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Carmen Margarida Oliveira Alveal

Carmen Margarida
Leonardo Oliveira
Cândido RolimAlveal
Leonardo Cândido Rolim
Soraya Genorrazo
Soraya Genorrazo Araújo
Araújo
Thiago
Thiago Alves Dias
Dias
(Orgs.)
(Orgs.)

ANAIS
VII EIHC
Espaços coloniais:
domínios, poderes e
representações

Natal/RN - 5 a 8 de setembro de 2018

Carmen Margarida Oliveira Alveal


Leonardo Cândido Rolim
Soraya Genorrazo Araújo
Thiago Alves Dias
(Orgs.)
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
Reitora
Ângela Maria Paiva Cruz
Vice-Reitor
José Daniel Diniz Melo

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE


Reitor
Pedro Fernandes Ribeiro Neto
Vice-Reitor
Fátima Raquel Rosado Morais
Diretora de Sistema Integrado de Bibliotecas
Jocelânia Marinho Maia de Oliveira
Chefe da Editora Universitária – EDUERN
Anairam de Medeiros e Silva

CONSELHO EDITORIAL DAS EDIÇÕES UERN


Emanoel Márcio Nunes
Isabela Pinheiro Cavalcante Lima
Diego Nathan do Nascimento Souza
Jean Henrique Costa
José Cezinaldo Rocha Bessa
José Elesbão de Almeida
Ellany Gurgel Cosme do Nascimento
Ivanaldo Oliveira dos Santos Filho
Wellignton Vieira Mendes

Catalogação da Publicação na Fonte.


Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.

Anais do VII Encontro Internacional de História Colonial. / Carmen


Margarida Oliveira Alveal et al. (orgs.). - Mossoró – RN: EDUERN,
2018.
2349 p.
(e-book).
ISBN: 978-85- 7621-245-4
1. História do Brasil. 2. História do Brasil Colônia 3. História Co-
lonial. I. Alveal, Carmen Margarida Oliveira. II. Universidade do Es-
tado do Rio Grande do
Norte. III. Título.
UERN/BC CDD 981.01

Bibliotecária: Rayssa Ritha Marques Gondim Fernandes CRB 15 / 812


COMISSÕES
DO VII
COMISSÃO ORGANIZADORA

Carmen Margarida Oliveira Alveal – UFRN


Leonardo Cândido Rolim – UERN
Roberto Airon Silva – UFRN
Ronaldo Vainfas – UFRN
Soraya Genorazzo Araújo – UERN
Thiago Alves Dias – UFRN

EQUIPE DE SECRETÁRIOS

Elenize Trindade Pereira


Gustavo Melo Couto
Halyson Rodrygo Silva de Oliveira
Júlio César Vieira de Alencar
Leonardo Paiva de Oliveira
Lívia Brenda da Silva Barbosa
Marcos Arthur Viana Fonseca
Ristephany Kelly da Silva Leite

BOLSISTAS

Adriana de L. Pessoa
Alan Abel C. Paiva
Cortez Rapozo de O.Junior
Danielle Bruna A. Neves
Iris Isabelle C. Cavalcanti
João Victor Soares Oliveira
Kallyane Santayne P. da Silva
Rodrigo Santos do Nascimento
Sarah Karolina Sucar Ferreira
COMISSÃO CIENTÍFICA

Alírio Carvalho Cardoso – UFMA


Ana Paula Medicci – UFBA
André Cabral Honor – UNB
Antonio Filipe Pereira Caetano – UFAL
Augusto da Silva – UFS
Carla Mary da Silva Oliveira – UFPB
Edna Maria Matos Antônio – UFS
Eliane Cristina Deckmann Fleck – UNISINOS
Erica Lopo de Araújo– UFPI
Fabrício Lyrio Santos – UFRB
Gian Carlo de Melo Silva –UFAL
Hal Langfur - University of Buffalo, EUA
Helidacy Maria Muniz Corrêa – UEMA
Jorge Cañizares-Esguerra - University of Texas, EUA
Jose Carlos Vilardaga – UNIFESP
Juciene Cardoso – UFCG
Mairton Celestino da Silva Celestino – UFPI
Márcia Eliane Alves de Souza e Mello – UFAM
Martha Daisson Hameister – UFPR
Mônica da Silva Ribeiro – UFRRJ
Nauk Maria de Jesus – UFGD
Rafael Ivan Chambouleyron – UFPA
Rafael Ricarte da Silva - UFPI
Raimundo Nonato Souza – UEVA
Ricardo Pinto de Medeiros – UFPE
Suely Creusa Cordeiro de Almeida – UFRPE

COMISSÃO AVALIADORA DE BANNERS

Almir Leal de Oliveira – UFC


Angela Ballone – Università di Sassari
Antonio Filipe Pereira Caetano – UFAL
Denise Vieira Demétrio – SEEDUC-RJ
Erica Lopo de Araújo – UFPI
Evandro dos Santos - UFRN - Coordenador da comissão
Fabiano Vilaça dos Santos – UERJ
Jesús Bohorquez Barrera – ICS-UL, Portugal
Nauk Maria de Jesus – UFGD
Kittiya Lee – California State University, EUA
Rafael Ricarte da Silva – UFPI
Rafael Ivan Chambouleyron – UFPA
Reinaldo Forte Carvalho – UPE
SUMÁRIO
23 APRESENTAÇÃO

25 SIMPÓSIO TEMÁTICO 01
Fronteiras e relações transfronteiriças na América colonial

25 Desertores portugueses no Rio Grande de São Pedro Espanhol: Análise de casos


em uma região de fronteira (1763-1776)
Luísa Caiaffo Valdez

43 Navegação e rotas atlânticas no Brasil holandês: 1630-1644


Manuel Silvestre da Silva Júnior

59 Elite local e fronteiras na Amazônia: instituições, sociedade e poder no Pará co-


lonial (1700-1750)
Rafael Ale Rocha

73 O Escolteto durante o período Nassoviano


Thiago Soares de Macedo Silva

85 O rio Madeira e suas fronteiras


Vanice Siqueira de Melo

99 SIMPÓSIO TEMÁTICO 02
Ideias, práticas e representações da missionação jesuítica na modernidade:
colonia- lismo e colonialidade nas Américas, Ásia e África.

99 Entre Cabo Verde e Brasil estudo comparativo da presença jesuítica nos conti-
nentes africano e americano, ao longo do século XVII
Fábio Eduardo Cressoni

111 Contatos transfronteiriços na Amazônia colonial: a correspondência entre os je-


suítas Louis de Villette de Caiena e José Lopes de Belém (1733)
Karl Heinz Arenz

132 Mulheres e Companhia de Jesus nas missões do Rio Grande


Maria Emilia Monteiro Porto
Os Franciscanos e os Gentios (séc. XVI e XVII): A atuação Franciscana na conquista terri- 141
torial, espiritual e cultural do Brasil
Peter Johann Mainka

SIMPÓSIO TEMÁTICO 03 163


Escravidão e Mestiçagens em perspectivas conectadas: povos e lugares em suas
formas de trabalho, sociabilidades e religiosidades. (séculos XVI-XIX).

Seguindo os rastros da impunidade: escravização e reescravização ilegais no Ceará do 163


século XIX
Antonia Márcia Nogueira Pedroza

Religião e dinâmicas de mestiçagens na comarca do Serro do Frio: irmandades, devo- 182


ção e sociabilidades no tempo da escravidão – século XVIII
Ariel Lucas Silva

“Quem sai aos seus não degenera” - Juliano Moreira e a teoria abrasileirada da degene- 195
rescência - uma trajetória intelectual à luz dos conceitos das mestiçagens, mobilidade,
trânsito cultural e mediações
Evandra Viana de Freitas

Pretos e crioulos: atuação e mobilidade de agentes não mestiços no Sertão da Bahia do 217
século XVIII e XIX
Ocerlan Ferreira Santos

Porto Seguro e o processo de mundialização ibérica no Brasil 234


Pedro Ivo Moreira Gomes Rodrigues
Marcello Moreira (orientador)

As Festas Reais no mundo atlântico: práticas festivas na cidade colonial do Rio de Janei- 252
ro (segunda metade do século XVIII)
Roberta Martinelli e Barbosa

Entre liames e redes: do ofício mecânico, das primeiras letras e, das patentes à mobilida- 268
de social das famílias dos livres de cor na Comarca do Rio das Mortes (1770-1850).
Sirleia Maria Arantes

Redes de sociabilidade na luta pela liberdade 289


Sven Korzilius
303 SIMPÓSIO TEMÁTICO 04
Governo e dominação: práticas e estratégias discursivas na administração
da Amé- rica portuguesa.

303 Jesuítas: A palavra como instrumento de missionação


Maria Valdenice Soares Craviée.
Aparecida Valéria Salviano de Souza

314 Disputas por soberania e uso da terra nos sertões minerais do Sul (1750-1768)
Denise A S de Moura

330 Em nome do Rei: a história da diplomacia no século XVII


Luiz Felipe Vieira Ferrão

347 SIMPÓSIO TEMÁTICO 05


Práticas e instituições culturais e educativas na América colonial.

347 Legados das Luzes: a ciência e a educação transmitidas em testamento do sécu-


lo XVIII ao século XIX.
Antonio José Louro da Silva.

Bourdieu para pensar a História da Educação: família e educação em Minas no


358 século XVIII
Fabrício Vinhas Manini Angelo

Pedagogia jesuítica na Amazônia colonial: teoria e prática


373
Jane Elisa Otomar Buecke

388 Educação Feminina: entre práticas escolares e não escolares como possibilida-
des de pesquisas em História da Educação no período colonial
Nelian Karolina Belico Marques Scarano

401 Educação e Conhecimento: o Iluminismo português e a construção da civilidade


no Século das Luzes
Tiago Silva Medeiros

SIMPÓSIO TEMÁTICO 06
417
Instituições e comércio.
A conjuntura econômica transatlântica durante o século XVIII: o caso do Rio de 417
Janeiro
Fábio Pesavento

Homens do Antigo Regime nos tempos da independência: trajetórias políticas de nego- 440
ciantes de Ouro Preto nas primeiras décadas do século XIX
Leandro Braga de Andrade

A prática mercantil e as instituições informais nos sertões da América Portuguesa - século XVII 463
Raphael Freitas Santos

SIMPÓSIO TEMÁTICO 07 487


O governo da justiça: poderes, instituições e magistrados (sécs. XVII-XIX).

As argumentações da liberdade: autos cíveis da cidade de São Paulo, século XVIII 487
Felipe Garcia de Oliveira

“O lucro é uma benção se não for roubado”: o ouvidor-geral João Bernardo Gonza- 500
ga em Pernambuco (1750-1757).
Paulo Fillipy de Souza Conti

SIMPÓSIO TEMÁTICO 08 517


Arte na América portuguesa: iconologia, iconografia e intertextualidade

Apropriação de imagens gravadas e hibridização iconográfica: a construção de um 517


modelo de santidade franciscano a partir da azulejaria da América Portuguesa
Aldilene Marinho César Almeida Diniz

A iconografia dos painéis azulejares da capela-mor da Ordem Terceira do Carmo de 531


Cachoeira-BA
Darlane Silva Senhorinho

O beijo da fonte: as práticas culturais à beira dos chafarizes no mundo luso-brasileiro 549
Francislei Lima da Silva
558 A presença de São Benedito nos conventos franciscanos do nordeste no Brasil
Colonial.
Ivan Cavalcanti Filho

581 Repercussões da arte colonial no conjunto arquitetônico religioso do Senhor do


Bon- fim de Chorrochó
Jadilson Pimentel dos Santos

593 A narrativa plástica dos quinze mistérios do rosário no forro da nave da capela de
Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da Vila de São José, MG (c. 1820)
Luciana Braga Giovannini

616 Nascimento e conversão de São Francisco de Assis em azulejos


Sílvia Barbosa Guimarães Borges

629 SIMPÓSIO TEMÁTICO 09


Representações da África e do Oriente: formas de ler e pensar os domínios
portu- gueses do colonial ao pós-colonial.

“Para favorecer a cristandade”: As iniciativas de conversão aos “meninos” em Goa


629
(1540-1606)
Camila Domingos dos Anjos

641 Nos paradigmas do pensamento pós-colonial: abordagens e desafios das inter-


disciplinaridades em África e em Ásia no ensino de História
Jorge Lúzio

652 Lunyu e a Representação jesuítica de Confúcio para a Europa.


Renan Morim Pastor

665 Os Japoneses no Pensamento Racial de Alessandro Valignano, SJ (1539-1606)


Rômulo da Silva Ehalt

679 SIMPÓSIO TEMÁTICO 10


Cultura Escrita no mundo ibérico colonial: manuscritos e impressos.

679 Usos de The HistoryofAmerica (1777), de William Robertson, nas memórias de


Alexandre Rodrigues Ferreira escritas durante a Viagem Filosófica (1783-1792)
Breno Ferraz Leal Ferreira
A guerra da Restauração nos materiais impressos de notícias em Madrid e Lisboa (1640-1668) 691
Caroline Garcia Mendes

A introdução de conceitos, estruturas textuais e gêneros da cultura escrita castelhana 706


nos textos alfabéticos das histórias mexicas pictoglíficas produzidas nos séculos XVI
e início do XVII
Eduardo Henrique Gorobets Martins

A circulação de um nobre português e a manutenção do Império: o caso de D. Vasco 727


de Mascarenhas na Cidade da Bahia (1626-1634; 1638-1640)
Érica Lôpo de Araújo

Bartolomé de Las Casas: uma brevíssima narrativa do Novo Mundo 742


Felipe Henrique Cadó Salustino
Sebastião Leal Ferreira Vargas Netto

Cultura Escrita na Época Moderna: um olhar sobre as publicações póstumas de João 763
de Barros
Fernando Altoé

Tradução e circulação de obras estrangeiras no mundo luso-brasileiro: o caso do po- 782


eta inglês Alexander Pope (1769-1811)
Gabriel de Abreu Machado Gaspar

O rei, o censor e o padre: três atores e um palco na corte joanina. 794


Maíra Moraes dos Santos Villares Vianna

“Coleção das observações dos produtos naturais do Piauí”: natureza, paisagem e cir- 812
culação de saberes nos escritos do naturalista Vicente Jorge Dias Cabral, séc. XVIII.
Mairton Celestino da Silva

Entre bárbaros e fiéis: os índios do Brasil e os vassalos pernambucanos segundo a 828


crônica de Domingos do Loreto Couto (1757)
Natalia de Souza Miranda

SIMPÓSIO TEMÁTICO 11
849
História e Direito: propriedade e direito de acesso na América portuguesa.

O processo de constituição das propriedades no Ceará colonial: indígenas, colonos e 849


missionários
Darlan de Oliveira Reis Junior
859 O processo de consolidação da conquista e ocupação da parte oriental do Ma-
ranhão e no Piauí (segunda metade do século XVII e primeira metade do século
XVIII)
Samir Lola Roland

873 SIMPÓSIO TEMÁTICO 12


Um reino e suas repúblicas: escravidão, governo e sociedade (séculos XVI-XVIII).

873 O trabalho compulsório e a agência indígena sob o Diretório (1757-1798)


André Augusto da Fonseca

888 Família Gomes da Fonseca: pardos disfarçados de brancos em Pernambuco (XVIII)


Janaína Santos Bezerra

O negro na Capitania de São José do Rio Negro: trabalho e propriedade


906
Kézia Wandressa da C. Lima
Maria Luiza Fernandes

921 A Câmara do Natal e suas relações de poder no império português (1701-1759)


Kleyson Bruno Chaves Barbosa

945 SIMPÓSIO TEMÁTICO 13


Espaços da família: conflitos e solidariedades no mundo colonial.

Cristianização, Escravidão e Negociação: Famílias Escravas na Freguesia de Nossa


945
Senhora da Apresentação(1749-1770)
Danielle Bruna Alves Neves

957 Mestiçagem e relações familiares de sujeitos escravizados e forros na Freguesia


da Gloriosa Senhora de Santana do Seridó (1788-1838).
Isac Alisson Viana de Medeiros

971 A benção, compadre: redes de compadrio e interdependência social na Fregue-


sia de Viamão (1747-1769)
Israel Aquino

987 Forros: lavradores de cana e chefes de domicílio - Freguesia de Campo Grande,


Rio de Janeiro (1750-1800)
Jerônimo Aguiar Duarte da Cruz
Registros de batismo e o estudo das migrações: metodologia, análise de fluxos mi- 1006
gratórios e trajetórias familiares de migração no processo de ocupação lusitana do
atual Rio Grande do Sul (c. 1755 - 1835)
Leandro Rosa de Oliveira

“Vive a favor de seu pai”: relações de reciprocidade familiar e a estrutura agrária de 1027
São José do Taquari, 1770-1811
Sandra Michele Roth Eckhardt

Dona Rosa Maria de Mendonça: uma exposta na freguesia da cidade do Natal setecentista 1048
Thiago do Nascimento Torres de Paula

SIMPÓSIO TEMÁTICO 14 1059


Dimensões do catolicismo no Império português: instituições, práticas e repre-
sentações (séculos XVI-XVIII).

Entre o territorial e o ideológico: as esferas da religiosidade no Rio de Janeiro do sé- 1059


culo XVIII
Monalisa Pavoni Oliveira.

Enlaces e nós: as testemunhas de casamento de escravos e forros da Freguesia da 1070


Candelária / RJ, c.1750 – c. 1850.
Janaina Christina Perrayon Lopes

O projeto de intervenção social de Jorge Benci: modelos devocionais 1089


Natália de Almeida Oliveira

SIMPÓSIO TEMÁTICO 15
1111
Sujeitos, práticas e instituições nas monarquias ibéricas e seus domínios ultra-
marinos.

Os Homens de Negócio fluminenses e a mobilidade social em uma sociedade de An- 1111


tigo Regime (século XVIII)
Alana Thais Basso

Diamantes e Diplomacia O contrato e a venda dos diamantes brasileiros na Europa 1129


durante a segunda metade do século XVIII
Ernst Pijning
1139 As elites locais e as estratégias de manutenção de poder: os homens-bons da
vila de Taubaté/SP (1780-1830).
Felipe de Moura Garrido

Nos limites do “nordeste recifense”: São João da Parnaíba e o comércio de


1157
carnes salgadas no Piauí na segunda metade do século XVIII
Gabriel Parente Nogueira

1170 A Intendência da Marinha e Armazéns Reais no Arsenal da Bahia: aspectos


políticos e econômicos (1770-1808)
Halysson Gomes da Fonseca

1186 A mercê da desanexação: capitanias, territórios e governança no Norte do


Estado do Brasil (1756-1817)
José Inaldo Chaves Jr.

1199 Traficantes de escravos: estratégias socio-econômicas na colônia do Sacra-


mento em meados do século XVIII
Stéfani Hollmann

1221 SIMPÓSIO TEMÁTICO 16


Revoltas, Inconfidências e Independências: episódios, poderes e narrati-
vas das lutas políticas no Brasil – séculos XVII-XIX.

1221 Morto pelo desejo de Liberdade: a imagem de Tiradentes reabilitada em tem-


pos de República.
Carlos Lima Junior

1233 Poder, governo e conexões na América portuguesa setecentista


Charles Nascimento de Sá
André Figueiredo Rodrigues

1248 Das insolências que cometem mesmo debaixo de paz: a câmara de Natal, os
tra- tados de paz com os indígenas e as novas ameaças na capitania do Rio
Grande (1692-1720)
Júlio César Vieira de Alencar

1264 A representação de Tiradentes nos selos postais comemorativos brasileiros


Maria Alda Barbosa Cabreira
Os governadores-gerais do estado do Brasil e a guerra dos bárbaros: impli- 1276
cações políticas no processo de conquista e permanência do sertão do Assu
(1687-690)
Patrícia de Oliveira Dias

Usos do conceito de soberania e do “Direito Natural e das Gentes” em narrati- 1292


vas de lutas políticas coloniais atlânticas na crise do Antigo Regime (1776-1817)
Pedro Henrique de Mello Rabelo

O conceito de república em frei Caneca 1311


Pedro Henrique Duarte Figueira Carvalho

Negociantes e Constitucionalistas: a sedição na Praça do Comércio do Rio de 1325


Janeiro (1820-1822)
Wederson de Souza Gomes

SIMPÓSIO TEMÁTICO 17
1343
O espaço luso-atlântico em perspectiva global: circulação, poder e redes
no contexto da união de coroas ibéricas, 1580-1640.

Expansão do poder régio nas capitanias donatárias: o caso do Rio Grande nos 1343
anos inicias da união das coroas ibéricas
Elenize Trindade Pereira

Conexões da Guerra de Pernambuco com os fins monarquia hispânica a partir 1370


da trajetória de Duarte de Albuquerque Coelho
Hugo Coelho Vieira

Fazer-se mercador na colônia: Trajetórias mercantis entre o Rio da Prata e a 1383


América Portuguesa
Queila Guedes Feliciano Barros

SIMPÓSIO TEMÁTICO 18
1405
A Fazenda, os Contratos e os Contratadores na América Portuguesa, sé-
culos XVII e XVIII.

A formação da fazenda São Francisco: do genocídio as primeiras casas. 1405


Donizete Emanoel de Couto Rodrigues
1416 Arrematações de contratos régios: práticas e modos de organização na co-
marca do Serro Frio
Joelmir Cabral Moreira

1428 Dos ganhos e interesses na Real Fazenda: autos de arrematação, contratado-


res, economia e fiscalidade na capitania do Rio Grande (1673-1723)
Lívia Brenda da Silva Barbosa

1444 Os contratos da dízima da Alfândega de Jerônimo Lobo Guimarães:ganhos


eperdas nas capitanias de Pernambuco e Paraíba (1724-1732).
Luanna Maria Ventura Dos Santos Oliveira

1459 SIMPÓSIO TEMÁTICO 19


Governo, Administração e Direito na América Portuguesa (séculos XVI – XIX).

1459 O confisco sobre os jesuítas na América portuguesa: a repercussão e a adminis-


tração dos bens
Ilana Peliciari Rocha 1

1472 Um olhar sobre o juízo dos órfãos mediante as demandas das viúvas e tutoras
solicitantes. Capitania de Pernambuco, primeira metade do século XVIII
Jéssica Menezes

1489 SIMPÓSIO TEMÁTICO 20


Governanças, administração e poderes no Império português entre os
séculos XVI e XIX.

Trajetórias sociais, mercês e o contexto de conquista da terra: a atuação dos


1489
capitães-mores no Siará Grande entre 1679 e 1754
Rafael Ricarte da Silva

SIMPÓSIO TEMÁTICO 21
1511
Milícias na América Portuguesa: a dinâmica militar e sua arquitetura de
poder nos séculos XVII e XVIII.

1511 Lealdade por um fio: um estudo sobreo braço armado “pardo” no movimento
político e social ocorrido na Bahia em 1798.
Célio de Souza Mota.
A reforma militar do período pombalino: entre expectativas e possibilidades 1534
Christiane Figueiredo Pagano de Mello

“Das grandes necessidades que padecem estes poucos soldados”: considera- 1548
ções acerca do cotidiano dos praças da Cidade do Natal(1660-1701)
Maiara Silva Araújo

Forças militares em Pernambuco no século XVII 1567


Sandriano José da Silva

SIMPÓSIO TEMÁTICO 22 1579


Querelas e controvérsias - Morfologia das guerras culturais na Época
Moderna.

Concordemos em discordar: tolerância e concórdia religiosas na controvér-


1579
sia entre Erasmo de Roterdã e Martinho Lutero
Caio Affonso Leone

Manuel da Nóbrega e Pedro Fernandes Sardinha: dois projetos em confronto. 1593


Daniel Ribas Sepulveda Alves

Antigos e modernos na construção do conhecimento natural e médico do


Novo Mundo por Guilherme Piso (1658) 1610
Elisielly Falasqui da Silva

Papéis do Conflito: Capítulos contra o governo do Vice-Rei em Salvador 1623


(1663-1668)
Luis Henrique Souza dos Santos

A controvérsia dos espetáculos e o fundamento moral no século XVIII 1636


Pedro Henrique Albuquerque Cardoso Faria

Notas sobre a Justificativa da Escravização de Ambundos Segundo Baltasar 1651


Barreira: da Accomodatio Jesuítica ao Planeta Cultural (1583)
Tomás Motta Tassinari

SIMPÓSIO TEMÁTICO 23 1667


Intolerância Religiosa e Discriminação Social no Mundo Atlântico da Era Moderna.
1667 Da degeneração do homem americano à construção da moderna ideia de
raça: teorias e relatos sobre a origem da humanidade do Novo Mundo (Sé-
culos XVII e XVIII)
Bruno Silva

1683 Sobre os “ventos da terra”: a arte curativa e as obrigações com os ancestrais


na denúncia contra a escrava Vitória em 1757
Dimas Catai Santos Junior

1697 Pois o sol, as estrelas, o raio e a lua não são deus? O Tercer Catecismo y Expo-
sición de la Doctrina Cristiana (1585) - apontamentos iniciais
Mércia Dalyanne Lopes de Araújo

1709 Sodomita, herege, feiticeiro e blasfemo? O caso de Padre João de Mendonça


da Maia na Inquisição de Lisboa
Veronica de Jesus Gomes

1725 SIMPÓSIO TEMÁTICO 24


Mulheres no Brasil colonial: processos migratórios, dinâmicas relacio-
nais, saberes e práticas cotidianas.

1725 Um marido em cada margem do atlântico: a bigamia feminina como tática


de resistência (século XVIII)
Emily J. Machado

1740 Regências matriarcais: estratégias testamentárias e poderes femininos no


Maranhão setecentista
Marize Helena de Campos

1757 SIMPÓSIO TEMÁTICO 25


Abordagens, temas e pesquisas em arqueologia histórica e colonial no
espaço brasileiro.

1757 Da coleta assistemática à formação de coleções: relato da experiência de


Ponta Grossa (Icapuí, Ceará).
Almir Leal de Oliveira

1771 Grupos indígenas do litoral norte do Rio Grande: resquícios do contato colonial
Pedro Pinheiro de Araújo Júnior
SIMPÓSIO TEMÁTICO 26 1793
Impérios Ibéricos no Antigo Regime: política, sociedade e cultura.

As múltiplas nobrezas do ultramar: uma análise do “estado da nobreza” da 1793


obra Frutas do Brasil. Pernambuco, início do século XVIII
Ana Lunara da Silva Morais

Fidalgos da Casa Real, Nobreza da Terra e Império Ultramarino: Estratégias 1813


de integração social e práticas de transmissão de patrimônio entre ramos
secundogênitos na América portuguesa (Rio de Janeiro e Bahia, séculos XVII
e XVIII)
Eric Fagundes de Carvalho

A comunicação política no Império Português: notas de pesquisa sobre a 1828


correspondência entre a Secretaria de Estado da Marinha e Domínios Ultra-
marinos e o vice-rei marquês do Lavradio (1770-1779)
Estevão Barbosa Damacena

Circular e conhecer: estudo das trajetórias dos capitães-mores do Rio Gran- 1838
de e Ceará (1656-1755)
Leonardo Paiva de Oliveira

“Eu lhe concedo todos os meus poderes para lhes fazer guerra como se eu 1852
em pessoa assistisse”: Os capitães-mores das Capitanias do Norte e a ques-
tão das matérias de guerra e de paz (1660-1720)
Marcos Arthur Viana da Fonseca

A escolha dos secretários de governo das Minas Gerais: os editais de 1720 e de 1731. 1873
Thiago Rodrigues da Silva

Territórios e fronteiras na conformação do Império – a vila de Caetité-BA no 1889


Antigo Regime português tardio (1808-1820)
Zezito Rodrigues da Silva

SIMPÓSIO TEMÁTICO 27
1905
Edificar ou Transgredir? Inquisição, clero e conexões religiosas nos
mundos ibérico e coloniais.
1905 Bem me quer, mal me quer: crime e sexualidade e a mácula feminina no
Brasil Colônia
Aieska Pandolfi Monfardini

A heresia judaizante: uma análise teórica no contexto da Inquisição portuguesa


1917
Anderson Cordeiro de Moura
Marcos Antonio Andrade Silva

1925 Inquisição e cristãos-novos: Confisco de bens na Capitania de Pernambu-


co e terras periféricas (c.1650- c.1740)
Davi Silva

1942 Identidades profanas: breve análise de casos de réus do Santo Ofício de


Goa (séc. XVI-XVII)
Eduardo Borges de Carvalho Nogueira

1963 O Santo Ofício no Brasil entre medos e resistências: Bahia, Capitanias do


norte e Grão-Pará (séculos XVI-XVIII).
Halyson Rodrygo Silva de Oliveira

1977 Bolés, a Inquisição na América Portuguesa e a polêmica proveniente da


França Antártica no século XVI
Jorge Luiz de Oliveira Costa

1994 Calundus, magia erótica e sedução nos caminhos das Minas do século XVIII
Lisa Batista de Oliveira

2014 Terras de mouros, lei de gentios: o caso de Lopo Álvares e a Inquisição de


Goa no século XVI
Luiza Tonon da Silva

A inserção do juiz de fora na estrutura judiciária do Brasil colônia: expan-


2027 são do controle régio ou aprimoramento da justiça?
Marcelo Lunardi Carmo

2046 Seria o curandeirismo apenas magia?


Mayara Aparecida de Moraes.
Igreja, poder e controle social no Bispado do Maranhão 2058
Rafael de Lima Ribeiro

Em defesa da “cidadela de virtudes”: as religiosas como agentes no processo de afir- 2069


mação do Convento de Santa Mônica de Goa
Rozely Menezes Vigas Oliveira

Religião, política e poder: a Inquisição na América Portuguesa setecentista nas visita- 2084
ções do Santo Ofício em uma Capitania de Minas
Simone Cristina Schmaltz de Rezende e Silva

SIMPÓSIO TEMÁTICO 28 2099


Escravidão atlântica em impérios ibéricos: Estudos do passado, problemas do presente.

A composição do perfil das escravarias como elemento das estratégias adotadas pe- 2099
los proprietários de esscravos. Campinas, 1778-1829.
Carlos Eduardo Nicolette
Felipe Rodrigues Alfonso

SIMPÓSIO TEMÁTICO 29 2113


Povos indígenas no Brasil Colonial: territorialidades, políticas indigenistas,
agências indígenas ressignificadas na escrita da história recente.

As populações indígenas no Sub médio Rio São Francisco (século XIX): identidades, 2113
territórios, políticas e conflitos no semiárido pernambucano.
Carlos Fernando dos Santos Júnior

Trânsitos indígenas e formas de trabalho nos sertões do leste mineiro (1808-1831) 2129
Romilda Oliveira Alves

Mulheres indígenas no Rio de Janeiro: gênero e etnia na sociedade colonial 2142


Suelen Siqueira Julio

SIMPÓSIO TEMÁTICO 30 2157


A cidade colonial nos séculos XVII e XVIII: mesmo objeto, diferentes abordagens.

Da Prisão ao Poder: um estudo das Casas de Câmara e Cadeia de Minas Gerais 2157
Ana Paula Fernandes de Azevedo
2176 Vestígios da Arquitetura Colonial Natalense
Cíntia Camila Liberalino Viegas

2193 Por uma revisão do conceito de urbano nas últimas décadas do período
colonial: notas sobre o cruzamento de dados do Imposto da Décima Ur-
bana e dos Maços de População das vilas de Cunha e São Luiz do Paraitin-
ga-SP
Diogo Fonseca Borsoi

2208 Notas sobre o desenho de Sobral setecentista.


Herbert de Vasconcelos Rocha
Clóvis Ramiro Jucá Neto.

2232 De Arraial a Vila: a urbanização nas terras de Nossa Senhora da Conceição


de Macahubas, nos “sertoins do paramerim”.
José Antônio de Sousa

2247 Igreja Católica, Concentração Fundiária e (Re)Produção Do Espaço: Um Es-


tudo Aplicado à Nísia Floresta/Rn
Karina Hatsue Shiiki da Silva

2264 Relações da morfologia urbana da vila de Aracati – CE e Rio Grande – RS


durante o século XVIII
Larry Andelmo Silva de Andrade

A peleja do governador com o engenheiro: um olhar sobre a redefinição


2285 de papéis na construção do sistema defensivo da Paraíba no século XVIII
Maria Berthilde Moura Filha

2301 A espacialidade das relações no Maranhão: São Luís, cercanias e sertões


(séculos XVII e XVIII)
Mariana Ferreira Schilipake

2317 Camocim, porto do sertão: a ocupação territorial da foz do rio Coreaú no


contexto do Ceará colonial.Rafaella Fonteles
Castro Pinto

Cidades de conquista e de fronteira. O caso potiguar e senegalês (séc. XVI-XVIII)


2334
Rubenilson Brazão Teixeira
APRESENTAÇÃO

Em setembro de 2018, a Universidade Federal do Rio Grande do Norte,


em colaboração com a Universidade do Estado do Rio Grande do Norte,
sediou o VII Encontro Internacional de História Colonial na cidade de
Natal-RN. Ao longo de quatro dias foram apresentadas comunicações em
Simpósios Temáticos e banners de iniciação científica, além de realizadas
duas conferências e mesas redondas que, em seus temas, espelharam o
melhor da historiografia produzida na área atualmente. Também foram
oferecidos minicursos e houve lançamento de livros representantes da
produção historiográfica recente sobre História Colonial.

Nestes Anais estão dispostos os trabalhos completos enviados à organi-


zação do evento dentro dos prazos estabelecidos, sendo os textos organi-
zados por Simpósio Temático. É importante ressaltar que o envio poste-
rior do texto garantiu aos pesquisadores a possibilidade de incorporar as
discussões com os coordenadores e colegas de ST. Os trabalhos comple-
tos destes Anais, apesar de não representarem a totalidade das propostas
enviadas e/ou apresentadas, evidenciam o fôlego que a historiografia do
período colonial brasileiro que conta com temáticas diversas e primas de
análises distintos. Ressalta-se ainda a renovação da área, pois neste volume
poderão ser lidas pesquisas consolidadas, em desenvolvimento e iniciais.

Por fim, com estes Anais do VII EIHC, a historiografia colonial nutre-se
com pesquisas de qualidade, apresentadas e debatidas em Simpósios Temá-
ticos que se consolidam a cada evento. Assim, a Comissão Organizadora do
VII EIHC apresenta os Anais do evento e deseja boa leitura.

23
24
SIMPÓSIO TEMÁTICO 01
Fronteiras e relações transfronteiriças na América colonial

Coordenadores

Sebastián Gómez

Alírio Cardoso

Desertores portugueses no Rio Grande de São Pedro Espanhol: Análise de casos em


uma região de fronteira (1763-1776)
Luísa Caiaffo Valdez1

Em uma realidade de disputas de domínios e como um dos desdobramentos da Guerra dos Sete
Anos na América, a vila portuguesa de Rio Grande de São Pedro foi invadida no ano de 1763 por tro-
pas espanholas comandadas por Don Pedro de Cevallos, como parte de uma campanha militar contra
este e outros assentamentos portugueses na América meridional. Consequentemente, Rio Grande
permaneceu ocupada e anexada aos domínios espanhóis até o ano de 1776, vinculada diretamente ao
governo de Buenos Aires. Neste espaço de fronteiras – as quais entendemos não eram só imperiais,
mas onde as disputas entre estas forças se faziam tensas nestes anos e a área tornava-se cada vez mais
militarizada – temos indícios de que as relações entre súditos e demais sujeitos vinculados a ambas as
Coroas ibéricas continuou constante no período. Um dos grupos que aparece recorrentemente na do-
cumentação oficial relativa à vila em sua época de ocupação espanhola é o dos desertores portugueses.

Deste modo, este trabalho visa analisar a figura dos desertores evadidos dos domínios portu-
gueses e registrados em documentação administrativa espanhola da vila de Rio Grande, no período
entre 1763 e 17722. Pretende-se aqui interpretar qual seu papel nesta área de fronteira pensando que
impacto sua presença teve na realidade e política local. Para isto, iniciamos buscando entender quem
eram esses sujeitos registrados, por que o eram e qual a finalidade destes registros. Assim, tentaremos
compreender a influência de acontecimentos específicos a nível local, regional ou metropolitano, na
frequência dos referidos registros levantando algumas hipóteses de interpretação. Iremos, ainda, ma-
pear o destino destes sujeitos (permanência em domínios de Castela ou retorno aos domínios lusos),
quando possível, e tentar compreender o motivo destas escolhas. Por se tratar de uma pesquisa em
andamento, o recorte temporal aqui utilizado é mais reduzido do que o período total de ocupação
1 Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
2 Este trabalho faz parte de minha pesquisa de doutorado em andamento que procura analisar mais amplamen-
te o que foi o Rio Grande de São Pedro durante os anos em que esteve sob domínio espanhol.

25
espanhola, faltando apenas abarcar seus últimos anos. Cabe também ressaltar que os dados aqui apre-
sentados não devem ser tomados como finais, conclusivos ou absolutos, estão sendo entendidos aqui
apenas como tendências que ilustram realidades possíveis.

A documentação utilizada para este trabalho encontra-se no Archivo General de la Nación


(Buenos Aires, Argentina) e constitui-se de listas de pessoas e desertores que ingressaram à jurisdição
de Rio Grande desde domínios portugueses próximos3, bem como correspondências e informes ofi-
ciais trocados entre o comandante de Rio Grande, Joseph de Molina, e os governadores das províncias
do Rio da Prata em Buenos Aires entre os anos 1763-1772, seus superiores imediatos na escala ad-
ministrativa. Os recém chegados aqui estudados aparecem referidos também nas missivas de Molina
com autoridades portuguesas, como também em sumárias de investigações e em outros documentos.
Conjuntamente, estas fontes permitem complementar as informações sobre os indivíduos referidos
nas Relações, como também identificar novos casos. Assim, foram selecionados 45 documentos que
apresentavam informações sobre um total de 136 indivíduos que chegaram a Rio Grande entre 1763 e
1772 e, após a compilação dos dados presentes nestes documentos selecionados, passamos a analisar
quem eram estes sujeitos ali registrados.

Ainda como parte do recorte destes indivíduos para serem estudados, e ponto de partida da
análise, foi necessário considerar o uso do termo desertor nos documentos. Frequentemente este apa-
rece associado a atividades militares sendo que as listas que relatam a chegada de desertores (e não as
de pessoas), relatam soldados, dragões, etc. No entanto, algumas destas listas e documentos também
se referem a desertores em um sentido mais amplo, ou a indivíduos que não evidenciam ter estado
prestando serviços militares.

Temos o exemplo de uma carta que reporta a chegada de dois desertores, trazendo anexa a
informação do que foi dito por um deles, o qual é identificado como pescador e vem acompanhado
de sua família; temos uma lista que além dos soldados aparecem elencados um escravo e um paisano,
os quais também aparecem em um documento de informação como desertores e não como escravo e
“paisano”. Pode-se levantar a hipótese de que tivessem servido em algum momento ou que o escravo
estivesse servindo em nome de alguém da família de sua senhora, no entanto, não há temos como con-
firmar estas informações a partir do que aponta a documentação. O que sim é possível saber sabemos
é que existem essas outras listas de personas que incluem indivíduos de outras atividades4 e sabemos
também que o conceito de desertor/desertar nos dicionários de espanhol do final do século XVIII

3 Selecionamos inicialmente os documentos que possuíam títulos como “Noticia delas personas que hanlle-
gado àla ciudad del Rio Grande de San Pedro, desde 10 de Octubre de èste año hasta eldia dela fecha” (sic)
NOTICIA de las personas que han llegado a la ciudad del Rio Grande de San Pedro, desde 10 de Octubre de
este año hasta el día de la fecha. Rio Grande, 21/12/1763. Archivo General de la Nación. Sala IX. Gobierno del
Río Grande, 16-06-05; ou “Relacion de los Desertores de los dominios de Portugal que se remiten à Maldonado
con el Capn. de Milicias de Sta Feè…” RELACIÓN de los desertores de los dominios de Portugal que se remiten
à Maldonado con el Capitán de Milicias de Santa Fé, Don Francisco Peralta a disposición del comandante de
aquel puesto Don Juan Francisco de la Riva Herrera. Archivo General de la Nación. Sala IX. Gobierno del Río
Grande, 16-06-06. Além dos nomes dos indivíduos, estas listas podem também apresentar outras informações
como naturalidade e profissão, lugar de procedência ou lugar e data de entrada, etc.
4 As ocupações serão tratadas mais a diante.

26
registram um sentidos mais amplos dos conceitos5. Portanto, decidiu-se por considerar esta definição
mais abrangente para este trabalho.

Sabe-se que casos de deserção em uma região de fronteira não são específicos do espaço que
aqui escolhemos analisar. Sabe-se também que, localmente, este trânsito ocorreu em duas vias: tanto
pessoas partindo de espaços portugueses para os espaços espanhóis e vice-versa e a documentação en-
contrada nos permite constatar isto. No entanto, ressaltamos que nesta oportunidade escolheu-se para
este artigo estudar apenas os casos daqueles que estão passando dos domínios portugueses para os
espanhóis e dentre estes, especialmente, analisar aqueles que seriam os outros em domínios que recém
adentram. Esta escolha determinou a seleção da documentação a ser trabalhada aqui, deixando-se de
lado aquela que trata tanto de evasões espanholas como do retorno destes aos domínios espanhóis ou
da preocupação das autoridades de Rio Grande do período 1763-1776 com esta realidade. Esta outra
faceta do processo que aqui será observado decidiu-se deixar para um futuro artigo a ser realizado,
como continuidade do presente.

Os desertores

Das 136 pessoas que identificamos nos registros, 63 possuem naturalidade expressamente in-
formada (46%), onde é possível perceber a variedade de naturalidades que possuíam aqueles que
circulavam na região e que transpunham os limites dos domínios ibéricos. Se dividirmos as naturali-
dades informadas para estes 63 sujeitos por grandes regiões, obtemos a tabela seguinte:

Tabela 1 – Naturalidades por região

Região Naturalidade Indivíduos por natu- Total indivíduos por


ralidade região
América portu- São Paulo 9 28
guesa Rio de Janeiro 7
“das Minas” 4
Pernambuco 2
Rio Grande 1
Laguna 1
Bahia 1
Colônia 1
Chuí 1
“das Indias” 1

5 Desertar, segundo o dicionário de autoridades de 1731, refere-se metaforicamente a apartar-se, separar-se


de um corpo. O mesmo conceito, se repete do mesmo modo no dicionário usual da Real Academia Española
(RAE) de 1780 e 1783. Mas, desertar em RAE Usual de 1791 aparece como “1. Desamparar, abandonar el solda-
do sus banderas [...] 2. Familiar. Abandonar las concurrencias que se solian frequentar...”. No mesmo dicionário,
desertor é o soldado mas também, em segunda acepção, “el que se retira de alguna concurrencia”

27
Portugal Lisboa 7 12
Braga 1
Porto 1
Caiscais 1
Fonte de Lima 1
“Portugal” 1
Missões São Miguel (Missões) 4 9
São Nicolau (Missões) 2
“Missões” 3
Ilhas portuguesas Ilha da Madeira 1 6
Ilhas Terceiras 2
"Ilhas" 3
África Angola 3 3
América espa- Paraguai 1 3
nhola Tucumán 1
Montevidéu 1
Espanha Andaluzia 2 2
Total 63
Fonte: produção da autora

Embora estes dados possam estar influenciados pela falta de informações mais completas acer-
ca dos demais indivíduos encontrados, causada pelo silêncio de parte dos documentos (possivelmen-
te pelas escolhas ao registrá-los e/ou pelo extravio de papéis), os números obtidos podem indicar
algumas tendências sobre estes desertores. Foram registradas 5 pessoas de origem espanhola (2 da
Espanha e 3 da América espanhola), mas estas certamente não foram as únicas desta naturalidade a
atravessarem a fronteira. Sustenta-se aqui que estes 5 casos identificados correspondam a sujeitos em
tentativa de retorno hispânicos depois de um período de deserção. Por não ser o tipo de situação prio-
rizadas neste trabalho, tal como explicamos logo acima, a documentação que trata das evasões desde
domínios espanhóis ou o regresso a este não foi considerada aqui e não, assim, será aprofundada a
análise destes 5 espanhóis encontrados, pelo menos pela maior parte deste trabalho.

Um segundo aspecto que fica aparente destes números é a presença de apenas três pessoas
naturais da África, as quais são também identificadas como escravas. Isto chama a atenção já que o
número de escravizados encontrados (tal como detalharemos mais adiante) é bastante superior a estes
casos, mas, devido ao pouco detalhamento a respeito de suas identidades ou origens, somente nos é
possível saber a naturalidade de 5 deles. Assim, acreditamos possível que o número de africanos que
chegaram a Rio Grande tenha sido algo mais expressivo do que apenas estes indivíduos de que temos
aqui notícias. Também sustentamos que alguns lugares apontados na tabela acima –principalmente os
da América portuguesa– poderiam ter números um pouco mais elevados se soubéssemos mais sobre
estes escravizados6; do mesmo modo, com informações mais completas sobre este grupo de sujeitos,
poderíamos ter outros lugares contemplados na mesma lista.

6 Além dos três angolanos citados, temos informação de mais outros dois escravizados. Um é natural de São
Paulo e outro “das Índias”.

28
A análise da tabela também aponta que entre as 136 pessoas que encontramos, 9 foram iden-
tificadas como naturais do povo de São Miguel, do povo de São Nicolau ou, simplesmente, das “Mis-
sões”/“povos das Missões”. Todos estes missioneiros, o terceiro grupo mais representativo em origem,
aparecem identificados com seus nomes e sete deles estão descritos como “índios” (acreditamos que
os dois que não estão descritos deste modo também o sejam tanto por sua naturalidade como pelo
próprio nome). No entanto, quanto às demais informações pessoais, assim como os escravos e negros,
muito pouco é informado nos documentos acerca destes indivíduos. Sua presença em Rio Grande,
marcada por uma passagem anterior pelos domínios portugueses próximos, indica tanto uma integra-
ção nesses domínios como também apresentam a circulação destes missioneiros nesse espaço regional
para além das divisões das Coroas europeias, tal como também o mostra a bibliografia. Esta circula-
ção, ao parecer se estende por todo o período que aqui analisamos embora não tenha sido constante
em nossos registros7.

Por último, na tabela também é possível notar que 63% dos sujeitos é de origem americana,
correspondendo a 40 indivíduos dos 63 que possuem a naturalidade especificada, somando-se os na-
turais da América portuguesa, das missões e da América espanhola. Deve-se recordar ainda que este
número provavelmente seria maior se soubéssemos a origem de todos os 136 indivíduos que aqui são
trabalhados. Esta alta evasão de americanos talvez possa ser entendida pelos argumentos do historia-
dor Pablo Birolo que, embora falando das forças armadas da Espanha, sustenta podem ser explicadas
pelo maior conhecimento do terreno e das gentes locais que estes possuíam8. Ainda, a variedade de
lugares da américa portuguesa de onde provinham estas pessoas, pode ser entendida pela própria rea-
lidade demográfica regional, um espaço em processo de povoamento territorial e, principalmente, de
militarização com chegada de tropas portuguesas recrutadas em diversas partes do Brasil9.

Resta ainda comentar sobre as pessoas cuja naturalidade não sabemos, que representam 73
indivíduos do total encontrados (ou seja, 54%). Nestes casos, pode-se entender que a falta de infor-
mação seja consequência das escolhas de “filtro” à hora de produzir os documentos. Isto, por um lado,
possivelmente está relacionado à condição do indivíduo na sociedade, já que para alguns houve mais
detalhamento de suas identidades e para outros menos. Vimos que, para citar um exemplo já comen-
tado, este foi o caso da grande maioria dos escravizados, dos quais somente sabe-se a naturalidade de
5 pessoas desta condição (além de outras poucas e fragmentarias informações sobre eles). Os demais
cativos sobre os quais não conhecemos a origem, somados a outros sujeitos que entendemos poder
atribuir a falta da informação de naturalidade por sua posição na sociedade equivalem a 42 (58%)
destes 73 que estamos analisando neste parágrafo.

Os restantes 31 indivíduos dos 73, entende-se aqui não ser possível explicar deste mesmo modo
a falta de dados sobre a sua naturalidade, e sim pelas características da documentação de onde obti-

7 Temos entradas registradas para 1763 e 1764, saltando depois para 1767 e novamente apenas em 1772.
8 BIROLO, Pablo. Militarización y política en el Río de la Plata colonial: Cevallos y las campañas militares con-
tra los portugueses, 1756-1778. Buenos Aires: Prometeo libros, 2014. p.113 e ss.
9 Ver, por exemplo: QUEIROZ, Maria Luiza Bertulini: A Vila do Rio Grande de São Pedro (1737-1822). Rio
Grande: Ed. da FURG, 1987. MELLO, Christiane Pagano de. Deserções e privilégios: a guerra ao Sul da Amé-
rica. MÉTIS: história & cultura, v. 3, n. 5, jan./jun. 2004.

29
vemos suas informações. Fontes como as listas de pessoas ou desertores (que, como comentado antes,
em geral caracterizam mais os indivíduos) ficam menos frequentes ao longo do período estudado na
amostra aqui selecionada, e para o final deste, a maior parte dos dados obtidos é por meio das próprias
cartas regulares entre o comandante de Rio Grande e o governador em Buenos Aires, cujo objetivo é
diferente do da documentação do primeiro tipo10. Indícios apontam que, em parte, isto se deva a uma
série de aspectos que exploraremos mais a diante, no entanto, não deve-se descartar a possibilidade
do extravio das listas e informações desta época que estamos relatando. De qualquer modo, embora a
origem destes 31 indivíduos não seja evidente, é possível perceber a vinculação com espaços de domí-
nio português que tinham, por meio de outros indícios apresentados nos documentos tais como sua
profissão/atividade: quase metade deles possui a profissão especificada, a qual está ligada à atividade
militar ou no acampamento português na próximo a Rio Grande (localizado na Banda Norte do rio)
ou em Viamão.

Se deixarmos a naturalidade de lado e olharmos para o gênero dos 136 indivíduos, percebe-
mos que uma grande maioria de homens realizou a passagem de domínios que aqui é estudado. Estes
correspondem a 96 pessoas do total da amostra (71%) e as mulheres encontradas são apenas 8 (6% do
total); dos demais 32 indivíduos (ou 23%) não foi possível identificar o gênero11. Este alto número de
homens, que certamente seria ainda maior caso fosse possível saber o gênero de todos estes sujeitos
(pois a maioria destes “sem gênero especificado” devia ser homens), era um resultado esperado na
análise. Esta corresponde à realidade demográfica apontada por estudos que analisaram a região ao
longo do século XVIII, onde novamente o processo de militarização e povoação tem influência12.

As entradas de mulheres –4 livres e 4 escravas– encontradas na amostra estão sempre vincu-


ladas às de algum homem e, por não serem figura central dos registros, seus dados são fragmentários
e em sua maioria não especificam mais do que a companhia que tiveram. Para aquelas que temos
maior informação, quatro das oito mulheres, sabemos a data de chegada a Rio Grande, naturalidade
e seus nomes: Bárbara Mogemi, Joana e Francisca (a primeira, identificada como índia, e as outras
duas como escravas13); sabemos ainda a data de chegada de uma escrava Maria, mas não sabemos sua
origem. Em todos os demais casos, as mulheres aparecem de forma semelhante a este caso: “... Diego
Gonzales [...] que llegó al cuartel del Rio Grande de San Pedro […] huido de los dominios de Portugal
con su muger, dos hijos y una negra esclava”14.

10 A possibilidade de desconhecimento desta informação sobre os indivíduos que chegavam não parece sus-
tentar-se já que a documentação em geral evidencia uma investigação e reconhecimento detalhado dos recém-
-chegados, além da riqueza de outras informações detalhadas obtidas dos sujeitos que estas cartas brindam.
11 Estão aqui incluídos aqueles sujeitos contabilizados mas que nas fontes aparecem, por exemplo, registrados
em grupos como “cinco filhos”, “seis escravos” ou “desertores de Portugal”.
12 QUEIROZ, Maria Luiza Bertulini: A Vila do Rio Grande...Op. Cit. MELLO, Christiane Pagano de. Deserções
e privilégios: ... Op.Cit.
13 Todos os nomes apresentados neste trabalho foram mantidos como constam nos documentos encontrados.
Noticia de personas que han llegado a la ciudad del Río Grande de San pedro desde 10 de Octubre de este año
hasta el día de la fecha. Rio Grande, 21/12/1763. Archivo General de la Nació. Sala IX. Gobierno del Río Gran-
de, 16-06-05. Ambas escravas de Victo Antonio, “pobre soldado casado e cheio de filhos”
14 MOLINA, Joseph de. Carta a Francisco Bucareli y Ursúa. Rio Grande, 06/06/1769. Archivo General de la
Nación. Sala IX. Gobierno Río Grande, 16-06-01. Como vemos, subordinada ao registro de entrada de um ho-
mem para este tipo de caso somente sabemos com quem chegou e data

30
Pela forma como estas mulheres foram registradas (que provavelmente tenha a ver com sua
posição social), levanta-se a hipótese de que a proporção de mulheres que atravessaram os limites
luso-espanhóis na região de Rio Grande possa ter sido um pouco maior do que a aqui encontrada. Al-
guns daqueles “sem gênero especificado” podem ter sido mulheres ou mesmo algumas destas podem
não ter sido sequer registradas de nenhum modo, não sendo possível então confirmarmos casos mais
efetivos. De qualquer modo, não parece possível que os números absolutos destas mulheres mostras-
sem um equilíbrio entre os percentuais dos gêneros, com esta hipótese o que sim haveria seria apenas
um pequeno incremento na proporção de mulheres (ou bem de famílias ou crianças).

Como vimos para o recém citado exemplo de Diego Gonzales (do ano de 1769), são encontra-
dos casos de famílias fazendo essa passagem dos domínios lusos para os hispanos na região. Bárbara,
apresentada no parágrafo anterior, chegou a Rio Grande com seu marido (que, como ela, é indicado
como índio) no final de 176315 e sabe-se também da chegada, em 1764, de um outro casal, cujo mari-
do é identificado como Domingo Pereira, natural das Ilhas16. Para além destes casos, Manuel de Sosa
(de Lisboa) chegou a Rio Grande em 1764 com sua esposa e cinco filhos, além de um outro desertor
chamado Francisco Paes que, no mesmo ano, disse ter a esposa na jurisdição de Rio Grande17. Todos
estes casos somam 4 famílias que chegaram desde os domínios de Portugal, representando 16 pessoas
do total que encontramos (pois incluem-se aqui 7 “filhos”), e um indivíduo que parece declarar ter
intensão de se reunir com seus familiares. Chama a atenção que a maior parte dos casos se concentram
no período de menos de um ano após o início do período espanhol de Rio Grande, podendo então
corresponder a famílias previamente instaladas na região, fugidas com a chegada dos espanhóis, que
fazem aqui seu retorno18.No entanto, não pode-se descartar a possibilidade de que o registro de algu-
mas famílias (embora possivelmente poucas) em anos posteriores tenha sido omitido, consequência
da mudança no tipo/foco da documentação, constatada no transcurso do período aqui estudado.

As informações obtidas sobre as ocupações ou atividades a que se dedicavam estes sujeitos no


seu cotidiano também não são completas, mas ajudam a compor um pouco mais seus perfis. Dos 136
indivíduos que estamos trabalhando aqui, apenas 46 (34% do total) não possui atividade informada
mas, cabe que se façam algumas ressalvas deste número. Dos 46 recém referidos, 4 são mulheres livres
as quais, como relatado, possuem informações incompletas por sua posição na sociedade. Também
entre estes 46 indivíduos estão contados os 7 filhos de duas destas mulheres que, por serem assim
registrados, entendemos tivessem pouca idade. Identificam-se ainda entre os indivíduos “sem ocupa-
ção” 7 dos 9 missioneiros19, sobre os quais, como visto, não é dada muita informação a respeito; apenas
é possível saber que o “índio desertor” Joseph Antonio –natural de São Nicolau– “servia ao Alferes da
15 MOLINA, Joseph de. Carta a Francisco Bucareli y Ursúa. Rio Grande, 06/06/1769. Archivo General de la
Nación. Sala IX. Gobierno Río Grande, 16-06-01.
16 MOLINA, Joseph. Relación de las personas que han llegado a esta ciudad de los dominios portugueses desde
el 25 de diciembre antecedente hasta fin del mes pasado. Rio Grande, 01/02/1764. Archivo General de la Na-
ción. Sala IX. Gobierno Río Grande, 16-06-05.
17 MOLINA, Joseph. Relación de las personas que han llegado a esta ciudad de los dominios portugueses desde
el 25 de diciembre antecedente hasta fin del mes pasado. Rio Grande, 01/02/1764. Archivo General de la Na-
ción. Sala IX. Gobierno Río Grande, 16-06-05.
18 Sobre estes casos ver: QUEIROZ, Maria Luiza Bertulini: A Vila do Rio Grande...Op. Cit.
19 Contam-se 7 aqui pois um destes missioneiros foi contado entre as mulheres livres.

31
Companhia de Granadeiros do Rio de Janeiro”20. Deste modo, embora as lacunas da documentação,
pode-se supor que os outros 7 missioneiros desemprenhassem funções de serviços semelhantes, com
provável integração na sociedade lusa local, tal como o caso de Joseph Antonio.

Ressalta-se também que dentre os mesmos 46 sujeitos se encontram 2 espanhóis, os quais,


como já especificamos, não são tidos em conta nesta análise. Finalmente, neste mesmo grupo sem
atividade especificada estão o “mulatinho Silvestre” e 7 outras pessoas que aparecem designados so-
mente como “negro”, os quais, pelas designações que recebem podemos inferir se tratassem de um
jovem e sete adultos escravizados. Assim, todos estes ressalvados até agora, mas que sabe-se porque
não tem a profissão especificada ou que pode-se supor qual era embora não expressamente informada,
somam 28 dos 46 indivíduo sem ocupação na documentação. Restam então os demais 18 dos mesmos
46, sobre os quais realmente não se tem informações sobre a ocupação –isto possivelmente devido,
novamente, às características da documentação trabalhada que, a partir de 1767, se modifica e os re-
gistros obtido passam a ser menos precisos quanto às identidades. Casualmente, 4 destes 18 casos são
anteriores a este ano, os quais são os únicos dos “sem ocupação” que temos informação do nome dos
sujeitos. Dos 14 demais, que não é possível saber nem a profissão nem o nome, os registros os apre-
sentam como variações de “oito desertores dos domínios de Portugal”21.

Por outro lado, identifica-se a que se dedicavam 90 do total de indivíduos22 que, tirando os
outros três espanhóis, terminam por ser 87. Deste modo, sabe-se que desertaram para o Rio Grande
espanhol um total de 50 pessoas (56% dos 87) vinculadas a atividades militares (dragões, soldados
de infantaria, etc.), além de 4 identificadas como marinheiros (5%). Pode-se ver que o número de
sujeitos envolvidos diretamente com atividades militares é o de maior expressão entre as ocupações
encontradas nos registros, o que explica-se novamente pela composição demográfica da região, em
que o número de envolvidos em tropas, milícias e etc. era bastante elevado, tal qual caracteriza uma
região de fronteira em conflito23. O segundo grupo mais representativo de chegados a Rio Grande,
o dos escravizados, está composto por 29 indivíduos (33%; 25 homens e 4 mulheres) identificados
expressamente como tais. No entanto, deve-se recordar aqueles outros 8 indivíduos que, pelo modo
à como são designados nas fontes (apenas como “negros” e “mulatinho”), também provavelmente o
foram. Todos somados –considerando essa suposição verdadeira– o número de cativos ascende para
37. As demais ocupações identificadas ficam bastante distantes numericamente em relação às anterio-
res e correspondem a 2 “paisanos”/lavrador, 1 frei e o “índio desertor” Joseph Antonio, citado antes.

Reformulando-se o gráfico de proporções segundo os números e ressalvas expostas anterior-


20 Declaración de un indio desertor de la Banda Norte que llegó nadando a la taratana la noche del 22 de enero
de 1772. Rio Grande, 01/02/1772. Archivo General de la Nación. Sala IX. Gobierno Río Grande, 16-07-01.
21 MOLINA, Joseph de. Carta a Francisco Bucareli y Ursúa. Rio Grande, 06/04/1770. Archivo General de la
Nación. Sala IX. Gobierno Río Grande, 16-07-01. Considerando que os registros tendem a chamar desertores
no sentido mais militar do termo, podemos supor que talvez uma parte, senão todos, destes registros se tratas-
sem de militares. Sabemos ainda que são pessoas diferentes pelas datas de chegadas a Rio Grande.
22 Os quais, como indicado no parágrafo anterior, são identificados com os nomes. Aparecem nos registros
como "três soldados de infantaria desertores dos domínios de Portugal", por exemplo.
23 Ainda, possivelmente haveria entre aquelas 18 pessoas das quais não temos informação sobre as ocupações
alguns indivíduos mais que envolvidos com atividades militares, encorpando um pouco mais este te número
expressivo.

32
mente é possível ver:

Gráfico 1 – Ocupação do total de indivíduos

Fonte: produção da autora. Total = 131 indivíduos. Não se incluem de origem espanhola

Outras informações como idade, estado civil, filiação embora apareçam para alguns indiví-
duos, não são o suficientemente recorrentes para que se pudesse analisá-las.

Os motivos das deserções

Os motivos pelos quais estas pessoas escolheram desertar é algo mais complexo de compreen-
der, visto que os registros não se preocuparam com este aspecto. No entanto, algumas suposições
podem ser feitas. Ao parecer, a maioria dos escravos escapou de seus amos em espaços portugueses
e passou as fronteiras de domínios fugido, tal como é possível ver, inclusive, nas reclamações de de-
voluções presentes em cartas das autoridades portuguesas remetidas ao comandante espanhol de Rio
Grande e a intensa e constante discussão sobre os acordos de devolução. Nestas tentativas, talvez bus-
cassem evitar servir nas tropas em nome de outros como “personeiros” compulsórios ou alimentas-
sem alguma possível promessa de uma vida livre do lado espanhol24. Mas, para o caso dos cativos que
aparecem chegando à Rio Grande juntamente com seus amos ou outro sujeito livre, estas motivações
possam não ser aplicáveis e não parece que a decisão de passar para domínios espanhóis tenha sido
estratégia própria.

Vimos que Diego Gonzales chegou em 1769 ao Rio Grande de São Pedro com sua família e
24 Reclamações e acordos de devoluções são recorrentes na documentação geral de Rio Grande que utilizo
em minha pesquisa como um todo. Para mais detalhes sobre estes aspectos ou sobre os motivos de circulação
escrava na região, ver: ACRUCHE, Hevelly Ferreira. Portugal e Espanha no extremo sul das Américas: frontei-
ras, gentes direitos e soberania (1750-1830). Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2017. Tese (Doutorado
em História), Programa de Pós-graduação, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal
Fluminense, 2017.

33
uma “negra escrava”25. Gonzales é, na verdade, natural da Andaluzia, Espanha, por tanto, um dos
espanhóis de que temos notícias. Chegou a Rio Grande pedindo se restituir aos domínios de Sua Ma-
jestade Católica, após passar um tempo em domínios portugueses, para onde havia ido em um navio
de comércio, onde se dedicava à pesca e onde constituiu família, informando que casou-se na Ilha
de Santa Catarina. Com seu retorno, trazendo sua esposa e filhos (ela, possivelmente de origem por-
tuguesa), pode-se supor que houve uma tentativa de (re)construir sua vida em domínios espanhóis,
quem sabe em busca de melhores condições, e talvez também estimulado por possíveis contatos que
tinham no local. Esta possibilidade de existência de vínculos no local pode-se levantar como hipótese
também para as outras três famílias identificadas, que chegam ainda no começo do período espanhol,
talvez como retorno ao lugar que deixaram quando da invasão espanhola26. Mas, a escrava que chega
com a família de Gonzales (provavelmente a única que possuíam e de quem não sabemos o nome)
parece ingressar a Rio Grande atrelada aos planos de seus senhores, para ali, ou onde quer que se
estabelecessem, continuar servindo-lhes. Assim, esta cativa parece mover-se neste espaço fronteiriço
acompanhando as estratégias, vontades e planos de seus amos.

Sabemos também que Silvestre, o “mulatinho” que citamos antes, chega acompanhando o Frei
Antonio de San Francisco em 176427. Contudo, com os poucos dados brindados pelos documentos,
não sabemos se pertencia/servia ao religioso –acompanhando-o então na travessia– ou se apenas
havia se juntado a ele no trajeto. Somente somos informados que o frei afirmou haver saído fugido
do convento em São Paulo, mas não podemos saber a história dos dois e nem supor o motivo de sua
chegada a Rio Grande28. Identificamos também que em novembro de 1763, Manuel Guerra de los
Angeles, homem solteiro vindo de Viamão, chega ao lugar de onde é natural com 6 escravos29 e, tam-
bém, que Joseph Carlos Vicente de Sosa (homem solteiro, natural de Lisboa, que “servia nas milícias
de cavalaria” de Rio Pardo) veio de onde servia e chega à jurisdição de Rio Grande com 5 escravos no
final de 177130. Deste modo, com estes indivíduos livres identifica-se a chegada de 13 escravos, dos 37
que calculados aqui, vieram para a vila de Rio Grande por decisão de outros.

No caso de Manuel Guerra de los Angeles sabe-se que este era natural da mesma Vila de Rio
Grande, então pode-se supor como provável motivo de seu regresso vínculos que ainda mantivesse
no lugar. Para o caso de Joseph Carlos Vicente de Sosa sabemos apenas que disse ter fugido de per-

25 MOLINA, Joseph de. Carta a Francisco Bucareli y Ursúa. Rio Grande, 06/06/1769. Archivo General de la
Nación. Sala IX. Gobierno Río Grande, 16-06-01.
26 A naturalidade de seu chefe pode ser um dos motivos pelos quais a da família de Gonzales seja a única das
quatro que chega a Rio Grande em período posterior a este.
27 MOLINA, Joseph. Relación de las personas que han llegado a esta ciudad de los dominios portugueses desde
el 25 de diciembre antecedente hasta fin del mes pasado. Rio Grande, 01/02/1764. Archivo General de la Na-
ción. Sala IX. Gobierno Río Grande, 16-06-05
28 Podemos apenas indagar se Antonio de San Francisco não possuía algum tipo de contato com a região por
via da própria Ordem religiosa, pois sabemos que os padres que serviram em Rio Grande durante o período
espanhol também integravam a Ordem dos franciscanos.
29 NOTICIA de las personas que han llegado a la ciudad del Rio Grande de San Pedro, desde 10 de Octubre de
este año hasta el día de la fecha. Rio Grande, 21/12/1763. Archivo General de la Nación. Sala IX. Gobierno del
Río Grande, 16-06-05
30 MOLINA, Joseph de. Carta a Juan José de Vertiz. Rio Grande,05/01/1772. Archivo General de la Nación.
Sala IX. Gobierno Río Grande, 16-07-01

34
seguições em Rio Pardo e que lhe foi oferecido proteção regular para que continuasse em domínios
espanhóis; ao parecer, sua aparência –descrito: “está decente y manifiesta buena crianza”– e, quem
sabe, contatos que também tivesse na região lhe renderam essas garantias. Especificamente sobre os 6
escravos que acompanharam o primeiro (possivelmente) desde Viamão ou os 5 cativos que chegaram
com o segundo, não sabemos sequer se pertenciam a esses homens, ou para que os teriam trazido
consigo mas, pode-se pensar na possibilidade de que estivessem ali para serem vendidos. O que sim
parece é que o deslocamento na região desses cativos não se deveu a um plano seu de fuga31.

Foi identificado um outro grupo indivíduos que ao parecer terminaram ingressando e per-
manecendo, ao menos por um tempo, em domínios espanhóis impelidos mais pelas circunstâncias
do que por seus próprios planos. Uma carta que possui um relação de desertores anexa32 indica que
um dos indivíduos listados ficou encarregado de entregá-la ao Governador de Buenos Aires, sendo o
mesmo sujeito identificado como Joseph Pereira de Silva, Sargento de Granadeiros português captu-
rado após o ataque luso à Rio Grande ocorrido em 29 de maio de 176733. Na mesma relação também
são arrolados outros 6 soldados portugueses de infantaria34 que, por estarem junto com o primeiro e,
principalmente, por terem o mesmo destino dele (destino, adiantamos, diferente dos demais deser-
tores), acreditamos também terem participado da mesma missão militar. Assim, a circunstância de
embate bélico entre Portugal e Espanha levou estes lusos e luso-americanos não só para as fronteiras
imperiais mas também, ao realizarem o ataque, para os domínios de Espanha na América meridional.
Nesta situação, estes 7 militares adentraram ainda mais os domínios de Sua Majestade Católica como
desertores presos em combate, seja esta condição resultado da captura forçosa ou da rendição por
própria vontade, utilizando a situação a seu favor. Desta situação, podem ter aproveitando o momento
para fazer um plano de permanência.

Para todos os demais indivíduos identificados neste trabalho, as fontes apontam a pensar que
motivações particulares –tal como aos escravos em fuga– os tenha levado a executar o plano de pas-
sagem. Para a grande maioria destes sujeitos (homens ligados a atividades militares), talvez, como
propõem as interpretações mais comuns, a tentativa de fugir da compulsoriedade do alistamento ou
mesmo das condições de vida aquartelada tenha sido o motor da travessia que aqui é estudada35.
Quem sabe alguns tenham sido incitados também por vozes e promessas provenientes do outro lado
31 Cabe ressaltar ainda que entre os cativos que acompanhavam Guerra de los Angeles ou Sosa poderia haver
mulheres já que foram registrados como o grupo completo e não individualmente. Ainda assim, o restante dos
escravizados que supomos vieram de maneira independente continuam constituindo o segundo maior número.
32 MOLINA, Joseph de. Relación de los desertores de los dominios de Portugal que conduce a Buenos Aires el
Subteniente de Infantería don Pedro Alonso. Rio Grande, 03/07/1767. Archivo General de la Nación. Sala IX.
Sección Gobierno Río Grande, 16-06-06, fl. 378.
33 Importante ataque português a Rio Grande, sendo um momento de tentativa de recuperar Rio Grande dos
espanhóis mas que fracassou no objetivo. Para mais informações: MONTEIRO, Jônathas da Costa Rego. “A
Dominação Espanhola no Rio Grande do Sul (1763-1777)”. Anais do Simpósio Comemorativo do Bicentenário
da Restauração do Rio Grande, vol4, Rio de Janeiro, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro/Instituto de
Geografia e História Militar do Brasil, 1979.
34 Além de um escravo, Domingo Martinez, sobre quem daremos mais detalhes logo adiante.
35 BIROLO, Pablo. Militarización y política... Op. Cit.; ACRUCHE, Hevelly Ferreira. “‘Ya de paz, ya de Guerra’:
desertores e fugitivos nas campanhas do Rio da Prata colonial”. Revista Eletrônica da ANPHLAC, n.22, p.37-
59, Jan./Jun., 2017. Disponível em: < http://revistas.fflch.usp.br/anphlac/article/viewFile/2667/2413>. Acesso:
Jun. 2018.

35
da fronteira (tal como sabemos foi dito sobre alguns momentos de deserções do lado espanhol36) ou,
especialmente os naturais das Ilhas ou da Europa, estivessem buscando formas de permanecer na
América37. Ainda, não se pode descartar a possibilidade de que alguma destas pessoas tenha desempe-
nhado, com êxito, o papel de espião, tal como em uma das cartas Joseph de Molina levanta a suspeita
sobre 4 desertores38.

Percebe-se também que em muitos casos essa motivação foi de algum modo compartilhada
para que se pusesse em prática o plano de passagem. Assim, sabemos que 76 (58%) dos 132 indiví-
duos39 chegaram acompanhados, por familiares, amos, companheiros de serviço, etc., e que outros 7
(5%) são aqueles que acreditamos foram capturados no ataque a Rio Grande de 1767. Nos registros
de 2 indivíduos (2%) indica-se que chegaram sós à Rio Grande mas, sobre outras 47 pessoas (36%
do total) não há informações que possam esclarecer muito este aspecto. No entanto, destes mesmos
47, pelo modo como aparecem nos registros, pode-se supor que 18 o fizeram sem companhia, o que
aumentaria para 20 as chegadas individuais, enquanto descenderia para 29 o número de pessoas sobre
as quais não há indício algum sobre este aspecto.

Também pode-se considerar algumas diferenças quanto ao lugar de chegada indicado nos do-
cumentos em 30 casos40. Em alguns exemplos, os registros apontam que o lugar de chegada ocorreu
em espaços onde os desertores seriam facilmente encontrados pelas patrulhas e autoridades espanho-
las. Por exemplo, alguns dos que passaram da Banda Norte (após 1767, quando sob domínio portu-
guês) para os espaços da povoação de Rio Grande, para as ilhas a seu redor ou até para as embarcações
ancoradas no porto. Assim, nestas situações pode-se pensar que provavelmente houvesse a intenção
mais clara de passar-se para o lado espanhol. Já outros casos, em que os desertores foram encontrados,
por exemplo, nas imediações de rios que conformavam jurisdição de Rio Grande, fica a dúvida de se
pretendiam mesmo ingressar ou permanecer em domínios espanhóis ou em espaços em que estes
exerciam autoridade ou se utilizaram do argumento da deserção ao surgir a oportunidade. Nestes,
casos, no entanto, mesmo não fosse este seu objetivo, os domínios espanhóis terminaram sendo seu
destino.

Por último, pode-se pensar a frequência das chegadas desses indivíduos e sua distribuição
36 Alguns documentos se referem a “agitadores” do lado português que buscavam estimular as deserções em
tropas espanholas. Motivos como esses são os pontados por Pagano de Mello. MELLO, Christiane Pagano de.
Deserções e privilégios: ... Op.Cit..
37 Tal como como propõe Birolo e como Pagano de Mello constata em documentação para o caso português
no período. BIROLO, Pablo. Militarización y política... Op. Cit.; MELLO, Christiane Pagano de. Deserções e
privilégios: ... Op.Cit.
38 MOLINA, Joseph de. Carta a Juan José de Vertiz. Rio Grande, 18/08/1772. Archivo General de la Nación.
Sala IX. Gobierno Río Grande, 16-07-01. Esta figura do espião é identificada também por Adriano Comissoli
para um período imediatamente posterior ao que é estudado aqui. COMISSOLI, Adriano. “Bombeiros, es-
pias e vaqueanos: agentes da comunicação política no sul da América portuguesa (Rio Grande de São Pedro,
sécs. XVIII-XIX)” In: Revista de Indias, 2018, vol. LXXVIII, núm. 272, Págs. 113-146. Disponível: <https://doi.
org/10.3989/revindias.2018.004>. Acesso: set. 2018.
39 Embora não se esteja considerando aqui os espanhóis, Diego Gonzales foi incluído nesta contagem por ter
família conformada em domínios portuguese.
40 Embora não tenhamos a informação de local de chegada para todos, alguns sim o tem informado. A infor-
mação mais frequentemente encontrada é o lugar de procedência.

36
segundo os anos. Da análise desta informação se obtém o seguinte gráfico:

Gráfico 2 – Chegadas por ano

Fonte: produção da autora

Podemos observar momentos de alta incidência de chegadas nos anos de 1767 e 1772, cujos
valores superam bastante aqueles apresentados para os demais anos. Em ambos os casos a movimenta-
ção fronteiriça coincide com potencialização da tensão e da situação de guerra, que afetou diretamente
Rio Grande e seus arredores portugueses, do mesmo modo que parece ter afetado as travessias nessa
fronteira. Para o caso de 1767, como vimos, ano de ataque português, deve-se considerar que 7 dos in-
divíduos que ingressaram a Rio Grande esse ano são aqueles que entendemos foram capturados após
o ataque mas, assim mesmo, subtraindo estes casos, é notável que este ano apresenta mais chegadas
que os demais. Aqui é possível de se pensar que nestes momentos de acirramento dos conflitos possam
ter gerado um maior número de registros –pensando na possibilidade de omissões intencionais, por
exemplo, para outros períodos– para o que seria então interessante analisar se estas alterações também
se constatam nas passagens de espanhóis para o lado português. Mesmo assim, nos inclinamos aqui a
pensar que estes momento de tenção tenha aberto/intensificado brechas de passagem mais frequentes
que em outros momentos. Do gráfico acima ressalta-se ainda que os anos de 1765 e 1768 apresentam
reduções importantes no número de entradas que, na verdade, refletem falhas do conjunto documen-
tal que aqui se está analisando. A tendência e indícios documentais mostram que esses anos mantive-
ram medias semelhantes aos demais.

Os motivos dos registros

Se é complicado de se apreender os motivos das deserções nestes registros de entradas à Rio


Grande –em especial daqueles vindos dos domínios de Portugal– não é tão complicado compreender
o motivo para a criação desta documentação. Neste contexto, o controle de gentes que entravam/
permaneciam na jurisdição de Rio Grande mas, principalmente, as informações brindadas por estes
recém-chegados e os usos destas informações parecem ser aspecto importante deste trânsito regional
em épocas de tensa paz. Como explicamos antes, as fontes que registram a presença de desertores são
variadas: listas de chegada, informações em que se realizavam perguntas, cartas, etc. Nelas é possível
ver que uma parte importante dos recém-chegados passaram por uma etapa de inquirição, que incluía

37
perguntas pessoais de identificação e, principalmente após 1766, outras perguntas sobre o estado das
forças portuguesas, ou algo específico que se quisesse averiguar no momento41.

Neste processo o “reconhecimento físico” (da aparência) também tem papel relevante, pois
ajudam a atestar em alguma medida a veracidade ou fidedignidade/idoneidade da/s pessoa/s. Assim,
nosso já conhecido Joseph Carlos Vicente de Sosa foi descrito como de estado decente e “manifiesta
buena crianza”42, o que parece ter influenciado seus passos seguintes em domínios espanhóis, vê-se
também o caso de 4 soldados que serviam na Colônia do Sacramento considerados por Molina como
espiões (Francisco Acosta, Geronimo Acosta, Andres de Silva e Francisco Pereira), pois constatou
que estavam muito bem fisicamente para terem vindo desde essa povoação43; ainda, parecida descon-
fiança tem o mesmo comandante com Sebastián Martinez de Abreu e Juan Antonio Figueredo e as
informações por eles brindadas, pois considerou muito imprecisos para soldados que há tanto tempo
serviam44.

Na documentação percebe-se que a obtenção de informações sobre as forças e posições portu-


guesas passa a ser algo cada vez mais relevante nesta tarefa de registrar desertores, especialmente nos
momentos mais críticos, de acirramento das tensões entre duas Coroas ibéricas na região. Assim, é
perceptível variações, não só no número de entradas de indivíduos (avaliado pelas datas de chegada)
mas também da quantidade de registros produzidos (avaliado pelas datas dos documentos), de acordo
com os eventos; novamente os anos de 1767 e 1772 se destacam. Outra mudança notável está no tipo
de documentação que dispomos que, como comentado, possuem objetivos diferentes: até julho de
1767 foram encontradas ao menos uma lista de entradas por ano (exceto para 1765, ano que há poucos
documentos) mas, após essa data, se encontra apenas uma lista somente em 1772. Ao mesmo tempo,
aumenta a quantidade de cartas –especialmente entre Molina e o governador do momento– que se
referem a informações passadas pelos desertores provenientes dos domínios de Portugal. A falta de
listas pode ser pensada pela perda ou extravio de documentação, no entanto, isto, juntamente com o
aumento da produção de documentação diferente, parece indicar que a preocupação passou a estar
em algo novo: o foco deixa de estar na entrada de pessoas em si ou no próprio informante (tal como o
é com as listas) para estar agora nas informações que estes sujeitos poderiam brindar.

Com esta importância, as informações obtidas de diferentes desertores vão sendo juntadas e
encaixadas como peças de um quebra cabeça (juntamente com as observações das próprias guardas
espanholas no terreno), sendo reportadas a Buenos Aires e, assim, foram planejados conjuntamente a

41 Não há como afirmar que todos os desertores passaram por este mesmo processo, pois não temos a mesma
documentação para todos, (antes de 1766 identificamos notícias dos desertores por listas, que apresentam ape-
nas identificação pessoal, ou por cartas entre autoridades das duas Coroas que comentam as passagens ao soli-
citar devolução de escravos e outros bens). No entanto, é possível perceber que o procedimento era recorrente,
e que pelo menos um número importante deles passava pelo processo.
42 MOLINA, Joseph de. Carta a Juan José de Vertiz. Rio Grande,05/01/1772. Archivo General de la Nación.
Sala IX. Gobierno Río Grande, 16-07-01
43 MOLINA, Joseph de. Carta a Juan José de Vertiz. Rio Grande, 18/08/1772.
44 MOLINA, Joseph de. Carta a Francisco Bucareli y Ursúa. Rio Grande, 08/10/1767. Archivo General de la
Nación. Sala IX. Gobierno Río Grande, 16-06-06, fl. 566.

38
defesas e planos de ataque espanhóis45. Uma carta de Molina a Francisco de Bucarelli y Ursúa (gever-
nador de Buenos Aires) de novembro de 1766 inicia: “Señor. Por los informes de algunos Desertores
que han llegado ultimamente de los dominios de Portugal, y por las noticias que se han podido adqui-
rir se ha sabido: …” e continua relatando aspectos das forças portuguesas46; como esta há tantas outras.
Um dos casos mais significativos é o de Domingo Martinez –negro; “das Indias”; escravo de Juan de
Acosta Sobrino, um Alferes de milícias português e “vecino” de Viamão– que fugiu do Forte de São
Caetano em 12 de maio de 1767 e chegou à Banda Norte (quando ainda sob domínio espanhol) dois
dias depois47. Domingo teve papel importante em alertar o comandante de Rio Grande sobre o ataque
português que realizou-se em 29 de maio de 1767, informando-lhe detalhes sobre as movimentações
e formações lusas que os espanhóis vinham percebendo se realizavam no acampamento luso próximo
e territórios vizinhos. No entanto, cabe ressaltar que mesmo com a confirmação das informações pas-
sadas por Domingos, houve momentos que sua palavra foi colocada em dúvida por ser negro escravo.

Os destinos

Despois de atravessarem os limites e passado as informações que as autoridades em Rio Gran-


de julgassem necessárias, esses desertores seguiam um caminho dentro do espaços espanhóis na Amé-
rica. Segundo documento assinado pelo governador Pedro de Cevallos em 31 de agosto de 1763, onde
este encarrega o comando de Rio Grande a Joseph de Molina e lhe passa algumas ordens a seguir no
desempenho do cargo,

[...] ni los Portugueses que actualmente ay, ni à los que en adelante vinieren
de la otra Vanda se permitira queden en ninguna parte de esta Jurisdiccion,
sino que pasen con sus familias à la de Maldonado, en donde el comandante
de aquel Puesto tendrà la orden del destino que deve darles.48

Ainda, recém chegado ao posto de Governador para substituir Cevallos, Bucarelli mantem a
ordem de seu antecessor para que se remetessem os desertores para Maldonado para que de lá, o co-
mandante do posto “los haga pasar aqui ami disposicion en la forma acostumbrada…”49. Deste modo,
a não permanência de portugueses desertores em zona de fronteira era a regra por pelo menos boa
45 Constatações semelhantes: ACRUCHE, Hevelly Ferreira. “‘Ya de paz, ya de Guerra’:... op. Cit.; COMISSOLI,
Adriano. “Bombeiros, espias e vaqueanos:... op.cit.
46 MOLINA, Joseph de. Carta a Francisco Bucareli y Ursúa. Rio Grande, 29/11/1766. Archivo General de la
Nación. Sala IX. Gobierno Río Grande, 16-06-05, fl. 186. Este serve apenas de exemplo; outros casos parecidos
foram identificados.
47 INFORME que da Domingo Martinez negro, esclavo que dice era de Juan de Acosta vecino de Viamont,
que desertó del fuerte de San Cayetano la noche de doce de mayo de mil setecientos setenta y siete, y llegó a la
Banda Norte la del catorce y de allí al Río Grande a las ocho de ella. Rio Grande, 15/05/1767. Archivo General
de la Nación. Sala IX. Gobierno Río Grande, 16-06-06. Entre outros.
48 COPIA Instrucción para el Capitán Don Joseph de Molina a cuyo cargo quedan las conquista del Río Gran-
de. Rio Grande, 31/08/1763. Archivo General de la Nación. Sala IX. Gobierno Río Grande, 16-06-05.
49 BUCARELI Y URSÚA, Francisco de. Carta a Joseph de Molina. Buenos Aires, 13/01/1767. Archivo General
de la Nación. Sala IX. Gobierno Río Grande, 16-06-05.

39
parte do período que aqui é analisado e, pode-se supor que Buenos Aires era o destino final também
na época de Don Pedro de Cevallos. Assim, pode-se pensar aqui a tentativa de chegar em Buenos Ai-
res como outra possível motivação destas passagens de domínios, tal como comentam dos documen-
tos oficiais portugueses trabalhados por Christiane Figueiredo Pagano de Mello50.

Mesmo com a citada ordem de Cevallos, na documentação trabalhada somente foi possível
identificar o destino dos indivíduos a partir de outubro de 1766 pelo que, de todos os chegados antes
dessa data, nada sabemos de seus destinos. Assim, das 56 pessoas de que informa-se para onde foram
após deixarem Rio Grande, sabe-se que aproximadamente dois terços seguiram para Maldonado (36
pessoas ou 64%) conduzidos pelas guardas espanholas. Destes 36, 21 eram militares (58%), de 9 não
há registro da ocupação (25%), 4 eram escravos (11%, sendo um destes mulher)51, 1 foi descrito como
índio e outro como paisano52. Com esta partida para Maldonado provavelmente iniciaram esse cami-
nho que concluiriam em Buenos Aires no entanto, pela documentação aqui utilizada não é possível
confirma se o trajeto estabelecido pelas ordens dos governadores –ou seja, se partiram de Maldona-
do– realmente foi concluído nestes casos.

Sabemos também que, diferentemente do que se acostumava pelas ordens, 11 indivíduos (dos
56 que sabemos o destino) foram enviados diretamente para Buenos Aires. Sua maioria eram milita-
res, sendo 7 daqueles que possivelmente foram capturados no ataque de 1767 e os 2 soldados de quem
Molina suspeitou por serem soldados de experiência que pouco sabiam informar. Outro dos que fo-
ram para a capital da governação, é o nosso já conhecido Joseph Carlos Vicente de Sosa, o homem
de boa aparência que chegou de Rio Pardo com cinco escravos, a quem Molina ofereceu “protección
regular” para transitar em espaços espanhóis. Destes casos, embora com Sosa e os dois soldados sus-
peitos não se tenha confirmação de que realmente deixaram Rio Grande, pode-se ver que em algumas
ocasiões era possível que se abrisse uma exceção na trajetória destes recém-chegados. Esta alteração
parece estar ligada a casos em que eram demasiado suspeitos ou perigosos ou, ainda, quando recebe-
riam um tratamento distinto, isto parece ser confirmado também pelas próprias datas de envio para
Buenos Aires, já que já que 10 dos 11 identificados que para lá foram o fizeram em 1767; sendo Sosa
o único que foi enviado em ano posterior. Estes mesmos motivos também parecem aplicáveis para o
único escravo a ser enviado diretamente para Buenos Aires (o último indivíduo aqui de nossa lista
que para lá rumou), Domingo Martinez, o principal informante nos dias anteriores ao ataque de 1767.

No entanto, nem todos os escravos partiram para tão distante como Martinez, a maioria per-
maneceu em Rio Grande. Identificou-se 6 que la ficaram, todos aparecendo como “negros desertores
dos Domínios de Portugal” que estavam “agregados a los trabajos, los cuales no tienen sueldo, y solo

50 MELLO, Christiane F. Pagano de. “Deserções e privilégios:...” op.cit.


51 Além desta escrava, não foi possível identificar o destino outra mulher ou de nenhuma família.
52 Informam os documentos que um dos escravos e o índio não partiram para Maldonado com os demais pois
estavam doentes, pelo qual não é possível confirmar se alguma vez deixaram Rio Grande. MOLINA, Joseph de.
Carta a José de Vértiz. Rio Grande, 03/06/1772. Archivo General de la Nación. Sala IX. Gobierno Río Grande,
16-07-01.

40
seles subministra media racion.”53, em uma lista que descreve as forças do destacamento que guarnecia
Rio Grande de São Pedro em 1772. Mas sabemos também de outro dois indivíduos não escravizados
que, no ano de 1767 (antes do ataque português), também permaneceram no local, tal como permitia
a ordem de Bucarelli que mencionamos logo acima. O referido documento, que data da mesma época
da chegadas destas duas pessoas, ordenava a Molina que aos desertores portugueses “los haga pasar
aqui ami disposicion en la forma acostumbrada pero si Vmd. conoze puede ser alguno aproposito para
servir en las tropas de S.M. dara partido en el Cuerpo que elixa…”54. Assim, estes dois indivíduos são
agregados às forças espanholas na função de tambor, um na Cia. de Joseph de Molina e outro no 4º
Piquete de Dragões55.

Vemos então que era possível permanecer em Rio Grande, principalmente para o caso de
escravos, onde a mão de obra destes cativos fugidos seria utilizada para a manutenção da praça/as-
sentamento. Aqui, abre-se a possibilidade de indagarmos se o escravo e o indígena que haviam sido
designados para Maldonado, mas que permaneceram em Rio Grande por tempo indeterminado, não
tiveram sorte parecida. Do mesmo modo, também foi possível a alguns portugueses livres servirem
ao rei de Espanha, principalmente antes do ataque de 1767, via sua incorporação às tropas hispanas,
casualmente em um momento em que a documentação também parece insistir na carência de homens
nas forças do Rei Católico da região, estando em desvantagem com os inimigos lusos. No entanto, para
estes casos, não sabemos qual foi o critério de escolha nem de aceitação destes indivíduos nas tropas,
tampouco se foi resultado do pedido do desertor ou, ainda, ideia ou imposição das autoridades locais.

Por último, deve-se ressaltar que um único indivíduo encontrado terminou por retornar para
os domínios de Portugal, tendo isto ocorrido no final de 1768. Este se trata de um escravo sem nome
especificado, de propriedade do Capitão de Granadeiros português Manuel Correia Vasquez, cuja data
de chegada a Rio Grande não temos notícias. Por ser escravo, seu destino acabou por ser determinado
por uma série de discussões prévias que envolveram as autoridades lusas e espanholas locais e assim,
seus desejos ou vontades próprios não parecem ter tido peso decisivo neste processo. Este caso tor-
na-se curioso já que o referido escravo não foi o único que constou nas folhas e mais folhas utilizadas
para resolver a posse de cativos que aqui trabalhamos, mas foi o único destes sobre o qual foi possível
saber que a decisão tomada a respeito, e sua efetivação, foi a favor do retorno ao lado português56.

Dado o exposto neste trabalho, podemos constatar um trânsito de pessoas constante partindo
53 Estado general de la fuerza del destacamento que guarnece el Río Grande de San Pedro según la revista pa-
sada en 30 de septiembre de 1772. Rio Grande, 30/09/1772. Archivo General de la Nación. Sala IX. Gobierno
Río Grande, 16-07-01.
54 Grifo nosso. BUCARELI Y URSÚA, Francisco de. Carta a Joseph de Molina. Buenos Aires, 13/01/1767. Ar-
chivo General de la Nación. Sala IX. Gobierno Río Grande, 16-06-05.
55 MOLINA, Joseph de. Carta a Francisco Bucareli y Ursúa. Rio Grande, 28/04/1767. Archivo General de la
Nación. Sala IX. Gobierno Río Grande, 16-06-06, fl. 254. MOLINA, Joseph. Relación de las personas que han
llegado a este cuartel de los dominios de Portugal en los meses de enero, febrero y marzo de 1767. Rio Grande,
28/04/1767. Archivo General de la Nación. Sala IX. Gobierno Río Grande, 16-06-06, fl. 255. Foram identifica-
dos também alguns outros casos de naturais de Portugal registrados nos levantamentos de tropas realizados,
mas não apareceram nos demais registros o modo de sua chegada e inserção. Mas, justamente mostram como
estas questões de identidades são complicadas no período e especialmente na região.
56 MOLINA, Joseph de. Carta a Francisco Bucareli y Ursúa. Rio Grande, 04/10/1768. Archivo General de la
Nación. Sala IX. Gobierno Río Grande, 16-06-06.

41
de domínios portugueses em direção aos espaços espanhóis na região e no período estudados. Porém,
sabe-se que este trânsito não se restringiu ao sentido e modo aqui observados, senão que houve múlti-
plas formas de deserção. O perfil majoritário identificado refere-se a uma grande maioria de homens,
sendo a maior parte deles livres vinculados a atividades militares. No entanto, constatou-se também a
passagem de grupos variados, para além daqueles que podem ser classificados de naturalidade estrita-
mente portuguesa mas que possuíam vínculo com domínios com essa Coroa e, assim, os escravizados
representam o segundo grupo de indivíduos com considerável presença nos registros. Um outro gru-
po significativo é o de origem missioneira percebido circulando entre os domínios ibéricos da região.
Este perfil traçado coincide com o que Hevely Acruche encontra para o restante dos anos do período
espanhol em Rio Grande que não foram abarcados aqui57 e também coincide, como apontado antes,
com o perfil demográfico indicado por trabalhos anteriores para o Rio Grande de São Pedro.

O que estes perfis variados mostram, acima de tudo, é a existência da possibilidade de se inte-
grar com um ou outro domínio europeu na América na região, para além das divisões imperiais. Ao
mesmo tempo, mostram também a capacidade destes indivíduos de se reintegrar a eles por diferentes
vias e conjunturas, assim como por diferentes motivações, provavelmente devido ao amplo conhe-
cimento da dinâmicas daquela realidade. Qualquer tenha sido o caso em particular, é interessante
pensar que, em uma região de fronteiras, onde existia a possibilidade de viver às margens dos espaços
de influência e autoridade efetivos dos dois impérios ibéricos europeus –seja na ilegalidade como
“gaudérios” ou ladrões de gados, em comunidades de foragidos e indígenas que viviam na próxima
Serra dos Tapes ou etc.58, onde a amplitude do espaço podia ser um motor para estes outros tipos de
deserções59– estes sujeitos, ou boa parte deles ao menos, decidiram mudar de um domínio para outro.
Ao mesmo tempo, pôde-se ver que estas escolhas também foram úteis para as autoridades espanholas
locais, que utilizaram as informações obtidas com os recém chegados para elaborar seus planos de
ação e defesa contra o inimigo português vizinho.

REFERÊNCIAS

Documentação manuscrita

Archivo General de la Nación. Sala IX.

Gobierno Río Grande, 16-06-05.

Gobierno Río Grande, 16-06-06.

Gobierno Río Grande, 16-07-01.

57 ACRUCHE, Hevelly Ferreira. “‘Ya de paz, ya de Guerra’: op. Cit.


58 Identificamos alguns casos assim, mas pelo recorte que demos a nosso trabalho, não os incluímos aqui.
59 MELLO, Christiane Pagano de. “Deserções e privilégios:...” op.Cit.; BIROLO, Pablo. Militarización y políti-
ca… op. Cit.

42
Bibliografia

ACRUCHE, Hevelly Ferreira. Portugal e Espanha no extremo sul das Américas: fronteiras, gentes
direitos e soberania (1750-1830). Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2017. Tese (Doutorado
em História), Programa de Pós-graduação, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade
Federal Fluminense, 2017.

ACRUCHE, Hevelly Ferreira. “‘Ya de paz, ya de Guerra’: desertores e fugitivos nas campanhas do Rio
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http://revistas.fflch.usp.br/anphlac/article/viewFile/2667/2413>. >. Acesso: Jun. 2018.

BIROLO, Pablo. Militarización y política en el Río de la Plata colonial: Cevallos y las campañas mili-
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MELLO, Christiane Pagano de. Deserções e privilégios: a guerra ao Sul da América. MÉTIS: história
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MONTEIRO, Jônathas da Costa Rego. “A Dominação Espanhola no Rio Grande do Sul (1763-1777)”.
Anais do Simpósio Comemorativo do Bicentenário da Restauração do Rio Grande, vol 4, Rio de Janei-
ro, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro/Instituto de Geografia e História Militar do Brasil, 1979.

QUEIROZ, Maria Luiza Bertulini: A Vila do Rio Grande de São Pedro (1737-1822). Rio Grande: Ed.
da FURG, 1987.


Navegação e rotas atlânticas no Brasil holandês: 1630-1644
Manuel Silvestre da Silva Júnior60

Independência holandesa

Antes de se tornar uma nação independente, os Países Baixos pertenciam ao Ducado da


Borgonha. Carlos V, imperador do Sacro Império Romano-Germânico (962-1806), decidiu reunir
dezessete províncias que formariam os Países Baixos a partir da Pragmática Sanção.61 Com a Pragmá-
60 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. Bolsista
da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
61 Pragmática Sanção eram éditos, os quais falavam sobre questões de natureza estatal. DE ALBUQUERQUE,
Roberto Chacon. A revolução holandesa: origens e projeção oceânica. Perspectiva, 2014. pág.2.

43
tica Sanção promulgada em 1549, o imperador Carlos V transformou os Países Baixos em entidade
autônoma sob a coroa do império, os quais os herdeiros seriam os Habsburgos.

A Pragmática Sanção acabou por abrir caminho à independência dos Países Baixos, pois a
autoridade do imperador Carlos V no território era pouco efetiva e, consequentemente, tornando os
Países Baixos mais independentes politicamente e economicamente.62 Em meados da década de 1550,
o imperador Carlos V decidira abdicar do trono em favor do seu filho, Filipe II. Este, já sendo rei con-
sorte da Inglaterra pelo seu casamento com Maria Tudor, se tornou rei da Espanha, América, Países
Baixos e Borgonha em 1556. No final da década de 1550, Filipe II, ao contrário do seu pai, tinha como
objetivo centralizar o poder político e administrativo, como também eclesiástico do seu reinado.63

A adoção do calvinismo nos Países Baixos incomodou o monarca espanhol como também
a Igreja Católica. E o próprio rei Felipe II sabia que a posição da Igreja Católica nos Países Baixos era
crítica. A centralização real sobre os Países Baixos estava ameaçada. Para tentar evitar o colapso do
catolicismo, o rei deu continuidade à reforma da Igreja Reformada Holandesa, aplicando medidas
contra a heresia, incluindo a atividade da Inquisição Espanhola nas províncias.64

De acordo com o historiador holandês Maarten Prak, houve uma série de episódios violen-
tos contra a religião católica nos Países Baixos durante 1566. Esse movimento ficou conhecido como
Fúria Iconoclasta:

“No verão de 1566 - ano em que o preço do grão subiu a níveis sem pre-
cedentes - o descontentamento explodiu em violência. Esses surtos de desordem,
que começaram nos centros têxteis de Flandres, rapidamente se espalharam para as
cidades e logo engoliram toda a Holanda. Em toda parte igrejas foram despojadas
de seus "ídolos papais". Enquanto esta Fúria Iconoplástica se enfurecia, imagens de
santos eram destruídas e os tesouros da igreja eram roubados. Os nobres, há muito
insatisfeitos com a sua marginalização política, exigiram um maior papel político
para as províncias e relaxamento da perseguição religiosa.”65

Na Espanha, a reação do rei Felipe II ao levante calvinista foi o envio de Don Fernando Al-
varez de Toledo, duque de Alba, juntamente com um exército de 10.000 homens, para assumir o go-
verno-geral dos Países Baixos entre 1567-1573, substituindo Margarida de Parma. A primeira atitude
do duque de Alba ao chegar nos Países Baixos foi implementar o Raad van Beroerten66, o qual ficou
62 Ibid, pág.2.
63 ISRAEL, Jonathan I. The Dutch Republic: Its rise, greatness and fall 1477-1806. Oxford University Press,
1995. pág.138.
64 Ibid., pág.141.
65 “In the summer of 1566 – a year in which the price of grain rose to unprecedented heights – discontent erup-
ted into violence. These outbreaks of disorder, which started in the textile centres of Flandres, quickly spread to
the cities and soon engulfed the whole of the Netherlands. Everywhere churches were stripped of their ‘popish
idols’. While this Iconoplastic Fury raged, images of saints were smashed and church treasuries robbed. The
nobles, long dissatisfied at their political marginalisation, demanded a greater political role for the provinces
and relaxation of religious persecution”. In: PRAK, Maarten. The Dutch Republic in the seventeenth century.
Cambridge University, 2005. pág.16.
66 Conselho dos Problemas.

44
conhecido, posteriormente, como Conselho Sanguinário.67 Este conselho foi responsável por confis-
car as propriedades do rebeldes, inclusive as do príncipe Guilherme de Orange68, como também por
investigar e condenar por traição ou heresia. Muitos rebeldes foram condenados a morte durante o
governo do duque espanhol.69

Um dos fatores determinantes que culminaram no início da revolta armada, portanto, no


início da Guerra dos Oitenta Anos (1568-1648), entre Espanha e os Países Baixos, foi a aplicação de
tributos pelo duque de Alba no território neerlandês em 1568 – o décimo, vigésimo e o centésimo
centavo – especialmente o primeiro imposto, o qual seria “uma alíquota de 10% incidente sobre as
transações comerciais de bens móveis”.70

No ano de 1568 se formaria os Watergeuzen71 ou mendigos do mar, os quais eram nobres que,
posteriormente, se tornariam a força marítima dos Países Baixos contra os Habsburgos. A Guerra dos
Oitenta Anos iniciaria, oficialmente, na Batalha de Heiligerlee, em maio de 1568, onde Luís de Nassau
venceria o conde de Aremberg.72

Desde o início da Guerra dos Oitenta Anos, os mendigos do mar tiveram maior êxito nos
anos iniciais do conflito, atuando com embarcações a partir da cidade alemã de Emden. Os mendigos
do mar: “interromperam o tráfego marítimo ao redor das costas marítimas dos Países Baixos, mas
efetuaram uma série de desembarques, saqueando mosteiros e pilhando suprimentos”.73

Em 23 de janeiro de 1579, as províncias da Holanda, Zelândia, Utrecht, Groninga e os nobres


da Guéldria e Zutphen assinariam o acordo que formalizaria a União de Utrecht, a primeira Consti-
tuição holandesa. Nos meses seguintes, outras províncias se juntariam a união, entre elas a Frísia e a
última a assinar o acordo, Drente, já no ano de 1580.74 Nasceria assim a República das Sete Províncias
Unidas dos Países Baixos do Norte.

A União de Utrecht era composta por um preâmbulo e 26 artigos. Alguns artigos são de
importância fundamental para entender o funcionamento da administração da Republica das Sete
Províncias. O artigo VIII, por exemplo, previa o serviço militar obrigatório. O artigo IX diz que “ne-
nhum acordo nem tratado, de trégua nem de paz, poderá ser feito, nem serem provocadas guerras,
nenhum imposto ser cobrado, nenhuma contribuição ser coletada, concernente a generalidade desta
União, sem a decisão e comum consentimento de todas as mencionadas províncias”.75 Os artigos X e

67 PRAK, Maarten. Op. Cit. pág.17; DE ALBUQUERQUE, Roberto Chacon. Op. Cit. pág.45.
68 Guilherme de Orange, a esta altura, não estava mais presente nos Países Baixos e não era mais o estatúder,
sendo substituído por Maximiliano de Hénin-Liétard, conde de Boussu, ainda no governo de Margarida de
Parma. DE ALBUQUERQUE, Roberto Chacon. Op. Cit. pág.46.
69 ISRAEL, Jonathan I. Op. Cit. pág.157.
70 DE ALBUQUERQUE, Roberto Chacon. Op. Cit. pág.46; PRAK, Maarten. Op. Cit. pág.14.
71 Ibid., pág.6; ISRAEL, Jonathan I. Op. Cit. pág.160.
72 ISRAEL, Jonathan I. Op. Cit. pág.162.
73 “disrupted maritime traffic around the coasts of the Netherlands but effected a series of landings, plundering
monasteries and pillaging supplies” Ibid., pág.163.
74 Ibid, pág.20; PRAK, Maarten. Op. Cit. pág.20.
75DE ALBUQUERQUE, Roberto Chacon. Op. Cit. pág.60.

45
XI completam o IX ao afirmar que todas as decisões seriam tomadas por unanimidade.76

Já no ano 1581, portanto, dois anos após a União de Utrecht, as Províncias Unidas do Norte
decidiriam declarar formalmente sua independência do império espanhol. A Ata de Abjuração foi as-
sinada pelos Estados Gerais em 26 de julho de 1581. O documento repudiava o rei Felipe II e segundo
Israel: “renunciou ao rei da Espanha, decretou a remoção de seu retrato das moedas cunhadas nas
províncias da União Geral, e das selos oficiais, e o apagamento do brasão dos Habsburgos de prédios
públicos e documentos”.77

A Ata de Abjuração significou o reconhecimento do abandono de Felipe II, depondo-o “por


ter violado o contrato social com seus súditos”.78 Importante escrever uma passagem da ata, funda-
mental para entender como as Províncias Unidas descreveram o rei espanhol:

“ [...] o príncipe é, para os súditos, sem os quais ele não pode ser príncipe, a
fim de governar segundo o direito e a razão, para mantê-los e ama-los como um pai
ama seus filhos, ou um pastor a suas ovelhas, que coloca seu corpo e sua vida em peri-
go para defende-los e garanti-los. E, quando ele não se comporta mais desta maneira,
mas que, em lugar de defender seus súditos, ele procura oprimi-los e afastar-lhes os
privilégios e antigos costumes, dar-lhes ordens e usá-los como escravos: ele não deve
mais ser considerado um príncipe, mas um tirano. E, como tal, seus súditos, segundo
o direito e a razão, não podem mais reconhece-lo como seu príncipe”.79

Já no fim do século XVI, a Espanha declarou sua quarta bancarrota. As Províncias Unidas,
sob o comando de Maurício de Nassau, filho de Guilherme I, conquistou cidades que estavam sob
o controle dos Habsburgos. Como a situação financeira do império espanhol era desagradável, Fe-
lipe II foi obrigado a pôr um fim no conflito temporariamente. Em 1609, uma trégua de doze anos
foi assinada entre a Espanha e as Províncias Unidas do Norte. Mesmo com o a coroa de Castela não
reconhecendo a independência dos holandeses, outras nações como a França, a Inglaterra e Veneza
reconheceram as Províncias Unidas como um território independente. Como diz Maarten Prak, “a
República Holandesa se tornou um fato”.80

76 Ibid., pág.61.
77 “renounced the king of Spain, decreed the removal of his portrait from coins minted in the provinces of the
General Union, and from official seals, and the erasure of the Habsburg coat of arms from public buildings and
documents”. ISRAEL, Jonathan I. Op. Cit. pág.209.
78 DE ALBUQUERQUE, Roberto Chacon. Op. Cit. pág.13.
79 Ata de Abjuração. Original: Plakkaat van Verlatinghe. Tradução de Roberto Chacon de Albuquerque. In: DE
ALBUQUERQUE, Roberto Chacon. Op. Cit. pág.29.
80 “the Duth Republic had become a fact”. PRAK, Maarten. Op. Cit. pág.24.

46
Figura 1 - A renúncia do rei espanhol Felipe II pelos Estados Gerais, em 1581. Interior em que os membros dos
Estados Gerais fazem o juramento.81

Expansionismo naval holandês no século XVII

A estreita ligação da Holanda com o mar se origina por volta de 1400, com a atividade pes-
queira. No século XV, é inventado a embarcação de nome haringbuis, um barco de pesca com maior
navegabilidade e velocidade, permitindo um maior afastamento da costa holandesa para a prática da
pesca. O haringbuis permitia o uso de uma rede de arrasto maior para a captura do pescado, como
também utilizar-se da tecnologia da cura.82

Esse tipo de embarcação poderia permanecer em alto mar por até dois meses, com uma tri-
81 Disponível em: https://www.rijksmuseum.nl. Consultado em: 12/10/2018.
82 “A nova tecnologia da cura, de estirpar e salgar o peixe imediatamente, desse modo assegurando a sua con-
servação, tinha sido iniciada no século XIII”. In: WALLERSTEIN, Immanuel. O sistema mundial moderno. Vol.
II: o mercantilismo e a consolidação da economia-mundo europeia, 1600-1750. Afrontamentos, 1974. pág.47.

47
pulação de dez a vinte homens.83 Entre as espécies de peixes comercializadas estavam o arenque, pes-
cado no Mar do Norte, o bacalhau, este pescado na Islândia, e até a pesca de baleias, as quais forneciam
o óleo oriundo deste animal, bastante utilizado para a fabricação de sabão.84

Figura 2 – Há dois haringbuis, nota-se os marinheiros trabalhando, puxando a rede de pesca para o barco.85

Outras embarcações holandesas se destacaram no decorrer do século XVII, como


a pinaça, o iate e o fluit (ou fluyt). O primeiro, os holandeses desenvolveram a partir do ga-
leão português, sendo “um pouco mais robusta e muito empregada nas escoltas a comboios
mercantes [...]”.86 O fluit foi arquitetado para ser uma embarcação ágil e rápida na navegação
comercial, sendo muito eficiente nesse objetivo. De acordo com Jan de Vries, “no século se-
guinte, a fluit reinou supremo tanto na marinha mercante holandesa quanto em sua indústria
de construção naval”.87 Podia também comportar algumas peças de artilharia para defesa. Já o
iate foi criado com o grande objetivo de ter velocidade nas armadas.88 Muitos iates holandeses

83 DE VRIES, Jan; VAN DER WOUDE, Ad. The first modern economy: Success, failure, and perseverance of
the Dutch economy, 1500–1815.Cambridge University Press, 1997. pág.296.
84WALLERSTEIN, Immanuel. Op. Cit. pág.47-48.
85 Disponível em: https://www.rijksmuseum.nl. Consultado em: 12/10/2018.
86CESAR, William Carmo. Velas e Canhões no expansionismo holandês no século XVII.Revista Navigator.
pág.25.
87 “[...] in the following century, the flute reigned supreme in both the dutch merchant marine and in its shi-
pbuilding industry”. DE VRIES, Jan; VAN DER WOUDE, Ad. Op. Cit. pág.296.
88 MELLO, Evaldo Cabral de Mello. A vitória da barcaça. In: Um Imenso Portugal – História e Historiografia.
São Paulo, Editora 34, 2002. pág.204.

48
foram usados no tráfico negreiro no Brasil, principalmente no período nassoviano.

Figura 3 - Willem Usselinx, idealizador da WIC.89

Invasão holandesa ao Brasil: 1630-1636

No ano de 1628, o almirante holandês Pieter Pietersz Heyn conseguiu capturar a fa-
mosa Frota da Prata em Matanzas (Cuba), obtendo um lucro para os Estados Gerais estimado
em 11.509.524 florins.90 Essa conquista, ocorrida após a perda da Bahia em 1625, foram de-
cisivas para que a WIC tomasse a iniciativa de invadir a rica, mas desprotegida, Capitania de
Pernambuco.91 Segundo Boxer, os holandeses tinham o conhecimento do desaparelhamento
das fortificações de Olinda e Recife ainda na invasão da Bahia, quando interceptaram cartas do
governador Mathias de Albuquerque.92

89 Disponível em: https://www.rijksmuseum.nl. Consultado em: 12/10/2018.


90 LAET, João de. História ou Annaes dos Feitos da Companhia Privilegiada das Indias Occidentaes Desde o
seu Começo Até o Fim de 1636. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1916, Livro 6. pág.49.
91 PUNTONI, Pedro. As guerras no Atlântico-Sul: a ofensiva holandesa (1624-1641). In: HESPANHA, Antô-
nio Manuel. (Org.). Nova História Militar de Portugal. Lisboa: Círculo dos Leitores, 2004, v. 2. pág.259.
92BOXER, Charles Ralph. Os holandeses no Brasil, 1624-1654. Companhia Editora Nacional, 1961. pág.45.

49
Tabela 193

Engenhos no território brasileiro

Livros Tratado da Tratado da Tratado Des- Livro que da História do


Terra do Terra e Gente critivo do Razão do Es- Brasil – 1627
Brasil - 1570 do Brasil – Brasil – 1587 tado do Brasil
1583-1584 – 1612-1626

Autores Pero de Fernão Car- Gabriel Soa- Diogo de Cam- Frei Vicente do
Magalhães dim res de Sousa pos Moreno Salvador
Gandavo
Locais Engenhos
Rio Grande do Nor- ----- ----- ----- 1 -----
te ....
----- ----- ----- 10 20
Paraíba
1 ----- 3 10 20
.........................
23 66 50 90 100
Itamaracá
...................... 18 36 36 50 50

Pernambuco 8 3 6 5 -----
.................
5 1 2 1 -----
Bahia
............................ 1 6 6 ----- -----

Ilhéus 4 ----- 3 ----- -----


............................
----- 3 2 ----- 40
Porto Seguro
................

Espírito Santo
...............

São Vicente
..................

Rio de Janeiro
..............

93BERGER, Paulo; WINZ, Antônio Pimentel; GUEDES, Max Justo. Incursões de corsários e piratas na costa
do Brasil. In: História Naval Brasileira. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1975. v.1.
t.2. pág.476.

50
Totais 60 115 108 167 230
Produção Anual 70.000 350.000 466.000 ----- -----
(Arrobas)

Nota-se na tabela que no final da década de 20 dos Seiscentos, chegava a 100 o núme-
ro de engenhos somente na Capitania de Pernambuco, e a WIC dispunha de uma relação des-
ses engenhos e seus respectivos proprietários, como também a quantidade de açúcar branco e
mascavado e açúcar retame produzidos. De acordo com Rômulo Luiz Xavier do Nascimento:

“[...] convém lembrar que, nos Países Baixos, o nível de informação que se
tinha em Pernambuco não era baixo. Um documento de 1623, intitulado “Açúcares
que fizeram os engenhos de Pernambuco, Ilha de Itamaracá e Paraíba”, alimentou em
muito o sonho dos holandeses de se apoderarem do “ouro branco” nordestino. Um
outro, do mesmo ano de 1623, intitulado “Uma relação dos engenhos de Pernam-
buco, Itamaracá e Paraíba”, publicado nos Países Baixos, como muitos outros pam-
phleten, que incitavam as pessoas às apostas e também ao investimento nas ações da
Companhia das Índias Ocidentais, também nos mostra a não ingenuidade batava
acerca do lugar onde estavam pisando. Não restam dúvidas de que, pelo menos uma
década antes da invasão em 1630, a WIC estava ciente da produção média da maior
parte dos engenhos do Nordeste. Pelo menos da Paraíba, Itamaracá e Pernambuco.
A relação de que dispunham discriminava o proprietário do engenho e, em seguida,
a quantidade de “açúcar macho” (branco e mascavado) e açúcar retame produzido
pelas unidades. O documento não nos fornece, porém, a precisa localização dos en-
genhos”.94

Além da produção do açúcar, havia muitas criações de gados, cabras, ovelhas, por-
cos e diversos gêneros de frutas.95Convém lembrar da pequena crise que abateu a produção
do açúcar antes da invasão holandesa. Evaldo Cabral de Mello, no livro Olinda Restaurada,
descreve os dados disponibilizados por Stuart B. Schwartz na sua obra Sugar plantation in the
formation of Brazilian society. Bahia, 1550-1835, acerca das mudanças sofridas na economia
açucareira no Brasil Colônia.

Com o método focado da construção de engenhos, Stuart B. Schwartz dividiu a pro-


dução da cana-de-açúcar em três partes, sendo a primeira um crescimento entre 1570-1585;
a segunda, uma desaceleração, entre 1585-1612; a terceira, novamente um crescimento entre
1612-1630.96 Nesse último período, o crescimento deve-se ao fato de uma nova tecnologia que
aumentava os rendimentos da cana-de-açúcar, a moenda de três cilindros verticais, conhecida
como engenho de “palitos” ou “três paus”.
94 NASCIMENTO, Rômulo Luiz Xavier do. O desconforto da governabilidade: aspectos da administração no
Brasil holandês (1630-1644). 2008. Tese de Doutorado em História na UFF. Niterói. pág.132-33.
95 MELLO, José A. G. de. Diálogos das grandezas do Brasil. 2ª Edição integral segundo o apógrafo de Leiden,
Recife, 1966, pp. 26-7. In: MELLO, Evaldo Cabral de. O Brasil Holandês. São Paulo: Penguin Classics, 2010.
pág.42-43.
96SCHWARTZ, Stuart B. Sugar plantation in the formation of Brazilian society. Bahia, 1550-1835, Cambridge,
1985, p. 171. Apud: MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda Restaurada: Guerra e Açúcar no Nordeste, 1630-1645.
São Paulo, Editora 34, 2007. pág.75-76.

51
Destarte, com todos esses detalhes sobre Pernambuco, coube a WIC, em 15 de fe-
vereiro de 1630, enviar uma frota de invasão poderosíssima, contendo 56 navios comanda-
dos pelo general Hendrick Corneliszoon Loncq, o qual era auxiliado pelo almirante Pieter
Adriaensz. Ita, pelo vice-almirante Joost van Trapeen. E como coronel das tropas terrestres foi
designado o Jonckheer Diederigh van Waerdenburg.97

Figura 4 – Chegada da armada holandesa a Capitania de Pernambuco, 1630.98

O início da ocupação não foi fácil para os holandeses. A estratégia adotada de blo-
queio naval e sítio das praças fortes não era adequada. Pensava os holandeses que, com uma
força marítima muito mais poderosa, poderiam dominar com facilidade os portos do litoral.
Segundo Evaldo Cabral de Mello, a preferência da WIC pela estratégia de bloqueio naval +
sítio das praças fortes era compreensível, pois “permitiria tirar partido da superioridade naval,
da artilharia e engenharia neerlandesas, que exigiria menores despesas, poupando gastos com
tropa numerosa”.99

Todavia, a estratégia se mostrou um fracasso, as invasões executadas na Paraíba, Rio


Grande do Norte, Alagoas e ao Cabo de Santo Agostinho não lograram êxito. O coronel Waer-

97 LAET, João de. Op. Cit. Livro 6. pág.49.


98Disponível em: https://www.geheugenvannederland.nl. Consultado em: 12/10/2018.
99 MELLO, Evaldo Cabral de. Op. Cit. pág.51-52.

52
denburch percebera que o Nordeste poderia auto abastecer-se, pois a marinha holandesa ainda
não conquistara todas as regiões, permitindo aos luso-brasileiros receberem suprimentos por
via marítima para a continuidade da resistência.100

Destarte, a estratégia de contraguerrilha tomou força. Uma contraguerrilha não so-


mente em terra, mas também no mar. Como possuíam uma força muito mais poderosa, os
holandeses cercariam os rios, portos e engenhos que abasteciam as tropas luso-brasileiras.
Segundo Rômulo Nascimento: “a partir das operações de guerrilha adotadas em 1632, em-
barcações menores como iates e chalupas passaram a ser utilizadas no bloqueio de barras e
incursões aos rios para fins de assalto e saque”.101

Os navios de pequeno porte começariam a ser mais empregados a partir de 1632, com
uma entrada para o interior de forma lenta e progressiva, os holandeses iriam vencendo os
desafios naturais e militares necessários para a sua administração. A tática de contraguerrilha
no mar passaria a acontecer em toda a costa e sistema fluvial nordestino.

Antes almirante da costa do Brasil e conselheiro político, Jean Walbeeck regressara a


Holanda em 1633, no qual preparou um relatório sobre a situação dos holandeses no Nordeste,
focando nas regiões entre o Rio São Francisco e a Paraíba. Walbeeck mostra a necessidade de
ocupar outros locais do território, principalmente a Paraíba e Ilha de Itamaracá ao norte, e o
Cabo de Santo Agostinho, este último considerado o principal porto luso-brasileiro.

“À conquista desta região consiste na conquista e anexação do Cabo de San-


to Agostinho, do Recife, da Ilha de Itamaracá e da cidadela em Paraíba, pela realiza-
ção que toda a costa poderá ser fechada ao comércio com Portugal. Entre esses pon-
tos mencionados, não se encontra nenhum porto de alguma importância, que nos
possa ser-nos prejudicial [...] o Cabo de Santo Agostinho, situado a igual distância
entre Santo Aleixo e o recife de Pernambuco, tem o porto de Nossa Senhora de Na-
zaré e os dois rios Ipojuca e Santo Antônio de Cabo aí se lançam no mar [...] por ele
o arraial é provido de farinha e comestíveis, que pequenas barcas, navegando entre
os recifes, trazem do Sul (provavelmente da Capitania da Bahia), sem que os nossos
cruzadores possam impedi-lo.”102

Walbeeck sabia da importância desses portos para os luso-brasileiros para a manu-


tenção da resistência. Seria necessário, portanto, a conquista desses locais. E fez os holandeses.
A partir de 1633, houve uma série de incursões navais com os objetivos propostos por Jean
Walbeeck nos Países Baixos. Os holandeses conquistariam a Ilha de Itamaracá em 1633, o Rio
Grande do Norte – com a tomada do Forte dos Reis Magos em 1634 –, o Forte do Cabedelo

100 Ibid., pág.54 e 60.


101 NASCIMENTO, Rômulo Luiz Xavier do. Op. Cit. pág.135.
102 Relatório do conselheiro político no Brasil Jean de Walbeeck, apresentado aos diretores da Companhia das
Índias Ocidentais á 2 de julho de 1633, lido pelos Estados Gerais a 11 de julho de 1633. In: Documentos Holan-
deses. Ministério da Saúde, 1945. pág.126-127.

53
na Paraíba, também em 1634103, o Arraial do Bom Jesus capitulou em 1635 e, por fim, o Porto
de Nazaré, no Cabo de Santo Agostinho, considerado o último ponto livre para navegação dos
luso-brasileiros, cairia em também 1635.

Período nassoviano: 1637-1644

No ano de 1636, Maurício de Nassau seria escolhido pelos Estados Gerais como o novo go-
vernador do Brasil-Holandês. De acordo com Charles Ralph Boxer, “não sabemos em quantas pessoas
teriam pensado os Heeren XIX na presente conjuntura antes de fazer a escolha final; sabemos, porém,
que após haverem consultado os Estados Gerais e o stadtholder (governador) a escolha recaiu em
Johan Maurits, conde de Nassau-Siegen”.104

Foram redigidas as condições propostas pela WIC para Nassau assumir o comando das for-
ças holandesas no Brasil. Entre estas condições, estavam a concessão do título de conde, como tam-
bém de governador, capitão e almirante-general de todas as localidades a conquistar e as que vierem
a ser conquistadas pela companhia.105 As principais tarefas confiadas a Nassau seriam a organização
administrativa do Brasil Holandês e a reativação da economia açucareira depois dos anos iniciais de
guerra.106

De acordo com Evaldo Cabral de Mello, a vinda do Conde Mauricio de Nassau ao Brasil
constituiu uma relativa paz, chamando o período de Idade de Ouro do Brasil Holandês.107 Sua comi-
tiva foi composta por pintores e cientistas, os quais tinham o objetivo de documentar o cotidiano da
vida na colônia, como a fauna e a flora. Entre os pintores, destaca-se Frans Post, que contribuiu com
inúmeras pinturas do período.108

No ano seguinte a sua chegada, o conde já demonstrava interesse em atacar à Bahia, decisão
que não permitiu a WIC enviar os reforços navais e terrestres necessários para o sucesso da emprei-
tada, mesmo assim, Nassau decidiu atacar Salvador. Os holandeses cercaram Salvador por quase um
mês, entretanto, não conseguiram obter êxito na conquista da localidade.

Uma das possíveis falhas do Conde Maurício de Nassau seria não ter aproveitado a força
marítima que possuía, permitindo que os luso-brasileiros recebessem víveres necessários para a re-
sistência. Nassau, posteriormente, em cartas aos Estados Gerais, explicava a decisão de tentar tomar a
cidade de Salvador e porque falhou na tentativa:

103 A partir desse ano, contou a WIC com reforços vindos dos Países Baixos, totalizando 45 navios. In: LAET,
João de. Livro 11. Op. Cit. pág.4-5.
104 BOXER, Charles Ralph. Op. Cit. pág.93.
105 GUEDES, Max Justo. As Guerras Holandesas no Mar: Parte I. In: História Naval Brasileira. Rio de Janeiro,
Serviço de Documentação Geral da Marinha. 1990. v.2. t.1a. pág.203.
106 MELLO, Evaldo Cabral de. Op. Cit. pág.165.
107 Ibid., pág.161.
108 Ibid., pág.162.

54
“As razões que me moveram a esta expedição foram as seguintes. Primeira-
mente, as numerosas cartas que recebemos da pátria, todas tratando da Bahia, sem,
contudo, considerarem a exiguidade das nossas forças. Outras foram as falsas infor-
mações que nos deram da fraqueza do inimigo, da sua pequena provisão de víveres e
munições, da disposição dos habitantes dali desejosos, segundo se dizia, de passarem
para o nosso lado, à vista do bom tratamento que portugueses gozam entre nós, e
da discórdia entre o governador da Bahia e o conde de Bagnuolo [...]. Não duvida-
mos também do prometido auxílio vindo da pátria, o qual esperamos antes da nossa
expedição, mas, receando com a espera perderemos a ocasião e o tempo, seguimos
sem duvidar inteiramente que ele nos fosse enviado, o que porém não sucedeu e não
pouco nos desconcertou”.109

Um dos acontecimentos mais importantes para o Brasil Holandês foi a Restauração Por-
tuguesa de 1640, com a ascensão do duque de Bragança d. João IV a rei. Nassau, juntamente com o
vice-rei no Brasil, marquês de Montalvão, negociou o fim das hostilidades entre holandeses e luso-
-brasileiros. Entretanto, antes do pedido de cessação das hostilidades que seria feito pelos portugueses
juntos aos Estados Gerais nos Países Baixos, Nassau, apoiado pela WIC, a qual via a fraqueza militar
de Portugal após a restauração, anexou Sergipe e enviou armadas que conquistariam São Luís no Ma-
ranhão, Luanda em Angola e a Ilha de São Tomé.110

A conquista de Luanda era fundamental para as pretensões holandesas, pois a cidade forne-
cia um alto número de escravos, os quais seriam fundamentais para a produção de açúcar. Antes de
dominar a cidade de Angola, o único entreposto negreiro que enviava escravos para o Brasil Holandês
era São Jorge da Mina, conquistada por Nassau ainda em 1637. Abaixo, uma tabela com os números
de escravos embarcados e desembarcados no Brasil no período nassoviano, considerando os seguintes
portos de embarque na África: Golfo de Briafra e Ilhas do Golfo da Guiné; Costa do Ouro; Golfo do
Benim; África Centro- Ocidental e Santa Helena.

Tabela 1637 - 1644111

Total de Escra- Total de via-


vos gens
Escravos embar- 24.604 95
cados
Escravos De- 20.290 95
sembarcados

Posteriormente, em janeiro de 1641, Nassau já demonstrava descontentamento com sua es-


tadia no Brasil. Novamente em cartas aos Estados Gerais, dizia o conde:

109 Cartas Nassovianas. In. MELLO, Evaldo Cabral de. Op. Cit. pág.189.
110 Ibid., pág.215-216.
111The Transatlatic Slave Trade; Nótulas Diárias:1637-1640.

55
“Em várias de minhas cartas anteriores, tomei a liberdade de importunar
Vossos Altos Poderes a respeito de meus próprios assuntos particulares, isto é, minha
volta à pátria. Não tendo, porém, recebido ainda decisão a esse respeito, vejo-me na
necessidade de lembrar esse assunto a Vossos Altos Poderes, tanto mais quanto se
aproxima a época em que devem expirar meus cinco anos de serviço. Ouso esperar,
e peço mui humildemente a Vossos Altos Poderes que não levam a mal minha im-
portunação, e ainda menos não creiam que eu não esteja mais disposto a servi-los,
assim como a minha pátria. Mas, que Vossos Altos Poderes se dignem de considerar,
ao contrário, que não só aceite com sincero devotamento as funções que julgaram
conveniente confiar-me nestas regiões por cinco anos, senão que me tenho esforçado
por cumpri-las zelosa e ativamente, e do melhor modo possível”.112

Nassau, inúmeras vezes pediu aos Estados Gerais reforços militares, de tropas e embarcações
que pudessem garantir a segurança e administração do Brasil Holandês. Talvez venha dessa situação
sua indisposição com os membros do Conselho dos XIX, os quais estavam mais preocupados em ob-
ter lucro no território. Quando recebeu a carta de dispensa da WIC, Nassau recusou-se a cumpri-la,
esperando o documento correspondente dos Estados Gerais, ocorrendo em 30 de setembro de 1643,
terminando sua administração no Brasil Holandês em 1644.

112 GOUVÊA, Fernando da Cruz. Maurício de Nassau e o Brasil Holandês: correspondência com os Estados
Gerais. Recife, Editora Universitária da UFPE, 1998. pág.119.

56
Figura 5 – João Maurício, governador do Brasil-Holandês.113

REFERÊNCIAS

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BERGER, Paulo; WINZ, Antônio Pimentel; GUEDES, Max Justo. Incursões de corsários e piratas na
costa do Brasil. In: História Naval Brasileira. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação Geral da Ma-
rinha, 1975. v.1. t.2. 1961.

CESAR, William Carmo. Velas e Canhões no expansionismo holandês no século XVII. Revista Navi-
gator.

CHACON DE ALBUQUERQUE, Roberto. A Revolução Holandesa; origens e projeção oceânica. 1.


113Disponível em: https://www.geheugenvannederland.nl. Consultado em: 12/10/2018.

57
ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2014.

DE VRIES, Jan; VAN DER WOUDE, Ad. The first modern economy: Success, failure, and persever-
ance of the Dutch economy, 1500–1815.Cambridge University Press, 1997.

GOUVÊA, Fernando da Cruz. Maurício de Nassau e o Brasil Holandês: correspondência com os Es-
tados Gerais. Recife, Editora Universitária da UFPE, 1998.

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Janeiro, Serviço de Documentação Geral da Marinha. 1990. v.2. t.1a.

HESPANHA, Antônio Manuel. (Org.). Nova História Militar de Portugal. Lisboa: Círculo dos Leitores,
2004, v. 2.

ISRAEL, Jonathan I. The Dutch Republic: Its rise, greatness and fall 1477-1806. Oxford University
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MELLO, Evaldo Cabral de. O Brasil Holandês. São Paulo: Penguin Classics, 2010.

Olinda Restaurada: Guerra e Açúcar no Nordeste, 1630-1645.São Paulo, Editora 34, 2007.

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NASCIMENTO, Rômulo Luiz Xavier do. O desconforto da governabilidade: aspectos da administra-


ção no Brasil Holandês (1630-1644).Programa de Pós-Graduação em História. UFF. Rio de Janeiro.
2008.

PRAK, Maarten. The Dutch Republic in the seventeenth century. Cambridge University, 2005.

WALLERSTEIN, Immanuel. O sistema mundial moderno. Vol. II: o mercantilismo e a consolidação


da economia-mundo europeia, 1600-1750. Afrontamentos, 1974.

FONTES PRIMÁRIAS IMPRESSAS

BARLAEUS, Gaspar. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil. Recife,
Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 1980.

LAET, João de. História ou Annaes dos Feitos da Companhia Privilegiada das Indias Occidentaes
Desde o seu Começo Até o Fim de 1636. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1916.

Documentos Holandeses.1 vol. Ministério da Educação e Saúde, 1945.

Monumenta Hyginia – Notulen Dagelijkse: coordenação Marcos Galindo; leitura paleográfica Lo-
dewijk Hulsman; tradução Pablo Marcyl Bruijns Gallindo, Ann Blokland e Judith de Jong. – Recife:
IAHGP/UFPE, 2005.

58
FONTES ONLINE

The Transatlatic Slave Trade. Disponível em: http://www.slavevoyages.org/

https://www.rijksmuseum.nl.

https://www.geheugenvannederland.nl.

Elite local e fronteiras na Amazônia: instituições, sociedade e poder no Pará colonial (1700-
1750)
Rafael Ale Rocha114

Introdução

Em 1755, o governador do Estado do Grão-Pará e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça


Furtado (1751-1759), enviava carta ao monarca relatando um conflito que lhe opôs à membros da elite
da cidade de Belém (capital da capitania do Pará, parte integrante do Estado). Segundo o governador,
alegando privilégios instituídos pela monarquia em tempos remotos, esses homens se recusavam a
participar dos alardos gerais na tropa de ordenança115. Nas palavras de Mendonça Furtado, contudo,
essa suposta defesa de privilégios escondia a intenção de furtarem-se ao serviço de Vossa Majestade.
Nesse sentido, segundo o governador:

Ultimamente, senhor, sendo muitas as causas que tem arruinado este Estado é a dos mal en-
tendidos, e multiplicados privilégios, uma das que tem concorrido bastante para este miserável
fim, e neste corpo de privilegiados se tem introduzido infinitas pessoas por meios estranhos, e
sendo tão pouca a gente que há nesta cidade, se vão todos os anos introduzindo uns poucos na
câmara, em pouco tempo se verá a mesma cidade, sem outra coisa mais do que privilégios, e
privilegiados, que não serviram de mais que confusão na República.

Parece-me finalmente, que sendo V. Majestade servido mandar estranhar a estes homens, não
só a queixa que injustamente fizeram de mim, que é menos, mas a inobediência que tiveram as
reais ordens de V. Majestade [...].

[...]

Enquanto a conservação dos privilégios que estes oficiais da câmera pedem ainda não sei quais
eles sejam porque falando sempre neles ainda me não apresentaram para eu saber quais lhe ha-

114 Doutor pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Universidade do Estado do Amazonas
(UEA). A pesquisa conta com o financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecno-
lógico (CNPq).
115 Mostras gerais nas quais participavam os três tipos de tropa existentes na colônia: as tropas regulares, pagas
ou de primeira linha; as tropas auxiliares ou de segunda linha; e as ordenanças ou tropas de terceira linha.

59
via de guardar, quem fora o primeiro príncipe que lhes concedera se foram confirmados pelos
senhores reis que se lhe seguiram, e finalmente formar uma idéia clara da forma porque devia
executar as reais ordens de V. Majestade.

[...]

E como o modo ordinário que até agora se tem praticado repetidas vezes é o entrarem na
câmara pessoas que não deveram; por que os põem naquele lugar, ou o empenho particular
de algum dos oficiais da câmara, ou a ambição de outros como me dizem que tem sucedido
repetidas vezes.

[...]

Finalmente, senhor estes oficiais da câmara dizem que aqueles privilégios foram concedidos as
pessoas, que Restauraram, e conservaram este Estado, e hoje querem que se guardem aos que
não cuidam nada nele, e que concorrem muito para a sua perdição116.

Na verdade, o que estava em jogo era a condição de elite das referidas famílias, isto é, o trata-
mento dado ao do conceito de “nobre” – essencial para o entendimento das elites no Antigo Regime
português. Chamamos de elite grupos familiares específicos que, através de concessões da monarquia,
adquiriram privilégios específicos – a exclusividade dos cargos de poder local, especialmente o ofi-
cialato da câmara de Belém e da tropa de ordenança, e o chamado “privilégios da cidade do Porto” – e
passaram a se auto intitular, e assim foram reconhecidos, como cidadãos e/ou nobreza. Tais privilé-
gios, em síntese, constituíam remunerações devidas a um importante serviço: a restauração da capita-
nia do Maranhão das mãos dos holandeses em meados do século XVII (instalados na Ilha do Mara-
nhão desde 1642, foram expulsos por maranhenses e paraenses em 1644). Contudo, a argumentação
do governador Mendonça Furtado, conforme o trecho acima exposto, desmerece o status da nobreza
paraense por meio da suposta recusa, por parte da mesma elite, em continuar servindo ao mesmo
senhor. Em outras palavras, o evento que “enobreceu” aquelas famílias só garantia a hereditariedade
do status se o mesmo fosse constantemente reiterado através de novos serviços e, consequentemente,
as respectivas remunerações. Nesse sentido, os laços políticos de fidelidade que uniam os soberanos e
seus vassalos deveriam ser renovados a cada geração.

Limitando nosso estudo à Belém e determinando a segunda metade do século XVIII como
a sua baliza temporal, intentaremos demonstrar, por um lado, a estratégia de determinada grupo fa-
miliar – os Ferreira Ribeiro e os Siqueira Queirós – no sentido de garantir os postos oficiais da tropa
de ordenança de Belém e, por outro, o impacto do contexto fronteiriço, próprio da Amazônia no
decorrer daqueles anos, na consolidação das mencionadas estratégias. Visto que a ocupação de um
cargo – inclusive os postos oficiais das ordenanças – era considerada uma chance para prestar novos
serviços à monarquia, os conflitos fronteiriços que envolvera Portugal, França, Holanda e Espanha na
Amazônia durante o período em questão foram interpretados como uma oportunidade. Em síntese,
embora o grupo familiar referido pertencesse aos quadros da nobreza paraense, ao contrário do que
argumentava Mendonça Furtado, estava sempre disposto à servir, por gerações, ao monarca e seu im-

116 A carta do governador está em anexo à consulta do Conselho Ultramarino ao rei, D.José. Lisboa, 11 de
março de 1755. AHU-Pará, cx. 37, doc. 3512.

60
pério, estratégia que lhes garantiram, como veremos, considerável domínio sob os principais cargos
da ordenança. Para entendermos essa aparente contradição, enquanto principal objetivo deste artigo,
cabe descrever, ainda que em linhas gerais, a formação da chamada nobreza paraense. Vejamos, pri-
meiramente, os aspectos institucionais do grupo.

Os cidadãos ou nobres de Belém e as instituições locais de poder

No reino, como mostrou Nuno Monteiro117, a nobreza da terra constituía as chamadas “prin-
cipais” ou “mais nobres” famílias enraizadas num dado município, que, com o aval da legislação ré-
gia, passaram a monopolizar os cargos das principais instituições locais de administração, comando,
prestigio e, enfim, poder – câmaras e ordenanças. Conforme a historiografia brasileira, no Estado do
Brasil, seja no século XVII ou no XVIII, observamos o mesmo fenômeno118. A capitania do Pará, pelo
menos no plano da legislação, não destoa das demais.

Entender as normas para a concessão dos postos oficiais da câmara e da ordenança de Belém é
uma tarefa extremamente trabalhosa. Não somente pelas lacunas documentais certamente existentes,
visto que a legislação régia sobre ambas as instituições está espalhada por fundos e arquivos diversos,
mas, principalmente, porque as disputas pelo controle dos seus respectivos postos oficias expõem o
desconhecimento, por parte dos próprios contendores contemporâneos, acerca do funcionamento
dessas instituições. Mais do que uma questão metodológica, portanto, trata-se de um problema teó-
rico.

No caso da câmara de Belém, como demonstramos em outros estudos, em alguns momentos


(1698, 1733, 1736 e 1746), conforme denúncias envidas ao monarca, os oficiais acusaram os gover-
nadores ou ouvidores de intervir nas eleições dos seus membros, o que era terminantemente proibi-
do pela legislação régia (citavam leis dirigidas diretamente à câmara de Belém e outras mais gerais,
válidas também no reino, como as Ordenações Filipinas). Essa mesma legislação, ainda conforme a
argumentação dos camarários de Belém, sempre garantira aos nobres a ocupação exclusiva dos postos
oficiais das câmaras, mas, no caso específico da câmara de Belém, as ações dos governadores e ouvi-
dores descritas rebaixavam a “qualidade” dos seus oficiais, isto é, por meios fraudulentos, interviam
no sentido de eleger oficiais “mecânicos” e, mesmo, mamelucos (considerados de “sangue impuro”).
Lembramos que são estigmas caros à mercês importantes – como aos cavaleiros de ordem militar
(Cristo, Santiago e Avis) – que, conforme a legislação régia, progressivamente foram adotados pelas
mais diversas instituições – incluindo as câmaras municipais. Os cidadãos ou nobres de Belém, de
acordo com os oficiais da câmara desse município, correspondiam às famílias paraenses que aturaram
na expulsão dos holandeses do Maranhão – capitania na qual os flamengos permaneceram entre 1642
117MONTEIRO, Nuno Gonçalo (coord.). História dos municípios e do poder local. Lisboa: Editorial Estampa,
1996; e MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Elites e Poder. Entre o Antigo Regime e o liberalismo. Lisboa: Imprensa
de Ciências Sociais, 2003, capítulo 2.
118 Ver bibliografia citada em ROCHA, Rafael Ale. O provimento dos oficiais da tropa de ordenança: poder,
instituições e elites locais no Estado do Maranhão e Grão-Pará. In: CARDOSO, Alírio; BASTOS, Carlos A; e
NOGUEIRA, Shirley Maria. História militar da Amazônia. Guerra e Sociedade (séculos XVII e XVIII). Curi-
tiba: CRV, 2015.

61
e 1644. Em 1655, por provisão régia, receberam os privilégios da câmara da cidade do Porto como
remuneração pela atuação nesse embate. Durante a primeira metade do século XVIII, foram enviadas
listas dos cidadãos à monarquia através do Conselho Ultramarino, isto é, a câmara possuía certo con-
trole e identificava claramente os seus (teoricamente) possíveis oficias119.

Os conflitos que opuseram os oficiais metropolitanos (governadores e ouvidores) aos cidadãos


ou nobres de Belém também envolviam o respeito a esses privilégios. Nesse sentido, conforme as de-
núncias dos camarários enviadas ao monarca, muitos indivíduos “desqualificados” – soldados da tro-
pa paga, oficiais mecânicos, mamelucos, entre outros – ocupavam postos na câmara para se furtarem
ao serviço nas tropas pagas ou de ordenança argumentando a existência de privilégios que garantia
aos camarários tal benesse, o que motivou a criação de uma companhia de ordenança dos privilegia-
dos, em 1698, para alistar os filhos dos nobres, cidadãos ou oficiais da câmara e ordens régias diversas
para proibir a ocupação de postos da câmara pelos referidos “desclassificados” (além das Ordenações
Filipinas, a própria lei de 1798, uma promulgadas em 1702, duas em 1710 e outra em 1711). Enquanto
principal foco dos conflitos, como mencionamos, estava a obediência a esses privilégios, por parte de
governadores e ouvidores, a qual os camarários procuram sanar, em cartas e representações enviadas
ao monarca, constantemente. Nesse processo, ajudam a definir os mesmos privilégios e a sua própria
condição de nobre, quando, além da solicitação direta pelos privilégios dos cidadão do Porto no sé-
culo XVII, enviam correspondência à mesma cidade do Porto (em torno de 1727) para identificar
quais eram tais privilégios – quais sejam, dentre outros, não servir nas tropa paga e nas companhias
de ordenança comum como praça (mas somente na companhia da nobreza) e não ser preso junto
às pessoas comuns ou “desqualificadas” (“mecânicos”, índios e negros) e sem as devidas “menagens”
(prisão domiciliar)120. Era a dúvida em relação à definição exata desses mesmos privilégios que fora
apresentada pelo governador Mendonça Furtado no início deste artigo121.

Outro foco de conflitos era a definição da autoridade responsável pela nomeação dos oficiais
da ordenança de Belém, pois, da mesmas forma, os cidadãos ou nobres, muitas vezes assentados na
câmara, também acusavam os governadores e os ouvidores de intervir na escolha dos oficiais, o que,
conforme as denúncias enviadas ao monarca, diminuía a “qualidade” dos oficias e inflacionava o nú-
mero dos mesmos. Se, desde 1686, a coroa formalmente concedera ao governador jurisdição para
nomear os oficiais, embora escolhendo um dos três nomes propostos pela câmara que posteriormente
deveria solicitar a confirmação régia da patente, os oficiais camarários passaram a arrogar a si essa
função. As leis de 1739 e 1749, contudo, reiteraram esse sistema (escolha dos governadores com base
nas propostas da câmara), que, conforme o próprio texto da lei de 1739, diferia do modelo de escolha
adotado no reino – visto que, neste, o processo concedia total autonomia às câmaras – mas exigia a
119 ROCHA, Rafael Ale. A construção da nobreza no Pará setecentista. In: CALAINHO, Daniela B. Caminhos
da Intolerância no Mundo Ibérico de Antigo Regime. Rio de Janeiro: Contracapa, 2012; e ROCHA, Rafael Ale.
Câmaras municipais de ordenanças no Estado do Maranhão e Grão-Pará: constituição de uma elite de poder
na Amazônia seiscentista. História Revista, Goiânia, v. 21, n. 1, p. 92–113, jan./abr. 2016.
120 Ver nota anterior.
121 Lembrando: “Enquanto a conservação dos privilégios que estes oficiais da câmera pedem ainda não sei
quais eles sejam por que falando sempre neles ainda me não apresentaram para eu saber quais lhe havia de
guardar, quem fora o primeiro príncipe que lhes concedera se foram confirmados pelos senhores reis que se lhe
seguiram, e finalmente formar uma idéia clara da forma porque devia executar as reais ordens de V. Majestade.”

62
confirmação régia da patente passada, na colônia, pelos governadores122. Pelo menos em dois momen-
tos, nos anos de 1691123 e 1722, diante de insistentes reclamações da câmara (que arrogavam a si a
função de prover os postos) foram relembrados este mecanismo de escolha. Observe que, em relação
à lembrança de 1722, enviada diretamente ao rei pelo governador João da Maia da Gama (1722-1728),
a monarquia parecia não saber quem detinha a jurisdição de prover os cargos: “nas conquistas nunca
foi a nomeação de capitães mores das câmaras, mas só dos governadores, e da sua jurisdição pelos nos-
sos regimentos”124. Nesse sentido, no decorrer da primeira metade do século XVIII, a Coroa solicitou
insistentemente dos próprio governadores essa informação – ordenando que indicassem diretamente
no textos das cartas patentes a legislação que lhes permitiam o provimento do oficialato da ordenança.
O curioso é que, em meados dos setecentos, tanto o governador Mendonça Furtado quanto a câmara
de Belém citavam o regimento enviado ao governador André Vidal de Negreiros, em 1655, como fonte
das suas prerrogativas, visto que a mesma legislação ordenava a obediência ao regimento das orde-
nanças de 1570 – que concedia às câmaras do reino a função de escolher os oficiais das ordenanças – e
permitia ao governador criar e prover determinados cargos125. De qualquer forma, no que se refere
ao século XVII e primeira metade do XVIII, todas as patentes referentes à ordenança de Belém que
encontramos – totalizando 47126 – foram, num primeiro momento (isto é, antes da confirmação régia),
concedidas pelos governadores.

As “nobrezas” em Belém

É importante entender os princípios que organizavam a concessão dos cargos oficiais, ou


seja, destacar, por um lado, o modelo de ligação política usualmente adotada (especialmente entre os
vassalos e o monarca) e, por outro, as concepções de sociedade então vigente (particularmente no que
se refere à ideia de nobreza e aos privilégios inerentes ao grupo). Durante todo o período moderno,
122 ROCHA, Rafael Ale. O provimento dos oficiais da tropa de ordenança..., p. 93; eROCHA, Rafael Ale. Câ-
maras municipais de ordenanças no Estado do Maranhão e Grão-Pará: constituição de uma elite de poder na
Amazônia seiscentista. História Revista, Goiânia, v. 21, n. 1, p. 92–113, jan./abr. 2016, p. 107.
123 Conforme a Carta Régia de 1791, enviada ao governador Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho
(1690-1701): “[...] tenham entendido que aos oficiais da câmara não toca mais que proporem sujeitos para esses
postos, e ser a aprovação vossa, mandandolhes passar patentes deles sobrescritas pelo secretário declarando aos
providos hão de mandar ao reino buscar a confirmação destas nomeações na forma que se pratica em todas as
conquistas”. Arquivo Histórico Ultramarino (doravante AHU), cód. 268, f. 87.
124 Carta do governador João da Maia da Gama ao rei de 18 de agosto de 1722. AHU Pará, cx. 7, doc. 603. O
governador se referia às demais vilas da capitania e não à Belém (que, como veremos, parecia não possuir capi-
tão mor de ordenança). Contudo, o caso mostra a dificuldade que envolvia a jurisdição de prover os postos das
ordenanças na capitania do Pará.
125 Conforme o §12 do regimento de André Vidal de Negreiros, utilizado por Mendonça Furtado como justi-
ficativa para prover patentes: “Em todos os Lugares e Povoações, que estão feitas neste dito Estado, e se fizer de
novo, ordenareis o governo deles pelo modo, que se usa neste reino, e com os mesmos ofícios; e também pro-
vereis o de Justiça e Fazenda, que cumprirem aonde forem necessários, e não estiverem providos por mim, até
dardes contas das pessoas que ocupastes, e em que ofícios, e das necessidades que deles há nas tais Povoações,
para eu mandar ver tudo, e ordenar o que for servido”. ROCHA, Rafael Ale. O provimento dos oficiais da tropa
de ordenança..., p. 101.
126 39 patentes expedidas durante a primeira metade do século XVIII, detalhadas nas páginas que se seguem,
e somente 8 no século XVII (nos referimos somente às patentes localizadas). Sobre essas últimas cf. ROCHA,
Rafael Ale. Câmaras municipais de ordenanças no Estado do Maranhão e Grão-Pará..., p. 105.

63
conforme a literatura contemporânea (juristas, tratadistas, canonistas e outros), ao monarca cabia
a função de justiceiro, isto é, era o responsável pela “justiça distributiva” – concessão de prêmios e/
ou castigos. A chamada “mercê” (signos de distinção que usualmente acompanha renda ou pensão
aos seus detentores) possuía uma função importante nesse sistema, pois consolidava a “economia do
dom” ou “economia da mercê”, grosso modo, a ligação política e/ou clientelar perpetuada pela relação
recíproca entre um agente que executava um serviço à outrem e a remuneração devida pelo último ao
primeiro por esse serviço127. A liberalidade (o ato de dar), portanto, não era gratuita, pois usualmente
estava relacionada às funções jurídico-sociais das chamadas “mercês remuneratórias”128.

Sobre a representação (ou representações) de sociedade vigente durante o período em estudo,


vigoravam durante os séculos XVII e XVIII, Segundo Ângela Xavier e Antônio Hespanha, os chama-
dos paradigmas corporativista e individualista ou voluntarista. O primeiro, dominante até cerca de
meados do século XVII, considera a existência de uma ordem universal por meio da qual a sociedade
se organizava. Assim sendo, os diversos órgãos da sociedade possuíam funções específicas mas inter-
dependentes. Portanto, “o Poder era, por natureza, repartido; e, numa sociedade bem organizada, esta
partilha natural deveria traduzir-se na autonomia político-jurídica (iurisdictio) dos corpos sociais”.
Cabia à cabeça do corpo (soberano) garantir essa autonomia/autogoverno, a harmonia entre os seus
membros os estatutos sociais – foros, direitos e privilégios. Em outras palavras, deveria realizar a jus-
tiça, isto é, manter a ordem social e política. Nesse sentido, tal concepção de sociedade naturalizava a
constituição social e as leis fundamentais do reino. Assim sendo, o poder real era limitado à observa-
ção da justiça, isto é, sujeito às leis – fundamentais, ordinárias e/ou direitos adquiridos/privilégios. Em
relação à sociedade, promovia a imagem de uma ordem social rigorosamente hierarquizada por meio
dos três “estados” ou “ordens” – clero, nobreza e povo – caracterizados pela suas respectivas funções
sociais – sacerdócio, guerra e trabalho – e seus respectivos direitos ou privilégios e deveres. O segundo
paradigma mencionado, particularmente imponente a partir de meados do século XVIII, entendia o
Poder como resultado de uma vontade (de Deus, de seu lugar-tenente/príncipe ou dos homens), isto é,
as leis fundamentais eram alteráveis conforme a relação entre os homens, ou seja, não estavam sujeitas
às “limitações decorrentes de uma ordem superior à vontade (ordem natural ou sobrenatural)”. Essa
concepção incidiu especialmente sobre “a unidade e a autonomia do soberano em relação a qualquer
outro poder temporal”, o que resultou em “contextos práticos-políticos” específicos: o soberano como
única fonte do direito; o poder não cerceado pelos privilégios; os aparelhos políticos (cargos e minis-
térios) são entendidos como instrumentos da vontade do governo central; e a definição dos poderes
inseparáveis da pessoa do rei (especialmente no que se refere à concessão ou revogação dos poderes

127XAVIER, Ângela Barreto Xavier e HESPANHA, António Manuel. “Redes Clientelares”. In: HESPANHA,
António Manuel (coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. Vol. 4. Lisboa: Editorial Estampa, 1998; e
OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno. Honra, mercê e venalidade em Portugal (1641-
1789). Lisboa: Estar, 2001, capítulo 1.
128 Essas funções correspondiam: os serviços se tornaram bens como quaisquer outros e, por isso, eram patri-
monializaveis à semelhança de um investimento qualquer (um capital), isto é, poderiam ser testados, herdados,
divididos, alienados, etc.; deveria haver certa equidade entre o valor da dádiva e a qualidade ou quantidade do
serviço desempenhado; e, por fim, o serviço suscitava um dos poucos direitos dos vassalos frente ao rei, pois
a remuneração era praticamente um dever (moral) do monarca.OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o
Estado Moderno..., p. 25-27.

64
senhoriais de donatários)129.

Apesar da vigência da imagem trinitária referida durante toda a era moderna, os estados tradi-
cionais, no decorrer dos séculos XVII e XVIII, passaram a sofrer diferenciações internas. No caso da
nobreza, um estado caracterizado pelo gozo de privilégios múltiplos e cuja função social tradicional
era a guerra, outras funções lhes foram atribuídas – ao lado do serviço “nas armas”, o serviço “nas
letras” – e diversas gradações e definições surgiram: “nobreza natural”, hereditária e generativa; a “no-
breza política”, caracterizada pela ocupação de determinados cargos – como oficiais das tropas pagas
e magistrados – e aquisição de certas mercês – a exemplo dos cavaleiros de Ordem Militar (Cristo,
Santiago e Avis); a “nobreza da terra”, enraizada nos municípios e em suas instituições de poder local
como as câmaras e as ordenanças; e, inclusive, um “estado do meio” ou “privilegiado”, intermediário
entre a nobreza e o povo130.

Por fim, esse alargamento da concepção de nobreza, como mostrou Nuno Monteiro, suscitou
debates entre os corporativistas, para quem a nobreza “verdadeira” era natural, hereditária e indepen-
dente da vontade dos príncipes, e os “modernos” (os “políticos” ou “arbitristas”), que sustentavam
“sem hesitações a capacidade da monarquia de redefinir os estatutos sociais”131. Sobre a questão, espe-
cialmente a partir de meados do século XVIII (talvez como sintoma da presença do novo paradigma),
é importante destacar duas questões: por um lado, as benesses concedida pela monarquia passaram a
ser interpretada mais como “graça” do que como “mercê”132 e, por outro, entendia-se que os privilégios
já concedidos poderiam ser revogados pelo monarca – enquanto agente soberano do Poder.

Portanto, os cidadãos ou nobres de Belém se apoiaram na antiga tradição que vinculava os


homens por via dos serviços e das recompensas, recorrendo ao monarca para consolidar o status de
privilegiado (característica tradicionalmente relacionada ao estado da nobreza) – seja solicitando essa
benesse como remuneração pelos serviços prestados durante a restauração do Maranhão ou recor-
rendo ao rei para garantir a obediência aos mesmos privilégios diante os desrespeitos eventualmente
praticados por governadores e/ou ouvidores. Contudo, nesses conflitos, que opuseram os nobres aos
oficiais metropolitanos (governadores e ouvidores), surgiam a diferença entre os dois paradigmas
mencionados e resquícios daquele debate entre corporativistas e “modernos”. É curioso notar, nesse
sentido, que os privilégios em questão foram concedidos em meados do século XVII, quando, como
129XAVIER, Ângela Barreto Xavier e HESPANHA, António Manuel. “A representação da sociedade e do Po-
der”. In: HESPANHA, António Manuel (coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. Vol. 4. Lisboa: Edito-
rial Estampa, 1998, p. 114-117, 120, 121 e 126-128. Citações nas páginas 115, 117 e 127.
130XAVIER, Ângela Barreto Xavier e HESPANHA, António Manuel. “Redes Clientelares”...; e XAVIER, Ângela
Barreto Xavier e HESPANHA, António Manuel. “A representação da sociedade e do Poder”...
131 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O crepúsculo dos Grandes. A casa e o patrimônio da aristocracia em Portu-
gal (1750-1832) Lisboa: INCM, 2004, p. 32.
132“[sobre a revogação dos privilégios senhoriais...] apenas a legislação pombalina consegue desactivar as re-
des familiares e institucionais que condicionavam e que, de algum modo, definiam as ‘razões da política’ (assim
como a prática de ‘retribuição devida’ aos serviços), ao passar a considerar as mercês – nomeadamente de bens
da coroa e de ofícios – como simples ‘graças’ [liberalidade pura não resultante de um dever de remunerar servi-
ço] e não como algo patrimonializado. O carácter central da legislação régia [...] pôs definitivamente em causa
o princípio da intangibilidade dos privilégios que, a partir de então, deixavam de limitar o rei, ficando à mercê
dos seus juízos de oportunidade”.XAVIER, Ângela Barreto Xavier e HESPANHA, António Manuel. “Redes
Clientelares”..., p. 347.

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informamos, o pensamento corporativo estava em pleno vigor. Ou seja, a primeira metade do século
XVIII representava certa viragem, pois, como pontuamos, o paradigma individualista ou voluntarista
ganhava preponderância em meados dessa centúria.

Portanto, se a nobreza paraense citava constantemente a restauração do Maranhão como even-


to consolidador e perpetuador do seu status, os governadores consideravam que os serviços prestados
pelas novas gerações eram essenciais para a reiteração do mesmo. Nesse sentido, num desses conflitos,
ocorrido em 1705, a câmara citava uma fala atribuída à monarquia (em data não identificada), na qual
os privilégios em disputa eram perpetuados enquanto remuneração da restauração do Maranhão:

Juro e prometo com a graça de Deus vos reger e governar bem e direitamente [sic.], e vos ad-
ministrar inteiramente justiça, quando quanto a humana fraqueza permite, e de vos guardar
vossos bons costumes, privilégios, graças, mercês, liberdades, franquezas que pelos reis prede-
cessores vos foram dados, outorgados, e confirmados133.

Contudo, conforme o ponto de vista do governador José da Serra (1732-1736) sobre os privilé-
gios solicitados pela câmara da Vila da Vigia (os mesmos concedidos aos cidadãos de Belém), em carta
ao monarca de 1733, a reiteração do serviço por novas gerações era essencial:

Como o princípio da honra dos homens vinha dos serviços, em que por letras, ou armas seus
antepassados se distinguirão nas suas pátrias: servindo aos verdadeiros senhores delas. E pa-
rece renunciar-se a mesma honra, com que a gente quer distinguir-se pretender privilégio, que
isente de servir a pátria, ou ao príncipe. Me parece que Vossa Majestade não só deve escusar o
requerimento da câmara da Vigia, mas mandar-lhe dar uma [ilegível] para repreensão, para a
grosseria da sua pretensão, e para que pelo tempo diante, não continuem a viver sem conhece-
rem que não há de ser somente o serviço do senado que há de habilitar-lhe nobreza, mas o de
V. Majestade pelas armas, ou letras, tomo a liberdade de representar a V. Majestade, como verá
que eles entendam, que só terá nobreza daqui a dez anos, todo aquele que chegar a ocupar no
serviço das armas algum posto de patente real. E no das letras, o de juiz de fora, ou advogado
da Casa da Suplicação escrivão de tribunais, em que haja presidente outros semelhantes ofícios,
ou ocupações, que os augustos reis de Portugal foram servidos enobrecer”134.

Observe que a própria noção de nobreza também estava em debate, pois, nas palavras do go-
vernador, os ofícios da câmara não eram suficientes para conferir nobreza e privilégios. Portanto, ao
que parece, desmerecia, assim, a nobreza da terra, considerando passível de nobreza apenas os ofícios
que conferiam nobreza política135. Em outro exemplo, ocorrido em 1746, o ouvidor afirmava que os
cidadãos de Belém tentavam excluir da câmara reinóis (quando não possuíam algum “interesse” na

133 Em anexo ao requerimento do procurador do senado da câmara, Roque Bequiman e Albuquerque, ao rei
D. Pedro II. Anterior a 3 de março de 1705. AHU-Pará, cx. 5, doc. 403.
134 Carta do governador José da Serra ao rei D. João V, de 4 de setembro de 1733, em anexo à carta dos oficiais
da câmara ao rei. Belém, 25 de setembro de 1733. AHU-Pará, cx. 15, doc. 1436.
135 Ver a listagem desses ofícios, dos quais o governador parecia conhecer bem, em XAVIER, Ângela Barreto
Xavier e HESPANHA, António Manuel. “A representação da sociedade e do Poder”..., p. 136-137.

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eleição ou “dependência” dos mesmos), mesmo quando estes eram “bons” ou “mais nobres”. Nesse
sentido, alguns oficiais camarários tentaram embargar as eleições quando dois reinóis foram eleitos,
apesar de ambos “se tratarem à lei da nobreza”, do primeiro ser “bastante rico” e saber “a maior parte
do povo, que no reino era pessoa grave, e de estimação” e do segundo ter casado com a filha de um
cidadão136. Ao que parece, conforme tal argumentação, a câmara deveria ser exclusiva aos cidadãos ou
à nobreza belenense (os restauradores do Maranhão e seus descendentes) e não passível de ocupação
por qualquer nobreza. Contudo, na fala do governador José da Serra acima exposta, o serviço à mo-
narquia em cargos específicos – e não somente a atuação na câmara – parecia ser a condição sine qua
non para a reiteração da posição de nobre. Nesse sentido, se em alguns momentos – apesar da recusa
em atuar na guarnição da cidade – os oficiais da câmara de fato procuravam se apresentar como fiéis
servidores, especialmente no que se refere a um possível conflito originado por uma ameaça estran-
geira em um momento no qual a tropa paga estava ausente137, a já mencionada fala do governador
Mendonça Furtado, reforçando a posição de José da Serra, garantia o inverso: “Finalmente, senhor
estes oficiais da câmara dizem que aqueles privilégios foram concedidos as pessoas, que Restauraram,
e conservaram este Estado, e hoje querem que se guardem aos que não cuidam nada nele, e que con-
correm muito para a sua perdição.”

136 Carta do ouvidor geral do Pará, Timótio Pinto de Carvalho, para o rei, D. joão V. Pará, 22 de janeiro de
1746. AHU-Pará, cx. 28 doc. 2686. Num parecer lateral à carta, aconselhava-se que o ouvidor desse posse aos
reinóis apesar das reclamações que, no entanto, deveriam ser ouvidas. No que se refere à educação dos filhos
dos cidadãos ― que deveria ser direcionada “ao emprego das armas, ou das letras, para que possam contribuir
para o aumento e quietação do Estado” ―, os oficiais da câmara apontavam duas razões para a não aplicação dos
seus filhos no “exercício das armas”. Infelizmente, a primeira não nos pôde ser apresentada porque esse trecho
do documento se encontra muito rasurado e, portanto, ilegível. A segunda razão argumentava que os filhos dos
cidadãos eram indispensáveis no “emprego” das fazendas, pois não havia “nesta terra pessoa, que por salário
queiram assistir nas fazendas dos moradores”.
137 Em resposta de 1733 às acusações de José da Serra acima citadas, após justificar a ausência do emprego de
seus descendentes no serviço ao rei “nas armas” ou “nas letras” (o trabalho nas suas respectivas fazendas), os
oficiais camarários afirmavam que, conforme a carta régia de 1711, não se escusavam ao serviço, sobretudo no
que se refere à uma possível ameaça estrangeira, mas “se devia fazer distinção destes soldados para serem tra-
tados conforme o foro de sua nobreza”. Afirmavam, também, que o governador João da Maia da Gama obrigou
a companhia da nobreza a atuar nas guardas e sentinelas, enquanto função estrita da companhia de ordenança
comum (ou “mecânica”), quando as companhias pagas estavam ausentes em serviços no sertão, e, por esse mo-
tivo, solicitava a extinção da mesma companhia da nobreza. Contudo, garantiam, “saberemos empregar-nos no
serviço de V. Majestade quando se ofereça ocasião que como leais vassalos serão nossas ações correspondentes
à nossa nobreza”. O capitão da companhia da nobreza, João Furtado de Vasconcelos, reiterava as informações
da câmara, apoiava a solicitação da mesma, lembrava os serviços dos progenitores dos camarários e se mos-
trava desejoso em continuar no serviço de Sua Majestade “nas ocasiões de defesa da Coroa [...] como tão bem
da nossa Pátria, pois trazemos muito presente na lembrança aquele bom exemplo, que nos deixam os nossos
antepassados”. Vasconcelos resume sua queixa e seus intentos: “Para V. Majestade seja servido declarar aos
governadores a forma com que deve ser tratada essa companhia, não tirando dos alisados delas para soldados
violentamente pois, que para os atos de mostra, e invasão dos inimigos, quer o suplicante ser o primeiro nesta
empresa, com os seus soldados, que só se repugna nas entradas e saídas de guarda que este exercício só devem
ter o que lhes ordenanças sem privilégios, e não haver falta de moradores para suprir a falta de soldados, que se
divertem da praça; maiormente não havendo exemplo algum, que favoreça o contrário, que de homens consti-
tuídos em privilégios, como os que gozamos, que são os de cidadãos do Porto, tenham tal exercício, ainda mais
nesta terra, fazendo sentinelas a presos por chamados espirituais por casas de canoas; no que se espera uma
providência real de V. Majestade com aquela inteireza que costuma”. Requerimento do capitão da companhia
da nobreza dos filhos de cidadãos, João Furtado de Vasconcelos, para o rei. D. João V. Anterior a 6 de fevereiro
de 1734. AHU-Pará, cx. 16, doc. 1480.

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Enfim parecia que a esses governadores a consolidação do status de um grupo familiar nobre
dependia de novos serviços a cada geração. Nesse sentido, acreditamos que a atuação no oficialato da
ordenança, para alguns, era um canal que possibilitava esse processo. Aliás, nesse sentido, as cartas
patentes da tropa de ordenança (que, vale lembrar, eram concedidas pelos governadores mas depen-
dia da confirmação régia para a sua efetivação) são documentos esclarecedores, pois exemplificam a
relação política/clientelar recíproca estabelecida pela economia do dom ou da mercê. Assim, no texto
das patentes continha as justificativas para a concessão do posto/mercê, e, nestas, é clara a referência,
por um lado, à concessão do cargo como recompensa por serviços prestados e, por outro, a crença
da monarquia nos serviços futuros do vassalos por via da fidelização garantida pela remuneração:
“havendo-se com boa satisfação em todas as ocasiões que lhe oferecerão de meu real serviço, e por
esperar dele que daqui em diante se haverá com a mesma [boa satisfação]” (clichê muito comum, com
pequenas variações, em várias patentes). Em outras palavras, ao passo que a promoção era uma mercê
remuneratória, também consolidava a disponibilidade para servir, isto é, era, a um só tempo, recom-
pensa e possibilidade de serviço. Enfim, perpetuava-se uma relação política/clientelar.

Serviços e fronteiras

As justificativas para a concessão das patentes, contidas expressamente nos textos do próprio
documento, conjugavam a nobreza em suas várias matizes – cidadãos de Belém, nobreza da terra rei-
nol ou outros – e o serviço, que, como se verá, possuía íntma relação com o contexto fronteiriço que
envolvia a Amazônia Portuguesa. Portanto, antes de descrever esse tipo documental, cabe apresentar
esse delicado contexto e as características gerais da tropa de ordenança de Belém. Sobre as fronteiras,
a ameaça apresentava-se em três frentes principais: a presença francesa em Caiena, que, desde a déca-
da de 1670, ameaçava o Cabo Norte (Amapá) – o que resultou num conflito armado entre Portugal e
França naquelas partes em fins dos seiscentos, num acordo de paz nos anos de 1699 e 1700 e no tra-
tado de Utrecht de 1713, que, contudo, não sustara a constante (e então proibida) presença dos fran-
ceses em terras portuguesas durante a primeira metade do século XVIII; o intenso comércio entre os
manaus do rio Negro e os holandeses do Suriname (por via do rio Branco, afluente do Negro, através
de redes de trocas indígenas), que resultara em um conflito armado entre portugueses e esses índios
na década de 1720 (findara em 1730); e, por fim, a presença da missão castelhana no médio Solimões
(especialmente por meio da atuação do jesuíta Samuel Fritz), o que, também, resultara em agitações
armadas (por via de índios e tropas) entre missionários a serviço de Castela e os portugueses138.

Em relação às principais características da tropa de ordenança, conforme os dados encontra-


dos, compunham, durante a segunda metade do século XVIII, um contingente que contava com cerca
de 500 homens adultos (entre 471 e 594) integrados à 7 companhias (contando com a lista dos cida-
dãos). Destas, 3 companhias eram compostas pela nobreza (a lista de cidadãos, a companhia dos filhos
e netos de cidadãos e a companhia dos privilegiados, formada pelos nobres reformados/aposenta-

138 ROCHA, Rafael Ale. “Domínio” e “posse”: as fronteiras coloniais de Portugal e da França no Cabo Norte
(primeira metade do século XVIII). In: Revista Tempo, Vol. 23 n. 3, set./dez., 2017.

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dos)139. A criação da companhia da nobreza fora motivada, cabe informar, pela necessidade de manter
os nobres preparados para uma possível invasão inimiga, diante da recusa dos mesmos em atuar nas
companhias “comuns”, numa conjuntura de ameaça francesa na fronteira. Em ordem crescente de hie-
rarquia, os seguintes postos oficiais compunha a ordenança de Belém: coronel (2 nomeados), tenente
coronel (1), sargento mor (3) e capitão (32). Soma-se a esses um mestre de campo da tropa auxiliar. É
importante destacar que o posto de tenente coronel, à semelhança da companhia da nobreza, também
fora criado para responder às conjuntura de ameaça francesa140.

Como afirmamos, as justificativas para as concessões das patentes estavam baseadas na “quali-
dade”/nobreza e nos serviços dos agraciados. Em relação à nobreza, de um total de 39 patentes provi-
das entre 1700 e 1750, 29 foram concedidas à indivíduos identificados como nobre, isto é, quase ¾ do
total. Desses 29 nobres, 26 foram descritos, em suas respectivas cartas patentes, como integrantes da
nobreza local (“das nobres e principais famílias”, “pessoas das principais” “cidadão”, “filho de cidadão”,
“filho e neto de cidadão” de Belém, da capitania do Pará e/ou do Estado), 3 pertenciam à nobreza da
terra reinol e 1 era um nobre não identificado141. Os 4 principais postos superiores – mestre de campo,
coronel, tenente coronel e sargento mor – foram, sem exceção, ocupados pela nobreza local. Duas
famílias, posteriormente unidas pelo matrimônio de um dos seus membros, conquistaram amplo do-
mínio, especialmente, sobre os postos superiores: os Siqueira Queirós e os Ferreira Ribeiro. Nesse
sentido, das 7 patentes superiores concedidas, esse grupo familiar obteve 5: o sargento mor (1728)
e depois coronel (1731) Gaspar Siqueira de Queirós; o sargento mor (1712) João Ferreira Ribeiro; o
sargento mor (1730) e depois mestre de campo de auxiliares (1747) Antônio Ferreira Ribeiro, filho de
João Ferreira Ribeiro. Quanto ao posto de capitão, do total de 32 patentes concedidas, obtiveram 4: o
mencionado João Ferreira Ribeiro (1709); o também citado seu filho Antônio Ferreira Ribeiro, que
fora capitão de companhia de ordenança comum (1725) e, posteriormente, capitão da companhia da
nobreza (1729); e, por fim, Francisco Siqueira de Queirós (1743), filho do coronel Gaspar Siqueira de
Queirós. Se levarmos em consideração a união (também por matrimônio) que ambas as famílias esta-
beleceram com os Moraes Bitancourt e os Oliveira Pantoja142, também cidadãos ou nobres de Belém, o
139 Carta do governador e capitão general do Estado do Maranhão, Alexandre de Sousa Freire, para o rei D.
João V 1728, setembro, 14. Belém. AHU-Pará. Cx. 11, doc. 974; mapa da infantaria paga que se encontra na
praça da capitania do Pará elaborado de acordo com a mostra geral de 20 de Setembro de 1730. Post. 1730, se-
tembro, 20. AHU-Pará. Pará. Cx. 12, doc. 1141; mapa das ordenanças que se encontram na praça da capitania
do Pará elaborado de acordo com a mostra geral de 20 de Setembro de 1730. Post. 1730, setembro, 20. Pará.
AHU-Pará. Cx. 12, doc. 1142; Ant. 1736, dezembro, 22. Belém. Cx. 19, doc. 1804; mapa (2) da Infantaria paga e
de ordenanças da guarnição da praça de Belém do Pará. 1736, setembro, 17. AHU-Pará. Cx. 19, doc. 1776; carta
do governador e capitão general do Estado do Maranhão e Pará, João de Abreu de Castelo Branco, para o rei D.
João V. 1744, dezembro, 4. Pará. AHU-Pará. Cx. 27, doc. 2580; carta do governador e capitão general do Estado
do Maranhão e Pará, João de Abreu de Castelo Branco, para o rei D. João V. 1746, janeiro, 20. Pará. AHU-Pará.
Cx. 28, doc. 2681; e carta do governador e capitão general do Estado do Maranhão e Pará, Francisco Pedro de
Mendonça Gorjão, para o rei D. João V. 1747, outubro, 29, Pará. AHU-Pará. Cx. 29, doc. 2804.
140 Ver nota 30.
141 Um indivíduo, o capitão Diogo Sobral, era, ao mesmo tempo, integrante da nobreza reinol e local porque
casou com uma filha de cidadão. Por esse motivo, o total de nobres citados alcançou o número de 30.
142 SANTOS, Marília Cunha Imbiriba. Família, trajetória e poder no Grão-Pará colonial: os Oliveira Pantoja.
Dissertação de mestrado. Belém: UFPA, 2015, p. 62-70; e SOUZA E MELLO, Marcia Eliane Alves. Perspectivas
sobre a “nobreza da terra” na Amazônia colonial. In: Revista de História da USP, nº 168, p. 26-68, jan./jun.,
2013, p. 42-46.

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domínio torna-se ainda mais evidente: 6 de 7 das patentes superiores e 6 das 32 patentes de capitão143.

Quanto aos serviços prestados, daquele total de 39 patentes concedidas, entre 1700 e 1750,
somente 14 explicitam ou detalham os serviços prestados. Sem exceção, todas essas 14 apresentam
as rondas, guardas e/ou sentinelas enquanto serviços realizados pelos patenteados, e, especificamente
para 5 patentes, destacam a ausência das companhias de tropa paga na cidade de Belém. No que se
refere ao serviço nas tropas pagas e nos “cargos honrosos” da república (postos na câmara de Belém),
parece que essas instituições – ordenança, tropa paga e câmara – pouco se relacionavam, pois somente
em 4 patentes de ordenança constam serviços prestados em cada uma das outras duas instituições. No
que se refere à atuação na câmara de Belém, a família Ferreira Ribeiro, que como observamos atuara
com preponderância sobretudo nos postos superiores da ordenança, fora responsável por 3 destas
patentes144. Ora, esses serviços possuem íntima relação com o contexto fronteiriço que marcava a exis-
tência da Amazônia Portuguesa, pois, por um lado, a ordenança era uma tropa não deslocável e, por
outro, a tropa paga, que durante toda a segunda metade do século XVIII integrara em média 2 ou 3
centenas de pessoas, disponibilizara entre 4 e 9 dezenas de “soldados prontos” – visto que o contingen-
te das companhias pagas atuavam constantemente nas expedições ao sertão, nos presídios e fortalezas
espalhados nas margens dos principais rios e, por fim, comportavam muitos desertores (entre 3 e 12
dezenas). Assim sendo, se cabia às tropa paga a atuação nos sertões, restava à ordenança guarnecer a
cidade de Belém145. É comum encontrar na folha de serviços (descrita no texto das cartas patentes) dos
oficiais superiores o investimento de dinheiros, madeira e/ou escravos na construção ou reparação de
casas fortificadas. Aliás, o primeiro coronel que se tem notícia, Hilário de Moraes Bitancourt (1708),
ainda em fins do século XVII conduzira artilharia para a fortaleza do Cabo Norte e acompanhara o
governador Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho (1690-1701) nos sertões do rio Amazonas.
143 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (doravante ANTT), Registro Geral de Mercês (doravente RGM),
Mercês de D. João V, liv. 2, f.436; ANTT, RGM, Mercês de D. João V, liv. 4, f.161v.; ANTT, Chancelaria de D.
João, liv. 32, f. 232;Arquivo Público do Estado do Pará (doravante APEP), Livros de Sesmaria (doravante LS),
livro 5, f. 157v.; APEP, LS, livro 5, f. 160v. APEP, LS, livro 6, f. 27; ANTT, Chancelaria de D. João V, liv. 84, f.
102; e ANTT, Chancelaria de D. João V, liv. 84, f. 109; APEP, LS, livro 7, f. 128; ANTT, RGM, Mercês de D. João
V, liv. 9, f. 90; e ANTT, Chancelaria de D. João V, liv. 37, f. 169; APEP, LS, livro 3, f. 168; ANTT, Chancelaria de
D. João V, liv. 72, f. 199 v.; APEP, LS, livro 5, f. 68; APEP, LS, livro 5, f. 162; ANTT, RGM, Mercês de D. João V,
liv. 16, f.245v.; ANTT, Chancelaria de D. João V, liv. 85, f. 64v.; ANTT, RGM, Mercês de D. João V, liv. 7, f.588;
e ANTT, Chancelaria de D. João V, liv. 31, f. 204; ANTT, Chancelaria de D. João V, liv. 31, f. 165v e 166; ANTT,
RGM, Mercês de D. João V, liv. 3, f. 126v.; ANTT, Chancelaria de D. João V, liv. 44, f. 78; APEP, LS, livro 1, f. 31v.;
ANTT, Chancelaria de D. João V, liv. 62, f. 266; APEP, LS, livro 1, f. 75 e 80v.; ANTT, RGM, Mercês de D. João
V, liv. 16, f. 245v.; e ANTT, Chancelaria de D. João V, liv. 64, f. 269; APEP, LS, livro 3, f. 28v.; APEP, LS, livro 2, f.
48v.; APEP, LS, livro 2, f. 73v.; ANTT, Chancelaria de D. João V, liv. 72, f. 187.; APEP, LS, livro 5, f. 25v.; APEP,
LS, livro 3, f. 130; APEP, LS, livro 5, f. 22; APEP, LS, livro 5, f. 30v.; APEP, LS, livro 5, f. 97; APEP, LS, livro 5, f.
163; APEP, LS, livro 5, f. 163; APEP, LS, livro 5, f. 166; APEP, LS, livro 6, f. 28v.; APEP, LS, livro 6, f. 28v.; APEP,
LS, livro 6, f. 30.; APEP, LS, livro 6, f. 32; APEP, LS, livro 6, f. 45; APEP, LS, livro 6, f. 67; APEP, LS, livro 6, f. 67v.;
APEP, LS, livro 6, f. 109; APEP, LS, livro 6, f. 110; APEP, LS, livro 6, f. 110v.; APEP, LS, livro 6, f. 111; APEP, LS,
livro 6, f. 111v.; APEP, LS, livro 6, f. 120; APEP, LS, livro 6, f. 152; APEP, LS, livro 6, f. 161v.; ANTT, Chancelaria
de D. João V, liv. 87, f. 390 v.; APEP, LS, livro 8, f. 32v.; APEP, LS, livro 6, f. 166v.; APEP, LS, livro 7, f. 162; ANTT,
RGM, Mercês de D. João V, liv. 34, f. 25; APEP, LS, livro 11, f. 74v.; ANTT, RGM, Mercês de D. João V, liv. 38, f.
204; ANTT, Chancelaria de D. João V, liv. 114, f. 245; e APEP, LS, livro 11, f. 106.
144 Ver nota anterior
145 VIANA, Wania Alexandrino. A “gente de guerra” na Amazônia colonial. Composição e mobilização de
tropas pagas na capitania do Grão-Pará (primeira metade do século XVIII). Dissertação de mestrado. Belém:
UFPA, 2013, p, 128.

70
Posteriormente, além de “sustentar” quatro franceses aprisionados em terras portuguesas (até que os
mesmos fossem enviados presos a Lisboa), investiu escravos, conduziu pedra e madeira, utilizou 6
escravos seus para tal e dispendeu somas de dinheiro para a reestruturação da fortificação de Belém146.

Tendo em mente o domínio das famílias citadas sobre os cargos superiores e o fato de 3 das 7
companhias de ordenança serem privilegiadas, entende-se a posição do sargento mor Antônio Ferrei-
ra Ribeiro, quando, na década de 1740, criticava a facilidade com a qual os próprios cidadãos permi-
tiam a entrada de “desqualificados” na câmara e a inflação do número de nobres, isto é, daqueles que,
em função dos privilégios já referidos, estariam isentos dos serviços nas companhias de ordenança
comuns ou “mecânicas”147. Por esse motivo, em relação às eleições camarárias de 1747, Ferreira Ribei-
ro sugeria ao sobrinho, o capitão de ordenança Francisco Siqueira de Queirós (1743) – filho de Gaspar
Siqueira de Queirós –, que não servisse na câmara porque “como se persuade não há quem o iguale
persuadiu também ao dito seu sobrinho, não quisesse servir o dito cargo, dizendo que [...] os oficiais
da câmara não eram capazes de servir com ele”.148 Da mesma forma, na década anterior, quando os
camarários e o capitão da companhia da nobreza João Furtado de Vasconcelos solicitaram do monarca
a extinção da mesma companhia, argumentando a quebra de seus privilégios quando foram instados
pelo governador a guarnecer a cidade e efetuar sentinelas à semelhança das ordenanças comuns ou
“mecânicas”, o coronel e cavaleiro da Ordem de Cristo Gaspar Siqueira de Queirós apresentou ao mo-
narca o seu parecer sobre a questão:

Digo que entrarem de guarda, fazerem sentinela os filhos dos cidadãos, não são empregos em
que percam o foro da nobreza porque qualidade incomparavelmente mais ilustre tem na milí-
cia dilatando o nome de seus progenitores pegando nas forquilhas para as sentinelas primeiro
que empunhem os bastões para os Governos. Nem os que fizeram a representação a Sua Magde.
podiam ter privilegio que livrarem a seus filhos de entrarem de guarda ficando a praça sem sol-
dados na ocasião em que V. Exa. fez expedir duas canoas armadas a reconhecerem a qualidade
da nação, e forças de um navio estrangeiro que entrou no rio Macapá: porque em semelhantes
ocasiões em que se faz justo o temor de alguma invasão inimiga, não deve haver respeito a
isenções como Sua Magde. declarou [...]

[...]

[...] que toda a diligencia q estes moradores fazem privilégios de cidadãos se encaminha mera-
mente aliviarem-se de pegar armas, nem ainda nas mostras gerais; é esta a total causa q’ moveu
aos oficiais da câmara a pedirem a Sua Magde. extinção da Companhia em que seus filhos, e
netos passam mostra, formados, termos em que me parece que não sô deve conservar a dita
companhia da nobreza, mas também fazerem-se observar, as determinações de Sua Magde. or-
denadas a que também os cidadãos tenham companhia distinta da dos filhos para nela passa-
rem mostra formados, e se acharem prontos, para defenderem a pátria em alguma invasão de
inimigo149.

146 Carta patente de coronel a Hilário de Moraes Bitancourt. ANTT, RGM, Mercês de D. João V, liv. 2, f. 436.
147 Requerimento do sargento mor de ordenança Antônio Ferreira Ribeiro ao rei. Anterior a 9 de maio de
1741. AHU Pará, cx. 24, doc. 2237.
148 carta dos oficiais da câmara de Belém do Pará ao rei, D. João V. Pará, 17 de novembro de 1747. AHU-Pará,
cx. 30, doc. 2821.
149 Carta do coronel Gaspar Siqueira de Queirós em anexo a carta do governador e capitão general do Mara-
nhão, José da Serra, para o rei D. João V. Belém, 31 de julho de 1734. AHU-Pará, Cx. 16, doc. 1513.

71
Considerações finais

As famílias Siqueira Queirós e Ferreira Ribeiro integravam o grupo dos cidadãos ou nobre
de Belém, isto é, a chamada nobreza da terra (ou, como nos referimos no decorrer do texto, nobreza
local). Esse grupo, como informamos, era delimitado em listas que, durante a primeira metade do sé-
culo XVIII, foram enviadas à monarquia através do Conselho Ultramarino. Os dois grupos familiares
integravam essas listas e, portanto, eram cidadãos ou pertenciam à nobreza da terra belenense. Contu-
do, se alguns cidadãos (através das ações da câmara) procuravam se furtar ao serviço nas companhias
de ordenanças comuns ou “mecânicas” (ou era essa a imagem que os oficiais metropolitanos queriam
representar ao rei), em função dos serviços manuais, vis ou “desqualificados” relacionados a estas, esse
parecia não ser o caso dos Siqueira Queirós e Ferreira Ribeiro. A imagem que esse grupo famílias fazia
de si, em comunicação com a monarquia (através das patentes régias recebidas e em correspondências
ou representações enviadas ao Conselho Ultramarino), correspondia ao fiel e permanente servidor.
Condição que era transmitida aos sucessores da família através da reatualização dos serviços em novas
conjunturas de conflitos, que, no caso da Amazônia Portuguesa, possuía íntima relação com o contex-
to fronteiriço explanado (especialmente em relação à fronteira entre Caiena e o Cabo Norte/Amapá).
Essa reatualização, como se viu, estava vinculada à atuação nas tropas de ordenança, que ambas as
famílias procuraram executar de foram dominante – obtendo, principalmente no que se refere aos
postos superiores, relativo sucesso.

Essa imagem, procuramos demonstrar, possuía conexão com a mudança de paradigma ocorri-
da na era moderna portuguesa como um todo, segundo a qual a visão de uma sociedade naturalmente
organizada, entendida sob o prisma do autogoverno e cujas leis, os direitos, os foros e os privilégios
eram encarados como naturais e, portanto, distantes da autoridade do rei era contraposta a um novo
paradigma. Esse último, por sua vez, destinava ao rei maior margem de manobra sobre os cargos e os
privilégios e, talvez, permitiu ao monarca maior gerência sobre a própria ordem social (referimo-nos
aos debates que envolviam os corporativistas e os “modernos”). Na esteira destas transformações,
como pontuamos, os oficiais metropolitanos que agiam na Amazônia (governadores e ouvidores) pro-
curavam superar os privilégios e desmerecer a própria condição de nobres ou cidadãos de Belém (“no-
breza da terra” ou local) – visto que a fragmentação do conceito de nobre numa miríades de definições
e graus também era característica da sociedade lusitana, a “nobreza política”, em detrimento da local,
parecia ser a mais valorizada pelos governadores. No decorrer destes acontecimentos, os dois grupos
familiares em questão buscaram o vínculo com o serviço e com a chamada “nobreza política”, pois o
coronel Gaspar Siqueira Queirós era cavaleiros da Ordem de Cristo (1727) e um filho de Antônio Fer-
reira Ribeiro, João Ferreira Ribeiro, futuramente alcançaria a mesma mercê (1773)150. Procuraram, em
determinada ocasião, afastar-se da atuação na câmara – pois, ao que parece, consideravam os oficiais

150 Carta de cavaleiro, carta hábito e tença na Ordem de Cristo ao coronel de ordenanças do Pará Gaspar Si-
queira de Queirós. 21 de novembro de 1727. ANTT, Chancelaria da Ordem de Cristo, livro 182, f. 453 a 434 e
livro 194, f. 88; e carta de cavaleiro e carta de hábito ao mestre de campo de auxiliares do Macapá João Ferreira
Ribeiro. 02 de maio de 1773. ANTT, Chancelaria da Ordem de Cristo, livro 306, f. 216v. a 217v.; Habilitação na
Ordem de Cristo de 18/03/1773, maço 58, n. 7.

72
da mesma hierarquicamente inferiores – e valorizaram o trabalho manual, em detrimento do servi-
ço exclusivo no conselho municipal, enquanto serviço realizado à V. Maj. (pelo menos no discurso).
Enfim, parece que aquela nobreza conquistada pela câmara em meados do século XVII (representa-
da pelos privilégios dos cidadãos da Cidade do Porto) não lhes parecia suficiente se o laço político/
clientelar com a monarquia não fosse, através dos serviços, constantemente reiterado. Ora, se fora um
serviço essencial que “originara” o nobre belenense (a restauração do Maranhão), o dom, embora es-
trutural para a sociedade, funcionava de forma particular em temporalidades distintas, adequando-se
a contextos (ou paradigmas) diferenciados.

O Escolteto durante o período Nassoviano


Thiago Soares de Macedo Silva151

Em 1578, liderando uma campanha militar contra mouros do norte da África, o Rei de Por-
tugal D. Sebastião, da dinastia de Avis, é morto na batalha de Álcacer-Quibir. Boa parte do exercito
lusitano bem como da nobreza que compunha este foi morta ou aprisionada pelos mouros, cobrando
altos resgates por aqueles que permaneceram vivos. Pior que esses resgates, a morte do Rei levou a
uma grande crise sucessória no reino português tendo em vista que o único herdeiro aparente do tro-
no era o tio-avô do Rei, o Cardeal Henrique que contava com idade muito avançada e, por motivos
óbvios, não tinha nenhum herdeiro. O cardeal assumiu a coroa lusitana mas antes que uma solução
para o futuro do reino lusitano pudesse ser encontrada, a morte leva Henrique de Avis jogando Portu-
gal no caos sucessório. Os três principais pretendentes ao trono eram Filipe Habsburgo, Rei de Castela
e Aragão, Catarina, a duquesa de Bragança e D. Antonio, prior do Crato. Com a morte do cardeal,
Catarina retirou sua “candidatura” ao trono por não dispor dos meios para garantir o trono em suas
mãos. A disputa ficou entre o Rei das Espanhas, que dispunha de amplo apoio na nobreza e no clero
português, e o Prior do Crato, que contava com apoio do povo e das comunidades citadinas, mas por
ser um filho bastardo da casa de Avis tinha um fraquíssimo apoio nos demais segmentos. Aproveitan-
do-se do momento da morte de D. Henrique, D. Antonio se proclama Rei iniciando uma guerra pelo
trono lusitano. Com a força de seus exércitos e armadas, Filipe II conseguiu derrotar as tropas do prior
do Crato garantindo a Coroa para si, iniciando o período conhecido como União Ibérica, a união dos
tronos da península ibérica sob comando da dinastia Habsburgo.

Visando conquistar a harmonia entre os diversos setores do Reino português e dar um senso
de legitimidade ao seu domínio, Filipe II resolveu convocar Cortes na cidade de Tomar. Além do ar
de legitimidade, as Cortes de Tomar representaram a negociação entre a nobreza governante do Reino
com o novo monarca, além de definir os limites que a União Dinástica teria no modo de governar por-
tuguês. O juramento de fidelidade ao Rei, algo nunca antes requisitado por um monarca português,
151 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. Bolsista
do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

73
serviu para garantir que a nobreza permaneceria fiel ao rei, mesmo este se encontrando em Madri,
onde residia a corte dos Habsburgo. Em Tomar foi acordada uma série de medidas que visavam ga-
rantir uma independência jurisdicional de Portugal junto às demais partes da monarquia compósita
espanhola152. Foi uma espécie de “trato informal” da aristocracia portuguesa com a Monarquia dos
Habsburgo. A nobreza portuguesa poderia estar apta a receber um rei estrangeiro como novo mo-
narca, mas não aceitaria a incorporação de Portugal ao Reino de Castela. Tais garantias tinham como
intuito impedir que o Reino lusitano fosse uma mera província dos territórios governados pelos Áus-
trias de Madri153.

A parceria entre os Países Baixos e Portugal remontava há muito e teve muito de suas relações
intensificada pelo trato entre cristãos-novos e marranos com aqueles que saíram da península pelas
expulsões de fins do XV e início do XVI. Esse comércio se concentrava na exportação do Sal da região
de Setúbal (um sal de boa qualidade de que a indústria de pesca neerlandesa dependia), no comércio
das especiarias do oriente e no refino do açúcar, um dos principais gêneros provenientes da colônia
portuguesa na América, em especial da Capitania de Pernambuco, onde se encontrava grande parte
da produção açucareira. O aumento das exportações entre Brasil e Portugal e a insuficiência de meios
de transporte deste comércio por navios portugueses possibilitou o uso de navios de outras naciona-
lidades, como afirma o historiador Jonathan Israel:

[...] A navegação portuguesa não tinha capacidade suficiente para dar conta do rá-
pido crescimento das exportações brasileiras. Por isso era necessário para os merca-
dores utilizar barcos holandeses na rota entre Brasil e Portugal, frequentemente sob
bandeira flamenga ou hanseática, ainda que realmente a maior parte desses barcos
estrangeiros vinham das Províncias Rebeldes de Holanda e Zelândia.154

152 “Para Elliot, uma monarquia compósita – tendo como referência principal o caso espanhol – era consti-
tuída por vários reinos, com estatutos próprios que preexistiam à formação de tal monarquia, cada um deles
preservando as características dessa existência institucional prévia. Os vários reinos eram, desse modo, preser-
vados, nos termos de suas formações originais, com seus corpos de leis, normas e direitos locais. Cada uma
dessas unidades mantém sua capacidade de autogoverno no interior de um complexo monárquico mais amplo.
Nesse formato, o rei – o monarca – operava como a cabeça do corpo social, construído pelos vários reinos que
se mantinham rígidos por suas regras coadunadas com as leis maiores editadas pela Coroa, como era o caso,
por exemplo, do vice-reino de Portugal e da edição das ordenações filipinas em 1602.”. Cf. FRAGOSO, João;
GOUVEA, Maria de Fátima (Org.). Na trama das redes: política e negócios no império português, séculos XVI
– XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. P.17
153 COSENTINO, Francisco Carlos. Mundo português e Mundo Ibérico.In: FRAGOSO, João; GOUVEA, Ma-
ria de Fátima (Org.). O Brasil Colonial. 1580 – 1720. Volume II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
P.114
154 “La navegacion portuguesa no tenia capacidad suficiente para servir el rapido crecimiento de las exporta-
ciones brasileñas. Por eso era necesario para los mercadores utilizar barcos holandeses en la ruta entre Brasil y
Portugal, frecuentemente bajo bandera flamenca o hanseática, aunque en realidad la mayor parte de estos bar-
cos extranjeros procediam de las Provincias Rebeldes de Holanda y Zelanda” - ISRAEL, Jonathan I. El Brasil y la
política holandesa em el nuevo mundo (1618-1648). In: PÉREZ, J. Manuel Santos. Acuarela de Brasil, 500 años
después – Seis ensayos sobre la realidad histórica y econômica brasileña.Salamanca: Ediciones Universidad de
Salamanca, 1999. P. 14

74
No início da União Dinástica entre Portugal e Espanha, pouco foi alterado no que se refere ao
comercio entre o reino lusitano e as Províncias Rebeldes, como seriam comumente chamadas pelos
Espanhóis. Nos anos de 1585 e depois em 1595, a corte enviou ordens para que as embarcações neer-
landesas fossem apreendidas para frustrar o comércio, e consequentemente o lucro, de uma nação
inimiga. Com a proibição de navios neerlandeses nos portos ibéricos, cresceu cada vez mais a ideia
de assegurar o comércio através da ocupação militar de colônias luso-espanholas para tratar direta-
mente com a produção e o comercio das especiarias155. Uma das características mais peculiares desse
conflito entre as Províncias Unidas e a Monarquia Compósita Habsburgo foi a forma como ambos os
lados mantiveram a guerra em grandes partes com recursos fornecidos pelo comércio com o inimigo,
através do contrabando. Enquanto os neerlandeses necessitavam de uma série de matérias primas
disponibilizadas por portugueses e espanhóis, os Habsburgos perceberam que não tinham condições
de fazer a guerra sem certos materiais e manufaturas que eram amplamente comerciados pelos neer-
landeses, principalmente os grãos e artigos da indústria naval vindos do Báltico, o já referido moeder-
negotie holandês.

Visando não perder o lucrativo comércio proporcionado pelas possessões do ultramar portu-
guês, os neerlandeses resolveram tentar tomar tal comércio em suas bases de produção, assegurando
tais relações comercias. Essa estratégia se deu inicialmente com a criação de Companhias de Comér-
cio, em fins do século XVI, conhecidas como voor-compagnies, ou seja, pré-companhias. A primeira
a ser criada foi a Compagnie van Verre, ou seja, a ‘companhia do lugar distante’, no ano de 1594. Após
essas, outras companhias foram criadas por comerciantes das Províncias Unidas para atuar no co-
mércio com o Oriente e o Ocidente. Com a criação de várias pequenas companhias e suas sucessivas
viagens para o Oriente, ocorreu um aumento no preço das especiarias nos portos de origem e uma
queda nos preços destas em Amsterdã. Isso possibilitou o surgimento da ideia de unificação dessas
pequenas companhias em uma grande, possibilitando a criação de um monopólio. Com o monopólio,
no Oriente os vendedores de especiarias teriam que aceitar o valor pago pela Companhia enquanto na
metrópole, os mercadores da Companhia poderiam vender ao preço que desejassem, já que não ha-
veria uma ampla concorrência, sendo eles os únicos a ofertar tal produto, aumentando em muito sua
margem de lucro. Foi assim que, em março de 1602, foi criada a Vereenigde Oost-Indische Compag-
nie, a Companhia Neerlandesa das Índias Orientais (VOC), que corresponderia a junção das demais
companhias. A grande diferença das pré-companhias para a VOC estaria num “caráter organizacional
do capital empregado”156, que era muito maior que os disponíveis pelos comerciantes independentes.
Tal companhia era comandada por um conselho de 17 diretores (Heeren XVII) com prerrogativas de
fazer paz e alianças com povos nativos, construção de fortificações e recrutamento e manutenção de
tropas.157

No ano de 1621 foi aprovada pelos Estados Gerais a criação da Geoctroyeerde West-Indische
Compagnie, a Companhia Neerlandesa das Índias Ocidentais (WIC) inspirada na VOC. Antes da
155 WÄTJEN, Hermann. O Domínio colonial holandês no Brasil. Recife: CEPE, 2004. P.65
156 NASCIMENTO, Rômulo Luiz Xavier do. ‘Pelo Lucro da Companhia’: Aspectos da Administração no Brasil
Holandês. Dissertação de Mestrado. Recife: UFPE, 2004. P.45
157 GUEDES, Max Justo. As Guerras Holandesas no Mar In: GUEDES, Max Justo. História Naval Brasileira
Rio de Janeiro, 1990, P.25

75
criação da WIC, os neerlandeses lançaram algumas expedições no Atlântico, com atividade de corso
e captura de navios mercantes ibéricos, além do comércio do açúcar e de tentativas de conquistar a
Amazônia, contudo um projeto colonizador só seria possível com o aporte de uma companhia de ca-
pital unificado em maior escala158. O idealizador da Companhia, Willem Usselincx, grande mercador
em Amsterdã, teorizava a companhia em um empreendimento que visasse a criação de colônias agrí-
colas em territórios ainda não ocupados pelas coroas ibéricas, visando o comércio atlântico e a ocu-
pação de territórios para as Províncias Unidas sem o dispêndio gerado pelas guerras. Pensava como
seus demais contemporâneos: As colônias seriam essencialmente fornecedoras de matérias-primas
para a Pátria Mãe além de escoadouro da produção manufatureira desta159. Contudo, a Companhia
criada em 1621 desviou muito daquela pensada por Usselincx. Como afirmou Rômulo Nascimento,
a WIC fora criada com os mesmo princípios da VOC: “(...) fazer guerra contra as Coroas Ibéricas e,
com isso, dividir o bolo do comércio internacional de açúcar, pau-brasil, sal e escravos. O seu cenário:
o Atlântico.” 160.

Dentre as cláusulas de criação da companhia estavam o poder de contrair alianças e manter


a paz entre os povos nativos, construir e manter fortificações, nomear juízes, funcionários e gover-
nadores além de possuir tropas, guarnições recrutadas pela WIC ou cedidas pelos Estados Gerais e
mantidas com os fundos da Companhia além de manter uma frota de navios mercantes e de guerra.
Também foi concedido um subsidio nas taxas de importação e exportação pelo período de oito anos,
além do monopólio sobre o comércio no Ocidente161 durante um período de 24 anos162. O Comando
da WIC era composto por um quadro de 19 diretores (os Heeren XIX) que seriam divididos de acordo
com a proporção que cada província das Províncias Unidas tinha junto a Companhia: oito diretores
de Amsterdã, quatro da Zelandia, dois do Mosa, dois do distrito do Norte, dois de Frísia e Groningen
e um representante dos Estados Gerais.

Com o capital necessário reunido, a Companhia pode-se fazer ao mar. E a primeira decisão
tomada pelos dirigentes da WIC seria o cenário da primeira expedição militar da companhia. Usse-
lincx ainda tentou dissuadir sobre a ideia de atacar territórios já colonizados, mas a corrente que pre-
gava a vantagem da companhia ante o prejuízo direto dos inimigos Habsburgo ganhou. Várias foram
as hipóteses cogitadas pelos dirigentes da Companhia. Atacar o Panamá, com o intuito de dividir as
possessões espanholas em duas; atacar Cuba, para ter uma base para lançar os ataques às frotas de
prata espanholas e até mesmo saquear um porto ibérico na Europa, em semelhança ao que ocorreu
em Cádiz pelas mãos dos ingleses em 1595.Por fim, escolheu-se a Bahia, sede do Governo Geral do
Brasil, como alvo da invasão à América portuguesa. O historiador Wolfgang Lenk cita com riqueza de
detalhes os motivos pelos quais a Bahia foi escolhida como alvo do ataque batavo.

158 WÄTJEN, 2004, P.72


159 BOXER, Charles. Os Holandeses no Brasil, Recife: CEPE, 2004, PP.4-5
160. NASCIMENTO, 2004, P.29
161 “(...) num lado do Atlântico, entre a Terra Nova e o Estreito de Magalhães, e, no outro lado, entre o trópico
de Câncer e o cabo da Boa Esperança. No oceano Pacifico a esfera de ação da Companhia estendia-se da costa
ocidental da América à extremidade oriental da Nova Guiné.” BOXER, 2004, P.10
162 Com exceção do comércio do Sal de Punta Araya, que seria região de livre comércio.

76
Contudo, o Brasil era o que melhor contemplava os interesses comerciais e os objeti-
vos políticos da WIC, (...). Primeira as vantagens de uma campanha militar no Brasil:
a inexperiência de suas defesas, a possível colaboração dos portugueses e cristãos no-
vos, perseguidos pela intolerância papista. Principalmente, a importância de poucos
centros vulneráveis para o domínio de toda a vastidão da colônia – com as praças da
Bahia e de Pernambuco ocupadas e fortificadas, ‘a companhia das Índias Ocidentais
não somente se tornará senhora do país inteiro, como poderá manter a sua posse’.
Segundo, os muitos proveitos que o Brasil renderia a Companhia: as riquezas do
saque, produto da tributação e do comercio do açucare outras mercadorias – frutos
que compensariam os gastos da campanha e defesa e ainda seriam fonte de um lucro
anual de cinquenta toneladas de ouro. Em terceiro lugar, estimava-se os danos que
a conquista do Brasil infligiria à Monarquia Espanhola: a perda dos impostos sobre
o comercio de açúcar e de escravos; o aumento dos custos de defesa do restante das
índias ocidentais e, sobretudo, as repercussões da ocupação em Portugal e a pressão
decorrente sobre a União Ibérica.”163

Com o fracasso de seu primeiro empreendimento, a Companhia se lançou a projetos mais


modestos, atendo-se a atividade de corso no atlântico norte. A virada ocorreu com a captura da frota
da prata pelo almirante Piet Heyn. A tomada da frota deu nova vida a WIC. Pela primeira vez em sua
história (e também a única vez) a companhia pagou dividendos a seus acionistas. Tal butim somado
aos ganhos com o corso dos anos anteriores permitiu que a WIC planejasse novas incursões contra
a America do Sul. Em Espanha, a perda da frota foi muito sentida. Boa parte das riquezas da fro-
ta já estava empenhada para honrar os compromissos financeiros gerados pelas diversas guerras da
Monarquia Católica dos Habsburgo, configurando-se no maior butim capturado da frota das índias.
Filipe IV condenou a morte o comandante da frota, condenando ao desterro na África o segundo em
comando da esquadra164.

Com tais recursos a WIC pode realizar um novo empreendimento colonizador novamente
contra o Brasil. Dessa vez, a cidade de Salvador fora logo excluída por estar melhor fortificada que
quando da expedição de 1624, além de que a produção açucareira na Bahia ainda estava se recompon-
do dos ataques feitos pela companhia nos anos anteriores. Descartada Salvador, o maior polo econô-
mico açucareiro do Brasil estava localizado na capitania de Pernambuco, que logo foi escolhida pelo
conselho diretor como o objetivo da próxima expedição da WIC. Além de sua primazia econômica,
a capitania de Pernambuco ainda contava com um bom posicionamento estratégico e geográfico, es-
tando a uma menor distância tanto da Europa como da África, encurtando o tempo de demora entre
viagens para a metrópole ou em busca de escravos. Pernambuco ainda seria o melhor ponto para que
as armadas da companhia pudessem dominar a navegação no Atlântico Sul165. A expedição partiu em
1629 e conquistou Recife e Olinda no início de 1630, que ofereceu uma fraca resistência inicial. Como
daremos foco neste trabalho ao período em que o Conde João Maurício de Nassau foi governador do
Brasil Holandês, basta afirmar que o período iniciado em 1630 foi de grande luta pela conquista do
163 LENK, Wolfgang. Guerra e Pacto Colonial – A Bahia contra o Brasil Holandês (1624-1654); São Paulo:
Alameda, 2013. PP.34-35
164 DARÓZ, Carlos. A Guerra do Açúcar – As invasões Holandesas no Brasil. Recife: Editora UFPE, 2014.
P.174
165 DARÓZ, 2014, P.175

77
que hoje é o nordeste do Brasil. Durante 6 anos de guerra praticamente ininterrupta, os holandeses
tinham praticamente estabilizado suas fronteiras evitando novos avanços luso-brasileiros.

Conquistando Olinda e Recife, os neerlandeses estabelecem um governo no território con-


quistado, seguindo o Regimento do Governo das Praças Conquistadas ou que forem conquistadas
nas Índias Ocidentais, documento preparado pelo conselho dos XIX para guiar o estabelecimento
de colônias para a Companhia das Índias Ocidentais. Os dois propósitos dessas ordenações eram o
estabelecimento de um governo central para todas as colônias ocidentais neerlandesas, tendo as ins-
tituições das Províncias Unidas como base para as que forem estabelecidas nas colônias e criar uma
uniformidade de leis entre essas colônias e a República. Entretanto, nesse período inicial do Brasil
holandês, a guerra foi presente quase ininterruptamente, sendo a principal preocupação de qualquer
governo baseado no Recife a sobrevivência básica contra os ataques luso-espanhóis e o aumento e
consolidação das fronteiras. Mario Neme vai chamar esse primeiro governo de “mero arremedo de or-
ganização política”166 e Wätjen afirmou que apenas com o Conde de Nassau houve uma administração
regularizada na capitania. Essa administração inicial é o período, como afirma Rômulo Nascimento,
de predomínio do Kleine profiten (pequenos lucros) onde, através da grande quantidade de rios na-
vegáveis, os mercadores da Companhia conseguiam realizar pequenas transações com produtores de
açúcar, garantindo a movimentação da economia nos territórios conquistados e dando uma perspec-
tiva de lucro para os cofres da WIC. Um período onde a guerra e a administração, guardando suas
devidas proporções, “caminham lado-a-lado”167

O principal ofício criado pela Ordenação de 1629 foi o Conselho Político, que cuidará da
administração da conquista, com um poder praticamente supremo para todas as questões de gover-
no, bem como finanças e administração de justiça tendo como objetivo conservar a ordem pública
e manter a paz e a concórdia entre os moradores e as forças da Companhia168. Havia a figura de um
governador, mas este não tinha grandes poderes na administração tendo maiores prerrogativas na
esfera militar. Nesse período incial o governo coube ao Coronel Waerdenburch, que conseguiu impor
a conquista da Companhia ao interior da Capitania. Neme afirmou que a ausência de um governador
atuante e com autoridade política é um dos principais motivos para o enfraquecimento deste governo
e administração169.

No artigo 53 deste regimento de 1629 é criada a função do Escolteto; um por jurisdição e es-
colhido pelo Conselho Político.

Para prender os criminosos, promover a execução das sentenças, assistir a mesma


execução, velar sobre a observância das ordenanças e regulamentos civis, que forem

166 NEME, Mário. Fórmulas Políticas no Brasil Holandês. São Paulo: - Ed. da Universidade de São Paulo, 1971.
P. 26
167NASCIMENTO, Rômulo Luiz Xavier do. O ‘Desconforto da governabilidade’: aspectos da administração
no Brasil holandês (1630-1644). Tese de Doutoramento. Rio de Janeiro: UFF, 2008
168 REGIMENTO do Governo das Praças Conquistadas ou que forem Conquistadas nas Índias Ocidentais. In:
RIAP, nº 31, Recife, 1886, P. 293
169 NEME, 1971. P.29

78
decretados tanto pela Companhia como pelo Concelho, e fazer punir os transgresso-
res, o Concelho nomeará um escolteto ou substituto do advogado fiscal, o qual terá
as suas ordens três beleguins ou quadrilheiros170

Nas Províncias Unidas o escolteto fazia parte da administração municipal. Tinha deveres tan-
to administrativos quando judiciais, com seus deveres judiciais ganhando mais importância com o
passar dos anos. Ele toma conta da paz, apreende os criminosos e executa as sentenças judiciais, bem
semelhante ao disposto no regimento de 1629. Os escoltetos e os escabinos deveriam cuidar do bem-
-estar da cidade e de seu policiamento bem como seus regulamentos171.

José Antônio Gonsalves de Mello, no segundo volume do livro Fontes para a História do Brasil
Holandês, teceu um comentário sobre o papel do escolteto na administração neerlandesa.
O Escolteto era função prevista no “Regimento do governo das praças conquistadas
ou que forem conquistadas nas Índias Ocidentais”, datado de Haia 13 de outubro
de 1629 (artigo 53) (...). Hermann Wätjen resume as atribuições do Escolteto: “ele
era Promotor de Justiça, Exator da Fazenda e Chefe de Polícia em sua respectiva
circunscrição”. Por esses encargos e, ainda, pelo fato de que vários deles não tinham
escrúpulos de prender e extorquir os moradores luso-brasileiros, sob falsos pretextos,
foram os Escoltetos os funcionários mais odiados e temidos de toda a administração
holandesa no Brasil. Basta ler Frei Manuel Calado, no seu depoimento fundamental
sobre aqueles anos, as atas da Assembleia de 1640 e as das sessões do Alto Conselho
para comprovar a frequência e a gravidade das queixas contra tais funcionários.172

Mario Neme afirmará que a figura do Escolteto se assemelha a figura do Alcaide na adminis-
tração portuguesa.

Pela mesma resolução de 23 de agosto de 1636 é mandado colocar em cada vila um


funcionário – escolteto – que exerce várias funções, segundo instruções então bai-
xadas e das quais somente se sabe que estipulavam a competência e as obrigações
que incumbiam a esse funcionário. Apura-se de outros documentos que os escoltetos
acumulavam as atribuições de delegado de polícia, de promotor de justiça, de presi-
dente do órgão de administração local, de fiscal dos tributos e de agente comercial
da Companhia173

Já Luize Navarro, autora de excelente trabalho sobre as câmaras de vereadores e de escabinos,

170 REGIMENTO do Governo das Praças Conquistadas ou que forem Conquistadas nas Índias Ocidentais. In:
RIAP, nº 31, Recife, 1886, P. 305
171 NAVARRO, Luize Stoeterau. Entre dois mundos: câmara e escabinos na circularidade da cultura jurídica no
Brasil holandês (1630-1654). Dissertação de mestrado em Direito. Setor de Ciências Jurídicas. Departamento
de Direito. Curitiba, UFPR, 2015. P. 57
172 MELLO, José Antônio Gonsalves de. Fontes para a história do Brasil holandês: a administração da conquis-
ta. 2. ed. v. 2. Recife: CEPE, 2004– P.31
173 NEME, 1971. P.37

79
vai assemelhar o escolteto a uma espécie de chefe de polícia, aproximando-se do Almotacé174 portu-
guês175. Ao escolteto também cabia a função de prestar queixas e acusações iniciando os tramites da
justiça criminal; nessa seara, ao escolteto cabia realizar a acusação e o julgamento se daria em diferen-
tes instancias seguindo as leis da republica dos Países Baixos176, com o colégio de conselheiros se con-
vertendo em um tribunal177. Tanto para os portugueses quanto para os indígenas que viviam nos terri-
tórios conquistados pela Companhia, cabia a possibilidade destes utilizarem seus próprios costumes e
leis, gerando assim um altíssimo grau de particularismo jurídico, característico do Antigo Regime178.

Nesse regimento do ano de 1629 não há qualquer tipo de menção ao estabelecimento de uma
administração local ou municipal para os territórios conquistados. Acredita-se então que, enquanto
ocorria a conquista dos territórios, as câmaras de vereadores continuaram a exercer sua função até a
chegada da nova instrução. Vale lembrar também que durante esse período ainda havia uma intensa
luta pela supremacia no nordeste, e que muito provavelmente grande parte das energias da adminis-
tração neerlandesa estivessem voltadas aos empreendimentos militares, com a organização e incre-
mente do aparato jurídico sendo negligenciados nesse primeiro momento179.

Apesar do estabelecimento deste cargo já em 1629, não encontrei nenhuma afirmação de que
os Escoltetos foram de fato implementados nessa primeira fase de administração neerlandesa no Bra-
sil. Ao contrário, Barléus irá afirmar que os escoltetos só serão estabelecidos juntamente com as câ-
maras de Escabinos em 1637 no governo de Nassau e já sob a vigência de um novo Regimento180. O
ilustre José Antônio Gonsalves de Mello também afirmará que “somente no segundo semestre de
1637, quando os problemas militares mais urgentes foram resolvidos, deram início o Conde e o Alto e
Secreto Conselho à organização das várias jurisdições administrativas e judiciais da conquista, segun-
do o modelo holandês”181. Barléus, em nota, ainda irá descrever a função do escolteto e explanar sobre
este cargo dentro do direito holandês:

Os escabinos constituíam câmaras semelhantes às nossas câmaras municipais. A elas


presidiam os escultetos, que desempenhavam ainda funções de exatores fiscais, de-
legados da administração e promotores públicos. (...). Nos casos ordinários, a justiça
era administrada tanto nas cidades como nas aldeias, pelos escabinos (Schepenen),
e para tal fim se nomeavam sete e às vezes oito, com a diferença, porém, de que na
174 Eleitos pela Câmara para desempenhar funções relativas ao abastecimento e limpeza da cidade, a fisca-
lização do comércio dos gêneros de primeira necessidade e as questões urbanísticas. - LUCIANI, Fernanda
Trindade. Munícipes e Escabinos – Poder Local e Restauração no Brasil Holandês (1630-1654). Dissertação de
Mestrado em História Social. Departamento de História. São Paulo: USP, 2007 P.50
175 NAVARRO, 2015. P.78
176 Ibidem, P.80
177 Ibidem, P.78
178 Ibidem, P.80
179 Ibidem, P.81
180 Criaram-se (no governo de Nassau) nas províncias, cidades, vilas e aldeias magistrados chamados escabi-
nos, escultetos e inspetores para administrarem a justiça no cível e no crime, na conformidade com as leis ho-
landesas – BARLEUS, Gaspar. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil e noutras
partes sob o governo do ilustríssimo João Maurício conde de Nassau. São Paulo: Edusp, 1974. P. 50
181 MELLO, José Antônio Gonsalves de. Fontes para a história do Brasil holandês: a administração da conquis-
ta. 2. ed. v. 2. Recife: CEPE, 2004. P.23

80
cidade os escabinos conhecem indistintamente de todas as causas não somente cíveis
e comuns, mas, criminais, sendo o seu presidente ou principal oficial o Sherif (Schout
ou Esculteto). Este não é de fato Juiz, mas executa os mandados dos juízes, convoca a
corte criminal, recolhe os votos, sustenta os direitos do país nas causas públicas e atua
como promotor e inquiridor nos processos crimes182.

Contudo, o ofício do Escolteto entrou na História de Pernambuco como um cargo supérfluo e


sem necessidade com seus integrantes sendo corruptos e dados a má administração que não buscavam
o bem da sociedade e apenas em poucos casos aplicavam a justiça como deveria ocorrer. Se eles foram
instaurados para garantir o bom convívio entre portugueses e neerlandeses e impedir que qualquer
um tirasse proveito da Companhia ou de outrem, em boa parte dos casos os escoltetos utilizavam de
suas prerrogativas em proveito próprio, extorquindo a bel prazer, como veremos com os relatos apre-
sentados abaixo.

Nas Instruções de 1636, feitas exclusivamente para o Brasil, os artigos 42, 43 e 45 dizem respei-
to a figura do Escolteto:

XLII – A justiça criminal será administrada pelo Colégio do Conselho Político, com
os conselheiros residentes para organizá-la, ou Conselho Político e o subalterno Con-
selho de Justiça nas respectivas capitanias e demais lugares o substituirão, as tensões
serão denunciadas pelo Escolteto ou Fiscal, ou por seu substituto, com isso o colégio
acaba por consistir em pelo menos 5 pessoas

XLIII – Para a apreensão de criminosos, levar adiante a execução de sentenças, para


administrar e aferir o cumprimento das ordenações, tanto dos XIX Senhores, quanto
do Governador e Alto Conselho, para corrigir aqueles que as ultrapassarem, o Gover-
nador e o Alto Conselho, aconselhados pelo Conselho Político, deverão escolher um
Escolteto, ou substituto de Fiscal, e, abaixo deste, mais três servidores, e isso em cada
lugar que houver um tribunal de primeira instancia ou em que haja administração
da justiça.

XLV – As penitencias criminais devem ser anotadas pelo Escolteto ou fiscal de acor-
do com a Instrução, exceto no acontecimento de os XIX Senhores, pela interpretação
e escrita, suprirem a atuação do Conselho Político e possam dar provimento os casos
a eles direcionados183.

Durante o período nassoviano, onde tais instruções passaram a valer, pude identificar 14 es-
coltetos no Brasil Holandês. Tais nomes foram encontrados graças a pesquisa nas nótulas diárias do
conselho supremo e secreto do Brasil, as atas onde os conselheiros noticiavam o cotidiano na con-
quista; e na coleção Mauritiana, que corresponde a uma série de ementas de documentos sobre o
Brasil presentes em arquivos neerlandeses. Cada jurisdição deveria ter um escolteto escolhido pelo
governador e pelo alto conselho, e a única das jurisdições que não foi possível identificar o nome de

182 BARLÉUS, 1974. P.374


183 NAVARRO, 2015. Anexo I

81
algum escolteto foi na câmara do São Francisco. No entanto, nas câmaras de Olinda (depois Maurícia),
Sirinhaém, Igarassu, Porto Calvo, Alagoas, Santo Antônio do Cabo, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande,
ao menos um escolteto teve seu nome gravado nos anais da história. Eram eles Johannes Marichal, da
Paraíba; Johan Listry de Itamaracá; Abrahan de Rouff do Rio Grande; Paul Antonio Daems, de Igaras-
su; Allaert Holl, do Cabo; Jan Blaer e Cosmo de Moucheron de Sirinhaém; Geraedt Craijesteijn e De
Roest de Porto Calvo; Jan Schaep e Melchior Johannes Staet de Olinda; e Arnout van Liebergen e Jacob
Kien das Alagoas.

São poucos os casos em que encontramos a nomeação do escolteto para seu cargo. A grande
maioria das nótulas e documentos pesquisados dá a entender apenas que em determinado momento
a pessoa recebeu o cargo e já está no exercício deste. Encontramos algumas nótulas que requeriam
um melhor comportamento por parte dos escoltetos, e até mesmo instruções para o bom exercício da
função, mas resultados de tais requerimentos praticamente não existem. Se o Conselheiro Carpentier
de fato escreveu uma clara instrução para escoltetos e escabinos184, como as nótulas deixam claro, nada
sobre esta chegou até nós.

Encontramos alguns casos bastante interessantes na pesquisa a esses escoltetos; para mim, o
caso de Johan Listry é o mais cativante. A primeira vez que encontramos o Listry é em outubro de
1635, onde este trabalhou como Commis185 do Comissário de Viveres do Recife Crispijnsz. O então
commis pedia ao conselho para lhe pagarem um salário equivalente ao de comissário, por estar exer-
cendo este cargo temporariamente por enfermidade do Comissário Crispijnsz; a petição foi aprovada
e Listry passou a receber o mesmo salário de seu chefe, 80 florins por mês186. Já em 1636, o Conselho
despachou ordem para que apenas Listry se ocupasse das entradas e saídas dos víveres e que ele admi-
nistrasse os armazéns da Companhia, tendo em vista a enfermidade do Comissário geral dos víveres187.
Em abril de 1638, Listry é indicado a patente de oficial de uma das companhias de civis existentes em
Recife, denotando que Johan conhecia um mínimo de vida militar para poder comandar civis em
exercícios e/ou batalhas188. Em janeiro de 1639, Johan Listry já é Escolteto da capitania de Itamaracá, e
aparece requerendo ao Conselho um tratado e uma instrução para capitão do mato, informando que
uma pessoa deverá ser contratada para tal serviço189. Após a chegada de Listry ao posto de Escolteto,
sua ascensão é meteórica. Ainda em 39 ele aparece como lavrador do Engenho Ipitanga pertencente a
Johan Wynants que também foi Commis antes de 1635. Das 189 tarefas de cana moídas pelo engenho,
o escolteto Listry era responsável por 80 dessas tarefas190, equivalentes a 4 mil arrobas de açúcar. A
rapidez com que um antigo auxiliar de comissário, que recebia um salário de 80 florins por mês em
1635, chegou a ser lavrador de 80 tarefas de cana menos de 5 anos depois não deixa de fascinar. Em
1640, Listry aparece como Comandante dos brasileiros, acumulando as duas funções pelo que parece.
Após servir como comandante dos Brasileiros, elogiado por muitos, Listry foi capturado na batalha de

184 IAHGP. Coleção José Higyno. Dagelijckse notulen 25/06/1638


185 Assistente do Comissário
186 IAHGP. Coleção José Higyno. Dagelijckse notulen 12/10/1635
187 Ibidem 14/03/1636
188 Ibidem 08/04/1638
189 Ibidem 14/01/1639
190 MELLO, José Antonio Gonsalves de. FHBH Vol 1- -Economia Açucareira. Recife: CEPE, 2004 P. 165

82
casa forte em 17 de agosto de 1645, sendo transportado para Salvador. Neuhoff afirmará que Listry foi
enviado a Portugal como prisioneiro, contudo, em 1652, ele se encontra na aldeia de Schonenburg191,
no Ceará e na altura da capitulação ele continua como comandante dos Brasileiros em Itamaracá.

Outro caso interessante é o de Jan Blaer. Na eleição para o escabinato de Sirinhaém em 1639,
Blaer aparece como o escolteto encarregado de inscrever os nomes dos escabinos eleitos para a pró-
xima magistratura, bem como receber o juramento destes caso o coronel Kloin não esteja presente192.
Ainda em 39, Jan Blaer recebeu uma patente de capitão de cavalaria em Sirinhaém, devido as medidas
protetivas tomadas pelo governo do Recife com a chegada da armada do conde da torre193. Em 1640,
Blaer aparece como lavrador do Engenho São Braz, pertencente a Pero Lopes de Vera194, responsável
por 20 tarefas, metade do total de tarefas moídas neste engenho. Na Assembleia Geral realizada por
Nassau em agosto de 1640, os deputados da câmara de Sirinhaém exortam ao governador e ao alto
conselho para que estes retirassem o cargo de escolteto de Jan Blaer, por incômodos deste à jurisdição,
o que foi prontamente aceito por Nassau e os Conselheiros195. Em 1641, ele já não detém o cargo de
escolteto, aparecendo no relatório do conselheiro Bullestrate se queixando de que algumas pessoas
tinham ateado fogo em dezenas de carros de lenha do engenho de seu sogro, que foi obrigado a parar
a moagem do açúcar196. Não sabemos quem foi o sogro de Blaer, mas seu casamento com uma mulher
da terra evidencia uma prática relativamente comum no Brasil Holandês; o casamento de filhas de
senhores de engenho com os invasores batavos com o intuito de preservar seu patrimônio e ter um
defensor amigo da Companhia caso viesse a ser necessário. O fato de Blaer ser lavrador de um dos en-
genhos de Pero Lopes de Vera pode sugerir que este era o sogro do antigo escolteto, mas tal afirmação
não pode ser feita sem qualquer outro tipo de argumento.

No começo do ano de 1645, Blaer está liderando uma tropa de holandeses e índios em um ata-
que contra o Quilombo dos Palmares. Não encontrando forte resistência dos palmarinos, que fugiram
para não dar combate aos holandeses, o capitão toca fogo em várias instalações do Quilombo, como
ficou registrado em seu diário. Ainda em 45, com os princípios da insurreição em Pernambuco, o go-
verno entrega a Blaer alguns soldados das guarnições e cem índios para que este fosse para dentro da
mata para impedir que grandes ajuntamentos de pessoas197. Se reunindo às tropas do Tenente Coronel
Haus, eles se retiraram para o Engenho de De With, onde esperaram por demasiado tempo sendo
alcançados pelas tropas luso-brasileiras. Na Batalha de Casa Forte, em 17 de agosto, os neerlandeses
são derrotados. Como já citado anteriormente, Johan Listry, comandante dos brasileiros, estava nessa
batalha, e juntamente com Blaer foi feito prisioneiro e enviado a Salvador198. Contudo, no caminho
para a Bahia, Blaer foi assassinado pelos portugueses. O Frei Manuel Calado, José Antônio afirmará
191 WISEBRON, Marianne L. (Ed.). O brasil em arquivos neerlandeses (1624-1654). Leiden: Leiden University,
2005. P. 544
192 IAHGP. Coleção José Higyno. Dagelijckse notulen 13/07/1639
193 BARLEUS, 1974. P. 161
194 Era dito que Pero Lopes de Vera era judeu, inclusive sendo retirado da lista de eleitores de Olinda por esse
fato. NASCIMENTO, 2008. P.230
195 FHBH Vol 2 – P.375
196 Ibidem P.155
197 Ibidem P. 248
198 Ibidem P. 298

83
em uma de suas notas, chamou certa vez Blaer de “o mais tirano homem de sua idade”, demonstrando
o quão odiado este era entre a comunidade luso-brasileira e, de certa forma, justificando seu assassi-
nato199.

No ano de 1640, Nassau convocou uma grande assembleia realizada no Recife, para discutir
alguns temas de muito interesse para o governo e para os representantes da elite açucareira do Brasil
Holandês. Tais representantes, escabinos ou não, vinham de Maurícia, Paraíba, Itamaracá, Igarassu,
Porto Calvo e Sirinhaém. Dentre as 5 propostas apresentadas pelo governo aos representantes destas
localidades, a 5ª e última nos interessa. Sabendo que os escoltetos eram um tema de enorme contro-
vérsia para a população sob o julgo da Companhia, Nassau e o Alto Conselho resolveram se antecipar
e lançar uma proposta com o intuito de sanar as múltiplas queixas que chegavam ao Recife sobre o
mal exercício desta função. Esta proposta tinha como objetivo “remediar as desordens da justiça, os
abusos e transgressões dos escoltetos e oficiais da milícia200”, com o intuito de que esses não excedam
os limites impostos por suas instruções no exercício da função bem como evitar quaisquer brutalida-
des e transgressões contra o povo.

Foi sugerida a criação de um livro de Delitos em cada uma das Câmaras de Escabinos do Brasil
Holandês, onde as denúncias e queixas contra os escoltetos deveriam ser anotadas e enviadas para o
Recife a cada 3 meses. Se o nome de um escolteto aparecesse duas vezes nesse livro, ele seria punido,
apesar de a proposta não esclarecer qual a punição. Os escabinos, que escreveriam nesses livros, deve-
riam se ater totalmente a verdade do ocorrido e do que é conhecido; se houvesse uma denúncia falsa,
ou por amizade um escabino não relatasse uma denúncia e essa fosse descoberta depois, o escabino
seria punido. Tal proposta foi aceita por todos os representantes da Assembleia e foi vista como um
início do combate aos maus costumes do oficio do escolteto.

O oficio do escolteto provavelmente foi bastante diminuído após a insurreição de 1645. Como
a grande maioria do território e do comércio foi perdida para os portugueses, com a administra-
ção voltada para a região do Recife e algumas praças litorâneas, a necessidade do escolteto possa ter
minguado. Se numa primeira fase da guerra a administração estava mais preocupada em garantir a
expansão e a vitória na guerra, nessa terceira fase a administração estava preocupada em sobreviver e
arduamente tentar conquistar novamente os territórios perdidos.

As queixas e denúncias são inúmeras, e os exemplos de enriquecimento são latentes entre


aqueles que desempenharam a função de escolteto, como o caso de Johan Listry. Contudo, alguma
vantagem eles deviam trazer diretamente a Companhia e não aos seus próprios interesses, tendo em
vista que mesmo em sua despedida, Nassau recusa a supressão total do cargo, mesmo oferecendo-a
aos colonos que fossem desejosos de repovoar as Alagoas em 1643201.

199 Ibidem P. 384


200 Ibidem, P.339
201 Ibidem P.411

84
O rio Madeira e suas fronteiras
Vanice Siqueira de Melo202

Localizado na margem direita do Amazonas, o rio Madeira é o mais longo afluente da bacia
amazônica. A nascente do Madeira está localizada na Cordilheira Andina a partir da união dos rios
Madre de Dios, cuja nascente é no Peru, e Beni em território da atual Bolívia. Estes dois rios, por sua
vez, se juntam ao Mamoré e formam o rio Madeira. Um relato escrito, provavelmente, no início do
século XVIII, afirma que o rio Madeira é “na grandeza semelhante ao Rio das Amazonas”.203

Na segunda metade do século XVII, os religiosos da Companhia de Jesus começaram a desen-


volver atividades na área do rio Madeira. Além de atuar na evangelização dos índios, os jesuítas de-
senvolviam a extração de cacau. De fato, diversos relatos produzidos durante os séculos XVII e XVIII,
como será mostrado, destacaram a qualidade do cacau produzido no rio Madeira e a coleta desse fruto
realizado pelos lusos brasileiros. Certamente, a coleta desse cacau foi feita através dos indígenas. Por
outro lado, alguns religiosos e luso brasileiros acusavam alguns índios de cometerem ataques às expe-
dições que iam à coleta. Um dos principais grupos acusados desses atos eram os Mura.

Assim, o rio Madeira foi objeto de políticas imperiais e variados agentes sociais, como militares,
índios, religiosos, governantes, negros escravizados ou livres, que desenvolviam diversos tipos de rela-
ções nele. Ou seja, havia uma multiplicidade de interesses e articulações sociais que envolviam muitos
sujeitos nesse espaço.

Dessa maneira, pretende-se neste texto analisar como a partir da segunda metade do século
XVII até meados do século XVIII foram construídas variadas fronteiras no rio Madeira. Trata-se de
analisar como as missões religiosas, as expedições de coleta dos produtos florestais, as políticas por-
tuguesas para o Madeira e as tropas de guerra organizadas contra os índios construíram fronteiras no
rio Madeira: a fronteira econômica, a religiosa e a hostil. Acredita-se, portanto, que é preciso refletir
acerca do rio Madeira a partir das diversas fronteiras construídas nele.

Inicialmente, será feita uma discussão acerca da maneira pela qual o Madeira se tornou uma
fronteira econômica e religiosa para os colonos do Estado do Maranhão e Grão – Pará. Posteriormen-
te, será realizada uma discussão acerca dos indígenas no rio Madeira, enfatizando os Mura e como foi
construída a ideia de que o Madeira era uma área marcada pela hostilidade indígena.

202Doutoranda em História (UFPA / UPO), mestre em História e docente da UFOPA. A pesquisa é feita com
o apoio do Programa de formação doutoral docente – Prodoutoral / CAPES.
203 “Informação do Rio da Madeira, e dos mais que desaguam nele, de seus sertões, gentios, e de seus costumes
ritos e cerimonias”. Biblioteca Pública de Évora, códice CXV 2 - 15 / 5.

85
O rio Madeira e o cacau: a fronteira econômica

Desde o século XVI, o rio Madeira já despertava a atenção dos europeus que percorreram o
antigo Estado do Maranhão e Grão-Pará. No final do século XVII, o rio Madeira já era conhecido pela
qualidade do cacau que havia nele. Porém, essa distinção nem sempre aparece nas descrições feitas so-
bre esse rio. Como membro da viagem capitaneada por Francisco de Orellana, frei Gaspar de Carvajal
escreveu, entre os anos de 1541/42, o Descobrimento do rio de Orellana. Nesse relato, Frei Carvajal
disse que, após um pequeno descanso, os membros da expedição seguiram viagem e “não havíamos
ainda andado quatro léguas quando vimos entrar pela mão direita um rio muito grande e poderoso”,
o “maior que o que percorríamos, e por isso lhe pusemos o nome de Rio Grande”.204

Aproximadamente um século após o relato do frei Gaspar de Carvajal, em 1639, o jesuíta Alon-
so de Rojas disse que desaguam no Amazonas “na famosa distância referida de 1.600 léguas, muitos
outros rios e muito caudalosos” e que dois, dos três mais caudalosos, estão situados na parte sul. Um
destes chamam “rio da Madeira, pela muita que ordinariamente arrasta, tendo de boca, ao desaguar,
légua e meia”.205

No mesmo período que Rojas escreveu sobre o rio Madeira, no final de década de 1630 e início
dos anos 1640, Cristóbal de Acuña produziu um relato acerca do rio Amazonas, seus afluentes e popu-
lações. Acuña participou da expedição, em 1637, capitaneada por Pedro Teixeira que saiu do Pará e foi
a cidade de Quito. Em 1641, após retornar da jornada, Cristóbal de Acuña escreveu o Descobrimento
do rio da Amazonas e nele relatou que, após sair do rio Negro, “a quarenta e oito léguas demos com
o grande rio da Madeira, assim chamado pelos portugueses” em função da “muita e grossa [madeira]
que trazia quando por ele passaram”. Porém, o “seu verdadeiro nome entre os naturais, que o habitam,
é Cayari”.206 Disse ainda que o Madeira é formado “de dois caudalosos rios que juntam algumas léguas
para dentro” que “segundo boas demarcações” e as informações fornecidas pelos “Tupinambás, que
por ele desceram, é por onde, e mais depressa que por qualquer outra parte, se há de descobrir saída
para os mais próximos rios da comarca de Potosí”.207

Mauricio de Heriarte, igualmente, participou da expedição de Pedro Teixeira em 1637. Anos


depois, em 1662, Heriarte escreveu a Descripção do Estado do Maranhão, Pará, Corupá, Rio das
Amazonas, que é um relato essa expedição. Segundo Maurício de Heriarte, o rio Madeira é “muito
caudaloso e de água muito clara” e viria “da província dos Serranos, que estão na cordilheira do Peru
pela banda do Paraguai.”208 Além disso, havia no Madeira
um barro muito cheiroso, de que fazem os moradores Igaçavas, que são como talhas
grandes e pequenas, que a vender lvam a outras partes a troco de algodão e fio para
atarem as flechas, e por milho e tabaco, e outras coisas que lhes são necessárias, su-
204 Alguns indícios, como o tempo de viagem e a distância percorrida pela tropa, apontam que o Rio Grande
é o Rio Madeira. CARVAJAL, Gaspar; ROJAS, Alonso e ACUÑA, Cristóbal. Descobrimentos do rio das Ama-
zonas. Tradução de C. de Mello-Leitão. São Paulo: Editora Nacional, 1941, p. 54.
205 Ibidem. p. 95
206Ibidem. p. 259
207Ibidem. p. 260
208 HERIARTE, Mauricio. Descripção do Estado do Maranhão, Pará, Corupá, Rio das Amazonas. Primeira
Edição: Viena de Áustria, Imp. do filho de Carlos Gerold, 1874, pp.42-43.

86
posto que nas suas terras não faltam. Tem muita pedra de bazar de camelões, que é
melhor e maior que a que vem da India Oriental.209

A descrição do rio Madeira feita pelo jesuíta João Felipe Bettendorff, no final do século XVII,
assemelha-se, em alguns trechos, ao que foi relatado pelo Acuña na década de 1640. Segundo João
Felipe Bettendorff, entrando pelo rio das Amazonas “quarenta e quatro léguas mais abaixo, desemboca
da banda do sul o famoso rio da Madeira” e é “assim chamado pela muita madeira e grossa que trazia
com suas correntezas”. Quanto aos “naturais o chamam Cuyari”210 e “moram nele muitas nações”, as
quais afirmam “que por ele se pode chegar ao Potosí”.211

Lembrou Bettendorff, também, que o rio Madeira é “um dos mais famosos que há pelo Estado,
por grande e espaçoso, porém demorado pelas caldeiras que tem”, nas quais “se somem as canoas
com tudo o que levam, havendo descuido dos guias e pilotos”. Disse ainda que as águas do Madeira
são “como as do rio Amazonas, pois é braço dele”. Além disso, segundo o jesuíta, eram frequentes as
expedições que os portugueses faziam ao rio Madeira. O religioso explicava que essas empreitadas ao
rio Madeira eram decorrentes da “muita abundancia de cacaueiros” nesse rio, uma vez que nele teria o
“melhor cacau que há em o Estado todo [Estado do Maranhão e Grão-Pará], por ser mais doce e mais
grosso que o de outras partes”.212

Apesar dessa semelhança entre os relatos de Bettendorff e Acuña, ao que tudo indica, o avanço
da expansão portuguesa e as transformações econômicas operadas no Estado do Maranhão e Grão-
-Pará influenciaram na maneira pela qual Bettendorff descreveu o espaço que estava na jurisdição
desse Estado. Aproximadamente sessenta anos após Acuña, o Madeira é apresentado no testemunho
do Bettendorff como um rio que se distingue dos outros pela qualidade do cacau que há nele.

No final da década de 1680, alguns anos antes do jesuíta João Felipe Bettendorff escrever a
Crônica dos padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão, o governador do Estado do
Maranhão e Grão-Pará, Gomes Freire de Andrade, redigiu uma carta ao Artur de Sá e Meneses, seu
sucessor no posto de governador. Na correspondência, Freire de Andrade comunicava várias notícias
acerca dos territórios desse Estado e observava a qualidade do cacau do Madeira. Nesse sentido, disse
Gomes Freire de Andrade que o rio Madeira é um dos rios “mais sadios que temos no estado, muito
aprazível e com fertilidade de mantimentos achasse nele mais excelentes madeiras que produz a Amé-
rica” e tem “muita quantidade de cacau redondo e de tal qualidade que colhendo se silvestre ainda é

209Ibidem. p. 43.
210 Segundo o próprio Bettendorff, “o nome Cuyari de língua Inca que significa – ama-me – com que esse gen-
tio significava seu rio tão belo que provocava o seu amor”. BETTENDORFF, João Felipe. Crônica dos padres da
Companhia de Jesus no Estado do Maranhão. 2 ed. Belém: Cejup, 1990. Serie lendo o Pará, p. 56
211Ibidem.
212Ibidem. p.355

87
mais doce que o cultivado tem se lhe tirado.”213

As referências fornecidas pelo governador Freire de Andrade e pelo jesuíta João Felipe Bet-
tendoff acerca da qualidade do cacau que havia no rio Madeira, possivelmente, estão relacionadas
aos interesses econômicos da coroa portuguesa no Estado do Maranhão e Grão-Pará e às atividades
desenvolvidas pelos colonos nesse Estado na segunda metade do século XVII. Para Rafael Chambou-
leyron, as notícias que chegavam à coroa portuguesa sobre a exitosa exploração de cacau nas Índias
de Castela e acerca do cacau existente no Estado do Maranhão e Grão-Pará, bem como uma crise no
império asiático, que ensejou um aumento no interesse no produtos americanos, e a dissimilação do
chocolate na Europa justificam a importância que a coroa portuguesa conferiu ao cacau na segunda
metade do século XVII.214

Outro relato, escrito provavelmente no início do século XVIII, aponta que havia “pelas margens
e lagos” do rio Madeira “imensidade de cacaus e muita salsa parrila”215. Por essa razão, como lembrou
João Daniel, “o cacau buscam ordinariamente nas matas do grande rio Madeira, ou em qualquer outro
dos muitos, que deste rio para cima” até o rio “Javari, que são mais de 200 léguas”.216

Apesar disto, foi somente no início da década de 1730, já no século XVIII, que o cacau se tornou
o principal produto exportado do Estado do Maranhão e Grão-Pará.217 O francês Charles Marie de
La Condamine pontuou a importância do cacau para o Estado. La Condamine percorreu o Estado
do Maranhão e Grão – Pará em meados da década de 1730 e em 1745 publicou um relato sobre essa
viagem. Ainda que não tenha associado o rio Madeira à qualidade do cacau, tal como fizerem Gomes
Freire de Andrade e João Felipe Bettendorff, La Condamine aponta a importância desse produto para
região. Assim, o francês explicou que no Pará se “recebem as mercadorias da Europa em troca de
gêneros do país” que são o “ouro em pó que transportam do interior das terras ao lado do Brasil” e
“todos os diferentes produtos úteis, quer dos rios que vêm perder-se no Amazonas, como das margens
deste último: a casca do pau de cravo, a salsaparrilha, a baunilha, o açúcar, o café” e, principalmente,
“o cacau, que é a moeda corrente do país, e que constitui a riqueza dos habitantes”.218

213 Carta do governador Gomes Freire de Andrade para o rei sobre as informações relativas à capitania do
Pará, oferecidas ao novo governador Artur de Sá e Meneses, aquando da sua chegada, com relevância para a
plantação de árvores de cravo e a defesa da capitania. AHU, Pará (Avulsos), Belém, 19 de julho de 1687. Cx. 3,
D. 263.
214 CHAMBOULEYRON, Rafael. As 'fazendas de cacau' na Amazônia colonial (séculos XVII e XVIII). In:
Tanya Maria Pires Brandão; Cristiano Luís Christillino. (Org.). Nas bordas da plantation: agricultura e pecuária
no Brasil colônia e império. 1ed. Recife: Editora UFPE, 2014, v. 1, pp. 21-22.
215 “Informação do Rio da Madr.a e dos mais que desaugôam nelle, gentio dellez e deseoz costumez, rittos e
cerimonias”. Biblioteca Pública de Évora, cód. CXV/2-15, f. 43
216 DANIEL, João. Tesouro Descoberto no máximo rio Amazonas. Vol. 2. Contraponto: Rio de Janeiro, 2004,
p. 83.
217 CHAMBOULEYRON, Rafael. Povoamento, ocupação e agricultura na Amazônia colonial (1640-1706). 1.
ed. Belém: Açaí/Centro de Memória da Amazônia/PPHIST-UFPA, 2010, p. 168.
218 LA CONDAMINE, Charles-Marie de. Viagem na América Meridional descendo o rio das Amazonas. Bra-
sília: Senado Federal, 2000, p. 112. Sobre a moeda no Estado do Maranhão e Grão-Pará, ver: LIMA, Alan José
da Silva. Do “dinheiro da terra” ao “bom dinheiro”. Moeda natural e moeda metálica na Amazônia Colonial
(1706-1750). Dissertação (mestrado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Federal do Pará. Belém, p.226, 2006

88
Claramente, na medida em que o rio Madeira tornava-se conhecido dos luso brasileiros as des-
crições sobre essa via fluvial iam adquirindo novas configurações. Como foi observado, os relatos es-
critos sobre o Madeira no final do século XVII frequentemente destacam o cacau que havia nesse rio.
Certamente, estas descrições estão relacionadas às atividades econômicas desempenhadas no Estado
do Maranhão e Grão-Pará e o cacau começava a conquistar um espaço importante nesse circuito de
trocas. Nesse sentido, as recorrentes referências, nas descrições do final do século XVII e início do
XVIII, sobre qualidade cacau extraído do Madeira indicam que esse rio poderia estar se constituindo
como uma fronteira econômica, caracterizada pela coleta de produtos florestais, para os moradores do
Estado do Maranhão e Grão-Pará no final do século XVII e início da centúria posterior.

Os jesuítas e as missões no Madeira: a fronteira religiosa

Além de ser um fronteira econômica para os moradores do Estado do Maranhão e Grão-Pará,


o Madeira também era um espaço de atuação missionaria. A principal ordem religiosa que atuava
no Madeira era a Companhia de Jesus. Os jesuítas eram um dos principais grupos que desenvolvia a
extração do cacau. Certamente, as atividades coletoras organizadas pelos jesuítas e realizadas pelos in-
dígenas ajudaram a transformar o Madeira em uma fronteira econômica. Segundo João Lúcio de Aze-
vedo, esses religiosos coletavam, anualmente, das margens do rio Madeira mais de quatro mil arrobas
de cacau e que, aproximadamente, nos anos 1740, os membros da Companhia de Jesus costumavam
enviar dezoito canoas ao cacau no mês de outubro.219

A presença jesuítica no rio Madeira remonta ao século XVII. O início da atuação desses re-
ligiosos no Madeira está relacionada a fundação daprimeira aldeia dos Tupinambarana em 1669.220
Segundo o jesuíta Bettendorff, após o rio Tapajós, “umas cinco jornadas pouco mais ou menos pelo
rio das Amazonas acima” estavam situados os Tupinambarana. Posteriormente, contudo, “pela grande
praga dos mosquitos” a aldeia dos Tupinambarana mudou para “uma jornada pouco mais pela terra
dentro sobre um belo lago ou rio que vindo parte dos Andirazes, parte do rio das Amazonas vai dar
pelos Curiatós”.221

Anos depois, aproximadamente em 1683, o padre jesuíta Iodoco Peres visitou o Colégio de
Santo Alexandre, no Pará, e depois “foi visitar as missões de riba até as do rio das Amazonas”. Seguiu,
então, o padre Iodoco Peres, navegando pelo rio Amazonas “e como tinha ouvido coisas grandes do
rio da Madeira, foi ele o primeiro superior da missão [jesuíta] que entrou por ele” para avaliar “se lá
podia pôr uma nova residência”. Após “uns nove dias de viagem, chegou aos Irurizes, nação afamada
sobre todas as mais”. Ao encontrar os Irurizes, o jesuíta “praticou-os sobre nossa Santa Fé”, como disse
Bettendorff, e “ficou com eles que lhe mandaria um padre missionário para lhes assistir”. Além disso,
“para que não lhes faltasse língua”, levou o padre Iodoco Peres “o filho de um principal para o Pará”
219 AZEVEDO, João Lúcio d’. Os jesuítas no Grão-Pará. Suas missões e a colonização. Belém / SECULT, 1999,
p. 197
220 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo III. Instituto Nacional do Livro / Livraria
Portugália: Rio de Janeiro / Lisboa, 1943, P.391
221 BETTENDORFF. Crônica dos padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão. p.36

89
com a finalidade que esse indígena aprendesse a língua geral.222 Em 1688, os jesuítas José Barreiros e
João Angelo Bonomi foram para o Madeira com a finalidade de desenvolver o trabalho missionário e
levaram consigo esse filho do principal Irurizes.

Ao final do século XVII, os jesuítas estavam intensificando as atividades desenvolvidas na aldeia


dos Tupinambaranas e dos Abacaxis, que posteriormente “se estabeleceu e ficou praticamente a substi-
tuir a Aldeia dos Irurizes”.223 No início do século XVIII, os religiosos da Companhia de Jesus atuavam,
também, nas aldeias de Canumã. Na década de 1720, o jesuíta João Sampaio fundou a aldeia de Santo
Antônio das Cachoeiras, entre os rio Jamari e a primeira cachoeira do Madeira, no atual território do
estado Mato Grosso, que foi substituída pela de Trocano.224

Dessa maneira, no final do século XVII e início do XVIII, o expansionismo luso brasileiro já
avançava sobre o rio Madeira através das povoações que os jesuítas organizavam para evangelizar os
índios e das expedições que iam à procura do cacau, transformando-o numa fronteira jesuítico eco-
nômica. Contudo, o rio Madeira não era apenas conhecido, ainda que timidamente, pelos moradores
do Estado do Maranhão e Grão-Pará, pois antes mesmo dos jesuítas iniciarem suas missões nesse rio,
ele foi percorrido pela tropa de Raposo Tavares.

Como lembrou Jaime Cortesão, a expedição de Raposo Tavares foi a “primeira expedição de re-
conhecimento geográfico que abrangeu todo o espaço continental da América do Sul, compreendido
entre as ribas do Atlântico e a cordilheira andina”. Raposo Tavares percorreu a região andina e depois
baixou pelo rio Madeira e o Amazonas até Belém, no final da década de 1640 e início dos anos 1650.225

Na década de 1720 as expedições que o governo colonial organizava com a finalidade de conhe-
cer o rio Madeira. Em 1722-1723, o sargento – mor Francisco de Melo Palheta foi enviado, com uma
tropa, pelo governador do Maranhão, João Maia da Gama, para explorar o rio Madeira e “verificar
a possibilidade de estabelecer comunicação com as áreas espanholas, onde a prata atraia o interesse
português” e “articular o Pará com as regiões auríferas de Mato Grosso”.226

Anos depois, em 27 de outubro de 1733, foi emitido um Alvará que proibia a navegação pelo rio
Madeira, pois havia o receio de que os moradores do Pará e Maranhão se deslocassem para a região
mineradora e deixasse essas capitanias desamparadas. Ainda não foi possível avaliar o impacto desse
Alvará para a exploração do cacau e das missões. Além disso, embora a navegação pelo Madeira fosse
proibida, em 1742 Manuel Félix de Lima partiu de Cuiabá, desceu o Guaporé e o Madeira e chegou a
cidade de Belém. Ou seja, apesar do alvará régio, os colonos continuavam a navegação pelo rio Ma-
deira.

A viagem de Manuel Félix de Lima pelos rios Guaporé e Madeira revela que, para aqueles que
222 BETTENDORFF. Crônica dos padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão. pp.353-354.
223 LEITE. História da Companhia de Jesus no Brasil. p. 393.
224 LEITE. História da Companhia de Jesus no Brasil. pp. 491-492
225 CORTESÃO, Jaime. Conferencia. “A maior bandeira do maior bandeirante”. Revista de História (Janeiro –
Março), ano 12, vol. 22, n° 45, 1961, p. 26
226LAPA, José Roberto Amaral. “Do comércio em área de mineração”. Economia Colonial. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1973, p. 24.

90
partiam de Mato Grosso, o rio Madeira não representava uma fronteira econômica, pois as expedições
que partiam de Cuiabá, provavelmente, não se dirigiam para esse curso fluvial para explorar a coleta
de cacau. Para os moradores do Mato Grosso, o Madeira poderia ter outros significados.

Uma das consequências do avanço desse expansionismo lusitano, a partir do Estado do Mara-
nhão e Grão-Pará, foram as guerras realizadas contra os indígenas situadas em áreas de expansão dos
estados imperiais, como o rio Madeira. No rio Madeira, talvez, o exemplo mais notável dessas guerras
tenham sido as que o império português realizou contra os Mura durante o século XVIII.

Os indígenas no rio Madeira: um fronteira hostil

Uma das consequências do avanço do expansionismo luso brasileiro pelo Madeira foram as
guerras realizadas contra os indígenas situados em áreas de expansão dos estados imperiais. Nesse
sentido, uma dessas guerra teria ocorrido, no rio Madeira, no final da década de 1710. Era o dia 04 de
julho de 1716 quando D. João V, rei de Portugal, escreveu uma carta endereçada ao capitão – mor do
Pará, João de Barros da Guerra, na qual dizia que sabia que esse capitão havia sido nomeado “por cabo
da guerra que se tinha resoluto se fizesse ao gentio do rio da Madeira pelos grandes danos que tinham
feito” impedindo “com as suas hostilidades a que os missionários fizessem o serviço de Deus”.227

No ano seguinte, em 1717, o monarca português escreveu ao governador do Estado do Ma-


ranhão e Grão-Pará, Cristóvão da Costa Freire, tratando da mesma guerra. D. João V dizia na carta
ao governador que sabia “dos delitos que tinham cometido o Gentio que habita no Rio da Madeira”,
assassinando “algumas pessoas, e afogando outras” que iam àquele rio “ao negócio do cravo e cacau”.
Na correspondência enviada ao soberano luso, Cristóvão da Costa Freire disse que, em função desses
delitos, o ouvidor do Pará fez a devassa, na qual foi concluído que quatro nações228 eram culpadas e,
por essa razão, enviou uma tropa para castigar os índios “como mereciam”. O cabo da tropa João de
Barros da Guerra fez “grande dano ao gentio” inimigo e remeteu o “que bastou para satisfazer a des-
pesa da dita tropa”. Após a guerra, o cabo Barros da Guerra adoeceu e antes de chegar “na entrada do
Rio da Madeira indo junto a terra por razão das correntes lhe caíra uma pau sobre a canoa, de que
falecera lastimosamente”.229

Ainda que estas duas cartas régias apontem justificativas diferentes para enviar uma tropa de
guerra contra os índios do Madeira, é provável que elas tratem do mesmo conflito em razão do curto
intervalo temporal existente entre a redação de ambas e, principalmente, em decorrência delas envia-
rem para a mesma região, em um período muito próximo, João de Barros da Guerra como cabo de

227 “Para o capitão mor do Pará. Se diz ao Capitão mor que está nomeado por cabo da guerra que se manda
fazer ao Gentio do Rio da madeira e se espera obre nella de maneira que tenha muito que lhe agradecer guar-
dando em tudo as Reaes ordens que há sobre esta matéria”. Lisboa, 4 de julho de 1716. Anais da Biblioteca
Nacional (Livro Grosso do Maranhão), Vol. 67, pp.137-138
228 A carta régia não identifica quais são as quatro nações. Porém, segundo ... essa guerra teria acontecido con-
tra os Torá. Para ... “Em 1716, uma expedição punitiva contra os Torá, sob o comando do capitão-mor João de
Barros, chegou até o rio Maici e fundou, em frente à ilha das Onças, um arraial na margem direita”. p.75
229Ibidem. pp.147-148.

91
tropa. As correspondências apontam, nesse sentido, episódios de conflito bélico que são frequentes
em inúmeras áreas sobre as quais os impérios ibéricos avançam e as dificuldades que os mecanismos
de ocupação imperiais enfrentavam, nessa ocasião, através do “negócio do cravo e cacau” e do “serviço
de Deus”.

Anos depois, durante o governo de João da Maia da Gama, aconteceria outra guerra no Madeira.
Esse governador enviou uma carta, em outubro de 1726, ao rei D. João V explicando que “por todos os
votos conforme de todos os ministros da Junta das Missões”, mandou, em novembro do ano anterior,
uma “tropa a castigar os tapuias que impediam a entrada o rio da Madeira”. Maia da Gama esclareceu
que a tropa foi enviada “porque além das mortes que constaram da devassa” que mandou a ele há dois
anos, os índios eram acusados de fazerem “outras impedindo a entrada dos missionários” e “mataram
um principal e índios” que “tinham ido cobrar o cravo que eles se tinham obrigado a fazer e recebido
[?]os resgates”.230

A expedição seguiu para o Madeira, “deu os primeiros assaltos” e “aprisionou todos os que de-
fendiam as entradas das cachoeiras e muitos dos outros porque mataram os nossos índios”, segundo
Maia da Gama. Entendia, também, esse governador “que com aquele castigo se reduzirá tudo e se
baixarão os muitos milhares de alma que estão praticados” e que “alguns nos ajudarão já nesta guerra”.
Além disso, “ficará de todo livre a entrada” do rio Madeira “para se tirar imensidade de cravo virgem
de que são abundantíssimos as suas margens e os mais haveres que promete aquele rio”.231

Nos anos subsequentes outras guerras aconteceram na área do Madeira. Um dos principais al-
vos da política belicista dos luso brasileiros eram os Mura. Conhecidos e representados nas fontes
coloniais como “Índios do corso” ou “bárbaros” e “corsários do caminho fluvial” na bibliografia etno-
gráfica232, os Mura inviabilizaram, ou dificultaram, sob a perspectiva europeia, o expansionismo luso
brasileiro e as atividades dos colonos e religiosos pela área do rio Madeira durante quase todo o século
XVIII.

Provavelmente, o primeiro contato dos Mura com a expansão luso brasileira tenha sido realiza-
do através das expedições coletoras de produtos florestais que adentravam o rio Madeira com a fina-
lidade de coletar as chamadas “drogas do sertão”, como o cacau.233 A primeira referência a esse grupo
na documentação colonial é uma carta escrita no ano de 1714 pelo padre Bartolomeu Rodrigues. Na
missiva endereçada ao padre Jacinto de Carvalho, Bartolomeu Rodrigues apresentou notícias dos ín-
dios situados em todo o curso do rio Madeira. Nessa descrição, os Mura aparecem na margem direita
do Madeira.234

230 Carta do governador Estado do Maranhão João da Maia da Gama para o rei D. João V. AHU, Pará (Avul-
sos), cx. 10, doc. 863.
231Ibidem.
232 PEQUENO, Eliane da Silva Souza. “Mura, guardiães do caminho fluvial”. Revista de Estudos e Pesquisas.
FUNAI: Brasília, v.3, n.1/2 (Jul/dez. 2006) p.133-155.
233SWEET, David. “Native resistance in eighteenth-century Amazonia: the “abominable Muras” in War and
Peace”. Radical History Review, 1992, 53, 77.
234 SILVA, Cliverson Gilvan Pessoa da & COSTA, Angislaeine Freitas. “Um quadro histórico das populações
indígenas no alto rio Madeira durante o século XVIII”. Amazônica. Revista de Antropologia. (Online) Vol 6, n°1 (2014), p. 116.

92
Pode-se justificar o aparecimento do etnônimo Mura na documentação colonial a partir de
1714, provavelmente, em decorrência de ser uma nação indígena que teria se formado a partir de
transformações internas que resultaram da formação de Zonas Tribais na área Tapajós – Madeira na
segunda metade do século XVII, segundo Mark Harris235. Por outro lado, se pode explicar esse surgi-
mento a partir da ideia de que é possível que um etnônimo seja utilizado para se referir a vários grupos
étnicos ou vários etnônimos podem ter sido utilizados nos documentos coloniais para mencionar
apenas um grupo étnico.236 Nesse sentido, a partir das observações feitas por Miguel Menendez, com
base nas crônicas Cristóbal de Acuña, Mauricio de Heriarte e João Felipe Bettendorff, de que alguns
etnônimos desaparecem em relatos posteriores e nem todos aparecem nos três relatos, é possível, tam-
bém, que Mura seja uma designação, criada posteriormente e usada, também, para se referir a um dos
grupos citados por um dos três cronistas mencionados.237

Foi justamente contra os Mura que se tentou organizar uma guerra na década de 1730. No dia
29 de agosto de 1738 o jesuíta José de Souza, Provincial da Companhia de Jesus, escrevia sobre o cacau
que era coletado no rio Madeira. Porém, nessa ocasião, o religioso apontava uma das dificuldades que
os colonos luso brasileiros enfrentavam ao ir à coleta de cacau. Segundo esse provincial, sabia “por
informações certas” que tinha “do Padre Manoel Fernandes Missionário da mesma Companhia na
Missão de Santo Antônio” que a “nação de índios bárbaros chamados Muras” teria assassinado “mui-
tos índios remeiros das canoas, que vão as colheitas do cacau naqueles sertões, e ao um cabo de uma
canoa”.238

Esta queixa do jesuíta José de Souza chegou na cidade de Belém. Por essa razão, em outubro de
1738 o governador do Estado João de Abreu Castelo Branco escreveu uma carta ao rei luso explicando
que foi decido na Junta das Missões realizada em 6 de setembro de 1738 “ser conforme ao serviço do
rei, e conservação dos seus vassalos” na capitania do Pará que se tomasse “conhecimento das hostilida-
des, e mortes que sem se lhe dar causa tem executado no rio da Madeira” os índios Mura, “impedindo
o comércio dos moradores naquele rio, e pondo em temor e consternação as missões estabelecidas
nele”. Por essa razão, ordenou o governador ao ouvidor que fizesse uma devassa “das referidas hos-
tilidades, perguntando testemunhas”.239 O monarca D. João V teve conhecimento dessa carta escrita
pelo governador e respondeu a ele em carta de 10 de março de 1739 que “não está em termos de se

235 HARRIS, Mark. Sistemas regionais, relações interétnicas e movimentos territoriais: os Tapajó e além na
história ameríndia. Revista de Antropologia. São Paulo, v. 58, n. 1 (2015): pp. 33-68.
236 FARAGE, Nadia. As muralhas dos sertões: os povos indígenas no Rio Branco e a colonização. Rio de Janei-
ro: Paz e Terra/ANPOCS, 1991, p.19.
237 Sobre os Mura, ver também: AMOROSO, Marta. Guerra Mura no século XVIII- Versos e versões: represen-
tações dos Mura no imaginário colonial. Dissertação (Mestrado em antropologia). IFCH/ DEANS UNICAMP,
São Paulo, 1990; ARAÚJO, Alik Nascimento. De bárbaros a vassalos: os índios Mura e as representações colo-
niais no oeste amazônico (1714-1786). Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal do Pará. Belém, 2014; CALDAS, Yurgel Pantoja. Construção épica da Amazô-
nia no poema Muhuraida, de Henrique João Wilkens. Tese (Doutorado em Literatura Comparada). Faculdade
de Artes e Letras, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2007.
238 CEDEAM. Autos da devassa contra os índios Mura do rio Madeira e nações do rio Tocantins (1738-1739).
Manaus: Universidade do Amazonas; Brasília: INL, 1986, p. 9
239CEDEAM. Autos da devassa contra os índios Mura do rio Madeira e nações do rio Tocantins (1738-1739).
p. 15

93
reputarem como justas e necessárias estas guerras” contra os índios Mura.240

A historiografia já discutiu como as guerras que aconteceram nas capitanias do Maranhão e


do Piauí no final do século XVII e início do XVIII estavam relacionadas, também, a uma perspectiva
econômica, que era o avanço da economia pastoril. A confrontação entre a fronteira da economia pe-
cuarista e os indígenas teria ocorrido em decorrência desses terem perdido as fontes de subsistência
e viram a facilidade de captura do gado como alternativa para sanar aquele problema. Nesse sentido,
o episódio mais conhecido destes conflitos no interior nordestino é conhecido como Guerra dos Bár-
baros. Trata-se de uma série de conflitos entre os índios, considerados hostis, e luso brasileiros que
ocorreram a partir da segunda metade do século XVII até as primeiras décadas do século seguinte.
Para Pedro Puntoni, estas guerras representaram “novos padrões de relacionamento” do império por-
tuguês com os grupos indígenas, pois os combates do século XVII no nordeste colonial “objetivavam
o extermínio total e não a integração ou submissão” dos grupos indígenas daquele espaço.241

Se, por um lado, a organização e a realização de uma guerra justa contra os índios poderia estar
relacionada à escravização indígena, aos interesses econômicos ou ao dos governadores do Estado do
Maranhão e Grão-Pará,242 o que teria motivado os índios Mura a realizarem ataques aos luso brasilei-
ros no rio Madeira?

Primeiramente, é importante lembrar que as fontes produzidas pelo colonizador referem-se a


um gigantesco território Mura ou a um território fantástico, o que fez com que os luso brasileiros
acreditassem que os Mura estavam em todas as partes.243 Assim, por exemplo, o comissário geral dos
mercedários e membro da Junta das Missões, frei Manoel Borges, posiciona-se contrário a realização
da guerra contra os Mura uma vez que se “esta nação é de corso, e não tem parte certa, como afirmam

240CEDEAM. Autos da devassa contra os índios Mura do rio Madeira e nações do rio Tocantins (1738-1739).
p. 163
241 PUNTONI, Pedro. A guerra dos bárbaros. Povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do Bra-
sil, 1650-1720. São Paulo: Hucitec/EdUSP, 2002, p. 17. Sobre o assunto, ver: PETRONE, Teresa Schorer. “As
áreas de criação de gado”. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (org.). História Geral da Civilização Brasileira.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, tomo I, vol. 2; ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes.
Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000; CABRAL, Maria do Socorro
Coelho. Caminhos do Gado: conquista e ocupação do Sul do Maranhão. São Luís, SIOGE, 1992; PINHEIRO,
Francisco José. Mundos em confronto: povos nativos e europeus na disputa pelo território. SOUSA, Simone de
& GONÇALVES, Adelaide (orgs). Uma nova história do Ceará. Fortaleza: edições Demócrito Rocha, 2002, pp.
17-55; PINHEIRO, Francisco José. Notas sobre a formação social do Ceará. (1680-1820). Fortaleza: Fundação
Ana Lima, 2008; VIEIRA JÚNIOR, Antonio Otaviano. Entre Paredes e Bacamartes - História da Família no
Sertão (1780-1850). São Paulo, Fortaleza: HUCITEC & Fundação Demócrito Rocha, 2004; DIAS, Claudete Ma-
ria Miranda. “Povoamento e despovoamento: da pré-história à sociedade escravista colonial”. Fumdhamentos.
São Raimundo Nonato , Piauí: Fundação Museu Homem Americano/Centro Cultural Sérgio Motta, nº 7, 2008.
Disponível em: http://www.fumdham.org.br/fumdhamentos7/artigos/20% 20Claudete%20Dias.pdf . Acessado
em: 31 de março de 2011. CHAVES. O índio no solo piauiense. CARVALHO, João Renôr Ferreira de. Resistên-
cia indígena no Piauí colonial. 1718- 1774. Teresina: EDUFPI, 2008.
242 MELO, Vanice Siqueira de. “Cruentas guerras”: índios e portugueses nos sertões do Maranhão e Piauí (pri-
meira metade do século XVII). Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal do Pará. Belém, 2011.
243 AMOROSO, Marta. “Corsários no caminho fluvial: os Mura do rio Madeira”. In: CUNHA, Manuela Car-
neiro da. História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras / Secretaria Municipal de Cultura /
FAPESP, 1992, p.304-305.

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todos, donde se lhe poderá dar com acerto!” e “certamente se irão escalando nações inocentes, como
tem sucedido muitas vezes”.244 Para Marta Amoroso, a concepção de um imenso território Mura talvez
possa ser analisada a partir da ideia de “uma fronteira colonial que avança e desloca a população Mura
do rio Madeira para o Japurá”.245

A percepção de que os Mura eram índios “sem domicílio certo”, como disse frei Victoriano Pi-
mentel, está relacionada à mobilidade Mura. Para Márcia Leila Pereira, a expansão territorial Mura
foi um elemento fundamental para esse grupo e ocorria pela ocupação real de um território, através
da residência nele ou da circulação. O continuo e expansivo deslocamento dos Mura possibilitava o
monitoramento de extensas áreas, a anexação de “espaços vazios” e localização de evidências de outros
grupos. Assim, acredita Márcia Leila Pereira que os Mura
vivenciam o território nas redes, nos fluxos e nos deslocamentos de curta e longa du-
ração (distância). Esta territorialidade contém uma plasticidade e elasticidade muito
ampliada. Seus limites e referências são singulares e constituem-se em torno daquilo
que cada grupo local partilha e acumula enquanto saber, memória, histórias em co-
mum, trajetos, percursos, – enfim, um conjunto de todas as referências, sentimentos,
atos e fatos que compõem o senso de pertença.246

Nesse sentido, o “movimento é constitutivo da forma de viver Mura”.247 Ou seja, trata-se de uma con-
cepção de território e espaço que não tem relação com áreas estáticas e definidas.

Dessa maneira, a ideia, presente nos documentos coloniais, de que os Mura não tinham habita-
ção certa remete, talvez, a uma interpretação do espaço indígena a partir da perspectiva europeia. Os
movimentos dos Mura, por sua vez, são diferenciados. Existem aqueles que respondem à própria di-
nâmica dos Mura e aqueles que são forçados e resultantes, portanto, da intrusão dos brancos.248 Assim,
os deslocamentos Mura pelo rio Madeira, “sem domicílio certo”, possivelmente, estão relacionados
não somente a presença dos brancos nos territórios ocupados por eles mas, também, a construção da
forma de viver Mura. É provável, por outro lado, que os ataques que os Mura tenham realizado contra
os luso brasileiros, nas expedições de coleta de cacau, e às missões estejam relacionados a uma tentati-
va de reproduzir essa forma de viver, uma vez que esse território foi invadido pelo branco. Nesse sen-
tido, as agressões configurariam um mecanismo de defesa para repelir os invasores e recriar tal forma
de viver em um espaço reconhecido pelos Mura como pertencentes a eles, ainda que não estivessem
fixados na área.

Por um lado, se os luso brasileiros não conseguiram compreender as dinâmicas territoriais dos
Mura, por outro, a partir da maneira pela qual eles descrevem os efeitos das ações dos Mura no rio
Madeira, criou-se um espaço hostil no discurso colonial, que precisava ser controlado. A criação do
imaginário Mura como um índio bárbaro, certamente, contribuiu para a criação de uma área de fron-
244 CEDEAM. Autos da devassa contra os índios Mura do rio Madeira e nações do rio Tocantins (1738-1739).
p. 145
245 AMOROSO. Corsários no caminho fluvial. p.308
246 PEREIRA, Márcia Leila de Castro. “Território e mobilidade Mura no baixo rio Madeira/AM”. Habitus, v.
14, n° 2 (Jul. / Dez.) 2016. p. 272
247Ibidem. p. 267
248Ibidem. p. 272

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teira de resistência indígena para os moradores do Estado do Maranhão e Grão – Pará. Mas, além da
descrição dos índios Mura como sujeitos bárbaros, a forma como a área do rio Madeira aparece na
denúncia ajuda a refletir acerca da construção dessa fronteira.

Ao redigir a certidão queixando-se dos ataques dos Mura, o provincial da Companhia de Jesus,
José de Sousa, explicou “ser certo que desde o rio Aripuanã, até o rio Giparanâ, que desembocam no
dito rio da Madeira” e “ocupam grande distrito está tudo infeccionado de uma nação de índios chama-
dos Muras”.249 Frei Antonio de Araújo, que era Provincial da Ordem do Carmo e membro da Junta das
Missões, disse que visitou as missões do Madeira em decorrência do seu ofício e que “os Muras, como
são gentio do corso, pelo centro do Mato passam do rio da Madeira ao das Amazonas” e “infestam as
margens de um; e outro; e de todos os mais que nele desaguam”.250

Outro exemplo sobre a maneira pela qual esse espaço era representado na devassa, nos é dado
pelo parecer do Frei Carmelita Victoriano Pimentel, que também era membro da Junta das Missões.
Segundo esse carmelita, o gentio Mura “é bravo e se diz ser de corso, sem domicílio certo” e que “pene-
tra os sertões de rio a rio”. Além disso, o Mura “se apropinqua tanto, que com efeito infestou uma roça
dos moradores da nova aldeia de Santo Antonio” e, por essas razões, acreditava Victoriano Pimentel
que somente ao Mura “se pode dar o castigo de seu atrevimento; e desembaraçar o rio da Madeira de
tão má vizinhança”.251

Os termos infestam, infeccionado e desembaraçar usados nos documentos que tratam das ações
violentas, das quais os acusados eram os Mura, sugerem, tal como para as capitanias do Maranhão e
Piauí na primeira metade do século XVIII, a existência de um espaço assolado pelos indígenas, consi-
derados hostis, e que deveriam ser afugentados para não obstarem os mecanismos de expansão orga-
nizados pela coroa portuguesa para o rio Madeira. Dessa maneira, na geografia colonial, o Madeira era
“al mismo tempo uma zona y um espacio simbólico de resistencia”.252 Um fronteira, portanto, hostil.

Considerações Finais

Em decorrência do avanço dos mecanismos de ocupação da coroa portuguesa o rio Madeira


deixou de ser apenas um território dominado e controlado pelos ameríndios. A implantação das mis-
sões religiosas, as expedições de coleta de cacau e outros gêneros da floresta, a utilização do rio como
via de comunicação e as guerras são fatores que provocaram transformações nas dinâmicas espaciais
e sociais do Madeira.

249 CEDEAM. Autos da devassa contra os índios Mura do rio Madeira e nações do rio Tocantins (1738-1739).
p. 9
250 Ibidem.p. 114
251 Devassa, p. 121. Aqui trata-se da aldeia de Santo Antônio da Cachoeiras, que foi substituída pela de Troca-
no, como foi lembrado. Segundo Serafim Leite, José Gonçalves da Fonseca esteve nela e explicou que a mudança
foi feita para “buscar melhor clima e para se livrarem das vexações dos bárbaros vizinhos”. Contudo, os Mura
continuaram investindo contra a aldeia de Trocano. LEITE. História da Companhia de Jesus no Brasil. p. 402
252 GIUDICELLI, Christophe. “Encasillar la Frontera. Clasificaciones coloniales y Disciplinamiento del espa-
cio en el área Diaguito-Calchaqui, siglos XVI-XVII”. Anuario IEHS, 22 (2007): pp. 161-211.

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Percebe-se que ao longo do século XVII, principalmente a partir da segunda metade desse sécu-
lo, que o Madeira começou a se transformar em uma fronteira religiosas e econômica. A presença dos
indígenas antes da chegada dos portugueses no Madeira, possivelmente, o tinha configurado como
um fronteira cultural e linguística. Ao longo do século XVIII, o Madeira transformou-se em outras
fronteiras, como a religiosa e a econômica. Além das relações de troca e das alianças entre índios
e luso brasileiros, também havia conflitos, configurando, também uma fronteira hostil no Madeira.
Entrecruzaram-se no Madeira, portando, múltiplas fronteiras. Essas fronteiras, contudo, talvez sejam
significativas para quem observa o Madeira a partir do Estado do Maranhão e Grão-Pará. Os mora-
dores de Cuiabá e, posteriormente de Vila Bela, talvez tenham entendido essa via fluvial a partir de
outras percepções.

Como lembrou Louise Mello, podemos observar múltiplas fronteiras existentes em uma região.
Essas fronteiras podem ser linguísticas, econômicas, geográficas, econômicas, inter e intratribais. E
para estudar uma região é imprescindível inter-relacionar essas fronteiras.253 Assim, mais que enten-
der o Madeira como área propícia a coleta de cacau, favorável a evangelização ou como via de conexão
entre regiões, é importante interligar as variadas fronteiras construídas sobre eles.

253MELLO, Louise Cardoso de. Os outros lados da fronteira: la historia de alto Madeira en el siglo XVIII desde
el estúdio de sus relaciones interétnicas. Dissertação de mestrado apresentada aoDepartamento de Geografia,
Historia y Filosofia / Programa Oficial de Posgrado en Historia de America Latina – Mundos Indigenas, 2014,
p.86

97
98
SIMPÓSIO TEMÁTICO 02
Ideias, práticas e representações da missionação jesuítica na modernidade: colonialis-
mo e colonialidade nas Américas, Ásia e África.
Coordenadores

Fábio Eduardo Cressoni

Raimundo Moreira das Neves Neto

Entre Cabo Verde e Brasil estudo comparativo da presença jesuítica nos continentes africa-
no e americano, ao longo do século XVII
Fábio Eduardo Cressoni1

No ano de 1064 um grupo de missionários desembarcou em Santiago, uma das ilhas de Cabo
Verde. O padre Baltazar Barreira, responsável pela missão, já estivera no continente africano anterior-
mente, na região de Angola, exercendo a catequese na África centro-ocidental2

Os anseios de sua nova missão na Costa da Guiné são expostos em uma de suas primeiras
missivas, uma vez já instalado na costa noroeste africana:

Por quanto mais notícia tenho de Guiné, tanto tenho maior magoa do desamparo de
tantos milhares de almas, que nenhum conhecimento tem do benefício inestimável
de sua redenção, porque até agora não chegou a eles a luz do santo Evangelho, esten-
dendo-se cada vez mais por aquelas partes a maldita seita de Mafamede3.

A primeira dificuldade posta em jogo na narrativa do padre Barreira diz respeito à presença
de sujeitos islamizados. Todavia, ao lado da presença da religião islâmica dentre parte da população,
observamos outro elemento dissonante da regulação da ordem do grêmio luso-cristão do Império e
da Igreja, expresso na presença da figura do demônio naquela região.

1Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP campus Franca).
Professor Adjunto na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB).
2ALENCASTRO, Luís Felipe. O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo Companhia
das Letras, 2000.
3“Carta do Padre Baltazar Barreira ao Padre Antonio Mascarenhas”, 16/3/1604. In: BRASIO, Antonio Padre.
Monumenta Missionária Africana. África Ocidental (1570- 1600. Lisboa: Agencia Geral do Ultramar, 1965, IV,
p. 35

99
No final da tarde do primeiro dia da estadia dos missionários na ilha de Santiago, uma forte
ventania atingiu várias embarcações. Diferentes naus atracadas foram arremessadas diretamente con-
tra os arrecifes. Entretanto, a embarcação dos missionários, que portava as relíquias dos santos desti-
nadas à Guiné, foi à única nau que não fora destruída pelo efeito das ondas. Neste momento, a ação do
vento foi atribuída à arquitetura diabólica destinada a destruir a missão.

A presença do demônio na missão chefiada por Baltazar foi uma constante. De acordo com diferen-
tes missivas, ele destruiu as mencionadas embarcações, ateou fogo em residências, provocou conflitos entre
diferentes grupos étnicos, fez-se presente no interior da Igreja, adoeceu homens e mulheres e apossou-se do
cadáver de uma mulher, recém-falecida.4

Cabe aqui pensarmos na estrutura que constitui a narrativa jesuítica. Nesse sentido, é neces-
sário considerarmos os fundamentos dessa escrita e ao mesmo tempo pensarmos na relação entre o
emissor e o receptor desse discurso. Conforme já demonstrado pela historiografia, trata-se de uma
transposição da figura do demônio e de seu lócus infernal para outros personagens e espaços, para
além da Europa. Logo, a Companhia de Jesus teria seu ethos decodificado pela presença do demônio
em diferentes geografias no processo de expansão do Império português, dentre elas a Costa da Guiné.

Ao atuar em diferentes regiões de Cabo Verde, bem como as margens dos rios da Guiné, em
meio a entrepostos como Bissau, Cacheu e Geba, além de Serra Leoa, os missionários buscaram ini-
cialmente a conversão dos chefes locais de cada uma dessas localidades. O projeto missionário aqui
desempenhado somava-se a empresa colonial focada na exploração de noz-de-cola, ouro, marfim e
sujeitos escravizados. No entanto, os anseios da missão, muitas vezes, se depararam com a figura dos
sacerdotes locais, denominados caciz, bexerim e jambacouse. As duas primeiras palavras tem sua ori-
gem no árabe e designa a presença do sacerdote, ligado ao Islã. Já a última palavra se liga ao idioma
crioulo utilizado na região dos rios da Guiné. Esta, por sua vez, indica os sacerdotes tradicionais.5

Diferentes missivas apontam para a dificuldade do exercício da catequese e conversão na


missão chefiada pelo padre Baltazar, em função da presença desses personagens. Os jambacouses,
por exemplo, são acusados de enganar os doentes, prometendo a estes a cura de suas enfermidades,
por meio da retomada de suas almas, roubadas por intermédio de feitiços praticados por terceiros –
os chamados comedores de almas. Ao lado dos sacerdotes tradicionais, os missionários concorriam
ainda com os bexerins, denominados “letrados da lei, que todos leem, e escrevem a língua árabe (...)
prezam-se de grandes adivinhadores e feiticeiros”6

Uma síntese desse quadro aparece em um registro do padre Antônio Vieira, por ocasião de
uma passagem sua por Cabo Verde, em 1652. Após exercer algumas atividades clericais, ele deixou
anotada a ausência de padres e afirmou que naquela região, apesar das cruzes e nomes de santos espa-
4SANTOS, Vanicleia Silva. Bexerins e jesuítas. Religião e comercio na Costa da Guine (século XVII). Métis:
história e cultura. v.10, n.19, p.187-213. jan/jun, 2011, p. 188.
5SANTOS, Bexerins e jesuítas, op. cit.
6ALMADA, Álvares André. Tratado dos rios de Guiné, do Cabo Verde dês do rio Sanagá até os Baixos de Santa
Ana de todas as Nações de negros que há na dita costa e de seus costumes, armas, trajos, juramentos, guerras.
Monumenta Missionária Africana: África Ocidental (1570-1600). Coligida e anotada pelo Padre Antonio Bra-
sio. Lisboa: Agência-Geral do Ultramar, 1965. v. 3., p. 275.

100
lhados por toda parte, o povo se encontrava abandonado.7

No que diz respeito à presença da missão jesuítica na América portuguesa, interessa-nos


pensar nos discursos de Antônio Vieira proferidos na região do recôncavo baiano ao longo do sé-
culo XVII. Um conjunto de autores, dentre eles Serafim Leite, Amora e Lins, teriam enxergado no
missionário uma atuação proto-abolicionista, capaz de buscar a emancipação dos sujeitos africanos
escravizados na diáspora. Uma análise mais desatenta à narrativa constituída por Vieira poderia con-
duzir o leitor a considerar esta hipótese. Tomemos como exemplo seu XXVII sermão, ocasião a qual
faz alusão a “mercancia diabólica” da escravidão protagonizada pelos homens, a partir de um jogo de
comparações entre senhores e sujeitos escravizados.8

O contexto da produção, pregação e publicação dos sermões aqui estudados inviabilizam a concepção
proto-abolicionista, como pretenderam alguns autores. Seu anacronismo incide justamente na negação da tem-
poralidade que justifica o arranjo teológico-político-jurídico-mercantil da expansão além-mar dos ditames do
Império português e, por sua vez, da inserção de outros sujeitos neste corpo social, ora como livres, ora como
escravizados.

Desta forma, autores como Meihy e Menezes, nos indicam a necessidade de compreendermos o sen-
tido dado a esta narrativa. Do primeiro autor mencionado, obtemos a ideia da diferença entre o tempo de
Anchieta, Vieira, Benci e Antonil. Do segundo, a concepção de que a escravidão precisaria ser explicada e
entendida, mas não legitimada.9

Daí decorre a junção de elementos da filosofia tomista com uma exegese pautada na patrística, capaz
de fundamentar a necessidade posta em voga por Menezes. Desta mudança de temporalidade, Vainfas conven-
cionou denominar inflexão ideológica, pela necessidade de se explicar as bases que sustentavam a escravização
de sujeitos negros no continente americano pelos portugueses.

Centrados em questões de natureza econômica, autores como Bosi, Ferreira Júnior e Bittar, procu-
raram indicar a relação direta entre a exploração dos sujeitos negros escravizados e a empresa açucareira na
América portuguesa. Nesse sentido, procuramos compreender quais os argumentos postos por Vieira para legi-
timar essa ação, aqui concebida como uma articulação entre a experiência política-teológica-jurídica-mercantil
da presença lusitana na América.10

Os excertos estudados a partir do conjunto denominado Maria Rosa Mística – XIV, XX e XXVII ser-
mões – Em síntese, os principais temas presentes na pregação de Antônio Vieira voltados aos escravos negros
são a quebra harmônica provocada pelos próprios homens, que dá origem à escravidão e, consequentemente,
a todas as desigualdades do mundo, considerado, então, imperfeito. A igualdade, por sua vez, somente poderia
ser alcançada por intermédio da ação de Deus, pois os homens, insensatos, dividindo-se em senhores e escra-
vos, impediam essa transformação. No entanto, há de se destacar o seguinte: essa igualdade atingiria somente
as almas dos escravos após a conversão e a devoção a Nossa Senhora do Rosário, considerando a divisão apre-
sentada pelo jesuíta entre a escravização do corpo e da alma.

7 BRASIO, Monumenta Missionária Africana op. cit. p. 25.


8CRESSONI, Fabio Eduardo. Educando pela palavra. Pedagogia da escravidão nos sermões de Antonio Vieira.
Curitiba CRV, 2012.
9CRESSONI. Educando pela palavra. op. cit.
10 CRESSONI. Educando pela palavra. op. cit.

101
A salvação do segundo cativeiro (inferno) importaria muito mais do que a continuidade do primeiro
(engenho), pois este último, conforme procura justificar o missionário, seria passageiro. A escravidão, portan-
to, corrigia e salvava os que nela estavam inseridos, lembrava Vieira ao tratar da assimilação entre a Colônia e
um purgatório, nesse caso expresso pelo engenho. Se os mistérios dolorosos assolavam os negros, os mistérios
gloriosos, desencadeados após a salvação e elevação ao céu, libertariam os escravos do jugo considerado maior
pelo jesuíta.

Essa questão fica nitidamente expressa na analogia estabelecida entre o martírio de Cristo, por meio
do episódio bíblico da Paixão, e o sofrimento vivenciado pelos africanos nas lavouras de cana-de-açúcar. Dessa
forma, os escravos, obrigatoriamente, deveriam dar graças a Nossa Senhoria do Rosário por poderem obter a
salvação de suas almas, sendo, pois, libertos da situação em que se encontravam no continente de sua origem,
sendo que não seriam os senhores de engenhos, mas sim Deus o verdadeiro senhor de todos os homens, inclu-
sive dos escravos.

Vieira, para além de mais um simples letrado do Antigo Regime, foi um homem de grande ação. Al-
guns autores têm insistido na leitura de um Vieira com facetas contraditórias.

O jesuíta em questão era um homem de seu tempo, cercado por certa mentalidade que definia sua
ação. Sobre essa mentalidade, pensamos no seguinte: a relação dos homens entre si dava-se por meio da cons-
tituição do corpo místico, que unia todos os integrantes do corpo social português. A união de cada um com
Cristo fortalecia a Obra Divina. Da união de todos surgia o corpo místico.

Seus sermões afirmam e reforçam esse tipo de relação hierárquica. O teológico dá razão à forma de
ser de todos os estamentos integrantes do Império português, inclusive os escravos africanos. Todos deviam
participar dessa união comum (comunis unio), celebrando a comunhão com Deus. O arranjo entre os estamen-
tos era o propósito dos sermões.

Garantia-se, assim, a integração no corpo social luso-brasileiro e, o mais importante, a salvação indi-
vidual. Devemos considerar que os sermões pregados por Antônio Vieira, defendendo a escravização dos cor-
pos, contribuíram diretamente para a exploração do trabalho dos escravos negros, garantindo sustentabilidade
ao sistema escravista na colônia. Seria um erro negar essa realidade, pois, ao apresentar a divisão corpo/alma,
defendendo nessa dicotomia a liberdade apenas desta última, o jesuíta acabou por contribuir com a manuten-
ção dos engenhos coloniais da América e o modo de produção nele instalado. No entanto, entendemos que a
atuação de Vieira não se pautou somente por esse motivo. Sua condição de letrado e, portanto, representante
da cultura portuguesa, conduziu-lhe a impor um processo de imposição cultural em relação aos escravos afri-
canos. A atuação do jesuíta, referendada por elementos teológicos, contribuiu para a dominação dos corpos
escravizados e a perda da identidade dos homens e mulheres retirados do continente africano. Sua ação não
pode ser ligada diretamente, e somente, aos senhores de engenho, no sentido de beneficiá-los. Para Vieira, seu
compromisso maior, independentemente do favorecimento direto gerado aos senhores com a garantia da mão
de obra escrava, é com Deus, buscando fazer do Império português um reino cristão na Terra.

Preocupado com a união do corpo místico, segundo o modelo de organização social vigente, Vieira
trata, em todos os seus sermões dedicados aos escravos africanos, da necessidade de consolidar esse processo de
inserção de um novo elemento (escravo negro) ao corpo social do Império português, mantendo a hierarquia
dele, que, à época, era tida como natural, sem se preocupar com a dominação e aculturação gerada com sua
pregação.

102
Como observarmos, para esse inaciano, os povos transplantados do continente africano para a Amé-
rica se encontravam agora em outra situação. Inseridos em outro espaço, foram forçados a se adaptarem a uma
nova realidade. Postos na sociedade colonial como escravos, os missionários trataram tão somente da liberdade
de suas almas, preocupação visível em todo o discurso de Vieira acerca desse tema, garantindo a possibilidade
de dominação e exploração dos corpos, marcando essa relação pedagógica pela imposição de outra forma de
ser, diferente da realidade do continente africano.

O problema aqui levantado trata da alteridade constituída ao longo dos processos de con-
quista e conversão implantados pelo Império português em conjunto com a Companhia de Jesus. A
espiritualidade inaciana concebia seu projeto missionário a partir da salvação das almas aqui existen-
tes. No entanto, a modificação da forma de ser proposta pelos religiosos não se efetivaria conforme
planejado em função da presença do Demônio entre o gentio. Sua forma, mediada pela ação de seus
ritos, haveria de chocar-se com o projeto catequético idealizado pelos primeiros missionários que
ocuparam a nova terra. Logo, pretendemos evidenciar como essa ação foi sendo construída, conside-
rando a mediação cultural estabelecida pelos padres ao longo da missão desenvolvida no continente
americano.

O missionário cristão se constitui como agente privilegiado para a compreensão do processo


de demonização dos ritos que fundamentavam a forma de ser dos povos que ocupavam a Costa da
Guiné, bem como dos sujeitos transplantados no contexto da diáspora. Preparado para lidar com as
diferenças culturais, agindo em conformidade com a reinterpretação exegética dessas oposições, o
missionário exerce um trabalho de desconstrução e reconstrução sequencial de códigos comunicati-
vos.11

A alteridade gestada no decorrer desse processo, resultante das práticas pedagógicas estabe-
lecidas pela catequese jesuítica, bem como sua transposição didático-literária, destinada à compreen-
são traduzida desse Outro, permite-nos pensarmos a construção desse encontro a partir dos termos
que fundamentam aquilo que Montero conveniou designar como teoria da mediação cultural. Essa
perspectiva faz com que nosso texto privilegie a observação das práticas simbólicas - ritos - emprega-
das pelos missionários na tentativa de se converter o Outro.12

Nesse sentido, a cultura assume papel preponderante para a compreensão das relações esta-
belecidas entre os agentes postos em contato; estes, com efeito, se relacionam interculturalmente, pro-
duzindo textualidades que permitem pensarmos nas formas de interação estabelecidas entre jesuítas e
negros escravizados nos continentes africano e americano.

As configurações oriundas da mediação executada pelos missionários requerem a redefini-


ção das diferenças em função de uma rede de relações generalizantes. Postos em relação, esses agentes
acessam alguns de seus códigos ao mesmo tempo em que se apropriam de outros sistemas simbólicos,
adversos a sua forma de ser, significando os ritos de acordo com as experiências possibilitadas por este

11 GASBARRO, Nicola. Missões: a civilização cristã em ação. In: MONTERO, Paula (Org.). Deus na aldeia:
missionários, índios e mediação cultural. São Paulo: Globo, 2006. pp. 67- 109.
12 MONTERO, Paula. Índios e missionários no Brasil: para uma teoria da mediação cultural. In: MONTERO,
Paula (Org.). Deus na aldeia: missionários, índios e mediação cultural. São Paulo: Globo, 2006. pp. 31-66.

103
encontro. A presença do Demônio na produção simbólica inaciana relativa ao seu Outro na Ilha de
Santiago e em outros espaços da costa do noroeste africano sinaliza-nos a necessidade de compreen-
dermos os motivos que demarcam a escolha desse código em detrimento de outros.

Ao tratarmos desta demonização, invertemos nossa análise, deslocando nosso foco de ob-
servação para a ortopraxia jesuítica. As práticas sociais inerentes à cultura deste grupo são o ponto de
partida para o estabelecimento da alteridade inaciana, que se fundamenta em ações tomadas como
supostamente corretas, relativas à ideia da existência de um único cristianismo possível - católico -,
entendido como religião universal e, por isso mesmo, verdadeira, sendo, com efeito, sua palavra reve-
ladora da fé e da graça supostamente capazes de salvar e civilizar o Outro.

O universalismo cristão depende necessariamente desse Outro, vez que este se encontra imer-
so em uma rede de relações permeadas pela diferença. A necessidade social e cultural de se repensar
o mundo, a partir do contato com a África e a América, conduz o homem ocidental a reafirmação de
sua ação religiosa, destinada a preencher esse espaço ocupado pela diferença.

As ideias de verdadeiro e universal ultrapassam o campo da ortodoxia, direcionando as prá-


ticas interculturais ao avanço do cristianismo mediante outras culturas. O contato com o Outro, ob-
jetiva tornar a mensagem cristã universalizável e, portanto, obrigatoriamente missionária, desde suas
origens, conforme os Atos dos Apóstolos. Logo, as missões modernas ultrapassam a concepção po-
tencial de universalidade, alterando seu significado, tornando-o concreto, por meio de uma condição
atual e, portanto, histórica.

Essa condição, segundo Certeau, produz os seguintes efeitos, mediante a suposta universali-
dade cristã: os ocidentais deteriam, em tese, por designação divina, superioridade em relação aos po-
vos que habitavam outros espaços, conforme observamos nas narrativas dos padres Baltazar e Veira.
Agindo de maneira tautológica, os missionários operam uma dupla reprodução. Para Certeau, esse
movimento reafirma a ortodoxia histórica do poder expansionista colonial, preservando seu passado,
ao mesmo tempo em que, a partir da missionação, novos espaços são conquistados, resultando, pois,
na multiplicação desses mesmos signos.13

É importante salientar que, sem essa condição, a própria escatologia cristã perde seu sentido
salvacionista, independentemente da existência da fé e seus pressupostos dogmáticos. Dessa maneira,
pretendemos afirmar que o catolicismo português, a partir das missões disseminadas ao longo do ad-
vento da modernidade, se tornará não uma religião universal, mas, sim, uma religião que, através dos
processos ortopráticos, buscou simbólica e socialmente construir sua universalidade, por intermédio
do encontro catequético-ritual com o Outro, fundamentando-se nas representações alusivas as suas
diferenças.

Pensando especificamente nas missões desempenhadas pela Companhia de Jesus na Costa da


Guiné e no Recôncavo Baiano, podemos considerar que não estamos a tratar tão somente da expansão
do cristianismo em direção às novas terras. A ação praticada pelos missionários ao lado da coroa lu-
13 CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Trad. Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Uni-
versitária, 1982.

104
sitana representa um ideal de civilidade, pautado pelo cristianismo como delineador da ideia de uma
civis luso-imperial ao longo da expansão ultramarina. Ao comunicar-se com o Outro, o missionário
está a traduzir, em seus termos, a forma de ser nativa, transfigurando-a, de maneira generalizante,
para seu universo. A execução dessa operação estabelece um sintagma cultural, selecionando alguns
códigos específicos de duas unidades distintas para, sequencialmente, buscar subordinar os elementos
de um grupo social aos interesses de outro.

O código compatível e, portanto, determinante no estabelecimento dessas relações é a comu-


nicabilidade dada em termos religiosos. A gramática religiosa, sob o ponto de vista missionário foi,
a partir do século XVI, a principal categoria pela qual o Ocidente leu e interpretou o Outro. Tal fator
se deu devido à presença da religião como categoria generalizante da forma de ser europeia capaz de
introduzir a civilização ocidental, mediante o contato com o novos espaços, no campo da alteridade
cultural, permitindo, igualmente, comunicar-se com o diferente.14

Feita essa observação, devemos considerar que, ao analisarmos a presença jesuítica nas di-
ferentes dimensões espaciais dominadas pela sociedade portuguesa seiscentista, as práticas missio-
nárias funcionam como principal meio de compreensão das relações interculturais entre dois grupos
opostos. A missão opera o estabelecimento de uma rede de relações entre o Eu e o Outro, sendo que
a influência da religião, regulando as ações entre os homens, a partir do Direito e da Política, torna
essa crença o código prioritário no estabelecimento dessas conexões. A mobilização missionária, con-
siderando o contato com o Outro, serve, pois, para universalizar não somente os códigos próprios do
cristianismo, mas, com efeito, todas as demais representações sociais que se encontram ligadas a ideia
de um Portugal constituído como Respublica Christiana. Seguindo essa perspectiva, encontramos os
missionários da Companhia de Jesus atuando como mediadores no processo de estabelecimento das
relações interculturais entre portugueses e outros povos.

Essa mediação deve considerar os determinantes culturais que influenciam o agir missio-
nário. Logo, se constituirão filtros que pautarão a maneira pela qual o jesuíta buscará compreender
compreenderá os povos africanos em seu continente e na diáspora. As informações coletadas a partir
da leitura da documentação selecionada deixam de ser trabalhadas como dados objetivos. Seguindo
essa perspectiva, ao considerarmos as origens históricas das práticas sociais e políticas do Império
português, ao lado dos princípios que balizam a expansão missionária inaciana neste mesmo momen-
to histórico, podemos compreender o contexto da produção dos discursos analisados, bem como a
posição dos atores envolvidos em cada um dos eventos observados. A estrutura dos processos estuda-
dos vai, portanto, articulando-se aos interesses e conflitos dos grupos postos em contato, permitindo,
desta maneira, o estabelecimento de hipóteses acerca do complexo encontro cultural experimentado
por grupos distintos.

As diferenças identificadas podem, igualmente, serem compreendidas por meio dos rituais;
estabelecidos novos códigos, resultantes de um conjunto de regras que ressignificam as práticas, o
evento vivenciado é reinserido em uma estrutura que permite a apreensão da realidade desempenha-
da pelo missionário e, consequentemente, dos ideais sociais e políticos representados pelas práticas de
14 MONTERO. Índios e missionários no Brasil. op. cit.

105
sua agência colonizadora. A base estrutural que sustenta o evento recebe o rito, incluindo as ameaças
que este possa vir a desempenhar no projeto a ser executado pelos missionários. Logo, do ritual há de
resultar a construção de uma linguagem simbólica que expressará uma tentativa de representação do
real mediante uma nova comunicabilidade intercultural. Essa linguagem, fundamentada na tentativa
de inserção ou recondução do Outro à via correta, é praticada na vida cotidiana.

A representação do real que encontramos nas narrativas inacianas indica o teor valorativo
da documentação produzida acerca desse contato. A construção demonológica do Outro vai operan-
do o desenho catequético justificador do emperramento da ideologia cristã posta em ação. Uma das
questões a serem consideradas diz respeito, muito mais que a eficácia simbólica da presença jesuítica
entre a população da Costa da Guiné e da América portuguesa, à compreensão dos códigos simbólicos
compartilhados por estes evangelizadores. Os contatos estabelecidos entre missionários vão moldan-
do novos sentidos para ambos os grupos aqui observados. Esses sentidos são, igualmente, decodifica-
dos, permitindo a compreensão jesuítica da alteridade que, seguidamente, é traduzida, interpretada e
escrita em conectividade com uma ortopraxia que resulta na constituição de uma imagem do Outro,
redesenhada à luz dogmática do cristianismo.

O Outro projetado pela experiência religiosa aqui exposta é inscrito em uma lógica mis-
sionária que segue um modus operandi próprio. Segundo Montero, as missões tratam de valorizar
a inscrição do Outro, por meio de diferentes recursos, entre estes a disseminação de cartas entre as
províncias jesuíticas.15 A elaboração e circulação de textos (epistolas e sermões) sobre esse Outro vão
fixando, a partir da palavra e da escrita cristã, tentativas de se anular as diferenças e inserir os nativos
no grêmio da cristandade luso-imperial. Toda produção simbólica sustentada pelos religiosos insere
significações extraídas dos mais variados ritos observados na Costa da Guiné e em sua diáspora na
América. O resultado dessas relações une duas culturas distintas, tornando possível a existência de
uma transculturalidade espacial, mediada pelas práticas e transcrições jesuítas, que comunicam a seus
pares espalhados pelo mundo os múltiplos códigos produzidos no estabelecimento dos contatos inte-
rétnicos aqui ocorridos ao longo do século XVI.

A produção de tais códigos perpassa por uma série de elementos ligados a ação missionária,
entre estes a injunção narrativa. O lógos diabólicoapresentado na produção textual jesuítica é re-
sultado da interiorização missionária e sua concernente confecção narrativa, independentemente do
gênero elaborado por aquele que se ocupa da produção do texto lido. Desta maneira, a transposição
da prática social para as linhas que visam edificar outras missões ou catequisar os nativos produz
uma ordenação expressa do Outro, a partir de Si Mesmo. A precisão dessa inversão se dará, segundo
Hartog, pela existência de um saber compartilhado entre narrador e destinatário, que se legitima
pelas práticas simbólicas que ambos mutuamente expressam. Os saberes semântico, enciclopédico e
simbólico ajustam social e politicamente as práticas catequéticas e suas respectivas expressões textuais
desenvolvidas pelos agentes da missão ao mesmo tempo em que permitem o acesso decodificado, por
parte dos destinatários, das informações transcritas pelos emissores.16
15 MONTERO. Índios e missionários no Brasil. op. cit.
16 HARTOG, François. O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro. Trad. Jacyntho Lins
Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.

106
Ao tratar das condições impostas pela injunção narrativa, Hartog (Idem) alerta-nos sobre a
necessidade de, ao revisitarmos a documentação selecionada para o desenvolvimento de nossa pes-
quisa, não atentarmo-nos a um único lógos. Ao estabelecermos um recorte documental acerca da
demonização desse Outro, tencionamos aferir duplamente os sentidos cujas fontes são, indispensavel-
mente, portadoras.

A injunção narrativa jesuítica assume uma circunstância prefigurativa que anuncia o Demô-
nio europeu transplantado à África e a América. Conforme indica Hartog, esse movimento ocorre
pelo estabelecimento de um corte em um determinado tempo, passando a perturbar a organização
de um espaço específico.17 Dito de outra maneira, a repetição da experiência demonológica europeia
ganha corpo nas missivas de Baltazar e nos sermões de Vieira.

A injunção insere estas narrativas na seguinte condição: enquanto o missionário, pela univer-
salidade de sua religião, porta a verdade, o Outro se fundamenta em seu oposto. A mentira, centrada
nas ações que orientavam a forma de ser negro-africana e negro-diaspórica, é sustentada pela argu-
mentação oral.

A prescrição da narrativa jesuítica será sempre universalizante, fundamentando-se em um


conjunto de verdades que operam a necessidade de se evangelizar o Outro, agindo, pois, de forma
justa, caritativa e lógica. A prescrição dos enunciados emitidos nas cartas estudadas indica o estabele-
cimento de um conjunto pragmático-semântico relativo às formas opostas da razão teológico-política
operadas na prática descritiva das ações da ideologia luso-cristã.18 Representando essa inversão, as
narrativas ora estudadas indicam a presença de léxicos não reconhecidos pela missionação moderna
desencadeiam a operação discursiva da alteridade inaciana, fixada na ideia da demonização anímica
de Seu Outro.

A construção representacional demonológica nestes textos é apresentada a partir de uma


predicação específica, que visa unir o sujeito descrito (negro) ao verbo empregado (palavra de Deus).
Procurando a constituição de um novo estado, permanente, de modificação desse Outro, a alteridade
jesuítica conduz-nos, segundo Hartog, a um desvio sistemático.19

Posta de forma precedente a ideia de predicado, o desvio indica que toda leitura das práticas
simbólicas de um determinado grupo social será interpretada em conformidade com sua homologia,
ou seja, no caso que estamos a historiar, o desvio, condição antecessora ao predicado inaciano, tornará
possível concebermos que a leitura de Seu Outro indicará que as práticas negras serão interpretadas
sob o óbice missionário luso-cristão.

As diferenças identificadas entre os grupos postos em contato podem ser traduzidas por
meio da inversão dos termos utilizados na descrição do Outro, fundamentando-se, conforme observa
Hartog, em uma alteridade transcrita a partir de um antipróprio.

17 HARTOG. O espelho de Heródoto. op. cit.


18 HANSEN, Joao Adolfo. O nu e a luz: cartas jesuíticas do Brasil. Nóbrega: 1549-1558. Revista do Instituto de
Estudos Brasileiros, São Paulo, nº 38, 1995, pp. 87-119.
19 HARTOG. O espelho de Heródoto. op. cit.

107
Nesse sentido, a inversão é referencialmente concebida a partir do seguinte esquema:
inicialmente, identifica-se a diferença para, na sequência, apontar-se a tradução obtida no decorrer
desse processo. As práticas simbólicas exercitadas pelos missionários se tornarão ponto de partida
para a conversão da diferença em inversão, expressa pela suposta ideia de uma universalidade cristã,
generalizante e, portanto, detentora da capacidade de alcançar outras experiências históricas, modifi-
cando-as.

Outro recurso empregado para a tradução do Outro é a comparação. Intervindo nos procedi-
mentos que permitem a tradução, a comparação proporciona um esquema que, pautado pelo estabe-
lecimento de semelhanças e diferenças, resulta em um conjunto classificatório.20 A composição entre
o além e o aquém denota, obrigatoriamente, que o segundo elemento integre o saber compartilhado
pelas práticas simbólicas da ideologia luso-cristã. Desta maneira, o distanciamento entre os dois ter-
mos vai, com efeito, sendo reduzido pelo exercício da comparação, proporcionando, pois, um desvio
sistemático na produção textual que aborda as práticas simbólicas do grupo contatado.

O esquema de comparação proposto por Hartog permite o estabelecimento de analogias a


partir de dois pressupostos básicos: a aproximação e a transferência. Essa operação se dará em con-
soante com quatro símiles específicos, enumerados da seguinte forma, a saber: similitudo per contra-
rium; similitudo per negationem; similitudo per brevitatem; e similitudo per collationem. As funções
de identificar o Seu Outro a partir de seus elementos contrários para, em seguida, negá-los e descre-
vê-los de maneira generalizante é aplicada na retórica da alteridade jesuítica. Já a última similitude,
definida por Hartog como paralelo, teria a função de definir os códigos simbólicos compartilhados
diante dos olhos de seus semelhantes (ante oculos ponere).21

Posto como representação do real, os paralelos devem, portanto, servir de referencial para a
compreensão não do Outro, mas, sim, do Seu Outro, projetado pela ação da palavra e escrita cristã. A
exposição desse esquema de descrição do Outro ocorrerá por meio de uma visão analógica. Segundo
Hartog, este processo ocorre por meio da seguinte fórmula: a será para b o que c deverá represen-
tar para d, ou seja, temos, pois, um paralelo estabelecido a partir de quatro termos, interligado em
dois pares.22 A comparação, de forma analógica, serve, portanto, como instrumento capaz de operar
a tradução luso-cristã do Outro, filtrando-o e, consequentemente, permitindo a construção de um
discurso que torne permeáveis os códigos desse Outro, fazendo-os dimensíveis à forma de ser dos
missionários.

O real do Outro, construído de maneira digressiva, conduz-nos, sempre, em última instância,


a necessidade de considerarmos a operação de uma tradução, capaz de transpor as diferenças identifi-
cadas em função da forma de ser de Si Próprio. Toda forma de se descrever o Outro parte da experiên-
cia concreta de estar com este, ou seja, considerando-se aquilo que é visto, havendo, sequencialmente,
o desafio de, a partir de uma metonímia, fazer com que o seu semelhante possa também ver aquele
que representa seu inverso.
20 HARTOG. O espelho de Heródoto. op. cit.
21 HARTOG. O espelho de Heródoto. op. cit.
22 HARTOG. O espelho de Heródoto. op. cit.

108
Imerso em outra realidade, o missionário utiliza-se de ações taxionômicas que, referenciam
não as aptidões lógicas de seus destinatários, mas, sim, pontos de conexão léxica e metalinguística.
Logo, a descrição e a narração não são neutras, nem tampouco exteriores à experiência que orienta
a ação terrena dos missionários. Dito de outra maneira: toda ação catequética é referendada pela
mediação das categorias que orientam o agir jesuítico no além-mar, resultando, pois, em uma com-
binação léxica que indica a reinterpretação paradigmática do modelo universalizado, dotando-o de
uma ressignificação em função da posição local do agente que opera a emissão discursiva teológica-
-política-jurídica-mercantil portuguesa, institucionalizando a forma em consonância com o espaço
de sua criação.

As ações até aqui expostas na construção de uma retórica da alteridade devem fazerem ver e,
ao mesmo tempo, fazerem ver um saber específico, ligado a uma determinada forma de ser. O visível
é, pois, descrito e, posteriormente, na grande maioria das vezes, legitimado por quem o recebe, cola-
borando na difusão de uma persuasão entre os missionários praticantes da ação catequética ritual aqui
desenvolvida e os demais membros da Companhia de Jesus espalhados pelo mundo. Dispersos por
diferentes vinhas, comunicando-se com outros indivíduos por meio da observação e divulgação de
suas práticas, os jesuítas se punham a unir-se em Espírito, a partir de um único Verbo, cuja natureza,
segundo a concepção de seus integrantes, conceberia a salvação de Seu Outro proporcionando, por
isso mesmo, seu próprio arrebatamento.

Importa saber que essa modificação do visível é dominada pela generalização da ideia de se
estar com, viver para e morrer em Cristo, operando a vivacidade da Fé por suas próprias ações para,
em seguida, a partir dos próprios punhos, testemunhar suas experiências, narrando-as em conformi-
dade com sua familiaridade ou necessidade negocial do espaço ocupado pela cristandade. A partir
dessa lógica, as cartas não apresentam indícios de desistência ou fracasso da ação catequética: estas
indicam dificuldades e, por vezes, desânimo, a nosso ver, muitos deles, significativos da presença de-
moníaca na Costa da Guiné e na América, por meio das narrativas de Baltazar Ferreira e outros reli-
giosos que estiveram com ele, bem como nos sermões de Antônio Vieira.

Referencias

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anotada pelo Padre Antonio Brasio. Lisboa: Agência-Geral do Ultramar, 1965. v. 3., p. 275.

Carta do Padre Baltazar Barreira ao Padre Antonio Mascarenhas”, 16/3/1604. In: BRASIO, Antonio

109
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SANTOS, Vanicleia Silva. Bexerins e jesuítas. Religião e comercio na Costa da Guine (século XVII).
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110
Contatos transfronteiriços na Amazônia colonial: a correspondência entre os jesuítas Louis
de Villette de Caiena e José Lopes de Belém (1733)
Karl Heinz Arenz23

Resumo: Dentro do multiforme conjunto da correspondência jesuítica, as missivas trocadas entre integrantes
de Províncias ou Missões vizinhas são, em geral, pouco analisadas. No entanto, esse tipo de cartas internas à
Companhia de Jesus ajuda a compreender melhor os contextos sociopolíticos, econômicos e étnicos em de-
terminadas macrorregiões. Assim, uma epístola de dois fólios escrita pelo padre Louis de Villette, superior
da residência jesuítica de Caiena, a seu confrade José Lopes, no colégio de Belém no Pará, em 1733, aponta
as múltiplas dinâmicas na região fronteiriça entre as colônias francesa e portuguesa na Amazônia. Dentre as
quais, se destacam o trânsito de pessoas – não só de índios vivendo nas imediações, mas também de negros e
brancos fugitivos –, a troca de produtos cultivados típicos de cada lado, como café na Guiana e cacau no Pará,
e a circulação de saberes, mediante envio de livros e emissários. Além disso, a missiva demonstra ser relevante
pelo fato de o padre francês buscar estreitar os laços com os confrades lusos no que concerne a prática da al-
deação dos indígenas, método tido como imprescindível para a consolidação do projeto colonial nos dois lados
da fronteira.

Palavras-chave: jesuítas, correspondência, fronteira, Amazônia.

Introdução

A fronteira traçada, em 1713, ao longo do rio Oiapoque entre as possessões da França ao norte
e de Portugal ao sul, na região atlântica da Amazônia, não constituiu uma linha de separação hermé-
tica. Antes, seu estabelecimento deve ser considerado como uma decisão diplomática, formulada no
Tratado de Utrecht24, concluído naquele ano, que pôs fim às querelas entre as duas coroas a respeito de
suas respectivas zonas de influência em torno do estratégico delta do rio Amazonas. De fato, após ter
perdido a França Equinocial, uma fundação colonial efêmera na ilha do Maranhão, em 1615, a França
não havia desistido de tentar, a partir de sua nova base em Caiana, estender seu controle até a margem
setentrional do grande rio no final do século XVII25. A fixação da fronteira no Oiapoque significou,

23 Doutor em História Moderna e Contemporânea e atualmente professor associado na Universidade Federal


do Pará em Belém. O presente texto contou com a colaboração do Prof. Dr. Pablo Ibáñez Bonillo, pesquisador
em pós-doutoramento na mesma instituição.
24 O Tratado de Utrecht é um dos três tratados que marcaram o fim da Guerra de Sucessão Espanhola. A dispo-
sições estabelecem uma redefinição do equilíbrio de poder entre as potências europeias que prevê, entre outras
medidas, uma clara delimitação das zonas de influência na Europa e nas respectivas possessões ultramarinas.
Ver CANTET, Claire. Guerre, paix et construction des États: 1618-1714. Paris: Éditions du Seuil, 2003, p. 211-
213.
25 No que diz respeito às incursões francesas no final do século XVII, ver MEIRELES, Mário Martins. História
do Maranhão. Rio de Janeiro: Departamento Administrativo de Serviço Público, 1960, p. 143; BETTENDORFF,
João Felipe. Crônica dos Padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão [1698]. Belém: Secretaria de
Estado de Cultura, 1990, p. 626-628 Meireles menciona que os franceses de Caiena iniciaram, desde 1688, uma
política de expansão até o estuário do Amazonas. Suas incursões em 1696 e 1697 constituíram uma ameaça di-
reta às cidades portuárias de Belém e São Luís. O padre João Felipe Bettendorff especifica esse cenário, fazendo
alusão às incursões do Marquês Pierre-Éléonor de Férrolles, em 1696 e 1697, sobre Macapá. Na ocasião, um
jesuíta francês, o padre Claude de Lamousse, serviu de intérprete para os franceses; enquanto Bettendorff teve
a mesma função do lado português.

111
assim, ao menos até o fim do século XIX, uma calmaria nas tensões latentes entre França e Portugal.

Até hoje, ao que tudo indica, a historiografia ainda não explorou a fundo as relações entre a
Caiana francesa e o Pará português na época colonial. Por isso, se sabe relativamente pouco das com-
plexas e múltiplas dinâmicas transfronteiriças no vale do Oiapoque e na região adjacente do Cabo
Norte a partir de 171326. A pesquisa de Rosa Acevedo Marin e Flávio Gomes sobre a banda norte do
rio Amazonas aponta uma intensa mobilidade que ocorreu na referida área na primeira metade do
século XVIII, evidenciando que a fronteira estabelecida não representava um obstáculo à circulação
de pessoas e ao intercâmbio de bens e informações27.

Entre os grupos populacionais que mais aproveitaram da porosidade da nova fronteira – pois
impossível de controlar efetivamente – encontraram-se os povos indígenas das imediações, como os
Aruã e os Maraon. Circular entre os dois espaços coloniais ampliou sua margem de manobra, espe-
cialmente no que se refere às negociações com os colonizadores ora de um ora de outro lado28. Mas,
também colonos, escravos e missionários atravessaram frequentemente o rio Oiapoque, levando e
trazendo bens e informações. Desta feita, entendemos aqui a fronteira fluvial, embora traçada con-
forme um acordo diplomático entre França e de Portugal, não como uma linha divisória, mas uma
“área geográfica, remota da sociedade já estabelecida, mas central para os povos indígenas, onde uma
consolidação ainda não foi assegurada e onde ainda paira a dúvida sobre o desfecho dos encontros
culturais multiétnicos”29.

A carta jesuítica da qual tratamos em seguida reflete em poucas linhas – e em muitas entreli-
nhas – as diversas mobilidades e sociabilidades engendradas pela realidade peculiar da existência de

26 Cabo do Norte designa a região situada entre a margem setentrional do rio Amazonas e o rio Oiapoque,
correspondendo aproximadamente ao atual território do Estado do Amapá. Do século XVII até o início do sé-
culo XX, a região foi objeto de diversos litígios entre a França, de um lado, e Portugal e, desde 1822, o Brasil, de
outro lado. Após uma situação de tensão em 1895, a fronteira foi fixada definitivamente, mediante arbitragem
internacional (Suíça), em 1º de dezembro de 1900. Ver GRANGER, Stéphane. O contestado franco-brasileiro:
desafios e consequências de um conflito esquecido entre França e o Brasil na Amazônia. Revista Cantareira, Rio
de Janeiro, v. 17, p. 21-39, jul./dez. 2012.
27 Referente à mobilidade na fronteira entre Caiena e Cabo do Norte, ver MARIN, Rosa Acevedo; GOMES,
Flávio. Reconfigurações coloniais: tráfico de indígenas, fugitivos e fronteiras no Grão-Pará e Guiana Francesa
(séculos XVII e XVIII). Revista de História USP, São Paulo, v. 149, p. 69-107, 2003.
28 Referente à circulação dos indígenas, ver BOMBARDI, Fernanda Aires. Fortificações militares nas capita-
nias do Cabo do Norte e Pará: território, povoamento e comércio (1668-1706. In: RORDIGUES, Fernando da
Silva; FERRAZ, Francisco Cesar Alves; PINTO, Surama Conde Sá (Orgs.). História militar: novos caminhos e
novas abordagens. Jundiaí: Paco Editorial, 2015, p. 19-42; NIUMENDAJÚ, Curt. The Turiwara and Aruã. In:
STEWARD, Julian Haynes (Org.). Handbook of South American Indians. Vol. 3 (The Tropical Forest Tribes),
Washington: Unites States Government Printing Office, 1948, p. 193-198. Conforme Curt Nimuendajú, os ín-
dios Aruã e Maraon, fugitivos das missões portuguesas, foram levados, entre 1738 e 1744, pelo jesuíta Aimé
Lombard para a missão de Ouanari sob domínio francês. Um censo francês referente ao ano de 1737 lista o pa-
dre Lombard e índios “Arouas” e “Maraones” como habitantes da Missão de Kourou. Ver Recensement général
de Cayenne pour 1737, 14 de junho de 1738. Archives Nationales d’Outre-Mer (ANOM), Aix-en-Provence, col.
C 16, fl. 383-435. Disponível em:<https://www.ghcaraibe.org/docu/guyane/GUYANE-1737-1747.pdf>. Acesso
em: 10 mar. 2018.
29LANGFUR, Hal. The Forbidden Lands: Colonial Identity, Frontier Violence, and the Persistence of Brazil’s
Eastern Indians, 1750-1830. Stanford: Stanford University Press, 2006, p. 5. A citação foi traduzida do inglês
pelo autor.

112
uma fronteira entre dois domínios coloniais cujas metrópoles seguiram objetivos diferentes. A referi-
da missiva se reduz a dois fólios que, com a numeração de 38 e 39, integram o códice 17 do Arquivo
Público do Estado do Pará (APEP) em Belém30. Como a maioria das correspondências jesuíticas da
época, o documento foi escrito em latim, o idioma corrente no intercâmbio epistolar entre inacianos.
Na realidade trata-se de uma cópia, sendo que o original da carta não foi encontrado até agora. O do-
cumento foi redigido em 3 de agosto de 1733 pelo padre Louis de Villette, na época superior da Resi-
dência e do Colégio da Companhia de Jesus em Caiena31. O destinatário é seu confrade José Lopes da
Vice-Província do Maranhão32. A primeira frase da missiva logo deixa evidente que os dois religiosos
estavam mantendo uma correspondência contínua, mas um tanto irregular: “Estou muito contente,
porque recebi a carta de Vossa Reverência datada de 27 de junho. De fato, há muito tempo não temos
recebido nenhuma e já estava a ponto de pensar que tivéssemos sido tirados da vossa memória33.”
Tudo indica que o padre francês presumia, no momento da redação da carta, que seu confrade por-
tuguês estivesse ainda ocupando o cargo de Vice-Provincial com residência em Belém. Na realidade,
José Lopes já havia renunciado em julho de 1729 e encontrava-se, desde fins de 1732, em São Luís, na
função de reitor do Colégio de Nossa Senhora da Luz34.

Brindes e produtos

A correspondência entre os dois jesuítas não consistia somente na troca de notícias, mas tam-
bém no intercâmbio de presentes e produtos, transportados de um lado para outro por servidores
indígenas35. Assim, o autor da missiva dedica, logo no início, várias frases aos brindes – alguns con-
sistindo em artefatos confeccionados com penas – que, ao que tudo indica, tiveram muito mais valor
simbólico para cultivar as relações amigáveis do que relevância econômica. Muito provavelmente,
por esta razão, Louis de Villette questiona se a fragilidade de certos objetos e a periculosidade de seu
transporte, por um mar agitado e em canoas estreitas e frágeis, estariam realmente em uma relação
proporcional com a utilidade real dos mesmos. Ele escreve a respeito:

30 A carta foi encontrada pelo pesquisador Prof. Dr. Pablo Ibáñez Bonillo e traduzido do latim pelo autor.
31 Referente ao padre Louis de Villette, ver MONTÉZON, Marie-Fortuné de (Org.). Voyages et travaux des
missionnaires de la Compagnie de Jésus. Tom. 1 (Mission de Cayenne et de la Guyane Française). Paris: Édi-
teurs Julien, Lanier, Cosnard et Ce, 1857, p. 486-503.
32 Referente ao padre José Lopes, ver LEITE. Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tom. VIII
(Escritores: de A a M). Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro 1949, p. 319-321. Leite menciona que o padre
Lopes teria ocupado também o cargo de procurador do Colégio do Pará, mas não indica o período.
33 Carta de Villette a Lopes. Caiena, 03/08/1733. Arquivo Público do Estado do Pará(APEP), Belém, cód. 13,
fol. 38.
34 O Catalogus Personarum Vice Provinciӕ Maragnonensis de 1730 elenca José Lopes como Vice-Provincial
recém-renunciado. Dois anos depois, em 1732, o padre é mencionado como reitor designado do Colégio do
Maranhão. Já no Catalogus de 1735, ele está registrado como consultor do superior, residindo novamente no
Colégio em Belém. Ver Catalogi. Archivum Romanum Societatis Iesu (ARSI), Roma, cód. Bras 27, fl. 51r, 53r,
61r, 62v, 71r e 72v.
35 Um memorando do padre Pierre-Aimé Lombard de Caiena, de 1738, ao ministro Jean-Frédéric de Maure-
pas em Paris aponta o costume de recorrer a índios aldeados para servirem de mensageiros, enviando-os tanto
junto aos holandeses no Suriname como aos portugueses no Pará. Ver MONTÉZON, Voyages et travaux des
missionnaires de la Compagnie de Jésus, p. 494.

113
Eu estava com dúvidas se Vossa Reverência recebeu os brindes enviados tanto por
mim como pelo Padre Duplessis. Estou contente que os tenha recebido, mas lamento
que o mar os danificou, ou melhor, a estreiteza das pequenas embarcações com as
quais se enfrenta aquele mar agitado. Quanto aos presentes que Vossa Reverência
mandou, recebi-os inteiros e sem nenhuma danificação causada pelas águas ou por
outro elemento. Por eles agradeço muitíssimo à Vossa Reverência. Os ornamentos
feitos de plumas são, sem dúvida alguma, extremamente elegantes, mas principal-
mente por causa das baías perigosas nesta região quase não vale a pena fazê-los atra-
vessar até aqui36.

Quanto aos agrados enviados na outra direção, isto é, da colônia francesa para o Pará, o padre
Villette menciona o envio de “uma pequena barrica de café”, que, muito possivelmente, acompanhava
a carta37. Essa observação é fundamental, pois evidencia a importância da região de Caiana para a di-
fusão do café em direção aos domínios portugueses mais ao sul. De fato, estamos somente a cinco anos
da expedição do sargento-mor Francisco de Melo Palheta a Guiana que, em 1727, trouxera o café ao
Pará e, com isso, também à América portuguesa. Uma carta do então governador Alexandre de Souza
Freire, de 1731, nos dá um indício de quão rápido o novo produto foi cultivado na capitania paraense:

Nos çitios circumvizinhos a esta Cid.e [Belém] e ainda nos quintaes dela vay já haven-
do m.to café e excelente, o qual taõbem hê genero novo na terra, de q dentro de hú ou
dous annos, se remeterão aroubas pª Portugal, porque as arvores delle de dous tres
annos dam logo fruto e em gr.de quantid.e38.

Apesar dessa rápida apropriação do produto vindo de Caiana, o centro de “opulência” na re-
gião amazônica daquela época parece ter sido, incontestavelmente, Belém. Villette descreve a urbe
colonial como lugar que “abunda em mercadorias de todo tipo provindos da Europa”. Sem dúvida,
manter contato regular com esse centro de abastecimento com um porto significativo, constituiu uma
prioridade para o jesuíta francês que viveu em uma cidade colonial de importância bem menor. Por
isso, não é de se admirar que o redator da carta passa dos brindes a produtos de uso prático e, como
tudo indica, de necessidade real. Com efeito, o padre Villette faz uma encomenda de “alguns maços de
salsa, em francêssalceparille [salsepareille] e alguns leitos suspensos, em francêshamacs”, isto é, redes
de dormir. Parece que o padre, ao acrescentar e sublinhar os nomes dos produtos em francês quer
que seu pedido seja compreendido. De qualquer forma, a urgência do mesmo evidencia-se também
seja pelo emprego do superlativo na expressão “isso nos agradaria muito, para não dizer muitíssimo”,
seja pela indefinição da quantia (“a quantia da qual [Vossa Reverência] dispõe”), seja, enfim, pela livre
escolha quanto à forma de pagamento (“seja [em] mercadoria, seja [em] dinheiro”)39.

Os dois produtos solicitados merecem ser aprofundados. Quanto à salsaparrilha, esta planta
de origem americana foi bastante comentada em tratados farmacêutico-botânicos dos séculos XVII e
XVIII, sobretudo no que diz respeito aos efeitos medicinais de sua raiz. A historiadora hispano-uru-
guaia Raquel Alvaréz Pelaéz afirma que a salsaparrilha, conhecida no Velho Mundo desde o século
36 Carta de Villette a Lopes, Caiena, 03/08/1733, APEP, cód. 13, fol. 38.
37 Carta de Villette a Lopes, Caiena, 03/08/1733, APEP, cód. 13, fol. 38.
38 Carta de Alexandre de Souza Freire a Paulo da Silva Nunes, 11 de setembro de 1731.Arquivo Histórico Ul-
tramarino, Lisboa, AHU-013, cx. 13, doc. 1193.
39 Carta de Villette a Lopes, Caiena, 03/08/1733, APEP, cód. 13, fol. 38.

114
XVI, foi, como outras espécies do gênero smilax, rapidamente integrada na medicina europeia40. Para
começar, já em 1570, o médico mexicano Francisco Bravo dedicou um capítulo inteiro de seu livro
Opera medicinalia à descrição da planta e a seu valor curativo no combate a diferentes contágios41.
Poucos anos depois, o médico espanhol Nicolau Monardes fez menção da salsaparrilha em sua obra
De simplicibus medicamentis ex Occidentali India delatis, publicada em Antuérpia, no ano de 157342.
Segundo esse autor ibérico, a planta teria suas origens na Nova Espanha e em Honduras, mas também
seria frequente em Guayaquil e Peru, isto é, em regiões ao oeste da bacia amazônica. Aplicada como
pó, infusão ou xarope, a raiz teria efeitos sudorífera e purgante43.

Justamente em torno do ano da redação da missiva do padre Villette, circularam, na Europa


e também na América, várias obras de conteúdo farmacêutico-médico que propagaram, com mais
detalhes, a relevância da raiz de salsaparrilha. Assim, o farmacêutico francês Pierre Pomet distinguiu,
em 1694, entre a salsaparrilha “das Índias da Espanha” e “de Marignan [Maranhão]”, ou seja, da Ama-
zônia. Ele esclareceu que a primeira seria melhor, mas ambas proliferariam em “lugares húmidos e
pantanosas”. Pomet destacou ainda a eficácia da infusão de salsaparrilha no tratamento de “doenças
secretas”, quer dizer, venéreas, e no emagrecimento44. Também para o médico alemão Jacob Woyt, a
salsaparrilha é originária de “lugares úmidos nas Índias Ocidentais”. Em sua famosa obra Schatz-Kam-
mer medicinisch- und natürlicher Dinge(“Tesouro das coisas medicinais e naturais”), de 1709, ele
elogia a propriedades diaforética e diurética da salsaparrilha e, parecido a Pomet, realça sua potencia-
lidade para combater a obesidade e, além disso, o “câncer escondido”. Woyt resumiu suas informações,
de forma compacta, nesses termos:

Sarsaparilla, raiz de salsaparrilha: raiz muita ramificada, de cor marrom-clara, de


odor e sabor peculiares; veio para Europa via Espanha, planta chamada Smilax aspera
Peruviana ou Sarmentum indicum; cresce nas Índias Ocidentais em lugares úmidos;
há diferentes tipos da raiz (Espanhola, Holandesa e Francesa), sendo a Espanhola a
melhor; [...] tinge a água vermelha; tem propriedades diaforéticas e diuréticas, ser-
vindo contra obesidade e câncer escondido [...]45.

