Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
CURSO DE ANTROPOLOGIA
Esta presente resenha crítica foi escrita a partir da leitura de dois capítulos 2 da tese de
doutorado de Andrey Ferreira. Os principais objetos de sua tese são o Regime Tutelar, as formas de
colaboração/resistência indígena e a mudança/reprodução social, dessa forma sua etnografia tem o
“poder” como uma preocupação teórica importante, ou seja, as relações de poder que pressupõe a
existência de uma sociedade, enquanto uma entidade totalizadora. Além disso (e para se dizer desta
forma), entendendo o “processualismo” enquanto uma corrente etnográfica que se preocupa com os
processos de contato e transformação das culturas, a etnografia de Andrey poderia se inserir neste
campo da Antropologia Política, que parte da realidade inter-relacional das culturas para entender os
processos históricos, sociais, políticos, econômicos e culturais do “campo e da arena das relações
inter-étnicas”. Portanto, esses processos compreendem relações entre os indígenas, o Estado
(através das instituições estatais como a FUNAI, o SPI e o arranjo político municipal-estadual-
nacional) e o Capitalismo (através de atores econômicos locais e regionais).
Os objetos referidos acima se apresentaram e foram delineados enquanto objetos de
investigação a partir do trabalho de campo etnográfico, que foi realizado a partir de 2001 com os
Terena, na região da cidade de Miranda, Mato Grosso do Sul. Os Terena enquanto grupo cultural
homogêneo, se situam nos estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e São Paulo, sendo um
grupo cultural que se espalha descontinuamente pelo “território brasileiro”. Para “contextualizar”
brevemente com alguns dados, a respeito da população total, segundo o senso do SIASI 3 (Serviço
de informações da atenção à saúde indígena), em 2014 haviam 26.065 indivíduos Terena. Dito isso,
1 Tese de doutorado apresentada ao PPGAS do Museu Nacional do Rio de Janeiro-RG por Andrey Cordeiro Ferreira,
em 2007.
2 São os capítulos 5 – Centralização estatal/descentralização faccional: A organização política Terena e 6 – Co-
gestão indígena e as micropolíticas de colaboração e resistência cotidiana.
3 Extraído do PIB-Socioambiental, no seguinte endereço: <https://pib.socioambiental.org/pt/povo/terena/1040> no
dia 06/12/2017.
como já exposto, o trabalho etnográfico de Andrey foi realizado na Terra Indígena (T.I.) de
Cachoeirinha, no Mato Grosso do Sul. A T.I. Cachoeirinha possui uma área de 36 mil hectares e
uma população de 4920 indivíduos, segundo dados da FUNAI/Campo Grande de 20104.
Em continuação, juntamente com o trabalho de campo, foram levantados uma série de
dados históricos, centrais na etnografia de Andrey. Dessa forma, o tempo enquanto categoria faz
parte das descrições presenciais do antropólogo, atuando como base para a explicação histórica e
etnográfica. Trabalhando com o tempo, o autor consegue identificar e explicar os processos de
transformação e contato dos Terena dentro do campo das relações inter-étnicas. Assim, todos os
objetos teóricos são investigados em sua dimensão histórica e etnográfica, constituindo o núcleo
central da etnografia de Andrey.
Isto posto, após essa breve introdução, cabe dizer que esta resenha foi empreendida a partir
da leitura dos capítulos já mencionados e também das anotações do meu caderno sobre a aula
referente a obra de Andrey. Em seguida, apresentarei as minhas considerações sobre a leitura que
realizei desses capítulos, que são – no tese de Andrey – subdivididos em vários tópicos, que não vou
especificar no corpo deste texto. Todavia, nesta resenha encontrá-se uma espécie de resumo de cada
capítulo, recheado com as minhas considerações.
Andrey nos apresenta o “cenário” de um dos atos do drama social que pretende analisar:
Em 2004, o cacique Lourenço Muchacho da aldeia Sede enfrentava um movimento de oposição
com o chefe do Posto Indígena (P.I.) Argemiro Turíbio. No mesmo ano, aconteceriam as eleições
municipais na cidade de Miranda e essa situação seria propícia para o re-fortalecimento de alianças
com lideranças partidárias que concorriam na corrida eleitoral. Todo este cenário é o cenário das
relações inter-étnicas que caracterizam os dramas de cisão.
