Vous êtes sur la page 1sur 16

E. G.

Castro NOTA-DE-PESQUISA
195

“ESTUDOS DE COMUNIDADE”: REFLEXIVIDADE E ETNOGRAFIA EM


MARVIN HARRIS

Elisa Guaraná de Castro

ABSTRACT: CASTRO, E. G. “Community studies”: reflexivity and ethnography in Marvin Harris.


Rev. Univ. Rural, sér. ciênc. hum., v.23, n.2, p.195-210. - The community studies, very frequent in
Brazil during the forties and fifties, were responsible for an important debate about methods and
techniques of research in Social Sciences. The option of establishing a dialog between Marvin
Harris´s monographic work and problems that are on the recent debates of anthropology, intends to
revisit this important form of research, looking forward to answer the question: in which ways this
kind of research renews the debate from a reflexive perspective and contributes with new problems to
the ethnographic work.

KEYWORDS: rural/urban - community studies - anthropological methodology

INTRODUÇÃO de análise que não se limita a um estudo desta


monografia em si. Ao contrário, busca relacioná-
A proposta deste artigo surgiu a partir de um la com preocupações atuais sobre o fazer
debate que revisitou os chamados “Estudos de etnográfico, com a própria escrita e com o
Comunidade”1 , muito freqüentes nas décadas de resultado mais concreto deste processo : a
40-50 no Brasil. Retomar esses trabalhos hoje, etnografia.
implica analisá-los – dentro de seus limites Os autores com os quais busquei aprofundar
históricos de produção acadêmica – buscando a análise discutem questões levantadas no
um olhar que valorize os percursos e materiais Seminário de Santa Fe/EUA, 1986, que teve como
etnográficos, na discussão da construção de foco central a escrita etnográfica, revendo seu
conceitos como rural e urbano, comunidade e passado recente e possibilidades futuras 3 .
desenvolvimento. Da mesma forma, esse esforço Segundo James Clifford, buscou-se “a política e
permite um estudo reflexivo sobre o próprio fazer a poética da representação cultural” (1986:VIII).
etnográfico. O autor afirma que as críticas de Santa Fe
Para debater a importância destes trabalhos, dirigiram-se a um tipo de trabalho etnográfico,
mergulhei em um “estudo de comunidade”: abrangendo desde os que seguem a tradição
“Town and Country”, de Marvin Harrris (1971) 2 , malinowskiana até Evans-Pritchard. O que uniria,
tomando-o como estudo de caso. O diálogo com segundo o autor, estas diferentes formas de
debates recentes sobre a etnografia, no campo etnografia seria a autoridade etnográfica e a
da antropologia, contribuiu para uma dinâmica busca pelo realismo científico. O Seminário teria
dado visibilidade a questões que já vinham sendo
discutidas e tratadas ao longo da “história” da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro antropologia. Marlyn Strathern (1987,1992,1999)
Aceito em 31/dez/2001 e Nicolas Thomas (1991) problematizam as

© Univ. Fed. Rural do Rio de Janeiro Rev. Univ. Rural, Sér. Ciênc. Humanas
Vol. 23(2): 195-210, jul./dez. 2001.
196 "Estudos de comunidade": reflexividade e etnografia em Marvin Harris

questões levantadas pelo Seminário e foram e Helen Lynd como o primeiro estudo de
utilizados neste artigo como forma de ampliar o comunidade, apresenta-a como tendo sido
debate, principalmente sobre questões como a realizada em
autoridade etnográfica, gênero e alteridade.
A monografia de Marvin Harris, “Town and “uma pequena cidade do estado de Missouri
Country in Brazil”, ao mesmo tempo em que – USA, cidade que recebeu o nome fictício
reforça a forma de se realizar os estudos de de Middletown. A população da cidade era
comunidade – que tem como um de seus pilares de cerca de 30.000 habitantes.... O trabalho é
a autoridade etnográfica criticada por Santa Fe – de uma extraordinária riqueza de dados e de
se diferencia por tratar de forma peculiar alguns interpretação de censos.” (1962, p.46).6
temas, valorizando a subjetividade do olhar do
pesquisador e preocupando-se em repensar a A definição de estudos de comunidade está
comunidade a partir de elementos de sua implícita nesta abordagem de Guidi. Como
diversidade cultural. observou Castro7 , o “local” onde a pesquisa era
Esse exercício analítico permitiu uma realizada tinha grande importância nestes
releitura instigante e reveladora da complexa trabalhos, e diversos estudos definiam a
realidade do fazer etnográfico, onde comunidade a partir do tamanho, lido como
problemáticas consideradas atuais e percebidas número de habitantes. Como veremos mais
como “novas” já se faziam presentes em outras adiante, em Harris, esta era uma questão
épocas. controversa. A definição de comunidade – muitas
vezes associada a “rural” – era demarcada a partir
de elementos considerados objetivos: tamanho
PORQUE REVISITAR OS ESTUDOS DE do local, grau de isolamento, desenvolvimento.
COMUNIDADE? O debate sobre este recorte perpassa a
monografia de Harris. Mas apesar da relevância
Guidi (1962) resgata os estudos de do “local”, havia uma tendência de se manter um
comunidades4 como um método de pesquisa que certo sigilo através do uso de nomes fictícios
teria surgido nos Estados Unidos a partir da atribuídos à comunidade estudada e aos
década de 20, tendo como marco o trabalho de personagens citados.
Robert Lynd e Helen Lynd, que, em 1929, Em seu estudo, Guidi analisa as publicações
empreenderam uma pesquisa em uma “pequena a partir de dez temas8 , ressaltando que alguns
cidade” do estado de Missouri/EUA. Guidi se trabalhos não trataram dos temas “família,
coloca em defesa desta forma de pesquisa que, parentesco e educação” e afirma que
em fins da década de 50 e início de 60, gerou “compreender-se-iam tais omissões caso os
debates no Brasil, envolvendo nomes como autores não tivessem pretendido uma descrição
Florestan Fernandes e Guerreiro Ramos. A autora geral do contexto sócio cultural” (1962:50), o que
afirma que os estudos de comunidade contribuem para ela é um elemento definidor dos estudos de
para o aumento do “campo do conhecimento para comunidade. Ainda segundo Castro, o tipo de
a compreensão de uma área cultural” (1962, p.47). abordagem desses estudos não propunha uma
Citando Julian Steward5 , considera os estudos questão central a ser analisada e sim pretendia
de comunidade a “maior contribuição que a dar conta de uma totalidade. Este elemento
Antropologia Social tem prestado aos programas também é apontado por Clifford como uma das
de cooperação interdisciplinária para a resolução principais características das etnografias, até a
de problemas mundiais de desenvolvimento” década de 60.
(1962, p.47). A autora empreende a partir desta A multiplicação destes estudos, primeiro, nos
perspectiva um importante esforço de balanço Estados Unidos e, posteriormente, na América
de 15 estudos de comunidade, publicados no Latina, trouxe para o cenário do debate duas
Brasil entre 1947 e 1960. questões: a aplicação prática destas
Na introdução de seu trabalho, Guidi aponta investigações e sua representatividade. Do
algumas pistas para nos aproximarmos destes ponto de vista da aplicabilidade, Guidi, ao
estudos. Ao demarcar a pesquisa de Robert Lynd ressaltar o papel deste tipo de pesquisa para
E. G. Castro 197

sanar problemas de desenvolvimento, sugere que (eletricidade, estradas, transporte, hospitais,