Em 1712, o missionário jesuíta Johannes Steinhöffer, que atuou na Nova Espanha, indicou,
entre outros remédios, publicados na Cidade do México, o xarope de salsaparrilha como meio eficaz

40PELAÉZ, Raquel Álvarez. La conquista de la naturaleza americana. Madri: Consejo Superior de Investiga-
ciones Científicas, 1993, p. 307.
41BRAVO, Francisco. Opera medicinalia. Cidade do México: Apud Petrum Ocharte, 1570, p. 258-303. Fac-sí-
mile de 1970.
42 MONARDES, Nicolás. De simplicibus medicamentos ex Occidentali India delatis, quorum in medicina usus
est. Antuérpia: Ex officina Chrisophori Plantini, Architypografphi Regii, 1573. Um ano depois, em 1574, foi
publicado em Sevilla o original castelhano da obra de Nicolau Monardes.
43 MONARDES, De simplicibus medicamentos ex Occidentali India delatis, p. 37-44.
44POMET, Pierre. Histoire générale des drogues. Paris: Chez Jean-Baptiste Loyson & Augustin Pillon, 1694, p.
86-87.
45 WOYT, Johann Jacob. Gazophylacium medico-physicum, oder Schatz-Kammer medicinisch- und natürli-
cher Dinge. Leipzig: Lankisch, 1734, p. 843-844. O trecho foi traduzido pelo autor do alemão. A primeira edição
desta obra lexicográfica data de 1709.

115
contra a gonorreia46. Poucos anos depois, em 1716, o farmacêutico alemão Johann Helfrich Jüngken
destacou o efeito antiescorbútico da decocção da salsaparrilha47. O uso da salsaparrilha contra doen-
ças venéreas foi, como se vê, muito propagado no início do século XVIII. Também estudos históricos
mais recentes, apontando os conhecimentos terapêuticos indígenas transmitidas oralmente, subli-
nham a importância da raiz de salsaparrilha no tratamento da sífilis e de outras doenças contagiosas,
como as bubônicas48.

Quanto ao nome científico da salsaparrilha, Smilax Aspera, ele já foi usado por Monardes e,
depois, por Woyt e Jüngken. No final do século XVIII, o médico francês Jacques Dupau confirmou
esta designação botânica, acrescentando o adjetivo Peruviana49. Segundo este autor, o termo corrente
“salsaparrilha” seria uma derivação das palavras castelhanas “çarça” para “amoreira” e “parilla” para
“parreira” ou “videira”50. Seja como for, tudo permite concluir que o padre Louis de Villette, conhecen-
do estes efeitos medicinais atribuídos à raiz de salsaparrilha, a fez solicitar com urgência e na “quantia
da qual [Vossa Reverência] dispõe”, pois sabia que a planta era relativamente comum no Pará. A refe-
rida urgência se explica pela frequência de epidemias numa zona tropical e de doenças sexualmente
transmissíveis em cidades portuárias51.

Em relação às redes de dormir, à primeira vista surpreende o fato de o padre pedir esse pro-
duto, visto que seu uso tão comum, em toda a região amazônica, sugere que sua fabricação também
deveria ter sido muito recorrente no domínio francês. Mas, ao que parece, deu-se preferência às redes
feitas de algodão, cuja produção era, de fato, mais generalizada no Grão-Pará e Maranhão em razão do
cultivo sistemático da fibra branca. Já no século XVII, tecelões e tecelãs exerceram suas atividades nas
missões jesuíticas. O padre Antônio Vieira dispõe, por volta do ano 1658, em sua “Direção do que se
deve observar nas missões do Maranhão”, um regimento interno cuja validade se estendeu até a expul-
são dos jesuítas em 1759, que cada aldeamento deveria cuidar da produção de tecidos de algodão para
o uso próprio52. Mais de um século após Vieira, o padre João Daniel frisa a popularidade das redes de
dormir fora da colônia amazônica em razão de sua coloração viva:

46STEINHÖFFER, Johannes. Florilegio medicinal de todas las enfermedades: sacado de varios, y clasicos
authores, para bien de los pobres, y de los que tienen falta de medicos, em particular para las provincias remot-
as, en donde administram los RR.PP. de la Compañia de Jesus. Cidade do México: Herederos de Juan Joseph
Guillena Carrasco, 1712, p. 257.
47JÜNGKEN, Johann Helfrich. Lexicon Chymico-Pharmaceuticum. Nuremberg: Apud Johannem Fridericum
Rüdigerum, 1716, p. 146.
48PELAÉZ, La conquista de la naturaleza americana, p. 285-286; WOLTERS, Bruno. Geschichte und Wege der
Nutzpflanzen in Amerika. MegaLithos, Wilhelmshorst, a. 4, n. 2, p. 51-56, 2003, p. 55.
49 DUPAU, Jacques. Observations sur l’usage des Végétaux Exotiques, et particulièrement du Gayac, de la
Squine, et de la Salsepareille, et de la Lobelia Syphilitica. Paris: Chez Guillot/Toulouse: Chez l’Auteur, 1782.
O autor menciona a Smilax Aspera Peruviana para distingui-la da Smilax Aspera Chinensis, mais conhecida
como quina.
50DUPAU, Observations sur l’usage des Végétaux Exotiques, p. 75.
51 Carta de Villette a Lopes, Caiena, 03/08/1733, APEP, cód. 13, fol. 38.
52VIEIRA, Antônio. “Direção do que se deve observar nas missões do Maranhão” [Visita, ca. 1658-1660]. In:
LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tom. IV (Norte 2). Rio de Janeiro/Lisboa: Livraria
Portugalia/Instituto Nacional do Livro, 1943, p. 111 [§ 12].

116
[...]; e para com os índios certamente as tem a planta caa piranga, porque é a tinta de
que mais usam e com ela tingem as suas camisas, e as suas macas, ou redes de dormir,
e à sua imitação quase todos os brancos, europeus que habitam o Amazonas, porque
além de ser uma tinta mui alegre, quando é bem viva, como é o caa piranga, é tam-
bém muito honesta; e por isso são estas macas de tata estimação, que já delas se fazem
muitas remessas para o mais Brasil onde se usam estas frescas, e ligeiras camas53.

Se havia remessas para “o mais Brasil”, isto é, as capitanias do Estado do Brasil mais ao sul, não
deve se excluir a possibilidade de as redes coloridas do Maranhão e Grão-Pará também terem ganhado
notoriedade na colônia imediatamente vizinha de Caiena.

Enfim, o padre Louis de Villette faz ainda menção de um outro produto que interliga as duas
colônias: o cacau. De fato, desde a segunda metade do século XVII, o cacau, uma planta nativa da
região amazônica, consta como principal produto de exportação, sendo ou coletado pelos índios nos
vastos sertões (cacau bravo) ou cultivado nas sesmarias dos colonos e, também, nas fazendas dos reli-
giosos (cacau manso)54. Os jesuítas se destacaram tanto na difusão como também na comercialização
do cacau55. Um missionário que, nesse sentido, exceleu foi o padre luxemburguês João Felipe Betten-
dorff, superior da Missão do Maranhão, entre 1668 e 1674, e reitor do Colégio de Nossa Senhora da
Luz em São Luís, de 1674 a 168056. Num relatório, de 1677, ele informa o superior geral João Paulo
Oliva:

Há três anos, plantei dois mil cacaueiros, dos quais mais de mil se tornaram árvores.
Eles já produzem, além da floração, frutas chamadas de cacau, das quais é feito o
chocolate. Todos os habitantes do Maranhão ficaram muito felizes com esse sustento
para sua vida e seus negócios que – por cuidado e zelo meu – lhes foi trazido do Pará
para o Maranhão. Já distribuí alguns dos frutos, cada um contendo pelo menos qua-
renta e seis sementes. E eles deram tantas árvores. E como continuarei a compartilhar
com todas essas pessoas, elas terão algo para enriquecer no futuro ou, pelo menos,
algo para viver adequadamente agora. Seis árvores, e no máximo dez, dão a cada ano
uma arroba [à época, por volta de 15 quilogramas], como a medida é chamada aqui;
mil árvores dão cem arrobas, que são vendidas por mais de mil cruzados. Este ano,
planejo plantar pelo menos seis mil árvores como fonte de renda para a Missão. Que
Deus favoreça seu crescimento, pois é para sua maior glória que eles serão planta-
dos57.

A frequência das menções do cacau ou do chocolate, no decênio de 1670, permite a conclusão


53 DANIEL, João. Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas [a. 1776]. Tom. 1. Rio de Janeiro/Belém, Ed.
Contraponto/Prefeitura da Cidade de Belém, 2004, p. 589.
54 CHAMBOULEYRON, Rafael Ivan. Cacao, Bark-clove and Agriculture in the Portuguese Amazon Region:
Seventeenth and Early Eighteenth Century. Luso-Brazilian Review, Madison, v. 51, n. 1, p. 1-35, 2014.
55ALDEN, Dauril. The significance of cacao production in the Amazon region during the late colonial period:
an essay in comparative economic history. Proceedings of the American Philosophical Society, Philadelphia, v.
120, n. 2, p. 103-135, 1976.
56 Referente à vida de João Felipe Bettendorff, ver ARENZ, Karl Heinz. Do Alzette ao Amazonas: vida e obra do
padre João Felipe Bettendorff (1625-1698). Revista Estudos Amazônicos. Belém, vol. 5, fasc. 1, p. 25-78, 2010.
57 Carta de João Felipe Bettendorff a João Paulo Oliva. São Luís, 20/09/1677. ARSI, cód. Bras 26, fl. 43v.

117
que os jesuítas do Grão-Pará e Maranhão apostaram nestes produtos para seu sustento próprio, mas
também para o desenvolvimento econômico geral da região, visto que Bettendorff se refere em algu-
mas cartas ao interesse do governador em promover a produção cacaueira58. Ainda o superior seguin-
te, o italiano Pedro Luís Consalvi, reconheceu os esforços de seu antecessor luxemburguês e confirma,
numa carta ao superior geral, que “muito recentemente o Padre Reitor [Bettendorff] plantou cacau, do
qual se faz a bebida chamada chocolate59”.

Tudo indica que o padre Louis de Villette tentou imitar as iniciativas de seus irmãos no Pará,
pois ele informa, bem no fim da missiva e em poucas palavras, acerca de sua experimentação com o
cultivo de cacau: “Plantamos nesta colônia um grande número de árvores de cacau. Eu mesmo plantei
aproximadamente vinte e cinco mil, das quais poucas deram frutos”60. O insucesso desta experiência
explica certamente a brevidade do comentário, mas nos permite compreender com mais evidência
que também na Guiana os jesuítas estavam buscando por alternativas econômicas para garantir o sus-
tento de suas atividades na colônia, tanto o seminário em Caiena como as novas missões na fronteira
das quais ainda falaremos.

Fugas e raptos

Se os assuntos de cunho econômico se concentram nas primeiras e, um pouco menos, nas úl-
timas linhas da carta, o documento nos fornece, em sua parte central, uma ideia das múltiplas mobili-
dades na fronteira franco-lusa ao longo do rio Oiapoque na década de 1730. Veremos que o constante
vai-e-vem entre os dois espaços coloniais, ora por coação ora por opção, implicava todos os grupos
étnicos. A primeira locomoção evocada diz respeito a um “grande número de índios” que, ao que tudo
indica, foi levado do estuário do rio Amazonas, ao sul do Cabo Norte, à Guiana Holandesa. Trata-se de
um caso complexo, pois implica mais uma outra potência europeia presente na Amazônia. Na sua car-
ta, Louis de Villette trata da eventual recondução dos índios através do território da colônia de Caiena.
O padre afirma ter ouvido do desse transporte de índios para o Suriname por informantes indígenas.
Segundo as notícias recebidas, o governador holandês não teria aprovado a chegada dos indígenas pa-
raenses em seu território, manifestando logo seu receio quanto à permanência desse grupo na colônia
sob sua autoridade. O administrador temia que os portugueses iriam exigir a devolução dos índios
ao Estado do Maranhão e Grão-Pará por haverem sido embarcados ou forçados ou ludibriados. Seja
como for, o superior de Caiena sugere sutilmente a seu confrade José Lopes que procure saber junto
ao governador do Estado do Grão-Pará e Maranhão, José da Serra, qual a posicionamento desse acerca
do caso. Além disso, propõe que, entretempo, Lopes providencie e despache alguns guias indígenas
capazes de acompanhar o referido grupo de volta ao Pará61.

58 Cartas de João Felipe Bettendorff a João Paulo Oliva, São Luís. ARSI: 1671 (Catalogus), cód. Bras 27, fl. 2v;
21/07/1671, cód. Bras 26, fl. 27r; 15/01/1672, cód. Bras 9, fl. 298r; 20/09/1677, cód. Bras 26, fl. 43v; 07/05/1678,
cód. Bras 26, fl. 47r; 1678 (s/d.), cód. Bras 26, fl. 48v-49r.
59 Carta de Pedro Luís Consalvi a João Paulo de Oliva. São Luís, 02/08/1678. ARSI, cód. Bras 26, fl. 53v.
60 Carta de Villette a Lopes, Caiena, 03/08/1733, APEP, cód. 13, fol. 39.
61 Carta de Villette a Lopes, Caiena, 03/08/1733, APEP, cód. 13, fol. 38-39.

118
Não conhecemos o desfecho deste caso e tampouco temos maiores detalhes sobre o caráter
dos contatos que, na época, existiram entre a região do delta do rio Amazonas e a colônia neerlandesa
mais ao norte. Mas não se pode excluir a hipótese que os índios conheciam a rota do barco holandês,
ou seja, não se tratava de um ocorrido isolado. Ao mesmo tempo, é oportuno lembrar, nesse contexto,
que a arribada de naus europeias não lusas na foz do rio Amazonas costumava ser logo assinalada,
pois tratava-se de uma ameaça potencial ao domínio português sobre esta região estratégica. Um
exemplo disso é uma carta do governador José da Serra, escrita em 1733, isto é, no ano da redação da
missiva de Louis de Villette. Nela se lê:

A noticia de sinco Navios, dous em o Macapâ e tres no Cabo do Norte veyo pertur-
bar aqui aquella sancta occiozidade [...] A razao porque mandey estes dous Pillottos
[Francisco Lopes e Estácio da Silva] a expediçaõ do Macapá [contra “piratas”] foy a
de me formalizar por elles dos fundos da boca do Ryo das Amazonas p.la parte do
Norte, visto q p.la do sul ao Para a tem já V. Mag.e p.los navios q aqui vem commerciar.
E ser mº importante averiguarse se por outra p.e q aqui p.lo Pará se podia entrar e
sahir neste importante Rio das Amazonas: naõ podendo eu crer verdadeira a q aqui
se me fazia de que hum navio olandês q por aquella parte tinha entrado, subira e
se perdera nos Tapajôs que fica quatro, ou sinco dias assima do Gorupâ [Gurupá],
porq sendo assim era ella huã tal, e tal prejudicial circunstancia que carescia de hum
custozo, prompto e indispensavel remedio pª impedirsse. Bellem de Pará, 24 de Setrº
de 173362.

Quanto à observação de Villette ter recebido as informações por índios e de ele ter, em seguida,
recomendado ao padre Lopes que provesse guias indígenas, nos remete ao fato da, relativamente, livre
circulação de grupos nativos através das fronteiras traçadas pelas potências europeias na América do
Sul. Com efeito, os colonizadores dependiam ainda largamente, nessas primeiras décadas do século
XVIII, do conhecimento e da participação dos índios em diversas ações e expedições nos sertões. Os
europeus ignoravam, em geral, os caminhos indígenas que atravessaram as regiões interioranas das
Guianas e do Cabo Norte. Esse fato explica a necessária implicação de nativos na recondução dos ín-
dios retidos pelo governador de Suriname. Nesse contexto, convém observar que, posteriormente, a
partir de 1740, quando todas as formas da escravidão indígena foram abolidas na Guiana francesa, o
fluxo de índios que fugiam do Pará para as bandas de Caiena, à procura de mais liberdade, aumentou
consideravelmente63.

Também é oportuno apontar que a locomoção na macrorregião entre a foz do rio Amazonas
e o litoral guianense não estava fácil. De fato, diante de um espaço de grande variação topográfica,
coberto ora por vastas florestas tropicais ora por amplas savanas pantanosas ora por uma serra aciden-
tada – as montanhas de Tumucumaque – ora por um litoral manguezais inóspitos, os colonizadores
62 Carta de José da Serra a D. João V. Belém, 24/09/1733. AHU-013, cx. 15, doc. 1430. Trata-se de excertos da
carta do governador
63 MARIN & GOMES, Reconfigurações coloniais, p. 84; BOMBARDI, Fernanda Aires. Pelos interstícios do
olhar do colonizador: descimentos de índios no Estado do Maranhão e Grão-Pará (1680-1740). São Paulo, SP.
Dissertação de Mestrado (História), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2014, p. 123.

119
preferiram a navegação de cabotagem ao longo da costa. No entanto, singrar pelo mar entre Belém e
Caiena também era uma empresa cheia de riscos, pois além de ter que enfrentar uma forte corrente
marítima, costumava se viajar em estreitas pirogas. Estas pequenas embarcações, fabricadas a modo
indígena, embora ágeis, causaram certo inconveniente para o transporte de quantidades maiores de
mercadoria, como reconhece o próprio Villette na sua carta64. Nesse contexto, é importante assinalar
que a produção dessas canoas pequenas dependia também do saber-fazer tradicional dos indígenas,
tão imprescindível para a sobrevivência dos europeus naquele ambiente tropical65. O uso direto de
canoas confeccionadas à maneira indígena e o emprego de índios como pilotos – os jacumaúbas – e
remeiros, mencionados com frequência nas fontes, dão prova da importância do conhecimento nativo
para a locomoção, tanto no interior das respectivas colônias quanto entre elas66. João Daniel fez elo-
gios, na segunda metade do oitocentos, à destreza dos pilotos indígenas que navegaram ora pelos rios
ora pelo mar, paralelo ao litoral:

E assim como são insignes pilotos por terra, também o são por mar, onde não é menos
dificultoso atinar com os canais em tantas baías, e lagos, muito arriscados pelos seus
multiplicados baixos; como também no labirinto das ilhas em que são tantas as voltas,
e viravoltas, que fazem titubear aos mais peritos e práticos brancos, que muitas vezes
andam dias e semanas perdidos, e no cabo se acham, ou cada vez mais areados, ou
por fim vão sair nas mesmas bocas por onde tinham entrado; só vão bem navegados
quando os índios são os práticos que mandam à via, e pilotos que governam as canoas.
Os mesmos navios em outro tempo não queriam desferir as velas do Maranhão para
o Pará sem levarem algum tapuia por prático; e ainda hoje, os que freqüentam esta
navegação não a empreendem, nem do Maranhão para o Pará, nem deste para aquele
porto [por mar], nas embarcações mais pequenas, sem serem governadas pelos índios,
que pelo seu grande tino dão furo e acham saída onde parece a não há; o mesmo é nos
baixos das barras, e navegação de todo o Amazonas. [...] E para terem boa saída, já nos
baixos das baías, já no intrincado das ilhas, e tormentas, que às vezes se levantam, fa-
zem das tripas coração, e tirando forças da fraqueza, e desfazem a remar, só para darem
boa conta de si; por terem por grande glória e honra sua o saberem livrar as canoas dos
perigos; assim como têm por grande desonra, e desdouro o perder-se embarcação, em
que eles são pilotos, ofício e arte que entre eles é uma das maiores dignidades, e cargos
das suas povoações, e por eles são respeitados, e obedecidos dos seus nacionais. Cha-
mam estes pilotos na língua jacumaíbas, cujo nome é originado de umas pás de que
alguns usam nas suas canoas em lugar do leme, chamadas jacumã67.

Menos frequente, mas também constante, foi o deslocamento de colonos brancos. O padre
Villette trata, em clara referência a uma menção feita por seu confrade José Lopes em uma carta an-
terior, da fuga de um morador francês chamado Joannes Marane68. A carta deixa evidente que este

64 Carta de Villette a Lopes, Caiena, 03/08/1733, APEP, cód. 13, fol. 38.
65 Referente à construção de canoas adaptadas às condições peculiares da Amazônia, ver DANIEL, João. Te-
souro descoberto no máximo rio Amazonas [a. 1776]. Tom. 2. Rio de Janeiro/Belém, Ed. Contraponto/Prefei-
tura da Cidade de Belém, 2004, p. 275-290.
66 FERREIRA, Elias Abner Coelho. Oficiais canoeiros, remeiros e pilotos jacumaúbas: mão de obra indígena na
Amazônia colonial portuguesa (1733-1777). Dissertação de Mestrado (História Social da Amazônia), Programa
de Pós-graduação em História Social da Amazônia, Universidade Federal do Pará. Belém, 2016.
67 DANIEL, Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas, tom. 1, p. 343.
68 Carta de Villette a Lopes, Caiena, 03/08/1733, APEP, cód. 13, fol. 39.

120
fugira, alguns meses antes, da Guiana para o lado português por ter sido acusado da morte de sua
esposa. A menção do ocorrido é relevante, pois nas fontes do oitocentos, os indícios referentes à fuga
de “brancos” são muito raros. O colono fugitivo é, sem margem de dúvidas, idêntico ao morador
francês Jean Maranne Limouzin que consta no recenseamento, feito na Guiana em 1737, isto é, cinco
anos após a redação da carta do padre Louis de Villette. Neste caso, o trânsfuga já estava de volta ao
domínio francês69. Esse fato não deve admirar, haja vista que o superior de Caiena declarou não so-
mente sua convicção no que concerne à inocência de Maranne, mas também seu intento de facilitar
o regresso do colono para Caiana, caso esse o desejasse. O padre até se dispõe a assumir os ônus da
viagem de volta:

João Marane, do qual escreveu Vossa Reverência, não é e não pode ser considerado
culpado da morte de sua mulher que aparentemente ocorreu por consequência de
uma enfermidade natural. Isso significa que ele poderá voltar para casa quando lhe
apetecer. Caso faltar alguma coisa, Vossa Reverência lhe poderá fornecê-lo. Devolve-
remos tudo na primeira ocasião70.

Fora essa, há ainda uma outra versão acerca da estada do colono francês do lado português.
Assim, segundo Rosa Acevedo Marin e Flávio Gomes, Jean Maranne Limouzin era um morador de
Caiena que viajou, naquele mesmo ano de 1733, ao Pará para recuperar doze escravos seus que ha-
viam fugido. Mas, as autoridades portuguesas impediram a ação. O impasse que seguiu ganhou uma
dimensão diplomática, pois Marrone chegou a endereçar um pedido ao cônsul francês em Lisboa
exigindo a liberação dos negros. Em seguida, o caso serviu de pretexto para as coroas de Portugal e
França firmarem um acordo sobre a troca de escravos fugitivos entre seus domínios na Amazônia71.
Uma carta do governador José da Serra ao rei, escrita somente sete semanas após a missiva de Louis
de Villette, corrobora esses fatos, pois menciona nominalmente o colono francês e faz alusão direta ao
acordo concluído entre os dois soberanos europeus:

Logo que se fez prompta a canoa qe V Mag.e me ordenou expedisse pª Cayena escrevi
ao G.or remetendolhe Amnistia, q pella Provizaõ nº 6 entendi me ordenava V Mag.e E
ele, qe pella resposta nº [espaço não preenchido] chegada em [espaço não preenchi-
do] deste mez, me promette mandar buscar em semelh.e Amnistia os seos escravos,
e naõ tem feito athe o presente, supponho as ventanias de q agora entra o tempo, lhe
difficultaraõ a viagem; porqe sendo ordinariam.te Mez destas, saõ travessias, o levan-
taõ mº o mar na Costa do Cabo do Norte. Os Negros mandei recolher logo, naõ só â
Gallé, mas a prisaõ fechada, por me fugir hum delles por duas vezes depois da vinda
doFrances Marrane Limusin, seja pella aversão, q mostraõ a nasçaõ franceza, ou para
melhor dizer, por medo; pois seguraõ, que pella primeira fugida o jarretaõ ao modo
da China cortandolhe o tendaõ da perna por sima do calcanhar72.
69 Recensement général de Cayenne pour 1737, 14 de junho de 1738. ANOM, col. C 16, fl. 383-435. “Limouzin”
– ou “Limousin”, na ortografia francesa atual – constitui um gentilício, assinalando, com muita probabilidade, a
região de origem de Jean Maranne, isto é, os entornos da cidade de Limoges no centro-oeste da França.
70Carta de Villette a Lopes, Caiena, 03/08/1733, APEP, cód. 13, fol.39.
71 MARIN & GOMES, Reconfigurações coloniais, p. 80.
72Carta de José Serra a D. João V. Belém, 24/09/1733. AHU-013, cx. 15, doc. 1427.

121
Mesmo não nos sendo possível afirmar qual a versão historicamente verídica, o caso do francês
Maranne implica um outro aspecto fundamental para nossa análise, pois nos remete às constantes
fugas de escravos africanos através da fronteira, sobretudo de Caiena em direção ao Pará. De fato,
durante todo o século XVIII, fugitivos das plantações na região costeira de Guiana constituíram, jun-
to com outros trânsfugas de diversas origens e proveniências, comunidades autônomas, conhecidas
como mocambos, não distantes da fronteira73. Muitos moradores desses novos núcleos habitacionais
remotos não eram desertores ou prófugas clandestinos. Ao contrário, em muitos casos, aproveitaram
a rivalidade entre as duas coroas europeias, para pedir oficial ou oficiosamente refúgio num lado da
fronteira para escapar das represálias do outro lado. Essa tática engendrou uma série de queixas ofi-
ciais que reclamaram a devolução de escravos fugidos ora para a Guiana ora para o Pará. Assim, em
1722, o caso de um escravo africano, que havia passado de Caiena para o Pará, estava ainda pendente,
apesar de cinco anos de negociações entre as autoridades competentes das duas colônias. O governa-
dor da época, João da Maia da Gama, que não sabia mais como lidar com a situação, acabou dirigin-
do-se à Coroa portuguesa para solicitar uma decisão final74.

Mas a fuga de negros escravizados não constituiu somente uma preocupação para as autori-
dades ou os moradores, principalmente, proprietários de plantações, mas também para os próprios
jesuítas. De fato, as ordens religiosas estavam envolvidas no sistema escravocrata da época, sendo elas,
por sua vez, donas de africanos escravizados. A carta do padre Villette o revela quando insinua que o
eventual regresso de João Maranne a Caiena seria uma boa oportunidade “para que me traga de volta
o negro que faz parte dos aproximadamente cem que comprei há três meses de um colono que se foi
embora para a França75”. A aquisição de um total de cem escravos, pelo superior de Caiena, só pode ser
compreendida se levarmos em conta a necessidade da Companhia de Jesus de financiar suas diversas
atividades na colônia76. Assim, no momento de sua expulsão da Guiana, em 1763 e 1764, os jesuítas
possuíam um total de 860 escravos77. Dentre os empreendimentos pelos quais os inacianos de Caiena
precisavam urgentemente de recursos financeiros, estão também as missões que foram estabelecidas
na fronteira, desde o estabelecimento da mesma, em 1713, e que iremos abordar em seguida.

Dicionários e gramáticas

73 RAVENA, Nírvea. “Maus vizinhos e boas terras”: idéias e experiências no povoamento do Cabo Norte. In:
GOMES, Flávio dos Santos (Org.). Nas terras do Cabo Norte: fronteiras, colonização e escravidão na Guiana
Brasileira, séculos XVIII –XIX. Belém: Editora Universitária UFPA, 1999, p. 63-95.
74 Ver documentos respectivos em AHU-013, cx. 10, doc. 947, 1040 e 1045. Ver, também, APEP, cód. 4, doc. 73
(19/11/1732) e 109 (16/03/1734). O último documento, uma carta do rei ao governador do Estado faz alusão ao
já mencionado acordo, concluído entre as duas coroas em 1733, concernente à extradição recíproca de fugitivos
capturados.
75 Carta de Villette a Lopes, Caiena, 03/08/1733, APEP, cód. 13, fol.39.
76 VERWIMP, Régis. Les jésuites en Guyane Française sous l’Ancien Régime: 1498-1768. Matoury: Ibis Rouge
Éditions, 2011, p. 207.
77 HURAULT, Jean-Marcel. Français et Indiens en Guyane: 1604-1972. Paris: Union Générale d’Éditions/,
1972, p. 134.

122
Fora os intensos deslocamentos de pessoas de origens e situações diferentes na fronteira, Louis
de Villette menciona, em sua pequena missiva, uma outra troca interessante: a de livros. Assim, o su-
perior de Caiena solicita a seu confrade português em Belém:

Se possível, que Vossa Reverência nos envie também um dicionário português. Isso
será do agrado de um dos nossos, que entende razoavelmente bem esta língua; ele
queria também alguns livros escritos nesse mesmo idioma.

Os nossos missionários querem também um dicionário e uma gramática brasílica,


porque estimam a língua dos nossos índios não muito diferente desta brasiliana78.

O pedido de Villette reflete, com muita probabilidade, o interesse particular do padre Elzéar
Fauque pelo idioma português e pela Língua Geral do Brasil. De fato, esse missionário estava atuan-
do na região da fronteira em torno de 1733. O superior das Missões de Guiana, o padre Pierre-Aimé
Lombard, o confirma ao escrever, em uma carta de abril daquele ano, que “O padre Fauque é o primei-
ro jesuíta que se tenha estabelecido no Oiapoque. [...] Mas sua saúde, que está minguando cada dia,
o impossibilita de aguentar as fadigas que as missões indígenas lhe impõem79”. O relato nos informa
também que, ao longo da fronteira, o padre Fauque havia se deparado com a presença de “Um grande
número de índios que desertam as povoações que os portugueses têm para a banda do rio Amazo-
nas, [e que] chegam cada dia buscar asilo em nossas terras80”. Tanto para estes, como também para os
índios Apouague e “esses índios errantes e fugitivos, [...] sobretudo Aruã e Maraon81”, que já tiveram
contato com os portugueses, o padre Fauque fundou, naquele tempo, um aldeamento no médio curso
do Oiapoque, conhecido como Missão de São Paulo82. A vinda de certos grupos indígenas do lado
português pode explicar, ao menos em parte, o interesse do missionário pelo idioma luso. Talvez Fau-
que tenha sido aquele “um dos nossos” que, segundo Villette, buscava comunicar-se diretamente com
os confrades portugueses do lado do Pará para saber mais de sua maneira de organizar e administrar
os aldeamentos83. Para esse empreendimento, conhecimentos mais aprofundados da língua foram im-
prescindíveis. Villette explicita que o referido padre já possuía as bases rudimentares do português,
porém, faltar-lhe-iam livros para avançar mais.

Mas, detemo-nos um, por enquanto, no pedido do vocabulário e da gramática em língua “bra-
78 Carta de Villette a Lopes, Caiena, 03/08/1733, APEP, cód. 13, fol.38.
79 Carta do superior das Missões da Guiana, o padre Pierre-Aimé Lombard, ao procurador das Missões da
América, o padre Anne-Joseph de la Neuville. Kourou, 11/04/1733. In : AIMÉ-MARTIN, Louis (Ed.). Lettres
édifiantes et curieuses, concernant l’Asie, l’Afrique et l’Amérique: avec quelques nouvelles des Missions et des
notes géographiques et historiques. Vol. 2. Paris: Auguste Desrez Imprimeur-Éditeur, 1840, p. 20. Traduzido do
francês pelo autor.
80 Carta de Lombard a de la Neuville, Kourou, 11/04/1733. In : AIMÉ-MARTIN, Lettres édifiantes et curieuses,
concernant l’Asie, l’Afrique et l’Amérique, p. 21. Traduzido do francês pelo autor.
81 Carta de Lombard a de la Neuville, Kourou, 11/04/1733. In : AIMÉ-MARTIN, Lettres édifiantes et curieuses,
concernant l’Asie, l’Afrique et l’Amérique, p. 21. Traduzido do francês pelo autor.
82 Referente à fundação da Missão de São Paulo, ver carta do padre Fauque ao padre de la Neuville. Oiapoque,
02/06/1735. In : AIMÉ-MARTIN, Lettres édifiantes et curieuses, concernant l’Asie, l’Afrique et l’Amérique, p.
22-24.
83 Carta de Villette a Lopes, Caiena, 03/08/1733, APEP, cód. 13, fol. 38.

123
siliana”. A carta do padre Louis de Villette deixa transparecer que havia indícios que o idioma de certos
índios na fronteira, em meio aos quais o padre Elzéar Fauque estava começando sua obra de catequese,
não era muito diferente daquele falado pelos indígenas do lado português. Sem dúvida alguma, a lín-
gua que ele denomina “brasiliana” corresponde à Língua Geral, a lingua franca do tronco linguístico
tupi-guarani que havia sido estandardizada pelos jesuítas com base no idioma dos tupinambás do
litoral brasileiro no século XVI84.

Seja como for, se a informação referente ao uso – permanente ou passageiro – de uma língua
tupi em território francês estiver correta, teríamos uma nova evidência de que falantes desse tronco
linguístico chegaram até a Guiana já na época colonial. Por sinal, outras fontes, como as já citadas
Lettres édifiantes et curieuses, o corroboram. Jean-Marcel Hurault analisou, dentro dessa obra, as
missivas do padre Elzéar Fauque, escritas entre 1729 e 174185, e constatou que esse jesuíta se havia es-
tabelecido junto ao forte do Oiapoque, na boca do rio homônimo, para, a partir desta base, reagrupar
os índios que viviam às suas margens. Para Fauque, a diversidade de línguas averiguou ser um grande
desafio, mas tudo indica que ele chegou a diferenciar três grupos distintos. Pois, com base na afinidade
linguística, o missionário organizou os povos indígenas do vale do Oiapaoque, ao longo da década
de 1730, da seguinte forma: no rio Ouanari, na Missão de São José, perto do forte, ele concentrou os
índios de línguas caribe (Tikouyou, Maraon e Maouriou); numa missão nas savanas de Oussa, ao leste
do Oiapoque, os de línguas aruaque (Palikour, Karanariou e Mayé); finalmente, ao longo do baixo e
médio curso do rio Oiapoque, em três missões – provavelmente, São Paulo, São Luís e, mais tarde,
Nossa Senhora da Santa Fé –, os índios de línguas tupi-guarani (Karane, Piriou, Akokoua, Taripi, Pa-
lenk, Koussari, Makouani, Wèye e Wen)86. Numa carta de janeiro de 1729, Fauque já havia esboçada a
ideia desta concentração dos índios do Oiapoque:

Nos momentos em que estive mais sossegado, tracei um pequeno plano das missões
que se poderia estabelecer nessas bandas entre as nações selvagens que foram até
agora descobertas. Aproveitei das luzes [conhecimentos] do Senhor de la Garde, co-
mandante em nome do rei no forte de Oiapoque, que tem navegado muito por esses
rios. Eis aqui o projeto de cinco missões que junto formulamos87.

Independentemente desse panorama, descrito e modelado pelo padre Fauque, que revela a
existência de vários troncos linguísticos ao longo da fronteira, podemos supor que o vale do Oiapo-
que constituiu, já desde antes da colonização europeia, um lugar de encontro de falantes do caribe,
aruaque e tupi. De fato, como já falamos mais acima, havia rotas antigas pelos sertões que conectavam
84 FREIRE, José Ribamar Bessa. Língua Geral Amazônica: a história de um esquecimento. In: FREIRE, José
Ribamar Bessa; ROSA, Maria Carlota (Orgs.). Línguas Gerais: política lingüística e catequese na América do
Sul no período colonial. Rio de Janeiro: EdUERJ,2003, p. 195-209.
85 As referidas cartas de Fauque a de la Neuville se encontram em AIMÉ-MARTIN, Lettres édifiantes et curieu-
ses, concernant l’Asie, l’Afrique et l’Amérique, p. 8-10, 15-18, 22-24, 24-29, 29-34 e 34-50.
86 HURAULT, Français et Indiens en Guyane, p. 127-128. Os etnônimos indicados constam na obra de Jean-
-Marcel Hurault e não são idênticos aos que se encontram nas cartas às quais ele se refere.
87 Carta de Fauque a de la Neuville. Kourou, 15/01/1729. In : AIMÉ-MARTIN, Lettres édifiantes et curieuses,
concernant l’Asie, l’Afrique et l’Amérique, p. 10. Traduzido do francês pelo autor.

124
o rio Amazonas com as cabeceiras do rio Oiapoque. Assim, os vales dos rios Jari e Paru, dois gran-
des afluentes dos Amazonas formam corredores naturais que conectam as planícies situadas dos dois
lados da Serra de Tumucumaque. A mobilidade dos povos nativos entre esses espaços seguiu lógicas
tradicionais que, certamente, eram anteriores e, também, superiores à delimitação territorial imposta
pelos europeus à região das Guianas.

Missões sob tutela e missões “fixas abertas”

Muito ligado à aproximação linguística aos catecúmenos e neófitos indígenas, mediante a


aprendizagem dos respectivos idiomas, é a questão da concentração e gerência dos índios. A proposta
que o padre Villette apresenta, antes de encerrar sua missiva, deixa transparecer que os missionários
franceses viram na já consolidada rede de missões do Estado do Maranhão e Grão-Pará um exemplo
a ser seguido88. Por isso, o superior de Caiena faz a seguinte sugestão: “Como tenho em mente de
construir missões a exemplo das vossas, talvez eu envie junto de vós um dos nossos que pesquisará
cuidadosamente todas as coisas, para que possa relatá-las a mim. Se, por um tempo mais livre, Vossa
Reverência nos quiser convidar, isso nos agradaria muito 89”. A formulação extremamente cuidadosa
do padre francês se explica pelo fato de os aldeamentos do lado português ocuparem um lugar central
tanto na legislação régia quanto nas decisões políticas aplicadas na colônia lusa na Amazônia. Por
conseguinte, as missões constituíram uma instituição governamental de interesse geral e não um mero
empreendimento religioso de caráter privado. Assim, os aldeamentos, embora gozassem de uma ex-
pressiva autonomia interna sob a administração dos religiosos, estavam, conforme as disposições do
Regimento das Missões, de dezembro de 1686, obrigados a inventariar e repartir anualmente a mão de
obra masculina disponível. Ante esse intricado entrelaçamento das missões com a sociedade colonial
envolvente, cujos integrantes – sobretudo, moradores proprietários de terras e autoridades executoras
de obras públicas – recebiam entre um terço e a metade dos trabalhadores indígenas aldeados, a pre-
sença de um jesuíta francês só poderia suscitar suspeitas.

Convém aqui enfocar brevemente o Regimento das Missões acerca do status jurídico dos ín-
dios e das missões, como também do uso da mão de obra indígena no Maranhão e Grão-Pará. Deve-
ras, após décadas de tensões entre colonos, que exigiram um acesso mais irrestrito aos braços indíge-
nas, e os jesuítas, que obtiveram em 1655 a tutela sobre os índios da colônia, havia sido definido, em
1686, um compromisso entre as duas facções. A esse precederam duas insurreições, em 1661 e 1684,
seguidas, respectivamente, pela expulsão parcial dos padres, e um longo período de negociações na
metrópole, entre 1684 e 1686. O Regimento das Missões conjugou a reconfirmação da tutela dos je-
suítas sobre os aldeamentos com a flexibilização da mão de obra indígena que eles abrigavam. Embora
mais protegidos no interior das missões, os índios deveriam doravante servir por mais tempo e em
88 Na região do Cabo Norte, uma tentativa de implantação por parte dos jesuítas lusos foi malograda. Os padres
Antônio Pereira e Bernardo Gomes, enviados para fundar uma missão, foram assassinados, em 1687, suposta-
mente por índios instigados pelos franceses. Em 1693, a área foi confiada aos frades franciscanos da Província
de Santo Antônio. Ver ARENZ, Karl Heinz. De l’Alzette à l’Amazone: Jean-Philippe Bettendorff et les jésuites
en Amazonie portugaise (1661-1693). Sarrebruck: Éditions Universitaires Européennes, 2010, p. 328, 435-436.
89 Carta de Villette a Lopes, Caiena, 03/08/1733, APEP, cód. 13, fol.39.

125
número maior nas roças dos colonos, nas obras dos governadores ou nas empresas das câmaras90. Karl
Arenz e Diogo Silva comentam a respeito:

Apesar da aparente vantagem para a Companhia de Jesus, o Regimento das Missões


teve um impacto sobre a sociedade colonial inteira, pois constituiu um modus viven-
di viável que contemplou os principais interesses de todas as partes envolvidas e con-
cernidas. Assim, os religiosos recuperaram a “dupla administração” e voltaram forta-
lecidos ao Maranhão [após a expulsão de 1684] como gerenciadores de aldeamentos
doravante autônomos. Os moradores conseguiram um acesso mais amplo à mão-de-
-obra indígena, pois a bipartição e os prazos prolongados de serviço lhes forneceram
mais trabalhadores por mais tempo. As autoridades metropolitanas puderam esperar
da conciliação destes dois grupos-chave uma rápida estabilização sócio-econômica
da precária e periférica colônia amazônica. Quanto aos índios aldeados – sem parti-
cipação nenhuma nas negociações –, eles obtiveram uma relativa proteção em razão
da interdição da entrada de “brancos” e mestiços nas missões e das disposições espe-
ciais para mulheres e grupos recém-descidos 91

Embora houvesse adaptações e modificações posteriores, o Regimento das Missões ficou basi-
camente em vigor até junho de 1755, quando duas leis régias decretaram a emancipação dos índios e
o afastamento dos religiosos da administração das missões92. O referido regimento definiu, portanto,
o enquadramento da rede de aldeamentos na vida política e organização socioeconômica da região
durante sete décadas. Reiteramos, mais uma vez, que a presença de um jesuíta francês, buscando obter
informações sobre o funcionamento do sistema das missões, só poderia levantar suspeitas e causar
inquietações do lado das autoridades.

A coroa francesa, embora tivesse também recorrido às missões como uma estratégia no pro-
cesso de ocupação de espaços ainda não controlados e na aproximação das populações nativas, não
lhes deu a mesma importância jurídico-política ou socioeconômica como os portugueses. De fato,
tanto nas vastas matas boreais do Canadá como na floresta tropical da Guiana93, os franceses construí-
ram aldeias “fixas abertas” para atrair e concentrar os índios no intuito de evangelizá-los e ganhá-los
como aliados. Segundo Régis Verwimp, esse método previa que os índios eram livres para ir e vir,
enquanto os missionários deveriam restringir-se a convencê-los a se fixarem num lugar indicado ou,
caso não tivessem êxito, segui-los nas suas andanças para garantir, ao menos, uma catequização ru-
dimentar. Ele resume que “na Guiana, é o índio que adota a missão e seu missionário e não o inverso,
contrário ao restante das Américas central e do Sul”94. O superior das missões da colônia francesa, o
90ARENZ, Karl Heinz & SILVA, Diogo Costa. “Levar a luz de nossa Santa Fé aos sertões de muita gentilidade”:
fundação e consolidação da missão jesuítica na Amazônia Portuguesa (século XVII). Belém: Açaí, 2012, p. 36-
58.
91 ARENZ & SILVA, “Levar a luz de nossa Santa Fé aos sertões de muita gentilidade”, p. 66-67.
92 Quanto às mencionadas leis, ver SAMPAIO, Patrícia Maria Melo & SANTOS, Francisco Jorge dos. 1755, o
ano da virada na Amazônia portuguesa. Somanlu, Manaus, vol. 8, n. 2, p. 79-98, jul./dez. 2008, p. 88-91.
93 Referente à atuação dos jesuítas do Canadá, ver HAVARD, Gilles & VIDAL, Cécile. Histoire de l’Amérique
française. Paris: Flammarion, 2006, p. 118-120; DESLANDRES, Dominique. Croire er faire croire: les missions
françaises au XVIIIe siècle (1600-1650). Paris: Fayard, 2913, p. 280-287.
94 VERWIMP, Les jésuites en Guyane Française sous l’Ancien Régime, p. 238. Citação traduzida do francês
pelo autor.

126
padre Pierre-Aimé Lombard esforçou-se, desde o fim dos anos 1720, de implantar aldeias conforme
este conceito95.

No entanto, o pedido do padre Villette de enviar algum confrade ou de até ele ser convidado
pessoalmente para conhecer de perto o funcionamento das missões do lado português, revela que os
jesuítas da Guiana, aparentemente, sentiram dificuldade nesta empreitada de fixar e catequizar os ín-
dios ao longo da fronteira. A ausência de uma tutela sobre os índios, garantida por lei, e de uma admi-
nistração autônoma das missões, que proibisse a presença de “brancos” e mestiços, impediu a afirma-
ção da Companhia de Jesus como agente colonial com certa margem de manobra do lado da Guiana
francesa.De fato, Jean-Marcel Hurault conclui que, embora os inacianos estivessem estabelecidos na
região de Caiena desde o século XVII, seus esforços de dar a sua presença um caráter mais estável não
obtiveram os resultados desejados. É verdade que, justamente a partir da década de 1730, as missões
nos rios Ouanari e Oiapoque e, também, ao longo do litoral, em Kourou e Sinnamary, alcançaram
certa relevância demográfica, mas nunca chegaram a reunir mais do que umas poucas centenas de
neófitos e catecúmenos indígenas até a expulsão dos padres dos domínios franceses em 176396.

Considerações finais

Apesar de todas as diferenças, os jesuítas de ambas as possessões amazônicas compartilharam


um mesmo objetivo missionário que consistia na catequização dos indígenas e na sua subsequente in-
corporação numa monarquia católica, seja a portuguesa de “Sua Majestade Fidelíssima” ou a francesa
de “Sua Majestade Cristianíssima”. Para esse fim, os inacianos precisavam obter conhecimentos acerca
das culturas e sociedades nativas em meio às quais estavam atuando. As respectivas etnografias e ex-
periências acumuladas foram fixadas e sistematizadas em crônicas, cartas-ânuas ou tratados que ser-
viram aos próprios missionários – aos do momento e aos vindouros – para melhor conceberem não
somente suas estratégias catequéticas junto aos índios, mas também seu papel dentro das diferentes
sociedades coloniais em vias de constituição. Pelo fato de a Companhia de Jesus ser uma organização
de expansão universal, facilitada por um intenso intercâmbio epistolar, foi comum missionários de
uma região buscarem inspiração nas práticas de seus confrades em outras plagas. Foi esse o caso da
carta do padre Louis de Villette.

Nas entrelinhas, a missiva revela que os dois correspondentes eram conscientes de que os in-
teresses de suas Missões convergiam mais do que suas respectivas autoridades e Coroas previam e
permitiam. De fato, os inacianos da Guiana francesa e do Pará português compartilharam uma agenda
semelhante, sobretudo, acerca da questão da “liberdade dos índios”. Nas duas colônias, ela os opôs em
diversos momentos aos colonos. Assim, na parte lusa, os padres haviam sido expulsos duas vezes no
século XVII, em 1661 e 1684, em razão de sua resistência a práticas ilegais de escravização de índios
e sua insistência em manter seus catecúmenos e neófitos concentrados sob sua tutela em missões au-

95 MONTÉZON, Voyages et travaux des missionnaires de la Compagnie de Jésus, p. 487.


96 HURAULT, Français et Indiens en Guyane, p. 119-135.

127
tônomas97. Quanto a seus confrades do lado francês, em 1705, os padres entraram em choque com os
moradores para defender a liberdade dos Aruãs em reação à intenção do governador Pierre-Éléonor
de Férrolles de escravizar esses índios da fronteira98.

Ante estas constelações complexas que marcaram as duas sociedades coloniais na primeira
metade do século XVIII, a pequena epístola de Louis de Villette nos ajuda a compreender melhor a
atuação dos missionários jesuítas em ambos os lados do rio Oiapoque, não como meros executores
dos interesses de suas respectivas Coroas ou administrações, mas enquanto agentes multifacetários
dispostos a negociar seus respectivos apoios e alianças conforme as conjunturas e conjecturas de dada
situação99. Um exemplo bem elucidativo disso é a tentativa conjunta de jesuítas e colonos do Grão-
-Pará e Maranhão de reatar, diante da aplicação iminente da lei da liberdade dos índios promulgada
em junho de 1755, seus contatos na colônia vizinha de Caiena para enviar uma carta ao rei da França,
Luís XV. No documento ofereceram sua vassalagem em troca de uma garantia do soberano francês de
manter aberta a possibilidade da escravização de indígenas na região. Embora, os signatários acabas-
sem presos, a iniciativa revela que, para salvaguardar seus interesses, olhou se também para além da
fronteira, seja ela “ideológica” ou geográfica100.

Vale ressaltar, enfim, que a fronteira com suas múltiplas dinâmicas de trocas e desolamentos,
legais e ilegais, não constituía somente uma zona fomentadora de oportunidades e vantagens fortuitas.
A linha traçada no rio Oiapoque também trazia impactos negativos para os habitantes de ambos os
lados, como bem o mostram as frequentes escaramuças militares das quais a região foi palco desde
finais do seiscentos101. Seja como for, as fontes da época nos deparam com um cenário de complexas
relações transfronteiriças entre as colônias de Caiena e do Maranhão e Grão-Pará. A carta que aqui
comentamos é um bom exemplo disso, pois abre em suas poucas linhas, como bem vimos, várias ja-
nelas à multiplicidade das interações pan-amazônicas no século XVIII.

Fontes e referências bibliográficas

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Archives Nationales d’Outre-Mer (ANOM), Aix-en-Provence, col. C 14 e C 16.
Archivum Romanum Societatis Iesu (ARSI), Roma, cód. Bras 27.

97 ARENZ & SILVA, “Levar a luz de nossa Santa Fé aos sertões de muita gentilidade”, p. 36-58; CHAMBOU-
LEYRON, Rafael. Em torno das missões jesuíticas na Amazônia (século XVII). Lusitania Sacra, v. 15, p. 163-
209, 2003.
98 MARIN & GOMES, Reconfigurações coloniais, p. 73.
99 ARENZ, Karl Heinz. & CARVALHO, Roberta Lobão. 2016. Jesuítas e colonos na Amazônia portuguesa:
contendas e compromissos (sécs. XVII e XVIII). Revista de Estudos de Cultura, v. 5, p. 19-34, 2016.
100 MARIN & GOMES, Reconfigurações coloniais, p. 84.
101 Ver escritos de Pierre-Éléonor de Férrolles. ANOM, col. C 14/64: Raison de la prise par les Français du
fort de Macapá, 4 de junho de 1697, fl. 71; Demande au gouverneur du Marañon de restitution du père de La
Mousse et cinq Français et protestations contre diverses violences, 15 de julho de 1697, fl. 70 ; Procès-verbal
d’une enquête sur la véritable situation de la rivière du Yapock, 14 de maio de 1699, fl. 64-67.

128
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Arquivo Público do Estado do Pará (APEP), Belém, cód. 4 e 17.

2. Fontes impressas

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Mulheres e Companhia de Jesus nas missões do Rio Grande


Maria Emilia Monteiro Porto102

RESUMO

Estudo sobre a relação da Companhia de Jesus e as mulheres nas informações missionárias sobre a
expansão da colonização portuguesa sobre a costa leste-oeste entre fins do século XVII e o século
XVIII.O tema da relação das mulheres com a Companhia de Jesus representa um sujeito coletivo
marcado de forma enviesada pela ação dos inacianos. Apesar de, sem surpresa, ser uma instituição
misógina, manteve uma relação especial com o gênero feminino, atestado pela proximidade com mu-
lheres católicas de alto rango social e de forte espiritualidade. No entanto, nas periferias dos impérios
europeus e nos relatos de suas fronteiras tratava-se de poucas europeias e de mulheres indígenas que
102 Professora Titular do Departamento de História UFRN.

131
padeceriam de uma dupla interdição: mulher e indígena. Teria se manifestado nos relatos dessa zona
da expansão colonialportuguesa a imagem da índia nua e lânguida dos primeiros relatos da catequese
no Brasil? Nossa percepção sobre o avanço dessa fronteira tem por inflexão a conquista do Rio Grande
entre 1599 com a conquista da capitania até 1630 aproximadamente, e entre 1580 e 1759, com a Guer-
ra dos Bárbaros até a expulsão da ordem. O objetivo é examinar como se realiza nas práticas históricas
da Ordem o discurso sobre o gênero feminino nos relatos das missões: se há um padrão, variação en-
tre os diferentes contextos e como se dá a relação entre homens e mulheres. A “questão feminina” vem
adquirindo imensa relevância em nossa atualidade, sendo discutida no campo teológico e em suas
realizações na sociedade, sendo este estudo uma pequena contribuição a esse caminho ainda longo a
percorrer até que o espaço da linguagem que diz a criação da mulher no Gênesis expresse finalmente
a metamorfose do “ela” em “tu”.

Desde o relato do Gênesis, o homem que vive nessa linguagem deixou de entrar na plena expe-
riência da diferença por ter entendido apenas que a mulher “é como ele”. No capítulo dois do Gênesis
sobre o nascimento da mulher, “a linguagem que se descerra aqui não estabelece ainda uma relação.
As palavras ressoam em um espaço vazio da presença autêntica do outro”. Nesse caminho ainda longo
a percorrer até que o espaço dessa linguagem expresse finalmente a metamorfose do “ela” em “tu” e,
animada pela questão colocada pela teóloga Anne-Marie Pelletier, apresentamos um estudo sobre
a relação da Companhia de Jesus e as mulheres nas missões do Rio Grande entre os séculos XVII e
XVIII.103 A “questão feminina” vem adquirindo imensa relevância em nossa atualidade, sendo discu-
tida no campo teológico e em suas aplicações sociais e concretas, tal como as discussões sobre gênero
levada em contextos institucionais de natureza religiosa em áreas de influência da atual Companhia
de Jesus.

O tema da relação das mulheres com a Companhia de Jesus, ainda que não represente um su-
jeito coletivo marcado de forma evidente pela ação dos inacianos, o é de forma enviesada. A interdição
à entrada de mulheres na Ordem, estabelecida nas Constituições indica sem surpresa uma instituição

103Pelletier Anne-Marie, “Des femmes avec des hommes, avenir de l’Église”, Études, 2017/1 (Janvier), p. 47-56.
URL : https://www.cairn.info/revue-etudes-2017-1-page-47.htm. Acesso em 15 de agosto de 2018.

132
misógina, mas que manteve, no entanto, uma relação especial com o gênero feminino.104No entanto,
nas periferias dos impérios europeus e nos relatos de suas fronteiras não houve versões das beguinas
medievais e sua tradição das beatas ou visionárias. Aqui se tratava de poucas mulheres europeias e de
mulheres indígenas que padeceriam de uma dupla interdição: mulher e indígena.

Nosso objetivo é examinar como se realiza nas práticas históricas da Ordem o discurso sobre
o gênero feminino nos relatos das missões: se há um padrão, variação entre os diferentes contextos e
a relação entre homens e mulheres.

Os jesuítas atuaram no Rio Grande em duas circunstâncias de fronteira: entre 1599 com a con-
quista da capitania e 1630 aproximadamente; e entre 1580 e 1759, da Guerra dos Bárbaros até a expul-
são da ordem. Comparando com os primeiros relatos da catequese no Brasil com Nobrega e Anchieta,
onde parece evidente o rechaço à nudez, à livre sexualidade poligâmica e incestuosa do indígena, ao
frenesi sexual disseminado pela energia sexual dos colonos e suas reações violentas e todo o discurso
de erotização do mundo colonial, essa imagem da índia nua e lânguida não parece se manifestar nos
relatos dessa zona da expansão colonialportuguesa.

Nosso critério de seleção dos documentos tem como referência a narrativa da conquista da
costa-leste oeste, começando com a conquista da Paraíba e lindando com a conquista do Maranhão,
passando pelas missões da serra da Ibiapaba. De vinte e dois documentos referentes a essa trajetória
Rio Grande-Maranhão-Ibiapaba, onze pertencem à primeira fase da conquista e onze à segunda fase
da conquista. Dez não possuem referência a mulheres. Destes, seis da primeira fase e quatro da se-
gunda.

As cartas referentes à primeira fase da conquista da costa leste-oeste entre 1585 e 1619 apre-
sentam o seguinte quadro. As Instruções do Padre Geral, que pretendem organizar essa nova fase da
conquista das capitanias do norte, mantêm o caráter misógino e de proteção da imagem da Compa-

104Até 1556 Inácio de Loyola acolheu discretamente algumas mulheres com os votos da Companhia e, " apenas
depois de sua morte teve início um cuidado em manter a orientação espiritual de mulheres, mas sem estimular
um ramo feminino da Ordem. Existem ordens de mulheres religiosas que se regem pelos Exercícios Espirituais
e cujas Constituições se baseiam nas jesuítas. Conforme rápida informação colhida em um blog virtual, muitas
mulheres piedosas estiveram por algum tempo próximas ou pertenceram juridicamente à ordem: Isabel Roser
(+1554), dama barcelonesa e sua serva Francisca Cruyllas que chegaram a fazer os primeiros votos diante de
Inácio; Lucrecia de Bradine, madame italiana; Isabel de Josa (1490-1564), piedosa e rica viúva, orgulho das da-
mas de Barcelona; Princesa D. Juana de Áustria (1535-1573), mãe do famoso rei D. Sebastião de Portugal, filha
do Imperador Carlos I de Espanha, irmã do rei Filipe II, esposa do rei de Portugal, que após fazer os Exercícios
Espirituais com o Pe. Francisco de Borja pediu para fazer parte da Companhia de Jesus, pedido concedido em
1554 e mantido em segredo sob os pseudônimos de “Mateus Sánchez” ou “Montoya” na sua correspondência
oficial com os jesuítas de Roma; Dona Catalina de Mendoza  (1542-1602), filha do ilustríssimo Senhor D. Íñigo
López de Mendoza y Mendoza, 4º conde de Tendilla e 3º marquês de Mondéjar, alcaide perpetuo da Alambra
e capitão general de Granada, conhecida como “a marquesa santa”. Além destas, Mary Ward (1585 - 1645),
inglesa, que assinava suas cartas como Prepósita Geral da Companhia de Jesus e que não podendo ser jesuíta,
copiou o Instituto da Companhia e fundou uma Ordem religiosa feminina com o mesmo nome, logo suspensa
pelo papa Urbano VIII e atualmente chamada de Congregação de Jesus, tendo siso declarada "Venerável" pelo
Papa Bento XVI em 2009. In: http://www.terraboa.blog.br/2017/08/mulheres-jesuitas.html. Acesso em 02 de
agosto de 2018.

133
nhia: “(…) Y que los confessores confiessen mugeres fuera de la grade.”105

Em 1585 no Sumário das armadas, relato da conquista da Paraíba, existe apenas uma referên-
cia a uma mulher branca, com a notícia da morte da mãe do capitão Frutuoso Barbosa, mas enten-
demos que é informação que não tem o gênero como centro, e sim como um episódio da conquista
referido a um de seus capitães. A referência ao elemento feminino encontra-se limitada a informações
de caráter etnográfico que nos introduz às variadas formas com que os povos originários conviveram
com as mulheres.

É a mulher, que lhe leva a rede e alguma pouca de farinha para os primeiros dias; os
Brazis são muito ciumentos, apesar de terem muitas mulheres quantas cada um pode
sustentar; (...); São muito amigos das mulheres e mui brandos para ellas, e gente que
poe seus respeitos servem e obedecem aos sogros como a pais, mas quando elas parem
os maridos se fingem doentes e se deitam de mimosos nas redes, e ali são nelas servidos
dois ou três dias e visitados, e elas em parindo se vão lavar com as crianças à fonte”.106

Na Carta do P. Francisco Pinto ao P. Geral Aquaviva de 1600 a presença feminina se revela no


indiferente geral: ela está na contagem das almas ou nos lugares “onde se ajuntavão os principais e
outros muitos homens e mulheres”.107

Mas a Carta Anua de 1605 e 1606 assinada pelo P. Fernão Cardim apresenta informações so-
bre aldeias governadas por mulheres. Quando os missionários ficaram quatro dias no Forte dos Reis
Magos de onde partiam as expedições para fazer e refazer contatos com as aldeias de índios, visitaram
uma aldeia próxima à lagoa das Guaraíras liderada por uma mulher potiguar já catequizada, a aldeia
de Antonia Potiguar, a índia governadora:

(...) que podia dar exemplo aos melhores governantes quer no respeito dos súbditos,
como na paz da república (...) Foi tal o seu prazer que ao saber a ida dos Padres à
sua aldeia, não consentiu fossem pelo carreiro tortuoso do costume, senão que man-
dou abrir um caminho em linha reta, à força de braços e de ferro, e veio recebê-los a
‘15.000’ passos da aldeia, com os seus presentes. Ela regulou nesta visita o seu estado
matrimonial, com o homem que tinha escolhido, e com quem já vivia.108

No batismo do índio Camarão da ânua de 1612, assinada pelo Reitor Domingos Coelho, se

105 Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1938-1950, p. 67.
106 “Sumário das armadas que se fizeram e guerras que se deram na conquista do Rio Paraíba, 1587”, RIHGB
36 pt 1, 1873, p. 5-89, p. 8, 9.
107 Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo V. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1938-1950, p. 504-506.
108 Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomos IV, V e VI. São Paulo: Edições Loyola,
2004, p. 362.

134
descreve o cortejo de quando o Camarão se dirige à Igreja com sua mulher e seus parentes. e se fazem
filhos da Madre Igreja. O elemento feminino se expressa na mística relação entre Igreja e esposa:

Iam como se fosse um exército, distribuídos em esquadrões, com bandeiras e tambo-


res, danças e trombetas. No meio do cortejo, o noivo, e atrás a noiva, ambos bem vesti-
dos e asseados. Ao entrar na Igreja, casou-se com esta, eleita para esposa verdadeira.109

Em 1613 na Relação da Missão do Rio Grande reaparecem referências de onde extraímos as


passagens a seguir. Outro caso de uma liderança feminina:

Uma índia gentia, mas nobre e principal... (...) em certa Aldeota destas de meirinha das
mulheres, fazendo-as com muito cuidado e fervor ainda que gentia, entrar na Igreja,
sendo sempre a primeira, exortando-as com pregações, que fazia pelas casas e praças,
como qualquer pregador.

Outro tópico presente nessa mesma Relação é uma imagem bastante frequente na narrativa
jesuítica – a mulher que de alguns modos apoia a ação missionária, aceitando o batismo geralmente
à beira da morte.Uma, “(...) sabendo sermos chegados, nos mandou logo chamar, dizendo esperava
somente a batizasse para se ir para o céu. Coisa maravilhosa, que catequizada logo, e batizada, expirou
e descansou em o Senhor”.Outra, a mulher pregadora:

Uma índia gentia, mas nobre e principal, servia havia muitos tempos em certa Aldeota
destas de meirinha das mulheres, fazendo-as com muito cuidado e fervor ainda que
gentia, entrar na Igreja, sendo sempre a primeira, exortando-as com pregações, que
fazia pelas casas e praças, como qualquer pregador. Esta sendo já velha e gentia como
vou contando, veio a enfermar de tal modo.

Uma última referência é aos brancos: um homem branco que suspeitava que sua mulher lhe
traía. Os padres dissolvem suas suspeitas:

(...) cheio de ruins e falsas suspeitas contra sua própria mulher, traçando modo e no-
vos ardis de a matar secretamente, se desassombrou e desmaginou com nossa vista e
conversação, depondo logo todas as más suspeitas, que o demônio lhe representava e
oferecia.

109 Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomos IV, V e VI. São Paulo: Edições Loyola,
2004, p. 362.

135
As demais menções dirigem-se ao estabelecimento da nova ordem familiar na qual se reforça a
ideia de estarem “bem casados”: não apenas a consagração das uniões, mas a reunião de famílias que
se dispersaram devido às circunstâncias da conquista, que “havia anos se buscavam sem se acharem”
(...).110

Sobre a segunda etapa da conquista entre 1680 a 1704 somos enviados ao ambiente de tensão
das revoltas indígenas que movimentaram os sertões desde o Recôncavo baiano para cima. As pri-
meiras cartas que reportam a situação na Guerra dos Bárbaros, entre 1681 e 1682, não apresentam
nenhuma informação sobre gênero. Mas em 1689 a mulher reaparece de um novo modo na carta de
P. Pedro Dias, a que correspondem as seguintes passagens:

A que mais padeceu foi a última de Guajuru, porque não só padeceu os inconvenien-
tes sobreditos, mas muito mais dos moradores, de uns, porque vindo-se a recolher
nas trincheiras e estacadas da Aldeia, destruíram os mantimentos dos pobres Índios,
em que havia homens tão desaforados na consciência, que à vista deles lhes descom-
punham suas mulheres e filhas, e porque os Padres defendiam estes insultos, foram
injuriados e afrontados.

Relacionado à prática de durante a guerra os indígenas deixarem suas mulheres e crianças


escondidas no mato, a que chamavam “bagagem”, a mulher aparece como a conquista apreciada pelos
homens da guerra:

Esta foi a maior perturbação dos missionários, porque os Paulistas, agravados de que
os moradores levassem as mulheres e filhos dos Tapuias, que eles tinham deixado de-
baixo de sua palavra, voltaram com sua gente para livrarem as mulheres e meninos
cativos e repartidos já pelos moradores, e vinha ser uma guerra cruel e tão perniciosa
que totalmente se perdia toda a Capitania do Rio Grande. (...) Mas, com a graça de
Deus, conseguiram o fim da paz e a restituição de todas as mulheres e meninos, filhos
dos Tapuias, que de presente assistem na Aldeia, ensinando os já batizados e catequi-
zando os pagãos.111

A mulher ressurge na Carta Ânua de 1695 do P. Assenso Gago sobre Ibiapaba a que correspon-
dem as passagens que seguem, Remetem de modo geral ao contexto de violência:

Já tem o Céu recebido as primícias desta nova cristandade, em 41 inocentes que são
mortos depois de recebida a água do bautismo e muitos deles foram bautizados in ex-
tremis.” (...) Como também 26 adultos que morreram bautizados em quando podemos
110 Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo V. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1938-1950, p. 510-521.
111 Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo V. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1938-1950, p. 529-532.

136
colegir, bem dispostos.”.

Apresenta informação etnográfica e o desejo de reforma dos variados costumes dos Tapuias
naquela zona:

No particular dos seus casamentos são depravadíssimos. Entregam as filhas de 9 e de


dez anos de idade a título de multiplicação; e eles as repudiam todas as vezes que que-
rem, recebendo outras em seu lugar. Há entre eles homens que tem tido 40 e 50 mu-
lheres e todas têm repudiado. Só estimam e conservam as que são trabalhadoras e des-
tas tem tantas quantas podem sustentar. Aos que conosco assistem temos tirado estes
bárbaros costumes. Não entregam já as filhas, porque prometemos casá-las, em sendo
cristas, para que os maridos as não repudiem, e também quanto às muitas mulheres,
os temos persuadido com boas razões a que não tenham mais que uma, e a um destes
mais pertinaz em querer conservar duas que tinha, o castigou Deus, matando-lhe a
segunda e assim se ficou com uma somente.

Sobre a nação Tapuia Reriú, perto de Ibiapaba, não gostam de mulher preguiçosa, casam as
filhas com 15 anos e são monogâmicos:

É esta nação gente de corso. (...) Não comem carne humana, bebem pouco, casam
as filhas depois de quinze anos de idade, costume geral dos Tapuias desta costa, não
tem mais que uma mulher, a qual costuma repudiar alguma vez, principalmente, se é
preguiçosa. É nação belicosa e muito valente. Tem por timbre morrer antes que perder
batalha ou dar as costas ao inimigo.

A reforma dos costumes se materializa nos métodos de persuasão para adequá-los á ordem
cristã tendo como argumento a família, suas mulheres e filhos, sendo constante a referência a “casais”:
“descida de 50 casais de Guanacés para o Ceará. 40 casais de Tobajaras”. Ou no caso do escravista João
Velho do Vale que com sua tropa havia levado “do gentio que havíamos descido para a costa do mar,
25 casais com suas famílias”. Nesse sentido apresenta o mesmo padrão do primeiro período de unir
família e também o da índia velha convertida à beira da morte:

(...) índia velha bautizada e casada antigamente pelos primeiros Padres que vieram a
essa missão, a qual havia perto de 40 anos que, deixado o marido, vivia amancebada
com outro, do qual tinha já filhos e netos. Adoeceu esta índia de uma tísica ou ética, da
qual estava havia um ano em uma rede, sem poder bulir por si, posta já no arcabouço
sem outra figura que a da mesma morte. (...) amoestei-a a que se confessasse e tratasse
de salvar a sua alma... todavia ajudada e instruída se confessou o melhor que pode.

137
Há também outros casos de mulheres que à beira da morte aceitam o batismo: “até que já sobre
a tarde foi Deus servido soltar-lhe a língua. Confessou-se, e pouco depois de absolta, se partiu desta
vida para a Eterna, como se pode piamente crer”. Outro caso de um índio que adoeceu de seizões ou
maleitas, mas ainda que catequizado nunca quis aceitar o batismo porque achava que os doentes que
se batizavam logo morriam. Mas uma noite antes de morrer pediu o batismo porque teria sonhado
com “uma mulher branca, muito fermosa, a qual com o rosto enfadado o repreendera asperamente,
de se não haver bautizado”.112

Na Carta ânua de Assenso Gago e Manuel Pedroso de 1700 permanece o zelo com os “casa-
mentos na ley de graça” que foram 57. Ali temos o caso de uma menina de entre nove e dez anos de
idade, catecúmena, que adoeceu de uma “dureza”, espécie de paralisia motora temporária da perna
esquerda cujo diagnóstico atual seria histeria. É uma zona da carta toda concentrada em processos de
cura. Aparece porque se destacou o caso e se intrigaram com ele remetendo bem mais ao interesse pela
matéria médica praticada pelos jesuítas. Há ainda outro caso de doença em que a mulher não queria
que o marido fosse batizado.113

Da Carta do P. Francisco de Matos, de 1701 aparece o contraste entre a mulher bondosa e a


bárbara:

Certa mulher tinha um filho gravemente doente e não estava disposta a batizá-lo, ain-
da que o não recusava de todo. Quando viu, pela ajuda de Deus, que saiu são das
águas do batismo, pediu logo para todos os seus outros filhos se fazerem cristãos. E
conseguindo-o dos Padres, mostra-se agradecida e obsequiosa. A boa vontade desta
Mãe suavizou um pouco a ferida que atingiu fundamente o coração dos missionários,
quando souberam o que sucedeu a dois meninos, que os Pais levaram para o mato para
aí, depois de morrerem, os devorarem, segundo o bárbaro e detestável costume dos
Tapuias.114

A Informação para a Junta das Missões de Lisboa, de 1702 mantém o interesse nos casamentos,
no caso, relacionado ao ensino da Doutrina entre os escravos de origem africana, identificados como
os Negros: ali revalidaram 33 casamentos feitos com impedimentos, mas com as dispensações neces-
sárias, “largandose muitas ocasiões de pecar com o remédio seguro dos cazamentos”. Com a ação dos
padres “Huns venderão as Escravas com as quais andavao mal encaminhados a Pessoas que moravao
em partes muito distantes, para as não verem. Outros cazarao suas concubinas, e as dotarão em satis-
fação de suas culpas”.

112 Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo III. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1938-1950, p. 38-56.
113 Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo III. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1938-1950, p. 57-63.
114 Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo V. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1938-1950, p. 540-542.

138
No tema da Confissão, descreve o prazer que tinham com este momento, especialmente para
as mulheres pobres: “E o trabalho de dia e de noite foi grande, assim por buscarem as mulheres pobres
o seu remédio de noite, como por quererem todos desabafarse com os Missionarios e não com os
Vigarios”. Há também referência a como os Missionarios as convenceram a ir à missa a que não iam
porque se sentiam inadequadas: “Tirouse em muitos lugares o pejo de não quererem ir a missa a que
não erao tam bem trajadas como outras mulheres de menor porte”.

A Virgem da Assunção é evocação constante, mas isso apenas reafirma o lugar central da Virgem
na tradição jesuítica:

A proteção da senhora foi manifesta nos caminhos que andarão e nas ocasiões que
tiverão de grande necessidade da sua intercessão, para vencer huns ânimos obstinados
e contumazes, mandandose de subir em cordeiras, com a sojeição e arrependimento
que desejavão.115

A última carta de nossa seleção, a Carta Anua de Andreoni de 1704, descreve o horror - as
crianças e mulheres mortas no Jaguaribe:

Em todas estas aflições foi de consolo aos Missionários o fato de 268 crianças se terem
batizado antes de morrer. E uma mulher das mais antigas, que naquela fuga ficara
escondida numas rochas, durante 15 dias, saindo só de noite a buscar algumas ervas
para comer ou à beira de um riacho para beber, vendo que passava o maior perigo
dos inimigos, veio à Aldeia e ainda teve tempo de se batizar, como desejava, antes de
morrer.116

Nossa análise geral aponta o seguinte quadro. Nas informações sobre o primeiro período as re-
ferências remetem ao contexto de mapeamento do terreno próprio das missões volantes e ainda não
estão tocados retoricamente pelo drama que será evocado no segundo momento das fronteiras para
conter a guerra indígena dos sertões.

No segundo período a misoginia fica obscurecida pelo recrudescimento da violência, na qual mu-
lheres e crianças perdem muito. A informação etnográfica se mantém nos dois períodos, embora me
pareça que no segundo há maior insistência na reforma dos costumes dos Tapuias do que na primeira.
Acreditamos que isso se deve à imagem do tapuia bárbaro em contraste com os indígenas de cultura
tupi que contataram no litoral. O zelo com os casamentos é constante, uma vez que se trata ainda de
uma orientação interna informar os sacramentos aplicados.

115 Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo V. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1938-1950, p. 569-573.
116 Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo V. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1938-1950, p. 543-547.

139
Também o tema da mulher que se converte ou que apoia a ação missionária é constante nos
dois períodos, ainda que no segundo exista maior detalhe na narrativa, com contrastes entre a índia
boa e a má. O papel das mulheres indígenas na cristianização é tema forte nas narrativas. Teria sido
assim mesmo ou seria projeção das marquesas católicas que frequentavam os círculos jesuíticos? Algo
que se destaca na segunda fase é a autoridade das mulheres sobre seus homens, como no caso da mu-
lher que insistia que o marido não se batizasse porque poderia morrer.

Ainda que a morte de mulheres e crianças sempre se apresentem na narrativa concedendo-lhe


dramaticida, me parece que a diferença fundamental e eu destacaria dessa pequena pesquisa o papel
da mulher entre a primeira e a segunda fase da conquista. Nesse marco ela aparece como problema
ético diante da violência dos homens da guerra. Essas referências nos dão conta do que as mulheres
realmente padeceriam como mulheres: foi o estupro, a dispersão de suas famílias, a perda violenta de
seus filhos e o novo transtorno de já não poder honrar seus mortos da maneira tradicional. De modo
que as resistências das mulheres ao batismo ou mesmo sua adesão ao cristianismo podem ser enviadas
a esse processo de adaptação às novas formas de viver religiosamente ou espiritualmente suas perdas
e ganhos.

REFERÊNCIAS

Blog Terra boa. http://www.terraboa.blog.br/2017/08/mulheres-jesuitas.html. Acesso em 02 de agosto


de 2018.

LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo I. Rio de Janeiro: Civilização Brasi-
leira, 1938-1950.

LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomos IV, V e VI. São Paulo: Edições
Loyola, 2004.

PELLETIER, Anne-Marie. “Des femmes avec des hommes, avenir de l’Église”, Études, 2017/1 (Jan-
vier), p. 47-56. URL : https://www.cairn.info/revue-etudes-2017-1-page-47.htm. Acesso em 15 de
agosto de 2018.

140
Os Franciscanos e os Gentios (séc. XVI e XVII):
A atuação Franciscana na conquista territorial, espiritual e cultural do Brasil
Peter Johann Mainka117

Resumo: A Ordem dos Franciscanos Menores chegou só em 1585, de forma institucional, ao Brasil,
mas seus religiosos haviam participado, em 1500, do “descobrimento” do Brasil e já haviam iniciado,
na primeira metade do séc. XVI – por vários grupos isolados – o processo de conversão dos gentios
brasílicos. A partir de 1585, os franciscanos se instalaram no Brasil e realizaram, de forma sistemática,
suas atividades missionárias e colonizadoras. Enquanto a Companhia de Jesus, como ordem recém-
-fundada, atuou no Brasil a partir de 1549, ao lado do Governo-geral, os franciscanos, como represen-
tantes de uma ordem mendicante medieval, já dispunham de uma longa tradição missionária. Com
a sua experiência e metodologia na evangelização de gentios, adquiridas na África (Congo), na Ásia
(Índia) e na América (México), os franciscanos contribuíram decisivamente para o projeto português
de expandir a fé católica e o Império português nas terras do Brasil. São analisadas aqui, a partir das
primeiras etapas da missionação franciscana e ao longo do séc. XVII, as contribuições dos francis-
canos no processo da expansão territorial e da colonização – com base na historiografia franciscana
impressa e em documentos manuscritos do Arquivo Provincial Franciscano do Recife. A serviço da
Igreja Católica e da Coroa, os franciscanos atuaram, em parte ao lado dos colonos e das autoridades
governamentais, e em parte ao lado dos indígenas, explorados pelos portugueses. Em todo o processo
da conquista territorial, espiritual e cultural do Brasil, da missionação e dilatação da fé católica, como
da “domesticação”, “civilização” e integração dos indígenas brasileiros, a atuação franciscana foi muito
presente.

Palavras-chave: Franciscanos. Brasil Colonial. Missões. Religião.

Nota preliminar

Na historiografia sobre a conquista territorial, espiritual e cultural do Brasil e dos seus ha-
bitantes nativos, prevalece claramente, ainda hoje, a perspectiva jesuítica. No Dicionário do Brasil
Colonial (1500-1800)118, dirigido e organizado por Ronaldo Vainfas, não há um verbete referente à
Ordem Franciscana. Além disso, na programação do VII Encontro Internacional da História Co-
lonial, realizado no início de setembro de 2018 pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN) em Natal (RN), também houve, quase que exclusivamente, trabalhos sobre a atuação jesuítica
117 Dr. Peter Johann Mainka, M. A., Julius-Maximilians-Universität Würzburg (JMUW) na Alemanha, atual-
mente Professor visitante no Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC) em Florianópolis/Brasil. Contato: peter.mainka@uni-wuerzburg.de. Essa pesquisa foi
realizada com apoio financeiro da Fritz Thyssen Stiftung (= Fundação de Fritz Thyssen), Düsseldorf na Alema-
nha.
118 VAINFAS, Ronaldo (Dir.). Dicionário do Brasil Colonial (1500-1800), Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.

141
na época colonial.119 A Companhia de Jesus, fundada no início dos Tempos Modernos e com um perfil
racional, eficiente e moderno, representa, de certa forma, como nenhuma outra ordem religiosa, esse
novo espírito (Zeitgeist) da modernidade, que estava se formando nos tempos confessionais ou seja,
nos tempos da confessionalização.120 Orientados na lógica e razão, na eficiência e finalidade, os jesuí-
tas pertenceram a uma instituição organizada de forma hierárquica, preparada para uma atuação no
mundo globalizado e unida por um sistema de comunicação regular e frequente – de cima para baixo
e de baixo para cima.121 Os inúmeros relatos dos inacianos foram escritos não somente ad maiorem
Dei gloriam, ou seja, para maior glória de Deus, mas também e sobretudo para propagar os seus feitos
no mundo inteiro frente às autoridades seculares e religiosas – influenciando toda a históriografia
posterior e também a nossa visão sobre o passado colonial.

Ao contrário da Companhia de Jesus, os vários ramos da Ordem dos Franciscanos, fundada


na Idade Média, se destacaram – a partir da própria vida do seu fundador São Francisco – por uma
certa ingenuidade e espontaneidade; como mendicantes, os franciscanos pouco se preocuparam com
o sustento e o amanhã. Orientados nas necessidades da vida e nos valores da fraternidade e do diálogo,
os religiosos da Ordem Franciscana foram mais atraídos pelas formas de expressão variadas e mais
afetivas, como a música, a poesia e a dança, e menos interessados em construir uma organização fir-
me, poderosa e influente perante o mundo e a memória posterior. A quantidade das fontes jesuíticas
transmitidas para o posteridade e disponíveis nos arquivos para a pesquisa histórica é simplesmente
maior do que a documentação franciscana, fator determinante para chamar mais atenção científica
pela historiografia sobre o Brasil Colonial e a atuação das ordens religiosas nela.122

Nas décadas de 1950 e 1960, historiadores franciscanos, como Venância Willeke ou Bonifácio
Müller, realizaram, em redor das comemorações do Tricentenário da Província de Santo Antônio
do Brasil (1957), amplas pesquisas sobre a história da Ordem Franciscana no Brasil, conseguindo
disponibilizar novos documentos manuscritos para a historiografia. O nível documental alcançado
naquele momento histórico formou a base de conhecimento para a maioria dos estudos nas décadas
seguintes. A partir da virada para o século XXI, percebe-se uma série de novos trabalhos científicos
sobre a atuação missionária e espiritual da Ordem de São Francisco no Portuguese Seaborne Empire123
e, especialmente, no Brasil Colonial.124Apesar dessas novas iniciativas pesquisadoras, o fato de que os
ricos acervos dos Arquivos Provinciais Franciscanos no Recife e em São Paulo estejam à disposição da

119 Ver o site da UFRN, disponível em: <https://viieihc.wixsite.com/eihc-2018>. Acesso em: 29 set. 2018.
120 Cf. Rodrigues, Rui Luis: Os processos de confessionalização e sua importância para a compreensão da
história do Ocidente na primeira modernidade (1530-1650). In: Revista Tempo. Vol. 23, n. 1 (Campinas, UNI-
CAMP jan./abril 2017), pp. 1-21.
121 Cf. Friedrich, Markus. Der lange Arm Roms? Globale Verwaltung und Kommunikation im Jesuitenorden
(1540-1773), Frankfurt am Main: Campus Verlag, 2011.
122 Ver SANGENIS, Luiz Fernando Conde. Gênese do pensamento único em educação. Franciscanismo e
Jesuitismo na História da Educação Brasileira, Petrópolis: Editora Vozes 2006, pp. 11ss. com o prefácio de Leo-
nardo Boff.
123 Boxer, Charles M.: The Portuguese Seaborne Empire 1415-1825, London: Hutchinson, 1969, trad. para o
português sob o título: O Império colonial português 1415-1825, São Paulo: Companhia das Letras, 2002, 2a
reimpressão 2006.
124 Podem ser mencionados, entre outros, os estudos de Amorim (2005), Sangenis (2006), Faria (2008), Igke-
sias (2010) e Casimiro (2012); maiores informações bibliográficas nas referências bibliográficas.

142
pesquisa histórica ainda fica, em grande parte, despercebido. A Ordem de São Francisco permanece
ainda hoje na sombra da Companhia de Jesus.

Cruz e espada

A divulgação da palavra de Deus assim como a missionação e conversão dos pagãos foram mo-
tivos fundamentais em todo o processo de expansão europeia a partir do início do século XV – além
dos outros interesses políticos e econômicos envolvidos. A conquista de terras conhecidas e/ou incóg-
nitas realizou-se também sob o lema de cristianização e evangelização. As intenções e promessas feitas
por D. Henrique, o Navegador (1397-1460), bem como, mais tarde, pelos reis portugueses e espanhóis,
de providenciar a conversão dos gentios, foram essenciais para legitimar a presença ibérica, especial-
mente nas terras do Novo Mundo americano. O título de posse desses territórios recém-descobertos
dependeu, como consta em várias Bulas Papais, outorgadas entre 1452 e 1493, da atuação missionária
em relação aos gentios, ou àqueles que pareceram “sem fé, sem lei e sem religião”. Nessas Bulas, sempre
houve uma relação estreita entre conquista e missão, entre espada e cruz.

Sob a perspectiva de divulgação da fé católica, o papado apoiou, desde o início, a expansão


marítima e as ambições coloniais dos reinos ibéricos, concedendo aos monarcas ibéricos o padroado
régio sobre as regiões recém-descobertas e a serem conquistadas.125 As Coroas, incumbidas de missio-
nação e evangelização, receberam, em contrapartida, competências notáveis sobre as igrejas nascentes
nas Américas: entre outras, a de exercer a jurisdição espiritual, de criar novas dioceses, de apresentar
candidatos para os cargos de bispos e de cobrar os dízimos da igreja no Ultramar.126 A missionação dos
indígenas, confiada pela Coroa no Império marítimo português às diversas ordens religiosas, no caso
do Brasil, especialmente à Companhia de Jesus (a partir de 1549) e à Ordem de São Francisco (a partir
de 1585), era, assim, de interesse fundamental do Estado. Consequentemente, a Coroa portuguesa
assumiu a proteção e financiamento das missões, escolhendo e enviando tanto as ordens religiosas
como os missionários.127

A Coroa portuguesa na metrópole colocou as condições gerais da política no seu Império.


Como autoridade secular e – por meio do Padroado régio – eclesiástica, o monarca promulgou as leis
e regras para todas as áreas da vida nos territórios pertencentes ao Império português, ainda mais a
partir de meados do século XVI, quando o reinado central em Lisboa pretendeu o poder exclusivo e
absoluto na organização política e administrativa, socioeconômica, cultural e religiosa do Brasil Colo-
nial. Essa ambição da Coroa manifestou-se pelo envio do Govenador-geral, em 1549.

As competências formadoras do governo monárquico em Lisboa estenderam-se também aos


125 MAINKA, Peter J. O início da colonização do Brasil no contexto da expansão mrítima portuguesa (1415-
1549).In: TOLEDO, A. de.; ALENCAR, C. de.; RIBAS, B., ARAÚJO, M. A. de.; ORIONAR, S. Jr.; (orgs.): Ori-
gens da educação escolar no Brasil Colonial. V. 1, Maringá: EDUEM, 2012, p. 17-66, aqui pp. 29-41.
126 AYMORÉ, Fernando A. Die Jesuiten im kolonialen Brasilien. Katechese als Kulturpolitik und Gesellscha-
ftsphänomen (1549-1760). Frankfurt am Main / Berlin / Bern et. al.: Verlag Peter Lang, 2009 (Europäische
Hochschulschriften. Series III: History and Allied Studies, V. 1069, p. 72s.
127KIEMEN, Mathias. The Indian Policy in America with Special Reference to the Old State of Maranhão,
1500-1755. In: The Americas. Cambridge: 1948. p. 131-171, aqui p. 139.

143
indígenas brasílicos – os novos súditos da Coroa e objetos de missionação por várias ordens religiosas.
A união de espada e cruz, de conquista territorial e conquista espiritual, refletiu-se também nas instru-
ções para o primeiro governador-geral. No Regimento de Tomé de Sousa (1503-1579, governador-ge-
ral entre 1549-1553), outorgado no dia 17 de dezembro de 1548,128 enquanto a maioria dos 48 pará-
grafos referem-se a questões da segurança e da defesa da costa brasileira contra invasões estrangeiras,
da regulamentação de sesmarias, da economia ou do estabelecimento da futura capital Salvador, sete
parágrafos trataram, diretamente, dos indígenas. Onde fosse possível, o governador-geral deveria es-
tabelecer relações pacíficas com os gentios; onde não fosse, ele foi autorizado combatê-los e puni-los.
No parágrafo 24, ele foi lembrado, expressis verbis, que:

[…] à principal cousa que me [o rei] moveo […] pera que a jemte dela se comvertese a nosa
samta fee catolica vos emcomendo muito que pratiques com os ditos capitaes e oficiaes a
milhor maneira que pera iso se pode ter e de minha parte lhes direis que lhes aguardecerei
muito terem especial cuidado de os provocar a serem christãos e pera eles mais folguarem de
ho ser tratem bem todos os que forem de paz e os favoreção sempre e não consimtão que lhes
ja feito opresão nem agravo allgu e fazemdo se lhe lho fação coreger e emmemdar de maneira
que fiquem satisfeitos [sic] e as pessoas que lhos fizerem sejão castuguados como for justiça.129

Informado de que entradas ilícitas, não autorizadas, foram realizadas por “pessoas navios e ca-
ravelões”, a fim de saltear, raptar e escravizar indígenas pacíficos, provocando, assim, esses nativos a se
levantarem e agredirem os colonos cristãos, o monarca português D. João III (1502-1557, rei a partir
de 1521) exortou o governador-geral a interditar esses saques ilícitos. Se pessoas infringem essas pres-
crições, “[…] encorrerão em pena de morte natural e perdimento de toda sua fazenda a metade pera
a remdição do [sic] cativos e a outra metade pera quem o acusar”130. No futuro, o governador-geral
e os capitães das Capitanias não deveriam dar licenças, exceto em tempos convenientes ou a pessoas
confiáveis. Nativos que se haviam convertido deveriam sair dos povoamentos indígenas e morar

[…] juntos perto das povoações das ditas capitanias pera que conversem com os christãos e
não com os gentios e posam ser doutrinados e ensinados nas cousas de nosa samta fee e aos
meninos porque nelles emprimiram melhor a doutrina trabalhareis por dar ordem como se
fação christãos e que sejão imsinandos e tirados da converçasão dos gemtios e aos capitaes das
outras capitanias direis de minha parte que lhe aguardesereis muito ter cada hu cuidado de asi
o fazer em sua capitania e os meninos estarão na povoação dos portugueses e em seu ensino
folguaria de se ter a maneira que vos dixe.131

O Regimento do novo Governo-geral representou, de certa forma, o programa de governo,


delineado pela Coroa portuguesa, que assumiu, naquele momento histórico, toda a responsabilidade
pelo Estado do Brasil nascente. Competia ao novo governador-geral, estando no topo do sistema ad-
ministrativo civil-militar, também regulamentar as relações com os indígenas. A Coroa corroborou

128REGIMENTO de Tomé de Sousa, de 17 de dezembro de 1548, ed. por Joaquim Romero Magalhães. In:
Mare liberum. Vol. 17 (1999), p. 13-26; ver também MAINKA (2012), pp. 71-81.
129 REGIMENTO de 1549 (1999), p. 20.
130 Todas as citações in: REGIMENTO de 1548 (1999), p. 21.
131 Ibidem, p. 26.

144
a sua intenção principal de providenciar a conversão dos gentios, recomendando a catequização dos
meninos e jovens e a vida conjunta dos nativos recém-convertidos e dos colonos cristãos. Enquanto
as relações pacíficas com os indígenas foram acentuadas, entradas ilícitas a fim de escravizá-los foram
com ênfase condenadas. Nesse Regimento, encontram-se também as condições gerais da atuação mis-
sionária das ordens religiosas e dos religiosos catequizadores, inclusive as especificações e diretivas
concretas da conversão dos gentios no Brasil Colonial.

Modelos de missionação franciscana

A conversão dos gentios, de forma sistemática e organizada, iniciou-se em 1549, quando Tomé
de Sousa chegou ao Brasil, acompanhado por seis jesuítas sob a direção do padre Manuel da Nóbrega
(1517-1570). A Coroa portuguesa, que havia se contentado, até este momento, com um papel predo-
minantemente passivo, concedendo às forças feudais uma certa liberdade de ação, começou, a partir
daí, a assumir o controle direto sobre as terras brasílicas,132 supervisionando os donatários, instituídos
em 1534. Porém, pode-se registrar atividades missionárias isoladas no Brasil, já antes de 1549. De
certa forma, a missão no Brasil começou com a frota de Pedro Álvares Cabral (1467?-1520), integrada
também por um grupo de oito franciscanos sob a direção do frei Henrique de Coimbra (1465-1532),
que celebrou as primeiras missas no Brasil.133

A partir daí até a chegada da Companhia de Jesus (1549) e a fundação do primeiro convento
franciscano em Olinda (1585), vários grupos de missionários franciscanos atuaram, de modo isolado
e pontual, no Brasil, sem conseguir, porém, dar ao seu trabalho catequético um caráter contínuo e
sistemático.134 Em comparação com a Companhia de Jesus, recém-fundada (1534) e autorizada pelo
papa (1540), que houve de desenvolver, quase do ponto zero, métodos e estratégias próprios para to-
dos os campos de atuação, os franciscanos dispuseram de uma longa tradição – também na área de
missionação e evangelização.

Fundada em 1209, em plena Idade Média, a Ordem Franciscana, dividida durante os primei-
ros séculos da sua existência em vários ramos,135 havia feito primeiras experiências práticas de mis-
são no decorrer da reconquista da Península Ibérica, iniciada no século VIII. Os frades menores se
estabeleceram antes de 1420 em Ceuta, no Marrocos, alvo da primeira expedição expansionista de
Portugal, reorganizado sob a nova dinastia dos Avis. Participando nas navegações dos portugueses
ao longo da costa ocidental da África, os franciscanos fundaram casas nas Ilhas de Cabo Verde e da
Guiné. Na missionação africana do Congo,136 atuaram a partir do fim do século XV também religiosos
132 PUNTONI, Pedro. O Estado do Brasil. Poder e política na Bahia colonial 1548-1700, São Paulo: Alameda,
2013, pp. 20s.
133 CARTA de Pêro Vaz de Caminha a D. Manuel, Porto Seguro, 1 de maio de 1500, in: Os primeiros 14 do-
cumentos relativos à Armada de Pedro Álvares Cabral. Ed. de Joaquim Romero Magalhães e Susana Münch
Miranda, Lisboa: Instituto dos Arquivos Nacionais / Torre do Tombo, 1999, p. 95-121, aqui pp. 104s. e 117s.
134 VAT, Odulfo van der: The First Franciscans of Brazil. In: The Americas. V. 5/1 Cambridge: 1948. p. 18-30.
135 MAGALHÃES, Ana P. T. Os franciscanos e a igreja na Idade Média. A Arbor vitae crucifixae Jesu de Uber-
tino de Casale. São Paulo: Intermeios, 2016.
136 THORNTON, John. The Origins and Early History of the Kongdom of Kongo1350-1550. In: The Interna-
tional Jounal of African Historical Studies.V. 34, n. 1, 2001. p. 89-120.

145
franciscanos – além dos cônegos agostinianos de Santo Elói ou dos cônegos de São João Evangelista
(Azuis). Os religiosos mendicantes conseguiram a conversão das elites do Império do Congo. Os seus
filhos e membros foram levados para Portugal a serem formados e instruídos, completamente, na fé
católica. Em 1506, assumiu o governo Nzinga Mbemba (1456-1542/43) como rei Afonso I do Congo,
o primeiro rei cristão; seu filho Henrique foi ordenado sacerdote e nomeado, em 1518, bispo de Útica,
coordenando a missão do Congo até 1536. Na segunda metade do século XVI, a parceria entre Portu-
gal e o Congo foi rompida, quando a procura de escravos negros aumentou enormemente e o tráfico
negreiro não se importava mais com a ordem política estabelecida e com questões de missionação.137

Após experiências remotas de missionação em regiões asiáticas, feitas por missionários fran-
ciscanos viajantes nos séculos XIII e XIV na Mongólia e na China,138 os franciscanos iniciaram a sua
atuação missionária na Índia – no contexto da expansão marítima portuguesa – entre 1500 e 1517 de
modo individual e isolado, sem dispor de uma casa central.139 Um Comissariado da Ordem Francis-
cana foi fundado somente em 1517, pouco tempo após a chegada dos portugueses. Os franciscanos,
atuantes no Oriente, provieram das províncias franciscanas, que aderiram às reformas da Observân-
cia: foram as Províncias de Portugal (Regular Observância), bem como as da Piedade e da Arrábida
(a mais Estreita Observância). Acrescentaram-se frades e irmãos recrutados no Oriente, mesmo que
eles fossem nascidos em Portugal. Em 1518, houve por volta de 20 frades. Devido ao crescimento do
número de religiosos, o Comissariado foi elevado, em 1542, para uma Custódia, subordinada ainda
à Província de Portugal; porém, aberta também para os franciscanos das Províncias da Piedade e da
Arrábida.140 Mais tarde, houve duas províncias franciscanas independentes na Índia, cada uma delas
com a sua sede central em Goa: a Província de São Tomé da Índia Oriental (da Regular Observância),
fundada em 1583, realizada, porém, somente em 1619, devido à resistência considerável da Provín-
cia-mãe de Portugal; e a Província de Madre de Deus (da mais Estreita Observância), estabelecida em
1622 e realizada, de fato, em 1629.141 Em 1635, por volta de 600 franciscanos trabalharam nas duas
províncias da Índia, abrangendo as regiões de Ceilão (Sri Lanka), Macau, Malaca, Birmânia, Tailândia
e Indonésia – o maior número de franciscanos naquele momento.

Nas primeiras décadas da atuação evangelizadora na Índia, os franciscanos seguiram o mesmo


modelo de conversão aplicado na África: eles se aproximaram dos reinantes e das elites nativas, espe-
rando que o batismo deste grupo social privilegiado abriria o caminho para a conversão geral da po-
pulação. Finalmente, eles conseguiram no Ceilão batizar alguns “reis locais e […] príncipes (instruí-
dos em colégios franciscanos)”142, como o rei de Tangor, um soberano local do Malabar – este, porém,
137 Ver AYMORE (2009), pp. 19s.
138 KLEINE, Marina: Os missionários franciscanos e o problema da comunicação com os “infiés” nos séculos
XIII e XIV.In: MACEDO, José R. (org.): Os Viajantes Medievais da Roda da Seda (séculos V-XV). Porto Alegre:
Editora da UFRGS, 2011, p. 135-152.
139 FARIA, Patricia S. de. Ensinar, doutrinar e disciplinar: os franciscanos no Brasil e na índia portuguesa. In:
TOLEDO, A. de.; ALENCAR, C. de.; RIBAS, B., ARAÚJO, M. A. de.; ORIONAR, S. Jr.; (orgs.): Origens da edu-
cação escolar no Brasil Colonial. V. 3, Maringá: EDUEM, 2015. p. 105-132, aqui pp. 112s.
140 Ver ibidem.
141 Ver FARIA (2008), pp. 164-176.
142 FARIA, Patricia Souza de: Os franciscanos no Malabar: experiências missionárias e mediações culturais no
sul da Índia (século XVI). In: Sémata. Ciências Sociaus e Humanidades. Vol. 26 (Rio de Janeiro 2014), p. 447-
469, aqui p. 462.

146
somente após um processo longo de catequese e de negociação (política), e somente de modo secreto.

Quanto às experiências missionárias da Ordem de São Francisco, podemos adicionar mais


um exemplo, sendo, quanto ao tempo, paralelo à atuação na Índia e anterior ao projeto evangelizador
no Brasil, a saber: o exemplo do México na América Espanhola, apresentando a mesma estratégia de
conversão que no Congo143 e na Índia. No México, a Coroa de Castela confiou a catequese dos gentios
nas recém-conquistadas terras sobretudo às ordens mendicantes (franciscanos, dominicanos e agos-
tinianos). Influenciados pelo movimento religioso medieval da devotio moderna, esses missionários,
sobretudo os franciscanos, tiveram a evangelização profunda e sólida como objetivo. O requisito prin-
cipal para alcançar este objetivo foi o domínio das respectivas línguas dos indígenas; assim, desde o
início, os missionários começaram a aprender as línguas autóctonas como, por exemplo, o nauhatl.
O México se tornou, quanto aos métodos e às estratégias missionárias, “[…] o campo pioneiro e de
experiência da missão cristã no continente americano”144. Enquanto os dominicanos defenderam a
separação dos seus educandos dos colonos europeus e os agostianos fundaram “pueblos hospitales”
como comunidades de base e igualitárias, as atividades missionárias dos franciscanos foram dirigidas,
como no Congo e na Índia, às elites, objetivando uma aproximação das culturas nativa e europeu-cris-
tã, uma para outra, e a uma mestiçagem cultural, com base em uma sociedade feudal e hierárquica,
reconhecendo a posição privilegiada das elites nativas e valorizando a sua cultura e língua.145 Fernan-
do Amado Aymoré chega à seguinte conclusão:

A tentativa ampla das ordens mendicantes no México de transformar a nova cultura de mes-
tiçagem nascente, de modo cristão, de traduzir as vistas das culturas pré-espanholas para o
novo tempo e de registrar estas em obras de ilustrações e etno-históricas, precede a outra
missão cristã na América e poderia ser considerada, com toda a razão, como o seu precursor
metodológico.146

Houve, portanto, uma longa tradição missionária da Ordem de São Francisco na Europa, na
África, na Ásia e na América, à qual os franciscanos puderam recorrer quando iniciaram a conversão
do gentio no Brasil Colonial.

Os franciscanos no Brasil Colonial e as missões franciscanas

A Ordem de São Francisco começou a se instalar no Brasil Colonial de forma estruturada e


sustentável somente a partir de 1584/1585, ou seja, no período da União Ibérica (1580-1640).147 No
início deste período também outras ordens religiosas chegaram ao Brasil, objetivando seja “colonizar”
143 Ver AYMORE (2009), pp. 18s.
144 Ibidem, p. 18.
145 Ver BORDIN, Reginaldo A. Herná Cortés e os franciscanos: a educação e a dominação espiritual do Méxi-
co. Maringá: Tese de douturado na UEM / PPE, 2013, pp. 104-115. A esse processo de mestiçagem e aculturação
no México dedicou o historiador francês Serge Gruzinsli o seu estudo valioso “O pensamento mestiço”, desta-
cando o papel importante dos franciscanos nele (Gruzinski, 2001).
146 AYMORE (2009), pp. 18s.
147 Com a União Ibérica percebe-se novos impulsos em várias áreas da política e também da missionação no
Império Marítimo Português, que antes de 1580 não houve.

147
os próprios colonos, seja transplantar a “pátria” e as suas instituições familiares para o Ultramar ou
providenciar a melhor integração dos gentios à sociedade, à economia e à religião da colônia:148 em
1580, os carmelitas, enviados já antes da União Ibérica pelo Cardeal-Rei D. Henrique (1512-1580, rei
a partir de 1578),149 e, em 1582, os beneditinos.

A iniciativa para chamar os franciscanos ao Brasil proveio de Jorge de Albuquerque Coelho,


donatário da Capitania de Pernambuco e governador. Em presença do ministro-geral Francisco Gon-
zaga, informado por D. Felipe II/I da Espanha e de Portugal sobre a solicitação, o Capítulo Provincial
tomou, em 13 de março de 1584, a decisão de iniciar um estabelecimento firme da ordem no Brasil.
Um grupo de oito franciscanos da Província reformada de Santo Antônio de Portugal, sob a direção
do frei Melquior de Santa Catarina (1546?-1615/1618?), foi enviado ao Ultramar150, chegando em 12
de abril de 1585 em Olinda (PE). Frei Melquior de Santa Catarina foi nomeado o primeiro custódio
da nova Custódia de Santo Antônio do Brasil, com sede em Olinda (Vila de Marim). Somente com a
publicação da Bula Papal Piis fidelium vitis, em 27 de novembro de 1586, a nova Custódia foi reconhe-
cida, oficialmente, ex post. Com esta Custódia, iniciou-se a institucionalização estrutural da Ordem
de São Francisco no Brasil.

Após a chegada em Olinda, os frades moraram primeiramente em casas de colonos perto do


Hospital da Santa Casa da Misericórdia, estabelecendo um Oratório provisório para a sua vida co-
mum, antes que a D. Maria da Rosa, membra da Ordem Terceira regular em Olinda, entregasse aos
franciscanos uma casa e uma igreja, que se tornaram o seu primeiro recolhimento permanente nas
terras brasílicas, chamado Recolhimento da Nossa Senhora das Neves151. No início, os padres cuida-
ram dos enfermos no Hospital e deram assistência pastoral sobretudo aos colonos, cujos comporta-
mentos nem sempre correspondiam aos ideais de uma vida cristã e moral. Assim, contra a resistência
dos colonos, a partir de outubro de 1585,152 eles se dedicaram também à catequese dos povos indígenas
na vizinhança. Foram as duas áreas de trabalho principais e às vezes conflitantes, nas quais os francis-
canos atuaram, e as quais se ampliaram rapidamente.

Os franciscanos montaram, logo após a sua chegada, uma Escola, ou seja, um Seminário, para
os filhos dos indígenas. Neste Seminário (Internato), inaugurado no ano de 1596, os alunos foram
instruídos nas disciplinas básicas (leitura, escrita, cálculo); no centro do ensino estiveram, porém, a
doutrina e a catequese. No mesmo ano, os franciscanos abriram também, no Convento de Olinda,
um Curso de Artes, sob a direção (até 1602/1607) do frei Braz de São Jerónimo († 1633) – o primeiro
148TAVARES, Cristiane. Ascetismo e colonização: o labor missionário dos beneditinos na América Portuguesa
(1580-1656). Curitiba: Dissertação no Mestrado em História na Universidade Federal de Paraná/UFPR, 2007,
pp. 40ss.
149 HONOR, André Cabral: O envio dos carmelitas à América Portuguesa 1580: a carta de Frei João Cayado
como diretriz de atuação, In: Revista Tempo. V. 20 (Brasília, UnB, 2014), p. 1-19.
150 Os nomes dos outros sete religiosos foram: Fr. Francisco de São Boaventura, Fr. Francisco dos Santos, Fr.
Afonso de Santa Maria, Fr. Manuel da Cruz, Fr. Antônio dos Martyres, Fr. Antônio da Ilha e Fr. Francisco da
Cruz.
151MIRANDA, Maria do C. T. de. Os franciscanos e a formação do Brasil. Recife: Universitária UFPA, 1969,
pp. 77s.
152 WILLEKE, Venâncio: Three Centuries of Missionary Work in Northern Brazil Franciscan Province of St.
Anthony, 1657-1957. In: The Americas. V. 15. n. 2, Cambridge: 1958. p. 129-139, aqui p. 130.

148
Curso de Filosofia na Custódia e no Brasil que “creava novos cultivadores para supplemento desses
poucos, que havia na Custodia.”153

Os franciscanos foram ansiosos, desde o início, para sair “á pregaçaõ, e doutrina dos Indios”154;
pode-se destacar, nesse sentido, o frei Francisco de São Boaventura (1525?-1605), que havia renun-
ciado ao cargo do primeiro prelado da Casa de Olinda, preferindo atuar na conversão do gentio.155 A
missionação franciscana nos arredores de Olinda continuou até 1619.156

Neste primeiro estabelecimento em Olinda, pode-se observar os elementos essenciais e cons-


titutivos para a ação espiritual e missionária dos religiosos da Ordem de São Francisco: uma casa ou
um recolhimento para morar e se retirar; uma Igreja como centro espiritual; um hospício ou hospital
para cuidar dos enfermos, doentes e moribundos e acompanhá-los; núcleos de ensino, uns direciona-
dos para fora, oferecendo educação e instrução básica, intelectual ou profissional para a comunidade
externa e atraindo jovens, outros para dentro, a fim de formar a nova geração de religiosos e, desde o
início, aldeias ou missões nas redondezas dos conventos – além das instalações necessárias para o pró-
prio sustento e a vida cotidiana. Um convento franciscano engloba – em parte, de forma completa ou
em níveis diferenciados – estas unidades básicas. Ao primeiro convento franciscano no Brasil segui-
ram-se, logo, outros: em 1587, o Convento de São Francisco em Salvador (BA) e, em 1588, o Convento
de Santo Antônio em Igarassu (PE), localizado no litoral, cerca de 25 km ao norte de Olinda.

Enquanto existem poucas informações sobre atividades missionárias nos arredores do Con-
vento de São Francisco em Salvador157, pode-se comprovar a atuação missionária em Igarassu (Iga-
raçú) desde o início. O quarto estabelecimento conventual realizou-se na Paraíba, onde os francisca-
nos iniciaram, a partir de 1588/89, as suas atividades espirituais, “para morarem em a Cidade com os
brancos, como tambem (!) para doutrinarem os Indios e os instruirem em a Santa Fé”158. Os pedidos
dos colonos e da Câmara foram motivados pelo interesse de aproveitar-se dos franciscanos nas lutas
contra as tribos indígenas hostis, pela esperança de repercussões pacificadoras e pela sua ação espiri-
tual sobre os indígenas. De fato, a atuação missionária dos franciscanos em Pernambuco havia surtido
efeitos e, em seguida, os conflitos dos colonos portugueses com os indígenas haviam diminuído. Esse
resultado baixou a resistência inicial dos moradores de Olinda contra a catequese dos nativos e incen-
tivou também outras capitanias a convidar os franciscanos para estabelecer novos conventos, como
foi o caso da Capitania da Paraíba, envolvida, naquele momento histórico, em várias lutas contra os
franceses e a tribo dos Potiguaras, percebidos como perigosos, agressivos e ameaçadores.

Os habitantes do povoado de Filipéia da Nossa Senhora das Neves, atual cidade de João Pessoa
(PB) e por volta de 115 km distante da primeira casa franciscana em Olinda, solicitaram a vinda deles,

153JABOATÃO, Antônio de S. M.: Novo orbe serafico brasílico ou Chronica dos frades menores da província
do Brasil. Rio de Janeiro: Tipografia Brasiliense de Maximiano Gomes Ribeiro, V. 2. 1858, aqui vol. II, p. 225.
154 Ibidem, vol. II, p. 146.
155 Ver MIRANDA (1969), pp. 80s. e 101s.
156WILLEKE, Venâncio: As missões da Custódia de Santo Antônio (1585-1619).In: Província franciscana de
Santo Antônio. Recife: Provincialado Franciscano, 1957. p. 245-302, aqui p. 260.
157 Ver JABOATÃO, vol. II, 1 (1858), p. 58.
158 Ibidem, vol. II, 2 (1858), p. 56.

149
concomitantemente com a Câmara e o governador Frutuoso Barbosa (que exerceu o cargo entre 1580
e 1586 e entre 1588 e 1591). Filipéia foi fundada pelo Capitão-mor João Tavares, sendo de Olinda e
com uma relação estreita com a Ordem de São Francisco, como pode ser observado na escolha da
padroeira de Filipéia, a Nossa Senhora das Neves, que correspondeu ao nome do primeiro convento
franciscano no Brasil em Olinda.

Os motivos do convite aos franciscanos foram, além dos de natureza religiosa, talvez sobretu-
do as expectativas de que conseguissem pacificar as tribos bélicas. A “domesticação” e a civilização dos
gentios foram consideradas pressupostos imprescindíveis para a abertura e exploração das redondezas
da Vila de Paraíba, para a sua colonização e para a plantação e a agricultura. A pacificação do gentio
pelos religiosos pareceu aos moradores mais viável, mais fácil e, sobretudo, mais barata e econômica
do que lutas armadas morosas e dispendiosas. Outro motivo foi, evidentemente, um desentendimento
entre o governador e os jesuítas sobre a função de novos aldeamentos: enquanto os inacianos acen-
tuaram exclusivamente a catequização, Frutuoso Barbosa realçou a importância estratégica deles no
combate às tribos bravas. Daí resultou, desde o início, uma relação tensa entre as duas ordens religio-
sas concorrentes.159

Correspondendo à solicitação, frei Melquior de Santa Catarina chegou, em 1589, com alguns
companheiros, à povoação de Filipéia, reconhecendo, imediatamente, as condições favoráveis para a
fundação de um outro convento: tanto os morados como o governador foram dispostos a contribuir,
financeiramente, para esse projeto. No mesmo ano começaram as obras para a construção. A planta
foi desenhada pelo frei Francisco dos Santos.160 O prédio, abrangendo 12 celas, uma clausura, ofici-
nas e um oratório, foi inaugurado somente no ano seguinte (1590), funcionando a partir daí como
o Convento de Santo Antônio da Paraíba; o primeiro guardião foi frei Antônio do Campo Maior,
tornando-se – como no Convento de Igarassú – o primeiro prelado e fundador da Casa da Paraíba. A
construção do convento foi interrompida, por volta de 1599, devido às disputas entre os franciscanos
e o governador Feliciano Coelho de Carvalho. Após a retomada dos trabalhos e um alargamento do
plano inicial, em 1602, o Convento foi terminado, provavelmente em 1606.161

O primeiro núcleo missionário no atual estado de Alagoas foi a aldeia de Porto de Pedras,
localizada cerca de 70 km ao sul de São Miguel de Una. A catequese dos nativos foi confiada ao frei
Antônio de Campo Maior, missionário experiente, que havia terminado a sua função de guardião no
Convento de Igarassu (em junho de 1594). Os franciscanos deram assistência pastoral também aos
indígenas na vizinhança e fundaram os alicerces para a colonização nesta região.162 A série de funda-
ções continuou; foram estabelecidos, em 1591, o Convento de São Francisco em Vitória (ES), e, em
1592, foi aceita a escritura de um terreno no Rio de Janeiro, doado aos franciscanos para construir o
Convento de Santo Antônio, o que foi realizado em 1606.163
159 LIMA, Idelbrando A. de. A presença dos franciscanos na Parahyba (1589-1619): um breve histórico. In:
Paralellus. Ano 2, n. 4. Recife, 2011. p. 123-136, aqui pp. 128s.
160 Miranda (1969), p. 80.
161 FRAGOSO, Hugo. Presença franciscana na Paraíba 1588-1886. In: Revista Santo Antônio. Ano 58, n. 98
(Recife 1980), p. 49-71, aqui p. 50.
162 Ver WILLEKE (1957), pp. 267ss.
163 Ver Miranda (1969), p. 78.

150
A conversão do gentio a serviço da Santa Igreja Católica e d’El Rey nos tempos da União Ibé-
rica esteve no centro da motivação dos padres e irmãos da Ordem de São Francisco que vieram ao
Brasil. O trabalho catequético com os indígenas “reduzidos”, que moraram nas aldeias localizadas nos
arredores dos primeiros estabelecimentos franciscanos, fez parte integral de toda a atuação espiritual
da ordem no Brasil – em Olinda, Salvador, Igarassu e também na Paraíba. Desde o início, os religiosos
cuidaram, como se havia esperado deles, das povoações indígenas nas redondezas de Filipéia da Nossa
Senhora das Neves.

Aldeias ou missões foram povoações indígenas estabelecidas no primeiro período, como foi
previsto no Regimento do primeiro governador-geral, nas redondezas de vilas e povoados de colonos
europeus. Os nativos, majoritariamente nômades, foram “reduzidos” do sertão ou da selva para esses
aldeamentos, para que se tornassem sedentários. Esse modelo de converter os gentios apresentou três
vantagens, segundo Mathias C. Kiemen: 1) a catequização dos indígenas tornou-se mais fácil; 2) as
aldeias forneceram, de modo prático e fácil, mão de obra indígena para as plantações e os engenhos de
açúcar; e 3) as aldeias garantiram aos nativos uma certa proteção das entradas violentas pelos colonos
em busca de “escravos da terra”164.

Contribuições franciscanas para a colonização do Brasil

Cruz e espada colaboraram, de forma estreita e conjunta desde o início da colonização do


Brasil, como os exemplos do primeiro governador-geral do Brasil, Tomé de Sousa, e do jesuíta padre
Manuel de Nóbrega ilustram. Evangelização e conquista andavam de mãos dadas, a “dilatação da Fé e
do Império” foram, por muito tempo, os dois lados da mesma moeda – e isso é válido também para os
religiosos da Ordem de São Francisco.165

Devido ao número crescente de expedições para capturar indígenas, D. Sebastião (1554-1578,


rei a partir de 1557) proibiu, em 1570 em geral, cativar indígenas, exceto em caso de bellum iustum
e com autorização anterior pelo próprio rei ou pelo governador ou em caso de indígenas bravos ca-
nibais. Enquanto os indígenas foram declarados, em geral, livres, a falta de uma definição inequívoca
do termo “guerra justa” deixou margem para interpretação, mesmo que a Coroa reservasse para si o
direito de autorizá-la.166

Tendo os colonos protestado, imediatamente, contra a nova lei, continuaram, obviamente,


com a sua prática de escravizar os nativos; por isso, a lei foi inculcada novamente, duas vezes já no
período da União Ibérica: no dia 22 de agosto de 1587, com o suplemento de que trabalhadores indí-
genas nas plantações são trabalhadores voluntários e não devem ser tratados como escravos, e em 11
de novembro de 1595, com a indicação de que exclusivamente a Coroa poderia declarar uma guerra
justa e autorizar expedições contra indígenas bravos.167

164 Ver KIEMEN (1948), pp. 141s.


165 Ver FRAGOSO (1980), p. 53.
166 Ver KIEMEN (1948), p. 147.
167 Ibidem, p. 147s.

151
Por volta de 1600, a realidade política e socioeconômica no Brasil Colonial distinguiu-se, con-
sideravelmente, dessa legislação normativa: enquanto as leis promulgadas tentaram proteger os indí-
genas do trabalho escravo ou exploratório, a procura de mão de obra escrava pelos colonos portugue-
ses nos engenhos de açúcar e nas plantações subiu cada vez mais – e os “negros da terra” tornaram-se
mais baratos e mais disponíveis do que os negros africanos. Para conseguir o número suficiente de
escravos índígenas, os colonos interpretaram de modo generoso as razões de uma guerra justa.

Entre essa disputa de interesses estavam os missionários das ordens religiosas, seja da Com-
panhia de Jesus, seja da Ordem de São Francisco: expostos, diretamente in loco, às violentas pressões
dos colonos brancos. Por um lado, os missionários aliaram-se, às vezes, com os moradores pioneiros
e as autoridades seculares da administração territorial, especialmente quando foram pressionados por
tribos bravas; por outro lado, eles opuseram-se aos interesses dos colonos e representantes adminis-
trativos em defesa dos nativos e dos seus direitos legais. Nesse dilema, encontraram-se os missionários
nas diversas Capitanias do Brasil: enquanto a Coroa e o Governo-geral estiveram longe, as autoridades
locais e os colonos ficaram perto. Especialmente nos tempos pioneiros da colonização, a atuação mis-
sionária servia muito para os fins de sustentação e segurança dos colonos brancos e na conservação
e expansão das fronteiras com as tribos hostis. Os religiosos construíram igrejas nas aldeias e nas
fronteiras e fixaram-se lá, visitando aldeias menores na vizinhança e administrando os sacramentos
aos soldados concentrados numa fortaleza ou num presídio das áreas fronteiriças, a moradores de
engenhos localizados perto e a escravos. Os engenhos encontravam-se, regra geral, perto das aldeias
indígenas, construídos, com todo o propósito, na vizinhança de nativos catequizados e “civilizados”,
pois “sem a qual ajuda delles era impossivel fazer-se”168. Essa estratégia correspondeu, plenamente, às
disposições no Regimento para Tomé de Sousa de 1548. A missionação e a conversão do gentio pelos
religiosos tiveram, portanto, desde o início, uma dimensão colonizadora e econômica. Isso se deu
porque os franciscanos atuaram a serviço das autoridades seculares, que organizaram a colonização
do Brasil Colônia, a sua exploração e a sua expansão territorial para o interior.

Dessa forma, os franciscanos contribuíram para a consolidação do sistema político e econô-


mico instalado e a ser instalado nos trópicos pela Coroa Portuguesa.169 Eles contribuíram para a fun-
dação de vilas, engenhos e fortes – como foi o caso, por exemplo, da fundação, em 1599, do Forte dos
Três Magos, núcleo da futura cidade de Natal, atual capital do Rio Grande do Norte, da qual os fran-
ciscanos Bernardino das Neves e João de São Miguel participaram170 –, acompanharam expedições
militares ao interior ou à selva desconhecida e entraram em contato com as tribos indígenas bravas e
hostis à colonização portuguesa, fazendo as pazes com estas e estabelecendo condições mais ou menos
estáveis para o futuro desenvolvimento. Além do apoio ideal e prático, que os franciscanos deram aos
colonos in loco, eles mantiveram também as melhores relações com as autoridades seculares locais e
coloniais, disponibilizando a mão de obra dos indígenas aldeados – tão necessitada pelos colonos e
governantes – para todos os fins da colonização. Enquanto os jesuítas negaram frequentemente essa
colaboração, os franciscanos não fugiram dessas expectativas e exigências das autoridades, ou as re-

168 JABOATÃO, vol. II, 2 (1858), p. 72.


169 Ver AMORIM (2005), pp. 44s.
170 Ver WILLEKE (1957), pp. 292s.

152
cusaram com menor frequência.

No início da década de 1590, as autoridades seculares da Capitania da Paraíba iniciaram novas


ofensivas de expansão territorial para alargar a área controlada pela Vila da Paraíba, núcleo da coloni-
zação dessa região, e para combater a tribo inimiga dos Potiguaras.171 No contexto dessa nova ofensi-
va, frei Antônio de Santa Maria Jaboatão relata no seu Novo Orbe Seráfico Brasílico vários exemplos
desta colaboração: O guardião do recém-fundado convento franciscano de Santo Antônio da Paraíba,
frei Antônio do Campo Maior, satisfez o pedido do capitão-mor Frutuoso Barbosa por mão de obra
indígena na ampliação e no aperfeiçoamento das fortificações na foz do Rio Paraíba172 e “mandou ao
seu Lingua incitasse os Indios a se fazer dito Forte, como logo fez, e para em tudo conresponder com
a obrigação do bem comum, augmento da terra, serviço grande de Deos, e delRey”173. Após o fim dos
trabalhos, frei Antônio do Campo Maior celebrou uma missa para os indígenas e os soldados. Pouco
depois, em 1591, o guardião forneceu, de novo, a pedido do capitão-mor, mão de obra indígena para
a construção do Forte de Inhobim na várzea do Rio Inhobim, “[…] sem por isso os Indios levarem
estipendio algum, mais que serem incitados pelos ditos Religiosos”174. Nos arredores deste forte e sob
a sua proteção foram fundados, logo, engenhos de açúcar.

Em 1590, dois freis franciscanos, Antônio da Cruz e Gaspar das Chagas, acompanharam uma
expedição militar contra os indígenas ferozes dos Potiguaras, enviada por Felipe Cavalcanti (1525-an-
tes de 1614) – nobre florentino e senhor de engenho em Olinda que havia migrado para o Brasil – e
dirigida pelo capitão da Ilha de Itamaracá, Pero Lopes Lobo. A principal função dos religiosos foi con-
fessar, consolar e animar os soldados nessa guerra. Um ano depois, em 1591, o primeiro custódio, frei
Melquior de Santa Catarina, autorizou a participação de dois franciscanos numa outra expedição mi-
litar contra os Potiguaras, comandada por Antônio Coelho de Aguiar, enquanto a Companhia de Jesus
havia recusado o pedido. Foram enviados frei Balthasar de Santo Antônio e frei Manoel de Portalegre.

Após o fim dessa guerra, os indígenas Potiguaras se vingaram e destruíram, junto com os fran-
ceses, o Forte de Santa Catarina de Cabedelo, localizado à margem direita da barra do Rio Paraíba do
Norte. A pedido do novo capitão-mor André de Albuquerque, os indígenas aldeados dos franciscanos
trabalharam, sem nenhuma remuneração – junto com os indígenas da Companhia de Jesus –, na re-
construção do Forte e – sozinhos – na reforma do Forte de Inhobim, “arruinando-se os muros, por
causa do pouco cuidado, que houve para se resguardar”175. No mesmo período, os indígenas sob tutela
dos franciscanos construiram, também, uma casa sólida no engenho de Duarte Gomes de Silveira
(1555-1644).

Feliciano Coelho de Carvalho, capitão-mor e governador (1592/1595-1599/1600) da Paraíba, iniciou


171SANTOS, Juvandi de S. As fazendas de gado dos jesuítas na Paraíba Colonial. Série: Arqueologia/Paleonto-
logia. V.5. Campina Grande, Paraíba, 2015, pp. 41s.
172 Na Ilha de Gambóa, atual Ilha de Restinga, localizada na foz do Rio Paraíba, houve uma fortaleza, erigida
em 1578 ou 1579 pelo então Capitão-mor João Tavares. Para a reforma desta fortaleza solicitou o Capitão-mor
Fructuoso Barbosa aos jesuítas a mão-de-obra dos indígenas de Braço de Peixe – pedido recusado pelos jesuí-
tas.
173 JABOATÃO, vol. II, 2 (1858), pp. 72s.
174 Ibidem, p. 74.
175 Ibidem, p. 74.

153
em seguida (1593 e 1594) duas expedições contra os Potiguaras: a primeira apoiada pelo prelado frei
Antônio da Ilha e por um intérprete indígena (íngua), a segunda com indígenas aldeados e acompa-
nhada pelo frei Antônio de Campo Maior, por um companheiro, que prestaram serviço como con-
fessor e interprete (língua). Esta segunda expedição revelou-se, de fato, como entrada em busca de
“escravos da terra”, ou, mais exatamente, de indígenas cativos que poderiam ser resgatados.

Enquanto a lei de D. Sebastião de 1570 havia declarado, em geral, os indígenas livres, houve, na
prática, vários tipos de nativos. Tratava-se, nesse caso, obviamente de “indígenas da corda”, cativos na
guerra entre tribos e condenados à morte; liberados ou resgatados pelos portugueses, esses indígenas
permaneceram, após o seu resgate, cativos para sempre, como explicou, mais tarde, a Coroa portu-
guesa por meio de um Memorial aos franciscanos do Pará, que haviam colocado as suas dúvidas.176
Na expedição de Feliciano Coelho de Carvalho, os soldados encontraram, de fato, uma “cerca, em que
estavaõ recolhidos tres mil e quinentos Indios de peleja, e cincoenta soldados Francezes”177. Enquanto
os franceses foram liberados, os indígenas se tornaram mão de obra barata e ilimitada em serviço da
colonização.

O trabalho missionário e pacificador dos franciscanos a serviço d’El Rey e das suas autorida-
des foi muito valioso nas primeiras três décadas da presença da Ordem de São Francisco na Paraíba
(1589-1619):178 tornou as tribos bélicas sedentárias, catequizando-as, domesticando-as, civilizando-as
e aproveitando-se delas, de modo pacífico, por meio de educação e instrução para a sociedade colo-
nial. Mesmo que os franciscanos não houvessem objetivado, principalmente, esses efeitos, eles foram
resultados colaterais bem-vindos para os colonos e a administração governamental.

Contudo, os colonos começaram, sempre mais, a perceber os franciscanos como obstáculos de


uma exploração mais intensiva dos indígenas. Queixas dos colonos, as disputas com o governador e as
rivalidades permanentes com a Companhia de Jesus resultaram, finalmente, em 1619, na entrega das
missões franciscanas ao clero secular recém-instalado.

Conflitos pela autoridade temporal sobre os indígenas

Atritos e divergências surgiram também entre os franciscanos e os representantes do governo


territorial como com o novo governador da Capitania da Paraíba, Feliciano Coelho de Carvalho, pela
autoridade temporal dos religiosos nas aldeias indígenas, cuidadas por eles. Enquanto a conversão do
gentio esteve no foco dos franciscanos, os interesses do novo governador concentraram-se mais na
defesa militar da Capitania, no seu desenvolvimento econômico e na exploração dos seus recursos. Os
indígenas foram considerados por ele, consequentemente, como possíveis soldados e trabalhadores,
enquanto os franciscanos destacaram-nos como alvos da conversão.

O conflito desses interesses opostos desencadeou-se em questões sexuais, ou seja, no relaciona-

176 AMORIM (2005), pp. 227-230, publicou o Memorial dos Capuchos do Pará e respostas, entre 1619-1621.
177 JABOATÃO, vol. II, 2 (1858), p. 77.
178 Ver FRAGOSO (1980), p. 54.

154
mento indevido dos mamelucos, mulatos e brancos, interessados nas mulheres indígenas e dispostos
a tirá-las dos seus maridos. Enquanto as missões franciscanas não foram fechadas e localizadas perto
dos povoamentos dos brancos, não foi possível impedir essas relações. Os franciscanos criticaram,
rigorosamente, esses comportamentos; porém, as suas repreensões e pregações públicas não surtiram
efeitos ou não foram tomadas a sério pelos infratores, que até ridicularizaram-nas e converteram-nas
ao contrário. Por isso, “para atalhar a hum mayor mal, se escolho o menor, e foy, que mandou o Prela-
do se não fizessem prégacoens”179. Apesar de todos os avanços missionários e civilizatórios, a situação
desagradável continuou por mais dois anos até 1598. Não restando outra solução, os franciscanos
tomaram medidas adequadas na sua área de domínio e começara, repreender as indígenas involvidas,
para impedir os excessos.

Aproveitando-se dessa ocasião ambígua, o governador, considerado pela historiografia fran-


ciscana inimigo declarado dos religiosos, afirmou acusações generalizadas contra eles. O governador
não se contentou com incriminá-los, mas questionou também as suas competências temporais sobre
os indígenas, ou seja “[…] a Ley, e a doutrina, que os Religiosos tinhaõ prégado, até áquella hora,
quebrando com isto o tronco, por affrontar os Religiosos, e os desacreditar com os Indios, mandan-
do-lhes prégar liberdades, do que resultou a cahida”180. Os franciscanos foram acusados de compelir
os indígenas, por meio de castigos corporais, a se converterem ao cristianismo, interditando a eles as
festas tradicionais e mantendo-os em dependência e menoridade181 – argumentos, aliás, mais tarde
usados contra os jesuítas. Com essa crítica, o governador tentou minar a autoridade dos franciscanos
e contestou o seu direito de infligir castigos aos indígenas aldeados.182.

Os religiosos usaram, regularmente, castigos como instrumentos de conversão, correção e pu-


nição. Enquanto os moços nativos foram castigados, em casos de erros e pecados, “[…] com uma du-
zia de palmatoadas, sem por isso nunca haver escandalo entre elles, antes depois de recebido o castigo,
se deitavaõ aos pés dos Religiosos, pedindo perdaõ da culpa”, os adultos foram colocados por uma
noite ao tronco “sem outro castigo”183. Enquanto os franciscanos reivindicaram para si, no contexto do
processo missionário e civilizatório, o direito de infligir castigos aos nativos, o governador insistiu na
sua competência exclusiva de punição, convicto de “[…] que os Religiosos lhe usurpavão a jurisdição
do seu governo”184. Na sua argumentação, o governador fingiu defender as liberdades dos indígenas.
No cerne da sua crítica esteve, contudo, a competência temporal dos religiosos sobre os indígenas.
No decorrer dessas disputas, funcionários do governador entraram nas aldeias espalhando angústia
e pavor, atiçando os indígenas contra os franciscanos, informando-os de que seriam livres e que uma
conversão para a fé católica seria dispensável. O governador ordenou também a ocupação da aldeia de
Santo Agostinho e a destruição do tronco lá instalado.

Apesar dos privilégios de autonomia espiritual e temporal dados às diversas ordens religiosas

179 JABOATÃO, vol. II, 2 (1858), p. 63.


180 Ibidem, p. 64.
181 Ver FRAGOSO (1980), p. 58.
182 Ver MIRANDA (1969), pp. 75s.
183 Todas as citações in: JABOATÃO, vol. II, 2 (1858), p. 61.
184 Ibidem, p. 65.

155
nas suas missões, as autoridades seculares e os párocos nas cidades nascentes, como núcleos admi-
nistrativos e civis, logo contestaram esses direitos, que restringiram as suas próprias competências.185
Os acontecimentos na Paraíba, relatados anteriormente, referem-se, exatamente, a essas rivalidades.
Mesmo que os franciscanos apresentassem “o Breve a favor da doutrina concedido”, Feliciano Coelho
de Carvalho não aceitou, dizendo “[…] que no Brasil não havia quem lhe tomasse conta, e que ElRey
estava em Madrid, e Deos em o Ceo”186. Com essa postura de autoconfiança exagerada, ele suprimiu
também duas Provisões a favor dos religiosos, emitidas pelo governador-geral, D. Francisco de Sousa.
Os franciscanos se retiraram das aldeias, nomeadamente de Santo Agostinho e Jacoca187 ao seu con-
vento, apresentando novas queixas ao governador-geral. Quando este cedeu apoio a eles, os francisca-
nos retomaram as suas atividades missionárias – contra os protestos do governador da Paraíba.

Enfim, após as disputas com o governador, os religiosos franciscanos da Custódia de San-


to Antônio do Brasil conseguiram, por um tempo, manter as suas competências como autoridades
eclesiásticas e temporais nas suas missões – até que a legislação da Coroa decretou mudanças. Após
mais de uma década de lutas dos colonos contra os Potiguaras, houve os primeiros indícios de uma
solução pacífica. Aos franciscanos foram confiadas, em 1603, três aldeias desta tribo cujos nomes des-
conhecem-se,188 Esse seria o início da pacificação desses indígenas, considerados, até aquele momento,
inimigos e combatidos com todo o fervor colonizador.189 Aliás, na Capitania da Paraíba, colecionou
também o famoso historiador franciscano frei Vicente de Salvador (1564-1636) as suas primeiras ex-
periências missionárias. Após ter entrado, em 1599, na Ordem, ele trabalhou por cinco ou seis anos
como missionário nas aldeias indígenas da Paraíba.190

Considerações finais

A Ordem de São Francisco chegou ao Brasil, de forma institucional, em 1585, ou seja, 36 anos
mais tarde do que a Companhia de Jesus. Dispôs, porém, de uma longa tradição e experiência prática
na atuação missionária. A estrutura da Ordem Franciscana cresceu rapidamente; nas primeiras déca-
das da presença franciscana no Brasil, uma multiplicidade de instalações foi fundada: casas, residên-
cias, recolhimentos, hospícios e conventos, englobando também escolas e seminários. Nas redondezas
dessas instalações, encontraram-se, em menor ou maior distância, as missões, ou seja, aldeias em que
viviam indígenas “descidos” ou “reduzidos” do sertão ou da selva, de várias tribos, num processo de
evangelização em andamento.

A conversão dos gentios fez parte integral de todo o processo da expansão marítima europeia
185 Ver FRAGOSO (1980), p. 60).
186 Todas as citações in: JABOATÃO, vol. II, 2 (1858), p. 66.
187 Ver WILLEKE (1957), p. 278.
188 Ibidem.
189 Ver FRAGOSO (1980), p. 56.Aliás, na Capitania da Paraíba colecionou também o famoso historiador fran-
ciscano, frei Vicente de Salvador (1564-1636) as suas primeiras experiências missionárias. Após ter entrado,
em 1599, à ordem, ele trabalhou por cinco ou seis anos como missionário nas aldeias indígenas da Paraíba
(Fragoso, 1980, p. 64).
190 Oliveira, Maria Lêda. A História do Brazil de Frai Vicente do Salvador. História e política no Império Por-
tuguês do século XVII. 2 vols., Rio de Janeiro: Versal / São Paulo: Odebrecht, 2008.

156
e da conquista territorial (e espiritual) da América Portuguesa. A evangelização dos nativos legitimou
as navegações dos reinos ibéricos nos séculos XV e XVI e a posse dos territórios descobertos e a se-
rem descobertos por várias Bulas Papais, que concederam às Coroas Ibéricas – por meio do Padroado
régio – competências extraordinárias sobre as igrejas nascentes. As conquistas territorial e espiritual
andavam de mãos dadas também no Brasil Colonial. O aumento do território colonizado e dominado
pelos portugueses realizou-se num ambiente inóspito quanto à natureza e inimigo, devido à resistên-
cia amarga dos autóctonos. A colaboração estreita de espada e cruz, de colonos e religiosos, de auto-
ridades seculares e eclesiásticas tornou-se natural frente aos desafios no Ultramar. Os portugueses,
laicos ou religiosos, compartilharam os mesmos valores europeus e a mesma visão do mundo.

Evangelizar era conquistar almas; conquistar almas era criar vassalos de Sua Majestade. Evan-
gelização e sociabilização andavam de mão dada nesta estratégia. Ao tornar-se cristãos, os
índios tornavam-se participantes de um modus vivendi dito civilizado, em moldes europeus,
com uma aparelhagem de valores culturais, religiosos e civilizacionais ao estilo do Velho
Mundo. Necessidade política, estratégia militar e vontade de salvar pagãos formaram uma
tríade a que se somava a necessidade do sistema produtivo, as razões economicistas, avareza
do colono.191

No decorrer do processo colonizador, adiantado, consciente e inconscientemente pelos co-


lonos e franciscanos, surgiram diferenças e disputas entre os dois agentes, promovidas também pela
concorrência entre franciscanos e inacianos por almas, financiamento e privilégios. Os atritos entre
religiosos e colonos não puseram, porém, um fim definitivo a essa parceria complexa.

As etapas da atuação missionária dos franciscanos em Pernambuco, no Alagoas – e mais tar-


de na Paraíba, no Maranhão e no Grão-Pará – seguiram um modelo semelhante: os colonos de uma
freguesia ou vila num território fronteiriço, ameaçado por indígenas bravos, convidavam os religiosos
para radicar-se no seu município, dando assistência pastoral aos brancos e catequizando, domestican-
do e civilizando as tribos na vizinhança – alternativa mais barata do que lutas violentas e expedições
militares para receber a colaboração indígena, tão necessitada pelos colonos para sobreviver e sus-
tentar-se, e para adquirir mão de obra que faltava no processo colonizador. Os franciscanos satisfize-
ram as espectativas dos colonos e das autoridades seculares. Dedicando-se à conversão dos gentios, à
redução deles para aldeias e à administração espiritual e temporal delas, eles perceberam, de perto e
direto, o prejuízo sofrido pelos indígenas aldeados. Consequentemente, os franciscanos não hesitaram
em criticar os colonos e governantes e opor-se aos seus interesses exagerados, defendendo, impávida e
determinadamente, os direitos dos indígenas face à exploração abusiva e aos maus-tratos desumanos
dados pelos portugueses – em contraste com a representação comum na historiografia atual. Descon-
tentes com essa postura dos religiosos, comprometida com as doutrinas da igreja, mas oposta ao pro-
cesso colonizador, os colonos e – às vezes também – as autoridades seculares começaram a contestar
a atuação missionária dos franciscanos, caluniando-os e acusando-os. Quando a fase pioneira do pro-
cesso colonizador no Nordeste chegou ao seu fim, a autoridade temporal, exercida pelos franciscanos
nas missões e questionada há muito tempo, foi transferida à administração secular, como a autoridade

191AMORIM (2005), p. 135.

157
eclesiástica passou à administração eclesiástica ordinária.

“Em todos estes processos”, resume Maria Adelina Amorim, “os missionários Capuchos foram
uma presença constante: no apaziguamento e integração dos índios; nas expedições exploratórias e de
demarcação do território; ao lado dos soldados na luta contra os estrangeiros“192.

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160
161
162
SIMPÓSIO TEMÁTICO 03
Escravidão e Mestiçagens em perspectivas conectadas: povos e lugares em suas formas
de trabalho, sociabilidades e religiosidades.
Coordenadores:

Gian Carlo de Melo Silva

Isnara Pereira Ivo

Seguindo os rastros da impunidade: escravização e reescravização ilegais no Ceará do sé-


culo XIX
Antonia Márcia Nogueira Pedroza1*

No Brasil escravista do século XIX pode-se perceber um trânsito permanente entre o


mundo da escravidão e o da liberdade, vivenciado principalmente pelos descendentes de africanos,
que em um dia podiam experimentar a liberdade e em outro eram lançados em cativeiros. Apesar de
ser crime (tipificado no Artigo 179 do Código Criminal de 1830) escravizar gente livre, esta prática
ocorreu com frequência no Ceará do Oitocentos, às vezes, com o conhecimento e a anuência das
autoridades.Similarmente, foi usual a reescravização de forras e forros, tecida nos limiares da ilegali-
dade e por vezes concretizada com base em um amparo legal. Essa última categoria, era exequível em
função dalegislação vigente prever em várias situações as revogações das alforrias das pessoas libertas.
Neste estudo, abordaremos a escravização e a reescravização ilegais, a partir das histórias de resistên-
cia de duas famílias:Hypolita e seus seis filhos: Paulo, Rafael, Gabriel, Maria, Daniel e Pedro; e Maria
e seus oito rebentos: Ritta, João, Luiza, Delfina, Getrudes, Felizmina, Vicente e Valerio.

Neste artigo, iremos em busca dessas vidas, examinando os testemunhos históricos e to-
mando essas histórias não como um ordenamento de acontecimentos numa trajetória retilínea, nem
como um processo encadeado por causas e consequências, nem com a pretensão de recuperar todas
as suas partes. Mas, diferentemente, adotando a noção de “trama” proposta pelo historiador Paul
Veyne, essa narrativa composta “por alguns aspectos escolhidos”, ligados entre si, na narrativa do
historiador.2

As tramas dentro das quais se moveram Hypolita e Maria podem se assemelhar a inú-
1* Doutoranda em História pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Ceará –
UFC. Bolsista da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico - FUNCAP. Este
estudo é um desdobramento da pesquisa desenvolvida na obraDesventuras de Hypolita: luta contra a escravi-
dão ilegal no sertão (Crato e Exu, século XIX). Natal, RN: EDUFRN, 2018, de minha autoria. Este artigo traz
algunslances novos acerca da história de Hypolita. As problemáticas e interpretações abordadas neste estudo
também se diferem parcialmente daquelas apresentadas no livro.
2 VEYNE, Paul. Como se escreve a história. trad. Alda Baltar e Maria Auxiliadora Kneipp. 4. ed. Brasília: Edi-
tora Universidade de Brasília, 1998, p. 44.

163
meras outras tramas. Assim, suas histórias, que apontaremos em linhas gerais neste artigo, podem
iluminar a história como campo de possiblidades de outras histórias. Assim, a prática criminosade
reduzir pessoa livre à escravidão e reescravizar gente liberta ilegalmente se desenrolam no meio de
tensões e, nos casos em que os crimes são denunciados, levam os sujeitos a lançarem mão de certas
estratégias. São essas tensões e essas estratégias que procuraremos apontar neste artigo, a partir dos
casos da escravidão ilegal deHypolita e dareescravização ilegal de Maria.

Comecemos por Hypolita. Essa mulher, nascida de ventre livre, recebeu o nome cristão
de Hypolita Maria das Dores. Mulata, viúva do primeiro casamento com um escravo – cujo nome
não nos foi possível conhecer. Em 1858, em segundo matrimônio, casou-se com Galdino, um homem
livre. Era filha de Maria das Dores, forra, e de Francisco Pilé, homem livre. Sua avó era Antônia, cabra,
escrava. Seu avô, homem livre e rico, cujo nome não conseguimos identificar. Era bisneta de Geraldo,
também homem livre. Nasceu em 1823, em um lugar designado vagamente nos documentos pesqui-
sados como as “margens do Rio São Francisco”, pequeno povoado localizado no sertão dentro dos
limites da província de Pernambuco.
Até onde nos levou nossa investigação, na vila de Pajeú de Flores, em Pernambuco, mora-
vam a avó de Hypolita, Antônia, e o bisavô de Hypolita, Geraldo. Antônia tornou-se escrava de Ana
Paula de Jesus, uma criança órfã de pai, filha de Dona Joana Paula de Jesus, que recebera a escrava
como parte da herança familiar. Em 1807, Antônia teve uma filha, cujo pai era um rapaz livre, rico e
filho de Geraldo (como está citado lacunarmente nos documentos). A menina recebeu o nome de Ma-
ria das Dores. No mesmo ano de seu nascimento, ela foi batizada tendo por padrinhos João, homem
casado e Maria, mulher solteira, ambos da freguesia de Boa Vista, mesmo local do batismo. Geraldo, o
avô, alforriou-a na pia batismal. Maria das Dores cresceu e engravidou de um homem livre, chamado
Francisco Pilé. Casou-se com ele e a primeira filha do casal recebeu o nome de Hypolita Maria das
Dores.

A pequena Hypolita nasceu de mãe liberta e foi batizada, portanto, como pessoa livre.
Como veremos ao longo deste artigo, esse é o elemento desencadeador que ocupará uma parte de sua
vida: a precariedade da sua condição de livre, fragilidade vivida pelas pessoas livres e libertas negras e
mestiças que viviam sob a constante ameaça de escravização. Em seu batizado teve como padrinhos
Francisco Antonio Duarte e Joana Paula de Jesus, mãe da órfã Ana Paula de Jesus. Ela viveu livre-
mente os primeiros anos da infância nas “margens do Rio São Francisco”, ao lado dos pais. Na sua
primeira infância, Hypolita também conviveu com o bisavô Geraldo, com a madrinha Joana Paula de
Jesus e a órfã Ana Paula de Jesus. Hypolita ainda era criança quando Joana Paula de Jesus decidiu mu-
dar-se novamente com a família, agora para o Exu, povoado localizado na província de Pernambuco.
Segundo os documentos consultados, Maria das Dores, mãe de Hypolita, desejando uma melhor edu-
cação para a filha, permitiu que ela fosse morar com a madrinha Joana e a órfã Ana. Com a mudança,
Hypolita perdeu o convívio com seus pais e bisavô.

Tem início o drama de nossa personagem. A órfã Ana Paula de Jesus (filha de Joana Paula
de Jesus, madrinha de Hypolita, reiteramos), casou-se com João Pereira de Carvalho, proprietário es-
tabelecido na então vila do Crato, província do Ceará. Crato e Exu eram localidades próximas, faziam

164
fronteira entre a província do Ceará e a de Pernambuco, separadas somente pela Serra do Araripe.
Com a realização do casamento, Ana, Joana (que enviuvara novamente) e Hypolita foram morar no
Crato na companhia de João Pereira. Foi quando ele escravizou Hypolita.

João Pereira manteve Hypolita como escrava durante 17 anos. Durante esse período, João Pe-
reira a obrigou a se prostituir e também a se casar com um escravo seu. Hypolita teve seis filhos (Pau-
lo, Rafael, Gabriel, Maria, Daniel e Pedro), todos registrados nos assentos de batismo como escravos.
Três deles apadrinhados pelo próprio João Pereira e seus parentes.

Em 1856, Hypolita recorreu à Justiça do Crato – que nessa época já havia sido elevada
à condição de cidade –, na tentativa de provar e reaver sua condição de livre e a de seus filhos. Sem
sucesso, ela fugiu para Exu, onde procurou auxílio dos irmãos Gualter Martiniano de Alencar Ara-
ripe e Luis Pereira de Alencar. Esses homens eram primos legítimos (e inimigos declarados) de João
Pereira de Carvalho, escravizador de Hypolita. Com o apoio e curatela dos irmãos, Hypolita recorreu
à Justiça da vila de Ouricuri, província de Pernambuco da qual Exu dependia administrativamente. A
primeira instância do processo civil durou quase três anos, ganhando repercussão nas páginas do jor-
nal cearense O Araripe. Por meio desse veículo de comunicação, acompanhamos, em grandes traços,
sua vida, a de seus parentes e a de pessoas de seu convívio. A primeira instância da ação judicial de
Hypolita foi julgada em 1858, sendo o resultado favorável à sua liberdade e à de seus filhos.

No ano seguinte, em julho de 1859, devido ao falecimento de Ana Paula de Jesus, esposa
de João Pereira de Carvalho, realizou-se o inventário dos bens do casal. Nesse período, a história de
Hypolita já não era mais notícia recorrente nas páginas d’O Araripe3. Porém, para nossa surpresa,
Hypolita e seus filhos foram arrolados na relação de bens de Ana Paula e João Pereira, como podemos
ler no inventário:

Hypolita mulata de idade de trinta oito annos avaliada pela quantia de sete centos
mil reis [...] Gabriel mulato [...] de idade de dezeceteannos avaliado pela quantia de
oito centos mil reis [...] Rafael mulato de quinze annos de idade avaliado pela quan-
tia de oito centos mil reis [...] Pedro mulato de idade de doze annos avaliado pela
quantia de sete centos mil reis [...] Maria mulata de idade de nove annos avaliada
pela quantia de ceiscentos mil reis [...] Daniel mulato de idade de seis annos avaliada
pella quantia de quatro centos mil reis [...].4

No processo de partilha, realizou-se a soma dos valores em que Hypolita e seus filhos
foram avaliados. Retirados os custos com as despesas do processo, o restante foi partilhado entre os
sete herdeiros de Ana Paula. Estamos diante de um indício de reescravização de Hypolita e de seus fi-
lhos, risco permanentemente vivenciado pelas pessoas livres e libertas descendentes de africanos.Essa
reescravização, entretanto, pode não ter ocorrido com Hypolita e seus filhos. No livro Desventuras de
3 Durante todo o ano de 1859, Hypolita foi mencionada apenas quatro vezes e nenhuma delas detalhava sua
história, como aconteceu nos anos anteriores. Apenas citava vagamente seu nome meio a outras publicações,
por exemplo, de denúncia acerca da atuação das autoridades judiciárias de Crato.
4 Inventário post mortem de 1859. Documento dacaixa 17, pasta 248. Inventariante: Capitão João Pereira de
Carvalho. Inventariada: Anna Paula de Jesus. Acervo do Centro de Documentação do Cariri (CDOC).

165
Hypolita: luta contra a escravidão ilegal no sertão (Crato e Exu, século XIX),a partir do cruzamento
de uma variedade de documentos construímos algumas hipóteses sobre prováveis rumos da vida de
nossa personagem.5 Mas algo que gostaríamos de assinalar neste artigo e deque não tratamos nas
“Desventuras de Hypolita”é que além da ação de liberdade impetrada na vara civil por Hypolita sob a
representação de seu curador, ela denunciou João Pereira de Carvalho e o genro deste,João Evangelis-
ta Cavalcante,na vara criminal, pelo crime de reduzir pessoa livre à escravidão.Depois de o promotor
analisar os documentos comprobatórios de sua liberdade entregues pelo curador de Hypolita e ouvir
cinco testemunhas, os escravizadores de Hypolita e seus filhos foram pronunciados pelo crime de
reduzir pessoa livre à escravidão.
A escravização de pessoas livres era considerada crime e foi tipificada no Código Crimi-
nal de 1830.6Na terceira parte desse código, nos crimes particulares do Título I, doze artigos faziam
referência aos crimes contra a liberdade individual. Dentre estes, o Artigo 179 considerava crime “Re-
duzir á escravidão a pessoa livre, que se achar em posse da sua liberdade”7. Este artigo foi incorporado
a uma legislação elaborada em momentos posteriores. Por exemplo, o artigo 179 foi incorporado àlei
de 7 de novembro de 1831 que instituía a liberdade para todos os africanos que entrassem no Brasil a
partir daquela data e estabelecia punição aos importadores. As penas eram as mesmas atribuídas ao
crime de “Reduzir á escravidão a pessoa livre, que se achar em posse da sua liberdade”8 e mais “multa
de duzentos mil réis por cabeça de cada um dos escravos importados, além de pagarem as despezas da
reexportação para qualquer parte da Africa;”9 A lei caracterizava como importadores:

1º O Commandante, mestre, ou contramestre. 


2º O que scientemente deu, ou recebeu o frete, ou por qualquer outro titulo a embar-
cação destinada para o commercio de escravos. 3º Todos os interessados na negocia-
ção, e todos os que scientemente forneceram fundos, ou por qualquer motivo deram
ajuda, a favor, auxiliando o desembarque, ou consentindo-o nas suas terras. 4º Os
que scientemente comprarem, como escravos, os que são declarados livres no art.
1º; estes porém só ficam obrigados subsidiariamente ás despezas da reexportação,

5 Ver PEDROZA, Antonia Márcia Nogueira. Desventuras de Hypolita: luta contra a escravidão ilegal no sertão
(Crato e Exu, século XIX). Natal, RN: EDUFRN, 2018;
6 Sobre o tema da escravidão ilegal ver: Beatriz G. Mamigonian et Keila Grinberg, « Le crime de réduction à
l’esclavage d’une personne libre (Brésil, XIXe siècle) », Brésil(s) [En ligne], 11 | 2017, mis en ligne le 29 mai 2017,
consulté le 28 septembre 2018. URL: http://journals.openedition.org/bresils/2138; DOI: 10.4000/bresils.2138;
PEDROZA, Antonia Márcia Nogueira. Desventuras de Hypolita: luta contra a escravidão ilegal no sertão (Cra-
to e Exu, século XIX). Natal, RN: EDUFRN, 2018; COSTA, Francisca Raquel da. Escravidão e liberdade no
Piauí oitocentista: alforrias, reescravização e escravidão ilegal de pessoas livres (1850-1888). Tese de doutorado
em História Social - Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2017; SÁ, Gabriela Barretto de. O crime de re-
duzir pessoa livre à escravidão nas casas de morada da Justiça no Rio Grande do Sul (1835-1874). Dissertação
de mestrado em direito - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2014; CHALHOUB, Sidney. A
força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
7 Fonte: Código criminal de 1830. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-
1830.htm>. Acesso em: 27 de maio de 2018.
8 Fonte: Código criminal de 1830. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-
1830.htm>. Acesso em: 27 de maio de 2018.
9 Fonte: Lei de 7 de novembro de 1831. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-
1899/lei-37659-7-novembro-1831-564776-publicacaooriginal-88704-pl.html>. Acesso em: 27 de maio de 2018.

166
sujeitos, com tudo, ás outras penas.10

O artigo 179 também foi integrado ao decreto nº 4.835, de 1º de dezembro de 1871, que
tratava da “matrícula especial dos escravos e dos filhos livres de mulher escrava”11. Este decreto foi
criado em função da lei 2.040, promulgada em setembro daquele ano, e que ficou conhecida como lei
do ventre livre. No capítulo VIII do decreto nº 4.835, que estipulava as penas e multas, dois artigos
tiveram sua tipificação respaldada no crime de reduzir pessoa livre à escravidão. Foram eles:

Art. 33. As pessoas a quem incumbe dar á matricula filhos livres de mulher escrava,
não o fazendo no tempo e do modo estabelecido, incorrerão, se por mera negligencia,
na multa de 100$000 a 200$000, tantas vezes repetida quantos forem os individuo-
somittidos na matricula; se por fraude, nas penas do art. 179 do Codigo Criminal.
Incorrerão na multa de 10$000 a 50$000, se forem omissas em communicar o fal-
lecimento dos mesmos filhos livres de mulher escrava. Art. 34. Na multa de 50$000
a 100$000 incorrerá a pessoa que fizer intencionalmente declarações inexactas; e si
essas declarações tiverem sido feitas no intuito de serem matriculadas como escravas
crianças nascidas no dia 28 de Setembro do corrente anno ou posteriormente, soffre-
rá, além disso, as penas do art. 179 o Codigo Criminal.12

As penas estabelecidas para o crime de “Reduzir á escravidão a pessoa livre, que se achar
em posse da sua liberdade”13, previstas no artigo 179 do Código Criminal de 1830 eram de prisão en-
tre três a nove anos e multa correspondente à terça parte do tempo que durara a escravização ilegal.14
Em livro jurídico publicado em 1862,Josino do Nascimento Silva, que foi diretor geral da Secretaria
de Estado dos Negócios da Justiça, realizou um estudo acerca do Código Criminal, em que apresentou
as alterações de algumas leis, revogações de outras desde a publicação do Código Criminal de 1830, e
o cálculo das penas nos diversos graus, consideradas mínimas, médias e máximas.15 No que se refere
ao cálculo das penas a serem executadas com base no Art. 179 Código Criminal, o jurista apresentou
três categorias diferentes: a primeira dirigia-se “Ao criminoso autor: Maximo— 9 annos de prisão
simples, e multa correspondente á terça parte do tempo. Médio— 6 annos, e multa, etc. Minimo —
3 annos, e multa, etc.”; a segunda encaminhava-se “Aos criminosos por tentativa ou cumplicidade:
10 Fonte: Lei de 7 de novembro de 1831. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-
1899/lei-37659-7-novembro-1831-564776-publicacaooriginal-88704-pl.html>. Acesso em: 27 de maio de 2018.
11 Fonte: Decreto nº 4.835, de 1º de dezembro de 1871. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
decreto/historicos/dim/dim4835.htm>. Acesso em: 27 de maio de 2018.
12 Fonte: Decreto nº 4.835, de 1º de dezembro de 1871. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
decreto/historicos/dim/dim4835.htm>. Acesso em: 27 de maio de 2018.
13 Fonte: Código criminal de 1830. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-
1830.htm>. Acesso em: 27 de maio de 2018.
14 Fonte: Código criminal de 1830. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-
1830.htm. Acesso em: 27 de maio de 2018.
15 SILVA, Josino do Nascimento. Código Criminal do Império do Brasil: argumentado com as leis, decretos,
avisos e portarias que desde a sua publicação até hoje se tem expedido, explicando, revogando ou alterando al-
gumas de suas disposições com o calculo das penas nos diversos gráos. Nova Edição. Rio de Janeiro. Publicado
e a á venda em casa de Eduardo e Henrique Laemmert, Rua da Quitanda, 77, 1862.

167
Maximo—6 annos de prisão simples, e multa correspondente á terça parte do tempo. Médio — 4
annos, e multa, etc. Mínimo — 2 annos, e multa, etc.” e a terceira direcionava-se “Ao criminoso por
cumplicidade na tentativa: Maximo— 4 annos de prisão simples, e multa correspondente á terça parte
do tempo. Médio — 2 annos e 8 mezes, e multa, etc. Minimo— 1 anno e 4 mezes, e multa, etc.” Ao
final do seu cálculo, o autor chama atenção para o fato de que a lei instituía que o tempo de prisão do
escravizador nunca poderia ser menor do que o tempo em que ele mantivera a vítima sob cativeiro
injusto, e mais uma terça parte.16

Até este momento não podemos afirmar com precisão a data ou as datas em que João
Pereira de Carvalho e o genro deste, João Evangelista Cavalcante, foram pronunciados pelo crime de
reduzir pessoa livre à escravidão. Todavia, sabemos que isso ocorreu entre os anos de 1856 a 1858.
Alguns indícios apontam que, caso João Pereira de Carvalho tenha sido condenado com base neste
crime, ele,provavelmente, não cumpriu o que, conforme apresentado no fragmento acima, o jurista
Josino do Nascimento Silva interpretou como sendo o mínimo para a pena prevista no artigo 179 do
código criminal de 1830.
No dia 15 de agosto de 1863, o jornal cearense D. Pedro II informou que João Pereira de
Carvalho havia sido preso pelo delegado da cidade do Crato por “haver reduzido a escravidão pessoa
livre”.17 Poucos meses depois, o escravizador de Hypolitateve novamente o seu nome publicado na
imprensa cearense. Dessa vez, o assunto foi a fuga de João Pereira e sobre esse tema,a Gazeta Official
do Cearainformou o seguinte:

Por comunicação do delegado de policia do termo do Crato, consta que o criminoso


de reduzir á escravidão pessoa livre no termo do Exu de Pernambuco, João Pereira
de Carvalho, fugira em caminho daquela cidade para aquelle termo, do poder da
escolta que de lá viera buscal-o na cadeia daquela cidade.18

É provável que depois dessa fuga João Pereira não tenha sido preso novamente.Contudo, se isso
realmente ocorreu, o motivo não parece ter sido o desconhecimento do seu paradeiro por parte das
autoridades policiais, como indica a nota veiculada anos mais tarde, em 1867, no jornal A Constitui-
ção:

Aos Srs. Drs. Chefes de policia desta e da província de Pernambuco. Existe publica-
mente em seu sitio S. Cruz, neste termo, poucas legoas distante desta cidade, João
Pereira de Carvalho pronunciado em crime de reduzir pessoa livre a escravidão, na

16 SILVA, Josino do Nascimento. Código Criminal do Império do Brasil: argumentado com as leis, decretos,
avisos e portarias que desde a sua publicação até hoje se tem expedido, explicando, revogando ou alterando al-
gumas de suas disposições com o calculo das penas nos diversos gráos. Nova Edição. Rio de Janeiro. Publicado
e a á venda em casa de Eduardo e Henrique Laemmert, Rua da Quitanda, 77, 1862, p. 225- 227.
17Repartição da policia. Jornal Pedro II. Fortaleza. 15 de agosto de 1863, p. 4.
18 Evasão. Gazeta Official: A Gazeta Official do Ceara. Fortaleza. 28 de nov., 1863, p. 4.

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comarca do Ouricury da província de Pernambuco. Crato, 18 de julho de 1867.19

Em 1867, havia se passado,mais ou menos, uma década desde que, João Pereira foi pro-
nunciado por crime de reduzir pessoa livre à escravidão. Todavia, durante todo esse tempo, é possível
que ele tenha sido mantido preso na cadeia do Crato por no máximo quatro meses.Em 17 de outubro
daquele mesmo ano,1867, João Pereira faleceu. A escravização ilegal de Hypolita e seus filhos ficou
impune, judicialmente. Ainda assim é possível afirmar que, sob certa ótica, Hypolitafoi vitoriosa. Ela
conseguiu sua liberdade e a de seus filhos. João Pereira se não ficou preso, mas, teve a sua imagem de
bom cidadão manchada publicamente. Até o fim da sua vida ele foi referido na imprensa cearense
como escravizador de gente livre. Talvez, nem estivesse entre os objetivos de Hypolita, porém sua luta
repercutiu em outras vidas.Fez nascer outras lutas, ou pelo menos, uma outra luta, a de Maria, refe-
rida inicialmente, pela sua liberdade e a de seus oitos filhos. Passemos então a conhecer um pouco da
trajetória dessa outra mulher, também personagem verídica de um fragmento da sinistra história da
escravidão no Brasil oitocentista.
Maria nasceu em 1829, no sertão caririense, província do Ceará, mais precisamente em
Barbalha, naquele período um povoado dependente administrativamente da vila do Crato, - onde
Hypolita foi escravizada, reiteremos - da qual foi desmembrado em 1848, e elevado à categoria de vila.
Maria era filha de Luiza, uma cativa. Herdou o infortúnio dessa mãe, a sua condição social e jurídica
de escrava. O pai de nossa protagonista se chamava Manoel da Silva Monteiro, um homem livre, avô
e tutor, ou seja, representante legal, do proprietário desta, que era Manoel da Silva Lima, a essa altura
órfão de pai e menor de idade. Desse modo, nos encontramos diante de uma situação estranha aos
olhos do leitor de hoje: a existência de um laço de sangue entre Maria e seu proprietário, ela vinha a
ser tia dele. Com três meses de vida nossa personagem ganhou de seu pai a alforria. O presente rece-
bido, a carta de liberdade, custou a quantia de 30 mil reis. Depois disso, ela vivenciou a liberdade por
quase dez anos, quando foi reescravizada pelo seu sobrinho, já referido, a essa altura casado e maior
de idade, e pelo sogro deste, José Machado, homens livres.

Nosegundo cativeiro, no qual foi mantida durante 23 anos, Maria teve oito filhos, que em
virtude da lei não poderiam ser escravizados, mas o foram. Após a morte de Manoel da Silva Lima,
sobrinho e pretenso dono de Maria, foi realizado o inventário post-mortem do falecido e seus bens
foram partilhados entre os beneficiários. Arbitrariamente, nove pessoasforam incluídas no inventário
post-mortem e couberam como quinhão aos herdeiros. Concluída a divisão dos bens, Maria e seus
filhos João, Vicente e Valério passaram a pertencer a Anna Josepha; outros dois rebentos de Maria,
Ritta e Felismina, foram somados ao patrimônio dos menores Clara e Joaquim; Luíza, mais uma filha
de Maria coube a José Joaquim Bezerra; Gertrudes ficou sob a posse de Manoel da Silva Lima (filho)
e Delfina, nascida de Maria, foi herdada por Francisco da Silva Lima, que a vendeu a João Quesado
de Filgueiras.20
19Aos Srs. Drs. Chefes de policia desta e da província de Pernambuco. Jornal A Constituição. Fortaleza. 18 de
ago., 1867, p. 4.
20 Fonte: Arquivo Nacional- Fundo/Coleção Supremo Tribunal de Justiça- Série – Revista cível Ano inicial
1862, ano final 1876. Ficha BR_RJANRIO_BU_0_RCI_0272, F. 17 v.

169
O novo pretenso senhor de Delfina, João Quesado de Filgueiras, também residia em Bar-
balha, era tenente-coronel da Guarda Nacional e membro do Partido Conservador. A venda de Delfi-
na certamente foi um dos principais eventos desencadeadores do litígio que estava por vir e se tornou
notícia de jornal. No dia 13 de setembro do ano de 1862 foi publicada, no jornal O Araripe, a denún-
cia da escravização ilegal de uma das filhas de Maria, Delfina, pessoa livre:

CAPTIVEIRO – Há dias se diz nesta cidade que debaixo do senhorio de João Quesa-
doFilgueiras. Primeiro substituto do juis municipal em exercício da Barbalha, existe
uma mulher livre. O Sr. Dr. Juis de direito e Promotor publico achão-se autorizados
para afirmal-o, e consta-nos que tem documentos que vão levar ao conhecimento da
autoridade superior. Em negocio de tamanha gravidade nenhum respeito, nenhu-
ma consideração se deve guardar; será pois muito conveniente que as autoridades, a
quem foi revelado este crime, se apressem em manutenir a liberdade dessa mulher, e
convencer de falso ao seo falso senhor. Ahi vai o interesse de ambos. De nossa parte
concorremos para a dilucidação desse negocio com algumas provas, que nos minis-
trão os interessados pela liberdade dessa infeliz.21

O Araripe, jornal cratense, que publicou essa nota, e que cedeu grande espaço à história
de Hypolita, era lido no Ceará e em Pernambuco. Ele foi fundado por João Brígido dos Santos, que
o editou durante os anos de 1855 a 1865. O editor era um intelectual proeminente, tendo publicado
vários livros, advogado, na época residente em Crato, integrante do Partido Liberal. Tempos antes, ele
havia morado em Barbalha, e possivelmente foi lá que ele conheceu a protagonista desta história. No
entanto, foi somente em 1862, um mês após a publicação dessa matéria, que João Brígido dos Santos
incumbiu-se da tarefa de representar legalmente Maria e seus filhos em ação de liberdade contra os
herdeiros do sobrinho desta, Manoel da Silva Lima e João Quesado que comprou Delfina.

Por meio dessa batalha jurídica, Maria pretendia recuperar a sua liberdade e a de seus oito
filhos e provar a ilegalidade desses cativeiros. João Brígido e João Quesado eram adversários políticos
e várias vezes o dono d’O Araripe usou seu veículo de comunicação para dirigir críticas a João Quesa-
do. Mas essa era a primeira denúncia de escravização de gente livre contra ele e teve uma repercussão
importante para o caso, embora João Brígido não tenha divulgado amplamente a história de Maria
em seu jornal, como fez com a história de Hypolita.

A informação da matéria acima transmitida n’O Araripe desencadeou outras ações e foi
objeto de expediente do governo da província. Nesse documento se determinava que o fato fosse
averiguado pelo juiz de direito da comarca do Crato, ao qual o termo de Barbalha era vinculado. O
despacho daquele expediente foi publicado em 1º de novembro de 1862 no jornal Gazeta oficial (do
Ceará), e dizia:

Ao juiz de direito da comarca do Crato – Lendo-se no Araripe n. 288 de 13 de setem-


bro ultimo que João QuesadoFilgueiras, 1º substituto do juiz municipal em exercício
na Barbalha, tem em captiveiro uma mulher livre, cumpre que Vmc., procedendo ás
21 CAPTIVEIRO, O Araripe, Crato.13 de set., 1862, p.1.

170
mais escrupulosas averiguações. me informe a este respeito.22

Francisco Rodrigues Sette foi o juiz encarregado de investigar a acusação de que João
Quesado estaria mantendo em sua propriedade uma pessoa livre na condição de escrava. Em janeiro
de 1863 ele responde à solicitação do presidente da província, detalhando os resultados que ele teria
obtido sobre o caso de Maria e seus filhos. Eis o conteúdo do ofício:
cumpre-me dizer que ha dousannos pouco mais ou menos [João Quesado] comprou
aos herdeiros de um Manoel da Silva Lima, uma mulatinha de menor idade pelo seu
justo valor: ultimamente porem appareceo uma carta de liberdade assignada pelo
dito Lima, quando este tinha doze annos em favor da mãi de dita mulatinha; em con-
sequência d’isto achão-se depositados mãe, e os filhos, inclusive a que João Quezado-
Filgueiras comprou, e já se intentou a competente acção de liberdade não só contra
o mesmo Filgueiras, mas contra a viúva e mais herdeiros de Manoel da Silva Lima,
que defendem o seu direito. Segundo as informações que tenho esta questão não é
tão clara, que se possa definitivamente chamar livre a mulher, em favor de quem foi
passada a carta. – O juiz de direito, Francisco Rodrigues Sette.23 [Grifo nosso]

Quando Francisco Rodrigues Sette escreveu este ofício endereçado ao presidente da pro-
víncia, em janeiro de 1863, a ação de liberdade de Maria e seus filhos, curatelada por João Brígido, já
estava em curso. O que quer dizer que nesse período João Quesado e os herdeiros de Manoel da Silva
Lima, sobrinho e ex-proprietário de Maria, eram réus de um processo judicial na vara civil. Contudo,
a partir do despacho desse juiz de Direito, apesar de ele, explicitamente, não dar um veredito sobre
qual das partes tinha razão, sua suspeita se volta para Maria e não para os réus daquele processo.

A estratégia narrativa de Francisco Rodrigues Sette consiste, implicitamente, em desqua-


lificar e questionar quaisquer provas ou indícios da liberdade de Maria e de seus filhos, com o mesmo
vigor com que busca induzir os leitores a acreditarem na inocência dos réus, os pretensos donos de
Maria e de seus filhos. O discurso do juiz Francisco Rodrigues Sette sobre o caso de Maria e seus
rebentos não deve nos causar surpresa. Como sabemos, no Brasil, principalmente antes que o movi-
mento abolicionista ganhasse fôlego, os africanos e seus descendentes eram tratados como cativos até
que conseguissem provar que eram libertos ou livres.

Embora o ofício exibido acima tivesse sido endereçado ao presidente da província, este
com certeza não seria o único a ler suas palavras. Liam-nas todos osleitores da Gazeta oficial (do
Ceará), veículo de comunicação oficial do governo que publicava despachos, ofícios, documentos
administrativos, etc.. Muitas vezes as autoridades policiais e judiciais expunham, nos periódicos, suas
interpretações acerca das ações que envolviam pessoas escravizadas. Essas posições variavam muito:
por exemplo, o juiz Francisco Rodrigues Sette,que deu indícios de que era favorável à escravização
de Maria e de seus oito filhos, numa outra situação,também ocorrida no Cariri, chegou a defender
22 Ao juiz de direito, Gazeta oficial, Fortaleza, 1º de nov., 1862, p. 1.
23 Parte oficial. Gazeta oficial, 10 de jan., 1863, p. 3.

171
publicamente a liberdade de Hypolita e de seus seis rebentos.

O Cariri cearense, o espaço geográfico, no qual se passam as histórias de Maria e seus


filhos, Hypolita e seus descendentes, e tantos outros escravizados é um cenário que desde cedo foi
delineado pelo poder de certas famílias. Muitas vezes, essas famílias aparecem contracenando com
cativos que estão lutando pela liberdade e ou outras vezes com livres pobres em relações de trabalho
conflituosas.

O Cariri,com seus 76.069 habitantes, livres e escravos, compreendiauma parcela sig-


nificativa dos habitantesdo Ceará. De acordo com Thomaz Pompeu Brasil, entre 1857 e 1858 a
população cativa de Barbalha era de 651pessoas e a de Crato 1.326 pessoas.24Nessa época, Maria e
seus filhos se encontravam escravizados. Por essa razão é provável que eles tenham sido contabili-
zados nessa estatística populacional. Entre 1857 e 1858, anos a que se referem os dados estatísticos,
Hypolita e seus filhos também se achavam na condição de escravizados. É presumível que eles
tenham, igualmente, sido somados a esses dados.

Mas a essa altura a ação de liberdade de Hypolita e seus filhos já corria nos trâmites da
Justiça. Os cenários principais desse duelo social e jurídico foram Crato (Ceará) e Exu (Pernam-
buco), lugares em que ela viveu. Este estudo, inserido no campo da história social da escravidão,
priorizou a narrativa de vida. Nele, Hypolita é tomada como sujeito de sua história, enfatizando-se
sua luta contra valores senhoriais e patriarcalistas de uma sociedade escravocrata. Aparentemen-
te banal, o caso de Hypolita está atravessado por uma infinidade de condutas sociais, jurídicas,
econômicas e políticas.Na história de Hypolita foram as relações que ela estabeleceu com pessoas
livres do Crato, Exu e de outras localidades que fizeram a diferença, potencializando sua luta pela
liberdade.

A publicidade alcançada por seu caso possibilitou que pessoas livres testemunhassem a
seu favor, que moradores do Crato e do Exu enviassem correspondências para serem divulgadas no
jornal e que ela recebesse abrigo de pessoas livres quando fugiu da casa de seu pretenso proprietário.
A movimentação de Hypolita, lutando para preservar sua liberdade, fazendo sua causa chegar aos
juízes, à imprensa, aos protetores, aos presidentes de província, aos moradores locais, desencadeia
acontecimentos, mobiliza ações, coloca em evidência os vícios do sistema judiciário e provavelmente
influencia outras mulheres escravizadas a lutarem pela liberdade.

Seguramente o jornal O Araripe, que veiculou a história de resistência à escravidão de


Hypolita, circulava na vila de Barbalha, onde Maria e seus filhos viviam escravizados, e certamente
Maria tomou conhecimento das desventuras daquela mulata. A nossa hipótese é de que Maria tirou
para si algumas lições da história de Hypolita, o que não quer dizer que as suas lutas tenham seguido
exatamente os mesmos caminhos e que Maria tenha obtido resultados semelhantes àqueles alcança-
dos por Hypolita.

Maria procurou arrimo em João Brígido dos Santos e essa foi uma escolha duplamente
24 BRASIL, Thomaz Pompeu de Sousa. Dicionário Topográfico e Estatístico da Província do Ceará. Rio de
Janeiro, Eduardo & Henrique Laemmert, 1861.

172
interessante. Primeiro porque ele era adversário político de João Quesado, contra quem ela teria que
lutar, se quisesse defender a liberdade de sua filha Delfina, que ele havia comprado. Maria sabia que
Hypolita começara a lograr vitórias expressivas à sua causa de liberdade somente quando esta con-
quistou a proteção de um antagonista político e inimigo de seu escravizador. Segundo porque João
Brígido era dono e editor do jornal que deu publicidade à luta de Hypolita pela sua liberdade e a de
seus filhos. Provavelmente, Maria almejava que a sua história também fosse divulgada no jornal para
que aumentassem suas possibilidades de conquistar a sua liberdade e a de seus filhos.

É nesse sentido que as análises realizadas por ReinhartKoselleck, acerca do tempo his-
tórico nos auxiliam na interpretação dos aprendizados adquiridos por Maria, por meio da luta de
Hypolita, e no modo como eles exerceram influência sobre suas atitudes. O autor de“Futuro passado”
definiu as noções de tempo histórico a partir de duas categorias históricas “Espaço de experiência” e
“horizonte de expectativa”. Essas categorias não indicam acontecimentos históricos específicos.25

Em síntese, conforme ReinhartKoselleck, a história é feita a partir das experiências que as


pessoas vivem e que são reportadas a um passado. Diversamente das experiências, para este autor, as
expectativas dos indivíduos têm como parâmetro suas noções de futuro. Contudo, não se trata impre-
terivelmente de um futuro distante, mas também daquele futuro próximo ou imediato, que é quase
presente, mas ainda não está acontecendo. De acordo com este historiador, embora sejam distintas,
as experiências das expectativas, não são opostas, e são as diferenças existentes entre elas que produ-
zem uma tensão, e a partir desta, é criado o tempo histórico.

Este autor observa que com o avanço da era moderna, a concepção de progresso em de-
trimento da ideia de profecia e a velocidade das mudanças alteraram as relações entre os homens e os
horizontes de expectativas. Passou-se a acreditar no novo, e com isso, cada vez mais as experiências
foram se tornando díspares das expectativas. Para determinar o próprio tempo como moderno em
oposição ao passado, e por extensão à história antiga, era preciso uma postura diferente ante o pas-
sado, mas também em relação ao futuro. Somente depois que a expectativa cristã no fim do mundo
perdeu seu caráter de contínuo presente, pôde-se descobrir um tempo ilimitado e aberto ao novo.

Quando estudamos a história de Maria, estamos analisando suas experiências enquanto


sujeito produtor de história. A partir de seus “espaços de experiências”, que envolvem o desenrolar
dos lances da vida de Hypolita, Maria construiu seus “horizontes de expectativas”, suas estratégias
de luta. Maria viveu suas próprias desventuras masa composição de suas experiências passa pelo co-
nhecimento que ela teve dos infortúnios e êxitos vivenciados por Hypolita. Há semelhanças entre as
histórias de Maria e de Hypolita: ambas foram escravizadas ilegalmente e tiveram seus diversos filhos,
pessoas livres, jogadas no cativeiro. Decerto, de algum modo aquela trajetória tocou Maria, a encora-
jou, lhe deu esperanças de reconquistar a sua liberdade e a de seus filhos e lhe inspirou a confrontar-se
com seus escravizadores. A história de Hypolita foi exemplar por vários motivos, dentre eles porque
ela processou seu escravizador na vara cível, em ação de liberdade e também na vara criminal pelo
25 KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos; tradução, Wilma
Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira; revisão César Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto-Ed. PUC-Rio,
2006.

173
crime de reduzir pessoa livre à escravidão.
Hypolita era livre. Mas Maria era liberta e apesar de os libertos serem titulares de direito
em caso de reescravização, passavam a depender de pessoas livres para representá-los judicialmente.
Ou seja, em caso de reescravização legal ou ilegal eles perdiam todos os seus direitos civis. Essa insta-
bilidade social e jurídica tornava a rede de solidariedade existente entre escravizados, libertos e livres
uma importante ferramenta na conquista e preservação da liberdade. Não era fácil ajuizar uma ação
cível de liberdade. Pelo fato de terem conseguido um curador, Maria e seus filhos foram vitoriosos
diante dos primeiros desafios e em 1862 foi iniciado processo judicial deles. Esse conflito foi longo
e somente em 1876 chegou ao Supremo Tribunal da Justiça, terceira e última instância do processo.
Nossa tarefa investigativa está revelando dados e fragmentos, a partir da peça de ação cível de liber-
dade de Maria. Essas informações, quando teorizadas adquirem certa lógica. É neste sentido que os
conceitos de discurso oculto e discurso público de James Scott estão auxiliando na compreensão des-
te estudo de caso, acerca das resistências cotidianas e das instâncias jurídicas enfrentadas por nossa
personagem. O discurso oculto, praticado pelos oprimidos, consiste numa infrapolítica, um tipo de
resistência cotidiana à opressão exercida pelos dominadores. Segundo Scott, “todos os grupos criam,
a partir de sua experiência de sofrimento, um ‘discurso oculto’ que representa uma crítica do poder
expressa nas costas do poder”26. Quanto maior for a opressão, maiores são as chances dos subalternos
sofrerem retaliações em caso de resistência aberta, afrontando diretamente o opressor. Assim, os su-
bordinados são encorajados a criarem espaços próprios de resistência individual, mas, principalmen-
te, coletiva, com outros subordinados, nos quais driblam a vigilância dos superiores.

Antes de processar os seus pretensos donos, Maria, - bem como Hypolita -provavelmen-
te construiu a sua volta um discurso oculto, pacientemente ao longo de muitos anos, embora não
empregasse os nomes usados muito mais tarde pelo pesquisador James Scott. A gota d’água, a situa-
ção-limite que fez Maria tornar público o discurso que antes fora oculto, foi a separação em relação
à sua família, consumada com a venda de sua menina Delfina. Após esse fato, ela enfrenta face a face
os escravizadores, e depois consegue lutar pela liberdade na Justiça. Suas testemunhas no processo,
as quais também passaram a enfrentar abertamente os escravizadores, foram as mesmas pessoas que
ao longo de anos compartilharam o discurso oculto com Maria, seus ex-vizinhos, e principalmente
vizinhos.

Oficialmente, a luta judicial de nossa personagem pela sua liberdade e a de seus filhos teve
início em seis de outubro de 1862. Nessa data, o advogado João Brígido dos Santos emitiu a petição
inicial do processo endereçada ao juiz municipal substituto da vila de Barbalha, José Pacifer de Sá.
Nela, o advogado apresenta a razão da ação de liberdade ao mesmo tempo em que lança um argumen-
to fundamental para o processo que se iniciava. Na versão do curador de Maria, ela seria uma forra
porque,apesar de sua mãe ser uma escrava, Maria teria sido alforriada quando tinha três meses de
vida, e seus filhos eram pessoas livres porque haviam sido gerados por uma mulher liberta, de ventre
livre. Portanto, segundo João Brígido, eram ilegítimos os cativeiros dessas nove pessoas, uma liberta
e oito livres. No mesmo documento o advogado solicita que fosse realizada a nomeação de curador

26SCOTT, James C. A Dominação e a Arte da Resistência: discursos ocultos. Lisboa: Letra Livre, 2013.

174
para Maria e seus filhos e que os mesmos fossem apreendidos e depositados com segurança.27

No processo, após o termo de juramento, procedimento padrão em uma ação judicial,


João Brígido, o curador, entregou ao juiz municipal uma transcrição da carta de alforria de Maria
registrada no livro de notas do cartório de Missão Velha, como prova material de sua liberdade. Po-
tencialmente, esse documento teria força de comprovação da liberdade de Maria e consequentemente
também de sua prole. Parece ter sido um caso simples de ser resolvido pela Justiça, considerando a
existência dessa cabal evidência, mas não foi. Juridicamente esse documento poderia apresentar uma
fragilidade e a sua validade foi contestada pelo advogado dos réus. Quando Manoel da Silva Lima,na
época proprietário de Maria, assinou a carta de alforria, ele tinha 12 anos, era menor, órfão tutelado
pelo seu avô, que vinha a ser o pai de Maria. João Brígido, conhecendo a vulnerabilidade dessa pro-
va, se antecipou e anexou ao processo uma caracterização do perfil do sobrinho da escravizada, no
momento da assinatura do documento, como uma maneira de legitimar a validade da referida carta.

João Brígido também argumentou procurando demonstrar que a reescravização de Ma-


ria era ilegal porque foi operada pela força, por meio de opressão, sem anulação oficial da alforria
e sem ação civil de escravidão, ou seja sem nenhum amparo legal. Esse bacharel em Direito, alegou
ainda que a escravidão dela já havia prescrito. As Ordenações Filipinas no livro 4°, título 79, trata-
va das prescrições e o tempo estabelecido para prescrever a escravidão de uma pessoa considerada
propriedade perante o Direito dos tempos coloniais, ainda em voga no Brasil imperial, era de trinta
anos. Recapitulemos: do período em que Maria adquiriu a sua carta de alforria e com ela, a posse da
liberdade, aos três meses de vida até o momento no qual ela foi reescravizada pelo seu sobrinho, se
passaram provavelmente cerca de dez anos. Por este mecanismo jurídico, a escravidão de Maria não
havia sido prescrita. Todavia, João Brígido estava amparado legalmente quando argumentou que a
alforria de Maria não poderia ser mais revogada e que sua escravidão havia prescrito, uma vez que
ela gozou de liberdade por quase dez anos, sem haver contestação acerca de sua condição jurídica. O
advogado expunha esta afirmação com base no Alvará de 10 de março de 1682.

A historiadora Silvia Lara, aoanalisaras dimensões políticas das negociações nas quais
envolveram Palmares, observou que “a reescravização dos habitantes da aldeia de Cucaú deu origem
a um longo debate sobre a liberdade e o cativeiro dos negros dos palmares, que culminou no alvará de
10 de março de 1682”28. A utilização deste Alvará, citado por João Brígido com o objetivo de dar fun-
damento jurídico à prescrição da escravidão de Maria,foi objeto de estudo de diversos historiadores,
dentre eles Keila Grinberg, e Lenine Nequete e guarda uma história no mínimo instigante. Instituído
durante o período colonial com a finalidade de designar e organizar a repressão aos quilombolas de
Palmares, o alvará estabelecia um prazo máximo de cinco anos para os proprietários reclamarem os
escravos fugidos para Palmares e definia como cativas as crianças que nascessem em Palmares, filhos

27 O mandado de apreensão e depósito judicial do cativo, logo no início da ação de liberdade, tinha como
objetivo resguardar o escravizado das reações do proprietário que, ao tomar conhecimento de que este estava
lutando na Justiça contra ele, poderia submetê-lo a castigos e assim pressionar para este desistir da ação.
28LARA, Silvia Hunold. Palmares e as autoridades coloniais: dimensões políticas de uma negociação de paz.
The Gilder Lehrman Center for the Study of Slavery, Resitance, and Abolition – International Conference at
Yale University: Approches to Slavery and Abolition in Brazil, October, 2010, p.13

175
das escravas em fuga. Assim, da sua criação até o final da década de 50 do século XIX, ele foi utilizado
exclusivamente, pelos advogados dos supostos proprietários em ações de escravidão. A partir da déca-
da seguinte,com o movimento abolicionista já em andamento, ocorreu uma nova interpretação dessa
legislação, que passou a ser usada principalmente nas ações de liberdade em favor dos escravizados,
sob o argumento da prescrição da escravidão. João Brígido mostrou-se afinado com o debate jurídico
que ocorria no Brasil naquele momento.

As narrativas dasvárias pessoas que testemunharam e outros documentos partícipes da


peça processual suscitam questões que vão tornando mais complicada a trama que envolve a liber-
dade de Maria. São elas: a comunidade; o consenso sobre o que é, ou não ser liberto; a complexidade
da família escrava dentro da família não escrava, ou seja, as fronteiras entre essas tipologias de laços
parentais; e algumas questões morais e políticas acerca da instituição da escravidão. Tratava-se de
nove pessoas escravizadas dentro de uma família não escrava, reduzidas ao cativeiro pelos parentes.
Muitas testemunhas, em seus depoimentos, informaram detalhes sobre o episódio da reescravização
de Maria, mas alguns dos depoentes também aproveitaram o momento para expressarem suas inter-
pretações sobre o ocorrido e assim afirmaram que consideravam vergonhoso aquela menina ter sido
reescravizada pelo próprio sobrinho, por um indivíduo do mesmo sangue, de quem deveria se esperar
acolhimento e proteção.

O principal argumento jurídico apresentado pelo advogado dos réus, João Quesado de
Filgueiras (que comprou Delfina, filha de Maria), e os herdeiros de Manoel da Silva Lima, sua viúva
Anna Clara e seus filhos Joaquim e Maria Clara,foi o da inviolabilidade dos direitos civis e políticos
dos cidadãos: liberdade, segurança e propriedade prevista no artigo 179 da Constituição Imperial.
João Brígido conhecia bem seu principal opositor, João Quesado de Filgueiras.Na sua arguição ele
declarou que o “Tenente-coronel da G.N., e proprietario dos mais ricos da terra, = João GeusadoFil-
gueiras, que mais que muito cogita detel-os em captiveiro”29.João Brígido temia que a situação econô-
mica e a posição política de QuesadoFilgueiras, e mais os cargos que este ocupava, pudessem exercer
alguma influência sob o juiz que julgaria a ação, interferindo no resultado desta. O receio do advoga-
do era justificável, como podemos constatar no trecho da sentença do processo em primeira instância:

(...) attendendo que a propriedade é garantida (...) em toda sua plenitude pela cons-
tituição do Imperio julgo oz autorezcarecedorez da prezenteacção, prconsidera-loz
escravos, e mando qºsejãoentreguez a seozsenhorez. Barbalha 18 de julho de 1863.
Antonio Furtado de Figueredo Genro.30

João Brígido tinha motivos para pressupor que ele e os autores da ação seriam mal su-
cedidos, prognóstico que se concretizou, uma vez que Maria e seus rebentos perderam o processo

29 Fonte: Arquivo Nacional- Fundo/Coleção Supremo Tribunal de Justiça- Série – Revista cível Ano inicial
1862, ano final 1876. FichaBR_RJANRIO_BU_0_RCI_0272. F 58f.
30 Fonte: Arquivo Nacional- Fundo/Coleção Supremo Tribunal de Justiça- Série – Revista cível Ano inicial
1862, ano final 1876. FichaBR_RJANRIO_BU_0_RCI_0272. F 58f

176
na primeira instância, julgado em Barbalha em julho de 1863. Mas nas ações de liberdade, a parte
perdedora tinha direito a interpor embargos sobre a sentença, esses que poderiam ser aceitos ou não
pelo juiz. O curador de Maria, usando deste direito, tentou embargar a sentença desfavorável aos seus
curatelados. Conforme o curador, “a sentença foi proferida por Antonio Furtado de Figueredo Gen-
ro, amigo intimo do Embargado João GuesadoFilgueiras, o qual o dirige em todos os actos em que
funcciona como Juis”31.

Desse modo, a partir de um julgamento que nos parece tendenciosoe parcial visto que o
juiz mantinha relações estreitas com João Quesado, um dos réus, daquele processo,foi oficializada a
legalização da escravização ilegal de nove pessoas. Mas uma coisa é a sentença oficial. Outra coisa é
como as pessoas da época, e do meio, se posicionam em relação a esseresultado. O pedido de vista da
sentença foi julgado por Benjamim Pinto Nogueira, em 12 de setembro de 1864, na comarca do Crato,
e a decisão do juiz foi novamente desfavorável para Maria e seus filhos, na sentença, todos eles foram
considerados cativos.

O processo poderia ter seguimento, e para tanto caberia apelação aoTribunal da Relação,
mas ao final da primeira instância Maria sofreu mais um golpe que poderia ser fatal para a sua liber-
dade e a de seus filhos. Ela perdeu seu curador. Na peça processual consta a informação de que João
Brígido havia deixado de ser curador de Maria porque teria se mudado para a capital, no caso, For-
taleza. Entretanto, Maria conseguiu outro representante, e em 28 de setembro de 1864, Bernardino
Gomes de Araújo foi nomeado seu novo curador. O novo curador imediatamente começou a atuar no
processo e em primeiro de outubro apelou da sentença para o Tribunal da Relação.

Três anos se passaram, estávamos no final do ano de 1869.Nesse período foram juntadas
petições e publicações de despachos, entre outros, e a causa foi julgada, em 14 de dezembro de 1869,
no Tribunal da Relação pelo seu colegiado e o Desembargador juiz semanário José Pereira da Costa
Motta mandou publicar o seguinte Acórdão: “(...) Declaro portanto, liberta a appellante Maria e livres
seus filhos e descendentes. Recife, 14 de Dezembro de 1869.”32Depois de cinco anos, desde o início da
ação essa fora a primeira decisão favorávelà liberdade de Maria e de seus filhos. Depois dessa decisão,
o processo continuou nos seus tramites burocráticos, os interessados foram intimados acerca daquele
Acórdão. Os réus, antes representados pelo próprio João Quesado, agora tinham dois procuradores,
Joaquim de Souza Reis, e João Barata de Almeida. O primeiro não recebeu intimação porque havia se
ausentado da província do Ceará; o segundo foi intimado a respeito daquela decisão e peticionou o
embrago da sentença.

O dia tão aguardado chegou, o julgamento foi realizado em 3 de agosto de 1872 e o des-

31 Fonte: Arquivo Nacional- Fundo/Coleção Supremo Tribunal de Justiça- Série – Revista cível Ano inicial
1862, ano final 1876. FichaBR_RJANRIO_BU_0_RCI_0272. F. 78f.
32 Fonte: Arquivo Nacional- Fundo/Coleção Supremo Tribunal de Justiça- Série – Revista cível Ano inicial
1862, ano final 1876. Ficha BR_RJANRIO_BU_0_RCI_0272. F. 108 v.

177
fecho foi nefasto para Maria33. O Acórdão34 desse julgamento de Maria foi publicado pelo Desem-
bargador, juiz semanário José da Costa Motta e assinado por mais seis desembargadores. Ao final da
folha na qual foi escrita o Acórdão, abaixo das rubricas estava escrito a palavra “vencido”. A palavra
se referia à autora do processo, ou seja Maria. O termo “vencido” dizia muito sobre a situação de
Maria naquele momento. Não fora somente o embargo que ela perdera, mas também seu 2º curador,
Bernardino.

Apesar disso, Maria não desistiu de lutar pela sua liberdade e de seus filhos e conseguiu
um advogado para representá-la, o bacharel em Direito José dos Anjos Vieira de Amorim, que pediu-
pediu vistas dos autos em 10 de agosto de 1872. Contudo, mais um acontecimento em seu desfavor
estaria por vir.Desta vez foi a morte do terceiro representante de Maria naquela ação. Ela não conse-
guiu em tempo hábil outra pessoa para substituir o advogado falecido. Em síntese, o pedido de vista
de Maria não foi analisado por falta de documentos e o Acórdão no qual ela perdera foi confirmado,
quer dizer, repetido. Sem um representante legal, pessoa livre, nossa protagonista não poderia dar
continuidade ao processo, e assim acabaria voltando para o cativeiro de seu pretenso dono, e seria
novamente separada de sua filha Delfina que havia sido vendida para João Quesado.

Mas o processo não tinha, necessariamente, de terminar aqui, Maria podia pedir vistas
da sentença novamente. Contudo, para, que isso se concretizasse, ela teria primeiro que arranjar um
novo curador ou advogado para lhe representar. Não conhecemos os detalhes de mais esse desafio
enfrentado por Maria. O certo é que em 10 de março de 1874 o Desembargador Juiz Lourenço José
da Silva Santiago, relator do processo de Maria, nomeou para ela e seus filhos um novo representante
legal. O bacharel José Eustaquio Ferreira Jacobina, o quarto curador de nossa personagem e seus
rebentos,pediu vistas da decisão proferida e seus argumentos foram juntados ao processo, que seguiu
seu curso.

Depois de muitas idas e vindas e pedidos de vistas, em 11 de fevereiro de 1876 foi publi-
cado o Acórdão final do julgamento feito pelos desembargadores do Tribunal da Relação de Recife.
Dessa vez, é possível que Maria, seus rebentos, seu pai e aliados que ela conquistou ao longo do
tempo, tenham celebrado esse resultado favorável às liberdades de nossos personagens. Essa foi uma
importante vitória para Maria. Mas sabemos que as ações de liberdade podem passar por até três ins-
tâncias, e aqui era o final da segunda.Isto é, os riscos de Maria perder o processo não tinham cessado.
O duelo travado por Maria na Justiça contra os seus parentes que a reescravizaram e escravizaram
seus descendentes e contra João Quesado, que comprou sua filha Delfina, iniciado em 1862, durou
até, pelo menos, 1876. Nesse interlúdio de quatorze anos, nove pessoas aguardavam suas vidas serem
decididas por juízes e desembargadores, que elas mesmas nunca viram, mas que tinham nas mãos o
poder de mudar os seus destinos.

A Justiça segue uma lógica peculiar, insípida e fria, tem o seu próprio tempo, que é buro-

33 Fonte: Arquivo Nacional- Fundo/Coleção Supremo Tribunal de Justiça- Série – Revista cível Ano inicial
1862, ano final 1876. FichaBR_RJANRIO_BU_0_RCI_0272. F. 126 v.
34 Diferentemente da sentença que provém do veredito de um juiz, o Acórdão é resultante da decisão de um
colegiado, ou seja, mais de uma pessoa analisa e vota sobre a matéria do processo judicial que está em discussão.

178
crático e indiferente aos dramas humanos de quem dela depende. A Justiça afana dias, meses e anos,
que são corroídos pela ansiedade e pelas incertezas em relação ao futuro. No entremeio de quatorze
anos, o tempo que a Justiça levou para decidir sobre a liberdade de Maria, ela viu seus filhos cresce-
rem. Quando o processo teve início, seu menino Valério que praticamente acabara de nascer, estava
com sete meses de vida; no final da luta judicial, estava perto de completar seus quinze anos; Vicente
tinha três, agora já era um rapaz de dezessete anos; Felismina, tinha cinco, estava agora com dezenove;
Gertrudes que tinha sete anos, agora estava com vinte e um; Delfina que tinha nove, já estava com
vinte e três anos; Luisa que tinha onze agora estava com vinte e cinco; as quatro meninas de Maria
haviam se tornado mulheres, enquanto esperavam uma decisão; João que tinha treze, agora estava
com vinte e sete; e Ritta que era uma moça de quinze anos, agora poderia se considerar adulta com
seus vinte e nove anos.

Quatorze anos haviam se passado desde o início desse litígio judicial, Maria tinha trinta
e três anos quando se lançou nessa “guerra”; a essa altura nossa protagonista já estava com quarenta
e sete. Com essa idade, provavelmente ela não seriamais capaz de executar tarefas demasiadamente
pesadas. Naquele período, a expectativa de vida produtiva era baixa, se comparada aos dias de hoje,
e mais ainda para os escravizados, libertos e livres pobres que trabalhavam em atividades que exigia
desses, um maior esforço físico.

A boa saúde e a idade eram critérios levado em conta no instante da avaliação de preços
dos escravizados. Logo, se Maria viesse a perder a terceira e última instância do processo, e em juízo,
fosse considerada uma cativa, provavelmente ela não representasse mais um cabedal tão valioso para
os seus pretensos proprietários. Então, por que João Quesado e os demais réus do processo se empe-
nharam tanto em vencer o processo? A nossa hipótese é de que havia mais de um motivo. Um deles,
certamente, era econômico: não se tratava somente de Maria, mastambém de seus oito filhos, a essa
altura, todos, em idade produtiva, ou seja,eles representavam valor como investimento.

Eles poderiam, por exemplo, ser vendidos para fora da província, nessa época de intenso
tráfico interprovincial, em que os cativos alcançavam preços elevadíssimos. As outras razõesque segu-
ramente motivaram essas pessoas a investirem tempo, dinheiro e energia numa luta judicial durante
quatorze anos, são humanas. Após a denúncia da escravização ilegal de Maria e seus rebentos ter sido
divulgada nos jornais, brigar pela posse deles requeria que se mantivesse uma imagem pública positi-
va. Ora, se nossos personagens ficassem livres, fosse por meio de sentença ou desistência do processo
por parte dos réus, publicamente, João Quesado e os herdeiros de Manoel da Silva conquistariam a
má fama de escravizadores de gente livre. O medo de mais tarde virem a ser processados criminal-
mente pelo crime de reduzir pessoa livre à escravidão, e talvez até serem presos por isso, como João
Pereira de Carvalho escravizador de Hypolita foi, apesar de que por pouco tempo, também pode ter
impulsionado a investirem o máximo que pudessem naquela batalha judicial.

O fato é que João Quesado e os herdeiros de Manoel da Silva Lima, sobrinho e ex-proprie-
tário de Maria, após perderem a segunda instância do processo, julgada no Tribunal da Relação de
Recife, apelaram para terceira e última instância da ação de liberdade. Em dois de setembro de 1876

179
o escrivão35 do Supremo Tribunal da Justiça, localizado no Rio de Janeiro,confirmou o recebimento
do processo. No entanto, na peça da ação de liberdade, da qual dispomos, a revista cível, ou seja, uma
revisão de processo da vara civil, não informase aquele tribunal aceitou revisar o processo. Assim, não
poderemos saber quais foram os destinos de Maria e seus filhos a partir desse ponto. Como se vê, a
escravidão pode afetar a vida das pessoas livres e libertas de muitas maneiras, inclusive tirando-lhes a
liberdade. A cidadania era algo distante do cotidiano desses sujeitos.Mais perto de suas vidas estavam
às histórias que presenciavam e que ouviam em relatos de parentes ou conhecidos que haviam sido
escravizados ou reescravizados e à incredulidade na Justiça, que não era gratuita, como vimos ao final
da primeira instância do processo judicial de Maria.

Neste estudo de caso, nos propusemos a analisar as lutas de Maria e de Hypolitacontra a


escravidão e em favor da liberdade. Entretanto, as histórias dessas personagens não terminam aqui.
Elas continuam seguindo os caminhos da Justiça e os rumos das resistências cotidianas. As histórias
de Maria e de Hypolita, ainda que em pequena escala,contribuem para iluminar a compreensão da
onipresença da escravidão, inclusive no mundo da liberdade. Embora aqui estejamos tratando das
vidas aparentemente insignificantes deduas mulheres descendentes de africanos que foram escravi-
zadas ou reescravizadas ilegalmente, seus sofrimentos ecoaram de alguma maneira sobre a sociedade
dentro da qual elas lutaram. Como afirma ArletteFarge, “As palavras de queixa, de sofrimento, assina-
lam um lugar fronteiriço onde vemos a sociedade gerir, enfrentar o melhor que pode o que lhe acon-
tece; a brecha que a dor formou é também um vínculo social e os indivíduos gerem-no de múltiplas
maneiras.36”

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(Brésil, XIXe  siècle)  »,  Brésil(s)  [En ligne], 11  |  2017, mis en ligne le 29 mai 2017, consulté le 28
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escravidão ilegal de pessoas livres (1850-1888). Tese de doutorado em História Social - Universidade
35 O escrivão do Supremo Tribunal da Justiça assinou a confirmação do recebimento do processo, em forma de
rubrica, assim, não foi possível identificar seu nome.
36 FARGE, Arlette. “Do sofrimento”. Lugares para a História. Trad. Telma Costa. Lisboa. Teorema, 1999, p. 18.

180
Federal do Ceará, Fortaleza, 2017.

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VEYNE, Paul. Como se escreve a história. trad. Alda Baltar e Maria Auxiliadora Kneipp. 4. ed. Brasí-
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181
Religião e dinâmicas de mestiçagens na comarca do Serro do Frio: irmandades, devoção e
sociabilidades no tempo da escravidão – século XVIII 37
Ariel Lucas Silva

Estudos relativos aos domínios da história cultural têm abordado temas relativos ao universo
religioso dos escravos, principalmente aqueles relacionados à presença de africanos e seus descen-
dentes no mundo moderno. A história dos irmãos devotos da Senhora do Rosário no Serro do Frio se
insere no contexto do deslocamento de grandes contingentes populacionais para o interior do Brasil
no final do século XVII e início do XVIII. Esta comunicação apresenta o desenvolvimento inicial da
pesquisa de doutoramento que tem como objetivo compreender e explicar a realidade social dessas
pessoas, a fim de entender e conectar processos históricos de mesclas associadas à vida religiosa em
Minas Gerais, e não apenas os resultados e produtos finais desses processos, como a própria consti-
tuição de irmandades religiosas pelos escravos e suas festas e cerimônias públicas.
Os Irmãos do Rosário deixaram documentação que nos ajudam a compreender a história
social da cultura de onde se faziam presentes, bem como colocam em evidência a vivência dos atores
históricos a elas envolvidos. Através da escrita, homens e mulheres egressos de culturas orais cons-
truíram suas identidades, codificaram discursos sobre a diferença, deixaram registros de um notável
protagonismo cultural (REIS, 1996). Documentos que constituem uma das poucas fontes históricas
do período escravista escritas por negros, ou pelo menos como expressão de sua vontade, que nos
possibilitam desenvolver estudos relativos aos domínios da história social e cultural de Minas Gerais,
com destaque para o universo religioso de escravos e libertos na região da Comarca do Serro do Frio.

Esperamos, assim, contribuir para o aprofundamento da reflexão sobre as ideias/conceitos de


cultura e sociedade, realizadas em sintonia com o amplo quadro de pesquisas historiográficas e multi-
disciplinares que se desenvolvem a partir do pressuposto teórico que reside na afirmação de que toda
realidade é social ou culturalmente constituída.

Para dar sustentação às análises propostas, temos trabalhado com alguns conceitos tributários
do conceito de mestiçagens, como: “trânsitos e trocas culturais”; “sociabilidades” e “dinâmicas de
mestiçagens”. Essa combinação se deve à complexidade que se coloca, na contemporaneidade, para
pesquisas que se propõem a pensar as questões referentes ao religioso em associação à escravidão, à
liberdade e às dinâmicas sócio-culturais.

As pesquisas historiográficas sobre escravidão e mestiçagens veem abrindo cada vez mais es-
paço para estudos relativos ao universo cultural e religioso de pessoas das camadas inferiores, em es-
pecial na Ibero-América. Elas fomentam discussões em torno de temáticas complexas, possibilitando
o contato entre diferentes enfoques, conceitos, metodologias e abordagens. A história cultural tem
permitido examinar, a partir de percepções e perspectivas diversificadas, como a realidade social dos
Irmãos do Rosário do Serro foi construída, desconstruída e reconstruída, além de ajudar a perceber
37 Ariel Lucas Silva, doutorando em História pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Coordena-
ção de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES.

182
como os diferentes agentes sociais representavam a si mesmos e ao mundo que eles ajudavam a cons-
truir e que os cercavam.

Devoção, sociabilidades e dinâmicas de mestiçagens

O surgimento de áreas urbanizadas nos sertões do Brasil proporcionou “inéditos campos de


sociabilidades dinamizadoras de mestiçagens biológicas e culturais que não podem ser compreendi-
das sem que sejam consideradas as dinâmicas da escravidão em todas as suas relações de coexistências,
trocas, superposições e resistências.” (IVO, 2016, p. 184). Devoções, sociabilidades e mestiçagens que
modificaram significativamente a dinâmica da colonização portuguesa. Oportunidade privilegiada
para a observação de práticas históricas que “moldaram o cotidiano das relações sociais [...], forjando
sociedades profunda e indelevelmente mestiçadas.” (PAIVA, 2015, p. 42).

Os arraiais e vilas de Minas Gerais eram áreas com grande circulação de pessoas, mercadorias,
idéias, sentimentos e devoções das mais diversas. Para essas novas paragens se dirigiram pessoas das
quatro partes do mundo (GRUZINSKI, 2014). A fama corria e atraía gente de toda condição e qua-
lidade para estes “sertões norte das Minas do Sul [onde] o opulento Serro Frio [...] tem mais partos
de ouro que o Potosi teve de prata” (PITA, 1976 apud IVO, 2016, p. 185). “O minério ocorria em tais
condições, que numa península do rio [das Velhas], entre o arraial Borba e o de Raposos, Antonil
refere que se catava o ouro em pepitas e folhetes a seco, e nas lavagens não se apuravam menos que 6
a 80 oitavas de cada bateada”. (VASCONCELOS, 1974, p. 183).

Estudos relativos às religiosidades e mestiçagens no contexto da escravidão nos possibilitam


observar que o universo religioso se apresenta como um espaço oportuno para se observar e com-
preender dinâmicas de mestiçagens culturais. Serge Gruzinski afirma que a mestiçagem “é ampla, de
difícil apreensão, complexa, imprecisa, mutável, flutuante, sempre em movimento, [...] como uma
nuvem. [Esse] modelo da nuvem supõe que toda a realidade comporta algo de irreconhecível e sem-
pre contém uma dose de incerteza e de aleatório.” (GRUZINSKI, 2001, p. 60). Luciano Oliveira diz
que misturar, interpenetrar, fundir, cruzar, mesclar e amalgamar são alguns verbos que se aplicam à
mestiçagem. O autor cita Serge Gruzinski explicando que

[...] nas Américas do século XVI, fragmentos de culturas ‘indo-afro-europeias’ se


mesclaram, se adaptaram umas às outras, se improvisaram, se deduziram, se inven-
taram, se aprenderam. Por isso, não é possível pensar em purezas culturais, mas sim
em culturas mestiças e híbridas. (GRUZINSKI apud OLIVEIRA, 2013, p. 85).

Para Néstor Canclini, a palavra mestiçagem pode designar as fusões étnicas de um indivíduo
ou de uma cultura.

183
A mistura de colonizadores espanhóis e portugueses, depois de ingleses, com indí-
genas americanos, à qual se acrescentaram escravos trasladados da África, tornou
a mestiçagem um processo fundacional nas sociedades do chamado Novo Mundo.
[...] Mas a importante história de fusões entre uns e outros requer utilizar a noção
de mestiçagem tanto no sentido biológico – produção de fenótipos a partir de cru-
zamentos genéticos – como cultural: mistura de hábitos, crenças e formas de pensa-
mento europeus com os originários das sociedades americanas. (CANCLINE, 2008,
p. XXVII).

De acordo com Isnara Pereira Ivo:

Compreender os encontros culturais e suas dinâmicas reprodutivas de mesclas e de


misturas significa conceber estes eventos não apenas de forma naturalizadas, biolo-
gicamente explicáveis, mas, também como encontros construídos, socialmente, pelo
incessante movimento das pessoas no decorrer dos processos históricos, trânsitos
que produziram misturas biológicas e culturais em universos construídos no passa-
do, especificamente as práticas religiosas ou religiosidades delas resultantes. Falar em
dinâmicas de mestiçagens (Paiva, 2012, p.11 e 12) é conceber os universos culturais
como marcadamente definidos por diversos elementos que produzem, ao mesmo
tempo as coexistências, as resistências, as superposições, as apropriações e as mistu-
ras. (IVO, 2016, p.184).

Gilberto Freyre foi um dos pesquisadores que desenvolveu uma historiografia da mestiçagem
no Brasil. Segundo Fernando Henrique Cardoso, Freyre “foi o primeiro a desconsiderar a idéia de
escravos absolutamente passivos, tomando-os, em suas obras, como agentes transformadores da his-
tória e reconhecendo as inúmeras formas de atuação cotidiana empregadas por homens e mulheres.”
(CARDOSO apud FREYRE, 2004, p.84).

Eduardo França Paiva diz que “as dinâmicas de mestiçagens foram as práticas históricas que
moldaram o cotidiano das relações sociais na Ibero-América, forjando sociedades profunda e inde-
levelmente mestiças.” (PAIVA, 2015, p.42). Mas, segundo o autor, são também “um conceito a partir
do qual se pretende estudar os processos históricos de mesclas biológicas e culturais ibero-america-
nos, e não apenas o produto final misto.” (PAIVA, 2015, p.42).

Esse conceito permitiu a Paiva

[...] compreender a importância vital de agentes históricos não mestiços (índios,


brancos e negros, que não eram definidos e nem se definiam como mestiços) nos
processos de mestiçagens ibero-americanas. [E o] ajudou a perceber claramente a
plena integração desses agentes ao universo e solucionou um problema mater: como
compreender, definir e identificar os construtores não mestiços de sociedades mar-
cadamente mescladas biológica e culturalmente. (PAIVA, 2015, p. 42-43).

184
Escolhemos essas perspectivas historiográficas por considerarmos as correntes do pensamen-
to sobre as mestiçagens como conceito aplicável à realidade histórica que nos propusemos a estudar.
E por esses autores serem representativos de diferentes culturas historiográficas, bem como de visões
do passado diferenciadas e complementares sobre a temática que nos propomos a investigar.

Da mesma forma, examinar a vida religiosa dos colonos exige métodos de análise que reque-
rem ser problematizados. João José Reis, ao tratar de identidades e diversidades étnicas nas irmanda-
des dos negros no tempo da escravidão, diz que:

A história das irmandades abre uma porta à melhor compreensão da experiência ne-
gra no Brasil da escravidão. Para penetrá-la é preciso admitir, como temos feito, que
elas espelhavam tensões e alianças sociais que permeavam a sociedade escravocrata
em geral e o setor negro em particular. (REIS, 1996, p. 18).

O autor vale-se de farta documentação histórica e historiográfica que lhe expõem relatos de
acontecimento durante as festas realizadas por irmandades de negros em Cachoeira, interior da Bahia.
Essa documentação revela todo tipo de gente que se organizava, socializava, misturava e se mesclava
em torno da festa.

Muitas são as análises historiográficas acerca da importância das festividades católicas nos
períodos medieval e moderno (BURK, 1989; BAKHTIN, 2002; DAVIES, 1990). Assim como sobre a
realização e o sentido dessas celebrações do Brasil Colônia (DEL PRIORE, 2002; JANCSÓ; KANTOR,
2001).

Com o objetivo de apontar a presença marcante das práticas culturais dos povos da África
Central em torno das irmandades de Nossa Senhora do Rosário, Lucilene Reginado discutiu a iden-
tificação dos africanos com as confrarias católicas e apontou a importância do catolicismo na África
Central. Sugerindo uma perspectiva de investigação da história da devoção ao Rosário, das “confra-
rias negras” e da “identidade angola” ao longo do século XVIII. Ao sugerir esta perspectiva, a auto-
ra contribui para uma historiografia da escravidão mais atenta aos estudos africanistas e aborda as
identidades assumidas pelos africanos como “experiências sociais dinâmicas em termos históricos.”
(REGINALDO, 2005, p.5).

Além desses, a historiografia sobre irmandades religiosas no Brasil possui importantes traba-
lhos publicados nas décadas de 1970 e 1980. “Devoção e Escravidão: A Irmandade de Nossa Senhora
do Rosário dos Pretos no Distrito Diamantino no Século XVIII”, de Julita Scarano e “Os Leigos e o
Poder: Irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais”, de Caio César Boschi, são traba-
lhos que possuem como tema central a relação das Irmandades com o Estado e com a Igreja Católica
e sua composição e organização.

185
Julita Scarano (1976) parte de uma perspectiva de culturas híbridas do mundo atlântico para
estudar a irmandade do Rosário de escravos, observando suas bases religiosas, suas relações econômi-
cas, o auxílio que a irmandade prestava aos seus irmãos, os componentes da associação e a integração
do negro no Arraial do Tejuco, em Vila do Príncipe na Comarca do Serro do Frio. Caio César Boschi
(1986) estudou as práticas religiosas dos leigos e as associações leigas e contribuiu para que o tema
fosse investigado numa perspectiva mais acadêmica. Assim como Scarano, Boschi faz uma análise
das irmandades no contexto de Minas Gerais no período colonial, sendo essa análise mais ampla que
aquela.
Entre 1940 e 1950, Raimundo Trindade, João Furtado de Menezes e Geraldo Dutra de Moraes
também se debruçaram sobre o assunto das irmandades religiosas em Minas Gerais. De acordo com
Scarano, Geraldo Dutra de Moraes foi "encarregado pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional – SPHAN (1937-1946), de classificar os documentos do Serro e outros lugares. Foi dessa
classificação que ele extraiu a informação de que em 1716 já era realizada festa de congado em Vila do
Príncipe.” (SCARANO, 1976, p. 114).

Eduardo França Paiva, Isnara Pereira Ivo e Marcia Amantino destacam a necessidade de se
aprofundar e conhecer melhor o trabalho que a historiografia vem realizando em torno do tema da
escravidão, das mestiçagens, das religiões e/ou das religiosidades, a fim de percebermos as “diferentes
maneiras encontradas pelas populações coloniais [...] para conviver com dogmas cristãos, fomentan-
do, muitas vezes, sociabilidades específicas e dinâmicas de mestiçagens” (PAIVA, E.; IVO, I.; AMAN-
TINO, M, 2016, p. 8).

Irmãos Devotos da Senhora do Rosário no Serro do Frio

Serro do Frio era a maior comarca de Minas Gerais em extensão territorial, abrangendo uma
grande área da qual fazia parte todo o norte-nordeste de Minas. Até a criação da Capitania de Minas
Gerais, em 12 de setembro de 1720, toda essa área integrava a capitania de São Paulo e Minas de Ouro.

186
Figura 1 - Comarca do Serro do Frio, S/D.

Biblioteca Nacional BN Brasil

Segundo Gilberto Freyre, baseado nos estudos genealógicos de Luís Pinto, teria sido Jacintha
de Siqueira a mulher africana que descobriu ouro no Serro na virada dos seiscentos para os setecentos.

Tive o gosto de ver confirmadas por esses dados [genealógicos de algumas famí-
lias mineiras] generalizações a que me arriscaria, na primeira edição deste trabalho,
sobre a formação da família naquelas zonas do Brasil onde foi maior a escassez de
mulher branca. É assim que Jacintha de Siqueira, ‘a celebre mulher africana quem em
fins do século XVII ou princípios do XVIII veio com diversos bandeirantes da Bahia’
e a quem ‘se deve o descobrimento de ouro no córrego Quatro Vinténs e ereção do
Arraial à Villa Nova do Príncipe em 1714’, aparece identificada como o tronco, por
assim dizer matriarcal, de todo um grupo de ilustres famílias do nosso país. ‘Os pais
de todos os filhos de Jacintha Siqueira – acrescenta o genealogista [Luís Pinto] – fo-
ram homens importantes e ricos e muitos figurão entre os homens da gover-
nança [...].’ Entre outros, um sargento-mor. (FREYRE, 2004, p. 61-62).

Vários ranchos foram erguidos nas proximidades do córrego Quatro Vinténs, formando os
arraiais de Baixo e de Cima, que logo se desenvolveram formando um mesmo povoado.

Maria Eremita de Souza também fala de Jacintha de Siqueira. Segundo a autora, “vários escra-
vos da Bahia vieram alforriados para o Serro, dentre eles a famosa Jacinta Siqueira, que também tor-
nou-se rica e deixou aqui muitos descendentes.” (SOUZA, 1999, p. 72). Mas ela não atribui a Jacintha
o descobrimento de ouro no córrego Quatro Vinténs, muito menos a fundação da Vila do Príncipe,
como fazem Luís Pinto e Gilberto Freyre. Nos trabalhos de Maria Eremita de Souza, a africana apa-
rece como “companheira de seu senhor da Bahia” (SOUZA, 1999, p.73), que como os “supersticiosos

187
senhores mineiros, principalmente da Vila do Príncipe, tinham sempre uma negra mina por amásia,
acreditando que isso lhe dava sorte na descoberta de ouro”. (SOUZA, 1999, p. 72).

Seu estudo sobre Vila do Príncipe apresenta uma perspectiva que analisa a história da região
partir da expedição chefiada pelo guarda-mor Antônio Soares Ferreira.38

Território descoberto pelos paulistas que vieram à cata de ouro e pedras preciosas.
Eis porque tem o povo serrano em suas origens a heróica pujança paulistana. [...]
Guarda a história o nome do intrépido descobridor destas ‘minas de Santo Antônio
e do Bom Retiro do Serro Frio’, em cujo arraial delas tinha o descobridor Antônio
Soares Ferreira sua pousada. (SOUZA, 1999, p. 25).

Em fevereiro de 1711 foi criado o cargo de superintendente das minas de ouro da região, para
a qual foi nomeado o sargento-mor Lourenço Carlos Mascarenhas, com a função de manter a ordem
e a justiça. Por essa época, o arraial do “ribeirão de Santo Antônio do Bom Retiro” (VASCONCELOS,
1974, p. 184) já se constituíra centro administrativo, político e principal núcleo minerador da região.

A abundância do ouro continuava a atrair novas levas de gente, provocando o cons-


tante crescimento do arraial, que em 1714 foi elevado à categoria de vila, com a deno-
minação de Vila do Príncipe. Este fato deu à vila grande impulso desenvolvimentista,
desmembrando-se do termo da antiga Vila de Sabarabuçu, começando por certo,
a essa altura, a ganhar as condições mínimas para uma vida urbana regular, efeti-
vando-se com a instalação do Senado da Câmara. O surgimento de capelas, igrejas
e altares se deram em função da forte religiosidade daqueles que chegaram à região
para trabalhar na atividade mineradora. Eles trouxeram consigo a tradição religiosa
e destinaram parte da féria mineraria a construção destas edificações.39

Em 1715 instalou-se o Senado da Câmara da Vila do Príncipe e em 1725 a Casa de Fundição,


para a qual passa a encaminhar-se toda a produção aurífera da extensa comarca. Foi necessária a
organização mais efetiva ao sistema judicial na região, de modo a propiciar melhor administração
da justiça e resguardar os interesses fiscais e arrecadadores da administração portuguesa. Em 1720
Vila do Príncipe se tornou, então, sede da nova comarca e importante centro de decisões jurídico-ad-
ministrativas, exercendo o ouvidor jurisdição sobre um amplo território que abrangia quase todo o
norte-nordeste da capitania.

A construção de vários templos, ricamente ornamentados, e de imponentes sobrados resi-


denciais também assinalaria, por sua vez, a fase de preponderância econômica e social alcançada pela

38Livro primeiro de receita e despesa da Fazenda Real referentes às minas do Serro Frio e de Tacambira. 1702-
1720. Aberto, numerado, rubricado e encerrado no mesmo dia 14 de março de 1720, pelo procurador da Coroa
e Fazenda Real Balthazar de Lemos de Moraes Navarro. Coleção Casa dos Contos. Avulsos da Capitania de
Minas Gerais. Arquivo Público Mineiro – APM. Notação: CC – 1002.
39Disponível em: http://cidadeshistoricasdeminas.com.br/cidade/serro/historia/Acesso em 24 de agosto de
2018.

188
Vila do Príncipe no período colonial. Em 1713, foi criada a Paróquia, e em 1724, a freguesia de Nossa
Senhora da Conceição, tendo como vigário colado Simão Pacheco. A primeira matriz de Vila do Prín-
cipe era uma simples capela de palha, dedicada a Santo Antônio. Há notícias de uma segunda, entre os
anos de 1725 e 1737, precedida de adro e no mesmo local da atual. Há na igreja matriz um altar lateral
que foi utilizado pelos irmãos do Rosário na primeira metade do século XVIII. A igreja do Rosário de
Vila do Príncipe foi concluída em 1758. A igreja do Rosário do Arraial do Tejuco é a igreja mais antiga
da região consagrada a essa devoção, tendo sido construída entre 1728 e 1731.

Os devotos da Senhora do Rosário no Serro do Frio se organizavam em irmandades que repre-


sentavam um espaço de possibilidades, de alternativas e convivências negociadas e (re)construídas,
principalmente nas suas festas e celebrações públicas. Essas eram associações com o objetivo de reunir
pessoas em torno da devoção religiosa e prestar serviços de ajuda de todo tipo aos seus membros e a
comunidade.

Luiz Carlos Villalta, analisando o cenário urbano em Minas Gerais nos setecentos, define as
irmandades como

[...] verdadeiras ‘famílias artificiais’, associações que congregavam indivíduos que


desfrutavam de posição social similar — os negros, nas Irmandades de Nossa Senho-
ra do Rosário (exceto na do Padre Faria, em Ouro Preto); os mulatos, nas Irmanda-
des de São José e de Nossa Senhora da Boa Morte; os crioulos, nas Confrarias das
Mercês; e os brancos, nas Ordens Terceiras de São Francisco e de Nossa Senhora
do Carmo — a fim de permitir o auxílio mútuo, do ponto de vista espiritual e mate-
rial. Promotoras e sedes de devoção, arcando com a sustentação material dos cultos
religiosos; instituições que custeavam serviços sociais, desonerando o Estado; as ir-
mandades foram, por um lado, uma manifestação adesista das camadas inferiores,
funcionando como instrumento de manutenção da hierarquia social. Mas, por outro
lado, tornaram-se veículo de resistência e de explicitação das diferenças sociais.40

Lucilene Reginaldo utiliza a expressão “testemunhos de atuação” para definir o “conjunto de


correspondências estabelecidas entre as irmandades e as autoridades régias e eclesiásticas as quais se
encontravam submetidas.” (REGINALDO, 2011, p. 103). Cartas, provisões, certidões, bilhetes, pare-
ceres, representações, justificação e recibos diversos que nos ajudam a compreender a realidade social
e as práticas cotidianas religiosas e culturais desse grupo social. São documentos que, como justifica-
mos anteriormente apoiados nos estudos de João Reis, constituem fontes históricas do período escra-
vista que expressão a vontade da população de origem ou descendência africana.

Essas irmandades eram reguladas por um “Compromisso” que deveria ser aprovado pelo Es-
tado e pela Igreja. Uma vez aprovado seu funcionamento, a mesa diretora da irmandade deveria re-
gistrar as decisões por ela tomadas em suas reuniões, as receitas e despesas que a sustentavam, os bens

40 VILLALTA, L. O Cenário Urbano em Minas Gerais Setecentista: Outeiros do Sagrado e do Profano.Dis-


ponível em http://www.fafich.ufmg.br/pae/apoio/ocenariourbanoemminasgeraissetecentista.pdf. Acesso em
01/09/2017

189
que possuía e as entradas de irmãos que procuravam pertencer aos seus quadros.

Figura 3 – Livro de Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário da Freguesia da Conceição da


Vila do Príncipe do Serro do Frio. 1728.

Acervo do Arquivo Público de Minas Gerais – APM.

Além dos Livros de Compromisso, essas associações utilizavam outros destinados a registros
diversos: Livros de Admissão de irmãos; Livros de Assuntos Diversos; Livros de Certificados de Mis-
sas por Alma de Irmãos vivos e defuntos; Livros de Concordatas; Livros de Registros de Entrada e
Eleição de Irmãos; Livros de Receitas e Despesas; etc.

Os livros da Irmandade do Rosário e da irmandade das Mercês do arraial do Tejuco e docu-


mentos relacionados a outras irmandades fundadas em Vila do Príncipe no período em análise, como
a Irmandade da Purificação e Irmandade das Mercês e São Benedito, também oferecem possibilida-
des de conexão e comparação para a pesquisa em desenvolvimento. O mesmo ocorre com os Livros
de Registros de Visitas Pastorais realizadas na Comarca do Serro do Frio e com os Livros de Óbitos,
Batismos e Casamentos de Vila do Príncipe, que também serão analisados, respeitando as limitações
e objetivos da própria pesquisa.

Desde a década de 1770, as festas realizadas pelos Irmãos do Rosário foram registradas em
pinturas e ilustrações. Carlos Julião, Jean-Baptiste DeBret e Johann Moritz Rugendas deixaram regis-

190
tros dessas festas em Minas Gerais, no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro.

Figura 4 - Festival of the King, Rio de Janeiro, Brazil, ca. 1770s. Carlos Julião.
The Atlantic Slave Trade and Slave Life in the Americas: A Visual Record.

Figura 5 - Coleta contribuições para Igreja do Rosário, Porto Alegre. Jean-Baptiste DeBre. 1828.

Voyage pittoresque et historique au Brésil chez Firmin Didot (1835-1839)

191
Figura 6 - Fête de Ste. Rosalie, patrone des négres. Festa de Senhora Rosário, padroeira dos
negros. 1823-1825. Johann Moritz Rugendas.

Biblioteca Digital Luso Brasileira

Importantes aspectos da organização, da vida coletiva e do universo cultural religioso emergem dos
testemunhos deixados por esses sujeitos históricos. Em trabalhos anteriores foi possível analisar como
as práticas comunicativas decorrentes das festas do Rosário possuem um papel fundamental na sua
preservação e promoção (SILVA, Ariel Lucas; SILVA, V.; PITANGA, C, 2009). Essas análises possi-
bilitaram entender a importância dessas práticas como elementos estratégicos na sua consolidação
como referência cultural dos Irmãos do Rosário.

Os elementos ritualísticos da festa se configuram como identitários porque são partilhados


por meio de práticas comunicativas próprias. O simbólico, o performático e o comunicativo são como
dimensões interligadas. Todas essas práticas e elementos identitários deixam estampados o singular
equilíbrio entre o coletivo compartilhado e que se impõe a todos e a manutenção do espaço de cada
indivíduo, elemento central dentro do ritual que compõe os festejos.

Os componentes simbólicos e ritualísticos das festas de Nossa Senhora do Rosário em Minas


Gerais – danças, músicas, indumentárias, orações, acessórios - são representações que comunicam
identidades e produzem mediações culturais, ao mesmo tempo em que promovem a interação social
e cultural. Na festa, a comunicação se apresenta como “processo em que imagens, representações são
produzidas, trocadas, atualizadas no bojo das relações.” (FRANÇA, 2004, p. 10).

O gesto de cultura (fala, dança, criação, comportamento), em situação de auto-expli-


citação, já não é apenas movimento de participação e de identificação do indivíduo
na comunidade. É também expressão consciente desse identificar-se – é comuni-
cação (aos iguais e aos diferentes) da opção feita. Corresponde a uma seleção entre

192
diversos jogos e atuação consciente sobre suas regras, via interação social. (BRAGA,
2001, p.35-36).

A cultura faz parte de uma realidade em que a comunicação é um aspecto fundamental. Sejam
em formas de documentos, símbolos, atos ou dialetos, o homem cria e se apropria de conhecimentos
e experiências que são repassados e tomados como identidades, tornando-se algo concreto dentro de
suas crenças e comunidades. Ou seja, cultura é uma forma de conhecimento adquirido e repassado
dentro do contexto social. Neste sentido, os Irmãos do Rosário podem ser considerados também
como agentes históricos mediadores de processos e dinâmicas sócio-culturais.

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“Quem sai aos seus não degenera” - Juliano Moreira e a teoria abrasileirada da degeneres-
cência - uma trajetória intelectual à luz dos conceitos das mestiçagens, mobilidade, trânsi-
to cultural e mediações
Evandra Viana de Freitas41

Introdução

“Quem sai aos seus não degenera”. Este ditado popular de origem portuguesa se tornou ex-
pressão-símbolo do século XIX, no seio das teorias deterministas raciais, especificamente quando
relacionado ao inatismo e à hereditariedade. Arraigado no pensamento científico-positivista, majori-
tário da elite intelectual brasileira, o adágio representava bem aquele contexto de hierarquia racial e
da teoria da degeneração, em razão da miscigenação (ODA, 2003, p. 181-182).

A partir da compreensão do conceito de degenerescência difundido por Bénedict-Augustin


Morel (1809-1873) em 185742, analisa-se o contexto brasileiro quanto às teorias racialistas vigentes
no final do século XIX no Brasil, e se busca demarcar, na medida do possível, a atuação do baiano
Juliano Moreira neste processo. Ele era médico, professor, historiador da medicina, “psicanalista”43 e
41Evandra Viana de Freitas Mestranda do Programa de Pós-Graduação Memória: Linguagem e Sociedade
(UESB) Graduada em Direito (UESB) Graduada em Administração (UESB) evandravnfreitas@yahoo.com.br
42Para Morel, as degenerescências seriam desvios doentios do tipo normal da humanidade, que são transmi-
tidos hereditariamente, podendo apresentar causas diversas e estavam associadas à ideia da existência de um
tipo primitivo perfeito que sofreria um processo de decadência gradual e progressiva até a esterilidade e extin-
ção(MOREL, 2008, p.497).
43Conforme artigo de Neldson Marcolin (2006, p. 10), de forma pioneira, Juliano Moreira trouxe ao conheci-
mento dos intelectuais da época, entre 1899 e 1903, o trabalho de Sigmund Freud, traduzindo direto do alemão,
uma das línguas que dominava, tornando-se também o precursor da Psicanálise no Brasil, em reconhecimento
pós mortem.

195
agente público. Possivelmente, essa universalidade de sua formação o levou propiciou o intercâmbio
necessário para sua participação na construção do conhecimento e das relações sociais e institucio-
nais entre 1885 e 193344.

Embora se trate de figura singular da psiquiatria mundial e de um divulgador das ciências,


para a população em geral, Juliano Moreira é apenas uma espécie de personificação do hospital psi-
quiátrico em Narandiba, Salvador45 ou da colônia para enfermos mentais em Jacarepaguá, no Rio de
Janeiro. E, mesmo sob este prisma, poucos o conhecem ou sabem da sua importância histórica. No
âmbito acadêmico, as pesquisas que trazem Juliano Moreira como figura central focam em sua con-
tribuição para a área da psiquiatria brasileira e mundial.46 Fora deste espaço, entretanto, seu nome é
quase desconhecido.

Em Casa Grande & Senzala e Ordem e Progresso, Freyre (1900-1987) dissecou a questão da
miscigenação, da sífilis e da (com)formação sociedade brasileira entre 1870 e o fim da segunda década
do século XX. Porém, constatamos que não há citação da tese e das conclusões de Moreira sobre a
miscigenação, sífilis e degeneração. Em Ordem e Progresso, especificamente, Freyre afirma que ha-
via nesse período uma quase psicoce caracteristicamente nacional quanto à miscigenação, em que a
elite se ressentia do português que, chegando na América tropical cruzara com gentes de cor ao invés
de se conservarem puros com consequente número reduzido de mestiços na população (FREYRE,
2016, p.916-917) e cita os estudos nessa área de Afrânio Peixoto, Roquette-Pinto, Sílvio Romero, Nina
Rodrigues, dentre outros, fazendo apenas uma breve menção sobre a figura de Juliano Moreira: “E
não devemos nos esquecer dos baianos Pirajá da Silva; Juliano Moreira e Oscar Freire, que também
alcançaram renome europeu pelas suas pesquisas médicas” (FREYRE, 2016, p.915). Também não há
referência à tese de Moreira e trabalhos a ela subsequentes no aclamado Tributo a Vênus:a luta contra
a sífilis no Brasil, na passagem do século aos anos 40, de Carrara (1996). Aquela que entendemos ser
a razão para a omissão da pesquisa do médico baiano já foi exposta acima. Só a partir da década de
80 do século XX, com as discussões acerca da reforma psiquiátrica, seus trabalhos começaram a ser
explorados com profundidade e sua tese somente foi objeto de detida análise em 2014.

Exatamente por isso e, por entendermos que o pensamento e práxis de Juliano Moreira tem
importante colaboração em relação à compreensão dos conceitos estudados e o contexto do final do
século XIX, filiamos ao ensinamento de Ricouer, quando ela afirma que é preciso dizer sobre a vida e
o pensamento dos que se foram.

Naquele que veio a se tornar o principal trabalho de sua obra, A memória, a história, o esque-
cimento, Ricoeur aborda, em especial, a problemática do esquecimento como uma constante ameaça
quando se busca a representação do passado, e também aponta para os abusos da memória, que, por
suas características, pode sofrer distorções e omissões.Diante destes dois perigos, um dos objetivos
44 Marcos de ingresso na Faculdade de Medicina da Bahia e sua morte, respectivamente.
45 “Aquele ali deve ter fugido do Juliano”, é uma frase comumente utilizada pela população de Salvador para in-
dicar que alguém aparenta ter transtornos mentais ou age regularmente como se o tivesse (LYRIO, 2012, p. 21).
46 Juliano Moreira é o único médico psiquiatra brasileiro a constar no Dicionário Biográfico PSI, do francês
Pierre Morel, que relaciona psiquiatras, psicólogos e psicanalistas de importância internacional. Na obra, Julia-
no é destacado elogiosamente por sua atuação profissional (MOREL, 1997 apud ODA, 2003, p. 307).

196
confessos desse estudo de Ricoeur é a busca daquilo que ele chamou de uma justa memória47. Logo no
início do livro,o autor expõe a sua grande preocupação:
Perturba-me o inquietante espetáculo que apresentam o excesso de memória aqui, o excesso
de esquecimento acolá, sem falar da influência das comemorações e dos erros da memória – e
de esquecimento. A ideia de uma política da justa memória é, sob esse aspecto, um de meus
temas cívicos confessos (RICOEUR, 2014, p. 17, grifo nosso).

Para o filósofo reconhecer vidas passadas por meio da narrativa memorial, aliás, faz parte de
uma ética no exercício memorioso: o dever de memória, que “é o dever de fazer justiça, pela lembran-
ça, a um outro que não o si” (RICOEUR, 2014, p. 101). Deste conceito, depreendemos que somos
devedores aos que nos precederam e sobre os quais dizemos que não são mais, mas que já foram e já
fizeram. Não é uma dívida em sentido estrito, mas deve ser compreendida como uma herança que
nos é deixada. Há uma advertência, no entanto: esse dever de memória necessita ser exercido sob as
medidas da justa memória, que Ricoeur (2014, p. 82) define como um uso comedido dos processos de
rememoração e dos esquecimentos.

Juliano Moreira não era uma figura isolada de seus pares e de seu tempo. Ele fazia parte de um
momento onde o poder do discurso médico buscava se afirmar para além dos consultórios e almejava
normatização a vida social e institucional do Brasil. Entendiam os médicos que era o seu dever de
ofício realizar pesquisas e ações que subsidiassem os governos na promoção da defesa social por meio
de medidas terapêuticas e profiláticas gerais pela população. Conforme descreveu Foucault, o corpo
médico e científico se torna “uma ciência de proteção científica da sociedade, uma ciência de proteção
biológica da espécie” (FOUCAULT, 2001, p. 402)

Nesse sentido, a atuação médica vai para além da clínica, chegando ao tipo de tratamento mo-
ral apropriado e se tornou, naquele quase meio século, a estratégia que permitiria melhorar, deter e/
ou frear o processo degenerativo. Para muitos haveria que se deter o processo de miscigenação, para
outros controlar rigorosamente a miscigenação levando ao branqueamento (volta ao tipo perfeito
original) e para Juliano Moreira e outros que pensavam como ele, a higiene e a educação eram instru-
mentos através dos quais se podem modificar as condutas, eliminar os desvios, mudar os costumes,
desse conjunto de seres desgraçados pela natureza hereditária, os vícios e os impulsos instintivos. Um
tratamento profilático que atua ao mesmo tempo sobre as causas, físicas e morais, e sobre o meca-
nismo hereditário da transmissão dos estados mórbidos. Desse modo, a eliminação de todo tipo de
excessos (alimentícios, sexuais, intelectuais, ideológicos), a prática da ginástica, a educação física, a
proporcionalidade das horas de estudo, especialmente nas crianças, os passeios ao ar livre, o combate
contra o ócio, a boa alimentação, a luta contra os vícios (alcoolismo, substancias tóxicas) a eliminação
de doenças como a tuberculose e a sífilis, o controle da prostituição e dos casamentos consanguíneos,
e qualquer tipo de estratégia que permita evitar a acumulação dos processos degenerativos (VAS-
QUÉZ-VALENCIA, 2015, p.133)
47 Em apertada síntese, para Ricoeur, na representação do passado, devem-se evitar os excessos de memória
por um lado e excessos de esquecimentos por outro; fatos que se dão na esfera da memória exercitada, nos usos
e abusos da memória. A justa memória, nesse sentido, é um convite a uma memória plástica.

197
Articulando a análise foucaultiana ao conceito moral ricoeuriano de homem capaz, pode-se
compreender conceitualmente a figura médica e a teoria da degenerescência no Brasil do final do XIX
ao início do XX, o que inclui Juliano Moreira. Fundamentado nas práxis, o conceito de homem capaz
diz respeito ao agir humano e está organizado em torno de dois eixos: a legalidade e o bem comum. A
legalidade se refere às regras e às leis que condicionam o ideal de justiça social de uma época, e o bem
diz respeito à finalidade do sujeito que aspira o bem-estar da coletividade, no nível intersubjetivo e
institucional (PIVA, 1999, p. 205-206).

Entende-se que o pensamento e as práxis de Juliano Moreira, enquanto homem de seu tempo,
podem ser compreendidos por meio desta potencialidade de fazer, do homem capaz de Ricoeur; ca-
pacidade esta que permite que o sujeito tome decisões, iniciativas e manifeste, por meio de suas ações,
a autoridade e a relevância do seu discurso no meio social e institucional.

Notas bibliográficas

Juliano Moreira nasceu em 06 de janeiro de 1872, na Freguesia da Sé, cidade de Salvador, pró-
ximo ao lugar onde hoje se localiza o Elevador Lacerda, um dos principais cartões-postais da cidade.
Era mestiço de pele negra, livre e pobre. Sua mãe se chamava Galdina Joaquina do Amaral e trabalha-
va prestando serviços domésticos. A respeito dela, sabe-se que tinha ascendência africana e era livre.
Entretanto, não há referências específicas em arquivos acerca da sua condição anterior ou da dos seus
ascendentes. O pai de Juliano, Manuel do Carmo Moreira, tinha origem portuguesa e era funcionário
municipal, inspetor da iluminação pública – fiscalizava os homens que acendiam os lampiões nas
ruas. Ausente de boa parte da infância de Juliano Moreira, somente alguns anos após seu nascimento,
ao tornar-se viúvo, Manuel o reconheceu como filho (LYRIO, 2012, p. 27-30). Na certidão de batismo
de Juliano (Figura 1) consta somente o nome da mãe.

198
Figura 6 - Certidão de Batismo de Juliano Moreira

Fonte: fotografado pela pesquisadora, no Memorial Juliano Moreira, Salvador, 2018.

No documento consta o seguinte texto:


Aos 16 de outubro de 1872, baptizei e pus os Santos Óleos Juliano, pardo, nascido a seis de
janeiro do mesmo anno, filho natural de Galdina Joaquina do Amaral. Foi Padrinho o Barão
de Itapuã, e pos a coroa de N. Sra. Bernadimo Peres da Costa Chartinet. De que fui este e
assignei. O Cônego Cura João José de Abrantes.

Com base neste documento, chamamos a atenção para a qualificação que foi atribuída a Julia-
no Moreira. Ele tinha a pele negra (Figura 2) e descendia de uma mulher negra – pois até então não se
falava acerca da sua paternidade. No entanto, constata-se no registro que o Cônego que presidia o rito
religioso o qualificou como pardo. Verificamos também no documento que o padrinho de batismo
foi o Barão de Itapuã48.

48Quem detinha o título de Barão de Itapuã à época era o médico e Professor da Faculdade Baiana de Medicina,
Adriano Lima Gordilho.

199
Figura 7 - Juliano Moreira criança, jovem e idoso

Fonte: adaptado pela pesquisadora, do Acervo do Memorial Juliano Moreira, Salvador, 2018.

A historiografia recente tem mostrado que, ao longo do processo de conformação das socie-
dades nas Américas ibéricas, as mestiçagens criaram e ressignificaram categorias antigas e modernas,
cujos objetivos eram classificar, distinguir e hierarquizar pessoas e grupos sociais, sendo a condição
utilizada para designar o status jurídico dos indivíduos – como escravo, forro ou livre – e a qualida-
de, para se referir a índios, brancos, pretos, negros, crioulos, pardos, mulatos, mamelucos, mestiços,
zambos, cabra, etc. (IVO; PAIVA, 2016, p. 21). A categoria qualidade, a que nos referimos na análise
do registro de batismo, embora não possa ser dissociada da cor da pele, com ela se confunde, uma
vez que também abarca em sua definição a condição social, o tipo e a cor dos cabelos, a estatura, o
tipo de rosto, a cor dos olhos e outras derivações resultantes de processos de mestiçagens biológicas
e culturais.

A qualidade, para além de uma categoria objetiva como a cor, se constituía em uma distinção
que revelava a visão do outro e a visão de si mesmo, por parte dos indivíduos (IVO; PAIVA, 2016, p.
23). Para os descendentes de africanos, como Juliano Moreira, ser pardo, portanto, dependeria não
somente da tonalidade da tez (entre o branco e o preto), mas do lugar social em que se encontrava,
pois, segundo Guedes (2007, 494), a cor expressava uma hierarquia. A negra seria ligada diretamente
à condição escravidão, portanto, ser pardo, ainda que de pele negra, se constituía em uma diferencia-
ção no corpo social.

Deste modo, o documento acima apresentado, datado de 1872, nos permite observar que, no
Brasil pré-abolição, os critérios de classificação das qualidades continuavam elásticos, dependendo
do lugar e do olhar de quem fazia o registro, e se constituíam num modo de reconhecer as relações
pessoais e sociais que foram estabelecidas.

Neste caso, inferimos que a qualificação de Juliano Moreira como pardo, embora tenha nasci-
do com a pele negra, deve-se ao fato de sua mãe trabalhar na casa do Barão de Itapuã e de este ter sido
o seu padrinho de batismo. O que nos leva a concluir que essa categoria se constituía nos processos
de alteridade que se caracterizam também pela visão que um estabelece do outro e que são paulatina-
mente incorporadas, tanto individualmente como pelas sociedades das quais fazem parte.

200
A partir da análise da qualificação de Juliano Moreira em seu registro de batismo, fazemos
uma segunda constatação: a de que seu grupo familiar galgou certa mobilidade social anterior à sua
própria. Partindo do entendimento de que a mobilidade social dos forros e seus descendentes é um
processo gradativo que se consolida de uma geração para outra (GUEDES, 2007a, p. 342-342) e que
são impulsionadas por fatores específicos, nesse caso entende-se que ela se deu em razão da relação de
compadrio49 estabelecida entre a mãe de Juliano Moreira e o barão de Itapuã, sendo esta decisiva para
a sua qualificação no documento de batismo, as condições materiais para a sua formação acadêmica
e ascensão científica e cultural.

Aliado a este fato, podemos inferir ainda que a mobilidade social pode ter sido influenciada
por outro fato. Manso (2016, p. 65-66) afirma que uma das formas de ascensão social era o reconhe-
cimento da paternidade de filhos ilegítimos por homens portugueses ou descendentes destes, autono-
mamente da cor da mãe. Nos lacunosos registros encontrados pelos pesquisadores, não foi possível
saber exatamente em que momento da infância de Juliano Moreira, o português Manuel do Carmo
Moreira o reconheceu como filho e passou a ter convívio com ele. Sabe-se apenas que foi depois que
aquele se tornou viúvo. Inferimos que este reconhecimento teve importância social para Juliano Mo-
reira, em razão de ele ter colocado a sua filiação na capa da tese de doutoramento, o que não era o
regramento na confecção das teses (Figura 3). Assim, em razão da relação de compadrio primordial-
mente, aliada ao reconhecimento da paternidade pelo pai português, o menino Juliano tomou destino
diferente de cerca de 90% da população negra e mestiça da época.50

49O compadrio consistia em uma relação nascida no sacramento do batizado e registrada nos livros paroquiais.
Por se tratar de um "renascimento espiritual", os batizandos deveriam dispor de novo vínculo filial, agora de-
finido através dos "pais espirituais", transformando-se em fiadores públicos daqueles por quem respondiam.
Tal compromisso significava privilégios e deveres de ambas as partes, os quais eram reconhecidos através da
obediência, fidelidade e reverência do afilhado, em contrapartida às múltiplas responsabilidades dos padrinhos.
Porém, as redes de compadrio funcionavam também em uma dimensão política e social. Eram criadas redes
de relações que podiam começar entre humildes ex-escravas e terminar em famílias de importância social e/ou
econômica (VENANCIO; SOUSA; PEREIRA, 2006, p.276).
50 De acordo com os resultados do censo de 1872, os analfabetos correspondiam a 84% da população total,
elevando-se para 86%, se considerada apenas a população feminina e para 99% se considerada a população
escrava (OLIVEIRA, 2003).

201
Figura 3. Capa da Tese de doutoramento de Juliano Moreira

Fonte: Fotografado do original pela pesquisadora, na Biblioteca Gonçalo Moniz, Salvador, 2018.

Sendo pobre, ainda que livre, mas já usufruindo da mobilidade proporcionada pelas relações
estabelecidas por sua mãe e pelo reconhecimento paterno, Juliano Moreira encontrou um caminho
que resultou em sua própria ascensão cultural e integração à sociedade: a educação. Sob o apadrinha-
mento do renomado médico e professor da Faculdade Baiana de Medicina, Adriano Lima Gordilho
(o Barão de Itapuã), fez seus estudos iniciais no Colégio Pedro II, transferindo-se depois para o Liceu
Provincial.

Os professores do Liceu constataram um incomum talento e esforço do aluno e, por isso,


também lhe foi permitido cursar, ao mesmo tempo, medicina na Faculdade Baiana de Medicina,51
conforme o documento de matrícula datado de 02 de março de 1886 (Figura 4). Portanto, Juliano
ingressou na faculdade aos treze anos de idade.

51 Hoje conhecida como FAMEB-UFBA, foi a escola mãe do ensino médico no Brasil. Criada em 18/02/1808,
passou por várias mudanças até chegar à configuração atual (JACOBINA et al., 2008).

202
Figura 4 - Documento de matrícula de Juliano Moreira

Fonte: fotografado pela pesquisadora, no Memorial Juliano Moreira, Salvador, 2018.

Juliano Moreira teve sua tese de doutoramento aprovada em 1891, quando ele tinha apenas 18
anos (JACOBINA, 2008, p. 16) e, embora não tenha sido o primeiro médico de pele negra – e depois
dele vieram outros –, sua aprovação foi um feito admirável, que já indicava a importância singular que
ele teria na produção científica e social do Brasil nas décadas seguintes. Suas ideias e posicionamento
explícito o diferiam de tantos outros intelectuais e profissionais liberais de ascendência africana e con-
temporâneos seus. O jornalista José do Patrocínio52 e o engenheiro André Rebouças,53 por exemplo,
preferiram fórmulas mais eufemísticas para tratar a questão das “raças”54 diante do chamado racismo
52 José do Patrocínio (1854-1905) era filho de João Carlos Monteiro, vigário da paróquia de Campos dos Goy-
tacazes, com Justina do Espírito Santo, uma jovem escrava. Passou a infância como liberto, porém, convivendo
com os escravos e com os rígidos castigos que lhes eram impostos. Aos catorze anos de idade, tendo completado
a sua educação primária, pediu e obteve do pai autorização para ir para o Rio de Janeiro. Tornou-se farmacêuti-
co, jornalista, escritor, orador e ativista político brasileiro. Destacou-se como uma das figuras mais importantes
dos movimentos Abolicionista e Republicano no país.
53 André Rebouças (1838-1898), filho de Antônio Pereira Rebouças, advogadoautodidata, deputado e conse-
lheiro de Pedro II, foi um engenheiro, inventor, abolicionista e monarquista. André ganhou fama no Rio de Ja-
neiro, então Capital do Império, ao solucionar o problema de abastecimento de água, trazendo-a de mananciais
localizados fora da cidade. Ao lado de Machado de Assis, Cruz e Souza e José do Patrocínio, André Rebouças foi
um dos representantes da pequena classe média negra em ascensão no Segundo Reinado e uma das vozes mais
importantes em prol da abolição da escravatura. Como defendia a monarquia, foi exilado junto com a família
imperial, após a proclamação da República.
54 Neste trabalho, utilizaremos aspas para destacar o termo “raça” – exceto nas citações diretas –, de modo a
ressaltar que se trata de representações de época da sociedade brasileira, de cunho mais sociológico e sem liga-
ção com o que a ciência biológica atual diz sobre a questão.

203
científico55 no Brasil (MATTOS, 2000, p. 60).

Aspectos biográficos apontam que, ainda no século XIX, Juliano Moreira utilizou o conheci-
mento científico e a clínica médica experimental para comprovar suas ideias e estabelecer sua posição
contrária aos postulados assimilados no país acerca do determinismo racial e climático em relação à
degenerescência, estabelecendo profícuo trânsito científico com saberes produzidos em outras partes
do Brasil e do mundo. Sua tese de doutoramento, objeto de análise adiante, foi uma ampla revisão
bibliográfica, aliada a estudo de casos, na qual ele conclui pelo não determinismo da “raça” nas dege-
nerescências, sendo essas atribuídas a outros fatores e posiciona-se de forma favorável à miscigenação
da população brasileira, especialmente quanto ao elemento negro.

Juliano Moreira nasceu em um Brasil ainda escravocrata, embora já sob a vigência da Lei do
Ventre Livre, aprovada em 1871. Nesse período eram amplamente aceitas as ideias de existência de
“raças” humanas diferenciadas e do escalonamento entre elas. A utilização do termo “raça”, neste
sentido de distinção, foi institucionalizada no Brasil no final do século XIX, por meio do Censo de
1872, que introduziu esta categoria para detalhar o perfil da população brasileira, mostrando que o
governo estava em consonância com o discurso científico europeu, considerado referencial de mundo
civilizado (SANTOS, 2016, p. 117). Os espaços sociais estavam, portanto, demarcados. Numa socie-
dade em que a desigualdade era princípio jurídico até a Constituição do Império, de 1824 (SANTOS,
2016, p. 116), era impossível negar as hierarquias e os domínios políticos e econômicos dos europeus
e seus descendentes.

Entretanto, a historiografia recente demonstra que, no Brasil, apresentava flexibilizações. São


muitos os casos que ilustram o movimento de pessoas que ultrapassaram fronteiras sociais, políticas,
ideológicas e até mesmo religiosas na América Ibérica, o que nos leva a refletir e perceber que o cará-
ter das linhas que definem os grupos sociais não é estático e nem determinista (IVO, 2005, p. 3). Ao
contrário, as relações de mobilidade social e os trânsitos culturais, no âmbito dos estudos das mesti-
çagens, põem em xeque a visão dicotômica dos grupos sociais, e dão conta de explicar fatos como a
ascendência social e científica de Juliano Moreira e sua influência nos rumos políticos da história do
Brasil na Primeira República.

O debate cultural-científico acerca da degenerescência racial: conceitos e usos.

Entendemos que não é possível explicar a produção e a circulação de conhecimentos sem bus-
car as realidades nas quais está imerso o sujeito, e as circunstâncias sob as quais elaborou suas teorias
(ALMEIDA, 2006, p. 5). Conhecer a teoria da degenerescência nascida na Europa e todas as que dela
decorreram e ainda, o percurso de Juliano Moreira, visa a preparar para a discussão do tema central,
que é o seu enfrentamento à teoria de degeneração pela raça e às consequentes estruturas de distin-
55 O Racismo Científico foi uma crença compartilhada culturalmente e que circulava com status de paradigma
científico, com importante articulação com a teoria da degenerescência humana em razão da miscigenação
(ODA; DALGALARRONDO, 2000, p. 178-179).

204
ções entre as populações do Brasil, por meio de sua tese inaugural.

As teorias desenvolvidas no século XIX trouxeram os prestigiados argumentos científicos para


a justificação biológica da existência de “raças” diferenciadas ou, ao menos, escalonadas no nível de
desenvolvimento: o determinismo e a hierarquia humana. O velho tema das diferenças entre grupos
humanos sai do âmbito da metafísica e se desloca para o trabalho dos naturalistas,56 isto porque as
ciências modernas nascidas entre os séculos XVII e XVIII estavam fundamentadas nas crenças de
neutralidade, objetividade e progresso e estas irão dar o suporte teórico para as compreensões cienti-
ficistas que adentraram o século XIX, alcançado o seu o apogeu. A rearticulação de muitos conceitos
traz consigo a ressignificação de muitos termos que já eram utilizados nas classificações e distinções
nos séculos anteriores.

Os vocábulos miscigenação e “raça”, de central importância para a análise da trajetória inte-


lectual de Juliano Moreira e sua compreensão da teoria da degenerescência, merecem aqui, para fins
de contextualização, uma compreensão para além do enfoque eugênico do final do século XIX.

Até o século XVIII, não havia os conceitos específicos de miscigenação ou mestiçagem, os


quais vieram a ser construídos na modernidade. O termo conhecido e utilizado na época era o de
mestiço/mestizo, usualmente empregado pelos castelhanos para designar o(a) filho(a) nascido(a) da
união entre o espanhol e a ameríndia. Na América portuguesa, era mais comum a utilização do termo
mameluco ou até mesmo bastardo, mas estes eram sinônimos do vocábulo mestiço e representavam
a mesma designação: filhos nascidos da união entre conquistador e ameríndia (PAIVA, 2015, p. 77).

Até o final do Setecentos e início do Oitocentos, esta concepção continuou vigorando, não
obstante já vir se desconfigurando. Na América portuguesa, o termo mestiço foi, pouco a pouco, se
afastando de sua finalidade inicial e passando a incorporar outros tipos de mesclas, além daquelas
resultantes dos encontros sexuais de europeus e índias, chegando ao ponto de designar de maneira
geral os filhos nascidos de uniões mistas, como entre europeus e negros (PAIVA, 2015, p. 77). Essa
nova configuração mais generalizada irá compor o significado de miscigenação que se propalou nos
escritos dos intelectuais brasileiros no final dos Oitocentos.

Uma mudança de significação semelhante ocorre com o vocábulo “raça”. Até o século XVIII,
embora tivesse um sentido pejorativo, desqualificador e discriminatório, o termo estava ligado pri-
mordialmente à ascendência moura ou judia, o que determinaria a impureza do sangue da pessoa.
Para os portugueses, tinha um peso mais religioso do que propriamente de origem ou etnia em si. A
partir do final do século XVIII e no século XIX, as marcas da “impureza” individual e coletiva se des-
locam da ascendência e da religião para a composição biológica e “racial”. A cor de pele, em especial
nas sociedades em que as relações econômico-sociais eram baseadas na escravidão do negro africano,
assume relevância muito maior do que tinha anteriormente. O termo é, então, ressignificado a partir
das noções racialistas, evolucionistas e eugênicas, que não existiam ou, ao menos, não tinham a con-
formação e o relevo social e científico antes do Oitocentos. O conceito passa a conter em si um poder

56 No século XIX, eram denominados naturalistas os especialistas em história natural, que compreendia os
estudos sobre botânica, zoologia, geologia e astronomia e saberes correlatos (ODA, 2003, p. 51).

205
classificatório e hierarquizante de cunho eugênico e cientificista (PAIVA, 2015, p. 151).

Seguindo a lição de Paiva (2015), fizemos esta breve exposição sobre a conformação linguística
espaço-temporal dos termos, para que fique clara a realidade histórica analisada: o século XIX. Foi a
partir da ressignificação operada neste século, que os vocábulos “raça” e mestiçagem passaram a ser
empregados nos debates cientificistas europeus e norte-americanos, os quais influenciaram os inte-
lectuais brasileiros, especialmente pela visão preponderantemente negativa do negro.

Deste modo, as doutrinas sobre a degeneração e a eugenia aportam num Brasil ainda escra-
vocrata, encontrando aqui terreno sólido para a busca da institucionalização de uma hierarquia entre
as populações e do controle sobre as mesclas biológicas, especialmente pelo corpo médico e os antro-
pólogos.

Uma das hipóteses que se apresenta para explicar essa receptividade e generalização das teo-
rias do racismo científico no Brasil é a de que permaneceu enraizado na sociedade brasileira um
aparato simbólico – que remonta ao período da conquista portuguesa – de classificações e distinções
das populações, que fez parte do processo histórico de constituição do país. Esta estrutura, lastreada
na memória, teria tido seu ápice no final do século XIX, momento de discussão da constituição do
Estado nacional brasileiro. A elite e o governo justificavam a adesão e os remodelamentos das teorias
racialistas em solo brasileiro pela necessidade de se formar uma nação civilizada, forte, longeva e livre
do fantasma do degeneracionismo (RAMOS, 2002, p. 132).

Nesse ambiente efervescente no Brasil, o discurso acerca da existência da degeneração hu-


mana tinha fundamentos mais culturais que científicos. Talvez por esta razão tenha sido a explica-
ção etiológica aquela que mais influenciou os intelectuais brasileiros a se posicionarem em relação à
questão da mistura biológica no país, fossem eles filiados à escola francesa, italiana ou alemã. Ao que
parece, essa teoria e todas as suas variações davam uma resposta plausível aos problemas médicos e
sociais do Brasil do final do século XIX.

Havia nos intelectuais e na elite brasileiros, influenciados pelas teorias eugênicas que sucede-
ram a teoria da degenerescência de Morel, uma certa concordância de que a mistura “inter-racial”
entre brancos e negros e a procriação de mestiços daria causa à degeneração da população brasileira,
no viés do determinismo racial e climático.

O Brasil do final do século XIX já era reconhecido como um país mestiço: a mistura de três
“raças”. Tal fato se deve à monografia apresentada por C. F. von Martius ao Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (IHGB) em 1847, intitulada Como se deve escrever a história do Brasil. Nela,
Martius expõe sua ideia de que a população brasileira seria formada pela mistura de três “raças”, sen-
do este um dos primeiros registros acerca da composição multirracial como algo peculiar ao Brasil:57
Qualquer que se encarregue de escrever a História do Brasil, país que tanto promete, jamais
deverá perder de vista quais os elementos que aí concorreram para o desenvolvimento do
homem.

57 Tal crença foi tantas vezes aceita e refutada entre teóricos, que se tornou ideia corrente e popular, prevale-
cendo como uma verdade para o senso comum até os dias atuais.

206
[...] São porem estes elementos de natureza muita diversa, tendo para a formação do homem
convergido de um modo particular três raças, a saber: a de cor cobre ou americana, a branca
ou a caucasiana, e enfim a preta ou etiópia. Do encontro, da mescla, das relações mútuas e
mudanças dessas três raças, formou a atual população, cuja história por isso mesmo tem um
cunho muito particular (MARTIUS, 1845, p. 382).

Nesta mesma monografia, entretanto, Martius se mostra reticente em seu posicionamento


quanto à qualidade da contribuição dos negros para a formação da população mestiça brasileira:
Não há dúvida de que o Brasil teria tido um desenvolvimento muito diferente sem a introdu-
ção dos escravos negros. Se para o melhor ou para o pior, este problema se resolverá para o
historiador, depois de ter tido ocasião de ponderar todas as influências, que tiveram os escra-
vos africanos no desenvolvimento civil, moral e político da presente população (MARTIUS,
1845, p. 397).

Esta preocupação, partilhada por muitos, é o fundamento do que neste trabalho denomina-
mos de teoria abrasileirada da degenerescência racial. Foi uma época em que a inteligencia se incum-
bia da difícil tarefa de discutir as consequências das teorias deterministas para o futuro da sociedade
e cultura brasileiras (VENTURA, 2000, p. 13).

O sergipano Silvio Romero (1851-1914), rearticulando a teoria da degeneração, até os anos


1900, tinha esperança de evitar a degeneração da população brasileira, utilizando a mescla biológica
para branquear os brasileiros, diluindo-se gradativamente o sangue negro nas sucessivas gerações.
É importante ressaltar, no entanto, que, a partir de 1900, sua posição muda e ele passa a duvidar da
viabilidade do branqueamento e a condenar a mescla biológica, adotando o discurso da superiorida-
de do homem branco europeu (ODA, 2003, p. 183). A ideia inicial do branqueamento de Romero,
entretanto, se popularizou entre os pensadores brasileiros; ademais, entendia-se que o Estado deveria
cuidar de continuar o mestiçamento até a população alcançar o tipo ideal, que é desnecessário repetir
aqui qual seria. Para ele, a distinção e a desigualdade das raças humanas seria um fato primordial
que só a biologia poderia modificar, o que se daria por meio do controle das misturas biológicas. A
incorporação de novos elementos por meio da imigração de europeus, por exemplo, seria uma solu-
ção nesse sentido, vez que o número daqueles que se consideravam brancos era inferior à população
mestiça e negra.

Vemos, portanto, que há uma rearticulação seletiva das teorias estrangeiras, fazendo surgir
idiossincrasias como defender ideias abolicionistas e republicanas e aceitar a hierarquia entre “raças”
humanas, como foi o caso de Joaquim Nabuco (1849-1910):
[...] um país onde todos sejam livres, onde, atraída pela franqueza de nossas instituições e pela
liberdade do nosso regímen, a imigração europeia traga, sem cessar, para os trópicos uma
corrente de sangue caucásico vivaz, enérgico e sadio, que possamos absorver sem perigo [...];
um país que de alguma forma trabalhe originalmente para a obra da humanidade e para o
adiantamento da América do Sul (NABUCO, 2000, p. 101).

Destoando da corrente do branqueamento e regeneração da população brasileira, retomamos

207
a figura do médico Nina Rodrigues. A sua obra é multifacetada, com importante legado para a medi-
cina legal e para a etnologia. Entretanto, e sem nenhuma intenção reducionista, o que nos interessa
da obra de Nina Rodrigues, neste estudo, é o seu posicionamento quanto à mestiçagem biológica e a
degeneração da população brasileira, que consideraremos como parte da introdução para a análise do
objeto central deste trabalho: a tese inaugural de Juliano Moreira e os trabalhos subsequentes.

No início da carreira, Rodrigues preocupou-se em estudar o que, para ele, seriam as aptidões
mórbidas de cada raça, a fim de comparar como se dá o adoecimento em cada uma delas. O proble-
ma que ele apontava era a precariedade dos critérios definidores das raças no Brasil, dado o perfil da
maior parte da população. Pretendeu, então, contribuir para suprir essa falha por meio dos seus estu-
dos antropológicos, em especial entre a população negra (ODA, 2003, p. 226).

Para ele, o processo de mestiçagem no Brasil era inegável. Concordava com Silvio Romero, ao
reafirmar a ideia de que “todo brasileiro é mestiço, se não no sangue, pelo menos nas ideias” (RODRI-
GUES, 2011, p. 31). Porém, embora tenha constatado em seus estudos preliminares que a população
brasileira era majoritariamente formada por mestiços em graus muito variados de cruzamento e por
uma minoria de elementos puros, ele se propôs a fazer uma classificação. Na esteira do pensamento
corrente das três raças fundadoras da população brasileira, destaca os três grupos primeiros:
[...] a) a raça branca, representada pelos brancos, crioulos não mesclados e pelos europeus,
[...] portugueses, [...] italianos, [...] e os teuto-brasileiros do sul da república;

b) a raça negra, representada pelos poucos africanos ainda existentes no Brasil, principal-
mente neste estado, e pelos negros crioulos não mesclados;

c) a raça vermelha, ou indígena, representada pelo brasílio-guarani selvagem. (RODRIGUES,


2011, p. 31-32).

Por seu turno, os mestiços brasileiros, com alto grau de cruzamentos, poderiam, de acordo
com o autor, ser distribuídos pelas seguintes classes:
[...] 1° os mulatos, produto do cruzamento do branco com o negro, grupo muito numeroso,
constituindo quase toda a população de certas regiões do país;

2° os mamelucos ou caboclos, produto do cruzamento do branco com o índio, muito nume-


rosos em certas regiões, na Amazônia por exemplo [...]. Aqui na Bahia, basta dividi-los em
dois grupos: dos mamelucos que se aproximam e se confundem com a raça branca, e dos
verdadeiros caboclos, mestiços dos primeiros sangues, cada vez mais raros entre nós;

3º os curibocas ou cafuzos, produto do cruzamento do negro com o índio. Este mestiço é


extremamente raro na população da capital.

4° os pardos, produto do cruzamento das três raças e proveniente principalmente do cruza-


mento do mulato com o índio, ou com os mamelucos caboclos (RODRIGUES, 2011, p. 32,
grifo nosso).

O léxico adotado por Nina Rodrigues em sua classificação é um aspecto interessante que
confirma os estudos de Paiva (2016) acerca das ressignificações dos vocábulos ao longo dos séculos.

208
Constatamos que ele aplica o termo crioulo indistintamente a filhos de europeus e de africanos, desde
que nascidos no Brasil e sem cruzamentos. Já o termo mestiço, ele aplica tanto aos filhos de europeus
com índios, quanto aos de negros com índios. Por fim, entende os pardos como uma categoria resi-
dual destinada a mestiços das três “raças”, indistintamente. Vê-se, portanto, que adotou o significado
de mestiço que adentrou o século XIX, não fazendo referência à designação anterior, segundo a qual
mestiço seria somente a prole de europeu e indígena. Para ele, mestiço seria uma espécie de gênero
que agruparia várias categorias de mesclas biológicas.

Desta classificação, partiremos para as considerações de valoração científica de Nina Rodri-


gues acerca das raças e da mescla biológica do brasileiro. Em vários trabalhos, especialmente em As
raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil e em Os africanos no Brasil, o médico maranhense
deixa claro o seu posicionamento: os negros seriam uma “raça” inferior e sem possibilidade de alcan-
çar o patamar evolutivo do branco europeu, em razão de sua constituição orgânica (RODRIGUES,
2010, p. 12) e os mestiços estariam fadados à degeneração (RODRIGUES, 2011, p. 53-54).

Ressaltamos, ainda, que ele adota a crença circulante da existência de uma pureza de raças e
de cultura. Ao estudar os negros e os mestiços, Rodrigues se apoia na crença de um caráter irreconci-
liável entre religião e cultura: de um lado, estaria a religião católica e o monoteísmo trazido ao Brasil
e, de outro, as formas fetichistas das crenças nos africanos, num hibridismo moral que traria tensões
indesejáveis, de forma que raças em patamares evolutivos diferentes deveriam evitar mestiçagens
(ODA, 2003, p. 228). A historiografia atual mostra, no entanto, que não existem culturas puras, mas
que “todas as culturas são híbridas [...] as misturas datam das origens da história do homem” (GRU-
ZINSKI, 2001, p. 41). Por defender tais teorias, Nina Rodrigues ganhou um crítico contemporâneo
seu, com quem convivia na Faculdade Baiana de Medicina: Juliano Moreira.

Moreira era aluno de Nina, quando apresentou ao professor o caso de um alienado com pa-
ranoia querelante. Filho de um italiano e uma negra baiana, o paciente era exatamente o tipo de
mestiçagem biológica tão temida. O professor entendeu, então, que esta seria mais uma prova de que
a mestiçagem era um fator de degeneração. Juliano discordou do mestre, por entender que era uma
maneira fácil e superficial de enxergar o problema. A partir disto, seus estudos se destinariam a com-
provar que a degeneração dos organismos não estava relacionada à raça ou clima. Quanto a este caso
apresentado, anos mais tarde, em uma de suas viagens à Europa, localizou a pequena cidade italiana
onde moravam os parentes do pai do mestiço brasileiro, e constatou que um dos irmãos do italiano
era “imbecil, ébrio habitual, turbulento, muito pernicioso [...]; casou-se e teve dois filhos, ambos im-
becis” (MOREIRA, 1908 apud JACOBINA, 2006, p. 17). Ainda segundo o professor Jacobina (2006),
Moreira observou que o quadro clínico do mestiço brasileiro era bem melhor que o de seus primos
brancos italianos, o que o fez deduzir que isto se deu em razão de sua mãe (negra brasileira) ser uma
mulher sã. A “raça” não teria nenhuma, portanto, influência na degeneração do filho mestiço apre-
sentado ao professor Nina Rodrigues.

Assim, ainda estudante e tendo como mestre Nina Rodrigues – o mais proeminente racialis-
ta daquele período –, Juliano se posicionou quanto à teoria abrasileirada da degenerescência racial,

209
entendendo que era uma maneira superficial de analisar a questão, e que a visão de seu professor e
de outros intelectuais acerca da mestiçagem entre brancos e negros e da procriação de mestiços era
equivocada. À degenerescência, a qual não negava, Juliano Moreira atribuiu outras causas. Afirmou
que o trabalho do médico não poderia ser influenciado por “ridículos preconceitos e cores ou castas”,
e que, na luta contra as degenerações, os inimigos a serem combatidos seriam o alcoolismo, a sífilis, as
verminoses e as precárias condições sanitárias e educacionais no país (MOREIRA, 1922 apud DAL-
GALARRONDO; ODA, 2000, p. 178).

Na esteira de uma releitura organicista da teoria da degenerescência de Benedict Moreal, tor-


nou-se um dos precursores, se não o precursor, da mudança do discurso médico acerca da não in-
fluência de “raças” na degeneração da população brasileira e também do movimento sanitarista que
teria seu ápice nas primeiras décadas do século XX.

Juliano Moreira e as mesclas biológicas

O diálogo com parte da obra de Juliano Moreira busca enfatizar a sua luta em face das teorias
de determinismo climático e racial vigentes e todo o trânsito de saberes que ocorreu naquele período.
No entanto, é preciso ressaltar que o pensamento e a práxis deste médico baiano vai muito além. Ele
teve uma extensa produção científica e era um incansável divulgador das ciências no Brasil.

Seu interesse nas pesquisas científicas já existia quando ainda era estudante. Em 1890, quando
era acadêmico do quinto ano, foi aprovado no concurso interno do Serviço Clínico de Dermatologia
e Sifiligrafia da Faculdade Baiana de Medicina. Nesse período, também já mantinha contato com os
médicos da Escola Tropicalista Bahiana, de onde inferimos ter surgido seu interesse pela medicina
experimental.

Em 1891, com sua tese Etiologia da syphilis maligna precoce, Juliano Moreira se graduou,
recebendo não só o título de bacharel, mas também o de doutor em medicina. (JACOBINA, 2014, p.
438). Neste estudo inaugural, com o qual obteve a nota máxima, inovou na pesquisa científica, estu-
dando e enumerando todas as possíveis causalidades da sífilis, e fazendo comparações com popula-
ções de outras partes do planeta. As conclusões obtidas lhe permitiram refutar cientificamente a tese
da influência climática e racial na gênese e na malignidade da sífilis. Já na parte final da tese, ele, com
sutil ironia, faz perguntas retóricas de maneira a apontar para novas reflexões:
E’ assim que a questão das raças continua a ser origem de dissidência dos competentes.
Quantas são as raças? Onde começa a raça branca? Onde começa a amarela? Onde acaba?
Onde começa a preta? (MOREIRA, 1891, p. 136).

Neste excerto de tese, constatamos seu entendimento de que as fronteiras, incluindo as ques-
tões biológicas de formação das populações, são permeáveis, se cruzam, se influenciam e não são

210
extratos puros. A sua visão de mundo quanto à necessidade de intercâmbios e de experimentações
para compreender os males médicos e sociais vai se tornando parte de sua prática. De acordo com
Jacobina (2014), logo após a formatura, Juliano Moreira se colocou a serviço da comissão médica da
Inspetoria de Higiene, para prestar assistência aos indigentes acometidos de febres e disenterias nas
cidades de Bonfim, Campo Formoso e outras circunvizinhas. A sua formação teórica e essa convi-
vência direta com problemas sanitários que diziam respeito às condições de vida da população mais
pobre, por certo o influenciou a defender medidas profiláticas como forma de minorar os problemas
constatados na medicina social.

Já em 1893, ocupou o cargo de assistente na cadeira de Psiquiatria e Moléstias Nervosas, área


na qual se especializaria. Logo depois, em 1894, foi aprovado por concurso e nomeado para o cargo
remunerado de preparador da cadeira de Anatomia Cirúrgica da Faculdade de Medicina da Bahia.
Nesse período de pesquisas e trabalho na FMB, traduzia artigos de diversas línguas e publicava suas
descobertas e conclusões científicas.

Esta trajetória o preparou para aquele que reputamos ser o seu primeiro grande posiciona-
mento público sobre a questão da mistura biológica do brasileiro, especialmente em relação ao negro.
Foi no discurso de posse, ao ser aprovado em concurso público para professor da FMB, 1896, fato de
grande repercussão na cidade de Salvador, em razão da banca composta por professores declarada-
mente escravocratas. Na ocasião, Juliano Moreira afirmou:
A quem se arreceie que a pigmentação seja nuvem capaz de marear o brilho desta Faculdade
[...]. Em dias de mais luz e hombridade o embaçamento externo deixará de vir à linha de
conta. Ver-se-á, então, que só o vício, a subserviência e a ignorância são que tisnam a pasta
humana quando a ela se misturam ganhando-lhe o íntimo e aí inviscerando o mal [...]. A
incúria e o desmazelo que petrificam, a hipocrisia, a baixeza e a desfaçatez que desmoralizam,
sim, dão a massa humana aquele outro negror que a torna incapaz de fornecer radiações
(MOREIRA, 1896 apud PASSOS; ODA, 2003, grifo nosso).

Como dissemos, a degeneração da população brasileira era, também para Juliano Moreira, um
fato preocupante e que demandava a ação de médicos, de outros intelectuais e do governo. Em seu
artigo Notícia sobre a assistência a alienados no Brasil (1905), condensou suas ideias sobre as mesclas
biológicas face à teoria da degenerescência, entendendo-a sob outro prisma.

Na esteira da ideia popularizada pela monografia de von Martius sobre os elementos étnicos
formadores da população brasileira, dizia ele que Portugal primeiro desafogou seus presídios, trazen-
do para cá sua população mais embrutecida. Posteriormente, foi buscar na África milhões de negros
que explorou para construir a economia do país. Nesta perspectiva, continua o desenvolvimento de
seus pensamentos mencionando as péssimas condições das travessias no atlântico, e chega ao ponto
que considera fundamental: nesse bárbaro processo da escravidão, entende ele que o álcool represen-
tou um papel inimaginável e que era escamoteado. Com o uso indiscriminado do álcool, procurou-se
aumentar a pacatez das vítimas africanas, mas, simultaneamente, os neurônios foram infectados de
elementos degenerativos provocados pelas bebidas. De forma rara nos discursos médicos de então,

211
Juliano Moreira aborda o elemento indígena, asseverando que também ele foi aproveitado à custa de
álcool e miçangas. Finaliza afirmando que os europeus trouxeram ao Brasil a sífilis, a lepra, a tuber-
culose, o alcoolismo e, esquecidos desta questão, atribuíam a degeneração à raça e à mestiçagem, para
não se darem ao trabalho de aprofundar as origens dos fatos (MOREIRA, 1905, p. 729).

Personificando, em discurso e práxis, a ética do homem capaz de Ricoeur, Juliano Moreira


defendia a popularização de medidas profiláticas e higiênicas, sem conotação racialista, mas igual-
mente com vistas aos perigos da degeneração. Acreditava que, pelas vias da educação e da produção
de um meio social saudável, os indivíduos poderiam se constituir como moralmente iguais e passíveis
de serem influenciados por uma moralidade civilizada. As diferenças, para ele, estariam somente na
dimensão físico-orgânica. Nos seus trabalhos constata-se uma profunda preocupação com a questão
ética de que os comportamentos deveriam visar o crescimento pessoal e o bem comum, ilustrando o
discurso médico normatizador que se fez presente entre o final do século XIX e as primeiras décadas
do XX (VENANCIO, 2004, p. 290).

Diante disto, podemos inferir que, mesmo sendo aluno e depois colega de trabalho de Nina
Rodrigues, e tendo convivido com médicos adeptos das teorias deterministas, Juliano buscou outras
leituras e referências em sua formação. Ele estudou von Martius, von Humboldt, J. J. Rousseau, além
de artigos médico-científicos, demonstrando empatia pelo pensamento humanista e utilizou a me-
dicina experimental, com a qual teve contato na Escola Tropicalista Bahiana ainda como estudante,
aliado aos fundamentos do organicismo da escola médica alemã para colaborar com a mudança do
discurso cultural vigente no Brasil e se posicionar em favor da miscigenação. Isto porque muitos
intelectuais, apesar de estarem inseridos em movimentos abolicionistas e republicanos, pregavam a
existência de “raças” diferenciadas e de hierarquia entre elas, ignorando a isonomia, que deveria ser
princípio motor desses movimentos.

Considerações Finais

Juliano Moreira viveu metade da vida (de 1872 a 1902) em Salvador, na Bahia, e a outra meta-
de, numa medida quase exata (de 1903 a 1933), na cidade do Rio de Janeiro. Não obstante ter fixado
residência nessas duas cidades brasileiras, viajou por muitas partes do mundo: Europa, Japão e Norte
da África; estudou inúmeros trabalhos e empreendeu inúmeras pesquisas em solo brasileiro e no ex-
terior.

Como a , de muitos dos médicos e intelectuais brasileiros do período, sua obra é resultado desse
diálogo científico e cultural e das conexões que estabeleceu. Os estudos comparados, fruto de pro-
fundas revisões bibliográficas dos diversos teóricos e dos intercâmbios realizados em especial com
os cientistas alemães, deram a Juliano Moreira a possibilidade de inovar, em território brasileiro, no
campo da medicina experimental e social. Aplicou o que apreendia nos atendimentos e estudos que
realizava desde que se tornara médico, especialmente junto à população mais pobre, em cujas con-

212
dições de vida era possível observar a possibilidade de agravamento de muitas patologias, incluindo
aquelas consideradas degenerativas.

Juliano Moreira teve uma educação tradicional, fato que poderia ter levado à formação de
um profissional com o pensamento cientifico e social muito próximo ao dos intelectuais brasileiros
da época, como o de seu mestre Nina Rodrigues, de Silvio Romero, e outros expoentes da medicina
brasileira daquele período. No entanto, da leitura de parte da sua biografia conhecida, constata-se em
Juliano Moreira a emergência de ideias diferentes àquelas vigentes no meio científico e cultural com o
qual estava diretamente envolvido, especialmente quanto a miscigenação da população e as causas da
degenerescência humana. Por isto, é possível afirmar que o seu pensamento – que representava uma
minoria no final do século XIX – se explica pelos processos de trânsitos culturais.

Com acesso que teve a vasto número de obras cientificas e literárias – o que se denota das
muitas referências em seus trabalhos – Juliano Moreira rearticulou a polifonia de ideias e teorias que
circulavam na Europa, nos Estados Unidos e no Brasil, emergindo com um contradiscurso face ao
racialismo científico. Além de ler o que era prescrito nos currículos oficiais e o que era indicado por
seus formadores, ele teve contato com outros pensamentos como o de Von Humboldt e o de Rous-
seau, com a singular cultura de Viena de meados do século XIX, incluindo Freud, e com os cientistas
alemães. Leu também historiadores portugueses do século XV, os clássicos gregos, a literatura france-
sa, e inúmeras outras leituras catalogadas de forma exemplificativa por esta pesquisadora, a partir de
escritos e discursos de Juliano Moreira.

A sua formação cientifica e cultural, portanto, foi ampla, de forma a permitir a diferenciação
de suas ideias e práticas médico-sociais daquelas desenvolvidas por seus pares. Destacamos, aqui, a
leitura de livros e artigos na língua em que foram escritos originalmente, sem passar por traduções e
interpretações (MOREIRA, 1891, p. 3). Sua biografia mostra, ainda, que ele era uma espécie de auto-
didata e que, sozinho, também se tornou um poliglota. Trilhar esses caminhos dos trânsitos culturais
e científicos levou Juliano Moreira a concluir, com ineditismo no Brasil, pela inexistência da influên-
cia das “raças” no processo de degeneração da população brasileira. Este tema, central no final do
século XIX no Brasil, só viria perder fôlego a partir dos anos 30 do século XX.

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Pretos e crioulos: atuação e mobilidade de agentes não mestiços no Sertão da Bahia do


século XVIII e XIX
Ocerlan Ferreira Santos58

Esta comunicação analisa a atuação e os processos de mobilidade social e jurídica de agen-


tes não mestiços no Sertão da Ressaca dos séculos XVIII e XIX (grosso modo, a área do planalto da
Conquista, no Centro-sul baiano). Para isso o estudo fez uso do cruzamento de fontes como cartas de
alforrias, testamentos, inventários post-mortem, processos cíveis e criminais, correspondências oficias,
recenseamento do Império de 1872 e os relatos dos agentes do governo, cronistas, viajantes e missionários
que circularam pelos sertões no referido período. Busca-se evidenciar a maneira como pretos e crioulos
se integraram e atuaram como agentes das mestiçagens biológica e cultural no processo de confor-
mação da sociedade sertaneja do interior da Bahia. Para tanto, parte-se da perspectiva das connected
histories, apresentadas, dentre outros, por Serge Gruzinski, Sanjay Subrahmanyam e Eduardo França
Paiva, que propõem ver a história nos seus contextos, mas sem perder de vista as conexões, visto
que todas as sociedades, em diferentes tempos, viveram seus processos de mundialização. Para este
estudo, referimo-nos ao processo iniciado pelas Coroas Ibéricas, no século XV, com as navegações
oceânicas, que conectou a Europa, África, Ásia e América. Ele estimulou adaptações, improvisações,
invenções, acordos e soluções entre as culturas envolvidas e fez circular saberes, objetos, plantas, lín-
guas e corpos pelos quatro cantos do mundo. Como produto da mundialização, as mestiçagens Ibero-
-americana possibilitaram que, mesmo diante dos impedimentos jurídicos, pretos e crioulos, assim como

58 Mestre em Memória: Linguagem e Sociedade (UESB). Professor da Secretaria de Educação do Estado da


Bahia. Integrantes do Grupos de Pesquisa Escravidão e mestiçagens (UESB). E-mail: ocerhist@hotmail.com.

217
outros agentes não-brancos, alcançassem diferentes graus de mobilidades.

O sertão da Ressaca e sua gente

O Locus deste estudo, o “Sertão da Ressaca”, região que corresponde hoje ao Planalto da Con-
quista, no Centro-Sul baiano, foi mais um produto das expedições de conquista dos sertões da Amé-
rica portuguesa do início do século XVIII, mais especificamente, a que partiu do Norte de Minas
Gerais, chefiada pelo italiano Pedro Leolino Mariz, acompanhado pelos portugueses: João Gonçalves
da Costa, preto-forro, e o mulato João da Silva Guimarães.59 Esses agentes do governo Português tra-
varam guerra com índios Pataxó, Camacã ou Mongoió e Imboré, destruíram quilombo, descobriram
pedras preciosas e abriram caminhos que conectaram o Sertão da Ressaca a outros sertões do Brasil
e ao mundo ultramarino.60 Após anos de trabalho em prol da empresa colonial João Gonçalves da
Costa e João da Silva Guimarães constituíram família e passaram a residir, respectivamente no Sertão
da Ressaca e nos “Sertões de Cima” (região correspondente ao atuais municípios de Caetité e Rio de
Contas), ambos na Bahia.

Ao se estabelecer no referido sertão na segundo metade do século XVIII, João Gonçalves aju-
dou a fundar o Arraial da Conquista, que tempos mais tarde, em 1840, se tornou a Imperial Vila da
Vitória, lugar grande importância política e económica da região. A criação e o comércio do gado bo-
vino ou vacum, caprino, cavalar ou muar e a compra e vendia açúcar, café, fumo e farinha, couro seco,
mandioca, milho, feijão, algodão foram as atividades económicas que contribuíram para manutenção
das conexões da Vila com os sertões do Brasil no decorrer da segunda metade do século XVIII e todos
o século XIX.61
59 Em estudo sobre devoções e recolhimento feminino no sertão da Bahia, Isnara Pereira Ivo nos apresenta
uma Carta Patente para capitão da Companhia e Infantaria da Ordenança de Homens Pardos do Arrebaldda,
emitida em 1750 pelo Conde de Althouguia, Dom Luiz Peregrino de Carvalho Menezes e Ataíde, na qual João
da Silva Guimarães é qualificado como pardo. Cf. Isnara Pereira. Devoções e Recolhimento feminino nos ser-
tões do Brasil Setecentista. In: IVO, Isnara Pereira; PAIVA, Eduardo França e AMANTINO, Marcia (Orgs.). Re-
ligiões e Religiosidades, Escravidão e Mestiçagens. São Paulo: Intermeios. Vitória da Conuista, Edições UESB,
2016. p. 193.
60IVO, Isnara Pereira. Homens de caminho: trânsitos culturais, comércio e cores nos sertões da América Por-
tuguesa. Século XVIII. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2012. p. 27-113; IVO, Isnara Pereira. Babilônia
confusa: disputas sobre os sertões da América portuguesa. Século XVIII. In: DIAS, Renato da Silva; ARAÚJO,
Jeaneth Xavier de. Representações do sertão:poder, cultura e identidades. São Paulo: Humanitas, 2013. p. 17-
42; TORRES, Tranquilino Leovelgildo. O município da Conquista. Vitória da Conquista: Museu regional de
Vitória da Conquista; Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, 1996. p. 43-60.
61 IVO, Isnara Pereira. Op. Cit., passim; WIED-NEUWIED, Maximiliano. Viagem ao Brasil. Companhia Edi-
tora Nacional: São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre, 1940. p. 421; AGUIAR, Durval Vieira de. Pro-
víncias da Bahia. Rio de janeiro: livraria ed. Catedral Instituto Nacional do Livro – Ministério da Educação e
cultura, 1979. P. 199; TANAJURA, Mozart. História de Conquista: crônicas de uma cidade. Vitória da Conquis-
ta: Brasil artes Ltda, 1992. p. 86; VIANNA, Francisco Vicente. Memória sobre o Estado da Bahia. Bahia: Tipo-
grafia e encadernação do Diário da Bahia, 1893. p. 438. Disponível em: <https://archive.org/details/memria-
sobreoesta00vian>. Acesso em junho de 2014. Cf. SANTOS, Ocerlan Ferreira. Memórias da Escravidão e das
Mestiçagens no Sertão da Bahia do Século XIX.Dissertação (mestrado em Memória: Linguagem e Sociedade)
- Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Vitória da Conquista, 2015.

218
No ano 1872, comparada a outras vilas dos sertões vizinhos (Brejo grande, Bom Jesus dos
Meiras, Caetité e Rio de Contas) e da Ressaca (Santo Antônio da Barra), a Imperial Vila Vitória era
uma das mais populosas, com cerca de 18.836 habitantes, classificadas como brancos, pretos, caboclos
e pardos. Deste total, 1.817 almas, eram de escravos.62Pretos e mestiços (livres e escravos) somavam
13.633 indivíduos, o que correspondia a 72,4% da população, sendo maioria de pardos (52,1%). A
população mestiçada foi uma Característica comum em quase toda a Ibero-américa do século XVIII
e XIX, como se observa na Vila de Rio de Contas (Sertões de Cima) e em toda a Província da Bahia,
na qual dos 1.379.616 habitantes, a maioria era pretos e mestiços, entre eles os pardos que somavam
631.072, ou seja, 45,7% do total da população.63 Nos dicionários e vocabulários dos século XVIII e
XIX pardo era uma designação usada para o mestiço de tez entre o preto e branco, ora como sinôni-
mo de mulato, mas a historiografia tem demonstrado que esta e outras designações utilizada na época
não dependia apenas da cor da pele, mas de uma conjunto de fatores tais como, a condição (se livre,
forro ou escravo), a aparecia, fenótipo e o lugar social que a pessoa ocupava.64Isso ilustra o que “com-
62 Vila agrícola de N. Sra. do Alivio do Brejo Grande (atual município de Ituaçu, na Chapada Diamantina)
6.631 habitantes; O Distrito de Bom Jesus dos Meira (atual município de Brumado), no Sertões de Cima, com
9.080 habitantes; A Vila de Santana do Príncipe de Caetité com 17. 836 habitantes; A Vila de Santo Antônio da
Barra (atual município de Condeúba), no Sertão da Ressaca, com 21.023 habitantes; E A Vila de Rio de Contas
com 23. 140 (somada todas a freguesias). Cf. BRAZIL. Diretoria Geral de Estatística. Memoria Estatística do
Brasil na Biblioteca do Ministério da Fazenda no Rio de Janeiro. Vol. 3. Recenseamento Geral do Império de
1872. Quadros Gerais. Recenseamento da população do Império do Brazil a que se procedeu no dia 1º de agosto
de 1872. Bahia. Vol. 3. Rio de Janeiro, 1876. Respectivamente, p. 430; p. 454; p.451; p. 460; e p. 418, 421, 424.
Disponível em: https://archive.org/details/recenseamento1872ba. Acesso em 20 de agosto de 2014.
63 Cf. MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: o significado da liberdade no sudeste escravista – Brasil,
século XIX. 3. ed. rev. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2013; SÁ, Eliane Garcindo de. Mestiço: entre o mito,
a utopia e a história – reflexões sobre a mestiçagem. Rio de Janeiro: Quartet: Faperj, 2013; PAIVA, Eduardo
França. Escravidão, dinâmicas de mestiçagens e o léxico ibero-americano. In: Perspectivas. v. 10, 2013, p. 11-24.
Disponível em: <http://dspace.uevora.pt/rdpc/bitstream/10174/9722/3/Revista_PERSPECTIVA_%2310_final.
pdf>. Acesso em junho de 2014; LIBBY, Douglas Cole. Transformação e trabalho em uma economia escravista
Minas Gerais no século XIX. São Paulo Brasiliense, 1988; A empiria e as cores: representações indenitárias
nas Minas Gerais dos séculos XVIII e XIX. In: PAIVA, Eduardo F; IVO, Isnara P.; MARTINS, Ilton C (Org.).
Escravidão e mestiçagem, populações e identidade culturais. São Paulo: Annablume, Belo Horizonte: PPGH-
-UFMG; Vitória da Conquista: Edições UESB, 2010. (Coleção olhares); STOLCKE, Verena. Los mestizos no
nacen sino que se hacen. In: Avá [online]. Nº.14, 2009. Disponível em: <http://www.scielo.org.ar/scielo.php?pi-
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em: <http://www.scielo.org.ar/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=1668-809020060001&lng=pt&nrm=iso>.
Acesso 01 de Novembro de 2014.
64BLUTEAU, Rafael. Vocabulário portuguez e latino. Coimbra: no Collegio das Artes da Companhia de Jesus,
Anno de 1712. p. 265. Disponível em: http://www.brasiliana.usp.br/pt-br/dicionario/edicao/1. Acesso em 20 de
fevereiro de 2013; MORAIS SILVA, Antonio. Diccionario Língua Pôrtugueza composto pelo padre D. Rafael
Bluteau, reformado, e accrescentado por Antônio de Moraes Silva, Natural do Rio de Janeiro. Tomo Segundo
L=Z. Lisboa, Na Officina De Simão Thaddeo Ferreira. ANNO M. DC C. LXXXIX. Com Licença da Real Meza
da Commissão Geral, sobre o Exame, e Cenfura dos Livros. p. 159. Disponível em: http://www.brasiliana.usp.
br/bbd/handle/1918/00299210#page/3/mode/1up. Acesso em 02 de fevereiro de 2013; SILVA PINTO, Luiz Ma-
ria da. Dicionário da Língua Brasileira. Ouro Preto, Na Typographia de Silva, 1832. p. 98. Disponível em: http://
dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/edicao/3. Acesso em maio de 2014; MATTOS, Hebe Maria. Op. Cit.,
p. 104; LIBBY, Douglas Cole. Op. Cit., p. 41-62; PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexi-
cal da Ibero-América entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagens e o mundo do trabalho). Belo
Horizonte: Autêntica, 2015, p. 159, passim.

219
preendemos por “qualidade”, uma categoria que reflete como os indivíduos e os grupos sociais eram
identificados, classificados e hierarquizados nas sociedades conformadas pelos processos de mundia-
lizações vivenciados em diferentes momentos no Novo Mundo”.65

Observa-se que a razão do grande número de pardo que apareceu na população do destes ser-
tões a partir de 1872, deveu-se ao fato de que o critério empregado na classificação das pessoas pelo
primeiro Recenseamento Geral do Brasil ter diferido das “qualidades” usadas nas relações cotidianas
do mundo português desde o século XVI, a saber: mulatos, cabra, pardo, crioulo, curiboca, índio,
pretos, negro, mameluco, branco, dentre outros. Desse modo, o termo pardo utilizado no censo pode
ter mascarado outras designações de mestiços ou não mestiços, a exemplo de cabra, mulato, índio e
crioulo.

A circulação de objetos e pessoas das “quatro partes do mundo” era constante no Sertão da
Ressaca, desde o início do século XVIII. Além dos três sertanistas portugueses e o italiano supracita-
dos, Ivo demonstrou a circulação das gentes de diferentes condições e “qualidades”, nascidos no Bra-
sil, alemães, suecos, ingleses, espanhóis e asiáticos atuando no comércio de escravos ou conduzindo
fazendas secas e molhadas, ou ainda, envolvidos nos processo de construção de fabricas e estradas.66
Na segunda metade do século XIX, a Vila de Santo Antônio da Barra e a Imperial Vila da Vitória jun-
tas registraram a presença moradores de origem italiana, oriental, portuguesa e africana, assim como
gentes das províncias de Pernambuco, Paraíba, Ceará, Espírito Santo, Sergipe, Piauí, Alagoas, São
Paulo e Minas Gerais, bem como uma maioria da própria Províncias da Bahia.Certamente nascidas
nas localidades e oriundas de outras vilas.67

Alguns estrangeiros que transitaram nesses sertões no início do século XIX inscreveram sobre
sua fauna e flora, bem como sobre sua gente. O alemão Robert Avé-Lallemant, por exemplo, per-
correndo as margens do Rio Pardo observou a presença de alemães, franceses, portugueses, índios e
negros livres vivendo como lavradores entre o rio e a floresta.68 Outrossim, o príncipe austríaco Maxi-
miliano de Wied-Neuwied registrou em seu diário o fenótipo dos índios da região próximo ao Arraia
da Conquista, entre o Rio Belmonte e o Rio Pardo, e tomou nota da mestiçagem daqueles com negros:
Quando no rio Grande de Belmonte, fiz referência aos restos duma tribo de índios que
a si mesmos se dão o nome de Camacãs, e os portuguêses denominam-nos Meniens.
Segundo concluo das informações obtidas, êsses Meniens constituem realmente um
ramo dos Camacãs, porém degenerado; não são mais da raça indígena pura, tendo a
maioria dêles o cabelo encarapinhado dos negros e também a côr escura e, com exce-

65IVO, Isnara Pereira e SANTOS, Ocerlan Ferreira. Mestiçagens e distinções sociais nos sertões da Bahia do
século XIX. In: Revista de História Regional. 21(1), 2016. p. 119. Disponível em: http://www.revistas2.uepg.br/
index.php/rhr. Acesso em 25 de agosto de 2018.
66 IVO, Isnara Pereira. 2012, p. 90 e p. 117, passim.
67 Na imperial Vila da Vitória registou-se: uma pessoa da Província de São Paulo, uma Oriental, duas do
Ceará, duas do Espírito Santo, três Paraíba, quatro italianas, 11 do Piauí, 23 de Sergipe, 24 de Portugal, 30 de
Pernambuco, 40 de Alagoas, 131de Minas Gerais, 172 da África (metade escrava) e 18.392 da Bahia. Já na Vila
de Santo Antônio da Barra havia uma pessoa da Província de Sergipe, quatro de Pernambuco, nove de Portugal,
120 de Minas Gerais, 128 da África (88 escravos e 40 livres) e 20.779 da Bahia. Cf. BRAZIL. Diretoria Geral de
Estatística. Op. Cit., p. 449 e 461.
68AVÉ-LALLEMANT, Robert. Apud IVO, Isnara Pereira. Op. Cit., p. 243.

220
ção de dois velhos, não sabem mais a sua língua.69

Essa mestiçagem com índio parece ter sido marcante no Sertão da Ressaca, perdurando por
todo o século XIX, o que se pode observar no registro dos viajantes supracitados, como também no re-
gistro de caboclos no censo de 1872 e de escravos cabra nos inventários post-mortem da Imperial Vila
da Vitória. A “qualidade” cabra, segundo os vocabularistas e dicionaristas dos séculos XVIII e XIX, se
referia ao filho de pai mulato e mães negra/preta ou o oposto.70 No entanto, nas fazendas Jesuítas do
Rio de janeiro do século XVIII, Amantino, observou a variação no uso do termo entre o século XVIII
e XIX: cabra foi utilizado para designar mestiços de índios com negros; depois tornou-se sinônimo de
indivíduos de origem indígena e que viviam sob a administração dos inacianos; e na segunda metade
do século XVIII, e decurso do século XIX, o termo foi usado para referir-se aos indivíduos mesclados
de negro com seus descendentes mestiços.71 Embora a ausência de registro de batismo, de casamentos
e de óbitos tenham dificultado a identificação da laços consanguíneos, as fontes do judiciário supra
evidenciam que para a Imperial Vila da Vitória, cabra era a mescla de índio com outros mestiços e/
ou de índio com africano ou crioulos, uma vez que este último constituía na maioria da população
escrava do lugar.72

Do exposto, observa-se que embora estudos tenham apontado para a conformação de so-
ciedade majoritariamente mestiça nos sertões da Bahia do século XVIII início do XIX, parte desses
mesmos estudos apontam que, no Sertão da Ressaca da segunda metade do século XIX, Crioulo e
Cabra foram as designações que respectivamente predominaram no registro dos escravos. Assim,
se faz necessário aprofundarmos nos estudos comparativos sobre esse processo ou fenômeno e, por
conseguinte, apreender o modo com ele impactou na referida sociedade.

Das Mobilidades

O sistema de hierarquias sociais da Ibero-América dos séculos XV ao XIX se baseava em


um conjunto de códigos de caráter jurídico, político e social, respaldados por argumentos religio-
sos bastante rígido, que apontavam a existência ou não de “defeitos” relacionados a ascendência e
69WIED-NEUWIED, Maximiliano. Viagem ao Brasil. 2ª Edição. Brasiliana; São Paulo: Companhia da Editora
Nacional, 1958. (Série Grande Formato, Série 5ª, vol. 1). p. 431. Para maiores informações sobre as impressões
dos viajantes sobre o sertão da Ressaca e o Sertão de Cima, bem como da sua gente mestiça. Cf. SANTOS,
Ocerlan Ferreira. Memórias da Escravidão e das Mestiçagens no Sertão da Bahia do Século XIX.Dissertação
(mestrado em Memória: Linguagem e Sociedade) - Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Vitória da
Conquista, 2015.
70 MORAIS SILVA, Antônio. 1789, Op. Cit., p. 207; SILVA PINTO, Luiz Maria da. 1832, Op. Cit., p. 22;
71 AMANTINO, Marcia. Cabras. In: PAIVA, Eduardo França. Et. al. Do que estamos falando?: Antigos con-
ceitos e modernos anacronismos: escravidão e mestiçagens. Rio de Janeiro: Garamond, 2016. p. 83-97. Alguns
estudos que fazem a discussão sobre a “qualidade” cabra e outras. Cf. Libby, Douglas Cole. 2010, Op. Cit., p.
50, passim; SANTOS, Ocerlan Ferreira. 2015, Op. Cit., p. 60; IVO, Isnara Pereira e SANTOS, Ocerlan Ferreira.
2016, Op. Cit.; PAIVA, Eduardo França. 2015, Op. Cit.
72 A qualidade crioula é compreendida aqui de uma forma mais dilatada, como sendo a designação usada
para indivíduos a partir da segunda geração de africanos/pretos/negros nascidos no mundo português. Cf.
SANTOS, Ocerlan Ferreira. 2015, Op. Cit., p. 62 e p. 76 e PAIVA, Eduardo França. 2015, Op. Cit., p. 28, assim.

221
a ocupação do indivíduo ou do grupo. No caso português, revolução comercial e as expedições de
conquista século XV foram fatores de extrema importância para a conformação e posterior dilatação
do referido ordenamento social, pois a recuperação econômica que ajudou a promover, possibilitou
a mobilidade social ascendente de indivíduos não nobres, principalmente daqueles colaboram direta-
mente para a edificação da empresa colonial.73 Os novo títulos e mercês distribuído provocaram uma
reação da velha nobreza ou “nobreza de sangue” que passaram a criar mecanismo de impedimentos
de mobilidades.74 Foi nesse processo que baseado a ideia de pureza de sangue, a progênie de judeus,
cristãos-novos, mouros, ciganos, indígenas, negros e mestiços diversos foram legalmente impedidos
acessar instituições de as ordens militares, filiarem as confrarias e outros agrupamentos do tipo, as-
sumir cargos públicos e eclesiásticos.75Portanto, “as diferenças entre os indivíduos ou entre os grupos
eram algo marcado e desejado como meio de se manter a ordem, e a partir delas eram estabelecidas
as formas de distinções, privilégios, obrigações e punições”.76

Nos territórios coloniais, a escravidão e as mestiçagens produziram dinâmicas diferencias que


implicaram na conformação de um ordenamento social não tão rígidas como de sua matriz europeias.
Segundo Amantino, a criação da ideia de “nobreza da terra” para nomear os “homens bons” das câ-
maras municipais e as elites das capitanias, formadas no processo das conquistas do território e das
gentes, foi um exemplo dessa diferenciação. Uma “nobreza” comumente mestiça, sem laços familiares
com os nobres europeus e despossuídos dos padrões comportamentais desejados por estes.77 Seja no
Reino ou nos territórios coloniais as categorias de “qualidade” e condição (variáveis no tempo e no
espaço) passaram a ser usadas como forma de alocar as pessoas e os grupos dentro do ordenamento
social e a cada novo tipo social que nascia, mestiço ou não, novos léxicos surgiam ou eram ressigni-
ficados para classifica-los, a exemplo de cabra, caboclo, pardo, índio, preto, negro, crioulo, dentre
outros.

Analisando a trajetória familiar de forros que ingressaram na elite escravista de São Paulo dos
anos finais do século XVIII e início do século XIX, Guedes demonstrou que o conceito de mobilidade
social é bastante complexo, devendo ser pensado de acordo o tipo de sociedade analisada. Para ele os
indicadores da mobilidade social em sociedades com traços de Antigo regime e escravista não era o
enriquecimento, mas sim “reputação social” ou prestígios social. O autor conclui que alcançar mobi-

73HESPANHA, António Manuel. As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político (Portugal, séc. XVIII).
Coimbra: Almedina, 1994. Passim.
74 Ibid., passim.
75PAIVA, Eduardo França. 2015, Op. Cit.; HESPANHA, Antonio Manuel. Op. Cit.; MATTOS, Hebe Maria. A
escravidão moderna nos quadros do Império português: o Antigo Regime em perspectiva atlântica. In: FRA-
GOSO, João L. R; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVEIA, Maria de Fátima (Org.) O Antigo Regime nos
Trópicos:A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p.
143-162; OLIVAL, Fernanda. Rigor e interesses: os estatutos de limpeza de sangue em Portugal. Cadernos de
Estudos Sefardistas, n. 4, p. 151-182, 2004. Disponível em: http://www.catedra-alberto-benveniste.org/_fich/15/
artigo_Fernanda_Olival.pdf.Acesso em janeiro de 2016.
76 AMANTINO, Marcia. Mobilidades, hierarquias e as condições socio-jurídicas dos índios na América por-
tuguesa, séculos XVI-XVIII. In: SCOTT, Ana Silvia Volpi et al (Orgs.). Mobilidade social e formação de hie-
rarquias: subsídios para a história da população. E-book, Vol. 3. São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2014.
(Coleção Estudos Históricos Latino-Americanos – EHILA). p. 106.
77Ibid., p. 106.

222
lidade social é poder circular entre os grupos sociais, como forma de obter de privilégios, reconheci-
mento, respeito e manutenção de tudo o que foi conquistado.78

Ainda segundo o autor, a mobilidade social de forros e seus descendentes não pode ser enten-
dida, apenas, como passagem de um segmento ou status jurídico a outro, pois o movimento de ascen-
são é gradativo e geracional. Para “forros, passíveis de reescravização, a mobilidade social podia ser a
própria manutenção de sua condição de liberto [...]; para seus descendentes, seria o afastamento pau-
latino de um passado escravo. Para o egresso do cativeiro, estes são movimentos importantes de rein-
serção social”.79 Por essa razão o autor concluiu que é necessário distinguir forro e seus descendentes
em termos de distanciamento da escravidão, uma vez que esse afastamento gradativo do passado escravo,
podiam se alterar em uma família, de acordo o chefe ascendia socialmente e dependendo, principalmente,
das redes de relações de poder que estava vinculado.

Para Soares nas sociedades de Antigo Regime a mobilidade social, pensada enquanto a mudança
de um estatuto jurídico e social para outro, era muito difícil, principalmente quando ascendente.80 No
entanto, para ele havia a possibilidade de mudança no interior do segmento em que o indivíduo ocupava.
Por essa razão, o autor definiu mobilidade social como estabilidade social e propõe pensa-la a partir das
hierarquias existentes no próprio “segmento social”, ou seja, devemos pensar mobilidade social entre
pares.

Corroborando os autores supracitados, Alves afirmou que a mobilidade significava a obten-


ção, o reconhecimento e a consideração de padrões sociais da elite e dos diferentes grupos, mas tam-
bém o gozar “de privilégios e honrarias que não eram próprios ou reconhecimentos pelas elites, mas
que eram significativos para o próprio grupos sociais no qual o sujeito estava inserido”.81 Ao diferen-
ciar a ascensão econômica da ascensão social, a autora afirmou que no caso dos forros, a ascensão
social levava em conta:
a participação deles em irmandades, a pompa fúnebre, o círculo social no qual esta-
vam inseridos, especificando quem eram os testamenteiros, inventariantes, credores,
devedores e vizinhos, o local e o tipo de moradia e as estratégias utilizadas por eles e
por seus descendentes para driblar regras e imposições e alcançarem lugares que pre-
tendiam ser exclusivos das elites.82

78 GUEDES, Roberto Ferreira. De ex-escravos a elite escravista: a trajetória de ascensão social do pardo alferes
Joaquim Barbosa Neves (Porto Feliz, São Paulo, século XIX). In: FRAGOSO, João L. R; ALMEIDA, Carla M.
C. de.; SAMPAIO, Antonio C. J. de (Org.). Conquistadores e negociantes: história de elites no Antigo Regime
nos trópicos. América lusa, século XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 340.A discussão
sobre as mobilidades sociais, parte dela substancialmente presentes neste texto, encontram-se na dissertação de
mestrado. Cf. SANTOS, Ocerlan Ferreira. 2015, Op. Cit.
79 Ibid., p. 341.
80 SOARES, Márcio de Sousa. Manumissão e mobilidade social em Campos dos Goitacazes: 1750-1830. In:
BOTELHO, Tarcísio R.; LEEUWEN, Marco H. D. Van (Org.) Mobilidade social em sociedades coloniais e pós-
-coloniais: Brasil e Paraguai, séculos XVIII e XIX. Belo Horizonte: Veredas & Cenários, 2009.
81 ALVES, Rogéria Cristina. Mosaico de forros: formas de ascensão econômica e social entre os alforriados
(Mariana, 1727-1838). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas. Belo Horizonte, 2011. p. 61.
82 Ibid., p. 61.

223
Por fim, evocando Santos, Alves defendeu a polissemia da ascensão social de alforriados, ou
seja, para ela a ascensão social deste grupo social comportava poucas unanimidades, por isso precisa
ser analisada sob a ótica peculiar, dependendo do individuo e do contexto em que estava envolvido.
Nesse sentido,83 a mobilidade social pode assumir significados diferentes para cada forro e/ou escra-
vo.

As perspectivas apresentadas por Soares e por Alves nos parece ser as mais adequadas para
pensamos na mobilidade social nas sociedades Ibero-americanas dos séculos XVI ao XIX, especial-
mente de escravos e forros. A historiografia tem demonstrado que indivíduos nessas condições pode-
riam ocupar lugares diferentes nos grupos sociais e até fora deles, pois dependendo da atividade que
desempenhavam e das redes de sociabilidade edificadas ao longo do tempo, um escravo ou um forro
poderia alcançar algum tipo de prestígio social, ao menos entre seus pares.84

No caso de escravos, a alforria poderia está distante, mas exercício de uma atividade especia-
lizada ou de uma função de destaque entre seus pares poderia leva-lo gozar de tipo de privilégio ou
regalia, ou ao menos, gozar de uma maior mobilidade física e, com ela, ter mais controle sobre sua
vida. Para o forro, o exercício de uma profissão aprendida depois ou em tempos da escravidão, po-
deria garantir uma vida não miserável ou menos dependente, e, no futuro, um sepultamento digno.
O fato que muitos forros figurarem como testadores ou inventariado, independente grau de riqueza,
certamente já os colocavam em um lugar social incomum aos seus pares. Outros atributos importan-
tes eram a posse de escravos e as alianças sociais com pessoas de maior qualidade.

A ascensão da monarquia no Brasil do século XIX não alterou significativamente os quadros


dirigentes e os privilégios da antiga “elite colonial”.85 No entanto, desde as últimas décadas do século
XVIII, o crescente número de negros, crioulos e mestiços forros estimularam mudanças significativas
na sociedade,86 entre elas a incorporação e reconhecimento de direito civis na constituição do Império
de 1824. Por conseguinte, criaram-se expectativas sobre a conquista de diretos políticos e possibilida-

83 Ibid., p. 72; Cf. SANTOS, Lucimar Felisberto dos Santos. Cor, identidade e mobilidade social: crioulos e afri-
canos no Rio de Janeiro. (1870-1888). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense.
Niterói, 2006.
84 Cf. Cotidiano do Negro no Brasil Escravista. In: José Andrés-Gallego. (Org.). Tres Grandes Cuestiones de
la Historia de Iberoamérica. Madrid: Fundación Mapfre Tavera - Fundación Ignacio Larremendi, 2005, v. 1, p.
1-163. Disponível em: <http://www.larramendi.es/i18n/catalogo_imagenes/grupo.cmd?path=1000209>. Aces-
so em 17 de agosto de 2012; DIAS, Maria Odila L da S. Quotidiano e poder em São Paulo XIX. 2. ed. Ver. São
Paulo: Brasiliense, 1995; SLENES, Robert W. Senhores e subalternos no Oeste Paulista. In: História da vida
privada no Brasil, Império: a corte e a modernidade nacional. Coord. Geral Fernando Novais; Org. do volume
Luiz Felipe de Alencastro. São Paulo: Companhia das Letras, 1999b (Coleção História da vida privada no Brasil,
v. 2).
85 MARTINS, Maria Fernanda. Os tempos de mudança: elites, poder e redes familiares no Brasil, séculos XVIII
e XIX. In: In: FRAGOSO, João L. R; ALMEIDA, Carla M. C. de.; SAMPAIO, Antonio C. J. de (Org.). Conquis-
tadores e negociantes: história de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, século XVI a XVIII. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
86 Cf. PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na colônia: Minas Gerais, 1716-1789.Belo Hori-
zonte: Editora UFMG, 2006. Farias, Sheila de Castro. 2005, Op. Cit.

224
des de ascensão e mobilidade social.87 Como vinha ocorrendo em outros cantos da Ibero-américa, no
Sertão da Ressaca, mais especialmente na Imperial Vila da Vitória dos séculos XVIII e XIX, pretos,
crioulos, pardos, dentre outros, na condição de forro como João Gonçalves da Costa, Joaquim e Maria
bernarda conseguiram alcançar diferentes graus de mobilidades social.

As trajetórias do forro português João Gonçalves da Costa exemplos de mobilidade social ge-
racional ascendente. Segundo Ivo, João Gonçalves da Costa foi um preto forro que nasceu na Cidade
de Chaves, em Portugal, por volta do ano de 1720.88 Não há informações se ele já era forro quando
chegou ao Brasil, em meados do século XVIII, mas, foi nesse tempo que passou a integrar a expedição
do mestre de campo João da Silva Guimarães, como capitão do Terço de Henrique Dias, como se
vê em sua carta patente, concedida pelo conde de Galveais, André de Mello e Castro, membro do
conselho do rei, em 1744:
[...] consideração que em fez Pedro Leolino Mariz, esperando dele que nas obriga-
ções por lhe tocarem com este emprego se fará muito conforme a confiança que faço
do seu procedimento [...] elego e nomeio, capitão da gente preta que servirá naquela
conquista subordinado às ordens do dito mestre-de-campo João da Silva Guimarães,
para que o seja, use e exerça com todas as honras, graças, franquezas [...] ordeno ao
mestre-de-campo Pedro Leolino Mariz que lhe dê a posse e juramento de que se fará
junto nas costas destas.89

João Gonçalves da Costa passou a desbravar os sertões da Bahia, abrindo caminhos e des-
truindo quilombos e tribos inteiras de índios. Sua fama chegou a outras partes do mundo por meio
dos registros dos viajantes estrangeiros Spix e Martius e do príncipe austríaco Maximiliano de Wie-
d-Neuwied, no início do século XIX.90 O sertanista participou da construção da estrada da Serra de
Montes Altos junto com Pedro Leolino Mariz, bem como chefiou a abertura de outras que ligavam os
sertões da Bahia às regiões litorâneas e ao norte de Minas Gerais.

Pelos serviços prestados à sua Majestade, ele recebeu as terras hoje correspondentes, grosso
modo, ao Sertão da Ressaca, onde constituiu família, casando-se com Josefa Gonçalves da Costa, filha
de um “homem bom” chamado Mathias João da Costa, montando fazendas com escravos e gado.
Seus filhos, também se casaram com mulheres de outras qualidades, espalhando-se pelas diversas
propriedades que a família possuía. Seu descendentes, maioria mestiços, ocupou os mais importantes
cargos públicos na Vilas do Sertão da Ressaca, continuando a governá-las até a primeira metade do
século XX.91
87 MATTOS, Hebe M. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000; ____
Das cores do silêncio: o significado da liberdade no sudeste escravista – Brasil, século XIX. 3. ed. rev. Campinas,
SP: Editora da Unicamp, 2013. p. 83 a 99.
88 Ivo, Isnara Pereira. 2012, Op. Cit.
89 APEBa. SCP. Série: Patentes e Alvarás. 1738.1745. Maço 356. f. 270. 05.03.1744, apud Ivo, Isnara Pereira.
Devoções e Recolhimento feminino nos sertões do Brasil Setecentista. In: IVO, Isnara Pereira; PAIVA, Eduardo
França e AMANTINO, Marcia (Orgs.). Religiões e Religiosidades, Escravidão e Mestiçagens. São Paulo: Inter-
meios. Vitória da Conuista, Edições UESB, 2016.
90WIED-NEUWIED, Maximiliano. 1958, Op. Cit.; SPIX, Von.; MARTIUS, Von. Através da Bahia: Excerptos
da obra Reise in Brasilien. Translado a português pelos Drs. Pirajá da Silva e Paulo Wolf. Companhia Editora
Nacional: São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre, 1938. Disponível em: <http://www.brasiliana.com.br/
obras/atraves-da-bahia-excertos-da-obra-reise-in-brasilien/pagina/6/texto>. Acesso em 01 de agosto de 2014.
91 Ivo, Isnara Pereira, Op. Cit., 2004.

225
O africano Joaquim forro de 70 anos, moradora na rua do Espinheiro, na Imperial Vila da
Vitória do XIX, cumulou poucos bens, construindo uma trajetória diferente do João Gonçalves da
Costa, das africanas e crioulas das Minas Gerais do século XVIII, como Bárbara Gomes de Abreu e
Lima e do forro Joaquim d’Almeida, da Cidade da Bahia que acumularam riqueza e poder. 92 O bem
de maior valor que possuía era uma “morada de casa” na Rua do Espinheiro, avaliada em 150$000 mil
réis. O restante dos bens consistia em um banco no valor de 1$000 réis, dois crates93 velhos, no valor
de 3$000 réis e outro em bom uso, no mesmo valor, vinte e uma éguas, no valor de 27$500 réis cada.
Possuía também uma poldra, no valor de 16$000 réis, um cavalo, no valor de 10$000 réis, compondo
um monte-mor de 761$000 réis. Joaquim devia apenas a quantia de 3$700 réis a Antonio da Costa
Neves, dívida cuja origem não se pode conhecer. Descontada a dívida e as despesas do funeral, sobra-
ram 228$000 réis como monte partível.94

Ao longo de sua vida, Joaquim soube aproveitar as poucas oportunidades que lhe foram con-
cedidas. Acumulou bens e construiu relações de amizade, afeto e respeito com homens e mulheres de
diferentes condições. Em testamento lembrou e retribui àqueles que, de algum modo, lhe foram caros:
De/claro que o capitão João Moreira/ do livramento tem duas suas cri/as, uma de
nome Maria, e outra/ de nome Maria Geronima, a quem pelo/ amor que a ellas tenho
deixo para/ cada uma Egoas das de minha/ criação, por que ascarreguei/ e as tenho
muita amisade. [...] Declaro, que contratei com Maria Joanna/ de tratame em mai-
nha enfer/midade, para dar-lhe um poldro de anno, o que meu testamenteiro cum/
prira, se não ella não faltar o trato que/ commigo fez.[...]Declaro que por não possu/
ir herdeiro algum, e não ter a quem/ deixar meos bens, depois de com/pridas mi-
nhas disposiçõens d’elles/ o restante deixo ao Senhor João Mo/reira do Livramento, e
Theotonio/ Gomes Roseira, em remuneração ao/ tempo que me agüentarão em suas/
casas pelo que nenhum benefício lhes fiz. 95
Os homens que Joaquim declarou ser de sua confiança, e a quem legou seus bens, pertenciam
ao grupo dos “homens bons” da Imperial Vila da Vitória. O Capitão João Moreira do Livramento era
filho do falecido Francisco Moreira do Livramento, ex-senhor de Joaquim e um influente político da
localidade. A julgar pela declaração do relacionamento que tinha com as escravas de João Moreira,
Joaquim era assíduo frequentador de sua casa e, possivelmente, lhe prestava serviço. Theotonio Go-
mes Roseira era genro de Francisco Moreira do Livramento e também era envolvido com a política
local.96 João Gomes Quaresma, “homem bom”, convidado por Joaquim para ser seu testamenteiro,
também era envolvido com a política local e em arrematação de escravos.97

A afinidade do forro Joaquim com esses indivíduos nos permite pensar acerca das redes de
92Para o segundo e terceiro caso, respectivamente. Cf. PAIVA, Eduardo França. Op. cit. 2006. p. 219; FARIA,
Sheila de Castro, Op.cit. 2005.p. 128.
93A grafia está incorreta, deveria ser “catre”, que, segundo Bluteau (1712, p. 203) era leito pequeno, com pilares,
não totalmente levantados, como os do leito.

A palavra da forma como está escrita existe na língua inglesa e significa “caixa”, “caixote”.
94 AFJM: 1ª Vara Cível. Caixa Diversos: 1860 a 1869. Inventário e testamento de Joaquim Forro, 1863. Fl. 11.
95 Idem. F. 17f e v.
96 Sobre a importância política desse e de outros “homens bons” do Sertão da Ressaca. Cf. IVO, Isnara Pereira.
2004.
97 AFJM: 1ª Vara Cível. Caixa Inventários: 1850 a 1859. Auto de petição mandado citatório, arequerimento das
partes acima declarados, para ser arrimatado o escravo Bernardo pardo, como adiante se declara. 1858.

226
relacionamentos por ele criadas e que possibilitaram seu trânsito entre os membros dos grupos sociais
mais abastados. Todavia, permite também ponderar que, muito além de um reconhecimento ao aco-
lhimento recebido, tais ações podem indicar estratégias de sobrevivência e proteção diante das sujei-
ções e dos estigmas do cativeiro que eram impostos aos ex-escravos e, que se agravavam na condição
de enfermo. Como afirmou Paiva
Libertos e libertas sorveram daquela sociedade escravista todas as oportunidades
existentes de trabalho, de onde retiravam os recursos financeiros necessários para a
vida no dia-a-dia. Outras vezes, diante de interdições impostas, inventaram e explo-
raram outras possibilidades de sobrevivência cotidiana.98

O trânsito de Joaquim nas casas de seus bem feitores nos leva a supor também que seus bens
pudessem estar espalhados por algumas dessas propriedades. Assim, a atitude de elaborar testamento
foi uma maneira de assegurar que tudo aquilo que conquistou, antes e pós-escravidão, pudesse lhe
garantir um final de vida e sepultamento mais dignos.

Joaquim parece ter sido fiel aos cânones católicos, uma vez que se preocupou com seu sepul-
tamento “sem pompas” e com as celebrações das missas após sua morte:
Declaro que depois do meu falecimento, o meo testa/menteiro fará meo enterro sem
pom/pa alfuma, porém decentemente/ para que o deixo a quantia de seten/ta mil reis
inclusive a Missa/ de Corpo presente, o que cumprirá sem/ perda de tempo. Declaro
mais que/ o mesmo meo testamenteiro man/dará diser por minha alma tres/ Cape-
llas de Missa isso no praso/ de suas prestação de contas para/ o que lhe deixo o praso
de um anno/ além da recompenssa de da terceira verba”.99

Esse era um ato comum nos testamentos de livres e forros em todo o Império português, e
continuou a ser no Brasil Imperial. Alguns indivíduos, por dificuldades financeiras ou mesmo ques-
tões religiosas, escolhiam ritos simples, como Joaquim. Outros não poupavam despesas, solicitavam
celebrações de várias missas para si e para parentes e escravos mortos, além de doações aos pobres ce-
gos, aleijados, donzelas, órfãos honestos e viúvas, como fez, no ano de 1866, o Capitão Luiz Fernandes
de Oliveira, também morador da Imperial Vila da Vitória.100Foi também nesses momentos que ante-
cediam a morte que muitos escravos conseguiam a alforria, a exemplo de Manoel Pequeno africano,
Miguel africanos, Bibiana africana, escravos do testador supra, o Capitão Luiz Fernandes de Freitas.

Em razão da religião, que pregava a existência do purgatório e importância das celebrações


para livrar as almas da perdição, nos testamentos da América portuguesa, esses ritos eram uma das
preocupações centrais.101 Para a autora essa parte dos testamentos é uma das mais interessantes, pois
nos parece que, nesses últimos momentos da vida dos homens, há um sentimento comum a todos,
fossem livres, forros ou escravos: uma espécie de ajuste de contas com a sua própria consciência.

Não há por que duvidar da crença de Joaquim, mas certamente, a afirmação da fé católica e a
vida pacífica que aparentemente levava contribuíam para manter firme o relacionamento que cons-
98 PAIVA, Eduardo França. 2004, Op. Cit., p. 10.
99 AFJM: 1ª Vara Cível: Caixa Diversos: 1860 a 1869. Inventário e testamento de Joaquim Forro. 1863. F. 17v.
100 AFJM: Caixa Avulsos II. Autos do inventário dos bens do falecido Capitão Luiz Fernandes de Oliveira,
1869.
101FURTADO, Junia Ferreira. Testamentos e inventários: a morte como testemunho da vida. In: PINSKY,
Carla Bassanezi; LUCA, Tania Regina (Org.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009.

227
truiu com os “homens bons” da Vila e a não despertar a atenção das autoridades locais. Como afirma
Paiva:
Os libertos e libertas moradores das áreas urbanas, fossem eles africanos, crioulos ou
mestiços, levavam uma vida mais ou menos pacata, sem intentar promover profun-
das alterações na lógica do mando escravista.102

Mas embora não tenha acumulado riquezas, Joaquim conseguiu circular entre os homens
mais distintos da sociedade local o que já lhe garantiu certos prestígios e acessos a espaços que outros
alforriados não tinham. O fato de se tornar testador, também garantiu certo grau de mobilidade a
Joaquim, uma vez de boa parte da população forra e livre nem sempre tinha recursos financeiros para
elabora testamentos. Portanto, mesmo tendo uma vida simples, os poucos bens acumulados e as re-
lações que teceu lhe garantiu viver longe da miséria e experimentar certo grau de mobilidades social
com relação a seus pares.

Trajetória muito diferente teve a crioula Maria Bernarda de Oliveira, 36 anos de idade, soltei-
ra, moradora da Rua do Espinheiro, na Imperial Vila da Vitória, no ano de 1872.103 De acordo com
registro do livro do Tabelionato de Notas, Maria Bernarda, nação crioula, tinha mais ou menos 18
anos de idade quando conquistou sua carta de alforria, sem pagamento e condição, no dia 29 de maio
de 1855,104 tendo sido conferida pelo então Ajudante 105 João de Oliveira Freitas, morador na Fazenda
Olhos d’Aguas da Catinga, na Imperial Vila da Vitória, mesmo lugar onde nasceu Maria Bernarda.106

João de Oliveira Freitas era membro de uma das famílias mais ricas e poderosas do Sertão da
Ressaca, filho de Manoel de Oliveira Freitas e Faustina Gonçalves da Costa,107 filha do conquistador
João Gonçalves da Costa e Josefa Gonçalves da Costa. João de Oliveira Freitas foi proprietário de ter-
ras, escravos e gado (com um monte-mor calculado em 135:842$300 réis) 108 e, segundo Ivo (2004),
também exerceu funções importantes na Imperial Vila da Vitória, como Juiz Municipal e delegado de
Polícia. Foi casado com Maria Clemencia do Amor Divino, com quem teve cinco filhos109 e de quem
se divorciou em razão do envolvimento desta com o vigário Bernardino Correia de Mello, com o qual
fugiu para a cidade de Valença (atual Município Valença, mesorregião do sul da Bahia), por volta de
1853. Tal fato causou escândalo entre os “homens bons” da Imperial Vila da Vitória, sendo motivo
de apreciação da Câmara Municipal, que, em sessão extraordinária, comunicou o acontecimento ao
102 PAIVA, Eduardo França. 2004, Op. Cit., p. 02.
103 AFJM: 1ª Vara Cível. Termo de Bem viver de Rosa Silvana de Oliveira a Maria Bernarda. Caixa: diversos,
1872.
104 AFJM: 1º Cartório de Notas. Livro nº 3. Ano 1849 a 1858. Carta de liberdade de Maria Bernarda. Fl. 198v.
105 O termo Ajundante refere-se a uma das patentes da Guarda Nacional. Ver: FARIA (1977).
106 AFJM: 1ª Vara Civil. Termo de Bem viver de Rosa Silvana de Oliveira a Maria Bernarda. Caixa: diversos,
1872. Fl. 6v.
107 AFJM: 1ª Vara Cível. Caixa Avulsos II. Inventário de Faustina Gonçalves da Costa. 1847.
108 AFJM: 1ª Vara Cível. Caixa Diversos: 1867. Autos da Partilha Amigável, procedida entre o Capitão João de
Oliveira Freitas e seus filhos, 1868.
109 AFJM: 1º Cartório de Notas. Livro nº 8. Ano 1870 a 1874. Escritura de doação inter vivos que faz o Capitão
João de Oliveira Freitas as pessoas abaixo declaradas. 1871. Fl. 20. Os filhos do casal eram Joaquim de Oliveira
Freitas, Umbelina Maria de Oliveira, Joana Maria de Oliveira, Izabel Maria de Oliveira e Jorge de Oliveira Frei-
tas.

228
Arcebispado da Bahia, pedindo providências em termos administrativos, eclesiásticos e resguardando
João de Oliveira Freitas de futuros problemas com herança.110

As relações entre senhores e escravos foram marcadas tanto por tensões, como por sentimento
de afeto, cumplicidade e gratidão, que, somados às estratégias utilizadas pelos escravos, contribuíram
para a conquista da alforria, sobretudo das mulheres, maiores beneficiárias.111 Apesar de não ser uma
exclusividade das mulheres, os serviços de casa, a acumulação de pecúlio originado de outras ativida-
des, bem como os relacionamentos sexo-afetivos com homens de maior “qualidade” configuravam-se
como meios para pleitear a liberdade. Esse último fator parece ter sido determinante no caso de Maria
Bernarda.

