essa frase remete à diferença entre sexo e gênero, isto é, ao mencionar o verbo
“tornar”, Beauvoir introduziu um conceito de gênero que se caracteriza pela capacidade de o
indivíduo construir socialmente um processo de apropriação com base em possibilidades
culturais. Beauvoir relata, em seu livro, a dominação dos homens sobre as mulheres, mesmo
que essas, no contexto social mencionado, tenham começado a construir seus respectivos
caminhos rumos à emancipação, “no momento em que as mulheres começam a tomar parte
na elaboração do mundo, esse mundo é ainda um mundo que pertence aos homens”
(BEAUVOIR, 1980. p. 15).
Uma pesquisa feita, por Zélia Maria Mendes Biasoli-Alves (2000) pela Universidade
de São Paulo, por meio de entrevistas com pessoas que viveram o século XX mostra como se
estabeleciam as relações de gênero. Pela análise dos dados colhidos, foi possível observar que
ainda permanecia a cultura de educar as meninas para o casamento, sendo a dominação e
submissão aspectos ainda muito recorrentes na época.

A sociedade estratificada, econômica e culturalmente, mantém-se sem muitos


atropelos e se costuma dizer, de uma ou outra mulher, por razões diversas, que “ela
sabe qual é o seu lugar”. Ou seja, seu domínio restringe-se ao seu lar. É do marido,
dos filhos e dos pais (sogros, tios, tias) idosos que ela deve se ocupar . (ALVES,
2000, p.236).

Mesmo que o século XX tenha sido marcado por mudanças em relação aos direitos
das mulheres e um incentivo maior à sua entrada na vida escolar, ainda havia diferenças
quanto à intensidade desse incentivo em relação aos homens e às mulheres no meio
acadêmico.

Os dados de nossos projetos permitem afirmar que, durante todo um período que se
poderia classificar como de transição, há um “pano de fundo” contra o qual a mulher
continua sendo avaliada, ainda que a análise do quadro que se desenha nos anos 30,
40 e 50 mostre, já, uma abertura maior para a sua escolarização. No entanto, as
diferenças permanecem muito grandes entre as expectativas da família em relação à
vida escolar e profissional de seus “filhos homens” e a das meninas/moças.
(ALVES, 2000, p.236).

Nas últimas décadas do século XX, as mulheres, a maior escolarização e


profissionalização proporcionaram às mulheres uma maior inserção no mercado de trabalho,
todavia, muitas ainda eram as responsáveis pelos afazeres do lar, ou seja, passaram a trabalhar
dentro e fora de casa, tendo uma jornada dupla de trabalho. Além disso, há uma diferença
entre homens e mulheres no meio trabalhista, demonstrada na tabela abaixo cujos dados
colhidos foram da Bahia e de São Paulo, que vai desde a diferença salarial até nas
oportunidades de emprego, havendo uma diferenciação específica de trabalhos para cada
gênero.
QUADRO 1 - RENDA MÉDIA E MEDIANA DE HOMENS E MULHERES, NEGROS E
BRANCOS, SEGUNDO GRUPOS ESCOLHIDOS - BAHIA E SÃO PAULO – 2002 – Em
R$.
Bahia São Paulo
Negros Brancos Negros Brancos
Renda Homem Mulher Homem Mulher Homem Mulher Homem Mulher
Média
Gerente 1381,91 875,84 2156,58 1352,10 1962,10 1019,74 2928,69 1951,53
Empregado 483,37 400,37 869,78 707,05 635,52 506,74 1053,38 788,00
com
carteira
Fonte: Elaboração própria. PNAD 2002 – microdados.

Não tem como falar em igualdade no meio de trabalho se, segundo Betty Friedan
(1971), mais de 90 por cento dos CEO, Chief Executive Officer, que significa Diretor
Executivo em português, das 500 maiores empresas transnacionais são homens. Claramente
ainda há uma dominância do sexo masculino, embora tenham acontecido avanços. Contudo,
o importante é atentar para que haja a conscientização, por meio da população, de que há a
desigualdade de gênero nos dias atuais, o que para muitas pessoas se mostra de uma forma
camuflada.
As relações de gênero e a dominação sobre a população eram estabelecidas pelo estado
e religião. Todavia, na atualidade, por mais que os movimentos feministas sustentem que as
relações de gênero não podem ser imutáveis e que é socialmente construída, uma nova
modalidade substitui o papel dado antes ao estado e à religião, esta seria a ampliação do
mercado.

A dinâmica que diferencia a era neoliberal do capitalismo social e das estratégias de


desenvolvimento de industrialização de substituição das importações (isto é, a
estratégia CEPAL) é a expansão incessante da esfera do mercado, esmagando que
anteriormente caracterizavam o estado, a religião, a vida comunitária e a pessoa.
Todas elas encontram-se, agora, colonizadas por forças de mercado e reorganizadas
de modo a produzir lucro ou a sustentar a obtenção de lucro. (CONNELL, 2015,
p.284).
As mulheres ocupando os postos de trabalhos assalariados passaram a funcionar como
corpos trabalhadores para o sistema neoliberal. “A uma larga escala, decorre uma
colonização/mercantilização dos corpos das mulheres como corpos trabalhadores, corpos
sexuais e corpos reprodutores.” (CONNELL, 2015, p. 285). Destruiu, assim, o patriarcado que
mantinha a mulher como dona de casa, contudo, a violência contra mulher tomou uma nova
face.
Assim, uma possível resolução da problemática, que é a mercantilização da mulher no
mercado de trabalho neoliberal, constituído pela globalização e integração dos movimentos
feministas, seria a mobilização dos movimentos sociais que tenham menos visibilidade e
consigam enxergar a manipulação proposta pelo sistema ao grupo feminista europeu,
constituído por mulheres brancas.

Se a dinâmica do patriarcado global é, agora, integração e consumo, a dinâmica de


oposição consiste na mobilização nas periferias, na inspiração em mulheres dos
sindicatos, nos movimentos de mulheres indígenas, nos movimentos de direitos
fundiários e noutros movimentos sociais menos conhecidos dos círculos das elites
da metrópole. (CONNELL, 2015, p.5).

Os movimentos feministas que incluem mulheres transexuais, negras e indígenas,


possuem a oportunidade de desconstruir essa política de mercado e, assim, inibir a alienação
proposta pelo neoliberalismo, isto porque, estes são movimentos com menos visibilidade,
contudo, por um aspecto, essa característica é positiva, já que a falta de visibilidade faz com
que não se tenha propagandas midiáticas que produzam a alienação e, consecutivamente,
mesmo que não seja o objetivo, geram criticidade para essas minorias, fator essencial para a
mobilização e consecutiva quebra do sistema.

3 A PLURIVOCIDADE DO MOVIMENTO FEMINISTA COMO QUEBRA DA


LÓGICA NEOLIBERALISTA

É necessário compreender que existem várias subdivisões do movimento feminista,


isto é, englobam-se áreas do feminismo de mulheres negras, o ocidental, o islâmico, o indígena
e o ecológico. Contudo, especificamente, o feminismo europeu ganha destaque e visibilidade,
este que é configurado por mulheres brancas e que possuem, geralmente, uma melhor
condição financeira.
O objetivo específico não só é relatar, brevemente, os tipos de feminismos, mas
também, constatar a importância dada ao europeu fazendo com que a plurivocidade dos
movimentos feministas como um todo, quebre com essa lógica neoliberal de obtenção de lucro
a partir do feminismo.
Como já mencionado, a lógica atual do neoliberalismo é fazer com que a mulher tome
os postos de trabalho privados para que possa gerar lucro para o sistema. Contudo, resta a
dúvida de qual tipo de mulher é esperado para ocupar esses cargos. É comum, em algumas
empresas, exigir-se que a funcionária possua “boa aparência”, todavia, se constitui como um
termo subjetivo propenso a várias interpretações em um contexto histórico de discriminação
racial.
Retomando a ideologia de Simone de Beauvoir (1980), explicitada no segundo tópico,
“não se nasce mulher” (1980, p.9), torna-se mulher, sendo um gênero socialmente construído,
não havendo um determinismo biológico. Logo, com isso, é necessário que o feminismo
incluísse em seus debates a garantia de direitos às mulheres transexuais, as quais são cobertas
por uma invisibilidade. É preciso rever quem são os sujeitos que a categoria genérica do
feminismo representa.
Também, é difícil encontrar mulheres negras bem sucedidas, ocupando cargos altos de
trabalho e isso se dá graças a uma dívida histórica advinda da colonização, onde se
estereotipou que mulheres negras possuem um tratamento e uma função na sociedade
diferente de mulheres brancas.

Quando falamos em romper com o mito da rainha do lar, da musa idolatrada dos
poetas, de que mulheres estamos falando? As mulheres negras fazem parte de um
contingente de mulheres que não são rainhas de nada, que são retratadas como
antimusas da sociedade brasileira, porque o modelo estético de mulher é a mulher
branca. Quando falamos em garantir as mesmas oportunidades para homens e
mulheres no mercado de trabalho, estamos garantindo emprego para que tipo de
mulher? Fazemos parte de um contingente de mulheres para as quais os anúncios de
emprego destacam a frase: “Exige-se boa aparência”. (CARNEIRO, 2003, p. 2).

As batalhas travadas por mulheres negras se divergiam, em seus objetivos, das travadas
por mulheres brancas, isto porque, enquanto as mulheres brancas lutavam direito ao voto e ao
trabalho, as negras possuíam o interesse de serem consideradas como seres humanos.
Sojourner Truth, ex-escrava, em 1851, na Convenção dos Direitos das Mulheres em Ohio,
relatou:

Aquele homem ali diz que é preciso ajudar as mulheres a subir numa carruagem, é
preciso carrega-las quando atravessam um lamaçal, e elas devem ocupar sempre os
melhores lugares. Nunca ninguém me ajuda a subir numa carruagem, a passar por
cima da lama ou me cede o melhor lugar! E não sou eu uma mulher ? Olhem para
mim! Olhem para meu braço! Eu capinei, eu plantei, juntei palha nos celeiros, e
homem nenhum conseguiu me superar! E não sou eu uma mulher? Consegui
trabalhar e comer tanto quanto um homem- quando tinha o que comer- e aguentei
as chicotadas! Não sou eu uma mulher? Pari cinco filhos, e a maioria deles foi
vendida como escravos. Quando manifestei minha dor de mãe, ninguém, a não ser
Jesus, me ouviu! E não sou eu uma mulher? (apud RIBEIRO, 2018, p.52).

Um grave problema que afeta muitas feministas brancas é o não reconhecimento de


seus privilégios, dificultando a integração do movimento e a noção de desigualdade existente
dentro dele.

Em O segundo sexo, Beauvoir diz: “Se a ‘questão feminina’ é tão absurda é porque
a arrogância masculina fez dela uma ‘querela’, e quando as pessoas querelam não
raciocinam bem”. E eu atualizo isso para a questão das mulheres negras: se a questão
das mulheres negras é tão absurda é porque a arrogância do feminismo branco fez
dela uma querela, e quando as pessoas querelam não raciocinam bem. (RIBEIRO,
2018, p.53).

O neoliberalismo, então, não abrange o feminismo negro, todavia, o oprime, já que a


globalização não inclui a mulher negra, além disso, a inferioriza e acentua a pobreza e
discriminação destinadas a esse tipo racial. “Cresce ente as mulheres negras a consciência de
que o processo de globalização, determinado pela ordem neoliberal que, entre outras coisas,
acentua o processo de feminização da pobreza, coloca a necessidade de articulação e
intervenção da sociedade civil a nível mundial.” (CARNEIRO, 2003, p. 4).
Além disso, se observada a história do Brasil, especificamente, é possível constatar
que as mulheres negras já possuem um longo caminho no campo de trabalho, seja dentro ou
fora de casa, sendo este marcado por discriminação e má remuneração. Enquanto para algumas
mulheres brancas o trabalho servia como hobby para suprir o vazio que existia em ser apenas
dona do lar, as mulheres negras necessitavam do trabalho para a subsistência.

Mulheres negras, índias, mestiças, pobres, trabalhadoras, muitas delas feministas,


reivindicaram uma “diferença” – dentro da diferença. Ou seja, a categoria “mulher”,
que constituía uma identidade diferenciada da de “homem”, não era suficiente para
explicá-las. Elas não consideravam que as reivindicações as incluíam. Não
consideravam como fez Betty Friedan na “Mística Feminina”, que o trabalho fora
do lar, a carreira, seria uma “libertação”. Estas mulheres há muito trabalhavam
dentro e fora do lar. O trabalho fora do lar era para elas, apenas, uma fadiga a mais.
(PEDRO, 2005, p. 82).

Também, é preciso entender que há a violência contra a mulher, mas que essa se divide
em subgrupos, isto é, há violência atenuada a grupos específicos de mulheres. Segundo dados
do Mapa da Violência, entre 2003 e 2013, a taxa de homicídios de mulheres negras cresceu
54%, enquanto a taxa de homicídios de mulheres brancas caiu 10%. Logo, é necessário que,
além do combate ao gênero feminino, haja a conscientização das diferenças e das
discriminações sofridas por alguns grupos para que, assim, possam ser aniquiladas.
No ano de 2018, a Secretaria Pública e da Paz Social do Distrito Federal registrou 21
feminicídios e 7.169 casos de violência doméstica. Esses dados mostram que, mesmo com a
evolução do movimento feminista, ainda há a violência que precisa ser combatida, seja ela
contra mulheres brancas, negras, pardas ou indígenas. O número de homicídios é alto e o
movimento precisa se mobilizar cada vez mais para erradicar não só a violência, mas também
a sociedade patriarcal que ainda persiste em pleno século XXI.
Em Pernambuco, especificamente, segundo o Diário de Pernambuco, as denúncias de
violência contra a mulher chegam a 73 mil em 2018. Contudo, na mesma pesquisa relata-se
que, após a criação da Lei Maria da Penha, houve o aumento de denúncias de violência, o que
pode ser considerado como um avanço, já que se caracteriza como o primeiro passo para a
estagnação e punição desse ato.
Assim, após a análise dos dados atuais de violência contra a mulher, é possível concluir
que, mesmo com toda propaganda midiática promovida pelo neoliberalismo para gerar lucro
e proporcionar utopicamente a felicidade da mulher na aquisição de produtos, há, na verdade,
uma falta de interesse por parte desse sistema no gênero vitimado. O mercado não possui a
intenção de produzir a realização das mulheres, por isso a mesma é assediada e abandonada
pela globalização, já que as mantendo insatisfeitas, consomem mais produtos.
Esse assédio e abandono geram complexas crises entre as mulheres, onde, muitas
vezes, as mesmas não conseguem se valorizar e passam a acreditar no discurso de
subordinação o qual lhes é imposto pela sociedade patriarcal. É preciso quebrar com essa
logica neoliberalista de apropriação da bandeira de emancipação da mulher para produzir
capital, é preciso aniquilar a alienação, é preciso garantir direitos iguais para mulheres e
homens.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Foi possível, com os dados e fatos coletados, observar que o neoliberalismo se apropria
de todos os aspectos da vida na sociedade com o objetivo de gerar lucro, no modo de produção
capitalista. Feita uma análise histórica, constatou-se que houve um amoldamento às
modificações sociais.
Também, foi feito um estudo a partir da obra de Betty Friedan, a Mística Feminina, a
fim de observar o papel da mulher preestabelecido e estigmatizado como a responsável por
cuidar do lar, no contexto social do pós-crise de 1929. Por ter que cumprir com esse estigma
imposto pela sociedade, observou-se que as mulheres possuíam um vazio existencial advindo
da falta de participação na vida cível.
Para suprir esse vazio, o mercado estimulou a venda de produtos, os quais garantiam
a felicidade e realização pessoal das mulheres. Observou-se, então, que o capitalismo gerou
capital a partir de uma especificidade emocional das mulheres, ponto esse relatado
detalhadamente no tópico um do presente artigo.
Um conhecimento das ondas do feminismo foi necessário para se ter uma
conscientização do movimento e compreender a importância que o mesmo possui para o
processo de emancipação da mulher. A primeira onda do feminismo, também relatada no
tópico um, trouxe uma conscientização das mulheres de seus direitos e uma luta pela conquista
do voto. Para fundamentação foi usada a autora do Segundo Sexo, Simone de Beauvoir, a qual
tratou do papel da mulher no século XX.
Além disso, foi relatado o contexto social que levou as mulheres à ocupação dos cargos
de trabalho, na Segunda Guerra Mundial, e a retomada dos afazeres do lar após o término da
Guerra, colocando em questão se esse processo se classificou como emancipatória, embora
tenha sido importante para a história.
No tópico dois constatou-se que, com o avanço do feminismo e a difícil permanência
da mulher como dona de casa, o mercado começou a incentivar as mesmas a trabalhar fora de
casa, obtendo, também, lucro, se adaptando a mais um processo de autonomia conquistado
pelas feministas da segunda onda.
Contudo, observou-se, também, que embora tenham acontecido avanços, a sociedade
permanecia com estereótipos e divisão de tarefas, sendo alguns trabalhos destinados para o
sexo masculino e outros para o sexo feminino. Além disso, a mulher passou de dona do lar à
trabalhadora assalariada e também dona do lar, possuindo uma dupla jornada.
No tópico três foram explicitados os diferentes tipos de movimentos feministas e a
importância dada a um específico, o europeu, de mulheres brancas e renda estável. Assim, foi
possível constatar que o neoliberalismo se adaptou ao feminismo branco. O feminismo negro,
o de mulheres transexuais, o indígena, o ocidental, o islâmico e o ecológico quebram com essa
logica neoliberal de gerar lucro a partir dos movimentos sociais.
Por fim, a luta pela revelação das políticas neoliberais disfarçadas de produtoras de
felicidade e de emancipação deve estar em movimento. Os direitos das mulheres devem ser
garantidos e o feminismo deve agir como um processo integrador das diversidades presentes
no movimento. Só assim, a sociedade perceberá o valor que deve ser dado às mulheres e sua
importância, para a construção de uma literal sociedade democrática de direito e isonômica.

REFERÊNCIAS

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Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

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século XX. Psic.: Teor. E Pesq., Brasília, v.16, n.3, 2000, p.236.

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contra-a-mulher/. Acesso em: 23 set. 2018.
DA SELEÇÃO NATURAL À SELEÇÃO POLICIAL: a exclusão de vulneráveis165

Diego Marques da Silva166

RESUMO

Este artigo tem como objetivo traçar um paralelo entre a teoria da seleção natural de Charles
Darwin e a Seleção policial de vulneráveis. A primeira, é promovida pelo meio ambiente que,
ao longo do tempo, através de condicionantes climáticas, escassez de alimento e/ou de água
entre outras, conduz as espécies a competirem entre si na busca de recursos para sobreviverem.
Dessa forma, apenas as espécies mais adaptadas iriam resistir, já que eram portadoras de
características vantajosas; as menos adaptadas, isto é, as mais vulneráveis, entrariam em um
processo de estagnação ou retrocesso evolutivo e seriam extintas. Já a segunda, a qual está se
tornando tão natural quanto à primeira, agora, entretanto, é realizada pela polícia, instituição
de segurança pública e braço direito do Estado, e ocorre através de abordagens operacionais
em que os agentes estatais se dirigem a um público específico: a população negra e/ou parda
colocando o corpo negro em situação de constante vulnerabilidade, sendo perseguidas e
vigiadas, remetendo a sociedade a um cenário em que as raízes autoritárias nacionais, fincadas
no contexto colonial de escravidão, excluem esse grupo da sociedade através do extermínio
desses corpos ou “colorindo” os presídios disseminados pelo país.

Palavras-chave: Seleção Natural. Seleção policial. Criminologia positiva. Racismo


Institucional.

“Temos o direito de ser iguais quando a diferença nos


inferioriza, temos direito de ser diferentes quando a
nossa igualdade nos descaracteriza”.
Boaventura de Souza
Santos.

1 INTRODUÇÃO

Ser descendente direto de escravizados é está certo que a promessa de liberdade e


igualdade, declarada durante a história de nosso país, e, discursada, inclusive hoje, nunca
objetivou ultrapassar os limites no âmbito da norma, a qual é manifestada por letras sem vida,
uma vez que a herança deixada pela máquina exterminadora de corpos negros- o Estado
brasileiro é de um sistema de violências e violações que consolidam a prática de um projeto
genocida de vulneráveis, ou seja, daqueles que portam o fenótipo negro, uma manifestação de
racismo estrutural, vivenciada, todos os dias, e transmitida geracionalmente.

165
GT5- Direitos Humanos, Democracia e Grupos Vulneráveis
166
Acadêmico do curso de Bacharelado em Direito da Universidade Católica de Pernambuco e pesquisador em
Iniciação Científica pela UNICAP; Email: marquesdasilvadiego7@gmail.com
Dessa forma, este artigo tem como objetivo geral traçar um paralelo entre a teoria da
seleção natural- de Charles Darwin- e a seleção policial- atuação policial em abordagens
operacionais a vulneráveis.
Na primeira seleção, Charles Darwin afirmou que é o ambiente, por meio de seleção
natural, que determina a importância da característica do indivíduo ou de suas variações, e os
organismos mais bem adaptados a esse ambiente têm maiores chances de sobrevivência,
passando essas características vantajosas aos descendentes. Os organismos mais bem
adaptados são, portanto, selecionados (escolhidos) pelo ambiente e, assim, ao longo das
gerações a atuação da seleção natural mantém ou melhora o grau de adaptação dos
organismos, fixando suas características no ambiente. Os menos adaptados, ou seja, os
vulneráveis estariam em um processo de estagnação ou retrocesso evolutivo, pois não seriam
capazes de superar a pressão evolutiva sendo levados à extinção.
Já a segunda, a qual está se tornando “tão natural” quanto à primeira, agora,
entretanto, é realizada pela polícia, instituição de segurança pública e braço direito do Estado,
e ocorre através de abordagens operacionais cotidianas em que os agentes se dirigem a um
público específico movidos pelo faro racial: a população negra e/ou parda colocando o corpo
negro em situação de constante vulnerabilidade, e, portanto, perseguição e vigilância trazendo
a sociedade a um cenário em que as raízes autoritárias nacionais, fincadas no contexto colonial
de escravidão, excluem esse grupo da sociedade através do extermínio desses corpos ou
“colorindo” os presídios disseminados pelo país.
Os objetivos específicos consistem em identificar a relação entre a seletividade do
encarceramento massivo de negros e/ ou pardos e as mortes destes a partir da influência do
positivismo criminológico brasileiro. A hipótese parte dos dados que evidenciam ser a
população negra a mais vulnerável e a mais vigiada (SINHORETTO, 2014).
Metodologicamente, utilizou-se como técnica de pesquisa a documentação indireta
por meio da pesquisa bibliográfica na área.
A investigação realizada justifica-se cientificamente pela necessidade de aprofundar
e expandir os estudos acerca do processo de seletividade racial feita pelas polícias, no Brasil,
nas abordagens cotidianas, como forma de exercício do poder punitivo para o controle social.
No âmbito social o estudo ora empreendido justifica-se por promover a reflexão
acerca da atuação do Estado, no contexto brasileiro, mediante o uso do poder punitivo de
forma arbitrária e desigual perante a população, em especial, a população negra e/ou parda,
trazendo para esta conjuntura a discussão e contribuições teóricas que possam favorecer a
promoção de melhorias na prestação de atividades estatais, em especial, nas atuações policiais.

2 CHARLES DARWIN E A TEORIA DA SELEÇÃO DAS ESPÉCIES

Charles Robert Darwin foi um influente biólogo e naturalista167. Viajou pelo mundo
e ao chegar às Ilhas Galápagos, na costa do Equador, em 1835, observou que naquela região
existiam várias espécies de tentilhão168 e que cada espécie estava adaptada a diferentes nichos
ambientais. Os tentilhões se diferenciavam pelo formato do bico, fonte e modo de obtenção
do alimento. Logo após, regressou à Inglaterra, em 1836, e começou a concatenar suas idéias
sobre a possível habilidade das espécies de se modificarem por sofrerem influências do meio
ambiente.
Sendo assim, Darwin, começou a refletir sobre de que maneira evoluíram os
organismos depois de ler a obra Um Ensaio do Princípio da População publicada em 1798 de
autoria de Thomas Robert Malthus169 o qual dizia que nenhum incremento na disponibilidade
de comida para a sobrevivência humana básica poderia compensar o ritmo geométrico do
crescimento da população.
Com isso, Darwin publica sua obra Origem das Espécies em 1859 que ganhou
repercussão mundial. A teoria da evolução das espécies por seleção natural tratava
essencialmente que, devido ao problema de alimento que fora descrito por Malthus, as crias
nascidas de quaisquer espécies competiriam intensamente entre si na busca de sobreviverem.
Sobre isso, afirma (DARWIN, 2009, p.78):

Vendo que indubitavelmente se apresenta variações úteis ao homem, pode, pois,


parecer improvável que, do mesmo modo, para cada ser na grande e complexa
batalha da vida tenham que se apresentarem outras variações úteis em decorrência
de muitas gerações sucessivas? Se isto ocorre, podemos duvidar – recordando que
nascem muitos mais indivíduos dos que talvez podem sobreviver, que os indivíduos
que têm vantagens por menor que seja, sobre os outros, teriam mais probabilidades
de sobreviver e procriar sua espécie?

Assim, de acordo com Darwin, cada indivíduo era considerado único e, ao mesmo
tempo, diferente dos demais. Isso significa dizer que mesmo aqueles que possuíam o mesmo

167
É um sistema filosófico que destaca a natureza como sendo o primeiro princípio da realidade.
168
É o nome comum de um conjunto alargado de espécies de pequenas aves passeriformes granívoras.
169
Economista e demógrafo inglês em que acreditava que o aumento da população devia ser controlado. Esta
ideia assentava em duas premissas: por um lado, Malthus advogava que o crescimento da população punha em
risco o progresso da Humanidade; por outro, entendia que nunca seria possível produzir elementos em quantidade
suficiente para sustentar toda a população.
grau de parentesco alguns poderiam dispor de características favoráveis, porém outros não.
Aqueles favorecidos por essas características conseguiriam superar a pressão evolutiva, a
seleção de espécies170, passando assim, esses caracteres favoráveis as próximas gerações de
maneira hereditária.
Não obstante, ainda segundo (DARWIN, 2009, p.78) aqueles indivíduos que não
apresentavam essas características vantajosas ele afirmou: “podemos estar certos de que toda
variação no menor grau prejudicial tem que ser rigorosamente destruída”.
Isso significa que esses indivíduos não superariam a seleção de espécies ficando em
um estágio de estagnação ou retrocesso evolutivo sendo levados a extinção.
A respeito disso, afirma (DARWIN, 2009, p.78) “a esta conservação das diferenças
e variações individualmente favoráveis e a destruição das que são prejudiciais chamei eu de
seleção natural ou sobrevivência dos mais fortes.”
Desse modo, percebe-se claramente a bifurcação de dois grupos: o primeiro, titulado
como “os mais fortes” formado por aqueles indivíduos que apresentavam características
vantajosas que superariam a pressão evolutiva percorrendo um caminho de seleção espécies.
As características vantajosas seriam passadas a prole171. O segundo, não obstante, não contava
com essas características vantajosas e, sendo um tipo de evolução de menor grau devendo ser
eliminada.

3 CESARE LOMBROSO E O CRIMINOSO NATO.

A revolução Industrial levou a substituição das ferramentas manuais usadas pelos


artesãos às máquinas e causou grandes transformações econômico-sociais ocorridas,
inicialmente na Inglaterra, no final do século XVIII, difundindo-se por grande parte do
hemisfério norte, durante todo o século XIX e início do século XX.
Em virtude do crescimento do sistema capitalista e do aumento da demanda pela
busca de emprego a remuneração pelo trabalho era baixa atrelada a extensas e desgastantes
jornadas de trabalho.
Sobre essas questões sociais afirma (GÓES, 2016, p.51):

(...) vivia no deslumbre da Belle Époque, na qual a burguesia usufruía as benesses


das premissas basilares do modelo capitalista, enquanto pouca mão de obra era
absorvida pelo mercado, formando um contingente miserável pelas restrições de

170
O princípio da evolução postula que as espécies que habitaram e habitam o nosso planeta não foram criadas
independentemente, mas descendem umas das outras, ou seja, estão ligadas por laços evolutivos.
171
Conjunto dos filhos e filhas de um indivíduo ou de um casal, humano ou não.
consumo, o que demandava um controle social marcadamente terrorista (...).

Conforme GOÉS, a máquina possibilitou, pela primeira vez na história, uma


superprodução de bens de consumo que eram estocados em grandes armazéns. Não obstante,
também, gerou o aumento do desemprego e com ele outros problemas sociais associados:
havia pessoas com fome, com sede, sem moradia, sem roupas em uma Europa fria. Diante da
necessidade pelo acesso a bens de consumo começa a aumentar a criminalidade, sobretudo, a
prática de delitos relacionados à forma de aquisição de renda: furto, roubo, arrombamentos,
levando a sociedade demandar por segurança pública.
Todavia, por influência das idéias positivistas todo conhecimento deve ser testado,
experimentado para que seja considerado válido. O caminho pela busca do conhecimento
tinha que percorrer a metodologia causal-explicativa, uma vez que conhecida a causa poderia
inibir seus efeitos.
Assim, diante da busca pela causa do crime, trazendo a perspectiva de ver o crime no
criminoso Lombroso funda a Criminologia172 enquanto Ciência.
Sobre isso ressalta (GÓES, 2016, p.53):

Sob outros termos, é a reformulação do paradigma ontológico com pretensões de


exatidão que, estribado em supostas características naturais do indivíduo, procura
responder o porquê do cometimento de crimes nas sociedades, partindo do pré-
determinismo ao delito de alguns indivíduos portadores de patologias, ou seja,
defeitos naturais com explicações biológicas, psicológicas, genéticas e instintivas,
um quadro teórico complexo sobre o qual orbita a Criminologia Positiva.

Ademais, influenciado pelo pensamento Darwiniano Lombroso chega à conclusão de


que existiriam evoluções humanas que não seriam processadas em sua plenitude. Podendo
haver resquício de manifestação animal, que nomeou de atavismo, presentes na constituição
biológica de alguns seres humanos. Esse atavismo manifestava-se através de
disfuncionalidades anatômicas havendo a possibilidade de identificá-lo, através do sentido
visual, em quem era seu portador.
Assim, a causa do crime não estaria fundamentada numa questão social ou
econômica, mas sim, biológica, isto é, no determinismo biológico173, o qual levaria o
indivíduo ao regresso à condição animalesca negando seu livro arbítrio, já que considerava
que não havia liberdade de escolha perante a força biológica que o impulsionava a praticar o

172
É um conjunto de conhecimentos que se ocupa do crime, da criminalidade e suas causas, da vítima, do
controle social do ato criminoso, bem como da personalidade do criminoso e da maneira de ressocializá-lo.
173
As características físicas e psicológicas do ser humano são determinadas por sua raça, nacionalidade ou por
qualquer outro grupo específico a qual ele pertença.
delito. Para (LOMBROSO, 2016, p. 55): “o criminoso é geneticamente determinado para o
mal, por razões congênitas. Ele traz no seu âmago a reminiscência de comportamento
adquirido na sua evolução psicofisiológica. É uma tendência inata para o crime”.

Diante do pensamento Lombrosiano percebe-se que ele elabora sua teoria do


criminoso nato, fundamentada na Ciência. O estereótipo de criminoso nato é um ser doente,
anormal, inferior e degenerado.
O Estado através do Direito Penal com o discurso de garantir segurança púbica deve
identificar na sociedade os portadores do atavismo e intervir, ainda que antecipadamente, a
fim de promover a prevenção da criminalidade.

O Direito Penal se dirige ao criminoso, já que o crime está no criminoso. Caso o


indivíduo portador do atavismo ainda não tivesse cometido o delito, ele iria cometê-lo, já que
estava determinado biologicamente a fazê-lo justificando assim a antecipação punitiva estatal.

4 EMPODERAMENTO DO RACISMO PELO MUNDO: um olhar do colonizador ao


colonizado.

Lombroso teve como principais sucessores Garofalo174 e Ferri175. Sua teoria do Criminoso
nato ganha repercussão mundial se amoldando perfeitamente ao pensamento do europeu.

Assim, sobre o olhar do colonizador salienta (GÓES, 2016. p.61):

A partir do olhar eurocêntrico, o “descobrimento” dos “Outros” marginais,


concebidos como “primitivos” (há muito conhecidos) e/ou “selvagens” perante o
modelo “civilizado” e “evoluído” impulsionará a escravidão como modo de
produção, extraindo sua legitimação primeva das leis divinas e eternas, nas quais o
homem branco europeu foi criado pelo sopro de Deus e refletia a sua imagem.

De acordo com a citação, verifica-se que o colonizador é visto como superior,


evoluído, civilizado. O colonizado, entretanto, é visto como inferior e selvagem.
Diante disso, nos países em que havia um alto índice populacional de negros a
delinqüência, por sua vez, era associada à condição racial.

5 A ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA E O ESTEREÓTIPO RACIAL DE

174
Viveu entre (1851 – 1934) por sua vez, foi o primeiro autor da Escola Positiva, a utilizar a denominação
“Criminologia”, tal nome foi dado ao livro “Criminologia” publicado no ano de 1885.
175
Viveu entre (1856-1929) foi professor da Universidade de Turim, era advogado criminalista e pendeu mais
para o aspecto sociológico é o que atesta sua mais importante obra: Sociologia Criminal, publicada em 1892.
Fez parte da elaboração do Código Penal Italiano, mas o projeto dessa comissão foi substituído por outro.
CRIMINOSO EM SOLO VERDE E AMARELO.

Em relação às desigualdades sociais aponta (GÓES, 2016, p. 63):

As desigualdades raciais e sociais, historicamente, sempre prescindiram de


discursos legitimantes, ao ponto, ou pelo menos, com o objetivo final, de naturalizá-
las municiando a raça/classe dominante de instrumentos hábeis, funcionais e
eficazes no controle dos dominados (...).

Assim, no Brasil, a teoria lombrosiana encontrou um campo muito fértil para a sua
propagação cujo solo encontrava-se cheio de nutrientes que perpetuavam desigualdades: um
verdadeiro apartheid em solo verde e amarelo promovido pela escravidão.
É importante salientar, em princípio, que o Brasil foi o último país do planeta a abolir
a escravidão, haja vista o tráfico de seres humanos negros e sua utilização como mão-de-obra
escrava foram bastante lucrativos.
Não obstante, esse comércio também possuía outra faceta: o rompimento das raízes
dos negros com sua terra, a África; a negação de sua identidade cultural e religiosa; o
encarceramento deles em navios, um genocídio; e, para os sobreviventes, a status de escravo,
em que sofriam todo tipo de humilhação.
Cabe ressaltar, ainda, que a abolição da escravatura, ocorrida no Brasil, aconteceu,
de forma gradual, começando com a Lei Eusébio de Queirós176 de 1850, seguida pela Lei do
Ventre Livre177 de 1871, depois a Lei dos Sexagenários178 de 1885 e finalizada pela Lei
Áurea179 em 1888, assinada pela Princesa Isabel, através de um ato meramente político e
pouco humanitário.
Por causa do capitalismo que crescia, na Inglaterra e no Norte da Europa, em
um ritmo muito acelerado, proporcionado pela produção industrial, necessitava-se de mercado
para aquisição das mercadorias produzidas nas fábricas.
Assim, a escravidão, neste momento, é vista como um meio que dificultasse a
expansão desse novo regime econômico, uma vez que o trabalho escravo não proporcionava
aquisição salarial (renda).

176
Proibia o tráfico de escravos para o Brasil. Foi considerada um dos primeiros passos no caminho em direção
à abolição da escravatura no Brasil.
177
Também conhecida como “Lei Rio Branco” foi uma lei abolicionista, promulgada em 28 de setembro de 1871
(assinada pela Princesa Isabel). Esta lei considerava livre todos os filhos de mulher escravas nascidos a partir da
data da lei.
178
Garantia liberdade aos escravos com 60 anos de idade ou mais, cabendo aos proprietários de escravos
indenização.
179
Também conhecida como Lei Imperial número 3.353 sendo a lei que extinguiu a escravidão no Brasil.
Sobre o tráfico de escravos180 adverte (GÓES, 2016, p. 159):
(...) a vigilância constante e armada britânica, o tráfico de negros foi iniciado
imediatamente após a ilegalidade do comércio, quando os traficantes de escravos
continuavam a desembarcar negros para abastecer o mercado, apesar dos riscos, uma
vez que a “vida útil” de um negro escravo jovem de meia idade era de sete ou oito
anos.

Destarte, entende-se que foi necessária uma ameaça armada britânica a fim de tentar
inibir a prática do tráfico de pessoas negras em águas internacionais.
Além disso, cabe ressaltar, ainda, que o Estado foi omisso em não criar meios que
possibilitasse a integração dos negros ao convívio social após a abolição.
Será que a elite da época, formada pela população branca, jamais aceitara, da noite
para o dia, que o negro que era análogo a um animal, talvez, inferior a ele, pois vivia
encarcerado, acorrentado, andava descalço, era chicoteado e ainda possuía “a pele escura”,
passara a ser não um instrumento de trabalho, mas um integrante da sociedade brasileira?
Diante disso, a elite brasileira (a sociedade branca) quase redundante em detrimento
da insegurança que os negros causavam, pelo simples fato de serem negros agora, livres e
espalhados na sociedade, foram seletivamente etiquetados com o reforço do recurso científico,
em que identificara o perigo na negritude.

6 RAIMUNDO NINA RODRIGUEZ E AS RAÇAS INFERIORES.

Raimundo Nina Rodrigues nasceu em 1862, no município de Vargem Grande, no


Maranhão, e pertencia a uma família proprietária de terras e de engenho. Estudou no colégio
São Paulo e no Convento das Mercês em São Luís. Ele ingressou na Escola de Medicina da
Bahia, aos 20 anos, transferindo-se anos depois para a Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro, onde concluiu o curso aos 26 anos, em 1887.

No ano seguinte, clinicou em São Luís. Sua trajetória profissional obedeceu a várias
incursões institucionais, uma vez que ocupou cargos e se destacou nos temas relacionados à
medicina legal, antropologia, direito, psicologia e sociologia. Contribuiu com pesquisas para
a revista Gazeta Médica e ocupou a cadeira Clínica Médica na Faculdade de Medicina da
Bahia. Em seus primeiros textos utilizou expressões como “etnologia”, “economia étnica”,
“antropologia patológica” para evidenciar sua preocupação com uma classificação racial da

180
É o envio arbitrário de negros africanos na condição de escravos para as Américas e outras colônias de países
europeus durante o período caracterizado como colonialista.
população nacional.
Diante da dificuldade em definir a possível diferença evolutiva entre as “raças”, surge
no discurso de Nina Rodrigues uma essência positivista, que propõe a ciência enquanto
método possibilitador do entendimento da inserção do negro na sociedade brasileira do século
XIX. Em relação ao medo da “sociedade civilizada” diante das “raças inferiores”, ou como
ele conceitua (RODRIGUES, 1957, p. 162): “(...) soma de atentados que, numa colisão de
povos civilizados com povos selvagens, a cada passo podiam estes cometer contra as
condições existenciais da sociedade culta”.
Assim, de acordo com a citação o perigo estava no comportamento das civilizações
que não eram brancas, sendo vistas como inferiores.
Além disso, afirma (RODRIGUES, 1957, p. 162):

A civilização ariana está representada no Brasil por uma fraca minoria da raça
branca a quem ficou o encargo de defendê-la, não só contra os atos antissociais- os
crimes dos seus próprios representantes, como ainda contra os atos antissociais das
raças inferiores, sejam estes verdadeiros crimes no conceito dessas raças, sejam ao
contrário manifestações do conflito, da luta pela existência entre a civilização
superior da raça branca e os esboços de civilização das raças conquistadas ou
submetidas.

Destarte, infere-se que a questão da responsabilidade das raças humanas possibilitava


um discurso de controle social das populações não brancas. Tal dominação partia do discurso
do medo. Ainda sobre essa relação de controle (DUARTE, 2011, p. 236) ressalta:

(...) Nina Rodrigues, um teórico que advogava uma visão hierarquizada e a


correspondência e a correspondia entre o tipo criminal e tipo racial, enfrentaria o
fato de viver em um país periférico, onde a maioria marginalizada “correspondia”
as descrições da ciência racista europeia.

Através da citação de DUARTE, percebe-se que RODRIGUES constrói e dá


legitimidade a uma visão de segregação de raças no Brasil. Mas também, justifica o medo da
população branca “ao problema nacional da negritude” etiquetando o negro como criminoso-
nato nacional, em que o atavismo estaria intimamente marcado no fenótipo negro, uma
herança da criminologia positiva.
Sobre isso, ainda salienta (GÓES, 2016, p. 258):

Os contornos que o problema negro e do negro se expressam para Nina Rodrigues,


após mais de uma década de pessimismo, fazem-no adotar, definitivamente, o
discurso do branqueamento como solução ao problema e, para isso, recorrerá à
história dos negros para obter conhecimento necessário (fator fundamental ao
cientista) à solução racial nacional.

Consoante a citação de GÓES percebe-se que RODRIGUES interessou-se em


observar a diversidade do mundo dos negros e a necessidade de considerar as especificidades
nacionais nas pesquisas científicas identificando como causa de sua inferioridade uma herança
biológica, o atavismo.
Sobre o atavismo (RODRIGUES, 2010, p. 300) aponta que:

O atavismo é um fenômeno mais orgânico, do domínio da acumulação hereditária,


que pressupõe uma descontinuidade na transmissão, pela herança, de certas
qualidades dos antepassados, saltando uma ou algumas gerações. A sobrevivência é
um fenômeno antes do domínio social, e se distingue do primeiro pela continuidade
que ele pressupõe: representa os resquícios de temperamentos ou qualidades morais,
que se acham ou se devem supor em via de extinção gradual, mas que continuam a
viver ao lado, ou associados aos novos hábitos, às novas aquisições morais ou
intelectuais.

Assim, percebe-se diante a citação de RODRIGUES que seguindo os passos e


métodos de Lombroso ele reforçou o reconhecimento do atavismo no negro sendo, assim,
conseqüência de uma herança biológica vendo o negro como um ser inferior no
desenvolvimento humano.
Ainda sobre o atavismo RODRIGUES (2010, p. 300) ressalta:

De uma e de outro tenho tido conta nos meus estudos da criminalidade negra no
Brasil. Considero a reversão atávica uma modalidade da degeneração psíquica, da
anormalidade orgânica que, quando corporizada na inadaptação do indivíduo à
ordem social adotada pela geração a que ele pertence (...).

Com isso, o problema da desordem social está ligado à negritude, que era portadora
do atavismo causando-lhe uma disfuncionalidade orgânica e psíquica fincando impelida para
regredir socialmente.
Sobre essa degeneração afirma GÓES (2016, p. 264):

A importância do saber científico continuava, portanto, na mensuração da


quantidade de degeneração que cada indivíduo, localizada naquela subdivisão racial
negra, poderia transmitir aos mestiços brasileiros, mantendo, assim, sua posição
degenerativa da nação, mas adotando, agora, a mestiçagem como solução (...)

Assim, conforme a citação entende-se que RODRIGUES a fim de manter a ordem


racial da sociedade marginalizada negra e mestiça considera uma política orientada para o
extermínio do gene negro, um instrumento imprescindível como forma de controle racial dos
não brancos brasileiros a fim de proteger os brancos não-europeus.

7 A HERANÇA DA NEGRITUDE BRASILEIRA DE UM PASSADO SOMBRIO

Ser negro, no Brasil, sempre foi ter a certeza de ser um “tipo social condenável”,
vigiado, vulnerável e perseguido pelo aparato punitivo estatal, já que se trata de um suspeito
em potencial.
Essa construção ideológica como já foi abordada não se deu porque a população
negra delinqüe mais do que a população branca, na verdade, esta construção ocorreu por um
processo civilizatório que sempre intencionou subjugar a população negra para que esta não
ameaçasse a hegemonia e os privilégios de uma elite branca, desde o período colonial, que
insegura com a abolição da escravatura, sem saber como manter sua posição de prestígio se
apropriou de o discurso de política criminal, existente até hoje, para manter seu domínio sobre
os corpos outrora escravizados.
Não à toa que o positivismo criminológico foi tão eficaz aos interesses da elite
brasileira, pois vinculou a ideia de criminalidade a um tipo de indivíduo e suas características
eram o suporte teórico que essas elites precisavam para continuar subalternizando a negritude.
Então, a perspectiva Lombrosiana foi importada sem nenhum cuidado de análise e
forçada ao nosso contexto social.
Ainda hoje, existe esse ranço do positivismo criminológico, embora camuflado, ora
mais gritante, ora mais invisível.
No contexto atual, na sociedade brasileira, ainda imperam as desigualdades sociais
e, por conseguinte, há elevados índices de criminalidade, sendo a comunidade negra a mais
vigiada pelos aparatos de defesa do Estado.

8 A EVIDÊNCIA DA SELEÇÃO POLICIAL E A EXCLUSÃO DE VULNERÁVEIS

O jovem negro passa por um processo de estigmatização social que o coloca em


constante situação de vigilância e perseguição pelos aparatos penais. A evidência está não
apenas no fato de a maioria das mortes ocorridas no país serem de jovens negros (FBSP,
2018), mas porque a negritude compõe a maior população carcerária do país (BRASIL, 2016).
Outro indicador sintético é o índice de vulnerabilidade juvenil à violência e à
desigualdade racial que aponta Pernambuco na terceira posição entre as unidades federativas
– isso significa que ser jovem negro corresponde a ter o risco de morrer 11,57 vezes maior do
que ser jovem de outras cores (BRASIL, 2015).
O problema em questão é se as raízes autoritárias nacionais, que estão submersas em
nas profundezas de um contexto colonial de escravidão da população negra, podem, hoje,
guiar o faro policial que resultam na construção da seletividade penal de negros?
Percebe-se, inicialmente, que sobre a negritude brasileira ainda existe um estigma
que é uma marca produzida socialmente, relacionada a algum atributo considerado negativo
que praticamente desumaniza o seu portador. Essa marca social, relacionada a algum
estereótipo, é vista como uma desvantagem, uma diferença quanto ao que se considera o
normal. (GOFFMAN, 1988).
Movido pelo estigma o gesto de suspeitar parte do pressuposto do não confiar, de
fazer uma leitura da subjetividade como indigna de credibilidade. Tal como evidencia,
(SINHORETTO, 2014, p. 133): “[...] A fundada suspeita é fruto, segundo os interlocutores,
da experiência que o policial adquire nas ruas para identificar um suspeito ao primeiro olhar
e os signos da suspeição”.
Percebe-se, ainda, que os elementos que indicam que um tipo social – pessoas
portadoras de determinados signos sociais - são indignas e, nesse sentido, representam uma
negatividade (MISSE, 2008), cuja caça é tão naturalizada que não causa suspeição
(FLAUZINA, 2006).
Desse modo, sempre houve um fluxo, um sistema de eliminação de corpos negros,
cuja força motriz dessa cadeia genocida é movida pela atuação policial através da filtragem
racial que é feita nas abordagens operacionais, indicada por local de abordagens, horários,
vestimentas, e cor da pele, uma vez que a instituição procura se dirigir às periferias brasileiras
em busca não de uma conduta suspeita, mas sim de uma cor, que ainda é considerada uma
verdadeira ameaça conforme uma estrutura institucional racista.
Sobre isso, afirma (SCHWARCZ, 1993) “Os discursos construíam as populações
negras como indivíduos inferiores e que carregavam em si os impulsos da criminalidade,
sempre associados aos aspectos inerentes a esses indivíduos”.
Assim, considerando que a segurança pública no Brasil é concebida e operada por
uma lógica punitiva e militarizada, o que pressupõe aniquilamento ou encarceramento, a
atividade policial tem grande destaque sobrando pouco espaço para outros agentes
institucionais (SILVESTRE; SCHLITTLE; SINHORETTO, 2015).
Percebe-se que o sistema penal se dirige quase sempre contra certas pessoas, mais do
que contra as ações legalmente definidas como crime, existindo, portanto, um verdadeiro
paradoxo entre o que o que o Estado declara e a prática do próprio Estado através de seus
agentes públicos.
A respeito disso afirma (BATISTA, 2007, p. 25): “O sistema penal, enquanto grupo
de instituições – policial, judiciária e penitenciária - que possuem a incumbência de realizar o
direito penal conforme as regras jurídicas vigentes, pretende ser um “sistema garantidor de
uma ordem social justa”, apresentando-se, assim, como igualitário, justo e comprometido com
a dignidade da pessoa humana. Não obstante, o sistema penal, se analisado do ponto de vista
de sua realidade cotidiana, revela-se seletivo, repressivo e estigmatizante.

Para Alessandro Baratta, não só a práxis, mas a própria natureza do sistema penal é
desigual e seletiva (BARATTA, 2002), hasta vista pretender atingir, um público que parece
estar inserido em um projeto histórico de eliminação, dado que uma sociedade que carrega
uma herança escravocrata tão latente e que passou por um processo de democratização que
manteve assimetrias sociais extremamente profundas, tem um caráter muito sintomático
quando se passa a tratar de punição e controle de vulneráveis.
Nesse ínterim, recorre-se a ideia de sujeição criminal, a saber, conforme (MISSE,
1999, p. 66):

A sujeição criminal é o processo social pelo qual identidades são construídas e


atribuídas para habitar adequadamente o que é representado como um mundo à parte,
o mundo do crime. Há sujeição criminal quando há reprodução social de ‘tipos sociais’
representados como criminais ou potencialmente criminais: bandidos.

Sendo assim, uma vez que o criminoso é construído, o desvio ultrapassa a


transgressão da lei, tem mais a ver com a identidade do indivíduo e como o rótulo se encaixa
ou não de forma adequada à sua subjetividade, portanto, a sujeição criminal é um processo
histórico-social de acumulação de expectativas negativas que impõe ao indivíduo um lugar de
marginalidade, fazendo pairar sobre ele uma expectativa criminal, enquanto a incriminação é
o processo de enquadramento da conduta do indivíduo no tipo penal, a sujeição é a relação do
rótulo de desviante com a subjetividade dele.
Sobre o racismo afirma (FLAUZINA, 2006):

o racismo serve como forma de catalogação dos indivíduos, afastando-os ou


aproximando-os do sentido de humanidade de acordo com suas características raciais.
É justamente essa características peculiar do racismo que faz dele uma das
justificativas mais recorrentes nos episódios de genocídio e em toda a sorte de
vilipêndios materiais e simbólicos que tenham por objetivo violar a integridade dos
seres humanos.

Diante disso, verifica-se que a lógica escravocrata, ainda sobrevivente e norteadora


da política criminal do país vige a lógica da seletividade da população negra feita pelas
polícias, através da imposição de arbitrariedades, medo e do terror faz com que esses
vulneráveis sejam apartados da sociedade sendo, portanto, vistos como indignos à igualdade
de direitos.
9 A SELETIVIDADE ESTATAL A PARTIR DA ÓTICA DA CULPABILIDADE POR
VULNERABILIDADE

Segundo o conceito de culpabilidade por vulnerabilidade (ZAFFARONI, 2004)


afirma que “a culpabilidade penal no estado de direito não pode ser a simples culpabilidade
pelo ato, também deve surgir da síntese desta (como limite máximo da reprovabilidade) e de
outro conceito de culpabilidade que incorpore o dado real da seletividade.”

Dessa forma, a culpabilidade pela vulnerabilidade consiste na idéia de divisão da


responsabilidade entre o delinqüente, vulnerável, que foi excluído e oprimido socialmente e o
Estado pelo cometimento “do delito”, em razão da omissão deste em não promover “as
mesmas” oportunidades sociais a todos os cidadãos descumprindo, assim, os preceitos da
constituição.
Com isso, a culpabilidade pela vulnerabilidade surge como importante instrumento
de combate a seletividade do poder punitivo na busca de promover justiça social no momento
em que se reconhece a seletividade do sistema penal motivada por fatores raciais,
socioeconômicos, de gênero, dentre outros que deixa esses grupos em estado de
vulnerabilidade social. Assim, afirma (ZAFFARONI, 2004, p.24)

O estado de vulnerabilidade é um fato, que depende do status social da pessoa e,


portanto, é perfeitamente verificável e não depende só da classe social, não sendo
neste sentido um conceito classista. A periculosidade do poder punitivo para uma
categoria de pessoas com certo status é dinâmica, dependendo das empresas morais
e da mobilidade dos estereótipos, e restringi-la ao conceito de classe é uma
simplificação que deforma a realidade do mundo.

Com isso, o estado de vulnerabilidade se refere a um dado genérico sobre o sujeito,


com base nas suas condições concretas de vida, levando em conta aspectos sociais, de renda,
de poder, de moradia, de trabalho, de instrução formal, etc.
O estado de vulnerabilidade, a princípio, não criminaliza ninguém, pois esse estado
permanece latente enquanto não se manifesta o crime. Entretanto, ele é o motor precursor que
promove energia a seletividade do sistema penal realizada pelas polícias, como forma de
controle social, dos mais fracos, ou seja, os vulneráveis que é a população negra e/ ou parda
cujo faro policial movido pelo estereótipo, como uma herança da criminologia positiva, coloca
a negritude em constante situação de vigilância e perseguição pelos aparatos penais.

10 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do marco criminológico crítico, que deságua aqui, extrai-se que o modelo
punitivista que vigora em nossa democracia é centrado na exclusão de vulneráveis marcado
pela cor, e é fruto único e exclusivamente por sua própria razão de existir: sua funcionalidade
programada dentro dos limites estabelecidos por uma sociedade racista como instrumento
legítimo de controle de corpos negros que apenas substituiu as senzalas, pois manteve o
processo de desumanização da negritude intacta.
O atual cenário ainda evidencia que quando a barreira jurídica da desigualdade
formal foi superada com a abolição da escravatura, projetando assim, novas esperanças para
a população negra, o Estado, em contrapartida, foi criando outros mecanismos e adotando
novas posturas i(legais) a fim de promover novos obstáculos a esta população, agora dessa
vez, fincados em solo muito profundo cuja base estruturante ainda se mantém firme até hoje.
Por um lado, a seleção natural das espécies, conforme afirmou o naturalista Inglês
Charles Darwin, seleciona as espécies segundo graus de adaptação a pressão evolutiva. Os
organismos mais bem adaptados têm maiores chances de sobrevivência, passando essas
características vantajosas aos descendentes, pois são selecionados (escolhidos) pelo ambiente
e, assim, ao longo das gerações a atuação da seleção natural mantém ou melhora o grau de
adaptação dos organismos, fixando suas características na própria natureza. Os menos
adaptados, entretanto, visto como vulneráveis não seriam capazes de superar a pressão
evolutiva sendo levados à extinção.

Por outro, percebe-se que a seleção policial está se tornando “tão natural” quanto à
primeira. Agora, não mais o meio ambiente vai selecionar “os mais fortes” e excluir os mais
fracos, mas sim o Estado brasileiro.
Diferente da anterior, em que a pressão evolutiva acontece por mudanças climáticas,
escassez de alimento e água dentre outras condicionantes, neste momento, o fator de
vulnerabilidade é o fenótipo negro, ou seja, a pressão estatal que ocorre a partir das atuações
das polícias vai recair perante os corpos negros colocando- os em condição de perseguição e
vigilância.
Combater a diferença racial a partir da desconstrução da cadeia estrutural racista e
hierarquizante é pressuposto ontológico para o abolicionismo pleno e para uma sociedade que
se projete, e se comprometa, com a coletividade e diversidade, redefinindo a utopia política
desumanizante na possibilidade de colocar em prática um sonho inocente.
Para tanto, é preciso reconhecer, em princípio, a existência e o valor desse povo
heróico o brado retumbante, a população negra, a qual vem resistindo de ser escravizada,
durante todo esse tempo.
É preciso reconhecer, ainda, as identidades racializadas para explicitar as
desigualdades criadas e consolidadas por esse sistema cruel.
A seleção natural é necessária, pois ela contribui para o equilíbrio e manutenção do
planeta, não obstante, a seleção policial deve ser combatida e com ela toda essa cadeia
estruturante racista a fim de conseguirmos conquistar com braço forte em teu seio, algum dia,
ó liberdade! Pátria amada idolatrada. Salve Salve!

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IMPEACHMENT, VIOLÊNCIA POLICIAL E A CRISE DE AUTORIDADE
ESTATAL: uma análise à luz dos conceitos de Hannah Arendt181

Lucas Henrique Leite de Morais²


Juliana Marina de Oliveira Souza³

RESUMO

O presente trabalho pretende realizar uma análise socio-filosófica acerca da repressão violenta
policial nas manifestações sociais de rua no Brasil, tendo como base o período histórico do
processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff em 2016 em São Paulo. Para tanto,
será realizada primeiramente uma análise dos conceitos de autoridade, poder e violência em
Hannah Arendt, em seguida uma análise das situações de violência ocorridas no período;
demonstrar a materialização de elementos ditatoriais em regimes democráticos, e por fim
pretende-se proceder um confronto entre tais conceitos e a realidade, analisando a atuação
policial no curso das manifestações sociais de rua. Dessa forma, o objetivo é compreender se
a repressão violenta policial de caráter ideológico em manifestações sociais de rua em São
Paulo no ano de 2016, durante o processo de impeachment, pode ser considerada uma
resultante da crise de autoridade do Estado moderno à luz dos conceitos de Hannah Arendt.

Palavras-chave: Impeachment. Violência policial. Manifestações sociais. Crise da


autoridade.

INTRODUÇÃO

A crise da autoridade pode ser considerada um fenômeno moderno que possui raízes
e natureza política. Com base em um problema situado em seu tempo, a filósofa Hannah
Arendt em seus estudos busca as origens históricas, políticas e filosóficas da autoridade e a
possibilidade de interpretá-los por meio da tradição. A questão da autoridade foi tratada de
maneira específica por Arendt no livro “Entre o passado e o futuro”, no capítulo intitulado “O
que é autoridade? ”.
Para compreensão da crise de autoridade no mundo moderno faz-se necessário
diferenciar os conceitos de autoridade, poder e violência em Hannah Arendt. Em seguida, será
possível correlacionar tais conceitos com a violência policial contra manifestações sociais de
rua em São Paulo, no ano de 2016, durante o processo de impeachment, utilizando casos
exemplificativos, demonstrando a materialização de elementos ditatoriais em regimes
democráticos.

181
Grupo de trabalho Direitos Humanos, Democracia e Grupos Vulneráveis
² Graduando em Direito pela Universidade de Pernambuco, email: lucashenriquemorais134@gmail.com
³ Graduanda em Direito pela Universidade de Pernambuco, email: julianamarina318@gmail.com
O presente artigo pretende responder a seguinte problemática: A repressão violenta
policial em manifestações sociais de rua em São Paulo no ano de 2016, durante o processo de
impeachment, pode ser considerada uma resultante da crise de autoridade do Estado moderno?
O objetivo geral desta pesquisa é compreender se a repressão violenta policial em
manifestações sociais de rua em São Paulo no ano de 2016, durante o processo de
impeachment, pode ser considerada uma resultante da crise de autoridade do Estado moderno.
Já os objetivos específicos, cumprindo seu papel de delimitar tão amplo tema são: 1.
Diferenciar os conceitos de autoridade, poder e violência em Hannah Arendt; 2. Correlacionar
tais conceitos com o uso da violência policial em manifestações sociais de rua em São Paulo
no ano de 2016, durante o processo de impeachment, com casos exemplificativos; 3.
Demonstrar a materialização de elementos ditatoriais em regimes democráticos.
Quanto à metodologia da pesquisa, será utilizado o método dialético visto que: “A
dialética fornece as bases para uma interpretação dinâmica e totalizante da realidade, já que
estabelece que os fatos sociais não podem ser entendidos quando considerados isoladamente
abstraídos de suas influências políticas, econômicas e culturais. ” (GIL, 2011, p. 14).
Além disso, também será utilizado o método histórico que: “[...] consiste em investigar
acontecimentos, processos e instituições do passado para verificar sua influência na sociedade
de hoje [...]. ” (LAKATOS; MARCONI; 2010, p. 89).
No que se refere ao tipo de abordagem será usado o tipo qualitativo, sendo a técnica
voltada para a de análise de conteúdo. Já o tipo de pesquisa utilizado foi o exploratório, o qual
busca realizar a construção do levantamento bibliográfico sobre o tema. O tipo de coleta de
dados, por sua vez, foi o de pesquisa bibliográfica, a partir do livro “Entre o passado e o
futuro” e artigos científicos que englobam a temática.
Os fundamentos utilizados para a pesquisa foram: Oliveira (2006), German (2017),
Perissinotto (2004), Avritzer (2006), Arendt (1992).
A justificativa para a presente pesquisa se dá em virtude do frequente uso
desproporcional de violência policial como forma de repressão a manifestações sociais de rua
no Brasil, já que as manifestações de rua, caracterizam-se como liberdade constitucionalmente
assegurada, configurando um direito do cidadão e um dever do Estado de assegurar a sua
realização. Além disso, a crise de autoridade e legitimidade pela qual passam os estados
modernos se mostra como possível causa para o uso dessa violência.

AUTORIDADE, PODER E VIOLÊNCIA EM HANNAH ARENDT


A noção de autoridade no pensamento filosófico e político do ocidente a partir das
reflexões da autora Hannah Arendt, a qual buscou encontrar as origens e alicerces dessa noção,
teve sua primeira tentativa de fundamentação com a filosofia política grega, e posteriormente,
com a experiência da fundação da cidade de Roma.
A filosofia grega buscou fundamentar a autoridade a partir da contemplação e
investigação das coisas eternas, além de ter como modelo elementos da esfera da vida e da
administração doméstica. Enquanto os filósofos Aristóteles e Platão foram responsáveis por
trazer o processo deliberativo e a construção da pólis ao patamar mais importante da vida
política, mas foram incapazes na concepção arendtiana de institucionalizar esse tipo de ação,
dada a inexistência de um conceito de futuro para os gregos e a dispensabilidade atribuída à
atividade legislativa pelos gregos.
O termo autoridade e o seu conceito possui raízes romanas e sua efetiva
fundamentação foi baseada a partir da esfera política: “[...] A palavra e o conceito são de
origem romana. Nem a língua grega nem as várias experiências políticas da história grega
mostram qualquer conhecimento da autoridade e do tipo de governo que ela implica [...]”
(ARENDT,1992, p.145). A autoridade na concepção romana relaciona-se diretamente com a
fundação da pólis, já que o surgimento da pólis de Roma como cidade eterna representava a
importância e o sentido da participação política.
A fundação de Roma para Hannah Arendt demonstra um enaltecimento da vida
pública, assim como uma forma de exaltação da tradição. O diferencial romano está no
conceito de autoridade relacionar-se com a experiência da fundação da cidade, a qual possui
um caráter sagrado, e assim todas as gerações futuras são influenciadas por aquele momento.
Desse modo, todas as ações futuras são guiadas pela “[...] recordação e preservação da
experiência originária da fundação da cidade de Roma [...]” (LINHARES, 2009, p. 10).
Segundo Perissinotto (2004), a autoridade em Hannah Arendt relaciona-se diretamente
ao poder. É possível perceber também em sua obra “Sobre a revolução” que a autora apresenta
um novo paradigma no que se refere aos dois conceitos supracitados. Ao contrário da tradição
da teoria política, Arendt escapa à noção de poder atrelado à violência. Como é o de conceito
de poder na obra do filósofo Max Weber, por exemplo, o qual traz em sua obra que o poder é
“[...] a probabilidade de impor a própria vontade, dentro de uma relação social, ainda que
contra toda resistência e qualquer que seja o fundamento dessa probabilidade” (1984, p. 43).
A autora descreve e critica essa associação defendida por Weber e tantos outros
filósofos, propondo que se retorne a um modelo greco-romano de poder, baseado no
consentimento de todos os cidadãos. Na democracia grega há a exaltação de um conceito de
isonomia, o qual representa um princípio de igualdade do direito de manifestação na Eclésia,
a assembleia dos cidadãos, onde se discutiam os assuntos da pólis. Já na Roma antiga, o
conceito de civitas é o elevado, há uma relação de mando-obediência fundamentada pela lei,
só que ao contrário do que a palavra “obediência” implica, tal questão refere-se à obediência
às leis, às quais foram criadas pelos cidadãos ou pelo menos com o apoio deles. O poder
enquanto fenômeno constitui o espaço público em ambiente participativo no qual há a
interação entre homens iguais e livres visando a formação de uma vontade comum.
Portanto, o que se retira das leituras de Hannah Arendt é que o poder como “ação em
concerto”, para que seja legítimo deve ter o consentimento como seu núcleo. Tal
consentimento é o que dá validade às experiências democráticas grega e romana. Em seu livro
“Entre o Passado e o Futuro” Arendt escreve que a autoridade sempre exige obediência,
entretanto essa não deve se confundir com as ideias de força ou violência, pois tais meios de
coerção evidenciam justamente a falta de autoridade. A partir do momento em que uma
pessoa, seja em local de soberania ou numa relação individual, se utiliza de métodos coercivos
para imprimir a obediência, nesse momento descaracterizou-se a legitimidade da autoridade.
A ausência da autoridade no mundo corresponde à perda da permanência e segurança no
mundo político e permitem o avanço de regimes totalitários. Para Arendt, “A autoridade
sempre exige obediência, ela é comumente confundida com alguma forma de poder ou
violência. Contudo a autoridade exclui a utilização de meios externos de coerção; onde a força
é usada, autoridade em si mesmo fracassou” (ARENDT, 1992, p.129).

VIOLÊNCIA POLICIAL EM MANIFESTAÇÕES SOCIAIS DE RUA EM SÃO


PAULO NO ANO DE 2016, DURANTE O PROCESSO DE IMPEACHMENT DA EX-
PRESIDENTE DILMA ROUSSEFF

O direito à manifestação social de rua não está previsto expressamente na Constituição


da República Federativa do Brasil de 1988 nem em tratados internacionais. Contudo, é
pacifico na doutrina e jurisprudência nacional e internacional que o referido direito é resultante
da junção de direitos fundamentais que são a liberdade de manifestação do pensamento e a
liberdade de reunião.
Além de a liberdade de manifestação de pensamento estar prevista no art. 5°, inciso
IV, e a liberdade de reunião pacífica no inciso XVI do mesmo artigo, da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988, a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão,
realizada no âmbito da Comissão Interamericana de Direitos, no ano de 2005 reiterou que a
reunião pacífica pode ter como objetivo a expressão de opiniões, por esse motivo, o direito à
manifestação de rua encontra-se protegido tanto pela liberdade de expressão, quanto pela de
reunião.
No que se refere a liberdade, há uma vedação constitucional ao anonimato. A
interpretação que é extraída do art. 5°, inciso IV, da CFRB de 1988 é a de que tal vedação
existe para assegurar o direito de resposta e a reparação por danos morais ou materiais, caso
algum terceiro seja lesado. No entanto, a partir de junho de 2013 com as manifestações de rua,
o Estado utilizou deste dispositivo constitucional de maneira deturpada na tentativa de coibir
e restringir o uso de máscaras e objetos que impossibilitem a identificação durante
manifestações. Tal situação é perceptível por meio da severidade policial para com as pessoas
com máscaras, tão como projetos de lei, como o PLS 404/2013, que buscam a proibição e até
mesmo a criminalização da conduta citada.
A interpretação citada anteriormente é deturpada porque apresenta uma leitura
assistemática do texto constitucional, visando a restrição de um direito fundamental e
vulnerabilizar os manifestantes perante a repressão do Estado. Visto que a utilização de
máscaras muitas vezes tem a função de proteger o indivíduo de possíveis perseguições
políticas, ou até mesmo dos armamentos considerados menos letais usados pela força policial.
As manifestações sociais de rua são os únicos recursos disponíveis para que as
opiniões e demandas das minorias, em sentido político e não populacional, sejam ouvidas e
eventualmente atendidas, assim como também são mecanismos de reinvindicação,
principalmente em uma sociedade marcada pela desigualdade social e dividida em classes, na
qual as vias comuns de participação e manifestação do pensamento, como por exemplo, os
meios de comunicação e o contato com políticos eleitos, são insuficientes para atender as
demandas socais, seja por causa de sua incapacidade ou por serem inviáveis para maior parte
da população, conjuntura que não se dá devido a ineficácia das instâncias estatais, mas sim,
da natureza classista do Estado.
A repressão policial em manifestações de rua, de modo geral, ou é realizada contra
todos os manifestantes ou segundo um padrão de estereótipos, como por exemplo: estar de
preto, usar máscara, usar mochila, entre outros, assim como pertencer a minorias sociais e
grupos vulneráveis ao sistema penal, representando o caráter político e classista dessa
violência policial.
Assim como descreve Costa (2004, p. 16):
Dado o caráter eminentemente político desse tipo de atividade policial, o controle
violento de manifestações públicas como passeatas, greves e protestos é uma das
formas mais visíveis de violência policial. Regimes autoritários são facilmente
relacionados a esse tipo de violência em função do sistemático uso das policias para
conter a contestação política.

Nessas circunstâncias o Estado mostra-se não como um ente neutro e técnico que, de
forma independente dos interesses contrários de classes, trabalha pelo bem comum, mas como
um produto do capital e, nesta qualidade, opera a seu serviço, nesse processo utiliza-se de
elementos relacionados a regimes autoritários, como é o caso da violência policial para
reprimir a contestação política.
Um caso que exemplifica a atuação do Estado e, mais especificamente da polícia
militar, pautada pelo perfil ideológico da manifestação, ocorreu no ano de 2016 no estado de
São Paulo. Tratam-se das manifestações de rua pró e contra impeachment da ex-presidente
Dilma Rousseff.
Inicialmente, faz-se necessário apontar o fato de que há uma escassez de dados, isto é,
não há uma fonte formal que forneça os dados quanto à violência praticada pela polícia militar
em manifestações de rua no período do processo pelo impeachment da ex-presidente no ano
de 2016. Tendo isso em mente, o presente artigo buscou basear-se em informações contidas
em jornais à época dos fatos.
Para a compreensão das manifestações populares em 2016, é necessário expor o
contexto político que levou ao impeachment e, consequentemente à instabilidade política.
Alguns dos fatores que marcaram este período foram: a crise econômica internacional; o
inconformismo do eleitorado de Aécio Neves de ter perdido a eleição de 2014, sendo o mesmo
ex-candidato à presidência da República; a indignação da população causada pelos supostos
escândalos de corrupção e a excessiva exposição das mídias corporativas sobre o tema
fomentada pela Operação Lava-Jato. Dessa maneira, o cunho seletivo da revolta
anticorrupção, transformou-se em antipetismo, o qual acabou por misturar-se com a
antipolítica.
De acordo com o autor Perez-Liñan (2007, p. 119, apud Mendes, 2018, p. 266), o
principal motivador do apoio à impeachment de presidentes, de modo geral, é a crise
econômica. Tal fator “[...]faz com que os escândalos de corrupção se convertam em
hostilidade efetiva contra a administração sob fogo cruzado. ” (MENDES, 2018, p. 266). Por
isso, os autores citados defendem que a população se torna menos tolerante com a corrupção
em momentos de crise econômica, visto que em 2005 no caso do “mensalão” do PT, quando,
em meio à grave crise política e à ofensiva do PMDB, mas num momento sem crise
econômica, o governo de Lula não caiu.
Os manifestantes que iniciaram os protestos pró-impeachment podem ser definidos
como atinentes à classe média brasileira. De acordo com dados do Datafolha, os manifestantes
que foram à Avenida Paulista eram “predominantemente por brancos, de nível superior, com
renda de 5 a 20 salários mínimos. ” (MENDES, 2018, P. 268). O referido autor descreve que
historicamente, a classe média teve um papel essencial seja em amenizar ou atiçar os conflitos
sociais no Brasil.
Nessas manifestações, cuja posição ideológica estava de acordo com o programa da
classe dominante, foi perceptível uma afinidade entre os policiais que estavam junto, os quais
acompanhavam as manifestações. O Jornal El País no dia 27 de março de 2016, por exemplo,
citou duas situações de encontro entre manifestantes pró e contra impeachment e a sua relação
com a polícia militar:

Em um domingo de sol, o batalhão de Choque da Polícia Militar é bem recebido na


avenida Paulista: por ele, passam manifestantes pró-impeachment que
cumprimentam os agentes, tiram selfies e chegam a até bater continência. Numa
sexta à noite, a mesma avenida é palco de uma manifestação anti-impeachment. Ali,
não se vê relações de proximidade com os policiais. Alguns manifestantes pedem,
inclusive, o fim da Polícia Militar. Da ovação à neutralidade ou hostilização em
vários episódios, a PM de São Paulo responde a quem está na rua por meio da
atuação, ora amigável, ora ríspida, e muitas vezes violenta, como no episódio na
Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, na segunda-feira passada.

Nas manifestações pró-impeachment do dia 13 de março de 2016 foram normais as


declarações de apoio e agradecimento em relação ao trabalho da polícia pelos participantes
das manifestações, assim como o apoio da própria polícia militar à manifestação. Já nas
manifestações contra o impeachment do dia 31 de agosto de 2016, a atuação policial
demonstrou-se distinta. Segundo informações retiradas do Catraca Livre, no dia do
afastamento definitivo da ex-presidente Dilma Rousseff, milhares de pessoas que saíram às
ruas para se manifestar contra o impeachment foram vítimas da violência policial. Os meios
de comunicação que cobriam a manifestação em São Paulo, denunciaram apreensões de
equipamentos fotográficos, pessoas gravemente feridas por armas “não letais”, uma jovem
cega por estilhaços de bomba, dois fotógrafos detidos e desproporcional violência do Estado.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos realizou no dia 16 de março de 2016
uma audiência pública sobre “Protesto Social e Direitos Humanos na América”, nesta
audiência foi discutido o uso indiscriminado de armamentos considerados menos letais pelas
forças de segurança do Brasil. Como explicitado no decorrer desse trabalho, os encontros entre
manifestantes e polícia militar tem sido em sua maioria marcado pelo descomedimento no uso
de armamentos “menos letais”, tais como balas de borracha, spray de pimenta, bombas de
efeito moral e gás lacrimogêneo, canhões de água, armas taser, cassetete, enfim, tecnologias
repressivas que, apesar da nomenclatura “não-letais” adotada pelos fabricantes e pelo
governo, já deixaram vários gravemente feridos e mortos pelo caminho.
O despreparo da polícia militar para lidar com manifestações sociais de rua remete a
uma herança de como os militares lidavam com os protestos contra o regime ditatorial. Apesar
de vivermos em um Estado Democrático de Direito, consolidado pela CF/88, ainda resistem
resíduos autoritários inspirado na antiga Lei de Segurança Nacional. É o fenômeno da
militarização e da doutrina do ‘inimigo em comum que precisa ser combatido’. Nos casos das
manifestações à época do processo de impeachment, o inimigo comum era representado na
figura dos manifestantes. O ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, por exemplo, tem
convicção de que as práticas de tortura ainda constituem a metodologia das polícias estaduais
e existem em alguns estabelecimentos de segurança.
De acordo com pesquisadores David Marques e Roberta Astolfi, do Fórum Brasileiro
de Segurança Pública, Núcleo de Violência e por especialistas do Núcleo de Estudos da
Violência da USP, a polícia brasileira é a mais violenta do mundo. A tortura é prática
disseminada e que, tal qual no período ditatorial, objetiva instalar o terror nas suas vítimas.
Outro elemento ditatorial percebido refere-se ao uso indiscriminado de armas não-
letais em manifestações pacíficas de rua. No Brasil, não há normas que regulem o uso de
armas não-letais, como por exemplo, balas de borracha, gás lacrimogênio ou spray de pimenta
contra manifestantes. A única autoridade com a competência de restringir o uso de armas de
baixa letalidade é o comandante da tropa. Segundo o procurador federal dos Direitos do
Cidadão, Aurélio Rios: “São armas capazes de matar, não inofensivas. E, pelo que estamos
vendo nas ruas do país, não estão sendo usadas de forma correta. [...]. Esse tipo de arma precisa
ser utilizado com prudência, em casos muito específicos, e não contra manifestações pacíficas.
Parece que está havendo uma banalização”.

CONCLUSÃO

Ao refletirmos sobre a pergunta que norteia esse artigo, podemos verificar como a
polícia militar do estado de São Paulo ainda age de forma autoritária e pouco democrática em
manifestações de rua que sejam contra os interesses das classes mais abastadas desse país. O
ódio de classe é um elemento que conduz ao recrudescimento das forças policiais em relação
ao mais pobres e aos militantes de esquerda por uma fidelidade aos interesses de uma direita
que busca o controle financeiro e ideológico do Brasil, não se importando em construir
denúncias baseadas em falsos crimes, como aconteceu no impeachment de 2016.
A partir de uma análise arendtiana percebemos o quanto a policia militar brasileira,
nesse episódio do impeachment, representa o não-poder, a violência instrumental que nada
discute e não aceita que o contraditório democrático se estabeleça. Sem dúvidas, a profunda
crise de autoridade que assola o ocidente deixa no Brasil as suas máculas, em que um país
dividido não consegue conversar sobre o que pretende e nem que modelo de democracia e de
Estado pretende adotar. Sob a égide do anti-petismo escondesse uma tradição de domínio e
opressão da classe trabalhadora e a tentativa de impedir que os mais pobres ocupem o espaço
público.
O triste efeito dessa falsa liberdade democrática é a opressão dos mais pobres, sua
criminalização e o extermínio de jovens negros das periferias. A opressão das ruas reflete a
truculência da polícia no dia a dia das comunidades mais pobres de todas as cidades
brasileiras. Só o poder em sentido arendtiano pode resolver essa terrível exclusão, sendo o
meio de promoção de uma igualdade real de todos os cidadãos brasileiros.

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A CONCEPÇÃO JURÍDICA DO SISTEMA DE COTAS RACIAIS
PARA O ACESSO À UNIVERSIDADE182

Flávia Renata Feitosa Carneiro183


Laura Stéphanie Ferreira de Melo184

RESUMO

Esta pesquisa tem por objetivo investigar a eficácia do sistema de cotas para o acesso à
universidade. Por meio de uma metodologia histórica e comparativa fundada em textos legais
doutrinários, analisa argumentos favoráveis e desfavoráveis a este método de seleção. Inicia-
se com um estudo dos conceitos de raça e racismo, considerando aspectos biológicos,
culturais, psicológicos e, posteriormente, trata do conceito de igualdade nas perspectivas de
igualdade formal e material. Ao final, serão feitas considerações a respeito da eficiência e da
eficácia do sistema de cotas. A importância deste tema está, dentre outros aspectos, no fascínio
das contradições que ele desvenda, por meio própria Carta Magna brasileira de 1988. A
doutrina registra que ações afirmativas são definidas como políticas voltadas à concretização
da igualdade de oportunidades e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero,
de idade, de origem nacional e de compleição física. No Brasil a Lei das Cotas (nº 12.711) foi
aprovada em agosto de 2012, como política pública de ação afirmativa na Educação Superior,
a qual, após mais de uma década de debates, ainda suscita muitas controvérsias.

Palavras-chave: Eficácia. Cotas. Acesso. Universidade.

INTRODUÇÃO

No Brasil a Lei das Cotas (nº 12.711) foi aprovada em agosto de 2012, como política
pública de ação afirmativa na Educação Superior, depois de muita discussão sobre o tema.
Nesse diapasão, o presente estudo, por meio de uma metodologia histórica e comparativa-
fundada em textos legais e doutrinários e tem por escopo discutir a eficácia das ações
afirmativas, especialmente da política de cotas raciais, a partir da análise do princípio da
igualdade, elencado no art. 5o, caput, da Constituição Federal de 1988.
O trabalho se inicia com uma análise dos conceitos de raça e racismo, levando em
consideração aspectos biológicos, culturais, psicológicos e, posteriormente, trata do conceito
de igualdade, considerando as perspectivas de igualdade formal e material. Posteriormente é

182
GT 5 – Direitos Humanos, Democracia e Grupos Vulneráveis
183
Graduada em Direito – Universidade Católica de Pernambuco- UNICAP. Graduada em Odontologia –
Universidade Federal de Pernambuco–UFPE. MBA em Gerenciamento de Projetos – Universidade Estácio de
Sá. Pós-Graduada em Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa – Universidade Federal Rural de
Pernambuco–UFRPE. Mestranda em Direito – Faculdade Damas. E-mail: flavia.renata.ses@gmail.com.
184
Graduada em Direito – Centro Universitário do Vale do Ipojuca– UNIFAVIP. Pós-Graduanda em Penal e
Processo Penal – Escola Superior de Advocacia de Pernambuco– ESA PE. Mestranda em Direito – Faculdade
Damas. E-mail: stephanie-afc@hotmail.com..
apresentada a definição de cotas, que é espécie das formas de compensação. A pesquisa
também traça um paralelo entre argumentos favoráveis e desfavoráveis a este método. Ao
final são tecidas considerações a respeito da eficácia do sistema de cotas raciais para o acesso
à universidade.
A importância deste tema está, dentre outros aspectos, no fascínio das contradições
que ele desvenda, por meio da própria Carta Magna brasileira de 1988. A Constituição da
República Federativa do Brasil é um infindo de artigos que primam pela igualdade. A doutrina
registra que ações afirmativas são definidas como políticas voltadas à concretização da
igualdade de oportunidades e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero,
de idade, de origem nacional e de compleição física (MARCHIORI NETO, 2005).
No tocante à questão da igualdade, o artigo 5o, caput, da Constituição Federal de 1988,
veda distinções de qualquer natureza. O outro artigo a ser analisado é o art. 206, da
Constituição Federal de 1988, o qual enumera os princípios sob os quais o ensino deve ser
ministrado. No inciso I, do mencionado artigo, fala-se em igualdade de condições para acesso
e permanência na escola. Esse já adentra a questão educacional. Além destes, no artigo 3o, IV,
do mesmo diploma legal, consta como um dos objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor e
quaisquer outras formas de discriminação. Esses são alguns dos artigos constitucionais que
embasam este trabalho, e que foram parte da motivação para seu desenvolvimento (SILVA,
2003).

1. RAÇA, RACISMO, PRECONCEITO E SEGREGAÇÃO: CONCEITOS

Para que se inicie uma reflexão sobre o racismo é preciso que estejam claros alguns
conceitos, tais como os de raça, racismo, preconceito e segregação racial, que são geralmente
utilizados nas discussões sobre esse tema polêmico. O esclarecimento da origem etimológica
de alguns termos, tanto torna mais fácil a análise, quanto permite uma melhor gradação entre
eles. Apareceram, por volta de 1930, nos jornais e posteriormente nas organizações de luta
negras, as expressões preconceito racial, discriminação racial, segregação racial, que até então
eram desconhecidas, pois a sociedade brasileira não precisava delas, segundo Santos (1984).
Palavra preconceito, com origem no latim prae e conceptum, significando concebido
antes. É a fixação de juízo elaborado anteriormente à análise objetiva da realidade, que atinge
desfavoravelmente, pessoas, ideias, instituições ou objetos (ÁVILA, 1978). É, segundo
Houaiss (2001), qualquer opinião ou sentimento, quer favorável quer desfavorável, concebido
sem exame crítico. Para Bernd (1994), preconceituoso é o indivíduo que se fecha em uma
determinada opinião, deixando de aceitar o outro lado dos fatos. É uma posição dogmática
que impede a abertura ao conhecimento mais aprofundado da questão, que poderia levar o
indivíduo a uma reavaliação de suas posições. Historicamente, antes da palavra racismo se
impor, a expressão preconceito racial era utilizada para os que consideravam sem base
científica as teorias anti-raciais.
O termo vem do latim segregatio, com o mesmo sentido de segregare, significando
separar do rebanho. Aplica-se, especialmente, na expressão segregação racial, para designar
a prática, vigente em alguns países, de confinar em espaços delimitados alguns grupos
humanos de raças supostamente inferiores (ÁVILA, 1978). A segregação racial, como define
Houaiss (2001, p. 2534) em seu dicionário, significa “modalidade subjetiva de separação em
que a maioria racial julgada inferior é apartada do convívio da maioria, que se considera
etnicamente superior; discriminação racial”.
A Convenção da ONU sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação racial,
em seu art. 1o, define discriminação racial como:

Qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor,


descendência ou origem nacional ou étnica, que tenha o propósito ou efeito de anular
ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade dos direitos
humanos e liberdades fundamentais (PIOVESAN, 1998, P.132).

Renato Ortiz diz que a escravidão limitava epistemologicamente o desenvolvimento


pleno da atividade intelectual. Só com o advento do movimento abolicionista e com as
transformações profundas passadas pela sociedade é que o negro integra-se às preocupações
nacionais. Assim: “[...] pode-se afirmar, o que hoje é um truísmo, que o Brasil é produto da
mestiçagem de três raças: a branca, a negra e a índia” (ORTIZ, 1994).
O termo racismo é formado do substantivo “raça”, e vulgarizou-se no Brasil a partir
de 1935, quando da expansão do nazismo, do qual o racismo apresentava-se como expressão
ideológica. O racismo afirmou-se como norma política e como ideologia. Enquanto ideologia
inspirou teorias relativas à existência de raças superiores dotadas de capacidade de comando,
iniciativa, poder criador, e com vocação histórica para dominar e orientar raças inferiores.
O tipo de racismo que houve no Brasil, no passado foi paternalista, ou seja, uma
discriminação sem conflito. Segundo Joel Rufino dos Santos, nem a Campanha Abolicionista,
(que ocorreu entre 1879 e 1888) encarou o negro como gente. Era uma questão de compaixão
e não de reconhecimento de igualdade. Seus argumentos eram de que era necessário acabar
com a escravidão para modernizar o Brasil e para aliviar o sofrimento dos pobres pretos.
Naquele tempo, pretos, mestiços e índios não eram vistos como raças, mas como subespécies.
Já, desde o século passado, transformou-se em racismo aberto: discriminação com conflito
(SANTOS, 1994). Para Zilá Bernd (1994), é, o racismo, a teoria que sustenta a superioridade
de certas raças em relação a outras, preconizando, ou não, a segregação racial e até
extinguindo minorias. Em sentido estrito refere-se unicamente às diferenças biológicas; em
sentido amplo, refere-se não apenas a traços biológicos, mas a outras diferenças igualmente
desvalorizadas.
O racismo é um sistema que afirma a superioridade de um grupo racial sobre outros.
Esse era o discurso em 1936. Mesmo no mundo científico, havia pessoas que acreditavam em
“raças puras”. Porém, sabe-se hoje que raças puras nunca existiram. E, nessa linha de
raciocínio, como diz Joel Rufino dos Santos (1984), o racismo é uma falsidade científica que
torna fácil qualquer colegial desmontá-lo, pois o racismo não é produto de mentes
desequilibradas e nem existiu ou existirá sempre, porém os racistas definem o racismo como
característica da natureza humana e, sendo esta imutável, para o discurso racista ela jamais
mudará, consequentemente o racismo jamais desaparecerá. O autor cita como o exemplo mais
escandaloso de racismo o regime nazifacista alemão (1933-45), salientando que o apelo pela
raça não fora criado pelo nazismo, mas já decorrera de outros povos europeus, estando a
diferença apenas no grau de intensidade.
O termo raça foi inicialmente utilizado pelos criadores de animais. Em veterinária fala-
se na busca da pureza da raça, não sendo mais que uma convenção. Partindo-se de uma
perspectiva linguística, raça é a divisão tradicional e arbitrária dos grupos humanos,
determinada pelo conjunto de caracteres físicos hereditários (cor da pele, formato da cabeça,
tipo de cabelo, entre outros), de acordo com a definição do dicionário de Antônio Houaiss
(2001, p.2372).
A filosofia considera raça, em sendo um subconceito de espécie, como importante a
sua aplicação ao homem. Embora admita que uma raça humana biológica seja um grupo
humano, o qual apresenta características comuns, todavia indeterminadas, correspondentes a
todos os homens. A cor da pele, dos olhos, dos cabelos, volume e forma do corpo, mostram a
presença concreta comum, com base na hereditariedade, a qual diferencia os grupos, como
por exemplo, a cor da pele mais clara ou mais escura (D´OLIVEIRA, s.d.).
Do ponto de vista biológico, de acordo com Cláudio Esteva Fabregat (1979), o
conceito de raça, ao longo da história da humanidade, foi utilizado para justificar
superioridades e inferioridades jamais existentes de forma natural.O conceito de raça é útil em
biologia enquanto conceito classificatório. Neste sentido a utilidade seria para determinar
questões, dispor elementos de graduação e classificação entre a unidade a classificar, no caso,
populações humanas e a espécie humana.
Na visão antropológica, raça é uma população de seres humanos com caracteres
anatômicos comuns e determinada frequência de caracteres transmitidos geneticamente
(FABREGAT, 1979). Nesse sentido, entende-se, do ponto de vista zoológico, que os homens
atuais, independentemente da cor de sua pele, pertencem a uma só espécie: Homo sapiens, da
qual faz parte a ordem dos primatas. Este é um ponto no qual todos os zoologistas e
anatomistas modernos estão de acordo. A unidade dos diversos tipos humanos prevalece em
face das dificuldades encontradas ao se procurar fixar as características das grandes unidades
raciais do globo terrestre.
Os antropologistas afirmam que a noção de raça é estática e que nunca ou quase nunca
os conjuntos de caracteres que se atribuem a uma ou outra raça humana encontram-se, ao
mesmo tempo, reunidos num mesmo indivíduo. A contrário senso, nenhum destes caracteres,
quer se trate de morfologia do crânio ou do esqueleto, dos músculos, da cor da pele ou dos
caracteres do sistema piloso, pode isoladamente ser suficiente para caracterizar uma raça.
Cada vez se torna mais precisa a ideia da existência de agrupamentos étnicos, em vez de
verdadeiras raças humanas.
No sentido zoológico do termo, em última análise, as classificações não têm realidade
e não correspondem a categorias precisas. Indubitavelmente é mais cômodo falar em raças
brancas, amarelas, negras; de raças de cabeça alongada, de cabeça curta; de cabelos lisos, de
cabelos crespos. Existem raças que apresentam um ou outro destes caracteres. Contudo,
pretender sistematizar um conjunto de caracteres não é compatível com uma atitude científica
(TIBIRIÇA, 1966).

2. DIREITOS FUNDAMENTAIS

Entendem-se os direitos fundamentais como direitos ou proposições jurídicas


subjetivas das pessoas, que, como tais, consideradas tanto individualmente, quanto
institucionalmente, estão consagrados na Constituição. Vale ressaltar que os direitos
fundamentais correspondem a circunstâncias jurídicas de vantagem, cuja falta torna inviável
à pessoa humana sobreviver, conviver ou se realizar. São dotados de eficácia jurídica por meio
de reconhecimento formal e efetivamente material favorecendo seu titular.
A concepção de direitos fundamentais é de que são faculdades atribuídas, pela norma,
de proteção à pessoa humana no que se refere a sua vida, liberdade, igualdade, participação
política ou social, relativa a outro aspecto fundamental que interfira na integralidade de seu
desenvolvimento como pessoa. Isso em uma comunidade de seres humanos livres, exigindo o
respeito dos demais, dos grupos sociais e do Estado, com possibilidade de ativar o aparato
coativo do Estado em caso de infração. Assim, pode ser conceituado como direito ou posição
jurídica subjetiva asseguradora de uma seara de ação própria e livre, que impõe limites à
atividade estatal ou privada, decorrente de sua titularidade, de exigir prestações positivas
estatais.
Na Antiguidade, qualquer que fosse o regime político adotado, os direitos
fundamentais não possuíam qualquer reconhecimento, diante da impossibilidade de oposição
de direitos pelos indivíduos, a um Estado totalitarista. Dessa forma, a organização política
grega não admitia ou asseguravam de modo claro os direitos fundamentais, acarretando uma
esfera social, econômica, cultural e religiosa do indivíduo, de maneira que era transformado
em instrumento da Polis, no caso grego (MORAES, 1997).
O primeiro momento histórico a promover e normatizar os direitos do homem,
instituindo-os como direito à liberdade, igualdade e fraternidade, foi a Revolução Francesa.
Anteriormente a ela vigorava o Estado Absolutista, no qual o poder originava-se do soberano
e o direito era por ele aplicado com poucas limitações. É importante salientar que a origem
dos direitos fundamentais é anterior à referida Revolução e remonta ao antigo Egito e
Mesopotâmia. Posteriormente, o Cristianismo trouxe o postulado de que o homem foi criado
à imagem e semelhança de Deus, afirmando princípios de igualdade e fraternidade. Saliente-
se também a Magna Carta outorgada por João Sem Terra na Inglaterra, em 21 de junho de
1215, em cujo bojo trazia reconhecimento de direitos para os súditos, refletindo uma clara
limitação ao poder soberano (SILVA, 2005).
O registro das garantias de direitos contidos no documento foi exigido pelos barões
feudais, os quais o fizeram com armas nas mãos. A proteção dos direitos do homem e do
cidadão, desde 1789, ficou vinculada à existência de uma Constituição, sem a qual a garantia
a esses direitos não existiria. Do contrário, consuma-se o fato se a Constituição expõe e garante
a tranquilidade da sociedade. E, aos poucos, novos direitos foram sendo acrescidos à lista dos
primeiros. Inicialmente, por influências filosóficas e religiosas, os direitos concernentes à
natureza humana, eram superiores ao próprio poder que os outorgava e garantia, destinando-
se ao homem e ao cidadão, como tais, não por estarem relacionados a grupos, categorias ou
profissões (CRETELLA JÚNIOR, 1998).
O Estado de Direito despontado com a Revolução Francesa concedeu direitos públicos
aos indivíduos frente ao Estado, o qual passou a ter seu poder limitado. Os direitos de primeira
geração, direitos individuais, constaram da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
aprovada pela Assembleia Nacional francesa em 26 de agosto de 1789. Essa declaração serviu
de paradigma, por cerca de um século e meio, para todos os documentos que a ela se seguiram,
por conta da preocupação com a liberdade e os direitos do homem. O enfoque sai do Estado e
passa para o indivíduo. Os direitos fundamentais, inicialmente de caráter exclusivamente
individual, com a evolução histórica, passaram a incluir direitos de cunho social, denominados
de direitos de segunda geração (SILVA, 2005). Os chamados direitos de terceira geração são
os de solidariedade ou fraternidade, dentre os quais estariam o direito ao desenvolvimento, o
direito à paz, o direito ao meio ambiente, direito à propriedade sobre o patrimônio comum da
humanidade e o direito à comunicação. Os de quarta geração são os direitos à democracia, o
direito à informação e o direito ao pluralismo (ÂNGELO, 1998). Os direitos e garantias
previstos na Constituição Federal não são os únicos, pois há também direitos e garantias
individuais previstos em atos e tratados internacionais, que são de caráter infraconstitucional.
Os direitos fundamentais são, assim, direitos históricos, advindos das necessidades de
evolução do ser humano, e refletem o momento histórico em que são erigidos (SILVA, 2005).

2.1 Direito fundamentais em sentido formal e em sentido material

Os direitos fundamentais, em sentido formal, são entendidos como posições jurídicas


subjetivas ou direitos das pessoas, como tais, consideradas de modo individual ou
institucional, consagradas em uma Constituição. Por regras constitucionais, em acepção
formal, as incluídas na Carta Magna, quer integrantes ou não da estrutura fundamental do
Estado.
Em extensão material, os direitos fundamentais subjetivos das pessoas, enquanto tais,
individualmente ou institucionalmente consideradas, convalidadas em uma Constituição
material, ou seja, conjunto de disposições materialmente constitucionais. Os mandamentos
constitucionais, em aspecto material, apresentam conteúdo fundamental. Não são, neste
sentido, limitados ao prescrito pelo legislador constituinte, englobam também os oriundos da
concepção de Constituição dominante, direito e sentimento jurídico prevalente (MORAES,
1997). Para Paulo Bonavides (2001, p. 553), “os direitos fundamentais são a bússola das
Constituições, residindo a pior das inconstitucionalidades na inconstitucionalidade formal, e
não na material”.
2.2 Pressupostos

O requisito inicialmente exigido para a concretização dos direitos fundamentais é a


existência de uma esfera individual de ação própria e livre, relativamente ampla, diante do
Poder Público. Por isso, há de se perceber que não há direito fundamental em Estado totalitário
ou em totalitarismo integral, em decorrência da inexistência de prerrogativas conferidas ao
indivíduo pela Constituição ou em face do Estado.
O segundo antecedente é existir um Estado ou, ao menos, uma comunidade política
integrada, visto que não há direitos fundamentais em comunidade separada em função de
grupos ou condições observadas, não se verificando limitações impostas pela soberania
popular aos poderes constituídos do Estado (MORAES, 1997).
Faz-se necessária também uma positivação jurídico-constitucional, a presença de uma
Constituição que, em paralelo à determinação da estrutura básica do Estado, reconheça e
assegure direitos fundamentais. Afirma-se ainda que decorrerão consequências jurídicas, com
apoio da consagração constitucional. Em outras palavras, direitos fundamentais com
existência normativa impressa por normas materialmente constitucionais (MORAES, 1997).

2.3 Os direitos fundamentais e a ordem constitucional global

Admite-se que a ordem constitucional global consiste em normas que conferem a


existência normativa aos direitos fundamentais. Ressalte-se que a ordem constitucional
mundial contemporânea é marcada pelas constituições sociais, cujo conteúdo caracteriza-se
por determinar da estrutura essencial dos poderes do Estado, reconhecer e assegurar os direitos
fundamentais e estabelecer a ordem econômica e social.
A relação entre direitos fundamentais e modelo econômico decorre da qualificação
deste como suporte material para que aqueles se concretizem; enquanto os direitos
fundamentais determinam o modelo econômico adotado (MORAES, 1997). No caso do
Brasil, bem como no Direito Internacional, vem-se consolidando o valor da igualdade,
respeitando-se a diferença e a diversidade. Gradativamente concretiza-se uma base normativa
especial de proteção voltada a pessoas ou grupos particularmente vulneráveis, os quais
necessitam de proteção especial. Na esfera internacional, são criadas convenções de proteção,
dentre elas a Convenção Internacional Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
Racial (PIOVESAN, 1998).
3 O CONCEITO DE IGUALDADE

3.1 A igualdade

Igualdade constitui o fundamento da democracia, não admitindo privilégios e


distinções que um regime simplesmente liberal consagra (SILVA, 2003). Diante dessa
afirmativa de José Afonso da Silva, convém fazer menção ao significado das expressões
igualdade, discriminação e isonomia, já que o art. 5o de nossa Carta Magna, em seu caput,
preceitua que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.
O constituinte fixou no preâmbulo da Constituição Federal de 1988, implantando no
país um novo estado democrático, destinada a assegurar a igualdade como um dos valores
supremos da sociedade. A igualdade perante a lei é proposição que declara um juízo de
existência do princípio da igualdade, não material, não substancial, mas formal, pois não
nivela, não igualiza a todos. Devendo este princípio ser considerado como relativo e não
absoluto, pois a igualdade absoluta é impossível. Todos os indivíduos, quaisquer que sejam
seus títulos, riqueza, classe social estão sujeitos à mesma lei civil, penal, financeira e militar.
Em igualdade de condições, ninguém pode receber tratamento excepcional, por isso, o direito
de igualdade não se opõe a uma diversa proteção das desigualdades naturais por parte de cada
um (CRETELLA JÚNIOR, 1998).

3.2 Igualdade substancial e igualdade formal

O princípio da igualdade material não é totalmente desconhecido. Aparece nas


Constituições como normas programáticas, objetivando equilibrar as desequiparações muito
acentuadas no tocante à fruição dos bens, quer materiais, quer imateriais. Freqüentemente
encontram-se hoje regras jurídicas voltadas ao desfazimento do desnível radical ocorrido em
alguns momentos históricos entre o capital e o trabalho. Contudo, o princípio da igualdade,
encontrado em praticamente todas as Constituições, é o da igualdade formal, igualdade
perante a lei. Para Celso Ribeiro Bastos (1998), a isonomia é o que os doutrinadores chamam
de igualdade substancial, ou seja, a equiparação de todos os seres humanos no que diz respeito
ao gozo e fruição de direitos, assim como à sujeição de deveres. O mesmo autor considera o
princípio da igualdade um dos de mais difícil tratamento no âmbito jurídico em razão da
complexa composição envolvendo elementos de direito e metajurídicos.
O ponto principal da correção de uma regra em virtude do princípio da isonomia está
na existência ou não de correlação lógica entre o fator fundado em critério de discernimento
e a discriminação legal decidida em função dele. Além da base geral em que se funda o
princípio da igualdade perante a lei, constante no tratamento igual a situações iguais e
tratamento desigual a situações desiguais, a vigente Constituição da República Federativa do
Brasil veda distinções de qualquer natureza, no caput do artigo 5o (SILVA, 2003). Faz-se
necessário, pois, investigar o que é fundado em critério discriminatório e o que realmente
apresenta uma justificativa racional para, à vista do fator desigualador adotado, atribuir o
tratamento jurídico específico criado em função da desigualdade afirmada. No tocante ao
ponto central da matéria, a igualdade é agredida quando o fator diferencial adotado para
qualificar os atingidos pela regra não apresentam relação de conexidade lógica com a inclusão
ou exclusão no benefício concedido ou com inserção ou afastamento do gravame imposto
(MELLO, 2005).

3.3 Conteúdo jurídico da igualdade

O direito à igualdade é assegurado no artigo 5o, caput, da Constituição Federal de


1988. Reflete uma relação entre entes que apresentam as mesmas características e não
apresentam desigualdades significativas. É um princípio de difícil conceituação por assegurar
a mesma quantia de direitos para todos os cidadãos (BASTOS, 1998). Para Paulo Bonavides
(1996), o princípio da igualdade, do ponto de vista filosófico, é concebido como direito
fundamental que entra na categoria dos direitos naturais, consequentemente um dos
elementos que compõem a ideia de justiça. Já no Estado social, a igualdade faz parte dos
conceitos básicos da democracia e o princípio democrático sem a igualdade não seria
consistente, sendo mais importante até do que a liberdade.
Em relação ao acesso e à permanência na escola a que se refere o artigo 206, I, da
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 preleciona que: “O ensino será
ministrado com base nos seguintes princípios:I-igualdade de condições para o acesso e
permanência à escola[...]”. Em consonância, encontra-se ainda o art. 3o, IV da Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988, o qual expõe que “Constituem objetivos
fundamentais da república Federativa do Brasil: IV- promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
É possível constatar que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
visa a igualdade e a não discriminação. De forma generalizada é possível observar esse intuito
no art. 3o, e de forma mais específica em relação à educação, no artigo 206, I, do mesmo
diploma legal, já citado.
4. A CONCEPÇÃO DO SISTEMA DE COTAS RACIAIS PARA O ACESSO À
UNIVERSIDADE

4.1 Ações afirmativas

Ação afirmativa é um termo de amplo alcance que representa o conjunto de estratégias,


iniciativas ou políticas que buscam o favorecimento de determinados grupos ou segmentos
sociais que estejam em condições piores de competir em qualquer sociedade. Em outras
palavras, são medidas que visam reduzir os desequilíbrios que hajam entre determinadas
categorias sociais, até sua neutralização, através de medidas que favorecem as categorias em
desvantagem (MENEZES, 2001).
Quanto à aplicação, as ações afirmativas são, de modo geral, relacionadas à
implementação de cotas, ou seja, o estabelecimento de uma quantia precisa de vagas ou de
reserva de lugar em favor de integrantes do grupo beneficiado. Desta forma, cotas são apenas
uma modalidade de ações afirmativas, sendo esta o gênero.
No Brasil, o então Ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa Gomes
(2005), em sua obra define ações afirmativas como políticas públicas e privadas direcionadas
à realização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da
discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. De
caráter obrigatório ou a penas sugeridas pelo Estado, através de seus entes vinculados, ou
ainda, entidades meramente particulares. Para Bernardino (2006), as ações afirmativas podem
atuar desde políticas discretas quanto ao critério racial, até política de cotas, nas quais há
reserva de vagas para os grupos de menor influência política ou cultural, neste último a raça
passa a ser critério absoluto de seleção pessoal.
No âmbito de atuação do governo federal brasileiro, iniciou-se no final de 2002 O
Programa de Diversidade na Universidade, que visa ampliar a inclusão social e combater a
discriminação racial por meio de apoio e financiamento de instituições públicas, privadas e da
sociedade civil dispostas a promoverem cursos para afrodescendentes e/ ou indígenas
(BRANDÃO, 2005).
Após mais de uma década de debate e em meio a muitas controvérsias, foi aprovada a
Lei12.711/2012, como política pública de ação afirmativa na Educação Superior. Essa medida
legal e obrigatória determina que as Universidades, Institutos e Centros Federais reservem
50% (cinquenta por cento) das suas vagas para estudantes oriundos de escola pública. Dentre
elas, haverá reserva de um percentual especial destinado a estudantes negros
(autoidentificados como de cor parda ou preta) e indígenas. Tal percentual será definido pela
presença dessas populações no território da Instituição de Ensino Superior (IES), de acordo
com o IBGE. As referidas entidades deverão se adequar em um prazo de quatro anos a partir
da aprovação da nova lei.
Em 2012, foi aprovada a Lei 12.711 que prevê em ser art. 3° art. que:

Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1o desta
Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e
indígenas e por pessoas com deficiência, nos termos da legislação, em proporção ao
total de vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas
e pessoas com deficiência na população da unidade da Federação onde está instalada
a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística – IBGE.

Contudo, a edição dessa lei, embora de certa forma cristalize o sistema de cotas, ainda
não teve o condão de esgotar as discussões sobre o tema de cotas. Pois, acrescente-se que, a
própria Lei, em seu artigo 7º, prevê que será revisão será promovida uma revisão do programa
especial para o acesso às instituições de educação superior de estudantes pretos, pardos e
indígenas e de pessoas com deficiência, bem como daqueles que tenham cursado
integralmente o ensino médio em escolas públicas. O que reforça ainda mais a pertinência de
discussões sobre o tema, para o qual há defesas e reações.

4.2 Argumentos favoráveis ao sistema de cotas raciais

A corrente que defende a implantação do sistema de cotas enumera determinados


aspectos sociológicos e históricos que implicam essa posição. Ampara-se no fato de o Brasil
ter a segunda maior população negra do mundo, ficando atrás apenas da Nigéria. Para eles, as
ações afirmativas seriam um meio de saldar dívidas do Brasil com os negros. A fixação de
cotas seria o remédio para a discriminação. Consideram que a isonomia seria respeitada.
Afirmam ainda que afrobrasileiro será aquele que assim se declare. Defendem que a fixação
de cotas estaria amparada no art. 3o, da Constituição da República Federativa do Brasil de
1988. Consideram também que seria uma concretização do amplo acesso à educação por parte
das minorias, possível perante a adoção de medidas por parte do Estado (ALBUQUERQUE,
2003).
Argumenta-se a favor da política de cotas como ação voltada ao combate à
desigualdade racial, como uma tentativa de compensar a população negra pela discriminação
sofrida ou pela alocação nos patamares mais baixos, no concernente aos índices sociais, como
educação, distribuição salarial e habitação. Em primeira instância concentra forças no intuito
de corrigir situações de desvantagem imposta aos negros historicamente, direcionando-se
também para uma sociedade democrática, a qual não pode ser atingida sem igualdade
(VIEIRA, 2003).
A Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em 2001, realizou uma pesquisa
pelo Programa de Políticas da Cor, nela o curso de Direito é o que concentra maior número
de brancos, seguido por Odontologia e Medicina. Acreditam os defensores das cotas que sua
fixação poderá corrigir distorções entre o número de brancos e negros, a fim de equilibrá-los
numericamente (ALBUQUERQUE, 2003). Os que defendem as cotas consideram importante
um equilíbrio quantitativo. E, para combater a desigualdade, é que movimentos de combate à
discriminação racial defendem as políticas de ação afirmativa.
De acordo com Bernardino (2006), a não separação de raças no sentido biológico, não
obsta a separação do ponto de vista social, no que concerne a privilégios e distribuição de
desvantagens morais, econômicas e judiciais. Assim, critica interpretação de hegemonia no
Brasil e para tanto respalda-se em estudos da Unesco, defendendo que existe raça, não no
sentido biológico, mas enquanto categoria social, o que justifica, para ele a implementação
das cotas raciais.
Gomes (2005)entende que as ações afirmativas são um tipo de política social apta a
atingir uma série de objetivos, os quais não seriam alcançados se uma estratégia de combate
à discriminação se limitasse á adoção de regras de cunho meramente proibitivo de
discriminação, não bastando proibir, sendo necessária uma promoção que tornasse cotidiana
a observância dos princípios da diversidade e do pluralismo, para que ocorresse uma
transformação no comportamento e na mentalidade coletiva moldados pelo costume, tradição
e pela história.
Para Fernanda Guarnieri (2018), as Cotas Universitárias já fazem parte da realidade
brasileira e também se identificam como alternativa de socialização. Como medida de “ação
afirmativa” com finalidade reparatória, configura-se em uma alternativa possível para
promover a inserção do jovem em situação de desvantagem social e étnica nos espaços
acadêmicos, enriquecendo tais espaços com a diversidade e possibilidade criativa derivadas
desse processo, o que pode desdobrar-se em mudanças nas agendas de pesquisa, na definição
de prioridades e na produção do conhecimento acadêmico.

4.3 Críticas ao sistema de cotas


Do ponto de vista biológico não é possível definir raças humanas, só interessando
classificá-las e estudar caracteres hereditários (FABREGAT, 1979). Numa visão zoológica,
os homens atuais, independentemente de cor da pele pertencem à espécie: Homo sapiens, da
faz parte a ordem dos primatas (TIBIRIÇA, 1966). Ainda que se considere como raça os
diferentes grupos étnicos, isso não implica superioridade intelectual (FABREGAT, 1979),
assim sendo, não há justificativa plausível para implementação das cotas raciais. Há que se
observar também que, se a intenção é diminuir o chamado preconceito racial, com esta
medida, surtirá efeito contrário. Pode inclusive gerar no ambiente universitário uma sensação
de incapacidade para os negros, um sentimento de reserva específica, e não por sua própria
capacidade intelectual.
Outra crítica à política de cotas reporta-se ao abandono dessa política nos Estados
Unidos, por não ter surtido efeito no recuo da discriminação racial entre brancos e negros
naquele país e por ter sido aproveitada apenas para a classe-média afro-americana, não
atingindo a pobreza dos guetos (MUNAGA, 2003). E no dizer de Carlos da Fonseca Brandão
(2005), um sistema de cotas para acesso às universidades públicas trata da consequência e não
da causa efetiva do problema.
Thomas Sowell, (2004), em seu estudo empírico sobre ações afirmativas em vários
países, tais como Malásia, Sri Lanka, Nigéria e Estados Unidos, mostra, com fulcro em provas
sólidas, que onde quer que tenham sido aplicadas essas políticas, os resultados foram nefastos,
só beneficiando uma minoria e tornando pior a vida de todo o resto. Afirma ainda que se a
história, enquanto estudo é um meio de não repetir os erros do passado, muito das políticas de
ações afirmativas não deve ser repetido. Pois, em muitos países os benefícios foram
insignificantes perante os prejuízos a toda sociedade. Os que propõem as ações afirmativas
bem como os críticos revelam uma tendência de superestimas os benefícios transferidos. E
geralmente a distribuição de vantagens aos beneficiários das cotas recai no mesmo problema
de desigualdade social ainda maior do que as que deveria teoricamente minimizar.
Dessa forma, as críticas do professor acima citado, em relação à aplicabilidade do
sistema de cotas se dá tanto devido à dificuldade de estabelecimento de critérios objetivos
para classificar quem é ou não negro, quanto a questão do mérito, que fica comprometido
quando se avalia priorizando o critério étnico da pessoa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A despeito da visão exposta, o presente estudo não teve a pretensão de esgotar o tema,
dada a complexidade do mesmo, o qual ainda provocará opiniões favoráveis e contrárias, na
medida em que forem surgindo os resultados da aplicação prática das medidas de ações
afirmativas, notadamente da recente Lei 12.711/2012. Observa-se na Constituição brasileira
atual (art. 3o, I e art. 206, I, sem prejuízo do art. 5o, caput), que o objetivo primordial é a
educação de base. Considerando essa interpretação, as cotas parecem intencionar saltar
degraus, em vez de atacar a questão fundamental.
O sistema de cotas raciais perde o seu fundamento por basear-se na desigualdade entre
brancos e negros, a começar pela própria diferenciação dentro da espécie humana
considerando o termo raça. Conforme o que foi analisado, especialmente no concernente aos
critérios biológicos, zoológicos e antropomórficos, a espécie humana é apenas uma chamada
Homo sapiens.
E, de acordo com os mesmos estudos, ainda que se considere o fator “raça”, não há
superioridade intelectual comprovada tomando como base caracteres étnicos e biológicos de
pessoas consideradas normais, ou seja, sem retardamento mental. De qualquer forma, não há
relação entre o intelecto e as características agrupadas em cada tipo étnico. Até mesmo porque,
segundo o critério zoológico, não é possível reunir em um mesmo indivíduo as características
que o isolem em um único grupo.
O sistema de cotas fomenta ainda mais a discriminação contra os negros, agride um
critério objetivo de seleção e é de difícil concretização, especialmente no Brasil, pelo fato da
miscigenação, não há como encontrar indivíduos com caracteres puros de diferenciação de
grupos, e ainda que houvesse, segundo critérios científicos, não há como se comprovar se há
diferença intelectual entre negros e brancos.
Não parece razoável que todos esses princípios constitucionais sejam esquecidos
perante um projeto educacional. Se a isonomia prevê os iguais tratados de forma igual e os
desiguais de forma desigual, o sistema de cotas está confirmando a desigualdade.
Uma solução para o acesso à universidade, a longo prazo, seria a melhoria na base das
escolas públicas. Essa deveria ser a preocupação do Estado, ao qual não caberia limitar-se a
abafar as desigualdades sociais, mascarando o sistema com propostas notadamente contrárias
aos princípios constitucionais.

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EDUCAÇÃO E FRATERNIDADE: DIREITOS HUMANOS PARA
RECONHECIMENTO DOS OPRIMIDOS E EFETIVAÇÃO DO ACESSO À
JUSTIÇA185

Nivaldo Souza Santos Filho 186

Flávia Moreira Guimarães Pessoa 187

RESUMO

A proposta fraterna de educação visa disseminar uma cultura emancipatória de direitos


humanos que crie e eduque agentes de transformação social comprometidos com as gerações
futuras. A importância do presente projeto está na clara necessidade de um ensino edificado
em uma cultura de direitos humanos não discriminatória que esclareça desde já a crianças e
adolescentes o respeito e reconhecimento das diferenças. O principal objetivo da presente
análise está em analisar a necessidade de afirmação do Estado Fraternal não somente no
âmbito da política, mas também na educação. A problemática insere-se questionando de que
forma a educação pode ser emancipatória reconhecendo a juventude oprimida e garantindo-
lhe o efetivo acesso à justiça, deixando claro desde já que o acesso à justiça aqui desenvolvido
vai além do acesso ao ingresso jurisdicional. A metodologia adotada permeia o estudo
bibliográfico e documental, utilizando-se ainda o método dedutivo. Assim, pretende-se refletir
e evidenciar que o atual modelo educacional discriminatório, acaba por maximizar as
deturpações sociais em relação ao que seriam os direitos humanos, de modo que a proposta
fraterna de mudança da sociedade deve-se começar do alicerce, ou seja, da educação básica.

Palavras-chave: Acesso à Justiça. Educação. Fraternidade.

INTRODUÇÃO

Os direitos humanos que se vê comentado nas conversas e encontros comuns tem sido
alvo das maiores violações em virtude da ignorância humana. O temor à diferença, a busca e
construção do “puro”, levaram a humanidade às graves atrocidades que reduziram o homem
de forma descartável criando a figura de um homem supérfluo.
Fazendo-se uma alusão histórica ao holocausto da segunda guerra mundial, parece
fácil demonstrar a importância do combate a discriminações e consequentemente a
preservação de direitos humanos, porém, não obstante os fatos apresentados, percebe-se na
sociedade brasileira um movimento paradoxal contra direitos humanos, que se equivoca
quanto ao que seriam esses direitos e retrocede na efetivação destes.

185
Grupo de trabalho 5 – Direitos Humanos, democracia e grupos vulneráveis.
186
Mestrando em Direitos Humanos pela Universidade Tiradentes - UNIT. Bolsista Capes Prosup. Integrante dos
grupos de pesquisa "Direitos Fundamentais, novos direitos e evolução social" e “Direito e Arte” presentes no
diretório do CNPq. E-mail: netosouza70@gmail.com.
187
Doutora em Direito pela Universidade Federal da Bahia – UFBA. Mestre em Direito pela Universidade Gama
Filho. Pós-doutora pela Universidade Federal da Bahia. Professora dos Programas de Pós-graduação da
Universidade Tiradentes e da Universidade Federal de Sergipe. E-mail:flaviampessoa@gmail.com.
O presente trabalho objetiva demonstrar a necessidade de uma educação em direitos
humanos que faça com que jovens e crianças sejam convidados a refletir sobre as diferenças,
aludindo-se que estas não pressupõem discriminações.
O desenvolvimento do pensamento sobre políticas públicas e ações afirmativas em
relação as minorias (LGBT, indígenas, negros, mulheres, deficientes, crianças, adolescentes e
idosos), é observado como ponto crucial para militância de uma sociedade fraterna que não
faça ao outro o que não gostaria que fosse feito a si mesma de modo que a fraternidade como
categoria jurídica, bem como o estado fraternal, será princípio basilar da presente análise,
visando demonstrar a imperiosa necessidade de uma sociedade menos individualista que possa
compreender e respeitar diferenças.
A importância do presente estudo está na clara necessidade de um ensino pautado em
uma cultura de direitos humanos não discriminatória que trabalhe com a emancipação dos
sujeitos através de condutas fraternas. A problemática insere-se questionando de que forma a
educação pode ser emancipatória reconhecendo a juventude oprimida e garantindo-lhe o
efetivo acesso à justiça, deixando claro desde já que o acesso à justiça aqui desenvolvido vai
além do acesso ao ingresso jurisdicional.
Percorre-se o caminho metodológico por meio da análise bibliográfica e documental,
utilizando-se ainda o método dedutivo. Assim, pretende-se refletir e evidenciar que o atual
modelo educacional discriminatório, acaba por maximizar as deturpações sociais em relação
ao que seriam os direitos humanos, de modo que a proposta fraterna de mudança da sociedade
deve-se começar do alicerce, ou seja, da educação básica.

1 FRATERNIDADE E EDUCAÇÃO

Uma das principais dificuldades visualizadas socialmente quando se trata do não


reconhecimento dos direitos humanos de forma devida é a valorização injustificada dos
padrões impostos de forma equivocada na sociedade. Sobretudo, por esses padrões
restringirem a efetivação de tais direitos. Esses padrões, tendem a reprimir tudo aquilo que se
apresenta de forma diversa do usual, fora do que costuma -se entender por ordem ou pureza.
Destaca-se então a compreensão de ZygmuntBauman (1998, p. 13), o qual afirma que
“a pureza é um ideal, uma visão da condição que ainda precisa ser criada, ou da que precisa
ser diligentemente protegida contra as disparidades genuínas ou imaginadas”. Em razão disso,
a pessoa que se apresenta socialmente fugindo dos padrões estabelecidos, não simplesmente
no quesito do estereótipo, mas em até comportamentos diversos dos usuais, acabam por ser
considerados como “estranhos”.

[...]são as pessoas que não se encaixam no mapa cognitivo, moral ou estético do


mundo – num desses mapas, em dois ou em todos três; se eles portanto, por sua
simples presença, deixam turvo o que deve ser transparente, confuso o que deve ser
coerente receita para a ação, e impedem a satisfação de ser totalmente satisfatória
(BAUMAN, 1998, p. 27).

Ressalta-se que o padrão estabelece ordem de discriminação, repressão, ódio e que, de


alguma forma se inseriu na sociedade e custa a modifica-la. Por outro lado, intensificam-se as
manifestações no sentido de manter os ditos “estranhos” distantes, oprimidos e discriminados
pelo sistema imposto justificado pela ordem.
A existência e coexistência desse sistema padronizado impede o desenvolvimento de
qualquer sociedade, principalmente a sociedade brasileira que é marcada pela diversidade.
Nesse aspecto, diante de muitos processos de luta, é necessário vislumbrar a criação de
políticas públicas com o intuito de difundir a igualdade e reprimir a existência do sistema
padrão opressor.
Como categoricamente nos ensina Boaventura([org.], 2003, p. 56), “temos o direito de
ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito de ser diferentes quando
a nossa igualdade nos descaracteriza”. Demonstrando-se assim a necessidade da preservação
do direito a diferença não de forma discriminatória, mas sim como reconhecimento e
emancipação.
Piovesan (2017), destaca como a diferença sempre foi fator utilizado pela humanidade
como argumento de discriminação e desumanidade, momento em que se faz uma conexão
com o pensamento de Bauman anteriormente retratado, ou seja, o diferente, estranho, sujo e
impuro, sempre é tolhido, diminuído e combatido por uma “humanidade” que foi ensinada a
odiar.

A diferença era visibilizada para conceber o “outro” como um ser menor em


dignidade e direitos, ou, em situação-limite, um ser esvaziado mesmo de qualquer
dignidade, um ser descartável, um ser supérfluo, objeto de compra e venda (como na
escravidão) ou de campos de extermínio (como no nazismo) (PIOVESAN, 2017, p.
379).

Diante disso, entende-se que, quando se observa determinadas manifestações sociais


no sentido de ir contra os direitos humanos, inclusive contra as políticas públicas adotadas
para o seu devido reconhecimento, a sociedade esquece dos fundamentos das grandes
violações dos direitos humanos como os genocídios ocorridos da era nazista, que permeava
uma ideia de ordem e restruturação de uma sociedade dentro dos padrões idealizados por um
ditador.
Foram muitos séculos para construir instrumentos normativos de limitação do poder
estatal e o devido reconhecimento do indivíduo como sujeito de direitos, não sendo admitidas
arbitrariedades principalmente em razão da forma que se apresenta socialmente. E nesse
processo de desenvolvimento da igualdade que se destaca a necessária reafirmação dos
Direitos Humanos que estão sendo discutidos socialmente e o interesse em difundir a sua
ressignificação. Não um direito que abrange a todos genericamente, mas que reconheça as
igualdades e desigualdades a partir das diferenças. Nesse sentido, ilustra um bom exemplo as
políticas de ações afirmativas que “[...]objetiva acelerar o processo de igualdade, com o
alcance da igualdade substantiva por parte de grupos socialmente vulneráveis, como as
minorias étnicas e raciais, dentre outros grupos (PIOVESAN, 2017, p. 379).

2 DIREITOS HUMANOS E ACESSO À JUSTIÇA POR SUJEITOS OPRIMIDOS

Não obstante a necessidade de reconhecer que, especificamente as classes oprimidas,


por historicamente e sistematicamente conviverem em situações restritivas e que exige
medidas específicas para combater tais comportamentos, há quem remeta socialmente que as
determinadas ações afirmativas têm o condão de favorecer determinadas pessoas em
detrimento de outras, sendo assim, algo que fere princípios consagrados constitucionalmente.
O um discurso contra ações afirmativas disseminado, infelizmente não é utilizado por
pessoas isoladas, são palavras proferidas por quem tem voz socialmente, que são ouvidas pelas
grandes massas e que, são reproduzidos diuturnamente sem o mínimo senso reflexivo. De
mesmo modo, surge no cenário político figuras extremistas com concepções autoritárias que
fortalecem e agravam ainda mais a disseminação de uma concepção deturpada dos direitos
humanos através da proliferação de discursos de ódio.
Desde essa caracterização, é necessário abandonar toda a abstração – seja
universalista, seja localista – e assumir o dever que nos impõe o valor da liberdade: a
construção de uma ordem social justa (artigo 28 da Declaração de 1948) que permita e garanta
a todas e a todos lutar por suas reivindicações. (FLORES, 2002, p. 27).
Dentre os direitos humanos reiteradamente violados, exemplifica-se aqui o direito das
mulheres, por ser a sua violação ocorrer diuturnamente e sem a mínima observância social,
por ser prática reiterada e as reivindicações sempre silenciadas.
A naturalização da violência contra a mulher diante de uma cultura machista, reitera o
papel da educação no fortalecimento de uma consciência de direitos humanos. No entanto, o
cenário aos poucos vem mudando exatamente pelo fato de haver maior conscientização e
mobilização, não apenas na esfera nacional, mas também na esfera internacional, com o intuito
de quebrar paradigmas estabelecidos, e estendendo o alcance dos direitos humanos.
Essa mudança vem sendo observada a partir do momento em que se sente a
compreensão social do é colocado por Piovesan:

Não há direitos humanos sem a plena observância dos direitos das mulheres, ou seja,
não há direitos humanos sem que a metade da população mundial exerça, em
igualdade de condições os direitos mais fundamentais. Afinal, sem as mulheres os
direitos não são humanos. (PIOVESAN, 2017, p. 413).

No entanto, a conquista e luta do direito e reconhecimento das mulheres é contínuo, e


muito além das mulheres, existem vários outros grupos que continuam militando em favor do
reconhecimento dos seus direitos, que não está atrelado a favorecimento de classes, mas sim,
políticas de igualdade e disseminação do respeito às diferenças, que não exige grandes
esforços do indivíduo, simplesmente o reconhecimento do outro como parte de si, sujeito de
direitos, merecedor das mesmas funções sociais.
Destaca-se o comprometimento daqueles que se encontram imbuídos da função
educacional, quais sejam difundir e desmistificar, trazer ressignificação para a sociedade a
respeito do que realmente vem a ser Direitos Humanos e como eles devem ser reconhecidos
socialmente. Como coloca Piovesan (2017, p. 379), tal reconhecimento está atrelado a ética,
“[...] ética que vê no outro um ser merecedor de igual consideração e profundo respeito, dotado
do direito de desenvolver as potencialidades humanas, de forma livre, autônoma e plena”.
Hannah Arendt188, em uma de suas afirmações mais polêmicas afirma que os direitos
humanos não são um dado, mas um construído, uma invenção humana, em constante processo
de construção e reconstrução. Dessa forma constata-se como os direitos humanos comumente
são utilizados de forma equivocada como moeda barganha somente para uma parcela da
população que se sente mais humana que o restante da humanidade.
Portanto, reitera-se, não há que se falar em Direitos Humanos sem instituir políticas
emancipatórios que tem por base trazer discussões sociais que incentivem o indivíduo a fazer
parte da transformação do ambiente em que vive através da propagação do respeito as
diferenças.
Assim como na sociedade, a escola cria e discrimina seus “estranhos”, de modo que a

188
ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo, trad. Roberto Raposo, Rio de Janeiro, 1979. Ver também
LAFER, Celso. Reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. Rio de
Janeiro: Companhia das Letras, 2001, p. 134.
ignorância faz com que a diferença seja utilizada não para reconhecimento, mas sim para
inferiorização dos sujeitos.
O termo fraternidade é comumente utilizado para designar o amor concebido entre os
irmãos, entre seres da mesma família que substabelecem laços de irmandade com
consanguinidade ou não. O cristianismo fortalece tal perspectiva ao preceituar que todos são
filhos do mesmo Deus, logo, irmãos, em sendo assim a doutrina cristã tem como um dos
mandamentos o dogma de amar ao próximo como a si mesmo.
De mesmo modo diversas religiões que por vezes parecem entrar em contradição,
encontram como ponto comum o fundamento principiológico da fórmula de ouro da
fraternidade, a premissa de não fazer o outro o que não gostaria que fosse feito a si mesmo.
Nesse universo de discordâncias dogmáticas resiste um preceito moral de convivência
unanime entre as maiores vertentes religiosas de que o outro deve ser respeitado e amado.
Enquanto categoria jurídica que remonta a tríade da revolução francesa, a fraternidade
encontra-se no âmbito dos chamados direitos de terceira dimensão, juntamente com o direito
ao desenvolvimento, direitos que diferentemente dos de primeira e segunda dimensão partem
de uma visão coletiva e comunitária, visto que o individualismo ousou por permear a evolução
da humanidade, fortalecendo o egoísmo humano.
Pensar em uma sociedade que tenha ao outro o mesmo respeito que a si próprio nada
mais é que trabalhar a pacificação social a partir do reconhecimento, pensando numa evolução
social que transcende o individualismo a partir de um ideal de consolidação de sociedade justa
e pacífica, pautada na edificação de direitos humanos e que propicie a preservação da espécie
humana.
Para Carlos Ayres Britto, a fraternidade é o ponto de unidade a que se chega pela
conciliação possível entre os extremos da liberdade, de um lado e, de outro da igualdade
(BRITTO, p. 218). De mesmo modo, Clara Machado (2017), a necessidade da relação entre
fraternidade, igualdade e liberdade.

[...] só os homens livres alcançam a possibilidade da fraternidade, de modo que não


se é fraterno apenas porque é humano, mas porque se é livre, Os aspectos
tridimensionais (liberdade, igualdade e fraternidade), compreendidos numa
perspectiva jurídica, visam ressaltar que diante da liberdade, o homem reconhece a
condição de si e do outro e realiza a fraternidade (MACHADO JABORANDY, 2017,
p. 172).

A autora continua afirmando o caráter coletivo da fraternidade, referindo-se que todos


os indivíduos são responsáveis pelos atos e pelos efeitos dos atos praticados em sociedade,
caracterizando uma verdadeira corresponsabilidade pela vida humana.
Boaventura de Souza Santos (2011, p. 7), por sua vez, questiona de que forma e se
poderia o direito ser emancipatório, respondendo que tal fato somente ocorreria diante de uma
revolução democrática da justiça. De mesmo modo, a educação só pode ser emancipatória a
partir de uma revolução democrática do ensino e ambiente escolar, que propicie um ambiente
fraterno, sociedade justa e humana.
O processo de conscientização para a fraternidade deve-se dá a partir da análise da
relevância prática desse princípio para a sociedade. Assim, há uma extrema necessidade de
transformação cultural para que se atinja a real proteção dos direitos fundamentais
transindividuais por meio da aplicação do princípio da fraternidade. Nesse sentido, incumbe
ao Estado o dever de fiscalização do cumprimento das práticas necessárias para a construção
da educação que viabilize a fraternidade.
Constata-se como necessária uma formação dos indivíduos, principalmente, dos
operadores do Direito, com um viés mais humano e de respaldo à respeitabilidade de dos
referidos direitos. Com isso, os resultados obtidos se dão a longo prazo, mas, por outro lado,
são concretos, solidificados e consistentes, o que favorece significativamente a qualidade da
efetivação da proteção e preservação dos preceitos transindividuais.
Nesse sentido, cabe citar a imprescindibilidade da identificação como cidadão e o
reconhecimento da dignidade do outro, fator muito questionável em nossa sociedade diante
de sérias problemáticas que acabam por negar e ignorar a existência daqueles que não são
vistos como interessantes economicamente. Em conjunto a isso, soma-se a pífia educação, que
ainda não encontra calcada na fraternidade. Em vista disso, volta-se a mais uma carência
social, em que a população precisa estar ciente da sua condição de vida, dos seus direitos e
dos seus deveres, para poder se falar em respeito aos direitos fundamentais, e para que se
assuma o comprometimento com a respeitabilidade e proteção destes.
No plano da resolução de conflitos o processo de mediação é visto como um meio de
compartilhamento das responsabilidades, que não apena tem a questão de corresponsabilidade
das partes, mas também é assumido pelo mediador o compromisso com a fraternidade, em
que tem a responsabilidade de ajudar a identificar e criar maneiras de resolução construtiva,
implantando, dessa forma a cultura da pacificação social.
Outro ponto a ser comentado é a grande insuficiência no fortalecimento da participação
da sociedade civil. A importância se efetivar essa premissa reside propensão de que as pessoas
se tornem corresponsáveis na proteção dos direitos transindividuais, como meio de inventivo
do cumprimento desses deveres, o que possibilita a eficácia social dessas garantias, ao fazer
com que as comunidades compreendam as necessidades de prevenção, proteção e fomento às
precisas prerrogativas em questão.
Assim, partilha-se do pensamento de Clara Machado ao destacar que a fraternidade
não é uma fraqueza; não é passividade; não é ingenuidade. É um projeto de vida e, no Estado
brasileiro, é assegurada por garantia constitucional. (MACHADO, 2017, p. 216). Nesse caso
também um projeto educacional, de modo que uma educação fraterna nunca poderá ser
discriminatória, ensinando o reconhecimento e respeito do outro em suas individualidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A educação representa nas palavras de Paulo Freire189 libertação, autonomia,


esperança, mas infelizmente também opressão. A mesma educação que transforma, caso
utilizada equivocadamente pode acabar por oprimir ainda mais os rotulados como estranhos
por não se enquadrarem em um determinado padrão imposto pela sociedade.
Dentre as diversas dificuldades de efetivação dos direitos humanos, percebe-se o valor
cultural individualista tendente a uma visão utilitarista que menospreza a concepção desses
direitos como universais, atribuindo-lhes a somente uma pequena parcela privilegiada da
sociedade.
Dessa maneira, é concluído como extremamente importante a horizontalidade das
relações, sem sobreposição de poderes entre os envolvidos na criação de redes de proteção
dos direitos transindividuais, devendo-se realizar essa participação por meio de uma
comunicação menos burocrática possível, que realmente propicie a obtenção dos resultados
esperados por meio dessa mudança de paradigma necessária. Também, é enxergada na
interdisciplinaridade uma verdadeira proteção dos direitos transindividuais, ou seja, a
existência de uma comunicação democrática verdadeiramente construtiva.Destarte, isso pode
ser concretizado por meio da realização de comunicação e a troca de informações entre os
poderes públicos e a sociedade, passo este de fundamental importância na construção de
programas de resguardo dos direitos e garantias individuais, acontecendo, nessa perspectiva,
uma participação autenticamente democrática, com ação realizada em prol do interesse
coletivo.
Com base no que foi percebido é possível alçar a importância de uma participação

189
Referencia as obras de Paulo Freire: “Pedagogia do Oprimido”; “Pedagogia da Libertação”; “Pedagogia da
Esperança”; “Pedagogia da Autonomia”.
democrática na tomada de decisões e do envolvimento com a proteção dos direitos
transindividuais, pois esse vínculo permite o sentimento de responsabilidade, fazendo com
que os indivíduos se sintam mais pressionados e comprometidos com o cumprimento e com a
fiscalização desses pressupostos, contribuindo, consubstancialmente, para fortalecimento da
desenvolvimento da coletividade.
Toda proposta de mudança cultural requer tempo, ações conjuntas, mas principalmente
trabalhos que objetivem atingir as futuras gerações, de modo que se ensinados a partir de uma
educação pautada em direitos humanos, serão naturalmente acostumados a reconhecer esses
direitos, combater prováveis violações e militar por sua efetivação.
Desse modo, observa-se a imperiosidade de ter em exercício a fraternidade como
prática pedagógica. Isto é, por meio dessa premissa construir um âmbito em que seja possível
estruturar uma boa formação inicial e continuada dos indivíduos. Por sua vez, isso pode ser
realizado através de projetos de extensão, como forma de unir universidades e escolas e
contribuir tanto para a aplicação prática do conhecimento acadêmico, como para a
disseminação e edificação de propostas que se pautem no bem de toda coletividade.Assim se
estabelece a proposta de consolidação do estado fraternal, pautado na propagação da
fraternidade desde a educação básica, pretendendo por intermédio do reconhecimento do outro
a proposição de uma educação emancipadora.
A viabilização da ideia trazida se dá também por intermédio da propositura de
mudanças visíveis e sentidas por cada pessoa. A título de exemplo, faz-se bastante interessante
que profissionais das escolas realizem encontros com as famílias dos alunos para que sejam
debatidas temáticas concernentes à importância que cada um tem como agente transformador.
Ao partir disso, pretende-se prosperar reflexõesacerca do papel das pessoas para o meio social.
Assim, não somente haverá a contribuição na formação e educação fraterna dos alunos, mas
também, buscar-se-á a conscientização e concretização dessa premissa de forma mais ampla.
Desse modo, é conferido como extremamente importante o exercício de repensar, fatos
e questões que voltem o olhar para a corresponsabilidade dos compromissos assumidos na
Constituição, consequentemente, a carência de concretização de uma educação voltada para a
cidadania fraterna e desse modo a precisão de se construir uma verdadeira cultura jurídica,
política e social calcada na concepção de paz e de cooperação, como forma de se alcançar
uma convivência melhor de reconhecimento do outro.
Contudo, entende-se que somente pela transformação da educação fraterna em direitos
humanos poder-se-á alcançar o reconhecimento dos oprimidos e logo a efetivação do acesso
à justiça enquanto acesso ao respeito aos seus direitos, individualidades e também diferenças.

REFERÊNCIAS

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Universitária, 2017.

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Companhia de Letras, 1979.

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DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

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Jorge Zahar Editora, 1998.

BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003

FLORES, Joaquin Herrera. Direitos humanos, interculturalidade e racionalidade de


resistência. Seqüência: Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, p. 9-30, jan. 2002. ISSN
2177-7055. Disponível em:
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Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2001.

MACHADO, Carlos Augusto Alcântara. A fraternidade como categoria jurídica:


fundamentos e alcance. Curitiba: Appris Editora, 2017.

MACHADO, Clara. O princípio jurídico da fraternidade: um instrumento para a proteção


dos direitos transindividuais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.

PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 10.ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

SANTOS. Boaventura de Souza. Por uma revolução democrática da Justiça. São Paulo:
Cortez, 2011.

___________. (Org.). Reconhecer para libertar. Os caminhos do cosmopolitismo


multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
JUIZ DE FORA, 06 DE SETEMBRO DE 2018:uma facada na democracia¹

André Soares da Silva²

RESUMO

O artigo discorre sobre os efeitos para o jogo democrático da tentativa de homicídio em face
do presidenciável, Jair Bolsonaro, A pesquisa tem como problema a intolerância e a validade
da sua utilização, mesmo sob o argumento da defesa da democracia. O objetivo da pesquisa é
responder se a intolerância se mostra como estratégia válida dentro do espaço democrático.
Para resolver o problema da pesquisa descritiva, foram consultadas obras dos autores
dedicados ao tema, além de notícias divulgadas na imprensa. O interesse pelo tema da
pesquisa nasceu da reflexão sobre as consequências do fato que constitui o objeto da pesquisa
e principalmente quanto aos seus efeitos em relação à democracia brasileira. A importância
do tema está presente no campo da ciência jurídica, sociológica e política. O artigo realiza
uma pesquisa bibliográfica sobre a democracia em sua origem, evolução e instabilidades,
analisa a democracia como o espaço legítimo para o conflito. Ao final, conclui-se que apenas
na democracia abre-se espaço para a diversidade com direito assegurado à fala dos diversos
atores sociais, rejeitando a intolerância e evidenciando que toda e qualquer atitude contra essa
prática, configura-se num atentado contra a própria democracia enquanto instituição cara para
a efetividade dos direitos humanos.

Palavras-chave: Democracia. Autoritarismo. Intolerância. Espaço legítimo de conflito.

INTRODUÇÃO

O dia 06 de setembro de 2018, poderia ter sido apenas mais um dia de campanha
presidencial do candidato, Jair Messias Bolsonaro, quando este era carregado nos braços de
militantes e simpatizantes, no centro de Juiz de Fora, cidade do estado de Minas Gerais, não
fosse o fato do candidato ter sido alvo de uma tentativa de homicídio perpetrada pelo Senhor,
Adélio Bispo de Oliveira, 40 anos, filiado ao PSOL, que se utilizou de uma faca-peixeira para
ferir sua vítima.
Autuado e preso em flagrante delito, o acusado afirmou que amotivação para o crime
residiu no fato da sua total discordância com as propostas defendidas pela vítima, já que
segundo o acusado, as ideias e propostas daquela, representavam uma ameaça contra a sua
vida.
A vítima se trata de um capitão aposentado das forças armadas brasileiras, deputado
federal licenciado, representando o estado de São Paulo, há 28 anos. Dono de um discurso
populista, o candidato vem paulatinamente subindo nas pesquisas de intenção de votos, apesar
de sua fala ser acusada de sexista, misógina, racista, homofóbica e xenofóbica.
Fazem parte das propostas do presidenciável, ações no sentido de proibir qualquer
discussão sobre gênero e orientação sexual nas escolas, permitir o uso de arma de fogo por
parte da população civil, além de defender abertamente a morte de bandidos, tudo em nome
da família e de Deus.
Sem que tenhamos a necessidade de investigar os motivos políticos e questões
relacionadas ao perfil do acusado, antecedentes criminas, modo de vida, filiação partidária,
autoria do crime e mandantes, se faz necessário indagar: a intolerância pode ser utilizada como
caminho viável, prática legítima, para a defesa da democracia?
Portanto, o presente artigo tem como problema a pergunta: a intolerância pode ser
utilizada como caminho viável, prática legítima, para a defesa da democracia, mesmo que sob
o argumento de se estar defendendo a democracia?
Este artigo tem como objetivo analisar o discurso político do presidenciável, de forma
mais imparcial possível e a partir daí confrontá-lo com o direito à liberdade de expressão,
assegurado na Constituição Federal e compreender a posição do Supremo Tribunal Federal
sobre o tema.
Também se pretende levantar historicamente as origens e o estado atual da democracia,
seus momentos de colapso, e os atentados constantes que sofre pelas investidas autoritárias.
Sem a pretensão de ser exaustivo, o que seria obviamente inadequado para o objeto
deste trabalho, o artigo pretende demonstrar que nas diversas teorias sobre a democracia, não
se consegue enxergar noutro espaço que não seja o democrático, o campo fértil para a
reivindicação e criação de direitos.
Com a finalidade de explicar as ideias defendidas neste artigo lançou-se mão de
pesquisa bibliográfica, através do vasto referencial teórico disponível sobre o tema e sob o
enfoque principalmente jurídico e sociológico.
A importância do tema é inquestionável haja vista que a participação política, as regras
do jogo democrático dizem respeito a todos os brasileiros e brasileiras. O regime democrático
está inserido no rol dos princípios fundamentais da república, assegurados na constituição
federal vigente.
O artigo deve servir para fomentar o debate a respeito do tema no meio acadêmico,
principalmente na área social, jurídica e política e mais ainda os saberes acadêmicos ou
construídos dentro da academia devem transpassar seus muros, provocando transformações
na sociedade vista globalmente, influenciando, educando e fortalecendo a cidadania.
O que se busca com o debate de ideias nunca será o ódio, a inimizade, a intolerância,
mas antes e acima de tudo, o consenso, a paz e a solidariedade que tornam possível a vida em
comunidade.

1. O DISCURSO ELEITORAL DE BOLSONARO E A LIBERDADE


DEEXPRESSÃO

“O erro da ditadura foi torturar e não matar” foi o que disse o candidato a presidente,
Jair Bolsonaro, em participação no programa Pânico da rádio jovem Pan, em julho de 2016.
Revista Congresso em Foco (2017).
É possível dizer que uma nação é tão democrática quanto a possibilidade que o seu
povo tem de se exprimir livremente, sem censura, sem controle posterior e ainda de
manifestar-se intelectual e artisticamente, contribuindo para o enriquecimento do debate das
questões atinentes ao Estado e mais ainda de manifestar-se publicamente em qualquer lugar
e sem medo de represálias ou punições, mesmo que seja em face de dirigentes políticos e
dos poderes da república.
Com efeito, o direito de liberdade de expressão é assegurado na nossa carta política e
está previsto no rol dos direitos fundamentais, sendo direito de primeira geração, caracterizado
este como aqueles que reclamam uma prestação negativa do Estado, ou seja, um não fazer. O
Estado não deve proibir a manifestação do pensamento, desde que o autor seja devidamente
identificado, sendo proibido o anonimato.
Pois bem, sabemos que não existem direitos absolutos, pois o exercício dos direitos
pelos particulares está condicionado à observância das regras da convivência social e servem
estas como limites para que o exercício do direito por uma pessoa, não impeça o exercício dos
direitos por outra pessoa ou grupo de pessoas.
A questão que se coloca é saber quando o exercício do direito de liberdade de
expressão, extrapola os limites toleráveis e permitidos na lei em razão da atenção ao bom
convívio social.
Em abril de 2017, na cidade do Rio de Janeiro, o presidenciável, Jair Bolsonaro, em
palestra no clube Hebraica, disse: “Fui num quilombo. O afrodescendente mais leve já pesava
sete arrobas, nem pra procriador serve mais”. Revista Congresso em Foco (2017)
As declarações do candidato levaram a procuradoria da república a denunciá-lo por
racismo. Em julgamento por maioria dos votos, os ministros do Supremo Tribunal Federal,
decidiram arquivar a denúncia, pois as declarações do candidato ainda que sejam, vulgares e
desrespeitosas, nas palavras do Ministro Alexandre de Moraes, não ensejam uma perseguição
criminal. Extra (2018)
Da decisão do Supremo Tribunal Federal, é possível retirar o entendimento de que
palavras grosseiras, desrespeitosas, vulgares, quando proferidas a um grupo de pessoas não
individualizadas, ou mesmo uma minoria, não configura racismo, enquanto crime, merecedor
de reprimenda penal. Se a decisão do tribunal valerá para outros casos semelhantes, doravante,
só o tempo dirá.
Se as famosas e polêmicas declarações do presidenciável não acarretam consequências
no mundo jurídico, a mesma coisa já não se pode dizer no campo social. Do ponto de vista
social o que não está explícito no discurso do candidato?
É público o fato de que o candidato tem conseguido arregimentar seguidores das mais
variadas classes sociais que defendem e compartilham do mesmo ponto de vista em relação
as mais variadas questões. Sentem-se representados, apesar do discurso, acusado por muitos,
de ódio e discriminatório dirigido contra as minorias ou segmentos econômica e socialmente
vulnerabilizados.
Na sua célebre obra, as origens do totalitarismo, a pensadora Arendt (2017) enfatiza
que na Alemanha pós primeira guerra mundial, a difícil situação financeira dos alemães e o
elevado custo de vida, encontrou alívio no discurso totalitário nazista, que pregava o
nacionalismo extremo, a ideia de raça superior, a perseguição contra homossexuais, judeus e
negros, tudo em nome da defesa da família e moralização dos negócios públicos do
Estado.Bastante significativo é o pensamento da escritora judia:

Enquanto o povo, em todas as grandes revoluções, luta por um sistema realmente


representativo, a ralé brada sempre pelo “ homem forte”, pelo “ grande líder”. Porque
a ralé odeia a sociedade da qual é excluída, e odeia o Parlamento onde não é
representada. (ARENDT, 2017, p.159)

Portanto, é possível perceber que se a fala discriminatória do presidenciável, como


apontado por alguns, conforme entendimento da mais alta corte de justiça país é do ponto de
vista penal, irrelevante, não parece ser irrelevante o acolhimento e apropriação de tal fala por
parcela considerável da nação.

2. A DEMOCRACIA COMO ESPAÇO VAZIO DE PODER

A origem da palavra democracia é creditada à Grécia Antiga e significa


(demo=povo, kracia=governo). Os historiadores afirmam que esse sistema de governo foi
desenvolvido na cidade grega de Atenas.
Não obstante, ter sido o berço da democracia a verdade é que nem todos os habitantes
podiam participar das decisões política do Estado.
O dicionário Houaiss da língua portuguesa nos traz que:

democracia s.f.(1671) POL.1 governo em que o povo exerce a soberania 2


sistema político em que os cidadãos elegem os seus dirigentes por meio de
eleições periódicas 3 regime em que há liberdade de associação e de
expressão e no qual não existem distinções ou privilégios de classe
hereditários ou arbitrários 4 p.ext, país em que prevalece um governo
democrático d. direta POL forma de organização política em que o povo
controla diretamente a gestão da sociedade, por meio de referendos,
plebiscitos e outros instrumentos legais. d. representativa POL organização
social em que o povo, através de eleições, outorga mandatos a representantes
que passarão a exercer autoridade em seu nome ETIM gr.dêmokratía, de
dêmos povo + kratia força, poder SIN/VAR democratismo ANT
absolutismo, autocracia, autoritarismo, despotismo, ditadura. (HOUAISS,
2009, p. 612).

A Constituição Federal de 1988 (2018), disciplina que o Brasil é um Estado


Democrático de Direito e que todo poder emana do povo que o exerce diretamente e
indiretamente pelos seus representantes.
Portanto, vivemos numa democracia onde é assegurada ao cidadão o direito à liberdade
de expressão e de associação, sendo o artigo 5º da CF/88 (2018), dispositivo que elenca um
rol não exaustivo dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo, conforme expressa
norma constitucional, cláusula pétrea, ou seja, não pode sequer ser objeto de deliberação
proposta de emenda constitucional que tenha por escopo extinguir os direitos ali previstos.
É necessário, contudo, ter em vista que a democracia enquanto instituição pode ser
vista sob dois enfoques: um primeiro enfoque que trata da democracia no seu sentido legal,
jurídico, positivado na constituição e aparelhado por instituições estatais e um segundo
enfoque que trata da democracia como prática do exercício do discurso, da reivindicação, do
conflito ideológico, das manifestações coletivas, das lutas de classes e dos movimentos
sociais.
Esse enfoque duplo da democracia foi descrito por CHAUÍ (2012, p. 152), quando
afirma que “Estamos acostumados a aceitar a definição liberal da democracia como regime da
lei e da ordem para a garantia das liberdades individuais”
Na fala da professora paulista, fica subentendido que que o discurso liberal da
democracia é aquele que prevê a igualdade formal de todos, pois baseada na lei, geral e
oponível contra todos, mas que é incapaz de tratar desigualmente os desiguais, de promover
verdadeiramente a igualdade material e isonômica.
Mas é a mesma Marilena Chauí que arremata:

A igualdade declara que, perante a as leis e os costumes da sociedade


política, todos os cidadãos possuem os mesmos direitos e devem ser tratados
da mesma maneira. Ora, a evidencia histórica nos ensina que a mera
declaração do direito à igualdade não faz existir os iguais. Seu sentido e
importância encontram-se no fato de que ela abre o campo para a criação da
igualdade por meio das exigências, reivindicações e demandas dos sujeitos
sociais (CHAUÍ, 2012, p. 151).

Ora, é possível extrair do pensamento da autora citada que a democracia não é um


projeto acabado e que será entregue ao povo por este ou aquele partido, por este ou aquele
político, por este ou aquele Estado, mas, antes, que a democracia deve encontrar fundamento
nas lutas sociais e por estas deve ser exercida, praticada, aperfeiçoada.
Se a democracia plena é o campo fértil e legítimo para a discussão e diga-se de
passagem- único lugar, onde pode ser exercida validamente- temos que concordar com o
Lefort (2007), quando afirma que qualquer tentativa de um projeto de democracia perfeito e
acabado é meramente um devaneio e que reside nesta concepção de democracia um ideal
meramente simbólico, ou até mesmo utópico.
Pensador bastante conhecido da academia brasileira no início da década de 80, Lefort
(2007), afirma que na democracia o poder está vazio, seja porque os representantes eleitos
pelo povo, de fato não os representa e se os representar a contento, ainda assim não são o
povo, seus mandatos são temporários, periódicos, seja porque as reivindicações sempre
existirão e sempre haverá demandas sociais insatisfeitas. Dessa forma, visando assegurar
direitos para uma classe determinada estar subentendido, retirar parcela de direitos de outra
classe e dessa forma o conflito estará instalado.
Para o pensador francês, Lefort (2007), a tentação do totalitarismo é exatamente
pretender mudar o simbólico -a democracia- para o real, uma espécie de projeto acabado de
democracia, que corresponda a todas as demandas sociais. Essa pretensão, esconde um projeto
de boa sociedade que só encontra fundamento de validade na “ loucura” do totalitarismo.
O que se pretendeu dizer até aqui é que a democracia vista não como “aparelho do
Estado” mas como espaço legítimo para o conflito, para as discussões das minorias, como
espaço modificador e criador de direitos, se fortalece e se reinventa nas diferenças e na
capacidade de extrair dos conflitos que alimentam essas diferenças, o seu substrato de validade
e de legitimidade.
Embora possa parecer tentador aos excluídos econômica e socialmente, o projeto de
uma democracia sem conflito, sem impasses, a ideia de uma boa sociedade, na verdade revela
um projeto autoritário de poder que fazendo uso da defesa dos direitos humanos, na verdade
pretende aniquilá-los.
Só no espaço democrático o conflito torna-se legítimo e é no respeito às regras do jogo
democrático que se cria direitos e se exerce a cidadania.

3. A INTOLERÂNCIA E O ÓDIO À DEMOCRACIA

O discurso do presidenciável, Jair Messias Bolsonaro, carregado de intolerância e ataques


diretos às minorias sociais: negros, mulheres, homossexuais, criminosos, quanto aos seus
efeitos revela ironicamente uma reação de intolerância por parte daqueles que acreditando
defenderem a democracia e os direitos humanos, caem na cilada de atacar para se defender.
Com efeito, não são raros os ataques contra os simpatizantes das ideias do candidato
presidenciável. O resultado desse clima de intolerância recíproca é a polarização do discurso
político.
Nesse clima de intolerância caracterizado pela incapacidade de conviver com a diferença
ou mais ainda de respeitar o diferente, abre-se um fosso entre as pessoas em prejuízo da
convivência harmoniosa social e separa “iguais-intrinsecamente falando- e desiguais-
ideologicamente falando.
Ao que tudo indica, o sociólogo português, parece está correto quando defende:

Temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e


temos o direito a ser diferentes quando nossa igualdade nos descaracteriza.
Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma
diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades
(SANTOS, 2003, p.15).

É exatamente na busca de corrigir as desigualdades sociais e econômicas que os


movimentos sociais de reivindicação ganham relevante importância e representam a voz
amplificada da opinião pública.
O filósofo e jurista italiano, Norberto Bobbio, a respeito do assunto, leciona:

...Opinião pública e movimentos sociais procedem lado a lado e se


condicionam reciprocamente. Sem opinião pública – o que significa mais
concretamente sem canais de transmissão da opinião pública, que se torna
“pública” exatamente enquanto transmitida ao público -, a esfera da
sociedade civil está destinada a perder a própria função e, finalmente, a
desparecer. No limite, o Estado totalitário, que é o Estado no qual a
sociedade civil é inteiramente absorvida pelo Estado, é um Estado sem
opinião pública (isto é, com uma opinião pública apenas oficial) (BOBBIO,
2012 p.37)
Pois bem, é o esfacelamento do tecido social movido pelo acirramento das diferenças
como produto da ausência de política públicas que pavimenta o recrudescimento das
investidas autoritárias e segundo Ranciere (2014), reanima o projeto de tomada do poder do
seu legítimo titular, o povo, por uma classe ainda não totalmente refeita do prestígio que
perdeu.
A intolerância não se mostra como alternativa viável e legítima para o exercício da
cidadania, mas muito pelo contrário contribui negativamente para o avanço da democracia na
medida em que divide a sociedade, alargando as desigualdades e o sentimento de
pertencimento ao tecido social.
Para Ranciere (2014), o ódio à democracia é um sentimento nutrido há muito tempo
pelas elites que jamais aceitaram a perda dos privilégios, os títulos, que tornavam possível o
ingresso nas classes dirigentes, perda esta que o regime democrático tratou de implantar.
Apesar das ideias de Jacques Ranciere, se distanciarem em muito das ideias de
Norbetrto Bobbio, em relação a importância e o valor da democracia, em um ponto de certa
forma eles aparentam concordar: Rancier (2014): “A democracia significa o aumento
irresistível de demandas que pressiona os governos, acarreta o declínio da autoridade e torna
os indivíduos e os grupos rebeldes à disciplina e aos sacrifícios exigidos pelo interesse
comum”.
Por fim, cumpre ressaltar que não se trata de defender um ideal de boa sociedade como
já apontado alhures, mas de ressaltar a importância da democracia como espaço legítimo para
o conflito, exigindo uma postura que reconheça nas diferenças a própria condição intrínseca
de humanidade e sem divisão do tecido social de forma a impedir as investidas recorrentes
totalitárias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após discorrer sobre o discurso eleitoral do candidato e a interpretação que foi dada
pelo Supremo Tribunal Federal em caso submetido à apreciação da casa, entendendo esta, que
não havia no caso, conduta relevante do ponto de vista penal, podemos pelo menos por hora
entender que a liberdade de expressão se mostrou como direito a reclamar maior proteção do
Estado.
Também é possível deduzir que discursos de discriminação proferidos contra uma
minoria e dessa forma não individualmente particularizada não ensejam imputabilidade penal.
Ao tratarmos da democracia en passant no que diz respeito a sua origem também
enfocamos que ela pode ser vista sob dois enfoques diferentes, um legal, como organização
positivada na lei e um outro como espaço efetivo de reivindicações e ambiente fértil para
criação de direitos.
Ainda quando falamos da democracia, pontuamos a visão de Jacques Ranciere quando
considera que na democracia o poder está vazio e que isto se dá pelo fato do legítimo titular
do poder, o povo, não o ocupar a não ser pelos representantes que nem sempre representam
adequadamente seus mandantes.
Finalmente nos reportamos a uma breve análise da intolerância que divide o tecido
social e propicia a reavivação do sonho de retomada do poder, pela classe que se viu despojada
dos seus privilégios em face da implantação do projeto democrático. A afirmação da
existência desse projeto de retomada do poder é enfatizada por Ranciere na sua obra, o ódio à
democracia.
Concluímos então, respondendo a pergunta lançada na introdução deste artigo para
afirmar que a intolerância, jamais será um caminho viável, e mais ainda, que a intolerância
não se coaduna com o regime democrático, pois este pressupõe a convivência harmônica de
diversos segmentos e setores sociais, ainda que distintos na origem e na essência.
Marilena Chauí disserta:

A sociedade democrática institui direitos pela abertura do campo social à


criação de direitos reais, à ampliação de direitos existentes e à criação de
novos direitos. Eis porque podemos afirmar, em primeiro lugar, que a
democracia é a única sociedade e o único regime político que considera o
conflito legítimo. O conflito não é obstáculo; é a construção mesma do
processo democrático (CHAUÍ, 2012, p.152).

Podemos concluir também que nenhum regime que se diga democrático plenamente
se pode tolerar discursos de ódio e de intolerância contra minorias social e economicamente
vulnerabilizadas, apesar de ser da essência da democracia o conflito de ideias.
A democracia ainda que não consiga atender cabalmente a todas as demandas sociais
e mesmo com as crises de representação que as caracterizam desde o seu surgimento, é ainda
o único modelo possível de concretização dos anseios sociais.
Bobbio (2011, p. 19), preferindo falar em transformação ao invés de crise, com o
brilhantismo que lhe é peculiar ensina “A democracia não goza no mundo de ótima saúde,
como de resto jamais gozou no passado, mas não está à beira do túmulo”.
A partir de tudo quanto foi exposto até aqui é possível afirmar que o golpe de faca que
atentou contra o presidenciável, Jair Messias Bolsonaro, simbolicamente representa uma
facada contra a democracia no sentido de tentar retirar desta o que ela tem de mais essencial:
a tolerância resiliente com a diferença.

REFERÊNCIAS

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JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL: desafios e permanências190

Yasmin Costa de
Almeida191
Samuel Pablo Costa de
Almeida192

RESUMO

Este artigo abordou, por intermédio de um levantamento bibliográfico, acontecimentos


históricos que culminaram em uma mudança significativa no contexto democrático, diante a
um processo de tentativas de se estabelecer uma justiça de transição no Brasil. Os fenômenos
políticos que vão de encontro a preceitos constitucionais e a anistia aos envolvidos na Ditadura
Militar sem provocar o mínimo de reflexão sobre as atrocidades cometidas no período
apresentam-se como uma barreira a esse estabelecimento do Estado Democrático de Direito.
Ademais, para uma melhor compreensão desses fatores no cenário atual brasileiro, é preciso
que haja um estudo comparativo com outros sistemas na América Latina, bem como casos
concretos que personificam e impõem desafios e eternizam a tentativa de se estabelecer uma
plena democracia. Nessa perspectiva, este trabalho tem por finalidade resgatar a sucessão dos
eventos históricos que resultaram na construção, após o período de exceção, da justiça de
transição. Os argumentos levantados permitiram concluir que os desafios e permanências da
tentativa de se estabelecer um Estado Democrático são extremamente presentes em nossa
situação atual, (re)significado por quadros históricos, políticos e, evidentemente,
constitucionais.

Palavras-chave: Direitos Humanos. Ditadura Militar. Democracia. América Latina.

INTRODUÇÃO

A Justiça de Transição corresponde às articulações no âmbito jurídico e político para


que se restabeleça, após alguma ruptura com os Direitos Humanos, o Estado Democrático de
Direito, por intermédio de um planejamento estratégico que outorgue à população elementos
fundamentais em uma democracia, tais como a liberdade de expressão, possibilidade de votar
e ser votado e uma justiça idônea que não sistematize a utilização de instrumentos jurídicos
lastreadas em meras ideologias políticas. Dessa maneira, há uma clara associação entre

190
Grupo de trabalho: Direitos Humanos, Democracia e Grupos Vulneráveis.
191
Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Estagiária na Procuradoria Regional da
União 5ª Região. Estagiária no escritório Abreu e Gonçalves Advogados Associados. E-mail:
yasmincosta93@hotmail.com.
192
Graduando em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Estagiário no Memorial do Tribunal
Regional do Trabalho 6° Região. Bolsista do Programa de Educação Tutorial MEC/SESu - Grupo PET Conexões
Gestão Política-Pedagógica (UFPE). Pesquisador do Programa de Iniciação Científica (PIBIC) pelo CNPQ. Foi
Monitor da disciplina de Metodologia e Produção de Textos e atualmente é Monitor da disciplina de História
Antiga do Departamento de História da UFPE. Professor de Língua Inglesa no Curso de Línguas Popular Aberto
à Comunidade (Projeto de Extensão promovido pelo PET GPP). E-mail: samuel.pablo@ufpe.br.
memória, historicidade, sistematização da justiça e resgate dos direitos inalienáveis no
contexto após a Ditadura Militar no Brasil. Nessa perspectiva, por intermetido de um
levantamento bibliográfico com método essencialmente qualitativo, objetiva-se neste trabalho
estabelecer as estruturas que permeiam a tentativa de sair de um período de exceção e se
estabelecer um novo regime, demonstrando que essas ainda se mostram pouco fortalecidas
diante das condições firmemente marcantes entre os anos de 1964 e 1985, o que acaba
dificultando este processo, ilustrado nos contextos políticos, socioeconômicos e legais.
A Constituição Cidadã (1988) desempenhou um papel fundamental na tentativa de
resgatar esses elementos essenciais a um sistema democrático. Contudo, é válido salientar que
ainda se enfrentam inúmeros desafios, inclusive de aplicabilidade constitucional, para que
haja uma justiça de transição de fato e é imprescindível analisarmos como essas barreiras
ainda se apresentam na contemporaneidade, bem como atentarmos para as permanências que
essa tentativa de restabelecimento democrático se apresentam no atual contexto. Ademais,
para este foco da pesquisa, deve-se realizar uma densa revisão de literatura sobre como se
desenvolveu a circunstância que necessitou de uma justiça de transição, acontecimentos
pontuais para entendermos o contexto até culminar na anistia, circunstâncias de transições
ocorridas em outros países e fatores que fogem à constitucionalidade e impõem barreiras para
o estabelecimento de uma democracia razoavelmente plena, a fim de compreender as
estruturas que alimentam esses desafios e como os mesmos se desenvolveram.
Nesse contexto, vale ressaltar as dissimétricas condições para que se firme uma justiça
de transição no Brasil, quando comparado a outros países que também vivenciaram uma
ditadura. O desenvolvimento do arcabouço teórico sobre o assunto é imprescindível, com
ênfase nas problemáticas e desafios para que se estabeleça um estado democrático de direito,
sobretudo destacando as rupturas que contribuem para que haja a edificação desse contexto
desfavorável à tentativa de reestruturação. Dessa forma, impasses como a anistia após a
violação dos direitos humanos e uma construção histórica e historiográfica que ainda pouco
promove a conscientização nos faz atentar para a urgência desta pesquisa, a de promover o
destaque para a interdisciplinaridade entre o âmbito da História e do Direito para uma
compreensão razoável da implementação de um direito à memória e à verdade efetiva após
todo o momento de violação.

DESENVOLVIMENTO

Histórico
Em 1964, conforme aponta Delgado (2009), o então presidente João Goulart foi vítima
de um golpe em um processo que a todo o momento desqualificou o seu governo e sua
trajetória política, com a considerável contribuição da grande imprensa. O autor também
reforça a abordagem da historiografia, comumente voltada a cinco pilares: visão estruturalista
dos motivos que levaram à deposição de Goulart, ênfase nos elementos preventivos do golpe
político, fatores conspiratórios das ações que levaram ao golpe militar, visão de uma
conjuntura (enfatizando a questão da democracia) e novas produções com fontes
diferenciadas. Dessa forma, para entendermos a justiça de transição faz-se necessário
compreender os elementos que envolvem a abordagem sobre a democracia, entendida como
um sistema representativo e dinâmico que exige eleições periódicas, alternância de poder com
a possibilidade de que qualquer cidadão possa votar e ser votado, liberdade de pensamento,
expressão e organização, com respeito às múltiplas significações e instituições inerentes ao
estado democrático de direito (FIGUEIREDO, 1993).
Além disso, é válido salientar que os projetos de reformas promovidos por movimentos
sociais que ocorriam às vésperas do golpe eram imprescindíveis para a “defesa da democracia
econômica e social, com certeza escassa e necessária no Brasil” (DELGADO, 2009). Segundo
Oliveira et al. (2016), em 1° de Abril de 1964 os militares tomaram o poder, sob justificativa
de manutenção da ordem e segurança nacional, desconsiderando a Constituição vigente (1946)
e, portanto, estabelecendo-se um período em que os presidentes governavam por intermédio
de atos constitucionais que permitiam atitudes abusivas que iam de encontro aos direitos
inalienáveis a qualquer ser humano. Ademais, foram outorgados os Atos Institucionais, sendo
o mais rigoroso o AI-5, estabelecido durante o governo de Artur da Costa e Silva em 1968,
que promoveu uma maior censura e violação dos direitos humanos (OLIVEIRA et al., 2016).
Nessa perspectiva, Arns (1988) defende que nesse período foi estabelecido um sistema
de repressão e controle social que banalizou a prisão política, a censura popular e a tortura e,
portanto, rompeu com os preceitos básicos dos direitos humanos. Dessa forma, vale ressaltar
que casos como o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, que foi colocado como suicida
pelo Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa
Interna (DOI-CODI), ilustram o quanto grave é essa ruptura, visto que não foi um
acontecimento isolado e que representam um atentado aos direitos fundamentais. Inclusive,
em 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil por ter
negligenciado na investigação sobre o que de fato ocorreu com o jornalista, reforçando a
gravidade do ocorrido para o contexto de uma justiça de transição.
É válido salientar o governo Médici (1969-1974) que, conforme aponta Oliveira
(2011), foi o período em que mais se teve tortura com o nome do Coronel Brilhante Ustra,
comandante do DOI-Codi de São Paulo e um cruel torturador. Esse momento, também
chamado de anos de chumbo, foi marcado por uma violação física dos cidadãos envolvidos,
sobretudo aqueles ligados aos movimentos sociais de esquerda que iam de encontro com o
regime, que eram interrogados de maneira agressiva sob justificativa, por parte do governo
militar, de ser a única maneira eficiente de combate ao “terrorismo”. Dessa maneira, percebe-
se que a violação dos Direitos Humanos não ficou restrita às questões relativas às censuras,
mas também a repressão em todos os âmbitos e circunstâncias que contrariasse as posições
ideológicas da ditadura implantada no Brasil.
A guerrilha do Araguaia, ocorrida entre 1967 e 1974, é de mister importância ser
estudada para que entendamos um caso concreto de repressão e violação dos Direitos
Humanos durante a ditadura e que reverbera negativamente, diante das atitudes tomadas em
relação ao ocorrido, na justiça de transição. Segundo Justamand (2015), nos estados do Pará,
Maranhão e Tocantins (antes Goiás), o movimento impulsionado pelo Partido Comunista do
Brasil (PCdoB) foi reprimido pelas forças armadas de maneira cruel e violenta, com torturas,
prisões, assassinatos e alguns foram colocados como desaparecidos. Nesse contexto, houve
um extermínio e opressão em massa de ex-estudantes universitários e trabalhadores de
ideologia liberal e até os dias atuais não se tem uma documentação oficial que exponha o que
de fato ocorreu, sendo a maioria considerados desaparecidos políticos e apenas descobertos
no processo de redemocratização, o que gera uma problemática no que se refere à justiça de
transição quando deparada com a lei de anistia com a Comissão Nacional da Verdade (2012).
Por fim, em 1985, com o processo de redemocratização, que conforme aponta Faria
(2015) foi marcado pela lei da anistia, pelos comícios e o Movimento pelas Diretas Já
(ocorrendo apenas eleições diretas em 1989), houve a abertura política de maneira gradual e
lenta, assim como propôs Ernesto Geisel, e, consequentemente, o estabelecimento de uma
justiça que regulamentasse a transição do estado de exceção para uma democracia. Entretanto,
é válido salientar que isso até o presente ano não ocorreu de fato, visto que ainda existem
inúmeras lacunas para o exercício do sistema democrático e barreiras que se fazem presente
para o estabelecimento do mesmo. Dessa forma, há a permanência de estruturas características
de uma sociedade memorialista que ainda não superou os acontecimentos marcantes do
período ditatorial e a transição passa a ser quase uma permanência, posto que ainda não há um
claro posicionamento jurídico, político e social que enfim criminalize aqueles que se
opuseram a democracia e não os que lutaram por ela.