esses estudos estariam norteando o próprio escolas, etc.), e o “grau de isolamento”,
papel da antropologia. Isto corrobora a idéia de entendendo-se este último como acesso difícil
Castro de que o debate sobre o papel do de entrada e saída da localidade (estradas,
antropólogo e do sociólogo perpassa a proposta ferrovias, vias pluviais) e freqüência de
destes trabalhos9 .A representatividade parecia intercâmbios com outras localidades (comerciais,
nortear as técnicas empregadas, tanto quanto festivos, etc.).
na preocupação em observar em detalhes a Nortearam o debate e as análises realizadas
“realidade local”. Para tal, buscava-se um forte por estes estudos de comunidade dicotomias
diálogo com dados censitários. O como: modernidade X tradição, progresso X
desenvolvimento aparece como uma categoria- desenvolvimento, rural X urbano. As
chave neste tipo de análise, como pode ser monografias resultantes desses projetos 13
observado em dois projetos implementados no tinham algumas características comuns:
Brasil, em fins da década de 40 e início de 50: um buscavam dar conta da “totalidade”, através de
no estado da Bahia, coordenado por Charles um leque de temas, como veremos adiante,
Wagley, e outro no Vale de São Francisco, através da monografia analisada. Outra
coordenado por Donald Pierson10 . característica era um olhar que privilegiava a
Os estudos de comunidade, que marcaram relação do homem com o meio ambiente.
presença no Brasil nas décadas de 40 e 50, se Os projetos de Wagley e Pierson têm alguns
caracterizaram também como projetos de elementos em comum que merecem destaque. As
levantamento e análise de longo alcance, visando pesquisas foram desenvolvidas em convênios
a futuras intervenções dos governos federal e entre instituições públicas brasileiras, de caráter
estaduais. Segundo Lowry Nelson (s/d), havia executivo, e institutos de ensino e pesquisa
interesses estratégicos no Brasil, principalmente privados dos Estados Unidos 14 . Ambos
em função da II Guerra Mundial11 . Os Estados pretendiam um debate entre áreas rurais
Unidos buscavam alternativas para a aquisição “isoladas” e “desenvolvimento nacional”.
de produtos, como juta, borracha e quinino. Propunham, ainda, formas de intervenção no
Assim, um maior conhecimento de determinadas sentido de “desenvolver” essas regiões. Através
áreas, como a Amazônia, tornou-se relevante, e da pesquisa, visavam a formar jovens cientistas
os estudos de comunidade forneciam as e propunham um intenso debate metodológico.
informações necessárias para se pensar o Estes elementos perpassam a monografia de
desenvolvimento dessas regiões. Marvin Harris. O papel do cientista está bem
Além dos dois projetos – coordenados por definido, a partir da autoridade que assume e de
Pierson e Wagley – um terceiro poderia ser uma visão que pode ser lida através da definição
agregado como exemplo desses estudos: O de Clifford chamada de “realismo científico”.
Programa de Pesquisas em Cidades Laboratórios, Mas, em “Town and Country”, percebe-se um
coordenado por Darcy Ribeiro12 . Estes projetos, tensionamento entre este fazer ciência e um
embora trabalhando sobre diferentes regiões, diálogo reflexivo que valoriza as experiências e
apresentam algumas características comuns. As sensações pessoais. Para tratarmos adiante essas
equipes eram multidisciplinares e usavam como questões na própria monografia de Harris,
método de pesquisa levantamentos intensos em apontaremos alguns elementos desse debate.
localidades previamente definidas como A crítica sintetizada no seminário realizado
comunidade. A proposta dos três projetos era em Santa Fe tem como principal foco o que Clifford
uma análise a partir da comparação de diferentes (1986, p.100) chama de tradição positivista-
localidades; assim estava colocada a questão da romântica-realista, onde estilos literários e
representatividade, que norteava a definição dos científicos do século XIX fazem-se presentes nas
locais a serem investigados. Os indicadores de etnografias do século XX15 . Do positivismo, a
representatividade variavam, mas a noção de etnografia herdou o rigor da busca de verdade,
desenvolvimento era recorrente: através de “alcançada” através da objetividade de seus
definições, como densidade demográfica, métodos de observação, que desvelam a realidade
atividades produtivas, infra-estrutura local pesquisada pelo antropólogo. Ou seja, a

© Univ. Fed. Rural do Rio de Janeiro Rev. Univ. Rural, Sér. Ciênc. Humanas
Vol. 23(2): 195-210, jul./dez. 2001.
198 "Estudos de comunidade": reflexividade e etnografia em Marvin Harris

objetividade científica é construída a partir de literatura. Na antropologia, esse processo ocorre


uma experiência subjetiva e individual (o estar através da consolidação da observação
lá), pelo uso de determinados procedimentos e participante, como método de coleta de
técnicas “científicas” na coleta de material, e informações sobre o outro. A relação entre o eu
legitimada pela autoridade etnográfica do (antropólogo) e o outro (nativo) está marcada
antropólogo. A etnografia “moderna” estaria pela desigualdade; o controle de todas as etapas
marcada por esta “aura de verdade”, e o texto da pesquisa até a escrita está nas mãos do
etnográfico assume características muito primeiro. O outro assume um papel secundário
peculiares, por tratar-se de uma descrição que, na investigação e o resultado final vem a ser o
para ser realizada, depende do olhar direto do texto etnográfico.
antropólogo. O que é narrado precisa ter sido A generalização seria outra característica da
presenciado. No entanto, muitas vezes é narrado etnografia moderna, que, na maioria das vezes,
na 3a pessoa do singular, o que remete a uma encobre a diversidade de percepção dos próprios
impessoalidade característica da linguagem informantes - por exemplo, a diferença de olhares
científica. O espaço para a 1a pessoa estaria de homens e mulheres sobre sua própria história
limitado ao relato da “chegada”, momento em e realidade. A problemática de gênero é muito
que o antropólogo ainda não submergiu naquele valorizada neste debate, pois coloca em xeque a
novo e estranho universo. Após essa “entrada”, noção de totalidade, mostrando como diversas
o texto etnográfico, segundo Clifford, assume o etnografias conhecidas apresentam como
tom impessoal, como forma de garantir que o que experiências dos nativos, o que de fato seriam
está sendo descrito não é uma mera interpretação, experiências dos homens nativos.
mas sim a “verdade”, a descrição dos fatos como O debate sobre gênero coloca ainda outra
ocorreram. questão: a separação entre forma e conteúdo, na
A autoridade etnográfica é paulatinamente medida em que a escrita de uma antropóloga
construída por este e outros mecanismos, como mulher não gera necessariamente um olhar
a demonstração de profundo conhecimento de feminino. A hierarquia de temas é outro elemento
práticas culturais, através da descrição detalhada que contribui para uma percepção
destas, do uso de fotos que mostram a região unidimensional da realidade estudada, onde a
estudada e da presença do antropólogo, etc. “totalidade” é definida a partir de determinados
Assim, a subjetividade, a experiência individual elementos, como economia, parentesco, entre
do antropólogo implícita no texto etnográfico teria outros, e recortes de gênero ou questões como
como principal objetivo reforçar a objetividade sexualidade aparecem em segundo plano. As
científica e a própria autoridade etnográfica. etnografias que abordam a questão de gênero
Clifford apresenta uma alternativa a esta têm inovado ao tratar este como um tema central
“tradição moderna”. Assim como a literatura, a a ser analisado. No entanto, esse processo não
etnografia é igualmente uma construção e não tem implicado mudanças nas práticas
deve ser lida como uma reprodução das etnográficas e no texto final (Strathern,1987,
representações culturais, mas sim como uma re- p.279). Pode-se afirmar que, apesar da mudança
invenção de uma realidade existente a partir do de enfoque no que se refere ao conteúdo, as
olhar do antropólogo. “Ethnography is actively práticas tendem a reforçar a autoridade
situated between powerful systems of etnográfica.
meaning.... It describes processes of innovation Clifford chama atenção para que estas
and structuration, and is itself part of these preocupações não sejam confundidas com uma
processes” (1986, p.2) 16 . As verdades outra forma de construção de totalidades. Assim,
etnográficas são parciais, comprometidas e não se trata de preencher mais uma lacuna. A
incompletas. A consolidação da ciência moderna, releitura de etnografias que não carregavam
que desvela as “verdades”, também ocorre preocupação como a de gênero não deve
através da sua linguagem, marcada pela representar uma cobrança, pois o debate sobre a
objetividade, de forma a se diferenciar da ficção. questão não estava consolidado. O olhar
Para Clifford, a linguagem objetiva, por se etnográfico é informado historicamente.
pretender verdade, é mais ficcional que a Esse debate hoje fortalece a idéia de que não
E. G. Castro 199