A narrativa etnográfica nos apresenta aos próprio atores indígenas, trazendo por exemplo, o
ponto de vista do cacique Lourenço Muchacho, que confirma que há uma crise política inter-étnica
acontecendo na T.I. Cachoeirinha, se referindo ao movimento de oposição que enfrentava em
decorrência da segmentação da política indígena. Além disso, Lourenço também aponta alguns
“vetores” do afastamento comunidade indígena/lideranças indígenas, que segundo ele, seriam as
associações, as igrejas e as facções que segmentavam as relações políticas.
Todavia, Lourenço nos apresenta ainda a um ponto central do descontentamento da
comunidade: A gestão dos recursos materiais, a escassez de recursos vindo da FUNAI, a falta de
investimentos nas aldeias e a “falta de posicionamento” do cacique diante dessas faltas. Segundo
Lourenço, a responsabilidade que deveria ser cobrada ao Estado estava sendo cobrada dele pela
própria comunidade.
Ao que tudo indica, os grupos de oposição estavam solicitando intervenção política de
organismos estatais para “tirarem” Lourenço do cargo de cacique. Esse movimento de oposição
tinha precedentes nas mudanças no conselho tribal – dissoluções de alianças políticas,
reformulações dos membros do conselho, etc – “dirigido” pelo cacique. Um outro motivo, que
alimentava esse movimento de oposição seria “a questão dos contratos com as Usinas”, de uma
suposta corrupção por parte do cacique e de um não-investimento do dinheiro do Caixa-comunitário
dentro da aldeia. Esse último motivo é ilustrativo dos motivos que desencadeiam a luta pelo poder:
A questão da gestão dos recursos naturais e das alianças políticas que as viabilizam.
Enfim, esse acontecimento é apenas um dentre outros acontecimentos que se inserem
dentro de um processo (uma série de acontecimentos e situações sociais) da luta pelo poder local da
aldeia Sede. Portanto, são acontecimentos que se referem a lutas políticas e que são “ilustrados”
através de entrevistas, da reconstituição de eventos históricos precedentes à eclosão dos conflitos e
também, de fatos que desencadearam outros fatos e que articulam-se uma cadeia de conflitos, que
caracterizam os dramas sociais. Andrey compreende que as lutas pelo poder têm uma dinâmica
estrutural que deve ser interpretada através do funcionamento da organização política Terena.
Sendo assim, Andrey organiza uma espécie de “roteiro” dos dramas de sucessão: 1 –
Mobilização política faccional pela disputa do cargo do cacique; 2 – O cacique se mantem no cargo
devido a autoridade que possui, de gerir os recursos e os poderes, mas isso depende de alianças
internas e externas; 3 – As facções de oposição continuam lutando pelo poder; 4 – A resolução dos
conflitos passa pela intervenção de agentes estatais, como a FUNAI que atua como “poder
moderador”, visando gerar um (des)equilíbrio a esta ou àquela facção ou liderança; 5 –
Multiplicilidade local de poderes;
Esse “roteiro” demonstra e existência de diferentes atores inter-relacionados nos dramas de
sucessão: As lideranças indígenas, os recursos materiais, a FUNAI, as lideranças políticas locais e
estaduais, etc. No entanto, o que Andrey quer explicar é a forma de organização da unidade política
dos Terena. Segundo o autor, entender essa estrutura de organização é fundamental para entender de
forma mais profunda o decorrer dos dramas sociais.
A forma de organização político-territorial dos Terena é uma pirâmide de poderes: No
topo está o cacique, que centraliza o poder decisório e administrativo da vida pública e dos recursos
materiais; Abaixo do cacique, estão o vice-cacique e o conselho tribal (este, escolhido pelo cacique)
cuja a função é de regular e fiscalizar o cacique e até de destituí-lo do cargo, quando preciso; E na
base, estariam a população Terena. A relação cacique/conselho tribal revela uma tensão estrutural,
pois o cacique centraliza o poder podendo escolher os membros do conselho, porém, de outro lado,
o conselho escolhido pelo cacique pode destituir o cacique do cargo.