Anistia

A lei da anistia, promulgada em 1979, pelo então presidente João Batista Figueiredo,
reverteu as possíveis sanções àqueles que se envolveram e praticaram algum crime político
durante a ditadura tanto de agentes estatais quanto aos que se opuseram ao regime. Contudo,
há uma grande problematização no que se refere a esse perdão, posto que os Direitos Humanos
foram violados de maneira cruel e não houve a responsabilização dos indivíduos envolvidos,
fazendo com que isso seja aceito de maneira passiva em um país que, teoricamente, aderiu a
responsabilidade de manutenção desses direitos em território nacional, que condena práticas
de escravidão, tortura, genocídio e entre outras práticas que ferem a dignidade humana
(BASTOS, 2008). Nessa perspectiva, a anistia surgiu como um discurso de retomada da
democracia e pacificação por parte dos governantes, colocada a todo o momento como a única
forma segura de transição para o novo regime.
Todavia, é válido salientar que, assim como defende Burke-White (2001), atualmente
a ideia de anistia tem sido bastante presente como instrumento político legal para reconciliação
de conflitos, sendo bastante representativo na comunidade internacional. Ademais, vale
ressaltar que conforme aponta Bastos (2008), após a Revolução de 1930, que culminou no
Golpe de Estado promovido por Getúlio Dornelles Vargas, também houve uma anistia tanto
para crimes militares como também políticos àqueles que se envolveram no movimento. Em
1945, quando anunciadas enfim as eleições presidenciais depois de 15 anos de governo,
também ocorreu algo parecido, foi concedida anistia para os que tivessem cometido crimes
políticos em 1934, já em 1951 foi concedido anistia aos grevistas que haviam sido dispensados
(BASTOS, 2009). Percebe-se, portanto, que ao longo da História recente do Brasil tiveram
vários casos que o perdão das partes envolvidas foi posto, mas quando se trata de uma
Ditadura, com violação evidente dos Direitos Humanos, é preciso que se tenha um olhar mais
atento.

Rupturas de Constitucionalidade

É necessário trazer à baila que apesar da redemocratização ter ocorrido ainda não fora
superado por completo os regimes de outrora, visto que as rupturas constitucionais que vêm
ocorrendo atualmente demonstram, dessa forma, as vicissitudes remanescentes da época
ditatorial. Um caso emblemático que pode representar bem esse contexto foi o do
impeachment da ex- presidenta Dilma Rousseff, porém, para se ter um maior entendimento
dessa situação, é imprescindível conhecer a forma como o instrumento do impeachment é
utilizado na América Latina. De acordo com Cariboni (2007), o impeachment presidencial
surge para “substituir presidentes indesejáveis sem destruir a ordem constitucional”.
Segundo Pérez-Linãn (2009), são três principais hipóteses que podem caracterizar uma
queda presidencial, quais sejam a renúncia antecipada, o juízo político e o golpe legislativo.
Alega que é através de uma grande tensão que acarretará na crise institucional, principalmente
ao se envolver o congresso e o presidente, podendo chegar ao ponto do congresso articular em
favor da remoção do presidente. O respectivo autor salienta a necessidade de se ter uma análise
mais profunda do instrumento do impeachment, de forma a problematizá-lo, visto a maneira
como está sendo utilizado na América Latina, onde se pode observar que , entre os anos de
1985 e 2005, 13 presidentes foram removidos de seus cargos ou forçados a renunciar, o que
somente ratifica o ora exposto.
Ao se analisar o impeachment da ex- presidenta Dilma Rousseff, percebe-se como esse
instrumento foi utilizado de forma leviana, em que ocorreu um julgamento de forma medieval
a uma agente política, totalmente influenciado pelos meios de comunicação e passíveis de
abusos em decorrência dos interesses políticos, o que, de maneira clara, agrava as crises
constitucionais, características que há muito foram apontadas por Brossard (1992).
Nesse ínterim, importante destacar que Dilma Rousseff foi condenada por ter, em tese,
praticado crime de responsabilidade, este regulado pela Lei 1.079/50, e hipótese em que, de
fato, caberia o impeachment. Todavia, as chamadas “pedaladas fiscais”, que foram os atos
cometidos pela ex- presidenta, não se enquadram em crimes de responsabilidade, mas em
crimes contra as finanças públicas, regido pelo Código Penal e leis esparsas, não sento esta
uma hipótese para o impeachment. Sob esse prisma, fica nítido que o que ocorreu foi um
alargamento do conceito do que seria crime de responsabilidade, isso no intuito de atender aos
interesses políticos daquele momento. Porém, tal feito não seria possível, visto que os crimes
de responsabilidade perfazem um rol taxativo, o que causou incontestável insegurança
jurídica, pois o referido instrumento passou a ser utilizado ao bel prazer de quem detêm
influencia no congresso nacional (DALLARI, 2015).
Outro aspecto no caso do impeachment da ex- presidenta que evidencia essa grave
violação à Constituição Nacional foi no âmbito da condenação, visto que teve a pena bipartida,
sendo condenada em uma pena, qual seja a de cassação do mandato, e absorvida na outra, qual
seja a de inabilitação por 8 anos para exercício das funções públicas. Dessa forma, resta
evidente a ruptura constitucional, pois segundo o exposto no artigo 52, parágrafo único, o
Senado Federal tem a competência de condenar nas duas penas supracitadas, e não em votar
separadamente cada uma delas. Imprescindível destacar que a defesa de Dilma recorreu ao
STF requerendo a revisão da decisão, logo, se o instrumento de impeachment fosse
exclusivamente político tal feito não seria possível, sendo, dessa maneira, demonstrado que
se trata de um instrumento político- jurídico, no qual o STF poderá revisar decisões as quais
não estão embasadas juridicamente (NOGUEIRA, 2016).
Necessário ressaltar que o sistema que apresenta a separação das funções de poder,
possui o escopo de operar exatamente em situações como a supramencionada, pois um poder
deve fiscalizar e limitar o outro, o que ficou conhecido como o sistema de freios e contrapesos
(MONTESQUIEU, 1998). Nesse sentido, o Judiciário deveria limitar o Executivo e vice
versa. Contudo, o que se pode observar foi um Executivo totalmente livre para decidir o
referido assunto, com o objetivo de atender a seus interesses exclusivamente, não havendo
nenhuma fiscalização ou limitação por parte dos outros dois poderes, principalmente por parte
do Judiciário, o que caracterizou, diante de todo esse contexto ora exposto, uma grande
violação ao estabelecido na Constituição Nacional.
Ademais, é válido salientar as quebras de constitucionalidade fomentadas por quadros
políticos no cenário atual do Brasil. Nessa perspectiva, é preciso citar um candidato à
presidência para 2019, Jair Bolsonaro, que, conforme aponta Frigo e Dalmolin (2017),
dissemina discursos de ódio, como foi o caso em que para, teoricamente, embasar o
impeachment da presidenta Dilma Rousseff aclamou a memória do Militar Carlos Alberto
Brilhante Ustra, torturador no período da Ditadura Militar. Bolsonaro também pronunciou
frases como: “Não é questão de gênero. Tem que botar quem dê conta do recado. Se botar as
mulheres vou ter que indicar quantos afrodescendentes?” (Câmara Municipal de Pouso Alegre,
2018), “Não vou combater nem discriminar, mas, se eu ver dois homens se beijando na rua, vou
bater” (Em entrevista após FCH pousar com bandeira gay, 2002),“O erro da Ditadura foi torturar
e não matar”(Entrevista à Rádio Pan Jovem, 2016).
Declarou outras frases de caráter misógino, racista e homofóbico, tais como “Fui com
os meus três filhos, o outro foi também, foram quatro. Eu tenho o quinto também, o quinto eu
dei uma fraquejada. Foram quatro homens, a quinta eu dei uma fraquejada e veio mulher”
(Palestra no Clube Hebraica, 2017), "O filho começa a ficar assim meio gayzinho, leva um
coro ele muda o comportamento dele. Tá certo? Já ouvi de alguns aqui, olha, ainda bem que
levei umas palmadas, meu pai me ensinou a ser homem” (Programa do TV Câmara, 2010),
"Eu fui num quilombola em Eldorado Paulista. Olha, o afrodescendente mais leve lá pesava
sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem para procriador ele serve mais. Mais de R$ 1
bilhão por ano é gastado com eles" (Palestra no Clube Hebraica, 2017).
Dessa maneira, percebe-se que o discurso político, como o do presidenciável Jair
Bolsonaro, vai de encontro aos princípios básicos da Constituição (1988) em, por exemplo,
seu Artigo 3°, inciso IV, que configura a obrigação de “promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, Idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Também desrespeita o Artigo 4°, nos incisos II, VI, VII, VIII e IX, aos quais defendem os
direitos humanos, estabelecimento de paz e soluções pacíficas e combate ao racismo. Além
disso, promove a violação de inúmeros outros Artigos da Constituição, elaborada com tanto
esforço após o período de exceção. A figura de Bolsonaro, portanto, não representa apenas
uma ameaça política às minorias, historicamente marginalizadas, com discursos misóginos,
racistas, homofóbicos e machistas, mas ao Estado Democrático de Direito, com a ruptura de
elementos fundamentais nos termos de constitucionalidade.

Justiça Comparada

Para uma maior compressão do processo da justiça de transição no Brasil, os seus


desafios e permanência, é preciso analisar outros contextos na América Latina que
vivenciaram esse processo, com outras significações, sendo algumas destas semelhantes às do
nosso país. Segundo Collins (2013), no Chile houve o estabelecimento de uma tentativa justiça
de transição após a ditadura de Pinochet, entre 1973 e 1990, período em que ocorreram
inúmeras violações dos Direitos Humanos com perseguições políticas, torturas, assassinatos
proporcionados por esse regime cívico-militar. Nesse contexto, os direitos civis e políticos
nesse país foram suspendidos e assim como no Brasil aqueles que cometeram crimes durante
o período de exceção foram perdoados com anistia e com o tempo as ações foram que feriram
aos Direitos Humanos foram negadas e/ou justificadas, conforme o trecho do autor abaixo:

Fue meticulosa en defender la conversión neoliberal de la economía realizada en los


años de dictadura, y se opuso tajantemente a cualquier esfuerzo para reformar las
líneas principales de la Constitución de 1980 –que fue preservada– o para promover
accountability judicial o una condena moral inequívoca a los crímenes cometidos
por el régimen anterior. Éstos fueron reconocidos en um primer momento, a través
de una Comisión de la Verdad, pero en el ámbito de la justicia seguían siendo sujetos
a amnistía. En la medida que avanzaba la transición, las violaciones masivas a los
derechos humanos cometidas en tiempos de dictadura seguían siendo abiertamente
negadas o justificadas por algunos, y empezaron a ser pasadas por alto o consignadas
a un segundo plano por otros (COLLINS, 2013).
Dessa maneira, percebe-se que no Chile ocorreu um processo similar ao do Brasil e
inúmeros teóricos chilenos também questionam se de fato houve uma justiça de transição no
país a exemplo de Catalán, Venenciano e Conzué (2015). As dissimétricas condições entre os
países, no entanto, fazem com que haja uma diversificada compreensão no que se refere ao
processo de transição após o contexto de ditadura e seus elementos, mas é perceptível que
ambos vivenciaram situações que ferem a dignidade humana e têm dificuldades para se
recomporem politicamente e também no âmbito jurídico, visto que muitas de suas estruturas
e ideologias permanecem as mesmas após a tentativa de implantação de um sistema
democrático.
Além disso, vale ressaltar a situação da Argentina foi marcada por períodos interruptos
que os militares assumiram o poder, nos anos de 1930-1932, 1943-1946, 1955-1958 e 1966-
1973, o que reforça o fato de que o país passou por grande instabilidade institucional
(PEREIRA, 2010). Nesse contexto, após esse período o país também tentou estabelecer uma
transição desde o presidente Raul Alfonsín, com a criação de uma comissão da verdade,
supressão do modelo jurídico imposto pelos militares, indenização à família daqueles que
desapareceram durante o regime e, diferentemente dos casos anteriormente citados, a
Argentina, nesse momento, revogou a anistia em favor dos militares pelo Congresso e
estabeleceu a Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas (CONADEP), a fim de
investigar todas as situações de violação dos Direitos Humanos que foram denunciadas.
Todavia, é válido salientar que a CONADEP, tal como ocorreu no Brasil não tinha por
finalidade punir os envolvidos e sim divulgar os relatos do que aconteceu durante a ditadura,
outras leis que posteriormente foram promulgadas, como a Lei n° 23.492 ou Punto Final,
também impedem a sanção dos militares envolvidos (CHEHAB & LOPES, 2014). Percebe-
se, portanto, que apesar da pequena diferença oficial o governo Argentino articulou de maneira
semelhante ao Brasil e a justiça de transição ainda não é tão solida tanto quanto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

À luz do que foi exposto, é imprescindível atentarmos para os desafios e permanências


da justiça de transição no Brasil, salientando os aspectos políticos, indissociáveis os elementos
que envolvem a democracia, que acabam, por meio de certos discursos, fomentando práticas
que vão de encontro à Constituição Cidadã e, portanto, impedem o estabelecimento do Estado
Democrático de Direito. Ademais, percebe-se que o uso generalizado do impeachment como
instrumento parlamentar para retirar governantes popularmente eleitos quando os mesmos
desagradam o congresso é exorbitante, fazendo com que isso seja uma ameaça a estabilidade
jurídica dos países, conforme foram apresentados no contexto da América Latina.
Nessa perspectiva, é igualmente válido ressaltar que nossa tentativa de
estabelecimento democrático é muito recente, a Ditadura Militar se perdurou até 1985, isto é,
desse ano ao de 2018 fazem apenas 33 anos que saímos desse tenebroso passado, o que
configura como um tempo pequeno para uma democracia que caminha a passos lentos. Além
disso, a anistia política após o período de exceção, sem a devida conscientização dos
envolvidos da gravidade para o país do momento supracitado, causou, evidentemente,
impactos negativos no que diz respeito à legitimidade do sistema democrático, viabilizando
que ainda no contexto atual pessoas façam apologia à torturas e ditaduras que ainda
permanecem enraizadas na sociedade atual e deixaram cicatrizes eternizadas.
Portanto, para o estabelecimento de uma justiça de transição de fato, entendemos que
é preciso que haja o respeito às vias institucionais, jurídicas, sociais e política, a fim de que
discursos de caráter totalitários, racistas, homofóbicos e/ou misóginos não sejam propagados
e legitimados. Ademais, vale salientar a importância do respeito à Constituição e todos os seus
trâmites legais nos mais diversos contextos, bem como a formação educacional crítica acerca
de nossa História, lutas, movimentos e minorias sociais que são comumente marginalizadas,
assim como uma maior apropriação dos recursos e efeitos legais em nosso país.

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1992.

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de 2018.
LIBERDADE SINDICAL, DIREITOS HUMANOS E MEMÓRIA: Um Estudo Sobre a
Intervenção do CONSINTRA - Conselho Sindical dos Trabalhadores de Pernambuco.193

Manoel Severino Moraes de Almeida194

RESUMO

O presente artigo pautou-se pela análise da relação entre a liberdade sindical diante de um
regime autoritário e o mundo das relações de trabalho com foco no Direito Sindical e sua
importância para a consolidação dos Direitos Humanos. Enquanto metodologia de pesquisa,
optou-se por um estudo de caso: sobre o Conselho Sindical de Pernambuco, órgão da classe
operária pernambucana, fundado no final da década de 1950 e foi que vítima de intervenção
do Governo ditatorial, a relevância jurídica é está no escopo da teoria da Justiça de Transição,
no sentido de resgatar a memória do movimento sindical pernambucano e os efeitos legais
que ainda transitam para nossa democracia. Busca-se um olhar justrabalhista sem perder a
contribuição da história, antropológica e das ciências sociais para entender o contexto e os
diversos caminhos que levam ao controle sindical ao longo de sua história no Brasil. A análise
indutiva jurídica dos dados associado ao uso do levantamento de fontes primários (prontuários
do DOPS), no acervo do Arquivo Público Jordão Emerenciano de Pernambuco, e análise de
conteúdo dos documentos selecionados e revisão bibliográfica. Permitiram identificar o uso
jurídico da legislação trabalhista que estava em vigência como a própria CLT.

Palavras-chave: Liberdade Sindical. Direitos Humanos. CONSINTRA.

INTRODUÇÃO

Os movimentos libertários, fruto do iluminismo do século XVIII, promoveram uma


larga expectativa por direitos civis e políticos. O campesinato passou a ocupar um novo lugar
na condição de cidadão, sem, contudo, serem garantidos os direitos econômicos, sociais e
culturais. Isto posto, é fácil compreender como a Revolução Industrial marcou profundamente
as relações de produção sem levar em conta o fator humano no processo de acumulação do
capitalismo nascente. É deste processo de ilimitada exploração do homem pelo capital que
nasce a luta da classe operária e nela “as bandeiras mudam de mãos”, como bem frisa Damião
Trindade: “A liberdade conquistada estava quase na medida das suas conivências, isto é,
liberdade econômica para os empresários e liberdade de assalariamento para os trabalhadores”
(TRINDADE, 2002).
A luta sindical passa a ser ampliada em luta política por emancipação de direitos e não
meramente por salários, como fundamenta Everaldo Gaspar Lopes de Andrade (2008) ao

193
GT 5 – Direitos Humanos, Democracia e Grupos Vulneráveis
194
Advogado e Doutorando em Direito. UNICAP. manoel.sma@uol.com.br. Exmembro Titular da Comissão
Nacional de Anistia e da Comissão Estadual da Verdade Dom Helder Camara de Pernambuco. Atual coordenador
da Cátedra de Direitos Humanos da UNICAP
discutir os dois pilares do Direito do Trabalho: as relações individuais e coletivas do trabalho.
É deste mister que se analisa o caráter peculiar do Direito do Trabalho, ao privilegiar
o direito sindical acima do direito individual. Encontra-se, então, o ponto axial que origina o
a relação de proteção ao trabalhador, que é o hipossuficiente na relação jurídica trabalhista.
Os Direitos Sindicais foram amplamente difundidos nos países europeus e seus
pressupostos consolidavam amplas lutas pelo internacionalismo das relações de trabalho e
impulsionavam novos atores nas relações internacionais, que eram os sindicatos legitimados
pela classe operária. Desta luta por direitos que surge a Organização Internacional do Trabalho
[OIT], que tem como marco de sua fundação um mundo pós-primeira Guerra Mundial.
Os países pré-industrializados passaram a buscar novas experiências e parâmetros para
lidar com o fenômeno mais complexo da construção dos grandes centros urbanos e de facilitar
os fluxos exigidos pelo novo capitalismo de mercado. Neste sentido, a OIT teve um papel de
destaque no início do século ao caracterizar suas decisões de uma forma tripartite, respeitando
as representações dos seguimentos dos trabalhadores, empregadores e dos representantes
governamentais.
Outro aspecto fundamental é o reconhecimento, em seus estatutos fundacionais, em
1919, do direito de liberdade sindical para a efetivação dos direitos civis e políticos dos
trabalhadores, sem desvincular dos direitos econômicos, sociais e culturais. Esta relação,
muito clara na proposta de desenvolvimento humano articulada pela OIT, foi a base da
experiência de consolidação da Declaração Universal de Direitos Humanos e dos tratados que
se seguiram na construção de uma Sistema Internacional de Direitos e Garantias à Pessoa
Humana, conforme prevê o artigo 22 de DUDH.
A Declaração de Filadélfia, em 1944, que é declaração dos fins e objetivos da OIT, já
no final da Segunda Guerra Mundial, ressalta o princípio da liberdade sindical, relacionando-
o ao progresso econômico das nações. Destaca-se no seu primeiro inciso, letra b, “a liberdade
de expressão e de associação é uma condição indispensável a um progresso ininterrupto”.
O CONSINTRA -Conselho Sindical de Pernambuco representou o acúmulo dessas
conquistas no panorama internacional e nacional, traduzida em uma experiência política e
sindical única na história do Estado. Seu fechamento é resultado do arbítrio que prendeu
dirigentes e tentou impedir a resistência ao autoritarismo crescente do regime ditatorial de
1964.
Para uma melhor contextualização retomamos os registros da formação do
sindicalismo no país e comprovou-se o papel de destaque do movimento operário cristão e as
primeiras leis que regulamentam as relações de trabalho tiveram como origem asprimeiras
experiência sindicais que surgem no Brasil, em particular, em Pernambuco, bem como,
procurou-se tratar nos tópicos seguintes as intervenções legislativas do regime ditatorial que
reformularam o direito de greve e a criação do FGTS.
E na última parte do artigo tratou-se da repressão efetiva do regime aos sindicalistas,
para este tópico buscamos fontes primárias em documentos que estão colecionados no
prontuário institucional do CONSINTRA além de fontes secundárias como o texto do relatório
da Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Camara.

1 SURGIMENTO DO SINDICALISMO POLÍTICO NO BRASIL

A importância da análise sobre as diversas etapas que o país percorreu sobre o tema
da liberdade sindical contribui na compreensão jurídica, histórica, social e política, e incide
diretamente no contexto de sua aplicação no país (FREDIANI, 2004).
No período monárquico, não há legislação que albergue a liberdade sindical, porque
as relações de trabalho eram escravocratas, o que não permitiria haver instituições sindicais
para este momento histórico.

1.1 O pensamento utópico cristão e as primeiras experiências sindicais

O surgimento das primeiras fábricas em Pernambuco e o desenvolvimento industrial


no Brasil, contou com um forte componente religioso, na medida em que algumas experiências
passaram pela implementação de ideias de desenvolvimento marcadas pelos documentos da
doutrina social da Igreja, defendida pela Encíclica Papal RerumNovarum de 1891.
A Igreja figurava, no início do século XX, como uma das principais forças políticas
capazes de mobilizar grande parte da elite a investir em plataformas produtivas e ao mesmo
tempo assimilar um recrutamento contra anarquistas e comunistas, estes últimos
representavam o pensamento contrário aos “princípios cristãos”. Em 1995, o Engenheiro
Carlos Alberto de Menezes, promoveu, em 1900, o Congresso Católico Brasileiro e sob a
influência de Leão XIII, pugnava pela mutualidade operária, fundando a Corporação Operária
e depois surgiu a Federação Operária Cristã em Pernambuco inspirada em experiências
semelhantes na Europa, precisamente na França, e que para auxílio espiritual dos
trabalhadores é responsável pela vinda da Ordem do Sagrado Coração de Jesus para o Recife.
(COLLIER, 1996, p. 69).
A sua influência destaca-se pela criação do Decreto 979/1903, editado pelo Presidente
Afonso Pena, que disciplinava pela primeira vez no país a criação de “sindicatos profissionais
e sociedades cooperativas”. O projeto é de autoria do deputado Joaquim Inácio Tosta que
recebeu a proposta de legislação pelo criador da Fábrica de Camaragibe, (COLLIER, 1996, p.
130).
Os documentos originais do decreto de 1903 mostram a preocupação em estruturar a
produção agrícola, que passava por uma mudança importante em decorrência da Lei Aurea,
que introduzia o trabalho assalariado em substituição ao trabalho escravo.
O decreto descrevia a forma de distribuição dos créditos a favor dos sócios e o processo
de bonificação e incorporação do capital. A experiência legislativa foi tão exitosa que, em 5
de janeiro de 1907, foi editado o decreto nº 1.637, que cria as sociedades corporativas e
estendeu o direito de associar em sindicatos a todos os profissionais, inclusive liberais. Era
necessário o registro em Cartório para o Sindicato criar personalidade jurídica.
Naturalmente estas primeiras experiências sindicais continuavam retóricas, “somente
para inglês ver”, uma vez que seus membros não tinham proteção legal e nem prerrogativas
justrabalhistas, e nem eram reconhecidos pelos patrões.
Em 9 de janeiro de 1909, eclodia o primeiro e mais significativo movimento de greve
da história do sindicalismo em Pernambuco e no Brasil. Trata-se dos trabalhadores da Great
Western, que apresentaram uma série de reinvindicações salariais, incluindo aumento de 50%
para os trabalhadores que não recebessem mais de 250 mil reis, e 20% para os demais, e dois
dias de folga por mês para os maquinistas, foguistas e condutores, sem prejuízo nos
vencimentos; responsabilidade da companhia pelos acidentes de trabalho; estabilidade no
emprego para os trabalhadores afastados por motivo de saúde; entre outras demandas (AÇÃO
CATÓLICA OPERÁRIA, 1971, p.53).
A resistência e adesão dos trabalhadores à greve foi surpreendente e tomou de surpresa
intelectuais, imprensa e o governo. Diante de várias tratativas foi pactuado judicialmente o
acordo, em que os grevistas conquistaram: “30% de aumento aos empregados com
ordenamentos inferiores a 100 mil réis (e não os 250 mil réis estipulados na representação
operária) e 20% aos empregados com salário superior a 100 mil réis, e 10% ao pessoal
diarista” (AÇÃO CATÓLICA OPERÁRIA, 1971, p.63).
Uma das principais lideranças do movimento foi Manoel do Ó, que, por conta da sua
capacidade de organização dos trabalhadores, passou a ser sistematicamente perseguido.
Muitos dos operários foram demitidos, principalmente aqueles que participaram dos comitês
e organizaram a greve.
[...] Não era fácil vencer Manoel de Ó. Pouco tempo depois da greve, os ingleses
pensaram ter encontrado o motivo para puni-lo. Manoel de Ó desentendera-se com
outro operário, e os dois brigaram. O maquinista tinha razão na desavença, mas foi
a ele que suspenderam. Manoel de Ó, perdeu a paciência: entrou no escritório de seu
Kenley, um inglês, e exigiu o cancelamento da suspensão. Discutiram, quase
brigaram, mas Manoel do Ó conseguiu o que queria. Mais tarde, ainda perseguido,
Manoel do Ó deu o definitivo grito de independência: entrou novamente no
escritório do inglês Kenley, aplicou-lhe exemplar surra e foi embora, procurar outro
emprego. (AÇÃO CATÓLICA OPERÁRIA, 1971, p.64).

Outra característica marcante do nascimento do movimento sindical foi a superação


do colaboracionismo de classe encarada no controle patronal sobre os trabalhadores. Este
processo foi muito bem caracterizado em: “Vapor do Diabo: o trabalhado dos operários do
Açúcar” e “A Tecelagem dos Conflitos de Classe na Cidade das Chaminés”. Ambos os livros
escritos por José Sergio Leite Lopes.
Na abordagem clara e direta dos fenômenos de construção da legitimidade do trabalho
livre subordinado na zona da mata, Leite Lopes apresenta um quadro realista da manutenção
da precarização do trabalho em pleno processo de fortalecimento da mão de obra industrial, o
atraso dessas relações em suas raízes patrimoniais e coronelistas.
O que não será diferente do processo de construção de significados das indústrias
têxteis que buscarão ao máximo controlar a vida do trabalhador, “abastecendo” este de
“direitos” como casa para as famílias dos trabalhadores acesso à saúde e pequenos pedaços de
terra para serem cultivados, mas com o retorno de sua total subordinação ao modelo de
controle que produz padrões e comportamentos morais e políticos.
Nos dois modelos, as relações de dominação e controles dos trabalhadores são
desenvolvidas em um pano de fundo “solidário”, marcado pelo fortalecimento da imagem do
bom patrão, que está a serviço dos trabalhadores e que, com seu enriquecimento, preza pela
qualidade de vida dos operários.
A Igreja, naturalmente, promove o lastro deste regime de colaboração, casando e
batizando os filhos dos operários em capelas destinadas a missa dominical, onde os crentes
encontram conforto espiritual para suas necessidades diárias e o claro foco da teologia
empregada nos sermões é a cooperação entre as classes e o desenvolvimento dos frutos do
progresso, mesmo que este progresso não se refletisse nas melhorias da qualidade de vida dos
trabalhadores e sua autonomia enquanto direito individual e claro da luta por sindicatos livres.
Com o advento da Ação Católica, e suas pastorais organizadas no meio popular e
sindical, como a Ação Católica Operária, a Igreja passa a assumir um lugar crítico a este
sistema e rompe o papel de colaboração, assumindo postura questionadora e articulada com
direitos sociais e a defesa da liberdade sindical. A Juventude Operária Católica [JOC] e a ACO
passam a ser novos protagonistas da luta por emancipação política e na disputa pela
hegemonia sindical.

1.2 O surgimento da crítica anarquista e comunista

As correntes anarquistas e comunistas passam a ocupar um lugar central na vida e nas


conquistas dos trabalhadores na medida em que seu pensamento ganha força nas primeiras
organizações sindicais e com isso passam a liderar os primeiros movimentos grevistas da
história da classe trabalhadora no Brasil.
As bases desse processo de fortalecimento do pensamento anarquista estão na própria
crítica social do modelo focado na colaboração de classe e de um profundo controle estatal do
aparato político laboral, ou mesmo da inexistência deste. É conhecido o processo pelo qual os
primeiros escritos e líderes anarquistas chegaram ao Brasil através da imigração de grandes
contingentes de europeus.
O que não impediu que rapidamente se desenvolvessem jornais e escritos anarquistas
locais, focando a necessidade de romper a lógica da casa grande e modernizar as relações de
produção e políticas, por meio de processos coletivos e de tomada cada vez maior das novas
agendas sindicais.
Os sindicalistas comunistas, posteriormente, serão a liderança do movimento sindical
graças a sua capacidade de articular-se com os movimentos emancipatórios e de sua
capacidade de desenvolver uma unidade política através do Partido Comunista Brasileiro, que
consegue criar controles eficientes de grandes sindicatos, ao mesmo tempo em que consegue
adesões importantes no mundo intelectual nas diversas áreas da sociedade urbana.
A ruptura das duas correntes não poderia ter se dado da pior forma: o modelo político
do Partido Comunista, em sua vinculação e defesa irrestrita do modelo da União Soviética,
promoveu o desgaste.
No plano internacional, os esforços de organizar duas internacionais não foram
suficientes para construir um denominador comum, a primeira em (1864 – 1873) – onde os
debates mais teóricos se deram sobre os fundamentos e a teoria da prática política dos dois
pensamentos (Anarco-sindicalismo e o Comunistas), entrando em colisão, e no Congresso de
Londres 1896 as diferenças ficaram mais claras em relação a necessidade ou não da
institucionalização no parlamento burguês e da necessidade de partidos e de métodos
centralizadores.
No campo político interno, partiu-se para acusações mutuas de denúncias de traição
feitas pelos anarquistas contra Astrogildo Pereira e Otávio Brandão (ambos do PCB), entre
outros, que marcaram concretamente o distanciamento dos grupos e seu confronto político
direto (CARONE, 1989, p. 104).
Os dois grupos, naturalmente, aprofundam um entendimento comum da defesa da
liberdade sindical como sendo o sindicato um ator político capaz de desempenhar um
protagonismo social e de fortalecimento das lutas por melhores condições sociais.
A divergência nascia no fortalecimento da via institucional parlamentar, considerada
uma forma de negociação de princípios e que negaria a luta de classes por propor um modelo
conciliador. Em relação a URSS, o tema era a efetivação do partido único, que tolhia as demais
manifestações políticas e suas legítimas bandeiras de se expressar.
Para Edgard Leuenroth, oideal anarquista é a “negação de todo princípio de
autoridade” e seria impensável desejar que depois de uma ditadura do capitalismo tivéssemos
uma ditadura do proletariado (CARONE, 1989, p. 106).
O trabalhismo passa a ser uma via de mão dupla e o equilíbrio político do Estado Novo
consegue articular todas as demais correntes em um processo de construção da Consolidação
das Leis do Trabalho [CLT], este marco justrabalhista de negociação e de direitos sindicais,
que transforma os sindicatos em grandes máquinas políticas e extensões do aparato Estatal.

1.3 A liberdade sindical sob tutela: a obrigatoriedade do registro e a colaboração


consentida na “solidariedade social”

Mas é na década de 1930 que o Brasil passa por profundas transformações sociais e
culturais com a migração de grandes massas populacionais das zonas rurais para os centros
urbanos das capitais, promovendo dessa forma uma nova geografia humana nacional. E destes
centros vai surgir um país que busca se industrializar e se modernizar nos escombros da crise
de 1929.
É neste contexto que, de 1930 a 1945, é instituído o sindicato único e corporativo; a
chamada segunda república (1934-1937) é a primeira experiência de pluralidade sindical e
autonomia sindical, um período breve, porque logo ele é sucedido pela ditadura do Estado
Novo, que retoma o sindicato único e o regime corporativista (FREDIANI, 2004).
A respeito desta temática, Andrade (2011) demonstra o processo de transformação do
sindicalismo revolucionário, pautado na construção ideológica de novas fronteiras políticas e
sociais, para se tornar uma agência do Estado Novo.
Destaca-se, para este estudo, a necessidade de buscarmos os artigos da Consolidação
das Leis Trabalhistas para a completa compreensão desse modelo de profissionalização e
controle sindical.
No Artigo 513, é possível observar o caráter ideológico do regime ao caracterizar o
papel esperado para o sindicato legalizado, como podemos observar no item “d”, em negrito:
“d) colaborar com o Estado, como órgãos técnicos e consultivos, na estudo e solução dos
problemas que se relacionam com a respectiva categoria ou profissão liberal” (BRASIL,
2018).
A contribuição sindical é também imposta como fundamento ao financiamento do
novo aparato sindical ligado aos grupos políticos que integram o regime e que, naturalmente,
vão ampliar sua capacidade de mobilizar grandes massas de trabalhadores nas campanhas
salariais e nos dissídios coletivos, previstos sua legitimidade no item “b”.
No Artigo 514, pode-se encontrar “in verbis”: “a) colaborar com os poderes públicos
no desenvolvimento da solidariedade social” (BRASIL, 2018).
No item “a”, reforça-se o caráter colaboracionista do sindicato e sua nova missão de
lutar por “solidariedade social”, serviços assistenciais e espaços de apoio ao trabalhador e até
de natureza educacional.
O processo de construção dos sindicatos dependia da organização de uma associação
– conhecida como organização pré-sindical – e de solicitar ao Ministério do Trabalho o direito
de transformá-lo em sindicato, o resultado, quando aprovado, era a “carta de reconhecimento”
(ANDRADE, 2011, p.110).
A certidão emitida pelo Ministério do Trabalho seria formulada no momento em que
a entidade apresentasse os documentos previstos no Artigo 518, como destaca-se o item “c”:
“a afirmação de que a associação agirá como órgão de colaboração com os poderes públicos
e as demais associações no sentido da solidariedade social e da subordinação dos interesses
econômicos ou profissionais ao interesse nacional” (BRASIL, 2018).
Os sindicatos tutelados eram necessariamente agentes da “ordem” e necessariamente
deveriam cumprir seu legado formal, em uma moral em que inexiste o enfrentamento a
qualquer ideia de conflito de classe. Esta situação elevou os órgãos sindicais a um processo
de monitoramento e fiscalização das atividades dos seus dirigentes que não deveriam
desempenhar atividade partidária dentro dos sindicatos e nem demonstrar em suas sedes e
instalações qualquer forma de manifestação relacionada aos partidos políticos. Como se
destaca no Art. 521, itens “d” e “e”: “proibição de quaisquer atividades não compreendidas
nas finalidades mencionadas no art. 511, inclusive as de caráter político-partidário; (Incluída
pelo Decreto-lei nº 9.502, de 23.7.1946); e) proibição de cessão gratuita ou remunerada da
respectiva sede a entidade de índole político-partidária. (Incluída pelo Decreto-lei nº 9.502,
de 23.7.1946”
A tutela e fiscalização eram presentes sistematicamente como demostra Andrade
(2011, p. 110), onde até as eleições precisavam ser monitoradas por funcionários do parquet
trabalhista com amplos poderes para determinação de quem comporia as mesas coletoras dos
votos para apuração. (Art. 522, §3º).
E, caso o sindicato não respondesse ao “controle” desejado, ao legado de
“desenvolvimento nacional”, ou pregasse outra ideologia que afetassem as “instituições”,
destaca Andrade (2011, p.110) era cabido aplicação multas, e demais penalidades previstas
nos Artigo 523,§ 2º:

Art. 553 - As infrações ao disposto neste Capítulo serão punidas, segundo o seu
caráter e a sua gravidade, com as seguintes penalidades: a) multa de Cr$ 100 (cem
cruzeiros) e 5.000 (cinco mil cruzeiros), dobrada na reincidência; b) suspensão de
diretores por prazo não superior a 30 (trinta) dias; c) destituição de diretores ou de
membros de conselho; d) fechamento de Sindicato, Federação ou Confederação por
prazo nunca superior a 6 (seis) meses; e) cassação da carta de reconhecimento. e)
cassação da carta de filiação; [...] § 2º - Poderá o Ministro do Trabalho e Previdência
Social determinar o afastamento preventivo de cargo ou representação sindicais de
seus exercentes, com fundamento em elementos constantes de denúncia formalizada
que constituam indício veemente ou início de prova bastante do fato e da autoria
denunciados.Incluído pelo Decreto-lei nº 925, de 10.10.1969 (BRASIL, 2018).

Na Constituição de 1946 até 1964 não houve grandes alterações na legislação sindical,
apenas se consolidou o imposto sindical. Com o Golpe Civil-Militar, o regime passou a
perseguir, intervir diretamente nos sindicatos e naturalmente editar normas como a Lei de
Greve que praticamente impedia o trabalhador de participar de atividades paredistas,
(FREDIANI, 2004).
É com a retomada da democracia, com a promulgação da Constituição de 1988, que
se retomou a o princípio da liberdade sindical e o respeito a suas prerrogativas mais
elementares, mas ainda preservando o registro e a unicidade sindical.

2 As relações de trabalho sob intervenção civil-militar

A Consolidação das Leis Trabalhistas foi pavimentada como resultado de lutas


políticas e econômicas que buscam tutelar o sindicalismo. Este controle foi rapidamente
assimilado pelos conspiradores do Golpe Civil-Militar de 1964, uma vez que sua estrutura
legal era totalmente compatível com o regime autoritário, posto que se originou em outra
ditadura.
Era necessário por outro lado, garrotear os polos de resistência no campo e na cidade
que poderiam se levantar contra o regime. E com isso desestimular os trabalhadores de
colaborarem com o novo sistema político. Os pontos de inflexão para esta conquista eram,
naturalmente, o controle das greves, considerando que são elementos anteriores aos sindicatos
e pontos de desestabilização política, e, por outro lado, a política econômica.

2.1 Os atos e legislação de execução: Lei 4.330/1964 o direito de greve na ditadura

Com a Lei de Greve, sancionada em 1 de junho de 1964, ou seja dois meses depois do
Golpe Civil-Militar, buscava-se regulamentar o Art. 158 da Constituição de 1946, onde
buscou-se fixar os limites da atividade sindical e a liberdade sindical, impondo uma série de
procedimentos, prazos e formalidades que praticamente inviabilizava a própria ideia de greve,
como podemos observar no Art. 2º:

Art. 2º Considerar-se-á exercício legislativo da greve a suspensão coletiva e


temporária da prestação de serviços a empregador, por deliberação da assembleia
geral de entidade sindical representativa da categoria profissional interessada na
melhoria ou manutenção das condições de trabalho vigentes na empresa ou
empresas correspondentes à categoria, total ou parcialmente, com a indicação prévia
e por escrito das reivindicações formuladas pelos empregados, na forma e de acordo
com as disposições previstas nesta lei. (BRASIL, LEI DE GREVE, 2018).

A greve, para ser legal, precisaria cumprir um ritual deliberativo em que demonstrasse
aprovação da maioria de dois terços em primeiro turno e um terço no segundo turno da
assembleia, devidamente convocada com 10 dias de antecedência e com pauta previamente
divulgada por editais divulgados na imprensa. (MARTINS, 118).
Os votos eram colhidos secretamente e seus resultados levados ao empregador que
tinha o prazo de 5 dias para buscar um entendimento e fim do conflito. A Delegacia Regional
do Trabalho e o Departamento Nacional do Trabalho eram acionados e buscarão fazer a
conciliação.
A greve será ilegal na medida em que ferir um dos dispositivos previstos no Art. 22:
“III - Se deflagrada por motivos políticos, partidários, religiosos, sociais, de apoio ou
solidariedade, sem quaisquer reivindicações que interessem, direta ou legitimamente, à
categoria profissional” (BRASIL, 2018).
A ideia do regime autoritário era clara em buscar limitar ao máximo o direito de greve
para impedir a sua capacidade de mobilização e contestação das políticas econômicas, sociais
e, claro, da suspensão dos direitos civis e políticos. Vetava-se, assim, expressamente, qualquer
ato de solidariedade de uma categoria a uma outra categoria, em função da preocupação de
uma greve geral.
O próprio quórum foi uma ideia de impedir que uma “minoria” controlasse a entidade
e dela “tirasse proveito pessoal”. O resultado segundo Martins (1979, p. 125) foi alcançado e
a redução do número de greves foi determinante para a política de adesão e propaganda do
Estado ao modelo de sociedade fundamentado na Doutrina da Segurança Nacional.

2.2 O controle dos trabalhadores e o fim da estabilidade no emprego e o FGTS

A Lei da Estabilidade nº 62/1935 representa um marco importante na medida em que


sua conquista da Estabilidade após 10 anos de trabalho produzia efeitos indenizatórios que
elevavam muito o custo de sua dispensa, e com isso o trabalhador ganhava autonomia perante
o capital e as relações de trabalho nas fábricas e na indústria de uma forma geral.
Este instituto por sua vez era bastante sabotado pelos patrões, uma vez que demissões
eram provocas para que o trabalhador não alcançasse tal direito social. Existem estatísticas
que apontam que a estabilidade conseguiu alcançar 15% da força de trabalho e consolidou um
contingente de trabalhadores estável e diminuía a rotatividade fortalecendo as ações coletivas
de classe através dos sindicatos, (VALERIANO, 2018).
A legislação da estabilidade criou às Caixas de Aposentadoria e Pensão, em que os
patrões tinham a responsabilidade de depositar obrigatoriamente os valores previdenciários
com vistas a garantir o pagamento das indenizações. Não é preciso gastar muita tinta para
demonstrar que estes fundos passaram a gerir grandes quantidades de recursos, que logo serão
disputados pelas empresas e, no fim, pelo próprio Estado.
A Estabilidade está prevista na CLT no Título IV – Do Contrato Individual do
Trabalho, tendo sido estendida para os trabalhadores rurais em 1946, através da Constituição
de 1946, mas nunca alcançaria os trabalhadores domésticos.
Na prática, a estabilidade representava uma indenização diferenciada quando o
trabalhador era demitido sem justa causa. Já o mesmo caso, se fosse aplicada para um
trabalhador sem estabilidade, ele receberia um salário mensal, tendo como base o maior salário
recebido, por ano de serviço, o que representava uma diferença enorme para o efeito do cálculo
do estável que contava com os valores dobrados.
Naturalmente que a conquista da estabilidade representava por parte do operário uma
luta cotidiana para não ser demitido, uma vez que o instituto da justa causa era permeado por
generalidades que faziam com que os trabalhadores sofressem todos os tipos de assédio para
suportar a conquista deste direito.
Analisando do ponto de vista dos efeitos práticos, a estabilidade, enquanto instituto,
foi uma conquista do ápice da luta sindical acumulada na CLT, que representou em ganhos
concretos na luta de classe no Brasil.
Diante disso, o regime autoritário passa a ser instrumentalizado pelos grandes
interesses industriais para acabar com a estabilidade, e, claro, desenvolver por outro lado uma
percepção de mobilidade que produzia uma importante percepção de pleno emprego.
Mas não se poderia acabar um direito tão significativo sem algo que fosse apresentado
como uma solução e substituição na política econômica da ditadura. É neste sentido que é
estudado e estruturado o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS.
Mesmo com grande oposição dos principais sindicatos e movimentos dos
trabalhadores, o pano de fundo do regime Civil-Militar estava dado e com ele os sindicatos já
não contavam com a força política do regime democrático. Grande parte dos sindicatos já
estava sob intervenção e a esta altura sua base política de manobra era bem rebaixada.
Mesmo com a fragilidade representativa os ganhos da estabilidade eram tão
significativos que o Congresso Nacional, por força da oposição do MDB, conseguiu aprovar
um segundo anteprojeto prevendo a “opção” pelo regime. Este “ganho” político, poderia ser
uma conquista passou na prática a representar apenas mais uma medida pirotécnica de se
apresentar o regime como se fosse democrático.
A “opção” logo se tornou um verdadeiro mecanismo de monitoramento ideológico dos
trabalhadores e de clara ferramenta de cooptação dos empregadores. Uma vez que o
trabalhador que não aderisse ao regime do FGTS era levado limite das perseguições e
humilhações, a fim de pedir demissão e ser posto para fora.
A outra face do modelo econômico da ditadura era o uso do FGTS para construir
fundos e políticas de habitação que vão permitir a expansão do acesso a casa própria e o
aquecimento da construção civil, e o financiador das empresas privadas, como destaca
Valeriano (2014):
É importante perceber que o FGTS contém dois lados igualmente importantes e
complementares. De um lado, suprime na prática o instituto da estabilidade,
interferindo na relação de contratação da força de trabalho. Outro lado do FGTS,
que não pode deixar de ser abordado, é a conversão da indenização pela demissão
do trabalhador em um fundo financeiro vinculado ao Sistema Financeiro de
Habitação.

O projeto econômico da ditadura estava concluído, ou seja, sacrificar uma geração


inteira de trabalhadores para consolidar o milagre brasileiro às custas da perda de direitos
trabalhistas, com a roupagem de sustentabilidade social e política do futuro do Brasil. Na
verdade o que se operou foi o aumento do arrocho salarial, sob a desculpa de controle
inflacionário. Os industriais recorrem naturalmente ao recurso da demissão em massa para
garantir a rotatividade da força de trabalho e pressionar os trabalhadores para o aumento da
produtividade e, claro, dos seus lucros. E como destaca Valeriano, o governo ditatorial
prescindiu de campanhas publicitárias para que sua adesão fosse vista como uma garantia e
não uma perda política e econômica.

3 Monitoramento, prisões e intervenções nos sindicados em Pernambuco

O Golpe Civil-Militar, representou, em Pernambuco, mais um capítulo de


perseguições, medo e repressão à liberdade sindical. As intervenções foram fundamentadas
naturalmente na aplicação de uma hermenêutica jurídica autoritária que criminalizava os
trabalhadores e os acusava de ter em suas instituições sindicais desvios da finalidade legal e
de serem contrárias à Lei de Segurança Nacional e, naturalmente, à Constituição Federal.
O conteúdo ideológico contra os comunistas anulavam todas as formas de críticas ao
regime, e quando surgiam movimentos de contestação eram acusados de subversivos, mas era
necessário atribuir um caráter formal às intervenções sindicais, levantou-se fraudes, acusando
os sindicatos rurais muitas vezes como entidades fantasmas, questionando e pondo em dúvida
os seus associados e suas atividades. (MARTINS, 1979, p. 101).
Segundo dados publicados por Heloisa Martins (1979, 100), o maior número de
intervenções entre 1964 e 1965 foi no Nordeste com 42,32%, sendo seguido pelo Sudeste 39,
55%, destaca ainda que entre estas duas regiões encontram-se respectivamente os dois estados
com maior índice de intervenções: foram Pernambuco (23,25%) e São Paulo (22,99%).
O objetivo de fachada era cooptar o sindicalismo para as ideais do “trabalhismo”,
considerando que estas instituições teriam sido desviadas de sua finalidade por conta da
infiltração comunista nas entidades de classe. Uma outra forma de legitimar a nomeação de
interventores se dava pelo discurso de que parte ou a totalidade dos diretores teriam fugido,
teriam buscado asilo ou estavam presos em função de responderem processos de natureza
criminal (MARTINS, 1979, p. 101).
As Juntas eram, em sua maioria, formadas por pessoas da mesma classe funcional e
representavam o controle definitivo sobre os sindicatos, agora fundamentado em “provas”
coletadas por inquéritos e investigações que demonstravam a vinculação destes e seus
dirigentes a organismos de esquerda, com articulações contra o regime, e de defenderem um
sistema político contrário “às tradições do povo brasileiro”. (MARTINS, 1979, p. 101).
3.1 O prontuário do CONSINTRA

O Golpe Civil-Militar de 1964 caracterizou-se de forma diferente nos diversos Estados


Federados. Em Pernambuco existia uma realidade política bastante intensa, diante da própria
formação da elite pernambucana, que conseguiu consolidar uma aristocracia da cana-de-
açúcar, em certos casos muito ilustrada e preparada para assumir o controle do Estado que
sempre esteve ao seu dispor.
As novas áreas urbanas e o desenvolvimento das primeiras Greves no Brasil se deram
em Pernambuco, como já tratamos anteriormente e buscava-se controlar os sindicatos através
da Delegacia de Ordem Política e Social – [DOPS]. Havia uma forte ligação entre a produção
de informação e o monitoramento dos sindicatos.
Na prática, o DOPS organizava prontuários pessoais e institucionais sobre pessoas
relevantes e naturalmente sobre instituições que fossem representativas, justificando uma
seleção de textos, fotos e informações colhidas por infiltrações, recortes de jornais e outros
meios, como a tortura, para obter os dados necessários para a catalogação das suspeitas de
subversão. E, no caso das relações trabalhistas, o legado autoritário na CLT e nas leis
aprovadas pela ditadura consolidava uma cortina que encobria os danos da falta de liberdade
sindical.
O Conselho Sindical de Pernambuco195 era uma entidade fundada em 1958, tendo sido
produto do Pacto de Unidade Sindical, resultado do Congresso dos Trabalhadores do Norte e
do Nordeste, congregando 35 entidades sindicais de Pernambuco. Conforme podemos ver nos
seus estatutos, a entidade estava amplamente fundamentada na legislação da época e buscava
legitimar-se institucionalmente.
Naturalmente, a sua composição (líderes ligados a Arraes) e seu desemprenho no
processo de Greves de 1961 até 1963, com o desfecho do conhecido “Acordo do Campo”,
fortaleceu a entidade no sentido de ser um ponto de partida para a unidade sindical e
importante polo de resistência ao Golpe de Estado.
Em seu primeiro item, ficou estabelecido um reajuste de 80% para todos os
assalariados agrícolas, a partir de 1º de dezembro; dentro de 60 dias, todos deveriam ter sua

195
O CONSINTRA foi instalado em 22 de outubro de 1953 (sucessor da União Geral dos Trabalhadores de
Pernambuco), voltada para as reivindicações básicas dos trabalhadores. A partir dessa entidade sindical,
originou-se o núcleo local do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), que passou a acompanhar e dar apoio
aos diversos movimentos reivindicatórios e grevistas surgidos no período. IPM do CONSINTRA após o golpe
civil-militar: Cícero Targino Dantas; Gilberto Azevedo; José Raymundo da Silva; João Barbosa de Vasconcelos;
Hercílio Sergio de Melo; Moacir Côrtes; e Agenor Candido Duarte.
situação regularizada com a assinatura das carteiras de trabalho; as empresas fariam o
desconto das contribuições sindicais, o que em muito contribuiria para o desenvolvimento do
sindicalismo rural. Um grande passo foi dado ao se estabelecer que, em cada engenho, haveria
um delegado sindical eleito por dois anos, criando-se, assim, oficialmente, um instrumento
efetivo para fazer a ligação sindicato/base e facilitar o cumprimento da legislação. Existia,
ainda, a proposta de formação de uma comissão para promover a interiorização da Previdência
Social, da Assistência Médica e da Assistência Escolar. A Tabela de Tarefas, já firmada
anteriormente, foi mantida, e ainda havia cláusulas relativas ao pagamento do 13º salário, bem
como dos dias parados. Ficou acordada, ainda, a não punição aos grevistas (ABREU E LIMA,
2003, p.83).
No seu prontuário196, pode-se encontrar o documento: “Aos Trabalhadores e Ao
Povo”197, em que o CONSINTRA registra uma gama importante de informações que
caracterizavam a luta sindical da época. Destaca-se uma total articulação entre a Central Geral
dos Trabalhadores [CGT]; a União dos Estudantes [UNE]; o Movimento Nacional dos
Sargentos e o Movimento Camponês, para impedir a deposição de João Goulart, em agosto
de 1961.
Em decorrência desta mobilização, vários de seus dirigentes foram presos e tiveram as
suas vidas profissionais e pessoais monitoradas por prontuários pessoais, que foram
naturalmente inseridos em uma investigação em rede para configurar subversão, uso dos
sindicatos para instruir doutrina política do Partido Comunista Brasileiro [PCB]. Segundo o
relatório da Comissão da Verdade:

O movimento contou com grande apoio popular e de modo especial do Conselho


Sindical dos Trabalhadores de Pernambuco (Consintra), que contava,
hegemonicamente, nas entidades do Conselho e na sua Direção com os comunistas
filiados ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). As consequências desse episódio
possibilitaram a ocupação da Faculdade de Direito, seguida de uma intervenção
militar ordenada pelo presidente Jânio Quadros em 7 de junho de 1961;o prédio da
faculdade cercado com tanques e metralhadoras com o objetivo de intimidar os
estudantes que se encontravam no seu interior, seguida de invasão com carros de
combate sobre as escadarias da faculdade. (COELHO, et al. p. 223-224. Volume II.
2018).

196
Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano (APEJE): DOPS – PE, nº 3 Fundo 3893. Prontuário - Conselho
Sindical dos Trabalhadores (CONSINTRA).Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DOPS) -
Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco (SSP-PE). Contém: Estatuto do Conselho Consultivo datado de
18/6/1953; encerramento de suas atividades em 31/5/1961; vários recortes de jornais; Ofício nº 554 de 29/3/1965,
sobre inquérito policial “onde ficou retratada a atividade de comunistas através do CONSINTRA”, assinado por
Álvaro da Costa Lima; distribuição de livros e folhetos anti-comunistas; fotografias; manuscritos; relação de
órgãos filiados ao CONSINTRA.
197
Idem.
3.2 A perseguição aos sindicalistas e a retaliação golpista

No documento Ofício nº 554198, do delegado Álvaro Gonçalves da Costa Lima, é


possível destacar esta fixação, de que os Comunistas sempre estiveram na cena política
pernambucana, mesmo na ilegalidade do partido.
O documento registra o conteúdo doutrinário oriundo da guerra fria, em que o mundo
estava dividido em dois polos: os comunistas e os capitalistas. O sistema de informação do
Estado através do DOPS era acionado para identificar o perigo “comunista” nos sindicatos e
apontar os agentes e meios materiais para seu enfrentamento. Uma das acusações mais comuns
e destacadas no texto é a tese que o Brasil poderia ser tutelado por Moscou. A própria criação
do CONSINTRA, segundo o Delegado Álvaro da Costa Lima, era para projetar este objetivo
entre os brasileiros e, claro, os pernambucanos.
O meio de prova para demonstrar o “aparelhamento” do CONSINTRA, segundo o
relato do delegado, foi ter encontrado na sede do PCB um “farto material” contendo biografias
de vários comunistas, fotos de Moscou e de manifestações do Partido Soviético que estão até
hoje no Prontuário.
Nomes como Cícero Targino, Gregório Bezerra, Ivo Carneiro Valença, Miguel Batista,
entre outros, foram amplamente fichados e destacados como subversivos perigosos e que
apresentavam uma infiltração aos sindicatos do campo e da cidade.
É importante destacar no relato do agente os crimes cometidos pelos “subversivos” e
entre eles os direitos sindicais: “o CONSINTRA feria frontalmente a legislação do trabalho,
tornando-se um órgão de agitação da classe trabalhadora” (p. 3).
No prontuário do CONSINTRA, é possível encontrar vários documentos de outras
categorias, mostrando o vigor sindical pré-golpe, e a defesa do sindicalismo livre, autônomo
e independente, conforme documento: “O Comerciário”.
O já referido documento, destaca um panfleto que se tornou meio de prova material da
ação do CONSINTRA mobilizando a população contra o Golpe em curso de 1964. Conforme
podemos verificar no próprio registro do Relatório da Comissão da Verdade:

O Consintra sofreu punição através da prisão de alguns dos dirigentes presos e


levados para o presídio da ilha de Fernando de Noronha. Posteriormente, com a
renúncia de Jânio Quadros em 24 de agosto desse mesmo ano, ocorrem
significativas mobilizações dos estudantes e operários através das entidades
estudantis, União dos Estudantes de Pernambuco (UEP), sob a presidência de
Fernando Teixeira. [...]O Conselho Sindical dos Trabalhadores de Pernambuco

198
Cf.: Prontuário - Conselho Sindical dos Trabalhadores (CONSINTRA).
(Consintra), através do seu diretor-presidente, o bancário Gilberto Azevedo, se
antecipa aos acontecimentos, lançam no dia 26 de agosto um manifesto intitulado
“Às Autoridades e Parlamentares, aos Trabalhadores e Estudantes, e ao Povo em
Geral” convocando a população para barrar o golpe e garantir a posse do vice-
presidente João Goulart. As consequências advindas desse movimento levaram às
prisões o dirigente do PCB David Capistrano, do portuário Cícero Targino e do
bancário Gilberto Azevedo, entre outros; todos levados para o presídio da ilha de
Fernando de Noronha. (Coelho, et al, 223-224. Volume II. 2018.)

3.3 O sindicalismo de fantoche

No relatório de atividades sobre o CONSINTRA199 (pag.7) encontra-se o desfecho


final do processo de intervenção da liberdade sindical. Presos seus principais dirigentes, os
organismos de repressão com o auxílio da Delegacia Regional do Trabalho, encaminham
assembleia com “novos” e “antigos” associados ao CONSINTRA e passam a alterar seus
estatutos em uma manobra inútil e de mera perfumaria para encerrar as atividades de uma das
mais significativas entidades da luta operária de Pernambuco.
Entre os envolvidos para o seu “realinhamento” e “blindagem” anti-comunista havia
“dirigentes” de outros sindicatos, que passaram a colaborar e membros da câmara de
vereadores e da Assembleia Legislativa de Pernambuco.
Escolhidos entre eles a nova diretoria, que agora passará a compor um quadro que será
marcado pelo fim da instituição e de sua legitimidade política e sindical. O legado de uma
experiência sindical marcada pela solidariedade dos trabalhadores e suas bandeiras,
permanecem também, sobretudo, ao modelo revolucionário em que os sindicatos constituíam
um elo de emancipação da luta de classes no Brasil e no Mundo.
Mesmo esmagado e seus dirigentes presos o seu depoimento de resistência e coerência
na defesa das prerrogativas sindicais demonstram o vigor político e ideológico destas
instituições que conseguiram por conta disso transpor o silêncio do medo e que o presente
trabalho busca resgatar, mas que nada seria possível sem o fato inequívoco que em
Pernambuco estudantes, trabalhadores do campo e da cidade se uniram para defender direitos
coletivos além de uma pauta salarial e com isso despertaram o pavor aos poderosos e donos
do capital.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo apontou nos direitos trabalhistas os direitos que são fruto
dasrelações do trabalho livre subordinado. Demonstrou-se que o internacionalismo operário

199
Cf. : Prontuário - Conselho Sindical dos Trabalhadores (CONSINTRA).
foi o alicerce das conquistas da classe trabalhadora em nosso país e que não diferente dos
outros países o fenômeno jurídico justrabalhista é resultado da concretização das lutas
sindicais em aliança ao conjunto da sociedade.
Este processo de alavancagem da participação política é estruturante da qualidade
social da democracia, que coloca naturalmente em desequilíbrio o lucro de poucos em relação
a exploração de muitos. É deste desequilíbrio que se alimentaram as ditaduras na América
Latina.
O sindicalismo revolucionário pernambucano sofreu por ter já de suas raízes a origem
a contestação da senzala, na luta contra as oligarquias da “Casa Grande” e herdeira dos
grêmios abolicionistas. O caráter patriarcal que regeu os primeiros passos da indústria
pernambucana também pautou o colaboracionismo entre “cristão”, para opor a ameaça
comunista. Esta fase e pensamento só foi contestado quando a filosofia humanística cristã
progressista alcança parte da elite industrial representada pelas ideias de modernização e
transformação das relações pré-capitalistas para o modelo fabril, e bem especificamente em
setores da indústria têxtil.
As leis trabalhistas assumem uma capacidade decisiva de legitimidade política do
controle sindical, subordinando a institucionalização dos sindicatos ao reconhecimento do
Ministério do Trabalho e expedição de carta de reconhecimento.
A síntese que podemos chegar nesta pesquisa exploratória e inicial do tema é assegurar
que os mesmos interesses que impediram uma efetiva liberdade sindical no Brasil regeram o
Golpe Civil-Militar de 1964, atropelando conquistas e suprimindo direitos que representaram
o sacrifício da perda da estabilidade e uma grande massa de trabalhadores desempregados em
função do artificial milagre brasileiro.
Os direitos humanos e os direitos trabalhistas caracterizam-se pela construção de
pontes civilizatórias na defesa da dignidade do trabalhador e na proteção deste diante do
capital internacional e exploratório. Negar esta relação é, no mínimo, ser cínico ao processo
pelo qual o direito à memória e à verdade. Destes valores, tão caros à democracia moderna, é
que este trabalho homenageia: mulheres e homens que muitas vezes anônimos, mas
coletivamente organizados, foram capazes de conquistar seus direitos.

REFERÊNCIAS

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DIREITO ANTIDISCRIMINATÓRIO E INCLUSÃO SOCIAL DE PESSOAS COM
DEFICIÊNCIAS NA CIDADE DE ARCOVERDE-PE200

Rebeka Cristina Rosa Borges201


Ana Carolina de Luna França202
Rayssa Gomes de Carvalho203

RESUMO

O presente trabalho visa compreender como uma instituição analisada vem trazendo
mudanças positivas para a região, não apenas na seara da saúde, como também na social. A
problemática norteadora é a seguinte: De que maneira o Centro Especializado em Reabilitação
Mens Sana atua como promotor da acessibilidade no interior de Pernambuco? A história do
projeto Mens Sana, a visão do aparato legislativo, da existência de um direito
antidiscriminatório e três sujeitos que fazem parte da história da instituição e suas novas
perspectivas sobre si os mesmos. Para tais sujeitos não se enquadra a autodenominação de
invalidez, construindo diferente perspectiva, em que, para eles, a acessibilidade deve ser
sinônima de inclusão social. O objetivo geral da pesquisa traduz-se em entender de que
maneira o Centro Especializado em Reabilitação, Mens Sana, atua como promotor da
acessibilidade no interior de Pernambuco. O universo principal de investigação foi o Mens
Sana, ponto central do artigo, com dados secundários do Colégio Cardeal Arcoverde e da
Secretaria de Assistência Social. As informações foram coletadas no ano de 2017 através do
método indutivo, observacional e estatístico, possuindo caráter de pesquisa etnográfica e
descritiva com abordagem mista.

Palavras-chave: Mens Sana. Direito antidiscriminatório. Acessibilidade. Inclusão social.

INTRODUÇÃO

O presente ensaio aborda não só o papel de relevância que o Mens Sana desempenha
na sociedade, bem como a história para concretização do projeto que surge como
desdobramento da Fundação Terra, a qual tem por meta servir a população carente por
intermédio da educação, saúde e ações sociais, tendo por vista à promoção da dignidade. Desse
modo, o projeto por si só já é grande ponto de mudança da realidade social arcoverdense.
O direito antidiscriminatório, definido como conjunto de proposições jurídicas que
buscam minimizar as vulnerabilidades das pessoas com deficiência, em razão de suas
condições específicas, demonstra o importante papel da sociedade nessa procura. Desse modo,

200
GT 5 – Direitos Humanos, Democracia e Grupos Vulneráveis
201
Graduanda em Direito - Universidade de Pernambuco. Integrante do grupo Veredas de Criminologia e Sophia
– Grupo de estudos e pesquisas interdisciplinares sobre retórica e decidibilidade jurídica.
rebekarosaborges@gmail.com
202
Graduanda em Direito - Universidade de Pernambuco. Integrante do grupo Veredas de Criminologia
cacalunaf@gmail.com
203
Graduanda em Direito - Universidade de Pernambuco. Integrante do grupo Veredas de Criminologiae
rayssa.adv.2017@gmail.com
o artigo busca clarificar que a igualdade formal é de extrema relevância, porém, faz-se
necessária uma igualdade material/substancial, passando da teoria para a prática, visando
combater as injustiças que afetam o grupo em estudo frequentemente.
Nesse ponto de vista, é útil observar como vem sendo efetivada essa igualdade
material por parte do Mens Sana. Uma vez que o problema da deficiência esta ligado não só
ao indivíduo, mas a sociedade como um todo. Analisado isto, a problemática principal do
presente trabalho foi: De que maneira o Centro Especializado em Reabilitação Mens Sana
atua como promotor da acessibilidade no interior de Pernambuco?
O objetivo geral da pesquisa traduz-se em entender de que maneira o Centro
Especializado em Reabilitação, Mens Sana, atua como promotor da acessibilidade no interior
de Pernambuco. A análise de que o Centro preza pela qualidade de seus funcionários,
investindo cada vez mais no aprimoramento de seu trabalho, contando com uma equipe
interdisciplinar durante o tratamento, torna-se transparente o modo pelo qual se dá tal
promoção.
A primeira parte do texto procurou transcrever o caminhar do Centro, da criação à
referência de Pernambuco. Isto é, observar desde seu objetivo inicial, apuração de doações e
a procura de custeio para manutenção de materiais e equipe especializada, ao maior Centro de
Reabilitação de Pernambuco, tratando seus usuários de forma integral em uma única sessão,
além de buscarem sempre a ampliação de serviços, como atualmente a confecção de próteses
e órteses no próprio Centro.
O segundo objetivo específico buscou elucidar o atual cenário da efetivação do
direito antidiscriminatório para o grupo em estudo. O qual sofreu um grande avanço após a
Convenção da ONU sobre os direitos das pessoas com deficiência que mudou as perspectivas
sobre o assunto em um panorama mundial. E no aparato legislativo, a implementação, quando
necessária de políticas públicas de discriminação reversa ou positiva buscando promover a
tais grupos aigualdade material.
Ao final, o presente estudo se propôs avaliar de que modo o Centro propicia a luta
pela reintegração da pessoa com deficiência em sociedade. Valendo-se de três sujeitos que
usufruíram ou ainda utilizamos serviços proporcionados pelo Mens Sana, bem como os efeitos
desse trabalho na vida do indivíduo e para sua reinserção social.
Os trajetos metodológicos utilizados foram de uma abordagem mista, quantitativa e
qualitativa, sendo a primeira caracterizada pelo levantamento de dados, os quais pôde-se
extrair conclusões sobre a realidade pesquisada. Sendo, a segunda, uma interpretação do fato
observado. O método predominante foi o indutivo, do qual se partiu de um núcleo de estudo,
a instituição, e chegou-se a conclusões gerais acerca da questão na região que o Mens Sana
atua. As pesquisas empregadas foram descritivas e a pesquisa mista, trazendo tanto aspectos
quantitativos, quanto qualitativos (GIL, 2008).
Sobre a coleta de dados, este trabalho é delimitado pelo uso de entrevistas, que nas
suas demais tipificações foram utilizadas as informais, além da coleta bibliográfica, visando
entrar em contato com o que já se produziu a respeito do presente tema. O universo
etnografado204 compreende o Centro Especializado em Reabilitação, Mens Sana, além de
visitas ao Colégio Cardeal Arcoverde e à Secretaria de Assistência Social, uma vez que tais
locais nos levaram de encontro aos nossos sujeitos em análise e trouxeram reflexos sobre a
questão da acessibilidade nos mais diversos panoramas na cidade de Arcoverde.

1 DE PROJETO AO MAIOR CENTRO DE APOIO À PESSOA COM DEFICIÊNCIA


DE PERNAMBUCO

Inicialmente planejado pelo Pe. Airton Freire, idealizador da Fundação Terra, o


Centro Especializado em Reabilitação (CER), Mens Sana surgiu visando prestar apoio a um
grupo vulnerável sem visibilidade na região. Padre Airton possui grande prestígio social na
cidade, principalmente a comunidade católica local, prestígio esse que o fez receber a
Comenda dos Direitos Humanos Dom Hélder Câmara, no Senado Federal.
Muito procurado por grupos em estado de vulnerabilidade, como o das pessoas com
deficiência em geral, passou a notar que a cidade de Arcoverde não contava com um espaço
de fisioterapia para atender suas demandas médicas. Indivíduos que sofreram um Acidente
Vascular Cerebral (AVC ou derrame cerebral), com lesões medulares, até mesmo doenças
neurológicas ou que necessitavam de tratamentos físicos específicos e especializados após
acidentes, principalmente acidentes realizados ao utilizar motocicletas, bastante usual nos
interiores, precisavam se deslocar para outras regiões para realizarem tratamentos específicos,
e que não possuíam vínculo com outro tipo de serviço público de reabilitação.
Assim, resolveu dar início a uma campanha solidária para arrecadar fundos e
conseguir instalar um Centro que atendesse a necessidade dessa população periférica e pobre.
Em uma latinha de refrigerante pôs um informativo no rótulo, apontando o objetivo daquela

204
Este artigo apresenta dados parciais de um estudo mais amplo intitulado: As barreiras da acessibilidade na
cidade de Arcoverde, realizada de outubro de 2017 a dezembro de 2017 e apresentada no III Seminário sobre
Redes de Proteção de Direitos da UPE-Campus Arcoverde.
angariação de fundos. O padre queria ressignificar a sigla “AVC”, uma expressão que
promovesse a força para recomeçar, sendo assim “A Vida Continua”.
A campanha tomou uma proporção maior e um terreno, na cidade, foi doado por uma
cidadã arcoverdense. Logo após, pessoas de Fortaleza, especializados na área de construção
civil e que acompanhavam a Fundação Terra, resolveram construir o piso inferior do Mens
Sana, que a princípio era um serviço de reabilitação, com a colaboração de uma arquiteta,
também do Ceará, que desenhou o projeto seguindo todas as orientações do Ministério da
Saúde.
É perceptível, com base nas informações já explanadas que, sem ajuda da massa
populacional, de fato, a elaboração do projeto jamais teria saído do papel, fato que é bastante
enfatizado pelos organizadores. Ajuda essa que, muito pela influência do padre, foi abrandada
não só para a comunidade local como também em locais fora de Pernambuco.
A notabilidade da Igreja Católica na cidade também deve ser destacada, até porque
foi a partir dela que todo o projeto foi fundamentado. Apesar do catolicismo estar fortemente
presente nas cidades interioranas, cada vez mais se reitera a necessidade de uma igreja com
uma inclinação à mudança da realidade social em que atue,mais dinâmica, e menos estática.
Inaugurado em 08 de setembro de 2011, o Mens Sana ainda não possuía um instrutivo
para dar início às atividades. No início do ano de 2012, é liberado o instrutivo dos CER,
elaborado pelo Ministério da Saúde, o “Viver Sem Limites” no âmbito do Sistema Único de
Saúde (SUS), uma assistência à saúde voltada à pessoa com deficiência. Definiu então que,
como Centro, deveria se adaptar ao modelo estabelecido no instrutivo e ter, no mínimo, dois
tipos de reabilitação entre: física, intelectual, visual e auditiva. Assim, em janeiro começou a
funcionar.
Em 2013, o Mens Sana conseguiu encaminhar uma solicitação ao Ministério da
Saúde para que estivesse habilitado, recebendo custeio para manutenção de materiais e equipe
especializada, pois apenas doações não seria suficiente. No mesmo ano, foi habilitado para
atuar com reabilitação física e intelectual e no ano seguinte em auditiva e visual também. Em
2014, com objetivo de ampliar os serviços prestados à população, o piso superior do Centro
foi construído e finalizado em razão da contribuição de uma grande construtora em
Pernambuco.
Para execução das quatro reabilitações, recebe custeio do Ministério da Saúde e tem
um convênio com o Governo do Estado de Pernambuco para concessão de prótese auditiva e
auxílio financeiro para crianças com a síndrome congênita do Zyka vírus. Ao atender bebês
com microcefalia ganhou grande notoriedade pela assistência oferecida, dada não só aos
pacientes como também o suporte psicológico dado aos pais, de como lidar com a situação.
Atualmente o Centro atende a III Macrorregião de Saúde de Pernambuco, que
compreende a VI, X e XI Gerência Regional de Saúde (GERES), representadas,
respectivamente, por Arcoverde, Afogados da Ingazeira e Serra Talhada. Essa área abarca
cerca de 50 municípios. Conta com 82 funcionários, no total, entre a parte técnica,
administrativa e segurança. Hoje, atende cerca de 1.200 pessoas nas quatro reabilitações por
mês, o que pode ser traduzido em quase 20.000 procedimentos nesse mesmo período, uma
vez que os usuários usufruem de um atendimento interdisciplinar.
Em nossa pesquisa de campo, perguntamos como funciona hoje a questão de auxílio
de custeio, se existe investimento municipal no Centro. Segundo a coordenadora do Centro,
Liége Nogueira, a resposta foi que o custeio recebido não é disponibilizado pela prefeitura
devido à demanda e, consequentemente, os altos custos. Os Centros Especializados em
Reabilitação (CER) que pertencem à categoria quatro conseguem um custeio de até R$ 345
mil ao mês, dinheiro esse que é direcionado à folha salarial dos cerca de 80 funcionários e aos
materiais em que precisam ser repostos mensalmente.
Para conseguir atendimento no Mens Sana o paciente precisa ser encaminhado por
algum serviço público, como as Unidades Básicas de Saúde (UBS) ou Hospital Regional, por
exemplo, dentro dos municípios abarcados pelo atendimento da fundação. Além disso, precisa
ter o perfil específico para ser atendido, ou seja, necessitar de reabilitação em qualquer área
em que o Centro atue, como para aprender a linguagem do braile, realizar fisioterapia,
desenvolver a fala oral, entre tantas outras que o Centro disponibiliza.
O serviço de terapia ocupacional também possui mérito por toda região englobada
em seu atendimento. Fornecendo atendimento às pessoas que sofrem exclusivamente de
depressão, ou até mesmo as que adquiriram após traumas que afetaram a mobilidade, o
tratamento busca incentivar a interação com os dilemas cotidianos e um novo olhar a fim de
valorizar as pequenas atividades feitas até mesmo em casa, como o ato de cozinhar, sendo
estimulados em grupo.
Disponibilizando transporte para o Centro, o PE Conduz consiste em um sistema de
vans adaptadas para pessoas com deficiência físicae severas dificuldades de mobilidade, além
de baixa renda, e é disponibilizado pelo Governo Estadual ou Municipal responsável por cada
paciente. Sua sede está localizada em Caruaru e não atua unicamente com o Mens Sana.
É de suma importância entender o modelo utilizado pelo Mens Sana: a intervenção
interdisciplinar. Visualizar o usuário holisticamente205 é a proposta do Ministério da Saúde
para este tipo de serviço no qual atuam. Se um paciente possui uma sequela de AVC com
comprometimento de visão e de membro inferior, pode usufruir das áreas que irão auxiliar na
sua situação física e também de um psicólogo que auxilie a compreender as mudanças que
virão, por exemplo. Dessa forma, a partir de uma avaliação em um mesmo momento pode-se
intervir as três áreas, tratando-o de uma forma global em uma única sessão.
Avaliando também a estrutura, não só na sua construção física como também em sua
formação profissional, percebe-se que o processo de inclusão no CER não abrange apenas os
pacientes, abrange também os profissionais que atuam no aparato à população em geral, como
é o caso de Maria de Fátima Leal, que possui deficiência visual e treina mobilidade em pessoas
em situação similar à sua, a fim de possibilitar a elas uma maior interação com o meio em que
vivem. Dessa forma, o Centro preza não apenas a quantidade, mas a qualidade de seus
profissionais, sempre investindo em cursos que os aperfeiçoem em seu trabalho.
Depreende-se que a história do Centro é progressiva. Existindo há seis anos, deixou
de ser apenas um serviço de fisioterapia e abraçou outras áreas da saúde visando auxiliar no
desenvolvimento do paciente de forma eficaz e humana. Prova disso é a obra que está sendo
concluída para atender pacientes necessitados de próteses ortopédicas, buscando sempre
melhorar o serviço e auxiliar essa parte da população que é necessitada.

2 O DIREITO ANTIDISCRIMINATÓRIO COMO AFIRMADOR DE DIREITO DE


GRUPOS VULNERÁVEIS

O receio à diferença é fator de comportamentos que permeiam as vidas não só da


pessoa com deficiência como também do grupo que lhe rodeia e a sua família. Não apenas o
temor pela pura diferença, mas a forma de um sujeito ser tratado em sociedade resulta dessa
diferença. É importante evidenciar que ser diferente em si já foi pretexto para que um
indivíduo fosse considerado com sujeito de menor direito que o outro, como a própria
história deixa claro, com os exemplos da escravidão e do nazismo. A ideia de uma raça
superior à outra sempre foi o desencadeador de atrocidades contra a humanidade. Então, foi
feita uma abordagem de evolução e construção de direitos dentro da questão da pessoa com
deficiência.

205
Holístico ou holista é um adjetivo que classifica alguma coisa relacionada com o holismo, ou seja, que
procura compreender os fenômenos na sua totalidade e globalidade.
Com relação ao grupo em estudo a situação não é diferente. Segundo o IBGE (2010),
no Brasil, 24% da população possui algum tipo de deficiência. Diante desta informação, é
difícil imaginar a forma que pessoas com deficiência que residem no interior de Pernambuco
efetivam suas garantias constitucionais. Subtração de direitos, negação de suporte ideal e, com
ênfase, a barreira de viver em cidades sem qualquer tipo de adaptação e sequer interesse em
projetar tais mudanças.
Como ressalta Herrera Flores (2004), ao se buscar um viver emancipatório, que
ecoam sobre a proteção da dignidade, consolida-se uma luta racional de resistência, na medida
em que traduzem processos que abrem espaços e lutam pela dignidade humana. Em meio a
tais emblemas envolvendo a supressão de direitos, torna-se difícil imaginar de uma
organização que lute por direitos e que tanto tem modificado a vida de pacientes na região.
A Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2007) mudou
as perspectivas e abordagens sobre o assunto em um panorama mundial. Tal Convenção surge
como uma resposta a uma longa espera de um grupo, que há muito aguardava um
posicionamento de tamanha relevância para a esfera dos direitos humanos. A discriminação
passa a dar lugar à inserção dessas em todas as vertentes sociais. A todo momento, países são
convocados pela ONU a realizarem relatórios de forma pendular para manter um
monitoramento acerca da evolução da questão de inserir tais pessoas e como o sistema jurídico
atua para promover essas garantias.
A Convenção cumpre seu papel quando afirma, no artigo 2º:

Discriminação por motivo de deficiência significa qualquer diferenciação, exclusão


ou restrição baseada em deficiência, com o propósito ou efeito de impedir ou
impossibilitar o reconhecimento, o desfruto ou o exercício, em igualdade de
oportunidades com as demais pessoas, de todos os direitos humanos e liberdades
fundamentais nos âmbitos político, econômico, social, cultural, civil ou qualquer
outro. Abrange todas as formas de discriminação, inclusive a recusa de adaptação
razoável. (online).

É logo perceptível que, por exemplo, a falta de adaptação em um imóvel público


também se trata de uma discriminação. Diante disso, Prefeituras Municipais possuem o dever
de fiscalizar e até a própria sofrer punições. É importante salientar que o Estado não é obrigado
a cumprir de imediato (e nem poderia) todos os programas e vetores anunciados. Entretanto,
o Direito oferta parâmetros para a implementação da acessibilidade, a fim de promover a
interação social das pessoas com deficiências com a sociedade.
Um desses parâmetros é nomeado de direito antidiscriminatório, como sendo:
Um conjunto de medidas jurídicas tanto em âmbito constitucional e
infraconstitucional que almeja reduzir a situação de vulnerabilidade de grupos
sociais específicos, através da proibição de condutas discriminatórias pejorativas e,
por outro lado, a implementação, quando necessária , de políticas públicas de
discriminação reversa ou positiva, no sentido de promover tais grupos a uma
situação de igualdade substancial/material. (GALINDO, 2016. p.44).

Dessa forma, não basta haver mudanças no paradigma normativo para solucionar
determinada questão social, uma vez que a modificação deve ser realizada na mente de todos
os que compõem a estrutura social, buscando assim, a igualdade material, visto que a
sociedade brasileira está impregnada de preconceitos. Nesse sentido, a igualdade formal passa
a ser complementada pela material, sendo de relevância essa complementação uma vez que a
formal não consegue afastar por si só as situações de injustiça que afetam o grupo estudado
cotidianamente.
Amparado constitucionalmente, a dignidade da pessoa humana, é norma, e como tal,
deve ser respeitada. Do mesmo modo, a pessoa com deficiência é um ser humano, e como tal,
deve ser respeitado. Segundo Sarlet (2012), trata-se de um princípio preexistente ao direito,
pois é um atributo do ser humano podendo ser influenciado por fatores geográficos e culturais.
Notam-se dimensões a serem tratadas em torno do termo, uma delas, a positiva, diz respeito a
tutela dada pelo Estado, através de medidas positivas, promover o respeito e a promoção da
dignidade, o que vem sendo proporcionado pelo Centro de Reabilitação, Mens Sana.
A dignidade humana encontra-se no primeiro artigo da Convenção Sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência, tendo em vista sua importância, condição inerente ao ser
humano. A Conferência teve como inspiração o modelo social, que valoriza a percepção de
que o problema da deficiência não se restringe ao indivíduo e a família, mas diz respeito à
sociedade como um todo. A Convenção é claramente influenciada pelo ambiente jurídico
antidiscriminatório.
Uma vez que se superou o modelo médico, o qual retrata a deficiência como sendo
uma doença, adotando o modelo social, para o qual a deficiência passa a ser uma característica
da pessoa e faz parte da diversidade humana. Desse modo, a Conferência trouxe consigo
inúmeros avanços normativos para o grupo, sendo necessárias políticas de conscientização
sobre o seu conteúdo e concretização. Ou seja, fazer com que esses direitos não passem a ser
uma mera “folha de papel”, como afirma Lassalle (1998), e sim, pressionar o Poder Executivo
e Judiciário a dar continuidade à obra, a realização desses direitos.
3 PROMOÇÃO DE DIREITOS PELO MENS SANA: A LUTA PELAREABILITAÇÃO E
REINSERÇÃO SOCIAL DO SUJEITO206

Importante ativista na questão da pessoa com deficiência, Marcelino Carvalho é peça


chave para compreender a repercussão desse tema na cidade de Arcoverde. Foi vitimado em
um acidente durante o serviço, no qual a viatura em que estava capotou, sofrendo lesões na
medula e, consequentemente, perdendo o movimento dos membros inferiores.
Anos após o acidente, logo que o Mens Sana passou a funcionar, necessitou de um
tratamento para fortalecer sua musculatura e melhorar sua disposição. Então, após o
encaminhamento médico, foi quase de imediato atendido pelo Centro. Lá usufruiu da
fisioterapia e de estimuladores elétrico sendo, segundo ele, na figura de paciente, bastante
eficaz o serviço oferecido.
Ao ser contatado e sua entrevista ser realizada na Secretaria de Assistência Social,
Marcelino só teceu elogios ao Centro que o acolheu com excelência e, além de um serviço de
qualidade, pôde ser atendido em um local que trata o grupo vulnerável de forma humana.
Como o tratamento ocorre durante um tempo limitado, parou de ter acesso após certo período
para que outros possam utilizar. Mesmo assim, ainda necessita realizar fisioterapia
corriqueiramente, por isso, está aguardando para poder retornar aos cuidados do Centro, em
uma lista de espera.
Após o tratamento realizado no Mens Sana e as sequelas do incidente persistirem,
mesmo em seguida da realização da fisioterapia, Marcelino aposentou-se por invalidez para
realizar o trabalho que costumava fazê-lo antes do acidente, o de policial. Para ser beneficiário,
é necessário estar em situação de PCD207, seja qual for a sua, que produza efeitos por, no
mínimo, dois anos. São realizados exames periciais por médicos que trabalham para o Instituto
Nacional de Seguro Social (INSS) para a comprovação do caso. Segundo Savaris (2012), o
princípio que norteia a Seguridade Social é o da universalidade, que o fato de umapessoa se
encontrar em estado de necessidade, seja ela quem for, é dado o benefício da Seguridade. Na
visão do autor:

[...] Tende a substituir a situação de “limite de indigência” com o suprimento de


necessidades vitais, pela situação de “estado de necessidade” [...]. Uma ampliação
objetiva, porque a valoração das necessidades sociais protegíveis não tem em mira

206
Todas as falas e informações dadas pelos sujeitos analisados nesse ponto foram retiradas da etnografia
intitulada: As barreiras da acessibilidade na cidade de Arcoverde, realizada de outubro de 2017 a dezembro de
2017 e apresentada no III Seminário sobre Redes de Proteção de Direitos da UPE-Campus Arcoverde.
207
PCD: Pessoa com deficiência.
o caráter vital destas, mas as fundamentais para o desenvolvimento da
personalidade. E outra ampliação subjetiva porque se estende o âmbito de pessoas
protegidas não mais para os indigentes, senão de forma mais ampla aos
economicamente débeis, que não possam, por si, satisfazer essas necessidades
sociais básicas. Em segundo lugar, a concessão de prestação de Assistência Social
não corresponde apenas a um interesse jurídico, mas a um autêntico direito subjetivo
à proteção, a qual deve ser satisfeita em todo caso de necessidade tipificado, sem
que se possa contrapor a alegação de insuficiência de meios financeiros, pois, nesse
caso caberia exigir responsabilidade à Administração pelo funcionamento anormal
do serviço público. (p.164).

Enquanto isso, o ex major é aposentado e realiza campanhas como palestrante sobre


acessibilidade e políticas públicas, além de coordenar diversas ações voltadas ao panorama da
pessoa com deficiência. É, hoje, um dos maiores ativistas na área na cidade de Arcoverde,
reconhecido por políticos locais e por estar sempre engajado no proceder da atividade política
municipal.
Foram necessárias adaptações em sua casa para uma boa locomoção e melhora em
sua qualidade de vida. Assim, pouco a pouco, ao perceber as carências, reformulou sua casa.
Dentre as mudanças, trocou o portão comum por um automático, aumentou algumas portas
para que a cadeira de rodas passasse e houvesse fluxo, trocou sua cama por uma com tamanho
mais adequado, passando a ter um olhar sobre acessibilidade que mesmo após o acidente ainda
não o tinha.
Assim, a partir das reformulações feitas em sua residência, passou a visualizar
mudanças na cidade, as quais eram de extrema importância, chamando sua atenção para o
assunto. Como a cidade ainda é pouco acessível, ele necessita andar sempre acompanhado e
prefere circular sempre em seu automóvel. Muito foi debatido à respeito do nível de satisfação
que as mudanças realizadas na cidade trouxeram às pessoas com dificuldade em mobilidade.
Marcelino, em uma de suas raras tentativas de transitar pelo centro da cidade sozinho,
encontrou inadequações nas rampas. Para ele um simples test drive realizado com participação
de cadeirantes resolveria tal inadimplência.
Em visita à sede da Autarquia de Trânsito e Transporte de Arcoverde, a Arcotrans, a
informação divulgada é a de que, entre 2013 e 2017, o número de rampas na cidade foi
ampliado em 5.550,00%, saltando de nove para mais de 500. O piso tátil foi inserido em alguns
locais de grande fluxo de pessoas, como em bancos, porém o Centro de Reabilitação Mens
Sana, que não possui vínculo com a prefeitura, é o único local que possui a implantação de
rampas e pisos táteis de forma adequada, como manda a Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT 9050).
Ainda segundo a Arcotrans, grande quantidade de rampas foram feitas e as principais
praças da cidade (Rodoviária, Praça Virgínia Guerra e Bairro de São Cristóvão, por exemplo)
eram adaptadas. Mas após o asfaltamento nas ruas, as rampas foram desniveladas.
Tal questão trouxe outra vertente da mesma pauta sobre a atual circulação do grupo
pela cidade hoje e a atenção dada pela prefeitura, a questão dos ônibus. Em 2017, Arcoverde
possuía duas empresas em estado de concessão circulando pela cidade, a Rio Claro, com sete
linhas, e a EBM, com duas linhas. Em dados liberados pela Arcotrans, apenas um dos ônibus
em funcionamento possui plataforma elevatória, porém, até a visita à autarquia, em outubro
de 2017, não era utilizada.
Ao questionar o motivo de não ser utilizada, muitos fatores foram apontados, entre
eles: a falta de instrução dos funcionários que circulam nos ônibus, o mau funcionamento do
elevador, a demora no processo de uso, uma questão relacionada ao fato das pessoas com
deficiência serem minoria e, principalmente, por questões financeiras do município.
Ferreira (2009) afirma que, frente à omissão total ou parcial do Poder Executivo
Municipal, em uma análise inicial, deve-se exigir o adimplemento do dever constitucional em
assunto. Em um segundo momento, realiza uma reflexão ontológica da constituição que,
baseando-se em Loewenstein, elas se dividem em: normativas, nominais e semânticas.
Segundo a autora:

A primeira espécie de Constituição é aquela que juridicamente válida e efetivamente


integrada na sociedade, o que a torna socialmente eficaz e tem força para submeter
o exercício do poder às suas normas. A segunda espécie de Constituição é um texto
prescritivo, mas desconforme à realidade do poder, não obstante, possui a força
necessária para que tal desconformidade possa ser sanada no decorrer da construção
da história. A terceira, a Constituição semântica, é aquela cujas normas prescritivas
são submetidas às relações fáticas de poder, tal o nível de desconformidade existente
entre o dever-ser nela prescrito e o ser, a realidade fática. (FERREIRA, 2009, p.2)

A partir desse trecho, fica claro que a Constituição Brasileira possui, muitas vezes,
caráter normativo, algo que compromete não só sua interpretação como também passa pelo
problema do sentimento constitucional do povo brasileiro em relação ao respeito à
imperatividade e obrigatoriedade da mesma. Falta informação e, aos que a possuem,
desacreditam.
Dessa forma, é de suma importância perceber que há ligação entre a falta de
acessibilidade e os problemas sociais. E o Mens Sana, como Centro Especializado em
Reabilitação, vem cumprindo com êxito seu papel, mas a maioria das pessoas com deficiência
e Marcelino, de modo específico, encontram diariamente barreiras. Seja por não terem as
mínimas condições ao transitar pela cidade, seja enfrentando preconceitos, quando na verdade,
o Centro busca tratar esse grupo de forma humana, digna.
Um grande exemplo de inclusão e que vem mudando a percepção de seus pacientes é
Fátima Leal, técnica em mobilidade no Mens Sana e pessoa com deficiência visual desde o
nascimento. A mesma nasceu com uma doença chamada retinose, sendo degenerativa, e a
debilitada visão que teve ao nascer foi perdida totalmente aos quatro anos.
Há cinco anos trabalha desempenhando a função de técnica em mobilidade, pois é
educadora especial inclusiva. Ela lida com os indivíduos que acabaram de ter algum tipo de
deficiência e as ajuda a lidarem com sua nova condição, não apenas a adaptar sua vida a essa
mudança tão temida por muitos, mas adaptar a vida para que essa mudança seja associada a
uma questão de autoaceitação. Pontua que além das barreiras físicas, muitas vezes tem que
lidar com as barreiras do preconceito.
Fátima retrata que já sofreu preconceito em todos os vieses. Relata que quando
prestou concurso para professora estadual, a prova não foi adaptada por displicência dos
organizadores, mas que apesar das dificuldades veio a realizar a prova oralmente e, mesmo
diante de tais condições, foi aprovada. Porém, já exercendo o cargo, sofreu muito preconceito,
principalmente por parte dos colegas de trabalho durante os seis anos que permaneceu na
escola. Após esse período, decidiu ser professora de braile do Estado, cargo que exerce
atualmente.
Essa busca pela isonomia vem sendo reforçada por meio de Convenções, como,
porexemplo, a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (2001), que teve por objetivo o
entendimento e a defesa da inclusão. Como exemplificado no trecho do artigo da Convenção
Interamericana observa-se no seu artigo I, nº 2 “a”:

Toda diferenciação, exclusão ou restrição antecedente de deficiência, consequência


dedeficiência anterior ou de deficiência presente ou passada, que tenha o efeito ou
propósito de impedir ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício por parte das
pessoasportadoras de deficiência de seus direitos humanos e suas liberdades
fundamentais.(online)

Para Fátima, é muito importante ter acessibilidade, mas é preciso saber usar. Educar
as pessoas e orientá-las para que possam lidar de forma adequada com aquela ferramenta de
acessibilidade. Seu trabalho consiste em ensinar essas ferramentas, como os cincos sentidos,
por exemplo. Relata que as pessoas supervalorizam a visão e não sabem utilizar os outros
sentidos.
Retrata a técnica em mobilidade, a importância em perceber que em tudo há pontos
negativos e positivos. Por exemplo, algumas vezes conta que é grata por não ver certas
catástrofes do dia a dia, mas lamenta não poder ver a natureza, mas ainda assim, o outro lado
compensa. Afirma que quando muitos a tratam como inválida, faz questão de mostrar que a
condição de cegueira é apenas uma característica sua e não uma doença. Uma vez que a
deficiência não tem que invalidar, pois isso só acontece quando você mesmo se trata como
um inválido.
Apesar de não residir na cidade de Arcoverde e sim em Alagoinha, cidade próxima
à Garanhuns, em suas poucas caminhadas pela cidade, houve demasiadas reclamações. Quase
que não encontrou, pelos locais que percorreu, adaptação necessária para que pessoas com
deficiência visual possam caminhar. A cada dia que passa, a Arcotrans recebe mais cobranças
por parte desses grupos de pessoas com deficiência, relacionadas também à acessibilidade nas
ruas e principais vias de circulação. A nova gestão dessa empresa, preocupada com esses
grupos vulneráveis, ainda engatinha ao implantar projetos e materiais para auxiliar o acesso
dessas pessoas na rua.
A cidade conta, atualmente, com quatro botoeiras sonoras. Essas são botões que
possuem linguagem em braile e emitem sons gradativos para melhorar a sinalização sonora
na travessia de pessoas com deficiência visual, com a finalidade de proporcionar mais
segurança aos pedestres na hora de atravessar as ruas. Ao ser acionado, a botoeira emite um
bip e ao chegar mais perto do semáforo fechar o som fica mais intenso. É uma das poucas
adaptações que, de fato, produzem efeitos no cotidiano desse grupo.
Desse modo, diante de todas as barreiras que você terá que enfrentar para alcançar
determinado objetivo, principalmente na condição de pessoa com deficiência, não se deixar
abater é algo imprescindível. Diante disso, se torna relevante pontuar e para reforçar o que
fora retratado por Fátima, a Convenção do Direito da Pessoa com deficiência (também
conhecida como Convenção de New York),dentre outros atos:

Busca superar o modelo médico, no qual a deficiência é vista como uma “patologia”
a ser curada, e visa propagar o modelo social, que procura o entendimento de que a
deficiência é, antes de tudo, uma característica do indivíduo (uma vez que o próprio
termo “pessoa com deficiência”, em vez de “deficiente”, é um símbolo claro dessa
evolução) e faz parte da diversidade humana. (GALINDO, 2016. p.46)

Assim sendo, mesmo diante das garantias que a Convenção acima trouxe, o que falta
nos lugares é a percepção do ser humano, é você olhar o outro sempre como sendo uma pessoa
humana e não como uma pessoa limitada, que os indivíduos possam ajudar o próximo, mas
não com a concepção de compadecimento, e sim fazer com o outro, para o outro, o que
queremos que nos façam.
O que foi relatado por Fátima Leal, quando nos comunicou que sua condição de
cegueira não deve ser vista como algo que a torne inválida, e sim, uma de suas características,
o que não determina quem ela é, tampouco seu futuro.

Quando muitos me tratam como inválida, mostro que a condição de cegueira é


apenas uma característica minha. Uma deficiência não tem que invalidar, isso só
acontece quando você mesmo se trata como um. Eu não me tratei. Busquei todos os
meus sonhos e hoje sou uma educadora e bastante realizada. Apesar de todas as
barreiras que você pode ter para alcançar um objetivo, principalmente na condição
de deficiente, não se deixar abater é algo imprescindível.

Assim como Fátima e sua perspectiva desconstruída de ser sujeito inválido, o mesmo é
aplicado a João Lucas Amaral. Desistir de seus objetivos nunca foi uma opção para nosso
terceiro entrevistado. Ele é um jovem nascido em Recife que desde 2009 mora em Arcoverde.
Hoje, com 19 anos, cursa o ensino médio numa escola particular em Arcoverde. Cadeirante
de nascença, João teve paralisia cerebral nível quatro decorrente de um erro médico, pois
nasceu aos sete meses com complicações no parto. Perdeu o movimento dos membros
inferiores e teve outras seqüelas físicas, mas sua capacidade cognitiva é preservada. Seu caso
foi à justiça e foi o primeiro caso dessa conjuntura que serviu como jurisprudência para os
demais.
Em 2015, ao mudar-se para o Rio Grande do Sul, assistiu seus direitos serem violados
por escolas particulares na região,que não aceitaram sua matrícula pela sua condição física,
colocando sua capacidade à prova. Isso o afetou seriamente, mas sua vontade de não desistir
e lutar pelos seus direitos era bem maior. Então, recorreu a Secretaria de Educação do
município para conseguir estudar
Logo após, recebeu um convite para participar do ‘Vereador por um dia’, um projeto
no Rio Grande do Sul, no qual os jovens, por um dia, após convite ou seleção, elaboram um
projeto de lei e apresentam na Assembléia. Lá, João pôde mostrar seu potencial apresentando
um projeto sobre acessibilidade e inclusão no âmbito do município, o qual foi aprovado por
unanimidade no plenário.
Atualmente, João Lucas estuda em uma instituição privada na cidade de Arcoverde
e que leva como lema a construção de uma sociedade solidária, ética e humana. A escola relata
que oferece estrutura e serviços aos alunos com deficiência na área infantil e o no ensino
médio, proporcionando esportes para esses indivíduos e fazendo com que possam concorrer
até em competições. Mas essa realidade não é percebida pelo estudante, que no cotidiano
enfrenta dificuldades no colégio, o problema é persistente, principalmente àqueles que faltam
informação, como traduz o relato a seguir:

A grande limitação que esses indivíduos enfrentam, é o deslocamento na escola,


pois há dificuldades e barreiras com relação às edificações. Uma barreira é qualquer
entrave ou obstáculo que limite ou impeça o acesso, a liberdade de movimentos, a
circulação com segurança e a possibilidade das pessoas se comunicarem ou terem
acesso à informação. (BOSHI S. R. M. S. et al. 2011, p.291)

Com relação à acessibilidade de uma forma geral, João afirma que precisa haver uma
melhora, pois, ainda hoje ela é precária. Ele não nega o fato de existir a acessibilidade, mas
ela não se apresenta da forma que deveria, já que muitas escolas alegam serem inclusivas, mas
não as são totalmente. Na sua visão a escola em que estuda, não pode ser considerada
inclusiva, pois diversas irregularidades são encontradas. Umas delas é o fato de não conseguir
ter acesso à biblioteca já que esta fica no primeiro andar e a escola não possui elevador.
Sobre o banheiro da instituição, fez questão de evidenciar que o acesso é bastante difícil
por ser pequeno e as barras não estarem localizadas adequadamente. Também, as rampas não
possuem elevação adequada às dimensões a ABNT, assim não consegue subi-las e para
praticar natação precisa que colegas o ajudem a chegar à área da piscina, devido à escadaria.
Essa inadequação estrutural começa quando para ele o acesso ao colégio deve ser pela entrada
de outra unidade, não da sua.
Afirma já ter realizado denúncia ao Ministério Público de Pernambuco (MP-PE)
solicitando que seja feita uma auditoria analisando todas essas questões, pois mesmo sendo
uma construção antiga, é passível de adaptações. João assegura que não é por falta de recursos
que essa inclusão não é garantida de maneira adequada, uma vez que existe o Plano Nacional
de Educação (PNE). Além do PNE, existe a Lei Brasileira de Inclusão que entrou em vigor
por conta de um senador que passa na pele os problemas da acessibilidade por ter um filho
com deficiência. Para o jovem a falta de sensibilidade da própria escola e dos órgãos
competentes é o que leva ao descaso com sua situação.
João participou da Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD) em Recife,
pois certos serviços só eram oferecidos lá. Diante disso, ele, novamente, recorre ao MP-PE,
posto que não estivesse sendo disponibilizado o transporte para a AACD no Recife, uma vez
que são quarenta pessoas que vão e não têm o devido apoio. A questão da acessibilidade é
uma grande causa para lutar no ramo do Direito, uma vez que pouquíssimas pessoas se
interessam pelo tema, como relata João, dizendo, também, que é o curso pelo qual se interessa,
objetivando dar visibilidade a essas questões.
O Mens Sana, para João Lucas, é um Centro que faz a vida de qualquer pessoa com
limitação física, intelectual, auditiva e visual se tornar agradável, pois é muito difícil no
interior existir um Centro com tamanha dimensão, estrutura e qualidade, além de ser gratuita.
Como o processo é pelo SUS e conta com fila de espera, hoje tenta retornar à instituição, mas
aguarda ser chamado. Foi paciente antes de se mudar, em 2015, para o Rio Grande do Sul. Lá
utilizou neurologista, fisioterapia para reabilitação e hidroterapia. Assegura o trabalho lá ser
competente, eficaz e com profissionais de qualidade dispostos em ajudar na melhoria de sua
qualidade de vida de qualquer pessoa que precise. O diferencial do Centro é a condição que
oferece e o fato de oferecer uma intervenção interdisciplinar.
O Mens Sana, conta com tratamentos especializados e o suporte oferecido é importante
não só em Arcoverde, mas em toda região circunvizinha que atua, pois mesmo quem tem
condições necessita, muitas vezes, de tratamentos adequados às suas limitações que o serviço
particular não oferece. Para João, o essencial é o tratamento humano, de qualidade e o Mens
Sana tem, além de tudo, uma grande importância social, mostrando que é possível no interior,
desde sua história, oferecer, existir serviço de reabilitação de qualidade.

CONCLUSÃO

O debate sobre a questão da pessoa com deficiência é de grande relevância para


aefetivação dos direitos desse grupo. O Mens Sana é o modelo de um Centro voltado para esse
grupo vulnerável com o objetivo de oferecer serviços para melhoria de saúde e qualidade de
vida, buscando inserir essas pessoas na sociedade, não mais como inválidas. Entretanto, o
presente artigo teve como objeto de estudo esse Centro, compreendendo sua importância
como promotor de acessibilidade no Sertão do Moxotó.
Na primeira seção do texto foi possível, a partir da história do Centro, visualizar a
evolução do Mens Sana e entender como a sensibilidade da sociedade foi de extrema
importância para a sua construção. O que começou com doações simplistas evoluiu para o
maior Centro nessas especialidades de Pernambuco, mudando a perspectiva de vida a todos
os pacientes que são atendidos lá e, hoje, continua crescendo para continuar oferecendo
serviços diferenciados e de forma gratuita.
Num segundo momento foi observado o panorama legislativo que cerca a questão
dapessoa com deficiência e foi constatado que a mudança no paradigma normativo não é
eficazcaso não haja mudança na mente das pessoas. A gama de legislação vigente, somada à
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência vêm revertendo esse quadro que
passou de um modelo médico para um modelo social, no qual a deficiência é uma
característica da pessoa e faz parte da diversidade humana. Dessa forma, o Mens Sana é um
modelo de instituição que atua com a efetivação desses direitos, enquadrada nos objetivos que
o direito antidiscriminatório busca oferecer.
A terceira parte atua sobre três sujeitos em questão: Marcelino Carvalho, Fátima Leal
e João Lucas Amaral. Todos têm algo em comum: fazem parte da história do Mens Sana. Eles
só teceram elogios sobre o serviço que o Centro oferece, elucidando a diferença na qualidade
de vida deles, tanto que Marcelino e João pretendem voltar a usufruir da fisioterapia oferecida
lá, pois como atua com método interdisciplinar, o atendimento de qualidade é garantido
emoutras áreas da saúde, como psicologia.
Fátima mostrou o lado humano do Mens Sana já que apesar de sua condição é
funcionária do Centro e é exemplo de representatividade dentro dele. O Mens Sana ultrapassa
a fronteira de só promover reabilitação e autonomia, ele possibilita que pessoas com
deficiências tenham um olhar e uma perspectiva diferente de vida, e isso é o que foi
visualizado na prática.
A ideia trazida por Boaventura de Souza Santos (2003) resume o ponto central que a
instituição busca reproduzir, o Mens Sana não apenas reconhece as diferenças entre as
pessoas, como trabalha para que essas diferenças não sejam gatilho para uma inferiorização.
Assim, é importante reconhecer a diferença na hora da promover a acessibilidade:

Temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o
direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a
necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que
não produza, alimente ou reproduza as desigualdades. (p.56).

REFERÊNCIAS

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deficiência. 1.ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p.164-166.
A MUSICALIDADE NEGRA TRADUZIDA PELO SAMBA DE COCO E RAÍZES
DE ARCOVERDE208

Iris Daniele Marcolino da Silva209

RESUMO

Neste artigo apresentamos o grupo samba de Coco e Raízes de Arcoverde, contextualizando


com as semelhanças encontradas na relação: musicalidade negra, e Identidade. No início da
década de 20 do século XX, Mario de Andrade iniciou uma viagem, por ele denominada de
Viagem Etnográfica retirar o itálico, por três estados do Nordeste brasileiro, Rio Grande do
Norte, Paraíba e Pernambuco. Identificamos que em Pernambuco a viagem do Mário de
Andrade possibilitou pesquisar as manifestações culturais e folclóricas na cidade de
Arcoverde, onde o samba de coco se apresentava. Trabalhamos com a abordagem da pesquisa
qualitativa e para a aproximação da compreensão do nosso objeto nos referenciamos nos
conceitos de cultura, identidade, corporeidade e musicalidade. Enquanto resultado,
verificamos que o Samba de Coco e Raízes de Arcoverde tem uma função educativo cultural
inestimável para a história e cultura afro-brasileira e africana presente em Pernambuco. É
notável uma conexão histórica que vem ultrapassando o tempo, onde os negros e os índios
foram formadores dos primeiros estruturantes sonoros/corporais da cultura do Samba de Coco
e Raízes. Sendo hoje referência da cidade e para a cidade de Arcoverde-PE.

Palavras-chave: Coco Raízes. Identidade. Arcoverde. Musicalidade.

INTRODUÇÃO

No início da década de 20 do século XX, Mario de Andrade iniciou uma viagem por
três estados do Nordeste brasileiro, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco. Em
Pernambuco essa viagem tinha o objetivo de pesquisar as manifestações culturais e folclóricas
na cidade de Arcoverde, onde o samba de coco manifestava-se. Ele mesmo denominou de
Viajem Etnográfica210 tirar o itálico e corrigir a palavra viajem por viagem, que tinha como
objetivo: observar de perto as manifestações folclóricas populares das regiões do Nordeste,
entre elas as danças e as músicas, já que viera ao Nordeste para fundamentar as suas pesquisas,
sobre a constelação cultural Brasileira. A musicalidade sempre foi responsável por transmitir
várias linguagens, dinâmicas vivenciadas pelo povo que a transmite e que a produz. A música
movimenta todo um universo. Os elementos que compõe a cultura são sempre repletos de
significados, demonstram: formas de vidas, ideias, fé, tradição, alegria e tristeza.

208
GT 6 – Movimentos Sociais, Educação e Arte
209
Doutoranda em Educação na Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: iris_marcolino@hotmail.com
210
Marcelo Burgos P. dos Santos é mestre em Ciência Política pela PUC-SP, e desenvolveu uma pesquisa sobre:
O Turista Aprendiz: breves notas e observações sobre a viagem de formação de Mário de Andrade.
Na cidade de Arcoverde destacou-se com grande força o grupo: Samba de Coco e
Raízes de Arcoverde o mais famoso da cidade e também o mais antigo, tendo o seu início no
ano de 1992 pelo o grande “coquista” Lula Calixto.
A cultura do coco imprime respeito pela história e cultura negra, pois a sua batida,
letras e dança envolvem todo um contexto de fascínios, que ao longo do tempo foi compondo
a identidade, que reúne a ancestralidade e a tradição conservada durante muito tempo e que
transcorre até os dias de hoje, preservando a memória dos mestres ícones do coco.
A conexão estabelecida entre tempo e cultura, possui consideráveis relevâncias, no
que diz respeito à história de uma tradição que se tornou raiz de vários povos e hoje encanta
e fascina, tornando-se patrimônio cultural da cidade de Arcoverde.
Nesse estudo buscamos focalizar a história da musicalidade negra no grupo: Coco e
Raízes de Arcoverde, e conhecer um pouco da mensagem cultural da dança do coco, que
abarca a grandeza da linguagem musical vivenciada pelos negros e que possui tamanha
riqueza simbólica na historicidade relatada por quem vive desde muito tempo o coco.

I. ANCESTRALIDADE E CULTURA NEGRA NO COCO E RAÍZES DE ARCO


VERDE.

A pesquisa foi realizada com o Grupo Cultural Samba de Coco e Raízes de Arcoverde,
localizado na cidade de Arcoverde ha 252 km do Recife, capital do estado de Pernambuco e
a 131 km de Caruaru-PE. Arcoverde situando-se na microrregião do Sertão do Moxotó;
conforme a estimativa feita pelo IBGE211 no senso de 2010 os indicativos mostram que
Arcoverde encontrava-se com uma população de 68.793 mil habitantes, com uma densidade
demográfica de 196,05 hab/km² e uma área territorial de 350,899 km².
A cidade de Arcoverde já foi possuidora de várias nomenclaturas entre elas Olhos
d’água dos Bredos, e também Rio Branco. A cidade surgiu com as fazendas: Bredos e Olhos
d’água, que pertenciam a João Nepomuceno de Siqueira Melo e Manoel Pacheco do Couto.
Mas em 1865, Leonardo Couto, filho de Manoel Pacheco do Couto, criou o povoado de Olho
d’Água dos Bredos, quando doou terras e construiu a capela de Nossa Senhora do Livramento.
Em 1909, Olho d’Água dos Bredos passou a ser chamada de Rio Branco, por conta da criação
da agência postal e a inauguração da Estrada de Ferro ligando-o à Capital do Estado e, por
último, teve o nome mudado para Arcoverde, em 1943, em homenagem a D. Joaquim de
Albuquerque Cavalcanti Arcoverde, nascido no lugar e o primeiro Cardeal da América Latina

211
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística 2010.
(IBGE, 2010).
Ea cultura local cultiva o mito fundador, como em um despertar constante de si
mesmo. “Um mito fundador é aquele que não cessa de encontrar novos meios para exprimir-
se, novas linguagens, novos valores e ideias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra
coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo.” (CHAUÍ, 2006, p.9).
A grandeza de seu início se estende pelo tempo a fora, com o único intuito: durar a
vida toda. “[...]A fundação visa a algo tido como perene (quase eterno) que traveja e sustenta
o curso temporal e lhe dá sentido. A fundação pretende situar-se além do tempo, fora da
história, num presente que não cessa nunca sob a multiplicidade de formas ou aspectos que
pode tomar.” (CHAUÍ,2006, p.9 e 10).
O mito fundador só permanece no contexto histórico da cultura. Os antecedentes
históricos do conceito de cultura remontam ao século XVIII e no princípio do seguinte, o
termo germânico Kulturera utilizado para simbolizar todos os aspectos espirituais de uma
comunidade, enquanto a palavra francesa Civilization referia-se principalmente às realizações
materiais de um povo. De acordo com Laraia (1989) ambos os termos foram sintetizados por
Edward Tylor (1871) no vocábulo inglês Culture, que tomado em seu amplo sentido
etnográfico é este todo o complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis,
costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de
uma sociedade. De acordo com Laraia(1989), com esta definição Tylor(1871) abrangia em
uma só palavra todos as possibilidades de realização humana, além de marcar fortemente o
caráter de aprendizagem da cultura em oposição à ideia de aquisição inata, transmitida por
mecanismos biológicos.
Localizado no Alto do Cruzeiro que é um bairro simples da cidade, é nítido na dança
do grupo as características do samba e do xaxado. O Coco e Raízes de Arcoverde, em 2005
fez uma turnê em cinco países, difundindo a cultura do coco por entre: França; Bélgica; Itália;
Noruega e Alemanha, transmitindo assim a sua forte energia que é composta por história e
trupé, ritmo forte e delimitado, que envolve os movimentos dos dançarinos conforme a
marcação que é feita pelos tocadores que, na realidade se comunicam na maioria das vezes
entre: ganzá, bombos, zabumbas, caracaxás, pandeiros e cuícas. Reunindo pessoas que ao
ouvir a alegria da festa que o coco faz, são logo convidadas para entrar na roda.
Hoje a cidade de Arcoverde possui um grande pólo cultural do samba de coco, cultura
essa que foi difundida desde 1952 que se movimenta por todo o tempo fortalecendo-se e
chamando atenção por sua tamanha grandeza histórica.
Assim o Coco e Raízes de Arcoverde vão imprimindo identidade, contribuindo com
identificações num exercício permanente de afirmação ancestral e ressignificação, onde “A
memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como
coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento
de continuidade e de coerência de uma pessoa, de um grupo em sua reconstrução de si”.
(POLAK,1992).

II. REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO.

Levando em conta o objetivo do presente estudo que visa analisar e registrar a história
observando como se comporta o grupo na contemporaneidade, realizamos os seguintes
procedimentos de investigação: Levantamento de dados: Inicialmente pretende-se fazer
através da pesquisa bibliográfica uma contextualização com a realidade do objeto de estudo,
para daí então fundamentar uma temática alvo para ser desenvolvida sobre o grupo Samba de
Coco e Raízes de Arcoverde; Entrevista: A realização de entrevistas ocorreu do dia 01/06/12
ao dia 03/06/12 onde foram ouvidos todos os integrantes do grupo samba de coco, totalizando
15 horas; na cidade de Arcoverde, na sede do Samba de Coco e Raízes. Análise de dados: As
entrevistas foram transcritas e analisadas juntamente com as informações coletadas, foi feita
uma arqueologia das entrevistas que resultou em um melhor potencial de informações, pois
partiu de um contado direto, onde foi possível identificar questões referentes à dinâmica do
grupo na atualidade.
A música é uma forte ferramenta de expressão, na qual exterioriza as características
históricas de um grupo demonstrando cultura e identidade. O som, o ritmo, a letra, a dança
são demonstrações, são sentimentos musicados. Esse percurso musical torna-se forte pela
influência que ganha para si, quando em sua roupagem consegue unir o coletivo, construir
derivações de sentidos e assim, a aproximação das pessoas.
O músico une em si, história e arte. Conjuga sentidos, e nesse mesmo movimento
consegue tocar o outro com a sua profundidade e simbologia. As suas composições, as
palavras contidas, os trocadilhos e brincadeiras, demonstram de forma poética uma releitura
da realidade, vista pelo olhar delicado e cauteloso do artista. Visita com vivacidade e força
profunda um passado, que relembra a dor, a tristeza o cansaço e amargo gosto de quem sofreu.
A saudade, o sentido da família, á identidade incontida a crueldade lançada sobre um povo.
O significado da musicalidade vai muito além do que a letra simplesmente lida, ou
acompanhada. A música consegue prender em si, sentidos; símbolos; eu’s vida e morte.
Mesmo não voltando ao dia exato historicamente falando, a música na sua empreitada de
releituras consegue recontar um tempo de forma, que ao ser cantada faz o tempo passado
tornar-se presente, trazendo-o mais próximo e o ressignificando. Os sentimentos de outrora e
todo um contexto de vivencias, conseguem ser manifestados de forma multifacetada, em uma
época presente. A música é um dos elementos constitutivos de identificação e pode ser
reveladoras de vínculos de identidade.

A identidade é um conceito multidimensional, podendo ser abordado na perspectiva


pessoal e social, ou seja, individual e coletiva. O significado de identidade pessoal,
na dimensão do senso comum, está compreendido como a identificação dos sujeitos
enquanto expressão de sua individualidade, na dimensão social relaciona-se com
processos efetivamente políticos de afirmação e ressignificação das diferenças,
geralmente entendidas por contraste e oposição. (SILVA, 2010.p.167).

Na música observamos que, a mensagem musicada é um jogo de representações que


semelhantemente se iguala às vivencias de um povo ou grupo, que assemelham o que escutam
naquele ritmo da dança, a todo um conjunto de familiaridades, de aceitações e de não
aceitações. As danças são movimentos compassados de alegria e descontração, um espaço
onde os indivíduos se envolvem em meio a um mundo coletivo, sendo ao mesmo tempo um
mundo de subjetividades tornado também particularizado e individualizado pelo coletivo. A
dança também pode ser executada em forma de ritual, onde os indivíduos transcendem o plano
humano e terreno, e passam por outras conexões, podendo ser elas a conexão com o divino e
outras entidades cultuadas, que variam de cultura para cultura. O comportamento das danças
para o negro é rico em significados, não esquecendo que a dança foco deste artigo é o coco,
que se enquadra a uma dança dinâmica e feliz. Sendo assim,

As danças que estamos falando são ritmadas, coletivas, agitadas e divertidas.


Oferecem oportunidades de contato e apoio corporal entre os dançadores e o
público. Os movimentos vivenciados nestas danças são comuns a todos e ao
mesmo tempo proporcionam possibilidade de variação pessoal. O canto e o
instrumento são introduzidos como parte do movimento. Com esta prática
pretende-se descontrair, no sentido literal de tirar a contração, estabelecer
relações interpessoais e de grupo e, ainda, ampliar o conteúdo cultural da
prática artística. (SILVA; CARDOSO.2007.p.03).

É clara a complexidade observada a partir do interior das sensações de um indivíduo,


que vivencia a relação de não aceitação do corpo, por toda uma história de dominação e
subordinação dos sujeitos entre elites dominantes e dominados. Sendo assim inicia-se uma
diáspora entre as conjunções pessoais enraizadas pelo quadro familiar de tradição e cultura, e
o meio tendenciosamente opositor contraditório conflitante “O mundo do branco” que emana
conjecturas ainda ditatoriais em relação a multiculturalização e mestiçagem tencionando cada
vez mais a construção das referências que são estruturantes para a construção identitária do
negro, que passa pelo processo de aceitação e ressignificação. Já que a força, o brado, a voz
e o discurso são constituídos através “de” e “a partir de”, esse indivíduo precisa formular o
seu próprio discurso embasando-se em fatores históricos socioculturais que tornam sua
emancipação pessoal mais fácil e consegue assim facilitar o processo evolutivo do
fortalecimento de sua identidade. A partir daí consegue imprimir as suas impressões e torna-
se crítico, autônomo de si mesmo. Todas as influências, observadas são relevantes no processo
de caracterização do discurso. Citando Neuza Santos Souza no livro: Tornar-se Negro no qual
inicia o seu afirmando que: “Uma das formas de exercer autonomia é possuir um discurso
sobre si mesmo” (SOUZA, 1990, p.17). Evidencia-se o interesse pelo conhecimento de si
mesmo, ou seja, valorização de si, olhar para si, com menos apego as fixações dos outros, ao
olhar do outro. Não permitindo a partir daí o embasamento importuno que os preconceitos no
geral podem suscitar. Concluímos que o processo cultural identitário do sujeito ocorre a partir
de uma constante construção, que reúne em si passado, presente e futuro, fomentando cada
vez mais novas caracterizações e influencias para si, atenuando a hibridez da sua característica
primeira; cito Hall que afirma:

As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas


também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso
– um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações
quanto a concepção que temos de nós mesmo. [...] Esses sentidos estão
contidos nas histórias que são contadas sobre a nação, memórias que
conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas.
(HALL.2011.p.51).

O corpo é parte sensível, que percebe o mundo e dialoga com ele. O corpo humano
afetivo e dinâmico, instável e próprio. Conhece suas possibilidades, assim como suas
limitações. (SILVA; CARDOSO, 2007). O corpo é possibilitado a todo um dinamismo, que é
observado na dança que também é proporcionado pela mesma. A dança é uma expressão
corporal de movimentos produzidos pelo corpo, captada através do ritmo percebido e sentido,
que comunica-se com diversos instrumentos podendo ser eles de cordas ou de percussão. A
dança acentua a liberdade, promove a leveza, o desprendimento e interação. Une-se com a
forma pessoal de cada dançarino ou participante, que no contexto corpóreo faz envolver um
“todo coletivo” que unidos e embalados pela música, ritmo e também pela conjuntura de
significados consegue unificar, igualar musicalmente, colocando os indivíduos envolvidos por
ela em linhas lineares que resultam momentaneamente em um encontro de várias pessoas que,
juntas, aproveitam um momento que passa a pertencer a eles mesmos, pois todos os símbolos
visíveis se encontram com a subjetividade de cada um, reunindo tempo e espaço. Conectando
toda a história e seus compostos, em seus novos personagens do presente. O corpo é uma
imensurável estrutura que atrai para si olhares, que aprofunda e reestrutura valores e fomenta
a curiosidade, já que podemos dizer que o corpo é a casa da identidade, pois a identidade
também está no corpo. Pois a dança possui todo um anexo de sensualidades, não sendo
necessariamente sexualizada. Sendo assim,

A percepção corporal necessária para o bailarino de dança-afro não deve estar


descolado da razão histórica pelas quais se justificam tanto o ritmo quanto a
musicalidade, utilizadas pela cultura afro-brasileira em suas manifestações. Esta
corporeidade exige dos bailarinos uma aceitação do seu corpo, do corpo do outro e
de suas raízes africanas para ser fiel ao que a dança-afro brasileira se propõe:
provocar a emoção e reconhecimento histórico. (SILVEIRA; SILVEIRA; PAZ,
2011.p.9).

A imagem visualizada pelo negro em seu espelho multifacetado de histórias e


instrumentos, que interagem juntos na descoberta infinda do reconhecer-se e sentir-se,
descobrir-se e aceitar-se. A parte que se vê é o reflexo que uma diversidade de fatores sócio
culturais, que envolve o tempo e a sua própria subjetividade. A dança afro-descente torna-se
rica pela sua imensidade histórica, que proporciona cada vez mais reconhecimento e
conscientização. A música possui uma abordagem descontraída onde observa-se muitas
expressões, dentre elas a de identificação e contentamento. Pois a música agrega em sua
estrutura de letras elementos oníricos e psicológicos que colocam e envolvem os participantes
em um grande encontro, em um único movimento, onde o perceptível é conectado a toda uma
energia que é transmitida pelos participantes, incluindo os sons dos instrumentos, os
movimentos corporais e as vozes unidas em uma harmonia formando uma sintonia para esta
dança. Que fortalece a cultura- afro e introduz cada vez mais os negros em uma atividade de
reconhecimento de si mesmos e da sua cultura raiz, assumindo sua negritude e relevância
histórico social. Trazendo a fala de Carlos Sandroni etnomusicólogo, músico e compositor
onde ele declara para a equipe do Diário de Pernambuco212em 2013 a importância das
pesquisas e ao término das mesmas, a devolução desse material para o objeto estudado, para

212
A trilha sobre o mapeamento etnográfico de Mário de Andrade, foi também tema de uma reportagem do
Jornal Pernambucano Diário de Pernambuco Pesquisadores refazem missão do modernista catalogando registros
sonoros folclóricos de PE e da PB, onde é observado várias manifestações de cultura popular, onde a décadas se
faz necessário a preservação dos dados das pesquisas. No entanto, em 2003 alguns pesquisadores da UFPE do
departamento de musicologia, entrou em missão em duas cidades, nas quais foram também as duas únicas
visitadas por Mário de Andrade em 1938. Ou seja, a idéia dos pesquisadores é refazer o trajeto nas cidades de
Tacaratu e Arcoverde, para reavaliar o estado atual das culturas do coco e aboiadores. Estando hoje extintos o
aboiadores, e o Coco Raízes tornou-se referência Nacional da cultura do coco Brasileira, registrando sua cultura
também internacionalmente. (Michelle de Assumpção - da equipe jornalistica do Diário de Pernambuco).
uma preservação da história, pois: “Ajuda a devolver um pouco da memória das pessoas, e
dessa forma reativar algumas coisas já esquecidas", avalia Sandroni.

A aceitação das danças de inspiração africana no Brasil comumente ocorrem com a


legitimação social da Umbanda, religião de matriz africana com influência do
Kardecismo, contribuindo com a fixação e a valorização de raízes da mestiçagem
projetadas no país. Deste modo, as danças dos terreiros de Cambomblé, comuns em
Salvador-Ba, desde os tempos pós-abolição passam a ter espaço na sociedade
brasileira, difundindo-se, primeiramente pelo Rio de Janeiro e chegando a São Paulo
com migração nordestina. (SILVEIRA; SILVEIRA, PAZ, 2011.p.10).

III. OS ELEMENTOS SONOROS DO COCO E RAÍSES DE ARCOVERDE.

O som, a música, o bater forte do tamanco de madeira no chão com o seu toré, dá
autonomia sonora a musicalidade transmitida pelo grupo Coco e Raízes. Formam juntos uma
dinamicidade reunindo em si, a história que faz ponte direta com a vida dos antepassados do
coco. A música tem o poder de reunir os tempos, formular através do sonho e da imaginação
e de toda uma criatividade uma nova forma que embora a realidade seja desanimadora o sonho
de um futuro melhor emana para o presente, esperança e força. Fazendo juras de amor
simplóriamente, poetizando toda a realidade e personalizando o “coco” dançado e vivido pelo
grupo. O Coco e Raízes de Arcoverde com sua unicidade, que se dá na sua personificação de
toda uma cultura, que através do tempo resiguinificou-se e a partir da interação foram
reunidos fatores e características do “hoje” dessas pessoas que fazem nessa
contemporaneidade o momento atual do grupo. Foi se produzindo uma forte tradição, na qual
as pessoas do grupo transmitiam para a geração atual a cultura cultivada pelos Calixtos, onde
existe uma missão que é reproduzir e transmitir a cultura coquista de geração pra geração. É
observado uma facilidade munida de simplicidade, pois o coco surge em uma brincadeira, de
quebra coco, os escravos dançavam coco para repelir toda dor que sentiam no decorrer do dia.
A dança faz demonstrações de vivacidade, os dançarinos se tornam instrumentos e porta voz
da história passada dos cocos primeiros. A brincadeira também é de índio e é identificada
facilmente no movimento que a dança do coco faz. O coco cirandado é a forma de dançar em
dupla ou em um grupo de mais pessoas; em entrevista ao grupo foi identificado diversas
semelhanças entre os índios e escravos negros, onde ainda hoje não se sabe ao certo quem
começou a dançar o coco. É forte a forma com que o grupo se comporta, ao dançar reúne em
momentos singelos significados históricos que fazem parte de toda uma viagem ao tempo.
O início do Coco e Raízes de Arcoverde originalmente foi em 1992 a partir do grande
coquista: Luis Calixto (Lula), que com toda a sua doçura vendia doces de tabuleiro pelas ruas
de Arcoverde, mas trazia consigo sempre uns pífanos e sempre acabava fazendo umas
emboladas, e logo em seguida tocava um pouco de coco. Foi aí, que começou a chamar
atenção: esse homem alegre e simples que encantava de criança a adulto, com a sua música
criativa e alegre que parecia mais uma brincadeira, isso foi um forte atrativo para a iniciação
do Coco e Raízes e para o resgate da cultura do coco na cidade. Então toda essa brincadeira
de Calixto, chamou o olhar curioso da Recifense Maria Mélia que acabou encantando-se pela
dança do coco, e daí por diante começou um forte elo entre Lula Calixto e Maria Mélia, ela
por sua vez foi até o Recife com o intuito de estender e aprofundar essa manifestação cultural
dando-lhe mais condições e aproximando-a mais das pessoas. Então trouxe da Capital
Pernambucana: um surdo que é um instrumento de som grande, muito utilizado em escolas de
samba, e sua produção pode ser tanto de madeira como também de metal, esse instrumento
geralmente é utilizado para marcar a marcha; também trouxe um pandeiro, característico do
samba, que por sua vez no coco mistura-se com o Pife; trouxe um triangulo é metálico
utilizado para marcar os passos e acetinar a batida forte do surdo que também está presente
no forró e no samba; e para finalizar trouxe um ganzá que é um instrumento de percussão
considerado um chocalho que ao ser agitado transmite um som de balancê, e com o tempo foi
incluso no conjunto de instrumentos utilizados pelo coco Raízes de Arcoverde. Os tamancos
de madeira utilizados pelos dançadores do coco que surgiu do tempo que as pessoas faziam a
mazuca (preparação do barro para as casas de taipa), acabavam usando um sapato de madeira
para amassar o barro comenta Francisco de Assis em entrevista a um blogger213 de Arcoverde-
PE. Mas ainda assim, o coco na cidade já havia sido iniciado com a família Lopes e a família
Gomes, que foram o porta voz nessas circunstancias primeiras, e com muita ênfase enalteço
o grande Ivo Lopes que já movimentava a dança do coco na cidade. Com o seu falecimento a
cultura fora silenciada desde 1987, porém no ano de 1992 o Samba de Coco e Raízes foi
formado oficialmente e também, foi estabelecido o resgate por Lula Calixto e os demais
dançadores do coco e componentes do Coco e Raízes de Arcoverde. Lula Calixto propagava
o coco em forma de oficinas, onde utilizava as escolas como alvo, principalmente os jovens e
crianças, e assim foi obtendo admiradores e cada vez mais pessoas se interessavam pela dança
pois nessas oficinas também era ensinado a dançar coco. Lula Calixto morre em 1999,
deixando enraizado o seu sonho tão especial que foi por muitos anos até a sua morte a cultura
do Coco e Raízes.

213
Disponível em:<http://arcoverdeecia.blogspot.com.br/2011_07_01_archive.html>. Acesso em 18 jun. 12 ás
23:25.
Em todo o movimento da dança é observável uma sincronia de elementos que reúnem
reinvindicações, porque o bater dos pés no chão da mazurca e do trupé214 vem da auto
afirmação, que está totalmente em ligação com o seu próprio reconhecimento, é a força que
vem dos pés dos dançarinos do coco. Há diferenças marcantes entre a poesia dos cocos apenas
cantados e a daqueles encontrados na dança. (AYALA, 2000, p.31). A poesia encontrada no
coco é uma poesia que volve um enredo, que inclui o Puxador, pessoa que puxa o coco, e ao
mesmo tempo chama o restante do grupo que por sua vez fica responsável pelo coro e refrão,
partes da música que são repetidas várias vezes. O ritmo dos dançadores de coco possui
semelhanças vindas dos escravos quando em suas senzalas presos por correntes em seus pés
não podiam dançar de forma livre e dinâmica, apenas arrastando os pés descalços ou calçados
por chinelos de couros de animais confeccionados por eles mesmos, por isso, a dança atual do
coco é variada, isso decorre de suas fortes influencias que variam de região para região. No
caso dos índios é observável também o passo não dinâmico que se assemelha ao toré, quando
na dança os índios fazem marcações apenas de um passo só. A dança no coco está sempre
relacionada à alegria e a dor, coragem, amor, e felicidade formando um tipo de poesia do
corpo; as composições do Raízes remete ao cotidiano do homem Sertanejo, as suas
dificuldades e suas paixões que com a musicalidade do coco e dos seus passos conseguem
vivificar sempre o que oralmente é pronunciado. A aproximação do imaginário com o real é
uma ligação original e autentica do grupo, que retrata de forma simplória todo um percurso
pelo mundo dos sentimentos e o das obrigações estando em foco também fortes relatos de
trabalho duro, todas essas características juntas modificam o sentido metamorfoseado do coco
a cada momento, sendo assim parte de um processo de inacabamento que sucumbe ainda
vários mistérios.

Quando se busca o entendimento do que é a brincadeira do coco por intermédio de


seus cantadores e dançadores, vão surgindo peças de um grande quebra-cabeças que
revelam, entre fios da memória, a maneira como constroem a sua história , vinculada
intimamente com as suas vidas, com a sua história de seus versos, de seus cantos,
de seus passos. Com a convivência acentuada, vai se revelando a história oculta de
um coco ou outro, o que motivou sua criação, quem fez os versos, quem escolheu a

214
“Antigamente a dança era conhecida como mazuca, mas o trupe foi criado a partir dos tamancos (...)
geralmente o coco feito aqui em Arcoverde era tocado apenas com um Ganzá, feito com lata de leite ninho, com
pedras ou caroços de milho dentro. Era um instrumento só, para se dançar a noite toda. O grupo Raízes hoje já
usa surdo, o triângulo, o padeiro, o ganzá e o trupe, que é um instrumento (...) Quando surgiu o coco no nosso
Brasil , era com maracá de índio (instrumento indígena em forma de chocalho), já que o coco também tem muito
da coreografia indígena. Já no litoral se usa mais a alfaia, mais instrumentos e uma dança totalmente diferente,
é uma dança mais solta, com menos pisada, e dançada mais em compasso. Aqui no sertão temos coco trocado e
de lenço entre outras. Assis Calisto”. (BARRETO, 2008, pág.44).
melodia. (AYALA, 2000.p.240).

Os fragmentos da musicalidade negra do coco em sua história se mostram de forma


imortal, fazendo permanecer viva a história de grandes dançadores coquistas e também pelos
relatos de casos vivenciados pelos antigos, que de forma híbrida permanecem percorrendo o
tempo. Em meio a tantas dificuldades vivenciadas pelos grupos de cultura popular
especificamente do coco, são relatadas diversas situações onde a cultura é desvalorizada,
mesmo sendo forte polo turístico da cidade de Arcoverde que é ao mesmo tempo propulsor
turístico da mesma. Assis Calixto em entrevista faz declarações de como o Samba de Coco e
Raízes de Arcoverde tem se comportado em relação a comunidade e a difusão da cultura para
os jovens e o todo no geral. “A dificuldade do grupo é o reconhecimento que não tem. E na
própria cidade nossa, não tem esse reconhecimento, como é uma cultura que está
representando a cidade. É a verdade. A gente tá no mundo pra falar a verdade, não adianta
cobrir o sol com a peneira. Então eu digo, tem ajuda tem. A prefeitura ajuda. Mas não é a
ajuda necessária. E não é a ajuda financeira, mas o reconhecimento. Assistir os ensaios... a
comunidade participa pouco. Temos aqui os ensaios na sexta-feira à noite aberto a todo mundo
que quiser vir, aprender a dançar. A gente tema vontade de ensinar. Não só no ensaio, mas
qualquer dia se chegar pessoas que quer aprender. A gente tá aqui pra ensinar. Não se cobra
nada.” É notória a simplicidade, o interesse e a disposição do Seu Assis, no entanto o grupo
tem passado por sérias dificuldades pois os oito integrantes do grupo que são todos familiares
e têm o grupo musical como forma de sobrevivência, para assim obter uma renda fixa ou em
alguns casos uma renda extra.
No alto do Cruzeiro também está localizado o Ponto de Cultura do Samba de Coco e
Raízes de Arcoverde215, onde se localizava a casa de Lula Calixto que desde 1999 com o seu
falecimento, permaneceu como museu do Coco e Raízes de Arcoverde e assim permanece até
os dias de hoje. Mesmo com grande repercussão desde 1996, ano em que houve de fato um
maior conhecimento massivo do Raízes, o grupo continua mesmo com condições mínimas,
pois a emancipação do grupo de fato ocorre pela parceria de ONG’s, Cooperativas de Cultura
e pelo apoio dos colaboradores do governo Federal, Municipal e Estadual sendo alguns deles
: Ministério da Cultura, e Fundação Nacional de Artes (Funarte).

215
O Ponto Cultural do Coco e Raízes de Arcoverde é o ponto de encontro do grupo, onde estar arquivado todo
o histórico do Raízes, contendo: fotos; instrumentos; chaveirinhos customizados por Assis Calixto e também os
tamancos que são utilizados na dança. E São oferecidas também oficinas de dança e artesanato.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Samba de Coco e Raízes de Arcoverde tem dado visibilidade a parte da ampla


expressão da cultura afro-brasileira presente no Estado de Pernambuco, em especial na cidade
de Arcoverde. A existência do grupo ampliou a visibilidade da cidade. A musicalidade negra
presente no Samba de Coco Grupo Raízes, é integrante de uma ancestralidade afro-indígena.
Percebemos que a herança afro-indígena presente no Coco, remonta a outras trocas
culturais como a mazurca e as batidas do trupe.
Considerando a sua trajetória e tendo o grupo passado por alguns infortúnios, o grupo
tem conseguido se manter firme na ação cultural na cidade, no estado de Pernambuco e tem
levado sua arte para fora do país. No entanto, como todo processo de resistência cultural, não
está ileso das crises e dificuldades que giram em torno do financeiro que diz, da sua forma de
sobrevivência e das complexidades também, da disseminação cultural que como foi
apresentado durante o texto passa por dificuldades.

REFERÊNCIAS

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século XX. Estudos avançados, v. 13, n. 35. São Paulo: USP,2000.
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Cortez, 2007.
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2004.
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2001.
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ed.-Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
SANTOS, Marcelo Burgos. O turista aprendiz: breves notas e observações sobre a viagem de
formação de Mário de Andrade. Literatura-artigos. n.6, 2009. São Paulo: PUC,2009.
SÁ, Maria Gisele; SANTOS, Sheila Gomes; PAIVA, Carla Conceição da Silva. Samba de
Coco: ensaio fotoetnográfico sobre elementos folkcomunicacionais presentes na identidade
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Guarapuava/PR-8 a 10 de outubro de 2009.
SILVEIRA, Roberto Cardoso; SILVEIRA, Íris Camargo; PAZ, Ariane. Identidade negra em
construção: um estudo sobre o processo de identificação das jovens negras através da dança
Afro. In. XI Congresso Luso Afro Brasileiro de Ciências Sociais: Diversidades
(Des)igualdades Salvador: UFBA. Campos de Ondina. 07 a 10 de agosto de 2011.
SANTIAGO, Maria Eliete; SILVA, Delma Josefa; SILVA, Claudilene. Educação,
Escolarização e Identidade Negra: 10 anos de pesquisa sobre relações raciais no
PPGE/UFPE, Recife: Universitária UFPE, 2010.
SILVA, Vivian Parreira; CARDOSO, Mariela Pinheiro. Danças populares brasileiras. São
Paulo: UFScar, 2007.
SOUZA, Neuza .Santos. Tornar-se Negro. Rio de Janeiro: Graal, 1990.
TYLOR, Edward B. Primitive Culture. Londres: 1871.
PERSPECTIVA ARENDTIANA SOBRE EDUCAÇÃO: Crise no Ensino Jurídico
Nacional

Jenniffer Karyne Arruda Silva216

RESUMO

Partindo da exposição de Hannah Arendt sobre a crise na educação, o presente trabalho tem
por base o uso de conceitos arendtianos– como tradição, autoridade e política – que são peça-
chave para entender o fenômeno do sucateamento da educação brasileira. Com isso, o presente
trabalho tem por objetivo analisar o cenário referente à oferta dos cursos de graduação em
Direito, dado que a relação da educação com fatores externos é responsável por prejudicar o
desenvolvimento crítico e autônomo dos indivíduos, pois, há uma submissão a métodos
tecnicistas advindos da dinâmica do capital. Essa análise torna-se pertinente dado os eventos
atuais do governo brasileiro, o qual permitiu a abertura indiscriminada dos cursos de Direito.
Apresentando, assim, como consequência a baixa qualidade do ensino ofertado, além do
distanciamento ético no exercício das funções profissionais, que perpetua um sistema
excludente onde não há reconhecimento de elementos tidos como base da identidade cultural
do país.

Palavras-chave: Educação. Política. Direito.

INTRODUÇÃO

A educação ofertada na escola é um fator imprescindível para a sociedade e,


independentemente de ser tradicional ou construtivista, tem por fim a formação do indivíduo
e sua inserção na sociedade. Porém, assim como boa parte das relações humanas, é objeto das
dinâmicas políticas, principalmente no que tange os países da América Latina.
Essa vinculação é responsável por prejudicar o indivíduo no que diz respeito ao seu
desenvolvimento crítico, dado que a educação se encontra subjugada a um método meramente
tecnicista. Esse é um dos problemas serão expostos no artigo, que visa analisar, com base nas
exposições de Hannah Arendt, o cenário do ensino superior de Direito no Brasil.
Arendt em sua obra “Entre o Passado e o Futuro”(1961), especificamente no capítulo cinco,
que retrata a crise na educação, abrange questões como a importância do afastamento da
educação do âmbito político. Pois, essa tende a ser instrumento da vontade de terceiros que
visam atender a demandas mercadológicas.
A partir da ditadura militar, o Brasil apresenta uma crescente oferta de cursos

216
Graduanda em Direito pela Universidade de Pernambuco – Campus Arcoverde. Membro do Grupo de
Pesquisa Incertae. E-mail: arrudajenniffer@gmail.com
superiores. Com o período pós-redemocratização, o Direito tem sido um dos cursos com
maiores números de instituições e inscritos (AGAPITO, 2016). Sua expansão se deu
principalmente no setor privado, fato que não ocorreu nas universidades públicas, que
possuem cada vez menos recursos para realizar atividades como pesquisas, por exemplo.
Sendo assim, além da mercantilização do Direito, a expansão da oferta de seu ensino
tem se mostrado duvidosa, pois o aumento quantitativo não tem sido proporcional à qualidade
do que está sendo apresentado. Por esse motivo, à luz do pensamento filosófico de Hannah
Arendt e outros estudiosos, serão feitas análises da situação já mencionada.
Isto posto, o presente artigo visa analisar o cenário do ensino superior de Direito no
Brasil buscando respostas relacionadas às implicações decorrentes de jogos políticos,
principalmente no atual governo brasileiro, que subjuga a formação do indivíduo a interesses
de particulares. Além de também observar consequência já existentes na atuação de juristas,
como por exemplo a desumanização ao aplicar o Direito na realidade fática.
Quanto à metodologia, faz-se necessário expor os métodos nos quais o texto foi
formulado. A abordagem teve por base o método hipotético-dedutivo, pois, com base na
definição de Prodanov e Freitas (2013), o uso foi pertinente pelo fato de englobar os aspectos
propostos na pesquisa, partindo de premissas do conhecimento prévio, as quais formam um
problema, e, a partir disso, são formuladas hipóteses que, através de um processo dedutivo,
testa o acontecimento dos fenômenos. Que são correspondentes a um campo mais específico
(o ensino do Direito nas instituições de ensino superior)
Já com relação ao procedimento, predominantemente, houve uma análise com base
histórica. Pois,
[...] colocando os fenômenos, como, por exemplo, as instituições, no ambiente social
em que nasceram, entre as suas condições “concomitantes”, torna-se mais fácil a sua
análise e compreensão, no que diz respeito à gênese e ao desenvolvimento, assim
como às sucessivas alterações [...] (MARCONI; LAKATOS, 2010, p. 89).

O método histórico faz-se presente quando se põe em foco a formação histórica da educação
brasileira, correspondente tanto o período imperial quanto o regime ditatorial.
Bem como, fez-se uso da pesquisa bibliográfica e documental. A primeira refere-se ao
material encontrado em bibliotecas, que geralmente são impressos, já a pesquisa documental
relaciona-se ao uso de meios mais informais, onde não necessariamente houve um tratamento
analítico (GIL, 2002). Esses dois métodos se enquadram no presente trabalho no que diz
respeito ao uso do capítulo específico da obra “Entre o Passado e o Futuro”(1961), assim como
também a análise de artigos e sites que expunham a situação analisada.
1 CRISE NA EDUCAÇÃO: ANÁLISE DOS PRINCIPAIS CONCEITOS
ARENDTIANO

Hannah Arendt, em seu livro: “Entre o Passado e o Futuro” (1961), dedica um capítulo
fundamentado na crise da educação vivida no contexto dos anos cinquenta, produto de sua
vivência nos Estados Unidos. O texto é o único no qual a autora disserta sobre a educação.
Sendo correspondente ao período escolar, tem por base conceitos-chave, a exemplo da
natalidade, que serão explorados para proporcionar a compreensão de sua exposição e do
plano fático exposto neste artigo.
O contexto internacional responsável por inspirá-la era marcado pela força da globalização
pós-guerra, onde a educação encontrava-se defasada, pelo fato de estar a serviço de um mundo
em que se buscava adequar as estruturas sociais ao mero saciamento de desejos do homem
laborans (homem que trabalha de modo alienado, agindo somente com base nas relações de
consumo). Assim, põe-se em xeque sua formação social para atender aos desejos de consumo
(CEZAR; DUARTE, 2010).
Quando se fala em crise na educação “certamente, há aqui mais que a enigmática
questão de saber por que Joãozinho não sabe ler” (ARENDT, 2014, p. 222). Pois, o tema não
envolve apenas um planejamento educacional de determinado Estado. Além da autora, outras
personalidades refletiram acerca da crise e as possibilidades que essa oferece ao homem no
tocante à reformulação de arcabouços teóricos enraizados.
Para a Hannah Arendt, a crise é responsável por despir todos os conceitos pertencentes
a uma instituição. Possibilitando, assim, a apuração daquilo que presumidamente é atribuído
à essência aliada à desconstrução de preconceitos e paradigmas (2014). Em suma, a crise
apresenta-se como fator positivo uma vez que, além de proporcionar a problematização e a
reformulação de conceitos, também se associa à politização e à importância relacionada à
tradição e autoridade.
O ponto central do capítulo analisado é a natalidade. Não no simples fato de um
indivíduo vir ao mundo, mas o seu nascimento vinculado às estruturas sociais vigentes,
representando o novo também na esfera pública e política. Ou seja, a cada novo indivíduo, há
uma chance de modificar estruturas sociais já consolidadas.
“A renovação do mundo a partir dos nascimentos nos deve fazer refletir sobre um tipo
de educação que nos faça assumir o compromisso com o próprio mundo” (FERRARO, 2014,
p. 189). Ao reconhecer a importância da educação e sua capacidade de renovação, tendo em
vista a natalidade, Arendt nos apresenta um conceito denominado amor mundi. Que, quando
posto na questão educacional, se vincula com o cuidado do adulto para com a criança, pelo
fato de mostrar o mundo como ele é e por garantir que haja a perpetuação da vida através
dessa reestruturação (2014).
Assim, a natalidade torna-se o fator responsável pela necessidade de educar devido à
possibilidade de convivência no mundo entre o velho e o novo. Logo, o mundo

Trata-se daquele espaço institucional que deve sobreviver ao ciclo natural da vida e
da morte das gerações a fim de que se garanta alguma estabilidade a uma vida que
se encontra em constante transformação, num ciclo sem começo nem fim no qual se
englobam o viver e o morrer sucessivos (ASSIS; DUARTE, 2010, p. 825).

Segundo Arendt, a grande questão é a conciliação entre a capacidade de


renovação/revolução, que é constante, e a necessidade de manter as tradições responsáveis por
assegurar a existência do mundo. Sendo assim, a educação é o limiar cujo papel consiste em
acolher os mais novos ao mesmo tempo em que deve limitar a constante capacidade de
mudança.
Relativo à autoridade, o pensamento arendtiano em nada se relaciona com a imposição
das vontades de uma classe dominadora (adulto/professor) para com uma dominada
(crianças/alunos). Quando discorre sobre o assunto, a filósofa política busca evidenciar a
responsabilidade perante o mundo. Pois, a autoridade diz respeito justamente ao compromisso
estabelecido entre o mundo adulto e o infantil, onde, aquele possui a responsabilidade de zelar
pelo desenvolvimento crítico e revolucionário desse.
No campo da educação, deve haver um esclarecimento no que diz respeito às
competências dos professores, pelo fato de ser uma condição distinta dos demais adultos. Diz
a autora que a competência do professor consiste em conhecer o mundo e em ser capaz de
difundir os conhecimentos advindo dele. Mas, a sua autoridade é fundada em sua função de
responsável pelo mundo. Ou seja, perante a criança, com base em sua autoridade, cabe a ele
dizer, apenas, “este é o mundo”. (ARENDT, 2014)
Embora seja possível observar a questão em torno do que seria responsabilidade da
escola e dos pais, a alemã infere que o adulto – tanto o professor como aquele do meio familiar
– deve assumir sua autoridade (poder de apresentar o mundo) frente os indivíduos em
desenvolvimento. Pois, trata-se de uma responsabilidade advinda da capacidade humana de
concepção, já que o ser humano se propõe a reproduzir essa constante capacidade de mudança
por meio do nascimento. E, mesmo a sociedade moderna enfrentando obstáculos no que diz
respeito a definir esses papéis, é preciso assegurar que cabe a escola, somente, ser um agente
intermediário.
O planejamento educacional, teoricamente, deve garantir o direito dos novos
indivíduos mudarem o mundo, ideia relacionada ao conceito natalidade já exposto
anteriormente. Não só isso, mas também deve condizer com a tradição, que se deve manter
para assegurar a existência e bem-estar das sociedades. Porém, com as relações modernas,
após o advento da teoria positivista, o homem tem tomado por base as relações de produção
para delinear a estrutura da sociedade.
Ao abordar a questão política, a autora não se posiciona a favor do cunho apolítico da
educação, mas sim ao tratamento dado em um contexto apartado. Tendo em vista que, quando
essas searas estão diretamente imbricadas, a educação tende a ser objeto da dinâmica de poder,
onde, o planejamento educacional passa a atender interesses e as escolas passam a ser fábricas
de relações de consumo.
Como consequência, há uma padronização aliada à submissão à política, pelo fato de
que a educação é impedida de realizar aquela função para qual é imprescindível vinculá-la).
Tal mudança advém, geralmente, de países imperialistas que, em troca de assistência no
desenvolvimento de países como o Brasil, passam a ter liberdade para modificar a dinâmica
educacional. Essa mistura de modernas teorias educativas advindas desse processo, consiste
numa espantosa mistura de coisas com sentido e sem sentido, responsável por mudar todo o
sistema de educação em nome progresso (ARENT, 2014).
Pelo fato de utilizar o cenário americano pós-guerra, onde desenvolvia-se a política do
Novus Ordo Seclorum – a colonização cultural de imigrantes com base na força da
industrialização – existe uma pretensão com base no discurso educacional. Esse, geralmente,
é repleto de um fim utópico onde, somente através da educação, é possível alcançar uma
mudança no cenário político.
Hannah Arendt mostra-se contrária a esse ideal posto na educação, visto que se trata
de uma linha tênue envolvendo a política. Assim, a autora afirma que é educação lida com o
devir – relaciona-se à natalidade – devendo apenas, como já mencionado, lidar com a
apresentação do mundo como ele é. “A educação não pode desempenhar nenhum papel na
política, pois na política lidamos com aqueles que já estão educados (ARENDT, 1958, p. 25).
Desse modo, essa nova ordem e a mudança buscada no campo político devem ser
tratadas distintamente. Quando há confusão desses conceitos, a autora diz que ocorre uma
violação ao direito dos recém-chegados de buscar mudanças de acordo com suas concepções,
que devem ser construídas no período escolar.
Concernente à questão da tradição, quando vista em primeiro plano, podem surgir
questionamentos como ‘Hannah Arendt é favorável à repressão?’ ou ‘É conservadora?’,
porém, com a leitura de seu texto, é possível perceber que não versa sobre esse viés. Seu
posicionamento encontra-se baseado na historicidade da educação, pois identifica que

O problema na educação do mundo moderno está no fato de, por sua natureza, não
poder está abrir mão nem da autoridade, nem da tradição, e ser obrigada, apesar
disso, a caminhar em um mundo que não é estruturado nem pela autoridade nem
tampouco mantido coeso pela tradição (ARENDT, 1958, p. 245).

Como citado, a sociedade romana, em particular, prezava por seus antepassados e


valorizava a figura do ancião. Por isso, a educação era baseada no respeito ao que foi anterior
àquela determinada geração de crianças. Porém, com o desenvolvimento da sociedade pós-
moderna, é possível notar que já não há mais essa ligação, principalmente no que diz respeito
à subjugação da educação aos modos de produção e aos jogos políticos.
No mundo moderno, situação que se sucedeu na pós-modernidade, ocorreu um
desvencilhamento da tradição. Fato que também diz respeito a autoridade, pois obteve como
resultado um obstáculo na atividade do educador em compreender e ‘transmitir’ o mundo.
Pois, tem por uma de suas responsabilidades a mediação na relação alusiva ao passado e futuro
no ensino das crianças.
A vinculação entre esses dois conceitos implica em “[...] compreender o presente pelo
passado, não simplesmente devotar a aprendizagem a eventos passados descontextualizando-
a do tempo presente” (FERRARO, 2015, p. 189 apud ARENDT, 2011, p. 246). Essa
contextualização é imprescindível no entendimento de fenômenos como o regime totalitário,
pois as crianças educadas com ciência do passado, tendem a trazer perspectivas novas para a
sociedade, rompendo com um vínculo onde questões como essa poderiam voltar à tona pela
falta de conhecimento.
Durante o capítulo analisado, observa-se também a relação com o conservadorismo.
Além da autoridade, esse conceito também pode causar um impacto negativo na primeira
impressão, porque há, novamente, uma mistura entre os planos da política e educação. Pelo
fato de os indivíduos entenderem o conservadorismo como uma questão de manter status quo,
apenas. Mas, a conservação no âmbito educacional é tida como um meio de preservar o direito
de inovar.
Por esse motivo, a autora ratifica que é justamente para preservar essa noção do novo
e revolucionário em cada criança que a educação deve ser conservadora. Devendo proteger a
novidade e o espírito revolucionário das gerações, introduzindo-os num mundo velho, onde,
por mais revolucionárias e constantes que sejam as ações, sempre será velho e passível de
destruição (ARENDT, 2014). Isto posto, Arendt afirma que somente na educação essa ideia
de conservadorismo deve ser aceita. Pois, como mencionado anteriormente, somente nela há
o entendimento referente aos limites de interferência às crianças detentoras do poder de
mudança.
Relacionando o conservadorismo com a educação militarizada, observa-se que essa é baseada,
principalmente na disciplina das crianças e jovens, que devem seguir um padrão imposto.
Onde, na maioria dos casos, não espaço para divergências. Ou seja, a pessoa em
desenvolvimento – crianças e adolescentes – é impedida de expor e ir de encontro às
ideologias apregoadas, pois, estaria incitando a desordem. Desse modo, essa modalidade de
educação quebra com a necessidade, tanto do novo quanto do próprio mundo, de renovar as
perspectivas e as estruturas sociais.
Em síntese, a análise feita no capítulo discute a educação baseada na relação com a
natalidade, autoridade, tradição e conservadorismo. Tal feito torna capaz o entendimento da
profundidade que rodeia essa crise. Onde, desde a modernidade e suas relações complexas, há
cada vez mais mistura tais conceitos tornando difícil o entendimento da atuação da educação
e sua recorrente crise.
Com isso, tem-se a noção de que o aspecto da tecnicidade vai além do espectro
apresentado por Arendt – a educação básica –, visto que os cursos de graduação, mesmo com
indivíduos já educados, são passíveis de relações de dominação. Logo, fica nítida a referência
na qual a autora fazia ao tratar do ensino conservador, que não é atinte ao modelo engessado,
onde é perpetuada a apatia por questões políticas que refletem diretamente no cotidiano da
sociedade.

2 HISTÓRICO E PANORAMA DO ENSINO SUPERIOR JURÍDICO NO BRASIL

A visão crítica envolvendo a educação ofertada nas instituições de ensinoacompanha


o campo educacional desde seu desenvolvimento. Ao tratar do assunto, geralmente são
envolvidas questõeséticas emorais, pois a discussão tem por base a evolução do indivíduo
recém-chegado ao mundo e o modo como se portará perante ele, partindo, sobremaneira, de
sua formação educacional.
O contexto retratado na obra de Hannah Arendt mostra-se imbricado em diversos
lugares, não só com a realidade americana. Bittar – o autor base da análise da situação
brasileira – discorre acerca do assunto de modo que são encontrados traços que aduzem às
ideias da autora alemã. A exemplo da questão relativa ao desenvolvimento de planos
educacionais que visem o desenvolvimento da sociedade, devendo envolver a tradição dessa.
A educação possui, como explicitado no tópico anterior, a missão para com o novo, tendo em
vista que necessita manter o equilíbrio entre a manutenção da sociedade e a tradição, que deve
ser conservada (ARENDT, 2014). A formação do indivíduo apresenta reflexos não só no
âmbito pessoal, mas também no meio social. Pois, pelo fato de interiorizar o que lhe é
exposto durante sua formação, passa a tratar os indivíduos, posteriormente, com base na
consciência adquirida no período.
Faz-se mister uma construção consolidada na educação básica, como tratado no
capítulo analisado sobre a crise na educação, pois há uma reflexão no ensino superior e
formação do indivíduo. É imprescindível que a educação abarque:

Além da consciência cívica, para o exercício de direitos e deveres públicos, [...] a


formação da consciência nacional, uma vez que fortalece os laços históricos, éticos,
comunitários, restabelece ligações com o passado e as tradições culturais de um
povo (BITTAR, 2017, p. 117).

No atual momento político do Brasil – assim como em outros países – há quem


questione o por quê da educação servir a questões tão amplas, ou até mesmo a necessidade de
se voltar a disciplinas como filosofia. Esses questionamentos enraizados são responsáveis por
diminuir a importância da formação na qual o indivíduo torna-se capaz de compreender o
contexto em que está inserido, além da construção de um ponto de vista crítico na sociedade,
em que passar ocupar, efetivamente, o espaço público.
Segundo Ana Paula, o ensino superior brasileiro passou por um processo de
mercantilização, iniciado em 1964, onde houve a abertura para o setor privado na oferta
de serviços educacionais. Justificava-se a intervenção com base no discurso de que haveria
uma maior qualidade, eficiência e praticidade das atividades (AGAPITO, 2016). Mas, como
é sabido, esse ato prejudicou tanto as instituições públicas quanto a qualidade do ensino
ofertado.
A expansão do setor privado na educação deveu-se aos acordos do governo militar
brasileiro com os Estado Unidos, onde buscava-se o suprimento das vagas de trabalho
advindos de seu projeto imperialista. Somada ao método técnico de ensino, no qual os
indivíduos eram privados de pensar, a grade de ensino consistia em matérias referentes à
disciplina e ao desenvolvimento, como Moral e Cívica.
Durante o período ditatorial, houve um salto de cursos principalmente nas áreas
relacionadas à ciência. “De acordo com Correia (2014), as reformas transformam a política de
educação em negócio rentável e dificultam o desenvolvimento de um ensino em unidade com
a pesquisa e a extensão numa perspectiva crítica e autônoma” (AGAPITO apud CORREIA,
2016, p.116).
Essa foi uma herança que custou caro à educação brasileira. Pois, até hoje, o tripé do
ensino superior – o ensino, a pesquisa e a extensão – é deficitário no que diz respeito ao
investimento de pesquisas nas ciências sociais, as quais incluem o Direito. Em decorrência,
justamente, ao pensamento propagado no período histórico já mencionado.
Quanto ao ensino do Direito, Bittar discorre que:

Se falta ao aluno consciência histórica, filosófica, sociológica, antropológica,


cultural... quer dizer de suas bases éticas? Quer dizer, então, de sua consciência
quanto a deveres e direitos profissionais nas carreiras jurídicas? Assim, diante dessa
dimensão de lacunas educacionais, passa-se a exigir dos cursos de direito uma maior
atenção inclusive para o preparo humanístico e ético do estudante (2017, p. 121).

Visto que, desde o advento do positivismo – período coincidente com


o desenvolvimento da industrialização – no século XIX, o ensino voltou-se para modos
pragmáticos e tecnicistas. Ou seja, tendo por base a execução de atividades profissionais,
acima da formação ética, o homem tornou-se mais uma peça que faz parte de uma grande
máquina à serviço dos mestres do capital, deixando de ser capaz de analisar e modificar o
contexto a sua volta, na maioria das vezes.
No tocante ao ensino do Direito, essa lógica se aplica no que diz respeito à atuação dos
juristas. A partir da realidade brasileira, é perceptível a ausência de construção histórica com
relação ao tratamento para com os negros na atualidade e o histórico escravocrata do país.
Pois, esses são as maiores vítimas do sistema punitivo do Estado e, ao lidar com essa realidade,
os juristas que não tiveram acesso a uma base humanística em sua formação, não apresentarão
uma postura crítica do direito e do status quo vigente.
Com a redemocratização, por volta da década de oitenta, uma crise assolou todo o país.
E na educação, os reflexos foram sentidos no alto grau de analfabetismo, além da evasão e
repetência escolar. Com isso, o setor privado também passou por problemas referentes ao um
maior controle exercido pelo Estado e o mercado, que se encontrava desaquecido (SAMPAIO,
2008).
Nesse percurso, é importante ressaltar a vigência da Constituição (1988),
responsável por disciplinar o compromisso do poder estatal frente ao ensino não somente
público, como também o privado. Entre as disposições encontradas, é válido mencionar o
dever de ambos no respeito às normas gerais da educação, dispostas na Lei de Diretrizes e
Bases da Educação (LDB). Em disposições gerais, qualquer que seja a LDB, essa será
responsável por regulamentar a estrutura e funcionamento do sistema educacional do Brasil,
sendo composta por regulamentações e objetivos de caráter federativo.
A mudança no cenário educacional, com a alta prevalência do ensino privado, visto
que não há uma proporcionalidade entre qualidade da estrutura ofertada e o surgimento de
cursos e instituições, é preocupante quanto ao desenvolvimento dos indivíduos e da ciência
no país. Pois, a produção científica do país é feita, em maior parte, pelas instituições públicas,
já que, normalmente, as privadas estão à serviço da demanda do mercado.
Saviani (2010) expõe a necessidade da mudança desse cenário no ensino superior para
uma melhora na crise que ainda acompanha o país. Entre as resoluções, menciona a precisão
de reverter a tendência na qual as instituições privadas sobressaem às públicas, assim como
os cursos de curta duração sobre os de longa duração. Pois, com a melhoria da universidade
pública – desde a estrutura física ao aporte dado aos funcionários – será indubitável a mudança
na qualidade da formação, bem como o desenvolvimento do país.
O Brasil, após o reestabelecimento da democracia e a ascensão de governos que tinham
como prioridade o desenvolvimento social mudou, por hora, o cenário da educação brasileira.
Essa mudança ocorreu, por exemplo, a partir da determinação em efetivar o direito e o acesso
à educação por meio do Programa Universidade para Todos (Prouni) e o Financiamento
Estudantil (Fies), que democratizaram o acesso das minorias ao ensino superior. É interessante
ressaltar, também, o alto grau de aglutinação dos estudantes com baixa renda nas instituições
de cunho privado a partir da vigência desses programas.
Porém, com as últimas mudanças no cenário político brasileiro, a educação passa por
uma grave ameaça ao sistema educacional do país. Pois, o atual governo é responsável por
trazer à tona um passado marcado por uma administração que colocava a educação como um
apetrecho utilizado pelo mercado, sob um viés utilitarista, afastando-se, assim, de sua natureza
socializadora (MELO; SOUZA, 2017 apud FONSECA, 2009).
Tendo em vista a importância das políticas implementadas, é imprescindível
apresentar algumas delas. A primeira é conhecida como Teto dos Gastos, onde a educação,
além de outros setores, sofrerá um congelamento de investimentos por vinte anos. Ou seja, os
valores direcionados para a educação serão os mesmos, teoricamente, por duas décadas.
Buscou-se com essa medida, a tentativa de resolver questões econômicas do país, porém, essa
é cercada de uma grave ausência de responsabilidade, pois, tem como deficitário um dos
setores responsáveis por constituir a identidade e o desenvolvimento do Brasil.
Outro exemplo a ser tratado é a reforma do Ensino Médio. Concernente ao currículo
das escolas, a proposta diz respeito ao segmento de uma base comum, composta por
disciplinas de cunho técnico, e disciplinas tidas como itinerárias. Onde, de acordo com as
disponibilidades de cada escola, há a definição dessas disciplinas deixadas em segundo plano.
Partindo dessa lógica, é muito nítido o processo de segregação que acarretará. Pois, aquelas
escolas que não possuírem estruturas tenderão a servir às lógicas do mercado, sendo essa uma
marca perpetuada na ditadura militar (BASÍLIO, 2016).
Em suma,

A temeridade à educação está posta, ataques a direitos básicos como acesso e


permanência ao ensino podem sim ser vislumbrados numa proposta de agenda
governamental totalmente pautada mais sob a ótica da eficiência e eficácia do gasto
em educação, e muito menos do que ser vista como investimento na sociedade. O
que se percebe com tal agenda é uma estruturação para a abertura ao espaço
internacional, onde os grandes grupos educacionais põem em risco anos de luta da
comunidade educacional brasileira (MELO; SOUZA, 2017, p. 35).

A seara jurídica, no último governo, tem passado por embates significativos quanto ao
processo de avaliação dos novos cursos de ensino superior. De acordo com a Portaria nº 329,
de onze de maio de 2018, trinta e quatro novos cursos de graduação em Direito, foram abertos
por todo o território nacional, concentrando-se, principalmente, na região Nordeste.
É importante ressaltar que a crítica é atinente à qualidade da formação dos cursos,
apenas. Pois, caso houvesse proporcionalidade entre a ampla oferta de cursos e a qualidade da
formação ofertada, seria um ponto positivo na sociedade brasileira, porém, não condiz com o
plano fático. Não basta assegurar o direito à educação exposta na Constituição Federal de
1988, é necessário atinar para a qualidade do ensino, que também é condição assegurada pela
Carta Magna.
Relacionando o contexto exposto com a exposição de Hannah Arendt acerca da crise
na educação, é possível observar que o sucateamento da educação superior se dá,
principalmente, com relação à quebra da tradição. Essa, como explicitado anteriormente, tem
por base a formação histórica do povo, sendo imprescindível na graduação devido à
compreensão e base crítica da sociedade. Mas, o governo brasileiro presume que a origem
estrangeira é sinônimo de qualidade. Sendo prova disso, a permissão banal de empresas no
ramo da educação, que são responsáveis, em maior parte pela tecnicidade do ensino.
O ensino sistematizado, baseado somente em técnicas que garantem a mera aplicação
da norma ao caso concreto, retira o direito dos indivíduos reformularem a dinâmica existente.
Uma vez que, tendo em vista a natalidade, deveria haver o asseguramento do aspecto de
renovação e perpetuação da existência humana. Entretanto, nesses casos, pelo fato de não ter
havido o acesso ao ensino de qualidade, que vai além de aspectos técnicos, os profissionais
são tidos como meros instrumentos à serviço do mercado. Onde, não há possibilidade da
manifestação direito à revolução, ou seja, ao novo, que possibilitaria a presença de novas
perspectivas no trato do Direito.
Arendt explicita que tanto o ensino superior como o ensino técnico tratam-se de
especialização (2014). Todavia, é possível verificar a importância dada ao ensino superior no
tocante à base que foi formada durante o ensino fundamental e médio. Pois, é especificamente
neles onde há o trato direto com indivíduos inexperientes no campo político, sendo a ética
profissional fundamentada nesse período de formação.
Presume-se, deste modo, que a educação sempre esteve a serviço daqueles que detêm
o poder econômico, tratando-se de uma estreita com a política. E, devido a isso, o
planejamento da educação sempre é justificado com base nas relações de poder, havendo,
assim, a submissão involuntária dos indivíduos em seu processo de formação, à lógica de um
capital que continua a perpetuar relações de exclusão e opressão.
Pois, para cidadãos com as mesmas características será, definitivamente, dada a
oportunidade de uma educação de qualidade. Já que, a maior parte das instituições de
qualidade, embora públicas, possuem um processo de seleção que impossibilita a entrada
daqueles que constituíram formação básica em escolas que dependem de subsídios do
governo, onde, na maioria dos casos são negligenciadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em seu site217, também corrobora com essa
ideia de que os cursos de Direito passaram a servir a questões mercadológicas de modo
indiscriminado. Visto que, a ampla oferta passa a servir de moeda de troca para favores e
privilégios políticos devido a ideia de que o governo possui compromisso com a educação no
tocante a oportunidades para os menos abastados.
Em decorrência disso, tem-se por consequência a saturação do mercado de trabalho e,

217
https://www.oab.org.br/noticia/56296/oab-emite-nota-contra-autorizacao-de-novos-cursos-de-direito-pelo-
mec?utm_source=4195&utm_medium=email&utm_campaign=OAB_Informa
ao mesmo tempo, a ausência de preparação dos novos advogados. Não havendo, portanto,
pontos positivos na ação política do Ministério da Educação (MEC) do atual governo, que
tenta mascarar a gradual crise na educação superior através do falso discurso de igualdade no
acesso ao ensino.
Justamente devido à grande possibilidade de desvio dos objetivos a serem cumpridos
pela educação, que Hannah Arendt propunha sua separação do âmbito da política. Onde, no
caso do ensino superior, ocorre o menosprezo com a formação e estrutura da graduação, em
razão do fim perseguido relativo à conformação social e ao prestígio no meio político, com os
grandes nomes do mercado da educação. O qual é tomado por empresas estrangeiras que
buscam mão de obra científica em países como o Brasil, que vendem à “preço de banana” o
conhecimento produzido.
Diante desse cenário, faz-se necessária a pressão de instituições frente ao governo para
a criação de mecanismos responsáveis pelo controle de qualidade dos locais em que se ofertam
a graduação em Direito. Pois, considera-se importante, no meio acadêmico, a formação para
além da mera aplicação da norma, devendo englobar disciplinas propedêuticas que dão base
humanizadora aos indivíduos que atuarão em meio a vasta complexidade dos conflitos sociais
pós-modernos.
Visando, com isso, a ocupação do espaço público atinente a todos os cidadãos, não
somente àqueles graduados. Sendo esses ainda mais responsáveis pela dinâmica desse espaço,
pois, teoricamente, tiveram uma formação que possibilitou – a partir da consciência crítica,
formada pela educação – o entendimento da estrutura política e social.
Em suma esse cenário de crise em que se encontra a educação brasileira é, em sua
maioria, reflexo do que Hannah Arendt já apresentava no século passado. Pois, a quebra com
a tradição, a confusão com o âmbito político, a crise de autoridade e falta de compromisso
com os novos indivíduos são, como exposto em todo o trabalho, fatores alicerces desse
colapso. Sendo assim, o pensamento da filósofa política torna-se atemporal, onde a crise na
educação apresenta uma padronização no tocante aos seus causadores.