é possível a totalidade. Ou seja, antropólogos e esta questão, afirmando que a análise de outras
antropólogas, nativos homens e mulheres geram sociedades parte de conceitualizações e
múltiplas combinações que podem focalizar ou categorizações auto-referentes. Como pensamos
não questões de gênero, por exemplo, e podem o outro é uma reconceitualização de como nos
trazer diferentes olhares femininos e masculinos. pensamos.
Da mesma forma, a idade, o ciclo-de-vida, a Indicando uma forma de trabalhar estas
posição na hierarquia das relações sociais são questões, Clifford propõe o olhar reflexivo17 , isto
outros fatores que contribuem para construir é, ao invés de escamotear a subjetividade, a
esses interlocutores. escrita etnográfica deve reforçá-la através da
Segundo Clifford, o olhar para a diversidade prática auto-reflexiva, onde o antropólogo se
das relações sociais é fundamental para uma percebe no campo e não acima dele. Esta auto-
percepção mais complexa das diferenças reflexividade permite a percepção da
culturais. Mas este processo não significa complexidade da realidade em que o antropólogo
descobrir como montar o quebra-cabeça da está inserido, e deve estar presente em todos os
realidade observada - e sim, perceber que o momentos do trabalho - tanto no trabalho de
quebra-cabeça é montado a partir da construção campo como no texto, pois não são fases
do antropólogo em relação com esta realidade, diferentes da pesquisa, mas momentos de um
e que não tem como resultado uma visão mesmo processo de construção do fazer
definitiva do objeto estudado. Deve-se etnográfico.
considerar as múltiplas relações e olhares Dessa forma, a autoridade etnográfica aparece
experimentados, na relação nativo-pesquisador, como eixo central deste debate, aglutinando
no processo de pesquisa, procurando observar temas diferentes: subjetividade/objetividade, a
as categorias nativas, as que carregamos para o relação com o informante, a construção do texto
campo e as interações decorrentes da própria etnográfico. A problematização desta autoridade
pesquisa. contribui para o aprofundamento da discussão
As questões levantadas pelo Seminário de sobre a objetividade científica subjacente na
Santa Fe suscitaram diferentes reações. Entre antropologia moderna. No entanto, as propostas
elas, podemos destacar as considerações apresentadas como “alternativas” às formas de
propostas por Nicola Thomas (1991) e Marilyn representação do pensamento nativo pelo
Strathern (1992). Thomas (1991:306) discute as antropólogo, no texto etnográfico, devem ser
noções de alteridade e diferença como aspectos tratadas com cautela. Clifford critica
intrínsecos à etnografia; trata-se da necessidade veementemente o texto onde o etnógrafo assume,
da existência do outro, que, desde o início da no estilo de Flaubert, a autoria da etnografia, de
construção do objeto de pesquisa, é percebido forma a esconder outras interferências
como diferente. O exotismo, como característica (informantes, diferentes vozes, etc.) (1998, p.50).
da distinção, estaria na formação do discurso No entanto, diante de propostas metodológicas
etnográfico, onde a hierarquia de temas privilegia como a polifonia18 , pode-se levantar a seguinte
as diferenças entre as culturas. questão: será que as alternativas apresentadas
Para Clifford, o trabalho antropológico é uma superam ou reforçam de forma mais sutil, a
prática que envolve a relação do antropólogo autoridade etnográfica?
com uma dada realidade e sua interpretação, Clifford procura demonstrar que o
construída a partir desta relação, e que é antropólogo carrega esta autoridade etnográfica
informada por suas pré-noções ocidentais. A que se faz presente ao longo do seu trabalho de
própria etnografia seria assim uma alegoria campo e que se torna mais evidente no texto final.
ocidental, na medida em que pressupõe dois Mesmo admitindo que os objetivos iniciais de
momentos conexos e contínuos: a descrição do uma pesquisa possam ser transformados em
que se vê e o que se entende desta descrição, campo, a partir da intervenção dos nativos, numa
que já carrega uma visão de comparabilidade a “escrita direcionada”, ainda assim trata-se de um
partir de similitudes e diferenças entre um mundo processo de conhecimento onde a autoridade
Ocidental e os outros mundos (1986, p.101). do pesquisador/antropólogo permanece. Nos
Marilyn Strathern (1992) contribui para pensar exemplos apresentados por Clifford (1998, p.52),

© Univ. Fed. Rural do Rio de Janeiro Rev. Univ. Rural, Sér. Ciênc. Humanas
Vol. 23(2): 195-210, jul./dez. 2001.
200 "Estudos de comunidade": reflexividade e etnografia em Marvin Harris

onde novas formas de relações entre informantes/ etnográfico. No entanto, pode gerar novas formas
colaboradores e antropólogos se estabelecem, de autoridade etnográfica. Deve-se estar atento
evidenciam-se as mudanças na percepção do para o fato de que tanto este quanto aquele(s)
antropólogo sobre os nativos, permitindo que modelo(s) são tipos ideais, ou, como afirma
outras percepções do nativo sobre o antropólogo Strathern, ao abraçar uma perspectiva – a
surjam. No entanto, a proposta inicial do trabalho construção de etnografias a partir de uma visão
permanece nas mãos do antropólogo, cuja dialógica – Clifford estaria abandonando a “visão
autoridade não é questionada, mas fortalecida plural” que propõe como forma de pensar o
por estas novas posturas. Não se trata de se trabalho etnográfico (1992, p.98). Estas
render a esta chamada forma “tradicional” de colocações não minimizam a extrema importância
escrita etnográfica, e sim de reforçar uma idéia – de se problematizar a autoridade etnográfica, para
que aparece pouco enfatizada nos textos de pensar nossa prática, assim como para analisar
Clifford, aqui citados – de que estas alternativas as construções etnográficas. Como veremos, o
à escrita etnográfica moderna, como o paradigma tema é central na monografia Town and Country
da polifonia, representam uma nova forma de de Marvin Harris, discute as concepções de rural
autoridade etnográfica. e urbano, a partir do diálogo entre uma visão
A polifonia, ou visão pós-plural19 como forma pré-definida de “comunidade rural” e de “cidade”
de ruptura com concepções totalizantes, estaria, e a realidade pesquisada.
para Strathern (1992, p.77), ainda dentro da
tradição moderna de conhecimento. A autora
afirma que o que obscurece o empreendimento TOWN AND COUNTRY IN BRAZIL: UM
holístico dos antropólogos, no final do século ESTUDO DE CASO
XX, não é o individualismo, mas o
desmantelamento ocidental do conceito A pesquisa que originou a monografia Town
totalizante de sociedade, através do qual povos and Country in Brazil foi realizada entre julho
modernos podiam pensar o outro. Assim, a de 1950 e junho de 1951, como parte do Projeto:
percepção moderna de sociedades totais “Uma Pesquisa sobre a vida social do Estado da
distintas se “fragmenta” em uma visão pós-plural. Bahia”, coordenada por Charles Wagley, a partir
No entanto, Strathern considera que esta de um convênio, mencionado acima, entre a
mudança de vocabulário, sociedade/totalidade Universidade de Columbia e o Estado da Bahia.
– plural/fragmentado, não escapa das Marvin Harris cursava, então, o programa de
concepções modernas, como totalidade e doutorado da Universidade de Columbia, onde
autenticidade. Ao supor que dar voz ao nativo é viria a lecionar após obter o título de doutor.
abrir a possibilidade de se construir um texto Fruto deste projeto, a etnografia de Harris20
etnográfico mais coerente, Clifford estaria apresenta traços evidentes dos chamados
supondo que existem construções mais estudos de comunidade. Prevalecem no seu
verdadeiras ou menos, e que existiria uma trabalho dois elementos característicos desse
narrativa nativa autêntica. Ao tratar a forma de tipo de estudo: a preocupação da adaptação do
construção do texto etnográfico a partir da homem ao meio e o uso do conceito de
ordenação de narrativas como fragmentos de subculturas e culturas parciais21 . Mas como
uma realidade, Clifford estaria reforçando a noção veremos, o autor dialoga com estes conceitos e
de totalidade, pois como conceitualizar uma parte lança mão de definições da Escola de Chicago,
que não pertence a um todo (1992, p.97)? Como especialmente de Park, como ethos urbano22 .
na fala de Said, “fragmentos sobre totalidades A pesquisa foi realizada no município de Rio
contam a história em pedaços, como de fato é” das Contas (denominado na monografia de
(apud, Clifford,1986, p.96). Minas Velhas 23 ), no Planalto da Serra do
A valorização de um olhar auto-reflexivo, Espinhaço/BA. Tendo surgido a partir da
plural, que procura tratar o nativo a partir de uma mineração de diamantes e ouro descobertos no
visão de alteridade, que valoriza outras formas século XVIII, contava, à época da pesquisa, com
de conhecimento, é, sem dúvida, uma uma população de 1.500 habitantes e era
perspectiva que procura problematizar o fazer considerado um importante centro
E. G. Castro 201

