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sala de aula, o tribunal e a autonomia universitária1


Mara Cristina de Matos Rodrigues

Há alguns anos tornou-se popular dentre alguns professores,
principalmente da educação básica, encenar uma espécie de tribunal para
debater alguns tópicos em sala de aula. Esse recurso didático, em que pese as
boas intenções didáticas, tem uma grande desvantagem no processo pedagógico:
induzir a uma confusão entre as práticas do campo do direito e as do campo da
produção de conhecimento científico e/ou escolar.
Pierre Bourdieu, sociólogo estudioso dos campos sociais do direito, da
ciência, da comunicação, da educação e da universidade, ressaltou de forma
muito apropriada as distinções entre as atuações nesses campos, em que pese as
inegáveis relações entre eles. Sustentou ainda que a autonomização do campo
científico em relação ao político era uma condição importante para o bom
desenvolvimento de uma ciência, ou de uma área de conhecimento acadêmico.
Ora, o que vemos no Brasil atualmente, principalmente desde 2016, é os
professores e pesquisadores sendo obrigados a se dedicar a uma resistência
política necessária para que possam desenvolver livremente e produtivamente
suas atividades. E não são somente as tentativas de cerceamento vindas do
Ministério da Educação que nos preocupam, que pretendem impedir que o
cientista político Luís Felipe Miguel ministre na UnB um curso sobre o que ele,
juntamente com outros estudiosos, denominam Golpe de 2016. A judicialização
das relações políticas e sociais em curso também ameaçam o processo
pedagógico e de produção de conhecimento.
Recentemente vivemos mais um episódio destas relações complicadas no
campo acadêmico e pedagógico, na série de manifestações e tentativas de
obstrução relacionados ao curso que o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
(IFCH) da UFRGS pretende oferecer sobre o Golpe de 2016. Ao ser convidada
pelo jornal Zero Hora para expor seu posicionamento sobre a pertinência do
oferecimento do curso, a professora doutora Cláudia Wasserman, diretora do
IFCH, manifestou-se no sentido de discutir esse assunto com pessoas do campo
no qual ela atua: a universidade. Garantida essa condição, assentiu na publicação
do seu texto, mas foi surpreendida por um aviso de última hora que o
contraponto não seria realizado por outro professor universitário, como
inicialmente informado a ela pelo jornal, mas por uma procuradora pública.
Antes que se pense que as reservas em torno da interlocução seja motivada por
algum tipo de arrogância intelectual, é importante situar a propriedade do
posicionamento da professora e para isso retomo a metáfora entre o tribunal e a
produção científica. Primeiramente, esses campos são regidos por princípios
teóricos e de atuação distintos, pois enquanto a pesquisa em ciências humanas
busca compreender, refletir, uma dada situação, o tribunal deve realizar um

1 Publicado em Sul 21, 12/03/2018.
julgamento. Além disso, em sala de aula e na pesquisa costumamos
problematizar, cercar, não somente os argumentos de uma dada teoria, mas uma
variedade de práticas que lhe são correlatas. Frequentemente, onde muitos
visualizam “dois lados em disputa”, como a encenação do tribunal acaba por
sugerir, os estudiosos sérios expõem e demonstram a complexidade de múltiplas
facetas do jogo social e político. Além disso, as abordagens históricas, que me são
familiares, colocam no centro da análise as considerações em torno da duração,
da temporalidade, pois comparam esses processos social e politicamente
complexos com outros similares mais ou menos distanciados no tempo.
Como se não bastassem esses desafios, enquanto docentes que somos e
em busca de constante atualização tanto no que tange ao conhecimento que é
objeto de nossa especialidade, quanto nas formas de ensiná-lo, estamos
acostumados a conduzir debates em sala de aula, garantindo a liberdade de
expressão, vigilantes pela manutenção de um clima propício à aprendizagem e
zelosos pela ética das relações dos alunos entre si e, destes, conosco. Sendo
assim, é com indignação que pergunto por que, nos últimos anos, especialmente
após 2016, tantos especialistas de outras áreas pensam ser eles os mais aptos a
determinar ou dirigir as formas pelas quais os professores devem atuar em sala
de aula, devem construir os currículos escolares, devem selecionar os assuntos
de que falam? Talvez algumas opiniões sobre o que e como a universidade deve
ensinar ainda estejam marcadas pela imagem de um processo pedagógico
autoritário, em que o professor não ouvia ninguém e tinha a última palavra em
uma espécie de hierarquia escolar e acadêmica que, se em alguma faculdade ou
escola ainda existe, está virtualmente em desuso ou em vias de desaparecer. Se
temos uma posição destacada e dotada de certos poderes em sala de aula, estes
certamente não se baseiam em parâmetros discricionários. Nosso “poder”, ou
lugar especial, somente se configura na medida em que se legitima perante a
sociedade por intermédio de uma expertise construída não somente pela
formação e especialização na área de conhecimento em que atuamos, mas
também pelos anos de prática pedagógica nas escolas e nas universidades.
Voltando ao recurso didático do tribunal em sala de aula, penso que ele é
mais danoso que proveitoso. Os fazeres científico e escolar são muito mais
complexos que a simulação que opõe erro e acerto, verdade e mentira e que, ao
dar igual espaço para defesa e acusação, pretende garantir automaticamente o
respeito à democracia. Os desafios à democracia na sala de aula são mais radicais
do que este, porque ao mesmo tempo em que o professor não pode
simplesmente impor a um aluno um rótulo tal como o de “racista”, por exemplo -
pois ao menos na educação básica tratamos majoritariamente com crianças e
adolescentes -, ele tampouco, ou, em primeiro lugar, não pode permitir que um
aluno seja vítima de racismo pelos seus colegas. Na universidade, se já lidamos
com jovens adultos, o desafio, entretanto, não é muito diferente, pois persiste a
nossa responsabilidade na condução de debates éticos, e ainda temos que lidar
com uma maior capacidade de argumentação de todos os agentes sociais
envolvidos no processo pedagógico. É por isso que os conflitos internos na
universidade não podem ser tratados meramente como caso de polícia. É por
isso que a universidade precisa de liberdade e autonomia para exercer da melhor
forma o seu papel. É na defesa destes valores que estamos militando
politicamente, não em torno de uma causa partidária. Buscamos preservar os
avanços obtidos no âmbito educacional desde a constituição de 1988. Cercear a
autonomia universitária somente nos faz desviar energias daquilo que mais
gostamos e sabemos fazer em prol da sociedade: estar em sala de aula, nos
núcleos de pesquisa, nos corredores da universidade, produzindo e divulgando
conhecimento.
Para respeitar a democracia e os direitos de aprendizagem dos alunos e
alunas não basta admitir que o conhecimento se relaciona inevitavelmente com
as ideologias ou propor em sala de aula o simulacro da oposição entre dois
contraditórios para se chegar a um veredito. É necessário muito mais do que isto,
pois é preciso explicitar “o lugar de onde falamos”, isto é, os pressupostos que
embasam nossos posicionamentos e os conceitos e dados empíricos a que as
nossas proposições se referem. Ninguém é obrigado a defender uma tese na qual
não acredita e isso não invalida o caráter científico e democrático do debate.
Estas reflexões não são novidades para quem vive o cotidiano pisando o chão da
sala de aula. É a partir deste lugar que falo e escrevo e, como uma das docentes
que voluntariamente aderiu à proposta do curso “O golpe de 2016 e a nova onda
autoritária no Brasil” (nenhum dos professores foi “convidado”), me manifesto
em prol da autonomia universitária neste país.

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