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2010
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OBSERVATÓRIO DAS CONTRIBUIÇÕES DO PROJETO DE EXTENSÃO
UNIVERSITÁRIA DHIALOGUE – DIREITOS HUMANOS, FAMÍLIA E
TRABALHO – PARA A SOCIEDADE DE GARANHUNS - PE218.

José Antônio de Melo Bisneto219.


Kleber do Nascimento Coelho220.
Bruna Maria Jacques Freire de Albuquerque221.

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo fundamental fazer uma análise da efetiva contribuição
do Projeto de Extensão Universitária da Autarquia do Ensino Superior de Garanhuns –
AESGA, denominado “DHialogue - direitos humanos, família e trabalho” (DHialogue),
compreendendo o período de 10/2017 a 03/2018, junto as unidades de lotação parceiras. A
problemática suscitada é: qual a contribuição da orientação jurídica desenvolvida pelo projeto
de extensão universitária na sociedade de Garanhuns – PE? Tem-se como objetivo geral
descrever a experiência da extensão universitária destacando as principais atividades
realizadas: DHialogue Orientações, DHialogue&Café e CineDHialogue” e compreender sua
devida importância à sociedade de Garanhuns. Os objetivos específicos são demonstrar a
importância da extensão universitária bem como avaliar a relevância das atividades realizadas
como contribuição para a inclusão social, através da informação e orientação de direitos
básicos. A metodologia adotada para a realização deste trabalho foi a pesquisa exploratória e
de campo, por outro lado, a base técnica foi firmada na pesquisa bibliográfica e na entrevista.
Para se chegar ao resultado deste trabalho, serão analisadas as entrevistas realizadas nos
eventos produzidos durante o projeto, como também as fichas de atendimentos nas orientações
jurídicas, e os benefícios para todos os envolvidos no projeto de extensão universitária.

Palavras-chave: Projeto de Extensão. Sociedade. Orientação Jurídica.

INTRODUÇÃO

O projeto de extensão universitária, DHialogue, é vinculado a Autarquia de Ensino


Superior de Garanhuns (AESGA), e desenvolvido por alunos extensionistas do curso de

218
GT 06 – Movimentos Sociais, Educação e Arte.
219
Ex graduando em Direito pela Autarquia de Ensino Superior de Garanhuns (AESGA/FACIGA). Atual
graduando em Direito pela Universidade de Pernambuco (UPE). Arcoverde/PE, E-mail:
joseambisneto@hotmail.com
220
Graduando em Direito pela Autarquia do Ensino Superior de Garanhuns - AESGA/FACIGA, Garanhuns-PE,
klebernascimento94@hotmail.com.
221
Advogada. PhD em Direito do Trabalho e Empresarial pela Universidad de Salamanca-ES. Doutora em
Direito do Trabalho e Trabalho Social pela Universidad de Salamanca-ES. Mestra em Direitos Humanos pela
Universidad de Salamanca-ES. Profa. da Pós-Graduação, Graduação e do Núcleo de Prática Jurídicas da
Autarquia do Ensino Superior de Garanhuns - AESGA/FACIGA e da Pós-graduação da Unifavip WyDen,
Caruaru/PE. Conselheira da Subseção Regional de Garanhuns da OAB-PE, brunamariaj@gmail.com.
Bacharelado em Direito, tendo como professora orientadora a PhD. Bruna Maria Jacques
Freire de Albuquerque. É sabido que a extensão universitária diz respeito a uma atividade
essencial, tanto para os que desfrutam desse conhecimento, quanto para os discentes que estão
se aprimorando em seu processo de aprendizagem, contribuindo, portanto, para a
transformação dos problemas sociais da cidade de Garanhuns e circunvizinhanças.
O município de Garanhuns é de notória relevância para o estado de Pernambuco. Esta
cidade é composta de aproximadamente 138.642 habitantes em 2017, tendo de área geográfica
458,552 km², e um PIB per capita de R$ 14.469,45 em 2015, conforme dados coletados no
Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2018), no qual se pode observar que o
projeto DHialogue pode ser de considerável relevância social por oferecer de forma gratuita
orientações jurídicas, principalmente aos hipossuficientes da cidade de Garanhuns.
O propósito da extensão universitária no presente projeto é de grande importância, haja
vista oferecer para sociedade alvo várias contribuições, já que ocorre o contato direto dos
acadêmicos com a comunidade, no qual o que se aprende em sala de aula é posto em prática.
O presente estudo irá apresentar uma descrição acerca das atividades desenvolvidas no projeto
de extensão universitária da Autarquia do Ensino Superior de Garanhuns – AESGA, este que
tem como fundamento oferecer Orientação Jurídica sobre os temas de Direitos Humanos,
Direito de Família e Trabalhista, bem como a promoção de palestras e exibição de filmes e
documentários junto a Associação WEFA, Quarta Igreja Presbiteriana e Paróquia Santa
Terezinha, todas estas instituições localizadas no município de Garanhuns, Pernambuco.
Dessa forma, o projeto busca levar à população esclarecimentos e conscientização dos
direitos básicos nos temas mencionados, em que, além de indicação aos órgãos ou instituições
que resolverão os pleitos judiciais, compreende também a possibilidade de aconselhamento e
orientação da documentação a ser apresentada nas instituições e órgãos ora referidos,
proporcionando de fato a justiça social e contribuindo para dirimir problemas dos membros
da sociedade local, o que é feito pelos discentes do curso de Direito com a supervisão do
professor orientador. Além de dar aos orientados uma sensação de pertencimento da
sociedade, contribuindo, de forma efetiva, para o amplo acesso ao Poder Judiciário.
Nesse estudo, serão analisadas as contribuições oferecidas pelas atividades do projeto
DHialogue, e consequente resgate da cidadania consciente e responsável para os orientados,
e para os discentes a oportunidade de ter o ensino associado com a prática como auxílio na
formação de futuros operadores do Direito.
O Projeto ora apresentado se propõe a irradiar, tendo como base a função social de
levar aos menos favorecidos um meio de obter, por exemplo, informações sobre noções
básicas de direitos humanos, de família e de trabalho.
A necessidade deste trabalho se justifica na existência de pessoas que aceitam e até
mesmo eternizam violações contra seus direitos e obrigações nos dias atuais, e será para
amenizar esta insipiência que o projeto irá colaborar, levando para os que sofrem de uma
carência informativa latente não só as palavras, mas o resgate de sua cidadania.
Finalmente, a proposta para desenvolver esse projeto justifica-se como caminho
formativo e profissionalizante para estudantes de bacharelado em Direito, uma vez que,
apresenta aspectos da realidade social e jurídica que muitos futuros operadores do Direito
encontrarão ao atuarem na solução de problemas relacionados à defesa dos direitos civis e
sociais das populações mais carente.
No que diz respeito aos procedimentos metodológicos utilizados no estudo em
comento, buscou-se, na elaboração do projeto de Extensão Universitária, uma melhor
compreensão da sociedade em geral, adotando Brym (2010), como referência pela sua
densidade pertinente ao tema abordado, já que este trata das questões referentes às
desigualdades ainda vivenciadas na sociedade atual, visto que o atendimento feito pelos
estudantes no referido projeto é direcionado para a sociedade em geral, porém com foco
específico são as famílias hipossuficientes. À vista disso, a problemática de pesquisa está
pautada no seguinte questionamento: qual a contribuição da orientação jurídica
desenvolvida pelo projeto de extensão universitária na sociedade de Garanhuns – PE?
Portanto, para alcançar os resultados, tem-se como objetivo geral descrever a experiência
da extensão universitária destacando as principais atividades realizadas no projeto em tela,
quais sejam: orientações jurídicas; promoção de mini palestras com temas de cunho social
ligados aos Direitos Humanos, Direito de Família e Trabalho, bem como a exibição de
filmes e documentários de cunho social com a realização de debate através de mesa redonda
para a retirada de dúvidas da comunidade. Tem-se, ainda, como objetivo geral compreender
a importância da extensão universitária na formação do acadêmico enfatizando as vivências
com a realidade social e prática profissional através do atendimento à população. Os
objetivos específicos são demonstrar a importância da extensão universitária ao
proporcionar serviços de orientações jurídicas nas áreas de direitos humanos, família e
direito laboral, bem como avaliar a relevância das atividades realizadas para viabilizar a
relação entre instituição de ensino e sociedade, contribuindo assim para a inclusão social,
através da informação e orientação de direitos básicos. A metodologia adotada para a
feitura deste trabalho restou assente nas pesquisas exploratória (GIL, 2017), por outro lado,
a base técnica está na pesquisa bibliográfica bem como na pesquisa de campo (LAKATOS;
MARCONI, 2017) que se deu através das visitas as unidades de lotação, estas que são as
instituições anteriormente mencionadas, além da análise das aplicações de entrevistas e
questionários realizados com o público alvo ora referido, conforme a pesquisa qualitativa
(MEZZAROBA; MONTEIRO, 2017).

DESENVOLVIMENTO

O DHialogue, em sua primeira edição, levou a sociedade de Garanhuns


orientações jurídicas e deram aos atendidos um maior suporte para que os mesmos
ingressassem as suas demandas no Poder Judiciário. O projeto teve o desenvolvimento no
período que compreende aos meses de outubro de 2017 a março de 2018, e foi desenvolvido
em três unidades de lotação, as quais estão localizadas em pontos que abrangem um maior
número de famílias hipossuficientes. As unidades de lotação as quais o projeto foi
desenvolvido foram: a) Paroquia Santa Terezinha do Menino Jesus: abrangendo as
comunidades dos Bairros da Brasília, Magano, São José, Cohab III e Manoel Chéu; b)
Associação WEFA – Luta e Educação para todos: abrangendo as comunidades dos Bairros
Heliópolis, Liberdade e Jardim Petrópolis e c) Quarta Igreja Presbiteriana: abrangendo as
comunidades dos Bairros Boa Vista, São José e Aloisio Pinto.
Desse modo, o atendimento para orientações jurídicas ficou estabelecido para
ocorrer sempre às quartas-feiras, iniciando às 08:00 (oito) horas e encerrando às 12 (doze)
horas, sendo designados para cada unidade de lotação o período 01 (uma) hora e 15 (
quinze) minutos e 1 (um) aluno extensionista para atendimento de orientação, ficando os
demais estudantes observando os atendimentos, sempre na presença da professora
orientadora, acompanhando e dando suporte naquilo que por ventura fosse necessário.
O enfoque principal fora, ademais de esclarecer direitos relacionadas aos direitos
humanos, família e trabalho, descriminar a documentação necessária que deveria levar ao
órgão competente. Normalmente as dúvidas suscitadas eram questões que poderiam ser
dirimidas através da proposição de ações judiciais feitas pela Defensoria Pública, Ministério
Público, Núcleo de Práticas Jurídicas da Autarquia do Ensino Superior de Garanhuns
(AESGA), e também ao PROCON, todos da cidade de Garanhuns-PE, bem como foram feitos,
em menor escala, de cidades circunvizinhas.
Sabe-se que para conseguir ser atendido nestes órgãos, muitas vezes tem que esperar
devido a grande demanda sobre eles, ou ainda agendar atendimentos. As partes interessadas
que já foram orientadas pelo DHialogue, levam a documentação organizada, o que ensejaria
maior agilidade na tramitação e feitura da peça vestibular, não tendo, supostamente que
agendar outro dia para levar a documentação que estivesse faltando, o que ademais de garantir
acessibilidade à justiça, também garante agilidade e um bom cumprimento de direitos básicos
provenientes da dignidade humana e da cidadania (BOBBIO, 2004).
Para o desenvolvimento do projeto ocorreram reuniões semanais as quais foram
discutidos problemas e perspectivas referentes ao mesmo, bem como a cerca dos materiais
utilizados para o atendimento de orientação, dentre eles: jurisprudência, doutrinas, jornais,
textos, artigos científicos, vídeos, etc. É importante salientar que, além das orientações
jurídicas semanais, foram desenvolvidas diversas outras atividades dentro do projeto como:
a) DHialogue Orientações: buscou fomentar a transmissão de informações sobre Direitos
Humanos, Direito de Família e Direito do Trabalho, com o fito de promover orientações
jurídicas à comunidade alvo; b) Cine DHialogue: trabalhou o conteúdo audiovisual com a
comunidade alvo, através de filmes e documentários de cunho social que permitiram o
posterior debate através da elaboração de uma mesa redonda e c) DHialogue & Café:
promoveu mini palestras com um número médio de 15 (quinze) participantes por evento,
permitindo desta forma a difusão de temas de cunho social, ligados aos Direitos Humanos,
Direito de Família e Direito do Trabalho.
De acordo com as fichas de atendimento, foram realizadas 20 (vinte) orientações
jurídicas, em todas as unidades de lotação. No Cine DHialogue da Quarta Igreja,
compareceram em média 20 (vinte) pessoas, ficando dentre o público esperado. No Cine
DHialogue da Associação WEFA, comparecem em média de 10 (dez) adultos e 7 (sete)
crianças. Através de uma parceira com uma das unidades de lotação (Associação WEFA),
surgiu o DHialogue Social, no qual teve como proposta a participação dos alunos
extensionistas, que colaboraram com a atividade social ocorrida no local, denominado Natal
WEFA/DHialogue.
Dificuldades também foram encontradas. A ausência do público-alvo previsto para os
eventos e orientações foi a maior dificuldade encontrada, mesmo com uma divulgação
frequentemente sendo realizada nas unidades de execução do projeto, bem como, por meio
das redes sociais. Acredita-se que, esta ausência se deu em virtude da incompreensão das
pessoas em relação ao que se abordava o projeto, associado à dificuldade natural de
desconhecimento nos primeiros momentos da implantação desta ação extensionista. O que já
não ocorreu no segundo ano do DHialogue, tema que será abordado no ano seguinte.
Semanalmente, como já havia sido mencionado anteriormente, eram feitas as
orientações jurídicas nas unidades parceiras (DHialogue orientações), tendo
aproximadamente 40% (quarenta por cento) das entrevistas supracitadas nas unidades em tela,
dúvidas acerca de relações familiares, com filhos ainda crianças ou adolescentes (divórcio,
guarda, pensão alimentícia, regulamentação de visitas, alienação parental, execuções
alimentícias, obrigações avoengas por falecimento do detentor do poder familiar e
reconhecimento e dissoluções de uniões estáveis), bem como indagações sobre inventário e
testamento do DE CUJUS que deixaram bens aos herdeiros. Em torno de 30% (trinta por
cento) tinham dúvidas acerca de seus direitos trabalhistas básicos (salários, décimo terceiro,
vale alimentação, vale refeição, férias, repouso semana remunerado, horas extras e o sistema
de banco de horas).
Questões previdenciárias, apesar de não ser de alçada do projeto DHialogue, a medida
do possível foram respondida pelos alunos e por um profissional da área que se habilitou a
contribuir socialmente com o DHialogue. Computaram ao redor de 15% (quinze por cento)
sobre questionamentos previdenciários. O maior fator de curiosidade foi que absolutamente
todas as questões foram acerca da aposentadoria (tempo de contribuição e serviços para se
aposentar, aposentadoria rural e negativas por parte do INSS e da Justiça Federal de ações
com pedido de aposentadoria rural).
Ao redor de 10% (dez por cento) das inquirições foi sobre usucapião de bens imóveis
urbanos. Observou-se que é de praxe não regularizar a escrituração pública de bens imóveis
comprados em Garanhuns e nas cidades circunvizinhas. Na maioria das vezes, eram contratos
particulares de compra e venda, que é de fragilidade jurídica perante terceiros. E os atendidos,
por serem todos hipossuficientes, não tinham condições de escriturar o imóvel, recorriam ao
DHialogue para saber como regularizar a escrituração através do reconhecimento de
usucapião.
Finalizando, houve 05% (cinco por cento) de questões sobre direito do consumidor
(cobrança indevidas de contas da Companhia Elétrica de Pernambuco (CELPE), da
Companhia Pernambucana de Saneamento (COMPESA), questões de objetos comprados com
averias e reclamações feitas a estas empresas. Houve apenas uma inquirição acerca de
obrigações empresariais pertinentes à responsabilização da sociedade e de sócios após o
encerramento da empresa por falência. Estes últimos 05% (cinco por cento) apesar de não ser
área temática abordada pelo DHialogue, foram devidamente respondidas, orientadas as
documentações necessárias e encaminhadas aos órgãos competente que lhes auxiliariam a
resolver o pleito em referência.
Houve apenas dois atendimentos, durante todo o perídio de atividade do DHialogue,
na área de penal, no qual fora indagado aos alunos extensionistas acerca de questões sobre
transferência de estabelecimentos prisionais feitos pela genitora do preso, e outro sobre auxilio
reclusão, no qual se condensa com questões de direito de família.
Deve-se salientar que 100% (cem por cento) dos atendimentos realizados em todas as
unidades parceiras foram de pessoas hipossuficientes nos termos da legislação brasileira.
O primeiro ano do DHialogue teve como temática principal os direitos básicos
trabalhistas brasileiros e os 70 (setenta) anos da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT).
Fora apresentado um curta metragem pertinente às lutas obreiras e as conquistas provenientes
delas, que foram plasmadas na CLT. Após o curta, houve diálogos acerca da importância da
continuação da luta contra a onda neoliberal (BRASIL, 2017), dentro do paradigma
globalizado e da descentralização produtiva de trabalho que precariza a vida dos trabalhadores
em geral (ALBUQUERQUE, 2014). Principalmente no contexto atual, no qual houve várias
modificações legislativas de cunho flexibilizador e precarizador do trabalho humano no Brasil
(CASSAR,2017). O que contradiz, claramente, com as diretrizes dadas pela Organização
Internacional do Trabalho (OIT) no que se discerne ao trabalho decente no Brasil (OIT, 2018),
bem como fere ao princípio da dignidade humana (COMPARATO, 2018), entre outros
princípios laborais de proteção e segurança do trabalhador, assegurados pela Declaração
Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948) e pela Declaração de direitos do homem e do
cidadão de 1789.
O DHialogue&Café realizado na instituição WEFA, levou um profissional da área que
ministrou sobre questões básicas trabalhistas que todo cidadão brasileiro deve saber. De
maneira acessível, explanou sobre cada direito elencado no artigo sétimo da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988 (BRASIL, 1998). O que foi de grande relevância
social. Trouxe a baila questões práticas para melhor compreensão da temática abordada, bem
como tirou dúvidas apresentadas no momento que se abriu para o debate. A proposta do
DHialogue&Café é promover uma aproximação das comunidades cercas as unidades de
atuação. São grupos pequenos, que escutam lições de direito do trabalho, acompanhado de um
café e diálogos sobre o tema proposto.
Sem dúvida, a experiência do projeto DHialogue foi singular, pois, poder envolver as
demandas sociais e jurídicas com o conhecimento aprendido em sala de aula, foi de grande
relevância e aprendizado para todos os envolvidos na execução do projeto de extensão.
Nenhuma dificuldade foi capaz de desmotivar o desenvolvimento do projeto, sendo a primeira
edição concluída com êxito. A segunda edição do DHialogue encontra-se em fase de
desenvolvimento, tendo iniciado em maio de 2018, com previsão de término para dezembro
de 2018. Por fim, pretende-se, com esta nova edição deste projeto extensionista, alcançar um
maior público, para que assim possa-se atingir de maneira mais eficaz os objetivos previstos
como finalidade deste projeto, e desta maneira, promover a propagação de direitos básicos a
população de Garanhuns bem como contribuir para uma boa acessibilidade a justiça, e por
conseguinte, exercendo verdadeiramente a cidadania efetiva e consciente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclui-se reconhecendo a importância do projeto em tela e das atividades realizadas


para a formação do acadêmico favorecendo no processo de ensino-aprendizagem, o que
possibilita a produção do conhecimento e o fomento à divulgação científica através do
presente estudo.
É de grande valia para os acadêmicos de direito participarem em projetos de extensão
universitária. Colocar em prática a teoria adquirida em sala de aula é a melhor forma de
aprendizagem tanto de conteúdos jurídicos, como questões gerais de cidadania, direitos
humanos em geral e interação com o público em geral. Afinal o direito é feito para a sociedade
e com ela deve estar em contato, inclusive para saber seus anseios, carências legislativas, para
que, através dos órgãos públicos competentes, possam ser sanadas as questões jurídicas
apresentadas pela comunidade local.
O aluno, ademais de ter contato com a população, aprende também a ter uma visão
ampla do direito, não isolando as matérias devido a divisão didática dos temas em sala de aula
para melhor assimilação dos conteúdos programáticos, haja vista a unicidade do direito. Desta
forma, ele aprende a unir várias matérias jurídicas, caso sejam suscitadas, em um único caso
em concreto. Percebeu-se, por exemplo, a frequente correlação entre direito trabalhista e
previdenciário. Ou ainda direito contratual e patrimonial, associados em algumas hipóteses
com o direito de família e sucessório. E esta aprendizagem do alunato sucede ao realizar os
atendimentos de orientações jurídicas perante o público em geral, aumentando também a
confiança do aluno ao atender futuros clientes, assistidos ou público em geral, praticando sua
postura como cidadão e como futuro profissional da área.
Não se pode olvidar que há o incentivo por parte da área acadêmica no que se discerne
à execução de práticas solidárias por intermédio do esclarecimento de dúvidas quanto ao
acesso ao judiciário e com isso cooperando com a justiça social e auxiliando em questões
jurídicas da população em análise, tudo para a contribuição da efetivação do exercício da
cidadania real. É o famoso papel universitário “de ir além de seus muros”. Prestar serviços
sociais é de grande importância tanto para a própria academia, que cumpre a sua função social,
quanto para a população em geral, sem contar o aprendizado do alunato, como já fora exposto
acima.
No caso em concreto, o DHialogue - direitos humanos, família e trabalho (DHialogue),
realizou atendimentos no período de 10/2017 a 03/2018, junto às unidades de lotação
parceiras, e foi de grande contribuição social para a sociedade garanhuense e
circunvizinhança. Através da experiência da extensão universitária vivenciadas tanto pelos
alunos extensionistas do DHialogue quanto pelos voluntários, através das três atividades
realizadas (DHialogue Orientações, DHialogue&Café e CineDHialogue), compreendeu-se
sua devida importância à sociedade de Garanhuns, principalmente para a parcela social mais
hipossuficiente, na qual há carência até de compreensão de seus direitos básicos. Através da
metodologia adotada para a realização deste trabalho, que foi a pesquisa exploratória e de
campo, tendo por base a técnica firmada na pesquisa bibliográfica e na entrevista, constatou-
se a falta de compreensão de seus direitos básicos trabalhistas principalmente.
Semanalmente, como pôde-se observar, através das fichas de atendimentos nas
orientações jurídicas das unidades parceiras (DHialogue orientações), muitos
questionamentos foram feitos aos alunos em matéria de direito de família, trabalho e sobre
questões que envolviam crianças e adolescentes. Questões previdenciárias também foram
inquiridas, apesar de não ser tema de atuação do DHialogue, foram respondidas pelos alunos,
juntamente com a ajuda de um profissional da área previdenciária que fez parceria com o
referido projeto de extensão universitária em voga.
Em relação ao Cine DHialogue e ao DHialogue&Café, foi-se escolhido como tema
principal a ser tratado, no período de 10/2017 a 03/2018, os direitos básicos trabalhistas
brasileiros. Tema proposto e acatado em homenagem aos 70 (setenta) anos da Consolidação
das Leis Trabalhistas (CLT). A proposta do Cine DHialgue foi levar ao público das unidades
parceiras um curta metragem falando dos avanços e conquistas dos trabalhadores brasileiros
advindos da promulgação da CLT (BRASIL, 2018), e do muito que se deve continuar lutando
contra a onda neoliberal que tenta precarizar a vida em geral dos trabalhadores. Após o curta,
fora discutido temas de direitos fundamentais trabalhistas plasmados na Constituição da
República Federativa do Brasil (CRFB/88) (BRASIL, 1988), tirando as dúvidas do público
em geral.
Enquanto que o mesmo tema tratado nas unidades parceiras, na roupagem do
DHialogue&Café, obteve os mesmos resultados, que é o de orientação jurídica prestado à
sociedade, sobre outra perspectiva, ao levar um profissional da área que palestrou sobre o
tema em voga, trazendo a baila questões práticas para melhor assimilação do assunto ora
proposto. Sempre prosas jurídicas regadas com um bom café, o que faz estreitar laços e
adquirir maior acessibilidade ao público frequentador das unidades parceiras.
Após o primeiro ano do projeto DHialogue, observou-se nesta jornada, um
amadurecimento pessoal e jurídico, também se constatou um aprofundamento nas relações
interpessoais entre os próprios alunos do projeto bem como a interação dos mesmos com a
sociedade, cumprido o objetivo proposto pelo projeto DHialogue. Contribuindo com a
sociedade, através de orientações jurídicas, e cumprindo a função social da área acadêmica.
Sempre em contribuição e construção social na busca do exercício real da cidadania consciente
e efetiva.

REFERÊNCIAS

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trabajo: Un estudio comparativo de la norma laboral brasileña y española. 2014. 783 f,
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A EVOLUÇÃO DOS DIREITOS DA MULHER NA LEGISLAÇÃO CIVIL E
CONSTITUCIONAL222

Larissa Fernanda Vasconcelos Coutinho223


Yasmin Costa de Almeida224

RESUMO

Trata-se de uma abordagem crítica acerca da evolução dos direitos da mulher nas legislações
civis e constitucionais, se propondo a analisar os impactos, avanços e retrocessos das diversas
normas que surgiram e foram implementadas ao longo das décadas em nosso ordenamento
jurídico, além dos mais diversos movimentos sociais que tiveram por objetivo a mitigação da
discriminação da mulher nos diversos âmbitos da sociedade, bem como a superação do
patriarcalismo nas legislações que regem a vida em da população, de forma a consagrar, de
fato, o Princípio da Igualdade disposto na Constituição Federal, sendo tais desafios o objeto
do nosso estudo. Busca-se, dessa forma, através de ampla pesquisa e análise bibliográfica,
evidenciar e discutir sobre a crescente em que se encontram os direitos femininos e os
inúmeros obstáculos enfrentados para que ocorresse a efetivação desses direitos. Assim, o
presente trabalho se propõe a analisar e refletir sobre o empoderamento da mulher na
sociedade e nas legislações, que por vezes tolheram e mitigaram diversos direitos femininos
em razão de um contexto patriarcalista e conservador, no qual a submissão da mulher era regra
e a superação dessa realidade ocorreu de forma paulatina e desafiadora.

Palavras-chave: Direitos da Mulher. Evolução. Códigos Civis de 1916 e 2002. Constituições.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho busca compreender um pouco melhor a evolução jurídica dos


direitos civis e constitucionais adquiridos pela mulher ao longo das décadas. Procura-se
analisar as restrições impostas às mulheres nas codificações civis e a grande revolução que a
Constituição Federal de 1988 proporcionou aos direitos da Mulher.
Examina-se, também, o desenvolvimento das lutas e conquistas das mulheres na busca
por igualdade de condições e oportunidades em uma sociedade predominantemente patriarcal
e machista, na qual as leis são feitas por homens e para homens e os meios que elas
encontraram de ultrapassar as barreiras criadas pelo conservadorismo, que via a mulher no
plano das coisas, como mero objeto, e exigia dela inteira submissão e obediência.
Destacaremos, da mesma forma, o papel de movimentos sociais, a exemplo do

222
Grupo de Trabalho: Movimentos Sociais, Educação e Arte.
223
Graduanda em direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Estagiária do Ministério Público de
Pernambuco. Email: larissa.x8@hotmail.com.
224
Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Estagiária na Procuradoria Regional
da União 5ª Região. Estagiária no escritório Abreu e Gonçalves Advogados Associados. E-mail:
yasmincosta93@hotmail.com. Rever nota de roda pé.
Movimento Feminista, na busca pela igualdade de gêneros e de direitos e como eles
influenciaram os legisladores na criação e modificação do ordenamento.
A priori, o estudo busca fazer um apanhado histórico não só dos direitos da mulher ao
longo das décadas no Brasil, mas em como a sociedade influenciou na consagração e
derrocada de normas já positivadas nos Códigos e Constituições que foram promulgados ao
longo dos anos, bem como expor a problemática da não concretização da igualdade material
que ainda perdura, mesmo existindo dispositivos que a prescreve.
Além disso, procura-se provocar uma reflexão acerca das lutas e da desigualdade ainda
tão presente nas questões de gênero, demonstrando todo o enfrentamento do patriarcado ao
longo das décadas e a árdua quebra de paradigmas que estigmatizam a mulher e buscam a sua
submissão por meio do ordenamento jurídico e como isso foi sendo superado com o passar
dos anos.
Nos propomos com isso, a buscar através de uma ampla pesquisa e análise
bibliográfica, uma reflexão mais aprofundada acerca das influências e dos reflexos do
patriarcalismo nas legislações brasileiras, em especial os Códigos Civis de 1916 e 2002 e as
Constituições Federais, com relação ao pleno gozo dos direitos e garantias da mulher ao longo
das décadas, com vistas a compreender melhor a evolução de tais direitos.

1 DESENVOLVIMENTO

1.1 Breve análise acerca da evolução dos direitos e empoderamento da mulher durante
os séculos ao redor do mundo

A mulher, historicamente, esteve em posição de subordinação perante o homem, que


a tinha como mero instrumento sexual e que servia apenas para procriar, servir ao marido e a
família. Sendo tal pensamento despontado desde as civilizações mais antigas, a exemplo das
greco-romanas (BICEGLIA, 2003).
Interessante salientar que a Igreja Católica também teve papel determinante na
persistência da subordinação da mulher ao homem e na propagação da discriminação sofrida
em razão do gênero. Isso porque, desde a Idade Média, a Igreja passou a sacralizar o instituto
do casamento e exigir da mulher completa fidelidade, abnegação e sacrifício em prol de sua
família e do marido. A indissolubilidade do casamento, a proibição do sexo antes do
matrimônio, a total obediência sexual e monogamia por parte da mulher eram imprescindíveis
à época, sob pena de se cometer pecado grave (MATOS; GITAHY, 2007).
Durante a Revolução Industrial, mulheres e crianças eram submetidas a jornadas de
trabalho exaustivas e ocupavam cargos de menor expressividade e no qual a ascensão era
praticamente impossível. Tânia Biceglia (2003, p. 22) destaca que foi durante as Guerras
Mundiais que as mulheres puderam ocupar espaços nunca antes imaginados, visto que com a
ida dos homens à Guerra, a mão de obra das fábricas, escritórios, comércios deram espaço
para mão de obra feminina, que paulatinamente foi buscando ampliar os espaços conquistados
por meio de muita luta e a pleitear igualdade de condições e oportunidades.
É imprescindível destacar, ainda, o papel do feminismo nas conquistas femininas ao
redor do mundo. Isso porque, por se tratar de um movimento que busca a igualdade de
oportunidade entre homens e mulheres e procura corrigir as distorções sociais e a
discriminação que existe em torno da mulher, unicamente por causa de seu gênero, tendo na
igualdade e no empoderamento feminino os pilares de sua essência (ADICHIE, 2012). Esse
movimento foi responsável pela busca da emancipação e libertação da mulher de âmbitos
machistas e violentos, empoderando-as para sair de situações de subordinação, inferioridade
e impulsionando para que buscassem espaço no mundo moderno.
Teresa Cristina Marques e Hildete Pereira de Melo (2008, p. 8-9) destacam que no
Brasil a “onda feminista” teve papel importante na conquista de direitos em diversos âmbitos
da sociedade, seja ele trabalhista, eleitoral, civil, constitucional, etc. Além disso, tal como
observou-se ao redor do mundo, a ascensão feminina no Brasil se deu com muita luta, em uma
sociedade patriarcal e patrimonialista, que desde sempre teve suas Codificações criadas por
homens e para homens, de forma a desprestigiar o papel da mulher na sociedade e suprimir
seus direitos.
A exploração e discriminação feminina já se manifestava no país desde os tempos do
Brasil Colônia e refletia o tratamento que a mulher recebia ao redor do mundo. Desde as
Ordenações Filipinas, como muito bem destaca Biceglia (2003), até a proclamação da
República no Brasil os avanços dos direitos femininos foram muito tímidos, principalmente
por causa do domínio patriarcalista que ainda imperava com muita ênfase nos diversos setores
sociais.

1.2 Código Civil de 1916, patriarcal e patrimonialista.

O Projeto do Código de 1916 foi elaborado por Clóvis Bevilácqua e considerado, por
seu criador, um texto de lei que representava grande avanço social. Tânia Biceglia (2003)
enfatiza que, apesar dos dizeres de Bevilácqua, o Código Civil de 1916 surgiu sem maiores
novidades no que diz respeito ao avanço nos direitos femininos, visto que em seu âmago
permanecia com o mesmo viés conservador das legislações que o antecederam.
Tal fato se justifica porque à época da elaboração do Código Civil, a sociedade
brasileira ainda era machista, patriarcalista e altamente preocupada em preservar as riquezas
e as propriedades adquiridas pelo homem. O Autor do Código, de modo a tentar justificar a
permanência de alguns pontos controversos, tais como a incapacidade relativa da mulher
igualada aos índios, pródigos e menores impúberes, afirmava que a incapacidade era
“meramente formal” (MATOS; GITAHY, 2007).
Ademais, é interessante salientar alguns outros artigos elencados no Código de
Beviláqua que explicitavam a discriminação e a subjugação da mulher em relação ao homem.
Dentre os artigos mais controversos estão:

Art. 186: “Discordando eles entre si, prevalecerá a vontade paterna, ou sendo casal
separado, divorciado ou tiver sido o seu casamento anulado, a vontade do cônjuge, com
quem estiverem os filhos.”
Art. 218. “É também anulável o casamento, se houver por parte de um dos nubentes, aos
consentir, erro essencial quanto à pessoa do outro.”
Art. 219. “Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge:
(...)
IV – o defloramento da mulher ignorado pelo marido.”
Art. 242: “A mulher não pode, sem o consentimento do marido:
[...]
VI. Litigar em juízo civil ou comercial, a não ser nos casos indicados nos arts. 248 e 251.
VII. Exercer profissão.
VIII. Contrair obrigações, que possam importar em alheação de bens do casal.
[...]” (grifos nossos)

A partir de minuciosa análise dos artigos, é possível observar que a discriminação de


gênero era patente em inúmeros casos, tirando da mulher o poder não só de decidir acerca da
própria vida, visto que deveria pedir autorização do marido para praticar uma série de atos,
como também não lhe era permitido exercer o pátrio poder, em igualdade com o cônjuge, na
educação dos filhos, mas apenas de forma subsidiária e na ausência do pai.
Maureen e Raquel (2007) destacam que essa repressão da mulher e exigência de
subordinação ao homem nos diversos âmbitos de suas vidas levou à revolta e a busca por
mudanças de muitas mulheres que, influenciadas pelo movimento feminista – que ganhava
força ao redor do mundo – buscavam modificar a realidade em que se encontravam, e
tentavam a todo custo mudar o destino que lhes aguardava, que era o de passar o resto das
vidas servindo aos maridos e filhos, quando não, dedicando-se à vida religiosa sem maiores
chances de desviar dessa rota socialmente preestabelecida que visava, primordialmente, a
manutenção e ampliação do patrimônio dos indivíduos
Importante ressaltar que o Código Civil de 1916, elaborado por Bevilácqua nada mais
era que um reflexo da sociedade da época. Lassale (2000) já dizia que as normas devem refletir
a realidade social, caso contrário, a Constituição seria mera folha de papel. Nesse sentido, o
Código de Clóvis Bevilácqua nada mais era do que um reflexo da sociedade da época:
conservadora, patriarcal e machista, que buscava na mulher a subordinação e obediência ao
homem.
No entanto, tal cenário foi sendo paulatinamente modificado graças não só ao
inconformismo feminino diante de tantas limitações, como também o avanço de diversos
movimentos sociais que pleiteavam uma igualdade material entre os gêneros, que colocasse a
mulher em posição de igualdade com os homens, sendo tal bandeira encabeçada,
principalmente, pelo já citado movimento feminista (DIAS, 2016).

1.3 Estatuto da Mulher Casada (Lei nº 4.121/62): Um marco nos direitos femininos

A manutenção da gritante desigualdade entre os gêneros que o Código Civil de 1916


perpetuou foi alvo de um inconformismo sem igual, que gerou diversas lutas das mulheres em
busca de seus direitos civis, visto que a norma positivada só ressaltava a condição de
inferioridade que a mulher vivia (SANTOS, 2009). Em razão disso, a busca por direitos e
igualdade, nas demandas femininas, foi sendo implementada. A materialização de muitas
pautas se deu com a criação do Estatuto da Mulher Casada, em 1962.
Maria Berenice Dias (2016) visualiza o Estatuto da Mulher Casada como um
importante marco nos direitos da mulher, visto que trouxe inúmeros dispositivos legais que
ressaltavam a importância feminina no âmbito familiar e no seio da sociedade, tais como a
volta da plena capacidade da mulher, o direito de ficar com a guarda dos filhos menores em
caso de culpa de ambos os cônjuges na separação, contudo, ela ressalta que apesar de todos
esses avanços, a mulher ainda ocupava uma posição subalterna e no âmbito dos direitos e
deveres ela ainda estava em situação desfavorável.
O Estatuto da Mulher Casada possuía um conteúdo programático, o qual buscava
minimizar as diferenças inquietantes existentes entre os gêneros e as imposições do
patriarcado às mulheres. Nos dizeres de José Augusto Delgado (1980), as disposições do
Estatuto venceram uma difícil e longa caminhada iniciada há séculos e que foi
progressivamente superando a subordinação da mulher ao marido. Ele vai além e traz outra
superação, aponta que a mulher, desde a Antiguidade, era vista como mero objeto, propriedade
do marido e com o Estatuto da Mulher e demais avanços galgados ao longo dos séculos, as
mulheres puderam se libertar dos grilhões que as acorrentavam à subordinação, à obediência
ao marido e à perda de inúmeros outros direitos civis.
Paulo Lôbo (1999) destaca ainda um importante aspecto que pôde ser observado com
o advento do Estatuto da Mulher Casada, houve uma superação do tratamento assimétrico
entre homem e mulher, que acabou por revogar diversas normas que perpetuavam essa
desigualdade, sendo tal Estatuto conhecido como a lei da abolição da incapacidade feminina.
Conforme observado, o Estatuto abriu possibilidade para o avanço das ideias
divorcistas, força ao movimento de lutas das mulheres por direitos e igualdade, além de
proporcionar uma grande vitória às mulheres da época.

1.4 A Lei do Divórcio (Lei nº 6.515/77) e a revolução dos direitos da mulher no Brasil

Maria Berenice Dias (2016, p. 352) aponta que o casamento na sociedade brasileira do
início do século XX ainda era tido como algo sagrado e intrinsecamente relacionado com a
ideia de família, tanto que gerava um vínculo indissolúvel além de reprimir e negar todos os
relacionamentos que figurassem em uma esfera extramatrimonial.
Pouco a pouco foram surgindo diversos meios para relativizar não só a sacralidade do
casamento, como também a sua indissolubilidade. À época da promulgação do Código Civil
de 1916, vigia o instituto do desquite, por meio do qual o matrimônio era legalmente rompido,
mas não havia a dissolução do vínculo conjugal, tampouco de alguns deveres matrimoniais,
tal como o de assistência mútua e não era possível contrair núpcias novamente, existindo
apenas a cessão dos bens e a separação de corpos, perdurando o vínculo conjugal até a morte
dos cônjuges.
No entanto, entre os anos de 1930 e 1950, alguns parlamentares detentores do Poder
Constituinte já demonstravam certa preocupação e vontade de debater sobre o divórcio que se
tornava, cada vez mais, um anseio da sociedade como um todo. (ALEGRIA; VETORI NETO,
2013).
No entanto, Sérgio Barradas Carneiro (2016) aponta que as propostas dos Autores e
parlamentares divorcistas só ecoaram, de fato, no Congresso Nacional em 1975, com o
Deputado Rubem Dourado, quem primeiro impulsionou o tema naquele ano, propondo a
Emenda Constitucional nº 4/75, que dispunha: “O casamento é indissolúvel, exceto nos casos
de separação dos cônjuges por mais de 5 anos”. Nessa toada, o Deputado Federal baiano
Nelson Carneiro, também apresentou um projeto de Emenda Constitucional nº 5/75, cujo teor
dizia: “o casamento somente pode ser dissolvido após cinco anos de separação legal ou sete
anos de separação de fato, sem que tenha havido a reconciliação do casal”.
Diante desse contexto, importante fazer um adendo e salientar a importância do
Deputado Nelson Carneiro para a implementação do divórcio no Brasil. Isso porque, além de
adotar uma postura divorcista, entendia que o divórcio configurava não só um anseio mas uma
necessidade da sociedade da época, que se via em meio a um país cuja legislação não
acompanhava os avanços sociais (CARNEIRO, 2016).
Em meio a um efervescente contexto social, a Emenda Constitucional proposta por
Nelson Carneiro foi aprovada com apenas um voto de diferença, o que ainda mostra a
resistência e a mentalidade de boa parte da sociedade da época. A aprovação da EC 5/75
representou uma prospecção normativa e criou um campo fértil para maiores avanços no que
diz respeito ao divórcio.
Conforme o movimento divorcista ia ganhando força no país, a Igreja Católica, ao
contrário, ia perdendo cada vez mais a sua influência e o seu controle diante da sociedade e
das leis. Almeida (2010, p.16-17) aponta que a Igreja, que sempre se mostrou contrária ao
divórcio, propagava que tal instituto seria uma “[...] anarquização da estrutura familiar”; [...]
verdadeiro atentado perpetrado contra os fundamentos da família”, no entanto, o movimento
só ganhava mais força.
Aproveitando as sucessivas vitórias divorcistas, Nelson Carneiro propõe a Emenda
Constitucional nº 9/77, que foi posteriormente regulamentada pela Lei 6.515/77, a chamada
Lei do Divórcio. O deputado implementou, com tal emenda, a alteração do texto positivado
no §1º do art. 175 da Constituição Federal de 1967, que passava a dispor acerca da
dissolubilidade do casamento, além da completa extinção do vínculo matrimonial, permitindo,
inclusive, que os ex-cônjuges contraíssem novo matrimônio. (CARNEIRO, 2016)
Destaque-se o fato de que a Lei do Divórcio foi sancionada sem vetos pelo presidente
da época, Ernesto Geisel, e representou “um forte golpe na hierarquia católica que por décadas
conseguiu impedir a aprovação dessa lei” (ALMEIDA, 2010).
O divórcio, como bem coloca Maria Berenice (2016, p.356), está amparado no
Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, visto que o Estado não tem legitimidade para
impor a continuidade de relações que os envolvidos não mais desejam. Segundo ela, é “direito
constitucional do ser humano ser feliz e dar fim aquilo que o aflige sem ter que inventar
motivos”.
Fica evidente, portanto, que o divórcio surgiu como uma forma não só de atender aos
anseios de uma sociedade que se via refém da religião, além de possibilitar, principalmente à
mulher, uma nova conquista pela sua liberdade e empoderamento.

1.5 A evolução dos Direitos da mulher à luz das Constituições Nacionais

Segundo Santos (2009), a Constituição de 1824, ficou conhecida como a Constituição


Política do Império, sendo elaborada não por uma Assembleia Constituinte, mas por um
Conselho de Estado, possuindo 179 artigos, dos quais 7 deles se destinavam a elucidar as
garantias dos direitos civis dos brasileiros. Dentre todas as mudanças trazidas, a de maior
relevo, indubitavelmente, fora a ratificação dos direitos individuais do cidadão, tornando-se
referido dispositivo, um dos mais liberais de seu período. Todavia, apesar desse inicial avanço,
concernentes aos cidadãos, é imprescindível salientar, que pelo fato da mulher não pertencer
ao rol de cidadãos da época, obteve tímidas mudanças, pois só era citada apenas na situação
de sucessão imperial.
Em 1891, surge a primeira Constituição republicana, a qual fora elaborada pelo
Congresso Constituinte, fortemente influenciado pela Constituição dos Estados Unidos,
contendo 91 artigos. Uma de suas inovações, foi o de estabelecer o sufrágio universal para
todos os homens brasileiros alfabetizados maiores de 21 anos. Contudo, apesar de não haver
vedação quanto a mulher poder exercer o voto, pelo fato de não ser considerada uma pessoa
dotada de direitos, não conseguiam tal feito, sendo sempre vetados os seus alistamentos. Cabe
destacar, que apenas em 1932, houve o direito de sufrágio para as mulheres (SANTOS, 2009).
De acordo com Horta (2003), a Constituição de 1934 foi o verdadeiro marco dentre as
constituições brasileiras até aquele momento, pois foi baseada na Constituição de Weimar, da
Alemanha e na Constituição do México, duas das grandes cartas magnas que trouxeram
importantes noções de um constitucionalismo sob uma perspectiva social. Nesse contexto,
calcado nessa ótica mais social, foi implementado novas diretrizes no que concerne a
economia, a família, a educação e a cultura. Dentre essas inovações estão o sufrágio feminino,
o voto secreto e a criação da Justiça do Trabalho. Nesse momento, vale ressaltar, que pela
primeira vez a mulher aparece no cenário político, através da então primeira deputada, a
Carlota Pereira de Queirós.
A Constituição de 1937, outorgada pelo então presidente da república, Getúlio Vargas,
adveio com a instauração do período ditatorial. Sob essa perspectiva, segundo Loewenstein
(1970), esta ficou conhecida como a Constituição Semântica, que foi elaborada visando os
interesses do detentor do poder, colocando, dessa forma, a normatividade em segundo plano.
Contudo, não se conseguiu concretizar de forma integralizada o que estava disposto na Carta
Magna, visto a distância absurda entre a população e o detentor do poder. É nesse cenário que
a mulher se encontrava, onde poucos detinham o poder, e mais obstáculos surgiam para a
ascensão de seus direitos. Apesar da política de pão e circo, que para se acalmar os ânimos,
foi realizada, com uma maior inclusão do eleitorado feminino e da criação de direitos
trabalhistas, ainda existiam muitos óbices para a evolução dos direitos das mulheres
(CARVALHO, 2008).
Segundo Santos (2009), a Constituição de 1946, teve um caráter populista, na qual
veio para garantir os direitos previstos na Carta de 1934, que foram esquecidos na de 1937.
Todavia, apesar desse viés mais popular, vale salientar que a sociedade ainda era calcada no
patriarcado, não indo mais além do que se já tinha conquistado até o momento. Por isso,
necessário foram as intervenções dos movimentos feministas, principalmente na década de
50, que sob esse viés sociológico, através desse movimento social, puderam se posicionar em
favor de diversas alterações do papel da mulher no âmbito civil, tendo como resultado, o
Estatuto da Mulher Casada, em 1962, no qual a mulher passou a ter total capacidade aos 21
anos, bem como a Lei do Divórcio, 1977.
A Constituição de 1967, recebeu nova redação, por meio de uma emenda em 1969,
época da ditadura militar no Brasil. Sob esse contexto, vários Atos foram decretados, em que
todos os cidadãos tiverem diversos direitos cerceados, havendo uma notória regressão no
âmbito do Direito, no qual as mulheres não foram as únicas vítimas. Apesar dessa situação, o
Brasil estando em Estado de Sítio, os movimentos feministas continuaram a atuar, mesmo
com toda a repressão existente na época (SANTOS, 2009).
Após o período ditatorial, foi elaborada nova Constituição, no ano de 1988, conhecida
como Cidadã. Adveio para romper com o tempo de outrora e trazer à luz os direitos civis que
a tanto foram obscurecidos. De acordo com Santos (2009), as mulheres obtiveram uma imensa
conquista, pois através do disposto no artigo 5º, inciso I, homens e mulheres são iguais em
direitos e obrigações. Diante do princípio da igualdade em voga, foi garantida a cidadania
plena, inserindo a mulher, de fato, nos âmbitos sociais em modo de igualdade. Referido
avanço foi de suma importância, visto que no ainda vigente Código Civil de 2016, a mulher
não poderia representar legalmente a família, bem como o pátrio poder somente poderia ser
exercido pelo homem. À luz do exposto, a Constituição Cidadã foi um verdadeiro marco para
o avanço dos direitos da mulher, ao ponto de confrontar muito do que estava disposto no
Código Civil de 1916, impulsionando, por conseguinte, a alteração dessa referida codificação.

1.6 O Código Civil de 2002

É necessário destacar, que entre os Códigos Civis, há um lapso temporal de quase 100
anos. Por isso, é notória a diferença cultural e social existente no tempo de elaboração de cada
um deles. Da mesma maneira, é evidente a necessidade que se existia de um novo Código, ao
qual trouxesse todas as mudanças ocorridas ao longo desse tempo. Segundo Piovesan (2011),
esse referido código veio para romper com o caráter discriminatório que seu antecessor
assumia, pois hierarquizava os gêneros e mitigava os direitos civis das mulheres. O Código
de 2002, veio para ajustar as normas às disposições previstas na Constituição de 1988 e os
dispositivos internacionais que defendiam a igualdade de gênero.
Cabe salientar, que essas mudanças não se limitaram ao conteúdo das normas em si,
mas também se tentou fazer alterações no campo semântico, como ocorreu com a alteração da
palavra “homem” por “pessoa”, com o escopo de realmente estabelecer uma igualdade nas
relações jurídicas. Isso posto, percebe-se o intuito de se conectar à pessoa a personalidade,
dotada de direitos e obrigações (CABRAL, 2008). Nesse ínterim, passou-se a ter igualdade
entre os cônjuges, como já era previsto na Constituição, depois de muita atuação do
movimento feminista, visto que esse era um dos direitos mais necessários, pois no Código de
1916, a mulher era considerada relativamente incapaz para determinados atos.
Dentre outras conquistas, há que se mencionar o expresso no artigo 1.517, que prevê
a mesma idade núbil de 16 anos, tanto para o homem quanto para a mulher, sendo necessária
a autorização dos pais enquanto ainda não forem de maior. Ainda sob esse contexto do
casamento, vale salientar que de acordo com o artigo 1.565, §1º, tanto o homem quanto a
mulher pode acrescentar ao seu o sobrenome do outro, ou se preferirem, podem manter seus
nomes de solteiro, ratificando, dessa forma, o princípio da isonomia previsto
constitucionalmente.
Segundo Cabral (2008), outra mudança relevante foi o da retirada da expressão “pátrio
poder”, que foi substituída por “poder familiar”, haja vista a igualdade na relação conjugal.
Não há mais prevalência do pai sobre a mãe, devendo aos cônjuges, de forma igualitária, a
administração da vida dos filhos de menor. Ademais, no que se refere a prestação de
alimentos, ambos os cônjuges detêm a responsabilidade de tal, no limite de suas possibilidades
financeiras. Diante do exposto, percebe-se que com a elaboração do Código de 2002, tentou-
se deixar as normas do âmbito civil em conformidade com os preceitos constitucionais e com
as mudanças sociais ocorridas, e em parte, obteve êxito, como restou demonstrado.
Contudo, é imprescindível trazer à baila, aspectos nos quais o Código de 2002, não
conseguiu superar. De acordo com Dias (2016), ainda restam traços discriminatórios no
Código, principalmente no que tange à tutela, visto que no artigo 1.736, inciso I, admite que
as mulheres casadas possam se escusar da tutela, portanto discriminação remanescente do
Código de 1916.
Sob a perspectiva da igualdade material, nota-se que ainda resta prejudicada. Ao se
analisar a questão da prestação de alimentos, por exemplo, na maior parte das famílias
brasileiras, quem detêm a guarda dos filhos menores é a mãe, dessa forma, é sempre a
responsável por arcar com os custos dos filhos, ao passo em que tem que cobrar os alimentos
que são de dever do pai pagar. Porém, o prazo prescricional da obrigação alimentar reduziu
para dois anos, evidentemente, em desfavor da mulher (DIAS, 2016). Nesse aspecto, essa
remanescência do código anterior, evidencia a resistência do legislador a se distanciar de todo
esse contexto discriminatório de outrora, restando ainda esses óbices a serem superados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

À luz das legislações ora expostas, percebe-se a evolução dos direitos das mulheres,
principalmente no âmbito Constitucional e Civil, onde supramencionadas fases históricas e
normativas foram de suma importância para o estabelecimento da igualdade formal entre
homens e mulheres.
Nota-se, porém, que resta muito a se evoluir no setor da igualdade material, visto que
ainda se observa discriminações ora citadas, que ainda devem ser superadas. Contudo, com os
movimentos feministas cada vez mais atuantes, não somente em ações nas ruas, bem como
nos espaços de poder, que outrora só eram destinados aos homens, está-se cada vez mais
próximo de mais essa conquista.
Sob esse prisma, fica nítida a evolução dos direitos das mulheres ao longo dos anos,
paralelamente as lutas das mesmas para a obtenção da igualdade de fato, que ainda não foi
concretizada, mas que está a cada norma, a cada lei, a cada mudança social, mais próximo de
se efetivar. Portanto, é a luz dessa evolução histórica e dos movimentos sociais, que as
mulheres estão se fortalecendo e conquistando cada vez mais espaço e voz, para que dessa
forma, o disposto na Carta Magna, possa finalmente vigorar, estabelecendo a igualdade,
formal e material, entre homens e mulheres, não somente em uma folha de papel, mas
propriamente no campo fático.

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SANTOS, Tânia Maria dos. A Mulher nas Constituições Brasileiras. Porto Alegre: II
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LINGUA DE SINAIS COMO ATO CONSTITUTIVO DE INCLUSÃO SOCIAL
BRASILEIRA225

Maria Eduarda Henrique Mascarenhas226


Gustavo Leite Neves da Luz227
Jorge Yuri Souza Aquino Leite Rodrigues Lins228

RESUMO

Este artigo tem como objetivo demonstrar a questão da inclusão do deficiente auditivo ao
complexo sistema educativo envolta da sociedade brasileira, analisando como é o formato de
seleção de professores capacitados na língua brasileira de sinais (LIBRAS) , que é definida
como a segunda língua oficial no Brasil, é possível aferir que aplicativos como o PRODEAF
contam como uma dos inúmeras políticas públicas realizadas pelo governo ou em
colaborações com discentes dos mais diversos estados. Ao terminar, será mostrado como é
deficiente a preparação escolar do deficiente auditivo, sendo que este é o mais afetado até nas
universidades, devido à lacuna de professores especializados entre o sexo feminino e
masculino o que dificulta em si o aprendizado, forçando o aluno deficiente auditivo, sair da
Universidade temporariamente enquanto a mesma realiza uma nova seleção para professores.
A metodologia de pesquisa utilizada foi a pesquisa documental e bibliográfica, dando ênfase
sobre artigos, livros e sites sobre o respectivo tema. O resultado da pesquisa é que ainda se
encontra deficiente o sistema educativo brasileiro nos mais diversos temas, enquanto o mais
afetado se dá por meio dos deficientes auditivos, que ficam à mercê da formação dos seus
professores e universidades.

Palavras-chave: Sistema Educativo. Políticas Públicas. Deficiente Auditivo. Seleção.

INTRODUÇÃO

A questão entranhada no sistema educativo brasileiro no tocar do deficiente auditivo e


no não tão antigo, mas ainda tão perceptível e estudado academicamente, sobre o déficit em
escolas e universidades quando é observado o quadro de docentes e sua formação, é possível
aferir uma lacuna enorme no aprendizado da língua brasileira de sinais, normalmente utilizada
em trabalhos acadêmicos como LIBRAS. Declarações como a Salamanca e diversos artigos
foram necessários para se chegar a uma resolução sobre como é o processo seletivo dos
professores, sendo que mesmo ainda possuindo um órgão especializado em pessoas capazes
de produzir e traduzir a LIBRAS, é deficiente até mesmo neste, onde é preciso esperar meses
para que um seja disponibilizado, ou não esteja trabalhando em escolas públicas e
universidade, o que se mostrou determinado difícil devido à grande demanda por professores

225
Movimentos Sociais, Educação e Arte
226
Graduanda. Faculdade Paraíso do Ceará. mariaeduardahenriquece@gmail.com. Falta especificar o curso.
227
Graduando. Faculdade Paraíso do Ceará. gustavo_lnl@hotmail.com.
228
Graduando. Faculdade Paraíso do Ceará. yurilinsce@gmail.com.
como formação e um mínimo de experiência na área ou na língua.
Assim, o aplicativo PRODEAF surge na tentativa de tornar conhecida na sociedade a
língua brasileira de sinais (LIBRAS), conhecido como um dos aplicativos mais avançados no
assunto, por traduzir textos e mostrar imagens de como reproduzi-los, é importante ressaltar
que o mesmo não se trata de uma política pública do governo, mas de um projeto inicial criado
por discentes da Universidade Federal de Pernambuco. De certa forma, tal aplicativo tornou-
se um grande marco na inclusão do deficiente auditivo, a empresa advinda do sucesso desta
inclusão social digital, levou a criação de uma empresa privada focada no assunto e na
assistência as diferentes deficiências presentes na sociedade.
Tal empresa, conta hoje com apoio de grandes marcas como a Microsoft e o Banco do
Bradesco, além, de igualmente presença do SEBRAE como apoiador mais influente em seu
meio. Ainda que não seja o único aplicativo na tentativa de auxiliar esta questão, os que ainda
estão disponibilizados encontram-se menos organizados e eficientes que este citado, o que o
torna, o mais utilizado por qualquer pessoa para entender LIBRAS ou estudar em meio
acadêmico.
Assim como exemplifica Monteiro (2006, p.296), “O papel dos surdos que viviam no INES –
e que se desenvolviam por meio da comunicação da Língua de Sinais Francesa e da Língua
de Sinais Brasileira antiga - foi importante, pois de lá partiram os líderes Surdos que vêm
divulgando durante muitos anos a Língua de Sinais em todo o país”. A origem do que vêm a
ser língua brasileira de sinais, mostra como a mesma ainda é uma herança de algum povo, que
neste caso seria a Língua de Sinais Francesa (LSF). A origem igual do Instituto Nacional de
Educação de Surdos (INES) fundada em 1857 pelo então professor Ernest Huet, que trouxe
em si o ensino da língua francesa de sinais e criou uma capaz de auxiliar o deficiente auditivo
no Brasil. Em seu início era possível averiguar que o próprio INES passou por uma fase de
escola internato, proibição da língua de sinais na instituição, o que de começo provocou uma
queda no número de professores surdos e um acréscimo exponencial de docentes ouvinte no
meio educacional para deficientes auditivos.

1. EVOLUÇÃO JURÍDICA: DO ESTATUTO, DA DECLARAÇÃO AO ENSINO

Ao tratar dos deficientes auditivos, se faz necessário citar imprescindivelmente o


Estatuto que trata das pessoas com deficiência, datado de 6 de julho de 2015, Lei nº 13.146
que “Institui a lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com
Deficiência)”. Assim, a lei vem na tentativa de igualar, o exercício de direitos e liberdades
fundamentais, na inclusão a vida social e exercício da cidadania. A própria obra do legislativo
mostra que comunicação sobre seu estatuto se diz com relação a lei (BRASIL, 2015), “V -
comunicação: forma de interação dos cidadãos que abrange, entre outras opções, as línguas,
inclusive a Língua Brasileira de Sinais (Libras), a visualização de textos, o Braille, o sistema
de sinalização ou de comunicação tátil, os caracteres ampliados, os dispositivos multimídia,
assim como a linguagem simples, escrita e oral, os sistemas auditivos e os meios de voz
digitalizados e os modos, meios e formatos aumentativos e alternativos de comunicação,
incluindo as tecnologias da informação e das comunicações”. Afirmando, que não só existe a
língua focada neste artigo, mas outras como, por exemplo, o Braille, meio de comunicação
tátil para cegos.
É assim que a partir dos anos 70, mesmo que em sentido menor, a educação especial
para deficientes auditivos como é demonstrado por Glat e Fernandes (2005, p. 36), “Os anos
70 representaram a institucionalização da Educação Especial em nosso país, com a
preocupação do sistema educacional público em garantir o acesso à escola aos portadores de
deficiências 2. Em sua progressiva afirmação prático-teórica, a Educação Especial absorveu
os avanços da Pedagogia e da Psicologia da Aprendizagem, sobretudo de enfoque
comportamental. O desenvolvimento de novos métodos e técnicas de ensino baseados nos
princípios de modificação de comportamento e controle de estímulos permitiu a aprendizagem
e o desenvolvimento acadêmico desses sujeitos, até então alijados do processo educacional.
“O deficiente pode aprender”, tornou-se a palavra de ordem, resultando numa mudança de
paradigma do “modelo médico”, predominante até então, para o “modelo educacional”. A
ênfase não era mais a deficiência intrínseca do indivíduo, mas sim a falha do meio em
proporcionar condições adequadas que promovessem a aprendizagem e o desenvolvimento
(GLAT, 1985; 1995; KADLEC & GLAT, 1984).” Assim, é confirmado mais uma vez que
desde seu início, a educação focada em pessoas com deficiência auditiva sempre se mostro
com uma lacuna enorme, a falta de profissionais intérpretes neste cenário, transforma o meio
acadêmico em um sistema inviável para o ensino focado no apoia da aprendizagem da pessoa
com deficiência auditiva.
No que se diz com relação ao ensino, o próprio estatuto já exemplifica o que foi
apresentado e discutido anteriormente, a necessidade de políticas entranhadas no meio escolar,
para aumentar a eficiência do aprendizado, assim como exemplifica o artigo 28 inciso 5, na
adoção de medidas individualizadas e visando mais de duas pessoas para maximizar o
desenvolvimento acadêmico, na tentativa de fazer permanecer os deficientes auditivos ao
sistema de ensino brasileiro, devido à enorme lacuna e igual demanda por professores
especializados na área, promovendo a autonomia do estudante e participação no meio de aula
de forma igual, neste sentido, é aderido à Declaração Salamanca em seu texto, como será
mostrado a seguir.
A Declaração Salamanca vem um pouco antes, datada de 1994, vêm trazendo consigo
inúmeras disposições para que os meios escolares, sejam eles públicos ou de ordem privada,
façam a adaptação necessária para o recebimento de pessoas com qualquer tipo de deficiência,
seja ele de viés auditivo ou físico, dentre as outras dispostas em lei. Tal declaração, traz
consigo uma problemática, pois ao incluir os diversos tipos de deficiência, seja ela física,
auditiva ou econômico, revela um aumento nas escolas inclusivista e faz com que haja uma
passagem das escolas com professores formados, para professores que somente precisam de
uma formação simples, não sendo necessário o conhecimento da língua de sinais brasileiras,
assim como é exemplificado por Monteiro (2006, p.300), “ Com essa difusão nas salas de
TELE-CURSO 2000, houve um aumento das escolas inclusivas e uma diminuição das escolas
para surdos, prejudicando a comunidade surda, que está sujeita à ameaça de perder a
preservação da Língua de Sinais e sua Identidade Cultural”. A evolução do sistema de ensino
brasileiro trouxe consigo a necessidade uma adaptação urgente do ensino escolar aos
diferentes tipos de deficiência.
É afirmado também por Quadros (2003, p.86), em que “A Declaração de Salamanca
considerou uma das coisas mais peculiares da educação de surdos: a questão da língua. No
entanto, ainda assim, a língua é apenas mencionada nos documentos através de
recomendações, mas não de inserção e viabilização de um ensino tendo como espinha dorsal
a língua de sinais. Assim como mencionado por Souza e Góes (2000), o Plano Nacional de
Educação Especial de 1994 afirma o direito de uso da língua de sinais pelo surdo; mas apenas
"recomenda" a utilização desta língua pelos professores e familiares. Aqui se percebe
sutilmente que as representações da cultura hegemônica, ou seja, da cultura ouvinte, estão nas
entranhas das propostas de inclusão’. A cultura hegemônica tende sempre a produzir
populações politizadas de acordo com sua representação.” É mostrado assim, que embora a
Declaração Salamanca seja uma inovação no sentido da educação para surdos, mas ao apenas
recomendar o ensino dentro de casa, peca no sentido que falta o incentivo a este tipo de ensino.
O Programa Nacional de Apoio a Educação do Surdo, é um dos inúmeros projetos do
governo, datado de 2001 logo após a Declaração Salamanca, não a sua data de aprovação, mas
quando a mesma passou a fazer efeitos e projetos na sociedade, na tentativa de incluir o
deficiente auditivo ao sistema escolar brasileiro em cooperação com o MEC, que ao promover
surdos a qualidade e cargo de instrutores de Libras, desenvolvendo métodos de ensino ainda
que inicialmente deficientes, mas que eram ministrados por instrutores que já faziam parte da
língua brasileira de sinais há anos, o que demonstrou assim, experiência com a segunda língua
oficial brasileira.

2 DA INCLUSÃO AO SISTEMA EDUCATIVO BRASILEIRO: UMA LUTA DIÁRIA

É preciso anteriormente, citar que embora as políticas públicas brasileiras estejam


voltadas atualmente na inclusão da pessoa seja ela com deficiência auditiva ou
economicamente menor, é acreditar que essa é uma política moderna, mas tal inclusão já
deveria ser realizada de qualquer formato, seja ela com apoio ou não da população. Assim
como é afirmado por Quadros (2003, p. 85) sendo assim “Na verdade, caracteriza-se a
educação com base na exclusão. Se se propõe uma educação inclusiva, supõem-se a existência
de excluídos. Assim, a reflexão deve ser feita tendo em vista esta oposição que sustenta a
política educacional nacional. Como observado por Skliar, esta discussão é "embaraçosa e
improdutiva". Dessa forma, a educação deveria estar calcada em um plano que atenda de fato
as diferenças no contexto brasileiro: diferenças sociais, políticas, linguísticas e culturais.
Todavia, a realidade reflete a inclusão de todos visando a atender interesses políticos que têm
base na homogeneidade. Os resultados dessa insistência são familiares tanto para os
profissionais que atuam na educação, bem como, para os intelectuais da educação: o fracasso
escolar dos silenciados, dos oprimidos”. É mostrado assim, que a inclusão do deficiente
auditivo as escolas, é só uma imagem criada na tentativa de esconder um erro passado
cometido pelo meio educacional tão renomado, mas ainda tão cego. Foi assim, que se fez
necessário a inclusão da própria Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) ao sistema educativo,
de forma que seja adiciona ao meio curricular, na tentativa de suprir demandas e mitigar a
saída de alunos com deficiência auditiva das universidades por falta de professores com o
mínimo de conhecimento na segunda língua oficial do brasil.
A Inclusão da disciplina de LIBRAS através da lei nº 10.436 de 24 de abril de 2002
que “Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – Libras e dá outras providências.” Se trata
de uma lei que na tentativa de incluir LIBRAS ao sistema educativo, ainda o considera como
uma segunda língua oficial, mas que merece o devido reconhecimento pela sociedade e pelos
meios educacionais. Assim como dispõe o seu segundo artigo “Deve ser garantido, por parte
do poder público em geral e empresas concessionárias de serviços públicos, formas
institucionalizadas de apoiar o uso e difusão da Língua Brasileira de Sinais - Libras como
meio de comunicação objetiva e de utilização corrente das comunidades surdas do Brasil.” A
ideia debatida a partir deste artigo, exemplificam ainda mais a intenção do governo de criar
um sistema que seja capaz de igualar o Português usualmente trabalho em escolas para Libras,
o que se verificado mais afundo, ainda se encontra defasado e criticado pela diferença ou se
julgada por pessoas pouco alfabetizadas, resulta de que a Libras é uma língua desnecessária
de estudos, para quem claro não seja preciso. É então um preconceito criado dentro do próprio
território entre duas línguas.
É assim, que fica exemplificado e comprovado a afirmação anterior, é como será
mostrado em seu quarto artigo em que “O sistema educacional federal e os sistemas
educacionais estaduais, municipais e do Distrito Federal devem garantir a inclusão nos cursos
de formação de Educação Especial, de Fonoaudiologia e de Magistério, em seus níveis médio
e superior, do ensino da Língua Brasileira de Sinais - Libras, como parte integrante dos
Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs, conforme legislação vigente.” Desta forma, a
própria lei tenta adicionar ou deixar de forma paritária as línguas que constam como oficias
no Brasil, é uma luta diária na tentativa de criar obrigatoriedade em todas as escolas públicas
e universidades (por consequência evidente as de natureza privada) para adicionar em seus
currículo nacionais tal língua, não menos importante que a primeira.
A evolução do que vêm a ser o ensino de Libras no meio escolar depende muito de
como o indivíduo com deficiência auditiva têm exercitado sua mente, porque esse exercício
só se encontra mais eficiente no momento que é auxiliado por um profissional adequado, é
afirmado assim como Poker (2002, p.4), “Verificou então que o maior problema do surdo não
é a surdez em si mas o que essa privação sensorial provoca, ou seja, a deficiência da
experiência no âmbito da representação simbólica, da ação mental. Por isso mesmo, apesar do
sujeito com surdez ter possibilidade de compreender e de aplicar os seus princípios lógicos
como o sujeito ouvinte, não o faz, porque na ausência da linguagem oral, não consegue
desenvolver sozinho ou espontaneamente esta capacidade. Para tanto, precisa aprender de
forma deliberada uma língua, para estabelecer tais trocas, seja ela oral ou gestual. ” Assim,
faz se necessário uma melhor preparação para o aprendizado por meio de gestos e
consequentemente da Libras. A evolução do pensamento e da confiança do deficiente auditivo
que ele possa aprender é algo mais endógeno ou em formato mais popular, intrínseco se
analisado mais fielmente ao ensino escolar brasileiro.
Dificuldade maior ainda encontra-se no sentido que ao nascer, as crianças já com
deficiências auditivas têm sua família composta por ouvintes, o que representa em si um óbice
no contato extra familiar, assim é justificado a problematização citada anteriormente, a
integração social do indivíduo nesse sentido se encontra com uma lacuna enorme, pois difere
em muito o contexto social do próprio ouvinte, o deficiente cresce com uma visão diferenciada
e até com a convicção de ser inferior ou que não possui os mesmos direitos, é forçoso de início
pensar que isto não é justificado, mas a falta de preparação ou de interessa da família por um
maior contato com seu filho que já nasce sabendo que é deficiente ainda se encontra fraca e
dependente de ensinamentos, a visão do deficiente auditivo tá no sentido em que o mesmo é
igualitário tanto no tratar dos direitos.

3. DA AUSÊNCIA DE INTÉRPRETES À DIFICULDADES NAS ESCOLAS E


OUTRAS INSTITUIÇÕES

Assim como debatido e mostrado anteriormente, os próprios docentes envolvidos e


considerados profissionais no conhecer de Libras, o órgão ou instituição determinado de
Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) em cooperação universidades em prol da
formação de novos professores especializados no ensino focado em pessoas com deficiência
auditiva, do mesmo formato como foi apresentado em introdução, a grande demanda por
profissionais, torna o sistema de espera muito moroso, a falta de pessoas com formação neste
segmento transforma as faculdades em meios escassos para o ensinamento.
É importante ressaltar, sem fugir do assunto principal, que em seu início, como a
deficiência e necessidade de ensino foi comprovada por médicos e assim considera uma
doença, independente de qual fosse a origem e tipo, foram eles que viram a necessidade de
escolarização da então recente afirmação. Ainda que analisado sobre um viés psicológico e
com fulcro na avaliação posterior por exames médicos. Em seu início como afirma Glat e
Fernandes (2005, p.36), “Nas instituições especializadas o trabalho era organizado com base
em um conjunto de terapias individuais (fisioterapia, fonoaudiologia, psicologia,
psicopedagogia, etc.) e pouca ênfase era dada à atividade acadêmica, que não ocupava mais
do que uma pequena fração do horário dos alunos (GLAT, 1989). A educação escolar não era
considerada como necessária, ou mesmo possível, principalmente para aqueles com
deficiências cognitivas e / ou sensoriais severas. O trabalho educacional era relegado a um
interminável processo de “prontidão para a alfabetização”, sem maiores perspectivas já que
não havia expectativas quanto à capacidade desses indivíduos desenvolverem-se
academicamente e ingressarem na cultura formal.” Assim, é perceptível a lacuna no
pensamento de como seria a inserção do deficiente auditivo (foco deste artigo) no meio social,
ao estuda-lo sobre o pretexto de analisar psicologicamente e biologicamente, há um
preconceito ou início dele, que o excluí de qualquer possibilidade de inclusão.
A falta de intérpretes assim é evidenciada na igual escassez de um número de
profissionais adequado à demanda, é necessário então que cada professor seja ele de escola
pública ou privada, tenho o mínimo de conhecimento para Libras, ainda que isso seja diverso
no sentido que é um paliativo, sendo que a solução real fica com fulcro na quantidade de
intérpretes formados e utilizados atualmente em escolas que possuem discentes com
deficiência auditiva, é necessário como foi mostrado anteriormente, esperar um processo
moroso para que um novo profissional seja treinado ou que os que já existam e possuem
conhecimento mais qualificado, tenham em sua rotina, um tempo para dedicar ao
desenvolvimento educativo do deficiente auditivo.
Tendo como base fundamental o texto constitucional e que o direito a educação é
essencial na vida do cidadão, tanto para as suas funções escolares e/ou acadêmicas e laborais,
e a falta de assistência ao surdo e o deficiente auditivo (a surdez foi adquirida, por acidente
com exemplo) torna-se um óbice pelo não cumprimento de suas funções no corpo social. Os
direitos fundamentais são garantidores da liberdade individual, direito à participação,
constituindo, portanto, reveste- se de carga valorativa e sendo de uso obrigatório. Nas palavras
de Sarlet (2009, p. 289), “Tais características dos direitos sociais prestacionais encontram-se,
por outro lado, diretamente ligadas à sua relevância econômica e dependência da
disponibilidade de recursos (...)”. É notório em todo território a morosidade e a não efetividade
da prestação positiva em relação a pratica dos direitos fundamentais, atentando ao fato de que
essa prestação educacional gerara um custo para o governo, ainda mais quando se trata de
grupos minoritários.
A oralidade apresentada nas instituições educacionais, sociais, culturais petrifica o
sistema, imposto pelo letramento do sujeito (desenvolvimento oral e escrito), ou seja, não se
tem abertura para a língua de sinais. Assim como descreve Müller (1997, p. 22), “(...) não
permite que a língua de sinais seja usada nem na sala de aula nem no ambiente familiar, mesmo
sendo esse formado por pessoas surdas usuárias da língua de sinais. Tomando como base o
ensino desenvolvido em muitas cidades brasileiras, o oralismo sempre foi e continua sendo
uma experiência que apresenta resultados nada atraentes para o desenvolvimento da
linguagem e da comunidade dos surdos”. Dessa maneira a convivência do surdo e deficiente
auditivo em suas atividades e locais, é dificultada pela padronização da língua, sendo ela a
língua falada, a oralidade; e por esse motivo representam uma regressão das conquistas desse
grupo, revelando assim a utópica democracia brasileira.
Tem um pensamento equivalente, Dizeu e Caporali (2005, p. 584) “Vivemos em uma
sociedade na qual a língua oral é imperativa, e por consequência caberá a todos que fazem
parte dela se adequarem aos seus meios de comunicação, independentemente de suas
possibilidades. Qualquer outra forma de comunicação, como ocorre com a língua de sinais, é
considerada inferior e impossível de ser comparada com as línguas orais. ”, causando a
inferiorização da LIBRAS e de seus usuários.
Saindo um pouco da esfera constitucional, a língua de sinais é adotada como a segunda
língua oficial brasileira, e, no entanto não corresponde a base curricular do ensino infantil,
fundamental e médio das escolas gerando um ambiente segregador do ouvinte e do não
ouvinte, em algumas universidades e faculdades se vê a elaboração da língua brasileira de
sinais (LIBRAS) como disciplina (por exemplo, a Faculdade Paraíso do Ceará, com sede em
Juazeiro do Norte, sendo colocada como cadeira optativa) e isso é um avanço positivo, mas
deveria começar no ensino infantil para maior abrangência e inclusão; na grande maioria os
professores não estão preparados para lidar com os alunos surdos, portanto eles deveriam
passar pela “disciplina” e atingiriam sua capacidade.
Eles (surdos e os deficientes auditivos) são culturalmente marginalizados, tinham
alguns direitos negados, por exemplo, a acumulação de bens, e a possibilidade de matrimônio,
pois são usuários de uma língua distinta daqueles que não possuem a deficiência, daí acarreta
a desvalorização da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS). Apresenta também, Lodi et al.
(2009, p. 39), “Desse modo, a aprendizagem da escrita deve ser relativizada e pensada
segundo as necessidades e particularidades de cada grupo social. No que diz respeito,
especificamente, aos surdos, acreditamos na importância da aprendizagem desta língua e
criticamos a forma pela qual ela vem sendo imposta a estes sujeitos: inferioriza-se e
descaracteriza-se a língua de sinais e, consequentemente, a diferença linguística existente.
Ignorando a diversidade de linguagens em circulação, pressupõe-se que, sem o domínio da
escrita, conforme rege a norma culta, os surdos não terão condições de se desenvolver
completamente”. É clara a tremenda diferenciação entre as línguas, a dicotomia criada entre
o sinal e a escrita e/ ou o sinal e a fala.
Algumas diferenças importantes, o português sinalizado seria a gestualização de
algumas palavras com o objetivo mais ilustrativo (não configurando uma língua), de fácil
compreensão ao receptor e a língua de sinais, é uma língua oficial brasileira utilizada pelos
surdos e deficientes auditivos (aqueles que adquirem), tanto para o melhor entendimento do
receptor quanto o emissor da linguagem. A língua brasileira de sinais, como coloca CASTRO;
CARVALHO (2009, p.23), “Assim sendo, pode-se afirmar que a LIBRAS é, de fato, um
idioma gestual-visual principalmente focado na memória fotográfica, na construção de
imagens no cérebro e no relacionamento entre si desses elementos visuais.” Ou seja, é
composta por elementos gestuais e expressões faciais que permitem a conversação audível do
receptor e emissor ou seus espectadores.
Os deficientes auditivos têm como apoio um órgão do Ministério da Educação (MEC),
o Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) que desenvolve cursos facilitadores da
convencia para os alunos surdos. Outras manobras de inclusão como a utilização do interprete
de LIBRAS na sala de aula para o acompanhamento do estudante surdo e/ou deficiente.
Também escreve Bueno (2008, p. 30), “No caso da educação do deficiente auditivo, onde a
questão da apreensão do conteúdo escolar está intimamente ligada à principal sequela de sua
deficiência, a alteração nos processos de aquisição e desenvolvimento da linguagem, a questão
da formação especializada assume importância vital. É óbvio que criança deficiente auditiva
inserida em processos especiais de ensino, como a classe e a escola especial, dependem da
qualidade realizada pelo professor especializado. Não se pode esquecer, contudo, que, quando
inseridas em classes regulares, as dificuldades inerentes à sua deficiência exigem
acompanhamento pedagógico especializado, com vistas à garantia da assimilação do conteúdo
escolar e que depende de professor preparado para tal.”. há citação direta com o uso destas
aspas?
Pode-se retirar daí a responsabilidade da instituição, do professor especializado (são
pouquíssimos), a questão do interprete em sala, da metodologia não adaptável a esse aluno
que são essenciais para o desenvolvimento desse aluno. É dever da instituição está preparada
a todos os tipos de alunos, e adaptar e a habilitar os seus professores e metodologias, assim
como também é dever do Estado fortalecer a ideia de igualdade e direito a educação por todos.
Como já citado é direito de todos alcançarem a educação, não pode deixar ninguém
marginalização de um direito tão fundamental por conta de sua má formação auditiva ou perda
da audição através de um acidente.
Continua Bueno (2008, p. 33), ”se a ampliação de vagas nos sistemas públicos de
ensino é fundamental para a democratização da educação do deficiente auditivo em nosso
país, não se pode descurar da sua permanência qualificada. Um dos pontos centrais é, com
certeza, a busca de maior produtividade, consubstanciada pela ascensão nos níveis de
escolaridade. Não podemos mais nos contentar com o simples fato de oferecer um mínimo de
escolaridade, mas deve ser nossa finalidade a extensão de, pelo menos, a escolaridade de
primeiro grau a todos os ingressantes. Se esta é uma meta que não pode ser alcançada
rapidamente, também não se pode permanecer no estado atual (...)”. Não adianta elevar o
número de vagas se não tem a qualificação dos profissionais para o atendimento dos surdos e
deficientes auditivos, isso pode gerar transtornos ao indivíduo, entretanto se existir uma
proposta ou o mínimo de capacidade a este atendimento deve se fazer o possível para que
sejam realocados na escola ou na academia para o seu desenvolvimento escolar, social,
econômico e cultural.
Também concorda Damázio (2007, p. 7) “Nesse sentido, a nova política de Educação
Especial vem ao encontro de nossos propósitos de mudanças no ambiente escolar e nas
práticas sociais/institucionais para promover a inclusão dos alunos com surdez na escola
comum. Por mais que a referida Política tenha sido definida nesse sentido, muitas questões e
desafios ainda estão para serem enfrentadas, muitas propostas educacionais precisam ser
revistas e algumas tomadas de posição precisam ficar mais claras para que, realmente, as
práticas de ensino e aprendizagem nas escolas públicas e particulares apresentem caminhos
consistentes e produtivos para a educação de pessoas com surdez. ”; portanto, o olhar seria
inclusivo.
A dificuldade de abertura a essas pessoas também se dá pelo preconceito e relação a
sua condição física, também por serem visto como grupo minoritário, expõe Bueno (2008, p.
34), “Assim, não devemos nos espantar quando é destinado à classe especial o pior espaço da
escola, se proíbem atividades comuns entre crianças deficientes e crianças normais, se
encontre resistência de diretores e professores da escola regular para abertura de classes
especiais. Se, por um lado, isto reflete uma visão preconceituosa da sociedade, por outro, é
fruto dos baixos resultados alcançados até hoje pela Educação Especial em nosso país.”, há a
divisão da educação em duas: regular e especial, a diferenciação dos alunos já começa na
própria instituição.
Também expressa sobre a divisão entre o regular e o especial Miranda (2008, p. 41)
”A literatura evidencia que, no cotidiano das salas de aula, os alunos com necessidades
educacionais especiais inseridos nas salas de aula regulares vivem uma situação de
experiência escolar precária, ficando quase sempre à margem dos acontecimentos e das
atividades em classe, porque muito pouco de especial é realizado com relação às
características de sua diferença”. A condição de não terem uma preparação para as atividades
escolares do cotidiano, fazem com que o local onde era para se praticar a socialidade e a
inclusão, acabam por gerar um ambiente segregador e ameaçador ao mesmo tempo.
E torna visível o pensamento de Lodi et al. (2009, p 61) “ Um grande número de
pessoas surdas e também outros grupos minoritários (sem poder) são privadas de contribuir
para o estoque coletivo do conhecimento cultural existente nesses grupos, pois a educação
favorece um certo tipo de capital cultural: aquele da cultura dominante. Neste sentido,
aprender a língua portuguesa representa um tipo especial de capital cultural, tendo valor único
na escola de surdos. ”, como já exposto à educação é vista como onerosa para o governo, mas
não se esquecendo de que é ele que tem a maior responsabilidade em dar assistência aos surdos
e deficientes; não operando de modo segregador, nem o Estado nem a instituição educacional,
dando mais efetividade e seriedade à educação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mostra Lodi et al. (2009, p. 40) “A questão, então, não é a LIBRAS” e nem a “falta”
do português escrito, mas sim a postura dos profissionais frente a língua e a surdez.”, o que
permanece assente é a capacidade e habilitação do profissional. Assim como atenta para a
realização democrática educacional, Quadros (2003, p. 85), “Dessa forma, a educação deveria
estar calcada em um plano que atenda de fato as diferenças no contexto brasileiro: diferenças
sociais, políticas, linguísticas e culturais.”, a realização desse ideal de educação não está tão
longe de ser alcançado.
É relevante observar as necessidades de cada grupo social sem desvalorizar e
inferiorizar; atuando os alicerces sociais (escola, família, Estado) de forma positiva e
inclusivista. Enfatiza Lodi et al. (2009, p. 61) “ Sendo assim, é crucial lutar por um clima
educacional, linguístico e cultural que proporcione mudanças, autonomia e emancipação e não
apenas uma tolerância da pluralidade de manifestações, em que as manifestações críticas
permanecem enclausuradas com o confinamento de guetos culturais.”, se faz necessária a
mudança nas escola para inclusão do interprete e professores habilitados para atender as
necessidades de seus alunos, como também a mudança na grade curricular desde o ensino
infantil para maior abrangência. E por mais que tenha a existência de leis tornando positivando
a abertura para a língua de sinais, a LIBRAS é pouco utilizada nas escolas públicas e privada.

REFERÊNCIAS

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Surdez. SEESP / SEED / MEC: Brasília. Gráfica e Editora Cromos: Curitiba, 2007.

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QUADROS, Ronice Müller de. Educação de surdos: a aquisição da linguagem / Ronice


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SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos
direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Ed., 2009.
NUANCES DA EDH E A EXTENSÃO NO ENSINO SUPERIOR: a EDH como
transformadora da realidade social229

Artur Felipe de Melo Silva230


Alanna Laís de Assis Costa231
Marco Aurélio da Silva Freire232

RESUMO

O presente texto é uma tentativa de elucidar uma temática de grande valor todavia ainda pouco
estudada sobretudo nos cursos de Direito. Apesar dessa realidade o conteúdo integra à
Educação em Direito Humanos, doravante EDH e torna-se pertinente ante a realidade posta.
Destarte, nosso papel através desse artigo é colaborar com a disseminação de conteúdos
análogos, igualmente contribuir no debate que circunda ao tema. Sublinhamos que o trabalho
não se limita em sintetizar elementos teóricos e consolidar conceitos, seu escopo consiste em
analisar a partir de um recorte específico em universidades de Pernambuco, da capital ao
interior do estado, projetos de extensão que desenvolvam práticas cidadãs e que se coadunam
com as diretrizes da EDH. Sob esse alicerce, nos debruçamos estritamente no enfoque de
examinar projetos de extensão que integram as faculdades de Direito do estado. Destarte,
destacaram-se 3 projetos cuja análise integra esse trabalho, são eles: Programa de Adoção
Jurídica de Cidadãos Presos - PAJCP (ASCES-UNITA), Projeto Além das Grades (UFPE) e
Asa Branca Case Fanzine (UNICAP). Vale salientar que todos têm em comuns elementos que
vislumbram a EDH, detêm, intrinsecamente, particularidades que merecem um exame
minucioso, o qual se pretende com este artigo.

Palavras-chave: EDH. Extensão. Universidade. Direito.

INTRODUÇÃO

O trabalho em tela tem como problemática central a discussão da temática de Educação


em Direitos Humanos, com o recorte no Ensino Superior. Especificamente no tocante às
Faculdades de Direito no estado de Pernambuco, buscando visualizar onde e como os Direitos
Humanos são ensinados aos graduandos através dos projetos de extensão. Ao fim a questão
delineadora é: A EDH pode ser usada em programas de Extensão Universitária com o intuito
de disseminar conteúdos relativos aos Direitos Humanos e à transformação social?
Assim, o artigo em questão objetiva a delimitação e a identificação de elementos da
EDH inserida no Ensino Superior. Logo, se almeja o estudo de projetos que abordem temáticas
que digam respeito aos Direitos Humanos em suas variadas facetas. Notadamente, para tanto,

229
GT 6 – Movimentos Sociais, Educação e Arte.
230
Graduando. ASCES-UNITA. E-mail: arturfelipemelo@gmail.com.
231
Graduanda. ASCES-UNITA. E-mail: alannacsta@gmail.com.
232
Mestre em Direitos Humanos, UFPE e Bacharel em Direito ASCES-UNITA. E-mail:
freiremarc@hotmail.com.
têm-se como objetivos específicos a pretensão de relacionar as práticas de cultura de paz e
transformação social vivenciadas por intermédio de projetos extensionistas nos cursos de
Direito, como pivôs de uma educação humanística, alinhada as vertentes da EDH. Foram
utilizados referenciais teóricos, bem como uma vasta revisão de literatura e experiências de
participação em um dos projetos. Assim como a legislação pátria, PNE, PMEDH, além de
autores como Celso Lafer, Vera Maria Candau e Susana Beatriz Sacavino e dentre outros. A
abordagem se fez de maneira qualitativa, a qual possibilita a partir de um aporte teórico
complexo a verificação dos liames entre a educação no nível superior, em sua vertente de
extensão, com a EDH.
A pesquisa se enquadra no estudo bibliográfico e na análise de projetos de extensão
no estado de Pernambuco. No que se refere à coleta de dados, estes são obtidos através de
uma apuração de projetos classificados como extensão, os quais relatam suas aspirações e
condutas no decorrer no projeto. Bem como foi tomada como base boa parte da literatura
pertinente ao tema que confere condições suficientes de identificar as componentes do objeto
de estudo.
A técnica para análise de dados utilizada foi à busca incessante em diagnosticar
projetos que se coadunam com o ideal proposto pela EDH de modo transversal, direta ou
indiretamente. Tudo isto, através de uma análise descritiva da realidade dos projetos e uma
interpretação à luz dos conceitos elencados.
A temática de Direitos Humanos vem sendo ameaçada e discutida, muitas vezes, como
algo negativo, além de sua relevância ser questionada e bombardeada rotineiramente. A nossa
pesquisa se justifica por termos a plena convicção de que a visão acerca dos direitos humanas
expostas para a sociedade em muito são deturpados e se convencionou propagar algo que não
retrata o referido assunto, devido ao contexto em que nos encontramos inseridos.
Como resultado obtido, pudemos vislumbrar que a EDH se encontra no dia a dia. Bem
como, foi observado que está presente nos projetos de extensão usados como referência nesse
trabalho. A missão transformadora e garantidora proporcionada através dessas atividades,
reforçando a possibilidade de mudança na vida dos estudantes e, consequentemente daqueles
que colaboram e trabalham nas ações. Destarte, evidente a importância dos DH, mesmo diante
de um cenário de controvérsias e enfrentamentos, especialmente de cunho ideológico.

1. EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS

Previamente faz-se necessário tecer algumas considerações sobre o que contempla os


direitos humanos, que em linhas gerais equivale a um conglomerado de direitos substanciais
para uma vida pautada em dignidade, igualdade e liberdade. Além disso, abrangem valores
fundamentais, que vêm contidos expressamente ou não nos ordenamentos jurídicos, os quais
comungam de fundamentos como universalidade, reciprocidade (vinculam Estado e
Sociedade) (direitos de todos), essencialidade (valores precípuos) e superioridade (caráter
supralegal ante o arcabouço jurídico) e dentre outros. (RAMOS, 2018).
Ao guiar-se por tais preceitos elencados, os direitos humanos não incorporam um rol
fixo e preestabelecido, senão um emaranhado de direitos essenciais à vida humana. Justamente
por não ser rol taxativo que se abre margem para que ao longo da história, através de
mobilização da sociedade civil organizada e evolução legislativa cada vez mais se incremente
e valorize tais direitos. O que, de tempos em tempos, surge uma gama de direitos demandados,
os quais foram designados pela doutrina moderna de dimensões dos DH.
A partir disso, ao remontar os fatos históricos, bem como a vivência no mundo inteiro
(incluindo o Brasil) de regimes totalitários e, por conseguinte gerando graves e inesquecíveis
violações aos direitos inerentes à pessoa humana, foi desenvolvendo-se ao longo da história a
concepção do primeiro e primordial de todos os “direito a ter direitos”
Sustentado e desenvolvido pela filósofa do século XX Hannah Arendt, o conceito reside, sem
grande rigor, em figurar como cidadão que colabora com o andamento da sociedade, inclusive
com a possibilidade de pleitear ante ao Estado providências, ou seja, é o indivíduo percebido
dentro de um Estado organizado que mediante o vínculo da cidadania passa a ser julgado sob
a égide da legalidade. Melhor explica Celso Lafer em sua obra pautada nas reflexões
arendtianas:

A experiência histórica[...]levou Hannah Arendt a concluir que a cidadania é o


direito a ter direitos, pois a igualdade em dignidade e direito dos seres humanos não
é um dado. É um construído da convivência coletiva, que requer o acesso a um
espaço público comum. Em resumo, é esse acesso ao espaço público – o direito de
pertencer a uma comunidade política – que permite a construção de um mundo
comum através do processo de asserção dos direitos humanos. (LAFER, 1988, p.
58).

Assim sendo, contemporaneamente, considera-se a democracia como algo


indissociável do exercício pleno dos direitos humanos, a partir da efetivação e positivação dos
direitos na carta magna de cada nação, formam-se os denominados direitos fundamentais.
Nessa seara “Os direitos humanos, o desenvolvimento humano e a democracia formam um
tripé que mantém e promove a dignidade da pessoa humana.” (BRASIL, 2015, p.11).
Ainda nesse ínterim é fundamental que a EDH esteja em consonância com a
perspectiva de cidadania e a formação cidadã do indivíduo, pois desta maneira é que se dá
substância para a construção de uma cultura de paz, nessa acepção leciona Aida Monteiro e
Celma Tavares:

É na evolução da construção da sociedade brasileira pela reconquista do Estado


Democrático de Direito quando esta concepção de educação em direitos humanos
se amplia para englobar outras dimensões para além da participação política, da
liberdade de expressão, do direito ao voto e dos demais direitos civis e políticos.
(SILVA;TAVARES, 2011, p.19).

Deste modo, sendo o cidadão detentor da prerrogativa de ter direitos, tão importante
se faz a possibilidade de exercê-los e conquistá-los, porquanto para a efetividade e o progresso
em lograr direitos positivados na legislação internacional e nacional, é vital o bom andamento
das políticas públicas de afirmação de direitos humanos, bem como instituições, órgãos,
organizações e etc., que contribuem significativamente para construção de uma cultura de
direitos humanos.
Em suma o escopo de nossa análise paira sobre a prática pedagógica em direitos humanos,
para tanto explicativos são os 6 dos principais princípios norteadores da prática pedagógica
fundada em direito humanos (MAGENDZO, 2006):
Em primeiro está o princípio da integração, o qual traduz que as temáticas assim como
os conteúdos relacionados aos direitos humanos devem integrar os demais conteúdos e
atividades da grade curricular e das ementas de disciplinas.
Já o segundo é o princípio da recorrência, que consiste na atividade dinâmica, variada
e periódica da aprendizagem, pela qual se constrói um aprendizado acerca dos direitos
humanos em razão da prática reiterada de atividades em circunstâncias distintas e diversas.
Enquanto o terceiro na lista é princípio da coerência, que nada mais é que o
entendimento de que o sucesso no processo de aprendizado é acentuado desde que se fomente
um ambiente favorável ao seu desenvolvimento, isto é, a coerência decorre daquilo que se fala
com aquilo que se pratica, sendo, portanto parte imprescindível neste ambiente.
O princípio seguinte é justamente o da vida cotidiana. Que nasce justamente pelo fato
da EDH está totalmente vinculado com a diversidade de situações da vida cotidiana do
indivíduo, ou seja, é primordial que o educador enquanto peça crucial no ensino possa resgatar
ocasiões e causos em que os direitos humanos estão em pauta.
Logo após está o princípio da construção coletiva do conhecimento, esta procura
realçar a importância de que os indivíduos analisem, em grupo, na medida em que recebem as
informações a respeito dos direitos humanos e abandonem a postura singelos receptores
passivos e transformem-se em geradores de conhecimento científico.
Por último, e totalizando os 6 princípios, encontra-se o da apropriação. Ocorre que através do
mesmo, a pessoa se apropria do discurso auferido e a partir de sua vivência de mundo,
interpretações e assimilações acaba por recriá-lo à sua maneira, logo, reinventa o conteúdo
recebido e o manifesta com um discurso próprio, e que passa a orientar suas atuações.
Levando em conta tanto a educação formal ou quanto a não-formal para o
aprimoramento da EDH, nota-se que a peça vital para que as práticas educacionais se efetivem
e perdurem no panorama educacional é que sejam utilizadas a partir de uma perspectiva
dialógica, pela qual a vivência dos direitos humanos incorpore a rotina dos ambientes
universitários de modo que se proporcione não simplesmente o saber pedagógico, mas,
sobretudo, o saber decorrente da experiência.
Adiante faz-se necessário a realização de um breve introito, pelo qual cumpre
conceituar o tema central abordado pelo presente trabalho. No que tange a educação em
direitos humanos, doravante EDH, é adequado expor que há um pormenorização em se
tratando do conceito tido como latu sensu além de algumas distinções e especificidades, a
partir de uma classificação destrinchada por Vera Maria Candau e Susana Beatriz Sacavino
há uma breve disparidade axiomática entre as concepções de educação como direito humano,
educação para os direitos humanos e por último educação em direitos, entendidos cada um, a
priori e por vezes utilizados de modo que houvesse equivalência, bem verdade que nítida é a
correlação existente entre eles.
Entretanto, as diferenças terminológicas vão além de mera expressão, pois a primeira
educação (como direito humano) em linhas gerais é vista em si mesma como um direito
humano, aliás, especificamente um direito fundamental na gama dos direitos sociais
consagrados na CF/88 que é dever do estado oportunizar e dar condições para que todos
tenham acesso à uma formação técnico-científica, democrática e de qualidade, por outra a
educação para os direitos humanos se conecta com a perspectiva da inserção de enunciados e
temáticas inseridas de modo transversal, as quais façam referência e se relacionem aos direitos
humanos no âmbito da educação formal e não formal (CANDAU e SACAVINO, 2013) ponto
e vírgula.
Destarte, no âmago do trabalho o tema a ser elucidado é polissêmico e um tanto quanto
complexo, à vista disso à Educação em retirar itálico Direitos Humanos que tanto se demonstra
uma alternativa viável e importante para educação, quanto evidencia-se uma dificuldade em
delinear características e conceitos a fim de sintetizar uma única definição, em vista disso, nos
parece salutar que adotemos o conceito disposto na 1ª fase do Programa Mundial de Educação
em Direitos Humanos (PMEDH) que retrata EDH como: “O conjunto de atividades de
capacitação e de difusão de informação, orientadas para criar uma cultura universal na esfera
dos direitos humanos, mediante a transmissão de conhecimentos, o ensino de técnicas e a
formação de atitudes.” (BRASIL, 2006, p.06)
Haja vista definição se mostra verossímil, pois fora referendada por variados
estudiosos e autores engajados na disseminação da EDH mundo afora, portanto tomando-o
como base formulamos ao nosso ver que a EDH traduz-se por um compilado de metodologias
educacionais voltadas a transmitir conhecimentos pluridimensionais que foram
historicamente imbricados, bem como a assimilação de saberes que se desenvolvam a luz da
ética a fim de incutir valores precursores dos direitos humanos, como também realizar práticas
cidadãs, que se articulem no que tange a promoção, proteção e defesa dos direitos humanos.

2. EXTENSÃO E EDH

Ademais cumpre esclarecer que como bem sabido a educação universitária se ramifica
e ao ser destrinchada acaba por ser desenvolvida a partir da tríade indissociável (Ensino,
Pesquisa e Extensão), a qual compõe e fortalece a consolidação do ensino brasileiro em
qualquer IES (Instituição de Ensino Superior). Nesse ínterim dispõe o PNE (Plano Nacional
de Educação) ipsis litteris: “A manutenção das atividades típicas das universidades - ensino,
pesquisa e extensão - que constituem o suporte necessário para o desenvolvimento científico,
tecnológico e cultural do País…” (BRASIL, 2000, p. 37).
Sendo assim, focalizando nossa análise sob o prisma da extensão universitária,
evidente a importância da extensão como um dos pilares que integra o processo de
aprendizagem e formação do indivíduo no ensino superior. Além disso, projetos de extensão
conseguem articular uma relação prático-teórica fundamental para a formação do profissional,
em especial no operador do direito que ao concluir o curso não deve limitar-se a um simples
bacharel em direito, mas sim em um agente que tenha tido uma formação que lhe confira
capacidade crítica e dialógica ao atuar no contexto social.
Não obstante, é substancial que as universidades prestem a devida responsabilidade
em gerir, aprimorar e ampliar projetos já existente, bem como criar novos projetos, inclusive
sempre que possível, com associação com órgãos, instituições e entidades que fomentem o
desenvolvimento do estudante como cidadão e futuro profissional do direito.
Tais projetos abarcam uma vasta seara que se estende por inúmeras vertentes das
ciências jurídicas. Portanto, a extensão universitária também é responsável por proporcionar
uma interdisciplinaridade que é contemporaneamente vem se apresentando como um método
eficaz e revolucionário no que se refere à didática educacional.
Há também de se esclarecer que iniciativas assim têm o condão de propiciar um
enriquecimento tantos aos participantes e colaboradores, e principalmente quanto aos
alcançados e beneficiados pelos projetos desenvolvido.
Em vista disso, resta evidenciado que projeto que priorizem a extensão, são por
definição o alicerce para a boa formação do estudante, a ponte entre a teoria da classe a prática
na realidade, como também e acima de tudo uma prestação de trabalho voltado ao atendimento
da sociedade, o que denota uma característica de cunho humanitário.
Desse modo resta claro que a pretensão na realidade é estabelecimento de uma relação
entre a Universidade e diversos outros setores da sociedade civil, com vistas a uma atuação
transformadora, voltada para os interesses e necessidades da maioria da população.
Face ao exposto, diante do aporte teórico trazido, damos início a uma breve análise
acerca de elementos que integram a EDH e que manifestam-se em projetos concebidos nos
âmbitos das IES’s, exclusivamente no que tange ao curso de direito. Passamos a uma
apreciação de alguns projetos de faculdades que ofertam o curso de direito e que em alguma
medida se encaixam e utilizam-se de ferramentas difundidas através da EDH para
potencializar a pauta de direitos humanos, cidadania e cultura de paz.
Em virtude disso, torna-se relevante citar alguns dos projetos de extensão que dentro da
perspectiva de educação em direitos humanos se coadunam com preceitos, práticas e atributos
essenciais para acepção de EDH.
Algumas das amostras conhecidas e que oportunamente serão apresentadas, descritas
e relacionadas com a EDH, são os projetos denominados: Programa de Adoção Jurídica de
Cidadãos Presos – PAJCP (ASCES-UNITA), Além das Grades (UFPE) e Asa Branca Case
Fanzine (UNICAP).

Programa de Adoção Jurídica de Cidadãos Presos – PAJCP (ASCES-UNITA)

O programa teve início no ano de 2001, a partir da inquietação da Professora Perpétua


Dantas com a realidade que observava nas penitenciárias as quais atuava como advogada. De
modo pioneiro no interior do estado como também na cidade de Caruaru, o programa surgiu
com o intuito de prestar assistência jurídica gratuita aos presidiários, o programa corrobora
com a garantia de direitos constitucionalmente assegurados aos indivíduos encarcerados, tais
como a ampla defesa e o contraditório.
O objetivo é acompanhar a execução penal dos reeducandos da Penitenciária Juiz
Plácido de Souza, bem como de outras prisões que façam parte da rede de assistência do
Adoção e também através do engajamento de advogados da instituição, professores,
voluntários e extensionistas, que atuando em conjunto de modo horizontal contribuem e
dividem as responsabilidades, para tanto o programa busca incessantemente assegurar o
cumprimento da justiça no âmbito criminal realizando audiências, prestando auxílio jurídico,
esclarecendo dúvidas dos cidadãos presos e atuando nas sessões do Tribunal do Júri.
Estabelecendo uma conexão entre a academia, sociedade e judiciário.
No decorrer dos últimos 17 anos foi contabilizado um montante de mais de 2 mil
cidadãos que se beneficiaram dos atendimentos prestados pelo projeto. Assim o que apareceu,
de maneira modesta, mostrou-se um projeto vanguardista em todo o estado e que ao longo
desse tempo em muito corroborou para a concretização da justiça e a defesa em sua plenitude
para cidadãos desafortunados.
Porquanto, o projeto se coaduna com um dos direitos humanos consagrados na
Declaração Universal dos Direitos Humanos preza em seu artigo 10 que diz: “Todo ser
humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um
tribunal independente e imparcial, para decidir seus direitos e deveres ou fundamento de
qualquer acusação criminal contra ele.” (DUDH, 1948, p.03)
Numa atuação o programa confere aos participantes uma dupla formação pois estará
preparado para porventura atuar como advogado penalista ao se formar e obter êxito diante da
OAB, como também uma formação cidadão que se utiliza do direito como ferramenta
transformadora da realidade social existente, de todo modo um jurista fora do comum.
Vale salientar, que além da prestação de serviço à sociedade, há formação humanística
dos estudantes do curso de Bacharelado em Direito da Asces-Unita, e possibilita que estes
saiam da teoria das disciplinas dogmáticas da sala de aula, que correspondem a instrução
basilar do estudante e têm sua importância, mas que acima de tudo tenham acesso com a
pragmatismo cotidiano do Direito que torna factual a matéria ministrada pelo docente.
Desse modo, os participantes do programa entram em contato com os Direitos
Humanos através do que é aprendido na prática das atividades desenvolvidas. E tem contato
com a EDH de forma transversal.
Através da dinâmica do PAJCP (Programa de Adoção Jurídica de Cidadãos Presos),
os participantes podem adentrar na realidade do sistema prisional brasileiro, que está longe de
ser ressocializador, e participar para uma mudança substancial da realidade. O anseio não é o
de conseguir a absolvição a qualquer custo, mas sim o de fazer justiça com base no que cada
processo e cada caso concreto chega sob o olhar jurídico do projeto.
Em alusão aos 10 anos233 e 15 anos234 de projeto no ano de 2011 e 2017
respectivamente, a faculdade produziu dois curtas-metragem referente ao programa que
elencou os principais pontos de modo sintético e promissor à época, o qual tem tornando-se
símbolo da instituição sendo digno de aplauso a sintonia que o programa tem com os valores
e missões difundidos pela faculdade.
Tendo em vista a experiência oriunda do referido programa, relacionando a dinâmica
do cotidiano de advogados defensores dos direitos humanos na seara criminal, assim como
operadores do direito latu sensu dessa forma difunde um demasiado emaranhado de noções e
ideais contemplados pela EDH e que são exercidos através da extensão, ao passo que adota
postura voltada à garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos.

2.1 - Além das Grades (UFPE)

O projeto nasceu na UFPE, surgiu a partir de anseio por mudar a realidade por parte
dos juristas em formação, e endossado pela universidade vem se mostrando uma ótima vitrine
prática penal em projetos extensionistas na faculdade de direito em Pernambuco, bem verdade
que tem em certa medida muitas semelhanças com o Adoção Jurídica de Cidadãos Presos da
ASCES-UNITA. Foi formatado com o propósito de fornecer assistência jurídica no âmbito de
apenados que carecem de oportunidade de custear sua própria defesa ante ao poder judiciário.
Indo além, também são ofertadas orientações e auxílio para jovens que cumprem medidas
socioeducativas e egressos do sistema.
O projeto é pautado, portanto, na proteção e ampliação da defesa dos desvalidos de
condições e que em função disso ficam à mercê dos desarranjos da persecução penal, bem
como numa infinita maioria das vezes contar apenas com uma precária tutela prestada pela
defensoria. Isto posto, é valoroso o trabalho realizado pelo grupo.
Ainda sobre o serviço ofertado à massa carcerária, o próprio grupo se atribui o múnus
de proporcionar o acesso à informação e justiça que assim consegue mitigar todos os efeitos
danosos causados pelo Estado Hobbesiano que funciona como ultima ratio é impiedoso e

233
10 anos do PAJCP, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=b47LLq5phk8>
234
15 anos do PAJCP, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=u5OE-4IjDzw>
contundente.
Basicamente as atuações do Além das Grades relativas ao cárcere se destrincha,
conforme o que consta no website235 desenvolvido pelos organizadores, em: 1ºAssessoria
jurídica e social voluntária na Penitenciária Feminina de Abreu e Lima (PFAL),
quinzenalmente; 2º Cineclube no Centro de Atendimento Socioeducativo (CASE) Santa
Luzia, quinzenalmente; 3º Roda de diálogo na Casa de Semiliberdade (CASEM) Harmonia,
semanalmente; 4º Parceria com o Projeto de Adoção Jurídica de Cidadãos Presos da
Associação Caruaruense de Ensino Superior e Técnico (Asces-Unita) para realização de
assessoria jurídica voluntária, semanalmente.
Além do mais, no que abrange o papel da educação, o projeto se propõe a
isonomicamente aproximar o cidadão apenado com o extensionista-estudante, para que este
diante da realidade que o cerca esteja propenso a quebrar os estigmas que flutuam na opinião
pública e mediante um diálogo ponderado e aprofundado, obtido através de seu traquejo e
aprendizado, possa depurar discursos “prontos”, distorções narrativas e hostilidade sob o
tema.
Outras medidas correlacionadas desenvolvidas hodiernamente pelo grupo são a
promoção de palestras em outras faculdades de direito da cidade e captação de entrevistas com
cidadãos nas ruas a fim de obter material para produção de um material audiovisual sobre a
legalização da maconha.
Desta maneira, o participante do grupo acaba por sair da “zona de conforto” e se torna
um sujeito ativo ao se dispor a enfrentar uma realidade difícil e ainda que de forma lenta vai
galgando uma mudança no sistema penitenciário rígido e defasado que vigora atualmente no
Brasil.
Logo, tendo em vista o enorme e abrangente contato com componentes de direitos
humanos, mediante o aprendizado angariado por meio do projeto os extensionista, sim,
incorrem em práticas de cultura de paz e EDH.

2.2 Asa Branca Case Fanzine (UNICAP)

O presente projeto se originou com uma união de forças e vontades, além dos alunos
da graduação e pós-graduação contou com o apoio e a parceria de voluntários da Comunidade
Católica Lúmen e do Projeto Vincular (Comunidade dos Viventes), cooperação esta que a

235
Projeto de Extensão Além das Grades, disponível em: <http://alemdasgrades.org/nossos-projetos/>
muito deve por se tratarem de instituições de matriz católica e todos os componentes
partilharem de certa forma da mesma visão de mundos, valores e princípios fraternos inerente
a praxe cristã.
Adiante o projeto, nascido desde agosto de 2015, se norteia em busca de uma análise
prática sobre o poder punitivo do Estado sob o cidadão, o âmbito de sua atuação no exercício
desse direito sob o recorte das adolescentes, do sexo feminino, que encontram-se internadas
no Centro de Atendimento Socioeducativo – CASE Santa Luzia cumprindo medidas
socioeducativas.
A atuação, porém, diverge em método, âmbito, indivíduos envolvidos e abordagem,
contudo apesar das divergências no final das contas todos buscam um fim pacificador e de
amparo às pessoas que estão situadas em situações assim.
Pois bem, esclarecendo o recurso primordial aproveitado pelo projeto em questão, é preciso
que antes de tudo se explique o nome designado ao projeto. Fanzine consiste em uma revista
de caráter amador elaborada por fan’s (fãs) e entusiastas que de modo singelo exprimem
através de desenhos, pinturas e fotos temáticas diversas, no caso em questão a pauta é
“Direitos Humanos”.
Na realidade ocorre que as garotas adolescentes que fazem parte da elaboração da
Fanzine, são estimuladas a desenvolver ou revelar seu condão artístico. Para tanto a partir de
recorte e colagem há um incentivo à leitura e interpretação de textos literários, além de após
a confecção de todas as “fanzines” todas são postas a exposição236 e à venda, cuja renda
auferida é convertida integralmente em benefício das próprias adolescentes que produziram
as obras.
Dito isto, pode-se vislumbrar uma enorme gama de elementos que dizem respeito a
EDH pois ao trazer humanidade às adolescentes se realiza um trabalho social importante e
que torna o aluno de direito um operador do direito que está apto a fomentar hábitos
pacificadores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muito embora a relevância da EDH solidificada e amplamente defendida no artigo em


tela, é nítido que em muito se falta expandir e difundir tais práticas notadamente nas ciências

236
Exposição de Fanzines, disponível em: <http://www.unicap.br/assecom1/exposicao-de-fanzines-
elaborados-por-internas-da-funase-acontece-na-13a-semana-de-integracao/>
jurídicas, tal discurso corrobora com as lições do jurista Eduardo Bittar:

A educação que se quer, bem como o ensino jurídico de que se carece, deve
sensibilizar, tocar, atrair, fomentar, descortinar horizontes, estimular o pensamento.
É desta criatividade que se nutre a autonomia. Por isso, os educadores podem
encontrar à sua disposição instrumentos para agir na berlinda de suas atuais e
desafiadas práticas pedagógicas (BRASIL, 2007, p. 324).

De tal modo que práticas pedagógicas que dialogam com práticas de EDH possam
galgar cada vez mais espaço na educação de modo geral, em especial nos ensino superior
evidentemente no curso de direito, sendo que conforme elucidado, a partir da prática
extensionista se identifica um mecanismo importantíssimo no desenvolvimento de um ensino
jurídico plural, formador de estudantes críticos que servirão de instrumentos transformadores
da sociedade que integram.
Aliás tal pretensão se justifica levando em consideração que na dinâmica mundial e
mercadológica vivenciada atualmente a primazia pela formação de profissionais tecnicistas
gera e forma singelos operários do direito, estes -via de regra- não desenvolveram um senso
crítico capaz de perceber a realidade ao seu redor.
À vista disso alusiva é uma bela frase do escritor Peter Senge237 que diz “A arte de ver
a Floresta e as Árvores” , ou seja, justamente por não dominar e não deter uma leitura
abrangente da realidade é que se explica termos jurista limitados e que em muitos casos está
centrado e estagnado de tal modo em aspectos específicos e focados em determinadas
especialidades que não consegue reparar o panorama em que está inserido.
Malgrado o cenário atual, nos parece arrazoada que as práticas extensionistas
dinamizadas a partir de uma percepção da EDH, possuem a capacidade de conferir ao
estudante um aporte teórico atrelado a uma experiência capaz de permitir ao jurista que está
porvir, um pensamento crítico e capacidade de assimilação de fatores externos sui generis.
Aliás é uma característica particular da EDH a defesa assídua de que o estudante que
se vê incluso em suas práticas se torne cidadão crítico e ativo na sociedade e que desenvolva
uma consciência no tocante às suas responsabilidades como cidadão. Não deixando de lado
seu papel como agente comprometido com o respeito ao ser humano.
Assim sendo, é evidente que educar mediante um processo humanizado, crítico,
revolucionário denota alterar as condutas e as visões de mundo, não através do
constrangimento e imposição de valores fixados, mas sim através de diálogo,

237
Engenheiro e PhD em gestão pelo MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts)
questionamentos todos pautados no viés democráticos e permitam a experiência dia após dia
de tais direitos.
Portanto crucial se torna a providência de tais medidas para o aprimoramento da
educação superior nos cursos de direitos, haja vista que os projetos apresentados, vêm se
demonstrando belos exemplares de aprendizagem prático-teórica, capaz de retirar o indivíduo
de mero receptor de informações e dados e o colocar em uma situação atuante a qual viabiliza
um pragmatismo que fomenta experiências que o acompanharão por toda sua vida e com
certeza farão a diferença em sua atuação qualquer que seja o âmbito do exercício de sua
atividade jurídica ou social, apresentando um olhar mais humanista e voltado para a garantia
dos direitos individuais e das responsabilidades necessárias no exercício da profissão.

REFERÊNCIAS

ALÉM DAS GRADES. –––––. Disponível em: <http://alemdasgrades.org/>. Acesso em: 06


de set. 2018.

ASCES-UNITA. Documentário - Projeto Adoção Jurídica de Cidadãos Presos. 2011.


Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=b47LLq5phk8>. Acesso em: 15 set. de
2018.

ASCES-UNITA. 15 anos do Projeto Adoção de Presos. 2017. Disponível em:


<https://www.youtube.com/watch?v=u5OE-4IjDzw>. Acesso em: 15 set. de 2018.

ASCES-UNITA. Programa Adoção Jurídica de Cidadãos Presos comemora 17 anos de


atuação. 2018. Disponível em:
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3
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Rosa Maria Godoy Silveira, et al. – João Pessoa: Editora Universitária, 2007. 513p.

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cultura de igualdade, liberdade e respeito à diversidade / Secretaria de Direitos Humanos
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DINU, V. C. D.; NUNES, E. B. de C.; MACHADO, É. B. L. do A.; ANJOS, M. T. dos e


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adolescentes confinadas. Apresentado em 2017 no 3º Seminário Internacional de Pesquisa e
Prisão - ANDHEP. Disponível em:
<http://www.prisoes2017.sinteseeventos.com.br/arquivo/downloadpublic2?q=YToyOntzOj
Y
CULPADOS: O uso da força estatal mitigando o princípio da presunção de inocência
para a preservação do mecanismo de poder238

Rodrigo Jordão239

RESUMO

Cumprir pena antes de sentença irrecorrível, é possível? Eis a problemática do trabalho. A


percepção é de retrocesso quanto ao sistema e à técnica jurídica dos Órgãos de controle,
definidamente quanto ao Judiciário brasileiro, detentor da função típica de guardião da
Constituição Federal. Através da contextualização, a justificativa do trabalho científico presta-
se teoricamente para acentuar o entendimento acerca das decisões recentes do Poder Judiciário
brasileiro em face do princípio constitucional da presunção de inocência, apresentando a
ofensa ao ordenamento jurídico pátrio e tem âncora prática na necessidade premente de
alteração do entendimento judicial. Relevante que a decisão judicial não se reflete apenas no
âmbito jurídico, mas elucubra e cria prognósticos políticos e sociais, os quais extrapolam os
limites da norma penal pura. Portanto, objetiva a análise da ordem jurídica, que deve garantir
a segurança jurídica interna alusiva ao estado de inocência. Verificar quais fatores para a
mudança no entendimento quanto ao cumprimento de pena antes de sentença irrecorrível.
Consequentemente, visualizar os amplos aspectos de modo prognóstico acarretados por esta
mudança de entendimento. A pesquisa fez uso do método dialético, com pesquisa
bibliográfica com referencial teórico em decisões judiciais, juristas e autores renomados,
concluindo pela inconstitucionalidade da problematização inicial.

Palavras-chave: Direito. Legalidade. Inocência. Culpa. Inconstitucionalidade.

INTRODUÇÃO

Não basta a aplicação pura da norma jurídica para que se alcance o ideal de Justiça.
No entanto, não cabe a interpretação da referida norma legal sem que se reflita sobre as
concepções jurídicas e reflexos sociais e políticos das decisões judiciais, além da necessária
aplicação visando a segurança jurídica e o bem-estar social.
A sociedade não nasceu para norma jurídica, mas a norma foi necessária para regular
as condutas sociais, logo, não se concebe a ideia de direito e aplicação da lei sem o claro
entendimento do desenvolvimento social e suas mutações constantes, algo que o direito e os
órgãos de controle devem acompanhar plenamente.
Inserido em um contexto temporal, temos em 1969 a Convenção Americana dos
Direitos Humanos, vulgarmente conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, do qual o
Brasil é signatário, e assim, tal norma ingressou em nosso ordenamento jurídico com o caráter

238
GT 7 – Ciências Criminais, Cárcere e Drogas.
239
Pós-graduando em Direito penal e Processo penal pela ESA-PE; Bacharel em Direito pela Unifavip/Devry.
rodrigopejordao@hotmail.com
de emenda constitucional, gozando de prevalência ante as demais normas, federais, estaduais
ou municipais. Na década de 80, mais precisamente em 1988 tivemos a promulgação da
Constituição da República Federativa do Brasil. Um texto de lei, com caráter supralegal, no
entanto, não atrelado apenas à normatividade pura, mas atento ao instituto social como um ser
dinâmico, às necessidades de seguridade social, saúde, educação, moradia. Ainda, a carta
constitucional de 1988, através do Poder originário, descreve as formalidades para a atividade
legislativa, a organização administrativa do Estado, suas funções executivas, a organização
Judiciária, no entanto a estrutura norma supralegal como já referido, não se limitou às
determinações legislativas, administrativas, legais e procedimentais, mas estabeleceu um
horizonte social dentro de um Estado democrático de direito, no qual toda a estrutura do Poder
Público deve ser empenhada em proporcionar a efetiva garantia dos Direitos Fundamentais, a
dignidade da pessoa humana, os direitos sociais, e tantos outros inscritos na Constituição.
Dentro os apontamentos e ordens constitucionais, encontramos determinações e
cláusulas que são petrificadas, às quais não permitem modificações, supressões nem
limitações, devendo o Estado e a sociedade civil organizada promover a funcionalidade e
aplicação de tais princípios, dentre eles, a regra da presunção de inocência, pela qual ninguém
será considerado culpado sem que exista uma sentença penal condenatória transitada em
julgado, restando claro que não se admite a formação antecipada da culpa, sendo norma que
obsta o encarceramento como forma de aplicação de prisão pena sem a culpa formada em
definitivo. Ainda, têm-se a questão do devido processo legal, o que não impede de na seara
penal ser denominado de devido processo penal, pelo qual, aquele sobre quem se está
imputando uma prática delitiva, deve ter assegurado além da garantia da inocência, o direito
ao juiz natural, a celeridade processual, a ampla defesa e o direito ao contraditório, regras
estas que norteiam o Estado democrático de Direito e devem ser balizas intransponíveis ao jus
puniendi exercido pelo Estado juiz.
Em regra, o direito de punir exercido pelo Estado, e aqui enfocado, encontra-se
dentro da política criminal, mais especificamente nos códigos criminais, genericamente no
Código Penal, Código de Processo Penal e Lei de Execução Penal. No entanto, o direito penal
não deve ser meio para exacerbação do poderio estatal, ou ainda a vitrina de exposição das
formas de punir encontradas pelo Estado, deve sim, ser antes de tudo, um modo de limitar o
jus puniendi estatal, estabelecendo taxativamente o rol de condutas típicas consideradas como
delitos, as formas de apuração, processamento, condenação e ainda as modalidades de
cumprimento da pena, que deve observar imprescindivelmente as regras constitucionais, sob
o risco de exercer um direito punitivo arbitrário.
Ademais, a Carta constitucional traz um aspecto interessante, qual seja a ausência de
necessidade de interpretação de algumas normas nela apontadas, principalmente ao tratar
sobre as referidas cláusulas pétreas, a presunção de inocência é exemplo importante. Ao dizer
que ninguém será culpado sem o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, tal
assentamento não comporta interpretações considerando a simplicidade e singularidade do seu
texto. No entanto, para aqueles que entendem acerca da necessidade de interpretação de tal
norma, registra-se que sendo ela garantidora da presunção da inocência, sua interpretação deve
ser realizada em favor do acusado, nunca em seu prejuízo, o que torna na situação fática, no
empirismo, uma real inversão de valores, limitando e suprimindo a ordem jurídica maior,
fazendo surgir um Estado de exceção no qual a inocência não goze de presunção, mas
demonstra-se partir de um pressuposto de culpabilidade, o que se apresenta ilegal uma
intervenção do poder punitivo estatal e um movimento inadequado do direito penal, reduzindo
a garantia constitucional.
Por anos os Tribunais Superiores entenderam por assegurar a garantia ao princípio
da presunção de inocência, contudo, em tempos remotos iniciou-se um movimento de
alteração do entendimento, sobretudo no STF, o qual passou a entender que não há lesão ao
princípio da presunção de inocência, a determinação para o início de cumprimento de prisão
pena logo após o acórdão, decisão de segunda instância, mesmo que exista ainda recursos
legais cabíveis, inexistindo ainda trânsito em julgado e formação de culpa definitiva em
desfavor do acusado, o que culmina com estigmas sobre a pessoa, recaindo sobre ela a
rotulação de culpado mesmo em contrário ao texto constitucional, apresentando assim uma
anomalia jurídica e social, fruto de tentativas de interpretações desnecessárias do texto
constitucional aliada à uma técnica jurídica ineficiente.
Neste contexto temos que, a noção de devido processo penal, a qual abarca a
necessidade de celeridade processual e impulso do processo penal em tempo razoável fica à
mingua. Deste modo, o Estado juiz ao perceber sua ineficácia em oferecer a tutela jurisdicional
em tempo hábil, inclusive visando a possiblidade dos recursos cabíveis, legais, desde que não
meramente protelatórios. E mais, percebendo a possibilidade de prescrição do direito de punir,
pelo tempo que se leva para se alcançar uma sentença irrecorrível, frente à latente cobrança
social pela efetividade da Justiça, desemboca em uma interpretação desnecessária e limitadora
de princípios constitucionais, para fazer cumprir o papel de aplicador da pena, punindo
“exemplarmente” o acusado, tornando-o em condenado, para assim aparentar que se está
construindo a solidez da justiça, quando na verdade, desfaz-se claramente os objetivos
primordiais, quais sejam, possibilitar o andamento e conclusão processual em tempo razoável
para que se mitigue a possiblidade de prescrição, lançando sobre o incriminado a marca da
condenação na tentativa de criar uma imagem social límpida do Poder Judiciário,
obscurecendo a realidade e intentando se desfazer do seu ônus constitucional e legal, punindo
de modo antecipado aquele sobre o qual ainda não recaiu a culpa formada.
Ressalta-se que até o ano de 2016, o STF enquanto última instância do Poder
Judiciário entendia pela necessidade do esgotamento de todos os recursos cabíveis para que
se iniciasse o cumprimento da pena, em respeito ao postulado da presunção de inocência. Tal
entendimento do ano de 2016 adveio do julgamento de um Habeas Corpus, HC nº 126.292, o
qual negou a ordem impetrada pela defesa, por sete votos favoráveis ao início do cumprimento
da pena após decisão de segundo grau, contra quatro votos desfavoráveis. Em 2009 o assunto
havia sido discutido pelo plenário do STF, por meio do julgamento do HC nº 84.078, pelo
qual ficou decidido por maioria que era necessário o esgotamento de todos os recursos
possíveis para que houvesse o início do cumprimento da pena.
Dentro de um lapso temporal curto, o STF enquanto guardião da Constituição alterou
bruscamente o seu entendimento acerca de um tema que ao mesmo tempo carece de cuidados,
mas que é límpido pela cristalização contida na constituição. Fica explicada e clara a mudança
de entendimento do STF apenas pela ótica da ausência de celeridade e razoabilidade temporal
das decisões judiciais, as quais prejudicam não apenas o ordenamento jurídico, mas a condição
do acusado.
A argumentação de que perante todos os recursos possíveis que podem ser aplicados
ao caso concreto, podendo levar à prescrição e impossibilidade de aplicação da punição pelo
Estado, é manifestamente ilegítima e ilegal, tendo em vista que o ordenamento jurídico pátrio
permite a oposição dos recursos, os quais são direitos pessoais do acusado para que se defenda
da acusação formulada, apresentando assim a sanha punitiva do Estado, o qual não
conformado com a sua incapacidade de gerir o trâmite processual adequado, transfere para o
réu a culpa por sua ineficácia, preferindo encarcerar e punir ao invés de promover mecanismos
e agilização processual para garantir que se alcance uma tutela final dentro do tempo
adequado, o que seria idealmente almejado. Contudo, prevendo apenas a possiblidade de
prescrição, a qual serve para orientar e agilizar o procedimento judicial, mitiga direitos e
garantias fundamentais como forma de resposta às demandas judiciais e sociais.
Por fim, forma-se factualmente um Estado de exceção, tendo em vista que para a
supressão de direitos e garantias fundamentais como a presunção de inocência, a celeridade
processual e a razoável duração do processo justifica-se apenas que diante de tantos recursos,
o réu pode chegar a não cumprir a pena pela ocorrência da prescrição, exemplificando o STF
que em quase nenhum país avançado se faz necessário o trânsito em julgado para início do
cumprimento da pena. No entanto, o Judiciário e o Estado em sua totalidade não devem se
ater às tendências exteriores em desfavor da dignidade da pessoa humana, mas perceber a
realidade social vigente e latente no Brasil para então adequar a aplicação da lei, garantindo
efetividade às decisões judiciais, respeitando-se soberanamente as regras e princípios
constitucionais.

OS DIREITOS TALHADOS EM PEDRA AO POPULUS BRASILEIRO

Temos um ordenamento jurídico complexo, composto por um excessivo número de


leis complementares, leis ordinárias, medidas provisórias, regulamentos, portarias e tantos
outros dispositivos que assumem um caráter de lei latu senso. Cediço que a legislação pode
sofrer alterações, revogações expressas e tácitas, e de acordo com a necessidade cabe o
surgimento de novas regulamentações normativas. Contudo, há dispositivos legais
impassíveis de modificação. Um exemplo claro está expresso na Constituição Federal de 1988
(BRASIL, 1988), em seu art. 60, §4º inciso IV, o qual indica que não pode ser objeto de
emenda constitucional, a proposta tendente a abolir os direitos e garantias individuais.
O legislador constitucional visando assegurar direitos e garantias individuais, intentou
proteger tais direitos por meio das denominadas cláusulas pétreas, ou seja, aquelas que não
podem ser alteradas nem por meio de emenda constitucional, deixando claro que sua intenção,
proteger a população, a pessoa humana em face do poder estatal.
Adentrando ainda mais no tempo, em 1969 temos a Convenção americana de direitos
humanos, conhecido como o Pacto de São José da Costa Rica, o qual visa no continente
americano como um todo, especialmente aos signatários do referido pacto, ressalte-se que o
Brasil é signatário, consolidar nos Estados democráticos a liberdade pessoal e a justiça social
alicerçados no respeito aos direitos humanos essenciais.
Portanto, ao assinar e concordar com os termos do Pacto de São José da Costa Rica, o
Brasil enquanto Estado democrático se comprometeu a criar possiblidades, caminhos e
garantir a liberdade pessoal e a justiça social dentro de um enfoque humanístico.
Com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil em 1988, fica
claro que o Estado brasileiro de fato e formalmente reafirmou sua assinatura ao pacto, mais
especificamente ao que interessa ao presente estudo, acerca da garantia tornada em norma
principiológica da presunção de inocência, tratada por alguns autores como sendo a presunção
e não culpabilidade, como assevera o Ministro do STF, Celso de Mello, em seu voto no Habeas
Corpus nº 80.719:

A privação cautelar da liberdade individual reveste-se de caráter excepcional,


somente devendo ser decretada em situações de absoluta necessidade. (...) Ninguém
pode ser tratado como culpado, qualquer que seja a natureza do ilícito penal cuja
prática lhe tenha sido atribuída, sem que exista, a esse respeito, decisão judicial
condenatória transitada em julgado. O princípio constitucional da não-
culpabilidade, em nosso sistema jurídico, consagra uma regra de tratamento que
impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao
indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido condenados
definitivamente por sentença do Poder Judiciário.

Independente da nomenclatura que se utilize, certo que o referido princípio busca


agasalhar apropriadamente o indivíduo contra qualquer ato estatal, assegurando que antes do
trânsito em julgado de sentença penal condenatória, qualquer pessoa seja indiciada,
denunciada, acusada, terá em seu favor a garantia constitucional da presunção de inocência.
Frente a isto, cediço que o ônus probatório deve ser apresentado por quem o alega, até
que tal ônus se converta em uma situação condenatória irrecorrível vê-se a impossibilidade
que sobre a pessoa recaia a culpa em definitivo, assim como as suas consequências.
O pacto de São José da Costa Rica traz claramente em seu art. 8º, inciso 2 a seguinte
redação:
Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência,
enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa
tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:

Ora, frente tal norteamento do qual o Brasil ratifica o pacto por ser signatário,
desprende-se o claro entendimento de que enquanto não for comprovada a culpa, toda pessoa
acusada tem o direito de que seja presumida a sua inocência. Assim, se a pessoa até
definitivamente comprovada a culpa goza da presunção de inocência, sobre ela, sem que haja
necessidades extremas como nos casos de imposições de medidas cautelares, notadamente a
prisão, previstas no Código de processo penal brasileiro em seu art. 312, não pode ser tolhida
de seus direitos individuais básicos, a liberdade, o direito de ir e vir. Deste modo, agindo o
Estado através do Poder Judiciário e tolhendo desnecessariamente a liberdade da pessoa,
torna-se agente afrontador da própria constituição federal e de lei supralegal, A convenção
americana de direitos humanos, a qual ingressou no ordenamento jurídico pátrio e se sobrepõe
às leis federais, entre as quais encontramos o código penal e o código de processo penal.
Ora, neste cabedal de ideias apontamos o nobre ensinamento o jurista brasileiro,
Eugênio Pacelli:

[...] o estado de inocência (e não presunção), proíbe a antecipação dos resultados


finais do processo, isto é, a prisão, quando não fundada em razões de extrema
necessidade, ligadas à tutela da efetividade do processo e/ou da própria realização
da jurisdição penal (PACELLI, 2002. p. 383)

Portanto, inicialmente tem-se que a presunção de inocência é norma constitucional, e


ainda norma de caráter convencional, instituída no Pacto de São José da Costa Rica, devendo
ser respeitada quando frente a qualquer decisão do Estado, não podendo este utilizar de sua
potestade para minorar a referida garantia, sob o infortúnio de agir de modo despótico e ilegal.

QUEBRANDO AS PEDRAS: O JUDICIÁRIO ALTERANDO A NORMA


FUNDAMENTAL

Como já indicado anteriormente, não existe aqui qualquer resistência à alteração


normativa, desde que respeitados os critérios constitucionais para tal alteração ou revogação,
devendo o procedimento ser realizado pelo Poder Legislativo. Por ser o nosso objeto de
estudo, a presunção de inocência, prevista na Constituição Federal de 1988, a única
possiblidade de alteração da citada regra seria por meio de emenda constitucional a qual deve
obedecer um regime rígido, devendo ser proposta a emenda nos termos do art. 60 da
Constituição Federal, vide:
Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:

I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado


Federal;
II - do Presidente da República;
III - de mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação,
manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros. (BRASIL,
1988).

A citação acima traz a regra essencial para a propositura da emenda constitucional, e


ainda, os legitimados para proporem a referida, não contendo entre os legitimados qualquer
órgão ou pessoa do Poder Judiciário em qualquer esfera.
Ainda, o parágrafo segundo do art. 60 da citada Magna Lei, indica que (BRASIL,
1988): “A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois
turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos
membros.
Ora, se a forma para propositura e os legitimados para tal ato já encontram limitações,
a própria constituição buscando maior segurança jurídica, declara que para a aprovação da
emenda constitucional, deverá ser discutida e votada em dois turnos em cada uma das casas
do Congresso nacional, em dois turnos, devendo ainda obter em ambos os turnos de votação
o mínimo de três quintos de votos dos respectivos membros.
Não à toa a assembleia constituinte de 1988, ao promulgarem a magna carta deixaram
claro que a regra é não emendar a constituição caso em situações necessárias que atendam aos
requisitos rígidos já apontados.
Contudo, o parágrafo quarto do art. 60, traz relevância ao tema, limitando as matérias
que podem ser objeto de emenda constitucional, indicando em seu inciso IV que não será
objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias
fundamentais.
A matéria tratada no referido parágrafo quarto do art. 60 da Constituição goza de
imutabilidade, sendo denominada de cláusulas pétreas. Sobre a historicidade das referidas
cláusulas imutáveis e inalteráveis trazemos o entendimento de Alexandre de Moraes (2006):

"A previsão de matéria constitucional imutável e, consequentemente, não sujeita ao


exercício do Poder Constituinte Reformador, surgiu com a Constituição norte-
americana de 1787, que previu a impossibilidade de alteração na representação
paritária dos Estados-membros no Senado Federal"

O posicionamento acima é firma ao admitir a imutabilidade de matéria


constitucional. Ainda, assevera Gilmar Mendes (1990):

"tais cláusulas de garantia (Ewigkeitsgarantie) traduzem, em verdade, um esforço


do constituinte para assegurar a integridade da Constituição, obstando a que
eventuais reformas provoquem a destruição, o enfraquecimento, ou impliquem
profunda mudança de identidade do telos constitucional. É que, como ensina Hesse,
a Constituição contribui para a continuidade da ordem jurídica fundamental, na
medida em que impede a efetivação de um suicídio do Estado de Direito
democrático sob a forma de legalidade".

E complementa a ideia aqui iniciada, Ivo Dantas (2001):

"Assim entendidos, ao fixar o art. 60, §4º, inciso IV, os direitos e garantias
individuais como cláusulas pétreas, deverão estes ser interpretados não apenas como
aqueles enumerados no art. 5º, mas, igualmente, todos os constantes do Título II da
Constituição Federal”.

É extensa a doutrina acerca das cláusulas pétreas, como vistas, não apenas as inclusas
no art. 5º da Constituição Federal de 1988, mas pelo afunilamento do presente artigo, a
presunção de inocência está inclusa no citado art. 5º da Magna Carta, se perfazendo em
cláusula pétrea, direito individual que assiste a qualquer pessoa mesmo que respondendo a
processo administrativo ou criminal. Para rematar a questão, apresentamos mais uma vez o
entendimento do atual ministro do STF, Gilmar Mendes (2000):
"Aí reside o grande desafio da jurisdição constitucional: não permitir a eliminação
do núcleo essencial da Constituição, mediante decisão ou gradual processo de
erosão, nem ensejar que uma interpretação ortodoxa acabe por colocar a ruptura
como alternativa à impossibilidade de um desenvolvimento constitucional
legítimo."

Permitir que a norma constitucional asseguradora da presunção de não culpabilidade


seja mitigada, interpretada e diminuída desfavorecendo a pessoa em prol do Estado é tolerar
uma ruptura constitucional, é ainda favorecer um processo de erosão gradual do núcleo
essencial do texto constitucional, impedindo um legítimo desenvolvimento constitucional
como deixam claras as citações retro transcritas.
Mesmo ante os impeditivos, diante da clareza do texto constitucional e da norma do
Pacto de São José da Costa Rica, que indicam notadamente que ninguém será considerado
culpado antes do trânsito de sentença penal condenatória, o qual após sentença irrecorrível
poderia ensejar legitimamente o início do cumprimento da pena, o Supremo Tribunal Federal
vem perfazendo erosões no texto de lei, tolerando uma ruptura constitucional com a anômala
interpretação do art. 5º, LVII da Constituição de 1988, posto que ao permitir que após análise
e condenação em segundo grau de jurisdição fica permitido o início de cumprimento de pena,
mesmo existindo recursos cabíveis e ainda, não existindo culpa formada sobre a pessoa.
No ano de 2016, o STF deu início à uma marcha que contrária ao princípio
constitucional que por entendimento da Corte passou a ser admitido o início do cumprimento
provisório da pena após condenação em segunda grau de jurisdição. Releve-se que o uso do
termo cumprimento provisório não guarda qualquer valor de provisoriedade tendo em vista
que após a condenação em segunda instância é expedida carta de guia para o cumprimento da
pena. Uma verdadeira aberração jurídica, posto que mesmo que preso provisoriamente ainda
não há culpa formada, e aqui não se debaterá o caráter da prisão cautelar e seu excessivo uso
no processo penal brasileiro, mas apenas do chamado início do cumprimento provisório da
pena, que passa de uma medida cautelar, para a pena em caráter determinado. Deste modo,
faz-se questão de transcrevermos a ementa do julgado em sede de Habeas Corpus que iniciou
tal entendimento, através do HC nº 126292, Relator: Min. Teori Zavascki, julgado em
17/02/2016:

Ementa: CONSTITUCIONAL. HABEAS CORPUS. PRINCÍPIO


CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (CF, ART. 5º, LVII).
SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA CONFIRMADA POR TRIBUNAL DE
SEGUNDO GRAU DE JURISDIÇÃO. EXECUÇÃO PROVISÓRIA.
POSSIBILIDADE. 1. A execução provisória de acórdão penal condenatório
proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou
extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de
inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal. 2. Habeas
corpus denegado.

A ementa do HC acima transcrita não teve aplicação vinculante, sendo de serventia


para o caso em tela, no entanto veio a servir como processo germinal ao recente e firmado
entendimento do STF que admite o início de cumprimento de pena logo após a condenação
em segundo grau de jurisdição. Uma das justificativas é de que, até o segundo grau podem ser
revolvidas as matérias de fato e as provas, o que não se admite nos recursos após o segundo
grau, nos quais são tratadas apenas matérias de direito, no entanto, se há tal possiblidade e que
exista a oportunidade de modificação da decisão condenatória, torna-se inviável e visível a
ilegalidade da decisão, que veio como uma forma de interpretação desnecessária do comando
constitucional, que se demonstrou amplamente equivocada, considerando que a norma é
bastante clara e carente de interoperações amplas e que prejudiquem a pessoa do acusado.
Ainda, neste julgamento, foi denegada a ordem por maioria, sendo vencidos os
Ministros Rosa Weber, Marco Aurélio, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski,
demonstrando que mesmo sendo decisão maioritária da Suprema Corte, há divergências
internas quanto ao tema, por entenderem que a presunção de inocência sofre violação face ao
início de cumprimento de pena após a condenação em segunda instância.
Neste sentido, encontra-se uma possível razão para que o STF tenha firmado a tese da
possiblidade de início do cumprimento de pena após condenação em segundo grau.
Visualizamos em trechos do Ministro Teori Zavaski, relator do Habeas Corpus nº 126292, de
2016, que o motivo primordial para tal ferimento ao princípio da presunção de inocência é a
garantia do jus puniendi estatal, isto para que se evite a prescrição da pretensão punitiva. Logo,
entre um direito fundamental da pessoa humana e entre o exercício do poder punitivo,
exclusivo do Estado, opta-se por este em supressão daquele, mesmo que o a mora no trâmite
processual seja responsabilidade estatal, o anuário Justiça em número de 2017, publicado pelo
CNJ, indica que o tempo médio julgamento de um processo crime em primeiro grau (CNJ,
2017, p.12): “Na média de todos os segmentos de Justiça com competência criminal, o tempo
médio de duração na fase de conhecimento é de 3 anos e 1 mês”. Dito isto, superada a fase de
conhecimento e considerando os recursos legais cabíveis que assistem à parte, a possiblidade
de prescrição da pretensão punitiva, com a extinção da punibilidade do demandado é salutar.
No voto do citado Ministro, relator do retro HC, fica claro que a supressão do princípio
da presunção de inocência visa uma harmonização para garantir que o Estado exerça seu poder
punitivo, vejamos trecho do voto do citado Ministro, no julgamento do HC nº 126292:
Nesse ponto, é relevante anotar que o último marco interruptivo do prazo
prescricional antes do início do cumprimento da pena é a publicação da sentença ou
do acórdão recorríveis (art. 117, IV, do CP). Isso significa que os apelos extremos,
além de não serem vocacionados à resolução de questões relacionadas a fatos e
provas, não acarretam a interrupção da contagem do prazo prescricional. Assim, ao
invés de constituírem um instrumento de garantia da presunção de não culpabilidade
do apenado, acabam representando um mecanismo inibidor da efetividade da
jurisdição penal. (BRASIL, 2016, p. 15)

No mesmo Habeas Corpus, ao proferir o seu voto, o Ministro Luís Roberto Barroso,
assenta claro que a duração razoável do processo ante a possibilidade de diversos recursos
pode inviabilizar o exercício punitivo conferido ao Estado, deixando a jurisdição penal sem a
devida confiança ante a sociedade, e incentivando o cometimento do ilícito diante da
possiblidade de impunidade, vide (BRASIL, 2016, p. 21):

36. É intuitivo que, quando um crime é cometido e seu autor é condenado em todas
as instâncias, mas não é punido ou é punido décadas depois, tanto o condenado
quanto a sociedade perdem a necessária confiança na jurisdição penal. O acusado
passa a crer que não há reprovação de sua conduta, o que frustra a função de
prevenção especial do Direito Penal. Já a sociedade interpreta a situação de duas
maneiras: (i) de um lado, os que pensam em cometer algum crime não têm estímulos
para não fazê-lo, já que entendem que há grandes chances de o ato manter-se impune
– frustrando-se a função de prevenção geral do direito penal; (ii) de outro, os que
não pensam em cometer crimes tornam-se incrédulos quanto à capacidade do Estado
de proteger os bens jurídicos fundamentais tutelados por este ramo do direito.

No entanto, mesmo sendo voto vencido no argumentado Habeas Corpus, o Ministro


Celso de Mello, deixa claro a posição de inviolabilidade da presunção de inocência como
sendo (BRASIL. STF, 2016, p.80): “uma notável conquista histórica dos cidadãos em sua
permanente luta contra a opressão do Estado e o abuso de poder”. E ainda, acentua o nobre
Ministro:

Vê-se, desse modo, Senhor Presidente, que a repulsa à presunção de inocência –


com todas as consequências e limitações jurídicas ao poder estatal que dessa
prerrogativa básica emanam – mergulha suas raízes em uma visão incompatível com
os padrões ortodoxos do regime democrático, impondo, indevidamente, à esfera
jurídica dos cidadãos restrições não autorizadas pelo sistema constitucional.
(BRASIL. STF, 2016, p. 82)

Deste modo, fica claro que a decisão recente, fundamental para firmar o entendimento
do STF em entender pela possibilidade do início do cumprimento de pena logo após a
condenação em segundo grau, tem por decisão orientadora o julgado no já citado HC, que teve
ordem denegada por maioria, no entanto, a minoria vencida demonstrou claramente sua
irresignação coma mitigação do princípio constitucional da presunção de inocência,
apontando-a como uma conquista humana, histórica e de resistência ao poder punitivo do
Estado.
Portanto, os direitos talhados em pedras, sendo cláusulas pétreas, firmes, imutáveis,
começaram a decair perante decisões do Poder Judiciário que iniciou de fato a realização de
função atípica, pois que além de ser o guardião da constituição federal como admite o art. 102
da Carta Magna, passou a dar-lhes interpretação contrária ao seu próprio texto, construindo
uma espécie de normatividade, fruto do ativismo judicial.
Assim, a decisão expressa no Habeas Corpus nº 126292, julgado em 2016 pelo STF
aponta um óbvio motivo para firmar entendimento na possiblidade de início ao cumprimento
de pena logo após a condenação em segundo grau, qual seja, impedir a prescrição da pretensão
punitiva por parte do Estado. Logo, resta claro que o Estado deve promover a celeridade
processual, dar andamento e proferir a tutela que lhe compete em tempo hábil, no entanto por
não conseguir realizar tal feito dentro de um lapso temporal adequado, o que conduz alguns
processos à prescrição, para qual o autor não encontrou uma base firme de dados para indicar
quantos processos teriam necessariamente sido afetados pela prescrição nos últimos anos.
Mas, ao tentar solucionar a questão para harmonizar ou resolver a situação da morosidade
processual do Poder Judiciário, o STF tem resolvido por mitigar conquistas cidadãs históricas
como o princípio da presunção de inocência em nome de uma resposta social que considera
adequada.
Mais recente, o STF no julgamento do Habeas Corpus de nº: 152752, impetrado pela
defesa do ex presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, situação que faremos apenas
o recorte teórico do referido HC, sem adentrar em toda a conjuntura do julgamento do ex
presidente da República, por ser achaque que requer estudos a parte e para não apontar viés
ideológico ou político, por se tratar o presente estudo apenas das questões inerentes à
mitigação do princípio da presunção de inocência. Contudo, o retalho aqui apontado visa
apenas pontuar questões importantes ao tema central do presente artigo, o que vemos em
trecho da fala do relator do citado Habeas Corpus, o Ministro Edson Fachin (BRASIL, 2018):

Estou a dizer que se mostra possível previamente o exame de admissibilidade do


próprio habeas corpus, uma vez que este Relator, tanto no indeferimento da liminar
quanto na remessa ao Pleno, não adentrou esse ponto considerando que havia
questão maior, mais abrangente, e questão precedente a este habeas, no meu
entendimento, em relação às ações de controle de constitucionalidade. Ocorre que,
como sabido, pende de julgamento mérito das ADCs 43 e 44, já tendo sido, na data
de ontem, solvido pela Presidência o tema acerca da pauta respectiva. Diante disso,
mantendo-se, ao menos por ora, inalterada a orientação majoritária da jurisprudência
formada, a partir de 2016, neste Tribunal, entendo que a análise desse habeas corpus
se submete ao filtro da admissibilidade.
A seguir, far-se-á uma prospecção e além, um diálogo jurídico, filosófico e social
acerca do tema, com base em doutrinadores consagrados, para chegarmos à
conclusão.

O relator do HC reconhece de pleno que há ações declaratórias de constitucionalidade


de nº, 43 e 44, pendentes de julgamento mérito, o que constrói o entendimento de que a própria
Corte Suprema necessita de maior debate e entendimento sobre o assunto, par então formular
e pacificar o entendimento judicial do tema, tendo votado pelo não conhecimento do remédio
constitucional impetrado.
No citado Habeas Corpus, em seu inteiro teor, o Ministro Celso de Mello, traz
argumento ímpar e que demonstra a necessidade de alteração de entendimento, mesmo que
sendo voto minoritário, reflete as circunstâncias constitucionais de respeito à presunção de
inocência (BRASIL, 2018, p. 78):

Achando-me em Plenário, Senhora Presidente, tenho a liberdade de insistir em


posição que restou minoritária em julgamentos anteriores, na medida em que os
precedentes, quando contestados, podem ser reapreciados – e, até mesmo, alterados
– sempre que a Corte, em sua composição integral, for provocada a reexaminá-los
em decorrência de alterações supervenientes relevantes de caráter jurídico ou de
ordem fática.

O Ministro Gilmar Mendes (BRASIL, 2018, p.98), aponta claramente a ausência de


fórmula adequada à questão, tendo em vista que até o ano de 2009 o próprio STF entendia
pela necessidade de esgotamento das vias recursais e o trânsito em julgado como marco para
o início do cumprimento de pena:

E não é por acaso que nós, ao longo desses anos todos, se tivermos como marco
temporal 2009, temos discutido essa questão com frequência, porque não se
encontra uma fórmula adequada para a justeza da devida solução. Sempre temos
debatido.

No entanto, o citado Ministro Gilmar Mendes (BRASIL, 2018, p. 110) no bojo do


inteiro teor do Habeas Corpus nº: 152752, traz a seguinte referência:

Portanto, não estamos diante de uma regra que se resolve na fórmula de tudo ou
nada, mas de um princípio passível de conformação, sendo natural à presunção de
não culpabilidade evoluir-se de acordo com o estágio do procedimento. Desde que
não se atinja o núcleo fundamental, o tratamento progressivamente mais gravoso
seria aceitável.
Ainda que a condenação não tenha transitado em julgado, as instâncias soberanas
para análise dos fatos já se teriam pronunciado pela culpabilidade. Com efeito, após
o julgamento da apelação, esgotam-se as vias ordinárias. Subsequentemente,
caberiam apenas recursos extraordinários.

O aceite a tal posicionamento, por si, demonstra a possibilidade de se flexibilizar e


ainda tolerar que com o andamento processual, a presunção de inocência seja mitigada, pelo
fato de após o segundo grau não ser possível o revolvimento de matéria de fato ou provas,
apenas os recursos extraordinários. Este entendimento traz a ideia de que por via de recursos
extraordinários, dirigidos aos Tribunais Superiores seria inviável a modificação da decisão
condenatória, cabendo ao indivíduo se conformar com a culpa mesmo antes do trânsito em
julgado de sentença penal condenatória, afrontando a norma principiológia da presunção de
inocência insculpida na Constituição Federal.

PROGNÓSTICO DO ATRASO E O ÁRDUO CAMINHO PARA


RECONSIDERAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL DE SER PRESUMIDO
INOCENTE

Ao voltar do olhar crítico para a atual situação do Poder Judiciário brasileiro, e do


Poder Político envolto em todas as relações, observa-se a impregnação do caos, da politização
do Judiciário e além da marginalização da pobreza, vê-se um ingrediente que apareceu de
modo sutil, com um uso de técnicas e o emprego de meios e vocábulos restritos, que aos
poucos minou a ordem constitucional e democrática brasileira, à míngua do princípio da
presunção de inocência, fazendo com que, haja uma certa ufania de culpa em desfavor da
pessoa, considerando que a pena em seu sentido estrito, enquanto considerada como sendo
modo fantasioso, mas retributivo, ressocializador e punitivo, operada e aplicada por meio do
Estado, só deve ser infligida aqueles condenados por sentença irrecorrível.
Esta referência à potestade estatal que ultimamente tem sido utilizada para favorecer a
máquina do Estado e seus mecanismos, com vistas a solucionar prioritariamente a situação da
prescrição da pretensão punitiva do Estado, causada principalmente pela morosidade do
próprio Poder Judiciário, encontra conforto em uma definição apontada por Machado (2006,
p.168):

A mecânica do poder que se expande por toda a sociedade, assumindo as formas


mais regionais e concretas, investindo em instituições, tomando corpo em técnicas
de dominação. Poder esse que intervém materialmente, atingindo a realidade mais
concreta dos indivíduos – o seu corpo -, e se situa no nível do próprio corpo social,
e não acima dele, penetrando na vida cotidiana, e por isso pode ser caracterizado
como micropoder ou subpoder.

Claro que não nos referimos apenas à esfera de um subpoder, mas do Poder
Constitucional, que via de regra, emana do povo, e consequentemente através do Poder
Judiciário, se presta a conceder a tutela jurisdicional para as lides e situações que lhe são
apresentadas. Mas visível que o poder referido na citação, assumido e transvestido na forma
do Estado Juiz, tem atingido a realidade concreta dos indivíduos, minorando suas garantias
constitucionais, afetando o cotidiano social.
Não podemos, contudo, sustentar um argumento, sem admitir que as decisões recentes
do Poder Judiciário brasileiro, que nitidamente mitigaram a presunção de inocência da pessoa
humana, afetando a sua dignidade, fundamento da República Federativa do Brasil previsto no
art. 1º, inciso III da Constituição Federal, é formado, além de considerarmos um arbítrio, é
formatada por um saber técnico, por uma construção alicerçada em uma técnica jurídica para
que se dê à ela determinada legitimidade, mesmo que tal seja contestável e repugnante. Neste
sentido assevera Foucault (2004, p.186):

Houve uma ideologia da educação, uma ideologia do poder monárquico,


uma ideologia da democracia parlamentar, etc.; mas não creio que aquilo que se
forma na base sejam ideologias: é muito menos e muito mais do que isso. São
instrumentos reais de formação e de acumulação do saber: métodos de observação,
técnicas de registro, procedimentos de inquérito e de pesquisa, aparelhos de
verificação. Tudo isso significa que o poder, para exercer-se nesses mecanismos
sutis, é obrigado a formar, organizar e pôr em circulação um saber.

É a ideologia dominante, os instrumentos de acumulação do saber, os métodos de


emprego deste saber, procedimentos, aparelhagem para verificação, medição, registros que
apresentam o poder em sua essência. Como já citado, o ingrediente aparece de modo sutil; o
poder se demonstra pela sutileza nas decisões, e assim, um princípio constitucional se vê
invertido por uma antecipação de culpa.
Há quem defenda que as decisões do STF são apenas no sentido de autorizar o
cumprimento provisório da pena, um modo anômalo de prisão que não encontra âncora do
Código de Processo Penal brasileiro, tampouco na Constituição Federal, sendo
exclusivamente formada e posta em circulação por meio de regramento em decisões judiciais.
Portanto, de plano o prospecto ou prognóstico que se visualiza é de insegurança
jurídica, tendo sido abalados os pilares do ordenamento jurídico pátrio, não se consegue
enxergar no rumo pelo qual as decisões foram tomadas, um retorno fácil e confortável à
situação democrática de respeito à dignidade da pessoa humana, obediência e valorização do
princípio da presunção de inocência sem decisões firmes e até certo ponto, drásticas, isto para
efetuar os reparos necessários. De acordo com Martins e Silveira (2014 p. 3 apud Martins
2004, p.48):

A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento


obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade
ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque
representa rebeldia contra todo o sistema, perversão de seus valores fundamentais.
Isto porque, ao ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustentam e destrói toda a
estrutura nela esforçadas.

O citado acima reforça a argumentação até aqui conduzida, apontando que as decisões
do Supremo Tribunal Federal brasileiro, não é apenas uma mera ofensa a um mandamento
obrigatório, mas rompe o todo o sistema de comandos, sendo grave violação do princípio
apontado, apresentando premente inconstitucionalidade, configurando ainda um modo de
perversão dos valores fundamentais, abatendo as vigas que sustentam o ordenamento jurídico
pátrio.
Neste sentido, não há como esperar ou criar qualquer expectativa acerca das decisões
vindouras do Poder Judiciário brasileiro, pois que, ao afrontar um princípio constitucional,
violar seu mandamento maior em prol de uma “resposta social”, e em favor próprio, para
impedir a prescrição punitiva em alguns processos, age de modo a criar não apenas no povo,
mas na comunidade jurídica, uma completa incerteza e descrédito no sistema Jurídico e
Judiciário. Ainda sobre a presunção de inocência, Lopes Júnior (2012, p.239) traz arguto
entendimento:

[...] a presunção de inocência, enquanto princípio reitor do processo penal, deve ser
maximizada em todas suas nuances, mas especialmente no que se refere à carga da
prova (regula dele judicio) e às regras de tratamento do imputado (limites à
publicidade abusiva [estigmatizarão do imputado] e à limitação do (ab)uso das
prisões cautelares).

A maximização do princípio da presunção de inocência deveria ser o objeto de análise


pelo Estado Juiz, contudo, a sua minimização, relativização e mitigação foram a regras nas
decisões que possibilitaram o início do cumprimento de pena após uma condenação em
segundo grau.
Um olhar histórico parece nos colocar nos átrios do período mais tenebroso da Idade
Média. Discordamos da nomenclatura de idade das trevas, por ser genérica, no entanto,
inegável as atrocidades cometidas naquele período, o que nos parece retornar nas recentes
decisões estatais, que ao tratar da presunção de inocência aparenta ter simetria com algumas
decisões horrendas do medieval, como sustenta Ferragiolli (2004):

“Apesar de remontar ao direito romano, o princípio da presunção de inocência até


prova em contrário foi ofuscado, se não completamente invertido, pelas práticas
inquisitoriais desenvolvidas na Baixa Idade Média. Basta recordar que no processo
penal medieval a insuficiência da prova, conquanto deixasse de subsistir uma
suspeita ou uma dúvida de culpabilidade, equivalia a uma semiprova, que
comportava um juízo de semi culpabilidade e uma semi condenação a uma pena
mais leve. Só no início da idade moderna aquele princípio é reafirmado com firmeza:
“eu não entendo”, escreveu Hobbes, “como se pode falar de delito sem que tenha
sido pronunciada uma sentença, nem como seja possível infligir uma pena sempre
sem uma sentença prévia. ”

Contudo, mesmo tendo um cenário amplamente desfavorável à germinação e


crescimento de um direito igualitário, que busque o respeito do ser humano, e que o Estado o
enxergue enquanto sua maior responsabilidade, retirando o foco de seus próprios interesses,
há doutrinadores, estudiosos e além de tudo, pessoas compromissadas em contribuir com suas
qualidades na busca da equidade, justiça e do equilíbrio estatal, que de posse do seu poderio,
deve limitá-lo frente à pessoa humana, usando-o inclusive em favor do povo. Para
arregimentar o argumento encontramos guarida nas palavras de Cid Carvalho (1991, p.211):

“E como tudo no homem está condicionado à vida do homem, ele necessariamente


terá de se colocar como valor-fonte, ou seja, a razão de ser de todo o ordenamento
político-jurídico. A fim de sacramentar esse imperativo de caráter histórico-
normativo, representando um compromisso moral para consigo mesmo, com os seus
semelhantes e a comunidade nacional e internacional a que pertence, ele promoveu
solenemente as históricas Declarações de Direitos, hoje rememoradas e proclamadas
por todos os povos civilizados, objetivando, particularmente, eliminar da face da
terra os resquícios da tirania e da crueldade que ainda perduram nas mentes
vocacionadas para o mal e, portanto, afeiçoadas à selvageria dos bárbaros e à
truculência dos parvos”.

Por mais que nos pareça tempos de barbárie estatal, o que chega a ser uma
verdade, o home deve posicionar-se no sentido de resistência pela histórica luta e pelas
conquistas arduamente elencadas no tempo, mesmo que em face do próprio poder estatal,
arguindo frente a este sobre o exercício do Poder, que de fato emana do povo, e para ele e em
favor dele deve ser exercido. Parece esperançoso para um simplório trabalho científico
fazermos este corte e pensarmos que mesmo em meio ás sombras produzidas pelas ações do
Estado Juiz, que elucubram a sensatez e envolvem o povo, há de existir possiblidades para
uma mudança de rumos, para que o Estado tenha por prioridade não a sua eficácia em
produtividade, não apenas a sua eficiência burocrática, mas o exercício de suas
responsabilidades junto ao povo, ainda mais para com aqueles que padecem de necessidades
como educação, saneamento básico, saúde, segurança, e demais serviços essenciais,
sobretudo, que este Estado Juiz possa assegurar a aplicabilidade das garantias fundamentais e
colocar literalmente em um pedestal decisório o princípio da presunção de inocência, o que
não lhe impede de processar e julgar os casos que são colocados para sua apreciação, mas traz
equilíbrio e celeridade processual aos atos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Alcançar um desfecho ao assunto proposto é algo até certo ponto, utópico, trazendo
consigo o sentido literal do termo empregado, ou seja, aquele não lugar; a inexistência real,
mas mesmo que imaginária, ainda hipotética, possível.
Possível, pois que apresentada através da Constituição da República Federativa do
Brasil, promulgada em 1988, lei maior do Estado brasileiro, a presunção de inocência
encontra-se dentro do rol de direitos e garantias fundamentais, sendo cláusula pétrea,
endurecida, rígida em nosso ordenamento jurídico, sendo inclusive objeto excluído da
possiblidade de emenda constitucional.
Assim, a irresignação do presente trabalho se volta em face de recentes decisões dos
Tribunais Superiores, especialmente do Supremo Tribunal Federal que tem o dever de velar e
guardar a Constituição Federal, que através do Habeas Corpus analisado no desenvolvimento
do trabalho, tratou de mitigar a presunção de inocência, demonstrando o exercício dos
mecanismos de poder para salvaguardar o funcionamento da máquina estatal, visando impedir
que o Estado seja obstado a exercer o jus puniendi, pela morosidade no alcance de uma
sentença penal condenatória com trânsito em julgado, ofendendo diretamente a ordem
constitucional, abalando suas vigas sustentadoras e desconsiderando conquistas históricas do
povo, que foram ganhas em lutas diárias, duras, árduas até que tivéssemos uma Carta política,
jurídica e social, cidadã, que se prestou e continua a viger no sentido de garantir
primordialmente a segurança jurídica e a proteção da pessoa humana, resguardando sua
dignidade e seus direitos fundamentais, entre os quais, o princípio da presunção de inocência,
ou seja, que ninguém seja considerado culpado até trânsito em julgado de sentença penal
condenatória.
Mesmo que alguns defendam que a decisão permissiva para o início do
cumprimento provisório da pena não se constitua em formação antecipada de culpa, a própria
decisão, seu teor, sua nomenclatura e suas intenções deixam claro que a intencionalidade é de
realmente infligir uma pena aquele que ainda deveria ter em seu favor a presunção de
inocência. Deste modo, o Judiciário brasileiro está a admitir que para quem ainda não possui
uma condenação final, seja tratado como se culpado fosse. Parece algo virtual, mas afeta
diretamente a vida do indivíduo que após uma decisão de segundo grau deve iniciar o
cumprimento de pena, inclusive com expedição de uma guia de recolhimento à penitenciária.
Portanto, frente à problemática apresentada, temos conclusão um ideal, ao qual não
creditamos possiblidade de realização a curto prazo dado o prognóstico e a morosidade
burocrática estatal, que seria, a modificação de entendimento por parte dos julgadores, o que
se fará apenas pela reflexão, valoração dos princípios constitucionais e ainda, por mudanças
na ideologia dominante, a qual acreditamos que se houver possiblidade, só acontecerá em
tempo futuro e indeterminado.
E ainda, enquanto conclusão, deixamos uma interrogação, pois que perante as
decisões do STF, no momento não há como se propor algo que seja diferente do apresentado
no parágrafo anterior. Assim, diante da decisão de início do cumprimento provisório da pena,
que ao nosso ver, afronta o princípio constitucional da presunção de inocência, qual a
viabilidade ou credibilidade no sistema estatal vigente, seja ele, jurídico, político ou social?
Esta é uma pergunta que necessita não apenas de uma resposta ideológica, mas de ações para
modificação da atual estrutura do Estado, para a alteração nas decisões do Poder Judiciário,
que cotidianamente afetam as classes que estão na base da pirâmide social, e que sofrem novas
máculas para além dos estigmas que já carregam sobre seus ombros.

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O ENCARCERAMENTO DOS INVISÍVEIS: um olhar sobre a atuação do sistema de
justiça criminal em relação à população em situação de rua240

Nathalia De Biase Mulatinho 241

RESUMO

O movimento natural nas grandes cidades tem sido o de desviar o olhar para as pessoas em
situação de rua, incorporando-as compulsoriamente à paisagem. O presente trabalho quer
propor o contrário: olhar e enxergar como esses indivíduos estão sendo tratados pelo sistema
de justiça criminal, notadamente no espectro das prisões preventivas, e como esse tratamento
repercute na manutenção das vulnerabilidades. A partir de pesquisa no sítio eletrônico do
Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, vislumbrou-se a necessidade de se debater a
manutenção de preventivas sob o argumento de ser o acusado “morador de rua”. Num contexto
de aprofundamento das desigualdades sociais, amparou-se a pesquisa no paradigma da
Criminologia Crítica, na medida em que se buscou olhar para além do discurso eminentemente
jurídico, indo ao encontro do que demonstra a experiência do estar nas ruas. A contenção da
pobreza e dos indesejáveis, cuja face aqui se expressa nas pessoas em situação de rua, é senão
a única, a mais intensa finalidade do sistema criminal. Como isso é feito, por qual motivo e
por quem foi o que se buscou responder.
Palavras-chave: Prisão. Morador de rua. Seletividade. Criminologia.

INTRODUÇÃO

O direito à moradia é, de longe, uma das questões mais sensíveis da realidade social
brasileira. Estar privado de uma residência fixa não é um problema que se encerra em si
mesmo, pelo contrário, o status de pessoa em situação de rua carrega consigo uma série de
outras sonegações.
Conforme estabelece o Decreto Federal nº 7.953/09, considera-se população em
situação de rua:

o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos


familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional
regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de
moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de
acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória.

A pessoa em situação de rua não necessariamente é desprovida de uma residência, mas


pode não entender nesta um local de autorreferência, de modo que os logradouros públicos
passam a ser reconhecidos como espaço de pertencimento.

240
GT 7 – Ciências Criminais, Cárcere e Drogas.
241
Advogada, graduada em Direito na Universidade Federal de Pernambuco. nathalia.mulatinho@gmail.com.
Assim como em todos os estratos e níveis sociais, a criminalidade também é um
elemento presente na sociabilidade das pessoas em situação de rua. No caso destas, no entanto,
a ausência dessa moradia fixa, atrelada aos já conhecidos mecanismos de seletividade penal,
atua enquanto argumento quase automático para o recolhimento cautelar.
O manejo das medidas cautelares não pode, portanto, estar apartada da realidade a que
está submetida a população em situação de rua sob pena de aprofundar as rupturas sociais
por ela já experimentadas. O problema da presente pesquisa gira, justamente, no entorno desse
universo de marginalização extrema e criminalização seletiva. A inaptidão do direito penal
para transpor conflitos sociais se torna mais evidente quando uma, ou ambas as partes,
envolvidas encontram-se submetidas a um alto grau de vulnerabilidade.
Diante do exposto, o presente trabalho visa a analisar a postura do Judiciário em
relação à cautelaridade em processos cujos réus estejam enquadrados no conceito de
população em situação de rua. Debruçando-se sobre tal análise, buscar-se-á a existência (ou
não) de padrões argumentativos a partir do quais possam ser tecidos comentários lastreados
pela Criminologia Crítica. O objetivo dessa pesquisa é não somente trazer à baila determinada
realidade da prática judiciária, mas dar visibilidade a um contingente de pessoas cuja
existência, quase sempre, passa despercebida. Isso parte da concepção de que o “ser
pesquisador” precisa, invariavelmente, estar atrelado às demandas sociais, sendo a partir dessa
premissa que o presente trabalho foi estruturado.
A questão da ilegitimidade do sistema de justiça criminal tem movido os estudos da
Criminologia Crítica nos últimos anos, notadamente na América Latina. No entanto, a
realidade atual tem demandado e motivado estudos mais específicos como o da imersão do
direito penal na socialização das pessoas em situação de rua. Não apenas porque o clima atual
é de aprofundamento das desigualdades sociais, mas também porque as vivências das pessoas
em situação de rua não parecem ser debatidas suficientemente ao ponto de os mecanismos de
Estado e de Justiça estarem verdadeiramente preparados para lidar com elas. Como se entende
que é apenas a partir da discussão que os instrumentos jurídicos podem ser modificados,
propõem-se um olhar sobre o tema. Justifica-se, portanto, o olhar conferido ao presente
trabalho.
Para isso, busca-se um estudo eminentemente prático que se debruça sobre o “mundo
real” e, somente a partir dele, traz a contraposição com o “mundo jurídico”. Nada que se pense
neste pode desconsiderar o que ocorre naquele. Ademais, o olhar para o real permite que sejam
trazidas todas as idiossincrasias das pessoas que o compõem: desde os aplicadores do Direito
às pessoas em situação de rua em conflito com a Lei e seus familiares. É uma aproximação
indispensável ao que se deseja com esse trabalho.
O lado positivo de se optar por uma metodologia hipotético-dedutiva, observacional e
qualitativa, é a possibilidade de trazer ao ambiente acadêmico assuntos que não fazem parte
(infelizmente) da academia. Esse é, portanto, o porquê da presente pesquisa, versar sobre o
que é pouco falado, ultrapassando os limites da legalidade/ilegalidade e buscando algo que há
muito fora perdido na prática jurídica: a empatia.

1. UM OLHAR SOBRE OS “INVISÍVEIS”242: QUEM SÃO AS PESSOAS EM


SITUAÇÃO DE RUA?