A documentação nos oferece indícios de que a alforria de Maria Bernarda resultou da relação
que ela mantinha com João de Oliveira Freitas, a julgar pelo fato de a concessão ter ocorrido durante
o processo de divórcio com Maria Clemencia do Amor Divino, como também dos oitos filhos natu-
rais que ele teve com Maria Bernarda. O número de filhos permite-nos inferir que se tratava de um
relacionamento estável. Outro aspecto relevante é o fato de que esses filhos figuraram entre os benefi-
ciários da doação de parte dos bens de João Fernandes de Oliveira, realizada no dia 3 de abril de 1871:
Diz João de Oli/veira Freitas que querendo fazer do ação/ [...] da quantia de um
conto e qui/nhentos mil réis a cada um dos oito filho naturais de Maria Bernar-
da/ de nomes Hygina cazada com Severi/ano Rodrigues do Prado, Rofino, cazado,/
Roza, Lidia, Engracio, Eufrosina,/ Felismina e Martiniano, requer a Vossa Senhoria
sedigne mandar que distribuída a presente se passa a not-/taria escritura publica,
intimado o curador geral dos Orphão para accu/tar a doação por parte do meno-
res,e/dignando-se vossa senhoria vir com o seu/ escrivão e o dito curador á esta/
fazenda da Catinga da propriedade e residência do Supplicante, pode/ logo ter lugar
o processo da insemea-ção da ditas doações. [...] E declarou que estes oitos ul/timos
donatário são todos filhos de/ Maria Bernarda, que foi sua escrava, ehoje reside na
Villa da Victória; [...]112

A quantia de 1:500$000 réis concedida em doação a cada filho correspondia a terras, imóveis,

110 Arquivo Municipal de Vitória da Conquista (AMVC). Livro de Ata Câmara Municipal. 1850. Fl. 190.
111 Cf. CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte.
São Paulo: Cia. das Letras, 1999; DIAS, Maria Odila. 1995, Op. Cit.; FARIA, Sheila de Castro. 2005, Op. Cit.;
LEMKE, Maria. Uma preta escrava e muitos pardos livres – história sobre obediência escrava na capitania de
Goiás. In: PAIVA, Eduardo França; IVO, Isnara Pereira.; AMANTINO, Marcia (Org.). Escravidão e mestiça-
gem, ambientes, paisagens e espaços. São Paulo: Annablume, 2011. (coleção olhares).
112 AFJM: 1º Cartório de Notas. Livro nº 8. Ano 1870 a 1874. Escritura de doação inter vivos que faz o Capitão
João de Oliveira Freitas as pessoas abaixo declaradas. 1871. Fl. 22.

229
escravos, animais, valores em dinheiro e utensílios domésticos.113 No entanto, João de Oliveira Freitas
impôs condições para que a doação fosse concretizada: em caso de morte de um dos beneficiados,
seus bens passariam aos demais irmãos, excluindo-se o escravo que seria alforriado. Além disso, esta-
va vedada a transferência de seus bens à mãe - que já não vivia na fazenda-, ou a outros filhos que ela
poderia ter. Presume-se, então, que, nesse tempo, o relacionamento entre João de Oliveira Freitas e
Maria Bernarda já havia chegado ao fim, depois de pelo menos uma década de convivência.
Em 1872, encontramos Maria Bernarda na condição de ré em um processo crime, o qual nos
informa que ela morava na Rua do Espinheiro, em companhia de uma escrava de nome Felicidade.114
Não foi possível saber qual o motivo do rompimento do relacionamento, nem se João de Oliveira
Freitas conferiu, extraoficialmente, qualquer quantia ou bem para Maria Bernarda, como a casa em
que ela morava e a escrava que possuía, ou se ela os adquiriu por meio das economias que possivel-
mente tinha juntado ao longo dos anos de convivência com ele.

Podemos inferir que, nesse tempo, Maria Bernarda já havia conquistado certa autonomia,
pois, apesar de imprecisa, afirma que vivia “do seu trabalho e da porcentagem que tira dos objetos q.
lhe entregão para isso”.115 Outra evidência é o fato dela ter se tornado proprietária de escravos, pois
“juntar o necessário para se comprar pelo menos um demandava, para a esmagadora maioria da po-
pulação, investimentos significativos, quer de ordem econômica, quer de ordem pessoal”.116

O referido processo que Maria Bernarda respondia foi um termo de bem viver, um dispositivo
jurídico previsto no capítulo II, artigo 12º § 2º e artigo 121º da Lei de 29 de novembro de 1832, que
promulgou o Código do Processo Criminal do Império. Era utilizado como um instrumento discipli-

113 Hygina recebeu em dinheiro de moeda 202$000 réis, um taxo de cobre (total de 15$000 réis), a escrava
Dionízia, crioula, com 12 anos, no valor de 600$000 réis, nove vacas e um garrote (total de 250$000 réis). Três
animais cavalares (total de 100$000 réis). Rofino recebeu em dinheiro de moeda 225$000 réis, a escrava Theofi-
la crioula, com 11 anos, no valor de 600$000 réis, nove vacas e um garrote (total de 250$000 réis), três animais
cavalares (total de 100$000 réis). Roza recebeu a escrava Justina, crioula, 18 anos, no valor de 8000$000, dez
cabeças de gado de criar (total de 200$000 réis), cinco éguas (total de 175$000 réis). Lídia recebeu em dinheiro
em moeda no valor de 210$000 réis, a escrava Rita crioula, com 11 anos, no valor de 700$000 réis, treze vacas
(total de 250$000), duas éguas (total de 60$000 réis), um poldro (35$000 réis). Engacia recebeu a escrava Mae-
cellina crioula, com 10 anos, no valor de 60$000 réis), vinte cabeças de gado de criar (total de 400$000 réis), cin-
co éguas (total de 175$000). Eufrosina recebeu a escrava Maturina, crioula, 10anos, no valor de 6000$000 réis,
vinte cabeças de gado de criar (total de 400$000 réis), cinco éguas (total de 175$000 réis). Felismina recebeu a
escrava Maria Geronima, crioula, 10 anos, no valor de 6000$000 réis, vinte cabeças de gado de criar (total de
400$000 réis), cinco éguas (total de 175$000 réis. Marthiniano recebeu a escrava Roberta crioula, com 11 anos,
no valor de 600$000 réis, vinte cabeças de gado de criar (total de 400$000 réis), cinco éguas (total de 165$000
réis). As terras e a casa da fazenda Sanharó foram divididas para cada uma, ficando a quantia de 325$000 réis.
Ver: AFJM: 1º Cartório de Notas. Livro nº 8. Ano 1870 a 1874. Escritura de doação inter vivos que faz o Capitão
João de Oliveira Freitas as pessoas abaixo declaradas. 1871. Fl. 22.
114 AFJM:1ª Vara Cível. Caixa Diversos: 1872 a 1873. Termo de Bem viver de Rosa Silvana de Oliveira a Maria
Bernarda. 1872. Fl. 2.
115 Idem. Fl. 6.
116 FARIAS. Sheila de Castros. Mulheres Forras – Riqueza e estigma social. In: Revista Tempo/Universidade
Fluminense, Departamento de História. Volume 5, numero 09, Julho de 2000. Rio de Janeiro, 7 Letras, 2000. p.
83.

230
nador da conduta social.117

A ação foi movida pela negociante Rosa Silvana de Oliveira, no dia 23 de janeiro de 1872, que
afirmou ao Delegado de Polícia Manoel do Nascimento Teixeira que sua vizinha:
[...] a crioula Maria Bernarda,/prostituta turbulenta, e habituada a vociferar/ injurias
contra qualquer pessôa, que ella odeia,/ como acontece com a supp.te que em dias
de/Dezembro esta fora ella atrozmente injuriada pela supp.da, somente pelo facto
de ter a suplicante reprehendido a escrava Felicidade do do-/minio da suplicante,
em virtude de estar espan/cando aos muros Antonio, filho de Carolina/Ferreira mo-
radora na mesma rua; repe-/tindo as mesmas acçoes no com.te mez, o que/ de cer-
to ofendem os bons costumes e tranqüi-/lidade das famílias, tomando por pretexto
cou-/zas frívolas e reprovadas, como aquella adver-/tencia feita a escrava, e actualm.
te a mum-/dança da enxorrrada, que a supp.te fizera/ no seo mesmo quintal, a passar
por/ detraz de seo gallinheiro; [...].118

O fala de Roza Silvana de Oliveira evidencia que já havia uma inimizade entre ela e Maria Ber-
narda de Oliveira, o que nos parece ter alguma relação com a atividade que ambas desempenhavam.
Não foi possível saber a condição e “qualidade” da autora do processo, mas seguramente não fazia
parte do grupo das distintas senhoras da localidade, uma vez que a própria Roza Silvana de Oliveira
diz ser viúva e viver de negócios, o que nos permite pensar que essa atividade poderia ou não ser de-
sempenhada na rua. Da mesma forma, a vaga afirmação de Maria Bernarda, que dizia “viver de seu
trabalho e das porcentagens que tira”, nos leva a supor que ela poderia ser revendedora ambulante
ou ainda que viveria do aluguel de sua escrava, embora pudesse fazer ambas as coisas. Em estudo so-
bre Recife do século XIX, Silva (2004) demonstra a apropriação do espaço urbano por “mulheres de
cor” por meio do pequeno comércio, assim como a oferta de prestação de serviços por forras e livres
pobres para trabalharem como criadas ou no serviço da rua, onde, na luta pela sobrevivência, envol-
veram-se, algumas vezes, em conflitos entre si e com autoridades locais.

O discurso de Rosa Silvana de Oliveira demonstra como as categorias classificatórias de “qua-


lidade” e condição foram cotidianamente utilizadas para hierarquizar e classificar as pessoas e que
foi, justamente nos momentos de tensão, que elas foram evidenciadas. Ao identificar Maria Bernarda
como crioula, associando-a a adjetivos depreciativos, ela buscava demarcar os lugares que cada uma
ocupava na sociedade, justificando assim sua posição de vítima. A autora afirma ter sido injuriada,
mas, na petição, Maria Bernarda é quem foi tachada de “turbulenta”, “prostituta” e “injuriosa”. Tais
adjetivos demonstram o imaginário preconceituoso sobre “as pessoas de cor” no Brasil Colonial/
117 No Capítulo II do Art. 12. Aos Juizes de Paz compete: [...] § 2º Obrigar a assignar termo de bem viver aos
vadios, mendigos, bebados por habito, prostitutas, que perturbam o socego publico, aos turbulentos, que por
palavras, ou acções offendem os bons costumes, a tranquillidade publica, e a paz das familias.  Art. 121. O Juiz
de Paz a quem constar que existe no respectivo Districto algum individuo em circumstancias dos que se acham
indicados nos §§ 2º e 3º do art. 12, o mandará vir á sua presença com as testemunhas, que souberem do facto:
se a parte requerer prazo para dar defesa, conceder-se-lhe-ha um improrogavel; e provado, mandará ao mesmo
individuo que assigne termo de bem viver, em o qual se fará menção, na presença do réo, das provas apresen-
tadas pró, ou contra; do modo de bem viver prescripto pelo Juiz, e da pena comminada, quando o não observe.
Coleção de Leis do Império do Brasil - 1832, Página 186 Vol. 1 (Publicação Original). Disponível em: http://
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118 AFJM: 1ª Vara Cível. Caixa Diversos: 1872 a 1873. Termo de Bem viver de Rosa Silvana de Oliveira a Maria
Bernarda. 1872. Fl. 2.

231
Imperial, que eram vistas como propensas à violência, criminalidade e imoralidades; pessoas que,
como disse Roza Silvana de Oliveira, “ofendiam os bons costumes e a tranquilidade das famílias”.119
Segundo Dias (1995), esse imaginário recaía, sobretudo, nas mulheres, escravas, forras e livres pobres,
especialmente aquelas que desempenhavam atividades ligadas ao pequeno comércio na rua, o qual
não era reconhecido, nem socialmente valorizado.

O processo foi bastante curto. A primeira audiência, agendada para o dia 23 de janeiro, não
ocorreu, em virtude de Roza Silvana de Oliveira não ter comparecido, alegando estar doente, tendo,
logo depois, nomeado seu filho José Firmino da Silva Guimarães como procurador. No dia 25 de ja-
neiro, Maria Bernarda compareceu diante do Delegado de Polícia para realizar o auto de qualificação,
cuja maioria das informações já foram antecipadas neste texto - como o nome e sobrenome, a idade,
ocupação e o lugar de nascimento. Cabe observar essas informações foram fundamentais no processo
de reconstrução da trajetória de Maria Bernarda de Oliveira, pois nos permitiu aproximá-la de João
de Oliveira Freitas.

Logo após a qualificação, Maria Bernarda de Oliveira solicitou que fosse antecipada a próxima
audiência, na qual pretendia apresentar sua defesa, o que logo foi atendido pelo Delegado de Polícia,
que mandou intimar todos os envolvidos para comparecem no dia primeiro de fevereiro. No entanto,
no dia 26 de janeiro, Roza Silvana de Oliveira, alagando que nenhuma das suas testemunhas poderia
comparecer a audiência e sendo esta improrrogável, apresentou termo de desistência do processo.

Diferentemente dos dois casos anteriormente apresentados, a trajetória de Maria Bernarda é


bastante peculiar, permitindo-nos algumas reflexões: considerando que, nas sociedades escravistas
americanas, a alforria constituía o primeiro passo na ascensão social, assim como a posse de escravos,
o fato de Maria Bernarda ter mantido, durante certo tempo, uma relação estável com um dos homens
mais ricos e de maior prestígio dos sertões da Bahia, não seria suficiente para aludir certo grau de
mobilidade social? Soares afirmou que, em tais sociedades, os indivíduos ocupavam diferentes lugares
em cada seguimento da hierarquia e que havia valores sociais diferentes daqueles defendidos pelos
“homens bons”.120 Ainda segundo o autor, essas diferentes aspirações de estima social contribuíram
para que houvesse mobilidade, sem que ela afetasse, necessariamente, a estrutura das hierarquias exis-
tentes. Enquanto viveu com João de Oliveira Freitas, Maria Bernarda continuou a morar na mesma
fazenda em que havia nascido. Talvez ela não tenha circulado entre outros alforriados, mas, entre os
escravos, seus antigos pares e conhecidos, Maria Bernarda não teria se tornado uma pessoa de respei-
to?

Guedes afirma que a mobilidade social é prestígio social e que, no caso de forros e seus descen-
dentes, é um processo gradativo, que se concretiza nas próximas gerações, ou seja, a mobilidade social
desses grupos é geracional.121 Pensando no caso de Maria Bernarda, como explicar o fato de uma
ex-escrava, que teve um relacionamento estável com um “homem bom”, ter conseguindo riqueza e
119 Idem. Fl. 2.
120 SOARES, Marcio de Souza. 2009, Op. Cit.
121 GUEDES, Roberto Ferreira. Ocupações e mobilidade social (Porto Feliz, século XIX). In: BOTELHO, Tar-
císio R..; LEEUWEN, Marco H. D. Van (Org.) Mobilidade social em sociedades coloniais e pós-coloniais: Brasil
e Paraguai, séculos XVIII e XIX. Belo Horizonte: Veredas & Cenários, 2009.

232
prestígio social somente para os seus filhos? Acreditamos que, nessas sociedades marcadas pela escra-
vidão e mestiçagens, existiram diferentes níveis de mobilidade social. A trajetória de Maria Bernarda
certamente não foi única, e, ainda que desconsideremos o grau de ascensão social, seu concubinato
com João Fernandes de Oliveira produziu filhos mestiços que contribuíram para a inversão de valores
e das hierarquias, demonstrando que, em se tratando das sociedades mestiças, como as americanas,
não podemos assumir nossas teorias em absoluto.

Considerações finais

As trajetórias aqui reconstituídas, por meio da documentação do judiciário, evidenciaram


diferentes graus mobilidade social. As histórias dos forros aqui traçadas não somente nos ajudaram
a perceber a mobilidade social de agente não mestiços (pretos e crioulos) nos sertões da Bahia, como
também nos permitem inferir que nem sempre ela é geracional. Os casos aqui apresentados nos aju-
dam a concluir que a escravidão e, especialmente, as mestiçagens produziram dinâmicas diferen-
ciadas nas Américas, que, dentre outras coisas, implicaram na conformação de hierarquias não tão
rígidas como as europeias. Somadas a outras contingências, elas favoreceram processos também dife-
renciados de ascensão e mobilidade social, que não obedeciam à lógica do Antigo Regime europeu.

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Porto Seguro e o processo de mundialização ibérica no Brasil


Pedro Ivo Moreira Gomes Rodrigues122
Marcello Moreira (orientador) 123

No presente trabalho, busco contextualizar Porto Seguro, conhecido na historiografia


como locum do achamento do Brasil, com o processo de mundialização ocorrido entre os
séculos XV e XVII, capitaneado pelas coroas ibéricas; com base na produção acadêmico-lite-
rária da Profa. Dra. Isnara Pereira Ivo e dos autores Serge Gruzinski, Sanjay Subhramanian,
entre outros. Podemos, afinal, vislumbrar a importância de Porto Seguro nos primórdios
desse processo de mundialização no Brasil? Podemos conceber a solenidade da Primeira
Missa, celebrada em Coroa Vermelha, como o ato fundante da nação brasileira, ou seja, da
passagem de um Brasil autóctone a um Brasil ibérico num contexto global e, posteriormente,
num Brasil multiétnico e multicultural? Portanto, neste trabalho, analisaremos o objeto pro-
posto com as ideias defendidas pelos autores estudados, buscando a sua contextualização.

Entre os séculos XV e XVII, o mundo assistiu a expansão ultramarina ibérica, através


dos continentes africano, asiático e americano. Portugal e Castela, cuja expulsão dos mouros
coincidiu com o Descobrimento da América (1492), buscavam rotas alternativas ao comér-
cio de especiarias com a Ásia, então dominado pelas cidades-estados italianas de Gênova e
Veneza, que monopolizavam o comércio com o mouros, os quais por sua vez exploravam a
rota terrestre entre a Europa e a Ásia. Como resultado dessa movimentação transatlântica,
os portugueses chegam, oficialmente, ao Brasil em 1500, em Porto Seguro, onde se dá o pri-
meiro contato documentado entre europeus e indígenas. A partir desse contato primeiro,
temos então um ato fundante celebrado na localidade hoje conhecida como Coroa Verme-
lha, atualmente pertencente ao município de Santa Cruz Cabrália/BA. O ato a que me refiro
é a celebração da Primeira Missa, descrita na Carta de Pero Vaz de Caminha, como ocorrida
num “ilhéu”, no mês da “Pascoela”, 26 de abril de 1500. Durante esse ato, os navegadores
improvisaram uma cruz de madeira e rezaram a missa.

Como é sabido, a colonização do Brasil não ocorreu de imediato, pois o rei de Portugal,
D. Manuel I, estava mais interessado em explorar o comércio com o Oriente. Apesar de a
colonização, de fato, só ter iniciado a partir da década de 1530, com a criação das Capitanias
Hereditárias, pelo rei D. João III, sucessor de D. Manuel, já havia iniciativas dos portugueses

122Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade – PPGMLS - da Universidade


Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB -. CAPES.
123Professor Doutor em Literatura Brasileira (USP) e membro do quadro docente do PPGMLS da UESB.

235
no território brasileiro, como a extração do pau-brasil e o estabelecimento de feitorias ao
longo da costa. O contato inicial se deu em Porto Seguro e, por volta de 1503, já havia uma
pequena aldeia de portugueses na localidade, conhecida como Vila de Santa Cruz124.

Para entendermos esse processo de mundialização, Gruzinski (2014) aborda os trân-


sitos, as trocas culturais, os intercâmbios entre mundos tão díspares durante a expansão
ultramarina da Monarquia Católica, como ele denomina as coroas de Portugal e Espanha.
Ele menciona, por exemplo, a repercussão da morte do rei francês Henrique IV no Japão,
bem como as cerimônias fúnebres do imperador Carlos V na Nova Espanha (México); o
conhecimento pelos europeus acerca das plantas medicinais do Novo Mundo e da Ásia; o
surgimento de atividades como ourivesaria e corte e costura por ameríndios, a presença de
asiáticos na América e vice-versa, entre outras questões que explicam o fenômeno da globa-
lização em pleno século XVI.

Gruzinski (2014) aborda a questão do eurocentrismo. Ele indaga como conceber as


circulações e as relações entre mundos e histórias múltiplas, se o eurocentrismo, se não for
provincialismo, com seu gosto pelo exotismo e o primitivo, entrava ou parasitava a leitura
dos passados não europeus; enfatiza também que os trabalhos dos historiadores da Europa
Ocidental não ajudam a olhar para além dos limites dessa porção do mundo, e que seus
colegas americanos não fogem muito desse paradigma. Ora, questionamos o olhar europeu
sobre o indígena brasileiro, cuja memória agencia. Podemos dizer que os portugueses inau-
guraram uma etnografia e uma historiografia poética e retoricamente defendidas sobre seus
próprios pressupostos, relegando a cultura autóctone como sendo de pouca monta.

Questionar o acoplamento de um mundo em outro no caso brasileiro, em que a cultura


nativa foi desprezada em favor da cultura do dominador europeu, que para cá trouxe as suas
instituições e modos de viver, bem como sua religião e os tabus a ela inerentes. Uma cultura
de um povo ágrafo, que vivia nu e que desconhecia os metais, foi sobrepujada por outra, de
um povo letrado, obediente ao rei e à Igreja, cuja sexualidade era reprimida pela religião e
que praticava o comércio e a escravatura. Esse mundo foi acoplado no Brasil de quinhentos,
no que defendemos que o ato fundante em Coroa Vermelha foi o start desse processo, pelo
seu significado não só místico, mas também político, isto é, o ato de celebração da tomada
da terra pelo rei de Portugal, em detrimento de outras potências da época, como a Espanha
e a França, e também a sacralização dessa tomada, uma vez que o propósito da expansão
marítima ibérica não se restringia aos interesses comerciais ou territoriais, mas também reli-
giosos, pois o rei personificava a cristandade e era uma de suas missões “evangelizar os povos
pagãos”, com o envio de missionários às suas possessões.

Gruzinski (2014) dá especial atenção ao papel da religião no processo colonial ibérico,


particularmente na Nova Espanha. Ele menciona a atuação de dois sacerdotes, frei Alonso de

124GRUZINSKI, Serge. As quatro partes do mundo – História de uma mundialização. Ed. Edusp; São Paulo/SP, 2014

.http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/1402/
1

236
Molina e Bernardino de Sahágun, que eram conhecedores da língua mexicana e que sabiam
escrevê-la. Gruzinski sublinha que os experts da Igreja exercem um papel crucial no enraiza-
mento local da sociedade colonial.

Paralelamente à construção das igrejas e dos conventos, à celebração do cul-


to e das festas, à abertura das escolas, que acolhem os filhos da nobreza, as
pesquisas dos monges contribuem para fortalecer a dominação da igreja e do
rei nas novas cristandades. (GRUZINSKI, 2014, p. 193)

É difícil falar de Porto Seguro sem falar dos jesuítas2, que se estabeleceram na região a
partir de 1549, quando chegaram junto com a comitiva do governador Tomé de Souza, que
vinha de Portugal com a missão de fundar Salvador, primeira capital do país. Religiosos
como José de Anchieta e João de Azpicuelta Navarro, ambos espanhóis, utilizaram a língua
tupi em sua catequese, tendo Anchieta publicado, em 1595, um dicionário dessa língua, cujo
uso foi proibido pela Coroa em meados do século XVIII.

Vejamos alguns elementos do processo descrito, embora tardios, na antiga Capitania


de Porto Seguro: podemos mencionar alguns exemplos das interconexões elencadas pelo
autor, como o uso das “louças de Macau” na confecção da torre da Igreja de Nossa Senhora
da Pena3, edificada em 1773, funcionando como uma espécie de farol natural (reflete a luz do
Sol para quem vem do mar), ou ainda a ação de diversos espanhóis em Porto Seguro durante
o domínio português, como o boticário Felipe Guilhén4, que aportou em 1536, na comitiva
do donatário Pero do Campo Tourinho, atuando como mineralogista e sertanista; Francisco
Bruza Espinosa5, que explorou as nascentes do rio São Francisco, por ordem do governador
geral Tomé de Souza, e os jesuítas Antonio Blazquez, João de Azpicuelta Navarro e José de
Anchieta, natural das Ilhas Canárias.

Os primeiros martírios de que se tem notícia no Brasil foram os de dois frades francisca-
nos portugueses, em Porto Seguro, em 1505, conforme relata frei Apolinário da Conceição.

Plantaram logo a primeira fortaleza da Igreja por [meio de] uma, que edi-
ficaram, denominada São Francisco", na cidade de Porto Seguro. Começa-
ram seu trabalho de evangelização, retirando almas das garras do demônio,
a quem evidentemente enfureceram. O demônio, que estava "perdendo um
dos maiores fortes de seu presídio", incitou os nativos a matarem os francis-
canos, matando antes disso a portugueses e índios cristianizados. (CONCEI-
ÇÃO, 1733)

Em Porto Seguro ainda foi instalada a primeira Santa Casa de Misericórdia que se tem
notícia no Brasil, conforme carta do rei D. João V, de 17 de março de 1718, em que o sobe-
rano diz: “Aquela Santa Casa de Misericórdia fora a primeira e mais antiga que houve e há
naquele Brasil”. (OTT, 1960, pág. 124)

237
Gruzinski (2012), ao abordar as ações dos ibéricos na China e no Novo Mundo, assevera
que resultam de uma dinâmica comum.
No entanto, basta colocar frente a frente essas histórias para ver emergirem
trechos da paisagem intercontinental que se desdobra no século XVI com a
entrada em cena de duas novas potências europeias, Castela e Portugal, que
uma progressão fulminante pelos mares do globo impele ao contato com
mundos sobre os quais elas ignoravam completamente ou quase completa-
mente. (GRUZINSKI, 2012, págs. 31 e 32).

Logo após o Descobrimento do Brasil, se iniciou a extração do pau brasil, que era uti-
lizado, entre outros usos, para fabricação de tinturas de roupas apreciadas pela nobreza eu-
ropeia, tendo ocorrido expedições ao litoral brasileiro com esse propósito e fundação de fei-
torias, antes mesmo do início da colonização, por volta de 1530. Assim, o Brasil, cujo nome
deriva da madeira em questão, foi introduzido na agenda global do mercantilismo ibérico.

Subrahmanyam (1997) pontifica que o nacionalismo cega para a possibilidade de co-


nexão e etnografia histórica e que o impulso de tal etnografia tem sempre sido o de enfatizar
a diferença, e mais geralmente uma posicional superioridade em se fazer observador sobre o
observado. No caso, colonizador sobre colonizado.

De início, o intensificação da viagem, o desejo de ser capaz de mapear o


mundo em seus elementos e localizar “cada espécie” humana. Seu nicho con-
sistia em separar o civilizado fazer do incivilizado, bem como para distinguir
diferentes graus de civilização. Ao contrário, fazer o que vezes se argumenta,
faz com que esses fenômenos não sejam vistos como produtos peculiares de
expansão europeia, embora Ocidental. (SUBRAHMANYAM, 1997, p. 28)

Ivo (2012) explana que a expansão intercontinental empreendida por portugueses e espa-
nhóis fomentou trânsitos e circulações inéditas, envolvendo agentes dos quatro cantos do
mundo, conectando quatro continentes. Essa movimentação em escala planetária fomentou,
nas palavras da autora, grandes deslocamentos demográficos, junto com circulação de expe-
riências e trocas culturais, também inéditas, ainda que parcialmente.
__________________

CONCEIÇÃO, Frei Apolinário da. Primazia seráfica na regiam da América, novo descobrimento de santos, e
veneráveis religiosos da ordem Seráfica, que ennobrecem o Novo Mundo com suas virtudes, e acçoens. Lisboa:
na Oficina de Antonio de Souza da Silva, 1733.

OTT, Carlos. A Santa Casa de Misericórdia da Cidade do Salvador. Ed. DPHAN; Rio de Janeiro/RJ,

1960.
2
. CORDEIRO, Tiago. A Grande Aventura dos Jesuítas no Brasil; Ed. Planeta, 2016
3
.https://biblioteca.ibge.gov.br/biblioteca-catalogo.html?id=432019&view=detalhes

4.
TELLES, Vera. Porto Seguro, História, Estórias, 57, 108/110 e 128 - CMBN, 2:372, 475 e 504 - DHBN, 35:51 e 59).

ABREU, Capistrano. Os primeiros descobridores de minas [1887]. In: Caminhos antigos e povoamento do Brasil. Belo
5.

Horizonte /São Paulo: Itatiaia/USP, 1988.

238
Os trânsitos e as circulações intensificados pela expansão ultramarina ibérica
permitiram a conexão entre estes mundos, até então tidos como apartados
e distantes. Estes movimentos fizeram circular práticas, conhecimentos, ex-
periências e representações, promovendo o contato, ainda que parcial, entre
elementos de universos culturais dos mais longínquos lugares. (IVO, 2012,
p. 25)

O ATO FUNDANTE
Ao domingo de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão ir ouvir missa e sermão
naquele ilhéu. E mandou a todos os capitães que se arranjassem nos batéis e fossem
com ele. E assim foi feito. Mandou armar um pavilhão naquele ilhéu, e dentro levantar
um altar mui bem arranjado. E ali com todos nós outros fez dizer missa, a qual o padre
Frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres
e sacerdotes que todos assistiram, a qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por
todos com muito prazer e devoção. Ali estava com o Capitão a bandeira de Cristo, com
que saíra de Belém, a qual esteve sempre bem alta, da parte do Evangelho. Acabada a
missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta; e nós todos lançados por essa
areia. E pregou uma solene e proveitosa pregação, da história evangélica; e no fim tra-
tou da nossa vida, e do achamento desta terra, referindo-se à Cruz, sob cuja obediência
viemos, que veio muito a propósito, e fez muita devoção. (Trecho da carta de Pero Vaz
de Caminha, narrando a celebração da Primeira Missa no Brasil).6

A cerimônia da Primeira Missa foi a manifestação do sagrado em terras americanas, até então
desconhecidas e “pagãs”. O ente sobrenatural nesse caso é o Deus cristão, católico, representado pelo
simbolismo da cruz. A cruz, instrumento de redenção e ressureição na tradição cristã, sacralizou o
solo a ser ocupado, legitimou aos olhos dos europeus a posse da terra onde já viviam os povos que
“precisavam ser salvos” pelos seus religiosos. A criação, nesse caso, é a criação do Brasil a partir do ato
fundador. É mister ressaltar que essa irrupção do sagrado em terras americanas, em 1500, também
trouxe a povos que viviam nus uma série de tabus próprios da cultura repressora judaico-cristã no
que concerne à sexualidade e demais hábitos humanos. Com a cruz também veio a “culpa”, o que está
expresso na carta de Caminha onde ele diz que os índios “mostravam suas vergonhas”, o mito do pe-
cado original, portanto, a “queda do paraíso”, no qual a humanidade se tornou mortal e sexuada após
desobedecer a Deus e comer do fruto proibido. O Brasil então poderia ser pensado como um paraíso
tropical, com habitantes nus e “inocentes”, que careciam de salvação, embora essa salvação trouxesse
em seu bojo justamente a noção de pecado, vergonha e abominação. O homem, nesse contexto, pre-
cisa conhecer a “sujidade” da vida para alcançar a salvação, negando-se aos prazeres agora imorais,
antes vivenciados com naturalidade dentro dos seus próprios mitos e crenças religiosas.

___________________
. CAMINHA, Pero Vaz de. A Carta.
6

239
O mito presente no ato fundante então fundamenta esse novo mundo que é construído, sepul-
tando o velho ao ocupar o seu espaço, e precisa, de tempos em tempos, ser reatualizado, reificando os
valores presentes na sua fundação, no caso, a ênfase nos valores das potestas sacralizadas nas cerimô-
nias de 1500 e de 2000, quando foram comemorados os 500 anos do ato fundante, supostamente na
mesma localidade em que ocorreu, reencenando-o e reatualizando os valores emanados dele, como
pilares da nação brasileira. Igreja e Estado como lados de uma mesma moeda, o poder sacro e o poder
mundano que controlam as vidas dos cidadãos, súditos desses poderes. O monumento erguido em
Coroa Vermelha no ano 2000, uma grande cruz de aço montada numa base de mármore, de autoria
do artista Mário Cravo, hipoteticamente no mesmo local onde foi erguida uma cruz de madeira em
1500 e sob a qual foi rezada a Primeira Missa, pode celebrar exatamente isso, o poder, poder da posse
da terra, poder do clero, poder do príncipe/governo, como se a própria nação estivesse fundamenta-
da nas relações de poder e não nos usos e costumes da sua gente. Qual sentido, afinal, da edificação
de um monumento que representa uma crença religiosa num estado pretensamente laico, em pleno
território indígena, onde, supostamente, se deu o encontro de povos, no qual mais tarde os índios
“saíram perdendo”? Todavia percebe-se posicionamentos dominantes a esse respeito já no século
XIX, por parte de autores como Francisco Adolpho de Varnhagen (1816 – 1878), o Visconde de Porto
Seguro e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB -, fundado em 1838 e consi-
derado um marco da historiografia brasileira. Segundo Nilo Odália, organizador da obra Varnhagen
(1979), a ideia do Brasil como uma nação branca e europeia consistia num projeto político de nação
naquele tempo. (VARNHAGEN, 1979, págs. 14 e 15).
No dia 26 do mencionado abril, que era domingo da Pascoela, foram todos os da ar-
mada assistir à missa que foi celebrada em um ilhéu ou restinga, que se acha à entrada
do dito Porto Seguro. Presenciaram a solenidade, cheios de espanto (que alguns toma-
ram por devoção), muitos filhos da terra que ali vieram. Também cumpre fazer men-
ção de que, no 1º de maio seguinte e no meio da solenidade de outra missa, se efetuou a
cerimônia da tomada de posse da nova região para a Coroa de Portugal, levantando-se
num morro vizinho uma grande cruz de madeira, com a divisa do venturoso rei D.
Manuel. (VARNHAGEN, 1979, pág. 49)

O Brasil nasceu, portanto, sob o signo da cruz, cruz da Ordem de Cristo, cruz templária (DAEH-
NHARDT, 1993), que representava a fé e a espada, isto é, a evangelização dos povos conquistados pela
força das armas portuguesas.

A história do Brasil começou com um texto escrito e a ereção de uma cruz. A memória indígena foi,
desde então, agenciada pelos europeus, que lhe atribuíam afetos conforme seu grau de cooperação
com os colonizadores, de forma que os índios que resistiam podiam ser alvos de campanhas de ex-
termínio, conhecidas como “guerra justa”. Vejamos um exemplo dessa mentalidade nas palavras de
Pero de Magalhães Gândavo:

____________________
DAEHNHARDT, Rainer. A Missão Templária nos Descobrimentos. Nova Acrópole, Lisboa, 1993.

VARNHAGEN, Francisco Adolpho de, Visconde de Porto Seguro, 1816 – 1878. Varnhagen: História / Organizador Nilo
Odália. – São Paulo: Ática, 1979.

240
Finalmente que são estes índios muito desumanos e cruéis, não se movem a nenhuma
piedade: vivem como brutos animais sem ordem nem conserto de homens, são muito
desonestos e dado à sensualidade e entregar-se-ão aos vícios como se neles não houve-
ra razão de humanos. (GÂNDAVO, 1980, págs. 52 a 58)

Gândavo diz ainda que “ninguém os pode vender senão seus pais ou aqueles que em guerra justa os
cativam”. (Págs. 52 a 58). Ele defendia ainda que o território descoberto por Portugal em 1500 perma-
necesse com o nome de Terra de Santa Cruz:
Porque assim como nestes reinos de Portugal trazem a cruz no peito por insígnia da
ordem e cavalaria de Cristo, assim prouve à ele que essa terra se descobrisse a tempo
que o tal nome (de Santa Cruz) lhe pudesse ser dado neste santo dia (3 de maio, dia
da Segunda Missa celebrada pela esquadra de Cabral), pois havia de ser possuída de
portugueses e ficar por herança de patrimônio ao mestre da mesma ordem de Cristo.
(GÂNDAVO, 1980, pág. 80).

Anchieta, citado por Ronaldo Vainfas, descreveu os silvícolas como “de tal forma bárbaros e indômi-
tos, que pareciam aproximar-se mais à natureza das feras que às dos homens”, ao passo que Nóbrega,
em seus Apontamentos, de 1558, recomendava castigo e sujeição dos aborígenes como “único remé-
dio para cessar o sofrimento da nação portuguesa no Brasil”. (VAINFAS, 1989, pág. 20)

E em pleno século XVII, ainda segundo Vainfas, a imagem que o colonizador europeu tinha do índio
pouco mudou; Vieira diria que Deus enviara Tomé, o Apóstolo, para evangelizar o Brasil, a fim de
castigá-lo por sua incredulidade: “Porque a gente dessas terras é a mais bruta, a mais ingrata, a mais
inconstante, a mais avessa, a mais trabalhosa de ensinar de quantas há no mundo”. Sendo ainda para
Nuno Marques Pereira (1652 – 1728), “pecaminosa a origem do gentio”, que “não pronunciavam os
letras F, L e R, por não terem fé, lei e rei”. (VAINFAS, 1989, pág.20)

___________________

GÂNDAVO, Pero de Magalhães, séc. XVI. Tratado da Terra do Brasil ; História da Província Santa Cruz/ Pero de Maga-
lhães Gândavo. – Belo Horizonte: Ed. Itatiaia ; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1980.

VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil colonial/ Ronaldo Vainfas. – Rio de
Janeiro: Campus, 1989.

241
Eliade (1972) reforça que a intelligentsia húngara encontrava uma justificação para a antigui-
dade, a nobreza e a missão histórica dos Magiares, no mito de origem de Hunor e Magor e na saga
heróica de Arpad. Em princípios do século XIX, a miragem da "origem nobre" incita, em toda a Eu-
ropa Central e Sul-Oriental, uma verdadeira paixão pela história nacional, sobretudo pelas fases mais
antigas dessa história. "Um povo sem história (leia-se: sem "documentos históricos" ou sem historio-
grafia) é como se não existisse!" (ELIADE, 1972, pág. 128)

Podemos dizer que a nossa história também teve uma origem “nobre”, pois foi o Brasil des-
coberto e incorporado aos domínios do rei de Portugal, então uma das maiores potências navais do
mundo, tendo mesmo dividido o mundo em sua área de influência conjuntamente com a Coroa de
Espanha. Num território que era habitado por indígenas que viviam na Idade da Pedra, que andavam
nus e que desconheciam a escrita, é razoável supor que o mito em torno do Descobrimento nos re-
meta a essa origem “nobre” de um país fundado por Portugal e pelos seus “heróis” que singravam os
mares na aventura do expansionismo marítimo luso dos séculos XV e XVI. Podemos dizer ainda que
essa “paixão pela história nacional” brasileira foi desencadeada no século XIX, quando da divulgação
da Carta de Pero Vaz de Caminha, pelo historiador Manuel Aires de Casal, em sua Corografia Bra-
sílica (1817), durante o reinado de D. Pedro II, descendente direto da dinastia reinante em Portugal.
Obviamente, interessava ao Império, cujo monarca também era membro da Casa Real Portuguesa,
enaltecer esse “passado glorioso” como origem da brasilidade, então marcada pela vigência da escra-
vatura e pelo domínio político das oligarquias. Num país em que o índio, esbulhado de suas terras
e marginalizado, e os negros, reduzidos à condição de escravos, exaltar os feitos de uma monarquia
europeia, cuja ramificação estava entronizada na figura do imperador, atendia, é evidente, um claro
propósito político, qual seja a exaltação do ramo brasileiro da casa brigantina através da exaltação da
sua matriz lusitana.

Serge Gruzinski questiona: “Um índio pode ser moderno?”, respondendo com uma citação de Peter
Sloterdijk: “É moderno aquele que é forçado a se perguntar o que fazem hoje os chineses e os islan-
deses.” Ele menciona o episódio do assassinato de Henrique IV, ocorrido em 1610, relatado por um
morador da Cidade do México, o índio Domingo Chimalpahin, na língua dos astecas.

_________________________

ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. Editora Perspectiva: São Paulo/SP, 1972.

242
Gruzinski indaga:
Que um cronista indígena se interesse de perto pelas elites de sua província natal e
pelo que se passa na cidade onde reside, tudo muito banal. Conquistada por Cortés
em 1521, o México, capital do reino da Nova Espanha, depois de ter sido a do império
Mexica, na entrada do século XVII, era uma das metrópoles mais prósperas do mun-
do hispânico. Que Chimalpahin demore na festa da beatificação de Santo Inácio de
Loyola não é mais tão surpreendente, ainda que a festa se inscreva em um contexto
diferentemente mais vasto, que evoca os laços que a cidade do México mantinha com
Roma, itzonteconpa yn cemanahuatl, a “capital do mundo”. Em compensação, espe-
ra-se menos que Chimalpahin registre uma notícia vinda, via Espanha, desse reino
longínquo, desse país rival e religiosamente suspeito que é a França dos Bourbons.
(GRUZINSKI, 2014, pág. 29)

Gruzinski questiona, citando Chimalpahin, como um índio pode ser moderno, obviamente sob
um conceito ocidental de modernidade. Ele responde que talvez fosse preciso dar a esse termo uma
ressonância particular, começando por interrogar os julgamentos do memorialista indígena, uma vez
que quando ele evoca costumes do seu povo, como o calendário ou as crenças ligadas a eclipses, ele
os reporta sempre aos huehuetque, aos “antigos”. No entanto não o faz como herdeiro fiel da tradição
ameríndia, mas como um letrado chalca que escolheu o cristianismo e que se obstina a distanciar-se
de seu passado, sem nem por isso obliterá-lo.

O historiador francês explica ainda que é a maneira própria de Chimalpahin de se posicionar


como “moderno”. Para Serge, sua explicação do eclipse do sol, de 10 de junho de 1611, vale seu peso
em ouro. Ela aparece também no Diário deixado pelo índio, que, retomando as afirmações dos “as-
trólogos” e dos “filósofos” europeus, expõe a interpretação do fenômeno feita por eles. O que o leva
a criticar abertamente os antigos: “Nossos avós, os antigos, que eram ainda pagãos, não sabiam nada
disso e é por essa razão que ficaram tão perturbados”. (GRUZINSKI, 2014, Pág. 32)

Sobre o alcance da monarquia católica de Espanha, Gruzinski menciona que no Diário do índio
Chimalpahin o rei Felipe II é mencionado como Cemanauac Tlahtohuani, o “Soberano Universal”.
O cronista indígena combina e recicla termos de sua língua, o náuatle, emprestados do passado e da
cosmologia pré-hispânica para designar uma forma inédita de poder: aquele de que dispõe o rei da
Espanha desde que governa o “reino universal”. No entanto, ressalta o autor, os títulos atribuídos pela
aristocracia mexicana a Felipe de Castela não são elucubrações indígenas. Em 1566, o agostiniano An-
drés de Urdaneta não se constrange em afirmar que a Espanha possuía “a maior e a melhor parte da
China, assim como as ilhas Riu-Kiu e dos japoneses”, o que mais tarde confirma o galego Bernardino
de Escalante: “Este grande reino (a China) depende de distrito da conquista de nosso Rei Católico”.
(Pág. 40)

Gruzinski indaga: “Como conceber as circulações e as relações entre mundos e histórias


múltiplas, se o eurocentrismo, se não for provincialismo, com seu gosto pelo exotismo e o primitivo,
entrava ou parasitava a leitura dos passados não europeus?”. Ele enfatiza que os trabalhos dos histo-
riadores da Europa ocidental não ajudam a olhar para além dos limites dessa porção do mundo, e seus
colegas americanos, ainda muitas vezes presos a fronteiras herdadas do século XIX, “não nos trazem
mais ar fresco”.

243
O historiador pondera que, julgado intelectualmente redutor e suspeito de intenções hege-
mônicas, o etnocentrismo europeu foi objeto ultra-Atlântico de ataques sistemáticos e que essas crí-
ticas prestam-se tanto mais a reflexões quanto são, muitas vezes, em grande parte merecidas. Apesar
disso, em sua ótica, os modos de revisitar o passado se acham inexoravelmente abalados. “Intercâm-
bios de todos os tipos desenvolvem-se entre as diferentes partes do globo e questionam radicalmente
a centralidade de nosso Velho Mundo e de suas concepções”, afirma Gruziski, salientando que a evo-
lução das técnicas, a aceleração das comunicações, mas também a criação artística, em todas as suas
formas, não cessam de remeter a esses questionamentos.

O autor pergunta ainda como conseguir repor juntos elementos aparentemente tão díspa-
res quanto o assassinato do rei Henrique IV, a escrita indígena na Cidade do México espanhol e o
interesse dos habitantes do México pelo Japão dos Tokugawa? Ele considera que os laços que unem
um cronista mexicano aos continentes europeu, asiático ou africano mostram que as circulações do
Renascimento não se limitam à Europa e a seu vizinho otomano.
A questão é, pois, planetária. A presença de um retábulo barroco em uma capela indí-
gena do Novo México ou a inserção de um termo japonês no náuatle de Chimalpahin
são dados de aparência microscópica, mas sua interpretação exige que se questione o
modo de acoplamento de um mundo em outro, sem limitar-se aos laços atados pela
Europa ocidental com o resto do globo. (GRUZINSKI, 2014, pág.44)

Sobre a questão da mestiçagem, ele destaca que a sociedade indígena é confrontada de mil
maneiras com a dominação ocidental e que as influências e as pressões do Velho Mundo marcam
profundamente seus modos de existência, seus ritmos de vida e suas crenças.

Mas, com exceção dos índios que atravessam o Atlântico ou o Pacífico, essas mudan-
ças constantes são experimentadas pelos espanhóis interpostos, clérigos, mercadores,
administradores ou encomenderos. Em regra geral, as populações indígenas não têm
contato direto, físico, com o Velho Mundo nem com a Ásia senão através de objetos,
livros, homens e mulheres que desembarcam de lá. (GRUZINSKI, 2014, pág. 150)

O autor trata em sua obra de inúmeros casos de mestiços que se destacaram de alguma forma,
principalmente os pertencentes às elites indígenas, pelo seu saber, no comércio ou que chegaram a
exercer funções autorizadas pela Coroa. Não trataremos aqui disso, para não nos alongarmos dema-
siadamente. No caso brasileiro, temos exemplos históricos dos filhos de João Ramalho e de Caramuru
e Catarina Paraguaçu, que formaram alguns dos primeiros núcleos populacionais sob o Brasil colo-
nial. Também há a participação de índios e negros no processo colonial português, como foi o caso
do índio Felipe Camarão e do negro Henrique Dias, ambos envolvidos na resistência à ocupação
holandesa no século XVII.

Em relação à ação da Igreja Católica no processo de colonização em terras americanas,


Gruzinski menciona, no México, as atividades de dois religiosos conhecedores das coisas e das
línguas indígenas, o frei Alonso de Molina e o irmão Bernardino de Sahagún, que conheciam a língua

244
mexicana e que sabiam escrevê-la. O primeiro redigiu um dicionário castelhano-náuatle e náuatle-
castelhano, enquando o segundo produziu a obra Historia general de las cosas de La Nueva España e
o Códice de Florença (1575-1577), que contém saberes enciclopédicos sobre o México Antigo.

Gruzinski (2012) afirma que no caso da conquista do México, iniciada por Hernán Cortés, em
1519, os espanhóis se aliam a tribos adversárias dos astecas de Moctezuma e não apenas os vencem,
mas para consolidar essa conquista concedem benesses várias às elites indígenas, como o aprendizado
de determinados ofícios, a possibilidade de exercer cargos e funções valorizadas na colônia e na me-
trópole, o casamento com europeus e a consequente “purificação do sangue”, etc.

Dominar não significava privar sistematicamente o adversário de seu poder, de seus


recursos e de seus deuses, mas extrair dele um tributo e obter garantias de fidelidade,
isto é, reféns. Os vencedores não procuram transformar os vencidos, ao passo que des-
de muito tempo antes os chineses achinesam os grupos não Han, e os ibéricos se pre-
param para ocidentalizar os ameríndios. Nada prova que os mexicas tenham escolhido
deliberadamente essa forma de império a baixo custo, sem ocupação em profundidade
nem integração política. Mas a desenvolveram de um modo que lhes permitia obter
um máximo de proveito, apanhando de surpresa a maior parte das populações da re-
gião, aliadas ou inimigas. Os vencedores espanhóis vão impor outras regras ao jogo.
(GRUZINSKI, 2012, págs. 19 e 20)

Apesar de no Brasil os autóctones não terem atingido um grau de sofisticação e hierarquização


semelhante aos astecas ou incas, também foi empregue tal estratégia por parte dos lusos na América.
Já citamos exemplos como Felipe Camarão, que lutou contra a ocupação holandesa no século XVII.
Podemos mencionar também o cacique tupiniquim Tibiriçá, que foi convertido ao cristianismo pe-
los jesuítas José de Anchieta e Leonardo Nunes e que cedeu a sua filha Bartira para casar-se com o
português João Ramalho, constituindo algumas das primeiras famílias mestiças no Brasil, tendo em
vista que Ramalho chegou à região do atual Estado de São Paulo por volta de 1512, mais ou menos a
mesma época em que Diogo Álvares Correia, o Caramuru, desembarcava em Salvador e vivenciava
uma história semelhante. Em 1536, Caramuru esteve em Porto Seguro, juntamente com o donatário
da Capitania da Bahia, Francisco Pereira Coutinho, onde foram acolhidos pelo donatário Pero do
Campo Tourinho.

Podemos mencionar ainda o cacique tupinambá Cunhambebe, cuja liderança foi fundamental para a
chamada Paz de Iperoig7, um tratado de paz entre os índios e os portugueses, ocorrido em 1563, evi-
tando que a Confederação dos Tamoios, como foi denominado o levante indígena tendo à frente os
tupinambá que habitavam o litoral brasileiro entre os atuais municípios de Bertioga/SP e Cabo Frio/
RJ, ameaçasse os ibéricos.

Gruzinski, ao abordar as ações dos ibéricos na China e no Novo Mundo, revela o contexto em
que ocorreu toda essa movimentação transoceânica. Em sua ótica, embora os desembarques dos ibé-
ricos nos litorais mexicano e chinês não constituam uma operação combinada, a coincidência entre
eles não é simples efeito do acaso. Os dois eventos resultam de uma dinâmica comum, pois no século
XVI várias partes do mundo entram em contato com os europeus e esboçam-se então processos que

245
só podem ser apreendidos em escala planetária.

O humanista milanês Pietro Martire, citado pelo autor, afirmava não ter dúvidas de que os
índios da América pré-hispânica conheciam a escrita e que os nativos utilizavam materiais como uma
fina casca de árvore “que se assemelha àquela dos frutos comestíveis da palmeira”, como se fosse papel
ou pergaminho. No caso dos índios brasileiros do século XVI não consta na historiografia oficial que
conhecessem quaisquer técnicas de escrita. A escrita foi, sim, a técnica utilizada pelos portugueses,
desde a carta de Caminha, para descrever esses povos e inaugurar a etnografia e a historiografia nesta
porção do continente americano.

Gruzinski (2012) afirma que para os ibéricos do Renascimento os índios do Novo Mundo são
bárbaros e que sobre isso os europeus são tão peremptórios quanto os chineses a respeito dos portu-
gueses. Enquanto os últimos não usam os termos “selvagem” ou “bárbaro” para falar dos chineses,
seus primos espanhóis não se constrangem em distribuir esses qualificativos aos povos indígenas da
América, justificando por tais palavras o regime ao qual pretendiam submetê-los.
Desde a Antiguidade, nós, isto é, os gregos, os romanos, os cristãos, os europeus, e
depois os ocidentais, criamos o hábito de chamar os outros de “bárbaros”. A distância
entre as linguagens e os modos de vida para os gregos, a diferença religiosa para os
cristãos, a inferioridade técnica, militar e cultural para os europeus do Renascimento e
das Luzes e, no século XIX, a raça reavivaram incansavelmente essa distinção. (GRU-
ZINSKI, 2012, pág.93)

Sanjay Subrahmanyam (1997) enfatiza as mudanças ocorridas no início do período moderno, época
das grandes navegações ou Era dos Descobrimentos. Entre essas mudanças, ele destaca um aumento
do conflito estrutural de longo prazo que relações entre sociedades agrícolas e urbanas estabelecidas e
grupos nômades (caçadores, pastores, etc.). Subrahmanyam considera que essa tensão, que desperta
o interesse do que ele denomina de historiadores de mentalidade ecológica, representa um paradigma
na abordagem de questões relacionadas com a fronteira agrícola e inovação agrícola, demografia, ur-
banização e padrões de liquidação urbana, além da questão da viagem, descoberta e colonização como
conduzindo a uma mudança ecológica das dimensões globais.

____________________

GRUZINSKI, Serge. A Águia e o Dragão. Editora Schwarcz S.A; São Paulo/SP, 2012.

7. NAVARRO, E. A. Dicionário de tupi antigo: a língua indígena clássica do Brasil. São Paulo. Global. 2013. p. 569

246
Obviamente, o equilíbrio entre colonos e vagabundos também diferia, de acordo com o continente
e região. No entanto, em vez de colocar a questão em termos simplesmente do conflito ostensivo entre socieda-
des não europeias, que alcançaram alguma forma de ideal, Idade Dourada, equilíbrio entre colonos e vagabun-
dos, e uma expansão da Europa que, de alguma forma, estragou isso (por causa de sua infeliz "modernidade"),
pode ser mais útil argumentar por certo conflitos amplamente universais durante o período em estilos de vida
e modos de uso de recursos. Por sua vez, é de interesse óbvio vincular essas questões com a questão dos fluxos
de comércio global (commodities, bullion), suas dimensões e suas implicações tanto para trás quanto para
produtores e consumidores”. (SUBRAHMANYAM, 1997, pág.5)

Aqui, o autor denuncia o contexto em que ocorreu a expansão marítima ibérica nos séculos XV
e XVI, quando fala dos fluxos de comércio global e do contraste entre sociedades tão díspares. No caso
da América portuguesa, o choque de civilizações entre uma sociedade do Renascimento, que experi-
mentava avanços tecnológicos como o desenvolvimento da imprensa, da astronomia e das técnicas
de navegação, bem como da agricultura, e uma sociedade de caçadores e coletores, que desconhecia a
escrita, os metais, que, livre dos pudores e tabus que dominavam os europeus e sua consciência judai-
co-cristã, andavam nus e praticavam a antropofagia ritual.

Sanjay acredita que o nacionalismo cega para a possibilidade de conexão e etnografia histórica,
seja em uma de suas variantes ocidentais de orientalismo, ou se praticada sem Oriente. O impulso
de tal etnografia, segundo ele, tem sempre sido um de enfatizar a diferença, e mais geralmente uma
posicional superioridade em se fazer observador sobre o observado (salvo em situações particulares
em que o observador 'colonizado' havia internalizado de outra pessoa valores, e encontrou-se e a
sua própria sociedade querendo por aquelas medidas). Ao mesmo tempo, esta etnografia em si foi o
produto de certos fenômenos modernos caracteristicamente. De início, o intensificação da viagem, o
desejo de ser capaz de mapear o mundo em seus elementos e localizar “cada espécie” humana. Seu ni-
cho consistia em separar o civilizado fazer do incivilizado, bem como para distinguir diferentes graus
de civilização. Ao contrário, fazer o que vezes se argumenta, faz com que esses fenômenos não sejam
vistos como produtos peculiares de expansão europeia, embora Ocidental.
Os muitos europeus estavam, por vezes, em uma melhor posição, empiricamente fa-
lando, praticá-lo fazer o que outros fazem. No entanto, quase todo o processo de início
moderno construção do império foi também um processo de classificação, de identifi-
cação- diferença; quer um fim de preservar a ele (como no caso fazer sistema de pain-
ço otomano), ou um fim promover uma missão civilizadora de aculturação. A onda
pós-modernista em Ciências Sociais em persiste no erro de identificar essa vontade de
definir, descrever e classificar (e eventualmente, para diferenciar) com o Iluminismo
Europeu, mas na verdade, existe fora da Europa, e mais cedo fazer o que é a chamada
iluminação. Encontramo-nos, em parte, como suas vítimas até hoje, e seria absurdo
sugerir que poderíamos jogar fora pesada esta herança por um mero ato de vontade.
Dada uma fragmentária natureza o acesso conhecimento ao, cada um números e mais
ou menos condenado em maior ou menor medida para estudos de área. Deixe-me
portanto, com um fundamento, uma vez mais que não é só comparar a partir de den-
tro de nossas caixas. (SUBRAHMANYAM, 1997, pág. 28)

Carlo Ginzburg (2008) conta a história de Domenico Scandela (1532-1599), um moleiro italiano
conhecido como Menocchio e que foi queimado pela Inquisição ao defender pontos de vista con-
siderados heréticos pelas autoridades eclesiásticas do seu tempo. Menocchio tinha um complicado

247
relacionamento com a cultura escrita, os livros (ou, mais precisamente, alguns dos livros) que leu e
o modo como os leu. O autor afirma que emergiu assim um filtro, um criva que Menocchio interpôs
conscientemente entre ele e os textos, obscuros ou ilustres, que lhes caíram nas mãos. Esse criva,
explica Ginzburg, por outro lado, pressupunha uma cultura oral que era patrimônio não apenas de
Menocchio, mas também de um vasto segmento da sociedade do século XVI, um período marcado
pelos descobrimentos, pelo desenvolvimento da imprensa e pela Reforma Protestante.

Ginzburg destaca que vitória da cultura escrita sabre a oral foi, acima de tudo, a vitória da abs-
tração sobre o empirismo”. (GINZBURG, 2008, pág.104)

Sobre um “mundo novo”, em alusão a descoberta da América, Menocchio não se preocupava


com as Índias, como Colombo acreditara, e muito menos com novas terras, mas com um mundo até
agora desconhecido. "Licit appellare": a metáfora era muito recente e ele quase pedia desculpas ao lei-
tor. Circulou com essa acepção até entrar no uso comum. Menocchio, assevera o autor, referia-se não
a um novo continente, mas a uma nova sociedade a ser construída. “O deslocamento da metáfora do
"mundo novo" do contexto geográfico para o social foi explicitado, contudo, pela literatura utopista
em vários níveis”. (GINZBURG, 2008, pág. 134). Ele descrevia um mundo utópico, onde não existia
propriedade, havia liberdade sexual e tudo era comum a todos.

O nosso trabalho, conforme já foi explicado, trata da linguagem como uma ferramenta de do-
minação de um povo por outro. Europeus do Renascimento descreveram povos que viviam na Idade
da Pedra através de uma tecnologia desconhecida por estes, a escrita. Escrita essa que imputava aos
nativos afetos negativos sob a ótica do colonizador e que também reputava como sendo de pouca
monta as tradições culturais desses povos.

Isnara Pereira Ivo (2012) aborda a questão do trânsito, comércio e cores nos sertões da América
portuguesa do século XVIII. Isnara traça um paralelo entre as ações e os resultados das campanhas
no sertão brasileiro empreendidas por homens como Pedro Leolino Mariz, João da Silva Guimarães e
João Gonçalves da Costa. Ela aborda as expedições no sertão em procura de riquezas como ouro, pra-
ta, esmeraldas, etc., no contexto dos processos de interiorização da colonização portuguesa no Brasil.

_____________________
GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes. Editora Schwarcz LTDA; São Paulo/SP, 2008

248
Isnara pontua que a expansão intercontinental empreendida por portugueses e espanhóis
fomentou trânsitos e circulações inéditas, envolvendo agentes dos quatro cantos do mundo, conec-
tando quatro continentes. Essa movimentação em escala planetária fomentou grandes deslocamentos
demográficos, junto com circulação de experiências e trocas culturais. “A circulação de pessoas de
origens distintas e distantes, trazendo consigo os mais variados e inusitados conhecimentos, crenças,
práticas, sentimentos, sabores e gostos tonificaram o continente com novas cores, formas e costu-
mes”. (IVO, 2012, pag. 25).

Tendo em vista o contexto aludido, podemos mencionar que de Porto Seguro partiram diver-
sos aventureiros durante o século XVI em busca de minérios e exploração do sertão, como Sebastião
Fernandes Tourinho (1573), que navegando pelo rio Doce chegou às terras do atual estado de Minas
Gerais; o castelhano Francisco Bruza Espinosa (1553), cuja expedição seguiu pelo sul do litoral baia-
no, atravessou o vale do rio Jequitinhonha e atingiu o rio São Francisco, chegando a território mineiro
e ainda Antonio Dias Adorno (1574), que liderou uma expedição em busca de ouro e da lendária
“Serra das Esmeraldas”. Também podemos mencionar a participação de europeus não portugueses
no processo de colonização em Porto Seguro, como o próprio Espinosa, o boticário Felipe Guilhén, os
padres Anchieta e Azpicuelta Navarro, além do padre francês Bernardo de Aureajac, capelão trazido
pelo donatário Pero do Campo Tourinho, entre outros.

Ivo chama a atenção para o caso emblemático de Diogo Álvares Correia, o Caramuru, como
o primeiro registro de imersão cultural europeia na América lusitana, embora na carta de Caminha
conste que dois degredados foram deixados em Porto Seguro, quando da passagem da esquadra
cabralina, sendo um deles conhecido pelo nome de Afonso Ribeiro, com o objetivo de “andarem com
os índios e saber de seu viver e das suas maneiras"8. Isnara menciona ainda as histórias semelhantes
ocorridas em 1509 com os espanhóis Jerônimo de Aguilar e Gonzalo Guerrero, narradas pelo cronista
Bernal Diaz de Castilho. Os castelhanos naufragaram em solo americano e integraram-se à comuni-
dade maia.
Assim como Caramuru, Jerônimo de Aguilar e Gonzalo Guerrero imiscuíram-se no
universo indígena por vários anos, protagonizando sociabilidades e aventuras impre-
visíveis. Aguilar, após o reencontro com seus pares europeus, recusou-se a retornar
ao mundo cristão e Guerrero, por sua vez, apoiou a causa indígena na luta contra os
espanhóis conquistadores. Nas paisagens que resultaram da expansão portuguesa, fo-
ram várias as faces do diálogo que propiciou as mais complexas mediações culturais,
assentadas em questões religiosas, econômicas, institucionais e linguísticas”. (IVO,
2012, pág. 28)

___________________
8.
CAMINHA, Pero Vaz de. A Carta.

249
A mundialização que envolveu o continente americano a partir do século XV com a expansão
ibérica ultramarina, aproximou universos culturais fomentando, de maneira intensa, um sistema de
trocas e misturas em larga escala, defende Isnara, citando Serge Gruzinski:

Culturas se renovaram e se adaptaram, mas também se preservaram. Os responsáveis


por esses processos – navegadores, exploradores, comerciantes, religiosos, autorida-
des, viajantes, naturalistas, índios, escravos africanos, contrabandistas, trabalhadores
navais, entre outros – mediaram culturas por meio do tráfico da natureza e do mara-
vilhoso, assim como, em alguns casos, ajudaram a montar verdadeiros laboratórios de
adequação e de ajuste biológico e cultural. (IVO, 2012, pág. 49)

Porto Seguro, como é sabido, não se desenvolveu plenamente como capitania. A sua geografia
não favorecia a construção de um porto, os levantes indígenas eram frequentes, levando inclusive a
capitania a ficar quase despovoada por volta de 1602, e as atividades econômicas, como os engenhos
de açúcar, em decorrência dos fatores citados, não prosperaram para além do século XVI. Era basica-
mente uma vila pobre em que se vivia da pesca e da extração de madeira, com inexpressiva relevância
para a Coroa Portuguesa, pelo menos até meados do século XVIII, quando foi incorporada à Coroa,
recebendo por iniciativa dos ouvidores alguns melhoramentos, como a construção de prédios pú-
blicos e reforma das principais igrejas. Entretanto foi o locum de um ato fundante e consagrador da
tomada da terra em nome do Rei de Portugal, a partir do qual se iniciou a inserção desta porção do
continente americano, que mais tarde seria denominada Brasil, na agenda global.

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251
As Festas Reais no mundo atlântico: práticas festivas na cidade colonial do Rio de Janeiro
(segunda metade do século XVIII)
Roberta Martinelli e Barbosa125

Resumo
Adotando uma abordagem teórico-metodológica que enfatiza as conexões este artigo analisa as cele-
brações pelo nascimento do príncipe da Beira, em 1762, que tiveram lugar na cidade do Rio de Janei-
ro. Sublinharemos as especificidades locais e conjunturais sem perder de vista a dimensão atlântica, e
mesmo imperial, de tais práticas. As festas em homenagem ao rei de Portugal são analisadas de modo
não a ressaltar algum tipo de homogeneidade entre elas, e sim de buscar os modos específicos pelos
quais elas expressaram padrões e códigos comuns ao Império Português – não só nos próprios feste-
jos, mas também nas narrações produzidas sobre eles, denominadas Relações de festas. Procuramos
compreender a lógica das celebrações pelo nascimento do príncipe da Beira, identificando os sujeitos
e grupos que dela tomaram parte, dando particular destaque ao modo pelo qual os pardos fizeram da
festa um espaço dramatizado de disputa e de afirmação do seu lugar dentro do Império Português.

Palavras-chave: Império Português; Mundo Atlântico; América Portuguesa; cerimoniais; festas pú-
blicas

Abstract
Adopting a theoretical-methodological approach that emphasizes connections, this article analyses
the celebrations of the birth of the príncipe da Beira held in the city of Rio de Janeiro in 1762, and
highlights both their local and contextual particularities, never forgetting the Atlantic, and even Im-
perial dimensions of those practices. These festive practices in homage to the Portuguese King are
analyzed not to stress some type of homogeneity among them, but rather to seek the specific ways
they expressed patterns and codes common to the Portuguese empire – expressed not only in the
celebrations themselves, but also in the narratives produced about them called the Relações de Festas.
By trying to understand the logic of the celebrations of the birth of the príncipe da Beira, identifying
individuals groups that took part in them, to indicate how the pardos dramatized the festives and
claimed their place within the Portuguese Empire.
Keywords: Portuguese Empire; Atlantic world; Portuguese America; cerimonies; written culture;
public celebrations

I – Introdução

O presente artigo procurará compartilhar algumas reflexões do meu trabalho de doutorado so-
bre as práticas festivas em homenagem ao rei de Portugal que tiveram lugar na cidade colonial do Rio
de Janeiro no contexto da segunda metade do século XVIII. Ainda que o recorte espacial do estudo
centre-se nas festas reais ocorridas na cidade do Rio de Janeiro, a análise tem como proposta pensar
125 Doutora em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
Pesquisa financiada pela Capes por meio de concessão de bolsa de doutoramento e bolsa-sanduíche em Lisboa/
Portugal. Professora do Colégio Pedro II.

252
tais celebrações em suas conexões com outras manifestações festivas similares no espaço atlântico do
Império português, em cidades como Lisboa e Luanda no mesmo recorte cronológico126.

As chamadas festas reais abrangiam as comemorações públicas de aniversários, nascimentos,


casamentos, mortes de membros da família real, aclamações de reis ou rainhas, e os cerimoniais das
entradas solenes, que assinalavam a chegada do Rei ou dos seus representantes em uma determinada
cidade. Do ponto de vista da Coroa portuguesa tais festividades desempenhavam o papel de represen-
tar de modo teatral a autoridade e presença do rei em diferentes localidades, bem como de sua rede de
funcionários e delegados reais, transmitindo as mensagens do Império e da Igreja.

Esses rituais públicos exibiam, articulavam e reforçavam nas ruas das vilas e cidades do reino e
das conquistas ultramarinas o poder monárquico, as diferentes jurisdições existentes e a rígida hierar-
quização dos corpos sociais. Mas não somente isso eram também momentos em que os laços de fideli-
dade e vassalagem do Rei com os seus súditos eram exibidos e estreitados, reafirmando-se as relações
de amizade, serviço e clientela. Uma reflexão que tome por objeto os ritos e as cerimônias deve fugir
das ideias feitas da utilização dos rituais como instrumentos capazes de produzir uma adesão afetiva
ou uma crença imediata entre todos aqueles que deles tomavam parte. Ainda que os organizadores
das festas reais procurassem construir um sentido unívoco para a seqüência do conjunto cerimonial,
na prática a festa estava sujeita a uma multiplicidade de usos e apropriações, sendo os seus sentidos
múltiplos, construídos pelos diferentes sujeitos no seu próprio acontecer.

As festas são entendidas neste estudo como momentos privilegiados de congraçamento mais
também de tensões; espaço em que se processava um diálogo social intenso, gerando disputas em
torno de seus limites e legitimidade127. As festas reais eram ocasiões no qual sujeitos diversos disputa-
vam a construção de suas representações sociais, ou seja, do modo pelo qual se viam e desejavam ser
reconhecidos tanto em sua localidade quanto dentro do Império português. Esses sujeitos ao apro-
priarem-se da festa construíam para ela outras lógicas, com significados que lhes eram particulares.

Para dar conta desta proposta utilizamos como principal núcleo documental as chamadas Re-
lações de festas, narrativas elaboradas por contemporâneos que registraram por meio da escrita o
acontecer festivo. A produção de textos descrevendo as festejos reais era parte integrante das ce-
rimônias e acontecimentos públicos, e visava construir uma memória positiva da monarquia e do
Império português. A opção pela utilização deste tipo de fonte carrega em si limitações uma vez que,
tais narrativas descreveram os acontecimentos festivos a partir da perspectiva da Coroa portuguesa,
registrando o seu transcorrer de modo a ressaltar sua graça e ordem. De tom laudatório, obedecendo
critérios retóricos específicos, esses textos procuravam exaltar as ações do Rei português e de seus
representantes e construir uma imagem harmônica do conjunto dos súditos, reafirmando a ordem e

126 Sobre a abordagem das histórias conectadas ver: GRUZINSKI, Serge. O historiador, o macaco e a centaura:
a ‘história cultural’ no novo milênio. Estudos Avançados, São Paulo,v. 17, n. 49, p. 321-342, set./dez. 2003; e
SUBRAHMAYAM, Sanjay. Connected Histories: notes towards a reconfiguration of early modern Euroasia. In:
LIEBERMAN, Victor (ed.). Beyond Binary Histories. Re-imagining Eurasia to c. 1830. Ann Arbor: The Univer-
sity of Michigan Press, 1997.
127 Para uma reflexão das festas enquanto objeto de estudo ver: CUNHA, Maria Clementina Pereira (Org.).
Carnavais e outras f(r)estas. Campinas, Editora Unicamp; Cecult, 2002.

253
hierarquia social. Como então a partir deste tipo de documentação apreender as disputas e conflitos
existentes nas festividades e também suas diferentes apropriações por parte dos sujeitos que delas
tomavam parte, ou dito de outra forma como nos aproximar dos vários sentidos construídos dentro
de uma mesma celebração festiva?

Um primeiro caminho adotado foi reconhecer as características documentais e compreender


nestes relatos as representações construídas por seus autores, certamente pertencentes ao mundo le-
trado, acerca dos diferentes indivíduos e grupos sociais que participavam da festa: mulheres fidalgas,
mecânicas e criadas, artesãos das corporações de ofícios, comerciantes, letrados, indivíduos africanos
e de ascendência africana, dentre outros. Ao construir uma determinada representação sobre a festa
e dos sujeitos que as integravam tais narrativas agiam sobre o seu presente, ajudando a criar o con-
texto no qual inseriam-se. O acontecimentos festivos são analisados a partir das formas discursivas
que os dão a ler. Em um segundo movimento procuramos identificar a partir dos estranhamentos
e silêncios expressos nos relatos “pistas” de gestos rituais, danças e sons provenientes de universos
sócio-culturais distintos daqueles circunscritos `a sociedade de Corte portuguesa, com a intenção
justamente de nos aproximarmos das outras lógicas festivas presentes em uma mesma celebração. A
partir desses estranhamentos e seguindo os procedimentos da micro-história procuramos analisar as
formas de percepção do social em momentos e contextos festivos precisos. Um terceiro recurso foi,
sempre quando possível, utilizar outros tipos de documentos – tais como as correspondências oficiais
(relatórios, ofícios, cartas entre autoridades diversas), petições e requerimentos dirigidas `a câmara,
o periódico a Gazeta de Lisboa – os quais nos ajudaram a por em evidência a dinâmica dos grupos
sociais em torno da festa em situações específicas.

Neste artigo apresento uma análise sobre as celebrações públicas no Rio de Janeiro pelo nasci-
mento do príncipe da Beira128, em 1762, a partir de duas narrativas anônimas produzidas sobre esse
acontecimento festivo e publicadas em Lisboa no ano seguinte129. Partindo da consideração de que
os sentidos das festas não devem ser pensados a priori, e sim nas relações dinâmicas tecidas entre os
diferentes segmentos sociais que delas tomavam parte, em conjunturas históricas precisas, procura-
remos nos aproximar dos significados de exibição pública produzidos pelos diferentes sujeitos que
participaram dessas festividades no Rio de Janeiro, em 1762, dando particular destaque aos múltiplos
sentidos da encenação apresentada pelos homens pardos daquela cidade no interior do festejo.

128 Dom José, Príncipe da Beira, filho do sereníssimo senhor infante D. Pedro e da sereníssima senhora D.
Maria princesa do Brasil, e duquesa de Bragança. Com este nascimento foi assegurada a real sucessão dos mo-
narcas portugueses.
129 As narrativas são: “Relação dos Obsequiosos Festejos que se fizeram na cidade de São Sebastião do Rio de
Janeiro, pela plausível notícia do nascimento do sereníssimo senhor príncipe da Beira, o senhor d. José no ano
de 1762 oferecida ao nobilíssimo Senado da mesma cidade, que tão generosamente concorreu para estes gran-
des festejos, em que se empenhou a sua fidelidade, e desempenhou o seu afeto. Por um Cidadão e Anônimo”
In: MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Genethliagos dos Sereníssimos Reis, Rainhas e Príncipes de Portugal.
Tomo V. (1761-1767). Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Seção de Obras Raras. p. 173-183; e Epanáfora
Festiva ou relação sumaria das festas com que na cidade do Rio de Janeiro, capital do Brasil, se celebrou o feliz
nascimento do sereníssimo príncipe da Beira, nosso senhor. Lisboa: Miguel Rodrigues, 1763. [sem indicação
de autor] Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

254
II – As Festas Reais e suas narrativas no espaço atlântico

As festividades em homenagem ao rei lusitano e `a monarquia foram práticas comuns `as dife-
rentes regiões que compunham o Império Português, e seguiram um padrão que tomava Lisboa como
modelo. Ficava `a cargo das câmaras municipais, tanto no reino como nos domínios ultramarinos, a
tarefa de organizar, fiscalizar e financiar tais celebrações130. A percepção da existência de um modelo
comemorativo praticado nas diferentes localidades do Império não pressupõe um interesse analítico
que procure ressaltar algum tipo de homogeneidade entre tais práticas festivas. Pelo contrário nosso
objetivo foi o de buscar identificar modos específicos pelos quais tais localidades expressavam pa-
drões e códigos comuns ao Império português, visíveis não só nos próprios festejos mas também nas
narrações produzidas sobre eles, as Relações de Festas.

A existência de um padrão de celebração festiva no espaço do Império Português é evidenciado


pela presença de uma ritualística que compreendia, por um lado, o envio de cartas do reino `as câ-
maras, governadores ou vice-reis informando sobre um evento – nascimento, casamento, aclamação,
morte – e a resposta destes ao reino relatando como aquela localidade recebeu tal notícia, bem como
as “obrigações” de cada grupo social na preparação e execução das festividades. O modelo também se
fazia notar na semelhança da morfologia das festas nas diferentes localidades tanto do reino quanto
das conquistas portuguesas, com a realização de luminárias, procissões, missas, apresentação de dan-
ças e carros alegóricos, touradas, banquete, fogos de artifício, dentre outros. A despeito desse padrão
mais amplo de formas festivas, que seguia uma orientação vinda do reino, a prática festiva mostrava-
-se muito mais complexa no seu acontecer.

Ao longo do século XVIII, a importância da parte atlântica do império Português não cessaria
de crescer. Conforme observou John Russel-Wood, ainda que Portugal seja descrito como possuidor
de um vasto império ultramarino “no logue durée o Atlântico foi o centro de gravidade da coloniza-
ção portuguesa, a área de maior influência e comércio”131. O recorte de análise aqui proposto - as fes-
tas reais no atlântico português - justifica-se, por um lado, pelo deslocamento das atenções da Coroa
Portuguesa do Oriente para o atlântico-sul, em larga medida, devido a descoberta de ouro na região
das minas na América entre os anos de 1694 e 1698; e, por outro, pelas intensas conexões políticas,
econômicas e culturais estabelecidas entre as diferentes localidades e regiões do atlântico. Nas redes
de relações que então se configuravam a cidade do Rio de Janeiro passou a desempenhar cada vez
mais um papel de destaque.

As conexões eram viabilizadas, em larga medida, pela intensa comunicação escrita, manuscrita
e imprensa que ligava realidades sócio-culturais geograficamente distantes ao reino de Portugal. Por
meio cartas, crônicas, relatórios, ofícios, relações os vassalos enviavam notícias ao rei, que tomava co-
130 Ver BICALHO, Maria Fernanda Baptista. Mediação, pureza de sangue e oficiais mecânicos. As câmaras, as
festas e a representação do império português. In: PAIVA, Eduardo F.; ANASTASIA, Carla Maria Junho (Org.). O
trabalho mestiço.Maneiras de pensar e formas de viver. Séculos XVI a XIX. São Paulo: Annablume; Belo Horizon-
te: PPGH-UFMG, 2002.
131 RUSSEL-WOOD, John. Histórias do Atlântico português. São Paulo, Editora UNESP, 2014. p.123

255
nhecimento dos seus domínios e a partir destes traçava estratégias e decisões, viabilizando o governo
`a distância. O conhecimento era, como apontou Ronald Raminelli, um “elemento de negociação”
sendo o “serviço das letras” um meio dos súditos angariar recompensas e mercês do rei. A produção
escrita dirigida ao soberano era um serviço equivalente aos atos de bravura e contribuiu para a cons-
trução dos vínculos de reciprocidade entre o centro e as periferias132.

Sobre as festas reais as notícias chegavam `a Lisboa por meio de cartas ou pelas Relações de Fes-
tas. Os letrados das conquistas ultramarinas partilharam da cultura escrita desenvolvida e difundida
no reino, perceptível pela circulação de padrões retórico-poéticos, temáticas, imagens e símbolos nas
escritas produzidas no espaço atlântico português. As Relações de Festas constituíram um gênero
narrativo específico que obedecia determinados critérios retóricos e regras de representação. Eram
textos laudatórios que utilizavam uma linguagem estereotipada de lugares-comuns retórico-poéticos
anônimos e coletivizados133.

Na América colonial portuguesa o reforço das representações simbólicas do poder monárquico


lusitano ocorreu durante o reinado joanino, sendo seguido pelo o de d. José I quando as festas em
comemoração de nascimentos e casamentos da família real atingiram sua expressão máxima134. Ape-
sar do número significativo de cerimônias públicas em homenagem ao rei português na América,
não foram produzidos registros escritos sobre estas na mesma proporção em que foram realizadas.
Stuart Schwartz argumenta que tal fato deveu-se, em larga medida, pela ausência de uma imprensa na
América Portuguesa135.

Segundo Jerônimo de Barros a inexistência de tipografias na América portuguesa deve ser com-
preendida como indício de uma política de produção de livros e folhetos cujo centro de impressão
estava em Lisboa. Não só em relação `as possessões americanas mas também dentro do próprio reino
a maioria da produção e da censura de impressos esteve concentrada naquela cidade. Pretendia-se
com isso garantir o controle da “opinião pública” e articular os indivíduos ao circuito de produção
e consumo de impressos. Nas palavras deste autor: “paradoxalmente, a ausência de tipografias seria

132 RAMINELLI, Ronald. Viagens Ultramarinas: monarcas, vassalos e governos a distância. São Paulo, Ala-
meda, 2008.
133 Para uma reflexão acerca deste gênero narrativo ver HANNSEN, João Adolfo. “A categoria ‘representação’
nas festas coloniais dos séculos XVII e XVIII” In: JANCSO, István; KANTOR, Iris (Org.). Festa: cultura e socia-
bilidade na América Portuguesa. São Paulo, Hucitec; Editora da Universidade de São Paulo; FAPESP; Imprensa
Oficial. Volume II; e PECORA, Alcir. Máquina de Gêneros. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo,
2001.
134 Ver MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O Rei no Espelho: a Monarquia Portuguesa e a colonização da América,
1640-1720. São Paulo, Hucitec, 2002. p. 324-325; e do mesmo autor “Recortes de Memória: reis e príncipes na
coleção Barbosa Machado” In: SOIHET, Rachel, BICALHO, Maria Fernanda Baptista e GOUVEA, Maria de
Fátima [Org]. Culturas Políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janei-
ro, Mauad, 2005. p. 129-130.
135 Nas palavras deste autor os relatórios comemorativos de cerimônias públicas tornaram-se um gêne-
ro importante na Europa moderna e na América Espanhola, mantendo-se escassos na América Portuguesa.
SCHWARTZ, Stuart. “Ceremonies of public authority in a colonial capital. The King’s processions and the
hierarquies of Power in the seventeenth century Salvador” In: Anais de História de Além-mar, volume V, 2004.
p. 7-26.

256
antes condição da aproximação ao centro do império, e não uma condição marginal”136. Ao pretende-
rem que os seus textos fossem impressos na Corte, os habitantes da América almejavam se aproximar
da elite imperial e quem sabe com o envio de relatos e notícias ganhar reconhecimento e algum tipo
de mercê do rei.

No caso das possessões portuguesas na África não localizei relatos sobre festividades reais ali
realizadas que tivessem sido impressas no reino de Portugal. Entretanto a troca de correspondências
oficiais nos fornecem evidencias sobre a existência de tais práticas festivas também naquela parte das
conquistas ultramarinas. A ausência de narrativas informando sobre o modo como eram executadas
as celebrações em homenagem ao rei foi registrada pelo governador e capitão-general de Angola em
ofício dirigido `a corte portuguesa em 1751. Neste comentava que não havia encontrado naquele do-
mínio nenhum texto que lhe pudesse servir de guia para a execução dos cerimoniais das exéquias de
d. João V e de aclamação do rei d. José I. Em suas palavras, para a realização de tais cerimônias teve
que se pautar na “memória” dos habitantes de Luanda, entretanto “a todos os daquele tempo achei tão
esquecidos”. Informava que iria aguardar as notícias de como tais atos teriam sido feitos em Lisboa
“para cá executar conforme a terra o permitir”137. Portanto, os contextos locais interferiam na forma
de execução dos festejos bem como no seu próprio registro escrito.

A situação instável da presença portuguesa em suas possessões africanas, marcada por perma-
nentes guerras e conflitos internos em sociedades compostas por uma minoria branca em meio a uma
população majoritariamente negra, influenciou a forma pela qual as festas reais eram ali praticadas. A
troca de correspondências entre os representantes do rei português na África e a Coroa deixam-nos
entrever as dificuldades encontradas no exercício do governo naquelas localidades.

É o que apreendemos da leitura da carta do Conde do Lavradio, governador de Angola,


endereçada ao secretário de Estado da Marinha em 10 de agosto de 1752. Segundo ele os naturais
daquela terra viviam “esquecidos da Religião Católica e do respeito, obediência, que devem ter aos seus
superiores, Bispos, Governadores, e Justiças”. Isto para introduzir o caso de uma desordem ocorrida
na cidade de Luanda no dia em que se “festejava o mistério da santíssima trindade” deixando ele e o
bispo “muito ofendidos”138. O caso era duplamente escandaloso, primeiro pela sua forma e segundo
pela ofensa na escolha do dia e momento para realizá-lo: o da festividade.

O governador presenciou uma cena de extrema violência contra o capitão mor do regimento do
distrito de Cuanza, no momento em que os dois se dirigiam para acompanhar a missa e a festa logo
pela manhã. Assim que passaram em frente da porta da loja do Capitão de infantaria foram surpreen-
didos por seus negros que dali saíram armados disparando “uns tiros `a cabeça, outros `as pernas”
do capitão mor. Em seguida o próprio Capitão de infantaria junto com o seu cunhado e um soldado
do regimento daquela Praça “saíram da loja com espadas nuas, e em companhia dos negros foram
136 BARROS, Jerônimo Duque Estrada. Impressões de um Tempo. Dissertação de Mestrado. Niterói, UFF,
2012. p. 41-42.
137 EÇA E MELO, Antonio de Almeida Soares Portugal de Alarcão. [Ofício] 29 mar.1751, Luanda [para] COR-
TE-REAL, Diogo de Mendonça. Arquivo Histórico Ultramarino. Angola, cx. 40, doc. 3803.
138 EÇA E MELO, Antonio de Almeida Soares Portugal de Alarcão. [Carta] 10 ago. 1752, Luanda [para] COR-
TE-REAL, Diogo de Mendonça. Arquivo Histórico Ultramarino. AHU_CU001, cx. 41, doc. 3829.

257
dando naquele corpo quase morto”139. O Conde do Lavradio advertia ao rei de Portugal de que não
era prudente conceder cargos de coronel ou capitão aos filhos “desta terra”. Para resolver tal situação
propunha que a Coroa enviasse “oficiais do reino casados com suas famílias, honrados e valorosos”
para servirem nesta conquista. E concluía: “com bem magoado meu coração digo, que o não há nesta
terra [oficiais com honra], porque todos geralmente vivem com os mesmos costumes, abusos, supers-
tições, e ciências dos negros”140.

O episódio narrado revela, por um lado, as dificuldades encontradas pelo Conde do Lavradio
no governo daquele domínio e, por outro, constitui um exemplo de que os dias festivos não seriam
necessariamente tão tranqüilos e regrados como se pretendia. Pelo contrário eram pontuados por de-
sordens ou revoltas. Tempos depois, em outubro de 1759, um outro governador de Angola, Antonio
de Vasconcellos, considerava o grande número de tavernas que se via por toda a cidade de Luanda,
abertas até grande parte da noite, a principal origem de todas as desordens e ferimentos que ocorriam
“entre os Pretos e gente ordinária” pela “afluência de bebidas, [a] que brutalmente se entregavam”.
Com a intenção de tomar providência “a tão escandaloso estilo” e evitar tais desordens, o governador
ordenou que as tavernas passassem a fechar às sete horas da noite e que:

em todos os Domingos, e dias Santos, e naqueles em que se fizerem procis-


sões públicas, ou sejam de quaresma, ou festivas, estarão da mesma forma
fechadas as sobreditas Tavernas, sem que delas se venda a pessoa alguma as
tais bebidas, [...] que o que faltar, ou transgredir o disposto nesta ordem será
rigorosamente castigado a meu arbítrio. E para que a todos se faça manifesto,
se publicará este bando nas partes mais públicas desta cidade, extraídas dele
mais três cópias que serão assinadas pelo secretário deste governo, se afixarão
nos lugares costumados, este defronte do palácio da minha residência.141

A particular menção, feita pelo governador, aos dias de procissões públicas ou festivas é indi-
cativa de que as desordens seriam frequentes naqueles momentos, sendo as bebidas, provavelmente,
acompanhadas por gestos, danças e sons próprios do mundo social e cultural dos indivíduos daquela
região. Nas conquistas africanas, as cerimônias em louvor à monarquia portuguesa foram predo-
minantemente negras. Conforme sustenta Roquinaldo Ferreira, o intercâmbio religioso e cultural
foi uma dimensão central do tecido social de Angola, tanto no litoral como no interior, ao longo do
século XVIII142. Testemunhos da época registraram uma significativa adesão por parte dos residentes
brancos `as práticas religiosas e curativas africanas, de que é exemplo a observação de um sacerdote
capuchinho, segundo a qual as “mulheres [em Luanda] criadas entre os negros, são tão mudadas que

139 Ibid.
140 Ibid.
141 Bando do governador de Angola Antonio de Vasconcellos. São Paulo de Assumpção, 30 de outubro de
1756. Arquivo Histórico Ultramarino. AHU_CU_001, cx. 46, doc. 4235.
142 FERREIRA, Roquinaldo. Cross-cultural Exchange in the Atlantic world. Angola and Brazil during the Era
of the Slave Trade. New York, Cambridge University Press, 2012.

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mal conservam nada de branco sobre elas, exceto suas peles”143. Em 1784, o desembargador ouvidor-
-geral de Angola, em ofício, dizia que aquela região, “em muitos aspectos, não parecia uma colônia
antiga, mas sim um território recém-conquistado”144.

Seguindo o argumento Roquinaldo Ferreira afirma que apesar da prevalência das formas cul-
turais africanas, o ambiente de Angola, assim como o de Benguela, foi marcado pela mistura de ele-
mentos das cultura africana e portuguesa. Por outro lado, a intensa e constante movimentação de
estrangeiros provenientes de Portugal e do Brasil para Luanda, bem como de indivíduos de várias
partes da Angola interna, contribuiu para a configuração de uma sociedade fluida e multifacetada, na
qual o intercâmbio cultural não se dava de modo unidirecional e uniforme.

Tendo em vista esse quadro, devemos considerar que nas possessões africanas as cerimônias
em louvor `a monarquia portuguesa foram marcadas pela presença de práticas culturais locais. Em
geral, os africanos que se integraram `as igrejas e irmandades cristãs permaneceram comprometidos
com suas crenças religiosas locais. Em sua História de Angola, Silva Corrêa observou que as grandes e
freqüentes procissões organizadas pelas irmandades eram “celebrações sem religião”. Ora, a configu-
ração das festas reais organizadas pela câmara de Luanda não deveria ser muito distinta daquelas. Sua
fisionomia era predominantemente negra e carregada por práticas que o olhar colonizador classifica-
va como “supersticiosas” e “idólotras”. No continente africano os representantes do rei português en-
contraram maiores dificuldades em se fazer cumprir o ritual festivo. No espaço das conquistas, as di-
ferentes realidades coloniais acabaram ensejando o desenvolvimento por parte da população de suas
próprias formas e significados de exibição nas cerimônias públicas em homenagem ao rei português.

Do outro lado do atlântico, as condições da ocupação portuguesa na América tornaram a fixa-


ção dos portugueses bem mais freqüente e constante, quando comparada ao que ocorria nas posses-
sões africanas. Guardadas as especificidades das situações históricas e sociais locais, também nas di-
ferentes regiões da América Portuguesa as práticas culturais de origem africana tiveram um lugar de
destaque nas festas reais ali celebradas. Tais práticas traziam um jeito particular no modo do dançar e
do trajar, identificados em alguns textos das Relações de festas como algo característico dos pretos da
América. Essas manifestações de base africana no interior dos festejos reais traziam uma especificida-
de em relação aos gestos rituais e modos de vestir associados ao continente africano.

É o que podemos perceber, por exemplo, em alguns textos das Relações de festas que registra-
ram os gestuais e ritmos ligados aos “pretos” no interior das celebrações pela aclamação do rei d. José
I no ano de 1752 em Lisboa. Em uma dessas narrativas seu autor ao descrever o momento das danças
comentou que “tornaram os pretos a sua antiga moda, do uso Americano”145. Em um outro relato
sobre o mesmo momento festivo lemos que dentre as danças: “[...] nenhuma provocou mais riso que

143 MEROLA apud FERREIRA, Roquinaldo. op. cit., p. 188.


144 Ofício do Desembargador Geral de Angola, em 20 de março de 1784. Arquivo Histórico Ultramarino. An-
gola, cx. 68, doc. 46. Apud FERREIRA, Roquinaldo. op. cit., p. 188.
145 “Relação Verídica de toda a Magnificência com que foi executada o festejo do 5 dia de touros em vinte e sei
do mês de setembro, com danças, e carros, e mais divertimentos, com que desde a uma hora até as seis e meia da
tarde Celebrou o Supremo Senado a Regia Aclamação do Augustíssimo, e Fidelíssimo Senhor D. José I”. Lisboa:
Na Oficina de Manoel de Passos Mestre das Cabriolas. Ano de 1752. Biblioteca da Ajuda [55-II-17].

259
a dos pretos, que vestidos ao uso americano, na forma de peleja que representavam, faziam o baile
com que se divertiam [...]”146.

Anos depois, em 1761, uma narrativa impressa sobre as festividades realizadas na cidade de
Braga pela celebração do nascimento do príncipe da Beira, fazia referência `as “mulatas da Bahia”, de-
marcando o reconhecimento de uma especificidade regional daquelas mulheres muito provavelmente
em seu modo de dançar147. As narrativas das “Relações de festas” produzidas no mundo atlântico Por-
tuguês apesar de possuírem uma linguagem que seguia padrões retóricos e regras de representação
e procurassem registrar os elementos comuns formais das práticas festivas, por vezes demarcavam o
reconhecimento de singularidades culturais locais nessas formas públicas de celebrações.

Para a América Portuguesa os relatos de festas impressos de que dispomos datam sobretudo
do século XVIII, e foram concebidos por letrados que os dedicavam `a pessoas ilustres de uma dada
localidade como o governador, o vice-rei, a câmara, arcebispos, nobreza dentre outros. Algumas des-
sas narrativas trazem o nome do autor, entretanto a maior parte delas eram anônimas e escritas “por
ordem” da câmara ou pelas despesas da nobreza da terra e de particulares de uma cidade. De tom
laudatório a escrita da festa homenageava a participação e envolvimento das autoridades coloniais e
de indivíduos proeminentes nas cerimônias públicas da monarquia nas cidades coloniais, sobretudo
`aqueles a quem tais textos eram dedicados.

Se a escrita da festa e o próprio acontecer festivo ritualizavam e reafirmavam a harmonia, a hie-


rarquia e o apoio recíproco dos poderes e indivíduos da América portuguesa ao rei distante, por outro
lado possibilitavam a vivência de um modo de celebrar que era local. Ao mesmo tempo em que as
narrativas de festas ajudavam a construir uma memória histórica de eventos relacionados `a monar-
quia portuguesa e ao Império, também selecionavam fatos ligados `a experiência colonial em deter-
minadas regiões e contextos que deveriam ser comemorados e relembrados. Seguindo as reflexões de
Stuart Schwartz, a prática de celebrações relacionadas a eventos e circunstâncias locais contribuíram
para que os indivíduos desenvolvessem um senso de distinção em relação ao reino e `as demais partes
do império português. Ainda de acordo com este autor o fato da organização das festas reais ser de
responsabilidade da câmara e das principais autoridades locais acabava por fortalecer as autonomias
e potencias que se criavam nas conquistas148.

As câmaras das cidades coloniais ao organizarem as festas reais, no intuito de reforçar os seus
vínculos com o monarca distante fisicamente, acabaram em contrapartida criando espaço para que
a população urbana, que ela também representava, desenvolvesse formas e significados próprios de
exibição pública os quais estavam intimamente relacionados `a presença estruturadora da escravidão
e da miscigenação naquela sociedade.

146 “Sexta, e Ultima Relação da festividade de touros com que o supremo Senado de Lisboa celebrou o sempre
feliz Aclamação do Augustíssimo, e Fidelíssimo Senhor D. José I Nosso Senhor”. Lisboa. En La Impremt. De los
Libros Viejos. Anno de 1752. Biblioteca da Ajuda [55-II-17].
147 “Pregão para as reais festas do feliz nascimento do sereníssimo príncipe da beira, que faz celebrar nesta
cidade sua alteza o sereníssimo senhor d. Gaspar”. Lisboa, Na Oficina de Antonio Vicente da Silva, 1761. Biblio-
teca Nacional de Portugal.
148 SCHWARTZ, Stuart. “Ceremonies of public authority in a colonial capital”, op. cit., p. 7-26.

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Os festejos públicos em homenagem ao rei português tiveram dimensões globais, mas com
distintas e próprias manifestações locais. Os modos de festejar variavam conforme as especificidades
e dinâmicas vinculadas aos processos histórico-sociais de cada localidade, como também de acordo
com as variadas conjunturas.

III – O Rio de Janeiro e a celebração do nascimento do príncipe da Beira (1762)

Ao longo do século XVIII era cada vez mais era evidente na cidade colonial do Rio de Janeiro
a presença de indivíduos africanos e origem africana que circulavam em suas ruas na condição de
escravos, libertos ou livres trazendo desconforto aos governantes. O vice-rei Conde da Cunha em
uma carta de 1767, qualificou os divertimentos públicos do Rio de Janeiro como “indecentes”. Tal
indecência, na sua avaliação, advinha do exagero com o luxo e despesas, mas também da composição
do “povo” da cidade que participava das festas públicas. Este era constituído por uma minoria branca
ao lado de pardos e uma infinidade de “mulatos e escravos boçais”. Excluindo os brancos, os demais
sujeitos não teriam como “luzir” a cidade, uma vez que não partilhavam dos costumes europeus “ci-
vilizados”149.

No “fiel retrato” que o vice-rei apresenta da capital do Rio de Janeiro em sua carta, ganha desta-
que a percepção da “pobreza” dos habitantes, inclusive das pessoas nobres.150 Pobreza esta vinculada,
em larga medida, aos costumes praticados pelos diferentes sujeitos que compunham aquela socieda-
de: “pardos, oficiais mecânicos, pescadores, marinheiros e pretos boçais”151. Portanto, a “indecência”
notada pelo Conde da Cunha nos divertimentos da cidade decorria, sobretudo, da qualidade dos seus
habitantes, que traziam para as festas reais práticas culturais estranhas ao vice-rei. Importante notar
que, nessas festas, as pessoas de cor não apareciam apenas compondo o séquito dos homens e mulhe-
res brancas, e sim dos modos os mais variados, exibindo inclusive o seu próprio cortejo.

Em 1762, o Rio de Janeiro festejou em suas ruas e praças o nascimento do príncipe da Beira. Em
1763, tornava-se oficialmente capital do Estado do Brasil e sede do vice-reinado, em reconhecimento
`a importância política e estratégica que passou a desempenhar ao longo do século XVIII. Nesse mes-
mo ano foi publicada em Lisboa a Epanáfora Festiva ...152, narrativa que descreve as celebrações reali-
zadas pelo nascimento do príncipe da Beira no Rio de Janeiro.Nossa análise sobre esse evento se pau-
tará nesta descrição anônima e na Relação dos obsequiosos Festejos que se fizeram na cidade de São

149 CUNHA, Conde da Cunha [carta] a FURTADO, Francisco Xavier de Mendonça, 24 de março de 1767. In:
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 254, jan-mar/1962. p. 390-391.
150 Ibid.
151 Ibid.
152Epanáfora festiva... Lisboa: na oficina de Miguel Rodrigues, 1763.

261
Sebastião do Rio de Janeiro ...153. Este último também foi impresso em Lisboa, na Oficina Patriarcal de
Francisco Luis Ameno, entretanto, não temos a referência do ano de publicação nem de sua autoria.

Ambas as narrativas descrevem a seqüência das festividades que em seu conjunto duraram cin-
co dias. Os primeiros três dias foram marcados por um aspecto solene com a celebração do tríduo no
Mosteiro de São Bento, que contou com a presença do bispo D. Fr. Antonio do Desterro, o governa-
dor Gomes Freire de Andrada, a nobreza da terra e os oficiais da câmara. As ruas e praças enfeitadas
abrigaram a realização de luminárias, salvas nas fortalezas, repiques de sinos em todas as Igrejas e
procissão de ação de graças.

Sobre a procissão A Relação dos obsequiosos festejos..., qualificou-a como a “mais magnífica”
que “se tem feito nesta Cidade” e enumerou as irmandades que dela fizeram parte, pontuando a au-
sência das irmandades de negros daquela cidade. Segundo esta narrativa acompanharam a procissão
as Irmandades do Santíssimo Sacramento das quatro freguesias da cidade, a Irmandade de Terceiros
da Ordem do Patriarca São Francisco, e a comunidade de São Bento154. De acordo com o relato da
Epanáfora festiva..., também teriam participado da procissão a do Terço da Sé, a de São José, a da
Senhora Mãe dos Homens, e a de S. Brás dos Pardos, que “eram todas no modelo agradáveis, e estu-
pendas na preciosidade”155. A Irmandade do Patriarca São José era de cunho religioso-profissional,
constituindo-se em uma irmandade de pedreiros, carpinteiros e outros ofícios anexos. Já a de São
Brás dos Pardos foi provavelmente a primeira irmandade de pardos do Rio de Janeiro, dedicada ao
culto de São Brás e instalada na Igreja do Convento de São Bento. A Epanáfora festiva... em nenhum
momento faz menção à participação de irmandades de homens pretos naqueles dias festivos.

Após os três dias de celebrações mais solenes que ocorreram no perímetro urbano do Largo
do Paço, teve início o segundo momento das festividades, em que começaram “os espetáculos”. O
primeiro deles foi o de touros realizado no campo de São Domingos, extramuros da cidade, onde fo-
ram armados palanques e camarotes. Para lá dirigiram-se as principais autoridades locais ao lado da
nobreza e grande número do “povo”, ou seja do conjunto de moradores da cidade.

As touradas eram precedidas pela a apresentação de danças e carros alegóricos. Tal como acon-
tecia no reino português as corporações de ofícios da cidade foram as responsáveis pela organização
das danças no interior do festejo. Nas celebrações no Rio de Janeiro em 1762 foram apresentadas
várias danças. Os carpinteiros, pedreiros e marceneiros encenaram a farsa de mouros e cristãos, na

153 “Relação dos obsequiosos Festejos que se fizeram na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, pela plausí-
vel notícia do nascimento do sereníssimo senhor príncipe da Beira, o senhor d. José no ano de 1762 oferecida ao
nobilíssimo Senado da mesma cidade, que tão generosamente concorreu para estes grandes festejos, em que se
empenhou a sua fidelidade, e desempenhou o seu afeto. Por um Cidadão e Anônimo”, in: MACHADO, Diogo
Barbosa (Org.). Ibid., p. 173-183. O título desta narrativa traz em si uma pista sobre a sua autoria ao informar
que o texto era oferecido “ao nobilíssimo Senado” da cidade do Rio de Janeiro por “um seu cidadão”. Seu au-
tor era um “cidadão” e, portanto, conforme o significado do termo na época, uma pessoa que desempenhava
algum cargo administrativo na Câmara Municipal. A partir desta informação, podemos relativizar a ideia de
anonimato, supondo que ao menos naquela localidade, no espaço do conselho municipal, poderia haver o re-
conhecimento entre os seus pares de quem teria escrito aquela Relação.
154 “Relação dos obsequiosos festejos...”, in: MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Ibid., p. 175.
155 Ibid.

262
qual se rememorava a vitória dos portugueses contra os considerados infiéis na península ibérica. Já
os sapateiros apresentaram um carro onde se figurava um monte, no qual se via “alguns índios à caça
de feras do país, pelo aspecto bem fingidas”156. Estes desciam do monte e realizavam um “brincado
baile” que compensava “o engano dos olhos, pois mal se compadecia tanta ordem no brutal, tanta gala
no ferino”157.

Essa descrição nos permite visualizar uma tensão existente em uma representação que louvava
a monarquia, na medida em que o “bárbaro” era representado sob a forma de “gala”. Os sapateiros
ao contarem corporalmente e musicalmente, uma história, traziam para dentro da cena elementos
culturais de origem indígena e/ou africana , combinando-as com elementos europeus. Não por acaso,
o registro escrito deixou transparecer o estranhamento do narrador diante do que viu. As danças e
farsas constituíam uma parte da festividade na qual os colonos ocupavam o centro do espetáculo e
emitiam mensagens com suas vozes, danças e gestos158. Não foi somente a dança dos sapateiros que
causou desconforto aos olhos do narrador da Epanáfora festiva ..., mas também a farsa de uma corte
real “imitando ao do rei Congo” apresentada pelos homens pardos da cidade.

Foi no dia 19 que, de acordo com a Relação dos obsequiosos festejos..., todos os pardos que
havia na cidade do Rio de Janeiro, “à sua custa”, fizeram “um Estado, imitando ao do rei Congo”159.
O termo pardo teve múltiplos usos e significados no contexto colonial da América Portuguesa, sendo
na região sudeste associado à mestiçagem, mas também empregado como sinônimo de liberto ou
homem livre de cor nascido na colônia. Nesta última acepção, pardo qualificava homens e mulheres
livres de ascendência africana que não eram necessariamente mestiços160.

O “Estado” apresentado pelos pardos naquele festejo era composto por “[...] um Rei, um Prín-
cipe, dois Embaixadores, sete Sobas, nove Capitães da Guarda, três mucambas, uma com vestido nu
fingido África, armada de arco e flecha, e as outras duas serventes do Rei, e seis caudatários [...]”161.
Logo em seguida, vinha a dança de um soba mágico “composta de vários bichos, os quais eram leão,
cavalo, camelo, cão, onça, urso, unicórnio, macaco, jacaré, boi, com um elefante ricamente vestido,
cantando todos em aplauso do nascimento do sereníssimo senhor Príncipe da Beira [...]”162.

Na sequência, foram apresentadas várias outras danças: uma de doze leões com a figura de Hér-
cules por guia, a dos “calhastros” também com doze figuras, a dos “Ambacas” com oito figuras, a dos

156Epanáfora festiva, p. 20.


157 Ibid.
158 Para uma reflexão sobre as danças nas festas reais no reino e nas conquistas portuguesas ver LARA, Silvia
Hunold. Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa. São Paulo, Companhia
das Letras, 2007. p. 187-188
159 “RELAÇÃO dos obsequiosos festejos...”, in: MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Ibid., p. 182.
160 Ver VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem: as irmandades de pardos na América portuguesa. Campi-
nas, Editora Unicamp, 2007. p. 36
161 “RELAÇÃO dos obsequiosos festejos...”, op. cit.
162 op. cit.

263
“muleques” com doze figuras, a de “talheiras”163, cujas figuras que a compunham vinham vestidas em
trajes de mulheres, a de negrinhas pequenas, a de “moleques pequenos de Angola”, a de “catupé”, que
era de “moleques de Angola maiores”. As duas últimas eram denominadas de danças do príncipe. Por
fim, vinha o baile de Congo com doze figuras: `a frente o seu secretário, “significando dança Real”,
seguido de “uns Cabundás, trajados de penas, cortando e abrindo caminho, para marchar o Estado”.
Todos estavam vestidos “de ricas sedas de ouro, prata, e matizes de todas as cores, e levavam muitos
diamantes, e todas com borzequins bordados de cordões de ouro, e sapatos da mesma sorte [...].164
Sobre a apresentação dos pardos no interior dos festejos a narrativa da Epanáfora festiva.... registrou
que,

Os gestos, a música, os instrumentos, a dança, e o traje tudo muito no uso


daqueles Africanos, descontentando ao bom senso, não deixavam de divertir
o ânimo por estranhos. Ali se refletia que o gosto das coisas também se con-
tinha nos limites da opinião. Entre aqueles bárbaros antípodas da Europa,
não pelo sítio, senão pelos costumes, uma Florinda não faria a perca de um
homem: um Egiffieli, em vez de estimações conseguiria desprezos. É outra lá a
formosura; muito diverso o bom canto. Só a virtude se conforma ao palato de
todas as nações. Fizeram-no pois os nossos Pardos com toda a propriedade, e
agenciaram com ela o aplauso, que pode franquear-se a uma imitação.165

O autor deixa transparecer o seu estranhamento diante dos gestos, música, dança e traje apre-
sentados na encenação dos pardos. O desconforto dava-se “pelos costumes” daqueles “bárbaros an-
típodas da Europa”, sendo “outra lá a formosura; muito diverso o bom canto”. A percepção da di-
ferença é imediatamente associada à noção de inferioridade dos africanos, qualificados pelo autor
como “bárbaros”. Qual o significado encenação realizada pelos pardos da cidade do Rio de Janeiro
na celebração do ano de 1762? Por que os pardos optaram por representar a Corte do rei Congo no
interior daquele festejo público?

Nos festejos do Rio de Janeiro em 1762 é significativo notar a ausência das irmandades de ne-
gros que comumente integravam tais ocasiões. Correlata a essa ausência, temos a referência à presen-
ça da Irmandade de São Brás na procissão solene realizada no primeiro momento das festividades, ao
lado da comunidade de São Bento. A origem desta Irmandade data de 1670, quando foi construída
uma capela dedicada ao santo dentro da igreja dos religiosos de São Bento. Os seus irmãos eram par-
dos não escravos, em sua maioria, oficiais de ourives. Os indivíduos mestiços associados à Irmandade
de São Brás eram reconhecidos no meio urbano do Rio de Janeiro por se vestirem como europeus,
apropriando-se de símbolos de distinção do mundo dos brancos na intenção de se diferenciarem dos
163 As Talheiras ou Taieiras, como o nome se fixou através dos folcloristas do século XIX, referem-se a um
grupo de mulatas vestidas de branco, que apareciam dançando em festas religiosas católicas, sobretudo nas de
S. Benedito e Nossa Senhora do Rosário. Ver: FILHO, Mello Morais. Festas e tradições populares no Brasil. Belo
Horizonte/Rio de Janeiro: Itatiaia, 1999. p. 73; e CALMON, Francisco. Relação das Faustíssimas Festas. Rio de
Janeiro: MEC-SEC/Funarte/Instituto Nacional do Folclore, 1982. p. 30-31.
164 “Relação dos obsequiosos festejos...”, ibid., p. 182-183.
165Epanáfora festiva, p. 27-28.

264
demais como aqueles que desfrutariam um maior prestígio social166.

Naqueles dias festivos, o privilégio da irmandade de São Brás de integrar a procissão solene re-
velava no conjunto cerimonial sua distinção diante das demais. O grupo de mestiços livres associados
à essa Irmandade procurava no espaço festivo se diferenciar como corpo social separado. Sua parti-
cipação nas festas oficiais era um momento oportuno para representar visualmente uma distinção
almejada e reivindicada naquela sociedade, tanto em relação aos indivíduos escravizados como aos
demais pardos.

Ao longo do século XVIII, algumas irmandades de pardos do Rio de Janeiro começaram a


construir suas próprias igrejas nas áreas periféricas da cidade, de que são exemplos a do Hospício dos
Pardos e a da Irmandade de São Gonçalo Garcia. Tal deslocamento espacial não aconteceu com a de
São Brás. No ano de 1783, em requerimento dirigido `a rainha D. Maria I, seus irmãos ainda se iden-
tificavam como pertencentes a “mesa de São Brás do Mosteiro de São Bento”167.

Ao se referir à representação dos pardos a Relação dos obsequiosos festejos... registrou que a
farsa teria sido realizada por “todos os Pardos que havia na cidade”168. O relato da Epanáfora festiva...
menciona apenas que os “pardos” realizaram a farsa, não especificando se teriam sido os irmãos de
São Brás ou de outras irmandades de pardos existentes na época. A escrita da festa se refere aos pardos
da cidade como um conjunto homogêneo. Entretanto, a realidade era bem diferente, marcada por
diferenças e disputas entre esses indivíduos livres de cor.

No contexto das festas pelo nascimento do príncipe da Beira circulava pela cidade um projeto
encabeçado pelos irmãos pardos da Boa Morte e da Conceição – que dividiam a Igreja do Hospício
dos Pardos – , de união de todas as irmandades de pardos dispersas espacialmente pela cidade. O
projeto de unidade não se concretizou, revelando que, na prática, as diferenças entre os grupos par-
dos eram significativas. Além disso, a cor parda era uma dentre outras formas de identidade que se
cruzavam em um mesmo indivíduo. No caso dos irmãos de São Brás, além da cor havia o vínculo
profissional: eram oficiais de ourives.

A representação da Corte do rei Congo por pardos em uma ocasião festiva da monarquia por-
tuguesa na cidade colonial do Rio de Janeiro pode ser interpretada também como uma forma de
indivíduos de ascendência africana, que já estavam relativamente afastados do mundo da escravidão,
ligarem-se simbolicamente às estruturas políticas e aos seus antepassados africanos. Talvez mais im-
portante do que isso seja o modo pelo qual esses indivíduos usavam tais símbolos para lutar pelo seu
lugar na sociedade colonial da cidade do Rio de Janeiro. Os relatos não especificam quais grupos de
pardos teriam concebido e realizado a farsa do Estado do rei Congo nas festas de 1762. No entanto
em suas descrições das danças por eles apresentadas na farsa, indicam que algumas eram originárias
da região de Angola.

Conforme estudiosos sobre o tema demonstraram, a eleição de reis negros e as celebrações a


166 Sobre a Irmandade de São Brás ver VIANNA, Larissa. op. cit. p. 143-172
167 Ibid.
168 “Relação dos obsequiosos festejos...”, ibid., p. 182.

265
ela associadas ocorreram em todas as Américas, ficando claro que, em meio às experiências da vio-
lenta diáspora africana e da escravidão, tais práticas foram uma das formas encontradas por esses
indivíduos de se organizarem e construírem laços de solidariedade no novo contexto das sociedades
coloniais. No entendimento de mundo dos diferentes grupos étnicos da África Central, região da qual
provinha grande parte dos escravos da cidade do Rio de Janeiro, os reis desempenhavam um papel de
grande importância, sendo chefes de pequenas organizações sociais ou de grandes Estados. Esses lí-
deres exerciam posições rituais, unindo as pessoas umas às outras e ao mundo invisível que incluía os
ancestrais/espíritos, os ainda não nascidos, os animais, plantas e objetos inanimados. Os reis tinham
funções políticas, econômicas, sociais e religiosas, e faziam a mediação entre a sociedade e o mundo
natural, entre os vivos e os mortos169.

Quando os africanos e seus descendentes na América Portuguesa nomeavam um rei para exer-
cer o papel de líder comunitário, seja no interior de irmandades religiosas leigas ou de mocambos e
quilombos, estavam re-atualizando por meio daquele ritual noções de poder, identidade e comuni-
dade ligadas à região centro-africana em um novo contexto sociocultural.170Assumindo como pres-
suposto teórico que toda identidade humana é construída e histórica, constituindo-se nas relações
específicas de conjunturas econômicas, políticas e culturais ou em oposição a outras identidades, é
possível dizer que os africanos e seus descendentes estavam, no ato de eleger seu rei, reafirmando suas
origens. Estavam também construindo novas identidades a partir da bagagem cultural que traziam e
das possibilidades que lhes eram dadas pela sociedade escravista.

A encenação do cortejo por homens pardos, é importante frisar, revestia-se de múltiplos sig-
nificados. Era, a um só tempo, uma forma de indivíduos mestiços nascidos na colônia referendarem
publicamente a sua lealdade ao rei português e o seu respeito à fé cristã; uma forma de reivindicarem
distinção social, procurando construir no espaço festivo uma versão positiva da identidade mestiça,
que se baseava na ascendência africana e em sua origem colonial, ou seja, de mestiços nascidos na
colônia; e ainda um meio ritualístico de compartilhar uma memória ligada a um passado africano e
de re-significar noções de poder e identidade.

Não temos como afirmar quais irmandades pardas estiveram envolvidas na encenação apresen-
tada nas festas de 1762. Mas tomando como referência a dinâmica e características dessas irmandades
na cidade colonial do Rio de Janeiro na conjuntura em questão, aliadas ao tema escolhido da farsa,
podemos inferir que aqueles indivíduos se distanciavam da condição de africanos, uma vez que se
identificavam como nascidos na colônia, mas, ao mesmo tempo, no campo da religiosidade cristã e
do contexto festivo, reatualizavam crenças e heranças culturais de seus ancestrais africanos, que ainda
constituíam um referencial em suas vidas. Devemos relativizar a informação dos textos de que “todos

169 Ver SOUZA, Marina de Mello e.Reis Negros no Brasil escravista: a história da festa de coroação do Rei
Congo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002; e ALMEIDA, Carlos. Uma infelicidade feliz. A imagem da África
e dos africanos na literatura missionária sobre o Kongo e a região mbundo (meados do século XVI – primeiro
quartel do século XVIII). Lisboa, 2009. Tese de doutoramento em Antropologia, Faculdade de Ciências Sociais
e Humanas, Universidade Nova de Lisboa.

170 Ibid., p. 240.

266
os pardos da cidade” estiveram unidos naquela representação. Muito provavelmente, tal encenação
foi elaborada por um grupo específico de pardos que, ao apropriar-se daquele espaço da festa real,
construiu uma representação que, por um lado, reportava-se à ancestralidade africana e, por outro,
buscava distinguir-se na hierarquia social daquela urbe colonial. A encenação dos pardos, procurava
se apropriar daquela festa real a partir de suas próprias expectativas.

Bibliografia:
ALMEIDA, Carlos. Uma infelicidade feliz. A imagem da África e dos africanos na literatura missio-
nária sobre o Kongo e a região mbundo (meados do século XVI – primeiro quartel do século XVIII).
Lisboa, 2009. Tese de doutoramento em Antropologia, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas,
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Entre liames e redes: do ofício mecânico, das primeiras letras e, das patentes à mobilidade
social das famílias dos livres de cor na Comarca do Rio das Mortes (1770-1850).171
Sirleia Maria Arantes

“Os bens que possuo não foram herdados, mas adquiridos por minha agência e in-
dústria” (Quitéria Silva)172.

“Por isso alguma coisa que possuímos é adquirido por nossa agência e trabalho, eu
pelo meu ofício de barbeiro” (Francisco Gonçalves Santos e Rita Maria de Sousa)173.

A “agência” na fala dos livres de cor significa “o ofício, cuidado, ocupação daquele que

faz os negócios de alguém, como seu agente”174, e “indústria”, “arte, destreza para granjear a vida,

171 Professora Doutora, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais -
IFSEMG
172 AHET-II-IPHAN, Testamento de Quitéria da Silva, 1793. Cx. 210.
173 AEMNSP/SJDR. Testamento de Francisco Gonçalves dos Santos. Livro de Registros de Óbitos. Tomo II. p.
122v, 1796-1800.
174BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez e latino, aulico, anatomico, architectonico... Coimbra: Collegio
das Artes da Companhia de Jesus, 1728. v. 1. p. 166.

268
engenho, traça em lavrar e fazer obras mecânicas, em tratar negócios civis”175. O cotidiano dos livres

de cor era uma mescla de agenciar e industrializar meio para a sobrevivência; quiçá, ascender social-

mente. As formas encontradas perpassam pelo defeito mecânico176. Por isso, Saint-Hilaire classificou

os proprietários das fazendas da região do Rio Grande de embrutecidos por trabalhar juntamente

com seus escravos. Os ofícios desenvolvidos pelos cativos eram os mesmos conhecidos pelos seus

senhores. Acredita-se que essa assertiva se aplicava no âmbito urbano, pois, mesmo com a ascensão

social e econômica, os laços com os ex-cativos mantinham-se. Entretanto, se a maioria dos livres de

cor vivia da sua agência e indústria, alguns não nomearam seu oficio, sendo possível percebê-lo pelos

bens inventariados ou no rol de dívidas mencionado nos testamentos. A ascensão econômica e social,

consequentemente a mobilidade social, advinha dos ofícios, das patentes, dos cargos nas irmandades

e dos bens amealhados. Esse legado foi sendo passado para sua família consanguínea(legítima e ilegí-

tima) por afinidade e por parentesco espiritual.

A mobilidade social dos livres de cor pode ser percebida pelo grau de instrução, pelas

ordens sacerdotais, pela posse de terras e de escravos, pelas patentes – na colônia, no império e na

Guarda Nacional –, pelos ofícios – músicos, pintor, entalhador, negociante, cirurgião-barbeiro e fer-

reiro – e pelos vínculos pessoais que os indivíduos mantinham com o propósito de obter benesses e

privilégios ou galgar degraus na hierarquia social. O status de cidadão adveio com a Constituição de

1824. Contudo, antes dessa categoria, os livres de cor ocupavam locais estratégicos na sociedade em

foco como forma de marcar sua presença e participar dos principais eventos locais, como a Aclama-

ção a D. Pedro, e ocupar cargos na Câmara local, como examinador de ofício.

Os ofícios podem ser mensurados pelos bens ou pelas declarações nos inventários. A as-

censão econômica desse grupo pode ser percebida pelo monte-mor, pelo número de escravos e pelo

número de propriedades. Para além da compra de escravos, há a compra de bens de raiz; ou seja, há

um redirecionamento de capital conquistado com o ofício mecânico para esses bens. Esse grupo so-

cial aproveita-se das condições socioeconômicas e consegue ascender economicamente, como o caso

175SILVA, Antônio de Moraes.Diccionario da lingua portugueza – recompilado dos vocabulários impressos


até agora, e nesta segunda edição novamente emendado e muito acrescentado, por Antônio de Moraes Silva.
Lisboa: Typographia Lacerdina, 1789. v. 1. p. 153.
176 “Dizia-se portador do ‘defeito mecânico’ os que trabalhavam com as mãos, podendo ser o trabalho braçal
propriamente dito ou atividades como pesar e medir mercadorias” FARIA, Sheila de Castro. Sinhás pretas: da-
mas mercadoras.As pretas minas nas cidades do Rio de Janeiro e de São João Del Rey (1700-1850). 2004. Tese
(concurso público para Professor Titular) -Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2004.

269
de Dutra, analisado por Zephir Frank no Rio de Janeiro177.

As várias indústrias e ofícios das famílias dos livres de cor

A mobilidade econômica traz em seu bojo o anseio pela mobilidade social. Para ascen-

der socialmente, é preciso qualificar a si próprio e aos seus com um ofício e aprender as primeiras

letras para frequentar os mesmos locais que a elite política local. Desse modo, buscavam-se vários

caminhos, como as patentes, a leitura, um ofício, as ordens sacerdotais, as alianças matrimoniais e

o parentesco espiritual. Porém, a primeira ascensão social era a econômica: adquirir bens para que

pudessem prestar gratuitamente, serviços à Coroa. Para tal, era necessário desenvolver um oficio; ou

melhor, uma indústria. E os livres de cor foram hábeis em estabelecer vários misteres e amealhar bens

para sua família.

A presença dos vários ofícios nas vilas mineiras remete às corporações de ofício medie-

vais, nas quais o artesão detinha o poder de controlar a produção e os serviços mister de seu trabalho,

porém a regulamentação do ofício e a emissão de cartas de exame perpassavam pelo poder local. Em

Vila Rica, como para Salvador e São Paulo, as câmaras tinham papel fundamental em obrigar que “os

artífices de cada ofício escolhessem entre si um mestre responsável pela administração dos exames de

entrada”178. Na emissão da Carta de ofício, era essencial um Juiz de Ofício e um escrivão que pudesse

escrever e registrar as permissões. Nas vilas mineiras, não há registros de Corporações de Ofícios e

nem das irmandades de cada ofício específico como para Lisboa, Salvador e São Paulo, onde os oficiais

mecânicos participavam das comemorações civis e eclesiásticas agremiados em irmandades, diferen-

temente das vilas mineiras em que as agremiações eram de caráter social e étnico179.

Na matriz do Pilar de São João del-Rei, os artífices também não pertenciam a irmandades.

Todavia, eram responsáveis por “ornar e vestir com pompa e magnificência a imagem de São Jorge”,

que saía na procissão de CorpusChristi. A Câmara da vila de São João del-Rei, em 1821, determinou

que o escrivão apresentasse os nomes dos “oficiais ferreiros, caldeireiros e serralheiros que, avisados

177FRANK, Zephyr L. Entre ricos e pobres: o mundo de Antônio José Dutra no Rio de Janeiro oitocentista. São
Paulo: Annablume, 2012.
178LIBBY, D. C. . Habilidades, artífices e ofícios na sociedade escravista do Brasil colonial. In: Douglas Cole
Libby; Júnia FerreiraFurtado. (Org.). Trabalho livre, trabalho escravo - Brasil e Europa, séculos XVIII e XIX.São
Paulo: Annablume, 2006, v. 1, p. 62.
179 LIBBY, 2006, p. 63.

270
com antecedência, deveriam aprontar o ‘estado’ de São Jorge para a procissão de CorpusChristi”180.

Anos antes, tem-se notícia de que, na procissão, o orago fora também “aprontado” pelos juízes dos

ofícios de latoeiro, ferreiro, serralheiro, ferrador, carpinteiro e pedreiro181. A responsabilidade de

agremiar os artífices em torno do orago de São Jorge foi da Câmara da vila, que era responsável por

realizar com “brilhantismo” a procissão de CorpusChristi custeando-a por ser uma festa régia. Na

vila, até 1765, um homem representava São Jorge. Depois, a Câmara solicitou uma imagem, a qual os

oficiais mecânicos passaram a ornar. A última procissão de que a imagem participou foi em 1847182. A

demonstração de prestígio e pompa era engalanar São Jorge para a procissão de CorpusChristi.

Nas Minas Gerais, não se tem notícia da organização das Corporações de Ofício típicas da

Europa, que tinham como um dos objetivos ensinar o ofício mecânico ao aprendiz183. Assim, ensinar

um ofício passa ser uma prática da família consanguínea e da espiritual. As regulamentações e a expe-

dição das autorizações do exercício do referido ofício (alfaiate, ferreiro, latoeiro, pedreiro etc.) cabiam

ao poder local representado pela Câmara. No caso das três freguesias até a criação da vila de Santa

Maria de Baependi em 1814, ficara sob a responsabilidade da Câmara da vila de São João del-Rei.

Juntamente com a aprendizagem de um ofício mecânico, havia a necessidade de apren-

der as primeiras letras, uma vez que o oficial que sabia ler e escrever poderia organizar seu rol de

dívidas da sua tenda e ser escrivão de ofício da Câmara. Com a prática do ofício conjugada com

as primeiras letras, ampliavam-se as possibilidades de ascensão social, como ocorreu com o alfaiate

Francisco José Lopes da Silva, que redigiu e assinou o empréstimo que fez ao alferes Cândido Herme-

negildo Branquinho (Imagem 4).

Imagem 1

180 CINTRA, Sebastião de Oliveira. Efemérides de São João del Rei. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1982. v.
I. ____. Efemérides de São João del Rei. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1982. v. I. p.225.
181 CINTRA, 1982, v. 1, p.232.
182 CINTRA, 1982, v. 1, p. 164.
183 LIBBY, 2006, p. 56-73.

271
Crédito em inventário de Francisco José Lopes Silva, 1841

Imagem: crédito de Francisco José Lopes da Silva. “Por ser verdade passo o presente por mim feito e assinado”.
Fonte: Foto da autora. AHET-II-IPHAN. Inventário de Maria Esméria da Silveira Romana, 1841. Cx. 221.

Apreender esses ofícios, na Câmara da vila de São João del-Rei, é um pouco fugidio, pois
não há uma documentação serial de ofício, apenas uma lista com exame de Ofícios. Assim, como para
Vila Rica, as Cartas de Exame184 não mencionam a qualidade daquele que examinava e do examinado,
o que dificulta localizar os livres de cor. Nas Efemérides de São João del-Rei, há uma relação da eleição
dos juízes de ofício e seus escrivães sem mencionar como ela era organizada. Cintra transcreve que,
no ano de 1798,

são eleitos juízes para os ofícios mecânicos – ‘por se acharem vagos os ditos em-
pregos’. Juiz do Ofício de carpinteiro: cap. Mateus Ferreira da Costa; Escrivão do
dito juiz: Joaquim Ferreira da Silva. Sapateiro: juiz – Antônio José da Silva Lapa,
escrivão – cap. Francisco Martins da Silva Couto. Alfaiate: juiz – alf. José Florêncio
de Freitas, escrivão – cap. Inácio de Moura. Lanterneiro: juiz – cap. Joaquim Simões
de Almeida, escrivão – alf. Antônio Simões de Almeida. Ferrador: juiz – José Alves
[Preto] Brito, escrivão – Joaquim Ferreira Veiga. Ferreiro: juiz – Isidoro José Santa-
na, escrivão João Vaz da Costa. Pedreiro: juiz – Estevão Salgueiro, escrivão – Ricardo
Antônio Ferreira. Juiz de ofício de seleiro: Francisco Xavier. Escrivão do dito ofício
– Inácio Ferreira de Ávila185.

184 LIBBY, 2006, p. 65.


185 CINTRA, 1982, v. II, p. 454.

272
Ao cruzar essas informações coletadas por Cintra com os bancos de dados dos batismos,
testamentos ou inventariados, foi possível perceber que, dos nomes elencados, a maioria é livre de
cor, como o escrivão de sapateiro Joaquim Ferreira da Silva, o sapateiro Antônio José da Silva Lapa e
seu escrivão Francisco Martins da Silva Couto, o lanterneiro Joaquim Simões de Almeida e seu escri-
vão Antônio Simões de Almeida, o ferrador José Alves Preto, o ferreiro Isidoro de Santana e seu es-
crivão João Vaz da Costa e o escrivão de seleiro Inácio Ferreira Ávila. Além de livres de cor, a maioria
desse grupo possuía patente de capitão e de alferes, sendo que, em 1838, Antônio Simões de Almeida
alcançou a patente de sargento-mor.

A presença dos livres de cor como oficiais de mecânicos na Comarca do Rio das Mortes
é uma constante. Contudo, a documentação está fragmentada. Na Câmara da vila de São João del-
-Rei, a documentação com registros de Cartas de Exames foi feita nos Autos Diversos de 1777-1778.
A outra documentação que permite vislumbrar os ofícios é o mapa populacional da década de 1830.
Esse último não abarca todas as capelas em foco, já que apenas alguns Juízes de Paz foram precisos e
anotaram a ocupação dos recenseados.

Nos Autos Diversos da Câmara da vila de São João del-Rei de 1777-1778186, não há men-
ção sobre a escolha e a qualidade dos examinadores. Porém, em 1788, a Câmara nomeou José Alves
Preto, um livre de cor, como Juiz de Ofício de Ferrador187. Para uma nomeação, pressupõe-se uma
escolha. Esta pode ser entre os pares ou nas redes clientelares dos examinadores. Acredita-se numa
rede de relações que pudesse permitir as indicações dos examinadores e de seus escrivães apesar de
não ter sido encontrado como ocorriam essas escolhas. Nesse período, foram emitidas 47 Cartas de
Exame para toda a Comarca do Rio das Mortes. Destas, foi qualificado como livre de cor apenas o
sapateiro Domingos João da Cruz. E com o cruzamento de fontes, foi possível descobrir dois livres de
cor: os ferreiros Luís de Sousa Gonçalves e Salvador Nunes Correa.

Na África, os homens ganhavam status através de empreendimentos no comércio. Em


algumas instâncias, por meio da herança, pois a autoridade poderia vir a ser definida não tanto em
termo de gentes ou terras, mas de capital social e político. Adquiriam status sendo líder religioso ou
com a idade mais avançada, isto é, a autoridade estava fundada na sua posição hierárquica com base
na idade. O status podia ser adquirido também através da “ocupação”, sendo o artesanato de metais e
a posição dos ferreiros, em particular na África Ocidental e na Centro-Ocidental, fornecedores de um
status especial”188. Consequentemente, os livres de cor oriundos dessa região poderiam utilizar esses
ofícios para a sobrevivência e como símbolo de status.

O ferreiro Luís era neto de duas pretas forras, mas que não tiveram sua adscrição mencio-
nada. Assim, não se pode mensurar a influência das lembranças africanas no seu ofício. Esse mister
ele aprendera com seu pai e transmitira aos seus filhos. A partir da Carta de Exame, Luís exercia o ofí-
cio de Ferrador. Com essa indústria, amealhou os poucos bens para sustentar a família, auxiliado pela
esposa Aniceta Maria Dias, que vivia da venda de pão, pois, entre seus bens inventariados, possuía
186ACMSJDR. Câmara Municipal de São João del-Rei, Autos diversos. 1777-1778. AUT 63-64.
187 CINTRA, 1982, v. 2, p. 211.
188RUSSEL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

273
seis pratos de pedra de pão. A ascensão econômica de Luís fora mediana, já que, na ocasião da morte
dele, em 1813, o casal possuía apenas as ferramentas de ferreiro (martelos, bigorna, bombas de furar
etc.), dois tachos de cobre, os trastes da casa, uma morada de casas na rua do Tejuco e uma Chácara
na mesma rua189. Já no inventário de Salvador Nunes Correa, em 1808, na capela de Nossa Senhora da
Conceição da Barra, estavam listados seus instrumentos de oficio, como bigorna, martelo e craveira,
mas não há fechamento e partilha dos bens190.

Os ofícios e as artes mecânicas “constituíam negócios ‘em família’”191. Pelos mapas de


população da década de 1830, tem-se uma noção da infinidade de ocupação dos livres de cor e como
os misteres dos pais eram aprendidos pelos seus filhos. Nem todos os recenseados possuíram testa-
mentos ou inventários, mas a sua sobrevivência ocorreu por meio de várias ocupações. Para além de
um oficio ou ocupação de alguns livres de cor, na capela de Nossa Senhora de Nazaré, o recenseador
Antônio Leite Ribeiro indica oficio como fiandeiro e curtidor, mas em outros aponta que o indivíduo
vive daquela atividade utilizando as expressões “vive de fiar algodão”, “vive de amansar cavalos”, “vive
de engenho de cana”, “mestre de meninos”, “vive de feitorar”, “vive de criação de gado” e “vive de
roça”192. Na capela de Nossa Senhora do Bonsucesso, no fogo de Francisco da Silva Miranda, pedreiro,
casado com Theodora Maria Felizarda, fiandeira, os filhos seguiram os ofícios dos pais. Dessa forma,
no fogo dos Miranda, os 20 membros ficaram com as ocupações da seguinte forma: um filho pedrei-
ro, um genro pedreiro e outro jornaleiro, duas filhas fiandeiras e uma costureira, duas crianças, seis
escravos pedreiros, uma criança escrava, uma cozinheira e uma escrava fiandeira193.

Na Capela de São Francisco do Onça, havia dois fogos dedicados ao ofício de ourives: o
de Valentim Ferreira Marques e o de Manoel Luís de Jesus. No fogo de Valentim, o juiz de paz João
Luís França é mais detalhista e nomeia, além do chefe ourives, uma fiandeira e dois mineiros. Ao se
confrontarem os dados de 1832 com os do inventário, é possível observar que o ofício não permitiu
que a família amealhasse muitos bens, pois o monte-mor chegou apenas a 697$500. Outro fato é que
as ferramentas típicas desse mister não estavam presentes: apenas um descaroçador de algodão e dois
bancos de carpinteiro194. Esse último oficio não fora mencionado para nenhum dos membros do fogo
e pode ter sido aprendido posteriormente. As múltiplas atividades do fogo o tornavam autossuficiente
na produção de bens de subsistência, sendo necessária a aquisição apenas de sal e daqueles não pro-
duzidos nas pequenas propriedades.

No fogo de Luís, o juiz de paz nomeou apenas o ofício do chefe e elencou os moradores
livres e o único africano, cuja condição é sem informação. Ao comparar os dados do mapa populacio-
nal com o inventário, denotam-se os bens da arte, como “uma banca de ofício de ourives com duas
gavetas sem chaves, duas bigornas, ferros e utensílios relativos ao ofício”, os bens semoventes, como
189 AHET-II-IPHAN. Inventário de Luís da Silva Gonçalves, 1813. Cx. 465.
190 AHET-II-IPHAN. Inventário de Salvador Nunes Correa, 1808. Cx. 461.
191 LIBBY, 2006, p. 67.
192 APM, Mapa de População da Capela de Nossa Senhora de Nazareth, Termo da Vila de São João del-Rei,
1831. MP-Cx.06. doc. 20.
193 Bom Sucesso. Disponível em <http://poplin.cedeplar.ufmg.br/principal.php?t=true&popline=listaNomi-
nativa&d=11416>. Acesso em: 21 nov. 2016.
194 AHET-II-IPHAN. Inventário de Valentim Ferreira Marques, 1873. Cx. 152.

274
seis vacas, uma novilha, uma bezerra, um touro, uma égua parida e um cavalo, os bens de raiz que
são partes na fazenda Volta Grande da Estiva e “uma morada de casa de vivenda nesta fazenda”, e
os escravos Margarida, João oficial de ourives e seus filhos Maria e Manoel195. O oficio de ourives de
Luís era auxiliado pelo seu escravo, que não foi mencionado no mapa de população, assim como sua
esposa e seus filhos. O ofício permitiu que o fogo pudesse prosperar, pois, na ocasião do inventário,
o monte-mor era de 2:849$140.

Na matriz de Nossa Senhora da Conceição de Aiuruoca, o juiz de paz Jerônimo Arantes


Marques recenseou a população da matriz e arraial nomeando as ocupações. A maioria dos chefes dos
fogos era de lavradores, ou seja, aqueles dedicados à agricultura e à pecuária, com poucos escravos,
diferentes dos fogos das capelas pertencentes à freguesia do Pilar. Um dos chefes que chama atenção
é Camilo de Lelis Nogueira, um estudante, que morava só. Não se tem mais informações sobre o
estudante, apenas que ele tinha 23 anos. Com essa idade, ele provavelmente deveria ser aluno de gra-
mática do professor Jose Esaú dos Santos, onde, no seu fogo, moravam nove estudantes. Outro fogo,
no arraial de Aiuruoca, que demonstra a profusão de ocupação para a sobrevivência, é o da viúva Ana
Esmeria. Esse fogo é composto pela chefe, uma tecedeira, Ana Esméria, dois filhos músicos, um filho
sapateiro e uma filha de ocupação não discriminada, possivelmente seguiria a da mãe196. Já na capela
de Nossa Senhora do Porto da Eterna Salvação, o juiz de paz descreve os ofícios como fiandeiras,
tecedeiras, costureiras e rendeiras e outras ocupações como “tocador de gado”, “tocador de burros”,
“mestre particular das primeiras letras”, “professor de medicina e cirurgia’, desocupado e vadio. Os
componentes dos fogos desempenhavam misteres herdados de seus antepassados. Era assim no fogo
chefiado pela viúva Joana Pereira, agricultora, com os seus três filhos ferreiros, uma filha quitandeira,
um filho sem informação da ocupação e três escravas. A mais velha delas era também quitandeira. A
produção do fogo ia desde o cultivo dos gêneros alimentícios, o fabrico dos quitutes e venda destes à
prestação de serviços com o ofício de ferreiro197.

Nos inventários, por exemplo, da vila de São João del-Rei, havia nas listagens de bens
inventariados instrumentos de trabalho, como tachinhos de fazer amêndoas e bacias de fazer pão de
ló e canudos. Essas iguarias eram vendidas nos tabuleiros pelas ruas das vilas e arraiais. O produto
poderia ser próprio ou agenciando. Foi com a indústria do tabuleiro, principalmente com a oferta das
amêndoas198, que a livre de cor, Germana Maurícia, conseguiu amealhar bens que lhe possibilitaram
adquirir sua morada de casa e levar, para junto de si, os seus filhos expostos.

Ao unir as informações dos ofícios presentes nos mapas de população com os menciona-
dos ou imputados a partir dos bens listados nos inventários e testamentos, pode-se analisar a ascensão
econômica dos livres de cor. Nos inventários e testamentos das três freguesias, alguns livres de cor
mencionam seu ofício. Entre os testamentos e inventários, têm-se os pedreiros José Gonçalves e Ti-

195 AHET-II-IPHAN. Inventário de Manoel Luís de Jesus. 1835. Cx. 31.


196 APM, Mapa de População do distrito da Matriz da Aiuruoca, termo de Santa Maria de Baependi, 1831.MP.
Cx. 13, doc. 10.
197 APM, Mapa de População do curato do Turvo, termo de Santa Maria de Baependi, 1831. MP-Cx.13-doc.16.
198 São muito apreciadas até hoje em São João del-Rei e vendidas tradicionalmente em cartuchos na Semana
Santa.

275
móteo Manoel Furtado, os sapateiros Gervásio Pereira Lima e Francisco de Paula Siqueira, o alfaiate
Joaquim Pinto de Sousa, o barbeiro Francisco Gonçalves dos Santos, o cirurgião-barbeiro e ferreiro
José Alves Preto e seu filho Marcelino José Alves Preto, o professor de medicina Gervásio Coelho
Barbosa e os músicos José Correa Arnault, Inácio Correa Arnault, José Máximo Coelho, João Leocá-
dio do Nascimento, Lourenço José Fernandes Brasiel e José Marcos de Castilho, homens que viviam
do seu oficio e deixaram legados para suas famílias. Esses últimos utilizavam a leitura no exercício de
seus ofícios, por isso serão analisados separadamente.

Os pedreiros José Gonçalves e Timóteo Manoel Furtado, além do ofício, tinham em co-
mum outra situação: não tiveram filhos e seus herdeiros foram seus sobrinhos. O primeiro tem uma
saga interessante: nasceu na capela de Pompéu e faleceu na matriz de Monserrate. Por ocasião do
seu falecimento, tinha vários jornais do seu ofício para receber no Rio do Peixe, em Tamanduá e em
Paraopeba, indicando como estava trabalhando com seu ofício até chegar a Baependi. No testamento,
José deixa claro que os bens adquiridos eram por meio do seu ofício de pedreiro, como a aquisição
do escravo Bonifácio. Por este ele pagou uma parte ao comerciante local e o restante ficou para o
sargento-mor Antônio de Castro de Sousa pagar no valor dos “jornais de [seu] ofício de pedreiro”
que trabalhou em “suas obras”. Além dos escravos, José possuía um cavalo, uma sela e 20 cabeças de
gado, que ficavam na casa de d. Francisca Teresa Nogueira. As relações com d. Teresa eram muito
próximas. Afora o gado, ela devia para ele jornais do seu escravo e o valor dos valos199 construídos no
seu quintal200.

O segundo morava na matriz do Pilar, “a quarenta anos pouco mais ou menos, vivendo
sempre pelo meu trabalho do ofício de pedreiro” e não possuía muitos bens ao declarar que não era
para fazer partilha judicial por “que não possuo casa própria, nem escravo algum e só sim alguma
limitada ferramenta do meu uso e o vestuário do meu uso”201. A situação econômica de Timóteo não
permitiu a aquisição da sua própria morada de casas e escravos, mas os parcos bens não foram para o
Juiz de Órfãos, e sim para sua família consanguínea.

Em alguns casos, o testamento permite desvelar apenas o ofício, como o caso do sapateiro
Gervásio Pereira Lima, morador na matriz do Pilar, que constitui uma família ilegítima, porém no
testamento não menciona os bens obtidos, somente o rol do “meu ofício de sapateiro” e os filhos
como seus herdeiros202. Já no inventário do sapateiro Francisco de Paula Siqueira, casado com Ma-
ria Procópia de Jesus, há várias informações como um “tinteiro”, “obras de sapateiro, ferramentas e
algum cabedal do mesmo ofício”, “41 pares de sapato de couro de mulher e de homem”, “um par de
botins de homem” e “30 formas de sapateiro”. E o ofício rendeu ao casal um monte-mor de 1:390$310

199 Valo é um “muro de pedra, ou terra para cercar, defender a entrada”. SILVA, 1789, p. 829.
200 AHET-II-IPHAN. Testamento de José Gonçalves. 1804. Livro de Testamento nº. 13, fl. 194; e MNMB-BAE.
Testamento de José Gonçalves. 1804. Livro de Registros de Óbitos, 1786-1801. Imagem 81. Matriz de Nossa de
Monserrate.
201 AEMNSP/SJDR. Testamento de Timóteo Manoel Furtado. Livro de Registros de Óbitos. Tomo III. p. 284v,
1804-1807. Matriz de Nossa Senhora do Pilar.
202 AEMNSP/SJDR. Testamento de Gervásio Pereira Lima. Livro de Registros de Óbitos. Tomo III. p. 330,
1804-1807. Matriz de Nossa Senhora do Pilar.

276
réis203. Porém, Francisco não seguiu o oficio do pai, o tenente-coronel Joaquim José de Siqueira, que,
pelos bens de seu inventário, era caldeireiro204, mas que poderia ter sido seguido pelos seus outros
quatros filhos. Os ofícios permitiam uma sociabilidade ao atender aos seus clientes e, consequente-
mente, uma ascensão social e econômica.

Os ofícios mecânicos dos livres de cor: músico, cirurgião-barbeiro, boticário e professor de primeiras
letras

A circulação de impressos esteve presente nas Américas desde a colonização e, na maioria


das vezes, os livros estavam ligados ao ofício de quem os possuía205. A leitura e a escrita poderiam ser
sinônimas de ascensão social e o uso dos livros entre os oficiais mecânicos um complemento a seus
afazeres como o cirurgião-barbeiro, o professor de medicina, o presbítero, o boticário e o músico.

A circulação de livros entre a América e a Europa foi uma constante. Inicialmente, não
havia uma fiscalização acerca dos títulos que chegavam, mas com a Contrarreforma religiosa os títu-
los que aportavam na América foram alvos de um controle mais rígido exercido pelo Santo Ofício206.
Cabe salientar que “los puertos atlánticos de la Península Ibérica y los de las islas Canarias fueron
puentos de contacto e intercâmbio cultural de gran relieve”207 com um intenso tráfico de livros. O
empenho em coibir o tráfico, particularmente entre Portugal e o Brasil, foi uma postura da Coroa
portuguesa, pois, a partir de 1768, no reinado de D. José I, o papel de fiscalização e proibição dos im-
pressos estava a cargo da Real Mesa Censória. Já na Regência do Príncipe D. João, o controle passou a
ser atribuição dos censores da Inquisição, do Ordinário e do Desembargo do Paço208.

Anteriormente à instalação da Imprensa Régia no Brasil e à criação de jornais locais,


houve uma constante entrada e posse de livros proibidos no Brasil209. Na vila de São João del Rei,
de inícios do século XVIII a meados do século XIX, a posse de livros era condicionada por aspectos
socioeconômicos e concentrava-se nas mãos de homens livres e brancos, especialmente entre aqueles

203 AHET-II-IPHAN. Inventário de Francisco de Paula Siqueira, 1838. Cx. 386.


204 AHET-II-IPHAN. Inventário de Joaquim José Siqueira, 1838.Cx. 261. Caldeireiro é aquele que faz tachos e
vasos de cobre que vão ao fogo. SILVA, 1789. p. 325.
205 VILLALTA, Luiz Carlos. Censura literária e circulação de impressos entre Portugal e Brasil (1769-1821).
In: DUTRA, Eliana de Freitas; MOLLIER, Jean-Yves (Org.). Política, nação e edição o lugar dos impressos na
construção da vida política: Brasil, Europa e Américas nos séculos XVIII-XX. São Paulo: Annablume, 2006.
206ROSARIO, Márquez Macías. La actividad cultural en los puertos del Caribe en el siglo XVIII. El caso del
comercio de libros. In: ROSARIO, Márquez Macías. Ciudades portuarias en la gran cuenca del Caribe, Visión
histórica. Barranquilla: Ediciones Uninorte, 2010. p. 40.
207 RAMÍREZ, Pedro Rueda; SÁNCHEZ, Carlos Alberto Gonzáles. Com recato y sin estruindo: Puertos atlán-
ticos y visita inquisitorial de navios. Sevilha: s/d. p. 139.
208VILLALTA, Luís Carlos. Censura literária e circulação de impressos entre Portugal e Brasil (1769-1821).
In: DUTRA, Eliana de Freitas; MOLLIER, Jean-Yves (Org.). Política, nação e edição – o lugar dos impressos na
construção da vida política: Brasil, Europa e Américas nos séculos XVIII-XX. São Paulo: Annablume, 2006, p.
112.
209 VILLALTA, 2006, p. 114.

277
que conjugavam o cultivo de terras e o exercício de um oficio para o qual os livros eram importan-
tes. Essas pessoas eram padres, advogados, boticários, militares, professores e funcionários da admi-
nistração imperial210. No entanto, ainda que os proprietários de livros tivessem um perfil elitizado,
havia pessoas localizadas em níveis mais baixos da hierarquia social211 que também se ocuparam em
constituir suas bibliotecas e se instruírem, pois alguns “homens de cor” possuíam livros e sabiam ler
e escrever212.

Entre os livres de cor com ofício declarado ou não nas freguesias do Pilar, de Aiuruoca e
de Monserrate, que testaram ou fizeram inventários, observa-se a presença da posse de livros e a bus-
ca pelo ensino das primeiras letras para seus descendentes. Antes de analisar a posse de livros desses
livres de cor, é preciso considerar dois aspectos. O primeiro é que a presença de livros nas casas dos
livres de cor não implicava leitura, assim como a sua ausência não significava o desconhecimento dos
seus conteúdos. Cabe salientar ainda que, pela circulação de manuscritos e de folhas avulsas nas lojas
e boticas, as obras eram comentadas e as pessoas tomavam conhecimento de assuntos diversos213. O
segundo aspecto é o fato de os testamentos e inventários post mortem não abarcarem a circulação de
livros e impressos, pois apenas fornecem dados sobre a circulação e posse de livros, não permitindo
avaliar as práticas de leitura nem as apropriações feitas pelos leitores do material lido214.

Para além da posse, leitura e circulação de livros, percebe-se que entre os livres de cor
havia uma intricada rede de relações sociais, o que possibilitava uma interação desde os laços de pa-
rentesco espiritual (compadrio) até a socialização das leituras e ou de livros.

Os ofícios eram ensinados ou pagos para que outros ensinassem, como se pode ver na
história de Marcelino José Alves Preto. O seu ofício e o de seu pai, o capitão José Alves Preto, eram
ferrador e cirurgião-barbeiro. O ofício de cirurgião-barbeiro permitia a sobrevivência do oficial e era
muito procurado, como afirma Francisco Coelho de Souza, em 1828, no seu testamento: “tenho vivi-
do das artes de barbeiro e sangrador, tenho muitos fregueses”. Ainda, possuía uma morada de casas
na rua das Mônicas, “uma chácara na paragem denominada Barro Vermelho e os meus bens que por
meu falecimento se achar”215.

Havia os barbeiros ambulantes e os cirurgiões-barbeiros de loja, encontrados até no final


dos oitocentos em várias cidades. A permanência desses ofícios era devida à sua grande popularidade
e à transmissão do conhecimento para outros indivíduos, formando uma rede de cirurgiões, em sua

210 MORAIS, 2009.


211 VILLALTA, Luiz Carlos. O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura. In: SOUZA, Laura de Mello
e (Org.). História da vida privada no Brasil:cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 1997. p. 301.
212SILVEIRA, Marco Antônio. O universo do indistinto: Estado e sociedade nas minas setecentistas (1735-
1808). São Paulo: Hucitec, 1997. p. 95-96.
213 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. História da leitura luso-brasileira: balanços e perspectivas. In: ABREU,
Márcia (Org.). Leitura, história e história da leitura.Campinas: Mercado das Letras/Associação de Leitura do
Brasil/FAPESP, 1999. p. 159.
214VILLALTA, 1997, p. 302.
215 AHET-II-IPHAN. Testamento de Francisco Coelho de Sousa, 1832. Livro de testamento 52, fl. 43v.

278
maioria ex-escravos, que dominavam a prática de sangrar, sarjar, lançar ventosas e sanguessugas216.

O livre de cor Jose Alves Preto, juiz de ofício de ferreiro da Câmara da vila de São João
del-Rei, era também cirurgião-barbeiro, pois, no seu inventário, sua esposa declara que há “um livro
em que o defunto meu marido fazia assento de algumas pessoas a quem curava como cirurgião e de
outras quem ferrava ou mandava ferrar bestas por um seu escravo ferrador”217. O cirurgião-barbeiro
realizava o procedimento de intervenção cirúrgica, como sangrias, escarificações, extração de balas,
aplicação de ventosas e sanguessugas, ferimentos externos e outras atividades dependentes da habi-
lidade manual”218. Entretanto, os licenciados não possuíam formação teórica, não frequentavam as
universidades e aprendiam praticando e sendo treinados por mestres que podiam também serem
mulheres, pois, em 1778, Maria do Rosário, da Costa da Mina, na Matriz do Pilar, deixou para sua
madrinha, mulher de Jacinto Pereira, a bacia de sangrias219. Em 1823, o sapateiro, cirurgião e capitão
Antônio José da Silva Lapa doou para sua sobrinha e afilhada, Ana Pimenta das Mercês, as suas fer-
ramentas de cirurgião, à qual deve ter ensinado o ofício220. Os seus laços com a família Brasiel eram
sólidos, pois, na hora da fragilidade da doença e da morte, encontrava-se na casa do cunhado, o al-
feres Lourenço Fernandes Brasiel, e o nomeou, bem como o sobrinho e o marido de Ana, como seus
testamenteiros.

Aprender um ofício poderia ser dentro da família ou como aconteceu com Marcelino Jose
Alves Preto, filho natural José Alves Preto. Ao embargar a partilha do inventário do pai, narra como
aprendera os ofícios de cirurgião-barbeiro e de ferreiro. Na petição para anular a partilha dos bens,
afirma que o pai o reconhecia como filho “no estado do cativeiro como no da sua liberdade tratan-
do e vestindo o mesmo [...] na sua menoridade, fazendo-o aplicar a escola e o ofício de barbeiro”, e,
quando foi alforriado, o seu pai “então já livre se obrigou e pagou [...] a parcela [da alforria] ao dito
Doutor Manoel José Dias221. Na alforria lançada no Livro de Notas em 1800, consta que Marcelino
“pagou meia libra e o licenciado José Alves Preto a outra parte ao Doutor Manoel José Dias”222. Cabe
salientar que José Alves Preto empenhou para que o filho aprendesse as primeiras letras e o ofício de
cirurgião-barbeiro mesclando, provavelmente, as curas dos saberes locais com os livros de medicina
que possuía.

Entre os bens inventariados de José Alves, estavam duas pinças, três truques, roupas, cin-
co escravos, móveis da casa, “um livro de Anatomia Martins, um dito de Cirurgia e Cura, um dito [...]
Apolinário, um dito Carmo, um dito Castelo Forte (Tomo 2o), um dito Antônio Gomes Lourenço e
oito livros velhos, que no inventário não foram avaliados”. Eram livros utilizados no oficio de cirur-

216 FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves. Barbeiros e cirurgiões: atuação dos práticos ao longo do século XIX.
Hist. cienc. saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, jul./out. 1999. Disponível em: <http://www.scielo.br/
scielo.php?pid=S0104-59701999000300003&script=sci_arttext&tlng=es#n13>. Acesso em: 21 nov. 2017.
217 AHET-II-IPHAN. Inventário do Capitão José Alves Preto, cx. C-47.
218 RIBEIRO, Márcia Moisés. A Ciência nos Trópicos: A arte médica no Brasil do século XVIII. São Paulo, SP:
Hucitec, 1997. p. 34-35.
219 Inventário e Testamento de Maria do Rosário, 1779, cx. 223.
220AHET-II-IPHAN. Inventário do Capitão Antônio José da Silva Lapa. Cx. 132. CINTRA, 1982. v. 1, p. 310.
221 AHET-II-IPHAN. Inventário do Capitão José Alves Preto. Cx. C-47.
222 AHET-II-IPHAN. Livro de Notas, 1800.

279
gião, que misturavam os conhecimentos oriundos do cotidiano marcado pelos costumes indígenas e
matrizes africanas com os tratados de medicina do Reino223. Por ocasião do inventário do filho Mar-
celino224, não há menção aos livros de medicina e se algum de seus filhos também herdara o ofício.

O outro livre de cor que possuía vários livros era o professor de medicina Gervásio Coe-
lho Barbosa, morador na Capela de Nossa Senhora do Porto da Eterna Salvação. Entre os bens de
Gervásio, além dos 28 livros de medicina, estavam “todos os vidros de botica com remédios, um
caixote com remédios, quatro caixotes velhos e um par de bichas”, que indicam o oficio de boticário.
Para o juiz de paz, em 1831, ele era conhecido como professor de medicina, que trazia um status aci-
ma dos cirurgiões e boticários. Há uma mescla entre o domínio da leitura e do conhecimento prático,
pois não há relato ou informação de “formação institucional para o desempenho das atividades dos
barbeiros sangradores e/ou barbeiros de lanceta. As técnicas eram passadas pela aproximação com os
mais velhos. A troca de conhecimentos se dava através da prática e da transmissão oral”225. Isso justi-
fica o título de professor a Gervásio e a ascensão social com esse oficio foi expressivo, pois, ao falecer,
possuía 12 escravos, um sítio de cultura e criar, com casas de vivenda no Bom Jardim, e uma morada
de casas no arraial de São Vicente226.

A música esteve presente na América portuguesa nos setecentos. José João Teixeira Coe-
lho, em sua Instrução para o governo da capitania de Minas Gerais, de 1780, menciona a existência
de muitos mulatos ociosos, que se dedicavam à música e eram tantos “na capitania de Minas que cer-
tamente excedem o número dos que há em todo o reino”227. Para além das preocupações de Teixeira
Coelho, a colônia necessitava da presença do músico para os atos litúrgicos, sendo a música basica-
mente sacra. O músico nas Minas Gerais atendia às demandas das igrejas matrizes, das capelas, das
irmandades religiosas, das ordens terceiras e das Câmaras das vilas228.

A música era outro ofício que demandava leitura. O domínio das primeiras letras era ne-
cessário para copiar as músicas e o texto em latim. Sendo assim, “sua caligrafia era excelente, prolixa
e fluida, consequência de constantes cópias de música e do texto em latim”229. Esse ofício permitia
ascensão social das famílias e, principalmente, a presença em todas as missas solenes contratadas
pelas irmandades ou pela Câmara. A rede de contatos que permitia a ascensão social adivinha das
“qualidades técnicas e estilísticas, [d]a conduta individual, [d]o status social e [d]as ligações pessoais

223 FURTADO, Júnia Ferreira. Barbeiros, cirurgiães e médicos na Minas Colonial. Revista do Arquivo Públi-
co Mineiro. p. 101, Disponível em: <http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/acervo/rapm_pdf/Barbeiros_cirur-
gioes_e_medicos_nas_Minas>. Acesso em: 14 maio 2016.
224AHET-II-IPHAN. Inventário de Marcelino José Alves Preto, 1808. Cx. 199.
225 FIGUEIREDO, 1999.
226 AHET-II-IPHAN. Inventário de Gervásio Coelho Barbosa. Cartório do 2o. Ofício. Cx. 13. doc. 13. Fundo
documental de Aiuruoca.
227 SOUZA, Fernando Prestes de; LIMA, Priscila de.Músicos negros no Brasil colonial: trajetórias individuais
e ascensão social (segunda metade do século XVIII e início do XIX). Revista Vernáculo, n. 19-20, 2007. p. 42.
228 LANGE, Francisco Curt. A música barroca. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (Org.). História geral da
civilização brasileira.São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1968a. v. 2, p. 135-139.
229 LANGE, Francisco Curt. Os irmãos músicos da Irmandade de São José dos Homens Pardos, de Vila Rica.
Anuario Interamericano de Investigacion Musical, v. 4, p. 138, 1968b.

280
com as altas autoridades civis e eclesiásticas...”230

Na matriz do Pilar, entre os vários músicos livres de cor, foram encontrados testamentos
ou inventários de José Marcos de Castilho, de João Leocádio do Nascimento e do alferes Lourenço
José Fernandes Brasiel; e para a capela de Nossa Senhora Santana da Guapera, José Máximo Coelho
Inácio Correa Arnault e José Correa Arnault. Para a matriz do Pilar, o número de músicos era supe-
rior, pois foram criadas duas orquestras, a Lyra Sanjoanense e a Ribeiro Bastos, todas ligadas a livres
de cor231. A presença de músicos na matriz pode ser explicada também pelo fato de que a irmandade,
ao contratar um músico (maestro) para os ofícios religiosos, exigia um número maior de componen-
tes. No ano de 1827, a Ordem Terceira de São Francisco de Assis contratou o coro de música dirigido

pelo Professor José Marcos de Castilho por 127$200 mil réis e a distribuição ficou
da seguinte forma, diretor – Veríssimo Rodrigues César, baixo, tiple232, rabecas: João
José das Chagas, João Alves de Castilho, Francisco de Paula Miranda, trompas: Fru-
tuoso Coelho, Camilo Antônio do Carmo e Francisco Lopes das Chagas e clarineta
Carlos Antônio da Silva233.

No ano seguinte, a Ordem ajustou com o alferes Lourenço José Fernandes, na qual im-

punha quatro condições:

“1) o coro deveria possuir 15 membros: quatro rabecas, duas clarinetas, duas trom-
pas, um trombone, dois rabecões e quatro vozes. 2) o Diretor do coro preencheria
as vagas com pessoas que desempenhassem bem os seus deveres. 3) a Mesa possuía
autoridade para indicar os músicos que, sem justo motivo, não cumprissem suas
obrigações. 4) o Diretor poderia comparecer às festividades fora da Vila, desde que
a ausência não excedesse de um mês, não faltando, porém, às festas principais da
Ordem”234.

A exigência da Ordem Terceira para que não ocorressem longas ausências pode ser tam-

230 SOUZA, Fernando Prestes de; LIMA, Priscila de.Músicos negros no Brasil colonial: trajetórias individuais
e ascensão social (segunda metade do século XVIII e início do XIX). Revista Vernáculo, n. 19-20, 2007. p. 39.
231COELHO, Eduardo L. Coalhadas e rapaduras: estratégias de inserção social e sociabilidades de músicos
negros. 2011. Dissertação (Mestrado)-Universidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei, 2011.
232 Tiple é um menino cantor. Segundo Rocha, tiple seria o papel de um soprano. Provavelmente, por se tratar
de um menino, ele não poderia assinar recebimento, o que, normalmente era feito pelo diretor da orquestra, a
quem, muitas vezes, ficava também a incumbência de prover sua educação. ROCHA, Edilson Assunção. Pro-
posta para interpretação da Missa Grande de Antônio dos Santos Cunha: Teoria e prática da execução musical.
2005. Dissertação (Mestre em Execução Musical)-Escola de Música, Universidade Federal da Bahia, Salvador,
2005, p. 21.
233 CINTRA, 1982, v. 2, p. 455.
234 CINTRA, 1982, v. 2, p. 502.

281
bém exemplificada pelos mapas populacionais da década de 1830. Dentre as capelas e a matriz em que
o Juiz de Paz elencou o oficio dos recenseados, havia a presença de músicos na capela de Nossa Senho-
ra Santana Guapera, na capela de Nossa do Porto da Eterna Salvação e na capela de Nossa Senhora
do Bom Sucesso. Pois, o oficio do músico não se restringia apenas o lugar de morada. Em 1831, João
Leocádio do Nascimento estava no Turvo com as partituras do sogro e acompanhado de outros músi-
cos. No período da sua ausência, na matriz do Pilar, ocorreu provavelmente o falecimento do sogo, o
alferes Lourenço José Fernandes Brasiel, em junho de 1831. A esposa faleceu três meses depois sendo
necessário fazer o inventário de Lourenço com a morte da filha e por ter herdeiros órfãos. Destarte, o
inventário de Ana só foi feito em 1837, talvez pelas disputas pelas partituras e instrumentos musicais
que ficaram com o falecimento do alferes Lourenço.

A família do músico e alferes Lourenço José Fernandes Brasiel, na segunda geração, além
do casal, era composta por quatro filhos. Dois se tornaram sacerdotes: Francisco de Assis Brasiel e Pe.
Antônio da Trindade Fernandes Brasiel, um musicista, Joaquim Bonifácio Brasiel, e Ana, que se casou
com o músico João Leocádio do Nascimento. A família tinha uma rede de relações com seus pares e
com a elite política da vila de São João del-Rei. Os dois filhos ingressaram em 1817 na Ordem do Car-
mo, Francisco com 26 anos e Antônio com 29 anos, indicando o entrelaçamento das redes de relações
nos coros e nas sacristias ao longo dos anos. Outra demonstração dessa rede de relações é quando o
Pe. Francisco de Assis Brasiel torna-se o primeiro bibliotecário e editor do jornal Astro de Minas. O
padre estava próximo do idealizador e criador da primeira Biblioteca Pública de São João del-Rei e
de Minas Gerais, em 1827, o político Baptista Caetano de Almeida235. Na visita à recém-organizada
biblioteca, numa das salas da Câmara, Walsh, descreve o padre da seguinte forma:

o bibliotecário é um padre mulato, de aparência bastante curiosa – baixo, gordo, com


um vasto chapéu colocado de banda e o rosto afundado no peito. Além de bibliotecá-
rio, ele é editor do ‘Astro de Minas’, um jornal de São João fundado há um ano. [...]
Ele falava um pouco de francês e nos forneceu, gentilmente, todas as informações ao
seu alcance236.

Sobre o irmão do padre Antônio, não há muitos registros. Já seu irmão, Joaquim Boni-
fácio Brasiel, conquistou o posto de maestro e a patente de tenente, renovando o contrato de música
anual, consecutivamente, em 1833 e 1834, com a Ordem Terceira de São Francisco. Também, tinha
contratos com outras irmandades, como a de São Gonçalo Garcia237. Os bens que ficaram com a mor-
te de Lourenço, como as 89 partituras de música e os instrumentos, “um rabecão grande, um rabecão
pequeno, um rabecão quebrado, uma clarineta, um jogo de trompa velhas, um jogo de trompa, um ra-
becão, um cravo quebrado, um violoncelo feito cá, dois clarins, uma flauta quebrada, um flautim”238,
foram motivos de disputa entre os herdeiros e seu inventário, ou se perdeu, ou não fechou.

235 MORAIS, 2009.


236 WALSH, Robert. Notícias do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1985, 2 v, p. 77-78.
237 CINTRA, 1982, v. 1, p. 54 e 62.
238AHET-II-IPHAN. Alferes Lourenço José Fernandes Brasiel, 1833. Cx. 128.

282
No inventário de Ana Pimenta das Mercês, cujo monte-mor do casal era de apenas
460$379, a maioria dos bens inventariados do casal estavam relacionados ao ofício da música e foram
herdados do pai:

uma tesoura de papel, um livro de responsório de Exéquias, um Catecismo, um Mis-


sal festivo, seis ladainhas por vários autores, 10 Sinfonias de vários autores, um ofício
de José Joaquim Emerico239, várias matinas da noite de Natal, um salmo do Pe. José
Maurício240, umas matinas do sábado de Aleluia, um moteto da Senhora das Dores
por Manoel Dias, outro dito dos Passos cantado e instrumentado, uma novena de
Nossa Senhora por Antônio dos Santos, um salmo de Roma, uma missa com grande
orquestra por Antônio dos Santos, uma dita pelo Pe. José Maurício, uma dita grande
pelo Pe. José Maurício [...] um credo por Pedro Teixeira [...] onze grandes de vários
autores, um salmo de Pe. José Maurício, um rabecão grande, um flautim [...] uma
clarineta...”241

Após a morte da esposa, João Leocádio foi morar com seus filhos no arraial do Turvo,
onde “vive da arte da música” e onde seu filho José Pimenta Brasiel lecionou música242. A ascensão
social e econômica pode ser observada entre os músicos Arnault, pai e filho. O pai Inácio Correa e o
filho José Correa Arnault foram recenseados na capela da Guapera, onde o pai possuía “uma morada
de casas com moinho, monjolo e mais benfeitorias na fazenda Guapera”, “uma parte de terras na
Fazenda Tripuí”, “três partes nas casas na rua das Flores” e “uma morada de casas na rua do Retiro
com seu quintal e benfeitorias” na matriz de Aiuruoca. Para além da música, era também ferreiro,
lavrador e negociante. A casa na rua das Flores possuía “armação para negócio”243. Ao mesmo tempo
em que possuía “uma caixa com tinteiro”, “uma rabeca com caixa” e metade dos papéis de música,
possuía também “um fole, três martelos, dois tenazes de ferreiro” e “seis alqueires de arroz, 19 carros
de milho e cinco capados”244. As atividades da família de Inácio permitiram alcançar o monte-mor de
2:789$486. O filho, ao se casar com Emerenciana Maria da Rocha, recebeu de dote da sogra os dois
escravos José e Porcina, que, junto ao seu ofício, deve ter auxiliado a família à ascensão econômica,
pois o casal fechou o inventário com oito escravos e com o monte-mor de 7:249$368 mil réis. Nesse

239 Sobre o músico José Joaquim Emerico Lobo, ver: OLIVEIRA, Katya Beatriz de; RÓNAI, Laura. A prática
musical religiosa no Brasil e em Portugal na segunda metade do século XVIII: paralelo e fundamentação para
a interpretação vocal da música de José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita. PER MUSI – Revista Acadêmica
de Música, n. 24, 184 p. jul./dez. 2011.
240 Sobre o músico Pe. José Maurício, ver:OLIVEIRA, Anderson José Machado. Trajetórias de clérigos de cor
na América portuguesa: catolicismo, hierarquias e mobilidade social. Andes, Salta, v. 25, n. 1, jun. 2014.
241AHET-II-IPHAN. Ana Pimenta das Mercês, 1837. Cx. 299.
242 José Pimenta Brasiel faleceu em 1881 em Vassouras e lecionou musica também em São João del-Rei. CIN-
TRA, 1982, 2 v., p. 469.
243AHET-II-IPHAN. Inventário de Francisca Alexandrina Sales. Cartório do 2o. Oficio. Cx. 16. Fundo docu-
mental de Aiuruoca.
244AHET-II-IPHAN. Inventário de Inácio Correa Arnault, 1848. Cartório do 1o. Oficio. Cx. 42. doc. 08. Fundo
documental de Aiuruoca.

283
inventário, as músicas desaparecem e surge uma bigorna de ourives herdada da madrasta245. O inven-
tário dos músicos Arnault descortina os vários ofícios que se misturavam na sobrevivência nas minas
oitocentistas.

O outro músico na matriz de Nossa Senhora da Conceição de Aiuruoca é José Máximo


Coelho, cujo inventário não fechou ou então se perdeu. Nos bens arrolados, além das músicas e dos
bens móveis, há 1.000 rolhas de garrafas, um alambique, 400 garrafas, 12 formas de fazer velas, seis
novelos de fios de sapateiro e muitas dívidas ativas. Esses bens apontam para a atividade comercial ou
produtora de cachaça juntamente com o ofício da música. Após a morte de Inácio Correa Arnault,
José comprou da viúva as partituras musicais e seu acervo tornou-se bem representativo: juntamente
com duas rabecas e clarinete de dó, possuía “nove cadernos de papel e 67 partituras de músicas”246. É
uma conquista econômica enorme, ao levar em consideração que, na ocasião do seu casamento, ele
morava no fogo do pai.

Na vila de São João del-Rei, o livre de cor, maestro José Marcos de Castilho, possuía
“umas casas baixas cobertas de telha com seus respectivos fundos, sitas na rua que sobe pelo lado
direito da igreja de São Francisco para o Morro da Forca”, onde certamente morava. Devido à sua
importância social como músico, essa rua recebeu o seu nome247. A sua ascensão não fora apenas so-
cial, mas também econômica, pois o seu monte-mor era de 3:161$683 e entre seus bens havia notas
no banco, dívida ativa de 1:144$613 com o músico Francisco de Paula Coelho, um quadro dourado
de Santa Cecília e uma coleção de músicas248.

Na análise dos testamentos e inventário post mortem dos livres de cor, cirurgiães-bar-
beiros, professor de medicina e músicos, observa-se que os livros se relacionavam ao ofício que exer-
ciam. A título de comparação, os livros também eram utilizados pelos ditos homens ilustrados para
exercício de um ofício. Porém, a partir dos exemplos mobilizados, deve-se ponderar que a posse e uso
de livros para variados fins não era restrita a apenas um grupo social, no caso a elite. Por último, res-
salta-se que esses livres de cor construíram relações de sociabilidade e clientela e buscaram, por meio
de diferentes estratégias, distinção e ascensão social.

245AHET-II-IPHAN. Inventário de José Correa Arnault, 1855. Cartório do 2o. Oficio. Cx. 20. Fundo documen-
tal de Aiuruoca.
246AHET-II-IPHAN. Inventário de José Máximo Coelho, 1864. Cartório do 1o Oficio. Cx. 06 – B. doc. 1. Fundo
documental de Aiuruoca.
247 Em 1821, “a Câmara de São João del-Rei manda publicar um edital para arrematar a obra de conserto da
Rua da Prata indo para o Morro do Bonfim, denominada de José Marcos, a qual se acha intransitável. Esclarece-
remos que o Mestre de Música José Marcos de Castilho faleceu em 1830, na Rua do Morro da Forca”. CINTRA,
1982, v. 2, p. 537.
248AHET-II-IPHAN. Inventário de José Marcos de Castilho, 1832.Cx. C-07.

284
Considerações Finais

As três freguesias do Pilar, de Aiuruoca e de Baependi situam-se num “vasto território”,


e nas sendas, nos sertões proibidos, nas grotas, nos fundões de cada montanha que circunda ou corta
a Comarca do Rio das Mortes, foi estabelecida uma família. Esta poderia ser consanguínea, por afi-
nidade e pelo parentesco espiritual mesclando as matrizes portuguesas, africanas e indígenas na sua
gênese. Porém, os laços familiares estendiam seus tentáculos aos membros de toda uma geração por
meio de heranças materiais, de lembranças africanas de linhagem e de tradição. Os liames que uniam
tais famílias não eram “muitos fracos”; pelo contrário, fortaleciam-se com o trabalho no fogo e com
a transmissão de um ofício; com o auxílio ao filho, ao afilhado ou ao sobrinho em constituir um fogo
independente; e com o nome da família que abria portas ao crédito, facilitava as negociações para o
desempenho do ofício, o acesso a cargos escolhidos pelo poder local e a inserção social.

Fontes Documentais e Referências

a) Fontes manuscritas

Arquivo Histórico do Escritório Técnico II do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional de São
João del-Rei (AHET-II-IPHAN):

Inventário de Luís da Silva Gonçalves, 1813. Cx. 465.

Inventário de Salvador Nunes Correa, 1808. Cx. 461.

Inventário de Valentim Ferreira Marques, 1873. Cx. 152.

Inventário de Manoel Luís de Jesus. 1835. Cx. 31.

Inventário de Francisco de Paula Siqueira, 1838. Cx. 386.

Inventário de Joaquim José Siqueira, 1838.Cx. 261.

Inventário do Capitão José Alves Preto, cx. C-47.

Inventário e Testamento de Maria do Rosário, 1779, cx. 223.

Inventário do Capitão Antônio José da Silva Lapa. Cx. 132.

Inventário do Capitão José Alves Preto. Cx. C-47.

Inventário de Marcelino José Alves Preto, 1808. Cx. 199.

Inventário de Gervásio Coelho Barbosa. Cartório do 2o. Ofício. Cx. 13. doc. 13. Fundo documental de Aiuruoca.

Inventario do Alferes Lourenço José Fernandes Brasiel, 1833. Cx. 128.

Inventário de José Marcos de Castilho, 1832. Cx. C-07.

285
Inventário de Ana Pimenta das Mercês, 1837. Cx. 299.

Inventário de Francisca Alexandrina Sales. Cartório do 2o. Oficio. Cx. 16. Fundo documental de Aiuruoca.

Inventário de Inácio Correa Arnault, 1848. Cartório do 1o. Oficio. Cx. 42. doc. 08. Fundo documental de
Aiuruoca.

Inventário de José Correa Arnault, 1855. Cartório do 2o. Oficio. Cx. 20. Fundo documental de Aiuruoca.

Inventário de José Máximo Coelho, 1864. Cartório do 1o Oficio. Cx. 06 – B. doc. 1. Fundo documental de
Aiuruoca.

Livro de Notas, 1800.

Testamento de Francisco Coelho de Sousa, 1832. Livro de testamento 52, fl. 43v.

Testamento de José Gonçalves. 1804.

Testamento de Quitéria da Silva, 1793. Cx. 210

Arquivo Eclesiástico da Matriz de Nossa Senhora do Pilar de São João del-Rei (AEMNSP/SJDR):

Testamento de Francisco Gonçalves dos Santos. Livro de Registros de Óbitos. Tomo II. p. 122v, 1796-1800.

Testamento de Timóteo Manoel Furtado. Livro de Registros de Óbitos. Tomo III. p. 284v, 1804-1807. Matriz
de Nossa Senhora do Pilar.

Testamento de Gervásio Pereira Lima. Livro de Registros de Óbitos. Tomo III. p. 330, 1804-1807. Matriz de
Nossa Senhora do Pilar.

Arquivo da Câmara Municipal da Vila de São João del-Rei (ACMSJDR)

Câmara Municipal de São João del-Rei, Autos diversos. 1777-1778. AUT 63-64.

Arquivo Público Mineiro (APM)

Mapa de População da Capela de Nossa Senhora de Nazareth, Termo da Vila de São João del-Rei, 1831. MP-
-Cx.06. doc. 20.

Mapa de População do distrito da Matriz da Aiuruoca, termo de Santa Maria de Baependi, 1831.MP. Cx. 13,
doc. 10.

Mapa de População do curato do Turvo, termo de Santa Maria de Baependi, 1831. MP-Cx.13-doc.16.

Website <https://www.familysearch.org>: (Arquivo Eclesiástico da Diocese de Campanha; Arquivo Eclesiásti-


co da Matriz de Nossa Senhora do Pilar de São João del-Rei; Arquivo da Paróquia de Nossa Senhora do Bon-
sucesso; Arquivo da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição da Barra

MNMB-BAE. Testamento de José Gonçalves. 1804. Livro de Registros de Óbitos, 1786-1801. Imagem 81. Ma-
triz de Nossa de Monserrate.

286
b) Bibliografia

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288
Redes de sociabilidade na luta pela liberdade

Sven Korzilius1

Através de ações de liberdade do espaço atlântico portuguêstalvez seja possível contribuir pelo
menos um pouco para o conhecimento deredes de sociabilidade e da “proteção grupal” na busca de in-
serção/ascensão na sociedade mestiça. As ações de liberdade se situam entre resistência e adaptação, e
se mostramcomo continuação judicial de complexas “negociações de toda ordem, diretamente realizadas
entre senhores e escravos”2, mas não somente entre esses dois. Amelhor condição jurídica, a almejada
liberdade, como resultado dessas barganhas, depende da solidariedade de muitas pessoas. Destacam-se
“vínculos pessoais de poder” como fator que “potencializava recursos e alianças”3. Mas é extremamente
difícil “fazer as fontes falarem” sobre isso4. Por exemplo, Fernanda Pinheiro, em sua bem-sucedida tese
sobre as ações de liberdade5, não explora os documentos sob esse aspecto. Porém é óbvio que quem luta
por sua liberdade judicialmente necessita de pessoas, que lhe ajudam. Keila Grinbergabordaas “relações
pessoais bem consolidadas”6 como pré-requisito importante, já Diório menciona “vínculos clientelísticos
presentes naquela sociedade hierarquizada”7. Um trecho de autos de ação de liberdade de Mariana, Mi-
nas Gerais, do ano 1748, prova bem a alta relevância das relações com pessoas capazes de desamparar:
“Alexandre de Meirelles tem possuhido ha sincoannos […] aos authoresJulianna da Sylva e seus fi-
lhos”ilegalmente como escravos, e “ainda que quizerãomostrarse livres de captiveiro o não po-
derão […] logo fazer pella sua muita pobreza e por não terem quem os protegecee conçelhasse”8.

O extrato fala por si só. Certamente com um forte apoio por terceiros, Juliana e seus filhos teriam
intentado sua luta pela liberdade muito antes.

Quando tentamos pesquisar, quem possivelmente “protegeu e aconselhou” a parte escrava num
processo, nosso grande problema é que as fontes não revelam claramente quem estava ao seu lado. En-

1 Doutor em Direito pela Universidade Saarbrücken, Alemanha. Atualmente é professor visitante no Heidel-
berg Center LatinAmerica (HCLA) da Universidade de Heidelberg e na Universidade do Chile (UCh), Facul-
dade de Direito, com fomento pelo Serviço de Intercâmbio Académico da Alemanha (DAAD).
2 PAIVA, E. F. Senhores pretos, filhos crioulos, escravos negros: por uma problematização histórica da qualida-
de, da cor e das dinâmicas de mestiçagens na Ibero-América. In: IVO, Isnara Pereira; PAIVA, Eduardo França
(orgs.): Dinâmicas de mestiçagens no Mundo Moderno: sociedades, culturas e trabalho. Vitória da Conquista:
Edições UESB, 2016, v. 1, p. 45-70 (63).
3 GONÇALVES, Victor Santos. Escravos e senhores na terra do cacau: alforrias e família escrava (São Jorge dos
Ilhéos, 1806-1888). Dissertação de Mestrado, UFBA, Salvador 2014, p. 97.
4 DIÓRIO, Renata Romualdo. As marcas da liberdade: trajetórias sociais dos libertos em Mariana na segunda
metade do século XVIII. São Paulo: USP, 2007. Dissertação de Mestrado, p. 181, parece referir-se ao mesmo
problema quando constata “não serem claras as relações [dos autores de ações de liberdade] estabelecidas com
aqueles que os favoreceram”.
5 PINHEIRO, Fernanda Domingos. Em defesa da liberdade: libertos e livres de cor nos tribunais do Antigo
Regime português (Mariana e Lisboa, 1720-1819). Tese de doutorado, Departamento de História, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2013.
6 GRINBERG, Keila. Liberata: a lei da ambiguidade. Rio de Janeiro: RelumeDumará, 1994.
7 DIÓRIO (2007), p. 181.
8 Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana (AHCSM) 2o Ofício, Ações Cíveis, Códice 239, Auto 5978,
fols. 12 v e 13 (ortografia do original mantida).

289
contrei vários casos com insinuações meramente vagas. Em algumaspeças articuladas,é a parte senhorial
que fala de simpatizantes, cujos nomes não revela.Num documentofala-se genericamente da “proteção de
3as pessoas”9. Isso acontece por via de regra com a finalidade de criar no tribunal dúvidas quanto à boa
intenção da ação de liberdade, como revela o uso de palavras com conotação negativa, como “indução” ou
“sedução”: Lemos de um escravo que teria sido“[i]nduzido por pessoas sem temor de D[eu]s”10 a entrar
com uma ação contra seu senhor, ou de uma escrava “seduzida que perturba ao Reo com a prezenteac-
ção”11.Muitas vezes tais insinuações nãodevem ser verdadeiras, mas versões distorcidas das relações entre
os escravos e seus partidários. Em outros autos, os nomes dos apoiadores dos escravos são sim revela-
dos, mas como nos casos de menção anônima, com a intenção de desacreditar os fundamentos da ação:
“[A] chamada Alforria dos AA [=autores] foi ideada por Manoel Antunes Ferr[eir]a Ama-
zio da A. M[ari]a Ferndades, junto com o seo grande amigo Alexandre Alvares da Cruz
[...], unidos com Roza M[ari]a Lopes [...]e também Amazia e Prima do d[it]o Antunes.”12

Em um processo de Mariana, de meados do século XIX, registra-se a “ma fé, com que perten-
dem(!) libertar o alheio escravo”13.Num exemplo de Portugal, o advogado do senhor acusa:“[N]aver-
d[ad]e Antonio CarlosPrestello da d[it]a Cidade de Évora hequem tem desinquetado o Escravo [...]”14.

Podemos diferenciar entre apoiadores individuais e coletivos. Entre os individuais figuram sem
dúvidamembros da família15 ouparentes em primeiro lugar. Já no Antigo Testamento, principal fonte para
a história social e jurídica judaica, lemossobre o dever ético dos parentes de resgatar alguém da família que,
por ter empobrecido, se vendeu como escravo ao exterior16. O fato, que parentes lutam em prol da liberdade
de outros membros da família, além de poder parecer um pouco trivial, talvez é documentado melhor por
outros tipos de fontes17, e não em autos de ações de liberdade. Mas estes mencionam sim a participação de fa-
miliares, tais comoo próprio pai18ou a própria mãe19.Já na Roma antiga podemos observar pais na defesa da
liberdade de sua prole. Lembramos o caso célebre e trágico do quinto século a. C., relatado pelo historiador
Lívio20. O magistrado Ápio Cláudio, com a intenção de abusar a bela plebéiaVerginia, pede a um membro de
sua clientela, Marco Cláudio, afirmar-se senhor da jovem e iniciar uma ação de reivindicatio in servitutem

9 AHCSM 2o Ofício, Ações Cíveis, Códice 316, Auto 7547 (de 1814), fol. 2.
10 AHCSM 2o Ofício, Ações Cíveis, Códice 262, Auto 6460 (de 1761).
11 AHCSM 2o Ofício, Ações Cíveis, Códice 276, Auto 6787 (de 1819), fol. 31 v.
12 AHCSM 1o Ofício, Ações Cíveis, Códice 420, Auto 9137 (de 1809), fol. 90 v.
13AHCSM 2o Ofício, Ações Cíveis, Códice 295, Auto 7135, fol. 9.
14Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Feitos Findos (FF), Fundo Geral (FG), maço J 2941 (Irman-
dade do Rosário dos homens pretos do Salvador ./. Dr. Manoel Francisco de Carvalho, de 1777), fol. 30 v.
15 GONÇALVES (2014), p. 105, sublinha a importância “de formar laços familiares” para “através deles con-
quistar a alforria para um de seus membros”.
16 Levítico 25, 47 e segs.: “E se [...] teu irmão [...] empobrecer, e vender-se ao estrangeiro [...], [...] um de seus
irmãos o poderá resgatar; ou seu tio, ou filho de seu tio o poderá resgatar; ou um dos seus parentes, da sua
família [...].”
17 Por exemplo, as fontes exploradas por MONTI, Carlo G. O Processo de Alforria; Mariana (1750-1779). Dis-
sertação de Mestrado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2001, p. 55. DIÓRIO (2007) relata os “esforços dos
parentes emancipados para libertar suas esposas, seus maridos, filhos ou irmãos escravizados” (p. 180).
18 AHCSM 1o Ofício, Ações Cíveis, Códice 448, Auto 9675 (de 1863): “Antonio Bernardo da Rocha pai natural
de Eva cabra escrava que foi de Joaquim de Freitas Ferreira.”
19 AHCSM 2o Ofício, Ações Cíveis, Códice 291, Auto 7055 (de 1848), fol. 4: “Maria dos Santos (Crioula Liber-
ta)” em favor de sua filha Eva, “que se acha reduzida a Captiveiro”.
20Ab Urbe Condita, III, 44 e segs.

290
contra ela. O pai da moça, Vergínio, um soldado valente que está com as tropas fora da cidade, é chamado, por
ser considerado a pessoa mais competente para defender a liberdade de sua filha. Quando perante seus olhos
ela é condenada escrava pelo magistrado corrupto e criminoso, o pai desesperado não vê outra solução para
preservar a honra e a liberdade de Verginia que apunhalá-la. Na narração de Lívio, o grave abuso de poder
pelo magistrado fornece motivos para um levante plebeu que leva até à queda do governo dos decemviri...

Num auto, encontrei “parentes” sem especificação. Os escravos da ação seriam “favorecidos de
alguns Parentes libertos”21. Quando observamos cada detalhe da informação dada, é interessante destacar
nos dois últimos trechos de fontes, que os apoiadores são caracterizados como “libertos”. Não é novidade,
porém, pelo menos serve para corroborar o resultado de outras pesquisas, que é uma estratégia comum,
que as partes já alforriadas de uma família tentam resgatar os que ainda se acham em cativeiro.Quanto
ao apoio mútuo de familiares em ações de liberdade, talvez seja interessante destacar, que já o Digesto,
logo no início do capítulo sobre as ações de liberdade (D. 40.12 – De liberali causa22),citado pelos autores
modernos e pelos advogados em alguns dos processos que entram na minha pesquisa23, corrobora o di-
reito deles de não somente apoiar por trás dos bastidores, porém de assumir o processo como parte, e isso
mesmo contra a vontade do parente cativo. A breve justificação dada pelo jurista Ulpiano24 não vai além
do óbvio (“quiasemperparentisinterestfiliumservitutem non subire”/“nequeenim modica filii ignominia
est, si parentem servumhabeat”)25.A famosa compilação romana menciona em primeiro lugar o pai como
autor em prol do filho numa reivindicatio in libertatem (e vice versa – filho em favor do pai)26. É um pouco
surpreendente então, que num caso de Mariana um crioulo liberto, que deu origem a uma ação em favor
de sua filha de 23 anos, cuja liberdade tinha comprado, se retira como parte e solicitaa nomeação de um

21 AHCSM 2o Ofício, Ações Cíveis, Códice 340, Auto 8101, fol. 51.
22 Recomendo a “Roman Law Library” para ter acesso rápido a uma boa edição eletrónica do Corpus Iuris
Civilis: https://droitromain.univ-grenoble-alpes.fr/.
23 ANTT FF FG Maço J 3721, Irmandade de Nossa Senhora do Rosário (Santa Joana, Anunciada Salvador
e Rosa) ./. Anna Maria Josefa (1772), fol. 56 v: “[S]e dava antigamente a todo o escravo q[ue] servia invito,
hum Assertor de sua liberdade, ou parente, ou estranho do m[es]mo escravo. L. 1 et seqq. ff. de liberal. causa,
[=D. 40.12.1 e segs.] Voet ad eund. tit. ibi = Olim pro eoqui in servitutedetinebaturinvitus, eratassertorliberta-
tissivecognatus, siveextraneus, pro eo, quivolensserviebat, Pater, autfilius, autcognatusassertoraudiendus erat.”
(Assertor em vez de adsertor já se encontra nas edições do livro do próprio VOET, Johannes. Commentarius
ad Pandectaslibriquinquaginta, Tom 2, por mim consultada a edição de Genebra de 1778, p. 595). O trecho
em latim significa: “Antigamente para aquele, que foi detido em escravidão contra sua vontade, qualquer um,
seja parente ou estranho, podia agir como adsertorlibertatis, mas no caso de alguém que vivia em escravidão
sem querer sair da mesma, somente o pai, o filho ou um outro parente era ouvido [perante o tribunal ou orgão
competente] como adsertor.”
24 Sabemos que o Digesto é chamado assim por ser um compêndio feito de muitos pequenos extratos de obras
de juristas “clássicos”, e Ulpiano, que morreu em Roma por volta do ano 228 d. C., foi um deles.
25 “Porque o interesse dos pais é sempre que os filhos não padeçam à escravidão”/”e não é uma ignomínia
pequena para os filhos terem pais escravos.” Um trecho de Gáio, que os redatores do Digesto colocaram logo
a seguir (D. 40.12.2), não fornece aspectos diferentes: “Quoniamservituseorum ad doloremnostruminiuriam-
quenostramporrigitur.” (“Porque a escravidão deles [=dos nossos pais] causa nossa dor e injúria.”)
26 D. 40.12.1.pr.: “[...]ut puta parenti, quidicatfilium in sua potestate esse: nametiam si nolitfilius, pro eolitiga-
bit. Sed et si in potestate non sit, parenti dabitur hoc ius [...].” (“Assim o pai, que diz [da pessoa cuja liberdade
quer defender] que é um filho, que ainda vive debaixo do seu pátrio poder: e mesmo se o filho [escravo] não
quer [ser reivindicado como livre] o pai pode litigar por ele; e mesmo quando [o filho já] não está debaixo do
pátrio poder, ao pai é dado esse direito”. D. 40.12.1.1: “Versa etiam vice dicemusliberisparentiumetiaminvitoru-
meandemfacultatemdari [...].” (“Vice versa digamos que aos filhos é dada a faculdade de defender a liberdade
dos pais, mesmo contra a vontade dos mesmos.”)

291
curador para a filha27. Esse direito de lutar pela liberdade de parentes, no caso da ausência de homensque
o pudessem fazer, entre os Romanos excepcionalmente era concedido às mulheres28. Como prova de que
isso era praticado também nas justiças do Brasil, pode servir um caso de Mariana do ano 1835, no qual
a liberta Ana dos Santos Passos (“com autoridade de seu marido”) luta pelaliberdade de seu filho Gre-
gório, concebido no ano 1797, aindano primeiro matrimônio de Ana, com o escravo Pedro (Angola)29.

Porém,a família surge como lugar ambivalente. Por um lado, as fontes narram famílias negras/
mestiças que zelosamente buscam alforriar membros ainda escravos; por outro lado,mesmo na família
mais nuclear, pode-se espreitar o risco de ser escravizado. Motivados por extrema pobreza, ou mesmo
por mera cobiça, pais vendem os próprios filhos como escravos30, como no famoso caso de Luiz Gama
(1830-1882)31, ou consanguíneos vendem os próprios irmãos, como no caso do bíblico José (Gen. 37 e
segs.).A família em sociedades escravocratas também aparece como lugar de tensões entre a prole da con-
cubina escrava e a prole da esposa oficial32. Em tal situação, irmãos (muitas vezes “brancos”) de um filho
ilegítimo do mesmo pai com uma escrava, alforriado pelo genitor e por isso apto a participar na suces-
são, depois da morte do pai podem ir tão longe paratentar suprimir a carta de alforria para manter o
irmão alforriado na condição escrava, com a finalidade de negar sua qualidade de legítimo co-herdeiro.

Quando ampliamos um pouco a perspectiva para além da família biológica, na busca de quem
assiste de uma forma ou outra em ações de liberdade, logo pensamos no compadrio, que de certa ma-
neirasignifica uma ampliação da família. Nas ações por mim pesquisadas aparecem alguns padrinhos ou

27 AHCSM 1o Ofício, Ações Cíveis, Códice 398, Auto 8723, fol. 10: “Diz Fracisco G[onça]l[ve]z da Silva que
[...] deo principio a humaacção a beneficio da liberdade de sua filha natural Roza Maria, […] e como a m[es]
ma seja maior de quatorze annos, e menor de vinte e sinco, p[o]r isso req[ue]r a V[ossa] S[enhoria] se digne
nomear-lhe curador […] em consequencia da natureza da cauza, que deve ser ventilada pela propria parte, que
é a mais interessada [...].”
28 D. 40.12.3.2: “Cum vero talisnemoalius est, qui pro eolitiget, tuncnecessarium est darifacultatemetiamma-
trivelfiliabusvelsororibuseiusceterisquemulieribusquae de cognatione sunt veletiamuxoriadirepraetorem et hoc
indicare, ut causa cognita et invito ei succurratur.” (“Se realmente não tem ninguém outro, que litigasse por ele
[=o parente escravo], é necessário dar a faculdade até às mães, filhas, irmãs e demais mulheres consanguíneas,
e também à esposa, irem ao pretor, que o caso seja decidido e que (ao parente escravo) seja prestado apoio
mesmo contra a vontade do mesmo.”
29 AHCSM 2o Ofício, Ações Cíveis, Códice 280, Auto 6849.
30 Já o direito romano, pelo menos na época clássica, não reconhece o direito do pai de vender seus filhos como
escravos; Paulo, em D. 20.3.5 ou em Paulisententia 5.1.1: “Quicontemplationeextremaenecessitatisautalimen-
torum gratia filiossuosvendiderint, statuiingenuitatiseorum non praeiudicant: homo enimlibernullopretioaes-
timatur. Idem necpignoriabhisautfiduciaedaripossunt: ex quo facto scienscreditordeportatur. Operaetameneo-
rumlocaripossunt.“ („Quem em razão da sua extrema necessidade, ou para conseguir alimento “vende” seus
filhos, por esse ato não prejudica a liberdade (status ingenuitas) dos mesmos: porque do homem livre nenhum
preço pode ser estimado. Por isso os filhos também não podem ser dados como penhor ou outro meio de ga-
rantir um crédito, e o credor que os aceita de má fé é punido com deportação. O que é permitido, porém, é que
o pai faz os filhos trabalhar para um terceiro.”) E o CodexTheodosianus, legislação pós-clássica, recorda, que
até nos tempos mais remotos, quando os pais ainda tinham o direito de punir os próprios filhos com a morte
(iusvitanexisque) não poderiam tirar a liberdade dos mesmos, vendendo-os (C. Th. 4, 8, 6).
31 Também tem exemplos de Portugal. O “mizero Joaquim dos Reys homem pardo” relata que “hera igualmen-
te filho daquele mesmo Senhor Simão dos Reys da Motta, que [...] escandalosamente o vendeo como Escravo”
(ANTT FF FG maço J 826, Processo 36, 1810).
32 Veja por exemplo o caso do Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP), Acervo Permanente Colônia,
Autos Cíveis, Código 3418, Processo 3333.

292
madrinhas33. Às vezes são eles que compraram a alforria de escravas e escravos (ainda crianças)34 ou que
podiam corroborar uma alforria dada na pia batismal35.Para trazer à luz madrinhas e padrinhos como
apoiadores no caminho à liberdade, talvez necessitemos do cruzamento devárias outras fontes, como re-
gistros de batismo36. Mas existemautos que revelam um pouco mais sobre os padrinhos que os próprios
livros de assentos. No caso de Timoteo Ribeiro, de São Paulo, do começo do século XVIII, lemos, que é
muito provável, que seu padrinho, Jorge Lopes Ribeiro, foi seu próprio pai natural, andando amancebado
com sua própria escrava, mãe do autor37. Atuar como padrinhos era uma praxe comum entre os pais dos
escravos gerados com as próprias escravas, porém nem sempre podemos saber, se um senhor-padrinho38
de um escravo é também o pai do mesmo. Num outro grupo de casos, terceiros agindo como padrinhos
compram a alforria de alguém que nasce como escravo do seu próprio pai39, pagando uma quantia a este
último. Com que motivo terceiros pagam a um pai, para alforriar o próprio filho? Talvez em muitos casos
isso foi uma farsa, encenada pelo genitor para disfarçar a paternidade perante sua esposa e prole legítima?

No caso da defesa da liberdade de um alforriado, uma pessoa sem dúvida se encontra no cen-
33 Em AHCSM, 1º Ofício, Ações Cíveis, Códice 420, Auto 9137 (de 1809), um padrinho aparece como teste-
munha ao favor de Joaquim, um dos autores reivindicando sua liberdade.
34No caso de Juliana da Sylva (Borges), que diz que “foi escrava de Domingos Borges”, e que “tendo de idade
quatro o sincoannos pouco mais ou menos ao dito seu senhor a comprou seu Padrinho Manoel Alves”, para
conferir liberdade a ela logo depois; AHCSM Autos Cíveis, 2º Ofício, Códice 239, Auto 5978, de 1748. No caso
de Adão Crioulo (AHCSM 2º Ofício, Códice 312, Auto 7471, do ano 1819) o padrinho do autor foi JozéCampel,
“hum preto rustico”, que “entendia estar o A. empenhado”, e que por isso até “vendeohuascazas que possuia”,
para ajudar alforriar o afilhado. Também na justificação de Antonio Vieira (APESP, Acervo Permanente Colô-
nia, Autos Cíveis, Códice 3312, Auto 702, 1765), o autor alega que seu padrinho José Correia de Oliveira deu
“duas dobras” para comprar a alforria do afilhado na pia batismal. A mesma prática é mencionada por GON-
ÇALVES, Andréa Lisly. Práticas de Alforrias nas Américas: Dois Estudos de Caso em Perspectiva Comparada.
In: PAIVA, Eduardo França/IVO, Isnara Pereira (orgs.). Escravidão, mestiçagem e histórias comparadas. São
Paulo/Belo Horizonte: Annablume, 2008, p. 59-75 (59). Segundo GUDEMAN, Stephan/SCHWARTZ, Stuart.
Purgando o pecado original: compadrio e batismo de escravos na Bahia no século XVIII. In: REIS, João José
(org.). Escravidão e invenção da liberdade. Estudos sobre o negro no Brasil, São Paulo: Editora Brasiliense,
1988, p. 33-59 (45), porém (apoiando-se em outra investigação de Stuart Schwartz), menos que 1 % das alfor-
rias pagas foram compradas por padrinhos.
35Assim diz Martinho Ribeiro (numa justificação de São Paulo, ano 1764; APESP, Acervo Permanente Colônia,
Autos Cíveis, Códice 3353, Processo 2125), que queria provar sua liberdade com o assento de batismo, más
“não se achando quer fazer serta sua liberdade com seu padrinho”. O padrinho, João Ferreyra da Gama depõe,
que no ato de batismo, o senhor do autor “o ditto Francisco Ribeyro o conhesseu por seu filho mandando que
o Reverendo Padre [...] declarasse no acento de seo Baptismo por seo filho e liberto de toda a escravidão o que
tudo prezenciouelle testemunha”.
36 Usados por exemplo por SOARES, Carlos Eugênio Líbano: Sacramento ao pé do mar: batismo de Africanos
na freguesia da Conceição da Praia, Bahia. 1700-1751. Revista de História Comparada, Rio de Janeiro, 7, 2: 47-
74, 2013. Por exemplo, no processo APESP, Acervo Permanente Colônia, Autos Cíveis, Códice 3329, Processo
1264 (do ano 1766), achamos transcrito um assento de batismo, no qual a madrinha, Maria Barboza, comprou a
alforria de Ana, sua afilhada – nesse caso, a informação fornecida pelos autos da ação de liberdade não vai além
da informação que podemos tirar imediatamente do próprio livro de assentos, igualmente no caso AHCSM 2o
Ofício, Ações Cíveis, Códice 250, Processo 6203 se fala de um valor, que “os padrinhos do justificante” pagaram
ao seu senhor, que em mesmo tempo era seu pai.
37 APESP, Acervo Permanente Colônia, Autos Cíveis, Códice 3438, Processo 85.
38 “Antonio Caetano Homem Pardo”, num processo de Mariana do ano 1824 (AHCSM 1o Ofício, Ações Cíveis,
Códice 386, Processo 8433) fala de um homem branco, “Senhor e Padrinho” seu.
39Assim relata Francisco Manssa, numa ação do ano 1759, que era filho natural de Maria Manssa e de José
Manssa, senhor da mesma, e que padrinhos dele compraram sua alforria na ocasião de seu batismo (AHCSM
Autos Cíveis, Códice 250, Processo 6203).

293
tro das redes sociais dele – o patronus, o ex-senhor, que concedeu a liberdade. Por isso não surpreende,
que o Digesto o menciona imediatamente depois dos parentes como pessoa apta para defender a liber-
dade até contra a vontade do liberto40. Ulpiano fala claramente da perspectiva dos escravocratas quando
justifica esse direito dos patroni com o interesse de ter libertos41. Porém não me parece completamente
errado de ponderar nesse contexto a ambivalência da relação de natureza paternalista entre o an-
tigo senhor e seu liberto ou sua liberta. Nem sempre dominam a dependência e exploração conti-
nuadas, porém também podem existir apoio na promoção social e proteção contra terceiros. Como
exemplo prático, podemos citar um caso de Mariana do ano 173042. Estevão Ferreira Vilho defendeu
a liberdade do Mulatinho José, filho de sua escrava Tereza e liberto seu, contra José da Silva que man-
teve José em cativeiro. Estevão fez questão de afirmar que litigava “como Patrono” do mulatinho43.

Entre apoiadores “coletivos” entendo como mais importantesas irmandades, ou, aparecendo tal-
vez somente no século XIX, outras associações de apoio mútuo para conseguir a alforria de membros44, e
finalmente os abolicionistas45, organizados em associações ou em redes menos formais. Sobre as irman-
dades, Fernanda Pinheiro na sua bela tese chama a atenção ao fato, que em Portugal aparecem explici-
tamente nos autos, e isso em quase quatro de cada cinco casos como parte, ao contrário do Brasil – uma
grande diferença que exige uma explicação.Pinheiro explica o fatodo “grande poder social e político” das
irmandades portuguesas – porém me parece que essa sua influência nas cidades e vilas coloniais não era
menor. Juridicamente, Pinheiro argumenta como os privilégios régios teriam conferidoàs irmandades o
“poder de representação jurídica”. Suas “congêneres na América portuguesa” jamais teriam alcançado esse
direito.46Essa explicação não convence completamente, se consideramos que a opinião comum dos juristas
da época considerou como recebido na prática judicial o costume dos Romanos, que qualquer terceiro

40 Gaio, o famoso jurisconsulto romano do século II, um trecho de cujo comentário ao édicto os compiladores
colaram em D. 40.12.4, pensa, sobretudo, na situação que um liberto, ignorando a própria liberdade, se deixa
vender por alguem que se arroga ser seu senhor a uma terceira pessoa: “Sedtunc patrono conceditur pro liber-
tatelibertilitigare, si eo ignorante libertusvenire se passus est.”
41 D. 40.12.5.pr.: “Interestenimnostra libertos libertasquehabere.” (Significando mais ou menos: “Porque nos
estamos interessados em ter [uma ampla rede de] libertos e libertas.”)
42 AHCSM 2o Ofício, Ações Cíveis, Códice 361, Auto 9272.
43 Ortografia dos nomes adaptada ao português atual. Um outro exemplo de um ex-senhor defendendo seus
libertos é o caso de Franz Otto Kaehne, de Ilhéus (ano 1860; Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB), Se-
ção Judiciária, Autos Cíveis, Loc. 80/288/09).
44 COSTA, Rafael Maul de Carvalho. A “escravidão livre” na corte: escravizados moralmente lutam contra
a escravidão de fato (Rio de Janeiro no processo da abolição). Niterói: UFF 2012. Tese de Doutorado, p. 82 e
seg., menciona, por exemplo, a Sociedade Beneficente da Nação Conga, Protetora da Sociedade de Nossa Se-
nhora do Rosário e São Benedito (1861) e a Sociedade Beneficente da Nação Conga “Amiga da Consciência”
(1872/74). A Sociedade Beneficente Socorro Mútuo dos Homens de Cor organizou um “sorteio para a liberta-
ção” de um indivíduo de sexo masculino e outro de sexo feminino em cada aniversário da fundação (id., ibid. p.
102). O autor constata também a existência de associações mais clandestinas (ou pelo menos não registradas).
45 Comprovar sua participação direta como advogados é fácil porque sempre assinaram as peças com seus
nomes completos. Basta cruzar esses nomes com a pesquisa sobre o movimento abolicionista já feita. Mas
mesmo a maneira de argumentar mostra se um advogado é aderente ao abolicionismo. Por exemplo, numa
ação sumária de liberdade de 1859, da Bahia (APEB Seção Judiciária, Autos Cíveis 2, Loc. 68/2422/05), na qual
o advogado escreve que é “razoavel e humano ir continuando-se [...] modificações a favor da liberdade, até o
completo desaparecimento da escravidão” (razões finais).
46 PINHEIRO (2013, 17). Sobre as irmandades em Portugal cf. id. pág. 220-222.

294
possa litigar em prol da liberdade de um escravo47. E os próprios advogados das irmandades não baseavam
nos privilégios régios o direito delas de litigar como partes em favor de escravos, mas sim no menciona-
do direito de qualquer terceiro de defender a liberdade48.Ainda que seja igualmente verdadeiro que os
juristas que defendem os interesses dos senhores tentam negar tal direito, o fato de que as irmandades
não aparecerem como parte nos autos brasileiros não pode ser plenamente explicado por impedimen-
to jurídico. E mesmo não aparecendo como partes, é inconcebível, que as irmandades brasileiras49 não
desenvolvessem atividades nesse campo – somente temos que supor que no Brasil isso acontecessepor
trás dos bastidores. Os ataques verbais dos advogados dos senhores portugueses contra os irmãos por
apoiaram os escravos eramtalvez ainda mais frequentes e mais agudos que aqueles contra particulares.
Acusavam as irmandades de “inquietar” e “induzir” escravas e escravos, de serem “os motores” das ações
de liberdade e de serem “inquietadores, q[ue] com a capa da Irmandade inquietão os escravos alheyos,
e os aconcelhão p[ar]a não obedecerem a seus Senhores”50 ou, em outras palavras, de serem “conheci-
dos seductores dos Escravos alheios”51, ou ainda, que as irmandades seriam conhecidas por “promo-
ver a intriga, e subtrahir os escravos à obediencia e subordinação, q[ue] devem ter a seus Senhores”52.

Quanto às associações mútuas é valioso buscar elementos típicos de solidariedade africana nelas53,
mastambém é interessante observar fenômenos similares em outras sociedades com escravos. Já na Grécia
e na Roma antiga havia associações (collegia, sodalitates) com membros escravos, e algumas delas tinham
fundos para comprar a alforria deles54. Nas comunidades paleocristãs no Império Romano, era debatido se

47 Em Portugal, Manuel Borges Carneiro ainda no início do século XIX, no seu “Direito Civil de Portugal”
escreveu: “A favor do pretendido escravo não só pode requerer elle mesmo, mas qualquer pessoa (assertor),
ainda repugnando elle.”
48 Por exemplo, em ANTT FF FG maço J 2941 (Irmandade do Rosário (Salvador da Mata) ./. Carvalho), fol.
183: “Sem q[ue] ao extranheo q[ue] litiga p[ar]a resgatar o escravo a fim de ficar liberto se lhe possa oppor a
excepção tua non interest, porq[ue] em favor da liberd[ad]e lhe fica sendo licito contender em juizo contra
aquelle, q[ue] a impede”). Na sua peça, o advogado cita PINELUS, Airus [Pinhel, Aires]: Ad constitutionesCo-
dicis De bonismaternis, doctissimiamplissimiquecommentarii, Coimbra 1557 (e Frankfurt 1614), p. 2., n. 6.
ante fin.; e VELASCO, Gabriel Alvarez de. De privilegiis pauperum et miserabilium personarum [...], Lausonii
& Coloniae Allobrogum 1739, tom. 2, q. 16, n. 105 e 106
49 Veja-se por exemplo QUINTÃO, Antonia Aparecida. Lá vem meu parente: as irmandades de pretos e pardos
no Rio de Janeiro e em Pernambuco (século XVIII). São Paulo: Annablume, 2002; OLIVEIRA, Anderson M.:
Devoção e caridade: Irmandades religiosas no Rio de Janeiro imperial (1840-1889). Niterói: UFF, 1995. Dis-
sertação de mestrado; REIS, João José: Identidade e diversidade étnicas nas irmandades negras no tempo da
escravidão. Tempo (UFF) 2:3 (1997).
50 ANTT FF FG maço J 3160, Irmandade de Nossa Senhora de Aguadelupe e S. Benedito dos Homens pretos
(convento de S. Francisco) ./. Francisco Antonio da Sylva [ou: Silva] (de 1802), fol. 6; ANTT FF FG maço J 3164,
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Resgate (Santissima Trinidade) ./. Dr. Francisco Xavier Vieira Vas
de Andrade, de 1768, fol. 65 v.
51 ANTT FF FG maço J 1491, Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e Jesus Maria ./. João Manoel Borges
(de 1803), Bl. 36.
52 ANTT FF FG maço J 854, Irmandade de Nossa Senhora do Rosário (Graça) ./. Francisco Gonçalves Lima,
de 1811, fol. 38.
53Uma forma de apoio mútuo que vem da tradição iorubá (esusu), mencionado por COSTA e SILVA, A. da.
Um rio chamado Atlântico. A África no Brasil e o Brasil na África. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003, p. 159,
e COSTA (2012), p. 103.
54Harrill, James Albert. The Manumission of Slaves in Early Christianity. Tübingen: Mohr, 1995, p. 129 y segs.

295
a verba das mesmas deveriaser usada para comprar a alforria de membros55. Ainda menos visíveis nos autos
das ações de liberdade são a eventual solidariedade de malungos56 ou de membros da mesma “nação”57 afri-
cana, ou até a importância da persistência de vínculos de dependência e lealdadepreexistentes da África58.

Quando ampliamos ainda mais nossa perspectiva, fora dos apoiadores individuais ou coletivos cla-
ramente definíveis aparece a solidariedade de comunidades locais como tais. Ações de liberdade mostram que
a alforria não era somente um assunto de casa, mas também da rua. Nas ações de liberdade ou de maus tratos,
tal solidariedade saía do mero espaço privado e entrava no espaço público59. Já na narração de Lívio do caso
da Verginia aparece uma multidão plebeia gritando e tentando proteger a moça, quando o arrogado senhor
tenta agarrar ela pela primeira vez nas ruas públicas do forum. Nos nossos casos do Atlântico português, a vizi-
nhança reagia escandalizada em casos de descumprimento de uma liberdade concedida ou de maus tratos60,
ou relatava que uma pessoa sempre viveu “sobre si”, desse modo corroborando que socialmente sempre foi

55 Fonte central: Inácio de Antioquia. Epístola a Policarpo de Esmirna, 4.3. Recentíssimamente o assunto é
pesquisado por VAUCHER, Daniel. Sklaverei in Norm undPraxis. Die frühchristlichen Kirchenordnungen.
Hildesheim: Olms 2017, no capítulo IV.5, págs. 110 e segs.
56 No sentido de “camarada da mesma embarcação”, cf. SLENES, Robert W. “Malungu, ngoma vem!” Revista
USP 12 (1992), 48-67.
57 Optamos por usar aspas, porque SOARES, Mariza de Carvalho. Rotas Atlânticas da Diáspora Africana: da
Bahia do Benim ao Rio de Janeiro. Niterói: EdUFF, 2007, p. 23, informa sobre o problema do conceito, “cunha-
do fora da África para dar aos escravos transmigrados uma unidade que nunca lhes foi própria”.
58 Tocando questões como a de reis escravizados, ou também de pessoas com um certo poder religioso.
59 Vejamos por exemplo expressões como no processo AHCSM 2º Ofício, Códice 312, Auto7471, fol. 12 v:
Seria “publico no Arr[ai]al do Inficionado rezidenciaactual destes Pleitantes, não ser o A. escravo do Cap[ita]
m Burgos, e menos de seossuccessores [...]”; ou no processo AHCSM 1º Ofício, Códice 398, Auto8723 (do ano
1834, fol. 3 v: “sua justissahé muito publica no Arraial de Sam Caetano”).
60 ANTT FF FG maço J 1491 (Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e Jesus Maria ./. João Manoel Borges).
Por exemplo uma testemunha diz (fol. 77), que “sabe por ser publico na vezinhança o mau trato que o Autor
dava a dita Luzia de Encarnação e a outra escrava que o Autor tinha [...]”. Uma segunda testemunha, (fol. 78)
corroba com as palavras: “de cujo maltratemento dava fé a vizinhança do Autor”; uma terceira testemunha re-
latou que os mautratos causaram “tão grande motim que de tudo dava fé a vizinhança de sorte que os proprios
rapazes daquella vizinhança chegavão a apedrejar as janellas com o motivo das pancadas que o Autor dava em
huma e outra escrava [...].”

296
considerado como forra61– sem dúvida um apoio enorme na conquista da liberdade de direito. Quiçá entre
os apoiadores também se encontram simplesmente clientes de oficiais ou artesãos escravizados, contentes
com suas obras, ou de escravizadas lavadeiras, quitandeiras... Mas como detectá-los nos autos?No século
XIX, o público ganhava uma nova qualidade, na forma da imprensa62, usada sobretudo por abolicionistas
para denunciar a escravidão como tal apoiando-se em ações de liberdade concretas que relatam ao público.

O que nos fascina muito, é que tais redes de contatos e de troca de informações não eram reduzidas
ao local. Testemunho, por exemplo, sobre uma venda ilegal de uma pessoa, em alguns casos chegou de
regiões muito distantes63. Sobretudo as ações de liberdade de Lisboa da época pombalina sobre escravos ile-
galmente importados do Brasil mostram a existência de canais de comunicação entre Brasil e Portugal sur-
preendentemente bem funcionando. Outro aspecto, sobre o qual segundo a minha impressão a pesquisa
ainda está longe de ter explorado tudo que é possível revelar, são as redes de contatos e de informação entre
a África e o Brasil64. Sobretudo para os africanos que chegam ao Brasil depois de 1831, é um grande desafio
provar que são vítimas do tráfico já declarado ilegal. O espaço ea distância não são somente um assunto nos
casos de escravizados ilegalmente, que porventura foram vendidos várias vezes de uma cidade para outra.
Representam, então, um fator que dificultou a liberdade, mas também podia ser um fator para dificultar
a busca e apreensão de um escravo fugitivo, como mostra o caso do escravo Juan Valiente da América
espanhola do século XVI.Juan foi escravo de Alonso Valiente, residente na Nova Espanha, porém tinha
fugido do senhor, tomando rumo ao Peru. Lá conseguiu passar por livre e participou como soldado na
conquista do Chile. Comprou suas próprias armas e um cavalo. Recebeu uma chácara e uma encomienda

61 Testemunhas no auto AHCSM, 1o Ofício, Ações Cíveis, Códice 394, processo 8618, do ano 1806: “Digo eu
Roza Maria Glz. nascida e ao prezente moradora, e estabelecida nesta Freguesia de São Sebastião termo da
cidade Mariana que he bem assim verdade, que eu sempre ouvi dizer a falescida minha Mai Domingas Glz.
que sempre viveu neste dito Arrayal que Marianna Pires de Carvalho Mai de Luciana Crioula já era quartada e
gozava de sua liberdade muito antes de dar a lus à dita crioula Luciana sua filha, e he bem notorio nesta mesma
Freguesia que a dita Mariana Pires na mesma viveu muitos annos, e falesceu liberta, e sem senhorio de Pessoa
alguma.” Ou ainda: “Digo eu Roza Maria [...] que sendo moradora na Freguesia de São Sebastião [...] foi com-
vidada por Marianna Pires para servir de madrinha a Luciana Crioula servindo de Padrinho Francisco Duarte
homem branco já falescido, não sei se era forra se cativa a mai da dita preta que na ocazião do baptizado não
apareceo Senhor mas sei que a dita Marianna Mai da Lucianna, morava em caza sua; sobre sy como sempre a
conheci muitos annos sem Sinhorio, e como forra sempre a conheci, he o que sei [...].” Um outro exemplo, em
função muito parecida, é o baixo-assinado em favor da liberdade de Luíza, no processo APEB, Seção Judiciária
– Autos Cíveis, Loc. 68/2422/05 (do ano 1883): “Nós abaixo residentes na freguesia de Santa Bárbara declara-
mos e provamos, se preciso for, que Luíza, do domínio de José Manuel Pinto, morador no Jundiá, desde o ano
de 1879, reside com seus filhos ingênuos, Rita, Felipa, Jerônima, Pedro, Francelina e Aurélio, em casa própria
e com economia própria nesta freguesia, completamente isenta do poder dominial e em verdadeiro estado de
abandono, sem receber do mesmo Sr. Pinto nenhuma ajuda para sua subsistência, nem socorro algum em suas
moléstias, sustentando os referidos seis filhos ingênuos com seu trabalho, sem que o mesmo seu senhor a man-
tenha em sujeição e mesmo manifeste querer mantê-la sob a sua autoridade. E por verdade e nos despedindo
assinamos o presente. Santa Bárbara, 16 de dezembro de 1883.”
62 Fator relevante, por exemplo, no caso de Hypolita, investigado por PEDROZA, Antonia Márcia Nogueira.
Desventuras de Hypolita. Luta contra a escravidão ilegal no sertão (Crato e Exu, século XIX). Natal, RN: EDU-
FRN, 2018.
63 Theodor Gonzalves Santiago, por exemplo, que no ano 1732 entra com uma ação para revindicar sua liber-
dade em Santos, SP, nasceu em Recife (Pernambuco), e consegue testemunhas que relatam que na sua cidade
natal foi alforriado muito jovem e tratado como tal (APESP, Acervo Permanente Colônia, Autos Cíveis, Cx.
3371, Auto 2556).
64 COSTA e SILVA (2003) explora uma fascinante multiplicidade de redes transatlânticas.

297
na região de Santiago do Chile. Nessa situação, buscou garantir juridicamente sua liberdade de fato alcan-
çada, e enviou um representante ao seu senhor Alonso Valiente para oferecer um preço para sua alforria.
O senhor não aceitou e conseguiu uma carta requisitória, ordenando a apreensão do escravo e confisco dos
seus bens, mas quando a ordem judicial chegou ao Chile, Juan já tinha morrido na batalha de Tucapel65.

Além da possibilidade de exercer o papel de parte, de que maneiraterceiros podiam apoiaros es-
cravos?Num dos casos portugueses jáacima mencionados, o advogado do senhor informa que Antonio
Carlos Prestelloteria “refugiado [o escravo] em sua caza por alguns dias, o mandou para esta cidade de
Lx.a [=Lisboa] e ha m[ui]tasprezumpçoens de q[ue] o d[it]o Prestellohe o q’ concorre com o dinheiro
para o pertendido resgate do Escravo”66. Então, essa fonte revela duas formas importantes de apoiar –
com dinheiro e com abrigo. Da perspectiva dos senhores, em alguns casos, tais medidas de apoio são
caracterizadas como fraudulentas, violentas e ilegais. Por exemplo, no caso do escravo Luís dos Passos, de
Mariana, dos meados do século XIX, a viúva do falecido senhor, Maria Carolina de Jesus, alegava, que a
liberdade seria fundada no “papel que juntou, passado contra vontade do ttt.dor, que não só o reclamou
em sua vida, como o revogou no ttt.o com que faleceo”, porque “Joaquim da Silva Passos, sendo rogado
para que passasse Papel de coarctamento a seo escravo Luis, nisso conveio, porem longe de ser o Papel
passado nesse sentido, o foi no contrario, no opposto, isto he, no de gozar o escravo pura liberdade de-
pois do falecimento de seo Snr., ficando mencionado Papel na guarda e poder de Marcelino Quintilino
Gomes”. E quando reparou que “fora iludido”, exigia “de Marcelino o Papel, mas este recusou entregalo”.
Em outra ocasião, o mesmo Marcelino, junto com seu irmão Manoel Luciano, defenderam o escravo até
com “poder de harmas” contra a execução de um mandado de apreensão67. Se essa narração é verda-
deira, o mencionado Marecelinofoi bem longe no apoio ao escravo, cometendo três atos juridicamente
questionáveis: Omitir uma parte da vontade do senhor na redação da carta de alforria, suprimir tal carta,
e defender o escravo com armas contra oficiais da justiça. Em consequência da qualificação do apoioda-
do aos escravos como ilegal, os advogados dos senhores em alguns casos ameaçam com ações “de haver
todos os prejuizos e damnos dos Seductoresdelles AA, e ainda fazer uzo d’acçõescriminaes como lhe for
permettido p[o]r nossas leis”68, ou de cobrar “todos prejuizos e damnospella indução de seo Escravo”69.

As formas comuns de ajudar, porém,eramcom dinheiro, com conhecimento dos fatos, das leise do
acesso à justiça, com proteção contra senhores que tentam impossibilitar um processo, na função de fiado-
res, cuja qualidadeé definida pelos seus bens.Quero apresentar um caso que envolve fiadores, que é a açãodo
capitão José do Couto Ribeiro, em Mariana, século XVIII,contra dois homens, “ambos de nassãoAngolla”,
que reivindicava como seus escravos.O advogado dos reus rejeita o fiador às custas oferecido pelo autor como
não suficientemente “abonado”70. Nessa situação, existem duas possibilidades – ou procurar outro fiador,
ou achar duas testemunhas para corroborar a força econômica do fiador original. Essas duas testemunhas
automaticamente eramobrigadas agarantir a dívida como fiadores suplentes. Nessa função, o autor oferece
65 MELLAFE, Rolando. La Introducción de laesclavitud negra en Chile. Tom. 2. Trafico y rutas. Universidad de
Chile: Santiago de Chile, 1959, pág. 49 e ss.
66ANTT, FF, FG, maço J 2941 (Irmandade do Rosário dos homens pretos do Salvador ./. Dr. Manoel Francisco
de Carvalho, de 1777), Bl. 30 v.
67 AHCSM 2o Ofício, Ações Cíveis, Códice 295, Auto 7135, fols. 6, 8 v, 17 v.
68 AHCSM 2o Ofício, Ações Cíveis, Códice 317, Auto 7577, de 1838, fol. 41.
69 AHCSM 2o Ofício, Ações Cíveis, Códice 280, Auto 6864, de 1834, fol. 14.
70 AHCSM 1o Ofício, Ações Cíveis, Códice 479, Auto 10679, fol. 13; fols. 14 a 16.

298
um“homem pardo” e um“crioulo forro”.Não é trivial destacar que essas duas testemunhas chamadas para
reforçar a fiança apoiaram no processo ao lado do senhor, e não ao lado dos escravos angolanos. Para eles,
agir dessa forma, mostrando solidariedade com os senhores, deve ter sido uma estratégia de ascensão social.

Outra forma importante de apoiar, numa fase mais avançada de um litígio, écomo testemu-
nhas, cuja qualidade ou até condição é tematizada, relacionado à credibilidade. Como outros apoia-
dores,as testemunhas são alvo de denúncias de serem inimigos dos senhores dos escravos71. A opor-
tunidade de apoiar aos escravos com um depoimento também é dificultada pelo fato que um vínculo
de parentesco ou de compadrio pode ser usado para alegar a parcialidade da testemunha. Ser parente
ou padrinho da parte é um fato que a testemunha tinha que declarar (“de costume”) antes de depor72.

É igualmente difícil conhecer os motivos dos partidários dos escravos. Quanto aos advogados que
os defenderam, sabemos, para o século XIX, que em suas fileiras se acharam muitos abolicionistas. Nesse
caso, os advogados às vezes não cobraram honorários. Assim, no caso do escravo Victorino, do ano 1874, a
quem, “pedindo por esmola o seopatrocionio”, o concedeu o advogado Egydio Antonio de Espirito Santo
Saragoça73, ligado, segundo outras pesquisas, ao movimento abolicionista74. Para os séculos anteriores é
mais difícil achar motivos. Parece, que os honorários advocatícios que se podiam ganhar numa ação de li-
berdade não eram baixos, e como não poucos escravos tinham um pecúlio, ou parentes ou amigos que aju-
daram com dinheiro, em muitos casos eram pagos. É bastante provável, então, que para alguns advogados
uma ação de liberdade era um processo civil como qualquer outro, e não tão especial como pode parecer
na retrospectiva de hoje. Para alguns advogados talvez o motivo também era uma certa ética profissional,
que desde a Antiguidade exigiu dos advogados defender alguns pobres (no latim jurídico da época: mise-
rabiles: miseráveis)pro bono. Desse modo, diz VanguerveCabral no capítulo sobre os advogados, que eles
são “obrigados a patrocinarem aos pobres, não achando quem os patrocine, porque nesse cazo são obriga-
dos a soccorer semelhantes necessidades”75. A mesma pergunta pode ser feita quanto aos curadores. Nos
tribunais devem ter existido listas com pessoas prestes a servir como tais, e não necessariamente podemos
presumir um compromisso especial com a causa da liberdade de escravos. Existia certa obrigação de acei-
tar o cargo, quando um juiz nomeava alguém como curador. Em um determinado número de casos são os
próprios escravos que propunham a pessoa do curador. Nesse caso, é sim provável que os escravos sabiam
de pessoas com certa convicção favorável à liberdade.

Quanto aos terceiros que ajudaram os escravos por trás dos bastidores, os advogados dos se-
nhores às vezes tentaram imputar motivos egoístas a eles. Em alguns casos imputam que o mo-
tivo seria mais a inimizade deles contra os senhores, do que a própria liberdade dos escravos:
“[P]essoas inimigas do Reo [...].”76

71 AHCSM 1º Ofício, Ações Cíveis, Códice 420, Auto 9137.


72Por exemplo, no processo ANTT FF FG maço J 468, caixa 1143 (Acçãocivel de Libello de Salarios de 1819,
contra Francisco Monteiro Grillo, Daniel Monteiro Grillo e outros, fol. 34).
73 AHCSM2o Ofício, Ações Cíveis, Códice 316, Auto 7558, fol. 2.
74 Cota, Luiz Gustavo Santos: O Sagrado Direito da Liberdade: Emancipacionismo e Abolicionismo em Ouro
Preto e Mariana – Minas Gerais, 1871-1888. Anais do I Colóquio do LAHES, Juiz de Fora, 2005.
75CABRAL, AntonioVanguerve. PracticaJudical. Lisboa 1730. Parte I, Cap. 8, pág. 11.
76 AHCSM 2º Ofício, Códice 312, Auto 7471, fol. 17.

299
“[A] presente acção veio a Juizo a instancia de D. Leopoldo JozeLafaet, que tornando-se inimigo do R.
p[o]r motivozpoliticos, passou com enganos a persuadir ao A. ter elle o direito a sua liberd[ad]e, e que
para esta se verificar, era necessario vir a Juizo [...].”77

“[M]ãoocculta[...] que fez da Emb[ar]g[a]da instrumento de vingança, valendo-se da ignorancia da


preta”78.

Outras vezes imputam motivos econômicos aos partidários dos escravos. Assim, num caso curioso
de Fortaleza, já do ano 1877: O escravo José foi dado de aluguel “ao padeiro João Pereira da Silva Caldas
com a obrigação de sustentá-lo, vestí-lo e tractá-lo em suas molestias o que o mesmo Caldas sempre cum-
prio [...]”. Depois da morte do senhor de João, foi o próprio padeiro “que em nome do escravo propoz a
prezenteacção” de liberdade. O motivo imputado ao Caldas? Nas palavras do advogado dos herdeiros do
falecido senhor, Caldasqueria “eximirse de continuar a pagar as mensualidades e receiando que se retira
seo escravo de sua caza”, e por isso“mandou propor a presente [ação]”79. Um alvo especial dos ataques dos
senhores (ou dos advogados dos mesmos) eram os depositários. Em numerosos autos achamos a acusação,
que os depositários seriam os verdadeiros iniciadores dos processos de liberdade, porque queriam aprovei-
tar-se da força de trabalho dos escravos durante o depósito80.

Considerações Finais

A “morte social” dos escravos se mostra então bastante relativa. A situação é pior para escravos
que dependem exclusivamente dos seus senhores, porque(ainda)não conhecem ninguém, por exemplo,
os recém-chegados. Partindo dessa premissa, Patterson observa que o escravo sociologicamente se torna
tanto menos escravo, quanto mais consegue espalhar “as fontes de sua proteção”81 (que entendo como ter
laços sociais com tantas pessoas fora da casa do senhor quanto possível). Indubitavelmente, essa primeira
tentativa minha de explorar ações de liberdade sob esse aspecto, ainda com fortíssimos traços de “work
in progress”,além de ter mostrado por enquanto um valor bastante limitado das ações de liberdade como
grupo de fontes para explorar redes sociais, talvez não permita uma verdadeira conclusão. Mas a guisa de
arrematar pode ser levantada a hipótese de que a oportunidade de conseguir a liberdade como condição
jurídica é quanto melhor, tanto mais a escrava ou o escravo consegue melhorar sua situação em termos so-
ciais82. Nesse sentido, passos iniciais cruciais da ascensão social são dados ainda durante a escravidão, mo-
bilizando “os mais diferentes recursos societários, políticos e simbólicos83. Em outras palavras: Conseguir

77 AHCSM 2º Ofício, Códice 280, Auto 6847 (de 1847), fol. 14 v.


78 APEB SJ PC Est. 47 ex 1683 D 5 (de 1863), fol. 38  v.
79 APEC, Ação de liberdade do escravo José, Juiz de Direito da 1ª Vara, Fortaleza 1877.
80 PINHEIRO, pág. 74, constata o mesmo fato.
81 PATTERSON, Orlando. Slaveryand Social Death. A ComparativeStudy. Cambridge Massachusetts/London:
Harvard University Press, 1982, p. 28.
82Isso pode ajudar a interpretar o resultado de várias investigações, que escravos já nascidos no Brasil conse-
guem a alforria mais facilmente que os que chegam da África na primeira geração. Cf.GONÇALVES, Andréa
Lisly: As margens da liberdade: Estudo sobre a prática de alforrias em Minas colonial e provincial. Belo Hori-
zonte, MG: Fino Traço, 2011, p. 153.
83GONÇALVES (2008), p. 59.

300
“ser qualificado”84 por membrosda sociedade como “menos escravo” contribuiu crucialmente a conseguir
a liberdade juridicamente. Finalmente, as mesmas relações sociais que são importantes para conquistar
a liberdade podem restringir a mesma posteriormente85, além do laço entre patrono e alforriado86, e não
somente em formas de clientelismo stricto sensu87. Nesse sentido,concordamos plenamente com a obser-
vação de Gonçalves, que “um dos principais significados, ou resultados, da política de manumissões” foi a
“produção de dependentes”88.

84 IVO, Isnara Pereira: Seria a cor, a qualidade, a condição ou o fenótipo? Uma proposta de revisão dos critérios
de distinção, classificação e hierarquização nas sociedades ibero-americanas. In: IVO, Isnara Pereira/PAIVA,
Eduardo França (orgs.): Dinâmicas de mestiçagens no Mundo Moderno: sociedades, culturas e trabalho. Vitó-
ria da Conquista: Edições UESB, 2016, v. 1, p. 19-44 (22).
85 Pensamos, por exemplo, a obrigação do liberto de trabalhar para alguém que deu um crédito a ele ainda
escravo para comprar sua alforria (cf. Gonçalves (2008), p. 73, que fala de casos, nos quais “o emprestimo [para
comprar a alforria] partia de um agente interessado em usufruir o trabalho do liberto”).
86 Lembramos que a restrição da liberdade do liberto ou da liberta muitas vezes foi colocada explicitamente em
cartas de alforria, com condições como a “de me acompanhar até o fim da minha vida” (APEB, Livro de Notas
do Tabelionato de São Jorge dos Ilhéus, no 06, f. 11 v). Já na Grécia antiga existia uma forma parecida de depen-
dência dos libertos, chamada paramone (SAMUEL, A. E. The Role ofParamoneClauses in AncientDocuments.
JJP 15 (1965), pags. 221-311).
87 Também temos que pensar no conceito de “agregado” como relação de dependência muito típica na reali-
dade social brasileira.
88 Gonçalves (2008), p. 72.

301
302
SIMPÓSIO TEMÁTICO 04
Governo e dominação: práticas e estratégias discursivas na administração da América portuguesa.

Coordenadores:

Marco Antônio Silveira

Sílvia Rachi

Jesuítas: A palavra como instrumento de missionação


Maria Valdenice Soares Craviée.
Aparecida Valéria Salviano de Souza

No ano de 1534 foi fundada a Companhia de Jesus, com o objetivo de disseminar a fé católica pelo mundo. Seu
principal fundador, Inácio de Loyola, nasceu em um país Basco, onde recebeu educação privilegiada e instru-
ção para o serviço militar no Castelo de sua família. Lutando contra o ataque dos franceses em 1521, na batalha
de Pamplona, Loyola foi capturado, tendo sua perna direita fraturada. Recuperando-se do ferimento de guerra,
dedicou-se a ler sobre a vida de Cristo e a vida de santos. Decidiu tornar-se peregrino e alcançar a Cidade Santa
para livrá-la dos turcos. Nessa peregrinação desenvolve os Exercícios Espirituais com a intenção de formar
cristãos para um combate espiritual contra as ideias protestantes de Lutero, Calvino e outros que surgiam na
Europa. Atraídos pelos referidos Exercícios, Inácio conseguiu reunir ao seu lado homens que, assim como ele,
eram doutorados na Universidade de Paris: os espanhóis Francisco Xavier, Afonso Salméron, Diego Laynez,
Nicolau Bobadilla; o português Simão Rodrigues de Azevedo e o francês Pierre Favre (PEDRO, 2013).
Para uma melhor compreensão sobre o trajeto dos Jesuítas até a nova colônia brasileira, é necessário
compreender o contexto da Europa no século XVI. Esse período segundo Hernandez (2010)foi marcado pela
reforma protestante e também por movimentos populares que emergiam devido à insatisfação pela ausência
de moral e ética no quadro eclesiástico. Tal contexto provocou a reação da Igreja Católica, com a realização do
Concílio de Trento, realizado de 1545 a 1563, com o objetivo de restabelecer a unidade na fé católica frente ao
protestantismo.

A Companhia de Jesus, recém-fundada, teve um papel decisivo devido ao seu posicionamento mais
conservador. Conforme Costa (2006), essa situação fortaleceu a congregação provocando sua expansão e res-
peitabilidade, de tal forma que o rei português Dom João III, aconselhado, solicitou a presença dos Jesuítas
nas colônias portuguesas, entendendo ser necessária a presença de letrados nas terras descobertas. Credita-se
também à combinação da fama de santidade com a modernidade de cultura, além da espiritualidade necessária
aos novos tempos.

Afinal o que tornava os religiosos da Companhia de Jesus diferenciados em relação as outras or-
dens religiosas? Segundo Neves (1978), a ordem inaciana foi criada para transmitir a palavra de Deus
em especial aos povos que a desconheciam. As ordens missionárias que tomaram corpo a partir do sécu-
lo XV contrariamente das ordens monacais que se mantêm fechados em seus conventos querem ganhar o
mundo. Entendem que “a cristandade tem uma dimensão social que deve ser cumprida” (NEVES,1978,

303
p.27). Têm o desejo de implantar lugares santificados; não almejam tomar territórios pelo fato de co-
nhecerem a palavra, não almejam tomar territórios militarmente, embora tenham usado forças parale-
las leigas e tenham, de certa forma se transformado numa força militar autônoma (entendendo as reduções
como tal). “Para eles, o auditório predileto da missão, era o dos que ainda não tinham ouvido a palavra
divina. Esta palavra para ser ouvida deveria ser repetida pelos que foram capazes de escutar e foram autorizados
pela Instituição Sagrada, a fazê-lo. Os missionários são pregadores, restabelecem a oratória como estilo preferi-
do para a conversão, que leva a um revigoramento de formas muito mais inflamadas, eloquentes e sentimentais
do que as peculiares à escrita escolástica” (NEVES, 1978,p.36).

Confirmando a convicção Jesuítica da cristianização do mundo, Wright (2008) relata sobre a ação mis-
sionária em várias partes do arquipélago da Índia, China e América, assim pontua:

[...] quando eles já tinham aprendido as línguas e costumes do país colocavam o há-
bito dos índios penitentes... obedeciam a todos os seus costumes[...] se os primeiros
missionários de Madurai tivessem se recusado a se submeter a esse esquema rígido,
seu fervor teria se mostrado ineficaz e eles não poderiam ter convertido brâmanes e
mais de 150 mil idólatras (WRIGTH,2006,p.118).

Vale assinalar que de acordo com Ieiri e Santos (2011), os Jesuítas diferiam-se pelo conhecimento das
culturas e das línguas locais, não somente para a celebração da missa, mas também para servirem de intérpretes
entre os colonizadores europeus e os povos locais.

Após o entendimento sobre o sentido pelo qual foi criada a Companhia de Jesus, é pertinente discorrer
sobre o Padroado, instituição própria dos reinos ibéricos. Conforme Boxer (1978, p.99):

O Padroado Real Português pode ser vagamente definido como uma combinação de
direitos, privilégios e deveres, concedidos pelo Papado à Coroa Portuguesa, como
patrono das missões católicas e instituições eclesiásticas na África, Ásia e Brasil.

Dessa forma, os sacerdotes em geral só poderiam exercer o cargo com a aprovação da Coroa e dessa
ainda dependia financeiramente. Quanto aos deveres e direitos dos soberanos, eram relativos a presença dos
religiosos na evangelização, além do envio destes às missões e seu sustento. Nesse ponto é interessante conside-
rar que,mesmo não havendo possessões portuguesas na China e no Japão, lá estavam presentes, pois, devido ao
Padroado, representavam então o Papa e a Coroa Portuguesa.

Conforme Miranda (2006), existem evidências que apontam para uma comunhão entre a Coroa Por-
tuguesa e a Companhia de Jesus: seriam o Padroado, a interdependência entre as ações do corpo eclesiástico e
o Estado português, como no caso da criação da Província do Brasil, em que Portugal interveio em sua organi-
zação.

Há, porém, de se considerar o que diz Madureira (1929) ao afirmar que Portugal estava apenas interes-
sado nas vantagens materiais que pudesse extrair da colônia, abandonando totalmente ao clero secular e regular
a incumbência de instruir a população, tanto no trabalho de conversão dos indígenas e, o mais laborioso, no
de conservação da fé, dentro da moral, da justiça e da humanidade, os colonos e seus descendentes. Madureira
(1929, p.356) narra uma nota da década de vinte em que Viriato Corrêa escreve revelando as condições dos
jesuítas. Assim relata:

304
Por toda parte, onde há um núcleo de habitantes, há uma batina educando. Portugal
não se lembra do menor auxílio. Os padres vivem de esmola, rôtos, famintos, fazendo
prodígios para alimentar as crianças selvagens. Às vezes para não morrer de fome
são obrigados a comer os restos dos jantares dos creados dos governadores geraes.
Madureira (1929, p.356).

Para também colaborar no entendimento sobre a relação Jesuítas e Padroado, é significativo registrar
o que afirma Neves (1978, p. 51) sobre o sentido da criação da ordem inaciana, sendo sua tarefa cristã “a de
promover a ocupação de espaços vazios. E promover a ocupação de espaços não pode ser chamada de ideias
antagônicas aos ideais do colonialismo...”. Com essa colocação do autor é possível entender a mesma intenção
de ocupar espaços pelas duas instituições, o Estado português e a Companhia de Jesus, mas não seriam dois
interesses diferentes? Esse espaço deveria, pois, ser ocupado pela palavra, conforme o sentido do trabalho mis-
sionário.

Eisenberg (2000, p. 91) também contribuiu para compreensão da relação não tão fácil entre o Padroado
e os inacianos ao asseverar que o preceito de obediência cega à Igreja “assim como” um voto especial de obe-
diência direta ao Papa fazia deles uma ordem que nem sempre se sujeitava a cumprir as regras do Padroado.
O autor também afirma que a postura dos Jesuítas provocava problemas com os Bispos, visto que estes tinham
dificuldades em atuar diante “de uma corporação de homens que tão frequentemente operava fora das regras e
do alcance da política e justiça eclesiástica” (EISENBERG, 2000, p. 161). Esses questionamentos intentam levar
a uma reflexão sobre ao que parece não tão pacífica relação entre Padroado português e Jesuítas.

A partir dessas análises, para completar a contextualização sobre a Companhia de Jesus e abordar o
essencial do trabalho, a oratória como instrumento na ação missionária Jesuítica, é pertinente discorrer sobre a
formação desses religiosos e, portanto, falar do Plano de Estudos da Companhia de Jesus, o Ratio Studiorum.

Com a autorização de Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, que os padres Jerônimo Na-
dal e Antônio Araoz elaboraram a primeira Ratio Studiorum, um plano de estudos para os colégios de Messina
em 1548 e Gandia em 1549. Após três anos de fundado o colégio de Messina, a pedido de Loyola, padre Aníbal
Coudret relata de forma detalhada a estrutura e o sistema do colégio, descrevendo sua divisão em classes, o
programa da disciplina e o método das matérias e a disciplina.

A Ratio portanto surge da experiência e intenciona orientar os professores novos e unificar o sistema
de ensino e a tradição pedagógica da Ordem, segundo Franca (1952). De acordo com o autor, o Ratio não tolhe
a necessária espontaneidade ao delicado ofício de formação das almas. A multiplicidade de métodos, garante
liberdade para adaptar a opção do mestre.

O plano de estudos dos jesuítas, Ratio Studiorium, sofreu, por quase dois séculos, críticas, experiências
e análises das autoridades europeias. Os primeiros ensaios, de acordo com Franca (1952) ocorreram em 1586.
Por exemplo, até 1599, foram duas apreciações das instituições educativas, uma em 1586 e outra em 1591. Na
primeira avaliação, as críticas incidiram sobre a questão da prolixidade e minúcias, o que seria um entrave à
adaptação, às circunstâncias muito recomendadas na Parte IV das Constituições (KLEIN, 1997). Assim, vigo-
rou por quase dois séculos até 1773 com a supressão, em grande parte da Ordem, mesmo que não completa-
mente. Porém, em 1773, houve uma supressão da Ordem, que só retoma às atividades em 1814, quando Pio
VII restaura a Ordem em toda a igreja. Assim, torna-se urgente a revisão do Ratio que, em 1832 foi enviado a
toda Ordem, como revisto. No entanto, esse Plano de Estudos, não foi aprovado por nenhuma Congregação

305
Geral, tornando-se apenas lei. Somente em 1941, tempos depois do período colonial brasileiro, definiu-se um
novo Ratio Studiorium Superiorum Societatis Jesu, referente apenas aos estudos superiores, com modificações
importantes e adaptadas às inovações das universidades da época (FRANCA, 1952).

Portanto, a codificação do Plano de Estudo da Companhia de Jesus é um minucioso manual de fun-


ções, responsabilidades e de dirigente do pessoal, professores e alunos (um compilado de normas objetivas só
sendo compreendida à luz da Parte IV das Constituições, que é o texto legislativo máximo escrito por Loyola).
Conforme os estudos da Companhia, o caminho para o conhecimento do criador deveria cursar também o co-
nhecimento dos seres humanos. Julgavam que se a finalidade era atingir a todos, o ensino deveria ser gratuito,
apesar que, em muitas cidades da Europa, isso continuava a ser exclusivo para uma elite.

O currículo possui três modalidades: teológico, filosófico e humanista. Nesta última incluía: Retórica,
Humanidades, Gramática superior, média e inferior. Para apreender a importância da Retórica era necessário
ir além da avaliação das regras referentes à classe de Retórica, visto que todas as fases de estudos confluíam para
a eloquentiaperfecta que, segundo Miranda (2011), compreende a oratória e a poética, visando não apenas a
utilidade do discurso como também a sua elegância.

A Retórica da Ratio não é considerada nem técnica, nem disciplina, mas entendida como uma integração
de saberes. Abrangia, pois, além da língua, poesia e oratória, o teatro, historiografia, a geografia e a filosofia da
tradição pagã. A leitura dos clássicos pagãos buscava obter como resultado o primado da palavra, considerada
na sua dimensão estética e utilidade social. Davam, portanto, preferência à oralidade da palavra sobre a forma
escrita para que assim a palavra alcançasse a vontade, o desejo, o afeto e o intelecto dos ouvintes. O orador
precisa de cuidado ao transmitir coisas que faça sentido para o universo vivencial e cultural do ouvinte, caso
contrário, não haverá modificação da conduta.

De posse desse conhecimento desembarcam os jesuítas no Brasil colônia, no ano de 1549, comandados
pelo padre Manoel da Nóbrega. A Companhia de Jesus fundada em 1534, que ainda ensaiava seus primeiros
passos, se deparou com um contexto totalmente adverso ao que estavam acostumados. Porém, encontram algo
em comum: o valor a palavra falada.

A importância de se falar a língua era narrada pelos Jesuítas, a exemplo de como Anchieta descreve
aos Irmãos em Coimbra sobre a sua participação nas confissões com o padre Nóbrega, enquanto intérprete,
que possibilitou o seu aperfeiçoamento nos conhecimentos da língua e costumes dos índios. Escreve também
que entende quase tudo e que não a põe por escrito por haver naquele lugar quem dela pudesse se aproveitar.
No entanto, foi Anchieta que escreveu a primeira Gramática em Tupi, a pedido do Provincial Pe. Nóbrega para
que os novos missionários, em Salvador, pudessem ter aulas naquela língua. Padre Anchieta (1988) relata ainda
sobre um irmão chamado Gregório, que além de cuidar de toda a casa, sendo soto-ministro, cozinheiro e des-
penseiro, estudava latim e a língua do Brasil, pois assim poderia ensinar a doutrina, confessar e pregar. O Irmão
passava muita fome e frio, mas foi aprendendo e ensinando a língua para os meninos da escola, dizendo missa,
enfim, ajudando as almas (ANCHIETA, 1988).

Conforme Massimi, Freitas (2007), existem narrativas, assim como cartas do século XVI de
viajantes e missionários, que relatam o uso da palavra pelos indígenas com fins terapêuticos. Em um relato de
1593, conforme Massimi (2005), o padre Jesuíta Fernão Cardim em uma visita missionária menciona a prega-
ção dos índios. Assim relata:

Feita a oração, lhes mandou o padre fazer uma fala na língua, de que ficaram muito
consolados e satisfeitos; aquela noite os índios principais, grandes línguas, pregavam

306
da vida dos padres a seu modo, que é da maneira seguinte: começam a pregar de
madrugada, deitados na rede por espaço de meia hora, depois se levantam, e correm
toda a aldeia, pé ante pé muito devagar, e o pregar também é pausado, freimático, e
vagaroso; repetem muitas vezes as palavras por gravidade, contam nessas pregações
todos os trabalhos, tempestades, perigos de morte que o padre padeceria vindo de
tão longe para os visitar, e consolar e juntamente os iniciam a louvar a Deus pela
mercê recebida, e que tragam seus presentes ao padre, em agradecimento. Era para
os ver vir com suas cousas, etc., patos, galinhas, leitões, farinha, beijús com algumas
raízes e legumes da terra (CARDIM, 1980, p. 146).

Na carta, o Jesuíta Fernão Cardim, além de assinalar as características da retórica indígena, des-
taca a inclinação dos nativos para a prática da palavra e a pregação dos “principais” indígenas (os que tinham
o dom da palavra) como fator fundamental para gerar confiança das tribos na palavra dos jesuítas em seus
sermões. Em outro trecho da carta o padre revela o valor do uso da palavra pelo indígena brasileiro. Assim
descreve: (minha sugestão para o parágrafo abaixo)
Estimam tanto um bom língua que o chamam de senhor da fala. Em sua mão tem
a morte e a vida, e os levará onde quiser sem contradição. Quando querem experi-
mentar um e saber se é grande língua, ajuntam-se muitos para ver se o podem cansar,
falando toda a noite em peso com ele, e às vezes, dois, três dias, sem se enfadarem
(CARDIM,1980,p. 152).

Considera Massimi (2005b), que a intimidade dos gentios com o uso da palavra para incentivar e ensi-
nar, pode ter sido uma das razões da importância conferida pelos inacianos à pregação como expediente para
cristianizar a população nativa. A autora também menciona a observação do padre Cardim que, em uma mis-
são, relata que em cada oca vivia um “principal” que possuía autoridade devido ao exercício do uso da palavra.
Era muito respeitado, incentivava os demais ao trabalho e também os encorajava à guerra.

Conforme a autora, as exortações do índio começam dentro da oca, na madrugada, em sua rede por
cerca de meia hora e ao amanhecer ia por toda aldeia pregando em voz alta com repetições. A importância do
uso da palavra surpreendeu o Jesuíta ao perceber a similaridade entre a cultura indígena e a europeia daquele
período. Essa sociedade que primava pelo valor da palavra é também percebida em uma narrativa de um capu-
chinho francês, D’ Abeville, no ano de 1614 que descreve: “Com tal atenção ouviram os índios essas palavras
que a emoção que lhes ia na alma transparecia em suas fisionomias”.(ABBEVILLE, 1975, p. 72)

A confiança na palavra pronunciada nessa sociedade indígena se harmonizou com o entendimento e


valorização dos Jesuítas sobre o poder dela como instrumento de convencimento, respaldado no conhecimento
da arte retórica. Dessa forma, os sermões dirigidos aos indígenas encontraram um terreno fértil visto que a
validação que eles atribuíam a palavra lhes permitiu legitimar as palavras nos sermões dos religiosos da Com-
panhia de Jesus. Massimi (2005b) afirma que, em cartas de missionários, é revelado que a pregação dos chefes
indígenas foi essencial para haver confiança das tribos na palavra proferida nos sermões pelos padres.

Concomitantemente, na cultura ocidental da idade moderna o uso da arte retórica era o espaço experi-
mental do potencial da palavra, o que permitia a aplicabilidade terapêutica de seu uso. Essa combinação, pois,
traduz o encontro que ocorreu no período colonial entre os missionários Jesuítas e os gentios do Brasil.

Os Jesuítas por sua vez, davam preferência à oralidade da palavra sobre a forma escrita, característica
essa da oratória eclesiástica, especificamente do humanismo jesuítico. Isso porque a palavra eloquente impele
a comportamentos, agregando a razão à verdade e à moralidade (MASSIMI, 2007). A palavra adquire então o

307
papel de transmissora de conhecimentos e práticas. É nisso que consiste a oratória sagrada, um gênero especí-
fico da retórica, e o modelo retórico Jesuítico é o mais amplo por estar baseado no entendimento da estrutura
humana provinda da tradição Aristotélica-tomista. Esse conhecimento propiciou um saber teórico e prático a
respeito do homem e o seu dinamismo psíquico, ou seja, o conhecimento da composição psíquica humana e a
eficiência da palavra na transformação do psiquismo do indivíduo.

Com o conhecimento das normas e técnicas da oratória sagrada, os missionários da Companhia de


Jesus utilizaram as pregações para tocar seu público suscitando emoções, sentimentos e sensações de forma a
induzi-los a remodelação de seus comportamentos individual e em sociedade (O’ MALLEY, 2004).

No período do Brasil colônia, existiam dois principais modelos de pregação: os sermões eruditos, in-
dicados à nobreza e ao público letrado e a pregação popular, cujo objetivo era atingir a população iletrada ou
grupos e ambientes culturais diferentes, haja vista que a retórica possibilita esse intercâmbio por universos
distintos (Pawling 2004). Dessa forma, de acordo com a realidade encontrada pelos religiosos da Companhia
de Jesus, os sermões se encaixavam na segunda categoria.

Dentro da prática retórica existe um conceito denominado acomodação, originário de commodus-


cum+ modus significando modos, que revela o espírito de adaptação, apropriação. Massimi, Freitas (2007)
citam o filósofo e orador Marco Tulio Cicero, que concebia que, a legítima retórica, tem por característica o uso
de recursos que a disciplinam, o discurso, como também o comportamento do orador para que possa, de fato,
atingir aos ouvintes.

O processo de acomodação cultural dos jesuítas resumia-se na combinação do ensino do Evangelho


com a cultura local. Costa e Lacerda(2007), dão conta que:

Este método missionário opunha-se ao denominado sistema de “tábua rasa”, pra-


ticado maioritariamente pelas Ordens Mendicantes, que atendiam pouco às espe-
cificidades dos povos que tentavam aculturar, mantendo sempre uma perspectiva
eurocêntrica. Ao contrário, os Jesuítas esforçaram-se por aprender as línguas nativas,
criaram dicionários e gramáticas, escreveram e encenaram peças de teatro e, no caso
específico do Brasil, investiram no ensino da música e do canto litúrgico, que muito
cativava os Índios. Este método evangelizador, embora hoje possa parecer que fazia
poucas concessões, exigia uma grande abertura à alteridade, ao mesmo tempo que
se conhecia a língua, os mitos, as crenças e a estrutura social do “outro”, eram incor-
porados no Cristianismo alguns elementos da vivência local. Este tipo de abordagem
exigia estratégias diferentes, de acordo com as características de cada civilização que
se desejava evangelizar. Costa e Lacerda(2007, p.111)

É relevante destacar que os autores trazem à tona a alteridade, atitude necessária para que os jesuítas
pudessem adentrar à cultura indígena e assim obter o respeito e a confiança necessárias para a missionação.

Para Gil (2008, p.36) o conceito de alteridade está apoiado no fator cultural, “mas agindo no campo
social, político, econômico, religioso e epistemológico, este conceito comunicativo interpela o mundo como
rede de interacções […]” , buscando no entendimento do Outro o encontro consigo mesmo. De acordo com a
autora, “conhecimento da alteridade apresenta-se como autoconhecimento (GIL,2008, p.36).”

Na missionação jesuítica há concordância com o conceito de alteridade de Gil (2018), pois o contato

308
com o outro era inevitável, num processo de acomodação cultural que promovia a interculturalidade. Para a
definição de cultura é preciso a existência do Outro e o diálogo com o diferente. Antropologicamente, a cultura
enquanto modo de vida, encaminha à relação hierárquica entre culturas altas e baixas, e inclui o contato com o
primitivo. É nesse lugar que se apoia o intercultural (GIL,2008).

Do contato com o outro pode se dar um conflito e tanto o diálogo quanto a interculturalidade emergem
como estratégia de mediação, não como um processo mágico, de sucesso, “que supera a violência manifesta,
sempre que a identidade cultural está em jogo (GIL,2008,p.35)”. Segundo a autora, a interculturalidade e suas
formas de representação jogam no campo da mediação do outro, mas nunca em campo neutro. O prefixo
“inter” não se apresenta como área neutra; a intermediação deve ser “momento pleno, situado e fecundo de
sentido, um espaço onde a identidade se enriquece de outro […] (GIL,2008,p.36).”

A acomodação é um recurso retórico por isso, é importante para o pregador conhecer o outro, no caso
o ouvinte, constituindo assim uma base para estabelecer as relações sociais que permitem uma troca entre eles.
Esse é o conceito de acomodação e é fundamental para que a comunicação na oratória se concretize, visto que
é ele que liga o orador ao ouvinte. Para Battistini (1981) a regra da acomodação norteia o orador no sentido de
que tenha um conhecimento precedente do público que o ouvirá. No horizonte da retórica, a norma da acomo-
dação orienta o orador ao conhecimento prévio do público ao qual sua pregação se destina. Lembrando que,
é no campo da retórica que a acomodação assume finalidade e sentido, proporcionando máxima autoridade à
palavra.

Nas cartas jesuíticas encontramos muitos exemplos de acomodação da Companhia no Brasil. Para Ieiri
e Santos (2011), os inacianos encontravam respostas para as inúmeras dificuldades cotidianas, sempre se adap-
tando ao novo meio social. Massimi, Freitas (2007) afirmam que para a Companhia de Jesus, a acomodação
é um conceito fundamental, visto que conduz ao conhecimento da pessoa humana e à prática persuasiva. O
fundador da Ordem, Loyola, faz com frequência menção a acomodação para que se alcançasse a compreensão
mais profunda do ser humano e de seu destino, intentando a orientação da vida espiritual. As autoras recorrem
às cartas de Loyola enviadas para alguns padres da Companhia de Jesus onde recomenda: conhecer a natureza
temperamental daquele que vai cuidar, acomodando-se à complexidade daquele com quem se comunica com
moderação; obedecer regras de convivência como falar pouco e ouvir muito, ser breve nas respostas; despedir-
-se de forma amável; procurar ganhar a afeição das pessoas para bem realizar o serviço de Deus.

O’ Malley (2004) contribui ao discorrer sobre o sentido e alcance da utilização da acomodação pelos
Jesuítas ao ponderar que:

Um aspecto da forma mentis-retórica era seu imperativo para a acomodação, um


aspecto que coincidia com o modo de procedimento dos Jesuítas num nível profun-
do e penetrante. Nos tratados clássicos, a retórica era orientada a produzir o orador
bem-sucedido. Essencial para este sucesso era a habilidade do orador de estar em
contato com os sentimentos e as necessidades de sua audiência e, em sintonia com
ela, adaptar a si mesmo e o seu discurso. Iniciando com os próprios Exercícios, os
Jesuítas eram constantemente lembrados de que em todos os seus ministérios deve-
riam adaptar o que diziam e faziam aos tempos, circunstâncias e pessoas. (O’Malley,
2004, p.397-398)

O modus operandi dos inacianos em missão no Brasil com o uso da acomodação é perceptível nos
relatos nas cartas dos jesuítas. Santos (2005), inclusive assinala que o 1º bispo do Brasil, Pedro Fernandes Sar-

309
dinha, reclamava das táticas adaptativas e flexíveis dos religiosos da Companhia de Jesus, visto que faziam uso
de elementos culturais não cristãos no teatro e nas confissões, assim como a inclusão de elementos culturais da
sociedade que estavam em missão durante os cultos, tudo para uma maior integração da sociedade.

Em uma carta de Nóbrega (1988) fica claro o uso da acomodação por parte dos inacianos. Relata:
Aos domingos e dias Santos têm missa e pregação na sua língua e de contínuo há
tanta gente que não cabe na igreja, posto que é grande; ali se toma conta dos que
faltam ou dos que se ausentam e lhes fazem sua estação: o meirinho, que é um prin-
cipal deles, prega sempre aos domingos e festas pelas asas de madrugada a seu modo
(NÓBREGA, 1988, p. 179).

A prática da acomodação permitia então diminuir a diferença cultural entre os religiosos e os nativos.
Em outra carta de Nóbrega ao Pe. Mestre Simão, a narrativa contempla o procedimento utilizado. A carta dizia
“[...] pregar-lhes a seu modo em certo tom, andando, passeando e batendo nos peitos, como eles fazem quando
querem persuadir alguma coisa [...]” (NÓBREGA, 1988, p. 142).

Em outra correspondência, Anchieta e Nóbrega narram sobre meninos já catequizados, que se diri-
giam às aldeias pregando e cantando. Faziam, dessa forma, uso da cultura indígena com seu apreço pela mú-
sica e canto. Vê-se nesse procedimento duas formas de operar dos Jesuítas: o uso da oratória pela criança e a
acomodação ao adaptar ao ritual católico a cultura indígena. Esse procedimento, conforme Massimi (2005), é
particularmente importante, devido ao fato da Igreja católica daquele período só permitir que os padres fossem
ministros da palavra após a aprovação de seus dons e receberem licença do bispo para pregarem.

Há outros relatos que descrevem os efeitos na população com pregações dos missionários, revelando a
reação do uso da acomodação e a eficácia desse recurso. Uma carta fala dos “efeitos no nível psicológico, sobre-
tudo emocional (lágrimas, medo, comoção, apego) e imaginativo (representação de penas, castigos, prêmios,
cenas futuras) e efeitos no nível das condutas ético religiosas e sociais (pedido de batismo e extrema-unção,
confissões, presença assídua nas pregações, casamentos assumidos, paz entre tribos)” (MASSIMI, FREITAS,
2007, p. 129).

É importante ressaltar que, Massimi, Freitas (2007) recorrem a Stein (2006) para explicar que os
efeitos psicológicos referem-se ao conceito de adaptação que é um fator importante para a prática do conceito
de acomodação. Portanto, diferem-se enquanto conceito (o primeiro psicológico e o segundo retórico) e
convergem-se (no caso jesuítico) enquanto processo psicológico e dinamismo cultural (nessa ordem) dentro
da missionação. A título de ilustração, formatamos a figura abaixo:

Figura 1-Comparação entre conceito retórico de acomodação e o conceito psicológico de adaptação - Adaptada - Massimi, Freitas
(2007, p.132)

310
Em carta, Anchieta (1988), pelo período da semana santa, relata a emoção dos ouvintes. O padre diz:
“pregamos a Paixão, infundindo grande devoção e muitas lágrimas aos ouvintes” (ANCHIETA, 1988, p. 160).
Navarro (1988) descreve o impacto na plateia durante o sermão em Salvador no ano de 1561, afirmando que,
nessa ocasião, a pregação se prolongou por mais de três horas, “por ser necessário esperar muitas vezes que
acabassem aqueles soluços e ímpetos de lágrimas que tinham.” (NAVARRO, 1988, p. 336). Em outra passa-
gem, Anchieta revela o impacto da pregação junto aos índios, afirmando que estes adotavam um modo de vida
mais saudável, fortalecendo assim o entendimento de que a palavra induz a cura, sendo que muitas vezes ao
ser curada a alma é também curado o corpo. O proceder dos jesuítas diante de doenças e acidentes (ferimentos
com flechas, ataque de bichos peçonhentos) propiciava uma maior confiança e consideração dos nativos com
relação aos missionários, e aumentava a credibilidade nas palavras proferidas pelos religiosos. À vista disso,
os jesuítas consideravam os impactos da pregação da palavra, decorrentes do esforço da acomodação, além de
contar também com pregadores sábios e competentes (MASSIMI, FREITAS, 2007).

Tem, portanto, a acomodação a finalidade de incentivar um envolvimento psicológico, com o objetivo


de alcançar as potências psíquicas superiores, associando a razão e a vontade e, dessa forma, serem efetivadas
as transformações comportamentais e culturais, que segundo os Jesuítas, promoviam a saúde das pessoas e da
sociedade (MASSIMI, FREITAS, 2007).

A acomodação, então, foi fundamental ao trabalho do missionário no Brasil colonial dado o alcance do
objetivo doutrinário dos Jesuítas, levar a palavra de Deus, atentando-se que para os inacianos “o pressuposto
básico da missão é o de que a cristandade tem uma dimensão social que deve ser cumprida” (NEVES, 1978,
p.27).

Com esse intento, o conceito retórico de acomodação utilizada nas pregações pelos Jesuítas na so-
ciedade indígena contribuiu para a assimilação da ideologia religiosa, por certo também favorecido por ser a
sociedade indígena uma sociedade oral. O conceito da acomodação, desse modo, contribuiu para a compreen-
são das relações entre os indígenas e os missionários, como também foi um reforço para o papel terapêutico
da palavra proferida nos sermões, pois, como afirma Massimi, Freitas (2007, p. 112): “a palavra eloquente não
apenas veicula a coisa, como induz comportamentos diante dela, associando a razão à verdade e à moralidade,
e chamando em causa a liberdade como condição de tal associação”.

Além de enfrentar as adversidades relativas à língua, os obstáculos físicos e materiais também coloca-
vam à prova os preceitos inacianos, como por exemplo as questões que envolviam os produtos alimentícios.
Desta forma, vale ressaltar a acomodação gastronômica, que de acordo com Ieiri e Santos (2011), se dava pela
falta de produtos referentes à alimentação europeia, fato que levava os missionários a se adaptarem e aprecia-
rem a alimentação local. De acordo com os autores, havia queixas frequentes nas correspondências jesuíticas
pela escassez de trigo, sal, azeite e vinho. Além do que, ainda tinham que superar o mal estar causado pelo fato
de ter que comer nos mesmos potes em que os índios cozinhavam carne humana. Desta forma, a acomodação
gastronômica tornou-se constante, e os missionários foram pioneiros em descobrir novos alimentos locais em
substituição aos alimentos europeus. Isto garantia a sobrevivência que era possível pela capacidade de adapta-
ção. Cabia então aos jesuítas, dentro do processo de sobrevivência, observar e ouvir explicações do índio sobre
o que seria venenoso ou comestível na natureza (ervas e animais) e qual a melhor forma de sobreviver naquele
ambiente.

Talvez a compreensão da acomodação utilizada como ferramenta na catequização no Brasil colônia,


permita revisitar o entendimento de aculturação, tradicionalmente tido como a substituição de uma cultura por
outra. O conceito da acomodação, então, contribuiu para a compreensão das relações entre os indígenas e os

311
missionários. Como foi possível ver por meio de cartas escritas pelos religiosos jesuítas, com o uso da acomo-
datio houve uma adaptação, em que elementos indígenas foram incorporados ao que os inacianos trouxeram,
isto é, a cultura ocidental.

Pertinente também citar o historiador Chatellier (1995) que entende que, o persuadir largamente pra-
ticado pelos pregadores, não se tratava de uma forma de modelar uma população, alcançando a comoção, mas
atingir a inteligência, de tal forma a afetar a vontade do ouvinte. Essa linha de interpretação contraria a tese
historiográfica que entende a oratória sagrada popular como uma prática de domesticação das populações.
O que foi possível apurar nesse trabalho é que a acomodação fartamente utilizada nas pregações jesuíticas no
período colonial, mais que domesticar, procurou atingir a inteligência e a emoção, num exercício constante de
tolerância e compreensão da cultura local.

De acordo com Santos (2011), por se entender que a cultura é algo engessado, essa percepção colabora
para a ideia de perda de identidade e extinção, compreendendo que as influências de um povo sobre outro
destrói a identidade cultural daquela “oprimida”. A autora acredita que não há uma substituição de uma pela
outra, mas uma fusão intercultural que origina uma nova tendência cultural, podendo ocorrer, em algumas
circunstâncias, de uma cultura destacar-se da outra, porém, não há a extinção de uma cultura, mas uma ressig-
nificação.

Nos processos interculturais as relações são marcadas por um domínio civilizacional, onde os que são
dominados lutam pela sua tradição e sua sobrevivência cultural. Conforme Gil (2008), esse fato gera conflitos,
próprios do contato com o outro, mas que podem ser mediados pelo diálogo e interculturalidade. O diálogo
intercultural obedece a um contexto e leva em conta as experiências do interlocutor para uma comunicação
efetiva. Nesse sentido é importante “conhecer a cultura do outro, reconhecer a própria cultura, eliminar ou
neutralizar preconceitos, ser capaz de estabelecer relações empáticas e saber reconhecer a metacomunicação:
aquela não perceptível.” (MM,2013, p.223).

A acomodação parece traduzir bem essa reflexão, permitindo também concluir que esse instrumento
utilizado pelos inacianos reforçou ou colaborou amplamente para o cumprimento do desejo dos Jesuítas de
“instaurar lugares santificados porque conheceram a Palavra e a souberam repetir.”(NEVES, 1977, p.27)

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115 f. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação, Universidade Federal da Bahia,
Salvador, 2008.

Disputas por soberania e uso da terra nos sertões minerais do Sul (1750-1768)1
Denise A S de Moura

Este texto aborda o tema da formação territorial do Brasil e as disputas entre “razão de Estado”
português2 e as reivindicações de sertanistas em relação a direitos de posse e uso das terras no século
XVIII. Tais reivindicações estiveram amparadas em argumentos e documentos de maior relevância
jurídica neste período, como os de natureza geográfica e cartográfica.

Este tema tem tradição de investigação na historiografia luso-brasileira e é abordado pelo viés
de dois principais processos: o de elaboração dos tratados políticos ou de urbanização. Para ambas
perspectivas o Tratado de Madri (1750) é um recorte cronológico-explicativo. Texto escrito por Ca-
pistrano de Abreu em 1899 pode ter sido um dos principais introdutores deste recorte3 cujo significa-
do, do ponto de vista do pensamento, à rigor aponta para mudanças no conceito de soberania ibérica
nas terras da América até então baseado na “posse virtual de espaços ainda desconhecidos, sem aten-
ção a aspectos geográficos e físicos” em favor de uma concepção de território definido e delimitado
por fronteiras naturais”4.

Como problema historiográfico a formação territorial do Brasil na perspectiva da elaboração


do Tratado de Madri também chegou a ser alvo de controvérsias entre dois grandes historiadores da
década de 1950. 5 Sérgio Buarque de Holanda discordou da tese de Jaime Cortesão de que o Tratado
de Madri teria sido um produto das ideias clarificadas do estadista Alexandre de Gusmão sobre o
mito sertanista geopolítico da ilha Brasil, que o embasou cientificamente por uma razão geográfica de
Estado e acionou um programa de ação articulado a negociações estrangeiras e a um tipo social emer-
gente, como o engenheiro-topógrafo-cartógrafo, fruto da própria renovação das ciências geográficas
1 Professora Doutora, Universidade Estadual Paulista (UNESP), Proc. FAPESP 2015/21136-3.
2 Entendida como prática administrativa e dentre seus parâmetros no século XVIII estão também “a preocu-
pação com a demarcação de fronteiras na América portuguesa, com a implementação do Tratado de Madri.
RIBEIRO, M. S. “Se faz preciso misturar o agro com o doce: a administração de Gomes Freire de Andrada, Rio
de Janeiro e Centro-Sul da América portuguesa (1748-1763). Tese (Doutorado em História) - Universidade
Federal Fluminense, Niterói, p. 41-42, 2010.
3 ABREU, Capistrano. Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil. In: ______ (org.) Caminhos antigos e
povoamento do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.
4 DERNTL, M. F. Método e arte: criação urbana e organização territorial na capitania de São Paulo, 1765-1811.
Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 32, 2010.
5 CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão & o Tratado de Madri. São Paulo: FUNAG/Imprensa Oficial, 2006,
v. 1; HOLANDA, Sérgio Buarque. Um mito geopolítico: a ilha Brasil. In: ______ (orgs.). Tentativas de mitolo-
gias. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1979, p. 74-84.

314
e cartográficas em Portugal. Para Holanda as entradas sertanistas Seiscentistas no Brasil não teriam
sido a antecipação de um projeto de formação territorial dirigido pelo Estado, mas foram acionadas
por razões próprias da sociedade da América portuguesa6.

Embora este aspecto do entendimento da formação territorial do Brasil no século XVIII diri-
gido pelo Estado antecipado em um mito Seiscentista tenha sido revisado pela historiografia a partir
da controvérsia entre estes dois historiadores, alguns argumentos da obra de Jaime Cortesão ainda são
norteadores analíticos de relevo, como a mobilização ocorrida principalmente durante o reinado de D.
João V para criar uma base documental geográfica e cartográfica do Brasil para defender junto aos tri-
bunais internacionais e perante a Espanha os direitos de Estado soberano7 português sobre territórios
que Madri questionava como suas possessões de acordo com a antiga divisão da linha de Tordesilhas.

Um norteador analítico como este influenciou obras recentes realizadas no campo da história
da cartografia revisionista e que focalizou a história franco-portuguesa da confecção da Carte de l´A-
merique méridionale (1748), que forneceu o embasamento cartográfico para a assinatura do Tratado
de Madri. Inovadora em muitos aspectos teórico-metodológicos e, portanto, em suas conclusões sobre
o mapa como expressão de projetos régios e não da realidade topográfica, a obra, contudo, compar-
tilha a ênfase dada na discussão sobre formação territorial do Brasil ao processo de confecção de um
documento diplomático como o Tratado.8

Esta ênfase dada ao processo de elaboração de tratados políticos para compreender a forma-
ção territorial do Brasil também já havia sido dada pelos historiadores brasilianistas9. No seu estudo
sobre o Marquês do Lavradio (1769-1779), Alden dedicou boa parte às “debatable lands”, região cor-
respondente às terras do Brasil meridional, desde a capitania de São Paulo, consideradas de soberania
indefinida entre as duas Coroas ibéricas. Nesta obra o foco norteador da análise é o Tratado de Madri,
mas principalmente as controvérsias surgidas entre ambas Coroas após sua assinatura e seus desdo-
bramentos bélicos que envolveram o avanço das tropas hispânicas sobre as terras do Rio Grande e
Santa Catarina.

Davidson também orientou parte de sua interpretação da formação territorial do Brasil sob o
foco do Tratado de Madri, porém ampliou os agentes atuantes neste processo para além das figuras de
Estado, como os reis, ministros, secretários e o segmento de letrados nos vários campos da ciência, es-
6 KANTOR, Iris. Usos diplomáticos da ilha-Brasil: polêmicas cartográficas e historiográficas. Varia Histó-
ria, Belo Horizonte, v. 23, n. 37, p. 75, jan/jun. 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/vh/v23n37/
v23n37a05.pdf>. Acesso em : 15 out. 2018.
7 Estes direitos de Estado soberano estão associados “a razão de Estado” português e mesmo ibérico, que neste
período teve como ponto nodal as delimitações de suas fronteiras na América, p. 129.
8 FURTADO, Júnia. Ferreira. Oráculos da geografia iluminista: Dom Luís da Cunha e Jean-Baptiste Bourguig-
non D ´Anville na construção da cartografia do Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.
9 ALDEN, Dauril. Royal Government in colonial Brazil: with special reference to the administration of the
Marquis of Lavradio, Viceroy, 1769-1779. Berkeley & Los Angeles, University of California Press, 1968; David-
son, D. M. Rivers and Empire: the Madeira route and the incorporation of the Brazilian far west, 1737-1808.
Dissertation (Ph.D in History) - Yale University, USA, 1970.

315
tabelecendo a categoria genérica dos “freelances”, que diziam respeito aos exploradores de toda natu-
reza social, como padres, índios, sertanistas, negociantes. Em sua original pesquisa sobre a formação
da rota fluvial do Madeira-Mamoré-Guaporé o autor verificou que na conjuntura da elaboração deste
tratado esta fronteira foi conquistada por ambas Coroas, mas especialmente por Portugal, a partir da
navegação comercial destes rios executada na prática por este diferentes agentes sociais.

Ao instalar as capitanias de Goiás e Mato Grosso, por exemplo, Portugal estaria promovendo
a ocupação da fronteira oeste do Brasil de modo que, suas populações, os “frontiersmen” (fronteiros)
pudessem praticar a navegação destes rios, com objetivos comerciais e de exploração e com isto as-
segurar direitos sobre estas vias fluviais. Na sua abordagem, portanto, os interesses econômicos e de
sobrevivência destas populações coincidiram com os geopolíticos do Estado10 naquele momento, cuja
“razão” envolvia a necessidade de definição dos limites entre Portugal e Espanha na América.

Para outra vertente historiográfica os programas de urbanização do Estado teriam sido um dos
principais formadores da territorialidade do Brasil. Desde as guerras de restauração, no século XVII,
um dos principais tópicos da prática administrativa portuguesa teria sido garantir sua soberania sobre
territórios ultramarinos, o que levou à implantação de iniciativas institucionais formadoras de corpo
técnico habilitado a elaborar projetos, planos e plantas de vilas e cidades11.

Diante das tensões pela definição de suas soberanias na América desde este período, no cen-
tro-sul foi identificado um movimento de reterritorialização promovido pelo Estado através da fun-
dação de vilas e freguesias que estabeleceriam frentes de expansão para o sul e para oeste do Brasil
e ações ofensivas nos domínios territoriais limítrofes às duas Coroas. Para alguns autores defensores
desta linha de análise D. Luis de Souza Botelho Mourão, o Morgado de Mateus, teria sido uma força
social hegemônica neste processo, um funcionário nomeado em virtude de uma “razão” de Estado
cujo princípio fundamental a partir de 1750 era defender sua soberania perante as reivindicações de
direitos territoriais dos espanhóis12.

Ainda na perspectiva da formação territorial pelo viés da urbanização dirigida pelo Estado
alguns autores chamaram atenção para o fenômeno da desterritorialização de grupos indígenas e sua
inserção forçada na lógica monárquica católica do Império português. Assim, o mato foi substituído
pela cidade e a implantação da política do Diretório teve o objetivo de substituir os aldeamentos mis-
sionários por vilas. Através da urbanização do interior, como de regiões do Amazonas, Mato Grosso e
São Paulo a Coroa portuguesa implantava sua “razão de Estado”, ou seja, sua concepção de soberania e

10 DAVIDSON, D., op. cit., 1970, p. 57.


11BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira. Desenho e desígnio: o Brasil dos engenheiros militares (1500-1822).
São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2010.
12BELLOTTO, Heloisa Liberalli. Autoridade e conflito no Brasil colonial: o governo do Morgado de Mateus em
São Paulo (1765-1775). 2ª ed., São Paulo: Ed. Alameda, 2007; DERNTL, M. F. Método e arte: criação urbana e
organização territorial na capitania de São Paulo, 1765-1811. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) –
Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 32, 2010.

316
direitos sobre espaços disputados com povos nativos, colonos, mas também com a Coroa hispânica13.

Seguindo esta última linha de raciocínio entende-se que nos processos de formação territorial
o espaço é um local de confronto entre “razão de Estado” e as percepções, ou “razões” de direitos e
posse dos vários agentes sociais. Estes confrontos podem, ainda, impactar a agenda geopolítica do
Estado, levando-o a tomar decisões em relação a nomeações, reformulações político-administrativas
e em sua agenda de trabalho. Ou seja, as reivindicações dos sujeitos sociais podem interferir na “razão
de Estado” no que diz respeito à organização do território, que não se reduz, portanto, às decisões
emanadas de instâncias hierarquicamente superiores em virtude de projetos de construção da sobera-
nia e ou das decisões dos tratados políticos.

A formação territorial do Brasil no século XVIII não foi apenas uma arena de articulações en-
tre grupos envolvidos com os negócios internacionais das Cortes, governadores sediados na colônia e
seus aliados no universo de letrados em geografia e engenharia militar, responsáveis por criar as bases
técnico-cientificas que endossaram as reivindicações de soberania e direitos sobre terras dos reis e
resultaram nos Tratados, como o de Madri, nem um avanço unilateral dos desígnios do Estado com
seus projetos de mapeamento e urbanização de territórios situados no interior do continente, mas
incluiu também reinvindicações sobre direitos de ocupação e uso de terra formalizadas no Conselho
Ultramarino e fundamentadas em fontes de embasamento modernas e que, na época, possuíam força
de credibilidade nas próprias demandas jurídico-diplomáticas dos Estados. Refiro-me neste caso aos
mapas, que foram usados como arma jurídica e política tanto pelo Estado como pelos indivíduos co-
muns.

Se a “razão de Estado” português moderno para defender seus direitos de soberania esteve am-
parada nos referenciais modernos herdados do século XVII e que diziam respeito a uma nova racio-
nalidade político-administrativa no campo da geopolítica que deveria se basear na demonstração de
conhecimento formal de uma região, enquadrado-a em discurso científico, geográfico e cartográfico,
sertanistas também fizeram uso destes mesmos mecanismos, o que impunha novos níveis de exigência
de enfrentamento ao Estado, obrigando-o a constantes rearticulações políticas e de seus programas.

Esta foi uma questão observada na formação dos sertões do sudeste e sul do Brasil na con-
juntura de execução do Tratado de Madri, quando as controvérsias entre Portugal e Espanha foram
ampliadas em virtude de discordâncias em torno deste documento e do desconhecimento que ainda
possuíam da geografia desta região, o que comprometia a segurança da sua própria soberania. Vários
rios que atravessavam estes sertões foram lançados no texto do tratado como balizas divisórias e as
comissões demarcatórias nomeadas por ambas Coroas ou não os encontravam ou discordavam da
definição de seu curso e foz.

13ARAUJO, Renata Malcher. A urbanização da Amazônia e do Mato Grosso no século XVIII. Povoa-
ções civis, decorosas e úteis para o bem comum da coroa e dos povos. Anais do Museu Paulista. São Paulo,
v.20, n. 1, p. 41-76, jan-jun. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0101-47142012000100003>. Acesso em: 15 out 2018.

317
Por outro lado, sertanistas que exploravam esta região nesta mesma conjuntura demandaram
direitos de ocupação, posse e exploração de suas terras e rios, antecipando-se à própria Coroa na for-
malização da demonstração de conhecimento geográfico da região, como indica a petição escrita pelo
sertanista Angelo Pedroso ao Conselho Ultramarino acompanhada de um mapa dos sertões do Tibagi
datado de 1755. Este mapa, por sua vez, menos do que “realidade topográfica” demonstra como um
dos referenciais modernos do discurso político, ou seja, a cartografia não era manuseada apenas por
funcionários régios envolvidos com os negócios internacionais e nem produzidos apenas por profis-
sionais da engenharia militar, como enfatizaram alguns estudos14. O universo do uso, autoria e pro-
dução de mapas, no processo de formação territorial do Brasil no século XVIII, portanto, foi formado
por muitas nuanças que ainda merecem ser melhor investigadas.

Este texto, portanto, segue a tradição historiográfica de abordar a formação territorial do Brasil
no século XVIII sob as balizas cronológicas principalmente da fase de execução do Tratado de Madri,
quando houve intensificação da vulnerabilidade da “razão de estado” português no aspecto dos seus
direitos de soberania sobre as terras do Sul do Brasil em virtude dos conflitos com a Coroa de Espanha.
Acrescenta ainda um argumento também presente na historiografia mais recente e que diz respeito às
disputas do Estado com as reivindicações de direitos de posse, uso e exploração de terras e rios de uma
região15, associando tais reivindicações, contudo, à argumentos e documentos modernos relacionados
a campos científicos politicamente valorizados na época, como a geografia e a cartografia.

Para realizar esta discussão este texto foi dividido em duas partes. Na primeira será mostrado
como o potencial de riqueza mineral do sertão do sul, especialmente dos sertões do Tibagi, foi alvo
de investidas e interesses dos sertanistas e como a Coroa portuguesa, através de seus funcionários,
expressou preocupações através de ofícios, em relação a esta questão, tendo em vista a vulnerabilidade
de sua soberania em território ainda desconhecido e sobre o qual não possuía argumentos suficien-
temente embasados em geografia e cartografia para defende-los em caso de avanço dos espanhóis. É
este quadro que pode explicar algumas reformulações da “razão de estado” português na região Sul do
Brasil, quando reconduziu governador à capitania de São Paulo, na figura de D. Luis de Sousa Botelho
Mourão e lhe atribuiu a missão de executar um amplo projeto de mapeamento da região, o que de fato
ocorreu entre 1768-1773.

Neste sentido, as expedições de mapeamento dos sertões do Tibagi não foram uma mera con-
sequência da restauração da autonomia administrativa da capitania de São Paulo, como concluíram
alguns autores16. Interpretação como esta tende a continuar na linha de cânones historiográficos que
atribuem à D. Luis de Sousa um papel proeminente demais à complexidade das relações sociais17,
quando a documentação mostra que as investidas dos sertanistas sobre os sertões do Tibagi, muitas
14 BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira. Desenho e desígnio: o Brasil dos engenheiros militares (1500-1822).
São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2010.
15HERZOG, Tamar. Frontiers of possession: Spain and Portugal in Europe and the Americas. Cambridge:
Harvard University Press, 2015.
16 DERNTL, M. F. Método e arte: criação urbana e organização territorial na capitania de São Paulo, 1765-
1811. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 94, 2010.
17 BELLOTTO, Heloisa Liberalli. Autoridade e conflito no Brasil colonial: o governo do Morgado de Mateus
em São Paulo (1765-1775). 2ª ed., São Paulo: Ed. Alameda, 2007

318
vezes associados a funcionários de órgãos locais de poder, com as câmaras, pode ter sido a causa da
restauração da capitania e em consequência, do projeto de mapeamento oficial desta região.

Ou seja, o processo de formação territorial desta região não foi um mero resultado de Tratados
políticos ou imposição de projetos oficiais de soberania, mas dos confrontos de diferentes “razões”,
a de Estado e a dos sertanistas, numa relação equivalente ao que Tamar Herzog18 concluiu para as
divisões territoriais ibéricas na América que envolveram a interação entre vários atores sociais que
representaram interesses diferentes e vozes oriundas de diferentes lugares sociais.

Na segunda parte mostro como as reivindicações destes sertanistas foram endossadas em ar-
gumento cartográfico, conforme evidencia o mapa dos sertões do Tibagi feito por Manuel Angelo
Filgueira de Aguiar em 1755. Neste tópico a abordagem revisionista da história da cartografia19 foi um
norteador de análise e permitiu concluir sobre a força de pressão da mensagem que inventou legítimos
direitos do sertanista e lhe garantiu pelo menos o cargo de guarda-mor interino das minas do Tibagi
por três meses, mas também reforçou na Coroa a noção de urgência de realização de um projeto de
mapeamento, que pode ser inferido pelas medidas político-administrativas que tomou a partir de
1765 em relação ao sul do Brasil.

As demandas sertanistas por direitos de exploração e uso das terras dos sertões do sul como desenca-
deador de um programa de mapeamento

Conforme foi observado pela historiografia, desde 1592 “já havia notícias consistentes sobre
atividades regulares de mineração na região de São Paulo; em 1640, que se estenderam para regiões
de Paranaguá, Curitiba, Iguape e Cananéia”20 Conforme destacou Nestor Reis, a atividade mineradora
nos sertões do Sul recebeu pouca atenção dos historiadores, em virtude do “grande movimento de
mineração no século XVIII em Minas Gerais, em Goiás e Mato Grosso do Sul”. E de fato, em certa
medida, a historiografia vem valorizando esta perspectiva e avançado em relação a obras que até então
abordaram a formação territorial dos ditos campos de Curitiba associado essencialmente ao movi-
mento das tropas de muares em direção à feira de Sorocaba ou ao Registro de Curitiba21

A iniciativa do Estado português em investir na formalização do conhecimento geográfico e


ocupação humana desta região através de um programa de mapeamento dos sertões do Tibagi apre-
sentado pelo governador da capitania de São Paulo em 1766 ao rei e executado entre 1768-1773,
18 HERZOG, Tamar. Frontiers of possession: Spain and Portugal in Europe and the Americas. Cambridge:
Harvard University Press, 2015, p. 6.
19EDNEY, Matthew. Cartography without ‘progress’: reinterpreting the nature and historical development of
mapmaking. Cartographica vol. 30, n. 2/3 summer autumn 1993, pp. 54-68.
20REIS, Nestor Goulart. As Minas de ouro e a formação das capitanias do sul. São Paulo: Via das Artes, 2013.
21PICANÇO, Jefferson & MESQUITA, Maria José. A mineração aurífera na ocupação do planalto curitibano e
litoral paranaense (séculos XVI-XVIII). Geosul, v. 27, n. 54, p. 117-137, jul/dez 2012. Disponível em: <https://
periodicos.ufsc.br/index.php/geosul/article/view/2177-5230.2012v27n54p116>; Acesso em: 31 dez. 2016;PE-
TRONE, Maria Theresa Schorer. O Barão de Iguape: um empresário da época da independência. São Paulo:
Comp. Editora Nacional, 1976; SEVERINO, Carolina Silva. A dinâmica do poder e da autoridade na Comarca
de Paranaguá e Curitiba. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Estadual Paulista, Franca, 2009.

319
envolvendo tropas militares de infantaria demonstra esta força de influência do potencial e atividade
exploratória auríferas na formação desta região.

Alguns autores concluíram que a formação territorial dos sertões do Sul do Brasil, sob a égide
do programa de urbanização da Coroa portuguesa esteve relacionada ao fomento dado à exploração
aurífera22. Contudo, observa-se na documentação que foi sob uma postura de dissuasão das intenções
individuais dos sertanistas de explorar ouro e diamantes nesta região ou mesmo de desmobilização
de atividades já em curso neste sentido que ganhou forma o programa de mapeamento organizado
pelo governador D. Luis de Sousa Botelho Mourão e cujo foco recaiu sobre as áreas que os sertanistas
diziam ter explorado, como os sertões do Rio Tibagi, Guarapuaba ou os sertões do Morro Apucarana.
O próprio programa exploratório de D. Luis recebeu o nome de um dos rios que atravessava estes
sertões, o “Tibagi”23, cujo plano inicial de exploração já havia sido projetado pelo geógrafo genovês
Francesco Tossi Colombina em 1752, mas que a Coroa portuguesa não permitiu que seguisse adian-
te24. Diferentemente do que ocorreu nos sertões de Minas Gerais ou Goiás, instruções régias enviadas
a este governador expressam a percepção da Coroa dos riscos que o fomento da exploração aurífera
nos sertões do Tibagi impunha à soberania.

Tendo em vista este problema não somente nos sertões do Tibagi, mas em todo o território do
Brasil, o foco da política do Estado português passou a ser oferecer suporte institucional para que os
governadores pudessem levantar informações geográficas, promover exploração dos espaços, sistema-
tizar estas informações em diários, ofícios, desenhos e mapas25.

O processo de urbanização promovido por D. Luis de Sousa envolveu um amplo movimento


de reterritorialização da região do atual estado do Paraná, através da implantação de vilas e freguesias
que forneceram infraestrutura para as entradas das tropas de aventureiros e posteriormente militares
nestes sertões26.

Mas também foi uma estratégia para desmobilizar antigos poderes locais sediados em câmaras,
como as de São Paulo ou Paranaguá que também se envolveram em reinvindicação de direitos de uso
e ocupação de terras. Ao lado do sertanista Angelo Pedroso, por exemplo, estava o escrivão da Câmara
de São Paulo, Manuel Angelo Figueira de Aguiar, que desenhou o mapa dos sertões do Tibagi abaixo
analisado e a Câmara de Paranaguá fora instigada pela de Santos, conforme palavras do ouvidor geral

22 DERNTL, M. F. Método e arte: criação urbana e organização territorial na capitania de São Paulo, 1765-
1811. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 96, 2010.

23 Projeto Resgate – São Paulo – Alfredo Mendes Gouveia. AHU, cx. 25, doc. 2411, 1768, Maio, 21,
24ANDRADE, João Corrêa de. Francisco Tosi Colombina. Descobrimento das terras do Tibagi. Manuscrito
inédito do século XVIII. Maringá: Universidade Estadual de Maringá, 1974.
25 DERNTL, M. F. Método e arte: criação urbana e organização territorial na capitania de São Paulo, 1765-
1811. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 53, 2010.
26 DERNTL, M. F. Método e arte: criação urbana e organização territorial na capitania de São Paulo, 1765-
1811. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 34 e 53, 2010.

320
da comarca de São Paulo, que “fosse tomar posse das terras do Tabagi”27

Os sertões do Tibagi compreendiam os vales do Tibagi e Ivaí e às áreas banhadas pelos rios
Piquiri, Paraná, Paranapanema e Tibagi. À sudoeste entre os rios Iguaçu e Ivaí ficavam os Campos
de Guarapuava e estes sertões correspondiam ainda aos antigos territórios da província do Guairá.
Os espanhóis, através da ação da Companhia de Jesus, começaram a avançar sobre este território no
século XVI, quando fundaram vilas, posteriormente destruídas pelos sertanistas de São Paulo, como
Vila Rica do Espírito Santo (1576), Ciudad Real (1557) e Ontiveros (1554).

Entre 1610-1628 os jesuítas estabeleceram 15 aldeamentos na região, sendo 13 deles à ocidente


do atual estado do Paraná28. Esta frente de expansão jesuíta sobre este território não pode ser negligen-
ciada do ponto de vista da produção de conhecimento geográfico, através de mapas feitos por padres
atuantes sob os domínios, à rigor de Espanha. Esta é uma perspectiva que poderia ser trabalhada ten-
do como ponto de partida a produção cartográfica reunida pelo padre Furlong29, pois poderia ser ve-
rificada a hipótese dos portugueses estarem em desvantagem em relação à Coroa de Espanha quanto
a uma questão crucial para a época como a geografia de um lugar, o que realmente poderia torná-los
mais suscetíveis à preocupações de ordem política em relação à movimentação espontânea, como a de
sertanistas e exploradores de modo geral, sobre esta região.

Em ofício D. Luis de Sousa agradecia à Coroa por “toda a ajuda e favor “ para que os aven-
tureiros da expedição de mapeamento que organizaria para os sertões do Tibagi fossem avançando
com estabelecimentos de povoação na Serra de Apucarana, mas estava ciente de que “sem que lhes
permitissem hirem logo a esta serra buscar os haveres, pois que seria o mesmo que mostra-los aos
castelhanos, sem os taes aventureiros terem força bastante para os defender em tão longa distância”30.
Nesta época, inclusive, o Tratado de Madri já havia sido anulado pelo de El Pardo (1763) e reabilitados
os limites traçados pela linha de Tordesilhas. A ocupação norteada pelo interesse de exploração aurí-
fera na região, portanto, colidia com a “razão de estado português” no período, cujo alvo central era
segurar a fronteira interna do sul do Brasil diante da expectativa de avanço dos espanhóis.

Este alerta de prudência de D. Luis pode ser explicado pelas reivindicações individuais de
sertanistas, formalizadas institucionalmente desde a década de 1750, o que as inseria no fluxo comu-
nicativo do próprio Estado, obrigando autoridades e funcionários a responde-las e contê-las pela via
da própria prática administrativa, o que pode ser um uma das causas deflagradoras da nomeação do
governador D. Luis de Souza para a capitania de São Paulo, que imediatamente à sua posse colocou
em prática o programa de mapeamento da região.

Esta urgência imposta ao próprio Estado para redefinir sua prática administrativa no cen-
tro-sul pode ser explicada, portanto, por algo que Tamar Herzog chamou atenção e que diz respeito

27 AHU, 1755, maio, 22, São Paulo, cx 4, doc. 28.


28 DERNTL, M. F. Método e arte: criação urbana e organização territorial na capitania de São Paulo, 1765-
1811. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 94, 2010.
29CARDIFF, Guillermo Furlong. Cartografía Jesuítica del Río de La Plata. Buenos Aires: Talleres AS Casa
Jacobo Peuser Ltda, 1936.
30 Projeto Resgate – São Paulo – Alfredo Mendes Gouveia. AHU, cx. 25, doc. 2411, 1768, maio, 21,

321
aos conflitos surgidos no século XVIII na interpretação dos tratados. Enquanto alguns o defendiam
como solução final das disputas territoriais outros “sugeriam que apenas a ‘ação sobre a terra’ pode-
ria conduzir à aquisição de direitos” 31. Internamente, em ambos Impérios na América entraram em
curso discussões sobre o justo e o possível em termos de ocupação territorial, impondo um ambiente
de competição entre os tratados e a exibição de informações geográficas práticas32, o que não signi-
fica que necessariamente comprovadas empiricamente, mas formalizadas em documentos escritos
e visuais. Ainda segundo esta mesma autora existia uma espécie de “medo” entre as autoridades de
ambos Impérios ibéricos em relação aos documentos que poderiam levar a “aquisições territoriais”,
podendo-se considerar as demandas por direito de uso e ocupação da terra.

Justamente nesta situação se insere as demandas de Angelo Pedroso feitas ao ouvidor da Co-
marca de São Paulo João de Sousa Filgueiras em relação aos sertões do Tibagi. Este caso acionou uma
troca de correspondências entre autoridades régias no centro-sul e em Lisboa permeada por certa
margem de apreensão. Sousa Filgueiras escreveu ao secretário de Estado Diogo de Mendonça Corte
Real em 1755 e este ao governador geral das capitanias do centro-sul, Gomes Freire de Andrade. Fil-
gueiras informava a Secretário que lhe havia escrito sobre a notícia de “um novo descoberto de minas
de ouro no sertão do Tabagi desta comarca para que V. Ex. o pusesse na presença de V. M., mas proi-
biu-lhe o imediato “cavar e minerar” sem primeiro informar ao rei e lhe enviar a certidão escrita pelo
próprio Angelo Pedroso, para que ele pudesse “proceder acertado com as determinações”33. O secretá-
rio, por sua vez, meses depois, escreveu ao governador das capitanias do centro-sul, Gomes Freire de
Andrade sugerindo certo sobressalto:
Este Tibagi nos dá sempre em que cuidar, porque a S. M. se apresentarão estes dois
pretendentes de que vão os papéis inclusos, para descobridores daqueles sertões e dos
Tesouros que nelles se inserão (...) dos quais remeto a V. Sa os requerimentos inclu-
sos, para que Vossa Exca informe interpondo o seu parecer” 34

A certidão de Angelo Pedro seguia com um mapa, como informou Sousa Filgueiras ao conde
de Oeiras35 mas o peso político alcançado pelos mapas neste período pode ter sido um componente
preocupante e capaz de mexer na própria “razão de estado” portuguesa para o centro sul.

Infelizmente pouco foi encontrado na documentação sobre este sertanista, mas sua demanda
surtiu algum efeito, pois em 1755 recebeu a provisão de guarda-mor temporário “dos novos desco-
brimentos que tem praticado com mais descobridores”, o que pode ter sido uma própria estratégia
política da Coroa para apaziguar a competição sobre uma região de soberania incerta, suscetível a
“dúvidas de dicensões (...) entre os concorrentes”, como alegou o ouvidor João de Sousa Filgueira em
despacho36.

Em sua certidão Angelo Pedroso informava que havia nove anos que percorria os sertões do
31 HERZOG, Tamar. Frontiers of possession: Spain and Portugal in Europe and the Americas. Cambridge:
Harvard University Press, 2015, p. 33.
32 Idem, p. 33.
33 AHU, São Paulo, avulsos, 1955, maio, 22, cx. 4, doc. 28, D. 282
34 AHU, Rio de Janeiro, avulsos, 1756, fevereiro, 5, cx 59, doc. 44; cx. 54, doc. 22; cx. 295, doc 11. D. 4983.
35 AHU, São Paulo, avulsos, cx. 4, doc. 28, 1755, Maio, 26, D. 283.
36 AHU, São Paulo, Avulsos, 1755, maio, 22, cx 4, doc. 28.

322
Tabagi e descobrira “vários ribeirões com suas pintas de ouro”, todas apontadas no mapa que será
analisado abaixo e que “inventou” um sertão do Tibagi que considerava ter direitos de ocupação e
uso, porque sabia inclusive, conforme mostrou no texto e no desenho onde se situavam as lavras, bem
como o curso e os topônimos de vários ribeiros e ribeirões.

Inventores de territórios: o mapa de um Sargento-mor das ordenanças do porto de Santos e


cidadão de São Paulo

A expansão da fronteira interna da América do Sul pelas demandas por direitos de posse, uso
e exploração de terras têm sido reconhecidas pela historiografia. Adriana Romeiro demonstrou que
os “paulistas” (sic) escorados na crença e argumento de descobridores das minas auríferas dos sertões
mineiros expressa em documentos escritos ao Conselho Ultramarino reivindicaram direitos de pre-
cedência sobre arrematações de contratos, nomeações administrativas, distribuições de datas, ou seja,
de exploração das terras da fronteira mineral e estruturação de sua sociedade. A autora fundamentou
este discurso de direitos de precedência dos “paulistas” no conceito de grupo étnico, proposto por
John Russell-Wood e que demonstrou que estes forjaram uma identidade própria a partir de uma ex-
periência histórica específica, a de exploradores e descobridores de sertões, que os munia de direitos,
o que mantêm íntima relação com o próprio conceito de cultura política mestiça, já presente sem esta
formulação em obras como “Universo do Indistinto, o qual sistematiza um imaginário político nos
sertões norteado por valores como honra, fama pública, virilidade, valentia e que funcionaram como
instrumentos retóricos de persuasão e credibilidade na escrita peticionária destes grupos37.

Mas a partir do século XVIII novos instrumentos passaram a mediar esta retórica de persuasão
pelo reconhecimento de direitos e dentre eles destacam-se desenhos e mapas de regiões, como o utili-
zado pelo sertanista Angelo Pedroso. Tais mapas, como já demonstrou ampla historiografia, não tra-
duziam a realidade topográfica de espaços, mas representações. Como foi escrito, mapas são “produto
da ação humana” e tem, “como documentos históricos, “uma natureza social e são ao mesmo tempo
imagem, texto (discurso), desenho e desígnio (...) Para além de duplos da realidade (...) os mapas são
uma construção social do mundo expressa por meio da cartografia”38

Estas reivindicações por direitos de uso, posse e exploração de terras formatadas sobre novos
padrões do discurso persuasivo, incluindo fontes cartográficas colidiam com a lógica da “razão de
estado” português no processo de definição de suas fronteiras com a Espanha, forçando-o, inclusive a
adotar novas ações em sua agenda geopolítica para a região.

Tendo em vista a condição de funcionário do Estado do engenheiro-militar sertanistas que


demandavam direitos sobre terras usaram mapas não necessariamente saídos de seus pincéis e tintas,
37ROMEIRO, Adriana. Paulistas e Emboabas no coração das Minas: idéias, práticas e imaginário político no
século XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMF, 2008; SILVEIRA, Marco Antonio. O universo do indistinto: esta-
do e sociedade nas minas setecentistas (1735-1808). São Paulo: Ed. HUCITEC, 1997.
38BUENO, Beatriz P. Siqueira. Do borrão às aguadas: os engenheiros militares e a representação da capitania de
São Paulo. In: Anais do Museu Paulista. São Paulo, v. 17, n. 2, jul-dez., 2009. Disponível em <http://www.scielo.
br/scielo.php?pid=S0101-47142009000200008&script=sci_arttext>. Acesso em 1 de outubro de 2015, p. 112.

323
mas de funcionários dos conselhos de governo local, com os quais possuíam convívio mais imediato,
que também foram autores destes documentos, mas sem disporem das formações técnico-profissio-
nais ou instrumentos próprios dos engenheiros. Ainda assim estes mapas foram reconhecidos como
documentos oficiais e que poderiam endossar as petições de sertanistas junto aos tribunais. Este dado
aponta para o próprio status limítrofe do mapa neste período, situado entre o profissional que atuava
revestido dos procedimentos técnico-científico específicos e aquele que apenas detinha a maestria e o
saber do desenho.

O uso e produção de mapas na história da América portuguesa tem sido reconhecido pela
historiografia desde os trabalhos de Jaime Cortesão, responsável não apenas por localizar na Biblio-
teca Nacional um acervo de desenhos que intitulou “mapas sertanistas”, como de interpretá-los como
produto dos sertanistas de São Paulo, Cuiabá, Rio Grande e da Prata, autores de desenhos “primitivos”,
representativos da cultura indígena e distantes da herança europeia. Para este autor mapas sertanistas
teriam sido “parte do enredo das conquistas portuguesa e da construção do Estado Nacional brasilei-
ro39.

Recentemente uma historiografia influenciada pelas mudanças epistemológicas ocorridas na


história da cartografia da década de 1960 retomou o tema dos mapas sertanistas fora dos enquadra-
mentos analíticos nacionais de Cortesão e os inseriu na lógica dos Estados da época Moderna, vendo-
-os como instrumentos da “conquista, colonização e administração dos territórios”40.

O mapa apresentado por Angelo Pedroso, contudo, não pode ser considerado um mapa ser-
tanista nos padrões daqueles definidos pela historiografia que o associa às bandeiras do Seiscentos,
nem foi feito por este tipo social, ou seja, por alguém que percorria sertões, mas por um funcionário
de conselho de governo local, Manuel Angelo Figueira de Aguiar, que fora escrivão da vila de Santos e
vereador da câmara de São Paulo entre as décadas de 1750 e 1760. Tinha a patente de tenente coronel,
mas não foi possível saber se teve formação em engenharia militar. Mesmo a listagem de engenheiros
militares construída por Beatriz Bueno41, embora mencione o seu nome, não conseguiu localizar este
tipo de informação. Mas certamente não possuía formação técnico-profissional, como demonstra seu
desenho isento de técnicas básicas do desenho de mapas técnicos como geometria, cálculos matemáti-
cos, escalas, as ptolomaicas linhas paralelas (longitude) e meridianas (latitude) em grade. Ainda assim,
mapas com estas características estão longe de traduzir a realidade de um território, mas demonstram
a formação de seu autor.

Manuel Angelo também era negociante na vila de Santos, sendo um dos integrantes do projeto
39OLIVEIRA, Tiago Kramer de. Cartografias do “sertão”: os mapas sertanistas no discurso histórico de Jaime
Cortesão e Sérgio Buarque de Holanda. Revista territórios & fronteiras, Cuiabá, v. 6, n. 2, jul-dez, 2013. Dispo-
nível em: <http://www.ppghis.com/territorios&fronteiras/index.php/v03n02/article/view/184>. Acesso em : 15
Out. 2018.
40OLIVEIRA, Tiago Kramer de. A “cartografia sertanista” e as conquistas portuguesas no centro da América
do Sul (primeira metade do século XVIII). In: VI Simpósio luso-brasileiro de cartografia histórica, 4 a 7 de no-
vembro de 2015, Braga, Portugal. Atas...Disponível em: <http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/14299.pdf>.
Acesso em: 15 out 2018.
41 BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira. Desenho e desígnio: o Brasil dos engenheiros militares (1500-1822).
São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2010, p. 333.

324
de formação de uma Companhia Mercantil neste porto, com exclusividade de emissão de licenças
para negociação, por atacado, com fazendas da Europa e às vésperas de sua morte estava ainda à fren-
te da administração do contrato do sal e da pesca da baleia. Era um tipo social, portanto, atuante na
política local e de negócios diversificados, com habilidade para desenho42.

Também não foi possível saber as ligações do sertanista Angelo Pedroso com Manuel Angelo,
nem como foram as tratativas para a encomenda do mapa. É certo que foi uma encomenda porque
confirma o nome de Angelo Pedroso como descobridor na cartela colocada no canto superior esquer-
do do mapa. Além disto conforme informou o ouvidor da comarca de São Paulo a certidão de Angelo
Pedroso seguia com um mapa, o que está de acordo com o próprio local onde sua versão original se
encontra atualmente, ou seja, no acervo cartográfico do Conselho Ultramarino.

Certamente ambos documentos foram separados no processo de tombamento, porque esta foi
uma prática em bibliotecas e arquivos, conforme apontaram alguns autores, o que tende a dificultar
os trabalhos de investigação cartográfica contextual43. Em virtude da separação de seus documentos
anexos o mapa de Manuel Angelo foi analisado em outro momento separado da certidão de Angelo
Pedroso44, o que levou à minimização do seu valor na história da construção da soberania do Império
português e de sua formação territorial no Sul do Brasil no século XVIII.

42 AHU, SP-Alfredo Mendes Gouveia. Cx, 21, doc. 2079, 1756; cx 22, doc. 2134, 1760; cx. 25, doc. 2383, 1767;
cx 25, doc. 2419, 1768; cx 36, doc. 3026, Santos, 1775. Bueno, op. cit., p. 333.
43 BUENO, Beatriz P. Siqueira. Do borrão às aguadas: os engenheiros militares e a representação da capitania
de São Paulo. In: Anais do Museu Paulista. São Paulo, v. 17, n. 2, jul-dez., 2009, p. 114. Disponível em <http://
www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-47142009000200008&script=sci_arttext>; acessado em 1 de outubro de
2015.
44PICANÇO, Jefferson & MESQUITA, Maria José. O sertão do Tibagi, os diamantes e o mapa de Angelo Pe-
droso Leme (1755). 1º Simpósio Brasileiro de cartografia histórica. Paraty, 10 a 13 de maio de 2011. Disponível
em: <https://www.ufmg.br/rededemuseus/crch/simposio/PICANCO_JEFFERSON_E_MESQUITA_MARIA_
JOSE.pdf>. Acesso em: 02 jan. 2017.

325
Aguiar, Manuel Angelo Figueira de, 1 carta ms. : color., desenho a nanquim ; 63,8 x 40,3 cm em folha 66,7 x 43,3 cm., 1755.
http://objdigital.bn.br/acervo_digital/rede_memoria/projeto_resgate/iconografia_AHU/ahu-sp_1196/ahu-sp_1196.html

Na medida em que mapas não traduzem a realidade topográfica de um lugar, mas expressam
fatos ideológicos e culturais este desenho de Manuel Angelo pode ser considerado uma invenção
visual primeira dos Sertões do Tibagi. O próprio rio Tibagi, que deu nome à estes sertões e poste-
riormente foi apropriado pelo próprio discurso das autoridades régias foi representando correndo na
direção da roça de Angelo Pedroso.

Pelo menos sete pontilhados, que nas convenções cartográficas representavam itinerários, per-
correm toda a planta sendo que três alcançavam os Campos de Guarapuaba, onde estava o “mor-
ro chamado Apucarana”, mencionado na certidão (“na diligência de descobrir o morro Apucarana”,
como escreve). Manuel Angelo destacou na cartela que neste sertão Angelo Pedroso “tinha feito as
picadas notadas com linhas de pontilhados no tempo de sete anos”. Intencionalmente todas estas li-
nhas confluíam para o desenho de sua roça, representada com a figura de edificação de uma casa, um
símbolo de ocupação permanente, justamente um dos principais argumentos na defesa dos direitos
sobre terras.

Na certidão declarava que havia lavrado ouro no “certam que modea entre o rio Tabagi e o
rio Grade do Registro do Viamão”, do mesmo modo como está visualmente representado no mapa.

326
Trata-se, portanto, da invenção de um sertão de Angelo Pedroso, localizado nas suas “diligências de
descobrir” conforme foi escrito pelo desenhista na cartela.

Seguindo a tradição genealógica da escrita Setecentista, Angelo Pedroso podia não ter paren-
tesco com os antigos sertanistas, mas seguiu os seus “conhecimentos”, argumento que poderia estar
alcançado maior valor do que o da consanguinidade. No século XVIII novos padrões de herança, vin-
culados à posse de conhecimento, forneciam força de persuasão aos argumentos defensivos de direitos
de ocupação e posse de terras, pois conforme foi anunciado na cartela, Angelo Pedroso entrou nos
sertões guiado “pelos roteiros, e tradições dos antigos Paulistas, que fizeram entradas no dito Certam,
como foi o grande Gor. Fernão Dias Paes”.

Tanto o mapa como a certidão apontam os rios e ribeirões que possuíam ouro, bem como o
morro Apucarana, que na cartela aparece apenas como “promessa” porque fora apenas visto de longe.
Na certidão foi explicado que o dito morro não foi “examinado” porque lhe faltara mantimentos, o
que quis dizer, para prosseguir com a expedição. De qualquer modo, este morro também foi inventado
no desenho como elemento topográfico visto/conhecido pelo sertanista e, portanto, sobre o qual ele
poderia demandar direitos. No projeto de D. Luis de Sousa para a exploração dos sertões do Tibagi
em certo momento ele mencionou a necessidade de explorar “os sertões de Apucarana”, referindo cer-
tamente a região entorno deste morro.

Levando em consideração conclusões feitas por Picanço, que sugeriu que o mapa de Manuel
Angelo foi utilizado para a confecção posterior de um dos primeiros mapas oficiais dos sertões do
Tibagi, o “Planta do sertão do Tibagi que se acha descoberto” desenhado em 1769, tamanha a simila-
ridade, onde aparece o morro Apucarana, pode-se mesmo inferir que o mapa que inventou os sertões
do Tibagi de Angelo Pedroso foi uma das motivações por traz da reabilitação da autonomia da capita-
nia de São Paulo na figura de um governador que promoveria a construção formal do conhecimento
geográfico de uma região que já estava sendo alvo de mesma iniciativa encabeçada por sertanistas
amparados em documentos cartográficos feitos por sujeitos habilidosos em desenho.

Assim, mapas não expressavam essencialmente desígnios de Estado, como definição de fron-
teiras político-administrativas, exploração de recursos naturais e dominação, mas também interesses
individuais de sertanistas, podendo-se falar em uma “arena de mapas como instrumento de poder
produzido pelo Estado, por elites educadas e proprietárias, oficiais militares, planejadores de cidades,
revolucionários e ativistas de comunidades”45

Conclusões

Neste texto o tema da soberania do Império português na América, através da formação terri-
torial do Sul foi tratado na perspectiva dos confrontos entre ‘razão’ de Estado, entendida como prática
político-administrativa e agentes sociais comuns, como exploradores e sertanistas. Autores demons-
traram que a partir da segunda metade do século XVIII esta “razão” de estado esteve relacionada às
45 EDNEY, Matthew, op. cit., p. 58.

327
disputas ibéricas pela definição de seus limites na América, que não se resolveram com a assinatura
do Tratado de Madri, o que indica os limites destes documentos diplomáticos na solução dos conflitos
internacionais.

Nos sertões conhecidos por Tibagi, cujos rios haviam sido lançados no texto deste tratado,
mas que ainda permaneciam como uma incógnita geográfica e de soberania indefinida para a Coroa
portuguesa, em meio às controvérsias imediatamente estabelecidas entre as duas Coroas após Madri,
sertanistas recorreram ao Conselho Ultramarino, munidos de argumentos e documentos escritos e
mapas que reivindicavam seus direitos de uso e ocupação das terras destes sertões, sob alegação de
descobridores de aluviões de ouro e exploradores desta região desde certo período.

Tendo em vista a força de persuasão alcançado pelos mapas desde o final do século XVII,
quando os direitos de uso e posse de terras passaram a ser traduzidos em termos de demonstração
de ocupação e conhecimento geográfico do lugar, a petição do sertanista Angelo Pedroso enviada ao
Conselho Ultramarino munida de certidão e mapa foi motivo de apreensões para a Coroa portuguesa
e pode mesmo ter sido um dos fatores de decisões na sua agenda geopolítica. É neste contexto que
podem ser analisadas a restauração administrativa da capitania de São Paulo e a instalação de um go-
vernador com a missão de promover o mapeamento desta região.

Soberania e formação territorial na América portuguesa, portanto, foram produto de um jogo


de relações de força, no qual vários atores sociais, na defesa de seus interesses, forçaram o Estado a
continuamente revisar suas práticas político-administrativas.

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Em nome do Rei: a história da diplomacia no século XVII


Luiz Felipe Vieira Ferrão46

O estudo sobre a História da diplomacia passa necessariamente pelo estabelecimento de um


novo campo de conhecimento/disciplinarização que foi sendo constituído ao longo do século XX.
O primeiro departamento de Relações Internacionais foi criado em 1919 na universidade galesa de
Aberystwyth. Tinha com função principal estudar as questões sobre a guerra e como evita-la para que
tragédias com as que atingiram a Europa entre 1914 e 1918 nunca mais viessem a se repetir

Um dos primeiros autores voltados para as questões internacionais é certamente Edward


Hallet Carr. Mas conhecido em História com o seu livro O que é História?47 publicou em 1939 um

46 Doutorando do Programa de Pós Graduação em História Social- UFRJ


47 CARR, Eduard Hallett. O que é história? Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 3ª Ed, 1982.

330
livro muito conhecido na área sob o título de Vinte Anos de Crise48 onde criticou pesadamente os seus
colegas acadêmicos que, segundo o autor, pensavam mais em como o mundo devia ser e não como ele
era de fato. Foi nessa obra que surgiram então as primeiras classificações teóricas tão comuns nesta
área. Segundo Carr haveria então dois modelos de se ver as relações entre os países. Uma seria realista
e pragmático e estudaria o mundo como ele se apresenta focando na forma como os Estados sobre-
viveriam a “selva internacional”. O outro idealista focando em estratégia de como poderíamos fazer
para torna-lo mais pacífico. Após este primeiro debate, e sob a égide de um grande sucesso editorial,
vemos o Realismo prevalecer pelas páginas de Hans Morgenthau em A política entre as nações49 e
isso só toma mais força nos anos subsequentes com o peso da importação de métodos e conceitos das
ciências exatas.

Na década de 60 e 70 outras questões acabaram por se impor neste campo e o sólido prédio
teórico do realismo começou apresentar suas rachaduras. De um lado os desafios de um mundo cada
vez mais complexo (guerra fria, bipolaridade e países recém independentes), de outro a evolução da
disciplina, tanto na Europa como nos Estados Unidos e de um terceiro o surgimento de novos atores
não estatais nunca antes previstos nas teorias clássicas. Todos somados provocaram o questionamen-
to das premissas realistas.
“Assim, surgiram críticas à separação entre política doméstica e política internacio-
nal, bem como à divisão entre high e low politcs (alta política, relativa à segurança;
e baixa política, referente a temas econômicos, tecnológicos etc), e a primazia da
primeira em relação à segunda.”50

Os ataques promovidos pelos contrários ao realismo surtiram efeito e livros como os de Joseph
Nye e Robert O. Keohane51 foram fundamentais para o abalo da teoria dominante do realismo. Esse
fato fez surgir uma série de vertentes teóricas que hoje povoam a cada vez mais constituída e discipli-
narizada Relações Internacionais, o que alias fez aparecer novos objetos para essa disciplina. Mas essa
área do conhecimento tem um mito fundador que resistiu ao tempo e as mudanças e que segundo Bar-
ry Buzan e Richard Little (1999), referência nas questões relativas à segurança nas Relações Internacionais,
são de um valor fundamental no sistema das relações entre os países, sendo este o ponto fundador de um
sistema moderno de estados soberanos.

Westphalia has been accorded iconic status in IR. There is a near consensus in the
field that the 1648 treaties represent the benchmark for the transformation of the
international system, or at least the European international system, from medieval
to modern form. Westphalia is associated with the formal emergence of a distinctive

48 CARR, Eduard Hallett. Vinte anos de crise 1919 – 1939: Uma Introdução ao Estudo das Relações Internacio-
nais. São Paulo: EDUNB/IPRI; Imprensa Oficial do estado de São Paulo, 2ª Ed, 2001
49 MORGENTHAU, Hans. A política entre as nações: a luta pelo poder e pela paz. São Paulo: EDUNB/IPRI;
Imprensa Oficial do estado de São Paulo, 2ª Ed, 2003
50 NOGUEIRA, João Pontes. Teoria das Relações Internacionais: correntes e debates. Rio de Janeiro: Elsevier,
2005. p 5.
51 KEOHANE, R.O; Joseph Nye. Power and Interdependence: World Politcs in Trasition. Boston: Little, Brown
and Company, 1977

331
system of sovereign states.52

Mito fundador forte e muito bem arraigado na disciplina das relações internacionais, soma-
do ao fato da história da diplomacia ser por muitos considerada como um mero empilhar de fatos e
reprodução de documentos, o tema das relações internacionais no período do Antigo Regime não
atraiu nem historiadores nem internacionalistas por um longo tempo. Salvo alguns trabalhos, e em
especial citamos os diversos trabalhos de Edgar Prestage53, que dedicou boa parte do seu esforço para
trazer a luz uma vasta quantidade de documentos sobre as atividades do corpo diplomático português
do período de D. João IV, poucas foram as tentativas de exploração deste campo. Esse fato deixou na
penumbra todo um período por demais dinâmico que só revelou o seu brilho na historiografia mais
recente.

Esse dinamismo começou a ser tornar claro quando diversos historiadores, assim como al-
guns internacionalistas começaram a contestar o mito fundacional da Westphalia, o que veio a ocor-
rer justamente no período do seu quarto centenário de comemorações da assinatura deste tratado.
Em artigo publicado numa das mais importes revistas de relações internacionais do mundo Andreas
Osiander revela que o mito fundador nada mais é do que mito. Segundo Osiander

The Peace of Westphalia did not establish the “Westphalian system” based on
the sovereign state. Instead, it con. rmed and perfected something else: a sys-
tem of mutual relations among autonomous political units that was precisely
not based on the concept of sovereignty.54

Esse posicionamento de Osiander revela que o XVII, século em que o dito tratado da Wes-
tphalia foi firmado, é muito mais dinâmico e de cores muito mais vivas do que podem supor aquele
mais apegados ao mito Westphaliano. É um século onde “entes” de todos os formatos atuam em um
cenário internacional deveras complexo buscando acordos que possam lhe favorecer em um cenário
para muitos absolutamente caóticos. É neste ambiente, muito pouco explorado pela historiografia na-
cional, que atuam diversos representantes de diversas categorias e que tem como única função buscar

52 A Westfália recebeu status icônico em RI. Há um consenso próximo no campo de que os tratados de 1648
representam a referência para a transformação do sistema internacional, ou pelo menos do sistema internacio-
nal europeu, da forma medieval para a moderna. Westphalia está associada à emergência formal de um sistema
distinto de estados soberanos. BUZAN, Barry; LITTLE, Richard. BeyondeWestphalia? Capitalism after the
‘Fall’. Review of International Studies, Cambridge, v. 25, n. 5, p. 89-104, 1999
53 Podem ser referenciados aqui os seguintes trabalhos de Edgar Prestage, todos contam com um vasta quan-
tidade de fontes publicadas. Relação da Embaixada a França em 1641 publicado em Coimbra em 1918 e
disponível on line em <https://archive.org/details/relaodaembai00barr/page/n7>Duas cartas de Antonio de
Sousa Macedo publicado em 1916 pela Acedemia de Ciências de Lisboa e disponível on-line em <https://ar-
chive.org/details/pamphletsonanto00macegoog/page/n8>e Frei Domingos do Rosário: diplomata e político
(1595-1662), publicado em 1926 pela Universidade de Coimbra e que não se encontra disponível on line.
54 A Paz da Vestfália não estabeleceu o “sistema vestfaliano” baseado no estado soberano. Em vez disso, confir-
mou e aperfeiçoou outra coisa: um sistema de relações mútuas entre unidades políticas autônomas que não era
precisamente baseado no conceito de soberania. Osiander, Andreas. Sovereignty, International Relations, and
the Westphalian Myth. International Organization, v. 55, n 2, Spring 2001. p. 270

332
na arte da negociação o que não era possível conseguir pela ponta da espada. Aqui neste mundo de
embaixadores, cônsules e representantes comerciais de todos os tipos:
O trato, e negoceçam de corte, he mais dificultosa, e espinhosa de todas: porque os
que concorrem nellasam regularmente tocados de dous poderosos tyranos: interesse
e ambição” pois “a guerra se faz ao olho: o concelho se toma em campo, e nam há
prevençam que baste aos accidentes do tempo55

Lucien Bély lembra em texto recente que quem negocia busca restaurar a harmonia entre as
pessoas e entre sociedades acomodando interesses e pondo assim fim a violência da guerra.56 Neste
mundo onde mais vale a sagacidade em negociar do que a arte de esgrimir a prudência e a eloquência
são artes fundamentais pois se assim não fosse todo homem comum estaria apto para este ofício e isso
não é o que era visto pois um príncipe diligente escolhia seus embaixadores principalmente pela pru-
dência e nisso concordam os diversos manuais escritos no século XVII57. Dirá Alain Hugon, ao falar
sobre os espiões, outro elemento deste mundo e que inclusive também vale para vários personagens
deste “corpus” ao possuir um saber desconhecido para maioria do vulgo estes homens se colocavam
acima dele e portanto próximos ao poder58. Simulacros do rei a prudência é uma virtude que segundo
Marcelo Loureiro:

Tradicionalmente, desde o pensamento aristotélico, a prudência é uma das grandes


virtudes. No pensamento cristão-medieval, a temática das virtudes foi revigorada;
força, temperança, justiça e prudência tornaram-se virtudes cardinais, na medida em
que deveriam orientar e balizar o comportamento exemplar dos homens, indicando
o reto caminho, sobretudo daqueles que detinham responsabilidade destacada sobre
a comunidade, como os reis.59

Mesmo sendo a sua imagem e semelhança o embaixador tinha a consciência de que se falhasse
a culpa era inteiramente dele se obtivesse sucesso era aquele a quem ele representava que obteve a
conquista.

Vale salientar novamente que nesta Europa do XVII muitos eram os atores, diversas eram as
naturezas e múltiplos eram os status. Se contarmos apenas os signatários dos tratados assinados em
Münster e Osnabrück veremos 140 estados imperiais (pertencentes ao Sacro Império), 16 estados
55 SILVA E SOUZA, Antonio da. Instrucçam da politica de legados. Hamburgo: Petri Lambec, 1656. P. 7
56 BÉLY, Lucien. Introduction. In: ________ L´art de la paix. Paris: Presses Universitaires de France, 2007.
Disponível em <https://www.cairn.info/resume.php?ID_ARTICLE=PUF_BELY_2007_01_0002> Acesso em
12 Set. 2018.
57FRIGO, Daniela. Prudenza politica e conoscenza del mondo : un secolo di riflessione sulla figura dell’am-
basciatore (1541-1643). In Stefano Andretta, Stephane Péquignot e Jean Claude Waquet. De l`ambassadeur.
Roma: Publications de L´École Française de Rome, 2015. Disponível em <https://books.openedition.org/
efr/2909> Acesso em 12 set. 2018.
58 HUGON, Alain. Elespionaje: un mundo de señores... Primera mitad del siglo xvii. Estudis. Revista de
Historia Moderna, n 42, 2016
59LOUREIRO, Marcello José Gomes. Iustitiam Dare A Gestão da Monarquia Pluricontinental Conselhos Su-
periores, pactos, articulações e o governo da monarquia pluricontinental portuguesa (1640-1668). Rio de
Janeiro-Paris: UFRJ/PPGHIS-EHESS, 2014. Tese de Doutorado. p 126

333
europeus e 38 senhorias representados por 109 delegados plenipotenciários60. Some-se a isso as di-
versas cidades que possuíam representantes próprios em capitais importantes, os territórios “rebeldes”
que não eram reconhecidos por ninguém ou tinham um reconhecimento muito limitado (Portugal e
Catalunha a partir de 1640 e Nápoles em 1647-1648). Havia ainda monarquias policentricas, Estados
com soberania mais centralizada e cidades com soberanias pouco definidas. Muitos não já não con-
sideram a primazia do Papa,e muito menos a do imperador do Sacro Império, para o exercício da sua
soberania mas o reconhecimento tanto destes entes como dos principais estados continuava sendo
fundamental pois sem eles o direito não tem como ser exercido de forma plena e segura. Segundo
Lucien Bély:
La souveraineté correspond à un territoire, mais comme les connaissances géogra-
phiques restent floues, la domination politique ne s’applique pas vraiment à un espa-
ce précis et connu : elle demeure une hiérarchie d’hommages, de liens de fidélité entre
hommes et entre lignages, un emboîtement rigoureux de dominations particulières.
La définition la plus claire de la souveraineté demeure longtemps celle de la justice :
le souverain est l’autorité vers laquelle un homme se tourne, en dernier ressort, pour
obtenir la reconnaissance d’un droit ou le règlement d’un litige61

Este fato necessariamente traz a questão para o campo do reconhecimento. Geralmente tal re-
conhecimento é interpretado como um movimento puramente racional circunscrito exclusivamente
nos interesses cartesianos e utilitaristas dos estados. Para Axel Honneth, “o ato estatal do reconheci-
mento jurídico necessariamente deve ser compreendido como um acontecimento recíproco”62 em que
é necessário um comportamento político de reconhecimento dos atores estatais que acolhem um ao
outro em igualdade de direito, ao nível das relações diplomáticas e nos acordos comerciais. Mas como
a soberania não reside no território e sim no soberano é dele que emana a representatividade do corpo
diplomático de determinado estado. É o soberano que reivindica o direito de fazer a guerra e a paz,
consultando os seus ministros ou conselheiros; às vezes endossando as decisões que os outros tomam
por ele ou até mesmo nem participando destas decisões quando muito fracos para exercer a soberania.
Isso não prejudica a autoridade soberana, mas levanta no cenário internacional a questão da origem
das decisões que tal o qual diplomata toma. Novamente repetimos, o diplomata é o simulacro do so-
berano e só tem força como tal se ele é reconhecido pelos seus pares. Segundo Bély
Les ambassades se dégagent bien de cette masse de missions : elles sont officielles et
souvent collégiales. L’ambassade agit au nom du souverain, exerce certaines de ses
prérogatives, reçoit les égards dus à sa personne. Elle repose sur le fondement de la
60 SÁNCHEZ, Manuel Herrero. Paz, Razón de Estado y Diplomacia em la Europa de Westfalia. Los limites
Del triunfo Del sistema de soberania plena y la persistência de los modelos policéntricos (1648-1713). Estudis.
Revista de Historia Moderna, n 41, 2015. p. 49
61A soberania corresponde a um território, mas como o conhecimento geográfico permanece incerto, a do-
minação política não se aplica realmente a um espaço preciso e conhecido: permanece uma hierarquia de
homenagem, de laços de fidelidade entre homens e entre linhagens, um intertravamento rigoroso de domina-
ções particulares. A definição mais clara de soberania por muito tempo permanece a da justiça: o soberano é a
autoridade para a qual um homem se dirige, em última instância, a obter o reconhecimento de um direito ou a
solução de uma disputa. Idem, p 12
62 HONNETH, Axel. Reconhecimento entre Estados: sobre a base moral das relações internacionais. Civitas,
Porto Alegre, v. 10, n. 1, 2010. p 139

334
« représentation », « auquel le droit médiéval a donné très tôt la forme de la procura-
tion ». L’ambassadeur, image même du prince, doit être choisi dans la haute noblesse,
le clergé ou l’entourage royal, et des immunités le protègent : on proclame sacrée et
sainte la personne de l’ambassadeur. Des règles de cérémonial organisent la venue de
ces étrangers dans une cour princière qui souhaite à la fois montrer sa force et éviter
l’incident fatal. Toute une construction juridique, politique, intellectuelle s’élabore
pour exalter la figure de l’ambassadeur 63

É claro que neste momento ainda existem muitos que defendem a hierarquização dos entes que
compõe o cenário europeu do XVII. Embora, como já afirmamos acima, não sendo fato em muitas
negociações de qualquer tratado naquele momento, ainda é fundamental para a soberania de um ente
europeu ocidental que este obtenha o pleno reconhecimento do Vigário de Roma, principalmente se
este Estado estiver vinculado ao cristianismo romano. A tese monista ou teocrática, que dá ao Suces-
sor de Pedro a primazia sobre todos os homens, incluindo o líder temporal de cada território, assinala
que todo poder, tanto temporal quanto espiritual, deriva do Papa, "primeiro e supremo hierarca”. Ele
é a fonte da qual o Imperador recebe a sua autoridade que então transmite aos reis. Sendo isso fato
teríamos então um sistema hierarquizado onde o Papa é o primeiro príncipe e superior hierárquico.
Abaixo dele teríamos o Imperador e abaixo destes o Rei e os demais. Mas essa teoria vinha perdendo
força em toda a Europa desde o século XVI e o que se viu no seu lugar ao longo do XVII foi a busca
por um equilíbrio entre “pares” que também requeria o mesmo reconhecimento. Vale salientar que a
paz da Westphalia não pois fim aos múltiplos modelos estatais existentes, como já sinalizamos acima,
assim como também não os tornou iguais. É por conta disso que colocamos a palavra “pares” entre
aspas pois no meios desta pluralidade duas forças consideráveis se batiam sendo inegável aos filhos
deste tempo quem eram grandes players64 da Europa naquele momento. De um lado a França de Ri-
chelieu/Mazarin e de outro a Espanha Imperial dos Felipes. Todos reconhecidos por Roma, onde a
política internacional vicejava com força pois tanto a França como a Espanha sabiam que não podiam
prescindir do apoio do Vigário de Roma. Era um apoio simbólico mas que para Richelieu, e depois
Mazarin, era fundamental pois o Cardeal não tinha dúvidas que a missão da França era impedir a
vontade de dominação universal da Espanha já que afetava não só a segurança do rei da França, mas
também a liberdade de todos os outros soberanos europeus, bem como a da própria Igreja. Por isso
“controlar” Roma era obter uma vantagem considerável nas negociações entre os estados da Europa.
Por tanto de uma lado a França atuava para enfraquecer a presença da Espanha na cidade eterna de
outro apoiava todos os movimentos que fossem contrários aos interesses imperiais dos Felipes.