O cacique é escolhido por eleições regulares a cada quatro anos (Andrey aponta algumas
similitudes entre o processo eleitoral indígena e o processo eleitoral democrático-burguês). O cargo
de cacique centraliza o poder, sendo a principal autoridade formal da aldeia, ao mesmo tempo ele:
(1) controla as relações sociais e familiares dentro da aldeia, a ação e atividade dos indivíduos,
podendo aplicar conduta criminal quando há alguma violação de regras e normas sociais; (2) É
responsável pelas relações inter-étnicas, sendo a principal representação perante as instituições e
grupos não-indígenas ou de fora da aldeia; (3) Controla a relações econômicas e os bens coletivos
do grupo e também, os contratos de trabalho assinado pelos indígenas com empresas locais.
Dessa forma, o cacique monopoliza o controle social, a representação política e a gestão
econômica dentro da aldeia, sendo o “vértice” de uma poder centralizador sobre todos os domínios
da vida social. No entanto, a figura do cacique situa-se, da mesma forma dentro de uma outra
estrutura de poder, que é o sistema político estatal. Conforme nos lembra Andrey, o cacique
(enquanto categoria e função) é um “produto colonial”, portanto, uma imposição do Estado aos
grupos étnicos que visava a governamentalidade e a homogeneização. Assim, o controle do Estado
sobre o grupo étnico necessitava da figura do cacique como mediador e representante.
Para além do cacique, está a categoria “chefe do posto”, sendo um papel político
representativo do SPI/FUNAI perante aos índios. O chefe do posto é um funcionário público
oriundo da sociedade nacional. Como colocado, “cacique” e “chefe do posto” são duas categorias
importantes para se pensar as relações políticas entre os Terena, pois segundo Andrey, o chefe do
posto e o cacique “compartilham” o poder sobre a aldeia no que toca ao controle social, a
representação política e a gestão econômica e burocrática da aldeia.
Da mesma que o cacique atua como mediador entre o grupo étnico e o Estado, o chefe do
posto também media a relação grupo étnico/FUNAI. Todavia, existem “diferenças substanciais” no
que se refere à “importância” dessas categorias. O cargo do chefe do posto, como já dito, é um
emprego público, remunerado e que exige um acúmulo de “saberes técnicos” e específicos, além do
fato do chefe do posto possuir um status diferenciado e prestigiado. Essa diferença aponta para uma
outra tensão estrutural entre o cacique e o chefe do posto.
Essa tensão estrutural aponta para uma luta pelo poder entre cacique e chefe do posto pela
co-gestão dentro do regime tutelar. Essa luta se explicita na disputa pelo controle dos contratos de
trabalho e pelas decisões relativas aos bens materiais e as relações de mediação política. O cacique
e o chefe do posto concentram os poderes de exercer controle sobre a mão-de-obra indígena e
também, do fundo gerado pelas relações de trabalho, assim, essas duas categorias lutam pela co-
gestão da aldeia dentro do regime tutelar. Essa estrutura organizativa opera em todas as aldeias
dentro de Cachoeirinha, entretanto existe ainda, uma hierarquia de poder entre as aldeias, sendo a
aldeia Sede, uma espécie de centro político dentro da T.I. Cachoeirinha.
Tendo em vista a hierarquia entre as aldeias, podemos falar que existe também uma
hierarquia entre os caciques, sendo o cacique-chefe a figura central da organização político-
territorial da T.I. Cachoeirinha. Assim, essa hierarquia baseia-se num sistema político e econômico
do qual a T.I. Cachoeirinha faz parte, portanto, a base para a diferenciação entre as aldeias está na
localização destas unidade sociais dentro do campo das relações inter-étnicas.
Tendo explicado um pouco como funciona e como se organiza a unidade político-territorial
Terena, Andrey aborda outra questão muito importante: A base econômica da organização política
Terena, o modo como a política ocorre a partir de relações materiais de trabalho e de acúmulo de
renda. Entre os Terena, essa base seria o Caixa-comunitário ou o fundo das relações de trabalho,
que é administrado pelo cacique-geral, sendo a base do poder do cacique. Esse fundo é gerado,
como já dito, pelas relações de trabalho entre os Terena e as usinas de açúcar. Ocorre dessa forma:
10% do valor do rendimento do trabalho (5% descontado do salário de cada trabalhador e 5% pago
pelas usinas) é revertido para a aldeia, mas controlado pelo cacique. Além disso, os caciques Terena
têm legitimidade própria, pois são eles quem indicam o administrador regional da FUNAI. No
entanto, cada cacique ocupa diferentes posições hierárquicas no que tange a representação política,
e isso depende da “investidura estatal” e do reconhecimento externo que têm.