Antes de se debruçar sobre a problemática das prisões cautelares, é preciso haver breve
discussão acerca de quem são as pessoas que compõem o conceito de população em situação
de rua. Inegável que a inserção de grupo heterogêneo de indivíduos dentro de um conceito tão
estreito pode trazer entraves quando se vislumbram os múltiplos aspectos de personalidades,
vivências e histórias. Mas a utilização desse conceito tem o condão de chamar a atenção para
elementos compartilhados da realidade dessas pessoas.
Ao contrário do que pode supor o senso comum, as pessoas não estão em situação de
rua apenas por falta de habitação. O que a experiência demonstra é que a fragilização dos
vínculos familiares e sociais atrelada à precariedade das condições de emprego (quando este
há) e à falta de acesso aos serviços básicos de saúde compõem o cenário de saída às ruas. A
pobreza extrema, no entanto, é a tônica desse estrato social.
Quando em situação de rua, esses já frágeis aspectos são potencializados. Além da
perda dos documentos (episódio que se repete por tantas vezes), essas pessoas acabam
supondo haver perdido também elementos da dignidade. Os centros urbanos, por mais
movimentados que sejam, cuidam de naturalizar a existência dessas pessoas na rua,
invisibilizando suas necessidades. A grandeza de uma capital, de rotinas frenéticas e olhares
desatentos, acaba por engolir essas vivências delicadas. As roupas muitas vezes encardidas
das pessoas em situação de rua passam a confundir-se com os prédios e construções.
A situação de extrema vulnerabilidade do estar na rua é produzida não só pelo cenário

242
Colocou-se o termo entre aspas porque, apesar de ser verdade que a população em situação de rua e sua
demanda não são enxergadas e consideradas pela sociedade, o sistema de justiça criminal não apenas as enxerga
como as seleciona como clientela preferencial. A seletividade não combina com invisibilidade, mas com eleição
prioritária. É o paradoxo da vulnerabilidade.
de violência que assola as grandes cidades do país, mas também, e principalmente, pela falta
de aparato estatal. Nesse sentido, leciona Ana Paula Motta Costa (2005):

Em nosso país, a atenção do Poder Público com esse seguimento populacional é


recente em consequência de lutas sociais ocorridas nos últimos anos. O desinteresse
do Estado pelas pessoas em situação de rua reflete a contradição com que a
sociedade e a opinião pública tratam o tema, ora com compaixão, preocupação e até
assistencialismo, ora com repressão, preconceito e indiferença.

O mais estranho é que esse manto da invisibilidade não atinge os instrumentos de


contenção social do Estado. A estrutura policial enxerga, com quase exclusividade, essas
pessoas. Mas o olhar deturpado do sistema de justiça criminal acaba por distorcer a realidade
de quem se vale das ruas pra sobreviver. O olhar da seletividade passa a ser o único que se
volta à população em situação de rua. E não parece haver ninguém para desfazê-lo.
O estereótipo do “vagabundo(a)”, “desocupado(a)”, “perigoso(a)” reforça as
violências sofridas pela população em situação de rua e termina por justificar o modo como o
sistema de justiça criminal atua sobre ela. É dizer: à medida em que a sociedade como um
todo vê essas pessoas como pertencentes a um local de abandono e castigos, se valida o modo
com o qual são tratadas pela polícia, pelo judiciário, pelo sistema penitenciário.
Nesse diapasão, percebe-se que a gestão penal da precariedade não se dá apenas
através do encarceramento, mas também dessa vigilância externa, panóptica, que acompanha
a pessoa em situação de rua aonde quer que ela vá (WACQUANT, 2011, p. 80).
A insuficiência de políticas públicas verdadeiramente atentas às particularidades da
população em situação de rua acaba gerando descompasso entre a Saúde e a Assistência
Social. O impasse gerado reflete na fragilidade com que o Estado as atende, fazendo girar os
ciclos de marginalização e exclusão social.
Se Saúde e Assistência apresentam falhas na atuação, o sistema de justiça criminal
parece alcançar prontamente seus objetivos: conter a pobreza, higienizar as cidades.

2. RECOLHIMENTO CAUTELAR: O APRISIONAMENTO DO “MORADOR DE


RUA”

A prática de condutas consideradas delituosas não é exclusiva dos grupos sociais


empobrecidos. Mas a forma de contenção dos “criminosos” está intimamente ligada ao estrato
social a que pertencem.
A presente pesquisa utilizou como campo de análise o sítio eletrônico do Tribunal de
Justiça do Estado de Pernambuco, no campo em que se oferece a consulta de jurisprudências.
Neste, o único filtro de pesquisa utilizado foi “morador de rua”. Não inicialmente, porque se
buscou pesquisar termos como “ausência de moradia”, “pessoa em situação de rua”, mas não
se chegou a resultados. Quando, portanto, utilizou-se a (desde já, diga-se, indevida243)
terminologia “morador de rua”, encontraram-se nove procedimentos de Habeas Corpus244,
cujos pacientes são adultos, nos quais se discute a prisão preventiva.
Outros procedimentos foram encontrados, tais quais: Recurso em Sentido Estrito
(RESE 047048-5) e Apelação (AP 310142-2 e AP 304878-0), mas estes não versavam sobre
o recolhimento cautelar. Os Habeas Corpus, todos os nove, tratavam de prisão preventiva de
pessoa denominada “moradora de rua”. E é sobre estes que se quer debruçar.
Por oportuno, importa mencionar que ora serão analisados acórdãos em que se discute
a aplicação da medida cautelar da prisão preventiva. Tal medida, por ter como consequência
a privação de liberdade antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, somente
encontra justificativa quando for manejada para proteger a persecução penal e quando for a
única maneira de fazê-lo (OLIVEIRA, 2014, p.549). Nessa toada, evidencia-se que,
considerando o rol das medidas cautelares previstas no artigo 319 do Código de Processo
Penal, somente deve ser aplicada a prisão preventiva quando nenhuma das demais cautelares
(isoladas ou cumulativamente) for suficiente aos fins almejados. Deve o magistrado, pois,
justificar exaustivamente a decretação ou manutenção da prisão.
Iniciando, portanto, a análise tem-se o Habeas Corpus 330641-6, impetrado em favor
de Carlos Alberto das Chagas, o qual versa sobre processo instaurado para apurar a prática do
crime de furto, em que foi decretada a prisão preventiva do acusado. Na ementa do acórdão,
se lê:

PENAL E PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. FURTO QUALIFICADO.


EXCESSO DE PRAZO. INEXISTÊNCIA. INSTRUÇÃO FINDA. APLICAÇÃO
DA SÚMULA Nº 52/STJ. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS DA PRISÃO
PREVENTIVA. IMPROCEDÊNCIA. NECESSIDADE DE ASSEGURAR A
APLICAÇÃO DA LEI PENAL. DÚVIDAS ACERCA DA IDENTIDADE DO
PACIENTE E INEXISTÊNCIA DE ENDEREÇO FIXO. CONDIÇÕES
SUBJETIVAS FAVORÁVEIS. IRRELEVÂNCIA. SÚMULA 86/TJPE.
CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. ORDEM DENEGADA.
DECISÃO UNÂNIME. (...) II - A prisão preventiva do Paciente deve ser
mantida como forma de assegurar a futura aplicação da lei penal, tendo em vista
se tratar de morador de rua, não tendo local certo para estar e, ainda, por haver
dúvidas até quanto a sua verdadeira identidade, fatos esses que podem vir a frustrar
a aplicação da justiça. III - Eventuais condições subjetivas favoráveis do Paciente,

243
É impróprio dizer “morador de rua” porque a rua não é capaz de ser moradia para ninguém. Diz-se pessoa em
situação de rua, porque aponta para a condição de vulnerabilidade a que está submetida.
244
São eles: HC 330641-6, HC 351294-7, HC 416126-4, HC 468804-6, HC 470802-3, HC 024059-6, HC
0497423-6, HC 477476-1, HC 377558-6.
além de não comprovadas, não elidem a custódia cautelar quando presentes os
requisitos da medida extrema. Aplicação da Súmula 86 do TJPE. IV - Ordem
denegada. Decisão unânime. (HC 330641-6, TJPE, 3ª Câmara Criminal, Relator
Desembargador Cláudio Jean Nogueira Virgínio, DJ: 20/05/2014). Grifos nossos.

Desde logo, importa tecer importante comentário acerca da impossibilidade de


encontrar pessoa em situação de rua, para fins de intimação, no contexto do processo penal.
Inicialmente, não se pode olvidar do fato de que é extremamente violento recolher
preventivamente pessoa única e exclusivamente pelo fato de ela não possuir residência fixa.
Tal postura nada mais é do que expressa punição pela sonegação do direito à moradia. É dizer:
considerando que o Estado é incapaz de prover moradia para essa pessoa, recolhe-se ao cárcere
para que seja ela processada.
Além disso, a experiência demonstra que as pessoas em situação de rua tendem a
manter relação de continuidade no território. Ser pessoa em situação de rua não é o mesmo de
ser nômade245. As próprias estratégias de sobrevivência demonstram que, sozinhas ou em
grupos, as pessoas retornam sempre aos mesmos logradouros públicos. Para além disso, é
possível fazer uso de equipamentos públicos, como os Centros de Referência Especializados
para População em Situação de Rua (Centros Pop)246, os quais servem também como ponto
de autorreferência.
Ademais, o Código de Processo Penal Brasileiro conta com rol de medidas cautelares
alternativas à prisão, muitas das quais são perfeitamente compatíveis com a realidade da
pessoa em situação de rua, a exemplo do uso de tornozeleiras eletrônicas. Notadamente
porque, repita-se, se consagra, no art. 282, §6º247, a excepcionalidade da prisão preventiva,
que deve ser entendida como último instrumento a ser utilizando, enfatizando-se a necessidade
de ser analisada a adequação e suficiência das outras medidas cautelares (LOPES JR, 2015,
p. 601).
Mas, talvez, o Judiciário não entenda que tais pessoas são dignas da aplicação das
medidas alternativas. Na ementa do Habeas Corpus 351294-7, cujo preso cautelar está sendo
acusado pela prática do crime de furto, lê-se que “Não há comprovação nos autos de que o
paciente preenche os requisitos necessários à concessão da benesse da liberdade provisória.
Não é demais frisar que pelo que noticiam os fólios, o paciente disse ser morador de rua, o

245
A despeito da afirmação, não são desconsideradas as hipóteses existentes de pessoas que, efetivamente, não
mantém relação de fixação no território. O que se indica, por hora, é uma tendência quase natural do ser em
sociedade, cuja conformação contemporânea demonstra essa tendência às relações de continuidade.
246
Segundo a Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais.
247
Art. 282 (...) §6º A prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra
medida cautelar (art. 319).
que torna temerária a sua soltura” (Habeas Corpus 351294-7, TJPE, 4ª Câmara Criminal,
Relator Desembargador Gustavo Augusto Rodrigues de Lima, DJ: 13/01/2015).
Passa-se, agora, à leitura da ementa do Habeas Corpus 468804-6, impetrado em favor
do paciente José Cabral de Lima:

HABEAS CORPUS. TENTATIVA DE HOMICÍDIO. PRISÃO PREVENTIVA.


EXCESSO DE PRAZO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. PACIENTE
MORADOR DE RUA. VÍTIMA AINDA NÃO OUVIDA EM JUÍZO.
PREVALÊNCIA DO INTERESSE COLETIVO. ORDEM DENEGADA. 1.
Malgrado o paciente esteja preso cautelarmente por quase dois anos sem que a
fase instrutória tenha se encerrado e sem que tenha contribuído diretamente para
tanto, o que configuraria constrangimento por excesso de prazo, há nos autos a
notícia de que o paciente é carroceiro e morador de rua, sendo encontrado na
Praça Marechal Soares de Andreia, onde, todavia, também mora a alegada vítima
da tentativa de homicídio, que ainda não foi ouvida nos autos. 2. No defrontar
importantes valores para a sociedade - risco à conveniência da instrução criminal
e à aplicabilidade da lei penal, e o direito à razoável duração do processo de
formação da culpa - há que prevalecer aquele valor de maior vinculação ao
interesse coletivo, no caso, a proteção à vítima e a segurança da aplicação da lei.
(HC 468804-6, TJPE, 2ª Câmara Criminal, Relator Desembargador Fábio Eugênio
Dantas de Oliveira Lima, DJ: 19/07/2017). Grifos nossos.

A leitura dessa ementa é o atestado de como o sistema de justiça criminal está


totalmente comprometido com a manutenção do status de marginalidade das pessoas em
situação de rua. Inicialmente, se verifica o absurdo da manutenção de prisão preventiva que
já conta com dois anos, sem que haja o réu contribuído para tal demora. Ainda que o
ordenamento processual penal não estipule prazo para a prisão preventiva (o que merece ser
alvo de severas críticas), é patente que os ditames do princípio da razoabilidade devem sempre
ser observados. No caso em tela, a própria ementa indica que o acusado não contribui para a
demora do deslinde processual. O que se conclui é que além de acautelado por não possuir
residência fixa, o acusado teve de suportar a mora do judiciário.
Posteriormente, vislumbra-se o que já foi dito anteriormente: a fixação da pessoa em
situação de rua no território. É patente o local de autorreferência do acusado, qual seja a Praça
Marechal Soares de Andreia. O fato de ostentar condição de carroceiro também contribui para
sua localização (haja vista é muito provável que mantenha relação com galpão de material
reciclável). Todo o cenário é catastrófico. E não para por aí.
Em outro julgamento de Habeas Corpus, impetrado em favor de Marcio Antonio da
Silva, se lê:

CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. FURTO QUALIFICADO PELO


CONCURSO DE PESSOAS, ALEGAÇÃO DE EXCESSO DE PRAZO PARA
FORMAÇÃO DA CULPA. PROXIMIDADE DA AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO
CRIMINAL. PACIENTE QUE É MORADOR DE RUA. MAUS
ANTECEDENTES. ORDEM DENEGADA. MAIORIA DE VOTOS. (...) 2. O fato
de o paciente ser morador de rua obstaculiza a instrução criminal, vez que
dificulta o cumprimento de mandados de intimação, já que o réu não possui
endereço certo, nem ocupação lícita. 3. O fato de o paciente possuir antecedentes
criminais, constitui indicativo de que este supostamente se dedica a atividades
criminosas razão pela qual a sua liberdade, neste momento, representa um risco à
sociedade. 4. Ordem denegada. Maioria dos votos. (HC 0240529-6, TJPE, 2ª
Câmara Criminal, Relator Desembargador Antônio de Melo e Lima, Data
Julgamento: 15/06/2011). Grifos nossos.

Da leitura do relatório do Habeas Corpus em comento, verifica-se que o paciente


encontrava-se preso preventivamente há mais de um ano. A conduta a ele imputada é a
subtração de documentos e R$ 13,00 (treze reais) da vítima, fato que ocorreu enquanto esta
estava dormindo. Não bastasse o absurdo de estar sendo processado, haja vista a clara
incidência do princípio da insignificância, o paciente apenas estava sendo mantido acautelado
pelo fato de ser pessoa em situação de rua. No parecer, a Procuradoria de Justiça opinou pela
concessão da ordem, ou seja, pela desnecessidade da prisão.
O cenário que se avulta é o de uma aplicação seletiva também do princípio da
insignificância. Em outras circunstâncias, a importância de R$ 13,00 (treze reais), subtraída
sem violência ou grave ameaça à pessoa, permitiria a conclusão pela atipicidade material da
conduta. Por carregar o “morador de rua” as diversas cargas de marginalização impostas pela
sociedade, seu ato parece ser inquestionavelmente violador do bem jurídico tutelado pelo art.
155 do Código Penal.
Em Habeas Corpus (HC 326.788/PE) impetrado no Superior Tribunal de Justiça, em
face dessa decisão do TJPE, a Corte entendeu não haver excesso de prazo pelo fato de a
instrução processual ter findado, estando o processo em fase de alegações finais. Trata-se de
fundamentação esdrúxula uma vez que o direito à razoável duração do processo não se limita
à fase de instrução processual, mas salvaguarda, inclusive, o duplo grau de jurisdição. Desta
feita, formulou-se fundamento comprometido com a manutenção dessas pessoas no cárcere.
Esse malabarismo de argumentos jurídicos amolda-se perfeitamente ao que leciona
ZAFFARONI (1927, p. 245-246):

O poder seletivo do sistema penal elege alguns candidatos à criminalização,


desencadeia o processo de sua criminalização e submete-o à decisão da agência
judicial, que pode autorizar o prosseguimento da ação criminalizante já em curso ou
decidir pela suspensão da mesma. A escolha, como sabemos, é feita em função da
pessoa (o “bom candidato” é escolhido a partir de um estereótipo), mas à agência
judicial só é permitido intervir racionalmente para limitar essa violência seletiva e
física, segundo certo critério objetivo próprio e diverso do que rege a ação seletiva
do restante exercício de poder do sistema penal, pois, do contrário, não se justificaria
a sua intervenção e nem sequer a existência (somente se “explicaria”
funcionalmente).
O autor é mais do que direto: acerta em cheio o modo de atuação do judiciário. A
utilização dos institutos oferecidos pela Dogmática, em momento algum, afasta-se desse olhar
seletivo e preordenado. A fundamentação das decisões encontra-se comprometida com o olhar
sobre esse “morador de rua” altamente estigmatizado e marginalizado. O fato de não se
enquadrar nos elementos de sociabilidade da moral capitalista (trabalhador-consumidor)
encarrega-se de enquadrá-lo como candidato perfeito à criminalização – e ao cárcere.
O crime, aqui, parece ser quem se é.

3. UM OLHAR DA CRIMINOLOGIA CRÍTICA: CONSIDERAÇÕES PARA QUEM


NÃO CONSEGUE VER

Diante da apertada síntese dos julgamentos encontrados pela presente pesquisa, é


preciso ter sempre em mente quais e como são as engrenagens que dão conta de mover o
acautelamento preventivo das pessoas em situação de rua. Dessa maneira, importa valer-se da
visão da Criminologia Crítica. Esta é, em verdade, um emaranhado de concepções que se
unem na incessante busca pela análise e compreensão do desenvolvimento do sistema de
justiça criminal. Rompe o paradigma do estudo criminológico anterior (positivista) e lança-se
ao reconhecimento das estruturas sociais. Para alcançar esse fim, a Criminologia Crítica
correlaciona as bases normativas do Direito Penal com os elementos dessa sociabilidade
historicamente desigual do país (BATISTA, 2007, p. 32-33).
E foi a partir desse olhar de correlações que o presente trabalho se fundamentou. Para
o fim ora pretendido (de ser instrumento na busca por mudanças), a análise fria da letra da lei
em face da compreensão dogmática dos institutos processuais de nada valeria. Foi preciso que
se mergulhasse um pouco mais nessa realidade social marcada pelas desigualdades e
marginalizações. Foi preciso olhar para o “mundo real” para, só então, amparar-se no “mundo
jurídico”.
Nesse sentido, leciona ZAFFARONI (1927, p. 12):

A dor e a morte que nossos sistemas penais semeiam estão tão perdidas que o
discurso jurídico-penal não pode ocultar seu desbaratamento valendo-se de seu
antiquado arsenal de racionalizações reiterativas: achamo-nos, em verdade, frente a
um discurso que se desarma ao mais leve toque da realidade.

Dor e morte. Este é o reflexo de um sistema de justiça criminal fundamentado na


seletividade e que, ao invés da resolução dos conflitos, age no sentido de aprofundar as
mazelas sociais. A determinação e manutenção de prisões preventivas de pessoas em situação
de rua fundamentadas pelo fato de serem quem são nada mais é do que prova dessa
racionalização falaciosa que se desfaz quando olhada com mais atenção.
Levar ao cárcere o que se quer limpar das ruas. É isso que tem feito o sistema de justiça
criminal. A utilização estéril do instituto da prisão preventiva, impondo-a sem dosagem das
suas consequências acaba, portanto, por aprofundar as rupturas sociais presentes na história
de vida das pessoas em situação de rua. E aqui não se cuida apenas de apontar para os
magistrados que determinam a prisão e negam a liberdade, mas de toda uma comunidade
jurídica que respalda tais comportamentos. Nessa toada, portanto, é que se entende que o
verdadeiro exercício do poder do sistema penal não é aquele direcionado à repressão dos
crimes, mas o que determina e configura comportamentos (ZAFFARONI, 1972, p. 125).
A forma de atuar dessas agências judiciais (que se inauguram na polícia e percorrem
caminho até o judiciário) molda a vida e a socialização das pessoas em situação de rua – que
se veem marcadas pelo carimbo da seletividade. Nesse sentido, também WACQUANT (2013,
p. 271) compreende ser essa face penal do Estado, verdadeiramente, “uma agência prolífica
que contribui para a produção da realidade, pela geração de categorias, relações sociais e
modos de intervenção política no espaço social”.
Marcados nas ruas pela marginalização, marcados no cárcere pela condição de rua: é
assim que tem o Estado, em especial o Judiciário de Pernambuco, lidado com as pessoas em
situação de rua. Mas não se podem reduzir vidas a um rótulo. Há vida nas ruas e elas importam.

4. CONCLUSÕES POSSÍVEIS: COMO LIDAR COM O PROBLEMA QUE AGORA


SE VÊ

A busca por soluções parece ser o fim de todas as pesquisas. Mas, a despeito de se
entender que não existem respostas prontas, conformadas e findas, tem o presente trabalho a
intenção de viabilizar discussões acerca de caminhos possíveis. Diante da indiscutível
conclusão de que é violento e ilegal aprisionar pessoas porque a elas foi negado o direito a
moradia, tenta-se encontrar formas propositivas de mudança no Judiciário.
Ainda que o debate do abolicionismo penal seja a mais evidente forma de garantia dos
direitos, é preciso dar alguns passos para trás e discutir a viabilidade de aplicação dos institutos
consolidados do Processo Penal. É dizer, mesmo perfilhado à ideia de que o sistema de justiça
criminal já nasce falido pela sua perversão (ZAFFARONI, 1927), o presente trabalho almejou
discutir providências pragmáticas e contemporâneas.
O problema do assombroso número de prisões preventivas se dá para além das pessoas
em situação de rua. É uma prática do judiciário brasileiro “prender antes, discutir depois”.
Mas especialmente em relação ao argumento de que a ausência de moradia fixa é um óbice à
persecução penal, aponta-se à necessidade de maior integração do Judiciário com os
equipamentos e serviços estatais (notadamente os municipais) com o fim de promover a
retirada da população em situação de rua do cárcere. Compreender como se fixam no território
e como alcançam os serviços públicos é uma forma de se integrar.
O manejo das cautelares alternativas, a atenção à sociabilidade e à escuta das demandas
do acusado sem moradia fixa são o primeiro passo para a diminuição dessas prisões. Não se
podem desconsiderar as idiossincrasias de quem sobrevive nas ruas, mas pode-se desenvolver
estratégias para evitar ao máximo a privação da liberdade.
Um Judiciário rígido e que enxerga apenas a letra fria da lei desconecta-se da realidade
em que está inserido, o que causa patentes arbitrariedades como as ora discutidas. A
emancipação desse modelo proporciona a imersão nos diversos tipos de indivíduos
processados. A um só tempo, essa nova postura pode evitar procedimentos desnecessários e
tratar com mais empatia os que encontram respaldo legal.
Apontar as falhas do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco não foi um
exercício sem propósito. Pelo contrário: se buscou demonstrar como o Judiciário está inserido
num sistema profundamente comprometido, enfatizando a necessidade de se conferir olhar
mais atento para a população em situação de rua. Essa atenção não pode ser a panóptica, que
busca o “bom candidato ao cárcere”. Mas a visão da atenção primeira, humanizada e que se
responsabiliza também pela condição de marginalização das pessoas em situação de rua.
Do que se encontrou, conclui-se a certeza de que um Direito que olha e entende quem
são essas pessoas é instrumento poderoso pra solução de um conflito: o da indiferença.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11ª ed. Rio de Janeiro:
Revan, 2007. p. 32-33.

COSTA, Ana Paula Motta. População em situação de rua: contextualização e


caracterização. Revista Virtual Textos & Contextos, nº4, dez.2005.

LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 18ª ed. rev. e ampl. a atual. de
acordo com as Leis nº 12.830, 12.850 e 12.878, todas de 2013. São Paulo: Atlas, 2014.

ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do


sistema penal. 5ª ed. Rio de Janeiro: Renavan, 1991.

WACQUANT, Löic. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

______. A penalidade neoliberal em ação: uma resposta aos meus críticos. Revista
eletrônica da Faculdade de Direito, v. 5, n.2. Porto Alegre, jul-dez, 2013.
MULHERES “MULAS”, VÍTIMAS DO TRÁFICO, DA LEI E DA SOCIEDADE248

Bruna Ribeiro do Nascimento249


Julia Beatriz de Moura Chaves250

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo analisar a presença do machismo patriarcal no sistema
carcerário brasileiro. Buscando compreender a situação das mulheres “mulas”, que trabalham
para o tráfico transportando drogas, dentro do próprio corpo. É feita a análise das
representações e identidades de gênero tradicionais, presentes na sociedade em geral, que são
articuladas e reproduzidas nas práticas do tráfico de drogas. No âmbito sociológico, foi dado
enfoque na participação feminina na criminalidade, demonstrando de que forma a entrada, a
permanência e a saída das mulheres no tráfico de drogas podem ser compreendidas à luz de
questões de gênero, que determinam os lugares ocupados por homens e mulheres. Por isso,
temos como base da discussão a identificação de qual é o papel da mulher no tráfico de drogas.
No âmbito jurídico, buscamos apresentar as condições do aprisionamento feminino atual e
tratar das políticas de enfrentamento às drogas, apontando as respostas estatais que agravam
os problemas de gênero.

Palavras-chave: Mulher. Tráfico. Drogas.

1. INTRODUÇÃO

A presente pesquisa tem o interesse em analisar o quanto as mulheres são vitimadas


frente às práticas opressoras que lhes cercam, buscando refletir e questionar a construção de
uma sociedade cidadã e garantidora de direitos humanos.
Desta forma, neste trabalho, analisar-se-á os fatores que influenciaram tais mulheres a
praticar determinado ato, de maneira a tornarem-se encarceradas, passarem a viver como
cidadãs isoladas, bem como vítimas de inúmeros preconceitos e desigualdades sociais. Em
vista disso, foi demonstrado o modo como atua a seletividade penal e como a vulnerabilidade
de gênero fomenta o processo de criminalização dessas mulheres.
Assim sendo, procura-se entender, através da perspectiva de gênero, práticas sociais,
políticas e dinâmica da estrutura carcerária para com as mulheres que são responsabilizadas
por tráfico de drogas. Teve-se como problema de pesquisa: Quais as consequências
sociológicas e jurídicas com relação ao discurso punitivo acerca das mulheres “mulas”?

248
GT7- Ciências Criminais, Cárcere e Drogas
249
Graduanda em Direito pela Universidade de Pernambuco – UPE Email: nascibru.7@gmail.com
250
Graduanda em Direito pela Universidade de Pernambuco – UPE Email: juliachaves752@gmail.com
Dessa forma, o objeto de estudo consiste nas mulheres “mulas”. Será abordado
também temas como as motivações para o crime e o grau de vulnerabilidade do perfil da
mulher presidiária no Brasil. Ademais, examinou-se a política de drogas, tendo como objetivo
compreender a estrutura de divisão do trabalho, constatando que o mercado das drogas
reproduz o machismo patriarcal. A pesquisa descritivo-explicativa utilizou uma abordagem
quali-quantitativa, com o método dedutivo em uma análise bibliográfica.
A escolha do tema se deu pelo interesse de aprofundar uma temática que se entende
como de grande relevância para o estudo de mulheres que estão presas. Curiosidade em
compreender os aspectos de vulnerabilidade feminina neste espaço, no qual o preconceito é
aumentado devido ao grande volume de preconceitos sociais. Neste seguimento, a integração
da mulher “mula” como traficante de drogas precisa ser pensada a partir do contexto social
em que se desenvolveram, e acima de tudo acerca da política de drogas repressiva.
Para o contexto acadêmico, o presente trabalho parte de um estudo com pouca
visibilidade em pleno século XXI, onde ainda vemos frequentemente mulheres serem
violentadas devido a nossa estrutura social ser extremamente conservadora. De forma que,
para o âmbito social, este trabalho traz uma história da realidade em que vivem as mulheres
vítimas da estrutura social que traça padrões machistas, sexistas e arcaicos, devido à violência
de gênero presente em nossas vidas.
Por fim, na esfera pessoal, a inquietação partiu da curiosidade em analisar como as
mulheres mulas do tráfico de drogas são tratadas em meio às precárias condições do Sistema
Carcerário Brasileiro, na falta de condições básicas para sua subsistência, preconceito
fortemente ligado a questões de gênero.

2. DESENVOLVIMENTO

2.1 MULHER E CRIMINALIDADE

O estudo das possíveis razões da participação feminina na criminalidade é


habitualmente vinculado ao estudo da criminalidade masculina. O interesse da produção
acadêmica ainda é limitado a respeito das especificidades dos crimes cometidos por mulheres.
Assim, essa baixa ocorrência está relacionada aos papéis sociais e à incorporação, por homens
e mulheres, de uma ideologia patriarcal.
O fato das mulheres ocuparem as posições mais subalternas na rede do tráfico as torna
ainda mais vulneráveis e aumenta as suas possibilidades de serem selecionadas pela polícia
no combate ao tráfico (Soares, 2002). Em consequência, pode colaborar para o fenômeno do
encarceramento feminino em massa.
Muitas mulheres alegam que o motivo da sua inserção no tráfico de drogas seria em
função de suas relações amorosas com homens criminosos, e das dificuldades financeiras para
manter seus filhos. Dessa forma, o estudo da criminalidade feminina deve abarcar uma
avaliação e investigação da opressão sofrida por mulheres em diferentes esferas sociais.
Por isso, o ingresso e a continuidade de mulheres no tráfico serão compreendidos com
um enfoque de gênero, demonstrando os papéis realizados e os lugares determinados para as
mulheres e homens.

2.2 A PARTICIPAÇÃO FEMININA NA CRIMINALIDADE E O SEU GRAU DE


VULNERABILIDADE

A criminalidade feminina ainda é um tema pouco percebido, principalmente, nos casos


de tráfico de entorpecentes, a literatura está bastante centralizada no papel dos homens,
tipicamente incumbidos pela organização das redes criminosas. Diante disso, precisa ser
enfatizada a atribuição à mulher dos trabalhos mais arriscados e de menor remuneração e
poder, isto é, um sistema de divisão do trabalho regulado sobre a questão de gênero.
As mulheres, via de regra, executam papéis de assistência, e os homens realizam
papéis principais. Raramente algumas atuam como “chefe do tráfico”, assim, perpetuando a
posição histórica de submissão, identificando o domínio do poder na figura masculina.
Nas mulheres presas por tráfico de drogas um número ínfimo apresenta um status de
comando dentro de alguma organização criminosa. Desta forma, a maioria esmagadora de tais
mulheres não são chefes de quadrilha, nem mesmo ocupam funções importantes na rede do
tráfico. Elas são mulas, e muitas delas, meros meios de transporte de drogas para o interior de
presídios a fim de suprir necessidades de seus companheiros (Mendes, 2014).
Nesse âmbito, não há uma definição exata para o termo “mula”, senão uma concepção
simples do senso comum, atribuindo sinônimo de “burro de carga”. O conceito equivale a
ideia do ser que transporta coisas. Considera-se “mula”, portanto, a mulher que transporta
drogas consigo, seja junto ao corpo, ou em suas partes íntimas, bem como ingerindo, ou
através de intervenções cirúrgicas, com o intuito de ingressar no sistema penitenciário.
Desta forma, afirma Angarita (2008) que mula é quem realiza um trabalho de
transporte de drogas, mas se diferencia dos demais distribuidores e atores do tráfico por não
desempenhar papéis empresariais além da função de transporte que lhe é assegurada. Em geral
a mulher nesta condição não possui maiores responsabilidades dentro das redes do tráfico,
seja porque dispõe de pouca informação, porque transporta pequenas quantidades de droga,
ou, ainda, devido ao fato de que em muitas ocasiões é enganada para realizar este trabalho.
“Muitas vezes o criminoso não chega a ser detido, como demonstram os alarmantes
dados apresentados por Luiz Flávio Gomes” (GOMES, 2011). Nessa perspectiva, o crime
organizado é um reflexo de uma sociedade com resquícios do patriarcado, reproduzindo uma
desigualdade de gênero.
É importante definir o que seria a figura da mulher "mula", utilizando critérios como:
a ocupação de baixo nível em termos de remuneração e de posição de comando; o alto teor de
risco e visibilidade; além disso, é necessário analisar se teria sido usado algum meio de
exploração que pudesse ser usado como excludente de ilicitude, se foi executada mediante
coação, se foram enganadas sobre o trabalho que seria realizado e a respeito da "mercadoria"
que seria transportada, entre outros.
No que tange a punição, identificar situações de abuso da vulnerabilidade da vítima,
e/ou condições de subjugação dentro das redes de tráfico irá demonstrar a relevância do
implemento de uma política pública que particularize a figura da "mula" dos outros tipos de
traficantes. Em razão da presença de abuso, exploração, coação ou engano a vulnerabilidade
da "mula" pode indicar que ela foi vítima do tráfico e da sociedade. Logo, a lei deveria
protegê-la, contudo, essa realidade é desconsiderada pela legislação brasileira.

2.3 O FEMININO FRENTE À GUERRA ÀS DROGAS

Com uma política de drogas inteiramente proibicionista, e, por vezes, contraditória, o


consumo e o tráfico tendem a aumentar cada vez mais e a guerra às drogas não colabora para
sua diminuição, contribuindo tão somente para a ampliação do mercado ilegal, cada vez mais
lucrativo, vez que cresce também a condição do crime organizado.
O tratamento e o comportamento dos homens, em relação às mulheres, ainda é baseado
no patriarcado, vivenciando, ainda um grau hierárquico distinto em vários aspectos, dentre
eles, na coação para a prática de delitos, sendo movidas através de atos violentos.
Desse modo, a sociedade ainda enxerga a mulher como sendo subordinada a um
patriarca, seja ele o genitor ou o companheiro, desde que do sexo masculino.
Segundo Del Priore (2013, p. 06): “não importa a forma como as culturas se
organizaram”, a diferença entre masculino e feminino sempre foi hierarquizada. No Brasil
Colônia, o patriarcalismo brasileiro conferia aos homens uma posição hierárquica superior às
mulheres, de domínio e poder, sob o qual os “castigos” e até o assassinato de mulheres, pelos
seus maridos, eram autorizados pela legislação.
O sistema carcerário utiliza-se de instrumentos contraditórios ao manter prisioneiras
de seu sistema, pessoas que possivelmente tenham praticado ato delituoso, de forma que vão
de contrário aos próprios ditames legais que asseguram a utilização da pena privativa de
direitos, levando à excepcionalidade a restrição de liberdade.
É possível identificar o quanto o sistema carcerário é arcaico e conservador de
precedentes históricos, ao notar que o índice de mulheres encarceradas é bem maior quando
se trata de questões de vulnerabilidade social, no tocante a cor da pele, tendo em vista que é
possível observar o quanto o Estado trabalha com estereótipos sociais.
Em detrimento dos crimes cometidos pelos homens, as mulheres “mulas” praticam
atos bem menores e são culpabilizadas como uma afronta à sociedade, um perigo a fé pública,
gerando apenas a superlotação nas prisões e permanecendo com o problema. Em decorrência
de uma sociedade extremamente sexista, traçada por padrões patriarcais e machistas, a
estrutura de poder é desigual em detrimento das mulheres, pois entende que o machismo
prevalece atribuindo um saldo negativo às mulheres.
Vale observar que o sistema carcerário se utiliza de perfis estereotipados para
distinguir quem é o autor de determinado crime, ou não, de modo que é possível notar que o
entendimento estatal seria que a transgressão das mulheres ocorre porque são pobres e
submissas, tendo em vista que essa realidade ultrapassa a pessoa da presidiária, abarcando
seus familiares, inclusive, seus filhos.
Ainda, vale ressaltar que, em diversos casos, a grande maioria das mulheres “mulas”
do tráfico, são pessoas que, não possuem qualquer envolvimento na prática de crimes
anteriores e possuem quase sempre um baixíssimo poder aquisitivo. Há de se refletir que, por
inúmeras circunstâncias, mulheres acabam sendo aliciadas e induzidas a transportarem
substâncias consideradas entorpecentes, utilizando-se de seus corpos ou bagagens, ainda
passando pelo transtorno que é uma humilhação frente à sociedade.

3. PERFIL DA MULHER PRESIDIÁRIA NO BRASIL

O perfil da mulher presidiária no Brasil é o da mulher com filho, sem estudo formal
ou com pouco estudo na escola elementar, pertencente à camada financeiramente
hipossuficiente e que, na época do crime, encontrava-se desempregada ou subempregada. Em
geral, as mulheres criminosas são negras ou pardas.
Em razão de uma imagem estereotipada da mulher, vista como dócil e incapaz de
cometer crimes, por muito tempo associou-se a ela a prática de delitos passionais ou daqueles
chamados crimes contra a maternidade (aborto e infanticídio).
Hoje, as estatísticas demonstram que, majoritariamente, as mulheres estão sendo
encarceradas pelo cometimento de crimes contra o patrimônio e de crimes ligados ao tráfico
de drogas. Conforme dados do DEPEN mais de 60% da população carcerária feminina
encontra-se presa em razão de tráfico nacional de drogas (DEPEN, 2010).
Outro dado interessante do estudo e que se vincula ao presente tema: a maior parte
dos presos é constituída de usuários ou pequenos traficantes que fazem o transporte da droga
e, uma vez presos, são rapidamente substituídos por outros.

251

3.1 A REALIDADE PRISIONAL FEMININA

A população carcerária feminina cresceu 698% no Brasil em 16 anos, segundo dados


mais recentes do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), órgão do Ministério da

251
Disponível em: http://www.almapreta.com/editorias/realidade/prisioneiras-quem-sao-as-mulheres-
que-vivem-atras-das-grades-no-brasil
Justiça. No ano 2000, havia 5.601 mulheres cumprindo medidas de privação de liberdade. Em
2016, o número saltou para 44.721. Apenas em dois anos, entre dezembro de 2014 e dezembro
de 2016, houve aumento de 19,6%, subindo de 37.380 para 44.721 (DEPEN).
As estruturas internas dos estabelecimentos penais e as normas de convivência no
cárcere quase nunca estão adaptados às necessidades da mulher, já que são sempre desenhadas
sob a perspectiva do público masculino. Dessa forma, as presidiárias precisam lidar também
com a escassez de recursos. Em algumas prisões, as detentas recebem um ‘kit’ básico de
higiene que ,muitas vezes, não dura o mês todo. No entanto, há situações degradantes em que
o miolo do pão velho é utilizado como absorvente. Como também o descaso em relação à
saúde, com a falta de médicos gerais e especializados como ginecologistas.
Nana Queiroz, autora do livro “Presos que menstruam”, relata que para as presas a
separação delas dos seus filhos após os seis meses de amamentação é a questão mais delicada
em comparação às demais. Estima-se que 85% das mulheres encarceradas são mães. Muitas
chegam a dar à luz na cadeia. A lei permite que os “filhos do cárcere” vivam com a mãe,
enquanto são amamentados, mas ativistas têm sugerido que as mães de bebês de até um ano
deveriam ficar em prisão domiciliar durante a amamentação, tendo em vista que a cadeia não
é de forma alguma um ambiente saudável para um recém-nascido.
Uma das reflexões que o livro enseja é sobre a discrepância das visitas íntimas, em
relação aos presídios masculinos. Nos femininos, muitas vezes as visitas são dificultadas, pois
suas consequências podem ser mais dispendiosas ao Estado, ou seja, engravidando na prisão
o “problema” seria maior para o governo do que fora do cárcere. Podemos citar também a
diferença da quantidade de visitas recebidas por elas, de familiares ou não que acaba por ser
bem menor com relação às masculinas.
Outra problemática para as mulheres é a reabilitação. “Quando um homem é preso,
comumente sua família continua em casa, aguardando seu regresso. Quando uma mulher é
presa, a história corriqueira é: ela perde o marido e a casa, os filhos são distribuídos entre
familiares e abrigos. Enquanto o homem volta para um mundo que já o espera, ela sai e tem
que reconstruir seu mundo.
252

3.2 ESTRUTURA DE DIVISÃO DO TRABALHO NO TRÁFICO E A


DIFERENCIAÇÃO DOS PAPÉIS

Desde as últimas décadas as mulheres vêm galgando mais espaço nas relações sociais
e autonomia com relação a seus companheiros. Contudo, em muitos casos, ainda recai sobre
a competência delas as tarefas domésticas e de cuidado com os filhos. Dessa maneira, a
situação de vulnerabilidade é um fator que contribui para o envolvimento das mulheres com
o tráfico de drogas e sua submissão a atividade de risco, como a das mulheres “mulas”.
O tráfico de drogas mesmo atrelado aos altos riscos pode proporcionar a mulher uma
maior vantagem financeira, mais consistente que no mercado de trabalho formal. Diante disso,
o ingresso da mulher no tráfico pode ocorrer por conta das poucas opções que possui para
conseguir uma certa estabilidade financeira. Nesse contexto, é evidente a relação entre o
narcotráfico e a violência de gênero, de modo que a figura da “mula” não ocupa posições de
alto comando.
Há, para isso, a necessidade de avaliação de alguns critérios visando apontar a
vulnerabilidade no caso concreto, considerando a situação pessoal, geográfica e circunstancial

252
Fonte: Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias.
da vítima. Identificando a existência de condição de vulnerabilidade permite conhecer o
potencial da vítima, significando que, nesses casos, ela não acredita existir alternativa real à
vontade do abusador.
Outrossim, é importante incluir excludentes de culpabilidade no Código Penal ou na
legislação de drogas como um critério que toma como base a realidade de coerção e
manipulação pela qual passam as mulheres em suas trajetórias de deslocamento em busca de
melhores oportunidades.

3.3 MULHER NA QUALIDADE DE “MULA”: O CORPO COMO TRINCHEIRA


DE DROGAS

Nesse cenário há um extenso número de mulheres que fazem o transporte de drogas,


para dentro dos presídios, inserindo pacotes em sua vagina. Assim, o corpo da mulher funciona
como uma trincheira de drogas, demonstrando a vulnerabilidade histórica que permite essa
violação.
Segundo Giacomello (2013): “a vagina é, portanto, um lugar específico que guarda
diversas formas de uso e abuso sobre a mulher, seu corpo e sua sexualidade, vez que serve de
esconderijo da droga, bem como de diversas formas de violações, já que muitas destas
mulheres guardam consigo histórias de abuso sexual”. Também é destacado o simbolismo que
traz o corpo das mulheres “mulas” sendo transgredido e tido como objeto de todos. A vagina
das mulheres mulas encontrando-se como um local de interesse e de utilidade pública, e ao
mesmo tempo que é foco de tabus, é também “zona franca”.
O corpo feminino utilizado para o transporte de drogas faz-se uma trincheira aberta,
manifestando de modo simbólico, a invasão e o domínio do feminino pelo outro. Com isso, o
tráfico e o Estado reforçam a vulnerabilidade e a desigualdade de gênero fazendo com que a
mulher esteja em uma posição de subordinação por poderes advindos do patriarcado.
Diante do exposto, o tráfico reproduz concepções machistas por meio de uma
organização que segue uma divisão sexual do trabalho. No que concerne ao Estado, retrata a
hegemonia masculina com participação majoritária e com liderança nas instituições.
Em vista disso, na trajetória de uma história de vida traçada pela violência, a
destinação da vagina como “recipiente da droga” identifica mais uma das inúmeras maneiras
de violação que as “mulas” passam.
4. UMA DISCUSSÃO DA LEI 11.343/06: A POLÍTICA DE DROGAS
BRASILEIRA ATENDE À ESPECIFICIDADE DA MULHER “MULA”?

A Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, institui o Sistema Nacional de Políticas


Públicas sobre drogas. Em seu artigo primeiro, prescreve medidas para prevenção do uso
indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas. Além disso,
estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas e
define crimes.
A Lei em questão, no artigo 4º, estabelece como princípios basilares para sua criação,
o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, o respeito à diversidade e às
especificidades populacionais existentes, a promoção dos valores éticos, culturais e de
cidadania do povo brasileiro, a promoção de consensos nacionais, de ampla participação
social, e a promoção da responsabilidade compartilhada entre Estado e sociedade (BRASIL,
2006).
A política de drogas implantada no Brasil não parece contemplar as especificidades da
população. Verifica-se que a legislação vigente contribui para a manutenção do indivíduo
afastado da sociedade, insistindo nessa medida como sendo a melhor saída para a
problemática, contribuindo, dessa maneira, para a superlotação do Sistema Penitenciário.
Nesse contexto, a Lei 11.343/06 não tem um mecanismo de implementação adequada
para uma política de drogas, uma vez que é evidente a utilização de medidas retributivas, em
detrimento de medidas restaurativas e socioeducativas. Verifica-se, uma enorme omissão do
Estado com a ausência de um atendimento eficaz para abarcar às necessidades das mulheres,
por exemplo: a falta de atenção e cuidados aos problemas de saúde física e/ou psíquica das
detentas, e, até mesmo, sobre os filhos destas, que ficam sem base familiar.
Entende-se a vulnerabilidade socioeconômica da mulher “mula” como uma condição
de sujeição dentro do tráfico, portanto, deve-se planejar a adoção de políticas públicas, como
também de uma política criminal que as separe das outras espécies de traficantes. Não é
coerente que elas recebam o mesmo tratamento legal, ao ficarem sujeitas a pena prevista pelo
artigo 33 da Lei de drogas, considerando que a mulher mula serve, unicamente, de simples
instrumento de transporte.
Logo, por serem completamente descartáveis na estrutura do tráfico, e servirem
simplesmente como meios de transporte, sem dispor de ânimo para comercializar a droga, é
paradoxal que as mulas sejam verdadeiramente responsáveis pelo crime de tráfico, que
compõe-se de condutas muito mais graves. Segundo Carvalho:
“Em grande parte dos casos não é possível verificar ligações diretas das
mulas com o tráfico de drogas, visto que são indivíduos utilizados como
meras ferramentas de transporte de droga para dentro do cárcere ou para
outros países, sem possuir a obrigatória condição da “mercancia”, elemento
necessário para configurar o crime de tráfico. O desígnio mercantil é
pressuposto para tornar possível a imputação do artigo 33 da Lei 11.343/06.
Do contrário, não havendo esta comprovação, ou havendo dúvida quanto à
finalidade do comércio, não se pode configurar o crime em questão.”
(CARVALHO, 2013).

O caso das mulas é que elas, por si, não possuem a intenção comercial, já que em
muitos casos não sabem qual é o destino da droga, a quantidade que está sendo levada, muito
menos a sua origem. Quem tem o real desígnio de vender são os verdadeiros traficantes, que
realmente desfrutarão dos lucros, então, é quem de fato age com dolo.
Em virtude disso, o Supremo Tribunal Federal se posicionou favoravelmente a atuação
das “mulas” como não necessariamente integrantes da organização criminosa, sendo
puramente transportadoras. Todavia, é indispensável ir mais adiante que tal entendimento
considerando não somente que a mula não constitui a estrutura do tráfico, mas também faz-se
necessária a reflexão se é lógico classificar a mula como traficante de drogas e aplicar a mesma
pena.
Destarte, leis que diferenciam com critérios justos a mula, levando em consideração
que esta não desempenha funções de comando no tráfico, é uma das medidas essenciais para
reestruturar o sistema carcerário e atenuar o encarceramento em massa. Outrossim, excluir a
definição da mulher “mula” como traficante, significa avançar no combate a opressões
suportadas pela mulher, implementando o viés de gênero na elaboração de políticas públicas.
É visível que a grande parte das mulheres estão presas como produto direto ou indireto
de um preconceito multifacetado e da supressão de suas necessidades básicas. Determinar
medidas alternativas de comutação de pena, um regime mais benéfico para o seu
cumprimento, e a diminuição da pena são atitudes para tornar o sistema penal brasileiro menos
seletivo e desigual.
Reparar atentamente na perpetuação do sistema patriarcal de dominação que viveram
e continuam vivendo as mulheres “mulas”, é refletir sobre leis descriminalizadoras. As
mulheres que praticam o delito nesta condição resultam das relações de poder, da exclusão
social e da pobreza. Por isso, deve-se inserir uma perspectiva de gênero que tenha em vista o
fato da mulher estar em colocação expressa de vulnerabilidade e fragilidade econômica.

4.1 MOTIVAÇÕES PARA O CRIME


De acordo com os pesquisadores Elaine Cristina Pimentel Costa, Mariana Barcinsk e
Rita de Cássia Salmasso:

“As mulheres tornam-se traficantes por múltiplos fatores: em razão de


relações íntimo-afetivas, para dar alguma prova de amor ao companheiro,
pai, tio, ou, ainda, envolvem-se com os traficantes como usuárias, com a
finalidade de obter drogas, e acabam em um relacionamento afetivo que as
conduz ao tráfico.” (COSTA, 2008; SALMASSO, 2004; BARCINSK,2009).

Não há um único motivo determinante para o cometimento do crime do transporte de


drogas para dentro da prisão. Jôsie Jalles Diógenes observa que de um grupo de oito presas
apenas três não haviam obtido vantagem monetária, porque estas ingressaram no mundo do
crime apenas por amor, ciúme e o vício do companheiro (DIOGENES, 2007:55).
O reconhecimento pelos homens e o respeito adquirido em face das demais mulheres
também é motivo para levá-las ao crime, o que, por sua vez, representa uma forma de obtenção
de poder e de ascensão social. Trata-se de uma maneira de as envolvidas no tráfico
equipararem-se à maioria hegemônica masculina, sobrepondo-se às demais mulheres.
Mariana ainda afirma:

“Apesar de as participantes reconhecerem os obstáculos econômicos e


sociais experimentados por jovens pobres e a consequente inserção na rede
do tráfico de drogas, o poder e o status experimentados são mais
frequentemente mencionados como motivadores para a entrada da
atividade.” (BARCINSK, 2009)

4.2 DIFERENCIAÇÃO ENTRE PEQUENOS TRAFICANTES E PESSOAS EM


POSIÇÕES DE COMANDO

Conforme mencionado anteriormente, embora a Lei 11.343 de 2006 seja o marco de


uma política penal para as drogas no Brasil, o parágrafo 4º do artigo 33 do Código Penal já
estabelece a possibilidade de redução de pena no caso de pessoas primárias, com bons
antecedentes, que não se dediquem a atividades criminosas e não façam parte de organização
criminosa. Em tese, essa previsão seria suficiente para oferecer tratamento diferenciado a
traficantes de droga de menor escalão, como aviões (pessoa que leva as drogas do morro à
cidade e vice-versa), micro traficantes e "mulas".
Na prática, no entanto, a aplicação desses critérios permanece de completa
discricionariedade do magistrado, de modo que se criou na jurisprudência o hábito de se
considerar exclusivamente a quantidade de droga transportada para determinar se a pessoa
integra ou não organização criminosa. A ausência de critérios legais para definir a participação
em organização criminosa tem sido, portanto, causa de desigualdade na aplicação do instituto
(conhecido erroneamente como "tráfico privilegiado").
O melhor critério para determinar o posto que uma pessoa ocupe na organização
criminosa é a remuneração percebida e o grau de comando que exerce, levando-se em conta
que existem certos "cargos" tradicionalmente de baixa relevância na dinâmica do tráfico, posto
que seus ocupantes são facilmente substituíveis.
Para assegurar a proporcionalidade das penas sejam levados em conta os seguintes
elementos, construindo na legislação as distinções necessárias: crimes relacionados a drogas
com alto, médio e baixo potencial ofensivo; posição ocupada pelo acusado na rede de tráfico
de pessoas; crimes cometidos com ou sem violência; e diferentes tipos de drogas.
A legislação brasileira não logra diferenciar de maneira adequada nem sequer a
posição ocupada pelos agentes envolvidos com o tráfico de drogas. A criação de tipos penais
distintos para cada uma das condutas é uma das soluções recomendadas para separar entre os
graus de ofensividade, especialmente considerando se o crime foi cometido com ou sem
violência.

5. PROPOSTAS PARA REFORMULAÇÃO DA POLÍTICA BRASILEIRA DE


ENCARCERAMENTO DE MULHERES NA CONDIÇÃO DE “MULAS”

Precariedade. Maus tratos. Tortura. Nesse contexto, o encarceramento em massa é


apenas umas das consequências dessa política de drogas adotada pelo direito brasileiro. Nosso
sistema penitenciário poderia ter o índice de encarceramento drasticamente reduzido caso
houvesse uma resposta alternativa ao encarceramento de homens e mulheres usuários e
pequenos traficantes.
Há crescentes números de brasileiras que têm sido presas no país ao tentar sair
carregando drogas, como efeito de uma coação exercida por redes criminosas que traficam
essas mulheres para serem exploradas na Europa, e essa opressão deve ser levada em
consideração. De forma que no plano internacional, já foram propostas soluções alternativas
para o encarceramento da mulher, no Brasil, é preciso fomentar discussões para o combate do
encarceramento feminino em massa. Portanto, são indispensáveis reformas adicionais que
proponham regimes jurídicos específicos para ofertar tratamento particularizado à figura da
"mula", sendo essa uma das medidas mais propícias para reduzir as altas taxas.
“A América Latina se converteu na região de maior produção de cocaína, maconha e
em grande parte também da heroína consumida nos Estados Unidos e em países da Europa.”
(BATISTA, 2010). Diante disso, o problema precisa ser tratado, principalmente, com enfoque
na redução ou no controle do consumo.
A título de exemplo, políticas de redução de danos e legalização do consumo, como
as adotadas por alguns países europeus. Essas políticas deveriam ser pensadas para o sistema
prisional, como também sob enfoque de gênero, tendo em vista que entre a população
carcerária, as mulheres são as mais atingidas pela dependência de substâncias e por problemas
mentais, e as menos atendidas em suas necessidades pelos programas de reabilitação e
tratamento.
É possível afirmar que a grande maioria dessas mulheres estão presas tendo como
consequência a privação de necessidades básicas e da discriminação social das mais diversas
formas. Mediante o exposto, busca-se elucidar melhor a explicação:

“Considerando a motivação primordialmente econômica da maioria dos


crimes femininos - inclusive de drogas - e a ainda predominante função que
ela ocupa no seio das famílias, como cuidadora e provedora, é fundamental
para seu entorno que a esta mulher sejam conferidas oportunidades de não
ficar presa e, consequentemente, de melhorar suas chances de obter um
emprego.” (CERNEKA, 2012; QUAKERS, 2012).

Nesse contexto, há fundamentação pautada sobre o princípio da não discriminação da


mulher, tendo como perspectiva a diminuição da desigualdade. Por isso, quanto ao sistema
penal, as regras adotadas devem buscar uma maior aplicação de medidas alternativas ao
cárcere.
Não significa dizer que a mulher que transporta drogas em seu corpo não tem
consciência sobre seus atos. Entretanto, pretende-se ratificar que é utilizada tão somente como
mero instrumento de transporte, contrariando que seja tida como traficante de drogas. Por essa
razão, é essencial considerar o histórico de vitimização da mulher, conjugando medidas
alternativas de não encarceramento com o apoio, assistência e orientação para alcançar as
principais causas da vulnerabilidade feminina, dentre elas a violência doméstica, o abuso
sexual, o sofrimento psíquico, e o precário acesso ao mercado de trabalho.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nota-se que inexistem perspectivas quanto a uma política antidrogas por parte do
Estado, no tocante ao tratamento vivenciado por mulheres quando presas, tendo em vista a
busca e necessidade pela discussão de uma política de gênero que responda às necessidades
femininas no cárcere.
No que se refere ao modelo carcerário vivenciado atualmente em todo o Estado,
observa-se o quanto o lugar da mulher, vem, cada vez mais, sendo esquecido, principalmente
quando se fala em um sistema educativo e ressocializador.
Devido ao tratamento desigual em relação aos gêneros, feminino e masculino, existe
uma necessidade em criar ou modificar medidas político-sociais para tratar de questões que
envolva mulheres e drogas nas Penitenciárias.
Nesse sentido, ocorre uma grande falha do Estado, com a falta de centros próprios e
adequados para atender às necessidades das mulheres; a falta de atenção aos problemas de
saúde física ou psíquica das detentas, e, até mesmo, sobre as filhas e filhos destas, que, na
grande maioria das vezes, ficam abandonados por não terem uma base familiar.
Não existindo, ainda, oportunidades educativas, de saúde básica ou medidas que
possam trazer oportunidades para o reingresso na sociedade, sem que possam enfrentar toda
a vergonha e constrangimento para com a sociedade e até mesmo seus familiares e maridos.
O envolvimento com o mundo do tráfico, por parte das “mulas”, pode ser considerado
uma experiência traumática, gerando consequências físicas, psicológicas e emocionais que
dificilmente serão amenizadas apenas com o tempo, dependendo, muitas vezes de apoio
profissional de psicólogos(as) e/ou terapeutas. A inserção no mundo do tráfico, o que tange
as mulheres mulas gera várias repercussões para o âmbito social, causando a estas,
sentimentos de grave angústia, desespero e medo.
Para a sociedade o Estado está cumprindo seu papel ao retirar das ruas uma mulher
que cometeu crime, porém, há de se ressaltar a necessidade de uma resposta à sociedade, no
sentido de demonstrar se, de fato, essas mulheres retiradas da sociedade, recebem do Estado
a efetivação do que previu o legislador.
É preciso dialogar com as vivências de mulheres presas, considerando a posição que
elas ocupam, para pensar o enfrentamento desse cenário, a partir da Lei 11.343/2006.
A pesquisa retrata o quanto se faz necessária a implementação de uma nova política
de drogas que pense particularmente no(a) usuário(a) e no traficante, de modo que seja dada
prioridade a saúde do sujeito, assim como a responsabilidade condizente com a conduta
praticada, e, consequentemente, um acompanhamento processual mais célere, e, portanto, uma
melhor organização no sistema carcerário.

REFERÊNCIAS
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Como un Factor Explicativo en la Experiencia de Las Mulas. Facultad Latinoamericana
De Ciencias Sociales. Programa De Maestria En Ciencias Sociales. Mención Estudios De
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BARCINSK, Mariana. Centralidade de gênero no processo de construção da identidade


de mulheres envolvidas na rede do tráfico de drogas. Ciênc. saúde coletiva [online]. 2009,
vol.14, n.5, pp. 1843-1853. ISSN 1413-8123.

BATISTA, Marcela Vitarelli. Políticas de seguritización y de-seguritización de las drogas


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perspectiva comparativa. 2010. Tesis conducente al grado de magister en Relaciones y
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novembro de 2017.

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dogmático da Lei 11.343/06. Rio de Janeiro: Saraiva. 2013.

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DEL PRIORE, Mary. Histórias e conversas de mulher. São Paulo: Planeta do Brasil, 2013.

DEPEN. Formulário Categoria e Indicadores Preenchidos. BRASIL, Dez 2010.


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DIÓGENES, Jôsie Jalles. Tráfico ilícito de drogas praticado por mulheres no momento
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GIACOMELLO, Corina. Mujeres, delitos de drogas y sistemas penitenciarios en América


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GOMES, Luiz Flávio. A impunidade generalizada no Brasil. Disponível em:
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MENDES, Soraia da Roda. Criminologia Feminista: novos paradigmas. – São Paulo:


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QUEIROZ, Nana. Presos que menstruam. Rio de Janeiro: Record, 2015.

SALMASSO, Rita de Cássia. Criminalidade e Condição Feminina: estudo de caso das


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SOARES, Bárbara, ILGENFRITZ, Iara. Prisioneiras: vida e violência atrás das grades. Rio
de Janeiro: Garamond. 2002
AS DIMENSIONALIDADES PENAIS DO GÊNERO E DO TRÁFICO DE DROGAS:
notas introdutórias253

Élida Gleice de Lima Oliveira254


Glebson Weslley Bezerra da Silva255

RESUMO

No presente estudo será abordado a criminalidade feminina com ênfase no tráfico de drogas.
Analisaremos as relações de poder que envolvem as mulheres que chegam ao tráfico de
drogas, uma vez que os estudos sobre esse tema são escassos e limitados, então, foi utilizado
como método de pesquisa o de caráter bibliográfico-exploratório tendo uma abordagem
qualitativa e quantitativa. Pode-se observar através de dados estatísticos que a criminalidade
feminina vem aumentando, além disso a participação de mulheres nos crimes de tráfico de
drogas é mais frequente. Para tanto precisamos encarar a perspectiva de gênero como um dos
eixos que constrói as relações sociais de todos os âmbitos. Por ser um elemento constitutivo
das relações sociais, o gênero, é de início e ultrapassado modo percebido através do sexo
biológico e ligado às significâncias das relações de poder. No todo as relações sociais são de
suma importância, recortando para as relações familiares que são estruturantes, percebemos
nas atividades organizacionais e na tomada de papéis para representantes que há um déficit na
realização de atividades e dos papéis pré-estabelecidos que determinam a tomada de
decisões dessas mulheres.

Palavras-chave: Cárcere. Gênero. Tráfico. Drogas.

1 INTRODUÇÃO

No presente trabalho vamos abordar o aumento da criminalidade feminina e faremos


um recorte evidenciando que dentre os ilícitos penais cometidos por mulheres, o tráfico de
drogas é o mais praticado.
Para tanto, resolvemos usar uma lente que vislumbra principalmente a situação de
vulnerabilidade social dessas mulheres, considerando também a motivação das mesmas e o
que essas ações refletem em suas relações familiares, nesse movimento social e emocional de
fora/dentro do cárcere.

253
GT 7 - Ciências Criminais, Cárcere e Drogas.
254
Graduanda em Direito – Centro Universitário do Vale do Ipojuca – UNIFAVIP. E-mail:
elidaoliveira007@gmail.com
255
Mestrando em Direito - Universidade Católica de Pernambuco (2017). Especialista em Direito Penal e
Processo Penal - Universidade Candido Mendes (2017). Pós Graduando em Direito Constitucional -
Universidade Candido Mendes (2017).Graduado em Direito pelo Centro Universitário do Vale do Ipojuca -
DeVryUNIFAVIP (2016). Professor do Curso de Direito do Centro Universitário Joaquim Nabuco - Campus
Recife. Coordenador do Grupo Tejucapapo de Criminologia (UNINABUCO). Coordenador do Observatório de
Gênero e Violência Doméstica (UNINABUCO). Advogado, inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil Seção
de Pernambuco. Pesquisador do Grupo Asa Branca Criminologia (UNICAP/CNPq). Pesquisador do Grupo de
Estudos e Pesquisas Transdisciplinares sobre Meio Ambiente, Diversidade e Sociedade (UPE/CNPq).
Extensionista do DHiálogos: Ciclo de Debates sobre Sociedade e Direitos Humanos.
A ascensão feminina, que veio principalmente com ‘libertação’ feminina, com a
entrada da mulher no mercado de trabalho, que por sua vez impulsionou a desconstrução das
famílias de caráter patriarcal, trouxe o interesse pelo o que a mulher é capaz de oferecer e a
autonomia de decidir o seu próprio destino.
A presença das mulheres no mundo do crime também aumentou, e decorrente disso,
começaram a enfrentar um sistema punitivo pensado exclusivamente por e para homens,
assim como todos os outros âmbitos sociais. Desse modo, precisamos lançar um olhar que
propõe identificar as relações de poderes estruturantes a partir das diferenças biológicas para
assim, quebrar as correntes que prendem e lançam um estigma nessas mulheres, mas também
não deixar de atentar para as peculiaridades e necessidades existenciais/corporais que são do
sexo feminino.
Nesse sentido, será feito uma análise histórico-evolutiva do sistema punitivo, bem
como da legislação (escassa) direcionada para o tratamento das peculiaridades decorrentes do
gênero. Contudo, antes de abordar criminalidade-mulher, deve ser indagado e problematizado
o preconceito que é instaurado e advém como resultado de uma cultura machista e sexista de
subordinação, apreciada pela própria sociedade que por sua vez finge acreditar no sistema
punitivo como solução das anomalias sociais e na (res)socialização do sujeito.
O procedimento metodológico utilizado foi o dedutivo, através da pesquisa
bibliográfica-exploratória tendo uma abordagem qualitativa e quantitativa em obras e dados
correlatos ao tema. Nessa situação, atentando à dignidade da pessoa humana e as
particularidades do ser mulher, analisaremos o sistema prisional, as relações
afetivas/familiares, a mulher e o tráfico de drogas.
Para tanto, faz-se necessário também examinar o direito penal e processual
penal para enfim existir a eficácia das diretrizes constitucionais de proteção às mulheres, por
isso há uma urgência de políticas públicas direcionadas à mulher encarcerada e o investimento
do Estado em estruturas penitenciárias que acolham o recorte do gênero, além do mais deve-
se ter uma preocupação quanto as ações que são responsáveis por (re)educar esse público e
(re)inseri-lo na sociedade, ou seja, deve-se atentar a todos os momentos do cárcere e do pós-
cárcere, sendo eles emocionais e/ou sociais.
Tentaremos responder, ou melhor, fazer uma ánalise acerca de algumas indagações
que surgem em relação a esse tema, como por exemplo: é possível dizer que o principal motivo
das mulheres adentrarem no mundo do crime e principalmente no tráfico de drogas é a
subordinação ainda existente entre o feminino em relação ao masculino? Como as relações
afetivas e as identidades são (re)formuladas com o momento cárcere? Esses questionamentos
são mais gritantes, e que demonstram maior incomodo sobre as diversas experiências dos seres
no sistema carcerário e fora de desse muro.
Apresentaremos reflexões sobre o assunto, debateremos e mostraremos a raiz do
desconforto feminino no cárcere e no pós-cárcere e discutiremos sobre a identidade que advém
da construção social, e de encontro a isso observaremos as dificuldades que as mulheres tem
que enfrentar para que venham a conseguir a reintegração social e a libertação do rótulo
carcerário.

2 MULHER, CÁRCERE E PUNIÇÃO: dimensões históricas e conceituais

No decorrer da história, percebemos que o sistema de punições foi se modificando e


se adaptando aos regulamentos de cada momento e cultura, de modo que foi alcançado o
modelo atual, que segue os fundamentos da privação de liberdade sendo então, o molde de
punição regenerativa e coercitiva.
As prisões vieram ter essa faceta e esse cunho de ser uma das formas de cumprimento
de pena a partir do século XIX, antes disso eram usadas como “sala de espera”, os apenados
ficavam nesse local aguardando a humilhação pública ou a morte, visto que a pena de morte
era muito comum.
No Brasil o sistema criminológico começou a ser de fato discutido no final do século
XIX, início do século XX, surgiu aproximadamente a década de 1930 a primeira penitenciária
feminina, que tinha o intuito de colocar as mulheres de volta aos padrões femininos, ou seja,
a gestão prisional era direcionada a domesticar as “mulheres pecadoras e criminosas” em
“mulheres belas, recatas e do lar”, reproduzindo e intensificando a linha da moral e dos bons
costumes, associado todas ao mundo doméstico e dócil.
Nesse sentido:

Dedicadas às prendas domésticas de todo tipo (bordado, costura, cozinha, cuidado da


casa e dos filhos e marido), elas estariam aptas a retornar ao convívio social e da
família, ou, caso fossem solteiras, idosas ou sem vocação para o casamento, estariam
preparadas para a vida religiosa (SOARES; ILGENTRITZ 2002, p.58).

Atentando-se ao fato que o Código Penal vigente no Brasil (1940) está totalmente
marcado por elementos dessa perspectiva repressiva, machista e sexista, onde apelando para
biologia, apontam que a mulher por causa de sua constituição hormonal, possui natureza
psicológica sujeita e propicia a transtornos mentais altamente significativos em períodos de
sua vida, como por exemplo no crime de infanticídio, delito este que a mãe mata seu próprio
filho no período de estado puerperal.
Com Bodelón, recordamos o quão pesada é a atribuição histórica do Direito Penal:

Longe de proteger seus interesses, o direito penal do século XIX e boa parte do século
XX contribuiu para reproduzir uma determinada significação do ser social mulher,
isto é, da estrutura de gênero. Por um lado, a mulher aparece sujeita a tutela e sem
plena responsabilidade, por outro, estabelece um conjunto de controles sociais sobre
a sexualidade feminina e um conjunto de estereótipos sobre sua sexualidade (2000, p.
12).

Sposato (2007) em seu artigo Mulher e Cárcere: uma perspectiva criminológica,


identificou que historicamente a mulher é considerada pelo âmbito penal como um ser sujeito
a tutela e a vários instrumentos de controle sobre principalmente sua sexualidade – como a
criminalização do aborto – e outro conjunto de estereótipo do feminino.
Ainda baseado nos posicionamentos de Sposato (2007), entendemos que o Direito
Penal, com todos os seus mecanismos repressivos de controle social, incide sempre sobre os
mais vulneráveis, pois a prática do sistema punitivo está direcionada a castigar os pobres e
deixar impunes as outras esferas, ainda que causem danos superiores. No meio do tráfico de
drogas podemos perceber a mesma coisa, pune-se o pequeno traficante, o “fogueteiro”, a
“mula”, quanto as organizações criminosas ficam impunes.
A adoção de uma lente absolutamente masculina quanto a elaboração de políticas
penitenciárias viola da forma mais violenta a cidadania das mulheres aprisionadas,
segundo Rampín (2011), tendo então a grande parcela da contribuição para o crescimento de
um processo cada vez mais duro de sua invisibilização chegando ao ponto de ser-lhe negado
o direito essencial e inerente à toda pessoa humana: a dignidade.
Com a inserção do ramo “gênero” nas ciências sociais, analisar a criminalidade
feminina associando/comparando com a criminalidade masculina e os eventos temporais
históricos faz-se necessário.
Segundo Scott, gênero é termo que pousa entre dois lados de uma ponte:

[...] o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças


percebidas entre os sexos e [...] o gênero é uma forma primária de dar significado às
relações de poder [...] o gênero é uma primeira maneira de dar significado às relações
de poder. Seria melhor dizer o gênero é um primeiro campo no seio do qual, ou por
meio do qual, o poder é articulado (1995, p. 14).

O gênero para a autora é uma forma de significação das relações de poder, com isto é
preciso que seja compreendido que não existe uma natureza do gênero feminino ou masculino.
A natureza que explica a existência de corpos/seres com determinados comportamentos ou
características não pode nem deve ser pensada senão como uma realidade que vem a partir da
linguagem ou de dentro da linguagem.
Logo, a masculinidade e feminilidade são significados estabelecidos culturalmente que
destinam uma determinada pessoa a apreender os comportamentos tidos como masculinos ou
feminino do seu meio social.
Conforme Butler (2003; 2005), gênero é modelo de dominação social, existente na
dimensão simbólica, que se baseia nas diferenças sexuais onde os artifícios biológicos e
culturais não são distinguidos. Essa categoria denominada gênero analisa as
construções socioculturais das identidades masculino/feminino, em determinados momentos
históricos e em determinadas sociedades. “Os significados dessas identidades, que são criadas
culturalmente, variam no tempo e em cada sociedade, sendo, portanto, conceitos que variam
e se transformam” (SILVA, 2009, p. 31).
Homens e mulheres desempenham socialmente falando, papéis preestabelecidos de
acordo com as funções agregadas ao gênero diante do costume cultural daquela sociedade.
Sabemos então que a mulher é destinada a ser pacífica e obediente, com isto qualquer ação
protagonizada pela mulher que não siga esse destino é dada como patologia, pois o ato
violento é dado como não feminino.
A entrada da mulher no âmbito público, o empoderamento feminino e essa turbulência
na base masculina da sociedade, ocorreu a partir dos movimentos feministas dos anos 1960 e
1970 que edificaram as discussões sobre a construção social do sexo.
E para entendermos a estrutura contemporânea que está dando cara a criminalização
feminina, é importante ressaltarmos que a

[...] mulher reclusa é vista como tendo transgredido a ordem em dois níveis: a) a ordem
da sociedade; b) a ordem da família, abandonando seu papel de mãe e esposa – o papel
que lhe foi destinado. Por isso sofrem uma punição também dupla: a) a perda da
liberdade com a privação de liberdade comum a todos os prisioneiros; b) estão sujeitas
a níveis de controle e observação muito mais rígidos, que visam a reforçar nelas a
passividade e a dependência, o que explica por que a direção de uma prisão de
mulheres se sente investida de uma missão moral (LEMGRUBER, 1993, p. 86).

A mulher então, não é apenas é criminalizada por causa da sua conduta ilícita, porém
também é estigmatizada por causa da violação do papel que foi para si preestabelecido, ou
seja, sofre uma dupla marginalização. Logo

[...] existe o estigma, que dissolve a identidade do outro a substitui pelo retrato
estereotipado e a classificação que lhe impomos. [...] Lançar sobre a pessoa um
estigma corresponde a acusa-la simplesmente pelo fato de ela existir. Prever seu
comportamento estimula e justifica a adoção de atitudes preventivas. Como aquilo que
se prevê é ameaçador, a defesa antecipada será a agressão ou a fuga, também hostil
(SOARES, 2005, p.132-133).

Assim: “No momento em que a mulher vai parar no cárcere ela já está marcada,
estigmatizada, e de tal forma que jamais irá conseguir retirar as marcas, no máximo conseguirá
diminuir as evidências aos desconhecidos” (VASCONCELOS, et al, 2012).
De acordo com Bourdieu (1999), a violência também pode ser uma forma de poder.
Para ele, é claramente perceptível no decorrer da história feminina violência(s), sendo não
apenas a disfarçada, mas também a declarada, isto é, a violação das leis gera violência e
mesmo a violência não mudando as estruturas, ela produz indícios que as mulheres estão
questionando essas estruturas.
Existem dois conceitos importantíssimos para se analisar as relações de poder
estabelecidas entre os gêneros, sendo eles: resistência e subordinação. A subordinação das
mulheres está ligada diretamente ao processo de construção social dos gêneros
masculino/feminino e as discussões sobre tal tema pretendem questionar e problematizar os
espaços destinados ao feminino, tal como a unidade doméstica e o ambiente familiar.
No mais, Foucault (2007) afirma que o exercício de poder vai se dá entre indivíduos
que podem resistir, ou seja, o poder será sempre um embate. Por isso, terá que existir a
possibilidade do ‘dominado’ reagir, pois sem essa reação não haverá poder. A partir desses
conceitos é imprescindível pensar na probabilidade das mulheres resistirem, à sua
subordinação, para que tornem-se sujeitos com chances de transformação.
Por estarmos analisando o envolvimento de mulheres no tráfico de drogas, na maioria
das vezes, com seus maridos ou companheiros, é necessário pensar e analisar a família como
categoria sociocultural de construção da realidade (BOURDIEU, 2007).
Na família, se inicia o processo de interiorização dos papéis de gênero:

[...] o funcionamento da unidade doméstica como campo encontra seu limite nos
efeitos da dominação masculina que orientam a família em direção à lógica do corpo,
à integração, podendo ser um efeito da dominação (BORDIEU, 2007, p.132).

Dentro dela, será definido o espaço privado como espaço feminino onde:

A célula familiar, tal como foi valorizada ao longo do século XVIII, permitiu que
sobre as duas dimensões principais − o eixo marido-mulher e o eixo pais-filhos − se
desenvolvessem os elementos principais do dispositivo de sexualidade, o corpo
feminino, a precocidade infantil, a regulação dos nascimentos, e, em menor medida,
provavelmente, a especificação dos pervertidos (FOUCAULT, 1997, p. 142).
A família, sendo a primeira instância formal de controle, coopera para a reprodução
das desigualdades de gênero, intensificando a ideia noção de que o âmbito público seja área
de domínio exclusivamente masculino.
Contudo essa realidade precisa ser transformada, os estudos ainda são escassos e fazer
uma análise do encarceramento feminino e da criminalidade com recorte de gênero é
necessário, como disse Ramidoff:

É preciso pensar um mundo diferenciado a partir da feminilidade, vale dizer, não só


modificar a maneira de pensar ou viver, mas principalmente, encontrar fórmulas para
a superação do controle sócio-patriarcal, quando, não a onipotência legal-masculina,
através do respeito e do reconhecimento de outros valores que passam a também reger
as novas relações jurídicas, políticas e sociais (2005, p.113).

É preciso fazer essa reflexão sobre os efeitos e/ou consequências que a criminalização
e a penalização podem ocasionar não só para o ser a mulher e sujeito portador de direitos, mas
também de forma extensiva para todo o ambiente social.

3 PATRIARCADO, FEMINILIDADE E CRIME: entre fabricações sociais e questões


de gênero

É no cenário das relações sociais com o masculino e a partir das representações sociais
que se elaboram e moldam o papel do feminino na relação afetiva de todas as situações desde
o início dos tempos, e grande parte das mulheres que se encontram no cárcere utilizam essa
“justificativa” para suas práticas criminosas, principalmente nos crimes relacionados ao ramo
das drogas, mesmo que esse envolvimento eventual, aleatório e/ou relacionado somente ao
uso da droga.
Infelizmente devido a cultura patriarcal e machista “a mulher passa a conceber a sua
própria identidade a partir do outro com o qual se relaciona afetivamente, de modo que até
mesmo práticas ilícitas passam a povoar o seu cotidiano” (PIMENTEL, 2005, p. 04). E essa
submissão feminina ao masculino nas relações afetivas, ocorrem dentro do matrimônio ou nos
seus semelhantes, como namoro e união estável.
Além da cultura, Frinhani e Souza (2003) mostram que as dificuldades
socioeconômicas também estão ou podem estar diretamente relacionadas a esses pontos
afetivos, que por sua vez pode fazer-se uma soma na consciência, ou seja, junta-se a isso a
necessidade de educar e criar seus filhos(as) e preservar as ligações familiares. Nos estudos
acadêmicos relacionados à criminalidade e ao sistema prisional demostram que muitas vezes
as mulheres relatam a participação de homens (principalmente cônjuges ou companheiros)
no(s) crime(s) cometido(s), sendo eles os influenciadores diretos ou indiretos da “entrada”
dessas mulheres no mundo do crime.
A significação, a responsabilidade e a direção que as mulheres imputam e trazem pra
si e orientam para as suas relações afetivas, são constituídos através das práticas reiteradas (e
mundiais) ao longo de sua existência. Essas práticas partem dessas representações gerais do
papel feminino instituído pela sociedade, logo algumas dessas mulheres agem em nome dessa
afetividade. Podemos perceber que esse vínculo afetivo seja ele como o namorado,
companheiro ou marido, fazem ou no mínimo influenciam as mesmas para que virem
cúmplices do ato e/ou depois da prisão do ‘provedor’ elas comecem a “se virarem” para
sustentar os familiares.
Pimentel explica que:

A dominação do masculino sobre o feminino é fruto da aceitação das próprias


mulheres – ainda que não direta, nem tampouco conscientemente – de práticas de
sujeição reveladas nos seus discursos, que, por sua vez, são formados a partir de
conteúdos que estabelecem os papéis da mulher e do homem na sociedade e, mais
especificamente, nas relações de afeto (PIMENTEL, 2005, p. 04).

E com o encarceramento de seu companheiro/namorado/marido, essa mulher começa


a aprender a sobreviver sozinha, ainda que isso signifique cometer ato ilícito como o tráfico
de drogas. “A ruptura para a qual a prisão concorre, paulatinamente transfere-se para dentro
delas próprias” (HASSEN, 1995, p. 17).
Apesar de estarem conscientes de que os atos praticados ferem as normas penais e
publicamente estão sendo vistas como traficantes e repudiadas, elas não se reconhecem como
‘bandidas’, pois no seu eu, sua identidade está diretamente ligada ao âmbito doméstico, seu
ser como mãe/esposa/companheira fiel ultrapassa o seu momento de criminosa, traficante.
Para muitas(os) “o delito é compreendido como uma conduta discrepante ou desviada”
Gomes (2007, p.167) e para essas mulheres, a entrada no mundo do tráfico significa apenas
um negócio como outro qualquer que é apenas um pouco mais arriscado, pois as condutas
vender, fazer entrega ou transportar droga não seria algo delituoso, uma vez que a concepção
de crime para elas é quando há um atentado contra o patrimônio ou contra a vida, como roubar
e matar.

4 DO GÊNERO PENALMENTE CONSTRUÍDO À IDENTIDADE DETERIORADA

Por causa da prisão, mudanças drásticas acontecem nas relações familiares, havendo
então uma crise familiar, que por sua vez vem a gerar sentimento de perda e pode acarretar
em problemas psicológicos tanto na mulher presa quanto em parentes próximos. E isso decorre
também de outros fatores históricos e sociais que são estruturais, Buglione (2002), em seu
trabalho O dividir da execução penal: olhando mulheres, olhando diferenças compreende
que: 1) a mulher que transgrediu invadiu o âmbito criminal, que é originariamente masculino,
logo é condenada por ter se distanciado do lar; 2) pelo delito que cometeu. Ou seja, ao
delinquir a mulher rompe com as normas penais, logo ofende os bens jurídicos, e rompe com
o papel social e cultural imposto pela sociedade e perpassado ao longo da história através de
um discurso ideológico. Há uma dupla violação do ordenamento (jurídico e moral), sendo
então a “justificativa” para ser punida intensamente quando inserida nas esferas formais de
controle.
Além da pena decorrente do crime cometido, há também o rompimento dos vínculos
familiares, essa dupla penalidade não pode ser permitida, a prisão não somente priva a mulher
que cometeu crime, mas também as pessoas que fazem parte do seu grupo familiar.
No momento da prisão se inicia a problemática das mulheres mães em relação a como
o filho vai ficar. “Muitas vezes, a separação pela prisão pode ser algo repentino e sem
preparação para as crianças. A mãe pode não ter tempo ou condições de fazer os arranjos
necessários para que a criança seja acolhida por parentes ou conhecidos, evitando que o filho
vá para uma instituição de abrigo” (STELLA, 2001, p.245).
A ausência dos familiares, principalmente dos filhos e da mãe, faz com que a
encarcerada sofra ainda mais, a distância faz com que a cadeia pese ainda mais. Devido a isso,
algumas preferem permanecer em estabelecimentos superlotados, provisórios e/ou insalubres,
onde os direitos fundamentais são totalmente negados, sem visitas, porém com possibilidade
de trabalho e remição de pena.
Vale destacar que a seletividade é ainda mais intensa no sistema criminal, pois trata-
se principalmente com os indivíduos mais vulneráveis, que geralmente são privados do
mínimo como: acesso à educação de qualidade, a saúde, a segurança, ao trabalho e
remuneração digna, que ao invés de ter essas garantias constitucionais tem a estigmatização e
prisionalização, o que vem a potencializar, instigar ainda mais a reincidência.
O controle social em tese é exercido de forma geral para mulheres e homens, contudo,
sabemos que esse controle social não se restringe ao sistema carcerário, está de forma bem
mais intensa nas bases familiares, escolares, publicitárias, que constituem o controle social
informal, com isto devemos observar a amplitude desse controle social exercido diretamente
e indiretamente sobre as mulheres.
Observamos que quando há o desvio da mulher do papel que é imposto pela sociedade,
esses meios de controle informal (escola, família, publicidade, etc.) começam a atuar de forma
rápida e efetiva para descaracterizar o ser mulher. O controle formal que consideraríamos o
mais forte, acaba sendo apenas uma continuidade do informal, não obstante, quando é
provocado sua repercussão é mais intensa. “As mulheres criminalizadas enfrentam práticas
jurisdicionais e institucionais profundamente marcadas por relações patriarcais”
(BERNARDI, 2013, p.87).
Decorrente disso o estigma assume o formato de rótulo, sendo esse rótulo marcado por
uma marca depreciativa e de remoção quase impossível. Quando recebem essa etiqueta de
criminosa, principalmente quando já esteve no cárcere o indivíduo tem sua identidade
alterada, o estigma é pregado e a sociedade que o adotou passar a estereotipar, e faz com que
transitem entre realidades culturais e sociais totalmente diferentes (GOFFMAN, 1990, p. 20).
Ou seja, a probabilidade de reincidência aumenta e o ser torna-se mais vulnerável a essa
seletividade que é vista, sentida e aplaudida por muitos do direito penal.
Por consequência, essas mulheres marginalizadas e estigmatizadas como delinquentes
sofrem uma rejeição dupla da sociedade, quem advém da diferença biológica (mulher/homem)
e da diferença social (cidadã de bem/transgressora da norma).

CONCLUSÃO

Tendo em vista tudo que foi explanado, podemos perceber e se sensibilizar com a
relevância do tema em questão e como a as relações de poder ainda hoje envolvem e
manipulam os indivíduos sociais e fazendo um recorte para nosso estudo, como as mulheres
ainda são manipuladas pelas instituições do meio social e usadas como marionetes.
Ressaltamos também a importância do debate levantado sobre os questionamentos: é
possível dizer que o principal motivo das mulheres adentrarem no mundo do crime e
principalmente no tráfico de drogas é a subordinação ainda existente entre o feminino em
relação ao masculino? Como as relações afetivas e as identidades são (re)formuladas com o
momento cárcere? E as respostas e discussões sobre essas questões são de suma importância
para a construção de uma sociedade solidária, igualitária, humana e justa, sociedade esta que
procuramos melhorá-la para boa convivência e para as gerações que estão por vir. Não
podemos aceitar e permitir que o sistema que em tese seria para (re)socialização seja uma
“depósito de gente”, mas sim trabalhar e lutar para que este local sirva para cumprimento de
pena e de reformulação do ser para adentrar no social como um indivíduo melhor.
As pessoas que ali adentram devem ter as garantias constitucionais asseguradas de
acordo com suas especificidades para que possamos obter os resultados que queremos, ou
seja, para que exista de fato uma (re)estruturação e (re)educação tanto “do ser consigo” quanto
“do ser com outrem”, para que as relações afetivas num todo possam ser modificadas de forma
positiva, pois sabemos que ninguém sai como entrou no cárcere, infelizmente essas
transformações intensas tem se mostrado de forma negativa, uma vez que tem-se o aumento
da criminalidade feminina, principalmente em relação ao delito “tráfico” que como vimos,
tem forte influência das relações no âmbito doméstico.
Para tanto faz-se necessário vislumbrar esse tipo de abordagem, uma vez que a mesma
é escassa no cotidiano e no mundo acadêmico. Tratar sobre o encarceramento e tráfico
ultimamente tem sido algo bem superficial e quando falamos de encarceramento feminino e
tráfico que engloba as mulheres o filtro fica ainda maior e ficamos ainda mais carentes de
dados, pois a invisibilização do gênero feminino ainda é constante, por isso precisamos
quebrar esse tabu urgentemente, tornar visível esse problema que grita por solução, vidas estão
em jogo, são pessoas que precisam de um olhar e não podemos negar-lhes isso, a dignidade
não pode ser tirada independente de qualquer ato ou situação.

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DESCOLONIALIDADE DO SABER EM RELAÇÃO À CRIMINALIDADE NA
AMÉRICA LATINA256

Daniella Karla Souza e Silva257


Taís Ferreira de Souza Cavalcanti258

RESUMO

O presente estudo, deriva de uma análise dos estudos criminológicos na América latina,
discorrendo sobre a negação dos saberes dos colonizados. Assim, é imposto o conhecimento
do colonizador, havendo a manifestação de um modelo civilizatório, no qual os “selvagens”
não se adequam. Com enfoque no verifica-se o saber como mecanismo de poder para exaltar
tal verdade, que é propagada até os dias atuais no controle das massas. A metodologia usada
consiste em uma abordagem qualitativa, onde se tem por base uma pesquisa bibliográfica
exploratória. Tem por objetivo geral identificar qual o papel da descolonialidade do saber para
uma nova criminologia.

Palavras-chaves: Descolonialidade do saber. Criminologia. Marginalização.

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho, deriva de uma análise de estudos sobre criminologia em países


coloniais da América Latina, e como a negação dos saberes dos colonizados afetaram esse
processo. Assim, é imposto a verdade do colono, havendo a manifestação de um modelo
civilizatório, no qual os “selvagens” não se adequam. Com enfoque no saber do civilizado, e
na criminalização dos subalternos, verifica-se o saber como mecanismo de poder para exaltar
tal verdade, que é propagada até os dias atuais.
Assim como compreender o movimento da colonialidade representa uma tática de
empoderamento de sujeitos em situação de vulnerabilidade, a fim de combater a política
opressora estruturante do Estado. Como disserta Mignolo, a “colonialidade” equivale a uma
“matriz ou padrão colonial de poder”, o qual ou a qual é um complexo de relações que se
esconde detrás da retórica da modernidade. A descolonialidade do saber permite ao sujeito

256
Trabalho apresentado no GT 7 - Ciências Criminais, Cárcere e Drogas do III Congresso Pernambucano de
Ciências Jurídicas UPE - Arcoverde.
257
Graduanda do Curso de Direito da Universidade de Pernambuco, Campus Arcoverde (UPE). Integrante do
Grupo de Estudos e Pesquisas Transdisciplinares sobre Meio Ambiente, Diversidade e Sociedade - GEPT/UPE.
E-mail: daniellasouzz0@gmail.com
258
Graduanda do Curso de Direito da Universidade de Pernambuco, Campus Arcoverde (UPE). Integrante do
Grupo de Estudos e Pesquisas Transdisciplinares sobre Meio Ambiente, Diversidade e Sociedade - GEPT/UPE.
Integrante do grupo de pesquisa Incertae - UPE. E-mail: taiscavalcanti6@gmail.com
analisar criticamente seu contexto, além de incentivá-lo a ocupar os espaços políticos como
uma forma de resistência. Na colonialidade do poder, desenvolvido por Aníbal Quijano, o
pressuposto defende que as relações de colonialidade não se findaram com a destituição do
colonialismo. Ele analisa que raça, gênero e trabalho são categorias centrais, segundo as quais
o capitalismo se organizou, presentes no discurso que embasa a modernidade e a colonialidade
a partir do século XVI.
Portanto, a “colonialidade do saber”, associado à ideia de “diferença colonial e
geopolítica do conhecimento” – conceitos que embasam a crítica e proposta de ruptura do
pensamento descolonial com o pensamento eurocêntrico. “O esforço [...] não é uma mera
questão de verdade histórica, mas de categorias geoculturais e suas relações com o
conhecimento e poder” (MIGNOLO, 2002)
A partir disso, o marco teórico da pesquisa direcionada a criminologia latino-
americana produzida por Zaffaroni, a libertação dos saberes eurocêntricos, diante da
marginalização do outro, que não alcança esses padrões impostos ainda hoje. Com isso, ele
apresenta uma “aproximação desde uma margem”, para expressar os problemas dos
colonizados.
A metodologia usada consiste em uma abordagem qualitativa, por se tratar de uma
análise no plano teórico sobre o tema, onde se tem por base uma pesquisa bibliográfica
exploratória. Sendo assim, para a geração, será realizada análise de material teórico já
publicado, tais como livros, dissertações, artigos, entre outros, em razão de se pretender
analisar a descolonialidade do saber como uma forma de reparar o equilíbrio da social. O
objetivo geral do referido texto se destina a identificar qual o papel da descolonialidade do
saber para uma nova criminologia e os objetivos específicos: a) Entender o papel da
descolonialidade do saber no empoderamento dos sujeitos; b) Compreender como a
colonialidade e o imperialismos dos estados capitalista corroboram para a manutenção de uma
sociedade criminógena.

2 DESENVOLVIMENTO

2.1 A Descolonialidade do saber em relação com a criminologia

A descolonialidade não consiste em um novo universal que se apresenta como o


verdadeiro, se opõe ao eurocentrismo; pois, trata-se antes de outra opção. O decolonial abre
um novo modo de pensar que se desvincula das cronologias construídas pelas novas epistemes
ou paradigmas (moderno, pós-moderno, altermoderno, ciência newtoniana, teoria quântica,
teoria da relatividade etc.). Esses estudos vão além da libertação político-administrativa,
englobando as relações de poder imbricadas na cultura, nos saberes, nas mentalidades e nas
diversas esferas de organização social. Não é que as epistemes e os paradigmas estejam alheios
ao pensamento descolonial. Não poderiam sê-lo; mas deixaram de ser a referência da
legitimidade epistêmica (MIGNOLO, 2017, p15).
A partir desse fundamento, Quijano (2005, p. 227) defende a globalização em curso
na constituição da América, que redefiniu a mecânica de poder, para a padronização dos
saberes, a partir da racialização da população mundial. As hierarquizações sociais passam a
tomar a ideia de raça como eixo fundamental, expressando-se por meio da experiência da
dominação colonial e do eurocentrismo como modelo de racionalidade. Nota-se, por sua vez,
que o caráter colonial desse processo ultrapassa a matriz histórica do colonialismo,
perpetuando-se através da colonialidade, enquanto elemento imbricado no padrão de poder
hegemônico.

O “outro”, entretanto, não existe ontologicamente. É uma invenção discursiva.


Quem inventou o “outro” senão o “mesmo” no processo de construir-se a si mesmo?
Tal invenção é o resultado de um enunciado. Um enunciado que não nomeia uma
entidade existente, mas que a inventa. O enunciado necessita um (agente)
enunciador e uma instituição (não é qualquer um que pode inventar o anthropos);
mas para impor o anthropos como “o outro” no imaginário coletivo é necessário
estar em posição de gerenciar o discurso (verbal ou visual) pelo qual se nomeia e se
descreve uma entidade (o anthropos ou “o outro”), e conseguir fazer crer que esta
existe. Hoje a categoria de anthropos (“o outro”) vulnera a vida de homens e
mulheres de cor, gays e lésbicas, gentes e línguas do mundo não-europeu e não-
estadunidense desde a China até o Oriente Médio e desde a Bolívia até Gana
(MIGNOLO, 2017, p18).

Segundo Montero (1998), “a América Latina está exercendo sua capacidade de ver e
fazer de uma perspectiva Outra, colocada enfim no lugar de Nós”. Essa ideia desconstrói o
saber único e abrange a desnaturalização das formas desenvolvimentistas de aprender-
construir-ser no mundo. Revela o caráter histórico, indeterminado, indefinido, inacabado e
relativo do conhecimento. Assim, a multiplicidade de vozes, de mundos, de vidas: a
pluralidade epistêmica. Desse modo, a resistência do saber subalterno manifesta diversas
alternativas de fazer-conhecer.
Com a subalternização dos saberes daqueles que foram colonizados, alinhando-se
apenas os conhecimentos eurocêntricos como únicos, limitou-se a criminologia latino-
americana aos ideais dos ditos países de “primeiro mundo”; assim como o mito civilizador, e
também a contemplação das “maravilhas do mundo moderno”, e não percebendo o lastro de
destruição que se acumula. Por isso, a necessidade para se compreender a modernidade, sendo
a mesma fruto da ‘centralidade’ do primeiro sistema-mundo. Isto pois, com o conhecimento
segregador pregado pela modernidade, unifica-se a organização social, destarte, essa
padronização afirma o modelo civilizatório.
Ao refletir sobre a crítica de Dussel (1993) em desmascarar o processo de
modernização, no qual há a negação da identidade do “outro”, com o “mito sacrifical”,
percebe-se que toda a violência derramada na colonização era implantada como um benefício,
um sacrifício necessário, através de um vasto sistema discursivo, repressor e configurador de
uma realidade de extrema subalternidade, como o é a escravidão. Diante disso, os índios e os
negros eram duplamente culpados por “serem inferiores”, e por recusarem o “modo civilizado
de vida” ou a “salvação”, enquanto que os europeus eram “inocentes”, pois no colonialismo
conseguiam por fim justificar seus genocídios como uma obra de piedade, face à superioridade
racial do homem ocidental sobre selvagens e primitivos (ZAFFARONI, 2010).
Na visão do europeu, a colonização civilizadora implicava em um processo
descivilizador explícito, já que o “resto” dessa esfera era inferiorizada ao ponto da aniquilação
do seu ser, na medida em que a violência na destruição das populações autóctones levava à
sua eliminação física, em especial no que diz respeito às suas lideranças. Como bem afirmou
Elias sobre a natureza desta relação:

Um dos mais radicais processos de informalização desse tipo foi a destruição dos
rituais que davam significado à vida e sustentavam modelos de vida coletiva entre
os povos mais simples,. No processo de colonização e no trabalho missionário por
europeus. Talvez fosse útil examinar isso brevemente. Um dos mais extremos
exemplos da desvalorização de um código que fornece significado e orientação a
um grupo em ligação com a perda de poder do seu grupo portador é a eliminação
das classes superiores nas Américas Central e do Sul, no decorrer da colonização e
imposição do cristianismo pelos espanhóis e portugueses (Elias, 1997, p. 77).

Dessa maneira, o dito civilizado isola os colonizados dos privilégios, pois os mesmos
impõem apenas esse modelo de cidadãos. Assim, os subalternos são marginalizados, já que,
eles não estão inclusos nesse padrão. Por isso, a necessidade da criminologia como estudo da
questão criminal, uma instância central nesse processo, na medida em que o controle social se
apresenta como a ferramenta elementar de dominação.
Tomando por esse parâmetro, os colonos conquistaram o poder político, com a ideia
do discurso contratualista europeu. E também, para assegurar o poder conquistado, passaram
a propagar o discurso positivista, uma adaptação discursiva e legitimadora de novas demandas
de “racionalização e civilidade” iluministas.

El capitalismo esclavista, mercantilista y patriarcal, tuvo que manufacturar un poder


punitivo a su medida, que áun hoy está vigente con los mismos ropajes discursivos.
La quema de brujas no es un epifenómeno que aparece deus ex machina en la historia
de la modernidad, sino una calculada instancia de terrorificación de las sociedades
que debían ser convertidas en proletariado sumiso (ZAFFARONI, 2015).

A partir de Zaffaroni (2015), nota-se que o colonialismo impede a análise dos seus
mecanismos de poder; pois, opta por negar diretamente a nossa existência, isto é, afirmando
categoricamente que não existimos, que não somos nada. Para o colonialismo e seus referentes
locais, nada mais somos do que um conjunto de novos países com uma multiplicidade de
culturas que nunca poderiam constituir uma única unidade e, além disso, muito novo, em
formação; ou seja, descivilizados e sem forças para alcançar o padrão eurocêntrico. Estamos
percebendo que a América Latina é uma realidade unitária e perfeitamente reconhecível, como
um produto complexo de quase todas as atrocidades cometidas pelo colonialismo no planeta.
O colonialismo é sempre o produto de um esquema hegemônico global, que opera
tanto no centro do poder colonizador como na periferia colonizada. No palco original, reforçou
no centro a verticalidade corporativa da sociedade ibérica, apontando para sua sacralização, a
fim de impedir sua adaptação à industrialização. No neocolonialismo, causou uma
concentração urbana na metrópole que, incapaz de incorporar toda a população no sistema
produtivo, devido à insuficiência do capital original (ou pela impossibilidade de seu
reinvestimento na marcação interna), gerou as chamadas classes de “perigosos”, ou seja, todos
aqueles que não conseguem atingir o padrão são criminalizados. Desse modo, a desconfiança
na lei é igual à descrença na possibilidade de um coexistência minimamente razoável e
respeitosa da dignidade da pessoa de todos os habitantes (ZAFFARONI, 2015). Assim, é
emblemada a tal disfuncionalidade subjetiva, uma colonialidade das mentes, que nos impede
de identificar nossos próprios problemas, dificultando além disso, resolvê-los de forma
coerente e completa (QUIJANO, 2000).
Com a análise nessa perspectiva, a criminologia ainda é uma herança do mecanismo
colonial, pois é comum a descrição da operacionalidade real dos sistemas penais em termos
que nada têm a ver com a forma pela qual os discursos jurídicos-penais supõem que eles
atuem. Em outros termos, a programação normativa passeia-se em uma realidade que não
existe, e o conjunto de órgãos que deveria levar a termo essa programação, atua de forma
completamente diferente. Diante disso, decorre a reflexão da colonialidade do saber, com o
poder dos ditos civilizados, e os taxados criminosos. Visto que, a presença de apenas um saber
incisivo na sociedade brasileira, sendo ele a ferramenta da exclusão dos outros, verifica a
relação de poder com o saber, nos discursos exaltados por aqueles postos como “superiores”.
2.2 A relação do sujeito subalterno e a Descolonialidade do saber

Ao pensar a colonização do saber como um processo para naturalizar e introjetar uma


forma de hierarquia social, de modo a se responsabilizar pela criação de um sujeito subalterno,
domesticado e marginalizado. O saber é iniciado, ou melhor transmitido, aos sujeitos, e isso
os permite conhecer e se comunicar com o mundo; além de lhes permitir identificar o grupo a
qual pertencem. Logo, colonizar o saber categoriza do colonizador como fonte de “harmonia”
, assim como única forma de existir socialmente possível. Para Palermo (2010) isso
representou um genocídio cultural, pois os saberes tradicionais passarem a ser uma expressão
marginal, e isso se deve de modo a ser exposto ao desuso, a fim de expor os sujeitos ao poder
disciplinar.
Isso se deve ao fato de o saber ter um caráter estruturante, posto ser naquilo a se
apresentar como precedentes históricos com o quais mantemos vínculos. Deste modo, é no
discurso promovido pelo processo da colonização, de um saber pretensiosamente hegemônico,
onde o Estado e seu corpo social, ainda de maneira irreflexiva a reproduzir os aspectos
eurocêntricos, tem a função de disciplinar e institucionalizar as sujeições. Dessa maneira
(TORRES, 2008), preservando dicotomias antes simplificadas pela ideia de “senhores e
escravos”, e de forma mais contemporânea “favela e asfalto”, preservando o modelo onde
expressões de saberes e culturas não eurocêntricas, ou brancas, ainda são uma forma de
concessão. Assim, esse processo se mantém vivo diariamente por estar incorporado ao
imaginário.
Dentro deste aspecto, o mesmo Estado responsável pela fabricação de sujeitos
invisíveis, torna-se carrasco para responsabilizá-los do ponto de vista criminal. Haja vista, o
Estado é detentor do monopólio da violência, e por tanto é o responsável por positivar as
práticas aceitáveis dentro do contexto social por ele tutelado (GÓMEZ, 2000). Ainda que do
ponto de vista organizacional tal aspecto seja perfeitamente compreensível, ao se pensar em
um Estado criado dentro do perfil eurocêntrico e responsável pela manutenção desse saber
implica em constatar a extrema vulnerabilidade dos sujeitos ao representar cultural
marginalizada.

Resulta claro, entonces, que los dos procesos señalados por González Stephan, la
invención de la ciudadanía y la invención del otro, se hallan genéticamen te
relacionados. Crear la identidad del ciudadano moderno en América Latina
implicaba generar un contraluz a partir del cual esa identidad pudiera medirse y
afirmarse como tal. La construcción del imaginario de la “civilización” exigía
necesariamente la producción de su contraparte: el imaginario de la “barbarie”. Se
trata en ambos casos de algo más que representaciones mentales. Son imaginarios
que poseen una materialidad concreta, en el sentido de que se hallan anclados en
sistemas abstractos de carácter disciplinario como la escuela, la ley, el Estado, las
cárceles, los hospitales y las ciencias sociales.(GÓMEZ, 2000 , p. 152 )

Destarte, a marginalidade sai do aspecto conceitual para se tornar uma questão


existencial. A ideia de marginalidade (MORENO ,2005, p.88) " supunha que entre um e outro
grupo existia uma margem, uma fronteira. As fronteiras são superáveis, ainda que seja de
forma ilegal, e o outro território é conquistável. Marginalidade era um conceito de algum
modo aberto esperança. ” Deste modo, a marginalidade poderia ser afastada a medida que o
sujeito se integrasse ao padrão social dominante. Contudo, esse projeto educacional de
domesticação não promoveu um espaço comunicativo entre colonizador e colonizado, mas do
contrário institucionalizou a exclusão, pois em consequência disso o sistema passou a ler tais
indivíduos para serem “melhorados”. Nessa postura, como define Botelho (2013, p. 203) “a
violência cometida contra aqueles que foram conquistados. Além disso, como examinaremos
em seguida, ocorreu também a invenção de novas identidades para esses povos, sintetizando
uma diferença adjudicada”. Logo, pouco importava a qual aspecto cultural seria por ele
manifestado, mas sim o próprio sujeito.

Falar de exclusão é falar de distância e ao mesmo tempo de fechamento. Já não se


trata de fronteira e sim de muralha, de fora e de dentro. O que está dentro constrói
sua muralha e delimita e defende assim seu território. o que está dentro que constrói
a muralha, não o de fora. Não se trata, contudo, da separação de territórios e sim da
separação de condições de vida. As muralhas não são feitas de pedra. A exclusão
por si mesma não pressupõe necessariamente desigualdade, mas somente quando,
como em nosso caso, a exclusão se exerce sobre condições de vida humana. Porque
não se trata somente de distintas condições de vida humana, mas de condições nas
quais a vida humana torna se possível, e mesmo em abundância, e condições nas
quais a vida humana dificulta-se, chegando a tornar se impossível. (MORENO
,2005, p.88 )

Por conseguinte, o herdeiro desse contexto social, e a própria sociedade, passa a se ver
como “outro” e portanto se reprime conforme é exposto a sua condição de “outro”. O espectro
da existência encontra-se emoldurado pelos rótulos, inviabilizando o que os teóricos chamam
de vida verdadeira, ou seja aquilo onde reside a dignidade pelo qual se valer a pena viver,
sintetizado pela ideia de “sentido da existência”. Na esfera positivista, de um padrão de
pensamento progressista, vale-se a ideia de uma existência útil, e assim seu centro existencial
está em manter o sistema capitalista envolvido no estado. E por consequência as
particularidade são colocadas em segundo plano, ou em muitos caso descartadas, haja vista
ser consequência inicial da colonização e interesse central da ideia capitalista esse processo
de massificação e planificação da cultura.
A envolver esse sistema os (TORRES, 2008) está a criação dos sujeitos para
retroalimentar e operar o mesmo, porém a colonialidade assim como a ótica imperialista do
capitalismo fez dos países colonizados produtores de consumo para o capital estrangeiro, de
modo que quem produz pouco tem acesso ou poder de consumos, alargando mais ainda o
panorama da desigualdade. As desigualdades são ainda mais ampliadas quando se associa os
preconceitos étnicos/raciais com uma sociedade a sujeitar o existência das pessoas os
propósitos de um capital ao qual não tem acesso. O mesmos sujeito limitado por suas seus
traços culturais e físicos sofrem pela segregação pela falta do poder aquisitivo não possuindo,
ou possuindo como forma de resistência, o espaço social.
A descolonialidade do saber é central para a reconstrução das identidades, isso por
compreender os indivíduos em seus espaços culturais e a exclusão a eles circunscrita. Deste
modo, a postura descolonial é uma reação ao sistema, e surge como uma proposta para uma
reformulação gradual para dar lugar de fala os sujeitos invisibilizados e subalternizados. Esta
parte do atos de empoderar essas categorias de sujeitos atingidos pelas segregações étnico-
raciais e econômicas assim como criticar a estrutura do Estado e seus papel no processo de
exclusão(MIGNOLO, 2008).

Ao ligar a descolonialidade com a identidade em política, a opção descolonial revela


a identidade escondida sob a pretensão de teorias democráticas universais ao mesmo
tempo que constrói identidades racializadas que foram erigidas pela hegemonia das
categorias de pensamento, histórias e experiências do ocidente (mais uma vez,
fundamentos gregos e latinos de razão moderna/ imperial).(MIGNOLO, 2008, p.
297)

Seguindo o processo dos estudos decoloniais a (PRANDO, 2006, p. 87) “Criminologia


latino-americana torna-se atenta para as diversidades da emergência do controle punitivo, e
depara-se com a compreensão histórica da existência de sistemas penais paralelos e
subterrâneos”, a fim de promover um nivelamento das sociedade considerando a ambiente
hostil criado pelas macroestruturas do Estado, uma vez sendo estas reflexos dos monopólios
das estruturas de conhecimento. Interferindo diretamente na construção das subjetividades e
na valorização da multiculturalidade, como forma contra hegemônica de definir a sociedade
e de pensar as políticas públicas.

2.3 A marginalização como processo criminal

A partir do modelo social imposto pelos colonos, eram excluídos aqueles que não se
“encaixavam” a essa forma; assim, etiquetava-se os outros como criminosos. Logo
observamos que o “marginal” não encontra-se referido apenas na localização periférica do
poder planetário, mas também na relação de dependência com o poder central. Assim, os
subalternos estão à margem do poder e se tornam vítimas da violência do sistema penal. Por
fim, se indica a configuração cultural de “marginalização”, fabricada pelos processos de
colonização. Diante disso, a visão eurocêntrica racista era fundamentada na ideia dos
“selvagens” como seres naturalmente criminosos; logo era coerente um poder punitivo
expandido para lidar com as “raças inferiores” latino-americanas, direcionando o sistema
penal colonial para o genocídio.
Visto que, há uma importação do que é correto, segundo Rosa Del Olmo (2004), como
um mimetismo das classes dominantes de ideias estrangeiras. Para romper com esse
mecanismo, Zaffaroni promove uma “aproximação desde uma margem” ao saber central, de
forma a conseguir subtrair conhecimentos úteis, ao mesmo tempo em que realiza uma espécie
de “subversão epistêmica”, ou uma “antropofagia conceitual”, para problematizar certas
categorias à realidade da América Latina.
Nessa perspectiva, Zaffaroni denominou o realismo marginal, no qual expõe o falido
discurso jurídico-penal tradicional, que contraria a defesa do igualitarismo, mecanismo que
teria se mostrado sempre falso quando posto em contraste com a realidade da América Latina.
Isto pois, é impraticável a implementação das dogmáticas penais do centro hegemônico da
modernidade, sobretudo da Europa Ocidental, nos países que sofrem com a colonialidade.
A partir de Aniyar de Castro (2005), a criminologia crítica investiga o processo de
criminalização, ou por que certos grupos e comportamentos são criminalizados, e como tal
processo ocorre na realidade sociopolítica de determinada região em contraste com os
discursos jurídicos-penais formais, em vez de se debruçar sobre o estudo do “delinquente” ,
do “delito” ou da “delinquência”.
Nisso surgiu a Criminologia da Libertação, na qual não importa a verdade
eurocêntrica, mas sim, a problemática questão do desenvolvimento de uma criminologia
própria, que procede de uma abordagem teórico-contextual, no sentido de proporcionar o pano
do fundo sócio-histórico sobre o qual se estende a história da criminologia em determinada
região, que está intimamente vinculada à sua própria história enquanto território (LEAL,
2016).

Somente o nível de violência a que assistimos e sua trágica progressão fazem-nos


tomar a decisão de ‘sair do sistema planetário’. É possível que não se trate de ‘sair’
e, sim, de reconhecer que estão nos deixando de fora. De qualquer maneira, assumir
conscientemente a condição de marginal é pressuposto iniludível para se tentar sua
superação (ZAFFARONI, 1991).
Com isso, baseando-se em Rosa Del Olmo (1979) em sua análise da história da
violência estrutural e institucional, captou-se a necessidade de permitir uma compreensão
libertadora, indo além dos saberes ditados da elite, e onde reside a inovação da teoria da
libertação latino-americana, com a posição dos indivíduos negados, trazendo os indivíduos
que se constituíam na negação da negação. Como aponta Dussel (2008), os rostos encobertos
da modernidade como trajetória do progresso e do desenvolvimento da sociedade moderno-
capitalista, logo, interrompe os conhecimentos que estão a parte desses dizeres do progresso.
A partir disso, Zaffaroni (1988) e o seu saber criminológico latino-americano, rompe
o conhecimento colonial e diferencia a condição marginal a partir da qual define a importância
de um saber marginal para uma região marginal e comprometida com o lugar do qual surge;
com isso, dissertou que:

El mayor número de muertes es causado, en Latinoamérica, por agencias del Estado,


y no solo en las dictaduras ni en las zonas de guerra, sino también en los países con
sistemas constitucionales. Anualmente, son miles los muertos sin proceso, en
ejecuciones protagonizadas por personal estatal armado […] nosotros no
necesitamos citar a ningún autor para observar la imposibilidad de cualquier
aproximación a la criminología que no centre su atención en el poder y que, dentro
de la estructura general del poder mundial, nuestro rincón, se halla en un paraje
marginal del mismo. Tampoco es menester ninguna metodología refinada para
demostrar que nuestros fenómenos, abarcados bajo lo que más o menos
tradicionalmente se llama criminología, son cualitativa y cuantitativamente
diferentes de los que procuran explicar los marcos teóricos ordenadores de los países
centrales (ZAFFARONI, 1988).

A importância da descolonialidade para desconstrução de uma sociedade criminógena


é ímpar, ao se direcionar pelo empoderamento dos centros culturais das minorias. Além de
promover uma desfetichização do controle do poder político e a relevância das minorias
ocupando os espaços.

O pensamento descolonial é a estrado para a pluri-versalidade como um projeto


universal. O Estado pluri-nacional que os indígenas e os afros reivindicam fica nos
Andes, é uma manifestação particular do maior horizonte de pluri-versalidade e o
colapso de qualquer universal abstrato apresentado como bom para a humanidade
inteira, sua própria similaridade. Isto significa que a defesa da similaridade humana
sobre as diferenças humanas é sempre uma reivindicação feita pela posição
privilegiada da política de identidade no poder (MIGNOLO, 2008, p. 300).

A pretensão de manutenção do ideal hegemônico é a conservação da subalternidade, e a


manutenção do poder nas mãos das oligarquias econômicas e brancas as quais mesmos
cometendo crimes tem suas posturas midiaticamente suavizadas, assim como a conduta do
próprio Estado para com eles é de leniência. Deste modo, a desconstrução dos estudos
criminológicos desvela o papel do próprio Estado na criação do perfil do criminoso de forma
a deixar aparente de que este rótulo dependerá da cor e do saldo bancário.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É salientadas a persistência do dito modelo civilizatório, o qual descaracteriza os


outros que não se adequam, a exclusão dos conhecimentos dos subalternos é a arma de
obstinação dos colonizadores. O saber pode ser um processo de construção de vulnerabilidade
assim como de empoderamento, na colonialidade o saber é usado para domésticas os sujeitos
colonizados e mantê-los como mão de obra barata para o uso do sistema capitalista assim
como os faz de reféns de estigmas raciais e culturais. Como uma forma de resistência e
empoderamento dessas categorias a descolonialidade do saber propõe uma análise crítica da
formação da exclusão, além de promover um reaproximação dos sujeitos de sua matriz
cultural.
Dentro deste eixo, a análise de uma criminologia latino americana permite romper o
conhecimento colonial, para diferencia a condição marginal a partir da qual define a
importância de um saber marginal para uma região marginal. Pois o sistema como parte do
controle está a serviço das posturas hegemônicas, dessa forma a mesma ideologia que
permitiu a prática do genocídio na “descoberta” do chamado novo mundo é a responsável
por criminalizam os “selvagens” no sistema criminológico atual. Logo, torna-se possível
observar que o “marginal” não se encontra referido apenas na localização periférica do poder
planetário, mas também na relação de dependência com o poder central. Assim, os subalternos
estão à margem do poder e se tornam vítimas da violência do sistema penal.
Para isso a Criminologia latino-americana deve está atenta para as diversidades da
emergência do controle punitivo, a desvelar na realidade histórica da existência de sistemas
penais paralelos e subterrâneos, a fim de promover um nivelamento na sociedade
considerando a ambiente hostil criado pelas macroestruturas do Estado, uma vez sendo estas
reflexos dos monopólios das estruturas de conhecimento. Nesse novo cenário a envolver o
espaço criminológico, assim como toda a redescoberta e valorização dos saberes dos povos
tradicionais, é desconstruir a máxima da definição do mal como algo absoluto e que a escolha
de sujeitos para subjugar serve a um propósito dentro do próprio sistema. Posto a não
existência de programas de integração e reintegração para os sujeitos em situação de exclusão
reforçam o sistema punitivo como um poder seletor, haja vista essa mesma realidade chega os
criminosos de pele branca e socialmente bem posicionados não serem pauta para exclusão do
convívio social.

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Perspectivas latinoamericanas, 2000.
AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA: uma análise sobre a eficiência desse instituto dentro da
realidade do sistema carcerário pernambucano259

Roberta Julliane de Lima Santos Lira 260


Brunno Monteiro Lira 261

RESUMO

O presente artigo analisa a eficácia das Audiências de Custódia dentro da perspectiva


processual penal brasileira, tendo por enfoque a realidade do estado de Pernambuco,
principalmente, após a denuncia formalizada pela Comissão Interamericana de Direitos
Humanos, a qual expôs as condições degradantes do sistema carcerário pernambucano.
Outrossim, para embasamento deste estudo foram utilizados nesta pesquisa fontes como
tratados internacionais de direitos humanos, dados do Banco Nacional de Monitoramento de
Prisões 2.0, sob tutela do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), sendo constatado no decorrer
desta pesquisa, o déficit de vagas nos presídios e das condições precárias e degradantes a que
são submetidos os encarcerados pernambucanos, distanciando-se, assim, do objetivo
ressocializador da pena e do papel do estado como garantidor de direitos e dignidade da pessoa
humana.

Palavras chave: Audiência de Custódia. CNJ. Direitos Humanos. Sistema Carcerário de


Pernambuco.

1. INTRODUÇĀO

Historicamente, o sistema carcerário brasileiro tem sido permeado por uma cultura do
encarceramento, sendo isso notoriamente percebido quando se passa a observar uma série de
eventos de violência e agressão aos Direitos Humanos. Essa cultura tem como resultante direta
o crescimento exponencial da população carcerária brasileira.
Nesse sentido, o Brasil foi formalmente denunciado em maio de 2014 pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos, visto a crise do sistema prisional pernambucano, bem
como por suas condições precárias, o qual conta com uma das maiores taxas de superlotação
carcerária no Complexo de Curado. No entanto, tal processo data desde 2011, com a primeira
denúncia internacional envolvendo o Complexo de Curado, a qual ocorreu na Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, quando o órgão emitiu diversas medidas cautelares para
que o estado de Pernambuco garantisse a integridade física e mental dos encarcerados.

259
Grupo de Trabalho nº 07 – Ciências Criminais e Cárcere e Drogas
260
Graduada em Gestão Ambiental pelo IFPE e Graduanda em Direito pela Universidade de Pernambuco. E-
mail: robertalimasantos@gmail.com
261
Pós-graduado em direito Penal e Processo Penal pela Universidade Leonardo da Vinci – UNIASSELVI e
Graduado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. E-mail: brunnoml@gmail.com
Por conseguinte, essa pesquisa objetiva a análise sobre o instituto Audiência de
Custódia, bem como uma breve explanação sobre os impactos positivos e negativos dentro do
sistema judiciário e carcerário pernambucano.

2. Da População Carcerária no Brasil e Pernambuco: Considerações Iniciais e do perfil do


encarcerado pernambucano

O colapso do sistema prisional brasileiro tem sido refletido nos altos índices de
encarceramento, prova disso é que o país ocupa a terceira posição dentro do ranking elaborado
pelo World Prison Brief (WPB)262, no qual acompanha os números gerais de prisões, em nível
mundial, assim como segue a tabela 01 abaixo:

Países que mais encarceram no mundo Total da população carcerária


Estados Unidos 2.121.600
China 1.649.804
Brasil 688.759
Rússia 587.111
Tabela 01 – Lista dos Países que mais encarceram no planeta. Fonte: World Prision Brief.

Olhando para os números gerais, percebe-se o quão eles são alarmantes, visto que de
um total de 223 países, o Brasil se destaca negativamente, salvaguardadas as proporções gerais
dos números populacionais. Ainda, corroborando para tal fato, quanto aos dados relativos à
violência no país, também, são impressionantes, visto que, segundo o Núcleo de Estudos da
Violência (NEV) da Universidade de São Paulo (USP), contabilizou-se no ano 2017, mais de
59.000 (cinquenta e nove mil) mortes violentas no país. Desta forma, percebe-se que as altas
taxas de encarceramento brasileiras em pouco refletem na diminuição da violência no país.
Assim, observa-se, pela projeção realizada no Levantamento Nacional de Informações
Penitenciárias (IFOPEN)263, um aumento considerável dos números prisionais durante os
últimos anos, conforme é atestado na Gráfico 01, a qual segue abaixo:

262 O World Prision Brief é um sistema de dados que, mensalmente, expõe o quantitativo das populações
carcerárias ao redor do planeta, sendo ranqueados 223 países no total. Tal levantamento é coordenado pelo
Institute for Criminal Policy Research e Birkbeck University of London. Ressalva-se aqui que a base de dados
adotadas neste levantamento são a partir dos dados gerais fornecidos pelo Poder Executivo, o qual é responsável
pelo gerenciamento do sistema carcerário brasileiro.
263
O INFOPEN é o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (IFOPEN), ligado ao Ministério da
Justiça e Segurança Pública, foi criado em 2004, no qual compila informações estatísticas do sistema
penitenciário brasileiro, por meio de um formulário de coleta estruturado preenchido pelos gestores de todos os
estabelecimentos prisionais do país.
Gráfico 01 – Evolução dos Privados de Liberdade no Brasil. Fonte: INFOPEN/Ministério da Justiça

Destarte, de acordo com o último levantamento realizado pelo IFOPEN, dados esses que
remontam ao ano de 2016, a população carcerária brasileira estava na ordem de 726.712
(setecentos e vinte e seis mil setecentos e doze) presos e uma Taxa Ocupacional da ordem de
197,4%. Logo, percebe-se que o déficit de vagas no país é mais que o dobro da capacidade
total de abrigar os privados de liberdade. Ainda, outro ponto a se destacar é quanto ao
conflitante banco de dados publicados pelos poderes Executivo e Judiciário, tal fato se deve
ao sistema adotado pelo Brasil, quando é de responsabilidade do Poder Executivo a gerência
e manutenção do sistema prisional. Em contrapartida, pertence ao Judiciário a competência
quanto as prisões em território nacional. Nesse sentido, preferiu-se aqui adotar,
majoritariamente, os recentíssimos dados publicados pelo Cadastro Nacional de Presos,
elaborado pelo Banco Nacional de Monitoramento de Prisões (BNMP)264 sob o jugo do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no qual comprova que a população carcerária brasileira
atingiu a marca de 602.217 (seiscentos e dois mil e duzentos e dezessete) presos, conforme
Tabela 01 abaixo:

264
O Banco Nacional de Monitoramento de Prisões foi instituído pela Lei n. 12.403/2011, a qual acrescentou o
artigo 289 – A ao Código de Processo Penal Brasileiro, bem como foi regulamentada pela Resolução n. 137/2011
pelo Conselho Nacional de Justiça. Trata-se, ainda, de sistema mantido pelo próprio CNJ e que está voltado para
o registro das ordens de prisão decretadas pelas autoridades judiciárias brasileiras. Rassalta-se que, esse
dispositivo está disponível na rede mundial de computadores, fato esse que constitui relevante etapa na
democratização e estruturação de informações a respeito dos mandados de prisão em solo nacional.
Tabela 01 – Distribuição de Presos e Internados no Brasil. Fonte: BNMP 2.0/CNJ, 06 de agosto de 2018.

Além do mais, quando analisada a taxa relativa de presos sem condenação, significa
dizer que, existem mais de 240 mil pessoas encarceradas sem o devido julgamento em
primeiro grau jurisdicional, nesse sentido, um percentual do quantitativo de presos provisórios
em cada ente estadual brasileiro pode ser observado no Gráfico 02 abaixo:

Gráfico 02 – Pessoas Privadas de Liberdade por Natureza de Medida. Fonte: BNMP 2.0/CNJ, 06/08/2018.

Desta forma, percebe-se que o peso exercido por estes números no sistema prisional,
poderia ser reduzido de forma palpável, visto que, fortes evidências apontam para a
possibilidade de que grande parte dos presos sem condenação poderiam responder aos seus
respectivos processos em liberdade. Assim, este índice percentual de presos sem condenação,
com vistas a aplicabilidade das Audiências de Custódia, poderia refletir numa significativa
redução destes números, bem como, a diminuição desta pressão exercida no sistema carcerário
brasileiro.
Outrossim, voltando-se para a realidade do estado de Pernambuco, o qual conta,
atualmente, com o montante de aproximadamente 28.216 (vinte e oito mil e duzentos e
dezesseis) presos, segundo os dados informados pelo site Geopresídios, fato este que, eleva o
estado a ter uma das maiores populações carcerárias do país, conforme Tabela 02 abaixo:
Tabela 02 – Pessoas Privadas de Liberdade em Pernambuco. Fonte: Geopresídios, CNJ.

Bem como, a Taxa de Ocupação por presos provisórios no estado pernambucano beira,
aproximadamente, aos alarmantes 44,11% do total dos Privados de Liberdade, ou seja,
aproximadamente, metade da população carcerária do ente federativo é composta por presos
sem condenação, de acordo com os dados fornecidos pelo Geopresídios – CNJ na gráfico 03
abaixo:

Gráfico 03 – Pessoas Privadas de Liberdade em Pernambuco. Fonte: Geopresídios, CNJ.

Ainda no que cerne a Taxa de Aprisionamento Pernambucano, com base nos dados
trazidos pelo INFOPEN, o estado ocupa a décima posição no ranking nacional, com 288,03%
(duzentos e oitenta e oito por cento). Insta frisar que, nos últimos anos, foi aplicada em
Pernambuco uma severa política de combate a criminalidade intitulada por Pacto pela Vida,
sendo um dos maiores fatores contributivos para a exacerbada taxa de aprisionamento do
estado. Indica-se que, assim, existem 288,03 pessoas presas para cada grupo de 100 mil
habitantes em todo o estado, conforme Tabela 03, abaixo:
Tabela 03 – Das Taxa dos aprisionados em Pernambuco. Fonte: BNMP 2.0/CNJ, 06 de agosto de 2018.

Em suma, diante de tais números, é possível atestar que o Brasil e in strictu sensu
Pernambuco apresentam somas voluptuosas de pessoas privadas de liberdade, por
conseguinte, alavancando o déficit de vagas no sistema prisional. Logo, os dados refletem que
existem milhares de presos provisórios, os quais, cerceados de sua liberdade, esperam o
julgamento em estabelecimentos prisionais. No estado de Pernambuco, objeto de estudo do
presente trabalho, o déficit de vagas no sistema prisional é da ordem de 300%, conforme segue
em Tabela 04:

Tabela 04 – Pessoas números carcerários por cada ente federativo. Fonte: INFOPEN, Ministério da Justiça.

Dessa forma, tal conjuntura inviabiliza a proporção de condições para a harmônica


integração social do encarcerado, conforme inteligência do artigo 10 e 85, previsto pela da
Lei nº 7.210/1984, a qual dispõe sobre a Execução Penal Brasileira.

Art. 10. A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando


prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade.
Parágrafo único. A assistência estende-se ao egresso.
(...)
Art. 85. O estabelecimento penal deverá ter lotação compatível com a sua estrutura
e finalidade.
Parágrafo único. O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária
determinará o limite máximo de capacidade do estabelecimento, atendendo a sua
natureza e peculiaridades.

Ainda, conforme o estabelecido na Lei de Execuções Penais, em seu artigo 88,


coordena regras mínimas para o alojamento a ser fornecido pelo estado aos seus encarcerados,
tal qual disposto abaixo:

Art. 88. O condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório,
aparelho sanitário e lavatório.
Parágrafo único. São requisitos básicos da unidade celular:
a) salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e
condicionamento térmico adequado à existência humana;
b) área mínima de 6,00m2 (seis metros quadrados).

Bem como, preceitua a Constituição da República de 1988, ao arrolar, em seu art. 5º,
os direitos e garantias fundamentais titularizados pelos presos, dispondo que ninguém será
submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante, inciso III, e que não
haverá penas cruéis, inciso XLVII, “e”; bem como, seria assegurado aos presos o respeito à
integridade física e moral, inteligência do inciso XLIX, (MORAIS, 2017). Ainda, no âmbito
internacional, a Organização das Nações Unidas definiu as condições mínimas para o
tratamento de presos, documento este intitulado por Regras de Mandela, o qual contou com a
ratificação por parte do estado brasileiro, por conseguinte, afere-se que, partindo-se do
pressuposto de anuência do estado brasileiro, verifica-se a responsabilidade objetiva em
aplicar tais regramentos a realidade carcerária no país.
Além do mais, tal regramento determina que deverá o encarcerado ser tratado com
dignidade inerente ao ser humano, não sendo ele submetido a condições degradantes. Bem
como, trouxe disposições diretas, a respeito das acomodações nos estabelecimentos penais, a
serem adotadas de maneira geral, tal qual transcreve-se abaixo:

Regra 12
1. As celas ou quartos destinados ao descanso noturno não devem ser ocupados por
mais de um preso. Se, por razões especiais, tais como superlotação temporária, for
necessário que a administração prisional central faça uma exceção à regra, não é
recomendável que dois presos sejam alojados em uma mesma cela ou quarto.
(...)
Regra 13
Todas os ambientes de uso dos presos e, em particular, todos os quartos, celas e
dormitórios, devem satisfazer as exigências de higiene e saúde, levando-se em conta
as condições climáticas e, particularmente, o conteúdo volumétrico de ar, o espaço
mínimo, a iluminação, o aquecimento e a ventilação.
Regra 14
Em todos os locais onde os presos deverão viver ou trabalhar: (a) As janelas devem
ser grandes o suficiente para que os presos possam ler ou trabalhar com luz natural
e devem ser construídas de forma a permitir a entrada de ar fresco mesmo quando
haja ventilação artificial; (b) Luz artificial deverá ser suficiente para os presos
poderem ler ou trabalhar sem prejudicar a visão.
Regra 15
As instalações sanitárias devem ser adequadas para possibilitar que todos os presos
façam suas necessidades fisiológicas quando necessário e com higiene e decência.
Regra 16
Devem ser fornecidas instalações adequadas para banho, a fim de que todo preso
possa tomar banho, e assim possa ser exigido, na temperatura apropriada ao clima,
com a frequência necessária para a higiene geral de acordo com a estação do ano e
a região geográfica, mas pelo menos uma vez por semana em clima temperado.
Regra 17
Todos os locais de um estabelecimento prisional frequentados regularmente pelos
presos deverão ser sempre mantidos e conservados minuciosamente limpos.

Diante disso, voltando-se a realidade pernambucana, afere-se que para cada vaga
ofertada no sistema prisional, cerca de 03 (três) encarcerados ocupam o espaço destinado a
um único aprisionado. Conclui-se que, vivem em condições degradantes, contrárias a
legislação vigente, bem como, muito acima da capacidade de oferta de vagas em Pernambuco,
cerca de 19 mil detentos.
Ainda, é primordial ressaltar que, tal qual exposto acima, o estado pernambucano
passou por uma fase de forte repressão a criminalidade, tendo como carro chefe da segurança
pública estadual, o Programa Pacto Pela Vida. No entanto, segundo José Luiz Ratton (2016),
considerado um dos idealizadores desse programa, em entrevista concedida a um jornal local,
relatou que sistemas que poderiam contribuir para diminuição do inchaço prisional do estado,
a exemplo das Medidas Alternativas não foram priorizados durante a execução deste programa
governamental ao longo dos anos de sua vigência. Bem como, o Sistema Prisional
Pernambucano, em si, pouco foi modificado por tal Pacto, ou seja, a crescente demanda por
vagas não conseguiu ser atendida de forma eficaz pelo estado, restando, assim, uma
superlotação dos estabelecimentos prisionais já existentes. Nesse sentido, cumpre transcrever
parte dos pensamentos proferidos por RATTON (2016) nessa entrevista, o qual dispôs:

(...) O Brasil é um pais que prende muito e prende muito mal. Se não houver uma
reforma séria do sistema prisional brasileiro, tornando-o mais humano e mais
eficiente e se não modificarmos os padrões de aprisionamento no Brasil –
incentivando mecanismos efetivos de descaracterização, com acompanhamento – as
politicas de segurança publica continuarão a produzir efeitos perversos e
indesejáveis. Pernambuco não avançou nessa área.

Outro dado importantíssimo quanto aos números do sistema prisional, diz respeito a
situação das pessoas privadas de liberdade, de acordo com os levantamentos realizados pelo
Tribunal de Justiça de Pernambuco, quando considerarmos os números relativos aos presos
sem condenação, os quais são cerca de 40,94% do total de encarcerados, conforme gráfico 04
abaixo:
Gráfico 04 – Dos aprisionados em Pernambuco. Fonte: BNMP 2.0/CNJ, 06 de agosto de 2018.

Cumpre salientar que, as Audiências de Custódia poderiam impactar diretamente neste


alto índice de presos sem condenação, isso porque com a instrumentalização desta garantia,
as prisões poderiam ser revistas e até mesmo revertidas em liberdade provisória, fato este que
atuaria em prol da prevalência dos direitos humanos, sendo esse tópico abordado
subsequentemente.
Com relação ao perfil dos encarcerados pernambucanos, abre-se aqui espaço para
crítica quanto aos dados revelados pelo estado, visto que, segundo o CNJ, Pernambuco tem
uma taxa altíssima quanto ao não envio dos dados sobre o perfil de sua população carcerária.
Nesse sentido, a Secretaria Executiva de Ressocialização de Pernambuco (SERES-PE) foi a
que menos informou quanto a escolaridade, estado civil e cor/raça de seus presos, ressalta-se
ainda que as estatísticas disponíveis são equivalentes a 20% da população carcerária estadual,
em contrapartida, nacionalmente analisando, esse mesmo número tem um aumento
considerável. Assim, tal fato fica evidenciado através dos números obtidos pelo Banco de
Monitoramento de Presos 2.0 (BNMP 2.0), o qual segue abaixo:

Tabela 05 – Dos aprisionados em Pernambuco. Fonte: BNMP 2.0/CNJ, 06 de agosto de 2018.

Dessa forma, tomando por base a análise do perfil carcerário pernambucano realizado pelo
INFOPEN (2016), tal população é composta majoritariamente por jovens, negros, do sexo
masculino e de baixa escolaridade, bem como, analisando os tipos penais mais recorrentes no
Brasil, que são eles roubo e tráfico de drogas. No entanto, frisa-se que não se pode afirmar
quais os tipos penais mais recorrentes no sistema carcerário pernambucano, isso porque, existe
uma dificuldade no acesso a esse tipo de informação por parte da SERES-PE, a qual tem por
responsabilidade o gerenciamento e manutenção dos sistemas prisionais pernambucanos.

3. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA: Histórico e Considerações Iniciais

Nos últimos anos, no que cerne a preservação da dignidade da pessoa humana e dos
direitos humanos, a Audiência de Custódia (AC), vem como Instituto Jurídico inovador, para
realidade brasileira, objetivando viabilizar medidas que assegurem a prevalência desses
direitos, bem como, o combate a tortura e arbitrariedade das prisões em território nacional.
Infelizmente, a ideia de encarceramento encontra-se profundamente arraigada ao sistema
brasileiro, baseado na lógica negativa de que boa punição se interliga, diretamente, ao tempo
de prisão.
Visto tal panorama negativo, deu-se maior ênfase a implantação da Audiência de
Custódia, a qual tem por finalidade a apresentação do preso dentro de um prazo legal de 24
horas à autoridade judiciária. Vale ressaltar que, tal norma encontra fundamentação no Pacto
de San Jose da Costa Rica, celebrado pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos e
regulamentado no Brasil a partir do Decreto de nº 678, de 06 de novembro de 1992. Destarte,
quando em seu artigo 75 dispõe que toda pessoa que tem sua liberdade privada
coercitivamente pelo Estado, tem o direito de ser conduzido a presença da autoridade legal
para que seja avaliada o teor de sua prisão, podendo o juiz adotar posicionamentos distintos e
condicionados ao que esta delimitado por lei.
Apesar deste instituto contar com a anuência do governo brasileiro, a partir do momento
que este assinou e regulamentou o Pacto de San Jose, foram necessários 23 (vinte e três) anos
para que este instituto jurídico se tornasse realidade em solo brasileiro. Insta frisar que,
somente no ano de 2015, foi implantada a primeira Audiência de Custódia no país, em formato
piloto, mais precisamente no estado de São Paulo. A partir disso, a regulamentação da AC
apenas ocorreu com advento do ato administrativo, Resolução Nº 213/2015 do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), sancionada a época pelo então presidente do CNJ e ministro do
Supremo Tribunal Federal (STF), o Excelentíssimo Senhor Ministro Ricardo Lewandowski.
Essa medida resolutiva, trouxe em seu artigo primeiro, a definição essencial a respeito das
ACs no Brasil:
Art. 1º Determinar que toda pessoa presa em flagrante delito, independentemente da
motivação ou natureza do ato, seja obrigatoriamente apresentada, em até 24 horas
da comunicação do flagrante, à autoridade judicial competente, e ouvida sobre as
circunstâncias em que se realizou sua prisão ou apreensão.

Outrossim, reforçando o caráter jurídico regulatório, em território nacional, o STF


proferiu decisão em caráter liminar, dentro dos autos de Arguição Direita de Princípio
Fundamental (ADPF) de nº 347/DF, o estabelecimento deste instituto, dando o caráter
legítimo necessário a implantação e aplicação pelos tribunais pátrios. Por sua vez, após a
transcorrência destes eventos, o CNJ passou a determinar que os magistrados brasileiros
passassem a adotá-la em suas respectivas cortes, dentro do prazo de 90 dias após a publicação
da supracitada liminar há época.
No entanto, apesar da tramitação de um Projeto de Lei do Senado (PLS) de nº 554/2011
no Congresso Nacional, a Audiência de Custódia ainda não possui legislação própria dentro
do território brasileiro. Contudo, não significa que não existam regramentos jurídicos
diversos, nos quais são estabelecidos procedimentos a serem adotados para a realização destas
no país. Com isso, alguns Tribunais de Justiça, incentivados pelo CNJ e pela festejada decisão
do STF, além da pressão exercida pela Comissão Americana de Direitos Humanos (CADH) e
organismos internacionais de direitos humanos, passaram, assim, a regulamentar, em âmbito
estadual, as Audiências de Custódia por meio de atos internos emitidos - provimentos e
resoluções - pelos próprios Tribunais.
Logo, no que concerne ao estado de Pernambuco, o Tribunal de Justiça do estado
(TJPE), através de sua Resolução TJPE de nº 380/2015, instituiu, ainda em agosto do ano
corrente dessa resolução, o Serviço de Plantão de Flagrantes, primariamente, no âmbito da
capital, tendo sido considerado como o primeiro importante passo para a viabilização e
implantação das audiências de custódia dentro do estado pernambucano. Importa dizer que,
além disso, o Provimento de nº 003/2016-CM, de 28 de abril de 2016, emitido pelo Conselho
da Magistratura do Estado de Pernambuco, também pode ser considerado como um dos
responsáveis pelo início oficial da imposição da Audiências de Custódia em Pernambuco.
De outro modo, tanto a Resolução do Tribunal de Justiça quanto o Provimento do
Conselho de Magistratura Pernambucanos, são omissos com relação a aplicabilidade da
previsão legal, constante no artigo 13, da Resolução Nº 213/2015 do CNJ, o qual assegura,
também, a apresentação para audiência de custódia das pessoas presas em decorrência de
cumprimento de mandados de Prisão Cautelar ou Definitiva. Destarte, na prática, em
Pernambuco, apenas os presos em situação flagrancial são beneficiados com as Audiências de
Custódia, logo, tal instituto tem sido negligenciado às pessoas presas em função de mandado
de prisão. Ainda, importa discorrer que, tais mandados permanecem por muito tempo sem a
devida atualização no cadastro do Banco Nacional de Mandados de Prisão, sob jugo do CNJ,
bem como, tal falha na atualização tende a persistir nos bancos de dados da Delegacia de
Capturas de Pernambuco. Portanto, em situação hipotética, caso tais presos fossem
submetidos aos procedimentos das ACs, ser-lhes-iam dada a oportunidade de análise por parte
da autoridade judicial, objetivando a conclusão quanto a necessidade da permanência do
acautelamento, ou da aplicação de medida diversa da prisão, contribuindo, assim, para a
diminuição da superpopulação carcerária.
Atualmente, visando cumprir determinação do CNJ, está em curso a expansão das
Audiências de Custódia para a Região Metropolitana do Recife e o interior do estado, tendo
por polos, as comarcas de Jaboatão dos Guararapes, Olinda, Nazaré da Mata, Vitória de Santo
Antão, Palmares, Caruaru, Pesqueira, Limoeiro, Santa Cruz do Capibaribe, Garanhuns,
Arcoverde, Afogados da Ingazeira, Serra Talhada, Floresta, Salgueiro, Ouricuri, Santa Maria
da Boa Vista, e Petrolina. Ainda, nessas comarcas, segundo o TJPE e CNJ, o programa tem
por objetivo o funcionamento diário, em regime de prontidão, e nos finais de semana, feriados
e recessos, em regime de plantão, em horários e locais, a serem fixados em instrução.

3.1 AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA: dos impactos deste instrumento dentro da realidade


carcerária pernambucana

De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (2017) a implantação do projeto


Audiências de Custódia em todas as Unidades da Federação foi uma das metas efetivamente
cumprida, desde a criação do projeto, no Distrito Federal, em 14 de outubro de 2015. Assim,
considerando os dados obtidos pelo site do CNJ, o número total das Audiências de Custódia
no Brasil até junho de 2017 está disposto abaixo:

Total de audiências de custódia realizadas 258.485


Casos que resultaram em liberdade 115.497 (44,68%)
Casos que resultaram em prisão preventiva 142.988 (55,32%)
Casos em que houve alegação de violência no ato da 11.176 (5,19%)
prisão
Casos em que houve encaminhamento 23.141 (10,75%)
social/assistencial
Tabela 06 – Dos Números das Audiências de Custódia no Brasil. Fonte: CNJ,2018.
O sistema no qual estão baseadas as Audiências de Custódia (AC) consistem,
basicamente, no formato de que o acusado seja apresentado e entrevistado por um juiz de
direito, por um prazo de até 24h contado a partir do momento da prisão, quando também serão
ouvidas as manifestações tanto do Ministério Público quanto da Defensoria Pública ou do
advogado de defesa do detento. Nesse sentido, durante o período que perdurar a AC, o juiz
analisará a prisão sob o aspecto da legalidade, da necessidade e da adequação da continuidade
dela ou, por ventura e base legal, da eventual concessão de liberdade. Vale salientar que, tal
liberdade poderá ser concedida mediante a imposição ou não de outras medidas cautelares, a
exemplo de monitoramento eletrônico e prisão domiciliar. Destarte, o CNJ (2016) em seu
lançou um didático Fluxograma, no qual expõe o funcionamento de uma AC, conforme
Fluxograma 01 abaixo:

Fluxograma 01 – Dinâmica da Audiência de Custódia. Fonte: CNJ,2018.

Outro ponto relevante quanto as ACs, consiste quanto a avaliação por parte dos
magistrados acerca de eventuais ocorrências de tortura ou de maus-tratos durante as prisões
realizadas pelos agentes públicos, assim como a apuração de outras irregularidades que podem
permear todo o processo de custódia por parte do Estado. Insta frisar que, no estado de
Pernambuco, o Programa de Custódias é coordenado por um Comitê Estadual, o qual é
presidido pelo desembargador Mauro Alencar, quando reuniões mensais são elaboradas com
o intuito de avaliar e propor novas ações para o programa das ACs em Pernambuco. Logo,
faz-se pertinente ressoar as palavras do assessor especial da Presidência do Tribunal de Justiça
de Pernambuco (TJPE), o Juiz de Direito, o sr. Ailton Alfredo de Souza, o qual explanou que
“O Comitê interage semanalmente com os demais parceiros, a exemplo do Governo e do
Ministério Público, através do Pacto pela Vida, para integrar as ações de combate à
violência”. Nesse sentido, a expansão para a Região Metropolitana do Recife e interior do
estado visa cumprir determinação oriunda do CNJ e das convenções legais retificadas pelo
Estado Brasileiro, as quais rezam que pessoas presas em flagrante tenham a oportunidade de
serem ouvidas, sem demora, pela autoridade judicial, para que essa avalie a legalidade e
manutenção da prisão. Ainda, conforme palavras proferidas pelo magistrado da Central de
Flagrantes do Recife, o Excelentíssimo Senhor Juiz Luiz Carlos Vieira, avaliou que “A ideia
é combater o encarceramento desnecessário em todo o estado, evitando que pessoas presas,
que sejam réus primários e que tenham bons antecedentes, possam responder ao processo em
liberdade sem que comprometa a ordem pública”.
Diante do exposto, o funcionamento das Audiências de Custodia em Pernambuco tem
sido estabelecido em polos, isso porque, o TJPE decidiu adotar tal critério por observação do
quantitativo de flagrantes por região. Dessa forma, elas têm funcionado nas comarcas dos
municípios de Jaboatão dos Guararapes, Olinda, Nazaré da Mata, Vitória de Santo Antão,
Palmares, Caruaru, Pesqueira, Limoeiro, Santa Cruz do Capibaribe, Garanhuns, Arcoverde,
Afogados da Ingazeira, Serra Talhada, Floresta Salgueiro, Ouricuri, Santa Maria da Boa Vista,
e Petrolina, com vistas a abranger todo território estadual. Ainda, o Tribunal de Justiça de
Pernambuco (TJPE) destaca que, nestas comarcas, as ACs têm funcionado diariamente regime
de prontidão, bem como, durante os finais de semana, feriados e recessos, os funcionamentos
estão baseados em regimes de plantão, com horários e locais fixados por instruções oriundas
do TJPE.
Outrossim, segundo o Relatório de Gestão Biênio 2016-2017, por parte do Tribunal
de Justiça de Pernambuco (TJPE), foram realizadas 3.956, no ano de 2016, já no ano de 2017
elas resultaram em 8.863, por fim, totalizaram-se cerca de 12.819 audiências de custódia em
Pernambuco. Por conseguinte, pode-se aferir que, desde a implantação destas e da coleta de
dados realizada por parte do Tribunal de Justiça de Pernambuco, são realizadas, uma média,
24 (vinte e quatro) audiências por dia no estado, considerando os dados obtidos acima site do
TJPE.
No entanto, conforme disposição dos dados obtidos através do CNJ, conforme no gráfico 05,
abaixo, os números das Audiências de Custodia em Pernambuco são bem menores dos
atestados pelo TJPE. Destarte, baseando-se nos dados da imagem abaixo, a media de ACs tem
um decréscimo e chega ao numero aproximado de 13 audiências por dia em todo estado.
Gráfico 05 – Dos Números das Audiências de Custódia em Pernambuco no período de 14/08/2015 a
30/06/2017. Fonte: CNJ, 2018.

Diante do exposto, percebe-se a falta de cruzamento de dados por parte do TJPE com
os dados revelados pelo CNJ, visto que há uma conflitância quanto ao número exato da
realização dessas audiências no estado pernambucano. Além do mais, o TJPE não possui uma
fonte de fácil acesso para obtenção destes, no que cerne as ACs. Outrossim, a partir dos dados
apresentados no gráfico acima, percebe-se que as ACs, além de corroborar no combate à
cultura do encarceramento, representam uma significativa economia aos cofres públicos. Isso
porque, segundo o CNJ, na medida em que cada preso tem um custo de manutenção
aproximado de R$ 3 mil, com o advento das audiências de custódia em Pernambuco,
contabilizadas do inicio de sua aplicação referente a agosto de 2015 até o período de junho de
2017, resultaram na liberdade provisória de 3.421 presos, fato esse que representa,
aproximadamente, uma economia da ordem de R$ 10 milhões de reais aos cofres do erário
pernambucano.
Dessa forma, o CNJ publicou, no ano de 2015, uma cartilha referente as Audiência de
Custódia (AC) no Brasil, quando foram apresentados dados a respeito da economia que elas
representariam ao erário, sendo exemplificado pela seguinte lógica: cada preso tem um custo
anual de R$ 36 mil ao Estado, assim como, um presídio padrão construído para comportar 500
presos, teria um custo médio de R$ 40 milhões de reais. Portanto, levando-se em consideração
que nas ACs verifica-se que em torno de 50% das prisões preventivas são consideradas
desnecessárias, por conseguinte, no ano de 2015, por exemplo, havia um contingente de 240
mil presos provisórios que não foram submetidos a AC. Desta maneira, infere-se que, com a
aplicação deste instituto, o poder publico poderia economizar cerca de R$ 13,9 bilhões de
reais, conforme a representação gráfica 06 abaixo:
Gráfico 06 – Economia da Audiência de Custódia. Fonte: CNJ, 2018.

Outro tópico relevante é a respeito do preparo dos profissionais envolvidos na


execução das Audiências de Custódia, visto que, apesar de todo investimento, seria inviável a
efetiva execução dela caso, apenas, dependesse de uma estrutura física ou organizacional.
Logo, faz-se imprescindível que o TJPE ofereça cursos com o intuito de instruir seus
servidores, os quais, necessariamente, não atuam na esfera criminal. Visto que, tais
profissionais deverão estar disponíveis para trabalhar nos plantões judiciários voltados a
cobertura das ACs, logo, há a necessidade de aprendizagem dos procedimentos específicos
das ACs, os quais vão desde a chegada do custodiado ao expediente da polícia civil até o ato
que o encaminha à unidade prisional ou a entrega do alvará de soltura, a depender de cada
caso concreto.
Da mesma maneira que, Magistrados, Promotores, Defensores Públicos e Advogados
devem estar preparados para a correta desenvoltura das Audiências de Custódia, cabendo aos
gestores dessas respectivas classes promoverem o incentivo à qualificação desses atores,
assim como, o aprimoramento do conhecimento de seus respectivos profissionais no amplo
exercício de suas funções. Destarte, o TJPE por meio da Escola Superior da Magistratura de
Pernambuco (ESMAPE) já ministrou mais de 06 (seis) cursos, tanto para magistrados quanto
para servidores, com temática relativa às Audiências de Custódia e correlatos aos fundamentos
da prisão preventiva, prisão em flagrante e liberdade provisória. Conclui-se que, existe uma
preocupação por parte do TJPE para o aprimoramento e solidificação dos conceitos de
execução penal e da audiência de custódia no estado.
Outro ponto importantíssimo, com relação a crise sistêmica das prisões brasileiras,
esta na morosidade das Execuções Penais no país, visto que, em média, demora-se mais de 01
(um) ano para processos serem apreciados pelos tribunais brasileiros. Ainda sobre a
tramitação processual, o CNJ tem apontado para a inexistência de qualquer controle entre as
fases, movimentações e número de processos remetidos aos Órgãos de Execução. Dessa
forma, com foco na melhoria dos trabalhos na Vara de Execuções Criminais, o CNJ tem
recomendado a elaboração de estudos para a reorganização das rotinas cartorárias, bem como
adoção de boas práticas de gestão, entre a quais estariam a separação de processos de réus
soltos e presos. Para tanto, surgiu o atual Sistema Eletrônico de Execução Unificada (SEEU),
o qual visa o acompanhamento dos processos de execução penal, o qual calcula prazos e
notifica automaticamente o juiz e os servidores das varas sobre quais detentos terão direito a
benefícios, como progressões de regime e livramentos condicionais. Insta frisar que, esse
sistema foi desenvolvido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJPR) e conta com
propagação para outras unidades da federação com apoio do CNJ. Por conseguinte,
procedimentos burocráticos destinados à concessão dos benefícios são preparados com
antecedência e podem ser concedidos na data a que o preso tem direito. Assim, o SEEU evita
que presos fiquem, por exemplo, mais tempo do que necessário em regime fechado, o que
reduz a superlotação. Ressalta-se que, em Pernambuco, esse sistema ainda está em fase de
implantação, visto que sua regulamentação, no âmbito do TJPE, é recente, contando com a
publicação em dezembro de 2016.

4. CONLUSÕES

Assim, diante do exposto no presente artigo, analisa-se, primeiramente, a urgência no


aumento da oferta de vagas carcerárias dentro do estado pernambucano, visto que restou
comprovado a necessidade de, no mínimo, duas vezes o montante atual para satisfação da
demanda aqui apresentada quanto a população encarcerada. Logo, partindo-se do pressuposto
de não haver mais crescimento dos números carcerários, fato impossível diante da conjuntura
sociopolítica brasileira atual, bem como, levando-se em conta os mais de 586 mil mandados
de prisão em aberto, tem-se a expectativa de que essa população alcance, no final de 2018, o
número de 841,8 mil presos, podendo chegar, em 2025, a monta de 1,47 milhão de presos.
Diante desta alarmante previsão, as Audiência de Custódia são uma alternativa para
diminuição destes índices, quando a medida em que os custodiados são submetidos a esse
instrumento, evita-se, com isso, o encarceramento de cerca de 44,68% dos presos, isso em
âmbito nacional. Já no plano estadual pernambucano, esse número representa cerca de 39,33%
de diminuição do total dos custodiados mantidos no sistema prisional, sendo isso realizados
através da analise das prisões por parte da autoridade judicial e possibilidade de concessão de
liberdade provisória. Insta frisar que, atualmente, Pernambuco está abaixo da media nacional
no que cerne a concessão de liberdade provisória, visto o elevado índice de conversão de
prisões preventivas, o qual atinge a marca de 60,67% das prisões levadas a juízo nas Audiência
de Custódia, enquanto a média nacional é de 55,32%.
Portanto, com vistas a minimizar esta deficiente aplicação das ACs em Pernambuco,
faz-se necessário maior investimento em capacitação dos servidores e magistrados, bem como
ampliação dos polos de funcionamento de audiências, objetivando atender de fato todo o
âmbito estadual, inclusive nos finais de semana. Além do que, urge a aplicabilidade da
previsão trazida pelo artigo 13, da Resolução Nº 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça
(CNJ), no qual é assegurado a apresentação para audiência de custódia, também, das pessoas
presas em decorrência de cumprimento de mandados de prisão cautelar ou definitiva, visto
que a pratica no estado é contraria ao que preceitua tal inteligência legiferante.
Assim, ao longo do presente trabalho, procurou-se demonstrar que o número de presos
provisórios, ou seja, aguardando julgamento, é extremamente alto, logo, a consolidação da
Política Criminal das Penas e Medidas Alternativas torna-se cada vez mais relevante. Isso
porque, tais problemas tornam-se evidentes quando analisados os sistemas prisionais
brasileiros, tais como a superlotação e os tratamentos que violam princípios básicos da
dignidade humana. Ainda, segundo os dados do CNJ e TJPE, cuja última atualização é de
março de 2017, já foram feitas 6.929 audiências no estado de Pernambuco desde agosto 2015.
Logo, destas, cerca de 60,67% resultaram em prisões preventivas, contrapondo-se a 39,33%
de liberdades provisórias concedidas, visto que Pernambuco é o segundo estado no ranking
nacional com relação a proporção de audiências que culminaram em prisões.
Além do mais, afora a impositividade internacional com relação ao sistema
penitenciário pernambucano, especificamente, faz-se necessário que outras medidas além
dessas Audiências sejam implantadas com intuito da diminuição do inchaço penitenciário no
estado. Um grande exemplo disso residiria na ampliação dos mutirões organizados pelo TJPE
para revisar os processos de presos que já se encontram aptos a concessão de liberdade ou
progressão de regime, além de analisar as políticas públicas voltadas para a ressocialização,
as quais merecem ser reformuladas, a exemplo da ampliação da aplicabilidade de tornozeleiras
eletrônicas. Bem como, na catalise da implantação do sistema SEEU por todo estado, o qual
permitirá um maior controle quanto a situação carcerária pernambucana, visando a eficiência
do sistema de execução.
Por fim, ficou evidente que uma das vantagens na realização de tal audiência, é a
viabilização ao respeito das garantias constitucionais, as quais teriam como uma de suas
atribuições, inibir a execução de atos de tortura, tratamento cruel, desumano e degradante em
interrogatórios policiais, visando minimizar a possibilidade de prisões manifestadamente
ilegais. Assim, tal instituto jurídico visa disponibilizar-se como uma alternativa na tentativa
de amenizar a grave crise do sistema prisional tanto nacional quanto o pernambucano. Nesse
sentido, com a efetivação de tal mecanismo, espera-se que seja dado um avanço significativo
para o judiciário efetivando o princípio da dignidade da pessoa humana, bem como no
cumprimento das obrigações que o país assumiu ao assinar tratados internacionais de direitos
humanos.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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SEGURANÇA PÚBLICA E DIGNIDADE HUMANA COMO DUPLO ALICERCE
DO DIREITO À PAZ: o devido aproveitamento do tempo do condenado265

Aléxia Aianne de Moura Rodrigues266

RESUMO

A presente pesquisa investiga as funções do Direito Penal no contexto do Direito Universal à


Paz. Nesse sentido, destrincha tal garantia internacionalmente requerida por uma dupla
sustentação: de um lado, a necessidade de manutenção da paz social, evitando ou apaziguando
conflitos. De outro, a garantia de vida digna e pleno desenvolvimento a toda pessoa. A partir
do conceito universalizante de pessoa, esta análise investiga o apenado com restrição de
liberdade enquanto sujeito de direitos, e a prisão como instituto. Ressignificando tal
instituição, a pesquisa esboça o conceito de um direito ao devido aproveitamento do tempo do
condenado. A análise utiliza de pesquisa bibliográfica com viés qualitativo e levantamento de
hipótese sem preocupação estatística. Utilizaram-se documentos internacionais relativos ao
Direito à paz, por um lado, e obras de autores dedicados ao tema, por outro, partindo do
cunhador do direito em questão, Karel Vasak, e enfatizando a visão sobre a pena de prisão do
jurista argentino Eugenio Zaffaroni.

Palavras-chave: Prisão. Paz. Tempo. Direitos. Pessoa.

INTRODUÇÃO

Com o fim da Segunda Grande Guerra e a instituição da Organização das Nações


Unidas, repensar codificações e materializar em compêndios determinados direitos emergiu
como patente necessidade. Tratou-se, a partir daí, de estabelecer um minimum de garantias da
pessoa humana, em uma concepção universal de pessoa que permitisse guardar em si o aparato
legal para a proteção dos mais variados grupos. Diante do caráter internacional dos conflitos
a que se assistira, fazia-se necessário estabelecer um critério de caráter universalizante para
os direitos, a fim de evitar novas violações.
Mais que existir, a questão se fazia em coexistir. Em termos de coexistência, dentre a
gama de direitos universais, mais especificamente, agora, dentre os direitos ditos de
solidariedade, fez-se conhecer o Direito universal à paz, internacional, porém orientador de
deveres em nível nacional.
Nesse contexto, o direito penal, como ramo do Direito em amplo sentido, emergiu

265
GT 7- Ciências Criminais, Cárcere e Drogas.
266
Bacharelanda em Direito- 10º período- Faculdade de Integração do Sertão- FIS (Serra Talhada- PE). Pós-
graduanda em Ciências Criminais- Faculdade de Integração do Sertão- FIS (Serra Talhada-PE). E-mail:
alexiaaiannemr@gmail.com.
como setor dessa ciência responsável pela mediação das relações e conflitos sociais.
Constitucionalizado, viu-se pontuado por prudentes princípios limitadores de atuação. De
fato, o direito penal se faz dos ramos de atuação mais incisiva, à medida que recebe a
prerrogativa de restringir a liberdade daqueles que supostamente tenham violado a esfera de
direitos de outrem.
Visto por esse ângulo, o Direito Penal obedece a uma primeira função, a de
manutenção da ordem social, refletida pela política criminal de segurança pública, e colabora,
em seu âmbito, com o viés do Direito universal à paz enquanto prevenção de novos conflitos.
Mas a experiência demonstra que essa única face do direito à paz e do Direito Penal não é
suficiente para que a comunidade internacional, partindo da experiência local de cada Estado,
experimente a existência pacífica enquanto prerrogativa intrínseca e inalienável do ser, no seu
mais profundo significado.
Assim, esta análise tem por problema de pesquisa investigar a ligação entre as funções
do Direito Penal e a realização da experiência do Direito universal à paz. Como objetivo geral,
busca construir o esboço do que seria o direito ao devido aproveitamento do tempo do
condenado, e como objetivos específicos analisar a primeira faceta do Direito à paz- a
segurança pública- no contexto do direito penal; estender a análise para uma segunda faceta
desse direito, a da dignidade da pessoa humana, no mesmo âmbito penal e relacionar tal
garantia universal a uma reconfiguração do instituto.
Considerando a metodologia científica conforme explanada por Gerhardt e Silveira
(UFRGS, 2009), trata-se de pesquisa com abordagem qualitativa, vez que não quantificável,
não mensurável e não posta à prova em dados numéricos, tão somente orientada para a
observação e anotação de fenômenos. O objetivo é exploratório, já que aventa possibilidades
de análise da questão, lançando hipótese. O procedimento é bibliográfico, levantando textos
de declarações universais de direitos, documentos internacionais afins e obras de juristas
especializados no tema. A técnica de coleta de dados foi, portanto, bibliográfica. A técnica de
análise de dados, com apoio em Mozzato e Grzybovski (2011), é a de análise de conteúdo,
que busca aprofundar as leituras e extrair novos significados delas. O universo da pesquisa é
a população sancionada com privação de liberdade (provisória e definitiva) no Brasil
contemporâneo.
Justifica-se a pesquisa, academicamente, por apresentar nova ótica para um tema
recorrente nos trabalhos acadêmicos, sugerindo a possibilidade de novas análises com essa
orientação, no futuro. Socialmente, a pesquisa é relevante porque dialoga com posições
contrárias disseminadas nos discursos sociais, e lança luz sob novo ponto de vista a servir de
orientação mesmo para os discursos afins com o quanto aqui levantado.

1. DIREITO A PAZ E SEGURANÇA PÚBLICA

Já em fins da década de 70, o jurista Karel Vasak (1929-2015) lançava em artigo para
periódico o conceito de “direitos de solidariedade”. Ao analisar o que era feito até então para
reforçar a Declaração Universal dos Direitos Humanos quando de sua aplicação, Vasak
apontou (UNESCO, 1977) direitos a serem enquadrados em uma terceira geração.
Dentre eles, destacava o jurista o direito “ao desenvolvimento”, ao “meio ambiente
saudável e ecologicamente equilibrado”, “à propriedade do patrimônio comum da
Humanidade”, e o direito à paz. O presente artigo, como se disse, tem em vista a elucidação
deste último.

1.1 Da construção de uma terceira geração de direitos humanos em Vasak à segurança


como função do direito penal

Vinte anos depois, Federico Mayor, Diretor-Geral da UNESCO, ao definir o direito à


paz, relacionou-o a liberdade, leis justas, felicidade, igualdade, solidariedade e destacou que,
nesse âmbito, “todos os cidadãos contam, vivem juntos e compartilham” (UNESCO, 1997).
Opôs-se o Diretor, em sua fala, a atitudes de “marginalização, indiferença, ressentimento e
ódio”, apontando como antídoto o conhecimento do outro que parte da premissa de que “Eu
sou o outro”.
Os novos direitos assim construídos sob a premissa da solidariedade envolvem, como
disse Vasak (1977), considerado por muitos como cunhador do termo, uma concepção de vida
em comunidade, o que apenas permite sua aplicação mediante colaboração entre “indivíduos,
estados e outros organismos, bem como de instituições públicas e privadas” (1977, p.29). No
mesmo sentido Mayor (1997), ao estabelecer que a observância dos “novos” direitos exige o
comprometimento de toda a sociedade, sendo uma questão de Estado antes de ser uma questão
de governo, e que inclui organismos civis, militares e religiosos.
Importante para o presente estudo é a afirmação do Diretor-Geral da UNESCO de que
a construção da segurança (aqui entendida no contexto do direito à paz) caminha desde o nível
mundial até alcançar o nacional. Assim, pode-se afirmar que a segurança pública é exigida em
âmbito nacional como prerrogativa para o exercício do direito universal à paz. Tal a primeira
vertente de paz enquanto garantia internacionalmente requerida.
Mais ainda: Federico Mayor elenca a proteção dos cidadãos como um dos maiores
desafios da sociedade para o estabelecimento da democracia.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem (ONU, 1948), em seu terceiro artigo,
estabelece que “Todos têm direito a vida, liberdade e segurança da pessoa”. Mais adiante, no
art. 29, segundo item, in fine, a mesma Declaração fala em limitações legais ao exercício de
direitos e liberdades humanas em prol do que denomina “ordem pública”.
A mesma ONU desenvolveu um mecanismo de averiguação entre países do nível de
adequação e cumprimento com os direitos humanos, o qual denominou “Revisão Periódica
Universal”. Em ciclos, cada nação é submetida à análise das demais, que emitem opiniões nos
chamados “Relatórios dos Grupos de Trabalho”. Em maio de 2017, o Brasil emitiu seu
relatório (National Report), e em julho foi a vez do grupo se manifestar sobre o caso brasileiro.
Segurança pública foi tema recorrente no documento (Report f the working group, ONU,
2017).
Já na apresentação do país, o Plano de Segurança Nacional foi lembrado (p.03) como
compromisso de que a luta contra o crime se dê com respeito aos direitos humanos. A Bélgica
parabenizou o país pela adoção do primeiro Plano Nacional de Ação sobre Mulheres, Paz e
Segurança (p.07); Botsuana notou com preocupação o que apontou como “violência policial”.
Na sessão de conclusões, a Itália recomendou que o Brasil adotasse programas de treinamento
em direitos humanos para as forças de segurança, “enfatizando o uso da força de acordo com
o critério da necessidade e proporcionalidade” (p.12). A Colômbia sugeriu (p.13) redobrar os
esforços de capacitação dessas forças no sentido de evitar práticas racistas ou contra minorias
vulneráveis, preocupação similar à da Indonésia (p.18).
Os Estados Unidos demonstraram preocupação com investigações rápidas e efetivas
de denúncias sobre ilegalidades e abusos das forças de segurança e do pessoal carcerário
(p.14). A França também enfatizou que as ações de eventual violência das forças armadas
sejam tão somente as necessárias para evitar impunidades, ao tempo em que a Bolívia viu com
receio o contexto da “guerra às drogas”, recomendando abstenção de execuções extrajudiciais.
A segurança pública é registrada como uma das preocupações das Ciências Criminais,
figurando entre as funções do Direito Penal, nos manuais jurídicos.
É assim que, mais de década após o pronunciamento de Federico Mayor, o jurista
alemão Claus Roxin definia (2009, p.16) que

As fronteiras da autorização de intervenção jurídico-penal devem resultar de uma


função social do direito penal. O que está além dessa função não deve ser
logicamente objeto do direito penal. A função do Direito Penal consiste em garantir
a seus cidadãos uma existência pacífica, livre e socialmente segura, sempre e quando
essas metas não possam ser alcançadas com outras medidas político-sociais que
afetem em menor medida a liberdade dos cidadãos.

Roxin destaca (2009, p. 17/18), nesse ínterim, por um primeiro ângulo, o que denomina
“condições individuais necessárias para coexistência semelhante (isto é, a proteção da vida e
do corpo, da liberdade de atuação voluntária, da propriedade etc.).”.
Nota-se que a paz em sua vertente segurança pública se alastra para o direito brasileiro
com o sentido de ordem e a atribuição consequente de evitar conflitos, mantendo a integridade
dos cidadãos e a proteção de sua propriedade. Não é outro o entendimento de Nilo Batista
(2007), para quem a função do direito penal consiste em proteger bens jurídicos, cominando,
aplicando e executando pena, protegendo os interesses ou valores elegidos por uma classe
dominante, contribuindo para a manutenção das relações sociais no interior dessa.
A visão de proteção dos bens jurídicos sociais de determinadas classes acaba por não
alcançar a proteção da esfera de bens dos que por ventura atentem contra seus interesses, vez
que “à parte” do todo social, vez que- se não antes de certo a partir do crime- “à margem” do
todo. Visto o direito à paz meramente por essa ótica, o outro (e eu sou o outro!) é coisificado,
tem afastada sua condição humana pela restrição de direitos que, na falta da observância de
uma segunda ótica do direito universal aqui tratado, acabará por ultrapassar a restrição de
liberdade, privação de patrimônio e demais sanções legalmente previstas. O outro dito
criminoso, o outro marginalizado, torna-se, assim, inimigo.

1.2 O perigo do outro: o inimigo no direito penal e a insegurança em Bauman

Nesse sentido Zaffaroni (2007), ao tratar da figura do criminoso, acentua seu


significado contemporâneo como o de um ente daninho, a quem é negada a condição de
pessoa, que até possui alguns direitos reconhecidos, mas que reflete a ausência de um Estado
de direito em razão da privação de várias de suas garantias.
De fato, em um cenário internacional de contenção de conflitos, as diretrizes do pós-
guerra se espalham para as esferas nacionais pregando a ordem como palavra-chave. Na
manutenção desse cenário de cordialidade e pleno desenvolvimento da pessoa-que-pertence-
a-um-grupo, o foco da normatização por este ângulo se afasta da proteção da pessoa enquanto
humana e se aproxima da proteção da pessoa quando assim reconhecida. Os direitos não são,
dessa forma, universalmente reconhecidos senão controladamente fornecidos, após análise do
merecimento de seus originais detentores.
Também assim pensou Zaffaroni, quando estabeleceu que (2007, p.18)
A rigor, todo o Direito Penal do século XX, na medida em que teorizou admitindo
que alguns seres humanos são perigosos e só por isso devem ser segregados ou
eliminados, coisificou-os sem dizê-lo, e com isso deixou de considera-los pessoas,
ocultando esse fato com racionalizações. O certo é que desde 1948 esse direito penal
que admite as chamadas medidas de segurança- ou seja, as penas ou algumas penas
como mera contenção de um ente perigoso- viola o artigo 1º da Declaração
Universal dos Direitos Humanos.

