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Como uma vírgula acabou com um namoro no dia dos namorados - Por

Dílson Catarino
Conta-se que, em Palmeirinha do Vale, cidade de dezessete mil viventes, que
se situa perto de Santana do Arrebol do Oeste, havia uma professora de
português, extremamente rígida, de nome Austeresa de Jesus. Ela era de tal
modo rigorosa para com os alunos que estes temiam encontrá-la mesmo no dia
a dia, na praça central, na mercearia, na farmácia.
Dizem que ela interpelava seus pequenos educandos, estivessem onde
estivessem, sobre as mais variadas regras gramaticais. Ai de quem não
soubesse a resposta: ela sacava seu caderninho rosa, anotava o nome da vítima,
a pergunta que lhe fizera, a resposta dada –ou a falta dela– e o quanto valia
relativamente à nota escolar.
Dependendo do grau de dificuldade da pergunta, ela diminuía 0,1, 0,2 ou 0,5 da
nota que o aluno tirasse na prova seguinte. Era um suplício para as pobres
crianças palmeirinhenses.
Quando Austeresa era jovem, enamorou-se de um belo rapaz, também professor
de português, de nome Telos Alonso. Ele, porém, não tinha a mesma capacidade
intelectiva dela nem a mesma habilidade em sala de aula nem a mesma rigidez.
Era um moleirão a bem dizer, que nem gostava muito de estudos aprofundados.
As maldizentes até comentavam que ele não era homem para uma mulher como
Austezinha, como a chamavam carinhosamente.
O namoro entre eles durou exatamente onze meses e vinte e sete dias. O
estopim para o término do relacionamento foi um cartão que ele lhe mandara no
dia dos namorados em que escrevera “Para a minha namorada Austereza de
Jesus”. Ao ler esses dizeres, quase teve uma síncope; chegou a perder o juízo.
Pegou de uma caneta e imediatamente escreveu-lhe uma pequena carta, em
que dizia:
“Telos Alonso, é de conhecimento geral em Palmeirinha que tolero os maiores
sofrimentos, que suporto as maiores provações. É, no entanto, também
comentário corrente que há duas situações que jamais enfrentarei: traição e erro
gramatical. E você, meu ex-amado, acabou de cometer ambos: você, professor
de português, sabe muito bem que os nomes próprios femininos formados pela
posposição do sufixo -esa ao radical se escrevem com S, não com Z.
Como meu namorado há quase um ano ainda erra meu nome, trocando letras?
Não me importo tanto pelo erro de meu nome, mas importo-me –e muito– com o
trocar letras. Poderia ter-me chamado de Austerise; não me atenazaria tanto,
pois teria usado as letras adequadas: nomes femininos terminados em -ise se
escrevem com S, como Denise e Anelise; mas ignorar que se escrevem com -
ês e -esa nomes de pessoas, como Inês, Teresa e o meu, logicamente,
Austeresa, adjetivos pátrios, como português e portuguesa, e títulos sociais ou
nobiliárquicos, como camponês e camponesa, marquês e marquesa e ainda
princesa, a maneira como me tratava, é demais para mim.
Fico agora a pensar: cada vez que me chamava de princesa, sua mente produzia
princeza? Não. É demais para mim. Não suporto tal provação. E a traição? Como
a descobri? Você mesmo se delatou: ‘@minha namorada Austereza’. Assim
escreveu você; sem vírgula. Assim escolheu me mostrar que tem outra
namorada. Não teve coragem de me contar pessoalmente, contou-me por
subterfúgio, e eu entendi.
Ao não colocar vírgula entre meu nome e o substantivo que ele especifica,
mostrou-me que não sou a única. Se o fosse, ter-me-ia escrito ‘@minha
namorada, Austeresa’, com vírgula. Muito perspicaz foi você, dar-me a conhecer
uma situação por meios gramaticais: substantivo próprio que especifica
substantivo comum, sem vírgula entre eles, restringe, ou seja, há mais de um:
‘Professora Austeresa’, sem vírgula, pois não sou a única professora, há muitas;
mas substantivo próprio que especifica substantivo comum, com vírgula entre
eles, explica, ou seja, só há um: ‘@minha namorada, Austeresa’, com vírgula; eu
seria a única, mas não o sou; sei-o agora.
Aliás, nem me importo mais com o namoro. Mesmo não havendo a traição, não
quero mais tê-lo como namorado, pois dois erros de português em uma única
frase cometidos por um ‘professor de português’ são demais para mim. Adeus. ”
Declaração de Amor -Por Clarice Lispector
Esta é uma confissão de amor: amo a língua portuguesa. Ela não é fácil. Não é
maleável. E, como não foi profundamente trabalhada pelo pensamento, a sua
tendência é a de não ter sutilezas e de reagir às vezes com um verdadeiro
pontapé contra os que temerariamente ousam transformá-la numa linguagem de
sentimento e de alerteza. E de amor. A língua portuguesa é um verdadeiro
desafio para quem escreve. Sobretudo para quem escreve tirando das coisas e
das pessoas a primeira capa de superficialismo.
Às vezes ela reage diante de um pensamento mais complicado. Às vezes se
assusta com o imprevisível de uma frase. Eu gosto de manejá-la – como gostava
de estar montada num cavalo e guiá-lo pelas rédeas, às vezes lentamente, às
vezes a galope.
Eu queria que a língua portuguesa chegasse ao máximo nas minhas mãos. E
este desejo todos os que escrevem têm. Um Camões e outros iguais não
bastaram para nos dar para sempre uma herança da língua já feita. Todos nós
que escrevemos estamos fazendo do túmulo do pensamento alguma coisa que
lhe dê vida.
Essas dificuldades, nós as temos. Mas não falei do encantamento de lidar com
uma língua que não foi aprofundada. O que recebi de herança não me chega.
Se eu fosse muda, e também não pudesse escrever, e me perguntassem a que
língua eu queria pertencer, eu diria: inglês, que é preciso e belo. Mas como não
nasci muda e pude escrever, tornou-se absolutamente claro para mim que eu
queria mesmo era escrever em português. Eu até queria não ter aprendido outras
línguas: só para que a minha abordagem do português fosse virgem e límpida.

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