Segundo Andrey Ferreira:
“A organização política Terena revela dois aspectos antinômicos: Uma tendência descentralizadora
pela existência de uma pluralidade de lideranças políticas locais, e uma tendência centralizadora, dada
pela hierarquização entre os caciques-locais e o cacique-geral” (FERREIRA, 2007:252)
Assim, da forma como o autor expressa, a contradição se constitui a base material da
organização política Terena, que se dá no marco das relações capitalistas de dominação e de uma
“interdependência” com o mercado regional, através das relações de trabalho. Como vimos, o caixa-
comunitário é um fundo gerado pela articulação do Estado com as unidades produtivas capitalistas,
essa articulação ao mesmo tempo visa a exploração do trabalho indígena e atua como principal fator
dos conflitos faccionais pelo controle do poder do cacique.
Nesse sentido, a co-gestão indígena atua sobre a gestão da propriedade indígena e das
relações de trabalho, apontando para uma relação entre o Estado, o mercado capitalista e as
instituições indígenas. A partir das relações de (exploração do) trabalho, os Terena tornam-se uma
“classe” e esse, é o fundamento material de sua organização política. Dessa forma, a política
indígena está subordinada a dinâmicas econômicas regionais e nacionais.
Após ter descrito o modo de organização política através de uma reconstrução histórica do
que seria a “base material” da vida política Terena, Andrey passa a analisar como essa organização
se dá em termos sócio-culturais, mas também, históricos. O autor realiza outro giro temporal para
discutir sobre momentos e situações históricas que antecedem o seu presente etnográfico. O
principal objetivo desse “giro” é analisar “as transformações decorrentes do processo de formação
do Estado-Nacional no regime tutelar e no campo das relações inter-étnicas.
Assim, Andrey quer entender como opera o processo da diferenciação naati e wharê-chané
entre os Terena para entender as formas de ação política dos chefes indígenas e também, o padrão
de distribuição e transmissão do poder. Para isso, o autor realiza uma leitura e comparação – para
citar estas – entre duas etnografias (Altenfelder Silva, 1949; Cardoso de Oliveira 1976; 2002;) sobre
e com os Terena. O primeiro autor classificava a organização política Terena em quatro categorias:
Unati-aché, “chefe do povo”, wharê-chané, “gente feia”, cauti, “cativos” e chuna-axeti, “chefes
guerreiros”. Já o segundo autor trabalhava com três categorias: Naati, “chefe do povo”, wharê-
chané e cauti. Para Andrey essas etnografias possuem algumas limitações e divergências quanto à
caracterização do líder Terena. Além disso, uma outra crítica bem contundente, se refere as
dificuldades (limitações) dessas etnografias na reconstrução histórica da organização social e
política Terena, para Andrey, as duas teses descrevem “funcionalmente” como se organiza a
instituição política dos Terena, mas não consideram a situação histórica onde as relações políticas se
dão e nem de que forma os Terena se inscrevem no campo das relações inter-étnicas.
Isto posto, o giro histórico de Andrey procura remontar os contextos históricos do Chaco e
do Diretório. O primeiro se refere à localização dos Terenas na região do Chaco, terras
administradas pelo Império do Brasil, no século XIX. Já o segundo se trata do contexto no qual os
Terena (na região do Chaco) mantinham fortes relações de aliança com os Mbaya Guarani, no
século XVIII. Esses dois “eventos” históricos remontam a conquista e partilha dos territórios do
Chaco (denominação em espanhol), Pantanal (denominação em português) ou Exiwa (denominação
em Aruak, Terena) e se referem ao deslocamento dos grupos étnicos e aos, então, novos processos
de territorialização indígena que afetaram as relações sociais entre os Mbaya Guarani e os Guaná
(Terena).