Nota-se que o autor estabelece o mesmo raciocínio que aqui se intenta desenvolver,
quando relaciona com preocupação o direito penal aos direitos humanos universalmente
considerados.
Em suma, o direito à paz que intenta ser “de todos à paz”, no contexto histórico-social
que segue conflitos de ordem mundial, acaba por ser o direito à paz “das pessoas que/para que
as pessoas não atentem contra os direitos individuais de outrem”. Desaparece, nesse contexto,
o que Zaffaroni denomina (2007, p.19) “direitos que assistem a um ser humano pelo simples
fato de sê-lo”.
Trata-se, assim, da delicada situação em que a esfera de garantias das vítimas parece
se opor à esfera de garantias dos acusados/investigados/condenados pelas violações àquelas.
E é em meio a esse conflito que se faz patente estabelecer até que ponto as sanções interferem
com a vida dos sujeitos apontados como autores de delitos.
Sabe-se que, na estrutura do direito penal contemporâneo, inclusive em sua versão
constitucional, tais sanções são de ao menos três tipos: as privativas de liberdade, as
pecuniárias e as restritivas de direitos.
Centra-se o objeto deste estudo, já que se faz necessário restringi-lo para melhor
observa-lo, nas da primeira espécie, e, dentre investigados/réus/condenados provisórios e
condenados definitivos, nestes últimos.
Esses indivíduos se veem, portanto, envoltos em um conflito entre seus próprios
direitos enquanto humanos e os direitos que supostamente violaram, para atingir a posição
desfavorável ao fim de um procedimento persecutório/ processo penal.
A privação da esfera de garantias dos ditos violadores evidencia, porém, que não só a
condenação final a pena privativa de liberdade dita o tom dessa segurança pública enquanto
garantia do direito à paz, já que Zaffaroni alerta (2007) para que a priorização do valor
segurança como certeza acerca da conduta futura de alguém irá acabar pela despersonalização
de toda a sociedade.
A leitura de Bauman (2001) complementa tal visão, em Modernidade Líquida. Ali o
autor aponta o que considera uma sociedade obcecada por segurança, que busca o
encarceramento dos indivíduos destoantes, naquilo que denomina “exorcismo das casas
assombradas”. De acordo com o autor, o que ocorre é que aqueles espaços ocupados pelos
indivíduos marginalizados pelo cometimento de delitos deveriam estar, para os ocupantes
dessa nova construção social, “ocupados pelas pessoas certas”.
Encontrar novamente um lugar, após a saída do cárcere, e manter o sentimento de
pertencimento social, enquanto fisicamente afastada do convívio, tais alguns dos desafios da
população carcerária brasileira. Cumpri-los passa pelo segundo alicerce do Direito à Paz como
originalmente imaginado: a dignidade da pessoa humana.

2. DIREITO A PAZ E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: O APENADO COMO


SUJEITO DE DIREITOS

A questão sob análise requer que se identifique serem restringíveis apenas


determinados direitos da pessoa presa. A privação de liberdade não autoriza intervenções na
seara de garantias do indivíduo que não aquelas enquadradas como efeitos da sentença ou, se
provisória a restrição, autorizadas pelos institutos nos quais se fundam.
Por mais que não se apresentem maiores dificuldades em tal compreensão, urge
levantar a discussão, a fim de negar a despersonificação do sujeito enquanto suposto autor de
delito. No contexto do direito à paz, a qualidade de vida emerge como uma segunda ótica, o
segundo alicerce daquela garantia.

2.1 Dignidade como requisito para o alcance da paz em documentos internacionais

Em fins da década de 40, a Declaração Universal dos Direitos do Homem já alertava


(art. XXIX) sobre a necessidade de tornar possível, no seio da comunidade, o pleno
desenvolvimento da personalidade dos que a formam.
Indo além, seu segundo item deixa claro que só haverá sujeição do homem às
limitações determinadas em lei, “exclusivamente com o fim de assegurar o devido
reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas
exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática”.
Assim, embora a Declaração endosse a preocupação com a ordem no sentido de
harmonia social, traz uma ressignificação para a ideia de uma sociedade pacífica e
democrática: aquela em que todos se desenvolvem por completo.
No mesmo sentido, a Declaração de Luarca sobre o Direito Humano à Paz (2007)
evidencia, em várias passagens, a dupla face desse direito. Logo nos quatro primeiros artigos,
estabelece que a paz “justa, sustentável e duradoura” é um direito inalienável de todas as
pessoas.
Ao mencionar o conceito de segurança, o documento propositalmente o relaciona aos
dois sentidos. Em seu quarto artigo, destaca o direito de todos os povos a um entorno privado
e público seguro e saudável, protegidos contra atos de violência não estatal.
Por outro lado, o mesmo dispositivo relembra a proteção contra atos de violência
estatal como prerrogativa para o pleno desenvolvimento da paz.
Nesse sentido, o terceiro artigo da Declaração insere, como requisito para uma
existência/coexistência pacífica, a segurança humana, baseadas no (art. 3º):

a) O direito a dispor dos instrumentos, meios e recursos materiais que permitam


desfrutar plenamente de uma vida em condições dignas e, neste sentido, o direito a
dispor de alimentos essenciais e água potável, assistência básica de saúde, abrigo e
habitação básicos, e formas básicas de educação;
b) O direito de desfrutar de condições de trabalho e sindicais dignas, e da proteção
dos serviços sociais, em condições de igualdade de tratamento entre as pessoas que
desempenhem a mesma ocupação ou serviço.

O que embasa a inserção desses direitos na vida social, para o documento, é uma
educação voltada para os direitos humanos, o que contribui com “processos sociais baseados
na confiança, na solidariedade e no respeito mútuo” (art. 2º).
Luarca tem a importante função, nesse contexto, de propor uma humanização do
direito positivo, quando observa e ampara toda pessoa, pela só condição de o ser. Extensível,
portanto, a todos quantos sofrerem restrições de direitos, a velar para que tão somente os
legalmente autorizados sejam limitados.
Aproxima, assim, a Declaração, sem o dizer expressamente, o campo do Direito Penal,
na execução da pena e nos institutos de privação de liberdade (provisória ou definitiva) da
concepção de direitos humanos.
Desse modo, ainda que se queira atribuir à tranquilidade social o papel de principal
função do direito penal, o texto de Luarca força por conduzir à conclusão de que só se efetiva
a paz e a segurança pública quando se efetiva o mínimo de dignidade a toda pessoa humana,
acusada de/ condenada por violar direitos de outrem ou não.
A Declaração foi progressivamente construída desde 2004, atendendo à solicitação das
Nações Unidas, ao final de um congresso internacional na Espanha, de que se codificasse
oficialmente o direito humano à paz.
Nesse sentido, atendeu ao binômio positivação dos direitos humanos / humanização
do direito positivo. Luarca resume o quanto aqui se disse, a partir do momento em que
desconstrói as figuras estereotipadas (e aqui se destaque a do sujeito criminoso como a erva
daninha) e vai encontrar um lugar para o humano pela só razão de o ser, o que é evidenciado
pelas sucessivas referências a “toda pessoa”.
Desse modo, ao passo em que “Toda pessoa tem direito a um recurso eficaz que a
ampare contra violações de seus direitos humanos” (art. 10), “Toda pessoa (...) tem direito
inalienável a participar do desenvolvimento econômico, social, cultural e político no qual
possam realizar-se plenamente todos os direitos humanos e liberdades fundamentais” (art.12),
podendo dele desfrutar.
Assim é que concretização do direito universal à paz, de acordo com a Declaração de
Luarca, está para a resolução pacífica de conflitos como está para uma reconstrução da
percepção das relações humanas.

2.2 Ressignificação do instituto da prisão e dignidade da pessoa humana sob a ótica de


Zaffaroni

Enquanto os textos das declarações universais de direitos humanos, em especial as


voltadas à construção e concretização do direito à paz intentam a repersonificação do sujeito
e a imersão de todas as pessoas humanas em uma cultura de desenvolvimento
socioeconômico, tolerância e harmonia das relações, a prisão como instituto, bem na
contramão do chamado internacional do início do século para a integração e interação
humanas, segrega e constrói uma cultura própria, obstáculo para o desenvolvimento dos
apenados.
Ao tempo em que a sociedade internacional, positivando as necessárias garantias
humanas, convida a que a comunidade possa ser vista como tal, um “em comum”, a prisão
evidencia a marginalização do sujeito acusado/condenado pela prática de delitos.
À margem do todo, temido pela sociedade da era líquida baumaniana, meramente
ocultado dos sujeitos que possivelmente não afetaram a esfera jurídica de outrem, os
executados se veem parte de uma política de “saneamento social”, que tão somente satisfaz a
função do direito penal enquanto presumida a segurança pública (que é do público mas não
atende, se assim executada, ao público enquanto coletivo, enquanto totalidade).
Foi exatamente esse momento contraditório do instituto que Zaffaroni observou, em
Em busca das penas perdidas (1991). O jurista e magistrado argentino antevê a prisão como
uma instituição total, apta a gerar efeito por ele denominado prisionização. A consequência
desse efeito é justamente uma imersão cultural, em que o sujeito “é privado de tudo que o
adulto faz ou deve fazer usualmente” (p.135), perde autoestima e se vê imerso em uma
“‘cultura de cadeia’, distinta da vida do adulto em liberdade” (p.136).
A observação desse sistema é que faz o autor concluir que “vivenciar o artigo primeiro
da Declaração Universal constitui uma verdadeira façanha moral” (p. 148), já que, para
Zaffaroni, à medida que os direitos humanos buscam realizar, em longo prazo, a igualdade de
direitos, os sistemas penais consagram as desigualdades em todas as sociedades. Zaffaroni
(1991) também recorreu a Vasak (1984/1987) para afirmar que “a consagração positiva de
uma ontologia regional do homem (...) impõe a consideração do homem como pessoa” (p.17),
e que “por pessoa deve-se entender a qualidade que provém da capacidade de autodeterminar-
se em conformidade com um sentido (...).” (Id.).
Imersos nessa cultura própria, impedidos do contato social, desenvolvendo leis
próprias e submetidos a regras específicas, os indivíduos privados da liberdade passam por
uma reconfiguração das suas relações com o todo, com a família, com os demais apenados e
consigo. Isso porque, ao serem privados da liberdade de ir e vir, repassam ao Estado o controle
sobre seu tempo.
Mas se é verdade que a realização da paz passa pelo necessário desenvolvimento de
toda humana pessoa, e se é verdade que a restrição de direitos há de se limitar às hipóteses em
lei previstas, então sendo humana a pessoa aprisionada e estando, mais que seu corpo, seu
tempo à integral disposição do Estado, e se é certo que é deste a principal atribuição de realizar
a paz (art. 16, item 2, Declaração de Luarca), então este organismo é incumbido da tarefa de
converter em proveito da pessoa apenada as horas- dias de condenação.
Assim se faz patente, quando se consideram as múltiplas funções da pena e o duplo
sentido do direito à paz como garantia internacionalmente protegida.

3 A [RE] CONSTRUÇÃO DE UM ANTIGO DIREITO: O DEVIDO


APROVEITAMENTO DO TEMPO DO CONDENADO

Ao se atentar para a pena de prisão enquanto instrumento de higiene social e


apaziguamento de conflitos, ela emerge com todo o seu significado. Além da estigmatização,
afastamento da família e impacto sócio-econômico-financeiro, a restrição da liberdade do
apenado coloca nas mãos do Estado o que aquele possui de mais íntimo: o tempo.
Por essa razão, a preocupação desta análise veio assentar-se na urgência da construção
de uma nova ótica sobre uma velha prerrogativa, na ressignificação da prisão como instituto:
o direito ao devido aproveitamento do tempo do condenado.
3.1 O direito restringido e a relativização do tempo no cárcere

Enquanto restringe o ir e vir de indivíduos apenados (ou mesmo, frise-se, dos


provisoriamente presos), a sanção penal de privação de liberdade altera os hábitos, as relações
e a divisão e aproveitamento do tempo dos sancionados.
Aguiar (1980), enquanto estabelece que “as técnicas de disciplinamento estarão
sempre ligadas, direta ou indiretamente, às normas jurídicas” (p. 69), aponta que a disciplina
enquanto poder estatal seleciona comportamentos, inculca hábitos que possibilitem o controle
e o recompensem quando adere às práticas aceitas. Trata-se, para o autor, de um “ajustar” ou
“estigmatizar”, muito embora, quando se trate do instituto prisão, perceba-se que a
estigmatização acompanha os apenados para muito além do cárcere.
Esse ajuste que a prisão intenta realizar, por sua vez, reveste-se da figura do que Aguiar
denomina (1980, p. 70), “um ‘auxílio’, (...) uma ‘caridade’, quando, por exemplo, (...) um
criminoso recebe uma ‘medida de segurança’ (...)”. O que o autor destaca é que, mesmo
quando de volta ao convívio social, serão tidos como recuperados, portanto como apenados e
não voltarão a pertencer à coletividade “dos bons cidadãos”.
Embora tratando a princípio de produção industrial-econômica, Aguiar lança mão de
entendimento semelhante ao aqui construído quando estabelece que “se falamos em controle
sobre o corpo, implicitamente estamos falando em controle sobre o tempo, pois, para produzir,
é necessário que haja corpos disciplinados e corpos disciplinados são aqueles que sabem
distribuir tarefas e condutas em tempos certos e determinados” (1980, p.95).
Mais à frente, Aguiar confirma (1980, p. 111) que “para se controlar uma pessoa não
basta impor regras sobre como usar seu corpo. Importante também é delimitar em que tempo,
em que prazos o corpo deve ser usado”. As penas são então mencionadas como um dos lugares
em que o controle do tempo pode ser observado.
Isso não é recente na história das prisões. Ainda no Brasil imperial, mandava o
Regulamento267 da Casa de detenção estabelecida provisoriamente na Casa de Correção da
Corte que os presos conversassem entre si até as horas de silêncio, e que, dado o sinal, cada
um se recolhesse a sua cama. No mesmo sentido Foucault (1987) apresenta seu conceito de
corpo “dócil” como tão menos forte quanto mais útil e obediente, considerando-o como objeto

267
Decreto nº 1.774, de 2 de julho de 1856. Art. 19. Os presos de cada classe conversarão entre si até horas de
silencio, sem nunca perturbarem o socego[sic] das outras prisões, nem a ordem que deve ser mantida no
Estabelecimento. Dado o signal de silencio cada hum se recolherá á sua cama.
e alvo do poder, que se manipula e modela.
O instituto prisão é também ali apontado sob o prisma da disciplina e da distribuição
no espaço.
Mas é na investigação do emprego do tempo dos vigiados que Foucault, utilizando
como referência escolas, quarteis, hospitais e instituições religiosas, mais colabora com a
presente análise. De acordo com o autor, o horário é uma “velha herança”, que estabelece
como grandes processos “estabelecer as censuras (sic), obrigar a ocupações determinadas,
regulamentar os ciclos de repetição” (1987, p. 173).
Em meio à reflexão, uma descoberta: a preocupação com a qualidade do tempo
empregado.
Ocorre que a preocupação com o tempo avaliada por Foucault é tão somente aquela
anterior à ressignificação do instituto de prisão, já que Vigiar e punir anota, sobre isso que “O
tempo medido e pago deve ser também um tempo sem impureza nem defeito, um tempo de
boa qualidade, e durante todo o seu transcurso o corpo deve ficar aplicado a seu exercício”
(1987, p. 174), e que “o princípio que estava subjacente ao horário em sua forma tradicional
era essencialmente negativo, (...) é proibido perder um tempo que é contado por Deus e pago
pelos homens (...)”.
Assim é que, se não aproveitado adequadamente o tempo assim restringido e
controlado, a própria função da pena se desvirtua e limita à correção, como apontou Foucault
(1987, p.203):

O funcionamento jurídico-antropológico que toda a história da penalidade moderna


revela não se origina na superposição à justiça criminal das ciências humanas, e nas
exigências próprias a essa nova racionalidade ou ao humanismo que ela traria
consigo; ele tem seu ponto de formação nessa técnica disciplinar que fez funcionar
esses novos mecanismos de sanção normalizadora.

Dessa forma, o cuidado com o tempo no contexto das instituições de vigilância e


controle se reveste muito mais de um caráter econômico que da ótica que se pretende, aqui
sugerir: o aproveitamento do tempo como garantia de direitos do apenado, como reflexo do
direito à paz tomado pelo seu duplo significado, que ultrapassa a medida de segurança para ir
alcançar a preocupação com a dignidade da vida garantida, com a qualidade da vida protegida.
Essa vida o é em toda a sua extensão, para além mesmo da violação de direitos de outros
cidadãos em que alguém incorra.

3.2 A ressignificação da função da pena


Anunciado o conflito, o Direito penal, como instrumento de aplicação de sanções, tem
como tarefa, nestes tempos, encontrar lugar para o sujeito investigado/condenado/apenado
não à margem, mas inserido no contexto social.
Dele se retira a liberdade do emprego do tempo. Restringido um direito, em razão da
defesa da esfera dos de outrem, há que se responder ao menos de maneira ativa e positiva,
com sua adequada utilização. O que se pretende inverter, aqui, é a lógica do que existe por
trás do devido aproveitamento. Faz-se necessário, assim, abandonar a visão da utilização do
tempo do condenado com viés econômico, expiatório, repressivo e compensatório.
Não se emprega bem o tempo de cárcere para fazer frente a eventuais despesas com os
apenados, nem tampouco para que não se converta sua passagem pela prisão em “regalia”,
como –a custo, diga-se- é corriqueiro associar, ao comentar o tema. Emprega-se bem o tempo
porque esse mesmo tempo é direito individual inalienável e intrínseco à condição de pessoa
humana. Tempo da pessoa condenada não é arrendado ou posto à disposição do aparelho
estatal, mas tão somente corre em espaço restrito e é já reconfigurado pelas convivências e
padrão de vida que a prisão requer.
Não é outra a interpretação que decorre da fala de Bobbio (1992), quando, em seu
célebre A era de direitos, anuncia que os direitos fundamentais, embora sujeitos a restrições,
carecem de justificação válida para sua limitação.
Ao comentar as discussões acerca da pena de morte, o mesmo autor recorda a essência
da pena como sanção, ao mencionar que “a segunda [das concepções da pena] - a da emenda
- é a única que exclui totalmente a pena de morte. Mesmo o mais perverso dos criminosos
pode se redimir: se ele for morto, ser-lhe-á vedado o caminho do aperfeiçoamento moral, que
não pode ser recusado a ninguém. (...)” (BOBBIO, 1992, p. 72).
Dessa forma, ata as pontas das duas premissas necessárias para uma ressignificação da
pena privativa de liberdade no contexto do duplo alicerce do direito universal à paz, quando
resta claro que retirar um direito da esfera de um condenado/apenado implica em emprega-lo
a favor do fortalecimento dessa mesma esfera, mantendo sua condição de pessoa, de modo a
justificar de maneira válida a limitação.
A abordagem moderna da pena, em especial a de restrição de liberdade, força por ser,
assim, investigando o direito penal pela ótica do direito universal à paz, algo como “é
protegida a esfera de direitos dos cidadãos, mas é também garantida a dignidade da vida do
indivíduo dito destoante pela sua condição inarredável de pessoa, logo, a pena não apenas
intimidará/ fará expiar, vez que a paz social, coletiva, passa obrigatoriamente pela paz
individual, do indivíduo pessoa- apenado ou não”.
Anota Bobbio (1992, p. 74):

O Estado não pode colocar-se no mesmo plano do indivíduo singular. O indivíduo


age por raiva, por paixão, por interesse, em defesa própria. O Estado responde de
modo mediato, reflexivo, racional. Também ele tem o dever de se defender. Mas é
muito mais forte do que o indivíduo singular e, por isso, não tem necessidade de
tirar a vida desse indivíduo para se defender. O Estado tem o privilégio e o benefício
do monopólio da força. Deve sentir toda a responsabilidade desse privilégio e desse
beneficio.

Trata-se de uma associação precisa: se o direito à paz segue a tendência universal de


mesclar às imposições negativas (não matar, não furtar, não se apropriar indebitamente...)
comandos positivos (garantir qualidade de vida, saúde, alimentação adequada, moradia), então
para o Estado surge a incumbência de fazer do tempo do condenado restringido em razão de
desobediência a comando negativo algo de útil, mas não útil apenas economicamente senão
útil para a construção e reconstrução do apenado-pessoa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O direito penal se mostrou imerso nos direitos universais garantidos ao homem


enquanto pessoa. É na repersonificação do apenado/réu/investigado que se vai encontrar o
reforço para a ressignificação da pena, como garantidora de prerrogativas inalienáveis de
todos os cidadãos, sem o/mediante o cometimento de delito.
A função intimidatória/expiatória da pena está para uma visão do direito de todos à
paz meramente pelo viés da segurança pública, o que é temeroso, para o direito penal
moderno, por conduzir ao estado de “exorcismo das casas assombradas” da era líquida
baumaniana. Restringir o direito à paz ao “direito à paz das pessoas que não cometerem delitos
e portanto resguardarem seu caráter de pessoa” acaba por propiciar meramente uma sociedade
obcecada por segurança e conduzir ao não cumprimento das posturas positivas, garantistas,
que o Estado de Direito requer.
O convidativo “eu sou o outro” do Diretor-Geral da UNESCO mais condiz com tais
exigências, e coaduna com o texto integral da Declaração Universal de Direitos do Homem,
afastando a coisificação dos apenados, restaurando uma terceira visão acerca da função da
pena, rejeitando o direito penal do inimigo, não condizente com o que se espera das ciências
criminais no pós-Guerra.
A proposta, portanto, deste estudo, é uma reflexão contínua que encontre o Direito
Penal como parte na positivação dos direitos humanos/humanização do direito positivo. É a
empatia que desde o legislador até os destinatários das normas forçam por ter, já que, pela
feliz proteção constitucional, a pena não se fará capital nem perpétua. A recolocação física
daquele que violou direitos de outrem no grupo é já um fato e a recolocação de direito uma
patente necessidade.
Dessa maneira, o que se busca é a ressignificação da prisão como instituto, a
compreensão de que, para além da limitação física, o que ela mais afeta na esfera de
prerrogativas do indivíduo encarcerado é seu livre uso do tempo, e que esse tempo, posto à
disposição da máquina estatal, deve ser aproveitado de maneira construtiva para o sancionado
enquanto pessoa, a fim de que não se coisifique, a fim de que tenha melhores condições de
reintegrar o coletivo.
Melhor garantia disso é que não se aparte do mesmo. Que se mantenha atuante, através
da pena garantidora. A pena que, se assim levada a efeito, não o seja com o sentido de fazer
do condenado instrumento a serviço do Estado, que trabalha para pagar suas despesas. O
cumprimento humanamente digno de pena não deve sê-lo pela justificativa
financeira/econômica/expiatória.
Revisitado com esse sentido o instituto da prisão, espera-se que o Direito Penal assim
contribua para a concretização de um importante direito universalmente garantido. Trata-se
da efetivação, nas ciências criminais, do ideal de humanização do direito positivo.

REFERÊNCIAS

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Janeiro: Revan, 2007.

______. Em busca das penas perdidas. A perda de legitimidade do sistema penal. Tradução:
Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991.
CONDENADAS AO ESQUECIMENTO:
A MULHER VÍTIMA DO PODER PUNITIVO DO ESTADO268

Ingrid Oliveira Arcanjo269

RESUMO

A pesquisa tem como objetivo analisar os desafios frente ao desrespeito com a dignidade da
pessoa humana dentro dos presídios femininos brasileiros, o papel da criminologia na
produção/reprodução das relações de poder, estudando a maneira de como a mulher é vista no
cenário criminológico dentro do seio da sociedade, e todos os preconceitos referente a prática
do delito por ela, mostrando que o contexto histórico desta maneira influencia bastante para a
sua invisibilização dentro das políticas públicas do Estado. O trabalho traz aspectos históricos
da criminalização da mulher na sociedade, desde a sua origem e a sua influência na formação
da representação social da mulher e a discriminação de sexo, raça e gênero. A metodologia
utilizada consiste numa revisão bibliográfica que atravessa diversos campos do saber, como a
história, a sociologia, o direito penal e sua punição, a criminologia, as drogas e o sistema
penitenciário, o gênero e as teorias feministas.

Palavras-chave: Mulher. Criminologia. Estado. Sistema Penitenciário. Relações de Poder.

INTRODUÇÃO

As penitenciárias brasileiras encontram-se em estado de calamidade, na carta magna


instituiu-se a democracia e a proteção dos direitos e garantias fundamentais como pilares da
sociedade brasileira, no entanto, nota-se que determinado tratado não é cumprido quando o
assunto a ser discutido são as suas penitenciárias, pois as mesmas não possuem condições
mínimas de sobrevivência, são marcadas pela sua superlotação, pela falta de infraestrutura
para habitação, lazer, saúde e atividades ocupacionais. Determinado assunto é significativo,
pois sem a garantia de melhores condições de vida para essas pessoas não há como prevê
ressocialização.
O presente estudo tem por objetivo tratar sobre as desigualdades de gênero no âmbito
da criminologia, com o intuito de abordar a questão da invisibilidade da mulher dentro do
cárcere, fazendo um paradigma com a influência histórica da construção das primeiras
civilizações, com o intuito de abordar a reação social com o delito e o sexo feminino.
As mulheres cometiam delitos ditos como “típicos” do gênero feminino, como
aborto, crimes passionais, crime de infanticídio. O reconhecimento da mulher como praticante

268
GT 7 - Ciências Criminais, Cárcere e Drogas
269
Graduada em Direito (ASCES/UNITA). E-mail: ingridarcanjo@hotmail.com.br
de crimes relacionados à esfera pública é um assunto extremamente atual, mas que não é
debatido, não existem políticas públicas que tratem sobre esse assunto no meio social, que é
o melhor meio de quebrar as grades do preconceito e da discriminação, elas sofrem por estar
às sobras do Estado.
Portanto, torna-se imprescindível debater sobre a questão da invisibilização da
mulher perante o Estado, discutindo como a ausência de políticas públicas para os presídios
femininos podem influenciar diretamente na saúde dessas mulheres. Deste modo,
enfatizaremos a negligência das autoridades competentes com a situação carcerária, levando
a falência do sistema penitenciário, causando uma desarmonia com os direitos da pessoa
humana.
Falar sobre mulheres encarceradas, hoje em dia na sociedade, ainda é um “tabu”,
gerando polêmica e causando repúdio. A gravidade desse assunto é alarmante, por se tratar do
ser humano que merece a devida atenção e proteção dos entes públicos, antes e após do
encarceramento, pois tem-se observado que os índices de mulheres encarceradas só aumentam
com o decorrer dos anos. O Estado em sua condição de protetor dos direitos dos indivíduos é
um dos principais responsáveis pela crise nas penitenciárias, invisibilizando cada vez mais os
sujeitos que se encontram nessa situação.

O surgimento do direito na história da sociedade e sua função na execução da punição


das mulheres encarceradas.

Após análise, sobre o desenvolvimento da sociedade frente às questões relacionadas


ao direito dos cidadãos, nota-se que o direito desde o seu início participou do caminhar da
história da humanidade, com a intenção de organizar a sociedade.

O direito antecede a invenção da escrita. Mesmo na pré-história, portanto antes do


surgimento da primeira escrita já havia direito. Era um direito essencialmente oral.
Com o sedentarismo do homem causado pela agricultura, e surgimento de aldeias,
cidades e por fim das primeiras civilizações e por consequência da escrita surge o
direito antigo que teve seus melhores exemplos na Civilização Egípcia e na
Civilização Mesopotâmica. Demonstra também a estreita relação de dependência
entre a História e o Direito. E a necessidade de um olhar conjunto entre eles para
análise da história e ciência do direito (...) Podemos afirmar sem erro que não há
direito fora da sociedade, e não há sociedade fora da história. (REIS, 2017) .

Se o Direito Penal acompanha os seres humanos desde a formação dos primeiros


grupos sociais, o seu desenrolar iria conduzir-se juntamente com o desenvolvimento cultural,
moral e social, dos povos que fazem parte da história das sociedades.
É de fundamental importância frisar o fato de que, existiam três pilares na sociedade
de poder/hierarquia, pilares estes que por muito tempo exerceu o domínio sobre todos, eles
eram a Igreja, o Estado e por último o Direito, os dois primeiros usavam o Direito para
arquitetar as suas artimanhas políticas e individuais. Desse modo, a igreja estava acima do
Estado e de todo o povo, sendo assim nada poderia contrariá-la.
Nesta mesma esteira, pressupõe então que o domínio sobe o castigo daqueles que
praticavam algum delito estavam nas mãos do poder hierárquico regido, que empregavam
todo este poder da maneira mais horrenda possível, usando de lição para que os que
habitassem aquela comunidade não cometessem o mesmo delito.
A maneira com que puniam o desordeiro, era considerada como um espetáculo, e
utilizado para manifestar o poder da mão da hierarquia sobe todos aqueles que estavam
inferiores a ela. Faziam toda a sociedade perceber que o homem delituoso deveria ser tratado
como inimigo da sociedade, como traidor, e que deveria deste modo ser retirado do convívio
comum, como se dali não fizesse mais parte, “É preciso punir de outro modo: eliminar essa
confrontação física entre soberano e condenado; esse conflito frontal entre vingança do
príncipe e a cólera contida do povo, por intermédio do supliciado e do carrasco”
(FOUCAULT, 2010, p. 71).
A reforma penal lutou para mudar tal atrocidade, a história foi escrita por letras de
sangue, fazendo com que os nossos direitos fossem conquistados com louvor, para que o
homem fosse visto como um ser que merece ser tratado com humanidade, pois mesmo quando
este comete uma barbaridade, ele não deixa de ser humano.

Aí está a raiz do princípio de que se deve aplicar só punições “humanas”, sempre, a


um criminoso que pode muito bem ser um traidor e um monstro, entretanto. Se a lei
agora deve tratar “humanamente” aquele que está “fora da natureza” (enquanto que
a justiça de antigamente tratava de maneira desumana o “fora-da-lei), a razão não se
encontra numa humanidade profunda que o criminoso esconda em si, mas no
controle necessário dos efeitos de poder. (FOUCAULT, 2010, p. 88).

Encontra-se assim razão no sentido do surgimento do direito penal, ele veio para
ponderar a mão pesada do Estado perante a sociedade, que mesmo sendo a detentora do poder
dispõe de uma fraqueza absurda quando se trata da execução das leis.
Mas, embora os modos e os meios de punição tenham sido alterados no decorrer do
tempo com o advento das leis e códigos, o intuito de “amedrontar” o povo, não modificou, as
leis continuam exercendo um caráter punitivo e usando disso para prevenir que outros delitos
iguais sejam cometidos. Desta vez, inovando com pena de detenção no princípio do século
XIX.
Essa “obviedade” da prisão (...) se fundamenta em primeiro lugar na forma simples
da “privação de liberdade”. Como não seria a prisão a pena por excelência numa
sociedade em que a liberdade é um bem que pertence a todos da mesma maneira e
ao qual cada um está ligado por um sentimento “universal e constante”?
(FOUCAULT, 2010, p. 217)

A ideia inicial prevalece, a prisão existe como o instrumento que visa privar o sujeito
de sua liberdade para que este se arrependa do delito cometido e não volte a reincidir e as
taxas de criminalidade diminuam.
Como já disse Michel Foucault, tratando-se da pena de prisão e de seus atributos
quanto a sua função

Quando se elaboram, por todo o corpo social, os processos para repartir os


indivíduos, fixa-los e distribuí-los espacialmente, classifica-los, tirar deles o
máximo de tempo e o máximo de forças, treinar seus corpos, codificar seu
comportamento contínuo, mantê-los numa visibilidade sem lacuna, formar em torno
deles um aparelho completo de observação, registro e notações, constituir sobre eles
um saber que se acumula e se centraliza. A forma geral de uma aparelhagem para
tornar os indivíduos dóceis e úteis, através de um trabalho preciso sobre o seu corpo.
(FOUCAULT, 2010, p. 217).

Nota-se que, a pena de prisão tem de fato a intenção de regenerar aquele indivíduo,
transformando suas atitudes, emoções, sentimentos e tudo o que levou ele até aquele lugar,
gerando uma nova pessoa humana. “A prisão, peça essencial no conjunto das punições, marca
certamente um momento importante na história da justiça penal: seu acesso à “humanidade””.
(FOUCAULT, 2010, p. 217).
De acordo com a previsão do artigo 1º da Lei de Execuções Penais nº 7.210 de 1994
(LEP), “Art. 1º- A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições da sentença ou
decisão criminal a proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado
e do internado.” Com isso, o que consta determinado na lei de execuções penais e o que
preleciona Michel Foucault em seus ensinamentos, mais precisamente sobre o objetivo da
execução penal, que é de ressocializar, não consegue atender as expectativas desejadas, a
intenção de moldar um novo indivíduo é empregado apenas nos livros e nos códigos como
histórias fictícias, mas não na vida real, na prática (ANDRADE; FREITAS, 2005).
Dessa forma, é importante atentar para o devido raciocínio que embasa os estudos
feitos sobre os métodos e modos de tratamento dentro das penitenciárias brasileiras, pois é
dentro delas onde constata-se, se a lei de execuções penais está sendo executada ou não da
forma como deveria.
Demonstra-se a cientificidade da comprovação por intermédio de índices de prisões,
de reincidências e de ressocialização, é evidente que se há reincidência não houve
ressocialização, e se não houve ressocialização o que versa no artigo primeiro da LEP (nº
7.2010 de 1994), frisando novamente, “propiciar condições para a harmônica integração social
do condenado e do internado”, está completamente fora de contexto, tornando o sistema penal
defasado pois não atende as expectativas desejadas pelo legislador e pelo Estado/População.
Como salienta Michel Foucault, a prisão surgiu de uma forma que fez desaparecer
todos os outros meios de punição e assim tornou-se insubstituível, por mais que a ideia da
pena de prisão, como meio de punição e transformação do indivíduo, seja exemplar, ela tem
suas falhas, deste modo sabe-se que ela pode ser bastante perigosa, quando não inútil, se mal
administrada (FOUCAULT, 2010. P. 2018).
Quanto a realidade do sistema penal brasileiro na atualidade, ressalta-se que a
população penitenciária chegou a marca de 622.202 pessoas, isso em dezembro de 2014 (MJ,
2016), quando deu origem a uma pesquisa que resultou em um novo relatório que foi lançado
pelo ministério da justiça. Estima-se que esse número possa ter evoluído desde a feição da
pesquisa até a data presente.
Esses não são os únicos problemas enfrentados pelos detentos nas penitenciárias, eles
não possuem suporte de infraestrutura, lazer, estudo, saúde, alimentação, entre diversos outros
fatores. Refletindo assim a questão da ressocialização, pois não existe condições de
ressocializar um ser humano nessas circunstancias.

As péssimas condições sanitárias e de ventilação, aliadas à superlotação e à falta de


cuidados médicos adequados, fazem com que doenças se espalhem entre os presos.
A prevalência de infecção pelo vírus HIV nas prisões pernambucanas é 42 vezes
maior que a média observada na população brasileira; a de tuberculose chega a ser
quase 100 vezes maior. As enfermarias das prisões sofrem com a falta de
profissionais e medicamentos e presos doentes muitas vezes não são levados aos
hospitais por falta de escolta policial. (HUMAN RIGHTS WATCH, 2015).

Além disso há ainda, diversos problemas alarmantes, um deles a quantidade de agentes


penitenciários insuficientes, fazendo com que os presos concessionados assumam funções que
deveriam ser dos agentes, dessa forma coordenam as ações dentro do próprio presídio,
tornando-se chefes dos detentos.

A superlotação extrema e a falta de pessoal tornam impossível às autoridades


penitenciárias exercerem um controle adequado dentro das prisões. Para lidar com
isto, adotaram a prática de delegar esse controle a um único preso em cada um dos
pavilhões (...) Os presos escolhidos para esta função são conhecidos como
"chaveiros", por receberem as chaves do pavilhão e das celas, sendo responsáveis
pela manutenção da ordem ali dentro. Os agentes penitenciários controlam apenas
a área externa dos pavilhões.
Os chaveiros vendem drogas, extorquem dinheiro dos outros presos e exigem
pagamentos em troca de lugares para dormir, de acordo com presos, egressos do
sistema prisional, familiares e dois representantes do estado entrevistados pela
Human Rights Watch. Eles também usam "milícias" compostas de outros presos
para ameaçar e espancar aqueles que não pagam suas dívidas ou que questionam sua
autoridade. (HUMAN RIGHTS WATCH, 2015) .

Os dados contidos nesse estudo e os respectivos números, são alarmantes, a situação a


qual se encontram os estabelecimentos penais do país é absurda, desrespeitando os direitos
humanos, os códigos e leis nacionais e internacionais.
É importante destacar que, a maior parte do acervo de estudos feitos nesses
estabelecimentos diz respeito as prisões masculinas, e ainda consegue impressionar a todos,
mesmo sabendo que esse cenário não é novo. Sendo assim, é de fato importante mostrar as
condições dos estabelecimentos que acomodam as detentas do sexo feminino, pois o pouco
que se consegue adquirir dos estudos realizados nessas penitenciárias relata que os tratamentos
oferecidos a elas são piores do que aqueles recebidos pelos detentos do sexo masculino, pois
encontram-se em instituições sucateadas que antes acomodavam os homens, portanto se o
Estado já os retirou de lá era porque não mais servia para eles e então ofereceu para abrigá-
las ( FRINHANI , 2005).
Nota-se que, há uma questão de invisibilização do Estado perante a população
carcerária feminina, pois é importante destacar que elas são merecedoras tanto quanto os
homens de um estabelecimento próprio, criado especificamente para recepcioná-las e atendê-
las.
Deste modo, sabe-se que a Constituição Federal zela pela igualdade entre os gêneros
e destaca que, independentemente da situação, todos são iguais em direitos e obrigações,
destacando que são iguais em suas diferenças, pois elas merecem atendimento diferenciado
característico de acordo com as suas condições, pelo fato de terem necessidades específicas e
que precisam ser atendidas. Como está estabelecido na LEP (nº 7.210 de 1994), que abrange
as especificidades da mulher e do idoso, Artigo 82, parágrafo 1º “A mulher e o maior de
sessenta anos, separadamente, serão recolhidos a estabelecimento próprio e adequado à sua
condição pessoal. ”
Identifica-se portanto uma discrepância entre a legislação brasileira e sua realidade:

Um dos questionamentos basilares nesse campo é o de que o Brasil tem uma


legislação avançada em termos de direitos e de cidadania e, no entanto, apresenta
uma realidade desigual e injusta, produzindo comumente um sentimento de
descrédito e de desqualificação em relação às conquistas legais.(RODRIGUES;
CORTÊS, 2006, p. 11)

Faz jus ressaltar, que o problema do Brasil não está em falta de uma legislação que
dê suporte aos problemas existentes, e sim a falta da execução e de frequente regulamentação
dessa legislação para comportar e se adequar à realidade dos cidadãos. É imperioso destacar
que se a legislação vigente no país fosse de fato aplicada, a situação do sistema carcerário do
brasil seria outra.
O gráfico abaixo (Fonte: Infopen, dez./2014 p. 40), feito pelo Ministério da Justiça,
mostra a evolução da taxa de mulheres no sistema prisional por 100 mil mulheres na população
brasileira:

De acordo com os dados levantados pelo ministério da justiça, não se trata de uma
população com número irrisório e que é capaz de ser desconsiderada e colocada de lado, sem
a mínima atenção do Estado, trata-se de um número que vem crescendo consideravelmente
ano após ano em ritmo acelerado da ordem de 10,7% ao ano, saltando de 12.925 mulheres
privadas de liberdade em 2005 para a marca de 33.793, registrada em dezembro de 2014.
Na próxima figura (Fonte: Infopen, dez./2014 p. 41) avalia-se a distribuição de
sentenças de crimes tentados ou consumados entre os registros das mulheres no sistema
prisional brasileiro
Observa-se que o alto índice de criminalidade feminina é no mundo das drogas, boa
parte por influência dos seus companheiros, nessa situação ou eles foram presos e suas
mulheres acabaram assumindo o comando em seu lugar - pois era uma das fontes de renda
daquela família ou a única fonte- ou pelo fato de não conseguirem outro meio de sustento,
viram no tráfico de drogas uma oportunidade fácil e lucrativa de alcançar uma melhor
condição de vida. Como demonstra no levantamento de dados da INFOPEN. O tráfico de
drogas e a associação para o tráfico é responsável por 64% das penas das mulheres presas,
essa parcela é bem maior que entre o total de pessoas presas, de 28%. (MONTEIRO, 2016)
A criminalidade feminina existe, e isso é fato, a questão é que o Estado busca fazer
com que estas mulheres sejam despercebidas pela sociedade, e elas sofrem por isso, muito
mais do que os homens.

Portanto, a Criminologia crítica feminista revelou que não é somente durante o


processo que o sistema penal atua com seletividade em relação às mulheres, visto
que até mesmo na criação de tipos legais, por meio da estereotipia, a discriminação
está presente. Não se trata de sustentar a igualdade absoluta entre o ser humano
feminino e o ser humano masculino, levando em consideração que inúmeras
diferenças já foram ressaltadas, como a questão da reprodução. Entretanto, essas
diferenças não implicam sustentar a tese da superioridade ou inferioridade. Logo,
pode-se concluir que as diferenças trazidas no Código Penal, no tratamento das
mulheres, são baseadas em discriminações e preconceitos. Em suma, esse
tratamento diferenciado está a serviço de interesses masculinos e da perpetuação do
dogma da superioridade masculina.(SILVIA; BORGES, 2011, p. 21 e 22).

O direito penal foi feito por eles e para eles, a seletividade penal sempre existiu desde
a origem das leis até a sua aplicação, ele é seletivo quanto a condição social do cidadão, na
sua cor de pele e no gênero. Sendo que ainda o progresso demora a fazer parte do Direito
Penal, sabe-se que durante a história houve muito sangue derramado para a conquista dos
direitos hoje existentes, mas ainda se busca a quebra dos paradigmas dos preconceitos sociais.

Vale salientar a contribuição da criminologia crítica, que, ao incorporar a


perspectiva de gênero, relevou uma visão dominantemente masculina nos conceitos
jurídicos.
Esse processo de segregação e preconceito, traduzido em leis penais impregnadas
de valores profundamente machistas, representa o oposto da aspiração dos direitos
humanos, que visam contemplar, sem exceção, todas as pessoas. A própria origem
dos direitos humanos custou muito sangue, muita luta social. Há, portanto, manifesta
incompatibilidade. A dignidade representa a essência da condição humana. No
entanto, é ameaçada por mecanismos formais e informais de opressão, exclusão e
dominação. Logo, é forçoso reconhecer que o sistema penal trata a mulher de
maneira preconceituosa. Sob esse aspecto, o campo penal muitas vezes soluciona
questões essenciais, mas, de outra feita, age reforçando velhas discriminações.
(SILVIA; BORGES, 2011, p. 21 e 22).

Ao estudar a criminologia, busca-se uma base constante nos direitos da pessoa


humana, e deste modo combater todas as formas de opressão por razões sexuais e de gênero,
raciais, étnicas, etárias e de classe, procurando extinguir todo tipo de exclusão social existente
por meio da história. Por isso se faz necessário lutar contra a seletividade do direito penal no
país e do conservadorismo machista, a fim de vislumbrar outras formas de sociabilidade, não
mais pautadas no androcentrismo (NETTO; BORGES, 2013, p. 322).
As questões que envolvem o fracasso do sistema penitenciário são inúmeras, e além
dos problemas internos dos presídios encontramos problemas externos que são da alçada dos
chefes do poder executivo, como governantes tem o dever de executar as políticas públicas no
meio social para evitar o aumento da criminalidade.
Sabe-se que, para um cidadão ser preso ele de algum modo cometeu algum delito, ou
não. Existem diversos porquês de alguém cometer uma infração, mas um deles é a falha da
educação na vida daquele ser humano, seja educação no seio familiar ou educação escolar. A
maioria das pessoas que estão presas possuem um histórico familiar perturbado, isso não
significa dizer que todos que possuem uma família problemática podem vir a cometer delitos,
mas que um dos fatores que mais influenciam a criminalidade é o ciclo vicioso instaurado
dentro dos lares (ALMEIDA, 2006).
Esses ciclos exercem uma influência muito grande na vida de uma pessoa, e na
construção da sua identidade, além das implicações psicológicas, levando ao cometimento de
agressões e atitudes violentas.
Essa é uma das respostas de porque o sistema penitenciário ser seletivo, trata-se de
uma deficiência sofrida pelo Estado em arcar com as suas responsabilidades de extinguir com
todo tipo de problema social.
Nana Queiroz, narra a história de vida de várias detentas antes de adentrarem nos
muros das penitenciárias, e as suas experiências depois que passam por eles, na sua obra
“Presos que menstruam” (QUEIROZ, 2016). São expostos alguns relatos, reflete a questão da
cultura do meio social em que, essas mulheres suportaram durante anos, antes de cometer
algum delito.
Viviam com pais violentos e mães omissas, a maioria por vir de família pobre não tem
oportunidade de estudar pois precisavam ajudar a família com a mantença da casa, e sonhavam
com o dia que poderiam viver suas próprias vidas e encontrar amor em algum lugar do seu
caminho, e quando conseguiram a suposta liberdade se depararam com maridos violentos e
que não lhe respeitavam, quanto mulher e ser humano, ou então criminosos que lhe levaram
para o mundo da ilicitude. Como destaca a autora, “Outra descoberta interessante: 40% das
mulheres eram vítimas de violência doméstica antes de serem encarceradas. Algumas delas,
inclusive, eram obrigadas pelo marido a traficar.” (QUEIROZ, 2016).
A questão a ser refletida nesse caso, não é o fato da influência dos homens na vida das
mulheres e sim do caos vivido por elas, desde o seu nascimento, é tomado o seu livre arbítrio,
a sua vontade de viver, elas só querem e procuram uma vida diferente daquela. Mas
encontram-se condenadas a serem submissas perante os homens que aparecem em suas vidas.
Muitas dessas mulheres têm a sua jovialidade arrancada precocemente, seja por se
casar nova, por ser mãe com pouca idade, por ter que trabalhar sem antes estudar, por entrar
na vida do crime, entre outras questões. Quando adentram no cárcere, ainda sofrem com a
discriminação, e descobre que a lei não passa de uma ilusão que existe nos códigos, pois eles
são ilustrados apenas com punições que beneficiam o sistema desonesto da polícia no
inquérito policial, mas, quando é necessário para sobrevivência ou para a justiça do cidadão
eles são descartados pelo sistema corrupto das prisões, sejam pelos agentes penitenciários,
policiais ou os próprios(as) gestores.

Lembro-me de uma visita à Unidade Materno-Infantil de Ananindeua, no Pará,


quando conversava com cerca de vinte mães com seus bebês no colo. Perguntei
quem ali havia sido presa grávida e sofrido algum tipo de tortura. A metade delas
levantou a mão — e algumas riram um riso amargo. — Bater em grávida é algo
normal para a polícia — respondeu Aline. — Eu apanhei horrores e estava grávida
de seis meses. Um polícia pegou uma ripa e ficou batendo na minha barriga. Nem
sei qual foi a intenção desse doido, se era matar o bebê ou eu. A casa penal me
mandou pro IML para fazer corpo delito, mas não deu nada. Relatos de outras presas
confirmaram o que disse Aline. Michelle, já de barrigão protuberante, apanhou de
uma escrivã, outra mulher. Na hora da detenção, Mônica recebeu socos de um
policial, que disse que filho de bandida tinha que morrer antes de nascer.
(QUEIROZ, 2016)

Além das questões anteriores a vida na cadeia existe os motivos que levaram essas
mulheres a esse destino, e quando adentram no sistema prisional passam por experiências que
mudam as suas vidas.
De acordo com o estudo realizado, foi interpretado que a mulher dentro do cárcere tem
mais do que a pena imputada pelo Estado, que é a privativa de liberdade, mas outras penas
que derivam da vivencia nas penitenciárias.

No Brasil, são poucas as unidades penais exclusivamente para mulheres. Quando


existem são, no geral, estabelecimentos pequenos, anexos das prisões masculinas,
ou prédios antigos destinados anteriormente a outros fins. Quando inexistentes, a
solução é a destinação de setores ou alas de estabelecimentos masculinos – cadeias
públicas, delegacias, presídios, penitenciárias – para o alojamento de mulheres.
(DIÓGENES, 2017).

Muitas vezes longe da sua família; pois existem pouquíssimas unidades que recebem
detentas femininas; sem proteção da lei ou da justiça; não possuem uma defesa justa assim
como determina a Constituição e o processo de execução penal; são abandonadas pelos amigos
e pelos próprios familiares, muitas vezes por vergonha de ter uma filha ou uma mulher que
foi presa, ou pelo fato da distância ser muito grande e a despesa da viagem não suportar com
a condição financeira.

Uma particularidade do encarceramento feminino é o abandono da mulher presa por


seus familiares. Dados estatísticos comprovam que a maioria das presas, 60% delas,
não recebe nenhum tipo de visita. Isso ocorre por dois motivos essenciais. Um se
trata de logística: como a quantidade de mulheres presas é reduzida em comparação
aos homens, existe menor quantidade de penitenciárias femininas, o que resulta em
muitos casos no afastamento da presa de sua localidade natal, o que dificulta
sobremaneira as visitas, já que a locomoção significa despender um valor financeiro
que na maioria dos casos as famílias não possuem. (NETTO, 2013, p. 322)

Penalizada três vezes, primeiro pela pena imputada ao seu crime, segundo pelo
abandono do Estado em sua condição de ser mulher e de merecer a atenção que é sua de direito
e terceiro pela sua família. Condenada por dois crimes, primeiro perante o Estado, que foi o
delito em si, e segundo pela sociedade, por não cumprir o seu papel social de ser uma mulher
honrada como ordena o “estatuto da família” e da igreja.

Desta forma, a mulher autora de qualquer desvio recebe inicialmente uma punição
social, por não ter cumprido seu papel, e caso esse desvio se configure em um tipo
penal, irá também sofrer a punição formal do Estado que reproduz os valores
reconhecidos na sociedade. (NETTO, 2013, p. 322)

A instituição penitenciária despersonaliza o cidadão, e em vez de lhe dar oportunidades


de dignidade, com a pena de prisão ressocializando o condenado, ela lhe tira toda a esperança
de tornar-se uma pessoa melhor, seja homem ou mulher. O presente estudo enfatiza a condição
da mulher dentro do cárcere, por ela sofrer em uma escala maior dentro da prisão, a família, a
religião, os mecanismos de comunicação, a política, o direito, a justiça, tem como paradigma
essencial o masculino, essas instituições consideram a mulher como inexistente se não seguem
o modelo machista e patriarcal, e que a possibilidade da mulher quebrar essas barreiras
impossibilita o seu reconhecimento como sujeito de direitos. (NETTO, 2013, p. 328).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Procurando compreender, a posição da mulher a partir de um breve histórico e como


as relações de gênero se constituíram ao longo do tempo, foi possível constatar que a
discriminação vivenciada pela mulher na sociedade é histórica e cultural, e que reflete
consideravelmente no cárcere, causando a sua invisibilização perante a sociedade e o Estado.
O patriarcado foi consolidado desde as primeiras comunidades, da formação do Estado
no início da pré-história até as sociedades contemporâneas, por isso é possível perceber como
se constituiu o processo de marginalização da mulher.
Dessa forma, trouxemos a discussão entre os sexos para podermos comparar melhor
os Direitos dos Homens e os Direitos das Mulheres. A consolidação da posição masculina na
sociedade de classes estabeleceu a supremacia dos homens no ordenamento jurídico e de
poder. Não é difícil perceber o lugar social que a mulher ocupa na sociedade, principalmente
no meio jurídico, o direito entre os sexos são desiguais, como por exemplo, na ocupação dos
cargos, nas diferenças de funções e salariais, bem como no processo de ascensão profissional
tardio.
Todo esse contexto é reflexo dos estigmas e estereótipos em que historicamente foram
imputados a mulher. Os pudores e os dogmas sociais sempre foram os seus primeiros grilhões.
Precisava ser pura, ser casta e ser obediente. Compreender a ordem machista dentro de um
determinismo social em que não podia contestar. Sendo assim, aquelas que se aventuraram
em quebrar essa determinação instituída pela sociedade, injusta e desigual, foram jogadas na
prostituição, no crime, na discriminação das adulteras, desquitadas, separadas, divorciadas e
abandonadas.
O estudo buscou demonstrar que a mulher sofreu com a criminalização e com todo
tipo de atrocidade que possa cogitar, desde as masmorras, cárceres privados, segregação
social, discriminação e aprisionamento, que levaram ao longo do tempo a condicioná-la a
posição social inferior, nos presídios “modernos” não é diferente. O seu sofrimento é
potencialmente maior que dos homens dentro dos presídios. Vivem em condições desumanas
e degradantes.
Procurou-se comprovar que, a ótica masculina marginalizou-a perante o mundo, e
dentro desta mesma perspectiva foi abandonada a própria sorte. Nos presídios femininos, seus
desejos, seus anseios, sua condição de mulher e de mãe são negados. A exclusão social é mais
um processo da marginalização da mulher. A falta de condições materiais e da infraestrutura
dos presídios é mais um reflexo da invisibilização do Estado que a cada dia cerceiam seus
direitos como cidadã e fere substancialmente os Direitos Humanos perante a sociedade.
Como foi discutido, é notória a falência do sistema prisional brasileiro e
especificamente o feminino. De acordo com os dados de pesquisa nacional, a criminalidade
feminina tem aumentado consideravelmente, mas ainda não é suficiente para que as entidades
públicas tomem consciência do que essas mulheres passam dentro das prisões.
Busca-se uma base constante nos direitos da pessoa humana para combater todas as
formas de opressão por razões sexuais e de gênero, raciais, étnicas, etárias e de classe. Por
isso se faz necessário lutar contra a seletividade do direito penal no país e do conservadorismo
machista, a fim de vislumbrar outras formas de sociabilidade, não mais pautadas no
androcentrismo.
Nessa perspectiva, conclui-se, que é necessária a busca por políticas públicas que
atendam as deficiências do sistema penal atual, para que as leis sejam aplicadas conforme as
expectativas do legislador e que atendam as demandas da sociedade contemporânea e assistam
de maneira satisfatória aos direitos das mulheres e a respeitem como ser humano digno de
direitos.

REFERÊNCIAS

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Identidade Feminina da Mulher Presa: Um Estudo de Caso. Universidade Presbiteriana

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SILVA, Lillian Ponchio e; BORGES, Paulo César Corrêa (org.) Sistema Penal e Gênero:
Tópicos para a Emancipação Feminina. São Paulo: Cultura acadêmica, 2011. P. 21 e 22
MULHERES PRESAS: reflexões a partir do movimento feminista270

Iully Magalhães C. Gomes271


Elba Ravane Alves Amorim272

RESUMO

A temática abordada surge em decorrência da contemporaneidade sempre presente acerca das


problemáticas do sistema penal brasileiro, em detrimento a escassez de conteúdo informativo-
crítico no tocante a situação da criminalidade feminina e suas condições precárias dentro do
sistema prisional. O presente artigo analisa não somente as circunstâncias acerca da
marginalização, mas também como o ordenamento penal contribui para perpetração das
desigualdades, tornando inviável o caráter ressocializador da pena, bem como, de que modo
o Movimento Feminista vem discutindo esse tema. Tendo como objetivos específicos:
Apontar para as mudanças conquistadas pelo Movimento Feminista no que diz respeito à
criminologia; Analisar a situação das penitenciárias femininas e como o Estado colabora para
reincidência; Problematizar critérios jurídicos para aplicação da pena. O estudo será
fundamentado em pesquisa bibliográfica e levantamento de dados por meio de Pesquisa
Qualiquantitativa através do estudo de documentação provenientes de estudos científicos e
levantamento de dados oficiais e fornecidos por trabalhos científicos disponíveis para acesso
público, interpretando os dados obtidos à luz da Criminologia Feminista e do Direito Penal,
buscando uma concepção cabível a realidade concreta dessas mulheres, aplicando as
particularidades observadas no Método Indutivo, em virtude do seu caráter exploratório.

Palavras-chave: Sistema Penal; Movimento Feminista; Encarceramento.

INTRODUÇÃO

O cárcere no Brasil ganhou enfoque desde o massacre no presídio do Carandiru, que


alertou para os diversos problemas existentes dentro de uma unidade prisional, dentre eles, a
superlotação. Entretanto, tal atenção não é dada no tocante à questão do encarceramento
feminino, que vem crescendo rapidamente no decorrer dos anos. A temática versa sobre as
concepções patriarcais de gênero inserida em diversos contextos sociais e como isto está
diretamente ligado aos problemas do cárcere.
O presente trabalho tem como objetivo pesquisar a atuação do Movimento Feminista
no que diz respeito à defesa dos direitos da mulher que se encontra em situação de
aprisionamento no país; Refletir acerca de questões históricas concebidas pelo patriarcado e

270
Ciências Criminais, Cárcere e Drogas
271
Iully Magalhães Cintra Gomes. Centro Universitário Tabosa de Almeida ASCES-UNITA.
iullycintra11@gmail.com
272
Orientadora. Elba Ravane Alves Amorim. Centro Universitário Tabosa de Almeida ASCES-UNITA.
elbaamorim@asces.edu.br
sua contribuição para um maquinário de controle social mediante opressão; Problematizar a
relação entre os crimes praticados pelas mulheres, a construção do gênero e o contexto fático
que ensejou tal situação.
A pesquisa demonstra elevada importância, uma vez que é imprescindível um
diagnóstico das falhas estatais, assim como, do sistema penal brasileiro, em detrimento à
problemática da violência, que é bastante pertinente e atual no que diz respeito aos anseios da
população.
Desta feita, fica evidente a necessidade de um estudo que não corrobore com antigos
paradigmas a respeito da mulher, de modo a viabilizar a reflexão acerca das normas penais
punitivas em contrapartida a sua aplicabilidade e execução, devido à ausência de políticas
públicas sociais eficientes, capazes de proporcionar a prevenção dos crimes.
Inicialmente o trabalho irá abordar historicamente a origem do Movimento Feminista
no Brasil, suas pautas e conquistas ao longo dos anos. Do mesmo modo, será abordado a
Criminologia Feminista, seu surgimento, ideias iniciais e a inserção da pauta no país.
Na segunda seção, será analisada a atuação do Movimento Feminista em defesa das
mulheres encarceradas no país, como tem se dado esse protagonismo, o que tem sido
reivindicado e através de quais projetos.
Na terceira seção, serão averiguados alguns dados obtidos através de pesquisa
documental e levantamento de dados oficiais, sendo observados aspectos sociais, políticos,
econômicos e culturais, concomitantemente, serão apontados dilemas no que corcene a
ressocialização da indivídua presa
O estudo será respaldado em pesquisa bibliográfica (MARCONI, 2001) e na análise de
documentação indireta, ou seja, fontes materiais concretas e finalizadas, porém, ainda sem
tratamento analítico-crítico (LOPES, 2006). Os dados desses documentos serão levantados
com base na Pesquisa Qualiquantitativa (SILVA, 2006), através de pesquisa documental
(FERRARI, 1982) e bibliográfica, uma vez que trataremos de dados que ainda não receberam
tratamento analítico, bem como, trabalhos científicos de mesmo cunho social (SILVA, 2003).
Destarte, será utilizado o Método Indutivo (PRESTES, 2006) para compreensão e
aplicação prática dos estudos teóricos na realidade das penalmente condenadas pelo Estado,
partindo de constatações mais particulares para planos mais abrangentes.
Portanto, o presente artigo busca compreender como estigmas históricos de racismo e
misoginia, conseguem através da consequente desigualdade, criar um sistema de perpetuação
de diferenças de classes e opressão.
1 O MOVIMENTO FEMINISTA E A CRIMINOLOGIA COMO PAUTA NO BRASIL

É custoso estudar a história do Brasil com relação ao movimento em questão, devido


à escassez de conteúdo disponível. Mas, em que pese o movimento social pela busca de
igualdade entre homens e mulheres, em suas concepções gerais, teve início, ainda que de
forma tímida, durante o Brasil Colônia (1500-1922) e se divide em três ondas.
As conquistas das mulheres nesse período foram ínfimas em razão da forte influência
do patriarcado, que segundo Sylvia Walby, socióloga britânica, é: “conceito capaz de
‘capturar a profundidade, penetração ampla e interconectividade dos diferentes aspectos da
subordinação das mulheres” (WALBY, 1990, p.2)
Essa subordinação a que Sylvia se refere se manifesta em dois vieses: o público e o
privado, que é exercido através da família (WALBY, 1990). É proveniente do lar a forma com
que se estabeleceram as relações intersubjetivas. As mulheres enxergadas pela ótica do
patriarcado estão sujeitas aos “cuidados” de seu pai até o dia do casamento, momento a partir
do qual, sua devoção passa a ser de seu marido.
Em que pese, a primeira onda, que teve Nísia Floresta como precursora, buscou
reivindicar direitos políticos, conquistando o reconhecimento do direito da mulher à educação.
Em 1922, ano da Semana da Arte Moderna, também consagrou a luta feminista com a criação
da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, que tinha como objetivo o direitos
femininos ao voto e ao trabalho sem outorga conjugal (RIBEIRO, 2014)
A segunda onda inicia-se por volta dos anos 70, quando a democracia encontrava-se
em crise, teve como pauta a valorização do trabalho da mulher, direitos sexuais e de proteção
com relação à violência doméstica (RIBEIRO, 2014). Consoante, formou-se o Movimento
Feminino pela Anistia; criou-se a Fundação das Mulheres do Brasil e, foi aprovada a lei do
divórcio. Acrescente-se ainda, 1975 foi considerado o ano internacional da mulher, e em 1980
foi criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, que posteriormente passou a ter status
ministerial (FAHS, 2016).
Os anos de 1990 marca o início da terceira onda, com a necessária pretensão de
desconstrução dos pensamentos das ondes anteriores. Em 1949, Simone de Beauvoir publicou
seu livro O Segundo Sexo, onde tratou a desnaturalização do ‘ser mulher’, ao afirmar a famosa
frase “não se nasce mulher, torna-se”, mudando assim o conceito de gênero, haja vista que o
sexo é dado biologicamente, mas o gênero é construído a partir das perspectivas sociais
(RIBEIRO, 2014).
Em suma, nos anos seguintes, até os dias atuais, houve grandes avanços a respeito da
compreensão do que vem a ser gênero e como o patriarcado ainda possui raízes profundas na
sociedade civil. Importante frisar que o Feminismo não é uma corrente única, homogenia. Há
diversas correntes acerca do Movimento feminista em si, e sobre a Criminologia Feminista
também.
Entretanto, embora existam vários “feminismos”, Wayne Morrison (2006, p. 571) os
define como:

[...] a criação e a justificação consciente (“às vezes inconsciente”), pelas próprias


mulheres, de representações do feminino e da posição da mulher na realidade social
– em contraste com as ideias aceitas de “senso comum” ou do dia-a-dia, que são
tidas como impregnadas de concepções masculinas –, e que têm por objetivo a
emancipação da mulher.

Contudo, não observamos um marco histórico do surgimento da Criminologia


Feminista no Brasil. É sabido que o estudo do crime feminino foi inaugurado por Cesare
Lombroso, precursor da Escola Clássica, que baseando seu estudo antropológico em fatores
endógenos, utilizou-se do método orgânico de investigação (MOLINA, 2006).

Talvez interesse conhecer como consegui chegar as atuais conclusões que apresento.
Em 1807 eu realizava umas investigações sobre cadáveres e seres humanos vivos
nas prisões e asilos de anciãos na cidade de Pavia. Desejava fixar as diferenças entre
loucos e delinquentes, mas não estava conseguindo. Repentinamente, na manhã de
um dia de dezembro, fui surpreendido por um crânio de um bandido que continha
anomalias atávicas, entre as quais, sobressaíam uma grande fosseta média e uma
hipertrofia do cerebelo em sua região central. Essas anomalias são as que
encontramos em invertebrados inferiores. (LOMBROSO: 1906, p. 665)

Deste modo, Lombroso associou a delinquência à hereditariedade e tantas outras


características físicas como; dimensões cranianas, mandíbula acentuada, estrabismo, dentes
irregulares, por exemplo. A consequência disto foi a desigualdade social acentuada e a
diferenciação de setores da população (LOMBROSO, 1980).
No caso das mulheres, que precipuamente, sob a ótica do Catolicismo e da figuração
de Maria como um modelo a ser seguido, eram tidas como doces e inábeis. Essa perspectiva
só mudou durante a inserção do Sistema Capitalista na Europa quando gradativamente foram
surgindo criminosas, despertando o interesse pelo estudo da mulher delinquente (RIBEIRO
BALERA; DINIZ, 2013).
Até os dias atuais as mulheres sofrem pelos estigmas deixados pelos primeiros estudos
criminológicos que tentaram explicar a criminalidade feminina na época. O entendimento de
que existem crimes típicos das mulheres, e essa temática muito está relacionada também à
prostituição, de tal modo que as questões penais na época foram elaboradas quase que com
exclusividade para estas mulheres;

É interessante notar que os chamados estigmas atávicos não eram os mesmos para
os homens e para as mulheres. Um exemplo é com relação à aparência física.
Normalmente os homens perigosos tinham aparência não atraente (...). No caso das
mulheres, a beleza sempre teve um papel relevante na construção dos estigmas
criminosos. No caso dos crimes ligados à sexualidade, como prostituição, a beleza
era considerada definidor para medir a periculosidade da mulher, em outros casos,
a aparência física era utilizada para minimizar situações em que a mulher era autora
de crimes (FARIA apud LOMBROSO, 2010).

Apesar dos estudos de Lombroso terem trago a tona o debate a respeito da sexualidade
feminina e o estudo da mulher criminosa, por muito tempo, esse tema ficou estagnado nessa
perspectiva reduzida da criminologia. Embora tivesse existido interesse pelo estudo da mulher
como criminosa, a metodologia aplicada diverge da que foi empregada no estudo do homem
como delinquente. Apesar de ter partido de pressupostos antropológicos, o estudo da mulher
como criminosa, realizado por Lombroso, se atém muito mais a sexualidade e a suas práticas
do que a os elementos meramente biológicos.
É demasiado complexo e por vezes, controverso, trata da criminologia de gênero
atualmente. Não se pode fugir do fato de que é necessário sim, analisar os aspectos biológicos,
psicológicos e principalmente sociais como fatores de influência, o grande desafio é avaliar
todos esses elementos de modo que não se produza novos preconceitos gerando uma mácula
em certos grupos sociais.
A Criminologia Crítica juntamente com a Criminologia Feminista, são bastante
recentes, tendo surgidos em meados dos anos 1960/1970. Entretanto, essas correntes não
convergem e acabam difundindo de forma amena os mesmo preconceitos. Há certa reprovação
ao Movimento Feminista no tocante às duras propostas penalizadoras para o Sistema Penal.
Haja vista que, se de um lado o movimento deseja reprimir crimes de violência contra mulher
mediante agravamento das penas, por outro busca assegurar direitos fundamentais às mulheres
presas, requerendo penas mais amenas ou até mesmo o desencarceramento (GALVÃO, 2016).
Vale relembrar o que foi dito anteriormente, o Movimento Feminista não constitui um
movimento único. E embora à primeira vista pareça contraditório o discurso daquilo que é
tipo como “Feminismo Popular” reproduz, adiante será possível compreender tais
posicionamentos.

1. ATUAÇÃO DO MOVIMENTO FEMINISTA EM DEFESA DA MULHER


ENCARCERADA NO BRASIL
O Brasil atentou para a massa carcerária feminina em meados de 1997, face à
denúncia de que uma mulher grávida da Casa de Detenção do Tatuapé haveria sido
torturada. Neste momento foi realizada uma visita à referida Casa, a advogada e missionária
Michael Mary Nolan coordenou uma equipe, juntamente com a Advogada Sônia Nolan e o
então deputado federal Luiz Eduardo Greenhalgh, membro da Comissão de Direitos
Humanos da Câmara. A partir daí, criou-se o grupo Cidadania nos Presídios, que pretendia
tirar da invisibilidade a população carcerária e trazer para sociedade o debate acerca da
violação de direitos. O enfoque também ocorreu em outras áreas, o que fez o grupo crescer e
ampliar o debate, fundando assim, o Instituto Terra Trabalho e Cidadania, segundo
informações retiradas do próprio site do instituto.
O fato é que, atualmente, o Instituto Terra é uma das, se não a entidade mais atuante
em defesa dos direitos da população carcerária. Confeccionou o Manual de Direitos dos
Presos em 1999, e realizou ações como criação de grupos de estudo e trabalho dentro das
penitenciárias, bem como organizações dentro das instituições prisionais que viabilizasse a
defesa desses direito, através da Associação de Juizes da Democracia (AJD), Associação
Brasileira de Defesa da Mulher da Infância e da Juventude (ASBRAD), Instituto Brasileiro
de Ciências Criminais (IBCCrim), Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e
também a Pastoral Carcerária.
Muitas foram as ações realizadas pelo Instituto desse a sua criação até os dias de
hoje. Mais recentemente, no inícios de 2017 o Instituto lançou a pesquisa:
MulhereSemPrisão: desafios e possibilidade para reduzir a prisão provisória de mulheres.
A pesquisa apontou para várias irregularidades a respeito das mulheres em cárcere no
país, sendo muitas delas primárias que foram condenadas como reincidentes, ou que já
cumpriram a pena, mas continuam presas, tem as que se enquadram nos requisitos da pena
restritiva de direitos, porém, foram sentenciadas a cumprimento de pena privativa de
liberdade. Essas observações apontam para a seletividade realizada no tocante ao controle
Penal, como avalia Matheus Felipe de Castro em seu livro Discurso Sediciosos, 2007, p.
133, o sistema penal brasileiro é “um dos aportes do controle social engendrado pelo aparelho do
controle estatal burguês”.
O problema do cárcere no Brasil é estrutural. Um maquinário pensando para oprimir
que deve ser revisto, pois a partir dele é realizada a manutenção da dominação de uma classe
sobre a outra. Perdendo seu caráter precípuo de controle social através do qual se realiza a
tutela dos bens jurídicos, onde quem errou deve pagar, mas também deve ser ressocializado
para reingressar na sociedade com dignidade, de modo a reduzir as estatísticas criminais –
de forma efetiva (NAVES, 2008).
O Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), em levantamento realizado em
2014 trouxe a constatação de que o Brasil possui a terceira maior população feminina
encarcerada no mundo. Desde 2005 essa população vem crescendo cerca de 11% ao ano. O
InfoPen de 2018, informa que em Junho de 2016 a população feminina presa corresponde
arredondado a 42.355 (quarenta e dois mil, trezentos e cinquenta e cinco) mulheres, para
27.029 (vinte e sete mil e vinte e nove) vagas. Destas mulheres, mais da metade encontra-se
nessa situação por comércio de drogas.
O relatório trás o dado assustador de que 45% das mulheres encarceradas ainda não
foram condenadas. Diante disso, é difícil desacreditar na isonomia do processo penal,
principalmente se nos ativermos a origem dessas mulheres, pobres, baixo nível de instrução
educacional e negra. Quase ninguém discute com relação a necessidade de punir pessoas que
cometem crimes, contudo o sistema atual como um todo tem servido para ineficiência estatal
no tocante ao cumprimento do seu papel social.
O Estado deve buscar promover os direitos e garantias consolidados na Magna Carta,
também conhecida como Constituição Federal. Talvez de todas as previsões contidas na
referida carta, a de buscar a igualdade social seja a mais transformadora de todas. Haja vista
que, mais eficaz prevenir o crime, fornecendo educação de qualidade, qualificação
profissional, oportunidades de emprego e acesso a saúde, do que remediar a situação
construindo novos presídios.
Drauzio Varella, médico conhecido no cenário nacional, foi voluntário durante mais
de uma década na Penitenciária Feminina da Capital, em São Paulo, em seu livro
Prisioneiras, de 2017, p. 137 ele traz a seguinte constatação:

Enquanto vigorarem as leis atuais de combate às drogas ilícitas e insistirmos em


manter no regime fechado pequenos contraventores que não praticaram atos
violentos, nada leva a crer que haverá saída para os problemas de superpopulação
que transformaram nossas cadeias em escolas do crime. Pelo contrário: o
desemprego, a falta de oportunidades para os mais jovens, a desagregação familiar
e as sucessivas crises econômicas enfrentadas pelo país vão agravá-los.

À crítica que se faz ao Direito Penal, neste ponto, é referente à ausência de política
de combate às drogas, e a tentava pífia de dar fim a um aparato extremamente lucrativo
através da Lei 11.343/2006. A consequência foi o crescimento populacional exacerbado.
Antes da referida lei, 13% dos presos brasileiros cumpriam sentenças por tráfico, hoje, só no
estado de São Paulo, o contingente é de 30% da população masculina e 60% da população
feminina. No Brasil, o aprisionamento de mulheres por tráfico cresceu 567% entre o período
de 2000 a 2014 (VARELLA, 2017).
Cabe aqui, trazer de volta a pesquisa ‘MulheresSemPrisão’ realizada pelo ITCC, que
constatou que a grande maioria das mulheres presas pelo comércio de drogas não são chefes
do tráfico, mas na sua maioria, provedoras do lar. E aqui, vale pontuar que, o patriarcado
está intimamente ligado a opressão e o quanto a luta feminista deve caminhar linear à
criminologia.
Tendo em vista que as mulheres vêm conquistando de forma muito paulatinamente
espaços, exemplo disso é o direito ao trabalho, essencial no sistema capitalista, é inequívoco
afirmar que isso escancara uma série de fatores a serem aprimorados pelo Estado, que além
de oferecer oportunidades mais igualitárias como mencionado anteriormente, tem de se
estabelecer uma economia mais estável e com mais oportunidades de emprego, mas não
somente isso, a desigualdade salarial entre homens e mulheres ainda constitui uma realidade.
Cabe aqui retomar a questão controversa do Movimento Feminista que busca penas
brandas para punição das mulheres marginalizadas face ao desejo de punição maior para
crimes em que a mulher figura no polo passivo.
Ressalte-se a diferença entre crimes patrimoniais e crimes contra o gênero, oriundo
de uma opressão secular. No primeiro deve-se observar, ressalvadas às exceções, a camada
social e raça que o individuo ocupa, isso quer dizer que, são violências individuais, sendo
elas em sua maioria resposta à opressão estrutural praticada pelo Estado (GALVÃO, 2016).
Em contrapartida, no que tange a violência de gênero, essa atinge toda uma
coletividade, em todas as classes sociais, mesmo em proporções e repercussões diferentes. A
diferença crucial é que no crime contra o gênero além de pontuar a violência existente, deve
ser levado em conta que a vítima é sujeito oprimido. Deste modo, compreendemos que a
pauta criminalizadora do Movimento Feminista é por entender que aquela conduta foi
praticada pelo fato da vítima ser historicamente oprimida (GALVÃO, 2016).

3 AUSÊNCIA DO ESTADO DAS UNIDADES PRISIONAIS COMO UM FATOR


DETERMINANTE PARA REINCIDÊNCIA

O Brasil tem pelo menos 83 Facções atuando em presídios. O DEPEN não possui
dados oficiais e recentes a respeito, contudo, o Primeiro Comando da Capital (PCC) é bastante
conhecido. A facção foi criada por oito detentos aprisionados no Anexo da Casa de Custódia
de Taubaté em agosto de 1993 (VARELLA, 2017).
... Fundado com a intenção declarada de “combater a opressão dentro do sistema
prisional paulista” e “vingar a morte dos 111 no massacre do Carandiru”, ocorrido
no dia 2 de outubro de 1992. O acontecimento teve repercussão internacional,
subverteu a disciplina e afrouxou o controle do Estado nos presídios de São Paulo
(VARELLA, 2017, p. 122).

O PCC, ou 15.3.3 referência à ordem numérica das letras a facção impõe sua
autoridade em todos os presídios femininos no estado de São Paulo. De acordo com o
Ministério Público, o grupo difundiu-se e atualmente atua em 27 estados do país, além do
Paraguai, Bolívia, Colômbia, Argentina e Peru (VARELLA, 2017).

O poder é exercido por uma hierarquia piramidal. Ao líder máximo está subordinado
um colegiado de sete membro encarregados de funções específicas como
administração do tráfico, planejamento de ações, guarda de armamentos, lavagem
de dinheiro, distribuição dos lucros, contratação de advogados – chamados de
“gravatas” –, ajuda material aos membros presos e seus familiares, contribuições
assistencialistas à comunidades em que atuam, implantação das normas do
Comando, julgamentos e punições por indisciplina, desvio de recursos ou traição.
(VARELLA, 2017, p. 122).

É fácil tornar-se membro do Comando mas, uma vez “irmão” é quase impossível de
sair, salvo apresentação de motivo de força maior ou alegar conversão à uma igreja. Nestes
casos a vida do crime deve ser abandonada integralmente, em caso de ser preso novamente,
enfrentará problemas graves.
Outrossim, as regras são bastante rígidas e a depender do descumprimento das normas,
este poderá ir a julgamento pela cúpula, onde a sentença é executada de imediato, e na ausência
do “réu”, um dos familiares poderá ser punido. O controle não é exercido somente durante a
estadia na cadeia, ao sair dela, o(a) “irmão(ã)” deverá dar baixa em seu cadastro, atualizando
a facção sobre seus dados, assim como o futuro endereço. (VARELLA, 2017)
O Estado tem se mostrado falho em diversos aspectos, na criação de políticas públicas,
no cumprimento das garantias sociais e no controle das unidades prisionais do Brasil. Para
Drauzio o “poder é um espaço abstrato que jamais permanece vazio.” (2017, p. 135).
A criação de leis que tipificam novos crimes ou agravam os já existentes, se colocam
como um obstáculo ao exercício do poder estatal dentro destas unidades. Uma vez que, o
contingente carcerário só cresce e superlotam celas, fica mais difícil evitar motins e
administrar com o mínimo de autoridade, propiciando o surgimento de grupos que
explorariam bem esse caos.
O problema dobra de tamanho porque isso torna inviável a prisão como um sistema
capaz de recuperar o indivíduo para reinseri-lo novamente ao convívio social. A ausência do
estado faz implodir os números da reincidência e parece ser cada vez mais, um problema
impossível de resolver, a medida que o tempo passa.
Desta feita, em se tratando da mulher presa, essa configuração torna-se ainda pior. De
acordo com os dados coletados pelo relatório do Departamento Penitenciário Nacional, em
dezembro de 2007 existiam o Brasil um quantitativo de 1.094 estabelecimentos penais, sendo
apenas 55 exclusivos para o sexo feminino.
Além de apontar a enorme discrepância entre presídios femininos e masculinos, o
relatório InfoPen (2008), indica a superlotação destas unidades. O Grupo de Trabalho
Interministerial, no mesmo ano sinaliza para problemas nas instalações que abrigam essas
mulheres, sendo alguns dos estabelecimentos penais reativados indevidamente para comportar
as detentas, sem oferecer a menor condição para execução da pena. (GOMES, 2018).
Sem adentar tanto nas questões pertinentes a fase de execução da pena, prevista na Lei
7.210/1984, o que se pretende pelo próprio ITCC é o desencarceramento em razão da
inviabilidade dos presídios como instituições de recuperação social, principalmente nos casos
em que as mulheres estão presas antes da sua condenação.
Outra crítica que se faz é a primeira fase do processo dosimétrico do Código Penal. O
artigo 59 “caput” do código elenca requisitos a serem observados no momento da aplicação
da pena, como; culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade do agente, motivos,
circunstâncias e consequências do crime, bem como, comportamento da vítima.
Sendo assim, se por um lado vemos um exemplo da aplicação do Princípio da
Individualização da pena, de outro, vemos um mecanismo de exercício do controle social. A
maioria dos critérios indicados pelo artigo é de caráter subjetivo do juiz, que importa lembrar,
é um ser humano com perspectiva de vida geralmente totalmente diferente, e poderá sim,
legitimar seus preconceitos através do próprio ordenamento jurídico.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo apresentado possui uma temática complexa, uma vez que seu conteúdo é
muito vasto. No entanto, apesar da profundidade e importância, tal assunto ainda não detém
a atenção que merece, tornando assim, escasso o material bibliográfico que trate da
criminologia feminina, especialmente no Brasil, bem como, são ínfimas as informações a
respeito da mulher presa no país.
A fim de melhor compreender o tema e suas implicações na sociedade atualmente,
foi realizada uma análise a respeito do surgimento do Movimento Feminista e sua pauta
igualitária de gênero, percorrendo de forma breve as três ondas no Brasil. Do mesmo modo,
foi pontuado a respeito do advento da Criminologia Feminista, através de Lombroso ainda
na Escola Clássica e como suas conclusões enraizaram estigmas negativos sobre o gênero.
Busca-se através deste trabalho, relacionar uma série de fatores que contribuíram
para ineficiência do sistema penal e as consequências sofridas, em sua grande maioria, pela
população que já sofre pelo modelo de estruturação do Estado. Demonstrando que o
Movimento Feminista deve estar imbricado a Criminologia, pois, faz-se oportuno um
diálogo esses dois vieses.
Deste modo, a questão da mulher presa deve ser repensada em contornos gerais. Como
lidar com uma sociedade eivada de preconceitos, promover igualdade social e de gênero,
mediante políticas públicas, e promover a recuperação dos indivíduos já marginalizados, que
somente será possível se o Estado sair da posição de abstenção e inclinar-se para atuação,
recuperando o poder administrativo dentro dos presídios, impedindo que estes sejam
dominados por facções.
Diante de tudo que foi exposto, é notório a necessidade de estudos que atentem para
realidade em que vivem as mulheres encarceradas no Brasil. E mais que isso, é preciso
desfazer-se da ideia de que o Direito Penal tem caráter preventivo e punitivo, somente. A
coerção é insuficiente para evitar a criminalidade, especialmente quando nos fatores
motivadores e o modelo atual vigente já demonstrou o seu fracasso em todos os aspectos de
finalidade e de pretensão.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei de Drogas. Lei nº 11.343/2006. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm> Acesso em: 20
de Agosto de 2018.

BRASIL. Dados Consolidados. Sistema Nacional de Informação Penitenciária – InfoPen.


Departamento Penitenciário Nacional. Ministério da Justiça, 2008. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7210.htm> Acesso em 18 de Maio de 2018.

BRASIL. Dados Consolidados. Sistema Nacional de Informação Penitenciária – InfoPen.


Departamento Penitenciário Nacional. Ministério da Justiça, 2018. Disponível em: <
http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen-mulheres/infopenmulheres_arte_07-03-
18.pdf> Acesso em 01 de Setembro de 2018.

CAMPOS, Carmen Hein de. Criminologia Feminista: Teoria feminista e crítica às


criminologias. 1.ed – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.

FARIA, Thaís Dumêt: A mulher e a criminologia: relações e paralelos entre a história da


criminologia e a história da mulher no Brasil. 2010. Artigo disponível em:
<www.publicadireito.com.br/conpendi/manaus/arquivos/anais/fortaleza/3310.pdf> Acesso
em 15 de Abril de 2018.

GALVÃO, Giovana. Criminologia e Movimento Feminista: um diálogo necessário no


combate ao machismo. Artigo publicado em 2016. Disponível em:
<http://justificando.cartacapital.com.br/2016/10/12/criminologia-e-movimento-feminista-
um-dialogo-necessario-no-combate-ao-machismo> Acesso em 17 de Agosto de 2018

ITTC. Instituto Terra Trabalho e Cidadania. MulhereSemPrisão. Disponível em:


<http://ittc.org.br/mulheresemprisao/> Acesso em 12 de Agosto de 2018

LOMBROSO, Cesar; FERRERO, Guglielmo. Criminal Woman, the Prostitute, and the
Normal Woman. Traduzido por Nicol Hahn Rafter e Mary Gibson. Durham: Duke
University, 2004.

VARELLA, Drauzio. Prisioneira – 1ª ed – São Paulo: Companhia das Letra, 2017.


É SENSACIONAL: a transgressão de direitos a partir da comercialização do crime
nos meios de comunicação, uma análise do caso “chorôrô na delegacia”. 273

Letícia Andrade Santos274


Benick Taypto de Santana275

RESUMO

O presente trabalho destina-se a analisar, de forma objetiva, o caso do jovem negro suspeito
de estupro, no qual logo após ter sido preso em flagrante delito e, ainda algemado, foi
entrevistado por uma repórter da Rede Bandeirantes. Sem nenhum comprometimento com o
jornalismo e a informação, o que se percebe na matéria é um show sensacionalista de jornais
que comercializam o crime como “produto” de audiência. Sendo assim, a pergunta que
fundamentou a nossa pesquisa é: qual a relação entre o comportamento midiático e a violação
de direitos dos supostos criminosos. A abordagem utilizada foi a qualitativa, pois realizou-se
uma pesquisa bibliográfica com análise de conteúdo, baseada na leitura de artigos, livros e
revistas acerca do tema. O método utilizado foi o dedutivo, uma vez que partimos da
criminalização em geral em torno de supostos infratores, encabeçada pela mídia, e depois
analisamos a criminalização no caso “chororô na delegacia”. O artigo está estruturado em três
tópicos, sendo precipuamente baseado nas doutrinas de Eugenio Zaffaroni.

Palavras-chave: Criminologia Midiática. Crime. Suspeito. Violação de direitos.

INTRODUÇÃO

São múltiplas e variadas as relações entre a mídia e a questão criminal, não é uma
novidade na atividade da imprensa nacional a identificação do produto “crime” como fator de
audiência nos veículos comunicativos. A exploração desse conteúdo se dá principalmente nos
programas que a doutrina classifica como “policialescos”.
Essa programação policialesca tem como característica central a exposição de pessoas
suspeitas de delinquirem, apresentadas em forma de espetáculo, com a exploração do
sensacional. Além de violarem direitos fundamentais e garantias processuais que são inerentes
ao réu, segundo a legislação processual penal pátria, funcionam como instrumento canalizador
de vingança, propagando ódio e preconceito. A essa prática jornalística, o autor argentino
Eugenio Raúl Zaffaroni atribuiu o nome de criminologia midiática, a qual centraliza o

273
GT 7 - Ciências Criminais, Cárcere e Drogas.
274
Graduanda. Universidade de Pernambuco. Membro do grupo de estudos Veredas de Criminologia.
leticiaandrade09@outlook.com.
275
Graduando. Universidade de Pernambuco. Membro do grupo de estudos Veredas de Criminologia.
leticiaandrade09@outlook.com.
problema da violência na pessoa do suspeito em uma análise simplória e desprovida de
qualquer base científica sobre o problema da criminalidade e violência urbana.
A partir disso, o estudo baseou-se na seguinte pergunta de pesquisa: qual a relação
entre o comportamento midiático e a violação de direitos dos supostos criminosos?
Sendo assim, definimos como o objetivo geral da pesquisa observar a relação entre o
comportamento midiático e a violação de direitos fundamentais dos suspeitos. Em seguida,
pautamos o primeiro objetivo específico do trabalho em compreender como o processo de
criminalização, através da mídia, constrói um discurso punitivista em torno dos
criminalizados; o segundo objetivo específico dessa pesquisa baseia-se em discutir como a
mídia brasileira, a partir do caso do “chorôrô na delegacia”, tornou-se instrumento de violação
sistemática de direitos fundamentais e, por fim, identificar as fragilidades da legislação pátria
quanto aos veículos de comunicação e propor alternativas.
Partindo do estudo da criminalização em geral em torno de pessoas suspeitas expostas
pela mídia e, posteriormente, fazendo uma análise de como se dá a violação de direitos no
caso concreto, utilizar-se-á o método dedutivo. A abordagem utilizada foi a qualitativa, pois
realizou-se uma pesquisa bibliográfica com análise de conteúdo, baseada na leitura de artigos,
livros e revistas acerca do tema, além do próprio caso.
Ademais, o artigo está estruturado em três tópicos, tendo como marco teórico a
doutrina de Eugenio Zaffaroni, pois grande responsável pelo conhecimento latino-americano
dos estudos criminológicos. O primeiro versa sobre os aspectos conceituais da Criminologia
Midiática, situando o contexto comunicacional hodierno para que seja possível compreender
o processo de criminalização contra os indivíduos. No segundo capítulo faz-se uma análise de
um caso bastante emblemático, conjecturando direitos violados e trazendo a importância
desses. Por último, mas não menos importante capítulo, tem-se uma investigação acerca da
legislação que envolve os meios de comunicação em questão, qual seja o da televisão.

CRIMINALIZAÇÃO POR PARTE DA MÍDIA E A CRIAÇÃO DE UM APARATO


CANALIZADOR DA VINGANÇA

Os avanços tecnológicos da Terceira Revolução Industrial mudaram o modo de vida


social de maneira que os eventos que acontecem nas mais diversas partes do mundo são
rapidamente repercutidos e transmitidos em tempo real. Atualmente vive-se na era da
informação, na qual pessoas do mundo inteiro estão integradas, interligadas e compartilhando
informações, divulgando impressões e difundindo formas de cultura e saberes (SUZUKI,
2016).
A sociedade contemporânea tornou-se muito complexa e é notório que grande parte da
comunicação humana passou a ser intermediada pelos veículos informativos, os quais
possuem um papel relevante na construção das opiniões sociais, bem como funcionam como
poderosos instrumentos de compreensão e construção da realidade. (SAITO, 2011).
Nesse sentido, a finalidade substancial da imprensa, além de informar e propalar fatos,
é a de difundir conhecimentos e cultura, aclarar as consciências, canalizar as aspirações
populares. Enfim, estimular e orientar a opinião pública (SAITO, 2011). Fantazzine (2006)
destaca a real importância da mídia em um cenário democrático, a qual por ter a capacidade
de atingir grandes contingentes de indivíduos é considerada um patrimônio social essencial
para que o direito à comunicação e informação possa ser concretizado.
Não há como negar que as inovações tecnológicas trouxeram à sociedade praticidade,
conforto e acesso livre a qualquer tipo de informação. Por outro lado, com o crescimento do
desenvolvimento tecnológico a mídia passou a exercer enorme poder de persuasão sobre a
coletividade, especialmente no que se refere ao fenômeno televisivo, que representa o poder
soberano dos novos tempos e é, sem dúvidas, a maior formadora de opinião da sociedade
moderna (SUZUKI, 2006).
É evidente a importância do papel desempenhado pela mídia em uma sociedade,
todavia quando essa deixa sua função de informar fatos e passa atuar na manipulação da
matéria factual e, consequentemente, na criação da realidade, tudo isso em decorrência de
disputas mercadológicas e de poder, esse proceder compromete negativamente a construção
da opinião pública (ABRAMO, 2016).
Destaca-se, na fase atual dos veículos de comunicação brasileiros, uma preponderância
do caráter comercial da informação em detrimento do caráter informativo. Há confusão entre
informação e entretenimento, na qual põe-se em evidência aspectos engraçados, dramáticos e
de aparente conflito, para então divertir. Na prática, percebe-se que “quanto mais negativo,
nas suas consequências é o acontecimento, mais probabilidades tem de se transformar em
notícia” (WOLF, 1993, p. 183 apud BUDÓ, 2006, p. 8).
Nessa perspectiva, percebendo a grande influência que detêm em torno da população,
os meios de comunicação de massa, comunicação rápida e instantânea, passaram a explorar o
crime como um produto vendável, na qual o crescimento da audiência tornou-se a única
preocupação da emissora.
Em muitos dos casos percebe-se que as informações divulgadas estão desprovidas de
qualquer conhecimento técnico, jurídico ou científico, o senso comum jornalístico é
preponderante ao definir a forma de abordagem do fato criminoso, a informação desprovida
de objetividade vem carregada de sentimentalismo e sensacionalismo.
Explorar o crime como um produto, a propaganda direta, ou mesmo, camuflada que se
faz em torno da violência, divulgar informações de ordem penal e processual penal,
explorando o sensacionalismo, é uma das principais características daquilo que Zaffaroni
conceitua de criminologia midiática, ou seja, a notícia agora gira em torno do crime.
E na medida em que esses fatos passam a ser predominantes, como a constância de
imagens sensacionalistas, subjetivas, dramáticas demais, interagindo no cotidiano das pessoas
através dos meios de comunicação de massa, “simulam padrões consensuais de conduta e
produzem poderosas e eficientes formas de ser e de estar no mundo, forjam existências, vidas,
bandidos, mocinhos, heróis e vilões (RIBEIRO, 2015)”.
Nessa esteira, segundo Zaffaroni (2012) a criminologia midiática sempre existiu e
sempre atuou de forma a criar uma realidade por meio da informação, ou melhor, da
subinformação ou desinformação com uma abordagem excludente e desigual que reproduz
preconceito contra as classes menos favorecidas da sociedade, baseada em uma etiologia
criminal simplista.
Essa característica da criminologia midiática não muda, o que muda é o meio
comunicacional utilizado, bem como o inimigo a ser combatido, destacando-se que esse
sempre irá pertencer à classe da sociedade marcada pela exclusão. Frisa-se que a marca central
da criminologia midiática, atualmente, é o veículo comunicacional empregado por ela: a
televisão. A televisão se vale da comunicação por imagens e, com efeito, necessariamente, as
imagens se referem a casos concretos, pois são o que elas conseguem mostrar. Dessa forma,
o telespectador é incentivado, de forma permanente, ao pensamento concreto o que debilita
sua prática para o pensamento abstrato (ZAFFARONI, 2012).
Em suma, o telespectador não consegue pensar o problema além daquilo que lhe é
mostrado, pensar a violência, o problema da segurança pública a partir de imagens
descontextualizadas, casos “in concreto” que sequer foram solucionados, é uma análise muito
simplista de questões sociais complexas.
A imagem tem o poder de potencializar alguns sentimentos, por exemplo, uma imagem
que se conecta com o medo, ela não só ativa esse sentimento na pessoa do telespectador, como
o define, o concretiza e, consequentemente, indica o que e a quem se deve temer (TEIXEIRA,
2002).
As imagens não informam muito, uma vez que elas são mostradas de forma
descontextualizadas e sem conexão com a realidade, ambiente propício para a criminologia
midiática atuar na construção (e não na reprodução do fato) da realidade a ser vendida, baseada
no medo e insegurança. Essa criminologia atua na construção de um mundo de pessoas boas
e ruins, no qual essas últimas são identificadas por meio de estereótipos que configuram um
“eles” separados do restante, o inimigo a ser combatido (ZAFFARONI, 2012).
A expressão “eles” utilizada no presente artigo encontra embasamento teórico na obra
“A Questão Criminal” de Eugenio Raul Zaffaroni, o qual ao utilizar a expressão transmite a
ideia de que se vive em uma sociedade maniqueísta, ou seja, formada por pessoas boas, nós,
frente a uma massa de criminosos, o “eles”.
O “eles” do inimigo varia conforme o tempo e o lugar (bruxas, hereges, judeus,
comunistas etc.) e são cuidadosamente selecionados, esses apresentam características de um
grupo determinado, quase sempre pessoas pertencentes às camadas menos favorecidas da
sociedade, marcadas pela pobreza e marginalização. Este “eles” é construído por semelhanças
e apresentado a população pela televisão, meio comunicacional ideal e característico da
criminologia midiática, visto que trabalha a partir de imagens mostrando pessoas já
estigmatizadas que delinquem e, de imediato, os que não delinquem, mas que são parecidos e
podem a vir delinquir (ZAFFARONI, 2012).
Nesse sentido o eles, o inimigo, o bode expiatório, ou mesmo, o criminoso explorado
pela criminologia midiática atual latino-americana, conforme Zaffaroni (2012) é o jovem
pobre de periferia, na sua maioria, negro, contra quem deve ser dirigido com toda sua
potencialidade o poder punitivo do Estado. Além da escolha do inimigo, a mídia cumpre o
papel de intensificador do medo e da insegurança que legitima o sistema penal. Isso ocorre
devido à divulgação de discursos que incitam a punição, bem como na aniquilação conceitual
de direitos e garantias fundamentais dos suspeitos (WACQUANT, 2001).
Essa legitimação fomenta algumas crenças, a principal delas que o Sistema Penal e o
punitivismo são as únicas formas de combater o “eles”, não havendo espaço para reparação,
conciliação. A nova crença criminológica da mídia tem seu núcleo na própria ideia de punir,
antes de tudo, creem na pena como rito de solução de conflitos, pouco importa o fundamento
legitimante (BATISTA, 2002).
Identificado o “eles”, tem-se a ideia de que tudo que lhes forem feito é pouco, já que
eles são a causa do mal na sociedade. As garantias, sejam elas de ordem penal ou processual
penal são para o nós, mas não para o “eles”, por que esses não são pessoas, esses violam
direitos. A criminologia midiática por meio do seu discurso bélico e punitivista incentiva a
aniquilação dos eles. Todas as mortes que resultarem da atuação do Estado penal contra o
“eles” são naturalizadas pela mídia, uma vez que essa é produto natural da própria violência
causada por eles (ZAFFARONI, 2012).
Essa visão simplista da questão criminal é responsável por uma política de
encarceramento em massa, bem como o extermínio da parcela da população excluída e
marginalizada o que faz do sistema penal um perfeito aparato canalizador de vingança
legitimado pela propaganda midiática.

ANÁLISE DO CASO: INFRAÇÃO DE DIREITOS COMO MECANISMO DE


AUDIÊNCIA

O caso em análise neste artigo foi reproduzido pela TV Bandeirantes, em sua afiliada
no estado da Bahia. O programa Brasil Urgente, comandado pelo apresentador Uziel Bueno,
está em uma vasta lista de programas que a doutrina classifica como “policialescos”, os quais
possuem como principal característica “a exploração de uma linguagem realística e a
espetacularização dos fatos narrados (VARJÃO, 2015, p. 7)”, o que culmina em um grave
problema dentro do Estado Democrático de Direito, pois a espetacularização referida gera
uma série de infrações a direitos resguardados no ordenamento jurídico brasileiro.
Os programas “policialescos” começaram a aparecer no Brasil já na segunda metade
do século passado, e conseguiram sua adesão pelo público utilizando seus instrumentos
midiáticos como o elo de comunicação entre o cidadão e a figura estatal. Assim, diante da
realidade brasileira marcada pela desigualdade social, precariedade de políticas públicas em
todos os sentidos, insegurança etc., tais programas estimulam os seus telespectadores a
atuarem como cidadãos, por meio da participação destes durante a exibição do programa,
exigindo dos representantes governamentais respostas para os acontecimentos fáticos.
Problemas, entretanto, surgem com esses programas. Uma tônica são as entrevistas
nas delegacias com suspeitos de cometerem delitos, e para com estes, muitas vezes, é adotada
uma postura não condizente com a adequada a uma pessoa humana. Nessa esteira, tem-se que:

enquanto apontam supostos culpados pelos crimes que narram, tais programas
expõem vítimas e acusados, violam direitos de crianças e adolescentes, promovem
o racismo, o machismo e a homofobia, e legitimam e estimulam a violência policial.
Apesar de tais violações serem condenadas por inúmeras normativas nacionais e
diferentes tratados internacionais ratificados pelo Brasil, elas seguem acontecendo
e têm sido cada vez mais recorrentes na televisão brasileira (VARJÃO, 2015, p. 9).
Não foi diferente com o caso que usaremos como instrumento de demonstração da
realidade desses “veículos informativos”, caso que convencionamos chamar de “Chorôrô na
delegacia”. A presente situação se passa quando um jovem (não reproduziremos seu nome
para a preservação da sua identidade), em 2012, é suspeito de ter roubado e estuprado uma
mulher na cidade de Salvador, e após o ocorrido, conduzido para uma delegacia da cidade.
Lá, a jornalista Mirella Cunha, do Brasil Urgente, o “entrevista” de forma desrespeitosa e
vexatória, fugindo de qualquer parâmetro ético do jornalismo.
A matéria começa com o suspeito declinando da autoria do crime de estupro, quando,
de maneira inesperada, Mirella Cunha (a repórter) profere a seguinte assertiva: “não estuprou,
mas queria estuprar”. Após, o suspeito argumenta no sentido de que nunca havia cometido um
estupro na sua vida, e pede para que realizem um exame de “estrópia” na vítima e também
nele, querendo se referir, na verdade, ao exame de corpo de delito. A repórter se aproveita do
desconhecimento do suspeito sobre o nome do exame realizado para ridicularizá-lo,
perguntando-o, insistentemente, por cinco vezes o nome do exame. Seguindo a matéria, o
sujeito erra o nome do exame novamente, pedindo para que seja realizado o exame de próstata,
quando novamente Mirella Cunha insiste para que ele repita mais cinco vezes o nome do
exame. Mais adiante, a repórter profere a seguinte afirmativa: “estuprador, (nome do suspeito)
estuprador”.
Aqui não interessa saber se realmente o rapaz foi o autor do estupro, pois esta
informação revela-se desnecessária para o estudo das infrações de direitos cometidos pela
mídia para com os suspeitos da autoria dos crimes. O que importa, em verdade, é saber quais
direitos foram violados e a importância destes.

Presunção de inocência

No caso em questão, o indivíduo é suspeito pela infração de alguns delitos, dentre eles,
o de estupro, crime que possui um juízo de valor muito negativo na sociedade brasileira.
Possivelmente, a reportagem da TV Bandeirantes possuía a finalidade de causar revolta no
seu telespectador, muito pelo crime de estupro, sobrepujando o ódio e a revolta contra o
indivíduo ao constrangimento por ele passado.
Apesar da ojeriza que se tem em relação aos crimes contra a dignidade sexual, tudo
não se faz permitido, como pareceu no caso em discussão. Nesse sentido, tem-se que “o
processo penal é provavelmente o principal campo de tensão entre a segurança pública e o
direito à liberdade de quem se vê submetido a dito processo (CATENA, 2015).” São
incontáveis as situações em que suspeitos são submetidos a constrangimento público e
humilhações pelos veículos comunicativos, por vezes até tratamento degradante. Além do
caso analisado, podem-se destacar, no território nacional, outros episódios de exposição da
pessoa suspeita, quais sejam Isabella Nardoni, Menino Bernardo Boldrini e Suzane Von
Richthofen (LUZ, 2018).
A presunção de inocência é um dos limites que devem ser levados em consideração,
pois configura-se como um instituto de extrema importância, presente em alguns dos textos
mais importantes do mundo jurídico, como é o caso da Declaração de Direitos dos Homens e
dos Cidadãos, datada de 1789, na Revolução Francesa; na Declaração Universal dos Direitos
dos Homens de 1948, elaborada pela ONU (Organização das Nações Unidas) e no Pacto de
San José da Costa Rica. Além do mais, possui força normativa no Brasil, pois disposta no
artigo 5º da Constituição Federal, no inciso LVII, o qual dispõe que “ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (BRASIL,
1988).”
Nessa esteira, é sabido que no momento da entrevista não existia processo contra Paulo
Sérgio decorrente dos possíveis atos ilícitos praticados por ele no dia em que foi detido pela
Polícia, muito menos uma sentença penal condenatória, como previsto na Constituição. Tais
elementos, juntamente com afirmação da jornalista de que ele seria um estuprador, são
suficientes para perceber uma violação da sua presunção de inocência.
Nesse sentido, destaca-se a violação não, apenas, da presunção de inocência no seu
sentido formal/processual, mas também e, mais especificamente, destaca-se a violação do
estado de inocência do indivíduo, no sentido material, esse deve ser entendido como “ser
inocente”, é um fato até que haja sentença condenatória transitada em julgado. Em tese, o
estado de inocência se manifesta de três formas autônomas, todavia relacionadas entre si, qual
seja a norma de julgamento, norma de tratamento e a norma probatória. A primeira refere-se
à exigência de um conjunto probatório suficiente para a condenação do réu, na dúvida o juiz
deve decidir a favor do réu, in dúbio pro reo. A segunda refere-se ao modo de como o acusado
deve ser tratado, ou seja, como inocente ao longo das fases pré e processual e a terceira trata
do ônus da prova, o qual no processo penal cabe ao órgão acusador (ZANOIEDE, 2010).
Pode-se afirmar que no caso descrito a violação ao estado de inocente atinge as suas
três manifestações. Em nenhum momento da matéria o jovem foi tratado como inocente
(norma de tratamento), o órgão acusador se materializa na pessoa da repórter e cabe ao jovem
provar que é inocento (norma probatória), feito o juízo de valor pela repórter, o que se viu foi
uma condenação midiática (norma de julgamento).
Analisando bem, não se verifica apenas uma transgressão do instituto aqui discutido,
mas também uma regressão há mais de dois mil anos, quando o indivíduo, assim que acusado,
em Roma, tinha o ônus da prova e a presunção de que era culpado (MORAES, 2010). Como
se não bastasse, o jovem suspeito de estupro é acusado pela jornalista com base em indícios,
culpando-o sem convicção, sem clareza. Essa observação nos remonta ao século XVIII,
quando:

uma meia-prova não deixava inocente o suspeito enquanto não fosse completada:
fazia dele um meio-culpado; o indício, apenas leve, de um crime grave, marcava
alguém como “um pouco criminoso”. Enfim, a demonstração em matéria penal não
obedecia a um sistema dualista; verdadeiro ou falso; mas um princípio de gradação
contínua: um grau atingido na demonstração já formava um grau de culpa e
implicava consequentemente num grau de punição. O suspeito, enquanto tal,
merecia sempre um certo castigo; não se podia ser inocentemente objeto de pesquisa
(FOUCAULT, 2014, p. 44).

A mídia acaba por remeter, então, o jovem suspeito há tempos remotos de obscuridade
e penúria humana.
Como última demonstração da regressão no tempo, traz-se o Pacto Social, idealizado
por Thomas Hobbes. Nessa teoria os cidadãos abdicam de parte de sua liberdade em
detrimento do Estado para que seja atingido um bem comum, um convívio social pacífico,
respeitando os limites impostos na legislação. Se nem o Estado, que possui as parcelas das
liberdades individuais de cada cidadão, pode, hodiernamente, presumir que o suspeito seja
culpado, o que sustenta uma pessoa física, no caso da jornalista, e uma pessoa jurídica, no
caso da emissora, desferir tamanhas agressões verbais ao suspeito?
Fica perceptível, dessa forma, que no caso do “chororô na delegacia” houve claro
desrespeito ao instituto da presunção de inocência, tão caro ao longo da história; pois não cabe
a concessionárias de serviços públicos condenar e vexar qualquer cidadão da forma que se
procedeu.

Direito à imagem

Do caso que dá ensejo à elaboração desse trabalho, pode-se extrair, dentre outras
infrações, o direito à imagem. Sendo mais específico, em vista da doutrina estabelecer tipos
diferentes de imagem, uma ofensa, no caso em cheque, à imagem-atributo, de acordo com a
classificação de Araújo (1996). Essa é o ideal do que a pessoa transmite na sua vida para com
a coletividade, são as características apresentadas socialmente pelo indivíduo, é como a
sociedade percebe a imagem daquele indivíduo.
O direito à imagem é tutelado no art. 5, X, da Constituição Federal, o qual prevê: “são
invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito
a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (BRASIL, 1988).”
De maneira geral “os agentes causadores desses danos às pessoas físicas ou jurídicas
são os meios de comunicação em massa (televisão, rádio, internet, jornais, revistas, boletins
etc.) (BULOS, 2015, p. 573)”.
O dano decorre justamente pela mudança da percepção de como a sociedade vai
perceber o sujeito aqui em questão a partir da sua aparição. Sua imagem foi denegrida sem
justo motivo, tendo um fator que deixa a situação ainda mais grave: a não existência de
sentença penal condenatória, o que dá a inferir pela incerteza da prática do ato ilícito.
A violação do direito à imagem de pessoas suspeitas do cometimento de algum delito
em sede policial passou a ser procedimento comum nas coberturas jornalísticas, a
apresentação do suposto infrator é feita pela polícia enquanto a mídia registra indevidamente.
Aos olhos dos telespectadores não se trata mais de suspeitos, mas de verdadeiros criminosos.
O cumprimento ao mandamento constitucional de que a imagem de uma pessoa deve ser
inviolável não se aplica a esses casos uma vez que os próprios apresentadores desses
programas tratam de desumanizar a pessoa do “suspeito” o qual não faz jus a nenhum direito
ou garantia, visto que essas são vistas como “regalias a bandidos” (MADEIRA, 2011).
Nessa perspectiva o que se percebe é uma demasiada violação de direitos e,
especificamente, o direito à imagem, sendo assim, constatada a lesão, pode o lesado ingressar
com um processo pedindo a reparação, por meio de indenização, dos danos causados. Esse
pedido pode ser baseado tanto no âmbito constitucional (art. 5, V e X) como em legislação
infraconstitucional, como é o caso do art. 20 do Código Civil:

salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção


da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a
publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser
proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe
atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins
comerciais (BRASIL, 2002).

ANÁLISE LEGISLATIVA DA MÍDIA NO BRASIL

No Brasil existem dispositivos normativos que tratam da regulamentação dos meios


de comunicação de massa, como é o caso da Lei 4.117/62 (Código Brasileiro de
Telecomunicações) e o Decreto 52.795/63 (Regulamento dos Serviços de Radiodifusão).
Entretanto, dentre esses dispositivos são escassos os que tratam da responsabilização dos
meios de comunicação sobre os atentados cometidos contra à dignidade humana.
No Código Brasileiro de Telecomunicações o dispositivo que trata de aspectos
relacionados aos direitos humanos é o art. 38, d, o qual explicita: “os serviços de informação,
divertimento, propaganda e publicidade das empresas de radiodifusão estão subordinadas às
finalidades educativas e culturais inerentes à radiodifusão, visando aos superiores interesses
do País (BRASIL, 1962).” Já o Decreto que regulamenta os serviços de radiodifusão trata em
seu art. 28, item 12, b, que não se pode “transmitir programas que atentem contra o sentimento
público, expondo pessoas a situações que, de alguma forma, redundem em constrangimento,
ainda que seu objetivo seja jornalístico (BRASIL, 1963).” E no seu art. 122 ainda aduz ser
infração promover alguma campanha discriminatória contra raça, cor, classe ou religião.
Pelo fato de algumas concessionárias do serviço de radiodifusão brasileiro serem
bastante influentes do ponto de vista social, como formadora de opiniões; como do ponto de
vista financeiro, pode surgir a ideia equivocada de que esse serviço é bastante organizado,
existindo leis detalhadas e efetivas sanções para descumprimento de seus preceitos. No
entanto, a maior parte da legislação é bastante genérica no que se refere aos conteúdos
veiculados pelas concessionárias. Prova disso é o art. 220, §3º, II, da Constituição Federal, o
qual determina competência à lei federal para estabelecer meios legais de defesa das pessoas
e da família, contra os programas ou programações do rádio e da televisão que contrariem o
que se observa no art. 221. Apesar de ser verificada a existência do dispositivo na Lei Maior,
ainda carece de regulamentação por lei federal.
O exposto estimula as concessionárias a continuarem produzindo materiais em sua
programação que violam sistematicamente direitos, pois mesmo constatada a lesão, a
impunidade persevera. Assim, “o fato de existirem poucas leis diretamente voltadas ao campo
da comunicação de massa acaba por dificultar a responsabilização objetiva das empresas em
casos de violações (VARJÃO, 2015, p. 21).”
Ora, além da esperança muito grande da impunidade das concessionárias, é constatada
também as irrisórias sanções aplicadas. No ano de 2013 apenas uma empresa de radiodifusão
foi sancionada, no montante de sessenta mil reais, por transmitir em sua programação
materiais que intentavam contra os direitos humanos, que, por coincidência, foi o caso de que
tratamos no presente artigo. Impressionante é observar apenas uma sanção frente aos
incontáveis casos e, por conseguinte, uma sanção que não condiz com a realidade financeira
da sancionada. Tal fato nos remete ao opúsculo de Beccaria (1764/2015), o qual assevera ser
a certeza da punição mais eficaz do que penas mais severas, mas com a esperança da
impunidade.

A criação de órgãos independentes

Pois bem, além do amplo grau de generalidade da legislação nacional quanto ao


conteúdo veiculados pelas emissoras e da ineficaz condenação a sanções de caráter pecuniário,
que são irrisórias, verifica-se, ainda, um abismo entre o texto escrito e a realidade social, haja
vista que o artigo 28, item 12, b, do Decreto 52.795, citado anteriormente, preceitua, em suma,
que não se pode transmitir programas que de alguma maneira redundem em constrangimento
a alguém. Ao longo do trabalho listaram-se vários mecanismos por meio dos quais a mídia se
utiliza, não com o fim de informar, mas constranger, ridicularizar e humilhar pessoas que
sequer tiveram direito ao devido processo legal, mas que aos olhos dos telespectadores já são
condenados sociais.
Nesse sentido, atesta-se que o Brasil carece de um órgão que regule e fiscalize a
atividade de radiodifusão e, principalmente, o cumprimento da legislação com o fim de se
evitar que lei já nasça como letra morta. Em países consolidados democraticamente, como
EUA, Argentina, Alemanha, França etc. a principal função dos órgãos reguladores é a
fiscalização da qualidade do conteúdo divulgado pelas emissoras.
Em nenhuma dessas nações a atuação desses órgãos é vista como censura ou limite a
liberdade de expressão uma vez que os próprios telespectadores concebem a atividade desses
órgãos como um direito ao acesso a programas de boa qualidade. Nessas nações, em especial
a Argentina, país também latino-americana, portanto com uma realidade mais próxima da
brasileira, o órgão regulador dos serviços de radiodifusão atua de forma independente, ou seja,
apartado da função política dos governos. A independência desses organismos os torna menos
passíveis das influências políticas do poder Público, posto que possuem orçamento e corpo
funcional próprio (VARJÃO, 2015).
Com a reformulação do sistema de comunicação argentino criou-se a Autoridade
Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual (AFSCA), autarquia descentralizada, cuja
principal atribuição é aplicação e a interpretação da nova legislação, sendo o principal órgão
de autorização e concessão de outorga para os veículos comunicativos. É importante salientar
que esses organismos visam a qualidade da prestação de serviços e a efetivação do direito de
comunicação sem que para isso outros direitos sejam violados. O não cumprimento das leis
desse setor, na Argentina, geram sanções que variam de advertência até sanções de conteúdo
patrimonial que podem chegar a 10% da receita publicitária do mês anterior à ocorrência da
infração (VARJÃO, 2015).
Transportando-se para a realidade brasileira no ano de 2012 o secretário de segurança
pública do estado do Ceará proibiu a realização de entrevistas de pessoas suspeitas em sede
policial, a medida se mostra necessária e eficaz, frente à escassez de outros mecanismos,
quando percebe-se que supostos infratores não serão vítima de uma condenação sumária feita
pela próprio população (MADEIRA, 2012).
Portanto, verifica-se que a regulamentação dos meios de comunicação de massa de
forma mais específica e a criação de órgãos reguladores independentes do poder político que
garantam a eficácia e aplicabilidade das normas, se mostram como maneiras de mitigar os
abusos cometidos na veiculação de matérias que transgridam direitos e firam a dignidade da
pessoa humana, sob o véu do exercício do direito à informação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ante a todo o exposto, o presente trabalho buscou em sua extensão observar como se
dá a violação de direitos por parte de uma mídia criminalizadora e mais, especificamente,
como ocorreu essa violação no caso intitulado “Chororô na Delegacia”, o qual foi exibido pela
rede de televisão Bandeirantes no ano de 2012.
Como visto a lógica seguida pela criminologia midiática é a do Estado penal máximo,
da penalização e do punitivismo, ausentes direitos e garantias processuais. A mídia patrocina
a ideia de que se vive em uma sociedade maniqueísta, dividida entre pessoas boas, as quais
possuem direitos e deveres, e pessoas ruins, as quais não são dignas de direitos uma vez que
são as causadoras do mal na sociedade.
Sob essa ótica, o espetáculo da criminologia midiática potencializa sentimentos como
a insegurança e o medo, os quais precisam urgentemente ser combatidos. Em razão dessa
urgência, criam-se inimigos, divulgam-se imagens desses, o que contribui para a fabricação
de um perfil criminoso, de como já mencionado um “eles” do inimigo, quando na verdade
supõem-se infratores, ou melhor, suspeitos.
Em geral e também no caso analisado, os suspeitos são mostrados como verdadeiros
criminosos e como, consequência, tem suas vidas e de suas famílias devassadas pela exposição
midiática, a qual não se apoia em uma sentença penal condenatória transitada em julgado para
condenar o suposto infrator, mas em meros vestígios, suposições, haja vista que a maior parte
desses programas são gravados em sedes policiais, onde do ponto de vista jurídico não se tem
nem mesmo um acusado. Assim, a exposição pública do suspeito gera uma profecia
autorrealizadora isto é, o status “produz mecanismos que conspiram para moldar a pessoa
segundo a imagem que os outros têm dela” (BECKER, 2008, p. 44). Isso se dá, pois:

após ser identificada como desviante, ela tende a ser impedida de participar de
grupos mais convencionais, num isolamento que talvez as consequências específicas
da atividade desviante nunca pudessem causar por si mesmas caso não houvesse o
conhecimento público e a reação a ele‖ (BECKER, 2008, p. 44).

Nesse sentido, percebe-se por meio dos estudos da criminologia midiática, que a mídia
não contribui em nada na prevenção da criminalidade e diminuição dos índices de violência,
pelo contrário são potencializadoras de sentimentos como vingança e preconceito. Tratam da
violência não só como problema, mas como solução daquilo que é apresentado por ela.
Políticas preventivas não têm espaço nesses programas, o que se percebe é o incentivo ao
aumento do estado policial e práticas repressivas. A principal consequência se materializa na
violação dos direitos dessas pessoas, existe um entusiasmo em negar direitos e o respeito
desses passa a ser relativizado em razão do envolvimento dos mesmos com a prática de algum
delito, caracterizando um verdadeiro direito penal do inimigo.
Assim, existe uma relação entre o comportamento midiático e a transgressão de
direitos dos supostos criminosos, que é a mídia poder vender a resposta mais rápida ao seu
público, resposta que parece eficaz quando não se possui uma visão crítica do assunto, sendo
esse o caso de grande parte da população. Essa resposta imediata, entretanto, não vai ao
encontro dos princípios e regras que fazem parte do nosso ordenamento jurídico, ferindo,
dessa forma, os direitos que protegem os suspeitos no Brasil.

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REPERCUSSÕES DO ENCARCERAMENTO POR TRÁFICO DE DROGAS NO
BRASIL: sobre a posição social de mulheres mulas276

Luísa Vanessa Carneiro da Costa277


Carmem Emmanuella Santos Costa278
Maria Rita Barbosa Piancó Pavão279

RESUMO

A presente pesquisa analisa a interseção entre gênero e tráfico de drogas, pensando o lugar
das mulheres mulas, nessa cadeia de constante e fácil substituição. Tendo como objetivo geral
compreender, a partir da política de drogas, as interseções entre gênero, cárcere e drogas,
pensando o lugar da mulher mula, na Colônia Penal Feminina de Buíque-PE. Como aporte
teórico para esta pesquisa foram utilizados: Saffioti (2004) e Gomes (2007). Este estudo trata-
se de uma pesquisa etnográfica, de abordagem qualitativa. Os tipos de pesquisa utilizados
foram: bibliográfica, descritiva e exploratória, partindo de uma de observação não
participante, que fez uso de diário de campo, e entrevista semiestruturada, tendo sido as
informações lidas à luz da análise de conteúdo. Discutindo as vivências das mulheres em
situação de cárcere diante de práticas sociais de estigma e o seu enfrentamento perante uma
sociedade fincada em privilégios, que traça estereótipos machistas e misóginos, levando à
opressão às classes passíveis de vulnerabilidade, neste caso, as mulheres. Percebendo,
portanto, que mulheres envolvidas em situações de tráficos são vítimas de uma estrutura social
extremamente machista, sexista e patriarcal, frente a um Estado conservador e traçado por
padrões ligados ao autoritarismo.

Palavras-chave: Cárcere. Drogas. Gênero. Machismo.

INTRODUÇÃO

Este trabalho trata sobre a condição de mulheres mulas frente às questões de gênero e
cárcere, relendo a atual política de drogas no direito brasileiro. A discussão estará centrada
em como o machismo, o patriarcado, o sexismo e a misoginia são marcadores de estigmas
sociais, frente às práticas opressoras que vitimizam mulheres mulas do tráfico de drogas.
Desta forma, neste trabalho, analisar-se-á os fatores que influenciaram tais mulheres a

276
GT7: Ciências Criminas, Cárcere e Drogas.
277
Mestranda em Direito – Universidade Católica de Pernambuco (Unicap); Especialista em Direito Humanos:
Educação e Ressocialização – Ucamprominas; Graduada em Direito – Centro Universitário do Vale do Ipojuca;
Pesquisadora no Grupo de Estudos Latino Americanos em Direitos Humanos (EELAS/UNICAP/CNPq). E-mail:
luisavanessa1@hotmail.com.
278
Graduanda em Direito – Centro Universitário do Vale do Ipojuca; Presidente da CEJUD – Empresa Júnior de
Direito do Unifavip/Wyden; Pesquisadora do O Imaginário – Grupo de Pesquisas Transdisciplinares sobre
Estética, Educação e Cultura (UFPE/CNPq). E-mail: carmemesc@outlook.com.
279
Graduanda em Direito – Centro Universitário do Vale do Ipojuca; Pesquisadora do Grupo de Estudos
Transdisciplinares sobre Meio Ambiente, Diversidade e Sociedade (UPE/CNPq); Pesquisadora do O Imaginário
– Grupo de Pesquisas Transdisciplinares sobre Estética, Educação e Cultura (UFPE/CNPq). E-mail:
mrbpianco@gmail.com.
praticar determinado ato, de maneira a tornarem-se encarceradas, passarem a viver como
cidadãs isoladas, bem como vítimas de inúmeros preconceitos e desigualdades sociais.
Buscamos entender, através da perspectiva de gênero, práticas sociais, políticas e
dinâmica da estrutura carcerária para com as mulheres que são responsabilizadas por tráfico
de drogas. Teve-se como problema de pesquisa: Quais as interseções entre tráfico de drogas
e o sistema carcerário, sob uma perspectiva de gênero?
Partindo da curiosidade em analisar como as mulheres mulas do tráfico de drogas são
tratadas em meio às precárias condições do Sistema carcerário brasileiro, na falta de condições
básicas para garantia de seus direitos fundamentais, o está preconceito fortemente ligado a
questões de gênero.
O presente trabalho tem como objetivo geral: Compreender, a partir da política de
drogas, as interseções entre gênero, cárcere e drogas, pensando o lugar da mulher mula, na
Colônia Penal Feminina de Buíque-PE.
Como objetivos específicos foram estipulados: 1) Estudar sobre a Lei 11/343/06 e sua
repercussão no Direito Brasileiro; 2) Discutir sobre tráfico de drogas e questões de gênero,
sob uma perspectiva do encarceramento em massa; 3) Analisar as interseções entre gênero e
tráfico de drogas, a partir da vivência de mulheres mulas na Colônia Penal Feminina de
Buíque-PE.
Nessa perspectiva, esperamos que nosso trabalho possa colaborar para uma discursão
mais humana e humanística, pautada no debate de gênero e assistência de redução de danos
para questões de drogas, não levando em consideração os padrões impostos pela sociedade
conservadora de costumes históricos e culturais que são determinantes na vida de mulheres
que se envolvem com o tráfico de drogas.
Esses argumentos foram e vem sendo conquistados com muita luta e persistência,
pensando questões sobre direitos humanos e fundamentais, a liberdade e cidadania. Ao mesmo
tempo em que vivemos tempos sombrios em relação à políticas públicas para mulheres.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A Lei 11.343/2006 e o Direito Brasileiro

Percebemos que a Lei 11.343/06 não tem um aparato de implementação adequada para
uma política de drogas, visto que é notória a aplicação de medidas retributivas, em detrimento
de medidas restaurativas e socioeducativas.
Podemos observar é que a legislação se preocupa em manter o sujeito longe da
sociedade, acreditando ser a solução mais eficaz para o problema, colaborando dessa forma
para o caos instalado no nosso caótico Sistema Penitenciário, decorrente da superlotação
Em seu artigo 1º, a Lei que Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre
Drogas prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de
usuários e dependentes de drogas. Estabelece também normas para repressão à produção não
autorizada e ao tráfico ilícito de drogas e define crimes, desse modo, nota-se que inexistem
perspectivas quanto a uma política antidrogas por parte do Estado (BRASIL, 2006).
Há de se observar que a Lei em questão, não traz um aparato preventivo, podendo
primar pela redução de danos, apenas tratando de penas em relação às condutas já praticadas,
o que realmente ocorre na prática.
Nesse sentido, ocorre uma grande falha do Estado com a falta de centros próprios e
adequados para atender às necessidades das mulheres, por exemplo; a falta de atenção e
cuidados aos problemas de saúde física ou psíquica das detentas, e, até mesmo, sobre as filhas
e filhos destas, que na grande maioria das vezes, ficam abandonados por não terem uma base
familiar.
De modo que, compete ao (CONAD), na qualidade de órgão superior ao (SISNAD),
acompanhar e atualizar a política nacional sobre drogas, valendo observar que a respectiva
política de drogas fora sancionada no ano de 2006, e já se passaram 10 anos de sua efetividade,
mostrando-se, portanto, o quanto o Estado não se preocupa com o acompanhamento de tal
política, restando demonstrado que o que ele busca é a punição com atos repressivos, logo,
uma política criminal de drogas.
Dessa forma, segundo Gomes (2007), a atual política de drogas foi criada com o intuito
de reconhecer as diferenças entre o usuário, a pessoa em uso indevido, o dependente e o
traficante de drogas, tratando-os de forma diferenciada.
Contudo, o que se vê é que a Lei em comento não determina parâmetros seguros de
diferenciação entre usuários, traficantes, varejistas de pequeno, médio e grande porte; além
do mais, prevê penas altíssimas, não resultando em respostas jurídicas e sociais eficazes para
o público envolvido.
Conforme entendimento de Gomes (2007), quando se fala na abrangência da Lei de
Drogas em vigência, de uma forma geral percebe-se que os tipos penais existentes na Lei
6.368/76 foram mantidos, sofrendo, entretanto, uma majoração significativa da pena.
Ainda, conforme o artigo 66 da Lei em tela, com a criação da atual Política de Drogas,
ampliou-se o rol de substâncias abarcadas pela criminalidade de tóxicos, incluindo-se aquelas
sob controle especial (BRASIL, 2006).
De tal maneira, pode-se considerar uma afronta à própria Constituição Federal, que
prestigiou a liberdade física das pessoas, fazendo do aprisionamento uma exceção.
Percebe-se, claramente, ao ler a referida Lei de Tóxicos, que o legislador, em relação
ao combate a prática do tráfico de entorpecentes, nos seus mais diversos modos, optou não só
pelo endurecimento da pena a ela cominada, como também pela aplicação do regime mais
severo em seu cumprimento.
O tipo penal do tráfico não exige como elementar a finalidade de lucro ou de obter
vantagem econômica, podendo haver o crime de tráfico ainda que não se tenha fim lucrativo
por parte do agente delitivo.
Mais adiante, o artigo 44 discorre que a prática dos crimes previstos no arts. 33, caput
e § 1º, e 34 a 37 desta Lei serão inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia
e liberdade provisória, vedada a conversão de sua pena em restritiva de direito (BRASIL,
2006).
De acordo com a Lei, há a possibilidade de livramento condicional para o crime de
tráfico, após o cumprimento de dois terços da pena, vedada a sua concessão ao reincidente
específico.
Tendo em vista que a referida Lei é genérica, não importando, dessa forma, a condição
de ser homem ou mulher para cumprimento da pena, observando que a mulher ainda faz parte
de uma classe vulnerável, e, nesse aspecto, não se vê os cuidados básicos que suas condições
de sexo feminino requerem, sendo tratadas como homens, onde encontra-se vedada a pena
restritiva de direito, tendo em vista que, em primeiro plano, se tem a pena privativa de
liberdade.
Vale observar que com o advento da Política Criminal de Drogas, o enigma do uso
indevido de entorpecentes, bem como o tráfico de drogas ilícitas, longe de ter sido
solucionado, gerou inúmeras proporções.
Com a vinda da Lei nº 11.343/2006 o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre
Drogas (SISNAD) estaria responsável pela manutenção de atividades ligadas a prevenção do
uso de drogas ilícitas, de forma a repreender o tráfico.
Já dizia Foucault (2009, p. 71) que “as penas deveriam ser moderadas e proporcionais
aos delitos, sendo, portanto, preciso punir de outro modo, eliminando a confrontação física
entre soberano e condenado”. Dessa forma, Foucault (2009, p. 86) dispõe:
O castigo penal é então uma função generalizada, co-extensiva ao corpo social e a
cada um de seus elementos. Coloca-se então o problema da “medida” e da economia
do poder de punir. [...] efetivamente a infração lança o indivíduo contra todo corpo
social; a sociedade tem o direito de se levantar em peso contra ele, para puni-lo.

Pensando nisso, é de se notar que vivemos uma avalanche legislativa e o legislador


fecha os olhos, as pessoas são diferentes e suas necessidades também, deve-se haver, portanto,
o bom senso, no direito.
Há uma resistência por parte do legislador em reconhecer princípios, direitos e
garantias concedidos à pessoa humana, primando pelo proibicionismo e pela formalidade,
acreditando que dessa forma gerará a eficiência.
Não é à toa que em alguns países, por exemplo, a Holanda, a Suíça, dentre outros, tem
primado uma política de redução de danos a uma política repressiva, criminal, punitiva.
Veremos em seguida as repercussões que boa parte da história legislativa das drogas
gerou no âmbito social, no que tange a aplicabilidade da norma para com as condutas
praticadas tanto por mulheres, quanto por homens, traçando o aparato controvertido no/do
direito.

O encarceramento de mulheres: a Lei de Drogas e suas principais controvérsias

A cada dia que passa, percebe-se claramente a necessidade de uma política mais eficaz
no combate e prevenção às drogas, uma política de cuidados e redução de danos, qual seja:
eficiente, reformadora e educativa.
Percebe-se, portanto, que a Lei Penal de Drogas apresentou uma proposta político-
criminal bifronte, falsa, em função da diferença de tratamentos dados ao traficante, qual seja,
total repressão, e ao usuário, um tratamento e integração social, sem possibilidade de aplicação
de pena privativa de liberdade.
A partir disso, é importante que haja uma política de drogas reformadora, voltada para
que haja inclusão social das pessoas que fazem parte do comércio ilícito, tendo por base os
danos históricos das guerras às drogas.
Vale observar que a proibição não diminui o uso ou o comércio ilegal de drogas, por
esse motivo seria interessante um modelo de política publica equilibrada, mais voltada ao
esclarecimento ideal de consumo ou comercialização.
A persistência da Declaração Universal ao longo de cinquenta anos comprova que,
independentemente de suas origens, os valores positivos de uma cultura podem, sim, ser
transferidos de boa fé, sem violação dos cânones essenciais de cada civilização. Tendo em
vista que a maioria esmagadora dos países que acederam à independência após a proclamação
da Declaração Universal dos Direitos Humanos não teve dificuldades para aceitar seus
dispositivos, incorporando-os, na legislação doméstica (ALVES, 2005).
A política de descriminalização tem objetivo de poupar gastos e trazer melhores
resultados para a sociedade. Com o mercado regularizado de alguns psicoativos poderia ser
reduzido o poder do crime organizado e melhorar a segurança dos cidadãos, pois esses são os
que mais sofrem com essa guerra desnecessária (SANTOS, 2011).
O atual sistema internacional de controle de drogas, do qual o Brasil faz parte, além
de não alcançar seus objetivos, gerou uma série de recordes negativos para o nosso país.
Perfazendo, então 10 anos da vigência da Lei 11.343/2006, está passando da hora de
revisar os impactos que esta trouxe, observando as medidas que deram certo e as que não
foram eficazes, levando em consideração as mudanças sociais durante esse tempo, em prol,
portanto, de qualificação das políticas públicas, frente a isso, em seguida, veremos as
repercussões que a Lei em estudo trouxe em razão do caos no Sistema Carcerário instalado
em nosso país, dando ênfase a situação da mulher.
No Brasil, em junho de 2014 foram registradas pelos gestores de unidades prisionais
37.380 mulheres no sistema prisional, conforme informação fornecida pelo Departamento
Penitenciário Nacional (DEPEN).
Segundo relata Guimarães (2015), o documento aponta que 63% das mulheres
encarceradas respondem por crimes relacionados ao tráfico de drogas: 5.096 são acusadas de
tráfico, 421 por tráfico internacional e 832 mulheres, por associação com o tráfico.
No ano de 2005, antes da aprovação da Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006, 34% da
população carcerária feminina respondia por crimes ligados ao tráfico. Comprova-se que em
aproximadamente dez anos, essa proporção ultrapassa o dobro. Esta informação acompanha
um fenômeno internacional de aumento do encarceramento feminino pelo crime de drogas:
50% da população feminina mundial responde por crimes de tal natureza, informação
(GUIMARÃES, 2015). É possível observar o quanto a política criminal de drogas é
tendenciosa ao aumento carcerário, de modo a torna-lo cada vez mais precário e opressor.
No documento aprovado pela Assembleia Geral da ONU em 2010, conhecido como
“Regras de Bangkok”, traçaram-se diretrizes para o tratamento de mulheres presas e de
medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras. Porém, verifica-se que mesmo
assim, as penalidades sofridas pelas mulheres são atribuídas em grau de marginalização
superior às masculinas devido ao patriarcalismo instaurado nas práticas do Estado.
Dessa maneira, entende-se que a Lei supramencionada tornou as punições para o
tráfico ainda mais rigorosas, ao estabelecer novos critérios, pois a Lei abre margem para
interpretações que colaboram para o encarceramento pelo tráfico.
Diante dessa perspectiva, é comum observar que, devido ao proibicionismo, o sistema
carcerário foge do controle do Estado, de forma que o Estado não possui recursos
administrativos suficientes para construir estratégias que envolvam uma política judicial
eficaz.
Assim, poderia ser observada a realidade de cada detenta, como por exemplo, suas
condições físicas e psicológicas, de modo a implementar práticas utópicas e mais acessíveis a
uma realidade humana e justa.
A respeito disso, Salmasso (2004) dispõe que deve se observar, em primeiro plano, em
qual meio social essas mulheres estão inseridas (área de trabalho, ambiente doméstico e etc)
e, num segundo plano, revelar as condições biológicas e psicológicas que podem ou não
contribuir para a incidência e o grau dessa criminalidade.
De acordo com dados do Departamento Penitenciário Nacional (2014, p. 39), o ritmo
de crescimento da taxa de mulheres presas na população brasileira chama a atenção. De 2005
a 2014 essa taxa cresceu numa média de 10,7% ao ano. Em termos absolutos, a população
feminina saltou de 12.925 presas em 2005 para 33.793 em 2014.
É importante observar que grande parte dessas mulheres que estão presas, são rendas
de suas próprias famílias, são as chefes de suas famílias, de forma que o aprisionamento
interfere na família inteira.
No que se refere ao mundo carcerário, destaca-se:

O sistema carcerário não foi pensado para as mulheres até porque o sistema de
controle dirigido exclusivamente ao sexo feminino sempre se deu na esfera privada
sob o domínio patriarcal que via na violência contra a mulher a forma de garantir o
controle masculino (RAMOS, 2011, p. 12).

A população prisional feminina é claramente marcada por condenações em crimes de


drogas, categoria composta por tráfico de drogas e associação para o tráfico. Responsáveis
por 64% das penas das mulheres presas, essa parcela é bem maior que entre o total de pessoas
presas, de 28% (DEPEN, 2014, p. 40).
O tratamento e o comportamento dos homens, em relação às mulheres, ainda são
baseados no patriarcado, vivenciando, ainda um grau hierárquico distinto em vários aspectos,
dentre eles, na coação para a prática de delitos, sendo movidas através de atos violentos.
A respeito disso, tratam Miguel e Biroli (2014, p. 46):

A pluralidade democrática depende da garantia do espaço para o florescimento de


identidades baseadas em crenças e práticas distintas. Mas é preciso garantir que esse
espaço seja livre da violência, do constrangimento sistemático à autonomia de parte
dos indivíduos, assim como das desigualdades que potencializam o exercício da
autoridade por parte de alguns e a vulnerabilidade e a subordinação de outras. Nesse
sentido, a garantia da privacidade depende da crítica à dualidade convencional entre
o público e o privado e às desigualdades de gênero a que essa dualidade tem,
tradicionalmente, correspondido.

Desse modo, infelizmente a sociedade ainda enxerga a mulher como sendo


subordinada a um patriarca, seja ele o genitor ou o companheiro, desde que do sexo masculino.
Segundo os últimos dados de junho de 2014, o Brasil conta com uma população de
579.7811 pessoas custodiadas no Sistema Penitenciário, sendo 37.380 mulheres e 542.401
homens. No período de 2000 a 2014 o aumento da população feminina foi de 567,4%,
enquanto a média de crescimento masculino, no mesmo período, foi de 220,20%, refletindo,
assim, a curva ascendente do encarceramento em massa de mulheres, conforme dados do
Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN – MULHERES, 2014, p.
5).
De acordo com os dados levantados pelo Infopen (2014, p. 5), as mulheres em
submetidas ao cárcere são jovens, têm filhos, são as responsáveis pela provisão do sustento
familiar, possuem baixa escolaridade, são oriundas de extratos sociais desfavorecidos
economicamente e exerciam atividades de trabalho informal em período anterior ao
aprisionamento.
Através da disposição a cima mencionada, é possível observar que o Estado trata
aquela ou aquele que comete crime, como instrumento de poder, o qual pode ser objeto da
miséria e desconforto oferecido no cárcere, consequentemente, fica cada vez mais difícil o
controle da situação em que se encontra cada detenta, por parte do Estado.
É possível identificar o quanto o sistema carcerário é arcaico e conservador de
precedentes históricos, ao notar que o índice de mulheres encarceradas é bem maior quando
se trata de questões de vulnerabilidade social, no tocante a cor da pele, tendo em vista que é
possível observar o quanto o Estado trabalha com estereótipos sociais.
O espaço que as mulheres ocupam em grau de privilegio ainda é, de certo modo,
insignificante, de forma que a opressão e a violência contra a vida social da mulher ainda é
traçada por desigualdades.
É possível notar o quanto a falta de apoio às mulheres presas ainda é significativa, de
maneira que é interessante que estas sejam protagonizadas, ajudando umas as outras, a resistir
às opressões do Estado, vivenciando as renovações dos tempos.
Vale observar que o sistema carcerário se utiliza de perfis estereotipados para
distinguir quem é o autor de determinado crime, ou não, de modo que é possível notar que o
entendimento estatal seria que a transgressão das mulheres ocorre porque são pobres e
submissas, tendo em vista que essa realidade ultrapassa a pessoa da presidiária, abarcando
seus familiares, inclusive, seus filhos.
Com as informações obtidas ver-se com clareza a situação que as penitenciárias
femininas se encontram, e consequentemente, a situação de invisibilidade que as detentas
sofrem por parte do Estado e da sociedade.
De acordo com Fernandes (2015), os estabelecimentos prisionais em que as mulheres
se encontram (mistos ou femininos), condições de lotação, existência de estruturas de
berçário, creche e cela específica para gestantes. Sobre os tipos de estabelecimentos, do total
de unidades prisionais do país (1.420), apenas 103 são exclusivamente femininas (7% do
total), enquanto 1.070 são masculinas e 239 são consideradas mistas (abrigam homens e
mulheres). Em 8 unidades não há informação sobre divisão de gênero.
O que se vê no Sistema Penitenciário Brasileiro, é que o cárcere foi adepto às
características masculinas, projetado a partir das necessidades dos homens, a partir daí, nota-
se uma falta de atenção para com os cuidados femininos e suas exigências.
Em detrimento dos crimes cometidos pelos homens, as mulheres “mulas” praticam
atos bem menores e são culpabilizadas como uma afronta à sociedade, um perigo a fé pública,
gerando apenas a superlotação nas prisões e permanecendo com o problema. Em decorrência
de uma sociedade extremamente sexista, traçada por padrões patriarcais, subalternizadores e
machistas, a estrutura de poder é desigual em detrimento das mulheres, pois entende que o
machismo prevalece atribuindo um saldo negativo às mulheres.
O que existe em nossa sociedade é uma mulher humilhada demais para denunciar
agressões, machucada demais psicologicamente, para reagir, com medo para acusar, e pobre
demais para ir embora.
Para a sociedade o Estado está cumprindo seu papel ao retirar das ruas uma mulher
que cometeu crime, porém, há de se ressaltar a necessidade de uma resposta à sociedade, no
sentido de demonstrar se, de fato, essas mulheres retiradas da sociedade, recebem do Estado
a efetivação do que previu o legislador.
Adiante, analisaremos a vivencia de mulheres mulas, na Colônia Penal Feminina de
Buíque-PE, e o quanto os fatores de sexismo refletem na estrutura de poder patriarcal, cuja
distribuição é muito desigual quando equipara o homem, à mulher.

Infortúnios e delírios: a vivência de mulheres mulas na Colônia Penal Feminina de


Buíque-PE

As mulheres que fazem parte do quadro de encarceradas do Presídio Feminino por


tráfico de drogas geralmente são oriundas de localidades marginalizadas, não que esta seja
uma causa do crime, mas, pelo contrário, essas mulheres são presas fáceis da seleção do
sistema punitivo.
A população marginalizada e excluída do mercado de trabalho, do consumo e da
sociedade, tendo no sistema punitivo o funcionamento de uma “instituição total” para fazer
com que “as prisões sejam máquinas de exclusão”.
O que se observa é que o cenário da “guerra às drogas” pune mais as mulheres pelos
mesmos crimes cometidos também por homens. O judiciário é machista, a guerra às drogas é
machista, porém a resistência é feminista.
A estrutura atual em face da criminalização feminina é indispensável atentarmos que
a mulher detenta é vista como tendo transgredido a ordem em dois níveis: a) a ordem da
sociedade; b) a ordem da família, abandonando seu papel de mãe e esposa (LEMGRUBER,
1983, p.86).
No Brasil, a probabilidade de uma mulher presa ter ido para a cadeia por crime
relacionado a drogas é 2,46 vezes maior do que entre os homens encarcerados. Em 2014, 64%
das mulheres presas estavam nessa situação pela prática de crimes de drogas – como o tráfico
ou o estoque de substâncias ilícitas. A conclusão está em uma pesquisa do Instituto Igarapé,
que fez uma análise dos números do Sistema Integrado de Informação Penitenciária
(INFOPEN), do Ministério da Justiça (2014, p. 15).
Dessa feita, cabe olharmos o perfil das pessoas presas por tráfico de drogas,
principalmente das mulheres que foram apreendidas por esse tipo de delito.
Ao analisarmos questões sobre a implementação de uma política pública de drogas,
desde seus anteriores aparatos legais, até a criação da Lei 11.343/06, foi possível observar os
contornos e controvérsias que o legislador apresenta. Desse modo, sendo demonstradas as
repercussões devido o encarceramento de mulheres mulas do tráfico de drogas. Por
conseguinte, veremos os trajetos metodológicos da presente pesquisa, onde serão apresentados
os caminhos percorridos para o desenvolvimento deste trabalho.
As participantes da pesquisa foram escolhidos de acordo com aspectos relevantes para
a realização do estudo, logo, nove mulheres mulas do tráfico de entorpecentes, com mais de
18 anos de idade, que se encontram encarceradas na Colônia Penal Feminina de Buíque-PE,
estando presas definitiva ou provisoriamente.
Analisamos práticas opressoras e subalternas que levam ao estigma desse grupo
investigado, discutindo-se sobre padrões conservadores que cercam e oprimem duplamente
essas mulheres, tornando-as submissas ao homem/tráfico e ao Estado em si.
Estudamos a condição de mulheres mulas do tráfico de drogas frente ao convívio com
seus/suas companheiros/as, tentando perceber a influência dessas relações na condição de
traficante. Também serão analisadas as relações de visita íntima, tentando discutir sobre o
abandono (ou não) dessas mulheres.
Importante destacar que, no quadro de mulheres entrevistadas, 9 mulheres mulas do
tráfico de drogas ao todo, uma questão explícita na fala de todas elas é que já sofreram, sofrem
ou sabem que sofrerão algum tipo de preconceito perante a sociedade pelo fato de ser
presidiária, ou no futuro, ex-presidiária.
Há nas narrativas um permanente sentimento de sofrimento, aliada à solidão e as
dificuldades passadas na prisão. No entanto, esse quadro soma-se a lembranças de suas vidas
antes do cárcere, também marcada por inúmeras violências cotidianas, muitas delas
relacionadas a sua simples condição de mulher.
Um dos fatores mais abordados por elas diz respeito a dificuldades anteriores a
condição de “mulas”, especialmente sobre o fato de que sempre enfrentaram obstáculos a
postos de emprego que fossem suficientes para alimentar-se e alimentar seus filhos.
É visível nas falas a relação entre a ocorrência da prática do delito e a condição de
cidadania vivida por elas, implícita nas dificuldades em manter-se água, luz e aluguel pagos,
como é destacado na fala da entrevistada de número 05, que diz:

Antes eu era vista como uma pessoa honesta, sincera e hoje, depois que mexe
com essas coisas não acham que a pessoa ainda é uma pessoa honesta, todo
mundo diz logo que é uma marginal (Entrevistada 05), (grifos nossos).

Constata-se que essas mulheres são vitimadas sob uma perspectiva punitiva de gênero,
ou seja, estereotipadas por padrões sexistas e rudes, machistas e arcaicos, que busca a opressão
a partir de críticas destrutivas, também por meio do sistema.
Esse achado da pesquisa certamente tem relação com o que Saffioti (2004) aponta
sobre o grau de hierarquia mantido pelo sistema masculino que perfaz o Estado,
majoritariamente composto por homens que mantém um controle sistemático e amplo sobre
as mulheres, tornando-as, cada vez mais, objetos de expiação.
Consta-se que a sociedade e o Estado guardam para si grande parcela de culpa das
desigualdades vividas por mulheres presas. Pode ressaltar esse aspecto no que relata a
entrevistada nº 01:

Transportava a droga habitualmente, a primeira vez que transportei foi para dentro do
presídio, para meu marido, quando eu estava indo visitá-lo. Eu não recebia nada por isso,
era muito raro, porque eu levava para meu marido lá no presídio, ele fazia as balas e
vendia, mas não mandava nada para mim (Entrevistada nº 01) (grifos nossos).

A partir dessa fala é possível notar o quanto ainda há uma situação de vulnerabilidade
de gênero que condiciona a mulher nesse tipo de crime, de modo a colocar o feminino em
grau de inferioridade, arriscando-se para satisfazer a vontade do companheiro.
Um dado interessante extraído da fala acima é que as mulheres entrevistadas só têm
dimensão dos problemas de gênero que enfrentam quando presas.

Só tenho valor para algumas pessoas da família, apesar de ser uma decepção,
porque eu fui a primeira a cometer esse erro, mas também acho a justiça cega,
porque não ouve o meu lado, a minha palavra de defesa (Entrevistada nº 09) (grifo
nosso).

Do mesmo modo, também se constata que os mesmos padrões de gênero que mediam
a identidade feminina no cárcere também perfazem sua imagem social. No trecho acima se
nota, mais uma vez, o quanto a sociedade é estereotipada por marcos maternais, de que a
mulher é sempre assumida como recatada e do lar.
O “não lugar” que a mulher presa ocupa é resultado de diversas práticas de opressão,
sejam elas ligadas ao cárcere ou não. Afirmando mais esse achado da pesquisa, as ideias de
Butler (2007, p. 200) apontam que:

O efeito do gênero se produz pela estilização do corpo e deve ser entendido,


consequentemente, com a forma corriqueira pela qual os gestos, movimentos e
estilos corporais de tipos constituem a ilusão de um eu permanente marcado pelo
gênero.

Um marcador importante é que, ao contarem suas histórias de vida, as mulheres


entrevistadas sempre estavam cabisbaixas e pensativas. Havia, como na fala acima, a ideia de
que seu sofrimento era mais amplo e rodeava também os familiares, com isso, se vê que o
cárcere representa dificuldades em dobro à reconstrução dos laços sociais por mulheres.
O gênero é, assim, um dos eixos centrais que organizam as experiências no mundo
social das entrevistadas. No mesmo sentido, vale salientar que os padrões sociais,
historicamente, partem de uma trajetória opressora que resiste à cultura da desigualdade de
gênero, o que também se vê nas narrativas analisadas.
Uma questão de fácil percepção são os reflexos que a vida carcerária causa na vida
dessas mulheres, levando-as a um grau de inferioridade e subalternidade extremo, tendo-se
em vista que todo e qualquer esforço esbarra no status de (ex)presidiária. Percebe-se o quanto
a sociedade age contrariamente a uma possível ressocialização.
Infelizmente, as práticas vivenciadas pela mulher acima ocorrem rotineiramente, pois
esse é o modo pelo qual a sociedade recebe novamente ex-presas/os. A negação aos postos de
trabalho apenas media as futuras situações de exclusão social.
Nesta perspectiva, é evidente que essas mulheres convivem com um imaginário de
que, antes da vida carcerária, deveriam ser donas de casa e mães (adjetivos como pessoas boas
e honestas denunciam isso), e, quando presas, sua condição social ganha contornos machistas,
que as inferiorizam, mesmo elas convivendo com o arrependimento do que fizeram.

Cumpro a pena a 4 anos e 4 meses. Peguei 25 anos, na verdade 23 anos e 2 meses;


9 anos e seis meses do tráfico, e da operação peguei 13 anos e 8 meses, sei que a
juíza unificou e deu esses 25 anos, até hoje não sei como foi isso (Entrevistada nº
01) (grifos nossos).

A partir da fala anterior, pode-se analisar o quanto o judiciário é falho e desatento ao


aplicar a pena de condenação a essas mulheres mulas do tráfico de drogas, de forma que, pelo
transporte de apenas 1 kg de crack, a entrevistada foi submetida a uma pena de 25 anos de
prisão. Vejamos:

Para que a pena não seja a violência de um de muitos contra o cidadão particular,
deverá ser essencialmente pública, rápida, necessária, a mínima dentre as possíveis,
nas dadas circunstancias ocorridas, proporcional ao delito e ditada pela Lei
(BECCARIA, 1999, p. 139).

Ainda, que a prestação jurisdicional em relação às demais é bastante precária e morosa,


regra do Poder Judiciário no Brasil. A partir da realidade vivenciada, relata a entrevista n° 01:
“Agora eu só deixo o tempo correr mesmo, como já sou sentenciada nem adianta mais, nem
ligo mais, agora só Deus”. Essa narrativa denuncia o quão distante são as prisões brasileiras,
especialmente as femininas, de um processo de ressocialização, são depósitos de gente.
A partir dessas narrativas é possível notar o quanto ainda há uma situação de
vulnerabilidade de gênero que condiciona a mulher nesse tipo de crime, de modo a colocar o
feminino em grau de inferioridade, arriscando-se para satisfazer a vontade do companheiro.
Nota-se que a insegurança e a falta de esperança prevalecem no cotidiano das mulheres
presas. Sobre a entrevistada acima, após ser vitimada da pelo Judiciário com uma pena
desproporcional ao seu delito, e submetida a um regime extremamente severo, agora é também
jogada em um sistema sem capacidade de ressocializar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As consequências resultantes do transporte de drogas as deixam muito confusas e


arrependidas pelo fato de terem sido colocadas na situação, e não, na maioria das vezes, ido
por vontade própria, levando em consideração também, os fatos que antecederam essa
conduta.
Nota-se, portanto, o quanto as mulheres são corriqueiramente iscas do aprisionamento,
tendo em vista as circunstâncias em que são presas e as quantidades de drogas que levam
consigo, ficando notória a hierarquia de gênero instalada no meio social e carcerário que
estamos submetidas.
Constata-se a necessidade da reforma da política de drogas, que prime pela redução de
danos e não pelo alojamento de mulheres diante do caótico sistema penitenciário de nosso
Estado. É preciso dialogar com as vivências de mulheres presas, considerando a posição que
elas ocupam, para pensar o enfrentamento desse cenário, a partir da Lei 11.343/2006.
A pesquisa retrata o quanto se faz necessária a implementação de uma nova política
de drogas que pense particularmente no(a) usuário(a) e no traficante, de modo que seja dada
prioridade a saúde do sujeito, assim como a responsabilidade condizente com a conduta
praticada, e, consequentemente, um acompanhamento processual mais célere, e, portanto, uma
melhor organização no sistema carcerário.
Portanto, as repercussões que causam as práticas opressoras do Estado a mulheres
entrevistadas são inúmeras. Neste caso, é caótica a situação em que se encontra o Sistema
Carcerário, quando se pensa o feminino nesses estabelecimentos prisionais.
Dessa forma, o que se observa é que o cenário da “guerra as drogas” pune de modo
mais incisivo as mulheres pelos mesmos crimes que também são cometidos por homens, onde
judiciário é machista, a guerra às drogas é sexista, porém a resistência é feminista e
antiproibicionista.
Conclui-se também que deveria ser analisado o perfil de cada mulher, assim como sua
história de vida, o que as levaram a cometer qualquer delito relacionado ao tráfico de drogas,
o motivo de terem sido transportadoras da referida droga, assim como a situação de
vulnerabilidade social que se encontram.
Os estereótipos machistas e patriarcais são protagonistas de todo o sofrimento vivido
por essas mulheres mulas do tráfico de drogas, de modo a serem tachadas como mau exemplo
de mães, esposas ou filhas, sendo, portanto, indicadas como pessoas desonradas, marginais,
dentre outros adjetivos, e por vezes, mentirosos, criados em decorrência de práticas históricas
que marginalizam mulheres.

REFERÊNCIAS

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2005.

BECCARIA, Cesare de Bonesana, Marquês de. Dos delitos e das penas. Trad. Paulo Oliveira.
6. ed. São Paulo: Atena, 1959.

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penitenciárias INFOPEN mulheres: junho de 2014. Ministério da Justiça, Brasília- DF, 2014.

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Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção
e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à
produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências.
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DOS BENS IMPENHORÁVEIS E DA EQUIPARAÇÃO DO FUNDO PARTIDÁRIO
A ESSA CATEGORIA

Ylany Pachêco Padilha


Danilo Aquino da Silva
Reinaldo Alves

RESUMO

O presente estudo objetivou analisar o instituto da impenhorabilidade no ordenamento


jurídico brasileiro, e mais especificamente, a vedação da penhora dos recursos públicos
advindos aos Fundos Partidários, em decorrência das alterações introduzidas pela Lei nº
11.694/2008. Nesta perspectiva, foi necessário investigar a seguinte problemática: Tendo em
vista a notória decadência na efetividade dos partidos políticos – que se provam mais como
“vampiros” do erário público – em que implica a justificativa da impenhorabilidade como
“vantagens à coletividade”? Como principal resultado da pesquisa foi possível identificar que
há uma verdadeira incoerência na justificativa mencionada, uma vez que a vantagem referida
não recai sob a coletividade, mas sim, a determinado grupo político, que já detém um lugar
de privilégios. No percurso metodológico utilizou-se na pesquisa uma abordagem qualitativa.
No tocante aos fins elegeu-se o método exploratório, tendo como técnica de coleta de dados
o levantamento bibliográfico e como técnica de análise a análise do conteúdo.

Palavras-chave: Impenhorabilidade. Recursos Públicos. Fundo Partidário.

INTRODUÇÃO

O presente artigo teve como objetivo geral analisar o instituto da impenhorabilidade


no ordenamento jurídico brasileiro, e mais especificamente, a vedação da penhora dos
recursos públicos advindos aos Fundos Partidários, em decorrência das alterações i
ntroduzidas pela Lei nº 11.694/2008.
Como objetivos específicos buscaram-se: perscrutar a “humanização da execução”,
explicitando, para tanto, o instituto da impenhorabilidade à luz do Princípio da Dignidade
Humana do devedor; analisar as alterações introduzidas pela Lei n° 11.694/2008 e a
consequente adequação do fundo partidário a posição de bem impenhorável; conhecer e
descrever as decisões judiciais acerca do tema; compreender controvérsia entre o interesse
público e o sacrifício do credor, diante do cenário político brasileiro.
Nesta perspectiva, foi necessário investigar a seguinte problemática: Tendo em vista
a notória decadência na efetividade dos partidos políticos – que se provam mais como
“vampiros” do erário público – em que implica a justificativa da impenhorabilidade como
“vantagens à coletividade”?
Justifica-se a escolha do tema pela sua relevância social, visto ser de crucial
importância que todos os cidadãos conheçam a origem, a finalidade e os institutos jurídicos
que circundam as verbas que todo partido político brasileiro recebe, para aplicar de acordo
com as finalidades dispostas pelas Leis n°. 9.096/95 e 11.459/2007. Ademais, é importante
salientar o contributo que esta pesquisa traz para a ciência do Direito, notadamente pela
escassez de estudos acerca do tema aqui tratado.
Para atingir os objetivos propostos, utilizou-se na pesquisa uma abordagem qualitativa.
A utilização desse tipo de abordagem difere da abordagem quantitativa pelo fato de não
utilizar dados estatísticos como o centro do processo de análise de um problema, não tendo,
dessa forma, a prioridade de numerar ou medir unidades. Nesse sentido, Os dados coletados
nessas pesquisas são descritivos, retratando o maior número possível de elementos existentes
na realidade estudada. Preocupa-se muito mais com o processo do que com o produto. Na
análise dos dados coletados, não há preocupação em comprovar hipóteses previamente
estabelecidas, porém estas não eliminam a existência de um quadro teórico que direcione a
coleta, a análise e a interpretação dos dados (PADRANOV e FREITAS, 2013).
Quanto aos fins da pesquisa utilizou-se o método exploratório, tendo como técnica de
coleta de dados o levantamento bibliográfico, que consiste em uma sondagem de toda a
bibliografia já publicada (livros, revistas, publicações avulsas, documentos eletrônicos,
artigos científicos), reverberando em um contato direto com tudo o que foi escrito sobre este
determinado assunto (MARCONI; LAKATOS, 2001).
O método exploratório tem como finalidade proporcionar mais informações sobre o
assunto, investigando, possibilitando sua definição e seu delineamento, isto é, facilita a
delimitação do tema da pesquisa; orientar a fixação dos objetivos e a formulação das hipóteses
ou descobrir um novo tipo de enfoque para o assunto (PADRANOV e FREITAS, 2013).
No tocante a técnica de análise de dados buscou-se a análise do conteúdo. Esta,
segundo Bardin, pode ser definida como: um conjunto de técnicas de análise de comunicação
visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo
mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos
relativos às condições de produção/recepção destas mensagens (BARDIN, 1979).

1 BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DO PROCESSO DE “HUMANIZAÇÃO DA


EXECUÇÃO” E SEUS REFLEXOS NO INSTITUTO DA IMPENHORABILIDADE
O ser humano está em constante movimento, seja no sentido literal - viajando e
conhecendo lugares - ou no sentido de fazer, aprender, comprar e adquirir coisas. É sabido
que todo aquele que compra algo (serviço ou produto), deve pagar por aquilo que adquiriu.
No Direito, mais especificamente na área Civilista, a essa conduta voluntária de adimplir
espontaneamente a obrigação contraída, dar-se o nome de “cumprimento da obrigação”; mas
deve ser destacado que, no ramo processualista civil, tal conduta mencionada recebe
nomenclatura distinta, sendo conhecida como “EXECUÇÃO” (DIDIER JR. et al, 2017).
Execução, para o famoso doutrinador e professor Didier Jr. et al (2017), é basicamente
satisfazer uma dívida, ou seja, uma prestação. Ele divide esse ato em dois: espontâneo, quando
o devedor cumpre a prestação de modo natural (voluntário), e forçado, a prestação é efetuada
graças ao Estado e aos atos executivos realizados pelo mesmo.
Câmara (2016), no que tange a execução “forçada”, afirma que é uma atividade de
“agressão patrimonial”, legitimada por um título executivo que confirma ao menos a
existência do crédito. A execução fundada em título executivo judicial é chamada de
“cumprimento de sentença” (disciplinado pelos artigos 513 a 538, do Título II do Livro I da
Parte Especial do CPC; aplicando-se de forma subsidiária o disposto no Livro II da Parte
Especial do mesmo código), mas se tal procedimento executivo se funda em título executivo
extrajudicial, tratar-se-á de “processo de execução” (regulado pelo Livro II da Parte Especial
do CPC; se aplicando a ele, subsidiariamente, o regime constante no Livro I da Parte Especial).
Independente de qual título executivo se funda a execução, o procedimento executivo
em si almeja sempre satisfazer o direito do exequente (credor). E para tanto, busca-se no
patrimônio do executado (devedor) bens para a concretização do mencionado intento. O ato
de buscar, apreender e depositar bens visando sanar uma obrigação, chama-se penhora. A
partir dela, o executado (devedor) seleciona, isola e destina um bem que se encontra em seu
patrimônio, para ser usado como pagamento do débito contraído. Dentre os bens do
patrimônio do executado e do terceiro responsável, serão penhorados aqueles que tenham
certa expressão econômica e que não sejam considerados impenhoráveis (DIDIER JR. et al,
2017).
Como visto acima, não é todo e qualquer bem que pode ser penhorado. O Código de
Processo Civil atual, em seu artigo 833 (correspondente ao antigo art.649 do CPC/73) elenca
alguns bens que são tidos juridicamente como impenhoráveis. Dentre os incisos do
supracitado artigo, chama-se atenção ao que trata da impenhorabilidade de recursos públicos
destinados ao Fundo Partidário, recebido nos termos da lei pelos partidos políticos.
A esse respeito é preciso considerar que o Fundo Partidário é a principal fonte dos
recursos partidários – constituído por multas e penalidades pecuniárias nos termos do Código
Eleitoral e leis conexas; recursos financeiros que lhe forem destinados por lei, em caráter
permanente ou eventual; doações de Pessoa Física ou Jurídica, efetuadas por intermédio de
depósitos bancários, diretamente na conta do Fundo Partidário; e por fim, dotações
orçamentárias da União (ALMEIDA, 2017).
O Código de Processo Civil, em seu artigo 833, traz hipóteses de impenhorabilidade.
Tais regras indubitavelmente constituem mecanismos de freio à atividade de buscar satisfazer
o direito do exequente na execução (NEVES, 2016). Hodiernamente, princípios como o da
menor onerosidade possível e o da dignidade humana do devedor, vêm sendo firmemente
observados nos procedimentos de execução realizados.
Nesse sentido, Câmara (2016, p. 338) afirma “se por vários meios puder desenvolver-
se a execução, o juiz deverá mandar que ela se faça do modo menos gravoso possível para o
executado, de modo a causar-lhe o menor sacrifício possível”. Essa proteção, conferida ao
devedor em face do procedimento que visa efetivar o direito do credor, demonstra a evolução
que a humanidade conquistou ao longo do tempo.
De acordo com Neves (2016, p. 1891) “No direito romano a execução era
extremamente violenta, permitindo-se a privação corporal e até mesmo a morte do devedor”.
No período a que se refere o autor supracitado, falava-se em vingança privada e a lei que
predominava era a da força física, autotutela. Dinamarco (2000 apud SILVA, 2014, p. 311)
vem asseverar que remotamente, em especial no período romano arcaico, o Estado tinha a
função controladora dos atos executórios e o credor era quem prendia o devedor, o exibia em
“comitium” (lugar onde os romanos se reuniam em assembleia popular), mantinha-o preso e
vendia-o como escravo.
Devido a grande relevância que os romanos antigos atribuíam ao patrimônio e ao
cumprimento das obrigações assumidas, a execução se mostrava extremamente severa e
implacável. A título de exemplo, cita-se a infâmia, uma pena aplicada ao inadimplente, a qual
se fundou como eficiente instrumento de coerção, pois perante a sociedade era algo tenebroso,
de forma que mobilizava amigos e familiares do devedor principal para sanar a dívida
(SILVA, 2014).
Com a Lex Poetelia Papiria, datada do ano 326 a.C., iniciou-se o processo de
transformação da responsabilidade pessoal para a patrimonial e a consequente “humanização
da execução”. A partir daí, a forma como o devedor era tratado mudou. Proibiu-se a morte e
o acorrentamento do executado e valorizou-se a prestação de trabalho forçado para adimplir
os débitos - acentue-se que ainda pairava a ideia de vingança privada na mentalidade romana
(NEVES, 2016).
Neves (2016) alega ter havido uma evolução significativa, mesmo dentro da
responsabilidade patrimonial, que se firmou no período clássico e pós-clássico romano. Ele
destaca o bonorum venditio (tradução literal do latim - boas vendas) que equivalia a uma
execução universal e coletiva, onde o executado sanava a dívida através de um processo
similar a falência e insolvência civil.
O advento do período clássico, conjuntamente com os novos institutos que surgiram
naturalmente, foi o momento crucial onde apareceram alguns casos de limitação patrimonial
(aqui os valores dos bens que eram sujeitos à expropriação tinham que corresponder à quantia
devida). Nessa etapa, é notável a preocupação do legislador com a manutenção do mínimo
necessário para a subsistência do devedor. Eis alguns contornos da impenhorabilidade, que de
forma tímida, começa a surgir nesse período; aproximando-se daquilo que é conhecido
contemporaneamente (NEVES, 2016).
Segundo Neves (2016), impenhorabilidade da maneira que se apresenta hoje é o ápice
da chamada “humanização da execução”. A vedação a penhorabilidade de determinados bens
é o que há de mais moderno, no tocante as tentativas legislativas de resguardar o executado.
Colocando em um patamar elevado a dignidade humana do inadimplente em contraposição
ao direito do credor.
Para Silva (1998 apud DIDIER JR, 2017, p. 823), compreender o motivo de existir
tantas regras e princípios que salvaguardam a pessoa do executado, se faz necessário voltar-
se para uma perspectiva religiosa, mais precisamente para o cristianismo, uma vez que as
regras de proteção contidas no Direito Romano, e atualmente no ordenamento jurídico pátrio,
sofreram forte influência dos valores desse segmento religioso (a exemplo de preceitos como:
caridade, piedade, compaixão, moderação e clemência).
Destarte, a impenhorabilidade é uma consequência do Estado Democrático de Direito
e da consumação de regras e princípios norteadores das relações humanas, como o já
mencionado princípio da dignidade humana que institui o dever de preservar o patrimônio
mínimo e a dignidade do executado nos procedimentos executivos (seja no âmbito judicial –
cumprimento de sentença, ou na esfera extrajudicial- processo de execução).
2 DO INSTITUTO DA IMPENHORABILIDADE: ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS
PELA LEI Nº 11.694/2008 E A EQUIPARAÇÃO DO FUNDO PARTIDÁRIO A ESSA
CATEGORIA

A Lei n° 11.694/2008 foi idealizada pelo Senador do PMDB de Pernambuco, Jarbas


Vasconcelos; a qual foi protocolada perante a Câmara dos Deputados como PL n°. 2.579/200,
tendo sido aprovada, foi naturalmente envidada para o Senado – sendo recebida como PLS
n°. 564/2007. Em seguida a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) emitiu um parecer,
realizaram-se as respectivas votações – com manifestação do Senador do PSDB do Ceará,
Tasso Jereissati – e sancionou-se o mencionado projeto de lei no dia 12-06 de 2008–
publicando-o no DOU no dia 13-06 do mesmo ano (MARINHO, 2009).
Antes de adentrar nas inovações trazidas pela aludida lei, é importante destacar que a
anterior Lei dos Partidos Políticos (lei n° 5.682/71) considerava todo e qualquer partido
político pessoa jurídica de direito público. No entanto, com o surgimento da Magna Carta de
1988, adquiriu-se personalidade jurídica privada – de acordo com o que está expresso em lei
civil e no artigo 17 § 2° da CF/88 (MARINHO, 2009).
Registre-se, pois, que a nova Lei dos Partidos Políticos (lei n°9.096/95), define em seu
primeiro artigo que os partidos políticos são pessoas jurídicas de direito privado, com a missão
última de assegurar a autenticidade do sistema representativo e proteger os direitos
fundamentais presentes na Constituição (BRASIL, 1995).
Essas entidades, em face de sua alta relevância, são controladas em alguns aspectos:
uma forma é o controle feito através dos recursos que são distribuídos para eles (realizado
pela Justiça Eleitoral e em consonância com o artigo 44 parágrafos 1° e 2° da Lei n° 9.096/95),
e a segunda maneira é o gerenciamento procedimental quanto à sua formação – uma vez
adimplida todas as obrigações constantes em lei específica, o TSE é obrigado a conceder o
caráter de partido político (MARINHO, 2009).
Antes do advento da Lei n° 11. 694/2008, os valores arrecadados para o Fundo
Partidário não eram agraciados pela vedação da penhorabilidade. Dessa forma, os dirigentes
de diretórios municipais, por exemplo, podiam contrair obrigações, causar prejuízos de
variada natureza e, existindo alguma impossibilidade do responsável principal arcar com as
despesas ocasionadas, essas seriam suportadas pelos demais diretórios (estaduais, regionais e
nacionais) (MARINHO, 2009).
Com a promulgação da Lei supracitada, as verbas presentes no fundo passaram a ser
resguardadas, elevando o fundo partidário à posição de algo que é impenhorável (tal como o
bem de família, o salário mínimo e várias outras hipóteses elencadas no art.833 do CPC/15).
Nesse diapasão, a Lei n° 11. 694/2008 acrescentou ao artigo 655-A do CPC de 1973 o
parágrafo 4°, estabelecendo na época, que o juiz requisitará à autoridade financeira
informações sobre a existência de ativos tão somente em relação ao órgão partidário que tenha
dado causa ao dano ou a violação de direito. Portanto, se um candidato a vereador causar
algum tipo de dano, em nome do partido do qual faz parte, a responsabilidade civil recairá
sobre o respectivo diretório municipal, não sendo possível haver algum tipo de afetação dos
recursos partidários de âmbito nacional (PORTELLA, 2008).
Abaixo consta a transcrição ipsis litteris do parágrafo 4° do artigo 655-A do CPC
datado de 1973, para melhor embasar o que fora dito:

“§ 4º Quando se tratar de execução contra partido político, o juiz, a requerimento do


exeqüente, requisitará à autoridade supervisora do sistema bancário, nos termos do
que estabelece o caput deste artigo, informações sobre a existência de ativos tão
somente em nome do órgão partidário que tenha contraído a dívida executada ou
tenha dado causa a violação de direito ou ao dano, ao qual cabe exclusivamente a
responsabilidade pelos atos praticados, de acordo com o disposto no art. 15-A da
Lei 9.096, de 19 de setembro de 1995” (BRASIL, 1973, p.196).