Ao longo do XVII portanto a diplomacia sofreu uma profunda transformação ganhando assim

63 Embaixadas emergem desta massa de missões: são oficiais e muitas vezes colegiais. A embaixada atua em
nome do soberano, exerce algumas de suas prerrogativas, recebe o respeito devido a sua pessoa. Baseia-se na
fundação da "representação", "para a qual a lei medieval deu a forma de procuração logo no início". O embai-
xador, a própria imagem do príncipe, deve ser escolhido da alta nobreza, do clero ou da comitiva real, e as imu-
nidades o protegem: a pessoa do embaixador é proclamada sagrada e santa. As regras do cerimonial organizam
a chegada desses estrangeiros a um tribunal principesco que deseja mostrar sua força e evitar o incidente fatal.
Toda uma construção jurídica, política e intelectual é elaborada para exaltar a figura do embaixador. Idem, p. 17
64 A palavra Player é utilizada aqui pois ela é muito utilizada em trabalhos de relações internacionais e se refere
aos estados em ação no cenário internacional.

335
contornos inesperados. Em meados do seiscentos a ação diplomática surgiu como uma atividade
fundamental apresentando já contornos bastante complexos. Foi um século de mudanças que altera-
ram por completo a natureza das missões diplomáticas, bem como ο seu lugar na política europeia.
O que se observa neste período é que até o Tratado da Westphalia ocorre um sem número de publi-
cações onde os embaixadores procuram descrever na prática as suas funções e como a prudência é
peça fundamental para as suas atividades. Segundo Pedro Cardim (Embaixadores e Representantes
diplomáticos da coroa portuguesa no século XVII), observa-se o crescimento em importância do
papel desempenhado pelos servidores diplomáticos que frequentemente passaram a ser equiparado a
uma espécie de imagem do soberano65. Mazarin, inclusive alerta em seu breviário dos políticos esta
característica dos diplomatas.
Se és ministro plenipotenciário e tens a missão de negociar com o chefe de uma po-
tência inimiga, aceita seus presentes mas previne teu príncipe disso – caso contrário
ele poderia suspeitar de que o trais. Em toda circunstância comparável, observa a
mesma regra de conduta. Não envies em embaixada um homem que possa se reve-
lar teu adversário ou pretender usurpar teu poder: ele agiria contra teus interesses.66

Segundo Bély e também Pedro Cardim os embaixadores emergem desta massa de missões
oficiais ganhando importância na medida que se complexifica as relações internacionais do XVII. A
embaixada age em nome do soberano, exerce algumas de suas prerrogativas e recebe os direitos do
soberano. Baseia-se na fundação da "representação" que aos poucos assume o lugar dos encontros
realizados entre os próprios soberanos. O embaixador, imaginado pelo príncipe, deve estar na alta
nobreza e as imunidades devem ser suficientes para protege-lo. O embaixador é proclamado sagrado.
Toda construção legal, política e intelectual é elaborada para exaltar a figura do embaixador. Além
disso, é neste século que o ato de enviar e receber embaixadores tornou-se uma prerrogativa exclusiva
dos poderes soberanos estabelecendo-se como requisito não o tamanho mais sim que ambos gozem
de plena soberania e, como já afirmamos acima de pleno reconhecimento mutuo.

Neste momento, antes do grande tratado da Westphalia, o tecido que forma as regras do bom
embaixador ainda possui uma trama muito frágil, o que alias explica a presença de outros personagens
nesta trama tal como os cônsules. No entanto a mesma é entremeada de costumes, experiências e
memórias que são repassadas aos embaixadores subsequentes como se fossem instruções práticas de
como agir, que habilidades deve desenvolver, a quem deve procurar, como deve conduzir os negócios
do reino, que artifícios retóricos deve utilizar deixando assim uma espécie de legado ao seu sucessor.
O domínio da palavra e das artes da retórica, que é uma das habilidades dos homens de letras, é pré
requisito essencial e fundamental do bom embaixador devendo praticar a eloquência e a prudência
sempre adotando um comportamento honrado e observando sempre as melhores informações. Um
bom embaixador sempre conta com uma boa rede de informantes.
[…] Perfetto ambasciatore è colui che sa a beneficio del suo principe trattar i negozi

65 CARDIM, Pedro. Embaixadores e Representantes Diplomáticos da Coroa Portuguesa no Século XVII. Cul-
tura, Lisboa, n 15, 2002.
66 MAZARIN, Cardeal. Breviário dos políticos. 2ª. ed. São Paulo, Editora 34, 2000. p. 119

336
con prudenza e far i complimenti con eloquenza, e che può sostenere con la gravi-
tà de’ costumi, con la dignità de l’aspetto e con lo splendore de la vita la maestà de
principe […] Eccoti l’effigie e l’imagine del perfetto ambasciatore ; a la quale formare
è necessario che concorrano nobiltà di sangue, dignità e bellezza d’aspetto, modo da
spender largamente e senza risparmio, e animo e deliberazione da farlo lietamente,
esperienza delle corti e del mondo, cognizione de le cose di stato e de l’istorie e di
quella parte de la filosofia almeno ch’appartiene a’ costumi e al movimento de gli ani-
mi, fede e amor verso il suo prencipe, destrezza d’ingegno e accortezza e facondia e
grazia nel spiegar i concetti, gravità e piacevolezza nel conversare, affabilità e cortesia
nel favorire gli amici e conoscenti : le quali condizioni tutte perché forse in alcuno
non si ritroveranno giamai, resta che colui più al perfetto s’avicini il quale d’esse avrà
maggior parte67

Mas no mundo dos embaixadores muitas são as funções no qual Nuno Monteiro e Pedro
Cardim em La diplomacia Portuguesa durante El Antigo Régimen68 elaboram um resumo bastante
interessante das categorias existentes de representantes diplomáticos. Nesta classificação existiam os
de primeira ordem, que eram os embaixadores propriamente ditos (ordinários ou extraordinários)
que dependiam e muito de serem reconhecidos pelos entes onde iriam atuar, os de segunda ordem
que eram os ministros plenipotenciários e os enviados (ordinários ou extraordinários) que eram man-
dados normalmente para missões de um teor mais técnico, reservado ou para negociações interna-
cionais. Estes marcavam sua presença nos tratados. Alias, os representantes franceses só negociavam
com os embaixadores se eles também fossem Plenipotenciários se recusando a iniciar qualquer dis-
cussão sem estas credenciais adicionais. O título de plenipotenciário referia-se a um segundo signifi-
cado da função de representação das potestades principescas. Era necessariamente a qualidade mais
importante para a condução de negociações em nome do soberano. O status de embaixador não era
considerado suficiente para condução de negociações, sendo inclusive comum um representante ser
plenipotenciário mais não ser embaixador. Segundo Niels F. May
Dans les documents officiels des négociateurs du Roi Très Chrétien on ne précise
pas leur statut, mais dans la version latine on utilise la formulation « quam ab ora-
tore & Consiliario Status Regis Christianissimi, Carolo de Leon Brulard &c. vigore
suæ plenipotentiariæ ». Pour les traités de Cherasco (6 avril 1631 et 19 juin 1631), le
diplomate impérial ne porte pas le titre d’« ambassadeur », mais uniquement le titre
de « plenipotentiario e Commissario », les diplomates français portant en revanche

67 [...] embaixador perfeito é aquele que sabe o benefício do seu príncipe tratar os negócios com prudência
e de parabenizar eloquentemente, e pode-se argumentar com a gravidade da 'costumes, com a dignidade da
aparência e da glória do vida a majestade do príncipe [...] Aqui está a efígie e a imagem do perfeito embaixador;
para quem é necessário competir nobreza de sangue, dignidade e beleza de aparência, uma maneira de gastar
amplamente e sem poupar, e alma e deliberação para fazê-lo com alegria, experiência dos tribunais e do mundo,
conhecimento das coisas de estado e de e as histórias de que parte da filosofia, pelo menos quem pertence 'trajes
e o movimento da alma, fé e amor para com seu príncipe, destreza e visão de gênio e eloquência e graça em ex-
plicar os conceitos, a gravidade e prazer em conversar, afabilidade e cortesia em favorecer amigos e conhecidos:
todos os quais condições, porque talvez em ninguém nunca vai encontrar um ao outro novamente, resta que
aquele que é mais perfeito será parecido com o que terá a maioria deles TASSO, Torquatto, Il Messaggiero, in
Id., Dialoghi, a cura di E. Mazzali, I, Torino, 1976
68MONTEIRO, Nuno. Cardim, Pedro. La Diplomacia portuguesa durante el Antiguo Regimen. Perfil socio-
lógico y trajectorias Cuardernos de História Moderna, 30, Universidad Complutense de Madrid, 2005

337
celui d’« ambi Ambasciadori, e Pleni potentiarii ».69

Finalmente os de terceira ordem, também chamados de cônsules, agentes ou encarregado de


negócios, que podiam representar indivíduos, cidades, grupos comerciais e que muitas vezes atuavam
junto com os embaixadores podendo inclusive exercer mais força política que os de primeira ordem.
Segundo Manuel Herrero Sánchez ao analisar a historiografia sobre assunto afirma que este era um
mundo corporativo y com múltiples jurisdicciones sustentado em El privilegio Del quue la institui-
ción consular era uno de SUS ejemplos más paradihmáticos70

A historiografia que aborda as questões relativas à diplomacia no XVII é relativamente recente,


tendo ficado mais numerosa e diversificada principalmente após a comemoração dos 350 anos da as-
sinatura do tratado da Westphalia, o que alias provocou o aparecimento do texto seminal de Osiander
já referenciado acima. Vale salientar que o tema é recente tanto em Relações Internacionais como
em História. Sintetizando em poucas linhas, podemos afirmar com toda a segurança que após estas
comemorações e em tempos diferentes surgiram as seguintes linhas de pesquisa neste campo:

1) Sobre o tratado da Westphalia (fortemente ancorada em uma produção em RI, principalmente


nos Estados Unidos, Inglaterra, França e Espanha) e que já existia antes das comemorações
mas que foi completamente reestruturada a partir das contestações sobre o significado deste
tratado.

2) A questão dos embaixadores (com uma boa presença de historiadores Brasileiros e Portugue-
ses)

3) E os cônsules e demais membros (com uma forte presença de historiadores Italianos e espa-
nhóis)

No que tange ao primeiro grupo, o tratado da Westphalia sempre foi um tema muito explora-
do como já deixamos sub entendido aqui, incluindo inclusive a guerra dos Trinta Anos. A produção
69Nos documentos oficiais dos delegados do Rei Cristianíssimo não especificam seu status, mais na versão
latina o texto « quam ab oratore & Consiliario Status Regis Christianissimi, Carolo de Leon Brulard &c. vigore
suæ plenipotentiariæ ».Para os tratados de Cherasco (6 de abril de 1631 e 19 de junho de 1631), o diplomata
imperial não tem o titulo de '«ambassadeur», mas apenas o título de «plenipotentiario e commissario», os
diplomatas franceses por sua vez portão o titulo « ambi Ambasciadori, e Pleni potentiarii ». MAY, Niels F. Le
ceremonial diplomatique et les transformations du concept de representation au XVIIe siècle In Daniel Az-
nar, Guillaume Hanotin et Niels F. May (Dir.). À la place du roi Vice-rois, gouverneurs et ambassadeurs
dans les monarchies française et espagnole (xvie-xviiie siècles) Madri: Casa de Velázquez, 2015. Disponível
em <https://books.openedition.org/cvz/1227 > Acesso em 12 set. 2018
70 SÁNCHEZ, Manuel Herrero. La red consular europea y la diplomacia mercantil em la edad moderna. In:
Juan José Iglésias Rodriguez, Rafael M. Pérez Garciá e Manuel F. Fernández Chaves (org.) Comércio y cultura
em la edad moderna: acta de la XIII reunión científica de la fundación española de historia moderna. Sevilha:
Ed, Univ. Sevilla, 2015. p 122

338
em língua portuguesa sofre de uma anemia quase completa, pois ou os textos não passam de mera
descrição ou servem apenas para justificar a criação de uma sociedade internacional. No que tange a
uma historiografia anterior as comemorações, facilmente encontramos afirmações enfáticas tais como
“Em 1648, os artífices da paz de Vestefália estavam longe de imaginar que acabavam de criar uma nova
ordem mundial”, ou como “A paz de Westfália, a história do sistema de Estados modernos e a teoria
das relações internacionais” e isso a fez conquistar o estatuto de momento fundador do atual sistema
político de Estados soberano o que impediu a real visão do que teria sido este tratado e como os seus
personagens agiriam dentro do cenário internacional do momento. Reforçando o que já dissemos
acima o tratado enquanto fundador de um sistema completamente inovador de Estados Modernos
criados a partir do acordo nunca existiu nem antes nem depois dele pois os processos políticos da
Westfália. Tampouco significou o fim dos conflitos na Europa. Muito mais que marco zero de algo, o
sistema Westfáliano trouxe em si muitas discussões, nesse sentido, dizer apenas que ele inicia alguma
coisa é ignorar a sua complexidade.

Esse fato também aparece em um texto de Pedro Cardim, amplamente influenciado pela pro-
dução oriunda de 1998, o autor afirma neste texto que o que se queria era realmente uma paz dura-
doura sucedendo-se dispositivos de segurança coletiva das partes contratantes, pelo menos em teoria.
Mas isso não eliminou velhas práticas. Segundo Cardim:
“A este respeito, é importante dizer que a “Paz da Westfália” costuma ser objeto de
alguma mistificação (tal qual alertada por Andreas Osiander em Soberania, Relações
Internacionais e Mito Vestfaliano) exagerando-se, frequentemente o seu impacto no
campo das relações externas”71

Nisso também corrobora Manuel Herrero Sanchez em texto já citado onde destaca que as
ingerências continuaram, que os entes não eram iguais e que inclusive nem todos assinaram todos o
conjunto de tratados elaborado naquele momento.

Por conta da constatação que o mundo diplomático era muito mais complexo e dinâmico surgi-
ram diversos textos que basicamente trataram da atuação dos embaixadores e de suas embaixadas.
É verdade que esse movimento não representou nada de novo já que outros já abordavam o assunto
mesmo que sem muito profundidade e com o tom laudatório. Alias são deste período pre comemora-
ções inúmeras publicações de documentos, principalmente cartas, sendo possível destacar Cartas de
Vidigueira a D João IV publicados por P.M Laranjo Coelho e Edgar Prestage em diversas oportunida-
des. Mas como afirma Isabel Cluny:

“A História das Relações Internacionais, aliás, como toda a história políti-


ca, caminhou para o rigor científico, que nos transmite uma visão do mundo
muito racional, mas que ignora o imponderável da vida e a importância das
71 CARDIM, Pedro. A prática diplomática na Europa do Antigo Regime In : História e Relações Internacionais :
Temas e Debates. Évora : Publicações do Cidehus, 2004 (généré le 18 octobre 2018). Disponible sur Internet :
<http://books.openedition.org/cidehus/156>.Acesso em 12 set. 2018

339
pessoas. Talvez por isso, uma nova geração de historiadores, da qual se destaca
o nome de Lucien Bély, liberta da história quantitativa e serial, não teve dúvi-
das em enveredar por uma História da Diplomacia entendida como o estudo
do diálogo entre os Estados, mas também das técnicas, dos métodos e das
ideias que lhe estiveram associados. Paralelamente, a História da Diplomacia
voltou a dar um papel de revelo à observação dos principais agentes das ne-
gociações, quer fossem soberanos, quer fossem embaixadores, ministros, ou
mesmo simples informadores. A História da Diplomacia deixou de valorizar
apenas os resultados de uma negociação para, recorrendo a outras fontes não
oficiais, destacar a importância dos meios utilizados durante as negociações.
Também, ao evidenciar o secretismo das negociações, contribuiu para clari-
ficar a natureza de alguns dos recursos disponíveis e como foram utilizados
pelos diversos intervenientes”72

Nessa vertente podemos destacar os trabalho de Thiago Groh de Mello e que analisa as relações
entre Portugal da Restauração e Holanda, Lucien Bely (arte da Paz) e que tem todo um estudo sobre
a escrita dos diplomatas; Cassiana Maria Mingotti Gabrielli Gomes, que trata das relações Portugal e
França, Daniela Frigo com uma analise sobre a prudênci e Ana Maria Homem Leal de Farias que fez
a biografia do Diplomata Duarte Ribeiro de Macedo.

O terceiro grupo, que a nosso ver completa esse novo rumo de estudos, onde novos objetos
e novas abordagens passaram a ser comuns, é inaugurado em 2003 com os estudos de Jorg Ulbert e
Gerard Le Bouedec73, que na universidade da Bretanha do Sul pretenderam reunir todos os pesquisa-
dores que vinham estudando a função consular na Idade Moderna. Segundo Manuel Herrero Sánchez
em La red consular Europea, apesar de ambicioso o projeto contou a maior parte com análises feitas
da vigorosa rede consular francesa durante a época da ilustração. A bibliografia continuava seguindo
critérios nacionais o que ainda dificultava a analise deste mundo corporativo e suas múltiplas jurisdi-
ções que ignorava completamente critérios de nacionalidade.

Mas o que vem a ser um consul? Segundo Sanchez:

La figura del “Cónsul de extranjeros es una de las más complejas de la histo-


riografía de la Edad Moderna y Contemporánea por su falta de definición,
pues no resulta fácil discernir en qué consiste exactamente el oficio, ni deter-
minar sus competencias o conocer la duración del cargo.74

Concordando com a dificuldade Geraud Poumarede em O cônsul nos dicionários e a lei do


povo... analisa o termo e como ele aparece nos dicionários do XVII e do XVIII e concorda que este
elemento geralmente está relacionado aos comerciantes estabelecido sob comissões reais em diversas
cidades para facilitar o comércio e proteger os mercadores. Podem representar cidades ou comercian-
72SUMMAVIELLE, Isabel Maria Araújo Lima Cluny. O Conde de Tarouca e a Diplomacia na Época Moderna.
Lisboa: Livros Horizonte, 2006. p 13
73 ULBERT, Jörg (dir.) ; LE BOUËDEC, Gérard (dir.). La fonction consulaire à l'époque moderne : L'affirma-
tion d'une institution économique et politique (1500-1800). Rennes : Presses universitaires de Rennes, 2006
(généré le 18 octobre 2018). Disponible sur Internet : <http://books.openedition.org/pur/7751>.
74 Idem, p 125

340
tes estrangeiros de um dado segmento.75

De 2011 até o presente, grupos de pesquisa tem se formado na intenção de analisar estas redes
consulares/mercantis. Dedicam-se a esta tarefa neste momento Silvia Marzagalli e Arnaud Bartolo-
mei De l’utilité commerciale des consuls. l’institution consulaire et les marchands dans le monde
méditerranéen (xviie-xxe siècle) Da l Ecole Française de Rome76. Estes pesquisadores tem como ponto
fundamental analisar o papel de intermediário mercantil e de agentes de informação realizado por es-
tes indivíduos. Manuel Herrero Sanchez na universidade Pablo de Olavide, já muitas vezes citado aqui
e que tem se dedicado a investigar o papel das repúblicas mercantis na transformação dos modelos
estatais e Antonella Alimento que tem trabalhado na diplomacia mercantil.

O trabalho aqui apresentado é apenas um breve resumo. Uma fotografia de momento mos-
trando as funções daquele que zelava pela imagem do Rei. Um simulacro que só a bem pouco tempo
começou a ser desvendado.

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75 POUMARÈDE, Géraud. Le consul dans les dictionnaires et le droit des gens : émergence et affirmation d’une
institution nouvelle (xvie-xviiie siècles) In : La fonction consulaire à l'époque moderne : L'affirmation d'une
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octobre 2018). Disponible sur Internet : <http://books.openedition.org/pur/7761>.
76BARTOLOMEI, Arnaud (dir.) ; et al. De l’utilité commerciale des consuls. L’institution consulaire et les mar-
chands dans le monde méditerranéen (XVIIe-XXe siècle).Rome-Madrid : Publications de l’École française de
Rome, 2017 (généré le 18 octobre 2018). Disponible sur Internet : <http://books.openedition.org/efr/3253>..

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344
345
346
SIMPÓSIO TEMÁTICO 05
Práticas e instituições culturais e educativas na América colonial

Coordenadores:

Álvaro de Araújo Antunes

Kelly Lislie Julio

Legados das Luzes: a ciência e a educação transmitidas em testamento do século XVIII ao


século XIX.
Antonio José Louro da Silva.

A idéia de progresso da humanidade, na conformidade da lei natural ou do desígnio di-


vino, foi comum aos pensadores das Luzes.1 No verbete história da encyclopédie, o progresso se apre-
sentava como o desenvolvimento linear do espírito humano.2 Uma percepção filosófica de progresso,
a qual se associava o desenvolvimento econômico, tecnológico, político, medicinal, administrativo
etc. Essa perspectiva otimista foi sustentada por Condorcet em seu Esboço de um quadro histórico
dos progressos do espírito humano. A noção de progresso poderia se associar à decadência, quando
considerados os “perigos e desafios a que está sujeita a condição humana”.3Em Considerações sobre as
causas da grandeza dos romanos e da sua decadência, Montesquieu traçava uma linha que une causas
e conseqüências, desenhando a ascensão e a queda de uma “república” modelar.4 Rousseau também
destoaria da perspectiva otimista ao questionar o progresso da humanidade promovido pelas ciências
e artes. Para Rousseau, a “aventura da civilização se mostra como um processo de degeneração pro-
gressiva do homem”.5 Entre otimismos e pessimismos, entre desenvolvimentos e derrocadas, o pro-
gresso foi compreendido como um processo movido por causas e acidentes, com resultados incertos.6

O progresso da humanidade estava sujeito a lapsos e variações. Dentro dessa lógica, no

1 Autoria de Álvaro de Araujo Antunes, Professor Associado do Departamento de História da Universidade


Federal de Ouro Preto. O presente texto conta com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa por meio do
edital universal de pesquisa que se encontra sob o registro APQ 02439-17.
2 “Não é surpresa para ninguém afirmar que as noções de progresso, melhoria da sociedade [...], melhoria do
‘estado da humanidade’, foram fundamentais para o iluminismo”. ISRAEL, Jonathan. A revolução das Luzes:
iluminismo radical e as origens intelectuais da Democracia Moderna. Tradução de Daniel Moreira Miranda.
São Paulo: EDIPRO, 2013, p.15.
3 ISRAEL, Jonathan. A revolução das Luzes...p.17.
4 MONTESQUIEU. Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e da sua decadência. Tradução de
Renato Moscateli. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010.
5 “Além disso, o conceito de perfectibilidade no século foi elaborado por Rousseau no interior de uma con-
cepção da história humana absolutamente contrária ao otimismo da ideologia de progresso.” NASCIMENTO,
Maria das Graças S. “Apresentação”. In. CONDORCET, Jen-Atoine Nicolas de Caritat, marquis (1743-1794)
Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano. Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de
Moura. 2.ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2013, p.13.
6 Havia concepções distintas de progresso. Havia perspectivas metafísicas, materialistas deterministas, provi-
denciais deístas ou religiosas. ISRAEL, Jonathan. A revolução das Luzes...p.24.

347
século XIX, autores portugueses como Antero de Quental denunciaram o atraso do mundo luso em
relação aos outros países europeus e ao seu próprio passado de conquistas e descobertas. A imagem
do atraso relativa a Portugal que ganhou espaço na historiografia não está desvinculada dessa percep-
ção de progresso que colocava em relação às nações e aos povos do mundo. A comparação norteada
pela defesa datada de certos valores colocara a nação portuguesa como retardatária na linha evolutiva
percorrida pelas potências européias. Mas como ficaria o quadro do progresso europeu se deslocados
os referenciais e pautados os valores específicos de cada nação? Ou ainda, no século XVIII, qual seria
a perspectiva dos portugueses quanto ao lugar que ocupavam no mundo?

Não é possível responder essas questões na presente comunicação. Aponto, contudo, al-
guns elementos que permitem desenhar quadros do mundo luso como parte da história do século
XVIII. O Primeiro, já mencionado, diz respeito à concepção de um progresso que marca as Luzes, ora
expresso positivamente, ora entendido com viés pessimista. O segundo elemento explicita que, ao re-
dor do globo, a compreensão das Luzes tomou formas distintas, complexas e incongruentes. Nos ter-
mos de Dorinda Outram, a ilustração, mesmo em sua menor definição, compreendia muitos abrigos
distintos, variando no tempo e no espaço. Reforça-se no tema do progresso a ilustração “vivida como
uma cacofonia e um paradoxo”. 7 Diferenças que também seriam nutridas por apropriações particula-
res e pelas controvérsias, mesmo entorno de metas comuns, como o progresso e a educação, aspectos
que serão destacados nessa comunicação.8

Considerando a diversidade das Luzes, é possível adiantar que em Portugal havia a per-
cepção de que os dogmas do catolicismo não seriam os alvos preferenciais dos ataques dos intelectuais
portugueses, apesar de todos os conflitos com a Igreja. Outrossim, nos planos e escritos dos ilustrados
portugueses setecentistas as referencias às “nações desenvolvidas” serviam para justificar e fortalecer
a necessidade de reformas – e não de drásticas mudanças –, mais do que reconhecer nações que con-
viriam de exemplos a serem seguidos.9 No caso luso, a noção de atraso se associa, com freqüência, à
influência intelectual dos jesuítas, sem abranger toda a nação portuguesa, em especial as mentes ilu-
minadas capazes de pensar alternativas de desenvolvimento.10 Em diversos escritos da época o tema
da decadência de Portugal não se apresentava de forma exclusiva e nem como uma realidade perceptí-
vel pelos portugueses da época, como pretendo evidenciar ao tratar opúsculo intitulado Testamento e
Codicilo do século XVIII ou recomendações econômicas e políticas que fez o Século XVIII a seu filho
o Século XIX, escrito por Antonio José Louro da Silva, no ano de 1802.11
7 OUTRAM, Dorinda. Panorama de La Ilustración. Barcelona: Art Blume, 2008, p.24.
8 Nas últimas duas ou três décadas os estudiosos concentraram-se mais nas diferenças nacionais ou confes-
sionais que geram as nuances do iluminismo em diferentes partes da Europa. Seguem a idéia de “família de
iluminismos” desenvolvida por John Pocock, a qual, segundo Israel, é “em grande parte inaplicável às questões
controvérsias mais básicas e abrangentes do iluminismo”, tais como: o alcance da razão, a possibilidade ou a
impossibilidade de milagres, a situação da providência divina, a função da autoridade eclesiástica, a igualdade,
a democracia, a imprensa livre e a separação entre o Estado e a Igreja. ISRAEL, Jonathan. A revolução das Lu-
zes...p.29.
9 É preciso considerar a hipótese de que os portugueses, no geral, não se sentiam atrasados em relação ao resto
da Europa. CARVALHO, Flavio Rey de. Um Iluminismo português?A reforma da Universidade de Coimbra
(1772). São Paulo: Annablume, 2008, p.22.
10 Cf. LEMOS, Francisco. Relação geral do estado da Universidade (1777). Coimbra: Atlântida Editora, 1980.
11 Real Mesa Censória (RMC) - Caixa 508, documento 4701.

348
O referido documento traz uma descrição de como as Luzes se difundiram pela Europa,
promovendo o progresso da ciência e da educação, sem, contudo, lograr eliminar as mazelas da pobre-
za e da guerra. Escrita em 17 páginas, frente e verso, a obra foi enviada à censura portuguesa, compos-
ta, à época, pelo Ordinário, Inquisição e Desembargo do Paço. Apresentado em 1802 aos censores, o
documento é obra de Antonio José de Louro Silva, autor praticamente desconhecido. Não há registro
de Antonio José Louro da Silva nos bancos de dados dos alunos da Universidade de Coimbra. Não
existem livros escritos por esse autor na Biblioteca Nacional de Portugal ou na Brasileira. Pelo conteú-
do do documento é possível supor apenas que se tratava de um homem de batina. Talvez, ainda, algum
intelectual escondido por um pseudônimo. Mas essas são apenas hipóteses que tentam contornar os
limites da informação.

Com efeito, justifica-se a análise desse documento não pela relevância da autoria, mas por
se tratar de uma obra que revela a maneira pela qual um indivíduo praticamente desconhecido com-
preendia seu próprio tempo face às expectativas depositadas no século vindouro. Tratarei, portanto,
do que vai escrito na obra. Acerca dela, novos limites se apresentam. É bem provável que o Testamento
nunca tenha sido impresso. Não foi possível localizar a avaliação dos censores e nem a anuência para
publicação.Trata-se, portanto, de uma cópia manuscrita encaminhada à “mesa censória” e que muito
provavelmente não foi lida largamente.

Contudo, as faltas de informação sobre o autor e a omissão de referência sobre a obra nos
bancos de dados consultados não devem ser tomadas como um óbice intransponível à pesquisa. É
bem certo que essas ausências apontam para uma obra que não chegou a ser impressa e para um autor
desconhecido, que não figurava entre as pessoas iluminadas, conhecidas pela historiografia especia-
lizada. Entretanto, mais do que uma ausência a se lamentar, o quadro que se afigura consiste em uma
oportunidade para conhecer o um registro da perspectiva de autor desconhecido acerca das experiên-
cias históricas do século XVIII e de suas expectativas de tempo vindouro.12

O documento em foco se organiza em duas partes. Uma consiste no Testamento, o qual,


segundo o texto, teria sido redigido em 25 de Outubro de 1800. O Codicilo, por sua vez, é datado de 25
de Dezembro. A fixação das datas e o ordenamento da escrita servem de recursos literários que visam
dotar o panfleto histórico de um aspecto verdadeiro, legal e administrativo, muito embora se trate de
uma obra literária. O personagem principal da narrativa é o Século XVIII. Moribundo e temendo a
morte, ele professava sua fé, apresentava seus legados de feitos e mal feitos e, já no Codicilo, alertava
seu filho, o Século XIX, para os desafios a seriam enfrentados e para os males que deveriam ser evi-
tados. Seguindo o procedimento comum aos testamentos do período, o personagem século inicia os
registros de suas vontades apresentando sua profissão de fé.13
12 “ [...] experiência e expectativa são duas categorias adequadas para nos ocuparmos como o tempo histórico,
pois elas entrelaçam passado e futuro. São adequadas também para se tentar descobrir o tempo histórico, pois,
enriquecidas em seu conteúdo, elas dirigem as ações concretas no movimento social e político”. KOSELLECK,
Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução Wilma Patrícia Maas;
Carlos Almeida Pereira; revisão da tradução César Beijamin. Rio de Janeiro: Cantraponto: Ed. PUC-Rio, 2006,
p.308.
13 Sobre a forma dos testamentos no setecentos, dentre outros: ANTUNES, Álvaro de Araujo. A forma de fazer
testamento: apontamentos acerca de um opúsculo setcentista. REBH, vol.7, n.2, Jul./Dez., Juiz de Fora, 2005.

349
Enquanto personagem e narrador da própria biografia, o Século XVIII expressava sua fé
em um “ente todo poderoso, causa de todos os contingentes, incriado, universal e incompreensível”.14
A caracterização desse ente superior, como o princípio de tudo, como causa incausada, poderia indi-
car uma perspectiva deísta, similar a autores como Voltaire, Locke etc... Entretanto, na medida em que
a razão dos acontecimentos era atribuída ao desígnio divino, o Testamento afastava-se da perspectiva
deísta, que entende o demiurgo criador como um ser longínquo, diluído, pálido, não mais capaz de es-
torvar a humanidade com sua ira.15 O Testamento declarava sua crença em um ser superior responsá-
vel, provedor e previsor. Sustentando ainda mais sua fé, o personagem secular e moribundo declarava
sua obediência aos decretos dos pontífices, às decisões dos santos padres, aos concílios. Sua crença na
religião católica romana, fundada por “ordem do mesmo Deus”, era firme como a pedra sobre a qual
se assentou a Santa Igreja e não parece influenciada por qualquer deísmo ou ateísmo.

A vontade divina seria a origem dos seres e das coisas, da ordem e das instâncias de gover-
no eclesiástica e civil. Se essa posição não se associava ao deísmo, talvez remontasse às perspectivas da
segunda escolástica e corporativa que atribuíam a Deus a origem das leis, da ordem social e do poder
régio. Entretanto, segundo declarava expressamente o autor do opúsculo, “o poder dos príncipes vem
imediatamente de Deus [e] que pelo mesmo, réis governam”.16 Portanto, não haveria entre Deus e o rei
qualquer mediador. Perspectiva contrária foi largamente defendida em Portugal por autores da esco-
lástica, como Azpicuelta Navarro, Francisco Vitória, Domingo Soto etc. Na perspectiva escolástica, o
povo era o mediador do poder divino ao poder real, a ponto de, em casos de tirania, poder se levantar
contra o regente.17 A declaração de fé do autor do Testamento não negava a origem divina do poder,
mas não referendava a perspectiva pactualista escolástica. A profissão de fé contida no Testamento
reconhecia a providência divina, fonte de todas as coisas e origem do poder régio, sem mediadores.
Um Deus poderoso, logo, um rei forte.

Feita a profissão da fé, o atestante instituía o século nascente como testamenteiro e herdei-
ro de todos os seus bens. Deixava ao Século XIX a “administração do vínculo da teologia purgada dos
erros, heresias e cismas [...] assim como dos erros da escolástica e ultramontanismo”.18 No Testamento,
se defendia a submissão do rei ao pontífice romano, da mesma forma que se afirma a separação entre o
Estado e a Igreja. Como era comum na segunda metade do século XVIII, a ordem dos inacianos passa-
va por severas críticas. Aos jesuítas era atribuído o atentado sofrido por D. José I, evento que deflagrou
perseguição a alguns membros da nobreza portuguesa e dos inacianos, cujo poder econômico e polí-
tico se agigantavam em concorrência ao Estado.19 O Testamento do Século XVIII declarava sua defesa
da monarquia: “Vi mesmo com os olhos cobertos de lágrimas alguns atentados contras as pessoas
14 Real Mesa Censória (RMC) - Caixa 508, documento 4701, p.1.
15 HAZARD, Paul. O pensamento Europeu no século XVIII. De Montesquieu a Lessing. Tadução de Carlos
Grifo Babo. Lisboa: Editorial Presença, 1983, p.112.
16 Real Mesa Censória (RMC) - Caixa 508, documento 4701, p.2.
17 Sobre o assunto ver: TORGAL, Luis Reis. Ideologia política e teoria do Estado na restauração. Coimbra; Bi-
blioteca Geral da Universidade, 1981; e o trabalho mais recente e importantíssimo de VILLALTA, Luiz Carlos.
Usos do Livro no Mundo luso-brasileiro sob as Luzes: reformas, censura e contestações. Belo Horizonte: fino
Traço, 2015, p.29 et segs.
18 Real Mesa Censória (RMC) - Caixa 508, documento 4701, p.3.
19AZEVEDO, João Lúcio. O Marquês de Pombal e sua época. São Paulo: Alameda, 2004. p.185 et seq.;

350
sagradas dos príncipes, que eu castiguei de modo possível, até fazendo extinguir os jesuítas por me
capacitar que eram prejudiciais, pondo todos os meios procurar a paz e o sossego”.20 Em conformidade
com o espírito de campanha contra os jesuítas, são também condenados os “erros da escolástica”, alve-
jados pelas reformas do ensino em Portugal. Um sistema reformado de ensino das primeiras letras foi
planejado mais de uma década após a expulsão dos jesuítas, no ano de 1772. Na opinião de Joaquim
Ferreira Gomes, tratava-se de um impulso de secularização que traduzia, pela primeira vez na história
do ensino de Portugal, uma tentativa consistente de se formar um ensino público de primeiras letras.21

De formas distintas, as Luzes reconheciam o potencial da educação e as dificuldades em


mudar as formas tradicionais de ensino, notadamente o modelo escolástico. Para os autores das Luzes
a educação era fundamental para o progresso humano. Locke entendia que a verdadeira educação de-
veria formar “homens livres e cidadão ativos”.22 “Na linha de pensamento de Wolf, o Estado educador
deveria tornar a sociedade mais feliz”, com homens cultivados na virtude e nas ciências, para o bem da
humanidade e da pátria. Tomar a educação como essencial ao progresso nem sempre significava uma
defesa da instrução equânime e democrática. Segundo Carlota Boto, “grande parte dos filósofos ilumi-
nistas via com muita desconfiança a possibilidade de extensão irrestrita da instrução para as camadas
populares”. Outros autores, como Diderot, “havia que se prever estudos diversificados de acordo com
a origem social do estudante, de maneira a permitir que “as luzes descessem por degraus”.23

Antonio José Louro da Silva reconhecia o papel da educação e os erros dos jesuítas, muito
embora se mostrasse mais ácido quanto o apelo da felicidade individual anteposta à felicidade dos
povos. Entendia que a promessa de felicidade individual e de igualdade geral conduzia aos erros, para
além do perigo de modificar as estruturas sociais. Neste ponto, Antonio José Louro da Silva se posi-
cionava nomeada e explicitamente contra Wolf e outros autores modernos. Isto não quer dizer que
fosse contra as Luzes, uma vez que não poupava elogios para outros autores difundidos pela reforma-
da Universidade de Coimbra, tais como Febrônio, Van-Espen, Henécio, aos quais associava Montes-
quieu, apesar deste autor “sancionar o divórcio entre o direito natural e o divino.24 No Testamentodo
Século XVIII, à valorização do direito natural e das gentes se somava o progresso das artes mecânicas e
liberais, tributário da matemática e da filosofia natural e experimental. Entretanto, por mais incensado
que fosse o progresso da ciência, o Testamento apontava para a necessidade de um expurgo filosófico

20 Real Mesa Censória (RMC) - Caixa 508, documento 4701, p.6.


21 GOMES, Joaquim Ferreira. O Marquês de Pombal criador do ensino primário oficial. In: O MARQUÊS de
Pombal e sua época,Lisboa: Imprensa Nacional da Casa da Moeda, 1983. (temas portugueses)
22 ARAUJO, Ana Cristina. A cultura das Luzes em Portugal. Lisboa: Livros Horizonte, 2003, p.54.
23 BOTO, Carlota A escola do homem novo: entre o iluminismo e a revolução francesa. São Paulo: Editora da
Universidade Estadual Paulista, 1996,p.52.
24 Depois da reforma pombalina dos estudos, na Universidade de Coimbra, os alunos de Cânones estudavam
o direito de Graciano, por meio do comentário de Van-Espem, que alertava para os vícios daquele autor; O ter-
ceiro ano de direito, na cadeira sintética de Direito Civil, se estudava o Digesto por meio da obra de Heinécio. A
Universidade reformada ainda adotava a obra de Justino Febrônio, autor que alguns associavam ao Enciclope-
dismo e ao Jansenismo. HAZARD, Paul. O pensamento Europeu no século XVIII. De Montesquieu a Lessing,
p. 150. ANTUNES, Álvaro de Araújo. Fiat Justitia: os advogados e a prática da justiça em Minas Gerais (1750-
1808).Campinas, SP: Pós-graduação do Departamento de História da UNICAMP, 2005 (Tese, Doutorado em
História),p.156.

351
que lançasse fora das estantes as obras de Leibiniz, Locke, Newton e Wolf.25 A seleção dos autores in-
dica o compromisso do pensamento de Antonio José Louro da Silva para com as Luzes, especialmente
a de caráter moderado e vinculada às reformas da Universidade de Coimbra.

Na sua obra, a Razão era apresentada como responsável pelos avanços não apenas em
Portugal, mas em toda a Europa. Moribundo, o personagem centenário diz ter presenciado o “ilu-
minar dos homens”. Durante sua existência, a Razão foi convocada para que “viesse ao mundo ver os
gabinetes” e para ilustrar e emendar os países. Mas isso, como foi visto, deveria ser acompanhado com
uma boa dose de cautela e censura aos autores ímpios e radicais, incluindo Newton, o pai do experi-
mentalismo.

Preocupado com as idéias, livros e autores que circulavam pela Europa e difundiam as
Luzes, por vezes questionando os princípios do ordenamento social e os dogmas da Igreja, o Século
XVIII clamava ao seu filho para que, logo no início de sua existência, reduzisse às cinzas “a grande
máquina de livros que em todas as faculdades e ciências se tem descoberto e julgado perniciosos e
cavilosos”.26 Livros que atacavam o verdadeiro sentido da teologia, que submetiam os poderes dos
príncipes aos bons costumes, os que relatavam a história destituída de verdade, bem como os livros
de fábulas pagãs.27 Todo esse conjunto de livros deveriam ser proibidos de ser visto, lido, escrito, pois
“sempre há pavor onde este ou aquele tem passagem para de lá vir às mãos dos curiosos”.28 Uma clara
defesa da censura, a qual caberia a tarefa de filtrar as Luzes.
[...] vendidos, tanto daqueles que supõem o verdadeiro sentido da sã teologia, como
dos que atacam os legítimos poderes dos príncipes, e os bons costumes, e ainda mes-
mo o de história, que ou não foi verdadeira, ou poder conduzir os ânimos ao vicio do
amoroso ou do guerreiro, porque sendo estes livros peste na republica, a sua lição não
pode deixar de o ser também; ainda mesmo nas mãos daqueles que bem entendem
o contrário e apesar de que eu usei da providência de proibir em muitas nações a sua
venda e lição, contudo, pouco ou nada conclui, porque sendo os homens natural-
mente inclinados a ver tudo aquilo que se esconde, vem a proibição a agüentar-lhe o
desejo de os ver, ler, escrever, e sempre há pavor aonde este ou aquele tem passagem
para de lá vir as mãos dos curiosos, por isso a total redução das cinzas é o meio mais
eficaz de acautelar o grande mal que se segue de semelhantes livros.29

Ainda sobre a instrução literária, o século moribundo recomendava ao seu jovem filho que tivesse
cuidado com o ensino da língua latina por meio das lições dos poetas romanos. Havia o receio que
25 Newton supusera as matemáticas ao serviço da física, dando-lhes assim o seu justo papel. Porque ele não
partira de abstrações, de axiomas, mas sim de fatos, para chegar a outros fatos decididamente constatados, por-
que extraia da natureza as leis da natureza. Leibniz entendia que a cultura, a ética e a razão serviriam a pacifi-
cação e união das religiões. Discípulo de Leibiniz, Wolf era um autor que protestava contra os livres pensadores
ingleses, bem como contra o deísmo, o materialismo e o cepticismo dos franceses. Não era cristão, entretanto.
Para ele a moral era racional, a fé era uma operação racional e Deus é produto da razão humana. Locke era um
empirista e, como tal, entendia que o conhecimento, não importa de qual ordem, era constituído em função
dos sentidos. HAZARD, Paul. O pensamento Europeu no século XVIII. De Montesquieu a Lessing, p. 47 e 127.
ARAUJO, Ana Cristina. A cultura das Luzes em Portugal, p.14, 30 e 45.
26 Real Mesa Censória (RMC) - Caixa 508, documento 4701, p.14v.
27 “estes homens tiraram a lição das sagradas paginas, santos padres, teólogos, publicistas, e juristas, que escre-
veram unidos a sólidos princípios”.
28 Real Mesa Censória (RMC) - Caixa 508, documento 4701, p.15.
29 Real Mesa Censória (RMC) - Caixa 508, documento 4701, p.14v-15.

352
o ensino do latim por meio de obras literárias inflamasse os alunos com os enredos de amor ou os
desvirtuassem pelo sabor da sátira. Os clássicos, apesar de exemplares para o ensino do latim, traziam
a superstição e a barbaridade, pois ensinam a guerra, o vício, o paganismo e a imoralidade. Ao invés
das fábulas e dos autores consagrados, os primeiros elementos que deviam se ocupar os mancebos é
do conhecimento da existência de Deus, do “seu poder e majestade” e, nesse sentido, o catecismo seria
fundamental. Os meninos deviam se guiar pela fé racional, firmeza da esperança, obséquio, gratidão e
oração. Revelasse aqui o conjunto das qualidades esperadas do aluno, na perspectiva de Antonio José
Louro da Silva. Esse devia ser o princípio da educação e não “a lição de livros que pode informar idéias
alheias destas verdades e sólidos fundamentos da virtude”. 30

Ao longo do texto, verifica-se que a maior preocupação do autor era com as guerras. Em
seu argumento, o termo barbárie não é utilizado em contraste ao seu par antípoda, qual seja a civiliza-
ção. Esta pode ser entendida como o “processo de refinamento das maneiras e costumes dos europeus
[...] [e vinculada] à idéia de perfectibilidade moral e intelectual dos homens”, povos e nações em rumo
ao progresso.31 No Testamento do século XVIII ao seu filho, a barbárie estaria associada às contesta-
ções da ordem promovidas pelas obras de certos autores e, sobretudo, pelo desassossego causado pelas
guerras.32 No opúsculo, o personagem moribundo condenava a guerra e fazia uma veemente defesa
da paz e do sossego. Diferentemente dos ilustrados escoceses e assim como em Voltaire, Antonio José
Louro da Silva identifica na religião um freio à natureza desordeira e viciosa do ser humano, motivo
e combustível das calamidades públicas.33 Antonio José Louro da Silva, entretanto adota uma postura
política mais conservadora. O Século XVIII defendia a monarquia e, pedagogicamente, ensinava ao
seu filho, através dos exemplos de conflitos históricos variados, quais os limites morais e religiosos
deviam ser resguardados e quais vícios deviam ser evitados.34

Nesta postura talvez fosse possível, ainda, vincular o Testamento do Século XVIII às dis-
cussões que ocorreram entre os autores iluministas a respeito da guerra e da paz. Dentre eles, o mais
expressivo talvez tenha sido Kant, para quem politicamente:

30 Real Mesa Censória (RMC) - Caixa 508, documento 4701, p.16.


31 ARAUJO, Ana Cristina. A cultura das Luzes em Portugal, p.11.
32 O tema da guerra é fundamental para a compreensão das instituições do Estado. Para Koseleck, dois aconte-
cimentos que fizeram época e marcaram o início e o fim do absolutismo clássico, foram a guerra civil religiosa
e a outra foi a revolução Francesa que preparou o fim do estado monárquico. Observa ainda o referido autor
que, “para Hobbes, a razão é o fim da guerra civil; uma frase cujo significado histórico também pode ser inver-
tido: o fim das guerras civis religiosas é a razão. Não é o progresso que pede o Estado, mas a necessidade de por
fim a guerra civil”. KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês.
Tradução Luciana Vilas-Boas Castelo Brancos. Rio de Janeiro: EDUERJ: Comtraponto, 1999, p. 19 e.34.
33 Para entender o caminho que leva à paz universal , Diderot, Holabch e seus discípulos estenderam a idéia
espinosista dos vínculos morais, que ligam o indivíduos aos outros em uma sociedade justa, baseados na re-
ciprocidade das relações internacionais. ISRAEL, Jonathan. A revolução das Luzes: iluminismo radical e as
origens intelectuais da Democracia Moderna, p.142.
34 Segundo Israel. “o iluminismo moderando, então, e o rousseanismo, não tinham qualquer estratégia política
que pudesse produzir mudanças estruturais capazes de transformar a ordem existente, de modo a diminuir a
probabilidade de guerra”. Kant, por sua vez, teria focado na republica como algo central nesse propósito, absten-
do-se deliberadamente de abraçar a democracia com um princípio. ISRAEL, Jonathan. A revolução das Luzes:
iluminismo radical e as origens intelectuais da Democracia Moderna, p. 125.

353
a finalidade principal do progresso humano seria a construção de uma federação
internacional de poderes para resolver disputas, conduzindo, ele previu, para a “paz
perpetua”. O objetivo final, ou telos do progresso humano, em sua opinião, seria o
total desabrochar da racionalidade e da capacidade moral humanas, que somente
seria possível com base na legislação republicana e na paz perpétua; tudo isso, porém,
viria quase automaticamente, pelo funcionamento da Providência, sem qualquer in-
tervenção humana específica.35

Segundo relata, o século testamenteiro se empenhou em “apaziguar as dívidas e guerras


que meu pai deixou, fazendo cessar, logo nos meus primeiros dias, a guerra às portas Otomanas com
o império alemão”.36 Também buscou promover a união da França com a Inglaterra, ainda que em pre-
juízo da Espanha.37 Entretanto, os conflitos na Suíça, França, Inglaterra, Polônia, Espanha não deixa-
riam de convulsionar o setecentos. Na história dos conflitos, ganhava destaque a Revolução Francesa.
Dentre as guerras que presenciou, lamentava o Século XVIII:

Mil vezes me desejei morto para não ver os homens a quem tantas lições
tinha dado o direito natural, público e das Gentes, esquecidos de si mesmos,
atacando os sagrados direitos dos príncipes e caindo de abismo em abismo.
[....] levo para a sepultura a magoa eterna de suceder no meu tempo uma
tal ignorância e barbaridade, como principiou em 14 de julho do ano 89o da
minha idade.38

Importante observar o peso negativo que se depositou sobre a Revolução Francesa, ba-
luarte da igualdade, liberdade e fraternidade, valores associados às Luzes. Para o autor do opúsculo
a revolução trouxe a alteração na ordem social, bem como erodiu os alicerces das monarquias na
Europa. Não tendo os soberanos “superior abaixo de Deus, não havia juiz para as suas causas se não
a espada”. Fragilizava-se, então, o princípio da guerra justa, bem como se perdia a razão.Contrário a
marca iluminada que normalmente se associa ao setecentos, o personagem secular era caracterizado
como sendo em grande parte bárbaro e ignorante. A principal causa dessa condição era a guerra, ato
de soberba que se opunha à tranqüilidade do corpo e do espírito. O século das Luzes foi também o da
guerra e da barbárie.

Apesar de todos os progressos e em função dos conflitos bélicos, a preocupação do nosso


personagem era ser lembrado como um século bárbaro:

Trêmulo e convulso, esperando a meia noite do dia 31 deste mês, não


ouço soar mais coisa alguma que dizerem mal de mim acusando-me de
bárbaro e ignorante [...] o que mais sinto são as falas de muitos vícios que
soberbos se jactam dos progressos que fizeram no meu tempo!39

35 ISRAEL, Jonathan. A revolução das Luzes: iluminismo radical e as origens intelectuais da Democracia Mo-
derna, p.19.
36 Real Mesa Censória (RMC) - Caixa 508, documento 4701, p.4v.
37 Trata-se da Guerra da Quádrupla Aliança, ocorrida entre 1718-1720, envolvendo de um lado a Espanha e,
do outro, França, Grã Bretanha, Áustria, Sacro Império Romano Germânico e Países Baixos.
38 Real Mesa Censória (RMC) - Caixa 508, documento 4701, p.6.
39 Real Mesa Censória (RMC) - Caixa 508, documento 4701, p.6.

354
Juntamente com a guerra também figurariam os vícios patrocinados pelo interesse, pela
vaidade, pela lisonja, pela soberba. No século XVIII teria reinado e progredido o interesse,“primeiro
móvel de todas as ações humanas”. Vangloriava-se o interesse de: dominar o sábio que “estudava ou
escrevia pelo interesse da glória, vaidade ou lucro”; de dominar o “ignorante pelo interesse de manter
o ócio, a preguiça e o esquecimento”; de dominar “o rico pelo interesse de manter o luxo, a ambição
e o respeito”; de dominar o “pobre pelo interesse de se sustentar mendigando, fazendo-se pesado aos
outros e ao próprio Estado”, de dominar o sacerdote “pelo interesse de se sustentar das rendas ecle-
siásticas aplicando-as só para si” etc. As contestações das mazelas do século XVIII ainda se estendiam
à Lisonja, a soberba e a vaidade, alojadas na justiça, nos púlpitos, nas “cadeiras da verdade” ocupada
pelos ministros do altar, nas formas do falar, do escrever e do pensar. Todos esses males se sobrepu-
nham aos princípios morais. Eles eram caracterizados como monstros, um mar de infelicidades que
ameaçam o recém nascido século XIX.

No Codicilo - segunda parte do documento que está sendo analisado nessa comunicação
-, entram em pauta os ensinamentos do Século XVIII ao seu sucessor. Registrando sua escrita em 25
de dezembro de 1800, o codicilo alargava as recomendações do pai setecentista ao seu filho oitocen-
tista contra os chamados vícios monstruosos. Preocupado e à beira da morte, marcada para dia 31 de
Dezembro, o Século XVIII pondera pesaroso: “se eu estou a cair na sepultura e já não posso remediar
tantos males, como poderá ele na tenra idade abater semelhantes monstros, tendo tanta coisa para
governar!”.40

A biografia de um século escrita por Antonio José Louro da Silva tem no progresso dos
tempos a linha narrativa que une o nascimento ao fim da vida. O seu caminhar no tempo era lembra-
do pelo personagem que se aproximava, sem se confundir, com a trajetória da humanidade em um
século de Luzes e guerras. Como já apontado, a idéia de um progresso da humanidade, na confor-
midade de uma lei natural ou de um desígnio divino, foi comum aos pensadores das Luzes. O que se
distingue no Testamento é a percepção de decadência que acompanha os próprios estertores do fim
da existência do Século XVIII.

A pluralidade das Luzes evidenciaria noções diversas de progresso, por vezes reafirmando
o avanço positivo, por vezes reforçando o traço do pessimismo. No Testamento do século XVIII, há
uma clara “percepção dos perigos e desafios a que está sujeita a condição humana”.41 A aproximação de
uma realidade histórica faz do texto um misto de otimismo e pessimismo. Uma condição que entendo
paradoxal, mas não menos ilustrada como exemplificam as obras citadas que tratam do avanço e da
decadência. Lembrando novamente Dorinda Outram, “la ilustración se vivió como uma cacofonia y
uma paradoja”.42 Segundo a autora, a Ilustração, mesmo em sua menor definição, compreendia muitos
abrigos distintos, variando no tempo e no espaço. Diferenças que também seriam nutridas por apro-

40Real Mesa Censória (RMC) - Caixa 508, documento 4701, p.11v.


41 ISRAEL, Jonathan. A revolução das Luzes: iluminismo radical e as origens intelectuais da Democracia Mo-
derna, p.17.
42OUTRAM, Dorinda. Panorama de La Ilustración, p.24.

355
priações particulares e pelas controvérsias, mesmo entorno de metas comuns, como o progresso e a
educação.

No documento em análise, a história de Portugal não é associada à decadência. Toda a Eu-


ropa tem seu quinhão no processo de degenerescência da humanidade. Não há referências a América,
África ou qualquer outro continente. A história da humanidade era contada como se fosse essencial-
mente européia, segundo é possível depurar do documento. Uma história decadente causada pelos
vícios e pelas guerras. Uma história que revelava uma percepção do progresso que não era positiva e
nem totalmente negativa. Afinal, os avanços da ciência e as mudanças na educação trouxeram espe-
rança e condições para o jovem Século XIX. Alquebrado pelas guerras, o próprio pai dizia ao filho:
“não se deve desanimar o meu filho, porque ainda existem a Razão, Prudência, Verdade e Obediência
que são virtudes muito superiores aos vícios”.43

Quando cultivadas, as virtudes poderiam se sobrepor aos vícios. Dentre elas, a Razão, a
marca distintiva das Luzes, não se apresenta como compromissada a alcançar a verdade e a denunciar
os erros, em prejuízo da fé e da religião católica. A Razão era compreendida como uma virtude que
contribui com a ordem e a paz, o que implicaria em afastar discursos quiméricos de igualdade entre
os homens.44 A Razão, no Testamento, se distanciava da promoção da liberdade e da autonomia que
vibravam o clamor kantiano de “Sapere Aude”.

Para finalizar, apresento três conclusões acerca desse curioso Testamento do século XVIII
ao XIX.

A primeira conclusão se refere ao progresso. Como foi demonstrado, na obra de Antonio


José Louro da Silva há um otimismo, expresso no avanço da razão e das ciências, temperado pelo
pessimismo, identificado na ameaça perene da guerra e dos vícios. A temida caracterização do século
XVIII como sendo bárbaro, era nuançada não apenas pelo progresso da ciência, mas pela esperança de
futuro aberto, de um novo século que iniciava. Como legado, o Século XIX recebia as descobertas das
ciências e a responsabilidade de zelar pela tradição religiosa, pela monarquia e pela ordem social. Nes-
se sentido, é preciso destacar a idéia ilustrada de que a transformação do mundo presente em função
de um futuro melhor não era distinta da perspectiva retilínea da fé cristã. Aliás, para Dorinda Outram,
foi justamente este “sincretismo” que contribuiu para o sucesso da idéia de progresso nos setecentos.45

A segunda conclusão se insinua na apropriação que Antonio José Louro da Silva fez dos
autores ilustrados, acolhendo os vinculados à reforma pombalina e rejeitando os radicais. Conclui-
-se, dessa postura, não apenas uma filiação a um iluminismo moderado e reformista, bem como ao

43Real Mesa Censória (RMC) - Caixa 508, documento 4701, p.12.


44 “No âmbito educativo a equação do binômio homem/civilizado implica, no que concerne ao indivíduo, a
adoção do princípio, formulado por Locke, de que todos os homens nascem livres e iguais”. Isso é oposto ao
opúsculo. Nele o “acúmulo de ciências é impossível aos mortais e muitos aumentos de alguns que se prezavam
de sábios e que pensavam fazer grandes descobertas não foram mais que puros delírios. Que ensinem como
a virtude nas mãos sem a vaidade de se quererem fazer celebres e duráveis até o fim dos seus descendentes”.
ARAUJO, Ana Cristina. A cultura das Luzes em Portugal, p.53; Real Mesa Censória (RMC) - Caixa 508, docu-
mento 4701, p.13v.
45 OUTRAM, Dorinda. Panorama de La Ilustración, p.25

356
catolicismo e ao ecletismo. O autor se mostrava disposto a harmonizar posições contraditórias, o que
não seria incomum ao ambiente ilustrado português. Ademais, pressupor um consenso fundamental
de concepções no campo da história das idéias anularia “as disputas ou as diferentes orientações que
norteiam a afirmação do ideal filosófico setecentista”.46

Por fim, quanto à educação, a posição do opúsculo é manifestada em duas dimensões.


De forma explicita, havia uma evidente condenação do pensamento escolástico e aos clássicos latinos
em favor do progresso das ciências, desde que casado com o ensino religioso. De forma implícita, se
deduz das instruções passada de pai para filho a necessidade de se cultivar as virtudes, em especial a
Razão, e se repelir os vícios e barbarismos, sobretudo a guerra. Nota-se nesse posicionamento, a ideia
“de que a promoção continua do gênero humano se realiza na e pela história é correlata da exigência
de aplicação ao ensino dos valores e do progresso realizados pela cultura ocidental”.47

Extenuado por uma existência secular, calejado pelos conflitos, porém preocupado com
um devir em aberto, o Século XVIII escreve sua a última linha da sua biografia rogando aos céus que
seu filho siga os seus conselhos “para o sossego meu, gloria sua e felicidade dos homens”.48

Bibliografia:
ANTUNES, Álvaro de Araujo. A forma de fazer testamento: apontamentos acerca de um opúsculo
setecentista. REBH, vol.7, n.2, Jul./Dez., Juiz de Fora, 2005.
ANTUNES, Álvaro de Araújo. Fiat Justitia: os advogados e a prática da justiça em Minas Gerais
(1750-1808).Campinas, SP: Pós-graduação do Departamento de História da UNICAMP, 2005 (Tese, Doutorado
em História).
ARAUJO, Ana Cristina. Cultura das Luzes em Portugal: Temas e Problemas. Lisboa: Livros Hori-
zonte, 2003.
AZEVEDO, João Lúcio. O Marquês de Pombal e sua época. São Paulo: Alameda, 2004.
BOTO, Carlota A escola do homem novo: entre o iluminismo e a revolução francesa. São Paulo:
Editora da Universidade Estadual Paulista, 1996.
CARVALHO, Flavio Rey de. Um Iluminismo português?A reforma da Universidade de Coimbra
(1772). São Paulo: Annablume, 2008.
CONDORCET, Jen-Atoine Nicolas de Caritat, marquis (1743-1794) Esboço de um quadro histórico
dos progressos do espírito humano. Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 2.ed. Campinas, SP: Editora
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HAZARD, Paul. O pensamento Europeu no século XVIII: de Montesquieu a Lessing). Lisboa: Edi-
tora Presença, 1983.
ISRAEL, Jonathan. A revolução das Luzes: iluminismo radical e as origens intelectuais da Democra-
cia Moderna. Tradução de Daneil Moreira Miranda. São Paulo: Edipro, 2013.
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Tradu-
ção Luciana Vilas-Boas Castelo Brancos. Rio de Janiero: EDUERJ: Comtraponto, 1999.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução
Wilma Patrícia Maas; Carlos Almeida Pereira; revisão da tradução César Beijamin. Rio de Janeiro: Cantraponto:
Ed. PUC-Rio, 2006, p.308
LEMOS, Francisco. Relação geral do estado da Universidade (1777). Coimbra: Atlântida Editora,
1980.

46 ARAUJO, Ana Cristina. A cultura das Luzes em Portugal, p. 17.


47 ARAUJO, Ana Cristina. A cultura das Luzes em Portugal, p.51.
48 Real Mesa Censória (RMC) - Caixa 508, documento 4701, p.17v.

357
MONTESQUIEU. Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e da sua decadência.
Tradução de Renato Moscateli. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010.
OUTRAM, Dorinda. Panorama de La Ilustración. Barcelona: Art Blume, 2008.
TORGAL, Luis Reis. Ideologia política e teoria do Estado na restauração. Coimbra; Biblioteca Geral
da Universidade, 1981.
VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do Livro no Mundo luso-brasileiro sob as Luzes: reformas, censura e
contestações. Belo Horizonte: fino Traço, 2015.

Bourdieu para pensar a História da Educação: família e educação em Minas no século XVIII
Fabrício Vinhas Manini Angelo49

Resumo

O presente trabalho objetiva divulgar reflexões feitas a partir de pesquisa de doutoramento sobre o
papel das famílias na educação dos seus descendentes em Minas no século XVIII. Especificamente
para este trabalho busca-se apresentar estudos de casos que permitem entender como as estratégias fa-
miliares daquele período serviam para preparar seus herdeiros denotando um projeto intergeracional
educativo. Para isso, verticalizou-se a análise em estudos de casos que emergem da massa documental.
De maneira geral, busca-se compreender o papel que a família assume na trajetória educacional das
futuras gerações, isto é, busca-se compreender as estratégias educativas das famílias em relação à sua
descendência. Além disso, o foco deste trabalho é aplicar o arcabouço teórico-metodológico cunhado
por Pierre Bourdieu, em outro contexto histórico, para pensar o século XVIII. Claro que isto não é
possível sem se estabelecer um diálogo crítico com o sociólogo francês. Sendo assim, identifica-se
uma estratégia educativa familiar intergeracional e como a reflexão teórico-metodológica estabelecida
pelo sociólogo francês permiti observar tais práticas, sem abrir mão de um diálogo crítico.

Palavras-chave: História da Família, História da Educação, Pierre Bourdieu, Minas, século XVIII

Introdução.

Este trabalho pretende ser um estudo de trajetória baseando nas contribuições teórico-meto-
dológicas de Bourdieu tendo como fonte principal os testamentos e os inventários post-mortem do
século XVIII mineiro. No entanto, pretende também ser um estudo que, dialogando com pesquisado-
res canônicos da Micro-história (Ginzburg e Levi), permita revelar outras dimensões dos fenômenos
pesquisados. Em que pese as limitações que a própria fonte traz, em um cruzamento com outros
testamentos da mesma família ou/e com inventários post-mortem de membros da família, é possível
compreender algumas estratégias educativas (nos termos propostos por Bourdieu) das famílias de Mi-
nas no século XVIII a partir do que foi registrado em suas últimas vontades. Para o presente trabalho
pretendo analisar 3 dimensões do fenômeno aqui pesquisado: o compartilhado, o vivido e o efetivado
49 Doutor em Educação pela FAE/UFMG. Bolsista de pós-doutorado CNPq na FaE/UFMG.

358
e/ou conquistado. Para isso tratarei aqui de 3 casos paradigmáticos do que estava em jogo no processo
educativo para aquelas famílias tendo em vista o formato de texto aqui proposto.

Proposta teórica

O ponto de partida desta pesquisa é buscar uma vinculação entre a Sociologia da Educação
e a História da Educação. Aspecto fundamental neste projeto é a atenção voltada para as famílias
muito mais que para os educandos. Sendo assim, essa temática que tem muita tradição na Sociologia
da Educação vinculada a Pierre Bourdieu50, ainda tem grande potencial de crescimento na pesquisa
em História da Educação. Afinal, para Minas do Ouro os testamentos estão muito bem organizados e
como esta fonte traz muitas informações relacionadas ao papel exercido pelas famílias na “longevida-
de escolar”, ou talvez fosse melhor dizer, a longevidade educativa dos educandos urge a sua leitura. Em
parte isso se deve à tradição que aponta que a “longevidade educativa” está intimamente relacionada
ao compartilhamento de um determinado capital cultural pela família na qual o educando está inseri-
do. Ou seja, os trabalhos de Sociologia da Educação de matiz bourdieusiano apontaram uma relação
estreita entre o nível sociocultural das famílias e a longevidade escolar.

Tendo em vista esta proposta teórica talvez um primeiro problema a ser enfrentado seja a
inexistência de um sistema educacional massivo, massificador e reprodutor a partir do qual Bour-
dieu desenvolveu a sua teoria. Partindo desse contexto, seria possível a utilização de Bourdieu para
compreender as práticas educativas anteriores ao século XX? Convém ressaltar, em princípio, que a
metáfora sobre os herdeiros cunhada por Bourdieu é bastante significativa para a presente pesquisa,
pois busca analisar o papel das famílias a partir de seus testamentos. Nesse sentido, os testamen-
tos também não indicariam os seus próprios herdeiros? Além disso, para Bourdieu o diálogo entre
História e Sociologia é fundamental para compreender os fenômenos que o presente trabalho busca
entender. Ou nas palavras de Bourdieu citado por Catani (2011, p. 320-321): “toda sociologia deve
ser histórica e toda história sociológica”. Posição também defendida por Cunha (2007). Com isso, na
verdade, compreende-se que as duas disciplinas podem ganhar muito nesse diálogo. De outro modo,
compreende-se muito melhor a constituição de um determinado campo quando sua história fica evi-
dente, e também quando a história incorporada pelo habitus, necessário a sobrevivência social nesse
determinado campo, fica evidente, como proposto por Catani (2013 p. 320-328). Além disso, através
da teoria dos capitais (cultural, social, econômico), construída por Bourdieu, é possível compreender
os bens, materiais e simbólicos, que os testadores do período legavam a seus descendentes ou que
seus herdeiros conquistaram e que teriam forte papel na disputa por postos valorizados nas disputas
no espaço social da região e período. Também é importante frisar que a apropriação conceitual não é
interessante somente para a História. Mesmo Bourdieu ganhou muito quando buscou compreender
por meio do conceito de habitus a relação entre a arte gótica e a prática escolástica dialogando para
50
Para observar vários textos nos quais esta aparece, basta consultar: BOURDIEU, Pierre. Op. cit.
1992. ou BOURDIEU, Pierre. A escola conservadora. In. NOGUEIRA, Maria Alice (Org.); CATANI,
A. (Org.). Op. Cit. 2012. v. 1. p. 135-155. Além dos diversos textos de Maria Alice Nogueira no livro: NO-
GUEIRA, M.A., ROMANELLI, G., ZAGO, N.. Op. Cit, 2000.127-153, 49-63; e da autoria de Maria José
Braga Viana, 47-59, também no mesmo livro.

359
isso com Panofsky (Cf. BOURDIEU, 2007, p. 337-361). E também é relevante para a Sociologia ter
seus aportes conceituais utilizados para investigar outros períodos históricos.

A partir desse quadro, considera-se que é possível utilizar-se da abordagem de Bourdieu para
compreender a História da Educação em Minas do século XVIII. No entanto, para isso, é necessário
traçar um diálogo crítico com o aporte teórico-metodológico bourdieusiano. Sendo assim, conceitos
como o de espaço social, de habitus ou de capital cultural, capital social e capital econômico podem
muito bem auxiliar a compreensão do ato de legar algo a alguém, em especial quando se trata de
algo simbólico relacionado à educação ou à cultura dita legítima. Claro que tudo isso exige que seja
compreendido o que é família para o período51, como ela funciona em relação às gerações seguintes
e, em especial, nas temáticas relacionadas à educação. Sendo necessário ter em mente a especificidade
daquela sociedade que estava se formando em um contexto de forte migração e múltiplas mestiçagens.

A partir do quadro anteriormente apresentado, considera-se importante utilizar-se de Bourdieu para


compreender a História da Educação em Minas do século XVIII. Porém, obviamente não no todo, por
isso a necessidade de traçar um diálogo crítico com o aporte teórico-metodológico bourdiesiano. Sen-
do assim, conceitos como o de habitus ou de capital cultural, capital social e capital econômico podem
muito bem auxiliar a compreensão do ato de legar algo a alguém, em especial, quando se trata de algo
simbólico que quase sempre está relacionado à educação das gerações seguintes.

Para Bourdieu o capital não pode se restringir aos bens materiais ou propriedades. Para uma
boa compreensão das disputas que estão em jogo deve-se levar em conta outros capitais e os seus esta-
dos, em especial o capital social e o capital cultural. O capital cultural, segundo Bourdieu (2013) pode
existir sob três formas ou estados: incorporado, objetivado e institucionalizado. No primeiro estado,
o capital cultural supõe um processo de interiorização pelo processo de ensino e aprendizagem, tanto

51 Dentre as várias possibilidades para se conceituar as famílias para este período vale consultar os seguintes
trabalhos: ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. FI-
GUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Barrocas Famílias: Vida familiar em Minas gerais no século XVIII.
São Paulo: HUCITEC. 1997. FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob
o regime da economia patriarcal. 51 ed. São Paulo: Global, 2006. FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos:
decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano. 15ed. ver. São Paulo: Global, 2004. RODARTE, Ma-
rio M. S. O trabalho do fogo: perfis de domicílios enquanto unidades de produção e reprodução na Minas
Gerais Oitocentista. Tese (Doutorado de Demografia) – Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional
– UFMG. Departamento de Demografia, Belo Horizonte, 2008. ANGELO, Fabrício V. M. “Pelo muito amor que
lhe tenho: a família, as vivências afetivas e as mestiçagens na Comarca do Rio das Velhas (1716-1780)”. Belo
Horizonte: Dissertação (Mestrado em História) – FAFICH /UFMG, 2013. CERCEAU NETTO, Rangel. Um
em casa de outro. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGH/UFMG, 2008. (Coleção Olhares). CHAR-
TIER, Roger (Org.) História da vida privada, 3: da Renascença aos Séculos das Luzes. São Paulo: Companhia
das Letras, 2009. FARIA Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial.
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ciedade antiga. Lisboa: Estampa 1995. PAIVA, Clotilde A. ARNAUT, Luiz D. H. Fontes para o estudo de Minas
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sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

360
da família quanto da escola e que implica em um investimento de tempo pessoal, pois esse estado do
capital cultural não pode ser apropriado por procuração como fala Bourdieu (2013, p. 82). Este estado
do capital cultural é como o bronzeamento, isto é não pode ser incorporado mandando outra pessoa
no lugar do interessado. Assim, o capital cultural incorporado é parte integrante de uma determinada
pessoa, não podendo ser trocado ou legado instantaneamente. Porém, isso não quer dizer que seja im-
possível a sua transmissão hereditária que se produz sempre em doses homeopáticas e de forma quase
imperceptível ao longo de uma vida.

O capital cultural, ainda segundo Bourdieu (2013, p. 85-86),pode ser encontrado no estado
objetivado, e isso quer dizer que nesse momento ele não é mais que um objeto e por esse motivo trans-
ferível a qualquer pessoa. Entretanto, para que este capital seja desfrutado há a necessidade de haver
um capital cultural incorporado bem estabelecido. De outra forma, são as capacidades culturais de um
determinado indivíduo que permitem o desfrute de um determinado bem cultural. Aqui, portanto,
fala-se de nada mais que livros, escritos, pinturas, objetos de arte, de decoração, joias e mesmo alguns
objetos mais utilitários mas que carregam um sentido para além da sua função como antiguidades,
utensílios de cozinha, faqueiros, porcelanas e etc.

Por fim, o capital cultural pode ser encontrado no estado institucionalizado o que, de certa
forma, significa que ele está incorporado sob a forma de títulos, diplomas e certificado. Estes são ga-
rantidores de uma determinada posição em um campo qualquer, porque são sancionados legalmente
e no limite permitem a permuta já que habilitam uma determinada pessoa ocupar a vaga de um outro
profissional, conforme aponta Bourdieu (2013, p. 86-88).

Outro conceito fundamental na teoria dos capitais de Bourdieu está relacionado ao capital so-
cial acumulado por uma determinada pessoa ou grupo social, que pode ser entendido em alguns casos
como sendo a família no qual um indivíduo está inserido. Sendo assim, Bourdieu define o conceito
como sendo
o conjunto de recursos atuais ou potenciais que estão ligados a posse de uma rede
durável de relações mais ou menos institucionalizadas de interconhecimentos e in-
ter-reconhecimentos ou, em outros termos, à vinculação a um grupo, como conjunto
de agentes que não somente são dotados de propriedades comuns (passíveis de serem
percebidas pelo observador, pelos outros ou por eles mesmos), mas também são uni-
dos por ligações permanentes e úteis. (BOURDIEU, 2013, p. 75).

Nesse sentido, para Bourdieu (Cf. 2013, p.76) a criação dessa rede de relações não pode ser
compreendida como um dado natural, mas sim como o produto de um trabalho que exige investimen-
to de tempo justamente para produzir relações úteis e lucrativas, tanto materialmente quanto simbo-
licamente. Isso significa muitas vezes produzir instituições, ocasiões, lugares e práticas que permitem
as trocas legítimas entre pessoas que se reconhecem como membros de um mesmo grupo. E no limite
esse capital pode ser herdado e, muitas vezes, materializado por meio de um sobrenome importante.

Outro conceito bourdieusiano fundamental nesta pesquisa é o conceito de habitus, em es-

361
pecial, porque trata de um período no qual Minas tinha na composição de sua população de muitos
imigrantes. Sendo assim, compartilha-se a definição clássica de habitus cunhada por Bourdieu:

sistema de disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas


a funcionar como estruturas estruturantes, ou seja, como princípios geradores e or-
ganizadores de práticas e representações que podem ser objetivamente adaptadas ao
seu objetivo sem supor a intenção consciente de fins e o domínio expresso das ope-
rações necessárias para alcançá-los, objetivamente “reguladas” e “regulares” sem em
nada ser o produto da obediência a algumas regras e sendo tudo isso, coletivamente
orquestradas sem ser a produção da ação organizada de um maestro. (BOURDIEU,
2013, p. 87).

A formalização desse conceito na teoria bourdieusiana está relacionada a uma leitura muito
específica de Erwin Panofsky52. Tudo isto gerou uma reelaboração criativa de um conceito utilizado
por esse historiador da arte. Para mais, a evolução do conceito na obra do sociólogo francês está deta-
lhada em vários de seus livros (BOURDIEU, 2007, p. 59-64; BOURDIEU, 2007b, p. 337-361; BOUR-
DIEU, 2013, 86-107) além de ser exposta em Setton, (2002, p. 63-67). No entanto, é bastante esclare-
cedor o que Loïc Wacquant, utilizando-se de Bourdieu, diz sobre o habitus, tendo em vista o contexto
de aplicação do conceito:

o habitus (i) resume não uma aptidão natural, mas social, que é, por esta mesma ra-
zão, variável através do tempo, do lugar e, sobretudo, das distribuições de poder; (ii) é
transferível a vários domínios de prática, o que explica a coerência que se verifica, por
exemplo, entre vários domínios de consumo – música, desporto, alimentação, mobí-
lia e, também, nas escolhas políticas e matrimoniais – no interior e entre indivíduos
da mesma classe, e que fundamenta os distintos estilos de vida (BOURDIEU,1984
[1979]); (iii) é durável, mas não estático ou eterno: as disposições são socialmente
montadas e podem ser corroídas, contrariadas ou mesmo desmanteladas pela ex-
posição a novas forças externas, como demonstrado, por exemplo, a propósito de
situações de migração; (iv) contudo, é dotado de inércia incorporada, na medida em
que o habitus tende a produzir práticas moldadas depois das estruturas sociais que os
geraram e na medida em que cada uma de suas camadas opera como um prisma por
meio do qual as últimas experiências são filtradas e os subsequentes estratos de dis-
posições são sobrepostos (daí o peso desproporcionado dos esquemas implantados
na infância); (v) introduz uma defasagem e, por vezes, um hiato entre as determina-
ções passadas que o produziram e as determinações atuais que o interpelam: como
“história tornada natureza”, o habitus “é aquilo que confere às práticas sua relativa
autonomia no que diz respeito às determinações externas do presente imediato.
Esta autonomia é a do passado, ordenado e atuante que, funcionando como capital
acumulado, produz história na base da história e, assim, assegura que a permanência
no interior da mudança faça do agente individual um mundo no interior do mundo”
52 Tudo isto está registrado em BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva,
2007a. (Coleção Estudos) especialmente no capítulo 8 - Estrutura, habitus e prática e em BOURDIEU, Pierre.
O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007b. 11ed., especialmente no capítulo III - A gênese dos
conceitos de habitus e campo. Além, é claro que vez por outra aparece nos textos de diversos comentadores
como Catani (2013), Wacquant (2007), Setton (2002) e Nogueira & Nogueira (2008). De qualquer modo, para
resumir a história, a leitura feita por Pierre Bourdieu tem como texto fundante o posfácio escrito pelo soció-
logo francês para a tradução de um livro de Panofsky sobre a relação entre Arquitetura gótica e o pensamento
escolástico.

362
(BOURDIEU, 1990 [1980], p. 56). (LOIC WACQUANT, 2007, p. 66-7).

Outro elemento da teoria de Pierre Bourdieu é o estudo de trajetória. A partir dos anos de
1980, vários estudos de trajetória foram empreendidos no exterior e no Brasil e, em geral, esses es-
tudos apontam para o que afirma Maria Alice Nogueira (2010, p. 150) “que as diferentes categorias
sociais são desigualmente predispostas a compreender, valorizar e praticar o jogo escolar” e que tal
predisposição encontra-se intimamente associada “ao volume do patrimônio cultural possuído”. A
partir destas posições teóricas, o debate no campo acabou por polarizara-se entre aqueles que dão cré-
dito preponderante aos discursos narrativos dos sujeitos históricos e aqueles que buscam identificar
os elementos estruturais que influenciaram essa trajetória.

Claro que a partir dos anos de 1990 surgiram posições que buscaram uma terceira via evitando
a polarização. Sendo assim, é relevante a posição de Passeron, citado por Guéiros (2011, p. 13), parcei-
ro de longa data de Pierre Bourdieu:

[...] a superação, atualmente observável em numerosas pesquisas, das formas mais


mecânicas ou mais abstratas de um naturalismo determinista constitui indiscutivel-
mente um avanço teórico; mas com a condição que se faça melhor do que aquilo que
se quer superar, ou seja, que se some [o estudo dos] constrangimentos à interpretação
(PASSERON apud GUÉIROS, 2011, p. 13).

Segundo Maria Alice Nogueira (2010, p. 150), a recomendação da produção mais recente do
campo é recomendável:

se atentar para as variações internas a um mesmo grupo social, o que obriga o ana-
lista a se dotar de um instrumental teórico-conceitual mais fino, capaz de detectar as
dinâmicas e a diversidade dos modos de funcionamento de cada família segundo a
trajetória social dos pais, os acidentes biográficos, as características de cada filho etc.
(NOGUEIRA, 2010, p. 150).

Sendo assim, Maria Alice Nogueira (2010, p. 151), salienta que “a esta altura o leitor estará se
preguntando se essa não é uma visão idealizada da questão, tudo se passando como se se tratasse de
uma lei perfeita e inexorável da transmissão familiar das vantagens e dos privilégios culturais”. Porém,
“Não se pode tratar o sucesso escolar nesses meios como uma fatalidade sociológica” (Ibid.). Afinal,
para a autora (NOGUEIRA, 2010, p. 151), tratar o capital cultural como um bem que se transmite ou
uma carga genética que se passa ainda, pode “ocultar o trabalho específico que essa herança requer
para ser apropriada. Converter o capital cultural familiar em capital pessoal demanda mobilização e
de ambas as partes: da parte dos jovens bem como da parte dos pais”.

363
A partir desse ponto que se torna relevante às contribuições de Paulo Renato Guérios (2011)
ao informar que essa polarização mascara um debate antiquíssimo nas Ciências Sociais, que é a rela-
ção entre indivíduos e sociedade, entre a parte e o todo, entre o objetivo e o subjetivo. Que de alguma
forma impacta nos critérios de cientificidade das Ciências Sociais. Afinal, por ser ciência, ela estaria
mais preocupada com o generalizável, mas, ao mesmo tempo, o que é subjetivo é muito pouco genera-
lizável. Tendo isso em mente, o que se pretende aqui é ir além dessa polarização e buscar compreender
como os indivíduos podiam fazer escolhas em sociedades sempre normatizas, em especial, as socieda-
des do tipo de Antigo Regime. Claro que essas escolhas traziam algo de padrão, mas em uma realidade
tão distinta daquela vivida por eles, em um novo continente que produziu situações completamente
distinta e muito específicas daquele momento e lugar. Nesse sentido, e compreendendo o que pro-
põem Guérios (2011), fica evidente que existe outro caminho a seguir:

[...] se colocarmos como nosso objetivo não a busca de uma maior cientificidade,
mas sim a recolocação das questões de pesquisa em outros termos, possibilitando
um tratamento dos dados de campo que não sofra com as limitações impostas por
uma construção dilemática das questões, percebemos que, justamente por colocar-se
à cavaleira em relação à dualidade indivíduo-sociedade, o método de histórias de
vida pode oferecer, se levado a cabo com consistência, um bom lócus de trabalho em
prol desta tarefa. Ao tomar por foco de estudo a trajetória de uma pessoa nos am-
bientes sociais de que participa, ao oferecer a oportunidade de questionar como cada
sujeito vive ligado a redes de interdependência (Elias, 1994) que se estendem além
de seu pertencimento social imediato, estes estudos deparam-se frontalmente com a
questão da relação entre o individual e o social, entre o pequeno e o grande, entre a
parte e o todo. E foi nesta área de trabalho que algumas indicações de caminhos para
a superação deste dilema surgiram, em algumas monografias e textos teóricos [...]
(GUÉRIOS, 2011, p. 13).

Neste sentido, como proposto por Guérios (2011), faz-se necessário um estudo de trajetória
que leve em conta os jogos de escalas como proposto por uma série de pesquisadores da Micro-histó-
ria (GINZBURG, 2006; LEVI in: BURKE, 1992).
De fato, em vários estudos de trajetórias, esta ligação é traçada através de uma remis-
são abstrata do ator social ao meio em que ele se insere. O pressuposto subjacente a
estes estudos, dificilmente explicitado como tal, é de que o pertencimento a um dado
grupo implica inevitavelmente em inflexões unívocas nas trajetórias de todos os seus
membros. Ocorrem aí duas ordens de problemas: por um lado, é em geral o analista
quem arbitra quais eventos ou características dos ambientes sociais enfocados são re-
levantes para análise; em segundo lugar, pressupõe-se que todo o grupo foi submeti-
do de modo homogêneo a estes eventos ou características especificados pelo analista.
Já os estudos subjetivistas de histórias de vida privilegiam a observação exclusiva dos
discursos de um dado indivíduo, desconsiderando a regulação operada sobre ele pe-
los meios sociais a que está ligado. Neste item, buscaremos demonstrar que propostas
analíticas que levam em consideração as implicações das diferenças de escalas (micro
e macro) na produção de legibilidade sobre os fenômenos sociais possibilitam neu-
tralizar os efeitos das limitações impostas por estes dois tipos de démarche no estudo
de trajetórias de vida. (GUÉRIOS, 2011, p. 14).

Tendo em vista as implicações das análises muito estruturalistas sobre as trajetórias de vida,
qual o caminho a seguir? Segundo o autor, a micro-história vai apresentar metodologias (jogos de

364
escala, e ênfase no que é observado pelo indivíduo ou que o influencia) que permitirão transpor os
obstáculos anteriormente apresentados. A redução de escala permite observar fatores e fenômenos
anteriormente não observados, mas que influenciam aquela realidade.

Dessa maneira, as abordagens se complementam, pois a microanálise permite observar as-


pectos inobserváveis em uma análise macro. Afinal, seriam desnecessárias uma microanálise que só
confirmasse uma macroanálise. Na realidade, as abordagens se complementam, uma não sendo a
redundância da outra, mas sim apresentando aspectos que a outra não permite observar.

Tendo apresentado este quadro teórico é necessário partir para a análise das fontes, tendo em
mente, é claro, que não será feito uma simples aplicação mecânica dos conceitos aqui apresentados,
mas sim uma análise de caso que permitirá observar elementos inobserváveis em uma análise macro
dos fenômenos aqui pesquisado. Sendo assim, os conceitos não serão apresentados e aplicados, mas
estarão presentes como guias na análise dos casos. Para tornar este desafio exequível no espaço deste
trabalho, dividiu-se o fenômeno em três dimensões: o compartilhado, o vivido e o efetivado ou con-
quistado. Esta divisão se faz necessária, pois as críticas direcionadas ao uso dos testamentos para pes-
quisa em História aponta para a falta de representatividade social da fonte ou que as últimas vontades
seriam mais cartas de boas intenções e que nada garantiriam sua efetivação. No entanto, criticamos
veementemente esta postura de quem crítica, mas pouco entente a fontes. Aqui não é o caso de apre-
sentarmos argumentos pormenorizados, mas salienta-se que está já foi objeto de análise anteriormen-
te53. Passemos, então, à análise dos casos

O compartilhado

Sobre a dimensão do compartilhado, quando fala-se do relacionado ao cuidado e respeito na


execução das últimas vontades dos testadores, o testamento de Dona Catharina Maria de Moura, fa-
lecida em 1753, e de seu filho Francisco Xavier da Costa, falecido em 1749 são exemplos importantes
para a proposta aqui traçada. Nesses testamentos, pode-se observar que se trata de uma família abas-
tada e bem relacionada segundo o registro no trecho do testamento de Dona Catharina, “Declaro que
fui nascida e batizada na Freguesia de Santa Justa da Cidade de Lisboa, filha legitimo de Nicolau Tei-
xeira Daniel, e de Dona Bárbara Maria de Moura já defuntos, e que na dita cidade fui casada com Do-
mingos Xavier da Costa Cavaleiro, professo na Ordem de Christo, e Capitão de Mar e Guerra”54·. Essa
família ostenta os títulos honoríficos como os de Dona, membro da Ordem de Cristo ou de Capitão
de Mar e Guerra, isso indica um grande prestígio social. Embora tivesse esse tipo de posicionamento
social, isso não permitiu que Dona Catharina tivesse algum tipo de letramento mais significativo,
pois ela mesma declarou que “eu assinei com uma cruz meu sinal acostumado por não saber ler, nem
escrever”55. Porém, essa dificuldade em lidar com o escrito, para uma mulher desse período e oriunda
desse estrato social, não significa muito, em especial para a sua família, afinal essas habilidade não
seriam esperadas que as mulheres pudessem saber.

53 ANGELO, Fabrício V. M. Criticando, mas entendendo as fontes: uma contribuição para a pesquisa em tes-
tamentos. Revista História e-história, 2014.
54 CMS-020, Fls. 133v - 134. Testamento de Dona Catharina Maria de Moura 30/07/1753.
55 CMS-020, Fls. 133v - 134. Testamento de Dona Catharina Maria de Moura 30/07/1753.

365
Algo diferente está presente no testamento de Francisco Xavier da Costa que informa que
“assinei com a minha própria mão”56. Contudo, independentemente de saber escrever ou não, am-
bos, mãe e filho, não abriram mão do serviço de uma pessoa especializada em fazer seus respectivos
testamentos: Bento Pereira de Faria Marinho. O que parece indicar que existiam pessoas no período
que prestavam serviços relacionados à feitura de testamentos, normalmente eram padres ou membros
do clero, alguns militares e advogados ou mesmo rábulas. Além disso, parece que isso era valorizado
mesmo para uma família, ao que tudo indica, abastada, bem relacionada e que não teria problemas em
escrever o próprio testamento.

Assim, mesmo com essa imensa distinção social é muito interessante constatar o tempo e in-
vestimento que mãe e filho dedicaram a uma criança que nem mesmo, pelo menos em tese, era sua
aparentada. Na verdade, à primeira vista a criança parece ser a menos indicada para receber tais lega-
dos. Apesar de declarar ser solteiro e não ter herdeiros, além de sua mãe, Francisco informa:
[...] que possuo uma escrava por nome Antônia que pelos bons serviços deixo forra e
livre e isenta de cativeiro a qual tem uma filha por nome a Anna a quem passei Carta
de alforria e novamente a declaro forra para que com uma e outra se não entenda e
na minha terça tomo o valor delas e rogo a dita minha herdeira e testamenteira con-
serve em sua companhia a dita mulatinha Anna alimentando-a do necessário, como
eu fizera se vivo fosse fazendo-lhe por esmola todo o bem que for sua vontade, o que
se não entenderá legado obrigatório mas rogos de filho (APM/CMS-020. Fls. 35v-36.
Testamento de Francisco Xavier da Costa 12/06/1749).

Coisa similar está registrada no testamento de Dona Catharina em relação à Antônia que será
portanto, sua herdeira e testamenteira.

[...] nomeio e instituo por minha herdeira, e Testamenteira a Antônia Xavier da Cos-
ta, pelos bons serviços que me tem feito com a obrigação de dar cumprimento a
todas as verbas deste testamento, assim do meu funeral, como dos meus legados, e
pagamento de minhas dívidas, e dar conta do testamento do dito meu filho de quem
fui testamenteira, e até o presente não dei conta da dita testamentaria, no caso que ao
tempo do meu falecimento a não tenha dado (CMS-020, Fls. 133v - 134. Testamento
de Dona Catharina Maria de Moura 30/07/1753).

E em relação a sua filha, Anna, ou seja, de Antônia e (talvez) de Francisco,

Declaro que uma mulatinha filha da dita minha herdeira, e testamenteira a criei e me
tem feito bons serviços, e boa assistência, e é minha vontade deixar-lhe uma esmola
para se alimentar, e tomar estado; a qual mulatinha se chama Anna Maria Xavier
Evangelista, a qual deixo que sua Mãe, e minha herdeira, e testamenteira conserva-
rá em sua companhia, educando-a, e dando-lhe o necessário, e dando-lhe o estado
quando ela estiver em termos de o tomar fazendo-lhe seu dote com o que eu lhe deixo
der lugar, o que muito lhe recomendo, e deixo por legado (CMS-020, Fls. 133v - 134.
Testamento de Dona Catharina Maria de Moura 30/07/1753).

56 APM/CMS-020. Fls. 35v-36. Testamento de Francisco Xavier da Costa 12/06/1749.

366
Nesse trecho, é revelador o cuidado que Dona Catharina tem em fazer cumprir as últimas
vontades de seu filho. Primeiro, revela o respeito e o cuidado em executar a testamentaria de seu filho.
Segundo, porque mostra que o cuidado de Francisco e de sua mãe Dona Catharina para com Antônia
e, principalmente, Ana eram compartilhados. Dona Catharina deixa clara a preocupação de orientar
Antônia quanto à alimentação, acompanhamento, orientação, educação e mesmo deixo um valor para
garantir o dote para que a dita Ana tome estado. Obviamente, não fica completamente claro que Ana
é filha de Francisco com Antônia, mas as relações entre essas “três gerações de uma mesma família”
ressaltam os valores, os projetos intergeracionais compartilhados por essas famílias.

A leitura desses testamentos também parece indicar que legar algo a uma menina é bem di-
ferente de legar algo a um menino. Nesse sentido, enquanto Francisco sabe ler e escrever e sua mãe
parece não ter tido essa oportunidade, apesar de sua posição social, a principal preocupação da famí-
lia com Anna está muito relacionado que ela tome estado. É inegável que esses testamentos parecem
indicar uma relação ilegítima que não poderia ser, nem mesmo nas últimas vontades dos testadores,
registrada. Isto ocorre talvez pela origem da família ou de sua posição social atual naquela família. No
entanto, para afirmar isso cabalmente seria necessário ter outras fontes, o que ainda não foi possível.
Relações como essas indicam coisas ou temáticas com as quais se devem preocupar. O que faz uma
família abastada desse período se preocupar com o futuro da filha de uma escrava? Seria ela uma her-
deira ainda que ilegítima dessa família? Sendo sim ou não a resposta, como estabelecer limites entre
a família escrava e livre aqui? Quais tipos de sentimentos foram construídos nessa casa? Quais os
sentimentos foram construídos na relação (possível) entre Francisco e Antônia, ou de Dona Catharina
com Antônia e (sua neta) Anna?

O vivido

Um exemplo que apresenta da preocupação daquele tempo com o vivido, com o sustento,
alimentação, saúde e educação dos órfãos está registrado no testamento57 e inventário58 de Antônio
Ribeiro de Miranda, nos quais é possível identificar que ele é,

natural e Batizado na Freguesia de Santo Adrião de Santa Anna Conselho de Filguei-


ras, e Arcebispado de Braga, filho legítimo de Jozé Ribeiro inda vivo e de sua mulher
Maria Ribeiro já defunta; e sempre fui e sou solteiro. Declaro que tenho uma filha
natural por nome Jozepha Maria de Maria digo de Miranda, casada com Manoel
Teixeira moradores no lugar de Les Carreira freguesia de São Thomé de Fiandre do
dito Conselho, e Arcebispado. E assim mais digo que a dita é filha de Jozepha Ferrei-
ra. Declaro que tenho mais outra filha natural por nome Jacinta ou Maria, que não
estou certo no nome, filha de Jacinta da Costa, moradora na freguesia de Vila Verde,
do mesmo Arcebispado. E, Declaro mais que uma moça por nome Maria filha de
Francisco Martins do lugar das Fontainhas freguesia de Aratres tive um filho, ou filha
natural a qual criança a enjeitarão na roda dos enjeitados do hospital da Cidade do
Porto haverá dezessete anos e antes de a enjeitar a Batizaram em outra freguesia e a
dita criança não tenho notícia, não sei se é viva, ou morta; e poderá dar alguma notí-
cia Manoel Correia do lugar de Pinheiro, e se for viva a dita criança também é minha
herdeira. E assim mais tenho outro filho natural pardinho por nome Manoel de idade
de um ano, filho de uma parda por nome Bernarda Pinta Alves moradora na Vila do
57 APM/CMS-020. Fls. 26v-28v. Testamento de Antonio Ribeiro de Miranda 07/12/1748.
58 CSO-I (11) 117 – Inventário de Antônio Ribeiro de Miranda.

367
Sabará nas Minas de ouro. Declaro que todas estas filhas naturais e filhos são meus
herdeiros forçados, e por tais, [sic] os nomeio e instituo no que por direito lhe tocar
de meus Bens depois de pagas minhas dívidas e gastos funerais. (APM/CMS-020. Fls.
26v-28v. Testamento de Antonio Ribeiro de Miranda 07/12/1748).

A partir do trecho reproduzido no testamento, identifica-se que esse homem é português e


nunca foi casado, além de ter tido quatro filhos naturais, alguns em Portugal e outro aqui nessas Mi-
nas. Como o contato entre os pais e seus filhos naturais de Portugal não parece ter sido tão intenso
aqui serão focadas as estratégias educativas para o filho natural de Antônio Ribeiro de Miranda e da
parda Bernarda Pinta Alves, o pardinho Manoel que na feitura do testamento tinha apenas 1 ano de
idade. No entanto, antes de passar-se a análise do caso do pardinho Manoel, é importante salientar que
mesmo não tendo um contato muito intenso com suas filhas naturais, Antônio Ribeiro de Miranda
não deixa de as dotar para conseguir um bom casamento, como está registrado no trecho de seu tes-
tamento reproduzido a seguir:

Declaro que a minha filha natural Jozepha Mariana casada com Manoel Teixeira
adotei com quatrocentos mil reis. Declaro que em poder de Antonio Rabello dos
Santos moradores na freguesia de Vila Verde Conselho de Unhão tenho quatrocen-
tos e tantos mil reis para casar a outra minha filha natural por nome Jacinta filha
[sic] de Jacinta da Costa que sendo caso que já seja casada, e o dito gastasse mais
com o dito estado se lhe satisfaça o que for sem contenda nenhuma nem prejuízo al-
gum dele (APM/CMS-020. Fls. 26v-28v. Testamento de Antonio Ribeiro de Miranda
07/12/1748).

Percebe-se, portanto, que essa família busca dar o encaminhamento às gerações seguintes.
No caso das meninas, reforçando uma forte tendência para o período, a grande preocupação era ga-
rantir um bom casamento e com isto a distinção para a família. Em relação ao pardinho, seu tio e
tutor, Manoel Ribeiro de Miranda, registrou no inventário de Antonio Ribeiro de Miranda que tinha
gastos desde a mais tenra idade para pôr o dito pardinho naquele momento com 4 anos na escola, e
que com isso tinha despesas devido aos atos de aprender, comer, vestir do dito órfão. Mesmo depois
da mudança de tutor, que passa a ser Jerônimo Pinto Brito, a preocupação com o sustento do dito
órfão continua a mesma, e fica registrada na prestação de contas os gastos que o tutor teve com ór-
fão relacionado à compra de roupas para ir à escola. No entanto, mesmo com toda essa insistência
em colocar nos estudos o pardinho Manoel, fica registrado no testamento de Antônio Ribeiro de
Miranda com agora o pardinho com 22 anos encontra-se doente e que sempre foi muito doente e,
por isso, segundo o tutor, “Não pode aprender um ofício, sempre foi e é muito doente com ele tem
feito grandes despesas com curas sem nenhum alívio nem aplicar-se nos estudos”. Claro que essa
impossibilidade de o pôr nos estudos ou a aprender um ofício não está relacionada apenas à doença
do pardinho Manoel, mas também a impossibilidade, para aquela família ou sociedade de aceitar um
filho pardo natural galgar a mesma distinção de seu pai ou familiares. Neste sentido, está registrada a
tentativa de mudar mais uma vez de tutor, mas que foi impossível, pois, em razão de o órfão ser pardo
e o suplicante um homem branco. Além disso, João Sirqueira de Queirós que tinha parentesco com
o suplicante [o órfão] é casado e tem onze filhos e adoentado e, por isso, não podia ser tutor do dito

368
órfão. Ademais, os parentes por parte de pai são escassos e da mãe são pobres, o que dificultou muito
o projeto intergeracional de busca e manutenção da distinção para aquela família.

O efetivado e o conquistado

Outro caso muito interessante para o tema aqui pesquisado está registrado no testamento59 e
inventário60 de Antônio Pereira da Rocha. Em seu testamento declara ser:

natural da Vila de Guimaraens do Arcebispado de Braga, filho Legitimo de Antonio


Francisco, e Luiza da Rocha, esta já falecida. Declaro que nunca fui casado, e insti-
tuo por meus Universais herdeiros a Joaquim Pereira da Rocha que se acha em meu
poder, e a outra Irmã por nome Francisca que por sobrenome perca ambos menores,
e brancos filhos de Thomazia Francisca assistente hoje na cidade do Rio de Janeiro,
e consigo tem outra minha herdeira Francisca declarada por ser aqui me declarar
serem meus filhos, e pelo assim conhecer, e não encarregar a minha consciência por
tais os declaro. (APM/CMS-200, Fls. 112v-114. Codicilo de Antonio [ou Custódio]
Pereira da Rocha 14/04/1778.)

Portanto, mais uma vez constata-se que um português teve uma relação consensual com uma
mulher. No entanto, dessa vez não é possível identificar se Thomazia Francisca era portuguesa ou
“brasileira”, mas certamente é possível identificá-la como branca, pois seus filhos, Joaquim e Francisca,
são também brancos ainda que naturais. Em que pese a situação de separação do casal, talvez como
efeito de uma punição proporcionada por uma visitação eclesiástica do bispado de Mariana, Antônio
Pereira da Rocha não deixou de assumir suas responsabilidades para com os filhos e tomou providên-
cias para que no futuro não passassem dificuldades, e no caso de Joaquim, que ficou com ele, que este
estudasse e até que aprendesse um ofício, mas que pouco significava, pois acabou por assumir funções
públicas, provavelmente devido aos estudos, como se verá nos trechos do testamento e inventários
reproduzidos a seguir.

A preocupação não se dirige apenas aos filhos, mas também a jovens, talvez seus parentes:
sobrinhos ou afilhados. Parece ficar claro que estes próximos “herdeiros” não eram seus filhos, pois o
testador não os assume como tal e isso seria improvável já que acabava de assumir outros filhos ilegí-
timo. Portanto, considero ser improvável assumir alguns filhos naturais e outros não. É mais provável
que estes jovens fossem filhos de um amigo ou parente e que por isso estavam recebendo doações, pois
a intenção era garantir ou contribuir para que estes jovens tivessem um futuro distinto.

Todos os meus bens que se acharem ao meu falecimento foram adquiridos, e não
herdados, por isso tudo quanto possuo adquiri por minha indústria neste Continente
de Minas e por isso disponho da terça parte na forma seguinte: Deixo a dois filhos
de Thereza de Jezus de Oliveira ainda parda, filha de Catharina de Oliveira moradora
em Vila os quais filhos um e macho que conserva em seu poder, que terá de idade
pouco mais ou menos quatorze anos; a outra e fêmea que se assiste no Arrayal de São
Caetano em casa de uma viúva que por nomes não provendo a cada hum cem mil
reis (APM/CMS-200, Fls. 112v-114. Codicilo de Antonio [ou Custódio] Pereira da
Rocha 14/04/1778).

59 APM/CMS-200, Fls. 112v-114. Codicilo de Antonio [ou Custódio] Pereira da Rocha 14/04/1778.
60 CPO (07)78 - Inventário de Antonio Pereira da Rocha 1778.

369
É bastante relevante que Antônio Pereira da Rocha mantivesse contato cotidiano com a escrita
que deixou registrada em seu testamento, quando informa que mantêm livros, róis e borradores com
o registo de suas dívidas e o que lhe devem. Além de ter assinado seu testamento, ele o fez “do meu
próprio punho, e mão”. Em seu inventário, mais uma vez constata-se a importância dada aos estudos
pelas famílias da época, quando registra na folha 348 a solicitação de estudos para Joaquim para compra
de livros para se ordenar nas funções públicas. Além disso, no verso da folha 348, suplica dinheiro
para a continuidade dos estudos de gramática latina, nos quais Joaquim tem tido bom aproveitamento.
Mais adiante na folha 352, o Padre Mestre Roberto Luis Moreira busca receber seus ordenados devido
ao ensino de gramática latina a Joaquim. Na folha 362, já pelos idos da década de 1780, o órfão fica
impossibilitado de continuar os estudos por falta de vestuário. Talvez por isso Joaquim tenha apren-
dido o ofício de alfaiate. No entanto, o exercício de um ofício pode ter sido relegado e nunca ter se
efetivado ou se efetivou apenas por algum tempo, pois posteriormente Joaquim aparece pedindo uma
declaração de bom comportamento para exercer a posição de militar dos dragões, quando estava com
a idade de aproximadamente 26 anos. Talvez por dificuldades financeiras Joaquim pudesse ter avança-
do nos estudos, nos quais estava tendo bom aproveitamento. No entanto, o estudo de primeiras letras
e até de gramática latina permitiu a busca por uma posição profissional de destaque no Estado. Afinal,
ser soldado ou possuir outra patente nos dragões indicava uma distinção social para aquela família
e para sua descendência.Para ter uma visão mais ampla desses tipos de estratégias é relevante o que
Peter Burke menciona a esse respeito.

Na Europa pré-industrial, um dos principais caminhos da mobilidade social era a


Igreja. Segundo a famosa tipologia de Stendhal, as carreiras eram mais abertas ao ta-
lento de “preto”, na Igreja, do que de “escarlate”, no Exército. O filho de um camponês
talvez pudesse terminar sua carreira eclesiástica como papa, como ocorreu com Sisto
V no fim do século VI. Sacerdotes importantes também podiam ocupar altos postos
no Estado. Na Europa do século XVII, entre os principais ministros de Estado esta-
vam os cardeais Richelieu e Mazarino, ambos a serviço dos reis da frança, o cardeal
Khlesl, a serviço do imperador Habsburgo, e o arcebispo Laud, a serviço de Carlos I.
Richelieu veio da baixa nobreza, mas Khelsl era filho de um padeiro e Laud, de um
comerciante de roupas. Para os governantes europeus, uma das vantagens da nomea-
ção de membros do clero católico, em especial, como ministro era sua impossibilida-
de de terem filhos legítimos que pudessem reivindicar a sucessão nos cargos. Nesse
sentido, o uso do clero forma um paralelo com a confiança otomana no devshirme e
o emprego de eunucos em altos cargos do império romano e chinês. Todos eles são
exemplos do que Ernest Gellner chama de “cavalos castrados” (gelding) (GELLNER,
apud. BURKE, 2012, p.:106-7).

Considerações Finais

Portanto, neste trabalho foi possível observar que o estudo de trajetória complementa uma
análise mais quantitativa, pois apresenta várias indicações de como as estruturas influenciam o co-
tidiano, mas também permite visualizar as implicações do micro nas escolhas possíveis. Isto é, para
além de observar as implicações macro na vida das pessoas é possível ver também a possibilidade de
ação dos indivíduos e das famílias na busca pela distinção social ou sua manutenção.

Também possibilitou perceber que o compartilhado pela família era a efetivação de uma estra-

370
tégia reprodutora familiar, mas que se corporificou muitas vezes não em herdeiros legítimos. Muitas
vezes os laços familiares eram mais importantes que os étnicos. Desse modo, mesmo sendo herdeiros
mulatos, pardos ou forros, estes conquistaram a tão sonhada distinção social.

Para que isso fosse efetivado foram necessárias diversas reconversões de capitais, porque a au-
torização para a distinção social quase sempre se efetivava apenas com a autorização das autoridades.
Nesse sentido, é que dinheiro virava capital social ou cultural e que capital social virava capital social
e econômico.

As responsabilidades compartilhadas pelas gerações permitiram visualizar projetos interge-


racionais que facilmente ultrapassavam a relação pais e filhos e muitas vezes avós, tios e padrinhos
contribuíam para a estratégia de busca e manutenção de uma distinção social. Sendo assim, mais uma
vez, fica patente que para entender a família do período, é necessário ir além dos laços sanguíneos
evidentes e perceber outras relações.

Fontes e Bibliografia
Fontes Manuscritas
No AEPNSPOP -
Livros de Testamento – 1922, 1923, 1924, 1925, 1926, 1927, 1928, 1929, 1930, 1943 e 1944.
No AEPNSCADOP -
Códices - 5.2.1.4, 6.19.94 e 6.12.1
No APM
Fundo CMS – Códices de livros de testamento 020, 190 e 200.
No IBRAM/MO/AHCBG
Fundo CPO – Livros de testamento -
01(1), 02(6), 3(8), 05(11), 04(9), 06(12), 07(13), 08(16), 12(21), 20(33),
Fundo CPO – Inventários post-mortem
CPO (07)78 - Inventário de Custórdio ou Antonio Pereira da Rocha 1778
CPO (04)50 - Inventário de Manoel Martins Correa 1761
CPO (03)32 -Inventário de Manoel Maciel 1750
Fundo CSO- Inventário post-mortem-
CSO-I (05)57 - Inventário de Manoel Macedo Guimarães - 1738
CSO-I (11) 120 - Inventário de Ignacio Pereira da Silva 1748
CSO-I (11) 118-Inventário de Manoel da Costa Peixoto 1748
CSO-I (11) 117- Inventário de Antonio Ribeiro de Miranda 1748
CSO-I(19)165-Inventário de Jozé Pinto de Araujo 1756
CSO-I (19) 163 - inventário de Antonia Rangel de Abreu 1756 e de seu companheiro CSO-I (31) 257- José
Ribeiro de Carvalho 1769.
CSO-I (18) 158 - Inventário de Andre Ferreyra Saramago 1756

371
CSO-I (28) 241- Inventário de Jozé Izidorio Pereira 1764
CSO-I (29) 250- Inventário de Antonia Maria Cardim 1769
CSO-I(40) 299-Inventário de Manoel Gonçalves de Barros 1774
CSO-I (48) 362-Inventário de Jozé da Silva Pessoa 1778
No IBRAM/MO/AHCP -
Livros de Registro de Testamento – Códices – 93-460 e Volumes – 001-011 e 3299-3305-,

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raldo Gromanelli. (Org.). Família e escola: trajetórias de escolarização em camadas médias e populares. 4ed.
Petrópolis: Vozes, 2010, p. 125-154.

372
Pedagogia jesuítica na Amazônia colonial: teoria e prática
Jane Elisa Otomar Buecke61

Introdução
O desenvolvimento da ciência moderna foi marcado pela ruptura com o racionalismo teoló-
gico em que a inteligibilidade racional estava subordinada à fé cristã. Durante a Idade Média predo-
minou a escolástica de São Tomás de Aquino, para quem não havia contradição entre ciência e fé pois
ambas vinham de Deus. Há uma valorização da razão no processo de conhecimento, mas a intelec-
tualidade, todavia, era concebida como criação divina e por isso deveria estar sempre subordinada ao
pensamento cristão.62

Na racionalidade moderna, o ser humano começa a ser valorizado como ser racional e pensan-
te, capaz de sozinho compreender o mundo à sua volta sem necessitar da intervenção divina. Entre-
tanto, o pensamento ainda é marcado pelo essencialismo, corrente que acredita que a essência precede
a existência.63 Alguns pensadores que viriam a romper com a racionalidade teológica como Descartes,
por exemplo, mantem o pensamento essencialista, mas, influenciados pelo iluminismo, buscam o
rompimento com a racionalidade teológica. Para eles, a razão é que determina o conhecimento e não
a fé cristã.

O século XVI pode ser considerado o marco de início de transição de uma racionalidade
predominantemente teológica para uma racionalidade centralizada mais no homem e em seu pró-
prio pensamento. É nesse contexto que nasce a Companhia de Jesus, uma vez que a Igreja Católica
não passa incólume pela influência dessa nova forma de racionalidade epistemológica. Fundada em
1534 por Inácio de Loyola, um ex-soldado espanhol que se converteu ao cristianismo, a nova Ordem
foi aprovada em 1540 pelo Papa Paulo III com o objetivo de evangelizar os povos espalhados pelas
colônias portuguesas e espanholas.64 Sua missão era garantir a continuidade e permanência do evan-
gelismo católico apostólico romano ao redor do mundo, formando novos cristãos nesses domínios.
Com as conquistas desses territórios, a Igreja Católica encontra nas colônias recém-implantadas, um
espaço para divulgar seus valores e manter o racionalismo teológico que na Europa já estava perdendo
espaço.65

Ratificados pelo Concilio de Trento como instrumento oficial de evangelização da Igreja Ca-
tólica, os jesuítas se lançaram ao estudo das mais diversas áreas do saber a fim de promover a salvação
da alma e do corpo do ser humano.

61 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará (UEPA); bol-


sista CNPQ.
62 OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno de. Epistemologia e educação: bases conceituais e racionalidades científicas
e históricas. Petrópolis: Vozes, 2016.
63Ibid.
64COSTA, Dayseane Ferraz; ARENZ, Karl Heinz (Org.). Patrimônio e História: os Jesuítas na Amazônia. Be-
lém: Paka-tatu, 2014.
65 COSTA, Elisangela Silva da. A ação pedagógico-formativa da Companhia de Jesus na cidade de Belém do
Grão-Pará (1652-1759). Curitiba: CRV, 2017.

373
Mas, a Companhia de Jesus, depois de aprovadas as teses teológicas tridentinas, estava muito
mais preocupada com a restauração da antiga ordem societária secular na qual a igreja católi-
ca romana havia ocupado o epicentro da universalidade religiosa; do que em empregar gran-
des esforços no avanço da cientificidade explicativa do mundo circundante. Para os inacianos,
urgia formar homens que propugnassem pela restauração, teórica e prática, de um “reino
cristão” na face da terra que fosse o mais cristão de todos os reinos até então existentes.66

Não demorou muito para os padres da Companhia serem reconhecidos como excelentes mis-
sionários e ganharem o apoio da Coroa Portuguesa para o exercício de suas atividades no Novo Mun-
do.67 De acordo com Costa “os jesuítas intentavam, com essa mudança para a quarta parte do mundo,
a formação de uma nova sociedade, forjada a partir da junção das virtudes dos valores cristãos euro-
peus com a inocência dos habitantes do Novo Mundo”.68 Seu papel foi fundamental na colonização
dos novos povos. Coelho69 ressalta que “ao longo de toda a segunda metade do século XVII, o avanço
do poder missionário como um todo na Amazônia respondia, em última análise, muito mais pelo
projeto de domínio metropolitano sobre o norte do Brasil do que pela constituição de um espaço de
evangelização propriamente dito”.

Neste artigo analiso a concepção epistemológica dos jesuítas e sua ação em terras amazônicas
no início da sua colonização, no século XVII. Para tanto, na primeira seção apresento o contexto histó-
rico da chegada dos inacianos ao Brasil e na região Norte, bem como sua visão sobre o conhecimento;
na segunda, examino a evangelização das crianças na Amazônia sob a perspectiva filosófica dos jesuí-
tas e na terceira seção, discuto a atividade educativa dos jesuítas apontando seus aspectos empíricos.
O objetivo é refletir sobre a missão jesuítica no Norte do Brasil, suas bases teóricas e sua prática edu-
cativa em face da influência que esta ordem religiosa sofreu com o nascimento da ciência moderna.

Metodologicamente este é um trabalho de natureza histórica baseado em fontes documentais


e bibliográficas.Portanto, a pesquisa está inserida dentro da abordagem qualitativa sendo utilizados os
procedimentos da pesquisa documental dialogando com a pesquisa bibliográfica.

O referencial teórico se assenta na História Cultural da qual são férteis as contribuições, espe-
cialmente da terceira geração dos Annales, ao propor uma ampliação do conceito de fontes de pesqui-
sa passando a incluir iconografias, memórias, processos judiciais, crônicas, relatos de viajantes entre
outros como documentos para uma pesquisa.70

Dada a dificuldade em definir a pedagogia existente no período colonial brasileiro, optei por

66FERREIRA JUNIOR, Amarílio; BITTAR, Marisa. Ates liberais e ofícios mecânicos nos colégios jesuíticos do
Brasil colonial. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 17, n. 51, p. 693-713, 2002, p. 704. Disponível
em: <http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v17n51/12.pdf>. Acesso em: 04 set. 2018.
67Ibid.
68Ibid., p. 38.
69COELHO, Geraldo Mártires. Nos passos de Clio:peregrinando pela Amazônia Colonial. Belém: Estudos
Amazônicos, 2012. p. 41.
70 BURKE, Peter. O que é história cultural? Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

374
utilizar o conceito de prática educativa de Cunha e Fonseca71 para quem toda relação em que ocorre
troca e circulação de saber pode ser considerada uma relação educativa. Assim ao me referir à peda-
gogia jesuítica incluo como objeto de análise não somente as ações de catequese e/ou realizadas nos
colégios, mas também seu contato cotidiano com os povos autóctones em que a prática educativa
pode ser percebida.

Como fonte documental principal neste trabalho, utilizo a “Crônica dos Padres da Compa-
nhia de Jesus no Estado do Maranhão” de João Felipe Bettendorff que abrange as ações dos inacianos
na região Amazônica desde a primeira tentativa de instalação da missão em 1607 (segundo ele antes
mesmo que os franceses descobrissem e povoassem a Ilha do Maranhão) até 1698 (ano da sua mor-
te).72 Em seu relato detalhado das ações dos jesuítas, Bettendorff abrange as relações conflituosas com
o governo do Estado do Maranhão e Grão-Pará que ora atendia os interesses dos colonos, ora os dos
inacianos ocasionando a expulsão desses últimos duas vezes durante o século XVII (1661 e 1684).
Além disso, a Crônica mostra o modo de vida dos habitantes das diferentes regiões da Amazônia em
que os inacianos atuavam. Na História Cultural, a análise do cotidiano é relevante e interessante para
a compreensão da nossa formação cultural.73

Além dessa Crônica, o estudo aqui apresentado se apoiou em dados da historiografia da re-
gião, como o livro “A política de Portugal no Valle Amazônico” de Arthur Cezar Ferreira Reis74 e em
trabalhos acadêmicos que focalizam a Amazônia Colonial, destacando-se o livro “A ação pedagógico-
-formativa da Companhia de Jesus na cidade de Belém do Grão-Pará (1652-1759)”.75

O paradigma epistemológico de interpretação dos dados coletados é o hermenêutico, o segun-


do o qual “[...] todo o conhecimento é necessariamente uma interpretação que o sujeito faz a partir das
expressões simbólicas das produções humanas, dos signos culturais”.76

Os Jesuítas no Brasil
Alguns fatores favoreceram a vinda dos jesuítas para o Brasil, dentre eles o prestígio que esta
ordem já havia conquistado junto à Dom João III. Para o monarca português, a filosofia humanista
cristã, não puramente teológica adotada por estes religiosos se alinhava com o planejamento de Por-
tugal para sua colônia brasileira.77

Assim, em 1549 desembarcam no Brasil, os primeiros jesuítas, entre eles, Manoel da Nóbrega,
71 CUNHA, Paola Andrezza Bessa; FONSECA, Thais Nívia de Lima e. Educação e religiosidade: as práticas
educativas nas irmandades leigas mineiras do século XVII nos olhares de Debret e Rugenda. In: SIMPÓSIO
NACIONAL DE HISTÓRIA: HISTÓRIA, 23., 2005, Londrina. Anais... Londrina: Editorial Mídia, 2005. p. 1-9.
Disponível em: <https://anais.anpuh.org/?p=14976>. Acesso em: 21 set. 2016.
72 BETTENDORFF, João Felipe. Crônica da missão dos padres da Companhia de Jesus no Estado do Mara-
nhão.2. ed. Belém: Fundação Cultural Tancredo Neves; Secretaria de Estado da Cultura, 1990.
73 BURKE, Peter. O que é história cultural? Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
74REIS, Arthur Cezar Ferreira. A política de Portugal no Valle Amazônico. Belém: SECULT, 1993.
75 COSTA, Elisangela Silva da. A ação pedagógico-formativa da Companhia de Jesus na cidade de Belém do
Grão-Pará (1652-1759). Curitiba: CRV, 2017.
76SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho científico.21. ed. São Paulo: Cortez, 2007.
77 COSTA, op. cit.

375
José de Azpicuelta Navarro, Leonardo Nunes.

Manoel de Nóbrega foi o superior da missão e como tal lhe cabia enviar relatórios de suas
atividades ao provincial em Portugal.78 Através dessas missivas, é possível perceber a visão do nativo
como tábula rasa, um “papel em branco” a quem tudo poderia e deveria ser ensinado. Conforme Del
Priore “as almas indígenas deviam ser ordenadas e adestradas para receber a semeadura da palavra de
Deus”.79

Vale ressaltar que logo que os portugueses chegaram ao Brasil, havia dúvidas se os povos au-
tóctones que aqui habitavam eram seres humanos, por isso discutia-se se deveriam ou não ser evange-
lizados. Somente em 1537, quando o Papa Paulo III declarou que eles possuíam alma é que se inicia-
ram os esforços para sua evangelização.80

Esse pensamento vigente se transformou em ação no modo como os colonizadores se relacio-


naram com os habitantes do novo mundo, e por isso Dussel, aponta a descoberta das Américas como
o verdadeiro início da Modernidade em que “a Europa é vista como a civilização que determina o
processo de desenvolvimento”.81 Nessa concepção, a Europa se torna a referência de mundo e o outro
não existe em sua singularidade, mas apenas na transformação em novos “europeus”. A violência é
justificada como necessária, o que está presente também na prática pedagógica dos inacianos que uti-
lizavam o castigo físico na educação das crianças.82 Para Rodrigues o próprio nome de “Companhia”
já demonstrava que os inacianos eram uma instituição organizada cujas estratégias para conquistar
“corações e mentes para Deus” condiziam com a modernidade nascente.83

Os desafios dos missionários jesuítas no Brasil foram inúmeros pois se depararam com língua,
geografia, clima e hábitos bem diferentes do seus. Muitos destes desafios estão registrados nas cartas
jesuíticas, nas crônicas escritas por alguns padres e por relatos de outros viajantes.

A primeira missão da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão84 chegou à cidade de São


Luís em 1622. Liderados pelo padre Luiz Filgueira iniciaram no mesmo ano a construção do primeiro
colégio – Nossa Senhora da Luz. Já em Belém os jesuítas se estabeleceram somente em 1653, mais de
100 anos depois da chegada da Companhia de Jesus ao Brasil, e seus líderes foram os padres João de
Souto Maior e Gaspar Frutuoso. Esta chegada tardia foi precedida de uma tentativa frustrada em 1645,
78 LONDOÑO, Fernando Torres. Escrevendo Cartas: Jesuítas, Escrita e Missão no Século XVI. Revista
Brasileira de História,[s. l.], v. 22, n. 43, p. 11-32, 2002. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/s0102-
01882002000100002>. Acesso em: 28 mar. 2017.
79DEL PRIORE, Mary (Org). História das crianças no Brasil.7. ed. São Paulo: Contexto, 2015.
80ARENZ, Karl Heinz. Fazer sair da selva:as missões jesuíticas na Amazônia. Belém: Estudo Amazônicos, 2012.
81 OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno de. Epistemologia e educação: bases conceituais e racionalidades científicas
e históricas. Petrópolis: Vozes, 2016. pp. 87.
82DEL PRIORE, op. cit.
83RODRIGUES, Denise Simões. As razões do Estado e seu fracasso no período colonial: memória da educação
no Pará. Revista Cocar, Belém, v. 5, n. 10, p. 83-93, 2011. Disponível em: <https://paginas.uepa.br/seer/index.
php/cocar/article/viewFile/200/173>. Acesso em: 06 jun. 2018.
84 O Estado do Maranhão foi criado como uma unidade administrativa independente do Estado do Brasil em
1621, e se reportava diretamente à Portugal. Seu território correspondia aproximadamente aos atuais estados
do Ceará, Piauí́, Maranhão, Pará e partes de Tocantins e Amazonas. Em 1654 passou a se chamar Estado do
Maranhão e Grão-Pará.

376
em que um naufrágio ocorrido na baía do Marajó, dizimou todos os dezesseis padres que vinham para
a missão sob o comando do Padre Luiz Filgueira, o qual também faleceu nessa viagem. Juntamente
com os padres haviam mais duzentos soldados e os sobreviventes do naufrágio foram mortos pelos
índios Aruans.85

Além dos jesuítas, outras ordens religiosas vieram para a Amazônia no século XVII. Na missão
de expulsão dos franceses liderada por Francisco Caldeira Castelo Branco em 1616 os Capuchinhos
deixaram a região e a propagação da fé católica no Norte do país ficou inicialmente a cargo dos Frades
de Santo Antônio. Esses frades colaboraram na guerra contra os franceses e logo que se instalaram em
Belém coordenaram os nativos em campanhas contra os holandeses e ingleses em favor dos portugue-
ses.86 Esses primeiros franciscanos foram os “pacificadores” dos Tupinambás através de sua atuação
catequética. Liderados pelo Frei Cristóvão de Lisboa tiveram papel relevante nas denúncias contra a
violência praticada pelos colonos contra os povos autóctones.87

Em 1627, as Carmelitas Calçadas que já mantinham casa em São Luís, iniciaram a instalação
de seu convento em Belém e a Ordem das Mercês se instalou na região em 1640.88

Essas ordens foram aliadas decisivas no processo de conquista cultural da população nativa.
Tiveram papel importante na educação das crianças que viveram na Amazônia seiscentista. Nas ações
realizadas, entretanto, percebe-se o dualismo da proposta: para os filhos de colonos as escolas de ler e
escrever e para os filhos dos silvícolas a doutrinação cristã. A escolarização ainda incipiente, era res-
trita a poucos e à maioria restava a catequização que neste caso se configurava como uma prática edu-
cativa pois os religiosos modificavam os hábitos nômades dos índios ajuntando-os em agrupamentos
onde eles exerciam a agricultura, aprendiam o português e ofícios mecânicos a fim de incutir-lhes
novas formas de sociabilidades.89

Silva90 destaca que a Ordem dos Franciscanos da Província de Santo Antônio abriu escolas de
cunho profissional em todas os seus aldeamentos, e no convento que abriram em Belém ofereciam
aulas gratuitas para a crianças aprenderem a ler, escrever e contar.

As carmelitas por sua vez, além de também manterem escolas de ler e escrever em suas aldeias inves-
tiam no trabalho de “moralização” dos colonos e ensinavam música aos índios.91

A ordem Jesuíta, entretanto, foi a mais ativa na Amazônia, assim como em todo o Brasil, sendo a mais
exitosa. De acordo com Colares:

85 BETTENDORFF, João Felipe. Crônica da missão dos padres da Companhia de Jesus no Estado do Mara-
nhão.2. ed. Belém: Fundação Cultural Tancredo Neves; Secretaria de Estado da Cultura, 1990.
86REIS, Arthur Cezar Ferreira. A política de Portugal no Valle Amazônico. Belém: SECULT, 1993.
87COELHO, Geraldo Mártires. Nos passos de Clio:peregrinando pela Amazônia Colonial. Belém: Estudos
Amazônicos, 2012.
88 REIS, op. cit.
89SILVA, Garcilenil do Lago. Educação na Amazônia Colonial:Contribuição à história da educação brasileira.
1976. Tese (Doutorado em Educação) - Curso de Educação, PUC-RJ, Rio de Janeiro, 1976.
90Ibid.
91 SILVA, op. cit.

377
A Companhia de Jesus foi a Ordem religiosa que maior importância teve na ação
missionária inserida no processo de ocupação e de colonização lusitana. Apesar de
existirem outras ordens religiosas na Amazônia no período anterior à entrada dos
Jesuítas, estes conseguem desenvolver um trabalho bem mais intenso e consistente.92

Os inacianos eram os mais organizados, aptidão herdada provavelmente de sua gênese militar, além de
serem os que detinham melhores habilidades didáticas, por acreditarem na doutrinação como forma
de perpetuação dos valores morais da igreja.

Outro fator fundamental para o sucesso da missão jesuítica foi a facilidade de se integrar na vida coti-
diana da colônia como afirmam Claudino & Nelson Piletti “No ensino das primeiras letras, os jesuítas
mostraram grande capacidade de adaptação. Penetraram com igual facilidade na casa-grande dos
senhores de engenho, na senzala dos escravos e na aldeia indígena”.93

Ao chegar à Amazônia, os jesuítas já contavam com uma instrução própria de trabalho – o Ratiom
Studiorum e os aldeamentos. Assim, logo que chegaram ao Estado do Maranhão, além de investirem
na construção de colégios, como o já citado Nossa Senhora da Luz em São Luís, construíram o de San-
to Alexandre em Belém (1652), e ao mesmo tempo se espalharam por todo o estado, a fim de criar os
aldeamentos que foram sintetizados como espaços “homogeneadores e centralizadores em que dife-
rentes culturas, línguas, cosmologias nativas serão amalgamadas e levadas a se submeterem à cultura,
língua e cosmologia cristãs”.94

A pedagogia jesuítica era influenciada pela escolástica. Enfatizava o uso da razão e sintetizava a dou-
trina cristã e a teoria aristotélica.95 Com base na filosofia de Santo Tomás de Aquino, a escolástica se
afastava do pensamento de Platão e se aproximava do pensamento de Aristóteles especialmente de sua
metafísica.

Para Aristóteles, cada um traz em si uma essência que precisa ser atualizada pela ação de um agente
externo (o mestre, o professor). Os jesuítas se posicionavam como estes agentes, capazes de transfor-
mar a potência do conhecimento divino em ato na vida dos povos que ainda não o conheciam.

A evangelização das crianças


Na missão evangelizadora dos jesuítas, as crianças se tornaram um público especial pois no século
XVII o infante começava a deixar de ser visto como adulto em miniatura passando a ser visto como

92COLARES, Anselmo. A Catequese e a educação jesuítica no Grão-Pará.1998. p. 6. Disponível em: <http://


sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe2/pdfs/Tema1/0105.pdf>. Acesso em: 26 maio. 2014.
93PILETI, Claudino; PILETI, Nelson. História da educação:de Confúcio a Paulo Freire. São Paulo: Contexto,
2013. pp. 76.
94 GUZMÁN, Décio de Alencar. A colonização nas Amazônias: guerras, comércio e escravidão dos séculos
XVII e XVII. Revistas Estudos Amazônicos, v. III, n. 8, 2008. p. 108.
95 OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno de. Epistemologia e educação: bases conceituais e racionalidades científicas
e históricas. Petrópolis: Vozes, 2016.

378
um ser humano vivendo uma fase antecedente à vida adulta.96 Os inacianos acreditavam que para
moldar a sociedade conforme os valores da Igreja Católica, bastava educar as crianças e introjetar
nelas hábitos e crenças desejáveis constituindo-se sua ação pedagógica “principalmente nesta inver-
são: no filho educar o pai; no menino servir de exemplo ao homem; na criança trazer ao caminho do
Senhor e dos europeus a gente grande”.97

As crianças eram importantes interlocutores na relação dos jesuítas com os nativos pois “os missio-
nários aprendiam a língua indígena com os curumins e, nessas interações, ensinavam a língua por-
tuguesa”.98 O investimento em elaboração de gramáticas como a de Luís Figueira,99 por exemplo, de-
monstra que para além da visão idealista havia um pragmatismo no trabalho da Companhia de Jesus
em relação aos índios aldeados focalizando o aprendizado da língua local como importante meio de
alcançaram seus objetivos evangelísticos. Entretanto nesse processo muito mais do que simples evan-
gelização ocorreu. Tanto que a língua geral se tornou principal meio de comunicação em detrimento
do português.100

Essa visão em relação à infância, levou os padres da Companhia de Jesus a escolherem os curumins
como o “papel em branco”, pois neles seria possível construir o seu modelo de adulto – cristão e devo-
to. Por isso os jesuítas investiram em colégios e aldeamentos onde os párvulos pudessem ser educados.
Além disso, os inacianos criaram um modelo ideológico de criança-Jesus, que consistia em expandir
a devoção ao menino-Deus e utilizavam esta imagem como modelo a ser seguido.101

O pensamento racional dos jesuítas é traduzido em seu plano de estudo, o Ratio Studiorum. Este ma-
nual se baseou no modus parisienses de ensinoabsorvido pelos padres que estudaram na Universidade
de Paris. A preleção, os exames e as repetições que caracterizam este tipo de ensino, são incorporados
ao Ratio Studiorum, consagrando-o como o guia do trabalho educativo realizado pelos inacianos nas
colônias portuguesas que “visava a moldagem de um homem virtuoso, do bom cristão, cujos eixos
curriculares se assentavam em uma educação de cunho humanista e literário, destinado ao engendra-
mento de uma elite colonial”.102 Ferreira Jr e Bittar explicam que

Estruturada no método mnemônico de ensino e aprendizagem e na concepção de


mundo da igreja romana, a educação jesuítica visava formar quadros capazes de do-
minar plenamente o conjunto dos conhecimentos humanos elaborados pelos autores
clássicos, desde a literatura latina helenística à dogmática cristã herdada da tradição

96 ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família.2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
97 FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala:formação da família brasileira sob o regime da economia patriar-
cal. 51. ed. São Paulo: Global, 2006. p. 218.
98 COSTA, Dayseane Ferraz; ARENZ, Karl Heinz (Org.). Patrimônio e História: os Jesuítas na Amazônia. Be-
lém: Paka-tatu, 2014. p. 139.
99FIGUEIRA, Luís. Arte da língua brasílica. Lisboa: Oficina de Manoel da Silva, 1621. (Esta gramática foi ree-
ditada por Bettendorff em 1687).
100COELHO, Geraldo Mártires. Nos passos de Clio:peregrinando pela Amazônia Colonial. Belém: Estudos
Amazônicos, 2012. p. 43.
101DEL PRIORE, Mary (Org.). História das crianças no Brasil.7. ed. São Paulo: Contexto, 2015.
102 COSTA, Elisangela Silva da. A ação pedagógico-formativa da Companhia de Jesus na cidade de Belém do
Grão-Pará (1652-1759). Curitiba: CRV, 2017. p. 76.

379
judaica.103

A escolástica baseava o racionalismo teológico desde o século IX. Nessa concepção, o aluno é o centro
do sistema educativo e o professor é alguém que desperta no aprendiz o interesse enquanto o ajuda por
experiência a evitar desvios de uma ciência menos perfeita. Na escolástica o adulto é o modelo a ser
copiado e há liberdade para o pensamento racional, desde que seja norteado pela Revelação Divina.104

Entretanto, ao se firmar nesse conceito, os inacianos não buscavam fortalecer as ideias que predomi-
navam até então como oposição à nascente concepção moderna de ciência, mas sim se adaptar aos
novos tempos reformulando a escolástica com elementos próprios da época, que destacassem o papel
do homem como ser ativo.105 Ao analisar as missões jesuíticas na Amazônia seiscentistas, Santos utili-
za o termo “neotomista” para identificar esta reformulação considerada por ele uma:

compatibilização realizada pelos jesuítas entre a síntese tomasiana e o pensamento


humanista renascentista, somado posteriormente aos aspectos da filosofia e da ciên-
cia modernas – e apresenta argumentos que reúnem à orientação teológica herdada
da escolástica uma justificativa lógica e racional baseada na experiência.106

Percebe-se então que os jesuítas ao mesmo tempo que não se desvencilham do pensamento escolástico
se aproximam do pensamento lógico e racional, conforme sua experiência nas missões evangelísticas.
Contudo, a concepção vigente em sua prática pedagógica, ainda era essencialista, “isto é, o homem
é concebido como constituído de uma essência universal e imutável. À educação cumpre moldar a
existência particular e real de cada educando à essência universal e ideal que o define enquanto ser
humano”.107

Essa visão foi responsável pelo uso frequente da disciplina como prática da pedagogia jesuítica, pois
eles acreditavam que sem ela seria impossível moldar as crianças indígenas ao ideal de homem cristão.
Assim, a correção era intrínseca ao ato educativo:

A disciplina escolar teve origem na disciplina eclesiástica ou religiosa: ela era menos
um instrumento de coerção do que de aperfeiçoamento moral e espiritual, e foi ado-
tada por sua eficácia, porque era a condição necessária do trabalho em comum, mas
também por seu valor intrínseco e de edificação e ascese. Os educadores se adapta-
riam a um sistema de vigilância permanente das crianças, de dia e de noite, ao menos

103 FERREIRA JUNIOR, Amarílio; BITTAR, Marisa. Ates liberais e ofícios mecânicos nos colégios jesuíticos
do Brasil colonial. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 17, n. 51, p. 693-713, 2002, p. 704. Disponí-
vel em: <http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v17n51/12.pdf>. Acesso em: 04 set. 2018.
104 OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno de. Epistemologia e educação: bases conceituais e racionalidades científi-
cas e históricas. Petrópolis: Vozes, 2016.
105SAVIANI, Demerval. História das ideias pedagógicas no Brasil.4. ed. Campinas: Autores Associados, 2013.
106SANTOS, Breno Machado dos. As missões jesuíticas na Amazônia Portuguesa seiscentista: uma análise so-
bre a dinâmica de evangelização através do diário do padre João de Souto-Maior. CSOnline – Revista Eletrônica
de Ciências Sociais,[S. l.], v. 11, p. 11-28, 2010. p. 17. Disponível em: <https://csonline.ufjf.emnuvens.com.br/
csonline/article/view/1032>. Acesso em: 13 jul. 2017.
107SAVIANI, op. cit., p. 58.

380
em teoria.108

Na visão de Rodrigues os jesuítas voltaram-se para as crianças por as considerarem mais facilmente
manipuláveis.109 Entretanto, pelos relatos de Bettendorff, essa empreitada nem sempre foi exitosa. No
balanço dos seus 37 anos na Missão, ele se mostra desapontado com os resultados obtidos e afirma
que não viu melhoria alguma nas vidas considerando “os filhos piores que os pais e os netos piores
que seus avós”.110 Isso demonstra que “malgrado o relevante esforço dos inacianos, a cultura indígena
já havia impregnado nas crianças com uma força de crenças e valores que a procissões, autos e capela
de flores não conseguiam apagar de todo”.111

A prática educativa dos Jesuítas


As crianças tiveram especial atenção dos missionários jesuítas pois como vimos, eles acredi-
tavam que através delas seria possível perpetuar os valores morais da igreja. Entretanto, o tratamento
dado ao filho do colono e ao filho do indígena era diferente. Aos filhos dos colonos era permitido
estudar nos colégios. Tanto no Colégio Nossa Senhora da Luz em São Luís quanto no colégio Santo
Alexandre em Belém, os filhos dos colonos estudavam latim, filosofia, teatro, cálculo, com o intuito de
formar os intelectuais da nova terra. Estes colégios, entretanto, não tinham capacidade para atender
toda a demanda e a escolha dos alunos cabia aos padres que atendiam as crianças que julgavam mais
hábeis.112 Com isso a maioria dos filhos dos colonos não tinham acesso à educação escolarizada, em-
bora essa já fosse demandada pelos moradores da época.

Aos curumins aldeados restava a catequese para a qual apenas aprender a ler e escrever era necessário
no intuito de favorecer o aprendizado da doutrina cristã. E este aprendizado ocorria sempre com o
envolvimento direto dos indiozinhos nos serviços da igreja.

Embora sua concepção e estrutura pedagógica fossem fundamentalmente literária e clássica, ao che-
gar à Amazônia no século XVII, os padres da Companhia de Jesus adotaram em sua ação educativa,
uma postura mais empírica, pois somente assim puderam se aproximar de forma mais efetiva dos
nativos e alcançar seus objetivos de cristianização. Na interação com as crianças, os padres aprendiam
a língua nativa e ensinavam a doutrina cristã. A música era um importante instrumento de aproxima-
ção e conquista dos curumins e, portanto, fazia parte da metodologia de trabalho dos padres.

A introdução de instrumentos musicais nas atividades educativas realizadas nas aldeias da Bahia e de
São Paulo no século XVI, permanece nas aldeias localizadas no Norte do Brasil. Na aldeia dos Gua-
jajaras, tidos como mais arredios, o Padre João Maria os ensinava a tocar gaita pois afeiçoados a este

108 ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família.2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. p. 191.
109RODRIGUES, Denise Simões. As razões do Estado e seu fracasso no período colonial: memória da educa-
ção no Pará. Revista Cocar, Belém, v. 5, n. 10, p. 83-93, 2011. p. 85. Disponível em: <https://paginas.uepa.br/
seer/index.php/cocar/article/viewFile/200/173>. Acesso em: 06 jun. 2018.
110 BETTENDORFF, João Felipe. Crônica da missão dos padres da Companhia de Jesus no Estado do Mara-
nhão.2. ed. Belém: Fundação Cultural Tancredo Neves; Secretaria de Estado da Cultura, 1990. p. 268.
111DEL PRIORE, Mary (Org.). História das crianças no Brasil.7. ed. São Paulo: Contexto, 2015. p. 24.
112COSTA, Elisangela Silva da. A ação pedagógico-formativa da Companhia de Jesus na cidade de Belém do
Grão-Pará (1652-1759). Curitiba: CRV, 2017. p. 76.

381
instrumento os índios se entretiam e ficavam nos aldeamentos. Ainda no Maranhão o padre Diogo da
Costa ensinava os rapazes a cantar e tocar violão. Outras habilidades das crianças eram aproveitadas
pelos padres. Em sua experiência na aldeia de Gurupatiba, Bettendorff relata que cabia aos meninos e
meninas a função de ornamentar o altar da igreja da aldeia.113

A estratégia dos padres jesuítas era de se integrar no cotidiano dos índios e utilizar seus próprios sabe-
res na introdução da doutrina cristã. Como descrito por Bettendorff, a doutrina era acompanhada de
atividades práticas: “ao fim da doutrina, saía com todo o auditório a encomendar as almas pela aldeia,
entoando os meninos em voz alta a doutrina cristã com a cruz alçada, e respondendo todos, assim
índios como índias, uniformemente a tudo”.114

A instalação de oficinas de arte nos colégios de São Luís e Belém assim como nas fazendas e aldeamen-
tos, foi outra estratégia na atividade pedagógica dos Jesuítas na Amazônia. Desta forma, através da
realização de atividade práticas que agradavam os índios, os inacianos se aproximavam para inculcar-
-lhes os valores cristãos. Os curumins que tinham habilidades recebiam aulas de canto orfeônico e de
instrumentos musicais, e ofícios mecânicos (marcenaria, olaria). Os mais hábeis poderiam ingressar
nas turmas de latim, que equivalia a curso secundário.115

O padre João Daniel, em sua obra Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas escrita no século
XVIII, destaca a habilidade dos índios em aprender todo tipo de ofício, e o papel das missões para que
isso ocorresse conforme depreende-se do excerto abaixo:

Onde, porém realçam mais é na missões e casas dos brancos, em que aprendem todos
os ofícios que lhe mandam ensinar, com tanta facilidade, destreza e perfeição, como
os melhores mestres, de sorte que podem competir com os mais insignes do oficio;
e muitos basta verem trabalhar algum oficial na sua mecânica pra o imitarem com
perfeição. Donde procede haver entres eles adequado imaginários, insignes pintores,
escultores, ferreiros, e oficiais de todos os ofícios; e têm tal fantasia, que para imi-
tarem qualquer artefato basta mostrar-lhes o original, ou cópia, e a imitam com tal
magistério, ao depois faz equivocar qual seja o original, e qual a cópia.116

Guzmán117 explica que no contexto das missões religiosas na Amazônia se formaram vários artistas
nativos cujos nomes podem ser encontrados no Catálogo de 1720, do Colégio de Santo Alexandre
que destaca as funções de aprendizes-pedreiros, ferreiros, carpinteiros, escultores, alfaiates. Guzmán
ainda ressalta que a “ação educadora dos missionários provocou misturas e hibridações, cruzando
as técnicas e materiais utilizados pelos grupos indígenas com as utilizadas pelos oficiais mecânicos
113BETTENDORFF, João Felipe. Crônica da missão dos padres da Companhia de Jesus no Estado do Mara-
nhão.2. ed. Belém: Fundação Cultural Tancredo Neves; Secretaria de Estado da Cultura, 1990.
114Ibid., p.131
115 COSTA, Elisangela Silva da. A ação pedagógico-formativa da Companhia de Jesus na cidade de Belém do
Grão-Pará (1652-1759). Curitiba: CRV, 2017. p. 139.
116 DANIEL, João. Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas, v. 1. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004. p.
341.
117 GUZMÁN, Décio Alencar. Festa, Preguiça e Mutalagem: O trabalho indígena e as oficinas de pintura e
escultura no Grão-Pará, sécs. XVII-XVIII. Revista Estudos Amazônicos, v. 13, n. 1, p. 1-29, 2015.

382
portugueses”.118

Destas oficinas resultaram algumas obras encontradas hoje no Museu de Arte Sacra em Belém em que
é possível observar traços indígenas inseridos pelos autores e elementos do seu cotidiano.

Figura 1 - Anjo Toucheiro

Fonte: Martins, Renata.119

Para Ferreira Junior e Bittar “o complexo jesuítico difundia a cultura latina cristã, sua principal função,
mas ao mesmo tempo, ensinava ofícios e produzia mercadorias, imbricando trabalho intelectual com
trabalho manual”.120

Na Amazônia os cursos de latim foram iniciados pelo padre Bettendorff nos anos 70 do seiscentos. As
aulas eram dadas na sacristia da igreja de São Francisco Xavier ainda em construção e entre os alunos
se encontravam os filhos do governador Antonio de Albuquerque de Carvalho, os quais estudavam
com “furor e grande aproveitamento”.121 O relato de Bettendorff não menciona a participação de indí-
genas nestas turmas.

118 Ibdi., p. 17.


119 MARTINS, Renata Maria de Almeida. Uma cartela multicolor: objetos, práticas artísticas dos indígenas e
intercâmbios culturais nas Missões jesuíticas da Amazônia colonial. Caiana, Buenos Aires, n. 8, p. 70-84, 2006.
Disponível em: <http://caiana.caia.org.ar/template/caiana.php?pag=articles/article_1.php&obj=233&vol=8>.
Acesso em: 18 set. 2018.
120Ibid., p. 694.
121 BETTENDORFF, João Felipe. Crônica da missão dos padres da Companhia de Jesus no Estado do Mara-
nhão.2. ed. Belém: Fundação Cultural Tancredo Neves; Secretaria de Estado da Cultura, 1990. p. 280.

383
Havia uma forte intenção dos inacianos em enviar os indiozinhos convertidos aos colégios de Portugal
a fim de concluir com êxito a missão de civilização dos nativos e mostrar ao Superior o fruto do seu
trabalho. Na Bahia esta missão foi profícua. Porém na Amazônia os jesuítas não tiveram o mesmo
êxito conforme análise de Chambouleyron, Arenz e Neves Neto:

Pelo que se pode entender das cartas e relações dos jesuítas do Maranhão e Pará,
durante o século XVII, as atividades educativas não foram tão produtivas como em
outros lugares, como, por exemplo, o colégio da Bahia. Talvez o reduzido número de
religiosos e a extensão do território sobre sua responsabilidade fizessem seu trabalho
improdutivo e mais difícil.122

A resistência dos indiozinhos em permaneceram na fé cristã e/ou manterem os valores morais que
lhes foram ensinados, são registrados com tristeza pelo padre Manoel da Nobrega em suas cartas. Elas
demonstram, que ao contrário do que os jesuítas acreditavam as crianças indígenas já tinham inscritas
em si, crenças e valores e não eram o “papel em branco” que supunham.123 Estas crenças eram apren-
didas no cotidiano na vida social dentro da tribo, que tinha o papel educativo.

Pelo texto de Bettendorff, é possível inferir que a aprendizagem das crianças nativas acontecia sobre-
tudo na relação social e familiar. Os curumins participavam dos rituais sociais importantes como os
rituais de beberagens em que ele destaca ter visto “uma fileira grande de homens e mulheres com seus
filhinhos ao colo ou pelas mãos”.124 As populações autóctones, portanto, não separavam as crianças e
nem as excluíam destes momentos, mas com a participação delas garantiam a continuidade de seus
costumes e de sua cultura.

Embora Saviani não considere a existência de uma pedagogia no cotidiano indígena antes da chegada
dos colonizadores, dada a sua visão escolacentrista, ele não nega que há uma educação efetiva baseada
na força da tradição, na força da ação e na força do exemplo.125 Essa educação irá se chocar constante-
mente com a proposta racional e essencialista inserida pelos jesuítas forjando a mestiçagem cultural
conceituada por Gruzinski.126 Para ele, a relação construída na colonização mexicana não se deteve
apenas em destruição e resistência, mas propiciou também a transformação cultural das sociedades
envolvidas no processo de colonização.

Constatação parecida pode ser observada na relação entre jesuítas e colonizadores nos sistemas evan-
gelísticos realizados na Amazônia:

122 CHAMBOULEYRON, Rafael; ARENZ, Karl Heinz; NEVES NETO, Raimundo Moreira das. “Quem dou-
trine e ensine os filhos daqueles moradores”: a Companhia de Jesus, seus colégios e o ensino na Amazônia
Colonial. Histedbr On-line, Campinas, n. esp., 2011. p. 66. Disponível em: <http://www.histedbr.fe.unicamp.
br/revista/edicoes/43e/art04_43e.pdf>. Acesso em: 13 maio 2017.
123DEL PRIORE, Mary (Org.). História das crianças no Brasil.7. ed. São Paulo: Contexto, 2015.
124 BETTENDORFF, João Felipe. Crônica da missão dos padres da Companhia de Jesus no Estado do Mara-
nhão.2. ed. Belém: Fundação Cultural Tancredo Neves; Secretaria de Estado da Cultura, 1990. p. 170.
125SAVIANI, Demerval. História das ideias pedagógicas no Brasil.4. ed. Campinas: Autores Associados, 2013.
126 GRUZINSKI, Serge. A colonização do imaginário:sociedades indígenas e ocidentalização no México espa-
nhol. Séculos XVI - XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

384
A ação de Souto-Maior demonstra que a estratégia de conversão utilizada estava
pautada pelo princípio da accomodatio presente no ‘modo de proceder’ jesuítico e,
embora tal ‘flexibilidade’ fosse vista pelos membros da Ordem como uma poderosa
ferramenta de auxílio para aproximar infiéis e pagãos ao catolicismo, ao adotarem
a polêmica atitude de adaptar-se aos costumes dos outros povos para difundir a fé
cristã, os jesuítas acabavam correndo o risco de ultrapassar os limites da concepção
eurocêntrica e gerar resultados distintos aos desejados.127

Percebemos que a estratégia adotada pelos inacianos, teve o efeito de propiciar novos hábitos não
somente para os nativos, mas também para os próprios jesuítas. E isso ocorre igualmente na relação
destes com as crianças: “A pedagogia jesuítica, e a tentativa de transformar os pequenos indígenas em
crianças santificadas e exemplares, vai ajudar na elaboração de uma cultura sincrética”.128

Este sincretismo é perceptível na Amazônia. No trabalho sobre a cultura alimentar na região em que
analisa as relações entre índios, jesuítas e demais personagens envolvidos na vida cotidiana da Ama-
zônia Colonial, Abbate destaca o papel dos inacianos na mestiçagem cultural considerando que as
missões jesuíticas tinham por característica a “desconstrução e reconstrução dos códigos comunica-
tivos”.129 Para ele, ao revestir as danças dos curumins com elementos da catequese os jesuítas criavam
códigos de comunicação transculturais que marcaram a relação entre eles e se estabeleceram como
novas formas culturais.

Conforme resume Coelho “os aldeamentos, como sínteses das práticas e estratégias missionárias e do
enfrentamento entre as ordens religiosas em torno do domínio sobre os índios eram espaços tensos
e tensionados culturalmente falando”.130 Portanto não eram espaços de simples aculturação. Desta
relação com os nativos na Amazônia seiscentista, estabelecida principalmente nos aldeamentos nas
margens dos rios, originou-se a cultura ribeirinha e o Círio de Nazaré, a mais tradicional festa religio-
sa, do estado do Pará, que se configuram como exemplos da mestiçagem cultural ocorrida a partir da
prática educativa jesuítica na região.131

Considerações finais
A epistemologia dos inacianos pode ser chamada de “neotomasiana” ou “neoescolástica” por manter
127SANTOS, Breno Machado dos. As missões jesuíticas na Amazônia Portuguesa seiscentista: uma análise so-
bre a dinâmica de evangelização através do diário do padre João de Souto-Maior. CSOnline – Revista Eletrônica
de Ciências Sociais,[s. l.], v. 11, p. 11-28, 2010. p. 17. p. 8. Disponível em: <https://csonline.ufjf.emnuvens.com.
br/csonline/article/view/1032>. Acesso em: 13 jul. 2017.
128DEL PRIORE, Mary (Org.)nciase2002, p. 713, 2002, p. 704. História das crianças no Brasil.7. ed. São Paulo:
Contexto, 2015. p. 22.
129 ABBATE, Francidio Monteiro. O que não mata engorda: cultura alimentar, mediadores culturais e edu-
cação na Amazônia Colonial. 2016. 132 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade do Estado do
Pará, Belém, 2016. p. 52.
130COELHO, Geraldo Mártires. Nos passos de Clio:peregrinando pela Amazônia Colonial. Belém: Estudos
Amazônicos, 2012. p. 26.
131ARENZ, Karl Heinz. Fazer sair da selva:as missões jesuíticas na Amazônia. Belém: Estudo Amazônicos,
2012.

385
os fundamentados da escolástica de Santo Tomás de Aquino ao mesmo tempo que lhe incorpora ele-
mentos do racionalismo científico moderno ao defender que o conhecimento se origina na razão e é o
sujeito quem determina o objeto. Sua filosofia se mantém essencialista, acreditando que a essência do
homem precede sua existência e o papel da educação é resgatar essa origem moldando o ser humano
ao ideal cristão.

Entretanto, no trabalho missionário realizado na colonização na Amazônia seiscentista os jesuítas


mantiveram a estratégia utilizada no século anterior em outras regiões brasileiras, de utilizar a música,
a confecção de instrumentos musicais e as próprias danças indígenas como elementos de aproximação
com os silvícolas. Sua prática educativa incluiu assim, elementos empíricos para atingir seus objetivos
evangelísticos.

O estudo da obra Crônica dos Padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão, escrita pelo
padre João Felipe Bettendorff, nos permite conhecer práticas educativas envolvendo as crianças que
viviam na Amazônia, no século XVII. O relato nos dá pistas dos vários saberes que circulavam nes-
sas práticas, tais como música, dança, catecismo, linguagem, entre outros. É possível observar que as
crianças não só aprendiam, mas também ensinavam e que seus interesses e habilidades foram levados
em consideração como estratégias para aproximação dos padres jesuítas, configurando uma troca
cultural.

Com esta pedagogia ativa através da qual havia uma constante interação entre os educadores e edu-
candos o processo de aprendizagem propiciou não apenas a dominação dos povos autóctones, mas
permitiu a realização da mestiçagem cultural com marcas indeléveis nos hábitos e costumes existentes
ainda hoje na cultura amazônica. Os aldeamentos nas margens dos rios deram origem por exemplo, à
cultura ribeirinha, uma das características da região. E a mais tradicional festa religiosa do estado do
Pará, o círio de Nazaré, tem sua raiz na evangelização católica. Além disso, algumas das obras artísticas
confeccionadas pelos índios nas oficinas de arte dos jesuítas ainda podem ser encontradas no Museu
de Arte Sacra em Belém. Nelas é possível observar traços indígenas inseridos pelos autores e elemen-
tos do seu cotidiano numa clara representação de si em tais obras.

É possível inferir então, que embora a epistemologia dos inacianos fosse idealista e racionalista, sua
prática educativa na catequização dos nativos da região amazônica continha elementos empíricos que
contribuíram para a miscigenação cultural na região.

Referências
ABBATE, Francidio Monteiro. O que não mata engorda: cultura alimentar, mediadores culturais e educação
na Amazônia Colonial. 2016. 132 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Educação, Universidade do Estado do
Pará, Belém, 2016.

ARENZ, Karl Heinz. Fazer sair da selva: as missões jesuíticas na Amazônia. Belém: Estudo Amazônicos, 2012.

386
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.

BETTENDORFF, João Felipe. Crônica da missão dos padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão.
2. ed. Belém: Fundação Cultural Tancredo Neves; Secretaria de Estado da Cultura, 1990.

BURKE, Peter. O que é história cultural? Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

CHAMBOULEYRON, Rafael; ARENZ, Karl Heinz; NEVES NETO, Raimundo Moreira das. “Quem doutrine
e ensine os filhos daqueles moradores”: a Companhia de Jesus, seus colégios e o ensino na Amazônia Colo-
nial. Histedbr On-line, Campinas, v. N.Esp., p.61-82, out. 2011. Disponível em: <http://www.histedbr.fe.uni-
camp.br/revista/edicoes/43e/art04_43e.pdf>. Acesso em: 13 maio 2017.

COELHO, Geraldo Mártires. Nos passos de Clio:peregrinando pela Amazônia Colonial. Belém: Estudos Ama-
zônicos, 2012.

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Educação Feminina: entre práticas escolares e não escolares como possibilidades de


pesquisas em História da Educação no período colonial
Nelian Karolina Belico Marques Scarano132

No artigo “A história da mulher no Brasil: tendências e perspectivas”, publicado em 1987, a his-


toriadora Maria Beatriz Nizza Silva analisa a produção historiográfica brasileira sobre mulheres entre
os finais dos anos 1970 a década de 1980133. Nessa abordagem ela demonstra como as influências do
movimento feminista e das discussões no campo das ciências sociais são determinantes para o aumen-

132 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Minas Gerais


(UFMG) na linha de pesquisa em História da Educação e bolsista CAPES.
133 SILVA, Maria Beatriz Nizza. A história da mulher no Brasil: tendências e perspectivas. Revista do Instituto
de Estudos Brasileiros. São Paulo. 27, 1987, p. 75-91. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/rieb/article/
view/69910>. Acesso em: 01 set. 2018.

388
to dos trabalhos sobre História das Mulheres134. Maria Nizza Silva também destaca a importância de
campos como a Demografia Histórica e da História da Família para a ampliação do quadro de estudos
sobre mulheres em diferentes contextos históricos. Outro elemento importante apresentado são usos
de fontes de naturezas diversas para perceber a atuação de mulheres em diferentes espaços sociais,
tais como: documentos eclesiásticos (registro de batismo, casamento, visitas inquisitórias), narrativas,
publicações literárias entre outras.

Nesse mesmo momento Maria Nizza Silva já trabalhava com História das Mulheres no perío-
do colonial e mais tarde ela também se dedicaria ao campo da História da Educação, com trabalhos
com foco em educação feminina na América Portuguesa e sobre História da Família. Se tomarmos
como ponto de partida o ano de publicação da Fundação Carlos Chagas, fonte utilizada por Silva no
artigo supracitado, em 1978, já se foram cerca de quarenta anos e ainda temos muitas lacunas a serem
preenchidas no que diz respeito a produção sobre História das Mulheres no contexto colonial, em
especial no campo da História da Educação.

A presente comunicação tem como objetivo apresentar uma breve abordagem de temas liga-
dos à educação feminina no Brasil colônia, mais e menos recorrentes, numa perspectiva de demons-
trar possibilidades de pesquisa no campo. Contudo, é necessário vislumbramos primeiro as práticas
de educação do período para compreender quais são as práticas educativas escolares e não escolares.

Práticas educativas no Brasil colonial

É comum encontrarmos autores de dividam a educação no período colonial em dois momentos,


sendo o primeiro com a chegada das ordens religiosas para catequização dos índios e instalação de
seminários e colégios para os filhos dos colonos; e o segundo da instauração do alvará régio em 1776
e a expulsão da Companhia de Jesus. Contudo, vale ressaltar que as diretrizes pedagogias vigentes
advinham da mentalidade portuguesa, ainda que a pluralidade étnica e social presente em solo
brasileiro fosse diferente da matriz europeia. Segundo Cynthia Viega “[...] é controverso afirmar que
o período colonial se caracterizou por uma educação brasileira. O modelo era lusitano e expressava
valores e conteúdos vigentes em Portugal, ainda que aplicadas no Brasil”.135

Não raro, porém incorreto, o estabelecimento, como marco inicial da história da educação

134 A analise construída por Silva é baseada no levantamento feito a partir de publicações da Fundação Carlos
Chagas, financiado pela Fundação Ford (1987:76-76).
135 VEIGA, Cynthia Greive. História da Educação. São Paulo: Ática, 2007. p. 51.

389
no Brasil, do ano de 1549136, quando é fundado o primeiro colégio jesuíta em Salvador. Contudo, a
primeira ordem religiosa a se instalar em terras brasílicas foram os franciscanos, em 1538, quando
fundaram a primeira aldeia missionária em Laguna, Santa Catarina. Ambas ordens trabalhavam na
catequização dos indígenas, com formação de membros paras as ordens e na educação de leigos. En-
tretanto, as práticas pedagógicas eram diferentes.

Franciscanos catequizavam, ensinavam a ler, escrever, fazer contas e cantar. No final do século
XVI, fundaram na Bahia um internato para meninos índios e aldeias no Nordeste e no Espirito San-
to. No século XVII inauguram no Rio de Janeiro o Convento de Santo Antônio, que oferecia estudos
superiores de teologia moral e filosofia. No século seguinte, há registro de aulas de alfabetização e de
gramática latina em seus conventos.137

A prática educativa dos jesuítas admitia diferentes modalidades, tais como: pregação, alfabeti-
zação, ensino de artes e ofícios tanto para os indígenas como para a população africana, além da edu-
cação para os filhos de portugueses. Nos aldeamentos era ensinado “[...] um viver conforme a razão
pelo combate à antropofagia, a poligamia, às mancebias, ao nomandismo e ao ócio – além dos rituais
cristãos, organizava-se a fixação na terra e o trabalho”.138 Em fazendas e engenhos da Companhia de
Jesus, cuja a produção se destinava as consumo das missões e comercialização do excedente, os escra-
vos aprendiam ofícios manuais e a trabalhar na terra.

Os colégios [jesuítas] colônias constituíam a base administrativas das ativida-


des dos religiosos e tiveram a atribuição nuclear de concentrar diferentes ações: al-
fabetização dos indígenas, ensino de artes e ofícios para indígenas e escravos, ensino
de gramática latina para os filhos de colonizadores e pretendes ao clero, cultivo de
hortas e pomares e criação de animais, entre outras. Além de bibliotecas, os colégios
possuíam oficinas, enfermarias e boticas e prestavam assistência à população em ge-
ral. As igrejas e os colégios fundados pelos jesuítas foram as primeiras referências de
sociabilidade da civilização cristã colonial.139

Nos colégios jesuítas da Bahia e do Rio de Janeiro, por volta de 1615, foram criadas as pri-
meiras agremiações de ofícios mecânicos. Inspiradas nas associações portuguesas, as “Bandeiras” e as
“Confrarias” tinham como objetivo a assistência e o auxílio mútuo entre os associados. Elas tinham
como funções a regulamentação das atividades dos oficiais, o ensino de ofícios mecânicos e a outorga
de títulos de aos metres de ofícios. A partir 1619, as confrarias passaram a agregar ao ofício a qualida-
136 Segundo Ana Cristina Lage “[...] a generalização que a educação esteve tão somente nas mãos dos jesuítas,
como apontavam vários manuais escolares que foram utilizados em disciplinas de História da Educação por
muito tempo, elaboravam especialmente a partir da interpretação da obra de Fernando Azevedo, o qual tratava
a educação jesuíta enquanto fundante de uma educação brasileira [...]”.(LAGE, Ana Cristina Pereira. Institui-
ções educativas confessionais na América Portuguesa: para além dos jesuítas. In: SANTOS, Antonio Cesar de
Almeida (Org.) Ilustração, cultura escrita e práticas culturais e educativas. Ponta Grossa: Estúdio Texto, 2016.
p. 179.)
137 VEIGA, Cynthia Greive. História da Educação. São Paulo: Ática, 2007. p. 64.
138 Idem, p.62.
139 Idem, p. 60.

390
de de cor. Dessa divisão surgiram dois grupos de irmandades: Irmandade de Nossa senhora do Rosá-
rio dos Pretos140 e Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Brancos Posteriormente fora criada
a Irmandade de Nossa Senhora de Guadalupe dos Pardos141. Os brancos abastados se associaram em
uma outra modalidade de associativismo: as ordens terceiras, na devoção de São Francisco ou Nossa
Senhora do Carmo.

As corporações leigas tiveram um papel na socialização da cultura religiosa. Isso por-


que, ao garantir a formação religiosa e moral de seus membros, cumpriram uma
função fundamental na organização e controle dos grupos da cristandade, apartada
pelas diferenças étnicas e de classe.142

Nesse sentido, podemos perceber, que as irmandades desempenharam funções educacionais,


ainda que de caráter moral e religioso.

Não perdendo de vista, é importante lembrar também que outras ordens religiosas promove-
ram educação confessional na América Portuguesa. Sendo elas carmelitas, beneditinos, mercedários e
capuchinos (ordens masculinas) e claritas, concepcionitas e ursulinas (ordens femininas). Além dos
franciscanos e jesuítas já citados anteriormente, a ordem dos carmelitas também realizou ações de
catequese, nesse caso na região amazônica.

Além de oferecer colégios para externos, as ordens religiosas, também tinham a função de for-
mar seus membros. Através de seminários, internatos e conventos eram formadas aqueles que tinham
o interesse em se dedicar a vida religiosa.

No caso da capitania de Minas Gerais, que foi proibido a instalação de ordens religiosas no
início do século XVIII, foi criado um bispado com sede em Mariana em 1745. Através dele foi insta-
lado o um seminário para formação de clérigos locais e para a educação dos filhos da elite local. “Até
a instalação do seminário, os filhos dos moradores recebiam lições em aula doméstica ocasionais ou
eram enviados para colégios de outras capitanias ou até mesmo de Portugal”143.

Além da modalidade de ensino na residência do aluno, também havia professores e padres


mestres que davam aulas em suas próprias casas, essas que eram abertas ao público. Similar a isso, ha-
via a aprendizagem de ofícios manuais através de aulas avulsas nas residências dos próprios artesãos.

Até aqui vimos como foi de suma importância a atuação da Igreja Católica nos processos
educativos na América Portuguesa, seja por meio das ordens religiosas ou através de formas ligado
indiretamente a ela. Entretanto, como foi dito anteriormente, outro momento relevante da história
da educação no período colonial é o decreto do Alvará régio de 28 de junho de 1759, que institui o
140 Os negros também se associavam às irmandades de São Benedito e Santa Ifigênia.
141 Irmanadas de Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora do Amparo, Nossa Senhora do Livramento ou
São Francisco estavam ligados aos pardos.
142 Idem, p. 68.
143 Idem, p. 65.

391
ensino régio (aulas estatais), destinadas a instrução elementar, que consistia no ensino de ler, escrever,
contar, além do catecismo e do ensino secundário voltado à preparação para o ingresso na Universi-
dade de Coimbra e para carreiras eclesiásticas.144 Entretanto, tais momentos não estão desconectados,
visto que a instituição das aulas régias é parte de uma política que acabou por expulsar a Companhia
de Jesus de Portugal e demais territórios do reino. Segundo Thais Fonseca, a rigor, a inclusão dessa
modalidade de aula significou a implantação do ensino público estatal no Império português.145

Influenciado pelo pensamento ilustrado, o ministro do rei D. José I, Sebastião José de Carvalho
e Melo, mais conhecido como Marquês de Pombal, promoveu uma série de mudanças na estrutura
administrativa do reino português e além-mar que ficaram conhecidas como reformas pombalinas.
O alvará régio foi instituído por essas reformas. As justificativas para a expulsão dos jesuítas foram
atribuídas aos conflitos entre a Companhia de Jesus e o Estado português no esforço de secularização
da administração do Império e redução da influência da ordem na sociedade.

No caso do campo educacional D. José I afirmou no alvará que “[...] da cultura das Ciências
depende a felicidade das Monarquias [...]146”, nesse sentido Fonseca esclarece:

As ciências, entendias aqui como conhecimento, não estão dissociadas da necessida-


de da formação cristã, que entende ser a formação para o bem do Estado (“felicidade
das Monarquias) composta não somente de conhecimento úteis para a atuação do
indivíduo nesta sociedade, mas também para sua melhor adequação à ordem. Para o
governo de D. José I os jesuítas teriam falhado nesta missão por aplicarem métodos
que não resultavam em conhecimento e habilidades úteis para o progresso da nação,
ao menos na ótica do Estado [...].147

Importante destacar que esse o ensino régio ampliou a chances de vários indivíduos se inseri-
rem na sociedade além de lhes conferir distinção e reconhecimento social.

Além de ter servido para a reorganização dos estudos, as reformas, instituindo o ensino pú-
blico estatal, marcaram também o surgimento da figura do professor público: os professores régios
de gramática latina, grego, hebraico e retórica foram os primeiros grupos selecionados, nomeados,
pagos e controlados pelo Estado. A partir de então, a educação passou a ser conduzida por organis-
mos burocráticos governamentais e não mais sob as diretrizes eclesiásticas, como fora até então pela
144 FONSECA, Thais Nivia de Lima e. Apresentação. In:___ (Org.) As reformas pombalinas no Brasil. Belo
Horizonte: Mazza Edições, 2011. p. 7.
145 FONSECA, Thais Nivia de Lima e. Professor régio na América portuguesa: representação e práticas de
obtenção de posições na sociedade colonial. In:___ (Org.) As reformas pombalinas no Brasil. Belo Horizonte:
Mazza Edições, 2011. p. 100.
146 ALVARÁ de 28 de junho de 1759 apud FONSECA, Thais Nivia de Lima e. Circulação e Apropriação de
concepções educativas no mundo luso americano colonial (séculos XVIII-XIX). In: SANTOS, Antonio Cesar
de Almeida (Org.) Ilustração, cultura e práticas culturais e educativas. Ponta Grossa: Estúdio Textos, 2016. p.
140.
147 FONSECA, Thais Nivia de Lima e. Circulação e Apropriação de concepções educativas no mundo luso
americano colonial (séculos XVIII-XIX). In: SANTOS, Antonio Cesar de Almeida (Org.) Ilustração, cultura e
práticas culturais e educativas. Ponta Grossa: Estúdio Textos, 2016. p. 140.

392
Companhia de Jesus.

Segundo Thais Fonseca, os ritmos e as condições de implementação das aulas públicas estatais
variaram de região para região, embora fossem únicas as linhas gerais que regiam as reformas. Entre
os anos de 1759 a 1772, “[...] a implementação das primeiras medidas das reformas encontrou dificul-
dades impostas pela própria legislação [...]”, pois ainda não tinham sido estabelecidos pelo Alvará de
onde viriam os provimentos para pagar os valores referentes aos ordenamentos dos professores e nem
detalharia como seria o exercício do magistério148.

Com o Alvará de novembro de 1772 foi implementada uma série de medidas que colaboraram
com a ampliação das aulas régias. Dentre as medidas vale destacar a criação do “subsídio literário”, um
imposto cobrado sobre bebidas (vinho, aguardente) e carnes frescas, que tinha como objetivo o paga-
mento dos salários dos professores e a criação da cadeira de aulas de primeiras letras. As aulas régias
perduram no Brasil até o Ato Institucional de 1834 que descentralizou a reponsabilidade do ensino
para as Assembleias Legislativas de cada província.

O processo de criação até o final do ensino é marcado por várias fases, com mudanças na le-
gislação com o intuito de resolver questões que foram sendo postas ao longo do processo. Contudo,
“a criação do ensino régio na segunda metade do século XVIII ampliou, para muitos grupos de indi-
víduos, as chances de construírem mecanismos de inserção mais destacadas na sociedade, que lhes
conferisse distinção e reconhecimento”.149 Portanto o ensino régio além de ser a primeira forma de
instrução pública, ela também foi responsável avanços no sistema de ensino do Brasil.

Importante destacar que grande parte dessas práticas educativas apresentadas, poucas eram
acessíveis ao público feminino. O ensino régio disso é um exemplo, que ampliou o acesso à educação,
mas foi restringido às mulheres.

As estratégias para educar meninas e mulheres na América portuguesa também passou pelas
mãos da igreja, ensino privado e aprendizagem de ofícios manuais. Contudo, para percebemos essas
práticas educativas como um campo possível de pesquisa, vamos melhor detalha-las no próximo tópico.

Condição feminina e formas de educar no período colonial

Segundo Mary Del Priore, as mulheres estão presentes no processo de colonização desde o
início, entretanto, elas permaneceram na invisibilidade porque grande parte das mulheres era anal-
fabeta, subordinada juridicamente aos homens e politicamente inexistente. Essa condição as excluía
de qualquer função administrativa pública ou eclesiástica que lhe atribuísse reconhecimento social150.
Entretanto, apesar da condição de inferioridade houve aquelas que tiveram acesso a algum tipo de
educação.

148 Idem, p. 100.


149 Idem, p. 115.
150DEL PRIOE, Mary. Mulheres no Brasil colonial. São Paulo: Contexto, 2000. p. 9.

393
Nesse sentindo, assim como ocorreu no caso da educação masculina, as mulheres tinham
acesso a determinadas práticas de educação de acordo com sua condição étnico-social. Segundo Vei-
ga:
A historiografia costuma destacar a ociosidade e a formação religiosa como marcas
típicas de todo o conjunto das mulheres da época colonial. Isso pode ser verdade no
que se refere grupo de senhoras das classes abastadas, mas não se aplica às mulheres
das classes trabalhadoras ou da classe média e muito menos às escravas.151

Portanto, perceber as diferentes formas de educar dos diferentes grupos étnicos-sociais femi-
ninos são objetos de pesquisa de fundamental importância tanto para historiografia do período colo-
nial como para a historiografia da educação, uma vez que a partir dessas práticas podemos perceber os
sujeitos, as dinâmicas sociais e as estratégias de sociabilidades presentes na sociedade nesse contexto.
Dito isso, a seguir vamos analisar as práticas educativas no objetivo de demonstrar as possibilidades
de pesquisa.

a) Educação Jesuíta

As meninas e mulheres indígenas não eram educadas aos mesmos moldes que os homens e
meninos. Elas eram iniciadas nos dogmas cristãos no interior dos aldeamentos, através do catecismo
e do canto de orações. Educar nos bons costumes cristãos tinham como principal objetivo coibir o
“desregramento sexual”, para evitar a mancebia entre as índias e os colonizadores.

Segundo Arilda Ribeiro, Padre Manoel de Nóbrega chegou a mandar uma carta à Dona Ca-
tarina, Rainha de Portugal, pendido autorização para ensinar as índias a ler e escrever, pois para ele,
“isso poderia desencadear um processo de respeito para as mulheres que viviam na colônia, já que a
miscigenação imposta ao branco grassava em quase todas as aldeias, ocasionando nascimento desvin-
culados de amor e respeito”.152

As índias também aprendiam ofícios manuais. Segundo Serafim Leite, há relatos do Padre
Viera da existência de 24 fiadeiras nas oficinas e colégios do Maranhão e do Pará. Essa prática estava
ligada a questão do trabalho. Serafim Leite atribui ao Padre Manoel da Nóbrega a fundação de uma
casa para acolhimento de índias órfãs, sendo o objetivo prepará-las para um casamento legítimo. 153

Arilda Ribeiro afirma que:

151VEIGA, Cynthia Greive. História da Educação. São Paulo: Ática, 2007. p. 71.

152 RIBEIRO, Arilda Ines Miranda. Mulheres educadas na colônia. In: FARIA FILHO, Luciano Mendes; LO-
PES, Eliane Marta Teixeira; VEIGA, Cynthia Greive (org). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte:
Autêntica, 2000. p. 80.
153 VEIGA, Cynthia Greive. História da Educação. São Paulo: Ática, 2007. p. 71 – 72.

394
Os padres jesuítas tinham o desejo de fundar recolhimento para as Mulheres no Bra-
sil. Para eles, a educação feminina na colônia não era apenas um requinte de erudição
humanista. Era uma questão mais grave: tratava-se de lançar a base para a obra de
moralização e também uma forma eficiente na formação de famílias brasileiras. 154

O pedido foi negado e considerado ousado, uma vez que na época não havia escolas para me-
ninas nem em Portugal.

b) Conventos e recolhimentos

A presença reduzida de mulheres brancas para casar com os colonizadores foi uma questão
importante desde os primórdios da colonização. A situação era tão delicada que em 1732 foi estabele-
cido uma Alvará Régio que dificultava a saída de mulheres brancas para os conventos no exterior. Ou-
tra media administrativa foi tornar moroso o processo de implementação de conventos na Colônia.
Segundo Veiga:

Embora o recolhimento e a entrada num convento tivessem a princípio objetivos


diferentes, a maioria dos conventos brasileiros se originou de recolhimentos, porque
a Coroa portuguesa não via com bons olhos a propagação de conventos femininos.
Afinal, num contexto em que se faziam necessário casamento legítimo e o povoa-
mento da Colônia por “pessoas de boa origem”, não era uma boa idéia permitir que as
poucas mulheres permitir que as mulheres escolhessem o celibato e passassem a vida
num convento. Os recolhimentos foram a melhor alternativa, já que a permanência
neles eram temporárias. 155

Os recolhimentos se apresentavam como espaços mais apropriados para proteger as meninas


e educá-las para o casamento. As atividades incluíam alfabetização, oração, canto e ofícios manuais
como a costura e o bordado. Ana Cristina Lage afirma que os conventos poderiam abrigar mulheres
de variadas qualidades e condições, sendo os recolhimentos de quatro tipos: a) para meninas, que
recebiam índias e órfãs ou aquelas separadas da família, que permaneciam por lá até o casamento; b)
para moças ou mulheres decaídas, que foram rejeitadas pela sociedade e arrependidas; c) para viúvas
ou abandonadas pelos maridos e d) para as mulheres que se destinavam-se à vida monástica.156

Era possível permanecer nos conventos sem fazer votos definitivos, alguns conventos também
eram recolhimentos. No que toca a questão da qualidade e da condição da mulher, os conventos eram
154 RIBEIRO, Arilda Ines Miranda. Mulheres educadas na colônia. In: FARIA FILHO, Luciano Mendes; LO-
PES, Eliane Marta Teixeira; VEIGA, Cynthia Greive (org). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte:
Autêntica, 2000. p. 81.
155 VEIGA, Cynthia Greive. História da Educação. São Paulo: Ática, 2007. p. 73.
156 LAGE, Ana Cristina Pereira. Instituições educativas confessionais na América Portuguesa: para além dos
jesuítas. In: SANTOS, Antonio Cesar de Almeida (Org.) Ilustração, cultura escrita e práticas culturais e educa-
tivas. Ponta Grossa: Estúdio Texto, 2016. p. 180.

395
voltados para as elites. No texto “Mulheres de véu preto: letramento religioso das irmãs Clarissa na
América Portuguesa”, Ana Cristina Lage analisa os livros devocionais lidos e produzidos no Convento
de Santa Clara do Desterro em Salvador nos séculos XVII e XVIII, ela afirmar a respeito das irmãs
Clarissa:
[...] todas deviam viver modestamente, praticar atos de devoção e, além disso, deter
um grau de letramento para participar do Ofício Divino e, assim, chegar mais próxi-
mo do mundo sagrado. Tais intenções também estavam apontadas em outras obras
da época. Para os conventos femininos, os representantes da Igreja Católica deseja-
vam mulheres letradas, que detinham a leitura por meio do conhecimento da língua
latina e algumas até escreviam, mas outras apenas rezavam ou escutavam a leitura das
primeiras. As clarissas mais especiais eram aquelas mulheres que socialmente pos-
suíam o conhecimento da leitura, ou da escrita, ou de ambos, e eram as identificadas
por meio do véu que portavam na cabeça.157

Segundo o estudo, somente as irmãs que portavam o véu preto sabiam ler e escrever, além dis-
so, somente elas poderiam participar do Ofício do Divino e para isso elas também tinham o domínio
do latim. Entretanto, havia as irmãs do véu branco, que não possuíam leitura.

O trabalho de Lage exemplifica como as práticas educativas eram diferentes dentro de uma
mesma instituição. Segundo Veiga, essas instituições também possuíam escravas para diferentes tra-
balhos158. Alguns recolhimentos aceitavam receber negras e mestiças, como o caso do Recolhimento
de Macaúbas (MG), criado em 1716, que aceitou receber as sete filhas da Chica da Silva entre os anos
de 1776 e 1781. Houve também o Recolhimento de Nossa Senhora da Glória que recebia meninas
pobres quando haviam rendas o bastante.

Interessante destacar que o Recolhimento de Nossa Senhora da Glória em Olinda, tinha sua
proposta pedagogia em sintonia com ideias de educação feminina em voga na Eupora, como defen-
diam os autores Fénelon e Verney que acreditam na grande necessidade de mulheres estudarem, uma
vez que

Elas, principalmente as mães de família, são as nossas mestras nos primeiros anos de
vida: elas nos ensinam a língua, elas nos dão as primeiras ideias das coisas. E que coi-
sa boa hão de ensinar, se elas não sabem o que dizem? Certamente que os prejuízos
nos metem na cabeça na nossa primeira meninice são sumamente prejudiciais em
todos os estados da vida; e quer-se um grande estudo para e reflexão para se despir
deles. Além disso, elas governam a casa, e a direção do econômico fica na esfera da
sua jurisdição.159

157 LAGE, Ana Cristina Pereira. Mulheres de véu preto: letramento religioso das irmãs Clarissa na América
Portuguesa. História: Questões & Debates, Curitiba: Editora UFPR, n. 60, jan./jun. 2014. p. 131. Disponível
em: https://revistas.ufpr.br/historia/article/view/38282/23430. Acesso em: set 2018.
158VEIGA, Cynthia Greive. História da Educação. São Paulo: Ática, 2007. p. 73.
159 VERNEY apud OLIVEIRA, Cláudia Fernanda de. Educação Feminina na Colônia: aprendizado e possibi-
lidades de uso dos ofícios manuais em Minas Gerais (1750-1800). Associação Nacional de História – ANPUH
XXIV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA. 2007. p. 2. Disponível em: <http://snh2007.anpuh.org/resour-
ces/content/anais/Cl%E1udia%20Fernanda%20de%20Oliveira.pdf>. Acesso em: 01 set. 2018.

396
c) Ensino de ofícios manuais

A ociosidade das mulheres não era vista com bons olhos, por isso mulheres de diferentes
grupos étnicos-socias aprendiam ofícios manuais, mas com finalidades distintas. De maneira geral
ensinavam os ofícios de costura e bordado para moças, como parte da preparação para o casamento.
No entanto, muitas mulheres aprendiam esses ofícios para garantir o seu próprio sustento, que era o
caso das pardas e mulatas, filhas de homens brancos, e das brancas pobres.

Há estudos sobre meninas órfãs que eram enviadas para aprender ofícios manuais com mes-
tres ou mestras de costura com o objetivo que essas não caíssem em desgraça ou que perdessem a
honra. É possível perceber essas práticas educativas nos inventários onde são registrados o pagamento
dos mestres e a compra dos materiais para realizar a aprendizagem para o juiz de órfãos acompanhar
o processo educativo.

Na obra “Letras, ofícios e bons costumes”, Thais Fonseca apresenta o inventário de Luiza da
Cruz, cujas filhas foram enviadas para aprenderem os ofícios de coser, tecer, rendar entre outros:
“[...] Órfã Maria: Despesa com mestras para ensinar a coser, tecer, rendas, crivos,
bordar e fazer meias (20 mil reis). Despensa com tesoura, dedais, agulhas, alfinetes,
bilros e almofadas (7 mil réis).

[...] Órfã Eufrásia (casada): Despesas com mestras para aprender a coser, tecer, bor-
dar, crivar, render e fazer meias (20 mil réis). Despesa com tesoura, dedais, agulhas,
alfinetes, bilros, almofadas (7 mil réis).

[...] Órfãs Josefa: despesa com mestras para ensinarem a coser, tecer, rendar, crivar,
bordar e fazer meias (20 mil réis). Despesa com dedais, agulhas, tesoura, alfinetes e
almofadas (7 mil réis)”160.

Ainda temos os ofícios manuais, cuja aprendizagem não exigiam mais que a mera imi-
tação e não necessitavam de um ensino sistemático. Contudo, descobrir o seu processo de aprendiza-
gem ainda é um desafio para a pesquisa história.

d) Ensino privado

Grande parte da população feminina foi educada no ambiente de sua própria casa. Muitas
mães que sabiam ler e escrever, ensinavam aos seus filhos. Outra prática comum era algum parente
com tio ou um padrinho ensinar em casa. Existiam os mestres de primeiras letras, que poderiam ser
padres pertencem a alguma ordem religiosa que realizavam o ensino no ambiente doméstico.

Podemos ver a atuação desses mestres em documentos com os libérios e justificações, pois
através dessas fontes é possível mapear mestres que reclamaram na justiça pela prestação do serviço
que não foi paga.
160 FONSECA, Thaís Nívia de Lima e. Letras, ofícios e bons costumes: civilidade, ordem e sociabilidades na
América Portuguesa. Belo Horizonte: FAPEMIG, Autêntica, 2009. p. 141.

397
Neste tópico apresentamos algumas práticas educativas voltadas para o público feminino já
mapeadas pela História da Educação. Nosso objetivo é que a partir do exposto seja possível pensar
novas possibilidades de pesquisa a partir do campo já explorado ou ainda fomentar o surgimento de
novos objetos.

Considerações finais

Como dito anteriormente, a mulher no período colonial sofreu com a invisibilidade devido às
estruturas da sociedade do período a que colocavam em uma situação de inferioridade submissão. A
tarefa de resgate das vozes dessas mulheres requereu um mergulho em fontes antes usadas com outras
finalidades pela historiografia. E os movimentos de renovação de análises permitiram também novos
olhares sobre os sujeitos e novas abordagens.

A análise a luz do gênero como uma categoria de análise foi de fundamental importância
para o alargamento de produções nas décadas de 1990 sobre a História das Mulheres. Contudo, cerca
de dez anos depois, em 2000, Maria Beatriz Nizza Silva em uma conferência que foi posteriormente
publicada na Revista da SBPH, chamou a atenção para a necessidade da escrita de “[...] uma história
global da presença das mulheres no Brasil colonial”. Silva, pontuou vários fatos e momentos que pre-
cisavam ainda ser estudados pela História das Mulheres no período colonial. 161

No entanto, do momento da publicação dessa conferência de Silva até os dias atuais, já se


passaram dezoito anos e hoje temos uma larga produção sobre História das Mulheres no período co-
lonial, contudo a essa máxima ainda não vale para a historiografia da educação.

Existe um número considerável de trabalhos produzidos sobre educação feminina no período


colonial, que comprova a viabilidade da pesquisa. Isso é possível verificar no levantamento realizado
por Thais Fonseca a partir de palavras chaves em artigos, revistas e anais de eventos da área, dispostas
no seguinte quadro162:

Temas Porcentagem
Jesuítas 22,5%
Fontes 10%
Subsídio Literário 8,5%
Educação Moral e religiosa 7,5%
Educação de Mulheres 7,5%

161 SILVA, Maria Beatriz Nizza. Mulheres na colônia: uma história escrita. Revista da SBPH. Curitiba. n.18,
2000, p. 3.
162LAGE, Ana Cristina Pereira. Instituições educativas confessionais na América Portuguesa: para além dos
jesuítas. In: SANTOS, Antonio Cesar de Almeida (Org.) Ilustração, cultura escrita e práticas culturais e educa-
tivas. Ponta Grossa: Estúdio Texto, 2016. p. 175 – 176.

398
Instrução 6,25%
Profissão docente 6,25%
Aulas Régias 6,25%
Práticas Educativas 6,25%
Reformas Pombalinas 5%
Educação de Órfãos 3,5%
Educação de Nobres 2,5%
Estudos Menores 2,5%
Brincar 1,25%
Historiografia 1,25%
Políticas Educativas 1,25%
Educação e Cultura Escrita 1,25%

Fonte: Levantamento de dados realizados pela bolsista Rhaissa de Alvarenga Coelho Martins (UFMG). Coor-
denado Dra. Thais Nívia de Lima e Fonseca (UFMG). Projetos Instituições e práticas educativas na América
Portuguesa no século XVIII e primeiras décadas do século XIX.

Como é possível analisar a partir do quadro, “Educação de Mulheres” não está nem entre os
mais pesquisados e nem entre os pouco. Contudo, como quais seriam os objetos analisados dentro da
chave “Educação de Mulheres” não foi explorado.

Nesse sentido, pensar as práticas educativas dividias entre práticas escolares e não escolares
ajuda a alargar os horizontes para encontrarmos novos objetos de pesquisas. É comum acreditar que
quando nos referimos à História da Educação ficamos restritos a espaços e práticas ligados a instru-
ção, ou seja, somente as práticas de aprendizagem de leitura e escrita, sendo que o ideal de educação
no contexto do Antigo Regime fazia referência em formar o sujeito para ser um bom súdito e ainda no
caso das mulheres se casarem e terem uma vida honrada.

Outro elemento que poderia contribuir é pensar a História da Educação focada na educação
feminina, buscando em outros domínios163, como por exemplos, a História da vida privada ou Histó-
ria da sexualidade, novos objetos de análise ou novas abordagens ainda em outras dimensões164 como
a História Social ou História Cultural.
163 Como domínio estou usando a definição de Barros presente na obra “O campo da História”. Domínio cor-
responde a uma escolha mais específica, orientada em relação a determinados sujeitos ou objetos para os quais
será dirigida a atenção do historiador. (BARROS, José D’Assunção Barros. O campo da História: especialidades
e abordagem. Rio de Janeiro: Vozes, 2004. p. 20).
164 A dimensão implica em um tipo de enfoque ou em um ‘modo de ver’ (ou em algo que se pretende ver em
primeiro plano na observação de uma sociedade historicamente localizada) [...]” (BARROS, José D’Assunção
Barros. O campo da História: especialidades e abordagem. Rio de Janeiro: Vozes, 2004. p. 20).

399
Para finalizar, as fontes já utilizadas em outros trabalhos podem colaborar na proposição de
outros problemas de pesquisa. Como foi abordado anteriormente fontes de caráter eclesiástico que fo-
ram de fundamental importância para resgatar vivências de mulheres na vida cotidiana, elas também
podem oferecer um olhar educativo voltado para práticas educativas não escolares, apresentado uma
abordagem ampla da concepção de educação.

Há também os documentos de caráter cartorial, como os testamentos e inventários, onde po-


demos encontrar trajetórias educativas presentes nos testamentos ou informações como o número
de livros que a pessoa possuía nos inventários ou ainda recibo de pagamento de mestres como já foi
referido no tópico passado.

No campo da educação é privilegiado o uso de manuais pedagógicos, contudo podemos pen-


sar neles em de duas maneiras, como referências ou com fontes. Uma escolha entre essas duas opções
já oferece alternativas de pesquisas.

Outras fontes que também vem sendo usadas para a historiografia da educação feminina são
as epístolas escritas por mulheres. Essa modalidade de fonte apresenta múltiplos elementos para se-
rem analisados, em conjunto ou individualmente. Nesse caso podemos recorrer ao diálogo com outra
disciplina com a literatura.

Portanto, a partir do exposto buscamos demostrar através de algumas abordagens como a edu-
cação feminina pode ser campo com múltiplas possibilidades de pesquisa. Combinando abordagens,
conceitos, fontes e referências de outros campos da história é possível dinamizarmos e enriquecermos
esse tema.

Referências bibliográficas:
ALGRANTI, Leila Mezan. Educação de meninas na América portuguesa: das instituições de reclusão à vida em
sociedade (século XVIII e início do XIX). In: Revista de História Regional. N. 19(2), 2014. p. 282 - 297.

BARROS, José D’Assunção Barros. O campo da História: especialidades e abordagem. Rio de Janeiro: Vozes,
2004. 222 p.

DEL PRIOE, Mary. Mulheres no Brasil colonial. São Paulo: Contexto, 2000. 94 p.

FONSECA, Thais Nivia de Lima e. Apresentação. In:___ (Org.) As reformas pombalinas no Brasil. Belo Hori-
zonte: Mazza Edições, 2011. p. 7 - 8.

FONSECA, Thais Nivia de Lima e. Circulação e Apropriação de concepções educativas no mundo luso ameri-
cano colonial (séculos XVIII-XIX). In: SANTOS, Antonio Cesar de Almeida (Org.) Ilustração, cultura e práti-
cas culturais e educativas. Ponta Grossa: Estúdio Textos, 2016. p. 131 - 145.

FONSECA, Thaís Nívia de Lima e. Letras, ofícios e bons costumes: civilidade, ordem e sociabilidades na Amé-
rica Portuguesa. Belo Horizonte: FAPEMIG, Autêntica, 2009. 174 p.

FONSECA, Thais Nivia de Lima e. Professor régio na América portuguesa: representação e práticas de obten-
ção de posições na sociedade colonial. In:___ (Org.) As reformas pombalinas no Brasil. Belo Horizonte: Mazza
Edições, 2011. p. 99 – 116.

400
LAGE, Ana Cristina Pereira. Instituições educativas confessionais na América Portuguesa: para além dos jesuí-
tas. In: SANTOS, Antonio Cesar de Almeida (Org.) Ilustração, cultura escrita e práticas culturais e educativas.
Ponta Grossa: Estúdio Texto, 2016. p. 169 – 184.

LAGE, Ana Cristina Pereira. Mulheres de véu preto: letramento religioso das irmãs Clarissa na América Por-
tuguesa. História: Questões & Debates, Curitiba: Editora UFPR, n. 60, jan./jun. 2014. p. 107 - 131. Disponível
em: <https://revistas.ufpr.br/historia/article/view/38282/23430>. Acesso em: set 2018. Acesso em: 03 set. 2018.

OLIVEIRA, Cláudia Fernanda de. Educação Feminina na Colônia: aprendizado e possibilidades de uso dos
ofícios manuais em Minas Gerais (1750-1800). Associação Nacional de História – ANPUH XXIV SIMPÓSIO
NACIONAL DE HISTÓRIA. 2007. 7 p. Disponível em:<http://snh2007.anpuh.org/resources/content/anais/
Cl%E1udia%20Fernanda%20de%20Oliveira.pdf>. Acesso em: 01 set. 2018.

RIBEIRO, Arilda Ines Miranda. Mulheres educadas na colônia. In: FARIA FILHO, Luciano Mendes; LOPES,
Eliane Marta Teixeira; VEIGA, Cynthia Greive (org). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autên-
tica, 2000. p. 79 – 94.

SILVA, Maria Beatriz Nizza. A história da mulher no Brasil: tendências e perspectivas. Revista do Instituto
de Estudos Brasileiros. São Paulo. 27, 1987, p. 75-91. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/rieb/article/
view/69910>. Acesso em: 01 set. 2018.

SILVA, Maria Beatriz Nizza. Mulheres na colônia: uma história a ser escrita. Revista da SBPH. Curitiba. n.18,
2000, p. 3 – 18.

VEIGA, Cynthia Greive. História da Educação. São Paulo: Ática, 2007. p. 398 p.


Educação e Conhecimento: o Iluminismo português e a construção da civilidade no Século
das Luzes165
Tiago Silva Medeiros

INTRODUÇÃO

O século XVIII em Portugal foi um momento de várias mudanças para o reino e suas colônias.
A formulação de obras debatendo a educação no reino, o grande número de produção dicionarísti-
ca, as influências do iluminismo e a ascensão ao trono de D. José I e de seu secretário Sebastião José
de Carvalho e Melo, Conde de Orleans e posteriormente Marquês de Pombal marcam algumas das
transformações que mudaram a administração do reino, e consequentemente, o cenário pedagógico
da metrópole e suas posses.

Anteriormente, ainda no século XVI, os jesuítas desenvolveram um método de ensino basea-


do no Ratio Studiorum, obra que seria a base comum de trabalho da Companhia de Jesus. Para Nagel
(2009), a concepção de educação escolar pensada e praticada pelos primeiros mestres das crianças no
Brasil harmonizava-se com o ideário dos colonizadores portugueses em proveito da expansão mer-
cantilista do reino português com leis, normas e regras únicas de convívio social e trabalho. Agen-
165 Me. Tiago Silva Medeiros. Doutorando em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
CAPES.

401
tes de transformação existencial e material, os primeiros mestres do Brasil desenvolveram seu plano
educacional concebendo a criança (índia, branca, negra) como ser moldável pelos conhecimentos
transmitidos e os ensinamentos instrutivos racionais para vida ativa em permanente transformação.
A educação viabilizaria a formação humana pelo trabalho escolar.

Todavia, com o passar dos séculos XVI e XVII Portugal começa a perder sua primazia nos
mares e seu império resume-se, no século XVIII, à colônias na África e na América perdendo suas
possessões orientais para ingleses e holandeses. Na tentativa de modernizar o Estado Português em
comparação a outras nações, intelectualmente a franceses e economicamente aos holandeses e ingle-
ses, D. José I começa uma reestruturação da máquina administrativa lusitana.

Além de estimular o comércio com a criação das Companhias de Comércio de Pernambuco


e Paraíba, fomentar e incentivar as práticas comerciais com aulas de comércio, contabilidade e inglês,
o Alvará de junho de 1759 é considerado por muitos historiadores da educação o início, não só de
uma nova fase para a história da educação no Brasil, como também o início de uma educação pública.

A reforma educacional pombalina culminou com a expulsão dos jesuítas precisamente das
colônias portuguesas, tirando o comando da educação das mãos destes e passando para as mãos do
Estado. Os objetivos que conduziram a administração pombalina a tal reforma foi de influência ilumi-
nista, na qual já havia vários debates e autores que criticavam a educação jesuítica e propunham novos
métodos de ensino inspirados na ilustração.

Temos como exemplos Cartas Sobre a Educação e a Mocidade de Antônio Ribeiro Sanchez
que abrem os caminhos para a proposta de trabalho desse artigo. A partir dessa documentação ana-
lisar-se-á as contribuições do iluminista português, Antônio Ribeiro Sanchez, para os pressupostos
educacionais, enquanto elementos condicionantes do processo civilizador, no qual estamos inseridos.

No entanto, os agentes civilizadores, ordenados pelas ideias iluministas e por políticas públi-
cas de caráter modernizador, os professores serão peça fundamental nesse estudo para desvendar o
caráter civilizador desse projeto educacional ou se algumas dificuldades como a falta de subsídios,
envolvimentos com atos ilícitos e problemas administrativos nas Capitanias do Norte acabaram de-
senvolvendo lograr esse projeto educacional.

REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO

Antes de nos debruçarmos em construir uma abordagem sobre a relação entre a civilidade e
os pressupostos educacionais no Iluminismo português far-se-á necessário uma análise pormenori-
zada do que Norbert Elias chama de “Processo Civilizador”. Esse conceito será fundamental para o
entendimento teórico dessa tese, tendo em vista que o processo civilizador não é apenas um processo
histórico, mas consideramos também como uma “evolução” na percepção da educação como meio
civilizador.

402
De forma lenta e gradual, perpassando o processo de longa duração da história, o processo
civilizador conduziu o europeu ao caminho da civilidade. De forma consciente, essa civilidade nos
conduziu, no período da modernidade, para hábitos, formas de conduta, tipos de conhecimento que
substituiu a barbárie, a descerimônia, a superstição e a ignorância dos tempos medievais. Para o so-
ciólogo alemão:

[...] o processo civilizador constitui uma mudança na conduta e sentimentos huma-


nos rumo a uma direção muito específica. Mas, evidentemente, pessoas isoladas no
passado não planejaram essa mudança, essa civilização, pretendendo efetivá-la gra-
dualmente através de medidas conscientes, racionais166, deliberadas [...]167

Desse processo civilizador começou a construir ideais de civilização e civilidade. Isso se refere
a vários fatos como, os níveis de tecnologia, aos tipos de maneiras, aos desenvolvimentos do conheci-
mento científico e de tendências pedagógicas tão presentes na modernidade. Exaltado pelo Iluminis-
mo nos séculos XVII e XVIII, a palavra civilização aparece pela primeira vez como um conceito am-
plamente difundido e mais ou menos categórico e para a concretização desse movimento esclarecido
era fundamental o aprimoramento das instituições, da educação e da lei conduzidos pelo aumento do
conhecimento.

De acordo com Elias168 se estudarmos o que realmente constitui a função geral do conceito de
civilização, e que qualidade comum leva todas essas várias atitudes e atividades humanas a seres des-
critas como civilizadas:

[...] este conceito expressa a consciência que o Ocidente tem de si mesmo. Podería-
mos até dizer: a consciência nacional. Ele resume tudo em que a sociedade ocidental
dos últimos dois ou três séculos se julga superior a sociedade mais antigas ou a so-
ciedades contemporâneas mais primitivas. Com essa palavra, a sociedade ocidental
procura descrever o que lhe constitui o caráter especial e aquilo que se orgulha: o
nível de sua tecnologia, a natureza de suas maneiras [...]

Essa civilização, conforme o sociólogo alemão,

[...] não é razoável, nem racional, como também não é irracional. É posta em movi-
mento cegamente e mantida em movimento pela dinâmica autônoma de uma rede
166 O autor alemão relativiza essa racionalidade no conceito de processo civilizador. Para o sociólogo “Isso
tudo certamente não resulta de uma ideia central concebida há séculos por pessoas isoladas, e depois implan-
tada em sucessivas gerações como a finalidade da ação e do estado desejados, até concretizar por inteiro nos
séculos de progresso. Ainda assim, embora não fosse planejada e intencional, essa transformação não constitui
uma mera sequência de mudanças caóticas e não-estruturadas.”
167 ELIAS, Norbert. O processo civilizador: formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1993.
P. 193.
168_______. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011.P. 24.

403
de relacionamentos, por mudanças específicas na maneira como as pessoas vêem
obrigadas a conviver [...]169

Podemos considerar alguns elementos importantes para essa pesquisa que estão vinculados a
essas redes de relacionamentos: o Estado e a educação. De acordo com Elias

O processo de civilização do Estado, a Constituição, a educação e, por conseguinte,


os seguimentos mais numerosos da população, a eliminação de tudo que era ainda
bárbaro ou irracional nas condições vigentes, fossem as penalidades legais, as res-
trições de classe à burguesia ou as barreiras que impediam o desenvolvimento do
comércio – este processo civilizador devia seguir-se ao refinamento de maneiras e à
pacificação interna do país pelos reis170.

Logo, o processo civilizador acompanhará duas dimensões a saber: a coerção externa e a au-
tocoerção. O Estado por meio de leis, normas, punições e prisões coagiu os membros da sociedade
de Antigo Regime que não estavam adaptados ou não se enquadravam nos padrões, atitudes e modos
de agir civilizados, dessa forma agindo externamente. Porém, o papel da educação nesse processo de
civilidade estava na autocoerção, no adestramento de hábitos refinados, as atitudes contidas e as cor-
dialidades.

Quando uma determinada sociedade passa por um processo de educação disciplinadora os


indivíduos acabam por se conscientizar de que alguns hábitos ou modos de agir são indesejáveis, ou
incivilizados, sendo essas regras aceitas e difundidas pela sociedade. Um padrão social de comporta-
mento acaba por se desenvolver produzindo um autocontrole mais estável e diferenciado, surgindo
assim uma identificação entre os indivíduos de pertencimento a um determinado grupo.

Um dos exemplos para essa educação civilizadora está alicerçada em Erasmo de Roterdã, no
qual se deve a este o ponto de partida inicial para consolidação do conceito de civilidade. De civilitate
morum puerilium tratava de um tema muito simples: o comportamento de pessoas em sociedade e
dedicado a um menino nobre e escrito para a educação de crianças, ainda no início da Renascença.
De acordo com Elias171 “diz ele (Roterdã) na introdução que a arte de educar jovens envolve várias
disciplinas, mas que a civilitas morum é apenas uma delas.”

Essa educação para a civilidade estava de acordo com pressupostos filosóficos e científicos os
quais estavam sustentados por novos paradigmas. O iluminismo português influenciado por René
Descartes e John Locke buscava sistematizar as ideias procurando a elaboração de uma instrução que
fosse útil aos interesses das reformas pombalinas, diferente do que propôs a educação para a salvação
da alma dos inacianos.

Apenas pelo incremento do conhecimento, acreditava que esse movimento reformista, se che-

169Op.cit. P. 195.
170Op.cit. P. 59.
171Op.cit. P. 66

404
garia ao aprimoramento da educação, das leis e da civilidade. De acordo com Peter Burke172, parafra-
seando Claude Lévi-Strauss, vamos aqui conceituar conhecimento como algo “cozido”, ou seja, proces-
sado e sistematizado pelo pensamento, no qual estabeleça alguma relação com o mundo.

O conhecimento aqui destacado não terá nenhum comprometimento com a cultura popular,
mas com um conhecimento intelectualizado e sistematicamente produzido, que almejava uma relação
bem definida com a realidade portuguesa à época de D. José I: um conhecimento educacional no qual
levasse a civilidade para que alguns súditos possuíssem modos de conduta que coincidissem com o
projeto de civilização português para se equiparar com ingleses e franceses e retomar a grandeza do
império luso.

A civilização também foi um processo de produção do conhecimento. A edição de livros,


como os manuais de etiqueta de Rotterdam, tomaram parte central na construção do conceito de ci-
vilidade, que logo assumiu a forma de uma leitura de regras. Portugal no século XVIII tentou colocar
em prática seu processo civilizador, tanto de forma coercitiva externa, por meio de medidas moderni-
zadoras do Estado, assim como a autocoerção recorrendo a um novo projeto educacional alicerçado
por alguns filósofos e intelectuais, como Antônio Ribeiro Sanches e Luiz Antônio Verney, produzindo
obras que serviram como referência escrita de um novo conhecimento e uma nova civilidade.

O iluminismo português teve como pressupostos, baseados em Antônio Ribeiro Sanches e em


Luís Antônio Verney, algumas características pedagógicas. A secularização do ensino foi uma caracte-
rística desse iluminismo, apontada principalmente por Sanches, em que o Estado deveria cuidar dessa
instrução. O antijesuítismo, que de acordo com os dois intelectuais, estava assentado em princípios
aristotélicos que condicionaram o homem a não analisar, de forma crítica e racional, o mundo em sua
volta, devido a exercícios decorativos fundamentados em leituras exaustivas sem as devidas críticas às
obras. Em contraponto, o Iluminismo Português adotava a Moderna Filosofia baseada no racionalis-
mo cartesiano, na qual deveria solucionar problemas humanos por meio das descobertas científicas
que começaram, ainda no século XVII, a desvendar a natureza e explicá-la de forma crítica e racional.

Essa perspectiva racionalista acabou por elaborar, na teoria, um ensino mais crítico e prag-
mático, transformando a civilidade inaciana baseada na salvação, numa civilidade mais pragmática
que não só aproximasse os súditos das atitudes e costumes ditos civilizados (como se comportar na
presença do rei e superiores, como se vestir e gesticular em diversas situações), mas que essa civilidade
servisse aos interesses do Estado. Essa moderna filosofia, com os seus novos padrões pragmáticos de
civilidade contribuíram para a formulação de um conhecimento educacional controlado pelo Estado
e que serviu como condutor desses novos padrões pedagógicos.

Norbert Elias173 (2011, p. 50), citando Nietzsche, “em todos os lugares onde havia uma corte
havia uma lei da fala certa e, por conseguinte, também uma lei de estilo para todos os que escreviam”.

172BURKE, Peter. Uma história social do conhecimento: de Gutemberg a Diderot. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2003. P.19.

173ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011. P. 24.

405
Logo, numa primeira esfera, a aprendizagem visava a constituição de um cortesão capaz de suportar
os rigores da corte. Impunha-se-lhe que soubesse andar e gesticular, dirigir-se aos superiores, iguais
e inferiores, que soubesse dominar os seus sentimentos e as formas e circunstâncias em que os devia
deixar aflorar. Havia ainda que aprender as normas de cortesia e civilidade: regras de protocolo, ati-
tudes de reverência, formas de retórica palaciana... era uma aprendizagem lenta, a que se juntavam os
conhecimentos de leitura, e de saber próprios de gente civilizada174. Numa segunda esfera, essa educa-
ção teria um sentido pragmático, pois Portugal necessitava de novos funcionários reais, fora do círculo
religioso, para melhor servir ao Rei e promover outros membros da sociedade para uma burocracia
que servisse melhor ao Estado.

ANTÔNIO RIBEIRO SANCHEZ E LUIZ ANTÔNIO VERNEY: O ILUMINISMO PORTUGUÊS E A


EDUCAÇÃO COMO PROCESSO CIVILIZADOR

As Reformas Pombalinas, com o seu Alvará de 1759, foi um marco para a história da educação
colonial e o iluminismo português, assim como influenciou as tendências educacionais de Pombal,
também irá colaborar para a construção desse ideal de educação e civilidade.

Porém, Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, teve como arcabouço teórico
alguns intelectuais de tendência iluminista, entre eles, Antônio Nunes Ribeiro Sanches, cuja a obra
que contribuiu para as reformas educacionais na segunda metade do século XVIII foi “Cartas Sobre
a Educação da Mocidade”. Outro intelectual que deu sua contribuição, Luiz Antônio Verney, com sua
obra “O Verdadeiro Método de Estudar”, trabalhou pessoalmente com o Marquês no período da Re-
forma Pombalina.

Antônio Nunes Ribeiro Sanches contribuiu para a construção de uma civilidade no processo
educacional nas suas cartas. Primeiramente, Sanches tece críticas a educação portuguesa antes da re-
forma de 1759 devido seu caráter eclesiástico:

[...] Mostrarei pelo discurso desse papel, que toda a educaçaõ, que teve a Mocidade
Portugueza, desde que no reino se fundaraõ Escolas e Universidades, foi meramente
Ecclesiastica, ou conforme os dictames dos Ecclesiasticos; e que todo o seu fim, ou
para conservar o Estado Ecclesiatico, ou para augmentalo [...]175.

Para Sanches, a educação tinha um objetivo claro, civilizar os súditos para melhor servir ao
rei. No início de sua obra, “Cartas Sobre a Educação da Mocidade”, o filósofo expõe esse objetivo a sua
obra: “A Educação Civil e política da Mocidade, destinada a servir à sua pátria tanto no tempo da paz
como no da guerra.” Essa educação civil, de acordo com Ribeiro Sanches, foi contemplada no Alvará
de 1759
174GOUVEIA, António Camões. Estratégias de Interiorização da disciplina In: MATTOSO, José. História de
Portugal (1620-1807). Lisboa. Editora Estampa. V. 4. 1998.

175SANCHES, Antônio Nunes Ribeiro. Cartas sobre a educação da mocidade. Coimbra: Imprensa da Univer-
sidade, 1922. P. 02

406
[...]Aquelle benegnissimo Alvará nos dá a conhecer que só a Educaçaõ da Mocidade, como
deve ser, he o mais effectivo e o mais necessario. Porque S. Magestade considera que lhe saõ
necessarios Capitaens para a defesa; Conselheyros doutos e experimentados; como taõbem
Juizes, Justiças, e administradores das Rendas Reais; e mais que tudo na situaçaõ em que
está hoje a Europa, Embayxadores, e Ministros públicos, que conservem a harmonia de que
necessitaõ os seus Estados; esta Educaçaõ naõ seria completa se focasse somente dedicada
a Mocidade Nobre; sua magestade tendo ordenado as Escolas publicas, nas Cabeças das
comarcas, quer que nellas se instruaõ aquelles que hão de ser mercadores, Directores das
Fabricas, Architectos de Mar e Terra, e que se introduzaõ as Artes e Sciencias [...] 176

Além das promessas de civilizar seus súditos, o autor judeu também tece suas considerações
em relação a contribuição da igreja na educação do reino de Portugal, pois o Alvará de 1759 tentou
tirar das mãos da igreja a exclusividade do ensino. Sanches afirma:

[...] Tem visto V. Illustrissima que as Escolas eclesiasticas foraõ somente instituídas
para ensinar a doutrina Christaâ, a saber os Mysterios da Fé, expressados nas sagra-
das Escrituras e nos Sanctos Padres. Todo o fim, e todo o cuidado daqueles primeiros
Mestres, era de formarem hum perfeito Christaõ, e naõ pensavaõ ensinar aos seos
discípulos aquelles conhecimentos necessarios para viver no Estado civil, ou para
servir no seos cargo [...] 177

Antônio Ribeiro Sanchez tentou expressar na sua obra as suas vontades e considerações em
relação as reformas pombalinas da educação e seu caráter civilizador. Porém veremos que o discurso
iluminista e confiante de Sanches teve um início difícil devido a interferência da igreja por meio do
Santo Ofício e a problemas administrativos de Portugal.

De acordo com Kenneth Maxwell178, Luiz Antônio Verney foi o intelectual que mais contribuiu
para a inovação pedagógica em Portugal no período pombalino. Filho de pai francês e mãe portugue-
sa, nasceu em Lisboa, realizou seus primeiros estudos no Colégio Jesuíta de Santo Antão e depois na
Congregação do Oratório, instituição essa já adepta à filosofia moderna. Tornou-se bacharel em filo-
sofia em 1731, licenciado e mestre em artes em 1733, títulos obtidos pela Universidade de Évora. De
acordo com Margutti179, descontente com o ensino ministrado pelos jesuítas, estabeleceu-se em Roma
e ali desenvolveu uma atividade intelectual, com o objetivo de reformar o ensino e a mentalidade cul-
tural em Portugal.

Na sua primeira carta, Verney deixa claro o principal objetivo para a educação portuguesa e
de seu texto: formar homens que sejam úteis para a Nação e a religião180. A civilidade proposta pelo
176Op.Cit. P. 03
177Op.cit. P. 13.
178MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1997.
179MARGUTTI, Paulo. História da Filosofia do Brasil: O período colonial (1500 – 1822). São Paulo. Edições
Loyola, 2013.
180 VERNEY, Luiz Antônio. O Verdadeiro Método de se estudar. Valencia: Oficina de Antônio Balle, 1746. P.
01.

407
“Barbadinho” compreende uma dimensão pragmática, ou seja, um conhecimento educacional civili-
zador que servisse para o Estado, ao Rei e para a Religião. Em contrapartida, ele destaca, por meio de
desdém, que Portugal não se importava com isso, ou seja, não havia investimentos na educação e na
civilidade e que o Estado deveria dar esse incentivo, para assim, promover súditos civilizados.

Para que esse conhecimento educacional civilizador proporcionasse resultados positivos no


método e instrucional, Verney considerava benéfico o estudo da língua materna. De acordo com o
intelectual português, não adiantava “intimidar os rapazes, com mau modo, ou pancadas, como todos
os dias sucede”, mas a gramática deveria ser o primeiro estudo da Mocidade e que se deve apresentar
de forma curta e clara: “Com grande paciencia, explicar-lhe as regras: e, sobretudo, mostrar-lhe nos
seus mesmos discursos, ou em algum livro vulgar, e carta bem escrita, e facil; o exercicio, e a razam,
de todos eses preceitos181.”

Por conseguinte, Verney criticou os métodos de ensino dos Jesuítas, que insistiam no ensino
decorativo do Latim182, língua oficial da Igreja Católica Romana, e a pouca preocupação com o en-
sino da língua materna. Assim, Verney tentou secularizar o conhecimento educacional civilizador,
com ênfase na eloquência, tornando-o útil para o Estado português dentro da proposta reformadora
pombalina, promovendo súditos que realmente tivessem uma civilidade no trato com superiores e
subalternos.

Não faltaram críticas a ausência de incentivo por parte dos portugueses, de estimular o conhe-
cimento civilizador, por meio da língua materna, mostrando que, em outras nações, existem livros
que ensinavam a urbanidade, o cerimonial e a língua materna do seu Rei e de diferentes hierarquias,
mesmo as inferiores. No entanto, em Portugal:

[...] é desconhecido este metodo. Um secretario de um Bispo, ou Cardial, ou Fidal-


go, ou Dezembargador &c. governa-se por-uma pura tradisam, ou porque asim vio
alguma carta; sem mais conhecimento da-materia comtantoque um moso, tenha um
carater comprido, e dezembarasado, a que eles chamam, letra de Secretaria, é o que
basta. Confeso a V.P. que ainda até aqui, nam vi secretario algum destes, que soubese
escrever duas palavras, com juizo, que tecese uma carta, considerando quem escreve,
e a quem escreve [...]183184

Criticando os Jesuítas mais uma vez, Verney citou uma Universidade, provavelmente Évora, e

181 Op.cit. P.09


182Verney não desprezava o Latim, pelo contrário, o autor destinou a Carta Segunda e a Terceira apenas para
o método de ensino da gramática latina, porém ele considera de extrema importância o uso e o ensino da Gra-
mática Portuguesa, pois acreditava que a língua materna deveria ser o início da educação da Mocidade.
183 VERNEY, Luiz Antônio. O Verdadeiro Método de se estudar. Valencia: Oficina de Antônio Balle, 1746. P.
01.
184 Para nos aproximar do sentido original dos textos de Verney e Sanches, assumimos citá-los no português
à época dos autores.

408
a Escola de Artes, ambas chefiadas pelos religiosos, foi em relação aos castigos corporais que existiam,
segundo o autor, nessas instituições. Para o oratoriano, isso demonstrava uma incivilidade por parte
dos mestres, que batiam nos alunos iniciantes, humilhando-os e que não colaborava para uma boa
formação e nem para o processo civilizador proposto no iluminismo português185. Ele indagava de
forma sensível:
[...] Penetre porem com a considerasam, o interior das escolas: examine se o mestre
lhe-ensina, o que deve esinar: se lhe facilita o caminho, para intendèla: se nam lhe
carrega a memoria, com coizas desnecesarias: e achará tudo o contrário [...] Ora nam
á lei que obrigue um omem, a fazer mais do-que pode: e que castigue os defeitos
[...]186

Refutando a escolástica ensinada nas Universidades e nos cursos de Filosofia, Verney, numa
mescla entre o deboche e a sinceridade, exaltou Descartes187 e o seu método empírico para explicar os
fenômenos naturais. Logo, a reforma na educação e na Universidade propostas por Verney começaria
no sistema filosófico que dominou até a primeira metade do século XVIII. Ferrenho crítico da Esco-
lástica, da metafísica e dos Jesuítas o “barbadinho” não aceitou as críticas feitas ao matemático francês
por parte dos inacianos:
[...] omens totalmente ignorantes da materia; e que nam sabem de Descartes mais
que o nome e ainda que o-leiam, nam tem olhos para o-intender: ainda asim tam
indignamente o-tratem e injuriem um omem de quem eles nam seriam capazes ama-
nuense. Se estes censores tivesem lido a istória das Ciencias e do restabelecimento
delas, desde o Concilio de Trento formariam diverso conceito destas coizas e nam
vomitariam tantos impropérios [...] (VERNEY, 1776, p. 280).

Luiz Antônio Verney fez considerações em relação à construção ideal do conhecimento, par-
tindo dos princípios filosóficos modernos, do empirismo de Locke e o inatismo das ideias de Descar-
tes. Nós não trazemos o conhecimento de berço, conforme o oratoriano afirma, adquirir-se-ia depois
de um certo tempo. “Basta olhar para o que faz um menino para ver a sua ignorancia e que nace des-
pido de todo o conhecimento” (VERNEY, 1776, p. 309). Ele aprende o que lhe diz, o que foi visto, o
que mostra que não tem outros conhecimentos se não os que são percebidos pelos sentidos, principal
porta pelos quais entram as ideias. O conhecimento podia ser adquirido por vários sentidos:

[...] a Solidade dos Corpos, que entra pelo tato [...] a figura, que pode intrar polo

185 Locke foi considerado filósofo da tolerância criticando o autoritarismo e as punições corporais como mé-
todos educativos. Os ideais lockianos vão contribuir para os pressupostos pedagógicos de Verney.
186Op.Cit. P. 76
187Eu certamente nam sou Carteziano, por que me-persuado, que o tal sistema em muitas coizas, é mais inge-
nhoso, que verdadeiro: mas confeso a V. P. que nam poso falar no-tal Filozofo, sem grandisima venerasam. Este
grande omem, na Matemática foi insigne, e inventou algumas coizas, [...] Descartes foi o primeiro, que fez um
sistema, ou inventou ipoteze; para explicar todos os fenomenos naturais: e por este principio, abrio a prota aos
outros, para a reforma das Ciencias[...]. VERNEY, Luiz Antônio. O Verdadeiro Método de se estudar. Valencia:
Oficina de Antônio Balle, 1746. P. 280.

409
tato e juntamente polo olho. Algumas ideias originam-se em nós, com a meditasam
ou reflexam: deste genero é a vontade, percesam. Outras entram umas vezes pola
sensasam outras pola reflexam: gosto, dor, existencia, unidade, poncia, sucesam. Fi-
nalmente muitas ideias simplezes se originam em nós por-meio das-cauzas privati-
vas tais sam as ideias que nós temos das-qualidades dos-corpos: a ideia de negrura.
[...] basta por-agoraque o Logico conhesa que por-todas estas vias podemos receber
ideias simplezes.188 (VERNEY, 1776, p. 309)

O “barbadinho” considerava o conhecimento, ou as ideias compostas, inatas, dividindo-o em


três modos de ideias: dos-modos, das-sustancias e das-relasoens.As ideias dos modos são aquelas
ideias que fazemos de diversas coisas que não existem por si, mas dependem de outras, como a ideia
de um triângulo. Essas ideias dos modos se dividem em duas maneiras: ou são ideias de modos simples
ou de modos mistos. Os modos simples são compostos por ideias da mesma espécie: a ideia de doze
ou cem que é composta das ideias de muitas unidades juntas. Essas ideias, os homens comumente
recebem de outras pessoas que lhe explicam o significado. As de modos mistos são ideias compostas
de modos de diferentes espécies: a ideia de beleza que é um composto de diferentes cores e proporções.
Os modos mistos são formulados na base da experiência.

A segunda espécie de ideias são das sustancias. São concepções de uma certa coisa incógnita,
a qual quando queremos explicar não sabemos dizer o que é, mas somente dizemos que é uma coisa
que nós supomos ser a base daquelas ideias que vemos. A terceira e última espécie de ideia são as re-
lasoens. Esta forma alma comparando uma coisa com outra de que nascem mil definições, tem nomes
próprios e nos conduzem a conhecer outra coisa, mas sem os tais nomes não conhecemos muitas
relações189. (VERNEY, 1776, p. 311-312)

Após diferenciar ideias, informações e conhecimentos, o oratoriano concluiu:

[...] Daqui fica claro, que das-nosas ideias uma sam simplezes, outras com-
postas: umas adventicias, que entram polos sentidos, e outras que a mente
faz, a que chamam faticias. Destas umas sam claras, outras confusas; umas
adequadas, e outras inadequadas. Finalmente reais, e chemericas, singulares,
aprticulares, e universais [...]190 (VERNEY, 1776, p. 313)

Essas concepções filosóficas da construção do conhecimento fizeram parte das bases da re-
forma educacional e, principalmente, na reforma dos Estatutos da Universidade de Coimbra. Novas
disciplinas como História Sacra e Secular, Geografia deveriam facilitar a compreensão do Latim. Em
medicina, os estudos anatômicos vão ser valorizados e receberam investimentos para laboratórios, em
188Op.Cit. P. 309.

189VERNEY, Luiz Antônio. O Verdadeiro Método de se estudar. Valencia: Oficina de Antônio Balle, 1746. P.
311-312.
190Op.cit. P. 313.

410
que a Física e a Química teriam importância substancial para esse curso.

Observamos algumas das propostas de ambos os autores iluministas portugueses e suas con-
tribuições para a legislação educacional no Alvará de 28 de junho de 1759, no qual estabelece uma
reforma geral dos estudos menores: retira aos Jesuítas todas as prerrogativas sobre o ensino, abolindo
as classes e Escolas por eles dirigidas; restitui os anteriores métodos de ensino; entrega a orientação
e fiscalização do ensino a um Diretor dos Estudos que será objeto de nomeação régia; estabelece a
criação de Aulas públicas de Latim, Grego e Retórica, atribuindo privilégios aos seus professores e
proibindo a criação de quaisquer outras sem autorização prévia do Diretor dos Estudos; e determina
que sejam seguidos métodos e compêndios em uso nas escolas da Congregação do Oratório.

No início do Alvará, D. José I deixa claro o objetivo da educação: uma civilidade que fosse útil
para o Rei e à Nação.

[...] Eu El Rei Faço saber aos que este Alvará virem, que tendo consideração a
que da cultura das Sciencias depende a felicidade das Monarchias, conservan-
do-se por meio delas a Religião, e a Justiça na sua pureza, e igualdade; e a que
por esta razão forão sempre as mesmas Sciencias o obecto digno do cuidado
dos Senhores Reis Meus Predecessores, que com suas Reaes Providencias es-
tabelecêrão, e animárão o Estudo publicos, promulgando as Leis mais justas, e
proporcionadas para que os Vassalos da Minha Coroa podessem fazer à som-
bra delas os maiores progressos em beneficio da Patria [...]191

No mesmo Alvará, não se escapa às críticas do Rei aos jesuítas. Sanches e Verney criticaram os
métodos dos inacianos utilizando de castigos corporais de memorização de trechos de Aristóteles. Na
lei o monarca explica:

[...] Tendo consideração outro sim a que sendo o estudo das Letras Humanas
a base de todas as Sciencias, se vê nestes Reinos extraordinariamente decahido
daquelle auge, em que se achavão, quando as Aulas se confiárão aos Religio-
sos Jesuitas, em razão de que estes com o escuro, e fastidioso Methodo, que
introduzírão nas Escolas destes Reinos, e seus Dominios: e muito mais com
a inflexivel tenacidade, com que sempre procurárão sustentallo contra a evi-
dencia das solidas verdades, que lhe descobrírão os defeitos, e os prejuizos do
uso de hum Methodo, que, depois de serem por ele conduzidos os Estudantes
pelo longo espeço de oito, nove, e mais anos, se achavão no fim deles tão ila-
queados nas miudezas da Grammatica, como destituidos das verdadeiras no-
ções das Linguas Latina, e Grega, para nellas fallarem; e escreverem sem hum
extraordinario despedicio de tempo, com a mesma facilidade, e pureza, que se
tem feito familiares a todas as outras Nações da Europa, que abolírão aquelle

191 PORTUGAL. Alvará Régio de 28 de junho de 1759. Estabelece uma reforma geral dos estudos menores.
Lisboa, 1759. Disponível em: http://193.137.22.223/pt/patrimonio-educativo/repositorio-digital-da-historia-
-da-educacao/legislacao/seculo-xviii/1751-1760/. Acesso em 08/09/2016.

411
pernicioso Methodo [...]192

Logo, as críticas contra os métodos inacianos de educação que circulavam na Europa acaba-
ram sendo confirmadas por Luiz Antônio Verney e Antônio Ribeiro Sanches e postas em concretude
por meio da Legislação, no qual obrigam a extinção dos métodos de ensino jesuíta em Portugal e nas
suas colônias acompanhado pela expulsão dos seguidores de Inácio de Loyola. Assim se expressa no
Alvará de 28 de junho de 1759

[...] Sou Servido privar inteira, e absolutamente os mesmos Religiosos em


todos os Meus Reinos, e Dominios dos Estudos, de que os tinha mandado
suspender: Para que do dia da publicação deste em diante se hajão, como ef-
fectivamente Hei, por extinctas todas as Classes, e Escolas, que com tão per-
niciosos, e funestos efeitos lhes forão confiadas aos opostos fins da instrucção,
e da edificação dos Meus fiéis Vassallos: abolindo até a memoria das mesmas
Classes, e Escolas, como se nunca houvessem existido no Meus Reinos, e Do-
minios, onde tem causado tão enormes lesões, e tão graves escândalos [...]193

Isso significava que o Estado, a partir do Alvará de 28 de junho de 1759, controlava o conhe-
cimento e escolhia, por base nas ideias que circulavam representadas por Sanches e Verney, o correto
método de ensinar secularizando o ensino em Portugal. Assim, no Alvará citado acima o Rei explica:

[...] Sou Servido da mesma sorte ordenar, como por este Ordeno, que no en-
sino das Classes, e no estudo das Letras Humanas haja uma geral reforma,
mediante a qual se restitua o Methodo antigo, reduzido aos termos simplices,
claros, e de maior facilidade, que se pratíca actualmente pelas Nações polidas
da Europa; conformando-me, para assim o determinar, com o parecer dos
Homens doutos, e instruidos neste genero de erudições. A qual refórma se
praticará não só nestes Reinos, mas tambem em todos os seus Dominios, á
mesma imitação do que tenho mandado estabelecer na Minha Corte, e Ci-
dade de Lisboa; em tudo o que for applicavel aos lugares, em que os novos
estabelecimentos se fizerem[...]

Para controlar a instrução pública no Reino e nas suas colônias, D. José I e seu Ministro, O
Marquês de Pombal, tirou das mãos dos jesuítas a organização do Ensino transferindo para o Estado.
Para isso foi criado o cargo de Diretor dos Estudos. De acordo com o Alvará de 28 de junho de 1759:

[...] Haverá hum Director dos Estudos, o qual será a Pessoa, que Eu for Ser-
vido nomear: Pertencendo-lhe fazer observar tudo o que se contém neste Al-
vará: E sendo-lhe todos os Professores subordinados na maneira declarada.
192PORTUGAL. Alvará Régio de 28 de junho de 1759. Estabelece uma reforma geral dos estudos menores.
Lisboa, 1759. Disponível em: http://193.137.22.223/pt/patrimonio-educativo/repositorio-digital-da-historia-
-da-educacao/legislacao/seculo-xviii/1751-1760/. Acesso em 08/09/2016.
193

412
O mesmo Director terá cuidado de averiguar com especial exactidão o pro-
gresso dos Estudos para Me poder dar no fim de cada anno huma relação fiel
do estado delles; ao fim de cada anno huma relação fiel do estado delles; ao
fim de evitar os abusos, que se forem introduzindo; Propondo-Me ao mesmo
tempo os meios, que lhe parecerem mais convenientes para o adiantamento
das Escolas [...]

Porém, caso houvesse alguma resistência às reformar e as novas propostas metodológicas or-
denadas o mesmo Alvará citado nesse trabalho sugeria:
[...] Quando algum dos professores deixar de cumprir com as suas obrigações,
que são as que se lhe impoem neste Alvará, e as que ha de receber nas Instruc-
ções, que mando publicar; o Dirctor o advertirá, e corrigirá. Porém, não se
emendando, Mo fará presente, para castigar com a privação do emprego, que
tiver, e com as mais penas, que forem competentes. E por quanto as discordias
provenientes na contrariedade de opiniões, que muitas vezes se excitão entre
os Porfessores, só servem de distranillos das suas verdadeiras obrigações, e de
produzirem na Mocidade o espirito de orgulho, e discórdia; terá o Director
todo o cuidado em extirpar as controversias, e de fazer que entre elles haja
huma perfeita paz, e huma constante uniformidade de Doutrina; de sorte, que
todos conspirem para o progresso da sua profissão, e aproveitamento dos seus
Discipulos [...]

PROBLEMAS E CONTRADIÇÕES NO PROJETO DE CIVILIDADE.

Estudando os manuscritos do século XVIII, do Arquivo Histórico Ultramarino e processos do


Santo Ofício do Arquivo da Torre do Tombo, percebemos que o Estado com as reformas pombalinas
na educação tenta por meio de sua autoridade difundir a civilidade utilizando-se da instrução pública.
No entanto, as considerações positivas ao Alvará de 1759 que mudou a instrução pública em Portugal
e no seu reino, escritas por Sanchez e analisando as fontes dos arquivos citados, contrastam do discur-
so oficial.

Vale salientar ainda que havia um certo “choque de interesses entre autoridades” ou um com-
plemento entre a autoridade do Estado absolutista e a autoridade eclesiástica no que concerne o pro-
cesso civilizador e a educação, já que mesmo com as Reformas Pombalinas da Educação elaboradas
pelo Estado Absolutista a interferência da Igreja se vê constante por meio de seu tribunal punindo
intelectuais que não estão de acordo com as normas estabelecidas pela a instituição religiosa, contra-
riando as expectativas de Antônio Ribeiro Sanches, pois o filósofo era mais próximo da ideia de uma
educação desvinculada das ideias aristotélicas da igreja.

Analisando as fontes até então consultadas, o projeto civilizador e educador do Estado por-
tuguês de caráter iluminista sofreu diversos problemas tanto na metrópole como nas Capitanias do
Norte. A princípio, as fontes indicam algumas dificuldades para a implantação desses pressupostos
começando com a interferência da Igreja Católica, por meio do Tribunal do Santo Ofício.

413
Consultando alguns processos inquisitoriais da Torre do Tombo, a interferência da Igreja nos
assuntos cotidianos foi pertinente na vida de alguns intelectuais em Lisboa, atrapalhando a difusão do
conhecimento, filtrando o que poderia ser digno de discernimento e regulando comportamentos dig-
nos e civilizados. Temos o caso do professor de Teologia e religioso professo do Convento e seminário
de Brancanes, preso em 09/06/1753 e julgado 01/08/1753 por, segundo o documento, o delator diz:

“...no acto da confissão sacramental lhe pegara nas mãos, acção que de se é
intrissicamente má em acto tão sério como é a administração do sacramento
da penitencia, acompanhado os referidos factos com palavras carinhozas, q
bem devão a conhecer sua lebidinoza intenção... ”194

O referido padre e professor foi condenado a abjuração de leve; privado para sempre de poder
confessar, de voz passiva e ativa; privado de mais exercício de suas ordens por 3 anos, e por 8 anos
degredado no seu convento. O controle da Igreja em Portugal serviria para se manter os bons costu-
mes civilizados. O próprio Antônio Ribeiro Sanches sofreu processo inquisitorial acusado de práticas
judaicas, nas quais, na sua sentença constam abjuração em forma, instrução na fé católica, penitências
espirituais, pagamento de custas.

Porém averiguamos também problemas por parte no aparato do Estado português. Algumas
fezes, justificando problemas nas finanças, as verbas para pagamentos aos professores eram compro-
metidas, como no caso de um Ofício datado de 09 de fevereiro de 1799, no qual a Junta Governativa
da Capitania de Pernambuco comunica ao secretário do estado da Marinha e Ultramar, D. Rodrigo de
Sousa Coutinho, sucessor do Marquês de Pombal, sobre a falta de dinheiro nos cofres para se fazer o
pagamento dos salários dos professores régios de humanidades daquela Capitania.195

A reclamação por falta de professores também foi encontrada entre os manuscritos do Ar-
quivo Histórico Ultramarino. Numa consulta da Mesa da Consciência e Ordens, órgão que tinha por
atribuição o aconselhamento do rei sobre as matérias que tocassem a “obrigação de sua consciência”,
datada de 15 de setembro de 1778, o Bispo de Pernambuco D. Tomás da Encarnação Costa e Lima in-
forma acerca da falta de professores, havendo apenas dois mestres régios destinados a Goiana e Recife.
Fica claro que com esse tipo de problema a dificuldade que existia de propagar o conhecimento no
Além-Mar.

Até o momento desta pesquisa e com o andamento das transcrições do corpo documental do
arquivo da Torre do Tombo e do Arquivo Histórico Ultramarino, o processo civilizador do Estado
português conduzido pela educação sofreu dificuldades em relação entre a teoria, a educação secular
de caráter iluminista, e sua prática, graças a interferência da Igreja e problemas no Estado português

194 PT_TT_TSO_IL_28_513_m0013.TIF.
195 AHU_ACL_CU_015, Cx. 206, D. 14054.

414
REFERÊNCIAS:
BURKE, Peter. Uma história social do conhecimento: de Gutemberg a Diderot. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2003.

ELIAS, Norbert. O processo civilizador: formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1993.

_______. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011.

GOUVEIA, António Camões. Estratégias de Interiorização da disciplina In: MATTOSO, José. História de Por-
tugal (1620-1807). Lisboa. Editora Estampa. V. 4. 1998.

MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1997.

MARGUTTI, Paulo. História da Filosofia do Brasil: O período colonial (1500 – 1822). São Paulo. Edições
Loyola, 2013.

SANCHES, Antônio Nunes Ribeiro. Cartas sobre a educação da mocidade. Coimbra: Imprensa da Universida-
de, 1922. P. 02

VERNEY, Luiz Antônio. O Verdadeiro Método de se estudar. Valencia: Oficina de Antônio Balle, 1746

FONTES:

Manuscritos Torre do Tombo

PT-TT-TSO-IL-28-513_m0013.TIF.

Manuscritos Arquivo Histórico Ultramarino

AHU_ACL_CU_015, Cx. 206, D. 14054.

Impressos

Legislação educacional de Portugal. Disponível em: http://193.137.22.223/pt/patrimonio-educativo/reposito-


rio-digital-da-historia-da-educacao/legislacao/seculo-xviii/1751-1760/. Acesso em 08/09/2016.

415
416
SIMPÓSIO TEMÁTICO 06
Instituições e comércio

Coordenador:

Daniel Strum

Jesús Bohorquez

A conjuntura econômica transatlântica durante o século XVIII: o caso do Rio de Janeiro


Fábio Pesavento1

RESUMO: O advento da descoberta do ouro, em fins do século XVII e início do XVIII transformou a
economia colonial brasileira. Se antes as atividades econômicas estavam concentradas, grosso modo,
no litoral brasileiro, a extração aurífera voltou as atenções da Coroa para o interior, mas precisamente
para a região sudeste. Tentar mensurar essas transformações e o comportamento da conjuntura do
Atlântico foi o objetivo do artigo. Para tal duas séries foram construídas, o volume de crédito e a ar-
recadação do dízimo da alfândega do Rio de Janeiro. Os resultados mostraram uma interligação do
Rio de Janeiro com a região mineira a com o mercado europeu além da queda da atividade econômica
após a crise da extração de metais em Minas Gerais.

Palavras chave: Rio de Janeiro, mercado de crédito, escrituras,juros, confiança.

INTRODUÇÃO

O mundo foi palco, durante o século XVIII, de importantes transformações da sociedade e


da economia, alterando, de maneira absoluta, as suas instituições. A América Portuguesa não foi di-
ferente, em especial com o advento das “minas gerais” em fins do XVII. O crescimento da extração
aurífera provocou uma reorientação da atenção da Coroa Portuguesa com a economia colonial, o que
intensificou o seu caráter transatlântico.

Naturalmente, dois movimentos foram verificados: o primeiro, a região sudeste virou o “locus”
das preocupações lusitanas, incentivando o crescimento das ações da política portuguesa sobre a colô-
nia. O segundo foi o aumento significativo do fluxo de transações, pessoas, liquidez, conhecimento etc
para aquela comarca. A consequência natural desses acontecimentos foi nítida: o aumento da impor-
1 Coordenador do núcleo de economia empresarial da Espm-Sul. E-mail:fpesavento@espm.br.

417
tância do Rio de Janeiro no quadro colonial. Nesse sentido, não demorou para que a região sudeste se
transformasse no centro jurídico, administrativo, cultural e econômico. Talvez, o fato que condensou
essas alterações foi a transferência do vice-reinado de Salvador para o Rio de Janeiro em 1763.

Essas modificações modelaram importantes instituições, consolidando novos grupos e do-


mínios econômicos mesmo com o arrefecimento da extração aurífera durante a segunda metade do
século XVIII. Neste novo quadro fica nítido o crescente papel dos homens de negócio na consolidação
da economia transatlântica. O exemplo do período pombalino (1750-77) é revelador desse movimen-
to no qual aquele grupo se consolida no seio das decisões metropolitanas.

O debate historiográfico que se coloca para interpretar os fatos transcorridos no referido pe-
ríodo, apresenta a concepção clássica de Celso Furtado e Dauril Alden (conhecido como colonial
tardio). Aqueles autores afirmam que a economia sofreu uma forte crise após o declínio da extração
aurífera. Para eles, os agentes (e os investimentos) econômicos se voltam para atividades de subsistên-
cia ou para as culturas tradicionais de exportação levando a uma forte retração do nível de renda. De
outro, temos a visão de João Fragoso, Manolo Florentino que sustentam que a economia se voltou para
o mercado interno após a queda da extração aurífera. O argumento reside no fato de que os canais
construídos pela mineração suscitaram a formação de redes de negócio domésticos, os quais eram
pouco influenciados pelas oscilações do mercado externo. Assim, mesmo durante a crise aurífera, o
mercado doméstico apresentou autonomia frente ao externo.

Definitivamente, entender a conjuntura econômica durante o século XVIII se revela impor-


tante, no mínimo, para verificar os desdobramentos do ápice e do declínio do ‘ciclo do ouro’ sobre o
nível da atividade econômica colonial. Além disso, possibilita a construção de novos argumentos para
o debate colocado pela historiografia. E, por fim, mas não menos importante, a elaboração de novas
séries econômicas para entender as oscilações da economia. Em resumo, o objeto do presente trabalho
é analisar o comportamento de variáveis que refletem (ou que sugerem) o comportamento da conjun-
tura econômica durante o século XVIII no Rio de Janeiro.

A primeira dificuldade verificada reside no fato de encontrar dados que revelem como era o
nível de atividade daquele período. Diante da falta de elementos, duas séries de tempo foram cons-
truídas: o volume de crédito e a arrecadação da dízima da alfândega do Rio de Janeiro. O artigo foi
dividido em três partes além dessa introdução, iniciando pela apresentação das fontes primárias em-
pregadas para a construção das séries de crédito e da arrecadação da dízima. Em seguida, o debate
historiográfico que envolve o período é apresentado. Por fim, as séries construídas são oferecidas para
a análise, concluindo com um estudo cliométrico.

418
2. OS DADOS

O objetivo da presente seção é o de apresentar as fontes primárias empregadas no trabalho.


Antes, três pontos importantes devem ser esclarecidos. Primeiro, o século XVIII é o foco do artigo,
contudo os desdobramentos transcorridos durante o dezoito iniciaram no final do XVII (“descoberta”
do ouro) e se estenderam até a chegada da família real no início do século XIX.

Segundo, a economia do Rio de Janeiro será a região em análise, porém as interligações da


mesma com as Minas Gerais são obvias (por exemplo, uma mercadoria desembarcada no porto do
Rio de Janeiro não será consumida, necessariamente, na capital do vice-reinado, mas sim em outras
regiões). Assim, a região fluminense contempla o espaço colonial que engloba, atualmente, a região
sudeste.

Terceiro, tanto os valores dos empréstimos quanto a arrecadação da dízima da alfândega estão
em réis. São, portanto, valores nominais e não reais. A dificuldade de torná-los reais reside em três
grandes problemas. O primeiro é a taxa de câmbio (em gramas de prata) que era relativamente fixa
ou desconhecida para o período/região. Segundo, a taxa de juros era fixada por lei (a Coroa determi-
nava qual era a taxa de juros). Logo, ela não era resultado da oferta e da demanda por moeda. Assim,
quando empregamos estes indicadores (câmbio e juros) para tornar os valores nominais em reais, as
mudanças não são significativas no comportamento das variáveis. Por fim, temos um índice de preços
para o Rio de Janeiro calculado por (JohnsonJr, 1973), porém inicia apenas em 1762. Assim, em boa
parte da análise, os valores apresentados serão nominais na medida em que não destoam dos valores
reais (quer em gramas de prata, quer empregando o índice de preço de Johnson Jr, 1973).

Como dito anteriormente, o índice de preço construído por (JohnsonJr, 1973) inicia em
1762. Com isso, a transformação dos valores nominais em reais, anteriores a década de 1750, fica pre-
judicada. Para essa década, uma média do período 1762-69 foi empregada para transformar os valores
nominais entre 1751 e 1760. Observando o gráfico abaixo, nota-se que a variação do nível de preço no
período 1760-90 não é significativa conforme aponta o gráfico 1 abaixo.

Gráfico 1 – Índice de preço para o Rio de Janeiro: 1762-1790 (1780=100)

419
Fonte: JohnsonJr, 1973.

Com essas observações feitas, passa-se para a apresentação das duas principais séries econô-
micas empregadas: volume de crédito do termo da cidade do Rio de Janeiro e a arrecadação da dízima
da alfândega no porto da mesma cidade. O desempenho dessas revela o comportamento da ativida-
de econômica, visto a importância, por exemplo, que o crédito teve naquela sociedade (em especial
pela falta de um sistema bancário). Por outro, mas não menos importante, a movimentação portuá-
ria (capturada via arrecadação da dízima) refletem o principal locus econômico (porto) e o meio de
transporte e de comunicação mais empregados naquele período (navegação). Dito de outra maneira,
a maior ou menor variação do crédito, aumento ou redução da dízima, a princípio, são indicadores de
qualquer economia atlântica durante o dezoito (Costa, 2015).

2.1 O crédito

De uma maneira geral, as fontes primárias mais empregadas para o estudo do crédito no sécu-
lo 18 no Rio de Janeiro são as escrituras públicas, os inventários e a documentação do Juízo dos Órfãos
(Sampaio, 2014; Fragoso, 1998; Fragoso, 2005; Pesavento, 2018). Esta documentação se destaca,
pois apresenta volume suficiente (em especial escrituras e inventários) para cobrir um período longo
de análise. Infelizmente, por limitação de tempo e diante do volume de escrituras analisadas, não se
avançou sobre a documentação do Juízo o que se realizará em trabalhos futuros. Com respeito aos
inventários, o período 1750-1790 dispõe de apenas de 92 inventários concentrados no final da década
de 1780. Em função disso, as escrituras públicas de empréstimo (designadas de dinheiro a razão de
juros ou dívida e obrigação) foram o principal recurso documental empregado.

Em estudo anterior (Pesavento, 2009), foram digitalizadas mais de 6.500 escrituras públicas

420
depositadas no Arquivo Nacional (AN) envolvendo o termo da cidade do Rio de Janeiro entre 1750 e
1790. Destas, 5.329 puderam ser analisadas e 2.503 tiveram seus valores reconhecidos. Em Pesaven-
to, (2009) e (2013) os anos de 1784, 1785 e 1786 não puderam ser analisados. Felizmente, no presente
trabalho, o acesso as escrituras que faltavam foi alcançado. Foram 750 escrituras de crédito cataloga-
das entre 1750 a 1790, sendo 707 com valores reconhecidos as quais totalizaram mais 620 contos de
réis (Pesavento, 2015; Pesavento, 2018). Abaixo, o número de escrituras de empréstimo coletadas.

Gráfico 2 – Número de escrituras de empréstimo por ano: 1750-1790

Fonte: AN, escrituras públicas depositadas no 1º, 2º e 4º Ofício de Notas. Elaboração própria.

Como pode ser observado, o número de escrituras está concentrado nas décadas de 1770 e 1780. Isto
pode ser explicado, pois alguns livros do 2º Ofício de Notas do AN não estão disponíveis, ou estão em
estado precário como os da década de 1750. O mesmo se dá com os livros de notas do 1º e 4º Ofícios.
Por exemplo, o ano de 1758 não foi encontrado nenhuma escritura pública. Assim, por vezes, o nú-
mero de escrituras cai não em função do desaquecimento da economia, mas sim em função da perda/
falta de escrituras no período. Apesar disto, acredita-se que a amostra seja razoável, pois o banco de
dados reunido atinge 5.541 escrituras públicas (sendo 707 de empréstimo, 13% aproximadamente do
total).

A série construída acima revela que o período colonial brasileiro, além de ser pouco estudado, apre-
senta poucas informações quantitativas continuadas. As existentes são fruto de trabalhos acadêmicos
que emergiram a partir da análise de documentação inédita. Aqui não é diferente. Mesmo assim,
muitas observações devem ser destacadas em função de inúmeros aspectos informais que a economia
colonial estava envolvida, ou mesmo a qualidade do dado registrado no documento.

421
Um exemplo dessa informalidade está no requerimento de 10 de julho de 1773 de João Rodrigues
de Brito e sua mulher Antônia Maria de Jesus. No documento João Rodrigues solicita uma “provisão
de direito comum para cobrarem uma dívida, fazendo valer os seus direitos, visto terem emprestado
dinheiro a Nicolau Viegas de Proença, sem terem feito uma escritura do dito empréstimo.” (grifos
nossos, AHU, Avulsos RJ, cx.96, doc.8263)

Nesse sentido, a documentação de crédito analisada revela que era prática comum o empréstimo feito
“debaixo da palavra” e, quando não pago pelo devedor, o emprego das vias formais para rever o princi-
pal. Muitas das escrituras de empréstimo analisadas apresentam esta característica, qual seja, a dívida
era anterior a formalização da escritura (Pesavento, 2015).

Assim, a presença da informalidade, como a prática recorrente da venda fiada, conforme mostra (Fur-
tado, 1996), novamente revela um cenário turvo, tornando a análise mais dificultosa. Outro ponto
importante para entender a carência de documentos que envolvem o mercado de crédito era a taxa
de juros fixada “por lei”. Caso o credor quisesse cobrar juros acima do estabelecido pela Coroa, ele
poderia sofrer punições como também para o tabelião que lavrasse a escritura (como ser deportado
para Angola). Logo, teria que ser uma transação informal para cobrar juros além do permitido, o que,
obviamente, não deixa prova documental (Pesavento, 2015; Pesavento, 2018). Apesar disso, era
prática dos homens de negócios da praça do Rio de Janeiro cobrarem juros de 1% ao mês (Pesaven-
to, 2015; Pesavento, 2018). Antes de visualizar o desempenho do volume de crédito, passa-se para a
apresentação da dízima da alfândega recolhida no porto do Rio de Janeiro.

2.2 A dízima da Alfândega

Os contratos régios configuravam em uma prática recorrente da Coroa para fins arrecadatórios. Na
falta de infraestrutura administrativa, capital humano etc a administração portuguesa transferia a
exploração de atividades econômicas (pesca de baleias), comércio (sal), cobrança de direitos (dízimo),
tributos (registro de passagens) e rendimentos reais mediante contrato para terceiros (chamados con-
tratadores). Tal prática remonta, no caso de Portugal, aos primeiros tempos da monarquia (Pesaven-
to; Guimarães; 2013).

Os contratos eram arrematados por um período de tempo de três anos (média) e o estado recebia an-
tecipadamente o preço pago pelo contrato. Em troca, os contratadores arrendatários podiam exercer
o monopólio na arrecadação ou atividade econômica. No século XVII e, principalmente, no XVIII, os
negociantes de grosso (homens de negócios) monopolizavam as arrematações de contrato régios na

422
praça de Lisboa. Tratava-se de um corpo mercantil altamente capitalizado e com procuradores tanto
dentro como fora do império ultramarino português. Ser contratador significava estar no topo da
hierarquia mercantil.

Geralmente, os contratadores tinham lucro, mas nem sempre. Muitas vezes, a administração do con-
trato era, depois de arrematado, passada para terceiros (através de procuração). Quando o outorgado
não realizava de maneira “eficiente” a administração da cobrança (leia-se fraudulenta) ou mesmo em
função de uma queda da atividade econômica, os contratadores acabavam com prejuízo.

O contrato da dízima da alfândega tinha a duração (direito de cobrar a dízima) por três anos para
quem o arrematasse. Na lista de contratadores do referido documento figuram grandes negociantes
(como Anacleto Elias da Fonseca). Esses estabeleciam seus negócios através de uma rede de procu-
radores em diferentes partes do império ultramarino português e fora dele (Pesavento, 2013). As
distâncias envolvidas e dificuldade de obter informações/comunicação tornava a confiança um fator
importante na consolidação dos negócios além mar. Nesse sentido, ela foi o eixo que sustentou o fun-
cionamento das operações transatlânticas (Pesavento, 2009).

Como o próprio nome sugere, a dízima era o valor de 10% cobrado sobre as fazendas que desembar-
cavam nos portos da colônia. A instituição do referido imposto foi, num primeiro momento, feita pela
Câmara do Rio de Janeiro. Depois da invasão francesa, no início do XVIII, passou a ser administrado
pela metrópole.

Um aspecto importante quando os contratos régios são estudados é a diferença entre a arrecadação do
imposto, taxa etc e o preço pago pelo contrato. Aqui, os dados coletados fazem referência à arrecada-
ção com a dízima e não ao preço que o contrato foi arrematado. Isto se explica em função da dinâmica
que a cobrança da dízima representa, isto é, os seus valores ficavam muito próximos do que acontecia
com o nível de atividade econômica. Assim, a arrecadação da dízima da alfândega parece ser um indi-
cador mais confiável das oscilações econômicas transcorridas durante o XVIII.

Um “problema” foi a criação tardia, durante a administração pombalina, do Erário Régio (1761). As-
sim, os dados anteriores à década de 1760 devem ser analisados com muito cuidado, pois seu registro
nem sempre fazia a diferenciação entre a arrecadação e o preço pago pelo direito de cobrar a dízima
(preço do contrato). Apesar disso, as informações recolhidas para montar a série da dízima da alfân-
dega do Rio de Janeiro são de fontes primárias que sempre faziam referência à arrecadação e não ao
preço pago pelo contratador pelo contrato. O gráfico abaixo ilustra a importância que a arrecadação
da dízima da alfândega do Rio de Janeiro tinha frente aos demais contratos que também eram cobra-

423
dos na mesma praça.

Gráfico 3 – Arrecadação, por contrato, no Rio de Janeiro no ano de 1763

Fonte: Arquivo Histórico Ultramarino, resgate Rio de Janeiro, doc.7451, cx. 84. Elaboração própria.

Com base nessas informações, nos valores encontrados e na análise da documentação primária, po-
de-se avançar na análise sobre a conjuntura econômica da região sudeste brasileiro durante o período
colonial. Antes, um breve resgate do debate historiográfico que versa sobre o período estudado.

3. O DEBATE2

O objetivo da presente seção é o de apresentar o debate historiográfico sobre o período. Como apon-
tado anteriormente, de um lado, existe o argumento – apresentado por Celso Furtado em Formação
Econômica do Brasil – de que após o arrefecimento da extração aurífera a economia colonial brasileira
passou por um processo de atrofiamento da renda. A explicação reside no fato de que a renda entra
em declínio uma vez que a maioria dos agentes regrediu para um regime de subsistência. Ela é seguida
por boa parte da historiografia brasileira, ganhando revigoramento com o trabalho de Dauril Alden, o
qual sugere que a Colônia vai presenciar uma forte crise econômica após o arrefecimento da extração
aurífera.

A principal causa da crise foi a queda vertiginosa na renda, tanto pública quanto privada, do Brasil ini-
ciada no começa da década de 1760. A principal causa do severo corte na renda da coroa proveniente do
Brasil foi o declínio da produção das minas de ouro e diamantes do interior (Alden, 1999: 549).

2 Esta seção segue Pesavento (2012); Gil, Pesavento (2014).

424
Em função disso, os agentes deslocam seus recursos para o setor agrícola, em especial para a
subsistência. Esse processo Caio Prado Júnior chamou de renascimento agrícola. Para Alden, o colo-
nial tardio passa pelo boom do ouro, seguido da queda da extração e em seguida pelo revigoramento
“da forma tradicional da riqueza colonial, a agricultura de exportação” (Fragoso & Florentino,
2001: 84).

O livro Arcaísmo como Projeto, de João Fragoso e Manolo Florentino, síntese das teses de
doutorado dos autores, acabou apresentando uma inovação no que diz respeito a esse debate. A idéia
central da referida obra é a existência de um mercado interno colonial “a estrutura de produção colo-
nial gera os seus mercados de homens e alimentos, o que, por sua vez, viabiliza a aparição de circuitos
internos de acumulação para além das trocas com a Europa” (Fragoso&Florentino, 2001: 19). João
Fragoso e Manolo Florentino também destacam uma nova interpretação sobre o declínio aurífero:

Uma época marcada não tanto por uma recuperação econômica, mas principalmente um período de
consolidação de novas formas de acumulação do Sudeste-Sul escravista, formas essas coincidentes com o
domínio do capital mercantil e, pois, com a hegemonia de uma nova elite econômica. A elite, nesse caso,
seria constituída pela comunidade de comerciantes de grosso trato residentes na praça mercantil do Rio
de Janeiro (Fragoso&Florentino, 2001:84-5).

Por esse ponto de vista, a economia do Rio de Janeiro não atravessaria um renascimento agrí-
cola, muito menos uma crise pós “ciclo do ouro”, uma vez que a produção carioca já estava voltada
para atender o mercado interno. Esse trabalho teve segmento para outros períodos e regiões como,
por exemplo, as teses de doutoramento de Júnia Furtado e de Antônio Carlos Jucá de Sampaio.

Há uma série de outras contribuições que não poderão ser tratadas aqui, mas que merecem
menção por se colocarem nos interstícios desse debate. Citam-se os trabalhos de Charles Boxer, John
Monteiro, Kenneth Maxwell, Stuart Schwartz, Larissa Brown e Rae Flory. Além disso, o início do sécu-
lo XXI testemunhou uma série de novos trabalhos3, que lançou mão de ampla pesquisa documental,
além de diluir seu campo de análise, incorporando muito dos chamados aspectos “extra-econômicos”.
Importante destacar que são pesquisas que não têm a preocupação de analisar “as linhas gerais” da
economia brasileira, mas sim de estudar os pormenores de uma região específica do Brasil ou da
América Portuguesa, o que, por vezes, contrapõe as interpretações tradicionais da história econômica
brasileira.

Em resumo, dentro do debate historiográfico sobre o tema aqui tratado, Alden (1999) afirma
que a economia do Rio de Janeiro pós 1750 (especialmente durante a década de 1760) estaria assolada
3 Fragoso (2006) e (2007); Furtado (2001).

425
por uma perda de ritmo na medida em que a atividade mineradora foi arrefecida, enfraquecendo os
fluxos monetários e a capacidade de realizar inversões. Diante desse cenário, os agentes regressaram
para a produção agrícola (subsistência ou de exportação). Esse processo foi denominado renascimen-
to agrícola ou, para alguns autores, de colonial tardio. Com base em ampla documentação primária
pós 1790, Fragoso (1998) aponta que a economia carioca não presenciou o renascimento agrícola,
pois a produção agrícola carioca estava voltada para o mercado interno de abastecimento, desde antes
do declínio mineiro. Visto o diálogo no que diz respeito à revisão historiográfica, parte-se para a aná-
lise quantitativa.

4. O CRÉDITO E A DÍZIMA: ENFIM A CONJUNTURA ATLÂNTICA

O objetivo da presente seção é apresentar as séries construídas, seu desempenho e analisar a


conjuntura econômica do período e da região. Com isso, o debate sobre o tema pode prosseguir, pois
novas séries econômicas foram construídas tendo como base ampla documentação primária.

Como dito anteriormente, as fontes para mensurar o volume de crédito foram as 750 escrituras
públicas de dívida e obrigação e de dinheiro a razão de juros entre 1750 a 1790. Para completar a série
(primeira metade do XVIII) foram empregadas as escrituras públicas de empréstimo trabalhadas por
Antonio Carlos Jucá de Sampaio (Sampaio, 2003). Um resumo do número de escrituras por década/
período está disposto no gráfico abaixo.

Gráfico 4 – Número total de escrituras de empréstimo no Rio de Janeiro: 1711-1790

Fonte: Sampaio (2003); AN, escrituras públicas depositadas no 1º, 2º e 4º Ofício de Notas. Elaboração
própria.

O número de escrituras, por si só, já é um indicador de conjuntura econômica, pois quanto


maior o número de escrituras de empréstimo, provavelmente, maior a atividade econômica. Nesse
sentido, parece claro que a década de 1780 apresenta um desempenho muito acima das demais. Por

426
outro lado, a falta de escrituras na década de 1720 prejudica a análise. De todo modo, o gráfico acima
revela um movimento importante de retomada da economia a partir da década de 1770. Por fim, pa-
rece que a queda da extração aurífera, durante fins da década de 1740, reverberou nas décadas seguin-
tes (1750 e na de 1760). Para aprofundar o entendimento do mercado de crédito, o gráfico abaixo foi
construído.

Gráfico 5 – Valor total das escrituras de empréstimo no Rio de Janeiro: 1711-1790 (em mil réis)

Fonte: Sampaio (2003); AN, escrituras públicas depositadas no 1º, 2º e 4º Ofício de Notas. Elaboração
própria.

Antes de analisar o gráfico 5, outra observação sobre os valores coletados durante a década de
1750. Naquela década, verificou-se que algumas escrituras (duas para ser específico) tinham valores
muito acima do usual. Uma de mais de 26 contos de réis e outra de doze contos de réis. Isso é explicado
por envolver irmandades ou grandes contratadores. Pela sua natureza, são negócios extraordinários
e que destoam do comportamento do mercado de crédito do dia a dia. Assim, retiramos da amostra
aquelas duas escrituras para construir o valor total e médio da referida década.

No gráfico acima, fica nítido os movimentos que o gráfico 4 já sinalizava, quais sejam, cresci-
mento do valor total de empréstimos na década de 1740 para arrefecimento nas duas décadas seguin-
tes, seguido de recuperação na década de 1770 e, mais vigorosa na de 1780. Pela natureza das infor-
mações (número de escrituras e valor total delas) esse desempenho já era esperado. Para obter uma
avaliação alternativa do comportamento verificado acima, os valores nominais foram transformados
em reais (empregando o índice de preço construído por JohnsonJr, 1973).

Gráfico 6 – Valor real total anual das escrituras de empréstimo no Rio de Janeiro: 1751-1790 (em mil

427
réis)

Fonte: AN, escrituras públicas depositadas no 1º, 2º e 4º Ofício de Notas. Elaboração própria.

Como pode ser visto acima, o desempenho do mercado de crédito não muda, conforme discu-
tido anteriormente. Uma das explicações para isso é o fato da pequena variação do nível de preço no
período conforme aponta o gráfico 1. Para ampliar a discussão sobre o comportamento do mercado
de crédito carioca, o gráfico seguinte foi construído empregando os valores médios nominais.

Gráfico 7 – Valor médio anual nominal das escrituras de empréstimo no Rio de Janeiro: 1711-1790
(em mil réis)

Fonte: Sampaio (2003); AN, escrituras públicas depositadas no 1º, 2º e 4º Ofício de Notas. Elaboração
própria.

Aqui, o comportamento difere marginalmente dos gráficos anteriores. Por exemplo, no perío-
do 1727-30, o valor médio anual fica acima da década anterior e na década de 1781-90 fica abaixo da
anterior. Isso pode ser explicado em função do maior número de escrituras coletadas naquela década.

428
O que chama atenção, novamente, é que o valor médio cai durante as décadas 1750 e 1760 para se re-
cuperar na seguinte. Assim, os dados analisados até o momento, mostram um comportamento seme-
lhante, isto é, crescimento do mercado de crédito até a década de 1740 para posterior queda nas duas
décadas seguintes. Para tentar identificar o comportamento do desempenho do mercado de crédito de
maneira mais pontual, as escrituras foram organizadas mensalmente.

Gráfico 8 – Valor mensal nominal (média 24 meses) das escrituras de empréstimo no Rio de Janeiro:
1750-1790 (em mil réis, até 4 contos de réis)

Fonte: AN, escrituras públicas depositadas no 1º, 2º e 4º Ofício de Notas. Elaboração própria.

Antes da análise uma observação: os valores nominais e reais são muito próximos, assim a
opção foi pelos valores nominais. O comportamento do gráfico acima revela um valor mensal médio
nominal decrescente entre 1750 a 1765, conforme visto no gráfico 6 acima. Contudo, os valores men-
sais voltam a se recuperar na segunda metade da década de 1760, atingindo o nível da década de 1750
no início dos anos 1770. Nesse sentido, observando o comportamento do crédito e tentando construir
um cenário para a atividade econômica do Rio de Janeiro, a década de 1760 (conforme já apontava os
gráficos acima) teve uma queda. A mesma se recupera na segunda metade final da mesma década até
o início da seguinte.

Um ponto importante, que pode ter impactado sobre o comportamento do crédito no Rio de
Janeiro, foram os eventos transcorridos durante o período estudado, em especial durante as décadas
de 1750 a 1770. Por exemplo, é sabido que conflitos importantes foram transcorridos nas referidas
décadas (guerra guaranítica e no sul das porções da América portuguesa) além do terremoto de Lis-
boa em 1755. A documentação primária analisado até aqui, não alude que aqueles eventos tenham
um impacto significativo no mercado de crédito fluminense. Assim, continua uma incógnita: aqueles
eventos exerceram algum papel sobre o comportamento do mercado de crédito? Trabalhos futuros

429
podem colocar luz no seu entendimento.

Com respeito ao comportamento do mercado de crédito durante a década de 1780, o gráfico


mostra, de maneira mais nítida, que o ciclo do crédito fluminense naquele período não recuperou os
valores das décadas anteriores. O melhor desempenho ficou para os anos de 1786 e 1789. Um aspecto
que se destaca é que mesmo transformando os dados em média móvel de 24 meses, é nítido a sua
volatilidade. De todo modo, ele não recupera os valores da década de 1770, ou da de 1750, sugerindo
que a crise aurífera, provavelmente, teve impacto sobre o seu desempenho. Nesse sentido, a queda da
extração aurífera parece ter exercido um papel negativo sobre as décadas de 1760 a 1780 sugerindo
um impacto negativo e de longo prazo sobre a atividade econômica do Rio de Janeiro. Para ampliar o
debater, as informações da dízima da alfândega são apresentadas.

Gráfico 9 – Valor anual nominal da arrecadação da dízima no porto do Rio de Janeiro: 1718-1804 (em mil réis)

Fonte: AHU, projeto resgate Rio de Janeiro, doc. 1139, cx.10 e 11, doc.1429, cx.13, doc. 2092, cx.18, doc. 2316,
cx.21, doc. 2488, cx.23, doc.2699, cx.25, doc.2775, cx.26, 27 e 28, doc. 3286, cx.31, doc.3656, cx.35, doc.3882,
cx.37, doc.5492, cx.56, doc.6246, cx.66 e Arquivo Nacional do Tribunal de Contas, livro 4057 e 4042. Elabora-
ção própria.

Quando se comparam os movimentos das séries de crédito e de arrecadação da dízima, a


direção parece clara: crescimento até meados da década de 1750, para posterior queda nas décadas
seguintes, com recuperação na década de 1780. No caso do gráfico acima, não são recuperados os

430
valores atingidos na década de 1740-50 mesmo no início do XIX. Como alertado anteriormente, esse
desempenho pode ser explicado pelo registro não preciso da arrecadação antes da criação do Erário
Régio (1761). O mesmo comportamento do desempenho pode ser visto no gráfico abaixo.

Gráfico 10 – Valor médio anual nominal da arrecadação da dízima no porto do Rio de Janeiro: 1718-
-1804 (em mil réis)

Fonte: idem gráfico 9. Elaboração própria.

Aqui fica nítido que as duas séries parecem dialogar. No ápice do “ciclo do ouro” uma grande
arrecadação, seguida de uma queda a partir da década 1760, só voltando a se recuperar no início do
XIX. Na próxima e última seção, um aprofundamento da análise quantitativa foi realizado com alguns
exercícios estatísticos.

5. A CLIOMETRIA

O objetivo da presente seção é o de apresentar os exercícios estatísticos realizados com as sé-


ries volume de crédito e arrecadação da dízima da alfândega. Para mensurar o caráter transatlântico
da economia do Rio de Janeiro (além de relacionar com as demais partes da colônia) duas séries foram
acrescidas ao estudo: o preço internacional do açúcar (Maxwell, 1973) e o preço dos escravos em
Minas Gerais (Bergad, 2004). Com essas, a idéia de verificar a relação da economia do Rio de Janeiro
com outros espaços econômicos poderá ser testada.

431
Para a realização das estimativas o software Eviews 4.0 foi empregado. Todas as variáveis foram
transformadas em logaritmo e iniciam em 1750 sendo a última observação no ano de 1790, totali-
zando 41 observações anuais. Os testes de raiz unitária estão disponíveis no anexo, assim como os
resultados das regressões. Empregou-se mínimo quadrado ordinário usando o teste Newey-West para
a estimativa dos coeficientes. A primeira equação estimada (1) está disposta abaixo.

CREDt = constante + β1DIZt + β2ESCt + β2PACt + erro (1)

CRED é o volume total de crédito anual em t, DIZ é a arrecadação total anual em t, ESC é o
preço anual do escravo em Minas Gerais em t e PAC é o preço anual internacional do açúcar (Amster-
dã) em t. Uma segunda regressão foi estruturada para obter um resultado alternativo de (1).

CREDt = constante + β1DIZt + β2ESCt-2 + β2PACt-4 + erro (1)

A diferença entre as estimativas (1) e (2) reside na defasagem das variáveis independentes ESC
(defasada em 2 anos) e no preço internacional do açúcar (defasada em 4 anos). Os resultados estão
dispostos abaixo.

CREDt = -0,96 + 0,29DIZt + 0,97ESCt –0,64PACt + erro (3)

Desvio (1,47) (0,07) (0,24) (0,25)

Todos os coeficientes estimados da equação (1) são significativos a 1% exceção a variável cons-
tante (não significativo a 10%), o R2 ajustado soma 0,27. O erro da estimativa é normalmente distri-
buído. Em (3) as elasticidades são as esperadas, porém o resultado negativo do coeficiente estimado
do preço do açúcar, ou seja, para um aumento de 1% no preço internacional do açúcar o volume de
crédito cai 0,64% surpreende. A princípio, quanto maior o preço do açúcar, maiores as exportações e
maior o volume de crédito na praça carioca pela renda gerada pela economia açucareira. Diante do
resultado encontrado, a equação (2) foi estimada. Os resultados estão dispostos abaixo.

CREDt = 1,24 + 0,14DIZt + 0,64ESCt-2 +0,67PACt-4 + erro (4)

Desvio (1,91) (0,07) (0,32) (0,33)

432
Todos os coeficientes estimados da equação (2) são significativos a 5% exceção a variável cons-
tante (não significativo a 10%), o R2 ajustado soma 0,10. O erro da estimativa é normalmente distribuí-
do. Em (4) as elasticidades estimadas são as esperadas e sugerem a relação entre o mercado de crédito
do Rio de Janeiro com a região de Minas Gerais e a economia transatlântica. Além disso, a elasticidade
estimada encontrada para o preço internacional do açúcar ficou positiva.

O desdobramento da pesquisa pode apontar novas interpretações sobre a atividade econômica


do Rio de Janeiro. Porém, o que foi apresentado aqui, assinala para um arrefecimento daquela, em
especial depois da década de 1760. Isso reforça os resultados encontrados em Pesavento (2013) e
(2015). Mesmo durante a década de 1780 a atividade não parece responder como no auge do “ciclo do
ouro”. Por fim, as elasticidades estimadas de (3) e (4) indicam alguns caminhos para a continuidade do
estudo. Entre os quais está a relação positiva entre o volume de crédito e a arrecadação da dízima, mas
especialmente com o preço dos escravos em Minas Gerais o preço internacional do açúcar (sugerindo
interligação entre diferentes mercados da região sudeste e com a economia internacional).

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ANEXO

Dependent Variable: CRED


Method: Least Squares
Sample: 1 41
Included observations: 41
Newey-West HAC Standard Errors & Covariance (lag trunca-
tion=3)
Variable Coeffi- Std. Error t-Statistic Prob.
cient
C 1.468911 -0.654705 0.5167
DIZ 0.287154 0.074820 3.837939 0.0005
ESC 0.972071 0.232427 4.182268 0.0002
PAC 0.243762 -2.626370 0.0125
R-squared 0.325292 Mean dependent var
Adjusted R-squa- 0.270586 S.D. dependent var
red
S.E. of regression 0.158683 Akaike info criterion
Sum squared resid 0.931673 Schwarz criterion
Log likelihood 19.40260 F-statistic
Durbin-Watson 2.127168 Prob(F-statistic)
stat

Dependent Variable: CRED


Method: Least Squares
Sample(adjusted): 5 41
Included observations: 37 after adjusting endpoints

436
Newey-West HAC Standard Errors & Covariance (lag trunca-
tion=3)
Variable Coeffi- Std. Error t-Statistic Prob.
cient
C 1.240359 1.913702 0.648146 0.5214
DIZ 0.136640 0.066764 2.046601 0.0487
ESC(-2) 0.637775 0.320658 1.988960 0.0550
PAC(-4) 0.673154 0.320179 2.102432 0.0432
R-squared 0.176713 Mean dependent var
Adjusted R-squa- 0.101869 S.D. dependent var
red
S.E. of regression 0.148394 Akaike info criterion
Sum squared resid 0.726689 Schwarz criterion
Log likelihood 20.20750 F-statistic
Durbin-Watson 2.204487 Prob(F-statistic)
stat

Null Hypothesis: CRED has a unit root


Exogenous: Constant, Linear Trend
Lag Length: 0 (Automatic based on SIC, MAXLAG=9)
t-Statis-
tic
Elliott-Rothenberg-Stock DF-GLS test statistic
Test critical values: 1% level
5% level
10% level
*Elliott-Rothenberg-Stock (1996, Table 1)
Warning: Test critical values calculated for 50 observations
and may not be accurate for a sample size of 40

DF-GLS Test Equation on GLS Detrended Residuals


Dependent Variable: D(GLSRESID)
Method: Least Squares
Sample(adjusted): 2 41
Included observations: 40 after adjusting endpoints
Variable Coeffi- Std. Error t-Statistic Prob.
cient
GLSRESID(-1) 0.157365 -5.388945 0.0000
R-squared 0.426799 Mean dependent var
Adjusted R-squa- 0.426799 S.D. dependent var
red
S.E. of regression 0.174782 Akaike info criterion
Sum squared resid 1.191395 Schwarz criterion

437
Log likelihood 13.51756 Durbin-Watson stat

Null Hypothesis: DIZ has a unit root


Exogenous: Constant, Linear Trend
Lag Length: 3 (Automatic based on SIC, MAXLAG=9)
t-Statis-
tic
Elliott-Rothenberg-Stock DF-GLS test statistic
Test critical values: 1% level
5% level
10% level
*Elliott-Rothenberg-Stock (1996, Table 1)
Warning: Test critical values calculated for 50 observations
and may not be accurate for a sample size of 37

DF-GLS Test Equation on GLS Detrended Residuals


Dependent Variable: D(GLSRESID)
Method: Least Squares
Sample(adjusted): 5 41
Included observations: 37 after adjusting endpoints
Variable Coeffi- Std. Error t-Statistic Prob.
cient
GLSRESID(-1) 0.364926 -3.069765 0.0043
D(GLSRESID(-1)) 0.034474 0.305049 0.113012 0.9107
D(GLSRESID(-2)) 0.109468 0.252392 0.433724 0.6673
D(GLSRESID(-3)) 0.171972 -0.381669 0.7052
R-squared 0.585783 Mean dependent var
Adjusted R-squa- 0.548127 S.D. dependent var
red
S.E. of regression 0.204366 Akaike info criterion
Sum squared resid 1.378256 Schwarz criterion
Log likelihood 8.366105 Durbin-Watson stat
Null Hypothesis: PAC has a unit root
Exogenous: Constant
Lag Length: 0 (Automatic based on SIC, MAXLAG=9)
t-Statis-
tic
Elliott-Rothenberg-Stock DF-GLS test statistic
Test critical values: 1% level
5% level
10% level
*MacKinnon (1996)

438
DF-GLS Test Equation on GLS Detrended Residuals
Dependent Variable: D(GLSRESID)
Method: Least Squares
Sample(adjusted): 2 41
Included observations: 40 after adjusting endpoints
Variable Coeffi- Std. Error t-Statistic Prob.
cient
GLSRESID(-1) 0.107860 -2.450212 0.0189
R-squared 0.132884 Mean dependent var
Adjusted R-squa- 0.132884 S.D. dependent var
red
S.E. of regression 0.051382 Akaike info criterion
Sum squared resid 0.102966 Schwarz criterion
Log likelihood 62.48721 Durbin-Watson stat

Null Hypothesis: ESC has a unit root


Exogenous: Constant, Linear Trend
Lag Length: 0 (Automatic based on SIC, MAXLAG=9)
t-Statis-
tic
Elliott-Rothenberg-Stock DF-GLS test statistic
Test critical values: 1% level
5% level
10% level
*Elliott-Rothenberg-Stock (1996, Table 1)
Warning: Test critical values calculated for 50 observations
and may not be accurate for a sample size of 40

DF-GLS Test Equation on GLS Detrended Residuals


Dependent Variable: D(GLSRESID)
Method: Least Squares
Sample(adjusted): 2 41
Included observations: 40 after adjusting endpoints
Variable Coeffi- Std. Error t-Statistic Prob.
cient
GLSRESID(-1) 0.144787 -3.742257 0.0006
R-squared 0.263263 Mean dependent var
Adjusted R-squa- 0.263263 S.D. dependent var
red
S.E. of regression 0.043190 Akaike info criterion
Sum squared resid 0.072750 Schwarz criterion

439
Log likelihood 69.43454 Durbin-Watson stat

Homens do Antigo Regime nos tempos da independência: trajetórias políticas de nego-


ciantes de Ouro Preto nas primeiras décadas do século XIX
Leandro Braga de Andrade4

Negócios e elites

No processo de independência do Brasil, a defesa do constitucionalismo e a influência dos


ideais liberais estiveram acompanhadas, e muitas vezes submetidas, ao receituário absolutista e às
práticas políticas consolidadas no reino luso-brasileiro. Às elites senhoriais interessava a manutenção
da ordem social e da escravidão, ameaçadas com a possibilidade de cidadania para as classes subalter-
nas, reclamadas em ações de rebeldia, ou “anarquia”, como se dizia na época. Ao mesmo tempo, uma
cultura política herdada do Antigo Regime preservara-se, delineando a ação de famílias e potentados
locais, desejosos de reproduzir e ampliar suas posições sociais e econômicas.5

No dia 30 de setembro de 1822 reunia-se a câmara de Vila Rica, com a presença das mais desta-
cadas autoridades civis, religiosas e militares da capital da capitania de Minas Gerais, a fim de aderir ao
chamado de D. Pedro e da câmara do Rio de Janeiro e reconhecer a independência do Brasil. Segundo
o presidente, Doutor Antônio Augusto Monteiro de Barros, as vozes que se levantavam em favor de
D. Pedro o faziam contra a ameaça de “inimigos que pretendiam escravizar o Brasil”, nomeadamente
os propósitos recolonizadores vindos de Portugal. Nos dizeres da ata da sessão, eram as “pessoas da
governança” ou os “homens bons da vila” que legitimavam a independência no foro local.

Assinaram o documento, registrado no Livro de Acórdãos da câmara, 89 pessoas, entre reli-


giosos, magistrados, bacharéis, médicos e, principalmente oficiais militares, tanto da tropa de linha,
quanto das milícias. Entre os presentes, pelo menos 15 eram, ou viriam a ser nos anos seguintes, co-
merciantes lojistas nas ruas centrais da cidade. Eles não estavam ali por a caso, pois, faziam de fato
parte da elite dos “homens bons” da vila, com patentes militares, cargos na câmara ou na adminis-
tração colonial, além de pertencerem a famílias tradicionais, enraizadas na vida social e política da
cidade de Vilar Rica.6

Tais nomes ali anotados indicam que esse grupo compunha a elite local, tornando cabível a
proposta de medir e esmiuçar a inserção social e política dos negociantes urbanos, sobretudo, com as
transformações políticas, institucionais e econômicas que se processaram entre as décadas de 1820 e
1860, no processo da formação do Estado brasileiro.
4 Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio Janeiro (UFRJ). Professor do Centro Federal de
Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFETMG).
5 SILVA, Ana Rosa Cloclet, “De comunidade a nação regionalização do poder, localismos e construções identi-
tárias em Minas Gerais (1821-1831)”. Almanack brasiliense. 02. São Paulo. Novembro de 2005. p. 14
6VEIGA, José Pedro Xavier da, Efemérides Mineiras: 1664-1897. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro,
1998. 2 volumes. p. 860.

440
Ouro Preto7, como capital da província de Minas Gerais, era palco de atuação das elites polí-
ticas provinciais e fornecedora tradicional de quadros que compuseram a cúpula da administração,
da política e da magistratura nacional. Como centro minerador e com um dinamismo econômico
comprometido pela redução da extração do ouro e localização geográfica, qual teria sido o grau de
inserção e dominância social e de participação política dos negociantes?

Ao longo do século XVIII, os negociantes galgaram espaços na hierarquia social do território


colonial, através de ações políticas, do poderio econômico e da estratégia de inserção nas famílias de
conquistadores.8 Ao fim do setecentos e início do século XIX, a velha discriminação da sociedade do
Antigo Regime com os comerciantes, por correlação com o trabalho manual e com os cristãos novos,
já havia perdido força e a fidalguia luso-brasileira estava envolvida pela alta mercancia. Mas esta in-
clusão não se operou por fora do esquema estamental e hierárquico, típico do período, pois, somente
um grupo seleto alcançaria distinção no mar confuso de mercadores, taverneiros, vendeiros, armaze-
neiros e mascates. Eram os “homens de negócio”, classificados e, praticamente, nobilitados como tal. 9

Na esfera local, ou seja, nas vilas e cidades espalhadas pelo interior e pelo litoral, o termo
“negociante” vulgarizou-se no século XIX, como denominação da ocupação daqueles que vendiam e
compravam, com estabelecimento fixo. A distinção ficava por conta da definição dos atacadistas como
“negociante de grosso trato” e retalhistas, apenas como “negociante” ou “comerciante”. Em Ouro Preto,
desde o início do século XIX, até pelo menos a década de 1860, as principais categorias, conhecidas
pela população eram: “negociante de loja de fazenda seca”, “negociante de molhados”, dono de “venda”
ou “taverna”.

Os lojistas eram aqueles comerciantes que ocupavam a parte mais nobre da cidade, mercan-
ciando no térreo e vivendo nos sobrados das principais ruas. Atuavam no mercado de crédito, no
atacado de mercadorias importadas e, em alguns casos, estavam ligados ao comércio de escravos, do
ouro, de terras minerais e dos derivados da agropecuária regional. Ao longo das décadas de 1820,
1830 e 1840, os laços deste grupo de comerciantes com os congêneres atacadistas do Rio de Janeiro se
tornaram mais estreitos e contínuos, formando cadeias de reciprocidade mercantil, na qual se destaca-
vam aqueles que alcançavam confiança e crédito no Rio de Janeiro e controlavam o atacado localmen-
te. Portanto, a elite comercial da cidade mantinha práticas muito similares aos poderosos “negociantes
de grosso trato”, sendo alguns de seus membros registrados como tal na Junta do Comércio.10
7 Vila Rica foi elevada à categoria de cidade em 1823, pelo Império, passando a se chamar, oficialmente, Ouro
Preto.
8 ALMEIDA, Carla M. C. “Uma nobreza da terra com projeto imperial: Maximiliano de Oliveira Leite e seus
aparentados”. In.: Conquistadores e Negociantes: História das elites no Antigo Regime nos trópicos. América
Lusa, séculos XVI a XVIII.(org) FRAGOSO. J.L. R.; ALMEIDA, Carla M.C e SAMPAIO, Antônio C. J. Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira.2007.
9SAMPAIO, Antônio Carlos. Comércio, riqueza e nobreza: Elites mercantis e hierarquização social no Antigo
Regime Português. In. : FRAGOSO, João Luís.[et al.] organizadores. Nas rotas do Império: eixos mercantis,
tráfico e relações sociais no mundo português. Edufes. Vitória . Lisboa. 2006.
10ANRJ. Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação. Matrícula dos Negociantes de grosso
trato e seus Guarda Livros e Caixeiros. Códice 170. Sobre a definição e atuação dos negociantes de grosso trato
ver: GRAÇA FILHO, Afonso Alencastro. “O comércio e a cidade mineira oitocentista de São João del Rei”.
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441
A partir da análise das escrituras cartoriais de Ouro Preto foi possível flagrar o destaque dos
comerciantes em diversos setores de transações: comércio de imóveis, comércio de escravos e, princi-
palmente, nas escrituras de dívida e hipoteca. Em que pese a relativa dispersão do crédito pessoal, uma
característica das economias pré-industriais e pré-bancárias, um pouco mais de 50% das transações
e valores informavam comerciantes como credores das dívidas escrituradas11. Entre 1820 e 1865, essa
concentração foi se tornando ainda maior, demonstrando a consolidação e auge da elite mercantil,
principalmente entre as décadas de 1830 e 1850. Um grupo seleto de negociantes grossistas, alguns
transmutados em rentistas ou banqueiros, a partir no último decênio da amostra, controlou o crédito,
tanto para os pequenos comerciantes locais, quanto para os moradores.

Entre os nomes mais recorrentes no mercado de crédito local estavam os maiores negociantes
lojistas, além de capitalistas que investiam no empréstimo a juros e outros e títulos públicos. A saber:
Francisco de Paula Santos, José Peixoto de Souza, Silvério Pereira da Silva Lagoa, Francisco Teixeira
do Amaral, José Batista de Figueiredo, Rafael da Costa Guimarães, Marçal José dos Santos.

Na análise qualitativa dos negócios, bens e no rastreamento da inserção política e social esses
nomes e sobrenomes se repetiram, o que nos ajudou a montar um quadro bem revelador da relação
comércio/crédito/destaque político.

A documentação cartorária indicou que, apesar de haver compras e encomendas de dezenas


de comerciantes locais no Rio de Janeiro, um seleto grupo controlava o crédito e a intermediação com
as grandes casas grossistas da capital. Pelo menos nas décadas 1830 e 1840 as firmas mais importantes
deste circuito eram as listadas abaixo:

Quadro 1

Algumas casas atacadistas que atuavam em Ouro Preto

Silvério Pereira da Silva La- Negociante de molhados em Ouro Preto


goa
Guimarães Lagoa & Cia Firma de molhados importados. Rio de Janeiro. Silvério Pereira
da Silva Lagoa era sócio.
Francisco de Paula Santos Negociante de fazendas, de escravos, de ouro e salitre.
Pena Santos & Cia Atacado de fazendas secas. Rio de Janeiro. Francisco de Paula
Santos era sócio
Santos & Irmão Atacado de fazendas, agente financeiro na Corte. Sociedade de
Francisco de Paula Santos e Joaquim José dos Santos Junior.
José Batista de Figueiredo e José Batista de Figueiredo e Carlos de Assis Figueiredo herdaram
irmão o negócio de atacado do pai, também Carlos de Assis Figueiredo.
Fonte: Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência (AHMI). Casa do pilar. Livros de notas.

No estudo das práticas de mercado ficou evidente que, a partir de 1850, uma elite desses nego-
11Em tese de doutorado, de onde partem as principais reflexões deste texto, analisei uma amostra de 1535 es-
crituras das mais variadas naturezas, das quais 507 de dívida e hipoteca. ANDRADE, Leandro Braga. Negócios
capitais: práticas mercantis, negociantes e elites urbanas na Imperial Cidade de Ouro Preto, c. 1822 – c. 1864.
Tese de doutorado. IH. UFRJ. RJ. 2013. p.184.

442
ciantes grossistas se destacou dos congêneres locais por passar a investir em títulos da dívida pública e
ações. Esse é um processo de modernização que acompanha a tendência das maiores praças mercantis
do Império, principalmente após o fim do tráfico (1850) e das reformas econômicas, como a Lei de
Terras e o Código Comercial Brasileiro (1850). Os chamados “Empréstimos provinciais”, a “Caixa
Econômica de Ouro Preto” e a “Caixa Filial do Banco do Brasil de Ouro Preto”, foram controlados
politicamente e tiveram investimentos direto dessa mesma elite negociantes e rentistas locais.12

Na pesquisa realizada, gerações distintas de comerciantes foram analisadas e um processo


paulatino de modernização, formalização e transformação das práticas mercantis foi percebido ao
longo do tempo. Nesse sentido, a questão mobilizada na presente análise é de como, durante o mesmo
período, se processou a inserção política desses negociantes.

Uma análise horizontal e relacional do grupo permitiu-nos identificar suas origens e suas di-
versas atuações na vida da cidade. Na década de 1830, cerca de 77% dos donos de lojas eram brancos,
enquanto os brancos da população total, perfaziam apenas 25%. Além disso, o fato de viverem nos
sobrados das ruas Direita e São José está diretamente ligado ao fato de representarem uma antiga elite
estabelecida na vila, desde o período colonial, muitos com o sobrenome já destacado. Isso diferenciava
esse grupo dos pequenos comerciantes, também na área central da cidade.

O processo de criação, centralização e arranjo do Estado brasileiro transformou as instituições


locais, sobretudo os cargos eletivos, sobre os quais as redes de poder e domínio social se acomodaram
ou ascenderam. Além das disputas eleitorais, instituições como o juizado de paz, a Câmara Municipal,
a Guarda Nacional, a Assembleia Provincial, chefia de polícia, juizado de órfãos, entre outros, foram
ocupados pelos grupos dominantes locais. Postos em agremiações religiosas e títulos honoríficos con-
feridos pelo governo imperial, por serviços prestados, garantiram também o triunfo de indivíduos e
famílias como elite, que, dessa forma, conquistavam respeito, prestígio, poder no local e a chancela do
poder central.

Partiremos da premissa de que os grupos e indivíduos que compõem as instâncias superiores


da sociedade, ocupam posições-chave, se colocam como dirigentes da coletividade e que se orientam
pela reprodução da hierarquia social vigente, representa a elite. O termo elite, dessa forma, será empre-
gado em um movimento dinâmico horizontal, onde o político, o econômico e o social podem ou não
estar associados, e em um movimento vertical, onde vê-se níveis diferentes de domínio, dependendo
da área de atuação dos indivíduos e de seus cargos, o local, o regional e o nacional. A generalidade e
não rigidez da noção de elite faz transparecer maior diversidade da hierarquia social e complexidade
da relação do grupo com o resto da sociedade. 13

12 ANDRADE, 2013, Op. Cit. p. 307


13 Flávio M. Heinz reflete sobre o uso da noção de elite pela historiografia, defendendo essas vantagens, a par-
tir da definição básica de Giovanni Busino: “No plural, a palavra elites qualifica todos aqueles que compõem o
grupo minoritário que ocupa a parte superior da hierarquia social e que se arrogam, em virtude de sua origem,
de seus méritos, de sua cultura ou de sua riqueza, o direito de dirigir e negociar as questões de interesse da
coletividade.” BUSINO, Giovanni. Elites e élistism. Paris: Press Universitaires de France. 1992. Apud. HEINZ,
Flávio M. “O historiador e as elites – à guisa de introdução.” In.: (org) Por outra história das elites. Rio de Janei-
ro. Editora FGV. 2006. pp. 7-16. p.7.

443
O termo elite está sendo utilizado, neste sentido, para abarcar o grupo de indivíduos que se
encontram no topo da hierarquia social, nos diversos âmbitos de análise. Dessa forma, elite pode-se
referir à fidalguia luso-brasileira do período colonial, senhores de terra e de escravos, administradores
coloniais, contratadores, ouvidores e homens de negócio, nobilitados pelo casamento ou pelo serviço.
Do mesmo modo, pode-se tratar dos capitães e coronéis de milícias e ordenanças, aos oficiais cama-
ristas, como parte das elites locais dos tempos coloniais.

No processo de construção e consolidação do Estado brasileiro, novos e velhos contornos con-


figuraram a atuação e o perfil da elite. Podemos nos referir aos fazendeiros e letrados que compuseram
a primeira elite política provincial (deputados, senadores, presidentes de província, nobres, ministros
e conselheiros de Província e de Estado), que em muitas situações, conformaram também uma elite
nacional, com seus cargos e poderio político na Corte. Por outro lado, também estamos considerando
elite, mas num ambiente localizado, oficiais da guarda nacional, juízes de paz, padres, eleitores indica-
dos na paróquia para as eleições parlamentares, chefes de polícia e também, proprietários, negocian-
tes, empresários e rentistas, com prestígio e poder na região.14

A plurifuncionalidade da elite luso-brasileira, acostumada a acumular postos políticos e ad-


ministrativos, suas práticas clientelares de domínio sócio-político e estratégias de laços familiares são
características pontuadas por Maria Fernanda Martins ao estudar os conselheiros de Estado, como
elite política e social do Segundo Reinado. A autora analisa as ações dos grupos da elite, no processo
de centralização do Estado imperial, como “portadora de uma cultura política marcada pela continui-
dade do período colonial”, reconfigurando-se com o ideário liberal e o projeto de construção do país.15

No trabalho de Martins, as linhas mestras conceituais que conectam o período colonial com
a fase nacional são as noções de “elite”, “cultura política” e “relações de parentesco”. Grandes troncos
familiares e redes de matrimônio endogâmicas transpuseram a virada do século XVIII para o XIX, o
período joanino e a independência para conformarem-se como a elite social e política que comandava
a governança nacional na Corte, mantendo laços contínuos com as regiões e províncias.

Estamos, portanto, diante de uma sociedade em que valores como a inserção em poderosas
redes de parentescos, postos de prestígio político, militar e administrativo, além é claro, o senhorio
da terra e de escravos, são ainda fundamentais para a compreensão das hierarquias sociais. É aqui
que podemos situar os negociantes lojistas, como a faceta local e urbana desta composição, com um
“fazer-se elite”, diante de uma sociedade hierarquizada, escravista, que vive profundas transformações
institucionais e de práticas econômicas.
14 Estudos recentes têm aprofundado, no campo da História Política, as análises em torno do papel das eli-
tes regionais no processo de formação do Estado nacional brasileiro, relativizando as visões centralistas que
interpretam o protagonismo político como algo reservado à burocracia estatal, ou à elite política letrada, ou
ao senhorio de terras e escravos da província do Rio de Janeiro. Algumas dessas revisões e críticas podem ser
encontradas em: BORGES, Luiz Adriano. Notas sobre o conceito de Elite para o Brasil do Oitocentos. Anais do
Encontro Regional de História. Anpuh-SP. UNESP/Franca. 2010; RESENDE, Edna Maria. Ecos do Liberalis-
mo: ideários e vivências das elites regionais no processo de construção do Estado Imperial, Barbacena (1831-
1840). Tese de doutoramento. FAFICH.UFMG. Belo Horizonte. 2008.
15 MARTINS, Maria Fernanda. A velha arte de governar: Um estudo sobre politica e elites, a partir do Conse-
lho de Estado (1842-1889). Arquivo Nacional. Rio de Janeiro. 2007.p. 31-34

444
As práticas clientelistas resistiam ao tempo e são, por isso, uma chave para compreender o
comportamento das elites. Sobretudo, na esfera local e provincial, como cultura política, o clientelis-
mo sobrevivia “(...) dando suporte social e politico ao Estado, mesmo sendo poderes paralelos.”16

Na composição das redes de sociabilidades, que no caso das elites imperiais serviam a con-
quista, manutenção e reprodução do poder, estavam o clientelismo e a família. Para a autora, a família
não era apenas o núcleo consanguíneo, mas “(...) uma teia que englobava as relações decorrentes de
estratégias e alianças, principalmente através do casamento.”17

Se estamos diante uma sociedade hierarquizada, marcada pelo senhorio da terra e escravos,
e tendo o clientelismo como prática política e social, qual seria o papel e a posição dos negociantes
urbanos do interior?

Os lojistas do interior do Centro-Sul do Brasil tinham a praça comercial do Rio de Janeiro


como a principal fornecedora atacadista de alimentos e manufaturados. Como já pudemos verificar,
a capacidade de prosperidade do comerciante local dependia do nível de aproximação e confiança
que adquiria no mercado da Corte, além da capilaridade da clientela local. Em uma sociedade em
que os meios de comunicação e transporte eram precários, dominar a intermediação de mercadorias
era também intermediar informações, as novidades e inovações do mercado. Do mesmo modo, ao se
posicionarem em postos políticos dirigentes e de manutenção da ordem na paróquia e no município,
os negociantes locais poderiam se transformar em mediadores entre a periferia e o centro.

Dentro do processo de formação da elite em Ouro Preto, alguns dos negociantes constituíram-
-se como mediadores. Estar na capital da província, os colocava em situação privilegiada para obter
influência, e, consequentemente cargos e mercês. Mas havia um limite para o alcance da projeção
política dos donos de lojas, o que os transformava em poderosos paroquiais e municipais, sem poder
no nível provincial e nacional. Perceberemos a diante, quais os caminhos que possibilitaram a elite
mercantil urbana, com sua riqueza também limitada pela realidade econômica do lugar, se posicionar
como mediadores da realidade local com o poder central.

Uma análise da participação de negociantes em instituições políticas e funções eletivas de im-


portância para dinâmica dos poderes locais poderá lançar luz sobre as postas. As seguintes instituições
estiveram sob a análise: Tropas de milícias, Guarda Nacional, Câmara, Eleições paroquiais, Assem-
bleia Provincial e Assembleia Geral.

“Vive de sua loja” e está “pronto no Real Serviço”: os oficiais das tropas de milícias e ordenanças.

Vila Rica de Ouro Preto, pelo seu papel administrativo na capitania e depois na província de
Minas Gerais, sempre conviveu com a existência numerosa de corpos militares pagos ou não. Aliás, o
soldo militar e o salário dos empregados públicos faziam parte da movimentação do comércio local.
A sede abrigava o Estado Maior de tropas dos regimentos da comarca, além dos oficiais de batalhões
e suas respectivas companhias. Se analisarmos a lista de habitantes de 1804, veremos que havia 552

16 Idem. p. 170.
17 MARTINS, M. Fernanda. Op. Cit. p. 32.

445
domicílios listados, sendo 327 chefiados por homens. Destes, 90, ou 27,5% eram oficiais que detinham
patentes como: Furriel, Alferes, Tenente, Sargento-Mor, Capitão-Mor e Tenente Coronel.18 De fato,
são muitos postos de comando, o que pode ser explicado pela multiplicação das tropas, batalhões e
companhias, mas também pelo recorrente uso destes postos como oferecimento de mercê pela Coroa
e busca de prestígio e nobilitação pelos vassalos.

O estudo de Cristiane P. Mello detectou uma grande presença de comerciantes entre os oficiais,
sobretudo, capitães das companhias de Ordenanças, na segunda metade do século XVIII, nas capita-
nias de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Para a autora “(...) o crescente processo de afirmação
econômica dos comerciantes, durante o século XVIII, fazia com que a Coroa não pudesse prescindir
do apoio deste novo segmento, procurando incorporá-lo no aparelho administrativo colonial, forta-
lecendo sua base social.”19

Tiago Gil, no estudo dos negócios de animais entre o sul e Sorocaba, entende que essa multi-
plicação de capitães cumpre a função de demarcar socialmente os mandatários locais. Considerando
a “(...) hierarquia militar como régua social (...), mais do que armas, os capitães comandavam seus
escravos, suas casas, suas regiões, e, assim, controlavam a economia.”20

Se consideramos somente as patentes de Alferes para cima, teremos, em 1804, 88 oficiais, sen-
do 40 comerciantes, ou 45,5%. Caso pudéssemos excluir os oficiais da tropa paga, possivelmente a
proporção seria ainda maior, pois os negociantes donos de lojas e alguns proprietários de lavras de
mineração dominavam o comando das Ordenanças e Milícias em Vila Rica.

Neste ponto é importante diferenciar os três corpos militares mobilizados pela Coroa Portu-
guesa. As “Tropas de primeira linha” era a tropa regular e paga. Eram militares dedicados exclusiva-
mente a este serviço. As tropas não pagas eram as “Milícias”21 (segunda linha), anteriormente a 1796
chamadas de “Auxiliares”, e as “Ordenanças” (terceira linha). O número de homens alistados nas Milí-
cias era muito numeroso. Divididos em companhias locais, eram chamados à ação nos momentos de
necessidade de garantir a ordem. Configuraram o braço administrativo e de controle social da Coroa
nos diversos rincões e vilas da América Portuguesa. Ao mesmo tempo funcionavam como verdadeiras
milícias privadas, que agiam para defender ou impor o interesse de potentados locais (proprietários de
terras e escravos ou negociantes urbanos), muitas vezes eles mesmos seus comandantes. As Ordenan-
ças também poderiam ter atividades ligadas à manutenção da ordem, mas tinham especial atribuição
de formar fileiras de recrutamento para suprir os corpos regulares e milicianos.22

Mesmo sem formação e disciplina, os oficiais destes corpos poderiam ser efetivos por terem

18 ANDRADE, 2013. Op. cit. p. 327


19 MELLO, Cristiane Pagano. Os corpos auxiliares e de Ordenanças na segunda metade do século XVIII: A
capitania do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais e a Manutenção do Império Português no Centro-Sul da
América. Tese de doutorado. UFF. Niterói 2002. p. 174-175
20GIL, Tiago Luís. Coisas do caminho: Tropeiros e seus negócios do Viamão à Sorocaba. (1780-1810). Univer-
sidade Federal do Rio de Janeiro. Tese de doutoramento. Rio de Janeiro. 2009. p. 222-223
21 Antes de 1796, todas as tropas, pagas ou não pagas, eram chamadas de Milícias.
22COTTA, Francis Albert. Para além da desclassificação e da docilização dos corpos. Organização militar nas
Minas Gerais do século XVIII. Revista Humanidades. UFRN. V.02. N. 03. Fev-Mar. 2001.

446
respeito local, recursos, animais de montaria ou por serem fiéis à ordem e à obediência no Real Servi-
ço, interessados eles mesmos no controle das classes populares.

Algumas cartas patentes de negociantes ouro-pretanos analisadas, corroboram a ideia de que,


por serem tropas de serviço voluntário (os oficiais de companhias não recebiam soldo), o maior bene-
fício dos patenteados seria simbólico. Assim descrevia a nomeação do negociante Nicolau Soares do
Couto ao posto de Capitão da Primeira Companhia do Primeiro Regimento da Cavalaria (Milícias):
Hei por bem fazer mercê de confirmar como esta confirmo no dito posto de capitão, com
o qual não haverá soldo algum de minha Real Fazenda, mas gozará de todas as honras, pri-
vilégios, liberdades Isenções e franquezas que em farão dele [...] pertencerem. Lisboa 04 de
janeiro de 1799 = O príncipe com guarda = Por despacho do Conselho Ultramarino , 19 de
dezembro de 1798.23

O primeiro regimento comandava as companhias do termo de Vila Rica e a primeira com-


panhia era aquela atuante no centro urbano da capital, o que conferia ainda mais prestígio ao posto.
Nicolau Soares do Couto se transformará até o final da década de 1830 em grande nome do comércio
local e, ao mesmo tempo, galgará espaço na hierarquia da corporação.

Em 1820 uma espécie de censo fora realizado nas oito companhias do Primeiro Regimento da
vila. A tabela 1 apresenta o panorama das ocupações e da assiduidade dos oficiais, conforme o levan-
tamento do comandante.

Tabela 01

Ocupação e Assiduidade dos oficiais do Primeiro Regimento da Cavalaria de Milícias de Vila Rica.
1820.

Ocupação Num. Assiduidade Num.


Comércio 20 Cumpre com os deveres 20
Proprietário 11 Comparece pouco 11
Emp. Público 10 Não tem comparecido 6
Soldo militar 03 Nada tem feito 13
Cirurgião 02
Outros 4
Total 50 Total 50
Fonte:Arquivo Público Mineiro. (APM) Secretaria de Governo da Capitania. SG Cx 120. Doc 02.

Ocupações que, em geral, estavam mais acessíveis aos livres pobres, ex-escravos e seus descen-
dentes, como artífices, pintores, ambulantes e pequenos vendeiros, não aparecem no grupo de oficiais.
Destaca-se a presença dos comerciantes, proprietários de terras, de lavras minerais e de empregados
da estrutura administrativa, em especial, ofícios de escrivães. As primeiras companhias deste regi-
mento abarcavam a área urbana de Vila Rica e tais ocupações representam, de fato, a elite econômica
do lugar.

Dos 20 oficiais que foram classificados como “cumpre o seu dever”, 16 estavam lotados nas três

23Carta Patente de Nicolau Soares do Couto, como Primeira Companhia do Primeiro Regimento de Cavalaria
Auxiliar de Vila Rica. Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Registro Geral de Mercês. Livro 30. Folha.

447
primeiras companhias, justamente aquelas localizadas na área central do termo de Vila Rica. Isso ex-
plica que os oficiais da área urbana eram mais afeitos, por proximidade ou por disciplina, a obedecer
e agir conforme as regras. Seriam eles também, que mais rapidamente assumiriam os maiores postos
de comando neste ou em outros regimentos da Comarca.

As “Tropas de ordenanças”, correspondente à terceira linha, embora tivesse função suplemen-


tar às tropas regulares (primeira) e milícias (segunda), conferia aos seus capitães certo prestígio, além
de poder político e social. Eram eles responsáveis pelo recrutamento. Tinham em suas mãos o poder
de isentar ou obrigar ao serviço, a população livre masculina. Um dos principais nomes desta tropa
nas três primeiras décadas do século XIX, em Vila Rica, foi o negociante e Capitão-mor, José Bento
Soares, que conquistou honrarias, privilégios na arrecadação de loterias, autorização régia para tocar
uma fábrica de pólvora, além de sesmarias. Tudo isso por sua lealdade e até dispêndio financeiro com
as tropas. 24

Se para muitos estudos, os proprietários de terras encarnaram o típico “capitão-mor”, que usa-
va sua riqueza e seu prestígio para mediar os interesses da Coroa, no período colonial, para o caso
de Vila Rica de Ouro Preto, eram os negociantes lojistas quem melhor se revestiam destes atributos.
Era uma via de mão dupla. Ser dono de loja nas ruas centrais e viver nos sobrados melhor estrutura-
dos, já lhes conferia prestígio. Além disso, eram os negociantes que dominavam boa parte do crédito,
vendendo a prazo e emprestando dinheiro, com cobrança de juros. Por outro lado, a construção do
poder econômico e do prestígio político, através de sua atividade econômica e relações pessoais, só
era sacralizada ou formalizada com o reconhecimento real. Por isso as patentes e honrarias foram tão
perseguidas, e com sucesso quase absoluto, alcançadas pelos principais negociantes urbanos.

E essa teia, como não poderia deixar de ser, envolvia também a família. Alguns dos negocian-
tes listados no censo do Primeiro Regimento em 1820, incluíram seus filhos na carreira militar, do
mesmo modo que deixaram a eles a herança da mercancia.

Esta também foi uma característica da atuação dos negociantes urbanos na câmara, como ve-
remos a seguir.

Os negócios da vereança: comerciantes na Câmara de Ouro Preto

A administração e os poderes locais sempre foram os sustentáculos da Coroa portuguesa e fo-


ram também as bases para a conquista da adesão à independência. Fragmentada por diversas regiões,
vilas, poderes e interesses muito divergentes, Minas Gerais recebeu atenção estratégica do projeto au-
tonomista. A negociação com as elites locais mineiras envolveu, inclusive, uma visita de D. Pedro, que
se utilizou da distribuição de benefícios e do discurso da unidade contra os “inimigos”.25 Conquistar
Vila Rica era fundamental para a unidade da província, mas as outras câmaras não poderiam se ofen-
der com privilégios à capital.

24Revista do Arquivo Público Mineiro. (RAPM). Regº de officios dirigidos a corte pelo Illmo. e Exmo. Snr. D.
Francisco de Assis Mascarenhas. 1812. Imprensa Oficial de Minas Gerais. Belo Horizonte. Ano 18. 1913. 345-
572.
25 SILVA, Ana Rosa Cloclet. Op. cit.

448
Os grupos sociais representados na câmara no ano da independência continuariam fazendo
desta casa, com todas as mudanças institucionais e alterações de atribuições que se daria a diante, um
símbolo de conquista e manutenção de poder e prestígio por longos anos do Império.

A autonomia de poder executivo, a administração da economia municipal e a eletividade da


câmara foram mantidas após a independência e pela Constituição Outorgada, em 1824. No entanto,
os poderes judiciários foram reduzidos e a criação dos conselhos gerais de província elevava ao nível
provincial, as discussões relativas à municipalidade. No entanto, na prática, as regras dos tempos colo-
niais foram mantidas e a câmara continuaria sendo um espaço de disputa de poder e prestígio, agora
também incluindo a faceta de ser a base de lideranças políticas que ascendiam aos conselhos provin-
ciais e à deputação geral do Império. 26

A grande alteração institucional do poder municipal veio com a lei de 1º de outubro de 1828,
que criava nova configuração e atribuições para a câmara. No ano anterior havia sido criado o cargo
de Juiz de Paz, uma autoridade eleita pela população local para arbitrar conflitos civis, com poderes
policiais e aplicação de multas nas paróquias. Nesse passo, a câmara ficava restrita às suas funções
administrativas. Na nova configuração, a câmara passaria a ter nove membros nas cidades e sete nas
vilas, com eleições de quatro em quatro anos.

Mesmo com a perda de poder e autonomia das câmaras ao longo do império, os vereadores,
sendo eleitos de maneira menos restritiva e mais popular, passaram a configurar um elemento inter-
mediário importante na dinâmica das práticas clientelistas na província. A nova lei tentou restringir
o monopólio do poder municipal pelas oligarquias locais, impedindo a eleição simultânea de pais,
filhos, irmãos e cunhados, o que obrigou rearranjos, mas na prática, como veremos, os homens e fa-
mílias mais abastadas continuaram dominando a instituição.

A Câmara Municipal de Ouro Preto continuou sendo um termômetro de identificação das eli-
tes locais, mesmo com o processo de enxugamento de seus poderes. De lá partiam quadros que com-
puseram a primeira elite provincial, mas, sobretudo, mantinha-se a base política das novas lideranças.
Isso se processou na década de 1830, quando o nível provincial foi privilegiado, no governo regencial,
e na década de 1840, quando o nível nacional tendeu a concentrar poderes e atribuições.

A centralidade urbana, a concentração da burocracia provincial e de forças militares influen-


ciaram fortemente a característica dos grupos sociais que compuseram a câmara. Entre 1812 e 1822,
27 vereadores, ou 49,1%, eram comerciantes. Mesmo com a Constituição de 1824, a Lei municipal de
1828 e a criação da Assembleia Provincial, em 1834, os negociantes lojistas continuaram perfazendo a
maioria dos eleitos.

Construímos a tabela 2, realizando o cruzamento de várias fontes, a partir das quais foi pos-
sível aproximar da ocupação de todos os membros da câmara municipal de Ouro Preto, entre 1823 e
1877. Trata-se de aproximação porque, ao longo da vida, o indivíduo poderia ter migrado sua princi-
pal atividade. Mas sem dúvida, não deixa de ser um bom termômetro para indicar os grupos sociais
26 CHAVES, Edneila Rodrigues. Hierarquias sociais na câmara municipal em Rio Pardo (Minas Gerais 1833 –
1872). Niterói. Tese de doutoramento. UFF. 2012. p. 42

449
que compuseram a instituição.

Tabela 2

Composição da Câmara Municipal de Ouro Preto, segundo a ocupação de seus membros. 1823-1877.

Período 1823-1828 1829-1840 1841-1852 1853-1864 1865-1877 Total

Legislatura (6) (3) (3) (3) (3) (18)


Ocupação
Negociante 14 15 18 10 03 60
Prof. Liberal 06 03 02 10 07 28
Emp. Público 02 02 03 03 12 22
Militar 05 04 02 02 02 15
Proprietário 04 02 00 00 01 07
Religioso 00 01 02 00 03 06
Total 31 27 27 27 28 140
Fonte: CÂMARA MUNICIPAL DE OURO PRETO, Memorial histórico e político da câmara municipal de Ouro Preto.
Ouro Preto. Cor e cor Editorial. 2004. Arquivo Público Municipal de Ouro Preto. (APMOP). Lista de Qualificação de
votantes. Distritos de Ouro Preto e Antônio Dias. 1846-1850; APM. Listas nominais de habitantes. 1838-1840. Banco de
dados Cedeplar/UFMG.

Na década de 1820, persistia a predominância de negociantes, seguidos profissionais liberais e


militares. Eram estes os grupos que protagonizaram os acontecimentos do processo de separação polí-
tica. A década de 1830, com 55,5% das cadeiras e 1840, com 66,6%, representaram o apogeu e domínio
quase absoluto de negociantes na câmara.

Um fato que merece toda a atenção é o total domínio dos moradores da área urbana do termo
na câmara, embora os votos recolhidos para eleição viessem de diversos distritos relativamente distan-
tes. Desse modo, o prestígio de nossos comerciantes, em análise, extrapolaria sua área de vizinhança,
muito provavelmente pela atividade que exerciam e o caráter de centro mercantil ocupado por Ouro
Preto.

Mas o perfil ocupacional dos vereadores mudaria sensivelmente no terceiro quarto do século
XIX. Para esclarecer esta mudança elaboramos o gráfico a seguir, com a evolução percentual das três
principais ocupações presentes nos quadros camaristas.

Gráfico 01

Evolução percentual de três ocupações de vereadores em cada período de análise.

450
70
60
50
40
30
20
10
0
1812-1822 1823-1828 1829-1840 1841-1852 1853-1864 1865-1877

Negociantes Prof. Liberais Emp. Públicos

Fonte: CÂMARA MUNICIPAL DE OURO PRETO, Memorial histórico e político da câmara municipal de Ouro
Preto. Cor e cor Editorial. Ouro Preto, 2004. APMP. Lista de Qualificação de votantes. Distritos de Ouro Preto e
Antônio Dias. 1846-1850; APM. Presidência da Província. Listas nominais de habitantes. 1838-1840.

Para o período anterior à independência só dispomos de informações para os vereado-


res comerciantes e já para os demais períodos, podemos comparar com outras ocupações. O gráfico
deixa nítido como na década de 1850, o número de negociantes eleitos para a câmara cai fortemente,
sendo movimento inverso ao ocorrido para o grupo de profissionais liberais e empregados públicos.
Se no período de 1841-1852 identificamos 18 (66,6%) negociantes eleitos, entre 1853-1864, caiu para
10 (35%) e entre 1865-1877 para apenas 3 (cerca de 10%). É possível visualizar também o movimento
gradual de aumento da presença de profissionais liberais, até a década de 1850, e um predomínio qua-
se absoluto de empregados públicos, nas décadas de 1860 e 1870.

A inversão do perfil ocupacional dos vereadores ocorre justamente no período da transforma-


ção do mercado de crédito de Ouro Preto. A década de 1850 confirmou uma redução da participação
de negociantes nas transações de empréstimos escrituradas em cartório. Isso ocorreu porque outros
agentes, não estabelecidos com loja, passaram a conceder dinheiro, com cobrança de juros. Sendo o
crédito, o principal motor da riqueza mercantil, os tradicionais lojistas haviam perdido espaço para
outros investidores, especialmente um grupo de rentistas, com perfil mais capitalista. 27

O que tornava o cenário ainda mais desolador era a franca decadência da região, em contra-
posição ao desenvolvimento das áreas limítrofes ao sul da província, que se integravam ao milionário
mercado de exportação do café. Com a redução da capacidade de extração das empresas de minera-
ção, estrangeiras e nacionais, Ouro Preto dependia cada vez mais das rendas provinciais para a sua
circulação mercantil local. Oliveira e Martins, no texto de apresentação da cidade, no Almanak da
Província de Minas Gerais, de 1864, lamentam a decadência da capital de antigas glórias e com rique-
zas ainda por serem exploradas: “(...) sem outra indústria além do comércio a retalho e ordenados dos
cofres públicos, ela vive ainda por ser capital da província. 28

27 ANDRADE, 2013 Op. Cit.


28OLIVEIRA, J. Marques e MARTINS, A. Assis. Almanak, administrativo, civil e industrial da Província de
Minas Gerais para o ano de 1864. p. 60

451
Além disso, a ascensão social e política de advogados e médicos estava diretamente ligada ao
fato de Ouro Preto corresponder a um centro político e da justiça. Ao longo das três décadas que se-
guiram a independência, a estrutura administrativa do governo provincial foi se ampliando para aten-
der as necessidades de Minas Gerais, que não eram poucas, por seu grande território e complexidade.
Dessa forma, formava-se em Ouro Preto, um segmento de funcionários dos altos cargos públicos, que
também passaram a fazer parte da elite política local.

Família e mandatos na câmara estavam intimamente relacionados. Aliás, não somente no âm-
bito municipal. As instituições mais poderosas do Império, como o Senado e o Conselho de Estado
também estavam atravessadas por arranjos familiares da elite.29 Isso não parece ter sido diferente em
Ouro Preto, embora o fato de haver um dinamismo urbano na política local tenha, provavelmente,
permitido uma rotatividade e renovação, maior do que áreas rurais, dominadas por poucas famílias
proprietárias.

Ao analisarmos os indivíduos ou famílias que alcançara três ou mais mandados, chegamos


em um total de 85 mandatos. Somou-se 33 vereadores, sendo que 19 deles eram comerciantes. Dessa
forma, encontramos uma concentração no setor mercantil não apenas no número de mandatos, mas
também do número de indivíduos que chegaram repetidas vezes à câmara, por si ou pelos membros
de suas famílias.

A tabela abaixo expõe a concentração dos mandatos, ao longo do século XIX, nas mãos de
indivíduos e famílias que agregaram três ou mais mandatos. Dos 85 mandatos identificados nesta área
de concentração temos 33 vereadores, sendo que 19 deles eram comerciantes. Dessa forma, encontra-
mos uma concentração no setor mercantil não apenas no número de mandatos, mas também do nú-
mero de indivíduos que chegaram repetidas vezes à câmara, por si ou pelos membros de suas famílias.

Tabela 3

Vereadores e famílias com mais de três mandatos na Câmara Municipal de Ouro Preto. c. 1823- c.
1877

Vereadores Título Ocupação Mandatos Período


Antônio Ribeiro Fernandes Forbes Tenente Negociante 06 1822-1840
José Bento Soares Capitão-mor Negociante 05 1812-1823
Francisco Guilherme de Carvalho Major Negociante 05 1820-1836
Manoel Alves Toledo Ribas Brigadeiro Militar 05 1833-1860
Tristão Francisco Pereira de Andrade Capitão Negociante 04 1827-1848
Raimundo Nonato da Silva Ataíde Capitão Advogado 04 1857-1877
João José da Costa Gesteira Tenente Negociante 03 1815-1823
Antônio José Dias Coelho Negociante 03 1841-1852
Joaquim J. f.de Oliveira Cata Preta Capitão Proprietário 03 1825-1833
Bernardo Antônio Monteiro Médico 03 1825-1832
Mandatos por famílias

29 MARTINS, Maria Fernanda. Op. Cit. 2007. p. 167-254.

452
Nicolau Soares do Couto Coronel Negociante 04 1813-1828

Luís Augusto Soares do Couto Capitão Negociante 01 1826

Manoel Soares do Couto Tenente Coronel Negociante 03 1829-1840


João de Deus Magalhães Gomes Capitão Negociante 04 1816-1836

Antônio de Magalhães Gomes Capitão Negociante 02 1822-1823

Francisco de Magalhães Gomes Tenente Negociante 01 1837-1840

Manoel de Magalhães Gomes Tenente Coronel Negociante* 01 1853-1856

Carlos Thomas de Magalhães Gomes Médico 01 1857-1860

Domingos de Magalhães Gomes Padre 01 1873-1877


Carlos de Assis Figueiredo Coronel Negociante 04 1818-1832

José Batista de Figueiredo Coronel Negociante 04 1837-1852

Joaquim Carlos de Figueiredo Negociante 02 1845-1852

João Antônio Afonso (genro) Negociante 01 1873-1877


Silvério Pereira da Silva Lagoa Major Negociante 03 1841-1852

Francisco de Paula Pereira Lagoa Médido 01 1857-1860


Rodrigo Pereira Soares de Albergaria Coronel Emp. Público 03 1837-1852

Antônio Maria Soares de Albergaria Emp. Público 01 1873-1877


Antônio L. de Magalhães Musqueira Brigadeiro Negociante 03 1861-1877

Manoel Teixeira de Souza Comend. Barão Proprietário 01 1853-1856

João Batista Teixeira de Souza Comend. Emp. Público 03 1861-1872


Antônio Augusto Monteiro de Barros Magistrado 01 1822-1823

Manoel José Monteiro de Barros Advogado 01 1829-1832

Lucas Antônio Monteiro de Barros Médico 02 1853-1864


Fonte: CÂMARA MUNICIPAL DE OURO PRETO, Memorial histórico e político da câmara municipal de Ouro Preto.
Cor e cor Editorial. Ouro Preto, 2004. APMOP. Lista de Qualificação de votantes. Distritos de Ouro Preto e Antônio Dias.
1846-1850; APM. Listas nominais de habitantes. 1838-1840. Banco de dados Cedeplar/UFMG

*Na lista de qualificação votantes de 1849 aparece como negociante, mas, em1864, era tesoureiro da Mesa das Rendas.

Como no caso das carreiras milicianas, há uma clara sucessão política planejada no interior
das famílias. Nos casos do Capitão-Mor José Bento Soares e do Tenente Coronel Nicolau Soares do
Couto, é curioso que eles tenham sido eleitos somente enquanto durou o método português de escolha
dos oficiais camarários (até 1828), sendo eles emblemáticos exemplos de homens do Antigo Regime.

O mais importante é que a câmara continuou sendo um lugar ambicionado pelas famílias
mais prestigiadas da cidade, mesmo quando a eleição tornou-se bem mais popular. Lá chegaram o
que poderíamos chamar de “segunda geração da independência”, que emergia ao espaço público com
o envelhecimento da geração que assinou a ata de adesão à independência.

453
Seja pela preservação dos interesses econômicos ou pela reprodução do status social das famí-
lias, o fato é que, na configuração das elites políticas do Império, a câmara continuava sendo uma base
importante, e a grande presença dos negociantes indica que esse grupo continuaria sendo intermediá-
rios relevantes da realidade local com tais elites.

A milícia dos negociantes: a Guarda Nacional e a elite mercantil

A abdicação de D. Pedro I do trono, em abril de 1831, foi desenhada por um momento de


dura contestação da centralização e autoritarismo, nos moldes do velho absolutismo. No campo das
lutas políticas, a classe de proprietários e famílias abastadas de diversas regiões combatia os antigos
membros da elite luso-brasileira, alinhada com o Imperador e acusada de se aproveitar da burocracia
estatal.

Emergiam atores criados nas entranhas do poder econômico e político local, além daqueles
formados, intelectualmente, no reformismo constitucional. Os liberais moderados, que chegaram ao
poder com a Regência, tinham um profundo compromisso com as bases políticas, notadamente os
ricos fazendeiros e negociantes, já enraizados regionalmente. Desse modo, acenava-se para uma nova
era, onde a lei garantiria poder e autonomia para as regiões, enquanto esses beneficiados – as elites
locais – garantiriam a ordem pública e a unidade do Império. 30

A Guarda Nacional foi um símbolo do poder das elites locais no processo de formação do
Estado brasileiro. Criada pela lei de 18 de agosto de 1831, ela foi uma milícia civil não paga, que tinha
por vocação atuar nos municípios, dando suporte às atividades policiais de garantia da ordem ou au-
xiliando o exército nas áreas de fronteira e situações de emergência.

Alguns pesquisadores defendem que a Guarda Nacional ajudou a delimitar a cidadania, atra-
vés da matrícula de qualificação e da disseminação de um sistema de organização, que parte do Estado
e alcança todo o território. Por outro lado, essa grande massa, militarmente amadora, foi entregue ao
controle de cidadãos eleitos localmente, em outras palavras, homens de poder e prestígio.31

Os estudos sobre a Guarda Nacional são quase unânimes em concordar que, geralmente, o ofi-
cialato foi controlado por grupos e famílias enraizados na vida política e no poder econômico locais.
Aliás, esta característica, que agradava ao governo central, fez da milícia um instrumento de interme-
diação entre o poder privado e o poder estatal, como bem argumenta, Flávio Saldanha, em seu estudo.
32

A estrutura orgânica estava dividida da seguinte forma: uma Legião no município, comandada
por um coronel, que poderia ter mais de um Batalhão, que, comandado por um Tenente Coronel, esta-
va dividido por 4 a 8 Companhias, comandadas por um capitão. A Companhia era composta de 100 a
30 SILVA, Wlamir. Liberais e povo. A construção da hegemonia liberal-moderada na província de Minas Gerais
(1830-1834). São Paulo. Ed. Hucitec. Estudos Históricos. 2008.
31 Algumas importantes pesquisas gerais sobre o tema podem ser encontradas em:URICOECHEA, Fernando.
O minotauro Imperial: a burocratização do estado patrimonial brasileiro do século XIX. Editora Difel. São
Paulo. 1978.
32 SALDANHA, Flávio Henrique. Os oficiais do povo: A guarda nacional em Minas Gerais oitocentista, 1831-
1850. São Paulo. Anablume/FAPESP. 2006. p. 44.

454
140 homens e abarcava um ou mais distritos. Pela lei de 1831, os oficiais da Legião do município eram
indicados pela presidência da província e os oficiais dos batalhões e companhias, eleitos, por maioria
absoluta de votos, pelos próprios oficiais. 33

Na primeira eleição para Guarda Nacional de Ouro Preito, em 1832, dos 24 oficiais eleitos para
o Primeiro Batalhão, 19 eram negociantes. Além do critério da renda mínima para a eleição, a possi-
bilidade de conquistar e controlar a preferência dos guardas era, a exemplo do que vimos na câmara,
muito mais real para os comerciantes da cidade. Dos 19 oficiais eleitos para a Primeira Companhia,
14 foram listados como negociantes de loja ou armazém nas relações nominais da década de 1830. Os
quatro membros do Estado Maior do Primeiro Batalhão também viviam da mercancia. Foi a elite de
negociantes lojistas, presente nos quadros da Câmara, da antiga Cavalara de Milícias ou das Tropas de
Ordenanças, que venceu o primeiro pleito da Guarda Nacional.

Quadro 2

Oficiais eleitos na primeira eleição da Guarda Nacional. 1832. Primeiro Batalhão da cidade de Ouro
Preto

Patente Oficial Votos Ocupação


Estado Maior 1º Batalhão de Ouro Preto
Tenente Coronel Manoel Soares do Couto 18 Negociante
Major Antônio R. Fernandes Forbes* 31 Negociante
Tenente Ajudante Narciso Tavares Coimbra* 27 Negociante
Porta Bandeira Antônio José Dias Coelho* 21 Negociante
1ª Companhia Distrito de Ouro Preto
Capitão Luís Augusto Soares do Couto 92 Negociante
Tenente Antônio R. Fernandes Forbes* 55 Negociante
Alferes José Batista de Figueiredo 58 Negociante
Alferes Honório P. de Azeredo Coutinho 53 Emp. Público
1º Sargento Antônio José Dias Coelho* 50 Negociante
2º Sargento Narciso Tavares Coimbra* 45 Negociante
2º Sargento Silvério P. da Silva Lagoa 36 Negociante
Furriel Faustino Monteiro Peixoto 24 Negociante
Cabos Diogo José Lopes 49 Negociante
Cabos Manoel José de Lima 38 Negociante
Cabos Agostinho J. Ferreira Andrade 37 Ourives
Cabos Carlos Coelho Seabra 37 n/e
Cabos José Rodrigues de Abreu 34 Negociante
Cabos Joaquim Eleutério de Abreu 33 Negociante
Cabos João Narciso de Paiva 33 n/e
Cabos Bernardo José Barbosa 32 Negociante
Cabos Silvestre José da Costa 30 Negociante
Cabos Antônio Coelho Ferreira 29 Negociante
Cabos Antônio de Souza Braga 28 Negociante
Fonte: APM. Presidência da Província. Correspondência Guarda Nacional. PP 1/6 cx 67. Doc 03; APM. CMOP.
Licenças para casa de negócio. 1831/1833. APM. Presidência da Província. Lista de habitantes. 1838. n/e= não
33 SALDANHA, Op. Cit. p. 78-79.

455
encontrado. * Oficiais eleitos para a Primeira Companhia e, posteriormente, eleitos para o Estado Maior do Pri-
meiro Batalhão do Município

O processo de centralização decisória da Guarda Nacional, com maior controle dos coman-
dantes e do presidente de província, se intensificou ao longo da década de 1830 e após a Revolta Libe-
ral de 1842.

Mesmo com tais mudanças, em Ouro Preto, representantes do segmento de negociantes lojis-
tas, seja por suas posições econômicas ou tradições familiares continuariam no comando da Guarda
Nacional.

Alguns quesitos foram importantes para a projeção na Guarda Nacional de Ouro Preto: ser
negociante de loja e, portanto, estar entre os homens mais abastados, com forte potencial de controle
social pelo crédito; ser empregado do governo em cargos de destaque, como os da mesa das rendas ou
fazenda provincial; ter prestígio político e robustez eleitoral; ter ligações familiares com antigos nomes
de destaque nas tropas milicianas da localidade.