administrativo. município (até 5000 hab.), o grau de isolamento e


A metodologia adotada pelo autor – apesar o nível tecnológico. A partir desses elementos,
de não ser apresentada de maneira formal no texto Harris afirma que as definições de rural e urbano
– é ordenada a partir de métodos comparativos utilizadas para analisar o Brasil não são claras, e
de pesquisa. O projeto24 definiu previamente a questiona a validade destes indicadores para a
área a ser estudada e um segundo núcleo urbano, definição de um povoamento rural.
com o qual se traçariam comparações. A escolha No caso da população do planalto
de Minas Velhas como objeto de pesquisa levou nordestino, Harris aponta que as comunidades
em consideração o “isolamento”, a “tradição”, e são constituídas de populações pequenas
o fato de esta ser “uma cidade que não muda em (menos de 2.000 hab.), isoladas dos centros
uma área onde estão ocorrendo mudanças”. metropolitanos, com forte “atraso” tecnológico
Outros fatores também influenciaram, como a e de desenvolvimento, e cujos habitantes
relação com Salvador, a história de possuem uma visão de mundo não-científica (pré-
representatividade na região, a população de industrializada, usando representações
1.500 habitante e por esta ser considerada baseadas em crenças populares). Apesar desses
predominantemente rural. O grupo de controle, fatores, tais localidades ainda assim apresentam
Livramento do Brumado (chamada na monografia características urbanas, existindo inclusive
de Vila Nova), é apresentado como a cidade mais distinções entre aqueles que moram no povoado
urbana, que “muda e se desenvolve”. e seus vizinhos do campo que vivem em fazendas
O texto monográfico pode ser tratado como ou vilarejos. Como primeira pista para a
uma janela para a análise deste trabalho de compreensão desse fenômeno, Harris aponta a
pesquisa de Marvin Harris. A estrutura do texto importância da história da ocupação -
aparece inicialmente no índice, reproduzindo o caracterizada, em Minas Velhas, pela descoberta
estilo das monografias dos estudos de de ouro e diamantes no século XVIII - como
comunidade25 . I – Setting (descrição geográfica responsável pelo surgimento de aglomerados
e histórica da localidade e da região); II – urbanos não-agrícolas, sofisticados, baseados
Economics; III – Class and race; IV- The Family na mineração. Assim, Harris afirma e pretende
and the individual; V – Government and politics; mostrar como : “O Brasil para ser compreendido
VI – Religion; VII – Folk Belief26 . O texto, neste não pode ser pensado como uma nação rural,
sentido, se encaixaria no tipo ideal das muitas áreas rurais precisam ser percebidas a
etnografias modernas descrito por Clifford. No partir dos seus núcleos urbanos”. Um fator
entanto, Harris inova na forma como trata cada importante a ser destacado é que, apesar de
um destes temas. Embora tenda a dar preferência propor Vila Nova como “grupo de controle”, a
a temas específicos e hierarquicamente comparação real é realizada entre Minas Velhas e
reconhecidos nestes estudos - economia, os vilarejos rurais localizados em seus arredores.
organização social, a relação rural/urbano e o Tendo esta preocupação, Harris inicia sua
desenvolvimento - trata outros de forma monografia com o capítulo Setting, apresentando
integrada, valorizando elementos que uma descrição que exporia a razão pela qual esta
demonstrem a diversidade interna, como veremos localidade teria sido escolhida para representar
a seguir. uma cidade “atrasada” do Planalto Central da
Em sua introdução, Harris recupera a visão Bahia. Em tom impessoal, semelhante ao diário
de um Brasil rural retratado por autores como de um viajante, o autor a descreve como: isolada,
Lynn Smith, Marchant e Oliveira Vianna, para os distante, de difícil acesso, pouco conhecida pela
quais o Brasil seria percebido como um país de população de Salvador. E ainda, sem eletricidade,
alto grau de “ruralidade” – pouca densidade automóveis, telefone, aço ou concreto,
populacional, pouco industrializado – marcado resumindo a sensação de “atraso” na frase: “It is
por pouca influência cultural urbana, dispondo one of those increasingly rare places still immune
de uma população ocupada com agricultura e de to the penetrations of Coca-Cola.”(1971, p.6)27 .
um sistema de transportes e comunicação Em seguida o autor passa a relatar a chegada
rudimentares. Os indicadores de ruralidade (ainda em tom impessoal) como difícil e perigosa,
tomados por estes autores são: o tamanho do mostrando como a região localizada no topo do

© Univ. Fed. Rural do Rio de Janeiro Rev. Univ. Rural, Sér. Ciênc. Humanas
Vol. 23(2): 195-210, jul./dez. 2001.
202 "Estudos de comunidade": reflexividade e etnografia em Marvin Harris

planalto é geograficamente acidentada. Por fim, uma narrativa mais subjetiva e densa da
a chegada, depois de uma marcha longa e penosa, diversidade local que encontra. Assim, compara
é marcada pela primeira imagem, que não anuncia os moradores de Minas Velhas com os de Nova
a existência de uma cidade. A cidade só é Iorque, a partir de falas e impressões subjetivas,
percebida quando se está dentro dela, a e afirma,
população é escassa, “The isolation is profound
and perplexing.”28 (1971, p.9) “The strength of the other characteristics of
Comparando esta primeira impressão com Vila the urban complex is not necessarily a
Nova, o autor procura mostrar que esta é bem indication of the strength of urban ethos. In
diferente. Beneficiada por sua localização em um Minas Velhas, for example, the desire to live
vale, tem uma melhor infra-estrutura : com in the city is problably much stronger than it
hospital, muitas escolas, comércio, luz à noite is for the average New Yorker.”32 (1971, p.280)
(gerador a diesel). A população local afirma todo
tempo que a cidade está crescendo e a compara Isto porque para os moradores de grandes
com Minas Velhas, “the deadest place in the metrópoles o status é, muitas vezes, demarcado
world” 29 (1971, p.10). Os bares vendem os pela distância que um homem conseguiu colocar
refrigerantes Coca-Cola e Guaraná. No entanto, entre ele e a cidade; morar no campo dá status.
apesar destas “evidências” de desenvolvimento Em Minas Velhas, ao contrário, o status é
e de esta ter sido escolhida pelo “Projeto de demarcado pela capacidade de morar na cidade.
Estudos da Bahia” como a “cidade controle”, Assim, Harris compara duas referências, a sua
para a comparação com a localidade que não pessoal e a que considera ser da realidade
“muda”, Harris considera Vila Nova “uma cidade encontrada.
bizarra, desconfortável, mistura do velho e do Poder-se-ia aproximar esta experiência,
novo, característica das áreas de fronteira”. guardadas as diferenças, do exemplo
Retornando ao relato sobre Minas Velhas, o apresentado por Clifford (1998, p.48) sobre a
autor apresenta uma segunda impressão, uma pesquisa de Renato Rosaldo entre os Ilongots.33
surpresa para o visitante desavisado que chega No caso de Rosaldo, as mudanças nos rumos da
à cidade: ao se andar por ela, observa-se, entre pesquisa deveram-se principalmente à
outros elementos de “urbanidade”, que é bem interferência direta dos informantes. Embora
planejada, limpa, com jardins, calçadas, escola, Harris não valorize este tipo de intervenção, pode-
um padrão definido de construção das casas. se ler seu processo de escrita como direcionado
Afirma Harris, “The journey to Minas Velhas is a pelo olhar e não pelo que estava definido
long and arduous one. Yet it is not long before previamente no projeto de pesquisa. Ou seja, o
you begin to suspect that you have not gone so trabalho de campo permitiu uma releitura de parte
far after all”30 (1971, p.11). O que caracteriza a dos objetivos da monografia.
cidade e sua cultura é um ethos urbano (distinto Harris reforça e dialoga com suas impressões
do camponês) que o autor resgata da formação através de uma série de recursos metodológicos,
histórica da região. como a contextualização histórica do surgimento
Com esta percepção, Harris apresenta um da cidade, marcada pela mineração, determinante
outro olhar, diferente do que lhe foi proposto. na sua condição urbana e as atividades
Sua análise está pautada por duas fortes produtivas mais valorizadas (as urbanas). No
influências: um conceito de ethos urbano (em entanto, afirma ainda que o ethos não sobrevive
diálogo com as noções de subcultura, “part- apenas do passado histórico e procura mostrar
cultures” e por trabalhos sobre as cidades latino- outros elementos que reforçam a sua reprodução,
americanas31 ); e por seu olhar interessado. Este “a complex of interconnected values”34 (1971,
último pode ser definido como em Clifford (1986, p.280).
p.10), por uma relação entre objeto e mundo a A cidade possuiria um alto grau de
sua volta, que aproxima e implica o etnógrafo isolamento: transporte e acesso precários e não
com seu objeto. Harris desconstrói as pré-noções representa um núcleo intermediário (em termos
que definiam a realidade estudada, valorizando de distância) entre vilas e núcleos menores e
o seu olhar e suas experiências pessoais, gerando Salvador. O tamanho da população é pequeno,
E. G. Castro 203

se comparado a Salvador; porém, grande, destas características, Harris afirma que as