Deve ser chamada a atenção para o aspecto de que o exequente deve requerer ao
magistrado para que este, por conseguinte, requisite à autoridade supervisora do sistema
bancário, informações sobre a existência de ativos em nome do órgão partidário que se
encontra como principal responsável pelas dívidas contraídas e/ou pelos danos causados e
direitos transgredidos.
O artigo 15-A que foi mencionado no corpo do parágrafo exposto acima foi adicionado
pela Lei 11.694/2008 à Lei 9.096/95. Nele consta o seguinte, in verbis:

“Art. 15-A. A responsabilidade, inclusive civil, cabe exclusivamente ao órgão


partidário municipal, estadual ou nacional que tiver dado causa ao não cumprimento
da obrigação, à violação de direito, a dano a outrem ou a qualquer ato ilícito,
excluída a solidariedade de outros órgãos de direção partidária” (BRASIL, 1995,
p.5).

Dessa forma, as alterações trazidas pela lei n°11.694/2008 e a consequente


equiparação do fundo partidário a categoria de impenhorável, impactou de certo modo a forma
como os recursos viam sendo utilizados pelos órgãos partidários e seus dirigentes. A
responsabilidade civil por atos ilícitos e a execução judicial, após a condenação, atingirá
somente os reais responsáveis. Evitando-se que sejam executados os recursos do fundo do
partido (que são protegidos pela lei) e sejam atingidos outros diretórios que não deram ensejo
a tal situação (PORTELLA, 2008).

3 DO APARATO JURISPRUDENCIAL ACERCA DA IMPENHORABILIDADE DO


FUNDO PARTIDÁRIO

É inegável o mérito da principalidade da lei frente à jurisprudência, não obstante, é


também essencial afirmar que a lei sozinha não é suficiente para realizar uma aplicação,
tornando imprescindível uma interpretação. E o juiz, como “destinatário da lei”, fará uma
interpretação do texto contido na norma e o adaptará, objetivando facilitar o cumprimento do
que outrora foi estabelecido (ARAÚJO, 2015).
Para tanto, importante trazer à baila exemplos de reiteradas decisões acerca do presente
estudo, buscando compreender como o Judiciário tem se posicionado sobre a
impenhorabilidade do fundo partidário.
Antes das alterações que equiparou o fundo partidário à categoria de bem
impenhorável, decidiam os desembargadores da oitava câmara cível do Tribunal de Justiça do
Estado do Paraná:

APELAÇÃO CÍVEL. EMBARGOS DE TERCEIRO. EXECUÇÃO CONTRA O


PARTIDO POLÍTICO. DIRETÓRIO ESTADUAL.LEGITIMIDADE PARA
RESPONDER POR OBRIGAÇÃO ATRIBUÍDA A DIRETÓRIO MUNICIPAL.
FUNDO PARTIDÁRIO. PENHORABILIDADE. 1. Partido Político tem caráter
nacional (art. 17, inciso I, da Constituição Federal), possuindo personalidade una,
constituindo-se em diferentes esferas de atuação (municipal, estadual e nacional) tão
somente para fins políticos-administrativos. Logo, perfeitamente possível que o
órgão estadual do partido responda com recursos a eles atribuídos por obrigação
pertinente a órgão municipal, representando a distribuição de recursos entre esses
órgãos questão “interna corporis” que não elide a responsabilidade patrimonial da
pessoa jurídica como um todo. 2. O art. 44 da Lei 9.096/95 prevê a destinação dos
recursos do Fundo Partidário visando apenas sua vinculação às finalidades
institucionais do partido, como entidade política, tendo como destinatários os
administradores desses recursos. Assim, não se constitui em hipótese de
impenhorabilidade, que como exceção à regra da responsabilidade patrimonial, deve
ser expressa. 3.Honorários mantidos. 4. Recurso desprovido, por maioria. (TJ-PR –
AC: 0419920-4, Relator: José Sebastiao Fagundes Cunha, Data de julgamento:
09/08/2007, 8ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ: 7445)”

O julgado acima mostra que diante da personalidade una que os partidos políticos
possuem, os diretórios respondiam pelas obrigações uns dos outros, sendo a distribuição
dessas verbas entre esses órgãos questão “interna corporis” que permite a responsabilização
de todo o partido político.
Após a alteração provocada pela Lei n° 11.694/2008, o entendimento passou a seguir
em outro sentido, serve como exemplo o caso julgado pela Corte da 3ª Turma do STJ:
Uma empresa de marketing e publicidade ajuizou ação de cobrança contra o PTB,
visando o pagamento decorrente da prestação de serviços prestados para as eleições
municipais de Campo Grande/MS em 2004. O pedido foi julgado procedente e o
partido condenado a pagar a dívida. Para dar cumprimento à sentença, foi
determinado o bloqueio de R$ 4,4 milhões das conta-correntes de titularidade do
Diretório Regional do PTB e do PTB. Ocorre que parte da quantia que se encontrava
nas contas era destinada exclusivamente aos depósitos dos recursos do Fundo
Partidário. Após perder em segunda instância, o PTB nacional recorreu ao STJ. O
relator do caso, m inistro Villas Bôas Cueva, lembrou que, independentemente da
origem, os valores recebidos do Fundo Partidário são considerados recursos
públicos, "isso porque referida verba possui destinação específica prevista em lei,
além de sujeitar-se a rigoroso controle pelo Poder Público através de prestação de
contas".
"Desse modo, o art. 649, XI, do CPC impõe a impenhorabilidade absoluta dos
recursos públicos do fundo partidário, compreendidas as verbas previstas nos incisos
I, II, III e IV do art. 38 da Lei nº 9.096/1995, diante da sua inegável natureza
pública."
O ministro ressaltou, porém, que o Fundo Partidário não é a única fonte de recursos
dos partidos políticos. Por isso, reconheceu a impenhorabilidade dos valores
depositados de somente uma das contas bloqueadas que é receptora dos recursos do
Fundo Partidário (REVISTA CONSULTOR JURÍDICO, 2015, p. 1).

Neste caso, observa-se que a cobrança advém de gastos que o Partido deveria ter
adimplido com recursos constantes no Fundo Partidário (enquadramento no rol de dispêndios
do artigo 44 da Lei dos Partidos Políticos); porém, quando este gasto torna-se uma dívida, e
esta é exigida através do processo de execução, o débito fica a mercê da impenhorabilidade,
pouco importando a natureza da dívida.
Apesar de haver decisões no sentido da impenhorabilidade, deveria ser primado pela
sua mitigação, haja vista que o credor, a exemplo da empresa do caso acima, fornece seus
serviços com qualidade e eficiência. Mas, quando se aproxima o momento do partido adimplir
com suas obrigações contraídas, o mesmo sob alegações diversas não as cumpri. O credor por
sua vez, vale-se dos meios legais disponíveis para efetivar seu direito; porém termina por
esbarrar na vedação da penhorabilidade dos recursos do fundo partidário. Percebe-se, dessa
forma, que o credor suporta um enorme prejuízo devido à extrema relevância dada ao interesse
público de resguardar de maneira rigorosa as quantias percebidas pelos partidos. Deixando de
garantir o direito daqueles que prestaram serviços a tais entidades, e, por conseguinte,
dependem do recebimento do crédito pelo trabalho realizado, haja vista que é daí que essas
pessoas obtém sua renda, que garante a sua sobrevivência e de seus familiares.
Considerando que o Poder Judiciário tem a função política de proteger a minoria, a
partir do princípio da equidade, a jurisdição precisa contar em um certo momento com o
“ativismo judicial”, o qual deve ser uma ferramenta de exceção para os casos em que o
processo de representação política não está funcionando. Logo, o exposto se enquadraria
perfeitamente no presente caso, relativizando, assim, o caráter absoluto da impenhorabilidade
do fundo partidário. No entanto, é preciso que haja um desprendimento da interpretação literal
e rigorosa acerca da lei, por parte dos Tribunais Superiores. Do contrário, continuará
subsistindo a controvérsia aquém explicada.

4 DA CONTROVÉRSIA ENTRE A JUSTIFICATIVA DE RESGUARDAR O


INTERESSE PÚBLICO E O SACRIFÍCIO DO CREDOR

Antemão, importante considerar que os recursos do fundo partidário são públicos,


apesar de se incorporarem ao patrimônio do partido político - que tem personalidade de direito
privado – surgindo, assim, a necessidade de um controle no repasse e utilização dessas verbas.
Para tanto, a justificativa da lei para estabelecer a impenhorabilidade dos recursos do fundo
partidário foi impedir que, se um diretório estadual ou municipal contrair uma dívida, o Poder
Judiciário ficará impedido de determinar a penhora de bens do fundo partidário, isto porque a
decisão atingirá todo o partido, e não somente o órgão partidário que praticou o dano. Destarte,
no tocante deste aspecto fica nítida a relevância, para que se enseje maior responsabilidade
dos diretórios estaduais e municipais, sem possibilidade de amparo aos recursos de fundos
partidários, o que faz não comprometer as finanças do partido político como um todo. Por
outro lado, esta responsabilidade exclusiva do órgão partidário é preocupante, pois tornou
inexecutáveis as dívidas contra o partido político, o que acaba sendo “prato cheio” para um
devedor de má-fé (PORTELLA, 2008).
As controvérsias advêm até mesmo da problemática do próprio legislativo, tendo em
vista proveitos pessoais ou partidários no exercício desta função, pelo qual faz remeter aos
parlamentares a pensarem (e mesmo justificarem) a pseudo função como representantes em
busca do “interesse público”. Ora, teoricamente é mesmo acertivo afirmar que os partidos
políticos são organismos essenciais ao bom funcionamento do Estado Democrático de Direito,
e por esta razão os recursos públicos recebidos pelos mesmos não perdem a natureza pública,
o que justificaria a impenhorabilidade. No entanto, como bem acentua o doutrinador Neves
(2016, p.1913)

O sacrifício do credor seria justificado por vantagens à coletividade com o bom


emprego dos valores existentes no fundo partidário. Evidentemente que em
decorrência da notória “falência” dos partidos políticos em nosso país, que mais
parecem um agrupamento de aproveitadores e larápios sempre prontos para tungar
o erário público, a impenhorabilidade pode não parecer muito simpática. Num país
sério seria plenamente justificável, mas o Brasil, definitivamente, não é um país
sério.
Analisando a constituição dos partidos políticos no Brasil, bem como a relação dos
políticos com suas respectivas agremiações e eleitores, já podemos extrair a notória “falência”
citada pelo doutrinador supramencionado. Por esta razão, antes de mais nada, é importante
discutir a questão da representação política, contando não com o romantismo da teoria, mas a
partir de um diálogo entre a teoria e a prática.
O Congresso Nacional, na prática, é mais do que um espaço político por excelência, é
espaço de disputa de poder, onde se dissipam discursos com a necessidade de o parlamentar
preservar o vínculo de confiança em relação ao seu eleitor, é na verdade um fim de garantir
uma futura reeleição. A tendência dos parlamentares de se colocarem como defensores do
interesse público pode ser apontada como uma estratégia de autopreservação, na medida em
que sugere uma transferência de responsabilidade ou corresponsabilidade.
Em contrapartida, há entendimento divergente acerca do tema, pelo qual se defende:

Com o advento da lei 11.694/2008, pode-se atestar que os recursos recebidos pelos
partidos políticos, a partir do início de sua vigência, terão privilégio no concernente
à garantia de sua impenhorabilidade (...) Conforme a anterior previsão legal dos bens
impenhoráveis, nota-se que estes eram apenas os vistos como absolutamente
indispensáveis ou que, diante de sua falta, causariam enorme prejuízo ao devedor.
Nada mais justo, portanto, que os recursos destinados à manutenção e fomento dos
partidos políticos também fossem assim encarados, pois estes têm fundamental
importância em nosso estado democrático de direito, eis que clara a previsão
constitucional. (MARINHO, 2009, p.5)

Todavia, ainda que se entenda desta forma, nos partidos políticos, entidades de direito
privado, o controle torna-se difícil, ou quase impossível. Logo, a inovação legislativa por si
só não é capaz de impedir os desvios de verbas do fundo partidário para fins ilícitos; pois não
adianta tornar tais recursos absolutamente impenhoráveis e não garantir a aplicação e
direcionamento corretos de tais quantias.
Enquanto não se ter consciência desses fatos que, aliás, são públicos e notórios, a
execução frente a dívidas de partidos políticos continuará emperrada e ineficaz, em face do
sacrifício do credor. A dúvida que aqui se insere é referente à dificuldade de o credor receber
o crédito, devido a falta de recursos de órgãos estaduais e municipais. Por esta razão, é
asqueroso que se deixe de lado um dos princípios da execução civil, de que a efetividade da
tutela judicial da execução se dá no interesse do credor, ou seja, o direito deste receber seu
crédito. Portanto, considerável é a possibilidade dos juízes determinarem a penhora de
recursos do fundo partidário nos casos em que sejam ausentes outros meios, afastando assim
a impenhorabilidade absoluta dos recursos públicos do fundo partidário.
Em um debate de Ciência Jurídica, expõe Babilon (2009, p.1 – online)
Qual a justificativa "nobre e digna" para tornar absolutamente impenhorável os
recursos públicos do fundo partidário? Parece que nenhuma! Esta
impenhorabilidade contraria todas as justificativas, porque, não está inserida na
subsitência pessoal e familiar do devedor (...)Ora, a nobre representação dos
cidadãos não se compara ao conceito de sobrevivência pessoal do devedor e de sua
família. Pelo que se tem noticiado nos últimos anos, os Partidos Políticos,
costumeiramente, têm usado seus fundos para outras finalidades (caixa-dois,
pagamento de "mensalão"). Então, parece que esta impenhorabilidade tem outras
justificativas que não ficaram expostas no texto legal.”

Por fim, segundo Simone de Sá Portella (2008), para conciliar o interesse do credor e
o interesse público, na garantia dos recursos do fundo partidário, não havendo recursos
suficientes nos cofres dos órgãos estaduais e municipais, a execução em caso de dolo, má fé
ou violação de lei, será direcionada ao responsável local pelo diretório do partido, aplicando-
se a teoria da desconsideração da personalidade jurídica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O propósito desta pesquisa se fundou na elaboração de um conjunto de elementos para


uma melhor análise do que concerne ao tema aqui vislumbrado, de modo que atendesse um
arcabouço bibliográfico, bem como pontuações práticas e críticas. Buscou-se, portanto, um
diálogo entre aspectos teóricos e práticos do assunto, permitindo, assim, a disseminação e a
socialização dos conhecimentos aqui contidos. Acerca de todo o exposto, pode-se chegar a
algumas conclusões:
O procedimento executivo passou por muitas etapas evolutivas na chamada
“humanização da execução”. De tal forma que, a vingança privada e a autotutela saíram de
cena e deram espaço para a valorização de princípios norteadores da sociedade atual, que se
fazem presentes em várias áreas, inclusive no processo de execução.
Os princípios como da menor onerosidade possível e o da dignidade humana do
executado, denotam o que há de mais moderno no tocante a instrumentos que almejam
viabilizar a satisfação do crédito do exequente de forma proporcional e razoável. A vedação
a penhora de certos bens é o nível mais alto dessa “humanização da execução”.
A impenhorabilidade se fundamenta em muitos critérios, sendo o maior deles a
dignidade do devedor e a consequente manutenção do patrimônio mínimo. Mas existem outros
como a proteção a direitos coletivos (lato sensu) que justifica a aplicação desse instituto, com
base no artigo 833 do CPC/15, sobre os recursos públicos percebidos pelos partidos.
O fundo partidário com a promulgação da Lei n°11.694/2008 foi elevado à condição
de impenhorável. Logo, os atos praticados por dirigentes e órgãos partidários de âmbito
municipal, estadual ou regional não repercutirão de modo a atingir e a abalar as finanças do
partido político. Percebe-se que o legislador teve a intenção de preservar os recursos contra
atos inconsequentes, os quais podem ser praticados por diretórios políticos ou por seus
membros.
Como foi demonstrado, em sede de responsabilidade civil, por exemplo, se um candidato a
vereador der causa a algum tipo de dano, em nome do partido político de qual faz parte, a
afetação recai sob o respectivo diretório municipal, ficando o recurso de âmbito nacional
resguardado. No entanto, é importante considerar que a impenhorabilidade absoluta refuta a
relativização, ou seja, caso o diretório não possa arcar com a satisfação de suas dívidas, não
haverá, também, a possibilidade de resgatar a ideia do "interna corporis" no que tange as
verbas e permitir, de maneira subsidiária, a responsabilização de todo o partido político.
Lamentavelmente, deste entendimento não há quaisquer surpresas, tendo em vista que até
mesmo em se tratando de dívidas decorrentes de serviços vinculados à receita do Fundo
Partidário, não há possibilidade de relativizar a referida impenhorabilidade absoluta.
Afirma-se, na teoria, que devido ao papel que os partidos políticos desempenham na
sociedade, no que tange a viabilização do regime democrático e a representação do povo, o
credor deveria suportar o não cumprimento da obrigação devida por tais entidades.
Há quem defenda a impenhorabilidade do mencionado fundo, uma vez que se encontra
estampado na lei que essas verbas estão contempladas por tal medida e o credor está abrindo
mão de ter satisfeito o seu direito, em benefício do bem comum de todo o povo brasileiro e do
Estado Democrático de Direito. Entretanto, para outros o sacrifício do credor é inútil, uma vez
que, na perspectiva política atual, os partidos políticos se mostram como um mero
agrupamento de pessoas destituídas de um bom caráter e de uma conduta ilibada, muitas
vezes com uma formação cultural e intelectual duvidosa e com objetivo básico de tungar o
erário; sem preocupar-se com as possíveis consequências das suas atitudes sobre a nação que
representa.
Este último posicionamento se mostra adequado diante do cenário político atual, pois
os partidos políticos são entidades criminosas que são financiadas pelo fundo partidário, haja
vista que muitos dos seus integrantes se encontram envolvidos em grandes esquemas de
corrupção, contribuindo com a total involução do país e de todo o povo brasileiro. Fazer com
que o fundo partidário permaneça em toda e qualquer situação como impenhorável, é primar
pela manuntenção de verdadeiras “células cancerígenas” da sociedade; além de ocasionar
prejuízos àqueles que prestaram serviços a tais órgãos partidários, os quais enquanto credores,
buscam a satisfação daquilo que lhe é devido, mas vão se encontrar numa situação de completa
frustração, uma vez que não irão receber nada do que lhes cabem.
Desta forma, fica transparente compreender que a justificativa sobre “vantagens à
coletividade” recai, na verdade, em vantagens – ou melhor dizendo, privilégios – aos
purgadores do erário público. Talvez, se não estivéssemos diante da deteriorada cultura
política brasileira, este artifício da impenhorabilidade dos recursos advindos ao Fundo
Partidário pudesse recair, verdadeiramente, em vantagens à coletividade.
Portanto, por mais que seja alegado que a impenhorabilidade dos valores recebidos
pelos partidos represente um avanço, no sentido de resguardar tais entidades de possíveis
execuções, não sobrepuja a ideia sublime de garantir aos eleitores e correligionários o direito
de terem esses recursos aplicados de modo transparente, e utilizados de forma adequada dentro
dos parâmetros legais, sem dar margem para condutas que visam desvirtuar a real finalidade
do dinheiro advindo do fundo e das demais fontes colaboradoras do partido.
Por fim, como já mencionado, mas não menos digno de ser retomado e discutido para
fins de resultados de pesquisa, há também a problemática que se insere na constatação de
escassez bibliográfica desta temática, pela qual podemos entender como mais um artifício em
proveito e fortalecimento da miserável cultura dos que nos representam politicamente. Assim,
nos parece que assuntos relacionados à política é sempre mais interessante não serem tratados
e estudados, principalmente com rigor científico, logo, é possível identificar mais uma
vantagem que cabe aos mesmos: uma massa desinformada, desamparada e que se estrutura na
ignorância, esbarrando na adoção de falsas justificativas e a não capacidade de questioná-las.

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Cunha. Relator Designado: Macedo Pacheco. DJ: 7445, 9 ago. 2007. Disponível
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OMISSÃO LEGISLATIVA: O voto do conscrito alistado como eleitor280

Kaio Ryan Conrado da Costa281


Danilo Henrique de S. Melo282
Antonio Justino de arruda Neto283

RESUMO

Buscando identificar as implicações que se sucedem quando da possibilidade do voto de um


cidadão conscrito, esta pesquisa pautou-se em analisar a atual situação do alistamento eleitoral
no Brasil e as inferências relativas ao contexto do conscrito no Brasil. Com método indutivo
da análise, além de ser pesquisa qualitativa, bibliográfica e documental, apurou-se a
possibilidade legal de exercício do sufrágio por indivíduo que estaria vedado pela Constituição
da República de exercê-lo, pois fora identificada a possibilidade de alistamento eleitoral antes
da assunção da função de conscrito, notando que há hipótese de inconstitucionalidade não
adequada aos conceitos tradicionais do termo, não incidindo implicações ao voto por omissão
legislativa. Constatou-se então a necessidade de regulação da matéria e a indispensabilidade
de cumprimento dos preceitos constitucionais.

1 Introdução

Atualmente vê-se uma situação de tratamento Constitucional pouco comum em um


Estado democrático de direito, quer seja, a restrição do voto ao individuo em situação de
conscrição militar.
Constatada a possibilidade de alistamento eleitoral para aqueles com idade inferior a
18 anos e sendo identificado que o alistamento como conscrito ocorre quando o nacional do
sexo masculino completa 18 anos de idade, teve-se como problema de pesquisa geral
identificar quais as implicações que se sucedem quando do voto do Conscrito alistado como
eleitor, iremos buscar em um primeiro momento a definição e atuais perspectivas relativas à
figura do Conscrito além do atual tratamento dado ao mesmo.
Posteriormente, iremos identificar a atual situação do alistamento eleitoral, inclusive
sobre as condições de elegibilidade, formas de integração e requisitos ao exercício do sufrágio.
Em um terceiro momento, iremos analisar a situação do voto do conscrito, com
posterior identificação da implicação constitucional do exercício desse voto.

280
GT 8: Estudos contemporâneos em direito público e processo
281
Bacharel em Direito. UPE. Kaio.ryan.c@gmail.com
282
Bacharel em Direito. UPE. Danilo2010henrique@hotmail.com
283
Bacharel em Direito. UPE. netojustinoarruda@gmail.com
A metodologia empregada envolve a pesquisa sob o método indutivo, pois parte da
situação específica do voto do conscrito para uma análise do alistamento eleitoral e dos tipos
de inconstitucionalidade.
Trata-se de pesquisa qualitativa, com métodos de análise bibliográficos e documentais,
considerando que os dados da pesquisa serão apurados na legislação, livros, periódicos e
resoluções dos tribunais superiores.
Busca-se com essa pesquisa investigar na legislação as consequências que se acarretam
pelo voto do conscrito que está impedido pela Constituição da República de alistar-se e
consequentemente de exercer o voto, identificando as consequências que se sucedem do
exercício desse voto.

2 Do conscrito e do serviço militar obrigatório

Para entender a situação atual do conscrito é imprescindível a sua análise conceitual.


Sendo assim, o termo conscrito deriva da expressão conscrição, a qual, segundo o dicionário
escolar da Academia Brasileira de Letras (2008, p.346), significa “o alistamento dos cidadãos
em idade para o serviço militar”, definido como o Aluno de órgão de formação da reserva,
integrante no conceito de serviço militar obrigatório284.
Conscrito, segundo o Regulamento da Lei do Serviço Militar (Artigo 3º, 5º, Decreto
nº 57.654, de 20 de janeiro de 1966), são definidos como “os brasileiros que compõem a classe
chamada para a seleção, tendo em vista a prestação do Serviço Militar inicial”. Para efeito da
norma constitucional, conscrito corresponde ao brasileiro que compõe a classe de nascidos
entre 1º de janeiro e 31 de dezembro de um mesmo ano, chamado para a seleção, tendo em
vista a prestação do serviço militar inicial obrigatório.
No geral, são jovens entre 17/18 anos que são convocados para a prestação do serviço
militar obrigatório, sem remuneração e sem vinculação a cargo público, apenas prestadores
de serviços militares temporários para a formação de civis em estado de reserva.
Born (2005, p.2), acerca do alcance conceitual do termo conscrito, discorre que:

São equiparados aos conscritos os que se encontram cumprindo prestação


alternativa; os médicos dentistas, farmacêuticos e veterinários que terão a
incorporação adiada para depois da colação de grau e os residentes no exterior e os
considerados temporariamente inaptos ao serviço militar. E não estão abrangidos
entre os conscritos, os engajados e os reengajados, uma vez que permanecem
voluntariamenteno serviço militar e segundo as conveniências das Forças Armadas.

284
Res. nº 15.850, de 3.11.89, rel. Min. Roberto Rosas.
O termo conscrito tem origem no latim “conscriptione” que simboliza trabalho
voluntário requerido por uma autoridade. Muito usado na antiguidade, é possível observar sua
atuação desde do reinado de Hammurabi (1791-1750 D.C.), onde o Império Babilônico usou
um sistema de conscrição chamado “Ilkum”. Sob esse sistema, os elegíveis eram obrigados a
servir ao exército real em tempo de guerra. Em tempos de paz eles foram, em vez disso,
obrigados a fornecer trabalho para outras atividades do estado.
A conscrição moderna, realizada para cidadãos nacionais, foi criada durante
a Revolução Francesa, para permitir que a República fosse defendida contra os ataques de
monarquias europeias. Nessa época o deputado Jean-Baptiste Jourdan deu o seu nome à Lei
de 5 de setembro de 1798, cujo primeiro artigo declarava: "Qualquer francês é um soldado e
deve-se à defesa da nação". Esse sistema permitiu a criação da “Grande Armée”,
que Napoleão Bonaparte chamou de "a nação em armas", que dominou os exércitos
profissionais europeus que muitas vezes se limitavam a dezenas de milhares. Mais de 2,6
milhões de homens foram introduzidos nas forças armadas francesas desta maneira entre os
anos 1800 e 1813.
O serviço militar é obrigatório no Brasil, expresso na Constituição Federal de 1988 em
seu artigo 143º e parágrafos, é o expoente de uma sociedade marcada pela ordem e disciplina
como meios considerados eficientes para educar a população de forma mais segura e efetiva.
Embora regulado pela lei 4375/64, o serviço militar obrigatório retoma a carta de 1824
que já continha em seu artigo 145º o imperativo da força militar obrigatória a todos para
“sustentar a Independencia, e integridade do Imperio, e defende-lo dos seus inimigos externos,
ou internos.” A regulação desse instituto efetivou-se com a entrada do Brasil na primeira
guerra mundial.
A Lei n.º 5.292, de 8 de junho de 1967, que dispõe sobre a prestação do Serviço Militar,
define que o Serviço Obrigatório dura apenas 12 meses. O Regulamento da Lei do Serviço
Militar (RLSM) define as fases do recrutamento comuns às três Forças Armadas, que são: “a
convocação, a seleção, a convocação à incorporação ou a matricula (designação) e a
incorporação ou matrícula nas Organizações Militares da Ativa ou nos Órgãos de Formação
de Reserva” (PEREIRA, 2013, p.35).
Cabe ressaltar que o conceito de conscrito se estende aos médicos, dentistas,
farmacêuticos e veterinários que prestam serviço militar obrigatório a teor da Lei na 5.292/67,
com as alterações das Leis n“ 7.264, de 1984, e 12.336, de 2010. Também aos que prestam
serviço militar na condição de prorrogação de engajamento incidem restrições da Constituição
Federal, com base no art. 14, § 2a.

2.1 Do voto e dos impedimentos

Para a introdução do objeto em estudo, quer seja o voto, faz necessário entender o
instituto do alistamento eleitoral, suas nuances e percepções advindas da Constituição da
República, no título II, capítulo IV que trata dos direitos políticos como direitos e garantias
fundamentais.
A constituição da República, com base no conceito de democracia e cidadania definiu
o sufrágio e o voto direto e secreto como formas de exercer a soberania popular. Em seu artigo
nº 14, a Constituição expressa a capacidade eleitoral ativa do cidadão (potência de votar) e
passiva (potência de ser votado). Ainda em seu artigo nº 14, é expresso o alistamento eleitoral
como um dos institutos capazes de definir quem são os civis aptos a serem os tidos cidadãos
e a exercerem efetivamente a cidadania, entendendo que o alistamento eleitoral tanto é
requisito para exercício do voto, quanto para situar-se no polo passivo como indivíduo
almejante de cargo público eletivo.
O alistamento e voto são obrigatórios para os brasileiros alfabetizados e não conscritos,
maiores de 18 anos e menores de 70 anos de idade. Para os analfabetos, maiores de 70 anos e
pessoas que possuam entre 16 e 18 anos de idade o voto é facultativo.
Com destaque a esse trecho da Constituição da República, são inalistáveis conforme o
parágrafo § 2º do artigo supracitado “os estrangeiros e, durante o período do serviço militar
obrigatório, os conscritos”. Assim, tanto a capacidade eleitoral ativa quanto a passiva ficam
suprimidas enquanto o cidadão esteja cumprindo o serviço militar obrigatório285.
Surge a problemática para auferir se essa supressão da capacidade eleitoral do
conscrito seja hipótese de suspensão ou de perda dos direitos políticos. Pelo art. 53, II, b, da
Resolução n. º 21.538, de 14 de outubro de 2003, o Tribunal Superior Eleitoral entendeu tratar-

285
Além da supressão do alistamento, a não quitação militar obrigatória, de acordo com a lei 4375/64, impede o
brasileiro de obter passaporte ou prorrogação de sua validade; ingressar como funcionário, empregado ou
associado em instituição, emprêsa ou associação oficial ou oficializada ou subcencionada ou cuja existência ou
funcionamento dependa de autorização ou reconhecimento do Govêrno Federal, Estadual, dos Territórios ou
Municipal; assinar contrato com o Govêrno Federal, Estadual, dos Territórios ou Municipal; prestar exame ou
matricular-se em qualquer estabelecimento de ensino; obter carteira profissional, matrícula ou inscrição para o
exercício de qualquer função e licença de indústria e profissão; inscrever-se em concurso para provimento de
cargo público; exercer, a qualquer título, sem distinção de categoria, ou forma de pagamento, qualquer função
ou cargo público: estipendiado pelos cofres públicos federais, estaduais ou municipais; de entidades paraestatais
e das subvencionadas ou mantidas pelo poder público e receber qualquer prêmio ou favor do Govêrno Federal,
Estadual, dos Territórios ou Municipal; reforçado pelo artigo 160 do decreto-lei nº 1.187, de 4 de abril de 1939.
se de hipótese de suspensão:

Art. 53. São considerados documentos comprobatórios de reaquisição ou


restabelecimento de direitos políticos:
(...)
II – Nos caos de suspensão:
a) para interditos ou condenados: sentença judicial, certidão do juízo competente ou
outro documento;
b) para conscritos ou pessoas que se recusaram à prestação do serviço militar
obrigatório: Certificado de Reservista, Certificado de Isenção, Certificado de
Dispensa de Incorporação, Certificado de Cumprimento de Prestação Alternativa ao
Serviço Militar Obrigatório, Certificado de Conclusão do Curso de Formação de
Sargentos, Certificado de Conclusão de Curso em Órgão de Formação da Reserva
ou similares; (grifo nosso)

No entanto as causas de perda e suspensão dos direitos políticos estão taxativas no


artigo nº 15 da Constituição da República:

Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará
nos casos de:
I - Cancelamento da naturalização por sentença transitada em julgado;
II - Incapacidade civil absoluta;
III - condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos;
IV - Recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa, nos
termos do art. 5º, VIII;
V - Improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º.

A doutrina diverge quanto ao tema, para Filho (2012) trata-se de uma hipótese sui
generis, não sendo enquadrada em nenhumas das duas hipóteses anteriores. Para Silva (2007),
trata-se de situação de impedimento constitucional ao exercício do voto286, com tratamento
especial perante a legislação infraconstitucional.

3 Embasamento para a restrição

Há época da introdução do artigo 14 na Constituição da República, pouco foi


comentado sobre sua inclusão e ainda há pouca referência doutrinária acerca da motivação
desse impedimento constitucional, apenas houve reprodução das constituições anteriores, com
embasamento na receptividade influente que os conscritos adquirem dos seus superiores
hierárquicos, onde, segundo Cândido (2003, pp. 46-47, apud TELLES, 2009, p. 18),
"pretende-se evitar ao máximo a invasão da caserna pelos interesses político-partidários, o

286
"Alistamento eleitoral. Impossibilidade de ser efetuado por aqueles que prestam o serviço militar obrigatório.
Manutenção do impedimento ao exercício do voto pelos conscritos anteriormente alistados perante a Justiça
Eleitoral, durante o período da conscrição."
(Res. nº 20.165, de 7.4.98, rel. Min. Nilson Naves.)
que poria em sério risco os princípios da hierarquia e da disciplina, que são fundamentais para
as Forças Armadas".
Reforçando o fundamento da proibição do voto do conscrito, a supressão da liberdade
do voto é bem elucidada pelo Prof. Born (2014) ao entender que esse impedimento deriva da
rigorosa hierarquia e obediência às quais os militares estão submetidos, pois acredita-se que
eles estariam vulneráveis a possíveis abusos do Comando, facilitando a vitória de candidatos
que tivessem ligação com os seus superiores hierárquicos. O autor acredita que tal proibição
advém de resquícios dos governos militares.
Doutrinariamente, há posições discordantes a esse entendimento, Candido (2000, p.80) defende que não
há razão para que se impeça o voto do conscrito, aduzindo que:

Não se poderia tomar esse dispositivo como substrato para impedir o voto dos
conscritos alistados antes da incorporação, que, nessas circunstâncias, poderiam
exercer o direito de voto. Todavia, havendo impedimento em decorrência de ordem
administrativa de seu superior hierárquico, não poderá o eleitor conscrito ser
punido pela ausência ao pleito.

Born (2007, p 2), infere que:

Realmente, tanto a Lei Máxima (art. 14, §§ 1º e 2º) quanto o Código Eleitoral (art.
6º) divorciaram os conceitos de alistamento e do voto, afastando os conscritos
apenas do alistamento." Conclui que, "numa exegese sistemática e em desencontro
com o entendimento do Tribunal Superior Eleitoral, os conscritos
são inalistáveis (art. 14 § 6º, CF), mas os já alistados na data da incorporação
possuem voto facultativo (art. 6º, II, c, CE).

Alguns debates foram postos na tribuna por parlamentares, discutindo o caráter do voto
do conscrito que poderá ser permitido por meio de emenda constitucional. Em fevereiro de
1987 o então deputado Mozarildo Cavalcanti (PFL-RR) foi o primeiro a questionar o voto do
conscrito, dando parecer favorável a permissão do voto, com base no alicerce do direito a
igualdade. Seguindo seu raciocínio os deputados Farabulino Júnior (PTB-SP) e Mendes
Ribeiro (PMDB-RS), se pronunciaram posteriormente também favoráveis ao voto do
conscrito. A proposta do constituinte Paulo Delgado (PT-MG), submetida à votação no dia 3
de março de 1988, trazia a possibilidade de os conscritos votarem, conferindo-lhes o exercício
democrático indireto. Após ser submetida à votação em Plenário, no entanto, do total de 434
constituintes, contando apenas dez abstenções dentre o total de votantes, 295 foram contrários
à proposta, negando aos conscritos o exercício do direito de voto durante o período de serviço
militar obrigatório. Tal emenda deu-se por encerrada em virtude da tese levantada de que cabe
aos militares conscritos a manutenção e a promoção da paz e da ordem no caso de haver
alguma manifestação no dia das eleições.
Cabe ressaltar que “(…) Destarte, não olvidando que o Brasil é um dos raros países
onde o conscrito é proibido de se alistar e de votar, temos convicção de que o constituinte de
1988 perdeu a oportunidade de ter abortado esse ordenamento jurídico odioso a restrição à
liberdade do exercício da cidadania” (BORN, 2014, p. 29).

3.1 O voto do conscrito

De início, é importante destacar que, embora o serviço militar obrigatório seja exigível
para os maiores de 18 anos, o alistamento eleitoral é facultativo para os menores entre 16 e 18
anos. Assim, antes do menor iniciar o processo burocrático de alistamento militar ele poderá
conquistar o título de eleitor.
O alistamento eleitoral é disciplinado pela Resolução nº 21.538, de 14 de outubro de
2003 - Brasília – DF. Em seu artigo 13º é visto que:

Para o alistamento, o requerente apresentará um dos seguintes documentos do qual


se infira a nacionalidade brasileira (Lei nº 7.444/85, art. 5º, § 2º):
a) carteira de identidade ou carteira emitida pelos órgãos criados por lei federal,
controladores do exercício profissional;
b) certificado de quitação do serviço militar;(grifo nosso)

De acordo com a Res.-TSE nº 21384/2003 há inexigibilidade de comprovação de


quitação com o serviço militar nas operações de transferência de domicílio, revisão de dados
e segunda via, à falta de previsão legal;
Visto isso, temos quatro situações distintas que possam ocorrer durante o
preenchimento do requerimento de alistamento eleitoral:
A primeira situação refere-se ao menor de 18 anos e maior de 16 anos, que não
precisará apresentar o certificado de quitação do serviço militar, pois ainda não está em idade
hábil para tal procedimento.
A segunda situação refere-se ao jovem com 18 anos completo que não precisa
apresentar o certificado de quitação do serviço militar, pois ainda está em processo perante o
órgão responsável do exército -geralmente a delegacia militar- conforme Res.-TSE nº
22097/2005 que explicita: “inexigibilidade do certificado de quitação do serviço militar
daquele que completou 18 anos para o qual ainda esteja em curso o prazo de apresentação ao
órgão de alistamento militar”.
A terceira situação é do maior de 18 anos que tenha sido dispensado do serviço militar
obrigatório que terá que apresentar certificado de quitação do serviço militar no ato do
alistamento eleitoral
Aquarta situação é do maior de 18 anos, já incorporado ao serviço militar obrigatório
que para emissão do título de eleitor precisa apresentar o certificado de quitação militar. Dado
o caso, este notadamente não irá possuir o referido documento, não sendo possível então o seu
alistamento eleitoral287.
O enfoque desse estudo baseia-se na primeira situação, onde é legalmente permitido a
um civil com título de eleitor tornar-se conscrito288, sem o cancelamento do alistamento
eleitoral289. Como já estudado, não há regulação ou mecanismos de integração entre a inclusão
de conscritos ao quadro do exército e o sistema eleitoral. É indicado que a cada ano, o
Comando Militar deva comunicar à Justiça Eleitoral a lista dos conscritos para que sejam
suspensos os direitos políticos e quando do término, informar para que seja regularizada a
situação. Essa comunicação poderá ocorrer via correios ou por portador.
A regulação do procedimento para a comunicação e o recebimento de comunicações
não são uniformes em todo o território nacional, cabendo a cada Tribunal Regional Eleitoral
estabelecer a forma de acolhimento da comunicação da lista dos conscritos por meio de
provimentos.
Notadamente, não há no R-138 da Portaria n 001 de 2 de janeiro de 2002- que
disciplina, dentre outros, a atuação dos instrutores militares dos atiradores- o encargo de
comunicar ao sistema eleitoral a relação de conscritos, tão pouco há uniformidade por parte
dos comandos militares essa mesma atribuição.
De fato, na prática, ocorre a discricionariedade do instrutor recolher ou não recolher
os títulos eleitorais daqueles que já o possuem, assim como efetuar a comunicação para o
comando militar ou mesmo realizar tal comunicado direto a seção eleitoral da localidade.
O debate ocorre aos que, mesmo possuindo o status de conscritoe na posse do título de
eleitor, poderão ou não exercer o voto.
Não há no ordenamento jurídico brasileiro sanção ao conscrito que realize seu voto,

287
A apresentação de certificado de quitação militar falso pelo conscrito, configura o crime de “uso de documento
falso do artigo do artigo 315 do código penal militar, sem prejuízo do crime de “falsificação de documento”,
constante no artigo 311 do mesmo código
288
"Eleitor. Serviço militar obrigatório. 2. Entendimento da expressão 'conscrito' no art. 14, § 2° da CF. 3. Aluno
de órgão de formação da reserva. Integração no conceito de serviço militar obrigatório. Proibição de votação,
ainda que anteriormente alistado. 4. Situação especial prevista na Lei nº 5.292. Médicos, dentistas,
farmacêuticos e veterinários. Condição de serviço militar obrigatório. 5. Serviço militar em prorrogação ao
tempo de soldado engajado. Implicação do art. 14, § 2° da CF."
(Res. nº 15.850, de 3.11.89, rel. Min. Roberto Rosas.)
289
Alistamento. Voto. Serviço militar obrigatório. O eleitor inscrito, ao ser incorporado para prestação do serviço
militar obrigatório, deverá ter sua inscrição mantida, ficando impedido de votar, nos termos do art. 6 °, II, c, do
Código Eleitoral." (Res. nº 15.072, de 28.2.89, rel. Min. Sydney Sanches;no mesmo sentido a Res. nº 15.099, de
9.3.89, Villas Boas.)
embora o mesmo, ao realiza-lo, esteja incorrendo em hipótese de inconstitucionalidade,
mesmo com a prevalência do princípio do aproveitamento do voto290é possível a impugnação
do mesmo, pelos fiscais do partido ou pelo próprio partido.
De acordo com o art. 69 da Lei das Eleições291, a impugnação deve ser apresentada à
Junta Eleitoral. Caso não recebida por esse órgão, o partido político deverá apresenta-la
diretamente ao TRE no prazo de 48 horas. Igual prazo será concedido ao TRE para análise do
recebimento da impugnação para processamento.

3.2 O tratamento constitucional:Inconstitucionalidade por resultado superveniente

É cediço na doutrina que o artigo Constitucional sobre o impedimento ao alistamento


do conscrito é uma norma de eficácia plena.
De acordo com Barroso (2015, p. 199):

“Normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade direta, imediata e


integral são aquelas normas da Constituição que, no momento em que esta entra
em vigor, estão aptas a produzir todos os seus efeitos, independentemente de norma
integrativa infraconstitucional (situação esta que pode ser observada, também, na
hipótese do art. 5º, § 3º). Como regra geral, criam órgãos ou atribuem aos entes
federativos competências. Não têm a necessidade de ser integradas.”

Assim, são citados como exemplo de normas constitucionais de eficácia plena os


seguintes artigos da Carta da República: art. 1º, art 2º, art. 14, art. 15, art. 44, art. 45, dentre
outros.
Reiterando o argumento temos o julgado do TRE-PR - RECURSO EM HABEAS
CORPUS RHC 202 PR de 06/08/2009:

Ementa: EMENTA:RECURSO CRIMINAL - ART. 337 DO CÓDIGO


ELEITORAL - DIREITOS POLÍTICOS COM STATUS DE DIREITOS
FUNDAMENTAIS (ART. 14 , CF )- AUTO-APLICABILIDADE DOS ARTS. 14
, 15 E 16 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL - NÃO RECEPÇÃO DO ART. 337 DO
CÓDIGO ELEITORAL PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
(LIBERDADES DE MANIFESTAÇÃO E DE COMUNICAÇÃO - ART. 5º , CF )-
CONDUTA DELITUOSA NÃO MAIS CONSIDERADA COMO CRIME -
RECURSO PROVIDO. 1. As normas constitucionais relativas aos direitos políticos
(arts. 14, 15 e 16) são de eficácia plena. Portanto, produzem de imediato todos os
efeitos relativos às situações que foram reguladas pelo constituinte originário. 2. O
art. 337 do Código Eleitoral , ao punir como conduta delituosa a participação, em
atividades partidárias, de cidadão que não esteja em pleno gozo de seus direitos
políticos, conflita diretamente com os direitos e garantias fundamentais elencadas
no art. 5º da Constituição Federal de 1988, motivo pelo qual deve ser declarada sua
inconstitucionalidade.

290
Conhecido como “in dubio pro voto”.
291
Lei 9504/97
Agra (2018) ensina que existem 4 tipos de inconstitucionalidade no Ordenamento
jurídico brasileiro, são eles: por ação, tanto formal quanto material; por omissão; por
descumprimento de preceito fundamental; valorativa.
A primeira ocorre quando ato normativo infraconstitucional está diretamente contrário
a um mandamento constitucional, seja de forma adversa ao preceito destacado ou por ter sido
criado em desacordo com os ditames estabelecidos pela Constituição.
Inconstitucionalidade por omissão ocorre quando ato mandamental da constituição em
forma de ordem para legislar não é cumprida pelos agentes estatais responsáveis.
A terceira hipótese ocorre como resguardo dos preceitos fundamentais da Constituição
da República que poderia não ter proteção frente as ações de inconstitucionalidade existente.
A quarta hipótese baseia-se em um sentido unitário e principiológico da Constituição,
em que a norma deverá ser analisada com base nos valores intrínsecos da Constituição da
República.
No objeto de estudo desse trabalho ocorre o caso de uma norma material e formalmente
compatível com a Constituição, estando em acordo com os preceitos fundamentais, mas que
por um resultado superveniente, atinge um mandamento intencional do Constituinte, quer seja,
impedir o Conscrito de votar, e mantem-se com status de constitucionalidade, visto não ter
disciplina sobre as formalidades, sanções e efeitos desse voto. É o que poderia ser chamada
de “inconstitucionalidade diferida” ou “inconstitucionalidade por resultado diferido”.

4 Considerações finais

Identificando que o alistamento eleitoral inicia-se com o individuo relativamente


incapaz a partir da idade de 16 anos, constatou-se a possibilidade deste exercer o sufrágio
antes de completar 18 anos, inclusive com os seus 18 anos completo. Assim, inferiu-se a
possibilidade de um cidadão com 18 anos completos ou mais estar alistado e tornar-se um
conscrito.
A Constituição da República de 1988 veda o alistamento eleitoral para o Conscrito,
bem como para o estrangeiro. Ocorre que a legislação permite a um conscrito estar alistado
para exercício do voto contrariando o preceito Constitucional.
Assim, analisamos o atual tratamento para este voto, identificando nas instruções
internas do sistema militar e do sistema eleitoral, bem como na legislação nacional referente
ao voto do conscrito e identificamos que há omissão normativa bem como irregular
conformidade de tratamento entre as duas esferas da administração pública.
Assim, entendemos que há necessidade de regulamentação da disciplina, dispondo do
procedimento de suspensão dos títulos de eleitores dos cidadãos no serviço militar obrigatório
para cumprimento das determinações constitucionais.

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regularização de situação de eleitor, a administração e a manutenção do cadastro
eleitoral, o sistema de alistamento eleitoral, a revisão do eleitorado e a fiscalização dos
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Grande do Sul (UFRS) – Departamento de Direto Público e Filosofia do Direito, Porto Alegre.

SILVA, Claudio Alves da. Aspectos da restrição constitucional ao voto do conscrito. Revista
Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1495, 5 ago. 2007. Disponível
em: <https://jus.com.br/artigos/10242>. Acesso em: 02 out. 2018.
IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA:
da (im)penhorabilidade do bem de família do fiador nos contratos de locação292

Rafael Elias de Menezes 293


Carliane Ferreira Bezerra294
Reinaldo Alves Pereira295

RESUMO

O presente estudo objetivou analisar a possibilidade de penhora do bem de família do fiador


em contrato locatício, apresentando algumas posições divergentes entre a doutrina e
jurisprudência, para expor, ao fim, um posicionamento acerca do tema. Sabe-se que o bem de
família, em regra, é coberto sob o manto da impenhorabilidade, como uma forma de proteção
ao direito constitucionalmente garantido à moradia e à dignidade da pessoa humana. Todavia,
existem algumas exceções a essa regra, dentre elas está a impenhorabilidade ora descrita.
Nesta perspectiva, a pesquisa foi norteada pela seguinte problemática: é constitucional a
possibilidade de penhora do bem de família do fiador em contratos de locação, prevista no art.
3º, VII, da Lei nº 8.009/90 (incluído pela Lei nº 8.245, de 1991)? No percurso metodológico
utilizou-se, na pesquisa, uma abordagem qualitativa. No tocante aos fins, elegeu-se o método
exploratório, tendo como técnica de coleta de dados o levantamento bibliográfico. Como
principal resultado tem-se que é inconstitucional a possibilidade de penhora do bem de família
do fiador em contratos de locação, seja ele residencial ou não residencial. Caso contrário,
aceitar a constitucionalidade dessa exceção injusta ao fiador, significa dar cabo à função social
que possui o bem de família.

PALAVRAS-CHAVE: Impenhorabilidade. Bem de família. Fiador. Contrato Locatício

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente trabalho tem por tema a Impenhorabilidade do Bem de Família, mais


especificamente, a discussão acerca da possibilidade (ou não) de penhorar-se o imóvel
residencial destinado à moradia do fiador (e de sua família) em contrato de locação, quando
este não for adimplido pelo locatário afiançado e seja necessário que o locador credor
proponha uma execução judicial em face do fiador, a fim de ver satisfeita obrigação, já que
este responde solidariamente pelo débito.
Sendo assim, o problema de pesquisa gira em torno da pergunta: É constitucional a
possibilidade de penhora do bem de família do fiador em contratos de locação, prevista no art.

292
GT 8 – Estudos Contemporâneos em Direito Público e Processo
293
Discente do 8° período do curso de Bacharelado em Direito, na instituição de ensino AESGA/FDG/FACIGA.
Email: rafamenezes8@outlook.com
294
Discente do 8° período do curso de Bacharelado em Direito, na instituição de ensino AESGA/FDG/FACIGA.
Email: carlianefp@gmail.com
295
Docente do curso de Bacharelado em Direito, na instituição de ensino AESGA/FDG/FACIGA. Mestrando
em Direitos Humanos pela UFPE. Email: reinnaldoalves@hotmail.com
3º, VII, da Lei nº 8.009/90 (incluído pela Lei nº 8.245, de 1991)?
Justifica-se por ser um tema controvertido entre a doutrina e jurisprudência e instigante
para o estudo, posto que trata-se da possibilidade de penhorar-se o imóvel residencial
destinado a moradia do fiador, enquanto que o bem de família do afiançado, permanece imune
à execução.
Tem por objetivo geral analisar a possibilidade de penhora do bem de família do fiador
em contrato locatício, apresentando algumas posições divergentes entre a doutrina e
jurisprudência, para expor, ao fim, nosso posicionamento acerca do tema.
Os objetivos específicos são desenvolver uma noção geral acerca de processo de
execução, penhora e bens impenhoráveis, explicar a impenhorabilidade do bem de família,
diferenciar o bem de família convencional (ou voluntário) do bem de família legal, apresentar
às exceções à regra da impenhorabilidade do bem de família legal, analisar a possibilidade de
penhora do bem de família do fiador em contrato locatício e, por fim, discutir acerca da
constitucionalidade do art. 3º, VII, da Lei nº 8.009/90.
Para atingir os objetivos propostos, utilizou-se na pesquisa uma abordagem qualitativa.
A utilização desse tipo de abordagem difere da abordagem quantitativa pelo fato de não
utilizar dados estatísticos como o centro do processo de análise de um problema, não tendo,
dessa forma, a prioridade de numerar ou medir unidades. Nesse sentido, os dados coletados
nessas pesquisas são descritivos, retratando o maior número possível de elementos existentes
na realidade estudada. Preocupa-se muito mais com o processo do que com o produto. Na
análise dos dados coletados, não há preocupação em comprovar hipóteses previamente
estabelecidas, porém estas não eliminam a existência de um quadro teórico que direcione a
coleta, a análise e a interpretação dos dados (PRODANOV; FREITAS, 2013).
Quanto aos fins da pesquisa utilizou-se o método exploratório, tendo como técnica de
coleta de dados o levantamento bibliográfico, que consiste em uma sondagem de toda a
bibliografia já publicada (livros, revistas, publicações avulsas, documentos eletrônicos,
artigos científicos), reverberando em um contato direto com tudo o que foi escrito sobre este
determinado assunto (MARCONI; LAKATOS, 2001).
O método exploratório tem como finalidade proporcionar mais informações sobre o
assunto investigado, possibilitando sua definição e seu delineamento, isto significa facilitar a
delimitação do tema da pesquisa; orientar a fixação dos objetivos e a formulação das hipóteses
ou descobrir um novo tipo de enfoque para o assunto também é uma das finalidades desse
método. (PRODANOV; FREITAS, 2013).
O trabalho se desenvolverá, de início, apresentando algumas noções gerais acerca do
tema execução, penhora e bens impenhoráveis, para melhor compreensão do assunto que será
aprofundado adiante.
Logo após, explicar-se-á o instituto do bem de família, diferenciando o convencional
do legal, falando sobre a sua impenhorabilidade, para, ao final, aprofundar-se no tema
pretendido, qual seja, a discussão acerca da possibilidade de penhora do imóvel residencial
destinado a moradia do fiador em contrato locatício e a constitucionalidade do art. 3º, VII da
Lei nº 8.009/90.

1. Noções gerais sobre execução e penhora

O processo de execução, em sentido lato, é o instrumento judicial que serve-se para


satisfazer, de maneira forçada e independente da vontade do executado, crédito, judicial ou
extrajudicial, não adimplido espontaneamente, possuindo, através da penhora, a capacidade
de afetar o patrimônio do devedor, individualizando um bem, ou alguns bens, para que este(s)
fique(m) sujeito(s) ao(s) fim(ns) da execução, que é, repita-se, solver o credor.
Conforme Marques (1960 apud THEODORO JUNIOR, 2017, p. 442), os bens
afetados pela penhora ficam à disposição do juízo para “à custa e mediante sacrifício desses
bens, realizar, o objetivo da execução” que é “dar satisfação ao credor”.
Ao ser penhorado, o bem subtrai-se da livre disposição do executado, e fica sujeito a
expropriação judicial, que é outro elemento necessário a realização coativa do direito do
credor de ver seu crédito adimplido (THEODORO JUNIOR, 2017).
Para satisfazer o crédito é necessário buscar bens do devedor (ou de alguém que tenha
assumido a responsabilidade pelo pagamento da dívida, como um eventual fiador), já que a
responsabilidade civil recai, em regra, sobre o patrimônio, e não sobre a pessoa. Para tanto,
ao procurar bens do devedor com o objetivo de penhorá-los, é preciso, além de conferir ao
credor a faculdade de fazer a escolha do bem (arts. 798, II, “c” e 829, §2 do CPC/2015),
obedecer também a ordem preferencial e os demais requisitos legais para que possa ser válida
a nomeação de bens à penhora.
Portanto, conforme Marcus Vinicius Rios Gonçalves (2016), a princípio, todos os bens
do devedor (os que já existiam no momento em que a obrigação foi contraída, e os que ainda
não existiam, pois só vieram a ser adquiridos posteriormente), sejam eles corpóreos ou
incorpóreos, desde que tenham valor econômico e possam ser alienados, estão sujeitos a
execução. Contudo, isto não significa dizer que essa regra seja absoluta e que são todos os
bens que podem ser penhorados, pois próprio CPC dispõe em seu art. 832 que “não estão
sujeitos à execução os bens que a lei considera impenhoráveis ou inalienáveis” (BRASIL,
2015).
Assim, somente poderá satisfazer o crédito aqueles bens que são passíveis de alienação
e conversão em pecúnia. A lei processual, entretanto, enumera alguns bens que mesmo sendo
considerados disponíveis por sua própria natureza, não são considerados passíveis de penhora
na execução por quantia certa.
O artigo que indica os bens patrimoniais insuscetíveis de penhora é o 833 do novo
Código de Processo Civil. A exemplo, temos como impenhoráveis os vestuários e pertences
de uso pessoal, os vencimentos e salários, os livros, máquinas, utensílios e ferramentas
necessários ao exercício da profissão, as pensões e montepios, o seguro de vida etc.
Ugo Rocco (1976 apud THEODORO JUNIOR, 2017) explica que essa limitação a
penhorabilidade encontra explicação em razões diversas, de origem ético-social, humanitária,
política ou técnico-econômica.
A razão principal para essa regra, é a de que a execução incondicionada levaria o
executado “a uma situação incompatível com a dignidade humana” (LOPES DA COSTA,
1959 apud THEODORO JR, 2017, p. 456), e por isto, a execução não pode ser um instrumento
para causar a extrema ruína do devedor e sua família, conduzindo-o à fome e ao desabrigo,
por exemplo.
No mais, além dos bens absolutamente impenhoráveis, isto é, aqueles previstos no art.
833 do CPC, a lei prevê também hipóteses de impenhorabilidade relativa que são as hipóteses
do art. 834. Aqui, os bens são impenhoráveis, desde que haja outros bens sobre os quais possa
ou deva recair a penhora. Na ausência destes, os bens se tornam penhoráveis.
Para Fredie Didier Jr. (2017, p. 847), “trata-se, em verdade, de uma regra que consagra
uma impenhorabilidade sob condição ou uma penhorabilidade eventual, depende de como se
queira enxergar o fenômeno.” Nesta categoria encontram-se os frutos e os rendimentos dos
bens inalienáveis.
Assim, temos que, são absolutamente impenhoráveis, nos termos art. 833 do CPC
(BRASIL, 2015), ipsis litteris:

Art. 833. São impenhoráveis:


I – os bens inalienáveis e os declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução;
II – os móveis, os pertences e as utilidades domésticas que guarnecem a residência
do executado, salvo os de elevado valor ou os que ultrapassem as necessidades
comuns correspondentes a um médio padrão de vida;
III – os vestuários, bem como os pertences de uso pessoal do executado, salvo se de
elevado valor;
IV – os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os
proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as
quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor
e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional
liberal, ressalvado o § 2o;
V – os livros, as máquinas, as ferramentas, os utensílios, os instrumentos ou outros
bens móveis necessários ou úteis ao exercício da profissão do executado;
VI – o seguro de vida;
VII – os materiais necessários para obras em andamento, salvo se essas forem
penhoradas;
VIII – a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela
família;
IX – os recursos públicos recebidos por instituições privadas para aplicação
compulsória em educação, saúde ou assistência social;
X – a quantia depositada em caderneta de poupança, até o limite de 40 (quarenta)
salários-mínimos;
XI – os recursos públicos do fundo partidário recebidos por partido político, nos
termos da lei;
XII – os créditos oriundos de alienação de unidades imobiliárias, sob regime de
incorporação imobiliária, vinculados à execução da obra.

Apesar da regra do artigo supracitado ser a impenhorabilidade absoluta, os seus


parágrafos apresentam algumas exceções. Destaca-se o §1º do referido artigo, que dispõe: “a
impenhorabilidade não é oponível à execução de dívida relativa ao próprio bem, inclusive
àquela contraída para sua aquisição” (BRASIL, 2015).
Faz-se necessário frisar também que, no tocante aos incisos I, II, III, V, VII e VIII, há
uma ressalva, pois os bens descritos nestes incisos não serão tutelados pelo manto da
impenhorabilidade se deles decorrerem a dívida que ensejou a execução, e se o crédito
executado resultar o preço da aquisição do bem ou de seu financiamento.
Ora, não seria justo com o credor que forneceu ao devedor o bem, não se dispor de
meios para garantir o efetivo pagamento deste, quando não adimplido espontaneamente.

2. Do Bem de Família

Aprofundando-se mais no tema, temos que, conforme Alexandre Freitas Câmara


(2017, pg. 351), “também é absolutamente impenhorável o bem de família (arts. 1.711 e 1.715
do CC) - que não se confunde com o imóvel residencial, previsto na Lei nº 8.009/1990, e que
se sujeita a outro regime de impenhorabilidade.”
Explica-se. No ordenamento jurídico brasileiro temos bem de família voluntário ou
convencional, disciplinado pelo Código Civil à partir do art. 1.711. Para que este seja
considerado impenhorável (além de inalienável), é necessário que haja um ato de vontade
do(s) interessado(s). Neste sentido, é preciso levar o bem a registro para que se torne um bem
de família (voluntário ou convencional), observando-se, para tanto, o procedimento previsto
nos arts. 260 à 265 da Lei nº 6.015/73 (Lei de Registros Públicos).
Porém, temos também o bem de família legal (ora trabalhado e estudado), que é
disciplinado pela Lei nº 8.009/90. Este consiste no imóvel residencial próprio do casal ou da
entidade familiar destinado a sua moradia permanente. A impenhorabilidade deste decorre
diretamente da lei, por isto não tem custo algum e não depende de escritura, ou mesmo de
registro.
Além disto, nas palavras de Elpídio Donizetti, “diferentemente do bem de família
convencional ou voluntário, que para ser alienado depende de autorização judicial, o bem de
família legal continua sendo impenhorável, mas não é inalienável” (2016, p. 1.159). Portanto,
este, apesar de ser considerado impenhorável, pode ser alienado espontaneamente, ao
contrário do bem de família voluntário.
Apesar da diferença entre eles, ambos não são absolutos na medida em que existem
exceções legais tanto no CC/2002 quanto na Lei nº 8.009/90.
Assim como o CPC traz ressalvas à impenhorabilidade prevista no art. 833, as
exceções à regra da impenhorabilidade da Lei nº 8.009/90 estão previstas no seu art. 3º, que
assim dispõe:

Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil,


fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
[...]
II – pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à
aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do
respectivo contrato;
III – pelo credor da pensão alimentícia, resguardados os direitos, sobre o bem, do
seu coproprietário que, com o devedor, integre união estável ou conjugal,
observadas as hipóteses em que ambos responderão pela dívida;
IV – para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas
em função do imóvel familiar;
V – para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo
casal ou pela entidade familiar;
VI – por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença
penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens.
VII – por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.(Incluído
pela Lei nº 8.245, de 1991) (BRASIL, 1990)

Merece destaque especial o inciso VII deste artigo, posto que este foi acrescentado
como mais uma exceção à regra da impenhorabilidade legal do bem de família, pela Lei nº
8.245/91 (Lei do Inquilinato).
Todavia, este acréscimo trouxe à tona algumas discussões sobre o tema, especialmente
após o advento da Emenda Constitucional nº 26, de 15 de fevereiro de 2000, que adicionou
aos direitos sociais do art. 6º o direito à moradia. Assim, a discussão cinge-se acerca de uma
eventual inconstitucionalidade superveniente (não recepção) do mencionado dispositivo legal,
onde se questiona uma possível afronta, deste inciso, a Constituição Federal e aos princípios
e direitos nela esculpidos, em razão de sua desproporcionalidade.
É esta discussão que passaremos a analisar no tópico seguinte.

3. A discussão acerca da (im)penhorabilidade do bem de família em obrigação


decorrente de fiança em contrato de locação.

Conforme já exposto, a determinação de impenhorabilidade do bem de família (legal)


é prevista na Lei nº 8.009/90. O art. 2º informa que esta impenhorabilidade compreende o
imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer
natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem
a casa, desde que estejam quitados.
O art. 5º complementa: “Para os efeitos de impenhorabilidade, de que trata esta lei,
considera-se residência um único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para
moradia permanente” (BRASIL, 1990).
Isto significa que, caso alguém assuma o encargo de fiador em um contrato de locação
de imóvel, e este não seja cumprido/adimplido pelo locatário, o fiador responde
solidariamente pela dívida, podendo, inclusive, ter o seu único imóvel residencial usado para
sua moradia permanente, penhorado (e consequentemente expropriado) caso seja demandado
judicialmente. É o que se extrai da Lei nº 8.009/90.
Bernardo Gonçalves Fernandes (2017) trabalha, sucintamente, a proteção dada ao bem
de família, numa visão constitucional, explanando que esta deriva justamente do direito à
moradia, previsto no art. 6º da Constituição Federal.
E é por isto que foi questionada à constitucionalidade do inciso VII da Lei nº 8.009/90,
acrescido pela Lei nº 8.245/91, por entenderem alguns que a exceção de que não é
impenhorável o bem/imóvel de família, quando a execução for por obrigação decorrente de
fiança concedida em contrato de locação, fere o direito constitucional de moradia.
Ora, se o direito à moradia (art. 6º da CF/88) é destinado a promover a dignidade da
pessoa humana, de forma a evitar que a pessoa seja conduzida ao desabrigo, e a regra da
impenhorabilidade do imóvel destinado à moradia da família vem justamente dar uma maior
efetividade a este direito, garantindo que alguém não seja destituído de seu lar e lançado na
rua, em um eventual processo de execução, a exceção prevista no art. 3º, VII, da Lei nº
8.009/90 poderia ser considerada constitucional?
Alguns defendem que não, pois trata-se de uma norma desproporcional, não se
justificando a penhorabilidade do único imóvel da família, quando o fiador em contrato de
locação de imóvel for demandado em juízo, quando o locatário afiançado não cumprir com
suas responsabilidades.
Não se discute a possibilidade do fiador poder ser considerado responsável solidário,
nem tampouco a possibilidade de ser executado judicialmente. O cerne da questão cinge-se
em saber se é possível, quando não encontrado outros meios mais eficazes de satisfazer a
execução, privar o fiador do único imóvel residencial destinado à sua moradia, considerado
como bem de família, para satisfazer os fins da execução.
A tese é de que o referido dispositivo viola o princípio da dignidade da pessoa humana,
esculpido na Carta Magna, bem como inobserva o próprio direito à moradia protegido
constitucionalmente, e viola a finalidade/função social do bem de família.
Álvaro Villaça Azevedo (2010 apud PEREA, 2016, online) afirma que “existindo o
ser humano, ele tem a dignidade de viver sob um teto”. Assim, o direito social à moradia,
presente no art. 6º da CF, surge como uma necessidade básica e essencial ao indivíduo.
Em interessante artigo publicado na internet, Nayara Monero Perea (2016, online),
fala com proeza:

Da grande importância que a moradia e a família representam para a sociedade, é


que se percebeu a necessidade de preservar o bem de família tornando-o
impenhorável. Isso porque o bem de família nada mais é que o lar da família, a
sua moradia.
Portanto, o bem de família constitui uma norma de ordem pública, pois possui
razão social de existir: promove a dignidade da pessoa humana do fiador e da sua
família.

Defende ela, a inconstitucionalidade do inciso VII, que por excepcionar a proteção


do bem de família para proteger o mercado locatício, acaba ferindo a dignidade da pessoa
humana do fiador e da sua família.
O STF, no entanto, no RE 407.688, entendeu que a proteção dada ao bem de família,
não pode tomar uma leitura absoluta, decidindo então, pela constitucionalidade da penhora
nestes casos. Nestes termos:

EMENTA: FIADOR. Locação. Ação de despejo. Sentença de procedência.


Execução. Responsabilidade solidária pelos débitos do afiançado. Penhora de seu
imóvel residencial. Bem de família. Admissibilidade. Inexistência de afronta ao
direito de moradia, previsto no art. 6º da CF. Constitucionalidade do art.3º, inc. VII,
da Lei nº 8.009/90, com a redação da Lei nº 8.245/91. Recurso extraordinário
desprovido. Votos vencidos. A penhorabilidade do bem de família do fiador do
contrato de locação, objeto do art. 3º, inc. VII, da Lei nº 8.009, de 23 de março de
1990, com a redação da Lei nº 8.245, de 15 de outubro de 1991, não ofende o art. 6º
da Constituição da República. (STF, 2006, online, grifos nossos).
Os argumentos utilizados pela Suprema Corte para declarar válido o dispositivo foram
justamente a garantia da segurança do mercado e das locações (art. 170, CF) e a liberdade
de contratar e se sujeitar à lei vigente.
Posteriormente, o STJ, seguindo o entendimento do Pretório Excelso, editou a súmula
nª 549, que estabelece que: "É válida a penhora de bem de família pertencente a fiador de
contrato de locação." (2014, online).
Portanto, “se o fiador for demandado pelo locador, visando a cobrança de aluguéis
atrasados, poderá o seu único imóvel residencial ser executado, para a satisfação do débito
do inquilino” (GAGLIANO; FILHO, 2017, p. 360)
No entanto, algumas críticas levantaram-se contra estes posicionamentos
jurisprudenciais das Cortes Superiores, pelos motivos adiantes catalogados.
Seria mesmo razoável garantir o cumprimento desta obrigação, essencialmente
acessória – já que a fiança é um contrato acessório pelo qual um terceiro, denominado fiador,
assume a obrigação de pagar a dívida, caso o devedor principal não o faça –, em detrimento
do único bem de família do fiador?
Alguns defendem que não é justo, que o garantidor responda com o seu bem de
família, quando a mesma exigência não é feita para o locatário, ainda mais, partindo-se da
premissa de que as obrigações do locatário e do fiador têm a mesma base jurídica, o contrato
de locação.
Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona (2017) citam uma situação explicativa/elucidativa
interessante: se um inquilino/locatário, fugindo de suas obrigações, viaja para o interior da
Bahia, e compra um único imóvel residencial, este será impenhorável em ação de execução
promovida pelo locador/credor, ao passo que o fiador continuará respondendo com o seu
único bem de família perante o locador que não foi pago.
Portanto, a crítica destes autores, é que, à luz do Direito Civil Constitucional, parece
forçoso concluir que o referido dispositivo de lei (art. 3º, inciso VII da Lei 8.009/90), “viola
o princípio da isonomia insculpido no art. 5º da CF, uma vez que trata de forma desigual
locatário e fiador, embora as obrigações de ambos tenham a mesma causa jurídica: o contrato
de locação”. (GAGLIANO; FILHO, 2017, p. 361).
Dever-se-ia aplicar, além do princípio isonômico, o princípio hermenêutico ubi
eadem ratio, ibi eadem legis dispositivo, isto é, onde existe a mesma razão, aí se aplica o
mesmo dispositivo legal.
Caso o fiador satisfaça a obrigação locatícia, mesmo que em sacrifício do seu único
imóvel residencial, este não pode sequer sub-rogar-se no direito do credor satisfeito, para
penhorar o imóvel residencial do devedor afiançado, em eventual ação regressiva.
(GAGLIANO; FILHO, 2017)
Acontece que, recente, no RE 605709/SP, julgado em 12/06/2018 (Info 906), o STF
decidiu que “Não é penhorável o bem de família do fiador no caso de contratos de locação
comercial. Em outras palavras, não é possível a penhora de bem de família do fiador em
contexto de locação comercial.”
Com isso, o STF criou uma diferenciação de duas situações acerca da penhorabilidade
(ou não) do bem de família do fiador em contrato de locação. Isto é, segundo essa nova decisão
do STF, se o contrato de locação for comercial, o bem de família do fiador é impenhorável,
enquanto, se tratar-se de contrato de locação residencial, é penhorável.
Na decisão, segundo o Ministro Marco Aurélio, apesar de a lei não distinguir o tipo de
locação, não se pode potencializar a livre iniciativa em detrimento de um direito fundamental
que é o direito à moradia.
Portanto, apesar do STF já ter decidido, anteriormente, no sentido de o bem de
família do fiador em contrato de locação (residencial ou não-residencial) não poder ser
penhorado (ver RE 352940/SP), hoje a jurisprudência mudou, encontrando-se atualmente
superado o assunto tanto no STF quanto no STJ, entendendo que é possível a penhora do
bem de família (legal) do fiador em contrato de locação de imóvel, desde que não seja
comercial.
Apesar disto, parte da doutrina moderna e alguns julgados estaduais, apesar de
minoritários, têm defendido a tese da inconstitucionalidade do dispositivo legal ora
discutido em qualquer hipótese, alegando violações ao direito de moradia, à isonomia e à
dignidade humana do fiador e de sua família.
Faz-se mister esclarecer que, apesar do STF ter decidido pela possibilidade da
penhora do bem de família do fiador em contrato locatício residencial e pela sua
impossibilidade quando se tratar de locação de imóvel comercial, não o fez em sede de
Controle de Constitucionalidade, tendo analisado, na verdade, Recursos Extraordinários.
Portanto, considerando à dinâmica social, e a mutação constante do entendimento
das Cortes, sobretudo quando ocorre mudança em suas composições, não se pode descartar
a possibilidade de eventualmente o STF rediscutir o tema em sede, quem sabe, de Controle
de Constitucionalidade, o que seria uma oportunidade para analisar o assunto sob um prisma
mais amplo, dando um ponto final à discussão, sem diferenciações quanto ao contexto do
contrato locatício (se residencial ou comercial).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por todo o exposto, pensamos que é frustrante que a jurisprudência dos tribunais
superiores tenha se sedimentado no sentido de permitir à penhora do bem de família do fiador
em contrato locatício residencial, sem dar o mesmo tratamento ao locador afiançado que,
mesmo se for inadimplente de má-fé, pode acabar saindo imune à execução, ainda que possua
um imóvel residencial configurado como bem de família legal.
Mais que isto, não encontramos uma justificativa plausível para a distinção de
situações criada pelo STF para dar tratamentos diferentes ao bem de família do fiador em
contrato de locação, no sentido de, quando se tratar de locação comercial, o bem de família
do fiador é impenhorável, enquanto, se estivermos falando de locação residencial, é
penhorável, posto que, em ambos os casos, o que está em jogo é o direito fundamental à
moradia, tendo em vista que o afastamento da penhora visa a beneficiar a família.
É bem verdade que o fiador, ao assumir o encargo, sabe das possíveis consequências,
tendo a liberdade de decidir se sujeita-se ou não à lei vigente, e é compreensível que a atual
redação do art. 3º, inciso VII da Lei nº 8.009/90 pretende proteger o mercado locatício.
Todavia, mesmo com tudo isto, acreditamos que seria mais justo com o fiador de boa-
fé que, assumindo um encargo desta natureza na inocência ou boa vontade, acredita que o
afiançado vai honrar seus compromissos, mas este não o faz por ser simplesmente um
dissimulado, que este também pudesse estar sujeito ao mesmo regime da penhorabilidade do
seu bem de família em ação de execução decorrente do descumprimento do contrato locatício.
Ou, no mesmo sentido que, ao menos, caso o fiador sacrifique seu bem de família para
pagar o débito do afiançado, que possa sub-rogar-se no direito de penhorar o imóvel
residencial do devedor em eventual ação regressiva.
A aplicação do princípio isonômico, previsto constitucionalmente, bem como do
princípio ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositivo, deveria ser levado a efeito em casos
como estes.
Esperamos que essa discussão possa ser revista, seja no Congresso Nacional, com a
reformulação da mencionada lei para assegurar, na mesma situação, possibilidade de penhora
do bem imóvel do afiançado em contrato locatício, ou o direito do fiador exercer o direito de
regresso com esta possibilidade, seja nos Tribunais Superiores com a sedimentação da
jurisprudência no sentido da impossibilidade de penhorar-se o bem de família legal do fiador
em qualquer tipo de contrato locatício, quando este tipo penhora não poder ser feita no bem
de família legal do locador afiançado, defendendo-se a aplicação do princípio isonômico para
assegurar a dignidade da pessoa humana do fiador.
Portanto, conclui-se que é inconstitucional a possibilidade de penhora do bem de
família do fiador em contratos de locação, seja ele residencial ou não residencial.
Caso contrário, aceitar a constitucionalidade dessa exceção injusta ao fiador,
significa dar cabo à função social que possui o bem de família.

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atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
UMA ANÁLISE JURÍDICA DA EXECUÇÃO FISCAL DO FIES: ACERCA DOS
PROFISSIONAIS RECÉM-FORMADOS296

Daniella Tenório de Lacerda Melo


Alves297
Marcello Borba M. A. Borges298

RESUMO

O presente artigo busca fazer uma análise acerca da execução fiscal do FIES e os profissionais
recém-formados. O Programa do FIES que foi implantado pelo Governo Federal no ano de
1999 e no decorrer dos anos trouxe a oportunidade para que vários jovens e adultos menos
favorecidos conseguissem realizar as suas graduações. Desta forma, percebe-se que o FIES é
uma forma de financiamento que atualmente tem como garantidor o próprio Governo Federal
quando criou o Fundo de Garantia de Operações de Créditos Educativos (FGEDUC). Porém
muitos destes contratantes são recém-formados e sequer conseguiram adentrar no mercado de
trabalho, devido a este fato surge à impossibilidade de cumprimento de alguns contratos. O
número de contratantes inadimplentes supera os 10% que havia sido estimado pelo Governo
Federal. O meio de cobrança deste crédito vai ser objeto de estudo deste trabalho, verificando
a inscrição na Dívida Ativa, que de acordo com analises do art. 784, inciso IX, do CPC, é um
título executivo extrajudicial, que permite ingressar com a Ação de Execução Fiscal contra o
inadimplente.

Palavras-chave: Dívida Ativa. FIES. Inadimplentes. Recém-formados.

INTRODUÇÃO

O trabalho busca realizar uma análise jurídica da execução fiscal do FIES e do contexto
que estão inseridos os profissionais recém-formados.
O programa de financiamento estudantil foi criado pelo Governo Federal, para que
este oportunizasse aos alunos que não tem condições de arcar com os custos para estudar em
instituições de ensino superior privadas. Tal programa tem como foco fazer que os alunos
consigam ingressar nestas instituições por meio de contrato de financiamento estudantil. Após

¹GT 8 - Estudos Contemporâneos em Direito Público e Processo


²Graduanda em Direito Pelo Centro Universitário Vale do Ipojuca (UNIFAVIP WYDEN); atua como
pesquisadora no Grupo de Estudo Tributários (GET) realizado pelo Centro Universitário Vale do Ipojuca
(UNIFAVIP WYDEN). E-mail: dtlma95@gmail.com
³Graduado e Mestre em Direito - UFPE; Professor Universitário da UnifavipDeVry; Professor pós-graduação
Asces/Unita; Professor Facig; Advogado e consultor jurídico; Coach para o Mestrado na Corpus. Juris Coaching
E-mail:marcello_borba@hotmail.com
outorgado lapso temporal teriam obrigação de iniciar o pagamento do financiamento.
Entretanto, o fato de não conseguirem a inserção no mercado de trabalho tem dificultado o
cumprimento do contrato celebrado.
Os recém-formados tentam ingressar no mercado de trabalho, porém muitos não
conseguem vagas de emprego em sua área de formação, o que ocasiona um alto número de
inadimplência. Esta dívida pode ocasionar um processo judicial por meio da Ação de
Execução Fiscal que se conceitua por processo extrajudicial, que tem como título executivo a
Certidão da Dívida Ativa.
Assim, a problemática que surge latente é como esses profissionais desempregados
poderão arcar com o cumprimento da obrigação e as consequências da execução fiscal. Desta
forma, teríamos como objetivos discorrer acerca do programa do FIES, compreender de que
forma se dá a execução fiscal e analisar o perfil dos profissionais recém-formados e a
possibilidade destes arcarem com a dívida do FIES.
A metodologia utilizada, em relação à abordagem foi qualitativa, tendo em vista que
não será realizado nenhum levantamento numérico, apenas dado já existente, tendo como
método de pesquisa o Estudo Fenomenológico, pois não estuda um caso em especifico e sim
o fenômeno em si.
O tema abordado é de certa relevância para a academia, tendo em vista ser um assunto
que não foi explorado anteriormente, sendo de suma importância os benéficos que serão
recebidos pela academia. Assim como também é relevante para a sociedade, pois maioria dos
cidadãos não tem ciência do que se trata a execução fiscal e muito menos quais as suas
consequências no âmbito do FIES.

1 ANÁLISE DO PROGRAMA DO FIES E CENÁRIO ATUAL

No decorrer dos últimos anos, no Brasil, ocorreu um grande avanço no que diz respeito
a inserção no ensino superior.
O Fundo de Financiamento Estudantil de Ensino Superior (FIES) foi criado pelo
Governo Federal no ano de 1999, tendo como agente operador o Ministério de Educação. O
programa tem a finalidade de proporcionar o curso de graduação no ensino superior em
instituições privadas, na modalidade de cursos presenciais, buscando atingir a população de
baixa renda que não conseguiu inserir-se em instituições públicas, proporcionando a esses
cidadãos o direito à educação que é um direito fundamental social do indivíduo como consta
no art. 6º da Constituição Federal de 1988, "são direitos sociais a educação, a saúde, a
alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta
Constituição".
O Governo Federal além de criar o programa, também atuaria liberando o crédito para
que os estudantes se matriculassem e realizassem o curso. Após a conclusão, o estudante
devolve o valor que foi utilizado para realização do financiamento estudantil, percebendo-se
que estes financiamentos são realizados pelos bancos do Brasil e Caixa Econômica Federal.
É importante ressaltar que, os alunos até o ano de 2009 necessitavam de uma garantia
para que o financiamento fosse aprovado, após isso o Governo tentou deixar o FIES mais
penetrável para os estudantes que possuem renda baixa. A responsabilização destes contratos
passou a ser responsabilidade do Governo que criou o FGEDUC (Fundo de Garantia de
Operações de Créditos Educativos), passando o governo a ser o maior garantidor. No início
apenas era possível ter essa modalidade de garantia aqueles que comprovassem renda até 1,5
salário mínimo, a partir de 2014 foi abrangido para todos os contratantes.
Conforme os anos iam passando, ocorreram várias alterações em relação a vários
pontos do financiamento, inclusive na taxa de juros. Estas taxas, é importante ressaltar, apesar
das mudanças de cenário, permaneceram por muito tempo abaixo ou próximo a inflação.
Atualmente, a taxa é de 3,5%, até 2010 a taxa era equivalente a 6,5%, conforme
ressalta o Jornal Nexo (2017).
Destaque-se que ao longo dos anos, houve alteração em relação a porcentagem que o
aluno poderia financiar; no início poderia ser financiado até 70% do valor do curso, todavia
durante os governos anteriores, o programa não só foi mantido, mas também foi ampliado, e
no ano de 2007 já era possível que os estudantes financiassem 100% do curso mediante o
programa, como pode ser visto no mesmo Jornal Nexo (2017).
Houveram mudanças, ao longo dos anos, na lei reguladora do FIES, sendo a última,
antes da alteração de 2017, era Lei de nº 12.202/10.
De acordo com Moura (2017), com a 12.202/10, notou-se um aumento significante
no número de estudantes que aderiram ao programa, de acordo com os dados que localizou
no Relatório de Gestão do FIES do ano de 2012. Segundo o mesmo, 32.654 (trinta e dois mil,
seiscentos e cinquenta e quatro) estudantes inscreveram-se no programa de financiamento em
2009. Posteriormente a lei, o número teve um aumento para 153.151 (cento e cinquenta e três
mil, cento e cinquenta e um) estudantes em 2011.
A nova lei, nº 13.530/17, trouxe novos dispositivos nos contratos realizados pelos
estudantes a partir do ano de 2018. Acredita-se que essas novas regras buscam uma maior
eficácia em relação a cobrança do valor que foi contratado pelo estudante, possibilitando que
esse valor volte ao Governo Federal para que sejam realizados novos financiamentos, assim
como também uma diminuição no número de inscritos.
Segundo a Revista IstoÉ (2018), foram disponibilizadas no ano de 2018, só para o
primeiro semestre 100.000 (cem mil) vagas para o financiamento realizado diretamente pelo
Governo Federal, porém apenas 36.866 (trinta e oito mil, oitocentos e sessenta e seis) foram
contratadas, existindo cerca de 16.351 (dezesseis mil, trezentos e cinquenta e um) em
contratação. Assim, os dados apresentados mostram que ocorreu uma diminuição no número
de contratos celebrados de forma drástica.
Ao realizarem os contratos, os alunos concordam com as cláusulas impostas nestes e
o banco libera os valores para os encargos educacionais para conclusão da graduação. O valor
do contrato vem determinado a depender do curso e de que período se iniciou a contratação,
assim como também irá constar a porcentagem de reajuste para a mensalidade. Ressaltando-
se que não sendo suficiente o limite estabelecido no contrato, existe a possibilidade de
dilatação.
Caso o contratante não conclua o curso no prazo regular, este poderá solicitar uma
única vez a dilatação, sendo ampliado por dois semestres consecutivos o seu contrato. Esta
solicitação é realizada por meio do financiado e será condicionada a disponibilidade do FIES.
Porém essa ampliação de mais dois semestres, para alguns estudantes, pode não ser
suficiente, ocasionando a impossibilidade do estudante concluir a graduação e, de certa forma,
sem a formação específica para ter maiores possibilidade de cumprir o contrato.
Como pode ser visto pelo Sitio do SISFIES, todavia, havendo necessidade de
renegociação, o Ministério de Educação traz a seguinte informação:

Os contratos realizados até 14 de janeiro de 2010 podem ter seus prazos de


amortização prorrogada por até três vezes, para isso tem que ser cumprido alguns
requisitos e estes são cumulativos, os requisitos são: ter sido assinado até a data
informada anteriormente, estejam na fase de amortização I e II do financiamento, o
valor da mensalidade ser superior a cem reais e ao somar os prazos das fases I e II
não seja igual ou superior a três vezes o prazo de permanência do estudante na
posição de financiado, este pedido pode ser realizado pelo sitio do SISFIES.

Após a solicitação no sitio, é necessário que o financiado entre em contato com a Caixa
Econômica Federal na qual realizou o financiamento, tendo que o financiado e o seu fiador
assinem o termo aditivo, levando toda a documentação necessária para tal procedimento. Com
relação aos contratos após essa data, não há possibilidade de renegociação, o que torna está
dívida impagável. Importante ressaltar que pode haver a possibilidade de renegociação com
os agentes financeiros, mas no dispositivo legal e nos contratos do financiamento não tem
nenhuma disposição acerca de tal ponto.
Devido a impossibilidade de renegociação dos novos contratos, acredita-se que podem
elevar a inadimplência a números ainda maiores, prejudicando toda questão orçamentária do
governo.

2 PROBLEMÁTICAS ACERCA DA EXECUÇÃO FISCAL

A inadimplência do contrato de financiamento estudantil gera consequências aos que


não cumprem a obrigação realizada, além de o seu nome ser inscrito nos órgãos de proteção
ao crédito, SPC, SERASA o mesmo poderá sofrer com a execução fiscal.
O processo de execução fiscal é regido pela Lei nº 6.830/80, trata-se de processo
extrajudicial de acordo com o doutrinador Hugo de Brito Machado (2014), sendo que este não
visa solucionar conflitos, mas sim para que os direitos que foram previamente acordados
sejam cumpridos.
O processo tem início por meio do título executivo, a Certidão da Dívida Ativa, como
traz o art. 204, do CTN "a dívida regularmente inscrita goza da presunção de certeza e liquidez
e tem o efeito de prova pré-constituída”.
De maneira semelhante se posiciona os doutrinadores Cassone, Rossi e Cassone
(2017), trazendo que ao inscrever o Crédito no Livro de Dívida Ativa, será gerada Certidão
de Dívida Ativa, sendo esta um título extrajudicial, permitindo o ingresso da Ação de
Execução Fiscal.
Importante trazer que o art. 784, inciso IX, do CPC determina o que são títulos
executivos extrajudiciais:

IX - a certidão de dívida ativa da Fazenda Pública da União, dos Estados, do


Distrito Federal e dos Municípios, correspondente aos créditos inscritos na forma
da lei.

A inscrição em dívida ativa é decorrente da inadimplência de uma obrigação que foi


gerada, e esta é solicitada pelo credor que tem o direito de exigir o cumprimento da obrigação
que foi acordada. Após a inscrição, o credor tem o prazo de cinco anos para entrar com a ação
de execução fiscal.
A certidão de dívida ativa é a exceção em relação à constituição do título, ela é de
caráter unilateral, mas a regra é que sejam bilaterais, que tenham um consenso entre as partes.
Acerca do termo de inscrição o art. 202, CTN, dispõe:

Art. 202. O termo de inscrição da dívida ativa, autenticado pela autoridade


competente, indicará obrigatoriamente:
I - o nome do devedor e, sendo caso, o dos co-responsáveis, bem como, sempre que
possível, o domicílio ou a residência de um e de outros;
II - a quantia devida e a maneira de calcular os juros de mora acrescidos;
III - a origem e natureza do crédito, mencionada especificamente a disposição da lei
em que seja fundado;
IV - a data em que foi inscrita;
V - sendo caso, o número do processo administrativo de que se originar o crédito.
Parágrafo único. A certidão conterá, além dos requisitos deste artigo, a indicação do
livro e da folha da inscrição. (BRASIL,1966)

A certidão que no ato de sua inscrição não constar todos os requisitos do art. 202 do
CTN, tem a possibilidade de ser considerada nula, podendo ser esta corrigida até a data da
decisão da primeira instância. Caso contrato será nulo todo o processo.
De acordo com o entendimento de Machado (2014), o ato da inscrição não são apenas
formalidades, mas sim um controle interno de legalidade da administração pública.
O processo iniciará com a petição inicial, nesta deve constar, de acordo com o art. 6º
Lei nº 6.830/80, que o juiz a quem deve ser dirigido, o pedido e o requerimento para citação
do executado. Com o surgimento da Lei nº 11.382/2006, fica entendido que quando a Fazenda
Pública for exequente, pode na própria inicial indicar os bens que desejam ser penhorado.
No que diz respeito a citação do acusado, esta deverá ser realizada via correios, com
aviso de recepção, se não for disposto de outra maneira pela Fazenda Pública. No entanto,
caso não volte o aviso de recepção em quinze dias da data que foi entregue a carta na agencia
postal, deverá a citação ser realizada por Oficial de Justiça ou por meio de edital. Este será
fixado na sede do juízo, tendo que ser publicado uma única vez, tendo o prazo de trinta dias,
como está disposto na Lei nº 6.830/80, no art. 8º.
Ao se tratar dos corresponsáveis das obrigações geradas, que nos contratos do FIES
seriam os fiadores, a citação deve ser realizada dentro de cinco anos no máximo, a partir da
data do despacho do juiz que ordena a citação do devedor principal da dívida, caso não citado
dentro do prazo legal prescrevera a pretensão de execução de bens destes corresponsáveis.
Como disposto no art. 4º, incisos I e II, da Lei nº 6.830/80, "a execução fiscal poderá ser
promovida contra: I- o devedor; e II- o fiador".
Quando da citação, a parte executada tem o prazo de cinco dias para pagar a dívida,
ou garantir o pagamento desta, seja através de deposito em dinheiro, fiança bancária, ou
nomear bens a serem penhorados. Este prazo não tem nenhum vínculo ao prazo que o
executado tem para interpor embargos do executado, este prazo é dado para realização do
pagamento da dívida, caso passe o prazo dos cinco dias, fica critério do credor os bens que
devem ser penhorados MACHADO (2014).
O embargo do executado, ou do devedor, meio de defesa, está disposto no art. 16 da
Lei n º 6.830/80 e tem a intenção de desconstruir o título executivo. Este será o momento que
o executado tem a possibilidade de alegar a necessidade de novas provas para serem juntadas
aos autos, tendo como prazo para interpor esse embargo, trinta dias a partir da garantia.
O CPC em seu art. 914 traz que o embargo à execução pode ser interposto
independente de garantia. Porém o STJ (2013) entende que é necessário o cumprimento da
garantia, como é disposto no art. 16, § 1º da Lei 6.830/80:

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NO


AGRAVO. RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. ART. 736 DO
CPC. NÃO APLICAÇÃO. PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE. ART. 16 DA LEF.
EXIGÊNCIA DE GARANTIA. ESPECIAL EFICÁCIA VINCULATIVA DO
ACÓRDÃO PROFERIDO NO RESP 1.272.827/PE. REPRESENTATIVO DE
CONTROVÉRSIA.
1. A Primeira Seção desta Corte, ao apreciar o RESP nº 1.272.827/PE
(recurso submetido à sistemática prevista no art. 543-C do CPC, c/c a Resolução
8/2008 - Presidência/STJ), firmou entendimento no sentido de que em atenção ao
princípio da especialidade da LEF, a nova redação do art. 736 do CPC - artigo que
dispensa a garantia como condicionante dos embargos - não se aplica às execuções
fiscais diante da presença de dispositivo específico, qual seja o art. 16, §1º da Lei n.
6.830/80, que exige expressamente a garantia para a apresentação dos embargos à
execução fiscal.2. Agravo regimental não provido SUPERIOR TRIBUNAL DE
JUSTIÇA – STJ. Recurso especial n.393.284-RJ (03.01.083-0). Relator: Mauro
Campbell Marques. DJ: 15/10/2013.JusBrasil, 2013.

Por fim, conclui-se que o prazo para prescrever a execução fiscal é quinquenal, tendo
como marco cinco anos para ser cobrada a dívida, a partir do lançamento do crédito.

3 UMA ANÁLISE DA EXECUÇÃO FISCAL SOBRE OS RECÉM-FORMADOS:


DIFICULDADES E MERCADO DE TRABALHO

Os profissionais recém-formados são aqueles que estão em fase de transição da


universidade para a inserção no mercado de trabalho, estes normalmente são jovens, que
buscam além de independência financeira, dar um passo novo em suas vidas. Eles encerram
suas graduações com o objetivo de serem grandes profissionais, porém a entrada no mercado
de trabalho pode ser um tanto quanto dificultosa.
Há alguns anos, o fato de ter um diploma universitário era uma grande vantagem para
conseguir uma vaga de emprego na área em que escolheu para seguir uma carreira.
Atualmente, contudo, apenas o diploma não é garantia para inserção no mercado de trabalho,
além da grave crise financeira e altas taxas de desemprego, a qualificação exigida pelo
mercado não se limita, em diversas áreas a um diploma de graduação.
Tendo em vista a alta competitividade frente à busca da inserção no mercado de
trabalho, os recém-formados tem dificuldade para conseguir o emprego, seja na sua área de
formação ou em outras.
Programas como o PROUNI e FIES que foram criados pelo Governo Federal e
Ministério de Educação como agente operador, assim como as várias universidades estaduais
e federais que surgiram nos últimos anos, geraram certa facilidade para que os estudantes
tivessem a oportunidade de realizar uma graduação. Tendo como consequência um aumento
no número de profissionais em praticamente todas as áreas, então o diferencial deixa de ser o
diploma universitário, sendo como diferencial uma especialização.
De acordo com Lima e Queiroz (2010), acerca do aumento de profissionais com
diplomas, em especial entre o grupo jovem, a concorrência por vagas no mercado de trabalho
tem aumentado, e está gerando dificuldades para atender a grande quantidade de pessoas que
concluem a graduação. Desta forma, os profissionais que estão concluindo suas graduações
têm que ter competências especificas, uma especialização pode ser um grande diferencial,
assim como também uma boa fonte de relações, pois o conhecimento atualmente influencia
muito na inserção do mercado de trabalho, assim como suas próprias características.
Ao término da jornada acadêmica, a expectativa em relação a entrada no mercado de
trabalho na área de formação é imensa, mas cabe ao profissional fazer o diferencial e conseguir
tudo que vem almejando em toda a sua jornada na graduação. Porém, o que vem ocorrendo é
que, esses profissionais acabam ou por não conseguir o que sempre almejaram, ou pior ainda,
após a conclusão da graduação ficam desempregados, independente da área, até mesmo para
trabalhar fora da área de sua formação.
De acordo com Pamplona (2018), em matéria realizada pelo Jornal Folha de São Paulo
2018, o número de brasileiros sem emprego formal, ou seja, com a carteira assinada é de 4
milhões a menos do que em 2014, que foi quando iniciou-se a crise econômica no Brasil.
Significando que a cada ano 1 (um) milhão de vagas em empregos formais foram fechados
em nosso país.
Tais dados são preocupantes, tendo em vista que os empregos formais trazem uma
maior garantia aos funcionários e seus empregadores. Entre esses desempregados estão os
jovens, que de acordo com o Correio Braziliense, através Lisboa (2018), “o índice de
desemprego entre os brasileiros que possuem entre 18 a 24 anos é de 28%”.
Esses números mostram as dificuldades que os recém-formados tem para serem
inseridos no mercado de trabalho. Alguns sequer conseguem ter a chance de ingressar no
mercado de trabalho, até porque muitas empresas solicitam que tenham experiência, mas
como jovens que acabam de sair de suas graduações como podem ter experiências
profissionais na área?
Esses números podem vir a aumentar dentro de alguns anos, tendo em vista que a cada
ano que passa mais alunos ingressam nas graduações, de acordo com Censo da Educação
Superior do INEP, em média 2,9 milhões de alunos ingressam por ano no nível superior e 1,1
alunos por ano concluem seus cursos.
São preocupantes esses números, pois aqueles estudantes de ensino médio que
conquistaram suas vagas em universidade privadas com o programa do FIES, após a conclusão
tem que cumprir com a obrigação que realizaram no início de sua graduação. Os que não
conseguem entrar no mercado de trabalho acabam iniciando a busca por inserção no mercado
de trabalho com uma dívida que eles não têm sequer a menor condição de pagar.
De acordo com a Secretária de Acompanhamento Econômico 2017, os contratos que
já estão em fase de amortização (pagamento) desde 2010 a inadimplência chega em torno de
30%. Ao verificar o número de contratos do FIES que estão inadimplentes em um único dia,
sendo levando em consideração o total de contratos realizados, a inadimplência chega a casa
dos 46,5% (quarenta e seis por cento e meio). Esses números estão bastante elevados, tendo
em vista que, o percentual de inadimplência esperado quando foi criado o FEGDUC era de
apenas10% (dez por cento).
Em decorrência deste elevado número de inadimplência, foi que o Governo Federal
realizou mudanças em relação à contratação do FIES no ano de 2018, tais mudanças
extinguiram algumas das facilidades que a Lei de nº 12.202/10 trouxe e foram relatadas.
Porém, a diminuição no número de financiamentos não irá regularizar a questão dos
profissionais recém-formados que estão fora do mercado de trabalho, ou trabalhando fora de
suas áreas de formação.
Estes Profissionais terão que iniciar a busca por vagas no mercado de trabalho tendo
que arcar com uma dívida que gerará processo extrajudicial, e tendo ainda a possibilidade de
ter bens executados. No caso de contratos com fiadores, os bens deste, caso o financiado não
possua bens a ser executado.
Como esses recém-formados podem lidar com todas essas consequências, que de certa
forma são inesperadas, pois os mesmos ao concluir suas formações tinham a intenção de entrar
em uma nova fase de suas vidas, tanto na área profissional, como em suas vidas pessoais? E
o que pode ser visto são recém-formados desempregados que tem a obrigação de realizar o
cumprimento de um contrato que celebraram no início de suas formações, o não cumprimento
destes contratos não é um ponto negativo apenas para os contratantes, mas também para o
Governo Federal que não consegue reaver os valores que foram empregados na formação
destes usuários do programa gerando um déficit no cenário atual de nosso país.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo conclui que, de acordo com análise realizada acerca do Programa do
FIES, que gerou oportunidades para os menos favorecidos em nosso país acarretou um déficit
nos cofres públicos tendo em vista o número de inadimplentes que era estimado no máximo
de 10% e chegam a 46,5% os contratos que estão atrasados a no mínimo um único dia. O que
só agrava a situação do país, tendo em vista a crise econômica que estamos vivenciando no
cenário nacional.
A inadimplência destes contratos, em sua maioria, não é ocasionada pela má-fé dos
contratantes; pode até existir uma parcela destes inadimplentes que estejam usando e agindo
com má-fé, porém a maior parte dos devedores realmente não consegue honrar o contrato que
foi celebrado no início de suas graduações por motivos alheios as suas vontades, o alto índice
de recém-formados desempregados corrobora para o número de inadimplentes estar tão alto.
É certo afirmar que estes graduandos não pretendem iniciar suas vidas profissionais
com seus nomes inscritos nos órgãos de proteção ao crédito, e muito menos se arriscar a sofrer
consequências decorrente de uma execução fiscal.
De acordo com o que é abordado pelo Correio Braziliense, através de Lisboa (2018),
um grande fator para esta situação é o fato de existir um desencontro entre as vagas de
emprego e as vagas ofertadas para realizar cursos superiores. Desta maneira, a crise que
estamos vivenciando em nosso país só ocasiona o aumento do índice dos recém-formados que
estão desempregados, ou atuando fora da área de suas formações. Ao inserir esses jovens ou
até mesmo adultos em curso de ensino superior, deveria ser avaliado as áreas e deixá-los
cientes de como se encontra atualmente cada mercado e se a o nicho pretendido para atuação
vai ou não trazer frutos para esses futuros graduandos.
Assim, fica mais visível uma futura atuação na área que se formou e escolheu para
seguir carreira, podendo este cumprir com o contrato que realizou no início de sua graduação.
Não adianta gerar oportunidades de inclusão em instituições de ensino superior e após
concluírem as suas formações os profissionais permanecerem desempregados ou até em
subempregos, desta forma a política de inclusão não está alcançando a sua finalidade
essencial.
Outro fato que pode auxiliar, também, no cumprimento desses contratos firmados é
trazer a renegociação para esses novos contratos, como era realizado até janeiro de 2010.
Ocorre que o número de contratantes que se tornaram inadimplentes é alto, os juros sobre tal
fato continuam correndo, o que só aumenta a dívida, tornando esta uma dívida praticamente
impagável. Essa dívida tende a gerar a impossibilidade de novas contratações tendo em vista
que o FGEDUC não está recebendo de volta os valores para gerar novos financiamentos, o
que pode gerar um colapso maior.
Conclui-se, assim, que a necessidade de serem reavaliados alguns pontos no
regulamento do FIES para que de certa forma facilite o cumprimento dos contratos firmados
para que o FGEDUC continue tendo condições de continuar garantindo novas contratações
para os jovens e adultos de baixa renda que desejam ingressar no Ensino Superior. Desta
maneira, o programa do FIES pode chegar a alcançar a sua verdadeira finalidade que é
proporcionar a inclusão não só em instituições de ensino, mas também a inclusão social.

REFERÊNCIAS

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República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 5 outubro 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 13 jun.
2018.

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e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Diário
Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 25 outubro 1966. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L5172.htm>. Acesso em: 13 jun. 2018.

BRASIL. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial
[da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 16 março 2015. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 13
jun. 2018.

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Disponível em: <http://sisfiesportal.mec.gov.br/?pagina=renegociacao>. Acesso em: 16 jun.
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<http://fazenda.gov.br/centrais-de-conteudos/publicacoes/boletim-de-avaliacao-de-politicas-
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sobre o sofrimento psíquico de desempregados recém-formados em instituições de nível
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recurso-especial-agrg-no-aresp-393274-rj-2013-0301803-0-stj/relatorio-e-voto-
24517011?ref=serp>. Acesso em: 5 out. 2018.
“INTIME-SE”; “CUMPRA-SE”; “ARQUIVE-SE”: decisões estruturantes e o risco do
empoderamento do judiciário.299

Vinícius Wanderley Soares Cavalcanti300

RESUMO

O presente trabalho tem por desiderato, tecer concepções constitucionais sobre as análises
jurídicas que tratam dos processos estruturais, bem como as decisões provenientes dele,
conhecidas com sentenças ou decisões estruturantes, que se intitula “estruturantes”, pois são
capazes de estabelecer reformas de dimensões maiores do que as das conhecidas no processo
individuais e coletivos. Traz a hipótese em que para garantir direitos e cumprimento de
decisões, o judiciário atue de forma mais interventiva dentro da administração de sujeitos
públicos ou privados, nascendo assim, a principal problemática aludida nesta pesquisa: o
conflito entre esta postura do judiciário e a separação dos poderes, adotada no direito brasileiro
em combinação com os conceitos de ativismo judicial e sedimentando com a abordagem das
premissas da “margem do decidível, destacando pontos doutrinários, legais e normativos da
temática abordada. Nesse sentido será posto em discussão também, o espaço normativo
brasileiro para o emprego dos processos estruturais, e o risco para o Estado democrático de
direito advindo do empoderamento do judiciário, A presente pesquisa traz uma abordagem
qualitativa, faz uso do método exploratório e desenvolve seus objetivos através da pesquisa
bibliográfica e documental.

Palavras-chave: Estrutural; sentença; poderes; separação; empoderamento.

INTRODUÇÃO

O debate acerca do ativismo judicial já não se apresenta mais como nenhuma novidade,
bem como todas as temáticas correlatas a ele, como, por exemplo, a teoria de separação dos
poderes, proposta por Charles de Montesquieu. No entanto, com o passar do tempo, todos os
desdobramento deste debate, se apresentaram com facetas diversas, no sentido de
continuamente trazer novos tópicos para o centro da discussão.
Neste ínterim, a postura do judiciário, a estrutura e até mesmo a maturidade
jurisdicional brasileira, são postas em questionamento a fim de satisfazer preocupações
preliminares a cerca do tema, a citar como exemplo: até que medida o controle jurisdicional e
a atividade demasiadamente participativa do Poder judiciário, se mostra uma técnica ou
caminho de dissolução de lacunas? E ainda que seja um método eficaz; quais os possíveis
efeitos pragmáticos decorrentes dele?

299
GT 8 Estudos contemporâneos em direito público e processo.
300
² Vinícius Wanderley Soares Cavalcanti, graduando em Direito. UNINASSAU.
viniciius.wanderley@hotmail.com
O modelo de divisão dos poderes, não é apenas uma forma estratégica de
administração do Estado, considerando que a divisão de tarefas implica na diminuição do
campo de gestão e, por conseguinte, viabiliza a gestão, trata-se da teoria administrativa da
divisão de tarefas. É antes de tudo, um modelo que garante ao Estado moderno uma
perspectiva democrática, difusa, numa tentativa se desfazer cada vez de hipóteses de governo
como, por exemplo: despóticas.
Considerar a ideia de que o Estado tem suas funções cindidas, se apresenta também
com um trunfo de proporções constitucionais, haja vista que o que se buscava nos conhecidos
movimentos constitucionais, era uma forma de delimitar a atuação estatal a fim de resguardar
e garantir direitos, bem como criar novos deveres. Nesse sentido, é valido salientar que a
Constituição seja ela de onde for, sempre nasce da intenção de descentralizar poderes com o
intuito de preservar o Estado democrático de direito.
Caminhando para a visão mais específica desta pesquisa, destaca-se que constitui um
das características marcantes do processo civil, seus delineamentos, que são previstos
legalmente no Código de Processo Civil, pondo os comportamentos das partes e do Juiz sob
princípios constitucionais que dão ao processo mais segurança jurídica e uma feição objetiva,
e por esse motivo o meio processual aparece, por vezes, como a vereda mais satisfatória ou
adequada de se dirimir conflitos sociais.
Verdade seja dita que muito se evoluiu nos últimos anos, no que tange a jurisdição
estatal como única forma de resolução de litígios, pois atualmente se conta com meios
variados de dissolução de conflitos, conduzindo o debate a cerca de jurisdição para o viés de
adequação e não somente de competência, falando-se inclusive em jurisdição privada.
Surge neste aspecto, para acrescentar nova roupagem ao processo civil, o modelo
norte-americano de processos estruturais, e as decisões provenientes deles, intituladas de
decisões estruturais ou estruturantes, como mais um tópico a ser refletido no meio jurídico de
ativismo judicial.
Diante do que foi dissertado, o presente trabalho tem por desiderato analisar
constitucionalmente o modelo de processos estruturais e as decisões estruturantes, o seu
desenvolver e o seu conteúdo, respectivamente, bem como seu conceito. Pôr em contraponto
com a teoria da separação dos poderes, adotada pelo modelo constitucional brasileiro, destacar
aspectos conflitantes entre o modelo de processo mencionado e a divisão estatal de poderes
para discutir prospectivas e retrocessos, de modo subjacente ao empoderamento judicial.
A pesquisa em questão suscita problemáticas no que tange ao espaço dos processos e
decisões estruturais no atual formato do Poder judiciário, avanços e reminiscências
decorrentes do impacto deste formato de sentença na jurisdição brasileira, conflitos entre o
modelo americano e a teoria da separação dos poderes, risco quanto ao ativismo judicial, que
conta cada vez mais com mecanismos de intervenção em campos que outrora não recaiam
sobre o judiciário.
Progredindo partindo dos métodos históricos, monográficos, dialéticos, etnológico ou
comparativo, coletando bibliografias inerentes ao tema direito constitucional e processual
civil, além de literatura e doutrina pertinente para melhor abordagem do assunto em sua
completude de complexidade, trabalhando e tecendo o trabalho de maneira panorâmica com
a finalidade de desenvolver todos os pontos adjacentes.

2 EQUAÇÃO DE ARTIGOS DA BASE NORMATIVA

Em caráter introdutório, é salutar dissecar a abertura legislativa no ordenamento


jurídico do Brasil, afim de destacar sob qual interpretação de artigos específicos, o modelo de
processos estruturais é passível de existir no direito brasileiro. Na verdade, infere-se da
dinâmica entre o art. 139, IV, e o art. 536, § 1º, do Código de Processo Civil. Estes artigos se
referem a fase de execução, apresentando medidas atípicas das quais o juiz pode se utilizar
visando o cumprimento de um ordem judicial. Entende-se doutrinariamente que a base
normativa das decisões estruturantes parte, desses artigos supramencionados, pois, ambos
tratam de medidas não tipificadas, extras e, portanto mais interventivas atribuídas ao juiz,
sendo esta uma das características que adornam os processos estruturais.

Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código,


incumbindo-lhe:
IV - determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-
rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive
nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária;. (Brasil, Lei 13.105/2015)

Este artigo, dentre tantos outros da Lei 13.105/2015, é um advento para o


processo judicial, no que tange aos poderes conferidos ao juiz dentro do processo ou fase
processual. De modo, que a hipótese prevista no artigo e inciso, mencionados a cima não
estavam presentes do Código de 1973.
As medidas previstas no inciso IV têm causado grandes preocupações e incertezas
no meio doutrinário, diante da perspectiva de relação vertical das normas com a Carta
Magna, muito se questiona se as hipóteses deste inciso não chegam a violar direitos
fundamentais, no sentido de quase legalizar um “vale tudo” para satisfazer um
cumprimento de uma ordem judicial.
Lênio Streck, ao se posicionar sobre questões interpretativas do art. 139,
estabelece a ponte entre a dicção dos presentes dispositivos e a concepção das medidas
estruturantes, presentes do inciso IV. Reconhece a fase inicial e pueril da ideia de
processos estruturais e seus desdobramentos, ao tempo que pontua a potencialidade
desse artigo para o crescimento dos debates a cerca desta temática.

No contexto brasileiro, as medidas estruturantes ainda se encontram em momento


embrionário e poucos estudos de relevância foram desenvolvidos acerca do tema
ainda em enfoque estatalista, mas os artigos 139, IV (cláusula geral executiva de
efetivação) e 190 (cláusula geral de negociação processual) do CPC/2015 talvez
possam ofertar novas potencialidades para o instituto. (STRECK, Lênio. 2016)

No que concerne ao art. 536, § 1º, é o que se retira da dicção:

Art. 536. No cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação


de fazer ou de não fazer, o juiz poderá, de ofício ou a requerimento, para a efetivação
da tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente,
determinar as medidas necessárias à satisfação do exequente.
§ 1o Para atender ao disposto no caput, o juiz poderá determinar, entre outras
medidas, a imposição de multa, a busca e apreensão, a remoção de pessoas e coisas,
o desfazimento de obras e o impedimento de atividade nociva, podendo, caso
necessário, requisitar o auxílio de força policial. (Brasil, Lei 13.105/2015).

Nesse sentido e com a boa leitura do artigo supracitado, retiram-se os diversos poderes
atribuídos ao juiz para, de forma coercitiva, promover o cumprimento de uma sentença ou
determinação judicial. Além do extenso rol, também se observa certa abertura hermenêutica,
com a colocação “entre outras medidas”, deixando sugestivas as medidas que podem, ou
poderão ser adotadas na hipótese do artigo 536.

3 PANORAMA GERAL E CONCEITOS PRELIMINARES

Surge em meados na década de cinquenta e setenta do século passado, notoriamente


não só o mundo como os Estados Unidos, se reconstruía do cenário pós-guerra, o globo
buscava em conjunto um era de mais garantia de direitos, mais eficácia das normas, bem como
a conduta diplomática. As décadas de 1950 e 1970 marcaram um momento de grande ativismo
e intervenção judicial, sendo este o motivo de atribuir-se a este trecho histórico o surgimento
das concepções embrionárias dos processos estruturais, bem verdade que “embrião” é um
termo bem empregado, pois a análise feita é pragmática e não analítica, como é possível fazer
atualmente, observava-se o que acontecia na prática do judiciário, as medidas adotadas para
efetivação das sentenças, bem como o próprio contexto das decisões prolatadas.
No contexto mais específico, vigorava na época, a separação racial, de modo que
existiam lugares para negros e lugares para brancos. Nesse sentido, o caso Brown vs. Board
of Education of Topeka, iniciado em 1954, apresenta como possível primeiro processo
estrutural, o litígio versava sobre matrículas de pessoas negras em escolas destinadas à
brancos, entendeu-se pela Suprema Corte norte-americana que as matrículas eram
inconstitucionais, e para garantir a proteção deste direito constitucional, a máxima Corte dos
Estados Unidos se utilizou de medidas que caracterizam o que se entende hoje como sentenças
estruturantes. (JOBIM, Marco Félix. apud DIDIER JUNIOR, Fredie; ZANETI JUNIOR,
Hermes; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Notas sobre as decisões estruturantes, p. 2, 3 -
2017)
Decisões ou sentenças estruturantes são aquelas que visam uma reforma estrutural em
determinado ente, instituição ou organização, é de fato reconstruir certos aspectos burocráticas
dessas pessoas jurídicas, seja sujeitos particulares ou públicos, com o fito de garantir a
efetivação de um direito fundamental. No sentido, de criar medidas e propor políticas publicas
para dirimir os litígios complexos, este por sua vez se refere a litígios que abordam situações
conflitantes de diversos interesses sociais, daí surge a complexidade. (LIMA, Edilson Vitorelli
Diniz. apud DIDIER JUNIOR, Fredie; ZANETI JUNIOR, Hermes; OLIVEIRA, Rafael
Alexandria de. Notas sobre as decisões estruturantes, p. 4, 2017)

Trata-se daquelas situações em que o litígio decorrente da lesão afeta diretamente


os interesses de diversas pessoas ou segmentos sociais, mas essas pessoas não
compõem uma comunidade, não têm a mesma perspectiva social e não serão
atingidas, na mesma medida, pelo resultado do litígio, o que faz com que suas visões
acerca de seu resultado desejável sejam divergentes e, não raramente, antagônicas.
Essas situações dão ensejo a conflitos mutáveis, multipolares, opondo o grupo titular
do direito não apenas ao réu, mas a si próprio. (LIMA, Edilson Vitorelli Diniz.
Tipologia dos litígios coletivos – 2015, p. 97 )

É oportuno, portanto, destacar dois aspectos deônticos presentes nas sentenças


estruturantes, a norma-regra e a norma-princípio, com intuito de pontuar as diferenças para
entender o emprego prático e efeitos da decisão. A norma-regra tange aspectos da efetivação
da sentença prolatada, visa empregar o que foi decidido, em sentido direto, é a parte da
garantida do direito. A norma-princípio, conforme já se pressupõe da terminologia, e atento
ao valor semântico de “princípio”, trata-se do aspecto de previsão que determinará e delimitará
o que será abrangido na norma-regra.
A norma regra se constitui quando o juiz passa, para garantir o que foi sentenciado, a
intervir nas atividades, nos setores e serviços do ente, que foi objeto da sentença, ele participa
diretamente da prática da reforma estrutural. “As normas-princípios são essências para
estabelecer às finalidades e objetivos e para controlar a adequação dos resultados alcançados
às finalidades e objetivos. Umas apoiam as outras, as normas-regra realizam o que as normas-
princípio planejam.” (DIDIER JUNIOR, Fredie; ZANETI JUNIOR, Hermes; OLIVEIRA,
Rafael Alexandria de. 2017, p. 5).
Outra feição marcante e, por conseguinte pertinente para elucidação das sentenças
estruturantes, é a possibilidade de que para a garantia ou efetivação de uma decisão, várias
outras precisem sem revistas. É dizer que, para fazer valer (norma-regra) o direito, se faz
necessário que outras normas sejam alteradas, o que é chamado por Sergio Cruz Arenhart de
provimentos em cascata. De modo que é característico das sentenças estruturantes, que após
a prolação de uma norma-princípio e com o momento do emprego da norma-regra, algumas
normas anteriores sejam até mesmo revogadas, abrindo espaço legal para a prática da garantia
da norma fundamental sentenciada.
Nesse sentido, fica cristalino que as repercussões provenientes de uma sentença
estruturante, são capazes de alcançar diversas espécies normativas e normas, promulgadas por
entes federativos diversificados. É a circunstância em que o judiciário intervém também em
vistas legislativas. É um poder remoldando um ordenamento jurídico, bem verdade que se
trabalha com provimentos em cascata em grande escala, tornando possível analisar e mensurar
as consequências decorrentes de uma decisão estrutural.
No Brasil, entende-se doutrinariamente que as intervenções judiciais em sujeitos
públicos ou privados, não se apresenta como nenhuma revolução, uma vez que já existem
previsões legais em que a autoridade judicial intervém de forma direta, para garantir o
cumprimento de um decisão. Cita-se como exemplo a lei de recuperação e falência de
empresas, Lei 11.101/05, em foco seu art. 99 e seus incisos VII, IX e XII; além da Lei
12.529/11, art. 96 e art. 107 § 2º. (DIDIER JUNIOR, Fredie; ZANETI JUNIOR, Hermes;
OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. 2017, p. 7 - 8).

Art. 99. A sentença que decretar a falência do devedor, dentre outras determinações:
VII - determinará as diligências necessárias para salvaguardar os interesses das
partes envolvidas, podendo ordenar a prisão preventiva do falido ou de seus
administradores quando requerida com fundamento em provas da prática de crime
definido nesta Lei;
IX - nomeará o administrador judicial, que desempenhará suas funções na forma do
inciso III do caput do art. 22 desta Lei sem prejuízo do disposto na alínea a do inciso
II do caput do art. 35 desta Lei;
XII - determinará, quando entender conveniente, a convocação da assembléia-geral
de credores para a constituição de Comitê de Credores, podendo ainda autorizar a
manutenção do Comitê eventualmente em funcionamento na recuperação judicial
quando da decretação da falência;. (Brasil, Lei 11.101/2005).
Quanto a Lei 12.529/2011, que regulamenta a atuação do Conselho Administrativo de
Defesa Economica (CADE), referencialmente a possibilidade de intervir na empresa para
efetivação de uma decisão. É o que se retira dos seus artigos 96 e 107, § 2º.

Art. 96. A execução será feita por todos os meios, inclusive mediante intervenção
na empresa, quando necessária. (Brasil, Lei 12.529/2011)

Art. 107. O juiz poderá afastar de suas funções os responsáveis pela administração
da empresa que, comprovadamente, obstarem o cumprimento de atos de
competência do interventor, devendo eventual substituição dar-se na forma
estabelecida no contrato social da empresa.
§ 2º deste artigo.
§ 2º Se a maioria dos responsáveis pela administração da empresa recusar
colaboração ao interventor, o juiz determinará que este assuma a administração total
da empresa. (Brasil, Lei 12.529/2011)

Nesse diapasão, depreende-se que decisões com efeitos estruturais já figuram no


direito brasileiro, com o mesmo propósito do que é apresentado no modelo norte-americano,
salientando a característica da intervenção judicial, restando ainda outros traços igualmente
importantes e participativos, como por exemplo, o provimento em cascata.

4 DIVISÃO DOS PODERES, ATIVISMO JUDICIAL E A MARGEM DO DECIDÍVEL

Dentro da abordagem macro da temática exposta, existem pontos subjacentes que


coabitam e flertam de maneira imprescindível com os processos estruturais. São assuntos
conflitantes, presentes no ordenamento jurídico do Brasil, que colocam em questionamento a
base e a estrutura legal, para incorporar de maneira mais realçada as sentenças estruturantes
no sistema jurídico.
Por opção de silogismo, a teoria da divisão dos poderes será o primeiro a ser tratado,
uma vez que a postulação da separação e convivência dos poderes se posiciona em relação
aos processos estruturais e sentenças estruturantes, do mesmo modo que o sol se posiciona em
relação ao mar quando se põe.
A importância da separação dos poderes se infere do fato das competências (poderes)
dos entes federativos está albergada na constituição, de modo a ser uma previsão normativa
máxima, em face da supralegalidade e da teoria do ordenamento jurídico de Hans Kelsen.
A divisão dos poderes, mencionada em artigos específicos da Carta Magna, dá um
roupagem principiológica ao tema, e diferente não poderia ser, uma vez que a tratativa deste
assunto precisa ser pautada em perspectivas de princípios, que regulamentam, delimitam e
limitam seus objetos, neste caso a competência da União, Estado e Municípios, e suas
respectivas funções: executiva, judiciária e legislativa. Conforme postula José Afonso da
Silva.

Cabe assinalar que nem divisão de funções entre órgãos do poder nem sua
independência são absolutas. Há interferências, que visam ao estabelecimento de
um sistema de freios e contra pesos, à busca do equilíbrio necessário à realização
do bem da coletividade e indispensável para evitar o arbítrio e o desmando de um
em detrimento do outro e especialmente dos governados. (SILVA. José Afonso da.
apud SOUZA, José Alves de. 2014).

O ponto primordial da divisão dos poderes é exatamente a possibilidade e a


importância de se polarizar ou difundir os poderes inerentes ao Estado, visando instituir um
Estado democrático de direito, haja vista que o oposto disso, ou seja, a hipótese em que os
poderes estatais encontram-se concentrados nas mãos de um, entende-se por monarquia, e a
concepção em que os poderes encontram-se nas mãos de alguns, se conhece por oligarquia, e
nenhum destes é previsto ou constitucionalmente aceito no Brasil.
No cenário em que o as funções do estado se concentram em um dos três polos, tira-
se a uma das ideias mais debatidos no meio jurídico nos últimos anos, ativismo judicial. É
situação fática em que a maioria ou até mesmo qualquer conflito social seja conduzido para
apreciação nas vias judiciais.

O ativismo judicial, portanto, está ligado ao fenômeno da judicialização da


política, concorrendo uma série de fatores, para este fenômeno, tais como: um
sistema político democrático; a separação dos poderes; o exercício dos direitos
políticos; o uso dos tribunais pelos grupos de interesse; a inefetividade das
instituições majoritárias, a transferência dos poderes decisórios de outros poderes
ao Poder Judiciário. (VALE, Ionilton Pereira do. 2015).

E na visão do jurista norte-americano, William P. Marshall, o ativismo judicial se


apresenta quando o jurisdicionado não se atém as suas funções legalmente previstas,
havendo um recusa em se manter dentro dos limites estabelecidos. (MARSHALL. William
P. apud VALE, Ionilton Pereira do. 2015).

A polêmica se deduz da leitura que é possível se fazer das doutrinas acerca da


importância da postura mais presente do judiciário, uma vez que se encontra dividida. Os que
apontam o dedo indicador, afirmam principalmente a teoria dos três poderes
supramencionada, estabelecendo ponto de conflito, o que já se apresenta com um forte
argumenta em decorrência da inserção em matéria de constitucionalidade.

Entretanto, há quem ovacione, destacando que as demandas sociais e as especiais,


como nos caso das que versam sobre políticas públicas, devem ser conduzidas ao judiciário
restando, no entanto, uma reformulação nos procedimentos para adequação e recepção
devidas destas demandas.
Na visão de Sergio Cruz Arenhart: O controle jurisdicional de políticas públicas, ainda
que se possa, academicamente, questionar sob diversas óticas, é um fato inquestionável.
Diversas decisões incidem sobre esse tema, o que impõe ao direito processual preocupar-se
sobre o assunto e oferecer instrumentos adequados para o tratamento desse tipo de tema.
(ARENHART, Sergio Cruz. [s.d]).
Concomitante a todos esses pontos, apresenta-se válido destacar, para fins de
concretização da razão, a concepção existente sobre a margem do decidível, que em linhas
gerais mostra que está inteiramente conectado com ativismo judicial, ou igualmente conhecido
e mais direto, empoderamento do judiciário.
É didático preliminarmente destacar que o ativismo judicial também é tratado em
linhas de judicialização da política, com o intuito de se apresentar de uma forma crítica mais
branda no sentido de inicialmente mostrar que não é o judiciário que é ativo, mas a política
que se judicializa, retirando a condição de ação do judiciário.

O tema do ativismo judicial gera importante dissenso na doutrina, por essa razão
revela-se adequado demonstrar que a atuação do Poder Judiciário ocorre legitimada
por uma disfunção política e não por uma atividade política. Isto ocorre porque a
ideia de controle judicial de políticas públicas, tanto da atividade pública e estatal,
quanto da atividade privada, está ligada às noções que surgem a partir da ideia de
“função social” do direito e dos institutos tradicionais do direito privado, a exemplo
da função social da propriedade. (GRINOVER, Ada Pellegrini. apud DIDIER
JUNIOR, Fredie; ZANETI JUNIOR, Hermes; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de.
Notas sobre as decisões estruturantes, p. 13 - 2017).

Nesse sentido, entende-se que não é o judiciário que se mantém ativo, ou que adota
um comportamento interventivo, mas os entes políticos que se apresentam omissos às suas
funções, necessitando que o Poder judiciário, apareça de maneira participativa, visando
garantir o cumprimento de um direito ou a efetivação de norma constitucionalmente garantida.
De modo que não se fala mais em inconstitucionalidade, haja vista que é função plenamente
típica do poder judiciário, garantir a execução das leis.
Muito mais se retira da interpretação da judicialização da política, pondo em análise o
sistema de freios e contrapesos que se propõe na separação dos poderes, ao trabalhar-se que
eles são independentes e harmônicos. Ora, pelo caráter de independência e freios, o judiciário
deve se ater as suas funções típicas e atípicas previstas, mas pelo viés do contrapeso e
harmonia o judiciário precisa se apresentar em casos de inércia dos demais, a fim de garantir
direitos.
Nesse contexto, a margem do decidível, aparece como linhas máximas e mínimas da
atuação do poder jurisdicional, delimitando normas e direitos que em casos de omissão
precisam da atuação garantista do poder judiciário, estabelecendo um parâmetro a partir de
um conjunto de normas, que em busca da segurança jurídica, necessitam ser efetivadas no
plano da realidade.
Nesse sentido, e em observância da perspectiva de constitucionalismo, e garantia da
constituição, a dinâmica entre as funções dos poderes se apresenta mais extensa:

As funções de garantia estão, desta forma, diferenciadas das funções de governo


porque atuam para a conformação da margem do decidível, colocando-lhe limites e
vínculos definidos pelos direitos fundamentais. Trata-se dos limites e vínculos
desenhados pela esfera do “não decidível que” (direitos de liberdade) e do “não-
decidível que não” (direitos sociais). A função de garantia, portanto, atua como
função contramajoritária, assegurando os limites e vínculos decorrentes do modelo
constitucional garantista. (FERRAJOLI, Luigi. apud DIDIER JUNIOR, Fredie;
ZANETI JUNIOR, Hermes; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Notas sobre as
decisões estruturantes, p. 13 - 2017).

Portanto, fica evidente o motivo pelo qual o tema ativismo judicial ou judicialização
da política é objeto de dissenso no meio jurídico, pois ao tempo da existência das diversas
teses e teorias que são adjacentes ao assunto, conta-se ainda, para problematizar, o aspecto
interpretativo que incide sobre as normas e leis que tratam tanto da atividade do Poder
judiciário quanto dos demais poderes.

4.2 Pondo prospectivas e retrocessos na balança

Apresenta-se sensato e tempestivo, em consequência dos pontos dissertados, e em


decorrência das diversas visões apresentadas acerca da temática de processos estruturais e
sentenças estruturantes, uma ponderação das possibilidades de existência jurídica do modelo
norte-americano, a fim de demarcar ou não a margem legal para a structural reform no
ordenamento jurídico brasileiro.
De maneira genérica, a realidade sistêmica do Poder judiciário brasileiro é diferente,
substancialmente, do judiciário norte-americano, os processos e procedimentos jurídicos
brasileiros e estadunidenses possuem suas peculiaridades. A base jurídica norte-americana é
o conhecido common law ou direito comum, o que fornece muito mais sustentabilidade e
viabilização para os processos estruturais.

A Common Law, ou conforme tradução, “direito comum”, é um ambiente muito


propício para o desenvolvimento desta figura, afinal como se pode depreender do
conceito este sistema é criado ou aperfeiçoado pelos juízes, uma decisão tomada em
determinado julgado está vinculada a decisões anteriormente prolatas. Este conjunto
de precedentes que vinculam as decisões é o que caracteriza a Common Law.
(PINHO, Humberto Dalla Bernardina; Cortês, Victor Augusto Passos Villani. p – 2,
[s.d]).
No contexto jurídico brasileiro não se tem o mesmo embasamento, pra dar
funcionalidade a strucural reform, o direito codificado, conhecido com Civil Law, não dá o
mesmo espaço de valorização para a jurisprudência que o direito comum, uma vez que nele
se valoriza o imperativo da escrita, ainda assim se acredita que em observação dos possíveis
benefícios dos processos estruturais, as sentenças estruturantes podem vir a ser uma realidade
no direito brasileiro.

O que se busca com as medidas estruturantes nada mais é que o melhor atendimento
das necessidades da sociedade. Como já se observa o poder de uma decisão judicial
é imensurável. Não seria melhor que o judiciário brasileiro pudesse contribuir de
forma efetiva para a modificação da sociedade, tornando o Brasil melhor a cada
sentença? Não, isto não é utopia. Através do estudo das decisões estruturais torna-
se claro que esta é uma realidade, basta implementá-la. (PINHO, Humberto Dalla
Bernardina; CORTÊS, Victor Augusto Passos Villani. p – 7, [s.d]).

Em continuação ao trato de “realidades”, além da perspectiva puramente jurídica, há


ainda o viés sócio-juridico, que de igual modo carece de ser apreciado. Nesse sentido outro
tema densamente discutido no meio científico é a teoria da cultura do litígio, em que se afirma
que todos os conflitos sociais, por mais ínfimos que sejam, são diretamente direcionados ao
jurisdicionado, e o grande alicerce dos que defendem a inexistência dessa realidade, ao tempo
que dizem ser algo natural, apontam também o princípio da inafastabilidade, de fato um
princípio discutível.
No entanto, em dados estatísticos amplamente sabidos, o Poder judiciário brasileiro se
encontra abarrotado de processos nas diversas fases, seja cognitiva ou recursal, e nas diversas
instâncias, pois não há crivo, restrições, ou a utilização de vias alternativas, que não a judicial,
para dirimir litígios.
Ainda sob a perspectiva da relação existente entre o poder judiciário e a sociedade,
defende-se que o de fato o poder judiciário, é o palco propício para a resolução de demandas
litigiosas, principalmente em decorrência das múltiplas naturezas de processo que chegam aos
olhos do judiciário.
Conforme, postula Humberto Pinho e Victor Cortês: “Entretanto, a sociedade desses
dias não comporta mais somente este tipo de decisão. O Poder Judiciário é alvo, diariamente,
de demandas cada vez mais complexas, e os cidadãos brasileiros clamam por decisões mais
eficazes.” (PINHO, Humberto Dalla Bernardina; CORTÊS, Victor Augusto Passos Villani, p
– 7, [s.d]).
Todavia, deixando o discurso revolucionário de lado, e se atendo de maneira objetiva
aos requisitos legais que qualquer procedimento jurisdicional está condicionado, constata-se
mais uma vez, de maneira detalhada os entraves do Civil Law.

Como já argumentado, o processo civil brasileiro é marcado por sua estrutura


binária. São processos judiciais típicos. O limite da atuação jurisdicional está ligado
ao pedido formulado, o princípio da demanda estabelece equivalência entre o pedido
da peça vestibular e a sentença. (PINHO, Humberto Dalla Bernardina; CORTÊS,
Victor Augusto Passos Villani, p – 7, [s.d]).

Adentrando ainda mais em leitura deste formato binário de processo judicial, constata-
se, por Humberto Pinho e Victor Cortês: “Perceba-se que o sistema binário de decisões que é
o vigente no processo civil brasileiro, certamente gerará decisão imprópria ao caso concreto.”
(PINHO, Humberto Dalla Bernardina; CORTÊS, Victor Augusto Passos Villani, p – 14, [s.d]).
Diversos são os autores que direcionam elogios e enaltecem os processos estruturais e
a efetividade das sentenças estruturantes, que é sem dúvida o maior avanço para um
ordenamento jurídico, pois a possibilidade de garantir o cumprimento das decisões judiciais
de maneira eficaz, e cada vez mais se alcançar a segurança jurídica, consta como preocupações
rotineiras dos incumbidos de resolver esse problema.
Para isso, acredita-se que se constitui imprescindível, a reformulação de diversos
pontos do processo para tratar de políticas públicas em processos judiciais, como exemplo a
busca pelo consenso, o fomento do diálogo, participação da coletividade em audiências
públicas, por exemplo; além de redução do potencial de recursos. (ARENHART, Sergio Cruz,
[s.d]).

E é fundamental mudar a mentalidade dos gestores da administração judicial, para


que possam perceber a importância desse tipo de litígio e oferecendo o devido valor
aos magistrados envolvidos (com sua necessária qualificação) e às próprias causas
(em estatísticas e na necessidade de se dar maior tempo à solução dessas
controvérsias. (ARENHART, Sergio Cruz. p – 18, [s.d]).

Outro problema reflexo e pragmático da aplicação dos modelos norte-americano em


comento, se dá que ao expandir-se mais as competências e criar novas medidas, além das já
existentes, para efetivação de uma sentença judicial, incidirá mais uma vez no ativismo
judicial, é conferir mais poderes a um único poder.

O ativismo é uma atitude, é a eleição de um modo proativo de interpretar a


Constituição, propagando seu sentido e extensão. Instalase em situações de
encolhimento do Poder Legislativo, onde ocorre um desajuste entre a esfera política
e a sociedade, inabilitando que as demandas sociais sejam atendidas de maneira
efetiva. Os problemas da sociedade atual requerem decisões com eficácia, o
ativismo mostra-se um fenômeno positivo quando atende as necessidades da
sociedade, o Poder Judiciário passa a ser a vis atrativa da qual em tempos outros o
Executivo e o Legislativo o seriam. (PINHO, Humberto Dalla Bernardina;
CORTÊS, Victor Augusto Passos Villani, p – 3, [s.d]).

Quando se fala em judicialização da política e segurança jurídica, percebe-se que o a


dicotomia existente (judicialização da política/ segurança jurídica) é mais complexa do que se
imagina, pois se por um lado ao efetivar normas se garante segurança, por outro, ao exercer a
prática da hermenêutica, produz-se por consequência, insegurança, haja vista que a prática
interpretativa possui uma margem, por vezes muito grande, de subjetividade. E como
supramencionado, o ativismo judicial parte, também, de um exercício de interpretação, das
normas constitucionais para satisfazê-las.
Resta elucidado o motivo pelo qual o assunto suscita tanta divergência de opiniões,
pois além das aberturas dele em si mesmo, depara-se com alguns outros temas de igual
polêmica e contrassenso que ainda não contam com conclusões ou ideias capazes de torná-los
resolutos.

CONCLUSÃO

Os processos e procedimentos judiciais bem como o controle de constitucionalidade,


são objetos de grandes cuidados e atenções pelos legisladores e doutrinadores, nas suas
respectivas áreas do direito, e não poderia ser diferente, pois é neles e por eles que desenvolve
todo conceito de jurisdição e, portanto atuação de um importante poder estatal.
Prova disso, que em 2015 foi publicado um novo código, renovador e completamente
repensado nos diversos pontos processuais, pela constante que se retirar das mudanças do
código de processo civil, se deduz que a cada vinte e cinco ou trinta anos, existirá um novo
código de processo civil, enquanto, por exemplo, o código penal é o mesmo desde a década
de quarenta.
No Brasil, em conhecimento da teoria do ordenamento jurídico adotada, não é possível
falar sobre um de seus códigos e não desaguar pelo menos na Constituição Federal, senda esta
a norma no topo da pirâmide, e que portanto, é fundamento de validade para todas as outras
normas.
A Carta Magna brasileira não valida apenas códigos e normas, mas também leis e
princípios, além de teorias que possam ser deduzidas da leitura de sua parte material, como
por exemplo, a teoria da separação dos poderes, mencionado na pesquisa em comento. Nesse
sentido, sempre que se pensar em mudanças revolucionárias em um código ou em uma área
do direito, certamente alguma perspectiva constitucional precisará ser reformulada.
Uma das grandes preocupações a cerca da segurança jurídica, outro ponto correlato ao
tema, serve-se de iguais cuidados e atenção, uma vez que não há controle social sem efetivação
de decisões judiciais, não há garantia de que direitos serão satisfeitos se as sentenças não
forem estruturantes.
Nesse sentido, não pode se negar ao modelo norte-americano de structutral reform,
sua importância para a segurança jurídica, uma vez que no ponto das efetivações das normas
e decisões, tal modelo se apresenta incisivo.
Entretanto, ao pensar de maneira analítica e panorâmica, restarão observados as
demais “vírgulas” e “porém” do problema, pois ao considerar todos os pontos ad e
subjacentes, ficará concluso as barreiras normativas e pragmáticas no que se refere ao espaço
dos processos estruturais no judiciário brasileiro.
Quando se pensou em separar os poderes do Estado, tinha-se em mente democratizar,
é o famoso “dividir para conquistar”, ou seja, enfraquecer com a cisão dos poderes, que uma
vez cindidos garantiram reflexivamente o que conhecemos como Estado democrático de
direito, foi o fim das amarras de governos monárquicos e oligárquicos.
Sendo assim um grande retrocesso para a ciência jurídica, pensar que em casos de
omissão dos demais poderes, o judiciário se encarregue de legislar e administrar. Não parece
uma medida de controle ou muito menos garantia, “passar a bola para o outro” sempre foi
uma tentativa de se eximir de deveres, e aceitar que assim o seja, é negligenciar soluções
viáveis. É preguiçoso.
Este é o ponto central das críticas ao empoderamento do judiciário, de um modo geral
e no presente trabalho. Centralizar novamente, com justificativas de garantia e satisfação de
normas, não é satisfatório para democracia nem para a constituição.
No entanto, sem dúvida, em face da complexidade das demandas, litígios e omissões
políticas, mecanismos precisam ser criados e apontados, algo externo ao “freio e contra pesos”
que existe entre os poderes. Pois a concepção de harmonia e independência não comporta
mais a realidade social e jurídica contemporânea, pois em palavras do saudoso Zygmunt
Baumman, “vivemos tempos líquidos”.
Conforme dissertado, os modelos de decisões estruturantes e processos estruturais
necessitam de algumas mudanças na jurisdição brasileira, no entanto reformular
procedimentos e atribuições dos magistrados bem como princípios, é uma esfera de dimensão
constitucional, pois as mudanças almejadas para o processo, em observância de sua proporção,
incidirão em pontos de constitucionalidade, como exemplo: competência.
Ainda que considerando a importância dos processos estruturais e sentenças
estruturantes para o direito de modo geral e para o garantismo constitucional, deve-se aceitar
que a realidade de civil law e o constitucionalismo brasileiro não sustenta tal modelo em sua
completude; haja vista que já se nota traços de decisões estruturantes em algumas sentenças
já prolatadas pelo judiciário brasileiro.
Portanto, considerando os contra pontos aos processos estruturais e decisões
estruturantes apresentados até aqui, apresenta-se possível que concluir que em face da
estrutura jurídica e processual do Brasil, medidas para sanar problemas inerentes à segurança
jurídica e omissão de políticas, precisam sem pensadas com originalidade, se adequando ao
ordenamento e em consequência a constituição.
Não parece impossível, por exemplo, adotar a ideia de que demandas que versem sobre
omissão de políticas públicas sejam apreciadas pelo Tribunal de Contas, haja vista que para
realização de políticas públicas são afetados todos os anos orçamentos específicos que
“vagam” sem serem direcionados para a atividade designada.
O Tribunal de Contas é um órgão autônomo, relacionando-se de maneira auxiliar com
o Poder legislativo, não faz parte, portanto, da estrutura administrativa de nenhum dos três
poderes, e ainda ter-se-ia um tribunal, auxiliar do Poder legislativo, fiscalizando e
regulamentando o Poder executivo.
Nesse sentido, há mecanismos e formas internas no direito brasileiro, para sanar os
mesmo problemas, necessitando apenas de ajustes, como o já mencionado Tribunal de Contas,
e as vias administrativas que podem dispor de mais autonomia para dissolução de conflitos,
não necessitando direcionar ao judiciário, sendo assim, resolve-se problemas sem criar outros.

REFERÊNCIAS

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do caso da ACP do carvão – [s.l] – [s.d].

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GRINOVER, Ada Pellegrini. Seoul Conference 2014 – Constitution and proceedings – The
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PINHO, Humberto Dalla Bernardina; CORTÊS, Victor Augusto Passos Villani. As medidas
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Stricto Sensu em Direito Processual da UERJ, Rio de Janeiro, [s.d] ISSN 1982-7636.

JOBIM, Marco Felix. A previsão das medidas estruturantes no artigo 139, IV, do novo Código
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JR. (coord.) Salvador: Editora Juspodivm, 2016.

LIMA, Edilson Vitorelli Diniz. Tipologia dos litígios transindividuais: um novo ponto de
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Colorado. Law Review. v. 73, set. 2002, p.37.

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STRECK, Luiz Lênio; NUNES, Duerle. Como interpretar o artigo 139, IV, do CPC? Carta
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Jusbrasil, [s.l], 2015. Disponível em: <
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LUGARES DE MEMÓRIA E O PRINCÍPIO DA IMPESSOALIDADE NA
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA 301

Gilson José Julião302

RESUMO

Teremos o desafio nesta pesquisa de articular duas ciências que são o Direito e a História,
pois, entendemos que as relações entre História e Direito podem dialogar, sendo o Direito um
campo de pesquisa histórico e a História como contribuição ao avanço do Direito. A tarefa de
articular o conceito de Lugares de Memória oriundo do campo historiográfico e o Princípio
da Impessoalidade advindo do Direito Administrativo é nosso objeto de estudo e temos como
objetivo discutir o surgimento de Lugares de Memória como um fato histórico e político que
fere o Princípio da Impessoalidade. Com esta relação entre a Ciência Histórica e as Ciências
Jurídicas é possível mapear as potencialidades da historiografia como campo de pesquisa do
Direito (SILVA/2011) e neste contexto os Lugares de Memória poderão se tornar fontes de
pesquisa para o campo jurídico. Para tanto, iremos, no decorrer deste, artigo demonstrar que
esta articulação de duas ciências traz uma grande oportunidade de estudo sobre fatos históricos
que influenciam no campo do Direito.

Palavras-chave: Lugares de Memória, Direito Administrativo, Princípio da Impessoalidade.

INTRODUÇÃO

Trabalhos e pesquisas que contemplem História e Direito como mesmo objeto de


estudo ainda são recentes no mundo acadêmico e isto faz com que tenhamos curiosidade para
desenvolver um estudo que faça a junção destas duas ciências para que possa servir como
norte para outras pesquisas. A Escola dos Annales, importante corrente historiográfica que
modificou a forma de pensar a história, trouxe novos paradigmas para abordagens históricas,
pois, esta ciência passou a dialogar com outras áreas como a Sociologia, Filosofia,
Antropologia e o Direito. Desta última surgiram os primeiros trabalhos “que contemplam as
fontes judiciais como objeto de análise” (FREITAS/2015).
Neste trabalho teremos como objeto estudar a articulação do conceito de Lugares de
Memória, oriundo do campo historiográfico e o Princípio da Impessoalidade, advindo do
Direito Administrativo, tendo como objetivo a análise do surgimento de Lugares de Memória
como um fato histórico e político que fere o Princípio da Impessoalidade. Ou seja, nas
pesquisas preliminares que fizemos percebemos que existem trabalhos onde a fonte de estudo

301
GT 8 – Estudos Contemporâneos em Direito Público e Processo
302
Graduado em história pela UEPB com especialização em Direito da Infância pela UFRPE e estudante do
curso de Direito da UNIFAVIP. E-mail: gilsonjuliao10@gmail.com.
da História é o Direito, como percebemos nos trabalhos de Felipe Berté Freitas e Jeanne Silva,
que tem o Direito como campo de pesquisa histórica. Para este trabalho utilizaremos da mesma
metodologia, mas revertendo o ponto de partida que é o Direito buscando na fonte histórica
as repostas para chegarmos aos resultados esperados, ou seja, teremos a História como campo
de pesquisa do Direito.
Neste contexto, o objeto deste trabalho é buscar as potencialidades do diálogo crítico
e intelectual entre Direito e História, e os cuidados teóricos e metodológicos que o produtor
de conhecimento deve ter ao pesquisar esses campos científicos, tomando como base para o
debate o estudo envolvendo o surgimento de Lugares de Memória e a possível infração do
Princípio da Impessoalidade nos atos da administração pública.
Para o desenvolvimento da pesquisa no primeiro momento, conceituaremos a partir do
historiador Pierre Norra o que se entende por Lugares de Memória, em seguida trataremos
sobre o Princípio da Impessoalidade por meio dos doutrinadores do Direito Administrativo:
Celso Antônio Bandeira de Mello, Helly Lopes Meirelles e Maria Sylvia Zanella Di Pietro e
do constitucionalista Gilmar Mendes, mostrando a relação entre o surgimento de Lugares de
Memória e o não cumprimento do Princípio da Impessoalidade.

1 CONCEITUANDO LUGARES DE MEMÓRIA

Para melhor compreender esta pesquisa, vamos utilizar da categoria Lugares Memória,
criada pelo historiador francês Pierre Norra, pois consideramos importante essa discussão para
mostrar como esses lugares foram sendo construídos para legitimar a memória de figuras que
são atores principais no cenário da política. Para Pierre Norra:

Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória


espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários,
organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas
operações não são naturais (NORA/1993/p.13).

Longe de ser um produto espontâneo e natural, os Lugares de Memória são uma


construção histórica e o interesse em seu estudo vem, exatamente, de seu valor como
documentos e monumentos reveladores dos processos sociais, dos conflitos, das paixões e dos
interesses que, conscientemente ou não, são espaços onde a ritualização de uma memória
ressuscita a lembrança, fazendo, desta forma, com que se imortalize a vida.
Os Lugares de Memória podem ser determinados por este critério: "(...) só é lugar de
memória se a imaginação o investe de uma aura simbólica [...] só entra na categoria se for
objeto de um ritual" (NORRA/1993/p.21). Esse cuidado de Norra com a ritualização da
memória faz com que observemos os desempenhos que os rituais exercem nas sociedades.
Levando em consideração o que já foi exposto acima sobre Lugares de Memória
podemos compreender como espaços físicos ou simbólicos que são erguidos em nome de
determinada figura política fazendo com que este se torne imortalizado no imaginário social.
Um Lugar de Memória, para Norra, vai do objeto material e concreto, um artefato, uma
paisagem, até o objeto mais abstrato e construído intelectualmente. Pode ser um monumento,
uma praça, uma escola, uma instituição, uma data comemorativa, o nome de uma rua, avenida
ou rodovia, uma unidade de saúde, ou seja, a nomeação de determinado espaço público em
nome de determinado projeto, identidade e de uma cultura política específica sempre
representada na figura de uma pessoa que, na maioria das vezes, faleceu, mas antes disso foi
ator político importante e que tenha uma ideia mobilizadora de uma ação política.
Para entender melhor este conceito, vamos apresentar duas figuras políticas que já
foram objetos de estudos a partir do erguimento de Lugares de Memória em seus nomes logo
após suas mortes, que são: a figura do ex-prefeito da cidade de Santa Cruz do Capibaribe,
Padre Zuzinha, que faleceu em 1983, e do líder político paraibano João Pessoa, falecido em
1930. Além destes, que já foram objeto de estudo, o primeiro em um trabalho monográfico de
nossa autoria e o segundo através de dissertação de autoria do professor Drº José Luciano de
Queiroz Aires, abordaremos os Lugares de Memória instaurados após a morte do Governador
de Pernambuco Eduardo Campos a partir de 2014.
A partir de 1983, com a morte de Padre Zuzinha, foram erguidos diversos Lugares de
Memória como a Rua Manoel Borba, conhecida como Rua Grande, passa a se chamar Avenida
Padre Zuzinha, onde está localizada a Igreja Matriz da cidade de Santa Cruz do Capibaribe/PE,
os bancos, a sede da prefeitura, o marco zero e onde ocorrem os principais eventos e festejos
da cidade. No final desta avenida foi construída uma estátua com sua imagem. O mausoléu
onde foi sepultado o Padre Zuzinha é uma réplica da Igreja Matriz da cidade. A escola por ele
fundada em 1972, com o nome de “31 de Março”, passou a ser Escola Padre Zuzinha. O dia
de sua morte, 05 de outubro, se tornou feriado municipal. No campo social foi criada a
Fundação Beneficente Padre Zuzinha. E para homenagear figuras “ilustres” da sociedade,
instituíram uma medalha com seu nome (JULIÃO/2010).
Desse modo, observamos que após o seu falecimento foi criado, por meio dos Lugares
de Memória, um capital simbólico que contribuiu para o fortalecimento de imagens que fazem
dele um mito político capaz de mobilizar todo um município em torno de sua figura, ou
melhor, fortaleceu atores políticos que promoveram a figura do ex-prefeito fazendo com que
o grupo que era liderado por ele ficasse 24 anos à frente do poder local (JULIÃO/2010).
De maneira similar e de forma nacionalizada ocorreu com a figura política do
paraibano João Pessoa, conforme mostrado em pesquisa realizada pelo professor Drº José
Luciano de Queiroz Aires que detectou que das vinte e seis capitais brasileiras, apenas em sete
delas não foi encontrado uma rua com o nome João Pessoa. É destacado ainda a substituição
de nomes de ruas, praças, avenidas e povoados pelo nome de João Pessoa de norte a sul do
país. Foi instituído o dia 26 de julho como feriado em toda estado da Paraíba em virtude de
ser o dia de sua morte. Foi construído um monumento em sua homenagem no cemitério São
João Batista no Rio de Janeiro, local de seu sepultamento. Em setembro de 1930 a Assembleia
Legislativa da Paraíba muda o nome da capital paraibana para João Pessoa, a mudança na
bandeira com as cores rubro-negra, onde o preto representava o luto devido a morte e o
vermelho seria o sangue derramado por João Pessoa com a inscrição Nego que seria uma
negativa deste ao então presidente do Brasil Washington Luiz (AIRES/2006).
Se com a instituição de Lugares de Memória em torno da figura política de Padre
Zuzinha foi possível fortalecer seu grupo político, fazendo com que este grupo ficasse no
poder local pelo período de 24 anos ininterruptos à frente do comando da prefeitura de Santa
Cruz do Capibaribe, com a apropriação da memória de João Pessoa objetivou a legitimação
da tomada do poder nacional pela Aliança Liberal, que colocou na presidência da república,
através de um golpe civil-militar, Getúlio Vargas, então aliado de João Pessoa.
Outro exemplo de surgimento de Lugares de Memória são os ocorridos após a morte
do Governador de Pernambuco, Eduardo Campos, que não temos conhecimento de estudos
sobre este, porém faremos uma breve análise através da pesquisa em legislações e matérias
em blogs, para que possamos compreender melhor o conceito ora abordado e em seguida
inclui-lo como fator de possível descumprimento do princípio da Impessoalidade na
Administração Pública.
Por meio da Lei do Estado de Pernambuco nº 15.396 de 04 de novembro de 2014, ou
seja, poucos meses depois da morte de Eduardo Campos, foi colocado seu nome no novo
Complexo Turístico Portuário, constituído pelo Porto do Recife, Terminal de Passageiros,
Museu Cais do Sertão e Centro de Artesanato de Pernambuco (PERNAMBUCO, 2014).
Além deste, que se deu logo após sua morte, outros espaços se ergueram em
homenagem a Eduardo Campos, tendo como principal instituidor desses lugares a Assembleia
Legislativa de Pernambuco. De 2014 para cá foram oito leis que deram alusão a seu nome,
que são: nomeou Ramal Viário Governador Eduardo Campos, a via de acesso entre a BR-408
no Município de São Lourenço da Mata, e a Avenida Belmino Correia, no Município de
Camaragibe (PERNAMBUCO, 2014); a que denomina de Empresa de Turismo de
Pernambuco Governador Eduardo Campos - EMPETUR, a Empresa de Turismo de
Pernambuco (PERNAMBUCO, 2014); duas adutoras levam seu nome que são a Adutora do
Agreste (PERNAMBUCO, 2014) e a Adutora do Siriji (PERNAMBUCO, 2015); foram
denominadas as escolas técnicas estaduais Governador Eduardo Campos na cidade de São
Bento do Una e no Município de São Lourenço da Mata (PERNAMBUCO, 2015); rodovias
que levam seu nome no trecho da PE130 que liga o Município de Custódia ao Município e
Iguaracy (PERNAMBUCO, 2015), no trecho da PE 123, que oferece ligação rodoviária entre
o Município de Sanharó ao Distrito de Xucuru, no Município de Belo Jardim, no Agreste
Pernambucano (PERNAMBUCO, 2016), e a rodovia PE-009, no trecho específico entre a
Rodovia PE- 072/Praia dos Carneiros e a Rodovia PE-076/Tamandaré (PERNAMBUCO,
2017); além do teleférico no município de Bonito (PERNAMBUCO, 2015); Hospital Geral
Governador Eduardo Campos, o Hospital Geral do Sertão que virá a ser construído no
Município de Serra Talhada (PERNAMBUCO, 2017); e do novo plenário da referida
assembleia que passou a se chamar Plenário Eduardo Campos (PERNAMBUCO, 2017).
Em relação ao nível municipal, prefeitos também tiveram preocupação em nomear
seus espaços com o nome do ex-governador, sendo o caso mais emblemático o da cidade de
Serrita, onde a sede do governo local passou a se chamar Eduardo Campos conforme matéria
veiculada no Portal PE. Na capital pernambucana foi colocado o nome de Eduardo Campos
em um dos COMPAZ (Centro Comunitário da Paz) que é um dos programas de maior
visibilidade do prefeito Geraldo Júlio, que foi colocado na prefeitura através das “mãos” do
governador falecido (RECIFE, 2016). Ainda nesta cidade foi construída uma UPA (Unidade
de Pronto Atendimento) (RECFE, 2015) e uma creche escola (RECFE, 2015).
Todas essas denominações em favor de Eduardo Campos foram realizadas por
correligionários seus no intuito de que sua memória persista através de lugares erguidos em
seu nome. Isto faz com que o seu grupo político permaneça à frente do poder e, em especial o
Governo do Estado de Pernambuco e o Governo da Cidade do Recife, que são governados
respectivamente por seus “afilhados” políticos Paulo Câmara e Geraldo Júlio.
Portanto, ao conceituar Lugares de Memória tendo estas três figuras políticas como
exemplo, entendemos que estes espaços servem para hegemonizar grupos políticos sendo isto
feito na maioria das vezes de forma oficial e institucionalizada.

PRINCÍPIO DA IMPESSOLIDADE E LUGARES DE MEMÓRIA


O Princípio da Impessoalidade é um dos cinco princípios norteadores da administração
pública que junto com os princípios da legalidade, moralidade, eficiência e publicidade
formam a base de sustentação do Direito Administrativo. Estes se encontram elencados no
artigo 37 da Constituição Federal, por isso também são considerados princípios
constitucionais da administração pública, conforme destaca Gilmar Mendes.

Por princípio da impessoalidade entende-se o comando constitucional, no sentido


de que à Administração não é permitido fazer diferenciações que não se justifiquem
juridicamente, pois não é dado ao administrador o direito de utilizar-se de interesses
e opiniões pessoais na construção das decisões oriundas do exercício de suas
atribuições (MENDES, 2014, p. 1049).

Como destacado acima pelo constitucionalista percebemos que o Princípio da


Impessoalidade é um “comando constitucional” e feri-lo é um ato de descumprimento não só
de um princípio, mas, sobretudo, da Carta Magna que deve ser inviolada. Gilmar Mendes
ainda conceitua a impessoalidade como relevância jurídica no sentido de que não importa a
“posição pessoal do administrador (...), pois a vontade do Estado independe das preferencias
subjetivas (...) da própria Administração” (MENDES, 2014, p.1050).
Para Rafael Carvalho Rezende Oliveira o princípio da impessoalidade possui duas
linhas de entendimento que são: a igualdade (ou isonomia) e a proibição de promoção pessoal.
A primeira acepção diz respeito ao dever da administração pública de “dispensar tratamento
impessoal e isonômico aos particulares, sendo vedada a discriminação odiosa ou
desproporcional.” (OLIVEIRA, 2013, p.97) Mas, para nosso estudo o que mais importa é a
segunda linha, que trata sobre a proibição de promoção pessoal nos atos da administração
pública, e neste sentido Oliveira destaca que:

As realizações públicas não são feitos pessoais dos seus respectivos agentes, mas,
sim, da respectiva entidade administrativa. Por essa razão, é vedado ao agente
público utilizar a função pública para satisfazer os seus interesses pessoais. A
atuação do agente deve ser pautada pela efetivação do interesse público e deve ser
imputada ao Estado. (OLIVEIRA, 2013, p.99)

Levando no contexto desta afirmativa conceitual sobre o Princípio da Impessoalidade


para o nosso objeto de estudo, notamos que quando se institui Lugares de Memória em favor
de determinada figura política, a impessoalidade é ferida nos atos administrativos, pois
posições pessoas do administrador e legislador são recorrentes quando faz escolhas pessoais
para nomear praças, ruas, avenidas, rodovias ou qualquer outro, como descrevemos nos casos
dos atores políticos Padre Zuzinha, João Pessoa e Eduardo Campos.
Colocando o olhar sobre o artigo 37, §1º da Constituição Federal que fala sobre outro
princípio, o da publicidade, mas com total significado aliado ao princípio da impessoalidade,
quando define que a publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos
públicos não podem constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal
de autoridades, ou seja, esse princípio deve ser entendido para excluir a promoção pessoal de
autoridades sobre suas realizações administrativas. (MEIRELLES, 2009, p. 93).
No caso dos Lugares de Memória em favor do líder político santa-cruzense Padre
Zuzinha é notório que os atos, programas, obras, serviços e campanhas vão de encontro ao
Princípio da Impessoalidade. É oportuno destacar que o Padre em si não foi o responsável
pela recusa a impessoalidade, pois no momento que foram realizados atos, programas, obras,
serviços e campanhas com seu nome este já era falecido, mas sua memória instituída por meio
destes espaços favoreceu o grupo político que era ligado ao Padre Zuzinha, fazendo com que
seu grupo político permanecesse por mais de 24 anos à frente do comando do poder local.
No caso de João Pessoa os Lugares de Memória erguidos em seu nome mostram que
o intuito era de separar os que o defendiam e os que o rejeitavam. Como destacamos ao
analisar estes lugares, fica claro que tinha um objetivo de justificar ações políticas como foi o
caso do golpe civil-militar de 1930, que depois da morte de João Pessoa colocou-se na
Presidência da República um aliado seu, o então presidente Getúlio Vargas que ficou no
comando do poder central por 15 anos de forma contínua. Temos neste caso mais uma situação
que rejeita a impessoalidade, pois o “favoritismo” da figura de João Pessoa facilitou a
permanência de seus aliados no poder. Sobre isto, Celso Antônio Bandeira de Mello destaca
que.

Simpatias ou animosidades pessoais, política ou ideológicas não podem interferir na


atuação administrativa e muito menos interesses sectários, de facções ou grupos de
qualquer espécie (MELLO, 2003, p.104).

Esta passagem sobre o Princípio da Impessoalidade só vem a reforçar o que estamos


pesquisando, que as práticas administrativas promovidas por quem se encontra no polo de
poder são realizadas sem levar em consideração este preceito constitucional fundamental para
o Estado Democrático de Direito.
Neste sentido, foi proferido o julgado no Supremo Tribunal Federal recurso
extraordinário em face de acórdão do Tribunal Regional Federa da 5ª Região assim ementado:
“EMENTA: Publicidade de atos governamentais. Princípio da impessoalidade. Art. 37,
parágrafo 1º, da Constituição Federal. 1. O caput e o parágrafo 1º do artigo 37 da Constituição
Federal impedem que haja qualquer tipo de identificação entre a publicidade e os titulares dos
cargos alcançando os partidos políticos a que pertençam. O rigor do dispositivo constitucional
que assegura o princípio da impessoalidade vincula a publicidade ao caráter educativo,
informativo ou de orientação social é incompatível com a menção de nomes, símbolos ou
imagens, aí incluídos os slogans, que caracterizem promoção pessoal ou de servidores
públicos. A possibilidade de vinculação do conteúdo da divulgação com o partido político a
que pertença o titular do cargo público mancha o princípio da impessoalidade e desnatura o
caráter educativo, informativo ou de orientação que constam do comando posto pelo
constituinte dos oitenta. (STF - RE: 1091879 CE - CEARÁ 0000291-18.2007.4.05.8103,
Relator: Min. EDSON FACHIN, Data de Julgamento: 01/08/2018, Data de Publicação: DJe-
156 03/08/2018).
É oportuno destacar que estamos trazendo duas figuras políticas para o campo deste
trabalho que tiveram seus nomes estampados nos logradouros públicos antes da Constituição
Federal de 1988, que foram Padre Zuzinha e João Pessoa. Deste modo, não podemos falar
necessariamente que houve um ferimento por parte de seus aliados, tendo em vista que
ocorreram antes do princípio entrar em vigor, pois esta norma não retroage no tempo.
Destacamos também que não pretendemos cometer anacronismos históricos ao analisar atores
políticos num tempo em que o Princípio da Impessoalidade ainda não estava posto. A escolha
destes se deu devido os mesmos já terem sido objeto de estudo do conceito de Lugares de
Memória em outros trabalhos.
Nestes termos e para endossar nossa opinião destacamos decisão em sede do Superior
Tribunal de Justiça, em agravo de instrumento, na decisão monocrática do Relator Ministro
Humberto Martins, julgado em 27 de novembro de 2009, que decidiu sobre e da seguinte
forma: “Lei Municipal que, em 1979, conferiu a estádio local o nome da pessoa que à época
exercia o cargo de prefeito. Ato jurídico perfeito, diante do decurso de longo espaço de tempo
entre a edição do ato legislativo/administrativo e o ajuizamento da ação pública. (...) Não há
como ser revogada uma leu, passados quase trinta anos, sob o fundamento de que a ocorrência
de vício desde a origem do ato legislativo a tornaria irregular de pleno direito”.
No caso do ex-governador Eduardo Campos podemos atribuir os Lugares de Memória
como atos e práticas que insurgem contra o Princípio da Impessoalidade, pois aconteceram e
acontecem no tempo e espaço de vigor da norma constitucional ferido assim este preceito
administrativo.
Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, o Princípio da Impessoalidade “estaria
relacionado com a finalidade pública que deve nortear toda a atividade administrativa”
(PIETRO, 2013, p.68) ou seja, a finalidade pública deve inclinar-se para o interesse público.
Por meio deste preceito consideramos para tomar apenas um como exemplo de
Lugares de Memória, que a mudança do nome do Aeroporto Internacional Gilberto Freyre
para Eduardo Campos não pode ser visto como algo de interesse público, pois tem o intuito
tão somente de preservar a memória deste e fazendo com que cultura política do grupo aliado
ao ex-governador permaneça forte utilizada do aparato administrativo para continuar erigindo
“monumentos” em abundância, ficando longe, deste modo, da preservação do Princípio da
Impessoalidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta pesquisa foi possível dissertar sobre os Lugares de Memória e o Princípio da


Impessoalidade onde inicialmente falamos sobre a relação entre as Ciências Históricas e as
Ciências Jurídicas.
Em seguida mostramos o conceito histórico de Lugares de Memória levantando dados acerca
da forma como foram construídos estes espaços tomando como exemplo as figuras políticas
de Padre Zuzinha e João Pessoa, que já foram objetos de estudo em outras pesquisas e o ator
político Eduardo Campos como uma situação mais atual de erguimentos de Lugares de
Memória.
Tratamos ainda sobre os conceitos do Princípio da Impessoalidade oriundo do Direito
Administrativo e de que forma ele vem sendo infringido com a construção de Lugares de
Memória, sempre em nome de figuras políticas que após seu falecimento passaram a
denominar lugares como praças, ruas, avenidas, rodovias e “monumento” públicos que tem o
intuito de fortalecer determinados grupos de poder.
Por fim, este artigo não tem a intenção de ser um produto finalizado, pois ele tem o
intuito de nortear e instigar outras pesquisas que estejam relacionadas à História e ao Direito,
sendo este fonte daquela ou visse e versa.

REFERÊNCIAS

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“Revolução de 30” na Paraíba. João Pessoa, 2006. Dissertação (Mestrado) – UFPB/
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MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 15ªed. São Paulo:
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MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 35ªed. São Paulo: Malheiros,
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MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de Direito Constitucional.


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Governador Eduardo Henrique Accioly Campos o trecho da PE-310, que liga o
Município de Custódia ao Município de Iguaracy, passando pelo Distrito de Quitimbu,
em Custódia. Diário Oficial do Estado de Pernambuco – Poder Executivo, Recife, 14 de abril
de 2015. Disponível em: <http://200.238.105.211/cadernos/2015/20150414/1-
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Governador Eduardo Campos, o equipamento de mobilidade turística localizado no
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PERNAMBUCO. Lei Ordinária Nº 15.559, de 25 de agosto de 2015. Denomina de Escola


Técnica Estadual Governador Eduardo Campos, a Escola Técnica, no Município de São Bento
do Una. Diário Oficial do Estado de Pernambuco – Poder Executivo, Recife, 26 de agosto de
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Técnica Estadual Governador Eduardo Campos, a Unidade Estadual de Ensino Técnico
do Município de São Lourenço da Mata. Diário Oficial do Estado de Pernambuco – Poder
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PERNAMBUCO. Lei Ordinária Nº 15.642, de 11 de novembro de 2015. Denomina de


Adutora do Siriji Governador Eduardo Campos, a adutora do Distrito de Murupé, no
Município de Vicência. Diário Oficial do Estado de Pernambuco – Poder Executivo, Recife,
11 de novembro de 2015. Disponível em:
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PERNAMBUCO. Lei Ordinária Nº 15.964, de 23 de dezembro de 2016. Denomina de


Rodovia Governador Eduardo Campos o trecho da PE 123, que oferece ligação
rodoviária entre o Município de Sanharó ao Distrito de Xucuru, no Município de Belo
Jardim, Agreste Pernambucano. Diário Oficial do Estado de Pernambuco – Poder
Executivo, Recife, 24 de dezembro de 2016. Disponível em: <
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“Governador Eduardo Campos” o Plenário localizado no Edifício Miguel Arraes de
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Governador Eduardo Campos, a rodovia PE-009, no trecho específico entre a Rodovia
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Hospital Geral Governador Eduardo Campos, o Hospital Geral do Sertão que virá a ser
construído no Município de Serra Talhada, localizado no Sertão Pernambucano. Diário
Oficial do Estado de Pernambuco – Poder Executivo, Recife, 07 de setembro de 2017.
Disponível em: <http://200.238.105.211/cadernos/2017/20170907/1-
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Portal PE10. Disponível em <http://portalpe10.com.br/noticias/8018/em-serrita-paulo-
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RECFE. Lei Ordinária Nº 18.216, de 11 de março de 2016. Denomina COMPAZ


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SILVA, Jeanne. Relações entre história e direito: o direito como campo de pesquisa histórica
e a história como contribuição ao avanço do direito. Projeto Histórico: Revista do Programa
de Estudos Pós-Graduados de História, [S.1], v.41, ago. 2011. ISSN 2176-2767. Disponível
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STF - RE: 1091879 CE - CEARÁ 0000291-18.2007.4.05.8103. Relator: Ministro EDSON


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STJ. AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 1.227.088 - MG 2009/0140275-8. Relator: Ministro


Humberto Martins. DJ: 03/12/2009. JusBrasil, 2009. Disponivel em:
<https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/6576201/ag-1227088?ref=topic_feed>. Acesso
em: 14 set. 2018.
A CONCESSÃO LIMINAR INAUDITA ALTERA PARTE DA TUTELA DE
EVIDÊNCIA FUNDADA EM PRECEDENTE VINCULANTE: análise da possível
inconstitucionalidade303

Larissa Dourado de Oliveira304


Bruna Maria Jacques Freire de Albuquerque305

RESUMO

O presente artigo tratará da possibilidade da concessão liminar inaudita altera parte da tutela
de evidência fundada em precedente vinculante, questão essa tratada na Lei nº 13.105/15
(Novo Código de Processo Civil). O legislador, motivado pela atual situação do Poder
Judiciário brasileiro que se encontra imerso no volume infindável de processos, decidiu
promover maior celeridade ao sistema a fim de torná-lo mais efetivo e assim inseriu no
ordenamento jurídico brasileiro o mecanismo de concessão de tutela de evidência em caráter
liminar inaudita altera parte. Portanto, tem-se como problemática: A concessão de tutela de
evidência em caráter liminar, que veio como forma de celeridade processual, fere ao princípio
do contraditório e da segurança jurídica? Outrossim, tem-se como objetivo geral analisar se
há divergência de princípios no tocante ao fato da referida possibilidade de concessão da tutela
de evidência em caráter liminar inaudita altera parte efetivar o princípio da celeridade mas,
por outro lado, ferir o princípio do contraditório e da segurança jurídica. A metodologia
utilizada é a exploratória, e a técnica empregada é a pesquisa bibliográfica. Sendo assim,
torna-se válido debater o tema aqui exposto, visto que se trata de instrumento que pode ferir
a Carta Maior, a qual interessa a todos os cidadãos, os destinatários.

Palavras-chave: Tutela de evidência. Liminar inaudita altera parte. Princípios


constitucionais.

