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Manuel Domingos
Professor da Universidade Federal do Ceará e vice-presidente do CNPq
A Trajetória do CNPq
Este texto reúne comentários sobre a This text deals with the contribution of
contribuição do Conselho Nacional de Conselho Nacional de Desenvolvimento
Desenvolvimento Científico e Tecnológico Científico e Tecnológico (CNPq) for the
(CNPq) para a construção do Brasil moderno; development of modern Brazil; it concerns
trata do surgimento, da trajetória funcional e de the creation and main aspects of the mission of
aspectos da atuação dessa entidade. this public body.
Palavras-chave: ciência, tecnologia, pesquisa, Key words: science, technology, research,
desenvolvimento. development.
O
Brasil conta atualmente com pecialidades. Mesmo com grandes li-
importantes instituições de mitações infra-estruturais e proventos
ensino e pesquisa, possui cer- reduzidos, o cientista brasileiro mos-
ca de dois mil cursos de pós-gradua- tra empenho e criatividade, ganha re-
ção e forma mais de oito mil doutores conhecimento internacional e, em di-
por ano; pode qualificar profissionais versas especialidades, disputa prestí-
de alto nível em todas as áreas do co- gio com colegas de países mais desen-
nhecimento e em quase todas as es- volvidos.
periódicos.
Ao longo de sua trajetória, o Conselho,
Quanto à apropriação social do traba- entre outras coi-sas, credencia e impul-
lho científico, é algo que transcende a siona programas de pós-graduação; reco-
vontade do cientista e o desempenho nhece formalmente novas áreas do co-
pontual de instituições como as univer- nhecimento e fomenta a investigação de
sidades e agências de fomento, por mais novos objetos estudos; incentiva o inter-
que elas se empenhem nesse sentido. câmbio de pesquisadores e instituições,
O aproveitamento da pesquisa na indús- ampara publicações especializadas, equi-
tria, nos serviços públicos, nas políticas pa laboratórios e universidades, financia
sociais depende das opções estratégicas expedições, fortalece as agências esta-
de quem exerce o poder, da cultura e duais de fomento e amplia o acesso da
do interesse de empresários e sociedade brasileira à cultura científica.
governantes. O Brasil, de fato, não ba-
O CNPq detém hoje o maior banco de
seia o seu desenvolvimento em um sa-
currículos da América Latina; nenhuma
ber produzido internamente; baseia de
outra instituição mantém mais contato
forma muito limitada o crescimento eco-
direto com pesquisadores em atividade.
nômico à complexidade tecnológica, ou
O sistema de avaliação por pares que
seja, restringe a ampliação de suas pos-
adota lhe permite conferir o selo de qua-
sibilidades mercantis.
lidade mais disputado pela comunidade
Não obstante, comparando-se a atual brasileira de pesquisadores.
A
Outros intelectuais, como os antropólo-
produção, difusão e uso do gos, historiadores, estudiosos da econo-
conhecimento preocupam os mia, juristas e críticos literários, geral-
governantes ao longo da his- mente movidos pela vontade de indicar
tória. No tempo moderno, essa preo- rumos à sociedade, tentam desvendar os
cupação é avivada pela disputa por traços da identidade nacional, as
mercados e pela grande capacidade dos especificidades do Estado brasileiro, o
engenhos destrutivos. O desenvolvimen- funcionamento das instituições e os obs-
to econômico baseia-se em descober- táculos ao desenvolvimento.
N
esse panorama, as escolas mi- extrativismo vegetal que, após a Guerra,
bolsas no país. Sob a direção de Álvaro Juarez Távora, chefe do Gabinete Mili-
Alberto, cerca de trezentas bolsas de tar, pede afastamento da presidência do
estudo/pesquisa são implementadas em CNPq. Cientistas renomados, como César
diversas áreas do conhecimento, sen- Lattes, então dirigente do CBPF, contri-
do os pedidos aprovados diretamente buem para o seu desgaste pessoal.
pelo CD, que reúne nomes de grande
Por indicação de Távora, o engenheiro
projeção. A antiga aspiração de estu-
José Batista Pereira substitui o almiran-
dar a Amazônia é atendida com a cria-
te e aceita a extinção paulatina das atri-
ção do INPA.