comparado com outros núcleos próximos. diferenças físicas entre as vilas e Minas Velhas
Apesar disso, a subcultura de Minas Velhas não parecem ser suficientes para explicar o
estaria mais próxima da sub-cultura urbana de porquê de a demarcação de duas subculturas
Salvador que da subcultura rural da região. ser tão forte. O individualismo, por exemplo, –
O principal fator para esta configuração seria que segundo Harris é comumente atribuído aos
a formação histórica: cidade mineradora, moradores da cidade -é uma característica tanto
consumidora de alimentos e não produtora, do campo quanto da cidade. A falta de
centro administrativo, religioso e educacional da associativismo/cooperativismo – contraposição
região — profundamente diferente das vilas implícita na sua definição de individualismo –
rurais. Tal formação seria mais determinante que seria a prova da característica individualista da
seu tamanho ou proximidade física com Salvador. população rural e urbana da região.
Harris ressalva que o tamanho e a proximidade O que explicaria esta forte oposição cidade/
com metrópoles, assim como a industrialização, campo seriam os valores apontados acima e a
são intensificadores de núcleos urbanos, mas formação de uma identidade com um ideal urbano
não geram sozinhos uma subcultura urbana. O por parte dos moradores de Minas Velhas,
autor aponta Minas Velhas como representando gerada, também, a partir da oposição estabelecida
um tipo comum de povoado no Brasil: cidades com o que seria um universo rural.
pequenas que, apesar do tamanho e grau de Assim, o autor afirma que, do ponto de vista
isolamento, são mais urbanas que comunidades dos moradores de Minas Velhas, a diferença entre
maiores. cidade e campo é sempre aumentada. Isto porque
Harris trata a questão da oposição rural/ o complexo urbano é admirado e seus elementos
urbano a partir de uma lógica onde a concepção são endossados através de um sistema de
de um se forma em oposição ao outro. Esta visão valores extremamente elaborado, onde
parte do núcleo urbano para definir estas duas urbanidade não é mero produto de suas
realidades. Para tal, o autor aponta algumas ocupações ou da densidade populacional; é uma
características que serviriam para definir uma questão de visão de mundo, de um ethos urbano.
comunidade urbana: tamanho, densidade da Harris mostra como em Minas Velhas existe
população, heterogeneidade étnica e cultural, um complexo sistema integrado de valores,
estratificação social mais complexa, mobilidade orientado em um sentido, onde aparecem
territorial e ocupacional maior, especialização características como a valorização de melhorias
ocupacional (diferentes tipos de manufatura, públicas, de profissões liberais, da educação,
comércio, profissões liberais, serviço público e dos conhecimentos da cidade, do individualismo,
outras ocupações não-agrícolas) 35 . Assim, do progresso, assim como o desejo do uso de
define que populações urbanas trabalham e roupas da cidade, a admiração por padrões de
vivem em um mundo criado pelo homem e isolado riqueza e a aceitação do governo como
do seu meio-ambiente natural. São consideradas responsável pela segurança e bem-estar da
“mais civilizadas”, possuem ainda uma visão de comunidade. Por outro lado, aparece também a
mundo laicizada, onde as relações impessoais não-aprovação de trabalhos agrícolas ou
são mais comuns e o individualismo é forte. São manuais, a pouca valorização dos conhecimentos
pessoas propensas à mudança e que não se do campo e de padrões comunais, e uma forte
identificam com sua localidade. estratificação social por classe, raça e posições
No entanto, a oposição cidade/campo torna- políticas.
se mais complexa a partir da própria análise de Segundo o autor, a mineração, por si só, não
Harris sobre Minas Velhas. O contraste entre geraria esse ethos, mas contribuiu fortemente. O
cidade e campo em Minas Velhas é forte, onde as autor afirma que muitas cidades européias se
vilas rurais vivem em comunidades separadas formaram antes da industrialização por se terem
dos núcleos urbanos, mesmo que fisicamente constituído como importantes centros
próximos, e possuem, segundo o autor, um grau comerciais e administrativos. Minas Velhas seria
de homogeneidade forte quanto à ocupação, uma cidade com valores urbanos pré-industriais.
forma de produção e relação com a cidade. Apesar Com isso, a questão central, para Harris, se

© Univ. Fed. Rural do Rio de Janeiro Rev. Univ. Rural, Sér. Ciênc. Humanas
Vol. 23(2): 195-210, jul./dez. 2001.
204 "Estudos de comunidade": reflexividade e etnografia em Marvin Harris

desloca e passa a ser: compreender quando e privilegia uma perspectiva local, que não lhe
por que persistiu o ethos urbano. O ponto de parece marcada pela diferença, mas sim por
partida seria o fato de que, com a mineração, um semelhanças com suas experiências pessoais.
número grande de pessoas se libertou da Valoriza os elementos que demonstram o ethos
necessidade de produzir alimentos e essa urbano como semelhante a outras regiões
herança cultural foi passada de geração para urbanas, destacando as especificidades que
geração. O fim da mineração não pôs fim ao ethos relaciona à Amércia Latina e, em especial, ao rural
urbano, pois este já se havia consolidado a partir brasileiro. Assim, o urbano aparece como uma
de uma especialização econômica de sua subcultura, em oposição à subcultura rural,
população ativa, e pelo fato de Minas Velhas ter- ambas noções construídas relacionalmente – uma
se tornado centro administrativo e político da não existiria sem a outra – como marcas de uma
região. Neste caso, afirma Harris, a urbanidade é realidade rural, que só poderia ser compreendida
uma via de mão única. dentro do seu contexto histórico e social. Isto é,
A perspectiva proposta por Harris, onde tomando este caminho, Harris evitaria uma
campo e cidade não são realidade isoladas, mas primeira leitura de ruralidade cultural: terceiro
se conformam relacionalmente, é, sem dúvida, mundo X primeiro mundo (Europa e EUA), como
uma leitura que amplia as perspectivas de análise, afirma Thomas. Esta leitura relacional, no entanto,
ainda hoje. Podemos reler essa abordagem a partir esbarra em sua análise de cunho
de Raymond Williams (1990), que, ao tratar da desenvolvimentista, marcada por noções de
definição do que venha a ser campo e cidade, tecnologia, associativismo e cooperativismo, a
inter-relaciona percepções pessoais, atitudes qual tende a reproduzir a oposição países
emocionais, construções literárias e subdesenvolvidos X desenvolvidos. Apesar
transformação histórica. Redes pessoais e disso, Harris procura desconstruir este olhar
lembranças reordenam visões “do campo” e “da “civilizador”, através da forma como trata os
cidade”, em constante diálogo e negociação com temas, tentando perceber as diferenças internas
as mudanças vivenciadas no cotidiano. Assim, à localidade e a oposição cidade e campo,
repensar campo e cidade, rural e urbano, é um abandonando a oposição proposta inicialmente
desafio que deve romper com fronteiras pelo projeto: Vila Nova (mais desenvolvida) X
mecânicas como tamanho de população, e Minas Velhas (menos desenvolvida). Para realizar
rediscutir as próprias noções de isolamento, esta análise, lança mão de diversos
progresso, atraso, desenvolvimento, que formam, procedimentos de pesquisa, alguns que
analiticamente, essas demarcações. Harris, demonstram sua preocupação com uma certa
embora se movimente entre as definições que o objetividade, como os métodos quantitativos, e
levaram para Minas Velhas e as suas outros, que valorizam percepções subjetivas.
observações, sensações e experiências, indica As técnicas empregadas, embora não sejam
alguns caminhos possíveis para apresentadas formalmente na monografia,
problematizarmos noções sedimentadas pelo mesclam métodos quantitativos e qualitativos.
“objetivismo científico” e nos remete a observar O uso de dados históricos e de bibliografia sobre
como os indivíduos se percebem e se identificam. a região, estado e país, também contribuíram para
Desta forma, a monografia contrasta com a a composição do quadro.
proposta inicial do Projeto do Estado da Bahia. A pesquisa quantitativa foi realizada
Como parte de uma política de intervenção que diretamente com a população, considerando
visava ao desenvolvimento, a imagem de Minas informações socioeconômicas. O autor cria
Velhas pode ser compreendida a partir do tipologias com base em uma estratificação social
conceito de exotismo de Thomas, ao buscar como de classe (levantamento realizado com 100
exemplo típico o rural “autêntico”, “atrasado”, domicílios/571 pessoas) 36 . Uma segunda
pouco afeito a mudanças, profundamente tipologia sobre a população rural foi criada a partir
religioso e solidário. No entanto – embora Harris de uma amostra de 284 pessoas.
mantenha ao final da monografia uma perspectiva Das técnicas qualitativas detectadas, pode-
de cunho desenvolvimentista para Minas Velhas se citar a observação participante, que gerou
e a região como um todo – em sua análise, descrições detalhadas sobre a cidade, hábitos
E. G. Castro 205