INTRODUÇÃO

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 compõe o ordenamento


jurídico brasileiro com superioridade hierárquica, a qual deve sempre ser respeitada e
observada por todo o arcabouço normativo. Outrossim, ao se configurar uma norma
infraconstitucional, esta deve sempre estar em consonância com a Carta Magna que de um
modo geral é constituída por princípios, direitos fundamentais e normas de organização dos

303
Artigo submetido ao GT 8 – Estudos Contemporâneos de Direito Público e Processo, do III Congresso
Pernambucano de Ciências Jurídicas - UPE - Arcoverde.
304
Advogada, Graduada em Direito pela ASCES-UNITA, Pós-graduanda em Direito Civil e Direito Processual
Civil pela UNIFAVIP/WYDEN, E-mail: larissa_dourado@hotmail.com
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Advogada, Doutora em Direito do Trabalho e Trabalho Social e Mestra em Direitos Humanos pela
Universidade de Salamanca – Espanha – USAL, Especialista em Processo Civil pela Universidade Federal de
Pernambuco – UFPE, Especialista em Direito do Trabalho, Direito Ambiental e em Ciências Políticas pela
Universidade de Salamanca – Espanha – USAL, Professora da Autarquia do Ensino Superior de Garanhuns-
AESGA/FDG e da UNIFAVIP/WYDEN, Conselheira da Subseção Regional de Garanhuns da OAB-PE, E-mail:
brunamariaj@gmail.com
poderes. Tratando, dessa forma, do princípio da Supremacia da Constituição do qual decorre
toda a hierarquia das normas (KELSEN, 2011, p. 54).
Nesse sentido, tendo em vista que a sociedade está em constante mutação e com isso
a legislação também tem que se adequar a tais mudanças, então torna-se necessário, portanto,
modificar ou aditar a Constituição Federal para ajustá-la as inovações que surgirem. Nessa
esteira, percebeu o legislador que estava ocorrendo um crescimento exacerbado das demandas
no judiciário e com o intuito de diminuir esse número crescente, editou a Emenda
Constitucional nº 45/2004, a qual ficou conhecida como Reforma do Judiciário, instituindo
assim mecanismos alternativos a fim de reduzir consideravelmente as ações da referida seara.
Dentre os novos instrumentos introduzidos no ordenamento jurídico incluiu-se a Súmula
vinculante, a reclamação constitucional para a preservação da competência ou a garantia da
autoridade das decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e a repercussão geral, filtrando
assim os percursos das demandas para este órgão.
Porém, após quatorze anos da referida emenda, o Poder judiciário não alcançou o seu
objetivo, pois cada vez mais percebe-se que o referido poder se encontra imerso de processos
infindáveis. Sendo assim, o legislador atual, novamente na tentativa de desafogar o judiciário,
editou a Lei nº 13.105/2015 o qual instituiu o novo Código de Processo Civil introduzindo o
conceito de precedente e inserindo novos mecanismos como o incidente de resolução de
demandas repetitivas (IRDR) e o incidente de assunção de competência (IAC).
Apesar das referidas inovações, o legislador também concedeu uma nova roupagem
no que se refere às liminares, tratando-as no capítulo da tutela provisória, que de maneira
simplificada se divide em tutela de urgência e tutela de evidência, sendo esta última novidade
legislativa e objeto de estudo do presente artigo.
A tutela de evidência, em linhas gerais, foi introduzida no Código de Processo Civil
com o objetivo de promover mais celeridade ao sistema, pois ao permitir que o juiz conceda
um pedido independente de demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do
processo e baseado apenas nas hipóteses previstas no artigo 311 do CPC, infere-se claramente
a busca por agilidade processual.
Entretanto, há uma questão controversa no que se refere a tutela de evidência, eis que
no art. 9º, Parágrafo único, II do CPC/2015, o qual remete para o art. 311, Parágrafo único do
CPC, o legislador concedeu ao juiz a possibilidade de deferir a tutela de evidência fundada
apenas em tese firmada em julgamento de caso repetitivo sem que haja a oitiva da parte
contrária. Por outro lado, existe o princípio constitucional da garantia do contraditório, o qual
se encontra expresso no art. 5º, LV da CF/88, que busca garantir que os litigantes tenham
conhecimento sobre o motivo pelo qual está sendo processado e inclusive ter acesso aos
recursos necessários para se defender. Sendo assim, tal princípio não pode ser mitigado, pois
não há urgência na tutela de evidência, até porque a própria lei não exige a demonstração de
tal requisito.
Nessa esteira, já há diversas controvérsias na doutrina e no âmbito do legislativo acerca
da possível inconstitucionalidade dos citados dispositivos do Código de Processo Civil, sendo
assim é válida a discussão aqui apresentada.
Dessa forma, é inevitável fazer alguns questionamentos a respeito da matéria, tais
como se a escolha do legislador foi razoável ao possibilitar a concessão de tutela de evidência
fundada em precedente vinculante em caráter liminar inaudita altera parte, mitigando assim
o princípio constitucional do contraditório em detrimento do princípio da celeridade.
Inclusive, nesse caso da tutela de evidência estar em desacordo com a Constituição Federal,
seria possível declarar a sua inconstitucionalidade? Como também, se tal inovação legislativa
realmente é condizente com o ordenamento jurídico brasileiro, pois levando em consideração
que o Brasil por ser um país que adotou o sistema do civil law é compatível com o mecanismo
do precedente, uma vez que este pertence ao sistema do common law. Então, é diante de tais
questionamentos que o presente trabalho irá se debruçar, fazendo uma análise de tais
controvérsias, mas não com o objetivo de esgotar a matéria.
Portanto, o objetivo geral é analisar o impacto causado no ordenamento jurídico
brasileiro a partir da inclusão do instituto da tutela de evidência fundada em precedente
vinculante concedida em caráter liminar inaudita altera parte. O método utilizado foi o
hipotético-dedutivo. No que concerne ao procedimento metodológico, utilizou-se a pesquisa
exploratória, a fim de aprimorar o conteúdo, bem como quanto a técnica empregada, optou-
se pela pesquisa bibliográfica (LAKATOS; MARCONI, 2017) a fim de conceder suporte
teórico suficiente para o tema abordado e firmar as bases para edificá-lo.
A busca pela proteção à Carta Magna, através do estudo sobre a possível
inconstitucionalidade da inovação jurídica referente a concessão da tutela de evidência
concedida em caráter liminar inaudita altera parte fundada em precedente vinculante é a
justificativa da escolha do presente tema.

1 INFLUÊNCIAS DO DIREITO CONSTITUCIONAL NO DIREITO PROCESSUAL


CIVIL
É crescente na doutrina e na jurisprudência a ideia de que o processo deve buscar
contemplar a Constituição Federal, pois é nesta que se encontra os direitos e garantias
fundamentais inerentes a todos os indivíduos. Sendo assim, a reiterada preocupação com a
aplicação das normas constitucionais deu origem ao “neoconstitucionalismo, cujas
características principais são a centralidade, superioridade e normatividade da Constituição”
(NEVES, 2017, p.173). De maneira sucinta, tais tipicidades significam que a Carta Magna é
norma dotada de supremacia e que estas passaram a ser vistas como obrigações impostas ao
Poder público, deixando assim de possuírem caráter programático para assumir uma posição
de verdadeira efetividade (MORAES, 2017, p.127).
Outrossim, percebe-se que essa nova posição não se contenta em apenas limitar o
poder político do Estado, mas em conceder real efetividade ao texto constitucional. Dessa
forma, deve-se partir da premissa de que o processo deve ser interpretado à luz da Constituição
conforme a transcrição abaixo:

(...) o certo é que o direito processual constitucional (ou direito constitucional


processual) consiste na ênfase ao estudo do processo a partir dos princípios,
garantias e disposições de diversas naturezas que a Constituição projeta sobre ele,
incluindo os remédios que compõem a “jurisdição constitucional das liberdades”
(mandado de segurança, habeas corpus, ação popular, ação civil pública, etc).
Assim, são recíprocas as influências que a Constituição e a ordem processual
exercem uma sobre a outra. (DONIZETTE, 2017, p.67).

Sendo assim, o julgador tem o dever de interpretar o processo conforme as normas


constitucionais. Isso não quer dizer que ele terá discricionariedade para julgar, pois deve
sempre motivar e fundamentar suas decisões.
Dessa maneira, com a edição do novo Código de Processo Civil concretizou-se ainda
mais o respeito às normas constitucionais, pois ocorreu a inclusão desses princípios na
legislação processual civil, demonstrando que todo e qualquer processo deve ser permeado
pelos princípios constitucionais, tornando assim um instrumento de participação democrática
e promovendo decisões mais justas.
Assim, a partir do artigo 1º do atual Código de Processo Civil, o legislador já deixou
evidentemente claro que o processo será norteado conforme a Constituição Federal e nos
artigos seguintes cada um deles apresenta um princípio constitucional, mas isso não quer dizer
que os princípios que não estiverem normatizados no referido código não deverão ser
observados, pelo contrário, mesmo quando não expressos na legislação infraconstitucional
devem ser obedecidos pelo julgador.
2-REFLEXÕES SOBRE A EXISTÊNCIA OU NÃO DE RAZOABILIDADE AO
PROMOVER O PRINCÍPIO DA CELERIDADE EM DETRIMENTO DO PRINCÍPIO
CONSTITUCIONAL DO CONTRADITÓRIO

De acordo com o que foi exposto anteriormente, já restou clara a grande importância
que a Constituição Federal tem no ordenamento jurídico brasileiro. Então a partir desse
momento, será demonstrado a relação existente entre a possibilidade da concessão da tutela
de evidência fundada em precedente vinculante em caráter liminar inaudita altera parte,
expresso no ar. 9º, Parágrafo único, II, bem como o art. 311, II do CPC e a Carta Magna.
Segundo o art. 5º, LV da CF/88 está expresso o seguinte: “aos litigantes, em processo
judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla
defesa como os meios e recursos a ela inerentes.” De maneira tradicional, considera-se o
princípio do contraditório composto por duas vertentes, quais sejam: informação e
possibilidade de reação. Nesse contexto, deve-se promover as partes a possibilidade de
conhecimento dos atos processuais, bem como a defesa de seus interesses em juízo. Costuma-
se empregar também a expressão “bilateralidade da audiência”, representando a paridade de
armas entre as partes.
O princípio do contraditório, em complementação ao princípio da ampla defesa, firma
a equidade no fornecimento às partes das mesmas chances e dos mesmos aparelhos
processuais a fim de exercerem seus direitos, conforme o seguinte entendimento:

(...) o princípio do contraditório, além de fundamentalmente constituir-se em


manifestação do princípio do estado de direito, tem íntima ligação com o da
igualdade das partes e o direito de ação, pois o texto constitucional, ao garantir aos
litigantes o contraditório e a ampla defesa, quer significar que tanto o direito de ação
quanto o direito de defesa são manifestações do contraditório (NERY JR; NERY
2003, p.130).

Inclusive, o art. 7º do Código de Processo Civil também, expressa o princípio do


contraditório, permitindo mais uma interpretação a respeito da matéria, no sentido que além
de garantir conhecimento as partes sobre o processo no qual está figurando, também tem o
direito de apresentar defesa e além disso ter meios de influenciar no convencimento do juiz.
Sendo assim, essa nova visão permite e concede maior importância a participação efetiva das
partes na formação do convencimento do juiz, buscando assim uma decisão mais justa e
adequada para ambos os litigantes.
Vale ressaltar também que nesse contexto, conforme entendimento recente, há uma
busca pela real participação de ambas as partes envolvidas no processo a fim de garantir a
efetividade também do princípio da cooperação prevista no art. 6º do CPC/2015. É o que se
depreende do seguinte entendimento:

(...) na visão moderna a busca pela verdade material deve ser um trabalho conjunto
e participativo, não mais uma atividade isolada do juiz. A aplicação do princípio da
cooperação por meio de um contraditório mais participativo é inerente ao direito
moderno e contribui com a segurança jurídica (QUEIROZ, 2017, p.41).

Nesse sentido, de acordo com o exposto pode-se inferir que a possibilidade de


concessão liminar inaudita altera parte de tutela de evidência fundada em precedente
vinculante disposto no art. 9º, Parágrafo único, II e art. 311, II do CPC fere diretamente a
Constituição Federal, pois, não respeita o princípio do contraditório. É certo que existem
exceções ao referido princípio constitucional, porém, acompanhado de uma justificativa
plausível. Exemplo disso é a tutela de urgência, cuja qual pelo próprio nome já revela a
condição em que se encontra determinado caso a que se aplica esta tutela. Porém, em relação
a tutela de evidência não há nenhuma urgência até porque, no próprio caput do artigo que trata
dessa tutela em questão, não exige o requisito da urgência. É o que se depreende do exposto
no Código de Processo Civil (2015):

Art. 311- A tutela de evidência será concedida, independentemente da demonstração


de perigo de dano e risco ao resultado útil do processo, quando:
I-(...)
II- as alegações de fato puderem ser comprovadas apenas documentalmente e
houver tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante;

Outrossim, percebe-se que a própria tutela de evidência dispensa a demonstração de


qualquer dano e risco ao processo, não justificando mais uma vez a possibilidade concedida
pelo legislador de deferir tutela de evidência de maneira liminar fundada apenas em
precedente vinculante e dispensando a oitiva da parte contrária. É incontroverso que o
legislador buscou garantir a celeridade processual, porém, não é razoável fazer com que o
princípio da celeridade se sobreponha ao princípio do contraditório, não havendo nesse caso
nenhuma ponderação razoável. Levando em consideração também a gravidade que representa
a violação a um princípio, percebe-se a sua importância conforme o entendimento abaixo
exposto:

(...) é o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes
componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo. Violar um
princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao
princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas
a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou
inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa
insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais,
contumélia irremissível a seu arcabouço e corrosão de sua estrutura mestra.
(MELLO, 1996, p.546). (grifos nossos)

Inclusive, é válido ressaltar também que até no caso que envolver matéria de ordem
pública, cujas quais são aquelas em que o juiz pode identificá-las independentemente de
demonstração das partes envolvidas no processo, é garantido conceder a abertura a parte
contrária para que esta seja ouvida, conforme o exposto no art. 10 do CPC, não driblando
assim o princípio constitucional do contraditório. Dessa maneira, percebe-se claramente que
mesmo que a referida situação em que seria cabível e plenamente justificável a possibilidade
de suprimir o princípio do contraditório, optou felizmente o legislador por não conferir a
referida excepcionalidade à matéria de ordem pública, permitindo inferir que com relação a
concessão da tutela de evidência não é razoável permitir o seu deferimento em caráter liminar
inaudita altera parte fundada em precedente vinculante.
Há tanta nitidez no que se refere a concessão da tutela de evidência em caráter liminar
inaudita altera parte violar o princípio do contraditório, que o Governador do Estado do Rio
de Janeiro ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI nº 5.492) em face de
dispositivos constantes da Lei Federal nº 13.105/15, a qual instituiu o Novo Código de
Processo Civil. Tal postura foi adotada pelo Governador, porque este entendeu que diversos
dispositivos do CPC ferem a Constituição Federal, dentre eles a possibilidade da concessão
da tutela de evidência fundada em precedente vinculante concedida em caráter liminar
inaudita altera parte, por privar a parte contrária de ter conhecimento do processo e
consequentemente apresentar sua defesa a fim de contribuir com a convicção do juiz. Por fim,
a ADI nº 5.492 atualmente ainda encontra-se pendente de julgamento no Supremo Tribunal
Federal, há dois anos de vigência do Novo Código de Processo Civil.

3-O SISTEMA CIVIL LAW E A ADOÇÃO DE PRECEDENTES NO BRASIL

Ainda com o fim de analisar a polêmica que envolve a inconstitucionalidade ou não,


da possibilidade de concessão liminar inaudita altera parte de tutela de evidência fundada em
precedente vinculante, faz-se necessário distinguir as diferenças entre os sistemas common
law e civil law.
A primeira divergência existente entre os referidos sistemas é que o common law tem
suas origens enraizadas no direito inglês que ocorreu com o fortalecimento do Tribunal de
Londres. A distinção do common law para o sistema do civil law é datado do final do século
XII, sendo esse último advindo do direito francês. Sendo assim, no civil law prevalece a
formalidade escrita, já no common law é levado em consideração a oralidade.
Segundo a ótica do civil law a doutrina, jurisprudência e os costumes são vistos com
inferioridade com relação a legislação, pois somente esse é mecanismo que compõe o topo da
ordem hierárquica. Sendo assim, o que predomina no civil law é a valorização dos textos
legais. Com isso, a divergência entre os sistemas que mais interessa aqui é a forma de
empregar os textos legais.
Outrossim, nesta esteira, o Brasil adotou o sistema civil law, pelo qual a lei é o
mecanismo preferencial a ser aplicado ao caso concreto, entretanto, a Emenda Constitucional
de nº 45 incluiu no ordenamento jurídico a súmula vinculante, cuja qual é um instrumento do
sistema common law. Inclusive, atualmente inseriu-se também o mecanismo denominado
precedente, modelo esse trazido também do sistema do common law, incluindo essa nova
figura no novo Código de Processo Civil. Pois, o legislador na tentativa de uniformizar as
decisões, fazendo com que todos os juízes se vinculem a uma determinada decisão e impedir
que casos idênticos obtenham julgamentos distintos, decidiu inovar com o sistema de
precedentes.
Conforme o seguinte entendimento:

Precedente é um pronunciamento judicial, proferido em um processo anterior, que


é empregado como base da formação de outra decisão judicial, prolatada em
processo posterior. Dito de outro modo, sempre que um órgão jurisdicional, ao
proferir uma decisão, parte de outra decisão, proferida em outro processo,
empregando-a como base, a decisão anteriormente prolatada terá sido um
precedente (CAMARA, 2016, p.445).

Vale ressaltar, que apesar do Brasil adotar o mecanismo do precedente não quer dizer
que migrou para o sistema do common law “muito ao contrário, o que se tem no Brasil é a
construção de um sistema de formação de decisões judiciais com base em precedentes
adaptado às características de um ordenamento de civil law” (CAMARA, 2016, p.448).
Sendo assim, resta claro que o legislador ao incluir os precedentes não somente tinha
a intenção de uniformizar as decisões, como também garantir e efetivar o princípio
constitucional da segurança jurídica:

Decidir com base em precedentes é uma forma de assegurar o respeito a uma série
de princípios constitucionais formadores do modelo constitucional de processo
brasileiro. O sistema brasileiro de precedentes judiciais busca assegurar,
precipuamente isonomia e segurança jurídica. É que, como se poderá ver ao longo
desta exposição, o direito processual civil brasileiro conhece dois tipos de
precedentes (os vinculantes e os não vinculantes, também chamados de persuasivos
ou argumentativos). E os da primeira espécie – evidentemente os mais importantes
na construção do sistema – destinam-se a garantir que casos iguais recebam
respostas jurídicas iguais (isonomia), o que confere previsibilidade às decisões
judiciais (segurança jurídica) (CÂMARA, 2016, p. 446).

Portanto, tomando como base a intenção do legislador de adotar mecanismos advindos


do common law, sistema divergente do adotado pelo Brasil, percebe-se claramente que o
intuito era de conceder efetividade aos princípios constitucionais e consequentemente eficácia
à própria Constituição. Entretanto, o artigo 9º, Parágrafo único, II e art. 311, II e Parágrafo
único do CPC os quais possibilitam a concessão em caráter liminar inaudita altera parte de
tutela de evidência fundada em precedente vinculante ferem a Constituição Federal, pois
mitiga o princípio da segurança jurídica, no sentido de que não existe tanta rigidez para que
uma decisão se torne precedente, comparado ao processo que transforma uma decisão em
súmula vinculante.
Com isso, há muito debate na doutrina sobre a maneira como os precedentes devem
ser inclusos no sistema civil law brasileiro.
Nesse sentido, percebe-se que para que uma determinada decisão tenha status de
súmula vinculante tem que seguir os requisitos impostos pelo art. 103-A da CF/88 a fim de
alcançar tal competência. Por outro lado, para que uma decisão se torne precedente não há
nenhuma regra rígida preestabelecida na legislação brasileira, fazendo com que esta traga mais
insegurança ao ordenamento jurídico. É o que se depreende:

(...) registre-se nesse ponto que nem toda decisão, ainda que proferida pelo tribunal,
é um precedente. Uma decisão que não transcender o caso concreto nunca será
utilizada como razão de decidir de outro julgamento, de forma que não é considerada
um precedente. Por outro lado, uma decisão que se vale de um precedente como
razão de decidir naturalmente não pode ser considerada um precedente. Por outro
lado, algumas decisões nem tem potencial para serem considerados precedentes
como aquelas que se limitam a aplicar a letra da lei. (NEVES, 2017, p. 1389/1390).

Assim, entende-se que uma decisão para que seja reconhecida como precedente é
necessário que não se limite a aplicar apenas a letra da lei. Desse modo, a decisão tem que
ultrapassar o caso concreto para que seja utilizada como parâmetro de decisão de outros
diversos casos. Outrossim, analisando os artigos do CPC que possibilitam a concessão de
tutela de evidência fundada em precedente vinculante de forma inaudita altera parte, percebe-
se claramente que os referidos dispositivos atingem o princípio da segurança jurídica, devido
a fragilidade que o precedente representa, fazendo com que o juiz conceda a tutela de
evidência sem a oitiva da parte contrária, fundada apenas em precedente vinculante.
Então, como foi visto anteriormente, a dimensão da importância do princípio
constitucional do contraditório é inegável, sendo assim, levando em consideração a sua
relevância não é nenhum pouco razoável desconsiderar tal princípio a fim de conceder tutela
de evidência fundada apenas em precedente vinculante. Mas infelizmente é isso que o Código
de Processo Civil permite e cujo qual é objeto da ADI nº 5.498/16, que da mesma forma tenta
combater a mitigação do princípio do contraditório com o intuito de alcançar a declaração de
inconstitucionalidade do art. 9º, Parágrafo único, II e art. 311, II e Parágrafo único do CPC,
referentes a concessão da tutela de evidência em caráter liminar inaudita altera parte.
Tal peticionamento tem como parte Autora o Governador do Estado do Rio de Janeiro,
pessoa devidamente legitimada conforme rol do art. 103, V da CF/88, o qual ajuizou no
Supremo Tribunal Federal a referida ADI contra dispositivos instituídos no Novo Código de
Processo Civil (Lei nº 13.105/2015), sob o fundamento de que as inconstitucionalidades
apontadas atingem valores fundamentais consagrados pela Constituição Federal. O mesmo
alega que “foram claramente transgredidos os limites que cabia ao legislador ordinário atual”.
Inclusive, no que se refere a parte que aponta a concessão da tutela de evidência em caráter
liminar, o Autor declara que foram desrespeitadas as garantias fundamentais do processo que
balizam o devido processo legal, em especial a garantia do contraditório participativo, como
anteriormente abordado.
Portanto, diante de todo o exposto, é clara a relevância que o tema aqui abordado
possui, mas no momento atual o posicionamento cabível que resta é aguardar o julgamento do
STF acerca da ADI nº 5.498/16. Com isso, espera-se que o Supremo, guardião da Carta
Magna, ao julgar a referida ADI, não macule as garantias fundamentais que permeiam o
sistema normativo, bem como toda a história de lutas travadas a fim de inseri-las no
ordenamento pátrio.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por ser a Constituição Federal a norma que ocupa o espaço superior na hierarquia das
leis do ordenamento jurídico brasileiro, torna-se obrigatório o respeito e observação por parte
das normas infraconstitucionais à referida Carta Magna. Concedendo dessa forma, eficácia e
aplicabilidade aos princípios e direitos fundamentais nela inseridos.
Entretanto, não é assim que sempre ocorre, visto que com a edição do Código de
Processo Civil de 2015, foram editados artigos que estão em desconformidade com a Lei
Maior, cujos quais abriram oportunidade para que o Governador do Estado do Rio de Janeiro
ajuizasse a ADI nº 5492/16. Na iniciativa do referido político, está expresso os arts. 9º,
Parágrafo único, II e 311, II e Parágrafo único do CPC, os quais tratam da possibilidade de
concessão da tutela de evidência em caráter liminar inaudita altera parte fundado em
precedente vinculante.
Contudo, é sabido que o legislador ao editar tais artigos tratou de promover maior
celeridade ao processo, tendo em vista a situação que se encontra o judiciário, ou seja, imerso
de processos aguardando julgamento, mas por outro lado, tem o fato de que a Constituição
Federal é repleta de princípios dentre os quais estes têm que necessariamente serem
respeitados e observados garantindo assim o cumprimento do princípio da Supremacia da
Constituição.
Destarte, como foi visto anteriormente, a nova previsão infraconstitucional não está
de acordo com os princípios constitucionais, tais como o princípio do contraditório e o
princípio da segurança jurídica, dessa forma assiste razão a ADI nº 5.492/16, no tocante a
inconstitucionalidade dos arts. 9º, Parágrafo único, II e 311, II e Parágrafo único do CPC,
cabendo ao Supremo Tribunal Federal entender a procedência do pedido e declarar a
inconstitucionalidade dos referidos artigos, tornando efetivo os princípios constitucionais do
contraditório e da segurança jurídica e consequentemente a Constituição da República
Federativa do Brasil.

REFERÊNCIAS

BRASIL. ADI nº 5492/16. Disponível em: http: <//www.stf.jusbrasil.com.br/jurisprudência>.


Acesso em: 17/04/18.

CAMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 2ª ed., São Paulo: Atlas,
2016.

DONIZETTE, Elpídio. Curso didático de direito processual civil. 20º ed., São Paulo: Atlas,
2017.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Editora WMF Martins Fontes, 2011.

LAKATOS, Eva M.; MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos da Metodologia


científica, 8. ed. São Paulo: Altas, 2017.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 8º ed., São Paulo:
Malheiros, 1996.

MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 33º ed., São Paulo: Atlas, 2017.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 9º ed., Salvador:
Ed. Juspodivm, 2017.
NERY JR, Nelson; ANDRADE NERY, Rosa Maria de. Código de Processo Civil
Comentado e Legislação extravagante, 7º ed., São Paulo: RT, 2003.

QUEIROZ, Maria Emília Miranda de Oliveira; RABELO, Patrícia Freire de Paiva Carvalho.
A fragilidade constitucional do Novo CPC na possibilidade de concessão de liminar inaudita
altera parte em tutela de evidência fundada em precedente vinculante. Revista Advocatus
Pernambuco, Recife PE, nº 17, Ano 10, p. 37-47, 2017.
A MEDIAÇÃO NO ÂMBITO DA ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO FRENTE AS
NOVAS PERSPECTIVAS DOS PRINCÍPIOS DA INDISPONIBILIDADE E
SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO 306

Ana Maria Gomes Ferreira307


Angelíka Souza Verissímo da Costa308

RESUMO

O presente trabalho se propõe a abordar a prática da mediação no âmbito da Administração


Pública Federal, precisamente nas câmaras consensuais da Advocacia Geral da União (AGU),
impulsionada pela edição da Lei nº 13.140/15. Analisaremos como a inserção do referido
procedimento contribui para a diminuição da hiperlitigiosidade dos processos envolvendo o
Estado, promovendo uma celeridade nas resoluções das controvérsias, bem como estreitando
a relação entre o Estado e os administrados. Será visto como a eficácia da citada sistemática
se mantém diante do tratamento superficial dado pela Lei da Mediação ao falar dos direitos
públicos transacionáveis, considerando as prerrogativas do interesse coletivo decorrentes dos
princípios da indisponibilidade e da supremacia do interesse público sobre o privado.Será
observado, também, como o tratamento genérico dado aos direitos públicos passiveis de
transação, permitem que as condições da mediação fiquem à discricionariedade da atuação do
advogado público federal, tornando-o alvo de controle, suscetíveis a sanções, pela ausência
de uma norma que norteie seus atos.Assim, através do estudo da Lei nº 13.140/15, refletiremos
sobre a delimitação das transações que tratam sobre os direitos públicos, considerando a
manutenção da segurança jurídica do procedimento, assim como o atendimento ao princípio
da legalidade em relação aos atos do agente público.

Palavras-chave: Mediação. Advocacia Geral da União. Interesse Público

INTRODUÇÃO

As formas consensuais de solução de litígios eram tidas como formas alternativas à


via judicial. Eram assim classificadas, pois inseriam uma nova forma de dirimir as
divergências através de acordos firmados entre as partes, sem a aplicação dos institutos
impositivos do Direito.

Com o passar dos anos, regramentos foram incentivando a inserção dos meios
autocompositivos no ordenamento jurídico brasileiro, buscando estimular o uso de
procedimentos não adversáriais que aliviassem a sobrecarga de contendas levadas ao Poder
Judiciário.

306
GT 8 – Estudos Contemporâneos em Direito Público e Processo
307
Acadêmica em Direito pelo Centro Universitário Maurício de Nassau. anamaria.gf_@hotmail.com.
308
Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco. angelikaverissimo@gmail.com
Assim, o CNJ por meio da Resolução nº 125/2010 inovou ao transformar os meios
adequados de solução de conflitos em políticas públicas a serem perseguidas no Judiciário,
visando modificar o perfil litigioso do país, ampliando o acesso à justiça, bem como dando
celeridade às resoluções das disputas.
Porém, a ausência de uma lei que tratasse de maneira específica a instituição dos
referidos procedimentos no âmbito público, ensejou por muito tempo uma resistência por
parte de juristas e agentes públicos, que defendiam a impossibilidade de transação do interesse
geral, por considerarem os princípios da indisponibilidade e supremacia do interesse público
sobre privado prerrogativas que impossibilitavam as transações.
A edição da Lei nº 13.140/15 transformou-se em um marco legal ao tratar do
procedimento da mediação de forma especifica, corroborando com as diretrizes estabelecidas
pelo CNJ e instituindo de forma expressa a sua prática na esfera do Poder Público.
A referida lei, apesar de bem aceita, causou inquietações quanto a sua aplicação na
Administração Pública Federal ao prevê de maneira genérica os direitos indisponíveis
transacionáveis, possibilitando a ocorrência de um tratamento discricionário por parte do
advogado, deixando-o suscetível ao cometimento de desvios e abusos na tentativa de definir
os direitos aptos a mediação, pondo em xeque a segurança jurídica do procedimento.
Para tanto, a pesquisa pauta-se na análise analítica descritiva das doutrinas
administrativistas, considerando as correntes clássicas e mordernas, bem como normativas
que versam sobre a mediação na esfera do Poder Público, visando refletir sobre a insegurança
jurídica gerada pela celebração de acordos envolvendo direitos coletivos, especificamente no
âmbito da Advocacia Geral da União, que permanecem a serem firmados mesmo ante a
ausência de limites legais que promovam a eficácia e a seguridade do procedimento.
Desse modo, no segundo capítulo examinaremos os princípios basilares do direito
administrativo – indisponibilidade e supremacia do interesse público sobre o privado – dentro
das concepções modernas que coadunam-se com os princípios da proporcionalidade e
razoabilidade, propiciando dentro de um juízo de ponderação, a inserção da mediação na
Administração Pública Federal, bem como a possibilidade da realização de transação de
direitos públicos.
O capítulo seguinte refere-se à Lei nº 13.140/15, que tratou de maneira especifica a
mediação nas contendas envolvendo as pessoas jurídicas do regime administrativo federal,
colocando como uma importante solução a desjudicialização das controvérsias, despontando
como meio adequado a dirimir as disputas nos contornos dos interesses dos mediandos.
Ainda, por meio da observação aos atos normativos da AGU (Advocacia Geral da
União), como, também, ao procedimento das mediações conduzidas nas Câmaras de
Conciliação e Arbitragem Federal (CCAF), o quarto capítulo versará sobre a construção e
celebração dos acordos, relacionando-os com o abstracionismo da Lei da Mediação ao tratar
sobre os direitos públicos capazes de serem mediados, ressaltando a atuação do advogado
público federal perante essa subjetividade.
Por fim, no último capítulo, após realizada toda a pesquisa acerca do tema e,
abordados todos os pontos destacados acima, finalizaremos o presente trabalho analisando a
necessidade de um comando legal que determine os direitos que podem ser levados a
mediação, de forma a garantir a segurança jurídica dos atos decorrentes do procedimento.

1 DOS PRINCÍPIOS DA INDISPONIBILIDADE E DA SUPREMACIA DO


INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO

Com o surgimento do Direito Administrativo no início do século XIX na Europa


Ocidental, precisamente na França, os anseios sociais e institucionais da época ensejaram a
criação de normas e princípios que preconizassem a garantia dos direitos fundamentais, bem
como o controle do poder estatal.
O advento do Estado Liberal fez o Direito Administrativo sofrer modificações
principalmente nos seus institutos jurídicos, tais como o interesse público, deixando de ser
apenas legitimador e limitador das ações administrativas, para atuar de maneira menos
intervencionista no âmbito privado, restringindo-se apenas às designações legais, assegurando
ao máximo o princípio da legalidade, estruturando o Estado de Direito (SIQUEIRA, 2016).
Era uma época na qual a classe dominante - a burguesia - exigia liberdade econômica
e suas necessidades, por sua vez, viraram os interesses do Estado dentro de uma concepção
moderna e ideológica, tendo como plano de fundo a luta de classes. Porém, as atividades
estatais tornaram-se insuficientes à medida que não acompanhavam as evoluções da
sociedade, sendo concebido um novo modelo jurídico (MEDAUAR, 2016).
Com a ocorrência de mudanças sócio-econômicas, especialmente na era da
Revolução Industrial, houve uma mudança de paradigma dos interesses sociais,
redirecionando as acepções administrativistas e o do interesse público ao atendimento do
princípio da dignidade da pessoa humana, ampliando a atuação estatal à uma política de bem-
estar social, garantindo de maneira igualitária e isonômica os direitos básicos e fundamentais,
transformando o interesse de toda coletividade em interesse público (SIQUEIRA, 2016).
Hoje, o contexto jurídico vigente é o Neoconstitucionalismo ou Pós-positivismo, no
qual a Constituição Federal é considerada a base legal de todas as normas, sedimentando o
Estado Democrático de Direito, que atua assegurando as garantias fundamentais, liberdades
civis e o exercício de direitos sociais, tais como liberdade, segurança, desenvolvimento, bem-
estar, igualdade e justiça, ou seja, é marcado pela participação popular, seja de forma
representativa ou participativa (SIQUEIRA, 2016).
Dessa forma, o conceito do interesse público surge mais complexo, tratando-se da
atuação do Poder Público como um conciliador de ideias opostas, que equilibra interesses
públicos e privados sob as normas constitucionais e infraconstitucionais, amparando-se em
anseios sociais, em prol das aspirações de uma coletividade, oferecendo legitimidade nas
atuações administrativas.
Assim, mecanismos legais de intervenção foram sendo criados visando preservar
direitos fundamentais tanto de ordem privada, como de ordem pública. Porém, por vezes, os
interesses públicos e privados apresentam oposição quanto aos seus objetivos, e coube ao
Poder Público criar desdobramento jurídicos visando amparar preferencialmente o interesse
coletivo.
A partir desta premissa, normas e princípios surgiram no ordenamento pátrio,
operacionalizando e norteando a aplicação concreta. O princípio da supremacia do interesse
público sobre o privado nasceu em virtude da proteção do Estado acerca dos direitos da
sociedade, buscando alcançar por meio de normas e institutos do Direito Administrativo
assegurar o bem de toda coletividade, limitando os direitos individuais quando necessário
inclusive o do próprio Estado, já que também é possuidor de interesses particulares.
Por ser fruto de uma construção doutrinária, o aludido princípio recebeu diversas
interpretações, inclusive as mais rigorosas, que deram um formato autoritário ao princípio,
defendendo a soberania do interesse público sobre o privado em qualquer situação,
principalmente as de conflito, proporcionando uma situação de comando sobre os indivíduos,
como maneira indispensável de se manter uma ordem e estabilidade social.
A finalidade pública respalda o Direito Administrativo, e pode ser traduzida como a
proteção legal designada aos interesses coletivos, que terminam por torná-los indisponíveis,
evitando que fiquem a livre liberalidade do gestor público quanto à renúncia, transmissão,
apropriação, alienação e o desvio, devendo agir dentro dos limites da juridiciade.
O principio da indisponibilidade do interesse público não está expresso no texto
constitucional de 1998, mas como expõe Maria Sylvia Zanella de Di Pietro (2014, p. 68), está
previsto na Lei nº 9784/99, no art. 2º, parágrafo único, como exigência a “atendimento de fins
de interesse geral, vedada a renúncia total ou parcial de poderes ou competências, salvo
autorização em lei.” corroborando com a ideia de que os interesses coletivos são indisponíveis
pelo administrador público, devendo agir subordinado à lei, atuando conforme a finalidade
pública.
A indisponibilidade dos interesses gerais foi tida, por anos, como uma barreira
intransponível a possíveis transações com particulares. Esse entendimento tradicional foi
sendo superado à medida que o pressuposto da irrenunciabilidade foi sendo considerado como
condição que não enseja a impossibilidade da negociação dos citados interesses.
Nesse sentido, Binenbojm (2005) pondera que esse arcabouço legal não propicia a
inegociabilidade dos interesses gerais, visto que a “blindagem” oferecida pelo ordenamento
jurídico, como a supremacia e a indisponibilidade não podem ser tratados em seu caráter
absoluto. Em comentários anteriores, foi citado que com a promulgação da Constituição de
1988, o princípio da dignidade da pessoa humana conduziu os institutos constitucionais, de
tal forma, que a proporcionalidade e razoabilidade devem ser consideradas quanto à aplicação
da norma, visando promover o bem de toda coletividade.
Dessa forma, a transação de direitos fundamentais foi sendo inserida no ordenamento
brasileiro por meio de institutos jurídicos espalhados em diversos ramos do Direito, como no
âmbito do Direito Administrativo. A Lei da Mediação transformou-se em um marco legal ao
inserir meios adequados de solução de conflitos dentro da seara pública, deslegitimando a
concepção de que os direitos púbicos não são passíveis de transação.
Neste ponto, a jurista pondera:

Não se mostra adequado invocar tal princípio como impedimento à realização de


acordos, a utilização de práticas consensuais e da arbitragem pela Administração.
Na verdade, o interesse público realiza-se plenamente, sem ter sido deixado de lado,
na rápida solução de controvérsias, na conciliação de interesses, na adesão de
particulares às suas diretrizes, sem os ônus e lentidão da via jurisdicional.
(MEDAUAR, 2014, p.150).

Percebe-se, então, que a fundamentação acerca da possibilidade de negociação dos


interesses coletivos está baseada numa reeleitura dos princípios clássicos da legalidade e da
supremacia do interesse público sobre o privado, a partir de uma ótica mais ampla sobre suas
determinações e limitações, assim como a evolução do conceito da indisponibilidade, sendo
permeado por aspectos hermenêuticos através da ponderação sobre a proporcionalidade e
razoabilidade na aplicação dos institutos.
Neste cenário, a Carta Magna surge como instrução jurídica do Estado,
fundamentando e legitimando a atuação estatal, pautando-se na compatibilização dos
interesses da sociedade e os individuais, dentro de um juízo de ponderação, na qual será
analisado, por meio de uma avaliação adequada, o interesse que prevalecerá de modo que haja
um baixo custo social.
Para Dworkin (apud NERY JÚNIOR, 2016, p. 37) os princípios surgem como
instrumentos de tutela aos direitos individuais frente a aplicação de normas estruturadas para
ter viés coletivo, denominadas por ele de polices. No seu raciocínio, o aplicador do Direito
diante de um caso concreto em que há necessidade de relativizar um direito em favor de outro,
deve-se utilizar de mecanismos de interpretação dentro de um juízo de ponderação, no qual a
consideração de princípios faz-se imprescindível para proteger interesses individuais, por ter
o interesse público maior amplitude em relação àquele, dessa forma será formada uma decisão
pautada no equilíbrio e equidade necessária a atender a demanda do caso concreto de maneira
justa.
Por conseguinte, Robert Alexy (apud NERY JÚNIOR, 2016, p.37) entende que o juízo
de ponderação está atrelado ao comprometimento com os direitos, liberdades e garantias
fundamentais, dentro dos critérios de interpretação, na tentativa de encontrar um equilíbrio,
evitando sacrifícios desnecessários de interesses, buscando uma solução justa e adequada,
dentro das possibilidades jurídicas e reais, por meio da otimização dos mandamentos, que
consubstancia normativas que visam tratar de maneira adequada os conflitos envolvendo
interesses públicos, à exemplo da Lei n° 13.140/15, que passamos a analisar.

2 O MARCO LEGAL DA MEDIAÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA


FEDERAL

O juízo de ponderação envolvendo os princípios da proporcionalidade e da


razoabilidade apresenta-se como solução interpretativa aos choques de interesses, buscando
alcançar a forma apropriada a se tratar as controvérsias jurídicas.
Nessa acepção, a busca por um tratamento adequado dos conflitos, introduziu no
ordenamento jurídico institutos capazes de estabelecer procedimentos que visam atender as
particularidades do caso concreto, moldando a solução às peculiaridades das contendas,
evitando as decisões judiciais tradicionais.
O sistema multiportas surgiu como uma maneira de garantir o acesso à justiça por
meio da atuação significativa das partes em prol da solução mais adequada do litígio, visando
conquistar resoluções que gozam de celeridade, justiça e eficácia.
A referida sistemática surgiu nos Estados Unidos como o Multi-door Courthouse
System primando pela discussão oral e formalização de acordos a fim de se encontrar a
maneira mais adequada de se tratar os litígios.
Por muito tempo, juristas defendiam a ideia de que conflitos envolvendo os direitos
inerentes a coletividade deveriam ser objeto de lides nas quais o desfecho deveria ser advindo
apenas da figura do juiz, o único capaz de estabilizar dissídios.
Tese decorrente principalmente das prerrogativas provenientes dos princípios
basilares do Estado, os princípios da supremacia do interesse púbico sobre o privado e a
indisponibilidade desse interesse, que limitavam a implementação de meios consensuais no
âmbito do Poder Púbico como forma de solução de controvérsias.
Porém, ainda que diante de tal resistência, legislações na esfera federal, ainda que
espaças, já previam a possibilidade de autocomposição de conflitos na Administração Pública
direta e indireta, à exemplo da Lei dos Juizados Espaciais da Fazenda Pública (Lei nº
12.153/09), visando diminuir a judicialização das contendas do Estado.
Porém, foi com a Lei da Mediação que a referida prática foi tratada de maneira
específica no ordenamento legal e trouxe inovações acerca da mediação na seara pública,
dispondo no seu segundo capítulo aos pressupostos da autocomposição envolvendo pessoas
jurídicas de direito público.
Apesar das vantagens adquiridas com a inclusão da mediação no âmbito da
Administração Pública, notam-se desafios a serem enfrentados quando da sua execução no
caso concreto.
O interesse público, como dito anteriormente, é revestido de uma tutela estatal que
corrobora com o raciocínio da impossibilidade de transação dos direitos inerentes a sociedade,
reconhecidamente dotado de indisponibilidade, característica entendida como uma
“impossibilidade de renúncia, abdicação a uma posição jurídica”, segundo Talamini (2016,
p. 279); tornando-se diretriz ao poder-dever do Estado, por reunir os interesses de toda a
sociedade, ficando restrito a determinadas atividades as quais não tem limitações quando se
trata dos interesses individuais, evitando que o agente público disponha-o livremente.
Esse tratamento especial mantido pelo Poder Público, a fim de que haja uma efetiva
proteção acerca do interesse geral, não implica em uma indisponibilidade rígida, presente em
todas as situações as quais o interesse público é colocado ao lado do particular, como nos
casos em que são submetidos às resoluções consensuais de litígios. Assim, a análise sobre o
interesse geral, bem como o alcance da sua indisponibilidade faz-se necessária.
Com a inserção de legislações que incentivavam a realização de procedimentos não
adversáriais para solução de conflitos, tem-se discutidos quais direitos públicos poderiam ser
transacionados.
Inicialmente, os interesses envolvendo o patrimônio do Estado – os interesses
secundários - foram sendo considerados dotados de certa disponibilidade, tornado-se matéria
de legislações que previam a transação desses interesses, à exemplo, do art. 156, III, CTN,
que permite a Administração Pública extinguir o crédito tributário por meio da transação.
Com a edição da Lei da Mediação, a inserção do referido procedimento
autocompositivo no âmbito administrativo público, despertou a ideia de interesses públicos
passíveis de transação. Permitindo que direitos dentro da seara da indisponibilidade, inclusive
os primários, sejam objeto de mediação, causando uma obscuridade sobre o tema, por tratar
de forma genérica a identificação desses interesses e introduzir uma nuance acerca do instituto
da indisponibilidade.
A partir dessa gradação foram criadas categorias sobre a indisponibilidade,
dividindo-as em “direitos disponíveis, direitos indisponíveis e direitos indisponíveis
transacionáveis”, ensejando uma insegurança jurídica sobre a mediação. Ainda, de acordo
com o citado autor, “a confusão entre as tais categorias acarreta profundas inconsistências
[...] não apenas legítimas (do ponto de vista social) como válidas (do ponto de vista
constitucional)” (VENTURI, 2016, p. 41),
Dessa forma, compreende-se que a indisponibilidade não veda completamente o
interesse público à realização de mediações, porém a ausência de norma que preencha o hiato
deixado pela Lei 13.140/15, faz-se imprescindível, de modo que trate expressamente os
direitos a serem mediados, evitando que caia num juízo de presunção abstrata por parte do
agente público.
Assim, a tratativa omissa da Lei da Mediação acerca da questão, põe em xeque a
segurança jurídica do procedimento, possibilitando que a admissibilidade dos direitos a serem
mediados sejam postos à discricionariedade do agente público, violando o principio da
legalidade, bem como deixa o agente público suscetível ao cometimento de abusos de poder
e desvios de finalidade por falta de diretrizes, tornando os atos passíveis de nulidade,
invalidando os acordos firmandos entre os mediandos, influindo, também, na efetividade do
procedimento no âmbito público.
Isto posto, vê-se que a falta de legislação contundente que fixe as matérias aptas a
serem transacionadas propicia arbitrariedades por parte do advogado público federal,
afetando, também, a criação de parâmetros que permitam a realização de controle dos atos
administrativos, bem como dos acordos celebrados.
Por causa do raciocínio da indisponibilidade, houve grande resistência a adoção dos
meios consensuais de solução de conflitos na Administração Pública, por entenderem que os
direitos revestidos de interesse público são vedados a autocomposição, decorrente da relação
verticalizada do Estado com o particular.
Ocorre que, dentro de um juízo de proporcionalidade e razoabilidade, a
(in)disponibilidade desses direitos não obsta a mediação no âmbito administrativo público,
enseja na verdade, uma ponderação de interesses, resultando na prevalência de um deles diante
do caso concreto em busca da solução mais eficaz.
Para o autor, o tema pauta-se da seguinte forma:

O que se está a afirmar é que o interesse público comporta, desde a sua configuração
constitucional, uma imbricação entre interesses difusos da coletividade e interesses
individuais e particulares, não se podendo estabelecer a prevalência teórica e
antecipada de uns sobre outros. Com efeito, a aferição do interesse prevalecente em
um dado confronto de interesses é procedimento que reconduz o administrador
público à interpretação do sistema de ponderações estabelecido na Constituição e na
lei, e, via de regra, o obriga a realizar seu próprio juízo ponderativo, guiado pelo
dever de proporcionalidade.(BINEBOJM, 2005, p.20.)

A partir desse raciocínio, entende-se que os direitos fundamentais individuais devem


ser respeitados conforme os ditames da Constituição Federal, mesmo diante das prerrogativas
dos direitos públicos, devendo ser buscado prioritariamente um equilíbrio entre esses direitos
em prol de um Estado democrático e justo, no qual ambos coexistem harmonicamente,
refletindo nas soluções adequadas das controvérsias existentes entre eles.
Assim, conclui-se que apesar dos interesses gerais serem tutelados pela
Administração Pública, isso não acarreta na vedação da sua negociação. Percebe-se, na
verdade, a necessidade de se determinar de maneira específica e legal quais direitos poderão
ser objeto da mediação com o particular, evitando-se a liberalidade do agente público.
Com a ampliação da atuação da advocacia pública nos procedimentos
autocompositivos, motivada por legislações que incentivam a transação de interesses,
observa-se, por exemplo, a Advocacia Geral da União autorizada a mediar direitos sem um
direcionamento legal que limite a atuação do agente público.
Nesse sentido, passamos a analisar a Portaria nº 01 de janeiro de 2010 da Advocacia
Geral da União, que foi editada buscando traçar contornos acerca da atuação do advogado
público nos procedimentos de conciliação envolvendo a Administração Pública Federal.
Primeiro, precisamos entender porque tal normativa não qualifica-se como
suplementação a lacuna deixada pela Lei 13.140/15, quanto a procedimentalização. A
conciliação, assim como a mediação, trata-se de um processo autocompositivo, na qual há a
participação de um terceiro dotado de neutralidade, denominado como conciliador, que
entrega o poder decisório as partes dando sugestões de soluções às controvérsias tratadas.
Aparentemente os métodos parecem ser idênticos, porém o Conselho Nacional de
Justiça no seu manual de 2016 traçou as diferenças entre os dois institutos, pontuando de
forma comparativa as distinções de cada um:

i)a mediação visaria à ‘resolução do conflito’ enquanto a conciliação buscaria


apenas o acordo; ii) a mediação visaria à restauração 22 da relação social subjacente
ao caso enquanto a conciliação buscaria o fim do litígio; iii) a mediação partiria de
uma abordagem de estímulo (ou facilitação) do entendimento enquanto a
conciliação permitiria a sugestão de uma proposta de acordo pelo conciliador; iv) a
mediação seria, em regra, mais demorada e envolveria diversas sessões enquanto a
conciliação seria um processo mais breve com apenas uma sessão; v) a mediação
seria voltada às pessoas e teria o cunho preponderantemente subjetivo enquanto a
conciliação seria voltada aos fatos e direitos e com enfoque essencialmente objetivo;
vi) a mediação seria confidencial enquanto a conciliação seria eminentemente
pública; vii) a mediação seria prospectiva, com enfoque no futuro e em soluções,
enquanto a conciliação seria com enfoque retrospectivo e voltado à culpa; viii) a
mediação seria um processo em que os interessados encontram suas próprias
soluções enquanto a conciliação seria um processo voltado a esclarecer aos litigantes
pontos (fatos, direitos ou interesses) ainda não compreendidos por esses; ix) a
mediação seria um processo com lastro multidisciplinar, envolvendo as mais
distintas áreas como psicologia, administração, direito, matemática, comunicação,
entre outros, enquanto a conciliação seria unidisciplinar (ou monodisciplinar) com
base no direito. (BRASIL, Conselho Nacional de Justiça, 2016, p.22).

Logo, frente a essas diferenças, não há de se falar em sinônimos entre os


procedimentos. Dessa forma, a ausência de uma tratativa legal permanece, visto que a referida
portaria não se aplica à lacuna deixada pela Lei da Mediação, quanto a atividade do advogado
público nos procedimentos a serem adotados nos casos mediados.
A forma genérica que a Lei 13.140/15 versa sobre os pontos destacados
anteriormente implica em outro agravante em face da carência da normatização, é a
quantidade de processos que deixam de ser submetidos à mediação, ainda que aptos à
transação. Tal circunstância retira da Administração Pública a possibilidade de reverter a
grave crise de litigiosidade que está inserida, bem como cerceia a eficácia e implementação
da Lei da Mediação de forma plena.
O enunciado nº 573, do Fórum Permanente de Processualistas Civis – FPPC (2016,
p. 72), nessa perspectiva, diz que “as Fazendas Públicas devem dar publicidade às hipóteses
em que seus órgãos de Advocacia Pública estão autorizados a aceitar autocomposição”,
reiterando a necessidade de normas que versem sobre o tema.
É essencial, portanto, normas que tragam uma segurança jurídica ao procedimento,
por meio de determinações expressas acerca dos direitos a serem mediados, bem como da
atuação dos agentes púbicos que devem ser pautados na legalidade, de forma a promover o
poder-dever do Estado de facilitar o acesso à justiça através da adoção dos meios adequados
de solução de conflitos em sua seara.
Dessa forma, propiciará à observância as regras da eficiência, moralidade e
juridicidade, assegurando a solidez jurídica nos atos decorrentes das seções de mediação
envolvendo pessoas jurídicas de direito público.
Com a inserção de políticas públicas e regramentos que incentivam a adoção dos
meios autocompositivos no âmbito estatal, câmaras de prevenção e resolução administrativa
de conflitos foram sendo criadas para solucionar contendas na administração pública, bem
como analisar a admissibilidade de pedidos de resolução de controvérsias entre particulares e
pessoa jurídica de direito público, promovendo a celebração de acordos.

3 A TRANSAÇÃO NO ÂMBITO DA ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO

Na esfera federal, a Câmara de Conciliação e Arbitragem – CCAF foi criada em


2007, por resolução interna, buscando tratar as controvérsias judiciais e extrajudiciais,
envolvendo a Administração Pública direta e indireta e os conflitos com entes municipais e
estaduais.
Entretanto, como visto, a grande questão acerca da implementação da mediação na
Administração Pública Federal é a ausência de uma lei que determine expressamente os
direitos públicos passíveis de transação, tendo em vista a insegurança jurídica instaurada pela
Lei 13.140/15.
Essa definição legal torna-se imprescindível à coletividade por garantir que interesses
primordiais não fiquem a livre liberalidade que quem está transigindo e assegure que as
controvérsias envolvendo tais direitos tenham a solução mais adequada, visto que a mediação
busca proporcionar resoluções que se moldem ao caso concreto conforme o ajustamento
colaborativo e construtivo dos interesses dos mediandos, dentro de um juízo de ponderação.
A figura da Advocacia Pública se fundou em perseguir fins que vão além dos
interesses inerentes ao Estado, os chamados interesses secundários, pautou-se em harmonizar
o trabalho de defender direitos específicos, observando os interesses públicos primários
dotados de tutela estatal.
A Carta Política de 1988 atribuiu encargos específicos aos advogados públicos
voltados à representação contenciosa no âmbito judicial e extrajudicial dos direitos públicos,
bem como o seu trabalho de consultoria jurídica aos atos administrativos; ambas consideradas
atividades típicas da Advocacia Pública.
A sua independência administrativa em relação aos poderes judiciário, executivo e
legislativo, faz com que as atividades típicas voltadas ao Poder Público não configurarem
uma subordinação a um dos poderes, nem exauram todas as atribuições por ela realizada,
sendo-lhe conferida uma autonomia técnica.
Nesse sentido, Castro (2009) informa que a Casa Correicional da Advocacia Geral
da União fez ressalvas quanto ao tema, entendendo que deve haver um alinhamento entre a
citada independência técnica dos procuradores à uma não mitigação da defesa dos interesses
públicos defendidos em juízo, devendo ser fundamentada em decisões consideradas
adequadas e razoáveis.
Atualmente, essa independência tem sido ampliada visando atender as necessidades
da Administração Pública de maneira mais célere, como ocorreu nas portarias que permitiram
que procuradores pudessem optar por não recorrer diante de determinado caso concreto, desde
que observados parâmetros fixados em pareceres específicos, referentes a cada uma das
hipóteses em que será possível adotá-las.
Fazendo um paralelo com a Lei nº 13.140/15, precisamente ao seu artigo 35, que trata
das mediações na esfera da administração pública federal direta, suas autarquias e fundações,
percebe-se que essa independência técnica resta prejudicada e ineficaz, não podendo ser
aplicada nos casos em que haja transação de interesse público, visto que, em comparação com
o caso acima, não há um direcionamento que propicie o procurador analisar no caso tratado o
cabimento da mediação.
Assim, verifica-se que a aludida independência dos procuradores federais torna-se
ferramenta importante a se consolidar a mediação como meio a assegurar a eficiência e
celeridade ao Poder Público no plano do Judiciário, principalmente na formalização de
acordos com o particular nos procedimentos que envolvem transações de interesses. Porém,
devido a uma omissão administrativa ao complementar o comando genérico da Lei da
Mediação, protela-se a efetiva execução do referido procedimento nos processos em que litiga
o Estado.
Frente a essa ausência, a AGU suspendeu a realização de acordos, por meio do E-
mail Circular PGU - 2015/018 (2015), reconhecendo a falta de normativa que tratasse
especificamente da mediação, bem como a insuficiência das regulamentações anteriormente
editadas para tratar da matéria dos procedimentos autocompositivos, como a comentada
Portaria nº 01 de janeiro de 2010 da Advocacia Geral da União.
No ano seguinte, por meio do seu Manual, a Consultoria-Geral da União - órgão
pertencente à Advocacia Geral da União e responsável pela Câmara de Conciliação e
Arbitragem da Admimistração Federal, reconhece tal omissão ao pontuar:

Recentemente foi editada a Lei nº 13.140, de 2015, a qual prevê forma extrajudicial
de resolução de conflitos, tanto entre entes públicos quanto quando envolver, de um
lado, ente público, e, de outro, agentes privados. Assim recortamos do seu conteúdo,
ressaltando a importância de necessária participação dos órgãos de Advocacia
Pública, ressaltando a referida Lei ainda estar pendente de edição de Decreto
regulamentar, bem como de normatização interna no âmbito da AGU. (BRASIL,
Advocacia Geral da União ,2016, p. 45.)

No mesmo ano, a AGU edita novo E-mail Circular, o PGU - 2016/022 (2016),
retomando a realização de acordos pelo referido órgão, porém, dessa vez, restringindo-o a
posterior regulamentação a ser editada. Ocorre que, atualmente, além de não haver um marco
regulador tratando da matéria de forma expressa, acordos continuam a ser realizados.
No setor público, precisamente no contexto da Advocacia Geral da União, as
mediações extrajudiciais ocorrem nas dependências da Câmara de Conciliação e Arbitragem
da Administração Federal – CCAF, instituída pelo Ato Regimental n.° 05, em 2007.
Segundo a Cartilha da referida câmara, sua atividade pauta-se em:

[...] prevenir e reduzir o número de litígios judiciais que envolviam a União, suas
autarquias, fundações, sociedades de economia mista e empresas públicas federais,
mas, posteriormente, o seu objeto foi ampliado e hoje, com sucesso, resolve
controvérsias entre entes da Administração Pública Federal e entre estes e a
Administração Pública dos Estados, Distrito Federal e Municípios. (BRASIL,
Advocacia Geral da União, 2012, p.07)

Inicialmente, abarcava apenas um procedimento autocompositivo, a conciliação; que


tem seu rito processual previsto na Portaria nº 1099/08, determinando as autoridades que
detêm competência para solicitar a atuação da AGU nos conflitos envolvendo o Poder Público,
como, também, os documentos necessários para a instrução do procedimento e as funções do
conciliador.
Com o advento da Lei da Mediação, as funções da CCAF ampliaram e recepcionaram
com maior solidez a mediação nas contendas envolvendo a Administração Pública Federal,
buscando implementá-la nas resoluções de conflitos, a fim de assegurar a execução de
políticas públicas que tratam dos meios adequados de solução de controvérsias.
Dessa forma, os conflitos envolvendo o interesse público e privado passam a ser
ponderados e ajustados por meio de acordos que vinculam os envolvidos as suas disposições,
assegurando a efetividade do cumprimento das obrigações fixadas, aproximando o Estado do
particular por permitir um canal de comunicação ativa entre eles, possibilitando uma maior
estabilização das relações.
Considerando o interesse público que reveste os acordos celebrados, as prerrogativas
inerentes à Administração Pública devem ser mantidas, assim, passaremos a analisar a atuação
do advogado público frente a ausência de uma lei que determine expressamente os limites do
seu exercício de forma a garantir a eficácia dos atos ocorridos durante o procedimento.

4 A NECESSIDADE DE PREVISÃO LEGAL PARA PONTUAR E LIMITAR


O PAPEL DO ADVOGADO PÚBLICO EM FACE DO PRINCÍPIO DA
LEGALIDADE

A Constituição Federal (1998), em seu artigo 37 exige que a Administração Pública


obedeça ao princípio da legalidade, estabelecendo contornos por meio da lei. Segundo Odete
Medauar (2014, p. 141), o referido princípio promove “[...] sentido de garantia, certeza e
limites do poder”.
A Lei nº 13.140/15, ao destacar o papel do advogado federal, torna-o peça primordial
as mediações envolvendo pessoas de direito público, lhe conferindo atribuições que importam
na sua representação aos interesses gerais.
Porém, como abordado anteriormente, a edição das disposições acerca da mediação
do interesse público, teve uma tratativa genérica ao definir a matéria que seria objeto das
transações. Essa amplitude decorrente da ausência de uma norma contundente reflete
diretamente na atuação do advogado que está transigindo.
Nesse sentido, esclarece o autor citado abaixo:

Enfim, o que parece ser o grande desafio não é a verificação da aptidão ou não dos
entes públicos de realizar acordos, mas sim quais seriam as suas condições. É
inegável que a margem de liberdade para realização de acordos pelo poder público
é menor do que a existente para o setor privado. Acontece que, quando a situação
envolve o poder público, tem-se a prévia exigência de autorização normativa para
que membro da advocacia pública possa transigir em juízo. (PEIXOTO, 2016, p.
05).
Assim, o critério de admissibilidade das mediações, bem como o seu procedimento
fica a mercê de atos discricionários do agente público, que não possui um parâmetro legal para
pautar a sua atuação, ficando suscetíveis erros e, consequentemente, sanções.
No caput do artigo 36 da Lei nº 13.140/15 é determinado que as mediações ocorridas
na via extrajudicial devam observar parâmetros fixados em ato do advogado geral da União,
porém, como visto em momento oportuno, não há regulamentação que obedeça os critérios
da legalidade e que defina requisitos acerca do procedimento.
Essa ausência de disposição legal compromete o controle dos atos administrativos,
bem como a eficácia da mediação, pois a falta de uma lei autorizativa que determine critérios,
como: “a) agente competente; b) finalidade legítima; c) motivos razoáveis; e d) formas
transparentes e controláveis — accountability.”, sugeridos por Peixoto (2016); não
uniformizam as funções do advogado, fazendo-o incorrer em abusos de poder e desvios de
finalidade, podendo ser responsabilizados em vias penais, administrativas e cíveis, arcando
objetivamente como a arbitrariedade causada.
Dessa forma, conclui-se que o princípio da legalidade é instituto que se impõe nas
atividades do Poder Público, de modo a assegurar que os atos advindos de agentes estatais não
violem o interesse da sociedade. Porém, quando a Lei da Mediação não pontua expressamente
os direitos públicos passíveis de transação, principalmente no tocante aos interesses primários,
permite que tal questão caia num critério discricionário de quem está transigindo, influindo
numa insegurança jurídica decorrente da omissão normativa, bem como retira a eficácia do
procedimento no âmbito estatal.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os meios consensuais de solução de conflitos, comumente utilizados por particulares,


foram sendo incentivados na esfera da Administração Pública Federal através de amparos
legais, à exemplo, da Lei da Mediação (Lei 13.140/ 15) que busca promover
com a ajuda de um terceiro satisfazer mais facilmente as vontades das partes através
da transação de seus interesses.
Essa atenção do direito administrativo acerca desse instituto fundamenta-se no
interesse público que o cerca, já que busca-se promover a efetiva celeridade e economia
processual, tendo em vista o alto índice de processos que tramitam em todo país; sendo os
maiores litigantes os entes federais.
Porém, a inserção dos meios consensuais no setor público sofreu resistência devido
aos princípios clássicos do direito administrativo; a supremacia do interesse público sobre
privado e a indisponibilidade desse interesse, que criaram uma barreira em torno dos direitos
públicos, tornando-os indisponíveis.
Contudo, as concepções modernas acerca dos citados princípios, que relativizaram a
soberania do interesse coletivo, permitiu a prática dos meios adequados de resolução de
controvérsias no setor estatal, desvinculando-se da ideia de intrasacionabilidade e alinhando-
se as novas políticas consensuais do Poder Judiciário.
O presente raciocínio pauta-se na análise analítica descritiva sobre a Lei da Mediação
no âmbito federal, precisamente nas câmaras da Advocacia Geral da União (AGU), que
atendem os conflitos envolvendo particulares e o ente federal, seja da administração direta ou
indireta, aproximando o administrado do Estado.
Foi percebido que a questão principal não se trata da (im)possibilidade de transação
dos direitos indisponíveis, e sim, da liberalidade que eles são transacionados. A Lei da
Mediação transformou-se em um marco legal ao inserir esse instituto na Administração
Pública Federal, porém, o critério da consensualidade foi deixado à atuação daquele que está
transigindo, havendo uma ausência de comando legal que norteie o trabalho do advogado
público federal, bem como determine expressamente quais direitos são aptos a mediação.
Essa ampla discricionariedade afeta diretamente a efetividade que a mediação traria
aos processos envolvendo o Poder Público Federal, devido as nulidades que alcançariam os
acordos celebrados, em razão de excessos ou desvios de conduta realizados pelos agentes
públicos, tornando-os objeto de controle, podendo ser responsabilizados por suas ações,
retirando a atratividade do procedimento da mediação.
Neste sentido, compreende-se que o ideal seria uma previsão legal que pontuasse o
papel do advogado público frente aos direitos inerentes a Administração Pública Federal
passíveis de transação, assegurando a devida eficácia da mediação, bem como atendendo a
segurança jurídica.

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O COMPLIACE COMO FERRAMENTA PREVENTIVA AO COMBATE À
CAPTURA POLÍTICA DAS AGÊNCIAS REGULADORAS 309

Tâmara Suelen Brasil dos Santos 310


Ana Maria Gomes Ferreira 311

RESUMO

Com o cenário nacional bastante expressivo, o Brasil encontra-se submerso em escândalos


envolvendo práticas de corrupção, que acometem boa parte das instituições brasileiras.
Medidas de integridade advindas do setor privado começaram a ser instituídas no setor
público, visando estancar práticas ilícitas dentro dos entes estatais. Essas medidas baseiam-se
no principio da transparência, por condicionar a administração à observância de normas, bem
como a realização de controle efetivo que garante resultados eficazes a Administração
Pública. Ante o cenário atual das Agências Reguladoras, que encontram-se “subordinadas” ao
poder político, nota-se perda da prerrogativa fundamental das referidas autarquias, referente
a autonomia administrativa para realização de suas funções. Assim, refletiremos como as
medidas de integridade voltadas ao sistema compliance garantem o restabelecimento da
independência gerencial imprescindível as Agências Reguladoras.

Palavras-chave: Agências Reguladoras. Compliance. Captura Política.

INTRODUÇÃO

Em decorrência da modernização da Administração Pública brasileira, ocorreu no


Brasil no começo dos anos noventa a chamada “onda privatizadora”, que levou o Estado à
uma prestação mais adequada de certos serviços com maior efetividade e eficiência na
fiscalização, realizando o gerenciamento e normatização da prestação de serviços públicos por
particulares.
Para tal foram incorporadas ao sistema jurídico brasileiro as chamadas Agências
Reguladoras, as quais são dotadas de características próprias tais como, independência
funcional, financeira e poder normatizador, características que tinham o condão de corroborar
com a sua imparcialidade e impedir que estas fossem acometidas pelo fenômeno da captura
política. Ocorre que, apesar de todo aparato especial e uma série de características inerentes,
as Agência Reguladoras, ainda assim, elas são afetadas pela corrupção.
Desta forma, compreende-se ser de suma importância a utilização do compliance
para que, por meio de práticas e políticas integrativas, seja mantida a independência do
exercício das funções das citadas agências, bem como haja a redução de arbitrariedades.

309
GT 8 – Estudos Contemporâneos em Direito Público e Processo.
310
Graduanda em Direito pelo Centro universitário Mauricio de Nassau. tamara.sbrasil@gmail.com
311
Graduanda em Direito pelo Centro universitário Mauricio de Nassau. anamaria.gf_@hotmail.com
Assim, o presente trabalho pauta-se na análise analítica descritiva das doutrinas
jurídicas e de normativas que versem sobre o presente tema, visando refletir sobre o
compliance como ferramenta fundamental para preservação da real função das Agências
Reguladoras, mostrando-se necessário pra impedir a captura política, por meio da proteção da
sua independência.

1 AS AGÊNCIAS REGULADORAS NO SISTEMA JURIDICO BRASILEIRO

O instituto das Agências Reguladoras foi desenvolvido inicialmente nos Estados


Unidos e no Reino Unido, este último representa uma das bases da Administração Pública
Americana onde, segundo Odete Medauar (2003), instituições semelhantes às citadas agências
foram instituídas pela primeira vez em 1887 com o Interstate Commerce Comission, que tinha
como propósito inicial regulamentar negócios privados americanos. Posteriormente, este
instituto foi trazido para o Brasil em 1997, pelo governo de Fernando Henrique Cardoso, que
se viu inspirado com as características das instituições americanas por causa da sua autonomia
gerencial, financeira e em relação ao poder executivo.
Como bem coloca Odete Medauar (2003), a adoção de tal instituto decorre da
modernização da Administração Pública brasileira, uma vez que, sofre grandes mudanças em
decorrência do abandono do modelo monolítico centralizado de controle passando para uma
estrutura de controle policêntrica, tendo como principal característica a pluralidade dos
centros de decisões e responsabilidade.

Uma das manifestações mais visíveis do redimensionamento do papel do Estado


traduz-se na criação destas entidades, independentes do Governo, com finalidades
específicas de regulação para a garantia da constituição e o funcionamento de um
mercado concorrencial, respeitando-se os interesses dos usuários [...] (MENEZES,
2005, p. 110).

A adoção do modelo das Agências Reguladoras pelo sistema jurídico brasileiro


falhou em não promover uma adequação deste instituto à realidade da estrutura jurídica
receptora, assim em consequência da ausência de modificação do modelo adotado para que
pudesse abarcar as características próprias do direito brasileiro, recebeu a personalidade
jurídica de “autarquia especial” vinculadas ao Ministério respectivo.
Isto posto, cabe a reflexão acerca da dimensão da independência pertencente a este
ente, em vista da vinculação das Agências Reguladoras à seara política por meio da ligação à
um Ministério.
Este raciocínio também é compartilhado por Carlos Ari Sundfeld que busca expressar
a essencialidade da independência e da autonomia das Agências Reguladoras no momento de
suas tomadas de decisões:

A opção por um sistema de entes com independência em relação ao Executivo para


desempenhar as diversas missões regulatórias é uma espécie de medida cautelar contra
a concentração de poderes nas mãos do Estado, inevitável nos contextos
intervencionistas. A nova realidade da vida exige que o Estado interfira mais na
economia? Pois bem, que se lhe reconheçam funções de regulador, mas sem somá-las
a todos os vastos poderes de que o Executivo já dispunha. Daí a reivindicação, forte
especialmente entre as empresas mais sujeitas à regulação - ou de organizações não-
governamentais, em relação, por exemplo, à regulação ambiental, de que o regulador
não seja o Executivo, mas um ente com toda a autonomia possível. (SUNDFELD,
2000, p. 25)

É imprescindível ressaltar que as citadas agências em nosso país detêm natureza


jurídica de autarquia especial, compondo a Administração Pública Indireta com finalidades
complexas, como regulação e fiscalização, são detentoras do Poder decisório, ou seja, resolver
contendas em última instância administrativa além de seus membros gozarem de estabilidade
provisória apenas podendo sofrer o desligamento do cargo por: encerramento do mandato;
renúncia e sentença judicial transitada em julgado. Porquanto, não se confundem com as
autarquias tidas, nesse contexto especifico, como autarquias comuns, como bem explica o
professor Vladimir Passos de Freitas:

Registre-se que elas não devem ser confundidas com as autarquias. Estas, apesar de
teoricamente pertencerem à administração descentralizada, na realidade se tornaram
tão burocráticas e ineficientes quanto os órgãos da administração direta.
As agências reguladoras têm objetivos mais elevados. Seus dirigentes têm mandato
fixo e estabilidade, são indicados pelo presidente da República e precisam ser
aprovados pelo Senado. Gozam de autonomia quase igual à dos magistrados. Seus
servidores são admitidos em concursos rigorosos e a remuneração é adequada.
(FREITAS, 2013, p.23).

1.2 Características das Agências Reguladoras

Algumas características são comuns tanto as autarquias especiais (Agências


Reguladoras) como as autarquias comuns, porém existem características determinantes e
distintivas que apenas são atribuídas as autarquias especiais, ou seja, as Agências
Reguladoras.
Desta forma, apresenta-se como pertinente neste momento trabalhar de maneira mais
incisiva cada uma destas características, que tratam-se da: (I) independência administrativa;
(II) Poder de produção normativa e poder decisório; (III) mandato fixo e estabilidade de seus
dirigentes e (IV) autonomia financeira.
I. A independência Administrativa :
A independência das Agências Reguladoras está ligada à sua não subordinação ao
Poder Executivo. Ou seja, não há relação de hierarquia e subordinação, apesar das aludidas
Agências fazerem parte da Administração Pública Indireta e serem ligadas a determinado
Ministério, elas não se submetem ao seu controle, principalmente em relação à dispensa dos
seus dirigentes, como já mencionado anteriormente, e não podem ser demitidos de forma
imotivada.
Para que os seus dirigentes não se encontrem obrigados de forma ilegal a se submeter
às vontades políticas do Presidente ou de qualquer outro, é concedida a referida autonomia
para o exercício independente e eficiente das funções atribuídas às Agências, regulando e
fiscalizando de maneira adequada, para promover a efetividade dos seus atos e dos seus
regulamentos.
II. Poder de Produção Normativa e Poder decisório:
Esta característica das Agências Reguladoras apresenta uma série de indagações em
relação à compatibilidade com o Sistema Jurídico brasileiro, suposta usurpação da atividade
legislativa por entes autônomos, ademais discute-se sobre a motivação dessa capacidade,
entretanto estas divergências não serão abordadas neste trabalho, mas tão só mente serão
trabalhados os posicionamentos adotados.
Compreende-se a produção normativa desse ente em decorrência de uma transmissão
democrática de atribuições, posto que, segundo Roberta Fragoso (2002, p.58) a delegação
legislativa é feita às agências pelo fato de terem sido criadas por lei e por ser o legislador o
detentor da legitimidade constitucional para transferir as balizas de atuação, o que não
significa dizer que este não se submete ao princípio da legalidade e da autonomia das funções,
essa transmissão ocorre feita pautada na total compatibilidade com estes princípios, segundo
Francisco Cavalcante (1999).
Percebe-se certa mitigação do monopólio da justiça uma vez que esses entes são
independentes e autônomos, não se submetendo ao executivo, nem estão alocados no âmbito
do poder judiciário, mas são detentores do poder de decisão em última instância
administrativa.
III. Mandato Fixo e Estabilidade dos seus dirigentes:
Os dirigentes das Agências Reguladoras são indicados pelo Presidente da República
e devem ser aprovados pelo senado federal, tendo um mandato de dois anos caso seja
aprovado. Todos aqueles que ocupam o cargo de dirigente das agências Reguladoras gozam
do instituto chamado quarentena, que é o impedimento de trabalhar na iniciativa privada no
mesmo ramo de atividade em que exerceu a direção da agência reguladora por um período de
quatro meses, continuando a perceber o salário, com intenção de proteger a Administração em
decorrência das informações privilegiadas que o dirigente possui, corroborando com sua
autonomia, impedindo que as Agências Reguladoras fossem capturadas pela seara econômica.
IV. Autonomia Financeira:
A autonomia financeira proporcionada as Agências Reguladoras é mais uma das
tantas formas que tentam de lhes assegurar independência e imparcialidade, sua autonomia
financeira é constituída por previsão legal, a lei que autoriza sua criação deve constar as suas
fontes de arrecadação, assim, pela arrecadação de tributos específicos, haverá ampliação das
margens de independência das agências reguladoras, conforme preceitua Fragoso (2002).
Assim tem-se, uma maior liberdade, para a elaboração e execução de suas despesas
na proposta Orçamentária, tendo em vista a suas fontes de financiamento e que suas atividades
são as de regular os serviços prestados ao contribuinte, decorrente da concessão realizada. Isso
se dá por meio de patrimônio próprio e receitas próprias a previsão legal de autonomia
administrativa e financeira, dotada de discricionariedade sob os limites constitucionais e
também respaldada pelo princípio da descentralização, como dito por Chiavenato (2012).
Todas as prerrogativas inerentes as Agências Reguladoras são barreiras impostas
para evitar o acometimento de desvios, que retiram a eficácia das atividades da citada
autarquia. Porém, com a falta de controle efetivo e o distanciamento de práticas transparentes
da administração, é comum acompanhar notícias que se refiram a escândalos envolvendo o
favorecimento de interesses alheios ao da Administração Pública, motivado muitas vezes pela
captura do poder político, advindos pelo cerceamento da independência administrativa.
Observaremos, então, como medidas integrativas ligadas ao controle e observância
de normas instituídas pelo sistema Compliance é capaz de restabelecer a autonomia inerente
as Agências Reguladoras.
Começaremos pela análise da Lei n° 13.103/16, que transformou-se no marco legal
do compliance no âmbito estatal.

2 LEI DAS ESTATAIS

A corrupção é um fenômeno que confunde-se com as raízes culturais do país e,


transformou-se num enorme entrave, exigindo da Administração Pública uma mudança de
postura que buscasse restabelecer a integridade da gestão estatal. Os recentes escândalos
demonstraram a necessidade de medidas que tratassem com um maior rigor o combate a
irregularidades no âmbito público, à exemplo da Lei Anticorrupção (Lei n° 12.846/13), que
elencou diversas infrações administrativas com as respectivas responsabilizações à figura do
gestor, prevendo de maneira clara o compliance como importante instrumento de repressão à
corrupção.
Porém, foi com a Lei nº 13.103/16 que o referido instituto foi inserido na esfera
estatal, ao tratá-lo no contexto das empresas estatais que desenvolvem atividades econômicas
revestidas de interesse público.
A referida lei inovou ao prevê em seus dispositivos uma tendência atual advinda da
organização de empresas do setor privado, o chamado sistema compliance, que considera a
transparência ferramenta fundamental para a efetividade do controle por meio de programas
de integridade que instrumentalizam essa administração.
O aludido sistema é citado no artigo oitavo da lei n° 13.303/16, que estabelece
requisitos mínimos de transparência que devem ser adotados pelas empresas estatais,
facilitando o controle interno e externo das suas atividades e gestão, permitindo um acesso
fácil às informações inerentes a essas empresas.

Art. 8o As empresas públicas e as sociedades de economia mista deverão observar,


no mínimo, os seguintes requisitos de transparência:
I - elaboração de carta anual, subscrita pelos membros do Conselho de
Administração, com a explicitação dos compromissos de consecução de objetivos
de políticas públicas pela empresa pública, pela sociedade de economia mista e por
suas subsidiárias, em atendimento ao interesse coletivo ou ao imperativo de
segurança nacional que justificou a autorização para suas respectivas criações, com
definição clara dos recursos a serem empregados para esse fim, bem como dos
impactos econômico-financeiros da consecução desses objetivos, mensuráveis por
meio de indicadores objetivos; II
- adequação de seu estatuto social à autorização legislativa de sua
criação; III - divulgação tempestiva e atualizada
de informações relevantes, em especial as relativas a atividades desenvolvidas,
estrutura de controle, fatores de risco, dados econômico-financeiros, comentários
dos administradores sobre o desempenho, políticas e práticas de governança
corporativa e descrição da composição e da remuneração da
administração; IV
- elaboração e divulgação de política de divulgação de informações, em
conformidade com a legislação em vigor e com as melhores
práticas; V
- elaboração de política de distribuição de dividendos, à luz do interesse público que
justificou a criação da empresa pública ou da sociedade de economia
mista; VI - divulgação,
em nota explicativa às demonstrações financeiras, dos dados operacionais e
financeiros das atividades relacionadas à consecução dos fins de interesse coletivo
ou de segurança nacional; VII - elaboração
e divulgação da política de transações com partes relacionadas, em conformidade
com os requisitos de competitividade, conformidade, transparência, equidade e
comutatividade, que deverá ser revista, no mínimo, anualmente e aprovada pelo
Conselho de Administração; VIII - ampla
divulgação, ao público em geral, de carta anual de governança corporativa, que
consolide em um único documento escrito, em linguagem clara e direta, as
informações de que trata o inciso III; IX
- divulgação anual de relatório integrado ou de
sustentabilidade. § 1o O interesse
público da empresa pública e da sociedade de economia mista, respeitadas as razões
que motivaram a autorização legislativa, manifesta-se por meio do alinhamento
entre seus objetivos e aqueles de políticas públicas, na forma explicitada na carta
anual a que se refere o inciso I do caput. § 2o Quaisquer
obrigações e responsabilidades que a empresa pública e a sociedade de economia
mista que explorem atividade econômica assumam em condições distintas às de
qualquer outra empresa do setor privado em que atuam
deverão: I
- estar claramente definidas em lei ou regulamento, bem como previstas em contrato,
convênio ou ajuste celebrado com o ente público competente para estabelecê-las,
observada a ampla publicidade desses
instrumentos;
II - ter seu custo e suas receitas discriminados e divulgados de
forma transparente, inclusive no plano
contábil.
§ 3o Além das obrigações contidas neste artigo, as
sociedades de economia mista com registro na Comissão de Valores Mobiliários
sujeitam-se ao regime informacional estabelecido por essa autarquia e devem
divulgar as informações previstas neste artigo na forma fixada em suas
normas. § 4o Os documentos resultantes do cumprimento
dos requisitos de transparência constantes dos incisos I a IX do caput deverão ser
publicamente divulgados na internet de forma permanente e cumulativa (BRASIL,
2016, p.).

Percebe-se que além da observância e estabelecimento de normas de gestão e


conduta, a publicidade de informações apresenta-se como medida necessária ao combate à
corrupção através de um controle interno que operacionalize a integridade e a efetividade das
funções das estatais.
A sistemática de implementação das medidas integrativas é tratada no artigo nono do
aludido diploma legal, no qual estabelece as formas de implantação do sistema compliance
nas empresas, como a determinação de auditorias que devem ser estruturadas em Comitês
responsáveis pela verificação das obrigações determinadas em normativas internas e externas,
que assegurem lisura das atividades e gestão das citadas instituições.
As referidas medidas alinham-se com as diretrizes de Boa Governança Corporativa,
que visam estabelecer regras na administração de empresas capazes de monitorar
corretamente a organização da instituição, a fim de que sejam estabelecidas
responsabilizações adequadas, bem como a manutenção da probidade da empresa. Essas
medidas foram levadas à Administração Pública dentro das prerrogativas da estrutura estatal.

3 BOA GOVERNANÇA PÚBLICA


O conceito de governança corporativa pauta-se nas medidas que visam regular a
administração por meio de controle, colocando-se como importante ferramenta para sanar
conflitos e interesses internos, por meio da harmonização de boas práticas.
Em vista do interesse do setor público na adoção de tais medidas, a International
Federation of Accountants (PSC/IFAC) concluiu por meio de estudo, que para a
implementação da Governança Corporativa no âmbito público era necessário entender a
complexidade das entidades públicas por não ter um padrão e organização definido.
Assim, adequando às características do Poder Público, a Administração Pública
adotou critérios já consolidados em empresas privadas para o desenvolvimento e
aprimoramento de suas atividades, a chamada Boa Governança Pública.
Segundo o Tribunal de Contas da União – TCU, o referido instituto denomina-se em:

[...] mecanismos de liderança, estratégia e controle postos em prática para avaliar,


direcionar e monitorar a atuação da gestão, com vistas à condução de políticas
públicas e à prestação de serviços de interesse da sociedade. Cada vez mais a
sociedade tem demandado dos governantes racionalização dos gastos públicos,
equilíbrio fiscal, estabilidade monetária e investimentos em infraestrutura, saúde,
educação, mobilidade urbana, habitação e segurança. A boa governança de
organizações públicas contribui para a superação desse desafio. (BRASIL, 2014,
p. 05).

A partir dessa premissa, entende-se que as atividades do Poder Público quando


submetidas à avaliação, direcionamento e monitoramento – práticas inerentes a Governança
Pública, promovem uma gestão satisfatória, por meio da observância de normas de boas
condutas e mecanismos que garantam a probidade da Administração Pública.
Ainda, segundo o TCU, “mecanismos devem ser adotados, em especial liderança,
estratégia e controle” (BRASIL, 2014, p. 05) para implementação efetiva da Boa Governança,
que se exerce pela preponderância do bom relacionamento entre as partes, pela fixação de
metas, a necessária prestação de contas que coaduna-se com a transparência das ações e, a
responsabilização correta dos profissionais.
A Lei nº 13.303/16 determinou que as estatais deveriam seguir requisitos que
atendessem aos critérios da Boa Governança para o combate à corrupção, exigindo a
elaboração de relatórios de execução de políticas internas, necessários ao controle da
administração das empresas com base na estratégia, liderança e informações.
A necessidade de uma boa liderança advém de uma articulação e definição de atos que
guiem o gestor na condução da sua administração, bem como as sanções inerentes aos abusos
de poder e aos desvios de finalidade, assegurando a integridade de suas ações e de seus
subordinados, atendendo as exigências das atividades que envolvem o interesse público.
A estratégia e o controle alinham-se com os critérios de transparência, equidade e
objetividade, que visam através de um bom planejamento a instalação de políticas éticas nas
entidades públicas, que podem ser efetivadas com medidas ligadas ao sistema compliance,
como a adoção de código de ética.
O Decreto de n° 9.203/17 no seu artigo segundo, inciso primeiro, que dispõe sobre a
política de governança da administração pública federal direta, autárquica e fundacional,
ratifica que os citados mecanismos de liderança, estratégia e controle ensejam a prática de
avaliação, monitoramento e gestão na efetivação de políticas públicas e na prestação de
serviços.
Determinando, ainda, que os princípios e objetivos do referido instituto são: “I -
capacidade de resposta; II - integridade; III - confiabilidade; IV - melhoria regulatória; V -
prestação de contas e responsabilidade; e VI - transparência.” (BRASIL, 2017, p. 01).
A referida normativa também identifica quais as diretrizes devem ser adotadas pela
Administração Pública para que corrobore com a efetivação da Boa Governança Pública
sistematizando-se por meio do compliance, instituto que passamos a analisar.

4 COMPLIANCE

Oriunda do idioma inglês, a palavra compliance não possui tradução literal para o
idioma português, mas sabe-se que está ligada a ideia de observância às normas e medidas
que assegurem a ética interna de uma empresa.
O Decreto Regulamentador nº 8.420/15 da citada Lei das Estatais delineou o que
seria o referido instituto:

[...] conjunto de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e


incentivo à denuncia de irregularidades e na aplicação efetiva de códigos de ética e
conduta, políticas e diretrizes com objetivo de detectar e sanar desvios, fraudes,
irregularidades e atos ilícitos praticados contra a administração pública, nacional ou
estrangeira (BRASIL, 2015, p. 08).

Ante essa concepção de dar conformidade aos atos públicos, formou-se uma
discussão acerca da sua necessidade, em vista ao princípio da legalidade, que é responsável
por condicionar o agir do administrador público. Entretanto, o viés agregador do Sistema de
compliance é referente ao controle efetivo da Administração Pública, pautando-se no princípio
da transparência.
O citado sistema surge no âmbito estatal da necessidade de um monitoramento eficaz
dos seus setores, tarefa executada com maior facilidade no setor privado, pelo regime de
resultados que movem as empresas, definindo com maior destreza os setores que devem ter
maior observância para fins de alcance dos objetivos da instituição.
Contudo, considerando a dimensão e estrutura dos entes estatais, um controle com
maior efetividade, mapeado pelos pontos que demandam maior atenção no monitoramento,
torna-se um trabalho complexo, assim como dito pela International Federation of
Accountants (PSC/IFAC) quando da implementação da Boa Governança Pública, conforme
mencionado anteriormente.
Apesar de ser um encargo exacerbado, torna-se imprescindível um monitoramento
que busque ampliar os resultados de desempenho da Administração Pública e, o reflexo dessa
necessidade ampara-se nas medidas formatadas nos últimos tempos para a estruturação do
sistema compliance no Poder Público, como a citada Lei Anticorrupção.
A recepção do referido sistema foi fomentada pelos debates acerca da
responsabilização da pessoa jurídica, que além da instituição de sanções, requeriam a
implantação de medidas reunidas no conceito de Boa Governança Pública para realização de
prevenções. A citada implementação veio nas medidas sistematizadas pelo compliance, que
se desvencilhou de meros controles formais, para instituir controles com consistência em
monitoramentos.
Esses monitoramentos transformam-se em instrumento de gestão, para garantir a
integridade e a condução ética das atividades administrativas, bem como a ampliação da
qualidade dos serviços públicos entregues a população, deixando de ser apenas mais uma
medida de controle necessário a determinado caso isolado.
A instrumentalização do citado sistema formata-se nos chamados Pilares do
Programa Compliance, que sistematizam a maneira de execução das atribuições, que são:

“1 Identificar os riscos enfrentados pela organização e orientar a organização sobre


eles (identificação) 2
Desenvolver e implementar mecanismos de controle para proteger a organização
dos riscos identificados (prevenção)
3 Monitorar e reportar sobre a efetividade dos controles na administração da
exposição a tais riscos (monitoramento e detecção)
4 Resolver dificuldades e ocorrências de não conformidade caso e conforme
ocorram (resolução de problemas)
5 Orientar as áreas de negócios da organização sobre as regras/normas e controle”.
(MAKISHI, 2018, p. 02).

Essas medidas são inseridas como modelo de gestão, para condicionar o Poder
Público a absorver medidas de integridade que garantam equidade da administração, bem
como a efetividade desses controles.
A capacidade de condicionar as atividades do Estado à observância de normas e
proporcionar um monitoramento no agir administrativo dentro das regras de transparência,
transforma o sistema de compliance um instrumento capaz de proporcionar segurança à
setores da Administração Pública, desde as suas atividades internas até as externas.
Essa segurança à atividades internas atem-se além do efetivo cumprimento de normas
por parte do gestor, a promoção do exercício regular das atribuições dos ente administrativos
e dos seus administradores, conforme designado por lei, como verificaremos no caso adiante.

5 COMPLIANCE NAS AGÊNCIAS REGULADORAS

Com a adesão do Brasil à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento


Econômico (OCDE) neste ano, foram fortificadas as intenções do país em consolidar as
medidas ligadas ao sistema de compliance, ampliando para outros entes da Administração
Pública a instituição de medidas integrativas.
Para as Agências Reguladoras o referido sistema, surge como forma de auxiliar a
manutenção ou o restabelecimento da independência administrativa, que garante a lisura da
execução das atividades das citadas autarquias.
A referida autonomia, como visto anteriormente, é responsável por manter a
equidade dos atos administrativos do aludido ente, evitando que fique a mercê de interesses
alheios à Administração Publica, motivada por uma captura advinda de uma hierarquia
imposta pelo poder político, ensejando abusos de poder, bem como a realização de desvios de
finalidade.
A captura política das Agencias Reguladoras transformam-nas em instrumentos de
arbitrariedades, principalmente pela tomada de decisões assimétricas, que não garantem a
probidade das práticas reguladoras, se afastando da sua função social nos setores sensíveis da
sociedade.
A implementação do sistema de Compliance, por meio de seu programa de
integridade, vem atender a necessidade de um resgate a autonomia gerencial necessária a
manutenção do exercício independente das funções e prerrogativas das agências.
Esse resgate é instrumentalizado pela exigência da conformidade de normativas
inerentes ao citado sistema, bem como a um controle administrativo consubstanciado em
resultados que garantam o aumento do desempenho das atribuições estatais.
Os programas de integridade tornam-se auxiliadores ao cumprimento da norma,
garantindo a segurança da manutenção e efetivação dos comandos legais, que asseguram a
independência técnica para realização do poder normativo, fiscalizador, sancionador e
fomentador.
O mencionado controle sistemático interno funciona como um legitimador da
qualidade e eficácia das funções desempenhadas pelas as Agências, bem como realiza o
monitoramento das atividades ligadas à gestão, estabelecendo responsabilizações quando do
cometimento de abusos e desvios, ensejando práticas que evitem a fuga do gerenciamento da
administração e da tomada de decisões, permanecendo-as no âmbito das referidas autarquias
no seu regular funcionamento.
A manutenção da independência das Agências Reguladoras pode ser implementada
através de políticas e procedimentos estabelecidos, como a implantação código de conduta e
ética, para o desenvolvimento institucional alinhando-se com requisitos objetivos de
transparência, padronizando os processos regulatórios para assegurar à efetividade das
atividades inerentes as agências.
A concretização do sistema de compliance nas Agências Reguladoras podem se
estruturar no próprio ente, com a ampliação das funções de setores responsáveis pelo controle
interno, que se guiariam pelas diretrizes do referido sistema, aumentando a clareza dos
processos, como ocorre na Lei das Estatais, que previu requisitos mínimos de transparência a
serem observados.
Para evitar especificamente a captura política, o controle se daria pelo
estabelecimento de requisitos de verificação das tomadas de decisões gerenciais, as quais
seriam informadas por meio de relatórios emitidos aos setores de fiscalização responsáveis,
que em consonância com as normas, emitiria parecer quanto a lisura das determinações,
analisando a probidade e independência em que foram formadas, evitando a subordinação a
interesses políticos, assegurando a autonomia de gestão das agências.
Os setores de controle funcionariam como ferramentas para obstar a ocorrência de
desvios, contribuindo para o exercício regular dos citados entes e seriam instituídos na seara
interna das Agências Reguladoras, mas não seriam à elas submissas, ficando vinculadas a
órgãos de controles externos, que não demandaria mudanças orçamentárias, não onerando o
Estado, havendo apenas uma setorização do serviço interno já executado.
Tal medida alinha-se com o movimento atual, que busca implementar programas de
integridade em entidades públicas, buscando aumentar a transparência dos processos internos,
a fim de que sejam combatidas irregularidades nos setores públicos, à exemplo da
Controladoria da Geral da União, que se prepara para implantar de forma sistematizada
programa que estabelece a adoção de políticas de integridade no âmbito federal.
Por fim, nota-se que absorção do compliance na esfera estatal é medida que se impõe,
em vista do interesse público intrínseco as atividades da Administração Pública, que devem
ser dotadas de transparência para assegurar a efetividade do serviço público, por meio da
realização de controles que visem a melhoria e o alcance de resultados positivos ao Estado.

CONCLUSÃO

Porquanto, compreende-se a necessidade de adoção por parte das Agências


Reguladoras de práticas, sistemas e instrumentos que possam auxiliar para um desempenho
adequado das suas funções, de modo que, os institutos adotados apresentem efetividade real.
Assim sendo, uma das melhores formas de utilização do compliance no âmago das
Agências Reguladoras intencionando evitar a captura pela seara política, apresenta-se como a
instituição de critérios a serem obrigatoriamente seguidos pelos seus dirigentes no momento
da tomadas de decisões, de contratações, além de se apresentar como necessário a criação de
um setor interno responsável pela fiscalização da adequada prática de atos dos dirigentes das
Agências Reguladoras.
Estabelecendo mecanismos de responsabilização e prestação de contas ao referido
departamento, na tentativa de assegurar que o agente tome as decisões na gestão da Agência
Reguladora visando o interesse público.
O que nos leva a compreender que para a prevenção e combate à captura política das
Agências Reguladoras, de forma eficiente e adequada se faz necessária uma mudança
meramente estrutural, na qual se opta por treinamento e realocação de pessoal.
De modo que o referido setor seria responsável pela fiscalização da prática do sistema
de compliance nas agências reguladoras, sendo o mesmo vinculado ao departamento já
existente responsável pela fiscalização, porquanto não havendo aumento de despesas, mas
apenas, uma mudança estrutural, uma vez que, promover práticas que visam a transparência,
a prestação de contas e eficiência das Agências, faz com que as mesmas ganhem credibilidade
e confiança tanto interna, quanto externa.

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INFIDELIDADE VIRTUAL: conjugando o verbo tindar, entre outros312

Giorge Andre Lando313


Isabele Moraes D’Angelo314

RESUMO

O casamento impõe aos cônjuges o dever de fidelidade recíproca, que representa o direito de
exclusividade nas relações afetivas-sexuais entre o casal. O presente artigo tem como objetivo
estudar a infidelidade virtual a partir do uso de aplicativos. Trata-se de uma pesquisa
qualitativa e bibliográfica, com amparo na revisão de literatura quanto ao tema. A infidelidade
conjugal, antes cometida clandestinamente no mundo real, ganha com a internet um novo
espaço, onde os relacionamentos extraconjugais podem se manter ocultos com maior
facilidade. Ademais, o uso de aplicativos possibilitaram a expansão da infidelidade virtual,
pois os smartphones se tornaram uma ferramenta de acesso a internet em qualquer lugar com
sinal disponível. Portanto, o cônjuge infiel pode encontrar o seu “caso” em qualquer lugar,
bem como levá-lo consigo para onde for, e estará protegido pelo direito à intimidade e à vida
privada. Entretanto, deve ser considerada a intimidade conjugal, esfera esta que abrange fatos
que são de interesse do casal, mesmo quando um dos cônjuges entende se tratar de algo
sigiloso. A partir desse entendimento, o cônjuge inocente poderá acessar as informações do
outro consorte sem violar sua intimidade, haja vista se tratar da intimidade do casal.

Palavras-chave: Infidelidade virtual. Aplicativos. Intimidade conjugal. Dano moral.

INTRODUÇÃO

A fidelidade, ou melhor, a infidelidade, é tema antigo e esteve presente nos


ordenamentos jurídicos das primeiras civilizações: cita-se o direito hebraico, grego e romano.
É claro que, na antiguidade, a infidelidade da mulher, noiva ou casada, tinha consequências
diferentes daquela cometida pelo homem, noivo ou casado. Na verdade, considerava-se que
apenas a mulher era capaz de ser infiel, e as sanções contra a adultera e seu cúmplice eram
severas, pois os amantes pagavam com a própria vida.
O ordenamento jurídico brasileiro, desde a edição do Código Civil de 1916, tem entre
as suas normas a previsão da fidelidade como dever conjugal e o adultério como causa

312
Estudos Contemporâneos em Direito Privado.
313
Pós-doutor em Direito pela Università degli Studi di Messina, Itália. Doutor em Direito pela Faculdade
Autônoma de Direito de São Paulo. Mestre em Direito pela Universidade Paranaense. Advogado. Professor
Adjunto da Universidade de Pernambuco – UPE. E-mail: giorgelando.gl@gmail.com
314
Doutora e Mestra em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Advogada. Professora
Adjunta da Universidade de Pernambuco – UPE. Coordenadora Setorial de Extensão e Cultura da FCAP-UPE.
Membro da Academia Pernambucana de Direito do Trabalho. Membro da Associação Luso Brasileira de Juristas
do Trabalho – JUTRA. Líder do Grupo de Pesquisa Direito do Trabalho e os Dilemas da Sociedade
Contemporânea. Membro do GPTEC – Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo. E-mail:
belebm@hotmail.com
justificadora para a dissolução do casamento. Porém, a destinação é dada a homens e
mulheres, com punições mais brandas quando comparadas com a Idade Antiga.
Também é verdade que o sistema jurídico que regulamenta a dissolução da sociedade
conjugal já sofreu várias mudanças, e atualmente está mais flexível, tanto que oportuniza até
o divórcio extrajudicial, em determinados casos. Contudo a infidelidade continua, mais do que
nunca, sendo o motivo de muitos divórcios, principalmente, porque ganhou uma nova versão,
trata-se da infidelidade virtual.
A nova modalidade de infidelidade surgiu no século XX com a popularização da
internet. De lá para cá, o avanço tecnológico possibilitou às pessoas acessarem a internet em
celulares, pela televisão e até mesmo em relógios. Mas foram, especialmente, os celulares,
smartphones, que permitiram o uso dos aplicativos móveis e, com eles, foram criados
aplicativos para relacionamentos amorosos, os quais são utilizados por solteiros e,
clandestinamente, por pessoas casadas. O ambiente virtual que aproxima as pessoas também
abre mais espaço para a infidelidade.
Para tanto, o presente trabalho, que tem por objetivo estudar a infidelidade virtual a
partir do uso de aplicativos. Trata-se de uma pesquisa qualitativa e bibliográfica, com amparo
na revisão de literatura quanto ao tema. A pesquisa parte do método dedutivo, tomando como
premissa a valoração jurídica dos deveres conjugais e o princípio da boa-fé objetiva nas
relações matrimoniais e uniões estáveis. Desse modo, sustenta-se o direito à intimidade
conjugal entre os cônjuges/companheiros bem como a responsabilização daquele que falta
com o dever de fidelidade, ainda que a infração seja cometida com a utilização de aplicativos.
O artigo irá abordar os conceitos de fidelidade e lealdade, regulados, respectivamente,
nas entidades familiares casamento e união estável, bem como, as consequências decorrentes
da violação de um e outro. Também será discorrido sobre a modalidade de infidelidade virtual
e a modernização dos aparatos (aplicativos) que contribuem para a expansão do referido ilícito
civil. Por fim, a discussão percorrerá o estudo da responsabilização civil como medida
compensatória e punitiva ao cônjuge infiel.

1 TRAIR SEM SER DESLEAL

A celebração do casamento e a convivência em união estável constituem vínculo


jurídico entre os cônjuges e conviventes. A natureza jurídica das citadas relações conjugais é
denominada de negócio jurídico especial, por se tratar de um contrato familiar. Esta
classificação se deve ao conteúdo regulado por esta espécie de negócio jurídico, onde o
ingrediente principal é o afeto conjugal.
Como todo negócio jurídico, o vínculo criado em decorrência do casamento e/ou união
estável implica no surgimento de determinados efeitos relacionados pela legislação, quais
sejam: no casamento, conforme prevê o artigo 1.566, incisos de I a V do Código Civil, tem-
se a fidelidade recíproca, vida em comum, mútua assistência, sustento, guarda e educação dos
filhos, respeito e considerações mútuos; na união estável, artigo 1.724 do Código Civil, a
lealdade, respeito e assistência, guarda, sustento e educação dos filhos.
Como é possível observar, os efeitos pessoais são muito parecidos. No entanto, cumpre
destacar os deveres fidelidade recíproca e lealdade, cada qual relacionado com uma entidade
familiar própria. Segundo os doutrinadores, de forma unânime, considera-se que as referidas
expressões têm significados distintos. Tartuce (2016, p. 350) ensina que a fidelidade é
decorrência do casamento, exclusivamente, e a lealdade é gênero do qual a fidelidade é
espécie.
É possível encontrar autores que divergem sobre o conceito de infidelidade. Diniz
(2015, p. 146) apresenta um entendimento mais conservador, pois compara a infidelidade com
o adultério, quando afirma que o dever de fidelidade recíproca impõe ao cônjuge abster-se de
praticar relações sexuais com terceiro.
Embora o crime de adultério tenha sido revogado do Código Penal, o ilícito se manteve
no Código Civil, artigo 1.573, inciso I. O conceito que relaciona a infidelidade ao ato sexual
foi criado pela doutrina. Farias e Rosenvald (2015, p. 190) afirmam que não se deve mais
admitir tal compreensão porque o adultério não está exclusivamente atrelado à penetração
vagínica, bem como porque, o inciso V do artigo 1.566 do Código Civil faz referência ao
dever de respeito e consideração mútuos, o que atribui maior amplitude ao conceito de
infidelidade.
Madaleno (2015, p. 191), de modo contemporâneo, explica que a infidelidade não está
limitada ao ato sexual, pois a maior ameaça da infidelidade não está no relacionamento sexual,
e sim, na traição da confiança, gerando insegurança e uma perturbadora desconfiança pela
possível e temerária perda do parceiro, aumentando o senso de desvalorização da pessoa
atingida pela traição.
Assim, pode se afirmar que a infidelidade significa a exclusividade entre os cônjuges.
É certo, que o ato sexual extra relacionamento irá caracterizar o descumprimento do dever
conjugal, mas não só o comportamento sexual entre um dos consortes com terceiro teria esse
potencial. A exclusividade impõe a segurança, a confiança e o respeito entre os cônjuges como
um interdito para impedir que um deles se relacione afetiva e sexualmente com outra pessoa.
Quanto ao significado da expressão lealdade, vale fazer um importante apontamento,
pois, conforme já mencionado, a lealdade é gênero da qual a infidelidade é espécie. E, de
acordo com o que já foi exposto, a infidelidade impõe exclusividade. Logo, seguindo tal
raciocínio, Tartuce (2016, p. 350) ensina que é possível que alguém seja leal sem ser fiel. Ou
seja, os conviventes não tem o dever de serem exclusivos um do outro, porém, tem a obrigação
de informar sobre a possibilidade, ou da ocorrência de relacionamentos extras.
A expressão lealdade representa a aplicação do princípio da boa-fé objetiva nas
relações familiares. O dever regulado para as uniões estáveis não exige exclusividade entre os
conviventes, e sim, respeito e honestidade. Quando um dos conviventes comete traição, mas
oculta o fato do seu parceiro, ele está sendo desleal. Já, quando informa a aventura amorosa,
ele não deixa de ter cometido a traição, porém cumpre com o dever de lealdade, porque age
de forma honesta com o seu parceiro, fazendo jus a confiança por ele depositada.
É claro que o convivente traído, embora tenha consentido e/ou sido informado, não
está obrigado a manter a união estável. Ele pode requerer a dissolução, mas sem alegar quebra
de confiança, uma vez que o parceiro que cometeu a traição agiu com boa-fé objetiva, ou seja,
cumpriu com o dever de lealdade – inclusive poderia manter vários affaires sem violar a
confiança do casal.
Com a poligamia acontece algo semelhante. Observa-se que, nessa modalidade de
relacionamento conjugal o número de cônjuges é superior a dois, ou seja, de três ou mais
membros, o que impede a exclusividade que é característica da fidelidade. Entretanto, há
lealdade entre os consortes, os quais estão cientes da diversidade de parceiros amorosos. Na
referida ilustração, precisa-se considerar que a poligamia tem status de casamento em grupo,
portanto, permanente.
Outro exemplo de lealdade é o que ocorre com as famílias paralelas, que não se
confundem com a poligamia, onde todos os membros compõem o mesmo núcleo familiar. As
famílias paralelas são duas ou mais famílias afetivas-sexuais simultâneas, em que apenas um
dos membros participa de todos os núcleos, sendo tal fato de conhecimento dos demais.
Vale frisar que a lealdade não descaracteriza a traição, sendo possível trair e ser leal
ao mesmo tempo, uma vez que seu conceito está diretamente ligado à boa-fé objetiva, ou seja,
ao comportamento sincero e compatível com a confiança que se espera nas relações familiares.

2 INFIDELIDADE VIRTUAL: A EXPANSÃO PELO USO DE APLICATIVOS


A expressão infidelidade, com o passar dos anos, sofreu modificação no seu
significado. Na Roma antiga a infidelidade da mulher era equiparada ao adultério, mesmo
quando cometida durante os esponsais (CHAMOUN, 1957, p. 159). O ato sexual esteve, por
muito tempo, presente no conceito da infidelidade, como um elemento condicional para a sua
configuração.
A doutrina brasileira, durante a vigência do Código Civil de 1916, também relacionava
a infidelidade ao adultério. França (1988, p. 281) afirmava estar implícita na fidelidade a
exclusividade de certos direitos de um cônjuge sobre os aspectos da personalidade do outro,
bem como, a obrigação de não fazer, por parte de cada qual, que, desatendida, resultaria no
adultério.
Até mesmo o atual Código Civil, faz referência à fidelidade recíproca como dever
conjugal e ao adultério como causa de dissolução do casamento. Alguns juristas ainda se
posicionam confundindo infidelidade com adultério, o que não mais corresponde com a
realidade, diante das novas situações surgidas com a internet. Afinal, o ambiente virtual
impossibilita o contato físico, o que impediria a configuração do adultério. Logo, o elemento
ato sexual, tão somente, não tem mais a conotação específica para a determinação do conceito
de infidelidade.
Decididamente, o relacionamento virtual entre pessoas casadas não configura
adultério, tornando-se inadequada a utilização do termo adultério virtual. Todavia, em virtude
da definição ampla observada na infidelidade, esta não está descartada de ocorrer via rede.
Tartuce (2016, p. 108) ao definir a infidelidade virtual afirma que esta restará caracterizada
nos “casos em que um dos cônjuges mantém contatos amorosos com outra(s) pessoa(s), pela
internet.”
Faz-se oportuno esclarecer que, embora não tenha contato físico e sexual, a
infidelidade virtual implica em conduta desonrosa praticada contra os direitos da
personalidade do outro cônjuge, credor do dever de fidelidade recíproca. Não se tem dúvidas
que a infidelidade virtual, de forma objetiva, provoca a violação da honra e a quebra da
confiança entre o casal, acarretando não apenas na falência do casamento, mas também em
danos morais para o consorte lesado. Para tanto, basta que o contato ocorra por meio de e-
mails, chats, Skype, Instagram, Facebook – comunicação via computador ou telefone.
O avanço tecnológico propiciou a expansão da infidelidade virtual. Na década de 90,
quando a internet se popularizou, foram, aos poucos, sendo criados os primeiros chats e sites
de relacionamentos amorosos, os quais necessitavam, para o acesso, um computador (de
mesa). Ou seja, o utensílio permanecia fixado em determinado espaço e, embora também fosse
utilizado com condão de facilitar os desejos lascivos do internauta, a falta de mobilidade do
instrumento condicionava o cônjuge infiel a ter mais cautela para o seu uso.
Geralmente, esse computador era de uso doméstico, localizado em um dos cômodos
da casa onde todos da família poderiam acessar. Estas mesmas circunstâncias impediam o uso
de senhas, pois poderiam levantar suspeitas. Assim, cabia ao consorte se utilizar de desculpas
relacionadas ao trabalho e estudos, bem como realizar a utilização em horários em que
estivesse sozinho, ou quando todos estivessem ocupados, ou dormindo. Observa-se que o
cônjuge ofensor acabava se distanciando das rotinas do lar e da família.
Mas a imobilidade do computador para acessar a internet não durou muito tempo. Logo
foram criados outros instrumentos que possibilitavam acessar internet de qualquer local, como
notebooks, Ipads, smartphones e relógios. A inclusão digital, a mobilidade e o fortalecimentos
das redes sociais facilitaram a violação da fidelidade para as pessoas casadas.
Tanto é verdade que Schelp (2009) afirma que, em nenhum outro país, as redes sociais
on-line tem alcance tão grande quanto no Brasil, com audiência mensal de 29 milhões de
pessoas. As redes são usadas para manter contato com os amigos, conhecer pessoas e paquerar.
O autor ainda registra que uma pesquisa do Ministério da Saúde revelou que 7,3% dos adultos
com acesso à internet fizeram sexo com alguém que conheceram on-line.
Esse volume de acessos tem uma explicação, pois a internet, por meios de chats e sites
de relacionamentos, permite o anonimato, a quebra dos tabus, revelar o que se oculta na
sociedade, extravasar desejos, dizer aquilo que é proibido. Segundo Araújo (2008, p. 331):
“Há palavras que não pode passar pela boca, no chat todas, sem exceção, podem ‘passar pelos
dedos’, basta que se digite ou se opere com algum recurso paralingüístico para expressar o
‘proibido’.”
Mas essa realidade foi novamente transformada pelo avanço tecnológico que culminou
na criação dos smartphones e aplicativos. A mobilidade do aparelho celular permite ao seu
proprietário acessar os aplicativos de qualquer recinto, desde que tenha sinal de internet.
Assim, os cônjuges não estão mais fixados ao antigo computador de mesa, e nem precisam
carregar o notebook para todos os lugares, pois a portabilidade e o multiuso do celular,
atualmente, suprem quase todas as necessidades, até mesmo no que se refere aos desejos.
Sobre os aplicativos, podem ser mencionados os mais comuns utilizados no Brasil,
como o Tinder. Trata-se de uma rede social onde os cadastrados (homens e mulheres, heteros
ou homossexuais) se utilizam de fotos e apresentam algumas características, quais sejam:
nome e idade são as mais frequentes.
O aplicativo permite que o usuário acesse perfis próximos à sua localização e, a partir
das fotos e informações que constam no perfil, ao clicar no “X”, ou deslizando o dedo para a
esquerda, descarta o perfil visualizado. Ao deslizar o dedo em cima da foto para a direita ou
clicando no coração verde, o usuário dá um like, sinalizando que tem interesse na pessoa, ou
seja, na gíria dos internautas, significa que ele curtiu o perfil.
Para acontecer o match é preciso que a pessoa que você curtiu também lhe dê um like.
Quando isso acontece é liberado o recurso de chat privado. Vale destacar que a pessoa não
consegue identificar quando ganha um like. Ou seja, só é possível acontecer um match quando
as duas, de forma aleatória, se curtem no aplicativo (RIBEIRO, 2015).
Os aplicativos Scruff e Grindr tem recursos semelhantes ao Tinder, porém destinados
ao público homossexual. Vale dizer que são mais diretos, pois o usurário ao ter acesso ao
perfil próximo da sua localização e de seu interesse pode, de imediato, iniciar uma conversa
pelo chat privado, sem precisar aguardar que a pessoa demonstre reciprocidade. Logo, a
combinação, quando acontece, se dá pelo desenrolar do diálogo.
O Instagram e o Facebook, que também constituem redes sociais, são bem mais
populares e anteriores ao Tinder, mas, embora possibilitem a paquera, não possuem o recurso
da localização como no Tinder. Portanto, as referidas redes sociais não tem como finalidade
principal oportunizar combinações amorosas e sexuais, o que não significa que isso não
aconteça.
Além desses aplicativos, que são aparentemente inocentes, também existem aqueles
com recursos sórdidos, destinados única e exclusivamente para estimular a traição. Fernandes
(2015) faz menção ao Ashley Madison, que tem um slogan bastante sugestivo: Life is Short.
Have an Affair - em tradução: “A vida é curta. Tenha um caso.” Nesta rede social é possível
realizar chamadas privadas, de forma com que não seja possível o rastreamento, uma vez que
o mesmo “desloga” o usuário remotamente.
Outro aplicativo interessante é o Tiger Text, que apresenta recursos semelhantes ao
Snapchat, uma vez que delimita um tempo para cada mensagem. Ou seja, ela irá desaparecer
do celular, independente se você visualizou ou não. É uma boa alternativa para as pessoas que
não querem deixar rastros de conversas "picantes", para que o(a) parceiro(a) não descubra
(FERNANDES, 2015).
As vantagens dos três aplicativos aludidos é justamente cometer a traição e impedir
que o cônjuge venha a tomar conhecimento, haja vista que as referidas redes sociais têm como
recurso esconder os vestígios da infidelidade, que acontece primeiramente na modalidade
virtual, mas que pode evoluir para o ambiente real. A ideia é garantir ao cônjuge infiel
incursões afetivas fora do casamento, bem como, assegurar que este saia ileso após violar o
dever de fidelidade recíproca.

3 APLICATIVO RASTREADOR DE INFIDELIDADE E O DANO MORAL

No passado, o dever de fidelidade tinha funções bem definidas, quais sejam: o controle
da sexualidade feminina, uma vez que apenas a mulher era punida com o adultério; e a certeza
da paternidade dos filhos, para assegurar o patrimônio familiar unitário. De fato, as referidas
funções são ultrapassadas e as mulheres passaram a ser tratadas como sujeito de direitos.
Quanto aos filhos, não se faz mais distinção entre legítimos e ilegítimos. Ademais, o
ordenamento brasileiro sofreu uma importante atualização, especialmente o ramo de direito
civil, com a inserção do princípio da dignidade humana, onde a pessoa passou a ser o centro
do sistema jurídico e o patrimônio foi colocado em segundo plano.
Nessa toada, Lôbo (2004, p. 08) defende que os deveres conjugais, como a fidelidade
recíproca durante a convivência conjugal, são absolutamente inócuos, em virtude de serem
destituídos de sanção para seus eventuais inadimplementos. O autor tem razão nesse sentido,
uma vez que a emenda n. 66/2010 modificou o artigo 226, § 6.º da Constituição Federal,
transformando a separação em um instituto facultativo. Na sequência o Código de Processo
Civil de 2015 confirmou tal sistemática.
Ademais, em razão da atual redação do citado dispositivo, a culpa foi extirpada das
ações de dissolução da sociedade conjugal, o que significou a possibilidade de requerer o
divórcio por qualquer motivo, inclusive por falta de afeto. Além disso, o cônjuge traído não
tem ao seu dispor nenhum recurso para punir o consorte infiel, como, por exemplo, aplicar
uma multa e se manter casado - porque se manter casado daria a conotação de perdão tácito,
o que isentaria o ofensor de cumprir a sanção.
Todavia, os deveres de fidelidade recíproca, respeito e consideração mútuos ganharam
nova interpretação, passando a ser considerados substância do direito da personalidade à
honra, haja vista que as formalidades do casamento são pautadas pelo princípio da
publicidade, a qual se dá, desde o processo de habilitação com publicação do edital, até a
celebração do ato. Tal publicidade se mantém no cotidiano social com a identificação dos
termos cônjuges. Também é de conhecimento, a exclusividade entre os cônjuges, própria do
relacionamento conjugal, onde o respeito à fidelidade dá lugar à boa-fé objetiva, conforme
anteriormente mencionado (LANDO; ARAÚJO, 2016, p. 46).
Schreiber (2011, p. 69) acrescenta: “A imensa maioria das pessoas reserva elevado
valor à reputação de que desfruta no meio social. A honra constitui, de fato, um importante
aspecto da vida relacional do ser humano e a ordem jurídica reconhece a necessidade de
protegê-la.” No relacionamento familiar não é diferente, ou seja, o comportamento infiel de
um dos cônjuges afeta o outro, bem como aos demais membros que compõe a família.
Portanto, a traição não representa apenas a quebra do dever de fidelidade recíproca,
mas também, a violação do dever de cuidado com a honra (subjetiva) e reputação familiar
(objetiva). Nesses casos, o divórcio não é medida competente para resolver a questão, uma
vez que apenas tem a finalidade de dissolver o casamento, quando se tornou impossível de
manter a convivência entre o casal. Mas, a compensação dos danos morais causados pela
ofensa à honra, precisa ser satisfeita com instituto próprio para responsabilização do cônjuge
ofensor.
Para tanto, uma das decisões mais evocadas pelos juristas para ilustrar o cabimento da
medida é a sentença proferida pelo Juiz Jansem Fialho de Almeida, em maio de 2008. Adiante
segue trecho do julgado (BARBOSA, 2010):

Direito Civil – Ação de indenização – Dano moral – Descumprimento dos deveres


conjugais – Infidelidade – Sexo virtual (internet) – Comentários difamatórios –
Ofensa à honra subjetiva do cônjuge traído – Dever de indenizar – Exegese dos
arts.186 e 1.566 do Código Civil de 2002 – Pedido julgado procedente (TJ/DF,
Sentença proferida pelo Juiz Jansen Fialho de Almeida. 21/5/2008).

Recentemente, em abril de 2013, o Superior Tribunal de Justiça teve oportunidade de


se posicionar ao analisar Recurso Especial referente a danos materiais e morais por
descumprimento do dever de fidelidade. Na ocasião, o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva,
Relator do processo, afirmou que o cônjuge, que deliberadamente omite a verdadeira
paternidade biológica do filho gerado na constância do casamento, viola o dever de boa-fé,
ferindo a dignidade do companheiro (honra subjetiva). A família é o centro de preservação da
pessoa e base mestra da sociedade, logo, deve ser preservada no seu âmago a intimidade, a
reputação e a autoestima dos seus membros. (BRASIL, 2013).
Não existe uma unanimidade sobre o tema e os tribunais se dividem, alguns a favor da
condenação do cônjuge infiel por danos morais, outros contra. Todavia, na ânsia de resolver
a questão por intermédio da legislação, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n.
5716/16, do Deputado Rômulo Gouveia (PSD-PB), que prevê a condenação por danos morais
ao cônjuge infiel. A proposta visa acrescentar no Código Civil o artigo 927–A, com a seguinte
redação: “O cônjuge que pratica conduta em evidente descumprimento do dever de fidelidade
recíproca no casamento responde pelo dano moral provocado ao outro cônjuge.” (CÂMARA
DOS DEPUTADOS, 2017). De qualquer forma, a proteção da honra, por vezes, pode ser
difícil em virtude da quantidade de meios que possibilitam cometer a infidelidade virtual.
Porém, já existem no mercado dezenas de aplicativos que oferecem recursos variados para
descobrir a infidelidade. Um deles é o FlexiSpy, que permite ter acesso a todas as ligações,
localização, ler mensagens de texto e conferir os emails de seu parceiro(a). O Phonedeck é
ideal para monitorar mais de um gadget (aparelho) ao mesmo tempo e saber quais são os
números mais discados, incluindo o tempo de duração de cada papo, bem como saber qual foi
a conversa mais longa e a média de tempo de ligação. O Spy Phone PRO+ mostra tudo o que
foi enviado ou recebido por SMS após sua instalação, mesmo que as informações já tenham
sido apagadas pelo dono do telefone (HECKE, 2012).
Surge aqui uma dúvida: o uso do aplicativo rastreador violaria a intimidade alheia? O
cônjuge que mantém relacionamento extraconjugal sem o conhecimento do outro não pode
ser tutelado pelo direito à intimidade, pois o casamento estabelece comunhão plena de vida e,
diante disso, o descumprimento do dever de fidelidade é de interesse do cônjuge ofendido,
significando que a infidelidade em tela diz respeito à intimidade do casal (LANDO; ARAÚJO,
2016, p. 48).
Ademais, a intimidade conjugal compreende a eventos de interesse do casal, mesmo
que um deles não participe diretamente do fato. Seguindo essa linha de raciocínio, pode-se
afirmar que os cônjuges têm direito ao acesso às informações que lhes são comuns, sem
implicar em ofensa à privacidade do outro. Portanto, o cônjuge pode fazer uso do aplicativo,
uma vez que tem direito de saber com quem seu consorte está mantendo relações sexuais,
ainda que este não deseje ser descoberto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A infidelidade não é mais uma questão de gênero. Diante da igualdade de sexos


prevista na Constituição Federal de 1988 e, principalmente, a disposição dos deveres
conjugais direcionados ao casal, segundo o Código Civil, qualquer dos cônjuges pode cometer
traição. Homens e mulheres, independente da orientação sexual, ao escolherem o casamento
como entidade familiar conjugal, devem estar cientes das obrigações assumidas um para com
o outro e, dentre elas, o dever de fidelidade recíproca.
A imposição do dever de fidelidade como interdito sexual/afetivo tem uma razão maior
do que a certeza da prole legítima ou a garantia do patrimônio. Trata-se da responsabilidade
para com todos os membros da família, o dever de cuidado com o consorte, da honra e
reputação familiar. Ademais, a infidelidade, seja ela física ou virtual, sempre será real, não
devendo ser encarada como uma brincadeira sem consequências, uma vez que implica na
quebra da exclusividade sexual/afetiva e acarreta na violação à honra do outro.
Os aplicativos de celular, notadamente, colaboraram para a expansão da infidelidade
virtual. Diante da diversidade e facilidade de acesso, o número de adeptos das redes sociais
destinadas a relacionamentos amorosos só tem aumentado no Brasil e, consequentemente, as
traições também. São dezenas de aplicativos com a finalidade de oportunizar encontros,
inclusive aplicativos desenvolvidos especificamente para estimular a traição.
Todavia, não há aplicativos apenas para cometer a traição, pois também foram
desenvolvidos rastreadores que permitem ter acesso às ligações, localização do cônjuge, até
as mensagens trocadas, mesmo as que foram apagadas com o intuito de esconder o ato ilícito.
Com o uso dos rastreadores, o cônjuge ofendido poderá proteger sua honra e ainda requerer
danos morais e materiais, se for o caso, quando descobrir a infidelidade do outro, sem receio
de estar violando a privacidade do parceiro, haja vista, que a imposição do dever de fidelidade
para um, prevê para o outro o direito de saber se está sendo traído.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, J.C. Chats na web: a linguagem proibida e a queda de tabus. Linguagem em


(Dis)curso – LemD, v. 8, n. 2, p. 311-334, maio/ago. 2008.
BARBOSA, E. Infidelidade virtual. Migalhas. 24/03/2010. Disponível em:
<http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI104229,61044-Infidelidade+virtual> Acesso
em: fev. 2017.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça - REsp: 922462 SP 2007/0030162-4, Relator: Ministro


Ricardo Villas Bôas Cueva, Data de Julgamento: 04/04/2013, T3 - Terceira Turma, Data de
Publicação: DJe 13/05/2013.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de lei n. 5.716/16. 21/02/2017. Disponível em:


<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2090162>
Acesso em: fev. 2017.

CHAMOUN, E. Instituições de direito romano. 3. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Forense,
1957. 531p.

DINIZ, M.H. Curso de direito civil, v. 5: direito de família. 30. ed. ref. São Paulo: Saraiva,
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FERNANDES, F. Conheça os aplicativos de traição mais famosos do momento. Ekonomista.


05/03/2015. Disponível em: <http://www.e-konomista.com.br/d/apps-que-estimulam-a-
traicao/> Acesso em: fev. 2017.

FARIAS, C.C.; ROSENVALD, N.; Curso de direito civil, v. 6: famílias. 7. ed. rev. atual. e
ampl. São Paulo: Atlas, 2015. 727p.

FRANÇA, R.L. Instituições de direito civil. São Paulo: Saraiva, 1988. 1042p.

HECKE, C. 10 apps para descobrir se você está sendo traído. TECMUNDO. 30/04/12.
Disponível em: <https://www.tecmundo.com.br/apps/22773-10-apps-para-descobrir-se-
voce-esta-sendo-traido.htm> Acesso em: fev. 2017.

MADALENO, R. Curso de direito de família. 6. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro:
Forense, 2015. 1361p.

LANDO, G.A.; ARAÚJO, R.R.O. Direito à Intimidade e à Vida Privada: a transposição dos
limites no relacionamento conjugal. Revista do Direito (Santa Cruz do Sul. Online). v.1, p.31
- 51, 2016.

LÔBO, P.L.N. As vicissitudes da igualdade e dos deveres conjugais no direito brasileiro.


Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, IDBFAM, n. 26, p. 05-17,
out-nov/2004.

RIBEIRO, G. O que é e como funciona o tinder? Techtudo. 28/12/2015. Disponível em:


<http://www.techtudo.com.br/dicas-e-tutoriais/noticia/2015/12/o-que-e-e-como-funciona-o-
tinder.html> Acesso em: fev. 2017.

SCHELP, D. Nos laços (fracos) da internet. VEJA. 08/07/2009. Disponível em:


<http://veja.abril.com.br/080709/nos-lacos-fracos-internet-p-94.shtml> Acesso em: jan.
2017.

SCHREIBER, A. Direitos da personalidade. São Paulo: Atlas, 2011. 275p.

TARTUCE, F. Direito civil, v. 5: direito de família. 11. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro:
Forense, 2016. 697p.
A OBRIGAÇÃO DE PRESTAR ALIMENTOS POR OCASIÃO DA RUPTURA DO
VÍNCULO CONJUGAL315

Raiane Priscila dos Santos Olimpio316


Sheyla Canuto Barbosa Freire317

RESUMO

A presente pesquisa trata da obrigação de prestar alimentos a cônjuge ou companheiro por


ocasião da ruptura do vínculo conjugal. A pesquisa se debruça sobre o inteiro teor de acórdãos
do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (TJ/BA) e do Tribunal de Justiça do Estado do Rio
Grande do Sul (TJ/RS), publicados no período de 2002 a 2017. Faz-se o seguinte
questionamento: há divergência ou convergência de entendimentos entre os tribunais
brasileiros referidos em relação a ser possível ou não a fixação de alimentos em favor de ex-
cônjuge ou ex-companheiro(a)? O objetivo deste trabalho é analisar a possibilidade da
concessão de alimentos entre os companheiros e cônjuges no fim do relacionamento amoroso
no ordenamento jurídico brasileiro. Por meio da metodologia de estudos de casos, bem como
da análise de conteúdo, busca-se identificar as contribuições dos casos em estudo para
compreensão do entendimento atual dos tribunais sobre a temática. Como resultados obtidos,
identifica-se que há um argumento que prevalece nos votos dos desembargadores, qual seja,
a comprovação de existência de necessidade do alimentado e possibilidade do alimentante.
Frisa-se que não se vislumbra diferença de entendimentos nos tribunais em questão.

Palavras-chave: Dignidade da pessoa humana. Direito de família. Divórcio. Necessidade


versus possibilidade. Prestação de alimentos.

INTRODUÇÃO

A dignidade da pessoa humana é a base central e essencial da Constituição da


República Federativa do Brasil (CF/88) e do direito de família tendo a Carta Magna, como
prioridade, proteger os direitos da pessoa. Cahali (2006) destaca que os alimentos são
necessários à subsistência, mantenedores da própria existência, da vida em seus aspectos
físico, intelectual e moral. Nesse sentido, o que se busca com a prestação dos alimentos ao ex-
cônjuge é essa proteção da dignidade da pessoa humana por ocasião da ruptura do vínculo
afetivo, seja o casamento ou a união estável.
Na tentativa de conceituar o instituto dos alimentos, o doutrinador Orlando Gomes
(2012) diz que os alimentos são prestações para satisfação das necessidades vitais de quem
não pode provê-las por si. Por sua vez, no Brasil, os alimentos compensatórios são pagos por

315
Artigo submetido ao Grupo de Trabalho (GT 9) “Estudos Contemporâneos em Direito Privado” do III
Congresso Pernambucano de Ciências Jurídicas da UPE – Arcoverde-PE.
316
Graduanda em Direito na Faculdade Sete de Setembro (FASETE), em Paulo Afonso/BA. E-mail.
raianeolimpio@hotmail.com
317
Advogada. Mestra em Direito pela UNICAP, em Recife/PE. Professora na FACAL/FACJUL, FASETE e
UFPE. E-mail. sheylacanutobf@gmail.com
um cônjuge ao outro por ocasião da ruptura do vínculo conjugal e têm o intuito de amenizar
o desequilíbrio econômico no padrão de vida de um dos ex-cônjuges que surge como fim do
casamento. Segundo Paulo Lôbo (2015), a pretensão compensatória tem finalidade distinta da
pretensão a alimentos. O autor menciona que seria mais adequado chamar aquela de
“compensação econômica”, pois sua natureza é indenizatória, ao contrário dos alimentos.
No que concerne à metodologia deste estudo, trata-se de pesquisa bibliográfica e
documental, com levantamento de legislação e decisões judiciais colegiadas do Tribunal de
Justiça do Estado da Bahia (TJ/BA) e do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul
(TJ/RS) sobre o tema. Tem como recorte temporal para coleta dos acórdãos o período de 2002
a 2017, nove decisões de cada tribunal compõem o corpus da pesquisa. Faz-se análise
exploratório-descritiva da legislação e das decisões. A investigação se caracteriza, portanto,
como qualitativa, tendo em vista que os dados utilizados são eminentemente textuais, dito de
outra forma, empírico-discursivos e são explorados elementos subjetivos não se importando
com quantificações.
Enquanto existe vínculo conjugal, em geral, o casal busca com soma de esforços
chegar a um determinado nível de riquezas, adquirindo assim uma estabilidade financeira, seja
com os dois cônjuges trabalhando externamente ou não. Quando acontece o rompimento do
casamento ou da união estável pode acontecer de um dos cônjuges perder o patamar de vida
que levava.
Nesse contexto, o estudo parte da seguinte questão problematizante: há divergência ou
convergência de entendimento entre o TJ/BA e TJ/RS em relação a ser possível ou não a
fixação de alimentos em favor de ex-cônjuge ou ex-companheiro(a)? Acrescenta-se a seguinte
questão complementar: a possibilidade jurídica de buscar alimentos do ex-cônjuge encontra
seu limite na decretação do divórcio?
O estudo traz contribuições para a sociedade e para a academia, pois identifica os
posicionamentos atuais de tribunais brasileiros sobre o tema, bem como esclarece à sociedade
a respeito dos alimentos, que configuram direitos da personalidade e também um direito
fundamental à vida de pessoas que por si só não podem prover a sua subsistência, seja em
caráter temporário ou vitalício.
O objetivo deste trabalho é analisar a possibilidade da concessão de alimentos entre os
companheiros e cônjuges no divórcio e após o divórcio no âmbito do ordenamento jurídico
brasileiro a partir da análise de casos concretos julgados pelos tribunais em estudo. A realidade
observada mostra questões de gênero que perpassam o tema, a exemplo da observação de que
em todos os processos que formam o corpus desse estudo apenas a mulher figura pleiteando
alimentos, mesmo sem ter sido utilizado qualquer filtro na pesquisa booleana nesse sentido.

OS ALIMENTOS E A PROTEÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Todas as mudanças ocorridas no âmbito do ordenamento jurídico, principalmente no


tocante ao Direito Civil e Direito de Família, foram recepcionadas e protegidas pelo pilar que
serve de fundamento para a Constituição Federal de 1988, que é o princípio da dignidade da
pessoa humana. Segundo Fagundes (2014), a proteção da dignidade da pessoa humana é, pois,
o fim a que se busca com o cumprimento dos alimentos.
Deste modo, os alimentos são meios precisos e aptos para proteger a dignidade da
pessoa humana, são direitos da personalidade, e o seu pagamento serve para suprir as
necessidades daqueles sujeitos que, por qualquer razão, não conseguem por si só prover o seu
sustento. Os alimentos são indispensáveis e são também uma condição para a sobrevivência
humana e acompanham o sujeito durante toda a sua vida, como processo natural da
necessidade de cada indivíduo (CAHALI, 2006).
Cahali (2006) diz que os alimentos estão ligados direta e intrinsecamente a necessidade
de cada indivíduo. Orlando Gomes (2012) enfatiza que os alimentos se prestam a satisfação
de necessidades vitais. A ideia de alimentos abarca comida, vestes, calçados e tudo aquilo que
se torna indispensável a sobrevivência humana. Alimentos são impostos por lei, para que
tenha efeito mantenedor e conservador da vida. Os alimentos também podem ser vistos como
forma de o ex-cônjuge manter, após a ruptura do vínculo conjugal, o padrão de vida que
outrora possuía – alimentos compensatórios.
As autoras Costa e Lôbo (2017) enfatizam que na pensão compensatória não se está a
discutir critérios de subsistência, mas sim de condições de igualdade entre os ex-cônjuges ou
ex-companheiros. Frisam ainda que uma vez fixados os alimentos, essa obrigação tem que ser
cumprida sob pena de prisão civil em caso de descumprimento. Tal previsão configura um
meio coercitivo para que se cumpra com o dever de assistência.
Para fins desse artigo, traz-se alguns trechos de análises com apenas algumas decisões
que compõem o corpus do estudo em razão da necessidade de adequação do texto à limitação
de páginas.

ANÁLISE DAS DECISÕES JUDICIAIS DO TJ/BA E TJ/RS

Passa-se a análise dos trechos de argumentos proferidos em algumas das 18 (dezoito)


decisões coletadas (dezoito casos). A fim de comparar os entendimentos do TJ/BA e TJ/RS,
traz-se em tópicos separados as decisões selecionadas dos dois tribunais.
Em cada tribunal, as decisões foram analisadas com base em três categorias temáticas
a partir de perguntas-problemas sobre o tema: a) quais os fundamentos proferidos nas decisões
que deferem os alimentos para o ex-cônjuge?; b) quais os fundamentos proferidos nas decisões
que indeferem os alimentos para o ex-cônjuge?; c) quais os fundamentos proferidos nas
decisões que deferem parcialmente o pleito de alimentos a ex-cônjuges?

CATEGORIAS TEMÁTICAS ANALISADAS


Quais os fundamentos proferidos nas decisões que deferem os alimentos para o
A ex-cônjuge?

Quais os fundamentos proferidos nas decisões que indeferem os alimentos para o


B ex-cônjuge?;

Quais os fundamentos proferidos nas decisões que deferem parcialmente o pleito


C de alimentos a ex-cônjuges?

Elaborado pelas autoras.

Para melhor compreensão, passa-se a analisar alguns trechos dos julgados


selecionados, primeiramente os proferidos pelo TJ/BA.

Decisões do TJ/BA

Categoria – A: Quais os fundamentos proferidos nas decisões que deferem os alimentos


para o ex-cônjuge?

O caso 3 do corpus dessa pesquisa trata da Apelação nº 0357286-25.2012.8.05.0001,


julgada pelos Desembargadores integrantes da 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do
Estado da Bahia, publicada em 14 de fevereiro de 2014, com votação unânime. A apelação
foi interposta pela ex-cônjuge varoa que requereu que fosse dado provimento ao recurso de
apelação, e que fosse concedido o pedido de que a prestação alimentícia, ofertada pelo apelado
no valor de 01 (um) salário mínimo fosse mantida, pelo menos até a apelante conseguir
concluir o curso técnico em que está matriculada, o qual tem a previsão de acabar no prazo de
02 (dois) anos e 4 (quatro) meses.
No mérito, a apelante alegou que, em consequência de ter ficado 12 (doze) anos casada
e ter se afastado do mercado de trabalho, para desenvolver atividades referentes apenas ao lar
e ao cuidado dos filhos e do ex-marido, hoje em dia não se encontra em com condições,
tampouco qualificações suficientes, para ser reintegrada ao mercado de trabalho e assim
desenvolver atividade laborativa, ou seja, não tem como conseguir, por seu próprio esforço, o
seu sustento, mesmo já tendo se inscrito em diversos bancos de dados para participar de
seleção de emprego, como alega ter sido comprovado nos autos.
A ex-cônjuge varoa, alegou ainda que já está em idade avançada, pois se encontra com
mais de 40 anos de idade e que por essa razão, dificilmente ingressará no mercado de trabalho.
Continuou alegando que, após muita dedicação, a apelante foi contemplada com a aprovação
no curso de Eletrônica do IFBA – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia. Tal
aprovação encheu de esperanças a ex-cônjuge, que viu nesse curso técnico, possíveis chances
de conseguir se inserir no mercado de trabalho, depois da sua diplomação, apesar da sua já
elevada idade.
Consta no voto do relator Desembargador José Cícero Landin Neto o argumento de
que a obrigação alimentar entre os cônjuges que decorre do dever de mútua assistência, nos
termos do art. 1.566, inciso III, do Código Civil, e permanece após o rompimento do vínculo
conjugal. E, embora as disposições do art. 1.704 do Código Civil estabeleçam a possibilidade
de o ex-cônjuge prestar alimentos ao outro, é imprescindível a análise do binômio necessidade
versus possibilidade para sua fixação dos alimentos mediante ação judicial.
O relator aduziu ainda que, os alimentos fixados podem ser revisados nos moldes do
art. 1699 do Código Civil, caso existam mudanças na situação financeira do alimentante e do
alimentado. Assim, entendeu que não haveriam dúvidas de que existe a obrigação da mútua
assistência entre as partes, conforme se depreende da Certidão de Casamento, sendo que a
apelante já conta com mais de 40 (quarenta) anos de idade e não se encontra inserida no
mercado de trabalho, motivo pelo qual necessita do amparo alimentar do ex-marido, restando
claro que sempre foi dependente deste como único provedor da família.
Salienta, ainda, que, atualmente, perante a doutrina e entendimento dos tribunais, a
pensão entre ex-cônjuges tem caráter temporário, nas circunstancias de vida das partes, por
isso, justifica-se a obrigação alimentar como dever de solidariedade e mesmo compensação
pelas condições da requerente, que se dedicou unicamente as atividades domésticas durante a
convivência de comum acordo. Deu provimento à apelação interposta pela ex-cônjuge varoa
para manter os alimentos fixados em 01 (um) salário mínimo, pelo prazo de seis meses, e a
partir da publicação da sentença, foi fixada a pensão alimentícia em favor da apelada no valor
correspondente à metade do salário mínimo que deverá ser paga até a data prevista para a
conclusão do curso técnico em que a ex-cônjuge estava matriculada, ou seja, até junho de
2015.
Como já visto, os alimentos possuem abrangência ampla e estão relacionados direta e
indiretamente as necessidades do sujeito, tanto no âmbito físico, quanto moral, intelectual e
até mesmo espiritual. Por possuir este caráter amplo, os alimentos abrangem também a
educação, que, para muitos, é tido como um meio imprescindível para a obtenção do seu
próprio sustento. Nesse sentido, Venosa (2008) enfatiza que os alimentos são muito
importantes para satisfazer um determinado fim. Assim, o Desembargador relator do acórdão
José Cícero Landin Neto, entendeu que os alimentos eram devidos, pois, a ex-cônjuge varoa
sempre foi dependente do ex-marido como único provedor da família, além disso, como a ex-
cônjuge varoa estava inserida em um curso técnico para tentar o reenquadramento ao mercado
de trabalho e a sua qualificação profissional, nesse sentido fixa que os alimentos são devidos
até que finalize o curso técnico.

Categoria – B: Quais os fundamentos proferidos nas decisões que indeferem os alimentos


para o ex-cônjuge?

Em relação à categoria B no TJ/BA, o caso 5, apelação cível nº 0041642-


86.2010.8.05.0001, proferido pela Segunda Câmara Cível, do Tribunal de Justiça da Bahia,
publicada em 05 de agosto de 2015, por votação unânime, negou provimento à apelação cível.
A apelação foi interposta por cônjuge varoa contra a sentença que extinguiu o processo sem
resolução de mérito devido à falta de interesse processual de agir, na medida em que a apelante
pleiteia alimentos junto ao tribunal, no entanto, em anterior ação de divórcio esta renunciou
expressamente aos alimentos.
Em sede de apelação, a ex-cônjuge varoa aduz que, após o Código Civil de 2002,
houve significativa mudança no tratamento destinado à matéria de alimentos, sendo, pois,
possível conceder alimentos entre cônjuges após o divórcio, mesmo que tenha havido expressa
renúncia a eles. Alegou ainda que a obrigação alimentar decorrente de divórcio é uma espécie
de prolongamento do dever de assistência ou uma consequência do princípio da solidariedade,
fundado em circunstâncias de origem contratual que lhe deram origem.
Ressalta-se que a decisão foi proferida por unanimidade. Consta no voto da relatora
Desembargadora Lisbete Maria Teixeira Almeida Cézar Santos o argumento de que, deve-se
manter na íntegra a sentença recorrida, pois o STJ já firmou o entendimento no sentido de que,
após a homologação do divórcio, não pode o ex-cônjuge pleitear alimentos se deles renunciou
expressamente por ocasião do acordo de separação ou divórcio consensual.
A relatora menciona o artigo 1.695, do Código Civil/2002, que dispõe: “São devidos
os alimentos quando quem os pretende não tem bens suficientes, nem pode prover, pelo seu
trabalho, à própria mantença, e aquele, de quem se reclamam, pode fornecê-los, sem desfalque
do necessário ao seu sustento”. Argumenta que, na espécie, do cotejo entre os elementos
cognitivos carreados aos autos e os argumentos sustentados nas razões recursais, depreende-
se que no divórcio judicial, que se operou de forma consensual há expressamente a renúncia
recíproca aos alimentos.
Argui, por fim, que, caso a Apelante entendesse pela ocorrência de algum vício de
consentimento, deveria ter ajuizado ação própria, sendo inadequada a ação de alimentos para
o fim de desconstituir o acordo homologado por sentença judicial. Deste modo, o
Desembargador relator indeferiu os alimentos e manteve na integra a sentença proferida pelo
Juízo a quo, pois entendeu que o ex-cônjuge não pode pleitear os alimentos quando deles tiver
desistido expressamente na ação de divórcio. Neste caso concreto a ex-cônjuge renunciou aos
alimentos de forma voluntária e expressa em um acordo fixado pelas partes, logo, não pode
mais pleitear pelo pensionamento, menciona a relatora.
Cumpre esclarecer posicionamento de parte da doutrina de que no momento do
divórcio as partes podem renunciar ou dispensar os alimentos reciprocamente e que tais
expressões remetem a significados e efeitos jurídicos diferentes. Quando se manifesta pela
renúncia tem-se um ato irretratável e definitivo, por sua vez, a dispensa tem caráter provisório,
possibilitando que a parte que dispensou os alimentos venha a pleiteá-los caso necessite
posteriormente. Veja-se a explicação de Dinamarco sobre a renúncia:

Ela é, portanto, mais que desistência da ação. Esta não passa de mera renúncia ao
processo e não ao direito. Extinto o processo por desistência, ainda ficam íntegros o
direito de ação, podendo o autor repropor sua demanda, e também o direito subjetivo
material que eventualmente tivesse, o qual, ainda poderá ser exercido ou exigido.
(DINAMARCO, 2002, p.132).

A renúncia possui um caráter definitivo e por essa razão é ato unilateral e irretratável,
não possuindo, segundo entendimento da doutrina, nenhum tipo de cunho provisório, como já
citado. Assim, Dinamarco entende que na renúncia ocorre a abdicação do direito material que
está sendo discutido. A dispensa, por sua vez, não é ato irretratável, logo não há abdicação
definitiva do direito de ação.
O caso 6, apelação cível nº 0034115-83.2010.8.05.0001, proferida pela Segunda
Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, publicada em 06 de agosto de 2013,
à unanimidade de votos, negou provimento à apelação cível. Nesse caso concreto, a apelação
foi interposta por cônjuge varoa contra a sentença na parte em que esta não acolheu o pedido
de alimentos formulado pela autora.
A apelante sustenta a preliminar de nulidade da sentença por falta de apreciação do
pedido de fixação de alimentos por abandono do lar conjugal. Assevera ainda que a sentença
precisa de reforma, pois, no seu sentir, o fundamento para a fixação de alimentos em prol da
autora é a culpa exclusiva do cônjuge/réu. Aduz que a fixação dos alimentos é uma
consequência da suposta culpa do ex-cônjuge. Nesse sentido, pede pelo provimento do apelo.
A relatora salienta ainda que para ter alimentos deferidos em seu favor deve a parte
provar que não possui bens capazes de proporcionar renda suficiente para sua sobrevivência,
bem como, que não possui condições de trabalhar para manter o próprio sustento. In casu,
argui a Desembargadora que se trata de apelante jovem, atualmente com 34 anos de idade,
portadora de diploma de curso superior (Secretariado Executivo), que não logrou demonstrar
que a indicação de tratamento com psicólogo implica em impedimento ao labor.
Por fim, a relatora menciona o acerto da decisão proferida pelo Juízo a quo ao
fundamentar pela ausência de prova da incapacidade laboral da apelante. Outrossim, reforça
que, durante o período de relação com o apelado (cerca de 05 anos), a autora/apelante
conseguiu exercer atividade laboral. Por todo o exposto, foi negado o provimento ao recurso,
mantendo a sentença em sua íntegra.

Categoria – C: Quais os fundamentos proferidos nas decisões que deferem parcialmente


o pleito de alimentos a ex-cônjuges?

Em relação à categoria C no Tribunal de Justiça da Bahia, caso 7, a apelação nº


0333144-20.2013.8.05.0001, foi julgada pela Quarta Câmara Cível do TJ/BA e publicada em
25 de outubro de 2017, à unanimidade de votos. A apelação foi interposta por ex-cônjuge
varoa contra a decisão que julgou procedente em parte os pedidos pleiteados por esta,
condenando o apelado a pagar em favor da apelante o valor correspondente a 02 (dois) salários
mínimos vigentes, a título de alimentos, pelo período de 01 (um) ano, contado a partir da data
da publicação da sentença, determinando ainda, que a apelante fosse reincluída como
beneficiária dependente no plano de saúde do apelado, ou ainda, incluída em plano com
contratação de cobertura similar à oferecida pelo plano de saúde do qual era beneficiária na
constância da união.
A cônjuge varoa, em razões de recurso, pede pela reforma da sentença no que concerne
ao valor fixado à título de pensão, alegando que o magistrado não considerou, em absoluto,
as inegáveis necessidades da alimentanda, quais sejam: desempregada, contando atualmente
com mais de 51 anos de idade e acometida por muitas enfermidades. A ex-cônjuge alega que
provou nos autos a sua total dependência econômica em relação ao seu ex-marido, pois
conviveu durante 33 anos com ele e, nesse período, dedicou-se com exclusividade à família e
ao lar, e por tais motivos foi afastada do mercado de trabalho, não exercendo nenhuma
atividade laborativa que a possibilitasse prover o seu próprio sustento.
Alegou ainda que, em contrapartida o cônjuge varão goza de uma confortabilíssima
condição econômica, usufruindo sozinho do vasto patrimônio angariado pelo casal ao longo
da união, contrariando, frontalmente, dessa forma, as provas carreadas aos autos. Pelas razões
expostas, a apelante diz que faz jus a uma pensão justa e condigna. Logo, pede pela reforma
da sentença, e que seja observado, literalmente, o binômio necessidade versus possibilidade.
A apelante pede que os alimentos sejam fixados em 35 (trinta e cinco) salários mínimos, bem
como seja mantida no plano de saúde coletivo Bradesco, referente à empresa Capital, por
tempo indefinido.
Está presente no voto do relator Desembargador José Olegário Monção Caldas o
argumento de que a solidariedade familiar e a mútua assistência devem ser observadas na
relação de União Estável, de forma analógica ao casamento e, por todo o exposto, entende o
relator que à apelante assiste o direito de receber alimentos do apelado, embora acredite que
estes devam ser pagos de formas diferentes, ou seja, de um modo até a partilha e de outro após
a partilha.
Continuando a fundamentação, entendeu o relator, diante das circunstâncias do caso,
que os alimentos provisórios devem ser majorados para 05 (cinco) salários mínimos,
propiciando uma vida mais digna para a apelante, e assim não exorbita as possibilidades
financeiras do apelado. Desse modo, entende que se respeita o binômio necessidade-
possibilidade e os princípios da razoabilidade e proporcionalidade.
Quanto ao prazo, entendeu o Desembargador que, 01 (um) ano, como determinado na
sentença proferida pelo Juízo a quo, é insuficiente para o caso concreto e para as suas
peculiaridades, devendo a pensão de 05 (cinco) salários mínimos ser mantida até a decisão de
partilha dos bens. No tocante ao plano de saúde da apelante, afirma o relator que merece ser
mantido até a partilha, momento em que a apelante poderá conhecer sua real e definitiva
situação financeira.
No julgado em tela, após a ruptura do vínculo conjugal, houve um desequilíbrio
econômico na vida da ex-cônjuge, que outrora possuía um padrão de vida e logo após a
dissolução do casamento não conseguiu manter o mesmo padrão e necessitou de alimentos
para a sua mantença. Vale ressaltar aqui que, para a doutrina os alimentos compensatórios
seriam aqueles pagos por um cônjuge ao outro, por ocasião da ruptura do vínculo conjugal.
Esses têm o intuito de amenizar o desequilíbrio econômico no padrão de vida de um dos
cônjuges, por ocasião do fim do casamento, conforme é possível a constatação a partir das
observações dos artigos 1.694 e seguintes do Código Civil Brasileiro (CC/2002). Deste modo,
o relator José Olegário Monção Caldas deferiu parcialmente os alimentos a ex-cônjuge varoa
até a partilha dos bens do casal construídos na constância do casamento, momento que a
apelante saberá a situação financeira real em que se encontra.
O caso 8 é o Agravo de Instrumento nº 0011505-51.2015.8.05.0000, julgado pela
Quinta Câmara Cível do Tribunal de Justiça da Bahia, publicada em 17 de dezembro de 2016,
por votação unânime. O agravo foi interposto por ex-cônjuge varoa em face de cônjuge varão,
contra a decisão proferida pelo Juízo a quo, que deferiu parcialmente o pedido de concessão
de alimentos provisórios arbitrado nos autos da ação de divórcio litigioso por ela movida.
A agravante afirma não auferir qualquer renda, e que se dedicou durante todo o tempo
de convívio, exclusivamente, aos cuidados do lar e dos filhos menores, dependendo
financeiramente do agravado para prover seu sustento e manter o tratamento da neoplasia
maligna de mama da qual é portadora. Alega que o agravado desfruta de excepcional condição
financeira, pois é empresário e possui renda mensal superior a R$60.000,00 (sessenta mil
reais). Assevera o periculum in mora e o fumus boni iuris, requerendo, por isso, a concessão
dos alimentos provisórios pleiteados na ação originária de alimentos, no valor correspondente
a 10 (dez) salários mínimos.
Consta no voto da relatora Desembargadora Ilona Márcia Reis o argumento de que a
obrigação de prestar alimentos entre cônjuges fundamenta-se no dever de solidariedade (art.
1.694 do Código Civil) e de mútua assistência (art. 1.566, III, do CPC) e deve permanecer
após o fim do matrimônio, sendo lícito àquele que não possui condições de autossustento
requerer auxílio ao outro que possuí condições de alimentar.
In casu, aduz a relatora, que a proporcionalidade deve orientar a fixação dos alimentos
conforme o binômio necessidade-possibilidade, sobretudo quando for possível identificar a
necessidade da alimentante e também a real capacidade financeira do alimentando, por esse
motivo o enfrentamento exaustivo dos elementos que definirão os contornos do binômio
necessidade da agravada versus possibilidade do agravante nesse caso concreto deve ser
realizado de forma pormenorizada pela Juízo singular, após a instrução probatória.
Por fim, cita a relatora, o que está previsto na lei civil, que os alimentos são devidos
“quando quem os pretende não tem bens suficientes, nem pode prover, pelo seu trabalho, à
própria mantença, e aquele, de quem se reclamam, pode fornecê-los, sem desfalque do
necessário ao seu sustento” (Art. 1.695 do CC/2002). Nesta esteira, firma seu voto fixando o
valor correspondente a 02 (dois) salários mínimos, a título de alimentos provisórios, que
poderá ser majorado ou reduzido ao final do processo, após observar-se a real condição
pessoal e financeira do agravado, sem qualquer comprometimento à sua própria subsistência.
Cabe trazer o entendimento de Orlando Gomes (2012), pois este enfatiza que os
alimentos são prestações para satisfação das necessidades vitais de quem não pode provê-las
por si. In casu, a relatora Desembargadora Ilona Márcia Reis concedeu o pensionamento dos
alimentos de forma parcial, não atentando exclusivamente para o quantum pedido pela ex-
cônjuge varoa, mas sim atentando para a possibilidade do ex-cônjuge varão em pagar as verbas
alimentares sem prejudicar a sua própria sobrevivência e dos seus dependentes. Deste modo,
houve respeito ao tripé utilizado para o pagamento dos alimentos, qual seja, possibilidade-
necessidade e razoabilidade.
Cabem aqui duas considerações sobre a análise dos acórdãos coletados do TJ/BA, a
primeira é que a votação foi em todas as decisões unânime, ou seja, todos os Desembargadores
presentes nos julgamentos dos acórdãos votaram com o relator Desembargador. A segunda é
que em todas as ações de alimentos, a partir da investigação dos acórdãos analisados, pode-se
observar que, sempre a mulher, ou seja, a ex-cônjuge varoa, foi quem precisou pedir os
alimentos. O homem, o ex-cônjuge varão não pleiteou nenhuma ação pedindo alimentos para
si. Acrescente-se que na fundamentação das decisões sobre os alimentos não há expressa e
clara diferenciação entre a conceituação de alimentos e pensões compensatórias.
Por oportuno, passa-se às análises de decisões proferidas pelo TJ/RS. Reitera-se que
foi preciso fazer um recorte para trazer apenas trechos da pesquisa em razão da extensão
reduzida do artigo.

Decisões do TJ/RS

Categoria – B: Quais os fundamentos proferidos nas decisões que indeferem os alimentos


para o ex-cônjuge?

O caso 15 trata da Apelação Cível nº 70002034858, julgado pela Oitava Câmara Cível
do TJ/RS, julgada em 12 de setembro de 2002, à unanimidade de votos. A apelação foi
interposta por ex-mulher contra o ex-marido em face de sentença, proferida pelo Juízo a quo
que indeferiu, na ação de divórcio, o pedido dos alimentos provisórios fixados em 30 (trinta)
salários mínimos.
Nas razões de recurso a apelante afirma que o seu ex-cônjuge é médico e tem obrigação
de lhe prestar verbas alimentares no valor de 30 salários mínimos, pois possui uma renda
patrimonial elevada e condições suficientes de prover para ela os alimentos de que necessita.
Argui também que foi ele o responsável pela falência do casamento. Assevera ainda que sofreu
dano moral por ter sido traída e pelo fato do ex-cônjuge ter abandonado o lar e, por isso, tem
direito à indenização.
Consta no voto do relator Desembargador Antônio Carlos Stangler Pereira que, apesar
da dificuldade de relacionamento entre as partes, o que é confirmado pela apelante, e do
afastamento do cônjuge varão do lar, não recai sobre nenhum dos cônjuges a culpa e
acrescenta que esta não é razão para a condenação ao pagamento das verbas alimentares.
Aduz o relator que a apelante é filha de um homem que deixou considerável
patrimônio, dentre os quais uma empresa de mudanças de onde era retirado o pró-labore para
a própria sobrevivência da ex-cônjuge e, por isso, ela abriu mão das verbas alimentares que
em ação posterior de alimentos foi reclamar. Aduz ainda que a apelante possui curso superior,
é formada em Engenharia Química, e tem plena capacidade de ingressar no mercado de
trabalho. Afirma que é mulher jovem, contando apenas com 39 (trinta e nove) anos de idade.
Assim, pelos fundamentos já expostos o Desembargador relator não reconheceu os
alimentos em favor da apelante, por entender que as necessidades da mesma poderiam ser
supridas por seu próprio esforço, ou seja, entendeu o Colegiado em não lhes conceder
alimentos, pois a pretensa alimentanda possuía condições de sobrevivência.

Categoria – C: Quais os fundamentos proferidos nas decisões que deferem parcialmente


o pleito de alimentos a ex-cônjuges?

O caso 18 trata da Apelação Cível Nº 70071282388, julgada pela Oitava Câmara Cível
do Tribunal de Justiça do RS, publicada em 07 de dezembro de 2017, por votação unânime.
A apelação foi interposta por cônjuge varão em face de sua ex-cônjuge varoa, contra a
sentença proferida por Juízo a quo, em ação pedido de alimentos que o condenou ao
pagamento de verbas alimentares à ex-mulher no valor de 01 (um) salário mínimo, retroativos
à data de propositura da presente demanda e devidos até que ultimada a partilha de bens do
casal.
Em suas razões recursais, o apelante aduz que a ex-cônjuge não necessita perceber os
alimentos, pois não comprovou nos autos a sua real necessidade, bem como, este não possui
capacidade econômica para tal, não existindo assim no caso concreto o binômio necessidade
versus possibilidade.
Aduz o relator que, a apelada trabalhou no estabelecimento do apelante durante os anos de 2002 a 2009,
e que foi demitida quando o relacionamento chegou ao fim. Assim, o que se verifica é que o sustento da requerida,
bem como a administração do patrimônio dos ex-cônjuges, era exercida, de forma exclusiva, pelo apelante.
Sustenta ainda o relator que, cabia a este comprovar nos autos que não podia suportar o valor pretendido pela
ex-cônjuge varoa, e que o apelante, assim não o fez.
Por fim, o relator determina o pagamento das verbas alimentares a ex-cônjuge até que
esta consiga se reintegrar ao mercado de trabalho, ou de outra maneira, consiga por si só
prover o seu próprio sustento, mantendo o pensionamento de forma parcial e provisória, até a
partilha de bens do casal. Nessa motivação de decisão mostra-se características do caráter
compensatório da fixação de alimentos em favor da mulher que trabalhava para o marido e
ficou desempregada após o término do relacionamento amoroso.
Pode-se observar que todos os 18 (dezoito) acórdãos que formam o corpus do estudo
foram proferidos por unanimidade, o que denota uniformidade de entendimento em relação
ao tema. Observa-se também que em todos os julgados, seja os que deferem os alimentos,
indeferem ou deferem parcialmente há sempre o argumento de que se faz necessário observar
o binômio necessidade versus possibilidade. Alguns mencionam: necessidade, possibilidade,
razoabilidade e proporcionalidade. Isso porque está expresso nos artigos 1.694 e 1.695 do
Código Civil Brasileiro que deve-se ter por parâmetro de análise a necessidade comprovada
daquele que busca os alimentos e a possibilidade daquele que irá alimentar.
Quando há o deferimento, em regra, consta no voto do Desembargador relator a
fundamentação sobre o dever de mútua assistência entre os ex-cônjuges que persiste após a
ruptura do vínculo conjugal, quando a parte que necessita dos alimentos consegue comprovar
a sua real necessidade. Observa-se que em tais casos, existem características em comum, quais
sejam: a) idade avançada, por exemplo, em duas das dezoito decisões analisadas a ex-cônjuge
contava com aproximadamente 70 (setenta) anos de idade (Apelação Cível Nº 70072706625,
TJ/RS), em outra decisão a ex-cônjuge tinha 49 (quarenta e nove) anos e foi considerada de
idade avançada (Apelação Cível n° 0093440-52.2011.8.05.0001 TJ/BA); b) fato
superveniente, ocorrido após o divórcio, e levou a ex-cônjuge a depender economicamente do
ex-cônjuge, em uma das decisões que compõem a pesquisa a ex-cônjuge passou a ter
problemas mentais, qual seja, esquizofrenia; c) abandono da vida profissional para dedicação
exclusiva à família e ao lar, algumas das ex-cônjuges alegaram esse fato; d) dificuldade de
inserção no mercado de trabalho, por exemplo, em um caso concreto analisado, a ex-cônjuge
não era alfabetizada. As duas últimas caraterísticas listadas foram alegadas por ex-cônjuges
como causas de terem sempre necessitado do amparo alimentar do ex-marido como provedor
da família.
Por sua vez, os indeferimentos de alimentos analisados envolviam situações em que a
pretensa alimentante tinha características como: a) era jovem; b) tinha outra fonte de renda ou
conseguiu, logo após o divórcio sua reinserção no mercado de trabalho ou, de outro modo, a
obtenção do autossustento; c) não conseguiu comprovar a sua real necessidade em perceber
os alimentos; d) não conseguiu comprovar a possibilidade do ex-cônjuge em pagar as verbas
alimentares; e) a ex-cônjuge alimentante renunciou expressamente nos autos da ação de
divórcio o direito de pleitear os alimentos ou, de outra forma, abriu mão dos alimentos, logo,
não poderia reclamá-los posteriormente; f) a culpa de um dos cônjuges pela ruptura do vínculo
conjugal não pode servir como fundamento para fixação de alimentos em favor do outro.
Nos deferimentos de alimentos parciais, existia a necessidade da alimentanda e a
possibilidade do alimentante, no entanto, não estava sendo atendido o critério da razoabilidade
e proporcionalidade. Como exemplo, em algumas decisões, observa-se que apesar da pretensa
alimentante já estar em idade avançada ou de ter abandonado o emprego para dedicação
exclusiva à família e ao lar, dentre outras situações, o ex-cônjuge alimentante teve mudança
comprovada na sua situação econômica e financeira e, por isso, não conseguia manter o
pagamento dos alimentos como fazia outrora, logo, a porcentagem das verbas alimentares
sofreu alteração. Em alguns casos foi mantido o custeio do plano de saúde e extinto o
pagamento dos alimentos; em outros casos o valor pleiteado pela ex-cônjuge foi deferido em
parte, ou seja, em valor menor do que o requerido; em outros casos pleiteou-se a fixação de
um valor a maior de alimentos e o tribunal deferiu em percentual menor que o pleiteado e por
prazo determinado, não vitalício, por exemplo, até a partilha dos bens do casal. Assim, na
fundamentação dos votos dos Desembargadores que deferiram parcialmente os alimentos,
mencionava-se a observância aos critérios necessidade x possibilidade x razoabilidade.
Vale enfatizar que, em todos os casos estudados, quem pede alimentos é a mulher e o
homem deseja se desonerar desse ônus. Apesar dos acórdãos não terem sido selecionados
especificamente quando mulheres pedem alimentos, reitera-se que foram selecionados
aleatoriamente, essa questão de gênero pode ser observada na realidade, e não se pode ignorar
isso. Das 18 (dezoito) decisões analisadas, 13 mulheres alegaram que viviam sem trabalhar,
pois abandonaram seus empregos para se dedicarem exclusivamente à família e ao lar; 10
alegaram que tinham idade avançada; 2 alegaram fato superveniente; 7 alegaram que estavam
inaptas para o trabalho, por falta de qualificação profissional. São dados coletados que
remetem à problemática de gênero, na medida em que se observa, entre os casais
heterossexuais, mulheres ainda abrem mão da vida profissional em prol da família e, quando
o relacionamento acaba, ficam sem condições de se manter, uma vez que, durante a constância
do vínculo conjugal, sempre dependeram dos seus companheiros como único provedor
financeiro do lar.
Por fim, 11 (onze) decisões tratavam de fixação de alimentos juntamente com ação de
divórcio e/ ou partilha de bens e 7 (sete) decisões tratavam de pleito de alimentos
posteriormente ao divórcio. Dos 7 (sete) acórdãos, apenas um tratou de situação em que a ex-
cônjuge abriu mão dos alimentos no divórcio e, posteriormente, pleiteou os alimentos em face
do ex marido (Apelação Cível nº 70002034858 do TJ/RS). Nesse caso, especificamente os
desembargadores indeferiram os alimentos sob o argumento de que ela tinha como prover o
próprio sustento, pois era jovem (39 anos), tinha qualificação profissional (engenheira
química) e tinha recebido grande patrimônio após o falecimento do pai, motivo pelo qual ela
própria havia aberto mão dos alimentos na ocasião do divórcio.
Em 6 (seis) das 7 (sete) decisões que trazem o pedido de exoneração ou revisão de
alimentos pelo ex-cônjuge, posteriormente ao divórcio, e pedido contraposto de manutenção
ou majoração dos alimentos já fixados em favor da mulher, o ex-cônjuge varão alegou: a) que
já se passou tempo suficiente para que a alimentanda se organizasse financeiramente e
arrumasse emprego; b) que o alimentante já não tinha condições de pagar as verbas
alimentares que a pretensa alimentante pleiteava, uma vez que a sua condição financeira já
não é a mesma de quando da constância do vínculo conjugal; c) que a alimentanda já auferia
renda própria.
Há a previsão legal da possibilidade de revisão de alimentos a qualquer tempo, desde
que provados nos autos que a parte alimentada não necessita dos alimentos, pois já consegue
por si só prover o seu próprio sustento ou que o alimentante não possui mais condições
financeiras e econômicas favoráveis para continuar o pensionamento, no entanto, nem todos
os alimentantes conseguem provar isso nos autos do processo e o ônus é deles.
Reitera-se que observou-se que das 18 (dezoito) decisões analisadas, apenas uma
tratava de pleito de alimentos posterior ao divórcio quando a mulher abriu mão dos alimentos
na ação anterior de divórcio. E o fato de ter aberto mão dos alimentos no divórcio, juntamente
com as circunstâncias específicas da mulher no caso concreto (jovem, qualificada
profissionalmente e com patrimônio oriundo de herança paterna) levou os Desembargadores
a indeferirem os alimentos. Isso não significa que os alimentos não podem ser pleiteados
posteriormente em situação de não fixação de tal obrigação na ação de divórcio, pois, no caso
concreto, na apreciação dos Desembargadores, outras circunstâncias foram alegadas além do
fato de a parte ter aberto mão. Por oportuno, chama-se a atenção, mais uma vez, para a
diferença entre dispensa e renúncia aos alimentos. Uma vez dispensados os alimentos na ação
de divórcio, as partes podem pleiteá-los posteriormente. No entanto, se o direito aos alimentos
foi renunciado no momento do divórcio, não poderá ser pleiteado em ação posterior pelo
entendimento da maioria da doutrina.
Reitera-se que das decisões judiciais analisadas, 6 (seis) tratavam de ações que
rediscutiam alimentos já fixados em ação judicial anterior, seja para pedir a majoração dos
alimentos, seja para pleitear a sua redução ou a exoneração.
Portanto, da observância das ações em que o pleito de alimentos foi posterior ao
divórcio conclui-se que não há óbice ao pedido de alimentos pelo mero fato de ser posterior à
decretação de divórcio. Entende-se que a obrigação de alimentar entre os cônjuges decorre do
dever de mútua assistência e permanece após o rompimento do vínculo conjugal (art. 1.566,
III do Código Civil), se existente o binômio necessidade versus possibilidade. Assim, reitera-
se que, desde que comprovado o binômio referido, pode-se a qualquer tempo buscar alimentos
do ex-cônjuge não encontrando tal pleito limite na decretação do divórcio. Ou seja, é lícito
àquele que não possui condições de autossustento requerer auxílio ao ex-cônjuge. A única
objeção é quando houve expressa renúncia aos alimentos no momento do divórcio, nesse caso,
não será possível mais pleitear os alimentos em ação judicial futura.
Por fim, é relevante registrar que não se vislumbrou diferença entre o entendimento do
TJ/BA e o TJ/RS sobre o tema em estudo a partir da análise das fundamentações de decisões
de ambos os tribunais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pode-se observar que há um argumento que está em todas as decisões, sejam de


indeferimento de alimentos, sejam de deferimento, sejam de deferimento parcial dos
alimentos, qual seja, a necessidade de se comprovar o binômio necessidade versus
possibilidade, ou seja, a fixação dos alimentos entre ex-cônjuges exige a comprovação
inequívoca das necessidades daquele que os pleiteia, bem como das possibilidades daquele
em face do qual o encargo é pretendido.
O dever de prestar alimentos entre cônjuges ou companheiros está consagrado no dever
de mútua assistência, persistindo após a separação quando restar comprovada a dependência
financeira de um cônjuge em relação ao outro. Constata-se que, para que haja a concessão de
alimentos, tem-se que analisar o binômio necessidade daquele que será alimentado, bem como
da possibilidade daquele que alimentará e também a existência comprovada de relação
conjugal ou de companheirismo, como é o caso da união estável. Relevante destacar a
reciprocidade que deve existir na obrigação de alimentar entre os cônjuges e companheiros,
com base no fundamento da assistência mútua, onde os ex-consortes podem ser chamados a
prestar alimentos entre si na medida das suas possibilidades e necessidades.
Frisa-se que figura da mulher não é mais aquela que vive em função do lar, do marido
ou companheiro e dos filhos. A mulher conquistou um espaço e cada vez mais luta por
melhores condições no mercado de trabalho, trabalhando em conjunto com o marido para a
manutenção da casa e dos custos oriundos da família, todavia, não se pode esquecer que muitas
não alcançaram essa independência. Historicamente a mulher esteve em posição inferior ao
homem por muitos anos, submissa ao pai e, posteriormente, ao marido. Os dados encontrados
nessa pesquisa mostram que muitas mulheres continuam abrindo mão dos seus empregos e
profissões para dedicação exclusiva ao lar e à família. Assim, o cônjuge varão passa a ser o
único provedor da casa e todo o controle financeiro e econômico está com ele. Quando há a
ruptura do vínculo conjugal, essa mulher que outrora tinha abnegado a sua função laborativa
para cuidar apenas da família perde o equilíbrio no padrão financeiro que possuía e não
consegue, por si só, prover o autossustento, necessitando assim, do auxílio do ex-cônjuge.
O que se busca com a prestação dos alimentos devidos ao ex-cônjuge, por ocasião da
ruptura do vínculo afetivo, seja o casamento ou a união estável, além da proteção da dignidade
da pessoa humana, é o equilíbrio na situação econômico-financeira dos ex-consortes, que
outrora mantinham um padrão de vida bom e equilibrado e, pós-divórcio, um dos deles passa
a estar em situação de vulnerabilidade.
Apesar dos acórdãos não terem sido selecionados especificamente com o filtro
“mulheres pleiteando alimentos”, essa questão de gênero pode ser observada na realidade, e
não se pode ignorar isso. Das 18 (dezoito) decisões analisadas, 13 (treze) mulheres alegaram
que viviam sem trabalhar, pois, abandonaram seus empregos para se dedicarem
exclusivamente à família e ao lar; 10 (dez) alegaram que tinham idade avançada; 2 (duas)
alegaram fato superveniente; 7 (sete) alegaram que estavam inaptas para o trabalho, por falta
de qualificação profissional. São dados coletados que remetem à problemática de gênero, na
medida em que se observa, entre os casais heterossexuais, mulheres que abrem mão da vida
profissional em prol da família e, quando o relacionamento acaba, ficam sem condições de se
manter, uma vez que, durante a constância do vínculo conjugal, sempre dependeram dos seus
companheiros como único provedor financeiro do lar.
Oportuno esclarecer que o binômio necessidade versus possibilidade significa dizer
que deve-se buscar o ponto de equilíbrio, onde de um lado pesa-se a necessidade daquele
cônjuge que não consegue se manter financeiramente e do outro a possibilidade daquele que
vai prover o auxílio financeiro. Cristiano Garcia, Celso Mendes e Sebastião Ferraz (2006)
mencionam que o juiz deve fazer a análise do binômio necessidade-possibilidade no caso
concreto. Deste modo, não há que se falar em pensão alimentícia entre os cônjuges quando
qualquer destes não necessitar ou quando ambos possuírem condições suficientes de
produzirem para si os alimentos dos quais necessitam para a sua sobrevivência e qualidade de
vida.
Sobre o tema, reitera-se o que o doutrinador Orlando Gomes (2012, p. 427) ressalta
que os “alimentos são prestações para satisfação das necessidades vitais de quem não pode
prove-las por si”. Ou seja, para que haja a concessão dos alimentos, a pretensa parte
alimentante precisa comprovar nos autos da ação judicial a sua real situação econômica e a
sua necessidade em perceber os alimentos, para que, a falta destes alimentos, não
comprometam a sua dignidade, ou seja, a dignidade da pessoa humana.
Deste modo, o pensionamento dos alimentos devidos permite que, após a ruptura do
vínculo conjugal, o ex-cônjuge continue a manter o padrão de vida que outrora possuía. Ou
seja, os alimentos são impostos por lei, para que tenha efeito mantenedor e conservador da
vida.
Há, portanto, uma problemática que envolve o tema, qual seja, quando um dos
cônjuges, seja o homem ou a mulher, indistintamente, perder a qualidade do padrão que
possuía na constância do casamento, não conseguir voltar a equilibrar-se sozinho e, por sua
própria conta, não conseguir prover o seu próprio sustento, ao ponto de não obter os alimentos
indispensáveis a sua sobrevivência, precisará do apoio financeiro do ex-cônjuge, para que
este, possa lhe prover o necessário, protegendo assim, o bem jurídico de maior valor, que é a
vida e a dignidade da pessoa humana.
Dessa forma, pode ser constatado que os tribunais entendem atualmente que, mesmo
após o desfazimento do vínculo conjugal, o ex-cônjuge, seja o homem ou a mulher, poderá, a
qualquer momento, pleitear os alimentos para si, por meio de ação de alimentos, se assim
preencherem alguns requisitos basilares, como por exemplo, idade avançada, inaptidão para
o trabalho, dentre outros já citados anteriormente. Sabe-se que a sociedade ainda é marcada
por machismo, muitos acreditam que o homem deve ser o único provedor econômico e
financeiro do lar e que a mulher deve apenas dedicar-se aos afazeres domésticos. Nesse
sentido, o presente trabalho traz contribuição social, na medida em que esclarece,
principalmente, às mulheres a situação em que podem ficar quando abrem mão de sua vida
profissional em prol de dedicar-se exclusivamente à família.
A relevância acadêmica de um estudo sobre esse tema existe também na medida em
que debruça-se sobre a realidade e verifica o entendimento do TJ/BA e do TJ/RS sobre tema,
não se restringindo a um estudo meramente teórico. Buscou-se com essa pesquisa mostrar a
perspectiva dos tribunais sobre o tema em estudo, mostrando os conceitos, posicionamentos e
requisitos a serem observados quanto ao pagamento das verbas alimentares entre ex-cônjuges
e ex-companheiros.
A importância do tema e a contribuição social da discussão mostra-se, ainda, em razão
de os alimentos estarem relacionados com o direito da personalidade e também fundamental
à vida de pessoa que por si só não pode prover alimentos para a sua subsistência e
compatibilidade com a vida social, seja em caráter temporário ou vitalício. Nesse sentido,
restou esclarecido que o que se busca com a prestação dos alimentos devidos ao ex-cônjuge,
por ocasião da ruptura do vínculo afetivo, seja o casamento ou a união estável é, exatamente,
essa proteção da dignidade da pessoa humana.