No contexto do século XIX, os Terena seriam inseridos (engolidos?) no movimento de
colonização da região Centro-Oeste brasileira (ocupação territorial que estava na agenda do governo
imperial do Brasil). Nesse contexto, as relações entre o aparelho do Estado imperial com os grupos
indígenas se intensificou, inclusive e da mesma forma que as relações entre os grupos indígenas
passaram por bruscas transformações, como o “desmantelamento” das relações de simbiose entre
esses grupos indígenas.
Nesse contexto, a organização política dos Guaná/Chané (Terena) era definida segundo a
posição que este grupo ocupava no sistema social do chaco pantanal, assim, não se pode falar da
organização política Terena considerando os “fatores internos” deste grupo, uma vez que eles
estavam inseridos num contexto de relações e contatos com outros grupos étnicos e com o
colonialismo português e espanhol. Assim, por exemplo, a categoria cauti, “cativos” era uma
categoria do sistema social indígena que existia no contexto da economia colonial-escravista.
Considerando isso, no contexto histórico do chaco, os Terena estabeleciam fortes relações
com o Mbaya-Guaicuru através das categorias naati/unati, que seriam os “mensageiros-
representantes” de ambos povos. Os Guaicuru eram um grupo dominante no contexto histórico-
geográfico do chaco, assim, em suas relações com os Guaná estabeleciam fortes relações de
alianças matrimoniais com grupos familiares específicos dos Terena, assim, “[...] estas alianças
políticas baseadas em trocas matrimoniais, econômicas e acordos militares se colocaram como um
padrão de interação entre os dois grupos indígenas” (FERREIRA, 2007: 267). Esse padrão de
interação resultou em um relativo equilíbrio de forças entre os dois grupos. No entanto, como
Andrey destaca, se tratavam de alianças verticais dos Guaicuru – grupo dominante – com os Terena.
Após esse giro histórico, Andrey passa a discutir como se deram a formação das distintas
aldeias dentro da T.I. Cachoeirinha. É de suma importância considerar que a formação das aldeias
ocorreu através de interações com as instituições estatais, órgãos indigenistas e empreendimentos
militares. Assim, as primeiras reservas indígenas Terena forma fundadas em 1904, mas ao longo do
século XX, dentro de cada reserva forma surgindo “aldeias” com organização política própria.
A partir disso, Andrey descreve como se deu o processo de formação de cinco aldeias
(Sede, Argola, Morrinho, Campão/Babaçu e Lagoinha) dentro da T.I. Cachoeirinha. O antropólogo
descreve esses processos trazendo informações histórico-etnográficas de outros autores e também,
relatos vividos em primeira pessoa dos próprios Terena através de entrevistas etnográficas, que
narram o surgimento de cada aldeia.
Sendo assim, Andrey encontra algumas regularidades na formação das comunidades locais
Terena: 1 – As famílias extensas eram as unidades básicas da organização social das aldeias; 2 – A
fixação de residência em cada aldeia se deu por motivações econômicas (ocupação de áreas de roça
→ produção/consumo); 3 – A construção dos diferentes setores da T.I. Cachoeirinha se deu a partir
das décadas de 30/40, depois, das décadas de 50 e 70. Os setores oram formados sob o período da
existência e atuação do SPI, ou seja, pela intervenção da política indigenista; 4 – Os primeiros
caciques de cada setor saíram das famílias extensas que inicialmente ocuparam as áreas de roça.
Além disso, havia um relação dessas famílias extensas com os chefes do posto do SPI,
nesse sentido, os caciques eram escolhidos “pelos mais velhos” dessas famílias e pelos chefes do
posto indígena. Andrey destaca que nesse contexto “[...] criou-se uma rede determinada de famílias
que compartilhavam, em certa medida o poder de certas instituições de Estado, ou melhor, o poder
concedido pelo Estado sob certos objetos específicos.” (FERREIRA, 2007: 265-266).