buições do CNPq relativas ao programa
de pesquisa e ensino, são criadas enti- Juscelino Kubitschek, que assume o go-
dades voltadas para a busca da autono- verno em 1956, amplia a distância do
mia nacional, do desenvolvimento indus- CNPq das atividades relacionadas à ener-
trial e da redução das disparidades regi- gia nuclear, nomeando o coronel-aviador
onais como o BNDE, a Petrobrás e o BNB. Aldo da Rosa para dirigir o órgão. Ex-es-
O CNPq surge integrando o rol das insti- tagiário da aviação naval dos Estados
tuições que encarnam o sonho do Brasil Unidos, íntimo da NASA e admirador as-
autônomo e moderno. sumido da indústria aeronáutica norte-
americana, esse oficial é desconhecido
I NDEFINIÇÕES E AMEAÇAS dos cientistas brasileiros. Vitimado por
A
um acidente de avião, Aldo Rosa logo é
radicalização do confronto po-
substituído por Christóvão Cardoso, um
lítico, fortemente alimentado
conservador, avesso à mobilização polí-
por pressões externas, é ex-
tica do mundo acadêmico e ao apoio a
pressa pelo suicídio de Vargas, em 1954.
cientistas sociais.3
Desde então, a corrente favorável à apro-
ximação com os Estados Unidos ganha O CNPq amarga então fortes reduções
terreno. Em 1955, Álvaro Alberto, falsa- orçamentárias. As dotações vão de
mente acusado de irregularidade na ad- 0,28% do orçamento da União, em 1956,
ministração financeira, pressionado por para 0,09% em 1960, o que se reflete
volvimento do país, Kubitschek quer re- Em 1961, Jânio Quadros nomeia outro
sultados de curto prazo, enquanto a for- almirante, Octacílio Cunha, presidente
mação de capacidade científica deman- do Conselho. Esse oficial tenta recupe-
da tempo, esforços sistemáticos e re- rar o prestígio da instituição recompon-
cursos regulares, como observa Shozo do seu orçamento, mesmo que de ma-
Motoyama. Descontente com a máqui-
4
neira nada ortodoxa: o presidente da
na estatal, Kubitschek cria instâncias República ordena à Petrobrás que envie
paralelas e forma “comissões” com au- recursos ao CNPq.
toridade e recursos para executar seus
O almirante Octacílio, treinado para pla-
planos relativos às indústrias química,
nejar, como costumam ser os militares
naval e automotora de forma
modernos de alta patente, assessorado
desvinculada da capacidade científica e
por Antônio Couceiro, dirige a elabora-
tecnológica do país.
ção de um plano qüinqüenal . Nessa oca-
Uma iniciativa revela a pouca percepção sião, o CD, pela primeira vez, aborda sis-
de Juscelino quanto ao papel estratégico tematicamente os problemas que absor-
do CNPq na capacitação científica e verão os formuladores da política cientí-
tecnológica do Brasil: a criação, no Mi- fica brasileira nas décadas seguintes: a
nistério da Educação, de uma Comissão formação de pesquisadores e suas con-
Supervisora do Plano dos Institutos, en- dições de vida e trabalho; o intercâmbio
carregada de organizar 14 instituições de e a formação de grupos; o amparo às
pesquisa. Essa Comissão, além de repre- instituições e às publicações científicas;
sentar uma sobreposição de esforços, a difusão tecnológica por meio da absor-
leva ao desperdício de recursos financei- ção, pela indústria, de pesquisadores
ros, esvaziando drasticamente as verbas qualificados; a desarticulação entre as
do CNPq. Juscelino ordena ainda a cria- diversas instâncias e instituições vincula-
ção de um Instituto de Pesquisas Rodovi- das ao setor; a desconcentração espaci-
O
s militares assumem o poder dis- Sob a ditadura, o CNPq se firma como
cursando contra os comunistas instituição de apoio ao desenvolvimento
e a corrupção; não têm “progra- da ciência. O ensino e a pesquisa tornam-
ma de governo”, mas uma idéia do país se objeto de planejamento e contam com
que desejam; pensam, de fato, em acele- volume de recursos inéditos. Um grande
P
reocupados com a inovação nos militares, incluindo domínios delica-
O uso da ciência e da técnica para favo- 5 leva o CNPq a organizar uma denomi-
recer a exploração agrícola das zonas nada operação retorno, oferecendo isen-
pela freqüente mudança de seus dirigen- sob a direção de Maurício Matos Peixo-
tes, por disputas internas e pela ingerên- to, cria a bolsa de pós-doutorado.