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O PODER SIMBÓLICO DO NÃO RECONHECIMENTO JURÍDICO DAS
ENTIDADES FAMILIARES POLIAFETIVAS: Dominação, criação de espaço de não-
direito e negação de subjetividades318

Ana Catarina Mendes Barbosa Diniz319

RESUMO

Este artigo se debruçou sobre o tema do poliamor no Ordenamento Jurídico Brasileiro,


objetivou-se discutir sobre as uniões poliafetivas em face da problemática que se materializa
ante a rejeição pela doutrina e pela jurisprudência em garantir reconhecimento jurídico destas
composições familiares. Partiu-se da hipótese de que o Direito Brasileiro, orientado pelo
princípio da afetividade no Direito de Família, não impõe qualquer óbice à aceitação da
modalidade de família convivente em poliamor, notadamente em relação aos âmbitos civil,
previdenciário e criminal. A teoria do Poder Simbólico de Pierre Bourdieu orientou a análise
do objeto e da problemática propostas e permitiu a compreensão das relações entre Poder e
Direito, revelando em que medida o fenômeno jurídico impõe um sistema de poder (controle)
sobre os corpos humanos mediante o condicionamento das identidades relacionais adotadas
pelos indivíduos na sociedade. Objetivou-se compreender os limites e as potencialidades da
normativa brasileira no que tange ao reconhecimento das famílias que exerçam sexualidade
fora do padrão heteronormativo monogâmico e, especificamente, analisaram-se as causas e
consequências da fixação de padrões familiares. Adotou-se uma metodologia de caráter
exploratório e qualitativo, utilizando-se de revisão bibliográfica e da utilização de dados
secundários.

Palavras-chave: Poliamor. Afetividade. Simbolismo. Poder.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho pretende se debruçar sobre o reconhecimento jurídico das uniões


poliafetivas, partindo-se do texto constitucional e do princípio da afetividade, orientador do
Direito de Família no Brasil. Infere-se, enquanto hipótese, que o direito brasileiro não revela
nenhum óbice quanto ao reconhecimento da união poliafetiva, notadamente nos aspectos civil,
previdenciário e criminal
Num primeiro momento imprescindível perceber o fenômeno jurídico como sistema
de controle sobre os corpos, especialmente neste caso, quando tal fenômeno estabelece um
padrão familiar a ser seguido pelos indivíduos. Buscar-se-á entender que a fixação de um
modelo familiar como padrão, pode implicar, por processos de naturalização, na exclusão,

318
GT 9- Estudos Contemporâneos em Direito Privado.
319
Bacharelanda em Direito- 10º período- Faculdade de Integração do Sertão- FIS (Serra Talhada- PE). Pós
graduanda em Ciências Criminais- Faculdade de Integração do Sertão- FIS (Serra Talhada-PE). Email:
anacatarinambdiniz@hotmail.com
melhor dizendo, num movimento de denegação daqueles que exercem sexualidade e
estruturação familiar fora do modelo dominante hegemônico. Para tal investigação, reportar-
se-á a conceitos trazidos na obra de Pierre Bordieu, como o conceito de poder simbólico e
como esse se exerce através dos sistemas simbólicos, entendidos esses especialmente como
instrumento de dominação, através dos quais se exerce a própria violência simbólica.
Em um segundo instante buscar-se-á compreender o que são as relações poliafetivas,
analisando alguns conceitos dessa prática relacional. Observar-se-á que parte da doutrina
ainda se mostra insuficiente na conceituação desses modelos familiares. Nesse segundo
momento ainda serão abordados os pilares que autorizam o reconhecimento jurídico das
uniões poliafetivas, dando enfoque ao princípio da afetividade, este que hoje é tido como
princípio orientador do direito das famílias e que talvez seja o principal elemento autorizador
do reconhecimento jurídico como família das uniões poliafetivas.
Por fim, em última análise, examinar-se-á as consequências da ausência de
reconhecimento jurídico como entidade familiar, especialmente na seara cível, penal e
previdenciária.
A pesquisa tem como objetivo geral, portanto, compreender a normativa brasileira,
sua interpretação e aplicação, no que se refere ao reconhecimento de famílias que exerçam
sexualidade fora do padrão monogâmico, considerando o texto constitucional e o princípio da
afetividade, orientador do Direito de Família no Brasil.
Em relação aos objetivos específicos a pesquisa pretende: a) avaliar a dimensão do
fenômeno jurídico como sistema de controle sobre os corpos; b) analisar os fundamentos
jurídicos permissivos ao reconhecimento das uniões poliafetivas, dando enfoque ao papel da
afetividade nesse cenário, e assim compreender em que consistem as uniões poliafetivas; c)
investigar, enquanto suposição, que não há obstáculo ao pleno reconhecimento, especialmente
nos aspectos criminal, civil e previdenciário.
A metodologia de pesquisa empregada no presente trabalho é de cunho exploratório,
tendo em vista que se buscou levantar informações acerca do objeto pesquisado, qual seja, o
não reconhecimento jurídico efetivo das uniões familiares poliafetivas, delimitando assim o
campo de trabalho e verificando as condições de manifestação dessa temática. Ademais, a
pesquisa é de caráter qualitativo e bibliográfico.

1. DIREITO, PODER E FAMÍLIA

Inicialmente é imperioso identificar o fenômeno jurídico como mecanismo de controle


(poder) sobre os comportamentos dos indivíduos. Neste instante, relevante trazermos a
perspectiva Bourdieusiana no que concerne ao poder exercido pelo ente estatal, através da
ciência jurídica.
Desta feita, centra-se foco no papel da família, notadamente para as implicações que
há entre Poder e Direito e o reflexo destes nas formatações de entidades familiares.

1.1. Relação entre Poder e Direito

As reflexões de Pierre Bourdieu acerca das relações de Poder que se manifestam no


seio social não se resumem às situações nas quais ele se apresenta de forma evidente. Bourdieu
se volta, essencialmente, para as ocasiões em que as estruturas e instrumentos de poder são
tácitos, isto é, não facilmente percebidos, ou mesmo, desconhecidos. Essa é a própria noção
de simbolismo do Poder trazida na obra do autor:

O poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível que só pode ser exercido com
a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos e mesmo que
o exercem e é onde ele se deixa ver menos, onde ele é mais completamente ignorado,
portanto, reconhecido. (BOURDIEU, 1989, p. 7-8).

Deflui-se do pensamento Bourdieusiano que é no distanciamento que o Poder é


exercido plenamente, na não percepção daqueles que o exercem ou a ele estão sujeitos e, desta
maneira, controla o corpo, a mente, a propriedade e a vida das pessoas320.
Destaque-se que na perspectiva de Bourdieu, o Poder simbólico se exerce através dos
sistemas simbólicos. Sendo estes aquilo que o autor sintetiza como estruturas estruturantes
(instrumentos de conhecimento e de construção do mundo objetivo), estruturas estruturadas
(Meios de comunicação, como a língua, culturas) e como instrumento de dominação
(BORDIEU, 1989). Sendo desta última forma que o poder simbólico, através dos sistemas
simbólicos, consegue exercer as relações de dominação ( violência simbólica).
A violência simbólica, como assevera Bourdieu, é uma violência:

Suave, insensível, invisível às suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente


pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais
precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento, ou em última instância, do
sentimento (BOURDIEU, 2002, p.7-8).

320
Entende-se que o autor corrobora essa noção quando estatui que o Poder Simbólico é um poder capaz de
“constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar e de transformar a visão de mundo, e
deste modo a ação sobre o mundo” (BOURDIEU, 1989, p.14). É nesse movimento de transformar a “visão de
mundo” e a própria “ação sobre o mundo” que o Poder Simbólico consegue controlar o corpo, a mente, a vida,
a propriedade dos indivíduos. Já que como será visto no decorrer do artigo “a visão de mundo” difundida é aquela
afim aos interesses dos detentores do capital, seja esse econômico, político, social e simbólico.
O simbolismo da violência se exerce através do Poder Simbólico, traduzindo uma
relação de dominação, na qual o sujeito dominado adere ao que lhe é imposto pelo sujeito
dominante. Esta adesão é facilitada pela aparente naturalização da relação de dominação, que
impede ao dominado de refletir criticamente sobre a sujeição que lhe acomete.
Compreende-se a questão sob três aspectos: primeiro, o poder exercido pela norma
jurídica quando passa a circular na sociedade está ali para corroborar a visão “legítima” do
mundo social, enuncia o que é “melhor pra todos”, é posta para ser cumprida sem, ainda que
inicialmente, possibilidade de discussão, devendo ser efetivamente respeitada. Segundo, na
interpretação que lhe é conferida pelos operadores do direito. E Terceiro, a doutrina que na
visão de Bourdieu “delimita o espaço dos possíveis”, e neste espaço justamente o “universo
das soluções propriamente jurídicas” (BORDIEU,1989,p.211).
Destaque-se que a visão legítima, supostamente justa do mundo social segundo a
concepção difundida pelo Estado, através do direito, traduz-se numa visão comprometida, eis
que os agentes incumbidos da criação, interpretação e aplicação do direito,detentores do poder
simbólico por excelência, possuem afinidade com os detentores do poder temporal, político e
econômico e, com suas visões de mundo, em virtude até da correspondência e semelhança dos
habitus321, formação familiar e escolar (BOURDIEU, 1989).
Conclui-se, portanto, que o direito dificilmente irá em movimento contrário aos
interesses dominantes. Ao revés, adequa-se aos valores e à visão de mundo destes agentes.
Desvela-se, assim, a violência simbólica na seara jurídica.

1.2 Relação entre Poder e Família

A imposição de uma formatação familiar, de acordo com interesses específicos de


determinada parcela social, por exemplo, implica num exercício de dominação simbólica no
espaço familiar.
O que se examina é que a imposição estatal, pelo direito, de comportamentos e atitudes
quando inserta no domínio familiar enseja, pela fixação naturalizada de um modelo, rejeição
a outras formatações familiares, notadamente porque o espaço privado da família tende a ser
o lugar em que o indivíduo revela e satisfaz seus desejos e necessidades mais íntimos na busca

321
Bourdieu percebe a sociedade dividida em Campos, caracterizados por agentes com um mesmo habitus, que
representam a “exteriorização ou objetivação do habitus”. Habitus, por seu turno, é entendido como a
“internalização ou incorporação da estrutura social”. Assim, os Campos estruturam o habitus e o habitus constitui
os campos (AZEVEDO, 2011).
pela felicidade.
O Poder exercido pelo Estado, através da ciência jurídica, pode ter consequências
danosas principalmente quando significa invadir as esferas mais íntimas do indivíduo, como
a escolha familiar, para determinar comportamentos. No caso das uniões poliafetivas, a
intervenção do Estado no sentido de negar-lhes reconhecimento jurídico, rejeitando a
estruturação familiar e exercício da sexualidade fora do padrão monogâmico, gera insegurança
jurídica, na medida em que deixa à margem da proteção jurisdicional.
O não-reconhecimento das entidades familiares poliafetivas representa, portanto, a
adequação compulsória do comportamento familiar segundo os moldes monogâmicos
estabelecidos no Direito de Família Brasileiro. Negar reconhecimento jurídico efetivo322
acarreta efeitos negativos do ponto de vista social e jurídico, ressaltando o desabono social a
indivíduos que constituam estas formatações familiares.
É fundamental, então, compreender o fenômeno jurídico a fim de investigar suas
potencialidades, e, no caso deste trabalho, analisar qual a postura do ordenamento jurídico
brasileiro quanto ao reconhecimento da proteção jurídica dada às entidades familiares
poliafetivas.

2. AS RELAÇÕES AFETIVAS E A INTERVENÇÃO ESTATAL

No caso específico das uniões poliafetivas, entende-se o exercício do poder simbólico


na seara familiar da seguinte forma: Primeiro, o próprio Estado-Juiz rejeita estas composições
familiares , prova disso é a recente decisão do CNJ, que data de 2016, no sentido de que se
suspendessem as celebrações de escrituras de uniões poliafetivas, o que representa uma
excessiva intervenção no domínio familiar e limitação da autonomia privada. Essa
recomendação, aqui se sustenta, vai de encontro ao crescente movimento da jurisprudência de
valorização da afetividade.
Em segundo plano, a ausência de apoio legislativo, porque muito embora se parta da
hipótese de que o ordenamento jurídico não oferece nenhum óbice ao reconhecimento dessas
uniões (isso ainda ficará melhor esclarecido), ainda assim seria pertinente uma legislação
específica sobre o tema, reconhecendo expressamente estas entidades familiares, para uma

322
Aqui, refere-se a efetivo reconhecimento jurídico no sentido de se conceder plenamente os devidos direitos a
esta forma de entidade familiar. Isto porque reconhecimento jurídico já existe, melhor dizendo, o ordenamento
jurídico já possui embasamento para se permitir que essa modalidade familiar tenha seus direitos exercidos. Falta
agora um apoio dos operadores jurídicos, na interpretação e aplicação da ciência jurídica e talvez para melhor
proteção, um apoio legislativo no sentido de elaboração de uma normativa específica sobre o tema.
melhor regulação de direitos desses indivíduos e consequente maior segurança jurídica,
todavia não parece ser interesse dos grupos que legislam ir de encontro ao padrão dominante.
Em terceiro plano, a doutrina que mesmo tendo o poder de ampliar cada vez mais a extensão
dos direitos, de prever o maior número de situações, na verdade, de criar em muitos aspectos
a própria ciência jurídica, no sentido de delimitar e balizar o que é ou não permitido, têm
muitas vezes se apresentado limitada, tímida.
Relevante, neste pesar, entendermos em que consistem os relacionamentos
poliafetivos, sob o prisma do princípio da afetividade, que hoje é tido como o princípio
orientador do direito das famílias e que talvez seja o principal elemento autorizador do
reconhecimento jurídico como família das uniões poliafetivas.

2.1. O que significa o poliafeto/poliamor?

A insuficiência por parte da doutrina no caso das uniões poliafetivas é o que será agora
investigado, especialmente no que diz respeito à própria conceituação de tal formatação
familiar.
Antes de tudo, interessante frisar que a poligamia não se confunde com o poliamor.
Embora em ambas as situações têm-se relacionamentos que não se resumem ao par, há
distinções que precisam ser esclarecidas. A poligamia, nas suas duas modalidades, verifica-se
quando apenas um dos integrantes da relação pode manter relações com os demais, isto é, no
caso da poliginia apenas o homem poderia se relacionar com as outras mulheres e na
poliandria, apenas as mulheres poderiam se relacionar com os homens participantes da
relação, como consequência eles não poderiam se relacionar entre si. Ao contrário disso, o
poliamor garante a possibilidade de que todos os integrantes da relação possam se relacionar
entre si 323.
Feita essa diferenciação inicial, cumpre agora entender o que significa o poliamor, ou
mais propriamente, como alguns preferem chamar de poliafetividade324. Desde logo, anote-se
que há certa divergência na conceituação dessa prática relacional, isto porque os próprios
indivíduos que o praticam a conceituam de maneira diversa em certos momentos. Todavia,

323
Tavares e Souza (2017,p.30) explanam que “Tanto a poliginia, quanto a poliandria remetem a uma prática
unilateral, em que apenas um dos sexos tem o direito de nutrir mais de um parceiro” . Ainda na mesma página
explanam que por outro lado nas relações poliamorosas “todos os parceiros podem amar e se relacionar com
mais de uma pessoa”.
324
Ricardo Calderón (2017, p.466) assevera que o termo poliafetividade é mais adequado diante do atual cenário
jurídico- brasileiro. Certamente, porque a atual conjuntura jurídica prima pela valorização da afetividade.
em que pese as diferenças no instante de conceituação, o consentimento e a honestidade nas
relações parecem ser elementos centrais que aparecem na maioria das definições .
Diante da exiguidade de parcela da doutrina na conceituação dessas estruturações
familiares, fato ao qual ainda nos deteremos, colacionamos ao trabalho definições de
relacionamentos poliafetivos encontradas na internet. Muitos sites trazem de forma muito
condizente com a prática o que realmente significa tais entidades. A título de exemplo
observemos o conceito de poliamor publicado no site da Igreja de Todos os Mundos.
Esclareça-se desde já a relevância desse conceito principalmente porque foi formulado por
pessoas que adotam essa modalidade de relacionamento, interessante, portanto analisar o
poliamor sob a ótica de quem o pratica. Vejamos: “A prática ou o estilo de vida de estar aberto
para viver mais de um amor, mais de um relacionamento íntimo ao mesmo tempo com o pleno
conhecimento e consentimento de todas as pessoas envolvidas” (CAWeb – HOME OF
CHURCH OF ALL WORLDS , 2013ª, apud SANTIAGO, Rafael da Silva, 2014, p.123 )
(destaquei).
Ademais, o site Xeromag apud Cardoso (2010, p.4), ressalta o caráter de honestidade
e responsabilidade das relações poliafetivas. Representa, pois, o poliamor “a filosofia e prática
não-possessivas, honestas, responsáveis e éticas de amar várias pessoas simultaneamente”.
Note-se, portanto que o consentimento e a honestidade dos envolvidos são elementos
principais nas relações poliafetivas.
Importa acrescentar que as uniões poliafetivas não devem ser confundidas com as
uniões paralelas ou simultâneas.
Não se deve confundir, portanto, tais formatações porque como bem sintetiza Paulo
Roberto Iotti Vecchiatti (2014) uniões paralelas são as que formam dois ou mais núcleos
familiares conjugais distintos; Por outro lado, uniões poliafetivas formam um único núcleo
familiar conjugal, com mais de duas pessoas.
Rodrigo da Cunha Pereira também contribui para essa diferenciação. Na ótica do autor
as uniões poliafetivas se diferem das uniões paralelas, porque estas geralmente ocorrem na
“clandestinidade”, isto é, sem o consentimento de todos os envolvidos (PEREIRA, Rodrigo
da Cunha. Apud CALDERÓN, Ricardo, 2017). O que como já vimos resta inviável numa
entidade poliafetiva.
Percebe-se que parte da doutrina brasileira parece ainda não atentar para tal distinção.
A título de exemplo analisemos o conceito que se segue, no qual os autores entendem as
relações poliamorosas como aquelas em que se “admite a possibilidade de co-existirem duas
ou mais relações afetivas paralelas, em que os seus partícipes conhecem e aceitam uns aos
outros, em uma relação múltipla e aberta” (GAGLIANO, FILHO, 2014. p. 463).
Além do conceito acima explanado, Maria Berencie Dias em artigo intitulado
“Poliafetividade, alguém duvida que existe?” parece também não deixar claro o que essa
entidade familiar realmente representa. Isso porque a autora, referindo-se as uniões
poliafetivas, explana em determinado trecho: “Quando a mulher afirma desconhecer a
duplicidade de vidas do parceiro, a união é alocada no direito obrigacional e lá tratada como
325
sociedade de fato”. (grifos nossos). Apesar de no início do artigo a autora mencionar um
caso de registro de união estável poliafetiva, na Cidade de Tupã- SP, em 2012, no decorrer do
texto parece estar se referindo a uniões paralelas, que como já resta superado não se
confundem com uniões poliafetivas. Ademais, no próprio Manual de Direito das Famílias
parece também não deixar claro o que representa tais uniões, porque também se referindo a
essas menciona que “eventual rejeição de ordem moral ou religiosa à dupla conjugalidade não
pode gerar proveito indevido ou enriquecimento injustificado de um ou de mais de um frente
aos outros partícipes da união” (DIAS, 2013,p.54).
Entretanto, a autora também busca em certo momento realizar a distinção outrora
mencionada. Na sua ótica a diferença reside no fato de que nas uniões poliafetivas “o vínculo
de convivência de mais de duas pessoas acontece sob o mesmo teto” (DIAS, 2015,p. 138), o
que não ocorre com as uniões paralelas. Todavia a diferença não se perfaz sob esse aspecto.
Primeiro porque não há que se exigir a convivência sob o mesmo teto para que se caracterizar
uma entidade familiar, em consonância com o consubstanciado na súmula 382 do STJ, desse
modo, perfeitamente possível que em uma união poliafetiva alguns dos integrantes não
residam sob o mesmo teto. Segundo, porque o que realmente distingue essas duas entidades é
a duplicidade ou não de relacionamentos. Uniões poliafetivas não são caracterizadas pela
existência de dois ou mais vínculos familiares, como acontece com as uniões paralelas. Ao
contrário, traduzem apenas um único vínculo familiar com mais de duas pessoas e com pleno
consentimento de todos os envolvidos.
A incongruência desses conceitos se apresenta obviamente no fato de que, como já
superado, uniões poliafetivas não se confundem com uniões paralelas. Sendo assim nas

325
A própria jurisprudência do STJ (AREsp 1008399 DF 2016/0286105-0)., em decisão monocrática já
questionou se determinada situação não se enquadraria no conceito de poliamor. No caso em questão um homem
mantinha dois núcleos familiares com o consentimento de ambas as partes.
relações poliafetivas não se trata de dupla constituição familiar, mas apenas um único núcleo
familiar com mais de dois parceiros e consentimento de todos.

2.2. Qual o papel da afetividade no Direito de Família Brasileiro?

Entendido o conceito de poliamor, interessante frisar que as relações poliafetivas são


extremamente possíveis de ser reconhecidas como família, razão pela qual agora elencaremos
os pilares que autorizam tal reconhecimento jurídico.
Primeiro lugar, o princípio da afetividade que é tido como orientador do direito de
família pelo próprio IBDFAM, mas também alcançou tal patamar através da própria legislação
a exemplo da própria Constituição Federal/88 que em vários dispositivos valoriza a
afetividade, da jurisprudência e da doutrina. Tal princípio talvez seja o elemento mais
relevante no instante de conceber o reconhecimento jurídico às composições familiares .
Esse princípio ganhou tamanha relevância que é considerado hoje requisito
caracterizador da instituição da família. Sendo assim, a afetividade, somada à estabilidade (a
comunhão de vida e, simultaneamente, a exclusão de relacionamentos casuais, sem
compromisso) a ostensibilidade (entidade familiar reconhecida pela sociedade enquanto tal,
que assim se apresente publicamente). (LÔBO apud PEREIRA, 2004), além do claro objetivo
de constituição de família são elementos definidores de uma entidade familiar.
É neste sentido que aqui se sustenta que os relacionamentos poliafetivos podem, sim,
ser considerados família ensejando um pleno reconhecimento pelo direito. Melhor dizendo,
qualquer relacionamento, inclusive os poliafetivos que preencham tais requisitos acima
elencados deveriam ser chancelados pelo direito. Já que no caso específico das uniões
poliafetivas, acrescente-se, não há quebra dos deveres de fidelidade.
Todavia o principal argumento contrário a esse entendimento é o de que a monogamia
também é considerada princípio do direito de família brasileiro. Entretanto, em que pese os
argumentos nesse sentido o presente trabalho não adota essa linha de pensamento.
A principal razão para assim entendermos reside no fato de compactuarmos do
entendimento de que a monogamia deve ser descaracterizada como princípio e caracterizada
como valor. Rafael Santiago (2014, p.103) 326 constrói argumentação neste sentido. Sintetiza
que os valores dizem o que é melhor e não o que é melhor para todos (princípios). Assim, se

326
O autor ainda menciona que a monogamia não se sujeitou a nenhum teste de universalização, conforme as
normas e valores constitucionais, o que impede a sua caracterização como princípio. (SANTIAGO, 2014).
a monogamia se apresenta como melhor para uma pessoa, pode não ser para outra, e nesta
escolha não pode interferir o Estado, nem a sociedade, nem qualquer indivíduo.

A forma pela qual seu relacionamento amoroso será construído – com base na
monogamia ou no poliamor ou em qualquer outro alicerce afetivo – é mais uma
dessas escolhas, que se restringem, tão somente, ao âmbito dos valores de cada
indivíduo. (SANTIAGO, 2014, p.103).

Sendo assim, extrai-se que os princípios enunciam o que é melhor para todos. Portanto,
afetividade deve ser considerada princípio, dignidade da pessoa humana, igualdade,
solidariedade familiar, dentre outros, também o devem, porque representam o que é melhor
para todos os indivíduos, independente de aspectos próprios de um determinado grupo. Por
sua vez, monogamia não pode ser considerada princípio, assim como a poliafetividade
também não poderia ser, porque traduzem aquilo que é bom para determinado grupo e não o
que é bom para todos. Sendo assim, a escolha de uma formatação familiar, seja poliamorosa,
seja monogâmica é uma escolha que se dá no âmbito valorativo327.

3 A VIABILIDADE CRIMINAL, CIVIL E PREVIDENCIÁRIA DAS UNIÕES


POLIAFETIVAS

Por fim, cabe investigarmos as consequências da ausência de tal reconhecimento


jurídico.
No tocante aos efeitos patrimoniais e sucessórios das famílias poliafetivas, mencione-
se a possibilidade de incluir cada indivíduo participante da estruturação familiar como divisor,
de acordo com o nível sucessório. É justamente dessa forma que devem ser compreendidas
essas questões no âmbito dessas estruturações. Sendo assim, deve-se acrescer cada ente
familiar como divisor de acordo com a participação no esforço de construção do patrimônio e
de acordo com o nível sucessório, sob o risco de se negar a fruição de direitos fundamentais a
indivíduos que vivem sob tal formatação familiar.
Da mesma forma, no campo previdenciário, o ideal é que todos os membros fossem
considerados como divisores para percepção de pensões previdenciárias. Para que não
ocorresse o mesmo impasse acima mencionado. Pois vigora na jurisprudência dominante
entendimento em relação às uniões paralelas, embora estas não se confundam com as uniões

327
Acerca de isso interessante analisar a diferenciação feita pelo professor Marcelo Campos Galuppo que
partindo de Habermas, enuncia : “quem procura fundamentar uma ação com base em valores procura aquilo “que
é bom para nós” (Habermas, 1994: 312), enquanto aquele que procura fundamentar uma ação com base em
normas (e em especial em princípios) procura aquilo que é ‘universalmente correto’.” (GALUPPO, 1999, p.197).
poliafetivas, no sentido de não ratear as despesas entre o cônjuge e o companheiro/a da relação
extraconjugal. Todavia, nada impede que esse entendimento seja aplicado aos casos de uniões
poliafetivas, o que mais uma vez representaria o cerceamento de direitos.
No que tange ao reconhecimento da prole e responsabilidades, a pluriparentalidade é
plenamente possível e viável. Sendo que no âmbito de proteção financeira nas relações
poliamorosas o compromisso material deverá ser dividido entre todos os companheiros
igualmente, sem distinção. Embora, o pagamento de alimentos em favor de um, por óbvio,
precisaria considerar o binômio necessidade-capacidade. Sendo assim, como assevera Rafael
Santiago (2014) o magistrado (a) deve identificar primeiro que indivíduos compõem o núcleo
familiar, para assim analisar as possibilidades de cada um e determinar a responsabilização
individual a fim de satisfazer a necessidade do (os) alimentados. Ressalta o autor que o direito
de pleitear alimentos pode ser exercido contra todos os participantes da antiga estruturação,
devendo haver uma responsabilização solidária.
Por último, no que se refere aos aspectos criminais, é importante esclarecer que não se
trata de bigamia. Nos relacionamentos poliafetivos há apenas um conúbio com múltiplos
sujeitos. Note-se que se trata de um único casamento com mais de duas pessoas, não de mais
de um casamento328. Sendo assim, no caso das uniões poliafetivas não há a contração de dois
ou mais casamentos, ao revés, tem-se um único casamento formado por mais de duas pessoas.
Não implica em dizer, portanto, em casamento duplo, triplo etc.
O delito de bigamia encontra previsão no artigo 235 do Código Penal. Configurando-
se a infração quando alguém já casado contrai novo casamento. Segundo Guilherme de Souza
Nucci (2011, p. 887-888) o objeto jurídico tutelado é a preservação do casamento
monogâmico. Ademais, o momento de consumação do delito se dá quando o segundo
casamento é oficializado. Sendo assim, necessária para a configuração delitiva que haja a
formalização de um novo vínculo conjugal.
O poliamor, portanto, não caracteriza a prática do crime de bigamia, pois se trata de
uma única relação, isto é, seria único casamento com mais de duas pessoas. Uma única
certidão com o nome de todos os indivíduos e caso outro indivíduo viesse a integrar a relação
posteriormente, o seu nome seria incluso na mesma certidão.

328
Acerca disso, Maria Berenice Dias analisando os casos de uniões poliafetivas, bem como o caráter cultural
da monogamia, pondera: “O princípio da monogamia não está na constituição, é um viés cultural. O código civil
proíbe apenas casamento entre pessoas casadas, o que não é o caso. Essas pessoas trabalham, contribuem e,
por isso, devem ter seus direitos garantidos. A justiça não pode chancelar a injustiça”(grifos nossos). Disponível
em: http://www.ibdfam.org.br/noticias/4862/novosite#.Uh-B1Ru-2uI . Acesso em: 26.04.2018.
Evidencia-se assim, a viabilidade dessas entidades familiares no que concerne aos
aspectos civis, criminais e previdenciários. Ademais, resta claro que o não-reconhecimento
jurídico dessas composições familiares implica na negativa de direitos fundamentais a
determinados indivíduos. Renegando-os a um espaço de não-direito329, isto é, um espaço de
marginalização, de esquecimento e de invisibilidade quanto ao exercício de direitos estatuídos
inclusive no maior diploma legislativo do país.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entender a família monogâmica como a única forma afetiva de se amar e de se


constituir família, promove o deslocamento das demais entidades que assim não se estruturam,
aquilo que se mencionou como um espaço de não-direito, já que de plano, nega-se o direito
de ser determinada entidade considerada família e consequentemente se negam os direitos
decorrentes deste não-reconhecimento, sejam eles de ordem patrimonial, sucessória,
previdenciária.
A relação entre Poder e Direito manifestam-se, de forma naturalizada, nas formatações
familiares, sobretudo quando o Direito consolida padrões a partir do reconhecimento jurídico
de agregações relacionais humanas na qualidade de entidade familiar e se lhes atribui direitos
e obrigações especiais. Qualificar juridicamente determinadas formatações familiares
significa, tal qual se nos apresenta no Direito Brasileiro, mais do que atribuir direitos, negar-
lhes àquelas formatações familiares divergentes.
O poder exercido pelo Estado, através do direito, no sentido de impor determinada
formatação relacional implica num exercício de dominação simbólica no espaço familiar, já
que a imposição de comportamentos e atitudes nesse ambiente, pela fixação naturalizada de
um modelo, implica na rejeição de estruturação familiar e exercício da sexualidade
divergentes, deixando à margem do direito as demais formatações e gerando situações de
insegurança jurídica.
Há preocupação especial no âmbito familiar porque ele é o espaço em que os
indivíduos buscam satisfazer plenamente seus anseios mais íntimos, como a busca pela
felicidade, pelo afeto e pela solidariedade entre os membros. Negar, portanto, reconhecimento

329
Marcos Alves da Silva (2013) utiliza essa expressão no que tange as relações de concubinato. Destaca que a
forma de tratamento pelo direito às relações de concubinato reforça esse espaço de não-direito. Utiliza esse termo
fazendo referência a uso que lhe foi dado por Jean Carbonnier, bem como menciona brevemente o estudo de
Carbonnier acerca do conceito de não-direito.
jurídico familiar a estruturas que buscam tais objetivos ocasiona efeitos negativos sob um
ponto de vista social e jurídico. Ademais, representa a adequação compulsória de um
comportamento relacional-familiar segundo os moldes monogâmicos.
Todavia, evidenciou-se durante a pesquisa, que não há óbice algum do ordenamento
jurídico brasileiro ao pleno reconhecimento familiar das uniões que se estruturam com base
no poliamor, notadamente nos aspectos criminais, civis e previdenciários.
Ratificou-se que o direito brasileiro não impede o reconhecimento de entidades
familiares poliafetivas. Ao revés, não apenas não impede, mas autoriza, eis que valoriza a
afetividade em plano legal, doutrinário e jurisprudencial. O reconhecimento das configurações
poliafetivas enquanto entidades familiares constituem o conteúdo mesmo do Princípio da
Afetividade.
É de se notar que a todo tempo o presente trabalho se referiu a pleno ou efetivo
reconhecimento jurídico, justamente porque o direito brasileiro já possui embasamento para
tanto, ou melhor, não há nada, especialmente nos âmbitos civis, criminais, previdenciários,
que entravem o acolhimento dessas agregações por parte do fenômeno jurídico.
Não há hermenêutica juridicamente válida, adequada ao Princípio da Afetividade, que
impossibilite a chancela das uniões poliafetivas como entidades familiares. A nova
conceituação de família, fundada em aspectos constitucionais que primam pela valorização
do afeto e por um tratamento plural e inclusivo, permite-nos concluir que as agregações
familiares poliafetivas, assim como as demais entidades que se alicerçam na afetividade,
merecem ampla proteção do direito.

REFERÊNCIAS

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Revista de Sociologia e Política, Curitiba, p.27-41, 2011.

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Tradução Fernando Tomaz.

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poliamor. 2010. 92 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Ciências da Comunicação,
Faculdade de Ciências Social e Humanas Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2010
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SANTIAGO, Rafael da Silva. O mito da monogamia à luz do direito civil-constitucional:


a necessidade de uma proteção normativa às relações de poliamor. 2014. 259 f. Dissertação
(Mestrado) - Curso de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2014. Disponível em:
http://repositorio.unb.br/handle/10482/16193. Acesso em: 18 mar. 2018.

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concubinato brasileiro: demarcações para superação de um lugar de não-direito. Direito de
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TAVARES, Peterson Merlugo; SOUZA, Rosana Cristina da Silva. POLIAMOR: o perfil dos
praticantes e os desafios enfrentados. 2017. 178 f. TCC (Graduação) - Curso de Psicologia,
Centro Universitário Católico Salesiano Auxilium, Lins, 2017. Disponível em:
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VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Famílias paralelas e poliafetivas devem ser


reconhecidas pelo Judiciário. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-
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PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS E O DIREITO A PRIVACIDADE: Descrição e
contexto da LGPD e GDPR.330

Ana Cecília Rodrigues da Luz Neri 331


Wellida Valois Alves ³

RESUMO

O presente estudo tem a finalidade de investigar e descrever como é tratado o direito a


privacidade e seu desdobramento contemporâneo. Considera-se o direito à privacidade como
direito fundamental e inerente a personalidade. Após análise bibliográfica, nota-se a
percepção dos dados pessoais como uma extensão da personalidade e por isso merecedor da
proteção do Estado. Na União Europeia, o tema da proteção dos dados é expressamente
previsto como direito fundamental. No Brasil é o direito a privacidade que fundamenta a
matéria. Com o advento da internet, o tratamento de dados pessoais passa a ser compreendido
como uma operação de risco e a forma como cidadãos e Estado lidam com o direito a
privacidade vem se tornando objeto de estudo. Ressalta-se o contexto fático que justifica a
necessidade de interposição de normas que regulem esta matéria e observam-se marcos legais
no ano de 2018 em território Europeu e brasileiro.

Palavras-chave: Direito. Privacidade. Proteção. Dados Pessoais.


.
INTRODUÇÃO

O ano de 2018 é histórico para o Direito Brasileiro. No último dia 14 de agosto foi
publicada a Lei Geral de Proteção aos Dados. A lei tem um prazo de vacatio legis de 18 meses
a fim de que as empresas criem mecanismos de proteção e circulação de dados de seus clientes.
A lei deixa claro que os dados pessoas pertencem a pessoa e não à empresa.
Desta forma, o presente artigo se constitui em um estudo inicial, de natureza descritiva,
que tem como intuito entender a proteção de dados da perspectiva do Direito de Privacidade,
por esta razão e tendo este direito como ponto de partida, abordamos no tópico 1 o
posicionamento do Direito a Privacidade no ordenamento jurídico brasileiro, com a finalidade
entender a importância axiológica da proteção de dados bem como sua relevância jurídica,
visto que a privacidade tem sua proteção em âmbito internacional, constitucional e
infraconstitucional.

¹ GT 9 – Estudos Contemporâneos em Direito Privado


331
Acadêmica em direito na Faculdade dos Guararapes. E-mail: Ceciliarln98@gmail.com
³ Professora de Direito Civil da Faculdade dos Guararapes, advogada e Mestre em Direito pela UFPE. E-mail:
Wellida.fg@gmail.com
Após entender o fundamento do direito de privacidade, elegemos o caso emblemático
do vazamento de dados do Facebook e seu uso indevido pela Cambridge Analytics nas
eleições presidenciáveis dos Estados Unidos, através de uma breve narrativa, procuramos
respaldar do ponto de vista fático a dimensão do problema que é a falta de regulamentação
sobre proteção de dados.
No tópico 3, uma breve análise da matriz normativa que gerou nossa LGPD: o
Regulamento 2016/679, mais conhecida como a GDPR. Além da sua vanguarda normativa, a
GDPR apresenta importantes inovações legislativas tais como a extraterritorialidade da lei se
constituindo como verdadeira inovação no âmbito das bases do Direito Moderno.
Por último, porém sem nenhuma pretensão de esgotar o tema, e como resultado da
inspiração na GDPR, analisamos o texto da Lei 13.709/2018, a Lei Geral de Proteção de
Dados. Assim, diante da novidade do tema, o recorte da nossa análise teve como objetivo
alinhar a proteção de dados como direito à privacidade e por via de consequência conferir-lhe
o status de direitos humanos, direito fundamental e direito da personalidade.

1 Posicionamento do Direito a Privacidade no ordenamento jurídico brasileiro

Desde o seu surgimento no século XIX até os dias atuais, a tutela da privacidade vem
sendo objeto de estudos doutrinários que se transmudaram ao longo do tempo até chegar ao
modelo tal qual conhecemos hoje (DONEDA, 2006). Tendo isso em vista, o direito a
privacidade em suas primeiras acepções girava em torno da égide do “direito de ser deixado
em paz” (ECHTERHOFF, 2007).
Tal concepção compreendia a proteção aos pensamentos, às emoções e aos
sentimentos do indivíduo, independente de sua forma de expressão. Tinha como cerne de
proteção sobretudo a intimidade da pessoa humana. Em meados de 1890 (DONEDA, 2006),
após a publicação nos Estados Unidos de um artigo sob a autoria de Brandeis e Warren,
chamado “The right to privacy” estabelecera um direito geral a privacidade (VIEIRA, 2007),
ou seja, o direito a privacidade que ultrapassa os limites da subjetividade para ter uma
conotação mais coletiva.
Nota-se uma evolução das discussões sobre este tema que culminam na formalização
deste instituto na Declaração Universal de 1948 que reconhece a privacidade como sendo um
direito inerente a todos os seres humanos inserido-o no texto do seu artigo 12. Entretanto, os
diálogos sobre esta matéria não esgotam, tendo em vista o surgimento de aparatos
tecnológicos sem precedentes nos últimos cinquenta anos. Tais aparatos que tem como base
o desenvolvimento da internet modificam a forma que os indivíduos e em consequência disso
os Estados lidam com a privacidade.
A Constituição de 1988 acolhe o direito a privacidade, inserindo no seu artigo 5º
destacado como principal consolidação das normas fundamentais no nosso país. Ademais o
Código Civil de 2002, em seu artigo 21 atribui a privacidade da pessoa natural como um
direito da personalidade sendo protegida pelo manto da inviolabilidade. Sendo assim, está
posicionado o Direito a Privacidade: protegido internacionalmente o que lhe confere o status
de direito humano, constitucionalmente, sendo por isto direito fundamental e bem como
reconhecido pela norma infraconstitucional como direito de personalidade.
Nos dias atuais, há um elemento novo que vem sendo responsável por transformar
nosso modo de pensar, de agir e de nos relacionarmos: a tecnologia. Então, o aumento da
capacidade de armazenamento e sistematização de dados vem se apresentado como verdadeiro
facilitador da vida moderna, porém tal agente “facilitador” é capaz de gerar uso abusivo de
tais dados. Para além de facilitar, os dados ganharam uma importância mercadológica grande,
ao ponto de Maurício Ruiz, presidente da Intel no Brasil, em entrevista a Isto É Dinheiro
afirmar que “dados são o novo petróleo”.
Assim, empresas podem encontrar seus clientes com mais facilidade a partir da
sistematização de dados, porém, é possível que eu tenha na ponta dessa cadeia comercial
alguém prejudicado por este cruzamento de informações. É possível que esses dados sejam
usados de maneira indevida de maneira que este fato social tem demandado a proteção estatal
já que, segundo Doneda (2011), dados de caráter pessoal são compreendidos como extensão
da personalidade do indivíduo.
A temática da proteção de dados pessoais encontra relevância ao se compreender o
risco que envolve a atividade de tratamento de dados com esta natureza. De acordo com
Doneda (2011), tal risco se concretiza na possibilidade de exposição e utilização indevida ou
abusiva de dados de caráter pessoal, tendo em vista que estes são compreendidos como
extensão direta da personalidade do indivíduo.

2 Contexto fático sobre a proteção de dados: o caso da Cambrige Analytics e o


vazamento de dados do Facebook

Em 2016, as eleições presidenciais nos Estados Unidos foram marcadas pelo uso
massivo de mecanismos digitais para realização de campanha. Dentre as ferramentas
utilizadas para influenciar as decisões, observa-se o uso do big data, definido por Taurion
(2013) como um conjunto de dados cujo crescimento é exponencial e cuja dimensão está além
das habilidades típicas de capturar, gerenciar e analisar dados.
O uso indevido desse tipo de dado foi observado no escândalo envolvendo a
Cambridge Analytica, organização responsável pelas mídias sociais relacionadas à campanha
do atual presidente dos Estados Unidos.
Segundo Hofstetter e Agner (2018) o uso indevido do big data foi possível, pois no
ano de 2014 a Cambridge Analytica coletou dados pessoais de cerca de 270.000.000 de
pessoas pelo uso de um aplicativo de teste de personalidade do facebook, chamado “this is
your digital life”. Após a coleta destas informações, a organização traçava o perfil psicológico
dos indivíduos, elaborando o direcionamento de campanha em 2016 com a finalidade de atrair
potenciais eleitores de Donald Trump.
Após o escândalo vir à tona, a sensação de insegurança gerada ao público no uso da
rede social implicou em prejuízo. Segundo Temóteo (2018), a desconfiança em relação a
segurança do armazenamento dos dados dos usuários do Facebook custou uma perda de US$
116 bilhões de dólares em valor de mercado das ações da rede social e também o encerramento
das atividades da Cambridge Analytica.
Evidenciam-se, portanto os danos financeiros que acompanharam o escândalo.
Entretanto, os danos decorrentes da violação destes dados são irreparáveis. Observado o
contexto internacional que justifica a proteção de dados e considerando que a Lei Geral de
Proteção de dados encontra-se em período de vacância, notam-se riscos de vazamento de
dados de valor irreparável que ameaçam o exercício da personalidade.

3 Regulamentação normativa da proteção de Dados: breve análise da GDPR

A interposição de normas que regulem a manipulação de dados pessoais compreende


o contexto socioeconômico que os países do globo terrestre se encontram. Desde o pós-
segunda guerra a economia e as relações sociais sofreram grandes alterações em seu
desenvolvimento, pois com o advento de aparatos tecnológicos sem precedentes, a exemplo
da internet, a produção e comercialização de informações passaram a comandar o fluxo
econômico.
De acordo com Silva (2017),

Essas novas interações intersubjetivas por meios digitais e a expansão global da


internet permitem a manipulação de informações pessoais em grande escala.
Surgiram empresas e instituições públicas capazes e dispostas a coletá-las, moldá-
las e empregá-las na transformação do mundo e na geração de outros conhecimentos
e bens a partir da utilização dos dados pessoais eletrônicos (2017, p. 12).

Diante da criação de organizações que tem como finalidade lucrar com a coleta de
informações pessoais e da necessidade de garantir a proteção da vida privada dos indivíduos,
surge uma problemática: qual o limite de acesso que tanto o Poder Público quanto à iniciativa
privada tem sobre informações pessoais?
Dada a necessidade de proteger direitos inerentes a personalidade do cidadão europeu,
a União Europeia, através de sua Carta dos Direitos Fundamentais, positivou em dezembro de
2000 a proteção dos dados pessoais como direito fundamental aos indivíduos sob sua
jurisdição, conforme doutrina do artigo 8º, item 1 da Carta dos Direitos Fundamentais da
União Europeia.
Embora positivado como direito fundamental a matéria da proteção de dados, é válido
pontuar que de acordo com Limberger (2009) que antes “que chegasse a este patamar, ocorreu
uma evolução legislativa, de forma diversa em cada país. Em alguns, a tutela se estabeleceu a
nível constitucional, outros por meio de lei ou da jurisprudência.”. Portanto, é necessário
ressaltar que os Estados-membros do bloco europeu já possuíam um histórico de tutelar sobre
a proteção de dados, mesmo que de forma diversa.
A União Europeia atenta a necessidade de impor limite ao tráfego de dados, inicia
debates sobre formas de proteção aos dados, tais debates originaram o regulamento 2016/679,
mais conhecido como General Data Protection Regulation-GDPR.
Após seis anos de intensas deliberações e dois anos de vacância, os países-membros
do bloco da União Europeia passaram a aplicar nos territórios sob sua jurisdição a norma que
busca uniformizar o modo que a UE lida com a circulação de dados pessoais.
No artigo primeiro do GDPR, define-se como objeto da legislação “estabelecer
regras relativas à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados
pessoais e à livre circulação desses dados.”. Sendo o recorte desta pesquisa, a análise das
legislações que dispõem sobre proteção de dados é relevante mencionar o tratamento legal
para alguns conceitos basilares, tais como, o conceito de dados pessoais, a forma como os
dados são tratados e quem controla o fluxo de dados.
Repetindo a definição anterior que compreendem dados pessoais como extensão direta
da personalidade, nota-se o caráter vasto do conceito atribuído a dados pessoais pelo
regulamento geral:

Dados Pessoais: toda a informação relativa à identificação do seu titular ou que


possam levar à sua identificação de forma direta ou indireta, como por exemplo, um
nome, um número de identificação, dados de localização, identificadores por via
eletrônica ou a um ou mais elementos específicos da identidade física, fisiológica,
genética, mental, económica, cultural, religiosa ou social. (Regulamento 2016/679,
artigo 4º, 1.)

Após observar a amplitude do que se considera dado pessoal, é possível compreender


que grandes partes das atividades humanas realizadas diariamente são executadas através da
circulação de dados pessoais. Seja para realizar compras, seja para acessar redes sociais ou
endereços de e-mail, há algum tipo de tratamento de dados pessoais envolvido no processo.
São notáveis as inovações tecnológicas decorrentes da última década e do excesso de
atividades realizadas envolvendo a transação de dados. Compreende-se que com o auxílio da
rede de computadores, a velocidade e a possibilidade de realização de operações que busquem
tratar dados notadamente aumentaram. Considerando este fato, é possível assimilar o motivo
da extensão do conceito de tratamento de dados admitido pela legislação europeia:

Tratamento de dados: uma operação ou um conjunto de operações efetuadas sobre


dados pessoais ou sobre conjuntos de dados pessoais, por meios automatizados ou
não automatizados, tais como a recolha, o registo, a organização, a estruturação, a
conservação, a adaptação ou alteração, a recuperação, a consulta, a utilização, a
divulgação por transmissão, difusão ou qualquer outra forma de disponibilização, a
comparação ou interconexão, a limitação, o apagamento ou a destruição.”
(Regulamento 2016/679, artigo 4º, 2.)

Além de estabelecer novos conceitos para tratamento de dados afim de abranger todas
as operações que realizem uso de dados pessoais, o marco legal de 2018, estabelece meios que
efetivem o controle do bloco sobre o fluxo desses dados. Dentre estes meios, observamos a
criação da figura do Responsável pelo tratamento (chamando no texto em inglês de controller),
que tem sua função definida como “determinar as finalidades e os meios de tratamento de dados
pessoais sempre que as finalidades e os meios desse tratamento sejam determinados pelo direito da
União ou de um Estado-membro.” (artigo 4º, item 7).

3.1 Extraterritorialidade da GDPR

Como anteriormente fora apresentado, o regulamento não é a primeira norma editada


na Europa a garantir a proteção de dados em caráter extraterritorial. Com este objetivo, os
estados-membros do Conselho da Europa assinaram a Convenção 108, de Strasbourg- na
época o único instrumento internacional juridicamente vinculativo no domínio da proteção de
dados (Conselho da Europa, 2014)-, que tinha a finalidade de:

garantir, no território de cada Parte, a todas as pessoas singulares, seja qual for a sua
nacionalidade ou residência, o respeito pelos seus direitos e liberdades
fundamentais, e especialmente pelo seu direito à vida privada, face ao tratamento
automatizado dos dados de carácter pessoal que lhes digam respeito («protecção dos
dados»).” (convenção 108, art. 1º).

Diz-se ainda sobre tal convenção que esta “[...] firmou as bases principiológicas e as
terminologias das atuais legislações sobre dados pessoais”. (Manual GPDR) Um exemplo
de terminologia sob a influência deste acordo é o conceito de dados sensíveis, que se encontra
estabelecido pela primeira vez no artigo 6º da convenção e vê-se também previsto na norma
brasileira de número 13.709/2018, em seu artigo 5º, inciso II.
Dando sequência ao marco de 1981, o Parlamento Europeu e o Conselho da Europa
criaram a diretiva 95/46/CE, que tinha como meta assegurar “[...] a proteção das liberdades
e dos direitos, fundamentais das pessoas singulares, nomeadamente do direito à vida privada,
no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais.” (artigo 1º). Nesta diretiva, o bloco
internacional tentava adequar as normas internas dos países membros ao contexto geral
europeu. A partir da criação destes dois textos “a proteção de dados pessoais passou a ser
instrumento essencial à proteção da pessoa humana em diversos ordenamentos jurídicos.” (LB
Florenço, 2016)
Enquanto a Convenção 108 e a Diretiva 95/46 tinham como propósito estabelecer base
e harmonização a respeito de dados no bloco europeu, o Regulamento que é tema deste estudo
busca “eliminar as assimetrias existentes nos diferentes regimes de proteção de dados em vigor
nos diferentes países da União Europeia que representavam um obstáculo ao funcionamento
do Mercado Único.” (Manual de Apoio a implementação a GDPR). É necessário pontuar que,
com a edição do GDPR, as disposições estabelecidas na diretiva foram revogadas.

3.2. Inovações trazidas pelo GDPR

As assimetrias apresentadas a respeito de barreiras ao funcionamento do mercado


único podem ser entendidas como decorrentes de legislações subsidiárias dos textos legais
estabelecidos pelo bloco em âmbito doméstico, pois tanto o Acordo 108 como a Diretiva 46/95
preveem (nos artigos 3º e 4º, respectivamente) que os Estados signatários dos documentos
elaborem normas nacionais que digam respeito a esta matéria
Se comparadas ao Regulamento 2016/679, observa-se que além de prever conceitos e
princípios a respeito do tratamento de dados, a norma retira da titularidade dos Estados-
membros do bloco europeu a edição de textos legais que versem sobre o texto. Neste sentido,
Silva, Alexandre Ribeiro da (2017) afirma que o “General Data Protection Regulation cria
um regime jurídico único em todos os vinte e oito países membros da União Europeia, não
exigindo qualquer tipo de habilitação legal por parte dos governos nacionais.”
Além de Revogar a diretiva 46/95 e estabelecer regras a serem implementadas em todo
o bloco europeu, a normativa traz extremas modificações a respeito da aplicabilidade
extraterritorial do regime de tratamento de dados. Observa-se o artigo 3º da letra de lei, que
insere sob aplicabilidade do direito europeu qualquer tratamento de dados, mesmo que
realizado fora da União Europeia, desde que o responsável ou o subcontratante encontrem-se
localizados em países-membros do bloco econômico europeu.
Adiante, neste mesmo artigo, são estabelecidas vias excepcionais para o regimento do
texto europeu, que obriga responsável e subcontratantes de tratamento de dados ao
Regulamento, mesmo que não estabelecidos em território da UE, desde que as atividades de
tratamento estejam relacionadas com:

a. A oferta de bens ou serviços a esses titulares de dados da União,


independentemente da exigência de que os titulares dos dados procederem a um
pagamento;
b. O controle do seu comportamento, desde que esse comportamento tenha lugar
na União.

Diante da extensa abrangência extraterritorial do GDPR, observa-se o grau de


influência que o texto legal passa a exercer sobre organizações que lucrarem com a circulação
de dados pessoais de europeus, obrigando a empresas como o Facebook a modificar a forma
que lida com o exercício do direito fundamental ao tratamento de dados e á privacidade de
seus usuários.
Caso não obedeçam à normativa, pessoas e organizações que realizam operações de
dados nos critérios anteriormente citados passarão a sofrer sanções de multas sobre o
percentual de faturamento anual de empresas e, poderão também ser responsabilizados
civilmente mediante representação dos titulares dos dados. Compreendidas a
extraterritorialidade da legislação e as sanções impostas ao não cumprimento da norma,
conclui-se que o poder de coerção da norma alcança todo o globo terrestre.
Sanções complementares podem vir a serem estabelecidas pelos Estados-membros da
UE em âmbito interno, pois, embora a norma tenha a finalidade de uniformizar as previsões
legais a respeito do fluxo de dados pessoais, existem matérias que são permitidas aos
integrantes do bloco legislar sobre, desde que obedecidos os princípios e que não façam
contraposição ao Regulamento.

4 Da Lei Geral de Proteção de dados


Seguindo uma tendência internacional de elaboração dos textos legais que delimitam
a forma que dados pessoais são tratados, o Estado Brasileiro sancionou em agosto de 2018 a
lei 13.709, chamada lei geral de proteção de dados (LGPD). A doutrina do artigo 1º prevê
como objetivo da norma “proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e
o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural.”. Este objetivo deve ser
alcançado através do controle estatal sobre operações no meio físico e virtual que envolvam
o tratamento de dados pessoais.
A necessidade de implementação de uma norma que busque regular de forma
pormenorizada a circulação de informações pessoais no Brasil tem base no fato de que o Brasil
não possui um histórico normativo sobre esta matéria, diferente de países como Estados
Unidos e o bloco econômico da União Européia. Essa inexistência de regulamentação do
armazenamento e de outras atividades de tratamento de dados torna possível que empresas, a
fim de lucrar com a “mineração” de informações pessoais, cometam diversas arbitrariedades
em desrespeito aos titulares desses dados.
Diante da necessidade urgente de criação de um texto legal sobre essa matéria, o Poder
Legislativo, também fazendo vistas a escândalos internacionais que expuseram os riscos da
ausência de limites impostos a empresas que lucrem com o tratamento de dados pessoais (a
exemplo do vazamento de dados de consumidores da Playstation Network, em 2011, que
afetou cerca de 77.000.000 de consumidores) realizou a propositura do projeto de lei
4060/2012, em regime de urgência. O projeto de lei viria a se tornar a lei ordinária
13.709/2018, após seis anos de deliberações, seguidos de veto presidencial.
Como fora anteriormente apresentado, a norma busca materializar direitos
fundamentais. Diante disso, nota-se que Ferraz (1993) define a inviolabilidade dos dados
pessoais como correlata ao direito fundamental à privacidade, que resta positivado na carta
magna em seu artigo 5º, inciso X. Diferente da União Europeia, que prevê a proteção de dados
como um direito Fundamental, determinado na carta dos direitos fundamentais da UE, o topo
do ordenamento jurídico brasileiro não prevê expressamente a proteção de dados pessoais
como direito fundamental.
Anteriormente a LGPD, a proteção de dados pessoais era considerada matéria prevista
no direito brasileiro na lei 12.965/2014 (conhecida como marco civil da internet), artigo 3º,
inciso III, pois este dispositivo determinava que a disciplina do uso da internet no Brasil
deveria obedecer ao princípio da proteção de dados pessoais. Desta forma, pode se
compreender que a norma de 2018 também viria a garantir que tal princípio fosse respeitado.
Também é necessário pontuar que o LGPD também realiza alterações no marco civil da
internet.
Para que a norma possa ser aplicada, a lei 13.709/2018 define dados pessoais como
“informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável” e prevê como função
estatal realizar o controle do tratamento de dados pessoais manipulados por pessoas físicas ou
jurídicas, públicas ou privadas, inclusive no meio digital. O tratamento de dados, matéria
tutelada pela LGPD, é definida por esta como:

toda operação realizada com dados pessoais, como as que se referem a coleta,
produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão,
distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação
ou controle da informação, modificação, comunicação, transferência, difusão ou
extração;

Assim como no direito europeu que faz a regulamentação desta matéria, a normativa
brasileira também prevê a criação de meios que efetivem a proteção jurídica desta matéria,
estabelecendo, por exemplo, a figura de uma pessoa natural ou jurídica, de direito público ou
privado, a quem competem às decisões referentes ao tratamento de dados pessoais. A figura
anteriormente citada é chamada controlador e tem o mesmo nome e semelhante definição no
direito europeu.
Embora existam semelhanças, a norma brasileira e a norma vigente no bloco da União
Europeia possuem contextos dispares, dado o histórico normativo dos dois territórios e
também o âmbito de aplicabilidade destes. Enquanto o GDPR estabelece a
extraterritorialidade do domínio europeu sobre operações de tratamento de dados, a LGPD
estabelecem requisitos que determinam a prevalência da norma em âmbito interno.
A prevalência da Lei 13.709/2018 em âmbito interno nota-se pelos requisitos
existentes em seu artigo 3º, pois este prevê controle estatal sobre operações de tratamento de
dados pessoais, desde que: I- a operação de tratamento seja realizada em território nacional;
II- a atividade de tratamento tenha por objetivo a oferta ou o fornecimento de bens ou serviços
ou o tratamento de dados de indivíduos localizados no território nacional; III - os dados
pessoais objeto do tratamento tenham sido coletados no território nacional. (art. 3º, inc. I,II e
III).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em um passado não tão distante, há 30 anos atrás, comemorávamos a promulgação da


nossa Constituição Federal de 88, alcunhada por Ulysses Guimarães como a Constituição
Cidadã, assim denominada por contemplar uma gama de direitos fundamentais, dentre eles o
direito à privacidade objeto do presente artigo.
Atualmente, vivemos em um mundo denominado VUCA que significa: Volatily,
Uncertainly, Complexty e Ambiguity, em uma tradução corriqueira o mundo vuca é volátil,
incerto, complexo e ambíguo. Exatamente nesse contexto de volatilidade, incerteza,
complexidade e ambiguidade ocorreu a reconfiguração da privacidade.
A fim de balizar essa reconfiguração e o redimensionamento da tutela jurídica deste
direito fundamental, o presente artigo trouxe como parâmetro o Direito Europeu que neste
quesito encontra-se em um estágio mais avançado. O Tribunal Europeu do Direitos Humanos
deu uma interpretação ampla ao que se consagrou como direito à privacidade, procurando
harmonizar a proteção da vida privada à livre circulação de dados pessoais na União Europeia.
O fiel desta balança é a transparência do uso desses dados. Assim não há como falar
em tutela jurídica do direito à privacidade sem falar no direito que o titular dos dados tem
sobre o direito de ser informado quando seus dados pessoais estão sendo processados, por
quem estão sendo processados e para que estão sendo utilizados.
O trabalho apresentou inicialmente o direito á privacidade como direito fundamental,
assim previsto pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ao direito fundamental á
privacidade também foi atribuído à característica de direito da personalidade, fazendo notar
os dados pessoais como extensão da personalidade, portanto, merecendo proteção do Estado
matérias ligadas a dados com esta natureza.
A necessidade da proteção do Estado sobre matérias referentes à circulação de dados
de caráter pessoal se justifica pelo entendimento de que, como fora afirmado por Doneda
(2011) a manipulação destes dados envolve riscos. Diante da necessidade de normas que
regulem o tratamento de dados, observa-se o marco legal do Regulamento Geral de Proteção
de dados implantado no âmbito da união Europeia, que entrou em vigor em maio de 2018 e
passou a influenciar o modo que as organizações lidam com o tratamento de dados pessoais
em todo o globo terrestre.
Diante da Edição do GDPR, observa-se a edição de normas em solo europeu que
buscavam proteger os dados pessoais de seus cidadãos desde 1981 e fazem vistas as inovações
e modificações trazidas pelos marcos legais de 1981, 1995 e 2018. Depois de descritas as
inovações do regulamento, observa-se a edição da normativa brasileira que se encontra em
período de vacância e busca regular a mesma matéria.
Sem possuir quaisquer pretensões de esgotar a matéria, a edição do texto legal e sua
fundamentação constitucional são compreendidas neste estudo, além de fazer vistas ao marco
civil da internet, alterado pelo LGPD. Após investigar o embasamento legal da tutela sobre o
tratamento de dados pessoais, ressaltou-se a necessidade de que seja estabelecida a tutela
estatal sobre o tratamento de dados pessoais, fazendo vistas ao escândalo de vazamento de
dados do Cambridge Analytica.
Diante do vazamento de dados envolvendo o uso de Big data coletados da rede social
Facebook pela organização Cambridge Analytica e os danos irreparáveis causados pela coleta
indevida de dados, nota-se o risco que ainda paira sobre o uso de dados pessoais no meio
virtual, tendo em vista que a norma no Brasil que regula esta matéria ainda encontra-se no
estado de vacância.
Notou-se, portanto, a relevância da edição de uma normativa brasileira a fim de regular
o presente tema. Porém, é importante observar a insegurança existente entorno da proteção de
dados no Brasil, posto que embora tais garantias acerca do uso de dados venham a vigorar,
vê-se a incerteza sobre o cumprimento das disposições legais em solo brasileiro, posto que a
previsão da criação de agência reguladora para fiscalizar tratamentos de dados foi objeto de
veto.

REFERÊNCIAS

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dos Contabilistas Certificados. MANUAL DE APOIO À IMPLEMENTAÇÃO DO
REGULAMENTO GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS (RGPD). Lisboa, 2018. 27 p.
Disponível em: <https://www.occ.pt/fotos/editor2/manualrgpd_maio2018.pdf>. Acesso em:
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DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção dos dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar,
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88, p. 439-459, 1 jan. 1993.

FLORENÇO, Larissa Brito. A PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS NAS RELAÇÕES DE

CONSUMO COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL: Perspectivas de um marco


regulatório para o Brasil. Revista da Escola de Magistratura do Estado de Santa Catarina,
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LOUREIRO, Rodrigo. Dados são o novo petróleo. Isto é Dinheiro, São Paulo, v. 1060, p.01-
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VIEIRA, Tatiana Malta. O direito a privacidade na sociedade da informação: efetividade


desse direito fundamental diante dos avanços da tecnologia da informação. 2007. 297 f.
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Disponível em:
<http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/3358/1/2007_TatianaMaltaVieira.pdf>. Acesso
em: 04 out. 2018.
O PROJETO DE CÓDIGO CIVIL DE COÊLHO RODRIGUES: O Início de uma
Unificação do Direito Privado332

Gabriel de Carvalho Marroquim Medeiros333


Vanessa Viana de Melo Wu334

RESUMO

O “Projecto do Codigo Civil Brazileiro”, proposto pelo então senador Antônio Coêlho
Rodrigues, é ainda hoje um grande representante do movimento unificador do Direito Privado.
Foi idealizado para ser o primeiro Código Civil da república brasileira e sua importância
permeia diversas searas do conhecimento jurídico brasileiro republicano exordial e
contemporâneo (FRANÇA, 1999). Denota-se no projeto uma clara expectativa unificadora
do direito privado, o que se faz na medida em que trata de diversas matérias considerando elas
comuns a tutela de um mesmo instrumento normativo, englobando-as como se uma só fossem.
Demonstrando e comparando o projeto com os ensinamentos da ideologia da unificação do
Direito Privado, o presente artigo objetiva, por meio de pesquisa qualitativa, apreciar as
normas e princípios trazidos pelo texto pretenso de tornar-se Código Civil, elencando sua
importância para a época, os preceitos principiológicos que do texto se pode aduzir, bem como
os seus reflexos no direito dos dias atuais.

Palavras Chave: Recodificação; Unificação; Direito Privado.

INTRODUÇÃO

Os projetos de tentativa unificadora do Direito Privado no Brasil foram diversos, onde


um destes unificadores foi o piauiense Antônio Coêlho Rodrigues. Este foi um jurista
brasileiro nascido na cidade de Oieras, atual município de Picos no Piauí, no dia 4 de abril de
1846 (SENADO FEDERAL). Foi deputado geral e senador pelo seu estado de nascença e
viveu em uma época marcada pelo turbilhão ideológico e filosófico, dado o fato de esta fase
da história ter sido composta por movimentos pró-república e movimentos abolicionistas
juntamente com um império fragilizado pelas crises política, econômica e ideológica que
prejudicavam a imagem e a credibilidade do sistema governamental e da própria família
imperial (COSTA FILHO, 2014).
Em 1866 obteve o título de bacharel pela Faculdade de Direito do Recife, recebendo
em 1870 o título de doutor em Direito por esta mesma instituição de ensino. Apesar de
pertencer ao momento histórico da chamada Escola do Recife; representada por pessoas como

332
GT 9 – Estudos Contemporâneos em Direito Privado
333
Graduando do Curso de Bacharelado em Direito. Faculdade Damas da Instrução Cristã – Recife / PE.
gabrielmarroquim@hotmail.com
334
Graduanda do Curso de Bacharelado em Direito. Faculdade Damas da Instrução Cristã – Recife / PE.
vanessavianawu@gmail.com
Tobias Barreto, Sílvio Romero, Graça Aranha e Clóvis Beviláqua, redator do Código Civil de
1916; Coêlho Rodrigues não era adepto ideologicamente do movimento filosófico, na verdade
era considerado como um homem bastante tradicional, sendo, durante a monarquia, um
defensor tenaz da manutenção do sistema escravocrata e somente se manifestando
publicamente em prol da república após a sua proclamação (COSTA FILHO, 2014).
Entretanto, apesar de ser tradicionalista, não pode ser chamado de conservador já que foi autor
do projeto que se tornou o Decreto n.º 181 de 1890, que instituiu o casamento civil no Brasil
(FRANÇA, 1999).
Em face da notória diversidade do pensar deste senador, foi convidado a redigir aquele
que seria o primeiro Código Civil da república, projeto o qual era dotado de íntima ligação ao
movimento de unificação do Direito Privado.
Ante a vívida importância deste projeto, o presente trabalho objetiva ponderar os
aspectos unificadores da perspectiva, por meio de pesquisa qualitativa, de um Direito Privado
uno trazidos por este texto pelo senador escrito.

A NECESSIDADE DO DIREITO POSTO E O MOVIMENTO DE RECODIFICAÇÃO

O “Projecto do Codigo Civil Brazileiro”, trazido por Antônio Coêlho Rodrigues é de


substancial importância para o entendimento que se tem hoje do sistema social, econômico e
político que vivia o Brasil recém-republicano. Com a marca do movimento do positivismo,
após a proclamação da república, em 15 de novembro de 1889, via-se a necessidade de regular
em direito posto a operação e as bases do Estado Nacional. Neste contexto, em 12 de julho do
ano de 1890 foi incumbido por Campos Salles, Ministro da Justiça na época, ao então senador
pelo estado do Piauí, Coêlho Rodrigues, a redação do primeiro Código Civil da república
(FRANÇA, 1999).
O projeto era dotado de diversas peculiaridades, dentre as quais se destacam a
idealização do Direito Privado enquanto unidade, gerando um dos inícios da proposta de
recodificação do direito brasileiro. Fundamental se faz salientar que ao tratar do movimento
de recodificação, por suposto antes é necessário entender o que é o movimento de codificação.
A ideologia e tendência de enfeixar todos os dispositivos legais em um mesmo
instrumento são milenares, suas origens datam da Mesopotâmia, que trouxe leis tal como o
Código de Ur-Nammu, o famoso Código de Hamurabi e o Código de Manu. Contudo, estes
sistemas não podem ser definidos como códigos, pois se tratavam mais de uma compilação
dos costumes do que de um sistema codificado propriamente dito, eram compilações de regras
cotidianas dos povos mesopotâmicos (NADER, 2016). Segundo Flávio Tartuce (TARTUCE,
2017) a tendência codificadora como conhecemos tem respaldo no Direito Romano, sobretudo
no Corpus Iuris Civilis, que organizou as leis já existentes e formulou novas, tendo se tornado
a base fundamental do Direito Civil moderno e consequentemente do sistema codificador;
contudo, neste instrumento há momentos dedicados à história do Direito Romano, o que leva
ao distanciamento dos códigos atuais.
O movimento codicista inicia-se na forma em que o conhecemos no século XVIII com
as Compilações trazidas pela Revolução Francesa, tendo como primeiro código moderno o
Code Civil des Français, também chamado de Code Napoléon, no início do século XIX, dando
surgimento ao que Paulo Nader chama de Era da Codificação (NADER, 2016). Este código
trouxe consigo aquilo que outrora fora fervorosamente aclamado na Revolução Francesa, a
ideologia de um conhecimento gerado pela razão repercutido diretamente na ordem jurídica.
Podia-se, portanto, criar leis e códigos que seriam fruto de princípios transcendentais a todos
os homens, e não tão somente fruto do Direito Jusnaturalista (NADER, 2016). O cenário
brasileiro não era diferente, pois como muito bem elencam Elpídio Donizetti e Felipe
Quintella:

Quando da independência, já se sentia no Brasil a necessidade da criação de


universidades, sobretudo de cursos jurídicos. Esse anseio foi atendido pela Lei de
11 de agosto de 1827, que criou dois cursos de ciências jurídicas e sociais, um na
cidade de São Paulo e outro na cidade de Olinda, os quais passaram a funcionar a
partir de 1828 – o primeiro no Convento de São Francisco e o segundo no Mosteiro
de São Bento –, contando com professores formados na Europa, sobretudo em
Coimbra.
Nessa época, ainda vigiam entre nós, por comando da Lei de 20 de outubro de 1823,
as Ordenações Filipinas, que eram a compilação do Direito português organizada
por ordem de Filipe II de Portugal em 1603.
O Direito Civil brasileiro nasceu, pois, sob forte influência do Direito lusitano, o
qual, por sua vez, sofria grande influência do Direito Romano.
Todavia, os estudantes de Direito das duas academias nacionais foram desde a
criação dos cursos inspirados pelos ideais liberais à época difundidos tanto em São
Paulo quanto em Olinda, e, ademais, começaram a ocupar as cátedras pouco depois
de formados, ainda muito jovens.
O resultado foi uma cultura jurídica que reclamava, imediatamente, a promulgação
de um Código Civil, com o consequente desapego das velhas Ordenações
portuguesas e instituições romanas. (DONIZETTI; QUINTELLA, 2017, p.27)

A corrente codificadora basicamente objetiva unir em uma mesma lei toda a matéria
jurídica de um ramo do direito, desta forma há uma aglomeração do direito de forma
sistemática orgânica e uníssona, além de acarretar na extinção da legislação dispersa
(AFTALIÓN, 1999), ou seja, a criação de um sistema homogêneo, unitário e racional que
busca ser logicamente construído visando à aplicabilidade a toda a realidade de um plano do
direito. Contudo, conforme entende Paulo Dourado de Gusmão.
Os códigos ficam velhos, começando a ser emendados por leis dispersas, chegando
a um ponto em que deve ser substituído por outro, por não mais atender às suas
finalidades e por ter se transformado em uma colcha de retalhos em virtude das
novas leis que lentamente o reformam. (DE GUSMÃO, 1969, p. 133)

Portanto, observa-se que apesar da boa aplicabilidade dos códigos, esses tem uma forte
tendência à caducidade das normas, dado que têm uma necessidade quase constante de
reforma, e com o passar do tempo, após diversas reformas, perdem completamente suas
características e finalidades. O jurista alemão Friedrich Carl Von Savigny (SAVIGNY apud
DE GUSMÃO, 1969), opositor do modelo, elenca que são os códigos os fossilizadores do
direito. Seguindo o pensamento de Orlando Gomes: “Destinado a ter longevidade secular, o
Código Civil agoniza ao perder o seu significado repositório de todo o direito privado e de
centro da experiência jurídica de um povo” (GOMES apud LÔBO, 2018, p. 30).
O fenômeno que se observa na atualidade é uma pulverização do Direito Privado em
conjunto com uma sociedade em constante atualização, de forma a tornar a norma
codificadora como conhecemos uma mera formalidade, visto que muitas vezes é deixada de
lado, pois a lei especial tem caráter derrogador da lei geral. De tal forma é expressivo que
outrora víamos apenas o Direito Civil como diretriz do Direito Privado, enquanto hoje
observa-se, além daquele, o Direito do Consumidor, o Direito do Trabalho, o Direito
Empresarial, o Direito Digital, dentre tantos outros ramos que surgem desta fragmentação.
Estes microssistemas são fundamentais para a sistematização estatal que hoje temos, mas
tornam obsoleto o Código Civil. Portanto a sociedade contemporânea precisa destes novos
modos, afinal não há como progredir com rumo a uma nova sociedade com os velhos modos,
não mais é suficiente um Código Civil para ser a norma imperadora, como se fora uma
constituição de todo o Direito Privado. O que se observa com clareza no pensamento de
Ricardo Luiz Lorenzetti:

Para que a sociedade funcione, é necessário que existam regras e que estas assentem
em algumas bases, sejam essas em um oráculo, máximas transmitidas
historicamente ou precedentes judiciais; tem de haver um ou vários dogmas
fundamentais, considerados com inquestionáveis. A partir daí a dogmática trabalha
como uma opinião jurídica racionalizada, determinando as regras aplicáveis aos
casos concretos. (LORENZETTI, 1998, p. 78)

O jurista argentino ainda diz que juntamente com a criação de um código é gerado um
Big Bang Legislativo, ou seja, uma atividade legislativa intensa a fim de criar quantas leis
forem necessárias para suprir as lacunas que surgiriam com a mudança dos pensamentos e
costumes da sociedade com o passar do tempo (LORENZETTI, 1998).
Vê-se a necessidade da idealização do sistema diretivo privado enquanto uno, criando,
portanto, um novo modo de código, o qual conteria os princípios e normas basilares e
fundamentais para todos os microssistemas contidos no Direito Privado, irradiando as
diretrizes gerais para estes.

O PROJETO DE CÓDIGO CIVIL E SUAS CARACTERÍSTICAS

O projeto por Coêlho Rodrigues desenvolvido era dotado de peculiaridades. Baseado


no Código de Direito Privado do Cantão de Zurique de 1856 (SUÍÇA, 1856), a proposta
apresenta claramente a ideia de um Direito Privado único na medida em que tratava de
diversos microssistemas em um mesmo texto legislativo.
Portanto era bastante presente esta teoria da unidade do Direito Privado, neste mesmo
texto com pretensão de lei continham elementos que tutelavam áreas que hoje são intituladas
como ramos autônomos do direito, mas ainda assim pertencentes à seara privada. É o que se
observa na tutela de direitos do consumidor, direitos do trabalho, direitos dos animais, direitos
comerciais, direitos autorais e, claro, direitos civis. Além de se observar direitos estranhos aos
atuais, como os direitos dos chamados “quasi contratos”. Em certos momentos apresenta
características de uma constituição, na medida em que trata de matéria tributária, de
distribuição de bens dos entes federativos e da relação dos cidadãos com estes entes (BRASIL,
1893).

1 O Direito Civil no Projeto

A proposta de lei inicia-se com a qualificação do início da capacidade civil, na medida


em que diz que “todo aquelle que nasce com vida e forma humana é considerado pessoa
natural e capaz de direitos civis” (BRASIL, 1893, p. 3), desde logo há de se certificar da
ausência de movimento ideológico naquela época para assegurar e defender os direitos das
pessoas portadoras de deficiência, os quais eram socialmente postos à margem do interesse
público.
Posteriormente resguarda o nascituro enquanto potencial sujeito de direito quando
elenca o nascimento como termo inicial da capacidade civil, “mas, desde a concepção do feto
humano, a lei o considera existindo para conservar-lhe os direitos que há de adquirir, si nascer
vivo” (BRASIL, 1893, p. 3), tendo por vivo todo aquele cujo parto tenha se concluído e
respirou por si só.
Entretanto o projeto continha algumas interdições à capacidade e restrições desta a
alguns grupos de pessoas. Seriam interditados os rapazes menores de dezesseis anos e as
garotas menores de quatorze anos; os dementes, independendo o tipo, considerando-se como
tal tudo que invalidade a consciência de escolha ou a inteligência, sendo unicamente
constatada; os surdos-mudos ou cegos de nascença; e os ausentes. E seriam restringidos do
exercício da capacidade os púberes, até que fossem emancipados; os presos, até cumprida a
pena; os pródigos; os falidos; os insolventes e as mulheres casadas. A maioridade só se dava
aos vinte e um anos e as pessoas jurídicas teriam sua personalidade a partir da sua constituição.
Os bens seriam considerados como qualquer coisa, móvel ou imóvel, que possa
compor o patrimônio de alguém, desde que pudessem gerar direito real ou pessoal a este.
Nesta seara observam-se duas características marcantes, a primeira reside na irrelevância do
domínio para caracterizar o surgimento destes direitos e a composição do bem no patrimônio
daquele que o detém, sendo fundamental o registro do bem e emitindo seu devido título,
tornando neste momento inquestionável a propriedade da coisa, salvo nos casos previstos no
próprio projeto. Não se fala em utilidade do bem, razão pela qual este não deveria atender
qualquer função social. Isto se respalda nos direitos reais, que diferem em certos pontos da
atualidade.
Os proprietários da coisa poderiam fruir como bem entendessem desta, desde que, no
caso de propriedade conjunta de mais de uma pessoa, todos os demais coproprietários
estivessem de acordo com a conduta do primeiro. A usucapião se daria mediante a norma do
local que se situa o bem, seja móvel ou imóvel, e só seria efetivada com a condenação em
sentença transitada em julgado, a qual tornaria prescrito o direito real. A transferência da
propriedade imóvel só se daria entre vivos mediante o registro do título hábil de ser translativo
de propriedade, pela aluvião, pela acessão ou pela prescrição anteriormente comentada; no
caso de transferência mediante a morte do detentor do direito real, esta se daria pela sucessão.
Quanto à propriedade móvel, além das vias contratuais e sucessórias, o projeto previa
a aquisição por meio da ocupação de coisa abandonada ou nunca apropriada, fazendo-a por
achar o bem perdido, desde que fosse frustrada a tentativa de devolução ao dono originário,
ou tesouro; pela captura, pesca ou caça de animais. A aquisição também se dava aos frutos
que bem seu produzissem, pelo melhoramento de matéria prima ou pela mistura de diversos
bens a fim da criação de nova coisa.
O projeto é inovador ao trazer um capítulo inteiramente dedicado aos direitos de
vizinhança, que tratavam de tentar manter uma convivência harmônica prevista na forma da
lei. Nestes estavam contidos os direitos de passagem, os direitos do arado, os direitos a
respeito do direcionamento de águas de chuva, os direitos sobre aquedutos, os direitos sobre
águas públicas, os direitos acerca de árvores limítrofes entre os terrenos e de ramos invasores,
dos direitos sobre cercas, sobre demarcação do terreno, sobre a guarda do gado, os direitos de
construção e a defesa contra o uso nocivo da propriedade.
Sendo o primeiro texto pretenso de código brasileiro a abordar algo que já fora outrora
posto em lei com redação do próprio Coêlho Rodrigues, mas ainda controverso, foi alvo de
fortes críticas dos mais conservadores e principalmente da igreja, que se apresentava cada vez
mais fragilizada ante o Estado. Tal instabilidade se dava em razão da postulação do casamento
civil, que ao ver dos opositores ao instituto era matéria unicamente sagrada, não cabendo ao
Estado a tutela do matrimonio. Ao observar o instituto pelo olhar contemporâneo qualquer
sujeito entenderia pela incoerência com o que se vive em tempos atuais, mas para a época era
algo revolucionário e extremamente inovador, rompendo com as barreiras da religião e
aproximando a Republica dos Estados Unidos do Brazil da caracterização de um estado laico.
Ainda são trazidas figuras como o dote, a incapacidade da mulher casada e o prazo mínimo
de casamento para pedido de divórcio consensual.
A promessa de casamento, se escrita e assinada, poderia ser objeto de responsabilidade
indenizatória caso não fosse cumprida. O rol dos impedidos para a contração de núpcias
disposto no Art. 1848 (BRASIL, 1893) do projeto seria consideravelmente extenso e ainda
refletia uma sociedade patriarcal e, apesar da quebra de paradigmas, ainda com reflexos da
religião.
Observam-se as pretensões de norma dos Arts. 1907335, 2096336 e 2097337 (BRASIL,
1893). Conforme estas, a mulher não poderia por si só anular ou pedir o divórcio, dado que a
contração do casamento a tornava incapaz, necessitando de outrem para por ela peticionar em
juízo. Curioso era o fato de que o divórcio não teria condão de dissolver o casamento,
entretanto unicamente de separar os consortes e cessar o regime de bens, mantendo ainda
assim o vínculo.

2 A Tutela do Direito do Consumidor

335
Este artigo elenca que a anulação do casamento feito por pessoa incapaz de consentir só poderia ser pedida
por ela mesma, quando se tornar capaz, por quem de direito a represente nos seis meses subsequentes casamento
ou por seus herdeiros dentro de igual prazo depois da sua morte, se a incapacidade ainda continuar.
336
O artigo normatiza que a ação do divorcio só compete aos cônjuges e extingue-se pelo falecimento de qualquer
deles.
337
Nesta senda entende o artigo que se, porém, o cônjuge, a quem competir a ação, for incapaz de exercê-la,
poderá ser representado nela por qualquer dos seus ascendentes ou irmãos e, na falta deles pelos descendentes
de outro leito, na ordem em que são mencionados neste artigo.
Na parte posterior aos direitos obrigacionais, em que trata dos contratos de compra e
venda, o redator trata de mesclar a tutela normativa contratual com a da garantia de direitos
do consumidor, isso se faz na medida em que elenca a obrigação de entrega da coisa contratada
no estado em que declarou estar e transferindo ao comprador o domínio com a garantia da
integridade do bem por conta do vendedor. Um capítulo é inteiramente destacado para a
matéria, regulando a tradição e o modo que deve se dar e os deveres do vendedor para com o
comprador, sendo responsável pela evicção do bem e por vícios redibitórios na coisa contidos.
Posteriormente adentra na matéria das obrigações do comprador, a qual elenca como
principal o pagamento do valor contratado, o que deveria ser feito no tempo e lugar da tradição
ou na forma prevista em contrato. Neste mesmo momento resguarda alguns dos direitos do
vendedor, como o pagamento de juros sobre o valor, caso a coisa vendida produza frutos ou
rendimentos, e o direito de reivindicação do bem dentro do prazo de quinze dias contados da
data da venda.
Por fim, é trazido que a resolução da venda pode ser dada pelo adimplemento
obrigacional, pelo direito de retrovenda ou pela lesão contratual, podendo também ser
rescindido em razão da nulidade do negócio. Em uma eventual restituição da coisa, os frutos
e rendimentos desta também haveriam de ser entregues acrescidos de juros sobre o valor do
bem.
Observa-se também a tutela da defesa do consumidor no capítulo em que trata da
locação de serviços, elencando que a transportadora, na pessoa de seu empresário, respondem
pela segurança das pessoas e pela guarda e conservação dos bens que transportam, bem como
pela mora na realização do serviço.

3 O Trabalhador e Seus Direitos

A égide sobre os direitos laborais não se encontra tão evidente no projeto quanto o
regulamento celetista que fora proposto futuramente na Era Vargas, nem tampouco passa
despercebida. Não seria compreendida como um ramo a parte, mas como parte intrínseca da
natureza dos serviços. O Art. 766, §1, demonstra que se entende por serviço o “trabalho da
pessoa que se expõe exclusivamente ao serviço de outra, mediante salário” (BRASIL, 1893,
p. 95). Observam-se alguns princípios admitidos pela CLT com esta simples propositura,
quais sejam a pessoalidade, a onerosidade e a subordinação, três dos cinco fatores
caracterizadores do trabalho atual, faltando apenas a não eventualidade e a realização por
pessoa física (LEITE, 2016). Posteriormente são qualificados como profissionais liberais os
dos ramos da medicina, cirurgia, obstetrícia, farmácia, advocacia, procuradoria judicial e
magistério superior das profissões liberais. Profissões estas que seriam realizadas em
estabelecimento da União e seriam reguladas por lei federal.
Tratando como “quasi contrato” de gestão de negócios, observa-se uma figura
bastante peculiar, o gestor. O qual teria funcionários a ele subordinados, pode responder pelo
comércio, deve zelar e buscar a melhoria e empenho da empresa em sua atividade, e é obrigado
a continuar seu ofício ainda que o dono do negócio faleça. Trata-se, portanto, de figura de
tamanha similaridade ao que na atualidade entende-se por cargo de confiança, que seria a atual
figura de um gerente geral ou CEO da empresa.
Posteriormente é tratado acerca do serviço doméstico. O projeto de código elenca um
rol de direitos e deveres do empregado doméstico, qualificando o ramo e equiparando-o a uma
relação trabalhista, prevendo causas de demissão por justa causa inclusive. A figura contratual
diverge em certos pontos do que se observa na atualidade, como no tangente à possibilidade
do acúmulo de função; entretanto traz matérias extremamente contemporâneas, tais quais o
aviso prévio, indenização por danos sofridos e registro de funcionários.

4 Os Animais Enquanto Sujeitos de Direito

Inovador até diante dos conceitos atuais, Coêlho Rodrigues ressaltou a importância da
qualificação dos seres semoventes enquanto objeto da tutela do direito, o que se fazia por uma
questão de teor econômico, de tal forma que inicialmente há de se elencar a importância
histórica da pecuária na economia nacional.
Ao longo dos anos a indústria brasileira teve uma forte produção de produtos de base,
as chamadas commodities, destacando-se historicamente a cana de açúcar, o café, o ouro, a
soja e a carne bovina. A figura da pecuária tem sua importância datada do início do processo
colonizador do território até os dias atuais. Em cunho vestibular o gado abastecia os núcleos
urbanos, onde passou a ser levado à região do Sertão para a criação e abatimento para venda.
O mercado era muito próspero, entretanto os períodos das secas prejudicavam severamente a
produção, ou seja, apesar das condições de relevo e flora apropriadas, o clima semiárido
prejudicava a produção. Entretanto, a produção que parecia perdida encontrou um novo lugar
para ser exercida, a Região Sul do Brasil. Com plenitude de relva, relevo consideravelmente
plano na região dos pampas e clima subtropical a produção e a qualidade da cultura bovina
cresceram exponencialmente e isto não deixou de ser observado pelo redator do projeto.
Coêlho Rodrigues trata em diversos pontos do direito dos animais, em muitos
momentos expressamente sobre os cuidados com a bovinocultura. Tratando desde a matéria
do dever de alimentação adequada dos animais até contratos de parceria pecuária e de seguro
de gado.
Portanto, era observada uma necessidade de real cuidado com a vida animal, de forma
em que o código trata da responsabilidade em detrimento de danos causados em razão da
“alimentação nociva ou insufficiente” (BRASIL, 1893, p. 102). O valor econômico dos
animais era reconhecido de tamanha maneira que a representatividade dos direitos destes não
apenas atingiam a pecuária, mas os animais como um todo, podendo-se dizer que é um início
da idealização de um direito ao meio ambiente, no entanto somente para os animais.
Posteriormente trata da regulamentação da caça, da pesca e do modo de aquisição da
propriedade de algum animal selvagem pela captura, que se daria no momento em que
existisse a posse lícita do animal, passando esse a tornar-se doméstico no momento em que
reconhecesse o lugar como seu lar ou que pastassem em local onde pudessem ser pegos pelo
dono.

5 Do Direito Comercial

Apesar de não tutelar em minúcias, o projeto ressalta a necessidade de revisão do


Código Comercial de 1850 a fim de melhor adequar às necessidades da época. Contudo não
deixa de abordar a matéria.
A capacidade de registro da sociedade comercial enquanto pessoa jurídica era
assegurada, gozando “de capacidade propria e distincta da das pessoas naturaes que as
formarem ou representarem” (BRASIL, 1893, p. 102), tratando posteriormente do modo de
criação e extinção das sociedades.
Qualifica também o que são e o que não são bens capazes de serem qualificados
enquanto comerciais. Posteriormente, resguarda o prazo da propositura de ação redibitória
para o proposto nas leis e costumes comerciais para ações onde alguma das partes é
comerciante. Ademais, estipula as normas a serem utilizadas no tocante a patente da invenção
e da melhoria, bem como do registro de desenho industrial, das marcas e da firma comercial;
elencando que a invenção que seja importante para a humanidade é passiva de quebra do
direito de patente do inventor pela União, que substituiria este direito por um prêmio.
Novamente acerca da bovinocultura, o código estipula normas para regular as parcerias
pecuárias com fim na atividade comercial, abordando os prazos e a forma do contrato, bem
como as normas relativas ao percentual de ganhos de cada parte da parceria, condenando a
praxe de estipular percentuais de lucros diferentes dos de gastos, elencando que se duas ou
mais pessoas são realizam conjuntamente a criação do gado, estando ambas na qualidade de
dono, as normas a serem utilizadas para dirimir quaisquer dúvidas deveriam ser as normas
societárias.

6 A Tutela do Direito Autoral

Acerca do Direito Autoral, o projeto, apesar de breve, é deveras perspicaz na tutela


proposta. O autor de obra artística ou literária teria direito vitalício e exclusivo sob a
reprodução desta, salvo se fosse judicialmente declarada ofensiva à moral e aos bons
costumes. Assemelhar-se-ia à obra literária a obra científica, fruindo dos mesmos direitos
ambos os tipos de autor.
Num ato entre vivos poderia ser transmitido pelo autor tal direito a terceiro, o qual
poderia fruir como se autor fosse pelo prazo de trinta anos contados da data de transferência
do direito; findo este período, o autor reaveria de todos os direitos que tinha originariamente.
Também seria hereditário, entretanto limitado a trinta anos de usufruto dos herdeiros contados
da data da morte do autor. Posteriormente tratando do contrato de edição e dos direitos e
deveres do autor e do editor quando enquadrados neste ato contratual, diferente dos prazos
anteriormente mencionados, a duração deste contrato valeria por tanto tempo quanto fosse
necessário para a edição, reprodução e divulgação da obra.

CONCLUSÃO

Apesar de não ter sido aprovado por questões políticas, o projeto proposto por Coêlho
Rodrigues é de singular importância para o movimento de unificação do Direito Privado, vista
a sua abordagem deste como uma visão de algo único e multifacetado dentro de si próprio.
A essência de toda a ideologia do movimento de unificação é que, tal como intenta a
jurisprudência, possa o Direito Privado ter uma abordagem harmônica entre todos os seus
ramos, afinal é um só com caraterísticas e peculiaridades plúrimas. Dentro dos seus
microssistemas se encontram pontos de convergência; atos jurídicos, normas e princípios que
por si só uniformizam todas as searas privadas, contudo o ordenamento jurídico privado
encontra-se disperso em diversos textos normativos; a CLT, o Código Civil, o Código
Comercial, o Código de Defesa do Consumidor, as Leis que tutelam o Direito Digital, dentre
tantos outros, são exemplos do quão apartadas se encontram as leis privadas, não havendo
qualquer tutela positiva uniforme entre elas além da Constituição Federal.
Paulo Dourado de Gusmão (DE GUSMÃO, 1969, p. 63) muito bem define que a
ordem jurídica “pode ser definida como o complexo de normas jurídicas positivas dominante,
em um momento histórico, numa sociedade determinada”. Portanto, pressupõe-se para que
possa ser a finalidade de ingresso e estadia na estrutura normativa, deve a norma atender a
necessidade de uma etapa histórica em que é vigente, diante da inexecução deste fim se
encontra a caducidade da norma.
O princípio constitucional da isonomia, tão aclamado por todos, como se sabe, divide-
se em formal e material, na qual esta é o tratamento desigual aos desiguais e aquela é o
tratamento igual a todos, apesar de aparentarem ser opostos são complementares.
Dito isto, hoje se observa uma tendência legislativa de inclinação do Direito Privado a
equidade material, tutelando separadamente os ramos privados e gerando um tratamento igual
àqueles inclusos dentro da seara que se positiva, olvidando-se que por trás de todos estes
desígnios existe um código-fonte, normas basilares comuns a todos os demais, que é o Direito
Privado propriamente dito.
Diante deste panorama, subtrai-se que o projeto proposto por Antônio Coêlho
Rodrigues atenderia a ambas as expectativas formais e materiais da igualdade, tratando de
diversas matérias que permeiam o Direito Privado, de maneira que atenderia as finalidades
sociais, econômicas e políticas da sua época e em certos pontos até mesmo ao direito
contemporâneo. Foi, portanto, um pioneiro na transposição da ideologia unificadora, nos
moldes da já existente no Cantão de Zurique, ao ordenamento jurídico brasileiro. Ganhando
assim, um espaço na história do direito brasileiro e no movimento unificador das normas do
Direito Privado.

REFERÊNCIAS

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WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. 2. ed. Trad. A. M. Botelho


Hespanha – Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1967.
A NECESSIDADE DA ANALISE DA LEI DE ANISTIA E DO CASO GOMES LUND
PARA A IMPLEMENTAÇÃO DE UMA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO338

Gustavo Leite Neves da Luz339


Jorge Yuri Souza Aquino Leite Rodrigues Lins340
Maria Eduarda Henrique Mascarenhas341

RESUMO

O objetivo deste trabalho é demonstrar a construção a importância da construção de um


memória em relação aos crimes realizados durante a ditadura militar no Brasil e a tentativa
posterior de se eximir de tais crimes através da Lei n° 6.883 de 1979, Lei da Anistia;
posteriormente, é analisado o caso “Gomes Lund e Outros” que levou a condenação do Estado
Brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos à responsabilidade durante o
combate a Guerrilha do Araguaia. A metodologia utilizada neste trabalho foi através da
pesquisa documental e bibliográfica; se realizando buscas em livros, na lei e periódicos fontes
pertinentes para a fundamentação deste trabalho. A conclusão retirada deste trabalho é a de
que o Supremo Tribunal Federal ao declarar a validade da Lei da Anistia, ratificou que o Brasil
não superaria o regime militar de forma plena; e que ao realizar tão decisão foi de encontro
com o consenso mundial no Direito Internacional da invalidade de tais leis de anistia, caso
que foi comprovado no julgamento do caso “Gomes Lund e Outros” na Corte Interamericana
de Direitos Humanos.
Palavras-chave: Ditadura Militar. Lei da Anistia. Corte Interamericana de Direitos Humanos

INTRODUÇÃO

A Ditadura instaurada no Brasil a partir de 1964 trouxe várias modificações à


sociedade, deixando resquícios até hoje. Como em toda a América Latina através da Operação
Condor, o capital estadunidense patrocinou a derrubada de diversas democracias em favor de
regimes militares que não se envergonhavam de conceder todas as riquezas nacionais ao
capital estrangeiro em troca de apoio internacional.
Todavia, tal manipulação estrangeiro foi muito mais além do que em relação à
economia e seus bens de produção; também foi voltada à torturas e opressão da própria
sociedade que tais governos ditatoriais juraram ser guardiões.
No Brasil no início a ditadura jurou proteger o povo de uma ameaça externa, a famosa
ameaça comunista, que perpetrava revoluções em todo o globo, que foi desde a revolução
liderada por Mao Tse Tung na china até o movimento de Libertação de Francisco Zapata no

338
GT 10 – Estudos Contemporâneos em Direito Internacional
339
Graduando. Faculdade Paraíso do Ceará. gustavo_lnl@hotmail.com.
340
Graduando. Faculdade Paraíso do Ceará. yurilinsce@gmail.com
341
Graduanda. Faculdade Paraíso do Ceará. mariaeduardahenriquece@gmail.com.
México. Com o tempo o inimigo passou a ser interno, ou seja, o próprio povo; todos aqueles
que não concordassem com os ditames do regime era considerados traidores da nação,
subversivos como eram popularmente chamados, e com isso eram sequestrados, torturados e
mortos.
Tais atos passaram a ser cada vez menos aceitos pela sociedade, em conjunto da
incapacidade dos militares de conterem a crise financeira, os militares foram perdendo sua
popularidade. Com o receio de serem responsabilizados por tais atos foi produzida a Lei n°
6.883 de 1979, A Lei da Anistia, que anistiava a todos aqueles por crimes cometidos entre o
período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979.
Posteriormente a redemocratização, no ano de 2010, o Supremo Tribunal Federal
(STF) analisou a validade de tal lei, como será demonstrado adiante, em que julgou se tais
com a constituinte realizada em 1988 a lei ainda permaneceria válida.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, também em 2010, analisou o caso
“Gomes Lund e Outros”, onde era analisada a responsabilidade do Estado brasileiro à respeito
da execução extraoficial de Maria Lucia Petit da Silva e o desaparecimento de
aproximadamente 70 pessoas durante a campanha do Governo contra a Guerrilha do Araguaia
na década de 70.
O presente trabalho tem como objetivo demonstrar a importância da construção de um
memória em relação aos crimes realizados durante a ditadura militar no Brasil e a tentativa
posterior de se eximir de tais crimes através da Lei n° 6.883 de 1979, Lei da Anistia;
posteriormente, é analisado o caso “Gomes Lund e Outros” que analisou a responsabilidade,
tanto na seara nacional como na violação dos tratados internacionais, do governo brasileiro
durante o combate à Guerrilha do Araguaia.
A metodologia utilizada foi a pesquisa documental e bibliográfica, utilizando-se de
livros, artigos, legislação que abordam questões à respeito da temática de Direito
Internacional, Direitos Humanos e. O método de abordagem usado foi o dedutivo em conjunto
com o método de procedimento qualitativo.

1. A INSTAURAÇÃO DA DITADURA À TENTATIVA DE ESQUECIMENTO

O golpe de 1964 que depôs João Goulart da presidência e cassou diversos opositores
ao novo regime342, instaurou a ditadura civil-militar no Brasil que durou até 1984 e teve em

342
Com a divulgação da lista dos cassados foram incluindo quarenta dos mais importantes políticos, dentre eles
seu desenvolvimento diversas lutar de manutenção de poder. A ditadura brasileira teve
características particulares em relação ao restante das ditaduras latino americanas, tendo
destas características como principais dois pilares: político e econômico.
No campo Político, o que existiu foi um sistema dotado de um certo hibridismo.
Enquanto que por um lado instituições democráticas como o legislativo e o judiciário, mesmo
com diminuição de poder e grandes restrições ao seu funcionamento, eram mantidas; e que
ainda mantinha-se as eleições presidenciáveis, ainda que com os diversos jogos de poderes
invisíveis.
Por outro lado, o que se tinha era um regime tipicamente militar, com as forças armadas
no poder do Estado, que sobrevivia mesmo com suas diversas crises internas de poder entre
os moderados e os radicais que transcorreram durante toda a ditadura fazendo diversas
alterações e gerando consequências na forma que o regime exercia sua atuação política
(KINZO, 2001).
No plano econômico não se tem definido de fato uma política que se prevaleceu, tendo
sido desenvolvido por um período um plano de desenvolvimento nacional com fortalecimento
da economia nacional em detrimento da influente economia mundial; enquanto em outros, a
total submissão aos interesses estadunidense, exercido através da Operação Condor.
Pelo aspecto mais estrutural, se tem a manutenção da política de Vargas, inclusive,
tendo prosperado em sua fase inicial com o famoso, “milagre econômico” (1967-1973), graças
a política de estabilização (1964- 1967); possibilitando que em 1974 com a crise do sistema
econômico, fosse possível a atração dos investimentos estrangeiros que atraiu olhares à
decadência da manutenção política econômica pelos militares que já se encontrava com uma
inflação superior a 1964.
Tais pilares ganham destaque pois tiveram grande influência no desenvolvimento na
transição democrática que pôs fim ao regime343.
Todavia, não se deu o do dia para a noite. Foram necessárias prolongadas fases, onde

João Goulart e Jânio Quadros, esse ex-Presidente da República e aquele Presidente da República em exercício
no período; Luís Carlos Prestes – secretário-geral do proscrito Partido Comunista Brasileiro (PCB); Miguel
Arraes – governador deposto de Pernambuco; Leonel Brizola – deputado federal e ex-governador do Rio Grande
do Sul; Plínio de Arruda Sampaio – deputado federal e relator do projeto de Reforma Agrária; Osni Duarte
Pereira – desembargador; Celso Furtado – economista; Josué de Castro – embaixador; Abelardo Jurema –
ministro deposto da Justiça; Almino Afonso – ex-ministro do Trabalho e Juscelino Kubitschek (SANTOS;
VASCONCELOS, 2009, p.3).
343
“A instabilidade que acompanhou o governo dos militares no Brasil, indicativo da dificuldade de
institucionalização do regime, levou Linz (1973) a caracterizar o autoritarismo brasileiro como uma situação em
vez de um regime propriamente dito. Regime ou situação, o fato é que o estabelecimento desse arranjo político
híbrido teve grande impacto na maneira como se deu a transição brasileira” (KINZO, 2001, p.2).
nestas, paulatinamente foi transferido o monopólio do poder da seara militar para as mãos de
representantes da sociedade civil.
A primeira dessas fases se deu de 1974 a 1982. Ela teve início com a ascensão do
General Geisel a presidência da república, em 1974; durante esta fase os principais fatores
para o enfraquecimento do poder militar se deu por uma crise no sistema eleitoral, com a
disputa de poder entre os militares e o aumento da crise econômica com o fim do “milagre
econômico”. A segundo fase foi de 1982 a 1985, se deu com o novo surgimento de partidos
envolvidos nas eleições e possibilitando maior representação popular no legislativo e outro
ponto foram as disputas as disputas à candidatura nas eleições presidenciais, concluindo-se
com a eleição de Tancredo Neves e de José Sarney como vice.
A terceira e última das fases ocorreu de 1985 até 1990, com o restabelecimento do
governo civil. Tal fase começou já com problemas de legitimidade, com a morte de Tancredo
Neves antes de assumir a presidência fazendo com que seu vice, Sarney, viesse a assumir o
posto de presidente; e econômico, com a enorme inflação herdada do antigo regime.
A critica que se pode elaborar é que mesmo com tais fases transação não foi possível
uma real mudança da sociedade, tendo sido elaborado basicamente uma mudança ideológica
do poder que pode ser observada na falta de uma falta de uma justiça de transição, com a
promulgação da lei de anistia em 1979.
Pois em todo o regime houve uma total violação, da própria constituição vigente como
da Declaração Universal de Direitos Humanos, a intensificação das técnicas de tortura pelo
regime, principalmente após 1968 com o aumento da violência exercida pelo do golpe344.
Após 1968 o perigo externo à nação saiu de foco dos objetivos de combate da ditadura
passando para um novo, o inimigo interno, onde o Estado passou a se valer de políticas de
terrorismo de Estado e tortura contra seus próprios nacionais. Como destaca Santos,
Vasconcelos (2009, p. 7):

No Brasil as torturas não se diferenciavam pela idade, sexo ou situação moral,


psíquica ou física dos suspeitos. A intenção não era apenas de “marcar” o corpo das
vítimas e fazê-las sentir uma dor quase insuportável a ponto de declararem um
discurso que favorecesse o sistema repressivo, mas as torturas visavam a destruição
moral da vítima, por meio de uma ruptura dos limites emocionais que cercavam as
relações efetivas de parentesco. Desse modo, “crianças foram sacrificadas diante
dos pais, mulheres grávidas tiveram seus filhos abortados, esposas sofreram para

344
“Segundo o artigo 5º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, “ninguém será submetido à tortura,
nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”. Mesmo o país sendo signatário deste tratado,
durante os vinte anos de ditadura, este artigo foi ignorado pelos militares responsáveis pelo Regime Militar. Era
como se o Direito Internacional não atuasse num oásis que se permite atrocidades em nome de um determinado
ideário” (SANTOS; VASCONCELOS, 2009, p.7).
incriminar seus maridos”.

Tal fato começou a atingir as classes mais altas e mais influentes fazendo com que
gerasse a maior propagação do debate causando preocupação ao governo. Por isso, com receio
que tais atos praticados atingissem pessoas ligadas ao governo, foi mais um motivo para a
promulgação da lei de anistia.
Para ser entendida a justiça de transição é necessária a observação de três pilares,
fundamentos, que iram caracteriza-la, as quais são: uma construção da memória e verdades; a
reforma das instituições estatais, com o reconhecimento devido das violações causadas aos
direito humanos dos indivíduos; a busca da justiça para as vítimas com a punição dos culpados
que praticaram violações; reparação as vítimas345.
Quando se fala em justiça de transição no caso brasileiro, logo nos é remetido à
transição através, principalmente, da Lei n° 6.883 de 1979, A Lei da Anistia, que concedeu a
anistia a todos os crimes cometidos entre 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979
cometidos que fossem de natureza políticos ou de alguma forma conexos a esses, bem como
os crimes de natureza eleitoral. Conforme é aludido no artigo 1°, caput, e nos seus parágrafos
1° e 2°:

Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de


setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo
com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos
servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder
público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos
dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos
Institucionais e Complementares. § 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste
artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou
praticados por motivação política. § 2º, traz exceções ao perdão, quais sejam:
“Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de
crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal.

Como é claro na lei, todos os membros, diretos ou indiretamente, ligados ao poder


público estão anistiados dos crimes cometidos. Porém, além disso a anistia também foi
concedida aos que tiveram antes os direitos políticos suspensos, proporcionando a todos
aqueles que foram de movimentos contrários ao governo, que tenham sido banidos ou auto
exilados, o retorno com a garantia de extinção dos seus processos.

345
“Em razão do surgimento de movimentos que passaram a questionar a posição adotada pelo Estado com
relação a política de transição, a Ordem dos Advogados do Brasil protocolou uma Ação de Descumprimento de
Preceito Fundamental junto ao STF, questionando a constitucionalidade da Lei de Anistia. Nessa mesma linha
de descontentamento com o Estado, um caso de extrema importância ocorrido no Brasil, durante a ditadura civil-
militar, conhecido com a Guerrilha do Araguaia, foi levado à Corte Interamericana de Direitos Humanos para
que esta verificasse a responsabilidade do Estado Brasileiro no presente caso” (BIDNIUK, 2012, p.1).
Com isso, ao contrário de muitos grupos contrários ao governo que comemoraram tal
lei, ela acabou que “passando uma borracha” em um período obscuro da história brasileira.
Não permitindo a reanalise futura dos casos que surgissem desse período apagado.
Com a Constituição de 1988 proibindo a criação de uma lei de anistia, ficou a dúvida
sobre a validade da Lei n° 6.883 de 1979. Com tal dúvida vigente foi elaborado um ADPF,
ADPF 153346, no qual, maioria do pleno sobre a validade da lei. Com isso, não caberia a

346
“EMENTA: LEI N. 6.683/79, A CHAMADA "LEI DE ANISTIA". ARTIGO 5º, CAPUT, III E XXXIII DA
CONSTITUIÇÃO DO BRASIL; PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO E PRINCÍPIO REPUBLICANO: NÃO
VIOLAÇÃO. CIRCUNSTÂNCIAS HISTÓRICAS. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E TIRANIA DOS
VALORES. INTERPRETAÇÃO DO DIREITO E DISTINÇÃO ENTRE TEXTO NORMATIVO E NORMA
JURÍDICA. CRIMES CONEXOS DEFINIDOS PELA LEI N. 6.683/79. CARÁTER BILATERAL DA
ANISTIA, AMPLA E GERAL. JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA SUCESSÃO
DAS FREQUENTES ANISTIAS CONCEDIDAS, NO BRASIL, DESDE A REPÚBLICA. INTERPRETAÇÃO
DO DIREITO E LEIS-MEDIDA. CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA A TORTURA E
OUTROS TRATAMENTOS OU PENAS CRUÉIS, DESUMANOS OU DEGRADANTES E LEI N. 9.455, DE
7 DE ABRIL DE 1997, QUE DEFINE O CRIME DE TORTURA. ARTIGO 5º, XLIII DA CONSTITUIÇÃO
DO BRASIL. INTERPRETAÇÃO E REVISÃO DA LEI DA ANISTIA. EMENDA CONSTITUCIONAL N.
26, DE 27 DE NOVEMBRO DE 1985, PODER CONSTITUINTE E "AUTO-ANISTIA". INTEGRAÇÃO DA
ANISTIA DA LEI DE 1979 NA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL. ACESSO A DOCUMENTOS
HISTÓRICOS COMO FORMA DE EXERCÍCIO DO DIREITO FUNDAMENTAL À VERDADE. 1. [...] 2. O
argumento descolado da dignidade da pessoa humana para afirmar a invalidade da conexão criminal que
aproveitaria aos agentes políticos que praticaram crimes comuns contra opositores políticos, presos ou não,
durante o regime militar, não prospera. 3. [...] A expressão crimes conexos a crimes políticos conota sentido a
ser sindicado no momento histórico da sanção da lei. A chamada Lei de anistia diz com uma conexão sui generis,
própria ao momento histórico da transição para a democracia. Ignora, no contexto da Lei n. 6.683/79, o sentido
ou os sentidos correntes, na doutrina, da chamada conexão criminal; refere o que "se procurou", segundo a inicial,
vale dizer, estender a anistia criminal de natureza política aos agentes do Estado encarregados da repressão. 4. A
lei estendeu a conexão aos crimes praticados pelos agentes do Estado contra os que lutavam contra o Estado de
exceção; daí o caráter bilateral da anistia, ampla e geral, que somente não foi irrestrita porque não abrangia os já
condenados --- e com sentença transitada em julgado, qual o Supremo assentou --- pela prática de crimes de
terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal. 5. [...] No caso das leis-medida interpreta-se, em conjunto com
o seu texto, a realidade no e do momento histórico no qual ela foi editada, não a realidade atual. É a realidade
histórico-social da migração da ditadura para a democracia política, da transição conciliada de 1979, que há de
ser ponderada para que possamos discernir o significado da expressão crimes conexos na Lei n. 6.683. É da
anistia de então que estamos a cogitar, não da anistia tal e qual uns e outros hoje a concebem, senão qual foi na
época conquistada. Exatamente aquela na qual, como afirma inicial, "se procurou" [sic] estender a anistia
criminal de natureza política aos agentes do Estado encarregados da repressão. A chamada Lei da anistia veicula
uma decisão política assumida naquele momento --- o momento da transição conciliada de 1979. A Lei n. 6.683
é uma lei-medida, não uma regra para o futuro, dotada de abstração e generalidade. Há de ser interpretada a partir
da realidade no momento em que foi conquistada. 6. A Lei n. 6.683/79 precede a Convenção das Nações Unidas
contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes --- adotada pela Assembleia
Geral em 10 de dezembro de 1984, vigorando desde 26 de junho de 1987 --- e a Lei n. 9.455, de 7 de abril de
1997, que define o crime de tortura; e o preceito veiculado pelo artigo 5º, XLIII da Constituição --- que declara
insuscetíveis de graça e anistia a prática da tortura, entre outros crimes --- não alcança, por impossibilidade
lógica, anistias anteriormente a sua vigência consumadas. A Constituição não afeta leis-medida que a tenham
precedido. 7. No Estado democrático de direito o Poder Judiciário não está autorizado a alterar, a dar outra
redação, diversa da nele contemplada, a texto normativo. Pode, a partir dele, produzir distintas normas. Mas nem
mesmo o Supremo Tribunal Federal está autorizado a rescrever leis de anistia. 8. Revisão de lei de anistia, se
mudanças do tempo e da sociedade a impuserem, haverá --- ou não --- de ser feita pelo Poder Legislativo, não
pelo Poder Judiciário. 9. A anistia da lei de 1979 foi reafirmada, no texto da EC 26/85, pelo Poder Constituinte
da Constituição de 1988. Daí não ter sentido questionar-se se a anistia, tal como definida pela lei, foi ou não
recebida pela Constituição de 1988; a nova Constituição a [re] instaurou em seu ato originário. A Emenda
Constitucional n. 26/85 inaugura uma nova ordem constitucional, consubstanciando a ruptura da ordem
revisão da lei para realização da punição dos culpados, pois tal lei não poderia receber juízos
de valores do atual momento histórico, mas daquele na qual a lei foi elaborada.
Assim a Lei de Anistia, não permite a realização de uma justiça de transição com
capacidade da construção histórica do passado.

2. O JULGAMENTO DO CASO “GOMES LUND E OUTROS” NA CORTE


INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS SUAS REPERCUSSÕES

A guerrilha do Araguaia foi uma mancha que trouxe bastantes lembranças ao ser do
período ditatorial, mesmo sendo já tendo sido já descoberto durante a redemocratização. A
guerrilha do Araguaia foi um movimento que ocorreu entre o fim da década de 60 a meados
dos anos 70, que tinha base no movimento comunista e na experiências chinesa e cubana para
a derrubar o regime militar. Os guerrilheiros eram comandados pelo Partido Comunista do
Brasil (PCdoB).
O movimento teve início em 1964 quando os primeiros militantes com formação
política e militar Maoísta retornaram da China já com suas bases ideológicas e táticas de
guerra consolidadas. A região do Araguaia foi escolhida pelo movimento por demonstrar um
local ideal pela semelhança as grandes experiências de guerrilha comunista; a região era uma
grande concentração do fluxo migratório das demais regiões, principalmente do Nordeste,
para trabalhos na agricultura, garimpo e caça.
Em 1967 com uma maior concentração dos membros dos grupos no território
planejado, foram iniciados os métodos de recrutamento do grupo de resistência. O membros
do partido se estabeleceram na região e se misturaram aos membros locais, através da abertura
de comércios, escolas, assistências medica e se infiltrando nas demais profissões comuns na
região. Assim, com o tempo, foram convencendo os locais à causa e unirem-se ao movimento.

constitucional que decaiu plenamente no advento da Constituição de 5 de outubro de 1988; consubstancia, nesse
sentido, a revolução branca que a esta confere legitimidade. A reafirmação da anistia da lei de 1979 está integrada
na nova ordem, compõe-se na origem da nova norma fundamental. De todo modo, se não tivermos o preceito da
lei de 1979 como ab-rogado pela nova ordem constitucional, estará a coexistir com o § 1º do artigo 4º da EC
26/85, existirá a par dele [dicção do § 2º do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil]. O debate a esse
respeito seria, todavia, despiciendo. [...] Afirmada a integração da anistia de 1979 na nova ordem constitucional,
sua adequação à Constituição de 1988 resulta inquestionável. A nova ordem compreende não apenas o texto da
Constituição nova, mas também a norma-origem. No bojo dessa totalidade --- totalidade que o novo sistema
normativo é --- tem-se que "[é] concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos"
praticados no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Não se pode divisar
antinomia de qualquer grandeza entre o preceito veiculado pelo § 1º do artigo 4º da EC 26/85 e a Constituição
de 1988. 10. [...]” (ADPF 153, Relator(a): Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 29/04/2010, DJe-
145 DIVULG 05-08-2010 PUBLIC 06-08-2010 EMENT VOL-02409-01 PP-00001 RTJ VOL-00216-01 PP-
00011). Grifo nosso (SENTENÇA... ,2010, apud ROCHA, 2017, p.5-6).
Foi somente em 1972 que o governo tomou conhecimento da realização
da guerrilha, já organizando a primeira campanha contra eles em no mesmo ano. Com a grande
força de resistência exercida pelo grupo. A ordem dos militares passou a ser a de eliminar
completamente o grupo, não fazendo quaisquer prisioneiros; assim, na terceira campanha em
1973, foi realizada a “Operação Marajuára”, que em quatro meses conseguiu derrubar derrotar
os resistentes347.
Após o ocorrido o caso foi abafado pelo régime por meio da censura da impressa, a
destruição de documentos e sumiço dos corpos de mortos de ambos os lados.
Sobre este caso, em 2009 a Comissão Interamericana de Direitos Humanos levou à
Corte Interamericana de Direitos Humanos um caso contra o Estado brasileiro. A ação tinha
como objetivo a responsabilização do Brasil pela prisão, tortura, desparecimento de cerca de
70 e da execução velada de Maria Lucia Petit da Silva pessoas durante o combate da guerrilha
do Araguaia, entre os anos de 1972 e 1975.
O Brasil foi demandado a corte pois em virtude da lei da anistia nenhuma investigação
foi realizada, tanto para a investigação penal dos militares responsáveis pelo massacre como
para obtenção de respostas sobre o destino dos desaparecidos e sobre a execução extraoficial
de Maria Lucia Petit da Silva. Portanto, para Corte, em virtude da falta de acesso a informação
pelos familiares das vítimas, estes acabam também tonando-se vítimas do caso.
Assim, Comissão Interamericana de Direitos Humanos realizou parecer favorável a
responsabilidade e reparação do Brasil pelo descumprimento e violação do direito ao
reconhecimento da personalidade jurídica (artigo 3°), direito à vida (artigo 4°), direito à
integridade pessoal (artigo 5°), direito à liberdade pessoal (artigo 7°), garantias judiciais
(artigo 8°), liberdade de pensamento e expressão (artigo 13), proteção judicial (artigo 25) da
Convenção Interamericana de Direitos Humanos (MOURA, 2012).
No julgamento a Corte Interamericana de Direitos Humanos, analisou primeiro a sua
competência em relação ao caso. Em relação a execução de Maria Lucia Petit da Silva a corte
se declarou incompetente para julgamento, pois o Brasil é Estado membro da Convenção

347
“Da guerrilha do Araguaia só há um relato assumido de oficial combatente. É o do capitão Pedro Correa
Cabral, feito mais de vinte anos depois, quando ele já era coronel da reserva: “A guerrilha já não era mais
guerrilha. Era uma caçada levada a termo por verdadeiros monstros”. Cabral revelou que helicópteros
sobrevoaram a selva com alto-falantes por meio dos quais se oferecia a rendição aos guerrilheiros. Quem a
aceitou, foi assassinado. Os comandantes militares produziram apenas um documento, da Marinha, no qual está
registrada a suposta data da morte de cada guerrilheiro. Conhece-se também um canhenho de anotações de um
oficial que participou dos combates, com registros parciais. Juntos, formam um conjunto desconexo.”
(GASPARI, 2002, p. 456).
desde 25 de setembro de 192, tendo competência para casos posteriores a 10 de dezembro de
1988. Entretanto, sobre o desaparecimento das vítimas reconheceu a sua competência, por o
crime ser caracterizado como um crime permanente, no qual tem início com o
desaparecimento da vítima e sendo cessado apenas com o conhecimento do paradeiro da
mesma.
Com o fim do julgamento, a sentença condenou o Estado brasileiro como responsável
do desaparecimento forçado de 62 pessoas. No mesmo julgamento, debates se estenderam se
a Lei da Anistia era compatível com a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, assim:

A Corte Interamericana considera que a forma na qual foi interpretada e aplicada a


Lei de Anistia aprovada pelo Brasil (...) afetou o dever internacional do Estado de
investigar e punir as graves violações de direitos humanos, ao impedir que os
familiares das vítimas no presente caso fossem ouvidos por um juiz, conforme
estabelece o artigo 8.1 da Convenção Americana, e violou o direito à proteção
judicial consagrado no artigo 25 do mesmo instrumento, precisamente pela falta de
investigação, persecução, captura, julgamento e punição dos responsáveis pelos
fatos, descumprindo também o artigo 1.1 da Convenção. Adicionalmente, ao aplicar
a Lei de Anistia impedindo a investigação dos fatos e a identificação, julgamento e
eventual sanção dos possíveis responsáveis por violações continuadas e
permanentes, como os desaparecimentos forçados, o Estado descumpriu sua
obrigação de adequar seu direito interno, consagrada no artigo 2 da Convenção
Americana. (SENTENÇA..., 2010, p. 64).

Portanto, segundo a Corte, o Brasil se omitiu de realizar quaisquer investigações para


julgar e condenar os responsáveis pelo desaparecimento das vítimas e violações contra os
Direitos Humanos; bem como, através da Lei de Anistia, restringiu o direito à informação das
pessoas que buscavam informações à respeito das vítimas. O Estado foi condenado a pagar
uma quantia em caráter indenizatório por danos materiais, imateriais e por custas e gastos
processuais; e ainda, à necessidade de criação de uma comissão nacional da verdade para
investigação dos crimes contra a humanidade.
Dessa forma o julgamento do STF na ADPF 153, em 29 de abril de 2010, foi em
sentido contrário ao realizado na Corte Interamericana de Direitos Humanos, considerando a
Lei da Anistia compatível com a Constituição Federal de 1988; nesse sentido:

O argumento central é que a lei de anistia teria sido expressão de um acordo político,
de uma conciliação nacional, envolvendo “diversos atores sociais, anseios de
diversas classes e instituições políticas”. Acrescentou o Supremo Tribunal Federal
que não caberia ao Poder Judiciário “rescrever leis de anistia”, não devendo o
Supremo “avançar sobre a competência constitucional do Poder Legislativo”, tendo
em vista que “a revisão da lei de anistia, se mudanças do tempo e da sociedade a
impuserem, haverá de ser feita pelo Poder Legislativo e não pelo Poder Judiciário”.
(ADMINEM, 2012, p. 8).

Entretanto, para a Corte Interamericana não importa se a lei foi ou não foi um acordo
nacional; mas o seu conteúdo, que trouxe graves violações às garantias processuais e de
Direitos Humanos.
A sentença do STF colocou o Brasil em caminho contrário ao entendimento atual sobre
a proteção internacional dos Direitos Humanos. Pois já é opinião pacifica, inclusive a do
próprio Alto Comissariado para Direitos Humanos das Nações Unidas, de que as leis de anistia
em todo o mundo tem contribuído para a impunidade e cria o incentivo a aqueles que cometem
e se beneficiam de tais crimes. Sendo tais medidas incompatíveis com a obrigação dos estados
para com os tratados e com o próprio Direito Internacional348 (SENTENÇA..., 2010).
Os crimes contra humanidade no Direito Internacional, como já destacado, tem a
característica de serem imprescritíveis. Resultado do passado das duas grandes guerras
mundiais do século XX.
Antes do início século XX, o direito internacional não buscava ser um direito criminal
propriamente dito, os indivíduos que entravam com litígios nas cortes internacionais entravam
basicamente com intuito de receber algum tipo de compensação justa por algum direito seu
violado.
Foi somente após o transcurso das turbulências na primeira metade do século XX, que
se foi tomando a consciência do poder de punição que o direito internacional deveria exercer
sobre os indivíduos, crimes que de tão grande impacto acabam agredindo não só aos
indivíduos afetados por este, mas à toda humanidade (MAZZUOLI, 2015).
Com o fim da Primeira Guerra Mundial e as antigas potências europeias fragilizadas
pelas consequências dessa guerra, permitiu que a onda do totalitarismo tomou conta de grande
parte da Europa já fragilizada. A queda da bolsa em 1929 ceifou as frágeis democracias que
não viam alternativas se não renderem-se ao desespero; daí, uma convicção ideológica
internacionalizou-se por todo o globo:

É a convicção ideológica, que desde 1914 domina tanto os conflitos internos quanto
os internacionais, de que a causa que se defende é tão justa, e a do adversário é tão
terrível, que todos os meios para conquistar a vitória e evitar a derrota não só são
validos como necessário. (HOBSBAWM, 2007, p. 127.)

Esses acontecimentos trouxeram como consequência a Segunda Guerra Mundial


(1939-1945). Nesse período na Alemanha nazista, algumas classes de indivíduos classificados

348
“Do sistema do domestic affair (a tutela dos nossos direitos compete exclusivamente aos juízes nacionais)
passamos para o sistema do international concern (se os juízes nacionais não tutelam um determinado direito,
isso pode ser feito pelos juízes internacionais). Os juízes internos fiscalizam o produto legislativo do Congresso
Nacional. Se eles não amparam os direitos das pessoas, compete aos juízes internacionais cumprir esse papel”.
(GOMES; MAZZUOLI, 2011).
como "não-arianos” eram considerados descartáveis ao Estado, o que levou a uma verdadeira
coisificação do ser humano, levando à morte milhões de pessoas.
Após o fim da segunda guerra, mesmo com o mundo dividido entre Estados
representados pelas duas grandes potências, U.R.S.S e os E.U.A, foi elaborado por meio do
Acordo de Londres (1946), a instauração do Tribunal de Nuremberg. Neste tribunal, foi
realizado o julgamento de alguns dos principais membros do regime nazista levando à
responsabilização individual dos indivíduos ligados ao holocausto. Tal ato iniciou a proteção
internacional dos direitos humanos na contemporaneidade e ainda trouxe a primeira ideia de
um tribunal penal internacional para a responsabilização individual de sujeitos que
cometessem crimes contra a humanidade.
Dessa forma, como os Direitos Humanos tem uma grande importância para o Direito
Internacional, este deve levado em conta nos Direitos Humanos consagrados no plano
nacional criando um parâmetro mínimo de proteção internacional de proteção no ordenamento
jurídico dos países com ênfase na dignidade da pessoa humana. Nesse sentido:

Quanto à universalidade dos Direitos Humanos, cabe ao Estado observar rigorosa e


criteriosamente os instrumentos internacionais de direitos humanos que compõem
vínculo jurídico com o Estado brasileiro, bem como aferir visibilidade aos tratados
assinados pelo país, por meio de campanhas de divulgação. Dessa forma, almeja-se
esclarecer quais os compromissos assumidos pelo Estado frente à proteção e
promoção desses direitos. Nesse âmbito, a responsabilidade do Estado embasa-se na
extensão da cidadania e no desafio de se fazer cumprir as obrigações internacionais
assumidas, em se tratando de direitos humanos advindos dos Tratados de Direitos
Humanos ratificados pelo Brasil (SANTOS; VASCONCELOS, 2009, p. 8-9).

Todavia, os governos democráticos não absolutos. Cada um é dotada de


particularidades, um abstrato, não sendo uma estrutura lógica de normas. Nessa condição o
Estado deve recriar o modo de atuação estatal, implementando os Direitos Humanos sob a
visão local através de uma forma de incorporar tais normas externas as particularidades
internas.

COSIDERAÇÕES FINAIS

O golpe militar de 1964 levou à mudanças inimagináveis na sociedade brasileira,


deixando inúmeros resquícios que permanecem até hoje. Um dos motivos de tais resquícios
permanecerem foi consequência da política de transição no qual predominou o esquecimento
com a elaboração da Lei n° 6.883 de 1979, Lei da Anistia. Não houve a possibilidade de
perdão aos crimes ou a construção de uma memória concreta, impossibilitando a construção
de uma sociedade democrática plena após o período de redemocratização.
A decisão do STF sobre a ADPF 153 em declarar a permanência da
validade da Lei da Anistia, só deixou mais clara a irresponsabilidade do Estado brasileiro em
relação a sua história e a sua superação. Foi necessário que a Corte Interamericana de Direitos
Humanos no caso “Gomes Lund e Outros” consolidar apenas o que já era claro e
inquestionável na seara do Direito Internacional e dos Direitos Humanos; que é a invalidade
de tais Leis e a responsabilidade dos Estados em punir os crimes contra a humanidade.
Com a realidade mundial de um retorno às ideologias políticas mais radicais, em todos
os quadrantes, é urgente a necessidade da construção da memória coletiva para que crimes
contra a humanidade não voltem a acontecer no Brasil e em quaisquer nações. Somente com
uma política forte de resgate da memória poderá combater a ascensão de novos regimes e
assegurar os Direitos Humanos e o Direito à Justiça para o combate de violações futuras e
ocorridas no Estado Democrático de Direito.

REFERÊNCIAS

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Acesso em: 15 de out. 2017.
AS CONCEPÇÕES CONTEMPORÂNEAS DE SOBERANIA ESTATAL:
perspectivas para a efetiva proteção jurídica internacional dos refugiados 349

Rute Oliveira Passos350


Nivaldo Souza Santos Filho351
Flávia Moreira Guimarães Pessoa352

RESUMO

Trata o presente estudo de uma sistematização do conceito contemporâneo de soberania


através de uma leitura dos instrumentos normativos da proteção jurídica internacional dos
direitos humanos para refugiados. Parte-se dessa análise a busca pela compreensão de como
a soberania estatal, colocada hodiernamente se contempla limitada pelos compromissos
pactuados pelos Estados signatários em obrigar-se a conceder a devida proteção aos
solicitantes de refúgio. Objetiva-se com esse estudo, compreender de que forma a soberania
contemporaneamente reconhecida pela comunidade internacional subsiste na sistemática de
proteção aos direitos humanos, especificamente para refugiados, em circunstâncias que
desafiam os elementares do estado, a saber, o seu povo, a sua própria soberania e o seu
território. Através desse estudo, pode-se compreender, que, não obstante a dificuldade de se
estabelecer uma limitação da soberania estatal no que diz respeito ao tratamento dado aos
refugiados, o conceito contemporâneo de soberania deve ser encarado sob uma perspectiva
humanística, partindo do pressuposto que o reconhecimento dos direitos humanos prescinde
qualquer instituição jurídica estatal, considerando a propensão social de um mundo cada vez
mais cosmopolita, em que as abstratas fronteiras não subsistem a proteção integral da pessoa
humana, independentemente do território onde ela se encontre.

Palavras-chave: Proteção Jurídica. Refúgio. Ressignificação. Soberania.

INTRODUÇÃO

O debate sobre a soberania como instituto jurídico no campo do Direito Internacional


nunca se obteve uma conclusão unânime, em razão da própria sistemática global impedir
respostas uniformes aplicáveis a imensa diversidade proposta pelos entes da comunidade
internacional. Diante disso, não faltam esforços para que, oportunamente retomem-se as
discussões a respeito de como a soberania está postulada contemporaneamente e se seu
reconhecimento é aplicável às relações jurídicas existentes.

349
GT 10 – Estudos Contemporâneos em Direito Internacional.
350
Mestranda em Direito Humanos – Universidade Tiradentes (UNIT). Bolsista CAPES/Fapitec/SE. Graduanda
em Relações Internacionais – Universidade Federal de Sergipe. E-mail: rutepassos@live.com.
351
Mestrando em Direitos Humanos. Universidade Tiradentes (UNIT). Bolsista CAPES/Fapitec/SE. Integrante
dos grupos de pesquisa "Direitos Fundamentais, novos direitos e evolução social" e “Direito e Arte” presentes
no diretório do CNPq. E-mail: netosouza70@gmail.com.
352
Doutora em Direito pela Universidade Federal da Bahia – UFBA. Mestre em Direito pela Universidade Gama
Filho. Pós-doutora pela Universidade Federal da Bahia. Professora dos Programas de Pós-graduação da
Universidade Tiradentes e da Universidade Federal de Sergipe. E-mail: flaviampessoa@gmail.com.
Nesse contexto, o presente estudo atende a uma análise teórica da evolução conceitual
da soberania e o efetivo reconhecimento do Direito Internacional dos Refugiados. Nesse
sentido, considerando que a iminente crise dos refugiados no mundo está atrelada a fenômenos
conjunturais que envolvem especificamente a incidência de uma soberania absoluta, em que
a atuação estatal se mostra ilimitada frente as necessidades que a sistemática de proteção a
pessoa humana requer de cada Estado. Assim, compreende-se ser indispensável observar a
partir de uma perspectiva cosmopolita, o comportamento dos Estados perante o sistema
internacional do refúgio.
Compreende-se que os marcos surgidos a partir das guerras mundiais, evoluíram o
conceito de soberania, partindo de uma concepção de reconhecimento dos Direitos Humanos
e sua ressignificação. Ao momento em que a comunidade internacional percebeu a
impossibilidade dos estados soberanos lidarem com os diretos humanos em uma perspectiva
doméstica, necessário de fez, adotar um sistema internacional para a sua proteção,
reconhecendo então, a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos e os Pactos dela
advindos. A partir de então, pode-se considerar a existência de uma limitação à soberania
estatal frente as perspectivas de proteção do indivíduo perante a comunidade global.
Todavia, analisando a situação que envolve a crise humanitária dos refugiados
contemporaneamente, questiona-se até que ponto a soberania absoluta tida como ultrapassada
tem sido presente das relações jurídica internacionais, tendo em vista, que a soberania nesse
contexto, pode tanto favorecer as mazelas que influenciam os principais fluxos de refugiados
no mundo, assim como também, induzem a perpetuação do limbo imposto às pessoas em
situação de refúgio, em que não há disposição para reconhecer os seus direitos nem aceita-las
dentro de determinados territórios.
Desse modo, para o desenvolvimento desse estudo, dividiu-se o trabalho em uma
análise geral da proteção jurídica internacional para refugiados, partindo da sua evolução
histórica até a forma no qual está postulada contemporaneamente, elucidando a participação
dos estados soberanos em voluntariamente se obrigarem a reconhecer o direito internacional
dos refugiados. Em seguida analisa-se as diversas concepções de soberania, a saber, a
soberania absoluta, relativa e a soberania absoluta limitada, analisando, em qual dessas
concepções, há um devido equilíbrio entre o exercício da soberania estatal e o reconhecimento
no plano prático do direito internacional dos direitos humanos para refugiados.

1. A PROTEÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL PARA REFUGIADOS


O Direito Internacional dos Refugiados vem sistematicamente protegido em um
conjunto chamado de proteção internacional da pessoa humana, do qual decorrem também a
proteção internacional dos Direitos Humanos e o Direito Humanitário. Tal sistematização é
trazida por Cançado Trindade (1998), no qual considera a proteção das pessoas em situação
de refúgio como basilar para a garantia dos direitos da pessoa humana perante a comunidade
internacional.
Nesse aspecto, a proteção jurídica para refugiados não está simplesmente
correlacionada com uma proteção nacional, mas sim, de interesse global, ainda que, em alguns
aspectos, perceba-se condutas extremamente omissivas no que diz respeito ao devido
reconhecido desse direito a concessão de refúgio. Tal preocupação global, não decorre
exclusivamente da preocupação da comunidade internacional com o indivíduo, mas sim, uma
conjuntura de descontrole nos processos migratórios que, além de requererem uma
estruturação de políticas migratórias adequadas, também, pressupõe a existência de
cooperação internacional.
Assim, desde o marco histórico colocado por Andrade (1996), no qual, compreende o
surgimento da proteção jurídica internacional para refugiados a partir de uma garantia a
grupos coletivos353 de determinada localidade, até chegando a perspectiva individual, partiu-
se de esforços de países que estavam iminentemente incomodados com o grande fluxo de
pessoas em deslocamento, estas, não apenas em situação de refúgio, como compreende-se
contemporaneamente, mas também, na busca de asilo ou na extrema situação da apatridia.
A inicial proteção jurídica para refugiados em um âmbito transcendente ao doméstico,
ainda que incipiente, no que diz respeito a sua força jurídica vinculante, constituiu-se por um
Ajuste Sobre Refugiados Russos e Armênios de 1928, sendo o marco inicial para a sistemática
de proteção. Ou seja, “[...] foi um documento de excepcional importância, posto ter sido a
primeira tentativa de se formular, em termos jurídicos e na forma de um instrumento
internacional, um estatuto legal para os refugiados” (ANDRADE, 1996, p. 56).
Esse marco inicial, per si, já se demonstrava insuficiente, isto porque, na lógica da
comunidade internacional, não apenas nas regiões em que estavam ocorrendo os conflitos que
afetavam russos e armênios, muitos outros povos encontravam-se em situação de migração
forçada, o que, atingia da mesma forma outros países e indivíduos de outras nacionalidades.

353
Conforme retrata Andrade, “A expressiva maioria dos refugiados dessa época- fossem eles russos, armênios,
assírios ou alemães – era constituída de vítimas de catástrofes que não lhes coubera evitar: suas convicções
íntimas, políticas ou de qualquer outra ordem não eram a causa determinante da necessidade de se refugiarem”.
(FISHEL DE ANDRADE, 1996, p. 29).
A então Liga das Nações, responsável por essa proteção jurídica estava atuando de forma
diversa com a demanda imposta pela realidade global, ou seja, a proteção não era direcionada
para grupos indeterminados, isto quer dizer que, “a liga das nações não promoveu a proteção
jurídica de refugiados portugueses, espanhóis, búlgaros e italianos [...]”mas protegendo “[...]
em escala quase absoluta, para os russos, armênios, assírios, assírios-caldeus, assimilados e
turcos”. Contudo, a consciência da proteção individual, não apenas a partir de grupos
específicos só foi desenvolvida a quase meio século depois, no pós segunda guerra
(ANDRADE, 1996, p. 32).
Tal situação, pode justificar a grande dificuldade que afeta até os tempos hodiernos a
possibilidade de controlar o grande fluxo de imigração forçada no mundo, especificamente os
refugiados. Isto porque, desde a sua gênese, vem atendendo as preocupações políticas
domésticas dos Estados, sem considerar desde o início como um problema global. Logo,
compreende-se que uma das principais dificuldades contemporâneas de se enfrentar a crise
humanitária dos refugiados é lidar com enorme contingente de pessoas que se encontram em
tais situações, não por exclusivamente situações recentes, mas de conflitos, inclusive
anteriores a proteção global para refugiados.
Além dessa dificuldade característica de acumular-se os problemas decorrentes da
administração inadequada em relação aos fluxos migratórios forçados, as instituições354 que
foram surgindo no decorrer dos anos, com um escopo de cooperação global, sempre estavam
permeadas de conflitos decorrentes de questões alheias a proteção jurídica dos refugiados, ou
seja, confundia-se os debates políticos ideológicos com as questões humanitárias. Essa
situação também contribuiu para que por muito tempo o sistema de proteção viesse a ter, não
obstante ao momento, resultados positivos, mas a longo prazo, ações fracassadas e instituições
extintas.
Até transpassar o espectro coletivo e considerar o indivíduo como parte singular para
proteção do seu direito a ter refúgio, as instituições tanto administrativas quanto jurídicas,
padeciam de uma sistemática de compreensão dos direitos humanos como premissa para se
analisar a situação do refugiado. Tal fenômeno não envolvia apenas a perseguição política, as
dificuldades econômicas, a discriminação, racismo, dentre outras violações de direitos

354
Cronologicamente pode-se colocar o desenvolvimento das seguintes instituições que antecederam a existência
do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). Alto Comissariado para Refugiados
Russos (1921). Alto Comissariado para Refugiados Russos e Armênios (através do Ajuste de 1928). Escritório
Internacional Nansen para Refugiados (1931). Alto Comissariado para Refugiados (Judeus e Outros)
Provenientes da Alemanha (1933). Alto Comissariado da Liga das Nações para Refugiados (1938). Comitê
Intergovernamental para Refugiados (1938). Organização Internacional para Refugiados (1947).
humanos que caracterizavam determinado grupo. Era necessária uma proteção jurídica
internacional que analisasse a solicitação de refúgio, partindo da perspectiva do indivíduo, de
suas particularidades, independentemente do grupo ou nacionalidade no qual ele estava
vinculado.
Tal compreensão leva a proximidade da proteção internacional dos refugiados para
uma perspectiva dos Direitos Humanos, estes, partindo da Declaração Universal de Direitos
Humanos de 1948 que propõe o indivíduo como sujeito de Direitos perante a comunidade
internacional, dando ênfase aos problemas globais que envolviam situações internas, mas que
diziam respeito à o interesse da proteção da pessoa humana, responsabilidade de toda a
sociedade global. O indivíduo nessa perspectiva é uma conquista mundial, considerando as
mazelas sofridas pela humanidade devido a desmedida violação dos estados em desfavor da
pessoa humana.
A proteção internacional da pessoa como um tema global na temática dos refugiados,
apesar de por uma perspectiva ocidental hegemônica europeia dizer respeito apenas a proteção
nesse continente, assim como o sistema de proteção dos direitos humanos, com o passar dos
anos tem encontrado guarida através das proteções regionais, com o objetivo de se adequar a
situações migratória de cada região. No entanto, para o desenvolvimento desse trabalho,
tomará como partida a proteção global para refugiados, deixando as perspectivas regionais e
nacionais apartadas do diálogo sobre soberania, tendo em vista que a principal discussão que
envolve a relativização da soberania, afeta sobretudo as obrigações no âmbito global.

1.1. A Contemporânea Proteção Jurídica Internacional para Refugiados

Compreende-se que o Direito Internacional dos Refugiados vem imerso em uma


intersecção entre o Direito Internacional e os Direitos Humanos, sendo deles indissociável.
Disciplina nesse sentido Jubilut (2007) a necessidade de se estabelecer um diálogo entre o
Direito Internacional Público e o Direito Internacional dos Direitos Humanos, bem como
análises dos demais aspectos que envolvem a ordem internacional (políticos, econômicos,
sociais e humanitários), pontuando a essencialidade de estudar a inserção dessas vertentes
como meio de promoção a garantias de proteção ao ser humano.
Piovesan (2011) partilha da ideia de Hannah Arendt355 em defender que os direitos

355
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. Editora
Companhia das Letras, 2013. PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO: “[...] Já não podemos nos dar ao luxo de
extrair aquilo que foi bom no passado e simplesmente chamá-lo de nossa herança, deixar de lado o mau e
humanos como um processo histórico, conquistado socialmente, e que desenvolve-se em
constante processo de construção e reconstrução ao surgimento de novos fenômenos sociais
precisam ser reanalisados e adequados a novas perspectivas. Assim, as várias Declarações e
Convenções Internacionais de proteção aos Direitos Humanos e que também regulam o
Direito Internacional, necessitam de aprimoramentos, ao passo que, devido as mudanças
sociais, simultaneamente surge a necessidade de proteção efetiva de direitos com o auxílio de
novos mecanismos356.
Tais aprimoramentos vêm efetivados da esfera nacional, no qual, o Estado, através da
sua soberania se utiliza de mecanismos que possibilitam o exercício dos direitos humanos por
cidadãos e estrangeiros no seu território, como por exemplo na utilização de legislações
específicas e políticas públicas. No entanto, ainda que existentes legislações protetivas ao
indivíduo em situação de refúgio, há uma atual iminência de desconsideração a esse instituto,
fazendo com que os Direitos Humanos, consagrados e reconhecidos universalmente, sejam
reiteradas vezes violados.
O fenômeno da universalização dos Direitos Humanos, que na esfera internacional
implicou na redefinição do “âmbito e o alcance do tradicional conceito de soberania estatal, a
fim de permitir o advento dos direitos humanos como questão de legítimo interesse
internacional”357, trouxe uma sensível perspectiva em relação à proteção do indivíduo perante
a comunidade internacional.
Leciona Piovensan (2011) que “[...] o Direito Humanitário foi a primeira expressão,
de que no plano internacional, há limites à liberdade e à autonomia dos Estados, ainda que na
hipótese de conflito armado”. Igualmente, o surgimento da antiga Liga das Nações “veio
reforçar essa mesma concepção, apontando para a necessidade de relativizar a soberania dos
Estados”. Nesse processo de internacionalização, apresentou-se também a Organização
Internacional do Trabalho (OIT), que teve por finalidade “promover padrões internacionais
de condição de trabalho e bem-estar” (PIOVESAN, 2011, p. 120).
Passado o fenômeno da internacionalização dos Direitos Humanos, tal acontecimento

simplesmente considerá-lo um peso morto, que o tempo, por si mesmo, relegará ao esquecimento. A corrente
subterrânea da história ocidental veio à luz e usurpou a dignidade de nossa tradição. Essa é a realidade em que
vivemos. E é por isso que todos os esforços de escapar do horror do presente, refugiando-se na nostalgia por um
passado ainda eventualmente intacto ou no antecipado oblívio de um futuro melhor, são vãos”. Hannah Arendt
Verão de 1950.
356
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 12. ed. rev. e atual. São
Paulo: Saraiva, 2011
357
Op. cit.
passou a refletir efetividade após a segunda Guerra Mundial, marcada pela “Era Hitler”,
sustentada “pela destruição de descartabilidade da pessoa humana, o que resultou no
extermínio de onze milhões de pessoas” (PIOVESAN, 2011, p. 118). Assim, os direitos
humanos deixam a esfera doméstica dos Estados e tornam-se uma legítima preocupação
internacional, com a criação das Nações Unidas e com a adoção da Declaração Universal dos
Direitos Humanos (ONU, 1948).
Reitera Piovesan (2011) que a criação da Organização das Nações Unidas, com suas
agências especializadas, demarca o surgimento de uma nova ordem internacional, que instaura
um novo modelo de conduta nas relações internacionais, com preocupações que incluem a
manutenção da paz e segurança internacional, o desenvolvimento de relações amistosas entre
os estados, a adoção da cooperação internacional de saúde a proteção ao meio ambiente, a
criação de uma nova ordem econômica internacional e a proteção internacional dos direitos
humanos.
A Carta da Organização das Nações Unidas (ONU) e a Declaração dos Direitos
Humanos de 1948 iniciaram o processo de positivação e universalização dos direitos do
homem, até então desconhecido na história. Desde o final do século XVIII os Direitos
Humanos haviam sido consagrados, tão-somente, no interior dos Estados nacionais por obra
do constitucionalismo moderno, não havendo, desse modo, um reconhecimento universal
diante dos países considerados juridicamente como Estados (JUBILUT, 2007).
Posteriormente, foram elaborados os sistemas regionais de proteção aos Direitos Humanos,
como também outras Convenções Internacionais de cunhos específicos de proteção às
diversas nuances dos Direitos Humanos a fim de trazer a sua efetiva proteção.
Em se tratando da efetivação desses direitos, preleciona Bobbio (1992) que os direitos
do homem, tais considerados como fundamentais, possui uma característica histórica, ou seja,
nascidos em certas circunstâncias, “caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades
contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez
por todas” (BOBBIO, 1992, p. 5). Assim, passadas duas Guerras Mundiais, após a instituição
de uma Organização Internacional com o intuito de “preservar as gerações vindouras do
flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis
à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor
358
do ser humano[...]” , temos um sistema internacional de proteção aos Direitos Humanos

358
CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS. 1945. Rio de Janeiro: United Nations Information Centre – Rio de Janeiro
(UNIC-Rio). Disponível em: <http://unicrio.org.br/img/CartadaONU_VersoInternet.pdf> Acesso em: 15. Set.
que limitou de forma significativa a atuação soberana de muitos Estados que não
compreendiam a defesa dos direitos do homem como mecanismo suprassumo do bem-estar
social.
No que diz respeito a proteção internacional dos direitos da pessoa humana, Cançado
Trindade (1996) a disciplina sob o aspecto de vertentes: Direitos Humanos, Direito
Humanitário e Direito dos Refugiados, analisando o sistema de proteção de cada vertente,
como também, a possibilidade de uma aplicação simultânea por um dos seus sistemas de
proteção. Em se tratando da proteção Internacional dos Refugiados como efetivação dos
Direitos Humanos, através da Agência Especializada da Organização das Nações Unidas
(ACNUR), estabelece-se um tratamento humanitário que reitera o devido atendimento pelos
Estados em relação aos solicitantes de refúgio. 359
Nessa perspectiva conjuntural de Direitos Humanos e Refugiados, esse diálogo
implica significantemente aspectos positivos e aspectos negativos. Com efeito, “o principal
aspecto positivo é o fato de ser ele parte de um elenco de direitos universais, indivisíveis,
interdependentes, inter-relacionados e essenciais ao ser humano” (JUBILUT, 2007, p. 64),
sendo estes itens característicos do Direito Internacional dos Direitos Humanos, contudo,
quanto ao aspecto negativo, deparamo-nos com questão da sua efetivação.
Do arregimento dos Estados para lidar com o grande fluxo de apátridas e refugiados
na comunidade internacional, após as várias instituições de órgãos fragilizados pelo contexto
político e temporário inerente a sua própria criação, finalmente elaborou-se a Convenção de
1951, modificada pelo Protocolo de 1967, levando sua força normativa como incentivo para
que os Estados trouxessem dispositivos legais internos. Como no caso do Brasil, se tem a Lei
nº 9.474, promulgada em 1997 que retrata as peculiaridades do processo de concessão de
refúgio e o seu devido tratamento ao ingressar no território brasileiro.

2018.
359
A ação humanitária, em resposta a violações maciças dos direitos humanos (e.g., dos refugiados e deslocados
internos), encontra-se ligada à manutenção e construção da paz, como hoje o reconhece o próprio Conselho de
Segurança das Nações Unidas (e.g., Iraque, exIugoslávia, Sornália). Também se encontra dinamicamente ligada
ao aprimoramento das condições de vida e ao desenvolvimento (e.g., nos países de origem). Aqui se fazem
presentes a visão integral e a indivisibilidade dos direitos humanos. Enfim, outra implicação da concepção
ampliada de proteção (supra), que não pode passar despercebida ou minimizada, radica na necessidade de dedicar
maior atenção ao alcance do direito de permanecer com segurança no próprio lar (de não ser forçado ao exílio)
e do direito de retornar com segurança ao lar TRINDADE, Antônio Augusto Cançado; PEYTRIGNET, Gérard;
DE SANTIAGO, Jaime Ruiz. As três vertentes da proteção internacional dos direitos da pessoa humana:
Direitos Humanos, Direito Humanitário, Direito dos Refugiados. Instituto Interamericano de Direitos
Humanos, 1996. Disponível em: <https://www.icrc.org/por/resources/documents/misc/direitos-da-pessoa-
humana.htm> Acesso em: 20. Set. 2018.
Segundo Jubilut (2007), o marco institucional da proteção moderna do Direito
Internacional dos Refugiados vem a ser a Convenção de 1951, celebrada sob a égide da ONU,
por meio da atuação do ACNUR. No entanto, tal convenção foi elaborada com pelo menos
dois graves aspectos que suprimem a essência do instituto do refúgio perante a perspectiva
protetiva dos Direitos Humanos. A Convenção de 1951 previa a possibilidade de uma reserva
geográfica, ou seja, os Estados, através do instituto da reserva poderia considerar refugiados
tão-somente as pessoas provenientes da Europa – em função de ter sido essa região palco da
Segunda Guerra. Assim, “A existência desta limitação geográfica é decorrência da pressão
dos Estados europeus que se sentiam prejudicados com a enorme massa de refugiados em seus
territórios, e que queriam que houvesse uma redistribuição desse contingente” (JUBILUT,
2007, p. 68).
Contudo, verifica-se que, diante dessa dita intenção de “desafogar” determinado
continente do grande fluxo de migração em seu território, muitos acabavam por, não obstante
preencher os requisitos para concessão de refúgio, não ter direito a este, devido ao não
cumprimento do pressuposto de origem regional estipulada na cláusula restritiva. “Ademais,
possuía uma reserva temporal, visto que somente eram considerados refugiados as pessoas
perseguidas anteriormente a 1951, consagrando-se mais uma vez a crença de que os refugiados
eram um problema pontual.360 Consequente a isso, menciona Leite (2014) que a manutenção
da limitação geográfica sobre o conceito de refugiado previsto na Convenção de 1951
mantinha o sistema nacional praticamente inoperante para os fluxos de refugiados, havendo
poucas e discricionárias decisões sobre o tema.
Além desses dois pontos cruciais que suprimiam sobremaneira a proteção dos
refugiados em essência através de um dito “direito internacional dos refugiados”, aponta
Jubilut (2007), outro ponto que reduzia ainda mais a efetivação do instituto do refúgio. Com
efeito, a Convenção em suas disposições classificava como motivos para o reconhecimento
do status de refugiado apenas a perseguição em função da violação de direitos civis e políticos,
desconsiderando os demais e recorrentes motivos, tais como, os direitos econômicos, sociais
e culturais, mais violados em países em desenvolvimento e de menor desenvolvimento
relativo, o que fortalece ainda mais a posição eurocêntrica desse diploma legal.
Diante de todas essas limitações, além de um ser um claro exemplo de retrocesso da
legislação internacional em pontuar situações retrógradas em relação a contemporânea

360
Id. Ibid
situação dos refugiados, que em suma, não se enquadrava com as novas demandas e
surgimento de novas modalidades de refúgio, foi adotado o Protocolo Adicional de 1967 à
Convenção de 1951. Assim, afirma Jubilut (2007) que tal documento aboliu as reservas
geográfica e temporal conferindo maior amplitude e abrangência à definição.
Em relação as fontes primárias do Direito Internacional dos Refugiados (Tratados),
tem-se esses dois documentos que formam a base do sistema de proteção jurídica para os
Refugiados (Convenção de 1951 e Protocolo de 1967). Contudo, não são os únicos
instrumentos e mecanismos do sistema protetivo, tendo em vista que, o Direito dos Refugiados
dialoga com os Direitos Humanos e o Direito Internacional diretamente, acabando por adquirir
outros mecanismos de proteção, através de sistemas de proteção semelhantes.361 Tal proteção,
encontra guarida não apenas no espectro global, mas também no âmbito regional e local dos
estados, nos quais, propõem melhor alinhamento as situações mais específicas de cada região.
Outrossim, é que, em se tratando de um sistema de proteção regional, o Direito
Internacional dos Refugiados também está amparado por um dispositivo legal conhecido
como a Declaração de Cartagena de 1984, que estabelece ampliação nas hipóteses de
concessão do status de refugiado, além de vincular os países americanos a um
comprometimento bastante significativo com o tema, pois determina reuniões periódicas
sobre os desafios que o direito dos refugiados em nível continental pode vir a enfrentar e
compartilha boas práticas. (SILVA, et al., 2017, p. 11).
Considerando toda a sistemática de proteção jurídica internacional da pessoa humana,
não apenas nos aspectos da proteção dos Direitos Humanos, mas na garantia de proteção para
as pessoas em situação, percebe-se a predominância não da proteção da pessoa humana em si,
mas apenas, de articulações estatais para conter o desequilíbrio de pessoas em migração no
contexto global. Desta forma, o trabalho propõe uma ressignificação das instrumentalidades

361
Dentre esses instrumentos destacam-se: as Convenções IV e V de Haia relativa aos Direitos e Deveres das
Potências e Pessoas Neutras no Caso da Guerra Terrestre de 1907 (artigos 4.º e 6.º respectivamente183 ), a
Declaração Americana de Direitos Humanos de 1948 (artigo 27184 ), a Declaração Universal dos Direitos do
Homem de 1948 (artigos 2.º, 3.º, 14, 18 e 21185 ), a Terceira Convenção de Genebra relativa ao Tratamento dos
Prisioneiros de Guerra de 1949 (artigos 87, 100, 109 e 118186 ), a Quarta Convenção de Genebra sobre a
Proteção de Pessoas Civis em Tempos de Guerra (artigos 44, 51, 70, § 2.º187 ), o Protocolo I Adicional às
Convenções de Genebra de 1949 (artigos 47, 51 § 6.º,58, 73188 ), a Convenção Europeia para a Proteção dos
Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, de 1950 (artigo 14189 ), a Convenção sobre o Estatuto dos
Apátridas de 1954, a Convenção para Reduzir os Casos de Apatridia de 1961 (ambas sem artigos específicos,
mas relevantes em sua totalidade em função da semelhança entre a situação dos apátridas e dos refugiados, vez
que nenhum deles conta com a proteção estatal), o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto
Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 (ambos também sem artigos específicos, mas
importantes por assegurar uma vasta gama de direitos humanos a todos os indivíduos) e a Convenção Americana
sobre Direitos Humanos de 1969 (artigo 22, § 7.º190 ). (JUBILUT, 2007, p. 91).
jurídicas, para, ao invés de atender simplesmente aos interesses políticos dos Estados, alinhar-
se a realidade fática dos processos de solicitação de refúgio e os contextos que com eles se
envolvem.
Nesse contexto, insere-se a soberania como instrumento nas relações de poder, que
consubstanciam a existência de refugiados e apátridas no mundo através da existência de
violências estruturais, como também, a partir delas pode se requerer dos Estados um
posicionamento coadunado com a proteção individual da pessoa humana nos problemas
globais. Contudo, a instrumentalização dessa proteção através dos mecanismos jurídicos, pode
ser considerada um desafia a concepção de soberania absoluta, trazendo ao debate o seguinte
questionamento: é possível estabelecer um equilíbrio entre a soberania dos Estados, esta
indispensável para a sua existência no espetro anárquico da comunidade internacional,
coexistindo nessa relação a proteção efetiva dos direitos humanos para refugiados?
Tal questionamento desafia a propositura de uma sistematização das principais
discussões sobre soberania existentes contemporaneamente e que, na presente proposta, visa
sistematiza-la, a fim de compreender em qual concepção ela pode alinha-se ao reconhecimento
do Direito Internacional dos Direitos Humanos para Refugiados. Importa tal discussão teórica,
para que seja identificado se a sistemática internacional de proteção aos refugiados, continua
fadada ao fracasso como nos seus primórdios devido a inadequação as características de
administração doméstica dos Estados ou se, os interesses internos, sejam políticos e
econômicos continuam preponderantes nas relações globais, perpetuando a desconsideração
do indivíduo como sujeito de direito nas relações internacionais, ao menos em termos práticos.

2. SOBERANIA E DIREITOS HUMANOS PARA REFUGIADOS NO MESMO


PLANO RECONHECIMENTO JURÍDICO

Conforme Taiar (2009) discute, a soberania absoluta não há de ser confundida com
a soberania ilimitada. Ou seja, suas características de unidade e indivisibilidade, que propõe
para um único território uma única autoridade do qual decorre o poder, não podendo sofrer
interferências externas, a sua existência está per si, limitada a própria administração local e
obrigações no plano internacional, do qual voluntariamente se dispõe a submissão. Nesse
aspecto, é que se insere o debate em que, como no plano prático a limitação da soberania pode
ser provada e admitida pelos próprios Estados. Ou seja, “a dificuldade está no estabelecimento
prático de um equilíbrio sensível entre as necessidades dos Estados soberanos individuais e a
comunidade internacional dos Estados”. (TAIAR, 2009, p. 74). E é exatamente esse equilíbrio
exigido pela proteção internacional dos Direitos Humanos para Refugiados e que no plano
prático encontram óbices, perante as reiteradas colocações do estado que aludem a uma
soberania puramente absoluta, sem sofrer quaisquer limitações, tanto no plano interno, quanto
no plano internacional.
Quando um Estado ratifica um tratado de proteção dos direitos humanos, não diminui
ele sua soberania (entendida em sua concepção contemporânea), mas, ao contrário, pratica um
verdadeiro ato soberano, e o faz de acordo com sua Constituição. (MAZZUOLI, 2002, p.
174). No entanto, tratando tal instituto em relação a proteção dos direitos humanos, “a noção
clássica de soberania sofre, ainda, uma outra transformação. No cenário internacional de
proteção, os Estados perdem a discricionariedade de, internamente, a seu alvedrio e a seu
talante, fazer ou deixar de fazer o que bem lhes convier”. (MAZZUOLI, 2002, p. 173). Assim,
a adequada utilização da prerrogativa soberana na atuação dos Estados favorece a eficácia dos
Direitos Humanos, vez que, no plano social, é o Estado o maior violador dos direitos inerentes
à pessoa humana, principalmente pelo fato de ser o detentor da obrigação de garanti-la, seja a
nacionais e estrangeiros.
Outrossim é que, o sistema de proteção internacional dos direitos humanos da ONU
não ameaça à soberania nacional dos Estados, uma vez que o seu caráter de proteção é
complementar e subsidiário, em que se reconhece primordialmente aos Estados a incumbência
pela efetiva proteção. (MAZZUOLI, 2002, p. 175). Ou seja, “A maior organização universal,
a ONU, apesar de ser uma pessoa jurídica de Direito Público Internacional, não é soberana, e
é formada pelos Estados, que continuam independentes e autônomos, mesmo integrando-a”.
(OLIVEIRA, 2006, p. 86).
Assim, por mais delicado que seja tratar soberania e violação dos Direitos
Humanos, reitera-se que, o respeito aos tratados convencionados na comunidade
internacional, especificamente os que tratam dos direitos humanos, de forma alguma desafia
a soberania do Estado. Afirma-se que esta, está posta de forma limitada através de si mesma,
tendo em vista que a perspectiva puramente absoluta enfraquece a ideia de que, em detrimento
do respeito a integridade da pessoa humana, o Estado precisa reafirma-se na sua autonomia.
O indivíduo como sujeito de direitos, permitindo que este venha exercê-lo também
no plano internacional, sem se encontrar totalmente coarctado e controlado pelos estados, ora
por um, ora por outro, sob alegações e nas circunstâncias mais variadas, permanece em boa
medida, aspiração cuja implementação terá de ser desenvolvida. (ACCIOLY, 2014, p. 357).
Nessa conjuntura, verifica-se que os Estados agem de uma forma totalmente política no que
diz respeito ao tratamento que se dá internamente aos refugiados, sendo que tal atuação
decorre em duas vertentes: a posição do Estado frente à sociedade e a posição da sociedade
frente ao Estado.
Como afirmado por Menezes e Reis (2013), “a falha em responder adequadamente
aos fluxos de refugiados deve-se, em larga medida, à natureza política e internacional do
problema, sendo essa refletida em todos os aspectos que envolvem a temática” (MENEZES E
REIS, 2013, p. 158). Assim, reitera Mazzuoli (2002) que não existem direitos humanos
globais, internacionais e universais, sem uma soberania flexibilizada, ou seja, a devida
proteção é correlacionada com a limitação da atuação dos Estados, sendo que a não
transformação do conceito impediria a projeção dos direitos humanos na agenda
internacional.
De acordo González (2009) medidas restritivas em relação às políticas migratórias
são invocadas pelas justificativas de segurança nacional, sem ao menos estabelecer um
sistema de controle e identificação para verificar os indivíduos que se encontram em situação
de refúgio ou demais situações de migração. No entanto, há que se considerar que, já é
pacífico pelo Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas que refúgio e direitos
humanos são intrinsicamente veiculados, sendo a simples violação aos direitos humanos,
legitima o reconhecimento ao status de refugiado. (MENEZES E REIS, 2013, p. 146).
Assim, diante do que fora trazido em termos conceituais e aspectos históricos, há
demonstrado que o instituto da soberania é predominante o que diz respeito a conduta dos
Estados frente a atual crise humanitária consequente do grande número de solicitações de
refúgio. Isso levando-se em consideração que, tudo isso envolve os aspectos de segurança
nacional, que são justificados propositalmente de forma equivocada, como também, a
concessão de refúgio se vê bastante limitada consequentemente. Desse modo, utiliza-se das
palavras de Taiar (2009) considerando que “A espécie humana só pode prosperar se existir um
mínimo de equilíbrio. É esse particular, no sentido da descoberta do melhor critério ou
critérios, que carece de atenção” (TAIAR, 2009, p. 71).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do que se apresenta, a soberania considerada absoluta mas limitada


compreende contemporaneamente a real situação das relações jurídicas no plano
internacional, não ignorando o fato de que, o caráter absoluto do poder soberano ainda
persiste, porém, pode ser limitado pela sua própria obrigação de viver em sociedade no âmbito
internacional, sociedade esta que compõe-se de regras, deveres e obrigações que acompanham
os estados na sua atuação, a fim de que, hajam em consonância com os princípios do Direito
Internacional. Contudo, o real equilíbrio entre esse tipo de soberania e o reconhecimento
efetivo dos direitos humanos só será possível quando houver devidamente instrumentalizado
mecanismos hábeis de controle do cumprimento das obrigações dos Estados perante aquilo
que, através do seu ato soberano, decidiu se comprometer.
A complexidade das relações jurídicas internacionais e o reconhecimento do direito
internacional dos direitos humanos para refugiados longe está de um discurso unânime e
pacífico, porém, é indispensável que se estabeleçam estudos visando promover maior
proximidade entre a proteção da pessoa humana e as relações de poder inerentes da posição
estado e indivíduo. Assim, estabelecer sistematicamente uma soberania que reconhece o poder
absoluto como prerrogativa do estado, mas que se encontra limitado ao reconhecimento dos
direitos da pessoa humana, atende a uma perspectiva de trazer o plano prático as adequações
entre o posicionamento estatal em relação aos refugiados e o reconhecimento dos seus direitos
humanos.
Analise da prerrogativa estatal como soberano, prescinde uma ressignificação para
que, a sua atuação seja pautada a partir da contemplação da pessoa humana, não como ameaça
ao estado, mas como sujeito de direito a ser protegido por ele. O conceito contemporâneo de
soberania precisa ser encarado sob uma perspectiva humanística, partindo do pressuposto que
os propósitos estatais devem alinhar-se ao reconhecimento dos direitos humanos, não os
primeiros anular o segundo. Ainda que na iminência de interesses políticos e econômicos
urgirem por ações mais rigorosas, precipuamente a dignidade da pessoa humana, que
milenarmente tem sido objeto de luta, há de ser ponderada nos debates que envolvam o poder
estatal a pessoa humana como sujeito de direitos, sendo o próprio estado o principal
responsável para garanti-los.

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