Em 1841, Francisco de Paula Santos, sendo o negociante mais abastado e credor do governo
provincial, como vimos no capitulo anterior, fora nomeado delegado do distrito de Ouro Preto. No
ano seguinte, durante a Revolta Liberal, foi nomeado para o cargo de Coronel da Legião do Município
de Ouro Preto, demonstrando sua força política no âmbito local e respeito com o governo. Este cargo
tinha atribuições muito importantes para a presidência da província, pois, era através dos comandan-
tes das legiões que as determinações chegariam até às bases. Para o ocupante era politicamente muito
estratégico, pois, lidava com o alistamento, mediação de conflitos, julgava caso de insubordinação.
Tudo isso era utilizado como arma eleitoral. 34

O importante de se destacar é que, mesmo com as alterações de atribuições e escolha do ofi-


cialato, a Guarda Nacional manteve-se como instituição fundamental na configuração da ordem pú-
blica e da vida política. Do mesmo modo que, os negociantes de Ouro Preto faziam-se como elite
local, buscando projeção e respeito no nível provincial e nacional, através de seus postos e manutenção
vitalícia de suas patentes.

Os estudos existentes sobre a Guarda Nacional esforçam-se por posicionar a instituição no


debate da centralização ou descentralização do poder do Estado Imperial brasileiro. Mas, o que veri-
ficamos é que a milícia cívica notabilizou-se também como palco da ação de uma elite política que se
constrói na paróquia, no distrito ou no município, respondendo e se articulando com o poder central.
O caráter patrimonial da relação da sociedade com as coisas do Estado, onde o serviço e os interesses
privados se confundiam com as demandas e os interesses públicos, foi o amálgama que garantiu a exis-
tência da milícia não paga e a unidade nacional, através da atuação de mediadores políticos e sociais
da realidade local com o centro.

34 A atuação do coronel pôde ser rastreada nas correspondências da Guarda Nacional enviadas à presidência
da província.

456
Por ser tão estratégica, não deixou de ser alvo do interesse dos potentados locais e grupos do-
minantes, onde os comandos superiores da guarda foram controlados por alguns negociantes ricos e
seus parentes. A Guarda Nacional afunilou ainda mais do que a câmara municipal a pirâmide do po-
der local, uma vez que permitiu a membros de um grupo ainda mais reduzido se posicionarem como
agentes do Império e, por isso, serem dignos de honra.

A elite da paróquia: A “classe dos homens práticos” no universo de doutores, vigários e bacharéis

Esse conjunto de elementos já seria suficiente para afirmar que ser dono de loja em Ouro Preto
era um caminho quase certo para alcançar um descolamento para cima do universo dos homens livres
pobres, como artífices, jornaleiros, tropeiros, vendeiros e outros trabalhadores urbanos. Sem dúvida
trata-se de uma herança dos finais do período colonial, quando a atividade mercantil grossista já
possibilitava ascensão em uma sociedade profundamente hierarquizada. Porém, foram três condições
específicas que promoveram a posição dos homens do comércio de Ouro Preto: o fato de estarem em
uma cidade com forte vocação mercantil e centralidade urbana, o fato de ser a sede da burocracia e da
política provincial e de não ter se constituído no município, após a decadência da mineração tradicio-
nal, um cinturão agrário-escravista poderoso, como em outras regiões da província.

Dessa forma, a elite política paroquial e municipal da capital da província não estava atrelada
em sua maior parte, pelo menos diretamente, à propriedade rural, como na maior parte do Império.
Sendo assim, resta ainda verificar qual teria sido a projeção deste grupo no cenário provincial e na-
cional. Ou seja, onde estavam os negociantes de Ouro Preto, na hierarquia política do Império, em
suas diversas guinadas institucionais, no processo de formação do Estado? São questões difíceis de
verificação, por isso merecerão análises pontuais e não definitivas.

O perfil dos primeiros dirigentes provinciais (as juntas e conselhos provinciais) após a inde-
pendência foi de eminentes membros da elite militar, religiosa e magistrados, além de fazendeiros es-
cravistas e negociantes, mas sempre com o predomínio da região central da província, especialmente
de Ouro Preto. Nomes já conhecidos neste estudo, como José Bento Soares, os Soares do Couto, os
Assis Figueiredo, os Machado de Magalhães e outros negociantes locais chegaram a ser eleitos. Por-
tanto, na fase inicial de configuração dos dirigentes provinciais, houve espaço para negociantes, exclu-
sivamente por sua proeminência na capital. Tratava-se daquela “primeira geração da independência”,
já em destaque desde o período colonial.

Além das estratégias familiares, as relações de amizade e troca de favores estavam no centro da
explicação para o poder político local dos negociantes de Ouro Preto. Vivendo na capital, conviviam
nas mesmas ruas, dividiam os mesmos bancos das igrejas, os eventos e associações religiosas que os
altos funcionários do governo, deputados e presidentes de província. Além do destaque que os ne-
gócios e a riqueza lhes proporcionavam, a tessitura do poder ocorria nas intrincadas relações de tipo
clientelar. Como lembrou Richard Graham, o clientelismo é o fio que amarrava a trama da política do
Brasil imperial e se constituía em ações de proteção, favorecimento, em troca de lealdade política. 35

35 GRAHAM, Richard. “Clientelismo e cultura política brasileira”. Papers. Instituto Fernand Braudel. Num.
02. São Paulo. 1999. p. 2

457
Na formação da elite política mineira, a propriedade, a família e o comércio foram os ele-
mentos básicos de sua feição local. Estudos com forte fôlego empírico têm demonstrado que elites
regionais de diversas partes da província, apoiadas na riqueza gerada pela produção agropecuária e
o comércio, ecoavam as grandes discussões nacionais na realidade local, ao mesmo tempo em que
lançavam mão de estratégias para participar diretamente dos embates que definiam os rumos da con-
figuração do Estado Imperial.

Um dos precursores da abordagem que congrega relações econômicas com atuação política foi
Alcir Lenharo. Em As tropas da moderação é analisada a grande produção pecuarista da região sul
de Minas Gerais, voltada para o fornecimento do Rio de Janeiro. Na primeira metade do século XIX
teria emergido uma classe proprietária que, pouco a pouco, passou a ter uma maior projeção política
chegando a influir e participar da formação do Estado Imperial, sobretudo no período da regência
(moderados). Assim, o mercado interno teria tido vigor o suficiente para acumular riqueza, integrar o
Centro-sul e gerar novos personagens da elite política nacional.36

Estudos como os de Marcos Ferreira Andrade, sobre Campanha da Princesa, e Edna Resende,
sobre Barbacena, indicam participação efetiva de elites regionais na construção do Estado Imperial,
“(...) impondo suas demandas e constituindo-se como elite política que, ao mesmo tempo em que as-
sumia o compromisso com a condução e preservação do Estado, mantinha seus laços com sua região
de origem”.37

Ao mesmo tempo, a partir de década de 1830, a formação acadêmica dos filhos passou a confi-
gurar uma das armas das famílias ricas e de prestígio para a inserção de seus interesses, através de qua-
dros qualificados na estrutura do Estado em construção. Na ocasião da Revolta do Ano da Fumaça,
um grupo de estudantes mineiros da Faculdade de São Paulo, enviou documento de protesto contra
a ação dos revoltosos e defendendo o governo legal de Manoel de Mello e Souza e Bernardo Pereira
de Vasconcelos. Os 27 estudantes apresentavam-se alinhados com o discurso liberal. Os assinantes
representavam famílias de destaque no cenário provincial e nacional, como Souza Ramos, Monteiro
de Barros, Teixeira Leite, Cerqueira Leite, Vasconcelos, Nogueira Penido, Junqueira, Rodrigues Horta
e Fernandes Leão.

Segundo Patrícia Genovez, políticos radicados em Ouro Preto e região, tanto liberais quanto
conservadores, sempre tiveram uma projeção provincial e nacional muito significativa, por ter sido o
centro administrativo, mas também o centro minerador de colonização mais antiga, de onde irradia-
vam as tradições e influências que as famílias perpetuavam, mesmo quando ocupavam outras áreas
do território.38 No entanto, quando rastreamos os mandatos mineiros nas Assembleias (Provincial e

36LENHARO, Alcir. As tropas da moderação. O abastecimento da Corte na formação política do Brasil – 1808-
1842. São Paulo. Ed. Símbolo. 1979.
37DOLHNIKOFF, Miriam. O lugar das elites regionais. Revista USP, Dossiê Brasil Império, São Paulo, n. 58,
p. 116-133, jun/ago. 2003. p. 118. Apud. ANDRADE, Marcos Ferreira. Elites regionais e a formação do Estado
Imperial Brasileiro. Minas Gerais – Campanha da Princesa (1799-1850). Arquivo Nacional. Rio de Janeiro.
2008. p. 232.
38 GENOVEZ, Patrícia Falco. O espelho da monarquia: Minas Gerais e a Coroa no Segundo Reinado. Niterói.
Tese de doutoramento. UFF. 2003.

458
Geral) e no Senado, somente pontualmente foi possível identificar membros do grupo de negociantes,
já comprovadamente o grupo predominante da política municipal ouro-pretana. Isso ocorria porque
eram as lideranças políticas letradas (bacharéis e clérigos), oriundas de extensas e tradicionais famí-
lias, que se destacavam, a partir da capital.

No entanto, a importância já salientada dos cargos locais que os negociantes lojistas alcan-
çavam não nos permite dizer que havia um círculo de notáveis, eleitos deputados e senadores, inde-
pendente e descolado da realidade municipal. Sendo os pleitos para estes cargos indiretos, havia um
grupo de eleitores, escolhidos pelos votantes. Era na conquista deste grupo que estavam depositadas
as chances de vitória. Por isso, vários meios foram utilizados: a divulgação do ideário partidário, via
circulação de jornais, eventos públicos de disseminação dos nomes e ideias das lideranças e, principal-
mente, o apoio das bases eleitorais, formadas nas relações clientelares e familiares, por juízes de paz,
oficiais da guarda nacional, chefes de polícia, vereadores e empregados provinciais.

Para a realidade ouro-pretana, é neste nível que encontramos os negociantes lojistas. Uma
passagem por algumas atas de eleições mostra que o mercado paroquial do voto era ali, talvez o mais
disputado. Isso porque, muitas lideranças provinciais votavam nas paróquias urbanas da capital da
província, sobrando menor margem de participação direta para as lideranças locais. Mesmo assim,
um grupo de negociantes esteve sempre presente entre os eleitores, o que demonstrava importante
peso de suas carreiras individuais, mas também a capacidade da atividade mercantil urbana produzir
uma parte da elite eleitoral.

Vejamos como ficou o quadro 4, que descreve os nomes dos eleitores escolhidos no pleito de
1836, da Paróquia de N. Senhora do Pilar de Ouro Preto, com vistas ao preenchimento dos cargos de
deputados da Assembleia Provincial e da Assembleia Geral, para a legislatura de 1838-1839.

Os eleitores conformavam um grupo de notáveis moradores no distrito paroquial. No caso


da Paróquia do Pilar, o peso político do grupo recebia uma grande dimensão, por ser um centro tra-
dicional de formação de lideranças. Era também a principal eleição do município sede da província.
Esta grandeza está demonstrada pelo perfil dos eleitos em 1836: o vice-presidente da província, que
foi eleito como deputado no mesmo pleito, o secretário de governo, o presidente da província, tam-
bém reeleito deputado provincial. Ainda merece destaque a presença de dois padres, demonstrando a
importância das lideranças eclesiásticas, um militar de linha e um empregado público, ambos conso-
lidando liderança política local.

Quadro 4

Resultado contido na “Ata de eleição da Paróquia de N. Senhora do Pilar de Ouro Preto”. 1836.

Eleitores Ocupação Cargo Público


1 Antônio da Costa Pinto Magistrado Vice da Província
2 Antônio R. Fernandes Forbes Negociante Vereador
3 Rodrigo P. Soares de Albergaria Emp. Público Vereador
4 Narciso Tavares Coimbra Negociante GN/Juiz de paz

459
5 José Batista de Figueiredo Negociante GN/Vereador
6 Herculano Ferreira Pena Bacharel Sec. da Província
7 José Felicíssimo do Nascimento Padre
8 José da Cunha Mello Vigário
9 Joaquim Antão Fernandes Leão Advogado Dep. Provincial
10 Bernardo Jose de Araújo Militar
11 José Peixoto de Souza Negociante
12 Francisco de Paula Santos Negociante
Fonte: APM. Câmara Municipal de Ouro Preto. Ata Paroquial de Eleição. 1824-1836. CMOP 199. Rolo 54.

No entanto, cabe maior destaque a presença de cinco negociantes, comprovando a hipótese


de que a elite mercantil urbana de Ouro Preto configurou-se como uma elite paroquial, atuante nos
rumos da política provincial, de forma indireta. Mais uma vez destacamos que se trata de uma fase de
hegemonia liberal na política provincial, realidade que se inverteria no início da década de 1840. Na
capital, uma série de transformações econômicas consolidou o poder econômico dos comerciantes
lojistas, também detentores do crédito e atuantes no mercado de escravos. Assim formou-se uma elite
liberal letrada e religiosa, apoiada na base eleitoral local, onde dominavam os homens do comércio
estabelecido.

Em outras regiões da província, como Barbacena, São João Del Rei e Campanha, os proprietá-
rios e negociantes regionais lideraram uma poderosa elite liberal que, por seus interlocutores ou dire-
tamente, chegaram até a Corte, como salientam as pesquisas já citadas de Wlamir Silva, Edna Resende
e Marcos Ferreira Andrade. 39

Conclusão

A trajetória do comendador Francisco de Paula Santos mostrou-se, sem dúvida, muito eluci-
dativa das formas de investimento, acumulação, relações sociais e políticas construídas no Império.
Manteve-se como negociante e/ou banqueiro por mais de cinco décadas, sempre a partir de sua base
econômica e política, a cidade de Ouro Preto. A excepcionalidade de sua fortuna e longevidade profis-
sional, não o desconecta, no entanto, da realidade comum da praça comercial da capital da província
e do mercado nacional em formação.

Seus negócios tiveram grande ascensão justamente no período favorável ao comércio na capi-
tal, as décadas de 1830 e 1840. Depois das dificuldades das décadas de 1810 e 1820, decorrentes da cri-
se da mineração, o comércio reencontrara o caminho da riqueza, com a montagem do aparato admi-
nistrativo da província, a nova mineração aurífera com as companhias inglesas e o desenvolvimento
agrário-mercantil da província mineira. Os comerciantes consolidavam-se como elite econômica, ao
controlarem a liquidez, o crédito, o mercado de imóveis, o rarefeito mercado de escravos, a importa-
ção de manufaturados, alimentos e bebidas, além da venda no varejo ou no atacado.

Com maior ou menor grau de autonomia ou possibilidade de acumulação, os negociantes lo-


jistas de Ouro Preto, nas três primeiras décadas após a independência compuseram um estrato social

39 SILVA, Wlamir. 2008. Op. Cit.; REZENDE, Edna. 2008.; ANDRADE, Marcos. 2008. Op.cit;

460
privilegiado e destacado, como já mencionado. Esta realidade se desdobrou em inserção política nas
novas e tradicionais instituições que coexistiam no Império do Brasil.

A zona de atuação e promoção política seguia os limites espaciais de influência da atividade


econômica. Os comerciantes fizeram parte de um núcleo de moradores que conseguiu atuar nas tro-
pas de milícias, na Guarda Nacional, na Câmara, na Justiça de Paz e outras instituições e cargos que
conferiam poder aos chefes políticos locais no Império. Além disso, o fato de estarem na capital da
província ou pertencerem a famílias de destaque, permitiu que alguns chegassem a outras instâncias
de poder, sobretudo no nível provincial, intermediando a realidade cotidiana com as grandes discus-
sões e transformações políticas.

A conquista de cargos eletivos, patentes e títulos honoríficos estava envolvida em todo um


espectro cultural, no qual as relações clientelares e estratégias familiares alçavam e mantinham os
negociantes em situações de destaque. Dessa forma, para o caso dos negociantes de Ouro Preto, não
havia uma atuação coordenada como “bloco de poder” ou “grupo de interesse”, como já experimenta-
vam algumas grandes praças comerciais do Império. É evidente, no entanto, que as redes de amizade
e reciprocidades comerciais uniam os agentes mercantis em diversas situações, na busca por privilégio
e interesses, mas sem um nível sofisticado de associação.
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462
A PRÁTICA MERCANTIL E AS INSTITUIÇÕES INFORMAIS NOS SERTÕES DA AMÉRICA PORTU-
GUESA – SÉCULO XVIII
Raphael Freitas Santos40

INTRODUÇÃO: OS MERCADOS E AS INSTITUIÇÕES

O conceito de “mercado” foi utilizado algumas vezes de forma anacrônica nas análises histó-
ricas, pelo menos no que diz respeito às sociedades pré-industriais e, particularmente, à economia
colonial brasileira. Isso vem acontecendo, em grande medida, devido à vinculação do conceito de
“mercado” ao de “capitalismo”. Por outro lado, alguns autores vêm, desde longa data, demonstrando
que a existência de alguma(s) forma(s) de mercado(s) não teria implicado necessariamente na evolu-
ção rumo ao atual sistema capitalista.

A fim de buscar uma análise mais clara sobre um dos circuitos mercantis existentes no interior
da economia colonial e dos agentes que ali operavam, nos propomos inicialmente a reconhecer as
diferenças entre o conceito de “mercado”, no sentido de esfera das trocas (no inglês, trade) e de movi-
mento de bens entre agentes (exchange), daquele referente a um sistema regulador (no inglês, marke-
t).41 Para os dois primeiros casos denominamos “mercado”, simplesmente; e, para o outro, “economia
de mercado” – no sentido braudeliano do termo.

Cabe ressaltar que, o que chamamos de “economia de mercado” não significa, absolutamente, a
simples regulação dos preços por leis (pretensamente) naturais, como a da oferta e demanda. Na ver-
dade, compartilhamos da ideia de que existe uma economia de mercado “quando há vários compra-
dores e vendedores, e quando o preço unitário que cada um oferece e paga, é afetado por decisões de
todos os outros” (FRASER, 1937: 131). Nesse cenário, as variações dos preços no mercado, ou mesmo
das taxas de juros, são determinadas pelas instituições, formais ou informais, como a lei, a religião, o
costume, a oferta e a demanda. Afinal, conforme já havia destacado Braudel, a
troca é sempre diálogo e, de vez em quando, o preço é um acaso. Sofre certas pres-
sões (a do príncipe, ou da cidade, ou do capitalista, etc.), mas obedece também for-
çosamente aos imperativos da oferta, rara ou abundante, e não menos à procura. O
controle dos preços, argumento essencial para negar o aparecimento, antes do sécu-
lo XIX, do ‘verdadeiro’ mercado auto-regulador, sempre existiu e continua a existir
(BRAUDEL, 1992, p. 195).

De acordo com o pensamento econômico português setecentista, por exemplo, o juro cobrado
sobre o dinheiro emprestado era interpretado por alguns contemporâneos como uma necessidade
para o desenvolvimento do comércio e, por outros, como algo tolerado, apesar de ilícito e reprovável.

40 Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense e professor do CEFET-MG. A Pesquisa
41 Ver: POLANYI, Karl ARENSBERG, C. M.; PEARSON, H. W. Trade and Market in the Early Empires: Eco-
nomic in History and Theory. Nova Iorque: The Free Press, 1957.

463
A resistência à cobrança de juros em operações mercantis tinha suas raízes na religião e na moral.42
Já os apologistas da cobrança de juro estavam ancorados no “liberalismo utilitarista” dos tempos mo-
dernos.43 Quando, em 1757, um Alvará Régio, publicado em 17 de janeiro por D. José I, reduziu a taxa
de juro máxima de 6,25% para 5%, qual das correntes de pensamento estava sendo atendida com a
mudança na legislação?

Uma possível resposta para essa questão passou pelas novas conjunturas econômicas que, em
meados do século XVIII, favoreceram uma redução das taxas de juros. Essa diminuição permitiu o
incremento do financiamento à produção e ao consumo, e garantiu uma maior circulação das moedas.
Ainda nessa perspectiva, nos parece possível supor que em um contexto de abundância de dinheiro
(devido ao ouro e a prata extraída nas Américas) houvesse uma tendência à redução do juro – como
bem salientou Genovesi (1769) em sua Lezioni de commercio.44 Afinal o dinheiro, como qualquer
outra mercadoria, também tem seu valor ligado ao “maior ou menor trabalho que há em extrair, me-
lhorar, ou aperfeiçoar o gênero”; “a sua maior, ou menor quantidade”; e ao “maior, ou menor uso que
dele se faz” – conforme descreveu outro autor setecentista, o português Henrique de Sousa.45

Por outro lado, nessa mesma época, a doutrina escolástica considerava como usurária quase
todas as transações comerciais ou financeiras que envolvessem taxas de interesse, ou juro. Uma das
premissas que sustentavam a condenação à cobrança de juro era que “o usurário não vende ao seu de-
vedor nada que lhe pertença, somente o tempo, que pertence a Deus. Ele [o usurário], portanto, não
pode tirar proveito da venda de um bem alheio” (LE GOFF, 1989, p. 39). Algumas questões levantadas
pelos eclesiásticos, contrárias às práticas ditas usurárias, foram reproduzidas e retrucadas por Tomas
Antônio Gonzaga em seu Tratado de Direito Natural, publicado em 1770. Segundo o autor:
Se alguém – dizem eles [os eclesiásticos] – exige as usuras em razão do em-
préstimo, vende duas vezes a mesma coisa, pois devendo ela ser vendida unicamente
por um preço justo, e sendo o seu justo preço capital que lhe corresponde, vem o mu-
tuante a vender duas vezes a mesma coisa, recebendo por ela duas pagas: uma capital,
e outra as usuras que sobre ele exige.46

Mas, como bem demonstrou Le Goff (1989), as ordens religiosas não estiveram inteiramente
desgarradas das demais instituições e, portanto, cada vez mais, o juro passou a ser aceito em operações

42 Ver, por exemplo: LE GOFF, Jacques. A Bolsa e a Vida: a usura na Idade Média. São Paulo: Ed. Brasiliense.
2 ed., 1989; CLAVERO, Bartolomé, Antidora: Antropologia catolica de la economia moderna, Milão: Giuffré
Editore, 1990, p. 77-86.
43VAZ, Francisco António Lourenço. Instrução e Economia: As Ideias Económicas no Discurso da Ilustração
Portuguesa (1746-1820), Lisboa, Edições Colibri, 2002.
44 Conforme escreveu o autor, em meados do século XVIII, “Si crede comunemente, che dove gl’interessi son
bassi, quivi siagran quantitá di denaro: e poco per contrario, dove gl’interessi son alti. E intendesi di poça, o
gran quantitá non assolutamente, ma respettivamente à bifogni del traffico.” Ver: GENOVEZI, Antonio. Lezioni
de Commercio. Vol. II. Veneza: A spese Remondini, 1769, p. 191.
45 SOUSA, João Henrique. Discurso Político sobre o juro do dinheiro. Lisboa: Regia officina Typográfica, 1786,
p. 18.
46 GONZAGA, Tomás Antônio. Tratado de Direito Natural[1770]. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e
Cultura/ Instituto Nacional do Livro, 1957, p. 157.

464
financeiras.47 Ainda sim, apesar de tolerar a cobrança de juro, a doutrina escolástica insistia em não
permiti-los na maioria dos casos. Contestando os escritos de Genovesi, Frei Caetano Brandão defen-
dia, por exemplo, que o juro só seria justificado em casos de dano emergente e lucro cessante, devendo
ser proibido sob qualquer outra circunstância; mas que nos contratos de mútuo não pudesse existir
qualquer título extrínseco, isto é, que desse ao mutuante direito a um “aumento da sorte” – o juro do
dinheiro. Nesse caso, e em todos os outros não admitidos pela Igreja, o indivíduo estaria infringido em
crime de usura. Dessa forma, ao avaliar a lei do Reino que fixava o juro em 5%, Brandão considerava
a medida como uma “lei de tolerância”, uma vez que tolerava o juro, mas não os permitia em todos os
casos.48

Ao fim ao cabo, um maior controle por parte do Estado e uma redução sobre as taxas de juros,
agradaram tanto liberais utilitaristas quanto doutrinadores escolásticos, seja com o objetivo de colocar
em prática as restrições morais feitas pela doutrina religiosa à usura, de atender as necessidades de am-
pliar o comércio, ou, simplesmente, pela ação da oferta e da demanda. O fato é que diferentes setores
da sociedade reivindicavam uma diminuição da taxa de juros máxima permitida institucionalmente.
E o resultado dessa negociação foi a sua redução, em termos legais, em meados do século XVIII.49 Não
nos parece possível saber ao certo a participação que cada uma desses setores da sociedade na decisão
tomada pelo Coroa portuguesa. Contudo essa a tensão entre instituições aparentemente dissonantes,
já nos parece, por si só, uma importante característica da “economia de mercado” desenvolvida em
certos espaços do império português.

É necessário destacar que, embora sempre houvesse mercado (no sentido de trade e exchange)
em diversos espaços e ao longo de todo período colonial da história do Brasil, a “economia de mer-
47 Afinal era também a própria Igreja, através dos conventos e associações religiosas, uma espécie de banco,
emprestando dinheiro a juros. Ver, por exemplo: WOBESER, Gisela von. El crédito eclesiástico en la Nueva Es-
paña. Siglo XVIII. Cidade do México: UNAM, 1998; SALLES, Fritz Teixeira de. Associações religiosas no ciclo
do ouro. Belo Horizonte: UMG/Estudos, 1963; RUSSELL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e Filantropos: A Santa Casa
da Misericórdia da Bahia, 1550-1755. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1981.
48BRANDÃO, Frei Caetano. Parecer a respeito dos juros, dado pelo Exmº Snr. D. Frei Caetano Brandão, qdº
era ainda religioso (...). Apud: VAZ, Francisco António Lourenço. Instrução e Economia: As Ideias Econômicas
no Discurso da Ilustração Portuguesa (1746-1820), Lisboa, Edições Colibri, 2002, p.105-113.
49 Cabe salientar que a legislação portuguesa admitia a cobrança de juros apenas nos casos de: damnun emer-
gens,que significa o dano emergente causado pelo atraso no reembolso do principal; o lucruum cessans, ou
seja, o impedimento de um lucro superior legítimo que o usurário poderia ter ganhado em outra situação, se
não houvesse feito o empréstimo; e o ratio incertitudinis, que nada mais é do que o acréscimo do certo e do
incerto no cálculo do empréstimo. Ver o título LXVII, “Dos contractos usurários” In: CÓDIGO Philipino ou
Ordenações do Reino de Portugal compiladas por mandado Del Rey D. Phillipe II. (Edição Fac-similar a XIV
edição, de 1870, com comentários de Cândido Mendes de Almeida). 3º Tomo. Brasília: Edições do Senado
Federal, 2004, p.871-879. O Alvará acabou por reiterar a limitação da cobrança de juro à apenas alguns títulos,
nos demais casos “tudo proíbo, não só debaixo das penas estabelecidas pela Ordenação do livro quarto título
sessenta e sete, contra os usurários, mas também, de que os Tabeliães, que fizerem escrituras, em que se estipu-
le interesse maior, que o referido”. Além disso, a lei estabeleceu o prazo máximo de 12 meses para esses tipos
de transações, “para que esta Lei se não fraude debaixo dos maliciosos pretextos, que se costumam maquinar
contra semelhantes proibições”.CÓDIGO Philipino ou Ordenações do Reino... op. cit.,, p. 1044. De acordo com
nossas pesquisas, todas as escrituras públicas, registradas nos cartórios da vila de Sabará, em Minas Gerais, ob-
servavam a taxa de juro máxima estipulada pela Coroa – embora seja possível questionar a observância prática
da lei. Ver: Museu do Ouro/IBRAM – Casa Borba Gato: Livro de Notas, Cartório Primeiro Ofício e Cartório
Segundo Ofício.

465
cado” (market) foi restrita a alguns contextos geo-históricos. Na América portuguesa as condições
para a sua emergência passaram pelo incremento espacial e demográfico dos agentes integrados aos
mercados e pela ampliação da oferta de meios circulantes.50 Em cenários como esse, a atividade mer-
cantil tendeu a uma ampliação e vulgarização e, em decorrência disso, o comportamento econômico
típico dos indivíduos passou a ser o da busca pelo enriquecimento e pela mobilidade social (ainda que
enquanto projeto ideal, mais do que de prática efetiva).

Um desses períodos remonta ao século XVIII, época em que a exploração do ouro impulsio-
nou circuitos mercantis; em que um número considerável de pessoas livres e libertas, ligadas direta
ou indiretamente às regiões auríferas, pôde acessar o mercado; em que taxas crescentes de ocupação
do território colonial na América foram percebidas e que, em consequência disso, houve uma integra-
ção sem precedentes entre alguns espaços econômicos no interior da Colônia.51 Mas se havia desde o
período colonial uma “economia de mercado” em certos espaços econômicos América Portuguesa,
como explicar a ineficácia do mercado naquele contexto e ao longo da história do Brasil? Para tentar
responder a essa questão buscamos ajuda na escola neo-institucionalista.

De acordo com essa perspectiva teórico-metodológica, o que tornou possível as múltiplas ex-
periências de “economias de mercado” ao redor do Mundo foram as soluções institucionais historica-
mente construídas pelas sociedades para regular o comportamento econômico dos indivíduos, con-
forme indicou Douglass North (1990).52 Algumas sociedades edificaram uma complexa estrutura de
incentivos e sanções para os comportamentos individuais através de instituições (formais e informais)
que, ao privilegiar direitos individuais como o direito de propriedade, por exemplo, possibilitaram
uma maior confiança e cooperação entre os agentes econômicos. Em outras, devido à ineficácia his-
tórica de instituições dessa natureza e a uma distribuição mais injusta da riqueza e do poder político,
prevaleceram os arranjos formais ou informais que acabaram por estimular comportamentos oportu-
nistas. Essa abordagem estrutural foi denominada por North como “path dependent”, isto é o caminho
percorrido por cada sociedade no sentido de construir (ou não) as instituições que nortearão seu
funcionamento e, portanto, terão o poder de interferir, de forma indelével, suas estruturas políticas,
sociais e econômicas.

Segundo North (1990), as instituições têm como objetivo reduzir incertezas, gerando, assim,
uma estrutura estável para a interação humana. Elas podem ser convenções, códigos de conduta,
normas de comportamento; leis estatutárias ou consuetudinárias; mas também contratos (explícitos
ou tácitos) entre os indivíduos. O fato é que as instituições afetam, inegavelmente, no desempenho da

50 Concordamos com Ladurie, quando o autor sugeriu que em sociedades pré-industriais um dos principais
fatores na mudança social (se não o principal) é o crescimento ou o declínio demográfico. Ver: LADURIE,
Emmanuel Le Roy.Montaillou, povoado occitânico (1294 a 1324). São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
51 São em contextos geo-históricos como estes que as estruturas sociais podem se tornar cognoscível através
das experiências dos indivíduos no mercado. Conforme definiu Braudel “a ocorrência repete-se e, ao repetir-se,
torna-se generalidade, ou melhor estrutura. Invade a sociedade em todos os seus níveis, caracteriza maneiras de
ser e de agir desmedidamente perpetuada”. BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo.
Séculos XV-XVIII.Tomo I – “As Estruturas do Cotidiano”. Lisboa: Teorema, 1992, p. 12.
52 NORTH, Douglass C. Institutions, institutional changes and economic performance. Political Economy of
Institutions and Decisions. Cambridge: Cambridge University Press, 1990, p. 3.

466
economia de uma determinada sociedade.53 Como os indivíduos, via de regra, acabam agindo (ainda
hoje!) a partir de informações escassas e incompletas, conforme indicou Joseph Stiglitz (2001), cabe às
instituições oferecer certezas quanto ao comportamento presente e vindouro dos demais atores para
que os agentes possam fazer suas escolhas – dentro do leque de possibilidades oferecidas pela estrutu-
ra –, de maneira a alcançar um benefício máximo.54.

Isso significa que o papel das instituições está intrinsecamente relacionado, por um lado, com
os desejos e as estratégias dos indivíduos; e, por outro, com a estrutura em que está imerso, ou seja,
com “a visão do mundo própria ao indivíduo”, conforme indicam Hall e Taylor (2001, p. 223) em seu
artigo sobre as três versões do neo-institucionalismo.55 As instituições fornecem os modelos morais
e cognitivos que permitem a interpretação e a ação dos indivíduos. Portanto, de acordo com Hall e
Taylor, “as instituições exercem influência sobre o comportamento não simplesmente ao especifica-
rem o que se deve fazer, mas também o que se pode imaginar fazer num contexto dado”. Nessa pers-
pectiva, a ausência de certas instituições e a emergência e/ou o fortalecimento de outras, produziram,
no caso das colônias portuguesas na América, efeitos nocivos no desenvolvimento de uma economia
de mercado impessoal, burocrática e objetiva – nos moldes weberiano.

Concordamos com Witold Kula (1979, p. 115) quando o autor afirmou em seu trabalho sobre
as sociedades feudais que “o objetivo da História e da Antropologia Econômica é procurar saber como
os povos trabalhavam e geriam seus negócios econômicos em diferentes circunstâncias sociais”. Por
isso as ações dos indivíduos – arquitetadas conscientemente ou realizadas por acidente – são capa-
zes de iluminar melhor do que qualquer teoria as permanências estruturais de uma sociedade e seus
componentes de transformação. É exatamente isso que vimos fazendo ao longo de nossas ultimas
pesquisa: por meio da trajetória de determinados indivíduos, na maioria das vezes pessoas comuns,
conhecer melhor suas práticas, experiências e estratégias para atuar no mercado, em um contexto
pré-industrial.

Para levar a cabo essa tarefa buscamos a maior multiplicidade de documentos históricos possí-
veis, desde relatório oficiais produzidos pelo Estado português, como é o caso do Código Filipino ou
do acervo histórico do Arquivo Ultramarino, bem como da documentação eclesiástica, como as inves-
tigações produzidas pelo Santo Ofício para avaliar a admissão de membros para a Ordem; até docu-
mentos cartorários produzidos na América portuguesa, entre eles escrituras variadas (como compra
e venda, doação e empréstimo), procurações registradas em cartório (que gostaria, particularmente,
de destacar pelo seu enorme potencial, mas que ainda vem sendo pouco explorada pela historiografia
brasileira), processos de inventário e registros de testamentos. O resultado dessa multiplicidade de
documentos, sobretudo quando eles puderam ser cruzados, vem sendo permitindo a construção de
uma história dos agentes no mercado cada vez mais complexa e elucidativa.

53NORTH, Douglass C. Institutions, institutional changes and economic performance. Political Economy of
Institutions and Decisions. Cambridge: Cambridge University Press, 1990, p. 3.
54STIGLITZ, Joseph E. Information and the change in the paradigm in economics. Prize Lecture, December 8,
2001. THE Nobel Prizes 2001. Estocolmo: Tore Frängsmyr editor, 2002, p. 488-490.
55HALL, Peter A. e TAYLOR, RosemaryCR As trêsversões do neo-institucionalismo. Lua Nova, 2003, nº. 58,
p.193-223

467
Por exemplo, em várias situações durante nossa pesquisa nos acervos cartorários tivemos a
impressão de que estávamos diante de operações de troca envolvendo simplesmente vendedores de
um lado e compradores de outro – o que indicaria a presença de instituições impessoais que possibili-
tariam o funcionamento racional daquela “economia de mercado”, conforme o modelo weberiano. Foi
o que observamos no empréstimo contraído por Manoel Martins Corrêa e sua esposa Tereza Maria
Antunes.

O pai de Tereza, Manoel Antunes Castelo Branco, emprestou ao genro 175 oitavas de ouro,56
cedendo a ele à cobrança de uma execução que tinha a receber no Juízo da Ouvidoria e, conforme
relatou Manoel Martins Correa, de mais “um crédito que haviam recebido do dito seu sogro pelo qual
era devedor dele Manoel Teixeira”. Mas, apesar dos laços familiares que envolviam nesse caso credores
e devedores, a transação seguiu padrões impessoais e objetivos. Além de pagar “seus juros vencidos de
seis e quarto por cento até a última satisfação”, os devedores tiveram que hipotecar “o engenho em que
viviam”, a fim de oferecer maior segurança ao credor.57

Outro bom exemplo de precaução necessária para garantir um bom negócio pôde ser observa-
do na compra de “uma morada de casas citas na rua do fogo”, na vila de Sabará, em Minas Gerais. João
Ferreira da Silva deveria “pagar da feitura desta escritura a quatro meses”, o valor acordado junto ao
Doutor Domingos Lopes de Barros pela casa. Além de ter exigido a nomeação de fiadores, o vendedor
estipulou uma cláusula na escritura dizendo que “no caso que ele vendedor os não pedir logo ao todo
dito tempo, lhe pagará ele comprador os juros de seis e quarto por cento (6,25%) das ditas trezentas
oitavas de ouro enquanto este não lhe pagar”.58 Cobrança de juros e a fiança foram algumas das estra-
tégias usadas pelos vendedores para reduzir os custos de transação.

A mesma objetividade pôde ser observada também no momento da quitação de algumas dí-
vidas, como por exemplo, a contraída pelo Coronel Antônio Pereira de Macedo. Depois de quitado
o débito, as partes novamente voltaram ao notário para fazer uma “escritura de destrato e quitação”.
Conforme o procedimento padrão, o vendedor – no caso um padre chamado José Vieira da Mota
– precisou confirmar “na frente de testemunhas que havia recebido do Coronel Antônio Pereira de
Macedo 3370 oitavas de ouro procedidas de 21 escravos de uma conta de uma escritura”.59 A escritu-
ração da dívida – e, ainda por cima, diante da presença de testemunhas – pode ser considerada outra
estratégia para garantir a segurança, a objetividade e a eficácia de uma transação no mercado.

Por outro lado, encontramos trocas em que “princípios de mercado”, como a objetividade, a
racionalidade e a impessoalidade, passaram apenas ao largo. Um bom exemplo foi o caso da venda
que fizeram André Francisco Braga e sua esposa Dona Isabel Moreira de Castilho. De acordo com a
56 Nesse momento uma oitava de ouro em pó correspondia a 1$500 réis. Isso significa que o montante empres-
tado foi de 262$500 réis.
57 ESCRITURA de dívida e obrigação que fez Manoel Antunes Castelo Branco a Manoel Martins Correa. MO/
IBRAM – Casa Borba Gato: LN, CPO 11(35), folhas. 14-14v – 22/03/1745.
58 Os fiadores nomeados na escritura foram Sebastião de Almeida Vaz e Caetano da Costa Nogueira. Ver:
ESCRITURA de compra e venda que fez João Ferreira da Costa ao Doutor Domingos Lopes de Barros. MO/
IBRAM – Casa Borba Gato: LN, CPO 07(-), folhas 53-54 – 13/04/1735.
59 ESCRITURA de quitação que fez o padre José Vieira da Mota ao tenente-coronel Antônio Pereira de Mace-
do. MO/IBRAM – Casa Borba Gato: LN, CPO 04(03), folhas 83-83v – 06/04/1729.

468
escritura, foi vendido “um engenho moente e corrente de moer cana com bois e cavalos, casas de vi-
venda de sobrado cobertos de telhas com paiol senzalas, casas de hóspedes e um alambique que leva
vinte e cinco barris”; além de umas roças vizinhas ao Recolhimento de Macaúbas, com cerca de 30
escravizados e uma casa na Vila de Sabará, “ao pé da Igreja Grande”. Tudo isso pelo preço de 31 mil
cruzados – cerca de 13:000$000 réis. Em uma venda movimentando esse montante esperava-se um
contrato meticuloso, com critérios objetivos para a realização de uma “boa venda”. Mas não foi o que
aconteceu.

As condições apresentadas para que a transação fosse realizada denotavam, contudo, o caráter
pessoal da negociação. Conforme foi registrado no documento, a venda seria feita
com a condição de lhe dar de milho que se acha no campo 100 alqueires e de feijão
que se acha no campo 10 alqueires, os quais reservam para o gasto da casa deles ditos
vendedores (...) e enquanto ele dito comprador não terminar de pagar realmente os
pagamentos nesta estipulados poderão eles ditos vendedores plantar para seu gasto
na roça cita nas Macaúbas com três escravos todo o mantimento que lhe parecer.60

Outra condição imposta pelos vendedores seria a de que continuariam morando na casa em que resi-
diam na vila de Sabará (que entrou no conjunto de bens alienados), até que o comprador terminasse
de quitar toda a sua dívida – isto é, por pelo menos 11 anos!61

Portanto, a partir do exemplo da variação na taxa de juros máxima cobradas em transações de


crédito, ou da vivência individual de um agente no mercado, identificamos que, seja no nível das ins-
tituições, seja da experiência cotidiana, as motivações e os princípios que marcaram esses mercados
eram variados e extremamente complexos.

PAPEL DAS INSTITUIÇÕES NA CONSTRUÇÃO DE UM MERCADO NOS SERTÕES DA AMÉ-


RICA PORTUGUESA: UM ESTUDO DE CASO SOBRE A ARREMATAÇÃO DE CONTRATOS NA
CAPITANIA DE MINAS GERAIS EM SEUS PRIMÓRDIOS.

Desde os primórdios da ocupação das Minas, as fronteiras com a capitania da Bahia não es-
tavam bem definidas. Se no final do século XVII o Governador-Geral travou uma intensa luta contra
D. Rodrigo de Menezes, Governador do Rio de Janeiro, para trazer para a sua jurisdição os novos
achados minerais, a situação estava longe de estar resolvida na primeira metade do século XVIII. O fe-
chamento por quase uma década das rotas que ligavam a região mineradora à Bahia, com o intuito de
intensificar a ocupação e o domínio sobre a porção meridional da América portuguesa, não facilitou
em nada a ordenação daquele território. Mas foi após a criação da capitania de Minas Gerais, no ano
de 1720, que se avivaram as discussões acerca dos limites territoriais com a Bahia.

60 ESCRITURA de compra e venda registrada por José Teles de Anchieta junto ao alferes André Francisco
Braga. MO/IBRAM – Casa Borba Gato: LN, CPO 11(35), folhas 47-49v – 22/03/1745.
61 Ibidem.

469
Em 1722, o governo mineiro, sob a administração de D. Lourenço de Almeida, solicitou que
a Coroa estipulasse os limites entre Bahia, Pernambuco e Minas Gerais, haja vista as ordens vindas
do Vice-Rei Vasco Fernandes Cesar de Meneses,62 o 1º conde de Sabugosa, para que “até uma pas-
sagem do rio das Velhas, que fica dois dias de jornada do Sabará, ninguém obedece[sse] ao governo
das Minas nem a elas pagasse dízimos”.63 Com essa medida, o Vice-Rei, que também era governador
da Bahia, atraía para sua área de jurisdição todas as minas descobertas no chamado “Serro do Frio”
(dentre elas as “Minas Novas”), assim como as fazendas e currais que ocupavam boa parte da bacia do
rio das Velhas e do São Francisco. Para legitimar esse domínio, o governo baiano se valeu de diversos
pareceres e relatos que confirmariam ter sido aquela porção do território descoberta a partir de expe-
dições coordenadas à época pelo Governador-Geral.

Por outro lado, as autoridades da recém-criada capitania de Minas Gerais argumentavam que
a indefinição dos limites trazia uma “grande perda” para a Fazenda Real, “porque os dízimos não se
hão de pagar a estas minas com o pretexto do bando, e não hão de pagar à Bahia por causa da grande
distância em que ficam os moradores”.64 Além disso (e de acordo com o mesmo documento), “o bando
do Vice-Rei há de ser causa de se cometerem delitos atrozes porque como as justiças destas minas não
podem castigar as delinquências, nem a justiça da Bahia podem tomar conhecimentos dos delitos”,65
as leis eram transgredidas com grande frequência e, quase sempre, sem a punição necessária.

No ano seguinte o Conselho Ultramarino publicou um parecer no qual admitia a necessidade


de resolver a questão dos limites territoriais, mas que, para tanto, seria necessário ouvir as autorida-
des baianas, entre elas o Arcebispo, face à presença da Igreja na divisão territorial com as freguesias.66
Conforme relatamos no capítulo anterior, essa foi a justificativa apontada por Sebastião Barbosa do
Prado para a incapacidade de saldar o combinado na arrematação do contrato dos dízimos de Sabará
na década de 1720.

Interessado diretamente no controle dos sertões limítrofe à Bahia, devido aos negócios que
estabeleceu com poderosos agentes que atuavam naquela área, o governador D. Lourenço de Almeida
argumentava que a decisão do Vice-Rei ia de encontro à divisão das capitanias elaborada pelo Conde
de Assumar – conforme a provisão expedida pelo Conselho do Ultramar em 26 de março de 1720.
Nessa divisão, as duas capitanias seriam limitadas pelo “rio Verde, que dista da Vila Real do Sabará
62 Vasco Fernandes César de Meneses descendia de uma família de administradores coloniais. O 1º Conde
de Sabugosa foi  filho do ex-governador das capitanias do Rio de Janeiro (1690-1693), de Angola (1697-1701)
e governador-geral do Estado do Brasil (1705- 1710), D. Luís César de Meneses; e sobrinho por parte de mãe
de  João de Lencastre, que também fora vice-rei do Estado do Brasil. A respeito da família César, ver:  BE-
THENCOURT, Francisco. A administração da coroa. In: BETHENCOURT, Francisco e CHAUDHURI, Kirti
(Org.), História da Expansão Portuguesa. Lisboa: Círculo de Leitores, 1998, vol. 1, p. 397; GOUVEA, Maria
de Fátima, FRAZÃO, Gabriel Almeida e SANTOS, Marília Nogueira dos. Redes de poder e conhecimento na
governação do Império Português, 1688-1735. Topoi, Rio de Janeiro, vol. 5, nº. 8, jan.-jun. 2004, p. 51.
63CARTA de D. Lourenço de Almeida, governador das Minas Gerais, solicitando a ordem régia com declara-
ção dos limites territoriais de seu governo com o da Bahia, e que o Vice-Rei, Aires de Saldanha de Albuquerque,
a tornasse pública. AHU – Cons. Ultram. – Brasil/Minas Gerais Avulsos –: cx. 03 doc. 04 – 31/03/1722.
64 Ibidem.
65 Ibidem.
66PARECER do Conselho Ultramarino sobre a divisão da jurisdição da Comarca do Rio das Velhas. AHU –
Cons. Ultram. – Brasil/Minas Gerais Avulsos –: cx. 04 doc. 20 – 22/05/1723.

470
com pouca diferença 150 léguas e do dito rio Verde até a Bahia, outra tanta distância”.67

Apesar dos governadores de cada capitania terem publicado essa “real ordem de Vossa Ma-
jestade no último termo da sua jurisdição”, D. Lourenço de Almeida relatou que teve “notícia que os
moradores dos distritos que ficavam subordinados a estas minas, duvidaram obedecer a elas”. Por isso
“foi preciso para se arrematarem os reais dízimos de Vossa Majestade (...) mandar outro bando com
cópia para o Vice-Rei” e pedir a ele que mandasse “declarar aos moradores que ficavam subordinados
a este governo que obedecessem a sua justiça e que pagasse os dízimos a estes dizimeiros” subordina-
dos à capitania de Minas Gerais.68

Nessa época, um dos principais focos de tensão entre as autoridades baianas e mineiras eram as
minas recém-descobertas na bacia do rio Araçuaí, conhecidas como Minas Novas. Na provisão de 21
de maio de 1729, o Vice-Rei ordenou “que não obedecessem aqueles mineiros, nem ao governo destas
Minas nem ao Ouvidor Geral da dita comarca, entendendo que o tal descobrimento era pertencente
à jurisdição da Bahia”.69 Semelhante ao que aconteceu anteriormente, de um lado estava o Vice-Rei e
governador da Bahia argumentando que as novas minas estariam sob a jurisdição baiana, uma vez que
teriam sido descobertas em decorrência de expedições que partiram da Bahia; de outro as autoridades
mineiras, que argumentava serem aquelas minas parte de sua jurisdição, já que estariam abaixo do rio
Verde – limite entre as Minas e a Bahia, conforme havia definido o Conde de Assumar.70

O resultado foi que “o povo nos ditos descobrimentos” queriam pertencer a Bahia. Isso, de
acordo com o ouvidor do Serro do Frio, Antônio Ferreira do Vale,
porque uns por endividados e outros por criminosos desejam longe a justiça, por
distar deles a dita cidade [da Bahia] mais de um mês de jornada e todos pretendem
livrar-se da Real Casa de Fundição (...), querendo a imitação das da jacobina e Rio
das Contas, pertencentes a mesma cidade, pagar os quintos por bateias.71

   

Além do “desagrado e repugnância” com que os moradores daquela área “mostram ao governo
67SOBRE a determinação dos limites deste governo com o da Bahia e Pernambuco. RAPM, Belo Horizonte,
ano XXXI, 1980, p. 76.
68SOBRE a divisão deste Governo com os da Bahia e Pernambuco. RAPM, Belo Horizonte, ano XXXI, 1980,
p. 106-107.
69CARTA de D. Lourenço de Almeida, governador das Minas Gerais, sobre a deserção dos mineiros para No-
vas minas e sobre o descaminho do ouro. AHU – Cons. Ultram. – Brasil/Minas Gerais Avulsos –: cx. 13 doc.
40 – 30/11/1728.
70O rio Verde era o limite entre as Minas e a capitania da Bahia, segundo a divisão feita pelo Conde de Assu-
mar. E como “ficam os ditos descobrimentos da parte do rio Jequitinhonha para aquele Serro do Frio, onde
corre aquele rio em direitura ao leste, e metendo no Araçuaí que fica daquela mesma parte(...) e todo o sertão
chamado Caeté, que se estende por ela abaixo”, o ouvidor Antônio Ferreira do Vale entendia que aquelas minas
faziam parte da sua jurisdição, uma vez que era pertencente à capitania de Minas Gerais. Ver: PARECER do
Conselho Ultramarino sobre a informação do ouvidor geral da Comarca do Serro do Frio, António Ferreira do
Vale, relativa aos descobrimentos das Minas nos sertões da Bahia. AHU – Cons. Ultram. – Brasil/Minas Gerais
Avulsos –: cx. 14 doc. 14 – 14/03/1729.
71Segundo o ouvidor do Serro do Frio, admitir que essas minas faziam parte da jurisdição da Bahia e, portanto,
estavam sob as leis daquela capitania no que tange ao pagamento do quinto, permitiria que todos aqueles que
“daquelas minas quiserem levar ouro em pó para fora” encontrassem a facilidade para fazê-lo, sem restrições
legais. Ver: Ibidem.

471
das Minas”, o Vice-Rei invocava, para justificar o domínio sob as Minas Novas, “a maior vizinhança
que as ditas minas têm a capital da Bahia”, assim como a “facilidade e comodidade com que poderão
nela ser socorridos os mineiros ainda por mar”.72 Afinal, com aquelas minas sob a sua jurisdição se
multiplicariam “os contratos fazendo-se novas arrematações dos dízimos, caminhos e passagens para
as novas minas na Bahia”.73

Diante desse imbróglio, e do histórico de desordens devido à cobrança de impostos naqueles


sertões (VASCONCELOS, 1948, p. 39-40), a Coroa portuguesa escolheu agir com parcimônia, bus-
cando não acirrar os conflitos já existentes. Em seu parecer, o Conselho Ultramarino concordava que
as Minas Novas poderiam ser com “mais facilidade socorridas de víveres e gêneros necessários pela
Bahia do que pelo Rio de Janeiro”. Pois “se pelo caminho da Bahia se forneciam até agora as minas an-
tigas, que dúvida pode haver que o mesmo se pratique com as novas”?74 Em seu parecer, o conselheiro
argumentava ainda que
antes se deve cuidar muito a que  todos os caminhos se façam pelo Sertão  e que
saiam em nas terras mais principais e fortes pelas perniciosas consequências que do
contrario se podem seguir tanto a respeito da extração do ouro, como da segurança
das mesmas minas.75

Por outro lado, o Conselho Ultramarino acabou por delegar ao Ouvidor do Serro do Frio a
autoridade sobre aquelas cercanias, ordenando inclusive que ele passasse “para aquela povoação a sua
residência”.76

Devido às indefinições nos limites entre as capitanias de Minas Gerais, Bahia e Pernambuco, o
Provedor da Fazenda Real das Minas, Antônio Berquó del Rio, escreveu ao Rei questionando
do que poderiam render estes dois ramos da Bahia e Pernambuco sendo arremata-
dos por aquelas capitanias, que importava em coisa muito limitada em comparação
de quatro arrobas e mil oitavas, que tem de interesse a Real Fazenda de Vossa Ma-
jestade pertencendo estes ramos a estas Minas.77

72“E juntamente a consternação em que se verão aqueles habitadores em se acharem constrangidos a fazerem
uma dilatada jornada para quitarem o seu ouro”. Ver: Ibidem.
73Ibidem.
74“Mas antes se deve cuidar muito a que todos os caminhos se façam pelo Sertão e que saiam em nas terras
mais principais e fortes pelas perniciosas consequências que do contrário se podem seguir tanto a respeito da
extração do ouro, como da segurança das mesmas minas. Ver: PARECER do Conselho Ultramarino sobre a
informação do Ouvidor da comarca do Serro Frio Antônio Ferreira do Vale... op. cit.
75Ibidem.
76Além disso, recomendou ao Ouvidor que tratasse “os novos descobridores com tal temperamento, que nem
falte a justiça, nem pratique com rigor”. Ver: Ibidem
77 CARTA de Antônio Berquó del Rio, provedor da Fazenda Real, informando de todos os contratos dos Dízi-
mos da Comarca do Sabará e Serro do Frio. AHU – Cons. Ultram. – Brasil/Minas Gerais Avulsos –: cx. 5, doc.
48 – 23/08/1724. Segundo Claudia Cristina A. Atallah, o referido provedor, um homem letrado, “havia feito
uma profunda pesquisa acerca dos Regimentos” para destacar a jurisdição do provedor frente a do ouvidor, face
os conflitos de jurisdição dos oficiais régios, principalmente no tocante as fronteiras do Império. ATALLAH,
Claudia Cristina A. Fronteiras políticas de Antigo Regime: conflitos de jurisdição na América portuguesa.

472
Nessa mesma carta o Provedor da Fazenda alertava ainda para “as desordens que se seguiam naqueles
sertões, não estando cabalmente determinado a que justiças pertenciam os seus habitadores”.

A resolução tomada pela Coroa para esse conflito foi, na verdade, uma institucionalização das inde-
finições jurisdicionais, em consonância com a prática política característica das monarquias corporativas. De
acordo com António Manuel Hespanha (2001, p. 118), a organização política portuguesa derivava da Segunda
Escolástica, que defendia a existência de uma ordem universal em que “o justo, o lícito e o politicamente possí-
vel estavam definidos numa ordem do mundo anterior e superior à vontade dos homens, mesmo dos monar-
cas”.78 Isso explicaria, os limites das decisões políticas do Rei e a relativa autonomia de Vice-Reis, Governadores,
Ouvidores e de outras autoridades coloniais. Essa relativa autonomia era o que garantia a governabilidade.
Segundo Ernst Pijning (2001, p. 402), “a Coroa mantinha sua administração sob controle manipulando sua
estrutura com uma série de fiscalizações e balanços, para que os administradores controlassem uns aos outros”,
tanto no nível das hierarquias administrativas quanto no dos oficiais individuais.

Diante do confronto entre os poderes autônomos, a estratégia adotada pelo centro referencial do poder
foi o constante deslocamento das jurisdições. Como resultado dessa dinâmica, a esfera das trocas mercantis,
tanto nas Minas Novas, como em todo vasto sertão que ficava nos limites entre as capitanias de Minas Gerais
e da Baia, acabou sendo caracterizada pela instabilidade, pela inconstância, pelos descaminhos e pelos contra-
bandos.79

As indefinições dos limites jurisdicionais e territoriais representaram um importante empecilho para o


desenvolvimento dos negócios nas áreas entrecortadas pelo circuito mercantil que ligava Minas Gerais à Bahia.
Contudo, a insegurança e a instabilidade naqueles sertões acabaram sendo atenuados a partir da organização
dos indivíduos em torno de complexas redes sociais de negócios que contavam, invariavelmente, com a parti-
cipação de magistrados, governadores e/ou outras autoridades coloniais. Na mesma medida, em um cenário
como esse, a governabilidade só poderia ser alcançada através de emaranhadas relações entre os administrado-
res coloniais e os potentados locais, que acabavam assim por monopolizar as principais oportunidades econô-
micas disponíveis naqueles mercados.

Por isso, apesar de não existir mais restrições formais para a realização dos negócios nos sertões limí-
trofes entre Minas Gerais e Bahia desde pelo menos o ano de 1711, apenas alguns negociantes estiveram aptos
a participar de maneira efetiva e constante naquele território. Em um lugar de difícil acesso, controlado por
“régulos”, cujos limites jurídicos e administrativos não estavam ainda bem definidos, e com todas as fragilidades
institucionais que a distância do centro referencial do poder podem gerar, era fundamental a participação de
funcionários da Coroa portuguesa nas redes de sociabilidade e negócio, a fim de garantir menores riscos nos
negócios realizados naqueles sertões.

Além da comarca do Serro do Frio e, mais especificamente, das Minas Novas, outra área de intenso

78Nesse sentido, o papel da autoridade real deveria ser o de administrar a autonomia político-jurídica dos
corpos sociais. Ver: XAVIER, Ângela Barreto e HESPANHA, Antônio Manuel. A concepção corporativa da
sociedade. In: MATTOSO, José (org.) História de Portugal. Vol. II. Lisboa: Círculo de Leitores, 1993.
79Ver, por exemplo: PARRELA, Ivana. O teatro das desordens: garimpo, contrabando e violência no sertão
diamantino. São Paulo: Annablume, 2009.

473
conflito entre as autoridades baianas e mineiras foi a Barra do Rio das Velhas.80 Ao colocar em prática uma
política mais efetiva de tributação e, concomitantemente, de redução do poder de alguns régulos do sertão, o
Conde Assumar, no final da década de 1710, proibiu o pagamento de foros à D. Isabel Maria, herdeira do gran-
de donatário Antônio Guedes de Brito e viúva do Coronel Antônio da Silva Pimentel.81

De acordo com a carta régia “os moradores do Papagaio e os mais que ficam até a Barra do Rio das Ve-
lhas da parte que pertence a este governo” não deveriam pagar os foros “por parecer a sesmaria da dita D. Isabel
se não podia estender tão longe”.82 Com essa medida, o Conde de Assumar ao mesmo tempo em que criava
condições para que os contratadores (dos dízimos, entradas e passagens) pudessem atuar naquela região, di-
minuindo seus riscos e aumentando suas receitas; dava um duro golpe em alguns potentados daqueles sertões,
como Manoel Nunes Viana, que estava intrinsecamente ligados à D. Isabel Maria Guedes de Brito.

Conforme chamou atenção Diogo de Vasconcelos, os povoamentos fundados nos sertões podiam ser
classificados em dois tipos: “os legais, que provinham de bandeiras e pertenciam ao domínio régio (...); e os
de domínio particular, que eram fundados por iniciativa e à custa dos sertanistas, sendo, pois, de sua proprieda-
de, quase fazendas, que até passavam aos herdeiros” (VASCONCELOS, 1948, p. 30-40). Foi a partir deste último
modelo de povoamento que se assentaram as bases para a ocupação do distrito do Papagaio, na barra do rio das
Velhas. De acordo com o Coronel Martim Afonso,83 morador no Mato Dentro, foi Antônio Guedes de Brito o

descobridor do rio de São Francisco e rio das Velhas extinguindo das ditas partes
o gentio bárbaro, gastando no dito descobrimento quantidade de cabedal; com-
prando metade das terras a Bernardo Vieira Ribas o secretário de Estado do go-
verno da Bahia, e depois continuara no dito descobrimento seu genro o coronel
Antônio da Silva Pimentel, vindo em própria pessoa à diligência, e mandara con-
tinuar nela por seus feitores e administradores até a barra do Rio das Velhas. Estes

80 Para Diogo de Vasconcelos todo o sertão limítrofe entre Minas e Bahia era uma área em que os conflitos
se propagavam sem muita dificuldade. Segundo o autor, “a esse mesmo tempo, no rio Verde, o cobrador da
capitação, André Moreira, foi repelido e expulso à bala por populares amotinados. Estes fatos, porém, foram
de menos importância que os motins de Montes Claros promovidos por André Gonçalves Figueira e que os de
Urucuia, por Matias Cardoso de Oliveira”. Ver: VASCONCELOS, Diogo L. A. P. de. História Média de Minas
Gerais. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1948, p. 127.
81A respeito da família do mestre de campo Antônio Guedes de Brito, cujos domínios originaram a sesmaria
da Casa da Torre ver, por exemplo: NEVES, Erivaldo Fagundes. Estrutura fundiária e dinâmica mercantil. Alto
Sertão da Bahia, séculos XVIII e XIX. Salvador/Feira de Santana: EDUFBA/UEFS, 2005; PIRES, Simeão Ribei-
ro. Raízes de Minas. Montes Claros: edição do autor, 1979, p. 97 ss.
82REQUERIMENTO de Martim Afonso de Melo, coronel, solicitando a d. João V a mercê de mandar passar
segundas vias das ordens dadas ao governador de Minas, D. Pedro de Almeida Portugal, e ao provedor da Co-
marca de Vila Real, respeitantes aos danos que o Padre Antônio Curvelo e outros lhe haviam causado. AHU
– Cons. Ultram. – Brasil/Minas Gerais Avulsos –: cx. 2, doc. 50 – 03/03/1720 – grifos nossos. Em seguida, João
Velho Barreto, procurador de D. Isabel, pediu a revogação da decisão, solicitando que se pagassem normalmen-
te os foros a D. Isabel de Brito. Seu procurador argumentava que aquelas terras estavam sendo ocupadas e que
foram conquistadas pelo pai de D. Isabel “as suas custas” e “na boa fé de lhes pertencerem e continuarem na
sua sucessão e descendência”. Ver: AUTO de inquirição de testemunhos feitos pelo corregedor Luis de Souza
Valdez (sic), da comarca do Rio das Velhas, sobre Isabel Maria Guedes de Brito, descobridor dos sertões da
Bahia, rio de São Francisco e rio das Velhas. AHU – Cons. Ultram. – Brasil/Minas Gerais Avulsos –: cx. 5, doc.
417 – 11/08/1724.
83 Também cooptado para integrar as redes de sociabilidade e negócios que passariam a controlar os contratos
referentes à porção setentrional de Minas Gerais, arrematando o contrato dos dízimos de Sabará e Serro do
Frio, na sequência de Sebastião Barbosa do Prado. Ver: REQUERIMENTO de Manoel Rodrigues Pereira, ar-
rematador dos Dízimos de três Comarcas das Minas, solicitando que lhe pago o qe lhe era devido do contrato
do Sabará... op. cit.

474
pois mandara abrir [ainda] as estradas até o Curral Del Rey.84

A solução encontrada por Assumar para efetivar o projeto de domínio sobre os sertões de Mi-
nas Gerais foi criar uma vila naquele distrito, implantando assim o modelo legal de povoamento. Para
tanto os agentes a serviço da Coroa, devido aos vazios de poder típicos das monarquias corporativas,
buscaram apoio junto a alguns potentados do sertão, oferecendo-lhes a possibilidade de servir a Coroa
e de participar do lucrativo negócio da arrematação de contratos régios. Segundo Ronald Raminel-
li, em um império de dimensões pluricontinentais, as “teias informativas” que envolviam o Rei, sua
administração e os demais vassalos, constituíam-se um elemento fundamental para manutenção do
poder real e para garantia da governabilidade (RAMINELLI, 2008).

Faustino Rebelo Barbosa foi um dos potentados do sertão mineiro cooptados pelo Conde de
Assumar para tal intento. Barbosa figurava como um dos mais antigos moradores das cercanias de
Sabará, atuando, por exemplo, na fiscalização dos Caminhos do Sertão da Bahia. Em 1703 arrecadou
20 oitavas de ouro em bens confiscados e no ano seguinte 79 oitavas por ter denunciado carregações
e/ou comboios que ilegalmente atravessaram a Bahia em direção às regiões mineradoras.85 Mas como
já indicamos anteriormente, era comum aos indivíduos responsáveis pela fiscalização, adotarem prá-
ticas que eles mesmos deveriam coibir, ou pelo menos controlar (PIJNING, 2001). Nesse sentido, da
mesma forma que Faustino Rebelo Barbosa figurou no papel de fiscalizador, denunciando comboios
e carregações clandestinas, foi vítima de outros agentes fiscalizadores, tendo uma de suas carregações
enviadas ilegalmente pelos Caminhos dos Sertões e Currais da Bahia apreendida, em 1704.86

Mesmo assim, em 1718, o então mestre de campo Faustino Rebelo Barbosa87  registrou no
cartório da vila de Sabará uma escritura de fiança referente ao “Contrato do Registro da Estrada Real
da Bahia e Pernambuco pelos caminhos dos currais para esta vila”, que fora arrematado “por tempo
de um ano que principia a correr do primeiro dia do mês de outubro próximo”, pelo “preço e quantia
de dezoito mil e duzentas oitavas de ouro”.88 Como Faustino Rebelo Barbosa ficou responsável pelas
cobranças dos tributos nos “caminhos dos currais para esta vila” do Sabará, um dos trechos a serem
fiscalizados era justamente as terras pertencentes a D. Isabel, na barra do rio das Velhas.

84AUTO de inquirição de testemunhos feitos pelo corregedor Luis de Souza Valdez (sic), da comarca do Rio
das Velhas, sobre Isabel Maria Guedes de Brito... op.cit.
85APÊNDICE documental. Revista do SPHAN, Rio de Janeiro, vol. IX, 1945, p. 306. Sobre o procedimento de
denunciantes e arrematantes das mercadorias confiscadas nos Caminhos dos Sertões e Currais da Bahia, ver:
CARRARA, Ângelo. As minas e os currais: produção rural e mercado interno de Minas Gerais 1674-1807. Juiz
de Fora: UFJF, 2007, p. 124-132.
86AUTO contra Faustino Rebelo Barbosa. BN/RJ: Divisão de Manuscritos, I-25, 26, 29 – 04/04/1704.
87Segundo Carlos Kelmer Mathias, a mercê de mestre de campo de um terço de auxiliares, foi concedida a
Faustino Rebelo Barbosa no final do governo de D. Brás Baltasar. Ver: MATIAS, Carlos Leonardo Kelmer. O
sistema de concessão de mercê como prática governativa no alvorecer da sociedade mineira setecentista: o caso
da (re) conquista da Praça do Rio de Janeiro em 1711. SAECULUM – Revista de História, João Pessoa, n. 14,
jan/jun 2006, p. 32.
88ESCRITURA de fiança que fez o mestre de campo Faustino Rebelo Barbosa. MO/IBRAM – Casa Borba Gato:
LN, CSO 01(04), fls. 124v-125v – 23/09/1717. Os fiadores (e sócios) no contrato foram: Coronel Antônio de Sá
Barbosa e o capitão Francisco Duarte de Meireles.

475
Em uma área controlada por potentados, seria preciso a força do poder público para efetuar as
cobranças dos impostos; da mesma maneira que para erigir uma vila em um distrito governado por
“régulos”, seria preciso do apoio financeiro, logístico e militar de um potentado do sertão. Foi assim
que o Conde de Assumar e o mestre de campo Faustino Rebelo Barbosa uniram forças. Barbosa ofe-
receu a possibilidade de pacificar os sertões no território por onde passavam os Caminhos dos Sertões
e dos Currais da Bahia e, de quebra, a construção de uma casa de fundição na vila de Sabará. Em
contrapartida, o Conde de Assumar lhe facilitou a arrematação daquele contrato e lhe prometeu uma
indicação junto ao Rei para que conseguisse o hábito de Cavaleiro da Ordem de Cristo, com 12$000
anuais de tença.89

Assim, “no ano de 1719 partiu o mestre de campo Faustino Rebelo Barbosa com as ordens
de Sua Majestade” e em acordo com a “portaria do Conde de Assumar, governador das Minas, e a do
Doutor Bernardo Pereira de Gusmão, Ouvidor de Sabará, para estabelecer as passagens do rio das
Velhas (...) e serenar os povos que se haviam sublevados na fundação da vila do Papagaio havia quatro
meses”.90 Mas chegando na fazenda da “Piedade se introduziram cinquenta e tantos amotinados com
tenção de o assassinarem, havendo entre eles mil votos de lhe tirarem a vida, quando não desistisse
da diligência”. Diante disso, o mestre de campo teria ido “com prudência e zelo domesticando aquele
distúrbio, mostrando-lhes as ordens”, e provando que era “gosto de Vossa Majestade dividir a Bahia,
aquele distrito ao governo das Minas”. Contudo, os amotinados, “respondendo a todos a uma voz
[que] não dava obediência as Minas”, teriam aceitado apenas a condição de que os valores arrematados
naquela passagem fossem depositados em juízo, até definir “o governador de quem eram súditos”.91
Mesmo assim, no outro dia, “se amotinaram novamente dizendo que não queriam passagens arrema-
tadas”, o que teria levado o mestre de campo a se retirar dali “com prudente modo, levando por escrito
do povo assinando a sua repugnância”. Esse documento teria sido entregue ao “Conde-Governador”
no mesmo ano.92

Durante o governo de D. Lourenço, o novo ouvidor de Sabará José de Souza Valdez acompa-
nhou o mestre de campo Faustino Rebelo Barbosa em uma nova diligência à barra do rio das Velhas.
Nessa ocasião acabou por “erigir as ditas passagens, domesticando alguns renitentes”. Em carta en-
dereçada diretamente ao rei D. João V, o ouvidor relatou que além de Barbosa, o acompanharam na
89REQUERIMENTO de Faustino Rebelo Barbosa, mestre de campo, e morador na Vila Real do Sabará, solici-
tando a D. João V que lhe mande passar os despachos necessários para que lhe faça a mercê do Hábito de Cristo.
AHU/ Cons. Ultram. – Brasil/Minas Gerais Avulsos –: cx. 18, doc. 8 – 13/02/A731.
90O motim contra a criação da vila do Papagaio foi encabeçado pelo padre Antônio Curvelo, “vigário da fre-
guesia de N S. do Bom Sucesso que dista do dito sítio mais de 105 léguas”. Essa diligência, interrompida pela
ação de homens fortemente armados, tinha por objetivo criar o termo do papagaio que abrangeria todo “sítio
das Serras, compreendidas entre os morros do Serro Frio, até a barra do rio da Velhas, barra do Paraopeba e
de Pitangui”. O objetivo da criação dessa vila pelo governador de Minas Gerais, Conde de Assumar, era que
“os moradores dela reconhecessem serem séquitos ao seu governo, e não o da Bahia”. Ver: REQUERIMENTO
de Martim Afonso de Melo, coronel, solicitando a d. João V a mercê de andar passar segundas vias das ordens
dadas ao governador de Minas... op. cit.
91REQUERIMENTO de Faustino Rebelo Barbosa, mestre de campo, solicitando o traslado da ordem que lhe
foi dada pelo ouvidor-geral e provedor da Fazenda Real de Vila Rica (sic) para que o suplicante estabelecesse
e arrendasse as passagens do rio das Velhas. AHU/ Cons. Ultram. – Brasil/Minas Gerais Avulsos –: cx.6, doc.
9 – 25/01/1725.
92Ibidem.

476
empreitada o mestre de campo André Gomes Ferreira e o Coronel Manoel de Mendonça Corte Real.93
Nessa ocasião em que Barbosa voltou ao Distrito do Papagaio, “uma légua antes de chegar ao dito sí-
tio, encontrei quantidade de cavaleiros e reconhecendo-os vi que com notável barbárie me buscavam
para me irem aquartelar” – relatou o Ouvidor. Mas a diligência teria sido um sucesso, pois “arrematou
por 300 oitavas as passagens” daquele trecho do rio das Velhas. Segundo Valdez o reduzido valor se
justificava na medida em que “se abriu um caminho novo para a Bahia, sem ter passagem alguma”.94

Mas se naquele ano tudo correu bem, em 1721, quando o mestre de campo “tornou a rematar
as passagens”, os povos teriam se amotinado novamente. D. Lourenço, governador das Minas, teria
mandado então que o mestre de campo prendesse “os insultores, que os não achando reedificou as
passagens com escravos seus” – conforme certificou o juiz do distrito do Papagaio, Frutuoso Nunes do
Rego, em 15 de janeiro de 1725.

As constantes notícias de motins e violências na barra do rio das Velhas causaram enormes
desconfianças por parte das autoridades régias. Isso, porque o contratador Faustino Rebelo Barbosa,
ora alegava que não conseguia cobrar os impostos devido à “repugnância dos povos ao governo das
Minas”; ora argumentava “que do rendimento da passagem contígua a ela, fizesse tais e tais despesas”
para manter a passagem. O fato era que os valores acordados raramente eram pagos integralmente à
Fazenda Real.95 

Em certa altura veio a ser revelado “que, pouco depois, [Barbosa] comprara a fazenda de um
Francisco de Araújo Velho, senhor de uma destas passagens e que durante muitos anos a estava des-
frutando com canoas suas, a qual o dito Faustino Rebelo levava ordem expressa para também arren-
dar”. Dessa forma, como seria possível “que o povo se lhe opusera à execução”, mas quando o mestre
de campo foi “comprar as mesmas fazendas e a mesma passagem, o não haver para ele a oposição que
houve a minha fazenda”? – questionava o Conselho Ultramarino.96

Ao que tudo indica, Faustino Rebelo Barbosa se aproveitou das indefinições administrativas,
omitindo os reais valores arrecadados nas passagens do rio das Velhas, valendo-se da desculpa de não
conseguir cobrar os impostos por estarem os povos inclinados a serem governados pela Bahia. Além
disso, jogava com os vazios de poder. Afinal como potentado que era, possuía fortes aliados ligados às
autoridades coloniais e, sobretudo, parceiros que atuavam nos sertões, muitas vezes alheios à interfe-
rência direta da Coroa portuguesa.

Como chamou atenção Maria Odila Dias, o predomínio do poder dos potentados locais mar-
93 “Cidadão da cidade da Bahia [e] Juiz Ordinário dos Órfãos nesta Vila Real de N. S. da Conceição do Sabará”
e, assim como André Gomes Ferreira, era tido “como inteligente e prático daqueles sertões”. Ver: CERTIDÕES
que me passou José Fernandes. MO/IBRAM – Casa Borba Gato: LN, CPO 03(02), fls. 65-70 – 25/07/17121.
94Ainda segundo o Ouvidor da vila de Sabará: “Também anda na praça a passagem a que chamam de Francisco
Duarte de Meireles do Rio das Velhas, e até agora não há lance algum”. Ver: CARTA de José de Souza Valdez,
ouvidor-geral de Vila Real, para D. João V, dando conta da forma pacífica como tomara posse e arrematara
as passagens do sítio do papagaio. AHU/ Cons. Ultram. – Brasil/Minas Gerais Avulsos –: cx. 2, doc. 117 –
12/07/1721.
95SOBRE as passagens da Barra do Rio das velhas e outras. In: RAPM, Belo Horizonte, ano XXX, 1979, pp.
121-2.
96 Ibidem.

477
caria indelevelmente vida social em Minas Gerais nas primeiras décadas dos setecentos, “pois a Coroa
dependia deles para qualquer iniciativa, desde a abertura de caminhos, construção de capelas, dos
prédios públicos, até a cobrança dos contratos dos principais impostos” (DIAS, 2002, p. 77). Com
isso, concluiu a autora, “as principais autoridades administrativas, como ouvidores, superintendentes,
tratavam com eles as medidas a tomar respeito de qualquer decreto da Coroa, de modo que acabavam
tendo seus interesses irremediavelmente enredados aos seus” (DIAS, 2002, p. 77). Assim, as relações
entre os potentados e os governadores/magistrados, além de render vultosos lucros, garantiam tam-
bém a governabilidade nos sertões da América portuguesa.97

Contudo, na mesma medida em que o mestre de campo Faustino Rebelo Barbosa, grande
potentado dos sertões das Minas, tinha seus interesses “irremediavelmente enredados” aos do Conde
de Assumar e aos do antigo Ouvidor de Sabará, Bernardo Pereira de Gusmão, acabaria se tornando
inimigo de seus sucessores, D. Lourenço de Almeida e José de Souza Valdez, respectivamente.98 O
Governador e o Ouvidor, cada qual por seu motivo e a sua maneira fizeram de tudo para “lhe tirarem
a arrematação das passagens do rio das Velhas” durante as suas gestões.99

Considerado devedor da Fazenda Real “por um contrato do Caminho do Sertão”, Faustino


Rebelo Barbosa foi condenado a ter seus bens sequestrados – conforme deliberação do Conselho
Ultramarino.100 O mestre de campo recorreu da decisão e apresentou a sua versão para os fatos. De
acordo com Faustino Rebelo Barbosa, depois de sua arrematação (em 1718) teria sido “João de Amo-
rim quem arrematou as ditas passagens”. Mas por causa da imprudência do novo rendeiro, que havia
tratado “os passageiros por muitos modos agravando-os com palavras e ofendendo-os”, resolvendo as
pendências com “cutiladas, tiros, mortes”; ele mesmo teria restabelecido a passagem “para não perder
tantas diligências”.101 

Depois de algum tempo, segundo declarou o mestre de campo, “com amparo do suplicante,
assistência nas suas casas, dinheiro e mantimentos”, os novos rendeiros acabaram assumindo as passa-
gens. Mas, inesperadamente, eles teriam se ausentado “para as minas sem mais causa ofensa, ou como
condição da sua covardia, ou talvez arrependidos do negócio que tinham feito com o dito rendeiro”.
97Ver: GOUVEIA, Maria de Fátima. Redes governativas portuguesas e centralidades régias no mundo portu-
guês. C. 1680-1730. In: FRAGOSO, João L.; GOUVÊA, Maria de Fátima (org.) Na trama das redes: política e
negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
98 São bem conhecidos os negócios que o Conde de Assumar realizou durante o período em que esteve nas
Minas.  Vitorino Magalhães Godinho chegou a afirmar que Assumar acumulara cerca de 100 mil cruzados.
GODINHO, Vitorino Magalhães. A estrutura da sociedade portuguesa. Lisboa: Arcádia, 1977, p. 93. Sobre as
redes clientelares e as atividades comerciais do Conde de Assumar em Minas Gerais ver: MATHIAS, Carlos
Leonardo K. No exercício de atividades comercia, na busca da governabilidade: D. Pedro de Almeida e sua rede
de potentados nas minas do ouro durante as duas primeiras metades do século XVIII. In: FRAGOSO, João L.;
ALMEIDA, Carla Maria C. de; SAMPAIO, Antônio Carlos J. Conquistadores e Negociantes: história de elites
no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
99SOBRE as passagens da Barra do Rio das velhas e outras... op. cit.
100 CERTIDÕES passadas por Antônio Pereira Lopes, escrivão da Ouvidoria Geral de Correição de Vila Real,
sobre os vários crimes cometidos pelo ouvidor-geral da Comarca do Sabará, José de Souza Valdez. AHU/ Cons.
Ultram. – Brasil/Minas Gerais Avulsos –: cx. 5, doc. 116 – 12/04/1724.
101REQUERIMENTO de Faustino de Rebelo e Barbosa, mestre de campo de Vila Real de Nossa Senhora da
Conceição, recorrendo contra a decisão do Conselho Ultramarino sobre o lhe tirarem a arrematação das passa-
gens do rio das Velhas. AHU/ Cons. Ultram. – Brasil/Minas Gerais Avulsos –: cx. 9, doc. 85 – 0/0/1726.

478
Nessas circunstâncias que Faustino Rebelo Barbosa teria assumido novamente a administração das
passagens do rio das Velhas.102 É claro que os argumentos apresentados pelo Faustino Rebelo Barbosa
não foram suficientemente convincentes e o resultado foi a condenação do mestre de campo à prisão,
em 1726.103

Apesar da inimizade angariada junto a duas das maiores autoridades a serviço da Coroa – a
saber, o Ouvidor de Sabará e o Governador de Minas Gerais –, Faustino Rebelo Barbosa contava
com uma complexa, extensa e influente rede de sociabilidade e negócios. Em nossa amostragem – c.f
Tabela 1 – o nome do mestre de campo figurou em 23 escrituras de procuração bastante. Barbosa foi
nomeado como procurador “nesta vila [de Sabará]” por 19 indivíduos e por outros dois foi nomeado
como procurador “no sertão”.104

TABELA 1 – Redes de procuradores das quais fazia parte o mestre de campo Faustino Rebelo Barbosa.

LOCAL DO PROCURADOR N. %
África 6 1,6
Lisboa 21 5,4
Norte de Portugal 39 10,1
Rio de Janeiro e São Paulo 40 10,4
Pernambuco 12 3,1
Bahia (Salvador e Recôncavo) 60 15,5
Sertão do rio São Francisco 16 4,1
Minas do Serro do Frio e Minas Novas 21 5,4
Minas do rio das Velhas 158 40,9
Outras vilas de Minas Gerais 13 3,4
TOTAL 386 100
FONTE: MO/IBRAM – Casa Borba Gato: LN (CPO e CSO) – 1717-
1750.

De fato, o mestre de campo circulava intensamente entre os sertões do rio das Velhas e a
sede da comarca. Quando foi enviada uma carta escrita “pelo secretário das mercês (...) ao suplicante
prometendo-se o Hábito de Cristo”, Faustino Rebelo Barbosa “se achava ausente no sertão da Bahia
a negócios que tinha”. E era justamente em Sabará e nos sertões limítrofes entre Minas e Bahia que
operavam as redes de sociabilidade e negócios nas quais ele estava mais integrado.

Nas 23 escrituras em que consta o nome de Barbosa como procurador, nada menos do que
66% dos procuradores se encontravam em locais como Sabará, Caeté, Serro do Frio, Minas Novas,
“rio de São Francisco”, Cachoeira e Salvador – isto é, ao longo do circuito mercantil que ligavam Minas
ao Atlântico, via Bahia. Entre aqueles que nomearam Faustino Rebelo Barbosa como seu procurador,
102Ibidem.
103“E sendo culpado nela o Mestre de campo Faustino Rebelo, o prendeis e remeteis preso ao limoeiro com tal
segurança e resguardo que se não ponha em perigo o sossego das Minas”. CARTA de Matias Pereira de Souza,
participando sua viagem de nove dias ao Curralinho e Papagaio, e verificando as condições dos oficiais nestas
zonas. AHU/ Cons. Ultram. – Brasil/Minas Gerais Avulsos –: cx. 11, doc. 29 – 18/07/1727.
104Fonte: MO/IBRAM: LN (CPO e CSO) – 1717-1750.

479
cabe destacar o nome João de Souza Souto Maior, que fez parte da rede de fiscais dos Caminhos dos
Sertões da Bahia, na primeira década dos setecentos.105 Souto Maior era proprietário do sítio das Abó-
boras, que mais tarde se tornaria em um dos principais registros fiscais dos Caminhos dos Sertões da
Bahia; e, juntamente com José Nunes Neto, arrematara o primeiro contrato das entradas dos Cami-
nhos dos Currais e da Bahia. Além de Faustino Rebelo Barbosa, o capitão José de Souza Souto Maior
havia nomeado como seu procurador, outros importantes potentados como, por exemplo, Domingos
do Prado [de Oliveira], Salvador Cardoso [de Oliveira], Manoel Nunes Viana e, seu primo, Manoel
Rodrigues Soares.106

Como mais de 10% dos procuradores das redes em que o mestre de campo fazia parte estavam
no Rio de Janeiro, cabe destacar o nome do capitão-mor Francisco Gomes Ribeiro.107 Ribeiro foi Pro-
vedor da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, Cavaleiro da Ordem de Cristo e um grande
proprietário de terras no Caminho Novo que ligava o Rio de Janeiro às Minas Gerais, como a sesmaria
Manga Larga. Segundo Roberto de Menezes Moraes, não tendo filhos homens, ele trouxe de Portu-
gal três sobrinhos, Manoel, Marcos e Francisco Gomes Ribeiro Sobrinho, para ajudá-lo a tocar seus
negócios. Esses sobrinhos seriam sócios e proprietários da “grande sesmaria de Pau-grande”, que foi
originalmente-propriedade do tio capitão-mor Francisco Gomes Ribeiro. Ainda segundo o autor, “na
geração seguinte, dos sobrinhos-netos do capitão-mor Francisco Gomes Ribeiro, estavam os irmãos
Antonio Ribeiro de Avelar e José Rodrigues da Cruz, também trazidos de Portugal, para ajudar nos
interesses dos parentes”. Os irmãos Avelar e Cruz foram sócios da fazenda de Pau-grande de Pati de
Alferes, desmembrada da “grande sesmaria de Pau-grande”. José Rodrigues da Cruz, por sua vez, foi
proprietário da fazenda/engenho de Ubá, em Vassouras, que foi posteriormente vendida para o seu
sobrinho João Rodrigues Pereira de Almeida – um dos maiores negociantes de escravos do período
Joanino e do reinado de D. Pedro I, contratador de vários contratos no Rio Grande do Sul em socie-
dade com seus irmãos em Portugal. Além disso foi deputado da Real Junta de Comércio do Estado do
Brasil (1808), diretor do Banco do Brasil e o primeiro barão de café do vale do Paraíba fluminense (o
barão de Ubá). Por fim, João Rodrigues Pereira de Almeida foi o negociante que introduziu o jovem
Irineu Evangelista de Souza, o Visconde de Mauá, nos negócios de grosso-trato.108

105 Tese, capitulo 2


106ESCRITURA de procuração bastante feita pelo sargento-mor João de Souza Souto Maior. MO/IBRAM
– Casa Borba Gato: LN, CPO 01(05), fls. 75v-76v – 11/06/1718. Domingos do Prado de Oliveira e Salvador
Cardoso de Oliveira foram alguns dos acusados de terem participado da sublevação no distrito do papagaio
encabeçado pelo Padre Curvelo, que impediu a criação de uma vila naquelas paragens. Ver: REQUERIMENTO
de Martim Afonso de Melo, coronel, solicitando a d. João V a mercê de andar passar segundas vias das ordens
dadas ao governador de Minas... op. cit.
107POLLIG, João Victor Diniz Coutinho. Proprietários de terras do caminho novo. RIHGB, Rio de Janei-
ro. ano CLXXI (446), p. 15-52, jan./mar, 2010.
108 Ver: MORAES, Roberto Menezes de. Outras visões para as observações de algumas das famílias que atua-
ram no Vale do Paraíba fluminense durante o Ciclo Cafeeiro; MATTOS, Ilmar R. de. O Tempo Saquarema. São
Paulo: HUCITEC, 1987; MUAZE, Mariana. As memórias da Viscondessa: família e poder no Brasil Império.
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Alexandre (org.). África passado e presente: II encontro de estudos africanos da UFF Niterói: PPGHISTÓRIA-
-UFF, 2010.

480
Portanto, não teria sido por acaso que o mestre de campo Manoel Rodrigues Soares também
havia constituído Faustino Rebelo Barbosa como seu procurador em uma escritura registrada na vila
de Sabará.109 Dessa forma, a análise das escrituras de procuração apenas confirmou o que certa vez
havia alertado o governador. D. Lourenço: “este Faustino Rebelo é sócio e procurador de dois régu-
los, Manoel Nunes Viana e Manoel Rodrigues Soares”.110  Também o nomearam como procurador,
o “homem de negócios” Antônio Coelho Leão e o Conde Luís de Figueiredo Montarroio Monteiro
Pinto, quando este passou pela vila de Sabará a serviço de D. João V.111 Como nas minas setecentistas
os agentes da administração colonial iam e vinham, levando e trazendo consigo aliados e inimigos, o
que sustentava de fato o poder dos colonos eram as redes de sociabilidade e negócios que teciam con-
comitantemente as alianças angariadas junto às autoridades coloniais. Graças, portanto, a essas redes
que Faustino Rebelo Barbosa, apesar de condenado a prisão por crime contra a Fazenda Real, nunca
deixou Minas Gerais.

Vivendo entre a vila de Sabará e os sertões do rio das Velhas, o mestre de campo continuou
acumulando riquezas e trazendo junto a si um séquito de aliados e de clientes – mesmo tendo o ou-
vidor José de Souza Valdez em seu encalço durante boa parte do tempo em que esteve servindo nas
Minas Gerais. Afinal, como “as fronteiras da tolerância para com o comércio ilegal dependiam da po-
sição [social] dos envolvidos”, pessoas como Faustino Rebelo Barbosa “dificilmente eram processados
e se o fossem, raramente o processo corria até seu final” (PIJNING, 2001, p. 404-405).

O certo foi que as incertezas jurisdicionais e as indefinições territoriais interferiram decisiva-


mente no desenvolvimento de uma economia de mercado naqueles sertões entrecortados pelo circui-
to mercantil que ligava Minas Gerais à capitania da Bahia. Como a capacidade dos indivíduos para
ter e processar as informações eram (e ainda são) bastante limitadas, foram (e ainda são) necessárias
instituições que atenuem os riscos decorrentes da incompletude das informações. Em um contexto de
incertezas jurisdicionais, as associações coletivas, chamadas aqui de redes sociais de negócios, cum-
priram o papel de oferecer algumas garantias mínimas para atuação dos agentes em seus negócios,
bem como conferir maior segurança para a atuação de governadores e magistrados durante a sua
administração.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

109ESCRITURA de procuração bastante feita pelo mestre de campo Manoel Rodrigues Soares. MO/IBRAM
– Casa Borba Gato: LN, CSO 01(04) fls. 6-6v –12/02/1717. De acordo com a instrução que Visconde de Bar-
bacena “todos, ou a maior parte dos régulos e levantados motores das presentes desordens, se achavam nas
Minas Gerais, à sombra do perdão geral que haviam obtido, e entre eles o maior de todos, Manuel Nunes Viana,
associado com outro semelhante, chamado Manoel Rodrigues Soares. Ver: INSTRUÇÃO para o Visconde de
Barbacena, Luis Antonio Furtado de Mendonça, governador e Capitão Geral da Capitania de Minas Gerais, de
Martinho de Mello e Castro. RIHGB, t. 6, vol. 6, 1895, p. 15.
110SOBRE a arrematação que se fez da passagem do Papagaio em barcos, que tem havido a ela, e mau proce-
dimento de Faustino Rebelo. RAPM, Belo Horizonte, ano XXXI, 1980, p.144-145. A respeito do líder dos em-
boabas, “cristão-novo” e negociante Manuel Nunes Viana, ver, por exemplo: NOVINSKY, Anita. Ser marrano
em Minas Colonial. Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 21, n.40, 2001, p. 164-165.
111Antônio Coelho Leão recebeu em 1719 a licença para abrir uma loja na barra da vila de Sabará. Ver: APÊN-
DICE documental. Revista do SPHAN, Rio de Janeiro, vol. IX, 1945, p. 311.

481
A trajetória de Faustino Rebelo Barbosa nos parece emlemática, portanto, na medida em que
sintetiza, em uma só experiência, algumas das mais importantes estratégias e alguns dos mais impor-
tantes negócios praticados pelos mais abastados moradores dos sertões da América portuguesa. A
principal delas era a manutenção de uma vasta rede de sociabilidade e negócios. Essas redes poderiam
ser lastreadas apenas na confiança, mas muitas vezes eram institucionalizadas através de escrituras de
sociedade e de procuração, registradas em cartório. Através dessas redes, os negociantes obtinham
informações privilegiadas para o funcionamento de seus negócios, a segurança necessária para a sua
execução e, por vezes, o financiamento imprescindível para suas empreitadas.

Foi por meio de redes sociais, criadas em torno de laços de sociabilidade e de negócios que
foi praticada o grosso da mercancia em larga escala no império português. A partir desses arranjos
informais era possível obter o financiamento para uma empreitada; informações mais precisas para a
realização de um negócio; a intermediação de agentes mercantis para transportar e/ou para dar saída
aos produtos negociados; e, porque não, o “favor” junto alguma autoridade, no sentido de atender de-
mandas específicas dos homens de negócio. Por sua vez, é preciso salientar que tais práticas estiveram
sempre coadunadas com arranjos formais, uma complementando a outra.

Mas em algumas regiões (sobretudo aquelas mais distantes em termos geográficos e políticos
do centro referencial do poder), os arranjos informais se destacaram ainda mais e, por isso mesmo,
trouxeram conseqüências mais marcantes para o desenvolvimento dos mercados e para a organização
da sociedade. Em termos objetivos, se os sertões que margeavam os caminhos que ligavam Minas à
Bahia os negociantes se valiam quase exclusivamente de arranjos informais para respaldar suas ati-
vidades é porque esse tipo de arranjo informal tinha como principal objetivo a diminuição os custos
de informação e dos custos de transação (YOUNG, 2011) decorrentes da fluidez de jurisdições e da
fragilidade das instituições formais existentes na América portuguesa,

Apesar disso, arriscamos afirmar que nada impediu que uma “economia de mercado” tenha
emergido no território que margeou os circuitos mercantis que ligavam as Minas Gerais à capitania
da Bahia. Portanto, não foram as distâncias e as dificuldades de comunicação que dificultaram a vul-
garização e o desenvolvimento das trocas mercantis na América portuguesa. Foram as formas como
esse intercâmbio aconteceu na prática que geraram, em longo prazo, consequências danosas para o
desenvolvimento dos mercados no Brasil.

Por outro lado, cabe ressaltar os mercados desenvolvidos na Colônia divergiam indubitavel-
mente daqueles existentes no centro dinâmico da economia-mundo (WALLERSTEIN, 1974). Enquan-
to ali uma complexa estrutura de incentivos e sanções aos comportamentos individuais foi construída
através de instituições (formais e informais) que privilegiaram os direitos individuais, aqui prevale-
ceram arranjos (formais e informais) que estimularam comportamentos oportunistas por parte dos
indivíduos e impediram o desenvolvimento de instituições que freassem de forma eficaz os compor-
tamentos dessa natureza (NORTH, 1990).

Como “as instituições exercem influência sobre o comportamento não simplesmente ao espe-
cificarem o que se deve fazer, mas também o que se pode imaginar fazer num contexto dado” (HALL;

482
TAYLOR, 2003, p. 210), as sociedades que contaram com instituições mais frágeis acabaram ocupan-
do uma posição periférica na órbita do moderno sistema econômico. Afinal, as instituições tiveram
o importante papel de fornecer os modelos morais e cognitivos que permitiram a interpretação e a
ação dos indivíduos. A fugacidade e o caráter especulativo das empresas na Colônia implicaram, por
exemplo, em uma falta de coordenação e planejamento em termos de infraestrutura e de recursos
financeiros que produziram graves consequências para a economia brasileira, cujos impactos podem
ser sentidos ainda hoje.

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485
486
SIMPÓSIO TEMÁTICO 07
O governo da justiça: poderes, instituições e magistrados (sécs. XVII-XIX)

Coordenadores:

Antônio Filipe Pereira Caetano

Isabele de Matos Pereira de Mello

Angela Ballone

AS ARGUMENTAÇÕES DA LIBERDADE: AUTOS CÍVEIS DA CIDADE DE SÃO PAULO, SÉCULO


XVIII
Felipe Garcia de Oliveira (Unifesp)1

Resumo

Esta apresentação contempla um aspecto temático muito específico da investigação de mes-


trado que estamos desenvolvendo sob fomento da FAPESP, a pesquisa é intitulada “Ações Cíveis en-
volvendo escravos e forros na Cidade de São Paulo, 1722- 1797”, sob orientação da Professora Dra.
Andréa Slemian, número de processo: 2017/05656-2. Nosso estudo visa, a partir da interface da Histó-
ria e Direito, entender a dinâmica processual, os procedimentos jurídicos, o modo como a população
escrava e forra utilizava as instâncias judiciais, em suma, a cultura jurídica vinculada aos cativos e
libertos. Aqui pretendemos apresentar e discutir alguns dos principais argumentos utilizados pelos
procuradores ou advogados dos escravos para defender sua liberdade nos juízos da cidade de São
Paulo. Buscaremos encontrar possíveis tópicas na argumentação em defesa e contra a alforria, possí-
veis estratégias jurídicas no desenvolvimento do processo e, igualmente, estaremos atentos aos modos
como os juízes determinavam e julgavam a questão a partir das sentenças. A documentação consul-
tada refere-se aos 19 Ações de liberdade encontradas para o século XVIII na cidade de São Paulo, que
estão sob custódia do Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Palavras-chave: Direito, Ações de liberdade, Escravos, São Paulo XVIII.

Introdução

1Mestrando em História pela Universidade Federal de São Paulo. Este texto apresenta resultados parciais da
pesquisa de mestrado que venho desenvolvendo no programa de pós-graduação em História da Unifesp, sob
orientação da Professora Dra. Andréa Slemian, investigação fomentada pela Fundação de Amparo à Pesquisa
de São Paulo (FAPESP). Número do processo: 2017/05656-2.

487
Foi após a morte de Francisco Pereira do Lagos que a escrava Andreza, gentio de Guiné, no iní-
cio de maio de 1724, decidiu apresentar uma petição judicial no juízo ordinário de cidade de São Paulo
para questionar a venda, feita ainda em vida do falecido, de sua pessoa ao senhor Cosme Duarte. Se-
gundo sua petição inicial, ela teria tratado com o defunto que seria “forra, tal como sua filha Luciana”,
fruto de um concubinato com o falecido, ficara. Pedia então que posse posta em depósito e que o réu
Cosme Duarte fosse citado em audiência a fim de responder ao libelo que ela iria propor para provar
e mostrar que a venda deveria ser julgada por “direito” “nula” e ela considerada “forra”.2

Antônio da Costa Pereira foi nomeado depositário da escrava, em 08 de maio de 1724.3 O réu,
Cosme Duarte, parecia não querer responder à ação, fato que fez a escrava apresentar outra petição
pedindo que ele fosse citado novamente para comparecer em audiência. Ele foi citado em sua pessoa
novamente em 24 de julho do mesmo ano.4 Foi então que Bento Lopes Aleixo, procurador nomea-
do pela escrava, apresentou o libelo com os argumentos que explicariam os motivos pelos quais ela
deveria ser considerada liberta. Quando o autor ou réu da ação era alguém tido como incapaz pela
justiça, se mandava nomear um curador para representa-lo. Neste caso a própria escrava apresentou
sua procuração, assinada em cruz, para que. A partir desse momento, uma intensa batalha judicial de
exposição de argumentos apresentados pelas partes, testemunhas e provas se iniciaria.

Podemos dizer que Andreza iniciou uma, como é chamado pela historiografia, ação de
liberdade contra o seu senhor. As ações de liberdade eram processos cíveis nos quais os escravos
buscavam sua liberdade por meio da justiça, seja de forma onerosa ou não. Naquele período, um auto,
no geral, se iniciava com a petição do autor solicitando que o réu fosse citado para responder ao que
seria proposto. Nos autos aqui estudados, o autor pedia que o réu fosse citado para responder ao libelo
que iria propor, chamado de “Ação cível de libelo”, um processo de procedimento ordinário. O libelo
era uma peça judicial no qual o autor, segundo a própria doutrina, expunha seus objetivos de modo
claro e conciso, em forma de itens.5 A importância dessa peça era tal que é possível encontrar manuais
explicando como deveria ser produzida, inclusive os libelos que pediam a liberdade ou escravidão.6

A utilização de ações cíveis e crimes desde há muito se mostraram e ainda atualmente se

2 Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). Fundo: Autos Cíveis CO3330, auto 1303, f. 4. Todos os
documentos citados neste texto tiveram a ortografia corrigida.
3 O depósito era uma ação judicial de colocar sob a guarda de alguém, um depositário, um bem ou cousa que
estava sendo litigada. Neste caso o bem depositado era o escravo. PEREIRA E SOUSA, Joaquim José Caetano.
Esboço de hum diccionario juridico, theoretico, e practico, remissivo ás leis compiladas, e extravagantes. Tomo
I. Lisboa: Typographia Rollandiana, 1825.
4A citação podia ocorrer de várias formas: verbal (por meio da palavra, por escrito direto ou edital público) ou
ainda real “(por apreensão da pessoa ou da coisa: arresto)”, desde que informasse o nome do autor, do réu, do
juízo, o lugar, os motivos da ação e o prazo de comparecimento (o prazo poderia ser de três ou o determinado
pelo. HESPANHA, António M. Como os juristas viam o mundo. 1550- 1750. Direitos, estados, pessoas, coisas,
contratos, ações e crimes. Lisboa: Amazon books, 2015, p. 584- 585. PEREIRA E SOUZA, Joaquim José Caeta-
no. Primeiras Linhas do processo civil. Tomo I. Lisboa: Typographia Rollandiana, 1863, p. 53- 54.
5 HESPANHA, António M. Como os juristas viam o mundo. 1550- 1750. Direitos, estados, pessoas, coisas,
contratos, ações e crimes. Lisboa: Amazon books, 2015, p. 575; p. 586- 587.
6 COSTA, João Martins da. Tratado da forma dos libellos, das allegações judiciaes do processo do Juízo Secular,
e Eclesiástico, e dos Contratos, com suas Glossas. Coimbra. Coimbra: Oficina dos Irmãos e Sobrinho Ginioux,
1764, p. 213- 214.

488
apresentam como fontes inesgotáveis para se pensar a história social, institucional e judicial. Os
trabalhos pioneiros da década de 1980 utilizando as ações de liberdade ressaltaram o quanto no século
XIX estes processos foram importantes para a perda de legitimidade do sistema escravista, bem como
o quanto os tribunais foram espaços em que os escravos viram possibilidades de fazerem ouvir seus
pedidos e conseguirem sua alforria. No centro dessas novas perspectivas, estas fontes que colocaram
na ordem do dia a agência escrava, as formas de resistência, a relação senhor-escravo. Dentre os
principais autores de uma potente historiografia da escravidão, podemos destacar os trabalhos de
Keila Grinberg, Hebe Mattos, Sidney Chaulhoub, Silvia Lara, Elciene Azevedo, dentre outros.

Tomando a análise das ações de liberdade pretendemos apresentar neste texto os argumentos,
o procedimento jurídico levado a cabo no processo, e a decisão dos juízes. Em suma, procuraremos
discutir a cultura jurídica presente nas ações de liberdade. É importante considerar que os processos
eram baseados em argumentações judicias e na apresentação das provas (sejam documentos ou
testemunhas). Neste sentido, nossa proposta é analisar, principalmente, os argumentos expostos nos
libelos, estes argumentos, do ponto de vista jurídico, ao se apresentarem nos libelos, se julgavam como
confissões das partes e podiam alegar uma infinidade de questões a serem litigadas.7

É dentro da cultura judicial do direito comum que buscamos compreender a operacionalidade


dos argumentos apresentados pelas partes. Basicamente, a cultura do direito comum concerne ao
momento em que havia uma pluralidade e uma multiplicidade de ordenamentos sobrepostos que
eram entendidos num sentido mais amplo que não um conjunto normativo, desse modo, a justiça
não operava a partir da lógica do legicentrismo. A sociedade colonial era entendida a partir da ordem
natural, o que implicava em direitos e deveres a todo corpo social. Portanto, coexistiam direitos
diversos.8

Utilizar as instâncias judiciais mobilizava uma série de pessoas e procedimentos complexos.


Era uma cultura marcada pela variedade de procedimentos processuais e mesmo de agentes atuantes
nos processos (só para mencionar alguns destes: juiz, escrivão, alcaide/meirinho do campo, porteiro,
louvado/avaliador, depositário, procuradores e advogados), as decisões judicias eram baseadas no ar-
bítrio do juiz, o responsável em determinar o que era justo às partes.9A investigação aqui apresentada
pretende, portanto, apontar quais foram os principais argumentos utilizados para legitimar a alforria
ou para nega-la, bem como analisar as sentenças. Para tanto, a documentação consultada refere-se aos
19 Ações de liberdade encontradas para o século XVIII na cidade de São Paulo, que estão sob custódia

7 COSTA FRANCO, Manoel António Monteiro de Campos Coelho da. Tractado practico juridico cível e cri-
minal.... Lisboa: Na Officina de Joam Antonio da Costa,1765, p. 26.
8 HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Europeia: síntese de um milénio. Coimbra: Almedina, 2015.
HESPANHA, António Manuel. Justiça e Litigiosidade: História e prospectiva. Lisboa: Serviço de educação;
Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.CAMARINHAS, Nuno. Juízes e Administração da Justiça no Antigo
Regime: Portugal e o império colonial, séculos XVII e XVIII. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian/Ministério
da Ciência, tecnologia e Ensino Superior, 2010.
9 ROMEIRO, Maria Paz Alonso. Orden procesal y garantias entre Antiguo Régimen y cconstitucionalismo
gaditano. Madrid: centro de estudos políticos y constitucioales, 2008. Especialmente a primeira parte.

489
do Arquivo Público do Estado de São Paulo.10

Argumentos da liberdade: do concubinato ao aberto preço

A nossa pesquisa vem demonstrando que vários eram os argumentos utilizados para defesa
da alforria. Pedidos de liberdade alegando o fato de terem sido concubinas e terem tido filhos com os
antigos senhores e mesmo solicitações para serem avaliados e para comprar sua alforria foram apre-
sentados na cidade de São Paulo no século XVIII.

A história de Andreza foi a seguinte. Francisco Pereira saiu com seu cunhado e amigo, o padre
Antônio Rapozo de Siqueira, para fazer negócios nas Minas Gerais. Lá conheceu Andreza, escrava
do padre, e acabou “tratando” com ela, deixando-a “prenha”. Francisco decidiu em acordo, e “por sua
amizade”, comprar a escrava. Eles voltaram à cidade de São Paulo e a vida seguiu. Depois de alguns
anos o então senhor vendeu Andreza para Cosme Duarte e morreu. Após sua morte a escrava, como
já dito, iniciou o processo.

No libelo apresentado, o procurador da escrava Andreza alegava que ela teria sido “concubina”
e fora “perfilhada” pelo seu senhor, sendo que sua filha Luciana ficara “forra e liberta de toda escravi-
dão”. Seria, portanto, a escrava Andreza, “forra por direito”.11 Ou seja, ele defendia que o fato dela ter
tido uma filha com seu senhor e por ter alforriado esta criança, ela por extensão seria forra. Mais que
isto, a concepção por trás de sua ideia parece apontar que em sua lógica, uma escrava não poderia ter
uma filha forra e ser cativa, já que os filhos seguiam o foro materno. Neste sentido, sua argumentação
parecia apontar que, se a filha era liberta, a mãe por consequência era também.

Seguindo o processo o réu deveria apresentar sua contrariedade aos argumentos. Ao se defen-
der o procurador o réu entendia que Cosme Duarte não deveria responder ao processo, então solici-
tou que Philippa de Siqueira, mulher do falecido, e seus herdeiros fossem chamado para a autoria da
ação. Depois de todos os procedimentos de nomeação de procuradores e curadores para os herdeiros
menor e da citação de todas as partes. Em 04 de dezembro daquele ano, ou seja, o processo já estava
em pleito há 7 meses, a viúva e os herdeiros apresentaram o libelo de contrariedade. Na peça defendia
que a escrava fora entregue ao falecido quando estava fazendo negócios na Minas, tendo ficado “pre-
nha” de Francisco quando ainda era escrava do padre, e sendo comprada justamente porque estava
grávida e pela amizade com o padre. O procurador fez questão de reforçar que, o falecido teria com-
prado a cativa ainda grávida e não cabia liberdade à sua pessoa, já que, para ele, conforme o direito,
ela poderia “adquirir direito de liberdade se tivesse emprenhado depois de comprada” pelo senhor,

10 Ao total seriam 23 ações de liberdade. 4 ainda não puderam ser consultadas, pois o fundo. Autos Cíveis do
Arquivo Público de São Paulo está fora de circulação por tempo indeterminado, por motivos de “Diagnósti-
co e tratamento para higienização e descontaminação”. Ver: <http://www.arquivoestado.sp.gov.br/site/acervo/
fora_circulacao>
11 APESP, Autos Cíveis CO3330, auto 1303, f. 5.

490
um homem casado, mas era do padre ainda quando o falecido teria “tratado com ela”.12 Desse modo,
a defesa postulava que a negra só poderia vir a ter algum direito de liberdade, se fosse escrava do fa-
lecido quando ficou grávida. Ou seja, na concepção de direito dele, uma escrava que fosse perfilhada
por seu senhor poderia vir a ter direito à liberdade, mas como ela não era cativa dele, ela não tinha
“adquirido” esse “direito”.

O procurador da autora fez tréplica ao processo por negação em 10 de dezembro de 1724 e


solicitou que a causa fosse posta em “dilação ordinária” para que as partes citassem suas testemunhas.
Já era maio de 1725 quando o procurador da escrava pediu “lançamento de mais provas” e a inquirição
começou.13 Ao total foram ouvidas 12 testemunhas, 8 da autora e 4 da família do falecido. Nenhuma
das testemunhas da autora, inclusive Cosme Duarte, contrariou que Luciana, filha da escrava ficara
forra pelo testamento do falecido. Quanto ao tempo em que a escrava ficou grávida, este ponto parecia
ser o que o juiz tinha mais interesse em saber para determinar o que seria justo, posto que ele fez co-
mentários ao lado da inquirição questionando “[se] ficara prenha antes ou depois de ter sido vendida
[pelo padre]?”.14 As testemunhas pareciam desconhecer este ponto e quando uma delas alegou algo
sobre quando a escrava teria ficado “prenha”, sua alegação foi que ela “emprenhou-se durante a viagem
nas Minas”, foi o que Manuel Luís Ferraz alegou acerca de seu falecido amigo. As testemunhas da fa-
mília igualmente não conseguiam precisar se a escrava ficara grávida depois de ser comprada ou não,
Thereza de Siqueira, por exemplo, alegava que não sabia nem se a cativa tinha chega à cidade prenha;
Manoel Motta, também não sabia se ela era escrava do padre quando ficou prenha.15

As partes apresentaram vistas ao processo e argumentaram, antes do termo de conclusão. O


procurador da autora alegava que suas testemunhas tinham provado que ela tinha ficado prenha de-
pois de comprada pelo falecido e que sua filha tinha a posse de alforria como todos afirmaram na in-
quirição. O procurador da família, por seu lado, alegava que o argumento de ter ficado prenha depois
de comprada era “tão frívolo como ridículo”.16 Além disso, a justiça devia “sempre a favor dos Réus,
em qualquer caso, tomar a interpretação mais benigna”. 17 Afirmava também que ainda que a negra
fosse cativa do falecido quando ficou grávida, ela não teria “adquirido direito de liberdade”, antes por
ter praticado o adultério merecia o “castigo” e não o “prêmio da liberdade”.18 Neste sentido, se num
primeiro momento ele entendia que ela só pudesse “adquirir” o “direito” de liberdade se tivesse sob
domínio do falecido quando gravidou, ele alegava agora que, na verdade, nem sob estas condições ela
teria “adquirido” tal direito, mas, por ter cometido o adultério, devia ser castigada com a escravidão.

O juiz emitiu sentença determinando que a venda da escrava era “boa” e que ela deveria per-

12APESP, Autos Cíveis CO3330, auto 1303, f. 16.


13APESP, Autos Cíveis CO3330, auto 1303, f. 18.
14 A pergunta sobre o tempo aparece pelo menos duas vezes, APESP, Autos Cíveis CO3330, auto 1303, fv. 20
e f.24
15 APESP, Autos Cíveis CO3330, auto 1303, f. 18.
16 APESP, Autos Cíveis CO3330, auto 1303, f. 39.
17 APESP, Autos Cíveis CO3330, auto 1303, fv. 39. Ele menciona um texto em latim “segundo as conclusões de
Mafcard de probat conclus, n° 36, 2. Consta no capítulo “ex. Lit de probat absentem deponis[?]” fv. 39. E tam-
bém cita o “commume direito” sobre concubinato e manumissão, libro 5, cap. 36.
18 APESP, Autos Cíveis CO3330, auto 1303, fv. 39.

491
manecer em poder do comprador Cosme Duarte, em 15 de junho de 1725 – mais de 1 ano depois do
processo ter sido iniciado.19 Ele justificava que a escrava não tinha provado que fora comprada antes
de ter “emprenhado” do falecido, mas que o que ficou provado foi que sua compra só se efetuo quando
se recolheram na cidade de São Paulo.20 Assim, fica muito claro que para o juiz o fato dela não ter sido
cativa do senhor quando gravidou, não dava a ela direito de liberdade.

A escrava passou procuração para outro procurador e decidida levou a causa adiante com um
embargo de sentença. De primeiro pedia fosse “restituída a poder mostrar a toda justiça”, posto que
fosse “pessoa miserável [e] rústica”. Ela pedia e explicava que não conseguira mostrar todas as provas
e matérias que tinha a seu favor, não por sua culpa, mas por ser “ignorante e rústica”. 21Este ponto é
interessante, pois o que conseguimos verificar em várias ações é justamente a alegação de ser pessoa
miserável, rustica e ignorante ao perderam na primeira sentença.22

Voltando o que ela alegava no libelo. Ela afirmava que, ainda a família tivesse mencionado que
ela não era escrava do falecido, posto que ele ainda não havia pago por seu valor, ele tinha o “domínio
dela”. E mais, a venda, mesmo que fiada, já tinha sido feita e o padre iria receber “uma lasca de ouro”
por seu valor. Para tanto, o procurador alegava que do ponto de vista jurídico, apesar do pagamento
não ter sido feito, ela era escrava do falecido a partir do momento em que o valor fora acordado e ela
estava em sob seu “domínio”, o que seria prática comum, posto que: “pelo que bem se podia fazer uma
compra ou venda para pagar dentre dois ou três anos, mas o seu senhor assim que chegou das Minas
pagou o preço da escrava o valor de 220 mil réis”.23 Assim, no entendimento do procurador, o acordo
já configurava sua compra, e o “domínio” da escrava, sua posse.

Além disso, o procurador aproveitava o libelo de embargo para afirmar algo que não tinha dito
outrora, um argumento que ao que tudo indica tinha força jurídica, o da “promessa e mimos especiais”
que o falecido teria feito ao “tratar” com a cativa.24 Isto é, o fato de Francisco ter feito promessa de que
ela seria alforriada. Eles, no libelo, fizeram questão de salientar que Andreza era uma “mulher frágil”
com seus dezesseis e dezessete anos à época. Sendo uma concubina tratada com “zelo”, já que mal po-
dia sair de casa “por cautela” com os “outros varões”. E depois, ela tinha o “governo da casa” e o mando
sobre os servos. Salientavam ainda que a viúva “soube claramente” do concubinato o tempo todo e que
ao chegar das Minas “prenha”, “pariu e autorizou-se a dita menina como filha sua” em “face” da própria
viúva.25 A cativa afirmava que vivera em concubinato com o falecido até sua morte. Por fim, alegava
que era de se “presumir que o dito senhor daria a liberdade para sua serva” a quem tinha por “afeto” e
“estimação”. Deveria ser o embargo aceito para que ela pudesse provar o que não tinha conseguido fa-
19 APESP, Autos Cíveis CO3330, auto 1303, fv. 41.
20 APESP, Autos Cíveis CO3330, auto 1303, f. 42.
21 APESP, Autos Cíveis CO3330, auto 1303, f. 44.
22 Este tipo de alegação ao solicitar um procedimento jurídica, seja para embargar, ganhar mais tempo de
dilação ou escapar da fiança judicial foi uma argumentação amplamente utilizada, o que demonstra seu uso
estratégico. OLIVEIRA, Felipe Garcia de. “’Pelo que sendo pessoa miserável, rústica e ignorante’: as estratégias
jurídicas de escravos e forros na cidade de São Paulo.” Comunicação apresentada no X Jornadas Internacionales
de Jóvenes Investigadores en Historia del Derecho. Universidade Nacional de Córdoba, 2018.
23 APESP, Autos Cíveis CO3330, auto 1303, f. 45.
24 APESP, Autos Cíveis CO3330, auto 1303, f. 45.
25 APESP, Autos Cíveis CO3330, auto 1303, f. 46.

492
zer antes por ser “pessoa rústica, ignorante e miserável”, a quem todo o direito deveria ser restituído.26

Ao total o procurador apresentou 21 itens, destes o juiz recebeu apenas o artigo 11° para que
a parte contrariasse. O item aceito foi justamente o que declarava que o falecido fizera a promessa de
liberdade – em 2 de novembro de 1725.27 Neste sentido, a promessa de liberdade como um argumento
que tinha força jurídica nos processos é, sem dúvidas, interessante e parece que, é o que nossa inves-
tigação tem verificado, perpassado praticamente todos os processos apresentados. Andreza, não fora
a única escrava que conseguira levar seus senhores às audiências para litigar sobre sua liberdade.28 Os
réus contrariaram afirmando que era “falso” e que Francisco nunca teria “constrangido” a cativa com
“promessas de liberdade”. Afirmaram ainda que a escrava vivia a “tratar” com vários e que “não havia
quem não lhe merecesse afeto”. O próprio padre teria castigado a negra e mandado ela passar um tem-
po no Convento de Santa Thereza em São Paulo, pois vivia em “dissolução” com “toda a mais castas de
gente”, sendo mãe de três ou quatro filhos “caribocas”, vivia a gastar “dias inteiros” com senhores ao ir
lavar roupas no rio”.29 Portanto, além de negar a promessa que o falecido teria feito a família buscava
atacar a honra da cativa.

O procurador da Andreza fez contrariedade por negação. em 19 de novembro de 1725. In-


felizmente, não é possível saber o final do processo, pois o último termo que consta é o “termo de
fechamento dos autos”, em 03 de dezembro de 1725.30 Não há indícios de quem ganhou a causa, pos-
sivelmente ela teria acabado de forma amigável com um acordo. É importante considerar que acionar
a justiça não implicava numa ausência de resolver o pleito de modo “informal”.31

Este não foi o único processo em que a questão do concubinato e da perfilhação apareceu como
defesa da liberdade. Outros argumentos foram utilizados pelos escravos, a saber: dos 19 processos, em
4 não foi possível verificar os argumentos; em 3 a questão de concubinato/perfilhação apareceu; em 3
a alegação de ser descendente, seja por pai ou mãe, de gentio da terra foi feita para dar base ao pedido;
em 3 a alegação de que o eram alforriados pelo testamento; e em 6, a maioria, o fato de ter o senhor
“aberto o preço” e, portanto, queria pagar por seu “justo valor” também deu base para o pedido, neste
caso, de compra da alforria. Este último será foco da nossa análise agora.

O escravo da viúva Elena Pinto, Domingos Pinto, vivia sob o cativeiro há bastante tempo quan-
do, em 1780, por meio de uma Ação de libelo no juízo de Fora da Vila de Santos, decidiu buscar sua
liberdade. O negro da nação de Angola era oficial de ferreiro na ferroaria que sua senhora tinha em
sociedade com, também oficial de ferreiro, Antônio Gonçalves Ferreira. O escravo não morava com

26 APESP, Autos Cíveis CO3330, auto 1303, fv. 46.


27 APESP, Autos Cíveis CO3330, auto 1303, f. 49.
28 É o que a pesquisa que estamos desenvolvendo sugere. “Ações Cíveis envolvendo escravos e forros na Cida-
de de São Paulo, 1722- 1797”, que vem sendo desenvolvida no programa de pós-graduação, sob orientação da
Professora Dra. Andréa Slemian, fomentada pela Fapesp, número de processo: 2017/05656-2.
29 APESP, Autos Cíveis CO3330, auto 1303, f. 49.
30 APESP, Autos Cíveis CO3330, auto 1303, f. 51.
31 Na pesquisa que estamos desenvolvendo acreditamos que o que foi tomado como justiça “formal” e “infor-
mal” não seria a melhor solução, pois encontramos vários casos que demonstram que mesmo quando o pro-
cesso estava ocorrendo acordos podiam acontecer, mesmo com a autorização do juiz. Neste sentido, aquilo que
alguns autores chamaram de informal fazia, na verdade, parte de uma cultura judicial.

493
sua senhora, aproveitava, assim, as horas que lhe sobravam para comprar e revender “algumas miude-
zas comestíveis” e trabalhar em “obrinhas pequenas”, tudo para, além de sustentar sua vida ao lado de
uma negra, comprar sua alforria.32 Em seus dois requerimentos iniciais apresentados ao juízo de Fora,
o escravo solicitava que o juiz nomeasse louvados33 para que o avaliassem, pois ele soubera que sua
senhora havia lhe “aberto o preço” e, queria, portanto, pagar sua liberdade pelo “justo valor”. Afirma-
va ainda, que a venda de sua liberdade era uma promessa antiga que sua senhora lhe fizera, mas que
naquele momento fingia tê-lo vendido ao senhor Antônio Gonçalves Ferreira. O escravo alegava que
era mentira a tal venda, pois mesmo ela sendo viúva, dividia o teto com o “fingido comprador”, seria
tal venda, uma manobra para “estorvar” sua liberdade. Até aquele momento ele teria economizado e
juntado 8 doblas (equivalente a 102.400 réis)34 e teria entregado à Elena. Este caso apresenta uma par-
ticularidade interessante, quem intermediava a primeira petição, em novembro de 1780, foi Pedroso,
intitulado no documento como Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor General Regedor da capitania.
É certo que algum dinheiro o escravo tinha, pois antes mesmo do juiz solicitar que um curador fosse
nomeado, ele apresentou seu procurador, Francisco Caetano de Noronha.35

O procurador da ré, Damásio José da Silveira, não poupou esforços para contrariar o libelo.
Primeiro afirmou que ela não teria prometido liberdade e que nem mesmo o escravo teria trabalhado
em dias santos. Segundo o libelo, ele sempre teria utilizado o tempo que lhe era livre para passear, e
quase nunca parava em casa, sendo este sido, inclusive, o motivo dela tê-lo vendido para Antônio.
Como se não bastasse, a senhora também questionava o fato de o escravo sempre estar muito bem
vestido com “camisas finas de babador, calções de xitas” e ainda sustentava uma “fêmea”.36 Fato que ela
questionava como um escravo, tendo uma vida com tantos gastos “avultados” assim poderia ajuntar
tanto dinheiro? Certamente ele teria na furtado. No mais, o procurador também indagou os motivos
de Elena ter real interesse em vender seu cativo, pois sendo dona de uma ferroaria, em sociedade com
Antônio, alforriar o escravo que era oficial de ferreiro seria um dano.37 Por fim, a ré apresentava uma
carta passada onde informava ter vendido Domingos para Antônio em setembro de 1780. Pedia então
que ficasse o escravo condenado nas custas por certamente ter lhe furtado as 8 doblas que afirmava ter
lhe entregue, mas não o fez.38 É interessante perceber que, para além de buscar deslegitimar o fato do
escravo ter ajuntado “tão grande” quantia, pois possuía uma vida cheia de gastos “avultados” e vivia
a passear, Elena disse ter vendido o escravo e apresentava uma carta de venda, no qual teria vendido
por 153.600 mil réis Domingos para Antônio. Esta Carta datava 24 de setembro de 1780. A primeira
petição é de 21 de outubro do mesmo ano, menos de um mês depois da carta, o que nos indica que,
se a carta fora forjada ou mentira como afirmara o escravo, ao perceber que sua liberdade poderia
demorar mais do que esperava, Domingos decidiu partir para a justiça. Neste sentido, algo que marca

32 APESP, Autos Cíveis, C03637 auto 3337, f.6.


33 Louvados eram oficiais nomeados pelo juiz para avaliar o valor de qualquer tipo de propriedade em processo.
34 Dobla, na verdade, dobra era uma moeda do período colonial que equivalia a 12.800 réis. AMATO, Clau-
dio; RUSSO, Arnaldo e NEVES, Irlei S. O livro das moedas do Brasil: de 1643 até o presente. 12° edição. Belo
Horizonte: Edição do autor, 2009.
35APESP, Autos Cíveis, C03637 auto 3337, f.5.
36APESP, Autos Cíveis, C03637 auto 3337, f.6.
37 APESP, Autos Cíveis, C03637 auto 3337, f.9 e f.9v.
38 APESP, Autos Cíveis, C03637 auto 3337, f.10 e f.10v.

494
parte considerável das ações de liberdade analisadas em nossa pesquisa foi justamente o fato delas se
iniciarem com a mudança de senhor, seja porque ele morreu ou vendeu seu escravo para outra pessoa.

Voltando ao processo, após ter vista do libelo que contrariava sua petição, o procurador do
escravo defendeu que tão matéria era “supersticiosa, fantasiosa” que faltava verdade. Pediu então
que ao escravo fosse dado, como de costume, três dias por semana para tratar dos assuntos de sua
liberdade.39 O procurador da autora por seu lado contrariou dizendo que como já sabiam todos, o
escravo não era nada pobre e que 3 dias por semana seria injusto, pediu que o mesmo prestasse fiança
e fizesse depósito do dinheiro que teria juntado para tratar de sua liberdade. Ficou determinado pelo
juiz que o escravo teria um dia na semana para cuidar de suas agências e tratar de sua liberdade, foi
deferido também que ele devia prestar fiança e fazer depósito judicial do valor por ele alegado, mas
não menciona valores.40 O escravo então embargou por meio de um libelo pedindo que o mesmo fosse
avaliado e que pudesse tratar de suas agências por três dias como era de costume e legalmente justo.
Curiosamente, o procurador afirmou que o escravo poderia muito bem fugir, mas que pela justiça
optava por resolver a causa em juízo.41 Antes mesmo de seu libelo de embargo ser aceito pelo juiz e
contrariado pela outra parte, o mesmo fez uma petição afirmando que quando o "malicioso” Antônio
soube que ele estava embargando a sentença, entrou o embargado, Antônio, em seu quintal com ânimo
“enfurecido” e o “saltou aos bofetões” contra Domingos, deixando o “molestado.” Pedia, o procurador,
que pela “piedade católica”, bem como pela “iluminada jurisprudência” Antônio fosse notificado a
não pôr a mão no molestado. Ao receber a petição o juiz determinou que o réu fosse notificado e que
não tratasse mais Domingos com “sevícias”, maus-tratos, em razão da causa ser pendente, mas que o
escravo igualmente não lhe faltasse com “obediência”.42 Diferente de outros processo o cativo não foi
depositado e nem preso, talvez por viver longe da casa dos senhores.

Ao contrariar o embargo, o procurador de Antônio, mais uma vez salientava que o senhor não
era obrigado a avaliar sua propriedade e que Domingos deveria depositar as 8 doblas não para ser
livre, mas para provar se realmente possuía o dinheiro. Afirmava ainda que como se podia ver pela
“petulância” do cativo ao afirmar que poderia fugir e mesmo ao continuar a responder uma ação que
já perdera, devia ele ser condenado.43 Logo após isto Antônio fez também uma petição alegando que
estava sofrendo danos em sua ferraria, pois estava o escravo a faltar, pedia então que os autos fosse
concluído. Deferiu o juiz que não aceitava os embargos do escravo, devia então ele pagar as custas e
fazer o depósito do dinheiro.

Mesmo perdendo novamente, o escravo agravou. Insistiu mais uma vez o procurador na
defesa de que não se podia fazer depósito de 8 doblas, sem que antes se procedesse a avaliação do
escravo.44 Estava muito claro para o cativo e para seu procurador que fazer o depósito não significava
a liberdade, ponto que foi, inclusive, ressaltado no libelo, ainda mais depois que Antônio afirmara que

39 APESP, Autos Cíveis, C03637 auto 3337, f.11v.


40 APESP, Autos Cíveis, C03637 auto 3337, f.12v.
41APESP, Autos Cíveis, C03637 auto 3337, f.17.
42 APESP, Autos Cíveis, C03637 auto 3337, f.19.
43 APESP, Autos Cíveis, C03637 auto 3337, f.22.
44 APESP, Autos Cíveis, C03637 auto 3337, f.26 e f.26v.

495
o depósito não significaria a venda da alforria para o cativo. Em seu longo libelo, com itens escritos
em latim, o procurador evidenciava também a promessa que o escravo tinha de poder comprar sua
alforria, novamente questionava a fiança pedida e os dias autorizados para tratar de sua agência. O
juiz recebeu o agravo e o agravado, Antônio, respondeu por seu procurador que por não haver letrado
na vila, queria ir para instância superior a fim de ser melhor instruído. Foi então encaminhado o auto
para a Ouvidoria Geral da cidade de São Paulo.

Após a longa cópia do processo, o Ouvidor Geral decidiu que o escravo devia fazer o depósito e
que a custa devia ser dividida e paga por ambas as partes.45 Novamente o procurador do cativo embargou
e, para resumir, depois de embargos, respostas de embargos, sentença, embargos de sentenças, desistiu
da ação, em julho de 1781, o escravo, que curiosamente naquele momento já assinava o auto como
Domingos José Pinto, nas primeiras folhas sua assinatura era sempre em cruz.46 Antônio consentiu
com a desistência.47

Contudo, em maio de 1789, Domingos apresentou três petições ao juízo de Fora. Ele parecia
dominar melhor algumas coisas do direito, pois, além de solicitar um curador que o representasse,
por ser “pessoa miserável”, coisa que não o fez anos antes, pediu para ser depositado.O escravo
passou então a estar então sob posse do depositário, Antônio José de Barros.48 O curador Claudio da
Fonseca foi nomeado e em libelo solicitou “restituição in integrum” do processo que tinha outrora
desistido. Além de alegar ser “rústico, ignorante e miserável”, igualmente defendia que não tinha como
apresentar fiador, solicitava que queria ser “tratado como pessoa miserável que o direito” permitia. 49
Ele pedia, então, para recomeçar a ação com a graça do “Benefício de Restituição (...) pelo que não só
os menores, mas também as pessoas miseráveis, mas também os maiores podem implorar o benefício
de restituição pela clausura geral (...)”. 50 O juiz determinou que o processo fosse retomado e as partes
litigassem em sua defesa.51

O procurador de Antônio se defendeu negando o maltrato e a suposta falta de zelo que sofria
o cativo. E em seguida solicitou a inquirição de dez testemunhas.52 O curador do escravo igualmente
pediu que testemunhas fossem inquiridas pela sua defesa, ao total 5.53 Apesar de não caber aqui todas
as afirmações das testemunhas, bem como dado o estado do documento, são bem difícil de serem
recuperadas, o procurador de Antônio seguia defendendo que uma vez desistido do processo e não
tendo sofrido o escravo por sua parte violência para desistir, não cabia aquela ação ser mais pleiteada
em juízo. O curador do escravo insistia que o Domingos queria apenas pagar por seu “justo valor”,
45 APESP, Autos Cíveis, C03637 auto 3337, f.45.
46 APESP, Autos Cíveis, C03637 auto 3337, f.62.
47 APESP, Autos Cíveis, C03637 auto 3337, f.64v. Sidney Chalhoub ressalta que era possível haver a violência
por parte dos senhores quando seu escravo que tentara se alforria via justiça, mas que é difícil medir, pois os es-
cravos também podiam produzir o discurso de violência para argumentarem. CHALHOUB, Sidney. Visões da
liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Cia das Letras, 1990, p.130- 133.
48 Conforme o termo de depósito: APESP, Autos Cíveis, C03637 auto 3337, f.70v e f.71.
49 APESP, Autos Cíveis, C03637, auto 3337, f.68v.
50 APESP, Autos Cíveis, C03637, auto 3337, f.74v.
51 APESP, Autos Cíveis, C03637 auto 3337, f.82.
52APESP, Autos Cíveis, C03637 auto 3337, f.97.
53 APESP, Autos Cíveis, C03637 auto 3337, f.127.

496
tendo em conta que a senhora, Elena Pinto, do cativo tinha “aberto o preço”.54

Como é possível ver, o processo é logo, cheio de detalhes e, nas palavras do juiz, “fastidioso e
prolongado”, passemos então para a extensa e interessante sentença emitida. O doutor juiz Sebastião
Luiz da Silva escreveu uma sentença no qual fez considerações sobre todo o conteúdo do processo, as
mais significativas foram as seguintes: concluiu o juiz que o fundamental no processo era legislar sobre
se poderia a senhora, ou não, “ser obrigada” a passar carta de liberdade ao seu cativo pelo “justo valor”,
tendo sido “aberto o preço” e exibido pelo escravo seu “justo valor”.55

Recorrendo à sua “razão e ao bom senso”, bem como às leis e alvarás, Sebastião afirmou que
todo homem por “natureza” tinha “direito de buscar sua liberdade”, sendo repugnante o homem que
negasse a liberdade aos que por legitimidade a buscasse. É interessante perceber a apropriação que o
juiz fez de alguns alvarás para justificar sua sentença, citando o Alvará de 16 Jan. 1759 que dizia que: “A
causa da liberdade não admite estimação, por ser ela de valor inestimável” e o de Alvará de 16 de Jan.
1773 que determinava que os filhos das cativas que naquele momento fossem escravos, mas os filhos
destes últimos estariam livres, defendia o juiz que o escravo tinha o direito de comprar sua liberdade.
56
Ainda segundo ele, o ato da senhora ao vender seu escravo mesmo tendo ele tentado “pacificamente”
conseguir sua liberdade, sem precisar acionar a justiça, fora para “embaraçar” a compra da alforria,
como o próprio testemunho da filha de Elena demonstrara.57 Citando inúmeras testemunhas que
comprovavam, para ele, a tentativa de Elena em “embaraçar” a busca de Domingos em se tornar forro,
bem como, afirmando que o escravo “miserável, ignorante, rústico e destituído de curador” desistiu
da ação por sofrer com as “sevícias” de Antônio, deferiu o juiz, em setembro de 1790, que Antônio
Gonçalves devia passar a carta de alforria, pelo valor que comprou o escravo, 153.600 réis, devia
igualmente pagar as custas daquele processo.58

Como Antônio decerto não iria abrir mão tão fácil de seu cativo, apelou então para a Ouvidoria
Geral da Cidade de São Paulo, no entanto, falecera o preto Domingos e a ação teve fim.59

Algumas considerações são significativas, a saber: Antônio não queria de forma alguma perder
seu cativo, imaginamos que um escravo com ofício de ferreiro era tão útil para o também oficial de
ferreiro, e na escolha entre alforriá-lo ou mesmo perder por meio da ação, manter o cativo sob sua
posse era seu desejo e para isso ele faria o possível, nem que fosse preciso embargar, agravar e apelar
para todas as instâncias existentes. No que toca à sentença, nos chama a atenção o modo como o juiz
54 APESP, Autos Cíveis, C03637 auto 3337, f.150.
55 APESP, Autos Cíveis, C03637 auto 3337, f.163.
56 APESP, Autos Cíveis, C03637 auto 3337, f.163. Alvará de 16 Jan. 1759: CARNEIRO, Manuel Borges. Direito
civil de Portugal : contendo três livros, I das pessoas, II das cousas, III das obrigações e acções. Tomo I. Lisboa
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dor). Nuevas Aportaciones a la Historia Jurídica de Iberoamérica. Madrid: Fundación Histórica Tavera, 2000,
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sultado em 09/10/2018.
57 APESP, Autos Cíveis, C03637 auto 3337, f.164.
58 APESP, Autos Cíveis, C03637 auto 3337, f.164v.
59 APESP, Autos Cíveis, C03637 auto 3337, f.170v.

497
utilizou os alvarás que se referia à escravidão em Portugal para concluir que era de “direito” do escravo
comprar sua liberdade, e que quem “embaraçasse” esta tentativa era de um caráter “repugnante”. O juiz
se apropriou e legitimou sua sentença nos alvarás, concedendo ao escravo o poder de compra, mesmo
contrário ao seu senhor.60 O mais interessante é perceber que muito embora pela legislação a alforria
fosse concebida como uma doação, o juiz entendia que o escravo tinha o direito de pagar por seu valor.

O argumento obrigando o senhor a vender a alforria nem sempre foi aceito pela justiça. Ainda
assim, ele, tal como os outros mencionados neste texto, foram capazes de levar senhores e senhoras
ao judiciário. Das 19 ações de liberdade: 9 não temos como saber, seja porque houve desistência ou
por conta de o processo estar incompleto; em 7 a liberdade foi determinada via judicial, seja de forma
onerosa ou gratuita; e em 3 os cativos foram obrigados a continuar na escravidão.

No que toca ao que podemos chamar de cultura jurídica, além dos apontamentos feitos ao lon-
go da narrativa. Verificamos que houve citação de doutrinas e/ou ordenações e ou alguns alvarás em
quase 50% dos processos, ou seja, em 9 processos as ordenações, as diversas doutrinas (manuais prá-
ticos) e mesmo corpus juris civilis são citados. Alguns desses autores são: Manuel Mendes de Castro;
Agostinho Barbosa; Ludovici Postii; Antônio da Gama; Manuel Alvares Pegas, dentre outros ainda em
processo de identificação.

Tendo em conta tudo que foi apresentado se torna imprescindível uma análise mais profícua
da cultura jurídica presente nas ações de liberdade para que possamos compreender um direito pra-
ticado que estava vinculado à aqueles que foram escravizados: africanos e indígenas.61 Com isto, que-

60 Alguns trabalhos têm demonstrado como estes alvarás que tratavam da abolição da escravatura em Portugal
podiam ser apropriados pelos diversos agentes, das mais variadas formas, ver: SILVA, Luiz Geraldo. 'Esperança
de liberdade'. Interpretações populares da abolição ilustrada. Revista de História (USP), São Paulo, v. 144, p.
107-149, 2001. SILVA, Cristina Nogueira Da e GRINBERG, Keila. Soil Free from Slaves: Slave Law in Late Eigh-
teenth- and Early Nineteenth-Century Portugal. Slavery & Abolition. vol. 32, n°3, 2011, p.431-446. Disponível
em: < http://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/acs_MA_21256.pdf> Consultado em 09/10/2018.
61Ao levantar processos para minha pesquisa de mestrado verifiquei que existem processos que tocam em
liberdade de índigenas. Alguns casos que encontrei para São Paulo na primeira metade do século XVIII: Mi-
caela contra o Padre Frei Manuel da Purificação: APESP, Autos Cíveis, CO3446, auto 191. O auto de libelo cível
iniciado pelo Padre Bernardo de Quadros contra a mameluca Domingas: APESP, Autos cíveis, CO3435, auto
28. O auto de libelo cível iniciado por Germaneza contra as administradas Maria Pedrosa e Domingas Morei-
ra: APESP, Autos cíveis, CO3438, auto 80. Auto cível de Maria Soares Ferreira contra o negro carijó Antônio:
APESP, Autos Cíveis, CO3354. O Auto de justificação da administrada Francisca, mulata forra: APESP, Autos
Cíveis, CO3328 auto 1210. O auto de apelação cível de libelo de Domingas de Oliveira Crasto contra a admi-
nistra Pascoa: APESP, Autos Cíveis, CO3401 auto 3109. A ação de embargo que fez gentio da terra Josefa de
Oliveira contra Antônio Vieira Calassa: APESP, Autos Cíveis, CO3412, auto 3210. A utilização dos dispositivos
de justiça pelos indígenas ainda carece de estudos, um dos primeiros a apresentar a questão foi John Monteiro
contando casos de carijós que acionaram o juízo ordinário para pleitear sua liberdade. MONTEIRO, John Ma-
nuel. Op. cit., p.215- 217. Sobre o tema ver também: RESENDE, Maria. L. C.; LANGFUR, Hall. Minas Gerais
indígena: a resistência dos índios nos sertões e nas vilas de El-Rei. In: Tempo, 2007, vol.12, n.23, p.5- 22. BRI-
GHENTE, Liliam F. 2012. Entre a Liberdade e a Administração Particular: A Condição Jurídica do Indígena
na Vila de Curitiba (1700-1750). Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal do Paraná. Numa
perspectiva interessante Sven Korzilius analisa casos de indígenas e africanos: KORZILIUS, Sven. Property vs.
Liberty: Procedural law and practice of freedom trials in Portugal and Brazil. In: Fronteiras & Debates, Macapá,
v. 4, n. 1, 2017, p. 55- 85.

498
remos postular que embora o direito fosse compartilhado, é possível pensar que havia um direito que
era próprio daqueles que foram escravizados e que estavam desde, pelo menos, o início do setecentos,
lutando bravamente nos pleitos judiciais da colônia para fazer valer o que concebiam por direitos e
liberdade. Por fim, cabe ressaltar que é fundamental mais investigações sobre a utilização dos espaços
judiciais no século XVIII para que possamos entender a própria escravidão brasileira.

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“O LUCRO É UMA BENÇÃO SE NÃO FOR ROUBADO”: O OUVIDOR-GERAL JOÃO BERNARDO


GONZAGA EM PERNAMBUCO (1750-1757).
Paulo Fillipy de Souza Conti62

A administração da Justiça no Estado do Brasil ao longo do século XVIII também fez


parte da gestão imperial. Era parte das engrenagens do sistema. O alargamento do aparelho jurídico
teve velocidades variadas, mas tendeu a ser gradual, além de ter seguido características particulares
em cada região. A descoberta do ouro, por exemplo, deu ritmo acelerado à montagem dos órgãos de
justiça em modelo mais próximo daqueles que existiam no Reino63. Desde 1548 que o Estado do Brasil
contava com um ouvidor-geral, tendo poder de atuação sobre regiões importantes, mas ainda privado
de entrar em outras, como o caso de Pernambuco. E no século seguinte, igualmente, aconteceram

62 Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFPE, linha de pesquisa Mundo Atlântico.
Membro do Núcleo de Estudos do Mundo Atlântico (NEMAt) e do grupo de pesquisa do CNPq “O Mundo
Atlântico”. Bolsista da Capes. E-mail: paulofconti@gmail.com.
63CAMARINHAS, Nuno. O aparelho judicial ultramarino português: O caso do Brasil (1620-1800). Almanack
Braziliense, [S.l.], n. 9, p. 84-102, maio 2009.p. 84-85.

500
mudanças quanto às atribuições dos juízes ordinários (ou juízes das Câmaras). A posição passou a ser
interpretada como “ofício do rei”, logo, para o seu exercício havia novas exigências64.

Já no final do século XVII a Coroa portuguesa introduziu para o Brasil os juízes de fora.
Houve nomeação para a Bahia em 1696, para Pernambuco em 1700 e para o Rio de Janeiro em 1701.
O número de postos na judicatura inferior era crescente e na segunda metade do século XVIII se ex-
pandiu ainda mais65. Isso não significou o fim do exercício da justiça por funcionários não letrados.
A justiça iletrada e popular por bastante tempo coexistiu à justiça letrada, sendo, em algumas regiões,
numericamente superior66.

Trabalhos dedicados ao espaço de ação dos magistrados ganharam destaque recentemente


nos programas de pós-graduação pelo Brasil, fazendo inclusive, alguns deles, incursões na trajetória
profissional dos nomeados. Em finais do século XVII a Coroa portuguesa passou a nomear regu-
larmente ouvidores para o Brasil. Já no século XVIII, houve significativo crescimento do aparelho
judiciário. Tais mudanças foram acompanhadas pelo também crescente interesse político, comercial e
fiscal da Coroa67. Para o caso de Pernambuco, esse processo torna-se mais perceptível pela visualiza-
ção do quadro abaixo.

Lista de ouvidores da Capitania de Pernambuco (século XVIII).

Nome Provisão Data da nomeação


Inácio de Moraes Sarmento Governador 13 de abril de 1701
João Guedes de Sá Rei 02 de março de 1701
José Inácio de Arouche Rei 28 de novembro de 1704
Luís de Valençuela Ortis1
João Marques Bacalhau Rei 29 de abril de 1711
José de Lima Castro Rei 25 de abril de 1715
Fernando Luís Pereira Rei 20 de março de 1719
Francisco Lopes de Carvalho Rei 26 de março de 1722
Manoel do Monte Fogaça Rei 26 de fevereiro de 1725
Antônio Rodrigues da Silva Rei 27 de maio de 1730
Bento da Silva Ramalho Rei 07 de novembro de 1733
Antônio Rabelo Leite Rei 23 de novembro de 1736
Francisco Correa Pimentel Rei 05 de junho de 1742
Francisco Pereira de Araújo Rei 13 de agosto de 1747
Manoel da Fonseca Brandão2
João Bernardo Gonzaga Rei 20 de novembro de 1751
Bernardo Coelho da Gama e Casco Rei 28 de dezembro de 1757
João Marcos de Sá Barreto Rei 10 de maio de 1765
José Teotônio Sedron Zuzarte Rei Ant. 15 de novembro de 1768

64 ASSIS, Virginia Maria Almoêdo de. Ofícios do rei: a circulação de homens e ideais na Capitania de Pernam-
buco. In: Anais do XXV Simpósio Nacional de História – História e Ética. Fortaleza: ANPUH, 2009. p. 3.
65CAMARINHAS, Nuno. O aparelho judicial ultramarino português: O caso do Brasil (1620-1800). p. 87.
66 ASSIS, Virginia Maria Almoêdo de. Ofícios do rei: a circulação de homens e ideias na Capitania de Pernam-
buco. p. 3-4.
67CAMARINHAS, Nuno. O aparelho judicial ultramarino português: O caso do Brasil (1620-1800). p. 87.

501
Francisco José de Sales Rei 23 de outubro de 1773
Antônio José Pereira Barroso de Miranda Rei 23 de julho de 1777
Leite
Antônio Xavier de Moraes Teixeira Ho- Rainha Ant. 20 de março de 1786
mem
José Teotônio de Campos Rainha 31 de março de 1789
Antônio Luís Pereira da Cunha Príncipe Regente 06 de agosto de 1793
José Joaquim Nabuco de Araújo Rainha 21 de junho de 1798
Fontes: Informação Geral da Capitania de Pernambuco (1749). In: Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio
de Janeiro, vol. XXVIII. Rio de Janeiro, Officinas de Artes Gráficas da Bibliotheca Nacional, 1908. p. 450-
451. AHU_ACL_CU_015: Cx. 71, D. 5973; Cx. 86, D. 7088; Cx. 115, D. 8811; Cx. 184, D. 12786. ANTT:
PT/TT/RGM/D/0003/89519; PT/TT/RGM/D/0019/85501; PT/TT/RGM/E/002/0032/137758; PT/TT/RG-
M/E/001/0032/112704; PT/TT/RGM/E/001/0032/107239.

Em artigo recente, a historiadora Virgínia Maria Almoêdo de Assis, chama atenção para
um processo de transformações, em termos jurídicos e administrativos, em curso na capitania de Per-
nambuco entre o final do século XVII e início do XVIII, mais especificamente, durante o governo de
D. Fernão Martins Mascarenhas de Lencastro (1699-1703). Foi durante o governo de Lencastro, por
exemplo, que a cidade de Olinda recebeu o seu primeiro juiz de fora letrado, Manoel Tavares Pinheiro,
em 170268. Voltando a tratar da ouvidoria, podemos notar outro dado interessante sobre o governo
de Lencastro. Ele foi o último governador da capitania de Pernambuco a nomear alguém para o posto
de ouvidor-geral, quando, em 1701, nomeou Inácio de Moraes Sarmento69. Segundo consta na In-
formação Geral da Capitania de Pernambuco (1749), Sarmento serviu apenas por três meses, tempo
necessário para que fosse nomeado um substituto para Manoel da Costa Ribeiro, nomeado pelo rei
D. Pedro II em 1698, o que aconteceu em março de 1701, com a nomeação de João Guedes de Sá, que
tomou posse em 13 de agosto do mesmo ano70. As ações do governador para esse período, impedindo
que a ouvidoria ficasse vaga, nos reforça o cuidado para manter dentro da estrutura de justiça do ul-
tramar, ao menos para as praças mais importantes, ministros que fossem vistos como representantes
diretos do Rei, ainda que a nomeação fosse feita pelo governador.

Valendo-nos do gancho, os ouvidores eram inicialmente responsáveis por exercer as fun-


ções jurisdicionais, sob a delegação de um senhor (no Brasil, primeiramente, dos capitães donatários)
ou pelo próprio monarca. O que nos dá indícios da descentralização da administração da justiça e a
importância de tal fenômeno para entender os mecanismos político-administrativos lançados para a
manutenção dos domínios. Fundamentais ainda para entender o equilíbrio entre os poderes. E po-
demos ter, no caso das ouvidorias, exemplos marcantes desta tendência71. Fazemos tal afirmação ba-
68ASSIS, Virginia Maria Almoêdo de. Em nome do Rei. Um contributo aos estudos sobre justiça e governo na
capitania hereditária de Pernambuco. In: Justiça no Brasil Colonial: agentes e práticas. Organização Maria Fer-
nanda Bicalho, Virgínia Maria Almoêdo de Assis, Isabelle de Matos Pereira de Mello. – 1.ed. São Paulo: Alameda,
2017. p. 25-26, 39.
69 Inácio de Moraes Sarmento foi nomeado para a ouvidoria de Pernambuco pelo rei D. Pedro II, por provisão
datada de 24 de novembro de 1694, tomando posse em 30 de março do ano seguinte. Cumpridos os três anos de
serviço, foi designado para a Provedoria da Fazenda Real, lugar que deixou de ocupar para servir no mandato
provisório de ouvidor da capitania. INFORMAÇÃO Geral da Capitania de Pernambuco (1749). p. 450.
70 INFORMAÇÃO Geral da Capitania de Pernambuco (1749). p. 449-451.
71 HESPANHA, António Manuel. Às vésperas do Leviathan – Instituições e poder político. Portugal – sec.
XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994. p. 195.

502
seados nas crescentes atribuições sob a responsabilidade dos ouvidores, que primeiramente apenas
ouviam as partes, e depois, passaram a julgar e emitir sentenças72.

Dentro da temática geral, as ouvidorias são as que receberam maior número de pesqui-
sas, o que nos ajuda na visualização de um quadro mais amplo. Para a consolidação de uma carreira,
ter passagem por uma ouvidoria de prestígio era importantíssimo. Entre o período de formação e a
nomeação para uma ouvidoria importante, como a de Pernambuco, passava-se em média 15 anos.
O prestígio da posição não significava, absolutamente, ter condições tranquilas para exercer o cargo.
Muito pelo contrário. Conflitos de jurisdição com os governadores e coordenar as eleições para as
Câmaras Municipais poderiam trazer diversos problemas73. Tema que a historiografia não permite
que nos iludamos ao pensa-lo como um problema isolado. Cada região, com as suas singularidades,
apresentaram querelas envolvendo os ouvidores. Na capitania do Ceará, por exemplo, os ouvidores
tiveram dois grandes desafios, as elites locais e os sertões74.

O que se repetiu por Pernambuco, Ceará, Rio de Janeiro, Bahia, entre tantas outras, em
maior ou menor escala, foram as queixas prestadas contra o procedimento dos ouvidores. E pratica-
mente todos os trabalhos dos colegas historiadores nos dão a mesma resposta sobre o resultado final
das queixas: os magistrados eram inocentados das acusações. Isso quando os casos chegavam a ser
julgados. A demora entre a acusação e a devassa tirada sobre a denúncia facilitava que os magistrados
saíssem impunes. O caso investigado por Reinaldo Carvalho, por exemplo, sobre as irregularidades
cometidas por um ouvidor no Ceará no século XVIII mostra que não houve punição75.

Podemos ainda acrescentar a informação sobre a região de Sabará, em Minas Gerais, onde
não houve sentença negativa para os ouvidores durante toda a primeira metade do século XVIII76. E
caso pensemos na teórica força de correção e controle no reinado de D. José, podemos voltar a tomar
como modelo Pernambuco, onde, dos cinco nomeados para o cargo no período, todos foram alvo de
reclamações e apenas um foi punido. Quiçá a exceção que dá validade a regra77. Ainda assim, podemos
pensar nas queixas como parte corriqueira das atividades da administração da justiça, o que não ex-
clui a presença desses indivíduos em meio a ofensas mais graves à monarquia. Em artigo, a professora
Patrícia Valim consegue mostrar muito bem a atuação dos desembargados do Tribunal da Relação da
Bahia em alguns conflitos e, com foco mais detido, na Conjuração Baiana de 1798. Ela diz:
72 SILVA, Evandro Marques Bezerra da. Mandos e desmandos: os ouvidores da Capitania de Pernambuco no
reinado de D. João V (1708-1750). Dissertação. Universidade Federal de Pernambuco, CFCH, Programa de
Pós-Graduação em História. Recife: O autor, 2010. p. 38.
73 SILVA, Evandro Marques Bezerra da. Mandos e desmandos. p. 62-65, 89.
74 CARVALHO, Reinaldo Forte. Governanças das terras: poder local e administração da justiça na Capitania
do Ceará (1699-1748). Tese. Universidade Federal de Pernambuco, CFCH, Programa de Pós-Graduação em
História. Recife: O autor, 2015. p. 25, 92.
75 CARVALHO, Reinaldo Forte. Governanças das terras. p. 158-161.
76ATALLAH, Claudia Cristina Azevedo. Da Justiça em nome d’El Rey: ouvidores e inconfidência na capitania
de Minas Gerais (Sabará, 1720-1777). Tese. Universidade Federal Fluminense. Niterói, RJ, 2010. p. 14.
77 SILVA, Priscilla de Souza Mariano. A justiça no período josefino: atividade judiciária e irregularidades dos
ouvidores na comarca de Pernambuco entre 1750 e 1777. Dissertação. Universidade Federal de Pernambuco,
CFCH, Programa de Pós-Graduação em História. Recife: O autor, 2014. CONTI, Paulo Fillipy de Souza. A Casa
das Qualidades, Pesos e Preços: A Mesa da Inspeção do Tabaco e Açúcar de Pernambuco (1752-1777). Disser-
tação. Universidade Federal de Pernambuco, CFCH. Programa de Pós-Graduação em História, Recife, 2016.

503
Embora a literatura jurídica do final do Setecentos propusesse a sistematização, a
racionalização da ordem jurídica e a imparcialidade judicial, prospectando uma in-
tervenção racional e ordenadora sobre a realidade social, a partir da análise das de-
núncias de prevaricação e da condução dos desembargadores das devassas da Conju-
ração Baiana de 1798 percebe-se a contradição entre as premissas do moderno direito
natural tensionadas pela permanência do personalismo real e suas implicações na
penalidade do crime de lesa-majestade de primeira cabeça. Cumpre destacar que os
próprios setores encarregados de administrar a justiça se envolviam em situações e
atividades pouco lícitas, seja pelas relações estabelecidas entre o poder e os notáveis,
seja pelo desvio de comportamento gerado no cotidiano de uma sociedade pautada
pelo escravismo e por um Estado cujos cargos eram fatiados em benefício de um
grupo que garantia coesão social ante os conflitos inerentes ao processo colonizador78.

Esta é uma das razões que nos levou a escolha de um personagem que pudesse servir de
exemplo para observar determinadas situações. Natural do Rio de Janeiro, João Bernardo Gonzaga re-
cebeu diversas críticas e queixas quanto ao seu procedimento, o que se repetiu em todas as praças onde
serviu. Ainda assim, conseguiu uma trajetória ascendente, de juiz de fora para ouvidor, e de ouvidor
para desembargador, primeiro no Brasil e depois em Portugal.

Da sua trajetória profissional, aqui não focaremos na progressão da sua carreira, senão
em uma característica bastante peculiar que o acompanhou ao menos durante todo o período em
que esteve em Pernambuco, os seus pedidos por aumento ou correção dos valores do seu ordenado.
Não é absolutamente incomum na documentação ultramarina encontrarmos registros de pedidos por
melhores salários. O que torna interessante o caso específico de João Bernardo Gonzaga é a forma
utilizada para a mesma finalidade. Logo, o que buscaremos mostrar ao longo do presente artigo, são
os ganhos possíveis para um ouvidor-geral em uma importante praça ultramarina. Tendo no cenário
da capitania de Pernambuco nos anos iniciais da década de 1750 o nosso pano de fundo. No caso
específico do mencionado personagem, a questão do pagamento ou do acréscimo de direitos ao seu
ordenado toma ares bastante singulares.

JOÃO BERNARDO GONZAGA EM PERNAMBUCO (1750-1757).

Como ouvidor nomeado para Pernambuco, o primeiro registro que podemos encontrar
de João Bernardo Gonzaga é um requerimento, escrito em momento anterior a 22 de dezembro de
1751, através do qual solicita brevidade na criação da Mesa da Inspeção do Tabaco e Açúcar de Per-
nambuco, onde ele serviria como presidente79. Aproveitando-se da deixa, pediu ainda que o seu or-
denado como inspetor (presidente da Mesa da Inspeção), da mesma forma que aconteceu no Rio de
Janeiro e Bahia, fosse pago. E não apenas isso. Solicita equiparação entre os ministros da Bahia e de
Pernambuco, ao afirmar que “[...] sendo o trabalho que o suplicante há de ter na dita Casa de Inspeção
igual ao que tem o inspetor da Bahia, por onde parece ser deferido com o mesmo ordenado, ou com o
78 VALIM, Patrícia. O Tribunal da Relação da Bahia no final do século XVIII: politização da justiça e cultura
jurídica na Conjuração Baiana de 1798. Tempo, Vol. 24 n. 1, Jan./Abr. 2018. p. 137.
79 Sobre a Mesa da Inspeção do Tabaco e Açúcar de Pernambuco, ver CONTI, Paulo Fillipy de Souza. A Casa
das Qualidades, Pesos e Preços: A Mesa da Inspeção do Tabaco e Açúcar de Pernambuco (1752-1777). Disser-
tação. Universidade Federal de Pernambuco, CFCH. Programa de Pós-Graduação em História, Recife, 2016.

504
que Vossa Majestade for servido conceder-lhe”80.

E, a tentativa de equiparação não foi gratuita. No Regimento das Mesas da Inspeção, data-
do de 1º de abril de 1751, no seu capítulo 3, parágrafo 2, está escrito que o rei mandará como ordenado
anual aos intendentes e ouvidores, responsáveis pela presidência das Casas de Inspeção, o que for ser-
vido81. No entanto, o despacho do Conselho Ultramarino ao requerimento de João Bernardo Gonzaga
reconhece que durante o processo de execução das atividades ligadas ao estabelecimento das Mesas
da Inspeção, não foi enviado ao Conselho pelos ministros do rei as ordens para a fixação do ordenado
dos presidentes das Casas de Inspeção instaladas no Rio de Janeiro, Bahia, Maranhão e Pernambuco.
Para a resolução do caso, os conselheiros afirmam haver necessidade dos intendentes e ouvidores re-
ceberem gratificações pelas atividades extras e, que por não haver ordem direta do rei sobre o caso, a
melhor saída seria dar aos presidentes o mesmo que era dado aos inspetores leigos82. Ou seja, em Per-
nambuco, Rio de Janeiro e Maranhão, 200$000 réis sem mais emolumentos; na Bahia, 400$000 réis83.

O que significa dizer que caso o requerimento de Gonzaga fosse inteiramente acolhido
pelo Conselho Ultramarino, o seu ordenado como presidente da Mesa da Inspeção de Pernambuco se-
ria exatamente o dobro do valor pago aos inspetores leigos de Pernambuco e igual ao que foi oferecido
aos inspetores e presidente na Bahia. O que, indiretamente, traria outra equiparação, a da qualidade
do açúcar produzido nas duas capitanias. Mesmo havendo, segundo decreto de 27 de janeiro de 1751,
a necessidade de melhorar a qualidade do açúcar produzido no Rio de Janeiro, Maranhão e Pernam-
buco, para que viessem a ter a “bondade” do açúcar baiano84.

O requerimento de João Bernardo Gonzaga lança luz sobre um espaço vazio deixado pelo
Regimento das Mesas da Inspeção. Inclusive, pelo que consta na documentação do Arquivo Histórico
Ultramarino sobre as demais Mesas da Inspeção, não conseguimos encontrar registro do questiona-
mentos semelhantes sobre o ordenado dos presidentes. O que há para a Bahia, por exemplo, é uma
troca de informações sobre os ordenados dos inspetores leigos e dos escrivães. E, mesmo havendo
nessa comunicação relatos do então presidente da Mesa da Inspeção da Bahia, o desembargador Ven-
ceslau Pereira da Silva, o ordenado devido ao presidente da Inspeção não entra na discussão85. Assim
sendo, por não haver tais registros, nem mesmo um novo requerimento de João Bernardo Gonzaga
nesse sentido, somos levados a crer que o parecer dado pelo Conselho Ultramarino foi acolhido pelo
rei D. José. Pois, em parte anexa ao documento manuscrito utilizado acima, há registro de concordân-
cia do parecer pelo Provedor Régio e o pedido para que a decisão fosse incorporada às leis das Mesas
80 REQUERIMENTO do ouvidor nomeado para a capitania de Pernambuco, João Bernardo Gonzaga, ao rei
D. José, pedindo a criação da Mesa da Inspeção do Tabaco na dita capitania e a provisão concedendo-lhe o
ordenado de inspetor. Sem localização. Ant. 22 de dezembro de 1751. AHU_ACL_CU_015, Cx. 72, D. 6085.
81 PORTUGAL. Regimento das Casas de Inspeção. In: SOUSA, José Roberto Monteiro de Campos Coelho
e (org.). Systema, ou collecção dos regimentos reaes, contém os regimentos pertencentes à administração da
Fazenda Real (Tomo IV). Officina de Francisco Borges de Sousa: Lisboa, 1785. p. 93.
82 PARECER do Conselho Ultramarino sobre o ordenado devido aos presidentes das Casas de Inspeção do
Brasil (documento anexo). Lisboa, 24 de dezembro de 1751. AHU_ACL_CU_015, Cx. 72, D. 6085.
83 PORTUGAL. Regimento das Casas de Inspeção. p. 94.
84CONTI, Paulo Fillipy de Souza. A Casa das Qualidades, Pesos e Preços. p. 71.
85 Sobre a questão, ver o conjunto de documentos avulsos da Bahia presente no Arquivo Histórico Ultramari-
no.

505
da Inspeção, análise feita em Lisboa, no dia 27 de junho de 1752. E, o último registro sobre o caso, feito
na mesma cidade, está datado de 16 de dezembro de 1754, quando os conselheiros voltaram a reforçar
a posição tomada em 24 de dezembro de 175186.

Outra questão envolvendo João Bernardo Gonzaga e a possibilidade aumentar os lucros


fruto do seu trabalho teve início em 1752. E, desta vez, não foi ele que se adiantou em cobrar, foi, na
verdade, informado através de um bilhete do secretário do Conselho Ultramarino, Joaquim Miguel
Lopes de Lavre, de 1º de dezembro de 1752, da ordem para recebimento de provisão ao ouvidor-geral
de Pernambuco para que ele pudesse levar as assinaturas, de acordo com o fixado pela lei de 07 de
janeiro de 175087.

Pela lei, encontramos apenas duas menções aos ouvidores sem especificar o lugar de ser-
viço. A primeira delas diz que “os Corregedores, Provedores, Ouvidores, Juízes de Fora, e dos Órfãos
não rubricarão mais Livros, que os determinados pelo Ordenação, e Leis, que depois dela emanaram;
e pela rubrica de cada folha levarão somente dez réis”. Já a segunda, garante aos corregedores, prove-
dores e ouvidores, quando em diligências fora das cidades ou vilas, o direito de receber 1$200 réis por
cada dia de serviço e, se for ministro de “primeiro banco”, o valor deveria ser de 1$600 réis88. Logo,
quando o secretário fala em levar assinaturas, para nós fica claro que está se referindo aos livros que
por lei precisavam ser assinados antes de serem despachados para o Reino. Mas, pouco tempo depois,
João Bernardo Gonzaga deu nova interpretação ao caso.

Por requerimento escrito em data anterior a 22 de novembro de 1754, foi colocado o se-
guinte:
Diz o bacharel João Bernardo Gonzaga ouvidor geral da capitania de Pernambuco,
que pela Lei Novíssima de 7 de janeiro de 1750, foi Vossa Majestade servido aumen-
tar aos Ministros do Ultramar mais a terça parte dos ordenados, que antigamente se
foram taxados, e a mesma graça se dignou Vossa Majestade ampliar a alguns lugares
a América, entre os quais foi o dele suplicante, e como para vencer o dito aumento ca-
rece de provisão. Pede a Vossa Majestade lhe faça mercê mandar a passar para vencer
o dito aumento desde o dia, em que entrou a servir o dito lugar89.

Na “Lei Novíssima”, existe sim a previsão de aumento da terça parte dos ordenados dos
ministros da justiça, no entanto, com lugar de jurisdição apresentado. Foram favorecidos “todos os
Corregedores, Provedores, Ouvidores, Juízes de Fora, e dos Órfãos Letrados, e mais Ministros desta
Cidade [Lisboa], Reino, e do Algarve”90. Ora, ou houve um equívoco na maneira de registrar os es-
86 AHU_ACL_CU_015, Cx. 72, D. 6085.
87 BILHETE do secretário do Conselho Ultramarino, Joaquim Miguel Lopes de Lavre, ordenando que se passe
provisão ao ouvidor-geral de Pernambuco para levar os novos direitos da lei de 07 de janeiro de 1750. Lisboa,
01 de dezembro de 1752. AHU_ACL_CU_015, Cx. 73, D. 6168.
88 PORTUGAL. Alvará de 07 de janeiro de 1750. Aumentando os Ordenados dos Ministros e obviando alguns
abusos. In: SILVA, António Delgado da. Collecção da Legislação Portugueza [...], Legislação de 1750 a 1762.
Typografia Maigrense: Lisboa, 1830. p. 6.
89 REQUERIMENTO do ouvidor geral da Capitania de Pernambuco, João Bernardo Gonzaga, ao rei [D. José],
pedindo acréscimo do seu ordenado desde o dia em que assumiu o ofício. Ant. 22 de novembro de 1754. Sem
localização. Ant. 22 de novembro de 1754. AHU_ACL_CU_015, Cx. 77, D. 6421.
90 PORTUGAL. Alvará de 07 de janeiro de 1750. Aumentando os Ordenados dos Ministros e obviando alguns
abusos. p. 4.

506
paços de jurisdição beneficiados, ou está bastante claro que a graça foi dirigida especialmente a um
grupo de magistrados que serviam no Reino. Ainda assim, a importância do lugar de serviço pode ter
tido peso no pedido feito pelo ouvidor, ciente da representatividade da capitania de Pernambuco para
a Coroa. Peso que se reflete na resposta ao requerimento de Gonzaga.

Através de outro bilhete, de 04 de dezembro de 1754, o secretário do Conselho Ultrama-


rino, Joaquim Miguel Lopes de Lavre, ordenou que “ao [...] ouvidor geral da capitania de Pernambuco
se há de passar provisão para vencer mais a terça parte do seu ordenado desde o dia em que entrou a
servir o dito lugar e para pagar o novo direito, que de ver se lhe deu este bilhete”91. O acolhimento do
pedido pelo Conselho reforça o sucesso dos argumentos do ouvidor-geral nesse caso. É interessan-
te notar a apropriação de partes do alvará de 07 de janeiro de 1750 e da ocultação de outras partes.
João Bernardo Gonzaga faz um uso parcial e bastante consciente dos trechos que poderiam atingi-lo
favoravelmente. Por exemplo, no primeiro parágrafo do mencionado alvará, diz-se que os cobertos
são “os desembargadores do Paço, Casa da Suplicação e do Porto, e mais ministros de Justiça”92. E, é
exatamente dessa generalização que se vale o argumento de Gonzaga. Já que, mais a frente, deixa-se
claro que a validade da lei recai sobre a jurisdição do Reino, do Algarve e da cidade de Lisboa. Ou seja,
o ocultamento de um trecho permitiu que o então ouvidor-geral de Pernambuco faça uma equipara-
ção, em termos de importância e zelo pelo serviço régio, em relação aos magistrados que serviam dos
dois lados do Atlântico. Ao fazer esse argumento de equivalência, não apenas atribui mais prestígio ao
cargo que naquele momento conservava, como também pode exigir que as regras fossem válidas para
o seu espaço jurisdicional.

Com essa nova atribuição, João Bernardo Gonzaga passou a acumular o seu ordenado
como ouvidor-geral de Pernambuco, pelo qual venciam a seu favor 300$000 réis, valor estabelecido
por alvarás de fevereiro e abril de 1715, despesa presente na folha secular da Provedoria de Pernambu-
co93, mais a terça parte desse valor (100$000 réis), estes, ganhos diretos da posição na ouvidoria. Pela
atividade paralela como presidente da Mesa da Inspeção de Pernambuco, foram fixados mais 200$000
réis. Assim, a quantia chegou aos 600$000 réis anuais. Ganhos através da argumentação baseada quase
que exclusivamente nas leis e não apenas no bom serviço. Esse é um valor que pode até ser considera-
do pequeno quando comparado com o ordenado estabelecido para os governadores de Pernambuco
desde 1721, 2:400$000 réis anuais. Governo e ouvidoria tinham pesos diferentes dentro da dinâmica
governativa do Império português, logo, as diferenças no montante referente ao “prêmio” pelo serviço
eram naturais. Por isso, é importante reforçar que o nosso foco aqui não é mostrar o então ouvidor-
-geral em processo de enriquecimento, senão em processo de alargamento dos seus ganhos brutos,
que com apenas dois requerimentos foram dobrados. Mas, havia ainda outro ponto a ser explorado
por Gonzaga.

91 BILHETE do secretário do Conselho Ultramarino, Joaquim Miguel Lopes de Lavre, ordenando que se passe
provisão ao ouvidor-geral de Pernambuco para ser acrescida a terça parte do seu ordenado desde o dia em que
assumiu o posto (documento anexo). Lisboa, 04 de dezembro de 1754. AHU_ACL_CU_015, Cx. 77, D. 6421.
92 PORTUGAL. Alvará de 07 de janeiro de 1750. Aumentando os Ordenados dos Ministros e obviando alguns
abusos. p. 1.
93 INFORMAÇÃO Geral da Capitania de Pernambuco (1749). p. 315.

507
Conforme sabemos,
Os ouvidores-gerais ou ouvidores de comarca eram os magistrados que estavam à
frente das comarcas, que recebiam uma nomeação régia para as ouvidorias e tinham
jurisdição sobre todo o território dessa instituição. Eram os principais responsáveis
por acompanhar as atividades das câmaras e pela realização das correições. Para os
territórios ultramarinos, a Coroa portuguesa nomeava ouvidores-gerais que, na prá-
tica, tinham competências semelhantes aos corregedores do reino, inclusive deve-
riam seguir os mesmos capítulos das Ordenações94.

Nas Ordenações Filipinas, consoante Isabele de Matos Pereira de Mello, o mesmo título
(LVIII) que trata dos corregedores das comarcas do Reino, serviu de base para o trabalho dos ouvido-
res e ouvidores-gerais do ultramar. E, pelo título seguinte, as Ordenações estabelecem que um ouvidor
nomeado para uma cidade ou vila, “quando estiver no lugar de sua ouvidoria, conhecerá de todo o que
conheceria o corregedor da comarca, e usará de todo o que o corregedor por seu regimento pode usar
[...] no lugar de seu julgado”95. Logo, dentro desse espaço jurisdicional, os ouvidores eram os principais
responsáveis por “fazer justiça” e, uma das formas de executar essa missão era através das correições.

Em Pernambuco, foi o tema das correições e os direitos fruto delas que proporcionou ao
ouvidor João Bernardo Gonzaga novas razões para escrever ao Reino sobre outros valores que, segun-
do ele, lhe eram devidos. Tal discussão, na realidade, teve início quando ocupava interinamente a ou-
vidoria da capitania de Pernambuco o desembargador Manoel da Fonseca Brandão. Aproximavam-se
as festas do Natal de 1751 quando o desembargador recebeu através do governador Luís José Correia
de Sá, uma certidão em nome do “povo” da vila de Sirinhaém, pela qual era solicitado o “remédio de
correição”, o que não ocorria a quatro anos. Prontamente, Manoel da Fonseca Brandão decidiu seguir
para Sirinhaém durante as férias do Natal para “administrar justiça” na região.

Durante o processo, Brandão diz que


[...] tomando contas aos oficiais da Câmara dos quatro anos antecedentes, achei que
os ouvidores, que fizeram correições de dois e mais anos, levaram de cada um deles
aposentadoria de vinte e cinco mil réis, que tem pelos bens daquele Conselho, e entre
eles praticou o mesmo Francisco Correia Pimentel, um dos Ministros mais distintos
em letras, desinteresse, e pureza de consciência, que tem servido a Vossa Majestade
no Brasil96.

Por ter encontrado a despesa nas contas de anos anteriores, segundo informa, Brandão
abonou as aposentadorias referentes aos quatros anos nos quais não foram realizadas correições. Por
isso, ofereceu o desembargador um “desconto” à Câmara de Sirinhaém, pois, para os três anos ante-
riores, cobrou 18$000 réis para cada e 25$000 réis pelo ano corrente. Além dos 79$000 réis que levou
da Câmara pela correição, Brandão ainda estabeleceu valor para ser pago ao escrivão (8$000 réis), ao
94MELLO, Isabele de Matos Pereira de. Os Ministros da Justiça na América Portuguesa: ouvidores-gerais e
juízes de fora na administração colonial (séc. XVIII).  Rev. Hist. (São Paulo),  São Paulo, n. 171,  p. 351-381,
Dec. 2014. p. 355.
95 TÍTULO LIX. Codigo Philippino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal, Livro I. 14ª edição. Rio de
Janeiro: Tipografia do Instituto Filomático, 1870. p. 112.
96 CARTA do desembargador e ouvidor interino da capitania de Pernambuco, Manoel da Fonseca Brandão,
ao rei D. José, sobre a correição que realizou na vila de Sirinhaém e sobre as aposentadorias dos ouvidores da
capitania (documento anexo). Recife, 26 de abril de 1752. AHU_ACL_CU_015, Cx. 79, D. 6573.

508
meirinho (4$000 réis) e “outro tanto para o escrivão da vara”. Desses valores foram abatidos os gastos
pessoais dos oficiais durante a correição, período de tempo não especificado pelo desembargador.
Mesmo após receber os valores, Brandão reconhece não ter certeza se agiu dentro da lei e, exatamente
por essa razão, escreveu ao Rei para saber se havia alguma irregularidade com o seu procedimento97.

Pelo cruzamento de informações disponíveis nos documentos avulsos do Arquivo Histó-


rico Ultramarino, é possível perceber que Manoel da Fonseca Brandão ainda estava em Pernambuco
quando João Bernardo Gonzaga assumiu seu posto na ouvidoria da capitania. Logo, não é improvável
que Gonzaga tenha tomado conhecimento da querela acerca do pagamento das aposentadorias atra-
vés do desembargador. Inclusive, a provisão de 17 de setembro de 175398, que proibia o ouvidor-geral
de receber as aposentadorias e que foi mencionada por Gonzaga na sua carta de 12 de maio de 1754,
parece muito mais ser uma resposta à carta de Manoel da Fonseca Brandão do que uma resposta à
pedidos feitos por João Bernardo Gonzaga. Na verdade, os argumentos de Gonzaga vão de encontro
ao que foi praticado pelo desembargador. Que, segundo diz Gonzaga, entendeu que as aposentadorias
deveriam ser pagas pelos títulos, quando, as provisões que vigoravam em Pernambuco garantiam o
direito para pagamento do aluguel da casa onde viviam os ouvidores da comarca. Pelas informações
levantadas por João Bernardo Gonzaga,
[...] desde a criação desta ouvidoria [de Pernambuco] se concedeu por Vossa Majes-
tade aos seus ouvidores 100$000 réis de aposentadoria anual para as suas casas, os
quais se acham partidos pelas câmaras da comarca, como nesse Reino se pratica; pa-
gando a Câmara de Olinda 40$000 réis; a do Recife 16$000 réis; a de Igarassu 19$000
réis e a de Sirinhaém 25$000 réis99.

Para comprovar a sua argumentação, o ouvidor-geral recorreu aos livros de registro das
câmaras. Na de Sirinhaém, até mesmo pelo que foi exposto por Brandão, havia a previsão de pagar
aposentadorias no valor de 25$000 réis, o que mudou de um ouvidor para o outro foi a razão de ser
do pagamento. Em meio aos esclarecimentos para saber como deveriam proceder os ouvidores, João
Bernardo Gonzaga conseguiu que as câmaras de Olinda e Igarassu apontassem nos seus livros as apo-
sentadorias como forma de pagar a casa onde os ouvidores costumavam viver na “cabeça” da comarca.
No entanto, longe de ter sido resolvida rapidamente, a questão se arrastou até novembro de 1757 e,
ainda se arrastava pela burocracia do Conselho Ultramarino em meados de agosto e dezembro de
1758, quando Gonzaga já havia sido nomeado para outro posto100.

A demora na resposta não significa que ele tenha ficado privado das aposentadorias por
todo esse período. O governador da capitania de Pernambuco, Luís Diogo Lobo da Silva, já havia dado
parecer favorável aos argumentos de Gonzaga em abril de 1757 e a confirmação da Câmara de Olinda
foi feita no ano anterior. Por fim, a consulta do Conselho Ultramarino define que as aposentadorias
97 AHU_ACL_CU_015, Cx. 79, D. 6573.
98 Reforçada por outra provisão datada de 14 de dezembro de 1754. AHU_ACL_CU_015, Cx. 79, D. 6573.
99 CARTA do ouvidor geral de Pernambuco, João Bernardo Gonzaga, ao rei [D. José], sobre o pagamento da
sua aposentadoria pelas câmaras de Sirinhaém, Igarassu, Recife e Olinda (documento anexo). Recife, 12 de
maio 1754. AHU_ACL_CU_015, Cx. 79, D. 6573.
100 CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei D. José, sobre o dinheiro que anualmente recebe de aposen-
tadoria o ouvidor-geral de Pernambuco, João Bernardo Gonzaga, das câmaras de Sirinhaém, Recife, Olinda e
Igarassu. Lisboa, 07 de novembro de 1757. AHU_ACL_CU_015, Cx. 86, D. 7045.

509
devem continuar sendo pagas. Ou seja, enquanto o caso não tomou resolução final, as provisões 17 de
setembro de 1753 e 12 de maio de 1754, que proibiram o pagamento das aposentadorias, foram cons-
trangidas pela anterioridade das provisões assentadas nos livros de registro das câmaras da comarca.

Com essa decisão, chegou o rendimento anual do ouvidor-geral de Pernambuco ao valor


bruto de 700$000 réis, fora o que era arbitrado para os magistrados a cada julgamento. Através da
argumentação baseada nas leis vigentes, Gonzaga conseguiu tornar o seu ordenado superior e muito
mais interessante do que os 300$000 réis previsto nos alvarás de 1715. E, não é absolutamente uma
novidade considerarmos, ao tratar de sujeitos históricos, os interesses pessoais diante de uma oferta
de trabalho ou até mesmo durante o exercício dessa atividade laboral. Conforme aponta a historiadora
Elisa Caselli para a realidade espanhola, aqueles que compravam ou recebiam um cargo, o faziam es-
perando retorno maior do que o investimento realizado para conseguir o posto, fosse o investimento
a própria compra ou a formação universitária (já que os custos para a formação e cerimônias de gra-
duação tinham valores consideráveis). Assim, no que se refere aos
[...] ingresos de los jueces, debemos recordar que además de los beneficios por exen-
ciones tributarias, derechos de aposentamiento y consideraciones honoríficas, los
jueces y oficiales de justicia, en general, contaban con los ingresos provenientes de
su salario o quitación, de los aranceles por cada acto procesal, del décimo de las eje-
cuciones y de la participación proporcional en las penas pecuniarias destinadas al
acusador cuando este no existía y se actuaba de oficio. En la práctica, la manera de
asegurar (e incrementar) sus ingresos adquiría un claro carácter privado: los jueces y
oficiales vinculados a la justicia tenían en sus manos optimizar sus recursos y la for-
ma de lograrlo parece bastante evidente. Expresado de un modo más llano: cuantos
más juicios tratara un juez, mayores serían sus ingresos101.

O exposto pela autora também é em parte válido para o mundo luso. Isso significa dizer
que a soma de 700$000 réis não significa o todo, senão o valor fixo por ano de trabalho, como foi dito
anteriormente. O levantamento dos casos nos quais esteve envolvido João Bernardo Gonzaga ainda
está em processo de composição, mas, previamente nos aponta a adoção de estratégia semelhante a
que foi colocada na citação supramencionada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“O lucro é uma benção se não for roubado”. A frase que dá título ao nosso artigo foi reti-
rada da peça O Mercador de Veneza, escrita por William Shakespeare, por volta de 1596, e está loca-
lizada no terceira cena do primeiro ato da obra. Ela está posicionada dentro dos argumentos iniciais
Shylock (judeu rico), que deseja mostrar haver várias maneiras de potencializar os lucros para além da
cobrança de juros nos empréstimos e revelar toda a sua “benevolência” através de uma nova ideia de
contrato e pagamento de dívidas102. Fazemos aqui tal esclarecimento para que não reste dúvida sobre

101 CASELLI, Elisa. Vivir de la Justicia. Los réditos del oficio de juzgar y su incidencia en las disputas juris-
diccionales (Castilla en la temprana Edad Moderna). In: Justicias, agentes y jurisdicciones. De la Monarquía
Hispánica a los Estados Nacionales (España y América, siglos XVI-XIX). Fondo De Cultura Económica De
España, 2017. Edição do Kindle, locais 4095-4101.
102 As obras de William Shakespeare foram publicadas por inúmeras editoras, aqui utilizamos uma edição
popular e bastante palatável para jovens leitores. SHAKESPEARE, William, 1564-1616. O Mercador de Veneza
/ William Shakespeare; tradução Beatriz Viérgas-Faria. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2008.

510
a intencionalidade de uso da frase. Para que ela fosse aplicada ao caso de João Bernardo Gonzaga, ela
foi completamente retirada do seu lugar e sentido. Ainda que os textos de Shakespeare tenham forte
apelo, sobretudo, entre os juristas e historiadores do Direito falantes de língua inglesa e que a peça
traga interessantes lições sobre os argumentos de um “bom” jurista, não desejamos adentrar em uma
discussão que envolva os documentos e historiografia aqui utilizados comparados aos exemplos mo-
rais em Shakespeare.

Ainda assim, temos plena consciência que o conteúdo exposto nas páginas anteriores
pode levar alguns a montar a imagem de João Bernardo Gonzaga como um homem ganancioso ou
usurário. E, nesse ponto em especial, a mencionada frase saiu dos lábios do personagem correto, afi-
nal, Shylock é visto nesses termos por boa parte da obra ficcional. No entanto, afastando-nos da ficção,
é importante lembrarmos não haver nos argumentos de Gonzaga qualquer tipo de contravenção legal.
Muito pelo contrário. A sua atenção ao conteúdo das leis vigentes lhe permitiu ampliar os benefícios
financeiros referentes ao seu trabalho como ouvidor-geral e presidente da Mesa da Inspeção de Per-
nambuco.

A experiência de Gonzaga é apenas uma dentro de um universo gigantesco de ministros


do Rei responsáveis por administrar justiça nas mais diversas praças do Império. As carreiras no cam-
po da Justiça, conforme sabemos, poderiam ser frustrantes ou frutíferas103 e, para ambas situações,
desafiadora. Talvez por isso, a recomendação de haver apartamento dos juízes da vida comunitária
fosse costumeiramente desrespeitada. Em contrapartida, ao menos para a realidade portuguesa, por
diversas vezes a Coroa teve que fazer vista grossa para determinados comportamentos em nome da
manutenção do funcionamento da máquina burocrática. Os abusos mais corriqueiros eram os de
ganho pessoal pelo uso da posição, mas poderiam chegar até ao crime de venalidade de sentenças104.

Desta forma, fosse para agir com absoluta correção, fosse para buscar brechas que permi-
tiam condutas reprováveis, o conhecimento das leis que regulavam a relação entre os servidores reais
e a monarquia precisava ser muito bem desenvolvido. Assim como também – ao menos era o que se
esperava –, a extensão desse domínio para as leis impostas ao resto da população105.O que nos chama
especial atenção em cada um desses pedidos do ouvidor é a sua forma de solicitar as benesses, sempre
baseado na legislação e não apenas no bom serviço e lealdade ao rei. O que também pode ser visto,
caso partamos para uma análise mais focada na linguagem, como reflexo claro da diferença de cons-
103 A possibilidade de uma carreira ser “frustrante ou frutífera” é válida para toda e qualquer atividade labo-
ral. Aqui, tomamos a palavra “frustrante” para reforçar a ideia das consequências de não haver uma sequência
de nomeações régias que permitissem a alguns sujeitos viver do exercício de administrar justiça em nome do
Rei. Conforme consta no artigo, os custos para a formação em Leis e/ou Cânones em Coimbra eram elevados
e, tal investimento tem na sua principal razão de ser, a inserção e o prosseguimento de uma carreira na admi-
nistração da justiça. E, conforme apontam os estudos de José Subtil, 54,5% dos nomeados entre 1772 e 1826,
receberam apenas uma nomeação. Destes, 79% acabaram abandonando a magistratura. O que, salvo aqueles
que escolheram livremente não continuar, pode sim ser visto como uma frustração. SUBTIL, José. Os ministros
do rei no poder local, ilhas e ultramar (1772-1826). Penélope, nº27, 2002, p. 42.
104 SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. p. 265-268.
105CONTI, Paulo Fillipy de Souza.Alianças Estratégicas: os magistrados e as monarquias ibéricas no século
XVIII. In: II Encontro do Núcleo de Estudos do Mundo Atlântico (NEMAt): Novos caminhos para a História
[2017], 2018, Recife. Encontro do Núcleo de Estudos do Mundo Atlântico (2: 2017 nov. 06-09: Recife, PE).
Anais Eletrônicos. Recife: Editora UFPE, 2018. p. 414.

511
trução dos argumentos encontrados nas missivas ultramarinas quando a comunicação é entre a Coroa
e os seus oficiais e quando é entre os súditos e a Coroa. Ou seja, a estruturação das súplicas apresentam
características que revelam a posição social dos sujeitos que solicitam privilégios.

Logo, para além dos ganhos possíveis para um ouvidor-geral, a nossa comunicação trata
de como o conhecimento da legislação vigente no Reino e ultramar era mais do que um instrumento
para a execução do trabalho desses indivíduos. O conhecimento jurídico poderia tornar-se, como tão
bem nos mostra João Bernardo Gonzaga, um meio para atingir maior rendimento financeiro. E, como
costuma acontecer no universo jurídico, aberto o precedente, os benefícios recebidos por Gonzaga
não saíram mais da pauta de interesse dos seus sucessores.

REFERÊNCIAS ARQUIVÍSTICAS E BIBLIOGRÁFICAS

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AHU_ACL_CU_015, Cx. 79, D. 6573.

AHU_ACL_CU_015, Cx. 86, D. 7045.

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AHU_ACL_CU_015, Cx. 115, D. 8811.

AHU_ACL_CU_015, Cx. 184, D. 12786.

Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT):

PT/TT/RGM/D/0003/89519

PT/TT/RGM/D/0019/85501

PT/TT/RGM/E/002/0032/137758

PT/TT/RGM/E/001/0032/112704

PT/TT/RGM/E/001/0032/107239.

Livros, artigos, teses e dissertações:

ASSIS, Virginia Maria Almoêdo de. Em nome do Rei. Um contributo aos estudos sobre justiça e governo na ca-
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dx.doi.org/1590/tem-1980-542x2018v240107.

(Footnotes)

1 Foi juiz de fora da cidade de Olinda e assumiu a ouvidoria geral da capitania de Pernambuco no dia 03
de junho de 1710, por ausência do ouvidor José Inácio de Arouche. Permaneceu na função até 16 de outubro
de 1711, quando um novo ouvidor nomeado pelo rei tomou posse. INFORMAÇÃO Geral da Capitania de Per-
nambuco (1749). In: Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro, vol. XXVIII. Rio de Janeiro, Officinas
de Artes Gráficas da Bibliotheca Nacional, 1908. p. 451.

2 Foi desembargador da Relação da Bahia e em Pernambuco exerceu o cargo de ouvidor interino. Ma-
noel da Fonseca Brandão foi chamado a Pernambuco para dar solução aos conflitos de jurisdição existentes
entre o juiz de fora de Olinda e Recife, Antônio Teixeira da Mata, e do bispo D. Frei Luís de Santa Teresa. E,
além disso, analisar a posição tomada pelo ouvidor Francisco Pereira de Araújo durante o conflito. AHU_ACL_
CU_015, Cx. 71, D. 5973.

514
515
516
SIMPÓSIO TEMÁTICO 08
Arte na América portuguesa: iconologia, iconografia e interxtualidade

Coordenadores:

André Cabral Honor

Camila Fernanda Guimarães Santiago

Apropriação de imagens gravadas e hibridização iconográfica:


a construção de um modelo de santidade franciscano a partir da azulejaria da América
Portuguesa
Aldilene Marinho César Almeida Diniz1

O presente trabalho tem por objetivo tratar de modelos específicos de santidade, destacados
no acervo azulejar produzido para a América Portuguesa em meados do século XVIII, que represen-
tam São Francisco de Assis (ca. 1182-1226) como perfeito imitador de Cristo, como defensor da Igreja
e exemplo de castidade.

Para isso, apresentam-se algumas questões suscitadas a partir de dois conjuntos azulejares,
produzidos em meados do século XVIII, com pinturas dedicadas ao tema da vida de Francisco, en-
contrados nos conventos franciscanos de Nossa Senhora das Neves, de Olinda, e de São Francisco,
de Sirinhaém, ambos no Estado de Pernambuco. Com isso, pretende-se tratar de algumas relações
estabelecidas entre a escolha dos temas representados, as formas em que são figuradas as passagens
hagiográficas selecionadas e possíveis funções pretendidas para essas imagens na proposição de um
modelo específico de santidade, apresentado a religiosos e leigos, nos lugares em questão durante o
chamado período colonial.

O ciclo azulejar com cenas narrativas da vida de São Francisco encontrado no referido convento
de Olinda, foi assentado nos quatro lados do ambiente claustral e possui dezesseis painéis com cenas
da vida do patriarca franciscano. Em termos de conservação, o ciclo com imagens em azul e branco
se encontra atualmente entre os mais comprometidos conjuntos azulejares do convento, apresentando
grande número de peças ausentes e muitos problemas relativos à umidade e à salinização das peças.

O outro conjunto azulejar aqui tratado encontra-se na igreja do Convento de São Francisco de
Sirinhaém, município da zona da mata pernambucana, localizado a 70 km de Recife, localidade que
fez parte da próspera região açucareira do Nordeste brasileiro durante o chamado período colonial.O
lugar recebeu um dos conjuntos arquitetônicos franciscanos, compostos por convento, igreja e

1 Doutora em História Social pelo Programa de Pós-graduação em História Social (PPGHIS-UFRJ), professora
do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ).

517
seminário, que foram edificados na América Portuguesa ao longo do litoral brasileiro.

Componente do acervo de azulejaria portuguesa no Brasil, o ciclo azulejar com cenas da vida
de São Francisco de Sirinhaém, encontra-se assentado ao longo das paredes da nave e da capela-mor
da Igreja conventual e conta, ao todo, com trinta e sete diferentes cenas narrativas da vida do santo
distribuídas, inicialmente, entre quinze painéis azulejares. Este ciclo narrativo é também aquele que
apresenta maior ênfase naquilo que o historiador francês Jérôme Baschet chamou de hibridização
iconográfica2, quando o artista se utiliza de imagens diferentes para proceder uma espécie de operação
de síntese figurativa que reúne, de forma “criativa”, elementos oriundos de dois ou mais modelos para
produzir uma nova imagem, sendo esta quase sempre inédita3.

Neste trabalho serão destacados três exemplos nos quais se verifica a ocorrência de hibridiza-
ção iconográfica para evidenciar especificamente os modelos de santidade indicados, quais sejam: o
do seguimento integral de Francisco na imitação de Cristo, o de Francisco como protetor da Igreja e a
sua perseverança absoluta na castidade.

Desde o século XVII, o gosto pela utilização de azulejos se estabeleceu na América Portu-
guesa, seja pelo uso dos azulejos do tipo decorativo seja pelo assento de conjuntos do tipo figurativo
compondo ciclos iconográficos com cenas da vida da Virgem Maria, da Paixão de Cristo, do Antigo
Testamento e da vida dos santos. Inseridos nesse contexto de utilização do azulejo, os frades francis-
canos foram responsáveis por boa parte da constituição do acervo azulejar brasileiro, visto que esse
tipo de revestimento cerâmico foi largamente utilizado na ornamentação das construções francisca-
nas no Brasil e está presente em boa parte de suas mais antigas casas. Desse patrimônio arquitetural
e imagético, sobreviveram até nossos dias uma quantidade substancial de registros, dentre os quais se
destacam os ciclos iconográficos encontrados nessas construções.

No que tange à iconografia de Francisco de Assis, desde a Idade Média, conforme destacou
Jacques Le Goff, Francisco é considerado um modelo de santidade singular e inovador frente às
tradições eclesiásticas da época. Contudo, em virtude de seus ideais de vida evangélica, algumas
vezes considerados extremos4, sua mensagem foi comumente reelaborada de acordo com a visão
da Ordem dos Frades Menores, mudando-se com o passar do tempo também a sua iconografia e,
consequentemente, a sua imagem perante os fiéis5.

Assim como os relatos de sua vida, suas imagens também foram objeto de contínua
reelaboração, de acordo com os ideais dos diferentes ramos da Ordem encontrados em frequente
disputa6. Em muitos casos, os preceitos defendidos mais radicalmente pelo santo – por exemplo, a sua
defesa apaixonada da pobreza como virtude evangélica – parecem ter sido omitidos de sua iconografia
2Cf. BASCHET, Jéróme. Inventiva y serialidad de las imágenes medievales. Por una aproximación iconográfica
aislada. Relaciones. Estudios de Historia y Sociedad, v. XX, Núm. 77, p. 49-103, 1999.
3 SCHMITT, Jean-Claude.O que a imagem faz da narrativa. In: ____. O Corpo das Imagens. Ensaios Sobre a
Cultura Visual na Idade Média. Bauru SP: EDUSC, 2007. p. 313- 325. p. 317.
4Cf. LE GOFF, Jacques. São Francisco de Assis. São Paulo: Record, 2001. p. 69-77.
5 BELTING, Hans. Semelhança e Presença: a história da imagem antes da era da arte. Tradução Gisah Vascon-
cellos. Rio de Janeiro: [s.n.], 2010. p. 491.
6 Cf. BELTING, Semelhança e Presença, op. cit., p. 14-16.

518
que, por vezes, preferia ressaltar seu exemplo de fidelidade à Igreja, como nas cenas da aprovação de
sua Regra pelo papa Honório III, amplamente representadas desde as imagens medievais.

De forma semelhante, as gravuras e imagens azulejares da Época Moderna também ajudaram


a construir e difundir novos modelos iconográficos da vida do Poverello, por meio da escolha de
temas e da apropriação de imagens que passaram a figurar outros aspectos da santidade de Francisco,
além daqueles destacados pela tradição iconográfica medieval. Além disso, esses ciclos azulejares
representam também um dado momento da história da Ordem no Brasil, relacionando-se com
diferentes projetos, ideais e práticas religiosas que dotavam de sentido a existência de tais imagens
para a sociedade da América Portuguesa.

São Francisco como seguidor da imitação de Cristo

Sobre o tema de São Francisco como modelo integral da imitação de Cristo, apresenta-se o
caso de um painel azulejar que compõe o ciclo narrativo da vida do santo no convento franciscano de
Olinda. Suas cenas foram inspiradas em diferentes narrativas hagiográficas medievais, dentre essas,
a Legenda Maior, de São Boaventura (ca. 1221-1274); o Livro das Conformidades, de Bartolomeu de
Pisa (†1401), e a coletânea de textos conhecida pelo título de Atos do bem-aventurado Francisco e
seus companheiros (c. 1328-1343)7.

Conforme o relato textual da Legenda Maior8, um dia infligindo uma penitência a si próprio,
Francisco teria convocado o povo e, em companhia de outros irmãos, entrou “na igreja maior” e
depois apareceu desnudo, com uma corda ao pescoço, portando apenas calções. Teria, em seguida,
mandado que o conduzissem, diante de todos a uma espécie de pelourinho, onde era costume castigar
os malfeitores da cidade9.

Conforme é possível depreender, ao comparar a narrativa hagiográfica com a cena expressa na


gravura e nos azulejos, tal episódio faria uma analogia com a prisão de Jesus e com o momento em que
Ele é levado pelos soldados para receber a sua sentença. Tal relação foi corroborada pela descoberta da
existência do Sacro Monte construído na Comuna italiana de Orta, contendo vinte capelas dedicadas
à vida de São Francisco, construído no mesmo período da elaboração dessa iconografia, visto que as
capelas de Orta foram construídas entre os anos de 1583 e 1660.

Em cada uma das vinte capelas foi representado um episódio da vida de Francisco; na décima

7SÃO BOAVENTURA. Legenda Maior, Cap.VII-VIII. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (Org.). Fontes Francisca-
nas e Clarianas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. p. 551-686 ; BARTHOLOMAEO DE PISA. De conformitate vitae
beati Francisci ad vitam Domini lesu (c. 1390), Fruto 8. In: Analecta Franciscana. Ex Typographia Collegii S.
Bonaventurae, 1906. Tomus IV; Atos do Bem-Aventurado Francisco e de seus Companheiros (c. 1328-1343),
Cap. II. In: TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. p.
1117-1259.
8 SÃO BOAVENTURA, Legenda Maior, Cap. VI, op. cit.
9SÃO BOAVENTURA, Legenda Maior, Cap. VI, op. cit.

519
terceira encontra-se a cena em que Francisco é puxado por uma corda diante do povo. Sobre essa ima-
gem, e o paralelo entre os passos de Cristo e Francisco, escreveu o historiador americano John Tolan:
“Apenas se por acaso o peregrino não vir o paralelo, um afresco mostra Cristo sendo levado nu diante
de Pôncio Pilatos”10.

A composição figurativa azulejar toma como modelo uma estampa que integra um livrode
gravuras que, conforme defendido na pesquisa de doutoramento da autora deste trabalho, serviu de
modelo para a grande maioria dos painéis do ciclo da vida de São Francisco do claustro do convento
franciscano de Olinda e também para alguns dos painéis do ciclo da vida do patriarca franciscano na
igreja do Convento de Sirinhaém (fig. 1).

Este livro, intitulado Seraphici patris S. Francisci ordinis minorum fondatoris admiranda his-
toria, foi impresso por volta do ano de 1600, pelo gravador e editor flamengo Justus Sadeler (ca. 1572
- ca. 1620), atuante em Veneza entre finais do século XVI e o início do século XVII.

Nesta obra, a gravura intitulada Hvmilitatis ac pavpertatis zelvs, em tradução livre Zelo à hu-
mildade e à pobreza, apresenta seis cenas da vida do santo que, foram tomadas ou como modelo
integral ou como fonte de inspiração para a execução dos painéis análogos encontrados nos ciclos
azulejares dos conventos de Olinda e de Sirinhaém.

Os episódios representados nessa gravura, e nos azulejos, mostram as seguintes cenas:

A. São Francisco sendo pisado por frei Bernardo, um de seus companheiros 

B. São Francisco, desnudo, sendo puxado por uma corda

C. Os tronos sublimes preparados no céu para Francisco em recompensa pela sua humildade

D. Francisco lançando por terra as habitações dos frades que encontrara suntuosa 

E. Francisco pedindo esmolas de porta em porta

F. Uma pequena ovelha adorando a Cristo durante a celebração da missa11

10 No original: Just in case the pilgrim does not see the parallel, a fresco shows Christ being led naked before
Pontius Pilate. Cf. TOLAN, John. Saint Francis and the sultan: the curious history of a christian-muslim en-
counter. New York: Oxford University Press, 2009. p. 239.
11 Todas as cenas foram identificadas a partir das narrativas hagiográficas franciscanas medievais e das pró-
prias legendas e inscrições presentes no referido livro de gravuras.

520
Figura 1. Justus Sadeler.Seraphici patris S. Francisci... ca, 1600. Gravura, 18,5 x 27 cm.

No painel do convento olindense, a estampa do livro de Justus Sadeler é seguida integralmente


como modelo iconográfico, com a representação de todas as suas seis cenas, cabendo ao pintor do
azulejo acrescentar composições que complementam aspectos da paisagem, no trabalho de adaptação
da gravura para o espaço azulejar (fig. 2). Este painel apresenta, no entanto, outros recursos como a
representação de uma pilastra para separar os espaços entre as duas principais cenas representadas.

Já no painel da igreja de Sirinhaém ocorre uma apropriação significativa da gravura. A pintura


retoma integralmente somente quatro das seis cenas originais, excluindo, nada menos que a cena de
maior destaque na estampa gravada, qual seja, aquela em que Frei Bernardo pisa sobre a garganta de
São Francisco, a saber, aquela que recebeu maior destaque sendo representada no primeiro plano da
gravura (fig. 3). Por seu lado, o azulejo de Sirinhaém realça as cenas em que o santo de Assis aparece
sendo puxado por uma corda e ajoelhado, acompanhado de uma ovelha, ambos adorando a Cristo no
momento da consagração da Eucaristia12.

12 SÃO BOAVENTURA, Legenda Maior, Cap. VIII, op. cit.

521
Figura 2. Cenas da vida de S. Francisco, ca. 1743. 19 x 24 azulejos. Claustro do Con-
vento de Nossa Senhora das Neves, Olinda. Foto: Acervo pessoal da autora (2013).

Figura 3. Cenas da vida de S. Francisco, ca. 1745. 13 x 21 azulejos. Igreja do Conven-


to de São Francisco, Sirinhaém. Foto: Acervo pessoal da autora (2013).

Assim, verifica-se que a apropriação da estampa se dá de forma distinta para os dois ciclos
azulejares em questão. Visto que, enquanto o ciclo de Olindasegue integralmente a figuração da gra-
vura, o painel de Sirinhaém exclui o episódio central da estampa e coloca em destaque as cenas que
dão ênfase ao culto eucarístico e ao paralelo entre Cristo e Francisco, ressaltando o exemplo do santo
como modelo de perseverança na imitatio Christi.

522
São Francisco como modelo de perseverança na castidade

Sobre o tema deSão Francisco como modelo de castidade, um painel do ciclo azulejar de Si-
rinhaém (apesar dos problemas de conservação da obra) exibe duas cenas inspiradas em relatos tex-
tuais13 nos quais Francisco aparece tentado pelo demônio da luxúria. Para a composição deste painel
o pintor dos azulejos utiliza diferentes modelos gravados para elaborar uma nova imagem, com carac-
terísticas bastante distintas daquelas com o mesmo tema encontradas nas gravuras que lhes serviram
de inspiração.

Os episódios encontrados nos painéis em questão representam um São Francisco que ao sofrer
com as tentações carnais se lança sobre brasas ou se joga sobre espinhos na tentativa de perseverar na
manutenção da castidade. O painel expõe ao observador o exemplo do santo, propondo-se ao con-
templador a mortificação do próprio corpo como caminho para perseverar na virtude da castidade da
qual Francisco é o exemplo.

A relação entre essas cenas e o cotidiano dos frades franciscanos na América Portuguesa do
século XVIII pode ser inferida nos diversos relatos dedicados às tentações carnais encontrados na
Crônica do franciscano Antônio de Santa Maria Jaboatão, Novo Orbe seráfico brasílico, impressa em
Lisboa em 1761, na qual o autor escreve sobre as “disciplinas” às quais os frades deveriam se impor
para conter os desejos da carne14.

Frei Pedro Sinzig, em sua obra São Francisco de Assis e seu culto no Brasil, também faz refe-
rência aos castigos e suplícios com os quais se flagelavam os religiosos franciscanos da América Portu-
guesa. Castigos esses que, segundo Sinzig, se assemelhavam àqueles autoimpostos também pelo “seu
pai espiritual São Francisco” na incansável busca de se manter fiel às virtudes e escapar das tentações15.

Nos ciclos azulejares, a inspiração na gravura do livro de Justus Sadeler (fig. 5) pode ser verifi-
cada tanto nas imagens do claustro de Olinda quanto nas da igreja de Sirinhaém. Entretanto, os dois
ciclos narrativos azulejares apresentam apropriações distintas dessas estampas. Enquanto o ciclo olin-
dense segue o modelo das gravuras de forma mais fidedigna, o ciclo de Sirinhaém, apesar de também
se inspirar em estampas gravadas, acrescenta outros elementos figurativos incomuns à composição
que representa as tentações carnais de São Francisco, retratando uma imagem completamente hibri-
dizada que oferta ao observador uma experiência visual bastante singular.

13 BARTHOLOMAEO DE PISA, Livro das Conformidades, Fruto 14, op. cit.; SÃO BOAVENTURA, Legenda
Maior, Cap. X e Cap. V, op. cit.
14JABOATÃO, Fr. Antônio de Santa Maria, OFM. NovoOrbe seráfico brasílico ou Chronica dos frades me-
nores da Provincia do Brasil (...). Impressa em Lisboa em 1761, e reimpressa por ordem do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Typ. Brasiliense de Maximiano Gomes Ribeiro, 1858-1862. 5v.Livro I,
Cap. V, p. 242.
15 SINZIG, Fr. Pedro, OFM. São Francisco de Assis e seu culto no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 1926. p. 116.

523
Figura 4. Cenas da vida de S. Francisco, ca. 1743. 19 x 19 azulejos. Claustro do
Convento de Nossa Senhora das Neves, Olinda. Foto: Acervo pessoal da autora
(2013).

Figura 5. Justus Sadeler.Seraphici patris S. Francisci... ca, 1600. Gravura, 18,5


x 27 cm.

No painel do claustro olindense, Francisco aparece completamente desnudo, deitado sobre os


espinhos, enroscando-se também os galhos espinhosos ao corpo do santo (fig. 4). Francisco é figurado
lançando um olhar triste para a figura demoníaca que o tenta. A cena é destacada em primeiro plano,
à direita, onde um companheiro de Francisco, esgueirando-se atrás de uma árvore, observa a cena. À
esquerda, e em segundo plano, aparecem duas pequenas cenas nas quais Francisco expulsa um demô-
nio de uma igreja e é confortado por um Anjo enquanto convalescia.

Já a composição azulejar da igreja de Sirinhaém (fig. 6), ressalta-se que esta segue em parte o
modelo gravado da referida obra de Sadeler. Entretanto, inclui no mesmo painel outro episódio de
tentação, inspirado em outra estampa, desta vez, presente em uma versão das hagiografias boaventu-
rianas, intitulada Vita del Serafico S. Francesco16, impressa em Veneza, em 1604, na qual se encontram
além do texto hagiográfico também gravuras com o tema da vida de São Francisco.
16S. BONAVENTURA. Vita del Serafico S. Francesco. Venetia: Simon Galignani, 1604.

524
Figura 6. Cenas da vida de S. Francisco, ca. 1745. 13 x 21 azulejos. Igreja do Con-
vento de São Francisco, Sirinhaém. Foto: Acervo pessoal da autora (2013).

Essas mesmas cenas narrativas aparecem no ciclo do convento de Olinda. Entretanto, nesse
ciclo, os dois modelos foram tomados somente do livro de gravuras de Justus Sadeler e, assim como
no livro, que apresenta cada cena em uma gravura diferente, no ciclo olindense as cenas aparecem
separadas ocupando dois diferentes painéis. Já no caso do painel de Sirinhaém, os artistas se apro-
priam desses modelos gravados e fazem interseções entre gravuras de livros diferentes para compor
um único painel, elaborando, assim, uma nova imagem. Na pintura azulejar, os artistas se apropriam
dos modelos gravados, articulam gravuras de livros diferentes e compõem uma nova imagem bastante
distinta de suas fontes iconográficas de inspiração.

Com base nos argumentos apresentados porJéróme Baschet, em seu trabalho intitulado In-
ventiva y serialidad de las imágenes medievales, defende-se que neste painel (fig. 6) encontra-se um
exemplo do que Baschet denominou de hibridização iconográfica. Tal operação faz referência à ação
do artista de, além de imitar de forma fidedigna seus modelos, relacionar imagens – e outras fontes
de inspiração – para compor uma nova imagem, suprimindo parte das cenas originais e a essas acres-
centar novos elementos figurativos que modificam em maior ou menor grau a composição modelar
dessas cenas.

Além desses dados, verificamos que, mais do que promover a síntese de duas gravuras em um
único painel, nesse azulejo temos um exemplo expressivo da engenhosidade17 dos artistas que atua-
ram no processo de elaboração iconográfica desses azulejos. Isso porque o azulejo suprime parte das
cenas das gravuras e a elas acrescenta novos elementos figurativos que modificam, sobremaneira, a
composição original dessas cenas, elaborando assim uma nova imagem, para a qual serão acrescidos
novos sentidos. Contudo, ao manter parte da figuração de forma fidedigna aos modelos gravados, os
artistas contribuem, ao mesmo tempo, para a permanência dos sentidos originais pretendidos para
essas gravuras.
17 Sobre o conceito de engenho, Cf. BASTOS, Rodrigo Almeida. Decoro, engenho e maravilha nos largos e
igrejas de Santa Bárbara e Catas Altas, Per Musi, Belo Horizonte, n. 24, p.67-78, 2011.

525
Na pintura do painel do ciclo de Sirinhaém foi subtraída a figura que personifica a tentação
da luxúria na gravura oriunda do livro de São Boaventura. Não obstante, a identificação da cena no
azulejo ainda é possível graças à figura de Francisco, posta sobre o chão coberto de brasas, em posição
idêntica àquela encontrada no modelo gravado e numa referência perceptível à mortificação do seu
corpo para conter uma tentação carnal.

Já para a cena tomada de empréstimo do livro de Justus Sadeler, os pintores mantiveram ín-
tegro o modelo da gravura representando, inclusive, a nudez de Francisco (figs. 5 e 6). A cena faz
referência a outro episódio em que Francisco aparece tentado pela luxúria, para o qual respondeu
jogando-se completamente nu sobre uma moita de espinhos. As duas cenas tratam de uma questão
sensível à cultura barroca: a castidade. Neste caso, o exemplo dado por Francisco, nas gravuras e nos
azulejos, é o de perseverar na manutenção dessa virtude mesmo quando sofrendo fortes tentações.

Francisco como sustentáculo da Igreja

Para a representação na arte azulejar da América Portuguesa do tema de São Francisco como
um dos pilares de sustentação da Igreja durante o turbulento século XIII, mais uma vez verifica-se um
exemplo de apropriação das imagens-modelos e da utilização do recurso da hibridização iconográfica.

Na azulejaria luso-brasileira o tema conhecido desde a iconografia medieval como O sonho


do papa Inocêncio III retoma os modelos do medievo (fig. 7), mas a estes acrescenta expressivas apro-
priações, pelo menos no exemplo constituído pelo painel encontrado no ciclo narrativo franciscano
do convento de Sirinhaém. Trata-se da representação do suposto sonho do mencionado papa, no qual
São Francisco teria aparecido sustentando, sobre os seus próprios ombros, a basílica lateranense que
ameaçava desmoronar.

A Legenda Maior descreve o episódio relacionando-o a um encontro ocorrido entre Francisco


de Assis e o pontífice que, na ocasião, teria confirmado a visão que teria “recebido do céu”, como uma
profecia que haveria de se cumprir em Francisco. Segundo o relato, o papa “teria visto em sonhos” que
a basílica do Latrão estava para cair e que um homem “pobrezinho, pequeno e desprezível” a susten-
tava com as suas próprias costas para que não caísse18.

O tema destaca Francisco de Assis como pilar de sustentação da Igreja durante as tensões da
chamada “época das heresias”, numa tentativa de rememorar as atuações do santo que acabaram por
atrair multidões para a comunidade cristã e fortalecer a abalada Igreja do século XIII, atribuindo ao
santo assisense a função de suporte da instituição.

18SÃO BOAVENTURA, Legenda Maior, Cap. III: 5-8, op. cit.

526
Figura 7. Giotto di Bondone. Cenas da vida de São Francisco. Cena 6. O
Sonho de Inocêncio III, ca. 1297. Afresco, 270 x 230 cm (parede norte).
Assis, Igreja Superior - Basílica de São Francisco de Assis.

O tema foi retomado nas produções imagéticas do período pós-reformas religiosas do século
XVI, precisamente quando a mesma Igreja enfrentava novas ameaças. E, não por acaso, tanto São
Francisco quanto São Domingos (1170-1221) são representados com esta iconografia, ou seja, os dois
santos fundadores de duas das mais tradicionais Ordens religiosas do período são representados, lite-
ralmente, sustentando com os seus próprios corpos a Igreja de Latrão19, que é a sé catedral da cidade
de Roma, considerada a igreja-mãe de todas as igrejas católicas do mundo.

No mesmo livro de gravuras de Justus Sadeler o tema que representa O sonho do papa Inocên-
cio III está presente, contudo, numa cena de pequenas dimensões no segundo plano da gravura (fig.
9). O painel do ciclo azulejar de Sirinhaém não toma a referida gravura como modelo para representar
este episódio. Diferente disso, os pintores de azulejo deste ciclo tomam a pequena cena do sonho do
papa, presente na estampa, e lhe dão destaque de protagonista em um painel deste ciclo, representan-
do-a com outras características iconográficas que a diferenciam, sobremaneira, tanto da cena gravada
como da tradição iconográfica medieval do tema.

Neste ciclo, apesar dos artistas tomarem a gravura em que essa cena aparece como modelo
para seus painéis; para o tema que representa o sonho do papa, elaboraram uma pintura singular,
na qual partem da conjunção dos temas encontrados em duas gravuras distintas desse mesmo livro.
Neste caso, a cena do sonho de Inocêncio III divide o espaço azulejar com outra cena na qual o santo
assisense aparece sendo espancado por demônios (fig. 10).

Desse modo, os artistas do ciclo de Sirinhaém juntam a cena em que Francisco é espancado
por demônios àquela do sonho do papa, invertendo a ordem de destaque dos episódios nas gravuras
19 São Domingos de Gusmão, fundador da Ordem dos Pregadores, também recebeu representações visuais
para o mesmo tema no qual aparece sustentando a Basílica de Latrão. Cf. HALL, James. Dictionnaire des My-
thes et des Symboles. Tradução Alix Girod. Paris: Gérard Monfort, 1994. p. 146.

527
(figs. 9 e 10). Logo, os pintores de Sirinhaém transformam o destaque principal da gravura em cena do
segundo plano no painel azulejar (fig. 8). De outra forma, dão à cena do sonho, de segundo plano na
gravura (fig. 9), o realce de cena principal no painel azulejar.

Quanto a representação desses temas nos azulejos verifica-se, mais uma vez, a ocorrência de
uma apropriação bastante expressiva do modelo gravado, com a redistribuição das cenas gravadas
em diferentes painéis e espaços compositivos das imagens azulejares, seja esta distribuição elaborada
pelos artistas ou pelos comitentes. Novamente, o ciclo da igreja conventual de Sirinhaém substitui a
cena mais destacada na estampa e ressalta em primeiro plano um episódio que estava em segundo
plano na gravura.

Além disso, é preciso destacar que neste ciclo apenas o tema, e não a iconografia, do sonho
do papa é comum ao livro de gravuras de Justus Sadeler e ao ciclo azulejar. Entretanto, o modelo ico-
nográfico figurado no azulejo não utiliza a gravura como modelo; ao contrário, no azulejo esta cena
é representada com características iconográficas que a distinguem substancialmente tanto da cena
gravada como da tradição iconográfica medieval do tema.

Figura 8. O Sonho do papa Inocêncio III; S. Francisco sendo espancado por demônios, ca. 1745. 19 x 27 azulejos.
Igreja do Convento de Santo Antônio, Sirinhaém.

528
Figura 9. Justus Sadeler.Seraphici patris S. Francisci...
ca, 1600. Gravura, 18,5 x 27 cm.

Figura 10. Justus Sadeler.Seraphici patris S. Francisci...


ca, 1600. Gravura, 18,5 x 27 cm.

Diante do exposto, evidencia-se que o painel que representa O sonho do papa Inocêncio III
também constitui um exemplo daquilo que Baschet chamou de hibridização iconográfica. Isso porque
este e outros painéis apresentados neste trabalho dão testemunho das muitas apropriações dos artistas
para com os modelos gravados, e pintados, aos quais tinham como objeto de imitação. Porém, o que
chama a atenção aqui é que essa imitação, ou transposição dos modelos das gravuras para os azulejos,
é feita com expressiva demonstração do que atualmente poder-se-ia chamar de inventividade artística.
Além disso, verifica-se que, mesmo que os pintores desses azulejos continuassem sujeitos aos direcio-
namentos dos comitentes das obras, isso não impedia que as apropriações dos modelos se dessem de
forma bastante variada de uma obra para outra.

Neste sentido, as reflexões de Rodrigo Bastos em torno de conceitos e categorias da época,


utilizadas no âmbito da produção artística cristã, parecem lançar luz sobre as ações de pintores e co-
mitentes da Era Moderna quando o autor discute, por exemplo, os conceitos de engenho e maravilha.
De um modo geral, o engenho era uma capacidade do artífice em, primeiramente,
penetrar com perspicácia as matérias da invenção, para depois, com versatilidade,
aliá-las decorosamente na produção, criando efeitos convenientes de agudeza e ma-
ravilha. Quanto mais surpreendente a relação entre as matérias, quanto mais dis-
tantes os conceitos aproximados, quanto mais difícil o desempenho em desvelar as
correspondências da forma, mais aguda a obra e engenhoso o seu artífice. [...] O
engenho poderia ainda variar ou emular essas tópicas ou lugares já autorizados pelo
costume, proporcionando efeitos de novidade e maravilha à discrição da recepção
que os reconhecia.

No presente trabalho, essas e outras reflexões esclarecedoras de Rodrigo Bastos não poderão
ser aprofundadas, de qualquer forma, esses dados demonstram que a tomada dos modelos no período
em questão não foi uma prática passiva, sobretudo no que se refere a transposição de modelos grava-
dos para a pintura azulejar como já se defendeu na historiografia. As apropriações e as contribuições
dos artistas são verificadas em muitos desses painéis. Assim, em alguns casos, as gravuras servem
como fonte de inspiração, como ponto de partida, mas, além disso, ocorre também um processo de
ampla apropriação do modelo, com inserções de outros elementos iconográficos, por parte dos pinto-
res azulejistas, apesar dos casos em que se observa a retomada quase integral dos modelos gravados.

529
Por fim, do estudo desses azulejos e de suas relações com outras fontes escritas e visuais, de-
preende-se que, muito além de uma narrativa visual da vida de Francisco, essas iconografias se relacio-
navam com a circulação de ideais franciscanos que promoveram, por sua vez, a circulação de imagens
e a transmissão de modelos, tanto iconográficos como de santidade. Trazidas para a América Portu-
guesa por meio de gravuras, da arte azulejar, mas também da pintura, tais iconografias se prestaram a
uma ampla recepção, receberam diferentes apropriações e foram reelaboradas para serem expostas em
diferentes locais e para diferentes públicos.

Nessas imagens Francisco de Assis é apresentado para o observador como um exemplo ideali-
zado de cristão, como perfeito imitador de Cristo, como o exemplo irreprovável daquele que detém o
pleno domínio do corpo e das vontades e como aquele que se coloca na defesa da Igreja nos períodos
de tensões e ameaças à instituição. Além de rememorar os exemplos do santo, tais imagens detinham
também a função de propor padrões de comportamento e modelos de vida para religiosos e leigos,
chamando-os para a perseverança na vida virtuosa, preconizando o seguimento do valoroso modelo
de santidade representado por Francisco de Assis.

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York: Oxford University Press, 2009.

A ICONOGRAFIA DOS PAINÉIS AZULEJARES DA CAPELA-MOR DA ORDEM TERCEIRA DO


CARMO DE CACHOEIRA-BA
Darlane Silva Senhorinho20

No século XVI, o Recôncavo se projetou como região açucareira, condição da qual jamais se
desfez. Historicamente, Cachoeira nasceu de um engenho de açúcar, cuja atividade representou um
dos principais pilares de sua economia, promovendo um forte desenvolvimento comercial. A criação
da freguesia de Nossa Senhora do Porto da Cachoeira se deu em 18 de fevereiro de 1674. Com base na
carta Régia, em 27 de dezembro de 1693, ao governador-geral D. Antônio Luís Coutinho da Câmara,
a freguesia passou à condição de vila. A localização próxima aos rios favoreceu seu desenvolvimento
em variados aspectos: a água servia como fonte de energia para a movimentação das moendas, o curso
dos rios servia para transportar a cana da roça para o engenho, trazer lenhas, insumos e mantimentos e
facilitava o transporte do açúcar para o porto, de onde era levado para Salvador e, de lá, para a Europa.
Com implantação privilegiada, “próxima ao maior rio que desagua no mar no Recôncavo, a vila tornou-
-se um importantíssimo ponto de contato do litoral com o sertão, de chegada e saída de mercadorias”.21

Com localização privilegiada, entre duas regiões econômicas complementares, no caso,


o Recôncavo e o Sertão, Cachoeira viu sua economia desenvolver-se, sobretudo, pelo fato de ser
ponto de chegada e partida de toda a produção que ia para o sertão e que vinha deste para o por-
to de Salvador. Cachoeira, nesse sentido, ganhou relevância por ser um centro distribuidor de
produtos. Também concorreu para essa projeção o encontro da localidade com duas importantes
vias, a Estrada Real de Gado e a Estrada das Minas, que a transformou definitivamente em em-
pório de uma vasta e rica região. O açúcar, o abundante ouro do Rio de Contas, o fumo dos ta-
buleiros vizinhos e os diamantes de Mucugê e Lençóis se impuseram na pauta de exportação
de seu porto, além do transporte de escravos para as Minas do Rio de Contas e em Minas Ge-

20 Doutoranda em Teoria e História da Arte no Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Universidade


Federal da Bahia. Este artigo é oriundo do V capítulo de minha dissertação de mestrado “Iconografia Carmeli-
tana: análise dos painéis da capela-mor da Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira”. Defendida em 2014.
21 SCHWARTZ, Stuart. Parte II: Os engenhos baianos e seu mundo. In: Segredos internos: engenhos e escravos
na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo, Companhia das Letras, 1988, p.94.

531
rais. Por seu porto, escoava o ouro baiano e o que vinha em grande quantidade de Minas Gerais.22

Com o desenvolvimento das indústrias açucareira e fumageira, que arrastou consigo o surgi-
mento dos engenhos e o crescimento da economia portuária na região, Cachoeira, que, no Período
Colonial, era o centro político e econômico do Recôncavo, ganhou, cada vez mais, representatividade
e visibilidade no cenário baiano. Como partes essenciais da dinâmica social local, as ordens religiosas
se desenvolveram alinhadas ao crescimento econômico e político geral. Isso vale para a Ordem Car-
melitana que se instalou na Vila de Cachoeira e, ali, conseguiu se firmar como organização religiosa
de grande relevância social, sobretudo, por sua interação com os mais diversos setores da sociedade.
A acolhida à nova ordem partiu da família Adorno.

O hospício, construído para recolhimento dos religiosos na vila de Cachoeira, teve a doação
do terreno23, feita pelo Capitão João Rodrigues Adorno e por sua esposa, D. Úrsula de Azevedo, em 14
de março de 1688. Após a doação, se estabeleceram ali três religiosos, sendo o fundador o Ver. P. Fr.
Manoel da Piedade. Em 1692, já havia seis religiosos fixados no local, que, assim como os anteriores,
passaram a se ocupar da catequização dos índios e do atendimento aos colonos. A cada ano, crescia o
número de religiosos que se estabeleciam na vila.

O trabalho dos carmelitas, tal como o de outros grupos religiosos, obedecia a algumas reco-
mendações gerais, como a que determinava a criação de aldeamentos em locais que se pudesse con-
trolar a doutrina, considerando a vasta extensão do território. Desse modo, os religiosos carmelitas
fundaram uma aldeia em Capoeiruçú, concentrando ali mais de 60 índios.

Com a presença dos Carmelitas na Vila de Cachoeira, que contavam com a afeição da popu-
lação, sobretudo, dos benfeitores do Convento do Carmo, em especial, a família Adorno, não tardou
para que ali se estabelecesse a Venerável Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira (OTCC), represen-
tando papel importante na sociedade com suas “exageradas manifestações festivas” e beneméritas.

A Ordem Terceira do Carmo foi fundada em Cachoeira, no ano de 1691, três anos
após a chegada dos carmelitas à freguesia. Primeiramente, os irmãos se reuniam numa ca-
pela da igreja do convento24. Com a consolidação da Instituição, surgiu a necessida-
de de ocupação de uma sede definitiva e própria, independente da igreja do convento.
Para a construção da igreja e do consistório, o capitão João Rodrigues Adorno e sua esposa Úrsula
de Azevedo, teriam doado o terreno – estes também foram doadores do terreno para a construção da
ordem primeira e convento –, em 24 de outubro de 1700. Porém, a escritura só seria lavrada em 30

22 FLEXOR, Maria Helena O. (Org). O Conjunto do Carmo de Cachoeira. IPHAN/Programa Monumenta,


Brasília, DF. 2007. p.11-14.
23 CALDERON, Valentin. O Convento e a Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira. Salvador: UFBA, 1976.
O terreno ficava num monte conhecido como Mangabeira, próximo ao engenho do doador João Rodrigues
Adorno. Alguns historiadores e estudiosos do assunto, a exemplo de Valentin Calderón, discordam quanto às
datações de chegada dos carmelitas a vila de Cachoeira. Para o referido autor, estes só teriam aportado na vila
por volta de 1688. Porém, em documento avulso, encontrado no Arquivo da Ordem Terceira do Carmo de
Cachoeira (AOTCC), as datas são de um século antes. No entanto, todos os demais documentos correspondem
às datas a que Calderón se refere, sendo mais prudente estas, uma vez que, em 1588, a aldeia apenas estava se
iniciando.
24 BAZIN, Germain. A arquitetura religiosa barroca no Brasil. 2 v. Rio de Janeiro, Editora Record, 1956, p.13.

532
de novembro de 170225. Ainda em 1701, João Rodrigues Adorno se tornou governador da Ordem, o
que acelerou o início das obras de construção da igreja, também ambientou a aprovação dos Estatutos
da Ordem, “em que foram reguladas convenientemente as obrigações recíprocas entre os irmãos da
Venerável Ordem Terceira e a religião do Carmo”26.

O trabalho de ornamentação da capela perdurou até a segunda metade do século XVIII, Bazin
(1956) menciona que a talha da capela foi concluída em 1778. Os irmãos terceiros, não satisfeitos com
toda a talha dourada, policromia, molduras e pisos elaborados, empregados em sua igreja, mandaram
revestir as paredes com azulejos figurativos portugueses do século XVIII, em tons de azul com fundo
branco, composição típica do período. Estilisticamente, os painéis são de transição do Barroco para o
Rococó e se estruturam a partir de cenas bíblicas, enriquecidas com elementos ornamentais, a exem-
plo de colunas, flores e molduras.

Figura 1- Nave da igreja da Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira

Foto: Darlane Senhorinho

Os painéis da nave possuem elementos ornamentais, colunas, flores, moldura com concheados
e um medalhão, na parte inferior, com legenda em português das imagens representadas. No entanto,
os painéis localizados na capela-mor não possuem medalhão com legenda, esta se insere na cena re-
presentada e o texto está escrito em latim. As imagens estão emolduradas com rocailles de transição,
cercadura ponteada, dando espaço à figuração. Esta solução aparece tanto na nave quanto capela-mor.
Porém, na capela-mor, não estão recortados, mas acreditamos terem sido antes da abertura das jane-
las, alterando, assim, o equilíbrio decorativo.

Considerando os estilos dos enquadramentos, próprios daqueles produzidos em oficinas lis-

25 “Conforme certidão que parava em poder da Mesa e que foi extraída pelo tabelião Helvécio Vicente Sapu-
caia, do Livro de Notas nº 1, folhas 14-141 verso, do Tabelionato daquela cidade”. Estatuto aprovado em 1914,
transcrito no Livro de Têrmos, iniciado nesta data. (In: CALDERÓN, op cit. p.39; BAZIN, op cit. v2. p.13)
26 CALDERÓN 1976, p. 39. Não encontramos Estatutos anteriores ao século XX no AOTCC; sendo encontra-
dos apenas Estatuto e Regulamento datados de 1915, quando foram aprovados pela Ordem.

533
boetas, supõe-se que as peças tenham sido fixadas entre 1745 e 175027. A apreciação procederá de for-
ma descritiva, associando a temática ao período em que esta representa. Também o significado desta
para a sociedade a qual primeiramente se dirigiram tais representações artísticas, ou seja, a sociedade
cachoeirana do século XVIII.

Figura 2 – Localização dos painéis azulejares na igreja da OTCC

Fonte: Darlane Senhorinho

A capela-mor é ornada com talha dourada e azulejos azuis que vão até quase a altura das ja-
nelas. São quatro painéis fixados na capela-mor, dois de cada lado. No entanto, os painéis junto ao
altar-mor estão truncados, impedindo a visualização da cena representada.

Figura 3 – Capela-mor da OTCC

Foto: Darlane Senhorinho


27 Buscamos informações documentais no próprio Arquivo da Ordem (AOTCC), bem como no Arquivo da
Ordem Primeira, situado em Belo Horizonte, no Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB), com a Província
Carmelitana da Bahia (PCB), e também com o IPHAN. Porém, sem sucesso para informações de qualquer
natureza a respeito dos azulejos da OTCC.

534
A respeito dos painéis não identificados, aquele que está situado ao lado do Evangelho possui
como legenda de origem a sentença “Prov. Cap. 31 n. 21”. “Lameth non timebit domus suae a frigori-
bus nivis omnes domestici eius vestiti duplicibus” (Pr 31,21). Sua tradução moderna seria: “Lamed:
se neva, não teme pela casa, porque todos os criados vestem roupas forradas”. No painel, constam as
palavras [do] mestiq ejus ves [titi] [dupl] icibus, o que vem a confirmar a passagem de Provérbios que
trata da boa dona de casa.

Figura 4 - Painel azulejar da OTCC – painel truncado lado Evangelho

Foto: Darlane Senhorinho

A temática do painel é difícil de identificar, embora possamos perceber a existência de ladri-


lhos perspectivos e a figura da Virgem como boa dona de casa. Diante dela, uma figura masculina com
hábito ajoelhado sobre uma nuvem que se parece bastante com as figuras debaixo do manto da Vir-
gem da Misericórdia. Sobre esta figura, há um anjo que contempla a Virgem, com suas mãos junto ao
pescoço. Há ainda outro anjo, um pouco oculto, por detrás da talha dourada, acompanhado de várias
figuras masculinas e angelicais. Naturalmente, o truncamento das peças resultou na fragmentação de
algumas figuras e, por conseguinte, numa leitura incompleta de sua caracterização e de seu papel na
cena.

A sentença “Mulher de valor”, que aparece em Provérbios 31, é uma expressão hebraica, que o
grego e a Vulgata traduzem como “mulher forte”, fazendo referência à eficiência e à virtude, qualidades
que definiriam a perfeita dona de casa, aquela que encara o futuro com confiança, seja este o destino
de sua família ou mesmo a recompensa que Deus lhe dará por seu cuidado. O elogio feito à mulher
considerada perfeita pode ser compreendido alegoricamente como descrição da Sabedoria personifi-
cada. Isso pode ser observado devido uma ampliação do grego (“Uma mulher sábia será elogiada – o

535
temor de Iahweh é que deve ser louvado”)28 e, neste caso, é possível citar o capítulo 8 do mesmo livro,
que trata da sabedoria criadora, no qual a ideia de sabedoria personificada, como simples artifício
literário em Prov. 14, foi desenvolvido em Israel, quando o povo, em decorrência de uma grande seca,
se exilou no Egito. Nessa época, o politeísmo já não era mais ameaça para a “verdadeira religião”.

Figura 5- Painel azulejar da OTCC – painel truncado lado Epistóla

Foto: Darlane Senhorinho

O segundo painel truncado está do lado da epístola e nos permite ler a seguinte legenda: “Ego
quase terebinthus extendi ramos meos”. Trata-se do capitulo 24, versículo 22 do livro de Eclesiastes, de
acordo com a legenda (hoje designado por Bem Sirá). Porém, atualmente, faz parte do versículo 16:
“Estendi os meus ramos como terebinto, meus ramos, ramos de glória e graça”.

As transcrições dos versículos em latim são retiradas da Vulgata e não seguem a grafia das
legendas já conhecidas pelas imagens. Devido à troca de azulejos, a identificação do tema do painel se
torna difícil. Apesar da incoerência que marca a organização das peças do painel, é possível identificar
a presença de um anjo com um cântaro na mão, que parece conversar com uma figura feminina, colo-
cada à sua frente, de joelhos. Observamos muita folhagem e elementos arquitetônicos, que sugerem o
ambiente em que se passa a narrativa. Alguns elementos que podemos observar poderiam nos dar um
norte acerca da cena retratada, mas a desorganização das peças impede.

O painel intitulado “Elias sobe ao céu num carro de fogo” está localizado na capela-mor da
OTCC, no lado da Epístola. Possui referências iconográficas com a fundação da Ordem Carmelita
nos seus primórdios no Monte Carmelo e a vida eremítica dos primeiros seguidores do profeta Elias,
representação muito recorrente nas igrejas Carmelitas, pois, o profeta Elias é o patrono desta.

28 BÍBLIA DE JERUSALÉM, Provérbios. p. 1069.

536
Figura 6 – Elias sobe ao céu num carro de fogo

Foto: Darlane Senhorinho

Nas representações artísticas do profeta Elias, predomina sua representação com vestes de um
santo eremita do deserto e, particularmente nas Ordens Carmelitas, por ser considerado patrono, é
representado com o hábito de religioso carmelita. Sendo rara sua representação como um guerreiro.
Os seus principais atributos são o corvo, alusão à sua alimentação provida por Deus no deserto; uma
espada flamejante, que faz referência à morte dos profetas de Baal, no Monte Carmelo; uma roda de
fogo, alusiva à sua ascensão. Em algumas representações, Elias aparece portando uma pá.

Em geral, é representado no deserto, enquanto é consolado por um anjo do Senhor ou está


sendo alimentado. Suas representações mais frequentes estão ligadas a alguns episódios, como a res-
surreição do filho da viúva de Serepta, seu arrebatamento no carro de fogo, o sacrífico no Carmelo, o
milagre do fogo descido do céu, sua alimentação pelos corvos, o socorro que recebeu da viúva Serepta,
a matança dos 450 profetas de Baal e a separação que realizou com seu manto das águas do rio Jordão.

A iconografia tradicional apresenta Elias no momento em que é levado para o céu, num carro
puxado por dois ou quatro cavalos e guiado por um anjo, ausente em algumas representações. Nesse
contexto, Elias costuma aparecer estendendo a mão direita para Deus e entregando seu manto para

537
Eliseu, seu sucessor, com a mão esquerda. Com frequência, as margens do Jordão são tomadas como
ambiente para tais retratações, porém, sendo personificadas numa divindade fluvial clássica.

No painel, notamos a presença de peças com elementos da moldura e peças com folhagem
que obviamente faz parte da composição da cena. É provável que as peças tenham sido decompostas
durante a abertura das portas laterais da capela-mor, posterior à fixação dos azulejos.

Sobre a porta, observamos um medalhão com flores, sendo três no total. Segundo Chevalier e
Geerbrant (1992), São João da Cruz oferece a flor a significação da virtude da alma, e do ramalhete que
as reúne a perfeição espiritual, alegorias que são perfeitamente identificadas na representação de Elias,
considerado servo perfeito, que ganhou o direito de viver ao lado de Deus sem passar pela morte. Se-
gundo Valentin Calderón (1976), os azulejos eram recortados assim como os da nave, mas é provável
que, no lugar das portas, tenha existido representação iconográfica azulejar, uma consideração difícil
de ser confirmada, dada a ausência de documentos.

A parte inferior da moldura, que se mantém preservada, revela elementos arquiteturais que
imitam madeira e desenhos semelhantes a flores. No centro, há uma grande rocaille, ladeada por anjos
que a seguram, os quais aparecem como um espelhamento um do outro, já que a face, corpo e posição
surgem de forma praticamente idêntica. Os enquadramentos são similares àqueles identificados nos
painéis da nave, com cercadura ponteada, relativamente calma com espaço para a figuração.

Figura 7 – Pormenores do painel Elias sobe ao céu num carro de fogo

No que diz respeito à cena principal do painel, podemos observar que, em sua representa-
ção, existem duas figuras masculinas, duas figuras de animais, morro e plantas. O painel possui uma
legenda referida como sendo do livro 4 dos Reis, capítulo 2, versículo 11. Na Vulgata, o livro 4 dos

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Reis29 corresponde ao segundo livro dos Reis, nas bíblias atuais. Desse modo, a passagem que aparece
na legenda é (Reis 2, 11) “Ecce currus igneus et equi ignei diviserunt utrumque et ascendit Helias per
turbinem in caelum”, que pode assim ser traduzido: “Eis que um carro de fogo e cavalos de fogo os
separaram um do outro e Elias subiu ao céu num turbilhão”.

Figura 8 - Legenda do painel Elias sobe ao céu num carro de fogo

Na cena principal, as figuras masculinas aparecem dialogando. Ela olha para a figura que está
abaixo, com um dos braços esticados, segurando o tecido que está sendo deixado pela figura do carro.
Ambas as figuras são apresentadas com vestimentas semelhantes. Os animais, portando arreios, apre-
sentam as patas frontais inclinadas para cima e as cabeças em movimento, permitindo que um olhe
para o outro.

Figura 9 – Pormenor do painel Elias sobe ao céu num carro de fogo

29 Supostamente escritos por Jeremias, os livros dos Reis se incluem no conjunto dos livros bíblicos considera-
dos históricos. Inicialmente, compunha um único livro como Samuel. Traz a história do povo de Israel, toman-
do como ponto inicial a morte do rei Davi. Também apresenta um quadro que exerce o ministério dos profetas
que escreveram antes do Exílio do povo hebreu.

539
Possui forma fechada, pois apresenta a imagem como uma realidade limitada em si mesma.
Observa-se a sobreposição de planos e também uma unidade com um todo articulado, no qual os
componentes podem ser claramente identificados e estes falam por si.

Para que possamos compreender a representação de Elias na igreja dos irmãos tercei-
ros e nas Ordens Carmelitanas como um todo, é necessário ter em mente o ciclo de Elias. Após a
morte de Salomão, em 931 a.C., o reino se dividiu em dez tribos no norte, que provocaram uma
secessão, que fora agravada por um cisma religioso. Além da influência das frequentes lu-
tas entre os povos e assaltos por parte dos egípcios contra Judá e dos arameus no norte, a situa-
ção se agravou com a intervenção dos assírios na região, nos séculos IX e VIII. Em 721 a.C.,
Judá se declarou vassalo e Samaria foi invadida. Em 587 a.C., se deu a destruição de Jerusalém.30

Elias surge nas Sagradas Escrituras durante uma grande seca que assolou Israel no século IX,
durante o reinado de Acab (874-853). Esta seca teria vindo como castigo à introdução ao culto a Baal,
marcada pela construção de um altar em Samaria, após o casamento de Acab com Jezabel, filha de
Etbaal, rei dos sidônios.

Passado muito tempo, Deus pediu para que Elias voltasse a Israel e procuras-
se Acab. Ao encontrá-lo, Elias pediu que este reunisse os profetas de Baal e os profe-
tas de Aserá, bem como todo o Israel no Monte Carmelo. Havia estáticos entre os povos vi-
zinhos de Israel, que formavam grandiosos cooptações, como dos profetas de Iahweh.31
Após Acab chamar ao Carmelo todos de Israel e os profetas, Elias ergueu um altar e dois
novilhos foram sacrificados, um para Baal e outro para Iahweh. Em seguida, propôs que os deuses
colocassem fogo sobre o altar. Aquele que o fizesse seria o deus verdadeiro. Após horas de tentativa,
os profetas de Baal desistiram e Elias, colocando água no entorno do altar, invocou Iahweh, que fez
descer fogo sobre o altar. Assim, a fé monoteísta passou a prevalecer sobre Israel.

Após todos esses ocorridos, Elias se refugiou no monte Horeb para que Jezabel
não o assassinasse. Durante a viagem até o Horeb, Elias objetivava salvaguardar a Alian-
ça e reestabelecer a pureza da fé, lugar também onde o Deus se revelou a Moisés e onde a Alian-
ça foi ultimada; desta maneira as obras de Moisés e Elias estariam ligadas pela teofania32
no Horeb.

Partindo Elias então do monte Horeb, encontrou com Eliseu, que trabalhava na terra, e lançou
sobre ele seu manto, seguiu a Elias como servo33.

Elias é considerado pelos religiosos como inspirador da vida de oração, incentivador da prá-
tica da plenitude do amor divino. Com poder em suas orações, constitui-se num exemplo completo.
“O Horeb representa um exercício habitual das virtudes num espírito de graça”. A caverna passa a ser
entendida como o mistério da sabedoria escondido na alma e quem nela entra terá a mística do saber,
bem como intuição profunda. Assim, quem quer ver a Deus deveria subir ao monte Horeb, entrar na
30 Introdução ao Livro dos Reis, Bíblia, 2002, p. 312-313.
31 BÍBLIA, 2002, p. 497 - I Reis 18
32 Teofania no N.T. (Mt 17: 1-9p)
33 BÍBLIA, 2002, p. 499 - I Reis 19

540
caverna e estar “dedicado a contemplação, na obscuridade e no mistério mais profundo da sabedoria,
fundada sobre uma prática habitual da virtude”34.

Concentrando agora na passagem representada no painel azulejar da OTCC, “Elias sobe ao


céu num carro de fogo”. Esta passagem se encontra no segundo livro de Reis, quando este trata já não
mais do ciclo de Elias, mas de Eliseu. Aconteceu que Deus arrebatou Elias e Eliseu, num turbilhão
partindo de Guilgal. Elias, então, pediu para que Eliseu ficasse, pois Iahweh o havia enviado a Betel.
Porém, Eliseu o disse que não o deixaria e foram ambos a Betel.

Profetas que viviam em Betel foram ao encontro de Eliseu para lhe avisar que Elias seria leva-
do por Iahweh e Eliseu respondeu que já sabia. Elias pediu, então, para Eliseu ficar em Betel, já que
Iahweh o levaria até Jericó. Novamente, Eliseu seguiu Elias. Chegando a Jericó, profetas o avisaram
que Iahweh levaria a Elias por sobre sua cabeça e, mais uma vez, este afirmou que já sabia. Novamente,
Elias pediu para que Eliseu ficasse, pois Iahweh o levaria até o Jordão e, como das outras vezes, parti-
ram os dois juntos.

Chegando juntos ao Jordão, Elias enrolou seu manto e bateu sobre a água que se dividiu ao
meio. Assim, puderam atravessar o rio sem que se molhassem. Elias, então, disse a Eliseu que pedisse
o que queria que fizesse por ele antes de ser arrebatado. Eliseu respondeu: ““ Que me seja dada uma
dupla porção do teu espirito!” Elias respondeu: “Pedes uma coisa difícil: todavia, se me vires ao ser
arrebatado da tua presença, isso te será concedido; caso contrário, isso não te será dado”” 35

Era costume da época que o filho mais velho recebesse parte dupla da herança paterna. Eliseu
quis ser reconhecido, então, como principal, herdeiro espiritual de Elias. No entanto, o pedido de
Eliseu é difícil para Elias, pois o espirito profético não se transmite, este vem de Deus, e é Deus que
concede a Eliseu o que os homens não podem ver. O que acaba de ser exposto delineia o contexto
histórico e religioso no qual se desenvolve a história de Elias.

Elias e Eliseu são apresentados com hábitos de religiosos carmelitas. Elias apresenta as ca-
racterísticas habituais: ancião, barbas brancas, calvo e está com nimbo, representando sua santidade.
Eliseu também é apresentado com barba, relativamente calvo (apenas no centro da cabeça), mas sem
dispor de nimbo. Eliseu, de joelhos diante da carruagem, recebe o manto deixado por Elias. O carro
é representado apenas por uma roda, atributo comum nas representações da ascensão eliana, junta-
mente com a espada flamígera. O fogo brota do carro, junto aos pés do profeta e sobre os cavalos. A
disposição altiva dos cavalos, com as patas dianteiras elevadas, transmite a ideia de movimento. As
nuvens indicam que a cena acontece já no ar.

Figura 10 - Pormenor do painel Elias sobe ao céu num carro de fogo

34 SPADAFORA, Francesco. et al. Elia Profeta, em Sainti del Carmelo. Institutum Carmelitanum, Roma. 1972,
pp. 136-153.
35 BÍBLIA, 2002, p. 508 – II Reis 2: 9-10

541
Elias e Eliseu estão dentre os principais personagens do A.T., como grandes profetas. Os Evan-
gelhos relacionam a vida de Elias com o ministério de João Batista. Posteriormente, Jesus relaciona
João Batista com Elias, assim como Jesus também foi relacionado a Elias. As representações de Elias36
e João Batista se aproximam pelo fato de ambos terem vivido uma vida eremítica e serem antecessores
de Cristo37. Segundo a Legenda Áurea (2003),
João é chamado de Elias devido ao lugar em que ambos moraram, o deserto; devido
à parca alimentação que consumiam; devido à grosseira indumentária que ambos
usavam; devido ao ministério, pois ambos foram precursores, Elias do Juiz, João do
Salvador; devido ao zelo, pois as palavras dos dois queimavam como tocha ardente.
(VARAZZE, 2003, p. 485)

De acordo com Spadafora (1972), Elias inspira a vida eremítica e também é considerado como
um percursor da vida monástica, não em seu sentido estrito. Elias amava os segredos da solidão e a
pureza de coração. Realizou o ideal de um monge e se uniu intimamente a Deus através do silêncio da
solidão. Encontramos, assim, na vida de Elias, os principais exercícios atléticos do eremita, no caso,
solidão, jejum e oração.

A história de Elias traz a história também da salvação. Durante sua vida de solidão no Car-
melo, Elias influenciou muitos que decidiram seguir a mesma vida de exclusão, devoção, servidão e
oração a Deus, buscando uma plenitude de vida para alcançar a salvação. Elias por sua história de vida
é considerado pelos carmelitas o fundador, patrono da Ordem do Carmelo, uma vez que os princípios
da Ordem e sua fundação se iniciaram no Monte Carmelo com os eremíticos.

O painel azulejar identificado como “Virgem da Misericórdia” está localizado na capela-mor


do lado do Evangelho. Devemos ressaltar que a iconografia mariana é diversificada, assim como a de

36 Ver: Mt 17: 10-13; Mc 9: 11-13


37 Talvez pelo fato da similitude hagiográfica de João Batista, este também seja reverenciado pela Ordem Car-
melitana como um dos seus.

542
seus atributos. Para cada representação com temática diferenciada, há atributos díspares, o que nos
auxilia a diferenciá-las e localizá-las no tempo e espaço histórico-religioso, ou mesmo identificar sua
simbologia.

Figura 11- Virgem da Misericórdia

Foto: Darlane Senhorinho

A moldura da cena que ora analisamos é uma repetição do padrão utilizado no painel aborda-
do anteriormente. Diferentemente da imagem analisada há pouco, que identificamos, sobre a porta,
um medalhão com flores. Nesta porta lateral (lado Evangelho), todos os azulejos estão fora de ordem,
não sendo possível a identificação do que ali estava representado. Observando a imagem, percebemos
a moldura lateral do painel e o truncamento das peças sobre a porta.

A respeito da cena representada no painel azulejar da capela-mor, verifica-se a existência de


nove figuras aladas, das quais seis estão de corpo inteiro, duas com vestes segurando o manto da figura
central, duas dispostas próximas à legenda que dá significado a cena e outras duas, de corpo inteiro,
localizadas em meio às nuvens, que pairam sobre as figuras humanas. Estas, a propósito, formam um
grupo de treze: seis figuras femininas de um lado e sete figuras masculinas de outro lado. Entre as
figuras masculinas e femininas, está a figura central da cena.

Na cena representada, a figura central e sua capa abriga dois grupos. O grupo da esquerda é o
feminino e o grupo da direita é o masculino, com vestes relativamente semelhantes, mas que se distin-
guem, no caso das femininas, pelo uso do véu. As figuras apresentam feições de serenidade e também

543
de apreensão. A figura central, disposta no primeiro plano, usa veste semelhante, porém, sem a pre-
sença do véu. Sobre sua cabeça, está uma coroa e o nimbo do qual se expandem raios de luz. Com os
braços abertos e feição serena, sustenta seu manto. Está descalça com nuvens sob seus pés, parecendo
flutuar no ar. Apresenta cabelo cumprido, preso por trás, mas o cumprimento está sobre seu manto
indo até a altura de suas mãos.

Em sua veste, observamos um escudo. As figuras aladas que seguram seu manto, a julgar pelas
formas anatômicas e pelos cabelos, bem como por suas feições, parecem distinguir-se em gênero: a
figura alada que se situa sobre o grupo feminino aparenta feições femininas e a que está sobre o grupo
masculino mostra feições masculinas. Ao fundo das figuras, ao lado esquerdo, observamos arbustos
e parte de um monte. À frente, existem algumas pedras com pequenas plantas. A imagem possui pro-
fundidade, pois é visível a sobreposição de planos, caracteristicamente pictórica como a arte barroca
do século XVIII, com forma fechada, o que lhe assegura a ideia de unidade.

A partir do conhecimento sobre a história da Ordem iniciada no Monte Carmelo, a observa-


ção pictórica do painel azulejar, bem como a disposição figurativa e a legenda, acreditamos ser esta a
representação da Virgem da Misericórdia, com seu manto aberto. Trata-se de uma representação que
segue a tradicional iconografia deste tema mariano, no qual a Virgem abre seus braços para abrigar os
frades e freiras carmelitas, que permanecem sob a proteção de seu manto.

A legenda do painel, que se figura em forma de filactéria, segurada por dois anjinhos, traz a
passagem bíblica que norteia a cena em questão. A passagem é retirada do livro de Provérbios 31: 21, a
mesma passagem que norteia o painel truncado ao lado, que possivelmente traz a Virgem Maria como
boa dona de casa. Porém, no presente painel, a passagem se apresenta de forma mais completa. “Lame-
th non timebit domus suae a frigoribus nivis omnes domestice eius vestiti duplicibus”, que atualmente
se apresenta “Lamed: se neva, não teme pela casa, porque todos os criados vestem roupas forradas”.
Em suma, a passagem trata da observância da perfeita dona de casa.

Figura 12- Pormenor do painel Virgem da Misericórdia

Sabemos que a figura central é a personificação da Virgem do Carmo pela coroa e pelo uso do
hábito carmelita, este reconhecido pelo escudo da Ordem disposto na parte central de sua veste. Os
grupos que se encontram de joelhos, com as mãos unidas, em sinal de oração, sob o manto da Virgem,

544
são religiosos da Ordem do Carmo, pois todos estão com indumentária carmelitana. Do lado esquer-
do, estão organizadas as carmelitas e, do lado direito, os carmelitas, ordens segunda e primeira do
Carmo, respectivamente. A iconografia da coroação de Maria sugere que esta ocorre após a Ascenção
da Virgem. Serve como atributo das virtudes de Maria em sua vida terrena, sendo considerada rainha.

Sobre a indumentária carmelitana, originalmente usavam hábito pardo com a capa branca, se-
guindo a tradição da cor do manto de Elias. Quando a Palestina foi invadida por Omar, no século VII,
os infiéis passaram a reclamar da cor do hábito dos carmelitas, pois era semelhante a que usavam. Isso
levou a proibição do uso da cor parda e a adoção de outra composição, listras brancas e pardas, que
permaneceu até 1286, quando o papa Honório IV reestabeleceu as cores primitivas por bula. Também
é deste período o uso do capelo murça ou branca. No entanto, em 1473, o papa Sixto V determinava
através de uma bula que os hábitos fossem pretos de lã, assim permanecendo até o capítulo geral da
Ordem, que aconteceu em Roma, em 1620, quando, então, retomou a cor parda38.

Sobre o escudo representado na veste da Virgem, verificamos que este não é o único que é
representado na OTCC, na fachada principal da igreja sobre a portada observamos um escudo da
Ordem dos Carmelitas Calçados, também presente em algumas representações pictóricas, dando des-
taque para a Ordem a que pertencem e/ou representam. Vislumbramos, sobre a túnica da Virgem, o
escudo da Ordem, disposto à maneira de escapulário, formado por uma cruz ladeada por duas estre-
las, cuja base se alarga, de modo triangular, compondo um monte. O escudo é sobrepujado por uma
coroa.

Segundo a Província Carmelitana de Santo Elias39, o escudo carmelita com armas, adotado em
período desconhecido, já era utilizado durante a Idade Média. Com forma oval, no qual, ao fundo, ob-
servamos um monte, aludindo ao monte Carmelo, local de origem da ordem. No meio do monte, há
uma estrela que faz referência ao patriarca Elias, tido como instituidor da vida pura e da observância.

Figura 13- Pormenor do painel Virgem da Misericórdia

38 COSTA, F. A. Pereira da. A Ordem Carmelita em Pernambuco. Recife, Arquivo Público Estadual, 1976.p.33.
39 www.carmelitas.org.br

545
Acima deste campo, existem duas estrelas que significam a natureza divina e humana de Cris-
to. Sobre o escudo, tem uma coroa imperial com 12 estrelas, representando a Senhora Rainha do mun-
do, - porém não se sabe o exato significado de cada uma das doze estrelas - sendo também da Ordem
Carmelitana. Da coroa, sobressai o braço direito de Elias, patriarca, com uma flamejante espada de
fogo, representando o zelo com o qual defendeu a honra de Deus. Assim é caracterizado o brasão dos
carmelitas calçados. O brasão dos carmelitas descalços, por sua vez, utiliza do mesmo, porém, com
uma cruz latina sobreposta ao escudo.40

Outro elemento histórico da vida carmelita é a convicção entre os Carmelitas de que a sua
Ordem é pertencente a Madona. Durante o século XII, havia uma pequena igreja dedicada a Madona,
onde os eremitas carmelitas se encontravam e, em 1263, o papa Urbano IV chamou Maria de padroei-
ra da Ordem. A união dos carmelitas junto à igreja dedicada a Virgem Santíssima tem um sentido
muito particular, pois, durante a Idade Média, quem pertencia a uma ordem religiosa ou simplesmen-
te estava ligado a uma igreja também pertencia a um santo titular. Em sentido estritamente feudal, o
titular era o patrão ao qual o clero servia e se colocava sob sua proteção.

Para os carmelitas que, diferentemente de outras ordens religiosas, como Franciscanos e Do-
minicanos, não possuíam um fundador, estar a serviço de uma igreja dedicada a Madona significava
ser de Maria e receber dela a proteção divina contra todos os perigos. Esta consagração mariana foi
vivida no princípio de sua formação na única casa do Monte Carmelo, mas, quando estes começaram
a se espalhar pelo mundo, dedicaram suas igrejas a Maria, com as suas várias representações. Desse
modo, Maria se tornou titular da Ordem Carmelita, pois, sob sua proteção, os carmelitas eremitas
viviam no Carmelo e continuaram sua devoção, quando aumentaram e se esparralharam pelo mundo
afora.

A imagem em questão revela que a Virgem é o ponto central e a cena retratada se distingue
em dois planos: o celestial, onde imperam os bens espirituais, e o plano terrestre, no qual estão os
bens temporais. Traçando uma linha horizontal, vemos que a parte superior é a divina e, a inferior, é
a humana.

A virgem que ascende ao céu não toca o chão. Está sobre nuvens que a sustenta no ar, porém,
seu manto toca o chão. Os seus braços levantados seguram seu manto e os anjos que o seguram parece
estar levantando-o para mostrar os religiosos que estão sob proteção e misericórdia da Virgem, que se
tornou Senhora da Ordem.

No plano celestial, está a Virgem e os anjos, assim como as cabeças dos irmãos carmelitas sob
proteção divina. No plano terrestre, estão os corpos dos irmãos e ainda os anjinhos que seguram a
filactéria. Não é possível identificar os religiosos dispostos sob o manto da Virgem da Misericórdia,
pois não apresentam atributos ou outros elementos de identificação.

Sobre a iconografia da Virgem da Misericórdia, que segura o grande manto, existem várias re-
presentações, como “a Virgem que sob seu manto abriga diversas populações, ordens religiosas, con-

40 ÂNGELO, apud COSTA, 1976, p. 34-35

546
frarias e marinheiros”. Devoção que teria iniciado no oriente antigo, cultuada durante a Idade Média,
foi incorporada a iconografia de Nossa Senhora do Carmo.41

Entende-se como misericórdia a “virtude moral que desperta compaixão pelo próximo e pro-
cura minimizar a sua miséria”42. De origem latina, a misericórdia é a capacidade que um ser tem de se
compadecer e ser solidário com os que estão à sua volta. É ter compaixão pelos que necessitam e ser
solidário com os que ajudam. Desse modo, as obras de misericórdia são associadas ao Juízo Final, bem
como à Paixão de Cristo, assim as obras são atos efetivos para a redenção de cada individuo. Esta ideia
se confirma no Livro de Mateus, capítulo 25, no qual as obras surgem como um programa ideológico
a ser cumprido. Também possui relação com o dia do Juízo e com a Salvação. “Pois tive fome e me
destes de comer. Tive sede e me destes de beber. Era forasteiro e me acolhestes. Estive nu e me vestiste,
doente e me visitastes, preso e viestes ver-me”43.

Os homens são julgados de acordo as suas obras de misericórdia e não segundo suas ações
excepcionais. Assim, a Virgem da Misericórdia traz as representações das boas obras das quais pra-
ticava, temática que está relacionada à Salvação. Criou-se também a correlação entre a misericórdia
exercida pelo homem e a exercida por Deus. Essa perspectiva da prática das boas obras foi acentuada
no Concílio de Trento, que colocou as obras no centro da Salvação. Maria, para os carmelitas, é fonte
de inspiração no estilo de vida, na fé, na esperança e na caridade e, tal como Elias, faz parte da história
da Salvação. Assim, o Carmo quer ser evangelicamente irmão no meio dos seus irmãos, em especial,
dos humildes e pobres, de modo a olhar para Deus no caminho da humanidade.

Maria escutava a Deus e fazia sua vontade, sem pedir nada em troca. Também escutava aos
homens e orava por estes. Ela traçou seu caminho de peregrinação, sendo discípulo de Cristo, refle-
tindo todas as virtudes. Além disso, encarnou as bem-aventuranças evangélicas que Cristo aclamou.

Referências:

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nial. In: As metamorfoses do azul. Org. Ars Latina; Paris, Ars Latina,1995: p. 87-109.

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BAZIN, Germain. A arquitetura religiosa barroca no Brasil. 2 v. Rio de Janeiro, Editora Record, 1956.

BÍBLIA. Português. A bíblia de Jerusalém: antigo e novo testamento. Coordenação: GORGULHO,


Gilberto S.; STORNIOLO, Ivo. & ANDERSON, Ana Flora. São Paulo, PAULUS, 2002.
41 ORAZEM, Roberta Barcellar. A representação de Santa Teresa D’Ávila nas igrejas da Ordem Terceira do Car-
mo de Cachoeira/Bahia e São Cristóvão/Sergipe. Dissertação de mestrado – Pontifícia Universidade Federal da
Bahia, Salvador, 2009, 308f. p. 117
42 CARVALHO, Maria do Rosário S. C. C. ...Por amor de Deus: representações das Obras de Misericórdia,
em apinéis de azulejos, nos espaços das confrarias da Misericórdia, no Portugal setecentista. Dissertação de
mestrado – Pontifícia Universidade de Lisboa. Lisboa, 2007, 527f.Definição próxima de Santo Agostinho con-
sonante por São Tomás de Aquino.
43 BÍBLIA, Mateus 25: 35-36

547
CALDERON, Valentin. O Convento e a Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira. Salvador: UFBA,
1976.

CARVALHO, Maria do Rosário S. C. C. ...Por amor de Deus: representações das Obras de Miseri-
córdia, em apinéis de azulejos, nos espaços das confrarias da Misericórdia, no Portugal setecentista.
Dissertação de mestrado – Pontifícia Universidade de Lisboa. Lisboa, 2007, 527f.

COSTA, F. A. Pereira da. A Ordem Carmelita em Pernambuco. Recife, Arquivo Público Estadual,
1976.

FLEXOR, Maria Helena O. (Org). O Conjunto do Carmo de Cachoeira. IPHAN/Programa Monu-


menta, Brasília, DF. 2007.

ORAZEM, Roberta Barcellar. A representação de Santa Teresa D’Ávila nas igrejas da Ordem Terceira
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sidade Federal da Bahia, Salvador, 2009, 308f.

SCHWARTZ, Stuart. Parte II: Os engenhos baianos e seu mundo. In: Segredos internos: engenhos e
escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo, Companhia das Letras, 1988.

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ordem terceira do Carmo de Cachoeira. Dissertação de mestrado – Pontifícia Universidade Federal
da Bahia, Salvador, 2014, 288f.

SPADAFORA, Francesco. et al. Elia Profeta, em Sainti del Carmelo. Institutum Carmelitanum, Roma.
1972

548
O beijo da fonte: as práticas culturais à beira dos chafarizes no mundo luso-brasileiro
Francislei Lima da Silva

Uma jovem aguadeira rompe os limites que separam o mundo tido por real e faz despertar
num espaço maravilhoso a criatura imaginária que vomita a água da fonte ao beijá-la. Essa água que
sacia a sua sede e transborda pelas pedras até penetrar o chão na pintura “O beijo” de José Monteiro
França, é regurgitada por uma máscara que encanta a água e torna bebível o líquido cristalino.

Figura 1 - Monteiro França (1876-1944). O beijo da fonte, 1912. Óleo sobre tela, 100 x 120 cm. Pinacoteca do
Estado de São Paulo.

O quadro do artista brasileiro Monteiro França, exposto pela primeira vez em São Paulo em
1912 após regressar de sua viagem como pensionista do governo do Estado na Itália e na França,
apresenta a imagem de uma coletora de água, vestida com roupas características dos povoados no
interior de Brasil e Portugal no início do século XX, onde o ofício de encher as vasilhas de água para
abastecer a cozinha da casa em que trabalhavam era executado por essas trabalhadoras. Atualmente,
pertencente à Pinacoteca do Estado de São Paulo, o quadro parecia não merecer tanta atenção por
parte de estudos, justamente porque faltava encará-lo segundo as chaves necessárias para inseri-lo
numa narrativa que se aproxima mais do contexto colonial que daquele em que a maioria das obras do
acervo são lidos. Na obra, vemos a cena curiosa da jovem aguadeira que sobe na beirada no tanque de
água para saciar a sua sede, bebendo direto da bica que sai da boca de um mascarão. O que não cabe
em sua boca transborda pelo chão afora, enquanto o vaso se encontra virado sobre o chão.

549
Nessa morada dos sonhos, a fonte, as máscaras criam uma atmosfera particular, como se cor-
respondessem a outro mundo, como afirma Mikhail Bakhtin. Segundo o autor,
“a máscara (...) é a expressão das transferências, das metamorfoses, das violações
das fronteiras naturais (...); a máscara encarna o princípio de jogo da vida, está ba-
seada numa peculiar inter-relação da realidade e da imagem, característica das for-
mas mais antigas dos ritos e espetáculos”.

Para abordarmos essa inter-relação específica entre realidade e imagem, nature-


za e cultura, lançamos mão de outros exemplos para enunciarmos melhor o jogo de encena-
ção estabelecido através da máscara –, anatomia grotescamente moralizada dos órgãos, inver-
são do corpo místico, cabeça que obedece a metáforas de princípios éticos e teológico-políticos
no contexto luso-brasileiro.

Aproximando-se da fonte para abastecer suas vasilhas de água, mirava-se aquele ser hí-
brido, meio humano, meio vegetal, que por sua boca expunha suas lições, abrindo os olhos da/do
aguadeira/aguadeiro ao anotado, corrigindo-lhe o notado. Sendo de extrema importância para esse
exercício imaginativo mirarmos os registros sobre as práticas de sociabilidade ao redor dos chafa-
rizes feitos por viajantes como Arnand Julien Pallière (1784-1862) ou Johann Moritz Rugendas
(1802-1858), costumeiramente usadas de maneira ilustrativa, quando na realidade, documentam o
que seria o movimento constante entorno das fontes públicas no período colonial como lugar de
tensão, onde o pathos se revelava no alvoroço junto aos chafarizes. Cláudia Damasceno Fonseca
e Laura de Mello e Souza evidenciam que os chafarizes tem destacado lugar no processo de urbani-
zação e de estabelecimento das práticas de sociabilidade no século XVIII. Acordos, encontros, brigas
e todo tipo de contenda eram comuns entre as pessoas junto aos tanques de água, conforme atesta
a documentação camarária das vilas mineiras ao longo de todo o setecentos e primeira metade do
oitocentos, responsáveis pela sua fábrica e manutenção, aspecto igualmente evidenciado pelas duas
autoras acima citadas.

O encantamento da fonte se dá, justamente, nessa desordem que revela esse contexto de
apropriação das águas. As criaturas vomitadeiras, maneira como preferimos denominar as másca-
ras, conforme esmiuçaremos a seguir, manifestavam no contexto colonial uma inversão de regras
que seguia a determinadas fórmulas para saciar a sede daquelas/daqueles que comiam e bebiam
das fontes. Ao se aproximar das bicas de água se estabelecia uma relação com criaturas complexas,
cujo entendimento não se encerrava nelas mesmas, mas no ato de vomitarem coisas maravilho-
sas, diferentemente do que já se disse sobre os mascarões, partindo da definição de Rafael Bluteau
de que essa cara ridícula estaria envolta pelo mesmo sentido que as gárgulas, postas ali para simples-
mente afugentar algo ou alguém, mesmo estando envoltas por um forte caráter apotropaico.

Aqueles que viam tais corpos monstruosos nos lugares demarcados no espaço citadino (em
esquinas, pequenos recuos pelas ruas ou protegidas nas sacristias das igrejas) passavam a lidar com
uma linguagem própria, de um espaço outro. Tais espaços possíveis e imaginários estavam ligados a
recortes singulares de tempo – heterotopias, como ilhotas onde era possível se fazer uma experiência
particular do tempo. Michel Foucault esclarece que as heterotopias, esses lugares outros, “possuem

550
sempre um sistema de abertura e fechamento que os isola em relação ao espaço circundante”. Nesse
caso, estando-se imerso nessa heterotopia para cumprir os ritos de purificação da água, sorvida ou
usada nas abluções, a água não era apenas elemento essencial para uma purificação meio-religiosa e
meio-higiênica. Antes, carregava em sua matéria os valores religiosos e naturalistas do homem naque-
le contexto cultural, de certa forma, lúdico.

Caberia à ciência das heterotopias, dito por Foucault, a tarefa de enunciar as palavras e as
coisas manifestas pela “desordem que faz cintilar os fragmentos de um grande número de ordens
possíveis”. Sendo justamente aí que as criaturas vomitadeiras compõem as fontes, não como meros
ornamentos, mas como elemento fundamental de uma arquitetura, constituída de alguma maneira,
segundo um ritmo múltiplo de tempos.

O elemento água nos permitirá, portanto, acessar um universo poético sempre aberto à ima-
ginação. Gaston Bachelard sugere que no exercício da imaginação da matéria, a água não é uma subs-
tância que se bebe; mas uma substância que bebe. Ela engole as fantasias das pessoas que se aproxi-
mam dos bicames, cumprindo a função de controle sobre o corpo e a matéria, poder esse exercido
tanto pelo Estado quanto pela Igreja. “A água se oferece, pois, como o elemento de purificação, dando
sentidos precisos a uma psicologia prolixa da purificação.

Uma psicologia ligada a modelos materiais que permitiram às instituições o domínio sobre as
fontes de água da cidade – dos lugares públicos de coleta de água – e do próprio corpo (o comer, o be-
ber, o lavar-se). As criaturas vomitadeiras ao regurgitar as águas, humanizam, engrandecem e tornam
possíveis também os devaneios, sonhos, e pesadelos da água.

Partindo disso, apresentaremos aqui uma constelação de imagens que sugerem pelo movimen-
to de saída pela boca uma reflexão sobre a transformação da natureza das coisas, a fim de compreen-
dermos melhor o impulso da aguadeira de Monteira França.

551
Figura 2 - Detalhe de O aparecimento da Primavera, c. 1485. Sandro Botticelli (1445-1510). Têmpera sobre
tela, 172,5 x 278,5 cm; Uffizi, Florença. Imagem disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Bottice-
lli-primavera.jpg

Em uma série de citações anacrônicas, a atração pelas criaturas em metamorfose levará tanto
Sandro Botticelli (1445-1510) a pintar a ninfa que se transforma em flora, no seu aparecimento da pri-
mavera (Florença, 1485), quanto dois polêmicos artistas na contemporaneidade a compor um curioso
conjunto escultórico em que o rei Juan Carlo de Espanha, molestado por uma líder sindical boliviana
e ela por um cachorro, põe pela boca flores azuis que caem sobre capacetes enferrujados.

Figura 3 – “Not Dressed for Conquering/Haute Couture 04 Transport” de Ines Doujak e John Barker exibida

552
na 31º Bienal de Arte de São Paulo. Imagem disponível em: https://cronicaglobal.elespanol.com/vida/tacho-
-benet-escultura-juan-carlos-sodomizado_148082_102.html

Da mesma forma que no último caso, um ato estranho faz com que a maravilha
se manifeste nessa inversão, quando Vênus surge ao centro do quadro,do sopro de Zéfiro desabro-
cham da boca daquela figura feminina um festão de flores. Já muito revisitado pela historiografia da
arte, o aparecimento da primavera de Vênus parece não ter sido percebido por esse jogo poético, pelo
movimento indicado através dessa chave interpretativa que vem nos revelando novas narrativas sobre
a imagem da boca que degusta o mundo e que permite nomear o corpo interno do homem, conectado
ao corpo externo da natureza, como também podemos notar no esforço de Rodrigo Braga e Lia Chaia
em enquadrar sua imagem e auto imagem enquanto artista, homem e mulher.

Figuras 4 - Rodrigo Braga, A alegoria perecível 7, fotografia, 60 x 40 cm, 2005. Imagem disponível em: http://
www.rodrigobraga.com.br/Da-alegoria-perecivel

Figura 5 - Lia Chaia, Folíngua, 2003. Fotografia sobre papel; 60 x 60 cm. Imagem disponível em: https://lia-
chaia.com/FOLINGUA

Essa plasticidade evidente admite uma fácil adaptação a diferentes contextos e usos, justifican-
do a proliferação das máscaras tanto em termos de territorialidade quanto de temporalidade.

A (re)visitação feita pelo MASP em 2016 da mostra “A mão do povo brasileiro”, exi-
biu, por exemplo, dentre os numerosos objetos da cultural material brasileira, uma pia batismal
em arenito esculpida em Minas Gerais. Essa mesma pia voltou a compor no mesmo ano outra a ex-
posição, dessa vez, “Barroco ardente e sincrético” no Museu AfroBrasil, em 2017.

553
Figura 6 - Pia batismal, século XVIII. Arenito, 103 x 65 cm. Museu de Arte Sacra de São Paulo. Fotografia do
autor.

Se antes vomitavam fitas, tecidos, folhagens e festões, como aqueles encontrados nos tem-
plos de Catas Altas, Sabará, Antônio Dias em Ouro Preto e no distrito de Raposos, passam a re-
gurgitar água. Os elementos vegetalizados são reorganizados engenhosamente nas fábricas como
decoração que emoldura a criatura aquática, no caso específico dos lavabos da capela de Pa-
dre Faria em Ouro Preto e da Igreja de Nossa Senhora do Rosário em Mariana, especialmen-
te, formando uma moldura com folhas volutadas. Essa justaposição dos elementos compõe um
novo conjunto de grotescas, uma última revolução talvez, recordando os estudos de Nicole Dacos
, ou uma última adaptação em sua sobrevivência.

554
Figura 7 – Detalhe do frontispício do lavabo da capela de Padre Faria, Ouro Preto. Século XVIII. Arenito. Fo-
tografia do autor.

Os mascarões, portanto, parecem ter sido compreendidos até agora apenas como elementos
secundários, despretensiosos, simples elementos decorativos. Contudo, revelam aquilo que move o
sentido histórico dos espaços ocupados por eles: a transformação, das inversões da ordem entre o
movimento de dentro para fora, do espaço aberto para o espaço fechado, do sujo ao limpo, da morte
à vida.

Ao se colocar à beira das fontes, portanto, relacionava-se com um espaço metamorfoseado


pela presença estranha e cativante de exemplares remanescentes de um mundo maravilhoso ain-
da em pleno século XIX de criaturas vomitadeiras que cumpriam a função de naturalizar os nos-
sos medos e esperanças, permitindo nomear e encantar o desconhecido – recordando que a água
é antes de mais nada uma matéria imaginada (CAUQUELIN, 2007). Os mascarões das fontes de-
vem ser compreendidos, desse modo, como engenhosas invenções políticas mas também poéticas
.

555
O mesmo movimento de subir no tanque para encher a boca de água até ficar sem fôlego e
se deixar tomar pela sensação de frescor ao matar a sede é registrado como na fotografia do chafariz
do Carmo em Lisboa. Essa imagem se relaciona a um conjunto de imagens garimpadas em arquivos
dos dois no Brasil e em Portugal, demonstrando que ainda sobreviviam no século XX determinadas
práticas culturais no que diz respeito à apropriação dos lugares públicos de coleta de água.

Figura 8 - Lisboa. Chafariz do Carmo. Fotografia, 16/05/1929. Arquivo Nacional da Torre do Tombo.

556
Figura 9 - Lisboa. As bilhas e as vasilhas que se colocam em bicha nas proximidades do chafariz, 08/08/1932.
Arquivo Nacional da Torre do Tombo.

Por fim, se na fabricação do antigo insistia-se na narrativa de que o vaso invertido sobre o chão
se relaciona à imagem da água abundante que transborda e fecunda a terra, vinculada ao ventre da
mulher, as bilhas e vasilhames vazios que foram fotografados quando da espera pela água que havia
secado no chafariz, pode, para nós, buscando uma última referência poética, assemelhar-se aos corpos
vazios, sedentos por estarem cheios, implicando no que essa ação venha a nos sugerir em suas diferen-
tes manifestações culturais entorno da fonte.

Referências Bibliográficas

BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes,
1989.

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. 4.
ed. São Paulo: Hucitec, 1999.

BASTOS, Rodrigo Almeida. A maravilhosa fábrica das virtudes: o decoro na arquitetura religiosa de vila rica,
Minas Gerais (1711-1822). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/ FAPESP, 2013.

DACOS, Nicole. Da liberdade à ordem e do jogo ao símbolo: vida e morte das grotescas. In: Marques, Luiz
(org.). A fábrica do antigo. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008, p. 159-176.

557
FERNANDES, Cybele Vidal Neto. A decoração em grotteschi na obra de Rafael, como referência para o ensi-
no artístico na academia imperial das belas artes do Rio de Janeiro. População e Sociedade CEPESE. vol. 19.
Porto: 2011.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Editora Mar-
tins Fontes, 2000.

____________. O corpo utópico, as heterotopias. São Paulo: n-1 Edições, 2013.

HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. 2. Ed. São Paulo:
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OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. O rococó e seus antecedentes europeus. São Paulo: Cosac & Naify,
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PANZINI, Franco. Projetar a natureza: arquitetura da paisagem e dos jardins desde as origens até a época con-
temporânea. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2013, p. 261.

SERRÃO, Vitor. A pintura de brutesco do século XVII em Portugal e as suas repercussões no Brasil. In: Ávila,
Affonso (org.). Barroco: Teoria e análise. São Paulo: Perspectiva, Belo Horizonte: Cia Brasileira de Metalurgia
e Mineração, 1997, p. 93-125.

PRESENÇA DE SÃO BENEDITO NOS CONVENTOS FRANCISCANOS DO NORDESTE NO BRA-


SIL COLONIAL
Ivan Cavalcanti Filho44

Apesar da contundente presença de Santo Antônio no repertório de devoções das casas


franciscanas do Nordeste, sendo inclusive titular de sete dos treze conventos fundados na região
entre 1585 e 1660, outras devoções masculinas foram bastante prestigiadas nos retábulos das igrejas
conventuais, como o próprio São Francisco, São José, São Pedro de Alcântara e São Luís. Numa
escala inferior, porém significativa tanto no tocante ao prodígio da devoção, como do espaço onde
era entronado no cenóbio, figurava São Benedito. Canonizado pela Igreja Católica em 1807, seu
culto foi introduzido no Brasil já no início do século XVII, aproximadamente duas décadas após seu
falecimento em 1589. Por ser negro, descendente de etíopes, era venerado sobretudo por escravos, que
com ele se identificavam quanto à cor e à posição que ocupavam na sociedade colonial. Afinal, o santo
fora irmão leigo, tendo ocupado as posições de porteiro e cozinheiro no convento de Santa Maria
de Jesus, na Sicília, Itália. O objetivo deste trabalho é registrar a presença de São Benedito nas casas
franciscanas nordestinas, destacando os espaços destinados ao seu culto, a iconografia adotada, e as

44 Arquiteto e urbanista. Doutor em História da Arte pela Oxford Brookes University, Oxford, Inglaterra
(2009). Professor de História da Arquitetura do Curso de Graduação e da Pós-Graduação em Arquitetura e
Urbanismo da Universidade Federal da Paraíba.

558
irmandades que se formavam em torno da devoção. Para tanto, a investigação recorre aos três Livros
dos Guardiães subsistentes ao tempo; às Atas Capitulares da Província de Santo Antônio do Brasil;
ao Novo Orbe Seráfico Brasílico de Frei Jaboatão, principal crônica dos frades menores no Brasil no
período colonial; às publicações de franciscanos que, no século passado, se empenharam em divulgar
velhos escritos da Ordem; e a trabalhos recentes sobre o franciscanismo no Brasil. A partir dos dados
obtidos, e considerando a segregação social que imperava na colônia, a pesquisa aponta a trajetória
ascensional porque passou a devoção no tocante aos locais de culto no cenóbio franciscano, sugere sua
relação com o status canônico do santo no âmbito da Igreja, e sutilmente revela o embate da devoção
com aquela de Santo Antônio.

Antecedentes

No contexto do Brasil colonial, a Igreja Católica exerceu papel decisivo no projeto colonizador
português, o qual tinha como meta prioritária a pacificação com os nativos. Afinal, sem um acordo de
paz, era impossível a fixação dos lusitanos em solo brasileiro, e, por consequência, a implementação
de práticas produtivas e de negócios que promovessem o êxito do projeto.45 Nesse sentido, o clero
regular teve uma participação fundamental no processo através das atividades catequéticas junto
aos nativos, e o clero secular, por sua vez, deu sua parcela de contribuição, emprestando a devida
assistência religiosa aos colonizadores, que encontravam nas cerimônias religiosas celebradas numa
terra longínqua, a relação de identidade com sua vida na Metrópole. O Padroado Régio, convênio
celebrado entre a Igreja e a Coroa Portuguesa, onde a primeira dava poderes à última de tomar todas
as decisões relativas à religião na colônia, foi o instrumento basilar que garantiu a sustentabilidade do
projeto lusitano de colonização. Através do aludido acordo, o Rei de Portugal podia nomear padres,
fundar casas conventuais, cobrar dízimos eclesiásticos, aplicar penalidades a eventuais infrações por
parte do clero, tudo como representante oficial do Papa.46

A primeira ordem religiosa oficialmente estabelecida na colônia foi a Companhia de Jesus,


instituição fundada em 1540 por Inácio de Loyola,47 cujo projeto prioritário era a evangelização, que
constituía grande desafio num contexto temporal adverso, quando a Igreja perdia adeptos para o
Protestantismo. Os religiosos da Companhia chegaram ao Brasil em 1549, integrando a comitiva do
1º Governador-Geral Tomé de Souza, com a missão de catequisar os nativos.48 As três outras ordens
religiosas com incumbência congênere só foram estabelecidas na colônia cerca de três décadas depois,
mais precisamente na primeira década do período da União Ibérica (1580-1640), quando Portugal
passou para o jugo do rei Felipe II de Espanha – os beneditinos chegaram em 1581, os carmelitas em
1583, e os franciscanos em 1585.49 A introdução desses grupos de religiosos em território brasileiro

45 Cavalcanti Filho, Ivan. The Franciscan convents of North-East Brazil 1585-1822: Function and design in a
colonial context. 2009. 250 f. Tese (Doutorado em História da Arte) - School of Arts and Humanites, Oxford
Brookes University, Oxford, Inglaterra, p. 23.
46 Azzi, Riolando. A Instituição Eclesiástica durante a Primeira Época Colonial. In: Hoonaert, Eduardo et al
(Org.). História da Igreja no Brasil. Tomo 2. Petrópolis: Vozes, 1979, p. 161-2.
47 Francisco, Elizabete Correia Campos. As Capelas de S. Francisco Xavier e S. João Batista na Igreja de S.
Roque: a Arte ao Serviço da Fé. Lisboa: Chiado Editora, 2012, p. 31.
48 Salvador, Frei Vicente do. História do Brasil: 1500-1627. São Paulo: Editora da USP, 1982, p. 143.
49 Azzi, op. cit., 1979, p. 213-15.

559
traria resultados alvissareiros para o projeto colonizador na medida em que descentralizava a missão
evangelizadora dos jesuítas, dividindo tal atribuição com outras ordens, e reforçando o quadro de
religiosos seculares aptos a ministrar os sacramentos no âmbito das paróquias.

Como as quatro ordens supracitadas tiveram origem na Europa a partir do século IX, todas já
tinham suas devoções consolidadas, sendo as mesmas trazidas para a colônia junto com os respectivos
cultos com base na trajetória de piedade e fé atribuída aos seus titulares. Nesses termos, S. Inácio de
Loyola, S. Francisco Xavier e S. Simão Rodrigues integravam, entre outras devoções, o repertório
jesuíta;50 S. Bento, S. Escolástica, S. Gregório Magno protagonizavam o quadro beneditino;51 S. Simão
Stock, S. Teresa d’Ávila e S. João da Cruz compunham o cenário carmelita;52 e S. Francisco de Assis,
S. Antônio de Pádua, e S. Clara animavam os altares franciscanos. No âmbito dos frades menores
no Brasil, uma outra devoção seria introduzida ainda no período colonial – S. Benedito – cujo culto
tornar-se-ia recorrente em confraternidades vinculadas às comunidades dos frades menores.

São Benedito

Nascido por volta de 1524, Benedito era filho de escravos negros de origem etíope, de
propriedade dos Manasseri, família siciliana que lhe deu a liberdade logo ao nascer, em consideração
aos seus genitores, honestos empregados e piedosos cristãos.53 Aos dezoito anos, deixou sua atividade
de lavrador e se recolheu numa comunidade de franciscanos eremitas sob a tutela de frei Jerônimo
Lanza, em Santa Domênica, próximo a S. Filadelfo, onde foi admitido como religioso leigo. Vinte
anos depois, com a dissolução da comunidade pelo papa Paulo IV, ingressou no convento franciscano
de Santa Maria de Jesus, cenóbio localizado a 6 km de Palermo, onde, também na condição clerical
supracitada, exerceu diferentes ofícios: cozinheiro, porteiro, faxineiro e sacristão.54 O fato de só ser
aceito nas aludidas comunidades como religioso leigo se devia à sua origem e à cor da sua pele, já que a
normativa da Ordem proibia o ingresso de noviços que não fossem brancos. Os Estatutos da Província
de Santo Antônio de Portugal (1645), que obrigatoriamente adotavam a Regra Geral da Ordem dos
frades menores, no seu Capítulo I, condicionava a admissão do noviço nos seguintes termos: “Aquele
que vier à Ordem ... seja de boa geração, convem a saber, que não seja descendente de judeos, nem
Mouros convertidos, nem de Hereges, por remotos que sejão, nem de Gentios modernos”.55

Apesar de sua ascendência ‘impura’ aos olhos da Regra franciscana, e do seu analfabetismo, já
que no modelo de sociedade escravocrata em que vivera, não lhe foram permitidos os estudos, através
de seu testemunho de humildade e fé, mesmo sendo frade leigo, impedido do exercício do sacerdócio,
chegou a ser escolhido como superior do convento supracitado na assembleia trienal da comunidade,

50 Francisco, op. cit., 2012, p. 10.


51 Silva-Nigra, Dom Clemente da. Os dois escultores Frei Agostinho da Piedade e Frei Agostinho de Jesus e o
arquiteto Frei Macário de São João. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1971, p.25-26.
52 Albuquerque, Marcos Cavalcanti de. Complexo Arquitetônico Carmelita da Paraíba: Arte Sacra nas Igrejas
do Carmo e Santa Tereza. João Pessoa: Editora Universitária, 2012, p. 58-59
53 Alves, J. São Benedito: novena e biografia, 3ª ed. São Paulo: Editora Paulinas, 2011, p. 17-18.
54 Ibid, p. 25.
55 Purificação, Frei Manoel da. Estatutos da Provincia de Santo Antonio do Reyno de Portugal. Lisboa, 1645,
p. 2.

560
o capítulo provincial, realizado em Palermo em 1578.56 Faleceu onze anos depois, sempre fiel aos
princípios cristãos e às normativas da Ordem que o acolhera, da qual fez seu projeto de vida. A partir
do seu exemplar testemunho e dos prodígios a ele atribuídos, foi beatificado em 1743 pelo Papa Bento
XIV, e canonizado sessenta e quatro anos depois, pelo Papa Pio VII,57 consumando processo iniciado
em 1780. Benedito seria assim o primeiro africano negro reconhecido como santo pela Igreja Católica
Romana.58

Não obstante a sua santidade só ser oficialmente proclamada em 1807, a fama de milagres a ele
atribuídos se espraiara na Espanha e Portugal já no século XVI. Afinal, a Sicília estava, desde o início
do citado século, sob o domínio da Casa de Aragão, sendo os espanhóis e os portugueses os principais
fornecedores de escravos no mundo cristão.59 Essa relação comercial teria estreitado, portanto, as redes
de comunicação entre a Sicília e as nações ibéricas, contribuindo para que, no capítulo provincial dos
frades menores de 1581, realizado em Agrigento, na Sicília, houvesse um grande afluxo de lusitanos e
espanhóis ávidos por conhecer o Irmão Benedito,60 pois na qualidade de guardião de convento, ele não
podia faltar à importante reunião trienal, obrigatória para todos os representantes das comunidades
ligadas à Província da qual fazia parte.

Tais evidências contribuem para explicar a introdução do culto à figura de Benedito no Brasil
pelos portugueses já no início do século XVII, poucos anos após o seu falecimento, sem ter passado
pelos processos de beatificação e canonização. A literatura destaca a devoção ao santo africano já em
1613 no Rio de Janeiro, e dez anos depois no convento franciscano de Salvador, onde sua imagem
era venerada.61 Com efeito, S. Benedito teve grande aceitação na colônia, sobretudo no âmbito das
comunidades de escravos, que com ele se identificavam, tanto pela cor da pele como pela condição
de subalternidade que lhes era imposta no sistema escravocrata, onde trabalhavam incansavelmente
como serviçais dos colonizadores brancos.

Na América Portuguesa, a devoção a S. Benedito por parte dos escravos negros estava
frequentemente associada com o culto a N. S. do Rosário, que era venerada por escravos procedentes
de Angola e do Congo. Afinal, a Virgem sob tal invocação já era conhecida na África desde 1526,
quando dois pretos livres da ilha de S. Tomé teriam solicitado ao Rei de Portugal licença para o seu
culto, apesar dos agentes pioneiros no incentivo à devoção serem os dominicanos, que gozavam de
privilégios canônicos para tal, atuando sobretudo a partir de seus mosteiros em Portugal desde o
século XV.62
56 Albaret, Pol de Léon. São Benedito, o Africano. Tradução Equipe da ECE. São Paulo: Editora de Cultura
Espiritual, 1989, p. 44.
57 Neotti, Frei Clarêncio. São Benedito: Homem de Deus e do Povo. Aparecida: Editora Santuário, 2016, p.7.
58 Albaret, op. cit., p. 79
59 Ibid, p. 12.
60 Ibid, p.53.
61 Willeke, Frei Venâncio. Convento de Santo Antônio de Ipojuca. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional. v. 13. Rio de Janeiro, 1956, p.46; Miranda, Maria do Carmo Tavares de. Os Franciscanos e a Formação
do Brasil. Recife: UFPE, 1976, p. 142; Cavalcanti Filho, Ivan. Franciscans and the Parish in Early Modern Brazil.
In Spicer, Andrew (Org.). Parish Churches in the Early Modern World. Surrey: Ashgate, 2016, p. 288.
62 Kiddy, Elizabeth W. Congados, Calunga, Candomblé: Our Lady of the Rosary in Minas Gerais, Brazil. Luso-
Brazilian Review, University of Wisconsin, v. 37, n. 1, p. 47-61, 2000, p.51.

561
No Brasil, jesuítas propagaram e estimularam tal devoção entre escravos vindos da Guiné a
partir de 1552, tanto no contexto dos pequenos povoados e vilas,63 como, trinta e sete anos mais tarde,
nas zonas rurais, onde ficavam os engenhos de açúcar.64 Assim, os templos dedicados à Virgem do
Rosário que, via de regra, apresentavam sua imagem no nicho principal da igreja, entronavam o santo
de Palermo num de seus retábulos secundários, o mesmo acontecendo à outra devoção também de
origem etíope – Santa Efigênia – que, por igualmente gozar de grande aceitação por parte dos negros
africanos, formava com as duas aludidas invocações, importante tríade no cenário devocional dos
negros no período colonial.

Diferentemente de S. Benedito, S. Efigênia, filha dos soberanos do pequeno reino da Núbia,


Egippus e sua esposa Candace, era nobre, se convertendo ao cristianismo na época que Mateus pregou
o Evangelho na África. Após ser batizada junto com os pais, a futura santa foi recrutada para a Igreja
pelo apóstolo como exemplo de pureza e castidade.65 A consolidação dessas invocações de santos
negros nos templos dedicados a N. S. do Rosário, bem como a prática dos respectivos cultos eram
finalmente oficializados através da criação de irmandades, sendo a do Rosário dos Pretos a mais antiga
do Brasil colonial.66 Como as paróquias estabelecidas na colônia não permitiam o ingresso de escravos
cativos nas respectivas igrejas, e, consequentemente, a participação deles nas atividades litúrgicas
nelas realizadas, essas confraternidades lhes ofereciam os direitos que lhes eram cerceados nas igrejas
de ‘brancos bons’. Tais associações eram regidas por Compromissos, que tinham de ser aprovados pela
Mesa de Consciência e Ordens de Lisboa,67 que, ao mesmo tempo que conferia aos negros a sensação
de inclusão na sociedade, imprimia limitações de comportamento para garantir a subserviência dos
mesmos à ordem constituída.

Em termos concretos, os escravos, ao se associarem a tais entidades, tinham a garantia de


assistência na doença, o suporte religioso no evento da morte, e a efetiva participação nas procissões
e festividades em homenagem às invocações às quais as confraternidades eram dedicadas,68 sem
contar as comemorações de caráter profano, como a procissão e coroação do rei e da rainha do Congo
na Irmandade de N. S. do Rosário dos Pretos, cujos primeiros registros na colônia datam de 1666.
A filiação às tais irmandades ainda conferia aos seus membros uma importante prerrogativa – a
possibilidade de serem levantados fundos para sua alforria.69 Ademais, essas associações davam as
condições para que seus membros, usando o imaginário católico ortodoxo, expressassem seus ideais
culturais e simbólicos, traduzidos em devoções a santos pretos como S. Benedito, S. Efigênia (acima

63 Mulvey, Patricia A. Slave Confraternities in Brazil: Their role in Colonial Society. The Americas, v. 39, n. 1,
p. 39-68, jul. 1982, p. 41.
64 Mulvey, op. cit., p.41; Silva, Leonardo Dantas. Pernambuco Preservado: Histórico dos bens tombados do
Estado de Pernambuco. Recife: Leonardo Dantas Silva, 2002, p. 53.
65 Sanchez, Roberto. The Black Virgin: Santa Efigênia, Popular Religion and the African Diaspora in Peru.
Church History 81 (2012), 631-55, p. 641. Cavalcanti Filho, op. cit., 2016, p.288.
66 Mulvey, Patricia A. Black Brothers and Sisters: Membership in the Black Lay Brotherhoods of Colonial
Brazil. Luso-Brazilian Review, University of Wisconsin, v.17, n.2, p. 253-279, inv. 1980, p.256.
67 Mulvey, 1982, op. cit., p. 44.
68 Ibid, p. 40.
69 Silva, op. cit., p.53.

562
citados), além de S. Elesbão, também de origem africana.70

São Benedito e as Irmandades de Pretos no Brasil

Nossa Senhora do Rosário, por ser a primeira devoção a ter seu culto oficializado numa
irmandade de pretos na América Portuguesa, se consolidou como padroeira das demais associações
do gênero,71 sendo festejada tanto no calendário católico mariano, como incluída nas folias dos
reisados e congados, eventos profano-religiosos ligados à cultura de origem africana.72 Inicialmente
sem sede própria, com cultos realizados ‘de favor’ em altares/retábulos de igrejas matrizes, com o
passar do tempo essas associações de escravos, através dos parcos recursos que dispunham, bem como
de generosas doações, chegaram a construir igrejas e capelas próprias, com o consentimento da Coroa,
que, através do Padroado Régio, representava a Igreja Romana, como já foi dito anteriormente.

No início do século XVII, já existia em Olinda a irmandade do Rosário dos Pretos, e em


1630, a igreja sob tal invocação, que foi destruída um ano depois pelos holandeses, e reconstruída no
século seguinte.73 O estabelecimento da irmandade do Recife, por sua vez, remete a meados do século
XVII,74 sendo a respectiva igreja iniciada em 1725, e concluída cinquenta e dois anos mais tarde. A
aludida associação, apesar de ser constituída de escravos, foi bem aquinhoada, haja vista o número de
imóveis que possuía,75 o que gerou rendas para o embelezamento do seu templo, o qual competia em
ornamentação com igrejas das irmandades de homens brancos. No interior da igreja, os retábulos de
S. Benedito e S. Efigênia, e aqueles dedicados a outros santos negros como S. Elesbão, S. Antônio de
Cartegerona, S. Moisés Anacoreta, e o rei Baltazar,76 integravam o repertório de devoções do espaço
onde ocorria a festa do Rosário, e onde, entre 1674 e 1888, foram coroados os reis do Congo e de
Angola.77 É importante ressaltar que, à exceção da Virgem padroeira, todos os santos ali presentes
eram negros e, por conseguinte, relacionados cada um com a respectiva irmandade de pretos que ali
se reunia para a realização dos seus rituais litúrgicos.

A Irmandade do Rosário dos Pretos de Goiana, importante povoado da Capitania de


Pernambuco no período colonial, foi instituída no final do século XVII, haja vista a documentação
registrando a existência de sua igreja em 1692.78 Assim como no exemplar anterior, a provisão de
70 Tribe, Tania Costa. The mulato as Artist and Image in Colonial Brazil. Oxford Art Journal. Oxford, v.19, n.1,
p. 67-79, 1996, p.73.
71 Froner,Yaci Ara. Santos Negros: o Hibridismo das tradições na colônia brasileira. In: IV Colóquio Luso-
Brasileiro de História da Arte, 2., 2003, Rio de Janeiro. Pereira, Sonia Gomes (Org.) Anais do IV Colóquio
Luso-Brasileiro de História da Arte. Rio de Janeiro: CBHA/PUC-Rio/UERJ/UFRJ, 2004, p. 755-767, p.765.
72 Tribe, op. cit., p.73.
73 Barbosa, Pe. Antônio. Relíquias de Pernambuco: Guia aos Monumentos Históricos de Olinda e Recife. São
Paulo: Editora Fundo Educativo Brasileiro, 1983, p. 12.
74 Oliveira, Myriam Andrade Ribeiro de; Ribeiro, Emanuela Sousa. Barroco e Rococó nas Igrejas de Recife e
Olinda, v.1. Brasília, DF: IPHAN, 2015, p.47.
75 Barbosa, op. cit., p. 40-41
76 Oliveira, Myriam Andrade Ribeiro de; Ribeiro, Emanuela Sousa. Barroco e Rococó nas Igrejas de Recife e
Olinda, v.2. Brasília, DF: Iphan, 2015, p. 81.
77 Silva, op. cit., p. 202-203.
78 Silva, op. cit., p. 53.

563
retábulo dedicado a S. Benedito, igualmente sugere a presença de irmandade dedicada ao santo à
época.

Na região das Minas Gerais não foi diferente; com a descoberta de ouro e diamantes em 1699,79
o grande número de escravos arregimentados para trabalhar na mineração motivou a multiplicação
de irmandades do Rosário, cujos templos, a exemplo dos nordestinos, acolhiam confrarias de santos
de cor, sobretudo aquelas dedicadas a S. Benedito e a S. Efigênia. As igrejas do Rosário de Ouro Preto
e de Mariana ilustram tal assertiva através dos retábulos a eles dedicados, além daqueles onde estão
entronados S. Antônio de Cartegerona e S. Elesbão.80 Nas igrejas de mesma invocação em São João
del-Rei e Tiradentes, S. Benedito, S. Antônio de Cartegerona e S. Elesbão ocuparam locais de destaque,
ficando os dois primeiros nos retábulos laterais ao arco cruzeiro do templo do Rosário de Tiradentes.81

A partir do exposto, percebe-se que a formação de confraternidades de negros foi crucial no


Brasil colonial, sobretudo devido ao grande afluxo de africanos trazidos pelos colonizadores como
escravos. Afinal, desde 1441, os lusitanos tinham experiência nesse comércio, ao arrebanhar negros
para Portugal a fim de executar serviços domésticos. No Brasil, como a escravização de nativos não
dera certo, a solução foi implantar a mão-de-obra escrava tanto na monocultura da cana, como, a
posteriori, inseri-la na mineração. Registros de época destacam que, entre 1550 e 1855, cerca de quatro
milhões de escravos foram aportados na colônia, a maioria jovens do sexo masculino.82 As irmandades
de negros, nesse caso, funcionavam como canais através dos quais seus membros se identificavam e se
relacionavam com seus pares, tanto cultural, como socialmente, à margem da estratificada sociedade
que os marginalizava.

Nesse sentido, a própria Igreja Romana encorajava o estabelecimento de confrarias de pretos,


já que, na prática, elas abrandavam eventuais tensões entre as classes sociais das vilas e cidades à época.
Papa Gregório XIII (1572-1585), que participara ativamente da Reforma da Igreja católica através
do Concílio de Trento, tendo inclusive proposto vários de seus decretos,83 estimulou a criação de
irmandades do gênero como meio de “doutrinar os escravos recém-chegados nos costumes e dogmas
da religião católica”.84

São Benedito nos conventos franciscanos nordestinos

Apesar da maciça devoção a S. Benedito nas igrejas do Rosário dos Pretos que acolhiam
irmandades a ele dedicadas, os conventos franciscanos do Nordeste também cederam espaços para
o culto ao santo negro de Palermo. Afinal S. Benedito tinha sido um franciscano leigo com vasto
currículo de prodígios, como foi acima mencionado. Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão, nomeado

79 Tribe, op. cit., p. 67.


80 Oliveira, Myriam Andrade Ribeiro de; Campos, Adalgisa Arantes. Barroco e Rococó nas igrejas de Ouro
Preto e Mariana, v.1. Brasília, DF: Iphan/ Programa Monumenta, 2010, p. 77.
81 Oliveira, Myriam Andrade Ribeiro de; Santos, Olinto Rodrigues. Barroco e Rococó nas igrejas de S. João
del-Rei e Tiradentes, v. 1.Brasília, DF: Iphan/ Programa Monumenta, 2010, p. 107
82 Fausto, Boris. A Concise History of Brazil. Tradução Arthur Brakel. Cambridge: Cambridge Press, 1999. p.
5; p.16; p.18.
83 Gioia, Francesco. The Popes: Twenty centuries of History. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2005, p. 120.
84 Silva, op. cit., p. 53.

564
cronista da Ordem dos Frades Menores em meados do século XVIII, assim se referiu ao virtuoso
irmão leigo na sua obra intitulada Novo Orbe Seráfico Brasílico:

Desde os principios, e fundações destas Capitanias, foi sempre em todas ellas tido
em huã veneração, e servido com especial culto o gloriozo Saõ Benedicto de Palermo
ou de S. Fratello, geralmente de todos os Catholicos, e com particular e devoto
obsequio da Gente da sua côr, ou seja, por affecto da natureza, ou por sympatia dos
accidentes. Naõ ha Cidade, Villa, Parochia ou lugar aonde esta Gente naõ tenha Igreja
sua, consagrada á Senhora com titulo do Rozario, primeyro objeto e móvel das suas
adorações, e que nestas taes Igrejas naõ dedique altar próprio ao seu Saõ Benedicto,
com confraria e Irmandade sua. E naõ satisfeitos com estes expressivos de seo affecto,
e devoção, ainda em os nossos conventos, em que os Domesticos e Escravos da caza
levantaõ Altares e capelas ao Santo, como o hiremos vendo em seos lugares, com suas
Irmandades e confrarias, para estas concorrem taõbem muitos Irmãos e Pretos de
fora, naõ obstante terem nas suas Igrejas e nos mesmos lugares outras em que servem
ao seo Santo.85

Todos os treze conventos franciscanos fundados no nordeste brasileiro entre 1585 e 1660
tiveram uma Irmandade de S. Benedito a eles vinculada. A confraternidade, enquanto instituição, não
pressupunha a provisão de uma capela específica para o culto ao santo, como acontecia com a Ordem
Terceira, que via de regra dispunha de espaços exclusivos nas casas conventuais dos frades menores
para a realização de seus ofícios litúrgicos. O acolhimento dessas associações de pretos nos citados
conventos, na verdade, revelava o zelo que os frades menores tinham com seus escravos, já que davam
assistência a eles na enfermidade, proviam sepultamento em rito cristão, além de rezarem missa pelas
suas almas por ocasião de morte.86

O culto a S. Benedito em ‘território’ franciscano normalmente ocorria em diferentes espaços dos


cenóbios – podia ser em capela anexa à galilé, em oratório de recinto próximo ao aludido pórtico, em
altar/retábulo próximo à entrada da igreja, ou em capela na altura do presbitério, porém fora da nave. O
santo ainda podia ser venerado em altar lateral da nave do templo, no lado do Evangelho, porém nunca
nos retábulos adjacentes ao arco cruzeiro. Afinal, como era uma devoção majoritariamente cultuada
pela população negra, na estrutura social do Brasil colônia, os espaços da igreja conventual acessíveis
a tal grupo deviam ser mais periféricos, e de certa forma, mais isolados da capela-mor, o local mais
sagrado do templo católico. Com relação à iconografia do santo, era comum sua apresentação com
indumentária franciscana, segurando o menino Jesus nos braços, e este, via de regra, com roupinha
de tecido verdadeiro.

Assim, a partir de incursões na historiografia dos conventos franciscanos, bem como através
de visitas in loco, verificou-se que o culto a S. Benedito pelos membros das respectivas irmandades se
deu basicamente em duas dimensões, que estavam relacionadas com o status da devoção no contexto
católico da época, e com a posição de seus devotos na estratificada pirâmide social da colônia. Desse
modo, os espaços e respectivas estruturas onde os irmãos de S. Benedito se reuniam em torno de seu
85 Jaboatão, Frei Antonio de Santa Maria, OFM. Novo Orbe Serafico Brasilico ou Cronica dos Frades Menores
da Província do Brasil. Rio de Janeiro: Typographia de Maximiano Gomes Ribeiro, 1859, II, ii, p. 91-92.
86 Atas Capitulares da Província Franciscana de Santo Antônio do Brasil 1649-1853. Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, v. 286, p. 92-222, mar. 1970, p. 150; Miranda, op. cit., p. 143.

565
padroeiro foram montados tanto no oeste litúrgico do templo e recintos adjacentes, como nas laterais
da nave, em áreas relativamente próximas ao presbitério. As evidências cronológicas atestam, no
entanto, que tais localizações não aconteceram concomitantemente, mas foram animadas por fatores
socioculturais, litúrgicos e logísticos que envolveram a devoção e suas irmandades ao longo do tempo.

Considerando a galilé e espaços adjacentes do convento franciscano, ou seja, a zona mais


‘desfavorável’ do cenóbio sob o ponto de vista de sua sacralidade, por estar na extremidade oposta
à capela-mor,87 S. Benedito pôde ser contemplado em quatro diferentes ambientes: em capela lateral
voltada para o citado pórtico, em retábulo lateral próximo ao oeste litúrgico do templo, em oratório
disposto na portaria do convento, e em sala de oração vizinha à portaria. Esses espaços acolhiam os
irmãos da confraternidade para a oração e para os procedimentos litúrgicos pertinentes. A presença
da devoção no convento de Santo Antônio de Cairu, na Bahia, pode ser contemplada na primeira e
terceira situações acima elencadas (Figura 1).

Figura 1 – Convento de Santo Antônio, Cairu, BA – Capela da galilé e oratório da sala da Portaria

Source: Cavalcanti Filho, I. The Franciscan convents of North-East Brazil... (Oxford, 2009), p. 206.

Fundado o convento de Cairu em 1650, com obras que se estenderam até meados do século
seguinte, as evidências indicam que a confraternidade de S. Benedito devia se reunir na sala da Portaria
(Figura 2) e na capela da galilé do cenóbio,88 (no lado da Epístola) nesse último período, já que o
Compromisso da Irmandade é datado de 1777, ano quando provavelmente a confraria teria solicitado
permissão ao Rei de Portugal para funcionar.89
87 Sobre a galilé, ver Cavalcanti Filho, Ivan. Segregação ou integração? A galilé nos conventos franciscanos no
Nordeste do Brasil colonial. Arquitextos Vitruvius, São Paulo, ano 18, fev. 2018. Disponível em:

http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/18.213/6894. Acesso em: 25 set. 2018.


88Argolo, José Dirson. O convento franciscano de Cairu: restauração de elementos artísticos. Brasília: Iphan/
Monumenta, 2009, p. 78-79, p.118.
89 Flexor, Maria Helena Ochi. Igrejas e Conventos da Bahia, v. 3. Brasília, DF: Iphan/ Programa Monumenta,
2010, p. 88-90.

566
Figura 2 – Cairu: Oratório da sala da Portaria Figura 3 – Salvador: Altar/retábulo lateral

Fonte: Ivan Cavalcanti Filho, 2018 Fonte: Ivan Cavalcanti Filho, 2017

Já no convento de Salvador, o espaço dedicado ao santo negro de Palermo consiste no primeiro


altar/retábulo do lado da Epístola da igreja conventual, próximo à sua entrada (Figuras 3 e 4).
Analogamente a Cairu, o fato de estar localizado praticamente na extremidade oposta do ambiente mais
sagrado da igreja – a capela-mor – comprova as restrições que havia com relação ao acesso de escravos
às áreas mais nobres dos templos católicos. É importante destacar que a atual igreja de S. Francisco
de Salvador é do início do século XVIII, substituindo a primitiva construção da centúria anterior.
Não obstante, a literatura destaca a presença de S. Benedito no cenóbio baiano já em 1623, como foi
mencionado. Os estatutos da Irmandade, por sua vez, foram aprovados pelo arcebispo franciscano D.
Frei João da Madre de Deus em 1686.90 Tais evidências comprovam a devoção ao santo e a presença
da respectiva irmandade já no primitivo cenóbio, com espaço físico em área presumivelmente análoga
àquela ocupada na atual igreja, ou seja, próxima à sua entrada principal.

Figura 4 - Convento de S. Francisco, Salvador, BA – Altar/retábulo na área do oeste litúrgico da igreja

90 Willeke, op. cit., 1956, p. 46; Miranda, op. cit., p.142; Cavalcanti Filho, op. cit., p.288.

567
Source: Cavalcanti Filho, I. The Franciscan convents of North-East Brazil... (Oxford, 2009), p.43.

A presença de S. Benedito na entrada da igreja é reforçada por pintura de teto alusiva ao santo
na área adjacente ao altar/retábulo em sua homenagem, junto à porta lateral que dá acesso à portaria
do convento. Em posição similar, porém do lado oposto, está a representação de S. Efigênia, adjacente
ao altar/retábulo dedicado à santa africana, situado em frente àquele de S. Benedito.91 Assim, as duas
irmandades que o convento acolhia, e que incluía tanto escravos do convento como cativos externos
a ele, tinham seu território demarcado na área imediatamente posterior à entrada do templo, e mais
distante da capela-mor, “nos últimos altares laterais”,92 “onde se postavam os escravos nas solenidades”.93

É importante lembrar que o acolhimento de duas irmandades de negros no convento de


Salvador refletia duas realidades da época: uma externa e outra interna à comunidade dos frades.
A primeira dizia respeito ao grande contingente de escravos negros na capital da colônia, ansiosos
por um mínimo de inclusão na sociedade soteropolitana, e a segunda tinha relação direta com a
superpopulação de escravos do convento. Em 1778, apesar dos noviciados estarem fechados, o cenóbio
de Salvador contava com 81 frades e 86 escravos,94 os últimos naturalmente precisando da assistência
dos religiosos no tocante à administração dos sacramentos: batismo, matrimônio, penitência e extrema
unção. Afinal, os frades procuravam justificar a prática da escravidão na ‘oportunidade’ que davam aos
negros de ter uma vida santa, pautada nos ensinamentos cristãos.

Essa superpopulação de escravos na verdade constituiu o resultado da paulatina aquisição de


negros ao longo do tempo, tarefa essa realizada pelo síndico, que era um leigo da confiança dos frades,
responsável pelas finanças do convento, já que aos religiosos não era permitido usar dinheiro. O Livro
91 Flexor, Maria Helena Ochi; Fragoso, Frei Hugo, OFM. Igreja e Convento de S. Francisco da Bahia. Rio de
Janeiro: Versal, 2009, p. 246.
92 Flexor, Maria Helena Ochi. Igrejas e Conventos da Bahia, v. 2. Brasília, DF: Iphan/ Programa Monumenta,
2010, p.54.
93 Flexor, op. cit., 2009, p. 245.
94 Willeke, Frei Venâncio, OFM. Senzalas de Conventos. Revista de História, São Paulo, n.106, p. 355-375,
1976, p.359

568
dos Guardiães do convento de Salvador registra tais aquisições ou esmolas, assim se referindo sobre
elas: “Compraram-se 6 moleques novos benguelas ... (1782-1783”; “Compraram-se dez moleques,
três molecotes e deram um de esmola; ao todo quatorze (1827-1829)”.95 A senzala para o abrigo dos
escravos foi construída entre 1741 e 1743.96

Outro espaço usado pela Irmandade de S. Benedito nessa área menos prestigiada do cenóbio
foi o compartimento vizinho à sala da Portaria, que, no caso do convento de S. Francisco de Sirinhaém,
em Pernambuco, teve suas paredes revestidas por silhares de azulejos historiados nas cores azul e
branco cujos motivos são passagens da vida prodigiosa do santo de Palermo (Figura 5 e 6). No entanto,
há indícios que a encomenda dos azulejos portugueses seria para uma capela que a irmandade de S.
Benedito local intentara fazer no lado do Evangelho da igreja conventual, já que os cinco painéis
azulejares não correspondem em termos de medidas com as paredes onde foram assentados. Sobre o
projeto inconcluso, devido a instalação de outra capela no local, frei Jaboatão destaca que no local já
havia “ ... hum arco de pedra lavrada, mandado fazer pelos irmãos de S. Benedito ... o que naõ tinha
sortido effeito pela sua indigencia; e naõ chegarem as esmolas da sua confraria para aquelles gastos”.97

Figura 5- Sirinhaém: Capela anexa à Portaria Figura 6 – Azulejos da capela de S. Benedito

Fonte: IPHAN/5ª SR. Edição do autor. Fonte: Ivan Cavalcanti Filho, 2017

Como não há dados sobre a encomenda dos cinco painéis de azulejos supracitados, seu tipo
de emolduramento com ornatos concheados se sobrepondo a elementos arquitetônicos sugere que os

95 Publicações do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Livro dos Guardiães do Convento de
São Francisco da Bahia 1587-1862. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura/Iphan, 1978, p. 27; p.40.
96 Ibid, op. cit., p.19.
97 Jaboartão, op. cit., p.511; Cavalcanti Filho, op. cit., p. 289.

569
mesmos tenham vindo de Lisboa em 1745, junto com os azulejos do convento de Olinda.98 Os painéis
denominados “Benedicto cumprindo o voto da santa obediência”, “Maravilhozo poder de Benedicto”,
“Benedicto pay dos pobres”, “Benedicto dá vista a segos cura alejados” e “Benec... e morte pr...”, contam
passagens da vida do santo. Apesar de não haver dados concretos sobre a data da criação da irmandade
de S. Benedito no convento em tela, os indícios sugerem que tenha ocorrido na 1ª metade do século
XVIII, pois a capela cujo arco fora erigido pelos irmãos foi inaugurada em 1755.99

Outro espaço dedicado a S. Benedito no âmbito dos cenóbios dos frades menores no Nordeste
foi uma capela localizada fora da nave da igreja, anexa à via sacra do Evangelho, na altura do presbitério.
O convento de Santo Antônio da Paraíba (atual João Pessoa) foi contemplado com tal ambiente de
devoção em meados do século XVIII, já que há registro alusivo à produção da imagem do santo com
resplendor de prata, e à douração do arco da capela entre 1753 e 1755. A conclusão da capela, todavia
só se deu entre 1800 e 1801, e a douração do altar entre 1802 e 1805, conforme atesta o Livro dos
Guardiães do convento.100 (Figuras 7 e 8)

Figura 7 - Convento da Paraíba – Capela na via sacra Figura 8 – Capela de S. Benedito

Fonte: IPHAN/20ªSR. Edição do autor Fonte: Ivan Cavalcanti Filho, 2015

O convento de Santo Antônio do Recife teve capela similar dedicada a S. Benedito. A ereção da
mesma fora da nave da igreja, na via sacra do lado do Evangelho deve remeter, como na Paraíba, a meados do
século XVIII, já que a respectiva irmandade teve seus estatutos aprovados em 1753,101 e, como era de praxe,
98 Simões, J. M. dos Santos. Azulejaria Portuguesa no Brasil. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1965, p.
261.
99 Jaboatão, op. cit., p.512; Miranda, op. cit., p.142.
100 Centro de Estudos Históricos Ultramarinos. Livro dos Guardiães do Convento de Santo Antônio da Paraiba
(1589-1885). Studia, Lisboa, n. 19, p. 173-207, dez. 1966, p. 190, p. 197, p. 198. Burity, Glauce Maria Navarro.
A presença dos franciscanos na Paraíba através do Convento de Santo Antônio, 2ª ed. João Pessoa: Gráfica JB,
2008, p. 146.
101 Willeke, op. cit., 1956, p. 46; Miranda, op. cit., p.142; Cavalcanti Filho, op. cit., p. 288.

570
a oficialização do Compromisso acontecia pouco depois da confraria instalada (Figura 9). A assistência que
a associação leiga dava aos seus defuntos é também comprovada nas treze sepulturas que a irmandade de S.
Benedito do convento de Recife dispunha no respectivo claustro.102

Figura 9 – Convento de Santo Antônio, Recife, PE: Capela na via sacra do lado do Evangelho

Fonte: Cavalcanti Filho, I. The Franciscan convents of North-East Brazil ... (Oxford, 2009), p. 113.

O próximo espaço dedicado ao santo na nave da igreja foi o altar/retábulo do lado do Evangelho,
próximo ao presbitério. Esta versão adotada no século XIX aparece nos conventos da Santa Cruz
(1657) em São Cristóvão, Sergipe (Figura 10), e de Santa Maria Madalena (1660), em Marechal
Deodoro, Alagoas. O segundo tem a data registrada no retábulo – 1845 – e o primeiro, apesar de
não ter data inscrita na peça, apresenta linguagem similar, própria do período imperial, onde a talha,
menos trabalhada, não é integralmente dourada, mas recoberta pela pátina branca com contornos
compositivos em ouro (Figuras 11 e 12).

102 Mueller, Frei Bonifácio, OFM. Convento de Santo Antônio do Recife 1606-1956: Esboço Histórico. Recife:
Imprensa Oficial, 1956, p. 28, p. 33.

571
Figura 10 – Convento de S. Maria dos Anjos, Penedo, AL: Altar/retábulo no lado do Evangelho.

Fonte: Cavalcanti Filho, I. The Franciscan convents of North-East Brazil ... (Oxford, 2009), p. 221.

Figura 11- S. Benedito, Marechal Deodoro (AL) Figura 12 – S. Benedito, S. Cristóvão (SE)

Fonte: Ivan Cavalcanti Filho, 2018 Fonte: Ivan Cavalcanti Filho, 2017

A exemplo do convento de Recife, o cenóbio de Marechal Deodoro destaca a presença da devoção


na marcação em pedra das campas dos defuntos da irmandade, que eram sepultados no claustro, na
galeria anexa à igreja conventual (Figuras 13 e 14). Convém lembrar que tal prática era comum nos
conventos franciscanos, como registrou Frei Jaboatão, ao se referir à casa de Salvador e às irmandades
ali instaladas, de S. Benedito e de S. Efigênia: “... aos dous Santos Pretos a Gente da sua cor, e tem suas

572
confrarias com missa, suffragios, e sepulturas”.103

Figura 13 – Convento de S. M. Madalena, Marechal, AL: Altar/retábulo na igreja; campas no claustro.

Fonte: Cavalcanti Filho, I. The Franciscan convents of North-East Brazil ... (Oxford, 2009), p. 253.

Figura 14 - Convento de Santa Maria Madalena, Marechal (AL): detalhe das campas com inscrições

Fonte: Ivan Cavalcanti Filho, 2018.

A presença de S. Benedito nos demais conventos franciscanos do Nordeste é registrada na literatura,


porém não há menção dos locais onde o santo era cultuado. As evidências dos cenóbios elencados

103 Jaboatão, op. cit., p. 266. Sinzig, Frei Pedro. Maravilhas da Religião e da Arte na Egreja e Convento de São
Francisco da Baía. Revista do Instituto Historico e Geographico Brasileiro. Rio: Imprensa Nacional, 1933, p.101

573
sugerem que sua imagem estaria em espaços congêneres dos mesmos, ou seja: em capela ou oratório
adjacente à galilé do cenóbio, em altar/retábulo lateral no oeste litúrgico da igreja conventual, em
capela adjacente à via sacra do lado do Evangelho na altura do presbitério, ou em altar/retábulo no
mesmo lado, porém na nave da igreja.

No convento de N. S. das Neves de Olinda, Pernambuco (1585), a primeira casa franciscana fundada
no Brasil, a irmandade de S. Benedito ali instalada teve seu Compromisso aprovado em 1739,104 apesar
de registros da presença do santo desde 1680. Atualmente sua imagem está em altar/retábulo do lado
do Evangelho da capela da Ordem Terceira da Penitência, anexa à igreja conventual,105 o que é curioso,
pois à época tal confraternidade franciscana não permitia a presença de um santo negro na sua casa
de oração, tampouco de filiados de cor (Figura 15).

Figura 15 – Convento de N. S. das Neves, Olinda, PE: Altar/retábulo na Capela da Ordem Terceira

Fonte: Cavalcanti Filho, I. The Franciscan convents of North-East Brazil ... (Oxford, 2009), p.13.

Já no convento de Ipojuca, também em Pernambuco (1606), a irmandade de S. Benedito teve seus


estatutos aprovados antes de 1703.106 O Livro de Guardiães do convento registra a construção de uma
senzala para negros casados entre 1718 e 1719, e a presença de onze escravos 77 anos mais tarde, o que
representava um número razoável de serviçais negros para uma comunidade religiosa onde a média
de componentes era de vinte frades.107

104 Miranda, op. cit., p. 143.


105 Oliveira; Ribeiro, op. cit., 2015, p. 176.
106 Willeke, op. cit., p. 90; Miranda, op. cit., p.142; Cavalcanti Filho, op. cit., p. 288.
107 Livro dos Guardiães do Convento de Santo Antônio de Ipojuca. Revista do Instituto Arqueológico Historico
e Geografico Pernambucano, Pernambuco, v. 46, p. 374-415, 1967, p. 385; p. 408; p. 376.

574
O convento de S. Francisco do Conde, na Bahia (1629), apesar de não mais dispor da imagem de
S. Benedito, foi contemplado com a devoção no período colonial, já que sua imagem está citada na
historiografia quando se refere à restauração da peça em 1852.108 No convento de Santo Antônio de
Paraguaçu (1649), também na Bahia, não foi diferente. O fechamento do noviciado ali existente até
1824 e a cessão do cenóbio ao arcebispado da Bahia pelo papa Bento XV cerca de um século depois,
contribuíram para o seu abandono e sua paulatina degradação, o que motivou a sábia decisão da
comunidade leiga local de transferir a imagem de S. Benedito, e de outros treze santos, para a capela
de N. S. da Glória, situada na praça S. José, próxima ao convento.109

É oportuno destacar que o culto a S. Benedito também incluiu os religiosos dos conventos, sob cuja
responsabilidade ficavam os ofícios litúrgicos das irmandades do santo de Palermo. Não obstante,
S. Antônio, S. Francisco e a Imaculada Conceição constituíam as devoções mais recorrentes,
principalmente no âmbito dos fiéis de cor branca.110 O primeiro, inclusive, era o mais popular, pelas
atribuições que lhe eram conferidas no ideário católico: doutor evangélico, mensageiro da paz,
restituidor das coisas perdidas, ressuscitador dos mortos.111 Sobre a terceira atribuição supracitada, os
escravos tinham suas queixas, pois no evento de uma fuga, seus proprietários invocavam S. Antônio
para auxiliar os capitães-do-mato a recapturá-los.112 O fato do santo de Lisboa restituir a coisa perdida,
ou seja, recapturar o negro fugitivo, qualificava o mesmo como ‘santo de branco rico’. Diante dessa
realidade, S. Benedito, por sua própria essência, preenchia todos os requisitos para constituir a devoção
ideal para o preto cativo e pobre: era negro, filho de escravos, e tinha ocupado postos ‘inferiores’ nos
conventos onde trabalhara.

Considerações finais

Os dados apresentados no presente trabalho conduzem para a cristalização de três evidências: a) a


presença inconteste da devoção a S. Benedito através da criação de irmandades nos treze conventos
franciscanos estabelecidos no Nordeste entre 1585, quando foi fundada a casa de Olinda (PE), e
1660, quando foi implantado o convento de Santa Maria Madalena (AL); b) a disposição dos espaços
destinados às irmandades de S. Benedito em três diferentes áreas dos cenóbios, a saber: a extremidade
oposta à capela-mor da igreja conventual e ambientes adjacentes; a via sacra do lado do Evangelho; e a
parede lateral da nave, próxima ao presbitério; e c) a vinculação do arbitramento do espaço destinado
a S. Benedito com seu status na hierarquia canônica da Igreja Católica.

108 Flexor, op. cit., v. 3, 2010, p. 149-150. Fonseca, Fernando Luis da Fonseca. Santo Antônio de Paraguaçu e o
Convento de São Francisco do Conde. Salvador: Centro editorial da UFBA, 1988, p. 22.
109 Flexor, op. cit., v. 3, 2010, p. 55-64.
110 Sobre tais devoções no contexto conventual franciscano no Nordeste colonial, ver Cavalcanti Filho, Ivan.
As principais devoções franciscanas e sua relação com o espaço sagrado e a sociedade colonial no Nordeste do
Brasil. In: Encontro Internacional de História colonial: Cultura, Poderes e Sociabilidades no Mundo Atlântico
(séc. XV-XVIII), 3., 2010, Recife. Anais ... Recife: UFPE, 2011.
111 Sobre os títulos de S. Antônio, ver Röwer, Frei Basílio. Santo Antônio: Vida, milagres, culto. 15ª ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2007.
112 Fragoso, Frei Hugo. Uma dívida que a Província de Santo Antônio ainda não pagou. Santo Antônio, Recife,
ano 62, n. 103, p. 59-64, mai. 1984, p.70-71.

575
Assim, os resultados do ensaio indicam que, entre 1623, quando S. Benedito foi introduzido para
veneração no convento de Salvador (BA) – a segunda mais antiga fundação franciscana do Nordeste
do Brasil – e 1845, quando foi erguido seu altar/retábulo na parede do lado do Evangelho da igreja
conventual de Santa Maria Madalena (AL) – última fundação dos frades menores na região – houve
uma nítida evolução no tocante ao espaço ocupado pelo santo. Na primeira data acima citada, isto
é, trinta e quatro anos após a morte de Benedito, seu culto só acontecia em lugares ‘inferiores’ do
cenóbio, ou seja, naqueles mais distantes do altar-mor: capela vizinha à galilé, oratório na sala da
Portaria do convento, ou altar-retábulo no oeste litúrgico da igreja conventual. Como ele não tinha
sequer o status de beato à época, sendo reconhecido exclusivamente por seus prodígios, tudo leva a
crer que a orientação dos frades menores era ele não ter muita visibilidade no edifício católico.

Posteriormente, Benedito foi ‘promovido’ para local mais próximo da capela-mor, na altura
do presbitério, porém ainda fora do corpo principal da igreja, em capela adjacente à via sacra do
lado do Evangelho. Tal ‘promoção espacial’ teria ocorrido em meados do século XVIII, portanto,
ulterior à sua beatificação em 1743 pelo papa Bento XIV. Os conventos contemplados por essa versão
aproximaram o beato do ambiente mais sagrado do templo, porém de forma sutil, já que a capela não
abria diretamente para a nave, mas para um corredor processional adoçado à capela-mor – a via sacra
do lado do Evangelho.

A terceira e última localização do santo no cenóbio ocorreu na primeira metade do século XIX, quando
altar/retábulo aberto foi erguido em sua homenagem na nave da igreja, no lado do Evangelho, próximo
à capela-mor. Como a canonização de Benedito tinha ocorrido no primeiro decênio do século (1807),
seu hagiológico já estava consolidado no âmbito da Igreja, podendo sua imagem ocupar um local de
prestígio no templo católico.

Apesar dessa trajetória ascensional porque passaram os locais de culto a S. Benedito em direção a
capela-mor dos conventos em questão, não se pode relevar o caráter de segregação social que tais
espaços estavam imbuídos. Como consistia numa devoção negra, cultuada massivamente por pessoas
de cor, às quais era proibido o acesso em igrejas paroquiais convencionais, seus ambientes de adoração
nos cenóbios dos frades menores não podiam ficar muito visíveis, principalmente de 1623 – quando
sua imagem foi introduzida no convento de Salvador – até 1743 – quando foi beatificado pela Igreja
Católica. Nesse intervalo, Benedito era cultuado bem distante da capela-mor, na área do oeste litúrgico
da igreja conventual e em espaços adjacentes, como já foi dito.

Entre o ano de sua beatificação e 1807, quando foi canonizado, o fato de ser entronado em capela na
altura do presbitério, bem mais próximo da capela-mor, não afastava o estigma da segregação, pois
o ambiente era adjacente à via sacra do Evangelho, portanto fora da nave da igreja conventual. Só
após ser oficialmente reconhecido pela Igreja como santo, Benedito literalmente ‘entraria em cena’,
ocupando altar-retábulo da nave no lado do Evangelho, em posição de prestígio e igualdade com
outras devoções tradicionais do Catolicismo. Afinal, a canonização representava a cristalização da
santidade de Benedito, se sobrepujando a toda sorte de preconceito com relação à cor de sua pele ou
aos postos inferiores que teria ocupado em sua piedosa e exemplar trajetória como irmão seráfico.

576
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579
REPERCUSSÕES DA ARTE COLONIAL NO CONJUNTO ARQUITETÔNICO RELIGIOSO DO SE-
NHOR DO BONFIM DE CHORROCHÓ
Jadilson Pimentel dos Santos¹

RESUMO:

A cidade de Chorrochó foi projetada antes da fundação de Canudos. Teve sua origem nos grupos de sertanejos
seguidores de Conselheiro, beato Quixeramobinense que, em fins do século XIX, percorreu os sertões do Nor-
deste do Brasil reunindo grandes multidões para dar conselhos, pregar os ensinamentos da fé católica e ajudar
os mais oprimidos. Nesse vilarejo o contexto ambiental, religioso e cultural não se diferenciava daquele dos
demais povoados vizinhos, com os quais compartilhava crenças, costumes e códigos da moral sertaneja. Ai a
vida cotidiana era preenchida pelas atividades realizadas no campo, pelos afazeres domésticos e demais tarefas
comuns à vida da zona rural. Entretanto, toda atividade era sempre precedida, intermediada e sucedida pelas
práticas devocionais que caracterizavam o dia a dia na comunidade. O beato Conselheiro era devoto declarado
do Bom Jesus, e apresentava em suas pregações uma oratória inflamada e de teor místico, cujas bases encon-
travam ressonância em obras como: o Lunário Perpétuo, as Horas Marianas e a Missão Abreviada. Apontado
por diversos estudiosos como o "Anchieta" ou o "Vieira dos sertões", deixou um conjunto de edifícios religiosos
cuja gramática ornamental dialogava sobremaneira com os estilos Barroco e Neoclássico. Em seu séquito exis-
tiam os mais variados trabalhadores, destacando-se de forma exemplar, os entalhadores, fundidores, mestre de
obras, etc., os quais deixaram produções escultóricas de muito boa lavra. Estudar as contribuições de Antônio
Vicente Mendes Maciel e o desenvolvimento de sua arte, culturas e devoções nos núcleos desses rincões in-
teriores, sob a égide de um catecismo popular, é, em tempo, uma diminuta contribuição que pretende lançar
luzes sobre a inequívoca riqueza desse patrimônio material e imaterial, pois muito ainda há para se desvelar,
em termos de signos e significados.