perseguidos pelo regime. Apesar das di- te o país. O Brasil é urbanizado; a infra-
ficuldades financeiras e dos efeitos cor- estrutura econômica, ampliada; os seto-
rosivos da inflação, L ynaldo implementa res produtivos, diversificados; a capaci-
numerosos programas tendo em vista a dade dos meios de comunicação e trans-
absorção de tecnologia pelo setor produ- porte, multiplicada. Muitos brasileiros
tivo (depois designada como inovação) e passam a se perceber integrantes de uma
retoma a velha bandeira da redução das comunidade nacional, não obstante o
disparidades regionais. Nesse sentido, aprofundamento das desigualdades soci-
envolve particularmente as universida- ais e regionais. As mudanças, certamen-
des. Acreditando firmemente nas virtu- te, também não reduzem a
des do Estado como planejador do desen- vulnerabilidade da economia à vontade
volvimento socioeconômico, procura fa- estrangeira, não consolidam um sistema
vorecer a capacidade do CNPq na formu- de defesa do território, não resguardam
lação da política científica brasileira e, a a riqueza nacional para os brasileiros nem
despeito da centralização de decisões que protegem o meio ambiente. Mas o Brasil
marca seu trabalho, convive respeitosa- é outro, inclusive no que diz respeito à
mente com a comunidade científica. capacidade de produzir conhecimento.
N
teral de maior capilaridade, o Banco Mun-
dial, deixa sua marca na produção de co- o Estado democrático, o CNPq
nhecimento no Brasil. Em 1984, é assi- encontrará, a partir de 1985,
nado o convênio que estabelece o Pro- além de questões que já afli-
grama de Apoio ao Desenvolvimento Ci- giam seus fundadores após a Segunda
entífico e Tecnológico ( PA D C T ) , Guerra Mundial, a herança do
objetivando complementar os recursos autoritarismo e os desafios da cena in-
destinados pelo Estado à pesquisa cientí- ternacional marcada pelo fim da guerra
fica. Como em todos os convênios assi- fria. O país amarga a crise da dívida ex-
nados pelo Banco Mundial, ao contratan- terna, o déficit público, a inflação cres-
te de empréstimos cabe assumir a mai- cente e fica na condição de exportador
or parte do valor financeiro do progra- líquido de capital. Para assegurar o seu
ma. Mais do que recursos, o Banco Mun- desenvolvimento e soberania, o Brasil
dial oferece, a título de ajuda, precisa continuar ampliando a infra-es-
paradigmas, conceitos e procedimentos trutura de ciência e tecnologia, formar
conforme um receituário estabelecido cada vez mais quadros e acompanhar o
para todos os países em que atua. melhor possível o avanço da produção
mundial de conhecimento.
Em duas décadas de regime discricioná-
rio, os militares alteram significativamen- O debate sobre os rumos do país deixa
O
os problemas sanitários, a dificuldade de estabelecimento de uma agen-
transporte, a degradação ambiental e o da para a política científica e
que o jargão da época designava como tecnológica, entretanto, é difi-
marginalidade social . cultado pela ausência de um projeto de-
mocrático de país. O conjunto heterogê-
A concentração institucional e geográfica
neo de forças que agora governa o Brasil
da produção de conhecimento,
não fixa uma linha programática clara,
diagnosticada pelo almirante Octacílio
perde-se no enfrentamento do processo
Cunha antes do golpe de 1964, não fora
inflacionário e na administração de cri-
atenuada pelas iniciativas compensatóri-
ses conjunturais.
as do regime militar. O problema se tor-
na até mais visível por conta da deman- A pasta de Ciência e Tecnologia é entre-
da induzida : a ditadura instalara univer- gue pelo presidente Sarney (1985-1990)
sidades federais em todas as unidades a Renato Archer, ex-militar, admirador de
da Federação que, agora, querem quali- Álvaro Alberto. Em sua longa carreira
ficar quadros e pesquisar. A concentra- parlamentar, Archer se fir mara como
ção de investimentos em poucas univer- defensor do desenvolvimento autônomo
sidades do Sudeste torna-se particular- e baseado em tecnologia própria.
mente incômoda.
O Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT)
A Amazônia, que passara a ser objeto surge formalmente com atribuições pou-
de exploração econômica mais intensifi- co precisas, como a de cuidar do
cada, persiste sem programas sistemáti- patrimônio científico e tecnológico, elabo-
cos de pesquisa; o Semi-Árido, transfigu- rar e conduzir a política para o setor e
rado pelas rodovias e pela energia elétri- formular a política nacional de informática.
ca, persiste com seus insuportáveis pro- Os programas relativos à energia nuclear
blemas sociais, entre eles, a e à pesquisa espacial, que os militares
inacessibilidade dos trabalhadores rurais haviam desenvolvido secretamente e à
à formidável reserva de água acumulada revelia da comunidade acadêmica, esca-
artificialmente. O planejamento regional pam das atribuições do novo ministério.