da população, ocupação, relações políticas, etc., valoriza o seu olhar pessoal e, desta forma, reforça
obtidas também a partir da realização de a autoridade etnográfica, realçada também pelo
entrevistas (conversas) individuais e de estilo de narrativa, que ora assume um tom mais
trajetórias de vida. Uma tipologia de raça foi pessoal, ora assume um discurso mais
formulada e relacionada com a estratificação cientificista. Assim, os fatos são explicados, mas
social a partir de um método pouco convencional. pouco se sabe sobre os informantes, embora, em
Harris utilizou fotos representando “duas raças”, algumas passagens, esses informantes apareçam
que apresentou para informantes previamente em primeiro plano.
classificados como: negro e branco, e mulato Apesar desta preocupação com a
como exemplo de “mestiçagem” (ao todo foram objetividade científica, parafraseando Clifford, em
entrevistados 96 informantes). Por fim, foram sua análise sobre Mead e Benedict (1986, p.102),
realizadas, ainda, entrevistas com estudantes Harris mantém uma visão plural e liberal,
urbanos (50 informantes), sobre expectativas procurando enfrentar dilemas de uma complexa
acerca do trabalho futuro. Um fator apontado Minas Velhas. Desta forma, aponta “tradições
como controverso no trabalho de campo foi a culturais” e não uma única “tradição”,
associação com o governo – na medida em que a valorizando a diversidade, ordenada a partir de
pesquisa foi financiada a partir de um convênio uma lógica explicativa onde, rural e urbano não
com o governo estadual - que teria gerado se auto-excluem, mas onde a noção de ruralidade
reações diferentes: no campo eram mal recebidos pressupõe a noção de urbanidade. As
e na cidade muito bem recebidos. identidades descritas por Harris se constroem
O “cientificismo” está presente no trabalho por oposição37 , gerando culturas e subculturas
de Harris, e o uso de diferentes fontes é um complexas e diferentes das pré-percepções de
exemplo disso, demostrando o seu controle sobre ruralidade explicitadas no projeto de pesquisa
o campo e sua preocupação com a comprovação do qual fazia parte. Desta forma, rompe com uma
de seus dados. Mas a alternância de fontes não- noção construída a partir de fatores externos à
convencionais (uso de fotos a partir de uma realidade estudada.
tipologia pré-definida), a preocupação em Em cada capítulo temático, Harris parte de
entrevistar populações distintas e com uma questão central, embora todos os temas
instrumentos específicos, demonstram uma estejam perpassados pela sua preocupação com
valorização do olhar etnográfico e de uma o ethos urbano. Ao mesmo tempo, explora ao
equiparação entre métodos considerados máximo a riqueza de informações encontrada. Ao
objetivos e aqueles tratados como subjetivos. tratar da economia, parte da análise tecnológica
Este processo de pesquisa demonstra como esta para concluir que o local sofre de “atraso”, mas
separação, quantitativo/qualitativo, é mais uma valoriza a diversidade de ocupações e o fato de
construção, e a transgressão desta ordenação os trabalhadores se especializarem em uma
metodológica contribui para uma percepção mais profissão: os diferentes tipos de manufaturas
densa da realidade estudada. No entanto, Harris caracterizados em ofícios, como o de ferreiro.
não foge de uma análise totalizadora – Esses ofícios são as principais atividades fora
o texto demonstra uma forte preocupação da esfera do serviço público. A área rural é
em dar conta do “todo” desta realidade, percebida como menos desenvolvida por não
mantendo uma perspectiva de construção de usar máquinas e ter um padrão de trabalho
conhecimento moderno – o que reforça a sua individualizado. Ainda assim, o autor demonstra
autoridade etnográfica. Esta é fortalecida não só que, tanto na cidade como no campo, não existe
pelo conhecimento aprofundado, mas pela a tradição da solidariedade e de associativismo,
demonstração de que o seu conhecimento onde o primeiro seria característico de áreas rurais
etnográfico, a sua experiência empírica, gerou e o segundo, de áreas urbanas 38 . O
outra percepção daquela realidade, que se individualismo, que caracteriza negativamente a
distancia de análises generalizantes baseadas urbanidade, marcado por esta falta de
somente em dados secundários, principalmente associativismo, impera, o que para ele é influência
quantitativos. de um tipo de ethos urbano que se constituiu no
A construção do texto monográfico de Harris local. Assim, embora reproduza certas percepções

© Univ. Fed. Rural do Rio de Janeiro Rev. Univ. Rural, Sér. Ciênc. Humanas
Vol. 23(2): 195-210, jul./dez. 2001.
206 "Estudos de comunidade": reflexividade e etnografia em Marvin Harris

de um modelo desenvolvimentista (ex: Outra experiência de pesquisa realizada só


mecanização da agricultura = desenvolvimento), com “jovens” reforçaria um ethos urbano. Ao
dialoga com suas próprias referências a partir do aplicar um de seus muitos instrumentos –
que observa em campo. questionário com perguntas abertas com 50
Ao analisar a estrutura social, Harris realiza o “jovens” – obteve uma tendência à reprodução
cruzamento de dados quantitativos, com as do ethos urbano. À pergunta: o que deseja ser
impressões obtidas pela autoclassificação de quando crescer?, todos responderam querer
informantes, através da apresentação de fotos e ocupar atividades urbanas (1971, p.175).
pelos discursos recolhidos em sua observação Harris redefine a noção de isolamento
participante. Constrói uma análise densa que empregada no Projeto de Pesquisa. Embora
complexifica a relação entre raça e classe social. concorde com o isolamento físico da cidade,
Com base em dados quantitativos, traça uma afirma que este fator não impede uma política
tipologia da estratificação social dividida em local autônoma e com influências sobre a política
“ricos, pobres e classe média”. Mas, através do da capital, governos estadual e federal. O ethos
recurso das fotos, redefine essa tipologia, urbano é outra forma de aproximar a cidade da
subdividindo-a em “brancos-ricos”, “classe capital do estado; o desejo de morar em Salvador
média branca”, “classe média preta” e “pretos é reforçado pelo status que é conferido aos que
pobres”. Esta ordenação social é percebida, conseguem realizar este sonho.
segundo Harris, até mesmo pela aparência, já que Após este percurso que procurou dar conta
a forte concentração de renda gera uma elite bem da vida econômica e social de Minas Velhas,
reduzida, fortemente marcada pela cor da pele, Harris finaliza com dois capítulos que tratam da
apesar de a mestiçagem ser comum na região. religião e das crenças populares. Comparando o
Na experiência da autoidentificação pelas campo e a cidade, conclui que as instituições
fotos – ao serem mostradas as fotos, o religiosas têm pouca influência na cultura local,
informante deveria identificar-se com uma das marcadamente secularizada. Para o autor, a Igreja
três opções – a não-identificação com a foto que Católica não contribui para práticas comunitárias,
representava um negro foi recorrente. Mas Harris não é importante na formação cultural da região,
observa uma separação entre o discurso e as como instituição, não tem muita credibilidade e
relações cotidianas. A forte discriminação racial não influencia no dia-a-dia. Os padres carregam
marcada pelo discurso nem sempre é reproduzida uma imagem mais próxima do profano que do
no dia-a-dia, e o status parece mais definido pelas sagrado. Os moradores da cidade freqüentam
condições econômicas. A mestiçagem é comum, mais a igreja como acontecimento social. Já os
mas a identificação com o negro não é desejada. moradores do “campo” cultivam práticas
A diferença entre discurso e prática aparece na religiosas mais individuais, realizadas em casa.
presença de negros, em todos as atividades Neste caso, talvez o autor não tenha explorado a
econômicas. Mas o autor ressalta como é complexidade das relações sociais estabelecidas
pequena a quantidade de negros ocupando a partir destas práticas religiosas. A diversidade,
cargos de elite. O status é demarcado, ainda, por apresentada como pouco importante, pode ser
outras variáveis, interligando fatores que seriam reveladora de múltiplas formas de organização e
mais objetivos e mais subjetivos39 . relação com o universo religioso. O fato de a
Ao tratar das relações familiares e do que freqüência à igreja ser um acontecimento social
chamou “o individual”, Harris reforça a noção indica a importância deste espaço em Minas
de individualismo, ao concluir que, tanto no Velhas.
campo quanto na cidade, as famílias são, em sua As crenças populares, definidas por Harris
maioria, nucleares e, assim, diferentes do que como superstições, crenças em fantasmas e
caracteriza como família camponesa (família espíritos, são associadas a dois tipos de
ampliada). O autor procura mostrar, ainda, como construção de conhecimento: mágico-religioso,
as relações de compadrio não são tão fortes sem nenhum rigor empírico, e pré-científico, que
quanto se costuma descrever nas localidades seria uma ciência popular racionalizada com o
rurais no Brasil. uso de ervas visando à cura de doenças. Estas
E. G. Castro 207

crenças seriam mais presentes no “campo”. O ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS


ethos urbano estaria mais protegido, pois
construiu seu próprio meio ambiente (casas Como exercício analítico, Town and Country
coladas umas às outras, ruas com iluminação, pode ser enquadrado no tipo de etnografia
etc.), transformando-o em algo novo e diferente classificada por Clifford como moderna. Ao longo
do “campo”, onde não existiria espaço para essas de todo o texto, prevalece a narrativa de “uma só
manifestações. voz”. A autoridade etnográfica é reforçada pela
Retomando a questão da parcialidade do forma como Harris realiza a pesquisa e como usa
olhar etnográfico, discutida no início desse artigo, as informações levantadas, e torna-se ainda mais
a preocupação com as relações de gênero corta presente na conclusão, quando retoma o projeto
toda a monografia de Harris. Em um primeiro de pesquisa quanto à proposta de intervenção
momento, o autor trata das diferenças quanto às para a região. Resgatando o debate sobre
ocupações, nas atividades econômicas, onde as desenvolvimento, que aparece mais
mulheres têm pouco espaço (1971, p.98). Mas intensamente nos primeiros capítulos, o autor
retoma a questão em diversos momentos, conclui, afirmando que o Brasil está-se
mostrando que as mulheres são mais urbanizando e que por isso, para melhor se
desvalorizadas, na hierarquia social, que os compreender as áreas rurais brasileiras, é preciso
homens (1971, p.156). No capítulo sobre família, perceber suas pequenas cidades como centros
dedica uma parte considerável às limitações urbanos. Em Minas Velhas, o “povo está
impostas às mulheres quanto à sexualidade, à preparado e ansioso por mudanças tecnológicas
vida de solteira e conjugal, abordando temas profundas, mesmo sendo considerada uma
como menstruação, masturbação, adolescência, comunidade conservadora e tradicional” (1971,
casamento e gravidez. Afirma que o contato entre p.288). Para Harris, o problema para que este
solteiros de sexos opostos é pouco freqüente e desenvolvimento se acelere reside no fato de a
muito controlado. Há, segundo Harris, população considerar que o “progresso” é algo
“tolerância” quanto à prostituição e que deve vir de fora para dentro, do governo
homossexualismo, desde que se mantenham federal e estadual, e não de suas próprias
restritos a determinados espaços da cidade. iniciativas. Outro empecilho seria a não
Harris retrata, ainda, a vida de casado, mostrando compreensão de que a agricultura pode ser o
que há “tolerância” para os relacionamentos caminho para o desenvolvimento; a população
masculinos fora do casamento. tem meios para investir, mas se opõe a este tipo
Ao longo da narrativa sobre estes temas, o de investimento. Com isso, “abandonaram a
foco da análise de Harris está mais direcionado cidade real e sonham com a cidade ideal” (1971,
às mulheres, retratando ainda outras práticas, p.289).
como o lazer, a separação dos homens e mulheres Com esta conclusão, Harris caminha no
no interior da igreja, durante a missa, e como as sentido da proposta do projeto de Wagley, de
mulheres tendem a estar sempre em segundo uma pesquisa que aponte os entraves para que
plano em relação aos homens, tanto em casa, as mudanças ocorram e como promover o
quanto em público. Com esta preocupação, o desenvolvimento na região. Neste sentido, ele
autor constrói uma etnografia rica em detalhes, se distanciaria de uma perspectiva reflexiva sobre
procurando diferentes pontos-de-vista sobre a o próprio projeto de desenvolvimento que estava
vida em Minas Velhas. No capítulo Family and sendo proposto. Para o autor, o progresso viria
Individual, transcreve passagens de entrevistas da consolidação de Minas Velhas como
(recurso pouco usado ao longo do texto), tanto produtora agrícola, o que iria de encontro ao
de homens, quanto de mulheres. Desta forma, ethos urbano local. Assim, aparentemente, Harris
podemos afirmar que “Town and Country” é uma chega a um impasse, no final de sua monografia.
importante contribuição para problematizarmos Ou seja, através da sua etnografia, mostra como
tanto a construção de categorias como rural e o ethos urbano é forte e determinante nas relações
urbano, quanto o próprio fazer etnográfico. internas de Minas Velhas, mas propõe que esta

© Univ. Fed. Rural do Rio de Janeiro Rev. Univ. Rural, Sér. Ciênc. Humanas
Vol. 23(2): 195-210, jul./dez. 2001.
208 "Estudos de comunidade": reflexividade e etnografia em Marvin Harris

se desenvolva através da agricultura. COULON, A. A Escola de Chicago. Campinas:


Apesar de o autor reforçar a autoridade Papirus, 1995.
etnográfica na forma como construiu o seu texto,
a maneira como lidou com a oposição rural/ GEERTZ, C. Thick Description: Toward na
urbana valoriza impressões nativas. Se, por um Interpretive Theory of Culture. The
lado, pode-se afirmar que Town and Country in Interpretation of Cultures. NY: Basic Books,
Brazil é um típico estudo de comunidade e se 1973.
insere, desta forma, naquilo que Clifford chama
de “etnografia moderna”, por outro, o fazer GONÇALVES, J.R.S. (org.) A Experiência
etnográfico empregado na pesquisa e na Etnográfica: antropologia e literatura no
construção da monografia é fruto de um olhar século XX. RJ:UFRJ. “Apresentação”; “As
reflexivo que procura perceber as diversidades fronteiras da antropologia, entrevista com
culturais internas e as semelhanças com o ideal James Clifford” , 1998.
de “mundo desenvolvido”, aproximando o
pesquisador do outro, o nativo. Assim, Harris GUIDI, M.L.M. (1962) Elementos de análise dos
cria uma monografia que tensiona o tipo ideal Estudos de comunidades realizados no Brasil.
apresentado por Clifford, na medida em que Educação e Ciências Sociais, 10(19): 88-111,
desenvolve um olhar plural, explorando as jan, 1948-60.
percepções internas dos nativos sobre sua
própria realidade. HARRIS, M. Town and Country in Brazil. NY :
Por fim, se o texto reproduz um tipo de escrita The Norton Library, 1971.
tratada por Clifford como positivista-romântica-
realista, a forma flexível como constrói/utiliza KROEBER, A. L. Anthropology: culture patterns
diferentes técnicas gera um texto que complexifica and processes. San Diego/Nova Iorque/
o modelo de análise e as noções de cultura e Londres: Harvest/HBJ Book, 1948.
subcultura. A sua abordagem inovadora de temas
geralmente relegados a segundo plano, como NELSON, L. Rural Sociology: some inter-
gênero, sexualidade, e, ainda, a maneira como american aspects. Journal os Inter-American
constrói a estratificação social de Minas Velhas, Studies, separata, s/d.
contribui para aprofundar o debate sobre o que
vem a ser etnografia e as relações do antropólogo PIERSON, D. (org.) Estudos de Ecologia
com o seu “objeto” de estudo, permitindo-nos Humana. São Paulo: Martins, tomo 1, 1948.
resgatar as contribuições históricas dos estudos
de comunidade para o fazer etnográfico de hoje. _____. O Homem no Vale do São Francisco.
Rio de janeiro: SUVALE, 3 tomos, 1972.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS REDFIELD, R. The Little Community. Chicago:


The University of Chicago Press, 1960 (1953),
CASTRO FARIA, L. A Antropologia no Brasil passim, 1955.
de Anteontem: problemáticas obrigatórias
e subordinação. MS. _____. Peasant Society and Culture. Chicago:
The University of Chicago Press, 1956.
CLIFFORD, J. E MARCUS, G.E. (eds.), Writing
Culture. The Poetics and Politics of RIBEIRO, D. O Programa de Pesquisas em
Ethnography. Berkley: University of Cidades-Laboratório. Educação e Ciências
California Press, 1986. Sociais, ano III, v. 3, n.9, dezembro, pp13-50,
1958.
_____ Sobre a Alegoria Etnográfica.
GONÇALVES, J.R.S. (org.) A Experiência THOMAS, N. Against Ethnography. Culture
Etnográfica: antropologia e literatura no Anthropology, 6(3): 306-322, 1991.
século XX. RJ:UFRJ, 1998.
E. G. Castro 209