PALAVRAS-CHAVE: ARTE POPULAR. ICONOGRAFIA. ARQUITETURA RELIGIOSA. ATÔNIO CONSE-


LHEIRO

_______________________

¹Doutor em Teoria da Arte pala Universidade Estadual de Campinas e Mestre História da Arte pela Universidade Federal
da Bahia (UFBA). Professor do Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia. E-mail: pimenteljadilson@gmail.
com

580
1 INTRODUÇÃO

As cidades concebidas pelo Conselheiro eram uma espécie de sítio em que o modus operandi (modo de
viver, o modo de se organizar, a maneira de se pensar o cotidiano tinha em mente a salvação após a morte). Es-
sas cidades eram construções que deveriam ficar, ao máximo, preservadas das contaminações do mundo, mais
especificamente, as contaminações propiciadas pela nascente república, e, desse modo, desenvolver um sistema
de vida em que valores como: partilha, justiça, caridade, etc., fossem o estandarte da comunidade.

Esses sítios urbanos, hoje as cidades de Chorrochó e Crisópolis, bem como Canudos (Belo Monte)
nasceram na segunda metade do século XIX, com status de santuário sagrado dos sertões do nordeste da Bahia.
Inspirando-se no Monte Santo do Frei Apolonio de Todi, Conselheiro, em anos de travessia pelos mares de
poeira do semiárido, erguiria aquilo que seria o seu principal mister: a edificação de santuários, igrejas, cruzei-
ros e cemitérios.

Todavia, é preciso salientar que o empreendimento colonizador realizado nos sertões da Bahia, espe-
cialmente no Sertão do Conselheiro, foi um evento propiciado pela busca de proventos, sobretudo aqueles rela-
tivos à pecuária extensiva. As zonas sertanejas de outrora, até o final do século XIX, eram recortes geográficos
de posse de latifundiários cuja principal característica era prover a manutenção da terra e do seu patrimônio a
partir da exploração e da opressão das massas camponesas.

Sendo assim, as devoções do catolicismo popular que surgem nessa área, se delineiam de modo pecu-
liar: não como alienação, mas enquanto insurreição, enquanto resistência de uma massa famélica e constan-
temente espoliada. O Cristo crucificado, que nessas comunidades é entronizado, representa através do Con-
selheiro, libertação, mesmo que através da sugestão de martírio e sofrimento. É por intermédio desse ícone,
vitorioso na dor, que os peregrinos do Bom Jesus enxergam o mundo à sua volta.

Nesse sentido, este é um símbolo que sugere esperança, ao mesmo tempo que incomoda as camadas
mais abastadas. A própria igreja, em meados do século XIX, vai banir a veneração dessas imagens dolorosas,
preferindo as vitoriosas e de cunho majestático. Os sertões, entretanto, continuariam afeitos às suas tradições
religiosas de culto à cruz e ao crucificado, sendo essas imagens populares recorrentes tanto em cultos oficiais
como em cultos domésticos.

2 O CONJUNTO ARQUITETÔNICO RELIGIOSO DO SENHOR DO BONFIM DE CHORROCHÓ - IN-


TRODUÇÃO

Chorrochó é uma dessas cidadezinhas dos confins dos sertões. Embora o município se estenda ate as
margens do São Francisco, onde forma um conjunto de ilhas localizado no trecho que margeia a sua área de
potencial turístico, a porção reservada à cidade é mais interna e de poucos atrativos.

O que se destaca de forma exemplar, no interior e arrabaldes do sítio urbano, é a obra arquitetônica
formada pela igreja, cruzeiro e cemitério, da autoria de Antônio Vicente Mendes Maciel.

Esse é o monumento que projeta a cidade em termos turísticos. A igreja é tão importante que aparece
em logomarcas das campanhas políticas, no brasão da cidade, nas campanhas religiosas da diocese e da paró-
quia local, etc. (Figuras 01 e 02).

581
Figuras 01 e 02: Igreja do Senhor do Bonfim de Chorrochó nos brasões da cidade e da paróquia – BA.

Fonte:<http://www.sensacaotermica.com.br/chorrocho-ba> Acesso em 15/08/2017.

O modelo adotado por Conselheiro em Chorrochó foi tão importante que em povoados e fazendas do
município continuam construindo capelas e capelinhas inspiradas no léxico construtivo do Senhor do Bonfim
(Figuras 03, 04 e 05).

Também em outras paragens, longe da zona em questão, vamos encontrar tipologias, inclusive atuais,
dialogando com a matriz, o que possibilita-nos verificar que este templo foi o polo irradiador de todo um modo
construtivo da lavra do beato, no que tange à sua arquitetura religiosa popular.

Figura 03: Igreja do povoado de São José – Chorrochó – BA

Fonte: <http://www.radioliderdosertaofm.com.br/inicial> Acesso em 11/08/2017.

582
Figura 04:Capelinha de beira de estrada – Chorrochó – BA

Fonte: Jadd Pimentel, 2017.

Figura 05: Igreja do Memorial de Canudos - Instituto Popular Memorial de Canudos-IPMC

Fonte: <http://mw2.google.com/mw-panoramio/photos/medium/1105655.jpg> Acesso em 09/08/2017.

583
O modelo adotado em Chorrochó influenciou posteriores construções do beato. A igreja de Santo An-
tônio de Canudos, também denominada de Igreja Velha, foi uma obra de considerável envergadura na história
do povo conselheirista e foi inspirada na gramática ornamental e modo construtivo do templo de Chorrochó.

Segundo Santos (2011, p.77), “apresentando uma fachada com três portadas ecimadas por três janela,
esse templo lembra a estrutura delicada de outra igreja erigida anteriormente pelo beato: Igreja do Senhor do
Bonfim de Chorrochó”. Pode-se até afirmar que as duas adotaram o mesmo partido tipológico, existindo poucas
diferenças entre ambas.

O que chama atenção é o fato de que, por estarem situadas no alto sertão, elas apresentam uma orna-
mentação mais rebuscada; levando-nos à seguinte dedução: “quanto mais próximas do litoral, mais neoclássica
é a feição dessas obras, e quanto mais distantes do mar, e mais próximas do Rio São Francisco, mais influenciada
pelo barroco será a sua linguagem arquitetônica”.

Em seu sermonário, o próprio Bom Jesus Conselheiro confessou sobre a construção de tão bela obra.
No volume cujo título é Tempestades que se Levantam no Coração de Maria por ocasião do Mistério da Anun-
ciação, mais especificamente na terceira parte, lê-se o seguinte:
Sobre o recebimento da chave da Igreja de Santo Antônio, Padroeiro de Belo Monte.

Seria sem dúvida uma consideração mui mal entendida, se eu me conservasse em silêncio
com relação ao assunto que a faz objeto de tanto júbilo no dia de hoje, como indigno encar-
regado da construção da igreja de Santo Antônio, padroeiro deste lugar, cuja obra se acha
feita em virtude do poderoso auxílio do Bom Jesus, se no ato de receber a chave da igreja
do seu servo eu deixasse de publicar as maravilhas de tão belíssima pessoa. [...] Foi o Bom
Jesus (nutro a mais íntima satisfação de declarar-vos) que tocou e moveu os corações dos
fiéis para me prestarem as suas esmolas e os seus braços a fim de levar a efeito a obra de seu
servo. [...] Impossível seria, eu fazer a Igreja de Santo Antônio se o Bom Jesus deixasse de
prestar-me o seu poderoso auxílio. Aqueles, porém, que concorreram com as suas esmolas
e com os seus braços, podem estar certos que o Bom Jesus os recompensará generosamente;
eles devem ficar plenamente satisfeitos por terem concorrido para a construção da igreja do
servo do Senhor, na doce esperança de um dia serem participantes da sua glória, à vista do
seu testemunho que demonstra o zelo religioso que tanto os caracteriza. O dia de hoje, fiéis,
nos vem comemorar tão belo acontecimento para nossa religião santa, quando se trata de
realização de um templo tão útil, tão aceitável e agradável a Deus. [...] Vejam, fiéis, se não
é de grande utilidade e agradável aos divinos olhos do nosso Bom Deus a construção dos
templos. À vista destas verdades quem deixará de concorrer para a construção dos templos?
Quem ainda se nutrirá da tibieza e indiferentismo para fim tão útil e importante, que se bem
considerasse a criatura os merecimentos que em vida mesmo alcança de Deus, certamente
não deixaria de concorrer com suas esmolas e com os seus braços para a construção de tão
belas obras. Cabe-me ainda o prazer de declarar-vos que já rendi as devidas graças ao Bom
Jesus por me ter prestado o seu poderoso auxílio a fim de eu levar a efeito a obra do seu servo,
que a não ser tão belíssima pessoa, certamente não conseguiria realizá-la. Praza aos céus que
os habitantes de Belo Monte saibam agradecer cordialmente os benefícios que acabam de
receber do Bom Jesus, que é uma prova que atesta do modo mais significativo os tesouros da
sua infinita bondade e misericórdia. (Maciel apud NOGUEIRA, 1974, p.170-173)

O conjunto arquitetônico do Senhor do Bonfim da cidade de Chorrochó é um dos templos mais autên-
ticos da arquitetura religiosa popular do Antônio Conselheiro e constitui-se numa das mais belas mises-em-s-
cene da arquitetura popular do sertão baiano.

A colocação bem posicionada e levemente inclinada da igreja e do cruzeiro em relação à rua prin-
cipal, bem como o espaço do adro, acentuam o efeito de perspectiva e atrai o olhar para a magnífica fron-

584
taria da igreja delicadamente ornamentada em seu frontão com repertório temático variado: cordas113
que se fecham em círculo e em losango com dois nós, elos de corrente114, estrelas de cinco pontas formando
um triângulo115, pergaminhos em forma de volutas, etc., e elaborados simetricamente em relevos que lembram
estuque (Figura 06).

Figura 06: Frontão da Igreja do Senhor do Bonfim de Chorrochó com cruzeiro, volutas e frisos destacados.

Autoria: Mestre Feitosa dos Inhamuns e Antônio Conselheiro, século XIX.

Fonte: Jadd Pimentel, 2017.

113 A corda simboliza ligação, vínculo, união, sobretudo quando possui um ou mais nós, significando uma li-
gação com as forças ocultas do universo. Já quando é representada estendida, sem nós, a corda simboliza ascen-
são, o ato de subir, de elevar-se. Num sentido mais místico, a corda significa uma conexão entre a consciência
humana e a essência espiritual, uma ligação sagrada entre a matéria e o espírito, indicando que toda ação está
atada a uma reação, e que cada pessoa está amarrada às suas escolhas. A corda também significa o destino da
vida, que tem como direção a morte, sendo uma espécie de intermediária entre dois pontos opostos. (DICIO-
NÁRIO DE SÍMBOLOS: SIGNIFICADO DOS SÍMBOLOS E SIMBOLOGIAS. Disponível em < https://www.
dicionariodesimbolos.com.br>. Acesso em 20 abr. 2017)
114 A corrente simboliza união, um elo, seja físico ou espiritual. A corrente é também o símbolo dos laços entre
o céu e a terra, e de modo geral representa um ligação entre os seres do universo. A corrente significa os laços
de coordenação, encadeamento e união, podendo representar uma nação, uma comunidade, uma família, um
casamento, ou outro tipo de ação coletiva em comum. A corrente também pode significar, numa perspectiva
mais sociopsicológica, uma necessidade de adaptação de vínculo e integração a um grupo, ainda que seja uma
integração espontânea ou imposta. (DICIONÁRIO DE SÍMBOLOS: SIGNIFICADO DOS SÍMBOLOS E SIM-
BOLOGIAS. Disponível em < https://www.dicionariodesimbolos.com.br>. Acesso em 20 abr. 2017)
115 A estrela é uma fonte de luz e está associada ao simbolismo celeste. A simboliza a perfeição, a luz, o renas-
cimento, o céu, o divino, a proteção, a esperança, o desejo, a renovação, o equilíbrio, a sabedoria. Quando pos-
suem cinco pontas representa o símbolo do microcosmos humano. A estrela de cinco pontas ou pentagrama,
simboliza o mundo espiritual, a orientação e proteção divina dos mortos. Por outro lado, pode simbolizar as
cinco chagas de Cristo. Formando um triângulo, representa o símbolo da Santíssima Trindade. (DICIONÁRIO
DE SÍMBOLOS: SIGNIFICADO DOS SÍMBOLOS E SIMBOLOGIAS. Disponível em < https://www.diciona-
riodesimbolos.com.br>. Acesso em 20 abr. 2017)

585
Embora Antônio Vicente já construísse e reformasse obras desde 1874, a igreja do Bonfim é a precur-
sora no que diz respeito ao estilo desenvolvido por esse beato construtor. Não se tem notícias de outras obras
anteriores a essa, dada a sua dimensão, com cruzeiro do tipo palanque posicionado em seu adro.

Sendo assim, a igreja matriz chorrochoense, concluída no ano de 1885, terminaria influenciando dois
outros conjuntos, cujas tipologias de cruzeiro seriam adotados posteriormente: Igreja do Bom Jesus de Crisó-
polis (1892) e Igreja de Santo Antônio do Belo Monte (1896) – demolida.

A configuração espacial do templo também se repetiria nas demais, cuja planta em cruz tau está ligei-
ramente posicionada numa diagonal em relação à rua principal, projetando-se em amplo adro.

Ainda que Conselheiro tenha se deixado contaminar pelas obras franciscanas e jesuíticas, bem
como pelas construções do padre Ibiapina e do frei Apolônio de Todi, são as do Ceará – Quixeramo-
bim – seu torrão natal, as principais influenciadoras na sua lida de arquiteto popular. São dois os tem-
plos Quixeramobinenses que chegaram a repercutir nos seus três grandes empreendimentos: a Ma-
triz de Santo Antônio de Antônio Dias, em menor escala (Figura 10) e a Igreja do Senhor do Bonfim116
, em maior escala (Figura 07).

Figura 07: Igreja do Senhor do Bonfim de Quixeramobim, Século XIX.

Fonte: RESCALA, disponível em <http://acervodigital.iphan.gov.br> Acesso em 07/07/2017.

116 A Igreja do Senhor do Bonfim é uma das mais antigas da freguesia de Santo Antônio. Teve sua construção
iniciada em 1810. Em 1902 foi transformada temporariamente em Matriz, por conta da reforma realizada na
Igreja Matriz de Santo Antônio, concluída em 15 de agosto de 1916. Encravada no ponto central, ficando em
frente à Praça Capitão Dias Ferreira e o prédio que abriga a Prefeitura Municipal de Quixeramobim, tem ao
longo desses anos presenciado a realização de grandes eventos sociais, culturais, administrativos, políticos e
religiosos. Conforme relatos, antecedendo a Igreja, existia um nicho onde os fiéis se reuniam à noite e a luz de
velas, rezavam o terço e a ladainha. A Igreja do Bonfim, como a de Nossa Senhora do Rosário e a Matriz, ser-
viu, por algum tempo, de campo santo. Ali, entre outras pessoas, foi sepultado em 05 de abril de 1855, Vicente
Mendes Maciel, o pai de Antônio Conselheiro.

(TEIXEIRA apud http://crisantoteixeira.blogspot.com.br/2012/07/igreja-do-senhor-do-bonfim-ponto.html,


acesso em 10/07/1017)

586
Embora a fachada da Igreja do Bonfim de Quixeramobim apresente frontão triangular, de influên-
cia jesuítica, é a estrutura e formato da planta que mais repercutem na Igreja de Chorrochó. Nota-se que, ai,
Conselheiro adaptou para o seu frontispício corrochoense detalhes do frontão do templo de Santo Antônio de
Antônio Dias. No mais ele repetirá a única torre sineira de acesso através de escada lateral que também se liga
ao coro, corpo do edifício com nave única, dentre outros.

Numa análise mais minuciosa acerca desse templo constatamos que este repousa sobre uma caixa de al-
venaria alteada e de solo original, construída sobre um aterro composto por camadas sucessivas e alternadas de
placas de calcário e argila até a última, utilizada para regularização e nivelamento para receber o revestimento
cerâmico do piso (tijolos em espelho).

A porção posterior da igreja é circundada por uma pequena calçada externa que se interrompe na fa-
chada. Nessa parte o revestimento interno e externo das paredes foi feito de tijolos assentados sobre argamassa
de barro.

A técnica construtiva adotada foi a de alvenaria de pedra e cal, observando-se a introdução de técnica
de alvenaria mista em algumas porções das mesmas, possivelmente para o acabamento de pilares e arcos inter-
nos.

As dimensões dos blocos lavrados e trazidos de jazidas próximas surpreendem. O assentamento das
lajes se dava com rejuntamento de argamassa de cal, procedendo-se a regularização dos níveis de assentamento
com o emprego de placas de menores proporções, constituindo-se numa espécie de trama em paredes de face
alinhadas, aptas a receberem revestimentos de argamassa de areia e cal.

Esse monumento religioso, conta também, com um adro ou pátio externo que à vista do observador,
faz com que suas proporções sejam aumentadas, sendo este, revestido com placas de calcário. À sua frente, o
imponente cruzeiro é a marca registrada do estilo adotado pelo construtor.

A planta da Igreja do Bonfim de Chorrochó em forma de cruz de tau remete à de Santo Antônio de
Canudos, possuindo uma nave central e capela-mor constituindo corpos laterais simétricos formados por ba-
tistério e sacristia. Apresenta uma área aproximada de 246,80 m²

A fachada, em dois planos, está encimada por um frontão de múltiplas volutas que se unem por elos e
estão ladeadas por grandes obeliscos.

A cidade de Chorrochó teve seu acervo arquitetônico pouco preservado. Boa parte de seu casario po-
pular já foi desfigurado, estando apenas a igreja com seu cruzeiro erguidos no adro da avenida principal e algu-
mas poucas unidades residenciais.

O casario bem como o edifício religioso são representativos da arquitetura vernacular117


brasileira. Nesse sentido, tanto a cidade de Chorrochó, como a antiga Vila do Bom Jesus – Crisópolis – não
são cidades de arquitetos eruditos, na acepção literal, mas sim de mestre-de-obras e de pedreiros. Nessas duas
cidades ainda, podemos constatar, mesmo que de forma tímida, tal estilo.

Tradicionalmente o vernacular é entendido como o tipo construtivo e o estilo das primei-


ras edificações desse sítio urbano em questão, sendo a Igreja do Senhor do Bonfim o único exemplar
117 “O vernacular é entendido como a construção elaborada segundo uma tradição secular, de origem colonial,
que se transformou segundo uma regra tipológica relativamente constante. É a arquitetura de origem popular,
cujo tipo foi mantido pelos mestres construtores ao longo dos séculos”. (FURTADO, 2003, p.46)

587
de edifício religioso que se insere na proposta do vernacular tradicional. É o mais antigo monumento
e marca o ponto de início da cidade. Trata-se de uma igreja de nave única e capela mor, sendo que o cor-
po da capela era um pouco mais baixo que o da nave e se conectava à sacristia pelo lado do evangelho118
e ao batistério pelo lado da epístola119. Tanto sacristia quanto batistério têm também acesso por aberturas la-
terais e independentes da nave. O coro fica acima da entrada da edificação e seu acesso se dava por escadaria
externa, localizada no lado direito, e por outra interna, localizada no lado esquerdo. Essa última já foi removida
do templo.

As paredes são largas e apresentam estrutura de fortaleza. Medem oitenta centímetros de largura e
foram feitas de vários materiais tais como: pedra, tijolo, cal, etc. Idealizada pelo beato Conselheiro, essa obra
ficou sob a responsabilidade de um mestre cearense e atuante nas paragens mais ermas das caatingas sertanejas.

Segundo Santos (2011, p.146), “O término da construção do templo ficou sob a responsabilidade do
cearense Feitosa dos Inhamuns”. Sobre ele, pouco se sabe, Diferentemente do mestre Fustino, o qual temos
notícia trabalhando no Belo Monte, o mestre Feitosa foi quase apagado da memória do “Povo da Companhia”.

O pouco que sabemos é contado no ofício do delegado do Itapicuru enviado ao chefe de polícia da capi-
tal baiana. Esse documento comunicava sobre os problemas causados por esse indivíduo conterrâneo do Con-
selheiro, bem como dos recursos enviados para as construções de Chorrochó. Embora o término da construção
da igreja seja datado de 1885, é importante salientar que no ano de 1886, ainda se trabalhava nessas obras.
[...]estão empregando cearenses, aos quais Antonio Conselheiro presta a mais cega proteção,
tolerando e dissimulando aos attentados que commettem, e esse dinheiro sahe dos credulos
e ignorantes, que, além de não trabalharem, vendem o pouco que possuem e até furtam
para que não haja a menor falta, sem falar nas quantias arrecadadas que têm sido remettidas
para outras obras do Chorrochó, termo do Capim-Grosso. É incalculavel o prejuizo a que
esta terra tem causado Antonio Conselheiro. Entre os operarios figura o cearense Feitosa
como chefe, que com os demais fanatisados fizeram no referido arraial uma praça de armas,
intimando a cidadãos – como o negro Miguel de Aguiar Mattos, para mudarem-se do lugar
com sua familia em 24 horas, sob pena de morte. (MACEDO apud BENÍCIO, 1997, p. 55)

A fachada é composta por dois corpos retangulares no sentido horizontal, contendo três portas no
primeiro corpo e três janelas no segundo. Os três vãos frontais de entrada da edificação possuem arcos abatidos
sendo o do centro maior em relação aos demais. No segundo corpo, três pequenas janelas encimando as portas
no nível do coro apresentam composições com almofadas semelhantes às portas, possuindo, por sua vez, arcos
também abatidos.

Acima da janela central do frontispício lê-se, em uma cartela retangular de ângulos chanfrados, a data
do término da obra: 1885. O corpo da fachada é limitado por duas pilastras de reboco que são um pouco salien-
tes relativamente ao plano da frontaria.

O frontão é composto por quatro grandes pares de volutas em “s” e estão ligados por elos semelhantes
ao das correntes. Apresenta monumentalidade e somado à cruz do seu topo, possui altura praticamente similar
a do corpo da fachada. Ladeando o frontão do edifício, e sobre a cornija, destacam-se dois grandes pináculos

118 “O lado do Evangelho é o lado direito do altar. É o lugar de honra: é o assento que Cristo ocupa ao lado do
Pai no Céu. É deste lado que proclama-se a Palavra do Evangelho”. (BERGMAN, 2015, p.27)
119 O lado da Epístola é o lado esquerdo do altar. É o lugar onde ocorre a maior parte da Missa dos Catecúme-
nos. As partes da Missa que envolvem água (o lavabo, a mistura de água e vinho e as abluções) ocorrem todas
do lado esquerdo do altar, onde está a sacra com as orações correspondentes. (BERGMAN, 2015, p.27)

588
em forma de tronco de pirâmide com terços inferior e superior marcados e topo piramidal trabalhado em re-
levo nas bordas.

O campanário, como nas demais obras da lavra do beato, encontra-se deslocado em uma parede com
altura abaixo da cornija e cujo sino está acoplado num vão semelhante ao das janelas. Esse modus operandi foi
recorrente na gramática construtiva do profeta que no bojo dessas edificações, chegou mesmo a se constituir no
estilo de Antônio Vicente Mendes Maciel (Figura 08).

Figura 08: Desenho frontal da Igreja do Senhor do Bonfim de Chorrochó – BA.

Fonte: João Valdir, 2017.

O estilo adotado na fachada é, deveras, gracioso e plural. Transita entre as influências de um barroco
mestiço e de um hibridismo de feição popular, os quais, também, se fizeram presentes nas terras sertanejas e
foram recorrentes na gramática ornamental do Bom Jesus Conselheiro.

589
Enquanto o conjunto do Bom Jesus de Crisopólis impressiona pela beleza do tratamento floral dado à
porta central e às janelas, bem como pela obra em talha de seus altares, o de Chorrochó se sobressai pela impo-
nência e rebuscado do seu frontão.

Um outro exemplar onde podemos estabelecer um paralelo com essa tipologia é o de Santo Antônio
do Belo Monte. Enquanto o de Santo Antônio do Belo Monte é composto por três pares de volutas em “C”, o
do Senhor do Bonfim se configura a partir de quatro pares de volutas em “S”. O resultado alcançado é um dos
mais surpreendentes, pois apresenta um partido de riqueza de detalhes consideráveis, e vasto repertório ico-
nográfico.

As volutas ai observadas apresentam longo espiral e estão presas, uma as outras, mesmo sem se tocar,
através de elos, os quais, segundo informa a tradição popular e os habitantes locais, representam o lema que
o beato peregrino conclamava: todos por um só ideal. Outros elementos também são visualizados na torre da
fachada: a corda que contorna osóculos decorativos, que nos remete à força e a resistência do povo unido, e as
três estrelas; que representam a Santíssima Trindade.

As cores escolhidas para o edifício sempre foram o branco e o azul, todavia, o colorido primitivo foi
alterado recentemente para o branco e para o dourado. De acordo com o povo chorrochoense, as cores empre-
gadas desde o tempo do Conselheiro eram o branco proveniente da cal, e o azul extraído do anil; substância
empregada para alvejar roupas.

3 CONCLUSÃO

As construções de cultura material e imaterial articuladas por Antônio Conselheiro, no sertão da Bahia,
refletem a imagem perfeita de um indivíduo letrado no meio dos iletrados, e da influência da sua produção
sobre a cultura popular e “analfabeta”. Nesse sentido, Antônio, aquele que aconselha, logo rende bons frutos,
e suas devoções, artes e arquiteturas ensinam o que os camponeses não sabiam, além de instruir, catequizar e
moralizar os sertanejos.

Com sua produção cultural, através da arte e arquitetura, cujas características típicas herdou em anos
de peregrinação, o beato ensinou aos mais variados sertanejos seu oficio de construtor. Com isso terminou por
fundar, nestes rincões da Bahia, um estilo praticamente autoral, cuja escola construtiva terminou por influen-
ciar outras comunidades sertanejas até meados do século XX.

As edificações congregavam em torno do beato um número considerável de trabalhadores, e, dado a


sua autoridade, faz com que de forma muito espontânea, reúna o povo trabalhador, por onde passa, cerca de
três vezes por dia para rezar e cantar com ele. O relato de Hoornaert (1998, p.113) considera que “antes de ser
construtor, Antônio Vicente é o homem das letras, diferente dos outros exatamente por se meter em livros e
rezas, e isto o distancia dos demais”.

No final do século XIX, no sertão, os meninos que saiam da escola e continuavam estudando eram
vistos de forma negativa, e essa postura vai caracterizar Antônio Vicente por toda a sua vida. Toda essa ambien-
tação, somada a aprimorada formação em letras primárias, latim e culturas gerais, que era incomum no sertão
do século XIX, faz dele um homem de repertório cultural considerável, escrevendo inclusive algumas obras de
literatura.

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4 REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BENÍCIO, Manoel. O rei dos jagunços: crônica histórica e de costumes sertanejos sobre os acontecimentos de
Canudos. [Edição fac-similar do Jornal do Comércio, 1899]. Brasília, Senado Federal, 1997.
BERGMAN, Lisa. Tesouro da tradição: guia da missa tridentina. Campinas: Ecclesiae, 2015.

FURTADO, Ricardo Cavalcanti. Piranhas: proposta de tombamento e plano de gestão. Recife: Dantas Silva
Editor, 2003.

HOORNAERT, Eduardo. Os anjos de Canudos. Petrópolis: Vozes, 1998.


NOGUEIRA, Ataliba. Antônio Conselheiro e Canudos. São Paulo: Editora Nacional, 1978.
SANTOS. Jadilson Pimentel dos. A arte e a arquitetura religiosa popular do Antônio Vicente Mendes Maciel,
o Bom Jesus Conselheiro. 2011. 262 f. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – Escola de Belas Artes, Uni-
versidade Federal da Bahia, Salvador.

591
que tomam do pavimento ao teto. Este é forrado de molduras douradas, e painéis
de grave pintura, e outras pelas paredes com os passos principais da vida, e ações do
Seráfico Patriarca.120

Este programa iconográfico foi estudado por Luís de Moura Sobral e publicado no livro organizado por Maria
Helena Flexor que é dedicado ao Convento de São Francisco. Ao referir-se à pintura de um dos milagres de São
Francisco – transformação da água em vinho – o historiador da arte afirma que “a composição de Salvador é
bastante semelhante à gravura de Phillip Galle, de 1587, com o mesmo episódio”121.

Phillip Galle (1537-1612) foi importante gravador que atuou em Antuérpia. Grande número de suas estampas
foi publicado pelo conhecido editor Hieronymus Cock (1610-1570). Assim como no caso das oficinas azule-
jares, o trabalho dos gravadores era desenvolvido por mestres e aprendizes e, graças à intensa reprodutibilida-
de desta técnica, é recorrente encontrar gravuras inventadas por Phillip Galle executadas e/ou reeditadas por
outros artistas e impressores. A dinâmica de funcionamento de uma oficina de gravura pode ser apreendida
através de uma de suas estampas em que apresenta indivíduos em atividade, cada qual em sua função.

No acervo da Biblioteca Nacional há duas obras ilustradas dedicadas à vida de São Francisco122. Na encaderna-
ção de D. Seraphici Francisci totius evangelicae per fectionis exemplaris, ad Miranda historia constam dezoito
estampas, incluindo a folha de rosto e um retrato do santo123. As imagens tratam de sua vida, desde seu nasci-
mento até eventos ocorridos após sua morte. Gravadas por Phillip Galle, possuem todas um mesmo padrão.

Acima há um título, ou mote. Ao centro, a parte ilustrada é, em geral, constituída por diversas cenas que deno-
tam eventos ocorridos em tempo e espaço distintos, mas sempre relacionados à cena principal. Cada uma delas
possui uma pequena letra que indica a legenda que se encontra na parte inferior da estampa e traz referências
ao principal biógrafo do santo de Assis – São Boaventura (1221-1274)124.

Na estampa destinada ao nascimento, à esquerda, vê-se uma imagem familiar. Como no painel de azulejos,
duas mulheres estão diante de um anjo peregrino que está com o menino sobre um de seus braços enquanto
aponta para ele. Na estampa não consta a cruz, mas as semelhanças entre a iconografia dos dois suportes são
inegáveis. Não seria prudente, ou mesmo adequado, afirmar que esta exata estampa, ou exemplar desta obra,
tenha servido aos pintores de azulejos. Todavia, não há dúvidas de que estampas eram utilizadas como instru-
mentos de referência pelos pintores portugueses.

Como demonstrou Ana Paula Correia, ao estudar azulejos do Palácio Fronteira, em Lisboa, em um painel po-
120 JABOATÃO, Frei Antônio de Santa Maria. Novo Orbe Seráfico Brasílico ou Chronica dos Frades Menores
da Província do Brasil. Recife: Assembléia Legislativa do Estado, 1980. tomo 2 p. 263. [grifo nosso]
121 SOBRAL, Luís de Moura. Ciclos das pinturas de São Francisco. In: FLEXOR, Maria Helena Ochi, FRAGO-
SO, Frei Hugo. (Org.) Igreja e convento de São Francisco da Bahia. Rio de Janeiro: Versal, 2009. p. 271-312. p.
275.
122 As duas obras aqui utlizadas foram amplamente difundidas, tendo suas estampas circulado pelo mundo
ibérico. Pertencentes a um arquivo brasileiro, são utilizadas neste trabalho por se tratar de publicações comple-
tas, que abarcam toda a vida do santo.
123D. Seraphici Francisci totius evangelicae per fectionis exemplaris, ad Miranda historia. Gravuras de Phillip
Galle. XVI.
124 De autoria de São Boaventura são as Legenda Maior e Legenda Menor. A distinção quanto ao tamanho é
decorrente de suas funções. A primeira é voltada para leitura que acontecia nos referitórios e a segunda para o
Ofício Divino. Sua construção partiu de outras duas obras sobre a vida do santo – de Tomás Celano e de Juliano
de Espira. Neste trabalho utiliza-se, por oferecer narrativa mais completa, preferencialmente a Legenda Maior.

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A narrativa plástica dos quinze mistérios do rosário no forro da nave da capela de Nossa
Senhora do Rosário dos Pretos da Vila de São José, MG (c. 1820)

Luciana Braga Giovannini1

RESUMO

A comunicação apresenta o estudo das pinturas de forro que ornamentam a nave da Capela de
Nossa Senhora do Rosário dos Pretos localizada na antiga vila de São José del-Rei, atual cidade de
Tiradentes, em Minas Gerais.A Igreja foi construída por iniciativa da Irmandade de Nossa Senhora
do Rosário dos Homens Pretos em homenagem à Virgem do Rosário, responsável pela catequização
de seus membros, constituídos, em sua maioria, por escravos, africanos e descendentes. A partir de
um estudo iconológico da obra, procurou-se compreender como ocorreu o processo de evangelização
dos negros no período colonial, estabelecendo a relação entre a pintura, sua finalidade e os receptores
da obra de arte. Em síntese, promoveu-se o estudo da obra de arte e, através dela, a compreensão da
complexidade histórico-cultural em que ela foi produzida, bem como a mensagem que ela transmitiu
aos irmãos do Rosário. A obra foi executada no início do séc. XIX (c. 1820), é atribuída a Manoel
Victor de Jesus e representa os quinze Mistérios do Rosário e Três Invocações à Virgem Maria. Para
pensar o objeto de investigação, realizou-se uma imersão na história dos tipos iconográficos relativos
a cada tema representado e uma investigação das gravuras, que possivelmente foram utilizadas pelo
pintor como fonte de referência para suas composições, especialmente aquelas provenientes dos
Missais. Para compreender a mensagem transmitida pelas pinturas, propôs-se elucidá-las e relacioná-
las às suas possíveis referências literárias, a saber: a Bíblia, os Evangelhos Apócrifos, a Legenda Áurea,
as Letanias Lauretanas e os Sermões de P. Antônio Vieira. O conjunto iconográfico das pinturas de
teto da nave, muito provavelmente, foi elaborado com o propósito de persuadir os fiéis, evangelizar,
promover o culto mariano, assim como, recomendar uma conduta de vida através da Meditação e
Invocação dos mistérios da vida de Cristo e sua mãe Maria – o Caminho para a Salvação.

Palavras-chave: Arte, Pintura, Devoção, Iconologia, Irmandade.

Introdução

1 Doutoranda em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) com apoio da FAPEMIG.
Mestre em História pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Membro dos seguintes grupos
de estudo e pesquisa: Grupo de Pesquisa Perspectiva Pictorum (UFMG); Grupo Nó: Leitura, Análise e
Interpretação de Imagens da Arte e da Cultura (UFSJ). Grupo CEPHAP: Centro de Estudos e Pesquisas em
História da Arte e Patrimônio.

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A Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos localiza-se no centro histórico da atual
cidade de Tiradentes, em Minas Gerais, e começou a ser construída, no início do séc. XVIII, por
iniciativa da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Vila de São José, em
homenagem à Virgem do Rosário.

Na Capitania Mineira, as irmandades foram as responsáveis pela construção dos templos, pela
sua ornamentação, pela encomenda das obras de artes, a contratação dos artistas e a determinação do
programa iconográfico de acordo com a iconografia cristã. Foram elas, inclusive, as encarregadas pela
evangelização dos membros da confraria: africanos e seus descendentes, a maioria escravos e alguns
libertos. Verifica-se também a presença significativa de senhores de escravos, que, para além de sua
devoção à Virgem do Rosário, possivelmente irmanavam seus cativos com o intuito de instruí-los no
cristianismo.

Desta forma, a partir de um estudo iconológico da obra, buscou-se a compreensão do processo


de evangelização dos irmãos do rosário pretos. Com o intuito de aproximar ao máximo do seu
significado, realizou-se uma viagem pela história dos tipos iconográficos, confrontando a obra com
outras pinturas produzidas ao longo do tempo, além de uma análise sobre as possíveis referências
gráficas e literárias que, direta ou indiretamente, relacionam-se com os temas narrados.

Em virtude do péssimo estado de conservação da obra de arte, o seu estudo foi realizado a partir
do exame minucioso de fragmentos de pintura, o primeiro e grande obstáculo encontrado durante
a pesquisa, ao lado da ausência de documentos. O teto da nave é uma abóbada de berço forrada
por dezoito caixotões que cobre uma área aproximada de cem metros quadrados.2 Este modelo de
cobertura – o caixotão – é um tipo de revestimento de madeira utilizado para forrar tetos que produz
um espaço compartimentado, onde a pintura é adaptada ao suporte. O artista organiza a superfície
pictórica com base na representação de cenas narrativas, manifestando sua herança portuguesa (figura
1).

2 Cada painel de madeira, pintado em técnica de têmpera, mede aproximadamente 2,33 X 2,35 m.

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Figura 1: Os quinze Mistérios do Rosário. Pintura de forro da nave da Capela de Nossa Senhora do Rosário dos
Pretos, Manoel Victor de Jesus, c.1820. Tiradentes, Minas Gerais. Fonte: foto da autora (2015).

Manoel Victor de Jesus (c. 1760-1828)3, membro da irmandade, é o autor da obra que representa os
quinze Mistérios do Rosário e três invocações à Santíssima Virgem. Evocando a forma espiralada rumo ao
infinito, o programa iconográfico foi elaborado tendo em vista um desenho em espiral, por meio do qual o
artista organizou a narrativa religiosa que relata determinadas passagens da vida de Cristo e Maria – Vida,
Paixão e Glória – o Caminho para a Salvação (figura 2).

À esquerda de quem entra na igreja, estão reproduzidas cinco cenas relativas aos mistérios gozosos:
Anunciação, Natividade, Visitação, Apresentação de Jesus no Templo, Jesus entre os Doutores.4 À direita,
cinco passagens referentes aos mistérios dolorosos: Oração no Monte das Oliveiras, Flagelação, Coroação
de Espinhos, Cristo Transportando a Cruz e Crucificação. No centro, os mistérios gloriosos: Ressurreição,
Ascensão do Senhor, Pentecostes, Assunção de Maria e Coroação de Maria. No local destinado ao louvor, o
coro, o artista reproduziu três invocações à Nossa Senhora: Casa Dourada (Domus Aurea), Arca da Aliança
(Arca Foederis), Porta do Céu (JanuaCoeli).

3 A obra foi atribuída ao artista por Olinto Rodrigues dos Santos Filho.
4 Conforme os relatos bíblicos, o episódio da Visitação ocorre antes da Natividade, entretanto, no forro da
capela do Rosário eles encontram-se, atualmente, em posição invertida, denunciando um problema ocorrido
provavelmente durante uma das reformas a que foi submetida, uma vez que fotos da década de 1950, logo após
o tombamento do templo, confirmam a ordem correta das pinturas.

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Figura 2: Programa iconográfico das pinturas de forro da nave da Capela de Nossa Senhora do Rosário dos
Pretos. Manoel Victor de Jesus, c. 1820. Tiradentes, Minas Gerais. Fonte: desenho da autora (2016).

Complementando o programa iconográfico do forro da capela-mor, que apresenta a devoção


ao Santo Rosário como o caminho para a Salvação, a iconografia da nave foi concebida como uma
história seriada, em quadros, narrando, passo a passo, cada etapa do trajeto – uma “representação
plástica das histórias sagradas”5. A disposição das imagens sugere um percurso a ser trilhado pelo
observador no interior da nave da igreja, onde o fiel passa pelos mistérios gozosos (a Vida), se dirige
aos dolorosos (a Paixão) e finaliza nos gloriosos (a Glória), caminhando de frente em direção à
capela-mor, onde encontra a Glória de Deus. Depois de contemplar os mistérios, ele é convidado a
prestar homenagens à Virgem Maria por meio de três pinturas que a glorificam como Intercessora e
Corredentora da humanidade.

A respeito do Santo Rosário, trata-se de uma prática popular de devoção mariana adotada como
instrumento de evangelização e conversão dos gentios à fé católica. Rememorar as passagens bíblicas
através das imagens é uma forma de reviver e conservar, na mente e no espírito, os ensinamentos da
vida de Cristo e da Virgem Maria. Conforme Guilherme Amaral Luz, P. Antônio Vieira (1608-1697)
argumenta no Sermão Nossa Senhora do Rosário com o Santíssimo Sacramento (1654)6 que para
5 SOBRAL, Luís de Moura Sobral. Do sentido das formas: ensaios sobre pintura barroca portuguesa e outros

temas ibéricos. Lisboa: Estampa, 1996, p. 120.


6 VIEIRA, P. Antônio. Sermão Nossa Senhora do Rosário com o Santíssimo Sacramento (1654), Literatura
Brasileira: Textos Literários em meio eletrônico.

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nutrir a alma do cristão, são indispensáveis a memória, a meditação (entendimento) e a imitação
(vontade) dos Mistérios do Rosário. A memória traz para o presente algo que estava ausente. Nesta
circunstância, quando os fiéis rememoram as passagens da Vida de Cristo (e da Virgem Maria)7
eles trazem Cristo (e a Virgem Maria) para perto de si. A ação da meditação é assemelhar-se ao que
se vê quando está na presença mnemônica dos Mistérios. Os efeitos das duas primeiras etapas da
compreensão do rosário só têm sentido na terceira, o momento da imitação. De acordo com o autor,
ao assemelhar-se a Cristo (ou à Virgem Maria) o fiel se funde a ele (ou a ela) e adota definitivamente
a vida de Cristo (ou da Virgem Maria) como exemplo de vida.8

“Não instituiu a Senhora o Rosário para o rezarmos só com a boca, e com tanta pressa
como se passam as contas, mas para ter na memória os mistérios, para os meditar e
cuidar neles com grande consideração, e para os tomar por exemplo, e os aplicarmos
a nossas vidas”9.

Luz nos conta que os Sermões de P. Vieira referentes à devoção à Nossa Senhora do Rosário
eram dirigidos aos escravos, mas estendiam-se também aos demais irmãos, inclusive, aos seus
Senhores. Não se sabe ao certo como a evangelização era conduzida pela referida irmandade da Vila
de São José, contudo, a disposição das pinturas sugere um percurso que pode ter sido acatado pelos
oradores, visto que a associação das imagens com a pregação contribui para a doutrinação e conversão
dos irmãos que, seduzidos pelas narrativas plásticas, são induzidos a acreditar na verdade das cenas
representadas. Editados nos anos de 1680, os Sermões de Vieira estabelecem uma estreita relação com
o programa iconográfico das pinturas da nave, indicando a grande possibilidade da sua circulação
pela Comarca do Rio das Mortes, em virtude da ampla difusão pela colônia brasileira a partir do
século XVIII.10

Nesse universo, a iconografia das pinturas da nave exprime a relação entre a imagem com um
projeto, de cunho teológico, que visa a evangelização, a conversão e a sugestão de uma conduta de
vida aos membros da confraria – os receptores da obra de arte. Com a provável colaboração do artista,
os comitentes conceberam o programa iconográfico baseado em diversas fontes literárias, a saber: a
Bíblia, os Evangelhos Apócrifos, a Letania Lauretana, e os Sermões de P. Antônio Vieira. As narrativas
7 Guilherme se refere apenas a Cristo, mas os Mistérios do Rosário relatam a vida de Cristo e da Virgem Maria.
Todas as vezes que ele menciona Cristo, acrescentamos a Virgem Maria, que também é exemplo de vida a ser
seguido. A Virgem atua, ao lado de seu filho, como corredentora no processo de Salvação.
8LUZ, Guilherme Amaral. Rosário da Concórdia. Vieira e os Fundamentos Místicos da Paz Social. Clio:
Série Revista de Pesquisa Histórica – n27-2, 2009, p. 70-73.
9 VIEIRA. Sermão Nossa Senhora do Rosário com o Santíssimo Sacramento (1654), p. 8.
10 Mateus Silva pesquisou os livros nos inventários da Comarca do Rio das Velhas e constatou a presença
da obra de P. Vieira em Minas Gerais em meados do século XVIII. Ao analisar um determinado inventário,
encontrou elencados treze tomos que, muito possivelmente, se referem à coleção dos Sermões, “obra de caráter
extremamente doutrinário e devocional de grande circulação naquele período”. (SILVA, Mateus Alves. Os
Livros nos Inventários na Comarca do Rio das Velhas no século XVIII (1740-1760). In: IV Congresso de
Pesquisa e Ensino em História da Educação em Minas Gerais. Juiz de Fora, 2007, p. 10).

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visuais foram construídas, provavelmente, com base na interpretação dos impressos europeus que
circularam por Minas Gerais, especialmente os Missais, os Registros de Santos, os emblemas e as
gravuras avulsas.

Com o propósito de apresentar ao leitor o conteúdo da obra de arte e a forma como ela foi
concebida no teto da nave da igreja, três narrativas visuais foram selecionadas, só para exemplificar: a
Anunciação, a Flagelação e a Ascensão do Senhor.

Anunciação:

Na narrativa da Anunciação, a primeira cena dos mistérios gozosos, o pintor, motivado pelo
Evangelho de São Lucas11, representou o momento exato em que o anjo Gabriel aparece diante da
Virgem e anuncia o nascimento de Jesus (figura 3). A cena transcorre em um ambiente interno
delimitado por uma cortina, que se situa à direita do espaço pictórico. Os tecidos ondulantes da veste
de Gabriel, presos por um vinco, contrastam com o manto que envolve seu corpo e se movimenta em
direção oposta, representando o instante exato que o arcanjo surge do céu e anuncia o advento do filho
de Deus. O banco, a mesa e um livro, próximos à Virgem, sinalizam que Maria estava lendo, ou em
oração, quando ocorreu a aparição do Arcanjo; enquanto seu gesto, braços cruzados diante do peito,
representa a humildade de uma mulher que dedicou sua vida ao Senhor e encontra-se preparada, e de
vigília, para fazer a vontade do Pai. Os protagonistas do episódio sacro, praticamente no mesmo plano,
simbolizam a união entre o céu e a terra, o divino e o humano.

Figura 3: Anunciação. Pintura do forro da nave da Capela de Nossa Senhora do Rosário de Tiradentes,
MG. Manoel Victor de Jesus, c. 1820. Fonte: foto da autora (2015).

11 BÍBLIA. Português. A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1985. 1v. (Lucas 1, 26-38).

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O anjo do Senhor tem em suas mãos um lírio, símbolo da pureza e inocência. O talo com três
flores representa a tríplice virgindade de Maria – antes, durante e depois do parto. Entretanto, na obra
em análise, ele tem apenas uma flor aberta que simboliza a castidade antes da concepção, sendo as
outras duas em forma de botão.12 O lírio é também associado à ideia de humildade e fé incondicional
na providência divina, como se pode verificar nas sagradas escrituras: “[...] aprendei dos lírios do
campo, como crescem, e não trabalham e nem fiam. E, no entanto, eu vos asseguro que nem Salomão,
em toda a sua glória, se vestiu como um deles”13. O ato de resignar-se, submetendo-se à vontade do
Altíssimo, corresponde à fé e a humildade de Maria que aceita a vontade de Deus ao conceber seu filho
– o Redentor – sendo, portanto, Corredentora no processo de salvação da humanidade. Na iconografia
da Anunciação, a virtude da Humildade está no gesto de cruzar as mãos sobre o peito e pode estar
relacionada com os emblemas de Cesare Ripa denominados Humilitatem (figura 4). A obediência da
Virgem sugere uma conduta de vida que deve ser observada pelos irmãos do rosário.

Figura 4: Imagem 1: Humilta. Cesare Ripa, edição de 1603. / Imagem 2: Humilité. Cesare Ripa, edição
de 1744. / Imagem 3: Humilta. Cesare Ripa, edição de 1643.

Outro emblema de Ripa demonstra que cruzar os braços sobre o peito significa conversão,
transformação proposta logo no primeiro mistério, junto ao anúncio do nascimento de Jesus
prometendo aos fiéis o perdão dos pecados e a vida eterna. Todas as narrativas serão construídas
visando a sugestão de um modo de se comportar, através da narrativa de uma passagem da vida de
Cristo e Maria, exemplo que deve ser seguido por meio da imitação. Desta forma, o sermão visual os
instiga à aceitação de Cristo como o Salvador e, por consequência, à conversão e ao batismo (figura 5).

12RÉAU, Louis. Iconografía del arte Cristiano. Iconografía de la Bíblia: Nuevo Testamento, Barcelona:
Serbal, 2008, p. 192.
13 BÍBLIA. A Bíblia de Jerusalém (Mateus 6, 28-29).

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Figura 5:Conversione. Iconologia, Cesare Ripa, 1764.

O Arcanjo Gabriel sinaliza, com a mão direita, a presença da pomba no céu, símbolo do Espírito
Santo, representando a pureza e a santidade da concepção do Salvador. A Anunciação não se restringe
apenas a um episódio da vida de Maria, mas refere-se, também, à origem da vida humana de Jesus – a
encarnação do Redentor. O momento em que o divino se transformou em carne14 foi representado
pelos raios de luz que emanam da pomba em direção à Maria. Para os teólogos, Cristo – o Verbo – foi
concebido pelo ouvido da Virgem, Conceptio per aurem15, e o mistério da Anunciação corresponde
ao prelúdio da redenção. No Sermão III da série Maria Rosa Mística de P. Vieira, o pregador revela o
significado do anúncio do anjo Gabriel:

“No princípio do mundo foi mandada a serpente pelo demônio, para que, pelos
ouvidos da mulher lhe infundisse na mente o veneno. E depois? Vede a elegância da
contraposição. [...] E depois foi mandado o Anjo Gabriel por Deus, para que, pelos
ouvidos da Virgem assim no ventre como na mente se introduzisse o Verbo. [...] Eva
ouviu, Maria ouviu: Eva ao demônio, Maria ao anjo: Eva recebeu na mente o engano,
e no ventre o fruto maldito; Maria concebeu na mente a verdade, e no ventre o fruto
bendito. [...] assim como pelos ouvidos da primeira mulher entrou no mundo o
veneno e a morte, assim pelos ouvidos da segunda – e sem segunda – veio ao mesmo
mundo o remédio e a vida”16.

O sermão plástico ensina ao fiel a “oração mental” do rosário, ou seja, a oração fundamentada
na contemplação e meditação dos mistérios: “[...] a vocal recita preces, a mental contempla mistérios
[...]”17. Conforme P. Vieira, o Rosário de Nossa Senhora deve ser rezado pelos ouvidos, pois os ouvidos
foram imprescindíveis para a concepção do Verbo. Sendo assim, o prenuncio da remissão dos pecados,
instituídos por Adão e Eva, se faz presente na figura do anjo Gabriel anunciando o nascimento do
14RÉAU. Iconografía del arte Cristiano. Iconografía de la Bíblia: Nuevo Testamento, p. 186.
15 Concepção pelos ouvidos.
16 VIEIRA, Padre Antônio. Sermão III – Maria Rosa Mística. Sermões escolhidos, v. 2, São Paulo: Edameris, 1965,
pdf, p. 2.
17 ______. Sermão III, p. 1

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Salvador. A Ave contrapõe a Eva e o veneno é transformado em antídoto.

A evangelização dos irmãos do rosário pretos, muito possivelmente, intercorre nesse cenário.
Todos os mistérios do conjunto pictórico foram compostos seguindo o mesmo princípio: a proposição
de uma conduta de vida fundamentada no cristianismo. Quando se observa a narrativa dos Mistérios
da Paixão, essa proposta fica muito clara e nos traz à lembrança os Exercícios Espirituais dos jesuítas,
uma prática de meditação e oração, na qual o fiel deve escutar a voz de Deus para ordenar os seus
sentimentos e ações; e, em seguida, entregar-se ao seu propósito. O cristão deve pensar sobre os seus
pecados, confrontando essa reflexão com a misericórdia do Pai, que sacrifica seu Filho para salvar a
humanidade. Essa contemplação os convida a seguir Jesus, a amá-lo e a adotar o seu comportamento
durante a Paixão como conduta de vida, uma entrega total de sua vida à vida de Cristo, que vai
desencadear na vivência da sua promessa – a ressurreição para a vida eterna. Nos Exercícios, a arte é
o instrumento fundamental, pois para que a contemplação e a oração sejam cumpridas, é necessário
compor a cena, visualizar o lugar em que o episódio bíblico ocorreu por meio de uma dinâmica: a
imaginação e a estimulação dos sentidos. Neste cenário, a imagem tem a função de tornar visível
àquilo que é invisível, uma espécie de “sacramento, ou seja, aquilo que por meio de uma realidade
visível torna presente o Invisível”18.

Flagelação:

O segundo mistério da Paixão – a narrativa visual da Flagelação – é um exemplo perfeito


dessa proposta, em virtude da associação estabelecida entre os irmãos do rosário pretos e Jesus Cristo,
induzindo ao primeiro a adotar o comportamento do segundo por meio da imitação (figura 6). Os
quatro evangelhos mencionam a flagelação de Cristo, porém, as descrições são limitadas, dizem
apenas que Cristo foi açoitado, castigado e flagelado. Na ausência de um relato detalhado, a iconografia
origina-se justamente da palavra.19

18 PAMPALONI, Massimo. A “Forma”do Jesuíta: os Exercícios Espirituais. In: ROMEIRO, Adriana /


MELLO, Magno Moraes. Cultura Arte & História: a contribuição dos jesuítas entre os séculos XVI e XIX.
Belo Horizonte, MG: Fino Traço editora, 2014, p. 21.
19RÉAU. Iconografíadel arte Cristiano. Iconografía de la Bíblia: Nuevo Testamento, p. 470.

601
Figura 6: Flagelação. Pintura de forro da nave da Capela de Nossa Senhora do Rosário de Tiradentes,
MG. Manoel Victor de Jesus, c. 1820. Fonte: foto da autora (2015).

O episódio se desenrola num espaço arquitetônico com uma abertura lateral para o exterior,
à direita do painel. A impressão que se tem é a de que o artista fez um recorte na cena e ampliou o
cenário, aproximando o observador da superfície pictórica, recurso técnico característico da arte da
Contrarreforma que tem como proposta a persuasão, ou seja, o fiel é incorporado ao episódio sacro e
passa a ser testemunho do flagelo de Cristo. Ao analisar a ordenação do espaço barroco, Luis Marques
afirma que a aproximação do espectador ao ambiente cênico é sugerida pela disposição de alguns
detalhes em “primeiríssimo plano”20, como é o caso do pilar que encontra-se representado no plano
da frente da pintura.

No fundo de uma parede lateral, percebe-se a presença de uma pequena janela com grades
indicando que o local é uma prisão, ideia reforçada pela abertura no chão diante de Jesus sugerindo
uma masmorra. Antes de ser julgado e sentenciado, Cristo foi preso a pedido dos chefes dos sacerdotes.
A pequena janela se abre para um céu azul e uma luz lateral incide sobre as grades projetando uma
sombra que proporciona maior naturalismo ao episódio religioso. O cuidado com a construção
cenográfica para a narrativa bíblica correlaciona com a proposta de contemplação proposta pelos
jesuítas, estimulando a imaginação e os sentidos.

“O exercitante é convidado a compor a cena do texto bíblico com o qual rezará: ou


seja, é convidado a imaginar o espaço, a ver os personagens da ação, a escutar as suas
vozes, a observar os seus comportamentos. Isso leva a uma participação cada vez
mais profunda na cena evangélica e a uma compreensão efetiva cada vez mais rica”21.

No tocante a iluminação do ambiente, nota-se uma luz lateral, proveniente do espaço externo,
que reflete a coluna, em segundo plano, iluminando a face e o corpo de Cristo. Jesus tem as mãos
atadas, seu algoz ergue o braço direito segurando o flagrum romano22, lança uma das pernas para o
20 MARQUES, Luiz. A Redefinição do Espaço na Pintura Barroca. Galeria, revista de arte, 12, 1988, pdf, p.89.
21PAMPALONI. A “Forma” do Jesuíta: p. 20.
22O flagrum romano é um chicote, um instrumento de tortura utilizado no castigo corporal. A tortura com este objeto foi
aplicada pelo sistema judicial de Roma na antiguidade aos condenados à morte, inclusive, aqueles que seriam submetidos
à crucificação. O castigo era denominado flagelação.

602
alto e projeta o corpo para trás adquirindo impulso e força para chicotear o sentenciado. O naturalismo
apresenta-se na sugestão do gesto, uma cena comovente e extremamente dramática, na qual o pintor
reproduziu o momento exato do açoite. Jesus foi representado de barba, longos cabelos ruivos e olhos
voltados para o alto.

A respeito do significado da imagem, pergunta-se: qual a mensagem que a irmandade pretendeu


transmitir aos fiéis que circulavam pela nave da igreja contemplando os mistérios? Qual a conexão
entre a flagelação de Cristo com os possíveis açoites sofridos pelos escravos? Qual a justificativa para o
sofrimento de Cristo e, paralelamente, para o sofrimento humano, sobretudo para aqueles que viviam
submetidos à humilhação da escravidão?

Ora, os teólogos encontram explicação para tudo. Na legenda intitulada A Paixão do Senhor,
Varazze relata que “em sua Paixão, Cristo sofreu dores amargas e desprezo humilhante para nos
proporcionar benefícios de imenso valor”23. Os benefícios da flagelação estão associados à libertação
dos pecados dos homens, símbolo de purgação e prática que tem o objetivo de afastar as tentações. “Os
ascetas de todas as religiões flagelaram-se sempre, até sangrar, não só por espírito de sacrifício, mas
também para repelir as tentações”24.De acordo com P. Antônio Vieira, o cativeiro não é exatamente
uma humilhação, a escravidão do corpo é uma providência divina, através da qual os irmãos do rosário
serão salvos: “Mas é particular providência de Deus, e sua, que vivais de presente escravos e cativos,
para que por meio do mesmo cativeiro temporal consigais muito facilmente a liberdade eterna”25.

Quando os irmãos do rosário meditam diante da Flagelação, eles, provavelmente, se identificam


com Cristo e se assemelham a ele. Do mesmo modo que os sofrimentos de Cristo foram convertidos
em Glória, os açoites sofridos pelos escravos também teriam sua recompensa. Neste caso, o castigo do
açoite é transformado em benção, pois é através dele que o fiel vai se libertar dos pecados para alcançar
o Paraíso e a Vida Eterna.

“Se, espelhando-se no exemplo de Cristo, através da meditação do Rosário,


suportassem sua condição e sua fortuna com paciência, esses poderiam experimentar
a verdadeira benção escondida por trás dos açoites, do trabalho árduo e das ofensas
recebidas”26.

Cristo foi injustiçado, mas conhecemos pela Bíblia, que seu suplício desempenhou um papel
fundamental no processo da salvação da humanidade. Como assinalado no primeiro mistério doloroso
– a Oração no Monte das Oliveiras – a Paixão de Cristo ocorreu conforme a vontade do Pai. Os

23VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea: Vidas de Santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.318.
24CHEVALIER, Jean / CHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas,
figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio LTDA, 2015, p. 433-434.
25VIEIRA, P. António. Sermão XXVII da série Maria Rosa Mística. Disponível em: [http://textosdefilosofiabrasileira.
blogspot.com.br/2012/11/sermao-xxvii-da-serie-maria-rosa.html]. Acesso em: 29 de nov. 2016, p. 11.
26LUZ. Rosário da Concórdia, p. 82.

603
teólogos insistem que todo cristão deve confiar no mistério da Paixão, pois todo sofrimento tem um
propósito e uma recompensa. Conforme a Epístola aos Romanos, todos os cristãos estão destinados
à Glória: “Penso, com efeito, que os sofrimentos do tempo presente não têm proporção com a glória
que deverá revelar em nós”27.O episódio da Flagelação instrui os irmãos do rosário sobre a remissão
dos pecados concedidos pelo sacrifício e a recompensa resultante do sofrimento – a glória de Deus.

Ascensão do Senhor:

Posteriormente à contemplação dos mistérios da Paixão, os fiéis podem meditar e experimentar


a recompensa do martírio de Cristo – a Glória. Nesta série, destaca-se o Mistério da Ascensão do
Senhor e a importância do ato de contrição. Sob o ponto de vista bíblico, depois de ressurgir dos
mortos, Jesus manifesta sua existência na terra, testemunhando o milagre da ressurreição. Estando
diante dos onze discípulos, ele foi elevado aos céus, a sua última aparição entre os homens (figura 7).

Figura 7: Ascensão do Senhor. Forro da nave da Capela de Nossa Senhora do Rosário de Tiradentes, MG.
Manoel Victor de Jesus, c. 1820. Fonte: foto da autora (2015).

A obra encontra-se bastante deteriorada, mas uma foto localizada nos arquivos do IPHAN
permitiu a realização de uma análise formal e iconográfica, proporcionando a compreensão de sua
mensagem (figura 8). Os relatos bíblicos registram a presença de onze apóstolos, uma vez que Judas
Iscariotes – o traidor – havia falecido neste momento e ainda não tinha sido substituído por Matias.
Ainda assim, o pintor representou doze figuras, sendo que uma delas parece ser uma mulher, a pessoa
que está ajoelhada em primeiro plano, à esquerda, provavelmente a Virgem Maria, uma das chaves de
27BÍBLIA. A Bíblia de Jerusalém (Romanos 8, 18).

604
leitura para o entendimento do conteúdo da pintura.

Figura 8: Ascensão do Senhor. Forro da nave da Capela de Nossa Senhora do Rosário de Tiradentes, MG.
Manoel Victor de Jesus, c. 1820. Fonte: IPHAN/RJ.

O monte delimita os dois espaços – o celestial e o terreno. Nele, podem-se visualizar, bem no
centro do espaço pictórico, as pegadas de Jesus na terra, sinal que reforça o momento preciso da sua
elevação aos céus, revelando uma pintura marcada por um maior naturalismo, particularidade da
arte da Contrarreforma, que pretende seduzir o observador, incitar a imaginação, gerar expectativa
e arrebatar os fiéis. Qual a fonte de inspiração para a representação dos vestígios dos pés de Jesus
no solo? Os relatos bíblicos não fazem nenhuma menção a respeito, mas encontramos na legenda
intitulada A Ascensão do Senhor a confirmação da existência das marcas dos seus pés no solo após
a sua subida: “[...] os vestígios de pés ainda existem na terra, como marcas ali gravadas, provam que
esse é o lugar pisado pelo Senhor”28. Louis Réau afirma que, até os dias de hoje, os peregrinos podem
ver as pegadas deixadas pelos pés de Jesus cravados na rocha,29 reforçando a ideia da ressurreição e da
permanência de Cristo entre os vivos por um determinado período.

A composição é centralizada na figura de Cristo, representado em diagonal, se elevando ao céu.


O espaço celestial é coroado por nuvens, que parecem enlaçar o Mestre e conduzi-lo definitivamente
ao páramo, aproximando a imagem da narrativa bíblica: “[...] foi elevado à vista deles, e uma nuvem
o ocultou a seus olhos”30. Raios de luz formam um círculo luminoso em torno do Redentor que, de
braços estendidos, lança o tórax para frente e movimenta as pernas ligeiramente para trás, formando
um arco, um semicírculo, que finaliza com o manto dobrando-se ao lado e um pouco acima de sua
cabeça. O deslocamento é, simultaneamente, forte e gracioso, leveza intensificada pelo seu semblante,
sereno, despedindo-se num tranquilo estado de espírito. Um manto vermelho envolve seu corpo
criando um movimento ondulante e ascendente, o drapeado revela a habilidade de Manoel Victor
28VARAZZE. Legenda Áurea, p. 431.
29RÉAU. Iconografíadel arte Cristiano. Iconografía de laBiblia: Nuevo Testamento, p. 605.
30BÍBLIA. A Bíblia de Jerusalém (Atos dos Apóstolos 1, 9).

605
na execução do panejamento. Camila Santiago associa a dobra do manto à forma de uma concha
e acredita que o pintor tenha se inspirado no Registro de Santo que, provavelmente, serviu como
modelo para o autor da Virgem do Rosário no teto da capela-mor da mesma Igreja.31

Os demais personagens estão organizados em grupos de três. No primeiro plano, à direita,


três figuras em pé testemunham o acontecimento. Com os braços abertos, um homem de barba se
movimenta em direção ao Mestre como alguém que não quer acreditar na sua partida. Ao seu lado,
duas pessoas conversam entre si, uma estende o braço esquerdo para o céu e olha em direção à outra
num gesto de surpresa diante do fato. À esquerda, outro grupo figurativo, no qual acreditamos estar
presente a Virgem Maria ao lado de João, o Evangelista. Esta suposição é baseada na iconografia do
apóstolo e nas características formais utilizadas pelo pintor na representação do discípulo na pintura
da crucificação: cabelos longos, encaracolados e imberbe. A suposta Maria tem o rosto oval típico
das representações femininas do pintor Manoel Victor de Jesus: de joelhos, a cabeça coberta com o
manto, uma das mãos no peito e o olhar voltado em direção ao filho de Deus. No entanto, é preciso
decifrar a mensagem para certificar-nos de que a décima segunda personagem é mesmo a Virgem
Maria e verificar qual a possível fonte de referência que justifique sua inclusão na cena da ascensão
de Cristo. Em segundo plano, atrás do monte, visualiza-se dois grupos de discípulos, todos homens e
representados com barba. Os semblantes dos apóstolos dotam a cena de encantamento, admiração e
perplexidade, fascinados que estão com o episódio que testemunham.

No tocante às cores e à iluminação da pintura, seu estado de conservação impede uma leitura
mais cuidadosa, contudo, percebe-se, através da foto, uma forte luz por trás do monte, contribuindo
para a profundidade do espaço. No céu, os raios de luz parecem ter sido pintados por cores amarelas
e brancas favorecendo a iluminação da cena e intensificando a sensação de revelação do mistério.
Nota-se, inclusive, que o pintor utilizou um azul claro na representação do céu, enquanto as roupas
dos discípulos alternam entre o azul, o vermelho, o branco e tons de cinzas. Coerentes com a paleta do
artista, as cores empregadas podem ser verificadas nas pinturas dos outros caixotões no forro da nave.

Quanto às referências gráficas, ao que tudo indica, o pintor combinou mais de uma estampa
para sua composição. Uma gravura, proveniente de um Missale Romanum, tem grandes possibilidades
de ter sido fonte de referência para o pintor. A estampa impressa pela Typographia Plantiniana, na
Antuérpia, em 1724, foi localizada nos arquivos da Paróquia de Santo Antônio de Tiradentes, em
Minas Gerais (figura 9). Invertendo a gravura, uma análise comparativa mais precisa entre pintura e
estampa torna-se possível. Logo no primeiro olhar, percebe-se que a postura de Cristo na estampa é
diferente daquela representada na pintura (figuras 8 e 9). O Jesus de Manoel Victor lança o corpo para
frente, arqueando-se, enquanto a figura impressa representa Cristo com as pernas à frente e o tronco
levemente inclinado para trás. Além disso, o arco luminoso da gravura restringe-se à cabeça de Jesus,
enquanto, na pintura, o círculo estende-se até a cintura do protagonista do episódio sacro. O que
assemelha as duas figuras é a disposição do manto de Cristo que, tanto na estampa como na pintura,
apresenta a mesma movimentação ondulante envolvendo seu corpo. No painel, a volta do tecido se
31SANTIAGO, Camila Fernanda Guimarães. Usos e impactos de impressos europeus na configuração do universo
pictórico mineiro (1777-1830). 350 f. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de Minas Gerais, Programa
de Pós-Graduação em História, Belo Horizonte, 2009, p. 316.

606
completa um pouco mais acima da cabeça e, de uma maneira geral, o manto é mais alongado do que
aquele reproduzido na gravura.

Outra semelhança que estabelece a relação entre a obra e sua possível referência corresponde
ao vestígio dos pés de Jesus deixado no solo, indicando que ele acabou de se desprender da terra e se
elevar em direção ao céu. Em disposição relativamente distinta ao da gravura, os discípulos também se
distribuem ao redor do monte. Como na estampa, o pintor representou doze pessoas, seis em primeiro
plano, divididas em dois grupos de três, um à direita e outro à esquerda. No grupo à esquerda do
impresso um dos apóstolos encontra-se em pé com as mãos cruzadas e olhar fixo em Cristo no céu.
Na frente, duas figuras ajoelhadas. O homem imberbe, de cabelos longos e ondulados, que conversa
com a mulher à sua direita e ergue uma das mãos em direção ao céu, certamente é João Evangelista.
Ao seu lado, a figura feminina representada com a mão esquerda no peito, possivelmente é a Virgem
Maria. O pintor Manoel Victor reproduziu esse grupo figurativo na pintura da Igreja do Rosário com
pequenas alterações. João encontra-se em pé ao lado do apóstolo com as mãos cruzadas sobre o peito
reproduzindo, aliás, o mesmo ato do personagem no Missal. A Virgem continua na frente, de joelhos,
com o manto cobrindo sua cabeça e repetindo quase o mesmo gesto observado na estampa, mão
esquerda no peito e olhar em direção ao Filho, porém, com a mão direita em posição distinta.

Figura 9: Ascensão. Missale Romanum. Typographia Plantiniana, Antuerpiae, 1724. Fonte: Museu da
Liturgia de Tiradentes, MG. Foto da autora (2015).

A respeito da postura de Cristo impulsionando seu corpo para frente, existe uma gravura que
apresenta gesto semelhante e pode ter sido conhecida por Manoel Victor e adotada como fonte de
inspiração para a pintura da ascensão de Cristo na Capela do Rosário (figura 10). A estampa, assinada
Hendrickx. Del., pertence a um Missal editado em 1889 na cidade belga de Mechliniae (Malines). Não
se sabe a data exata da sua execução, apenas a data de sua reprodução, que é posterior à pintura, no
entanto, é conhecido, por meio de pesquisas, que os desenhos impressos nos livros litúrgicos costumam

607
ser reeditados e podem ser cópia ou reimpressão de uma estampa aberta em período precedente.32
Desta forma, o pintor pode ter conhecido a mesma gravura impressa em edições anteriores à data da
execução da pintura na Igreja do Rosário, isto é, antes de 1820. Partindo deste princípio, acredita-se na
possibilidade de que a estampa, localizada no Missal editado em 1889, possa ser cópia ou reimpressão
de um desenho mais antigo e tenha sido conhecida por Manoel Victor de Jesus.

Figura 10: Ascensão. Missale Romanum. Mechliniae, 1889. Fonte: Museu da Liturgia de Tiradentes,
MG. Foto da autora (2015).

Nota-se que o pintor fez algumas alterações, especialmente no que diz respeito ao manto e ao
braço esquerdo de Cristo, que se encontra um pouco mais elevado na gravura. No entanto, percebe-se
que a inclinação de sua cabeça para o lado esquerdo e a posição de suas pernas na pintura, são muito
semelhantes aos gestos reproduzidos na gravura (figuras 8 e 10). Ademais, as nuvens em torno do
personagem e os raios de luz por trás de seu corpo são igualmente reproduzidos pelo pintor, o que
reforça a hipótese de que uma estampa igual a esta, impressa num momento anterior à pintura, pode
ter sido conhecida pelo artista.

Com o intuito de aproximar do significado da obra em análise, percebe-se que o gesto da


Virgem Maria representa uma atitude penitente diante do Filho de Deus: de joelhos, com uma das
mãos no peito e a outra estendida. O apóstolo, localizado atrás da Virgem, ao lado de João Evangelista,
provavelmente é Pedro em ato de oração, o líder dos evangelistas. Os gestos de oração e penitência
são destinados a suplicar para si a graça divina,33 no caso de Maria, acredita-se que seu olhar voltado
para Jesus sugere o clamor da gloria de Deus para os fiéis que o observam. De acordo com a tradição
iconográfica, Maria é representada na ascensão de Cristo em atitude de oração. Como a pintura
32 SANTIAGO. Usos e impactos de impressos europeus na configuração do universo pictórico mineiro

(1777-1830), p. 31.
33RÉAU. Iconografíadel arte Cristiano. Introducción general, p. 268-269.

608
do rosário de Tiradentes segue a tradição das imagens, supõe-se que a irmandade, provavelmente,
associou a mensagem da oração, representada através do apóstolo Pedro, ao ato de contrição, atitudes
fundamentais no processo de salvação da alma, anunciando, portanto, o poder de intercessão da
Virgem diante do Pai. O emblema de Cesare Ripa representando a confissão confirma a hipótese a
respeito da sugestão de uma atitude penitente por parte da mãe de Deus (figura 11).

Figura 11: Confessione Sacramentale. Iconologia, Cesare Ripa, 1764.

A proposta da confissão está presente nas figuras de um anjo entre os arcos da falsa cúpula
pintada no forro da capela-mor e na figura de São Francisco de Assis, representado no centro da
estrutura arquitetônica do mesmo teto, sugerindo o reconhecimento dos pecados como um dos
caminhos para a Redenção. Observando as imagens abaixo, verifica-se que o gesto da Virgem é muito
semelhante aos do anjo e santo, a única diferença está no olhar, enquanto Maria olha para o alto, local
onde se encontra Jesus, São Francisco e o menino alado, de cabeças baixas, cerram os olhos.

Figura 12: Imagem 1: detalhe da pintura da capela-mor da igreja do Rosário / Imagem 2: detalhe da
pintura da nave da igreja do Rosário/ Imagem 3: detalhe da pintura da capela-mor da igreja do Rosário.

Qual é a mensagem expressa na iconografia da Ascensão do Senhor da Igreja do Rosário de


Tiradentes? A ascensão refere-se à última aparição de Cristo na terra e tem como propósito reforçar
a fé dos irmãos no poder absoluto de Deus que ressuscitou seu Filho e o elevou aos céus. A pintura
desperta nos fiéis o desejo de seguir os seus passos para alcançar, como ele, a graça da glória celestial.

609
Jacopo de Varazze afirma que o episódio ocorre diante dos discípulos com o intuito de que eles “fossem
testemunhas da Ascensão, para que se alegrassem ao ver a natureza humana elevada ao Céu e para que
desejassem segui-Lo”34, representando, dessa maneira, a virtude da fé.

De acordo com Varazze, Santo Agostinho afirma no livro das Confissões que Cristo subiu aos
céus e desapareceu diante dos olhos dos homens para que os cristãos passassem a buscá-lo em seus
corações.35 A fé proclamada pelo cristianismo pressupõe a crença no invisível, naquilo que o homem
enxerga com o espírito e o coração, constitui a base do conteúdo cristão. A presença da Virgem
representa a Igreja incipiente e o caminho que os cristãos devem seguir conforme seu exemplo, pois
o grande problema dessa fase embrionária corresponde ao acesso dos pagãos à salvação por meio da
fé em Cristo.36A irmandade, com a colaboração do pintor, proclama aos irmãos do rosário o discurso
que tem como princípio a fé incondicional no poder de Deus e da Virgem; a conduta de vida de
Jesus e sua Mãe como exemplo e a atuação de Nossa Senhora como Intercessora. Isto é, a salvação
da alma alcançada através da prática do cristianismo, fundamentada na oração e na penitência como
manifestação da fé.

Considerações finais

A narrativa plástica dos Mistérios do Rosário representa as principais passagens da vida de


Maria e seu filho Jesus – Vida, Paixão e Glória. O programa iconográfico segue os padrões impostos
pelo Concílio de Trento e tem como objetivo essencial evangelizar e converter os irmãos do rosário,
provenientes de diversas nações e portadores de distintas concepções culturais e religiosas, ao
catolicismo. Os membros da Irmandade eram, em sua maioria, africanos e descendentes, escravos
e libertos, os documentos referentes à Irmandade de Nossa Senhora do Rosário da Vila de São José,
descortinam diversas etnias, entre elas, Benguela, Cambunda, Angola, Congo e Mina.37 Os africanos que
aportaram em Minas Gerais organizaram-se em confrarias, especialmente aquelas que compunham
o quadro de devoções negras sediadas nas Igrejas, a saber: São Benedito, Santo Antônio do Noto, São
Braz, São Elesbão e Santa Efigênia.

A mensagem transmitida aos receptores da obra de arte correlaciona com os princípios


religiosos da Igreja Católica que revelam a doutrina cristã, cada passagem corresponde a um discurso
denominado “sermão plástico”38 e cada discurso recomenda uma conduta de vida. Nos mistérios
gozosos, a Anunciação sugere a humildade e o acolhimento da vontade de Deus; a Visitação prega a
fé no novo Reino e na promessa da Salvação; a Natividade procura convencer o fiel a adorar um único
Deus; a Apresentação de Jesus no Templo recomenda a obediência e o cumprimento às leis e preceitos
religiosos que regem a Confraria do Rosário e Jesus entre os Doutores propõe aos fiéis o acolhimento

34VARAZZE. Legenda Áurea, p.432.


35______. Legenda Áurea, p.438.
36BÍBLIA. A Bíblia de Jerusalém, p. 2044
37Arquivo Eclesiástico da Diocese de São João del-Rei. Livro de Eleições da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário
dos Homens Pretos da Vila de São José, Comarca do Rio das Mortes, 1805 a 1847, CX 01/Livro 03.
38SOBRAL. Do sentido das formas, 1996.

610
do Filho de Deus como Mestre.

Os mistérios dolorosos correspondem ao martírio de Cristo que culminou com sua morte na
cruz – símbolo da Redenção. Semelhante aos mistérios gozosos, as passagens bíblicas recomendam
uma conduta de vida, no entanto, o comportamento sugerido pela Paixão de Cristo está diretamente
relacionado com as adversidades da vida e o sofrimento humano. As narrativas desse mistério instruem
os fiéis a aceitarem a vontade de Deus Pai com base no argumento de que todo sofrimento tem sua
recompensa. Dessa forma, o cativeiro é transformado em milagre, o açoite em benção, o sofrimento
em Glória, a morte em vida.

Conforme Guilherme Amaral Luz, as relações entre cristianismo e escravidão não são
estabelecidas pela contradição, não existe oposição entre catolicismo e escravidão, entre caridade
e violência ou entre conversão e sujeição.39 O discurso cristão manifesto nos mistérios da Paixão
estabelece uma relação explícita com a vida dos fiéis que conheciam, direta ou indiretamente, o
sofrimento da flagelação e os castigos sofridos pela desobediência.

O projeto iconográfico do martírio de Jesus foi associado à vida desses homens e mulheres
que estavam sendo convertidos à fé católica. Os episódios tinham o propósito de comover os fiéis
e persuadi-los da necessidade da conversão, do batismo e, sobretudo, da aceitação do sofrimento
e da conformação com a escravidão. Além de serem induzidos à resignação, os irmãos do rosário
foram estimulados a agradecer a Deus pelo cativeiro, pois foi por meio dele que os mesmos tiveram
a oportunidade de serem instruídos no caminho para a salvação da alma. P. Vieira afirma que aquele
que é libertado torna-se cativo do libertador, ou seja, os libertos do cativeiro da alma pela oração,
devoção e contemplação dos Mistérios do Rosário tornam-se cativos de Nossa Senhora e de Jesus
Cristo e, dessa maneira, são impelidos a cultuar e venerar a Virgem do Rosário e seu Filho Jesus.

“A liberdade é um estado de isenção que, uma vez perdido, nunca mais se


recupera; quem foi cativo uma vez, sempre ficou cativo, porque ou o libertam
do cativeiro ou não: se o não libertam, continua a ser cativo do tirano; se o
libertam, passa a ser cativo do libertador”40.

Na hierarquia dos Mistérios do Rosário, Vieira concede maior importância aos mistérios
dolorosos – a Paixão de Cristo – sendo a contemplação dos mistérios uma preparação para a morte e,
por consequência, para a sua transformação em gloria. “O Rosário, assim, auxiliaria o fiel na expiação
de seus pecados, na tomada de consciência de sua condição mortal e na indicação, por meio do
exemplo de Cristo revelado nos mistérios, dos caminhos para a Redenção”41.

O discurso proferido pelo padre jesuíta no Sermão XXVII da série Maria Rosa Mystica explica
que Cristo veio libertar os homens do cativeiro da alma e não do corpo. Para o pregador, o homem é

39LUZ. Rosário da Concórdia, p. 66.


40VIEIRA. Sermão XXVII da série Maria Rosa Mística, p. 10.
41LUZ. Rosário da Concórdia, p.73.

611
feito de corpo e alma, logo, existem dois tipos de cativeiro: o do corpo e o da alma. O homem pode ser
escravo do corpo, mas deve ter sua alma livre, pois a alma é mais importante que o corpo.

“A alma é melhor que o corpo, o demônio é pior senhor que o homem, por
mais tirano que seja; o cativeiro dos homens é temporal, o do demônio eterno;
logo, nenhum entendimento pode haver, tão rude e tão cego, que não conheça
que o maior e pior cativeiro é o da alma”42.

No mesmo sermão, Vieira recorre à Bíblia – São Pedro e São Paulo – para convencer os escravos
a suportarem com paciência o sofrimento do cativeiro e explica as razões da Paixão:

“A Paixão de Cristo teve dois fins: o remédio e o exemplo. O remédio foi


universal para todos nós: passus est pio nobis; mas o exemplo não duvida
São Pedro afirmar que foi particularmente para os escravos, com quem falava:
vobis relinquens exemplum. E por quê? Porque nenhum estado há entre todos
mais aparelhado no que naturalmente padece, para imitar a paciência de
Cristo, e para seguir as pisadas do seu exemplo: Vobis relinquens exemplum,
ut sequamini vestigia ejus”43.

A escravidão é, portanto, semelhante à Paixão de Cristo, uma preparação do homem para a


Glória de Deus. Cada discurso recomenda uma conduta de vida baseada na imitação da vida de Cristo
que suportou, em silêncio e com paciência, seu martírio.

Os Mistérios Gloriosos foram narrados na Igreja do Rosário de Tiradentes com o objetivo


de confirmar ao fiel a promessa da salvação, persuadi-lo a acreditar no poder absoluto de Deus e
confiar no poder da Virgem como intercessora entre os homens e Deus Pai durante o caminho para a
Redenção. Nos mistérios da Ressurreição, a narrativa visual confirma a promessa da vitória de Cristo
sobre o martírio que culminou na sua morte e certifica de que todos aqueles que se converterem ao
cristianismo e forem batizados terão sucesso semelhante ao de Jesus. Ou seja, os irmãos do rosário que
aceitarem a vida de Cristo e a proposta da doutrina cristã como prática religiosa alcançarão também
a vitória sobre o cativeiro. As mensagens da Ascensão e Pentecostes têm como intuito reforçar a fé
incondicional do irmão no poder absoluto de Deus que, ao testemunhar a elevação do corpo de
Cristo ao céu, é condicionado a acreditar na sua presença espiritual. Além do poder de Deus, os
mistérios ratificam o poder da Virgem como intermediária entre Deus e os homens e confirma a
autoridade dos apóstolos de Cristo na conversão dos fiéis de todo o mundo dando a eles o poder de
42VIEIRA. Sermão XXVII da série Maria Rosa Mística, p. 6.
43VIEIRA. Sermão XXVII da série Maria Rosa Mística, p. 12.

612
proclamar o evangelho em várias línguas. O sermão plástico é direcionado aos irmãos do rosário –
gentios em processo de conversão – que devem aceitar o evangelho e se converterem definitivamente
ao cristianismo renovando a Aliança com Deus por meio do batismo, não mais pela água, mas através
da presença do Espírito Santo.

Por fim, as duas últimas narrativas – a Assunção e a Coroação de Maria – convocam os fiéis a
adorar, louvar e glorificar a Rainha do Rosário – a protetora de todos os homens que, com devoção,
invocam seu nome. A narrativa plástica propõe o encerramento do ciclo da meditação dos mistérios
do rosário através de três invocações à Virgem Maria (figura 13).

Após a oração do Santo Rosário é costume rezar a ladainha, elas podem ser de súplica ou
louvor. As invocações representadas na Igreja do Rosário são laudatórias e apresentam a Virgem como
o caminho para a Misericórdia e a Salvação. Maria é a casa de ouro que acolheu Jesus, o Salvador; a
nova aliança entre Deus e os homens, que protege os seus filhos e guarda a promessa da salvação; a
porta de entrada para o céu e o caminho para a vida eterna. A Virgem é representada com uma coroa
de estrelas, muito provavelmente, doze estrelas que evocam a Mulher do Apocalipse, a nova Eva que
deu à luz ao Messias, representada no primeiro Mistério da nave da Igreja do Rosário – a Anunciação.
Esta mulher, a nova Eva, é a Virgem que vai interceder pelos cristãos diante de Cristo no dia do
julgamento final.

Figura 13: Casa Douradas. Pintura de forro da nave da capela de Nossa Senhora do Rosário de
Tiradentes, MG. Manoel Victor de Jesus, c. 1820. Fonte: foto da autora (2015).

Como prática essencial para a Salvação, percebe-se que a Irmandade do Rosário privilegiou o
ato de contrição – o arrependimento e a confissão dos pecados. O gesto de arrependimento é proposto

613
pela pintura da capela-mor e em dois momentos da narrativa plástica na nave da mesma igreja. Na
capela-mor, através da figura do anjo e de São Francisco de Assis; na pintura da nave, por meio da Virgem
Maria em dois episódios, a Ascensão do Senhor e a ladainha intitulada Arca da Aliança. A relevância à
remissão dos pecados está presente em toda a narrativa da Paixão de Cristo, na qual o discurso cristão
persiste na necessidade de o fiel vigiar os seus pensamentos, livrar das tentações e se libertar da vida
material. O valor consagrado ao arrependimento e à confissão dos pecados foi constatado, inclusive,
no Inventário da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Vila de São José, no
qual os irmãos do rosário tiveram o cuidado de fazer a descrição pormenorizada de um Sumário de
Indulgências contendo diversas práticas de rezas e confissões. O livro foi listado como patrimônio da
Confraria e revela a importância dada ao ato de contrição.44A promessa da Salvação da alma constitui
o pilar do discurso cristão e é oferecida ao fiel que, pela fé em Cristo, confessa os seus pecados e, como
recompensa, é perdoado e renasce para uma vida eterna no plano espiritual – a Glória de Deus.

Em síntese, concluímos que o projeto iconográfico exprime a relação entre a pintura, com uma
proposta de cunho teológico, que visa evangelizar e converter os membros da irmandade provenientes
de diversas nações e, consequentemente, portadores de distintas concepções culturais e religiosas.
Nesse processo de evangelização e encontro entre culturas, acredita-se que a arte constituiu um
importante instrumento de integração entre os irmãos do rosário pretos e a Igreja Católica.

No tocante à fatura artística, verifica-se que o pintor da nave seguiu o programa iconográfico
determinado pela irmandade e desenvolveu o seu projeto a partir da interpretação das fontes presentes
nos impressos europeus, que circularam por Minas Gerais no período colonial: os Missais, os Registros
de Santo, as Ladainhas e as gravuras avulsas. O uso dos impressos europeus como fonte de referência
conferiu ao conjunto pictórico a coexistência de vários estilos de arte.

Por fim, as pinturas de teto da nave da Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos
revelam a atuação do pintor que utilizou, na sua maturidade45, os meios plásticos necessários para
propagar o discurso cristão e transmitir a mensagem aos observadores. O modelo formal da obra
de arte foi fundamentado na verossimilhança, na persuasão e, muito provavelmente, cumpriu com o
propósito da imagem religiosa e devocional: atrair o observador para o culto católico, inserir o fiel ao
espaço sagrado, torná-lo testemunha ocular do episódio sacro e convencê-lo da veracidade das cenas
representadas, contribuindo para a conversão dos gentios à fé católica.

44Arquivo Eclesiástico da Diocese de São João del-Rei. Inventário da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário da Vila
de São José, Comarca do Rio das Mortes, 1749-1792. Sumário de Indulgências de 1782. Cx. 03/Livro 10.
45Este forro foi a última pintura de teto realizada por Manoel Victor de Jesus, que morrerá poucos anos depois,
em 1828.

614
Bibliografia:

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CHEVALIER, Jean / CHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas,
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PAMPALONI, Massimo. A “Forma”do Jesuíta: os Exercícios Espirituais. In: ROMEIRO, Adriana / MELLO,
Magno Moraes. Cultura Arte & História: a contribuição dos jesuítas entre os séculos XVI e XIX. Belo Horizonte,
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VIEIRA, P. Antônio. Sermão Nossa Senhora do Rosário com o Santíssimo Sacramento (1654), Literatura
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VIEIRA, Padre Antônio. Sermão III – Maria Rosa Mística. Sermões escolhidos, v. 2, São Paulo: Edameris, 1965,
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blogspot.com.br/2012/11/sermao-xxvii-da-serie-maria-rosa.html]. Acesso em: 29 de nov. 2016.

615
Nascimento e conversão de São Francisco de Assis em azulejos
Sílvia Barbosa Guimarães Borges1

O Convento de São Francisco, em Salvador/ Bahia, possui painéis azulejares em grande par-
te de sua área construída. Encontram-se na igreja, nos corredores térreos, na sacristia, na capela do
capítulo, na portaria, bem como nas paredes e nos peitoris internos e externos dos dois andares do
claustro. Com temáticas diversas, apresentam cenas de sentido moralizante, imagens de eremitas, pas-
sagens do Antigo Testamento, cenas galantes e de caça, bem como narrativas referentes às vidas de
Santo Antônio e São Francisco. Este trabalho lança foco em dois painéis, dedicados ao patriarca da
Ordem dos Frades Menores.

Os objetos em questão são dois painéis azulejares monumentais com 25 peças de altura e 41 de
largura . Estão localizados na igreja sob o coro alto, de modo que ladeiam os visitantes que adentram
2

a igreja por sua porta principal. Diferentes dos demais azulejos de todo o convento, suas cercaduras
superiores não são recortadas, ladrilhos brancos completam os intervalos até a altura máxima da
moldura.

Para Michael Baxandall,

Toda explicação elaborada de um quadro inclui ou implica uma descrição complexa


desse quadro. Isso significa que a explicação se torna parte de uma descrição maior
do quadro, ou seja, uma forma de descrever coisas nele que seriam difíceis de descre-
ver de outro modo. Mas, se é verdade que a “descrição” e a “explicação” se interpene-
tram, isso não nos deve fazer esquecer que a descrição é a mediadora da explicação. 3

É a partir dessa premissa que serão apresentados os painéis azulejares. Ao lado da epístola,
vê-se o nascimento de São Francisco e, ao lado do evangelho, cenas de sua conversão. Os temas são
exibidos a partir de um mesmo padrão – cenas complementares que traduzem uma ideia central.

A moldura é elemento integrador dos dois painéis. Ambos possuem a mesma composição.
A partir de estruturas arquitetônicas são incorporados elementos ornamentais cujos moldes foram
largamente divulgados através de estampas. Os modelos ornamentais circulavam em álbuns de gravu-
ras como o de Fillipo Passarini ou em livros dedicados à temática religiosa que eram compostos por
texto e imagens4. O caso de Letania Lauretana de la Virgen Santíssima é exemplar, pois cada uma das

1 Desenvolve pesquisa sobre o Barroco, com Bolsa de Pós-Doutorado Júnior/ CNPq, junto ao PPGAV/
EBA/ UFRJ. É Doutora em Artes Visuais, com ênfase em História e Crítica da Arte, pela Escola de Belas Artes
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, tendo realizado estágio doutoral (Bolsa PDEE/ Capes) na Universi-
dade do Porto. É Mestre pela mesma instituição e Bacharel em História pela UFRJ.
2 Cada peça possui 14 x 14cm.
3 BAXANDALL, Michael. Padrões de intenção: A explicação histórica dos quadros. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2006. p. 32. [grifo nosso]
4 PASSARINI, Filippo. Nuove inventioni d’ornamenti d’architettura e d’intagli diversi utili ad Argen-
tieri intagliatore ricamatori et altri professori dele buone arti del disegno. Roma: Pace da Domenico de
Rossi erede di Gio. Giocomo de Rossi, 1698.

616
cenas gravadas apresenta um tipo de cercadura5. O repertório ornamental utilizado pelos gravadores
era frequentemente reapropriado pelos oficiais entalhadores e pintores de azulejos. De tal modo que
uma mesma cartela de ornamentos poderia integrar um sem número de novas composições que de-
limitavam as pinturas figurativas azulejares. Nos painéis em questão, guirlandas, rocailles, mascarões,
curvaturas côncavas e convexas, casas de abelha, flores e vasos compõem um arranjo único, criando
uma espécie de moldura cenográfica.

A diferença entre as duas molduras está concentrada na parte superior da cercadura entre
feixes de trigo e sob um mascarão. No interior do medalhão do painel que trata do nascimento de
São Francisco há quatro objetos: um livro, instrumento de flagelação, cruz e um crâneo. Sobre o livro
estão cruzados um instrumento de flagelação e a cruz. O crâneo está acima deles. O livro é referência
à bíblia, a qual estão agregados atributos vinculados ao sacrifício e à penitência.

Já no outro painel, dedicado à conversão, constam, com a cruz ao fundo, o braço de São Fran-
cisco com o hábito e o braço nu de Jesus Cristo – que constitui símbolo da Ordem dos Frades Menores
e também pode ser visto em outros locais de destaque, como na fachada da própria igreja.

Nascimento de São Francisco

À direita de quem adentra a igreja, ao lado da Epístola, o painel é composto por três cenas
divididas por construções arquitetônicas que indicam acontecimentos ocorridos em lugares e tempos
distintos. No painel, vê-se um ser alado a receber algo de uma dama que está à porta. Ao lado, duas
mulheres caminham e uma delas recebe raios vindos de uma estrela. No centro, uma mulher é am-
parada por outra enquanto um menino está sobre um cercado de palha coberto por uma manta. As
personagens estão entre animais – um camelo, um cavalo e um boi e ruínas de colunas. Na sequência,
duas mulheres estão diante do mesmo ser que tem o menino nos braços e aponta para a cruz em seu
ombro. Na extremidade direita do painel, entre uma parede e a moldura, identificam-se quatro figuras
demoníacas em meio ao que parecem ser labaredas e fumaça.

Os fatos apresentados estão em conformidade com a narrativa da Crônica da Ordem dos Fra-
des Menoresde Frei Marcos de Lisboa6. Essa obra circulou por toda a Europa e foi traduzida para
diversas línguas e seu autor viveu no século XVI e foi bispo do Porto. O franciscano contribuiu lar-
gamente para a construção da história dos frades menores, enaltecendo o valor de seu patriarca e dos
religiosos que o seguiram.

De acordo com a Crônica, o nome de Francisco havia sido dado por sua mãe em detrimento
ao nome João, como determinado pelo pai, rico mercador, no momento de seu batismo. Nasceu no
ano de 1182, na cidade de Assis, Itália. Esta informação pode parecer incongruente com a pintura

5 DORNN, Francisco Xavier. Letania Lauretana de la Virgem Santíssima, empressada en cincuenta y


ocho estampas, é ilustrada con devotas meditaciones, y oraciones. Valencia: Viuda de Joseph de Orga,
1758. Neste trabalho utilizamos esta edição, porém, outras constam nas arquivos e bibliotecas da mun-
do ibero-americano.
6 LISBOA, Frei Marcos de. Crónica da Ordem dos Frades Menores. Lisboa: Officina de Pedro Crasbeeck, 1557,
1562, 1570. 3 vol. [Fac-simile publicado pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2011]

617
apresentada. Contudo, é a narrativa hagiográfica que embasa essa construção visual.

Frei Marcos de Lisboa, após oferecer informações sobre a família de São Francisco e a escolha
de seu nome, trata de sua natividade.

...antes de seu nascimento estando a mãe com dores de parto alguns dias mui
angustiada, chegou à porta um pobre peregrino, e recebendo esmola disse a quem
lhe trouxe. Essa mulher que está para parir, levem-na a uma estrebaria e logo parirá,
e levada a uma estrebaria mais perto das suas casas, pariu logo. E neste lugar onde
nasceu S. Francisco está uma capela em memória do seu nascimento, que Cristo quis
que fosse semelhante ao seu, em lugar vil e pobre e tem pintada a história deste mila-
gre, e chamam-lhe S. Francisco pequenino. 7

A leitura desse trecho da Crônica esclarece detalhes do que se consta no painel. O ser alado não
é um anjo propriamente. De chapéu, vestes à altura dos joelhos, uma bolsa presa ao cinto e botas, car-
rega uma espécie de cajado com sinos no topo. A concha em sua capa é reconhecido símbolo atribuído
a romeiros. Em conformidade com o texto, é possível afirmar que se trata de um peregrino. As asas
denotam sua ação angelical. Os anjos são comumente apresentados como mensageiros entre o mundo
celestial e o mundo terreno, portanto, não representaria absurdo associar esta figura ao anúncio da
chegada de Cristo à Virgem Maria, também feito por um anjo.

No caso franciscano, o anjo peregrino traz a solução para o sofrimento da mãe do futuro santo:
sair de sua casa e ir a uma estrebaria. Trocar o conforto de sua residência pela simplicidade de um
estábulo. Não apenas na narrativa escrita, mas igualmente na narrativa visual percebe-se a intenção de
vincular a imagem de São Francisco à de Cristo. Como afirma Jacques Le Goff,

os franciscanos deram um modelo histórico concreto do homem novo, penitente


dilacerado e finalmente crucificado: o próprio Francisco, única personagem, no cris-
tianismo, a ter desempenhado, à imitação do modelo de Jesus e em seguimento a ele,
esse papel na cristandade do Ocidente.8

A “última” parte do painel pode ser compreendida como síntese da associação entre as duas
personagens. Duas mulheres estão junto ao anjo peregrino. Uma delas parece ser a mãe de Francisco
como indicam sua rica indumentária. O anjo peregrino aponta para o ombro do menino, onde há uma
cruz pintada em tonalidade manganês.

Esse é o único elemento dos painéis de todo o convento que não foi pintado em azul cobalto.
O destaque dado ao pormenor se justifica por seu significado. A singela cruz indica o valor do futuro
santo, sugere predestinação. Desde seu nascimento já seria possível identificar sua santidade, confir-
mada ao longo de sua vida religiosa, registrada por seus biógrafos.

Nas paredes da sacristia da igreja conventual há dezessete pinturas que apresentam passagens
da vida de São Francisco, além de pinturas em caixotão que compõem o teto. Dentre os quadros estão
seu nascimento, milagres atribuídos ao santo, tentações pelas quais teria passado, sua conversão e sua
morte. Frei Jaboatão, ao descrever o espaço da sacristia, dá destaque a estas pinturas.
7 Idem. parte I. livro 1. f. 1.
8 LE GOFF, Jacques. São Francisco de Assis. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 242.

618
Na do meio tem lavatório de mármore, dois caixões da outra parte de pau de jaca-
randá preto com seus espaldares do mesmo, tudo de entalha, e molduras, altar com
nicho dourado no meio, em que se venera a Imagem do Senhor crucificado; e nas
ilhargas dois Armários de gavetas para os amictos da mesma escultura, e madeira,
que tomam do pavimento ao teto. Este é forrado de molduras douradas, e painéis
de grave pintura, e outras pelas paredes com os passos principais da vida, e ações do
Seráfico Patriarca.9

Este programa iconográfico foi estudado por Luís de Moura Sobral e publicado no livro orga-
nizado por Maria Helena Flexor que é dedicado ao Convento de São Francisco. Ao referir-se à pintura
de um dos milagres de São Francisco – transformação da água em vinho – o historiador da arte afirma
que “a composição de Salvador é bastante semelhante à gravura de Phillip Galle, de 1587, com o mes-
mo episódio”10.

Phillip Galle (1537-1612) foi importante gravador que atuou em Antuérpia. Grande número
de suas estampas foi publicado pelo conhecido editor Hieronymus Cock (1610-1570). Assim como
no caso das oficinas azulejares, o trabalho dos gravadores era desenvolvido por mestres e aprendizes
e, graças à intensa reprodutibilidade desta técnica, é recorrente encontrar gravuras inventadas por
Phillip Galle executadas e/ou reeditadas por outros artistas e impressores. A dinâmica de funciona-
mento de uma oficina de gravura pode ser apreendida através de uma de suas estampas em que apre-
senta indivíduos em atividade, cada qual em sua função.

No acervo da Biblioteca Nacional há duas obras ilustradas dedicadas à vida de São Francisco11.
Na encadernação de D. Seraphici Francisci totius evangelicae per fectionis exemplaris, ad Miranda
historia constam dezoito estampas, incluindo a folha de rosto e um retrato do santo12. As imagens
tratam de sua vida, desde seu nascimento até eventos ocorridos após sua morte. Gravadas por Phillip
Galle, possuem todas um mesmo padrão.

Acima há um título, ou mote. Ao centro, a parte ilustrada é, em geral, constituída por diversas
cenas que denotam eventos ocorridos em tempo e espaço distintos, mas sempre relacionados à cena
principal. Cada uma delas possui uma pequena letra que indica a legenda que se encontra na parte
inferior da estampa e traz referências ao principal biógrafo do santo de Assis – São Boaventura (1221-
1274) 13.

9 JABOATÃO, Frei Antônio de Santa Maria. Novo Orbe Seráfico Brasílico ou Chronica dos Frades Menores da
Província do Brasil. Recife: Assembléia Legislativa do Estado, 1980. tomo 2 p. 263. [grifo nosso]
10 SOBRAL, Luís de Moura. Ciclos das pinturas de São Francisco. In: FLEXOR, Maria Helena Ochi, FRAGOSO, Frei
Hugo. (Org.) Igreja e convento de São Francisco da Bahia. Rio de Janeiro: Versal, 2009. p. 271-312. p. 275.
11 As duas obras aqui utlizadas foram amplamente difundidas, tendo suas estampas circulado pelo mun-
do ibérico. Pertencentes a um arquivo brasileiro, são utilizadas neste trabalho por se tratar de publica-
ções completas, que abarcam toda a vida do santo.
12 D. Seraphici Francisci totius evangelicae per fectionis exemplaris, ad Miranda historia. Gravu-
ras de Phillip Galle. XVI.
13 De autoria de São Boaventura são as Legenda Maior e Legenda Menor. A distinção quanto ao tamanho
é decorrente de suas funções. A primeira é voltada para leitura que acontecia nos referitórios e a segun-
da para o Ofício Divino. Sua construção partiu de outras duas obras sobre a vida do santo – de Tomás
Celano e de Juliano de Espira. Neste trabalho utiliza-se, por oferecer narrativa mais completa, preferen-
cialmente a Legenda Maior.

619
Na estampa destinada ao nascimento, à esquerda, vê-se uma imagem familiar. Como no pai-
nel de azulejos, duas mulheres estão diante de um anjo peregrino que está com o menino sobre um
de seus braços enquanto aponta para ele. Na estampa não consta a cruz, mas as semelhanças entre a
iconografia dos dois suportes são inegáveis. Não seria prudente, ou mesmo adequado, afirmar que
esta exata estampa, ou exemplar desta obra, tenha servido aos pintores de azulejos. Todavia, não há
dúvidas de que estampas eram utilizadas como instrumentos de referência pelos pintores portugueses.

Como demonstrou Ana Paula Correia, ao estudar azulejos do Palácio Fronteira, em Lisboa,
em um painel poderiam ser empregadas diversas estampas14. Os pintores, a partir das iconografias das
gravadas, criavam novas composições coerentes com os cânones religiosos e que atendiam às exigên-
cias do lugar onde seriam aplicados os azulejos. Para compor este grandioso painel podem ter sido
utilizadas esta e outras estampas.

Outro livro ilustrado que poderia ter servido de modelo para os pintores do painel em questão
é Vita del Serafico S. Francesco15. Escrito por São Boaventura, foi publicado em 1604, com todas as
licenças necessárias. Nele constam textos e imagens que funcionam de modo complementar para a
compreensão do leitor. A primeira de suas nove estampas apresenta figuração bastante semelhante à
gravura de Phillip Galle. Vale notar que os eventos estão em ordem inversa à outra, demônios à es-
querda e anjo peregrino e mulheres à direita. De modo semelhante ao azulejo, os acontecimentos são
divididos por construções que indicam diferentes lugares.

Representar o nascimento do santo desta maneira não é uma inovação azulejar, nem mesmo
do setecentos. Na antiga Igreja de São Francisco em Montefalco, na Itália, encontra-se um afresco de
Benozzo Cozzoli (1421-1497) que data de 1452 e apresenta a natividade de São Francisco como evento
ocorrido em local simples, cercado por animais. No mesmo afresco está a cena do peregrino à porta,
sendo atendido por uma das servas da casa. Aqui, contudo, ele não aparece com asas. O tema também
pode ser visto em um dos painéis de azulejos do antigo Convento de São Francisco de Estremoz, em
Portugal, onde estão pintados o nascimento e a morte de São Francisco.

Ao retomar a atenção para as estampas do acervo da Biblioteca Nacional percebe-se um gran-


de número de demônios. O mesmo se nota no painel sob o coro, onde estão em menor número. Ainda
que em proporções distintas, ambos lembram que o nascimento do Santo afastou os demônios, como
sugere a legenda em latim da estampa de Phillip Galle16.

Não constitui objetivo desse artigo propor uma genealogia do modo de representar o nasci-

14 Cf. CORREIA, Ana Paula Rebelo. Estampa e azulejo no Palácio Fronteira. Azulejo. Lisboa: Museu Nacional do Azu-
lejo, 1995-1999. Nº 3/7. p. 05-22.
15 BOAVENTURA, São. Vita del Serafico S. Francesco. Venetia: Her. Simon Galignani, 1604.
16 “Francisco nato infernos turbatur, ângelus in peregrini specie infantulum complexans daemonum
insidias praedicit. Conform. Fruct. 4. Capitur a Perusinis. Conform. Fruct. 5. In: D. Seraphici Francisci
totius evangelicae per fectionis exemplaris, ad Miranda historia. Gravuras de Phillip Galle. XVI.

620
mento de São Francisco, ou construir uma “história dos tipos”17. A intenção é corroborar a inserção
deste painel do convento de Salvador em uma tradição que vincula o Santo de Assis à figura do Cristo.

No Prólogo da Legenda Maior, São Boaventura enfatiza o desejo do santo em “viver em con-
formidade com Cristo” e já anuncia que ele teria nascido “predestinado para o ministério angélico”18.
E, no Convento de São Francisco, a pequena cruz em coloração manganês marca sua “predestinação”
para a vida religiosa, tão enaltecida nas hagiografias, que será confirmada no painel defronte a este.

Conversão de São Francisco

O painel da conversão pode ser analisado em três partes. À direita vê-se um jovem ao lado de
seu cavalo. Ao fundo é possível identificar uma cidade distante. Ao centro, o mesmo rapaz aparece em
uma pequena ermida, ajoelhado diante de um crucifixo. Estas duas partes do painel sugerem eventos
sucessivos, momentos que se seguiram e cuja narrativa pode ser apreendida tanto na Crônica da Or-
dem, como nas Legendas Maior e Menor de São Boaventura. Teriam ocorrido após o jovem Francis-
co já ter demonstrado inclinação para a vida religiosa, mas sem conseguir convencer seu pai de sua
escolha. As hagiografias, até então, destacam a insegurança do jovem: “Pensativo o servo de Cristo
Francisco, como se faria pobre renunciando ao mundo, e dando o que tinha por amor a Deus, como
não tivesse mestre algum que o ensinasse em estas coisas, senão só Jesus Cristo”19. O vínculo entre
Francisco e o Cristo, construído ainda em seu nascimento, segundo os escritos da Ordem, se confirma
ao longo de sua vida e juventude. Portanto, é o próprio Cristo quem o convida para sua Igreja. Essa
convocação está apresentada em azulejo.

O rapaz teria se afastado da cidade, vista ao fundo, buscando um “lugar solitário para me-
ditar” . Ao se deparar com a capela de São Damião, já deteriorada pelo tempo, teria descido de seu
20

cavalo para orar. Momento que é apresentado no painel.

...lançado em terra ante a imagem do Crucifixo, foi cheia a sua alma de uma grande
consolação do Espírito Santo, e com grande fervor fez três vezes esta oração. O alto e
glorioso Deus e meu Senhor Jesus Cristo, aluminai as trevas de meu coração e dai-me
Fé direita, esperança certa, e caridade perfeita, e conhecimento de vós Senhor, assim
que eu faça a vossa santa e verdadeira vontade. Amém. E como com olhos cheios de
lágrima olhasse com muita atenção em a Cruz do Senhor, ouviu uma voz com os ou-
vidos corporais do Crucifixo a ele dirigida, que lhe disse três vezes Francisco vai me
reparar minha casa, que como vês está caindo.21
17 Erwin Panofsky chama “história dos motivos” ou “história dos tipos” o estudo das fórmulas icono-
gráficas. Este tipo de investigação abarca o profundo conhecimento da época em questão, através de
fontes literárias e imagéticas, a fim de identificar continuidades e mudanças no modo de representar
determinados temas. Cf. PANOFSKY, E. Introdução: A História da Arte como uma disciplina humanística.
In: Significado das artes visuais. Perspectiva: São Paulo, 2002. p. 17-46.
18 BOAVENTURA, São. Legenda maior e Legenda menor: Vida de São Francisco de Assis. Petrópolis:
Vozes, 1979. p. 17.
19 LISBOA, Frei Marcos de. Crónica da Ordem dos Frades Menores. Lisboa: Officina de Pedro Crasbee-
ck, 1557, 1562, 1570. 3 vol. parte I. livro 1. f. 2v.
20 Idem. parte I. livro 1. f. 2v.
21 Ibidem. parte I. livro 1. f. 2v, 3.

621
A narrativa continua enfatizando o espanto de São Francisco. No painel o jovem está genuflexo
diante do crucifixo, de onde “saem” as palavras em latim: Vade Francisce repara domum mean, quo
labitur. A frase imperativa solicita que o santo reforme a igreja.

Na Basílica de São Francisco de Assis, na Itália, um dos afrescos de Giotto di Bondone (1267-
1337) é dedicado a este evento. Apresenta o santo de joelhos diante do crucifixo, mas não constam em
sua composição as palavras do Cristo. Pintura análoga também pode ser vista em um dos quadros do
conjunto de pinturas que está disposto nas paredes da sacristia do convento de Salvador. O jovem de
vestes em tom de amarelo é apresentado duas vezes no mesmo quadro, uma ao lado de seu cavalo e
outra de joelhos diante do altar. A indicação de dois momentos ocorridos em sequência se mantém.
As palavras “ditas” pelo crucificado seguem a mesma estrutura do azulejo.

Como ocorrido no painel sobre o nascimento, esta figuração foi feita a partir de modelos gra-
vados. Estampas das duas obras anteriormente apontadas revelam profundas semelhanças com o azu-
lejo. Detalhes como o lugar de seu chapéu e espada, a construção do espaço da ermida que permite
ao observador ver o interior e o exterior do templo, e, especialmente, as palavras designadas ao santo
revelam recorrências iconográficas. E ainda que existam algumas mudanças na grafia, remetem à mes-
ma recomendação – a reconstrução da pequena igreja.

As legendas das imagens gravadas e o texto de São Boaventura explicitam as atitudes do jovem
após a “revelação”. Segundo os textos, o santo “vai a galope até Foligno, vende sua mercadoria jun-
tamente com o cavalo que lhe servira de montaria”22. Na composição da cena azulejar vê-se o rapaz
diante de seu cavalo indicando ao observador a existência deste bem e sugerindo seu posterior des-
prendimento.

Entretanto, uma distinção se destaca. As vestes do jovem diferem. É evidente que tanto na
estampa como no azulejo há uma intenção em representar o rapaz com vestimenta fina, indicando
sua posição social. Mas em nenhum dos dois suportes – papel ou azulejo – a personagem é apresen-
tada com trajes comuns à Assis do século XIII, em que São Francisco viveu. Nas estampas e no painel
azulejar, a indumentária de São Francisco está em conformidade com a época em que são gravadas/
pintadas tais iconografias. Mais. No painel azulejar o jovem Francisco está vestido como um fidalgo
português do setecentos. Entre as cenas cortesãs que foram amplamente pintadas e aplicadas nas pa-
redes das casas das principais famílias do reino é possível ver, com frequência, esse tipo de vestimenta.
Neste mesmo convento, no segundo pavimento do claustro, há painéis cujas personagens também são
pintadas com trajes fidalgos. As figuras de convite, tão caras à azulejaria do século XVIII, possuem o
mesmo tipo de roupas. Esta adaptação também pode ser notada no crucifixo que não possui formas
comuns ao mundo medieval.

Conclui-se, portanto, que foi realizada uma interpretação do fato de acordo com a época e o
lugar em que foram concebidos os azulejos. Não houve preocupação em ser congruente ao passado
medieval, mas em traduzir a narrativa hagiográfica em recurso visual, tornando-a familiar aos fiéis
22 BOAVENTURA, São. Legenda maior e Legenda menor: Vida de São Francisco de Assis. Petrópolis:
Vozes, 1979. p. 27.

622
a fim de ser prontamente lida pelo público a que se destinava. Mesmo para o observador de nosso
tempo, a mensagem se mantém, ainda que suas roupas remetam ao século XVIII. De tal modo que im-
porta mais a mensagem, do que a fidelidade com a personagem ou com a época em que o santo viveu.

Jacopo de Varazze (1229-1298), em sua Legenda Áurea, afirma que “a partir deste momento
sua alma fundiu-se de compaixão pelo crucificado, que ficou maravilhosamente impresso em seu
coração”23. Para o autor medieval o acontecimento na igreja de São Damião configura marco funda-
mental da entrega do jovem ao Cristo. Esta “convocação” é um evento da hagiografia de São Francisco
construído de modo a confirmar o vínculo entre a imagem do santo à figura de Jesus Cristo.

Na terceira parte do painel de azulejos, o jovem Francisco está diante de um sacerdote. O reli-
gioso está sentado com sua capa magna presa por um trabalhado alamar e com a mitra sobre a cabeça.
De um lado estão representantes do clero e, de outro, homens com vestes nobres, um deles seria o pai
do rapaz. A iconografia em questão também se refere a um episódio de sua vida.

Consta na Legenda Maior que, após a visão na capela de São Damião, o jovem teria feito gran-
de doação ao religioso responsável pelo dito templo e se retirado para orações, provocando a ira de
seu pai24. Inconformado, o comerciante teria levado Francisco ao bispo para que afirmasse sua decisão
de seguir a vida religiosa, renunciando a sua herança após o falecimento de seu genitor. O rapaz, no
intuito de confirmar sua decisão, teria retirado suas vestes diante do clérigo, deixando que notassem
os silícios que trazia presos ao corpo. A pintura retrata o momento em que o bispo cobre o jovem com
uma roupa de um dos camponeses que o servia, segundo São Boaventura.

A organização dos fatos neste painel não segue uma lógica cronológica em que os eventos são
organizados de acordo com o momento em que ocorreram. Sua disposição revela uma lógica distinta
– a lógica da valoração. Ao centro, a cena mais importante – sua visão diante do crucificado. À esquer-
da, o jovem junto a seu cavalo, o que poderia ter ocorrido antes ou depois do “momento revelador”. Se
anterior, revelaria sua atividade de cavalgar como fidalgo. Se posterior, sua atitude de caminhar para
a cidade mais próxima, a fim de vender seus bens. As duas possibilidades lembrariam o observador
sobre os bens que possuía, aqui sintetizados na posse de um cavalo.

***

A construção destes painéis azulejares faz uso de um recurso comum a várias pinturas e que
foi amplamente utilizado nas estampas. Giulio Carlo Argan o chama de simultaneidade. Os três tem-
pos não seguem uma ordenação direta. São apresentados como uma única mensagem. No azulejo,
como na pintura de Masaccio dedicada ao tributo da moeda, “a história não é um desenvolvimento

23 DE VARAZZE, Jacopo. Legenda áurea: vida dos santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 837.
24 Cf. BOAVENTURA, São. Legenda maior e Legenda menor: Vida de São Francisco de Assis. Petrópo-
lis: Vozes, 1979. p. 27-29. Esta passagem também está registrada na Legenda Menor e na Crônica da Ordem:
BOAVENTURA, São. Legenda maior e Legenda menor: Vida de São Francisco de Assis. Petrópolis: Vozes,
1979. p. 27-29. p. 170.; LISBOA, Frei Marcos de. Crónica da Ordem dos Frades Menores. Lisboa: Officina
de Pedro Crasbeeck, 1557, 1562, 1570. 3 vol. parte I. livro 1. f. 3v, 4.

623
do passado para o presente, mas a realidade como um bloco”25. O painel expressa continuidade da
mensagem a ser transmitida.

O sentido de simultaneidade vai de encontro com a perspectiva de “ler imagens”. As imagens


constituem campo de construção – visual e mental – distinto dos processos de escrita e leitura. Ao
ver um painel como esses, as ideias são apresentadas de uma só vez. Seguem uma lógica que difere da
referência cronológica, pois que estão fundamentadas no que louvável. Não há passo a passo na de-
codificação, como nos processos de letramento. A imagem está centrada na narrativa mas, sobretudo,
na mensagem a ser transmitida.

Michel de Certeau compreende a hagiografia como gênero literário com características pró-
prias. Como tal, não trata do que aconteceu e, sim, “do que é exemplar”26. Portanto, diante das imagens
pintadas nos azulejos, não caberia questionar se ocorreram ou não, se o menino nasceu efetivamente
em um estábulo, se houve o aviso de um peregrino ou se ele teve tal visão. O sentido, o exemplar, con-
siste na confirmação da vocação de Francisco e de sua santidade.

O discurso hagiográfico “postula que tudo é dado na origem com uma ‘vocação’, como uma
eleição”27. A origem da santidade de Francisco é apresentada em dois momentos: seu nascimento e a
visão de São Damião, como é chamada sua conversão pela hagiografia. Seu pertencimento a uma rica
família e a seguinte renúncia aos bens seriam atos precursores de sua defesa da pobreza e da mendi-
cância.

Ao adentrar a igreja o observador se encontra entre pinturas em azul, mas não apenas. Está
cercado da vida do santo patriarca, de sua origem. Ao passar pelas portas do templo franciscano, o
observador é convidado a conhecer (ou rememorar) a gênese da Ordem que se interpenetra na vida
do santo de Assis. Sua santidade é anunciada em seu nascimento, confirmada diante do chamado do
crucificado e reafirmada ao longo sua vida, como se verá na capela-mor.

Integrados, os painéis formam um espaço imagético que envolve o observador na vida do


santo patriarca. Ao entrar na igreja, o fiel está entre o nascimento e a conversão de Francisco de Assis.
Está entre dois nascimentos, um corporal e outro religioso.

Mais do que compor espaços esteticamente, os azulejos constituem parte integradora da me-
mória da Ordem através da figura de seu santo fundador. Os monumentais painéis sob o coro são
dispositivos de memória.

25 ARGAN, Giulio Carlo. História da arte italiana: de Giotto a Leonardo. vol 2. São Paulo: Cosac & Naify,
2003. p. 183.
26 CERTEAU, Michel de. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. p. 267.
27 Ibidem. p. 273. [grifos do autor]

624
Bibliografia:

ARGAN, Giulio Carlo. História da arte italiana: de Giotto a Leonardo. vol. 2. São Paulo: Cosac & Nai-
fy, 2003.

BAXANDALL, Michael. Padrões de intenção: A explicação histórica dos quadros. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2006.

BOAVENTURA, São. Legenda maior e Legenda menor: Vida de São Francisco de Assis. Petrópolis:
Vozes, 1979.

____. Vita del Serafico S. Francesco. Venetia: Her. Simon Galignani, 1604.

CERTEAU, Michel de. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. p. 273.

CORREIA, Ana Paula Rebelo. Estampa e azulejo no Palácio Fronteira. Azulejo. Lisboa: Museu Nacio-
nal do Azulejo, 1995-1999. Nº 3/7.

DE VARAZZE, Jacopo. Legenda áurea: vida dos santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

DORNN, Francisco Xavier. Letania Lauretana de la Virgem Santíssima, empressada en cincuenta y


ocho estampas, é ilustrada con devotas meditaciones, y oraciones. Valencia: Viuda de Joseph de Orga,
1758.

D. Seraphici Francisci totius evangelicae per fectionis exemplaris, ad Miranda historia. Gravuras de
Phillip Galle. XVI.

FLEXOR, Maria Helena Ochi, FRAGOSO, Frei Hugo. (Org.) Igreja e convento de São Francisco da
Bahia. Rio de Janeiro: Versal, 2009.

JABOATÃO, Frei Antônio de Santa Maria. Novo Orbe Seráfico Brasílico ou Chronica dos Frades Me-
nores da Província do Brasil. Recife: Assembléia Legislativa do Estado, 1980.

LE GOFF, Jacques. São Francisco de Assis. Rio de Janeiro: Record, 2001.

LISBOA, Frei Marcos de. Crónica da Ordem dos Frades Menores. Lisboa: Officina de Pedro Crasbee-
ck, 1557, 1562, 1570. 3 vol. [Fac-simile publicado pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto,
2011]

PANOFSKY, E. Significado das artes visuais. Perspectiva: São Paulo, 2002.

PASSARINI, Filippo. Nuove inventioni d’ornamenti d’architettura e d’intagli diversi utili ad Argentieri
intagliatore ricamatori et altri professori dele buone arti del disegno. Roma: Pace da Domenico de
Rossi erede di Gio. Giocomo de Rossi, 1698.

625
Painel de azulejos, XVIII
Nascimento de São Francisco de Assis
Convento de São Francisco, Salvador, BA

Painel de azulejos, XVIII


Conversão de São Francisco de Assis
Convento de São Francisco, Salvador, BA

626
Phillip Galle, Gravura em metal, XVIII
D. Seraphici Francisci totius evangelicae per fectionis exemplaris, ad Miranda historia Acervo da Bi-
blioteca Nacional

Phillip Galle, Gravura em metal, 1604

Vita del Serafico S. Francesco

Acervo da Biblioteca Nacional

627
628
SIMPÓSIO TEMÁTICO 09
Representações da África e do Oriente: formas de ler e pensar os domínios portugueses do colonial
ao pós-colonial.

Coordenadores:

Patrícia de Souza Faria

Roberta Guimarães Franco

“Para favorecer a cristandade”: As iniciativas de conversão aos “meninos” em Goa (1540-


1606)
Camila Domingos dos Anjos1

Resumo: Com base nas expectativas criadas acerca da formação de uma nova cristandade constante e
fiel na fé, os jesuítas se empenharam na construção de Colégios e Casas de ler e escrever em diversas
regiões do Estado da Índia, onde se dedicaram a converter e a educar meninos nativos de até 15 anos
de idade. O presente artigo busca analisar as iniciativas de conversão aos meninos nativos em Goa.
Nosso foco consiste na análise das expectativas criadas em torno da conversão e da formação que os
meninos recebiam no Colégio de São Paulo. Investigaremos também as estratégias estabelecidas pelos
padres em utilizar os meninos nativos doutrinados para instigar a população adulta a se converter.

Palavras-chaves: Goa; meninos; conversão; jesuítas

Situada na costa ocidental da Índia, Goa tornou-se uma conquista militar portuguesa em 1510. Os
portugueses adotaram medidas político-administrativas a fim de garantir a manutenção dessa conquista, que
se tornou estratégica para sustentar a ampla rede de feitorias e fortalezas que os lusitanos estabeleceram no
Oriente, o Estado da Índia.2 Além do aparato militar e administrativo, a historiografia tem demonstrado o
papel da expansão da fé católica como uma das bases de sustentação do poder português em Goa. Graças ao
proselitismo católico, viabilizado pela ação das ordens religiosas e da construção de ampla rede paroquial, os
portugueses tentaram instituir uma “hegemonia cristã” em Goa, região em que outrora predominavam popu-

1 Doutoranda do programa de Pós-Graduação em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
e bolsista FAPERJ.
2 O Estado Português da Índia designava um conjunto de territórios, estabelecimentos, bens e pessoas geridos
pela Coroa portuguesa entre o Cabo da Boa Esperança e o Japão.1 Sem precisões jurídicas e constituído por
territórios geograficamente esparsos, o Estado da Índia tinha por essência um caráter de rede marítima. THO-
MAZ, L. F.De Ceuta a Timor. Lisboa: Ed. Difel, 1994, pp.249-250.

629
lações muçulmanas e “hindus”.3

A historiografia referente ao Oriente português tem abordado predominantemente os “agentes da con-


versão”, isto é, o papel dos missionários, especialmente dos jesuítas4, dos franciscanos5, dos agostinhos6, além
dos clérigos seculares naturais de Goa. O nosso objetivo consiste em analisar o processo de conversão em Goa,
porém, a partir de uma perspectiva distinta, cujo enfoque incide menos sobre tais agentes e mais sobre as popu-
lações que foram alvo desse processo de cristianização, especificamente as populações consideradas “menores”.

Objetivamos assim analisar as iniciativas de conversão aos menores goeses de até 14 anos, a partir das
cartas dos jesuítas organizadas na Documenta Indica e dos alvarás de reis de Portugal e de vice-reis do Estado
da Índia – reunidos no Arquivo Português Oriental (APO) entre 1540-1606. Analisaremos quais as estratégias
adotadas para que tais populações nativas interiorizassem as normas e as crenças cristãs. Dentre as populações
menores, trabalharemos especificadamente com a faixa etária de até 14 anos e exclusivamente com os não con-
vertidos nascidos no Estado da Índia.

Na medida em que nosso objeto de estudo consiste em investigar as estratégias de conversão das po-
pulações “menores” ou também chamados de “meninos”, consideramos importante trazer reflexões de ordem
conceitual sobre o que era “ser menor” na sociedade do Antigo Regime. Hespanha pontuou que os menores
constituíam um padrão para avaliar outras situações de humanidade diminuída. O que se dizia sobre eles di-
zia-se também sobre os rústicos, dementes ou velhos. A menoridade geralmente estava associada à carência do
ato de perceber o equilíbrio das coisas, de ter prudência. Enquanto os menores de sete anos careciam comple-
tamente da razão e não poderiam responder por nenhum de seus atos, os menores correspondentes à fase da
puerícia, isto é, até os quatorze anos, possuíam alguma inteligência e capacidade de dolo, portanto gozavam de
um juízo semipleno e poderiam compreender alguns pactos, como o casamento, por exemplo.7 Ressaltamos
que embora a legislação portuguesa estenda a menoridade até os 25 anos, o nosso foco incide sobre a “meninez”,
fase que abrange dos sete anos até a puberdade ou os quatorze anos.8 Período este em que ainda que “imperfei-
tos” eram perfeccionáveis quando submetidos à disciplina.9

No Estado da Índia a evangelização das populações nativas constituiu mais do que uma obri-
gação moral, como ponderou Xavier. A expectativa era de que os valores políticos fossem partilhados
através dos recursos religiosos nas partes mais longínquas do Império, onde as autoridades régias
possuíam muito pouco acesso. Por meio dos jesuítas, franciscanos, do clero secular e das estruturas
paroquiais, objetivava-se não só estender o catolicismo as populações nativas, como também expandir

3MENDONÇA, D. de. Conversions and citizenry: Goa under Portugal. New Delhi: Concep Pub, 2002; BO-
XER. C. R. Igreja e expansão Ibérica (1440-1770). Lisboa. Edições 70,1989.
4TAVARES, Célia Cristina da Silva. Jesuítas e Inquisidores em Goa: A Cristandade Insular (1540-1682). Lisboa:
Roma Editora, 2004.
5FARIA, P.S. A conquista das almas do Oriente: franciscanos, catolicismo e poder colonial português em Goa
(1540-1740). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013;Xavier,Â.B.,Zupanov,I.G.CatholicOrientalism.Portuguese Empire,
Indian Knowledge (16th-18th centuries). New Delhi: Oxford University Press, 2015.
6GONÇALVES, Margareth de Almeida. A edificação da cristandade no oriente português: questões em torno
da ordem dos eremitas de Santo Agostinho no limiar do século XVII. Revista de História, Brasil, n. 170, p. 107-
141, jan.-jun.2014.
7HESPANHA, A. M. Imbecilitas: as bem-aventuranças da inferioridade nas sociedades de Antigo Regime.Belo
Horizonte: AnnaBlume, 2008.
8 Ibidem, p.43.
9Ibidem, p.51.

630
a territorialização do Império e estender malhas administrativas.10

A chegada das ordens religiosas na primeira metade do século XVI e a implementação das
principais instituições existentes no reino em Goa exprimiam o anseio de interiorizar nas popula-
ções goesas valores e comportamentos cristãos. Posteriormente, foram promovidos em Goa cinco
Concílios Provinciais (1567,1575, 1585, 1592 e 1606), cujo resultado foi a produção de decretos que
buscavam incorporar as orientações tridentinas e impor uma disciplina cristã.11 Segundo Marcocci, o
momento foi de redefinição do panorama religioso local com a destruição de pagodes (templos hin-
dus), perseguições domésticas e coerção à conversão dos órfãos.12

Acerca desta última ação – a conversão compulsória dos órfãos – é importante enfatizarmos que, con-
forme a legislação portuguesa, era considerado órfão o menor de 25 anos, cujos pais eram falecidos, ou aqueles
incapazes de se reger, aos quais as Ordenações Filipinas mandavam atribuir um curador.13 A retirada compulsó-
ria dos órfãos de suas famílias constituiu,conformeRobinson,um dos principaismétodosparaestimulare coagir
a conversão das populações locais no Estado da Índia e visava o sequestro de meninas de até 12 anos (idade que
pode se estender até os 14, depende do alvará ou decreto) e meninos de até 14 anos de suas famílias para serem
entregues a um curador cristão ou ao Colégio de São Paulo.

Tendo em vista que os menores não ficaram alheios ao projeto colonizador cristão português e foram
objeto de atenção das instituições eclesiásticas e régias, indagamo-nos quais as iniciativas tomadas para promo-
ver a sua conversão? Quais as expectativas depositadas sobre eles? Quais ensinamentos recebiam?

É importante salientarmos que a retirada compulsória dos órfãos constituiu sem dúvida uma das prin-
cipais iniciativas de coerção a conversão dos menores. A questão foi envolvida por uma série de legislações que
oscilaram conforme os anos. Por vezes, a Igreja e a Coroa divergiram sobre em que situações o menor poderia
ser recolhido pelas autoridades. As constantes alterações referentes a legislação desencadearam em situações de
desentendimento e abusos, principalmente quando os menores eram retirados de suas famílias para serem con-
vertidos, independente se a mãe fosse viva. A situação gerou conflitos, migrações e assassinatos. Essas disputas
podem ser encontradas nas legislações do Arquivo Português Oriental e embora atravesse a nossa pesquisa, não
será o foco de nossa proposta neste artigo. Iremos nos dedicar as iniciativas empreendidas pelos jesuítas focadas
na educação e preparação do menor.

A análise referente as cartas dos jesuítas se limitará ao recorte 1540 a 1570, pois nossa pesquisa
segue em desenvolvimento. Ademais a partir de 1566 houve uma “padronização” do que era ensinado
aos meninos com a chegada da cartilha do padre Marcos Jorge.14 Os anos anteriores foram marcados
por uma educação mais experimental, subjetiva ao que os jesuítas consideravam importante ensinar e
limitada as dificuldades impostas pela questão do idioma e a simplicidade dos Colégios. Nos dedica-
remos a este primeiro momento.
10XAVIER, Ângela Barreto. A invenção de Goa: poder imperial e conversões culturais nos séculos XVI e XVII.
Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2008.
11FARIA, P. S. Os concílios provinciais de Goa: reflexões sobre o impacto da “Reforma Tridentina” no centro
do império asiático português (1567-1606). Topoi(Online): revista de historia, v.14.
12MARCOCCI, Giuseppe. A consciência de um império: Portugal e o seu mundo (sécs. XV-XVII). Coimbra:
Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012, p.394.
13RODRIGUEZ, Sônia Maria Troitiño. O Juízo de Órfãos de São Paulo: caracterização de tipos documentais
(XVI-XX).Tese (Doutorado em História), Universidade de São Paulo, 2010, p.51.
14 O primeiro relato que encontramos em nossa fonte referente a chegada da cartilha em Goa foi em 1566. Nas
demais regiões, os relatos indicam que a cartilha passou a circular partir da década de 1570.

631
Os jesuítas chegaram ao Estado da Índia em 1542. Na ilha de Goa concentrou-se, a princípio,
um grande movimento dos mesmos, porém, em função das suas pretensões missionárias, os membros
da Companhia de Jesus foram dispersos por todo o Oriente, onde se estabeleceram, fundaram Colé-
gios e buscaram exercer atividades educacionais.

Ângela Xavier acentuou que para difundir a doutrina cristã foi necessário recorrer a diversos
instrumentos que combinavam instâncias militares e políticas com dispositivos de “violências doces”
que prestassem educação e assistência as populações locais.15 Dentre esses dispositivos, destacamos a
ação dos jesuítas nas Confrarias, Casas ou Escolas de ler e escrever e nos Colégios.16

Em Goa, destacamos a atuação dos jesuítas no Seminário de Santa Fé (1542) e no Colégio de S.


Paulo (1548).17 A Confraria da Santa Sé foi criada em 1540 e se tornou um espaço dedicado a forma-
ção de um clero nativo.A princípio, os Jesuítas assumiram o encargo espiritual e temporal do Seminá-
rio. Apenas em 1549 os mesmos assumiram a manutenção financeira e administrativa. O Seminário
de Santa Fé se tornou o núcleo original do que viria a ser o primeiro Colégio jesuítico do Oriente, o
Colégio de São Paulo. 18

As instituições fundadas logo após os primeiros anos da chegada dos jesuítas no Oriente eram
bem rústicas, similarmente a condição econômica em que os missionários e os meninos viviam. Em
1552, por exemplo, ao escrever de Coulão, Nicolau Lancilotto relatou que a Igreja e o colégio que
foram construídos eram bem simples, cobertos de folha de palma, mas que esperava futuramente
construir um colégio de cal e pedra, onde iria instruir meninos nobre de até 12 anos de idade, esses
que sucederiam os lugares de seu pai ocupando posições importantes, regendo povos e multiplicando
as conversões.19 Com a ajuda de dois irmãos, Lancilotto ensinava os meninos a ler e escrever, bem
como rudimentos da fé, “os mandamentos, orações com declaração da criação do mundo, dos anjos,
dos demônios, dos homens, do paraíso, do inferno, do pecado e da graça”.
15 XAVIER, A.B. Op., cit, pp. 18-35.
16A Companhia de Jesus é uma congregação religiosa que tem uma imagem fortemente associada a educação e
no Estado da Índia não foi muito diferente. Ainda nos primeiros anos das missões evangelizadoras até o século
XVII, uma série de colégios, casas de ler e escrever e espaços dedicados a educação dos meninos e ao ensino
das primeiras letras e doutrina cristã. São esses: “Colégio de Jesus de Baçaim (1548); Colégio de Santo Inácio de
Rachol (1574); Seminário de Rachol (ano da fundação desconhecido); Colégio das Onze Mil Virgens de Damão
(1581); Colégio da Madre de Deus de Taná (1599); Seminário de Taná (1551); Colégio do Espírito Santo de Diu
(1601); Colégio de S. Pedro e S. Paulo de Chaul (1611); Colégio de Ascensão de Moçambique (1613); Colégio da
Ascensão de Moçambique (1613); Colégio de Nª Sª do Nascimento de Agra (1630); Escola de Bandorá (1576).
Província do Malabar: Colégio da Madre de Deus de Cochim (1560); Seminário de Cochim (1560); Colégio de
Malaca (1576); Seminário de S. Cruz de Vaipicota (1584); Colégio de Coulão (séc. XVI); Seminário de Coulão
(séc. XVI); Colégio de Tuticorim (séc. XVI); Seminário de Tuticorim (séc. XVI); Colégio de Meliapor (séc.
XVI); Seminário de Meliapor (séc. XVI); Colégio de Ternate (séc. XVII); Colégio de Cranganor (séc. XVII);
Colégio de Colombo (séc. XVII); Colégio de Jafanapatão (séc. XVII); Colégio de Bengala (séc. XVII); Colégio
de Negapatão (séc. XVII); Colégio de Ambalacata (1633); Seminário de Ambalacate (1663); Colégio do Topo
(séc. XVII)”. MANSO, Maria de deus. Convergências e divergências: O Ensino nos Colégios Jesuítas de Goa e
Cochim durante os séculos XVI-XVIII, in CAROLINO, Luís Miguel; CAMENIEtZKI, Carlos Ziller, Jesuítas,
Ensino e Ciência, séc. XVI-XVIII, Casal de Cambra, Caleidoscópio,p.167.
17. TAVARES, Célia C. da S. Francisco Xavier e o Colégio de Goa. Revista Em Aberto, v. 21, n° 78, 2007. p.
121-134.
18Ibidem, p.126.
19WICKI, Joseph. Documenta Indica. Roma: Monumenta Histórica Jesu, 1950, v.II, pp. 376-385.

632
As Casas de ler escrever e os Colégios constituíram a primeira experiência pedagógica mais
“formal” empreendida pelos jesuítas no Estado da Índia, e conforme a carta de Lancilotto, podemos
perceber queem pequenas e simples estruturas, guardava-se grandes pretensões.

A importância dessas instituições já havia sido prevista por Inácio de Loyla. O fundador da
Companhia escreveu ao patriarca da Etiópia João Nunes Barreto incentivando-o a criar Casas de ler
e escrever para a conversão das populações locais ao catolicismo, sobretudo a mocidade. Conforme
Loyola, as crianças ao terem a sua formação dentro dos ensinamentos católicos e dos bons costumes
poderiam extinguir seus antigos erros.20

Nas Casas de ler e escrever e nos Colégios, o ensino da doutrina cristã incluía a educação das
primeiras letras. Em nenhuma carta analisada por nós até o momento, essas instâncias aparecem se-
paradas. Inclusive, na maior parte dos Colégios e Casas de ler e escrever, o ensino se resumia apenas a
isso. O Colégio de São Paulo, contudo, representou uma exceção.

No século XVI, o Colégio de São Paulo pôde contar com mais investimento financeiro e educa-
cional do que qualquer outro Colégio no Estado da Índia. Em 1552, Luis Frois relatou que havia sido
iniciado no Colégio de São Paulo o ensino da gramática com um homem muito virtuoso, companhei-
ro dos irmãos da Companhia, que havia se dedicado a ensinar fora. Era mestre em artes e sabia muito
bem o grego, logo era competente para o trabalho. A ele vinham muitos filhos de pessoas importantes
da cidade e alguns até de fora de Goa. Planeja-se que no próximo ano o ensino das artes fosse execu-
tado. Dentro do Colégio os irmãos ouviam Virgílio, Ludovicus, grego e epístolas familiares, enquanto
que os meninos ouviam e cantavam sintaxes e artes. 21

A estrutura do Colégio de São Paulo e o conteúdo ensinado aos alunos (canto, latim, gramá-
tica e artes, posteriormente teologia é acrescida) era mais ampla e complexo quando comparado aos
demais Colégios e principalmente as Casas de ler e escrever. Inclusive, a rotina de aprendizagem era
completamente distinta: enquanto nas Casas de ler e escrever os meninos eram reunidos por algum
padre ou irmão que ia a cidade com uma campainha chamá-los para aprenderem a doutrina por al-
gumas horas, no Colégio de São Paulo, os meninos eram preparado s para compor um clero nativo e
por residirem no estabelecimento, estavam suscetíveis a uma rotina mais completa de ensinamento.

Luis Frois (1552) explicita que no Colégio o tempo era gasto da seguinte forma: as quatro da
manhã, os irmãos acordavam e meditavam até as cinco, horário em que se iniciava a missa dos es-
tudantes, esta que se estendia até as seis e meia. As sete os meninos iam estudar por três horas. Em
seguida, os mesmos faziam os seus exames e depois possuíam mais meia hora para “praticar ao Se-
nhor”.22 Eram meninos de todas as nações e castas, inclusive mestiços e órfãos. Mediante a esta hetero-
geneidade, organizava-os do seguinte modo: no primeiro repartimento dormia os meninos menores
da terra; no segundo repartimento dormia os mestiços e os da terra. Ambos os repartimentos estavam
20COSTA, C.J. Educação jesuítica no Império Português do século XVI: o colégio e o Ratio Studiorum. In: José
Maria de Paiva; Marisa Bittar; Paulo de Assunção. (Org.). Educação, História e Cultura no Brasil Colônia. 1ed.
São Paulo: Arké, 2007,pp. 29-44.
21 WICKI, Joseph. Op., cit, vol.II, pp. 445-491.
22 Ibidem, pp.463-464.

633
sob tutela e vigia do irmão Pedro D’almeida e Inofre (órfão de Portugal) à noite. No terceiro reparti-
mento dormia os órfãos e os “pequenos” que vinham de Portugal. No quarto repartimento dormia os
maiores, mestiços, meninos da terra e órfãos nativos, da qual cuidava o padre Micer Paulo e o irmão
Alberto D’arujo.

A rotina dos meninos foi descrita com variações de carta para carta, mas sempre consistia em
assistir à missa, confessar pelo menos uma vez ao mês, carregar a cruz nas procissões, auxiliar nas
missas, aprender a ler e escrever, o canto, Pai Nosso, Ave Maria, Credo, visitar o tronco e hospital, rezar
pelos hereges e pelas almas no purgatório. Algumas horas da tarde também poderiam ser dedicadas
ao lazer supervisionado.

A organização inicial supracitada pelo padre Frois foi submetida a mudanças conforme o de-
correr dos anos, isso porque a entrada e saída de meninos e padres, a quantia de verba recebida e a au-
sência de mestres capacitados em artes, gramática, sobretudo teologia influenciavam nas necessidades
e organização da instituição. Nesse sentido, constantes alterações eram feitas.

O padre Luis Frois escreveu que em Goa havia três classes de estudos de humanidade e expli-
citou superficialmente o que era ensinado. Na classe do padre Nunes, havia sido iniciado as leituras
de retórica e pela manhã se lia Ad Herennium e uma oração de Cícero e a tarde Salústio (86 – 34
a.C),De Bello Iugurtino.23 Durante a semana se lia Virgílio também. Na segunda classe estava o padre
Aires Brandão, que passou a substituir Michael, e na terceira Josepho Ribeiro com 14 meninos. Lia-se
“Dispauterio” e também epístolas Ad atticum.24 Conforme o padre, a educação dos moços e meninos
se fazia extremamente necessária, uma vez que o vício desta mocidade na Índia eram muitos, visto a
sua criação em mimos, maus costumes e vaidade. Porém, quando “feito domésticos e criados nos bons
costumes”, incentivavam os seus pais a serem cristãos e a se confessarem, o que resultava na mudança
de seus costumes e no aumento da cristandade. 25

Raramente as nossas fontes trazem mais detalhes sobre o conteúdo ensinado nos Colégios e
nas Casas de ler e escrever. Muitas vezes, o mesmo é resumido a “doutrina cristã”, “rudimentos da fé”,
“verdadeira fé” ou “bons costumes”. Em 1555 é mencionado pela primeira vez dentro do nosso recor-
te cronológico que o ensino no Colégio também abarcava noções de aritmética, isso porque a cidade
possuía muitos comerciantes, que interessados nesta disciplina enviavam os seus filhos ao Colégio.26
Comum a todos os ensinos, desde as Casas de ler e escrever mais simples, até os Colégios mais com-
23 Segundo Hansen, o ensino de Ad Herrennium e Cícero foram iniciados sobretudo no contexto da contrar-
reforma após a prescrição da representação como theatrum sacrum - teatro sacro ou a encenação da presença
de Deus na história. Para tornar a representação mais dramática e eficaz, a Companhia de Jesus incluiu em
sua doutrina da eloquência o ensino desses autores, bem como escritores gregos, latinos, Quintiliano e outros
doutores da Igreja patrística escolástica e os seus modelos orais para a educação de pregadores. A retórica havia
se tornado uma das principais disciplinas do ensino jesuítico. HANSEN, João Adolfo. Manuel da Nóbrega. In:
FÁVERO, Maria de Lourdes de Albuquerque; BRITTO, Jader de Medeiros (Orgs.). Dicionário de educadores
no Brasil: da Colônia aos dias atuais. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2002ª, p.105.
24Em Portugal, no período moderno, o ensino de latim era demasiadamente influenciado pela obra Commen-
tarii Gramatici de Johannes de Spauter, conhecido também como Despauterius.KALTNER, L. F. O Latim na
colonização do Brasil quinhentista. Cadernos de Letras da UFF, v. 26, p. 39-60, 2016.
25 WICKI, Joseph. Op., cit, vol.III, 1954, pp. 698-730.
26WICKI, Joseph. Op., cit, vol. IV, 1956, pp. 270-300.

634
pletos no Estado da Índia, estava o ensino básico das orações, como o Pai Nosso e a Ave Maria bem
como o ensino das primeiras letras.

O projeto jesuítico era ambicioso e visava o aumento da cristandade por meio da conversão
dos meninos e através dos mesmos, uma vez que eles foram concebidos como um importante meio
para atingir outros contingentes populacionais “depois que o mesmo senhor os tomar por instrumen-
tos e vasos de sua palavra”27. Através deles, vinham a conversão os seus pais, vizinhos, outros meninos
e membros da própria comunidade que se comoviam com a devoção dos pequenos.

As aspirações de utilizar os meninos para trazer outros contingentes populacionais a conver-


são apareceram relativamente cedo em Goa se pensarmos que o Colégio de São Paulo foi construído
em 1548. Logo e 1553, o padre Gaspar expressou a pretensão de utilizar os meninos instruídos para
converter as populações locais quando relatou que em Baçaim o padre Mestre Francisco ficou respon-
sável por ajudar os meninos desta cidade a serem instruídos por 3 ou 4 anos até que pudesse ajudar
na conversão dos gentis.28 No mesmo ano, em Goa, o padre Gaspar sugere que os meninos deveriam
já ter recebido as instruções necessárias (aprenderam a ler, escrever e as virtudes) para que quando
atingissem 15 anos aprendessem algum ofício. Os meninos mais engenhosos deveriam ser conduzidos
a outro colégio onde se tornariam discípulos e aprenderiam todas as ciências como gramática, arte,
teologia até que se tornassem “homens perfeitos”, doutrinados para se tornarem membros da Compa-
nhia ou ajudar a mesma quando for necessário.29

Paulo Gomes (1562) viu nos meninos uma oportunidade de contornar os desafios ocasiona-
dos pela questão do idioma e da comunicação precária. Além de poder contar com os pequenos para
“encomendarem as almas que estão no purgatório”, os mesmos também auxiliavam Gomes ao irem
ao tronco e ao hospital da gente da terra ensinar a doutrina as pessoas. Por vezes, ao retornarem para
a casa traziam com eles outros meninos "porque como eles sabem lingoa, e se conhecem, são grande
meo para os outros mininos, e sem dúvida que claramente se vee entrar em deos estes mininos.30

Em uma carta que redigiu em Baçaim, ficou explícito a expectativa de Paulo Gomes de for-
mar intérpretes. Afirmou que no Colégio havia meninos de bom engenho de quem se pode esperar
“algum fruto por serem filhos de homens honrados e dos principais da terra, especialmente dois ou
três,” a qual a muito tempo se pede para serem admitidos a Companhia. O padre esperava que após
aprenderem, ler, escrever e contar, os meninos servissem de “intérpretes para a gente da terra", o que
era muito necessário. Com isso, esperava-se muitos frutos e a conversão de muitas almas, pela qual os
meninos eram um grande meio.31

Nas cartas supracitadas, os meninos aparecem sempre associados as iniciativas de conversão,


ora como aqueles que precisavam ser convertidos e doutrinados, ora como um meio necessário para
atingir outros contingentes populacionais e traze-los a conversão. No segundo caso, os missionários
27 WICKI, Joseph. Op., cit, vol.VI, 1960, p.111.
28WICKI, Joseph. Op., cit, vol.III, 1950, pp. 578-606.
29 WICKI, Joseph. Op., cit, vol.III, 1950, pp. 612-617.
30 WICKI, Joseph. Op., cit, vol.V, 1958, pp. 621-634.
31WICKI, Joseph. Op., cit, vol.VI, 1960, pp. 554-582.

635
utilizavam os meninos como intérpretes e faziam uso da representação de devoção e constância dos
meninos para impressionar a população adulta com os seus cantos, diálogos e representações.

Uma questão comum, que permeia a maior parte das cartas analisadas era a constatação de que
os meninos sensibilizavam, confundiam e inspiravam os adultos. Essas representações estão muito
presentes e buscavam sempre reforçar a natureza perfeccionavel dos meninos, esses sempre muitos
dispostos a aprender, honrados e devotos, um inspiração para os adultos. Luis Frois (1561), citou por
exemplo, a ocasião ao qual um homem honrado que andava “por esses rios a cima” viu uns meninos,
esses que haviam sido convertidos a poucos meses, apascentando o gado de seus pais e o faziam en-
toando a doutrina. Ficou o homem “muito cativo desta música” e com lágrimas contou ao padre o que
viu. Esses meninos eram “christãos bem inclinados e devotos e pola mayor parte afeiçoados às cousas
de Nosso Senhor segundo sua capacidade e pera gente tão nova na fee são suas obras confusão de
muitos portugueses”. Disto, grande edificação veio para o povo e para os irmãos. Segundo Gaspar, a
Companhia estava usufruindo de todos os talentos que o senhor os oferece, “meios para conseguir los
fines que aquá venimos buscar”.32

A maior parte das cartas analisadas indicam que os missionários concebiam os meninos como
um importante meio para inspirar e condicionar a população adulta a conversão. Grandes pretensões
estavam reservadas a eles. Esperava-se que após serem instruídos na doutrina e preparados para uma
vida cristã, os meninos poderiam assumir o ofício de intérpretes e pregadores. Os meninos mais no-
bres, filhos das elites locais, poderiam ser utilizados para estimular a conversão de aldeias inteiras,
servindo como exemplo e inspiração. A maior parte dos missionários também compartilhava a crença
de que a conversão dos meninos traria a conversão dos familiares e escravos. Em 1552, Belchior Dias,
por exemplo, relatou que durante o dia os meninos recebiam instrução de um irmão que andava pela
cidade com uma campainha chamando os mesmos para a doutrina. À noite, os meninos ensinavam
seus pais e os escravos cantos e palavras de edificação ao Senhor. Segundo Melchior, o verdadeiro fun-
damento da fé a ser acrescentado era por via do colégio com a doutrina dos meninos. Através deles,
muitos viriam a conversão.33

Em 1555 um relato muito semelhante ao de Baçaim foi feito em Goa.34É interessante pensarmos
que se na Europa do século XV/XVI observa-se uma crescente atribuição da responsabilidade da
educação dos filhos os pais, no Estado da Índia, os jesuítas incentivavam um processo inverso.35 Cabia

32 WICKI, Joseph. Op., cit, vol.II, 1950, pp. 616.


33 WICKI, Joseph. Op., cit, vol.II, 1950, pp. 492-506.
34 WICKI, Joseph. Op., cit, vol.IV, 1956, pp. 174-199.
35 Souza pontuou uma crescente valorização da educação moral e religiosa dos filhos no final do século XV.
Pensando o cenário Ibérico, a autora corroborou que esta preocupação deve ser compreendida dentro das
correntes religiosas e reformistas que ganharam força no final deste século e as tendências pedagógicas e huma-
nistas associadas a elas. A crescente atenção atribuída a educação dos menores não significava a “descoberta da
infância”, mas sim da valorização da educação através de ideias humanistas que permitiram novas perspectivas
acerca da formação do “futuro adulto”. Dessa forma, foi nos textos moralistas e humanistas do final do século
XV, tal como os “Espelhos de príncipes” e tratados morais para mulheres, onde houve uma maior atenção a
educação das crianças e o papel dos pais nesta empreitada. SOUZA, Lais Viena de. Educados nas letras e guar-
dados nos bons costumes. Os pueris na prédica do Padre Alexandre de Gusmão S.J. (Séculos XVII e XVIII).
2008. Dissertação (Mestrado em Pós-Graduação em História) - Universidade Federal da Bahia.

636
aos meninos instruídos na fé católica guiarem os seus pais nos bons costumes e na verdadeira fé. A
expectativa da salvação do núcleo familiar era depositada sobre os meninos, que ainda que “gente de
pouca idade e nova no leite da fee”, tinham muito sentimento e devoção, o que trazia muitos frutos a
uma terra tão estéril.36

A conversão dos meninos poderia ocasionar em situações conflituosas, principalmente se a


mesma era realizada sem consentimento dos pais ou familiares. O conflito de interesse poderia re-
sultar no desmembramento da família, principalmente porque os jesuítas se recusavam a entregar os
meninos aos pais que optaram por permanecer nas suas antigas crenças.

Dessa forma, pensamos que embora a educação promovida pelos jesuítas seja uma violência
mais dócil, como pontuou Xavier, não podemos nos esquecer que os meninos nem sempre poderiam
optar por não recebê-la. Inclusive, o padre Pero Vaz foi um dos poucos padres que pontuou de forma
mais aberta como os jesuítas se aproveitaram dos laços de parentescos para expandir os meios de con-
versão. Segundo Vaz, a retirada das crianças de suas famílias não só trazem a fé os pequenos, como,
mas também muitos outros em função "amor que a gente dessa terra se tem uns aos outros, principal-
mente os que se crião em casa” e por experiência sabe-se que se não se “toma uns não se convertem
muitos”.37

A manutenção forçada dos meninos no Colégio, bem como os meios em que eles foram con-
duzidos ao estabelecimentos, como por exemplo, a retirada forçada dos órfãos de suas famílias, sem
dúvida representava uma ato de violência tanto com os meninos, quanto com os familiares gentios
que precisavam lidar com a intromissão da legislação portuguesa em sua vida familiar e no cotidiano.
Ainda que não convertidos, muitos nativos foram sujeitos aos impactos e transformações da presença
proselitista dos lusos no Estado da Índia. Um caso intrigante a ser mencionado e de violência cometi-
da contra as famílias nativas era a de um moço que havia sido confundido com Abel, um menino que
havia sido criado no Colégio de Baçaim.

Francisco Cabral relatou ao padre Diogo Laines uma ocasião em que essas separações não
eram voluntárias. No Colégio de Baçaim, por volta de uns 7 ou 8 anos antes desta carta ser escrita,
dois meninos foram “feitos cristãos” e por serem parentes foram chamados de Caim e Abel. Caim
ficou em uma aldeia, mas Abel desapareceu. A cerca de 7 meses atrás, os meninos do Colégio avista-
ram um moço na rua que parecia ser Abel e estavam convictos que ele havia retornado à gentilidade.
Afirmando conhecê-lo, levaram-no ao Colégio. Ao chegar no Colégio o moço foi interrogado e em-
bora dissesse que nunca havia sido cristão e nem se chamava Abel, ninguém acreditava. Já impaciente,
contou que era filho do capitão de uma fortaleza e que seu pai era um naique38, porém, não o soltaram
até que se investigasse mais.

36 WICKI, Joseph. Op., cit, vol.VII, 1962, pp. 38-71.


37 WICKI, Joseph. Op., cit, vol.VII, 1962, pp. 533-5410
38 Segundo Dalgado, o termo geralmente era designado para se referir a um capitão ou “chefe dos soldados in-
dígenas de infantaria”. Naique era também o título de alguns reis subordinados e um tratamento honorifico de
certas castas e famílias principais. DALGADO, Sebastião. Glossário Luso-Asiático, 2 vols, Coimbra. Imprensa
da Universidade, 1919-1921, p.91.

637
No dia seguinte, veio o capitão de Baçaim, acompanhado de outras pessoas e dos pais do moço
para reafirmar que ele nunca havia sido cristão e para se queixaram de o terem levado a força e o man-
tido no Colégio sem o seu consentimento. Insatisfeitos com as testemunhas, decidiram chamar Caim
e se o mesmo confirmasse que o moço não era Abel, o deixariam ir. Caim alegou que o moço parecia
ser seu parente Abel, mas não era. Ainda assim, o moço foi batizado e mantido no Colégio contra a
sua vontade. Relata-se na carta que os pais do moço visitavam o mesmo no Colégio e nessas ocasiões
tentava-se convertê-los. Ao perguntar se o pai queria ser cristão, o mesmo respondeu:" deixa-me, bas-
ta-te que tomaste o meu filho, contenta-te com elle, porque eu ja sou velho". Todavia, “já desesperado”,
foi ao Colégio em outro dia com a sua mulher e filhos para se fazerem cristãos.39

A partir das expectativas criadas em torno da evangelização dos meninos, as autoridades ecle-
siásticas e régias investiram em meios de incentivar e coagir os meninos e seus familiares a conversão.
Investiu-se também na assistência e educação dos mesmos para que pudessem formar uma nova cris-
tandade fiel e constante na fé, que futuramente poderia estar à disposição dos jesuítas, auxiliando nas
missões. Em pequenas mãos grandes expectativas de formação e aumento de uma nova cristandade
foram depositadas. Os missionários buscaram nas crianças nativas um caminho para sensibilizar e
atingir o coração da população adulta, seja através de representações de docilidade e devoção dos
meninos ou por meios coercivos.

Após recolhidos nos Colégios, os meninos foram submetidos a uma rotina de evangelização e
tarefas que visavam dignificá-los, prepará-los para uma vida cristã e também caridosa. Nas duas pri-
meiras décadas, foram várias as funções atribuídas aos meninos, das quais listaremos algumas, como
por exemplo: ir com “a boca da noite” todos os dias para tanger a companhia e encomendar as almas
do purgatório; ir a procissão dizendo as ladainhas e em quatro passos e voz alta encomendar as almas
dos que estão em pecado mortal com as palavras: “senhor, misericórdia!”40 Em Goa, os meninos acu-
diam as procissões da cidade com ladainhas e a doutrina pelos hereges; cantavam e acompanhavam
os homens que morriam por justiça; faziam ofícios na casa em dias de domingo; cantavam as véspe-
ras e ajudavam os padres nas missas; iam ao tronco e hospital de gente da terra ensinar a doutrina e
trazer meninos para o Colégio41 Nas partes mais longínquas de Goa, no domingo logo após a missa,
os irmãos e os padres eram divididos em dois em dois e assim iam a Nossa senhora de Guadalupe,
Agaçaim, Santiago, São João, Madre de Deus, Paso Cequo e Santa Luiza onde declaram o evangelho
e os artigos da fé aos cristãos através de meninos intérpretes, filhos dos mesmos cristãos que se criam
no Colégio.

Em Baçaim, fazia-se a doutrina aos meninos todos os dias e os levam para visitar o hospital e
o cárcere, maioria deles era brâmane agudos e hábeis.42 Os missionários objetivavam que os meninos
da terra ajudassem nas conversões, o que já faziam todo domingo com os irmãos nas freguesias, ensi-
nando os outros tanto na língua deles como em português. Alguns desses ainda possuíam pais gentios
e se por acaso o encontrassem, pregavam a paz de cristo, “blasfemando a dos gentios e zombando os
39WICKI, Joseph. Op., cit, vol.VI, 1960, pp. 77-86.
40 WICKI, Joseph. Op., cit, vol.III, 1954, pp. 99-105.
41 WICKI, Joseph. Op., cit, vol.IV, 1956, pp. 174-199.
42WICKI, Joseph. Op., cit, vol.V, 1958, pp. 288-291

638
seus pagodes.”43

A contribuição dos meninos ao Império e a ação missionária dos Jesuítas no Estado da Ín-
dia assumiu contornos delineados pelas necessidades locais, principalmente nos primeiros anos de
colonização, período em que não havia ainda uma formação estritamente definida sobre o que eles
deveriam aprender ou auxiliar, tanto que os conteúdos a serem ensinados nos Colégios e nas Casas
de ler e escrever não eram padronizados. O ensino comum era bem básico, praticamente se resumia
a aprender os rudimentos da fé e as primeiras letras. Fazia parte deste processo de evangelização a
instrução dos bons costumes, o que implicava pregar contra o que era considerado mau costume e
isso incluía as idolatrias, adoração aos pagodes, feitiçarias e cerimônias gentílicas. Portanto, não é de
se estranhar que na carta supracitada os meninos blasfemassem e zombassem da “falsa fé” de seus
pais e suas adorações. Sob os ensinamentos diários e rotinas de aprendizagem, os jesuítas incitavam
os meninos ao desprezo de sua própria cultura e religião. Os bons meninos eram também aqueles que
repudiavam e expressavam desprezo a essas gentilidades.

As Casas de ler e escrever, bem como os Colégios constituíam um projeto de domesticação


calcado na educação e preparação dos menores. Essa educação desenvolvida através ação catequética
promovia a longo prazo um processo de aculturação em ações evangelizadoras que confluíam numa
única ação o ensino da catequese e a escolarização das primeiras letras. O ensino das primeiras letras
e os bons costumes constituía uma educação para a “civilidade”, isto é, fornecia aos menores os co-
nhecimentos necessários para se tonarem homens honrados, obedientes e necessários para garantir
manutenção da ordem.

A educação era extremamente importante não só porque iria conferir um certificado de hu-
manidade e civilidade aos recém integrados no Império, como iria promover os meios de salvação
pessoal. Educados desde pequenos, os meninos teriam uma vida nos bons costumes e cumpririam o
seu papel estabelecido conforme as necessidades do Império. Ao fim de sua vida, teriam a salvação
pela verdadeira fé.

A evangelização dos meninos representava também o anseio de que uma vez convertidos,
criados e educados na “verdadeira fé” e nos bons costumes, eles poderiam também contribuir para a
manutenção do Império Português e para o aumento da cristandade, atuando como intérpretes, pre-
gadores e possíveis membros da Companha.

A opção de recolher e converter os meninos para auxiliar nas missões derivou da crença de
que era possível criá-los na doutrina cristã e formá-los para serem constantes na fé. Ao contrário dos
adultos, os meninos não haviam vivenciado demasiadamente nos costumes gentílicos, portanto po-
deriam ser “moldados”.

Uma vez considerados perfeccionáveis, após serem instruídos na doutrina cristã, os meninos
cresceriam firmes e constituíram o papel de porta vozes da verdadeira fé, comovendo seus pais, meni-
nos, adultos e comunidades inteiras. A devoção dos menores inspiraria os grandes. Ademais, eles não

43WICKI, Joseph. Op., cit, vol.VIII, 1964, pp. 309-342.

639
apenas seriam a população adulta ideal, como constituiriam um dos principais meios de conversão da
adulta, quase sempre considerada irredutível, viciosa, inconstante e de difícil acesso, seja pela coerção
ou pela devoção que inspirariam.

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Nos paradigmas do pensamento pós-colonial: abordagens e desafios das interdisciplinari-


dades em África e em Ásia no ensino de História
Jorge Lúzio44

Resumo

Na historiografia do Império português, em suas produções mais recentes, tem sido incontor-
nável a perspectiva dos espaços conectados, que remetem às temporalidades articuladas. As diásporas,
os deslocamentos e as circulações, entre outros fenômenos atuais, exigem releituras de um passado
colonial que vinculou sociedades do Sul global aos grandes centros dos impérios europeus modernos,
em torno de discussões e desafios comuns. Por outro lado, o posicionamento anticolonial de teóricos
e de pesquisadores soma-se às vertentes historiográficas que – em diálogos com a decolonialidade das
Ciências Sociais, com a literatura pós-colonial e com a Pedagogia decolonial – possibilitam ao histo-
riador discutir os desafios globais contemporâneos, construídos a partir de uma consciência histórica.
Esta análise volta-se para os intercursos entre o continente africano, o Oriente Médio e o sul da Ásia,
com foco na Índia, na finalidade de propor diálogos, debates e reflexões sobre estes contextos, histo-

44 Doutor em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Docente em História no
Centro Universitário Assunção – UNIFAI. Pós-doc em História da Ásia na UNIFESP – Universidade Federal
de São Paulo.

641
ricamente articulados. Tais reflexões servem como subsídios ao ensino de História Moderna e Con-
temporânea em abordagens interdisciplinares, visando a produção de conhecimento e de pensamento
crítico.

Palavras-chave: África, Ásia, Colonialismo, Ensino de História, Interdisciplinaridades

Abstract

The paradigms of postcolonial thinking: approaches and challenges of interdisciplinarities in Africa


and Asia subjects in History teaching

In Portuguese Empire historiography, in its most recent works, the perspective of the connected spac-
es, that refers to the articulated temporalities, has been unavoidable. The diaspora, the displacements
and the flow, among other current phenomena, require re-readings of a colonial past which connected
the Third World societies to the great centers of the Modern European Empires around general de-
bates and challenges. On the other hand, the anti-colonialism of theorists and researchers is added to
historiographic strands that – in dialogue with Social Sciences Decolonialism, Postcolonial Literature,
as well as Decolonial Pedagogy – allow the historian to discuss the contemporary global challenges,
built from a historical consciousness. This analysis interacts with the interrelations between the Af-
rican Continent, the Middle East, and the Southern Asia in order to propose dialogues, debates and
some thinking on these contexts, historically related. These reflections act as resources to the Modern
and Contemporary History teaching in interdisciplinary approaches, aiming at the production of both
knowledge and critical thinking.

Keywords: Africa; Asia; Colonialism; History Teaching; Interdisciplinarities.

Nos paradigmas do pensamento pós-colonial: abordagens e desafios das interdisciplinaridades em


África e em Ásia no ensino de História45
I – Introdução

45 O artigo teve uma primeira apresentação na Jornada “Visões da Ásia”, que ocorreu na UFRRJ – Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro, em 30.08.2018, por meio da da comunicação intitulada “A Índia em perspecti-
vas pós-coloniais: contribuições para os estudos em História da Ásia”. As contribuições promovidas pelo debate
somaram-se aos avanços das discussões desenvolvidas posteriormente no Encontro Internacional de História
Colonial EIHC-2018, na UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. O texto é, portanto, o resulta-
do das leituras e reflexões decorrentes dos relevantes diálogos estabelecidos nos eventos citados.

642
O pensamento contra-hegemônico da crítica pós-colonial vem se afirmando entre as articula-
ções interdisciplinares que se alargam e se aprofundam em debates para as questões locais e globais.
Por outro lado, tem contribuído com reflexões desenvolvidas numa perspectiva histórica ao estabe-
lecer diálogos e apontar para os desafios e as inovações teórico-metodológicas para o ensino de His-
tória. Em se tratando, por exemplo, da História da Índia, é possível observar, à luz deste paradigma,
temáticas e problematizações que vêm sendo apresentadas por pesquisadores e intelectuais que conec-
tam suas discussões com novas análises e releituras, a possibilitar outras visões, não eurocêntricas, e
redescobertas sobre a História da Ásia, que, efetivamente, torna-se cada vez mais evidente como um
campo de pesquisa em ampla expansão. Desde as conjunturas da antiguidade ao período moder-
no, sobre as redes econômicas do Índico com as interações entre a África oriental e o sul da Ásia, às
complexidades políticas do Estado da Índia no Império português, e aos processos de descolonização
nos dois continentes ao longo do século XX, são observadas interações intercontinentais. Por outro
lado, as lacunas nos currículos brasileiros, com a presença parcial ou mesmo a ausência de conteúdos
da disciplina de História da Ásia, encontram na legislação – Lei nº 10.639/03 (História da África e
Cultura Afro-brasileira) e na Lei nº 11.645/08 (História Indígena) – uma oportunidade para novos
diálogos e aproximações, tanto epistemológicas quanto teórico-metodológicas. Por meio do ensino
de História, os desafios de temáticas emergentes, relevantes e inovadoras – como as diásporas, os con-
flitos internacionais – ou temáticas mais específicas – como as questões étnico-raciais – apresentam
demandas e desafios para o ensino e a pesquisa, e apontam para as interdisciplinaridades destas áreas
afins, historicamente articuladas, cujos vínculos foram definitivamente consolidados pela experiência
colonial e seus desdobramentos46.

II – História e pensamento pós-colonial

Das recentes elaborações teóricas, configuradas como campo de pesquisa, o pensamento pós-
-colonial, em suas origens nos autores oriundos do mundo afro-asiático, assim como a perspectiva
decolonial, que emerge dos contextos dos países da América Latina, integram o denominado pós-co-
lonialismo, uma vertente teórica que nas últimas quatro décadas vem se consolidando por meio de
uma produção proeminente no âmbito do pensamento crítico e político. Essa vertente é inaugurada
pelos estudos de Edward Said em seu clássico Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente47,
entretanto, como inferiu Shiv Visvanathan ao se referir ao Oriente indiano, o Orientalismo saidiano
“encaixa-se melhor no Oriente da Arábia do que no Oriente da Índia”48. Esta e tantas outras proble-
matizações nos levam a pensar, por exemplo, na historiografia produzida sobre a Índia após sua inde-
46 Nesse sentido, torna-se importante reconhecer que no Brasil este campo de estudos, em seus antecedentes
históricos, obteve contribuições fundamentais através da fundação do CEAO-UFBA / Centro de Estudos Afro-
-Orientais, órgão criado em 1959 pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da
Bahia e da Revista Afro-Ásia da UFBA, além do CEAA/UCAM - Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Univer-
sidade Candido Mendes, criado em 1973.
47SAID, Edward. Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Cia das Letras, 2007.
48VISVANATHAN, Shiv. “Encontros Culturais e o Oriente: um estudo das políticas de conhecimento”. In:
SANTOS, Boaventura de S. e MENESES, Maria P. (orgs).Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010, p. 568.

643
pendência em 1947, no viés da autonomia e da emancipação política, anticolonial, nas releituras do
seu próprio passado, em ruptura com as narrativas orientalistas, constatada algumas décadas depois,
por meio do trabalho de teóricos e intelectuais que problematizaram a subalternidade, no fervor dos
debates provocados pelo contundente autor palestino.

Entre inovações e reflexões, dois dos autores mais conhecidos dos estudos pós-coloniais, Homi
Bhabha e Gayatri Spivak, tornaram-se expoentes de um paradigma que se ampliou para diversas áreas
ao aprofundarem discussões e leituras para questões das agendas locais e globais. De suas obras vieram
termos como hibridismo, entrelugares, subalternidade: alguns dos principais conceitos apresentados
por esses autores. Por virem da Crítica Literária, problematizaram o denominado “outro colonizado”
através de suas representações, assim como feito por Said, em consonância com o olhar foucaultiano,
isto é, observando as relações de poder e seus mecanismos como releitura sobre a História Colonial na
Índia. É desse contexto que surgem os Subaltern Studies. De acordo com Muryatan Barbosa:
[...] a partir da influência direta e indireta de Said, autores advindos do Terceiro
Mundo, como os indianos Homi Bhabha e Gayatri Spivak, ganharam legitimidade e
reconhecimento internacional nas décadas de 1980-90, enquanto autores pós-colo-
niais. Em grande parte porque, tal qual Said, estes autores, inicialmente, tinham por
objeto de estudo – o colonialismo (interno e externo ao Estado-Nação Indiano) – e
por modo de interpretação – análise do discurso e das estratégias coloniais – uma
aproximação evidente com o trabalho clássico do intelectual palestino [...]. Trata-se
de um grupo formado por intelectuais interessados na revisão da história indiana,
a partir de uma perspectiva pós-nacional específica: pós-colonial e subalterna. Este
grupo reunia jovens historiadores, ingleses e indianos, liderados pelo indiano Ranajit
Guha, com os demais integrantes Shahid Amin, David Arnold, Partha Chatterjee,
David Hardiman e Gyanendra Pandey. Sua primeira tarefa coletiva foi uma leitura
pormenorizada da obra de Antonio Gramsci.49

Em contrapartida, entre aproximações e divergências, nas fronteiras entre o pós-colonialismo


e as reflexões sobre o materialismo histórico, o criticismo de Aijaz Ahmad50 quanto ao pensamento
saidiano não se absteve sobre as adversidades e as implicações do orientalismo para se entender a
Índia, ao contrário, apontou suas ambivalências e, embora considerasse o seu aspecto metodológico
como um grande ganho da obra, rompeu com o posicionamento do autor palestino ao elencar os pro-
blemas que a teoria trouxe para o chamado “sujeito pós-colonial”. E surge a grande questão: “Quem é
o oriental” ? Em que medida os estudos africanos interagem com estas perspectivas?

São muitas as questões e os desafios que nos remetem às várias dimensões que permeiam o
sujeito histórico oriental em África ou Ásia: sua língua, sua cultura, sua memória, sua ancestralidade,
são esses alguns dos aspectos vitais para uma dialogia com a história destas sociedades, o que implica
na observação de suas especificidades à luz de suas próprias fontes, e no reconhecimento da alteridade
como princípio para uma abordagem histórico-antropológica. Essas categorias já encontravam nos

49BARBOSA, Muryatam. “A Crítica Pós Colonial no Pensamento Indiano Colonial.”Afro-Ásia, nº 39 CEAO-


-UFBA. 2010, pp. 57-77.
50AHMAD, Aijaz. “Orientalismo e depois: ambivalência e posição metropolitana na obra de Edward Said”. In:
Linhagens do Presente. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.

644
estudos culturais de Thompson, Raymond Willians e Richard Hoggart o prisma interdisciplinar e
transitório, localizando as interações do poder com as relações interculturais, e obtiveram posterior-
mente em Stuart Hall, Frantz Fanon e Édouard Glissant, entre outros, contributos que aprofundaram,
contextualizaram e esclareceram conceitos como linguagem, significação e representação. Nesse sen-
tido a discussão específica sobre a representação do outro colonizado apresentou os inúmeros desa-
fios que se revelaram no uso deste conceito para os estudos históricos. Se representar é dar sentido e
significação a um ator social, um sujeito, ou objeto descrito ou identificado, é também reafirmá-lo nas
categorias em que foi colocado, independentemente da condição em que foi naturalizado. É sobretu-
do a legitimação de um discurso sobre tal objeto, o que o torna vulnerável nas narrativas. A Índia, os
indianos, os asiáticos, os africanos, o sujeito oriental, revisitados em suas representações e descons-
truídos da realidade em que foram plasmados, para citar o Ocidente e a modernidade, têm na crítica
pós-colonial a contestação de uma História hegemônica, num momento em que as “histórias periféri-
cas” tornam-se nestes vieses, gradativamente, centrais. A análise desenvolvida para a Índia, guardadas
as devidas proporções, cabe também para se repensar a China, o Japão e demais expoentes asiáticos.
Todos os avanços surgidos das discussões sobre a representação e desdobrados em novos fenômenos
como “representatividade” de atores sociais revelam a demarcação da perspectiva pós-colonial no
trabalho do historiador e do cientista social.

Um outro contributo, ou efeito dessas abordagens, pode ser notado nos debates sobre os na-
cionalismos à luz do que já apontou Partha Chattejee51 (“Comunidade imaginada: por quem?”, numa
reflexão sobre a obra de Benedict Anderson Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e
a difusão do nacionalismo) e do que propõe Aijaz Ahmad em Cultura, nacionalismo e o papel dos
intelectuais52, quando este historiador adverte sobre a responsabilidade política dos acadêmicos, fora
das instituições, como ação crítica à cultura capitalista. Desse modo, o debate entre o pensamento
pós-colonial, os estudos culturais e o materialismo histórico sobre o Sul da Ásia e seus diálogos com os
estudos africanos evoca, por exemplo, todas as questões que emergem das identidades nacionais, para
citar os conflitos da Caxemira, o separatismo no sul da Índia, em Tamil Nadu, e o Movimento dos
Tigres Tâmeis, no Sri Lanka, a Partição (a separação Índia, Paquistão, Bangladesh), o nacionalismo
hindu, o surgimento do neo-hinduísmo em Calcutá e as relações entre as elites locais e as autoridades
coloniais no século XIX – em se tratando da História da Índia. Há ainda as crises permanentes de
imigrantes e refugiados, tanto nas rotas internas com destino ao Mediterrâneo, quanto nos circuitos
marítimos, para citar bengaleses e minorias étnicas como os “Rohingya”, dispersos entre o leste da
Índia, a Malásia e a Indonésia, além do fundamentalismo religioso em Mianmar, conforme analisou
Paula Carvalho.
Nos últimos anos, muçulmanos vêm sendo alvo de ataques violentos em países asiá-
ticos como Mianmar (também conhecido por Birmânia), Sri Lanka e Tailândia, onde
a população segue predominantemente o budismo. Essa onda de “fundamentalismo
budista” parece emergir juntamente com uma forma de nacionalismo que associa
diretamente a identidade nacional ao budismo.[...] Esse cenário de instabilidade
política propiciou a ascensão de organizações radicais budistas, como o grupo 969,
51 CHATTERJEE, Partha. Comunidade imaginada por quem? In: BALAKRISHNAN, Gopal (org.) Um mapa
da questão nacional. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000, p.227-238.
52 AHMAD, Aijaz. Linhagens do Presente. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.

645
formado por monges budistas munidos de um discurso claramente anti-islâmico. É
um quadro em que mudanças no âmbito político são interpretadas por uma chave
religiosa devido às características históricas da relação entre a religião e os gover-
nantes no país e do vínculo histórico criado entre o budismo e a identidade nacional
birmanesa [...].53

As análises dos processos históricos não apenas buscam o diagnóstico dos fatos, mas também
apresentam demandas por novas fontes. A reescrita da História exige outras e novas histórias. Como
conceber uma uniformização das identidades e leituras cartesianas, positivistas, diante das comple-
xidades sociais e culturais destes povos? Claro está que isto implica no uso de novos modelos de
análises. Há de se reconhecer que nas problematizações diaspóricas, como já citado, e nas identida-
des, os processos identitários, no paradigma pós-colonial, além de uma leitura histórica não-linear,
determinam a construção de um olhar abrangente que se alarga sobre os fenômenos da colonialidade,
ou seja, numa discussão que vai além da própria História Colonial, alcançando até as crises do ca-
pitalismo, num espectro teórico que não cabe numa cronologia de cinco séculos. As culturas nacio-
nais unificadas, produzidas pela perspectiva eurocêntrica, já não mais se sustentam se examinadas
todas as formas de diversidades presentes nas identidades. A articulação teórico-metodológica e a
abordagem discursiva tornam-se imprescindíveis para a produção de uma historiografia sobre a Ásia,
cujas interfaces encontram-se com o continente africano, na medida em que os estudos comparados
apresentam na História colonial a chave para a compreensão dos fenômenos históricos que trazem
profundos impactos sobre a contemporaneidade. Por outro lado, neste caso, estão nas fontes asiáticas
as possibilidades para uma abordagem histórica onde estejam politicamente presentes os seus povos,
em suas próprias narrativas, como pressuposto para o início de um diálogo, de uma interlocução
não-verticalizada e não-binária, em ruptura com a dicotomia colonizado-colonizador, portanto, con-
tra-hegemônica e que possibilite ao sujeito histórico não-europeu o protagonismo que a modernidade
lhe privou. O que não significa uma inversão de papeis, todavia a constatação de que estamos diante
de concepções emergentes, de novas interpretações, de novas visões da Ásia e da África, nas quais as
fontes históricas estejam dispostas e a serviço de novos prismas do objeto historiográfico. Desse modo,
nos estudos subalternos, nas discussões sobre os nacionalismos e sobre as representações, revelam-se,
entre outros, contributos indeléveis do pensamento pós-colonial para a História do Sul da Ásia, em
suas contribuições com o Sul-Global, em África e nos espaços das diásporas.

III – O ensino de História

A História, como dimensão básica para a produção de conhecimento, ou como disciplina cur-
ricular em sala de aula, como reconstituição, como conteúdo construído, nos espaços e nas temporali-
dades, como grande área do conhecimento científico sobre o presente, à luz do passado, na iniciação/
53 CARVALHO, Paula Carolina de Andrade. Fundamentalismo budista: história e caso do grupo 969 em
Mianmar. Revista Escrita da História, v. 3, p. 201-223, 2016.

646
construção de uma consciência histórica, é um campo elementar, imprescindível em qualquer pro-
cesso de formação. As reflexões sobre “O que ensinar?” ou “Por que ensinar História?” consequente-
mente nos levam a responder sobre as evidências e observações do mundo político contemporâneo.
Nos contextos da realidade educacional brasileira, que espelha as polarizações e as ausências de novos
diálogos, também se refletem as emergências das arbitrárias reformas curriculares (ensino médio /
EAD) e as limitações dos debates sobre as mudanças para a nova base nacional comum curricular. Daí
o indiscutível papel da disciplina que contribui, sobretudo, para a emancipação política de homens e
mulheres em suas realidades e em seus desafios no cenário global.

Nesse sentido, destaca-se a noção de consciência histórica a partir de uma percepção não li-
near da História, para além das cronologias, na qual os estudos comparativos e os recortes temáticos
possam ser tão norteadores quanto as periodizações: do conhecimento do passado e da reflexão sobre
o presente para a projeção de um futuro, interpessoal e coletivo. Nesses termos, a didática da História
é tão determinante quanto o próprio conhecimento histórico, porque possibilita o desenvolvimento
da tomada de consciência nos processos de ensino-aprendizagem, sobretudo quanto às diversidades,
na formação do próprio sujeito histórico como ator social em seus múltiplos contextos globais. Assim:
[a] complexidade da produção do conhecimento histórico (reservada à academia, à
universidade) precisa ser pensada em função de sua possibilidade [...]. Pensando nes-
sa adequação, parece-nos necessário, possível e mesmo suficiente, para uma iniciação
histórica, que um aluno [...] comece sua reflexão procurando explicar os “comos” e
os “porquês” das transformações sociais, ficando atento às diferenças, às diversidades
e às especificidades das diversas sociedades. A sensibilidade às diferenças e às trans-
formações nos parece ser uma característica específica do trabalho do historiador; a
atenção às diferenças e às transformações precisa ficar garantida nesse exercício de
raciocínio histórico. Ao se destacarem as diferenças, compreende-se melhor as pos-
síveis semelhanças.54

No ensino de História, é fundamental conhecer como se constrói a disciplina em suas ca-


tegorias de conhecimento, sem as quais ela não pode ser construída: as temporalidades, os espaços
e a agência histórica, esta como a capacidade do sujeito histórico, do ator social, em lidar com as
circunstâncias, as situações e os fenômenos da sua realidade a partir das diversidades, dos desafios e
experiências da alteridade. Dessa forma, a crítica pós-colonial, que poderá ser aplicada às propostas
de descolonização do ensino e da aprendizagem, do ensino básico ao superior, de modo a possibilitar
novas perspectivas, não eurocêntricas e mais próximas das histórias locais, exige também um compro-
metimento efetivo do professor de História com um posicionamento político coerente, amadurecido
com o saber didático, visando à construção do pensamento crítico. Nesse sentido a consciência da
identidade docente constitui parte fundamental da trajetória de formação do professor.

Contudo, o permanente contato com os arquivos e com os acervos, enquanto fontes de traba-
lho e de conhecimento, e o uso dos documentos na pesquisa histórica e nas áreas afins, das ciências
sociais às humanidades, possibilitam ao Professor de História / Historiador a realização de uma his-

54 CABRINI, Conceição; CIAMPI, Helenice; VIEIRA, Maria do Pilar; PEIXOTO, Maria do Rosário; BORGES,
Vavy. Ensino de História – Revisão Urgente. São Paulo: Educ, 2000. P 43

647
toriografia atenta às demandas propostas pelas sociedades, em reflexões, análises e contribuições para
a compreensão e discussão de um presente plenamente construído das experiências do passado, entre
os desdobramentos e as expectativas do devir. Os estudos sobre os diversos registros documentais são
parte das ferramentas disponíveis para a desconstrução de paradigmas hegemônicos e dos discursos
de poder, o que apresenta a relevância das análises e avaliações sobre os livros didáticos como poten-
cializadores do conhecimento histórico e, consequentemente, como fonte histórica, uma realidade
comum no ensino Fundamental e Médio. O surgimento de novas práticas historiográficas, como a
etnohistoriografia e os estudos sobre a imagem e as oralidades, trazem consigo métodos inovadores e
novos objetos para a pesquisa e o Ensino de História. A interdisciplinaridade, ainda que em constru-
ção, no trabalho do professor de História / Historiador, tem apresentado na Literatura, nas iconogra-
fias, nos debates sobre a memória, na corporeidade e suas linguagens, na circulação de objetos e na
cultura material, entre outras fontes e recursos, elementos imprescindíveis para as práticas pedagógi-
cas e para as investigações nos estudos históricos, cada vez mais próximas das mídias digitais. Todas
essas possibilidades contribuem para um ensino descolonizado, portanto crítico e autocrítico frente
aos desafios produzidos pelas inovações.

Certamente, está na legislação – Lei nº 10.639/03 e Lei nº 11.645/08 – a garantia e a preser-


vação de uma proposta de ensino e de pesquisa que encontram na História da África, na Cultura
Afro-brasileira e na História e Cultura Indígena, para além das pautas previstas nestas áreas, também,
uma grande inovação teórico-metodológica que se articula com várias das temáticas observadas nos
estudos asiáticos, como os nacionalismos e as questões identitárias, conforme já discutido, constituin-
do assim um campo relevante para se repensar e rediscutir a história e a sociedade brasileira, sobre-
tudo nos temas em que estão presentes os estudos das imigrações e deslocamentos, ou ainda como
cooperação internacional no eixo Sul-Sul, a exemplo das experiências de conexão com os espaços da
lusofonia em África. Na produção e nos usos de materiais didáticos, de reflexões e de propostas de
ensino que articulem os saberes históricos, as diversidades, a memória e as ancestralidades, as artes e
o patrimônio, constrói-se um caminho para a autonomia e a emancipação, em cujo trabalho o ensino
de História ocupa um espaço vital, proporcionando diálogos, debates e alternativas para os dilemas do
mundo e da contemporaneidade.

Concomitantemente, como preservação e permanente diálogo com os saberes da História e a


instrumentalização destes conhecimentos, quer nos contextos de formação da cidadania ou formação
acadêmica, quer nos usos públicos e políticos do passado e do ensino de História, nota-se no interesse
pelas raízes, pelas origens, pela memória e pela identidade, pelo passado propriamente dito, parado-
xos contrários à História como disciplina acadêmica e científica. Tais paradoxos se revelam nos fatos
recentes que evidenciam projetos legislativos em busca de limitar, cercear, intervir na produção do co-
nhecimento histórico; projetos resultados de desconfianças e desconhecimento do papel dessa disci-
plina e ciência, como vem advertindo diversos historiadores. Para o professor de História, os cuidados
com a produção e as escolhas do material didático, e o vasto leque de material pedagógico produzido
pelo mercado editorial e pelas redes de ensino, colocam em risco o papel do professor, vulnerável ao
controle que estes mecanismos naturalmente impõem. Como prática de aperfeiçoamento pedagógi-

648
co ou como formação continuada, os debates sobre os desafios do ensino de História, sobretudo em
nível médio e fundamental, nos encaminham para as urgências de garantias do trabalho de profes-
sores e pesquisadores, cada vez mais expostos à fragmentação da docência e da produção científica.
Como alternativa política, de resistência às campanhas de desestruturação do ensino, como práxis
pedagógica e democrática, as práticas interdisciplinares do ensino de História poderão resguardar o
conhecimento histórico, no campo da ciência histórica, ao interagirem com as demais ciências sociais,
o que não significa, a exemplo das simplificações propostas por determinadas diretrizes curricula-
res, que a complexidade dos estudos históricos estará limitada, ao contrário, estará potencializada no
aprofundamento destas práticas, uma vez que a História está na base dos saberes das humanidades. E
justamente por esse fato é que tais projetos, propostas ou diretrizes, desenvolvidos muito longe de de-
bates com a sociedade como um todo, criam pressões pela redução de carga disciplinar de um ensino
humanístico, que reconheça a relevância da História, onde as humanidades possam desempenhar o
seu papel elementar, a partir dos valores humanos, dos princípios universais, no combate às tentativas
de falência do ensino público, na espera de uma juventude, restrita ao seu uso como força de trabalho,
destituída de autonomia e de identidade.

Por todo este quadro, a reflexão deve ser incisiva: o quê ensinar e como ensinar? Quais serão
os confrontos a serem encarados? Como lidar com as polarizações políticas? Como enfrentar de-
monstrações do neofascismo nos espaços escolares? Como preservar e proteger a dignidade da pessoa
humana diante das crescentes ameaças impostas pelas políticas neoliberais que destróem silente e
impiedosamente a sociedade, nos grupos sociais mais vulneráveis à dor e às crises que comprometem
a sobrevivência? Como sensibilizar o estudante de História a observar esta realidade? Como conviver
com um conservadorismo medíocre, tacanho, ignorante, que se envaidece nas falácias da pós-verda-
de, disseminando ódio e rancores, alienando e confundindo, sobretudo, os nossos jovens e adolescen-
tes? Conservadorismo pai do racismo, que, como crime hediondo, inafiançável e imprescritível, em
todas as suas formas, está sujeito à pena de detenção, nos termos da lei, de acordo com a Constituição,
no artigo 5º, como nos lembra o Direito. Como desconstruir a xenofobia, que também mata e surge da
mesma mentalidade, com os equívocos alimentados pela incapacidade de se pensar historicamente e
de se compreender o outro diferente ? Como discutir o feminicídio e a homofobia, à luz da História,
banalizados, por exemplo, na sociedade brasileira, diariamente, diante dos nossos olhos, produzindo
sangue? Certamente, a outrora transversalidade tangencia os currículos de História e exige do profes-
sor uma postura clara e comprometida, no desenvolvimento de reflexões, como parte das análises e
dos estudos históricos.

Ainda assim se desenham outras adversidades, como o paradigma eurocêntrico, amplamente


discutido na crítica pós-colonial. Em se tratando de uma historiografia brasileira mais próxima dos
modelos tradicionais, convencionou-se ensinar a História do Brasil e a História da América asso-
ciadas, exclusivamente, à História da civilização europeia. O modelo francês tornou-se o referencial
metodológico. Se entre os objetivos fundamentais da História está o ato de proporcionar formação
política do cidadão no tempo e no espaço, como não desenvolver novos diálogos com a História dos
povos originários, a História da África – para uma nação majoritariamente afrodescendente, e com a

649
Ásia dos contextos do Império Português no Oriente e das Histórias Conectadas, como propôs Sanjay
Subrahmaniam55 ? Por que a dificuldade em se expandir a reflexão histórica para além do modelo
eurocêntrico? Por que e como se explicam as dificuldades em se implantar a Lei nº 10.639/03 e a Lei
nº 11.6450/08 em grande parte das escolas? Qual a dificuldade em se compreender que esta legislação
de ensino não está exclusivamente voltada para incluir, preservar, reconhecer os povos afro-diaspóri-
cos e os povos originários, embora também o façam, mas visam de um modo incisivo conscientizar
a população, como um todo, da participação e da presença efetiva destes povos, de suas histórias e
de seus saberes, na formação histórica do Brasil, bem como em toda sua sociedade, ou seja, está para
além da sua própria função educacional e social? Quais são os compromissos dos historiadores e dos
pesquisadores em História, como educadores engajados e comprometidos com as transformações so-
ciais ? Como superar as críticas sobre as cotas e aprofundar os debates sobre as relações étnico-raciais,
empiricamente? Não há dúvidas de que as respostas virão dos desafios e superações advindos das
práticas educativas.

IV – Considerações finais

Os conteúdos das disciplinas de História da África e História da Ásia poderão estar estrutu-
rados em recortes e delimitações que favorecem um conhecimento abrangente das interações entre
as sociedades africanas e asiáticas. Como propostas de pesquisa, nos contextos do período moderno,
por exemplo, temáticas como os impérios europeus nas redes de comércio do Oceano Índico, os têx-
teis e as sociedade comercialmente integradas, as interfaces geopolíticas do subcontinente indiano, o
islamismo e as redes de comércio em África oriental, as relações históricas e culturais Índia e Moçam-
bique, os fenômenos das religiosidades e práticas interreligiosas, as ordens religiosas e os trânsitos de
missionários católicos, os vínculos com o extremo Oriente, entre tantos outros, são possibilidades que
impulsionam a aproximação das histórias dos dois continentes na desconstrução das leituras lineares
destas sociedades.

Para outras propostas, já na formação dos professores de História para os conteúdos que
emergem das determinações da Lei nº 10.639/03, observam-se algumas prerrogativas como a compe-
tência docente e a qualificação do professor (o que implica no conhecimento e na execução de lingua-
gens, técnicas e tecnologias) nestes campos de pesquisa. As contribuições do pensamento decolonial
na desconstrução de um ensino de História pautado exclusivamente nas perspectivas eurocêntricas
se expande para uma metodologia do ensino de História que também considere, além das interdis-
ciplinaridades, o método dialético e a integração cidadania-ciência-cultura. Desafios como o de se
enfrentar nos cursos de formação de professores de História, a redução das distâncias entre o conhe-
cimento historiográfico e o seu arcabouço teórico-metodológico, e as demandas inerentes aos espaços
da escola, são possíveis na medida em que os limites do conhecimento histórico são superados pela
descoberta ou contato com novas fontes, ou pelas abordagens desafiadoras, a propor avanços e cres-
cimentos.
55 Esta perspectiva poderá ser observada em SUBRAHMANYAM, Sanjay. O Império Asiático Português 1500-
1700. Uma História Política e Económica. Lisboa: Difel. Edição/reimpressão: 1993

650
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Lunyu e a Representação jesuítica de Confúcio para a Europa56.


Renan Morim Pastor

Em 1687, em Paris, é publicada a obra mais famosa do filósofo Confúcio (551-479 a.C)
na Europa, contida no compêndio "Confucius Sinarum Philosophus" (Confúcio, filósofo da China), o
Lunyu (Analectos de Confúcio) é a mais reconhecida das obras do filósofo, consistindo em uma série
de máximas organizadas pelos seus discípulos e publicada originalmente entre 475-221 a.C. A obra
foi traduzida pela primeira vez no século XVII, para o latim por um grupo de jesuítas participantes
da missão da China, liderados pelo francês Phillipe Couplet (1623-1693). Importante destacar que
Couplet e os outros jesuítas não traduziram simplesmente o texto original do Lunyu, mas escreveram
eles mesmos a sua própria interpretação da obra de Confúcio, mantendo muito do corpo original do

56Renan Morim Pastor, mestrando em história pela UFRRJ.

652
texto, mas acrescentando ou retirando palavras, sentenças ou notas de rodapé de próprio punho57.

A análise da versão jesuítica do Lunyu é uma importante ferramenta para a pesquisa


não apenas da interpretação e representação jesuítica do confucionismo, mas do próprio Confúcio,
funcionando como a grande introdução do filósofo chinês na Europa e uma peça de propaganda da
missão jesuíta na China. Em 2015, o teólogo francês Thierry Meynard traduz para o inglês a versão
original em latim do Lunyu contida no Confucius Sinarum Philosophus como parte de seus estudos,
acrescentando também os caracteres chineses presentes apenas no manuscrito (não publicado) que foi
utilizado por Couplet, culminando em uma obra trilíngue (chinês, latim e inglês) e facilitando ainda
mais o seu acesso e estudo por parte da historiografia. Antes de nos debruçarmos sobre a apresenta-
ção do trabalho dos missionários no Confucius Sinarum Philosophus, primeiro precisamos traçar o
progresso da missão da China, para que seja possível entender as razões que possibilitaram a produção
de tal obra.

A Missão Jesuíta na China.

A primeira intenção de atividade missionária na China pelos jesuítas começa com um


dos fundadores da Ordem, Francisco Xavier (1506-1552), que depois de muitos anos pregando sua
fé na Índia, decide viajar para o Extremo Oriente, mas acaba por falecer na ilha de Sanchão. Depois
de Xavier, alguns outros jesuítas também visitaram as áreas costeiras da China, como Belchior Nunes
Barreto (1520-1571), que escreveu um relato comentando sobre as riquezas das cidades chinesas,
seu movimentado comércio, a influência poderosa dos funcionários de Estado (que posteriormente
seriam referidos como mandarins pelos portugueses e pelos jesuítas) e a onipotência do Imperador.
Barreto finaliza seu relato com a conclusão de que a sociedade chinesa era estável e suas estruturas
civis eram similares às existentes na Europa58.

Uma iniciativa missionária só começa, de fato, após a chegada do italiano Alessandro


Valignano (1539-1606) à Macau em 1555, um território chinês que era comandado pelos portugueses
graças à um acordo comercial entre Portugal e China. Antes de 1555, foram feitas diversas tentativas
de outras ordens religiosas para pregar sua fé dentro do território chinês. Valignano trouxe a propos-
ta do estudo da língua nativa, a fim de facilitar o contato com os chineses, além de desenvolver um
método de evangelização que se baseava na acomodação cultural, onde os missionários deveriam “se
tornar chineses”, a partir do uso de vestimentas e a prática de certos hábitos culturais que não fossem

57As decisões por trás deste processo de substituição, acréscimo ou retirada de palavras eram variadas. Por
vezes os jesuítas escolhiam termos que fossem familiares aos leitores europeus, como a presença de figuras da
filosofia grega e romana utilizadas como exemplo ou à título de comparação. Estas decisões também eram pau-
tadas na maneira como os jesuítas interpretaram o confucionismo e na escolha que fizeram de como apresentar
este confucionismo para a Europa, modificando termos que pudessem ser considerados idólatras, como na
substituição da palavra “templo” por “salões” (hall). Nesse caso, o “Templo dos Ancestrais” acabou se transfor-
mando no “Salão dos Ancestrais”, por exemplo.
58BROCKEY, Liam. Journey to the East: The Jesuit Mission to China, 1579-1724. Cambridge, Mass: Harvard
University Press. 2007. p.29.

653
contrários à fé cristã, como o comprimento dos cabelos e barbas, por exemplo59.

Neste primeiro período da missão, dois jesuítas se destacaram, na forma dos italianos
Michele Ruggieri (1543-1607) e principalmente Matteo Ricci (1552-1610), que foi o comandante da
missão da China entre 1597 e sua morte, em 1610. As condições da missão da China diferiam das ou-
tras, como as da Índia ou do Brasil, onde os jesuítas possuíam o apoio da coroa portuguesa e liberdade
de locomoção e permanência onde quisessem. Na China, não só os jesuítas não tinham qualquer tipo
de apoio europeu, mas sua permanência nos territórios para além de Macau dependia do favor e da
ajuda de funcionários de Estado que fossem simpáticos à presença dos missionários. Ricci logo per-
cebeu que precisaria de mais do que as vestimentas certas e o domínio da língua se quisesse trabalhar
com as conversões na China.

O missionário italiano passou então a estudar atentamente os clássicos da literatura


filosófica chinesa, principalmente os de Confúcio, além de cultivar a amizade dos mandarins que esti-
vessem dispostos a visita-lo. Para ajudar nessa empreitada, Ricci escreveu, em chinês, sobre os concei-
tos de amizade e memória a partir da filosofia europeia, preparou um mapa mundial e presenteou fun-
cionários de Estado com prismas, relógios e pinturas, tudo para aumentar a curiosidade dos chineses
sobre os missionários, a Europa e sua religião. Esta política de acomodação delineada por Valignano
e aperfeiçoada por Ricci foi um traço vital para o sucesso e sobrevivência da empreitada missionária.

As origens deste tipo de acomodação datam da Epístola aos Coríntios de Paulo, onde
é mencionado que a adaptação seria a obrigação dos fortes na fé, que deveriam respeitar a exigência
dos fracos60. A epístola paulina serviu de inspiração para missionários e teólogos da Igreja, mas a
forma como foi entendida e aplicada variou conforme os diferentes contextos históricos. No caso da
missão da China, essa acomodação começou com a adoção das vestimentas e dos modos dos budistas
chineses, conhecidos como bonzos, inspirado pelos resultados obtidos com essa abordagem na mis-
são jesuíta no Japão. A experiência na China, porém, teve resultados diferentes da nipônica, pois os
bonzos chineses não gozavam da mesma posição e status social dos budistas japoneses, e muito em-
bora possuíssem alguns poucos adeptos nas classes altas, a grande maioria dos mandarins e nobres da
China eram letrados, seguidores da filosofia ru, que tinham como patronos figuras como Confúcio e
Mencius (372-289 a.C), e muitos dos mandarins da época de Ricci nutriam um grande desprezo pelo
budismo e seus monges.

Em 1595, Ricci decide então adotar as vestimentas e os modos dos letrados e manda-
rins, mudando também sua política de acomodação e focando seus esforços de conversão principal-
mente nas classes nobres e letradas da população chinesa, num movimento que Nicolas Standaert
chama de “evangelização de cima para baixo61”, cuja ideia principal seria de que se as elites chinesas

59Para uma detalhada exposição sobre a história e as aplicações do método de acomodação por missionários
ver: PROSPERI, Adriano. “O missionário” in: VILLARI, Rosário. O homem barroco. Lisboa: Editorial Presen-
ça, 1995.
60PROSPERI, Adriano. O Missionário. In: VILLARI, Rosário. O Homem Barroco. Lisboa: Editorial Presença,
1995. p.154.
61STANDAERT, Nicolas. The Cambridge Companion to the Jesuits. Ed. Thomas Worcester, Cambridge Univ.
Press, 2008. p.172.

654
fossem convertidas, o resto do Império seguiria com mais facilidade. Ricci então passa a apresentar
o cristianismo em uma linguagem tradicional confuciana, na tentativa de criar um diálogo com essa
elite letrada chinesa, que pudesse facilitar sua conversão, consolidando assim o método de evangeli-
zação que seria utilizado pelos missionários jesuítas até o final da missão da China, no século XVIII.

A missão alcançou novos ares quando Ricci, acompanhado de Diego de Pantoja (1561-
1618) consegue permissão do governo chinês para residir na capital Pequim. Em 1605, os jesuítas não
só possuíam residência fixa na capital, como também cerca de cem conversos, de diferentes status
sociais. Após a morte de Ricci, em 1610, os números haviam aumentado ainda mais, com os jesuítas
possuindo residências em Chaoch’ing, Shaoguan, Nanchang, Nanquim e Pequim, com um número
estimado de conversos que chegava aos 2.50062. Após a morte de Ricci, outro italiano, Niccolò Longo-
bardo (1559-1654) foi escolhido como Superior responsável pela missão, posto que exerceu até 1622.
Foi sob o comando de Longobardo que foi anunciada a primeira de muitas viagens de missionários
que atuavam na China para a Europa, com o intuito de divulgar e promover a missão para as coroas
europeias, em busca de patrocínio e novos missionários, além da realização de conferências em Roma
sobre as diretrizes da missão. Em 1611, o flamenco Nicolas Trigault (1577-1628) foi o escolhido para
esta tarefa.

Trigault passou quatro anos na Europa, e nesse tempo traduziu para o latim as memó-
rias de Matteo Ricci (escritas originalmente em italiano), além de produzir seu próprio relato sobre a
missão. Utilizando estas duas obras como propaganda, o missionário viajou para Itália, França, Ale-
manha e Holanda, apresentando-se nas cortes europeias para divulgar o trabalho dos missionários na
China para os príncipes e a nobreza local, recebendo normalmente respostas positivas, incluindo uma
promessa de subsídio anual para a missão, oferecido pelo rei Felipe III (1578-1621) da Espanha. Em
1618, Trigault parte de Lisboa de volta para a China, carregando consigo fundos monetários, livros e
mais vinte e dois novos recrutas para a missão, incluindo alguns missionários que se destacariam nos
próximos anos, como Johann Adam Schall von Bell (1591-1666), Johann Terrenz Schreck (1576-1630)
e Giacomo Rho (1593-1638)63.

No período da viagem de Trigault, a missão continuou a se expandir, com o italiano La-


zzaro Cattaneo (1560-1640) fundando a missão de Hangzhou em 1611, enquanto na capital, Pantoja e
Sabatino de Ursis (1575-1620) trabalhavam lado a lado com a Junta de Rituais da Corte, com o obje-
tivo de reformular o calendário chinês, graças à precisão dos jesuítas em suas previsões astronômicas.
Entretanto o projeto teve de ser abortado, em razão da oposição de astrônomos chineses. O sucesso da
missão também trouxe percalços aos missionários na forma de opositores ferrenhos, alguns chineses
e outros europeus. No lado chinês, grande parte da hostilidade vinha dos eunucos, figuras que pos-
suíam grande influência política nos palácios, muitos deles incomodados com a proximidade entre os

62LACH, Donald F. Asia in the Making of Europe, Volume I: The Century of Discovery. University of Chicago
Press, Chicago. 2008. pp. 177-178.
63BROCKEY, Liam. Journey to the East: The Jesuit Mission to China, 1579-1724. Cambridge, Mass.: Havard
University Press. 2007. p.76.

655
missionários e os mandarins64. Do lado europeu, o número de críticas ao método de acomodação ado-
tado pelos participantes da missão da China aumentava ainda mais, vindo principalmente dos jesuítas
da missão japonesa e de membros de outras ordens religiosas, como dominicanos e franciscanos.

Em 1615 a missão sofre um de seus mais perigosos ataques, vindo do Vice-Diretor da


Comissão de Ritos de Nanquim65, Shen Ch’ueh, que acusava os missionários de que sua religião “sub-
versiva” desviava os chineses de sua doutrina e moral naturais, além de acusações relacionadas aos
fundos financeiros misteriosos (provenientes de Macau) dos jesuítas e a prática de rituais “mágicos”,
como a alquimia. Mesmo sem ter recebido o aval do Imperador, Shen autoriza a prisão e deportação
de missionários que atuavam na área de Nanquim, entre eles Pantoja e De Ursis, enquanto outros
jesuítas conseguiram permanecer em suas residências, onde procuraram não chamar muita atenção.
Apesar do susto, a maioria dos missionários deportados retornaram a China pouco tempo depois para
continuar seu trabalho. O ataque aos jesuítas foi motivado pelo crescente embate político entre os eu-
nucos e as academias letradas, muitas delas com membros que não hesitavam em criticar o estado de
governo do Império. Como os jesuítas se vestiam e se comportavam como letrados, essa pode ter sido
uma das razões do ataque Shen aos missionários66.

Com os problemas de Nanquim, superados, os jesuítas continuaram a expandir a mis-


são, fundando novas residências na China, como as de Shaanxi, estabelecida em 1620 por Giulio Aleni
(1582-1649). Os missionários também tiveram uma limitada, porém importante participação militar
durante a invasão holandesa à Macau em 1622. Durante a batalha, os jesuítas operaram canhões e au-
xiliaram uma pequena guarnição portuguesa, que também contava com a presença de escravos, cafres
e moradores locais a repelir o ataque de uma frota marítima holandesa com cerca de 300 homens. A
utilidade dos canhões impressionou os chineses, que passaram a comprar o armamento em Macau,
de portugueses, com os missionários relutantemente agindo como intermediários e tradutores nas
negociações. O uso dos canhões foi vital para a resistência chinesa contra os Manchus naquele ano67.

Em 1629, a Comissão de Ritos chinesa reabre a questão da reforma do calendário, gra-


ças às ações de seu vice-presidente Xu Guangqi (1562-1633), batizado por Ricci em 1603, que propôs
que a reforma fosse feita a partir de uma competição entre astrônomos jesuítas, muçulmanos e chi-
neses em relação à previsão de um eclipse. A apuração dos resultados provou a exatidão do método
europeu e no fim daquele ano, um édito Imperial concede aos jesuítas Niccolo Longobardo e Johann
Schreck a tarefa de reformar o calendário chinês, os nomeando oficiais remunerados do Departamen-
to do Calendário, com direito a uma oficina, materiais e ferramentas que possibilitassem a construção
de novos instrumentos científicos relacionados a astronomia. O que se seguiu foi um período de su-
cesso e fertilidade para a missão da China. A notícia da vitória dos jesuítas na questão do calendário
se espalhou não só pela China, mas também chegou até a Coréia e o Japão. Houve também a fundação
64Sobre um panorama geral da função e posição social dos eunucos na Dinastia Ming ver: TSAI, Shih-shan
Henry. The Eunchs in the Mind Dinasty. New York: State University of New York Press. 1996.
65A Comissão de Ritos era responsável pelas cerimônias de Estado, tais como rituais e sacrifícios, além de ter a
função diplomática de lidar com assuntos envolvendo estrangeiros ou outras nações.
66LACH, Donald F. Asia in the Making of Europe, Volume I: The Century of Discovery. University of Chicago
Press, Chicago. 2008. pp.181-182.
67Ibid., p.187.

656
de mais residências, como as de Hukwang e Sichuan, em 1637 e 1640 respectivamente68.

A queda da Dinastia Ming trouxe a volta das incertezas aos missionários. As invasões
dos Manchus, a escassez de alimentos entre os mais pobres e o aumento do ataque de bandidos asso-
lavam a China, o que levou ao surgimento de um movimento de resistência armada liderado por Li
Zicheng (1606-1645), da região de Shaanxi. Este movimento armado consegue invadir Pequim em
1644, com pouquíssima resistência do exército chinês, ao mesmo tempo que o Imperador Chong-
zhen (1611-1644) manda esconder seus filhos e se suicida nos jardins do Palácio Imperial. Li Zicheng
se proclama o primeiro Imperador da Dinastia Shun. Seu período como governante, porém, durou
pouco mais de um ano, quando o restante do exército leal à Dinastia Ming se alia aos Manchus para
tomar novamente a capital, derrotando o exército do Imperador e dando fim a curta Dinastia Shun. Os
Manchus foram recebidos como heróis libertadores pelos habitantes de Pequim, e então é proclamada
a Dinastia Qing, com Shunzhi (1638-1661) como o primeiro Imperador69.

Embora a Dinastia Quing tenha se iniciado, ainda existiam facções opositoras que ten-
tavam restaurar a Dinastia Ming por meio de conflitos que duraram até 1659. Os missionários jesuítas
se encontraram no meio deste fogo cruzado, tendo de tomar a difícil decisão de escolher um lado para
apoiar. A maioria dos jesuítas, principalmente os de Pequim, aceitam sem atribulações a entrada da
Dinastia Qing, com Johann Schall rapidamente conquistando a amizade do novo Imperador, sendo
nomeado diretor da nova Junta de Astronomia Imperial e se tornando um conselheiro do novo Impe-
rador. Graças à influência de Schall, as atividades missionárias na maioria das cidades seguiram sem
grandes problemas até a morte de Shunzhi70.

Então chegamos à segunda metade do século XVII, o período de elaboração e publi-


cação do Confucius Sinarum Philosophus. Apesar das críticas vindas de outras ordens religiosas ao
método de acomodação dos missionários e os problemas que afligiram a missão por conta de inimigos
chineses ou simplesmente de circunstâncias adversas, como a queda da Dinastia Ming, os missio-
nários continuaram a seguir o modelo de evangelização delineado por Ricci no fim do século XVI,
baseado numa aliança da filosofia de Confúcio com o cristianismo. Enquanto Ricci esteve vivo, seu
carisma e sua importância para a missão foram suficientes para defletir muitas das críticas vindas de
outros religiosos, principalmente no tocante à permissão para que os chineses convertidos continuas-
sem a praticar os rituais aos ancestrais e à Confúcio, além da indecisão sobre qual termo seria o ideal
para designar o Deus cristão.

Todavia, após a morte de Ricci, o número de críticas aumentara consideravelmente,


vindos de outros jesuítas, como os da missão do Japão, de Dominicanos e Franciscanos. Em 1669 é or-
ganizada uma reunião entre os missionários atuando na China (jesuítas, dominicanos e franciscanos),
na tentativa de chegar a um comum acordo em relação aos métodos de evangelização utilizados pelos
jesuítas. A ocasião desta reunião se deu em razão de um período de forte sentimento anti-cristão na
68Ibid., p.191.
69WAKEMAN Jr, Frederic. The Great Enterprise: The Manchu Reconstruction of Imperial Order in Seventeeth
China – Volume I, Berkeley: University of California Press, 1985. pp.225-318.
70Lach, Donald F. Asia in the Making of Europe, Volume I: The Century of Discovery. University of Chicago
Press, Chicago. 2008. pp.193-194.

657
China, influenciado pelas ações de Yang Kuang-hsien. A influência dos ataques de Yang contra os mis-
sionários cresceu após a morte de Shunzhi, e uma denúncia com a Comissão de Ritos acabou na pri-
são de Schall, Ferdinand Verbiest (1623-1688), Ludovico Buglio (1606-1682) e Gabriel de Magalhães
(1610-1677). Mesmo com as apelações e tentativas de defesa dos missionários, Schall e seus ajudantes
chineses foram condenados à morte. Porém a sorte estava do lado dos jesuítas, quando um terremoto
atingiu a China, o que foi interpretado como um mau presságio pelos chineses, que decidiram por
soltar Schall, deixando com que o alemão permanecesse na capital. Os outros jesuítas, porém, foram
todos mandados para Cantão, sendo mantidos em prisão domiciliar71.

Yang, após a acusação dos jesuítas, foi apontado como Diretor do Comitê de Astro-
nomia, todavia, uma série de erros foi observada em seus cálculos no calendário e Yang foi retirado
de seu posto, com Verbiest assumindo a posição como Diretor Associado em 166972. Apesar da pro-
moção de Verbiest, os missionários continuaram na condição de prisioneiros em sua residência, e foi
nestes termos que ocorreu a reunião entre os missionários jesuítas, franciscanos e dominicanos.

A reunião contou com vinte e três missionários, com o objetivo de chegar a um comum
acordo sobre a política missionária a ser usada na China, com pontos que discutiam a administração
dos sacramentos, liturgia, disciplina eclesiástica, lei canônica e principalmente a questão da manu-
tenção dos rituais aos conversos. Apesar das críticas ferrenhas vindas principalmente do dominicano
Domingo Navarrete (1610-1689), a defesa dos jesuítas de seus métodos foi eficiente, conseguindo
inclusive alguns aliados das outras ordens, como o dominicano Domenico Sarpetri (1623-1683), que
concordou e defendeu o método jesuíta na reunião. A reunião não foi documentada oficialmente, ou
pelo menos se foi, este documento ainda permanece desconhecido, porém Paul Rule afirma que ou-
tros tratados e cartas da época sugerem que os jesuítas ouviram e consideraram as críticas e que uma
série de regras práticas foram promulgadas para a missão, principalmente no tocante a uma vigilância
muito maior a práticas que poderiam ser consideradas supersticiosas73.

A produção do Confucius Sinarum Philosophus

Apesar das críticas e ataques, os missionários se reergueram novamente, e as décadas


de 1670 e 1680 podem ser consideradas períodos de expansão e consolidação do modelo de Ricci
na China. Na Europa, o Confucius Sinarum Philosophus surgiria como uma defesa, uma resposta
e uma grande propaganda do método de evangelização dos missionários frente às críticas de seus
opositores. Os primeiros passos na produção da obra começaram com a viagem do italiano Prospero
Intorcetta (1625-1696) de volta para a Europa, da mesma forma que Nicolas Trigault e outros mis-
sionários fizeram antes dele. Uma das ações de Intorcetta foi conseguir uma (limitada) publicação de
sua própria tradução de um dos livros de Confúcio, A Doutrina do Meio, publicada com o nome de
Sinarum Scientia Politico-Moralis. A tradução de Intorcetta não teve uma grande distribuição, como
teria o Sinarum Philosophus no futuro, mas foi a primeira tradução de uma obra em língua chinesa
71RULE. Paul A. K’ung Tzu or Confucius? The Jesuit Interpretation of Confucionism. 1972. 498f. Tese (Douto-
rado em Filosofia) Australian National University, Camberra. 1972. p.284.
72Ibid., p.287.
73RULE. Paul A. K’ung Tzu or Confucius? The Jesuit Interpretation of Confucionism. 1972. 498f. Tese (Douto-
rado em Filosofia) Australian National University, Camberra. 1972. p.310.

658
na Europa74.

Anos antes, em 1662, o próprio Intorcetta havia trabalhado, junto com o português
Inácio da Costa (1603-1666), em uma tradução de obras de Confúcio, em um livro chamado Sapientia
Sinica, que continha trechos traduzidos dos Analectos e do Grande Aprendizado, que foram baseados
em antigos manuscritos traduzidos por Ricci, que eram utilizados no treinamento de missionários
recém-chegados à China. O Sapientia Sinica, porém, não chegou a ser publicado na Europa75, mas
sua existência foi importante na confecção do Confucius Sinarum Philosophus, cujo time de tradução
acabara reunido durante a reunião de Cantão, e consistia no flamenco Philippe Couplet (que seria
nomeado Procurador da missão durante este período), o também flamenco François de Rougemont
(1624-1676) e o austríaco Christian Herdtrich (1625-1684), além dos créditos cedidos à Prospero
Intorcetta.

Em 1680, Couplet é escolhido para representar a missão na Europa, com a tarefa de


divulgar a missão, visitar cortes, coletar doações e conseguir novos recrutas para atuação na China.
Por nove anos, Couplet viajou pela Europa, passando pelos Países Baixos até França, dali para a Itália,
Espanha, Portugal e Inglaterra. Viajando com Couplet, estava seu assistente chinês, o convertido Mi-
guel Shen Fuzong (apx 1658-1691), além de vários produtos e curiosidades trazidas da Ásia76. Durante
sua estadia na França, mostrou o manuscrito com as traduções para o bibliotecário Real Melchisédech
Thévenot (1620-1692), que havia ajudado a publicar parte das traduções de Intorcetta em uma coletâ-
nea alguns anos antes. Thévenot manifestou interesse na publicação do Confucius Sinarum Philoso-
phus e depois de uma conversa com o Imperador Luís XIV (1638-1715) e um pedido formal enviado
para Roma, fica acertada a publicação da obra em Paris. Os manuscritos são transportados da Itália
para a França e em 1687 Couplet começa a trabalhar na edição final do Sinarum Philosophus. No
mesmo ano, o livro recebe a permissão do Censor Real da França para a publicação. Couplet dedica
o prefácio à Luís XIV, como forma de gratidão pelo apoio do Rei, tanto na publicação da obra quanto
com a ajuda financeira enviada para a missão da China77.

A Recepção do Confucius Sinarum Philosophus na Europa

A tradução jesuíta dos clássicos de Confúcio, principalmente do Lunyu foi muito bem
recebida na Europa do século XVII, com publicações em diversas línguas para além do latim origi-
nal, como o francês, alemão e o inglês. Depois do sucesso do Sinarum Philosophus, os responsáveis
pela publicação da obra lançaram uma versão reduzida e mais barata, intitulada Lettre sur la Morale
de Confucius, Philosophe de la Chine, provavelmente editada e traduzida pelo padre católico Simon
Foucher (1644-1696). O livro possuía vinte e nove páginas, dividas entre os três livros de Confúcio,
além de um epílogo. No prefácio, Foucher ressalta a natureza prática da sabedoria chinesa e como ela
é compatível com a cristandade: “Nós podemos ver em Confúcio um esboço da cristandade e um re-
74Ibid., p.319.
75Idem.
76BROCKEY, Liam. Journey to the East: The Jesuit Mission to China, 1579-1724. Cambridge, Mass: Havard
University Press. 2007. pp.151-152.
77MEYNARD, Thierry. The Jesuit Reading of Confucius, The First Complete Translation of the Lunyu (1687)
Published in the West. Leiden, Boston: Brill, 2015. pp.16-18.

659
sumo de tudo o que os filósofos reconheceram como a mais firme em questões de moral78”.

Thierry Meynard atribui ao Sinarum Philosophus e suas muitas abreviações e edições


traduzidas a inspiração de figuras famosas, como Gottfried Leibniz (1646-1716), Pierre Bayle (1647-
1706) e Voltaire (1694-1778), enquanto o filósofo alemão Georg Bernhard Bilfinger (1693-1750) pu-
blica um tratado sobre a moralidade e a política baseada na leitura do Lunyu79. A publicidade e o
sucesso gerado em cima do Sinarum Philosophus e de Confúcio na Europa foram benéficas para a
Igreja, que sempre cuidou da imagem pública das missões jesuítas ao redor do mundo, com a publi-
cação de cartas cuidadosamente selecionadas e editas que contassem as descobertas, desventuras e o
dia-a-dia dos missionários, além dos feitos de conversão. O motivo destas publicações não era apenas
despertar a curiosidade e o desejo de jovens missionários de viajarem para participar das missões,
mas também de angariar fundos e doações das coroas europeias. No caso da missão da China, obras
como o Sinarum Philosophus também serviam como uma defesa dos missionários ao seu método
de acomodação e sua “aliança” com a filosofia confuciana, frente às críticas sofridas na época de sua
criação e publicação.

O Lunyu, a cultura de comentários e a interpretação jesuíta de Confúcio.

De todas as obras de Confúcio, o Lunyu pode ser considerada a mais influente. Seu
texto consiste de uma compilação de histórias e lições de Confúcio, descritas por seus discípulos ao
longo dos anos e enriquecida por comentários dos mais diversos filósofos ao longo dos séculos. Foi a
partir de versões comentadas do Lunyu que os jesuítas puderam construir a sua própria interpretação
da filosofia confuciana. É comum ver referências a comentários e comentadores em muitos trabalhos
de sinologia que estudam a leitura que os missionários jesuítas fizeram de obras chinesas, mas o que
exatamente significam estes comentários?

Na cultura literária chinesa, o corpo textual de uma obra filosófica não era imutável e
isso se deve a esta cultura de comentários. Como o nome sugere, os comentários eram adições, revi-
sões ou expansões feitas por um outro autor (normalmente um filósofo) a uma obra clássica. A cultura
de comentários provavelmente deriva da dificuldade em se obter os exemplares originais dos clássicos
chineses da Antiguidade. Os comentários acabavam por manter estes clássicos vivos ao longo dos sé-
culos, por meio de diferentes interpretações.

No caso do Lunyu, que tinha seu título traduzido como “Conversas Selecionadas”, a
maior parte do corpo textual se refere às ditas conversas ou máximas de Confúcio para com seus
alunos, e sua autoria é normalmente delegada à primeira e segunda geração de pupilos do filósofo. Os
comentários no Lunyu normalmente tinham a função de explicar as palavras ou as lições de Confú-
cio aos seus alunos, acrescentar algum tipo de contexto histórico ou lição adicional ou mesmo editar
ou retirar partes do texto, se o comentador assim achasse necessário. É importante ressaltar que os
comentadores, ao longo dos séculos, se baseavam nos comentários de versões anteriores para formar
os seus, construindo o que Thierry Meynard classifica como vários fios se entrelaçando para formar
78MEYNARD, Thierry. The Jesuit Reading of Confucius, The First Complete Translation of the Lunyu (1687)
Published in the West. Leiden, Boston: Brill, 2015. pp.81-82.
79Ibid., p.85.

660
um tecido80. No caso dos jesuítas, as versões comentadas escolhidas pelos missionários para formar
sua tradução foram as de Zhu Xi (1130-1200), um influente filósofo da Dinastia Song e a de Zhang
Juzheng (1525-1582), tutor do Imperador Wanli (1563-1620), da Dinastia Ming, e uma breve análise
sobre estes comentadores pode elucidar as razões para esta escolha.

A edição comentada de Zhu foi a mais estudada por Matteo Ricci e os jesuítas da pri-
meira geração da missão da China, a qual era parte de uma coleção intitulada “Comentários Selecio-
nados dos Quatro Livros”. A escolha de Zhu pelos jesuítas foi, em grande parte, por praticidade. Os
“Comentários Selecionados” eram edições muito populares e fáceis de serem adquiridas durante a Di-
nastia Ming e Qing. Considerando que os jesuítas se mudavam constantemente entre residências em
diferentes províncias e muitas vezes trabalhavam separadamente, era preciso que utilizassem uma ver-
são de fácil acesso, para evitar mal-entendidos durante os estudos e o eventual processo de tradução81.

A versão comentada de Zhang chamava-se “Comentários coloquiais sobre os Quatro


Livros” e era baseada nas lições orais ministradas ao Imperador Wanli durante os quase vinte anos de
serviço de Zhang. Os “Comentários Coloquiais” tinham uma estrutura textual diferente da versão de
Zhu. Primeiramente havia uma explicação individual do significado das palavras e caracteres chine-
ses, já que o livro também foi utilizado para as lições de alfabetização do Imperador. A segunda parte
consistia em uma tradução do texto clássico para o chinês coloquial (de onde os jesuítas traduziam
diretamente quando julgavam necessário), e finalmente haviam comentários finais sobre as lições mo-
rais da passagem, normalmente direcionados ao Imperador e como ele poderia utilizar as lições de
Confúcio para seu próprio aprimoramento interior82.

Em questão de conteúdo, as edições de Zhu e Zhang são relativamente similares, porém


com algumas diferenças muito importantes. Para Zhu, os clássicos de Confúcio deveriam ser a base
para o cultivo pessoal da virtude de forma individual, enquanto Zhang afirmava que os clássicos deve-
riam ser direcionados aos governantes, mais especificamente ao Imperador e que o cultivo pessoal do
Imperador deveria ser sua base de governo. Embora tenham utilizado ambas as versões para compor
sua própria interpretação do Lunyu, os jesuítas favoreceram a abordagem de Zhang, pois considera-
vam mais próxima de sua própria interpretação do que era o confucionismo.

Zhang baseava suas ações políticas nos princípios confucianos de pensamento e moral.
Para ele, o declínio político e social da China durante o fim da Dinastia Ming eram fruto da corrupção
moral da administração Imperial, o que levou a proliferação de novas ideias e a perda da ortodoxia
do pensamento confuciano original. Na época de Zhang (e dos jesuítas, já que o tutor imperial mor-
re apenas alguns anos após o início da missão da China) era comum a existência de academias que
misturavam as ideias de Confúcio com princípios budistas ou taoistas, algo que Zhang desaprovava,
acusando estas academias de fomentarem a contestação política, além de ser prova da perda de orto-
doxia denunciada por ele. Zhang acreditava que os clássicos de Confúcio eram suficientes para que o
80MEYNARD, Thierry. The Jesuit Reading of Confucius, The First Complete Translation of the Lunyu (1687)
Published in the West. Leiden, Boston: Brill, 2015. p.21.
81Idem.
82MEYNARD, Thierry. The Jesuit Reading of Confucius, The First Complete Translation of the Lunyu (1687)
Published in the West. Leiden, Boston: Brill, 2015. pp.28-29.

661
Imperador pudesse cultivar sua moralidade interior, e através da sabedoria de Confúcio restaurasse o
Império para fora do período de declínio que se encontrava83.

A oposição de Zhang a essa mistura de pensamentos entre confucionismo, budismo e


taoísmo e a defesa de um pensamento baseado apenas na filosofia de Confúcio certamente atraiu os
jesuítas, que tinham por objetivo demonstrar que o budismo e o taoismo deveria ser rejeitados, e que
a cristandade não era apenas compatível com a filosofia confuciana, mas era também a única religião
que refletia os ensinamentos de Confúcio antes que eles fossem “contaminados” pela presença de
outras doutrinas84. Outro aspecto dos comentários de Zhang que pode ter interessado aos jesuítas é
o direcionamento da doutrina proposta por Zhang, que tinha foco na prática da virtude e deixava de
lado os aspectos teóricos das lições de Confúcio, além de ignorar discussões de espectro metafísico,
preferindo enfatizar a aplicação prática dos ensinamentos de Confúcio para a vida pessoal e pública
dos indivíduos. Considerando que os jesuítas interpretaram o confucionismo primariamente como
um sistema muito mais filosófico do que religioso (e que neste sentido poderia ser completado pela fé
cristã), a visão de Zhang se adequava mais aos propósitos dos missionários.

Um ponto importante na interpretação jesuíta do confucionismo foi a crença dos mis-


sionários de que na China antiga, até mesmo antes dos tempos de Confúcio, havia uma religião mo-
noteísta, que com a ajuda da luz natural e da razão, foi capaz de reconhecer e acreditar em Deus, na
forma de “tian”, cuja tradução significa paraíso. Com a ajuda de leituras clássicas chinesas, como os
trabalhos dos filósofos Cheng Yi (1033-1107) e Qiun Jun, os jesuítas ao produzirem sua versão do
Lunyu, voltam até 2.000 anos antes de Cristo (e 1.600 anos antes de Confúcio) para citar exemplos da
Antiguidade chinesa onde havia a menção de tian representadas de maneira similar ao Deus cristão,
como no exemplo de Gao Yao, cujo escrito mais famoso é intitulado “Instruções de Gao Yao”, que
incluem conselhos sobre a maneira corretar de um Imperador administrar as pessoas, ensinamentos
de como um governante deve adaptar e transformar a si para atender os desejos de seus súditos, e
principalmente do paraíso, sempre “levando o paraíso como exemplo e norma. O paraíso, ou melhor,
o Imperador do paraíso ouve e entende tudo85”.

No Lunyu, Confúcio faz diversas alusões ao paraíso, levando os jesuítas a construírem


uma imagem de Confúcio que afirmasse a prerrogativa original do seu método de acomodação, onde
o filósofo seria o principal representante de uma antiga religião monoteísta perdida na China antiga, e
que graças à sua sabedoria recebeu escolas e academias fundadas em seu nome, que embora possuís-
sem alguma conotação religiosa, não eram idólatras como as seitas budistas e taoístas.

No que concerne o paraíso, os comentadores também diferiam em suas análises, e mais


uma vez os jesuítas penderam para o lado do tutor Real. Para Zhu, tian significava algo como um
princípio sagrado (tianli), mas que não tinha consciência ou vontade. Zhang, por outro lado, se referia
a tian como algo maior que um princípio, como uma força que pune e recompensa, um poder maior
83Ibid., p.27.
84FONTANA, Michela. Matteo Ricci: A Jesuit in the Ming Court. Maryland. Laham: Rowan & Littlefield Pub-
lishers, Inc., 2011. p.226.
85MEYNARD, Thierry. The Jesuit Reading of Confucius, The First Complete Translation of the Lunyu (1687)
Published in the West. Leiden, Boston: Brill, 2015. p.386.

662
que deve ser obedecido e temido e que tem um propósito. Um exemplo básico se encontra em uma
das passagens do Lunyi, onde Confúcio diz: ”Ele que peca contra o paraíso, não pode rezar à nenhum
outro espirito maior pelo perdão de seu pecado86”. Meynard ressalta que a opinião de Zhang acerca de
tian provavelmente foi influenciada pelo ressurgimento dos ensinamentos do erudito Dong Zhongshu
(179-104 a.C), que falava de uma “lei de interação mútua”, que seria sua interpretação da relação entre
o paraíso e os homens, em que o paraíso seria dotado de vontade e personalidade, assumindo uma
função de juiz perante as ações dos homens. A visão de Zhang do paraíso, nestes termos, soa similar
à visão que os jesuítas tinham de Deus. Dessa forma, Confúcio não apenas enxergava a existência de
um conjunto de leis morais, mas também admitia a influência de um autor e aplicador destas leis.
Diferente do pensamento de Zhu, recompensas e punições derivavam não de uma lei moral anônima,
mas eram resultado de um processo consciente do paraíso, como pode ser visto em uma das passagens
do Lunyu, onde Confúcio diz: “Aquele que não acredita que o mandato do paraíso e sua providência
exista é alguém que não entende e não acredita que a sorte, as adversidades, a vida e a morte depen-
dem da vontade e dos planos do paraíso87”.

Durante o fim da Dinastia Ming, passa a ser popular na China a adesão de muitos letra-
dos ao que seria uma fusão das três religiões da China (confucionismo, budismo e taoísmo) em uma
só, conhecida por sanjiao heyi88. Embora os jesuítas fossem completamente contrários à essa prática,
o momento de abertura do pensamento filosófico na China da época, combinado com a cultura dos
comentários deu margem para o surgimento de mais uma intepretação do Lunyu e da filosofia confu-
ciana, desta vez feita pelos missionários europeus. Combinando interpretações filosóficas do Lunyude
diferentes Dinastias (a filosofia da Dinastia Song, a teologia da Dinastia Han e a base da Dinastia
Ming), somada à própria crença cristã dos missionários acabaram por dar origem a uma obra com-
patível com a filosofia e teologia cristã, que afirmasse e reforçasse a interpretação dos missionários
de que o cristianismo seria o complemento perfeito para o confucionismo e que a missão da China
era digna do investimento da Igreja e das coroas europeias, agindo de fato como uma eficiente pro-
paganda missionária. Por fim, no ato de combinar comentários chineses de diferentes eras com a sua
própria cultura e filosofia, os missionários acabaram por criar uma versão totalmente nova do Lunyu,
caracterizando esta obra como mais que um simples trabalho de tradução de palavras, mas sim na
produção de um material sino-europeu que acabou por apresentar para a Europa a figura de Confúcio
e sua filosofia da forma como ela seria vista durante o século seguinte.

86MEYNARD, Thierry. The Jesuit Reading of Confucius, The First Complete Translation of the Lunyu (1687)
Published in the West. Leiden, Boston: Brill, 2015. p.166.
87Ibid., pp.597-98.
88Ibid., p.49.

663
Fonte

Analectos de Confúcio (Lunyu) contido na Confucius Sinarum Philosophus in:

MEYNARD, Thierry. The Jesuit Reading of Confucius, The First Complete Translation of the Lunyu
(1687) Published in the West. Leiden, Boston: Brill, 2015.

Referências Bigliográficas

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padres jesuítas na China. São Paulo: Clube dos Autores, 2015.

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WAKEMAN Jr, Frederic. The Great Enterprise: The Manchu Reconstruction of Imperial Order in
Seventeeth China – Volume I, Berkeley: University of California Press, 1985.

664
Os Japoneses no Pensamento Racial de Alessandro Valignano, SJ (1539-1606)
Rômulo da Silva Ehalt89

O professor Jorge Cañizarres-Esguerra, palestrante de encerramento do Encontro Internacio-


nal de História Colonial de 2018 em Natal, foi autor de um influente artigo defendendo que a ciência
da raça tem em suas origens os debates de humanistas e teólogos da nova escolástica no Novo Mundo.
Na América hispânica, estes debates tiveram como foco a classificação das nações de acordo com
fatores como a existência de cidades, o conhecimento da construção de arcos, a organização em hie-
rarquias sociais, a criação de sistemas de escrita, a prática de religiões e rituais de maneira “correta”,
o conhecimento de códigos de vestimenta, e a compreensão de leis naturais alimentares e sexuais.90
Seguindo os passos de Cañizarres-Esguerra, o presente trabalho aborda uma das muitas taxonomias
raciais criadas no oriente português: a teoria racial de Alessandro Valignano. Especificamente, fala
sobre como as suas ideias a respeito dos japoneses se desenvolveram de acordo tanto com a sua expe-
riência com o Japão quanto com as necessidades da missão jesuíta no Extremo Oriente.91

Valignano nasceu em 1539 na cidade italiana de Chieti, no Reino de Nápoles, então sob domí-
nio espanhol.92 Em 1574, o jesuíta chega a Goa como visitador das missões da ordem na Ásia. A partir
daí até o final do século XVI, Valignano escreve diversos relatórios, sempre tentando esclarecer as di-
ficuldades e os desafios enfrentados pelos missionários, bem como apresentar aos superiores o estado
“real” das missões. Um dos primeiros esforços neste sentido é envidado em 1577, quando Valignano
escreve o seu Summarium Indicum, uma longa descrição da província jesuíta da Índia, que na época
abarcava todas as missões asiáticas. O relatório foi escrito com menos de dois meses de experiência
na Península Malaia, entre os dias 22 de novembro e 8 de dezembro. É aqui que o visitador começa a
desenvolver suas ideias sobre as raças asiáticas.

O primeiro passo do visitador é dividir a Ásia em duas grandes porções: de um lado, Japão e
China, e do outro, o resto. Esta primeira classificação é feita com base na cor da pele dos asiáticos e o
seu entendimento da religião. Valignano registra que os povos da Ásia são, em sua maior parte, negros

89 Professor contratado da Faculdade de Direito da Universidade Keio, em Tóquio, e da Universidade Inter-


nacional Josai, em Chiba, Japão. Este texto é parte revisada da minha tese, “Jesuits and the problem of slavery
in early modern Japan”, entregue em setembro de 2017 e defendida em fevereiro de 2018 na Universidade de
Estudos Estrangeiros de Tóquio, Japão. A parte inicial da pesquisa recebeu financiamento da Japan Society for
the Promotion of Science, entre 2011 e 2014 (research fellow, categoria DC-1). Todas as traduções são de minha
inteira responsabilidade, exceto quando indicado em contrário.
90 CAÑIZARRES-ESGUERRA, Jorge. New World, New Stars: Patriotic Astrology and the Invention of Indian
and Creole Bodies in Colonial Spanish America, 1600-1650. The American Historical Review, Oxford Univer-
sity Press em nome da American Historical Association Stable, v. 104, n. 1, p. 66-67, fev. 1999.
91 Recentemente, dois autores se debruçaram sobre o lugar dos japoneses no pensamento racial europeu: KEE-
VAK, Michael. Becoming Yellow: A Short History of Racial Thinking. 1. ed. Princeton: Princeton University
Press, 2011; e KOWNER, Rotem. From White to Yellow: The Japanese in Europe Racial Thought, 1300-1735. 1.
ed. Québec: McGill-Queen’s University Press, 2014.
92 Detalhe sempre lembrado por Giuseppe Marino em seus trabalhos. Ver, por exemplo, MARINO, Giuseppe.
La transmisión del Renacimiento cultural europeo en China. Un itinerario por las cartas de Alessandro Valig-
nano (1575-1606). Studia Aurea, Girona e Barcelona, Espanha, v. 11, p. 397, 2017.

665
[è tutta di color negra], enquanto japoneses e chineses teriam a pele branca como a dos europeus [è
Bianca como la nostra di Europa].93 Neste momento, Valignano também entende que os japoneses
teriam uma capacidade mais aguçada para entender a religião, acreditando ser suficiente para explicar
os resultados mais positivos obtidos pelos missionários no Japão.94

Valignano chega ao Japão em 1579, onde começa a trabalhar numa revisão do seu Summarium
Indicum. É no arquipélago japonês que o visitador tem a sua primeira revelação: ele percebe que a
realidade apresentada nas cartas de seus companheiros nem sempre correspondia ao que ele pôde
verificar pessoalmente no Japão. Assim, Valignano nota o quão pouco sabia sobre os japoneses.

Em uma carta escrita no final de 1579 a Everardo Mercuriano, superior-geral da companhia,


Valignano aponta quatro fatores que contribuiriam para a falsa percepção da realidade a respeito da
missão japonesa: primeiro, a falta de conhecimento do idioma e dos hábitos japoneses fazia com que
os missionários se deixassem levar pelo comportamento aparente dos locais, acreditando que estes
refletiam suas crenças e maquinações internas; segundo, alguns missionários exageravam ou maquia-
vam a realidade em seus textos, com o objetivo de escrever cartas consideradas boas; terceiro, outros
jesuítas escreviam como se tudo fosse movido por um espírito puro dos japoneses, ignorando aqueles
que tinham interesse somente nas vantagens comerciais da conversão; e, quarto, alguns missionários
descreviam pequenas vitórias pessoais como se refletissem tudo que se passava no Japão, dando uma
falsa impressão do resultado geral da missão.95

Assim, fatores políticos, linguísticos e culturais seriam os responsáveis por criar uma barreira
dificultando para aqueles fora do Japão a compreensão do que se passava na missão. Deste modo, a
revisão que Valignano se propunha fazer do Summarium Indicum no Japão não tinha somente como
objetivo agregar fatos novos, mas sim corrigir o que ele considerava uma imagem distorcida transmi-
tida por colegas a respeito da realidade da missão japonesa.

Munido agora do argumento da experiência a seu favor, Valignano mantem em seu texto a
divisão entre asiáticos brancos e negros, mas apura a sua descrição dos japoneses e da sociedade japo-
nesa de acordo com as dificuldades que ele encontra nas relações sociais no Japão. Valignano passa a
descrever os japoneses como corteses, dizendo que seriam tão polidos que excederiam todos os outros
povos, e possuidores de grande engenhosidade, ainda que não tivessem “ciência”. Como herdeiro da
leitura de Aristóteles através da Segunda Escolástica, muito provavelmente o que Valignano quis dizer

93 WICKI, Josef (Coord.). Documenta Indica XIII. 1. ed. Roma: Institutum Historicum Societatis Iesu, 1975. p.
5. Ver também a discussão de Keevak. KEEVAK, Michael. Op. cit., p. 26-42.
94 Neste momento, a missão jesuíta na China ainda não havia sido retomada, o que só viria a acontecer em
1582. WICKI, Josef. Op. cit., p. 9-10. Paolo Aranha também indica que esta diferença é usada por Valignano
para explicar porque o método da adaptação cultural não poderia ser usado em outras partes da Ásia. ARA-
NHA, Paolo. Gerarchie Razziali e Adattamento Culturale: La ‘Ipotesi’ Valignano. In: TAMBURELLO, Adolfo;
ÜÇERLER, Antoni; DI RUSSO, Marisa (Org.). Alessandro Valignano S.I. – Uomo del Rinascimento: Ponte tra
Oriente e Occidente. Rome: Institutum Historicum Societatis Iesu, 2008. p. 86-88.
95 VALIGNANO, Alessandro (aut.); WICKI, Josef (ed.). Historia del Principio y Progresso de la Compañia de
Jesús en las Indias Orientales (1542-64). Roma: Institutum Historicum S.I., 1944. p. 481-482. Schütte acredita
que a carta foi escrita em dezembro daquele ano. Ver SCHÜTTE, Josef Franz. Valignanos Missionsgrundsätze
für Japan. Erster Band 1573-1582, Erster Teil 1573-1580. Rome: Edizioni di Stori e Letteratura, 1951, p. XXXIV.

666
com ciência foi o arranjo organizado e a demonstração de sequências de verdades em uma área parti-
cular de acordo com princípios relevantes àquela área. Assim, ele não somente excluiu os japoneses da
ciência como considerou impossível o aprendizado e a discussão de conhecimentos produzidos pelos
japoneses. A justificativa desta incapacidade viria de outra característica apontada por Valignano, a
violência dos japoneses, tidos como “la más belicosa gente y dada a guerra de quantas en el mundo
hai.”96

A caracterização dos japoneses como povo belicoso teria um profundo impacto na avaliação
do visitador sobre o modo como se davam as relações políticas no Japão. Para Valignano, o cenário
político japonês era marcado pela insegurança e inconstância. O jesuíta faz assim uma referência ao
fenômeno conhecido na história japonesa como Gekokujō下克上, uma espécie de motim militar onde
súditos ou “vassalos” matam o senhor para assumir a sua posição. Ao mesmo tempo, Valignano en-
tende que a vida humana tinha muito pouco valor para senhores japoneses, e explica que súditos e
familiares podiam ser facilmente condenados à morte por seus senhores e patriarcas. A constante
ameaça de revoltas e traições, aliada ao pouco valor que os japoneses dariam à vida humana, fazem
com que o jesuíta determine que o Japão vivia em um estado de extrema insegurança política. Este
ponto é apresentado por Valignano como crucial para não somente mostrar como as relações políticas
se davam no Japão como também provar a impossibilidade de que, dada tamanha volatilidade, supe-
riores em Roma ou na Índia fossem capazes de responder às demandas missioneiras em tempo hábil.97
Em outras palavras, perguntava-se uma coisa e quando a resposta chegava a situação já era outra. De
fato, poucos anos antes da chegada de Valignano ao Japão, o senhor Oda Nobunaga expulsou o então
xogum Ashikaga Yoshiaki de Kyoto, colocando-se no topo da administração militar do Japão e pondo
fim aos quase dois séculos e meio de poder do regime conhecido como Muromachi Bakufu.

Em seu texto, o visitador nota ainda que os senhores gastavam pouco dinheiro e eram impres-
sionantemente pobres; mesmo assim, estes senhores faziam questão de muitas formalidades e códigos
de conduta. Quando os europeus, inclusive os missionários, não sabiam como dialogar de acordo com
estes códigos, acabavam sendo tratados como crianças, que tinham que aprender como comer, como
se sentar, como falar, como se vestir e como realizar todas as formalidades.98 Portanto, outro fator que
tornava a dependência de instruções vindas de fora perigosa para os missionários no Japão era que a
falta de conhecimento a respeito das linguagens políticas locais tornaria impossível para jesuítas na
Índia e na Europa entenderem o que era esperado dos missionários no Japão e como orientar exter-
namente a missão.

Ainda na revisão do seu Summarium Indicum de 1579, Valignano aponta alguns aspectos
negativos sobre os japoneses. Por exemplo, ele condena os hábitos nefandos praticados pelos monges
budistas e por pais em relação às crianças, incluindo homossexualidade, pedofilia e infanticídio. Além
disso, o jesuíta diz que toda a legislação japonesa era injusta e contrária à razão natural. Isto dificultava
não apenas a conversão dos japoneses mas também a sua obediência às leis cristãs. Caso os jesuítas
96 WICKI, Josef (Coord.). Documenta Indica XIII. 1. ed. Roma: Institutum Historicum Societatis Iesu, 1975.
p. 202-203.
97Idem, pp. 203-4.
98Idem, pp. 205-6.

667
fossem bem-sucedidos, o visitador previa bons frutos com base na opinião de que os japoneses seriam
a gente “…más apta para ser cultivada y tomar bien las cosas de nuestra ley, y salir la major chrystan-
dad de todo el Oriente” [mais apta para ser cultivada e tomar bem as coisas da nossa lei, e tornar-se a
maior cristandade de todo o oriente]99.

Neste período, Valignano mostra um interesse particular em entender os códigos comporta-


mentais e linguagens políticas do Japão. O resultado deste interesse é a escrita entre 1581 e 1584 do
manual Advertimentos e Avisos acerca dos Costumes e Catangues de Jappão.100 Tratava-se de um
manual para os missionários saberem como se portar no Japão e aprenderem o peso político não so-
mente de suas palavras como de suas ações. O título dá uma boa indicação do modo como Valignano
compreendia essa diferença. A palavra catangue aparece traduzida no dicionário Nippo Jisho de 1603
como costume; mas o dicionário trilíngue elaborado pelos missionários em 1595 traduz o termo como
“conversação” ou “amizade”. Isto não apenas mostra como as regras descritas tinham como alvo as
relações com os japoneses, mas a inclusão de ambos os termos catangue e costume no título reitera a
diferença entre os hábitos europeus e os japoneses. Podemos dizer que ambos são apresentados por
Valignano como conceitos semelhantes mas diferentes, sendo duas faces de uma mesma moeda de
normas sociais.

Valignano elabora então um manual que não somente ensina como os missionários deveriam
agir perante os japoneses, mas também como não agir para que não fossem vistos como inferiores.101
A observância das regras japonesas deveria ser adotada inclusive dentro das casas jesuítas, para que
não houvesse discrepância entre com o seu comportamento porta afora.102103

De volta à Índia, Valignano dedicou boa parte do ano de 1583 a escrever a sua Historia del
Principio y Progresso de la Compañia de Jesús en las Indias Orientales. Cobrindo o período de 1542 a
1564, a história havia sido comissionada pelo geral Everardo Mercuriano em 1574, e foi escrita a partir
tanto de fontes escritas quanto de relatos testemunhais de padres como Henrique Henriques e Fran-
cisco Peres, experientes missionários atuantes desde a época de Xavier na Ásia. O manuscrito chegou
inclusive a ser usado no processo de canonização de Francisco Xavier.104

Valignano descreve os japoneses reiterando suas capacidades e adequação à conversão. Mas,


complementando textos anteriores, o visitador traça uma linha entre as características naturais dos ja-
poneses e suas práticas sociais, elogiando mais as primeiras do que as segundas. É aqui que ele defende

99Idem, p. 207.
100 Publicado e traduzido por Josef Franz Schütte e Michaela Catto. VALIGNANO, Alexandro (aut.); SCHÜT-
TE, Josef Franz (ed.); CATTO, Michela (ed.). Il Cerimoniali per I Missionari del Giappone. Roma: Edizioni di
Storia e Letteratura, 2011. Ver ainda SCHÜTTE, Josef Franz. Valignanos Missionsgrundsätze für Japan. Erster
Band 1573-1582, Erster Teil 1573-1580. Roma: Edizioni di Storia e Letteratura, 1951, p. XXXVI; e BOXER,
Charles Ralph. The Christian Century in Japan, 1549-1650. Berkeley, Los Angeles e Londres: University of Ca-
lifornia Press, Cambridge University Press, 1951, p. 478.
101 VALIGNANO; SCHÜTTE; CATTO. Op. cit., p. 146.
102 VALIGNANO; SCHÜTTE; CATTO. Op. cit., p. 242.
103 VALIGNANO; SCHÜTTE; CATTO. Op. cit., p. 272-274.
104 WICKI, Josef. Der Zweite Teil Der Historia Indica Valignano’s. In: Archivum Historicum Societatis Iesu,
Roma: Societatis Iesu, n. 7, p. 277-278, jan. 1938.

668
a necessidade da intervenção jesuíta no Japão para salvar os japoneses.

Valignano compara os japoneses a outros asiáticos, contrastando especificamente os japoneses


com os hindus. Ao falar dos hindus, o visitador diz que:
“...cuentan tantas cosas ridículas y fabulosas, repugnantes a todo sentido y
razón, y tantas historias y transformaciones suzias y deshonestas, que exceden a las
que cuenta Ovidio en su Methamorphoseos, de manera que paresce cosa imposible
hombres de razón y discurso poder creer cosas tan impossibles y monstruosas como
ellos creen. En lo qual por cierto se echa mucho de ver quán grande es la gracia y luz
que los christianos recebimos de Dios, sin la qual es averiguado que semejantes men-
tiras se encaxarían como verdades en nuestros entendimientos, assí como encaxaron
en los griegos y en los romanos, que eran tan discretos y sabios, y agora son creydas
de los japones, chinas y otras muchas naciones de grande entendimiento y juyzio
natural.”105

Valignano faz uma clara distinção entre mitologia e razão crista. Usando a obra Metamorfose,
de Ovídio, ele faz um paralelo entre os japoneses e os gregos e romanos da antiguidade, uma estraté-
gia retórica muito comum entre os defensores da missão japonesa. Movidos por inspiração divina, os
povos da antiguidade abandonaram suas crenças anteriores em prol da fé cristã. Valignano sublinha,
contudo, que os mitos dos hindus haviam ultrapassado em absurdo aqueles dos gregos e dos romanos.
Para o jesuíta, os hindus estariam em um ponto sem retorno, para além da sua salvação. O visitador
classifica então três grupos de acordo com suas crenças: os hindus, cujo absurdo de seus mitos dificul-
tava a sua salvação; os romanos e os gregos, que abandonaram seus mitos e se salvaram; e os japoneses
e chineses que, tendo o mesmo potencial dos gregos e dos romanos, podiam ser orientados para o
caminho da iluminação cristão. Com estes argumentos, Valignano defende a importância das missões
do Extremo Oriente. O visitador lembra as descrições dos japoneses feitas por mercadores que acaba-
ram levando Xavier a ir ao arquipélago em 1549:
“se encendió el Pe M. Francisco en un vivo desseo de yr a manifestar el nom-
bre y Evangelio de Jesú Christo nuestro Señor en aquellas partes, paresciéndole que,
siendo tal la gente y tan diferente de toda la gente negra, se haría en ella más fructo y
más sevicio de nuestro Señor.”106

Valignano dedica três capítulos de sua História para descrever o Japão antes da chegada de
Xavier em 1549. Aqui ele reitera a cortesia e os códigos de conduta do Japão, chegando a afirmar que
eles seriam mais polidos do que todos os povos da Ásia, e talvez mais do que os próprios Europeus.
Sua capacidade de entendimento é explicada pelo alto grau de alfabetização mesmo entre o que ele
chama de “gente baixa”, e que mesmo o mais rude dos japoneses não era tão rude e incapaz quanto os
rudes europeus.

Valignano explica novamente o extremo poder da autoridade paternal sobre a vida e morte de
súditos e familiares, mas agora faz distinção entre diferentes camadas sociais.107 Em seguida, faz uma
breve exposição sobre a belicosidade dos japoneses, e descreve em linhas gerais as punições legais usa-
das no Japão. Ele explica que não havia prisões, e que as punições se restringem a exílio, pena capital,

105 VALIGNANO; WICKI. Op. cit., p. 34.


106Idem, p. 111.
107Idem, p. 126-130.

669
confisco de terras e crucificação.108

A seguir, Valignano descreve o que ele classifica de “estranhos costumes” dos japoneses. Aqui
ele os caracteriza como um povo de contradições: por um lado, tinham características superiores aos
europeus, mas de outro compartilhavam hábitos e costumes com outras nações gentias. Mesmo que
fossem um povo racional e de entendimento, Valignano lembra que eles eram, acima de tudo, gentios.
Por isso, eram sujeitos a leis nefastas, grandes vícios, guerras contínuas e outros maus hábitos que
contribuíam para corromper suas boas qualidades. E era exatamente pelo fato de suas boas qualidades
ainda existirem mesmo que tantos hábitos ruins é que Valignano acredita que eles eram aptos à fé
cristã. Valignano chega a firmar que: “(...) entre ellos no hay blasphemias, ni juramentos, ni murmu-
raciones, ni detractiones, ni palabras injuriosas, ni hurtos, sacando los que se hazen con especie de
guerra, o de arrendadores, o de alguns piratas de la mar (...).109

A natureza dos japoneses, com algumas exceções, era então descrita como honrada e justa,
apesar de suas leis e práticas gentias. Valignano descreve então as cinco qualidades ruins dos Japone-
ses: vícios pecaminosos, deslealdade com seus senhores, mentira, desrespeito pela vida humana e con-
sumo exagerado de álcool.110 Ao final, o visitador conclui que eram tantas diferenças entre europeus e
japoneses que “no se podia escrebir todo en pequeño volumen.”111

No último capítulo dedicado ao Japão antes da chegada de Xavier, Valignano descreve as reli-
giões japonesas – como elas chegaram ao arquipélago a como foram usadas para subjugar os japoneses
ao domínio dos monges. Ele compara a doutrina religiosa do Japão com a doutrina de Lutero, ambas
ensinadas pelo demônio (“el demonio, padre de ambos”).112

Os três capítulos da História seriam revisados e incluídos no começo de um outro manuscrito


dedicado inteiramente ao Japão: o Sumário de Japón, completado no final do ano de 1583 durante a
estadia do visitador em Cochim e poucos meses antes de ter escrito a História.113. O Sumário apresenta
uma visão aprofundada de como o trabalho missionário deveria ser organizado no Japão, e foi elabo-
rado durante o tempo em que Valignano passou no sul da Índia preparando os embaixadores japone-
ses da missão Tenshō para ir à Europa. O objetivo do sumário era auxiliar os superiores da ordem em
Roma a tomar decisões relativas ao Japão e reiterar a necessidade de maior autonomia. As atitudes e
hábitos que os missionários jesuítas assumiram no oriente em detrimento de seus votos originais de
pobreza são explicados como necessidade para que os padres fossem respeitados tanto pelos conver-
sos quanto pelos japoneses em geral.

O Sumário se apresenta como uma peça fundamental para o argumento do exotismo da mis-
são japonesa. Sobre a singularidade dos japoneses, Valignano escreve:
108Idem, p. 130-132.
109Idem, p. 136-138.
110Idem, p. 138-142.
111Idem, p. 142-154.
112Idem, p. 161.
113 Para uma discussão sobre a data do manuscrito e as revisões feitas por Valignano dos três capítulos, ver AL-
VAREZ-TALADRIZ, José Luis. Sumario de las Cosas de Japon (1583), Adiciones del Sumario de Japon, Tomo
I. Tóquio: Sophia University, 1954, p. 178*-190*.

670
“...es porque las cualidades, costumbres y modos de proceder de los japones
son del todo tan contrario y incógnitos a los de India y de Europa, que esa poca co-
municación que se puede tener no sé cuando podrá ser provechosa, porque lo que se
pasa en Japón, a mi juicio, no se puede bien entender si no es por los que por vista y
experiencia lo saben, y parece que no se puede dar a entender ni personalmente por
los que saben mucho de Japón, cuanto menos por cartas (...)”114

Para o visitador, não valia a pena esperar por respostas de superiores em Roma e Goa dada a
natureza distinta do trabalho missionário no Japão. Valignano chega a declarar que não importava o
modo como os prelados e padres na Europa vissem a situação no Japão, eles jamais seriam capazes
de entender as idiossincrasias da missão japonesa. Assim, o visitador defende que a missão precisava
ser capaz de tomar decisões por conta própria seguindo sempre as constituições da ordem e outros
dogmas católicos.115 Isto se aplicaria também às dificuldades morais enfrentadas na missão japonesa,
que nem sempre poderiam esperar por decisões enviadas da Europa. No capítulo 20 do seu Sumário,
Valignano descreve alguns dos desafios da missão:
“… las costumbre, leyes y casos de Japón son tan extraños y tan nuevos, que
en la decisión y determinación de ellos no se puede hombre en ninguna manera guiar
por las resoluciones de Cayetano ni de Navarro ni de otros sumistas de Europa, mas
allende de las letras es necesario un gran discurso y prudencia en Japón para juzgar,
adquiridos con mucha experiencia de las costumbres, gobierno y modo de proceder
de Japón, con la cual, aplicando las reglas universales y naturales a los casos parti-
culares de Japón, venga a determinar lo que se ha de seguir en casos tan dificultosos
y nuevos; y como en éstos se incluyan muertes, cautiverios, destierros, pérdidas de
hacienda y aun casos tocantes a la religión, acerca de lo que pueden o no pueden con
los cristianos hacer acerca del obedecer a sus señores gentiles en lo que mandan que
parece contener algún culto y servicio de sus ídolos, en los cuales permitiéndoles lo
que de razón no se puede se hace[r] contra la religión, y prohibiendo (...) lo que no se
puede permitir corren peligro muy grande los cristianos de ser muertos y desterrados
y de perder sus haciendas, bien se entiende también cuán gravemente en todo esto se
puede errar.”116

Estas dificuldades são continuamente repetidas por todo o texto, levando o visitador a classi-
ficar o Japão como uma das “mayores, más importantes y más dificultosas y peligrosas provincias que
la Compañia tiene.”117 Como exemplo, Valignano menciona o modo como os conversos eram tratados
no Japão em comparação com o que viu em outras missões:
“El modo de su gobierno es libre porque no tenemos en Japón ninguna juris-
dicción ni los podemos compeler a más que a lo que ellos quieren hacer persuadidos
de los Padres, y de la razón movidos, ni admiten palmatoadas ni azotes ni cárceles
ni otras cosas que se usan comúnmente con los demás cristianos de Oriente (...)”118

Deixando de lado o fato de que os jesuítas considerariam normal tratar a palmadas e com
açoites conversos em outras regiões, percebe-se que a relação entre os padres e os conversos também
é apresentada como única. Assim, Valignano mostra o quanto a experiência da missão era importante
para se conhecer os meandros das relações sociais e políticas na sociedade japonesa:

114Idem, p. 135.
115Idem, p. 223.
116Idem, p. 220-221.
117Idem, p. 223.
118Idem, p. 168.

671
“La segunda cosa no menos necesaria es la experiencia de la tierra porque,
como está dicho, son las costumbres, negocios, modo de proceder y todo lo demás
tan contrarios a los nuestros, que aunque los hombres sean de mucha capacidad y
prudencia y muy acostumbrados a gobernar en otras provincias, en Japón se hallan
muy nuevos, embarazados y como ciegos hasta que tengan por mucho tiempo la ex-
periencia de las cualidades y costumbres de la tierra (...).”119

As diferenças de hábitos e costumes geravam uma enorme gama de desafios para a aplicação
da teologia moral e sua casuística no Japão. Na prática, Valignano sugere que os missionários preci-
savam ter autoridade para permitir dispensações eclesiásticas e aceitar casos excepcionais quando
necessário.120 O visitador acreditava que as obras de autoridades teológicas como Caetano e Navarro
eram incapazes de oferecer soluções viáveis para a frágil situação política dos missionários no Japão,
sendo assim necessário considerar soluções específicas e capacitar jesuítas no Extremo Oriente para
que escrevessem seus próprios manuais e tomar suas próprias decisões.

Em 1590, o colégio jesuíta de Macau imprime a obra De missionum legatorum Iaponensium


ad Romanam curiam, ou Diálogo dos Embaixadores Japoneses à Cúria Romana, que descreve as ex-
periências dos quatro japoneses enviados à Europa em 1582. O trabalho foi escrito em espanhol por
Valignano com base em diários e anotações dos embaixadores, e posteriormente foi traduzido para o
latim pelo padre português Duarte de Sande em Macau.121 Composto como um longo diálogo entre
os quatro jovens depois de voltar ao Japão e dois japoneses que não foram à Europa, trata-se de um
trabalho de ficção que foi escrito entre 1588 e 1589, a tempo de coincidir com a chegada da missão
no arquipélago em 1590. Recentemente, o historiador Rotem Kowner classificou esta obra como uma
dissertação de mão-única sobre a superioridade europeia, cristã e mesmo do Japão sobre a China, e
portanto um dos mais importantes tratados sobre raças do período.122

A historiadora Nina Chordas explica que diálogos modernos eram um gênero de semificção,
no sentido de que insistiam em serem aceitos como uma entidade “com alguma agência sobre o mun-
do real e material”. Como gênero literário, o diálogo era resultado de um ambiente de “desconfiança

119Idem, p. 224.
120Idem, p. 226.
121De missionum legatorum Iaponensium ad Romanam curiam, rebusq, in Europa, ac toto itinere animaduer-
sis dialogus. 1. ed. Macau: Societatis Iesu, 1590 (doravante referido como DMLI). Segundo o site da Laures
Rare Book Database, “There are a good many copies of known and probably many more not made known to
scholars. The only copy in [Japan] in the Collection of the late Professor Kōda Shigetomo 幸田成友 was donated
to the Keiō University 慶応義塾大学, which again donated it to the Tenri Central Library 天理中央図書館. Other copies are
known to be in the "Pei-t'ang Library 北堂図書館", in Beijing 北京, in the "Biblioteca da Ajuda", in the "Biblioteca de
Évora", in the archives of "Torre do Tombo", two in the "Biblioteca Nacional de Lisboa", one incomplete copy
dated 1589, as we saw, in the "Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra", one in the University of Seville,
one in the "Oliveira Lima Library" of the Catholic University of America, Washington, and one in the Public
Library of Paris.” É mencionada ainda uma reedição de 1593, mas aparentemente não há cópias preservadas
desta segunda edição. Aurelio Vargas Díaz-Toledo menciona ainda outras três cópias, no Porto, em Londres e
Madri, totalizando treze exemplares. DÍAZ-TOLEDO, Aurelio Vargas. Uma primeira aproximação do corpus
dos Diálogos Portugueses dos séculos XVI-XVII. In: Criticón, n. 117, 2013, p. 77-78. Sobre a autoria do livro,
ver MORAN, J.F. The real author of de missione legatorum Iaponensium ad Romanam curiam... dialogus – A
Reconsideration. In: Bulletin of Portuguese - Japanese Studies, Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, n. 2, p.
7-21, 2001.
122 KOWNER. Op.cit., p. 131.

672
generalizada sobre a literatura ficcional” neste período, oferecendo-se então como alternativa à mente
racional.123 Tais textos jamais seriam, como indicado por Jon R. Snyder, “transcrições de conversas
ou debates realmente ocorridos (...); não há quaisquer traços de oralidade no diálogo, com exceção
de ilusões cuidadosamente manufaturadas.”124 Os diálogos não apenas eram ferramentas didáticas de
transmissão de ideias ou exposição de matérias, mas também veículos para a apresentação de perso-
nagens ideais e das virtudes necessárias para se imitar tais personagens ideais.

Como trabalho de transcrição de uma espontaneidade artificial, o diálogo propunha uma co-
nexão intermediada entre as impressões dos embaixadores e o que os jesuítas desejavam que seus
seminaristas soubessem sobre a Europa.

O diálogo apresenta uma teoria geral das raças e sua gênese como características definidoras
do papel cumprido por cada grupo humano, sumarizando as ideias de Valignano.125 É neste texto que
o jesuíta explica como entendia a origem das raças e os fatores que determinavam este processo, dis-
tinguindo-se então de textos anteriores por ir além da descrição. Herdando ideias apresentadas pelo
visitador em trabalhos anteriores, o tópico começa a ser discutido com a descrição da raça dos por-
tugueses. Um dos personagens questiona a relação entre raça e escravidão, dizendo: “Vidimus enim
multo nauibus ad nos vehi nigros illos quidem, sed mercatorum seruos, & audiuimus, in hoc Lusita-
norum genere nobiles candido colore, obscuro loco natos nigros esse velut ad seruitutem genitos.”126
[Vemos muitos daqueles negros trazidos até nós em navios, mas eles são escravos dos mercadores, e
também ouvimos dizer que entre os portugueses os nobres são brancos, mas os nascidos humildes são
negros, como se nascidos para a escravidão.]

Esta afirmação reflete diretamente a ideia aristotélica da servidão natural, mas a resposta dada
por um dos embaixadores é que todos os portugueses eram brancos, e que não tinham nem rostos
negros, nem distorcidos, nem irregulares – vel nigris facem sunt, vel distorta, vel pravis lineame[n]
tis – e que na verdade eram um povo de belas faces, com uma compleição física apropriada e de cores
suaves e outros dons notáveis de natureza e criatividade – “egregiam faciem, aptam membrorum com-
positionem cum quadam coloris suavitate, aliaque infignia naturae & artis dona in ecce certum est”. O
embaixador explica então que as raças não eram definidas por nobreza ou humildade, mas sim pelo
ambiente e por seu país. Portanto, os negros vistos pelos japoneses eram escravos trazidos de muitos
reinos do oriente – servi sunt ex varijs Orientis regnis coempti.127 Aqui, fica claro que Valignano aban-
dona a certeza de uma origem bíblica como o único fator para a diferenciação racial em prol da dúvida
e da ambiguidade. Além disso, ao determinar que as raças não se definiam por características como
nobreza ou humildade, o que Valignano diz é que a escravidão não era natural, mas sim resultado de
outros fatores.

123 CHORDAS, Nina. Forms in Early Modern Utopia: The Ethnography of Perfection. 1. ed. Surrey, Reino
Unido e Burlington, Estados Unidos: Ashgate, 2010, p. 17-18.
124 SNYDER, Jon R. Writing the Scene of Speaking: Theories of Dialogue in the Late Italian Renaissance. 1. ed.
Stanford: Stanford University Press, 1989, p. 17.
125 Este discurso foi analisado recentemente por Rotem Kowner. KOWNER. Op.cit.
126 DMLI, p. 17.
127 DMLI, p. 17.

673
Isto fica claro na sua explicação para a origem da negritude. Um dos ouvintes japoneses levan-
ta a questão:
“Dubitatio non parua se mihi offere circa istarum: gentium colorem si enim
omnes homines à primis parentibus Adamo, & Eva originem habent, & illi, ut certum
videtur, candido, & pulchro colore nati sunt, qui fieri potuit, ut tam multae gentes
paulatim nigrum colorem induerent?”128

[Para mim, existe uma grande questão sobre a cor das pessoas: se todos os
homens vêm de Adão e Eva, e se eles, como parece ser, nasceram brancos e belos,
como foi que muitas pessoas gradualmente se tornaram negras?]

Em resposta, os embaixadores listam os diversos fatores que contribuíram para o enegreci-


mento de parte da humanidade e consequentemente o surgimento das raças. Em primeiro lugar, eles
comentam a ideia do excesso de calor como uma das causas para a negritude. Esta seria uma ideia
defendida por geógrafos e filósofos com base na asserção de que as pessoas que viviam na chamada
zona tórrida estariam expostas ao intenso calor do sol, ficando assim enegrecidas. Contudo, o texto
lança dúvidas sobre esta explicação com base na experiência portuguesa, lembrando que alguns po-
vos malaios eram mais claros do que habitantes do Cabo da Boa Esperança, apesar de viverem mais
próximo do equador. Portanto, o calor não seria capaz de explicar totalmente a origem da negritude.
O embaixador sugere então que a negritude seria resultado também de características hereditárias,
dado que pessoas negras ainda produzem outras pessoas negras mesmo em locais frios. Assim, um
segundo argumento para a negritude é apresentado: a semente e a natureza dos pais. Após mencionar
a miscigenação e mulatos, o texto aponta que “Unde prorsus fit, non calori sed genitali alicui causae
colorem esse ascribendum” – “ao que parece, a cor não deve ser atribuída somente ao calor (…)”.

O diálogo menciona a maldição de Cam, segundo a qual os negros seriam oriundos dos des-
cendentes deste filho de Noé. O texto menciona que a maldição não está na Bíblia, mas que seria
apenas mais um dos muitos eventos que ocorreram historicamente mas não são registrados nas escri-
turas. Como argumento a favor da teoria da maldição como origem da negritude, o texto fala da ex-
pressão distorcida dos africanos, uma expressão triste, com uma natureza rude e ignorante, inclinada
à desumanidade e a ferocidade. Mas um dos personagens do diálogo suspeita da explicação, e diz que
a maldição poderia ser oriunda de outro evento distinto, dado que o único fato que a comprova é a
fisionomia dos negros. Portanto, os embaixadores concluem que a negritude tinha como origem uma
combinação dos três argumentos: o calor excessivo, a semente dos pais, e algum tipo de maldição.

Esta hesitação que o autor demonstra em relação a tomar partido de alguma das explicações é
um argumento necessário para que assim ele possa incluir os asiáticos brancos na sua história. Assim,
o reconhecimento de uma causa oculta na determinação das raças permite que se apele a este argu-
mento para explicar as diferenças fisionômicas entre japoneses e chineses quando comparados com
brancos europeus.129

Mas mesmo que japoneses e chineses fossem considerados asiáticos brancos, eles não eram
vistos como iguais, mas sim similares: “Iaponia namq[ue] nostra, si fructuum, carnium, pisciumq[ue]
128 DMLI, p. 37.
129 DMLI, p. 37-43.

674
vis ad corpora alenda consideretur, deinde gentis nostrae acumen, & vrbanitas, nobilitatisq[ue] gra-
dus, Europa[m] aliqua ex parte imitatur.”130 [Se considerarmos o potencial das lavouras, as carnes,
os peixes etc. para nutrir o corpo, e também a inteligência, a civilidade e o grau de nobreza do nosso
povo, o Japão é até certo ponto semelhante à Europa.]

O diálogo explica que os japoneses e chineses eram semelhantes, mas que em uma “escala das
nações” eles estariam em uma posição superior aos chineses, mais próxima dos europeus.131 A taxono-
mia racial de Valignano surge então como uma classificação com três ou quatro camadas, baseada na
cor da pele, na civilização e na fé.132 E tal como na explicação sobre a origem da negritude, o visitador
considera que o ambiente é um dos fatores importantes na diferenciação entre japoneses e chineses.

Ainda assim, o ambiente japonês não é considerado tão rico quanto o europeu. Quando os
embaixadores falam sobre sua passagem pela Europa eles explicam as diferenças entre a comida euro-
peia e a comida japonesa, atribuindo o sabor de cada uma à qualidade do solo, considerado mais fértil
e fecundo no Velho Mundo.133 Como resultado, os portugueses são então descritos como europeus
brancos caracterizados pela lealdade, nobreza, poder, riqueza e habilidade militar. O diálogo confere
três virtudes básicas aos portugueses: lealdade ao rei, uma coragem imbatível e profunda dedicação à
religião cristã.134

Por outro lado, negros africanos e asiáticos são acusados de serem naturalmente propensos
aos vícios e de pouca inteligência.135Citando Salústio, o diálogo aponta que os negros eram sujeitos a
ímpetos naturais e a fome, tais como bestas de carga, e acreditavam em fábulas falsas e cultos baseados
em delírios. Asiáticos negros, especificamente indianos, são apresentados como uma raça de espírito
abjeto, ainda que não tivessem características faciais desagradáveis.136

130 DMLI, p. 403-404.


131 Em outros trechos, contudo, Valignano declara o oposto, dizendo que os japoneses eram os melhores de
todo o oriente, com exceção dos chineses. Ver KOWNER. Op. cit., p. 129.
132 Kowner resume a hierarquia racial de Valignano como um sistema de três ou quatro escalas, baseado em
cor da pele, civilização e fé. Ele também descreve a divisão que o visitador faz da humanidade em: africanos ne-
gros e incivilizados; asiáticos do Sul e do Sudeste Asiático e Ameríndios levemente menos negros e naturalmen-
te pouco refinados; asiáticos brancos do leste, essencialmente japoneses e chineses; e finalmente os europeus.
Kowner afirma que, sem dúvida, a pele branca significava muito para Valignano, não apenas porque seria a cor
dos povos mais avançados e civilizados, mas porque também era natural e esteticamente agradável. No entanto,
a religião era o fator mais importante na diferenciação entre brancos, civilizados e outros.Ver KOWNER. Op.
cit., p. 131.
133 DMLI, p. 98.
134 DMLI, pp. 25-7, 31.
135 DMLI, pp. 24-5.
136 DMLI, pp. 36 e 43-4. Ver ainda SANDE, Duarte de (aut.); RAMALHO, Américo da Costa (trad.). Diálogo
Sobre a Missão dos Embaixadores Japoneses à Cúria Romana. 1. ed. Macau: Comissão Territorial de Macau
para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses and Fundação Oriente, 1997, p. 61. A referência a
Salústio é explicada por Américo da Costa Ramalho, que aponta para o texto Catilinae Coniurato, I: “Omnis
homines, qui sese student praestare ceteris animalibus, summa ope niti decet, ne vitam silentio transeant veluti
pecora, quae natura prona atque ventri oboedientia finxit” [Todos os homens que desejarem se distinguir das
outras criaturas viventes devem se empenhar ao máximo, ou passarão suas vidas na obscuridade como bestas
de carga, que a natureza fez voltadas para o chão e escravas de seus estômagos]. A noção aristotélica da escra-
vidão natural pode ser encontrada em Política, livro 1, capítulo 5.

675
As religiões são apresentadas como falsas em contraste com a verdadeira luz oferecida pelo
cristianismo. Enquanto os pagãos viviam dispersos e divididos, os cristãos se reuniam em torno de
uma única religião, inspirada não por sua inteligência mas pelo esplendor divino.137 O cristianismo,
aliás, surge então defendido em todo o texto como uma panaceia política, que se aplicada ao Japão
apaziguaria os espíritos dos japoneses e permitiria que eles vivessem bem. Valignano chega a escrever
que a religião traria uma “paz dourada” ao conectar os fieis entre si e fazê-los respeitar seus senhores,
reprimindo a cobiça e garantindo o direito à propriedade.138

Em suma, vemos que para o desenvolvimento do pensamento racial de Valignano a experiên-


cia foi um fator crucial. O próprio visitador entende o peso da experiência pessoal no entendimento
da realidade das missões asiáticas, como ele mesmo reitera em seus documentos. Ao que tudo indica,
a descrição dos japoneses e da situação vivida pelos missionários no Extremo Oriente é baseada em
um projeto político visando incrementar a autonomia da missão, para que pudesse tomar decisões
por conta própria. Por este viés, as descrições etnográficas do jesuíta passam a atender a uma agenda
política, onde a singularidade e o exótico. Aliados ao alegado talento natural dos japoneses para a fé
cristã, estes fatores foram fundamentais para o projeto político de Valignano. O modo como o jesuíta
entendia a determinação e a origem das raças surge no momento em que ele se vê obrigado a expli-
car a um público não-europeu – seminaristas japoneses – o mundo externo ao arquipélago japonês.
Usando da autoridade que a narrativa da experiência dos embaixadores japoneses aferia ao seu texto,
Valignano elabora então uma gramática civilizacional e histórica, que evidencia o modo como ele li-
dava com a incerteza do mundo e usa do argumento do mistério para explicar o lugar ocupado pelos
próprios japoneses na ordem natural do universo cristão.

Bibliografia
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CHORDAS, Nina. Forms in Early Modern Utopia: The Ethnography of Perfection. 1. ed. Surrey, Reino Unido
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De missionum legatorum Iaponensium ad Romanam curiam, rebusq, in Europa, ac toto itinere animaduersis
dialogus. 1. ed. Macau: Societatis Iesu, 1590

137 DMLI, p. 44.


138 DMLI, p. 32.

676
DÍAZ-TOLEDO, Aurelio Vargas. Uma primeira aproximação do corpus dos Diálogos Portugueses dos séculos
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677
678
SIMPÓSIO TEMÁTICO 10
Cultura Escrita no mundo ibérico colonial: manuscritos e impressos

Coordenadores:

Juliana Gesuelli Meirelles

Nívia Pombo

Usos de The HistoryofAmerica (1777), de William Robertson, nas memórias de Alexandre


Rodrigues Ferreira escritas durante a Viagem Filosófica (1783-1792)
Breno Ferraz Leal Ferreira1

1. Alexandre Rodrigues Ferreira e a Viagem Filosófica

Nascido em Salvador, Bahia, em 1756, Alexandre Rodrigues Ferreira transferiu-se para Coimbra,
onde estudou Direito e Filosofia, vindo posteriormente a trabalhar como Preparador de História Na-
tural e a receber o título de Doutor em Filosofia.

Pela proximidade ao naturalista italiano Domingos Vandelli (1735-1816), de quem fora aluno no
curso filosófico, veio depois a trabalhar no Jardim Botânico da Ajuda, do qual Vandelli era diretor, e
tornou-se sócio da Academia Real das Ciências de Lisboa (fundada em 1779).

No final dos anos 1770, foi um dos escolhidos pela Coroa portuguesa – por indicação de Vandelli –
para participar das chamadas viagens filosóficas, como parte de um amplo programa de inventariação
da natureza dos domínios coloniais conhecido como História Natural das Colônias. A ideia era ma-
pear as produções naturais do Império português visando inventariar suas potencialidades para uso
humano, especialmente econômicas. Tratava-se de um projeto política e estrategicamente importante,
que poderia, por exemplo, chamar a atenção para a existência de produtos naturais desconhecidos
que poderiam auferir lucros ao Estado e a agentes particulares, num contexto de crescentes tensões
políticas internacionais.

Em 1783, iniciou a excursão pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro e Mato Grosso, que duraria
até 1792.Naquele mesmo ano, foram enviados outros naturalistas para outros domínios portugueses:
João da Silva Feijó para Cabo Verde, Joaquim José da Silva para Angola e Manuel Galvão da Silva
para Moçambique. Via de regra, eram também originários da América portuguesa, foram alunos de
Vandelli, trabalharam no Jardim Botânico da Ajuda e tornaram-se sócios da Academia das Ciências.

Para a realização de tal empreendimento pela América portuguesa, foi montada uma pequena
equipe que, além de Ferreira, incluía um jardineiro e dois desenhistas. Foi também mobilizada uma
rede de autoridades na América portuguesa para proverem-lhe hospedagem, orientação e pagamen-

1Pós-doutorando em História pela UNICAMP. Bolsista FAPESP.

679
tos. Valeram-se também de indígenas, especialmente para carregar os materiais (livros, laboratório
químico, material de desenho) que trouxeram e que produziram, conduzir as embarcações etc. Deve-
riam também ser remetidos espécimes naturais para os museus portugueses.

Nesta apresentação, discutiremos a mobilização que Alexandre Rodrigues Ferreira fez da obra The
HistoryofAmerica(1777) – em particular da tradução francesa Histoire de l’Amerique, do historiador
escocês William Robertson (1721-1793) para redigir dois de seus principais escritos: a Participação
do Rio Negro (1787) e as Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamais observados nos
territórios dos três rios das Amazonas, Negro e da Madeira, com as descrições circunstanciadas que
de quase todos eles deram os antigos e modernos naturalistas e, principalmente, com a dos tapuias
(1790).

2. As condições da escrita: obras que levou, obras que mobilizou e as instruções que recebeu

De acordo com o decreto de sua nomeação, cabia-lhe


“(...) proceder, nos vastos e quase de todos desconhecidos territórios dos estados do
Pará, Rio Negro e Mato Grosso, ao estudo da etnografia das regiões percorridas, pre-
paração dos produtos naturais destinados ao Real Museu de Lisboa, e, finalmente,
fazer particulares observações filosóficas e políticas acerca dos objetos da mesma via-
gem”.2 (Decreto de sua nomeação, 1783. Apud COSTA, 2001, p.995)

Outro documento de orientação aos naturalistas nas viagens é Viagens filosóficas ou dissertação
sobre as importantes regras que o filósofo naturalista, nas suas peregrinações, deve principalmente ob-
servar (1779), de Vandelli. Ali eram traçados os principais procedimentos a serem adotados durante
as viagens, os quais incluíram a redação de diários e o preparo de espécimes naturais a serem remeti-
das aos museus portugueses. O naturalista também deveria realizar a descrição “física” (característi-
cas físicas, geográficas e da natureza) e “moral”das regiões visitadas. Neste último caso, tratava-se da
cultura dos povos, em seus mais variados aspectos (sociais, políticos, econômicos, costumes). Se os
povos encontrados fossem “civilizados”: deveriam anotar os gêneros de sua agricultura e comércio.3
O interesse principal era conhecer as utilidades que os produtos dos três reinos da natureza (vegetal,
mineral e animal) poderiam proporcionar ao homem, especialmente em termos médicos, dietéticos
e econômicos.

Para realizar tal empreitada, Ferreira e sua equipe foram dotados de determinados equipamentos,
incluindo instrumentos e uma série de livros. Alguns destes, os retirados da biblioteca do Museu do

2 COSTA, Maria de Fátima. “Alexandre Rodrigues Ferreira e a capitania de Mato Grosso: imagens do interior.
História, Ciência, Saúde – Manguinhos. Vol. III, 2001, p.995.
3VANDELLI, Domingos. Viagens filosóficas ou dissertação sobre as importantes regras que o filósofo natura-
lista, nas suas peregrinações, deve principalmente observar (1779). In: O Gabinete de Curiosidades de Dome-
nico Vandelli. Dantes Editora, 2008, p.95-96.

680
Palácio da Ajuda, são conhecidos:“Flora Guyana”, “Margrav et Pison”, “Linn. SystemaNaturae”, “Linn.
Genera Plantarum”, “Linn. Especie Plantarum”, “Valerio”, “Chimica de Baumé”, “Scopoli”, “Govan. His-
toria de Poisson”, “Historia desInsectes” e “Diário de Capitania de S. José do Rio Negro”.4

Porém, podemos afirmar com certeza absoluta que tinha em mãos também uma edição deThe
HistoryofAmerica, de William Robertson, especialmente o volume que continha o “Book IV”. Essa
certeza provém do cotejamento de algumas das memórias de Ferreira, principalmente a Participação
do Rio Negro (1787) e as Observações gerais e particulares (1790), como veremos.

Historiador escocês, Robertson publicou a primeira edição da obra em três volumes, que conti-
nham ao todo dez capítulos intitulados “Books”. No Book IV, que nos interessa mais particularmente,
discorreu sobre diversas questões, entre as quais as características físicas e geográficas da América, sua
natureza (incluindo seus animais) e, principalmente, os povos ameríndios, nos mais variados aspec-
tos: as origens do povoamento do continente, características físicas dos povos, sua religião, economia,
sociedade (família, questões de gênero), instituições políticas e cultura (festas; modos de produzirem
instrumentos e alimentos, ou de fazerem a guerra, por exemplo).

Ponto fundamental de sua análise era a sua noção de “modo de subsistência”, que conectava “está-
gios civilizatórios”(selvagens ou civilizados; ou caça/coleta, pastoreio, agricultura e comércio) justa-
mente a características de sua cultura, sociedade e política. Assinalou a existência de um caráter geral
dos ameríndios, isto é, um conjunto de características que pouco variava entre os povos americanos,
com exceção dos peruanos e mexicanos, considerados mais “civilizados”. Foi a partir desse caráter
geral e de outras observações sobre o continente americano que Ferreira voltou seus olhos para a na-
tureza e os povos das regiões por onde viajou. Inclusive, sempre viu os ameríndios como “selvagens”,
repercutindo a concepção de Robertson.

O fato referido acima de que Vandelli falava em “povos civilizados” relacionando-os à agricultura
e comércio pode indicar que o naturalista italiano tinha conhecimento de Robertson, ou mesmo que
orientou Ferreira a nele se embasar para escrever suas memórias. Não se sabe. Mas deve-se levar em
consideração também que, conforme analisou o historiador Jorge Cañizares-Esguerra, o nome “via-
gem filosófica” – que Vandellicolocou no título das instruções a que nos referimos – era, entre autores
do Iluminismo (incluindo a historiografia escocesa de Smith e do próprio Robertson), utilizado em
contraposição, de forma crítica, aos cronistas, naturalistas e demais viajantes espanhóis dos primeiros
séculos de colonização e a suas narrativas de uma natureza e seres “fantásticos” e “monstruosos” do
Novo Mundo. Os novos “viajeros filosóficos” é que poderiam prover os estudiosos da época de infor-
mações fidedignas com as quais se poderia criar uma nova narrativa da história da América.5

É sabido também que em diversas ocasiões Ferreira registrou ter recebido o pedido para que
escrevesse uma “História Filosófica”. Registrou ele, por exemplo que, o ministro Martinho de Melo e
Castro “Chamou o Naturalista da Universidade de Coimbra [no caso, ele mesmo, Alexandre Rodri-
4 Apud. SIMON, William Joel. Scientific Expeditions in the Portuguese Overseas Territories (1783-1808) and
the role of Lisbon in the Intellectual-Scientific Community of the late Eighteenth Century. Lisboa: Instituto de
InvestigaçãoCientífica Tropical, 1983, p.144.
5CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. CómoescribirlahistoriadelNuevo Mundo. México: FCE, 2007, p.37 e 98.

681
gues Ferreira] e o apresentou a Sua Majestade para o encarregar da História Filosófica e Política dos
estabelecimentos portugueses no Estado do Grão-Pará”.6

Nossa proposta aqui é analisar, dentro da perspectiva da história da cultura escrita, a maneira
como Ferreira se apropriou da obra de Robertson7 para redigir uma “história filosófica” das regiões
visitadas. Como ficará claro, seu texto é em grande parte marcado pela intertextualidade, tendo mo-
bilizado o livro do historiador escocês para assim cumprir com as orientações de viagem recebidas,
especialmente – mas não apenas – a “descrição moral” descrita por Vandelli. Cabe comentar, ainda,
que a edição da obra de Robertson que tinha em mãos era uma tradução francesa publicada em Paris
pela Panckoucke, em 1777, conclusão à qual pudemos chegar a partir de uma série de indícios ofer-
tados pelos textos de Ferreira, como, por exemplo, o uso do título em francês “Hist. de l’Amerique”.8

O fato de ter sido mobilizada para a redação da Participação do Rio Negro (texto de 1787), e de
outras memórias assinadas em datas próximas, demonstram que o acesso à obra de Robertson se deu
antes da chegada a Vila Bela, local onde, como boa parte da historiografia apontou, havia a rica biblio-
teca do governador Pereira e Cáceres.

3. Apropriações de Robertson naParticipação do Rio Negro (1787)e nas Observações gerais e


particulares sobre a classe dos mamais (1790)

Alexandre Rodrigues Ferreira valeu-se largamente do “Livre IV” da Histoire de l’Amerique para
compor tanto a Participação do Rio Negro quanto as Observações gerais e particulares sobre a classe
dos mamais. A primeira é data de 27 de outubro de 1787 e foi assinada em Barcelos, vila da Capitania
do Rio Negro onde a comitiva esteve por algumas vezes entre 1785 e 1788.Trata-se de um relatório
sobre o Rio Negro e as regiões de seu entorno, no qual, entre outros aspectos, o autor comenta a res-
peito das povoações que o habitam e as características econômicas da região. A obra de Robertson foi
utilizada para a redação dos itens específicos em relação à cultura das populações indígenas daquela
localidade.

Já a segunda é uma memória que contém uma reflexão sobre os animais americanos (e particu-
larmente da América portuguesa, incluindo o indígena como parte do “Reino Animal”).Foi assinada
em Vila Bela (Mato Grosso), a 29 de fevereiro de 1790, depois que a expedição já tinha chegado ao
seu destino.Ela pode ser dividida em três partes principais: 1. Define o que são animais e mamíferos,
e faz considerações sobre os mamíferos americanos; 2. Comenta sobre os ameríndios das regiões vi-
sitadas; e 3. Classifica e comenta sobre 65 espécies de mamíferos das regiões dos rios Negro, Madeira
6FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. Vol. III. Rio de Janei-
ro: Kapa Editorial, 2003, p.67.
7Sobre a influência de Robertson (assim como de Lineu e Buffon) em Ferreira, ver RAMINELLI, Ronald & SIL-
VA, Bruno da. Teorias e imagens antropológicas na Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira (1783-
1792). Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, vol.9, n.2, p.323-342, mai-ago 2014.
8FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira II. Vol. III. Rio de Janei-
ro: Kapa Editorial, 2003, p.34.

682
e Amazonas.

Na primeira parte, inicia por mobilizar principalmente duas obras de Lineu: o SystemaNaturae (a
edição que utiliza é a de 1766, publicada em Estocolmo) e a PhilosophiaBotanica (1751). Dessas obras,
extrai definições como a de animais como “máquinas hidráulicas” e “corpos naturais que são organiza-
dos, vivem e sentem”. Afirma também serem os mamíferos “a primeira das seis classes que, no Sistema
de Lineu, se divide o Reino Animal” (15). Lineu havia, a partir da edição de 1758 do SystemaNaturae,
adotado a nomenclatura “mamíferos” (ou “mamais”), no lugar de “quadrúpede”, assim como criado o
termo Homo Sapiens. Ferreira se vale desses nomes.Logo após, nessa primeira parte, começa a tecer
uma série de comentários sobre os animais americanos com base em Buffon.

A segunda parte contém inicialmente uma reflexão sobre a cor dos ameríndios. Seguem-se itens
sobre a “Constituição física – corporal”, “Constituição física – espiritual”, “Constituição moral” e
“Constituição política”. Todoselessão largamente embasadosemitens do “Book IV”: “The constitution
of their bodies”, “Power and qualities of their minds”, “Their social state” e “Political institutions”, re-
spectivamente.

Essa parte termina com uma consideração que funciona como uma espécie de introdução à parte
seguinte. Afirma ele que não seguirá, “quanto às ordens”, o método taxonômico de Lineu, preferindo
(pode-se deduzir) o de outros autores como Scopoli. O de Lineu é baseado nos dentes dos animais,
enquanto que o pelo qual tem preferência elege as terminações dos membros (se ungulados ou ungui-
culados) como referência. Seguem-se uma tabela de classificação dos mamais provavelmente feita por
ele, mas certamente baseada em Scopoli e uma citação em latim deste autor.

Já a terceira parte é a que concretiza a instrução para que assinalasse as utilidades que as espécies
de animais poderiam prover ao homem. São assinaladas sempre as utilidades “econômicas”, “médicas”
e “dietéticas”, a partir de informações colhidas entre as populações locais ou de outras obras a que teve
acesso. A primeira espécie da relação é o “tapuia”, sendo que, nesse caso, por considerá-lo um Homo
Sapiens, e, portanto, um igual, não sejam assinalados “usos”. Há, todavia, toda uma discussão sobre
a questão da “monstruosidade” entre os indígenas. Algumas populações indígenas são assinaladas
como “monstruosas por artifício”. Fornece também alguns (supostos) exemplos de “monstruosos por
natureza”. No primeiro caso, remete a memórias escritas anteriormente sobre modificações corporais
operadas pelas próprias tribos. No segundo, destaca principalmente um relato que teria escutado da
existência de uma tribo de “homo cautatus”, isto é, homo com rabo. Como se sabe, no seu Systema-
Naturae Lineu assinalou, entre as diversas variações de Homo Sapiens, os “homens monstruosos”. Po-
rém, aqui Ferreira critica a existência desse tipo de homens, novamente contestando, de certa forma,
Lineu. Segundo o relato que escutou, haveria nações de homens com rabo próximas ao rio Juruá, e
a explicação para isso seria que mulheres indígenas teriam cruzado com monos-coatás. Porém, para
contestar esse argumento, vale-se da ideia de Buffon (ainda que o autor não seja referido), segundo
a qual é impossível que haja cruzamentos entre indivíduos de espécies diferentes (e, nesse caso, de
gêneros diferentes).

O referido capítulo do livro do historiador (o Book IV, ou “Libre IV”) se inicia com discussões

683
sobre aspectos geográficos e naturais da América, passando depois a debater a origem dos povos ame-
ricanos e a examinar o “caráter” dos ameríndios. A partir de então, enumera os seguintes itens, cujos
nomes relacionamos na tabela abaixo tais como constavam na edição original (inglesa) e na tradução
francesa. Na tabela há também o nome do título dos itens de Ferreira que correspondem aos de Ro-
bertson:

Edição Inglesa Edição Francesa Participação do Rio- Observaçõesge-


(1777) (1777) Negro (1787) rais e particula-
res (1790)
“I. The constitution “I. Constitutionphysi- “Constituição
of their bodies” quedesAméricains” física – corpo-
ral”
“II. Power and quali- “II. Qualités Morales
ties of their minds” desAméricains”
“III. Their social sta- “III. [ ]” “Constituição
te” moral”
“IV. Politicalinstitu- “IV. Institutions poli- “Constituição
tions” tiques” política”
“V. Their art of war” “V. Art de laguerre” “Suas armas”
“VI. Theirarts” “VI. ArtsdesAméri-
cains”

• “Vète-
• “Dressandor- • “Vestidos e
mens&paru-
naments” ornatos”
re”
• “Theirarms” • “Suas armas”
• “[ ]”
• “Theirdomes- • “Utensílios
• “Ustensiles
ticutensils” domésticos”
domestiques”

“VI. Theirreligion” “VII. [ ]” “Superstição”

[“Superstition liée
avec la piéte”/
“La supersti-
tions’étend para de-
grés”]

684
“VIII. Detachedcus- “[VIII.] Coutumes-
toms” particulieres”

• “Love of dan- • “Amour de • “Costumes”


cing” danse”
• “Bailes”
• “Passion for • “Amourdujeu”
gaming” • “Instrumen-
• “Goûtdesli- tos Marciais e
• “Passion for queurs fortes” Festivos”
drinking”

“General estimate of “IX. Idéegénérale de


their character” leur caractere”

Veja-se, portanto, que a maioria dos itens de Robertson foi utilizado por Ferreira, queinclusive
se valeu de nomes parecidos, às vezes de traduções. Um exemplo particularmente interessante é o de
“Their social state”, que na edição francesa por algum erro não foi nomeado. O resultado foi Ferrei-
ra ter intitulado seu item de “Constituição moral”, mais parecido ao título do item anterior francês
(“Qualités Morales desAméricais”), do que de algum título que remetesse a “estado social”.

4. Exemplo de apropriação: Participação do Rio Negro

A partir do quadro seguinte, podemos comparar um trecho da edição original inglesa de 1777, a
francesa consultada por Ferreira e o próprio texto da Participação do Rio Negro, de Ferreira. O trecho
trata de armas utilizadas pelos povos ameríndios.

685
Ediçãoinglesa Ediçãofrancesa “Participação do Rio Negro”
“The first offensive weap- Les premieres armes “Elas [as armas] nos fazem
ons were doubtless such as offensives surent sans reflexionar, que as primeiras
chance pretended, and the doutecelles que le haz- armas ofensivas foram sem
first efforts of art to improve ard présenta, & les pre- dúvida as que ministrou o
upon these, were extremely miers efforts de l’art acaso, e que os primeiros es-
awkward and simple. Clubs pour les perfection- forços da arte para as aper-
made of some heavy woods, nerdûrentêtreextrême- feiçoar, foram muito simples
stakes hardened in the fire, ment simples &grossiers. e grosseiros. Isto se vê nessas
lances whose heads were Des massuesfaites de pequenas massas de pau pe-
armed with flint or the bones quelque bois pesant, sado, a que se dá o nome de
of some animal, are weapons despieuxdurcisaufeu, braçangas, as quais são as suas
known to the rudest nations. des lances dontlapoin- armas curtas, que contundem,
All these, however, were of te est armée d’um cai- e cortam como os sabres; as
use only in close encounter. llou ou d’un os de quel- lanças de madeira simples,
But men wished to annoy qu’animalsontdes armes ou tostada ao fogo, para lhes
their enemies while at a dis- connuesauxnationsles- comunicar maior dureza; e
tance, and the bow and arrow plusgrossieres; mais qui os piques armados na ponta
is the most early invention ne pouvoient servir que ou com algum fragmento de
for this purpose.” (p.374-375) dansdescombatscorps ferro, ou de pedra, ou de osso
à corps. Leshomme- aguçado aos quais, segundo a
sontcherchéensuiteles- sua diferença, se dão os no-
moyens de fairedu mal à mes de murucus, e cuidarus.
leursennemis à une cer- Porém todas estas só servem
tainedistance: l’arc&les para combater de perto. Os
fleches sontlapremie- homens excogitaram depois
reintentionqu’ilsaienti- um meio de ofender de longe.”
maginéepourcetobjet”. (p.357-363)
(p.187)

Além da evidente apropriação textual, percebe-se a inserção, por parte de Ferreira de nomes de
armas tais como são conhecidos na América portuguesa, pelas populações indígenas (“braçangas”,
“murucus”, “cuidarus”). Considerando-se que Robertson não se referia a armamentos de povos da
América portuguesa, isso somente foi possível pela consideração de que havia um “caráter geral” ame-
ríndio de acordo com seu estágio civilizatório, que permitia concluir que as armas descritas para ou-
tros povos do mesmo “estágio” eram as mesmas utilizadas por populações do Rio Negro.

686
5. Exemplo de apropriação: Observações

Já nas Observações, além de ter inserido também toda uma reflexão sobre os povos ameríndios,
há toda uma discussão sobre os animais americanos (inclusive, considerando-se o homem americano
como parte do Reino Animal). Ferreira considera que, excetuando-se os insetos, os animais existem
em menor quantidade na América, e, mesmo os que existem não são comparáveis aos do Velho Mun-
do em termos de tamanho e outras qualidades. Fazendo referências ao clima da região, entende que
mesmo os mamíferos introduzidos no continente pelos europeus com o tempo se degeneram, passan-
do a se constituírem versões inferiorizadas de seus correspondentes europeus.

Quem tem familiaridade com as ideias de Buffon, ou mesmo com um de seus intérpretes, An-
tonelloGerbi, autor de Novo Mundo: História de uma Disputa, pode logo identificar no naturalista
francês a origem de tais concepções de Ferreira.9

No artigo supracitado “Teorias e imagens antropológicas na Viagem Filosófica de Alexandre Ro-


drigues Ferreira (1783-1792)”, Ronald Raminelli e Bruno da Silva também analisaram a influência das
ideias de Buffon em Ferreira na sua compreensão dos povos indígenas da América portuguesa.10

Todavia, grande parte das ideias de Buffon expostas por Ferreira não foram, na verdade, acessadas
via uma leitura direta da Histoire Naturelle do naturalista francês, mas tomadas por meio da leitura
que Robertson fez do mesmo autor.

Ferreira se apropriou largamente da obra de Robertson (muitas vezes sem citá-lo). Copiou e para-
fraseou trechos, ou mesmo apenas aproveitou-se do sentido de suas ideias. Muitas vezes o fez de ma-
neira a adaptá-los, incluindo outras observações referentes ao mesmo tema e específicas relacionadas
à América portuguesa.

Vejamos o exemplo seguinte. Trata-se de trecho retirado do subitem “Its animals”, de Robertson.
Refere-se, portanto, aos animais americanos. Sua leitura deixa claro o uso de Buffon via historiador
escocês por Ferreira.

9GERBI, Antonello. O Novo Mundo: História de uma polêmica (1750-1900). São Paulo: Companhia das Le-
tras, 1996.
10RAMINELLI, Ronald & SILVA, Bruno da. Teorias e imagens antropológicas na Viagem Filosófica de Alexan-
dre Rodrigues Ferreira (1783-1792). Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, vol.9, n.2,
p.323-342, mai-ago 2014.

687
Edição inglesa Edição francesa “Observações”
“Of two hundred diferent “De deuxcents especes Porque, apesar de todos estes
kinds of animals spread différentes de quadrupes- tão vastos abrigos e ainda
over the face of the earth, répanduessurlasurface de mesmo da variedade que há
only about one third exist- la terre, on n’entrouvae- de climas, nem os mamais
ed in America, at the time nAmériquequ’environun- na América Meridional são
of its discovery [Buffon. tierslorsqu’ellefutdécouo-tantos, nem tão volumosos
Hist. Naturelle, tom. ix verte [M. de Buffon, hist.e robustos como aqueles
p.86]” nat. tome IX, p. 86”]. acima, que são os do antigo
hemisfério. Antes, parece
Nature was not only less La natureétoit non-seu-
que os mesmos quadrúpedes
prolific in the New World, lementmoinsséconde-
que originariamente per-
but the appears likewise to dansle nouveau monde,
tencem a este, são de uma
have been less vigorous in mais ele semble encore
raça inferior, porque, em
her productions. The ani- avoirétémoinsvigourese-
volume, o maior de todos
mals originally belonging danssesproductions. Les
é a anta e em vigor a onça.
to this quarter of the globe quadrupedes quiappar-
Nenhum outro animal se
appear to be of an inferior tiennentoriginairement
encontra, em quem se tema,
race, neither so robust, nor à cettepartieduglobe-
nem a sua grandeza, nem a
so fierce, as those of the paroiffantêtrê d’une
sua ferocidade. Ainda a que
other continent. America raceinférieure; ils ne
tem a onça, relativamente ao
gives birth to no creature sontniaussirobustesniaus-
homem e fora do caso, ou do
of such bulk as to be com- sifarouches que ceux de
cio, ou da fome, não é reso-
pared with the elephant l’anciencontinent. Il n’y
luta e livre de temor, como a
or rhinoceros, or that en a auccunenAmérique-
do tigre e do leão. Ao que no
equals the lion and tyger in qu’onpuissecomparer à
Brasil chamam tigre, impro-
strength and ferocity. The l’éléphant&aurhinocéros-
priamente lhe dão este nome.
Tapyr of Brasil, the largest pourlagrandeur, niaulion
Os veados e os porcos mon-
quadruped of the ravenous ou au tigre pourla force
teses da Europa excedem aos
tribe in the New World, is &férocité. Le tapirdu-
destes países. Ultimamente,
not larger than a calf of six Brésil, leplusgranddes
de quantas espécies de qua-
months old. The Puma and quadrupedes du nouveau
drúpedes povoavam a super-
Jaguar, its fiercest beasts of monde, est de lagrosseur
fície do globo, observou De
prey, which Europeans have d’um veau de six mois. Le
Buffon [M. De Buffon. Hist.

Em primeiro lugar, chama a atenção a citação da obra de Buffon por Ferreira (“[M. De Buffon.
Hist. Nat., t. 9º, p.86]”, exatamente da mesma maneira como se encontra em Robertson. Não há, nesse
trecho, referência ao fato de ter sido tomada via historiador escocês. Mas a apropriação é evidente. Em
ambos os casos, discute-se a suposta inferioridade dos animais americanos (“volume” e “ferocidade”),
considerando-se, quando se trata do mesmo animal anteriormente conhecido no Velho Mundo, que
se tornaram uma “raça inferior” na América. As referências a leões, onças, antas são também as mes-

688
mas, tendo amos assinalado o erro de se traduzir “tyger” por “onça”.

6. Considerações finais

Robertson constituiu o principal nome do quadro de referências que Alexandre Rodrigues Fer-
reira trouxe da Europa. Foi por meio de diversos tipos de apropriação deste – e de outros – autor que
examinou a natureza e os povos locais. Foi principalmente através da leitura de Histoire de l’Amerique
que conheceu e mobilizou as ideias de Buffon. A obra serviu de base não só para a compreensão das
populações humanas locais, mas também para a natureza da América portuguesa. O livro de Rober-
tson serviu-lhe muito bem aos propósitos de redigir uma “história filosófica” das regiões visitadas,
especialmente no tocante às características culturais, políticas e econômicas dos povos ameríndios.
Nesta apresentação, pudemos discutir uma breve amostra.

Tratou-se de uma apropriação textual não apenas da descrição de aspectos físicos e culturais lo-
cais, mas também da concepção da existência de um “caráter geral” ameríndio identificado a partir do
estabelecimento de estágios civilizacionais ligados aos “modos de subsistência”.

7. Bibliografia e fontes

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689
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naturalista, nas suas peregrinações, deve principalmente observar (1779). In: O Gabinete de Curiosi-
dades de Domenico Vandelli. Dantes Editora, 2008.

690
A guerra da Restauração nos materiais impressos de notícias em Madrid e Lisboa (1640-
1668)
Caroline Garcia Mendes11

No ano de 1642 circulava pelas ruas de Lisboa um chamado Cartel de Desafio y protestacion
“assinado” pelo próprio Don Quixote de la Mancha Cauallero de la triste figura(Figura 1), protestando
– como indica o título – a favor dos castelhanos contra os valorosos portugueses12. “Quixote” é claro
em seus argumentos: envergonhava-se de os castelhanos estarem perdendo as batalhas para a incrível
coragem dos portugueses “que elVerano passado estos brabos gigantes, sinrecebirdañoalguno, han por
todas partes talado nuestros campos, quemadonuestros lugares, y muerto de nuestras gentes (...)”13. O
protesto de Dom Quixote iria, assim, para todos a quem chegassem as notícias do que vinha ocorren-
do nas fronteiras, pois, devido às atitudes de seus compatriotas, havia sido informado de que daquele
dia em diante não poderia mais se intitular “elcauallero de losleones, sino elcauallero de lasgallinas,
pueslosleonesdel escudo de mi Patria se auianbueltopollos (...)”14.A pesquisadora Vanda Anastacio ex-
plica que para os leitores coevos, a alusão à Dom Quixote era uma indicação “de que estariam perante
um texto destinado a fazer rir”, já que o livro de Cervantes não fora lido por aquela sociedade como
uma obra de arte, mas sim como “modelo para histórias de burlas, isto é, cômicas, ou para fazer rir”.
A familiaridade do público com as personagens da obra permitia, assim, decifrar “as alusões burlescas
presentes no texto”15.

11 Doutoranda em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP). Esta
pesquisa possui financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP processo
número 2014/23614-7).
12Cartel de Desafio, y protestación cavalleresca de Don Quixote de la Mancha Cauallero de la triste figura en
defensión de sus Castellanos. Oficina de Domingos Lopes Rosa, 1642.
13 “que no verão passado, esses bravos gigantes, sem receber dano algum, por toda a parte cortaram nossos
campos, queimaram nossos lugares e mataram nossa gente” (tradução nossa). f. 2.
14 “o cavalheiro dos leões, mas sim o cavalheiro das galinhas, pois os leões do escudo de minha pátria haviam
se transformado em frangos” (tradução nossa). f. 2v.
15ANASTACIO, Vanda. Heroicas virtudes e escritos que as publiquem. D. Quixote nos papéis da Restauração.
In: Iberoamericana. VII, 28, 2007. p. 127.

691
Figura 1: Primeira página com a capa do Cartel de Desafio, impresso em Lisboa no ano de 1642.

A ironia presente no impresso, que não esconde ter sido produzido em Lisboa logo em sua capa, ape-
sar do triste texto ser assinado por Quixote diretamente da cidade deToboso, é um demonstrativo da
frequência com que os portugueses “respondiam” aos papéis que chegavam àquela Corte vindos de
cidades como Madrid e Sevilha e que circulavam pela Europa contendo notícias dos encontros nas ci-
dades fronteiriças.O Cartel era, assim, uma resposta bem-humorada ao desafio proposto pelo Duque
de Medina Sidonia a Dom João IV para provar sua lealdade a Dom Felipe IV, no momento em que este
duque era acusado de conspirar pela separação da Andaluzia e proclamar-se rei, como havia feito seu
cunhado em Lisboa pouco tempo antes16.

Pretendemos aqui apresentar os principais papéis de notícias que foram produzidos em Lis-
boa e Madrid durante o período da guerra da Restauração, demonstrando a inversão na quantidade
de publicações que ocorre nas duas cidades: a intensa produção lisboeta frente ao pouquíssimo in-
teresse madrileno nos primeiros anos, versus a diminuição da impressão de relações de sucesso e a
convergência das notícias em uma única publicação no caso de Lisboa, enquanto Madrid voltava seu
interesse para a guerra contra Portugal nos últimos anos do conflito. Dentre os três periódicos de no-
16 Sobre a contenda e a publicação do cartel, além do texto da professora Vanda Anastácio citado na nota ante-
rior, ver ainda: BOUZA, Fernando. Del Escribano a la Biblioteca. Sintesis: Madrid, 1997. p. 41-43.

692
tícias que abordaremos, utilizaremos ainda algumas relações de sucesso analisadas em nossa tese de
doutorado no intuito de demonstrar alguns assuntos tratados nesses impressos de notícias, bem como
pretendemos discutir como os inimigos eram apresentados aos leitores dos dois lados da fronteira.

A intensa produção das oficinas de Lisboa: quantidade nos primeiros anos; MercurioPortuguez na
década de sessenta

Nos primeiros anos da guerra a quantidade de impressos de notícias produzidos na cidade de


Lisboa é até hoje digna de admiração. A preocupação desse material era dupla: descrever a atividade
bélica nas fronteiras (dando ênfase aos oficiais que se destacavam) e tratar das diversas embaixadas
enviadas para os principais reinos da Europa em busca de reconhecimento e auxílio contra Felipe
IV. Além disso, é logo no ano de 1641 que começa a circular em Portugal a Gazeta conhecida como
‘da Restauração’, que iniciou suas publicações com notícias da guerra e de toda a Europa, para meses
depois passar a tratar apenas de novas de fora do reino17. Era um caderno que trazia a Portugal não
só a ideia de periodicidade impressa, mas também era um “órgão informativo e publicitário oficial do
reino de Portugal” 18. De uma regularidade ocasional das relações, a Gazeta trazia consigo a periodici-
dade marcada mensalmente. Assim, sua publicação se inicia em novembro de 1641 e seguiu sendo im-
pressa mensalmente até julho de 1642, momento em que é interrompida, voltando em novo formato
em outubro do mesmo ano. Se antes apresentava uma divisão entre notícias de dentro e fora do reino,
em outubro de 1642 seu título sofre modificação para Gazeta primeira do mês de outubro de novas
de fora do reino, onde de fato as notícias tratam quase exclusivamente de outras localidades que não
Portugal. Somente em seus últimos anos ela volta a trazer notícias da corte lisboeta.

Em dezembro de 1641 – data da segunda publicação deste periódico – um ano após a Coroa
de Bragança ter assumido o trono português, a Gazeta se iniciava exaltando a importante data: “Do-
mingo, o primeiro dia do venturoso mês, tem que Deus nosso Senhor pôs seus olhos de misericórdia
no miserável estado de Portugal, e foi servido de o restituir seu legítimo sucessor, o Sereníssimo Rei
D. João o IV” (Gazeta da Restauração, dez/1641, f. 1). Declarações como esta são frequentes no de-
correr do periódico, cuja autorização de impressão constava ao final de cada publicação “com todas
as licenças necessárias” ou “visto estar conforme com o original, pode correr esta Gazeta”. As notícias
relacionadas às batalhas contra castelhanos são grande maioria nos números iniciais da Gazeta. São
comuns ainda menções aos nomes de quem liderou os exércitos vencedores, quem morreu nas bata-
lhas ou realizou algum feito importante.Poucos meses depois de iniciar sua circulação, como disse-
17Gazeta em que se relatam as novas todas, que ouve nesta corte, e que vieram de várias partes no mês de No-
vembro de 1641. Diversos Impressores. 1641 a 1647. Disponível online, porém incompleta, em: <purl.pt/2080>.
Utilizamos a transcrição disponível em: DIAS, Eurico Gomes. Gazetas da Restauração: 1641-1648. Uma revisão
das estratégias diplomático-militares portuguesas (edição transcrita). Ministério dos Negócios Estrangeiros:
Portugal, 2006. Para as citações dos periódicos, preferimos indicar entre parênteses o mês, ano e à página a que
se referem os trechos utilizados.
18 BERGEL, AntonioJesúsAlías. As Relações de sucessos nas origens do jornalismo. In: Leituras. Revista da
Biblioteca Nacional. N.os 14-15 Primavera – Outono 2004. p. 228.

693
mos, a Gazeta foi suspensa, voltando a ser publicada apenas em outubro de 1642, deixando de conter
as notícias de dentro do reino durante muitos anos. A segunda fase da Gazeta, assim, difere bastante
da que acabamos de descrever. Passou a ser chamada de Gazeta Primeira do mês de Outubro de novas
de Fora do Reyno – modificando-se o título conforme o mês correspondente.

A primeira fase da Gazeta demonstra o dia-a-dia da corte e da realeza, a prestação de serviços


de nobres em diferentes batalhas contra Castela, e traz ainda algumas notícias das Índias, do Brasil,
de outras partes do Império e de algumas cidades europeias. A segunda fase, por outro lado, publica
novas de dezenas de cidades por todo o continente, informando aos seus leitores o andamento de
batalhas, guerras internas como as de Inglaterra, e dá destaque às embaixadas enviadas para diferen-
tes nações no intuito de fortalecer e tornar reconhecida nova Dinastia. Os editores da Gazeta, entre
acertos e erros no decorrer de suas publicações, encontraram um equilíbrio que agradava tanto à
Coroa portuguesa, quanto aos seus leitores. A permanência dos assuntos através dos anosinforma
aos pesquisadores atuais quais eram os tipos de notícias que agradavam àquela sociedade e ao mesmo
tempo eram permitidas por Dom João IV. Entendemos assim que, ainda que haja clara evidência de
propaganda voltada para a nova dinastia no poder, a Gazeta também se preocupava com a divulgação
de notícias que interessassem aos leitores. Como bem define Jorge Pedro Sousa, a Gazeta é assim um
“periódico de novidades selecionadas”, ainda que com claro viés de enaltecimento da Coroa de Bra-
gança. A lei de agosto de 1642 que proibiu a publicação de gazetas “com notícias do reino ou de fora”
e aparentemente fez com que as publicações de agosto e setembro não fossem impressas – só voltando
em outubro do mesmo ano –, pode dever-se, assim, à publicação de notícias que revelavam informa-
ções sobre questões bélicas portuguesas importantes para o andamento da guerra 19. O que denota,
assim, certo interesse do autor em publicar as notícias, para além de apenas publicizar a Restauração.

Nas relações de sucesso publicadas nestes primeiros anos também encontramos uma varie-
dade de temas, todos relacionados a recente aclamação de Dom João IV: as embaixadas enviadas para
Roma, Paris, Londres, Suécia, Dinamarca e Catalunha (e é interessante a relação que se estabelece en-
tre os impressos catalães e portugueses, que são publicados em Lisboa e em Barcelona levando as no-
tícias de um reino ao outro – onde, diferente, dos papéis madrilenos, Dom João IV é chamado sempre
de rei); os encontros com os soldados inimigos nas fronteiras e pequenas entradas em busca de gado e
mantimentos; cópias de cartas e traslados de cartas que informariam correspondentes dos dois lados,
sempre dando conta de bons acontecimentos e da positiva situação portuguesa diante do inimigo.
Nestes primeiros anos, o único confronto em que foi reconhecida a importância para ser chamado de
batalha foi abatalhadeMontijo no ano de 1644, cuja produção de notícias tanto em Portugal como em
Castela publicou a vitória dos dois reinos20. Após essa data, Fernando Dores Costa descreve a situação
bélica na Península como uma “trégua imperfeita”, marcada por pequenas entradas dos dois lados da
fronteira para a obtenção de ganhos para o próprio exército21.
19 SOUSA, Jorge Pedro. Jornalismo em Portugal no Alvorecer da Modernidade. Media XXI: Porto, 2013. p. 261.
20 CAMENIETZKI, Carlos Ziller. SARAIVA, Daniel Magalhães Porto. SILVA, Pedro Paulo de Figueiredo. O
papel da batalha: a disputa pela vitória de Montijo na publicística do século XVII. In: TOPOI, v. 13, n. 24, 2012.
Os autores concluem que atualmente não importa quem de fato teria se saído vitorioso desta batalha, mas que
ela certamente fora “ganha no grito”.
21 COSTA, Fernando Dores. A Guerra da Restauração 1641-1668. Livros Horizonte: Lisboa, 2004.

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Dentre as dezenas de relações de sucesso impressas em Lisboa nos primeiros anos da guerra,
convém discorrer brevemente como exemplo do conteúdo encontrado sobre asquatro relações que
chamamos de “seriadas”, por terem sido impressas em uma sequência de datas muito próximas, con-
forme a tabela 1:

data da taxa para circu-


Título Impressor lação
Relaçam do svcessoqve Ruy de Figveiredo fronteiro d'Ar-
Manoel da
raya de tralos montes teue na entrada que fez no Reyno de 07 de setembro de 1641
Sylua
Galiza
Segvndarelaçam verdadeira e algvnssvcessos venturosos q'
teue Ruy de Figueiredo Fron[]iro mor da Villa de Chaues,
na entrada que fez, & ordenou em algus lugares do Reyno Manoel da
28 de setembro de 1641
de Galiza, nos vltimos dias de Agosto até se recolher a dita Sylua
villa: copiada de hua carta que o dito Frõteiroenuiou a S.
Magestade
Terceira Relaçam do sucesso, que teve Rui de Figueiredo de
Alarcão nas fronterias de Chaves, Monte Alegre & Monfor-
te, segunda feira, nove do mês de setembro de 641. de que 15 de outubro de 1641
he general & fronteiro mor, tirada da carta que escreveo a Jorge Rodri-
sua magestade gues
QvartaRelaçam verdadeira da victoria, qve o fronteiro mor
de Traslos Montes Ruy de Figueiredo de Alarcão ouue na
sua fronteira, sincolegoas de Miranda, em Brandelhanes
terra de Castella, em que por sua ordem se achou com elle 18 de novembro de 1641
Pedro de Mello Capitão mor de Mirãda. A qual mandou a
sua Magestade o dito fronteiro mor assinada por sua mão Jorge Rodri-
&c. guez
Tabela 1: relações de sucesso seriadas sobre os encontros dos exércitos na região da Galícia impressas em Lisboa.

Pelas datas da taxação obrigatória podemos conferir a frequência com que os papéis que
tratam das ações de Ruy Figueiredo foram impressos no ano de 1641. A primeira relação é assinada
pelo próprio Ruy Figueiredo, que descreve sua entrada na região da Galícia após receber uma carta
de Sua Majestade mandando que “rompesse guerra com o inimigo”. Após três entradas feitas de ma-
neira simultânea, lemos que os moradores da região se entregavam com pouca resistência e “querião
ser vassalos de el Rey de Portugal, &mãdar suas fazendas, & famílias pera este Reyno, & por isso os
fui deixando com o nome de vassallos obedientes, sem lhe fazer mais dano que o que receberão nas
entradas” 22. E encerra a relação concluindo que
Temos cá entendido com fundamentos muito certos, que os Gallegos estão com tam gran-
de medo desta entrada, & do que tem sabido das nossas armas, que seu eu tiuermoniçoes
bastantes para me poder deter em Galiza, farei por toda ella grande estrago. V. M. me faça
mercê de o representar assi a sua Magestade, & saber delle o que mais me manda que faça,
porque o desejo que tenho de me empregar em seu serviço helhe muito prezente, me faz
parecer que tenho feito muito pouco, para o muito que desejo obrar nelle: &assi espero
que V. M. me auize do que S. Magestade me manda, que faça, porque o tornar a entrar por
22Relaçam do svcessoqve Ruy de Figveiredo fronteiro d'Arraya de tralos montes teue na entrada que fez no
Reyno de Galiza. 1641. Impressor: Manoel da Silva. f.2.

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Galiza, não só me não cauzareceo, mas o hauerei por particular mercê de S. Magestade, que
Deos guarde 23.

Os galegos, dessa forma, estariam com medo das entradas portuguesas e dependia do envio de manti-
mentos para a guerra as vitórias naquela região, afirmando Ruy Figueiredo o gosto que tinha em obe-
decer às ordens de Dom João IV. Além disso, da mesma maneira que as relações de sucesso madrilenas
descrevem que os portugueses das fronteiras estariam passando para o lado deles, nos papéis lisboetas
os galegos também estariam do lado português.

Como os títulos das demais relações apontam, elas teriam sido retiradas de cartas escritas por
Ruy Figueiredo para o rei português, e eram sempre em primeira pessoa, tratando do andamento dos
encontros com os castelhanos na região da Galícia. Em outra relação, por exemplo, o texto também
em primeira pessoa afirma que escrevia por ser “historia conhecida o relato a V.M. como testemunha
de vista, para que o comunique aos amigos”24. Por fim, encontramos na quarta e última relação da
série uma demonstração da devoção portuguesa: num momento da batalha em que castelhanos se
escondem em uma Igreja e dali continuam proferindo ataques, a relação afirma que um dos oficiais
sugere queimar o templo para desaloja-los, ao que o outro oficial teria respondido que “mais queria
que ficassem o dito Conde, & Marques, que por em risco as cousas sagradas: porque assilhoordenaua
sua Magestade, cujopiadoso zelo & Religião não queria ganhar monarquias com menor desacato do
Diuino culto” 25. A devoção portuguesa à religião católica, aliada à profanação perpetrada aos templos
pelos castelhanos será também uma constante nos papéis de notícias portugueses.

É o que podemos encontrar em diferentes relações de sucessos impressas nos primeiros anos
da guerra, como quando um papel descreve a entrada dos castelhanos em uma vila portuguesa e
afirma que já a haviam saqueado “sem nenhuma reuerêcia ao culto diuino, fazendo pedaços a hum-
Christo, & descompondo as mais Imagens, leuando todos os gados com outros roubos, & insultos
nunca imaginados” 26. Ou ainda a descrição de outra entrada em que os castelhanos, usando de sua
“costumada impiedade” roubaram a Igreja dedicada à Nossa Senhora de Ventosa onde, “(pondo de
parte o deuido respeito), despirão de seus vestidos facto sanctos, pondo juntamente fogo ao hermitão,
que nella assistia cujo danado incêndio chego a tanto, que tocou o precioso, &diuinoJesu que a Se-
nhora tinha em seus santos braços” 27. Por outro lado, como era de se esperar, “nunca a veneração do
23Ibidem. f. 3v-4.
24Relaçam da vitória qvealcançov em dovs deste mês de Setembro, o General Martim Afonso de Melo, nos
campos da Cidade d’Eluas, contra o inimigo Castelhano. 1641. Impressor: Manoel da Silva. f. 1. Itálico nosso.
Ser “testemunha de vista”, assim, traria a confiança dos leitores ao relato.
25QvartaRelaçam verdadeira da victoria, qve o fronteiro mor de Traslos Montes Ruy de Figueiredo de Alarcão
ouue na sua fronteira, sincolegoas de Miranda, em Brandelhanes terra de Castella, em que por sua ordem se
achou com elle Pedro de Mello Capitão mor de Mirãda. A qual mandou a sua Magestade o dito fronteiro mor
assinada por sua mão &c. 1641. Impressor: Jorge Rodriguez. f.2v.
26Relaçam da entrada qve o mestre de Campo Dom Francisco de Sovza fez na villa de Valença de Bomboy
em Sabbadotres de Agosto deste prezenteanno de mil & seiscentos, & quarenta & hum. 1641. Impressor: Jorge
Rodrigues. f.1.
27Relaçam do felicesvcesso milagrosa vitoria, que ouue o Capitão Luis Mendes de Vasconcellos, contra o inimi-
go Castellano, no termo da cidade de Eluas [10] de Julho de 1641. Impressor Manoel da Silva. f.1v.

696
Sanctissimo Sacramento estaua mais segura, que quando o exercitoPortuguesandaua em campanha”28.
Uma das características castelhanas que os papéis de notícias portugueses darão ênfase, assim, será a
heresia presente entre seus soldados, cujas relações de sucesso impressas pelo inimigo se esforçavam
em desmentir.

Já na década de 60, momento em que o interesse de Felipe IV se volta novamente para Portu-
gal, podemos ver o aumento dos conflitos nas regiões de fronteira e o surgimento do MercurioPortu-
guez, Este periódico foi impresso em Lisboa entre os anos de 1663 e 1667 ese propunha, como indica a
sua primeira folha de notícias, a “seruir ao bem publico de Europa com as nouas certas da guerra entre
Portugueses, & Castelhanos” (MercurioPortuguez, jan/63; f.2)29. Sua principal ênfase explícita, no de-
correr de todos os números, irá se repetir: “torno a pedir que não se dè credito aos que inventarem as
gazetas Castelhanas” (MercurioPortuguez, fev/63; f.4). Ainda no mês de janeiro, seu autor explica suas
intenções:já que os castelhanos estavam publicando informações “tão erradamente, que fica a relação
sem a alma, que he a verdade, e sua lição muito prejudicial a quem lhe dá crédito; (...) para servir ao
bem publico da Europa com novas certas da guerra entre Portugueses, e Castelhanos (unica hoje entre
Christãos) se dispoemMercurio (...)”. Nessa mesma página, faz a relação entre o periódico, o planeta e
o deus romano, explicando que o Mercurio

segundo a natureza do seu planeta, senão desvie dos rayos do sol da verdade, sob pena de
perder o credito, pois se esta se pode por breve eclipsar, em fim não se pode escurecer. Dará
cada mezhua’ relação, porem se ouver cousa digna de saberse antes, não tardará; porque a
velocidade incansável de suas azas não repara em fazer por todo o mundo quantas jornadas
forem convenientes (MercurioPortuguez, Jan/1663, f. 1v.).

Trazia longas descrições das batalhas, edições extraordinárias quando julgava necessário e
prognósticos anuais no mês de janeiro que previam os acontecimentos vindouros. Diferente da Gazeta
da Restauração, o MercurioPortuguezpossuía o nome de seu autor na capa: Antonio de Sousa de Ma-
cedo, que já era conhecido dos Bragança, pois além de produzir extenso material impresso a favor da
Restauração desde o ano de 1640, chegou a integrar uma de suas embaixadas a Londres e participou
do governo de diferentes maneiras antes de ser nomeado, logo após Dom Afonso VI assumir o poder,
como secretário de Estado. O autor foi responsável ainda por escrever algumas relações de sucesso
sobre as vitórias portuguesas nessa década.

28Relaçam da entrada qve fizeram em Galliza os gouernadores das armas da Prouincia de entre Douro, &
Minho o Mestre de Campo Violi de Athis, que por carta de Sua Magestade exercita o cargo de Mestre de Cam-
po General, & Manoel Telles de Menezes Gouernador do Castello de Vianna, & Frey Diogo de Mello Pereira
Cõmendador de Moura Morra, &Veade da Religião de samJoam de Malta, Capitam mor de Barcellos. 1642.
Impressor: Domingo Lopes Rosa. f. 4v.
29MercurioPortuguez, com as novas da guerra entre Portugal e Castela.Autoria dos quatro primeiros anos de
Antonio de Sousa de Macedo. Disponível completo online em:<http://purl.pt/12044>. Ainda que este docu-
mento não seja numerado, preferimos indicar a localização completa dos trechos utilizados em nosso trabalho.

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O crescimento gradual do interesse madrileno pelas notícias sobre Portugal: demonstrativo da guerra

Nas décadas de 40 e 50 foram poucas as relações de sucesso encontradas em nossa investi-


gação que tratassem da guerra com Portugal. Os impressos de notícias preocupavam-se com outros
conflitos que envolviam a Monarquia Hispânica e pouco tratavam das questões portuguesas. Havia
em Madrid a frequente publicação de manifestos contra Dom João IV e a separação de Portugal,
defendendo o direito de Felipe IV sobre a Coroa portuguesa, mas quanto às notícias que circulavam
impressas pela cidade, eram muito poucas. Ainda que existam relações de sucesso sobre a batalha de
Montijo, por exemplo, não encontramos nenhuma que tenha sido impressa em Madrid, o que pode
significar o pouco interesse da cidade sede da corte naquele momento com os acontecimentos na
fronteira com Portugal.

Apenas a partir de 1658 e sobretudo na década de sessenta do século XVII é que poderemos
encontrar uma quantidade expressiva de relações de sucesso publicadas em Madrid, enquanto em
Lisboa houve certa diminuição, se compararmos com os primeiros anos da guerra, possivelmente de-
vido à publicação do MercurioPortuguez. Nas décadas de 40 e 50 foram poucas as relações de sucesso
encontradas em nossa investigação que tratassem de Portugal. Encontramos, assim, apenas três papéis
de notícias publicadas em Madrid que tratassem das batalhas contra Portugal anterior a 1658. Até esse
ano, pouco se imprimia na cidade sobre os portugueses, mas o tratamento que os antigos vassalos de
Felipe IV recebia se manteria durante toda a guerra: em todas as notícias os portugueses nunca são
ridicularizados nem generalizados como rebeldes; o conflito teria sido gerado por um pequeno gru-
po, influenciado por um tirano – Dom João IV ou Dom Afonso VI. Obviamente Dom João IV nunca
é chamado de rei, apenas de “rebelde” ou “tirano”, diferente do tratamento recebido nas relações de
sucessos impressas em Barcelona, cujo inimigo comum fazia com que a realeza dos Braganças nunca
fosse questionada nas relações impressas na década de 1640.