Dessa forma, os empreendimentos indigenistas conciliavam os interesses do Estado com os
dos grupos familiares Terena. Esses empreendimentos se davam como um processo centralizador
dentro das aldeias, que tentava “criar” um representante deste poder centralizador, o cacique. No
entanto, o que ocorreu foi mais um processo de descentralização político-territorial: A formação das
aldeias se deu com uma estruturação vertical de lideranças, o cacique. Por outro lado, a
segmentação territorial das aldeias e a formação dos diferentes setores (e a decorrente disputa
política entre os caciques) são produtos históricos oriundos das relações inter-étnicas e das relações
entre a política indígena e a política indigenista.
No capítulo 6, após ter aprofundado a questão das lutas faccionais pelo posto do cacique,
mostrando suas relações com a política indigenista, Andrey destaca, por outros lados, que a luta
pelo posto do cacique não encerra as lutas faccionais. Dessa forma, o autor quer analisar a forma
como essas lutas faccionais estendem-se para outros domínios, como as associações indígenas.
Esses “órgãos indígenas” revelam formas de organização “nativa” que culminam em outras lutas
faccionais, ou seja, na luta pela autonomia dos setores contra o cacique-geral.
Assim, o autor procura descrever e analisar as transformações nas relações entre os índios
e o Estado, de forma a mostrar as contradições – as tensões entre as formas de resistir e a co-gestão
indígena. Analisar essas relações implica abordar a história da formação das associações AITECA e
ACIC (1980/1990) como produto da luta entre facções indígenas. A criação dessas associações
indicam para uma contrapartida indígena, uma resistência aos esquemas de distribuição de poder
impostos pelos órgãos indigenistas. Aqui caberia questionar – até que ponto – se a criação e
osurgimento dessas associações indicam formas de resistência contra o regime tutelar.
Após ter apresentado e descrito a formação das associações indígenas, Andrey coloca que a
formação das associações indígenas é produto dos dramas sociais verificados ao longo dos anos 80
– as lutas faccionais entre grupos vecinais e também a luta por um “ideal indígena” de oposição à
sociedade regional, ideal que era fragmentado pela organização política segmentada. Assim a
formação das associações demonstram:
1. A crise do esquema de poder produzido pela situação histórica de reserva, onde havia uma
tentativa/imposição de uma centralização do poder por parte do SPI/FUNAI e ao mesmo
tempo, a articulação do chefe do posto com grupos locais por um certo “compartilhamento”
do poder;
2. Estratégias indígenas de ação política no plano local;
3. O contexto de Liberalismo econômico, através da redução do orçamento da assistência às
áreas indígenas, do incentivo ao associativismo e da criação a um novo mercado do
financiamento;
Mas para além disso, também significavam a reação local à centralização política imposta
pelo Estado. Segundo Andrey, “um efeito direto e contraditório, já que em última instância,
representa uma descentralização faccional que dinamiza e reproduz as mesmas estruturas e
esquemas de distribuição de poder contra as quais se coloca, a princípio ” (FERREIRA, 2007: 327).
Assim, a luta de facções dos anos 80 culminaria na luta das associações dos anos 90 e para uma
“recombinação de forças”, já que representava o surgimento de um novo espaço de articulação
política, uma vez que o cacique não seria mais o único representante das comunidades indígenas.
É o caso da escola indígena, analisado por Andrey dentro do marco das relações de poder
local, da disputa pela ocupação de espaços políticos em Cachoeirinha. De acordo com Andrey “[...]
a Escola se constitui não só num mecanismo de mobilidade profissional individual e familiar, mas é
também depositária de uma expectativa coletiva relacionada ao grupo étnico como um todo.”
(FERREIRA, 2007: 335). Assim, há de se considerar que entre os Terena há uma valorização da
educação e da escolarização, indicando a importância simbólica e identitária da escola, mas também
a importância deste espaço como um local de trabalho.
Nesse sentido, os professores indígenas são agentes políticos que se inserem dentro da
dinâmica da política local, marcada por relações de trabalho e de poder, e são essas relações que
Andrey quer analisar a partir da escola e também a partir das restrições que se impõe (desde a
política municipal) às ações dos professores. A atuação na escola enquanto professor auxilia na
formação de lideranças políticas através da construção de “redes de comunicação” dentro do
cenário político local.