STRATHERN, M. An Awkward Relationship: the estudos para discutir o método etnográfico de pesquisa.
case of feminism and anthropology. Signs – 2
Esta monografia foi desenvolvida a partir do
Journal of Women in Culture and Society: projeto de pesquisa de Charles Wagley, mais informações
ver, (Wagley:1950) “Uma Pesquisa sobre a Vida Social
reconstructing the academy. Chicago: The no Estado da Bahia”.
University of Chicago Press, v.12, n.2, 1987. 3
O Seminário de Santa Fe aconteceu em 1984 no
School os Ameican Research em Santa Fe, Novo México
e contou com a presença de dez participantes: Paul
____. “Parts and Wholes: Refiguring
Rabinow, Vincet Crapanzano, Renato Rosaldo, Michael
Relationships in a post-Plural World”. In: Fischer, Mary Louise Pratt, Robert Thornton, Stephen
Adam Kuper (ed.) Conceptualizing Society. Tyler, Tala Asad, George Marcus, James Clifford. O foco
London: Routledge, 1992. central do seminário foi sobre a escrita etnográfica,
Clifford, J.; Marcus, G. (1986). Dos participantes, oito
eram antropólogos e todos estavam envolvidos em
_____. No Limite de uma Certa Linguagem trabalhos de pesquisa em andamento. O fato de serem do
(entrevista). Mana: Estudos de campo da antropologia cultural permitiu uma linguagem
Antropologia Social. RJ: Contra Capa, v.5 comum, mas a perspectiva era interdisciplinar. O
Seminário produziu uma publicação “Writting Culture”
n.2, out. pp157-175, 1999. (1986), que reúne os artigos individuais dos participantes,
gerados a partir dos debates e organizado por James
WAGLEY,C.; AZEVEDO, T. & COSTA PINTO, Clifford.
L.A. Uma pesquisa sobre a vida social no
4
Neste trabalho, não foi possível me estender no
aprofundamento das diferenças dos diversos estudos de
Esatdo da Bahia (with English text). comunidade e nem no próprio conceito de comunidade,
Publicações do Museu do Esatdo n.11. assim o tratamento aqui dado pode sugerir uma percepção
Secretaria de Educação e Saúde, Bahia, Brasil, homogeneizante destes trabalhos, mas trata-se de uma
1950. contingência imposta pelos limites deste artigo. Para
um maior aprofundamento sobre a tradição americana
dos estudos de comunidade e sua entrada no cenário
_____. Estudos de Comunidade no Brasil sob brasileiro, ver Castro Faria “A Antropologia no Brasil
Perspectiva Nacional. Sociologia, XVI (2): de Anteontem: problemáticas obrigatórias e
subordinação” e Guidi (1962) “Elementos de Análise
3-22, 1954.
dos “Estudos de Comunidades” realizados no Brasil e
publicados de 1948 a 1960”. Para uma definição do
conceito de comunidade ver Redfield, R. (1956 )
NOTAS “Peasant Society and Culture”; (1955), “The Little
Community”.
1
A experiência de participar de um curso sobre
5
Steward, Julian H. – Teoria y Practica del Estudio
estudos de comunidade no PPGAS/Museu Nacional/ de Areas. Washington, D.C.: Uniõn Panamericana,
UFRJ foi fértil e permitiu um debate instigante sobre a Oficina de Ciencias Sociales, 1955, in Guidi;1962:47.
etnografia como método de pesquisa e análise. Ministrado
6
Os grifos são meus.
pelos professores Castro Farias e Moacir Palmeira, o
7
Observações do Prof. Castro Faria no curso Estudos
curso “Estudos Regionais e de Comunidade”, no primeiro Regionais e de Comunidade, aulas proferidas entre março
semestre de 1999, permitiu a leitura de diversos estudos e junho de 1999.
de comunidade produzidos nas décadas de 40 e 50 e uma
8
“Índice para análise de estudos de comunidades : 0.
posterior comparação com o que Palmeira denominou Metodologia ; 1. Base Econômica; 2. Vida Econômica;
“estudos em comunidades”- realizados na década de 70 - 3. Estrutura Demográfica; 4. Estratificação Social; 5.
buscando um olhar renovado para estes trabalhos. Segundo Família e Parentesco; 6. O Ciclo de Vida – Socialização;
Castro, alguns elementos aproximam e diferenciam os 7. Organização e Desorganização Social; 8. Tradição e
estudos destes dois períodos. Na década de 50 a principal Inovação; 9 . O Equipamento de Educação Formal e a
problemática seria a mudança social promovida pelo Filosofia Educacional.” Para um maior detalhamento
impacto da industrialização sobre as sociedades (1962:50,51,52).
tradicionais e o debate sobre o papel dos antropólogos e
9
Op.Cit.
sociólogos que emitiam pareceres a projetos de
10
Ver, Wagley, C (1950) “Uma Pesquisa sobre a
intervenção. Na década de 70, a preocupação com as Vida Social no Estado da Bahia”; Pierson, D. (1972) “O
mudanças sociais permanecem, mas o enfoque seria Homem do Vale do São Francisco”.
outro. No primeiro caso o “local” onde eram realizados
11
Ver Rural Sociology: some inter-american aspects
os estudos era mais valorizado que as questões abordadas, – Nelson, L.
no segundo caso as questões a serem tratadas eram mais
12
Ver, Ribeiro, D. (1956 ) “O Programa de Pesquisa
definidas e tornaram-se mais relevantes que o “local” a em Cidades Laboratório”.
ser pesquisado. As questões apontadas por Castro
13
Ver Guidi, M.L. (1962)
perpassam o debate sobre estudos de comunidade e nos
14
A pesquisa de Charles Wagley foi um convênio
permitem uma primeira percepção da atualidade destes entre Secretaria do Estado da Bahia e o Departamento
da Universidade de Columbia. O projeto de Donald

© Univ. Fed. Rural do Rio de Janeiro Rev. Univ. Rural, Sér. Ciênc. Humanas
Vol. 23(2): 195-210, jul./dez. 2001.
210 "Estudos de comunidade": reflexividade e etnografia em Marvin Harris

Pierson foi realizado através de um convênio entre a 26


Cenário; Economia; Classe e Raça; A família e o
Comissão do Vale do São Francisco e o Instituto de indivíduo; Governo e política; Religião; Crença Folk.
Antropologia Social da “Smithsonian Institution”, e 27
“É um daqueles lugares, cada vez mais raros, imune
ainda com a Escola de Sociologia e Política de São Paulo, a penetração da Coca-Cola.”
onde Pierson lecionava. 28
“O isolamento é profundo e causa perplexidade.”
15
Clifford traça uma linha histórica a partir da década 29
“O lugar mais morto do mundo.”
de 60, onde, afirma que alguns relatos auto-reflexivos 30
“A viagem até Minas Velhas é longa e árdua. Mas
começaram a por em xeque esta percepção realista e não demora até você começar a suspeitar que não se
objetivista deste estilo de etnografia. (1986) distanciou tanto assim do seu local de origem.”
16
“A etnografia está ativamente situada no meio de 31
Harris cita diversos autores que tratam da
poderosos sistemas de significados... Ela descreve urbanidade e do ethos urbano na América Latina, como
processos de inovação e estruturação, e, é, ela mesma Oscar Lewis “Life in a Mexican Village”. (1971:276)
parte desses processos.” As traduções desta e das demais 32
“A força de outras características do complexo
passagens são de minha autoria e tem como único urbano não é, necessariamente, uma indicação da força
objetivo apresentar uma versão em português para os do ethos urbano. Em Minas Velhas, por exemplo, o desejo
trechos utilizados no original. de viver em uma cidade provavelmente é mais forte do
17
Geertz trata da reflexividade em diversos textos, que para um nova iorquino comum.”
como “Thick Description: toward na Interpretative 33
Renato Rosaldo em “Ilongot headhunting”, relata
Theory of Culture”(1973), onde aprofunda a idéia de como o seu processo de pesquisa é transformado através
contexto pré-existente, e propõe pensar as histórias da intervenção dos informantes. Ao invés de
relatadas pelos informantes como interpretações. responderem as questões propostas, seus relatos tratavam
18
Clifford diferencia a polifonia que simplesmente de outro tema: a história local. Após retornar do trabalho
apresenta diferentes vozes no texto, mas que o papel de de campo Rosaldo muda seu objeto em função destas
ordenador final do texto e seleção de citações permanece narrativas, inicialmente pretendia realizar um estudo
sendo do etnógrafo; da polifonia onde há uma escrita sincrônico da estrutura social, e termina por elaborar
compartilhada. (1998) uma etnografia sobre o sentido culturalmente distinto da
19
Strathern cita os conceitos de Hannerz, de narrativa e história dos ilongot. (1998:47)
cosmopolitização ou creolização, como exemplos de 34
“Um complexo de valores interconectados”.
análise desta visão pós-plural. (1992: 77) 35
Harris classifica as ocupações em : “Grupo 1 –
20
Town and Country in Brazil foi publicada em 1956 Manufactures (ferreiro, sapateiro, oleiro, rendeira,
pela Universidade de Columbia e foi reeditada em 1971 costureira, dentre outros); grupo 2 – Menial (criados e
(The Norton Library, NY). serviçais, onde lista também coveiro e prostituta); grupo
21
Kroeber reforça o uso do conceito de cultura 3 – Professions and Services (profissionais liberais e
afirmando que “Culturas são produtos de sociedades serviços); grupo 4 – Civil Service (servidor público).”
humanas que operam sob influência de culturas legadas Para maior detalhamento ver pp. 45, 46, 47 e 48.
de sociedades anteriores.” (1948:75) Mas em uma 36
A representatividade da amostragem é traçada em
sociedade podem coexistir culturas parciais, “part- comparação com o censo.
cultures” e sub-culturas, onde componentes culturais 37
Para uma noção de ruralidade, ver Redflield, R.
distintos convivem em uma relação de interdependência. (1956) “Peasant Society and Culture”.
Um exemplo seriam componentes rurais e urbanos em 38
Essa percepção parece se aproximar das noções
uma mesma sociedade. (1948:88). de solidariedade mecânica e orgânica de Durkheim.
22
Para um debate mais aprofundado sobre as 39
Estratificação social: variáveis que determinam a
concepções da chamada Escola de Chicago, ver Alain posição na estratificação
Coulon “A Escola de Chicago” e Donald Pierson, org. 1- Econômico: indicadores: concentração de renda,
“Estudos de Ecologia Humana”. tipo de consumo, quantidade de serviçais, propriedades,
23
Como vimos o uso de nomes fictícios era um etc.
recurso recorrente destes estudos. 2- Educação: indicadores: anos de estudo, capacidade
24
Ver “Uma Pesquisa sobre a Vida Social no Estado de escrita, voto
da Bahia”, Wagley, Azevedo e Costa Pinto, 1950. O 3- Ocupação: indicadores: trabalho considerado mais
trabalho de campo foi realizado por uma equipe. ou menos servil/doméstico, esforço físico, controle sobre
25
Ver Guidi, op.cit. os outros; vergonha de realizar trabalhos manuais.
(1971:97;98;99)

Vous aimerez peut-être aussi