Um documento que convém mencionar é a Relacion fidedigna del feliz svcessoqvehanteni-


dolas armas de suMagestadCatolica, contra el Exercito del Rebelde de Portugal... 30. Este relato, escrito
em primeira pessoa para que “se sirua de tenerlo entendido, y darla a suMagestad deste buen sucesso
que hãtenido sus Reales Armas” 31, descreve como teriam ocorrido as entradas do inimigo atrás de
gado em terras castelhanas e a resposta do exército de Felipe IV. Depois de uma perda considerável de
gado provocada pela entrada dos “rebeldes”, a relação descreve a vingança dos soldados castelhanos,
que terminou com mais de 150 mortos e 350 prisioneiros do lado inimigo, devendo-se ao “Cõde de
Tronçán, y al Comissario General Maçacán, por auerlo obrado también”, concluindo que “se assegu-
re, que si aquítuuieramosalgunasfuerças, y medios de poder obrar, el Rebelde estuuiera a raya, y no
se atreuiera a hazer entradas. Pero como la frontera es tan dilatada, y tan cortas nuestras fuerças, no

30Relacion fidedigna del feliz svcessoqve han tenido las armas de su MagestadCatolica, contra el Exercito del
Rebelde de Portugal: Sucedido media légua de Alcantara, junto a la Cruz, que llaman de Rebollo, a 6 de Março-
deste presente año de 1652. Impressor: Pablo de Val, 1652.
31 “sirva para entender-se e dar a sua Majestade o bom sucesso que tiveram suas Armas Reais” (tradução nos-
sa).

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es posible estoruarselo” 32. Nas entrelinhas, o escritor reclamava, assim, da falta de forças do exército
castelhano diante de uma fronteira tão grande como a que separava Castela de Portugal, nomeando os
responsáveis pela (pequena) vitória. Mais uma vez chamamos a atenção para a definição do inimigo:
é o rebelde e seus oficiais, não os portugueses.

Foi a partir do ano de 1658, contudo, que as notícias relacionadas a Portugal passaram a apa-
recer com maior frequência nas oficinas impressoras de Madrid. Começar a imprimir notícias sobre a
guerra da Restauração com frequência demonstra, assim, não só o interesse de um público leitor pelo
tema mas o fim dos demais conflitos em que a Monarquia Hispânica estava inserida e a retomada das
batalhas na fronteira com Portugal, já que no ano seguinte seria celebrada a Paz dos Pirineus com a
França.Dessa forma, no ano de 1658 encontramos três relações impressas em Madrid, duas por Julian
de Paredes e uma por Diego Diaz. As publicações de Paredes tratam da região da Galícia, enquanto a
de Diaz descreve o ocorrido no sul da fronteira, em Estremoz. Assim, naRelacion de la famosa vitoria
que han tenido las Catolicas Armas de su Magestad, que Dios guarde...33e naCopia de vna carta remi-
tida desde el campo sobre Monçon, en las fronteras de Portugal, à vnCauallero de esta Corte...34encon-
tramos a descrição dos acontecimentos para aquele ano na região entre Douro e Minho. Na relação
podemos ler o ocorrido em setembro sobre a entrada em Portugal do exército comandado por Dom
Baltasar de Roxas y Pantojas e pelo marquês de Peñalva Dom Bernardino de Meneses. O que nos
chamou a atenção neste papel foi a identificação do exército como galego durante todo o documento,
sempre enfatizando seu valor:
los quales pelearon con tanto desnuedo, y valentía, que coauer el enemigo ocupado los me-
jores puestos, no pudo resistir el ímpetu de nuestra gente, que entrando por la Vanguardia
del ExercitoPortugues, salio por la retaguardia, abriendo, y deshaziendo los escuadrones de
tal forma, que perecio la mayor parte de los enemigos. (…) Y generalmente hablado, todo el
Exercito de Galicia obró en esta ocasión, como en todas las demas, tan valerosamente, que
no les hacen ventaja los Soldados mas expertos de los Paises de Flandes, y de Italia. (…) Con
esta vitoria, conseguida por los valerosos, y esforçadosGallegos, quedaron los Portugueses
tan amedrentados, que no teniéndose por seguros dentro de su Castillo, o Fortaleza, se
huyeron del Exercito por aquellos Montes (…)(f.2 itálico nosso)35.

32 “Conde de Tronçán, e ao comissário geral Maçacán, por ter atuado também”; “se assegure que se aqui ti-
véssemos algumas forças, e meios de poder atuar, o rebelde estaria na raia, e não se atreveria a fazer entradas.
Mas como a fronteira é muito extensa, e tão curtas nossas forças, não é possível atrapalha-lo” (tradução nossa).
33Relacion de la famosa vitoria que han tenido las Catolicas Armas de su Magestad, que Dios guarde, governa-
das por el Excelentissimo señor Don Rodrigo Pimentel Marques de Viana, Gouernador y Capitan General del
Reino de Galicia. Contra las de los Rebeldes del Reino de Portugal.Impressor: Julián de Paredes, 1658.
34Copia de vna carta remitida desde el campo sobre Monçon, en las fronteras de Portugal, à vnCauallero de
esta Corte, dándole cuenta de lo sucedido en quitarles a los Portugueses el socorro que querían introducir por
el Miño a dicha Plaça. Sucedido el Sabado siete deste presente mes de Diziembre de 1658. Impressor: Julián de
Paredes, 1658.
35 “os quais brigaram descobertos e com tanta valentia, que tendo o inimigo ocupado os melhores postos, não
pode resistir ao ímpeto de nossa gente, que entrando pela vanguarda do exército português, saiu pela retaguar-
da, abrindo, e desfazendo os esquadrões de tal forma, que pereceu a maior parte do inimigo (…) E falando de
maneira geral, todo o Exército da Galícia atuou nesta ocasião, como em todas as demais, tanto valor, que não
tem vantagem os soldados mais especialistas dos países de Flandres e de Itália. (…) Com esta vitória, consegui-
da pelos valorosos e esforçados galegos, ficaram os portugueses tão amedrontados, que não se sentindo seguros
dentro de seu castelo, ou fortaleza, fugiram do exército por aqueles montes” (tradução nossa).

699
Demonstrar o valor dos homens daquela região era certamente parte da função deste documento, que
enfatiza que eles eram melhores do que os soldados vindos de outras regiões da Monarquia, numa
clara busca por reconhecimento diante de seu rei.Apesar da mudança no título do documento, a Carta
que se publica na sequência tem o mesmo formato e aparentemente foi escrita pela mesma pessoa,
pois podemos ler logo no início que “continuando conlo que V.m. me manda en sus cartas leauise, y
de cuenta por menor de lo que vasucediendoconlos Portugueses enlaProuincia entre Duero, y Miño-
lesiruoconvnabreue suma (...)” 36.

A terceira relação que encontramos para esse ano traz notícia da morte do Conde de Pena-
guião após ser preso em batalha. O papel enfatiza o respeito com que o oficial foi tratado e parece
querer demonstrar a superioridade castelhana diante do falecimento de um fidalgo da alta hierarquia
portuguesa:
El Conde prisionero murió a la noche. Miercoles por la tarde, embió el señor D. Luis de
Haro vn trompeta a la Villa de Yelves a auisar si gustauã se embiasse el cuerpo del dicho
Cõde; dixeron le recibirían; Su Excelêcia hizo buscar en su Recamara vn vestido de mucha
gala, y no pareciéndole le tenia, se vulcó en el Exercito, y se halló vno muy rico del Conde
de CastelMendo [sic], de valor de mil escudos; este le puso, y en vna litera se lleuó con or-
den; que se quedasse la litera allá, por si gustassen de embiar el cuerpo a Lisboa, y que daría
Cavalleria que lo acompañassen hasta donde gustassen37.

Dom Luís de Haro teria, assim, recorrido às roupas de alto valor de um dos oficiais para que se vestisse
o Conde de maneira adequada ao ser entregue de volta ao exército inimigo, oferecendo ainda a liteira
para que o corpo fosse levado até Lisboa e cavalaria para que o acompanhassem. O respeito com que
os portugueses seriam tratados prevalece, assim, nos papéis castelhanos, onde mesmo um membro fa-
lecido do exército do “rebelde” era tratado com os cuidados que demandavam um Conde. NaRelacion
Verdadera, y quarto diario de la feliz Vitoria que han tenido las Catolicas Armas de Su Magestad (que
Dios guarde) contra el rebelde de Portugal…encontramos maisuma vez a superioridade do exército-
castelhanosendo descrita quandolemos que “no se ha oído sucediesse muerte, violación de mugeres,
ni robos en la Iglesia, de que su Alteza quedó muy gozoso, porque en días de tanta confusión, y hor-

36 “continuando com o que V.m. me manda em suas cartas que lhe avise, e dê contra com detalhes do que vai
acontecendo com os portugueses na província de Douro e Minho lhe sirvo com um pequeno resumo” (tradu-
ção nossa).
37Relacion en que se da cventa de todo lo sucedido al Exercito de su Magestad (que Dios guarde) governado
por el Excelentissimo Señor D. Luis Mendez de Haro, desde diez y seis de Octubre deste presente año de 1658
que salió de la Ciudad de Badajoz, para el sitio, y Campaña de Yelves, hasta 27 de dicho mes. f.1v-2. “o conde
prisioneiro morreu a noite. Quarta-feira pela tarde, eviou o senhor D. Luis de Haro um trompeta a vila de
Yelves para avisar se gostariam que se enviasse o corpo do dito Conde; disseram que lhe receberiam; Sua Exce-
lência fez buscar em sua câmara um vestido de muita gala, e parecendo que não o tinha, buscou no exército, e
encontrou um muito rico do conde de CastelMendo[sic], de valor de mil escudos; colocou-o, e em uma liteira
levou com ordem que se deixasse a liteira lá, caso quisessem enviar o corpo a Lisboa, e que daria cavalaria que
o acompanhasse até onde quisessem” (tradução nossa).

700
ror no suele ser fácil euitar estos acidentes (...)” 38. A acusação de que estes soldados não respeitavam
as Igrejas e eram extremamente violentos com a população era uma aparição frequente nos papéis
portugueses, cabendo assim, responder que essas ações eram “acidentes”, e que não haviam ocorrido
naquelas entradas. Será na década de sessenta daquele século, porém, onde encontraremos a maior
quantidade de papéis de notícias publicados que tratavam da guerra contra Portugal.

Nos anos 60, seguindo o interesse de Felipe IV que se voltava agora para Portugal, encon-
tramos um aumento significativo da produção de notícias em Madrid. Além das relações de sucesso,
começou a ser publicada em Madrid a Gazeta Nueva, periódico de notíciasimpresso entre os anos de
1661 e 1663 e escrito por FabroBremundán, secretário de Dom Juan José de Áustria, filho bastardo de
Felipe IV. Esta Gazeta preocupava-se com as notícias de fora do reino, mas dedicava-se também ao
que acontecia nas fronteiras com Portugal, tendo publicado inclusive dois números dedicados exclu-
sivamente a esta guerra, que podemos ver na Figura 2.

Figura 2: Dois números da Gazeta Nueva que tratam exclusivamente da guerra contra Portugal

Os dois números da Gazeta Nueva que tratam especificamente de Portugal são o número X do ano de
38Relacion Verdadera, y quarto Diario de la feliz vitória que han tenido las Catolicas Armas de Su Magestad
(que Dios guarde) contra el Rebelde de Portugal, governadas, y assistidas por su Alteza el Serenissimo señor
Don Iuan de Austria, en el sitio, y toma de la villa de Ocrato, con otros doze lugares de su Priorato, que sus nom-
bres van al fin desta relación. Impressor: Francisco Nieto. f.1v. Como o título sugere, assim como as relações
seriadas encontradas em Lisboa, essa relação também faz parte de uma sequência de publicações impressas em
Madrid no mesmo período. “não se ouviu que ocorresse morte, estupro de mulheres nem roubos à Igrejas, do
que sua Alteza ficou muito feliz, porque em dias de tanta confusão e horror não costuma ser fácil evitar esses
acidentes” (tradução nossa).

701
1661 e o número 6 do ano seguinte. No primeiro as notícias são divididas por localidade: del Exercito
de Estremadura; delExercito de CastillalaVieja; e delExercito de Galicia. A movimentação do exército
é descrita através dos dias, detalhando as vitórias castelhanas. A bondade de Felipe IV e seus oficiais
também é enfatizada, como podemos ler no seguinte trecho
Dicho dia por la tarde embió su Excelencia al Comissario General de la caualleria con 200
cauallos a la villa de San Pedro, ofreciendo al Gouernador, que la benignidad de su Ma-
gestad para con sus vassallos era tal, que aunque en el obrar no lo pareciã los Portugueses,
deseaua siempre perdonarles; y que assi le pedia se rindiesen a su Real clemencia, antes de
experimentar con la hostilidad lo riguroso de sus Armas (Gazeta Nueva X, ago/61; f.3) 39

Os portugueses ainda eram vassalos de Dom Felipe IV, que “desejava sempre perdoa-los”. Segundo
ainda esta notícia, o governador da praça teria respondido “muypoco a proposito”, fazendo com que
o Duque fosse até lá com parte das armas, o que teria feito os soldados renderem-se imediatamente:
“apenas vieronlos Portugueses nuestro Exercito, quando se rindieron” 40. Por fim, as novas que chegam
da Galícia descrevem a movimentação do exército liderado por Dom Rodrigo Pimentel, marquês de
Viana, que também são positivas – como todas relacionadas ao exército de Dom Felipe IV por esta
gazeta.

O número 6 do ano de 1662 também é exclusivo sobre as batalhas com Portugal, onde po-
demos ler a continuação das notícias do ano anterior. Da Galícia também chegaram novas sobre a
guerra, descrevendo a quantidade de pessoas que se encontravam no exército daquela região através
de uma tabela e nomeando seus capitães e demais oficiais; o autor afirma que “van siuiendo em este
Exercito muchosTitulos, y Caualleros, de cuyosnombres, Nobleza, y heroicas proezas se pudieranha-
zer Relaciones muy dilatadas (…)” (6, [ago]/62; f.3)41. Para encerrar as notícias, no último parágrafo
desta gazeta podemos ler que
Es tan grande el terror que de esta marcha ha percibido la Prouincia de Entre Duero, y
Miño, que de Ponte de Barca, Põte de Lima, y las demas Villas, y Lugares de su comarca, en
mas distancia de seus leguas, ban sacado sus vezinos la ropa, y la han lleuado a la Ciudad
de Braga, y a otras Plaças de lo mas interior de la Prouincia. Y hasta el Conde de Prado, que
gouierna las Armas del Rebelde, y los demas Cabos de su Exercito, que habitan en la Ciudad
de Viana, han sacado de ella sus haciendas, y familias, para assegurarlas de las inuasiones de

39Utilizamos a publicação em fac-símile publicada em: VARELA HERVIAS, Eulogio. Gazeta Nueva 1661-1663
(notas sobre la Historia del Periodismo Español en la segunda mitad del siglo XVII).Madrid, Murcia: Oficina
Tipográfica de los sucessores de Nogués, 1960. “neste dia pela tarde, enviou sua Excelência o comissário geral
da cavalaria com 200 cavalos à vila de São Pedro, oferecendo ao governador, que a benignidade de Sua Majesta-
de para com seus vassalos era tal, que ainda que no atuar não o pareciam os portugueses, desejava sempre per-
doar-lhes; e que assim o pedia que se rendessem à sua real clemência, antes de experimentar com a hostilidade
o rigor de suas armas” (tradução nossa).
40 “muito pouco a propósito”; “apenas os portugueses viram nosso exército e se renderam” (tradução nossa).
41 “servem neste exército muitos títulos, e cavaleiros, de cujos nomes, nobreza e heroicas proezas puderam
fazer relações muito longas” (tradução nossa).

702
nuestros Soldados (6, [ago]/62; f.4v)42.

O temor dos moradores das regiões por onde passava o exército castelhano era tanto, que a popula-
ção estaria retirando seus bens e levando-os para outras cidades, inclusive o próprio comandante das
“armas do rebelde” estaria fazendo o mesmo. O intuito deste trecho é claro: demonstra não só a força
daquele exército, mas também a fraqueza do inimigo, que já estaria fugindo diante da ameaça. Os
dois periódicos produzidos na Península Ibérica na década de sessenta do século XVII, assim, trazem
características semelhantes quando tratam do inimigo, a diferença era que os castelhanos eram consi-
derados inimigos dos portugueses, mas nem todos os portugueses eram inimigos castelhanos.

Por fim, compreendemos que as informações que traziam este periódico tratavam sobretu-
do de questões políticas europeias nas quais a Monarquia se inseria ou era afetada de alguma forma.
Havia, porém, algumas notícias que destoavam das demais, como o excesso de chuvas que assolou a
cidade de Málaga e ocupou duas páginas e meia da Gazeta Nueva de setembro de 1661 (número XI),
o registro das mercadorias que chegaram em A Coruña com a Carreira das Índias na gazeta de no-
vembro de 1661 (número XII), ou ainda a única notícia vinda de Cartagena de Levante, que o último
número do periódico informa sobre o desembarque de padres que iriam ajudar no resgate de cativos
cristãos (8 dez/62; f.3).

A abordagem dos papéis impressos em Madrid é bastante diferente das publicações portu-
guesas. O tratamento que os antigos vassalos de Felipe IV recebia se manteria durante toda a guerra:
em todas as notícias os portugueses nunca são ridicularizados nem generalizados como rebeldes;
o conflito teria sido gerado por um pequeno grupo, influenciado por um tirano – Dom João IV ou
Dom Afonso VI. Obviamente Dom João IV nunca é chamado de rei, apenas de “rebelde” ou “tira-
no”, diferente do tratamento recebido nas relações de sucessos impressas em Barcelona, cujo inimigo
comum fazia com que a realeza dos Braganças nunca fosse questionada. Nas relações madrilenas é
mais comum enaltecer os próprios soldados e comandantes do que inferiorizar os portugueses, como
quando afirma que “nuestra gente se mostrócongran valor; y de suerte, que el Rebelde fue retirando
congranmiedo a vnos montes”43. Com o intuito de que esses impressos cruzassem a fronteira, as rela-
ções traziam ainda informações sobre moradores que passavam a lutar do lado castelhanos, “porque

42“é tão grande o terror que desta marcha percebeu a província de Entre Douro e Minho, que de Ponte de Bar-
ca, Ponte de Lima, e as demais vilas, e lugares de sua comarca, e mais distância de seis léguas, vão tirando seus
moradoreso vestuário, e levaram à cidade de Braga, e a outras praças mais interiores da província. E até o Conde
do Prado, que governa as armas do rebelde, e os demais cabos de seu exército que moram na cidade de Viana,
tiraram dela suas fazendas, e famílias, para assegurá-las das invasões de nossos soldados” (tradução nossa).
43SEGVNDA Relacion diaria de la feliz Vitoria que han tenido las Catolicas Armas de Su Magestad (que Dios
guarde) por la parte de Galicia, contra el Exercito Rebelde de Portugal, gouernadas por los señores D. Baltasar
Pantoja, y el Marques de Penalua. Donde se declara el numero de muertos, y prisioneros que ha auido en los
encuentos. Impressor: Francisco Nieto, 1662. “nossa gente se mostrou com grande valor, e de sorte que o rebel-
de foi se retirando com grande medo a uns montes” (tradução nossa).

703
desean verse libres de lasopresiones, tiranías, y tributos que padecen.”44. O apelido de rebelde passa,
inclusive, para os outros membros da família já que no ano de 1662 era Dona Luísa de Gusmão a re-
gente da Coroa portuguesa, chamada em uma das relações de “a rebelde”45.

Podemos ler numa relação chamada Copia de carta escrita de vncortesano de Lisboa a vn-
ciudadano de Cadiz,... escrita em primeira pessoa, sobre todas as vitórias da Monarquia Hispânica e
como isso estaria afetando a população “ainda que portuguesa, castelhana” na região. O autor da carta
escreve que “lo mas que tiene a este Reyno triste, es, ver que em Castilla, por todas partes, se preuiêne-
gruessos, y numerosos Exercitos para esta Primauera, y esperan mucho daño, y acá no ay oposición,
ni es posible jûtarvn tostón, ni vn hombre”46.Outra questão lembrada por outros impressos madrile-
nos e mencionada também nesta relação é o casamento de Dona Catarina de Bragança, filha de Dom
João IV, com o rei inglês e o grandioso dote pago por essa união, que incluiu a entrega de Tânger, no
norte da África, ao reino não-católico47. Nestarelação podemos ler que “atribuyen todos estos malos
sucessos a auer hecho en casamiento con Inglaterra, y auerle dado a Tanger, para vltrajar, y profanar
la FéCatholica en sus Templos (…)” 48. Concluindo seu autor que “somos mas losafectos a Castilla
que a Portugal, vnos de amor, otrosyá de hartos de guerra” 49. A impressão, publicada como se fosse
uma carta enviada de Portugal, visa assim demonstrar não só as vitórias castelhanas, como o apoio do
povo português a Felipe IV e seu descontentamento com as decisões tomadas pela Coroa portuguesa,
discorrendo ainda sobre o sofrimento dos moradores da cidade de Lisboa com a falta de mantimentos
e o caro preço dos alimentos.

44Qvartarelacion diaria de todo lo svcedido desde el dia 21 de Agosto, hasta 14 de Septiembre deste año de
1662 al exercito de su Magestad en la Conquista del Reyno de Portugal por la parte de Galicia, assistido, y gou-
ernado por el Illustrissimo Señor Pedro Carrillo, Arçobispo de Santiago, Capitan General de Dicha Conquista;
y señor D. Baltasar Pantoja, Maestre de Campo General, y el Excelentissimo Señor Marques de Penalva, Capi-
tan General de la Caualleria.Impressor: Joseph Fernandes de Buendía, 1662.“porque desejam se ver livres das
opressões, tiranias e tributos que padecem” (tradução nossa).
45Sexta relacion verdadera de los felices sucessos, y vitorias que han tenido las Armas de la MagestadCatolica
del Rey nuestro Señor Don Felipe Quarto (que Dios guarde) governadas, y assistidas por el Ilustrissimo señor
D. Pedro Carrillo de Acuña, Arçobispo de Santiago: y el Excelentissimo señor Don Baltasar Pantoja, Maestre
de Campo General de aquel Exercito: y el Excelentissimo señor Marques de Penalva, Capitan general de la
Caualleria, desde 24 de agosto, hasta 25 de setiembre, que se rindió la Plaça de Moreyra. Impressor: Domingo
García Morrás, 1662. Como podemos ver nas últimas relações citadas neste trabalho, papéis “seriados” de notí-
cias também foram impressos na cidade de Madrid. Esta sequência conta com seis relações diárias, enumeradas
em seus títulos e impressas em diferentes oficinas.
46Copia de carta escrita de vn cortesano de Lisboa a vn ciudadano de Cadiz, en que le dáquenta de algunas co-
sas que allá pasan, traducida de Portugues en Castellano. Impressor: Francisco Nieto, 1662. f.2-2v. “o que mais
deixa este reino triste é ver que em Castela, por todas as partes, se previnem grandes e numerosos exércitos para
esta primavera, e aqui não há oposição, nem é possível juntar um tostão nem um homem” (tradução nossa).
47 Sobre o acordo entre Portugal e Inglaterra e o dote do casamento ver: VALLADARES, Rafael. A indepen-
dência de Portugal. Guerra e Restauração (1640-1680). Trad. Pedro Cardim. Esfera dos Livros: Lisboa, 2006.
Especialmente a terceira parte e o capítulo “A perda de Portugal”, que trata do “triunfo britânico” representado
pelo acordo que beneficiava sobremaneira a Inglaterra, mas atendia à necessidade imediata de Portugal: apoio
militar e diplomático.
48Copia de carta escrita de vncortesano de Lisboa a vnciudadano de Cadiz,.., f. 2. “atribuem todos estesmau
sucessosa haver feito casamento com a Inglaterra e terem lhe dado Tânger, para ultrajar e profanar a fé católica”
(tradução nossa).
49Idem. “temos mais afeição a Castela que a Portugal, uns por amor, outros porque estão fartos da guerra”
(tradução nossa).

704
Nestetexto tivemos o intuito de descrever como eram os papéis de notícias impressos em Lis-
boa e Madrid que tratavam da guerra da Restauração. Demonstramos em um primeiro lugar, qual foi
a frequência com que as oficinas impressoras das duas cidades se dedicaram à esta guerra, concluindo,
conforme a historiografia que trata deste tema, a predominância lisboeta sobre às notícias impressas
em Madrid. Num primeiro momento, as publicações seguiram os interesses do governo de Felipe IV
e priorizaram outras frentes de batalha, enquanto nos primeiros anos do conflito a nova Coroa por-
tuguesa imprimia como nunca, numa tentativa de conseguir aliados e se fortalecer diante do próprio
povo, e também dos demais reinos europeus: foram centenas de relações de sucessos e até um periódi-
co de notícias foi produzido. Nos últimos anos da guerra, as publicações de notícias em Madrid sobre
a guerra com Portugal tiveram grande crescimento e também foi publicada uma gazeta trazendo as
novas do continente e também das batalhas contra os portugueses. Enquanto isso em Lisboa, as rela-
ções de sucesso diminuíam, mas era publicado um novo periódico dedicado exclusivamente à guerra
contra Castela.

Por fim, nosso intuito foi demonstrar a diferença de abordagem dos papéis dos dois lados da
fronteira: enquanto as publicações madrilenas chamavam de tirano e rebelde apenas o rei e seu grupo,
tratando o restante dos portugueses como possíveis vassalos – que de fato eram, se não se aceitava a
aclamação de 1640 –, os papéis produzidos em Lisboa atacavam diretamente todos os castelhanos e
generalizavam suas características, descritos nas relações utilizadas para este trabalho como hereges
que não respeitavam os templos católicos.

Ao tratar do mesmo Cartel de Desafio que abrimos nossa apresentação, Fernando Bouza
conclui que o enfrentamento dos duelos propostos naqueles desafios teve lugar nas letras de molde.
As letras de molde de que tratamos aqui, assim, também formaram parte do campo de batalha da
guerra da Restauração, onde o lado português alcançou as maiores vitórias. Castela ficava, assim como
Quixote que abriu nossa apresentação, lamentando que “quedécon mas triste figura de lo que antes
tenía”50.

Bibliografia

ANASTACIO, Vanda. Heroicas virtudes e escritos que as publiquem. D. Quixote nos papéis da Restauração. In:
Iberoamericana. VII, 28, 2007;

BERGEL, AntonioJesúsAlías. As Relações de sucessos nas origens do jornalismo. In: Leituras. Revista da Biblio-
teca Nacional. N.os 14-15 Primavera – Outono 2004;

BOUZA, Fernando. Del Escribano a la Biblioteca. Sintesis: Madrid, 1997;

CAMENIETZKI, Carlos Ziller. SARAIVA, Daniel Magalhães Porto. SILVA, Pedro Paulo de Figueiredo. O papel
da batalha: a disputa pela vitória de Montijo na publicística do século XVII. In: TOPOI, v. 13, n. 24, 2012;
50 “fiquei com a figura mais triste do que antes tinha” (tradução nossa), numa alusão ao personagem do famoso
livro de Miguel de Cervantes.

705
COSTA, Fernando Dores. A Guerra da Restauração 1641-1668. Livros Horizonte: Lisboa, 2004;

DIAS, Eurico Gomes. Gazetas da Restauração: 1641-1648. Uma revisão das estratégias diplomático-militares
portuguesas (edição transcrita). Ministério dos Negócios Estrangeiros: Portugal, 2006;

SOUSA, Jorge Pedro. Jornalismo em Portugal no Alvorecer da Modernidade. Media XXI: Porto, 2013;

VALLADARES, Rafael. A independência de Portugal. Guerra e Restauração (1640-1680). Trad. Pedro Cardim.
Esfera dos Livros: Lisboa, 2006;

VARELA HERVIAS, Eulogio. Gazeta Nueva 1661-1663 (notas sobre la Historia del Periodismo Español en la
segunda mitad del siglo XVII). Madrid, Murcia: Oficina Tipográfica de los sucessores de Nogués, 1960.

A introdução de conceitos, estruturas textuais e gêneros da cultura escrita castelhana nos


textos alfabéticos das histórias mexicas pictoglíficas produzidas nos séculos XVI e início do
XVII
Eduardo Henrique Gorobets Martins51

Introdução

A conquista de México-Tenochtitlan iniciou um processo de modificação das organizações


econômica, social e política dos mexicas e de outros povos mesoamericanos, com a gradual imposição
do regime colonial pelos castelhanos. A coalizão formada e capitaneada por Hernán Cortéz a partir
de 1519 contou com a participação de antigos inimigos dos mexicas, como tlaxcaltecas e purépechas,
mas também agradou as cidades que estavam descontentes com as ostensivas cobranças de tributos da
tríplice-aliança, composta por Tenochtitlan, Tlacopan e Texcoco52. Após a conquista indígena-caste-
lhana da cidade mexica, em agosto de 1521, os castelhanos deram continuidade às conquistas e alian-
ças com outros povos mesoamericanos. México-Tenochtitlan foi reconstruída, tornando-se a capital
colonial, e os mexicas também tornaram-se aliados dos castelhanos nas negociações e nos confrontos
bélicos posteriores.

51 Mestre em História pela Universidade de São Paulo (2018) e Pesquisador Associado do Centro de Estudos
Mesoamericanos e Andinos da Universidade de São Paulo (CEMA-USP) desde 2015.
52 SANTOS, Eduardo Natalino dos. "As conquistas de México-Tenochtitlan e da Nova Espanha. Guerras e
alianças entre castelhanos, mexicas e tlaxcaltecas" in: História Unisinos. 18(2): 218-232, Maio/Agosto de 2014.
Disponível em: < http://revistas.unisinos.br/index.php/historia/article/view/htu.2014.182.02>. As alianças en-
tre as cidades, ou altepeme, remontam a tempos pré-hispânicos, sobretudo durante o período Pós-Clássico,
na região do lago Texcoco, localizado no altiplano central mexicano. A tríplice aliança, ou excan tlatoloyan,
composta por Tlacopan, Texcoco e México-Tenochtitlan surgiu apenas no século XV. LÓPEZ AUSTIN, Alfredo
& LÓPEZ LUJÁN, Leonardo. El pasado indígena. México: FCE, COLMEX e FHA, 2001 (2ª ed.), pp. 194-218.

706
Assim, durante e após a conquista, as elites nahuas do centro do México53 e seus descenden-
tes tiveram que se reposicionar politicamente diante do novo contexto social. Por um lado, as elites
procuravam manter seus cargos na hierarquia político-tributária pré-hispânica, intermediando as re-
lações entre castelhanos e povos subordinados pelas cidades que atuavam como cabeceiras políticas,
por exemplo. Por outro lado, tais elites se convertiam ao cristianismo e reconheciam a autoridade dos
castelhanos frente aos indígenas. Dessa maneira, as elites nahuas atuaram ativamente na construção
do regime colonial54, mantendo a organização político-tributária indígena ao mesmo tempo em que
auxiliavam na implementação de instituições trazidas pelos castelhanos, como é o caso da Igreja Ca-
tólica.

O reposicionamento político das elites indígenas também implicou na reelaboração das expli-
cações históricas sobre acontecimentos distantes e próximos temporalmente do presente colonial. Ao
reescrever as narrativas do passado, os nahuas, e especialmente os mexicas, repensaram os conteúdos
e as estruturas de suas histórias, uma vez que essas histórias deveriam ser legítimas tanto do ponto de
vista nativo já cristianizado, quanto pelos seus novos destinatários, isto é, as autoridades e os missio-
nários castelhanos.

Entre os descendentes de México-Tenochtitlan, a tarefa de reescrita das narrativas passadas


manteve, em parte, aspectos das tradições históricas e de registro convencionadas entre os povos
nahuas e mixtecos pré-hispânicos. Ao mesmo tempo, textos alfabéticos em nahuatl ou em castelhano,
por meio de traduções, foram adicionados nestas narrativas a partir da transcrição de relatos orais de
informantes indígenas. Ademais, o contato dos mexicas com missionários, autoridades castelhanas,
seus livros e suas ideias resultaram na introdução de elementos provenientes da cultura escrita caste-
lhana nas histórias.

Dessa maneira, o objetivo desse texto é analisar a introdução de conceitos, estruturas textuais
e gêneros provenientes da cultura escrita castelhana nos textos alfabéticos das narrativas mexicas pro-
duzidas nos séculos XVI e início do XVII, presentes de forma amostral nos códices Mendoza, Telle-
riano-Remensis, Aubin e Manuscrito 40.

Para isso, este texto está dividido em quatro partes. A primeira delas apresenta características
gerais dos códices mexicas coloniais, tais como os gêneros de livros produzidos em tempos pré-hispâ-
nicos e após a conquista, a utilização da escrita pictoglífica e a introdução da escrita alfabética, quais
eram os autores e destinatários dos manuscritos e, por fim, algumas informações específicas sobre
os códices Mendoza, Telleriano-Remensis, Aubin e Manuscrito 40, cujas textos alfabéticos históricos
serão analisadas neste texto.

A segunda parte do texto trata das análises dos conceitos castelhanos que foram introduzidos
nas histórias mexicas e que remetem a uma série de categorias específicas de uso corrente nas histórias
e, de maneira mais ampla, na cultura escrita castelhana, ou a palavras que os castelhanos utilizaram
53 Povos do altiplano central mexicano que falavam a língua nahuatl, dentre os quais estão os mexicas.
54 NAVARRETE LINARES, Federico. “La conquista europea y el régimen colonial”. In: MANZANILLA, Linda
& LÓPEZ LUJÁN, Leonardo (coord.). Historia antigua de México. V. III. 2a. ed. México: INAH & IIA–UNAM
& Miguel Ángel Porrúa, 2001, pp. 371-399.

707
para dar conta das realidades indígenas, por meio de analogias. Foram identificados conceitos relacio-
nados a diversas categorias: o mundo cristão e, mais especificamente, o calendário cristão; os lugares
exteriores à Mesoamérica; as instituições políticas castelhanas presentes na Europa ou implantadas na
América; e as instituições políticas e religiosas indígenas.

A terceira parte é dedicada à análise das estruturas textuais introduzidas no início dos códices
Mendoza e Aubin, que funcionam como notas preliminares às narrativas históricas. Tais notas apre-
sentam explicações sobre o funcionamento do xiuhmolpilli, ciclo calendário utilizado pelos mexicas
desde tempos pré-hispânicos e representado nas narrativas coloniais e foram incorporadas às histórias
para dar conta do novo público castelhano, que desconhecia o calendário indígena e suas representa-
ções nas histórias, ou do próprio público indígena, que já se distanciava das tradições pré-hispânicas.

A quarta parte é uma breve análise sobre a introdução de um gênero castelhano, mais especifi-
camente a crônica da guerra, na composição da seção histórica do códice Mendoza. As análises mos-
trarão que esse gênero, presente em narrativas históricas castelhanas produzidas na Europa na mesma
época, foi composto e alternado ao xiuhamatl, que era o gênero utilizado pelos mexicas desde tempos
pré-hispânicos para a confecção de suas narrativas históricas.

Por fim, são apresentadas as conclusões do texto, nas quais destaco que a introdução de con-
ceitos, estruturas textuais e gêneros da cultura escrita castelhana transformou a escrita das histórias
mexicas pictoglíficas produzidas nos séculos XVI e início do XVII, assim como refletia mudanças
ocorridas na própria sociedade colonial ao longo de quase um século após a conquista castelhana.

Os códices coloniais mexicas e seus antecedentes

Em tempos pré-hispânicos, os mexicas provavelmente produziram uma série de manuscritos


de diversos gêneros. Contudo, nenhum códice55 pré-hispânico mexica sobreviveu às décadas seguin-
tes após a conquista, pois as primeiras tentativas de evangelização empreendidas por conquistadores e
missionários buscaram eliminar os manuscritos que tratavam, entre outras coisas, do que era chama-
do por eles de idolatria, ou seja, do culto às deidades pré-hispânicas. Além disso, muitos manuscritos
foram destruídos ou escondidos pelos próprios mexicas e outros povos que os haviam confeccionado
e, posteriormente, substituídos por outros mais adequados às novas circunstâncias do regime colo-
nial56.

55 O termo códice é empregado com grande frequência desde o século XIX por arqueólogos, historiadores e
outros estudiosos de forma genérica aos manuscritos mesoamericanos de origem indígena, pré-hispânicos e
coloniais. Esse nome foi utilizado primeiramente por missionários e cronistas do século XVI, que descreviam
os manuscritos pré-hispânicos por meio da associação aos codex medievais. Mais recentemente, diversos au-
tores tem relativizado o termo, uma vez que os códices são geralmente entendidos como livros – categoria que
não contempla adequadamente a diversidade de tipos, formatos, suportes e usos que tais manuscritos mesoa-
mericanos teriam, tanto no período pré-hispânicos, quanto no período colonial. DÍAZ ÁLVAREZ, Ana. Las
formas del tiempo. Tradiciones cosmográficas en los documentos calendáricos indígenas del México Central.
Tese. (Doutorado em História). México: FFyL-UNAM, 2011.
56 NAVARRETE LINARES, Federico. “Los libros quemados y los nuevos libros. Paradojas de la autenticidad en
la tradición mesoamericana”, in: DALLAL, Alberto (ed.). La abolición del arte. XXI Coloquio Internacional de
Historia del Arte. México: UNAM, IIE, 1998, p. 53-71.

708
Apesar de não existir nenhum códice pré-hispânico mexica, povos das regiões da Mixteca e
de Puebla produziram manuscritos que teriam relações de parentesco com as tradições históricas dos
nahuas, e, portanto, dos mexicas, por conta da utilização de semelhantes sistema de registro, traços,
cores e formas representadas57. Além disso, há descrições de indígenas e relatos tomados por mis-
sionários que ajudam a entender como eram os códices pré-hispânicos e quais foram as mudanças
introduzidas nos manuscritos coloniais.

Em tempos pré-hispânicos, os nahuas produziram manuscritos de diversos gêneros, entre os


quais podem ser destacados os que tratavam de terras, tributos, linhagens, destinos e de relatos relacio-
nados à deidades e a grupos humanos – estes últimos se aproximam do que conhecemos como cosmo-
logias e histórias58. Esses códices utilizavam o sistema de escrita pictoglífico, cujo registro combinava
representações pictóricas ou figurativas com glifos calendários, numéricos, toponímicos, antroponí-
micos e fonéticos, dando origem a registros com organização e lógicas próprias59. Tais manuscritos
eram produzidos por escribas e sábios60 que trabalhavam nos palácios e escolas ligados diretamente às
elites das cidades e, por isso, seus destinatários eram essa própria elite e os governantes, que utilizavam
os códices para fins administrativos e políticos, além de performances ritualizadas, nas quais eram
combinadas a leitura e mostra pública dos manuscritos61.

Já durante o período colonial, alguns dos gêneros pré-hispânicos mencionados acima, ou par-
tes deles, foram agrupados em um único códice, conforme os interesses de seus produtores; ao mesmo
tempo, outros gêneros, de proveniência europeia, foram introduzidos na cultura escrita nahua, origi-
nando novos tipos de manuscritos.

Quanto à escrita dos manuscritos coloniais, houve a manutenção do sistema pictoglífico, ao


mesmo tempo que o alfabeto foi introduzido. A representação pictoglífica de datas, lugares e persona-
57 ROBERTSON, Donald. Mexican manuscript painting of the early colonial period. New Haven: Yale Univer-
sity Press, 1959, pp. 9-11. ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Los códices mesoamericanos antes y después de
la conquista española. Historia de un lenguaje pictográfico. FCE: México, 2010, pp. 61-101.
58 Os gêneros mencionados são, em nahuatl: o tlalamatl ou livro de terras ou mapas; o tequiamatl ou livro
dos tributos; o tlacamecayoamatl ou livro de linhagens; o tonalamatl ou livro da conta dos dias e do destino;
o teoamatl ou livro divino; e, por fim, o xiuhamatl ou livro da conta dos anos, que registravam as narrativas
históricas. Havia ainda outros tipos de livros, dos quais há referências, embora não tenha sobrevivido nenhum
exemplar, como o cuicamatl (livro dos cantares) e o temicamatl (livro dos sonhos). SANTOS, Eduardo Natali-
no dos. Tempo, Espaço e Passado na Mesoamérica: o calendário, a cosmografia e a cosmogonia nos códices e
textos nahuas. São Paulo: Alameda, 2009, pp. 79-80.
59 Baseando-se no conceito empregado por Miguel León-Portilla, Eduardo Natalino dos Santos e outros pes-
quisadores brasileiros têm nomeado tal sistema como pictoglífico, enfatizando, por um lado, a presença de
elementos figurativos e, por outro, os glifos fonéticos, logográficos e, sobretudo, ideográficos, que compõem
os registros. SANTOS, Eduardo Natalino dos. Tempo, Espaço e Passado..., pp. 84-105. Outros pesquisadores
preferem o termo tlacuilolli, como Karl Anton Nowotny e Gordon Brotherston. Também deve ser destacada a
oralidade, essencial para o registro e leitura desse sistema que era composto, predominantemente, por signos
que não estavam atrelados a uma língua específica. BROTHERSTON, Gordon. “Traduzindo a linguagem vi-
sível da escrita” in: Literatura E Sociedade, 4 (4). São Paulo: USP, 1999. Disponível em: < https://www.revistas.
usp.br/ls/article/view/18018>. 
60 Em nahuatl, tlacuiloque (escribas ou escribas-pintores) e tlamatinime (sábios).
61 SANTOS, Eduardo Natalino dos. Tempo, Espaço e Passado..., pp. 84-105. MARTÍNEZ MARÍN, Carlos. “El
registro de la historia”. In: ROMERO GALVÁN, José Ruben (coord.). Historiografía mexicana: historiografía
novohispana de tradición indígena. México: UNAM, 2011, p. 39.

709
gens ocorreu com supressão de algumas características nos manuscritos62, ao mesmo tempo em que
foram incorporadas a perspectiva e traços fenotípicos europeus nas formas humanas63. Já a escrita
alfabética foi introduzida nos códices coloniais por meio de textos em castelhano, italiano e nahuatl64.
O surgimento de textos alfabéticos foi, possivelmente, a maior modificação que os códices nahuas
sofreram65, uma vez que eles foram vetores para a introdução de conceitos, estruturas textuais e, até
mesmo, gêneros da cultura escrita castelhana, que são os objetos das análises deste texto.

Dando continuidade às características gerais dos códices coloniais, deve ser destacada sua pro-
dução conjunta entre membros e descendentes das elites das cidades do centro do México e informan-
tes indígenas, bem como missionários e funcionários castelhanos. Os interesses desses grupos eram
diversos e as relações entabuladas entre eles nem sempre foram horizontais. Assim, cada manuscrito
se relacionava tanto aos objetivos específicos de seus autores, quanto a quem eram seus destinatários,
que poderiam ser: a própria comunidade, que poderia registrar e guardar as informações para uso
interno; as autoridades castelhanas locais, ante quem, por esse meio, as elites buscavam o apoio em
petições com diversos objetivos, tal como a obtenção de cargos e a possessão de terras; e as autoridades
castelhanas da península ibérica e, até mesmo, o próprio rei66.

Além disso, muitos descendentes das elites indígenas do Vale do México foram educados por
missionários franciscanos na escola de San José de los Naturales, fundada no fim da década de 1520,
ou no colégio de Santa Cruz de Tlatelolco, fundado em 1536. Ambas as instituições escolares tinham
bibliotecas com centenas de títulos tratando de vários assuntos, entre os quais estavam as histórias
europeias67. Assim, pode-se assumir que o ambiente no qual as histórias mexicas coloniais foram
produzidas contava com indígenas que tiveram acesso a livros europeus desde cedo ou, pelo menos,
desde a década de 1530.

Esse rápido contato com livros europeus somado aos processos de catequização e de reorga-
nização político-econômica fez com que os indígenas do Vale do México e, mais especificamente os
mexicas, incorporassem em suas histórias uma série de novidades do mundo hispânico e da nova rea-
62 Em minha dissertação de mestrado aponto uma série de continuidades e transformações das representa-
ções do calendário e dos lugares nos códices mexicas. Dentre as continuidades, destacam-se a manutenção das
representações do sistema calendário indígena, assim como a centralidade da representação de alguns lugares
enquanto parte de marcos históricos. Já as transformações podem ser exemplificadas pela perda de qualidades e
atributos não numéricos da conta do tempo, tais como seu caráter precioso e a vida ou animação dos signos dos
anos. MARTINS, Eduardo Henrique Gorobets. As histórias mexicas coloniais: concepções de tempo e espaço
(1530-1608). Dissertação de Mestrado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2018, pp. 187-192. Disponível
em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-23072018-173906/pt-br.php>.
63 VALLE, Perla. “Códices coloniales” in: Arqueología Mexicana: Códices Prehispánicos. N. 23. México: Edito-
rial Raíces, Janeiro-Fevereiro de 1997, pp. 64-65.
64 A língua nahuatl, assim como outras línguas ameríndias, foi transcrita para o alfabeto latino, ao longo dos
séculos XVI e XVII, por missionários e indígenas, com o objetivo de facilitar o processo de conversão ao cris-
tianismo e a catequização. ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. cit, pp. 135-151. LEÓN PORTILLA, Miguel.
Códices, pp. 101-107.
65 PASTRANA FLORES, Miguel. “Códices anotados de tradición náhuatl”. In: ROMERO GALVÁN, José R.
(coord.). Historiografía mexicana: historiografía novohispana de tradición indígena. México: UNAM, 2011.
66 PASTRANA FLORES, Miguel. “Códices anotados de tradición náhuatl”, p. 55.
67 MATHES, W. Michael. The America's First Academic Library Santa Cruz de Tlatelolco. Sacramento: Cali-
fornia State Library Foundation, 1985.

710
lidade que viviam. Em outras palavras, as narrativas mexicas passaram a registrar o calendário cristão,
lugares exteriores ao mundo mesoamericano, eventos ocorridos na Europa, termos cristãos e institui-
ções castelhanas coloniais implantadas na América. Pode-se dizer, portanto, que as historias mexicas
coloniais seguiram estruturas narrativas baseadas em manuscritos pré-hispânicos, mas passaram a
incorporar elementos cristãos ou hispânicos. Assim, tais histórias seriam aceitas na realidade do novo
regime tanto pelos castelhanos, que se tornaram novos destinatários, como pelos próprios indígenas,
que já tinham se convertido ao cristianismo.

Em suma, após a conquista castelhana, a estrutura social na qual os nahuas estavam inseridos
foi irreversivelmente alterada, pois eles passaram a viver sob certas exigências das novas autoridades
castelhanas, o que incluía, por exemplo, se converter ao cristianismo e ser bilíngüe, isto é, falar cas-
telhano e a língua nativa68. A nova realidade implicou em um reposicionamento político das elites
mexicas e de outros povos nahuas, que teve como consequência a continuidade da produção de ma-
nuscritos e, sobretudo, das narrativas sobre seu passado distante e recente. Os indígenas passaram a
reelaborar suas histórias, mantendo o propósito de contar os eventos passados de sua cidade, incor-
porando, ainda, acontecimentos recentes, tais como a conquista e a implementação das instituições
castelhanas e cristãs.

Dentre as novas histórias produzidas pelos nahuas no primeiro século após a conquista, podem
ser destacadas nove narrativas sobre os mexicas, que estão contidas em códices predominantemente
pictoglíficos: Boturini, Mendoza, Azcatitlan, Telleriano-Remensis, Vaticano A, Aubin, Manuscrito 40,
Manuscrito 85 e Mexicanus69. Tais histórias apresentam soluções ímpares quanto ao formato, registro
das escritas pictoglífica e alfabética, contexto de produção, autores e destinatários, ao mesmo tempo
em que poderiam ser agrupadas em torno dos agentes, os mexicas, e por terem sido produzidas em
um período específico, o colonial70.

Para as análises propostas neste texto, foram selecionadas as histórias contidas nos códices,
Mendoza, Telleriano-Remensis, Aubin e Manuscrito 40, que contém abundantes textos alfabéticos em
nahuatl ou castelhano71, nos quais é possível analisar a introdução de elementos da cultura escrita cas-

68 ROBERTSON, Donald. Op. cit., pp. 38-40.


69 Como mencionado anteriormente, alguns desses códices possuem outras seções que não são narrativas his-
tóricas, como é o caso do Mendoza, Telleriano-Remensis, Vaticano A e Mexicanus.
70 Em outra oportunidade, tratei das características gerais desses nove códices, com o objetivo de sugerir gru-
pos a partir de características fundamentais, como o formato e a datação do manuscrito, seus prováveis des-
tinatários, a presença de outras seções no manuscrito – para além da narrativa histórica – e o tipo de escrita
utilizado. Essa proposta foi apresentada no XXIX Simpósio Nacional de História em 2017, sob o título “Pro-
dução, usos e transformações das histórias coloniais mexicas (séculos XVI e início do XVII)” e está disponível
em: <http://www.snh2017.anpuh.org/resources/anais/54/1506011583_ARQUIVO_EduardoHenriqueGorobe-
tsMartins-Producao,usosetransformacoesdashistoriascoloniaismexicas.pdf>. Posteriormente, o texto mencio-
nado serviu de base para o primeiro capítulo da minha dissertação de mestrado, intitulada As histórias mexicas
coloniais: concepções de tempo e espaço (1530-1608). Op. cit.
71 Segundo Miguel León-Portilla, os textos alfabéticos são leituras parciais das representações pictoglíficas; já
Silvia Limón e Miguel Pastrana veem os longos textos como transcrições dos textos pictoglíficos. LEÓN POR-
TILLA, Miguel. Códices, pp. 134. LIMÓN OLVERA, Silvia; PASTRANA FLORES, Miguel. “Códices transcritos
com pictografias”. In: ROMERO GALVÁN, José Ruben (coord.). Historiografía mexicana: historiografía no-
vohispana de tradición indígena. México: UNAM, 2011, 115-132.

711
telhana72. Além disso, esses códices são amostras de manuscritos que, embora tenham contado com a
participação ou mando de missionários e autoridades castelhanas, foram produzidos essencialmente
por mexicas cristianizados ao longo dos séculos XVI e início do XVII.

Antes de iniciar as análises, é preciso apresentar algumas características de produção desses


quatro códices, bem como seus autores, destinatários e o conteúdo de suas narrativas.

O Códice Mendoza foi produzido provavelmente pelos indígenas Francisco Gualpuyagualcal


e Juan González da Catedral de México73, em 1541, a pedido do vice-rei Antonio de Mendoza. O
manuscrito deveria ser enviado ao imperador Carlos V, porém foi roubado no meio da viagem por
corsários franceses74. O códice Mendoza está dividido em três seções, sendo que a primeira delas é
uma narrativa histórica75, que trata das conquistas realizadas pelos mexicas desde a fundação de Mé-
xico-Tenochtitlan, em 1325, até a conquista castelhana, ocorrida em 1521. Essa narrativa é estruturada
pela alternância de páginas com glifos glosados em castelhano ou nahuatl, e páginas com longos textos
em castelhano.

Já o códice Telleriano-Remensis foi produzido em 1563 e possui duas outras seções além da
narrativa histórica que será analisada76. Esse manuscrito trata de um grande lapso de tempo da história
mexica, que é iniciado por sua migração, seguida pela fundação de México-Tenochtitlan e subsequen-
tes acontecimentos, tais como a sucessão de seus governantes, chegando até a conquista castelhana e,
por fim, aos eventos do período colonial até o ano de 1562. Seus fólios mesclam textos pictoglíficos
com textos alfabéticos em castelhano.

O Manuscrito 40, por sua vez, deve ter sido confeccionado entre 1573 e 1596 por mexicas cuja
autoria é desconhecida77. Este manuscrito trata aproximadamente do mesmo lapso de tempo da histó-
ria mexica presente no Telleriano, embora a migração mexica tenha como ponto de partida a cidade
de Aztlan e a narrativa dos eventos do período colonial ocorra até o ano de 1573. Seus fólios mesclam
textos pictoglíficos e textos alfabéticos em nahuatl.

Por fim, o códice Aubin é uma narrativa histórica produzida também por mexicas de autoria
72 A escolha desses manuscritos em detrimento dos outros ocorreu porque as histórias contidas nos códices
Boturini, Azcatitlan e Vaticano A apresentam pouquíssimas glosas em texto alfabético. Uma ressalva deve ser
feita ao Vaticano A, pois, segundo Ana Guadalupe Díaz Álvarez, este manuscrito foi um projeto que tinha
a intenção de explicar o funcionamento de certos aspectos da realidade indígena aos europeus e, por isso
se aproximaria de alguns elementos da cultura escrita europeia de modelo renascentista. DÍAZ ÁLVAREZ,
Ana Guadalupe. “La primera lámina del códice Vaticano A. ¿Un modelo para justificar la topografía celestial
de la antigüedad pagana indígena?” Anales del Instituto de Investigaciones Estéticas, v. XXXI, n. 95. México:
UNAM-IIE, 2009, pp. 39-43. Por fim, o códice Mexicanus e o Manuscrito 85 apresentam poucos textos alfabé-
ticos e, no caso do segundo, trata-se de um fragmento de uma narrativa histórica.
73 Trata-se de uma proposição de Federico Gómez de Orozco, apoiada e investigada por outros pesquisadores.
ROBERTSON, Donald. Op. cit., pp. 95-96.
74 ALCINA FRANCH, José. Códices Mexicanos. Madrid: Editorial MAPFRE, 1992, p. 108.
75 BERDAN, Frances F. & ANAWALT, Patricia Rielf (ed.). The Essential Codex Mendoza. Los Angeles: Univer-
sity of California Press, 1997, pp. XI-XIII.
76 KEBER, Eloise Quiñones. Codex Telleriano-Remensis: ritual, divination and history in a pictorial Aztec
manuscript. Austin e Hong Kong: UTP, 1995.
77 MEDINA GONZÁLEZ, Xóchitl. Histoire mexicaine depuis 1221 jusqu’en 1594. Manuscrito núm. 40 del
Fondo de Manuscritos Mexicanos, Biblioteca de Francia. México: INAH, 1998, pp. 13-35.

712
desconhecida, que data de 1608, embora sua elaboração tenha se iniciado em 1576. Este manuscrito
abarca praticamente os mesmos conteúdos e o mesmo lapso temporal do Manuscrito 40, exceto pela
continuidade da narrativa colonial até o ano de 1608 78. Os fólios desse manuscrito também mesclam
textos pictoglíficos e textos alfabéticos em nahuatl79.

Em suma, as informações acima mostram que os três códices pictoglíficos mexicas apresen-
tam histórias minimamente comuns e compostas por textos alfabéticos em que potenciais conceitos,
estruturas textuais e gêneros da cultura escrita castelhana podem ser identificados e analisados como
elementos que transformaram a escrita das histórias mexicas ao longo dos séculos XVI e início do
XVII.

Conceitos castelhanos nos textos alfabéticos das histórias mexicas

Dentre os elementos da cultura castelhana que foram introduzidos nas histórias mexicas colo-
niais, os conceitos castelhanos podem ser considerados as unidades mínimas. Isso porque os conceitos
castelhanos podem ser definidos, a princípio, como palavras escritas por meio do alfabeto latino na
língua espanhola. Contudo, tais palavras remetem, ainda, a uma série de categorias específicas de uso
corrente nas histórias ou na cultura escrita castelhana da mesma época em que as histórias mexicas
pictoglíficas são confeccionadas, entre os séculos XVI e XVII. Assim, os conceitos remetem-se a pa-
lavras recém-criadas ou recém-incorporadas à língua castelhana, como é o caso de Nueva España80,
canoas ou caçiques81.

Nas histórias mexicas pictoglíficas, os conceitos castelhanos são geralmente mais perceptíveis
nos textos em nahuatl, ainda que apresentem frequentemente a adição de partículas da língua nahua.
Na maioria dos casos, essas partículas são sufixos que indicam o plural de substantivos, como é o caso
de -me ou -tin/-ti82. Já nas histórias cujos textos alfabéticos estão em castelhano, sobressaem-se os
conceitos utilizados por analogia, isto é, palavras da língua castelhana que são empregadas para desig-
nar ou explicar instituições políticas e religiosas indígenas, por exemplo.

Dessa maneira, com base nas análises realizadas, os conceitos castelhanos encontrados nas
histórias mexicas pictoglíficas foram agrupados em cinco categorias: A) calendário cristão, B) outros
conceitos cristãos, C) lugares exteriores à Mesoamérica, D) instituições políticas castelhanas, E) ins-

78 ALCINA FRANCH. Op. cit., pp. 115-116.


79 Diversos estudiosos apontam vínculos formais e literários entre o Manuscrito 40 e o códice Aubin, além
de aproximações aos códices Boturini, Manuscrito 85 e Manuscrito 217. MEDINA GONZÁLEZ, Xóchitl. Op.
cit., pp. 17-27. HERNÁNDEZ ANDÓN, Elia Rocío. Manuscrito 40 - Historia Mexicana desde 1221 hasta 1594.
In: Proyecto Amoxcalli – CIESAS/CONACyT, 2000-2010. Disponível em: <http://amoxcalli.org.mx/>. KUTS-
CHER, Gerdt; LEHMANN, Walter; VOLLMER, Günter. Geschichte der azteken. Codex Aubin und verwandte
Dokumente. Berlin: Gebr. Mann Verlag, 1981.
80 Nueva España é citada apenas duas vezes no códice Mendoza e outras seis no códice Telleriano-Remensis.
81 As duas palavras são originárias dos tainos, indígenas do Caribe. A palavra canoa designava um tipo especí-
fico de embarcação e a palavra cacique denominava os chefes políticos. Ambas as palavras foram rapidamente
incorporadas pela língua castelhana e são mencionadas no códice Mendoza. ROUSE, Irving. The Tainos: Rise
and Decline of the People Who Greeted Columbus. New Haven: Yale University Press, 1992.
82 SULLIVAN, Thelma D. Compendio de la gramática náhuatl. Prefácio Miguel León Portilla. 2ª ed. México:
IIH – UNAM, 1998 (Serie Cultura Náhuatl – Monografias, 18).

713
tituições políticas e religiosas indígenas. Evidentemente essas categorias não dão conta da totalidade
dos conceitos castelhanos presentes nas narrativas e, por isso, outras categorias são mencionadas ao
final desta parte.

O calendário cristão é a primeira das categorias de conceitos castelhanos introduzidos nas


histórias, uma vez que apresenta abundância de referências nas narrativas cujos textos alfabéticos
foram escritos em nahuatl. Se nas histórias escritas em castelhano há apenas dez (Mendoza) ou vinte
(Telleriano-Remensis) referências por extenso ao calendário cristão, no códice Aubin, cujos textos
alfabéticos foram escritos nahuatl, há mais de 150 referências83. Nos textos nahuas do Aubin, as datas
cristãs em castelhano são geralmente escritas ao lado ou abaixo da representação pictoglífica dos anos
indígenas e podem ser compostas das seguintes maneiras: 1) dia da semana, 2) dia e mês, 3) dia da
semana, dia e mês, 4) dia, mês e ano, 5) dia da semana, dia, mês e ano. Além disso, algumas datas cris-
tãs do códice Aubin apresentam a partícula nahua yc antes de alguns números, designando números
ordinais, e também o sufixo -tica nos dias de semana, que era utilizado para a designação de dias em
nahuatl e teria tradução aproximada a “durante” ou “no dia de”84.

Alguns exemplos de datas cristãs no códice Aubin são: “viernes” (fl. 109), “xi deziembre” (fl.
101), “martes yc ix dias del mes de março” (fl. 104), “a xxvii dias del mes de setiêbre de 1576 ãs” (fl. 1)
e “martes a 1 dias del mes de augusto de 1589 años” (fl. 130). Além das cinco maneiras encontradas no
Aubin, o códice Telleriano-Remensis apresenta duas raras referências compostas também pelo horá-
rio do dia: “domingo a xxv de junio a las onze del dia” e “al 14 de otubre a las 7 de la noche” (ambas as
menções no fl. 50r).

O mundo cristão não está presente nos textos alfabéticos das histórias mexicas apenas por
meio do calendário. Outros conceitos cristãos estão presentes e foram agrupados em uma segunda ca-
tegoria, a começar pelo próprio adjetivo que designava as pessoas dessa religião, que é citado por meio
de xpoanos (fl. 38v), xpotianos (fl. 42r) ou cristianos (fls. 41r e 44r) no códice Telleriano-Remensis.
Nas histórias cujos textos foram escritos em nahuatl, o adjetivo cristão conta, ainda, com a adição de
um dos sufixos de plural da língua nahua (-me): christianome (Manuscrito 40, fl. 19v) ou xpianome
(Aubin, 5 citações).

Os outros conceitos cristãos denominavam os cargos da Igreja, as ordens religiosas e as pala-


vras ligadas aos ritos ou às edificações cristãs. Os cargos mais citados nos códices Telleriano-Remen-
sis, Aubin e Manuscrito 40 são obispo (14 citações, sendo a maioria no Telleriano), fray (13 menções,
sendo a maioria no Aubin) e arzobispo (12 citações, sendo a maioria no Aubin). Já as ordens religiosas,
citadas mais raramente, estão assinaladas por meio dos teatinos: tianinos (Manuscrito 40, fl. 19v) ou
“grericos de aquinos” (Aubin, fl. 113). Outras palavras ligadas ao mundo cristão estão presentes no

83 As referências foram selecionadas por meio da presença de palavras indicando o calendário por extenso.
Dessa maneira, datas que utilizam apenas algarismos arábicos ou romanos em forma de correlação com as
representações do calendário indígena, como ocorre em outras histórias mexicas, não foram contabilizadas.
84 Thelma D. Sullivan define essa partícula como a posposição instrumental –ca unida à ligadura –ti. SULLI-
VAN, Thelma D. Compendio de la gramática náhuatl, pp. 146-148. Rémi Simeón também aponta para um
significado semelhante. SIMEÓN, Rémi. Diccionario de la lengua náhuatl o mexicana. México: Siglo XXI, 1986,
p. 53.

714
códice Aubin, como ou isacristan (sacristia, 3 citações), yglesia (6 citações), capilla (3 citações) e missa
(6 citações).

A terceira categoria é composta pelos lugares exteriores à Mesoamérica, isto é, lugares não
indígenas, que faziam parte do mundo hispânico ou europeu. Esses lugares exteriores se relacionam
com personagens ou, até mesmo, objetos não indígenas na história dos mexicas e, portanto, demons-
tram tentativas de aproximação ao novo mundo no qual México-Tenochtitlan fora inserida após a
conquista castelhana e, ainda, à outras formas de conceber o espaço, uma vez que esses lugares que
não faziam parte das concepções pré-hispânicas85. Lugares como Castela, Peru, Lima, China, Flórida e
Roma são citados nos textos em nahuatl no Manuscrito 40 e no códice Aubin, bem como no texto em
castelhano do códice Telleriano-Remensis. Peru é citado nas três histórias, com um total de 5 men-
ções; no Manuscrito 40 e Aubin são mencionadas Castela (8 ocasiões, no total) e China (4 citações,
no total); e Flórida é citada no Aubin e no Telleriano com um total de 3 menções. Por fim, Roma é
mencionada apenas no Aubin (fl. 120) e Lima é citada no apenas no Telleriano (fls. 49v e 50r).

As referências a instituições políticas castelhanas compõem a quarta categoria de conceitos


analisados nas histórias. Embora algumas palavras sejam citadas nos manuscritos escritos em cas-
telhano, é nos textos em nahuatl do Manuscrito 40 e do códice Aubin que se encontram palavras
como emperador (total de 4 menções), visorrey (30 citações, sendo 26 no Aubin), visitador (total de
4 menções) e rey (apenas no Aubin, fls. 122 e 134). Apresentando diversas grafias, há referências aos
alcaides no plural do nahuatl por meio de alldes, alldeme ou alcaldesme (11 citações, no total, sendo
9 no Aubin); já os juízes, tanto no singular, quanto no plural, são citados por meio de juetzin, juestin
ou juetzi (apenas no Aubin, 16 menções).

A quinta categoria de conceitos castelhanos é formada pelas referências às instituições políti-


cas e religiosas indígenas, que estão presentes principalmente nos códices Mendoza e Telleriano-Re-
mensis, que foram escritos em castelhano. Alguns dos principais conceitos registrados nas histórias
são republica (apenas no Mendoza), pueblo (apenas no Telleriano), señores, rey e capitan para as
instituições e cargos de governo indígenas. Para as instituições religiosas, destacam-se as menções a
Huitzilopochtli, deus patrono dos mexicas, mencionado como diablo no códice Aubin (7 citações);
as menções de yglesia para os templos indígenas no Telleriano (em 3 ocasiões); e as analogias feitas
aos muçulmanos no fólio 9v do códice Mendoza com utilização das palavras mezquita e alfaqui para
designar um templo e um sacerdote indígenas.

Por fim, há, evidentemente, outras categorias de conceitos castelhanos presentes nos textos al-
fabéticos das histórias pictoglíficas mexicas, embora estejam sua quantidade de referências sejam mais
escassas. Dentre as várias outras categorias, podem ser destacadas as menções aos tipos de dinheiro
no códice Aubin quanto ao tomin (10 ocasiões) e aos pesos (6 citações), assim como a utilização do
conceito yndios no Telleriano (7 ocasiões).

Em suma, vimos que conceitos castelhanos de diversas categorias foram incorporados aos tex-
tos das histórias mexicas. Esse processo já foi notado anteriormente por vários pesquisadores, entre
85 MARTINS, Eduardo Henrique Gorobets. As histórias mexicas coloniais..., pp. 178-180.

715
os quais estava James Lockhart, que afirma que, entre 1540-50 e 1640-50, uma série de palavras foram
emprestadas do castelhano para o nahuatl sem modificações e, aos poucos, converteram-se em parte
fundamental do vocabulário nahuatl86. Dessa maneira, as análises mostram a introdução de uma série
de palavras castelhanas referentes ao calendário e ao mundo cristão, aos lugares exteriores à Mesoa-
mérica, às instituições políticas castelhanas que se fizeram presentes por meio do regime colonial e às
instituições políticas e religiosas indígenas, designadas por analogias pelos espanhóis.

Esses conceitos não foram adicionados de forma descontextualizada nas histórias, mas, ao
contrário, refletiam uma série de mudanças que vinham ocorrendo na sociedade colonial após 1521,
como é o caso da introdução do cristianismo e do próprio regime colonial. Os conceitos castelhanos
são, portanto, um dos elementos da cultura escrita castelhana que foram introduzidos nas histórias
mexicas coloniais e que transformaram a escrita das histórias mexicas produzidas nos séculos XVI e
início do XVII.

Estruturas textuais castelhanas: a introdução das notas preliminares nos códices Mendoza e
Aubin

Um segundo elemento proveniente da cultura escrita castelhana que foi introduzido nas his-
tórias mexicas coloniais é a nota preliminar. Tal estrutura textual apresenta-se como um elemento
de maior tamanho em relação às unidades mínimas representadas pelos conceitos castelhanos vistos
anteriormente.

Como vimos anteriormente, a partir da conquista, as histórias das cidades do Vale do México
tiveram que se dirigir a um novo público, os governantes castelhanos, que demandavam outros argu-
mentos e formas de narrar a história. As novas narrativas tinham como objetivo seguir cumprindo
suas funções legitimadoras e servir como instrumentos efetivos na defesa dos direitos e privilégios
de suas entidades políticas, tais como a possessão de terras e a manutenção das elites indígenas em
cargos políticos. Ao mesmo tempo, as elites tinham que levar em consideração, na elaboração de seus
relatos, a cultura e a religião castelhanas para poder convencer os novos governantes de suas verda-
des e suas autoridades87. Assim, para dar conta do novo público castelhano ou do público indí-
gena que já se distanciava das tradições pré-hispânicas, alguns manuscritos mexicas, como os códices
Mendoza e Aubin, passaram a apresentar notas preliminares com explicações sobre o funcionamento
do xiuhmolpilli, ciclo calendário utilizado pelos mexicas desde tempos pré-hispânicos e presente nas

86 Trata-se de uma das características do que Lockhart nomeia como Etapa 2, de um conjunto de três etapas
da evolução geral dos nahuas depois da conquista. Nessa segunda etapa, os elementos castelhanos chegam a
penetrar em todos os aspectos da vida nahua, mas com limitações. Esse processo ocorreu de forma distinta do
período entre 1519 e 1540-1550, na Etapa 1, quando, segundo o autor, os textos nahuas faziam poucas inclusões
de palavras castelhanas, incluindo, ao invés disso, uma série de palavras em nahuatl que procuravam descrever
novidades de origem hispânica. Por fim, na terceira etapa, de 1640-50 até, pelo menos, 1800, os nahuas adota-
ram mais elementos castelhanos, de forma que se criou, em alguns casos, um amálgama entre as duas tradições.
LOCKHART, James. Los nahuas después de la Conquista. Historia social y cultural de los indios del México
central, del siglo XVI al XVIII. (Trad. Roberto Ramón Reyes Mazzoni; 1ª ed. em inglês, 1992). México: FCE,
1999, pp. 378-468 e 605-637.
87 NAVARRETE LINARES, Federico. Los orígenes de los pueblos indígenas del valle de México: los altépetl y
sus historias. México: UNAM, 2011, p. 83.

716
narrativas coloniais88. Dessa forma, analiso, a seguir, os textos das notas preliminares que explicam o
xiuhmolpilli nos códices Mendoza e Aubin, com o objetivo de destacar como esse ciclo é descrito e o
caráter explicativo do próprio texto.

Primeiramente irei analisar o texto da nota preliminar no códice Mendoza. Porém, antes disso,
é necessário relembrar que esse manuscrito foi produzido a mando do vice-rei Antonio de Mendoza
em 1541 para ser entregue ao imperador Carlos V, e que a seção histórica deste códice está estruturada
de forma alternada por fólios que contém textos em castelhano e por fólios com textos pictoglíficos
e glosas em castelhano. Dessa forma, o a nota preliminar procura aproximar o ciclo calendário xiuh-
molpilli ao leitor, já que esse ciclo será representado nos fólios posteriores, que contém textos predo-
minantemente pictoglíficos.

Os textos explicativos em castelhano no fólio 1v do códice Mendoza explicam quais são as


representações dos anos na história por meio da descrição dos cartuchos de anos e da maneira que se
realiza sua leitura sem, contudo, informar o nome que o ciclo tinha para os mexicas. O texto qualifica
a conta dos anos ou cuenta como uma sucessão de anos preenchidos na cor azul e também é identifica
o local do fólio no qual os anos serão representados no códice Mendoza, isto é, nas margens desta ys-
toria. O texto afirma, ainda, que o manuscrito é uma ystoria que vai tratar do número de anos de vida
que os señores de México tiveram em cada um de seus governos:
"Lo figurado de azul en los margines desta ystoria cada vna casita o partado sig-
nifica vn año y son el numero de años y bidas que tuvieron los señores de mexico
y para que abiertamente y clara se entienda lo figurado y la cuenta y nonbres de
los años es que en los puntos de casa vn apartado contavan por el punto prime-
ro numerando hasta llegar a treze puntos y de alli delante tornaban a dar principio
en su cuenta a vn punto susçesiuamente yban dicurriendo hasta llegar a los trexe
puntos avnque en los apartados y casitas estan diuersas figuras pero la principal
cuenta es la de los puntos y avnque haze poco al caso en lo que cada vn apartado
o casita los nonbres de los años que nonbravan y ponian en lo del numero del pri-
mer punto hasta que los treze puntos para que se entienda se haze aqui por si señal
y demostraçion de los nonbres con sus ynterpretaçiones para dar nota al letor."89

O texto em castelhano continua no fólio 1v, explicando a importância dos anos


em que eram realizadas a cerimônia do Fogo Novo, sem também informar seu nome em
nahuatl e sem mencionar o ano em que ela ocorria entre os mexicas – que era 2 acatl (junco):

88 O xiuhmolpilli era um ciclo de 52 anos formado por unidades de ano sazonal de 365 dias, chamado xihuitl,
cuja composição ocorria por meio de signos e numerais. Ao final de cada ciclo de 52 anos, ocorria a chamada
cerimônia do Fogo Novo, cujo objetivo era evitar os cataclismos que levariam ao término da idade atual, que
era, segundo os mexicas e outros povos do Vale do México, regida por esses ciclos de 52 anos. SANTOS, Eduar-
do N. dos. Tempo, Espaço e Passado..., p. 136-138.
89 "Cada compartimento ou divisão que está em azul nas margens desta história significa um ano e elas se
referem ao número de anos do governo dos senhores de México-Tenochtitlan. Para entender os desenhos, a
conta e os nomes dos anos: [eles] contavam do primeiro ponto até chegar a treze pontos e depois retomavam
sua conta ao primeiro ponto. Ainda que nos compartimentos existam diversas figuras, a principal conta é a dos
pontos, e os nomes que colocavam do primeiro até os treze pontos não importa. Para que se entenda e para dar
nota ao leitor, os nomes e suas interpretações estão mostrados aqui." Tradução minha ao português com base na
paleografia e tradução ao inglês de Frances Berdan e Patricia Rieff Anawalt. BERDAN, Frances F. & ANAWALT,
Patricia Rielf (ed.). The Essential Codex Mendoza. Los Angeles: University of California Press, 1997, pp. 28-35.

717
"En la orden y regla de los apartados o casitas numeradas por años en la casita
donde pende vn ramo con su pie y a manera de flor significa año aziago fortuy-
to que los mexicanos tenian y temian diziendo que sus antepasados de tiem-
po ynmemorial les avian dexado aviso que en tales años que susçedian de çin-
cuenta y dos en çincuenta y dos años eran peligrosos fortuytos e aziagos por
causa de que en tales años avia sido el diluvio de aguas general y ansi mismo
la tenebrosidad de eclipse de sol y terremoto vniversal y ansi en el tal año hazian
grandes sacrifiçios y çerimonais a sus dioses y se daban a hazer penitençia y se
abstenian de todos errores para quando llegase el proprio dia y ora del tal año en el
qual dia generalmente apagavan todos las lumbres y fuegos hasta que pasase el dia
y pasado ençendian lunbre nueva trayda de vna sierra sacada por vn saçerdote"90

O trecho apresenta uma série de detalhes sobre o signo do ano em que a cerimônia do Fogo Novo
era realizada e fornece explicações sobre os cataclismos que poderiam ocorrer, como dilúvio de águas
general, eclipse de sol e terremoto universal. Também é relatado que, segundo os antepassados indíge-
nas, os mexicas realizavam grandes sacrifícios e cerimônias para seus deuses para que tais eventos catas-
tróficos não se repetissem. Nesse mesmo fólio é representada uma sequência de 13 anos do xiuhmolpilli
por meio de glifos, com objetivo de ilustrar as explicações do nota preliminar em castelhano (Figura 1):

Figura 1 – Sequência ilustrativa de 13 anos do xiuhmolpilli. Mendoza, 1v.

Dando continuidade às análises, outro manuscrito que apresenta uma nota preliminar sobre o
ciclo calendário xiuhmolpilli é o códice Aubin. Como mencionado anteriormente, esse manuscrito teria
sido produzido desde 1576 e provavelmente tinha como público os próprios indígenas, já que essa história
apresenta textos alfabéticos em nahuatl em seus fólios, juntamente com representações pictoglíficas. As-
sim, a introdução dos textos explicativos sobre o xiuhmolpilli poderia estar relacionada a eventuais leito-
res indígenas que já se distanciavam das tradições de registro e das concepções do tempo pré-hispânicas.

No códice Aubin, a nota preliminar em nahuatl é mais sintética que o texto em castelhano do
códice Mendoza. Localizado no fólio 1, o trecho trata sobre a sequência dos anos do xiuhpohualli e a

90 "De acordo com a ordem e regra dos compartimentos numerados por anos, a casa onde há um ramo com seu
tronco, como uma flor, significa ano de azar que os mexicanos tinham e temiam, dizendo que seus antepassados
de tempo imemorial haviam deixado aviso que em tais anos, que se sucediam de 52 em 52 anos, eram perigos
e azarados porque em tais anos havia ocorrido o dilúvio geral de águas, um eclipse do Sol e um terremoto uni-
versal. Assim, nesse ano faziam penitência e se redimiam de todos os erros até quando chegasse o próprio dia
e hora de tal ano, no qual geralmente se apagavam todas as luzes e fogos até que passasse o dia e, depois, então,
acendiam um fogo novo trazido de um monte por um sacerdote.” Tradução minha ao português com base na
paleografia e tradução ao inglês de Frances Berdan e Patricia Rieff Anawalt. BERDAN, Frances F. & ANAWALT,
Patricia Rielf (ed.). Op. cit., pp. 28-35.

718
formação de um ciclo de 52 anos.
"Nican icuiliuhtica yn inxitlapoval catca mexica ça nauhtetel yn iuh quitova ce acatl
quitlamia xiii acatl ce tecpatl quitlamia xiii tecpatl ce calli quitlamia xiii calli ce tochtli
quitlamia xiii tochtli. Auh yn iquacotlamito nauhteixtin nima molpia in toxiuh ypan
yn ome acatl xivitl ompovalxiuhtica ommatlactica ypan onxivitl vel cenveuetiliztli."91

O trecho caracteriza que nesse manuscrito está escrita (icuiliuhtica) a conta dos anos (in-
xitlapoval), e que era propriamente dos mexicas (catca mexica). Menciona também os signos porta-
dores dos anos, ou seja, acatl (junco), tecpatl (punhal de pedernal), calli (casa) e tochtli (coelho). O
texto também afirma que tal conta é dividida em quatro partes (nauhtetel) e que formava um ciclo de
52 anos (cenveuetiliztli) no ano 2 acatl (yn ome acatl xivitl). Tal ciclo não é, contudo, nomeado como
xiuhpohualli ou xiuhmolpilli.

Já o fólio seguinte ao que contém tais explicações (Figura 2), apresenta, nas margens do fólio,
as quatro partes da conta dos anos, formadas por blocos de 13 anos. A representação desses 52 anos
de forma esquemática tem como função ilustrar o texto alfabético em nahuatl citado no fólio anterior.
De acordo com o texto do fólio 1, a leitura dessas sequências de anos inicia-se no ano 1 acatl (1 junco),
localizado do lado superior esquerdo do fólio, e segue em sentido anti-horário nos cartuchos seguin-
tes, até o ano 13 tochtli (13 coelho)92.

Figura 2 – Representação de um ciclo completo de 52 anos. Aubin, fl. 2.

91 "Aqui está escrita a conta dos anos que foi dos mexicas. Diz-se que ela tem quatro partes: 1 junco termina
com 13 junco, 1 pedernal termina com 13 pedernal, 1 casa termina com 13 casa, 1 coelho termina com 1 coelho.
E quando as quatro terminam, então se atam nossos anos no ano 2 junco. Cinquenta e dois anos é um ciclo
completo." Tradução minha ao português com base na paleografia e tradução ao espanhol de Charles E. Dibble.
DIBBLE, Charles E. Codex Aubin. Historia de la nación mexicana. Reproducción a todo color del Códice de
1576. Colección Chimalistac, v. 16. Madrid: Ediciones José Porrúa Turanzas, 1963, p. 17.
92 No meio do fólio, ainda, estão representados os quatro glifos portadores dos anos juntamente de um Sol, o
que poderia indicar uma relação à concepção de quatro rumos e um centro. Há também um texto alfabético em
castelhano que descreve momentos específicos da história mexica, sem relação ao esquema calendário.

719
Em suma, as análises das notas preliminares sobre o xiuhmolpilli nos códices Aubin e Men-
doza mostram que, apesar dos níveis de detalhamento distintos, ambas as notas têm em comum o
objetivo de explicar o ciclo calendário representado nas histórias enquanto parte de uma concepção
de tempo específica, que definia, inclusive, a própria identidade mexica. Mais do que isso, esse tipo
de estrutura textual, característico na cultura escrita castelhana, foi introduzido nessas histórias com
o objetivo de auxiliar tanto os leitores castelhanos do códice Mendoza, que desconheciam o xiuh-
molpilli, quanto os leitores indígenas do códice Aubin, que se distanciavam das tradições mexicas de
conceber o tempo e a história.

A introdução de gêneros castelhanos: entre a castelhana crônica da guerra e o indígena xiuhamatl no


códice Mendoza

Além dos conceitos e das estruturas textuais, foi introduzido um terceiro elemento da cultura
escrita castelhana nas histórias mexicas coloniais: o gênero histórico da crônica da guerra. Esse fenô-
meno, que ocorre no códice Mendoza, foi desenvolvido mais profundamente em outra ocasião93, mas
soma-se, nesse trabalho, aos elementos da cultura escrita castelhana que podem ser analisados em
distintos níveis nas histórias mexicas coloniais. A introdução de um gênero castelhano nas histórias
mexicas coloniais extrapola o tamanho e a função de uma estrutura textual, como vimos ocorrer no
caso das notas introdutórias; além disso, veremos que a crônica da guerra não utiliza apenas uma
série de conceitos castelhanos, mas também parte de uma fórmula específica para compor o texto na
narrativa histórica.

Para entender como a crônica da guerra se faz presente no códice Mendoza, é preciso, mais
uma vez, retomar sua estrutura padronizada e alternada por fólios que contém textos em castelhano
e por fólios com textos pictoglíficos e glosas em castelhano. Essa estrutura alternada é fundamental
para entender a formação de duas narrativas paralelas em um único manuscrito, que partem de gêne-
ros narrativos distintos – o xiuhamatl mexica94 e a crônica da guerra castelhana. Tal estrutura funda-
menta a narrativa da seção histórica do Mendoza, que trata das conquistas realizadas pelos mexicas
em tempos pré-hispânicos. A seguir, analiso os elementos acionados nos fólios compostos por textos
pictoglíficos e por textos alfabéticos.

A seção histórica do códice Mendoza apresenta uma estrutura padronizada e dividida pelos
períodos em que cada um dos nove governantes esteve no poder em México-Tenochtitlan95. Nos fólios
pictoglíficos, os elementos presentes são os seguintes: A) representações do total de anos do ciclo do

93 MARTINS, Eduardo Henrique Gorobets. “Conquistas mexicas, conquistas castelhanas: a construção de


uma crônica castelhana alternada com textos pictoglíficos indígenas na seção histórica do códice Mendoza”
in: I Congresso de História Colonial. Anais Eletrônicos. Campinas: UNICAMP, 2017. Disponível em: < https://
leaunicamp.files.wordpress.com/2017/12/eduardo-henrique-gorobets-martins.pdf>. Acessado em 23/04/2018,
17:00.
94 Xiuhamatl era o nome dado ao gênero das narrativas sobre o passado, que eram produzidos pelos mexicas
e outros povos do Vale do México desde tempos pré-hispânicos. A orientação da leitura dessas narrativas era
dada por meio da conta dos anos sazonais, isto é, o ciclo xiuhmolpilli (nome derivado do ano xihuitl). SAN-
TOS, Eduardo Natalino dos. Tempo, Espaço e passado... Op. Cit.
95 Com exceção da nota preliminar no reverso e verso do fólio 1, e do fólio 2r, o qual marca o início da narrativa
por meio da representação da fundação de México-Tenochtitlan.

720
xiuhmolpilli para o período de governo; B) representação humanóide do governante e seu glifo antro-
ponímico; C) representação do glifo de guerra, formado por um escudo e flechas; D) representações
dos topônimos conquistados associados ao E) glifo de um templo em chamas – em alguns casos, as
representações são tão numerosas que ocupam um segundo ou terceiro fólio. Na Figura 3, a seguir, é
possível localizar tais elementos no fólio 12r – sendo que os elementos D) e E) se repetem em outras
13 ocasiões no mesmo fólio.

Figura 3 – Elementos que compõem as representações pictoglíficas no fólio 12r do códice Mendoza.

Os fólios compostos por textos alfabéticos na primeira seção do códice Mendoza também são
padronizados quanto aos elementos acionados, mas versam, por sua vez, sobre os governantes mexi-
cas de maneira mais detalhada, incluindo outros dados e acontecimentos que não são representados
nos fólios pictoglíficos. Nos fólios de texto alfabético, a partir do 3r, a fórmula estrutural contém os
seguintes elementos ordenados: A) data de início do governo; B) nome do governante; C) número de
povos conquistados, sem menção aos seus nomes96; D) uma citação simples sobre a correlação com os
textos pictoglíficos nos fólios correspondentes; E) comentários sobre casamentos, filhos, belicosidade,
títulos recebidos e moral do governante; e F) o total de anos de governo97. Como exemplo da estrutura
mencionada, apresento a seguir o texto do fólio 11v, que trata do governo de Tizoc (ou Tiçoçicatzin).
Indico os elementos enunciados acima por meio das letras dentro de colchetes.

96 Exceto nos fólios 3r e 5r, nos quais os povos conquistados são mencionados.
97 Outros elementos são acionados excepcionalmente em outros fólios, como o ano da morte ou a idade que
o governante tinha quando morreu, rebeliões, guerras, festas e, até mesmo, o funcionamento da cobrança de
tributo. MARTINS, Eduardo Henrique Gorobets. “Conquistas mexicas, conquistas castelhanas...”. Op. cit.

721
[A] En el año de myll y quatroçientos y ochenta y Dos años en el dicho señorio de
mexico por fin y muerte de axayacaçi susçedio en el dicho señorio [B] tiçoçicatzin
hermano del dicho axayacatzi y durante el tiempo de su señorio conquysto y gano
por fuerça de armas [C] catorze pueblos [D] segun que susçesiuamente estan figu-
rados y nonbrados. [E] Yten el dicho tiçoçicatzi fue por estremo valiente y belicoso
en armas y antes que susçedyese en el dicho señorio hizo por su persona en las guer-
ras cosas hazañosas de valentia por donde alcanço tomar ditado de tlacatecatl que
tenyan por título de gran calidad y estado y era el punto de que en vacancio el dicho
señorio el tal punto y grado susçedia luego en el dicho señorio lo qual ansi mysmo sus
anteçesores hermanos atras contenydos y padre y aguelo tuvyeron el mysmo curso
del dicho titulo y ditado por donde subyeron a ser señores de mexico. yten el dicho
tiçoçicatzin por avtoridad y estado del dicho señorio tuvo muchas mugeres e hijos
que en ellas obo y fue honbre graue y seuero en mandar y ser temydo e acatado de
sus vasallos fue ansi mysmo aplicado e ynclinado a cosas buenas y virtuosas y buen
Republicano e mando guardar y aprobar por buenas las leyes y fueros que sus ante-
çesores avyan cumplido y guardado desde en tyempo de Guegue Motecçuma y fue
zeloso de punir y castigar los malos vicios y delitos que sus vasallos cometian y ansi
la republica mexicana tuvo el tiempo de su vyda hordenada y byen Regida [F] fue el
discurso de su vyda çinco años al fin de los quales murio y paso desta presente vida.98

No exemplo transcrito acima, os elementos A, B, C, D e F representam, de certa maneira, o que


está presente nos fólios pictoglíficos correspondentes ao governo de Tizoc – analisado anteriormente.
O elemento E, por sua vez – que apresenta comentários sobre casamentos, filhos, belicosidade, títulos
recebidos e moral do governante – utiliza o dobro das linhas que os outros cinco elementos ocupam
e não apresenta textos pictoglíficos paralelos. Essa diferença exemplifica a importância que os textos
alfabéticos em castelhano têm na primeira seção do códice Mendoza, fornecendo detalhes provenien-
tes da tradição oral, que acompanhava, desde tempos pré-hispânicos, a produção dos manuscritos
pictoglíficos mexicas.

Ao mesmo tempo, essa diferença é um indício da introdução da crônica da guerra, gênero pro-
veniente da cultura escrita castelhana, cujas narrativas apresentam comentários muito parecidos aos
que estão na narrativa histórica do códice Mendoza. Um exemplo é a Crónica Incompleta de los Reyes
Católicos99, manuscrito anônimo produzido entre 1469 e 1476. Com base nos elementos listados aci-
ma, o começo da crônica apresenta informações similares aos elementos A, B C e, principalmente, E.
98 “[A] No ano de mil quatrocentos e oitenta e dois no dito senhorio de México, por fim e morte de Axaya-
catl, sucedeu no dito senhorio [B] Tizoc, irmão de Axayacatl e durante o tempo de seu senhorio conquistou e
ganhou por força de armas [C] catorze pueblos [D] que sucessivamente estão figurados e nomeados. [E] E o
dito Tizoc foi por extremo valente e belicoso em armas e antes que sucedesse o dito senhorio fez pessoalmente
valentes façanhas nas guerras pelas quais alcançou o título de tlacatecatl, que era um título de grande qualidade
e estado, pelo qual, caso houvesse vacância no dito senhorio a tal ponto e grau, sucedia logo no dito senhorio,
tal como seus antecessores, irmãos, pai e avô antes dele, que tiveram o mesmo curso do dito título pelo qual se
tornaram senhores de México. E o dito Tizoc, por autoridade e estado do dito senhorio, teve muitas esposas
e filhos e foi homem grave e severo em mandar e ser temido e acatado por seus vassalos. Foi, assim mesmo,
aplicado e inclinado a coisas boas e virtuosas e bom republicano e mandou preservar e aprovar como boas as
leis e foros que seus antecessores haviam cumprido e preservado desde o tempo de Huehue Moctezuma e foi
zeloso de punir e castigar os maus vícios e delitos que seus vassalos cometiam e assim a República mexicana
teve o tempo de sua vida ordenada e bem regida. [F] Foi o tempo de seu governo cinco anos, ao final dos quais
morreu e passou dessa presente vida”. Tradução minha com base na paleografia feita ao castelhano por Frances
Berdan e Patricia Anawalt. Op. cit.
99 PUYOL, Julio (ed.). Crónica incompleta de los reyes católicos (1469-1476). Según un manuscrito anónimo
de la época. Madrid: Academia de la Historia, 1934.

722
A seguir, indico os elementos enunciados acima por meio das letras dentro de colchetes.
[B] Reynó el rey don Enrique quarto [A] a XXIIII dias del mes de julio, año del Señor
de mill y quatrocientos y cincuenta y quatro años; del Reyno d'España seteçientos y
veynte y cuatro; y de la postrimera vnion de los Reinos dosçientos y ochenta años.
[E] Auia el rey don Enrrique treynta años quando reynó. [...] Este era de sus pueblos
muy amado y de los grandes de su Reyno muy temido, y non solo de sus vasallos y
naturales, mas de todos los Reynos comarcanos y avn lexanos [...]. Este fue tan rico
de tesoros, perlas y piedras preciosas, que ninguno más rico en el tiempo de él en la
grandeza del mundo hallauan. Este era el más poderoso de gentes que ningund rey
de christianos avia. [...] [C] Visto su grand poder, se le dauan Reynos, y prouinçias y
señoríos muy ricos, asi como Cataluña y Genoua y otras.100

O trecho acima demonstra que o gênero da crônica castelhana, enquanto parte de uma cultura
escrita, foi provavelmente compartilhada entre castelhanos e mexicas, e utilizada pelos indígenas que
compuseram o códice Mendoza. Mais especificamente, trata-se da utilização da chamada crônica da
guerra, um gênero histórico castelhano popular entre os séculos XV e XVI, que era frequentemente
estruturado em seções, sendo que cada uma começava com cabeçalhos descritivos sobre o capítulo ou
sumários101. O exemplo acima mostra que os textos alfabéticos em castelhano no Mendoza não eram
apenas uma transcrição dos glifos registrados no fólio anterior ou simples comentários transcritos a
partir de relatos orais indígenas. Tais textos correspondiam, na verdade, a uma categoria de assuntos
enunciados e formulados nas crônicas da guerra produzidas em Castela, e incorporadas na produção
desse códice mexica.

Em suma, as análises das histórias mexicas coloniais mostram que, para além dos conceitos e
estruturas textuais, até mesmo um gênero da cultura escrita castelhana foi introduzido na Nova Es-
panha. Trata-se, portanto, de um nível muito mais amplo de introdução da cultura escrita castelhana
nas histórias indígenas. Especificamente no códice Mendoza, vimos que a crônica da guerra, presente
em narrativas históricas castelhanas, foi composta e alternada ao xiuhamatl, gênero utilizado pelos
mexicas desde tempos pré-hispânicos.

Conclusão

As análises realizadas neste texto mostram que a introdução dos elementos da cultura escrita
castelhana ocorreu de maneira desigual, não cronológica e em diversos níveis nas histórias mexicas
coloniais, tendo em vista a diversidade de produtores e públicos que as leriam, formados por missio-
nários, autoridades castelhanas e indígenas cristianizados.

100 “[B] Reinou o rei dom Enrique IV [a] a 24 dias do mês de julho, ano do Senhor de 1454 anos; 724 anos do
Reino de Espanha; 280 da última união dos reinos. [E] Este era, de seus povos, muito amado, e dos grandes
de seu reino, muito temido, e não só de seus vassalos e naturais, mas de todos os reinos vizinhos e longínquos
[...]. Este foi tão rico de tesouros, pérolas e pedras preciosas, que nenhum mais rico poderia ser encontrado no
tempo dele na grandeza do mundo. Este era o mais poderoso sobre as pessoas que nenhum rei cristão havia sido
[...] [C] Por conta de seu grande poder, davam-se reinos e províncias e senhorios muito ricos, assim como Ca-
talunha, Gênova e outras.” Tradução minha com base na paleografia feita ao castelhano por Julio Puyol. Op. cit.
101 KAGAN, Richard L. Clio & the Crown. The Politics of History in Medieval and Early Modern Spain. Bal-
timore: The Johns Hopkins University Press, 2009. Como mencionado anteriormente, outros exemplos que
demonstram a proximidade do códice Mendoza com o gênero castelhano da crônica da guerra são descritos em
MARTINS, Eduardo Henrique Gorobets. “Conquistas mexicas, conquistas castelhanas...”. Op. cit.

723
Os conceitos castelhanos estavam presentes principalmente nas narrativas cujos textos alfabé-
ticos foram escritos em nahuatl, como o Manuscrito 40 e o códice Aubin. Contudo, nas histórias es-
critas em castelhano, contidas nos códices Mendoza e Telleriano-Remensis, alguns conceitos também
foram empregados para explicar ou aproximar-se do mundo indígena.

Já as estruturas textuais foram analisadas primordialmente nos códices Mendoza e Aubin, uma
vez que ambos contém notas preliminares que tinham a finalidade de explicar o funcionamento do
ciclo calendário xiuhmolpilli, que estruturava as histórias mexicas coloniais. Essas notas foram intro-
duzidas nessas narrativas com o objetivo de auxiliar tanto os leitores castelhanos do códice Mendoza,
que desconheciam o xiuhmolpilli, quanto os leitores indígenas do códice Aubin, que se distanciavam
das tradições históricas mexicas.

Por fim, a introdução de um gênero histórico nas narrativas mexicas ocorreu de maneira
exemplar no códice Mendoza, no qual há a alternância entre fólios com textos pictoglíficos, seguindo
o gênero dos xiuhamatl mexicas pré-hispânicos, e fólios com textos escritos em castelhano, baseados
ou, pelo menos, inspirados na chamada crônica da guerra – que era, entre os séculos XV e XVI, um
dos gêneros históricos mais populares em Castela.

Em suma, as análises mostraram que a introdução dos elementos da cultura escrita castelhana
não significou o fim das tradições históricas indígenas ou a simples amálgama entre tradições nativas e
europeias. Utilizando as palavras de Ana Guadalupe Díaz Álvarez, tais obras possibilitaram, por causa
de sua maleabilidade, a integração de novos conteúdos e materiais, que ampliaram suas possibilidades
de uso segundo os requisitos e interesses dos novos usuários, fossem castelhanos ou indígenas102.

As análises dos códices mexicas também demonstraram que a integração dos novos conteúdos
se iniciou muito antes das famosas narrativas de cronistas mestiços do século XVII, como é o caso
de Domingo de San Antón Muñón Chimalpahin Cuauhtlehuanitzin, Fernando Alvarado Tezozomoc
e Fernando de Alva Cortés Ixtlilxochitl. Os diversos exemplos apresentados neste texto mostraram
que já em meados do século XVI uma série de conteúdos e elementos da cultura escrita castelhana
estavam sendo integradas nas histórias mexicas. Além disso, as análises também evidenciam que é
possível identificar o que ainda está ligado à cultura escrita nahua ou mexica pré-hispânica, ainda
que tenha sofrido transformações, e, por outro lado, à cultura escrita castelhana, trazida da Europa e
adaptada às histórias locais.

Finalmente, procurei demonstrar que tais elementos não apenas transformaram a escrita das
histórias mexicas, mas que também refletiram mudanças ocorridas na Nova Espanha ao longo de
quase um século após a conquista castelhana, tais como a implementação de instituições coloniais.
Ou seja, não foram apenas as histórias mexicas que se transformaram ao longo dos séculos XVI e iní-
cio do XVII, mas os próprios habitantes de México-Tenochtitlan passaram a viver sob uma diferente
realidade.

102 DÍAZ ÁLVAREZ, Ana. El maíz se sienta para platicar, p. 64.

724
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A CIRCULAÇÃO DE UM NOBRE PORTUGUÊS E A MANUTENÇÃO DO IMPÉRIO: O CASO DE D.


VASCO DE MASCARENHAS NA CIDADE DA BAHIA (1626-1634; 1638-1640)103
Érica Lôpo de Araújo

“Eu como tenho tanto de filho da Bahia, passo muito como em terra que conheço, e me co-
nhece.” . Com estas palavras, D. Vasco de Mascarenhas – Conde de Óbidos, iniciou uma carta en-
104

dereçada ao seu compadre Diogo Carneiro Fontoura – provedor da capitania do Rio de Janeiro, tão
logo de sua chegada a Salvador para desempenhar o ofício de governador-geral do Estado do Brasil. A
missiva prosseguia falando sobre o desejode Óbidos de que seu amigo gozasse de boa saúde e estivesse
adaptado ao clima, empreitada nem sempre fácil em virtude da grande diferença entre a habitação na
Bahia e as memórias da corte. O autor da missiva, entretanto dizia estar imune a essas dificuldades por
conta de sua ligação anterior à Bahia, destino para onde se dirigia pela terceira vez, e na condição de
autoridade máxima, portando o título de vice-rei daquele Estado - o segundo oficial a receber aquele
benefício.

A primeira estadia de D. Vasco de Mascarenhas na Bahia se dera entre os anos de 1626 e 1634
quando exerceu o posto de mestre de campo. Após uma temporada no reino, retornou a Salvador em
1638 como general da artilharia da armada do Conde da Torre, conjuntura em que chegou a desem-
penhar interinamente o governo daquele Estado. Portanto, antecedia a missiva escrita em 1663 cerca
de dez anos de vivência na Bahia. Esses três momentos de prestações de serviços na capital do Estado
do Brasil foram intercalados pelo desempenho de outros tantos, a exemplo do vice-reinado no Estado
da Índia, governo do Algarve (por duas vezes) e o governo de Armas do Alentejo. Apesar da vasta
trajetória do personagem, ter-se-á aqui atenção mais especificamente aos ofícios desempenhados na
“Cidade da Bahia”, forma como Salvador costumava ser chamada.105

A partir da percepção de que a circulação de nobres esuas longas trajetórias de serviços foram,
juntamente com o idioma português, a dependência do reino de finanças públicas e o tráfico de escra-

103Érica Lôpo de Araújo é doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e profes-
sora Adjunta da Universidade Federal do Piauí. Essa pesquisa contou com o apoio da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado do Piauí
104 DHBN, V. 5, pp. 202, 15/10/1663.
105MARQUES, Guida. “Por ser cabeça do Estado do Brasil”. As representações da cidade da Bahia no século
XVII.” In: SALES SOUZA, Evergton; MARQUES, Guida; SILVA, Hugo. (org.) Salvador da Bahia: retratos de
uma cidade atlântica. Salvador: Edufba, 2016, pp. 17-46.

727
vos, elementos que permitiram a longevidade do Império Português106, esse artigo buscará identificar
elementos da prática governativa de D. Vasco de Mascarenhas na cidade da Bahia que auxiliaram
na manutenção e preservação do domínioluso. Sem perder de vista a sua trajetória diversificada de
serviços, se questionará como se operava o retorno a um mesmo espaço no desempenho de funções
diversas,se o conhecimento prévio assegurava a concessão de autoridade e de que maneira sua espe-
cialização na Bahia influenciou a sua nomeação como segundo vice-rei do Estado do Brasil e primeiro
nomeado pela dinastia brigantina.

Essa pesquisa encontra-se alinhada com uma historiografia querecria a trajetória de oficiais
que se dedicaram à monarquia, por compreender ser esta uma metodologia operativa para entender
o funcionamento do Império107. Tais oficiais “em trânsito” eram resultado de uma política régia de
incentivos ao deslocamento em direção ao ultramar, e se dava em razão de uma “extraordinária con-
tração das receitas do Estado”. Desse modo, a Coroa compelia as casas senhoriais a lançarem-se em
empreendimentos marítimos para destes retirar o sustento que “a contracção econômica lhe nega no
mercado interno” do reino. Portanto, através das finanças, a Coroa utilizava as trajetórias ultramarinas
como caminho excepcional de ascensão ao estatuto de nobreza em Portugal.108

Compreende-se que as trajetórias de serviços proporcionavam um acúmulo de conhecimentos


e práticas no exercício de governos. Tais experiências eventualmente eram utilizadas pelos sujeitos que
capitalizavam suas experiências nos governos seguintes, ou seja, faziam uso de uma memória buro-
crática. Para desempenhar tal função, muitas vezes era necessário fazer uso de uma rede de aliados no
cumprimento de exercícios de governo e uma das maneiras de entender essas carreiras encontrava-se
precisamente na identificação de quem eram esses sujeitos e se suas relações foram duradouras.109

Segundo Maria de Fátima Gouveia, no exercício de seus ofícios, os indivíduos construíam o


que a autora chamou de redes governativas e deveria ser entendido como uma articulação estratégica
do indivíduo no âmbito administrativo. Essas redes eram muitas vezes determinadas pelas prerrogati-
vas que um ofício poderia trazer já em seu regimento. Uma das possibilidades de aplicação desse con-
106MONTEIRO, Nuno Gonçalo. “Impérios”. In:CARDOSO, José Luís. & outros (org.).Portugal de A a Z: Te-
mas em aberto. Lisboa: ICS/Expresso, 2013, pp. 105-106.
107 Charles Boxer foi pioneiro nesse campo com sua obra Salvador de Sá and the struggle for Brasil and Angola,
1602-1686 publicado em inglês em 1952 e traduzido pela primeira vez para o português em 1973. Dentro das
fronteiras nacionais foi publicado também na década de 1950, mais especificamente em 1956, por José Antônio
Gonsalves de Mello o livroJoão Fernandes Vieira: Mestre-de-campo do Terço de Infantaria de Pernambuco.
Essas obras destacaram como a circulação de sujeitos foi um elemento fundamental no resgate de espaços
centrais (Angola e Pernambuco) e demonstraram como oficiais em trânsito funcionaram como elementos que
permitiram a continuidade do Império português.
108 GODINHO, Vitorino Magalhães. “Finanças públicas e estrutura do Estado”. In: SERRÃO, Joel. Dicionário
de História de Portugal. V.6. Porto: Livraria Figueirinhas, 1992. p. 31.
109De acordo com Mafalda Soares da Cunha existem três tipos de relações interpessoais. O primeiro deles diz
respeito aos laços estabelecidos independentemente da vontade dos atores sociais, Um segundo tipo se refere a
situações que decorrem de decisões e escolhas do próprio indivíduo em consonância com o grupo no qual este
se encontra inserido, enquanto um terceiro grupo de relações interpessoais seriam as independentes, que nas-
cem diretamente da vontade e iniciativa dos atores sociais. CUNHA, Mafalda Soares da. “Em torno do conceito
de rede e dos seus usos historiográficos”. In: FRAGOSO, João. GOUVÊA, Maria de Fátima (org.). .Na Trama
das Redes: política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII.” Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2010, p. 120.

728
ceito é pensar como governadores e vice-reis seriam capazes de criar uma rede operacional, que seria
resultado dos poderes de provimentos que esse oficial maior agregava. Desse modo, Gouveia chama
atenção para os recursos gerados a partir da própria instância administrativa. Em suas palavras:
“A ocupação sequenciada de cargos na administração portuguesa gerou dinâmicas relacionais nu-
tridas em grande medida pela própria essência regimental da governação, maximizando o peso dos
demais recursos usufruídos pelos participantes de uma rede, fato que potencializava um determina-
do grupo de indivíduos em termos do desenvolvimento de certas estratégias e objetivos comuns.110”

Portanto, o que se buscará desvendar nas próximas linhas é como o desempenho de postos
diversificados, em temporalidades igualmente diversas, mas em um mesmo espaço geográfico, pro-
porcionaram a um nobre o acesso ao vice-reinado da Bahia e, em contrapartida, contribuíram para
a manutenção dos domínios portugueses no Estado do Brasil. Será feita agora uma retrospectiva da
atuação de Mascarenhas na Cidade da Bahia.

Mestre de Campo:

No ano de 1626 D. Vasco de Mascarenhas chegou a Salvador com o título de mestre de campo
para ser um dos comandantes do primeiro terço de infantaria paga no Estado do Brasil. Esse terço foi
deixado na Bahia em 1625 após o resgate de Salvador que tinha sido invadida no ano anterior pelos
neerlandeses. Nessa ocasião, as monarquias ibéricas promoveram a organização de uma grande arma-
da, reunindo contingentes antes impensáveis no cruzamento do Atlântico. A massiva participação de
nobres lhe renderia a alcunha de Jornada dos Vassalos,maior expedição de resgate que jamais havia
atravessado o equinócio e reuniu efetivos de Portugal, Castela e Nápoles, em um total de 12.463 ho-
mens, 1.185 peças de artilharia e 56 vasos de guerra no ano de 1625 para restaurar a Bahia invadida
pelos holandeses. 111

A reconquista de Salvador foi festejada como um triunfo conjunto da monarquia católica,


sendo celebrada em peças teatrais e quadros, além de um número expressivo de textos manuscritos
e impressos, situação que contrasta o silêncio editorial que lhe acompanhou até aquela data. A Bahia
passara agora a ser descrita através de superlativos e de modo muito mais completo na correspondên-
cia castelhana: “metrópoli de toda la provincia”, “cabeça de todo o Estado do Brasil”, “la parte mejor,
mas útil y de mayor importancia de todas”.112

Em um momento de tantas dificuldades, como aquele vivido em 1626, eram necessários ho-
mens de grande valor e experiência para auxiliar o governador-geral na difícil tarefa de governar o
Estado do Brasil. Por isso, em 1625, Diogo Luiz de Oliveira, futuro governador-geral do Estado do
110 GOUVÊA, Maria de Fátima. “Redes governativas portuguesas e centralidades régias no mundo português,
c. 1680-1730”. In: FRAGOSO, João. GOUVÊA, Maria de Fátima (org.). .Na Trama das Redes: política e negócios
no império português, séculos XVI-XVIII.” Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, pp. 181-182.
111 SCHWARTZ, Stuart. “A jornada dos vassalos: poder real, deveres nobres e capital mercantil antes da Res-
tauração, 1624-1640”. In: SCHWARTZ, Stuart. Da América Portuguesa ao Brasil. Estudos Históricos. Lisboa:-
Difel. 2003, p. 146.
112MARQUES, Guida. “As ressonâncias da Restauração da Bahia (1625) e a inserção da América Portuguesa
na União Ibérica”. In: MARTÍNEZ HERNÁNDEZ, Santiago (dir). Governo, política e representações do poder
no Portugal Habsburgo e nos territórios ultramarinos (1581-1640). Lisboa: CHAM, 2011,pp. 121-146.

729
Brasil, escreveu ao rei pedindo que, em resposta à necessidade de pessoas práticas, com qualidade e
experiência, fizesse mercê de nomear D. Vasco de Mascarenhas no ofício de sargento-mor do Estado
do Brasil. Solicitou ainda a mercê do título de mestre de campo por ser sua qualidade diferente de to-
dos os demais, tendo o suplicante experiência de guerra por ter servido em Flandres com muita pon-
tualidade e satisfação, como ele próprio foi testemunha por ter servido sempre em sua companhia.113
Observou-se, nesse caso, como o acionamento de uma rede que tinha sido criada nos primeiros anos
de serviço de D. Vasco de Mascarenhas foi fundamental para o desenvolvimento de sua trajetória a
serviço da monarquia dos Áustrias por proporcionar a sua primeira ascensão a um posto de maior
destaque. O pedido foi confirmado e dois meses depois o monarca concedeu a patente solicitada.114

D. Vasco de Mascarenhas assumiu em 1627 o comando do primeiro terço de infantaria regu-


lar do Estado do Brasil, que entraria em ação em virtude das duas tentativas de invasão inimigas do
porto de Salvador ocorridas em março e dezembro de 1627 com 13 e 12 velas respectivamente115. O
mestre de campo, além de comandante do terço, era o imediato do capitão general ou governador das
armas, conforme a categoria do governo a que pertencia e constituía também o oficial que transmitia
as ordens por meio dos tenentes de mestre de campo general e seus ajudantes116. Possuía, desse modo,
alguns subordinados, sendo cercado por um grupo de pajens e soldados, além do sargento-mor, o
mais importante abaixo do mestre de campo e seu substituto em sua ausência117.

Os ofícios militares carregavam consigo também um poder social e simbólico. Naquela ci-
dade de Salvador esse poder parecia ser potencializado em razão da ausência de integração entre os
soldados e a sociedade, que era obrigada a disponibilizar recursos para alojá-los, alimentá-los e pagar
os seus soldados. Para além de todas essas despesas, a ausência de integração seria possivelmente
resultado de um saque realizado pelo exército espanhol, que deixou a cidade receosa quanto ao seu
próprio efetivo militar118. O governador Diogo Luiz Oliveira soube se utilizar desse distanciamento
entre sociedade e soldados para empreender um governo mais duro e que foi, por vezes, qualificado
como tirânico. Mas, para ter sucesso nesse tipo de política, era necessário que ele tivesse apoio de um
elemento militar forte e, por isso, o auxílio prestado pelo mestre de campo D. Vasco de Mascarenhas
apresentava-se como requisito fundamental, especialmente durante o período em que Mascarenhas
comandava o único terço de infantaria existente em Salvador, situação que lhe dava significativo poder
como elemento coercitivo naquela sociedade119.

Segundo sugere Rodrigo Ricúpero, para não perder a situação privilegiada de ter como aliado
113 AHU, LF. Cx. 3/Doc. 349-350 e cx. 34/Doc. 4382. O mesmo conteúdo se repete nos dois documentos. No
primeiro deles com data de 12 de março de 1625 e no último, sem data.
114 AHU, LF. Cx. 5/Doc. 567. Embora o documento date de 9 de maio de 1635, o ano correto é 1625.
115 AHU-Castro Almeida-RJ. Cx. 2/Doc. 359, 19/09/1630. Esse comando passaria no ano seguinte a ser lidera-
do por D. Fernando Mascarenhas Mariscal e, posteriormente, por D. Manuel Carlos Mascarenhas.
116MATTOS, Gastão de Melo de. “Os terços de Entre Douro e Minho nas guerras da aclamação: Esboço de his-
tória orgânica”. In: Separata da Revista de Guimarães. Porto: Sociedade Martins Sarmento, 1940, pp. 203-225.
117LENK, Wolfgang. Guerra e pacto colonial: Exército, fiscalidade e administração colonial da Bahia. (1624-
1654). Teses de Doutorado. USP: São Paulo. 2009, pp. 95-96.
118 Sobre o assunto, ver: BEHRENS, Ricardo Henrique. Salvador e a invasão holandesa de 1624-1625. Salva-
dor: Editora Pontocom, 2013.
119 DHAM, Atas da Câmara, V. I, pp. 137-138, 08/11/1609.

730
o mestre de campo do único terço de infantaria de Salvador, Diogo Luiz Oliveira, teria tentado evitar,
sem sucesso, a criação de novos terços. Embora fossem reais os problemas que a presença de mais
soldados traria para aquele espaço em virtude das inúmeras despesas que lhes eram inerentes, isso
representaria a perda de um campo significativo de poder representado pelo domínio da única tropa
paga120. Corroborando com a ideia de que o governador agia sempre respaldado pela força garantida
por seu mestre de campo, o bispo fez queixas recorrentes do governador, acusando Oliveira de abrir
cartas, inviabilizando a livre comunicação com o reino, ações que só realizava por encontrar-se sem-
pre respaldado por seus “sargentos e ministros de guerra”.121

As ações duras empreendidas por Diogo Luiz de Oliveira eram justificadas ao rei como resul-
tado das grandes dificuldades enfrentadas naquela época. O governador qualificou aquele período
como os “anos de ferro da Bahia”, ao lamentar-se por sua majestade tê-lo mandado servir nessa terra
quando os ânimos dos súditos se mostravam tão inflamados porque aqueles que outrora passaram
idades de ouro, agora viviam idades de ferro.122

A fim de reduzir gastos, decidiu-se pela extinção do Tribunal da Relação, em 1626, para que o
dinheiro anteriormente empreendido no pagamento dos desembargadores fosse utilizado no sustento
dos soldados, fator que também corroborou para que o governador pudesse agir mais livremente,
tendo sempre ao seu lado seu mestre de campo123. A ausência de um “contra poder” à sua ação, an-
teriormente desempenhada pela Relação, se fazia sentir naquela sociedade e seria mencionada em
um documento anônimo e sem data que pedia o seu retorno: “Se os governadores, seus secretários e
criados, havendo Relação à vista deles cometem tantos excessos quanto são notórios, que farão não a
havendo?”124.

Para além do fim da Relação, a falta de articulação da elite baiana naqueles anos foi um dos
elementos que facilitou o arranjo da dupla governador/mestre de campo no empreendimento de um

120 RICÚPERO, Rodrigo. “Os Agentes da Coroa”. In: A formação da elite colonial: Brasil, c. 1530-1630. São
Paulo: Alameda, 2009, pp. 151-172.
121 AHU-LF. Cx. 5/Doc. 554. Para confirmar os abusos do governador, pode-se consultar o rol de 40 acusa-
ções feitas pelo provedor-mor Lourenço de Brito Correia contra o governo de Diogo Luiz Oliveira. Apesar do
exagero de algumas queixas, dezenove acusações envolviam extorções e cobranças ilegítimas, incluindo nove
fintas entre os governadores. Sobre o assunto, ver: BA, 49-X-10, f. 320 e BA, 51-X-2, f. 212v., citado por: LENK,
Wolfgang. Op. Cit. 2009, p. 234.
122 DHAM: AC, Vol. I, p. 191. As descrições mais fidedignas sobre os primeiros movimentos da tomada de
Salvador são, para o lado português, a Carta Ânua que o padre Antônio Vieira escreveu a Companhia de Jesus
em 1626. VIEIRA, Padre Antônio. Cartas do Brasil. São Paulo: Hedra, 2003. (Introdução e notas: João Adolfo
Hansen). E a obraHistória do Brasil de Frei Vicente do Salvador encarcerado pelos holandeses até a sua capi-
tulação em 1625. SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil: 1500-1627. Belo Horizonte: Itatiaia/Edusp:
São Paulo, 1982. Para o lado holandês, está a descrição do mercenário alemão Johann Gregor Aldenburgk. AL-
DENBURG, Johann Gregor. Relação da Conquista e perda da cidade de Salvador pelos holandeses (1624-1625).
Tradução Principal: Alfredo de Carvalho. Revista dos Tribunais, 1961. Vale ressaltar que as anotações feitas
por Aldenburgk durante o período da invasão se perderam e ele as “refez de cabeça”, imprimindo-as em 1627.
123 CAPÍTULO da carta régia de março de 1626 sobre a extinção da Casa da relação da Bahia. Cx.13/Doc.412.
março/1626. Sobre o assunto, ver: LÔPO DE ARAÚJO, Érica. “Em torno do ideal de justiça. A capitania da
Bahia e o Tribunal da Relação na primeira metade do século XVII”. In: Anais eletrônicos do XXVI Simpósio
Nacional de História.
124 BNP, CPA, mic. R725, pp. 70v.

731
governo dito tirânico. De acordo com Thiago Krause, praticamente nenhum dos camaristas possuía
grandes parentelas que pudessem lhe dar suporte político. Segundo o autor, ao tratar dos juízes ordi-
nários, apenas três dentre dezesseis entre os anos de 1627-1635 eram naturais da capitania (filhos de
imigrantes). Faltava consenso e articulação social para construir uma oposição ao governador125.

A prática cotidiana de D. Vasco de Mascarenhas como mestre de campo aparece de modo


esporádico na documentação. As atas da Câmara trouxeram queixas de alguns soldados do seu terço
que não tinham onde morar, algo bastante recorrente naqueles tempos e que se manteria por um lon-
go período.126 No ano de 1629, tem-se referência dos socorros prestados em dinheiro e mantimentos
a seu terço, bem como do recenseamento de toda a gente deste e peças a ele agregadas. Mascarenhas
comandava, no referido ano, um terço composto por 887 praças127.

Merece destaque, entretanto, sua participação em um auto realizado pelos oficiais da Câmara,
juntamente com o governador Diogo Luiz de Oliveira e outras autoridades128. O auto tratava sobre
as queixas que faziam os senhores das casas em que estava alojado o presídio há quatro anos, sobre
as quais não se pagava aluguel. Os proprietários solicitavam que não fossem os únicos a arcar com
as despesas, já que as casas eram habitadas por soldados ocupados da defesa da cidade, o que bene-
ficiava a todos. Pedia-se ainda a transferência do presídio para outra parte da cidade, onde causasse
menor “opressão” dos moradores e estivesse melhor protegido e fortificado dos ataques inimigos.129 A
participação de D. Vasco de Mascarenhas nessa junta denota destaque de sua participação no âmbito
administrativo de Salvador, pois em um momento em que a cidade tinha três mestres de Campo, foi
o único a participar deste auto.

Seu prestígio naquela capitania também pode ser confirmado a partir do esforço empreendi-
do para o pagamento de seu soldo. Quando da nomeação de Mascarenhas para o posto de Mestre de
Campo general em 1626, este deveria fazê-lo sem receber soldo pelo período de três anos, a fim de ser
recompensado com uma comenda. Entretanto, passados cinco anos, como não recebera nem soldo,
nem comenda, pretendia retornar ao reino para tratar pessoalmente de seus requerimentos. Mas seu
desejo encontrou a negativa do governador Diogo Luiz de Oliveira.

A fim de garantir a permanência de seu leal mestre de campo, o governador geral decidiu con-
trariar a ordem recebida e determinou que Mascarenhas recebesse pagamento. 130 Para tal, foi feito um
assento, inicialmente pelo período de seis meses e prorrogado algumas vezes por igual período, para

125 KRAUSE, Thiago.A formação de uma nobreza ultramarina: coroa e elites locais na Bahia seiscentista. UFRJ:
Tese de Doutorado, 2015, p. 193.
126 DHAM – Atas da Câmara, V.1. pp. 303, 305, 311. 04/021636;14/02/1636; 06/05/1636.
127 BA. 49-X-10, fls. 136-137. 22/06/1629.
128 Participaram também desse auto o ouvidor-geral Miguel Sirne de Faria e o procurador-mor da fazenda,
Francisco Soares de Abreu.
129 DHAM, Atas da Câmara, V. I, pp. 137-138. 8 de novembro de 1609.
130 AGS-Secretarias Provinciales. 509-legajo 2645 (decretos originales sobre varias pretenciones del año de
1635.

732
que se pagasse a cada canada de vinho, 4 vinténs além do preço determinado.131 Apesar de receber
soldo, Mascarenhas retornou ao reino em 1634 onde permaneceu até o ano de 1638132. Quatro razões
justificam o seu regresso: 1) tinha chegado ao fim o governo de seu aliado Diogo Luís de Oliveira e
sua ausência não lhe garantia os mesmos privilégios de que gozara outrora na cidade da Bahia; 2) seu
deslocamento para a corte possibilitaria a cobrança da comenda a que tinha direito por ter servido
mais de cinco anos sem vencimentos; 3) a decisão de abandono da vida secular tomada por seu irmão
D. Dinis de Lencastre, que implicava na doação de seus bens a D. Vasco de Mascarenhas; 4) a conclu-
são das negociações para o seu casamento com Jerônima de La Cueva, que ocorreria no ano de 1636.
Por meio dessas ações D. Vasco perseguia um plano de manutenção de seu status de nobreza através
do enlace matrimonial com uma dama de Espanha que, dentre outras vantagens, lhe traria o título de
Conde de Óbidos.

General da Artilharia e Governador Interino do Estado do Brasil:

A primeira ocasião de retorno de D. Vasco de Mascarenhas, já feito Conde de Óbidos, para a


Bahia, foi para compor a esquadra do Conde da Torre, empreendida entre 1638 e 1639 com o objetivo
de resgatar a capitania de Pernambuco, invadida em 1630. Embora a associação entre a jornada dos
vassalos e a armada liderada por Torre seja recorrente, afinal, tratava-se de resgatar o nordeste da in-
vasão neerlandesa durante a era dos Filipes, muito tinha mudado nesses anos, inclusive internamente
dentro das fronteiras das monarquias ibéricas. Como afirma Rafael Valladares “(...) La empresa de
1638 no podía compararse com aquélla (de 1625)” 133.

Os elementos que as distinguiam tinham início ainda no processo de escolha do seu coman-
dante que não foi a primeira, mas a quarta nomeação régia para aquele posto, sem contar com os su-
jeitos que foram cotados, embora não nomeados para compô-la. Essa incerteza no processo de escolha
produziria uma redução na autoridade do seu comandante, situação agravada pelo seu desconheci-
mento do território. A liderança daquela armada operada por alguém que nunca havia ido ao Estado
do Brasil seria equilibrada pela experiência dos homens que acompanhariam o Conde da Torre. Em
sua carta de nomeação Torre foi informado sobre quais oficiais o acompanhariam naquela empreitada
e aqueles que deveriam aconselhá-lo. Faziam parte desse seleto grupo o capitão da artilharia, Dom
Vasco de Mascarenhas – Conde de Óbidos – do Conselho de guerra e Conselho de Sua Majestade; o

131 DHAM – Atas da câmara, V. I, pp. 240-241, 14 de junho de 1633. Vale ressaltar que essa foi apenas uma
prorrogação do da referida junta. Não foi possível, contudo, localizar a primeira. Nesse documento não é feita
referência sobre que valor o mestre de campo receberia como soldo.DHAM – Atas da câmara, V. I, p. 253-254.
10 de maio de 1634. Nessas missivas não se faz referencia sobre quanto o mestre de campo deveria receber
como soldo
132 É desconhecida a circunstância do seu retorno para o reino.
133 VALLADARES. Rafael. “Las dos guerras de Pernambuco. La armada del Conde da Torre y la crisis del
Portugal hispânico (1638-1641)”. In: SANTOS PÉREZ, José Manuel e CABRAL DE SOUZA, George F.(eds.).
El Desafio Holandés al Domínio Ibérico em Brasil en el Siglo XVII. Ediciones Universidad de Salamanca y los
autores, 2006, p. 50.

733
general da cavalaria– Dom Francisco de Moura134- do Conselho de Estado de Sua Majestade; o Mestre
de Campo general Dom Philipe de Moura; o general da armada castelhana – Don Juan Vega Bazan – e
o general da armada de Portugal– Francisco de Melo de Castro (substituído após o seu falecimento
por Dom Rodrigo Lobo). 135

Na missiva, o monarca chamou especialmente atenção de Dom Francisco de Moura e do Con-


de de Óbidos, ambos com experiência naquelas partes. O primeiro foi governador interino do Estado
do Brasil logo após a reconquista de Salvador em 1625 até a chegada do novo governador em 1627.
Possuía, portanto, larga experiência nas coisas da guerra e do Brasil e, por isso, o rei recomendava
que em tudo o que fosse possível, se ajustasse com seu parecer e o tivesse sempre em companhia. O
segundo oficial, o Conde de Óbidos,sujeito que além de possuir o mesmo título que o comandante da
armada, tinha sido cotado em 1635 para liderar aquela empreitada, e que deveria ser o substituto do
Conde da Torre no governo do Estado do Brasil quando este partisse com a armada para defesa de
Pernambuco.136

Para resolver os eventuais problemas que surgissem durante a viagem deveriam ser formadas
juntas (reuniões de aconselhamento) compostas pelas autoridades presentes anteriormente citadas–
“pessoas que se declaram na instrução com que vos haveis de aconselhar”.137As juntas, que poderiam
tratar sobre assuntos diversos, em suas primeiras edições trataram de temas relacionados com a orga-
nização e suprimento da estrutura militar.

Dadas todas as instruções, lançaram-se ao mar em oito de setembro de 1638 vinte e três em-
barcações portuguesas (mal abastecidas),que partiram sem a companhia de suas quinze consortes
castelhanas que permaneceram em Lisboa em virtude de atrasos em seus preparativos. Pouco mais de
um mês após a saída de Lisboa, a armada fez uma parada na ilha de Santiago em Cabo Verde em 16 de
outubro. Após essa estada foi identificada uma infecção generalizada, resultado da contaminação da
água e alimentos, que acarretou uma baixa de cerca de 1.100 homens138. A partir desse acontecimen-
to, as juntas decisórias se tornariam mais frequentes e tratavam de temas mais diversificados como a
forma de financiamento para o tratamento dos enfermos, trânsito de médicos entre as embarcações e
ainda a escolha de rotas marítimas. Por fim, depois de tantas mortes, decidiu-se por atracar em Salva-
dor, a fim de reorganizar as forças para o embate.

A armada chegou a Salvador em 18 de janeiro de 1639 (quatro meses depois da saída de Lis-
134Dom Francisco de Moura nasceu no além-mar e era filho de Alexandre de Moura, que fora capitão de
Pernambuco por muito tempo e conquistador do Maranhão. MARQUES, Guida. MARQUES, Guida. “L’union
iberique et la Restauration du Bresil sous la plume du Comte de Torre (1638-1640)”. In: L’invention du Bresil
entre deux monarchies: Gouvernment et pratiques politiques de l’Amérique portugaise dans l’union ibérique
(1580-1640). Tese de doutorado em história, EHESS: Paris, 2009, nota 154, p. 437.
135CICT. 21 de julho de 1638, vol II. [1], p. 13-19.
136 CICT., vol II. [1], p. 13-19 e vol II. [2], p. 20-22. Ambas datadas de 21 de julho de 1638. Embora o ofício de
governador interino do Estado do Brasil tivesse sido dado inicialmente a Dom Francisco de Moura que já tinha
governado interinamente o Estado do Brasil após a vitória da Jornada dos Vassalos em 1625, foi transferido
para o Conde de Óbidos. A experiência de Moura foi apresentada como justificativa pelo monarca para que ele
não se ausentasse da armada de resgate a Pernambuco.
137CICT. 14 de setembro de 1638, vol. I. [34], p. 67- 72.
138VALLADARES, Rafael. “Las dos guerras...”, 2006, p. 34-37.

734
boa) e o Conde da Torre tomou posse do governo-geral dois dias depois. Tão logo de sua chegada, o
governador visitou armazéns e o presídio para fazer um levantamento do número de soldados, pól-
vora e de tudo o mais que estes continham, e lamentou ter encontrado apenas seis terços com 2.398
soldados efetivos, dos quais 98 encontravam-se doentes, 128 em campanha e 530 dentre os quais
constavam moleques de 12 a 17 anos de idade e “negrinhos”. Contou ainda 291 índios liderados por
Dom Antônio Felipe Camarão, dos quais 22 estavam enfermos e 16 em campanha com 67 oficiais139.
Feito este balanço, concluiu que para a defesa da cidade era preciso deixar no mínimo 1.500 homens,
relembrando a importância da preservação da capital do Estado do Brasil.140 Para a armada seriam
necessários ao menos três ou quatro mil homens. Isso significava que após tantas perdas durante a
viagem, era indispensável fazer um recrutamento do máximo de homens que se pudesse encontrar,
para além do recolhimento e reparo de armas enquanto se esperava também socorro do reino141.

Abastecimento de alimentos e peças de artilharia, recrutamento e conserto das embarcações


foram os três problemas centrais enfrentados. Sobre os alimentos, deveriam ser fornecidos pelas loca-
lidades de Ilhéus, Boipeba e Camamu, bem como através da determinação da substituição do cultivo
de tabaco pelo de mandioca. Das referidas tarefas, coube ao Conde de Óbidos como capitão general
da artilharia, o alistamento e recrutamento para a guerra, tarefa que deveria ser feita por todo o recôn-
cavo para formar os terços.142

No caso da Bahia o recrutamento tornou-se especialmente difícil após o ano de 1625, quando
a chegada de tropas regulares para a defesa de Salvador deslocou um grande contingente de homens
para o abastecimento de alimentos, reduzindo o número de indivíduos disponíveis para o exército.
Entretanto, contrariando as expectativas de que o conhecimento prévio do Conde de Óbidos daquelas
partes, bem como o auxílio do mestre de campo Luis Barbalho Bezerra seriam capazes de arregimen-
tar homens em Salvador e seu recôncavo, o resultado foi insignificante, pois reuniu apenas sessenta
homens, extraídos dos retirantes pernambucanos que se encontravam no recôncavo143. A estratégia
usada para esse alistamento foi o estabelecimento de uma ordem assinada pelo Conde da Torre que
determinava que toda pessoa, de qualquer condição, que estivesse morando dentro ou fora da cidade,
vinda das capitanias do norte, deveria apresentar-sea ele, capitão da infantaria, no período de oito
dias.144 Tal convocatória, todavia, não parece ter surtido o efeito desejado e precisou ser repetida algu-
mas vezes, aumentando inclusive o prazo de apresentação. 145

Para além do recrutamento, a provisão da artilharia necessária bem como a fortificação das
praças, que deveria ser feita pelo exército, foi uma problemática cuja falta de resolução produziu vasta
139CICT. 7 de fevereiro de 1639, vol I. [110], p. 241-245.
140CICT. 21 de julho de 1638, vol II. [1], p. 13-19.
141CICT. 7 de fevereiro de 1639, vol I. [110], p. 241-245.
142 CICT. 17 de fev. 1639, vol. II. [67], p. 188.
143BA 51-X-6, fl. 499. Citado por: LENK, Wolfgang. Guerra e pacto colonial: Exército, fiscalidade e administra-
ção colonial da Bahia. (1624-1654). Tese (doutorado), História Econômica, Instituto de Economia, Unicamp,
2009, p. 88.
144 Acerca da migração de pessoas fugidas das capitanias do norte para a Bahia, ver: MELLO, José Antônio
Gonsalves de. Tempo dos Flamengos: Influência da ocupação holandesa na vida e cultura do norte do Brasil.
Recife: Topbooks, 2007. CICT. 11 de fevereiro de 1639, vol. III. [6], p. 16.
145CICT. 24 de julho de 1639, Vol. III. [121], p. 196.

735
documentação.146 Sobre os atrasos, Óbidos justificava que costuma “facilitar todos os inconvenientes
[...][no entanto, afirma que] nada disso se pode obrar sem dinheiro, que é o que me toca, e a falta dele
é a causa de não haver começado a trabalhar na ferragem dos repairos”. Reitera que seu poder não é
suficiente para obrigar os oficiais a trabalhos sem assegurar pagamentos e que apenas a autoridade do
governador poderia fazê-lo, mesmo que não se conseguisse a quantidade de dinheiro ideal. 147

Cerca de um mês depois, no dia 3 de junho, o Conde de Óbidos relatou que pouco havia mu-
dado desde a escrita da carta anterior no que tange ao apresto da armada, afinal “nada se pode obrar
sem dinheiro”. A respeito das armas que se encontravam com os capitães, pediu que o governador
cobrasse a sua entrega, pois “eu não tenho mais mão nesse particular que recorrer a vossa senhoria
como quem pode obrigá-los”. Nota-se que a todo tempo, o Conde de Óbidos afirmava a necessidade
de uso da autoridade do governador para efetivar o seu mando. É válido lembrar que em sua expe-
riência prévia como mestre de campo (entre os anos de 1626 e 1634), o Conde de Óbidos era o braço
direito do governador Diogo Luís Oliveira, e respaldava suas ações na autoridade daquele. Retornando
à missiva, Óbidos conclui informando que “[...] o tempo vai passando brevemente e se chagará o prazo
que Vossa Senhoria tem limitado sem se haver obrado coisa de importância”. 148

Em resposta a essa carta do general da artilharia, o governador relatou sobre o pouco dinheiro
que tinha e disse que para solucionar a questão convinha que agissem “com destreza e manha, pagan-
do-se alguma destas coisas em roupa e outras se tomando sobre crédito”.149 No mesmo dia enviou car-
tas ao provedor-mor e ao capitão da armada ordenando-lhes que dessem crédito ao Conde de Óbidos
e lhe entregassem as armas dos soldados que morreram150.

A partir do mês de junho, encontra-se uma lacuna na documentação que inviabiliza a com-
preensão acerca da conclusão do apresto da armada que finalmente zarpou em novembro de Salvador.
Contudo, o quadro de crise vivido pela Bahia desde a invasão holandesa de 1624, bem como as difi-
culdades financeiras, de recrutamento e de plantio de mandioca conduzem à ideia de que, assim como
tinha ocorrido em setembro de 1638 quando a expedição saiu de Lisboa, com recursos insuficientes,
não foi possível realizar o abastecimento de tudo o necessário.

Em novembro de 1639, quando já se encontrava em alto mar a caminho de Pernambuco, dei-


xando em Salvador o Conde de Óbidos como governador interino do Estado do Brasil, Torre escreveu
para falar da conduta de alguns oficiais que o tinham acompanhado e também informar ao monarca
sobre aquilo que não foi feito. Torre desqualificou o seu substituto e afirmou que este, juntamente com
D. Francisco de Moura, “mais me serviram de embaraço que de ajudadores”.E prosseguiu fazendo uma
série de denúncias que os definiam como medrosos e preguiçosos151.

146CICT. 25 de abril a 5 de maio, vol. II. [119-122], p. 270-279.


147CICT. 5 de maio de 1630, vol. II. [125], p. 287-288. Embora o documento indique a data de 1630, o contexto
nos permite afirmar que o documento foi escrito em 1639.
148CICT. 03 de junho de 1639, vol. II. [127], p. 291-293.
149CICT. 03 de junho de 1639, vol. II. [128], p. 294-295.
150CICT. 03 de junho de 1639, vol. II. [129 e 130], p. 295-296.
151 CICT. 26 de novembro de 1639, vol. I. [199], p. 427-430. A carta data de 26 de novembro, embora uma
primeira versão tenha sido enviada em 24 de novembro de 1639.

736
De todo o modo, essa carta parecia antever a grande catástrofe que se aproximava. O plano
de ocupar o porto de Nazaré no Cabo de Santo Agostinho com metade da tropa, enquanto as forças
de resistência agiriam do interior em direção ao litoral para cercar o inimigo por todos os lados fra-
cassou. Más condições marítimas o obrigaram a afastar-se de seus planos iniciais de invasão e este só
conseguiu chegar com grande atraso no Cabo de São Roque (Rio Grande do Norte), pois os holande-
ses o esperavam em grande número e muito bem armados na altura da ilha de Itamaracá. Entre os dias
12 e 17 de janeiro de 1640 aconteceram encontros desfavoráveis para o Conde da Torre que ordenou
o retorno para Bahia quando só tinha desembarcado cerca de 1300 a 1400 homens. E assim se deu a
derrota da armada do Conde da Torre. 152

Pouco se sabe acerca do curtíssimo período de governo interino do Conde de Óbidos (de
novembro de 1639 ao princípio de fevereiro de 1640), apenas se tem vagas notícias através dos rela-
tos do Conde da Torre.153 Tão logo do seu regresso a Salvador, o Conde de Óbidos retornou ao reino
sem ordem régia, nem dar notícia de sua viagem ao governador.Este acontecimento foi relatado em
carta escrita por Torre para o Conde Duque de Olivares e também para seu tio e presidente do Con-
selho de Portugal, Duque de Villahermosa154. Na missiva endereçada ao seu tio,Torre fez uso de um
vocabulário ácido e trouxe também elementos esclarecedores acerca de seu relacionamento com seu
substituto, afirmando que existia uma predisposição para uma possível amizade entre esses dois ho-
mens, já que “O Conde de Óbidos é e sempre foi meu inimigo. [...] O caso é, meu tio e meu senhor,
que este cavalheiro não pode ser meu amigo porque é irmão de D. Dinis de Lencastre com quem tive
tão apertadas e rotas quebras”. 155 Dias depois, escreveu mais uma vez a seu tio, e além de fazer novas
queixas e acusações sobre Óbidos e Moura, pedia para livrar-se desse último e mandá-lo para onde
não o visse. Completou dizendo que temia mais “as malícias” de Moura e Óbidos que os próprios ho-
landeses, porque estes eram muito menos valentes do que supunha que fossem e que “os estimava em
muito pouco valor”. 156

O desempenho de diferentes funções: Considerações finais

Conforme relatado anteriormente, a primeira atuação de D. Vasco de Mascarenhas na cidade


da Bahia se dera em um contexto bastante crítico, quando este ocupou o posto de mestre de campo
da infantaria em uma sociedade obrigada a vestir, alimentar, dar moradia, pagar soldos e conviver
com um contingente novo: o primeiro terço de infantaria paga do Estado do Brasil. “Anos de ferro da
Bahia” foi a maneira como o então governador, grande aliado de Mascarenhas chamou aquele perío-
do. Embora a análise comparativa com outros governadores e períodos nos dê a dimensão de ser esta
uma prática recorrente: exaltar as dificuldades vivenciadas para dar maior ênfase às suas conquistas,

152 VALLADARES. Rafael. “Las dos guerras...”, 2006, p. 34-38.


153 Nas Atas da Câmara só há a nomeação de Óbidos para o governo interino e não documentação sobre sua
ação governativa. Documentos Históricos do Arquivo Municipal (DHAM). V.1 p. 427. 22 de novembro de
1639. Auto de Posse que se deu a Dom Vasco de Mascarenhas Conde de Óbidos.
154 CICT. 25 de março de 1640, vol. I. [216], p. 449-450.
155CICT. Abril de 1640, vol I. [219], p. 456-459.
156CICT. 25 de março de 1640, vol I. [218], p. 452-456.

737
não podem ser negadas as dificuldades vividas nas décadas de 1620/1630, que contaram ainda com
algumas tentativas de invasão neerlandesa. Nesta circunstância a autoridade foi por vezes chamada de
tirânica e mostrou-se bem alicerçada através de um braço militar materializado na figura do amigo de
longa data – D. Vasco de Mascarenhas.

Anos mais tarde, já feito Conde de Óbidos, Mascarenhas foi identificado pelo monarca como
detentor de conhecimento daquelas partes e, por isso, deveria ser sempre ouvido pelo governador ge-
ral Conde da Torre, figura que jamais havia posto os pés no Estado do Brasil. Nessa circunstância, que
assim como anos antes,permanecia a situação de falta de recursos e iminente risco de invasão holan-
desa, portanto, era preciso agregar conhecimento e autoridade como se fazia na época de Diogo Luis
de Oliveira. É isso que fica claro a partir da leitura de cartas de Óbidos que afirmam: “eu não tenho
mais mão nesse particular que recorrer a vossa senhoria como quem pode obrigá-los”157 Ou ainda:
“Nada disso se pode obrar sem dinheiro, que é o que me toca, e a falta dele é a de haver começado a
trabalhar na ferragem dos repairos”158.

É verdade não ser possível afirmar que o bom relacionamento entre governador geral e gene-
ral da artilharia seria necessariamente capaz de promover o êxito em situações como o levantamento
de armas e reparo das embarcações como se poderia inferir das afirmações do Conde de Óbidos.Do
mesmo modo, pode-se afirmar que o conhecimento prévio daquelas terras não era capaz de assegurar
sozinho a autoridade do mando, sem que houvesse o respaldo de uma autoridade maior. Isso significa
que, no caso da segunda ida de D. Vasco de Mascarenhas ao Estado do Brasil, suas práticas não foram
capazes de auxiliar na manutenção e preservação do Império. Embora não se possa determinar o al-
cance real que as redes pessoais desempenharam nesse caso, é inegável que a interferência das redes
cortesãs no ultramar foi um elemento que dificultou o pleno desenvolvimento da administração do
Estado do Brasil.

Sobre a misteriosa fuga do Conde de Óbidos, não se tem notícias da sobrevivência de qualquer
escrito. Tão logo de sua chegada a Lisboa, deu-se a Restauração portuguesa, inaugurando uma longa
guerra que demandava o apoio de todos os nobres com experiência militar dispostos a lutarem ao lado
dos Bragança. Era tempo de esquecer as desavenças e promover a união. Assim, o Conde de Óbidos
foi imediatamente nomeado para o Conselho de Guerra e ocupou outros ofícios como o governo do
Algarve (por duas vezes), o governo de Armas do Alentejo e o vice-reinado do Estado da Índia. Seu
conhecimento do Estado do Brasil, associado à sua rede de aliados, tinha promovido a indicação de
seu nome em duas ocasiões para ocupar o governo do Estado do Brasil. Uma primeira vez em fins de
1644, quando o recém-formado Conselho Ultramarino o indicou como sucessor de Antônio Teles da
Silva;159 ocasião em que Óbidos foi indicado como primeira opção por quatro dos cinco conselheiros
presentes, à exceção de Salvador Correia de Sá e Benevides, que não o indica em nenhuma ordem de
preferência. Cabe ressaltar que o presidente do Conselho, Marquês de Montalvão justificou seu voto
com o fato do Conde de Óbidos ser muito amado no Brasil. É válido lembrar que Montalvão foi o

157CICT. 03 de junho de 1639, vol. II. [127], p. 291-293.


158CICT. 05 de maio de 1639, vol. II. [125], p. 287-288.
159 AHU-LF. Cx.9/Doc. 1087. Documento duplicado em: AHU-Consultas Mistas, Cód. 13. Fl. 148v-149v.

738
primeiro vice-rei do Estado do Brasil, onde permaneceu entre 1640 e 1641160.

Essa sugestão, entretanto, não foi acatada pelo monarca.A resposta régia, escrita de punho
próprio à margem da consulta, dizia não ser competência do Conselho Ultramarino tratar do governo
do Brasil161. Anos mais tarde, em 1660, o então governador geral do Brasil Francisco Barreto escreveu
para Salvador Correia de Sá no Rio de Janeiro e relatou, entre outros assuntos, que conforme notícias
que chegaram de Cabo Verde, o Conde de Óbidos e D. Luiz de Almeida tinham sido cotados para
substituí-lo. Essa nomeação, contudo, só viria a acontecer em 1663, passados 23 anos de sua saída da
Bahia, quando seria novamente nomeado para ocupar um posto no Estado do Brasil, dessa vez, como
autoridade máxima.

Sua experiência prévia certamente foi levada em conta quando de sua escolha, mas não era
suficiente para assegurá-la como indicações anteriores podem confirmar. A esta se somaram aspec-
tos ligados à política cortesã. Em junho de 1662, operou-se um golpe que derrubou Vintimilha (que
foi degredado para o Brasil), e a própria rainha D. Luísa de Gusmão, levando ao poder D. Afonso VI
que tinha como valido Luís de Vasconcelos e Sousa, 3º Conde de Castelo Melhor. A queda da regente
promoveu transformações na carreira do Conde de Óbidos, pois, decorridas algumas horas após o
golpe, este foi escolhido como Conselheiro de Estado, juntamente com outros cinco fidalgos e, uma
semana depois, nomeado para o governo do Estado do Brasil162. Desse modo, a nomeação do Conde
de Óbidos era resultado de alterações ocorridas dentro da casa real e a seu favor se daria também a
confirmação do título de Conde, concedido vinte e seis anos antes. Seu favorecimento não foi um caso
isolado, pois nesse período deu-se a libertação de alguns presos e o retorno de desterrados aliados
do Conde de Castelo Melhor, muitos dos quais acabaram por ocupar lugares-chave nos tribunais do
reino, na Casa Real, na hierarquia eclesiástica e nos conselhos palatinos.163

Seria especialmente em sua terceira ida à Bahia que sua experiência anterior seria acionada,
quando pôde reunir conhecimento das terras e a autoridade necessária para o governo,sendo sua
ação mais efetiva e trazendo resultados mais imediatos para a manutenção do império. Nessa ocasião
em que foi criado o primeiro regimento de Governadores de Capitania e uma normativa que reduzia
significativamente o salário do secretário geral do Estado Brasil, não faltaram acusações de tirania e
abuso de autoridade, bem como foram abundantes os conflitos que envolveram o vice-rei e o Conse-
lho Ultramarino, governadores de outras capitanias, poder judicial (Tribunal da Relação e Secretário

160 Os conselheiros eram o Marquês de Montalvão, João Delgado Figueira, Jorge de Castilho, Jorge de Albu-
querque e Salvador Correia de Sá. AHU-LF. Cx.9/Doc. 1087. O mesmo documento pode ser encontrado tam-
bém com outra referência. AHU-Consultas Mistas, Cód. 13. Fl. 148v-149v.
161 Despacho do Rei à margem. AHU-Consultas Mistas, Códice 23, F. 148. A resolução régia sobre a escolha
do governador-geral do Estado do Brasil gerou tréplica dos conselheiros que afirmavam que a referida escolha
estava entre as coisas mais importantes ao governo de seus reinos e senhorios e que os antecessores de D. João
IV nunca tinham procedido às eleições sem consultar previamente os conselheiros. Sobre o assunto, ver: BAR-
ROS, Edval de Souza. Negócios de Tanta importância: O Conselho Ultramarino e a disputa pela condução da
guerra no Atlântico e no Índico (1643-1661). Lisboa: CHAM, 2008, p. 127.
162DANTAS, Vinícius. “Um rei que lia Maquiavel? Uma aproximação ao governo do Conde de Óbidos (1663-
1667)”. In: MONTEIRO, Rodrigo Bentes & BAGNO, Sandra (orgs). Maquiavel no Brasil. Dos descobrimentos
ao século XXI. Rio de Janeiro: FGV, 2015, pp. 110.
163 XAVIER, Ângela Barreto e CARDIM, Pedro. D. Afonso VI. Lisboa: Temas e Debates, 2008. pp. 153-156.

739
Geral do Estado do Brasil), sem falar dos que se estabeleceram na municipalidade. Mas essa é outra
história164.

REFERÊNCIAS:

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BARTOLOMÉ DE LAS CASAS: UMA BREVÍSSIMA NARRATIVA DO NOVO MUNDO


Felipe Henrique Cadó Salustino165
Sebastião Leal Ferreira Vargas Netto166

Bartolomé de Las Casas é figura expressiva no que diz respeito à relação entre o Novo Mundo e o
Velho Mundo do século XVI, pois seus escritos tem uma contribuição significativa no que tange a for-
mação das opiniões acerca da conquista da América. Sua motivação ao discursar sobre as aterradoras
ações europeias contra os povos nativos daquela região foi relatar os acontecimentos visto ou sabido
por ele, assim como, para que não fosse apagado com o tempo as ações narradas dos colonizadores, na
tentativa que a situação modificasse.

Este estudo trabalha com dois discursos do frei Bartolomé de Las Casas: o discurso em Valladolid
e a obra Brevísimarelación de ladestruición de lasIndias. A escolha dessas obras dar-se-á pelos seus
valores, suas repercussões e o diálogo existentes entre elas, tendo em vista que o dominicano escreveu
a Brevísimarelaciónanos antes da controvérsia de Valladolid, porém sua reprodução só veio a ser feita
depois do debate travado. Creditamos a estas duas obras de Las Casas a construção de um espaço por
meio da linguagem, em que permitiu ao religioso a sustentação e proteção dos territórios e habitantes
do Novo Mundo. Por meio destas narrativas, pretendemos analisar a criação dos sujeitos e dos espaços
relatados e sua representação na luta do frei, tanto na cultura ibérica quanto nas terras descobertas.

Neste sentido, serão analisados estes discursos lascasianos procurando entender como sua escrita
fomenta uma defensa do nativo frente ao massacre empregado pelos colonos, tomando por base al-
gumas utilizações de conceitos, como alteridade167 e tropos168, que fazem parte da estrutura da Breví-
simarelación. Esta leitura se dará por base do método de interpretação da construção discursiva, ins-
165 Estudante regular do curso de Mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: felipe_kdo@yahoo.com.br
166 Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte no Departamento de História.
167 Este conceito é bastante explorado na obra de Todorov: “Posso conceber os outros como uma abstração,
como uma instância da configuração psíquica de todo indivíduo, como o Outro, outro ou outrem em relação a
mim. Ou então como um grupo social concreto ao qual nós não pertencemos.” (TODOROV, 2010, p.3-4)
168 “Segundo Hayden White, o tropo ou emprego das palavras em sentido figurado é ‘a alma do discurso’, me-
canismo sem o qual o discurso ‘não pode fazer o seu trabalho ou atingir seu objetivo.” (SHOHAT; STAM, 2006,
p. 199)

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pirado pela obra de François Hartog (2014), com o intuito de compreender o encontro entre nativos e
europeus, bem como as suas representações.No entanto, o objetivo não é traçar uma historicidade so-
bre as nomeações do espaço político que compõe hoje a América Latina, todavia é realizar um estudo
acerca da criação discursiva feita por Bartolomé de Las Casas de seus personagens e das espacialidades
contidas em seus textos. Pois ao contar sobre as Indias Ocidentais, Las Casas vira o espelho que reflete
sobre um espaço europeu do saber e constrói no mesmo movimento uma representação sobre o outro
(GRUZINSK, 2003). Mas longe deste espelho mostrar uma imagem desse índio como real, o proces-
so da modernidade e o choque entre os dois mundos produziu uma imagem em que a Europa pôde
se confrontar com o seu “Outro” e controlá-lo, vencê-lo, violentá-lo: quando pôde se definir como o
“ego” descobridor, conquistador, colonizador da Alteridade constitutiva da própria modernidade. De
qualquer forma, esse Outro não foi descoberto como Outro, mas foi “en-coberto” como o “si-mesmo”
que a Europa já era desde sempre (DUSSEL, 1993).Em um contexto de um crescente humanismo cris-
tão da renascença, da Reforma Protestante e, principalmente, dos expansionismos das nações Ibéricas
para o Novo Mundo, Las Casas, com suas publicações, conseguiu atrair a atenção da Coroa espanhola
para suas lutas e contribuiu para visualização das barbaridades cometidas contra os nativos.

Las Casas era filho de um mercador que esteve na segunda viagem de Colombo às terras desco-
bertas, no ano de 1493. Desta ida do pai ao Novo Mundo acontece o primeiro contato de Bartolomé de
Las Casas com as Índias Ocidentais e com os nativos que ali viviam, pois seu pai trouxera consigo um
jovem indígena que recebera de presente do comandante da expedição, mas logo teve que devolvê-lo
por ordem da rainha Isabel já que se tratava de um período no qual as leis espanholas manifestavam-
-se com métodos de diminuir os abusos e as escravaturas indígenas (FREITAS NETO, 2003, p. 34).

Bartolomé de Las Casas nasceu em Sevilha, Espanha, em 24 de agosto de 1484169 e morreu em


Madrid – após anos de luta à procura de dar liberdade aos povos nativos – em 1566. Este personagem
ímpar na história da colonização da América foi um encomendero170, padre da ordem de São Do-

169 Há uma problemática em torno da data de nascimento do personagem, Isacio Pérez Fernández traz essa
discussão em seu livro, Bartolomé de Las Casas: Viajero por dos mundos: “[...] los historiadores loconsideraro-
nel fecha delnacimiento, basado em datos de un cronista tardío, de loscualeslodedujeron, aunque desacertada-
mente. Poco después se adujo un documento del que se desprendía que no nació sino diez años después; y esta
noticia llegó a tiempo para que los lascasistas promovieran nuevamente la celebración del centenario em 1984.
El documento no es taxativo. Posteriormente, yo tuve la suerte de dar con otro que, resueltos ciertos problemas
que planteaba el anterior y él mismo, [...].” (FERNÁNDEZ, 1998, p. 17).
170 Para entendermos bem essa mudança de pensamento do religioso é importante percebermos o que as pala-
vras designavam nesse tempo. Eduardo Galeano nos apresenta, de forma geral, o que eram as encomiendas e os
encomenderos: “Aos conquistadores e colonizadores eram ‘encomendados’ indígenas para serem catequizados.
Mas como os índios deviam ao ‘encomendero’ serviços pessoais e tributos econômicos, não sobrava muito tem-
po para introduzi-los à senda cristã da salvação. Em recompensa de seus serviços, Hernán Cortez recebeu 23
mil vassalos; os índios eram repartidos ao mesmo tempo em que se outorgavam terras através de mercês reais
ou eram obtidas por despojos. Desde 1536 os índios eram distribuídos por ‘encomienda’, junto com seus des-
cendentes, até o final de duas vidas: a do ‘encomendero’ e a de seu herdeiro imediato; a partir de 1629, o regime
foi se estendendo na prática. Vendiam-se as terras com os índios dentro.” (GALEANO, 201, p. 69)

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mingos, cronista, teve formação teológica e filosófica, jurista e bispo de Chiapas (México)171, sendo
o primeiro sacerdote ordenado na América. Dedicou-se à causa indígena após sua conversão para a
ordem dominicana, tornando-se o procurador e protetor universal de todos os índios das Índias172.
Partiu para desbravar o Novo Mundo aos dezoito anos, chegando à Ilha Espanhola (hoje República
Dominicana) em 1502 como clérigo seduzido pelas riquezas e grandezas oferecidas pelas novas terras.
Neste sentido, nada o distinguia dos demais europeus que ali aportaram, pois, a ação espiritual estava
indissoluvelmente ligada à conquista material. Para ele, até então, não havia motivo para condenação
ou incoerência entre o trabalho de cristianizar os nativos e o de explorar a Colônia. Isto suscita uma
discussão muito frequente nas publicações sobre o dominicano, pois suas características antes e de-
pois de sua conversão são muito antagônicas. Contudo Las Casas chega as Antilhas como leigo apenas,
e somente em 1510 – data da chegada da Ordem dos Dominicanos em Santo Domingo e a instalação
do primeiro convento naquele local – que ele consegue tornar-se sacerdote secular173. Muitos desses
religiosos174 fundadores ficaram assustados com a servidão imposta pelos encomenderos aos nativos,
começando dali uma organização que denunciaria aquela situação. Eles, já instalados naquele novo
território, vão marcar uma nova fase na história da América, pois os mesmos assumiram uma postura
de não somente condenarem os conquistadores e suas explorações, mas lutaram por um novo modelo
de colonização, orientado pela justiça social e inspirado pelos valores cristãos. Porém, teremos nos
primórdios da Conquista um terreno bastante favorável para a implantação de um sistema de opres-
171Las Casas aceita o bispado para ter maior poder em sua luta em prol a liberdade dos indígenas do Novo
Mundo, como descreve Brading: Para ayudar a laaplicación de esas reformas, elproprioLas Casas aceptóelnom-
bramiento de obispo de Chiapas, una diócesisnuevaenlafronteradel México actualcon Guatemala. Sin embargo,
tanto él como la misión dominica que lo acompañó entraron pronto en conflicto a la vez con la comunidad de
los colonos y las autoridades civiles. Las Casas insistía en que debía prohibirse la absolución a todos los peniten-
tes españoles, incluso en su lecho de muerte, a menos que firmaran un acto formal de restitución que devolvía
a los indios todos los bienes y propiedades que habían adquirido. Al mismo tiempo, Las Casas advirtió a la au-
diencia, tribunal real local, que todos los casos de maltrato a los indios caían bajo su jurisdicción como obispo.
Tampoco vaciló en amenazar a sus opositores con la excomunión.” (BRADING, 2004, p. 48).
172 Título dado por Francisco Jiménez Cisneros que foi religioso, pertencente a Ordem Franciscana, governou
a Coroa de Castela assumindo o governo entre 1506 e 1507 com a morte Felipe I e fez a transição para o governo
de Fernando, o Católico, que assumiria em seguida.
173 As ações religiosas têm sua maior contundência no território do México, despois da excursão ordenada por
Hernán Cortéz, datadas estas empreitadas mais de dez anos depois desses primeiros conventos dominicanos
nas Antilhas. Foi uma ação organizada e pensada em prol da evangelização em massa dos nativos, como explica
Ricard (1986): De un modo semejante, larealidadmisma de loshechos nos imponeellímite cronológico. Como
fecha inicial hemos tomado los años 1523-1524, ya que la obra realizada desde el desembarco de Cortés en
playas mexicanas se muestra apenas como preparación, sujeta a las mudables vicisitudes fortuitas de las prime-
ras empresas militares, que no podía en manera alguna tender a una cristianización en su conjunto. Cierto es
que los Doce, misión primera de los frailes menores, llegaron en 1524, pero bien puede fijarse como punto de
partida de la evangelización franciscana el año 1523: fue en éste cuando llegó a radicarse en Nueva España el
famoso Pedro de Gante, en unión de otros dos religiosos, que murieron muy poco tiempo después. En la his-
toria de la Iglesia en México el año 1523 inaugura el periodo que, por tradición ya, se llama ‘periodo primitivo’.
Periodo que viene a cerrarse en el año de 1572 con el advenimiento de los primeros padres de la Compañía de
Jesús. […] A través de este periodo la obra de la conversión de México casi está confiada en su integridad a las
tres órdenes llamadas mendicantes: franciscanos (1523-1524), dominicos (1526) y agustino (1533). Sería sufi-
ciente este hecho para investir de particular carácter a los años 1523-1572).” (RICARD, 1986, p. 34)
174 Um dos mais importantes dominicanos, no sentido de denunciar a situação imposta aos indígenas daquele
período, é Antônio de Montesinos. Este que subiu ao púlpito no ano de 1511 e denunciou com veemência, em
nome dos dominicanos daquela ordem, os maus tratos empregados e que os colonos estavam se distanciando
de Deus. (FREITAS NETO, 2003, p. 39).

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são e dominação. No início de século XVI a junção da propagação da fé cristã e o saque das riquezas
indígenas andavam de mãos dadas nas areias do território dos nativos, cujo papel desempenhado era o
de explorador e de vítima. A Coroa tinha um território vasto e uma mão-de-obra gratuita para explo-
rar: “a espada e a cruz marchavam juntas na conquista e no butim colonial.” (GALEANO, 2011, p. 41).

Assumiu somente em 1511 um discurso completamente diferenciado das suas ações destes nove
anos anteriores que viveu nas terras descobertas. Fora neste ano que os dominicanos fizeram mais
denúncias da situação de maus-tratos que viviam os índios e propuseram a Antônio de Montesinos
– importante voz dominicana que combateu os abusos cometidos pelos espanhóis na colônia – que
subisse ao púlpito para pregar, em um período litúrgico da Igreja Católica, anterior ao Natal, um dis-
curso que seria importante para a conversão futura de Las Casas.

Desta forma, o religioso se torna figura expressiva no cenário político da Espanha, produzindo
discursos contra a destruição do mundo dos nativos175. Seus textos, com uma retórica176 carregada,
povoavam o imaginário espanhol177 com a ideia de violenta e sangrenta conquista por parte dos colo-
nizadores, maculando as glórias da Conquista, sobretudo com a publicação da Brevísimarelación de
ladestruición de lasIndias, em 1552, sob o título de Brevísimarelación de ladestruyción de las Índias:
colegiada por elobispodonfrayBartolomé de Las Casas ó Casssus, de laorden de Sancto Domingo –
año de 1552, em que, segundo o bispo a crueldade e o terror foram a tônica da ação dos colonizadores.
E esta é sua denúncia em toda a narrativa, pois seus relatos aterradores tinham por objetivo comover
as autoridades para que fosse cessado o sistema genocida da colonização.

Este seu texto apresenta uma estrutura bem simples e vem adotado de uma configuração ao mesmo
tempo geográfica e histórica. Vai seguindo a conquista dos territórios durante o meio século desde a
chegada de Colombo em 1492 até praticamente 1541, partindo da Ilha Espanhola e acompanhando
a ocupação – e a “destruição” – das várias regiões. Seu quadro temporal é de acordo com as datas das
conquistas ou das implementações dos espanhóis, utilizando muito do trágico para dar dramaticidade

175 Vale ressaltar, porém, que seu discurso não eliminava a colonização, mas ressaltava a necessidade de rever
aquela forma colonizadora, como defende Freitas Neto: “A motivação do dominicano não era a suspensão da
colonização espanhola, mas antes uma retificação em seus caminhos, no qual o princípio da evangelização fosse
superior aos valores praticados na colônia. A crítica foi dirigida aos que abandonaram os valores morais que ele
defendia e incorporaram a cobiça, a crueldade, a violência. Las Casas denunciava a exploração e a dizimação
indígena, chegando a atingir a Coroa, através da leyenda negra, mas não tinha a pretensão de obter, nem de
requerer a renúncia ao poderio sobre as Índias”. (FREITAS NETO, 2003. p. 82).
176 A retórica é um fator preponderante na narrativa do dominicano, como explica Freitas Neto: “A capacidade
de Las Casas em instaurar um debate que interferisse na política das cortes espanholas dependeria da força de
seus argumentos, motivos pelo qual ele considera a retórica uma arma importante.” (FREITAS NETO, 2003, p.
12.).
177 Este imaginário não estava associado apenas ao que Las Casas produzia, ou outro viajante que entrara em
contato com o Novo Mundo, mas havia uma atmosfera mágica religiosa em seus escritos, com uma visão apo-
calíptica do aniquilamento do mundo e o nascimento de outro, além da experiência da catástrofe, pois como
infere Bruit (1995): “A catástrofe foi sentida, vivida, dolorosamente sofrida e estranhamente descrita e explicada
por Las Casas. A pintura do frei colocou a América num abismo de horrores e medos sem fim, como que pres-
sagiando um destino selado para sempre.” (BRUIT, 1995, p. 39-40).

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ao seu escrito178. O que Las Casas faz é uma crônica da colonização empregada em tempo linear nar-
rando os avanços da campanha colonizadora. Esta não é uma obra histórica simplesmente, porém um
material de acusação profética, em estilo praticamente apocalítico, em que o religioso tinha a intenção
de estimular uma consciência europeia acerca do índio, oprimido e injustamente tratado por uma
estrutura econômica e social (DUSSEL, 1978, p. 140) Porém, não se sabe quando Las Casas começou
a redigir este tratado, mas sabemos que ele o leu diante da Junta de Valladolid no ano de 1542179, sen-
do anterior até mesmo do mais famoso debate que travou com Juan Ginés de Sepúlveda: o Debate de
Valladolid180.

Neste debate com Sepúlveda, Las Casas apresenta diante de uma junta de teólogos e juristas suas ar-
gumentações sobre os índios não possuírem a servidão natural defendida pelo seu opositor com base
em Aristóteles, sustentando a ideia de que precisavam de proteção e conferir-lhes os valores humanos
que ele acreditava possuírem (GUTIÉRREZ, 2007). Esse debate resgatou uma série de argumentos,
leis e bulas papais que em seu conjunto se dirigiam a orientação e trazer novas formas de governar o
Novo Mundo, era a regulamentação das ações no território. Ou seja, nesta contenda discutiu-se en-
tre iguais sobre a capacidade de um terceiro de se governar e se os mesmos seriam verdadeiramente
homens (TODOROV, 2010, p. 219). O discurso em questão demonstra como Las Casas constrói sua
visão acerca do indígena e como o defende, promovendo-lhes valores e características que serão o
cerne de suas disputas para salvaguardar as vidas desses povos recém-descobertos.

Analisando profundamente estas discussões acerca do Novo Mundo que o Velho Mundo fizera, a
empreitada hispânica além-mar acaba por fazer emergir uma série de problemáticas que foram dis-
cutidas ao longo do século XVI, resultando na modificação de dogmas sociais e políticos da época. O
interesse nessa nova descoberta foi tão intenso que um dos grandes traços dos primeiros cinquenta
anos do século foi a liberdade de opinião que agitou a consciência espanhola fortemente. “No fundo,
todos queriam opinar sobre as riquezas inesgotáveis do Novo Mundo, sobre as longas jornadas e duros
sacrifícios para descobrir terras misteriosas e ricas em ouro, sobre a condição humana de milhões de
seres que habitavam o novo continente.” (BRUIT, 1995, p. 21).

Porém a obra de 1552 do dominicano foi utilizada como uma arma para ataques do mundo protes-
178 Como explane Hartog sobre este genero discursivo: “os esquemas trágicos servem, pois, como modelo
de inteligibilidade do poder despótico, permitindo inscrevê-lo na narrativa, dar conta de seu funcionamento,
explicar seu fracasso. Trata-se de um meio de que o narrador lança mão, para fazer o destinatário crer que tem
acesso a esse mundo outro, distanciado no espaço ou no tempo.” (HARTOG, 2014, p. 361). E como explica Frei-
tas Neto: “A opção encontrada por um dos maiores polemistas do século XVI, cujos efeitos de sua grande habi-
lidade retórica sobrevivem até hoje (para defender os indígenas dos maus cristãos) foi utilizar o gênero trágico.
A finalidade era convencer os ouvintes de sua proposição para, assim, alcançar o fim almejado: a cristianização
dos indígenas, evitando a sua eliminação por meio da violência.” (FREITAS NETA, 2003, p. 12).
179 Sua fala estava carregada de diretrizes cristãs, devido sua formação como frei dominicano, porém, como
nos apresenta Freitas Neto, esta contenda tem uma estruturação muito clara em prol de diminuir o dano da
colonização: “A denúncia por ele apresentada à Coroa era sua forma de assumir os compromissos de sua visão
religiosa. Os índios, vítimas inocentes, poderiam ser redimidos com a implantação de um outro modelo colo-
nizador, em que Castela e os índios pudessem coabitar o Novo Mundo.” (FREITAS NETO, 2003, p.23)
180 O Debate de Valladolid será analisado no capítulo posterior com mais profundida. Mas adiantamos que foi
a convocação de uma junta pelo rei Carlos V em 1550, na cidade de Valladolid para definir se era justa a guerra
contra os índios.

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tante europeu contra a Coroa espanhola, em que se criou a chamada Leyenda Negra181, fato que refor-
çou a imagem dos espanhóis como um povo sanguinário, cruel e corrupto e formulou um imagético
mundo americano que ficou, de certo modo, associado a estes discursos lascasistas, como podemos
observar a seguir:

A diez o quince leguas de Panamá estaba un gran señor que se llamaba Paris, e muy
rico de oro; fueron allá los cristianos e rescibiólos como si fueran hermanos suyos
e presentó al capitán cincuenta mil castellanos de su voluntad. El capitán y los cris-
tianos parescióles que quien daba aquella cantidad de su gracia que debía de tener
mucho tesoro (que era el fin e consuelo de sus trabajos); disimularon e dicen que se
quieren partir; e tornan al cuarto del alba e dan sobre seguro en el pueblo, quémanlo
con fuego que pusieron, mataron y quemaron mucha gente, e robaron cincuenta o
sesenta mil castellanos otros; y el cacique o señor escapóse, que no le mataron o pren-
dieron. (LAS CASAS, 1997, v. 1, p. 55)

Nesta passagem percebemos a utilização da dicotomia entre os povos exploradores e explorados


que o dominicano trabalha em seus escritos. Las Casas descreve um sujeito benevolente de um lado,
contra o tirano do outro e será essa representação dos cenários do Novo Mundo que será produzida
após as publicações de seus escritos. O dominicano foi testemunha privilegiada e autor de várias obras
sobre as novas terras descobertas, corroborando assim com a representação da Conquista da Amé-
rica e seu massacre e atuando na produção de uma imagem acerca do mundo em que relata em seus
escritos, permanecendo na memória americana a ideia de colonização com sangue e a passividade
indígena no território conflituoso que depois veio a ser denominado de América.

As narrativas de Bartolomé de Las Casas nos remetem a uma representação do outro e do espaço
americano que nos permitem identificar os reflexos do construto de uma imagem latino-americana
que se perpetua e dialoga com sua visão. O que podemos ressaltar é que Las Casas produz um fenô-
meno de representação do espaço que viria a ser América. Optamos por trabalhar com um conceito
central como algo concreto, ou seja, que a representação é um ressignificado do universo que o nosso
personagem faz parte. Como nos alerta Leandro Karnal: “A representação assim, não é apenas um
reflexo, imagem distorcida ou ‘fingimento’ sobre uma pretensa base real, ela é parte do real, criada e
criadora do mundo ibero-americano do século XVI.” (KARNAL, 1997, p. 221). O mundo europeu da
época perpetuou a visão do encontro, do choque de culturas, em que seus textos serviram para lan-
çar luz sobre o mundo que o inspirou, sendo esta a representação difundida, principalmente com as
tipografias e as inumeráveis publicações. Ora, o que Las Casas fez foi refletir através de seu espelho o
indígena que quis criar. Neste sentido, o outro foi captado por uma visão ocidental, por meio de uma
espécie de reflexo lascasiano que não trouxera a imagem real, mas apenas as representações do mundo
indígena, principalmente por meio deste olhar espanhol (GRUZINSKI, 2003).

O bispo de Chiapas procurava dar um novo direcionamento para aquela colonização sangrenta,
181 A chamada Leyenda Negra foi um rótulo criado, principalmente na Alemanha e na Holanda, para propagar
uma imagem dos espanhóis como um povo sanguinário e para isto a obra de Bartolomé de Las Casas consoli-
dou-se como um importante meio desta propagação.

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porém sua motivação não vem em um desejo de suspender a expansão espanhola, intuito este dos
países rivais que, desejosos em acabar com a crescente da Coroa de Castela, com o ideal da legenda ne-
gra. Las Casas procurava ratificar e mostrar que era necessário enveredar-se por outro caminho para a
colonização – longe da cobiça, crueldade e violência –, propunha a revisão dos métodos que estavam
sendo empregados e uma reforma nas Índias. Sua atuação política e as leis geradas no período, a saber
as Leis Novas de 1541, representaram esta postura de refazer a ordem. Porém, o que Las Casa queria
fazer era conciliar interesses inconciliáveis: os dos colonos que caçavam índios e os exploravam, com
os dos nativos que não queriam ser subjugados e explorados e por fim os interesses da Coroa que se
via enriquecer com as explorações do primeiro sobre o segundo. O dominicano relata em uma passa-
gem na Brevísima, com um certo entusiasmo, as ações de padres que predicaram no reino de Yucatán,
trazendo para os indígenas a fé católica e apresentando um outro rei que eles não conheciam, os reis
de Castela:
Doce o quince señores de muchos vasallos e tierras, cada uno por sí, juntando sus
pueblos, e tomando sus votos e consentimiento, se subjectaron de su propia voluntad
al señorío de los reyes de Castilla, rescibiendo al Emperador, como rey de España,
por señor supremo e universal; e hicieron ciertas señales como firmas, las cuales ten-
go en mi poder con el testimonio de los dichos frailes.

Estando en este aprovechamiento de la fe, e con grandísima alegría y esperanza los


frailes de traer a Jesucristo todas las gentes de aquel reino que de las muertes y guer-
ras injustas pasadas habían quedado, que aún no eran pocas, […]. (LAS CASAS,
1997, v. 1, p. 109-111)

Ou seja, Las Casas não queria diminuir o poder político da Coroa, nem muito menos pretendeu,
mas suas ações políticas resultaram na condenação dos colonos e no protetorado dos indígenas, pois o
bispo queria que o direito de súditos fosse estendido para os índios, assim como era para os espanhóis
(FREITAS NETO, 2003, p. 83).

Las Casas expande seus ideais na tentativa de salvaguarda os índios, ao tentar fazer com que a Co-
roa cessasse a matança, mas acreditava na necessidade daquele território ser espanhol, pois era uma
relação benéfica para os nativos do Novo Mundo ser súditos da Coroa espanhola. Ou seja, ele defen-
deu que, na prática, a colonização era um benefício para os indígenas, todavia, o que Las Casas não
aceitava era a maneira que estava sendo posta aquela empreitada. Análises mais densa dos discursos
de Las Casas não admitem perceber uma autonomia absoluta para os índios, pois o religioso defendia
a ideia de que os nativos deveriam ser atraídos para o cristianismo de modo pacífico, sem violência e
sem coerção, mas também não se poderia admitir a recusa indígena a esta conversão. Sendo assim, a
sua preservação perpassa pela transformação cultural, pretendendo reorientar as civilizações indíge-
nas (FREITAS NETO, 2003, p. 58).

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Las Casas escreveu sua obra mais famoso em meios aos debates das NuevasLeyesde 1542182 e, mais
importante, em meio a utilização em escala cada vez maior da imprensa. O bispo escreve sua Breví-
simaem forma de epítome na intenção de trazer conhecimento do que acontecia, no que ele entendia
por Índias, ao príncipe de Castela, Don Felipe. Deixa bem claro ao seu soberano que já havia enviado
notícias sobre aquelas terras anteriormente, mas acreditava que o príncipe não tinha lido ou já esque-
cera, então o reescrevia para ressaltar suas denúncias e críticas no que ele chama de “argumentos desse
primeiro epítome” (LAS CASAS, 1997, v. 1, p. 5). Importante notarmos duas coisas:1) Las Casas se
dirige diretamente a força maior dos reinos das Espanhas, nesse momento ele não acredita mais que
consiga realizar grandes feitos no Novo Mundo se permanecer nele, tendo a ideia de que era preciso
ir para a Coroa e brigar pelo seu ideal no topo da hierarquia política. 2) O que podemos considerar
de memórias privadas trocadas com os superiores, a Brevísimase converte em propriedade universal,
pois os tratados publicados em Sevilha foram despachados para a América e chegaram a outros países
da Europa, como vimos.

O fator da imprensa, nesse momento, é fundamental para entendermos essa avalanche de publi-
cações das obras de Las Casas, mas outros fatores corroboram para entendermos de que forma o bispo
constrói seu legado. Estudando os escritos, verificamos a estrutura que o religioso se utiliza para ser
lido, pois o texto precisava ser simples e direto, com fácil entendimento para seu leitor. Freitas Neto
(2003) estuda em sua obra a estrutura religiosa que Las Casas se utiliza para que suas ideias permane-
çam na memória americana:
Permeado por um texto religioso, a crônica sobre as Índias composta pelo dominica-
no mantém uma estrutura dual que contrapõe a questão indígena e os interesses da
colonização espanhola. Na caracterização e descrição dos acontecimentos pode-se
perceber o quanto e como Las Casas criou uma realidade em sua percepção imagé-
tica das Índias. As personagens apareciam caracterizadas e distribuídas através de
atitudes de docilidade e atos de violência e hostilidade desnecessárias. A ordem dual
simplificava a complexidade das questões das Índias. Ao dividir as personagens entre
dóceis e cruéis, entre índios e encomenderos, em suma, entre a personificação de
bem e mal, o religioso forjou uma identidade com os ideais do Cristianismo, afastan-
do uma visão mais profunda e complexa em torno dos próprios índios e da coloniza-
ção. (FREITAS NETO, 2003. p. 86)

Bartolomé de Las Casas se utiliza de elementos muito presentes na sociedade cristã para fazer
com que haja ligação do que está sendo descrito com o seu leitor, além de incorporar em seus escritos
diversos elementos e situações do livro que é o maior referencial para ele, a Bíblia, utilizando aspectos
182Brading (2004) elucida: “Estos enérgicos memoriales, unidos a otros informes de las Indias, dieron su fruto
en 1542 con la promulgación de las famosas Nuevas Leyes, que exigía la inmediata liberación de todos los es-
clavos indios del Nuevo Mundo. La Corona despojó a todos los funcionarios y rebeldes de sus encomiendas y
decretó que todas las encomiendas existentes terminasen a la muerte de su beneficiario. No menos importante
fue el hecho de que se aboliese el tributo de trabajo, de tal manera que desde entonces los indios estaban úni-
camente sujetos al tributo en forma de bienes o dinero; todo indio que trabajara para un español recibiría en el
futuro un sueldo diario. No hace falta decir que esas reformas tropezaron con una intensa oposición de parte
dos colonos, que en Perú se lanzaron a la rebelión abierta. Por temor a la agitación en otras partes del Imperio,
la Corona en 1545 se desdijo de la abolición radical de la encomienda y permitió que esas concesiones conti-
nuaran durante una vida más después de la muerte de sus posesores.” (BRADING, 2004, p. 47-48)

749
da estrutura básica deste livro sagrado para os cristãos. Porém, para criar esta dualidade entre os povos
que compunham o processo de colonização, ele utilizou-se da estratégia de camuflar o indígena para
protege-lo e neste sentido ele cria um índio repleto de características que promoviam a compaixão,
principalmente, devido aos maus-tratos empregados a eles. Esta dicotomia fica clara quando ele nos
relata as maldades empregadas pelos espanhóis na Ilha de Trinidad:
Los indios rescibiéron-los como si fueran sus entrañas e sus hijos, sirviéndoles seño-
res e súbditos con grandísima afectión y alegría, trayéndoles cada día de comer tanto
que les sobraba para que comieran otros tantos; porque ésta es común condición e
liberalidad de todos los indios de aquel Nuevo Mundo: dar excesivamente lo que han
menester los españoles e cuanto tiene. Hácenles una gran casa de madera en que mo-
rasen todos, porque así la quisieron los españoles, que fuese una no más, para hacer
lo que pretendían hacer y hicieron. Al tiempo que ponían la paja sobre las varas o
madera e habían cobrido obra de dos estados, porque los de dentro no viesen a los de
fuera, ao color de dar priesa a que se acabase la casa, metieron mucha gente dentro
della, e repartiéronse los españoles, algunos fuera, alderredor de la casa con su armas,
para los que se saliesen, y otro dentro. Los cuales echan mano a las espadas e comien-
zan amenazar los indios desnudos que no se moviesen, si no, que los matarían, e
comenzaron a atar, y otros que saltaron para huir, hicieron pedazos con las espadas.
Algunos que salieron heridos y sanos e otros del pueblo que no habían entrado, to-
maron sus arcos e flechas e recógense a otra casa del pueblo para se defender, donde
entraron ciento o docientosdellos e defendiendo la puerta; pegan los españoles fuego
a la casa e quémanlos todos vivos. Y con su presa, que sería de cuento y ochenta o do-
cientos hombres que pudieron atar vanse a su navío y alzan las velas e van a la isla de
San Juan, donde venden la mitad por esclavos, e después a la Española, donde vendie-
ron la otra. Reprendiendo yo al capitán desta tan insigne traición e maldad, a la sazón
en la mesma isla de Sant Juan, me respondió: “Anda, señor, que así me lo mandaron
e me lo dieron por instrucción los que me enviaron, que cuando no pudiese tomarlos
por guerra que los tomase por paz.” Y en verdad que me dijo que en toda su vida ha-
bía hallado padre ni madre, sino en la isla de la Trinidad, según las buenas obras que
los indios le habían hecho. Esto dijo para mayor confusión suya e agravamiento de
sus pecados. Déstas han hecho en aquella Tierra Firme infinitas, tomándolos e capti-
vándolos sobre seguro. Véase qué obras son éstas e si aquellos indios ansí tomados si
serán justamente hechos esclavos. (LAS CASAS, 1997, v. 1, p. 125-127)

Aqui temos um bom exemplo da Brevísimaem que Las Casas demonstra sua criação discursiva
em torno do indígena e do colono, apresentando uma construção de indivíduos pusilânimes183 e ati-
vos, respectivamente. Mesmo neste relato, que o autor nos conta sobre os índios pegando em armas
para se defenderem, o religioso não apresenta uma ação indígena de contra-ataque ou se defendendo
183 Contudo, a obra toda de Las Casas não é um tratado sobre a pusilanimidade indígena. Em sua maior parte,
como explane Bruit, são realmente tratados como sujeitos passivos, entretanto o dominicano faz também refe-
rência a resistências indígenas, como podemos conferir a seguir: “A diez o quince léguas de Panamá estaba um
granseñor que se llamaba Paris, e muy rico de oro; fueronalláloscristianos e recibiólos como si fueran Herma-
nos suyos e presentó al capitáncincuenta mil castellanos de suvoluntad. El capitán y los cristianos parescióles
que quien daba aquella cantidad de su gracia que debía de tener mucho tesoro (que era el fin e consuelo de sus
trabajos); disimularon e dicen que se quieren partir; e tornan al cuarto del alba e dan sobre seguro en el pueblo,
quémanlo con fuego que pusieron, mataron y quemaron mucha gente, e robaron cincuenta o sesenta mil caste-
llanos otro; y el cacique o señor escapóse, que no le mataron o prendieron. Juntó presto la más gente que pudo e
a cabo de dos o tres días alcanzó los cristianos que llevaban sus ciento y treinta o cuarenta mil castellanos, e da
en ellos veronilmente, e mata cincuenta cristianos, e tómales todo el oro, escapándose los otros huyendo e bien
heridos […]” (LAS CASAS, 1997, v. 1, p. 55-57).

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de forma mais ativa, porém a ação relatada mostra-nos apenas a fuga dos indígenas. Isto é, o domi-
nicano sempre nos apresenta a imagem de um comportamento cruel dos conquistadores e a imagem
dos índios sempre passivos e medrosos nestas ocasiões. Héctor Bruit questiona se seria possível um
comportamento tão submisso, destituído até de caráter, por parte dos ameríndios perante a invasão
espanhola e se essas caraterísticas são essencialmente humanas. Levanta também a hipótese de que
esse discurso lascasiano de medo e covardia dos espanhóis se justificava pelo sentido que ele entendia
por: simulação. Ora, “derrotados militarmente e violentados pela prática dos invasores, os índios si-
mularam obediência, passividade, servilismo para salvar a pele e, especialmente, sua cultura.” (BRUIT,
1995, p. 14).

Essa criação de dualidade demonstrada em muitas passagens da obra do dominicano mostra a


criação do sujeito que Las Casas queria propagar. Nos seus escritos sempre permeia a ideia do bem e
do mal, havendo uma caracterização sempre de antítese e isso reforça uma imagem, de certa forma,
negativa para todos os lados. Podemos notar essa construção em duas passagens de sua obra. Anali-
semos a primeira falando da condição do indígena e como eram pessoas boas gentes:
Todas estas universas e infinitas gentes a todo gênero crió Dios los más simples, sin
maldades ni dobleces, obedientíssimas y fidelíssimas a sus señores naturales e a los
cristianos a quien sirven; más humildes, mas pacientes, más pacíficas e quietas, sin
rencillas ni bollicios, no rijosos, no querulosos, sin rancores, sin ódios, sin desear
venganzas, que hay em el mundo. Son asimismo las gentes más delicadas, flacas y
tiernas em complisón e que menos pueden sufrir trabajos y que más facilmente mue-
ren de calquiera enfermidad, que ni hijos de príncipes e señores entre nosotros, cria-
dos en regalos e delicada vida, no son más delicados que ellos, aunque sean de los que
entre ellos son de linaje de labradores. (LAS CASAS, 1997, v. 1, p. 16-17)

Na segunda passagem, analisemos o que Las Casas diz sobre os espanhóis que haviam nestas
terras:
En estas ovejas mansas, y de las calidades susodichas por su Hacedor y Criador así
dotadas, entraron los españoles desde luego que las conocieron como lobos e tigres y
leones cruelísimos de muchos días hambrientos. Y otra cosa no han hecho de cuaren-
ta años a esta parte, hasta hoy, e hoy en este día lo hacen, sino despedazallas, matallas,
angustiallas, afligillas, atormentallas y destruillas por las estrañas y nuevas e varias e
nunca otras tales vistas ni leídas ni oídas maneras de crueldad, de las cuales algunas
pocasabajo se dirán, en tano grado, que habiendo en la isla Española sobre tres cuen-
tos de ánimas que vimos, no hay hoy de los naturales delladocientas personas. (LAS
CASAS, 1997, v. 1, p. 19)

Nesta narrativa, os índios e os colonos têm papéis opostos: um amável e dócil, o outro destruidor
e cruel. Nos índios de Las Casas, via-se a noção de um selvagem bom184, cheios de caracteres de qua-
lidades superiores, porém, por sua vez, os encomenderos eram a causa de todo mal vivenciado por
184Las Casas é um dos que reproduziram o discurso mítico do índio como um bom selvagem, mas este fator
não é apenas encontrado nele. Pelo contrário, este era um pensamento preponderante no mundo europeu na
Idade Moderna, nascido do contato que os colonizadores tiveram com as populações indígenas. Este é um mito
que forma parte do imaginário acerca dos povos nativos nos séculos posteriores a colonização.

751
aqueles nativos, homens cuja essência era de ferocidade, ódio e desprezo.

Desta forma, Las Casas constrói discursivamente um nativo habitando um paraíso e em condi-
ções que a maldade não se manifestava, as personagens foram apresentadas num cenário idílico, pró-
ximo ao do homem antes do pecado original, segundo a tradição cristã (FREITAS NETO, 2003. p. 86),
como podemos perceber na passagem em que o dominicano conta que no ano de 1526 alguns tiranos
chegaram ao reino de Yucatán e o descreve da seguinte forma:
Este reino de Yucatán estaba lleno de infinitas gentes, porque es la tierra de gran
manera sana y abundante de comidas e frutas mucho (aún más que la de la de Méxi-
co), e señaladamente abunda de miel y cera más que ninguna parte de las Indias de
lo que hasta agora se ha visto. Tiene cerca de trecientas leguas de boja o en torno el
dicho reino. La gente dél era señalada entre todas las de las Indias, así en prudencia y
policía como en carecer de vicios y pecados más que otra, e muy aparejada e digna de
ser traída al conoscimiento de su dios, y donde se pudieron hacer grandes ciudades
de españoles e vivieran como en un paraíso terrenal (si fueran dignos della); pero no
lo fueron por su gran cudicia e insensibilidad e grandes pecados, como no han sido
dignos de las otras muchas partes que Dios les había en aquellas Indias demostrado.
(LAS CASAS, 1997, v. 1, p. 103)

E essa aproximação discursiva com a Sagrada Escritura se fará presente como um meio de co-
nectar, através de sentidos próximos, o que ele vira para seu leitor – que a princípio era Carlos V. Esta
tentativa de tradução se torna o operador de uma retórica de alteridade185 num texto como este de
Las Casas, em que a ideia do dominicano é fazer com que o seu leitor fique o mais próximo possível
daquilo que ele conta, pois “estudar a descrição como um procedimento de uma retórica da alteridade
desemboca na questão da crença, [...]” (HARTOG, 2014, p. 288). Muitos dos viajantes, entre eles o
próprio dominicano e Colombo, divisaram as suas Índias e as pintaram seguindo os modelos edênicos
provindos de esquemas literários (HOLANDA, 2000, p. 227).

Seguindo na perspectiva de utilização de formas para apresentar o Outro, encontramos no século


XVI uma produção de discursos colonialistas que se apresentavam em forma de tropos, exercendo um
papel fundamental na “figuração” da superioridade europeia. Apesar de essas alegorias serem de natu-
reza representativa,os tropos desempenham papéis efetivamente reais no mundo (SHOHAT; STAM,
2006, p. 200). Isso é perceptivo a partir do contato que o Novo Mundo tem com o Velho Mundo e a
tentativa de se traduzir para seus pares o outro que haviam encontrado.

Este tipo de mecanismo tropológico formou um substrato metafórico no interior do discurso


imperial, sendo um dos tropos coloniais essenciais nessa temporalidade o da “animalização”. Ora, nos
debates travados em meados do século XVI foi comum terem como questão central a humanidade
dos indígenas. Era apresentado esses povos como bestas selvagens em virtude da incapacidade deles
como sujeitos que conseguem se governarem, controlarem sua libido, suas vestimentas são julgadas
inapropriadas, entre várias outras discussões. Esse discurso colonial apresenta-se em vários coloniza-
185 Como afirma François Hartog ao estudar os textos de Heródoto: “Uma retórica da alteridade é, no fundo,
uma operação de tradução: visa a transportar o outro ao mesmo (tradere) – constituindo portanto uma espécie
de transportador da diferença.” (HARTOG, 2014, p. 268)

752
dores, porém Las Casas, principalmente na Brevísima, atribui tropos não apenas adjetivando o índio,
mas atribui aos espanhóis categorias quase monstruosas, transferindo para estes valores bestiais que
em muitas outras crônicas de escritores do século XVI eram atribuídas àqueles.

Outra forma de apresentar esse tropo animalesco em seu discurso é a utilização de animais feroz
em detrimento de outros mais mansos para criar uma ideia de antítese entre os colonizadores e os
povos indígenas, como percebemos no trecho a seguir:
Éstos, entrados con trecientos hombres o más en aquellas tierras, hallaron aquellas
gentes mansísimas ovejas, como y mucho más que los otros las suelen hallar en todas
las partes de las Indias antes que les hagan daños los españoles. Entraron en ellas, más
pienso, sin comparación, cruelmente que ninguno de los otros tiranos que hemos
dicho, e más irracional e furiosamente que crudelísimos tigres y que rabiosos lobos
y leones. Porque con mayor ansia y ceguedad rabiosa de avaricia y más exquisitas
maneras e industrias para haber y robar plata y oro que todos los de antes, pospuesto
todo temor a Dios y al rey e vergüenza de las gentes, olvidados que eran hombres
mortales, como más libertados, poseyendo toda la jurisdicción de la tierra, tuvieron.
(LAS CASAS, 1997, v. 1, p.141-143)

Em sua obra, Las Casas cria um ambiente de dualidade para que ficasse bastante visível esta di-
cotomia que existia entre um personagem e outro, pois seu relato perpassava em promover um senti-
mento de terror em seus leitores, até lhe provocarem o sentimento de indignação com o que aconteceu
no Novo Mundo.

Como pudemos perceber, o tropo, ou emprego das palavras no sentido figurado, se constitui em
um mecanismo presente para a apresentação da alteridade, o não-europeu no caso, ou até mesmo,
como vimos acima, de seus pares, europeus, sendo o tropo a “alma do discurso” e a ferramenta que
funciona para que este tenha o seu objetivo alcançado: categorizar àqueles de quem se quer falar. Este
tipo de mecanismo é perceptível nos discursos proferidos pelos colonizadores, tendo várias vertentes
de tropos: infantilização ao indígena, quando Las Casas cria em suas narrativas um indígena passivo
e pusilânime (BRUIT, 1995) e o binarismo (maniqueísmos religiosos sobre o bem e o mal) (FREITAS
NETO, 2003). Estes tropos são facilmente encontrados nos escritos do dominicano, como também os
retirados mais acima, pois o religioso utiliza-se desses mecanismos de escrita para criar os ambientes
do qual está falando (SHOHAT; STAM, 2006, p. 199).

O tropo do binarismo é um antigo maniqueísmo religioso em que se apresenta diferenciadores


do bem e do mal que compõe um quadro filosófico que opõem os dois lados antagônicos em que se
produz uma diferenciação clara entre ambos. Encontramos este tipo de tropo perpassado pelo texto
do religioso, ao produzir a narrativa daquele lugar de horror e conquistas sangrentas. Notadamente, o
dominicano mantém a estrutura dual que contrapõe a questão dos índios e a colonização espanhola.
Seus personagens aparecem dentro dos moldes criados a partir das atitudes de docilidade e atos de
violência.

De certa forma, o bispo se utiliza também das concepções cristãs para descrever tanto o nativo da

753
América espanhola quanto o colonizador espanhol, como vimos, principalmente a partir do emprego
deste binarismo religioso como método de tradução. Em seus textos é comum encontrarmos tropos
bíblicos se mesclando com o tropo de processo de animalização para falar da exploração dos europeus
contra os povos nativos ameríndios, como por exemplo: leões famintos e cordeiros mansos. Assim
como outros animais ferozes que subjugam outros mais fracos, como podemos ver a seguir:
Llegado al dicho reino (Guatemala) hizo en la entrada dél mucha matanza de gente; e
no obstante esto, salióle a rescebir en unas andas e con trompetas y atabales e muchas
fiestas el señor principal con otros muchos señores de la ciudad de Ultatlán, cabeza
de todo el reino, donde le sirvieron de todo lo que tenían, en especial dándoles de
comer cumplidamente e todo lo que más pudieron. Aposentáronse fuera de la ciudad
los españoles aquella noche, porque les paresció que fuera y que dentro pudieran
tender peligro. Y otro día llama al señor principal e otros muchos señores, e venidos
como mansas ovejas, préndelos todos e dice que le den tantas cargas de oro. Respon-
den que no lo tienen, porque aquella tierra no es de oro. Mándalos luego quemar
vivos, sin otra culpa ni otro proceso ni sentencia. Desque vieron los señores de todas
aquellas provincias que habían quemado aquellos señor y señores supremos, no más
de porque no daban oro, huyeron todos de sus pueblos metiéndose en los montes, e
mandaron a toda su gente que fuese a los españoles y les sirviesen como a señores,
pero que no les descubriesen diciéndoles dónde estaban. Viénense toda la gente de la
tierra a decir que querían ser suyos e serviles como a señores. Respondía este piadoso
capitán que no los querían rescebir, antes los habían de matar a todos si no descu-
brían dónde estaban sus señores. (LAS CASAS, 1997, v. 1, p. 83-85)

Neste trecho, Las Casas descreve todo o cenário de ações absurdas cometidas pelos espanhóis e
como estes, por meio da enganação, ludibriavam os nativos para depois se mostrarem quem verdadei-
ramente eram. Facilmente identificável, o autor utiliza de uma parábola da Bíblia Sagrada dos cristãos,
provinda do Novo Testamento, nela Jesus tenta alertar aos seus fiéis sobre uma das piores condições
do ser humano: a falsidade e adverte: “Acautelai-vos, porém, dos falsos profetas, que vêm até vós vesti-
dos como ovelhas, mas, interiormente, são lobos devoradores.” (BÍBLIA, 1995, Mateus: 7:15, p.12). As
ovelhas mansas apresentadas acabam por virarem os predadores que cometem vários terrores afim de
que lhes dissessem onde estavam os senhores daquelas gentes.

Se o cronista sobre o Novo Mundo se utiliza de tropos, como: o binarismo, a animalização e a in-
fantilização para apresentar os sujeitos daquelas terras, no caso da apresentação espacial ele muniu-se
de uma estrutura muito parecida com as apresentadas por François Hartog (2014)186 em sua obra que
analisa as Histórias de Heródoto. Tomemos por mote a aplicação de alguns conceitos – as visões de
alteridades, por exemplo – situados nos escritos de Las Casas que descreve o fatídico encontro entre
o Velho Mundo e Novo Mundo.

François Hartog fez um importante trabalho acerca da representação do outro tomando como

186 Diante do confronto de espanhóis com os ameríndios temos o cuidado de não incorrer em anacronismos
ou comparações levianas entre esta estrutura e o universo clássico da Grécia Antiga, pois apenas propomos
seguir as orientações de Hartog (2014) no que concerne o método de interpretação de encontros culturais di-
versos para provocar um estudo entre as obras de forma a dialogar-se naturalmente.

754
expoente o lógos187 grego, especificamente do historiador Heródoto, frente à alteridade com outros
povos – os citas – buscando entender como os gregos da época clássica representavam para si o Outro
(o não-grego). Neste sentido o autor francês nos apresenta mecanismos que podem ser utilizados nas
análises sobre frei Bartolomé de Las Casas, como poderá ser verificado à frente. Mas antes salientamos
que não se pode escrever sobre as Índias de Las Casas, por exemplo, desconsiderando-se as estruturas
de suas representações. Sendo uma narrativa de viagem do século XVI, esta tem a pretensão de relatar
tudo o que viu e tudo o que ouviu sobre, valendo-se como testemunha muitas vezes ou trazendo rela-
tos de pessoas que tinham sua confiança. No trecho a seguir, após relatar a dizimação dos nativos em
diversas localidades, LasCasas se posta como testemunha e que vivenciou aquele despovoamento por
parte da destruição que os colonos produziram:
Todas las mataron trayéndolas e por traellas a la isla Española, después que venían
que se les acababan los naturales della. Andando un navío tres años a rebuscar por
ellas la gente que había, después de haber sido vendimiadas, porque un buen cristia-
no se movió por piedad para los que se hallasen convertidos e ganallos a Cristo, no se
hallaron sino once personas, las cueles yo vide. Otras más de treinta islas, que están
en comarca de la isla de Sant Juan, por la mesma causa están despobladas e perdidas.
Serán todas estas islas, de tierra, más de dos mil leguas, que todas están despobladas
e desiertas de gente. (LAS CASAS, 1997, v. 1, p. 19)

Las Casas relata no decorrer da Brevísima, que fora testemunha de muitas outras atrocidades,
deixando em aberto tantas outras que não foram contadas por ele, mas enunciadas e que nos deixa a
entender que existiram. Porém alguns dos cronistas do século XVI, bem como estudiosos modernos,
atribuem esta diminuição populacional descrita por Las Casas no trecho acima, por exemplo, às doen-
ças transmitidas pelos colonizadores, a saber: sarampo, varíola e tifo. Todavia, apenas estas não podem
ser as causas de uma diminuição populacional tão significativa, como a ocorrida no Novo Mundo,
outros fatores também contribuíram para esta causa e o dominicano enumera três para explicar esta
decrescente: “primeiro, a separação do casal causada pelo trabalho188; segundo, o excesso de trabalho

187O logos é uma palavra grega que tem amplo significado e foi utilizada, ao longo da história, de diversas
maneiras, pode ser utilizada tanto para um conceito filosófico para a razão quanto para um princípio de ordem
e beleza universal. Para o filósofo Heráclito, por exemplo, o primeiro a usar o termo no contexto filosófico,
logos era o conceito responsável por prover a conexão entre discurso racional e a estrutura racional do mundo.
Heráclito sugere a existência do logoscomo uma entidade universal independente. Já para Aristóteles que se
apropriando do sentido diverso da palavra, definiu logos como um dos três modos de persuasão, o argumento
da razão. Para o autor, logos trata do próprio discurso, enquanto este prova algo, ou ao menos parece provar.
Para Aristóteles, o logos seria algo mais sofisticado do que um entendimento comum, o logos diferenciaria o
ser humano dos outros animais, possibilitando a compreensão do que é bom e do que é mal, do que é benéfico
e do que é prejudicial e do justo e injusto no discurso, e pensamentos manifestos neste discurso, em outros seres
humanos. (MACIEL, s.d.) Será esta última definição que nos interessará, pois sabemos que Las Casas lera o
filósofo e o utilizara como base de modelo argumentativo.
188 No relata Las Casas sobre o trabalhoescravonas minas: “Y por la tierra no tiene oro, porque si lo tuviera,
por sacallo en las minas los acabara; pero por hacer oro de los cuerpos y de las ánimas de aquellos por quien
Jesucristo murió, hace abarrisco, todos los que no mataba, esclavos, e a muchos navíos que venían al olor y fama
de los esclavos enviaba llenos de gentes, vendidas por vino, y aceite, y vinagre, y por tocinos, e por vestido, y
por caballos e por lo que él y ellos habían menester, según su juicio y estima.” (LAS CASAS, 1997, v. 1, p.103)

755
que impedia, entre outras coisas, a amamentação dos recém-nascidos189; terceiro, o aborto voluntário
e o infanticídio190.” (BRUIT, 1995, p. 48).

Não obstante, o dominicano precisava, além de ser testemunha do que relatava, se fazer entender
por quem o lera, pois, a compreensão de quem ler é de suma importância para o autor que redige191.
Ora, Las Casa produz um texto com vários elementos que consegue conectar o leitor que nunca pisara
naquele Novo Mundo ao mais próximo possível do imaginário que ele produzira discursivamente,
executando este artifício literário por meio da tradução. Logo, a mecânica de tradução que François
Hartog (2014) apresenta em sua obra192 é perceptível no frei Las Casas em suas descrições de eventos e
acontecimentos: a comparação193. Pois para falar do outro, o autor dispõe de formas variadas para ca-
racterizar e apresentar sua retórica de alteridade. Todavia, Las Casas utiliza-se deste mecanismo para
relatar, além dos sujeitos, os espaços que compunham o Novo Mundo, como podemos apreender ao
analisar os relatos de atrocidades cometidas na Nova Espanha:
Así que, desde la entrada de la Nueva España, que fue a dieciocho de abril del dicho
año de dieciocho, hasta el año de treinta, que fueron doce años enteros, duraron las
matanzas y estragos que las sangrientas e crueles manos y espadas de los españoles
hicieron continuamente en cuatrocientas e cincuenta leguas en torno cuasi de la ciu-
dad de México e a su rededor, donde cabían cuatro y cinco grandes reinos, tan grande
e harto más felices que España. Estas tierras todas eran las más pobladas e llenas de
189 Sobre a amamentação: “Entre otros muchos hizo herrar por esclavos injustamente, siendo libres (como
todos lo son), cuatro mil e quinientos hombres e mujeres y niños de un año, a las tetas de las madres, y de dos,
y tres, e cuatro, e cinco años, aun saliéndole a rescebir de paz, sin otros infinitos que no se contaron.” (LAS
CASAS, 1997, v. 1, p. 99)
190 Sobre o infanticídio: “En este reino o en una provincia de la Nueva España, yendo cierto español con sus
perros a caza de venados o de conejos, un día, no hallando qué cazar, parescióle que tenían hambre los perros, y
toma in muchacho chiquito a su madre e con un puñal cótale a tarazones los brazos y las piernas, dando a cada
perro su parte; y después de comidos aquellos tarazones échales todo el corpecito en su suelo a todos juntos.”
(LAS CASAS, 1997, v. 1, p. 107)
191 Esta questão é bem explicada por Hartog, vejamos: “Se a narrativa se desenvolve justamente entre um nar-
rador e um destinatário implicitamente presente no próprio texto, a questão é então perceber como ela ‘traduz’
o outro e como faz com que o destinatário creia no outro que ela constrói. Em outros termos, tratar-se-á de
descobrir uma retórica da alteridade em ação no texto, de capturar algumas de suas figuras e de desmontar al-
guns de seus procedimentos – em resumo, de reunir as regras através das quais se opera a fabricação do outro.”
(HARTOG, 2014, p. 242)
192Hartog defende: “No percurso de alguns dos lógoiconsagrados aos outros, o texto de Heródoto é tratado
como uma narrativa de viagem, isto é, como uma narrativa que tem a preocupação de traduzir o outro em ter-
mo do saber compartilhado pelos gregos e que, para fazer crer no outro que constrói, elabora toda uma retórica
de alteridade.” (HARTOG, 2014, p.41)

Como nos explica François Hartog: “Para dizer o outro, o viajante dispõe também da comparação. Como
efeito, ela é uma maneira de reunir o mundo que se conta e o mundo em que se conta, passando de um ao
outro. É uma rede que joga o narrador nas águas da alteridade: o tamanho das malhas e a montagem da trama
determinam o tipo de peixe e a qualidade das presas, constituindo o próprio ato de puxar a rede um modo de
reconduzir o outro ao mesmo. Assim, a comparação tem lugar numa retórica da alteridade, em que intervém
na qualidade de procedimento de tradução.” (HARTOG, 2014, p.255)
193 Como nos explica François Hartog: “Para dizer o outro, o viajante dispõe também da comparação. Como
efeito, ela é uma maneira de reunir o mundo que se conta e o mundo em que se conta, passando de um ao
outro. É uma rede que joga o narrador nas águas da alteridade: o tamanho das malhas e a montagem da trama
determinam o tipo de peixe e a qualidade das presas, constituindo o próprio ato de puxar a rede um modo de
reconduzir o outro ao mesmo. Assim, a comparação tem lugar numa retórica da alteridade, em que intervém
na qualidade de procedimento de tradução.” (HARTOG, 2014, p.255)

756
gentes que Toledo e Sevillha, y Valladolid y Zaragoza juntamente con Barcelona, por-
que no hay ni hubo jamás tanta población en estas ciudades, cuando más pobladas
estuvieron, que Dios puso e que había en todas las dichas leguas, que para andallas
en torno se han de andar más de mil e ochocientas leguas. (LAS CASAS, 1997, v. 1,
p.65-67)

Deste trecho, percebe-se o quão eram grandes as dimensões dos atos dos colonizadores, pois ao
trazer o relato da espacialidade em sua narrativa, o bispo de Chiapas faz funcionar a tradução por
comparação, estabelecendo semelhanças entre “além” e “aquém” e esboçando caracterizações para
aproximar seu destinatário do que ele criara discursivamente. Pois para a comparação ter efeito eficaz
convém que o leitor pertença ao saber compartilhado194 do viajante, ou seja, para Las Casas ter êxito
em seu entendimento precisa condicionar o que ele apresenta sobre o Novo Mundo com algo presente
no Velho Mundo. Por isto que ele utiliza, para apresentar as dimensões de uma terra, as extensões
previamente já conhecidas pelo seu leitor.

Se tratando de relatar os espaços nos textos descritivos de crônicas, Las Casas se apresenta, de
certa forma, como um agrimensor. Ou seja, ao fazer relato de cada território do Novo Mundo, o do-
minicano produz um discurso que apresenta dados espaciais daquelas terras, o transformando em um
só tempo agrimensor e cronista das terras descobertas. Ele descreve as léguas de distancias que haviam
naqueles territórios para dar uma dimensão da grandeza da terra e da quantidade de indígenas que
viviam ali sem os tormentos dos espanhóis, antes da empreitada transatlântica espanhola:
Han asolado, destruido y despoblado estos demonios encarnados más de cuatrocien-
tas leguas de tierras felicísima, y en ellas grandes y admirables provincias, valles de
cuarenta leguas, regiones amenísimas, poblaciones muy grandes, riquísimas de gente
y oro. Han muerto y despedazado totalmente grandes y diversas naciones, muchas
lenguas que no han dejado persona que las hable, si no son algunos que se habrán
metido en las cavernas y entrañas de la tierra huyendo de tan extraño e pestilencial
cuchillo. Más han muerto y destruido, y echado a los infiernos de aquellas inocentes
generaciones, por estrañas y varias y nuevas maneras de cruel iniquidad e impiedad
(a lo que creo) de cuatro y cinco cuentos de ánimas; e hoy, en este día, no cesan ac-
tualmente de las echar. De infinitas e inmensas injusticias, insultos y estragos que han
hecho e hoy hacen, quiero decir tres o cuatro más, por los cuales se podrán juzgar
los que, para efectuar las grandes destruiciones y despoblaciones que arriba decimos,
pueden haber hecho. (LAS CASAS, 1997, v. 1, p.143)

Notemos que sua menção dos tamanhos espaciais dos territórios que ele narra é sempre para
corroborar com a ideia da grande matança sangrenta que os espanhóis impuseram aos povos nativos,
logo, quando o dominicano relata uma área muito grande vem sempre acompanhado do pesar de ter
naquelas terras igualmente inumeráveis pessoas pacíficas. Ou seja, a agrimensura de Las Casas é um
meio que ele encontrou de traduzir o horror da conquista por meio da dimensão de alguns territórios
194 Este saber compartilhado, como defende Hartog (2014), tem que confrontar o enunciado tanto do leitor
quanto do escritor por meio dos seus saberes, pois “a possibilidade dessa confrontação repousa sobre a ideia de
que um texto não é uma coisa inerte, mas inscreve-se entre um narrador e um destinatário. Entre o narrador e
o destinatário existe, como condição para tornar possível a comunicação, um conjunto de saberes semântico,
enciclopédico e simbólico que lhes é comum.” (HARTOG, 2014, p. 48)

757
do Novo Mundo195.

Também se faz presente nos textos do religioso o processo de tradução por analogia espacial em
que as injunções narrativas dão a tônica do texto, pois neste mecanismo certos enunciados remetem
a outros enunciados no mesmo contexto (HARTOG, 2014, p. 48). Fica bem evidente que o saber
compartilhado da Europa desempenha um papel preponderante nisto, já que o conhecimento da ter-
ritorialidade que é traduzido de forma a satisfazer o entendimento do outro que ler, pois neste caso o
dominicano faz a comparação de tamanho e característica de um reino no Novo Mundo e o reino de
Portugal:
El otro reino se decía del Marién, donde agora es el Puerto Real, al cabo de la Vega,
hacia el norte, y más grande que el reino de Portugal, aunque cierto harto más felices
y digno de ser poblado, y de muchas y grandes sierras y minas de oro y cobre muy
rico, cuyo rey se llamaba Guacanagarí (última aguda), debajo del cual había muchos
y muy grandes señores, de los cuales yo vide y conocí muchos, y a tierra déste fue
primero a parar el Almirante viejo que descubrió las Indias; […]. (LAS CASAS,
1997, v. 1, p. 31)

Desta forma compreendemos as estruturas do texto lascasiano que nos permitem analisar seu
construto narrativo, apresentando os enunciados de saberes compartilhados dos universos existen-
tes. Sua capacidade de instaurar um debate que interferiu na política das cortes espanholas mostra a
necessidade de criação de argumentos fortes e contundentes, motivo pelo qual consideramos o uso
destes mecanismos como arma importante na luta de salvaguarda a vida indígena. Mais do que um
religioso, Bartolomé de Las Casas foi um lutador que com a pena de escrever em punho procurou pelo
meio do discurso cessar a colonização sangrenta que estava sendo empregada. Las Casas em sua Breví-
simarelacióndescreve cidades e pessoas elaborando as comparações com o universo espanhol, ao qual
ele pertencia, para traduzir as formas de vida e os embates que se processaram naqueles espaços, fez
isto de forma a enunciar o nativo que para ele precisava de proteção e enunciou o espaço dos amerín-
dios para promover um entendimento melhor da Coroa sobre a dimensão que a destruição provocara.

Contudo, dividimos sua Brevísimacomo uma crônica de relato sobre o outro e sobre a terra em
que este outro vivia. O religioso produz a representação sobre aquilo que ele entrou em contato, pro-
duzindo uma imagem apenas como reflexo do que ele entendera do Novo Mundo. Las Casas escreve,
antes de tudo para se fazer ouvir pela Coroa espanhola sobre aqueles maus tratos, acreditava que ape-
nas os governantes poderiam fazer algo para salvaguardar aquelas vidas e para isto teve que se utilizar
da tragédia para comover aqueles que o leriam, mas desta forma acaba por criar um índio lascasiano,
os transformando em indivíduos cheios de caracteres de seu construto. Desta imagem trágica, o bispo
de Chiapas fomentou o humanismo do século XVI e foi influenciado pelo mesmo em seu período de
195 Algumas outras passagens da Brevísimaque o dominicano se utiliza da agrimensura: “[...], handespoblado
por aquella parte más de cuatrocientas léguas de tierra que estabaasípobladas como lasotras.” (LAS CASAS,
1997, v. 1, p. 117), ou, quando ele pretende situar uma Província de outra: “Esta província de Cartagena está
más abajocincuenta léguas de la de Sancta Marta, haciaelPoniente, e junto com ellaladelCenú hasta el golfo de
Ubará, [...]” (LAS CASAS, 1997, v. 1, p. 123).

758
lutas para defender, cheio de entusiasmos, os nativos daquelas regiões, lidando diversas vezes contra
aliados e autoridades corruptas. Mas foi com a apresentação da Brevísimarelaciónque ele conseguiu
mudanças um tanto significativa para aqueles povos, pois este escrito está ligado diretamente com a
promulgação de leis muito importante para a temática: as Leis Novas, que limitavam os direitos dos
espanhóis sobre os índios.

Ao longo da análise do texto lascasiano fica claro os mecanismos utilizados pelo escritor para se
fazer valer enquanto verdadeiro em seu relato e se fazer entender. Ele diz ver com os próprios olhos e
confia em suas fontes quando faz os relatos em suas narrativas, estas são formas discursivas que Las
Casa apropriou-se para dar garantia ao que está relatando, sendo este o procedimento que o escritor
realiza para fazer crer pelo seu leitor, desenvolvido, sobretudo, nas narrativas de viagem. Logo, para
ele, o dizer e a verdade caminham juntos, pois nesta relação o visível e dizível, não se separando em
duas esferas, ou melhor, quando ele relata, fala do que ver e o que ver é a verdade.

O que procuramos analisar foi os mecanismos utilizados por Las Casa para apresentar o Novo
Mundo para o Velho Mundo e por fim como estes ajudaram a criar uma imagem acerca daquele es-
paço. Primeiramente, tendo refeito o trajeto da representação do outro, optamos por identificar os
meios de alteridades que está presente no escrito do dominicano e como ele traduz esta visão sobre
o ameríndio por meio de tropos em sua retórica para dar direcionamento ao leitor para que pudesse
enxergar a imagem criada do nativo. Todavia Las Casas não produziu apenas a visão sobre o indígena,
mas também um reflexo sobre aquele espaço que se apresentara como o novo para ele. Para relatar
as espacialidades se utilizou de meios para produzir a tradução, pois ele falara para um receptor que
não havia pisado no solo descoberto e não conhecia os caracteres daquele ambiente, com isso teve que
fomentar um espaço que fosse traduzido com os elementos de um saber compartilhado com seu leitor
europeu. Porém estas representações não são apenas reflexos distorcido de mundo que o bispo relatara
sobre uma base real que tivera contato, mas é uma parte criada e criadora que conjecturou o mundo
ibero-americano dos séculos de colonização.

Nos caracteres de novas leis encontramos, sem esforços, amostras do pensamento de Las Casas,
principalmente, no que diz respeito a operacionalidade política, defendendo a igualdade e o fim dos
abusos dos colonizadores. Certamente, dentro do Novo Mundo as ideias do dominicano foram recha-
çadas, mas ele via na Coroa espanhola um ambiente muito mais favorável e foi lá que ele pôde fazer
seus embates a apresentar o outro para a Europa. Mas quem é o outro para Las Casas? Podemos dizer
que o seu “outro” é o nativo que ele encontrou na suas Índias e aprendeu a amá-lo e respeitá-lo por
meio de seus dogmas cristãos. Porém em seus escritos, o outro se apresenta também se olharmos para
as descrições dos colonizadores que cometeram tamanhas sanguinolências. Logo, o outro de Las Ca-
sas possuía os signos que ele mesmo carregava. Todavia, quando os espanhóis se comportavam como
bárbaros, o narrador não os reconheciam como um dos seus, mas como um outro. Pois, ele fala dos
índios, mas principalmente ele está a relatar os europeus, aqueles que cometeram vários terrores e que
o espantou, muito pelo fato de serem cristãos – mesma condição que o bispo – e serem tão cruéis. Ele
ficara espantado em um duplo movimento: o da bondade dos índios e da maldade dos colonos, sem-
pre trabalhando com a dualidade como característica discursiva, pois o mesmo faz uma interpretação

759
dos fatos à luz da sua fé cristã.

Os feitos políticos de Las Casas são inegavelmente magistrais. Num período em que os poderes do
rei e da Igreja estavam ligados, a ação do religioso teve, por detrás de seu discurso cristão, uma forte
empreitada política. O frei dominicano nunca teve unanimidade estre os espanhóis, pois era impo-
pular na colônia e figura polêmica na Coroa, todavia sabia fazer-se ouvir. Espalhados estão por mais
de quatrocentos anos seus ideais, devido, principalmente, as necessidades que tempos em tempos a
América suscita rever as suas questões humanitárias, fazendo-nos sempre revisá-lo.

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762
Cultura Escrita na Época Moderna: um olhar sobre as publicações póstumas de João de
Barros
Fernando Altoé196

João de Barros é figura importante da cultura letrada portuguesa renascentista do século XVI.
Nasceu provavelmente em 1496 e morreu em 1570. De família nobre, foi moço de guarda-roupa do
príncipe D. João, futuro D. João III, e exerceu importantes cargos administrativos no reinado deste
monarca, como o de tesoureiro da Casa da Índia, Mina e Ceuta (1525-1528) e feitor da Casa da Índia
(1533-1557). A par de sua carreira como funcionário da corte, escreveu uma larga e variada obra e cul-
tivou gêneros diversos: novela de cavalaria, diálogos morais, panegíricos, obras pedagógicas, gramati-
cais e historiográficas. Assim como o último volume das Décadas da Ásia, João de Barros teve outras
três obras publicadas postumamente e que lhe são atribuídas: o Panegírico de D. João III, escrito em
1533 e publicado em 1740, o Panegírico da infanta D. Maria, escrito em 1544 e publicado em 1655 e
o Diálogo dos artigos de fé contra o Talmud dos judeus, escrito entre 1543-44 e publicado em 1950.
Neste artigo, partiremos de duas dessas obras póstumas – o Panegírico de D. João III e o Panegírico da
infanta D. Maria – com o objetivo de avaliar as condições de publicação e problematizar sua autoria,
uma vez que os panegíricos foram publicados muito posteriormente à sua escrita, e na biografia que
Manuel Severim de Faria dedicou a João de Barros, em 1624, não se mencionou a existência de pane-
gíricos a ele atribuído. Portanto, nosso interesse é discutir a relação entre manuscritos e impressos na
Época Moderna, bem como a autoria, e voltar nossa atenção para o caso de João de Barros, mediante
um exame intertextual desses escritos póstumos e dos demais escritos do autor.

1. As condições de publicação dos panegíricos de Barros

O Panegírico de D. João III e o Panegírico da infanta D. Maria foram publicados muito pos-
teriormente ao ano em que foram escritos. A julgar que ambos foram escritos, respectivamente, em
1533 e 1544, o Panegírico da infanta D. Maria só conheceu prensa em 1655, enquanto o Panegírico
de D. João III foi impresso muito mais tarde, em 1740. Levando em conta o grande espaço de tempo
entre o momento de composição e o momento de impressão, algumas questões nos ocorrem: quais as
implicações editoriais sobre o texto que está sendo impresso diante da ausência do autor no processo
de edição? E mais, que segurança apresentam os editores em relação à atribuição autoral, já que, mais
uma vez, o autor não se encontra presente e o manuscrito, como se sabe, estava suscetível a inúmeras
intervenções? Essas questões, sem dúvida alguma, modificam o modo com o qual devemos ler nossas
fontes, uma vez que o texto que chega em nossas mãos é resultado de inúmeras operações, e conhecer
o processo envolvido certamente nos dá um controle maior para lidar com nosso objeto. Assim sendo,
o primeiro objetivo a ser perseguido é avaliar as condições de publicação dos panegíricos de Barros.
196 Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal Fluminense
(UFF).

763
Para quem deseja conhecer a trajetória de vida e a obra de João de Barros, é imprescindível
se reportar à primeira biografia do humanista, traçada por Manuel Severim de Faria e publicada em
1624. Trata-se dos Discursos vários políticos, obra na qual Severim de Faria escreve não apenas acerca
da biografia de João de Barros, mas também se debruça sobre a do poeta Luís de Camões e a do cro-
nista e guarda-mor da Torre do Tombo, Diogo do Couto197.

Na Vida de João de Barros, Faria traça o percurso de vida do autor, ao mesmo tempo em que
apresenta suas obras. Seguindo uma ordem cronológica, o biógrafo dá testemunho dos seguintes es-
critos: Crônica do Imperador Clarimundo (1522), Ropicapnefma (1532) e Cartinha com os preceitos e
mandamentos da Santa Madre Igreja (1539). De 1540, são comentados o Diálogo em louvor da nossa
linguagem, o Diálogo da viçiosa vergonha e a Gramáticada língua portuguesa. Por fim, são comenta-
das as Décadas da Ásia, cujas publicações se deram, respectivamente, em 1552, 1553, 1563 e 1615 (esta
última publicada postumamente por João Baptista Lavanha).

Curioso notar, na biografia, que Manuel Severim de Faria não faz qualquer menção ao Pane-
gírico de D. João III. De igual modo, silencia-se a respeito do Panegírico da infanta D. Maria. É certo
que esses dois panegíricos, atribuídos a João de Barros, não conheceram prensa à época em que foram
escritos. Talvez por isso o biógrafo prefira citar apenas as obras publicadas, como é o caso das listadas
acima. Na Vida de João de Barros, notamos também a ausência de um outro escrito do humanista,
que só veio a ser publicado em 1950 por Israel Salvador Révah: o Diálogo evangélico sobre os artigos
de fé contra o Talmud dos judeus198. Portanto, na altura em que escreve a biografia de João de Barros,
essas três obras ainda permaneciam manuscritas e, por esse motivo, podemos supor que elas fossem
desconhecidas ao chantre de Évora.

Esta nossa hipótese se reforça quando analisamos as condições da primeira publicação do Pa-
negírico da Infanta D. Maria. Mais uma vez, curioso notar, foi Manuel Severim de Faria quem publi-
cou a oração em 1655, na primeira edição de suas Notícias de Portugal. Além de escrever sobre temas
como a povoação do reino, a milícia, a pregação do Evangelho nas províncias de Guiné e os naufrágios
– para ficarmos em alguns exemplos –, Faria publicou alguns textos numa seção intitulada “Elogios”,
entre eles o Elogio do rei D. João III, escrito por António Castilho e o Panegírico da infanta D. Maria,

197 FARIA, Manuel Severim de. Discursos variospoliticos / por Manoel Severim de Faria Chantre, & Conego
na Santa Sê de Euora. - Em Evora : impressos por Manoel Carvalho, impressor da Universidade, 1624.

No início do século passado, António Baião procedeu a um exaustivo levantamento documental sobre a vida de
João de Barros e com isso pôde confirmar certas afirmações de Severim de Faria e até mesmo retificar outras.
Cf. BAIÃO, António. “Introdução”. In: BARROS, João de. Ásia de Joam de Barros. Dos feitos que os portugue-
ses fizeram no descobrimento e conquista dos mares e terras do oriente. Quarta edição revista e prefaciada por
António Baião. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1932 (Edição fac-similar Lisboa: Imprensa Nacional-Casa
da Moeda, 1998). A série de documentos intitulada Documentos inéditos sobre João de Barros foi publicada
em 1917 pela Academia das Ciências de Lisboa. Cf. BAIÃO, António (org.). “Documentos inéditos sobre João
de Barros, sobre o escritor seu homônimo contemporâneo, sobre a família do historiador e sobre os continua-
dores das suas ‘Décadas’”. In: Boletim da Segunda Classe da Academia das Sciencias de Lisboa. Vol. XL, 1917.
pp. 202-355.
198 RÉVAH, I.S. “João de Barros”. In: BARROS, João. Diálogo evangélico sobre os artigos de fé contra o Talmud
dos judeus. Manuscrito inédito de João de Barros. Introdução e notas de I. S. Révah. Lisboa: Livraria Studium
Editora, 1950.

764
composto por João de Barros. Para os propósitos de nossa reflexão, queremos destacar aqui o prólogo
que o chantre elaborou para o Elogio do rei D. João III, de António de Castilho. Escreve ele:

O Elogio do Rei D. João III é feito por António de Castilho, cronista mor que foi deste
reino, e do conselho do rei D. Sebastião, e seu embaixador na Inglaterra, e um dos
homens que melhor falaram a língua portuguesa, a juízo de todos os doutos: e assim
por esta causa, como por ser de um rei, que governou com maior acerto, e felicidade
a Portugal, me pareceu muito conveniente tirá-lo das trevas do esquecimento em que
estava sepultado; pois é digníssimo sair à luz, e andar nas mãos de todos [...]199.

E acrescenta, na sequência, ao se referir ao Panegírico da infanta D. Maria:

No mesmo estado passava esquecido o Panegírico da Senhora Infanta D. Maria [...].


Foi composição do nosso grande João de Barros, o qual como seu pai era moderador
de Viseu, celebrou com este Panegírico a boa sorte daquela cidade, quando o rei D.
João a deu à senhora infanta com título de duquesa dela200.

Tudo o que temos de informação sobre o Panegírico da infanta D. Maria decorre desse peque-
no trecho, retirado do prólogo das Notícias de Portugal. Como é possível notar, tanto o Elogio do rei
D. João III quanto o Panegírico da infanta D. Maria permaneciam “esquecidos” dos círculos literários,
razão pela qual Severim de Faria empreendeu-se na tarefa de publicá-los.

Algo que chama atenção nos dois trechos acima é como Severim de Faria se refere à condição
manuscrita dos textos que estava a publicar. Imprimi-los significaria tirá-los das “trevas do esqueci-
mento” e dar a eles visibilidade e possibilidade de maior circulação. Essas passagens, portanto, nos
levam a crer que, para Severim de Faria, a condição impressa do texto era irremediavelmente superior
à condição manuscrita.

Sabemos que na altura em que escreve as passagens acima, a imprensa encontrava-se consoli-
dada em solo europeu. No entanto, sabemos também que o manuscrito, conforme assegura Fernando
Bouza em seus estudos, não era sinônimo de uma vontade não difusionista. No período que se con-
vencionou chamar Idade Moderna, o manuscrito era tão comum quanto o impresso e corria de mão
à mão. Bouza afirma e demonstra com inúmeros exemplos que o manuscrito se apresentava como
um concorrente da tipografia e oferecia um ligeiro sistema de cópias e traslados que, em boa medida,
199 FARIA, Manuel Severim de. Noticias de Portugal :offerecidas a El Rey N.S. Dom João o IV. / por Manoel
Severim de Faria : declaaose as grandes commodidades que tem para crescer em gente, industria, comercio,
riquezas, & forças militares por már, 6 terra : as origens de todos os appellidos, & as armas das familias nobres
do Reyno : as Moedas que corrèrão nesta Provincia do tempo dos Romanos atè o presente : e se referem varios
Elogios de Principes, &VaroensIllustres Portugueses. - Lisboa: na OfficinaCraesbeeckiana, 1655, s/p, grifos
nossos. Todas as fontes terão sua ortografia atualizada.
200 Idem, grifos nossos.

765
chegou a estar profissionalizado201.

Não parece ser o caso dos textos acima, publicados por Manuel Severim de Faria. É claro que
esses textos representam dois exemplos particulares. Mas as observações de Severim de Faria nos le-
vam a crer que tais escritos podem ter tido uma difusão muito reduzida quando manuscritos.

No estágio atual de nossas investigações, não tivemos acesso ao texto manuscrito do Pane-
gírico da infanta D. Maria, embora saibamos, com base no testemunho de António de Oliveira, que
existe uma cópia manuscrita no Arquivo Nacional da Torre do Tombo202. A essa publicação de 1655
seguiram-se outras duas: a de 1665, cuja edição ficou a cargo de João da Costa, e a de 1740, resultado
da segunda impressão das Notícias de Portugal, edição conduzida por José Barbosa203.

Mas voltemos ao prólogo. Em suas poucas palavras, Manuel Severim de Faria não esclarece se
já tinha conhecimento da versão manuscrita do Panegírico da infanta D. Maria na altura em que pu-
blicou a biografia de João de Barros, em 1624, ou se tomou conhecimento do manuscrito depois dessa
data, já que ele não comenta como ou quando adquiriu o texto.

Por outro lado, a questão parece se iluminar um pouco mais quando lemos a seção intitulada
“Aos leitores”, da edição de 1655 de suas Notícias de Portugal, na qual Faria nos informa que, na altura
em que publica os Discursos vários políticos, em 1624204, ele já contava com as Notícias de Portugal
praticamente acabada e pronta para publicar. Vale a citação:

No ano de 1625, dei a estampa alguns Discursos e Elogios para instrução política das
Artes, em que hão de ser doutrinados os mancebos nobres da República, conforme os
preceitos do filósofo: e tendo eu naquele tempo uma obra grande, que intitulava No-
tícias de Portugal e suas conquistas, já quase em estado para se poder imprimir, como
testificam os doutores Fr. António Brandão, Geral que foi de Alcobaça, e António de
Sousa de Macedo, que então a viram; contudo como as coisas daqueles anos para cá
tiveram tão grande mudança, recresceram tais inconvenientes, que me sobrestive na
execução deste intento. Porém entendendo eu, que não seria de menor serviço do
bem público alguns Discursos dos muitos, que nesta obra se continha sobre diversas
matérias, assim políticas, como de vária lição, me pareceu comunica-lo a todos, e pelo
que participaram de seu primeiro original, dar-lhe o título de Notícias de Portugal205.

Os Discursos vários políticos foram, na verdade, uma preparação do autor para aquilo que seria a sua
obra maior, as Notícias de Portugal: “Costumam os arquitetos quando intentam levantar alguma fá-
201 BOUZA, Fernando. Corre manuscrito. Una historia cultural delSiglo de Oro. Madrid: MacialPons, 2001,
p. 17-19.
202 OLIVEIRA, António de. “A infanta D. Maria e o senhorio de Viseu: uma precisão cronológica”. In: Revista
Portuguesa de História. nº 27, 1992, p. 216, nota 3.
203 MACHADO, Diogo Barbosa. Bibliotheca lusitana historica, critica, e cronologica. Na qual se comprehen-
de a noticia dos authoresportuguezes, e das obras, que compuseraõ desde o tempo da promulgação da Ley da
Graça até o tempo prezente. Vol. 2. Lisboa Occidental: Officina de Antonio Isidoro da Fonseca, 1741, p. 608.
204 Não sabemos se, por um lapso, Faria afirma ter sido o ano da publicação dos Discursos vários políticos o
de 1625, e não 1624, como vem estampado na folha de rosto dos Discursos.
205 FARIA, Manuel Severim de. Notícias de Portugal... op. cit., s/p.

766
brica, desenhar primeiro em uma pequena traça, para depois se acertar melhor o edifício”206. Severim
de Faria parece, com isso, se valer dos Discursos para trabalhar o seu estilo e assim se preparar para
obras maiores, como ele mesmo indica na dedicatória.

Ora, mas o que os poucos vestígios disponíveis nos permitem considerar, ao menos parcial-
mente? Se em 1624, quando Severim de Faria publica os Discursos vários políticos, ele já contava com
as Notícias de Portugal praticamente acabadas, é possível que os textos destinados à seção “Elogios”
(entre eles o Panegírico da infanta D. Maria) já estivessem em suas mãos, mas o mais provável é que
não estivessem, até porque esses textos formam uma espécie de apêndice ao restante da obra. Acres-
cente-se o fato de o próprio Severim de Faria afirmar no prólogo das Notícias que tanto o Panegírico
da infanta D. Maria quanto o Elogio do rei D. João III passavam “esquecidos”, daí seu propósito de
publicá-los. Se, de fato, na altura de 1624 ele já estivesse de posse daquele panegírico de Barros, não
haveria razão para não citá-lo na biografia dedicada ao humanista. Assim, o mais provável é que ele
tomou conhecimento desse texto posteriormente207.

Sabe-se que Manuel Severim de Faria foi bibliófilo e reuniu em sua casa um conjunto expressi-
vo de documentos manuscritos e impressos. Ana Paula Torres Megiani apresenta um cômputo de 400
volumes, oriundos de diferentes partes do reino de Portugal e Espanha, bem como da Índia, África
e América. Esse conjunto de documentos configura uma das poucas coleções privadas existentes em
Portugal entre a última década do século XVI e meados do século XVII208. Pode ser que, entre os tan-
tos manuscritos sob sua posse, ali estivesse o Panegírico da infanta D. Maria. Ou mesmo que, depois
de 1624, Faria tenha recebido o manuscrito e resolvido publicar em suas Notícias de Portugal.

Se o Panegírico da Infanta D. Maria foi publicado em 1655, o mesmo não aconteceu com o
Panegírico de D. João III, que precisou esperar até 1740 para “sair do esquecimento”. Por sua vez, foi
impresso na segunda edição das Notícias de Portugal, reedição conduzida por José Barbosa. Quando
consultamos o adendo feito por Barbosa ao texto de apresentação ao Panegírico da infanta D. Maria,
que havia sido preparado por Severim de Faria em 1655, lemos o seguinte:

206 Idem.
207 Outro ponto a reforçar a ideia de Manuel Severim de Faria não ter conhecimento do Panegírico da infanta
D. Maria é que, na Vida de João de Barros, o biógrafo dá testemunho não apenas das obras publicadas, mas
também faz referência àquelas que João de Barros deixou começadas ou que intentou escrever: “Porém quanto
mais são estimadas as obras com que saiu à luz, tanto maior pena nos podem causar as que deixou começadas,
e intentadas, que sem dúvida seriam de grande ornamento para este reino; mas pois não podemos lograr a exce-
lência destes volumes, apontarei aqui, ao menos, a traça, a disposição deles, para ainda assim serem de proveito
(como já foram) aos curiosos”. E cita, na sequência, obras como Europa, Africa e Santa Cruz; Tratado de causas
ou problemas morais; Abusões do tempo; Geografia universal;Sphera da instructura das cousas. Severim de
Faria cita esses escritos a partir da própria referência que João de Barros faz a eles em suas obras publicadas e
confirma a existência de tais composições a partir do testemunho de pessoas que teriam tido contato com elas.
Cf. FARIA, Manuel Severim de. Vida de João de Barros por Manuel Severim de Faria e indice geral das quatro
décadas da sua Ásia (1624).- Nova ed. - Lisboa : Na Régia OfficinaTypografica, 1777-1788, p. XLI-L, citação à
página XLI.
208 MEGIANI, Ana Paula Torres. Cultura escrita e memória política no mundo ibérico. Séculos XV-XVII. Tese
apresentada ao Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universi-
dade de São Paulo, para obtenção do Título de Livre-Docente. São Paulo, agosto de 2014, p. 35.

767
[...] E como o Elogio de João de Barros ao mesmo rei D. João III é obra em que se
vê a grande erudição, e delicadíssimos pensamentos de um homem tão excelente, se
imprime agora, ainda que com alguns erros, que senão puderam emendar na falta do
original, e de cópia exatíssima; e como estes Elogios não tinham ordem, se lhes deu a
que pedia a sua matéria209.

Dois pontos merecem ser destacados do excerto acima. O primeiro deles é que a lembrança
da existência de um outro panegírico supostamente escrito por João de Barrosparece ocorrer a José
Barbosa a partir do Panegírico da infanta D. Maria. Isto porque, ao republicar as Notícias de Manuel
Severim de Faria, uma das poucas alterações feitas por Barbosa àquele texto foi a adição do Panegírico
de D. João III. Já o segundo ponto diz respeito às condições do manuscrito a que Barbosa teve acesso.
Ele menciona o fato de não ter acessado o manuscrito original, nem “cópia exatíssima”, por isso o tex-
to que publicou foi ordenado como melhor lhe convinha. Temos, portanto, um testemunho claro da
intervenção do editor no texto por ele impresso.

Assim como o Panegírico da infanta D. Maria, o Panegírico de D. João III conta com um ma-
nuscrito que está sob guarda da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), e ao qual temos acesso por
uma cópia digital, o que nos possibilita compará-lo com as versões impressas. Esse é o único manus-
crito disponível e, ao que tudo indica, como demonstraremos mais adiante, não deve ser o manuscrito
originalmente composto no século XVI. Antes, porém, de tecermos algumas considerações sobre o
manuscrito e as diferentes edições impressas, julgamos conveniente dedicar algumas palavras ao seu
editor, José Barbosa.

José Barbosa (1674-1750) entrou ainda novo para a ordem dos teatinos, onde fez carreira e
notabilizou-se como orador. Em 1713, tornou-se cronista da Casa de Bragança a convite de D. João V.
Com a fundação da Academia Real da História em 1720, passou a integrar aquela instituição, vindo a
se tornar historiador consagrado.

A Academia Real da História foi criada com o objetivo de elaborar a história eclesiástica e se-
cular de Portugal e promover a glória da nação no país e no estrangeiro. Para alcançar tal finalidade,
seus membros realizaram uma verdadeira devassa nos arquivos do reino no esforço de reunir o maior
número possível de documentos. Centralizada em Lisboa, a Academia estabelecia contato com acadê-
micos e instituições espalhadas pelo reino, bem como com intelectuais estrangeiros. Em seus anos de
existência a instituição concentrou milhares de cópias de documentos enviados das várias províncias,
da Torre do Tombo, das livrarias particulares e do ultramar210.

Uma parcela dos eruditos que fazia parte da Academia pertencia à ordem dos teatinos, como
é o caso de José Barbosa. Isabel Ferreira da Mota assegura que esses acadêmicos, dentre os quais
figuram, além de Barbosa, os irmãos António Caetano de Sousa e Manuel Caetano de Sousa, Luís

209 FARIA, Manuel Severim de. Notícias de Portugal / escritas por Manoel Severim de Faria.... - 2ª Impressão/
acrescentadas pelo Padre D. José Barbosa. - Lisboa Occidental: na Off. deAntonio Isidoro da Fonseca, 1740, s/p.
210 MOTA, Isabel Ferreira da. A Academia Real da História: os intelectuais, o poder cultural e o poder monár-
quico no século XVIII. Coimbra: Edições Minerva Coimbra, 2003, p. 38-39, 54.

768
Caetano de Lima, Jerónimo Contador de Argote e Tomás Caetano do Bem, constituíam um grupo que
realizava um trabalho de erudição e crítica bem elaborado e estruturado, cujas marcas estavam em sua
procura por fontes, na crítica bibliográfica e no rigor com a escrita. Ainda segundo a autora, a livraria
dos teatinos era riquíssima em livros raros, manuscritos antigos, medalhas, gravuras e coleções de do-
cumentos, que os clérigos foram adquirindo ao longo dos anos com a ajuda financeira de D. João V211.

Portanto, o acadêmico José Barbosa, que incluiu o Panegírico de D. João III na reimpressão
das Notícias de Portugal, era alguém que tinha acesso irrestrito aos arquivos do reino e sob suas mãos
passavam centenas de milhares de documentos provenientes de diferentes partes. Entre 1710 e 1746
Barbosa publicou algumas dezenas de textos, entre os quais predominam sermões, elogios e panegíri-
cos fúnebres212. Além dos textos de que foi autor, colaborou também para algumas reedições, como a
de 1740 (Notícias de Portugal) e outra, de 1726. Nesta de 1726, foi convidado por Manuel Lopes Fer-
reira para atualizar a obra de Fr. Bernardo de Brito – os Elogios dos reyes de Portugal. Isabel Ferreira
da Mota considera que a escolha de Barbosa por parte do editor-impressor certamente foi motivada
pelo prestígio e autoridade do acadêmico, por ser historiador profissional e membro da Academia
Real213. É certo que a dignidade dos doutos acadêmicos pertencentes aos quadros da Academia se
transferia, também, para as obras que levavam seus nomes, daí ser possível falar nos termos de uma
“dignidade tipográfica” bem visível aos leitores e com o correspondente efeito nos modos de recepção
e de interpretação214.

A escolha de José Barbosa para colaborar na reedição das Notícias de Portugal também pode
ser pensada nesses termos. Ter estampado o seu nome na folha de rosto por certo daria à obra uma
dignidade maior. Nesta nova empreitada, Barbosa contribuiu com alguns acréscimos feitos ao texto
original. Identificamos, ao menos, três intervenções importantes. A primeira delas acontece na seção
intitulada “Aos leitores”, quando o acadêmico adiciona informações sobre o novo panegírico que es-
tava a publicar. Barbosa escreve ainda uma pequena biografia de Manuel Severim de Faria que é adi-
cionada logo após as licenças prévias de publicação. Uma última intervenção acontece mais à frente,
quando atualiza a seção “Memorial de alguns cardeais portugueses”, acrescentando novos nomes à
lista de cardeais outrora iniciada por Manuel Severim de Faria215.

No conjunto da obra, a maior intervenção, sem dúvida, foi o acréscimo do Panegírico de D.


João III. Sobre esse aditamento, encontramos dois testemunhos expressivos dos qualificadores do San-
to Ofício, D. Caetano de Gouveia e António Caetano de Sousa, ambos, também, membros da Acade-
mia Real da História. Ao autorizar a publicação daquela nova edição, D. Caetano de Gouveia afirma:
“Li as Notícias de Portugal de Manuel Severim de Faria com as adições, que de novo se lhe acrescen-
tam, e com o excelente Panegírico, que o grande João de Barros fez ao rei D. João III e nenhuma coisa
211Idem, p. 68-70.
212 Para um levantamento de todas as obras publicadas por José Barbosa, cf. MACHADO, Diogo Barbosa.
Bibliotheca Lusitana... Vol. 2, p. 825-829.
213 MOTA, Isabel Ferreira da. Op. cit., ver. págs. 137 e 247.
214 Idem, p. 92.
215 José Barbosa acrescenta novos nomes à lista de cardeais preparada por Manuel Severim de Faria e dedica-
-lhes biografias. As adições encontram-se entre as páginas 267 e 286. Cf. FARIA, Manuel Severim de. Notícias
de Portugal... op. cit., 2ª impressão.

769
encontrei oposta à pureza da fé [...]”216. Por sua vez, António Caetano de Sousa chega a justificar a
reimpressão de uma obra como aquela:

Esta obra, que agora se pretende juntamente reimprimir, se ia fazendo tão rara, que
dificultosamente poderia chegar às mãos daqueles que se aplicam com curiosidade a
ler, assim é de louvar o zelo de novo se imprimir com adições, que a fazem mais esti-
mável por serem notícias, que instruem, e põem a obra depois de quase um século no
nosso tempo. No fim se lhe ajunta aquele célebre Panegírico feito no ano de 1533 ao
rei D. João III por aquele insigne varão o grande João de Barros, cujo nome é o maior
Elogio, para a recomendação da obra217.

No esforço de reavivar a memória de um homem tão ilustre como foi Manuel Severim de Faria,
imprimiu-se novamente suas Notícias de Portugal, texto que, certamente, teria uma boa recepção pelo
público. Com ele, o Panegírico de D. João III, considerado por António Caetano de Sousa um texto
“célebre” e escrito por ninguém menos que o “insigne varão” João de Barros, cujo nome era a principal
causa de recomendação da obra. Os membros da Academia tinham em mente o público que queriam
alcançar e visavam tornar suas obras um sucesso de vendas. De acordo com Isabel Ferreira da Mota,
panegíricos, discursos e obras de história eram produtos que vendiam bem, principalmente se trou-
xessem a chancela da Academia Real218. Talvez esteja aí uma motivação importante para a publicação
do Panegírico de D. João III naquela nova edição das Notícias de Portugal.

2. Do manuscrito ao impresso

Era comum no século XVI uma obra ser lida em diferentes versões, cada qual correspondendo
a um momento diferente de redação. Assim, as cópias feitas num primeiro momento, quando o autor
ainda trabalhava o texto, podiam conviver, no tempo, com o texto impresso ou mesmo com o manus-
crito que o autor considerava, enfim, aperfeiçoado. A esse respeito Sheila Hue cita alguns exemplos,
como o Soldado prático, de Diogo do Couto, que podia ser encontrado em diferentes versões manus-
critas, e a tragédia Castro, publicada anonimamente em 1587 e novamente em 1598 com um texto
bastante diferente do primeiro. Outro exemplo é o tratado escrito por Pero Magalhães Gândavo sobre
o Brasil. Após ter sido aperfeiçoado e aumentado ao longo dos anos, o tratado ganhou quatro versões,
três manuscritas e uma impressa. Essas diferentes redações ocorreram em decorrência do constante
aperfeiçoamento do texto pelo autor, que ganhou vários adendos até ser finalmente publicado, em
1576219.

Roger Chartier aponta algumas razões que levaram a cópia manuscrita a continuar presente

216 Idem. s/p.


217 Idem.
218 MOTA, Isabel Ferreira da. Op. cit., p. 86.
219 HUE, Sheila Moura. “Em busca do cânone perdido. Manuscritos e impressos quinhentistas: das variantes
textuais e das atribuições autorais”. In: Revista de Estudos Literários, Vitória, a. 5, n. 5, 2009.

770
mesmo quando o desenvolvimento da imprensa parecia anunciar o seu desaparecimento. Em primei-
ro lugar, o manuscrito permitia uma difusão mais restrita e controlada, escapando assim da censura
prévia. O manuscrito também podia circular clandestinamente e com mais facilidade do que obras
impressas, que necessariamente estavam sujeitas à ação dos órgãos censores. O texto manuscrito tinha
a condição ainda de ser aberto a correções, eliminações e adições em todos os estágios de sua fabrica-
ção: desde a composição até a copiagem ou da cópia terminada até a encadernação, era possível que se
escrevesse nele. Era muito frequente, por exemplo, os leitores acrescentarem aos seus textos favoritos
novas passagens, especialmente quando se tratava de poemas220.

Os exemplos apresentados por Sheila Hue em relação à poesia são, mais uma vez, elucidati-
vos. Um deles é o soneto “Horas breves de meu contentamento”, que pode ser considerado uma obra
múltipla e aberta. Com dez diferentes redações e três atribuições autorais, Hue sugere que o soneto
foi “reescrito, recomposto por diversas mãos (de copistas, leitores e poetas), e essas muitas versões,
difundidas em folhas soltas ou oralmente, podem ter sido posteriormente copiadas nos cancioneiros
manuscritos que chegaram até nós”221.

Levantamos esses exemplos para pensar o Panegírico de D. João III. Não que estejamos diante
de uma fonte que apresente diferentes versões, não é esse o caso. O único manuscrito encontrado até
hoje está sob guarda da BNP e só conhecemos essa versão manuscrita. No entanto, muito em função
do que escreveu José Barbosa para o texto de apresentação ao panegírico na ocasião em que o publi-
cou, em 1740, somos levados a pensar nas possíveis versões que antecederam essa cópia manuscrita e
que hoje estão, ou perdidas, ou depositadas em algum arquivo. Cito-o novamente:

[...] E como o Elogio de João de Barros ao mesmo rei D. João III é obra em que se
vê a grande erudição, e delicadíssimos pensamentos de um homem tão excelente, se
imprime agora, ainda que com alguns erros, que senão puderam emendar na falta do
original, e de cópia exatíssima; e como estes Elogios não tinham ordem, se lhes deu a
que pedia a sua matéria222.

Embora sejam poucas as palavras – as únicas que testemunham sobre as fontes consultadas – o
excerto acima traz algumas implicações. José Barbosa, o responsável pelos aditamentos à segunda edi-
ção das Notícias de Portugal, afirma imprimir o panegírico com “alguns erros”, já que não encontrou
outra fonte mais segura que pudesse lhe dar um retrato mais fiel sobre o texto originalmente compos-
to. Essas preocupações ilustram bem o perfil dos membros da Academia Real da História, para quem
o rigor documental era regra fundamental223. Fica claro, em suas palavras, que Barbosa não teve acesso
a um texto acabado, bem ordenado e estruturado. Pelo contrário, deparou-se com fragmentos, pode-
mos dizer, aleatórios e sem qualquer ordenação, daí ter ele procedido à sua maneira.
220 CHARTIER, Roger. A mão do autor e a mente do editor. Trad. George Schlesinger. 1ª ed. São Paulo: Editora
Unesp, 2014, p. 1-2.
221 HUE, Sheila Moura. Op. cit., p. 6-7.
222 FARIA, Manuel Severim de. Notícias de Portugal... op. cit., 2ª impressão, s/p.
223 Cf. MOTA, Isabel Ferreira da. Op. cit., p. 70.

771
Ora, o manuscrito que chegou até nós não parece ser esses papeis consultados por Barbosa. O
documento não apresenta as características descritas por ele. É um texto enumerado do início ao fim
(totalizando 78 folhas escritas frente e verso), apresenta uma grafia regular, resultado do trabalho de
um único copista e apresenta-se bem ordenado. Não é um texto fragmentado, como indica Barbosa,
mas um documento que apresenta uma unidade. Com isso posto, somos levados a pensar o seguinte:

• Se o manuscrito já existia antes da edição de 1740, José Barbosa muito provavelmente não
o consultou. Suas palavras não apontam para isso224.

• Se o manuscrito já existia antes da edição de 1740 e José Barbosa não o consultou, a edi-
ção empreendida por ele permaneceu praticamente idêntica ao manuscrito, o que é muita
coincidência.

• Se o manuscrito e a edição de 1740 são muito semelhantes, e José Barbosa não consultou
aquela fonte, ela pode ter sido copiada a partir da edição empreendida por Barbosa.

• Ou, um último caso a ser considerado, e que nos parece mais lógico: se o manuscrito e a
edição de 1740 são praticamente idênticos, esse manuscrito pode ter saído das mãos do
próprio José Barbosa, elaborado com base nos papeis que ele diz ter encontrado, e foi esse
o manuscrito que serviu de base ao impressor.

A partir da análise do documento, identificamos as características a seguir. O manuscrito traz


na folha de rosto o título Ao mui alto e muito poderosõ Rey de Portugal D. João 3o. deste nome. Pane-
girico de João de Barros. Ao que parece, esse título foi desenhado. Junto a ele encontra-se um ex-libris
da biblioteca régia. No verso da página que leva o título inicia-se o texto, disposto em duas colunas. Ao
longo de suas cento e cinquenta e três páginas, há apenas dois únicos parágrafos. Nas primeiras pági-
nas a grafia segue bem elaborada, mas à medida que o texto avança o copista não mantém o mesmo
cuidado. O mesmo se verifica com o número de linhas. Nas cinco primeiras páginas, o número man-
tém-se em vinte e quatro. A partir da página seis, esse número passa a variar. Em algumas páginas, ve-
rifica-se quinze linhas, por exemplo. Ao longo do texto, há inúmeras notas de margem. Encontramos
ao menos cinco rasuras e quatro trechos grifados. No fim do documento, encontra-se possivelmente
uma nota de posse: “Antonio Moreira de Souza”225.

A edição impressa contém o título idêntico ao do manuscrito. A única diferença nessa parte
é que ela traz o ano de composição (1533) logo abaixo do título, enquanto que no manuscrito o ano
de composição aparece só ao final do texto. Diferentemente do manuscrito, que contém dois úni-
cos parágrafos, o texto impresso encontra-se organizado em cento e vinte e oito parágrafos. Quando
comparados, os dois textos não apresentam tantas diferenças entre si, apenas alguns erros e variantes.

224 Giuseppe Marcocci defende que o manuscrito é do início do século XVII, embora não apresente as evidên-
cias que o levaram a tal conclusão: “Data dos inícios de Seiscentos uma alegada versão manuscrita do texto, a
única encontrada até hoje. Não se sabe quando é que o códice, manifestamente manuseado (talvez na época
da edição setecentista), tenha entrado na biblioteca régia”. Cf. MARCOCCI, Giusepe. “O modelo do Império
Romano: Maquiavel em Portugal”. In: A consciência de um império. Portugal e o seu mundo (sécs. XV-XVII).
Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012, p. 254.
225 Essa referência à suposta nota de posse encontra-se em MARCOCCI, Giuseppe. op. cit., p. 254, nota 551.

772
O responsável pela edição moderna do panegírico notou que as variantes encontradas nas edições
impressas podem se tratar de variantes legítimas, obra do próprio autor226. Para citar dois exemplos,
em grande parte dos casos essas variantes se dão porque o responsável pelo texto impresso trocou
de ordem as palavras de uma sentença: onde se lê “de mim verdadeiramente digo”227 e “de poderosos
reis”228, no manuscrito, lê-se “de mim digo verdadeiramente”229 e “de reis poderosos”230, no impresso.
Existem inúmeros outros casos desse tipo. Observamos apenas um único grande corte (não sabemos
se deliberado ou não) entre as duas versões. Trata-se da supressão de catorze linhas do texto manus-
crito que não se encontram na edição impressa231. Fora isso, o texto segue praticamente idêntico: até
mesmo os parênteses encontrados ao longo do texto manuscrito se reproduzem no impresso. Por fim,
uma última observação importante, a edição impressa suprimiu todas as notas de margem presentes
no manuscrito.

Diante do exercício de cotejamento, fica evidente que o texto manuscrito ou serviu de modelo
para a edição impressa, ou a edição impressa serviu de base para o manuscrito. Nossa hipótese, como
sustentamos, é de que esse manuscrito foi elaborado por José Barbosa a partir dos papeis que ele diz
ter encontrado e foi esse o texto que serviu de base ao impressor. Infelizmente, não sabemos se esses
papeis ainda existem. Quinze anos após a publicação do panegírico, em 1755, Lisboa sofreria com os
efeitos de um grande terremoto. Essa catástrofe veio a destruir a cidade e, com ela, o palácio da Aca-
demia Real da História, bem como sua biblioteca. Pode ser que esses papeis tenham sido destruídos
na ocasião.

3. Autoria e intertextualidade

Em conferência apresentada à SociétéFrançaise de Philosophieem 1969, depois transformada


em publicação, o filósofo francês Michel Foucault desenvolveu importantes reflexões acerca da noção
de autor e suas relações com a obra. A questão central proposta pelo filósofo e que leva o título de sua
publicação, O que é um autor?, é fundamental para quem lida com questões que envolvem autoria.

Foucault busca examinar a relação do texto com o autor e “a maneira” – reproduzo-o – “com
que o texto aponta para essa figura que lhe é exterior e anterior, pelo menos aparentemente”. Um de
seus primeiros movimentos é reconhecer que a noção de obra é em si problemática. Como definir
uma obra? De quais elementos ela se compõe? Tudo o que o autor deixou de traços e vestígios após
sua morte faz parte de sua obra? Após ponderar sobre essas questões, o filósofo considera ser precário
deixar o autor de lado para estudar unicamente a obra, uma vez que ela aponta, necessariamente, para
um nome. Em seguida, reconhece que o nome do autor não é um nome próprio qualquer. Dizer que
Shakespeare não nasceu na casa que hoje se diz ser dele não altera o funcionamento do nome do autor.
226 Cf. LAPA, Manuel Rodrigues. “Introdução”. In: BARROS, João de. Panegíricos (Panegírico de D. João III e
da infanta D. Maria), ed. M. Rodrigues Lapa. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1943, p. XXXI.
227 Ver Panegírico... (manuscrito) p. 28.
228 Ver Panegírico... (manuscrito) p. 32.
229 Ver ed. impressa, Notícias de Portugal, p. 305.
230 Ver ed. impressa, Notícias de Portugal, p. 308.
231 Ver Panegírico... (manuscrito) p. 150. Ver ed. impressa, Notícias de Portugal, p. 378.

773
Por outro lado, se fica provado que Shakespeare não escreveu os Sonetos que são tidos como dele, esse
fato altera, necessariamente, o funcionamento do nome do autor:

[...] o nome do autor funciona para caracterizar um certo modo de ser do discurso:
para um discurso, o fato de haver um nome de autor, o fato de que se possa dizer “isso
foi escrito por tal pessoa”, ou “tal pessoa é o autor disso”, indica que esse discurso não
é uma palavra cotidiana, indiferente, uma palavra que se afasta, que flutua e passa,
uma palavra imediatamente consumível, mas que se trata de uma palavra que deva
ser recebida de uma certa maneira e que deve, em uma dada cultura, receber um
certo status232.

O nome de um autor não é, portanto, um simples elemento em um discurso. Ele cumpre o


importante papel de assegurar uma função classificatória, de reagrupar um certo número de textos,
delimitá-los, selecioná-los e opô-los a outros. Colocar vários textos sob um mesmo nome indica que
se estabelece entre eles uma relação de homogeneidade ou de filiação, de autenticação de uns pelos
outros, de explicação recíproca ou de utilização concomitante233.

Nesse sentido, evocar o nome próprio “João de Barros” é ter em conta a ligação de seu nome
aos textos que publicou em vida. Barros é geralmente identificado com aquilo que escreveu: é dele a
segunda gramática da língua portuguesa ou os monumentais volumes historiográficos das Décadas
da Ásia. Os textos que publicou em vida definem, portanto, o nome próprio do autor. Mas e os textos
póstumos a ele atribuídos? Como definir ou filiar tais textos ao nome próprio “João de Barros”?

A esse respeito, Harold Love nos ajuda a pensar alguns caminhos. Em seu livro sobre autoria,
o autor evidencia que os estudos de atribuição se distinguem convencionalmente entre evidências
internas e externas. Enquanto que as evidências internas dizem respeito aos elementos presentes no
interior de um trabalho, as evidências externas referem-se ao mundo social em que o trabalho é cria-
do, colocado em circulação e lido. Exemplos de evidências externas são os documentos que preten-
dem transmitir informações sobre as circunstâncias de composição, como diários, correspondências
e registros de editores. Já as evidências internas cobrem a parte estilística, a autorreferência, a auto
apresentação e a manifestação de temas, ideias, crenças e concepções de gênero no interior de um
trabalho234. Para Love, a razão mais comum para se acreditar que um determinado autor escreveu uma
obra em particular é alguém que presume ter conhecimento da obra em primeira mão nos dizer isso.
Este relato geralmente toma a forma de uma inscrição numa página de rosto, num incipit, explicit ou
cólofon. Sobretudo nos casos em que o trabalho chega com um pseudônimo ou nenhum nome, aí está
a preocupação mais comum do atribucionista235.

Na impossibilidade de acessarmos os papeis que José Barbosa diz ter encontrado, tudo o que
nos resta é o manuscrito do Panegírico de D. João III que chegou até nós, explicitamente datado e
232 FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Passagens, 2009, p. 45.
233 Idem, ibidem.
234 LOVE, Harold. Attributing authorship: an introduction. Cambridge: University Press, 2002, p. 51.
235 Idem, p. 54-55.

774
atribuído a João de Barros. Mas, mesmo diante da ausência daqueles papeis, podemos tomar como
horizonte as evidências internas e externas sugeridas por Harold Love, a fim de avaliar as possibilida-
des de filiação dos panegíricos ao nome próprio João de Barros.

Nesse sentido, um primeiro elemento a ser analisado é o ano de escrita de cada texto. No Pane-
gírico de D. João III, tanto o manuscrito quanto o impresso trazem 1533 como o ano de composição.
Dentro do próprio texto há uma passagem que corrobora esse dado: “Passa de doze anos que V. Alteza
reina, nos quais sendo sempre tão excelente rei, nunca cansou, nem cansa de o ser cada dia melhor”236.
Considerando que D. João III começou a reinar em 1521, de fato, em 1533, estaria o rei completando
doze anos de reinado. Outra passagem a corroborar o ano de 1533 é a seguinte:

Que maior testemunho do que digo queremos que o que este dia e tempo presente
nos pode dar, em que não somente faz mais rica e populosa com sua presença a sua
cidade de Évora, mas ainda muito desejoso de lhe ser causa de maiores bens lhe traz
novamente água de muito longe em muita abastança, vencendo com arte à nature-
za, restituindo o cano de água, tão necessário e tantos tempos há esquecido, e com
grande ânimo suprindo os defeitos do lugar, para dar saúde e contentamento aos
homens?237

O evento acima descrito diz respeito às obras de restauração do Aqueduto da Água da Prata, projeto
empreendido entre os anos de 1533 e 1537 e para o qual foram mobilizados importantes recursos
técnicos, humanos e financeiros238. Portanto, tudo leva a crer que o panegírico foi escrito para celebrar
a ocasião em que o rei, juntamente com a corte itinerante, encontrava-se em Évora e acompanhava
os trabalhos de restauração daquele aqueduto, obra que certamente daria prestígio a D. João III pelo
enorme benefício que trouxe à cidade. Outra referência às obras desse aqueduto pode ser encontrada
em António Castilho, em seu elogio ao mesmo D. João III: “Restituiu o cano de água de prata de Évora,
aqueduto antigo de Sertório, que o tempo em muitas partes tinha gastado, a cuja conservação aplicou
renda pública, que bastava para suprir o reparo”239.

Por sua vez, o Panegírico da infanta D. Maria foi impresso em 1655, mas não está explicita-
mente datado. Na seção “Aos Leitores”, Manuel Severim de Faria informa: “Foi composição do nosso
grande João de Barros; o qual como seu pai era morador de Viseu, celebrou com este Panegírico a
boa sorte daquela cidade, quando o rei D. João a deu à Senhora Infanta com título de Duquesa dela”.
Alexandre de Lucena e Vale colocou em 1544 a redação do panegírico, a partir da data extraída de um
dos borrões prévios à elaboração da minuta do contrato entre D. João III e a irmã: “Podemos desde já
haver por assente que o senhorio de Viseu foi, por D. João III, dado à infanta D. Maria nesse mesmo

236 BARROS, João de. Panegírico de D. João III... op. cit., 1940, p. 122.
237 Idem, p. 76.
238 Sobre as obras de restauração do aqueduto, cf. BILOU, Francisco. A refundação do Aqueduto da Água da
Prata, em Évora (1533-1537). Lisboa: Edições Colibri, 2010.
239 CASTILHO, António de. “Elogio ao Rei D. João de Portugal III”. In: FARIA, Manuel Severim de. Notícias
de Portugal. Op. cit., p. 300.

775
ano de 1544, e assim que é este o ano da redação do panegírico de João de Barros”240.

Levando em conta que o panegírico foi mesmo escrito para celebrar a doação do Senhorio de
Viseu à Infanta D. Maria no texto, há uma passagem que revela um dado importante sobre o seu autor:

Que dias há, que este vosso povo, derramado pelos desertos desabitados da razão,
espera por V. Alteza! Grandes caminhos se me abriam aqui de seu louvor, mas dirão
que não guardo o decoro que devo à pátria em publicar seus defeitos, por ser mãe,
que me gerou. Oh! Grandíssima prudência do rei nosso senhor entregar neste tempo
um povo a quem o havia de restituir a estado de maior quietação e repouso! Grandís-
sima clemência de V. Alteza, aceitar a governança dele pelo salvar! Certamente que
não sei o que mais houve, se a prudência de um, se a clemência do outro; igual é a
dívida, igual o louvor, igual a obrigação241!

Se António Baião havia considerado Viseu como local possível e até provável para berço de João de
Barros, Alexandre de Lucena e Vale extrairá do excerto acima a confissão de naturalidade do próprio
autor, remetendo-nos – para usar um dos termos propostos por Harold Love – a um indício de autor-
referência.

Seguindo as evidências internas propostas por Love, pontuamos que elas também cobrem te-
mas e ideias. No Panegírico de D. João III, uma das discussões centrais, segundo Giuseppe Marcocci,
está na leitura que Barros fez dos escritos de Maquiavel, especialmente os Discursos sobre a primeira
década de Tito Lívio e O príncipe, ambos publicados, respectivamente, em 1531 e 1532. Se o Panegíri-
co de D. João III pode ser corretamente datado em 1533, Barros teria sido o primeiro autor a replicar
as ideias contidas naqueles escritos de Maquiavel, segundo a avaliação de Marcocci.

O historiador italiano defende que Barros exprimiu um juízo positivo acerca da religião dos
antigos, sobretudo ao reproduzir o esquema dos Discursos no qual o fundamento da sociedade ro-
mana tornara-se o temor e a autoridade da religião242. Marcocci sustenta que Barros sai em defesa do
cristianismo como religião capaz de assegurar o poder tanto no governo civil quanto na ação militar, e
considera o temor a Deus como algo indispensável na manutenção do Estado243: “muito necessário [...]
é o temor de Deus e do outro mundo para a conservação de qualquer Estado, porque o bom príncipe
por força há de acatar o temor de Deus, e o seu acatamento dura para sempre”244. Barros teria insistido
na coesão que o cristianismo favorecia entre os súditos portugueses e em sua capacidade de assegurar
a ordem civil no reino. Nas palavras de Marcocci, “foi [...] no terreno da religião que Barros construiu

240 Cf. VALE, Alexandre de Lucena e. apud OLIVEIRA, António de. “A Infanta D. Maria e o Senhorio de Viseu:
uma precisão cronológica”. In: Revista Portuguesa de História. nº 27, 1992, p. 217, nota 6.
241 BARROS, João de. Panegírico da Infanta D. Maria... op. cit., 1940, p. 187-188.
242 MARCOCCI, Giuseppe. “O modelo do império romano: Maquiavel em Portugal”. In: A consciência de um
império: Portugal e o seu mundo (sécs. XV-XVII). Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012, p.
251-279.
243 BARROS, João de. Panegírico de D. João III... op. cit., 1940, p. 259-266.
244 Idem, p. 47.

776
a comparação entre Portugal imperial e Roma Antiga, que percorre todo o seu panegírico”245. O hu-
manista recupera o valor civil da religião dos antigos, em particular a dos romanos, para em seguida
sair em defesa do cristianismo e demonstrar que o êxito político alcançado pelos portugueses não fi-
cava aquém daquele obtido pelos romanos, sobretudo pelo fato de o império português estar fundado
na lei de Cristo, ao contrário do império dos gentios: “Pois se a religião dos gentios, reprovada e falsa,
tinha o poder, pelo apartamento dos vícios e limpeza do espírito, de causar tanta perfeição a quem a
seguia, quanto mais se deve isto de esperar da verdadeira fé de Cristo?246”.

No Panegírico da infanta D. Maria é possível notar a apropriação desse mesmo discurso, a


exemplo do que se lê no Panegírico de D. João III:

Assim o príncipe que não amar a Deus, mal pode governar ovelhas, que dele recebeu,
para o regimento das quais se requer divina sabedoria, cujo princípio, como diz o
profeta, é temor de Deus; porque assim como o pai de famílias, que encomendou ao
servo a governança de sua fazenda e família, pela boa conta que dela lhe deu, conhe-
ceu o amor que lhe tinha, assim no cuidado, que o príncipe tem de seu povo, vê Deus
se o ama e lhe dá o galardão ou pena, conforme ao que merece247.

Se no Panegírico de D. João III é reproduzido o esquema dos Discursos no qual o fundamento


da sociedade romana tornara-se o temor e a autoridade da religião, e se o autor parece colocar em
continuidade a religião dos gentios e o cristianismo e reivindicar “ao segundo a força de aperfeiçoar
os méritos atribuídos por Maquiavel à primeira”248 – como a passagem a seguir deixa antever: “Sabida
coisa é com quanto cuidado os romanos guardavam sua falsa religião; e de crer é que mais devotos
foram da verdadeira, se dela tiveram conhecimento”249 –, no Panegírico da infanta D. Maria o autor
parece se valer do mesmo esquema discursivo para sustentar a importância do uso civil da religião:
“Donde vemos Estados de príncipes desfeitos por se apartarem de Deus, e outros levantados por che-
garem a ele”250. Ou ainda:

E não somente entre os judeus, a quem se Deus naquele tempo quis comunicar com
preceitos familiares do modo com que o haviam de servir, mas ainda entre os gentios,
como egípcios, assírios, medos, persas, gregos e romanos, e entre todos aqueles, que
tiveram monarquias, em todas suas histórias, quase não lemos outra coisa, senão em
quanta estima era entre eles tida a religião, de que Valério Máximo escreve tantos
exemplos. E aqueles, que mais a guardaram e veneraram, posto que fosse sem a fé,
que ao presente temos, foram por isso e por suas virtudes, com que ajudaram a Pátria,

245 MARCOCCI, Giuseppe. op. cit., p. 259.


246 BARROS, João de. Panegírico de D. João III... op. cit., 1940, p. 39. Ver a mesma passagem em MARCOCCI,
Giuseppe. op. cit., p. 261.
247 BARROS, João de. Panegírico da infanta D. Maria... op. cit., 1940, p. 176.
248 MARCOCCI, Giuseppe. op. cit., p. 261.
249 BARROS, João de. Panegírico de D. João III... op. cit., 1940, p. 46. Ver a mesma passagem em MARCOCCI,
Giuseppe. op. cit., p. 261-262.
250 BARROS, João de. Panegírico de D. João III... op. cit., 1940, p. 46.

777
mais favorecidos no estado e fortuna do mundo [...]251.

Portanto, assim como entre os antigos a observância pública da religião era o que constituía a
fonte de grandeza dos Estados, os panegíricos parecem trazer a defesa do princípio da fé católica como
instrumento necessário à coesão e à concórdia entre os súditos portugueses.

Este é um exemplo de intertextualidade entre os dois panegíricos. Individualmente, eles tam-


bém mantêm relações com outros escritos publicados por João de Barros. Para ficarmos num exemplo
de cada, ao final do Panegírico de D. João III o autor faz uma queixa à língua portuguesa, considerada
por ele com pouca dignidade para elogiar o monarca à altura do que merece:

Costume é dos que compõem panegíricos louvarem neles a boa presença e pessoa
do príncipe; por isso desejando eu fazer o mesmo, mormente sendo estas partes em
V. Alteza tão dignas da Majestade Real, por duas coisas o deixo de fazer: a primeira
porque a dignidade da língua portuguesa sofre mal esta maneira de louvor, e a outra
por ser isto a todos tão notório, que não tem necessidade de ser por mim mais repre-
sentado [...]252.

A crítica do autor à língua portuguesa pode estar associada ao fato de, até meados da década
de 1530, Portugal não contar com uma língua suficientemente estruturada que garantisse a sua nor-
matização a partir de regras próprias. Em vista disso, o português perdia espaço para o castelhano,
que havia se fixado enquanto idioma desde finais do século XV, fundamentalmente com a publicação
da Gramatica sobre lalengua (primeira gramática da língua castelhana) em 1492, e os primeiros di-
cionários espanhóis nos anos seguintes, todas essas obras de autoria do humanista e filólogo espanhol
Antonio de Nebrija. A primeira gramática portuguesa seria escrita somente em 1536 por Fernão de
Oliveira e o próprio João de Barros escreveria uma segunda em 1540, vindo essas a ser as “obras fun-
dadoras de um trabalho de normatização e de reflexão sobre a língua portuguesa, participando já de
um novo panorama intelectual”253. Portanto, quando ao ser escrito o Panegírico de D. João III, em
1533, seu autor já acenaria para a importância de se estruturar e fixar as regras da língua portuguesa,
fundamental para o bom exercício da retórica.

Já no Panegírico da infanta D. Maria, um tema que se faz presente envolve a polêmica antiju-
daica:

251 BARROS, João de. Panegírico da infanta D. Maria... op. cit., 1940, p. 178-179.
252 BARROS, João de. Panegírico de D. João III... op. cit., 1940, p. 159. Grifo meu.
253 Cf. CURTO, Diogo Ramada. “Língua e Memória”. In: MATTOSO, José (dir.). História de Portugal. Terceiro
Volume: No alvorecer da Modernidade (1480-1620). Coord. Joaquim Romero Magalhães. Lisboa: Editorial
Estampa, 1998, p. 319-320.

778
Enfim o cativeiro de Babilónia e desterro universal de todo o judaísmo, com a des-
truição do Templo e daquela cidade real e senhora das gentes, que foi senão castigo
do apartamento de Deus e da morte de seu filho, que, vindo pera as ovelhas perdidas
da casa de Israel, o puseram na cruz em galardão de suas obras254?

No diálogo Ropicapnefma, publicado em 1532, Barros já havia discutido longamente sobre


essa questão. Uma das personagens do diálogo – a Razão – não deixa de acusar os judeus pela morte
de Jesus. Chega a relacionar o deicídio ao fato de que, desde então, os judeus não contaram mais com
nenhum território que pudessem chamar de seu e, por isso, tiveram de se espalhar pelo mundo, sendo
fonte de desprezo pelas demais nações:

Mas, crucificado Cristo, destruída Jerusalém, foram e são espalhados per todo o
mundo, cativos, sujeitos e desprezados de todas as nações dele. E a bem-aventurança
que lhe a Vontade achava em terem mando, honra, favor, dinheiro e ofícios nas terras
onde vivem mais descansadamente que os naturais, essa foi a maior maldição que lhe
Deus deu. Porque, vendo a fraqueza com que os homens acodem à Fé e Lei de Cristo,
a estes que O mataram deu naturalmente uma agudeza e soltura industriosa pera
viverem do trabalho do povo cristão: porque esta mágoa de os verem prevalecer fosse
um estímulo de os avorrecerem, pois o não faziam por ter tal contumácia. Assim que
podes daqui tomar uma conclusão: “Os Hebreus, por seu pecado, são semelhantes ao
Demónio: para os povos são estímulo e açoute de Deus, e para si são pena e tormen-
to”255.

Com esses exemplos, quisemos mostrar as possíveis relações que se pode estabelecer entre os
panegíricos entre si e os panegíricos com demais escritos de João de Barros. Se a função autor é resul-
tado “de operações específicas, complexas, que relacionam a unidade e a coerência de alguns discursos
a um dado sujeito”, e se o nome próprio exerce “uma função de classificação que permite as exclusões
ou as inclusões em um corpus, atribuível a uma identidade única”256, podemos dizer que o Panegírico
de D. João III e o Panegírico da infanta D. Maria mantêm uma certa coerência com o conjunto da obra
de João de Barros.

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porâneo, sobre a família do historiador e sobre os continuadores das suas ‘Décadas’”. In: Boletim da Segunda
Classe da Academia das Sciencias de Lisboa. Vol. XL, 1917.

BARROS, João de. Panegíricos (Panegírico de D. João III e da infanta D. Maria), ed. M. Rodrigues Lapa. Lisboa:

254 BARROS, João de. Panegírico da Infanta D. Maria... op. cit., 1940, p. 178.
255 BARROS, João de. RopicaPnefma. 2 Vols. Leitura modernizada, notas e estudo de Israel SalvatorRévah.
Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1983, p. 103-104.
256 CHARTIER, Roger. O que é um autor? Revisão de uma genealogia. São Carlos: Edufscar, 2014, citações às
páginas 28 e 29.

779
Livraria Sá da Costa, 1943.

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Severim de Faria : declaaose as grandes commodidades que tem para crescer em gente, industria, comercio,
riquezas, & forças militares por már, 6 terra : as origens de todos os appellidos, & as armas das familias nobres
do Reyno : as Moedas que corrèrão nesta Provincia do tempo dos Romanos atè o presente : e se referem varios
Elogios de Principes, &VaroensIllustres Portugueses. - Lisboa: na OfficinaCraesbeeckiana, 1655

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780
Tradução e circulação de obras estrangeiras no mundo luso-brasileiro: o caso do poeta in-
glês Alexander Pope (1769-1811)
Gabriel de Abreu Machado Gaspar257

O objetivo deste trabalho é discutira tradução e circulação de obras do poeta inglês Alexander
Pope (1688-1744) no mundo luso-brasileiro na transição do século XVIII para o XIX.Primeiramente,
esboçaremos um quadro geral das traduções realizadas neste período. Em segundo, apresentaremos
questões preliminares da circulação das obras de Alexander Pope a partir do Prefácio escrito por Fer-
nando José de Portugal à sua tradução do Ensaio sobre a Crítica publicado na Impressão Régia em
1810, destacando seu contexto de produção e as referências culturais estabelecidas pelo tradutor ao
longo do prefácio.

A tradução em Portugal na segunda metade do século XVIII

A tradução esteve envolvida nos mais importantes movimentos de trocas culturais e tornou-
-se central para processos históricos desencadeados por transformações no campo das ideias e das
consciências, como o Renascimento, a Reforma e, sobretudo, a Ilustração258.O mundo luso-brasileiro
do Setecentos assistiu ao surgimento de uma profusão de publicações de obras estrangeiras em língua
portuguesa.Como aponta Antonio Gonçalves Rodrigues, apenas na primeira metade do século XVIII
surgiram 442 traduções publicadas em Portugal, frente a 266 do século anterior259.

Entre os anos de 1750 e 1800, publicaram-se um total de 1337 traduções dos mais variados
temas e de autores. A partir da resenha cronológica empreendida por Rodrigues e publicada na dé-
cada de 1990, elaboramos o Gráfico I com o número de traduções em relação às décadas da segunda
metade do XVIII. Em uma análise geral, constatamos um vertiginoso crescimento das traduções na
década de 1780. Frente às 177 traduções publicadas na década de 1770, saíram a luz entre 1780 e 1789,
447 obras traduzidas.

257 Mestrando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense. E-mail de


contato: machado.ga18@gmail.com
258 Cf. BURKE, Peter. Culturas da tradução nos primórdios da Europa Moderna. In: BURKE, Peter & PO-
-CHIA HASIA, R. (orgs.). A tradução cultural nos primórdios da Europa Moderna. São Paulo: Editora Unesp,
2009. p. 17.
259 Cf. RODRIGUES, Antonio Gonçalves. A Tradução em Portugal, vol. 1, 1495-1834. Lisboa: Imprensa Na-
cional Casa da Moeda, 1991.Apud DENIPOTI, Claúdio. Tradutores portugueses e seus motivos - as justifica-
tivas de traduções para o Português no fim do século XVIII. In: Atas do V Simpósio Mundial de Estudos de
Língua Portuguesa. Lecce: ESE - Editora ScienficaEletronica, 2017. v. 1. p. 1872.

781
Gráfico I – A Tradução em Língua Portuguesa (1750-1800)

Fonte: RODRIGUES, Antonio Gonçalves. A Tradução em Portugal, vol. 1, 1495-1834. Lisboa: Imprensa Nacional Casa
da Moeda, 1991.

Este crescimento de traduções em Portugal nas últimas décadas do Setecentos está direta-
mente relacionado à recepção e circulação de ideias ilustradas no mundo luso-brasileiro a partir do
reinado de D. José I e da influência de seu ministro, Sebastião José de Carvalho e Melo. A despeito
de sua política regalista, suas medidas propiciaram uma difusão atenuada das Luzes e, segundo Lúcia
Bastos, foram “fundamentais para moldarem os principais aspectos da Ilustração portuguesa”260. Dé-
cadas depois, em 1796, um ímpeto reformista ilustrado ganhou fôlego com a indicação de Rodrigo de
Sousa Coutinho à pasta dos Domínios Ultramarinos. O novo ministro articulou um amplo programa
de reformascom o objetivo de manter a unidade política entre Portugal e Brasil através da criação de
um Império Luso-brasileiro261.

Ademais, conforme demonstra Claudio DeNipoti a partir da análise de prefácios, cartas e


discursos acrescentados nas traduções publicadas entre 1770 e 1810, os tradutores do período eram
movidos por uma ideia geral de utilidade, vinculada ao processo de instrução e de uma educação
moral voltada para o desenvolvimento da civilidade262. O autor salienta ainda que as traduções eram
utilizadas no âmbito das relações sociais típicas do Antigo Regime por meio das dedicatórias e das
encomendas.

Por fim, cabe ressaltar a importância que a tradução assumiu para o projeto do reformismo

260NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e constitucionais. A cultura política da independência
(1820-1822). Rio de Janeiro: Editora Revan, 2003. p. 28.
261 Cf. NEVES, Guilherme Pereira das. Como um fio de Ariadne no intrincado labirinto do mundo: a ideia do
império luso-brasileiro em Pernambuco (1800-1822). Ler História, Lisboa, nº 39, 2000.p. 56.
262 DENIPOTI, Cláudio & FONSECA, Thaís Nívia de Lima. Censura e mercê -os pedidos de leitura e posse
de livros proibidos em Portugal no século XVIII. Revista Brasileira de História da Ciência. Rio de Janeiro, v. 4,
2011. p. 150.

782
ilustrado português. Exemplo disso é a fundação da Casa Literária do Arco do Cego, que represen-
tou, segundo Lia Wyler, um ponto de inflexão na história da tradução portuguesa pois foi a primeira
agência de tradução financiada pela Coroa. Esta inciativa tipográfica funcionou em Lisboa entre 1799
e 1801 sob a direção do Frei Veloso sob os auspícios ilustrados de Rodrigo de Sousa Coutinho. Con-
forme dados citados por Miguel Faria, a tipografia esteve envolvida na publicação de, pelo menos, 83
títulos, dos quais 45 eram traduções para o português263. Nos prefácios e dedicatórias que acompanha-
vam estas traduções científicas, segundo Alessandra Harden, eram dotados de uma estratégia retórica
que permitiu a introdução de aspectos das Luzes na sociedade portuguesa de Antigo Regime264.

Passando deste quadro geral às traduções de Alexander Pope, elaboramos com base no traba-
lho bibliográfico de Isabel Lousada, uma lista das obras do poeta traduzidas para a língua portuguesa
no recorte cronológico deste trabalho. Conforme apresenta o Quadro I, entre 1769 e 1819 foram pu-
blicadas dezenove traduções de obras do poeta em português. Destas, 12 foram poemas e fragmentos
de textos em coletâneas de contos e poesias, sendo rara a tradução de obras completas.
Quadro I - Obras de Alexander Pope traduzidas em português (1769-1819)

ANO TÍTULO DA OBRA TRADUTOR LOCAL

ENSAIO sobre o homem,


Lisboa, Off. Antonio
1769 poema filosofico de Ale- António Teixeira
Vicente da Silva
xandre Pope
CARTA de Heloaze a
Porto, Off. Antonio Al-
1785 Abailardo. Tirado de ?
varez Ribeiro
Pópe
ODE de Pope vertida em
1791 lingoagem, feita á felici- António Lourenço Caminha Lisboa
dade da Vida.
O OUTONO ou Hylas e
1799 Egon. Terceira Ecloga de Antonio de Araújo de Azevedo Lisboa
Pope
EPISTOLA de Heloisa a
1801 José Anastacio da Cunha ?
Abailard …
EPISTOLA de Heloysa a Londres, Off. de Gui-
1801 José Nicolau de Massuelos Pinto
Abaylard... lherme [W.] Lane
Lisboa, Off. de Simão
1802 ABUSO das riquezas ?
Thaddeo Ferreira
Lisboa, Off. de Simão
1802 AS LAGRIMAS ?
Thaddeo Ferreira
EPISTOLA de Heloisa a
1809 José Anastacio da Cunha Lisboa, Imp. Regia
Abelardo

1809 ORAÇÃO Universal José Anastacio da Cunha Lisboa, Imp. Regia

263 Cf. FARIA, Miguel. Da facilitação e da ornamentação: a imagem nas edições do Arco do Cego. In: CAM-
POS, Fernanda Maria Guedes, et al. (Org.). A casa literária do Arco do Cego (1799-1801). Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda/Biblioteca Nacional.
264 Cf. HARDEN, Alessandra Ramos de Oliveia. Os tradutores da Casa do Arco do Cego e a ciência iluminista:
a conciliação pelas palavras. Trabalhos em Linguística Aplicada (UNICAMP), Campinas, v. 50, 2011.

783
1809 A SOLIDÃO José Anastacio da Cunha Lisboa, Imp. Regia

Fernando José de Portugal, Conde Rio de Janeiro, Imp.


1810 ENSAIO sobre a critica
de Aguiar Regia
Fernando José de Portugal, Conde Rio de Janeiro, Imp.
1811 ENSAIOS moraes
de Aguiar Regia
Leonor de Almeida Portugal, Mar- Londres, Off. de T. Har-
1812 ENSAIO sobre a critica
quesa de Alorna per

1815 O INVERNO José Maria Osorio Cabral Lisboa, Imp. Regia

O OUTONO ou Hylas, e
1815 Egon. Terceira Ecloga de José Pedro Quintella Lisboa, Imp. Regia
Pope
CARTA de Heloisa a
1819 ? Lisboa, Imp. Regia
Abaelardo
Francisco Bento Maria Targini, Ba- Londres, Off. Typ. de C.
1819 ENSAIO sobre o homem
rão de S. Lourenço Whittingham
O MESSIAS. Ecloga Sa- Francisco Bento Maria Targini, Ba- Londres, Off. Typ. de C.
1819
grada rão de S. Lourenço Whittingham
FONTE: LOUSADA, Isabel. Para o Estabelecimento de uma Bibliografia Britânica em Português (1554-1900). Tese (Dou-
toramento), Universidade Nova de Lisboa. Lisboa: 1998.

Pope apareceu pela primeira vez em português através da tradução de trechos do seu Ensaio
sobre o Homem vertidos por um certo Antônio Teixeira em 1769 e reimpressa em 1817. Segundo
Inocêncio Francisco da Silva, o tradutor é conhecido apenas por esta obra uma vez que foram inúteis
as buscas de informações sobre sua vida265. Merecem destaque as traduções literárias empreendidas
por José Anastácio da Cunha, matemático português processado pela Inquisição que viveu entre 1744
e 1787. Os poemas de Pope traduzidos por ele foram publicados postumamente em 1809 pela Impres-
são Régia de Lisboa266.

Dentre as obras completas, destacam-se astraduções realizadas por Fernando José de Portugal
do Ensaio sobre a Crítica(1810) e dos Ensaios Morais (1811). Além destas, ressaltamos outra versão
do Ensaio sobre a Crítica publicada em Londres em 1812 por D. Leonor de Almeida Portugual, a
Marquesa de Alorna, e a tradução do Ensaio sobre o Homem de Francisco Targini, Visconde de São
Lourenço publicada em Londres em 1819.

Fernando José de Portugal e a tradução do Ensaio sobre a Crítica (1810)

Fernando José de Portugal e Castro, terceiro filho do Marquês de Valença e Conde de Vimioso,
nasceu em Lisboa, em dezembro de 1752. Após cursar Leis na Universidade de Coimbra, atuou como
magistrado noTribunal da Relação do Porto e na Casa de Suplicação de Lisboa267. Em 1788, foi indi-
265 SILVA, Innocencio Francisco da. DiccionarioBibliographicoPortuguez. Tomo I. Lisboa: Imprensa Nacio-
nal, 1858.
266 A obra intitula-se Collecção de Poesias Ineditas dos melhores Authores Portugueses. Lisboa: Impressão
Régia, 1809, 3 volumes.
267 Cf. GOUVÊA, Maria de Fátima. Fernando José de Portugal. In: VAINFAS, Ronaldo (Dir.). Dicionário do
Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 229-230.

784
cado para o governo da capitania da Bahia, onde sucedeu Rodrigo José de Menezes, considerado por
Luís dos Santos Vilhena, professor régio de língua grega, “mais empenhado e atento ao bom regime e
ordem nos governos político, civil, econômico e militar” que seu sucessor268. Além disso, o professor
régio comentava que D. Fernando não “tinha as precisas forças para disfarçar a natural brandura e
afabilidade de sua alma”269.

Em passagem por Salvador em 1797, Miguel Antônio de Melo, com destino a Luanda, onde
exerceria o posto de governador de Angola, qualifica D. Fernando como “hum bom servidor, isento,
afável para com grandes e pequenos, mui pronto em ouvir e despachar o que ante a elle requerem;
mais piedozo que justiceiro, o que talvez o tenha feito qualificar de frouxo”270. As considerações des-
tes dois contemporâneos, Luís dos Santos Vilhena e Miguel Antônio de Melo, acerca da frouxidão e
inaptidão de D. Fernando para o governo pareciam ter sido confirmadas quando, em agosto de 1798,
se descobriu em diversos pontos da cidade de Salvador pasquins sediciosos repletos de palavras como
povo, liberdade e que ordenavam ao “povo baiense” que realizasse uma “memorável revolução”271.

Os acontecimentos sediciosos só foram relatados a Lisboa em extensa carta do governador ao


secretário Rodrigo de Sousa Coutinho,em outubro de 1798.Contudo, por outras vias, D. Rodrigo já
havia sido informado sobre a situação na Bahia, onde “as pessoas principais desta cidade [...] se acham
infectadas dos abomináveis princípios franceses e com grande afeição à [...] Constituição francesa”.
Pior, afirmava que a razão disso era a “frouxidão do governo e a corrupção da Relação”272. Em sua
defesa, D. Fernando argumentava que os papéis eram mal organizados e que, dada a condição social
dos presos, capacitava-se que não tinham participado nem “pessoas de consideração, nem de entendi-
mento, ou que tivessem conhecimento e luzes”273.

Apesar da atribulada administração, a atuação de Fernando José de Portugal à frente do go-


verno da Bahia parece ter agradado os administradores do reino uma vez que, em 1801, assumiu
a posição de Vice-rei do Brasil com sede no Rio de Janeiro. Durante seu vice-reinado redigiu suas
observações ao Regimento dado a Roque da Costa Barreto, datado de 23 de janeiro de 1677. Nelas,
Fernando José de Portugal apresentou suas críticas à administração colonial e diversas propostas para
seu melhoramento. Segundo Rodolfo Garcia, estes comentários transformaram o Regimento de 1677

268VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no século XVIII. v. 2. Salvador: Itapuã, 1969. p. 423.
269VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no século XVIII. v. 2. Salvador: Itapuã, 1969. p. 424.
270BIBLIOTECA NACIONAL DO RIO DE JANEIRO (BNRJ). Divisão de Manuscritos, I-31, 21, 34, docs. 1 e
2. Informaçam da Bahia de Todos os Santos (1797). Cópia oficial, precedida de um aviso original de d. Rodrigo
de Souza Coutinho de 26 de Setembro de 1798 dirigido a d. Fernando José de Portugal.
271 Cf. MATTOSO, Kátia de Queirós. Presença francesa no Movimento Democrático Baiano de 1798. Salva-
dor: Itapuã, 1969.p. 144-159.
272Ofício de Rodrigo de Sousa Coutinho a Fernando José de Portugal e Castro de 4 de Outubro de 1798. Trans-
crito em ACCIOLI,Memórias históricas e políticas da província da Bahia. Bahia, Imprensa Official do Estado,
1932, v. 3. p. 95.
273Ofício de Fernando José de Portugal e Castro a Rodrigo de Sousa Coutinho de 20 de Outubro de 1798.
Transcrito em ACCIOLI, Memórias históricas e políticas da província da Bahia. Bahia, Imprensa Official do
Estado, 1932, v. 3.p. 120-125.

785
no “melhor código administrativo comentado que tivemos no Brasil Colonial”274.

Regressou a Lisboa em 1806, onde exerceu brevemente a Presidência do Conselho Ultrama-


rino e atuou no Conselho de Estado. Em virtude da vinda da Corte para o Brasil, recebeu o título de
Conde de Aguiar e ocupou a pasta do Reino e a presidência do Erário Régio275. Ademais, atuou como
ministro assistente ao despacho, cargo que, segundo Oliveira Lima, “equivalia ao de primeiro-minis-
tro, com precedência sobre os colegas e conhecimento dos assuntos de todas as pastas”276. Em meio a
uma conjuntura política delicada, Fernando José de Portugal buscava, escreve Oliveira Lima, “desen-
fado na literatura” e publicou na recém-instalada Impressão Régia no Rio de Janeiro suas traduções do
Ensaio sobre a Crítica (1810) e dos Ensaios Morais (1811) de Alexander Pope277.

O Ensaio sobre a Crítica foi publicado originalmente em maio de 1711 na Inglaterra e é con-
siderado o primeiro grande trabalho independente de Alexander Pope278. Em 1736, o poeta empreen-
deu um trabalho de revisão para a primeira publicação completa de seus trabalhos e dividiu o poema
em três seções, com subseções que resumiam cada segmento do argumento279. A primeira parte abor-
da a relação entre a crítica, o gosto e a necessidade de se estudar os antigos. A segunda seção expressa
os males que afastam o crítico do verdadeiro juízo, como a vaidade, a inveja e a parcialidade. Por fim,
o poeta expõe as regras que devem ser seguidas pelos críticos e apresenta os “melhores críticos”, como
Aristóteles, Horácio, Quintiliano, dentre outros280.

A obra, que saiu a luz no Rio de Janeiro em 1810, foi considerada por Rubens Borba de Moraes
e Ana Maria Camargo, como “um dos mais pelos livros publicados pela Impressão Régia”281. Compos-
ta em papel encorpado de tipo Holanda, traz no frontispício um retrato de Alexander Pope gravado a
buril por Romão Eloy de Almeida. Segundo Orlando da Costa Ferreira,
esse bem executado buril, gravado para o frontispício da tradução portuguesa do
Ensaio sobre a Crítica, é reinterpretação tirada do burilista-retratista inglês Thomas
Halloway (1748-1827). A folha de rosto grava desse volume, publicado em 1810, bem
como a dos Ensaios Moraes do mesmo autor, saídos em 1811, praticamente idênticas,
pertencem igualmente a Almeida, trabalhando ele, provavelmente, à vista de tipos
do repertório da própria oficina, principalmente sobre a caixa-alta de um itálico de
ostensão de grande corpo, cujo A tem a primeira haste curva e começada por uma

274GARCIA, Rodolfo. O Regimento de Roque da Costa da Barreto e os comentários de D. Fernando José de


Portugal. In: _____. Ensaio sobre a História Política e Administrativa do Brasil (1500-1810). Rio de Janeiro: J.
Olympio; Brasília: INL, 2ª. Ed., 1975.p. 145.
275 Cf. GUIMARÃES, Lúcia Paschoal. Fernando José de Portugal e Castro, conde de Aguiar. In: VAINFAS,
Ronaldo & NEVES, Lúcia Bastos Pereira das (Orgs.). Dicionário do Brasil Joanino, 1808-1821. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2008.
276LIMA, Manuel de Oliveira. D. João VI no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 2006. p. 123.
277 LIMA, Op. Cit. p. 129.
278ROSSLYN, Felicity. Alexander Pope: A Literary Life. Nova York: PalgraveMacmillan, 1990. p. xi-xii.
279 Cf. BAINES, Paul. The Complete CriticalGuideto Alexander Pope. Londres: Routledge, 2000.p. 50.
280 Cf. “Summario Do que contem este Ensaio”. POPE, Alexander. Ensaio sobre a crítica. Traduzido em por-
tuguez pelo Conde de Aguiar. Com as Notas de José Warton, do Traductor, e outros; e o Commentario do Dr.
Warburton. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1810.
281MORAES, Rubens Borba de & CAMARGO, Ana Maria de Almeida (Orgs.). Bibliografia da Impressão Ré-
gia do Rio de Janeiro. v. 1. São Paulo: Edusp; Kosmos, 1993.p. 45.

786
ampola282.

Figura I – Frontispício do Ensaio sobre a Crítica (1810)

Fonte: Ensaio sobre a crítica. Traduzido em portuguez pelo Conde de Aguiar. Com as Notas de José Warton, do Tra-
ductor, e outros; e o Commentario do Dr. Warburton. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1810. Exemplar da John Carter
Brown Library. Digitalização disponível em: https://archive.org/details/ensaiosobrecriti00pope?q=ensaios+sobre+a+-
cr%C3%ADtica+pope. Acesso em 15/08/2018.

A edição de 1810 do Ensaio sobre a Críticaera acompanhada de uma extensa “prefação” escrita
pelo tradutor, Fernando José de Portugal. Ao se debruçar sobre esta fonte, é preciso se atentar para as
características próprias do gênero ao qual ela pertence. Conforme salienta Paul Ricoeur, os gêneros
literários desempenham uma função gerativa na produção do discurso. Nesse sentido, os gêneros de-
sempenham de modo indireto, mas decisivo, o papel dos códigos discursivos que regulam o próprio
discurso283.

No caso das traduções, os prefácios, posfácios, cartas ao leitor e comentários constituem os


“paratextos” editoriais. Segundo Gerard Genette, o paratexto é dotado de razoável força ilocutória que
o permite “dar a conhecer uma intenção ou interpretação autoral e/ou editorial”284. Além disso, este
gênero acaba por constituir
uma zona não apenasde transição, mas também de transação: lugar privilegiado de
uma pragmática e de uma estratégia, de uma ação sobre o público, a serviço, bem ou
mal compreendido e acabado de uma melhor acolhida do texto de uma leitura mais
pertinente285.

No Prefácio de sua tradução, Fernando José de Portugal afirma que após as traduções da Ars-
Poetica de Horácio, da Poética de Aristóteles e da Arte Poética de Boileau, pensou

que seria tão bem hum serviço útil, e proveitoso verter em vulgar o Ensaio sobre a
Crítica de Alenxandre Pope, hum dos Poetas Inglezes mais correctos, para os que

282FERREIRA, Orlando da Costa. Imagem e letra. Introdução à Bibliologia Brasileira. A Imagem Gravada. São
Paulo: EDUSP, 1994. p. 247-248.
283 Cf. RICOEUR, Paul. Teoria da Interpretação. O Discurso e o Excesso de Significação. Lisboa: Edições 70,
2013. p. 50.
284 GENETTE, Gerard. Paratextos editoriais. Cotia: Ateliê Editorial, 2009. p. 17, grifos no original.
285 GENETTE, Gerard. Op. cit. p. 10, grifo no original.

787
desejão saber as regras, e preceitos de escrever bem em verso, e julgar com acerto das
composições poéticas, as podessem mais facilmente apprender, lendo esta obra em
nada inferior aquellas em mesmo gênero286.

Depois disso, o tradutor passa a apresentar um breve histórico da obra, desde o ano de sua pu-
blicação até sua própria divisão interna. Outro aspecto importante ressaltado por D. Fernando foi a re-
cepção do Ensaio quando de sua publicação original. Sobre isso, ele comenta que “logo que este Ensaio
sahio á Luz, vários críticos o censurarao injustamente” e se refere, por exemplo, a John Dennis. Apenas
um mês após a publicação original do Ensaio, Dennis escreveu ReflectionsCritical and Satyrical, upon
a late Rhapsody, call’d, anEssayuponCriticism, em que atacava tanto a obra quanto o seu autor287. A
respeito das críticas, D. Fernando afirma que eram “diferentes opusculos cheios de mordacidade, de
jocosidade, e motejos, querendo mostrar, que os preceitos erão falsos, ou triviaes”288. Ele também cita
comentários de Addison, Voltaire e Samuel Johnson sobre a obra.

Após comentar sobre as versões francesas e alemãs do Ensaio, D. Fernando apresenta as dis-
cussões da época sobre a tradução e afirma que “muito se tem questionado sobre as traduções livres,
e literais; e qual o melhor methodo de traduzir um Poeta, se em verso, se em proza”289.Ele comenta as
opiniões de diferentes letrados e tradutores do período moderno, como Charles Batteaux, francês e
tradutor de Epicuro, Aristóteles e Horário; Anne Dacier, tradutora de Homero; o abade Desfontaines,
autor da versão francesa de Virgílio, dentre outros. Ao fim, ele conclui que
em ambas estas espécies de versões há inconvenientes, e das obrigações de humTra-
ductor se podem facilmente conhecer onde se encontrão maiores. A essência das tra-
ducções consiste principalmente na fidelidade, e na exacção; e neste ponto se podem
comparar com a História290.

Para resolver a questão, Fernando José de Portugal recorre à obra de Noel-EttieneSanadon,


padre e tradutor francês que viveu entre 1676 e 1733. Segundo D. Fernando, no Prefácio à sua tra-
dução de Horácio, o padre francês defende que “a tradução de hum Poeta feita em prosa terá toda a
perfeição, que póde ter, quanto á fidelidade”291. Deste modo, o tradutor português reconhece que não
tinha por objetivo decidir “huma questão tão agitada na literatura francesa” e que só se propôs a “fazer
humatraduccção fiel, e bastantementelitteral, deste Ensaio, quanto permite o gênio da Lingoa”292.

Por fim, D. Fernando trata das diversas edições das obras de Pope e se refere à edição de nove
volumes feita por Joseph Warton em 1797 e a de dez volumes feita por Gilbert Wakefield em 1806.
Quanto à sua tradução, ele afirma que
quanto ao Texto, que vai defronte da versão, segui quase sempre a edicção de Warton;
e traduzi as Notas, e ilustração, cortando, ou omitindo algumas insignificantes, ou
286PORTUGAL, Fernando José de. Prefação. In: POPE, Alexander. Ensaio sobre a crítica. Traduzido em por-
tuguez pelo Conde de Aguiar. Com as Notas de José Warton, do Traductor, e outros; e o Commentario do Dr.
Warburton. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1810. p. I.
287 Cf. BAINES, Paul. The Complete CriticalGuideto Alexander Pope. Londres: Routledge, 2000. p. 13.
288 PORTUGAL, op. cit., p. II.
289 PORTUGAL, op. cit., p. VIII.
290 PORTUGAL, op. cit., p. VIII-IX.
291 PORTUGAL, op. cit., p. IX.
292 PORTUGAL, op. cit., p. X.

788
que não quadravão com os princípios da nossa Religião293.

Ao afirmar que suprimiu e omitiu trechos insignificantes ou que não se enquadravam aos princípios
da fé católica portuguesa, D. Fernando admite ter feito alterações no texto original e em sua tradução.

A análise atenta do prefácio acima apresentado gera algumas reflexões. Fernando José de Por-
tugal apresenta diversas referências a escritores, poetas e tradutores com o objetivo de conceder auto-
ridade aos argumentos apresentados em seu escrito que perfazem um total de 39 autores. Os Gráficos
II e III foram organizados a partir da tabulação destes autores e posterior pesquisa de dados biográfi-
cos como ocupação, período de vida, local de nascimento e principais obras ou traduções.

Gráfico II – Distribuição temporal dos autores citados por Fernando José de Portugal no Prefácio ao Ensaio
sobre a Crítica (1810)

Fonte: PORTUGAL, Fernando José de. Prefação. In: POPE, Alexander. Ensaio sobre a crítica. Traduzido em portuguez
pelo Conde de Aguiar. Com as Notas de José Warton, do Traductor, e outros; e o Commentario do Dr. Warburton. Rio de
Janeiro: Impressão Régia, 1810.

Gráfico III – Distribuição espacial dos autores citados por Fernando José de Portugal no Prefácio ao Ensaio
sobre a Crítica (1810)

Fonte: PORTUGAL, Fernando José de. Prefação. In: POPE, Alexander. Ensaio sobre a crítica. Traduzido em portuguez
pelo Conde de Aguiar. Com as Notas de José Warton, do Traductor, e outros; e o Commentario do Dr. Warburton. Rio de
Janeiro: Impressão Régia, 1810.

A partir da análise dos Gráfico II, é possível perceber que a maior parte dos autores citados por
D. Fernando viveu na transição entre os séculos XVII e XVIII perfazendo um total de 33,3%. Nesta
categoria, incluem-se o próprio Alexander Pope; a tradutora francesa de Homero, Anne Dacier; o

293 PORTUGAL, op. cit., p. XII.

789
jesuíta que verteu Horácio para o Francês, Noël-Étienne Sanadon, dentre outros. Em seguida, 25,6%
dos autores viveu no século XVIII, como o crítico inglês Samuel Johnson; o tradutor francês de Epi-
curo e Aristóteles, Charles Batteaux; e os portugueses Antonio Ribeiro dos Santos, sob o pseudônimo
de Elpino Duriense, e Francisco José Freire, sob a alcunha de Cândido Lusitano. Apenas três autores
gregos e latinos da Antiguidade foram citados: Aristóteles, Horácio e Longino, representando 7,7% no
universo das referências.

Ao observar o Gráfico III, constata-se a predominância de autores oriundos da Inglaterra


(35,9%) e França (33,3%). Juntas, as duas nações foram os espaços de formação e atuação de aproxi-
madamente 70% dos autores referenciados por Fernando José de Portugal em seu Prefácio. Portugal,
ao contrário, é representado por apenas cinco dos 39 letrados e perfaz somente 12,8%. O restante dos
autores identificados (12,8%) distribui-se entre Grécia, Roma e Países Baixos.

O fato de predominarem referências a letrados que viveram na transição entre os séculos XVII
e XVIII na França e na Inglaterra ganha vulto se consideramos que esta época foi palco do que foi ca-
racterizado por Paul Hazard como crise de consciência europeia294. Entre 1680 e 1715 se processaram
importantes mudanças no pensamento moderno que, de certa forma, prepararam o terreno para as
Luzes que agitariam a Europa setecentista. Esta crise, como qualificou Hazard, preparou “mesmo an-
tes de o século XVII terminar, todo o século XVIII. A grande batalha das ideias deu-se antes de 1715,
e mesmo antes de 1700”295:
Desse período tão denso e carregado que parece confuso, partem claramente os dois
grandes rios que atravessarão todo o século: um, a corrente racionalista; o outro,
minúsculo no começo mas que mais tarde transbordará de suas margens, a corrente
sentimental. E como se tratou, durante essa mesma de crise, de abandonar os do-
mínios reservados aos pensadores para ir na direção da multidão, para alcança-la e
convencê-la; e como foram atacados os princípios dos governos e a própria noção de
direito, como foram proclamadas a igualdade e a liberdade racional do indivíduo;
como já se falava alto e bom som dos direitos do homem e do cidadão, reconheçamos
ainda que quase todas as atitudes mentais que em seu conjunto levarão à Revolução
Francesa foram assumidas antes do final do reinado de Luís XIV296.

Alexander Pope, traduzido por Fernando José de Portugal em princípios do século XIX, fez
parte deste importante processo. Na literatura, destaca Hazard, o século XVIII foi a época da prosa
combativa e carregada de ideias filosóficas, morais e religiosas. A poesia remetia ao antigo, à oração.
Os novos espíritos da época, “que se gabavam de nada respeitar, de odiar os preconceitos e a supers-
tição, tornavam-se imitadores quando se tratava de literatura”297. Nesse sentido, reverenciavam os an-
tigos e não ousavam desobedecer às normas poéticas de Horácio e de Aristóteles. Pope discordava.
Esse “digno sucessor de Boileau”, como bem caracterizou Paul Hazard, ofereceu ao mundo “uma nova

294 HAZARD, Paul. A crise da consciência europeia, 1680-1715. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2015.
295 HAZARD, op. cit., p. 448.
296 HAZARD, op. cit., p. 449.
297 HAZARD, op. cit., p. 340.

790
ArsPoetica”298. Em Pope, “dois homens coexistem e nem sempre se entendem; chegam mesmo a con-
tradizer-se”299.

Um deles é impetuoso, impaciente, irritado e se revolta contra os críticos. O outro, “clássico”,


disciplinado, racional, “anuncia preceitos, dogmas” e “diz ser preciso seguir a natureza, a infalível
natureza, pura luz, raio divino; mas que deve se seguir essa natureza imutável e universal guiado pela
razão”300. Em suma, mesmo “muito orgulhoso dessa galeria de ancestrais a quem reverencia, Pope,
voltando-se para os escritores de seu tempo, pretende reagir e ele próprio comandar”301. Nesse sentido,
o Ensaio sobre a Críticaapresenta, por um lado, resquícios da tradição antiga da arte poética e, por
outro, representa, no campo literário, aspectos modernos desta “crise de consciência europeia”.

***

O mundo luso-brasileiro não permaneceu alheio às transformações de pensamento das Luzes


a despeito de sua aplicação pragmática, como sugeriu Sérgio Buarque de Holanda, e de um efeito de
secularização limitada, como apontou Guilherme Pereira das Neves302. A recepção das ideias ilustra-
das advindas de outros países europeus, como França e Inglaterra, está diretamente relacionada às
traduções feitas por letrados luso-brasileiros do século XVIII. Um dos indícios que corroboram tal
asserção é a fundação da Casa Literária do Arco do Cego em 1799.

Sob o lema de que “sem livros não há instrução", entre 1799 e 1801, a própria Coroa portugue-
sa financiou e organizou uma tipografia para publicação de obras que apresentassem conhecimentos
úteis das ciências naturais aplicadas. Neste curto período, saíram a luz, pelo menos, 83 obras, dentre
as quais 45 eram traduções portuguesas de obras originalmente em francês, inglês, alemão, italiano,
espanhol e latim303. Para Diogo Ramada Curto, a Casa Literária do Arco do Cego era um “empreendi-
mento do regime” e representava a própria “tradução” do projeto de Rodrigo de Sousa Coutinho, uma
vez que este “tinha intervenção pessoal e directa pelo interesse que votava aos territórios ultramarinos,
nomeadamente ao Brasil. Este território era preocupação primeira dos ‘trabalhos literários’ do fran-
ciscano [Frei Veloso]”304.

A Impressão Régia do Rio de Janeiro, fundada em de maio de 1808, dois meses após a chegada
do príncipe-regente D. João, foi confiada, inicialmente, a Rodrigo de Sousa Coutinho e deu prossegui-

298 HAZARD, op. cit., p. 354.


299 HAZARD, op. cit., p. 354.
300 HAZARD, op. cit., p. 355.
301 HAZARD, op. cit., p. 355.
302 Cf. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Introdução. Obras econômicas de Joaquim José de Azeredo Coutinho
(1794-1804). São Paulo: Companhia Editoria Nacional, 1966. p. 14. NEVES, Guilherme Pereira das. Como um
fio de Ariadne no intrincado labirinto do mundo: a ideia do império luso-brasileiro em Pernambuco (1800-
1822). Ler História, Lisboa, nº 39, 2000. p. 55-57.
303 Cf. HARDEN, Alessandra Ramos de Oliveia. Os tradutores da Casa do Arco do Cego e a ciência iluminista:
a conciliação pelas palavras. Trabalhos em Linguística Aplicada (UNICAMP), Campinas, v. 50, 2011. p. 304.
304CURTO, Diogo Ramada. D. Rodrigo de Sousa Coutinho e a Casa Literária do Arco do Cego. In: TUDELA,
Ana Paula; CAMPOS, Fernanda Maria Guedes de; CURTO, Diogo Ramada. A Casa Literária do Arco do Cego:
bicentenário, (1799-1801): «sem livros não há instrução». Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda e Biblio-
teca Nacional, 1999.p. 49.

791
mento às atividades editoriais que compunham a ideia de Império luso-brasileiro pensada por ele305.
Dos prelos desta tipografia saíram as páginas que compuseram os volumes do Ensaio sobre a Crítica
(1810) e dos Ensaios Morais (1811) de Fernando José de Portugal.

Estas traduções estão relacionadas ao processo de Ilustração que ganhou a Europa a partir da
crise de fins do século XVII e, sobretudo, ao reformismo ilustrado luso-brasileiro capitaneado por Ro-
drigo de Sousa Coutinho. No Prefácio de 1810, as referências de D. Fernando a autores que viveram,
pensaram e escreveram durante a crise de consciência europeia apontam para uma relação cultural
entre os letrados luso-brasileiros e aqueles que viveram quase um século antes na França, na Inglaterra
e em outros países europeus. Além disso, o próprio Alexander Pope, autor das duas obras traduzidas,
integrou este processo e esteve no centro das discussões poéticas do período.

Ao que parece, o que se processou no mundo luso-brasileiro em fins do século XVIII ocorreu,
sobretudo, foi uma crise nas consciências daqueles indivíduos que passavam por tempos atribulados,
marcados pela Independência das Treze Colônias Inglesas (1776) e pela Revolução Francesa (1789)
que sacudiu os pilares do Antigo Regime. Dentre estes indivíduos, além do célebre Rodrigo de Sousa
Coutinho, há outras personagens como o próprio Fernando José de Portugal. Frequentemente lem-
brado como um administrador colonial, este trabalho buscou apresentar uma faceta distinta: a de
tradutor e homem das letras. Para ele, bem como o ofício de governador e vice-rei, “para melhor bem
servir sua Pátria era melhor traduzir bons livros”306.

305 Cf. BRAGANÇA, Aníbal. A criação da Impressão Régia no Rio de Janeiro: novos aportes. In: BESSONE,
Tânia Maria; SANTOS, Gilda; ALVES, Ida; PINTO, Madalena; HUE, Sheila (Orgs.). D. João VI e o oitocentis-
mo. Rio de Janeiro: Contracapa, Faperj, 2011. p. 50
306 PORTUGAL, op. cit., p. XI.

792
ACCIOLI, Memórias históricas e políticas da província da Bahia. Bahia, Imprensa Official do Estado, 1932, v.
3.

BAINES, Paul. The Complete CriticalGuideto Alexander Pope. Londres: Routledge, 2000.

BRAGANÇA, Aníbal. A criação da Impressão Régia no Rio de Janeiro: novos aportes. In: BESSONE, Tânia
Maria; SANTOS, Gilda; ALVES, Ida; PINTO, Madalena; HUE, Sheila (Orgs.). D. João VI e o oitocentismo.
Rio de Janeiro: Contracapa, Faperj, 2011.

BURKE, Peter. Culturas da tradução nos primórdios da Europa Moderna. In: BURKE, Peter & PO-CHIA HA-
SIA, R. (orgs.). A tradução cultural nos primórdios da Europa Moderna. São Paulo: Editora Unesp, 2009.

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O rei, o censor e o padre: três atores e um palco na corte joanina.


Maíra Moraes dos Santos Villares Vianna307

Este trabalho tem como objetivo apresentar os aspectos referentes à censura dentro do Império
Luso-Brasileiro durante o período de permanência da corte joanina no Brasil (1808-1821). Para isso,
será analisado um documento referente ao pedido de licença do Padre Fr. João da Costa Faria para im-
primir a oração fúnebre dedicada ao Infante General D. Pedro Carlos à Mesa do Desembargo do Paço.
A partir do documento selecionado serão apresentados procedimentos da censura, como era realizada
a burocracia, mas destacando o conflito que surge entre o censorJosé da Silva Lisboa, responsável pela
emissão do parecer, e o requerente, devido à censura da obra. Através dos argumentos apresentados
pelo padre Fr. João da Costa Faria e do censor José da Silva Lisboa é que o trabalho se debruçará,
buscando compreender o espaço da censura como um entre os demais espaços que possibilitavam
a formação de redes de dependências recíprocas entre os indivíduos, apropriando-se do conceito de
Sociedade de Corte proposto por Norbert Elias e o adequando à realidade da corte Joanina.Cabe des-
tacar que será apresentando, também, as mudanças da atuação do aparelho censório em Portugal e,
posteriormente, a adaptação da censura no Brasil.

Breve História da Censura Portuguesa

A censura foi a prática adotada pelos monarcas como mecanismo de impedir que ideias con-
sideradas perigosas circulassem dentro do território luso-brasileiro. É possível associa-la a momentos
307Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). O presente projeto conta com financiamento da CAPES.

794
de maior tensão, mas sendo alterada sempre que necessária. Dessa forma, a censura Portuguesa pas-
sou por modificações com o decorrer dos séculos. Pode-se compreende-la por meio de algumas trans-
formações,que foram importantes, pois conferiram a base para a sua vigência em terras brasileiras no
início do século XIX, como a chegada da família Real ao Rio de Janeiro.

A censura surge em Portugal associada às reformas religiosas que ocorriam na Europa. Assim,
o aparelho censório se estrutura e se caracteriza por três órgãos que configuram a censura pela sua
característica tríplice (1517-1768). Naquele momento, o principal objetivo era estabelecer laços que
aproximassem a Igreja aos seus fiéis, pois a imagem da mesma estava sendo atacada, principalmente,
pelo protestantismo. Os três tribunais que atuaram naquele período foram: o Ordinário, estabelecido
pelo concílio de Trento e representante da Igreja; a Inquisição, formado por eclesiásticos,cuja a fina-
lidade era censurar obras que atacassem a Igreja e seus dogmas308; e a Mesa do Desembargo do Paço
que representava a coroa. Os três tribunais atuavam de forma independente entre si e tinham suas
próprias regras. Naquela conjuntura, era dado um maior peso às questões religiosas em detrimento
da política.309

Durante o reinado de D. José I várias reformas foram realizadas lideradas pelo ministro Se-
bastião José de Carvalho e Mello, o futuro Marquês de Pombal. A censura também passou por trans-
formações visando uma maior autonomia dos assuntos políticos em detrimento dos religiosos. Dessa
forma, ela é revista e remodelada pondo fim aos órgãos atuantes e os substituindo pelaReal Mesa
Censória310, pela Lei de 5 de abril de 1768. A Mesa ficou responsável pela fiscalização de todas as obras
existentes em Portugal, privadas e públicas. A fiscalização era importante de se realizar, pois era uma
forma a mais de evitar que obras proibidas se espalhassem pelo território.Como intuito de combater
a entrada de obras demarcada como “proibidas”, a Real Mesa Censória determinou que os livros que
chegassem, ou passassem pela alfândega deviam ser destinados à Casa de Revisão, como a finalidade
de combater a entra e saída de tais exemplares dentro do Império luso-brasileiro. Assim, rompe-se
com a interferência da autoridade eclesiástica referente à censura. Ela passa a ser responsabilidade
da Coroa portuguesa, seguindo a tendência de secularização, que fazia parte da política reformista,
mas ainda absolutista que a coroa Portuguesa seguiu a partir do reinado de D. José I, caracterizado
pela ideia de reformismo ilustrado311. Apesar da fiscalização, havia pessoas autorizadas a possuírem as
licenças de posses de livros proibidos, oque ocorria apenas em ocasiões especiais e munidas de auto-
rização. O novo Index expurgatório consistia nas regras que a censura deveria se pautar a partir da in-
dicação de quais obras deveriam ser proibidas. São dezessete regras que definem quais tipos de livros
deveriam ser proibidos com base na Religião, Moral, Política e Cultura, indicando autores e obras. As

308RAMOS, Luís A. de Oliveira.  Sob o signo das “luzes”. Impr. Nacional-Casa da Moeda, 1977.
309MARQUES, Maria Adelaide Salvador. A Real Mesa Censória e a Cultura Nacional: Aspectos da Geografia
Cultural Portuguesa no Século XVIII. Coimbra: Coimbra Editora, 1963.
310 Para mais informações sobre a censura durante a atuação da Real Mesa Censória ver: MARQUES, Maria
Adelaide Salvador. A Real Mesa Censória e a Cultura Nacional: Aspectos da Geografia Cultural Portuguesa no
Século XVIII. Coimbra: Coimbra Editora, 1963.
311 Ver o conceito de ilustração em: VAINFAS, Ronaldo (dir.). Dicionário do Brasil Colonial.Rio de Janeiro,
Objetiva, 2000, p. 296-299.

795
novas regras propostas pelo Index perduraram até o fim da censura prévia.312

Em último momento, a censura é alterada durante o reinado D. Maria I, restaurando-se o po-


der eclesiástico dentro de tal aparelho. A criação da Real Comissão Geral em 1787 é atribuída a função
de examinar e censurar as obras, substituindo a até então Real Mesa Censória. A eclosão da Revolução
Francesa demandou maior atenção e cuidado com a difusão e circulação de obras dentro do Império,
pois havia um temor de que a difusão das ideias dos abomináveis princípios franceses313 se espalhasse
no interior da elite intelectual. A Intendência da Polícia passou atuar auxiliando nos procedimentos
censórios314. O santo ofício é reconhecido em 1791 para realização da censura literária. A atuação de
ambos os tribunais não foi suficiente para conter a entrada de obras proibidas, fazendo com que em
1794 a Coroa colocasse fim à Real Mesa da Comissão Geral e restituiu a tríplice censura. Dessa forma,
voltou ao funcionamento os seguintes tribunais: Ordinário, Inquisição e Desembargo do Paço.

Invocando a bula Romanorum Pontificum, baixada pelo papa VI em 1780 e pela


qual o sumo pontífice reclamava o direito da censura de livros, que lhe fora retirado
por Pombal [...] restabeleceu a legitimidade da censura eclesiástica nas matérias re-
ligiosas, autorizando os bispos a não exercer o poder de permitir ou proibir que se
imprimissem livros, mas apenas “censurar, e declarar a doutrina”.315

Já com o funcionamento da tríplice censura, D. Maria I definiu no alvará de 30 de Julho de


1795 os critérios que as instituições deviam exercer para análise dos livros. No campo político, havia a
preocupação com as ideias que atacassem a monarquia; enquanto no campo religioso, a preocupação
era em torno das ideias que defendiam o ateísmo, a liberdade de crença, o judaísmo, o fanatismo e a
superstição. Temia-se também pelo campo moral, divulgando ideias que ferissem os costumes e per-
vertessem a educação religiosa da mocidade.

A censura na Corte Joanina

A chegada da Família Real Portuguesa no Brasil em 1808 exigiu que o Rio de Janeiro, cidade
escolhida para ser a sede da Corte,uma adequação diante da vinda de um contingente tão numero de
pessoas, assim como uma reordenaçãodas estruturas para o funcionamento de um aparelho burocrá-
tico e administrativo digno da capital do Império Português316. Criou-se na cidade do Rio de Janeiro
312MARQUES, Maria Adelaide Salvador. A Real Mesa Censória e a Cultura Nacional: Aspectos da Geografia
Cultural Portuguesa no Século XVIII. Coimbra: Coimbra Editora, 1963.
313 NEVES, Lúcia Maria Bastos P. Censura, circulação de ideias e esfera pública de poder no Brasil, 1808-1824.
Revista Portuguesa de História. Coimbra, 1999.
314 VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo Luso-Brasileiro sob as luzes: reformas, censura e contes-
tações. Belo Horizonte: Fino Traço, 2015, p.184.
315VILLALTA, Luiz Carlos. Censura literária e inventividade dos leitores no Brasil colonial. In: CARNEIRO,
Maria Luiza Tucci (org.). Minorias Silenciada, História da Censura no Brasil. São Paulo: Edusp, 2002: 60.
316 Para mais informações sobre a vida cultural e politica durante o período joanino, ver NEVES, Lucia Bastos
P. das. A vida Política. In: SILVA, Alberto da Costa e. Crise Colonial e Independência 1808-1830. Rio de Janeiro:
Editora Objetiva, 2011.

796
uma nova configuração marcada por relações características de uma Sociedade de Corte317, em que
o poder do Estado está concentrado na figura do monarca e são estabelecidas redes de dependência
recíprocas baseada na interdependência dos indivíduos, os quais se pautavam pela figura do Rei e
regidos por normas e etiquetas que configuram tais relações, que estavam regidas, também, através
de trocas baseadas em “laços afetivos”.A Corte joanina pode ser entendida por tais aspectos, entre-
tanto apresenta especificidades por estar inserida dentro do continente Americano. Ligada também
aos conceitos de “interiorização”318 e “internacionalização” da metrópole, como aponta Ismênia de
Lima Martins319, devido à necessidade de adaptar o aparelho político e administrativo ao novo espaço
urbano. Como aponta Lúcia Bastos P. das Neves, as mudanças foram muitas, geradas a partir de um
processo de urbanização que estavam vinculadas ao conceito de processo civilizador320 que impulsio-
nou amodernização da cidade321.

O Paço, antigo palácio dos vice-reis, foi o lugar escolhido para acomodar os organismos ad-
ministrativos do Império. Houve a necessidade do príncipe regente, D. João, criar as bases para a
administração e governo a partir da criação de ministérios, instâncias jurídicas e políticas. O primeiro
ministério criado foi divido entre o ministério dos Negócios do Reino, atribuído a D. Fernando de
Portugal e Castro, Marquês de Aguiar; o ministério da Marinha e Ultramar, que ficou com o Visconde
de Anadia e, por fim, o ministério dos Negócios Estrangeiros e da Guerra que coube ao D. Rodrigo
de Sousa Coutinho. A escolha dos representantes, como aponta Algranti322, ocorria de acordo com as
capacidades dos fidalgos.

Junto com as mudanças apontadas, a criação da Impressão Régia323por decreto do rei em 13


de Maio de 1808 com a finalidade de publicar os atos do Governo, coube a Secretaria dos Negócios
Estrangeiro e de Guerra gerenciar a impressão. Foi criada uma comissão administrativa, composta por
José Bernardo de Castro, Mariano José Pereira da Fonseca e José da Silva Lisboa, para tratar dos as-
suntos referentes à nova tipografia. Sendo encarregados também do exame das obras com a finalidade
de garantir que não fossem abordados conteúdos que atacasse de alguma forma a religião, o governo
e a moral. Posteriormente, foi criada uma junta de censores subordinadas à Mesa do Desembargo do

317 ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte. Investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2001.
318 Para mais informações sobre o processo de interiorização, ver: DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A interio-
rização da metrópole e outros estudos. São Paulo: Alameda, 2005.
319 MARTINS, Ismênia de Lima. Corte Joanina. In: VAINFAS, Ronaldo & NEVES, Lucia Bastos Pereira das.
(Orgs.). Dicionário do Brasil Joanino (1808-1821). Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.
320NEVES, Lúcia M. Bastos P.. Ler, contar e escrever: Educação e o livro no Rio de Janeiro Joanino (1808-
1821). História. Questões e Debates, v. 60, p. 163-188, 2014, P.165 apud ELIAS, Norbert. O processo civilizacio-
nal. v. 1. Lisboa: Dom Quixote, 1989.
321NEVES, Lúcia M. Bastos P.. Ler, contar e escrever: Educação e o livro no Rio de Janeiro Joanino (1808-
1821). História. Questões e Debates, v. 60, p. 163-188, 2014, P.165.
322 ALGRANTI, Leila Mezan. Livros de Devoção, Atos de Censura: Ensaios de História do Livro e da Leitura
na América Portuguesa (1750-1821). São Paulo: Hucitec: FAPESP, 2004:140
323Para mais informações sobre a Impressão Régia ver: CAMARGO, Ana Maria de Almeida & MORAES, Ru-
bens Borba de. Bibliografia da Impressão Régia do Rio de Janeiro. São Paulo: Edusp/Kosmos, 1993. 2 v; GAR-
CIA, Lucia Maria Cruz e NEVES, Lucia Bastos Pereira das. Impressão Régia. In: VAINFAS, Ronaldo & NEVES,
Lucia Bastos Pereira das. (Orgs.). Dicionário do Brasil Joanino (1808-1821). Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.

797
Paço cuja função era examinar os textos encaminhados à Impressão Régia324. Cabe destacar que os
textos impressos pela Impressão Régia não se restringiram apenas às publicações do ministério, pois
foram impressos variados tipos de obras, desde documentos oficiais até as obras de teor científico,
Belas-Letras, Medicina, Direito, Economia, História e Teologia; afinal, era a única tipografia que havia
no Brasil325.Como aponta Márcia Abreu, a imprensa foi utilizada também foi utilizada para:

[...] Práticas de adulação dos poderosos, pois foram impressas quantidades signifi-
cativas de poemas em elogio aos soberanos, recitativos para as datas natalícias de
membros da família Real, orações congrulatórias por vitórias das tropas lusitanas
contra invasores franceses etc.326

Além disso, cabe destacar a importância da Impressão, também, para o desenvolvimento de


uma vida cultural dentro da Cidade, pois a elite dominante a partir dela encontrou formas de estabe-
lecer redes de sociabilidade, as quais eram indispensáveis para a manutenção de seu status327.

O funcionamento da censura estava atrelado desde a impressão até a circulação de livros e


cabia à Junta Diretora o direito de exercer tal função. Todavia, a Mesa do Desembargo do Paço328
reivindicou para si tal direito definido na última reforma do aparelho censório realizada no governo
de D. Maria I. Foi então estabelecido o direito de censura previa à Mesa, determinado que os livros
só poderiam ser retirados da alfândega com a licença concedida pela mesma. Apesar de só haver um
tribunal responsável pela censura no Brasil, diferente da censura tríplice em Portugal, a preocupação
da Coroa em controlar a circulação de ideias foi intensa devido ao temor que pensamentos ilustrados
324ABREU, Márcia. Duzentos anos: Os primeiros livros brasileiros. In: ABREU, Márcia & BRAGANÇA, Aní-
bal (Orgs.). Impressos no Brasil: Dois séculos de Livros Brasileiros. São Paulo: UNESP, 2010.
325 Foi a única tipografia a existir no Brasil até 1811, quando Manuel Antônio da Silva Serva ganha o privilégio
de abrir na Bahia uma tipografia. Para mais informações ver: IPANEMA, Cybelle de; IPANEMA, Marcello de.
A tipografia na Bahia: Documentos sobre suas origens e o empresário Silva Serva. Salvador: EDUFBA, 2010.
326 ABREU, Márcia. Impressão Régia do Rio de Janeiro novas perspectivas. In: I Seminário Brasileiro sobre o
livro e história editorial. Fundação Casa Rui Barbosa. Rio de Janeiro, 2004, p.07. Disponível em: <http://www.
livroehistoriaeditorial.pro.br/pdf/marciaabreu.pdf.>.
327 NEVES, Lúcia Maria Bastos P. Censura, circulação de ideias e esfera pública de poder no Brasil, 1808-1824.
Revista Portuguesa de História. Coimbra, 1999.
328Criado a partir do Alvará de 22 de Abril de 1808, fazia parte do tribunal da Mesa do Desembargo do Paço
e da Consciência e Ordens, responsável pela administração judiciária no Brasil, composta por presidente, de-
sembargadores e deputados da Mesa da Consciência e Ordens. Cabe destacar que o Desembargo do Paço e a
Mesa da Consciência e Ordens funcionavam separadamente, apesar de ser um único tribunal. Além dos cargos
mencionados foram criados cargos de chanceler-mor do Estado do Brasil, chanceler das Três Ordens Milita-
res, procurador-geral das Três Ordens Militares, promotor dos Defuntos e Ausentes e juiz dos Cavaleiros. No
mesmo alvará de fundação foram criados cargos como escrivão, para ambas as Mesas; Capelão; porteiro do
tribunal; escrivão da chancelaria; Mor do Brasil, recebedor da Chancelaria, meirinho e escrivão do registro.
Segundo Cabral, a estrutura do tribunal foi alterada em vários momentos, sendo acrescentados outros cargos
como escrivão da receita e despesa e quatro censores régios, segundo a edição de 1817 do Almanaque. O tri-
bunal atuou até 22 de Setembro de 1828 quando uma lei encerrou as suas atividades, criando novos órgãos.
Para mais informações ver: CABRAL, Dilma. Mesa do Desembargo do Paço. Mapa memória da Administração
Pública Brasileira. Disponível em <http://linux.an.gov.br/mapa/?p=2773>.

798
e ideias contráriosà religião, moral e bons costumes se propagassem pelo Império diante das guerras
napoleônicas.