Em Cachoeirinha existem cinco escola indígenas, uma delas atua como escola “polo”,
localizada na aldeia Sede, e que têm cinco “extensões” nos demais setores. As escolas dos setores
são subordinadas administrativamente à escola polo. Andrey indica que a história da escola indígena
insere-se em processos políticos locais e nacionais. Nesses processos, a vinculação da educação
indígena passou da FUNAI para a prefeitura, e que demonstram a ação de Sabino Albuquerque
através de alianças com os poderes locais. Portanto, a construção da escola indígena remete a
iniciativas dos caciques e a adoção dessas propostas pela prefeitura se deu através de diálogos e
negociações entre as lideranças indígenas, a APROTEM (associação dos professores indígenas
Terena de Miranda) e a prefeita Beth Almeida.
Por outro lado, o espaço da escola também seria um campo de disputa política dentro da
aldeia: A disputa pelo cargo da diretoria da escola. Entretanto, as lutas políticas locais também
reivindicavam a autonomia administrativa e pedagógica da escola, pois o que se constatou, a partir
das narrativas dos professores sobre a história da escola, foi que essa autonomia era pouco
respeitada.
A co-gestão da escola no nível local é marcada por relações de poder dentro da escola
enquanto espaço de trabalho, pois “[...] o status ocupado pelo professor indígena dentro das relações
de trabalho se coloca como um instrumento de poder de grupos políticos locais.” (FERREIRA,
2007: 344). Assim, os casos das escolas indígenas mostram uma estreita relação entre trabalho e
política. Ser professor contratado abre alguns espaços na política, mas indica também um certo
posicionamento estratégico dentro da aldeia, assim, essa posição de poder coloca o “índio” que a
ocupa numa posição de “conciliador” de interesses (dos seus patrões e do grupo indígena).
Dessa forma, a co-gestão e a ocupação do espaço da escola por parte dos indígenas
demonstram a concentração (e a disputa) de poderes individuais e faccionais. A experiência da co-
gestão na escola indígena reativou os conflitos e mudanças no ciclo de poder dentro dessas
instituições no que tange a ocupação do cargo da direção da escola, expressando assim, as lutas
faccionais pelo poder e também processos políticos de colaboração/conflito entre as facções
indígenas, as elites locais e o CTI, processos esses marcados por clientelismo.
Finalmente, Andrey ainda analisa as repercussões das formas de resistência indígena que
retroalimentam o faccionalismo Terena como tendência (des)centralizadora. Essas formas de
resistência seriam três casos que aconteceram entre 2003-2006: A luta contra o cacique-chefe; a
cisão na aldeia Argola e a retomada de uma fazenda realizada pelos indígenas.
O primeiro caso expressa a luta das lideranças dos setores contra o cacique-geral,
especificamente na aldeia Argorla, onde a vontade de autonomia era mais persistente do que a
tentativa de centralização por parte do cacique-geral, que representava o (ab)uso monopólico dos
bens coletivos da comunidade e do poder político. A articulação dos caciques locais contra o
cacique-geral reivindicava a autonomia de cada um dos setores para a gestão dessas respectivas
aldeias, no entanto, essas reivindicações apelavam para um poder centralizador, a FUNAI, como
uma intervenção verticalizada sobre Cachoeirinha.
O segundo caso se refere às lutas internas na aldeia Argola pela retirada do cacique João
Candelário. Esses conflitos políticos foram estabelecidos pela vitória de uma facção nas eleições
para o cargo do cacique. Essa vitória evidenciava o monopólio político e dos bens materiais e
reativa as lutas faccionais pelo poder do cacique. Todas essas lutas faccionais culminariam na cisão
da aldeia Argola e no deslocamento de muitas famílias para o “acampamento” na fazenda Santa
Tereza.
Em seguida, o terceiro caso é a ocupação da fazenda Santa Tereza, processo que se iniciou
com a cisão de Argola, dando abertura a novos processos de territorialização, que culminaram na
“retomada” da fazenda Santa Tereza (retomada por que eram terras indígenas tradicionais) e na
formação de uma nova aldeia dentro de Cachoeirinha. Ainda mais, o movimento de ocupação e de
luta política pela “retomada” adquiriu grandes repercussões no nível local e regional, repercussões
essas que se referiam ao “reavivamento” da resistência indígena.