do regime militar não propiciara uma di- O mesmo ocorre com os investimentos em
médico que governara a Bahia durante do-se um período tumultuado, com mu-
ções reduzidas. Mas seu presidente não verbas e perturbações decorrentes das
A
o grande entrave ao progresso brasilei-
posse de Collor de Mello, em
ro. Ambos querem favorecer a iniciativa
1990, inaugura um período
privada voltada para produtos de alta
de revisão intensiva no apa-
complexidade e protagonizam sérios con-
relho de Estado, conforme as novas ori-
flitos com os funcionários do CNPq.
entações das agências multilaterais. As
instituições governamentais, tidas como Jacob e Mares Guia, profissionais reco-
modernidade tornam-se usuais para ex- Lindolpho de Carvalho Dias e Jorge Gui-
sendo inclusive absorvidas por muitos vida pela comunidade, asseguram a con-
F
Bresser dirigira uma reforma administra-
rente às dificuldades financeiras tiva gerencial reduzindo o aparelho de
e na esteira das privatizações em Estado em favor do setor privado. Bresser
setores estratégicos da economia pretendera, inclusive, fundir o Ministério
como a exploração do petróleo, as tele- da Ciência e Tecnologia com o da Educa-
comunicações e a energia elétrica, Isra- ção. Agora, concentrando o mando no
el Var gas busca uma nova forma de fi- setor de ciência e tecnologia, acumula os
nanciamento da pesquisa desvinculada cargos de ministro e presidente do CNPq.
dos recursos do Tesouro Nacional. Em Sua proposta para imprimir maior
1997, a lei que cria a Agência Nacional racionalidade à concessão de bolsas e
do Petróleo (ANP) estabelece que parce- auxílios e reduzir conflitos administrati-
la dos royalties da produção de petróleo vos é a adoção de um sistema rotativo
e gás seja destinada à pesquisa. Em em que três vice-presidentes, Evando
1999, é implantado o primeiro Fundo Mirra, Fernando Reinach e Denis
Setorial, dito CT-Petro. Rosenfield, revezar-se-iam no cargo em
A
tre 1995 e 2002, o número de bolsas-
ano que implementa é reduzido de recuperação da capacidade
52.041 para 47.465, sendo as bolsas operativa da principal agência
de mestrado as mais afetadas, passan- brasileira de fomento à ciência
do de 10.960 para 5.604. O quadro é e à tecnologia tem início em 2003, no go-
mais grave quando se considera a não verno de Luís Inácio Lula da Silva. Roberto
reposição das perdas inflacionárias e a Amaral, ministro da Ciência e Tecnologia,
suspensão da taxa de bancada . à revelia de composições político-partidá-
N O T A S
1. Por bolsa-ano, entenda-se não o número de beneficiários, mas de mensalidades pagas
durante um ano.
2. Logo em seguida, o CNPq cria o Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA) e o
Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia que, depois, incorpora temporariamente o
Museu Emílio Goeldi.
3. A propósito, ver suas manifestações nas sessões do CD, em 1957.
4. A observação de Motoyama está em 50 anos do CNPq :contados por seus presidentes,
São Paulo, FAPESP, 2002, p. 119.
5. Sessão CD 733, de 14.7.1964.
6. Sessão CD 758, de 14.12.1964.
7. Pronunciamento de Antônio Couceiro na 929 a sessão do CD, em 4.6.1968.
8. Pronunciamento de Antônio Couceiro na 907 a sessão do CD, em 23.1.1968.
9. Entre os programas então estabelecidos destacam-se o do Trópico Úmido, o do Trópico
Semi-Árido e o de Pesquisas de Utilização dos Cerrados.
10. Pronunciamento de Antônio Couceiro na 864 a sessão do CD, em 27.4.1966.
11. Entre as diversas manifestações de desconfiança em relação à Capes, uma das mais
severas ocorre na 956 a sessão do CD, em 21.1.1969.
12. Pavan, em entrevista a um grupo de professores organizados por Shozo Motoyama,
declara que teria ampliado o numero de bolsas de 13 para 44 mil bolsas. Na verdade,
está se referindo a uma cota fixada em lei, que não foi efetivada. Na mesma entrevista,
Pavan relata seus conflitos com os ministros da Ciência e Tecnologia.
13. Tundisi disserta sobre suas idéias e proposições em entrevista concedida à equipe de
Motoyama, em 50 anos de CNPq , op. cit.