Durante o período joanino os procedimentos da censura estavam estruturados a partir da lógi-


ca seguinte: os assuntos referentes à entrada e saída livros cabia ao Desembargo do Paço. Os livros fi-
cavam retidos na alfândega até a sua liberação, porém somente depois que o solicitante encaminhasse
à Mesa uma lista contendo as informações referentes às obras, ou seja, autor, título da obra, ano e local
de publicação. O escrivão da Mesa ficava encarregado de encaminhar tais listas aos censores régios,
responsáveis por redigirem pareceres aprovando ou não a lista dos requerentes. Quando havia algum
problema com um parecer, seja por desconhecimento de uma obra, ou até mesmo por discordância
feita pelo próprio escrivão da Mesa, um novo censor ficava responsável em analisar e prestar um novo
parecer. Em casos mais excepcionais cabia ao Monarca o poder de decisão sobre a liberação ou não das
obras solicitadas.Entretanto, como aponta Algranti o processo era muitas vezes complicado.
O processo de liberação não transcorria de forma tão cristalina assim, interpondo-se
a ele uma série de situações que demonstram a ausência de procedimentos isentos e
de normas claras, tanto dos que exerciam a censura, quanto dos interessados na libe-
ração das listas. A lentidão com que tudo se passava levantou muitas vezes protestos
de comerciantes e de particulares que se sentiam prejudicados [...] os problemas para
a liberação dos livros começavam no momento da colaboração das listas que eram
enviadas ao Desembargo do Paço. Não havia normas de como fazê-las.329

Cabe ressaltar o papel dos censores dentro desse processo, compreendidos por Lucia Bastos P.
das Neves como “Homens conservadores, mas esclarecidos, [...] [que] defendiam a adoção de ideias
ilustradas para reorganizarem a sociedade, mas temiam que nelas se escondessem as propostas de
uma revolução”.330 Enquanto, Marcia Abreudestaca o outro lado desses homens ao entendê-los como
um grupo responsável pelo primeiro processo de crítica literária, pois em seus pareceres eram respon-
sáveis por análises, algumas vezes, profundas de obras e autores configurando assim a ideia de uma
literatura Nacional.331
Dentro desse contexto, é importante destacar também que o acesso à leitura assim como à
posse dos livros “proibidos” era privilégio de uma elite letrada, e associado também ao papel de-
sempenhado pelo indivíduo dentro da sociedade. Dessa forma, como aponta Luiz Carlos Villalta o
conceito de uma “economia do dom”332, como uma hierarquização ao acesso das obras, configura as
329 ALGRANTI, Leila Mezan. Livros de Devoção, Atos de Censura: Ensaios de História do Livro e da Leitura
na América Portuguesa (1750-1821). São Paulo: Hucitec: FAPESP, 2004:140-141
330 NEVES, Lucia Maria Bastos P. Um Silêncio Perverso: censura, repressão e o esboço de uma primeira esfera
pública de poder (1820-1823). In CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (org.). Minorias Silenciadas História da Cen-
sura no Brasil. São Paulo: Edusp, 2002: 124.
331ABREU, Márcia. Os censores lêem romances. In: XXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação,
2002, Salvador. Anais do XXV Congresso Brasileiro de ciências da Comunicação, 2002.
332Ver: VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo Luso-Brasileiro sob as luzes: reformas, censura e
contestações. Belo Horizonte: Fino Traço, p. 289, 2015; BICALHO, Maria Fernanda Baptista. “As câmaras ul-
tramarinas e o governo do Império” In: João Fragoso et al. O Antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial
portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001p. 206; MAUSS, Marcel. Ensaio
sobre a dádiva. Lisboa: Edições 70, 1988; GODBOUT, Jacques T. O espírito da dádiva. Rio de Janeiro: Editora
da FGV, 1999.

799
particularidades da censura e ratifica a prática de graças e mercês característica da sociedade do An-
tigo Regime333, a qual se manifesta, no caso da censura, a partir da prática da concessão de licenças.
Assim, é possível identificar na censura privilégios que eram concedidos a uns a partir das relações
que o Rei estabelecia com os seus súditos buscando a manutenção da ordem pautada nas relações
concebidas naturalmente de forma desigual.

Extrapolando a censura, o conceito de “economia do dom” se refere ao ato régio de concessão


de honras e privilégios, aos súditos. Originalmente denominado “economia moral do dom”, em que
os beneficiados passaram a estar ligados ao monarca por uma rede baseada em relações assimétricas
de trocas de favores e serviços. A concessão de honras e privilégios era uma tentativa da monarquia
em controlar as representações dos indivíduos conferindo uma hierarquia entre os indivíduos que
a partir da busca por status gerava uma sociedade excludente. A exclusividade do monarca sobre os
títulos e mercês garantia ao mesmo o controle sobre as estruturas sociais e institucionais. A vinda da
Corte ratifica tais práticas aos trópicos, manifestando-se, também, a partir dos impressos, destacan-
do-se nesse momento as Orações fúnebres.

É importante destacar que se pretende nesse momento ressaltar o papel da Oração fúnebre
como umas das formas de dedicatórias dentro da Corte, como a finalidade de obter benesses do
Monarca e conferir prestigio àquele que a dedica. Como aponta Delmas334, as dedicatórias são formas
de elogios impressos que ganharam espaço com a chegada da Corte Portuguesa ao Brasil e com o es-
tabelecimento da Impressão Régia. Dentro da concepção de uma Sociedade Corte na qual as relações
eram pautadas pela interdependência que os indivíduos estabeleciam entre si e com o Monarca, a con-
cessão de benesses e mercês presente dentro deste espaço é regido por normas e etiquetas que visam
reafirmar tal ordem. Assim, as dedicatórias impressas são importantes, pois eles manifestam de forma
impressa as relações apresentadas.

[...] Tal elogio afirmava não só a autoridade e a soberania do homenageado, como


também lisonjeava sua capacidade intelectual e de inspiração. Nesse caso, o rei, ao
escolher aceitar ou não uma dedicatória, legitimava ou desqualificava uma obra e o
conhecimento que essa anunciava335.

A partir do que foi apresentado será destacado no documento selecionado os procedimentos


da censura, ressaltando os conflitos que surgiram entre o solicitante e o censor régio com a finalidade
de apresentar o espaço da censura como um local em que se estabeleciam relações pautadas na inter-
dependência entre os indivíduos que possibilitava a sociabilidade.

333 DOYLE, William. O Antigo Regime. São Paulo: editora ática, 1991.
334DELMAS, Ana Carolina Galante. In. NEVES, Lúcia Maria Bastos P. das (org.). Livros e impressos: retratos
dos Setecentos e dos Oitocentos. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009.
335DELMAS, Ana Carolina Galante. In. NEVES, Lúcia Maria Bastos P. das (org.). Livros e impressos: retratos
dos Setecentos e dos Oitocentos. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009. p. 275.

800
A Mesa do Desembargo do Paço como palco de embates

O documento selecionado 336 trata de um pedido do padre Fr. João da Costa Faria337 para impri-
mir a Oração Fúnebre em homenagem ao Infante General D. Pedro Carlos de Bourbon e Bragança338.
Entretanto, o desembargador censor régio, José da Silva Lisboa339 redigiu um parecer desfavorável ao
suplicante. O documento pode ser dividido em cinco momentos. O primeiro é referente à solicitação
do Fr. João da Costa Faria para imprimir a oração fúnebre; o segundo é o parecer desfavorável do cen-
sor José da Silva Lisboa; o terceiro é o pedido de solicitação de Costa Faria para ter o acesso ao parecer
do censor para que a partir dos apontamentos destacados e considerados inapropriados, portanto in-
dignos de publicação,o padre pudesse rever e corrigir com a finalidade de obter a licença requerida;o
quarto refere-seàs considerações de Costa Faria em cima do parecer de Silva Lisboa e a partir de suas
ponderações a ratificação do pedido de impressão; e, o último é um novo parecer do censor a partir
das considerações do padre, reafirmando a censura da obra. Aqui serão privilegiados os últimos dois
momentos apontados, pois é através dos argumentos indicados tanto pelo padre quanto pelo censor
que se buscará caracterizar o espaço da censura enquanto um localque possibilitava aos indivíduos se
inserirem dentro do espaço da Corte.
336 Todas as citações retiradas do documento tiveram a ortografia atualizada pela autora, mas se manteve todos
os destaques (os sublinhados) conforme o original. ANRJ. Mesa do desembargo do Paço. Licenças. Cx. 169 pct.
03 doc.95.
337Foi encontrada uma documentação em que é citado o nome de um Padre chamado João da Costa Faria e
por estar datada com o ano de 1814, ano seguinte da documentação utilizada neste trabalho, é factível conside-
rar que se trata do mesmo padre. A carta em questão foi escrita por D. Manuel Francisco de Portugal e Castro
enviada à Antônio de Araújo Azevedo, Conde da Barca, desejando-lhe melhoras. No interior da carta o nome
do padre é citado ao apontar o requerimento em que o padre João da Costa Faria solicita o benefício da Viga-
raria de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto. Além disso, indica que o requerimento já foi encaminhado à
Mesa da Consciência e Ordens, por meio do intermédio do tio do autor, de acordo com o documento o segundo
Marquês de Aguiar, entretanto informa que não foi obtido resultado. Ver: Arquivo Distrital do Minho. Família
Araújo de Azevedo. Antônio de Araújo de Azevedo – Conde da Barca. Carta de D. Manuel Francisco de Portu-
gal e Castro. Disponível em: <http://pesquisa.adb.uminho.pt/details?id=1409025>
338D. Pedro Carlos de Bourbon e Bragança, Infante de Espanha e Almirante General da Marinha Portuguesa,
por decreto de 13 de Maio de 1808. Filho de D. Maria Vitória de Bragança e D. Gabriel de Bourbon. Casou-se
com a princesa D. Maria Tereza em 1810. Morreu em 26 de Maio de 1812. Ver: CABRAL, Dilma. Almirante-
-general da Marinha. In: MAPA - Memória da Administração Pública Brasileira. Disponível em: <http://linux.
an.gov.br/mapa/?p=365>.
339 José da Silva Lisboa nasceu em 1756, na Bahia. Estudou filosofia racional e moral no Convento dos Frades
além de se dedicar à música. Estudou retórica e outras disciplinas em Lisboa e em 1774 cursou a Faculdade de
Direito e Filosofia na Universidade de Coimbra. Em 1778, tornou-se professor substituto ordinário e interino
de grego e hebraico no Real Colégio das Artes em Coimbra. Em 1779, formou-se em bacharel de direito e re-
tornou a Lisboa com a finalidade de tentar a magistratura. Após seu regresso ao Brasil, estabeleceu-se na Bahia
onde lecionou filosofia e grego até 1797. No mesmo ano obteve da coroa o título de distinção de Deputado e
secretário da Mesa da Inspeção da Cidade, o qual ocupou até início de 1808. Em Lisboa publicou algumas obras
sobre os princípios Mercantil e de Economia Política. Encontrou-se com o príncipe regente D. João durante
a estada na Bahia, em janeiro de 1808, sendo um dos defensores da abertura dos portos às Nações amigas da
coroa Portuguesa. Viveu em grande parte no Rio de Janeiro e foi considerado um dos maiores advogados da
causa do Brasil e da casa Bragança. Recebeu os títulos de primeiro Barão de Cairu, e de único Visconde de
Cairu. E faleceu em 1835. Para mais informações, ver: KIRSCHNER, Tereza Cristina. José da Silva Lisboa e a
Modernização Portuguesa. In:José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu. Itinerários de um Ilustrado Luso-Brasi-
leiro. São Paulo: Alameda: Belo Horizonte, MG: PUC-Minas, 2009; NEVES, Lúcia Bastos Pereira das. José da
Silva Lisboa. In: VAINFAS, Ronaldo & NEVES, Lucia Bastos Pereira das. (Orgs.). Dicionário do Brasil Joanino
(1808-1821). Rio de Janeiro: Objetiva, 2008

801
Ainda que este trabalho não se proponha a explorar profundamente todas as etapas deste pro-
cesso, é importante saber a sua composição, pois por meio dela é possível identificar os procedimentos
da censura, desde a solicitação até a liberação ou não de um pedido, nesse caso referente à impressão.
O primeiro momento apontado é referente ao pedido de impressão da Oração fúnebre enviado à
Mesa do Desembargo do Paço pelo padre da Costa Faria. Sem muitas informações,consta apenas a
solicitação que por si só já configura e caracteriza as normas dentro daquela sociedade hierarquizada
e hierarquizante, pois obter a licença para a publicação já configurava um privilégio. O segundo mo-
mento se refere ao primeiro parecer que o desembargador censor Silva Lisboa faz através da análise da
oração fúnebre. Tal documento se encontra em péssimas condições de leitura devido a própria tinta
do documento causar manchas no papel, além da caligrafia não facilitar o entendimento. Apesar disso,
a partir dele é possível identificar outra etapa dentro do aparelho censório, referente à atuação do cen-
sor. Somando-se a isso, cabe destacar que o fato de, na apresentação documento, José da Silva Lisboa
ser referido como “desembargador censor” se constata que o cargo de censor era apenas mais uma
das funções exercidas por ele dentro do aparelho administrativo e burocrático. O terceiro momento
apresenta um recurso do solicitante ao contestar e questionar a censura. Tal recurso era respaldado
pela legislação como aponta o regimento:
9. Porque é justo, e conforme a Direito, que cada um seja ouvido sobre a censura,
que se faz das suas obras: Sou servida Ordenar, que todas as vezesque acontecer,
que algumas das Três Autoridades censure em qualquer Livro, ou Papel, que lhe for
apresentado, alguns Artigos de Doutrina de sua competência, ou sejam Proposições,
e Lugares Capitais, ou sejam incidentes, porque jugue que a Obra ou merece ser in-
teiramente reprovada, ou deva ser em algumas partes emendada, e corrigida manda
dar vista a seu Autor, ou editor, para que dentro de certo prazo competente possa
responder à censura, que lhe for feita; e confirme a boa, ou má ressalva , que ele der
em sua defesa , (que deve ser sempre mui ponderosamente considerada) lhe defira
afinal, ou seja reformada, ou confirmado a censura, como for justo o que sempre se
praticará a respeitode todos os livros, e papeis de qualquer natureza que eles sejam,
salvos e forem tais, que por sua pouca importância, e nenhuma utilidade pareçam ser
dignos deste sério exame.340

A permissão para impressão de uma obra representava a aprovação do monarca e também


uma forma de inserção em um lugar de prestígio dentro da hierarquia de Corte quando se travava de
obras dedicas aos membros da família Real. Por isso, a insistência do padre para a publicação de sua
oração era pertinente, pois possibilitava a obtenção de reconhecimento. A oração solicitada havia sido
recitada por Fr. João da Costa Faria na cidade do Rio de Janeiro nas exéquias do Infante General D.
Pedro Carlos, e a publicação era almejada a partir dos pontos ressaltados. Diante da importância que
a publicação da dita obra representava dentro daquela sociedade, a mera possibilidade de poder ade-
quá-la as normas para a obtenção da licença já conferia um privilégio, pois como a regra citada acima
demonstra que nem todos os pedidos eram dignos de revisão, dessa forma a concessão da revisão já
340PORTUGAL, Leis, decretos, etc. Regras para a censura dos livros; conformes as do Regimento da Meza
Censória, recomendadas na Lei de 17 de Dezembro de 1794, e acomodadas as novas providências. SILVA, An-
tônio Delgado. Colleção da Legislação Portuguesa: desde a última compilação das ordenações, oferecida a El
Rei Nosso Senhor pelo desembargador Antônio D. da Silva. Lisboa: Typografia Maigrense, 1828. Legislação de
1791 a 1801. P. 227-228.

802
qualificava uma relevância e, portanto, um reconhecimento inicial. Entretanto, as observações que o
padre faz em cima dos apontamentos do censor são com o intuito de desacredita-las. Os limites do
texto são ultrapassados quando o padre usa os seus argumentos não apenas para justificar a beleza da
oração, como também ataca o trabalho do censor. Assim, nota-se que aquele espaço se transforma em
um “palco” onde os dois atores; o censor e o padre passam a disputar o reconhecimento do monarca.

As intrigas e rivalidades dentro desse modelo de sociedade eram fundamentais para a manu-
tenção das estruturas. O Rei tinha seu poder fortalecido ao ter o controle sobre as hierarquias e poder
proporcionar a ascensão e a queda dos indivíduos.341A dinâmicada censura não era diferente, como
aponta o alvará de 1795342os casos em que houver dúvidas que ultrapassavam as capacidades do envol-
vidos, cabia ao monarca o poder de decisão.
12. E porque é necessário precaver para o futuro todos os perniciososefeitos do Des-
potismo Literário, tão danosoà Religião, e ao Estado, como a mesma liberdade ilimi-
tadade pensar, e de escrever, o qual pode facilmente, se não atalhar, como convém,
abater as produções do entendimento humano, estancar opiniões, e doutrinas úteis,
e luminosas para instrução de meus vassalos, e atrasar com irreparáveis prejuízos os
progressos da Literatura Nacional: Sou servida declarar, que todo, e qualquer autor,
ou editor, que entender que se lhe manifesta violência, e injustiça na censura das suas
obras, e denegação da Licença que pede, para haver de as imprimir, e fazer correr
nestes reinos, e seus domínios, deverá recorrer a mim pela Mesa do Desembargo do
Paço, a qual juntamente com o requerimento da parte me fará presentes as censuras
das três autoridades, para que eu haja de prover como for bem; usando para este fim,
se assim julgar necessário, dos mesmos meios acima mencionados para o caso de
dúvida, ou colisão de juízos das sobreditas autoridades.343

Dentro de tal perspectiva que os últimos dois momentos da censura serão abordados. Cabe
ressaltar que os momentos selecionados foram escolhidos, pois apresentam um volume rico em in-
formações e expõem, a partir do que foi considerado,por meio de rivalidades e disputas entre o so-
licitante e o censor, as estruturas que garantiam o funcionamento e a manutenção da Coroa. Ambas
as documentações apontadas são extensas e abrangem informações com os conteúdos mais diversos,
desde os assuntos referentes à literatura até aos temas políticos como as Independências na América,
a aliança com a Inglaterra e a posição da Espanha diante das guerras napoleônicas. Nesse momento,
entretanto são destacadas apenas as divergências que ultrapassaram a censura das obras e foram, por-
341 ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte. Investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2001.
342PORTUGAL, Leis, decretos, etc. Regras para a censura dos livros; conformes as do Regimento da Meza
Censória, recomendadas na Lei de 17 de Dezembro de 1794, e acomodadas as novas providências. SILVA, An-
tônio Delgado. Colleção da Legislação Portuguesa: desde a última compilação das ordenações, oferecida a El
Rei Nosso Senhor pelo desembargador Antônio D. da Silva. Lisboa: Typografia Maigrense, 1828. Legislação de
1791 a 1801. p. 225-235.
343PORTUGAL, Leis, decretos, etc. Regras para a censura dos livros; conformes as do Regimento da Meza
Censória, recomendadas na Lei de 17 de Dezembro de 1794, e acomodadas as novas providências. SILVA, An-
tônio Delgado. Colleção da Legislação Portuguesa: desde a última compilação das ordenações, oferecida a El
Rei Nosso Senhor pelo desembargador Antônio D. da Silva. Lisboa: Typografia Maigrense, 1828. Legislação de
1791 a 1801. p. 228.

803
tanto, identificadas enquanto mecanismos de reafirmação dentro daquele espaço perante o monarca.

Como já foi mencionado anteriormente, o sacerdote utilizou o espaço que lhe foi concedido
para revisar e alterar os pontos destacados pelo censor para rebater os argumentos do dito censor e
ratificar os conteúdos presentes. Considerando tal espaço, este trabalho ressalta alguns pontos abor-
dados na carta de contestação do autor da oração. O primeiro, diz respeito à censura das expressões
usadas como referência aos membros da família real, em especial ao finado D. Pedro Carlos. Contesta
o padre:

As expressões que de Pedro= perda de Pedro= meu Pedro= Teu Pedro= Moço= Fiel=
nas páginas que cita, para muitos familiares se devem reprovar, pois convém acompa-
nhar sempre o nome das pessoas reais dos títulos correspondentes ao seu nascimen-
to, e não, e não as confundir com os nomes de indivíduos do povo.344

Tal questão é importante, pois a partir dos apontamentos do censor é possível identificar nor-
mas e etiquetas que regiam a ordem dentro da corte e a importância para a manutenção do status para
os indivíduos inseridos nessas redes. Dessa forma, a censura das expressões pode ser compreendia
como uma forma do censor ratificar e reforçar as hierarquias que configuravam as relações.

O padre João Costa Faria, no entanto, recusa a crítica realizada por Silva Lisboa e argumenta
os motivos que o levou a utilizar tais expressões e importância delas no momento da oratória. Cabe
destacar nesse momento que a partir da censura mencionada,ele vai além de suas argumentações e faz
um comentário que expõe as disputas que permeiam os indivíduos que estão ao redor do monarca.

Além disso, examinada outras orações fúnebres feitas aqui por outros sobre o mesmo
objeto, quantas expressões dessas, que julga mal soantes o meu censor, e, de indiscre-
ta intimidade, senão encontram a cada página? Em uma que fez imprimir o Pe Anto-
nio da Rocha Franco, e que recitara em Vila Rica, vê-se, que nunca trata no fio do seu
discurso ao Sereníssimo Senhor D. Pedro Carlos, senão por = Infante = do Infante =
o Infantante =; expressão de que se usa nas conversas familiares, e que é a mais trivial,
que pode ser: e a pag. 18 diz ele = Senhor! Usai com o infante de indulgências: e o
sangue de Luiz Alfonso Henriques, de Isabel, de Mariana da Áustria = [rubrica]; e eis
aqui todos estes desarmados de títulos, e confundidos com os nomes de indivíduos
do povo, por que há muitos Luizes, Afonsos Henriques, IzabeL, de Mariana d´Áus-
tria = etc = [...] Porém longe de se dever tomar isto como falta, ninguém haverá por
só menos versado em eloquência, que o não repute brilhante, e de mais pompa, e
digna linguagem de um orador. Portanto a censura feita sobre estas passagens, julgo-
-a, assim como a julgarão todos os peritos na matéria, mais uma vontade de censurar,
do que exercimento de ofício com descrição, e fundamento345

344ANRJ. Mesa do Desembargo do Paço. Licenças. Cx. 169 pct. 03 doc.95, fl.32.
345Grifos originais da documentação. Ibid. fl.31-31v.

804
A análise acima feita pelo sacerdote pode ser vista como uma forma de reforçar as expressões
utilizadas por ele assim como uma forma de mostrar como foi injusta a censura atribuída à oração
fúnebre apresentada por ele, ao mesmo tempo em que crítica o trabalho do censor ao considerar como
“vontade de censurar”. Além da oração mencionada acima, o padre Costa Faria também menciona ou-
tra oração que, a partir dos critérios apontados pelo censor à sua obra, também deveria ser censurada.

A oração impressa do Reverendo Fr. Francisco de S. Paio, estou persuadido que a ter
lhe cabido em sorte o mesmo censor nunca teria aparecido à luz, sendo aliás digna de
perpétuo dia. Quantas expressões, e pensamentos afrontosos para as pessoas Reais,
segundo o seu modo de entender não acharia o censor em toda ela? Ele julgaria in-
digno de se imprimir, [...] tudo ali veria o meu censor, apesar de que ninguém mais o
visse, nem talvez o seu autor sonhasse tal346

Naquela circinstância, João Costa Faria utiliza duas obras que foram publicadas para justifi-
car o equívoco do censor em relação à censura realizada às expressões apontadas. Entretanto, ambas
as obras mencionadas eram orações fúnebres que foram dedicadas, também, ao Infante General D.
Pedro Carlos de Bourbon e Bragança, e publicadas por Ordem de S.A.R..Assim, eles não somente ob-
tiveram a permissão, logo não foram censurados como a obra do solicitante nos aspectos destacados
por ele, como também foram publicadas com o maior prestígio. Havia duas formas de publicação pela
Impressão Régia, como aponta Lucia Bastos Pereira das Neves e Lucia M. Cruz Garcia: a primeira era
“Por Ordem de S.A.R.” nesse caso era publicada por Ordem do Governo; a segunda, utilizava-se da
forma “Com licença de S.A.R.”, quando a obra era encaminhada pelo próprio autor e, caso aprovada,
era concedida a licença347. O Padre Antônio da Rocha Franco era vigário da Vara de Vila Rica348e o
Reverendo Fr. Francisco de S. Paio era ex-leitor de eloquência, de teologia dogmática, examinador da
Mesa da Consciência e Ordens Militares, Pregador Régio, Teólogo da Nunciatura Apostólica e Padre
da Província da Imaculada Conceição do Rio de Janeiro349. Dessa forma, pode-se compreender as re-
ferências feitas aos padres apontados e suas respectivas obras como uma tentativa de tentar se inserir
dentro de um grupo privilegiado, aos quais os autores destacados possivelmente faziam parte.

Diante do que foi apresentado até o momento, os pontos agora analisados serão os referentesà
resposta do censor e seu parecer final sobre a oração fúnebre do padre. Este último momento com-
preende à análise do censor ao ponto levantado acima pelosacerdote. Nessa parte da documentação,
diferente do primeiro parecer apresentado, a caligrafia legível pode ser considerada como um primei-
ro indício de um texto que estava sendo destinado não apenas aos funcionários do aparelho censório,
mas que contaria com a leitura do próprio monarca. Pode-se considerar que tal documentação chegou
até o conhecimento do monarca, conforme a lei apontada acima, devido às divergências que surgiram

346Ibid. fl 36v.
347GARCIA, Lucia Maria Cruz e NEVES, Lucia Bastos Pereira das. Impressão Régia. In: VAINFAS, Ronaldo &
NEVES, Lucia Bastos Pereira das. (Orgs.). Dicionário do Brasil Joanino (1808-1821). Rio de Janeiro: Objetiva,
2008, p. 220.
348 FRANCO, Antônio da Rocha. Oração Fúnebre. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1812, p. 323.
349 PAIO, Francisco de S Oração Fúnebre. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 18012, p. 322.

805
entre o censor e o solicitante.

O censor inicia a sua resposta destacando que a “crítica” a que o padre se refere em seu texto
nada mais é do que a censura oficial, buscando assim, legitimar o seu discurso enquanto autoridade.
Pode-se identificar nesse momento a manifestação das hierarquias e como ela atuava dentro da so-
ciedade. Assim, o censor recorre à confiança do monarca que depositou nele não somente o cargo de
censor como o de desembargador.

É regra de direito, que a ninguém deve ser danoso o seu ofício, e as leis proíbem dizer
injúria a qualquer pessoa em razão de ofício, e não autoriza aos Autores a insultar
os Censores. Se não sei fazer o meu ofício, suplico (se for possível) que passe de
mim este cálice, e grave encargo público, que só por obediência exerço, e a que aliás
minha idade, moléstias, e ocupações do Real Serviço, fazem pouco compatível: ou
peço vênia para valer-me da protestação de um antigo servidor do Estado (com quem
não tenho paralelo, se não em zelo) [...].350

Silva Lisboa apresenta no comentário acima uma crítica à atitude do padre ao considerar que
a forma que ele se dirigiu à censura não condiz com as normas estiladas pela lei, pois as acusações do
padre atacam diretamente a figura do censor. Assim, ele aproveita o espaço para expor o seu descon-
tentamento com o serviço de censor. Ao considerar a tarefa como “grave encargo público” e apontar
que só exerce a função por “obediência”, destaca a obrigação enquanto súdito. O censor buscou nesse
momento a oportunidade de se dirigir ao monarca e obter a liberação da sua função ao considerar que
era um servidor da coroa de longa data. A postura desempenhada reafirma o local da censura, nesse
caso, como um espaço que possibilitava a obtenção de benesses.

A censura realizada às expressões mencionadas anteriormente são reafirmadas pelo censor


que manifesta a importância da manutenção da etiqueta e das hierarquias às quais devem ser respei-
tadas. Aproveita ainda para destacar que a postura do padre ao utilizar expressões era para se colocar
em posição privilegiada ao sugerir que possui relações íntimas com os membros da realeza.

[...] não sou tão infantil, que reconheça no orador o direito de alterar a seu arbítrio os
estabelecidos tratamentos das personagens Reais, a dignidade do paço, e a etiqueta
da corte, para ver com indiferença a simpleza dos que se ingerem a tratar com in-
discreta intimidade aos príncipes nacionais, que a providencia colocou no sumo da
hierarquia civil.351

O censor faz considerações sobre o apontamento feito pelo padre à oração fúnebre impressa
pelo Reverendo Fr. Francisco de S. Paio. Silva Lisboa não apenas condena a menção feita pelosacerdo-
te, pois destaca que o reverendo era um homem de prestígio ao pontuar o cargo exercido de pregador

350ANRJ. Mesa do desembargo do Paço. Licenças. Cx. 169 pct. 03 doc.95, fl.41v-42.
351Ibid. fl.42v.

806
da Capela Real. Como também acusa o padre da Costa Faria de realizar tarefas que não tem compe-
tência, pois utiliza o espaço em que deveria adequar e reparar a oração para criticar e censurar obras
que foram publicadas pela Impressão Régia, ou seja, que já haviam passado pelo processo censório,
portanto, já tinham sido aprovadas pela coroa.
Quer abrigar-se à frase da Oração fúnebre de Villa Rica, e do egrégio pregador da Ca-
pela Real S. Paio, dizendo, que a cada página se encontram expressões que eu julgaria
mal soantes. [...] O querelante é quem, sem comissão se erige em censor das orações
alheias, e faz mandar censura contra producente.352

O censor expõe o descontentamento diante do papel que o padre reivindicou para si de censu-
rar as obras alheias e o ataque que faz diretamente ao serviço de censor desempenhado por ele. Além
disso, Silva Lisboa critica as seguintes posições feitas pelo padre:

Na pagina 2 diz, que se me coubesse em sorte a censura da oração fúnebre do reve-


rendo S. Paio, também acharia expressões no meu entender mal soantes. Sou assim
acusado pelo que censurei, e pelo que não se me mandou censurar. Isto é em santa
caridade. Adivinha pensamentos que nunca tive, e condena antes previs a merita.353

É possível identificar nas considerações apresentadas até o momento que o censor José da
Silva Lisboa identifica a partir do discurso presente na obra do padre um meio de se inserir dentro de
espaços privilegiados que circundam a família Real. No entanto, para isso o padre fere as normas da
etiqueta que regem aquele espaço, ao se colocar naquele momento como um defensor da Coroa e das
normas de civilização. Os ataques à censura do censor pode ser entendida como uma formado padre
Costa Faria tentar se apresentar como um homem letrado e instruído que merecia ser inserido dentro
de espaços mais privilegiados.

O censor encerra sua análise fazendo algumas considerações com a finalidade de reafirmar a
censura atribuída à oração do padre, e também ratificar a sua competência na realização do ofício, que
foi feita a partir das regras estipuladas pelo alvará de 30 de Julho de 1795.
É de razão que o despotismo literário dos censores não se tolerem. Mas o tribunal
é testemunha que não sou iliberal, e menos insolente, nas censuras que me tem
ordenado, ainda há pouco em a obra de um dos nossos mais abalizados homens
de letras, este ingenuamente conveio em algumas minhas notas, não sobre coisas
essenciais, mas sobre engenhos, por terem de sobejo, não se arrepiam, que, em
espírito de patriotismo, e amor da sã literatura nacional [...]354

352Ibid. fl. 43v.


353Ibid. fl. 55.
354Ibid. fl. 71.

807
A forma que o censor José da Silva Lisboa se remete ao monarca indica não apenas o conheci-
mento do assunto que está sendo tratado como também a colocação do censor enquanto súdito. Isso
reafirma as normas que configuravam a sociedade de corte.

Como V. A. R. melhor conheceu pela sua alta compreensão, o espírito do orador, e


tudo o teor da oração, parece-me ser desmerecimento tomar o tempo do tribunal em
[ilegível] neste ofício tanta exorbitância, e indecência que o suplicante acarreta; e por
[isso], para não entender de que o meu silêncio e reconhecimento de seu pretendido
direito, suplica a V. A. R. licença de oferecer o meu [ilegível] deste ofício, a inclusa
memória justificativa, havendo V. A. R. por bem de perdoar a prolixidade e algum
[ilegível] a que me forçou e zelo de defender o Real [ilegível], e a honra que se digna
conceder-me. V. A. R. [por bem] atenderei o que for do Real agrado. Rio de Janeiro,
21 de Junho de 1813.355

A partir do que foi apresentado é possível perceber que o aparelho censório não somente ser-
viu aos monarcas como instrumento político, ou seja, utilizado por eles toda vez que fosse necessário
conter ideias que de alguma forma atacassem a ordem, os preceitos religiosos e morais e os bons
costumes. Dessa forma, foi usado como um instrumento dentro do Antigo Regime para legitimar o
poder e fazê-lo se perpetuar durante os séculos. Com a revolução francesa e as guerras napoleônicas
uma nova configuração emergiu devido à transferência da Corte portuguesa para o Brasil. A permis-
são da instalação da primeira tipografia, Impressão Régia, assim como a abertura do tribunal censório
no Rio de Janeiro, sede do Império luso-brasileiro, não alteraram apenas a vida política e cultural da
cidade como também, a partir de um discurso civilizador, adaptaram a sociedade do Antigo Regime
nos trópicos356. Mais do que apenas um tribunal, a Mesa do Desembargo do Paço coube a concessão de
privilégios a partir das licenças. Possibilitadas pelo monarca, o processo de solicitação até a liberação
de um pedido pode ser compreendido dentro de uma atmosfera de sociedade de corte como um ritual
em que as hierarquias são reafirmadas a todo o momento.

A partir do documento selecionado se buscou destacar tal processo e apresentar mais do que
os bastidores da censura, mas o conflito entre Fr. João da Costa Faria e o censor José da Silva Lisboa,
como disputas entre homens privilegiados dentro de tal sociedade e que buscaram, a partir do espaço
da censura e aos olhos do monarca, reafirmar suas posições de prestígio e reconhecimento. O desen-
tendimento ultrapassou os aspectos técnicos e literários quando ambos se apropriaram da suposta
presença do monarca para serem reconhecidos não somente para os demais como para o próprio
monarca. Como já apontava Elias, dentro da sociedade de corte a imagem que o indivíduo faz de si
mesmo é tão importante quanto aquela que é feito pelos outros357. Assim, é possível conceber que a

355Ibid. fl.39.
356 João Fragoso et al. O Antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio
de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001.
357ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte. Investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2001.

808
Mesa do Desembargo do Paço possuía funções que extrapolavam a burocracia inerente ao exercício de
seus deveres e se tornavam também locais de sociabilidade quando surgida a oportunidade.

Fontes:

Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Mesa do Desembargo do Paço. Licenças. Cx. 169 pct.03 doc.95.

Arquivo Distrital do Minho. Família Araújo de Azevedo. Antônio de Araújo de Azevedo – Conde da
Barca. Carta de D. Manuel Francisco de Portugal e Castro.Cota: B-7(18,2).

PORTUGAL, Leis, decretos, etc. Regras para a censura dos livros; conformes as do Regimento da
Meza Censória, recomendadas na Lei de 17 de Dezembro de 1794, e acomodadas as novas providên-
cias. SILVA, Antônio Delgado. Colleção da Legislação Portuguesa: desde a última compilação das
ordenações, oferecida a El Rei Nosso Senhor pelo desembargador Antônio D. da Silva. Lisboa: Typo-
grafia Maigrense, 1828. Legislação de 1791 a 1801. P. 225-235.

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"Coleção das observações dos produtos naturais do Piauí": natureza, paisagem e circula-
ção de saberes nos escritos do naturalista Vicente Jorge Dias Cabral, séc. XVIII.
Mairton Celestino da Silva 358

Desde o final do século XVI, portugueses e espanhóis manifestavam intenso desejo em conhe-
cer as riquezas naturais e humanas daquilo que viria a ser, após a expulsão dos franceses, o Estado
Colonial do Maranhão. Inventariar plantas e animais, percorrer rios e abrir caminhos em busca de
índios eram formas de conquistas que saciavam o interesse do europeu; ávido por ter conhecimento
mais aprofundado do Novo Mundo. Obras como História Geral e Natural das Índias, publicado em
1535 e mais tarde, em 1552, com uma segunda parte, de Gonzalo Fernandez de Oviedo, bem como
História das Plantas da Nova Espanha, escrito por Francisco Hernández, após explorar o México entre
os anos de 1571-76 e o enciclopédico relato das culturas do povo do México, História Geral das coisas
da Nova Espanha, compilado entre os anos de 1575-77 por Bernardino de Sahagún serviram como
manuais aos interessados em conhecer e explorar as terras do Novo Mundo359.

Com o mesmo propósito, agora em terras sob domínio português, trabalhos como os de Pêro
de Magalhães Gândavo, Tratado da terra do Brasil (1576),e os escritos de Frei Vicente do Salvador,
História do Brasil, de 1627, Sebastião da Rocha Pita, História da América Portuguesa (1730)e Cultura
e Opulência do Brasil por suas drogas, e minas, com várias as notícias curiosas do modo de fazer o
açúcar; plantar o tabaco; tirar ouro das minas, e descobrir as de prata, do jesuíta André João Antonil,

358Doutor em História, coordenador do NUPEDOCH e professor efetivo da Universidade Federal do Piauí -


UFPI
359 GRUZINSKI, Serge. As quatro partes do mundo: história de uma mundialização. Belo Horizonte: Editora
UFMG; São Paulo, 2014.p. 213-229.

812
figuram como marcos expressivos para se compreender, a partir de um estilo descritivo, aquilo que
viria a ser o Brasil. No mesmo plano e de igual importância, obras produzidas durante o século XVII
,no Estado do Maranhão, seguiriam o mesmo ritmo daquilo que se praticava em terras da Espanha e
do Brasil do sul. Dessa maneira, trabalhos como o História da missão dos Padres Capuchinhos na ilha
do Maranhão e terras circunvizinhas, publicada em Paris no ano 1619 pelo religioso Claude D’Abbe-
vile, e Relação sumária das cousas do Maranhão, dirigidas aos pobres deste Reino de Portugal, de 1624
e escrita por Simão Estácio da Silveira, figuram entre as principais obras a voltar-se para a dimensão
da paisagem natural e humana.

As missões científicas tinham, portanto, essa dupla função: conhecer o território e produzir
um diagnóstico do potencial exploratório da vegetação. Além do interesse pelas riquezas do reino ve-
getal, havia por parte da administração portuguesa uma curiosidade pela fauna. A partir do municia-
mento dos viveiros das quintas e jardins botânicos do Reino, plantas e animais (vivos ou empalhados)
seriam enviados para Lisboa com o objetivo de preencherem os espaços vazios do Museu de História
Natural do Palácio da Ajuda e de comporem uma simulação do ambiente natural presente na colônia.

Já no final do século XVIII, por volta do ano de 1798, o Bacharel em Direito Civil e Filosofia
pela Universidade de Coimbra, Vicente Jorge Dias Cabral, havia sido informado pelas autoridades
portuguesas da missão que deveria empreender pelo interior das capitanias do Maranhão e do Piauí.
O objetivo dessa jornada era identificar, classificar e catalogar, de acordo com os métodos científicos
da época, o potencial mineralógico, vegetal e animal daquele território360. Ainda que fosse conhecedor
do mundo da administração portuguesa e extremamente versátil no campo da jurisprudência, uma
vez que exercia a função de advogado na cidade de São Luís do Maranhão, Vicente Jorge Dias Cabral
mostrava-se reticente quanto ao exercício da missão, uma vez que passados os seus nove anos de
estudante na Universidade de Coimbra “já me não lembrava que um dia seria necessário revolver os
Naturalistas, e ao velho Línneu”. Mesmo que balbuciando “nos princípios dos três reinos da natureza”,
recebia a notícia da sua missão com o louvor de um vassalo sempre disposto a servir Vossa Majesta-
de361.

Nascido no Arraial do Tejuco - posteriormente denominada de Diamantina - na região das


Minas Gerais, Vicente Jorge Dias Cabral contaria com a prestimosa ajuda de João Roiz de Macedo, um
dos principais articuladores da Inconfidência mineira, e sobrinho do desembargador Antônio Roiz
de Macedo, que no ano de 1741- 44 havia ocupado o cargo de provedor geral da Fazenda das Minas
Gerais362. Em janeiro de 1785, João Roiz escreve a seu irmão, Bento Roiz de Macedo, a respeito de um
360 É bem verdade que outras produções, mesmo que de pequeno porte, se somam ao manancial de textos es-
critos por Dias Cabral ao longo da sua vida. Em 1803, o naturalista encaminha ao Conselho um pequeno exem-
plar denominado Análise Botânica da planta denominada Manacá. Provavelmente, o que marcará a produção
intelectual do naturalista será de fato as suas observações dos produtos do Piauí. Ver, Ofício do Gov. e cap-gen.
do Maranhão e Piauí D. Diogo de Sousa, para o Secretario de Estado Marinha e Ultramar [...] remetendo copia
de uma carta do Bel. Vicente Jorge Dias Cabral informando a existência, achamento e classificação de plantas
medicinais, na capitania do Piauí. AHU-ACL-CU-009- Caixa. 128. DOC. 09595.
361 PATACA, Ermelinda Moutinho; PINHEIRO, Rachel. “Instruções de viagem para a investigação cientifica
do território brasileiro”. Revista da SBHC, Rio de Janeiro, v.3, p. 58-79, jan./jun.2015.p. 63.
362 Sobre as relações de poder e de nobreza nas Minas Gerais ver, entre outros, SOUZA, Laura de Mello e. O sol
e a sombra: política e administração na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

813
“moço de uma excelente índole”, que a pretexto de ser ele procurado pelos pais e parentes do jovem
queria recomendá-lo para a Universidade de Coimbra afim de “cativar nele os estudos” em ciências
jurídicas e filosofia natural e amizade naquele ambiente europeu363.

É bem provável que durante sua passagem por Coimbra, Dias Cabral mantivesse contato com
intelectuais portugueses e europeus que estavam naquele país para fundarem, a mando da Coroa
portuguesa, o Real Museu do Palácio da Ajuda e o Jardim Botânico. Entre esses intelectuais figura o
nome de Domingos Vandelli, natural de Pádua e um dos mentores da História Natural em Portugal.
Mais tarde, o naturalista viria ao Brasil a serviço da Comissão de Demarcação de Limites e, ao tér-
mino, realizar, com Alexandre Rodrigues Ferreira, uma viagem científica e filosófica pelo Brasil364.
Em ambos os empreendimentos havia um interesse direto do Estado português. De um lado era ne-
cessário estabelecer marcos fronteiriços entre Portugal e Espanha; daí a necessidade da Comissão
de Demarcação portuguesa dispor de cartógrafos, geógrafos e naturalistas. Do outro, em legitimar a
nascente ciência natural em Portugal através do incentivo a viagens científicas conduzidas, sobretudo,
por luso-brasileiros365.

Embora não se coloque como um naturista, em Coleção das observações dos produtos
naturais do Piauí, Vicente Jorge Dias Cabral assume tal postura. Não só isso, Dias Cabral mostrava-se
leitor das obras produzidas no Brasil, como daquelas situadas nos domínios do Ultramar. Seu diálogo
acerca da variação climática nas diferentes partes do mundo e os tipos de agricultura peculiar a cada
espaço geográfico, em especial dos tipos de cultura agrícola do México, nos faz situá-lo na condição de
interlocutor direto das obras espanholas. Na verdade, o México guardava estreita relação com o clima
e a aridez do solo do Piauí. O que se produzia em larga escala naquele domínio espanhol poderia - se
bem empregado - ser utilizado nas terras do Piauí, a exemplo da cochonilha.

Muitos colonos que circulavam pelo interior das capitanias do Maranhão e Piauí tinham
em suas viagens o cuidado de averiguar as potencialidades minerais e vegetais que cada lugar podia
oferecer. A cochonilha - conhecida nas terras da administração portuguesa por urumbeba – assim
como o cacau, cânhamo, salitre, anil e a quina fariam parte desse repertório de análises desses primeiros
colonos. Pouco tempo antes da expedição de Dias Cabral, em outubro de 1796, o colono Joaquim
Jorge de Aguiar havia percorrido parte do interior do Piauí e naquela oportunidade descobrira uma
grande quantidade de cochonilha, cânhamo e salitre, fato este que logo o fez escrever às autoridades

363Carta a Bento Rodrigues de Macedo pedindo que proteja a estudante Vicente Jorge Dias Cabral em qual-
quer eventualidade. ANRJ, Manuscrito, 29/01/1785. Sobre as condições econômicas das Minas Gerais no
contexto da saída de Vicente Jorge Dias Cabral para Coimbra e a importância daqueles que o ajudaram na
sociedade mineira, ver RODRIGUES, André Figueiredo. Estudo econômico da Conjuração Mineira: análise
dos sequestros dos bens dos inconfidentes da comarca do Rio das Mortes. São Paulo: USP, tese de doutorado
em História Social, 2008.
364 RAMINELLI, Ronald; SIVA, Bruno da. “Teorias e imagens antropológicas na Viagem Filosófica de Alexan-
dre Rodrigues Ferreira (1783-1792)”. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 9, n.2,
p. 323-342, maio-ago. 2014.
365 Para o assunto ver, entre outros, PRATT, Mary L. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação.
São Paulo: Edusc, 1999; FERRAZ, M. H. M. As ciências em Portugal e no Brasil (1772-1822): o texto conflituo-
so da química. São Paulo: Edusc, 1997; PRESTES, M. E. B. A investigação da natureza no Brasil Colônia. São
Paulo: Annablume, 2000.

814
portuguesas a fim de informá-las sobre o achado.

Há muito tempo que eu trabalho neste Estado do Maranhão, de minha naturalidade,


por fazer descobertas de cochonilha, cânhamo Silvestre e de salitre, por conhecer a
sua importância. De cochonilha levou o governador e capitão general que foi deste
Estado José Teles da Silva as amostras que ouve por minha via de cânhamo Silvestre,
remeti em um dos anos passados, uma boa porção dele ao Exmº. Sr. Ministro de
Estado Martinho de Mello de Castro, com a descrição do modo de se fabricar:
declarando as partes, em que o há em grande abundância na capitania do Piauí, e em
outras partes do Brasil; e na mesma ocasião, tive a honra de remeter a V. Ex. Uma
cópia da dita descrição; e de salitre, tenho já por duas outras vezes dado porções de
terra em que se julga o há, ao atual governador Capitão-general Fernando Antônio de
Noronha, para o remeter por amostra. Agora que me chegou da mesma capitania do
Piauí, uma porção de terra salitre, em que se supõe haver salitre esta tenho o gosto e
a honra de remeter a V. Ex., no caixotinho constante do conhecimento incluso, para
que se queira servir de mandar fazer exame e extração a vê se dar salitre perfeito; e
observar de a porção366.

Em relação aos produtos encontrados na colônia, havia uma verdadeira confusão na remessa a
Lisboa. Sobretudo no que se refere a amostras de sais e minérios, incomuns e de desconhecimento da
maioria dos colonos. Tentando sanar tais dificuldades no reconhecimento desses produtos encontra-
dos pelos colonos, notadamente os de natureza mineral, a Coroa portuguesa encaminha ao Maranhão
os droguistas Agostinho José Pereira da Silva Rombo e Manoel José de Miranda367. Ao droguista Agos-
tinho José ficaria o esforço em examinar a existência de pedra-ume, abrir uma fábrica de pergaminho
e produzir um mapa descritivo dos gêneros das capitanias do Maranhão e Piauí. Por sua vez, Manoel
José de Miranda teria a função de comandar uma expedição pelas cabeceiras do rio Parnaíba até a
cidade de São José da Parnaíba, onde, segundo relatos, existiria uma grande quantidade de “incenso,
chumbo, cobre, ferro, e azougue, prometendo-me trazer amostras dos dois primeiros gêneros nesta
ocasião”. Ambos droguistas provaram o gosto amargo do fracasso. Um não conseguira abrir a fábrica
de pergaminhos devido à falta de peles de carneiros; já o outro, teve que retornar após ser acometido
por uma forte enfermidade, “não trazendo coisa alguma das ditas amostras”368.

Ao passo que Manoel José Miranda recuava com sua expedição científica, Vicente Jorge Dias
Cabral, na mesma época, avançava junto às terras da capitania do Piauí. A malograda tentativa de
um, contrastava com o sucesso do outro. Por certo, muito do sucesso de Dias Cabral se deve ao fato
de cedo abandonar a carreira jurídica na cidade de São Luís e, aos poucos, mover-se para o campo da
burocracia portuguesa de cunho expedicionário; enviando amostras de plantas e animais, desenhos
botânicos e catálogos sobre antigas e novas espécies nativas.
366Ofício do mestre-de-campo do Terço da vila de Alcântara, Antônio Correia Furtado de Mendonça, para
Luís Pinto de Sousa Coutinho, sobre as suas descobertas de cochonilha, cânhamo Silvestre e, recentemente, de
salitre. AHU-ACL-CU-009, Caixa. 92, D. 7597.
367Avizo da Secretaria de Estado sobre o remeterse no fim da cada anno a mesma Secretaria hum mapa dos
generos que se exportão desta Capitania etc. Maranhão, 10 de maio de 1771. APEM. LRC, Nº 11, SGM.
368 Conta a Sua Magestade pela Secretaria de Estado sobre as amostras que remette Agostinho Joze Pereira da
Silva Rombo. Maranhão, 12 de julho de 1771.APEM. LRC, Nº 11, SGM.

815
Com tamanha desenvoltura, logo acabaria por adquirir a simpatia e confiança de homens de
prestigio, como as do governador José Teles da Silva e do Ministro de Estado Martinho de Melo e Cas-
tro. Essa boa relação fará com que Dias Cabral torne-se um dos principais articuladores do comércio
envolvendo a exploração das árvores, plantas medicinais e minérios. Assim, enquanto o centro-sul do
Maranhão -o projeto português de extração das matas na ribeira dos rios Pindaré, Mearim e Grajaú-
seguia em ritmo promissor, a parte territorial situada nos limites dos rios Itapecuru e Parnaíba e do
Sul do Maranhão e Piauí ainda carecia de exploração369. Não só isso. Até a segunda metade do século
XVIII, aquela parte da colônia ainda não havia adquirido a devida importância econômica e política
da Coroa portuguesa.

As missões científicas tinham, portanto, essa dupla função: conhecer o território e produzir
um diagnóstico do potencial exploratório da natureza. Nos relatórios produzidos por essas expedições
científicas havia uma nítida posição consensual - tanto dos colonos como do próprio governo da
capitania - acerca do potencial daquelas terras para os negócios envolvendo plantas medicinais,
extração de árvores e minérios; bem como do cultivo de alguns produtos típicos para exportação,
como o algodão e arroz.

Produzido o diagnóstico, o passo seguinte seria o povoamento mediante a concessão de se-


marias, principalmente, em terras localizadas ao longo das ribeiras dos rios Itapecuru até a região de
Pastos Bons e, do lado do Piauí, por toda a margem do Parnaíba. Por conseguinte, o resultado seria a
presença da administração portuguesa naquelas novas áreas coloniais. Contudo, nem sempre o que se
havia planejado seguia seu traçado. A prática costumeira dos semesmeiros que desmatavam a região
com o intuito de obter espaço para a criação de gado vacum e cavalar contrariava em muito os preceitos
da exploração daquelas terras. Alheios às informações que circulavam sobre o potencial mineralógico
e, sobretudo, das riquezas das árvores e de determinadas plantas, muitos colonos desmatavam sem
nenhum tipo de controle.

Para remediar tais problemas, em janeiro de 1800, o governador do Maranhão encaminhou


um ofício ao governador do Piauí informando-lhe das determinações do Ultramar de não se queima-
rem ou destruirem as matas que, porventura, tivessem as plantas nativas denominadas de Quina do
Piauí.

Por ordens expedidas em Ofício do Exmº Ministro do Estado dos Negócios Ultrama-
rinos com a data de 19 de setembro me determina o príncipe Regente Nosso Senhor
se não cortem, queimem nem por modo algum se devassem as matas dessa capitania,
onde houverem árvores de quina: o que em consequência V. Majestade assim fará
executar com a mais severa observância. Ao bacharel Vicente Jorge Dias Cabral in-
cumbo a compra de algumas produções do Piauí, pedidas pelo Ministério, para cuja
despesa vão ordens da junta da fazenda ao provedor desse governo, e recomendo
a V. Majestade haja de auxiliá-lo eficazmente em todas as comissões de que ele vai

369 Segundo o Mapa da Exportação dos produtos da cidade de São Luís do Maranhão do ano de 1800, o comér-
cio envolvendo algodão, arroz, madeiras e drogas do sertão fechou o ano com o valor de 3:366#079 réis. Algo
bastante positivo, caso comparemos com 2:195#55 reis advindos da importação de produtos e manufaturas
vindas, sobretudo, de Lisboa, de alguns portos do Brasil, da Guiné e, por fim, de outras nações estrangeiras.

816
encarregado, não só dando-lhe prontos socorros, mas também as instruções que lhe
procederem ser úteis370.

Quando recebe o comunicado do ofício, o naturalista ainda executava sua viagem científica
pela capitania do Piauí. Não demorou muito para Vicente Jorge Dias Cabral e Joaquim José Pereira
enviarem ao governador do Maranhão as primeiras amostras coletadas na expedição.

No oficio, datado de setembro de 1800, os naturalistas encaminham ramos de plantas e suas


descrições botânicas, além de um canudo contendo desenhos das plantas coletadas.

IHmº Ex. Sr. No caixote n. 5 com a marca D achará V. Ex. um canudo de lata
incluindo os desenhos, Ramos desejados e desenhos botânicos das plantas de que
fala o Bacharel Vicente Jorge dias Cabral no ofício junto, a cujo respeito só se me
oferece fizera V. Ex. 1. Que o dito bacharel reduzindo as quatro diferentes espécies de
volume (Velame), ao novo gênero: administer: ignorava como agora vi na memória
de Manuel Arruda da Câmera sobre a cultura dos algodões, nota 2. à pág. 28 ter este
naturalista criado de uma delas o gênero, a que deu o nome de: breitera purgans:
pelo que será justo comparar a descrição de Manuel Arruda para ver com qual das
referidas espécies coincide. 2. Que do ofício 6 de Vicente Jorge Dias Cabral se conclui
verificada e antecipada reflexão que Sr. José Mariano Veloso fez seu na pág. 160 da
Quimografia Portuguesa. No mesmo caixote vão também dois canudos de lata com
amostra de Salitre, mencionado na carta do vigário de Valença o padre Joaquim José
Pereira, e o mais que consta de outras 8 do supradito Bacharel. Segundo os últimos
avisos deste estava esperando as remessas em grande do salitre, linho ou bita croa,
e casca da denominada quina, para irem no comboio, as quais se chegarem a tempo
as mandarei embarcar.Deus guarde a V. Ex. São Luís do Maranhão 25 de setembro
de 1800. IHmº Ex. Sr. Dom Rodrigo de Souza Coutinho. D. Diogo de Souza. O.p.
No canudo n. 6 consta a supracitada marca vão às raízes das espécies de velame, no
supracitado caixote n, 5 mais duas amostras de linho de Malva, que chegava depois
de fechada o caixão n. 4.371

Além do interesse pelas riquezas do reino vegetal, havia por parte da administração portuguesa
uma curiosidade pela fauna. A partir do municiamento dos viveiros das quintas e jardins botânicos
do Reino, plantas e animais (vivos ou empalhados) seriam enviados para Lisboa com o objetivo de
preencherem os espaços vazios do Museu de História Natural do Palácio da Ajuda e de comporem
uma simulação do ambiente natural presente na colônia.

Assim, dentre os animais enviados a Portugal por Dias Cabral estavam pássaros de grande e de

370Ofício para não deixar queimar ou destruir as matas ou verem árvore de Quina. APEM. Registro de Corres-
pondência do Governador e capitão-general do maranhão com o Governador e capitão-general do Maranhão/
Piauí. Livro 49.
371Ofício da remessa de um canudo de lata com os desenhos, ramos desejados e descrições botânicas. APEM.
Correspondência do Governador e capitão-general com o Secretario dos Negócios Ultramarinos e diversas
autoridades da Metrópole. Livro 285.

817
pequeno porte372 e um pequeno jacaré que o governador do Maranhão o conservava “vivo a perto de
três meses só com tratamento de lhe renovar água de dois em dois dias, e que pode ser dure aí muito
tempo, e cresça, lançado em algum lago.”373As péssimas condições das gaiolas a bordo dos navios, a
escassez de alimentos e o desconforto da travessia marítima causavam muitas mortes e, em caso de
sobrevivência, a viagem os deixava bastante debilitados para viver em um habitat adverso.

As maneiras pelas quais ambos os naturalistas encaminham esses exemplares, separando em


caixas e numerando cada espécie encontrada e os descrevendo a partir de um olhar próprio do via-
jante-colono, mostra, ao mesmo tempo, as peculiaridades que cada naturalista construía a respeito da
técnica a adotar na classificação e empalhamento dos animais, sem necessariamente perder o diálogo
comparativo com outros viajantes e seus respectivos tratados descritivos, a exemplo quando se refe-
rem aos tratados de Manuel Arruda Câmara sobre a cultura do Algodão cujos demais naturalistas
tomaram como um guia importante para catalogação da fauna e da flora374.

Clima e paisagem a serviço das conquistas


Impregnado pelo espírito ilustrado, Vicente Jorge Dias Cabral propõe um modelo investiga-
tivo da flora e da fauna em perspectiva comparada. Estreitando mundos e encurtando distâncias, o
naturalista voltava-se para a variedade do clima como elemento potencializador do desenvolvimento
econômico das colônias e das práticas agrícolas mais rentáveis do comércio ultramarino. Por simetria
climática, o sucesso de uma prática agrícola no México, na China ou na Índia poderia perfeitamente
adaptar-se ao Brasil, desde que houvesse harmonia nas suas condições climáticas. Para Dias Cabral,

A diversidade dos climas põe (sic) em contribuição os povos vizinhos e mais ainda
os remotos, cujos climas diversificam tanto, que nunca se naturalizam em outros, ou
que quando muito depois de longos trabalhos cresce com pouca utilidade servindo
tão somente de recreio aos curiosos. Esta variedade de climas obriga aos homens
a procurar nos países remotos os supérfluos deles, que falta absolutamente no seu
país. A laranjeira da China (Citrusaurantiumchinensis) que por infinitas maneiras
tem variado no Brasil, jamais se tem naturalizado no Norte da Europa, e apenas se
conservam vivas sem produzir fruto nas estufas dos jardins nas principais do Norte
da França. Igual sorte tem a bananeira (Musa sapientum, M. Paradisaica) que são in-
dígenas da América; mal produzem em Portugal e de nenhuma sorte nos países frios.
Assim as plantas do gênero Bromélia e outras dos climas quentes entre os Trópicos.
Os povos do clima Índico, que compreende os lugares situados debaixo da zona
tórrida não gozam das mesmas produções, que os do clima egípcioso e arábico que
compreende os lugares aonde o calor é fervido e as áreas ardentes: nem os do clima
Austral desde a Etiópia até o Cabo da Boa Esperança se jactam das produções que
goza a parte Meridional da Europa ver Portugal, Espanha, e as províncias meridionais
da França a Itália. Em vão, pois se cansaria um Estado em querer, que dentro do seu
372Consta a S. majestade pala secretaria de Estado para a recomendação de remessa de pássaros para os vivei-
ros das quintas de Sua Majestade. APEM. Livro. 13, 1784-1787.
373 Ofício da remessa de uma erva Linhosa e outra de Óleo Merim. APEM. Correspondência do Governador
e capitão-general com o Secretario dos Negócios Ultramarinos e diversas autoridades da Metrópole. Livro 285.
374 PRATT, M. L. Os olhos do império. Relatos de viagens e transculturação. São Paulo: Edusc, 1999; MELLO,
J. A. G. de (Org). Manuel de Arruda Câmara: obras reunidas. Recife: Fundação e Cultura da cidade do Recife,
1972.

818
território houvesse todas as produções exóticas de climas inteiramente diversos, para
que os seus habitantes não tivessem necessidade de ir procurar o supérfluo de climas
remotos.

Diante dessa compreensão da natureza, Dias Cabral conecta regiões distantes, como o Piauí, o
México Colonial e as Índias a partir das suas experiências comerciais com a Cochonilha, um pequeno
inseto presente nos cactos e em algumas figueiras da Índia, que no processo de extração produz um
corante natural utilizado na tinturaria de sedas e panos.

O inseto depois de chegar ao estado de imagem revelada ou de perfeição (a) durão


pouco tempo. Parece que então já não são mais destinados para outro fim, que o de
perpetuar a sua espécie. Assim os machos, fecundadas as fêmeas, ficam languidos
sem comer e pagam morrendo logo o tributo a natureza. As fêmeas não sobrevivem
mais que o tempo necessário para de pôr os ovos ou os pequenos filhos375.

Sabendo bem explorar, a Cochonilha poderia render ao Império português vultosos recursos
no mercado de tinturaria376. Para isso, bastaria à administração portuguesa explorar os chamados cac-
tos Coroas de Frade tão abundantes na capitania do Piauí e que são, na maioria das vezes, empregados
na criação de gadoe úteis no tempo da seca: “comem, arrancando caules com as unhas os espinhos
da planta e assim passam muitos dias sem beber água”. A criação do inseto entre os colonos do Mara-
nhão e Piauí ajudaria na redução do número de cortes das árvores reais, uma vez que o inseto por ser
hospedeiro das cactáceas ou das figueiras em nada forçava o desmatamento.

Na visão do naturalista, o desperdício nos domínios de Portugal contrastava com o preparo e


cuidado que os mexicanos tinham com a extração e comercialização do produto. De acordo com Dias
Cabral,

Os Espanhóis tiram vantajosos interesses deste conhecimento fazendo como um mo-


nopólio nacional com o comércio da Cochonilha, sem concorrência de outra Nação,
que até o presente tenha estabelecimento igual. Em 1736 transportaram a Europa ano
comum 880$ arráteis de Cochonilha cultivada, menos um terço que era brava; o que
tudo monta a 15 milhões moeda de França ou 8 milhões de Florins da Holanda377.

Segundo ainda Dias Cabral, os mexicanos utilizavam esse pequeno inseto para a extração de
um importante corante, o nochetztli (sangue da terra), assim denominado na língua nativa. A co-
chonilha era tão importante para o comércio espanhol que recebeu por parte da Coroa um cuidado
375Colleção das Observações dos produtos naturais do Piauhi. p.15
376 FERRAZ, Márcia H. M. “A rota dos estudos sobre a cochonilha em Portugal e no Brasil no século XIX:
caminhos desencontrados”. Quim. Nova. Vol. 30. Nº 4, 1032-1037, 2007.
377Colleção das Observações dos produtos naturais do Piauhi. p.14.

819
estratégico e sigiloso na manutenção de qualquer tipo de informação relacionada a sua produção e
comercialização.378

Bernardino de Sahagú, em sua História general de las Casas de Nueva España, foi, por volta
do século XVI, o primeiro a referir-se à Cochonilha. Contudo, por questões de monopólio comercial,
o governo espanhol proíbe a circulação de quaisquer instruções sobre os mecanismos de criação do
inseto, os modos de fabricação do corante e sua consequente produção no ramo da tinturaria. A
ideia era manter em singelo um lucrativo comércio que na sua totalidade era de exclusividade dos
espanhóis.

Não era de estranhar, portanto, que os segredos por trás da cochonilha atraiam a atenção
de outras potências do mundo Atlântico, em especial franceses e portugueses. Na segunda metade
do século XVIII, o botânico francês Nicolas-Joseph Thiéry de Menonville empreende uma viagem
ao Novo Mundo na intenção de descobrir os segredos da criação da Cochonilha e produção do seu
corante379. Ao desembarcar em São Domingos, domínio francês, Thiéry de Menonvile segue destino
para Havana e,após um curto período, recebe a permissão do governo espanhol para catalogar
espécimes da flora e fauna das cidades de Theguacan e Guaxaca, no México colonial380. Sua estadia
em terras mexicanas lhe renderia o conhecimento das técnicas de criação, o preparo do corante e o
processo de produção da tinta.

Como resultado dessa viagem, em 1786, membros do Círculo dos Filadelfos, em São Domin-
gos, publicam o Traité del aculture dunopal et de l’education de la cochonilha dans lês colonies fran-
ceises de l’Amerique, precede d’um Voyage a Oaxaca. Anos depois, em 1799, parte do texto de Thiéry
de Menonville será traduzida para o português e, um ano mais tarde, Frei José Mariano da Conceição
Veloso publicará o texto em sua íntegra no livro O Fazendeiro do Brasil381.

O próprio religioso chegaria a afirmar na introdução do livro que sua função no mundo por-
tuguês seria a de tradutor e disseminador das obras que porventura viessem a facilitar os planos de
crescimento comercial do Império português382. Em grande medida, a importância alcançada pelo
religioso deve-se a Rodrigo de Sousa Coutinho, que ao ser empossado no cargo de ministro das
Colônias e da Marinha, em 1796, empreenderia uma verdadeira política de incentivo à agricultura
378 Para um balanço acerca dos usos da cochonilha e da utilização do corante do inseto ao longo da história e
sua aplicação no mundo da indústria têxtil, ver BARANYOVITS, F. L. C. “Cochineal Carmine: an ancient dye
with a modern role”. Endeavour, Nem Series. Volume 2, nº 2, 1978. p. 86. Agradeço ao Professor do curso de
Química/UFPI, José Machado Moita Neto por indicar artigos da área de química a respeito da cochonilha e,
claro, por apontar caminhos.
379 Sobre as disputas e as polêmicas cientificistas envolvendo viajantes e suas respectivas produções literárias,
ver, entre outros, PAREDES, Rogelio C. “Relatos imperiais: a literatura de viagem entre a política e a ciência na
Espanha, França e Inglaterra (1680-1780)”. Almanack. Guarulhos, nº 06. P. 95-109, 2º Semestre, 2013.
380 FERRAZ, Márcia Helena Mendes. “A rota dos estudos sobre a Cochonilha em Portugal e no Brasil no sécu-
lo XIX”. Química Nova, Vol. 30, nº 4, 2007.p. 1033.
381 VELOSO, Frei José Mariano da Conceição. O Fazendeiro do Brasil, cultivador melhorado na economia ru-
ral dos gêneros já cultivados, e de outros, que se podem introduzir; e nas fabricas, que lhe são próprias, segundo
o melhor, que se tem escrito a este assunto. Rio de Janeiro: Tomo II, Parte III. 1800.
382 Sobre a circulação dessas obras científicas no Maranhão oitocentista, ver. GALVEZ, Marcelo Cheche. “Sa-
beres e impressos, correspondências e expedições científicas: a capitania do Maranhão e o Reformismo Ilustra-
do na virada para o Oitocentos”. Outros Tempos, v. 11, nº. 18, 2014.p. 119-136.

820
tropical, recrutando naturalistas e bacharéis das mais diversas áreas para mapear as potencialidades
econômicas da colônia383.

Frei Veloso ficaria responsável pela produção e disseminação das obras voltadas ao mundo
agrícola, comercial e de novas técnicas industriais384. Na mesma época, Hipólito José da Costa Pereira
seria enviado aos Estados Unidos como o objetivo de investigar as mais diversas produções agrícolas em
execução pelas nações estrangeiras no Novo Mundo385. Na bacia amazônica, nos limites territoriais com
a Espanha, Alexandre Rodrigues Ferreira empreende sua Expedição científica coletando espécimes,
pesquisando ervas e etnografando a vida dos indígenas386. No Brasil, Manuel Arruda da Câmara rea-
lizará um levantamento mineralógico de uma considerável extensão territorial, indo da capitania de
Pernambuco até a Paraíba, Piauí e Ceará. Já Joaquim Veloso de Miranda desenvolvia suas análises de
botânica nas Minas Gerais. Outros não hesitariam em atravessar o Atlântico para desenvolver seus
estudos de botânica e geologia na África e nas Índias, como assim o fizeram Francisco José de Lacerda
e Almeida, Joaquim José da Silva, João da Silva Feijó e Manoel Galvão da Silva. Todos com formação
acadêmica na universidade de Coimbra e discípulos de Domingos Vandelli.

Diante dessa postura, Frei Veloso não só reproduziria o trabalho de Triéry de Menonville,
como reservaria uma boa quantidade de páginas aos escritos de Claude-Louis Berthollet, químico
francês responsável por avaliar as observações de Menonville. Frei Veloso divulga as memórias de
Berthollet sobre a cultura da urumbeba e criação do inseto na esperança que as informações contidas
sejam “espalhada(s) pelo Brasil e, particularmente, pelos povos de beira-mar”387. No frontispício da
obra, Frei José Mariano Veloso representou esse desejo português de apoderamento desse precioso
produto agrícola a partir da reprodução de uma imagem que mescla elementos do mundo hispano-
-português, como o cacto Nopal (Opuntia cactos) e a Figueira - plantas hospedeiras da cochonilha e
amplamente utilizadas pelos produtores mexicanos na criação da cochonilha -, a luta entre a águia e a
serpente e, ao centro, um galhardete cuja representação simbólica remete ao universo das conquistas
portuguesas no ultramar.

Por certo, a imagem não nasce de maneira fortuita no imaginário colonial do religioso. Seu diá-
logo com a cultura mexicana será, provavelmente, mediada por leituras e visões de mundo produzidas
383 Sobre a primazia de Rodrigo de Sousa Coutinho na re/estruturação da política portuguesa nos domínios do
ultramar, ver. PEREIRA, Magnus Robert de M. D. “Rodrigo e Frei Mariano. A política portuguesa de produção
de salitre na virada do século XVIII para o XIX”. Topoi (Rio J)., Rio de Janeiro, v. 15m n. 29, 2014. p. 498-526.
384 LUNA, Fernando J. “Frei José Mariano da Conceição Veloso e a divulgação de técnicas industriais no Brasil
colonial: discussão de alguns conceitos das ciências químicas”. História, Ciência e Saúde-Manguinhos [online].
2009, vol.16, n.1. p. 151.
385 DEAN, Warren. O ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 1996.p. 137. Ver também LOSADA, Janaína Zito. “Entre mamutes e acácias: viagem e natureza
em Hipólito José da Costa Pereira (sec. XVII/XIX)”. Fênix - Revista de história e estudos culturais, n.3, 2005.
386 RAMINELLI, Ronald. “Do conhecimento físico e moral dos povos: iconografia e taxionomia na Via-
gem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira”. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, v. 8. (suplemento),
2001.p.969-992; COSTA, Maria de Fátima. Alexandre Rodrigues Ferreira e a capitania de Mato Grosso: ima-
gens do interior. História, Ciências Saúde- Manguinhos, v. 8. (suplemento), 2001.p.993-1014.
387 VELOSO, Fre. José Mariano da C. Memória sobre a cultura da Urumbeba, e sobre a criação da cochonilha
extraída por M. Berthollet das observações feitas em Guaxaca por M. Thiery de Menonville, e copiada do V
tomo dos Annaes de Chymica. Lisboa, Oficina Tipográfica Simão Thaddeo Ferreira, 1799.

821
por religiosos que visitaram o Mexico colonial. A produção de imagens teria, portanto, o propósito
de descrever e representar o universo religioso asteca a partir da produção de pinturas que mesclavam
elementos locais ao tempo em que as relacionava com questões significativas da cultura européia388.
Nesse jogo das imagens, eminentemente mesclado/mestiço, no dizer do historiador Serge Gruzisnk, o
resultado seria a percepção de uma história colonial para além das dicotomias que reduzem os sujeitos
históricos da época entre colonizadores e colonizados.

A preocupação dos religiosos residia, portanto, em impor uma catequese mediante a cons-
trução de imagens sacras, reforçando com isso uma cultura cada vez mais ocidental e cristã entre os
nativos. Estes, por sua vez, respondiam produzindo imagens com representações peculiares, demons-
trativas de uma interpretação de mundo própria dos nativos e que guardava suas raízes na cultura
pré-hispânica, mas, agora, mescladas com componentes culturais dos europeus e mexicanos389.

Juan de Tovar (1546-1626), missionário jesuíta, mostrava-se fascinado pela cultura asteca e,
durante seus contatos culturais, representaria tal fascínio em imagens, nas quais a vida cerimonial, os
ritos e as ligações que os astecas construíam com animais dariam o sentido a sua produção artística.
Em uma de suas imagens, a águia é representada no alto de Cacto Nopal devorando um pequeno
pássaro e ao seu entorno perfilam os governadores astecas Mexitzin – representado pelo coelho – e
Tenoch – simbolizado pelos cactos com flores. Na parte superior, no canto direito, a reprodução de
um pendão, a exibir cincos pontos entrecruzados por duas setas simbolizando Copil, filho de Mali-
nalxochitl.

Durante os séculos XVI e XVII, outros missionários, como Bernardino de Sahagún, em obra já
citada, e Francisco Hernandez (Historia de las plantas de Nuevo Espanha) produziram escritos sobre
o cultivo e comercialização da cochonilha nas mais diferentes cidades pré-hispânicas, como Oaxaca,
Guerrero, Chiapas, Puebla e Tlaxcalas390. Não seria demais supor que Frei Veloso e demais agentes
coloniais envolvidos no comércio da cochonilha tivessem conhecimento desse tipo de literatura. O
próprio Dias Cabral, discorria sobre a utilização da cochonilha entre os mexicas com bastante desen-
voltura, registrando os povos que as utiliza, o tempo da colheita, a quantidade de mão de obra empre-
gada e as cifras anuais da produção e de comércio da tinta.

A pintura retrata, portanto, o universo mitológico asteca e a busca incessante pela terra sagra-
da (Tenochtitlan) revelada através dos cincos pontos presentes no pendão que enunciam a ideia de um
mundo dividido em cinco partes e cuja centralidade demarcaria o local de fundação da cidade asteca.

É provável que Vicente Jorge Dias Cabral e José Joaquim Pereira tivessem ciência da circulação
desses livros pelo mundo Atlântico português. Em uma passagem do livro, O fazendeiro Brasileiro,
Frei Veloso mostra-se conhecedor das muitas Expedições Científicas em terras brasílicas e o sucesso
388 Sobre a produção de imagens no México colonial, ver GRUZINSKI, Serge. A Colonização do Imaginário:
sociedades indígenas e ocidentalização no México espanhol. São Paulo: Companhia das letras, 2003. p. 59;
GRUZINKI, Serge. A guerra das imagens: de Cristóvão Colombo a Blade Runner (1492-2019). Trad. Rosa F.
d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
389 GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das letras, 2003
390 VIRUEL, Luis Alberto Arrioja Días. “La producción de grana Cochonilha em Oaxaca a principios del siglo
XIX”. IN_ Archivo General de La Nación. Boleín 5. 6ª época. Julio-setembro, 2004. pp.35-66.

822
de alguns tratados de ampla circulação no meio científico, tanto na área da Agricultura como da En-
tomologia Brasiliana.

A mim só me pertence copiar, o que acho escrito a seu respeito, que é a gloriosa
tarefa, que V.A.R. me impôs; e, fora disto, como V. A. R. fomenta este gênero de apli-
cações, além de terem já aparecido alguns gênios observadores em alguns ramos da
Agricultura, como o Doutor Arruda [Manuel Arruda da Câmara] sobre Algodões,
o capitão José Gomes Caetano sobre o Açúcar, João Manso Pereira sobre as águas
ardentes, e muitos outros produtos naturais, aparecerão outros, que examinarão de
perto a Entomologia Brasiliana, onde ainda espero que hajam de fazer descobertas
magníficas não só em plantas, como a do Doutor Arruda.391

Ao discorrer sobre a criação da Cochonilha no México colonial, Dias Cabral manifesta um


latente conhecimento acerca dos modos como o inseto se desenvolve nos domínios de Espanha; pon-
tuando, inclusive, as preferências dos mexicanos pelas figueiras das Índias por considerarem a “figuei-
ra de flor de cor de sangue” produtora da melhor tinta, ao contrário dos cactos, chamados de Nopal
pelos mexicanos. Também era de conhecimento do pesquisador as três fases das colheitas da cochoni-
lha realizadas pelos os astecas e como estes lidavam, em cada ciclo da colheita, com os insetos grandes
e pequenos, machos e fêmeas392.

Nesse exercício de visualizar a experiência mexicana e logo depois lançar seu olhar às condi-
ções naturais do Piauí, Dias Cabral propusera a produção da cochonilha como a maneira mais ren-
tável de exploração da terra e do clima entre seus colonos. De acordo com a naturalista, a cochonilha
silvestre – também conhecida como Cochonilha Brava - além de encontrada nos próprios cactáceos
da capitania do Piauí, não exigia, por parte dos seus colonos produtores, um manejo do solo e cuidado
especiais com a sua criação; bastaria apenas que os mesmos controlassem as zonas de pastagem dos
gados de modo a não comerem os cactos naturais. Com essas observações, a produção da cochonilha
viria de forma natural e sem muito esforço393.

É praticamente consenso entre os manuais de agricultura e nos relatos memorialístico


produzidos pelos naturalistas da época essa ênfase no caráter da produção espontânea do inseto em
terras brasílicas. Mais do que isso, introduzir o costume da criação da cochonilha entre os colonos
do Maranhão e do Piauí resultaria também no controle da derrubada das grandes árvores, algo que
preocupava os agentes da administração colonial. Em O fazendeiro do Brasil esse pensamento era
assim explicitado:

Não se precisa, para a cultura dessa estimável planta, derribarem-se os corpulentos e

391 VELOSO, Frei José Mariano da Conceição. O Fazendeiro do Brasil, cultivador melhorado na economia ru-
ral dos gêneros já cultivados, e de outros, que se podem introduzir; e nas fabricas, que lhe são próprias, segundo
o melhor, que se tem escrito a este assunto. Rio de Janeiro: Tomo II, Parte III. 1800.p.10.
392Colleção das Observações dos produtos naturais do Piauhi. p.19.
393Id. Ibdem. p.25.

823
duros lenhos; não rasgar as terras, regá-las e amanhá-las: ela nasce espontaneamente
pelos arneiros, cômoros de praias e pelas terras mais estéreis, por ter a natureza
das plantas parasitas; nascido elas, se deve supor nascido o entretinho essencial a
nutrição do aminalejo ou para o dizer melhor, tudo quanto se requer para se fazer
esta animada tinta, pois que, cravado em um ponto da sua superfície, aí se ceva, e
nos comunica no seu cadáver uma bela grã, ou carmesim tão excelente, que tem
feito esquecer todas as outras da antiga Europa, que faziam a magnificência dos seus
Soberanos394.

Ao narrar suas primeiras experiências de encontro com as cochonilhas do Piauí, o próprio


Dias Cabral construiria um argumento parecido ao de Frei Veloso. Havia, no dizer do naturalista, em
todo o continente do sertão do Piauí a cochonilha brava; tanto nos “terrenos de agreste e de mimoso,
como nos campos descobertos e de caatingas, arenosos e mármores, de pedregulho e altas serras, ain-
da no mais eminente delas”.395Conta Dias Cabral que, ao atravessar a caatinga próxima à ribeira do rio
Coroatá, “viu a Opuntia, que digo, ou palmatoria comprida de 7, 8 e 9 articulações quase ovais, muitos
espinhos duros e penetrantes, como alfinetes; o tronco simples para via de regra, ou com poucas ra-
mificações laterais”396.

Para Dias Cabral, a palma comprida de “flor encarnada” é a mais típica da capitania do Piauí
e pode ser encontrada na Serra de São Pedro, próximo à capitania do Ceará e divisa com a freguesia
de Marvão, e, por toda parte sul, notadamente nas regiões de Coroatá, Jerumenha e limites frontei-
riços com a Bahia e Pernambuco. Muito embora a cochonilha fosse cultivada em toda a capitania do
Piauí, Dias Cabral situava apenas a parte sul como área propicia a sua produção. Mesmo assim, a área
produtora começaria na freguesia de Parnaguá até Oeiras, com 120 léguas de distância397.

O que a capitania do Piauí tinha para exploração da cochonilha, faltava nas terras do Mara-
nhão para a exploração das mesmas. As matas fechadas e de grande porte do centro-sul do Maranhão
mostravam-se como empecilho ao crescimento da cultura do inseto. Mesmo em condições adversas,
a cidade de São Luís poderia explorar o “gênero mais precioso no comércio”. Para tanto, a saída seria
exportar as cactáceas chamadas de Palmatória da cidade de Oeiras a fim de embelezar o “jardim e
passeio público, que se projeta construir naquela Ilha, e que as terras já exaustas incapazes de produzir
algodão e arroz se ocupassem utilmente com a cochonilha”398.

Segundo o naturalista, a experiência dos Astecas com a “palma de flor encarnada” demonstra-
va que o inseto do Piauí produz uma tinta de melhor qualidade, enquanto que os insetos das Minas
Gerais e Bahia produziriam uma tinta de condição bastante inferior. Tendo, portanto, clima e vege-
tação propícios à cultura da cochonilha, bastava a técnica para criação do inseto e uma mudança nos
costumes por parte dos colonos, que, via de regra, aplicavam toda sua fortuna apenas na criação de
394 VELOSO, Frei José Mariano da Conceição. O Fazendeiro do Brasil, cultivador melhorado na economia ru-
ral dos gêneros já cultivados, e de outros, que se podem introduzir; e nas fábricas, que lhe são próprias, segundo
o melhor, que se tem escrito a este assunto. Rio de Janeiro: Tomo II, Parte III. 1800.p.10.
395Colleção das Observações dos produtos naturais do Piauhi. p. 22.
396 Id. Ibdem. p. 25.
397Id, Ibdem. p.33.
398Id. Ibdem. p. 25.

824
gado vacum e cavalar. O apelo por parte do naturalista à criação da cochonilha era assim construído:

Façam-se as plantações das palmatorias com distâncias de andar livremente um


homem por entre elas, preferindo-se na cultura as palmatorias alta, de que falei
defendam-se com cercas da entrada de gados, procure se o sítio adequado, se
necessário for abrigado dos grandes ventos; pratiquem-se as regras já indicadas na
plantação, colheita e guarda da cochonilha; e eu afianço a utilidade dos lavradores
com as posteriores observações, que logo indicarei.

Nem espante ao lavrador a miudeza do trabalho na cultura da cochonilha, lembre-se


que um pequeno terreno cultivado produz muitas libras, e que uma só libra de co-
chonilha vale mais que quatro bois de cinco anos.

Convencer os colonos a investir na produção da cochonilha não seria tarefa fácil. Era neces-
sário, primeiramente, convencer os fazendeiros e lavradores locais de que mais lucrativo no mercado
europeu que o comércio do gado vacum e cavalar era a produção da palma, a coleta do inseto e a ex-
tração da sua tintura. Além do mais, a reduzida quantidade de terra para o cultivo da planta e, o mais
importante, o interesse crescente do comércio Atlântico- envolvendo lãs, sedas e algodão- na tinta da
cochonilha deixavam a comercialização do produto bem mais atrativa do que os negócios envolvendo
carnes, couros e selas.

Além desses pontos, o naturalista apostava mesmo no fato da cultura do inseto desenvolver-se
paralelamente a outras atividades agrícolas ou extrativistas. Assim, através de um sistema de rodízio
de práticas agrícolas, o colono poderia criar, por exemplo, o bicho de seda e/ou possuir “centenas de
cortiços de abelhas cera amarela de que há abundante nesta capitania”. De acordo com Dias Cabral, por
onde andavam os fazendeiros, manifestavam interesse em cultivar o inseto; no entanto o próprio na-
turalista não tinha certeza desse apoio a “menos que o povo deixando a rotina, em que foram criados,
se ocupe com grandes plantações da cochonilha”399.

Para o naturalista, a ociosidade dos colonos era o grande inimigo do sertão e muito dos seus
habitantes sofriam “com a fome e não plantam o pão que os pode sustentar, nem a árvore de fruto para
refrigério”400. Para remediar tal situação, Dias Cabral buscava ressaltar o trabalho do colono/lavrador
como o único instrumento capaz de transformar a realidade econômica da capitania do Piauí através
da utilização de práticas agrícolas e pastoris mais avançadas. Em momento algum, existia por parte
do naturalista uma associação causal entre ociosidade dos colonos/lavradores e a utilização da mão
de obra escrava nas propriedades. Na verdade, o assunto escravidão seria totalmente negligenciado na
escrita do naturalista, mesmo sabendo ele que a escravidão seria um dos elementos potencializadores
da produção da cochonilha no Piauí, uma vez que para se alcançar alta lucrativa com a cochonilha, os
produtores teriam que associá-la ao uso da mão de obra escrava.

Na seção de agricultura do Jornal O Patriota, do ano de 1813, com a matéria intitulada Memó-
399Id. Ibdem. p. 14.
400Id. Ibdem. p. 25.

825
ria sobre a Cochonilha e o método a propagar oferecida aos lavradores Brasileiros, por um patriota
zeloso e amante da felicidade pública, essa questão envolvendo o trabalho escravo reaparece para
justificar o sucesso daquele comércio entre os lavradores do Brasil, que sendo “úteis e si e à Pátria,
pois não pode haver uma planta de menos trabalho, e mais lucrativa a que qualquer terreno sirva, e
que possa melhor servir de herdade, e que nem lhe seja necessário tanta escravatura, para fazer uma
fortuna aparente”401.

Não haveria, portanto, motivos para qualquer tipo de “inveja do México”, uma vez que as
condições naturais colocavam o Brasil como propício à cultura da cochonilha, “um princípio certo
de riqueza para a Nação Portuguesa, e especialmente para o Piauí, cujo comércio não excede a 30.000
bois anuais e menor número de cavalos novos”.

Dias Cabral não cansava de afirmar que a grandeza de um império se faz no seu interesse pela
agricultura. A agricultura, nas suas palavras, torna-se a base do comércio e sobre ela firmam-se as
fábricas onde os braços de seu povo devem ser empregados e onde há trabalho, seja no campo ou na
cidade, na metrópole ou na colônia. Com esse raciocínio, o naturalista conseguia abarcar os quatro
cantos do mundo e construir um argumento conectando histórias de povos distintos que se fizeram ou
se pretendiam império como a Roma Antiga -que associou terra, agricultura e expansionismo à moda
dos generais romanos –ou os esforços dos imperadores da China em arregimentar lavradores a fim
de semear trigo e com isso dispor de mais sacrifícios aos deuses. Tomando como exemplo sua época,
estavam em destaque as políticas mercantilistas francesas do ministro Jean Baptiste Colbert voltadas
à agricultura402.

Seria um erro colocá-lo apenas como um naturalista interessado na cochonilha, esquecendo


assim as potencialidades que porventura viesse a encontrar na diversidade dos três Reinos da Natu-
reza. A segunda parte das suas Observações trata especificamente dos sais e dos metais encontrados
no Piauí. Ao visitar vargens, lagos, lagoas e rios o naturalista descreve minuciosamente os tipos de
salitres, nitros e sulfatos de soda ou, como eram conhecidos, os sais de Glauber presentes naquele
ambiente. Todos tinham uma utilidade, seja para o fabrico da pólvora, vidros ou serventia médica,
como purgantes. Nenhum desses produtos chegaria a atrair a atenção do naturalista tanto quanto à
cochonilha. Mesmo assim, restaria a outro naturalista, frei Joaquim José Pereira, ajudante de Dias
Cabral e vigário da Freguesia de Valença do Piauí, o encargo de explorar os sertões do Piauí em busca
de tais minérios403.

Na competição pelo domínio das terras do Novo Mundo, Dias Cabral sabia da importância que
cada região possuía junto ao expansionismo português. Mais do que isso, se bem aplicada à política
administrativa, conhecendo as potencialidades de cada região, e concedendo benefícios aos colonos,
Portugal se transformaria numa grande potência ultramarina. Suas últimas palavras a respeito da
cultura do inseto são sintetizadoras desse sentimento:

401 O PATRIOTA, nº 4, Outubro, Rio de Janeiro, 1813.p.17.


402 Colleção das Observações dos produtos naturais do Piauhi.
403 BONATO, Tiago. O olhar, a descrição: a construção do sertão do nordeste brasileiro nos relatos de viagem
do final do período colonial (1783-1822). Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2010.

826
Eu me lembro em fazer reviver nesta capitania em favor dos Lavradores da cochoni-
lha o antigo privilegio de isenções concedidas aos seus habitantes, que serviram na
governança, serem eles os únicos habilitados para servirem nos cargos honoríficos
do Estado, e em qualidade de Oficiais de patente nos Regimentos de Linha e Mili-
cianos; pagar-se pela Fazenda Real toda a cochonilha que se colher por preço certo,
ficando com tudo livre aos Lavradores a vendê-la a quem por ela mais der, e não
pagar direitos nas alfândegas, finalmente conceder S. A. Real a mercê de habito de
uma das ordens militares aos Lavradores, que recolherem para ano de 100 libras de
cochonilha para cima.

Ao término da sua Expedição Científica, Vicente Jorge Dias Cabral voltaria à cidade de São
Luís. Pela quantidade de cartas e ofícios enviados a Portugal dando conta das espécimes naturais do
Maranhão e Piauí, acabaria por deixar de lado a função de advogado e passaria a exercer a função
de naturalista do Império Português encarregado, entre outras coisas, de catalogar espécies animas,
descrever árvores, revelar os saberes indígenas em trono das plantas medicinais e apontar, a partir
do olhar de dentro, do colonizador/lavrador, o caminho possível para uma efetiva colonização dessa
parte do Império português.

Para isso, sentia a necessidade de divulgar entre seus pares da cidade de Lisboa suas Obser-
vações em forma de livro, com o título de Opúsculos das Excursões filosófico-naturais404. Assim, em
março de 1803, Dias Cabral solicita desligamento por um ano da cadeira de retórica do Colégio de São
Luís e encaminha ao Príncipe Regente D. João o pedido formal para publicar a obra máxima de um
naturalista nos trópicos. Anos depois, veria o naturalista que o esforço no cultivo da cochonilha, assim
como de tantos outros, não vingaria no Brasil. De acordo com Warren Dean não se sabe os motivos
do fracasso, mesmo que alguns autores da época sustentassem a hipótese de uma suposta adulteração
do produto no Brasil. O jornal O Patriota, de 1813, vai mais além e sugere a falta de conhecimento das
técnicas de cultivo da cochonilha e de reprodução dos insetos405.

Seus planos buscavam, sobretudo, re/discutir a participação portuguesa no comércio Atlânti-


co, incentivando a introdução de novas formas agrícolas, o uso de plantas e sementes de outras partes
do mundo, além de estimular por meio de Expedições científicas a descoberta de outros produtos,
tanto vegetal como mineral, em especial, para este último, minérios salitrosos e nitratos, base para a
produção da pólvora. Para isso, as autoridades coloniais precisam resolver dois problemas. O primeiro
dizia respeito ao emprego da mão de obra escrava que, no Piauí, se estabelecia nas fazendas de
propriedades dos colonos particulares e nas antigas fazendas dos missionários da Companhia de Jesus
e, no momento, estavam em poder da Coroa portuguesa. A segunda contenda residia exatamente
na insconstância das comunidades indígenas locais que passavam muito rapidamente da condição
de aliados para rebeldes, de aldeados para índios fugidos, de protetor das fazendas a inimigos dos
curraleiros.

Com rigor e método, algo próximo aos desígnios de um campo do saber que se pretendia
tornar ciência, os empreendimentos conduzidos por esses viajantes-colonos de sistematização da
404Requerimento do bacharel Vicente Jorge Dias Cabral ao príncipe regente D. João, pedindo licença de um
ano para vir ao Reino publicar os seus “Opúsculos das Excursões Filosófico-naturais”. AHU-ACL-CU-009.
Caixa: 127, Doc.: 09557.
405 O PATRIOTA, nº 4, Outubro, Rio de Janeiro, 1813.p.12

827
natureza alcançariam o status de Viagens Philosophicas. No iluminismo português, as viagens e os
relatos de viagem obedeciam aos propósitos coloniais; associando reconhecimento territorial dos do-
mínios ultramarinos com aproveitamento econômico das potencialidades do reino. Assim, e diante
dos planos da política Pombalina, a consolidação da Ciência Natural e a consequente formação deEx-
pedições Científicas nas terras do Maranhão e Piauí só reforçavam o interesse da política portuguesa
em melhor conhecer e explorar aquela parte do Brasil.

Segundo o filósofo-naturalista, a natureza havia dividido as suas riquezas por todo o mundo;
por conseguinte caberia aos homens visitar semelhantes climas de “um pólo a outro facilitando a
distância imensa, depois que a barreira dos mares, que se supunha pôs fim às negociações e conter os
homens no seu terreno se considerou como caminho mais propício, deixada a navegação perigosa da
costa seguindo em pleno mar com a nova invenção da Bússola”. Diante dessa compreensão de funcio-
namento da natureza, Dias Cabral reinterpreta o mundo a sua volta, ligando regiões distantes, como o
Piauí, México Colonial e as Índias a partir das suas experiências comerciais e escravistas.

Entre bárbaros e fiéis: os índios do Brasil e os vassalos pernambucanos segundo a crônica


de Domingos do Loreto Couto (1757)
Natalia de Souza Miranda406∗

A crônica intitulada Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco, do beneditino Dom Do-


mingos do Loreto Couto, foi concluída em 1757. De acordo com o autor, membro da Academia Bra-
sílica dos Renascidos, tal crônica tinha por objetivo perpetuar as virtudes do “heróis pernambucanos”,
ignoradas em outras notícias do Brasil, e refutar “alguns erros e calúnias com que alguns autores, que
têm escrito do Brasil, mancharam a opinião dos nossos Índios e de algumas pessoas beneméritas, sem
mais fundamento que o de umas tradições tão suspeitosas quanto mal nascidas e falsas”407. A obra, no
entanto, permaneceu inédita até o ano de 1904, quando foi incluída por Manuel Cícero Peregrino da
Silva (1866-1956) em dois volumes dos Anais da Biblioteca Nacional408. Em que pese o esquecimento
a que foi sujeitado por mais de um século, o livro de Loreto Couto é um documento extremamente
rico e possibilita a reflexão sobre a prática letrada na conjuntura colonial. Nesse sentido, tentaremos
compreender Desagravos do Brasil à luz do ambiente acadêmico que se desenvolvia na América Por-

406∗ Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História Comparada – PPGHC/ UFRJ. Órgão de fomento:
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes. Professor orientador: Jorge Victor de
Araújo Souza.
407 COUTTO, Domingos do Loreto. Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco [1759]. Edição fac-simila-
da, Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1981. p. 7.
408 A obra foi editada pela Officina Typographica da Bibliotheca Nacional e publicada nos anais de número
XXIV e XXV. Posteriormente, fez-se uma edição em volume único, publicada também em 1904. Ambas as pu-
blicações, bem como os manuscritos digitalizados, estão disponíveis no Acervo Digital da Biblioteca Nacional.
<http://objdigital.bn.br/acervo_digital>. A edição utilizada para este trabalho é um fac-símilepublicado em
1981 pela Fundação de Cultura Cidade do Recife.

828
tuguesa setecentista, permeado pelo desejo de legitimar as elites locais, levando em consideração a
abordagem da figura do indígena no processo de construção da identidade pernambucana e da histó-
ria da América pelo autor.

Domingos do Loreto Couto era membro de uma ilustre família pernambucana. Em 1725, de-
vido à estreita relação entre sua família e a Ordem de São Francisco, foi enviado a Portugal para in-
gressar na Ordem dos Irmãos Menores. Sua passagem entre os franciscanos, porém, foi marcada por
uma série de conflitos, denúncias e processos contra suas “extravagâncias”, o que o levou a mudar para
a Ordem de São Bento – considerada menos rigorosa – em 1740. A mudança permitiu que Loreto
Couto mantivesse sua posição privilegiada na sociedade colonial409. No momento da conclusão da
obra, o beneditino havia recebido o cargo de Acadêmico Supranumerário da Academia Brasílica de
Renascidos, fato que indica algum prestígio ante a sociedade local. Em todo o livro, o autor procura
deixar claro tanto a sua posição de “nobreza” quanto a dos demais membros da elite pernambucana,
destacando suas virtudes e a honra de suas famílias, principalmente no que se refere à fidelidade à
Coroa e à defesa do território legítimo do Império Português. O esforço de Loreto Couto em aproxi-
mar-se de um tronco nobre da Corte portuguesa é um reflexo do sistema de funcionamento das socie-
dades de Antigo Regime, que a historiadora Fernanda Olival definiu como uma cadeia de mercês410.
Nesse sentido, o cronista buscava inserir-se na órbita de poder da Metrópole por meio da justificativa
de sua ascendência e de toda a estirpe das famílias da elite pernambucana, marcada pela miscigenação
com o “negro da terra”. Todavia, mais do que isso, na conjuntura em que foi escrita, a obra pode ser
entendida como uma resposta à possível perda de privilégios que as Reformas Pombalinas impuseram
sobre a alta sociedade luso-americana. Domingos do Loreto Couto procura demonstrar, então, o valor
do súdito pernambucano para a Coroa.

A compreensão desse processo parte do conceito de identidade forjada ou identidade fabrica-


da, desenvolvido pelo historiador Bruno Silva (2016). Esse autor sustenta a ideia de que as construções
identitárias realizadas pelos cronistas e genealogistas do século XVIII são “produto do entrelaçamento
das reivindicações de parcela letrada das sociedades coloniais”411 e não devem ser vistas como parte de
um movimento nativista que contraria a ordem estabelecida. Pelo contrário, os cronistas reafirmavam
os laços com a metrópole na medida em que consideravam a autoridade régia e o catolicismo como
aspectos fundamentais para a formação da sociedade, mas, simultaneamente, diferenciavam-se dos
súditos europeus, por meio de uma narrativa que demonstrava a honra dos antepassados nas lutas em
prol da Coroa. A construção do pernambucano feita por Domingos do Loreto Couto é compreendida,

409Os dados biográficos aqui citados são baseados no artigo do historiador pernambucano Bruno Kawai Souto
Maior de Melo, que estudou mais a fundo a vida, a genealogia e a questão em torno do processo de mudança
da Ordem de São Francisco para a Ordem de São Bento. Cf. MELO, Bruno K. S. M. de. Entre Franciscanos e
Beneditinos: o caso de Domingos do Loreto Couto (1696-1762). In:CLIO: Revista de Pesquisa Histórica. ISSN:
2525-5649 – n°. 34.1, Recife, 2016. pp. 207-226.
410OLIVAL, F. Um rei e um reino que viviam da mercê. In: F. OLIVAL, As ordens militares e o estado mo-
derno: honra, mercê e venalidade em Portugal (1641-1789). Lisboa, Estar, 2001. Apud. DeNIPOTI, Claudio;
PEREIRA, Roberto de M. Sobre livros e dedicatórias: D. João e a Casa Literária do Arco do Cego (1799-1801).
In: História Unisinos. v. 17, nº 3, setembro/dezembro, 2013. p. 258.
411SILVA, Bruno. Genealogias mazombas: castas luso-brasileiras em crônicas coloniais. Niterói: Eduff, 2016.
p. 20.

829
portanto, como defesa das particularidades regionais e uma tentativa de ressignificar a identidade lusa
na América. Essa construção, porém, não pode ser analisada de forma isolada, visto que se insere em
uma tendência intelectual que a historiadora Iris Kantor classificou como pensamento ilustrado bra-
sílico412, representado pela Academia Brasílica dos Renascidos.

O ambiente acadêmico no qual Desagravos do Brasil é produzido reflete o cenário de dis-


putas entre os interesses das elites locais e as reformas empreendidas pelo Marquês de Pombal413. A
Academia Brasílica dos Renascidos foi inaugurada em 1759, na cidade de Salvador, após o fracasso
da primeira tentativa de estabelecer uma instituição acadêmica para a escrita da história brasílica, a
Academia dos Esquecidos (1724-1725). A data escolhida para inauguração é representativa das in-
tencionalidades que perpassam a criação da instituição: dia 6 de junho, aniversário do Rei D. José I.
A escolha de uma data tão solene para a Monarquia reafirma a fidelidade dos acadêmicos brasílicos
à Coroa, bem como os insere na mesma lógica cerimonial das Academias da Metrópole414. A criação
da instituição acadêmica, bem como o desejo de demonstrar fidelidade a Portugal, refletido em seu
projeto intelectual, são duas faces do mesmo processo, cujo ponto central é a conjuntura de expulsão
da Companhia de Jesus de todo o território do Império Luso e a mudança do status civil dos índios.
O próprio diretor da Academia, José Mascarenhas Pacheco Pereira Coelho de Melo, era um enviado
especial do Marquês de Pombal para conduzir as reformas na América.

Em sua pesquisa sobre a historiografia acadêmica luso-brasileira no século XVIII, Iris Kantor
demonstra o impacto do Diretório dos Índios (1755-1757) e da expulsão dos jesuítas sobre a relação
entre as elites luso-americanas e a Coroa portuguesa, bem como o papel da Academia como media-
dora desse processo. O reconhecimento do índio como súdito de Portugal, previsto pelo Diretório,
igualou seu status civil ao da chamada “nobreza da terra”. Nesse sentido, afirma Kantor, “o debate
acadêmico em torno da promoção civil do índio pelas reformas pombalinas reivindicava da Coroa

412KANTOR, Iris. Esquecidos e Renascidos: historiografia acadêmica luso-americana, 1724-1759. São Paulo:
Hucitec; Salvador: Centro de Estudos Baianos/UFBA. 2004.
413Segundo o historiador Pedro Puntoni: “As políticas ilustradas do conde de Oeiras, futuro marquês de Pom-
bal, nos marcos de uma nova situação criada pelo Tratado de Madri (1750), procuraram incorporar defini-
tivamente as populações indígenas ao Império. As leis de junho de 1755, válidas inicialmente para o Estado
do Grão-Pará e Maranhão, resultaram no ‘Diretório Geral dos Índios’ de 7 de julho de 1757, que reformulava
a política da catequese indígena, praticamente liquidando as missões existentes. No ano seguinte, o vice-rei,
conde dos Arcos, foi comunicado da sua aplicabilidade no Estado do Brasil. A partir de então, os índios eram
declarados livres e sujeitos às leis comuns dos vassalos. As aldeias mais populosas foram alçadas em vilas com
governo político próprio, reduzindo-se, dessa maneira, o poder dos missionários. [...] Nesses termos, a ideia
de catequese dos índios, de salvação das almas e expansão da fé foi substituída paulatinamente pela ideia leiga
de ‘civilização’. A disjunção fundamental entre índios mansos e bravos, representada na classificação dos po-
vos autóctones em tupis ou tapuias e na formulação da noção de barbárie, que implicava a guerra justa, seria
substituída por uma nova política integracionista, que compreendia o Império como espaço da ‘civilização’, e
não mais como o orbe cristão. Pombal imaginava assegurar uma população razoável para a defesa e desenvol-
vimento da América portuguesa, o que implicava a abolição de todas as diferenças entre índios e portugueses
e o refreamento das guerras de extermínio.” Cf. PUNTONI, Pedro. A guerra dos bárbaros: Povos Indígenas e
a Colonização do Sertão Nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: Hucitec: Editora da Universidade de São
Paulo: Fapesp, 2002. – (Estudos Históricos; 44).
414 KANTOR, Iris. Op. Cit.. p.p. 103-116.

830
uma contrapartida que garantisse a diferenciação social das elites perante os novos súditos”415. Parece
pertinente, portanto, uma das hipóteses sustentadas pela historiadora paulista, que considera que a
Academia dos Renascidos tenha sido criada como um “fórum de negociações” para a crise estabele-
cida, um “canal de representação legítima das reivindicações e interesses enraizados na América”416.

Tendo em vista tal conjuntura, o programa intelectual dos Renascidos se constitui com o ob-
jetivo de construir uma história universal da América Portuguesa que abrangesse a totalidade de suas
memórias históricas. A história deveria ser dedicada ao bem da pátria imperial e narrar os principais
feitos dos “homens honrados” em defesa do Império Português. Uma das questões mais delicadas
para essas elites era a regulamentação das sesmarias e a demarcação das terras indígenas, que poderia
resultar na perda de antigas propriedades e de privilégios para algumas famílias. Nesse sentido, cons-
truir a memória da América Portuguesa era construir uma narrativa de fidelidade entre os súditos
luso-americanos e a Coroa que garantisse os privilégios de propriedade417.

A historiografia brasílica apresentava, assim, um projeto de duas faces. Ao mesmo tempo em


que os vassalos luso-americanos defendiam a legitimidade da Coroa portuguesa sobre o território,
expunham uma crítica contundente à principal solução encontrada pelo Governo Central para o pro-
blema da territorialidade: a transformação dos índios em súditos portugueses, cujo objetivo era res-
ponder ao princípio de uti possidetis estabelecido nos Tratados de Madri e Santo Idelfonso (1777)418.
Para Iris Kantor, tanto a crítica quanto a própria existência da Academia ameaçavam, em algum grau,
a soberania portuguesa, visto o estímulo que ela dava à autonomia intelectual e política na colônia419.
No entanto, os historiadores Claudio DeNipoti e Magnus Roberto de Mello Pereira420 nos mostram
que na cultura política do Antigo Regime essa aparente contradição era inerente à lógica clientelista
em que se estruturava a sociedade. Desse modo, ainda que a Academia fosse um espaço de fomento
à “autonomização intelectual e política” da colônia e apresentasse uma crítica à política implemen-
tada por Pombal, ela não poderia ser uma ameaça à soberania portuguesa. Pelo contrário, reforçava
o domínio da Metrópole, tendo em vista a tentativa de ascensão social e de recebimento de mercês
expressa tanto nas dedicatórias quanto na valorização dos súditos luso-americanos. Na obra de Loreto
Couto, é possível observar com clareza esta contradição, pois ainda que o autor exalte a Monarquia
415KANTOR, Iris. Esquecidos e Renascidos: historiografia acadêmica luso-americana, 1724-1759. São Paulo:
Hucitec; Salvador: Centro de Estudos Baianos/UFBA. 2004. p. 111.
416Ibidem. p. 119.
417Ibidem. p. 7.
418“Segundo a historiadora Angela Domingues, esta nova política [Diretório dos Índios] era suportada por
uma ideologia colonial que tinha por bases o reconhecimento do Brasil como ‘elemento vital para a sobrevivên-
cia do Reino e [a] necessidade de defender a soberania portuguesa e a integridade do território’. Neste sentido,
a Coroa teria, por meio do estabelecimento das fronteiras políticas com as potências vizinhas, se empenhado
em definir um espaço territorial no qual pudesse construir sua soberania jurisdicional. Vale lembrar que tanto
o Tratado de Madri como o de Idelfonso (1777) recuperavam o princípio do direito romano do uti possidetis
(como possuís). ‘E, para concretizar esse objetivo, havia que fazer do índio um vassalo europeu, através de um
processo cultural de assimilação e integração’”. Cf. PUNTONI, Pedro. A guerra dos bárbaros: Povos Indígenas
e a Colonização do Sertão Nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: Hucitec: Editora da Universidade de São
Paulo: Fapesp, 2002. – (Estudos Históricos; 44).p. 288.
419KANTOR, Iris. Op.cit. p. 161.
420DeNIPOTI, Claudio; PEREIRA, Magnus Roberto de M. Sobre livros e dedicatórias: D. João e a Casa Lite-
rária do Arco do Cego (1799-1801). In: História Unisinos. v. 17, nº 3, setembro/dezembro, 2013. pp. 257-271.

831
portuguesa, ele apresenta uma crítica ao abandono a que os pernambucanos foram submetidos no pe-
ríodo da Restauração Holandesa. Os vassalos pernambucanos são considerados valorosos não apenas
pela defesa do território português e expulsão dos “invasores”, mas por terem feito isso sem qualquer
apoio de Portugal, o que torna sua estirpe ainda mais valiosa para a Coroa, que deveria dar-lhes uma
contrapartida421. A crítica feita à Metrópole não necessariamente questiona seu poder sobre Pernam-
buco. Na verdade ela se insere no “topos de fidelidade” construído no século XVIII e que deriva de um
mais antigo, o do sangue, vidas e fazendas, estudado por Evaldo Cabral de Mello no clássico Rubro
Veio (1997). Como demonstra o historiador, tal tópica é menos um enfrentamento à Coroa do que
uma narrativa que “redefine os vínculos entre Pernambuco e Portugal”, sendo mobilizada desde o
século XVII, em diferentes conjunturas, pelos súditos pernambucanos. A desobediência às ordens do
Rei para que não combatessem os batavos passou, mais tarde, à memória dos pernambucanos como
uma prova de fidelidade e capacidade de avaliar o que seria do interesse da Coroa, ainda que contra a
vontade régia422. Nesse sentido, mais uma vez, o discurso elaborado pelo beneditino forja uma iden-
tidade pernambucana que demonstre o valor tanto de seus antepassados quanto de seus contemporâ-
neos para a manutenção da colônia sob o império de Portugal.

Como foi dito, para além da reconstrução de uma memória histórica da América Portugue-
sa, a Academia dos Renascidos objetivava sua inserção em uma história universal. Essa perspectiva,
observa Iris Kantor, unia o princípio iluminista da história fundada em evidências empíricas e racio-
nais423, que havia sido adotado há tempos pelas academias portuguesas, a uma estratégia discursiva
providencialista que fosse capaz de dar continuidade entre a história do Velho e do Novo Mundo,
construindo, assim, o que a autora chamou de pensamento ilustrado brasílico. Tal estratégia respon-
dia à inferiorização dos habitantes da Europa em relação à América, exposta nas inúmeras crônicas
de escritores europeus desde o século XVII424. Quanto a esta matéria, Evaldo Cabral de Mello afirma
que Desagravos do Brasil pertenceu a uma tradição literária – com muita força também na América
Espanhola setecentista – que pretendia provar a equidade das competências intelectuais e morais, bem
como dos valores, coragem e virtudes dos súditos americanos ante os nascidos na metrópole, demons-
trando sua plena capacidade de exercer os cargos civis, militares e eclesiásticos tanto na colônia quan-
to na Europa. Nas palavras do historiador, a obra do beneditino é menos uma “contestação política”

421COUTTO, Domingos do Loreto. Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco [1759]. Edição fac-simila-
da, Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1981. p. 96. (grifo nosso).
422MELLO, Evaldo Cabral de. À custa do nosso sangue, vidas e fazendas. In: ______. Rubro Veio: o imaginário
da restauração pernambucana. 2º ed. rev. e aumentada. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. pp. 106, 109 e 119.
423Para além da perspectiva racionalista, há ainda na historiografia das Luzes uma pretensão de universalidade
que considerava “a unidade do gênero humano, a diversidade produzida pela cultura e pelo meio ambiente, a
mutabilidade das leis positivas, a visão historicizante das instituições políticas, a identificação das leis mecâni-
cas que regem a natureza, as conexões entre os fenômenos particulares e gerais, a especulação sobre a causa e os
efeitos, uma visão otimista do desenvolvimento social e humano”. Segundo Iris Kantor, a concepção de história
universal da América Portuguesa não contraria a iluminista. Pelo contrário, associa as duas perspectivas. Cf.
KANTOR, Iris. Esquecidos e Renascidos: historiografia acadêmica luso-americana, 1724-1759. São Paulo: Hu-
citec; Salvador: Centro de Estudos Baianos/UFBA. 2004. p. 218.
424Idem. Do dilúvio universal ao Pai Tomé: Fundamentos teológico-políticos e mensuração do tempo na his-
toriografia brasílica (1724-1759). In: Cultura: Revista de História e Teoria das Ideias, v. 24, 2007. p. 181-193.

832
da legitimidade portuguesa do que uma “celebração cívica e religiosa” da estirpe pernambucana425.

Tendo em vista a universalização da história da América, Desagravos do Brasil e Glórias de


Pernambuco é permeado por questões que comprovam, por meio da crença na Providência divina,
que a criação do Novo Mundo é contemporânea à da Europa. Essa perspectiva, reivindicada pelos aca-
dêmicos Renascidos, foi defendida pelo Padre Antônio Vieira, que considerava a criação da “quarta
parte do mundo” no mesmo período em que se criou a Europa, a Ásia e a África426. Nesse sentido, Do-
mingos do Loreto Couto escreve uma narrativa da América Portuguesa que mobiliza temas caros às
discussões filosóficas europeias, como o Dilúvio Universal, o mito de São Tomé e a origem dos índios,
que o autor explicava pela povoação do continente por diversas ondas migratórias. Além disso, em
diversos momentos Loreto Couto compara a história da América a capítulos importantes da história
da Europa, estratégia retórica que aproxima o continente do resto do Velho Mundo.

Ao tratar da tomada de Pernambuco pelos holandeses, o religioso escreve que em “todas as


histórias”, desde os persas, babilônios, gregos, romanos e germânicos, “a ambição levou nações in-
teiras a conquista das mais poderosas Monarquias”. E conclui que “para que entre nós não faltasse a
experiência desta verdade, a mesma ambição trouxe a Pernambuco os Holandeses”427. É interessante
notar que nesse momento o beneditino eleva a província a um patamar semelhante ao da Metrópole,
tendo em vista que não fala da invasão do Império português pelos batavos, e sim de Pernambuco.
Essa estratégia retórica não procura desqualificar o domínio lusitano, é antes uma maneira de colocar
Pernambuco no centro dos territórios dominados por Portugal, tão importante que pode ser compa-
rado aos principais impérios existentes ao longo da história da humanidade.

Em outro momento, Loreto Couto dialoga com cronistas da América Hispânica a fim de com-
provar a ocorrência do Dilúvio também na América, o que corrobora a tese de sincronia entre o Velho
e o Novo Mundo.
Refere o Padre Afonço de Ovalle da Companhia de Jesus, na História do Reino do
Chilli [sic], que ouviu contar muitas vezes o Padre Diogo de Torres da mesma com-
panhia, Provincial, e fundador daquelas Províncias, que caminhando por um vale de
Quito, viu [em] um dia de festa um índio, que ao som de um tamboril que tocava,
cantava em sua língua certas histórias, que os mais atentamente ouviam. Perguntou
o Padre o que cantava e dizia aquele índio, e lhe responderam, que repetia cantando
as coisas memoráveis de seus antepassados, porque não tinham livros com aquela
diligência conservavam nas memórias os sucessos antigos. Perguntou o Padre o que
de presente cantara? Respondeu, que em primeiro lugar cantara a história de um
dilúvio, que houvera no mundo e inundara toda a terra, que depois deste dilúvio,
passados muitos séculos, viera ao Peru um homem branco chamado Tomé, a pregar
uma lei nova, nunca ouvida naquelas regiões.428

No trecho citado nota-se o esforço do beneditino em resgatar relatos que comprovem que o marco

425MELLO, Evaldo Cabral de. À custa do nosso sangue, vidas e fazendas. In: ______. Rubro Veio: o imaginário
da restauração pernambucana. 2º ed. rev. e aumentada. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. p. 115-116.
426KANTOR, Iris. Esquecidos e Renascidos. p. 217; Idem. Do Dilúvio ao Pai Tomé. p. 183.
427 COUTTO, Domingos do Loreto. Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco [1759].Edição fac-simila-
da, Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1981. p. 90.
428Ibidem. p. 66 (grifo nosso).

833
zero da história da América é exatamente o mesmo do restante do mundo, iniciando-se na Criação
e passando também por um dos momentos mais emblemáticos da narrativa bíblica: a destruição do
mundo por meio do dilúvio causado por Deus. Essa estratégia retórica usada pelo cronista era parte
da tentativa dos Renascidos de igualar, em algum grau, a América à Europa.

Outro ponto que chama atenção nesse trecho é a referência à passagem de São Tomé pelo Bra-
sil, mito presente em diversas crônicas desde o século XVI. Sérgio Buarque de Holanda, em Visão do
Paraíso, faz um levantamento da extensão do mito de São Tomé tanto no Oriente e na Europa quanto
na América Espanhola e Portuguesa. O mito da passagem do apóstolo de Cristo por diversas regiões
do mundo remonta pelo menos ao século XVI, e a presença de povos cristãos no extremo Oriente foi
atribuída à sua pregação. Na América, foram os portugueses os responsáveis pela difusão da crença
na vinda de São Tomé, descrevendo em diversas crônicas a memória dos ameríndios sobre o aconte-
cimento e sua pressa em mostrar as pegadas deixadas pelo santo em diferentes regiões429.

Domingos do Loreto Couto retoma, no século XVIII, essa temática, dedicando cerca de uma
página e meia de seu livro às evidências da pregação de São Tomé aos índios do Brasil. Recorrendo
à crônica do jesuíta Simão de Vasconcelos, o autor conta da passagem de São Tomé por São Vicente,
pela Bahia, por Toqué Toqué, Cabo Frio e Paraíba. O beneditino insere essa narrativa em um dos
capítulos de Desagravos do Brasil que dedica a desmentir “algumas calúnias contra os índios”. Nesse
sentido, ele enfatiza o quanto as pegadas do Santo Apóstolo “foram sempre tidas, e veneradas por
milagrosas” e o quanto os índios as respeitavam, ainda que seus antepassados não tenham recebido
os “grandes mistérios” ensinados por Sumé, como diriam na língua nativa. A crença na passagem do
“homem branco, com barbas, e vestido, que em tempos antiquíssimos andara naquelas partes”430 cor-
robora a tese da antiguidade da América defendida pelos Renascidos.

O projeto de valorização dos súditos luso-americanos presente no programa intelectual da


historiografia brasílica tinha a expectativa de “construir um corpo acadêmico representativo de todas
as capitanias americanas”431. A obra de Loreto Couto dá conta desse projeto na medida em que escreve
uma história de Pernambuco que busca valorizar os súditos daquela capitania por meio de suas virtu-
des, mas, ao mesmo tempo, a insere em um campo mais geral da história da América, que é também,
para esses acadêmicos, a história do mundo. Valorizar a América diante da Coroa era valorizar seus
súditos luso-americanos, livrando-os do estigma de inferioridade imposto pela Europa. Esse estigma
passa pela presença do sangue mestiço entre as principais famílias da “nobreza” local, o que leva Lo-
reto Couto a dedicar boa parte de sua obra a uma tentativa de valorização dos índios de Pernambuco.
A abordagem dos índios do Brasil sob uma perspectiva universalista e ilustrada

Dos oito livros que compõem Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco, quatro apresen-
tam capítulos dedicados à contestação das notícias escritas pelos cronistas europeus sobre os índios
429HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso: os motivos edênicos do descobrimento e colonização
do Brasil. São Paulo: Brasiliense; Publifolha, 2000. – (Grandes nomes do pensamento brasileiros). pp. 134, 136.
430COUTTO, Domingos do Loreto. Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco [1759].Edição fac-simila-
da, Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1981.p. 65 (grifo nosso).
431KANTOR, Iris. Esquecidos e Renascidos: historiografia acadêmica luso-americana, 1724-1759. São Paulo:
Hucitec; Salvador: Centro de Estudos Baianos/UFBA. 2004. p. 122.

834
do Brasil. A argumentação desenvolvida por Domingos do Loreto Couto é parte da estratégia narra-
tiva da historiografia brasílica e considera desde a origem dos povos americanos, que apresentam um
tronco comum com os europeus, até os atos heroicos que provam sua lealdade à Coroa portuguesa.
Valorizar os índios do Brasil – principalmente os de Pernambuco – é, para o autor, valorizar o sangue
das principais famílias pernambucanas, que não tinham como negar a miscigenação com o “negro da
terra”. Nesse sentido, era necessário associar a figura dos indígenas aos ideais de valoração nas armas
e na religião, princípios que atestavam a nobreza dos homens no Antigo Regime.

Domingos do Loreto Couto preocupa-se, portanto, em explicar a origem dos povos amerín-
dios, defendendo a tese de que América teria sido povoada por sucessivas ondas migratórias vindas
de diferentes partes do planeta, o que dá conta das diferenças de comportamento entre os índios do
Brasil. Loreto Couto elenca uma série de teorias que tentam explicar tanto a forma quanto a data da
povoação da América. É interessante notar que o autor não refuta qualquer uma delas; pelo contrário,
constrói uma argumentação que abarca as várias hipóteses, comparando a povoação da América às
diferentes ondas migratórias que promoveram a ocupação do território europeu. Diz o beneditino:

E se tantas nações diversas, ou levadas de fortuna, ou perseguidas da desgraça ar-


ribando a Portugal, nele fizeram assento, e habitação; por que não diremos que os
povos do nosso Brasil descendem uns dos hebreus, que mandava Salomão em suas
naus. Outros, dos troianos companheiros de Eneas. Outros, dos africanos de Carta-
go. Outros dos antigos Indios, que virtude divina foram levados a regiões remotas, e
muito distantes; outros, dos fenícios que trazidos da fúria dos ventos viessem arribar
a nossas praias; e outros do Indio Ofir de quem tomassem todos os nomes de Indios,
assim como os povos das Espanhas o tomaram de godos, não obstante que muitos
eram alanos, suevos, vândalos e visigodos; os romanos de Rômulo, de Luso os lusita-
nos, de Lisias os lisitanos, de Agar os agarenos, de Israel os israelitas.432

No trecho citado é possível observar a estratégia retórica utilizada pelos Renascidos para transformar
a América em sujeito de uma história universal. Loreto Couto não apenas compara os índios ame-
ricanos a outros povos do mundo como os insere nos mesmos troncos genealógicos dos europeus,
visto que o Velho Continente também havia sido povoado por diferentes ondas migratórias, das quais
originaram os nomes de diversos países. Além disso o autor associa uma explicação racional, ilustrada
– retomando a história da povoação da Europa na Antiguidade e na Idade Média – à narrativa provi-
dencialista para dar conta de comprovar a antiguidade do continente. Tal associação, como foi visto, é
uma marca do pensamento ilustrado brasílico.

Ao corroborar a tese de que o primeiro povoador do continente teria sido Ofir Indico433, Lore-
to Couto retoma o antigo debate que compara a América à terra de Ofir, terra de ouro puro da qual o
rei Salomão trazia suas riquezas. Analisando o impacto do maravilhoso sobre as experiências de nave-
gação do século XVI, Sérgio Buarque de Holanda destaca a relação entre América e Ofir. O historiador
paulista afirma que o motivo que levou Cristóvão Colombo a acreditar que havia chegado a Ofir foi
a crença, a priori, na possibilidade de alcançar o Extremo Oriente pelo Atlântico, bem como a ideia
432COUTTO, Domingos do Loreto. Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco [1759].Edição fac-simila-
da, Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1981. p. 60-61.
433COUTTO, Domingos do Loreto. Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco [1759].Edição fac-simila-
da, Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1981. p. 57-58.

835
fixa na existência do Paraíso Terreal, que animou toda a sua empresa. Identificar no continente ame-
ricano a terra do ouro, que acreditava-se localizar em regiões longínquas do Oriente, era confirmar o
sucesso da expedição e a proximidade geográfica do Paraíso Terreal. O navegador genovês transporta,
portanto, a América para o Oriente, reiterando a certeza de ter alcançado o extremo leste navegando
pelo Atlântico434. Em um movimento contrário, Loreto Couto retoma o mito de Ofir, mas transporta a
região bíblica para o Brasil. Segundo ele “teve Salomão conhecimento da disposição de todas as terras
do mundo, e conseguintemente destes tesouros, e riquezas do Brasil, por que não mandaria a estas
partes as suas armadas, sendo a viagem menos dificultosa?”435. A associação feita pelo beneditino nos
parece menos uma crença na existência de um Paraíso, tal como era para Colombo, do que uma estra-
tégia narrativa cujo objetivo era localizar a América no mesmo intervalo temporal em que viveu o rei
Salomão. A possibilidade do rei de Israel ter enviado seu povo ao Brasil em algum momento mostrava
tanto a equivalência temporal entre a América e os antigos hebreus, quanto a presença dos filhos de
Abraão na genealogia dos ameríndios. Se as sagradas Escrituras eram, para o frei, a fonte mais antiga
da história humana, elas contavam também a história do continente americano.

A construção de uma narrativa que desse conta de explicar a origem indígena, mais do que
inserir a América na história do mundo, associava a figura do índio a uma ancestralidade mítica e
heroica, como forma de valorizar o sangue caboclo das elites do Brasil. Dessa maneira, os cronistas e
genealogistas brasílicos tentam responder às mudanças e à perda de privilégios iminente na conjuntu-
ra do século XVIII. Segundo Iris Kantor,

O indianismo erudito e o indigenismo pombalino constituíam duas faces da


mesma moeda naquela conjuntura específica de redefinição da soberania portuguesa
no continente americano. Se a Coroa inventava transformar os índios em vassalos
úteis na ocupação das fronteiras, os historiadores brasílicos aproveitavam para enal-
tecer a sua própria ascendência indígena, identificando no índio sua ancestralidade.
A ambiguidade residia no fato de que o sangue caboclo tornou-se marca de distinção
perante os demais grupos adventícios ou de menor sedimentação social. De modo
que a desqualificação e o rebaixamento intelectual e moral do indígena contempo-
râneo (objeto e sujeito da legislação antidiscriminatória) articulavam-se de maneira
contraditória e complementar com a retórica de heroicização do ancestral indígena,
considerado o herói fundador das primeiras linhagens da nobreza da terra.436

A ambiguidade destacada por Iris Kantor é observada a partir da análise dos textos joco-sérios lidos
na cerimônia de inauguração da Academia dos Renascidos. Em tais textos, os autores fazem uma
série de críticas à promoção civil dos índios, rebaixando sua capacidade intelectual. A elevação dos
aldeamentos a vilas e a instauração de governanças indígenas foi duramente criticada por diversos

434HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso: os motivos edênicos do descobrimento e colonização do
Brasil. São Paulo: Brasiliense; Publifolha, 2000. – (Grandes nomes do pensamento brasileiros). p. 13.
435COUTTO, Domingos do Loreto. Op.cit. p. 58.
436 KANTOR, Iris. Esquecidos e Renascidos: historiografia acadêmica luso-americana, 1724-1759. São Paulo:
Hucitec; Salvador: Centro de Estudos Baianos/UFBA. 2004. p. 225.

836
membros da sociedade colonial, atribuindo aos índios noções como a de barbárie e gentilidade437.Na
obra de Loreto Couto, tal ambiguidade se dá na dicotomia entre índios fiéis e infiéis. Não há, portanto,
uma separação clara entre ancestralidade mítica e contemporaneidade inferiorizada. Nos momentos
em que autor faz uma análise diacrônica, o faz por meio de uma perspectiva civilizatória, contrapon-
do índios “primitivos” e “civilizados”. Sua preocupação maior é refutar as generalizações feitas por
diferentes autores sobre os índios do Brasil. Dessa maneira, o religioso elabora sua defesa a partir dos
principais tópicos discutidos entre os letrados, construindo uma memória dos índios ilustres em san-
tidade, letras e armas.

Tratando, por exemplo, da religião dos índios, Loreto Couto retoma o tema da inconstância,
presente na literatura jesuítica desde o início da colonização. Sobre essa tópica, o padre jesuíta An-
tônio Vieira afirma, no Sermão do Espírito Santo (1657), que os índios brasis “ainda depois de crer,
são incrédulos”, tais como as estátuas de murta, que moldadas pelas mãos do jardineiro, retornam
facilmente à sua forma bruta. O tópico da inconstância foi discutido por diferentes cronistas e tor-
nou-se um traço do caráter indígena que perdurou até o século XX na historiografia brasileira438. Para
Loreto Couto, atribuir a inconstância ao sangue ou à natureza indígena era uma das injúrias cometi-
das por autores mal intencionados ou mal informados. Segundo ele, “o assento a religiões falsas, não
há dúvidas que é absolutamente natural, pois não pode ser sobrenatural o erro; mas é certo que não
depende em maneira alguma de temperamento, nem de organização, que é no que pode influir a se-
mente paterna”439. Argumenta que muitos indígenas que retornam aos antigos costumes o fazem não
por ter nas veias a semente da religião paterna, mas por amor e veneração aos progenitores. O autor
acrescenta ainda que “é muito natural que lhe faça mais força o exemplo dos que lhe deram o ser, que
a imitação dos que lhe roubam a liberdade”440, numa clara censura aos maus tratos recebidos pelos
indígenas cativos. Além disso, Loreto Couto atribui a inconstância à natureza humana, opondo-se à
atribuição da característica somente aos indígenas441. Para o frei, o retorno aos antigos costumes era
plenamente justificado não apenas pela inconstância natural dos homens, mas também pela falta de
exemplo e pela privação da liberdade sofrida:

Daqui se infere que se chama culpa nos índios o que é pensão nos mortais. Querem
nestes homens uma constância, que triunfe das inconstâncias da própria natureza.
Querem neles uma resolução para toda a vida, e uma obstinação, que os ponha em
estado de nunca poderem mudar de estado. E se para os mais homens é desafogo da
natureza a mudança das ocupações neles é remédio para se livrarem d’um injusto
cativeiro.442

Aqui ficam explícitas duas questões. Primeiramente, o autor rebate o topos da inconstância, mais uma
437CAPISTRANO DE ABREU, João. Capítulos de História Colonial – 1500-1800. Rio de Janeiro: José Orosco
& C., 1907. p. 169-170.
438VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem. In: ____.
A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naify, 2015. pp. 185-186.
439COUTTO, Domingos do Loreto. Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco [1759].Edição fac-simila-
da, Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1981. p. 51.
440Ibidem. p. 52.
441Ibidem. p. 52-53. (grifo nosso)
442Ibidem. (grifo nosso)

837
vez comparando os índios do Brasil aos outros homens do mundo, seguindo a estratégia narrativa de
universalização da América. Depois, há uma crítica ao cativeiro indígena – que justificaria a “incons-
tância”. Tal crítica, no entanto, não é direcionada à prática da escravidão. Pelo contrário, o religioso
apoia-se na argumentação escolástica de que o trabalho cativo pode ajudar um homem “inábil para
governar-se” a “viver honestamente, e conforme a doutrina da Igreja”443. A escravidão ainda era en-
tendida por ele como um meio de salvação das almas. Nesse sentido, cabia a observação de algumas
regras para o seu estabelecimento. O que Loreto Couto desaprova, portanto, é menos a existência do
trabalho compulsório indígena do que a forma como estava sendo conduzido até então444, principal-
mente no que tange à utilização injusta das prerrogativas de impedimento da pregação do Evangelho
ou de “canibalismo” para, como estabelecera uma lei de 1655, legitimar o cativeiro indígena.

Tratando ainda da mesma temática, o religioso condena o argumento da guerra justa, utilizado
pelos primeiros colonizadores. Segundo ele, uma sentença da Mesa de Consciência e Ordens contra
a nação dos Caetés pela morte do bispo D. Pedro de Fernandes Sardinha, em 1556, causou enorme
prejuízo a todos os índios do Brasil. Tal prejuízo se deu porque os portugueses aproveitavam-se desta
sentença para cativar índios, independente da nação que fossem, afirmando por meio de testemunhas
subornadas que eram estes da nação dos Caetés e, portanto, “tragadores de carne humana”. O que
incomoda o autor na argumentação dos portugueses não é a escravização dos Caetés, caso fossem so-
mente eles os cativos. O problema está na generalização e na comparação de outros índios aos brutos
canibais. A fim de defender os índios de tamanha injustiça, Domingos do Loreto Couto relaciona os
topoi da inconstância e do canibalismo, justificando o primeiro e relativizando o segundo. Para o re-
ligioso, há uma diferença tanto étnica quanto evolutiva entre os índios antropófagos e os considerados
ilustres. Quando argumenta que os portugueses injustamente associavam qualquer índio à nação dos
Caetés, Loreto Couto não nega a existência da antropofagia no Brasil, mas o atribui a nações espe-
cíficas, distantes daqueles índios que sempre mostraram-se amigáveis aos portugueses e dispostos a
aprender os valores da civilização – como é o caso dos índios de Pernambuco:

É verdade, não negamos, que entre as inumeráveis nações, de que se compunha o nosso
Brasil, tantas que se julgou ter o Brasil no tempo de seu descobrimento, mais gente que toda
a Europa; havia então algumas nações que mais irracionais que as mesmas feras, faziam o
que não faz bruto algum, que era alimentar-se dos indivíduos de sua própria espécie. A este
uso destinavam comumente os prisioneiros de guerra. A crueldade de outras nações não se
saciava com dar morte aos prisioneiros, senão que a faziam mais dilatada, e dolorosa com
quantos gêneros e tormentos lhe ditavam o ódio, e a vingança. Mas também é certo, que
infinitas nações abominavam esta crueldade, que aborreciam e detestavam fortemen-
te.445

No trecho destacado fica clara a oposição entre índios brutos, associados à ideia de irracionalidade e
ferocidade, e civilizados, que abominavam a prática da antropofagia. Apesar de admitir a existência
de “bárbaros” entre os índios do Brasil, Loreto Couto trata logo em seguida de compará-los aos povos

443Ibidem. p. 68.
444 KANTOR, Iris. Esquecidos e Renascidos: historiografia acadêmica luso-americana, 1724-1759. São Paulo:
Hucitec; Salvador: Centro de Estudos Baianos/UFBA. 2004. p. 231-232.
445COUTTO, Domingos do Loreto. Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco [1759].Edição fac-simila-
da, Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1981. Op.cit. p. 42.

838
considerados incivilizados na Europa, traçando uma linha evolutiva para os indígenas semelhante à
que se considerava no Velho Mundo como progresso da civilização446.

A associação da selvageria de alguns indígenas do Brasil aos povos “primitivos” da Europa


seguia a mesma linha de raciocínio da ideia de povoamento por ondas migratórias, pois traçava um
paralelo entre a história da civilização europeia e a do Brasil. Tal como na Europa existiram povos bár-
baros que posteriormente foram civilizados, na América Portuguesa havia índios semelhantes às feras,
por não terem sido alcançados pela civilização. Nesse sentido, o beneditino afirma que “se é certo que
houve tempo, em que estes gentios exercitaram essa bárbara crueldade, também é certo, que há cem
anos a esta parte não houve entre eles a prática de semelhante ferocidade”447. O estigma de bestialidade
associado a alguns povos é posto em contraposição às virtudes dos índios de Pernambuco, marcados
pela nobreza e pela fidelidade à Coroa e aos preceitos cristãos.

Loreto Couto retoma ainda a discussão acerca da língua dos índios do Brasil, que, segundo ele,
foi também um pretexto utilizado pelos autores europeus para difamar os nativos da terra. O religioso
defende o uso da Língua Geral – falada pelos índios de Pernambuco – seguindo a mesma estratégia
narrativa de equiparação com a cultura europeia; nesse caso, com as variantes linguísticas do Velho
Mundo. Segundo ele, existem seis línguas faladas pelos índios do Brasil e, dentre elas, a Língua Geral,
utilizada pelos diferentes povos que ocupavam o litoral. O beneditino compara as variações da Língua
Geral aos diferentes dialetos, distantes das línguas oficiais, falados nas províncias dos grandes reinos
europeus, como o gascão do norte de Portugal e o normando e o provençal da França. As variações
são entendidas, portanto, como processos naturais ocasionados pela diferença geográfica e não como
um indicativo de inferioridade dos índios. Cabe destacar aqui que a defesa da Língua Geral contraria
diretamente um dos objetivos das reformas propostas pelo Diretório dos Índios, que era a imposição
da língua portuguesa aos índios.

Seguindo a defesa da Língua Geral, o cronista traz à tona o debate sobre a ausência das letras
F, L, e R em seu alfabeto, ausência essa que explicou, para inúmeros cronistas desde Pero Gândavo, a
“desorganização” dos povos originários, visto que lhes faltando tais letras logicamente lhes faltaria fé,
lei e rei448. Loreto Couto faz uma análise gramatical da Língua Geral a fim de explicar essa ausência e
desmentir sua atribuição à desordem dos brasis. Para ele, quatro coisas devem ser consideradas para
a análise de uma língua. São elas: “Energia nas vozes, doçura nos acentos, riqueza nas frases, e abun-
dância nas palavras, que corresponda à abundância das ideias”. Admira ainda “a delicadeza, cópia,
energia, e facilidade desta língua”449. Nesse sentido, afirma que tanto o F quanto o R são semivogais,
sendo a primeira ignorada dos romanos e a segunda origem do verbo latino irritare, a partir do qual
surgem todas as palavras que querem “imprimir matérias, em que a ira, o furor, a desgraça ocasiona-
ram sucessos trágicos”. Nas palavras de Loreto Couto, “Sendo pois a língua brasílica dotada de uma

446Ibidem. p. 42.
447COUTTO, Domingos do Loreto. Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco [1759].Edição fac-simila-
da, Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1981.. p. 70.
448ALCIDES, Sérgio. F, L e R: Gândavo e o ABC da colonização. Escritos (Fundação Casa de Rui Barbosa), v.3,
p. 39-53, 2010.
449COUTTO, Domingos do Loreto. Op.cit. p. 48.

839
grande brandura, facilidade, e doçura na sua pronúncia, com razão excluiu também a l. F. letra áspera,
e muda. Nenhuma falta lhe faz esta letra, pois com as do seu alfabeto logra riqueza, e abundância de
palavras”450. Quanto à ausência da letra L, o frei argumenta que não é defeito, visto que muitas palavras
da língua portuguesa substituem também o L das palavras latinas pelo R ou pelo Ch. Assim, planctus
é convertido em “pranto”, clavus em “cravo”, clavis em “chave”, dentre outros exemplos, sem que se
prejudique a “gala da língua”.

A defesa feita por Loreto Couto não se resume aos primores da língua brasílica, mas é direcio-
nada principalmente às atribuições a ela relacionadas. O autor dedica um bom trecho de seu livro à ex-
plicação das variáveis linguísticas para as noções de Deus, de rei, de lei e de fé, demonstrando que elas
não afetavam as opiniões dos letrados sobre os diferentes povos que as pronunciavam e, portanto, não
deveriam afetar o juízo sobre os indígenas451. Por isso, a ausência das palavras fé, lei e rei não significa
ausência de crença e de autoridade. Pelo contrário, o autor explica que entre os índios do Brasil existe
uma palavra para “príncipe”: morobixaba, “que vem de poro mudado o p. em, m, e yxaba. Poro signi-
ficando gente, yxaba, o que manda”. Recorre, mais uma vez, à narrativa providencialista para explicar
que, desde a criação do mundo, em 1656 anos não houve nem nos textos sagrados, nem de qualquer
autor, relatos de algum filho ou descendente de Adão que dominasse a terra e tivesse o título de Rei.
O primeiro a ser assim chamado foi Nenrod, fundador da cidade da Babilônia e da Torre de Babel.
Conclui, portanto, que a ausência da palavra “rei” não pode ser compreendida do modo como fizeram
os cronistas europeus, pois se assim fosse, deveríamos “dizer, que todos os homens que houveram[sic.]
no mundo eram bárbaros e não reconheciam alguma superioridade”. Loreto Couto prossegue a análise
das palavras na Língua Geral, demonstrando que existem termos cujo sentido é o mesmo que fé ou lei,
tal como Morobixaba está para rei. Assim, Tupanrerobiara, equivale a “Fé”, visto que deriva de Tupã,
“que significa Deus” e arobiar, que significa “crer”. Do mesmo modo, Acerecomonhangaba equivale
a “Lei”, pois significa “o que se há de fazer, e obrar”452. O autor argumenta que não existe mais força
nas palavras “fé”, “lei” e “rei” do que existe em Tupanrerobiara, Acerecomonhangaba e Morobixaba,
considerando que

Na origem, ampliação, e harmônica propriedade de todas as línguas do mundo, pre-


side, e domina o Espírito Santo, porque procede da infinita facúndia de um Pai, que
desde a eternidadediz tudo emuma palavra; e da pessoa de um filho, que é essencial-
mente sabedoria, sendo pois todas as línguas admiráveis em as nações deste divino
Espírito, nenhuma delas foi indigna da declaração de suas verdades, em todas elas
falou ao mundo por boca de seus Apóstolos. Tão certo é que toda língua é perfeita e
bela.453

Esta sentença conclui a discussão sobre a língua indígena e, mais uma vez, mobiliza a narrativa ilus-
trada e providencialista para incluir os nativos do Brasil em uma história universal. Considerar toda
450COUTTO, Domingos do Loreto. Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco [1759].Edição fac-simila-
da, Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1981. p. 49.
451Ibidem. p. 49.
452COUTTO, Domingos do Loreto. Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco [1759].Edição fac-simila-
da, Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1981. p. 50.
453COUTTO, Domingos do Loreto. Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco [1759].Edição fac-simila-
da, Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1981. p. 50-51. (grifo nosso)

840
língua como fruto e domínio do Espírito Santo tanto denota a universalidade do gênero humano
quanto revela a existência de alteridade em meio à totalidade dos homens. Por outro lado, revela ain-
da a ambiguidade presente na defesa dos índios brasis, visto que se a todas as nações falou o Espírito
Santo “por boca de seus Apóstolos”, os indígenas também receberam a palavra da Santa Fé – vide a
passagem de São Tomé pelo Brasil. Nesse caso, tendo já conhecido os preceitos cristãos por meio tanto
dos Apóstolos quanto dos missionários, não podem ser os índios do Brasil considerados desprovidos
de Fé. Desse modo, o autor compreende a religiosidade indígena a partir da ideia de “gentilidade sem
simulacros”, pois considera que entre eles há noções de temor a Deus – “uma excelência superior a que
chamavam Tupã” –, conhecimento da imortalidade da alma e notícia do dilúvio universal; e que, ainda
que alguns creiam nas pregações de “falsos profetas”, não adoram a outros deuses. Acredita, portanto,
que dentre os gentios do mundo, são os índios do Brasil superiores, tendo em vista que não adoram
“deuses adúlteros, pérfidos, e malígnos” como os romanos; “nem como os Egipcios vis sevandijas, e
ainda os alhos, e cebolas das suas hortas”. Por outro lado, como já foi visto, o autor procura justificar
o apego de alguns índios à religião de seus pais quando discute o tópico da inconstância, partindo
da ideia de que os laços sanguíneos não são determinantes para a prática da boa Fé, mas sim os bons
exemplos e os laços de amor e veneração. Por fim, considera que os erros em matéria de religião não
devem ser motivo para a condenação intelectual dos índios, principalmente quando se leva em con-
ta que inúmeros avanços culturais da civilização ocidental partiram de nações outrora consideradas
brutas como as feras454.

Quando se trata de Pernambuco, o religioso procura demonstrar a retidão de todos os súditos


na Boa Fé, destacando também alguns feitos dos índios em defesa da religião católica, como se os
índios pernambucanos apresentassem maior facilidade em aceitar as “verdades” do cristianismo. As-
sim, o beneditino conseguia evidenciar as elites pernambucanas, dentre os demais súditos da colônia,
também por seus valores religiosos. Demonstrar como os índios de Pernambuco, desde o início da
ocupação da província pelos portugueses, tornaram-se fiéis aos preceitos da Igreja valorizava toda a
estirpe pernambucana, pois não havia mancha de infidelidade dentre os vassalos daquela província,
mesmo entre aqueles considerados inferiores pelos europeus.

“Teatro de virtudes”: Pernambuco ilustrado por índios fiéis

A defesa dos povos originários feita em Desagravos do Brasil apresenta, como vimos, uma am-
biguidade em relação à adequação de alguns índios ao processo civilizatório, o que coloca os nativos
de Pernambuco muito à frente dos demais, e comprova seu valor. Porém, há na obra uma segunda
dicotomia; esta talvez mais explícita do que a primeira e que é também um desdobramento dela. Do-
mingos do Loreto Couto cria um espectro do índio valoroso que estende-se apenas aos aliados de Por-
tugal nas lutas pelo domínio da colônia. Qualquer nação indígena aliada aos inimigos da metrópole
não é considerada pelo autor como parte da estirpe pernambucana. Há, portanto, uma clara separação
entre índios fiéis e infiéis, marcada pela oposição civilizado-bárbaro.

À luz desta dicotomia, consideramos que a construção da identidade pernambucana pelo reli-
gioso é também a construção narrativa de uma fronteira que separa pios e brutos, ainda que dividam
454Ibidem. p. 44-45, 51-52.

841
o mesmo território, bem como incorpora exemplos ilustres de outras províncias ao panteão dos heróis
de Pernambuco. A identidade pernambucana não pode, por isso, ser considerada com base nos parâ-
metros geográficos que definiam o território daquela província.

Loreto Couto dedica o Livro Quarto de sua obra aos “pernambucanos, que padeceram ilustre
martírio em ódio da religião católica, e defesa da fé”. Trata da tomada de Pernambuco pelos holandeses
e das inúmeras tentativas de fazer capitularem os fiéis vassalos portugueses diante da “diabólica fúria”
dos hereges batavos. O martírio dos pernambucanos diante dos flamengos foi narrado com riqueza
de detalhes por Loreto Couto, a fim de demonstrar a crueldade e o sofrimento com que os católicos
eram privados da vida, de acordo com ele, unicamente por professarem a “verdadeira” Fé. A narrativa
dos martírios feita por Loreto Couto objetivava, assim, demonstrar o valor dos pernambucanos em
defesa tanto da religião quanto da Pátria, visto que o domínio da Monarquia portuguesa sustentava-se
também sobre a Igreja. Nesse sentido, afirma o cronista:

Não serviram menos os pernambucanos à Religião com a virtude, que a Pátria com
o valor; porque se dignou o Céu de abrir em nosso terreno um amplíssimo teatro de
virtudes, e maravilhas. A demonstração mais evidente do muito que abominaram e
abominam as detestáveis seitas dos hereges, não foi somente conservarem a pureza
da Fé Católica, que professamos, mas sim estarem todos dispostos a dar a vida em
sua defesa e confissão, sem que entre tantos e em tais circustâncias houvesse algum
que fraqueasse nos conflitos, ou nele visse alguma sombra de inconstância, dúvida,
ou temor.455

Na passagem citada podemos observar duas questões interessantes. A primeira delas, é a ideia
de que a província de Pernambuco seria um “teatro de virtudes” cujos atores eram homens extre-
mamente valorosos à Pátria, mais um exemplo de diferenciação dos pernambucanos no processo
de construção da identidade. O segundo ponto importante é a ideia de martírio expressa no trecho
e que perpassa toda a construção do livro quarto. O historiador William de Souza Martins, em uma
análise sobre a santidade feminina na obra de Dom Domingos do Loreto Couto, levantou aspectos
que ajudam a compreender a ideia de martírio aqui presente. De acordo com o historiador, o mártir
morre em defesa da fé, pelas mãos de alguém que necessariamente se opõe a ela. Nesse sentido, “o
martírio se configura simultaneamente como um ato religioso e político”. No período moderno, essas
características se confirmam, mas o martírio torna-se também mais dramático, principalmente com a
expansão territorial do catolicismo456. Considerando o conceito de martírio tal como o coloca William
Martins, observamos a tentativa de Loreto Couto de comparar os súditos pernambucanos aos santos
considerados mártires, principalmente quando o autor detalha o calvário sofrido por eles nas mãos do
inimigo herege, dando a vida “em defesa e confissão” da Fé Católica, sem que se achasse neles “sombra
de inconstância, dúvida ou temor”. Loreto Couto dá continuidade a esta matéria destacando nomes de
mártires ilustres de Pernambuco. Sua narrativa, porém, não se resume aos homens brancos. O autor
dedica três capítulos do livro quarto ao martírio de “muitos índios naturais de Pernambuco que flo-
455COUTTO, Domingos do Loreto. Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco [1759].Edição fac-simila-
da, Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1981. p. 237. (grifo nosso)
456 MARTINS, William de Souza. Práticas de Santidade Feminina na América Portuguesa segundo a obra de
Domingos do Loreto Couto. In: Anais do XIV Encontro Regional da ANPUH-Rio: História e Patrimônio, Rio
de Janeiro, 2010, p. 5-6.

842
resceram em santidade”.

Uma das histórias mais interessantes consta no capítulo 22. Conta-nos o cronista que no ano
de 1690 quatro índios naturais de Pernambuco – “de idade tão tenra, que o mais velho só contava tre-
ze anos, e o mais moço apenas tinha sete” – foram interceptados a caminho de Lisboa por um navio
de mouros e levados cativos ao Marrocos. Na presença do rei Muley Ismael, os jovens índios foram
persuadidos “com carícias, e afagos, [para] que deixassem a lei de Cristo, e abraçassem a de Mafoma”,
ao que os índios respondem dizendo que era preferível perder a vida a deixar a fé de Cristo. O rei
mandou então que fossem açoitados. Narra o beneditino que “vendo-se os ilustres meninos com tão
abundantes primícias de seu desejado martírio, levantaram as vozes animosos, pregando as verdades
de nossa santa fé, e abominando os enganos do falso profeta”. Não cessadas as crueldades, o rei manda
prender os meninos brasis por três dias em um escuro aposento sem qualquer alimento, “mas ven-
do, que confortados com a graça divina, cada vez estavam mais fortes, e robustos”457. A retórica da
robustez em meio à privação de alimentos lembra em certo ponto a narrativa bíblica do sofrimento
que padeceram Daniel e seus companheiros junto ao rei Nabucodonosor, na Babilônia. Da mesma
forma que os jovens índios, Daniel, Ananias, Misael e Azarias recusam-se a aceitar as delícias ofereci-
das pelos caldeus, mantendo-se firmes às leis de Deus. Privados de alimentação suficiente, os quatro
mantêm-se fortes e bem nutridos apenas pela fé no Deus de Israel458. Tal como o profeta do Antigo
Testamento, os mártires pernambucanos da narrativa de Loreto Couto eram sustentados pela graça
divina. Em meio ao sofrimento perpetrado pelo rei dos mouros, conta-nos Loreto Couto que “os ben-
ditos meninos rindo-se do rigor, e zombando dos tormentos, achavam nos espinhos rosas, nas dores
delícias, nos opróbios honras, e nas afrontas vitórias”. O menor deles, de nome Jozé, era o principal
alvo da crueldade dos mouros, tendo sido separado dos demais e torturado para que declarasse crença
em Maomé. A firmeza do menino ante às tentativas de um povo infiel em dissuadi-lo da verdadeira fé
é punida com açoites aos quais ele não consegue resistir. A história do florescimento em santidade dos
quatro pequenos índios termina com a morte do menino Jozé, “que não podendo resistir ao rigor da
crueldade, com que o trataram aqueles bárbaros entregou sua bendita alma no seguinte dia nas mãos
do Criador, e saiu desta vida a lograr a coroa merecida pelo martírio”459.

Ao longo da história dos índios sequestrados fica clara a oposição feita por Domingos do
Loreto Couto entre civilização, expressa pela fidelidade ao cristianismo, e barbárie. O índio pernam-
bucano, fiel à fé católica, é posto aqui em contraposição ao infiéis e hereges seguidores de Maomé. A
ideia de barbaria é sempre associada aos inimigos da Fé Católica e da Coroa portuguesa. Nesse sen-
tido, tanto os mouros – inimigos históricos dos ibéricos e do catolicismo – quanto os holandeses e os
índios a eles aliados são taxados pela ideia de barbárie. Loreto Couto narra, por exemplo, o caso de
alguns índios dos sertões que desciam aos aldeamentos para serem doutrinados. Assaltados, porém,
por “bárbaros seus contrários” muitos eram feridos e mortos. “Abrasados nos desejos de amor divi-
457COUTTO, Domingos do Loreto. Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco [1759].Edição fac-simila-
da, Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1981. p. 335-336.
458Daniel, 1: 5-15. Bíblia Sagrada. Editora Ave Maria. Disponível em: https://www.bibliacatolica.com.br/bi-
blia-ave-maria/daniel/. Acesso em 23 de janeiro de 2018.
459COUTTO, Domingos do Loreto. Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco [1759].Edição fac-simila-
da, Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1981. p. 337.

843
no, e sequiosos das salutíferas águas do sacramento, diziam a seus inimigos: Matai-nos, e comei-nos
embora como famintos, e raivosos cães, que nossas almas hão de ir ao céu, que promete Deus aos que
deveras o amam”460. Na narrativa deste caso, o cronista beneditino retoma a ideia do canibalismo,
praticada por índios bárbaros “mais feras que as mesmas feras”. Provavelmente, tais índios ocupavam
o mesmo território pernambucano que aqueles considerados ilustres. No entanto, não há espaço para
a selvageria na genealogia dos vassalos de Pernambuco. É evidente que em uma sociedade de Antigo
Regime, qualquer inimigo da Coroa ou do catolicismo é desconsiderado como pertencente àquela
sociedade, tendo em vista que a relação de vassalagem não se sustenta. No entanto, o que queremos
destacar aqui é a forma como Domingos do Loreto Couto constrói esta fronteira que separa pernam-
bucanos e bárbaros.

A relação entre construção de identidade e fronteira pode ser compreendida a partir da dis-
cussão feita pelo historiador François Hartog em Memória de Ulisses461. No livro, o historiador faz
uma ampla análise das narrativas de viajantes pelo mundo, sejam eles “reais” ou literários. Hartog
demonstra como a relação entre memória e fronteira marca a invenção da própria cultura do viajante
que narra uma história. As categorias de estrangeiro ou bárbaro são compreendidas pelo historiador
francês como operadores intelectuais por meio dos quais os gregos puderam “dizendo o outro, pen-
sar a si mesmos”462. A diferença entre a análise das narrativas de viagem e da crônica escrita por um
ilustrado brasílico é evidente, considerando que não há um itinerário desconhecido e inventado a
ser acompanhado na crônica de Loreto Couto. No entanto, a relação entre a criação de fronteira e a
construção de identidade permanece a mesma, e a categorização do Outro ainda é feita com base na
operação civilização/barbárie. A viagem de Ulisses, mais do que um percurso por lugares desconhe-
cidos, é uma forma de produção de uma “antropologia grega”, que classifica os homens e os divide em
diferentes espaços. Nesse sentido, Odisseu trafega entre o espaço dos “homens comedores de pão” –
socializado e civilizado – e os espaços longínquos, onde habita o não-humano463. Tal como na Odisséia
o local da civilização é onde estão os “homens comedores de pão”, na obra de Loreto Couto, o Outro,
o não-humano, é todo aquele que não pode ser considerado valoroso à Pátria e à Igreja Católica. Todo
inimigo de Portugal e dos “verdadeiros” pernambucanos é bestializado.

A relação de civilidade/barbárie não é necessariamente constituída com base em distinção


étnica; pelo contrário, a fronteira que separa pernambucanos e inimigos engloba diferentes “nações”
em ambos os lados. Como demonstra o historiador Bruno Silva, a ideia de nação entre os cronistas do
século XVIII aproxima-se da ideia de raça e relaciona-se tanto aos caracteres físicos e costumes quanto
à divisão dos povos por meio da religião (mouros, judeus, cristãos)464. O reconhecimento da alteridade
indígena não constitui um problema para a construção da identidade pernambucana. Pelo contrário,
é justamente a partir deste reconhecimento que o cronista beneditino pode fazer a distinção entre
460COUTTO, Domingos do Loreto. Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco [1759].Edição fac-simila-
da, Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1981. p. 337.
461HARTOG, François. Memória de Ulisses: narrativas sobre a fronteira na Grécia Antiga. Tradução de Jacyn-
tho Lins Brandão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.
462Ibidem. p. 17.
463Ibidem. p. 32-35.
464SILVA, Bruno. Genealogias mazombas: castas luso-brasileiras em crônicas coloniais. Niterói: Eduff, 2016.
p. 155.

844
índios civilizados e bárbaros, bem como entre os diferentes níveis de civilidade dos povos do Velho
Mundo.

Desde o início do livro, Loreto Couto busca menos do que negar as diferenças dos indígenas,
compreendê-las à luz de um processo civilizatório mais amplo. Evidentemente, esta era uma maneira
de negar as generalizações sobre os índios brasis e justificar a miscigenação dos pernambucanos: no
sangue das melhores famílias de pernambuco corre o gene de alguns índios, que por tão virtuosos
puderam ser incorporados às famílias de origem portuguesa. Por outro lado, o beneditino mobiliza a
contradição entre civilização e barbárie como operação discursiva para demonstrar a diferença entre
índios fiéis e infiéis. Nesse sentido, há uma separação entre aqueles índios defendidos pelo religioso
como “ancestrais históricos”, homens primitivos que poderiam ser comparados aos primeiros povos
da Europa; e os índios bárbaros, cuja prova de selvageria estava na aliança com os inimigos da Igreja
e da Coroa. Tal dicotomia permite criar uma identidade que integre apenas alguns índios, enquanto
outros são excluídos da identidade pernambucana.

Continuando o tema das ações louváveis dos índios de Pernambuco, Loreto Couto destaca
a honra dos Potiguaçu, rendendo homenagens a diversos membros ilustres da família Camarão. O
cronista não só preocupa-se em narrar os feitos dos familiares de Filipe Camarão como dedica-se a
honrar esse índio que foi “terror dos holandeses, assombro de suas armas”465. Filipe Camarão talvez
seja a síntese do ideal de indígena que Domingos do Loreto Couto, e tantos outros cronistas brasílicos,
criaram para valorizar sua ascendência. O nobre índio, maior nome da guerra contra os neerlandeses,
fora tão ilustre que recebeu o Hábito de Cristo, título de dom e posto de governador geral dos índios
“sem petição de sua parte”466. Sua vida revela a retidão dos vassalos pernambucanos e a fidelidade dos
habitantes daquela província à Pátria portuguesa, pois é não só um exemplo de devoção à “verdadeira”
fé, como de dedicação aos interesses da Coroa portuguesa. Filipe Camarão não é o único índio exem-
plo de ilustração nas armas e nem na fé. Sobre esta última, temos os relatos acima descritos, além de
outros tantos narrados por Loreto Couto e que não caberiam nestas páginas.

Quanto às armas, o beneditino exalta o nome de muitos indígenas cuja participação fora fun-
damental para a conquista do território colonial. Sobre a província de Pernambuco, afirma que os
portugueses talvez não a tivessem conquistado, principalmente tendo contra si os Tupinambá, se não
fossem os valentes Tobayar, “a primeira [nação] que se pôs à nossa parte, apesar dos Tupinambás,
Caetés e Potiguaras, e outros muitos”467. A descrição das virtudes dos índios de nações aliadas a Por-
tugal, tanto na conquista quanto na guerra contra os holandeses, quando posta em contraste com a
dos inimigos da Coroa explicita bem a criação de uma fronteira por meio da relação civilização/bar-
bárie discutida anteriormente. Referindo-se aos índios Tamoios, por exemplo, afirma: “Era custume
dos Gentios Tamoios, servirem-se das mulheres prisioneiras para matéria da sua lascivia. Em conti-
nuos assaltos corriam pelos sertões aqueles bárbaros, com estrago de muitas aldeias dos Indios Cris-

465COUTTO, Domingos do Loreto. Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco [1759].Edição fac-simila-


da, Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1981. p. 342.
466COUTTO, Domingos do Loreto. Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco [1759].Edição fac-simila-
da, Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1981. p. 342.
467Ibidem. p. 38.

845
tãos.”468A ideia de gentilidade atribuída aos Tamoios fica clara não tanto pelo acontecimento quanto
pela forma como Loreto Couto narra os fatos. Por exemplo, quando o cronista escreve que era “costu-
me dos gentios Tamoios” violentar mulheres prisioneiras ou destruir aldeamentos de índios cristãos,
a intecionalidade da oposição entre brutos e civilizados se torna explícita – como se a violação das
mulheres fosse exclusividade dos “índios selvagens”.

Os Tamoios foram excelentes aliados para os holandeses, visto sua destreza e habilidade para a
guerra. Por seu valor nas armas, talvez pudessem ser considerados virtuosos em alguma medida. No
entanto, Domingos do Loreto Couto compreende que “a ousadia do coração, a intrepidez nos perigos
da guerra, separada de outras qualidades nobres que ilustram a natureza racional, não é tão própria de
homens, como de brutos, e mais deve chamar-se ferocidade que valor”469. O autor escreve esse trecho
logo no início da obra quando preocupa-se em defender todos os índios do Brasil. No entanto, tendo
em vista a aliança com os inimigos da Coroa, os índios Tamoios são considerados pelo beneditino
como sendo desprovidos de qualquer grau de racionalidade, assemelhando-se às feras; diferentemente
dos Tobayar e Potiguaçus, ou ainda do menino Jozé, morto pelos mouros em defesa do catolicismo.

Retomamos, portanto, a definição de François Hartog sobre o homem-fronteira, que classi-


fica os homens por meio de uma narrativa de civilização e barbárie. Loreto Couto, tal como Ulisses,
precisava definir sua própria cultura, ou mais precisamente, sua identidade. Para isso, não precisou
viajar e descobrir novos mundos, mas dividir o conhecido para justificar seu próprio lugar nele. Na
construção do pernambucano cabia e era positiva a presença do índio, mas de um índio específico,
associado a um ideal de nobreza e retidão cristã, que pode ser representado, por exemplo, na figura
de Dom Antônio Filipe Camarão. Qualquer um diferente disso era relegado ao espaço da não-huma-
nidade. Cabia ainda os heróis não nascidos naquela província, que no entanto “se fizeram naturais
de pernambuco” pela habitação e por suas ações ilustres em santidade – como afirma o autor em um
capítulo inteiro dedicado aos estrangeiros pernambucanos. A fronteira que separa pernambucanos e
não-pernambucanos é, portanto, traçada à luz dos aspectos que Loreto Couto considerava pertinentes
para a valorização da província diante da Coroa; isto é, vassalos ilustres em santidade, armas e letras.

Considerações finais

Na conjuntura de disputa por espaço e por mercês em que as elites brasis se encontravam,
tomar o índio como parte da sua formação genealógica foi uma saída encontrada para o problema da
promoção civil. O índio a que recorreram muitos cronistas para se diferenciar dos demais súditos foi,
em geral, um ancestral mítico. Na obra de Loreto Couto, esse ancestral não é necessariamente parte de
uma nobreza lendária, mas é heroicizado pela sua demonstração de fidelidade à Coroa portuguesa e à
Igreja, abandonando o estigma de bárbaro e inferior. Nesse sentido, ainda que os cronistas apresentas-
sem críticas às reformas implementadas pelo poder régio, elas estavam plenamente inseridas na lógica
de vassalagem do Antigo Regime. A construção de identidades regionais, antes de ser uma crítica ou
uma ameaça ao poder de Portugal sobre a colônia, era uma tentativa de aproximação destas elites ao
orbe do poder, cada vez mais difícil de ser alcançado; e nesse caso, forjar a imagem de um índio herói
468Ibidem. p. 465-466. (grifo nosso)
469Ibidem. p. 40.

846
e fiel era fundamental para aquelas elites mazombas. No caso de Domingos do Loreto Couto, o esforço
não teve efeito, visto que sua obra foi barrada na mesa do Marquês de Pombal e publicada apenas um
século mais tarde. Ainda assim, o Desgravos do Brasil e Glórias de Pernambuco é uma fonte rica para
a compreensão da forma como se constituiu a historiografia no espaço colonial setecentista.
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847
848
SIMPÓSIO TEMÁTICO 11
História e Direito: propriedade e direito de acesso na América Portuguesa

Coordenadores:

Marina Monteiro Machado

Gustavo César Machado Cabral

O processo de constituição das propriedades no Ceará colonial: indígenas, colonos e mis-


sionários
Darlan de Oliveira Reis Junior1
Introdução

Na América portuguesa, o processo colonizador resultou em uma sociedade que herdou con-
cepções clássicas e medievais de organização e hierarquia, porém com graduações que levavam em
conta a cor, a origem, a condição social, a ocupação profissional e principalmente, a distinção jurídica
entre livres e escravos, com princípios hierárquicos baseados na escravidão (SCHWARTZ, 1999: 209).
Durante a maior parte do período colonial, as regiões não se interligavam nem do ponto de vista ad-
ministrativo, e, com suas peculiaridades geraram diferenças importantes entre si. No entanto, havia
certa unidade, fruto da ação estatal na colonização portuguesa, também pela ação da Igreja Católica e
na constituição de uma formação social escravista.

Apesar dos elementos que mantinham a unidade, configurando a totalidade da formação


social brasileira, as diferenças entre as regiões foram objeto da análise dos historiadores. Os modelos
explicativos centrados na questão do latifúndio, na agricultura exportadora, no trabalho escravo e na
monocultura deram a sua contribuição ao conhecimento de uma das formas de apropriação do es-
paço. No entanto, o desenvolvimento da pesquisa acadêmica indicou a existência da diversidade das
estruturas agrárias, das formas de apropriação e posse e relações de trabalho em suas diversas formas.
Márcia Menendes Motta e Elione Silva Guimarãesabordaram a questão do avanço qualitativo dos es-
tudos que rediscutiram o passado rural brasileiro, abordando a importância do mercado interno, das
relações de trabalho, das estratégias de sobrevivência dos pequenos produtores e dos escravos. Levan-
do em consideração a diversidade das atividades econômicas, hábitos culturais, diferenças climáticas
e geográficas existentes no território do que constitui o Brasil, a pesquisa histórica tem muito em que
caminhar e contribuir (MOTTA;GUIMARÃES, 2007).

Não obstante a importância da escravidão para o processo de colonização (GORENDER,


2010), existiu um mosaico de formas não capitalistas na formação social: um escravismo ligado ao
abastecimento interno, uma unidade camponesa que podia utilizar escravos ou não, e, uma produção

1 Professor Adjunto da Universidade Regional do Cariri. Bolsista CAPES em Estágio de Pós-Doutorado na


Universidade Federal Fluminense. Membro da Rede INCT-Proprietas.

849
que se valia do uso de trabalhadores livres sob a forma de trabalho nãoassalariado. Segmentos estes,
subordinados à formação econômico-social ligada ao mercado internacional (FRAGOSO, 1998). Nes-
se processo, surgiu uma estrutura rural que definiu em parte a organização social, as formas de apro-
priação, as formas de trabalho, as desigualdades e hierarquias nas diversas regiões brasileiras.

Francisco José Pinheiro, ao analisar a formação social cearense entre os séculos XVIII e XIX,
procurou observar como se deu a incorporação daquela província a outras áreas do Nordeste. Segun-
do ele:

No Ceará, a situação era mais complexa socialmente; aqui se constitui uma parcela
que representava por volta de 10% da população, que eram os fazendeiros, criado-
res de gado, que detinham o monopólio da terra, um meio de produção essencial
em uma economia agropecuária, mas também como um instrumento importante na
construção das relações de poder. A condição de proprietário, criador de gado, escra-
vista, definia a identidade do setor dominante. Na outra ponta, estava uma parcela
quase equivalente de escravos, inicialmente predominantemente de origem indígena
e, posteriormente, no período em análise, com predominância de africanos e seus
descendentes. O terceiro grupo social, composto pelos despossuídos. (PINHEIRO,
2008: 21).

A origem deste processo se deu com a expropriação das terras indígenas, ao mesmo tempo
em que era estabelecida a escravidão africana e era gerada uma população excluída do acesso a terra,
o campesinato pobre dos sertões cearenses. Processo que não esteve restrito ao território da capita-
nia do “Siará Grande”, mas por todo o espaço setentrional do que hoje é reconhecido como Nordeste
brasileiro. Segundo Guillermo Palacios, a ofensiva do Estado Colonial contra os pequenos lavradores
nos séculos XVII e XVIII foi montada em um tripé de instrumentos expropriatórios – proibição de
determinados cultivos; apropriação das terras de mata virgem localizadas entre a então Comarca de
Alagoas e os arredores da vila de Fortaleza; recrutamento militar dirigido preferencialmente contra os
distritos camponeses (PALÁCIOS, 2009:157).

O binômio expropriação-apropriação: entre a resistência e o privilégio

Os colonizadores atuaram como agentes da Coroa Portuguesa ao estabelecerem o processo


de aproximação com os nativos, com o objetivo de usá-los como reforço, tanto para suas conquistas
como também nos aldeamentos. O processo de aldeamento ligado às solicitações de terras mediante
o sistema de sesmarias, os serviços de mercê e privilégios, a tentativa de estabelecer amizade com os
nativos revelam que tais práticas contribuíram intensamente para a apropriação das riquezas e para a
geração de conflitos na capitania Cearense:

No século XVI, varias outras capitanias do Brasil já haviam sido devassadas, porém
as terras cearenses só entraram efetivamente nos interesses da Coroa Portu-

850
guesa e dos colonizadores no Século XVII. [...]Em 1618 Martim Soares con-
siderado pela historiografia tradicional como o desbravador do Ceará,

na época ex capitão-mor, fez um requerimento à Coroa Portuguesa, pedindo


meios para reconstruir o fortim, no qual expressou também o interesse em se
apropriar das terras principalmente próximas as margens dos rios, e a estratégia
de amizade com os nativos. Considerava as terras boas tanto para o engenho como
para criação de gados, porém a colonização do Ceará se deu fundamentalmente pela
pecuária. (ROMÃO; REISJR., 2016: 4)

No ano de 1724, os Genipapuasú que habitavam o sertão cearense, sofreram um ataque por
parte do governante do Ceará. O rei de Portugal cobrava explicações ao Capitão Mor da Capitania de
Pernambuco, sobre os possíveis excessos do Capitão Mor da Capitania do Ceará.

Dom Joam por graça de Deos Rey de Portugal, e dos Algarves [...]. Faço saber avos
Dom Manoel Rolim de Moura Governador e Capitão General da Capitania de Per-
nambuco, que sevio aqueles por destes em carta de vinte e três de outubro do anno
passado à ordem que vos foy sobre informardes com toda a exacção da guerra injusta
que se me fez presente, mandou fazer Salvador Alzs da Sylva, sendo Capitão mor do
Ceará aos Tapuyas GenipapoAsú na Vila do Jaguaribe, achando que ella foy injusta e
se executarão as violências de que fuy informado, que não só fizessey restituir à sua
liberdade todos os Ìndios, que se romarão nella, mas que orderna-lhes, que se desse
logo bayxa aos cabos, que forão a esta expedição por executarem a impiedade de os
tirarem do Sagrado da Igreja a que se recolherão esses Índios protestandolhe o Pe
Missionário, não obras sem huá acção tam impia e irreverente ao respeyto que devem
ter a Deos N. Senhor todos os Catholicos, [...] Três de Mayo, de mil settecentos, vinte,
e quatro. (PINHEIRO, 2011:143)

No processo de ocupação do território, os povos indígenas só poderiam ser escravizados sob


a acusação de “guerra justa”, ou seja, os considerados ferozes, que ameaçassem os colonizadores. Os
nativos que estivessem em aliança com os portugueses ou submetidos e “pacificados”, não poderiam
ser reduzidos ao cativeiro. Porém, as normas eram constantemente burladas. Em julho de 1725, o Ca-
pitão Mor de Pernambuco respondeu ao rei Dom João:

He V. Magde servido ordenar me por esta sua real carta [...], já dei conta a V. Magde que
para se averiguar o procedimento que houve na dita guerra encarreguey ao Ouvidor
Geral da Capitania do Ceará tirasse devassa do succedido para castigarem, os culpa-
dos; e como o dito Ouvidor não tirou a dita devassa por se retirar da dita Capitania
por causa das sublevações que tem havido, a não remeto a V. Magde. Pernambuco 6 de
julho de 1725. (PINHEIRO,2011:144)

Naquele momento, as guerras pelo controle dos sertões nas capitanias do Norte se multipli-
cavam. A luta contra os nativos considerados ferozes, principalmente os “tapuias”, significou um pro-
cesso de dizimação de vários povos. A resistência indígena contra a usurpação de seus territórios re-
sultou na incursão bélica que provocou um verdadeiro genocídio prolongado por mais de dois séculos
(Oliveira, Antonio 2017: 20). O termo tapuia já aparecia no primeiro século da colonização, a designar
toda uma diversidade de línguas, de usos e costumes de grupos indígenas que habitavam os sertões.

851
A noção e o conceito de Tapuia, como sendo de um povo bárbaro, adversário e ini-
migo comum foi então construída historicamente, isto é, criada no próprio contexto
colonial, tanto a partir do texto das crônicas e relatos dos viajantes, como também
nos documentos oficiais. (OLIVEIRA, 2017: 38).

A resposta do Capitão Mor de Pernambuco ao Rei de Portugal demonstra o quanto custou


aos Genipapuasú viver nas ribeiras do Jaguaribe. Nas capitanias do Norte, a política de combate aos
nativos considerados bárbaros justificava a obtenção de privilégios no recebimento das terras, através
da doação de sesmarias. A concessão servia como uma estratégia de poder para legitimar a proprieda-
de e à medida que a ocupação ia aumentando os conflitos e resistências dos nativos também se inten-
sificava. A guerra contra os povos nativos passou a ser utilizada como uma justificativa para solicitar
mais sesmarias. Em 12 de fevereiro de 1682, o Coronel Antonio de Albuquerque da Camara, o Padre
Paulo da Costa e outros trinta requisitantes, solicitavam terras no Ceará.

Registo da data e seismaria que o mtre. de Campo General foi servido doar e confir-
mar tanto nesta capitania como na do Rio Gde. ao Cel. Antonio de Albuquerque da
Camara e o Rdo. Padre Vigro. Paulo da Costa e a trinta Pessoas mais seus companhei-
ros. [...] que elles Pesuem Cantidades de Gados Vacuns e Cavalares e outras criasõins
e não tem terras suas em que posam Situar de que recebem perda e peijuizio a fazen-
da Real e hora tem descuberto nos Confins do sertão desta Capitania do Rio Grande
e Ciara distante mais de sem legoas desta Cidade do Rio Grande e no Jaguaribe Charo
Paneminha que hu puro Ibugini pabu que todos distão de huns aos outros poucas Le-
goas muitas terras devalutas e desaproveitadas as quais descubriram elles Suplicantes
com grandes Risco de suas vidas dispendio de suas fazendas por serem habitadas de
varias nasõins de Gentios Barbaros que athe o prezente não tiverão Comunicasão
de Gente Branca em Os quais podem elles suplicantes acomodar seus Gados no que
fazem a S. Alteza que Deos Guarde Grande Serviso no aumento de suas Rendas e
em Cultivarem as terras e Romperem os Sertões [...]. (Arquivo Público do Estado do
Ceará, 2006, v.1: 59-60)

O combate aos “bárbaros do sertão” servia assim de justificativa para o sistema de privilégios
e mercês. A relação entre o combate aos indígenas, a expansão da criação do gado bovino, o envolvi-
mento de militares e religiosos como postulantes às sesmarias e a expulsão das nações consideradas
selvagens para pontos distantes dos sertões é direta. Enquanto antigas formas de relação com o espaço
eram destruídas, novas formas baseadas no regime jurídico português eram estabelecidas por toda a
América Portuguesa. O processo de expropriação das formas indígenas pode ser observado na docu-
mentação dos Avulsos do Conselho Ultramarino.

Diz Jorge Correia da Silva cavaleiro professo da ordem de São Bento de Avis capi-
tão-mor, que foi da capitania do Ceará por patente de Vossa Alteza que pela referida
patente [...]. Outrossim foi o primeiro, que pegou em faxinas para dar exemplo aos
soldados, facilitndo-se ao trabalho delas, assim mais na era de 71 mandou debelar a
nação dos paiacus, tapuias de corso, o qual tentava destruir as aldeias avassaladas,
passando seu atrevimento a ameaçar o poder da fortaleza, fazendo muitos insultos
pelas estradas, matando os correios, que do Ceará iam para Pernambuco [...], era

852
serviço de Deus e de Vossa Alteza destruir-se aquela nação para o sossego daquela
capitania que não eram os índios senhores de se alargarem com o cuidado do inimigo
dando parte ao governador, que era então Fernando de Sousa Coutinho, aprovando
a eleição os mandei destruir, matando mais de 200 e aprisionando a muitos com que
ficaram nossas aldeias sossegadas, fabricando os índios suas lavouras, livres em mui-
ta parte do apenso, que tanto os perseguia. (SOARES;FERRÃO. vol. I (1618-1698)
Tomo I (1618-1698), 2011:163-165)

Porém, não foi sem resistência que o sistema de distribuição de sesmarias foi implementado
nos sertões. As nações procuravam diversos meios de luta, não somente a guerra, mas também deslo-
camentos, alianças com outras etnias, com colonizadores holandeses ou franceses. Sentidos diversos
sobre o território e sobre as formas de uso e apropriação do espaço confrontavam-se (OLIVEIRA,
2017: 51).

Ultimamente dizem estes índios, q. quando seus avós se retirarão antigamt. da Bahya
vieram em compª deles outros dous principais com numerozas famílias, os quais pas-
sando o Ryo de S. Francisco se cepararam deles, e se embrenharam nas dillatadas
Serras do Araripe aonde hamais de cem anos vivem escondidos, e poderám passar de
quatro mil almas. O q. posto querem eles ir descubrillos nam so pª fazer Christãos,
mais pªtam bem com eles augmentar o número dos Vassalos de V.Magde. o q. não
podem fazer semq Vossa Real Magestade seja servido de lhes dar algum adjuntorio
de armas de fogo, polvora e chumbo pª atropa se defender de muitas naçoenss de
tapuyas brabos daqueles desertos, he sesustentar de hesas hum anno [...].(AHU –
Documentos para o Ceará, in: Oliveira, Antonio 2017: 53)

Em diferentes momentos, os nativos utilizavam das regras impostas pelos colonizadores para
tentar garantir algum direito, tal seja no controle de algumas funções nos aldeamentos, no direito em
não ser escravizado, ou pelo acesso às sesmarias. No entanto, as terras destinadas aos indígenas eram
claramente inferiores em qualidade ou em tamanho. As relações sociais estão ligadas às formas de
propriedade. A propriedade é reflexo, produto e fator das relações sociais existentes (Congost, Rosa
2007: 19). A luta dos indígenas, nas condições que se apresentavam naquele contexto, confirma a pro-
posição de Congost. Em correspondência datada do ano de 1708, Cristóvão Soares de Reimão narrava
a demarcação de terras indígenas no Ceará, na serra da Ibiapaba e nas ribeiras de Camocim.

Depois de ter medido a terra da aldeia dos Tapuias, Acoansus, e indios Tobajaras na
serra da ibiapaba, onde achei 400 casaes, e duas mil almas, além dos Tapuias que são
duzentos, com quem assistem por missionarios dous padres da Compa de Jezus, vim
a Ribeira do Camossî onde me aprezentarão um data de duas legoas pa a dita missam;
por se haver dado outras antecedentes determinei judicilamente so huã pa os ditos
missionarios, que requerendo-me a medição della pagaram o salaro aos officiaes que
importou trinta e tantos mil rs, por não ser terra para indios. Esta terra, e Ribeira

853
fica distante dez legoas da aldea, como dos ellas não há outra capaz de criar vacas; o
rio, ou mar para peixe lhe fica mais distante, onde se vão prover pa a coresma a dita
serra supprindo bom sustento e cannas [...] e não serem na dita serra bicho, nem que
porque os ditos índios tudo matão as frechadas, e elles mesmo pre si vão dar guerra
aos Tapuyas bravos sem brancos a vista do que me pareceo (...) fazer (...) a V magde
que o dito salarios se devia tornar aos ditos missionarios havendosse da fazenda real,
e aliviados de nã pagarem dizimos de gado tão somente que nella se criasse a dita
missão [...]. (PINHEIRO, 2011: 77)

Ao mesmo tempo, a política de aldeamentos serviu para controlar e reduzir drasticamente o


território indígena. Foi através dos aldeamentos que os missionários buscavam impor a religião cató-
lica aos índios e modificar a cultura indígena. Com a instituição da Junta das Missões de Pernambuco,
no ano de 1681, o processo de conversão da população considerada “bárbara” foi acelerado (OLIVEI-
RA, 2017:179). Em carta datada de 15 de maio de 1696, o Padre João Leite de Aguiar relatava ao Rei
sua participação no terço para aldear indígenas, tanto no Rio Grande do Norte, quanto no Ceará, nas
ribeiras do Jaguaribe. Destacava o religioso, os conflitos entre os capitães mores e os missionários.

[...] o dito terço q. contava de seiscentas pessoas entre Paulistas, Índios e Cativos par-
timos a conquista do Rio Grande do assú, e Jaguaribe, ribeiras que constavão infesta-
das, e destruídas peloo gentio bárbaro levantados e penectrando o vastissimo sertam
do Brasil por distancia de novecentas legoas pouco mais ou menos, assesti no servcós
de Deus e de V. Magde [...]. Os reduzi e aldehei sinco legoas distante da fortaleza do
Ceará, os quais sam em numero seiscentos e trinta almas: Baptizei dos Inocentes tre-
zentos e vinte e seis e dos adultos quatro casaes, e os mais são cathecumenos, q. em
sabendo a doctrina serão da mesma sorte baptizados: com que de todos fructos foi
o mais útil treze dos inocentes que depois de baptizados falecerão e estão já gozando
de dva; e tres dos adultos q. baptizei in extremis que gozarão da mesma felicidades.
(PINHEIRO, 2011: 62-63)

As ações da Igreja Católica aumentaram, o que exigiu maior tutela sobre os indígenas, inclu-
sive com a instituição de uma língua geral nos sertões das Capitanias do Norte, e ao que tudo indica,
os Kariri foram escolhidos (OLIVEIRA, 2017:175). Segundo Oliveira, um catecismo na língua Kariri
foi instituído, tendo sido um importante instrumento para a reelaboração da realidade sociocultural
dos indígenas.

A política missionária afirmava a evangelização e a procura em manter os nativos “prote-


gidos” da escravização por parte dos colonos, ou da omissão do estado. Desse modo, os relatos de
religiosos denunciando os abusos contra os indígenas, eram comuns. No ano de 1720, o Conselho
Ultramarino fazia consulta ao Rei D. João V, sobre a denúncia feita pelo padre Domingos Ferreira
Chaves, clérigo do hábito de São Pedro, missionário-geral e visitador-geral das missões da parte norte
do Ceará, que acusava as guerras injustas contra os índios do Piauí, Ceará e Rio Grande, a partir da
denúncia de outro clérigo, o padre Antônio de Sousa Leal.

854
Que estas guerras as mandam fazer os capitães-mores todas às vezes que se lhe antoja
e lho persuada a sua ambição e a dos moradores, porque todos são interessados nos
cativeiros dos pobres índios; e ainda os estão aldeados e tem clérigos por seus missio-
nários, são vexados pelos capitães-mores com grandes violências e injustiças porque
os obrigam a que lhe trabalhem pª eles sem estipêndio e sem sustento ocupando os
índios em pescas, em lavrar mandioca, cortar e conduzir madeiras, e as índias em
lhes fiar algodão e o mesmo fazem também em parte os soldados dos presídios e os
moradores, e roubando as mulheres e filhas, com tal devassidão e soltura como se
tudo foram atos muito lícitos, e não merecessem, nem castigo, nem repreensão; e
como naquelas capitanias não há ministro algum de justiça que tome conhecimento
destas violências e das mortes, assaltos e assuadas que se dão os portugueses uns aos
outros, matando-se e despojando-se mutuamente cresce cada vez mais aquele caos,
e as vozes de alguns missionários ficam sendo clamores vãos em deserto. (SOARES;
FERRÃO vol. II (1720-1731), Tomo I (1720-1726), 2011: 10)

O padre Antônio Leal denunciava também o que via como “vagabundos”, na verdade, pobres
livres ou libertos que se constituíam nos sertões cearenses, a partir do processo de colonização.

E como nesta capitania há muitos portugueses, mulatos e mamelucos que andam


vagabundos sem ocupação nem domicilio vivendo como ciganos a que ali chamam
peralvilhos os quais são de grande encargo e prejuízo, não só aos índios, mas ainda
aos mesmos brancos; por que vivem e se sustentam a custa alheia, com embustes, vio-
lências e roubos, será preciso que se ordene ao ouvidos que por editais, e o governa-
dor por bandos os notifiquem para que todos dentro de três meses tomem ocupação
e domicílio certo, e que não o fazendo sejam presos e mandados para Pernambuco
para dali serem remetidos da cadeia para Angola para reencher o 3º da guarnição da-
quele reino. (SOARES;FERRÃO, vol. II (1720-1731), Tomo I (1720-1726), 2011: 16)

Ao sul do Ceará, na região conhecida por Cariri, a expropriação das terras indígenas e a
apropriação através da doação de terras. As sesmarias serviam como uma estratégia de poder para le-
gitimar a propriedade e à medida que a ocupação ia aumentando os conflitos e resistências dos nativos
também se intensificava.

A exploração de terras seguia seu percurso, e a região do Cariri localizada no Sul


Cearense foi alvo de interesses. Dentre os quatro volumes das datas de sesmarias
analisadas referentes ao Ceará, encontra-se um número de vinte datas referentes à
região do Cariri cearense. Nas margens do Rio Salgado, principal afluente da margem
direita do rio Jaguaribe, no Riacho dos Porcos, foi um dos rios bastante disputados
por garantir um suplemente hídrico que contribuía para a criação de gados e para
plantação. [...] Os sesmeiros viam os índios Cariris como habitantes do lugar, no en-
tanto, ao solicitar as terras, diziam que as mesmas estavam devolutas e desaproveita-
das, e que, eram muito boas para a criação de gado, negando os Cariris direitos sobre
as terras. O olhar dos que vieram se apropriar era sempre de que o território estava
livre para os seus interesses. E o Cariri, assim como toda a capitania cearense, foi pal-
co desse olhar, o qual negligenciou a presença nativa. (ROMÃO;REISJR., 2016: 10).

855
A propriedade sesmarial representou um instrumento importante na construção das relações
de poder. O monopólio da propriedade, tanto da terra quanto da humana (escravizados), a explora-
ção dos nativos e dos pobres livres eram fundamentais na consolidação da desigualdade social que
se afigurava nos sertões cearenses no período colonial. Na segunda metade do século XVIII, com a
expulsão dos jesuítas e com a implementação do Diretório dos Índios, o conflito intensificou-se.

Compreender a dinâmica de ocupação da terra por meio das relações que envolvem
as diferentes formas de possuir, de díspares domínios, é, sem dúvida, uma tarefa de-
licada, pois envolve querelas, em que atores sociais desiguais se enfrentam em uma
disputa que envolve desde poder político até a sobrevivência cotidiana. (MOTTA;
MACHADO, Marina 2017: 265)

Durante o período pombalino, foi instaurado o diretório de índios, este diretório foi uma lei
elaborada em 1755, e tornada pública em 1757, por D. José I, rei de Portugal, através de seu ministro,
o Marquês de Pombal, que dispunha sobre os aldeamentos indígenas, elevando estes à condição de
vilas ou aldeias, administradas por um diretor. Dentre algumas características desse diretório estava
a lei de que todos os índios deveriam ter sobrenome português e seriam reconhecidos como vassalos
da coroa portuguesa. Com a expulsão dos padres da companhia de Jesus a administração dos aldea-
mentos ficou sobre a responsabilidade de diretores. Os diretores tinham a dupla função de administrar
e civilizar os índios. O objetivo era reduzir a autoridade dos padres, e estimular o casamento entre
indígenas e colonos. Assim, queriam civilizar os índios transformando-os em trabalhadores ativos.

O diretório foi uma importante estratégia no processo de consolidação dos limites territoriais
da colônia portuguesa, pois, ao transformar os indígenas em vassalos da coroa portuguesa justificava
que as terras do norte conquistadas em disputas com a coroa da Espanha eram ocupadas por vassalos
do rei de Portugal. A política pensada pela Coroa Portuguesa era a de aumentar a produção agrícola
nas capitanias e incorporar os índios aos setores produtivos. Segundo Rones Duarte, a política pom-
balina no Ceará resultou no avanço dos colonizadores através da pecuária (DUARTE, 2012: 55).

Novas formas de exploração dos nativos e outras práticas de expropriação se faziam presen-
tes. Ao sul do Ceará, a política de incorporar os nativos à sociedade dos “brancos” agravou a situação
das comunidades. Ao regulamentar o trabalho indígena, proibir o uso da língua nativa e promover a
presença dos brancos nas terras indígenas, deixou os índios em condição mais vulnerável.

Achando-se justa a representação que Vmcê me faz da transmissão dos Índios da


povoação de Arneirós e Crato para Arronches por ter fundamento utilidade da Fa-
zenda Real e bem comum dos ditos índios e o benefício publico dos moradores da
referida villa do Crato; aprovou a sua muda a qual Vmcê mandara fazer na forma que
me expreça igualmente aprovo as providências que Vmcê, deu e constam do plano
que me remeteu sobre o augmento com que Vmcê se empenha para a civilidade da
mencionada viça. Recife, 23 de março de 1779, José César de Menezes, Senhor Dr.

856
José da Costa Barros. (BEZERRA, 2009: 233)

Na análise de Antonio Oliveira, destaca-se o aumento da vulnerabilidade dos Kariri aos po-
tentados rurais, que para o cultivo da cana de açúcar, avançaram sobre as terras indígenas. “Simples-
mente a elite local forçou que abandonassem aquele território, já que, no documento de doação de
terras para a missão, havia um termo alertando que se os Kariri saíssem dali as terras voltariam aos
antigos proprietários ou seus herdeiros” (OLIVEIRA, 2017: 195).

Os indígenas que já haviam perdido o domínio das terras desde a chegada dos colonizadores,
experimentaram a política missionária, em seguida, o Diretório dos Índios.Durante o período em que
os diretórios funcionavam foram feitas inúmeras denúncias contra os abusos de autoridades cometi-
dos pelos diretores alguns viviam em mancebia, mandando prender e soltar ao seu arbítrio, obrigando
funcionários a trabalharem sem receber o jornal. O abuso contra os nativos era tamanho que até os
moradores das vilas os encaravam como escravos vendendo inclusive índios livres como tais. Existiam
leis para proteger os índios, mas muitas foram burladas pelos diretores e proprietários por não esta-
rem de acordo com os interesses dos proprietários.

A questão proposta por Congost - de se perguntar em cada momento e espaço quais direitos
eram contestados e quais direitos eram reivindicados, e, por quem - é fundamental. Da perspecti-
va plural dos direitos de propriedade, a violência pode significar, também, expropriação, ou muito
frequentemente, resistência à expropriação. (CONGOST, 2007: 57). Na busca da escrita da História
Social do Ceará, compreender o processo de expropriação e apropriação e seus resultados é condição
fundamental para uma correta análise. Os privilégios e benefícios recebidos por famílias de militares,
religiosos ou de criadores de gado com alguma riqueza, não aconteceu sem a resistência indígena, na
luta por suas terras, culturas e por sua liberdade.

Referências
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2006.

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Serra da Ibiapaba ao rei D. João V, a pedir o alargamento das suas terras, da ladeira da Uruoca até ao lugar
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858
O processo de consolidação da conquista e ocupação da parte oriental do Maranhão e no
Piauí (segunda metade do século XVII e primeira metade do século XVIII)
Samir Lola Roland2

A história do Piauí poderia ser dividida em duas histórias perfeitamente distintas: a


dos sesmeiros e a dos posseiros. A dos titulares do domínio das terras e a dos povoa-
dores efetivos. A dos que viveram perto das cidades e dos governos longânimos, e a
dos que sofreram as asperezas e sacrifícios da ocupação do território, que os índios e
os perigos infestavam3.

Desde a segunda metade do século XVII, a Coroa portuguesa procurou instalar e garantir a
presença de suas instituições administrativas, religiosas e militares nos “sertões” orientais e ocidentais
do Maranhão e do Piauí, com a finalidade de um melhor aproveitamento econômico da terra que
gerasse um aumento nos rendimentos régios. Esse processo de consolidação da conquista significou,
portanto, o estabelecimento, ou pelo menos, a tentativa de estabelecimento de um controle político,
administrativo, religioso, militar e econômico dos territórios anteriormente conquistados e assegura-
dos por meio da distribuição de cartas de sesmarias a senhorios locais, a exemplo de Francisco Dias
de Ávila e seus descendentes, detentores do patrimônio da Casa da Torre.4

Durante a segunda metade do século XVII, a conquista do sertão do rio São Francisco, sob
a orientação dos governadores do Estado do Brasil, contou geralmente com as ações realizadas por
conquistadores da Casa da Torre, dentre os quais podemos citar: Domingos Afonso Mafrense, Julião
Afonso Serra e os irmãos Francisco Dias Ávila e Bernardo Pereira Gago.5 Em 1674, esses indivíduos
receberam a extensão de 40 léguas de terras em cartas de sesmarias doadas pelo governador de Per-
nambuco como recompensa pelos seus serviços prestados no combate aos grupos indígenas localiza-
dos nas proximidades do rio São Francisco.6Dez anos depois, a Casa da Torre e seus sócios solicitaram
novamente ao governador de Pernambuco da época, mais 5 cartas de sesmarias no sertão do Piauí: a
primeira deveria medir 40 léguas, a segunda 25 léguas, a terceira 12 léguas e aquarta 60 léguas, acu-

2Mestre em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará. E-mail: samirlola@gmail.com. A
pesquisa contou com o apoio financeiro da Capes.
3LIMA SOBRINHO, Barbosa. O devassamento do Piauí. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1946, p.129.
4 No que se refere a Francisco Dias de Ávila e seus descendentes, ver: PESSOA, Ângelo Emílio. Ruínas da Tradi-
ção: A Casa da Torre Garcia D’Ávila – família e propriedade no Nordeste colonial. São Paulo: Tese de doutorado
em História: FFLCH/USP, 2003.
5 Nesse sentido, ver: ALENCASTRE, José Martins Pereira de. “Memória cronológica, histórica e corográfica da
Província do Piauí”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XX (1857).
6Ibidem.Nesse mesmo ano, segundo Odilon Nunes, Francisco Dias Ávila e Domingos Rodrigues de Carvalho,
foram líderes de uma tropa de guerras que buscaram “escaramuças contínuas” contra indígenas canoeiros que
se encontravam no rio Salitre. Ocasião em que penetraram o Piauí e os sertões do Parnaguá, alcançando o rio
Gurgueia. NUNES, Odilon. Pesquisas para a História do Piauí. Teresina: FUNDAPI; Fundação Monsenhor
Chaves. pp. 87-88. 2007.

859
mulando assim imensas extensões de terras ainda no final do século XVII.7

Além da participação de senhorios advindos da Bahia, como Francisco de Ávila e Pedro Bar-
bosa Leal, os eventos de conquista no sertão do Piauí contaram também com paulistas,como Manuel
Álvares de Morais Navarro, Matias Cardoso e Domingos Jorge, que atuaram combatendo indígenas
e solicitando cartas de sesmarias para o estabelecimento de currais de gado na região, no período do
final do século XVII e início do século XVIII. No entanto, é Francisco Dias de Ávila quem predomina
nas narrativas clássicas desse período, sendo conhecido como senhor de maior parte daquelas terras,
recebendo-as pelos seus serviços prestados à Coroa portuguesa, por meio da condução de salitre, ser-
vindo com seus animais (bois, cavalos) e naguerra aos indígenas da região.8

De acordo com Laura de Mello e Souza, ao estudar as relações sociais e de poder em Minas Ge-
rais na segunda metade do século XVIII, as distâncias em relação aos centros de poder eram um dos
fatores principais para que os habitantes da colônia conspirassem contra o poder régio e as propostas
normatizadoras da Metrópole. Nesse sentido, questionou a autora:

comointrojetar o poder e as normas nas lonjuras do sertão? Como enquadrar os po-


tentados, contornar o desejo de mando das Câmaras Municipais, ordenar a popula-
ção heterogênea composta de várias gamas de mestiços, conter a violência sempre
represada do contingente escravo?9

Nos sertões do Maranhão e do Piauí, tais questões parecem ter sido preocupação da Coroa
portuguesa e suas autoridades régias, desde o final do século XVII, perdurando praticamente durante
toda a primeira metade do século XVIII. Incialmente, os sertões do Piauí e parte dos sertões do Mara-
nhão estiveram sob jurisdição do governo-geral do Brasil, que procurou controlar as relações que ali
se constituíam. Essa tentativa de controle político e econômico comandado pela Coroa portuguesa e
suas autoridades régias se constituía como uma preocupação com a defesa, a administração político-
-econômica e com relação à justiça e ocupação da terra na região.

No início do século XVIII, por exemplo, o rei D. Pedro II, em missiva enviada ao governador-
-geral do Estado do Brasil, D. João de Lencastre, destacava que a capitania da Bahia não deveria se
comunicar pelos sertões com as minas de São Paulo. Nesse sentido, deveriam as autoridades régias
impedir que se pudessem ir buscar gados ou outros mantimentos na capitania da Bahia, bem como
de os levarem para as minas. Para isso, foram encarregados os Provedores que administrassem o que
ocorresse na região das minas, examinando a entrada dos produtos que vinham do sertão da Bahia.
Além disso, ao terem notícia, as autoridades deveriam fazer buscas, autos e que tomassem por perdi-
do; tal procedimento que estava fundamentado no Regimento da Alfândega da cidade de Salvador,
dava conta da investigação e denúncia sobre todos os produtos que entrassem na capitania. As de-
núncias eram da incumbência da justiça e os cabos militares ficavam responsáveis pela vigilância da
7Mapa das sesmarias que a Casa da Torre e seus sócios pretendem no sertão do Piauí. 13/10/1684. AHU, Piauí.
cx. 1, doc. 2.
8 CALMON, Pedro. História da Casa da Torre: Uma dinastia de pioneiros. 1549-1835. (Coleção documentos
brasileiros, 22). Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1941. pp. 132-135.
9SOUSA, Laura de Melo.Norma e conflito: Aspectos da História de Minas no Século XVIII. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2006. p. 86.

860
comunicação desse sertão.10

Segundo Ângelo Alves Carrara, a estrada que ligava a Bahia ao rio São Francisco desde o
final do século XVII, mas sobretudo, nos anos iniciais do século XVIII, de 1704 a 1711, foi alvo de
um intenso processo de fiscalização dos produtos que entravam e saíam da capitania. Nesse processo,
muitos produtos foram confiscados durante os carregamentos. De acordo com o autor, “com exceção
da roupa do corpo, tudo o mais é confiscado”. Os objetos menos comuns de serem confiscados eram
escravos e gados, mas igualmente com eles isso ocorria. Cabe ressaltar que diversos interesses estavam
em jogo nesses processos, pois, de acordo com o autor, havia ações tanto dos denunciantes como dos
arrematantes que pareciam agir em conjunto. Outro fator importante a ser destacado, é que teria sido
o aumento do comércio na capitania que motivou o levantamento da proibição de muitos produtos e
mercadorias que transitavam entre as capitanias.11

No que diz respeito à ocupação, povoamento e na solução dos conflitos fundiários nos sertões
do Maranhão e Piauí, a Coroa portuguesa e suas autoridades régias buscaram ordenar o uso e a posse
da terra na região. No final do século XVII, por exemplo, constata-se um incentivo por parte das au-
toridades régias da Bahia em relação ao controle do povoamento local. Em um parecer do Conselho
Ultramarino de 18 de dezembro de 1698, foram destacados alguns pontos necessários sobre a impor-
tância da fundação de Paróquias e a criação de Cabo de Milícias que atuassem a serviço da população.
Um dos primeiros pontos a serem observados era que se retirasse a légua em quadra no meio das
vinte léguas de cada freguesia que tinham sido dadas a uma pessoa. Nesse local, ou seja, no centro da
freguesia, se fundariam as Paróquias, com as mesmas distâncias.12

O Conselho considerava que todas as pessoas que tivessem terras perderiam essa parte de
suas datas, com a finalidade do bem comum de toda população. Nesse sentido, as terras deveriam ser
distribuídas sem prejuízo de terceiros. Todos, inclusive os indígenas, concorreriam às terras, contanto
que pagassem dízimos da cultura que produzissem no local. O segundo ponto a ser considerado era
que se criassem Cabos de Milícia que fossem encarregados da proteção dos juízes que deveria haver
de cinco em cinco léguas e que recebessem penas se faltassem ou resistissem aos juízes.13

Em outra missiva escrita ao governador-geral do Brasil João de Lencastre, o rei D. Pedro II-
ressalta os “danos espirituais” que experimentava o Estado por falta das missões religiosas e de quem
administrasse a justiça “aos que vivem nos dilatados sertões dele em sua liberdade”, pois na região se
presenciava de “tão exorbitantes excessos que obrigam aos que amam a quietação e retiram-se, ficando
as terras só povoadas dos malfeitores”. Para solucionar este problema, o rei alegava que tinha mandado
formar em cada Freguesia dos “sertões” um juiz e juízes de vintena (“um dos mais poderosos da ter-

10AHU, Bahia. cx. 3, doc. 313. 7 de fevereiro de 1701. Carta régia do rei D. Pedro II ao governador-geral do
estado do Brasil. D. João de Lencastre, ordenando que não haja comunicação pelos sertões com as minas de São
Paulo, nem das minas se possa buscar gado ou outros mantimentos à Bahia.
11 CARRARA, Ângelo Alves. Minas e Currais: produção rural e mercado interno de Minas Gerais 1674-1807.
Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007. pp. 125-131.
12AHU, Bahia. 23 de novembro de 1698. Cx. 3, doc. 274. Parecer do Conselho Ultramarino sobre a concessão
de sesmarias e criação de cabos de milícias.
13Ibidem.

861
ra”).14 Além disso, deveria se estabelecer em cada uma das freguesias, um capitão-mor e mais cabos de
Milícia, nomeando-se aquelas pessoas que “forem mais poderosas” que terão como função socorrer e
ajudar os juízes, “dando-lhe toda a ajuda e favor para as diligências da justiça cominando-lhes penas”.
Já os corregedores e ouvidores das Comarcas tinham como função uma “vez em triênio visitar estes
moradores fazendo correição como nas mais em que a faz todos os anos”.15

A consolidação da conquista no Estado do Maranhão e Grão-Pará significa compreender tam-


bém o processo de controle sobre as terras localizadas no interior do território, que estavam sob o
domínio dos senhorios locais16, os quais se enraizaram na região durante a segunda metade do século
XVII, quando do período da conquista e da distribuição de extensas cartas de sesmarias na região
como já foi salientado aqui. Nesse sentido, em uma carta ao governador-geral do Brasil João de Len-
castre, o rei D. Pedro II alertava que um dos principais motivos para não se povoarem os sertões era
por estarem dados a duas ou três pessoas particulares, que impediam outras pessoas de os povoarem,
deixando as terras devolutas. Esses particulares não consentiam que alguma pessoa as povoasse, salvo
quem a sua custa descobrisse, defendesse e pagasse o dízimo de foro por cada sítio a cada ano. Como
condições, o rei declarava que se as pessoas que tivessem terras de sesmarias, ainda que fossem exten-
sas, não as tivessem “povoado, cultivado por si, se os feitores, colonos, ou enfiteutas, que com estas tais
pessoas, se não entenda, pois cumprindo as obrigações do contrato por sua parte, se lhes deve cumprir
pela minha”.17

A restrição ao tamanho da terra de três léguas de terra ou légua e meia em quadra, bem como
as condições exigidas no pagamento dos dízimos a Ordem de Cristo e um foro “conforme a grandeza,
e liberdade da terra”18 pelos senhorios e povoadores locais, aponta para um processo de regularização
da posse e domínio da terra comandado pela Coroa portuguesa, mas que tem na atuação das autori-
dades régias (principalmente dos governadores), importância fundamental nesse processo de conso-
lidação da conquista e ocupação da região.

Excedendo-se o tamanho de estipulado pelo rei, as terras seriam dadas ao denunciante. Caso
as terras fossem convenientes para o serviço real, não deveriam ser dadas, mas seriam da Fazenda real.
14AHU, Bahia. cx. 3, doc. 277. 20 de janeiro 1699. Carta régia do rei D. Pedro II ao governador-geral do Brasil
João de Lencastre mandando criar, em cada freguesia do sertão, capitães-mores e cabos de milícia com obriga-
ção de socorrerem e ajudarem os juízes de vintena nas suas diligências e aplicação de penas.
15Ibidem.
16De acordo com Carmen Margarida Oliveira Alveal, o senhorio colonial se constituiu “na sociedade colonial
já no início do processo de colonização, à medida que alguns colonizadores foram recebendo mercês por meio
de terras nas capitanias da Bahia e de Pernambuco, nas quais deveria se iniciar o cultivo da lavoura de cana” e
“se estabelecer relações sociais de dependência, sobretudo escravistas”. Nesse sentido, cabe destacar que o se-
nhorio colonial deve ser entendido através do “domínio que uma pessoa teve sobre determinada porção de ter-
ra, exercendo autoridade sobre a área e as pessoas que nela estivessem, construído socialmente por uma relação
social reconhecida entre os envolvidos”.AVEAL, Carmen Margarida Oliveira. De senhorio colonial a território
de mando: os acossamentos de Antônio Vieira de Melo no Sertão do Ararobá (Pernambuco, século XVIII). São
Paulo: Revista Brasileira de História. v. 35, nº 70, 2015. pp. 42-43.
17AHU, Bahia. doc. 278, cx. 3. Carta régia do rei D. Pedro II ao governador-geral do Brasil João de Lencastre
determinando que se averigue a extensão das sesmarias para que não se exceda o limite. Nesse sentido, ver
também: AHU, Bahia. 23 de novembro de 1698. Cx. 3, doc. 274. Parecer do Conselho Ultramarino sobre a
concessão de sesmarias e criação de cabos de milícias.
18Ibidem

862
Em relação às sesmarias legitimamente possuídas, segundo parecer do Conselho Ultramarino, “fal-
tando os possuidores serão seus sucessores obrigados a confirmá-las por V.M. e então se lhes imporá
semelhante foro”.19Nesse sentido, os encarregados ou ouvidores das Comarcas ficavam responsáveis
uma vez em seu triênio a visitar estes moradores, fazendo correição. O Conselho Ultramarino desta-
cava ainda que as pessoas que tivessem terras de sesmarias, mas que não cumprissem as obrigações do
contrato, “ainda que de muitas léguas, se as tiverem povoado, e cultivado por si, seus feitores, colonos
e enfiteutas” e denunciando qualquer do povo a tais pessoas se tornariam devolutas as terras.20Via de
regra, as terras não poderiam exceder o tamanho de três léguas em comprido e uma de largo ou légua
e meia em quadra, caso contrário, poderiam ser denunciadas e se dariam as terras ao denunciante.

No que diz respeito à manutenção dos caminhos, se deveria mandar informar se havia algum
impedimento aos caminhos, dificultando a comunicação e condução dos gados e mais frutos. Desse
modo, tornava-se necessáriaa construção de caminhos públicos e particulares para pontes, fontes e
pedreiras, além da verificação sobre a informação nas arrematações dos dízimos.21 O descobrimento e
a abertura dos caminhos que interligavam o Piauí ao Maranhão possibilitariam o estabelecimento de
relações comerciais entre comerciantes e moradores de ambas as capitanias, baseadas sobretudo, na
prática da lavoura de cana-de-açúcar e na pecuária extensiva. Vale ressaltar que a abertura do cami-
nho para o Maranhão contribuiu de maneira significativa para a criação e anexação do Piauí ao Estado
do Maranhão.

Com relação à organização administrativa, de acordo com Fabiano Vilaça dos Santos, fatores
naturais ou geográficos seriam determinantes para a fixação de um governo ao norte mais centrali-
zado e subordinado a Lisboa. A própria separação do Estado do Maranhão do Estado do Brasil se
daria de maneira quase que natural devido à dificuldade de comunicação entre as terras do norte e o
governo-geral da Bahia. Dessemodo, os caminhos terrestres seriam o alvo principal da Coroa para a
interligação do Estado do Maranhão com o Estado do Brasil (Pernambuco e Bahia), e a própria sobre-
vivência do Maranhão dependeria da abertura dos caminhos entre os dois Estados que, segundo Vila-
ça dos Santos, se concretizaria no final do século XVII, durante o governo de Antônio de Albuquerque
Coelho de Carvalho.22

Apesar da expansão da fronteira de conquista e ocupação dos sertões do Piauí ter iniciado a
partir da segunda metade do século XVII, com o estabelecimento de diversas fazendas de gados nas
margens dos seus principais rios, cabe destacar que a fase de legitimação desse povoamento pelo rei e
governadores, com a distribuição de sesmarias, só veio a ocorrer nessa região, no decorrer da primeira
metade do século XVIII. No início do século XVIII, a anexação do Piauí ao Estado do Maranhão e
Grão-Pará e a mudança na distribuição de sesmarias dessa região, que passa a ocorrer pelos gover-
nadores do Maranhão, contribuíram para a imposição de um controle maior sobre o tamanho das

19AHU, Bahia. 23 de novembro de 1698. Cx. 3, doc. 274. Parecer do Conselho Ultramarino sobre a concessão
de sesmarias e criação de cabos de milícias.
20Ibidem.
21Ibidem.
22SANTOS, Fabiano Vilaça dos. O governo das conquistas do norte: trajetórias administrativas no Estado do
Grão-Pará e Maranhão (1751-1780). Tese de doutoramento: São Paulo (2008).

863
terras ocupadas e a tentativa de se tentar garantir de maneira mais efetiva o recolhimento do imposto
principal cobrado para o aumento dos rendimentos régios, o dízimo.

As concessões e as confirmações de sesmarias pelos governadores do Maranhão e pela Coroa


portuguesa, aos moradores luso-pernambucanos e luso-maranhenses que ocupavam e povoavam o
sertão do Piauí, que passou a ocorrer somente no início do século XVIII, tinham o papel de legitimar
e assegurar o processo de expansão da fronteira de conquista e ocupação iniciado durante a segunda
metade do século XVII. Cabe ressaltar, entretanto, que enquanto a parte oriental e ocidental do Piauí
veio a ser alvo de um gradual processo de regularização ainda no final do século XVII,a parte oriental
do Maranhão, diferentemente, enfrentou um processo de regularização mais tardio se comparado
com o Piauí, ocorrendo somente no decorrer da primeira metade do século XVIII.

No decorrer da primeira metade do século XVIII, nas missivas intercambiadas pelas autorida-
des régias e pelos membros do Conselho Ultramarino, são constantes as denúncias contra senhorios
locais como Garcia de Ávila, acusado de “perturbar” e “inquietar” os moradores da região. Essas de-
núncias representam, em grande parte, uma tentativa de estabelecer um controle mais efetivo sobre a
posse da terra, de maneira que se tornou importante, a partir de então, o discurso sobre o incentivo
ao cultivo e ao aproveitamento econômico, a restrição no tamanho da terra, bem como a valorização
na distribuição de terras somente a quem participasse da efetiva conquista e da defesa da ocupação,
pagando o dízimo por cada sítio e em cada ano.

Segundo Lígia Osório, a implantação do regime de sesmarias, ainda no século XVI, se consti-
tuiu como um instrumento implantado de “fora” para dentro, e não originado a partir das condições
internas da colônia. A distribuição de cartas de sesmarias, segundo a autora, serviu aos interesses da
própria expansão comercial europeia que ocorreu durante os séculos XV e XVI, tendo como funda-
mento principal o aproveitamento econômico das terras que iam sendo descobertas e sendo transpos-
to as normas regularizadoras da metrópole para a colônia.23Nesse contexto mais geral, a parte oriental
do Maranhão e o Piauí assistiram um processo de legitimação da conquista, ocupação e povoamento
que passou a ser progressivamente realizado por meio da doação de cartas e confirmações de sesma-
rias aos lavradores e criadores de gados, já estabelecidos ou com a intenção de estabelecerem suas
fazendas e engenhos de cana-de-açúcar, no transcorrer do curso dos principais rios e paragens desses
sertões.

Ao consultarmos os pedidos e confirmações de sesmarias doadas nas capitanias do Maranhão


e do Piauí, constatamos que a distribuição de terras pelos governadores Antônio de Albuquerque Coe-
lho de Carvalho (1690-1701), Fernão Carrilho (1701-1702), Cristóvão da Costa Freire (1707-1718),
Bernardo Pereira de Berredo (1718-1722), João da Maia da Gama (1722-1728), Alexandre de Sousa
Freire (1728-1732), José Serra (1732-1736), João de Abreu Castelo Branco (1737-1747), Francisco Pe-
dro de Mendonça Gurjão (1747-1751) e Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1751-1759), distri-

23SILVA, Lígia Osório. Terras Devolutas e Latifúndio. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008. No mesmo
sentido sobre a transplantação das bases jurídicas portuguesas para a colônia, ver: DINIZ, Mônica. Sesmarias
e posse de terras: política fundiária para assegurar a colonização brasileira. Revista Histórica, nº 2, jun., 2005,
pp. 1-2.

864
buídas aos indivíduos que estiveram interessados no aproveitamento econômico da terra, objetivava
também regularizar e controlar a ocupação e o povoamento do espaço, para além de simplesmente
incentivar os indivíduos a ocuparem as terras. Isto porque, em grande medida, parte desse espaço en-
contrava-se ocupado e povoado desde o final do século XVII e início do século XVIII, momento que
se distingue do posterior, pois, não raro, encontramos cartas de sesmarias em que o requerente faz o
pedido primeiro, para depois tomar posse das terras.

A compreensão acerca do processo de consolidação da conquista e ocupação na parte oriental


do Maranhão e do Piauí perpassa pelas relações e usos da terra, bem como a maneira por meio da
qual a terra era legitimada ou não, ou mesmo era transmitida a terceiros. As ações e estratégias adota-
das pelos indivíduos e grupos sociais como militares, religiosos ou autoridades régias demonstram a
necessidade de um espaço em processo de controle através de diferentes instrumentos e mecanismos
para além das cartas de sesmarias (apesar de ser o principal), os quais visavam garantir a legitimidade
da propriedade fundiária na região.

A carta de sesmaria, como objeto de nossa análise, apresenta uma importância significativa,
não apenas como um mero documento que respaldava o requerente em meio aos conflitos e litígios
territoriais, mas também como um documento que deve ser visto como uma maneira de apropriação
que está relacionada à subjetividade de cada indivíduo na elaboração da representação do espaço que
ora se desejava garantir e possuir com o aval do rei. No entanto, cabe ressaltar que enquanto as cartas
de sesmarias que foram distribuídas à Casa da Torre e senhorios, durante a segunda metade do século
XVII, possuíam o tamanho de aproximadamente 40 léguas, por outro lado, as sesmarias distribuídas
aos colonos do Maranhão e do Piauí, na primeira metade do século XVIII, possuíam tamanhos bem
menores como 3 léguas ou légua e meia de comprido.Essa mudança indica que à medida que a Coroa
portuguesa foi se interessando pela região o processo de controle da ocupação e do povoamento foi
se intensificado com a restrição do tamanho das sesmarias, bem como com a demarcação das terras
distribuídas aos colonos e conquistadores. O que evidencia uma estratégia da Coroa para diminuir o
poder dos senhorios locais.

O relato sobre o espaço, portanto, torna-se algo peculiar presente no corpo textual de cada
requerimento e/ou confirmação das capitanias do Maranhão e Piauí, e provavelmente, parece ter sido
mesmo uma estratégia adotada pelas autoridades para essa região – como uma maneira de respaldar
legitimamente a posse da terra – em meio aos constantes conflitos fundiários. Sendo assim, torna-se
importante tentarmos perceber quais foram as justificativas mais utilizadas para aquisição da carta de
sesmaria, levando em consideração o contexto histórico no qual o documento foi elaborado. Entre
1700 e 1759, um total de 987 concessões (das quais 175 confirmadas) foram distribuídas na vasta ex-
tensão dos vales dos rios do Maranhão e do Parnaíba até o São Francisco durante a primeira metade
do século XVIII. No gráfico abaixo contabilizamos apenas o número das concessões, uma vez que
estamos apenas analisando não a quantidade em si, mas o conteúdo das cartas de sesmarias e os argu-
mentos que constam nos requerimentos.

O gráfico abaixo representa oscilações que ocorreram no decorrer do processo de cartas de

865
sesmarias doadas nos sertões do Maranhão e Piauí, pelos governadores do Estado do Maranhão e
Grão-Pará, durante toda a primeira metade do século XVIII. Essas oscilações podem estar associadas
tanto às estratégias adotadas durante cada governo com relação à adoção das guerras como mecanis-
mo de “limpeza” territorial, bem como ao ajustamento de “pazes” com os indígenas, que parece ter
tido um papel importante para a expansão da fronteira de conquista e ocupação colonial.

Gráfico 1

Concessões de cartas de sesmarias pelos governadores do Maranhão durante a primeira metade do


século XVIII

Fonte: Arquivo Nacional da Torre do Tombo; Arquivo Histórico Ultramarino; Arquivo Público do Pará

A análise do gráfico acima pode indicar que a relação entre o avanço da fronteira de conquista
e ocupação e a distribuição de cartas de sesmarias pode estar relacionada diretamente à estratégia
adotada pelos governadores no estabelecimento de guerras ou de pazes com as nações indígenas que
habitavam a parte oriental do Maranhão e o Piauí. Nesse sentido, cabe ressaltar que o estabelecimento
de pazes com as nações indígenas implicou diretamente no processo de consolidação da conquista
e ocupação da região. Apesar da continuidade no estabelecimento de guerras contra as nações indí-
genas durante toda a primeira metade do século XVIII, tudo leva a crer que os governos de João da
Maia da Gama e João de Abreu de Castelo Branco tenham sido exitosos no estabelecimento de “pazes”
e aldeamentos indígenas, sendo provavelmente reconhecidos como exemplos de bons governadores
pela Coroa portuguesa.24 Não sem razão, durante os dois governos, foram expedidas mais de 50% do

24 Rafael Chambouleyron e Vanice Melo, apontam o governo de João da Maia da Gama como um governo
atrelado a política de relativa paz aos ditames da Coroa e aproximação com os padres jesuítas. No entanto,
destacam ainda que a própria conjuntura pode ter sido fruto das ações dos próprios indígenas que podem ter
percebido como o momento mais favorável para o estabelecimento de acordos de pazes com os portugueses.
CHAMBOULEYRON, Rafael; MELO, Vanice de. Governadores e índios, guerras e terras entre o Maranhão o
Piauí (Primeira metade do século XVIII). Revista de História. São Paulo, nº 168, jan./jun., 2013. p. 184-186.

866
total de sesmarias.

De acordo com Ângelo Pessoa, há uma distinção temporal para a política de integração ou de
aniquilamento indígena para as nações que habitavam o interior do atual Nordeste. Segundo o autor,
se durante o século XVI, houve uma tentativa de integração dos indígenas ao projeto colonial, a partir
do século XVII, por outro lado, os indígenas passam a ser percebidos como o “estorvo” que precisava
ser removido durante a conquista, uma vez que não se submetiam aos interesses dos colonos pela mão
de obra e controle do trabalho.25 No entanto, cabe ressaltar que, no que diz respeito à parte oriental
do Maranhão, sobretudo a partir da segunda década do século XVIII, a política dos governadores se
direcionou também no ajustamento de pazes com as nações indígenas; a guerra, por outro lado, seria
realizada apenas contra aquelas nações que resistissem ao processo de conquista e ocupação e que
representassem uma ameaça ao povoamento colonial.

Segundo Mauro Cezar Coelho, em relação ao vale Amazônico,

Pode-se afirmar que nas colônias estabelecidas ao Norte, por mais tempo, talvez, do
que em outras, assistiu-se a convivência de duas posturas na política indigenista ado-
tada: por um lado, uma posição que sustentava a repressão ao índio e, também, ga-
rantia sua oferta como mão de obra; e, por outro, uma que defendia sua preservação
como o contingente populacional necessário à defesa e ocupação do Vale [Amazô-
nico] (por irônico que pareça ao olhar contemporâneo). (…) as populações nativas
eram vistas, ali, como objetos fundamentais para a consolidação do domínio portu-
guês: era por meio de alianças com as populações indígenas que portugueses, france-
ses, holandeses e ingleses garantiam sua permanência no Vale; de modo que instituir
o controle sobre essas populações resultaria no controle do território.26

Nesse sentido, também com relação aos sertões do Maranhão e Piauí, a partir da segunda
década do século XVIII, os governadores do Maranhão deram início ao processo de consolidação da
expansão dessa fronteira de conquista e ocupação na parte oriental do Estado, intensificando diversas
tentativas no sentido de estabelecer aldeamentos indígenas que acompanhavam a instalação de fazen-
das de gados, com a atuação tanto de religiosos como dos moradores com o objetivo de controlar a
mão de obra indígena local e utilizá-la na própria defesa das povoações que ali iam sendo estabeleci-
das. Durante o governo de João da Maia da Gama, por exemplo, a capitania do Piauí vivenciou de um
lento processo de implantação das instituições políticas e administrativas do Estado do Maranhão e
Grão-Pará, visando à integração da região no domínio mais amplo da esfera de poder do governo real
e local.

É necessário contextualizar aspectos desse processo de “centralização” dos poderes na fron-


teira oriental do Estado do Maranhão e Pará. Durante a primeira metade do século XVIII, a Coroa
portuguesa passou a impor um controle mais efetivo sobre a região através das suas autoridades do
governo local, desde governadores, provedores e ouvidores. Para a Coroa portuguesa, tornava-se ne-
cessário regularizar o espaço que ia sendo ocupado e povoado e uma das estratégias utilizadas foi a
25PESSOA, Ângelo Emílio. Ruínas da Tradição: A Casa da Torre Garcia D’Ávila – família e propriedade no
Nordeste colonial. São Paulo: Tese de doutorado em História: FFLCH/USP, 2003. pp. 141-142.
26COELHO, Mauro Cezar. Do sertão para o mar. Um estudo sobre a experiência portuguesa na América, a
partir da Colônia: o caso do Diretório dos índios (1751-1798). Tese de doutoramento (USP), 2005. pp. 96-97.

867
distribuição de sesmarias aos povoadores interessados no aproveitamento econômico do território.

O governo de João da Maia da Gama e os potentados do sertão

Fabiano Vilaça dos Santos destaca que havia uma diferenciação entre os governadores do Es-
tado do Maranhão e Grão-Pará e os do Estado do Brasil, sobretudo, no que se refere ao status familiar
e as experiências no Real Serviço. No caso da experiência da política de “revitalização” da Amazônia
Colonial, segundo o autor, a “a Coroa optou por agentes sem experiência na administração ultrama-
rina, despontando a formação militar como credencial de maior expressão”.27 No caso dos sertões do
Maranhão e do Piauí, diferentemente, a ascensão do governador João da Maia da Gama revela que,
provavelmente, para o processo de consolidação da conquista e ocupação da região, a Coroa portu-
guesa teria investido em uma pessoa capacitada e que detinha experiência advindas de outros gover-
nos como no Estado do Brasil.

A experiência do governador João da Maia da Gama na capitania da Paraíba, como capitão-


-mor, segundo Isabele Bezerra, teria sido marcada por diversas tentativas de fiscalização e averiguação
das cargas que eram transportadas para o reino, pois muitos contratadores procuravam se ausentar do
pagamento dos impostos dos dízimos das caixas de açúcar que eram enviados pelos navios.28 Nesse
sentido, podemos dizer que, João da Maia da Gama teria assumido o governo do Maranhão, detendo
uma experiência importante, no que diz respeito ao controle na cobrança dos dízimos. Assim sendo,
tudo indica, não sem razão que, João da Maia da Gama fora escolhido para assumir o cargo de gover-
nador do Maranhão, justamente pela necessidade de impor um controle mais efetivo sobre a posse da
terra na região que estava sob o domínio dos senhorios locais.

Em 12 de setembro de 1726, o governador João da Maia da Gama, por exemplo, comunicava


o rei D. João V sobre alguns problemas vivenciados pela mais recente criada capitania do Piauí, a qual
estava naquele momento, subordinada ao governo e administração do Maranhão. Maia da Gama in-
formava sobre a ordem que tinha dado ao recém-chegado ouvidor geral e provedor da fazenda da Vila
de Mocha, Antônio Marques Cardoso, solicitando que verificasse a situação das terras da capitania.
Nessa ocasião, relatava o governador que,

As datas de terras que se davam na Capitania do Piauí, e se pediam no Maranhão, se


costumavam informar ao Provedor da Fazenda do Maranhão, aonde se via se esta-
vam ou não dadas as ditas terras, porém vendo eu as dúvidas que havia nos sertões
do Piauí sobre estas datas, depois que teve notícia deter chegado ouvidor geral e Pro-
vedor da fazenda a vila da Mocha, me pareceu mandar informar a ele, as petições
das terras que me pedem no seu distrito, para ver as terras se estão devolutas, e se os
que as pedem têm gados para as povoar e vindas as petições informadas mando ao
Provedor da Fazenda do Maranhão para informar pelo seu escrivão pelo que contar
dos títulos do registro de que se queixam os secretários, de que eu lhe tiro aqueles
emolumentos que logo podiam receber das cartas de datas, porém obro oque enten-

27SANTOS, Fabiano Vilaça dos. Os governadores do Estado do Grão-Pará e Maranhão: perfis sociais e trajetó-
rias administrativas (1751-1780). [s.n.] In: www.humanas.ufpr.r/portal/cedope/files/2011/12/Osgovernadores-
-do-Estado-do-Grão-Pará-Fabiano-Vilaça-dos-Santos.pdf. p. 157.
28BEZERRA, Isabela Augusta C. A serviço d'el-rey: O governo de João da Maia da Gama na Capitania da Pa-
raíba (1708-1717). UFPB (Dissertação de Mestrado), 2015. pp. 63-68.

868
do ser mais justo.29

O “sertão” do Vale do Parnaíba era representado pelo governador João da Maia da Gama como
um espaço ausente da aplicação das leis e da regulamentação da distribuição das terras, sendo per-
ceptível o argumento de uma nova organização e controle da posse da terra através da distribuição de
cartas de sesmarias e da imposição da ordem pelas autoridades régias, como o provedor da Fazenda
real, que passava a tomar posse de sua função local. Nesse processo de incorporação da região aos
domínios régios, os conflitos entre autoridades como o governador João da Maia da Gama e senhorios
locais como Garcia de Ávila que tinha o domínio sobre boa parte do território, logo começaram a
aparecer. Esses conflitos tiveram como motivo principal a redistribuição das sesmarias aos morado-
res, as quais tinham sido primeiramente concedidas pelos governadores de Pernambuco e Bahia aos
senhorios locais.

Segundo Stuart Schwartz, os “potentados do interior” como eram chamados oscriadores de


gado como Antônio Guedes de Brito e João Peixoto Viegas, dentre outros, (a exemplo do próprio
Garcia de Ávila), se constituíam como um grupo social e político bem distinto da classe canavieira do
litoral, os quais representavam um segmento social elitista detentor de grandes propriedades fundiá-
rias no sertão baiano. Nesse contexto em que o poder estava concentrado nas mãos de poucos indiví-
duos e famílias, Schwartz ressalta que o Tribunal Superior de Apelação da Justiça encontrou extrema
dificuldade em manter uma sociedade colonial considerada indisciplinada, sendo diversos os setores
populacionais que eram incapazes de se sujeitaràs vontades e normas sociais das autoridades locais.30

O Conselho Ultramarino bem como os governadores do Maranhão atuavam no sentido de re-


primir as ações dos senhorios, apenando-os e declarando devolutas as terras onde exerciam domínio.
Já em 23 de junho de 1716, o Conselho Ultramarino informava sobre uma carta do vice-rei e gover-
nador-geral do Brasil, Marquês de Angeja, Pedro Antônio de Noronha Albuquerque e Sousa e, outra
inclusa, do governador do Maranhão (Cristóvão da Costa Freire) o qual necessitava de resposta e pro-
vidência para que Garcia de Ávila Pereira não continuasse a “perturbar” e nem “inquietar” as pessoas
ou moradores do Piauí que possuíam sesmarias na região. Nesse sentido, era ordenado ao ouvidor da
Bahia que notificasse a Garcia de Ávila Pereira e o punisse retirando suas sesmarias. A esse respeito,
informava o Vice-Rei ao Conselho Ultramarino que,

debaixo das mesmas penas não obriguei outros judiciais que com a insolência aos
ditos possuidores não lhe pagarem pensão algum das terras que possuem, bem por
datas, pois não é inculto que o dito Garcia de Ávila se queira fazer senhor de todas
as terras do Brasil, com o título da sua sesmaria, sem mostrar demarcação, sem ter
povoado as terras dela, por mais de um século, o que constando ao ouvidor geral ele
obra o contrário, e proceda logo a prisão contra ele […] ao governador do Maranhão
se deve responder, que S.M. foi servido fazer esta resolução o que assim o manda
executar, e lhe ordena que assim o execute tão bem com o procurador do dito Garcia

29Carta do governador e capitão-general do Estado do Maranhão, João da Maia da Gama, ao rei D. João V,
sobre a doação de terras no Piauí e solicitando informações acerca das mesmas para saber se estão devolutas ou
se pode aplicar-lhes foro. AHU. Piauí, cx. 1, doc. 30.
30SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e sociedade no Brasil Colonial: O Tribunal Superior da Bahia e seus desem-
bargadores, 1609-1751. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

869
de Ávila.

Quanto a segunda parte da Carta do Vice-Rei, que necessita aos seus do [ouvidor?]
da Bahia se deve estranhar a este a sua negligência, mandando-lhe, que pessoalmente
assista a todas as medições, como é obrigado. Sem [ilegível] de que eu sempre entendi
que esta diligência havia de causar mais turbações naquele povo que conveniência o
ainda me parece o mesmo.31

Voltando ao tempo do governo de João da Maia da Gama, em sua defesa, Garcia de Ávila, par-
ticularmente, requeria ao rei, dias antes da missiva passada pelo governador João da Maia da Gama,
que suas terras não fossem declaradas devolutas pelo governador do Maranhão. Essas terras, segundo
ele, que possuía por meio da concessão de sesmaria dos governadores da Bahia e Pernambuco, esta-
vam “povoadas com gados seus e de seus colonos”, e por essa razão, reclamava que “vai dando grande
parte delas de sesmaria o governador do Maranhão aos colonos do suplicante e outros seus”. Desse
modo, pedia Garcia de Ávila, diretamente ao rei, que ordenasse ao “governador do Maranhão, que na
forma ordenada ao dito Ouvidor da mesma Capitania se abstenha também de reputar devolutas, e dar
de sesmaria as terras que no Piauí foram dadas a seu Pai pelo governador de Pernambuco, e ele tem
povoado na forma referida”.32

De acordo com Ângelo Emilio Pessoa, a Casa da Torre era detentora de diversos negócios e pa-
trimônios no sertão de Pernambuco e Bahia.As chamadas “feiras de gado”, por exemplo, que ocorriam
na região do recôncavo baiano situavam-se em terras pertencentes à Casa da Torre, o que segundo
ele, fazia com que valessem seus interesses na comercialização do gado nas vilas e freguesias circunvi-
zinhas. Além é claro do grande domínio fundiário que exercia através do grande número de foreiros
que constituíam e asseguravam a base de sustentação desse vasto patrimônio. A Casa da Torre obtinha
ainda lucros financeiros também através da busca de metais e pedras preciosas, o desenvolvimento de
algumas culturas agrícolas, bem como a exploração de salitre, os quais foram outros investimentos
realizados ao longo da duração do Morgadio.33

Alguns anos depois, com a morte de Garcia de Ávila, a sua viúva reivindicava ao rei D. João
V as terras para o filho e herdeiro, Francisco Dias de Ávila, pautada no direito de conquista e de ses-
marias, anteriormente concedidas pelo governador de Pernambuco à Casa da Torre, ainda no final do
século XVII. Segundo Dona Inácia de Araújo, havia

o Governador do Maranhão considerado nulamente concedidas ao marido e pai dos


suplicantes as terras do Piauí, pelos Governadores de Pernambuco, não confirmadas
as datas, e concessões, nem satisfeitos as mais devidas solenidades, e pelos mais mo-
tivos igualmente estranhos que lhe foram propostos pelos rendeiros e inquilinos das
mesmas terras, e oficiais da Câmara, que se animaram na proposição, só afim de não
31Parecer do Conselho Ultramarino sobre o que informa o vice-rei e governador-geral do Brasil, Marquês de
Ângeja Pedro Antônio de Noronha Albuquerque e Sousa e o governador do Maranhão acerca das sesmarias e
terras pertencentes a Garcia de Ávila. AHU, Bahia. 23/06/1716. doc. 12, cx. 9.
32Requerimento do coronel Garcia de Ávila Pereira, ao rei D. João V, em que solicita as terras de sesmaria que
tinham sido doadas a seu pai na capitania do Piauí. AHU, Maranhão, cx. 15, doc. 1535.
33PESSOA, Ângelo Emílio. Ruínas da Tradição: A Casa da Torre Garcia D’Ávila – família e propriedade no
Nordeste colonial. São Paulo: Tese de doutorado em História: FFLCH/USP, 2003. pp. 157-174.

870
pagarem, o que devem, e se utilizarem na […] alheia, proibiu a continuação da posse
dos suplicantes na sua percepção, cultura, e administração com irremediáveis danos,
e prejudiciais consequências; passando a novas datas, e concessões das mesmas ter-
ras; e outros atos turbativos da referida posse, e para que na Real presença de V.M.
sejam atendidos os justos clamores dos suplicantes.34

Inácia Araújo reclamava da razão da anulação dos títulos de sesmarias adquiridos durante o
período de conquista, bem como da nova distribuição de datas de sesmarias pelo governador do Ma-
ranhão e das reclamações e propostas dos rendeiros e inquilinos realizadas aos oficiais da Câmara.

A partir sobretudo do governo de João da Maia da Gama, portanto, intensificou-se o processo


de regularização das terras e retomada do domínio territorial dos poderosos do sertão, através da res-
trição no tamanho das terras, da imposição da demarcação como ato obrigatório na posse da terra e
da concessão de novas cartas de sesmarias a terras que se acreditava não estarem sendo aproveitadas
economicamente ou que eram denunciadas por terceiros (principalmente em casos de indivíduos ou
instituições administrativas ou religiosas possuírem um maior número de sesmarias do que era per-
mitido por lei ou que detivessem um número elevado de terras).
Referências bibliográficas

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DINIZ, Mônica. Sesmarias e posse de terras: política fundiária para assegurar a colonização brasileira. Revista
Histórica, nº 2, jun., 2005, pp. 1-2.

34Requerimento de Inácia de Araújo Pereira, viúva do coronel Garcia de Ávila Pereira, ao rei [D. João V], soli-
citando confirmação das sesmarias doadas ao seu falecido esposo, e a seu filho, coronel Francisco Dias de Ávila,
terras estas concedidas pelo governador da capitania de Pernambuco, [conde dos Arcos, Marcos José Noronha
e Brito]. AHU, Piauí. cx. 4, doc. 274.

871
LIMA SOBRINHO, Barbosa. O devassamento do Piauí. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1946

NUNES, Odilon. Pesquisas para a História do Piauí. Teresina: FUNDAPI; Fundação Monsenhor Chaves. pp.
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Fontes primárias

Cartas, ofícios e consultas

(Arquivo Histórico Ultramarino, Maranhão, Piauí e Bahia)

Requerimento do coronel Garcia de Ávila Pereira, ao rei D. João V, em que solicita as terras de sesmaria que
tinham sido doadas a seu pai na capitania do Piauí. AHU, Maranhão, cx. 15, doc. 1535.

Mapa das sesmarias que a Casa da Torre e seus sócios pretendem no sertão do Piauí. 13/10/1684. AHU, Piauí.
cx. 1, doc. 2.

Carta do governador e capitão-general do Estado do Maranhão, João da Maia da Gama, ao rei D. João V, so-
bre a doação de terras no Piauí e solicitando informações acerca das mesmas para saber se estão devolutas ou
se pode aplicar-lhes foro. AHU. Piauí, cx. 1, doc. 30.

Requerimento de Inácia de Araújo Pereira, viúva do coronel Garcia de Ávila Pereira, ao rei [D. João V], solici-
tando confirmação das sesmarias doadas ao seu falecido esposo, e a seu filho, coronel Francisco Dias de Ávila,
terras estas concedidas pelo governador da capitania de Pernambuco, [conde dos Arcos, Marcos José Noro-
nha e Brito]. AHU, Piauí. cx. 4, doc. 274.

Parecer do Conselho Ultramarino sobre o que informa o vice-rei e governador-geral do Brasil, Marquês de
Ângeja Pedro Antônio de Noronha Albuquerque e Sousa e o governador do Maranhão acerca das sesmarias e
terras pertencentes a Garcia de Ávila. AHU, Bahia. 23/06/1716. doc. 12, cx. 9.

AHU, Bahia. 23 de novembro de 1698. Cx. 3, doc. 274. Parecer do Conselho Ultramarino sobre a concessão
de sesmarias e criação de cabos de milícias.

AHU, Bahia. cx. 3, doc. 277. 20 de janeiro 1699. Carta régia do rei D. Pedro II ao governador-geral do Brasil
João de Lencastre mandando criar, em cada freguesia do sertão, capitães-mores e cabos de milícia com obri-
gação de socorrerem e ajudarem os juízes de vintena nas suas diligências e aplicação de penas.

AHU, Bahia. doc. 278, cx. 3. Carta régia do rei D. Pedro II ao governador-geral do Brasil João de Lencastre
determinando que se averigue a extensão das sesmarias para que não se exceda o limite.

AHU, Bahia. cx. 3, doc. 313. 7 de fevereiro de 1701. Carta régia do rei D. Pedro II ao governador-geral do es-

872
SIMPÓSIO TEMÁTICO 12
Um reino e suas repúblicas: escravidão, governo e sociedade (séculos XVI-XVIII)

Coordenadores:

Roberto Guedes Ferreira

Ana Paula Pereira da Costa

O trabalho compulsório e a agência indígena sob o Diretório (1757-1798)


André Augusto da Fonseca1

Este trabalho investiga as estratégias de negociação, alianças e rivalidades entre indivíduos e grupos
indígenas coloniais e outros grupos sociais no norte da América Portuguesa, na segunda metade do
século XVIII, no contexto da monarquia pluricontinental portuguesa. Povos ameríndios, missioná-
rios, autoridades régias, soldados, desertores, mestiços participaram ativamente das transformações
em uma sociedade colonial, frente às contradições inerentes aos projetos de reforma durante e após o
período pombalino. Depois de uma era em que predominou uma historiografia eurocêntrica e enco-
miástica, as décadas de 1960-1980 conheceram uma historiografia também engajada, mas em sentido
oposto, comprometida com a denúncia do genocídio, do etnocídio, da escravidão indígena. Em uma
terceira fase, posteriormente, diversos historiadores de todo o continente começam a perceber que
as duas tendências anteriores relegavam os povos nativos a um papel passivo no desenrolar dos pro-
cessos históricos. Sem negar a extrema violência cometida contra os povos nativos nem o genocídio,
começou a haver uma ênfase na leitura de processos de resistência adaptativa, negociação, e agência
indígena. É nessa perspectiva que este trabalho procura compreender as transformações e continui-
dades nas relações de trabalho envolvendo indígenas durante a vigência do Diretório, a partir de peti-
ções, relatórios de agentes régios e outros documentos do Arquivo Histórico Ultramarino, do Arquivo
Público do Estado do Pará e Biblioteca Nacional.

Palavras-chave: Amazônia Colonial. Regimento das Missões. Diretório dos Índios. Antigo Regime.

Como se sabe, a legislação indigenista colonial, apesar de profusa e aparentemente contradi-


tória ou oscilante, sempre diferenciou índios amigos ou aliados dos índios hostis ou inimigos, garan-
tindo aos primeiros, ao menos nominalmente, liberdade e respeito à titularidade da terra. Ao segundo
grupo, na maior parte do tempo, reservava-se o cativeiro, a escravidão2. Com exceção de três leis
que intentaram vedar a escravização de índios em qualquer hipótese (em 1609, 1680 e, finalmente
com êxito, em 1755), de forma geral os resgates e “guerras justas” resultavam em índios escraviza-
dos, enquanto os descimentos eram deslocamentos negociados, mediados por missionários, índios

1 Doutor em História Social (UFRJ), docente na Universidade Estadual de Roraima.


2 PERRONE-MOISÉS, B. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista do período
colonial (séculos XVI a XVIII). In: CUNHA, M. C. D. História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia
das Letras; Secretaria Municipal de Cultura; FAPESP, 1992.

873
ou militares (ocasionalmente, por negociantes e fazendeiros), realizados voluntariamente3 por grupos
indígenas de maior ou menor dimensão. Tais grupos, portanto, já se inseriam na sociedade colonial
por uma via negociada.

As transformações na legislação indigenista e as oportunidades para as políticas indígenas

A catequese, tida como obrigação moral fundamental do rei em suas conquistas, era o que
estruturava esses novos estabelecimentos, que também se tornavam fonte de trabalhadores para o
serviço real e para os moradores – e, é claro, para as ordens missionárias e seus empreendimentos agrí-
colas, pecuários e comerciais. Para todos esses interessados, os índios livres aldeados deveriam, sob
certas condições e mediante salários regulamentados pelo governador do Estado e pelas câmaras das
cidades (Belém e São Luís), prestar serviços por até seis meses por ano, de acordo com o Regimento
das Missões de 1686.

Tal legislação, que teve longa vida, disciplinou até 1755 a organização dos aldeamentos forma-
dos por esses descimentos, sob a responsabilidade dos missionários. A coroa resistiu a insistentes pedi-
dos de se entregar os índios descidos voluntariamente (portanto, legalmente livres) a administradores
particulares4. O regimento proibia, inclusive, que brancos e mamelucos residissem nos aldeamentos (§
4º), mas autorizava que forasteiros visitassem os aldeamentos para “tratar os índios para o commercio,
ou por outro respeyto que seja justo”, mediante licença do governador, assinada por ele e pelo superior
das missões, apresentada ao missionário da aldeia (§ 19), não podendo porém permanecer mais de
três dias nela5. Essas visitas eram ocasião para os índios aldeados exercerem alguma autonomia nas
trocas de seus produtos por manufaturados, como deixou entrever o padre João Daniel, S.J.6

A repartição dos aldeados entre 13 e 50 anos de idade para o serviço dos moradores “das Cida-
des, Villas, & Lugares do Maranhão, & Pará” deveria ser feita pelo governador (e, em sua falta, o capi-
tão-mor), com duas pessoas eleitas pela Câmara, “com parecer, & assistência do Superior das Missões
3 Em 1718, entretanto, o rei abriu uma exceção, autorizando descimentos forçados sob condições que eram ou
amplas demais ou fantasiosas: se fossem índios “que andão nus, não reconhecem Rey, nem Governador, não
vivem com forma, e modo de República, atropelão as leis da natureza, não fazem diferença de may e filha para
satisfação de sua lascívia, comem-se huns aos outros [...]: sou servido que se possão obrigar por força, e medo
a que desção do Sertão para as Aldeas” (LIVRO Grosso do Maranhão. Anais da Biblioteca Nacional, Rio de
Janeiro, v. 67, 1948, p. 153-154).
4 Ao contrário do que ocorrera em São Paulo, onde, “Assumindo o papel de administradores particulares dos
índios - considerados como incapazes de administrar a si mesmos -, os colonos produziram um artifício no qual
se apropriaram do direito de exercer pleno controle sobre a pessoa e propriedade dos mesmos sem que isso fos-
se caracterizado juridicamente como escravidão”, sendo a distinção entre administração particular e escravidão
meramente formal (MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São
Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 137; 152). No Estado do Maranhão e Grão-Pará, a despeito
de duas expulsões dos jesuítas no século XVII e da solução de compromisso representada pelo Regimento das
Missões, a posição das várias ordens missionárias parece ter sido mais forte que a dos jesuítas em São Paulo,
que tiveram de ceder ao “incontestável triunfo” dos colonos (ibidem, p. 133).
5 REGIMENTO, & Leys sobre as Missoens do Estado do Maranhaõ, & Pará, & sobre a liberdade dos
Indios. Lisboa: Officina de Antonio Manescal, impressor do Santo Officio, & livreiro de Sua Magestade, 1724.
6 DANIEL, João. Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004, vol.
II, p. 122-124.

874
e dos párocos [na verdade, missionários] das ditas aldeas”. Dessa forma seriam emitidas licenças para
os moradores irem às aldeias buscar os índios repartidos, depositando metade do salário adiantado. O
prazo máximo de contrato era de 6 meses no Pará e 4 no Maranhão (contra dois meses da lei anterior),
atendendo às características das expedições de coleta das drogas do sertão7.

Apesar da aparente inexorabilidade do trabalho compulsório, o texto do Regimento deixa


claro que, embora via de regra os salários fossem taxados (e pagos em gêneros), somente metade da
tripulação das canoas do sertão deveriam ser buscadas pelo sistema de repartição: a outra metade dos
remadores “procurarão os taes moradores trazer das outras aldeas, que costumavão servir pela con-
venção que com eles fazião”8, isto é, pela negociação de salários.

A flexibilidade das leis ou de sua fiscalização interessava também aos moradores. Um alvará
de 23 de março de 1688 atestava que muitas canoas que iam ao negócio do sertão (a coleta das drogas)
voltavam com índios escravizados ilegalmente – “pessas feitas contra as minhas leys”9.

As formas de escravização legal de indígenas até 1747

O Alvará de 28 de abril de 1688 derrogava expressamente as leis anteriores sobre os “índios


do Maranhão”, principalmente a lei de 1º de abril de 1680, que tinha proibido qualquer forma de ca-
tiveiro indígena, fosse por resgates, fosse por “guerra justa”. O texto legal de 1688 retornava ao regime
da lei de 1655, admitindo a escravização indígena em determinadas condições: que se resgatassem às
custas da real fazenda “captivos em guerras de outros Índios ou sejão prezos a corda para os comerem
ou captivos para o efeito das vendas”. Especificava-se, provavelmente em vão, que o índio resgatado
tinha que estar ciente das condições e concordar com seu resgate, e que não deveria ter sido capturado
com a finalidade específica de comércio com os brancos10. A Coroa também tinha interesse direto nos
resgates, pois arrecadaria 3 mil réis de direitos sobre cada cativo, que deveriam ser aplicados “para
a despeza das Missoens, tanto das entradas dos Certões em ordem aos resgates para aliviar mais o
custo deles, como das que tenho mandado fazer para se descerem aldeas novas, & fornecimento das
velhas”11. Também tornava lícito fazer escravos em guerra defensiva contra a invasão de índios inimi-
gos e infiéis, “principalmente quando os ditos Índios impedirem com mão armada e força de armas os
Missionarios as entradas dos Sertões e a doutrina do santo evangelho”12.

Mesmo com todas essas possibilidades de cativeiro lícito, já em 1691 a Coroa reconhecia que
“nos Certões do Estado do Maranhão se tem feyto alguns escravos contra a minha ley, em cujo crime
estão incursos quase todos os moradores do mesmo Estado”, declarando perdão geral e determinando

7 MATTOS, Y. D. Regimento das Missões do Estado do Maranhão e Grão-Pará, de 21 de dezembro de 1686.


7 Mares, outubro 2012. 112-122.
8 Idem, ibidem.
9 Livro Grosso do Maranhão, 1948, p. 87-88, parte 1.
10 REGIMENTO, & Leys sobre as Missoens do Estado do Maranhaõ, & Parà, & sobre a liberdade dos Indios,
1724, p. 21.
11 Idem, p. 23.
12 Livro Grosso do Maranhão, 1948, p. 97-101, parte 1.

875
a libertação dos índios escravizados ilegalmente, além de cominar com penas pesadas os moradores
que incorressem novamente nesse crime13.

Ocorre que não apenas os moradores, como também as ordens regulares estavam interessa-
das na exploração do trabalho indígena, em empreendimentos que atingiram seu apogeu no chamado
“período empresarial” das missões da Amazônia14, durante a vigência do Regimento. Uma resolução
de 1688 obrigava os mestres das embarcações que traziam mercadorias do Estado do Maranhão para
Lisboa a embarcar as drogas que os missionários quiserem comercializar, cujo lucro serviria para
“comporem e ajudarem as suas igrejas e residências”15.

Em 1705 o rei mandou tirar devassas gerais anualmente contra os cabos de canoa das tropas
de resgates, tão reiteradas eram as violações das leis sobre o cativeiro indígena16. Esses cabos obriga-
vam até mesmo os Principais a venderem “por escravos suas próprias mulheres e filhos” e a fazerem
“guerras injustas humas nações a outras por se aproveitarem dos despojos”. No ano seguinte, ordenou-
-se que tais comandantes de resgates fossem nomeados na Junta das Missões do Estado.

O grau de conivência ou cumplicidade dos agentes régios era variável, mas pode ser ilustrado
pela forma como o governador Dom Manoel Rolim de Moura escrevera ao rei “sobre a necessidade
que esse Estado tem de Índios Aldeados e ser o único remédio para este damno o decerem-se Índios
dos Certões para se Aldearem junto às Cidades ainda que de alguma maneira sejão violentados”17.

Com tantos abusos, o rei João V determinou que, além de serem examinados pelo missionário
que obrigatoriamente acompanhava a tropa de resgates no sertão, os índios escravizados deveriam ser
sempre examinados uma segunda vez na Junta das Missões para “reconhecer-se se o Missionário faz
bem ou mal a sua obrigação, e achando-se alguma vez que o Missionário não fez bem, se possa logo o
prejudicado p6or em sua liberdade, entregando-se ao Prelado de seu districto”18. Em 1706 foi proibido
que “pretos mamelucos e escravos” viajassem ao sertão para coletar drogas do sertão, por temor de
“levantarem com os naturaes, e fazerem no Certam muitas insolências”19. Desconfiando da generosi-
dade e do desprendimento de alguns moradores que se propunham a fazer a vistoria das fortalezas do
rio das Amazonas sem receber ajuda de custo, o rei determinou que não se incumbisse dessa tarefa
pessoa alguma que tivesse escravizado índios nem que se propusesse a fazê-lo sem ajuda de custo, es-
pecialmente um tal “Pedro da Costa Rayol, visto constar e ser notório a dezordem com que procedeu
em todas as ocasiões que foi a esta deligencia fazendo muitos escravos contra as minhas Ordens de
que tenho mandado devassar”20.

13 REGIMENTO, & Leys sobre as Missoens do Estado do Maranhaõ, & Parà, & sobre a liberdade dos Indios,
1724, p. 36
14 MOREIRA NETO, C. D. A. Os principais grupos missionários que atuaram na Amazônia brasileira entre
1607 e 1759. In: HOORNAERT, E. História da igreja na Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 63-120.
15 Livro Grosso do Maranhão, 1948, p. 94, parte 1.
16 Idem, p. 263-264.
17 Idem, p. 277-278 (carta do rei ao Governador Geral do Estado do Maranhão, 29/3/1706 - grifo meu).
18 Idem, p. 282-283.
19 Idem. P. 281-282.
20 Idem, p. 288.

876
Como a legislação determinava que aqueles índios cujo cativeiro fosse de legitimidade du-
vidosa deveriam servir como escravos pelo tempo de cinco anos, ficando livres depois disso (isto é,
entregues a aldeamentos missionários), o rei determinou em 1734 que o procurador dos índios regis-
trasse todos esses “escravos de condição”, de maneira a garantir o cumprimento dessa norma21. Essa
foi a origem do Livro das Canoas, fonte transcrita por Márcio Meira22, que registrou mais de dois mil
índios colocados nesse “limbo” jurídico, entre 1739 e 1755. O contexto era de demanda aquecida na
Europa pelo cacau, de dizimação dos cativos e aldeados de Belém e São Luís por grandes epidemias e,
portanto, de expedições de resgates intensificadas, inclusive por conta própria de moradores, ao arre-
pio das leis régias23.

A situação dos índios livres ou “forros” até 1755

Os índios livres ou aldeados, que deveriam receber salários e tinham direitos assegurados pelas
leis vigentes, tampouco estavam em situação confortável. Até mesmo uma viúva de Principal, Hilária,
tinha sido escravizada por um frei capuchinho e teve que peticionar ao próprio João V para obter sua
liberdade e viver onde quisesse com sua família, em 170624 (p. 278-279). O mesmo aconteceria com
a índia Ângela de Jesus, “de nascimento forra e filha da principal família que há nesses sertões”, que
peticionara ao rei em 1714 denunciando que os provedores da Santa Casa da Misericórdia do Pará “se
servião dela como vil escrava fazendo-a servir por força, e com violência nas suas fazendas, [...] com
tal desprezo e tirania que lhe não permittira de levar a roupa de seu uso, antes a provocara a não ob-
servar sua virtude”25. D. João V também responderia a uma petição do índios Pedro, Inês e Germano,
em 2 de fevereiro de 1729, mandando averiguar se foram repartidos como livres ou como cativos, pois
tinham alegado “que voluntariamente decerão das suas terras como livres e ezentos de todo o capti-
veiro e que não devião por este respeito ser subjetos a ninguém, nem ser reputados como captivos”,
sendo levados às fazendas dos missionários. Em 1735, o rei ordenou que os ouvidores no Estado do
Maranhão conhecessem sumariamente das causas de liberdade dos índios, “dando apelação para a
Junta das Missões do seu destricto”, como já se procedia no Estado do Brasil26.

Uma carta régia de 15 de julho de 1706 mostrava que a Coroa estava ciente de que a legislação
era rotineiramente desrespeitada: a Junta das Missões da Corte informava que “nesse Estado se não
observa a ordem de ficarem nas Aldeas dos Índios huns cultivando as suas lavouras em quanto outros
sahem a trabalhar nas Aldeas, porque pela maior parte ficão as Aldeas desertas de homens e muitas
vezes se passam annos sem alguns serem restituídos a ellas de que resulta ficarem suas mulheres e
filhos padecendo fomes e necessidades”27. Não é de surpreender, portanto, que eventualmente índios
21 Idem, p. 258-259, parte 2.
22 MEIRA, Márcio. Livro das canoas: documentos para a história indígena da Amazônia. São Paulo: Núcleo
de História Indígena e do Indigenismo, 1993.
23 DIAS, Camila Loureiro. O livro das canoas–uma descrição. ENCONTRO INTERNACIONAL DE HIS-
TÓRIA COLONIAL, IV, 2012.
24 Livro Grosso do Maranhão, 1948, p. 278-279, parte 2.
25 Idem, p. 121, parte 2.
26 Idem, p. 252, parte 2.
27 Idem, p. 282, parte 1.

877
aldeados respondessem evadindo-se dos aldeamentos, como sucedeu naquele mesmo ano com os
Aruãs da ilha de Marajó28. Aliás, mesmo índios aldeados por padres jesuítas não estavam totalmente
seguros contra investidas como as de José Borges Valerio e do Sargento-mor de Cametá, João de Souza
Coelho, denunciados ao rei por terem assaltado o aldeamento do padre jesuíta José Vidigal, provocan-
do seis mortes e escravizando um número indefinido de índios cristãos, por volta de 173029. Uma carta
de 8 de outubro de 1729 denunciara ao rei que um certo Gabriel Caetano de Torres assaltara os índios
que estavam descendo para as aldeias dos missionários mercedários; no ano seguinte a Coroa deter-
minou a abertura de devassa contra o denunciado30. Não era impossível que soldados sob o comando
do próprio governador do Estado cometessem abusos, como se constatou na ação do capitão Francis-
co de Almeida, cabo da tropa que na mesma época foi explorar supostas minas de ouro no rio Pinaré
e, no caminho, assaltou à noite a aldeia de Maracú, destinada ao serviço dos padres da Companhia de
Jesus no Maranhão, prendendo dez índios para trabalhar na tal expedição31.

Mesmo nessas circunstâncias tão duras e adversas, entretanto, a agência indígena esteve o tem-
po todo presente. Apesar da unilateralidade das fontes, quase sempre escritas por agentes régios e clé-
rigos, entrevemos os índios fazendo petições ao rei, como vimos; recorrendo ao procurador dos índios
ou à Junta das Missões, efetuando levantes armados ou simplesmente decidindo deixar os aldeamen-
tos pelo descumprimento dos acordos com os portugueses. A crônica escassez de braços no Estado,
fruto tanto da falta de cabedais dos moradores para adquirir escravos africanos quanto do impacto das
epidemias sobre a população indígena, abria espaços para negociação e barganha. O princípio legal
da repartição não satisfazia as demandas dos moradores, levando-os a competir pelos trabalhadores
indígenas. O bispo do Grão-Pará, Frei Bartolomeu do Pilar, viu-se compelido a recorrer ao monarca
para impedir que moradores cooptassem trabalhadores indígenas designados para o serviço de sua
cada e para a obra da Sé da cidade de Belém em 1729. D. João V ordenou, então, que o governador
cominasse com multas os moradores que oferecessem vantagens aos índios para trabalhar para eles,
em vez de servirem os religiosos:
Como eu fora servido conceder-lhe trinta Índios para o serviço de sua Caza, e que atendendo
ele mais ao serviço da Igreja que ao seu ordinariamente os aplica a obra da Sé que ainda ac-
tualmente continua o que he publico a todos e chega a tanto a tirania e desatenção de alguns
moradores que os mandão cathequizar com promessas para irem nas suas canoas do Sertão
a colheita do Cacao, e cravo, e salça não se contentando com os que se lhes concedem das
Aldeas da repartição ficando sem ter por este Caminho quem o sirva nem quem trabalhe nas
obras da dita Igreja a vista do que devia eu mandar que todo que divertir do seu serviço os
Índios que eu fui servido aplicar para ele pague por cada dia e por cada Índio duzentos reis
aplicados para o serviço de sua caza e que esta ordem a façais publicar por um bando nessa
Cidade, e executar a pena sem remição, e como também os Missionários se queixão que para
o mesmo efeito lhes tirão mais Índios dos que lhes devem dar, e que também se deve impor a
mesma pena aplicada para o Missionário ou para a Missão por que não sendo assim não terá
efeito a graça que eu fui servido conceder-lhes e aos seus sucessores na aplicação dos ditos
Índios [...]32.

28 Idem, p. 287, parte 1.


29 Idem, p. 243-244, parte 2.
30 Idem, p. 243, parte 2.
31 Idem, p. 241-242, parte 2.
32 Idem, p. 239-240, parte 2.

878
Na verdade, ironicamente, só não houve mais expedições de “resgate” para escravizar índios no
sertão porque... faltavam índios em Belém e São Luís para remar nessas expedições! O rei, em ordem
de 13 de maio de 1721, comentava que desde 1707 não se faziam tropas de resgates, em razão de que
os índios “que basta para irem a esta diligência, se divertem para diversas negociações”; finalmente,
determinava que “infalivelmente se fação todos os anos estes resgates”33, como, aliás, já se havia deter-
minado no Alvará de 28 de abril de 168834.

Contudo, a insustentabilidade do sistema já estava patente em meados do século XVIII. Em


1747, o rei ordenaria o fim das expedições de resgate.35 A coroa examinava o que deveria ser alterado
no Maranhão e Grão-Pará.

As Leis de Liberdade e o Diretório dos Índios

As Leis de Liberdade de 175536 proibiram qualquer forma de cativeiro indígena. Também eli-
minaram o poder temporal dos missionários (e na verdade as missões são todas convertidas em vilas
e lugares, no aspecto civil, e em paróquias submetidas ao bispo, no aspecto eclesiástico). Porém, foi
facultado ao governador do Estado do Grão-Pará e Maranhão manter as leis em segredo, promulgan-
do-as apenas quando julgasse conveniente e seguro – o que ele fez apenas em 1757, o mesmo ano em
que editou uma regulamentação local dessas leis: o chamado Diretório dos Índios, confirmado pelo
rei e impresso no ano seguinte.37 De acordo com a Lei de 1755, deveriam publicar-se editais em Belém
e São Luís declarando que

Os sobreditos Índios como livres, e isentos de toda a escravidão podem dispor das suas pes-
soas, e bens como melhor lhes parecer, sem outra sujeição temporal, que não seja a que devem
ter às minhas Leys, para à sombra delas viverem na paz, e união Christãa, e na sociedade Civil,
em que, mediante a Divina Graça, procuro manter os povos, que Deus me confiou, nos quaes
ficarão incorporados os referidos Índios sem distinção, ou exceção alguma, para gozarem de
todas as honras, privilégios, e liberdades de que os meus Vassalos gozão actualmente confor-
me as suas respectivas graduaçoens, e cabedais.38

33 Idem, p. 181. Parte 2.


34 REGIMENTO, & Leys sobre as Missoens do Estado do Maranhaõ, & Pará, & sobre a liberdade dos Indios,
1724, p. 22.
35 Ordem do Conselho Ultramarino de 21/3/1747, confirmada por resolução de 13/7/1748. Ver Arquivo His-
tórico Ultramarino, Cx. 29, D. 2803.
36 A lei de 4/4/1755 criou privilégios e incentivos para os vassalos que cassassem com índias, bem como para
os seus descendentes; a “Lei para restituir aos Índios do Maranhão a Liberdade de suas pessoas e bens” foi
assinada em 6-6-1755; a “Lei para os índios serem governados por seus nacionais” foi assinada em 7-6-1755,
eliminando o poder temporal dos missionários e transformando os aldeamentos em vilas e lugares, com o
governo local exercido pelos Principais e pelas câmaras formadas preferencialmente por oficiais indígenas e
brancos casados com índias; o alvará de 7/6/1755 confirmou os estatutos da Companhia Geral de Comércio
do Grão-Pará, tida como condição indispensável para a liberdade dos índios, ao garantir crédito e viabilizar a
importação de escravos africanos. Somente em 3/9/1759 é que os jesuítas foram banidos dos reinos e domínios
de Portugal (COLLECÇÃO das leys, decretos e alvarás que comprehende o feliz reinado del Rey Fidelíssimo
D. Jozé o I Nosso Senhor, 1771).
37 FURTADO, F. X. D. M. DIRECTORIO que se deve observar nas Povoaçoens dos Índios do Pará, e
Maranhão em quanto Sua Magestade não mandar o contrário. Lisboa: Officina de Miguel Rodrigues, 1758.
38 COLLECÇÃO das leys, decretos e alvarás que comprehende o feliz reinado del Rey Fidelíssimo D. Jozé o
I Nosso Senhor, 1771.

879
Mais ainda, explicitava-se que os índios é que deveriam decidir se receberiam o salário “ou em
panno ou em ferramenta, ou em dinheiro, como melhor lhe parecer aos que os ganharem”39.

O Diretório, porém, modificou significativamente o alcance das leis de 1755, avaliando que os
principais, por sua “lastimosa rusticidade, e ignorância, com que até agora forão educados, não tenhão
a necessaria aptidão, que se requer para o governo, sem que haja quem os possa dirigir, propondo-lhes
não só os meios da civilidade, mas da conveniência [...]”.40

Para uma longa tradição historiográfica, desde Capistrano de Abreu até Maria Regina Celesti-
no de Almeida, passando por John Hemming e Moreira Neto, o Diretório teria sido catastrófico para
as populações indígenas coloniais da Amazônia, tanto socialmente quanto demograficamente e cul-
turalmente.41 Entretanto, lançando mão de um conjunto mais amplo de fontes locais e inspirados pela
nova história indígena, historiadores como Mauro Cezar Coelho, Barbara Sommer e Heather Roller42
têm produzido uma interpretação mais nuançada dessa experiência reformista que se estendeu por
quase toda a segunda metade do século XVIII. As perspectivas abertas pelas reformas criaram uma
série de oportunidades que eram frequentemente aproveitadas pelos índios coloniais para aumentar
sua autonomia, obter ganhos simbólicos ou materiais. Mesmo no aspecto demográfico, observou-se
que na verdade a população aldeada nas capitanias do Rio Negro e Pará crescia e apresentava índices
de natalidade e mortalidade muito semelhantes ao de outras populações livres coloniais43.

O Diretório, com a correspondente extensão do governo civil e episcopal à Amazônia Ociden-


tal, produziu uma copiosa documentação, ansiosa em examinar como se dava a implementação do
novo sistema com as visitas pastorais, as correições de ouvidores, correspondência de governadores e
outros agentes régios. Diretores, câmaras e oficiais Índios tinham que produzir regularmente balanços
da produção da roça do comum de suas povoações, relações das expedições de coleta de drogas dos
sertões e listas nominais de interessados nesse negócio, listas de índios disponíveis para o serviço real
e dos moradores.

Como mostrou Heather Roller, “as viagens ofereciam oportunidades que outros tipos de traba-
lhos compulsórios não proporcionavam. Alguns dos que não eram obrigados a participar, tais como

39 Idem.
40 FURTADO, op. cit.
41 ABREU, Capistrano de. Capítulos da história colonial. Brasília: Senado Federal, 1998. ALMEIDA, Maria
Regina Celestino de. Os vassalos d’el Rey nos confins da Amazônia: a colonização da Amazônia Ocidental
(1750-1798). Dissertação (Mestrado em História), Niterói: UFF, 1990. HEMMING, John. Fronteira amazô-
nica: a derrota dos índios brasileiros. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009 [1978]. MO-
REIRA NETO, Carlos de Araújo. Índios da Amazônia: de maioria a minoria (1750-1850). Petrópolis: Vozes,
1988.
42 COELHO, Mauro Cezar. Do sertão para o mar: o caso do Diretório dos Índios (1751-1798). Tese de dou-
torado em História, Universidade de São Paulo, 2005. SOMMER, Barbara. Negotiated settlements: Native
Amazonians and Portuguese policy in Pará, Brazil, 1758-1798. Tese de doutorado em História, Universidade
do Novo México, 2000. ROLLER, Heather Flynn. Expedições coloniais de coleta e a busca por oportunidades
no sertão amazônico, c. 1750-1800. Revista de História, n. 168, p. 201-243, 2013.
43 FONSECA, André Augusto da. Os mapas da população no Estado do Grão-Pará: consolidação de uma
população colonial na segunda metade do século XVIII. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 34,
n. 3, p. 439-464, 2017.

880
os oficiais nativos, faziam-no voluntariamente”.44 Não deve nos escapar, tampouco que exercendo o
trabalho de remeiros para o transporte de cargas e passageiros e para todo o serviço de comunicações
no imenso estado do Grão-Pará e Maranhão, “estes índios eram os que mais circulavam na colônia
– mais que outros índios e mesmo que a maioria dos portugueses – e essa mobilidade, portanto, per-
mitia que adquirissem muito conhecimento”.45

Na Relação dos Oficiais e de todos os índios de 13 até 60 anos de idade, capazes de serviço que
existem na Povoação de Nossa Senhora do Carmo, anexa à Fortaleza de São Joaquim do Rio Branco,
em 01 de julho de 178446, assinalam-se 3 principais (Iorimina, Ianavy e Sesuraymé) e 3 abalizados
(Avariã, Manoel Maria e Romualdo Antônio), legalmente isentos do trabalho compulsório ordinário,
assim como suas famílias, apesar de estarem intensamente engajados nas “práticas” ou negociações
que vinham sendo muito bem-sucedidas nos descimentos de novos grupos indígenas para as povoa-
ções que se tentavam consolidar naquele rio, depois dos levantes de 1781. Segundo o documento, 19
índios estavam efetivamente no serviço real, de um total de 39 homens em idade de serviço:

4 no serviço do diretor

4 no serviço do Real Pesqueiro

2 no serviço do capelão do forte

1 no serviço do comandante do forte São Joaquim

1 no serviço do Secretário

1 no serviço do Sargento mor Domingos Franco

Uma vez que no rio Branco os únicos brancos eram militares do forte (que forneciam inclusive
os diretores das povoações), não havia demanda de trabalhadores para moradores.

Pouco tempo depois, um outro documento47 listava os índios aldeados que se encontravam
empregados em Barcelos, a capital da capitania. De um total de 756 aldeados, estavam empregados:

10 oficiais índios (Principais, alferes, abalizados, capitão)

20 “oficiaes de officios” (ferreiros, oleiros, sapateiros, carpinteiros...)

34 pescadores no serviço de funcionários

16 no serviço real

8 no serviço de moradores
44 ROLLER, Hether, op. cit., p. 203.
45 FERREIRA, Elias Abner C. GUZMÁN, Décio. “Porque sem eles [...] é não terem asas para voar, nem pés
para caminhar...”: os índios remeiros na Amazônia colonial. Um estudo a partir da crônica do padre João
Daniel (1741-1776). IV Encontro Internacional de História Colonial, Belém, 3 a 6 de setembro de 2012.
46 APEP (Arquivo Público do Estado do Pará), Cód. 407, doc. 1, p. 5.
47 BN (Biblioteca Nacional), mss1456667 - Detalhe dos serviços em que se acham empregados índios – Bar-
celos, 1786.

881
28 em outros serviços (incluindo alguns no Mato Grosso e em Belém)

14 índios velhos

33 rapazes, sendo 6 aprendizes de ofícios.

Em Serzedelo, 1784, dos 52 homens em idade de serviço, 5 eram oficiais e 20 estavam no


serviço real ou de particulares – 8 no serviço de André Cordeiro, 3 pescando para o vigário, 3 para
o diretor e 3 para o destacamento.48 No mesmo ano, em Piriá, dos 16 homens em idade de serviço, 3
eram oficiais e apenas 4 estavam a serviço de um morador, André Cordeiro49. EM Vizeu, de 21 aldea-
dos capazes de servir, 2 eram oficiais e apenas 1 estava no serviço real, atuando como piloto.50 Na Vila
de Chaves, contavam-se naquele ano 7 oficiais (principais, capitães, alferes, ajudante), com seus 31
filhos; 2 oficiais de carapina e 1 sapateiro; 2 pescadores do vigário, “4 na fortaleza e agora na [obra] da
igreja”; 41 no serviço de particulares, por portarias; 2 pescadores do diretor; 15 no serviço do comum
e 8 inválidos.51

Percebe-se que é necessário examinar uma quantidade maior de documentos semelhantes


para se ter uma compreensão mais objetiva do peso que representava o trabalho compulsório nas vilas
e lugares do Diretório. O próprio diretor, com frequência, restringia a cessão de trabalhadores para
moradores ou para o serviço real – fosse em seu próprio interesse, já que sua remuneração era uma
percentagem da produção do comum e da coleta de drogas, fosse por uma genuína preocupação com
o bem-estar das pessoas da povoação, com quem às vezes um diretor podia ter relações de parentesco
ou amizade.

Por exemplo, ao responder a ordens superiores para fornecer uma grande quantidade de fari-
nha, o diretor da Freguezia de Nossa Senhora de Nazareth da Villa da Vigia, Plácido José Pamplona
listou a quantidade de índios que cada morador precisaria para desmanchar roças de mandioca e
produzir o alimento. Dos 180 chefes de família listados no Mapa das Famílias52, Pamplona listou 13
dispostos a vender farinha à Coroa. O cruzamento com o Mapa das Famílias de 1778 permite identi-
ficar como era heterogêneo o conjunto de moradores que solicitavam trabalhadores índios: Generoza
Franca, registrada em 1778 na Vila Nova del Rey como cafuza, pobre, viúva, dois escravos, se propu-
nha a desfazer uma roça e vender 20 alqueires de farinha ao rei. A mesma quantidade oferecia Marçal
Lopes, mameluco, alfaiate, pobre, também de Vila Nova. Pedia apenas uma índia. O chefe de família
de nome Antonio, pobre e branco, só podia vender 20 alqueires, também. Igualmente Francisco Dias,
chefe de família casado, branco e pobre, sem escravos. Bernardino Felix Coelho é listado como branco,
pobre, sem escravos, propunha-se a vender 150 alqueires se tivesse o “adjutório de índios e índias”.
48 APEP Cód 408, doc. 45, p. 84. Relação dos Oficiais e de todos os índios de 13 a 60 anos de idade, capazes
de serviço que existem na Freguesia de Serzedelo, a 15 de abril de 1784. Assinado pelo diretor e pelo Principal.
49 APEP Cód 408, doc. 45, p. 87. Relação dos Oficiais e mais índios de 13 a 60 anos de idade, que existem na
Freguesia do Lugar de Piriá, a 10 de abril de 1784.
50 APEP Cód 408, doc. 45, p. 88. Relação dos Oficiais e mais índios de 13 a 60 anos de idade, que existem no
novo Lugar de Viseu, a 15 de abril de 1784.
51 APEP Cód 408, doc. 45, p. 88. Relação dos Oficiais e de todos os mais índios de 13 a 60 anos, capazes de
serviço que existem na Freguesia de Santo Antônio da Vila de Chaves, em 01 de janeiro de 1784.
52 AHU (Arquivo Histórico Ultramarino), CU_013, Cx. 94, D. 7509.

882
Pedia “duas índias farinheiras e hum índio”. Manoel Correa Azeitão, listado em 1778 em Sintra, como
branco, rico e aplicado à agricultura, dono de 26 escravos e patrão de 9 pessoas de soldada; afirmava
poder produzir 500 alqueires.

No final das contas, porém, o diretor Pamplona afirmava que apenas 6 precisavam realmente
de trabalhadores índios, totalizando 13 trabalhadores.53 Por sua própria iniciativa, assim, restringiu
significativamente a quantidade de aldeados que poderia ceder para os moradores atenderem ao ser-
viço real.

Como demonstraram Coelho e Melo54, examinando uma série de devassas de cabos das canoas
do negócio do sertão, a costumeira demonização dos diretores (responsabilizados pelo suposto fracas-
so do Diretório desde o século XVIII) deve ser revista com certo ceticismo. Tanto os diretores quanto
os principais e demais aldeados, os vigários, os cabos de canoa e outros personagens das povoações
cometiam práticas desviantes, ora em aliança ora em rivalidade uns com os outros. Tais transgressões
não podiam acontecer o tempo todo se atendessem unilateralmente aos interesses dos diretores. Prin-
cipais e diretores, em conluio, podiam acobertar fugitivos do serviço real, colocando-os ou não a seu
próprio serviço. Vigários podiam estar aliados a cabos de canoa para praticar comércio clandestino.
Moradores casados com índias podiam agir para proteger parentes. Também podia acontecer de o
principal receber os pagamentos e não repassar aos índios55. Um diretor podia não ter como compelir
os índios a participar do negócio do sertão ou a cuidar da roça do comum, se eles preferissem salgar
peixe para consumo próprio ou venda, e para fazer a relação dos índios disponíveis para o trabalho ele
teria que ter a anuência do principal56.

Neil Safier57, analisando os relatos de viagem do padre Antônio Vieira (s. XVII), de La Con-
damine e do ouvidor Ribeiro de Sampaio (s. XVIII), afirma que os índios remeiros “se convertem em
bens pessoais do europeu, da mesma forma que os bois, as drogas do sertão,ou as pedras coloridas e
os metais preciosos”. É possível que os três relatos escolhidos por Safier sejam de fato relativamente
indiferentes aos remeiros. Mas, ao contrário, a correspondência do naturalista Alexandre Rodrigues
Ferreira58, depositada em parte na Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro, é muito rica em detalhes
sobre os remeiros, fonte de permanente preocupação da expedição científica.

Ferreira comentou sobre o escândalo que poderia causar entre os aldeados – e principalmente

53 Relação das pessoas que prometem vender farinhas a S. Mag.de , dando-se-lhes adjutório para a fatura delas
(APEP cód. 116, doc. 62, p. 473 e 326).
54 COELHO, Mauro Cezar; MELO, Vinícius Zúniga. Nem heróis, nem vilões: o lugar dos diretores de povoa-
ções nas dinâmicas de transgressão à lei do Diretório dos Índios (1757-1798). Revista de História, n. 174, p.
101-129, 2016.
55 APEP.SC.CDG.CO0408.0117.
56 APEP códice 116, p. 381. Carta do diretor de Alenquer, Manoel Gomez, ao General Manoel Bernardo de
Mello e Castro, 24/7/1762.
57 SAFIER, Neil. Subalternidade tropical? O trabalho do índio remador nos caminhos fluviais amazônicos. In:
PAIVA, Eduardo França; ANASTASIA, Carla Maria Junho. O trabalho mestiço: maneiras de pensar e formas de
viver, séculos XVI a XIX. São Paulo: Annablume/ PPGH UFMG, 2002, p. 427-443.
58 FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem ao Brasil: correspondências ativa, passiva e indireta. Transcrição,
estabelecimento do texto e notas por José Pereira da Silva. 1779-1818. São Paulo: Kapa Editorial, 2008.

883
sobre os recém-pacificados Mura – ver que uma expedição retornava com os remeiros metidos em fer-
ros, em uma viagem do governador do Mato Grosso. Em um acarta de 16 de maio de 1788 ao mesmo
governador, o plenipotenciário das Demarcações Pereira Caldas mencionava que uma única viagem
àquela capitania deixara 62 remeiros mortos, o que é realmente impressionante59. Nem tudo era terrí-
vel, porém. Ao longo de sua própria viagem, Ferreira mencionou várias ocasiões em que os índios das
vilas e lugares lhe vendiam quantidades significativas de farinha, o que sugere uma capacidade notável
de produção para o mercado.

O naturalista afirmava que os principais protegiam os desertores e que os próprios índios Mura,
que antes serviam para amedrontar remadores e evitar fugas, passaram a ajudar também os desertores.
Uma carta do governador do Mato Grosso ao naturalista dizia que “[...] alguns diretores exageram
a falta dos índios das suas respectivas povoações, afetando que eles se acham em Mato Grosso [...]”.
Além disso, agora eles fugiam “com muita mais facilidade e segurança, animados com a amizade dos
gentios muras, que até os socorrem nas suas fugidas, como eu experimentei”.

Essas passagens mostram uma grande capacidade dos aldeados, mesmo no serviço compul-
sório, reagir a jornadas extenuantes e pouco remuneradas. Em pouco mais de um mês, em 1788, 42
deles desertaram da expedição de Alexandre Rodrigues Ferreira. O próprio general Pereira Caldas,
poderoso plenipotenciário das demarcações e ex governador do Estado, respondeu ao pedido de 50
remadores, suplicados pelo naturalista, dizendo que os enviaria “se eles quiserem.”

Um epílogo muito significativo dessa tumultuada viagem do rio Negro ao Mato Grosso, parte
da Viagem Filosófica de Ferreira, é uma relação anexa à correspondência, de 5/10/1790, segundo a
qual 7 índios da expedição resolveram se alistar como soldados pedestres no Mato Grosso e 4 deci-
diram se casar naquela capitania60. Tais atitudes não são de pessoas privadas de liberdade ou simples
vítimas da legislação colonial. Eram sujeitos que tomavam decisões e tinham uma certa autonomia
para decidir seus destinos pessoais.

E o que acontecia aos índios desertores, que como vimos tinham sido mais de quarenta? Se
pudermos acreditar no que o governador do Mato Grosso confidenciava ao naturalista, retornavam a
suas povoações ou a vilas vizinhas, onde ficavam escondidos e podiam escapar ao trabalho compulsó-
rio, com a conivência de autoridades locais:
“Consta-me, por outra parte, que estes fugidos quando voltam às suas povoações, ou às vizi-
nhas (o que muitas vezes sucede poucos dias depois que delas saem) não são logo tomados a
rol, nem incluídos nas relações e mapas particulares da população que se apresenta a Vossa
Excelência, isto por motivos sinistros e particulares, que nada são a favor dos ditos pobres e
desinteressados índios, e a fim de que no entanto se suponham em Mato Grosso”.

Considerações finais

Nesta etapa da pesquisa, a documentação parece sustentar a hipótese de que o Diretório au-

59 Idem, vol. III, p. 210.


60 FERREIRA, op. cit., vol. II, p. 99-100

884
mentou a margem de autonomia e as possibilidades dos índios coloniais obterem ganhos dentro da-
quela sociedade. Antes “território de caça” das expedições de resgate e das “guerras justas”, a partir do
final da década de 1750 a Amazônia Ocidental passou a ser o palco do estabelecimento de repúblicas,
com câmaras integradas por índios e por brancos casados com índias. O cenário era já bem outro para
a população indígena colonial. Falta analisar um número maior de fontes quantitativas, por certo.
Além disso, se as mulheres indígenas eram tradicionalmente importantes como amas de leite e fari-
nheiras, antes das Leis de Liberdade, esta pesquisa ainda não analisou documentos sobre seus serviços
no contexto do Diretório.

Parece ser pacífico afirmar que as Leis de Liberdade e o Diretório reduziram a ambiguidade
entre liberdade e cativeiro dos indígenas na Amazônia. Embora a “liberdade” dos aldeados não ex-
cluísse o trabalho compulsório, que não existia na mesma qualidade para os vassalos não-índios de
Sua Majestade Fidelíssima, os resultados preliminares desta pesquisa em andamento já mostram uma
grande variedade de formas pelas quais os aldeados exerciam sua autonomia, usando as leis a seu fa-
vor ou transgredindo-as. Seu status social, associado ao exercício do governo local por uma camada
de oficiais indígenas, era agora claramente diferenciado dos africanos escravizados que chegavam à
Amazônia em número cada vez maior.

Fontes

APEP (Arquivo Público do Estado do Pará), Códices 116, 407 e 408.

BN (Biblioteca Nacional), mss1456667 - Detalhe dos serviços em que se acham empregados índios –
Barcelos, 1786.

DANIEL, João. Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004.

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887
FAMÍLIA GOMES DA FONSECA: PARDOS DISFARÇADOS DE BRANCOS EM PERNAMBUCO
(XVIII)
Janaína Santos Bezerra1

A presente abordagem tem como objetivo fazer uma análise do patrimônio, das redes de poder
e das estratégias de promoção social utilizadas pela família Gomes da Fonseca, em Pernambuco, no
século XVIII2. Tal família se fez notável, não apenas por possuir avultado cabedal, mas também por ter
distinção e honra e viver à moda da nobreza. Para conseguir tal façanha utilizaram diversas estratégias
de integração social, entre elas a carreira eclesiástica, a compra de cargos, a ostentação de patente
militar, a ocupação de cargos importantes na Ordem Terceira do Carmo, a aquisição de escravos e
imóveis e o casamento em face da Igreja. Todos esses elementos convergiam para uma aquisição e
consolidação de posições de prestígio e comando.

A fraude da tez branca foi uma estratégia corriqueira na trajetória de vida da família Gomes
da Fonseca em Pernambuco. Aparentemente eram pardos, carregavam na pele e nos cabelos todas
as ferramentas que denunciavam a sua origem mestiça. Porém, na documentação, em seus processos
de habilitação na Ordem de Cristo, ou até mesmo na ocupação de cargos de prestígio na colônia,
apresentavam-se como brancos de sangue limpo. Na verdade, o mecanismo de fraude genealógica
era utilizado para impedir ou remediar a desclassificação social de quem desejava continuar a viver
dentro desse sistema e não na sua margem3. Uma análise na trajetória dessa família indica que a
fraude da tez branca não perdurou por tanto tempo. O Processo de habilitação da Ordem de Santiago
de José Gomes da Fonseca, filho do grande comerciante do Recife, Francisco Gomes da Fonseca,
denuncia a sua qualidade parda e de toda a sua família4.
Isso significa, que a qualidade de um sujeito poderia mudar, dependendo da situação em que o mesmo
se encontrava. Nesse contexto, tanto a cor como a qualidade não eram elementos estáticos e imutáveis.
Muito pelo contrário, a dinâmica do contexto colonial pernambucano permitiu que indivíduos,
através de estratégias, transitassem em diversos espaços de visibilidade social, enquadrando-se dentro
do sistema, e não na sua margem.

Segundo Roberto Guedes “o temor à depreciação da estima social levava à busca de signos

1 Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco; professora da Rede Estadual de Ensino de
Pernambuco.
2A intenção foi traçar a trajetória de alguns integrantes de tal família, através do levantamento de informações que
se cruzam com o auxílio de documentação variada. Dados justapostos e combinados e, em seguida, examinadas
por meio de variáveis significativas. Este procedimento de pesquisa conhecido como Prosopografia pretende
elucidar um universo a ser estudado e formular uma série de questões padronizadas como organização familiar,
local de nascimento, origens de sua fortuna, laços matrimoniais, posição social, entre outras.Cf. HEINZ, Flávio.
Por outra História das Elites (org.), Rio de Janeiro: FGV, 2006.p.9
3 MELLO, Evaldo Cabral de. O Nome e o Sangue: uma parábola familiar no Pernambuco colonial. Rio de

Janeiro: Topbooks, 2000.p.28


4 Vale ressalta que quando se falava da qualidade do indivíduo, falava-se de sua condição, situação social,
religiosa, econômica, ocupação profissional e sua cor, que por outro lado, não estava relacionada apenas à
pigmentação da tez do indivíduo, mas englobava aspectos sociais e econômicos. Logo, a qualidade funcionava
como uma espécie de guarda-chuva que servia para distinguir e hierarquizar os sujeitos no contexto colonial
pernambucano.

888
socialmente valorizados, que não deixassem margem a dúvidas sobre a posição social dos indivíduos/
famílias, do que decorria certa especialização social, advinda da ocupação desempenhada”5. Era
preciso esconder, omitir certas informações, na busca por promoção social. A família Gomes da
Fonseca soube bem disfarçar as suas máculas e defeitos. Podemos até afirmar que, de certa forma, teve
êxito nas suas expectativas. Pelo menos, até enquanto viveu Francisco Gomes da Fonseca, seus filhos
se fizeram notáveis e respeitáveis no espaço colonial pernambucano. No entanto, após a sua morte, a
origem mestiça e humilde da família ganhou visibilidade.

1 FRANCISCO GOMES DA FONSECA: UM HOMEM DE CABEDAL E RESPEITO NO ESPAÇO


COLONIAL PERNAMBUCANO

Francisco Gomes da Fonseca foi uma figura de destaque. Disfarçado de branco conseguiu
títulos nobiliárquicos, recebeu mercês da Coroa, foi grande comerciante, militar, senhor de engenho,
oficial da Câmara do Recife e integrante da Ordem Terceira do Carmo. Porém antes de se fazer um
homem notável, exerceu o ofício de pedreiro, juntamente com o seu pai, Manoel Gomes de Oliveira,
ou seja, além de pardo, era também portador do estigma de defeito mecânico. O mesmo era natural da
Vila de Santo Antônio do Recife, tendo sido batizado na Matriz do Corpo Santo como filho legítimo
de Manoel Gomes de Oliveira, natural da Muribeca, e de sua mulher Catherina de Oliveira, natural
da Vila do Recife. Por parte paterna era neto de Lázaro de Oliveira e Maria das Neves, da freguesia da
Muribeca. Já pela materna era neto de Antônio Fernandes e de sua mulher Maria da Fonseca Neves,
naturais do Reino6.

GENEAGRAMA 1

Fonte: AHU_ACL_CU_015, Cx. 48, D. 4318

Ao que parece, a família Gomes da Fonseca foi resultante de laços matrimoniais feitos entre
indivíduos provenientes do Reino e naturais de Pernambuco. Segundo Sheila de Castro Faria, a vinda
de indivíduos do reino para o Brasil, no período colonial, pode ser entendida pela busca de riqueza e/
ou ascensão social. Para a autora, muitos visavam à liberdade; outros, ainda, mudavam-se para atender
5 GUEDES, Roberto. Ofícios mecânicos e mobilidade social: Rio de Janeiro e São Paulo (Sécs. XVII-XIX) TOPOI, v. 7, n.
13, jul.-dez. 2006, pp. 379-423. P.381
6 AHU_ACL_CU_015, Cx. 48, 1735, junho, 23, Recife, D. 4318

889
às estratégias familiares matrimoniais; uns fugiam da justiça, tentando reconstituir a vida em terra
onde eram desconhecidos; outros tinham interesse em manter suas práticas religiosas, perseguidas
nas terras de origem7.

Não sabemos ao certo o que motivou a vinda desses indivíduos a Pernambuco, porém foi
possível perceber que tais sujeitos, em terras pernambucanas, não fugiram aos ditames da Igreja na
obtenção do reconhecimento social. Os laços matrimoniais fizeram parte de um cenário de inserção
e reconhecimento social. Como homem religioso, Francisco Gomes da Fonseca se casou com Josefa
Maria de Jesus, natural da vila de Santo Antônio do Recife. Josefa era filha de Sebastião Pereira da
Costa, carcereiro, natural do Porto e de Dona Madalena de Lara, natural de Olinda. Ao que se têm
notícias, Sebastião teria vindo para Pernambuco e em terras americanas casou com Madalena de
Lara8.

Como um homem religioso, além de firmar laços matrimoniais, também batizou todos os seus
filhos. Na busca por um assistencialismo espiritual e material fez parte da Ordem Terceira do Carmo
do Recife, juntamente com os seus filhos, onde compôs a Mesa, sendo Prior, cargo mais elevado da
instituição, no período de 1735 a 1736. A sua ocupação em tal instituição religiosa atesta não só o seu
prestígio, mas, sobretudo, a sua boa condição econômica, uma vez que, para esse tipo de cargo, só
eram eleitas pessoas “abonadas”.

O agregado familiar de Francisco Gomes da Fonseca e Josefa Maria de Jesus era constituído
por seis filhos: duas mulheres e quatro homens. Entre as suas duas filhas, Josefa Maria de Jesus Xavier
era a mais velha, nasceu no ano de 1723. Como um bom cristão, em 15 de novembro do mesmo ano,
Francisco Gomes da Fonseca, levou-a à pia batismal para receber o sacramento cujo ato foi realizado
na Igreja de Nossa Senhora da Penha. Foram padrinhos Sebastião Pereira da Costa e Manoel Freire de
Andrade9.

A sua segunda filha, chamada de Catharina de Oliveira, nasceu no ano de 1730. A criança foi
batizada no dia 20 de dezembro do mesmo ano, pelo padre provincial Frei João de Monte Carmelo, no
convento de Nossa Senhora do Carmo do Recife. Tanto a criança como os seus pais foram registrados
como brancos na documentação10. O filho mais velho de Francisco Gomes da Fonseca se chamava
Sebastião Gomes da Fonseca. Ao seu respeito há poucas informações disponíveis. Sabemos que foi
casado, teve pelo menos dois filhos: um filho que recebeu o mesmo nome do seu pai, o licenciado
Francisco Gomes da Fonseca, e uma filha que desconhecemos o nome, mas temos a notícia que a
mesma foi casada com José Antônio Vieira. Sebastião era lavrador por muitos anos do engenho da
família chamado de Caraúna. O seu nome consta na lista de devedores da Companhia de Comércio,
inadimplente da quantia de 2:234$396 réis11.

7 FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1998, p.163-164
8 HOC José Gomes Fonseca, letra “J”, m. 83, n. 5. ANTT.
9 AHU_ACL_CU_015,cx,52, 1738, setembro, 17, Lisboa, D. 4592
10 AHU_ACL_CU_015,cx,52, 1738, setembro, 17, Lisboa, D. 4592
11 CA. PT.TT.AHMF-CPP. Companhia geral de Pernambuco e Paraíba. Liv. 481 Devedores da Companhia de
Pernambuco e Paraíba. fl.195

890
Segundo Teresa Cristina de Novaes Marques, os comerciantes de grosso trato eram
devedores da Companhia. Assim, durante a vigência do monopólio em Pernambuco – 1759 a 1780
– as práticas comerciais adotadas pela Companhia aprofundaram a tendência ao endividamento dos
senhores. Iniciada a liquidação da Companhia, o poder régio continuou amparando a instituição
com prerrogativas para recuperar os créditos concedidos aos senhores de engenho, lavradores e
comerciantes12.

Voltando a falar da prole de Francisco Gomes da Fonseca, os outros três filhos do sexo
masculino eram: Manoel Gomes da Fonseca que nasceu em 1724 e foi o grande herdeiro dos ofícios
de seu pai; José Gomes da Fonseca que veio ao mundo no ano de 1725 e foi bacharel em Cânones.
Seguiu para a vida eclesiástica como sacerdote do hábito de S. Pedro; e Félix Gomes da Fonseca que
contraiu laços matrimoniais com Rosa Maria Josefa de Oliveira.

GENEAGRAMA 5

Arvore Genealógica da Família Gomes da Fonseca

Fonte: AHU_ACL_CU_015, Cx. 48, D. 4318, HOC José Gomes Fonseca, letra “J”, m. 83, n. 5. ANTT
12 MARQUES, Teresa Cristina de Novaes. O empenho que não se dissolve. Notas de pesquisa sobre o
endividamento de senhores de engenho de Pernambuco, século XVIII, início do XIX. Sobre a companhia
de Comércio ver também: SILVA, Poliana Priscila da.HOMENS DE NEGÓCIO E MONOPÓLIO: Interesses
e estratégias da elite mercantil recifense na Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba (1757-1780). 2014.
Dissertação (Mestrado), Programa de Pós-graduação em História da UFPE; DIAS, Érika Simone de Almeida Carlos.
As pessoas mais distintas em qualidade e negócio: a Companhia de Comércio e as relações políticas entre
Pernambuco e a Coroa na segunda metade de Setecentos. Tese de doutoramento em História, especialidade
em História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas.
Universidade de Nova Lisboa. Lisboa, 2014; RIBEIRO JR., José. Colonização e monopólio no Nordeste
brasileiro. A Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba (1759-1780). Col. Estudos brasileiros, 3. SP: Hucitec,
1976; CARREIRA, António. As Companhias Pombalinas. Lisboa: Editorial Presença, 1982; CARNAXIDE,
Visconde de. O Brasil na Administração Pombalina. São Paulo: Editora Brasiliana, 1979.

891
Em sua casa, além da sua mulher e seus filhos, também morava uma sobrinha, Ana de Jesus
Xavier, filha da sua cunhada, Dona Caetana Maria de Lara Pereira e de Antônio de Azevedo Pereira.
Isso até o ano de 1738 quando resolveu mandar as suas duas filhas, Josefa Maria de Jesus Xavier e
Catherina de Oliveira Xavier, e sobrinha, Ana de Jesus Xavier, para um Recolhimento no Reino, a fim
de seguirem uma vida religiosa13. Josefa Maria de Jesus, na época tinha 14 anos e sua irmã, Catharina
de Oliveira Xavier, apenas 7. Ana de Jesus Xavier, sobrinha de Francisco Gomes da Fonseca, tinha 20
anos e vivia sob os cuidados do seu pai e do tio Francisco Gomes, após a morte de sua mãe.

Vale ressaltar que para recolher uma filha em uma casa de clausura no reino era necessário
um cabedal significativo para pagar o dote à instituição e o translado para o Reino. Além do cabedal
era preciso prestígio para conseguir vagas na instituição desejada14. Ao encaminhar as suas duas filhas
e sobrinha ao reino, Francisco Gomes da Fonseca teria ainda que ter “uma licença de sua majestade
por resolução do dito senhor de 10 de março de 1732”15. Através deste Alvará, D. João V proibiu o
deslocamento de moças do Brasil para Portugal, sem o consentimento prévio do rei. Existia por parte
da Coroa uma necessidade de povoar o vasto território do Brasil, o que acabou motivando a Coroa em
desenvolver uma política contrária ao envio de mulheres jovens para os conventos.

A medida foi tomada em decorrência do envio desenfreado de mulheres para o Reino, muitas
das quais “com o pretexto de serem Religiosas”, quando na verdade a causa principal era o medo que
os pais tinham de suas filhas contraírem um matrimônio com indivíduos de inferior condição. As
mulheres, segundo o Alvará, deveriam “ser livres” nas suas escolhas, optando por uma vida matrimonial
ou religiosa. A escolha deveria ser feita pela própria pretendente, evitando assim “viverem sempre
desgostosas”, com uma vida que não escolheram16.

Por outro lado, “Garantir a proteção da prole feminina sempre foi uma preocupação das
famílias no mundo ibero-atlântico do Antigo Regime” 17. Quando a honra da família estava em
jogo, a clausura passava a ser forçada pelos pais, sem o consentimento das filhas. Com o Alvará, a
permissão seria antecipada de um inquérito completo realizado pelo vice-rei e pelos governadores
a fim de determinar todas as circunstâncias relativas à petição feita por moças que desejassem ir
para Portugal. O inquérito também seria acompanhado por um relatório eclesiástico. Nesse caso, “o
arcebispo ou bispo entrevistaria a moça para ter certeza de que o pedido tinha origem em vocação
religiosa verdadeira e não na intimidação paterna”18.

“Na Espanha, em Portugal e nos seus prolongamentos ultramarinos, a noção de honra


13 AHU_ACL_CU_015,cx,52, 1738, setembro, 17, Lisboa, D. 4592. Ver também: ALMEIDA, Suely Creusa
Cordeiro. O Sexo Devoto: Normatização e Resistência feminina no Império Português – XVI – XVIII. Recife:
Editora Universitária UFPE, 2005.p.106 e 107.
14 ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro de. A clausura feminina no mundo ibero atlântico: Pernambuco e Portugal nos
séculos XVI ao XVIII. Tempo vol.18 no.32 Niterói  2012.
15 AHU_ACL_CU_015,cx,52, 1738, setembro, 17, Lisboa, D. 4592
16 CA/PT/TT/ML/Assuntos Brasil/ livro 1140. ANTT
17 ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro de. Op. Cit. 2012.
18 Cf. RUSSEL – WOOD, A. J. R. Fidalgos e Filantropos: a Santa Casa da Misericórdia Da Bahia. 1550 – 1755. Trad. Sérgio
Duarte, Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1981.p.137

892
extrapolava a de uma qualidade intrínseca para identificar-se com a voz pública”19. Segundo Russel-
Wood, na Bahia, “a preocupação com a manutenção do prestígio social e com os riscos de casamento
‘abaixo da posição social’, levou muitas famílias a mandarem suas filhas para os conventos em Portugal,
afim de não arriscar que elas contraíssem casamentos socialmente indesejáveis”20. Tais fatores também
podem ter sido motivadores do deslocamento das duas filhas e sobrinha de Francisco Gomes da
Fonseca em Pernambuco. O destino final seria um recolhimento que, diferentemente de um convento,
era um espaço que preparava as mulheres para o matrimônio21.

É provável que tal clausura tenha ocorrido por imposição de Francisco Gomes da Fonseca,
visto que uma das suas filhas tinha apenas 7 anos de idade, ou seja, não tinha uma opinião formada
sobre o rumo que deveria seguir. Segundo Stuart Schwartz, “a honra da família era vinculada à honra
das mulheres, as filhas deviam manter-se castas, e a esposa, isenta de qualquer boato ou situação
comprometedora” 22.

Para Suely Almeida, “um mau passo dado por mulheres importantes, fora das normas ou
dos comportamentos idealizados, seria uma mácula para toda uma linhagem familiar, impedindo
principalmente os homens de se incluírem nas elites locais” 23. Nesse caso, a honra feminina figurava-
se então como “um bem pessoal de cada mulher como uma propriedade da família, porque poderia
atingi-la, e também um bem público, porque estava em jogo a preservação dos bons costumes exigida
pelo código moral” 24.

Francisco Gomes da Fonseca era um homem de negócio e tinha um nome a preservar. Não
era conveniente para a sua pessoa e geração futura ter filhas com má fama no espaço colonial. Como
tal, tinha a pretensão de manter uma boa reputação que dependia, sobretudo, da honra de suas duas
filhas e sobrinha.

Temos incertezas com relação ao destino trilhado por cada uma delas. Ao certo, Josefa Xavier,
filha mais velha de Francisco Gomes da Fonseca, escolheu seguir a vocação religiosa prevista pelo
seu pai, dedicando-se a uma vida de fé, confinada no convento de Odivelas no Reino. Mesmo longe,
Francisco Gomes da Fonseca, pai de Josefa, sempre amparou a filha não lhe deixando faltar recursos
financeiros. Porém, com a morte do pai, Josefa começou a passar por algumas necessidades. Tal
fato chegou ao nosso conhecimento através de um ofício encaminhado no ano de 1787, no qual a

19 MELLO, Evaldo Cabral de. O Nome e o Sangue: uma parábola familiar no Pernambuco colonial. Rio de

Janeiro: Topbooks, 2000.p.27


20 RUSSEL – WOOD, A. J. R. op. cit. p. 137
21 Cf. ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro. Op. Cit.. Sobre as mulheres no século XVIII em Pernambuco ver
também: MENEZES, Jeannie da Silva. Sem embargo de ser fêmea: as mulheres e um estudo jurídico em
movimento no “direito local” de Pernambuco no século XVIII. 279f. Recife, 2010. Tese (doutorado)Universidade
Federal de Pernambuco.
22 SCHWARTZ. Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravismo na sociedade colonial (1550-1835).

(Trad.) Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.p242
23 ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro de. Op. Cit. 2012.
24 ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas: Mulheres da colônia –Condição feminina nos conventos e recolhimentos
do Sudeste Brasil (1750-1822). Rio de Janeiro: José Olímpio; Brasília: Edunb, 1995.p.113

893
mesma solicitou, junto às autoridades coloniais, que seu irmão mais velho, Manoel Gomes da Fonseca
remetesse o dinheiro necessário para seu sustento25. Na ocasião, Josefa contava com uma idade de
63 anos, passava por necessidades por falta de tença que o seu pai havia deixado, após a sua morte.
A difícil situação em que se encontrava era decorrente do descaso do seu irmão mais velho que não
vinha cumprindo com suas obrigações de repassar tal ajuda financeira, há alguns anos. Na ocasião foi
repassado para a religiosa, assim como era de direito, o valor de 1: 789$274,00 (um conto, setecentos
e oitenta e nove mil, duzentos e setenta e quatro réis) 26.

Francisco Gomes da Fonseca, pai da religiosa Josefa, em vida, ficou conhecido na vila do
Recife como um homem de cabedal e negócio, comercializou escravos no Recife para serem vendidos
no Rio de Janeiro27. Na câmara do Recife foi indicado em 1736, como Terceiro Vereador, cargo que
acumulou com o exercício do ofício de Capitão, assumindo juntamente com os Capitães João Batista
de Vasconcelos e José de Souza28. Eram três vereadores e um procurador que serviam anualmente,
de janeiro a dezembro29. Ao ocupar um cargo da administração das vilas e cidades, Francisco Gomes
da Fonseca se tornou agente regulador; “representante dos interesses particulares e porta-voz da
política metropolitana” 30. Tendo em vista que tal cargo nobilitava seus ocupantes devido às honras e
os privilégios concedidos pela Coroa para a gente da governança31.

Como um homem de cabedal eram de sua propriedade vários bens, entre esses o Engenho
Caraúna, em Olinda32 e um terreno na Rua do Vigário, do qual pagava foros à Olinda33. Além de
terrenos e engenho, também era proprietário das corvetas N. S. do Carmo e S. Antônio, como também
de dois barcos: N. S. Prazeres e S. Antônio e Almas34.

Nas tropas militares ocupou o posto de Capitão35. Além de tal patente, também realizou alguns
contratos, teve alguns cargos; entre esses foi escrivão da Ouvidoria e também proprietário do ofício de
Carcereiro da cidade de Olinda36. Tal ofício era de propriedade do Capitão Sebastião Pereira da Costa,
pai de Josefa Maria de Jesus. O ofício foi passado em forma de dote a Francisco Gomes da Fonseca ao
fazer laços matrimoniais com a dita filha do Capitão. Em 25 de junho de 1724, o mesmo solicitou a
propriedade do ofício37.

25 Página 526.
26 Página 526.
27 HOC José Gomes Fonseca, letra “J”, m. 83, n. 5. ANTT.
28Ibid. fl.217
29MELLO, José Antônio Gonsalves de. Nobres e Mascates na Câmara do Recife, 1713-1738. Revista do Instituto
Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. Recife: 1981. v. LIII, 1981, pp. 113-262. p.123
30SILVA, Welber Carlos Andrade da. As Elites de Santo Antônio: Poder,Representações e sociabilidade- o caso
da Irmandade do Santíssimo Sacramento (1791-1822). 2011, f. Dissertação (mestrado em História Social da
Cultura Regional)- Programa de pós-graduação em Historia. UFRPE. Recife.p.33
31BORREGO, Maria Aparecida de Menezes. A teia mercantil: negócios e poderes em São Paulo colonial (1711-
1765). Ed. Alameda.São Paulo, 2010.p.141
32 AHU_ACL_CU_015, Cx. 155, [ant. 1785, dezembro, 12], D. 11218.
33 Foral de Olinda, 1.1, f.114
34 IGCP, p. 315 e 317. Informação Geral da Capitania de Pernambuco em 1749
35 MELLO, José Antônio Gonsalves de. Op. Cit. pp. 113-262. p. 172
36PT/TT/RGM/C16, f.6, 6,v. ANTT
37PT/TT/RGM/C16, f.6. 6v. ANTT

894
Além da propriedade do ofício de Carcereiro da cidade de Olinda, Francisco Gomes da Fonseca
também foi proprietário, em 1736, do ofício de Tabelião e Escrivão do Público Judicial e Notas da
cidade de Olinda38. Tal ofício era de propriedade do Capitão Luís Moreira de Sá que há 16 anos o
exercia, “sempre com bom procedimento” 39.

Em carta enviada ao rei D. João V, escrita em 23 de junho de 1735, o ouvidor da capitania de


Pernambuco, Bento da Silva Ramalho, emitiu às provanças de Francisco Gomes da Fonseca, para
propriedade de tal ofício. Em carta, o ouvidor descreveu um levantamento do parentesco dos pais e
avós paternos e maternos de Francisco Gomes da Fonseca, assim como aspectos que comprovaram a
limpeza de sangue, profissão e nobreza do mesmo40. Ao todo foram ouvidas 7 (sete) testemunhas
com idades que variavam de 50 a 80 anos. Todas eram do sexo masculino e moradores do bairro de
Santo Antônio do Recife, com exceção de Domingos Pais, morador de Beberibe. Todas eram bem
sucedidas, uma vez que eram donas de seu próprio negócio. Em seus depoimentos foram unânimes
as informações sobre a filiação de Francisco Gomes da Fonseca, porém, apenas quatro, Manoel da
Rocha, Nicolão Pais Sarmento, Francisco de Oliveira Gomes e Domingos Pais Sarmento, confessaram
ter conhecido os avós maternos de Francisco Gomes da Fonseca, que teriam vindo, segundo as
testemunhas, do Reino para o Recife41.

Ao serem interrogados, todos afirmaram a origem branca, não apenas de Francisco Gomes,
mas da sua família como um todo. Segundo os seus depoimentos, Francisco Gomes da Fonseca era
“uma pessoa de boa vida e costumes e casado com uma mulher de limpo sangue”. Era conhecido como
“cristão velho, limpo sem raça alguma de cristão novo, mouro, mulato ou de outra qualquer infecta
nação”. Ainda confirmaram em depoimento que não tinham conhecimento de fama ou rumor que
contestasse tal limpeza de sangue. Ressaltaram que o mesmo tinha um irmão sarcedote de Hábito de
São Pedro. Sobre os seus pais e avós argumentaram que “sempre se trataram com muita limpeza e
nunca tiveram ofício macânico”42.

Após serem ouvidas as sete testemunhas, Francisco Gomes da Fonseca recebeu a aprovação
para propriedade do cargo. Tendo em vista não haver fama ou rumores de nenhum defeito, seja em
sua pessoa ou da sua família. Muito pelo contrário: era conhecido como um homem de “boa vida
e costumes”, “casado com mulher também de limpo sangue”, “em tudo era bem procedido, e não
consta que os ditos seus pais, e avós exercitassem ofício algum mecânico, nem menos o suplicante,
que é homem de negócio de grossos cabedais”43. Em 1739, Francisco Gosmes da Fonseca solicitou a
renúncia do seu ofício em favor do seu filho, Manoel Gomes da Fonseca44. O cargo ficou sobre a posse
de Manoel Gomes da Fonseca até 1784, ano de sua morte. Em 1786, dois anos após a morte de Manoel
Gomes da Fonseca, Francisco Gomes da Fonseca, seu filho mais velho, solicitou à rainha, D. Maria I,
a ocupação do ofício de Escrivão da Ouvidoria e Auditoria Geral e Tabalião Público e Judicial e Notas
38 AHU_ACL_CU_015, Cx. 49, 1736, maio, 12, Lisboa, D. 4392.
39 PT/TT/RGM/C25. ANTT
40 AHU_ACL_CU_015, Cx. 48, 1735, junho, 23, Recife, D. 4318
41 AHU_ACL_CU_015, Cx. 48, 1735, junho, 23, Recife, D. 4318
42 AHU_ACL_CU_015, Cx. 48, 1735, junho, 23, Recife, D. 4318
43 AHU_ACL_CU_015, Cx. 48, 1735, junho, 23, Recife, D. 4318
44 AHU_ACL_CU_015, Cx. 66, [ant. 1747, outubro, 27], D. 5628. Ver também: PT/TT/RGM/C31, f.403. ANTT

895
da cidade de Olinda, por morte do seu pai. Francisco contava com uma idade de 38 anos quando
solicitou a propriedade do dito ofício45.

Voltando a falar de Francisco Gomes da Fonseca, homem de negócios da praça do Recife, por
algumas vezes, o mesmo teve seus bens ameaçados. No ano de 1748, Fonseca fez um requerimento ao
rei, D. João V, pedindo suspensão no sequestro de seus bens por não ser o único fiador do almoxarife
e capitão Antônio Batista Coelho46. Francisco Gomes da Fonseca, juntamente com João Gonçalves da
Silva, desde o ano de 1735, colocou-se como principal pagador de tal capitão. Segundo o suplicante,
o segundo fiador não tinha sofrido o confisco dos seus bens, o que tornaria tal fato uma verdadeira
injustiça contra a sua pessoa, uma ameaça a sua honra. Em súplica, Francisco Gomes da Fonseca
declarou que o prejuízo causado por tamanho constrangimento era irreparável, uma vez que o mesmo
não era merecedor, por ser um fiel vassalo, grande homem de negócio, tanto por terra como por mar.
Era um homem de grande utilidade para a Coroa, não só pelos donativos e direitos reais que pagava,
mas também por mandar lançar nos contratos reais, e donativo; rematando uns e fazendo subir de
preço os outros, emprestando dinheiros e oferecendo tudo o que fosse necessário para as expedições
dos serviços da Coroa47. A dívida do Capitão Antônio Batista Coelho era de 10:893$458 réis. Francisco
Gomes da Fonseca, juntamente com João Gonçalves da Silva eram responsáveis por liquidar a dívida
junta à Coroa48.

Aos 23 do mês de dezembro de 1747 foi feita a penhora e sequestro no engenho da Caraúna,
de sete vacas e quatro bezerras. Em 2 de janeiro 1748 foi feita a penhora e sequestro do sítio dos
Coqueiras, localizado na freguesia da Muribeca, assim como dos móveis que nele se encontravam.
Na penhora entrou a casa, animais, instrumentos de uso e a senzala com seus escravos: Matheus,
Miguel, Antônio, Félix, Joana e Maria. Tal sítio tinha como morador, João Gomes da Fonseca, irmão
de Francisco Gomes da Fonseca. Na localidade também foram encontrados dez cabeças de gado,
porém eram de propriedade do dito irmão. No dia 27 de janeiro de 1748 foi entregue na casa dos
contos, a quantia de 2:560$000 réis, pertencentes a Francisco Gomes da Fonseca, entregues por José
de Abreu Cordeiro, Capitão da sumaca Nossa Senhora do Monte do Carmo. No dia 10 de fevereiro foi
entregue mais 800$000 réis, pelo Mestre da sumaca Diogo José Campos. No dia 17 de janeiro de 1748
foram apenhorados seis caixas de açúcar, cinco do branco e uma do mascado, também pertencentes a
Francisco Gomes da Fonseca. Em decorrência da dívida, Antônio Batista Coelho se encontrava preso
na cadeia da vila do Recife, desde o dia 16 de março de 174849.

Segundo as Ordenações Filipinas a penhora dos bens recaía preferencialmente sobre bens
móveis, ou seja, escravos, joias, dinheiro, entre outros. No caso dos bens imóveis, a penhora só ocorria
caso os bens móveis do devedor não fossem suficientes. Na sua execução o devedor perde a posse do

45 AHU_ACL_CU_015, Cx. 156, [ant. 1786, janeiro, 7], D.11229


46 AHU_ACL_CU_015, Cx. 67, [ant. 1748, março, 28, Pernambuco], D. 5688
47 AHU_ACL_CU_015, Cx. 67, [ant. 1748, março, 28, Pernambuco], D. 5688
48 AHU_ACL_CU_015, Cx. 67, [ant. 1748, março, 28, Pernambuco], D. 5688
49 AHU_ACL_CU_015, Cx. 67, [ant. 1748, março, 28, Pernambuco], D. 5688

896
seu bem, mas não a sua propriedade50. “Portanto, a penhora não representa o ponto final da negociação
entre os credores e os devedores e, sim, o início de uma nova fase de negociação, em que os devedores
se refugiam nos poderes locais, por onde transitam facilmente” 51.

Em 1770, os bens de Francisco Gomes da Fonseca ainda estavam confiscados pela Provedoria
da Fazenda Real de Pernambuco. O seu filho, o padre José Gomes da Fonseca e demais herdeiros do
falecido Francisco Gomes da Fonseca, em 13 de agosto do mesmo ano, fez um requerimento ao rei D.
José I, pedindo resolução acerca do confisco dos bens de seu pai52. Ao escrever tal carta, já se passavam
26 anos em que os bens de Francisco Gomes da Fonseca tinham sido confiscados pela Provedoria da
Fazenda Real de Pernambuco, em virtude do alcance líquido da quantia de 32:649733 réis e vários
gêneros que se imputaram ao Almoxarife Antônio Batista, de quem o dito pai foi fiador. O fato é que já
se passavam diversos anos e o problema ainda não tinha sido resolvido por completo. Os herdeiros de
Francisco Gomes da Fonseca, opondo-se ao sequestro, apelaram para que o Provedor fizesse a conta
dentro do triênio, ou seja, de 1735 a 1738, tempo em que o seu dito pai teria sido fiador de almoxarife
Antônio Batista Coelho. Na verdade, o sequestros dos bens de Francisco Gomes da Fonseca tinha
ultrapassado o tempo previsto, trazendo grandes prejuízos financeiros aos seus herdeiros.

A súplica estava voltada para um possível reembolso do que se tinha pago injustamente e
contra o provedor pela recusa de colocar em prática a sentença53. Ao certo, a penhora do engenho
da Caraúna não ocasionou a perda do mesmo. Visto que, em 12 de dezembro de 1785, novamente os
herdeiros de Francisco Gomes da Fonseca fizeram um requerimento à rainha, D. Maria I, dessa vez
para pedir provisão para se demarcar as terras do engenho Caraúna, invocação a Santa Catharina,
situado na freguesia de Santo Amaro de Jaboatão, termo da cidade de Olinda de Pernambuco54. A
solicitação foi feita pelos dois filhos, o Capitão Félix Gomes da Fonseca e o Reverendo Cônego José
Gomes da Fonseca, e pelos dois sobrinhos, o Reverendo Padre Francico Gomes da Fonseca, filho de
Manoel Gomes da Fonseca, já defunto, e o Licenciado Francisco da Fonseca, filho de Sebastião Gomes
da Fonseca, já defunto.

O engenho caraúna foi deixado de herança por Francisco Gomes da Fonseca para seus filhos. O
tal engenho fazia divisa com o engenho da Mandioca, de propriedade dos herdeiros de Ignácio Barros,
e com o engenho de Gurjau de Baixo, de propreidade do senhor João de Souza Leam, e com as terras
do engenho Gurjau de Cima que pertencia aos herdeiros do senhor Bento Gonçalves Vieira, e com o
engenho Catende de propriedade da viúva Dona Ana da Silva. Os dois filhos e os dois sobrinhos se
sentiram perseguidos e prejudicados nas terras e matas do referido engenho e suas pertenças. Temiam
50 CÓDIGO Filipino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal: Edição fac-similar da 14º

ed, de 1870, com introdução e comentários de Cândido Mendes de Almeida. Brasília: Senado

Federal, 2004. Livro 3, título 86


51 MARQUES, Teresa Cristina de Novaes. O empenho que não se dissolve. Notas de pesquisa sobre o
endividamento de senhores de engenho de Pernambuco, século XVIII, início do XIX.p.17
52 AHU_ACL_CU_015, Cx. 109, [ant. 1770, agosto, 13], D. 8454.
53 AHU_ACL_CU_015, Cx. 109, [ant. 1770, agosto, 13], D. 8454.
54 AHU_ACL_CU_015, Cx. 155, [ant. 1785, dezembro, 12], D.11218

897
em perder as matas e com isso a desvalorização do referido engenho. A súplica estava direcionada
para uma demarcação e medição das terras do referido engenho Caraúna55.

Na verdade, o engenho da Caraúna foi apenas um dos vários bens deixados por Francisco
Gomes da Fonseca para seus filhos e netos. Em vida, Francisco Gomes da Fonseca se mostrou muito
preocupado em transferir aos seus filhos todos os seus bens e ofícios. Manoel Gomes da Fonseca
herdou a grande parte deles. Seguindo os mesmos passos do seu pai soube se fazer notável no espaço
colonial pernambucano.

SANGUE MANCHADO: A HABILITAÇÃO NA ORDEM DE CRISTO DE JOSÉ GOMES DA


FONSECA

Fazer parte das Ordens de Cristo foi algo almejado por muitos indivíduos no espaço colonial
pernambucano. Para tal fim, além da reconhecida limpeza de sangue, os candidatos precisavam passar
pela habilitação da Mesa da Consciência e Ordens. Durante as provanças o candidato deveria provar
que não possuía mácula do trabalho manual, assim como parte de nação hebraica ou de outra qualquer
infecta de negro ou mulato, para si, seus pais e avós56. “Na eventualidade de se confirmar qualquer
destas faltas, o candidato era, em princípio, rejeitado, mas El Rei, como grão mestre das ordens, tinha
o poder para dispensar os defeitos, e o fazia com frequência, salvo o de sangue judaico, para o que
somente o Papa tinha autoridade suficiente”57.

A família Gomes da Fonseca era vista no espaço colonial, em Pernambuco, como branca e de
limpo sangue. Pelo menos era assim que a mesma se apresentava. Seus integrantes eram popularmente
conhecidos como pessoas de respeito, prestígio e cabedal. Foram proprietários de ofícios que só os de
sangue limpo poderiam ocupar. Em momento algum, em suas provanças, ocorreu alguma dúvida da
sua pureza de sangue. Porém, após a morte de Francisco Gomes da Fonseca, os seus filhos tiveram que
enfrentar o velho fantasma das suas origens, que se faziam manchadas não apenas por sua cor parda,
mas também por defeitos mecânicos, que denunciava a sua origem humilde. A dúvida esteve presente
no processo de habilitação na Ordem de Cristo de José Gomes da Fonseca, filho de Francisco Gomes
da Fonseca e Josefa Maria de Jesus.

José nasceu na vila do Recife no ano de 1725. Na busca pelo conhecimento, passou boa parte
de sua vida no reino estudando, onde se formou bacharel na Universidade de Coimbra, em Direito
Canônico e Civil, com 25 anos de idade, assim como consta em carta de formatura datada em 16 de
outubro de 1750. Na Universidade, José estudou oito cursos de oito meses, cada um dos quais seis lhe
foram necessários para se fazer Bacharel. No fim do oitavo ano fez sua formatura em Canones58.

Antes mesmo de cursar a faculdade de Direito José já havia se tornado sacerdote do hábito de
55 AHU_ACL_CU_015, Cx. 155, [ant. 1785, dezembro, 12], D.11218
56 SILVA, Kalina Vanderlei. ‘Nas solidões Vastas e Assustadoras’: os pobres do açúcar e a conquista do Sertão de
Pernambuco nos séculos XVII e XVIII. Tese de Doutorado pela UFPE. Recife, 2003.p.170
57 MELLO, Evaldo Cabral de.op. cit. p.25
58 HOC José Gomes Fonseca, letra “J”, m. 83, n. 5. ANTT.

898
São Pedro. A escolha por uma vida religiosa no espaço colonial muitas vezes ia além de uma vocação
pessoal. Fazer parte do clero secular representava distinção social. “A nobreza que concederia o estado
eclesiástico fazia com que muitas pessoas almejassem essa dignidade. Além disso, a desonra presente
nos ofícios mecânicos fazia com que muitas pessoas procurassem atividades que não necessitassem
das mãos” 59.

Como sacerdote, José Gomes da Fonseca solicitou a sua habilitação na Ordem de Santiago,
em 1770, aos 45 anos de vida. Em tal habilitação, teria 12$000 réis de tença, porém, antes teria que
realizar as provanças60. Na ocasião, José Gomes da Fonseca, juntamente com seu irmão mais velho,
Sebastião Gomes da Fonseca, chegou a pedir dispensa da sua provança, argumentando que o mesmo
era sacerdote, não tendo assim nenhuma mancha de sangue61. José Gomes da Fonseca e seu irmão
mais velho, Sebastião Gomes da Fonseca, na solicitação da dispensa, argumentaram a demora e a
distância. Tendo em vista “os suplicantes; seus pais, avós paternos e avós maternos, serem naturais de
Pernambuco, bem conhecidos e reputados”. Segundo José, o fato de ser sarcedote não deixava dúvidas
sobre a sua pureza de sangue, não sendo assim necessária as provanças62.

A busca de informação sobre a origem do candidato já estava prevista pelas Constituições


Primeiras do Arcebispado da Bahia, no título LIII, do Primeiro Livro, no qual faz referência à
necessidade de se prospectar informações secretas sobre a “limpeza de sangue”, a vida e os costumes
dos candidatos ao sacerdócio. Devia-se investigar, entre outros impedimentos, se o candidato tinha
“parte de nação hebraica ou de outra qualquer infecta ou negro ou mulato”, não sendo, em princípio,
aceitos ao sacerdócio os que apresentassem qualquer um desses defeitos63.

No livro terceiro a história se repete. Porém, além da comprovação de “limpeza de sangue”, o


candidato teria que ter “boa vida e costumes”, além de ser fiel e zeloso com as coisas da igreja64.

Para ser habilitado na Ordens de Cristo, o conveniente seria que o mesmo fosse dispensado das
provanças, evitando assim uma possível demora do caso. Apesar das suas súplicas não foi possível a
dispensa, uma vez que o mesmo foi designado como pardo por algumas testemunhas que depuseram
em seu processo de habilitação às ordens sacerdotais, assim como tiveram alguns rumores da existência
de cristão novo por parte do seu avô paterno e defeito mecânico por parte do seu pai e avô.

De fato a lei não foi aplicada com severidade no caso de José que se tornou um sarcedote sem
nenhum impedimento, mesmo com fortes indícios de ser um homem com defeitos mecânicos e de
59 SANTOS, Gustavo Augusto Mendonça dos. Transgressão e cotidiano: a vida dos clérigos do hábito de São Pedro nas
freguesias do açúcar em Pernambuco na segunda metade do século XVIII (1750 – 1800). 183f. Dissertação (Mestrado em
História Social da Cultura Regional) – Universidade Federal Rural de Pernambuco, Departamento de História, Recife,
2013. p. 64
60 HOC José Gomes Fonseca, letra “J”, m. 83, n. 5. ANTT.
61 HOC José Gomes Fonseca, letra “J”, m. 83, n. 5. ANTT.
62 HOC José Gomes Fonseca, letra “J”, m. 83, n. 5. ANTT. Sobre dispensa de cor de sacerdotes ver: OLIVEIRA, A. J. M. de.
Padre José Maurício: “dispensa da cor”, mobilidade social e recriação de hierarquias na América portuguesa. In: GUEDES
R. (Org.). Dinâmica imperial no antigo regime português: escravidão, governos, fronteiras, poderes, legados: séc. XVII –
XIX. Rio de Janeiro: Mauad X, 2011.
63 VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Typografia
de Antônio Louzada Antunes, 1853Livro I. Titulo. LIII
64 Ibid.p.229

899
sangue. Porém a dispensa para o mesmo ser agraciado com o hábito de Santiago não foi concedida.
Para ser contemplado com tal mercê, José teve que passar por um longo processo de investigação. No
seu caso, foram ouvidas algumas testemunhas. Uma delas foi Manoel Rodrigues Campelo, 63 anos,
cavaleiro professor na Ordem de Cristo e Sargento Mor auxiliares da vila do Recife. Em depoimento,
Manoel Rodrigues confirmou a nobreza do suplicante, assim como a sua filiação. Sobre o seu pai,
Francisco Gomes da Fonceca, o mesmo confirmou a participação como Vereador na Câmara da vila
do Recife “com louvável procedimento”, além de ser também um “homem de grosso cabedal pelo que
por muitas vezes emprestava dinheiros para as despesas da real fazenda, e se oferecia assistir com
dinheiros para pagamento das tropas da infantaria” 65.

Jozeph Ferreira da Silva e Simão dos Reis de Araújo Lopes também testemunharam a favor
dos suplicantes afirmando ser “pessoas nobres”. Sobre o seu pai. Francisco Gomes da Fonseca, Joseph
Ferreira também confirmou a sua participação na Câmaro do Recife como Vereador, onde teria
servido com honra, e que “por vezes assistiu com dinheiros de empréstimo a fazenda real” 66.

Tudo corria bem nos depoimentos, porém, apesar dos relatos satisfatórios, as provas acumuladas
foram consideradas insuficientes. Na ocasião, faziam-se necessárias novas deligências na corte, tendo
em vista ainda existirem muitas pessoas para serem interrogadas que conheciam o suplicante e sua
família. Muitas delas “de maior exepção, e outras da primeira grandeza da corte; as quais não foram
perguntadas”. Era preciso averiguar e desfazer as dúvidas que ainda existiam sobre a sua pessoa, pais e
avós67.

Logo, foram ouvidos novos depoimentos. Todas as testemunhas interrogadas conheciam José
Gomes da Fonseca. Ao serem questionadas confirmaram a filiação do suplicante, seu bom estado
de saúde, a sua idade adequada, ser livre de crimes, a sua formação em Coimbra, porém, em alguns
depoimentos persistiram as dúvidas sobre a sua pureza de sangue.

O Reverendo Doutor Antônio das Virgens, Presbítero secular, 62 anos, foi o primeiro a servir
de testemunha68. O mesmo, além de informar a filiação do suplicante confirmou também a nobreza e
formação religiosa. Porém, algumas observações foram feitas com relação aos seus familiares. Sobre
o seu pai, Francisco Gomes da Fonseca, capitão da ordenança, foi informado que o mesmo exerceu o
ofício de pedreiro, juntamente com o seu avô paterno, Manoel Gomes de Oliveira. Afirmou também
que o avô materno, Sebastião Pereira da Costa, era carcereiro da cadeia do Recife.69 A testemunha
confirmou em depoimento que apesar de não ter conhecido Catherina de Oliveira, avó paterna do
justificante, tinha a informação que a mesma era parda. Sobre os seus dois tios padres, declarou
que os mesmo se ordenaram “em tempo Sé Vaga”, tomando assim proveito da ocasião 70. Segundo a
testemunha “o justificante e seu irmão o Padre Francisco Gomes” só teriam se ordenado em virtude
do suborno feito por seu pai, Francisco Gomes da Fonseca, aos capitulares da Sé.
65 HOC José Gomes Fonseca, letra “J”, m. 83, n. 5. ANTT Página 44, 45.
66 HOC José Gomes Fonseca, letra “J”, m. 83, n. 5. ANTT Página 46-47.
67 HOC José Gomes Fonseca, letra “J”, m. 83, n. 5. ANTT Página 53. Página 52 está em branco.
68 HOC José Gomes Fonseca, letra “J”, m. 83, n. 5. ANTT Página 78.
69 HOC José Gomes Fonseca, letra “J”, m. 83, n. 5. ANTT Página 79.
70 HOC José Gomes Fonseca, letra “J”, m. 83, n. 5. ANTT Página 80.

900
Segundo Evaldo Cabral de Mello ficaram célebres as irregularidades praticadas pelo cabido de
Olinda nos longos períodos em que, a sé vacante, governava a seu bel prazer a diocese, como durante
os anos de 1715 a 1725, período este em que, provavelmente, os tios de José Gomes da Fonseca foram
habilitados. Segundo o autor, muito tempo depois, havia quem se lembrasse de uma família que dera
dois filhos à igreja pernambucana, os padres Álvaro e Francisco Gomes, infamados de conversos, os
quais, por sua vez, promoveram a entrada de dois sobrinhos, um deles vetado pela Ordem de Cristo.
Ambos tiveram a seu favor não só a cumplicidade dos tios como a fortuna familiar. “com bispo na
terra, este foi enganado pelo provisor ser peitado pelo pai do justificante, que com a mão liberal peitou
ao dito provisor, que suposto era religioso não pareceu então pelo escândalo que deu a todos nesta
terra”. A versão pôde ser confirmada pelo comissário da Ordem de cristo que examinou na Câmara
episcopal os processos dos tios. No caso do Padre Álvaro Gomes, “ordenado em tempo de sé vaga, onde
houve a maior facilidade”, ignoraram-se inteiramente as origens da sua mãe e avós, seja em Lisboa,
donde procederam, seja na Várzea, na Muribeca e no Recife, onde havia vivido. Sua habilitação havia
permitido automaticamente as do irmão e sobrinhos, de vez que no bispado se tornaram costumeiras
dispensarem-se as inquirições sobre as ascendências dos candidatos, do momento em que estes
podiam alegar um parente religioso71.

O período de sé vaga em Pernambuco se processou entre a partida de D. Manuel Álvares


da Costa e a chegada de D. José Fialho (1715-1725). 72 Segundo Evaldo Cabral de Mello, durante o
período de sé vaga, as irregularidades foram tamanhas que, quando D. José Fialho tomou posse da
diocese, em 1725, chamou a si os processos de habilitação feitos no decênio anterior. Para preservar
as aparências, pretextou-se que o bispo fora informado de que alguns habilitados não tinham a idade
canônica para a ordenação. Mas o Dr. Francisco Lages de Carvalho, então ouvidor em Pernambuco,
seria taxativo: o motivo da decisão havia sido “queixas que achou de estarem alguns habilitados tendo
defeito de sangue” um próximo de D. José Fialho reconheceu meliflualmente a verdade das acusações.
Na vida que escreveu do prelado, frei João da Apresentação Campely esclareceu que ele trouxera do
Reino ordens terminantes para apurar as denúncias feitas contra certos cônegos, que, contudo, foram
inocentados73.

Voltando ao processo de habilitação de José Gomes da Fonseca, as testemunhas confirmaram


que o pai de José, Francisco Gomes da Fonseca, era de fato um homem de negócio na Praça do Recife.
Comprava escravos para serem vendidos no Rio de Janeiro. Teve participação na Câmara, patente
de Capitão de Ordenanças. Ao longo dos interrogatórios também foram surgindo alguns fatores de
impedimento. O Capitão Mor Manoel Ferreira da Costa, de 80 anos, afirmou que o avô paterno do
justificante, Manoel Gomes de Oliveira, era oficial de pedreiro e infamado de cristão novo.

Paulo de Velois, testemunha de número cinco, também confirmou a casta parda de Catharina
de Oliveira, avó paterna do suplicante que, segundo ele, “as cores assim o mostrava”74.
71 MELLO, Evaldo Cabral de. Op. Cit. .p.54. Sobre a desordem no período vacância, ver também: MENDONÇA, P.G.
Parochos imperfeitos: Justiça Eclesiástica e desvios do clero no Maranhão colonial. 2011. Tese – Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2011. Pp.191 a 193
72 MELLO, Evaldo Cabral de. Op. Cit. p.71
73 Obid. p.55
74 HOC José Gomes Fonseca, letra “J”, m. 83, n. 5. ANTT Página 88-89.

901
Na verdade, “ter parentes padres em uma família, mesmo que eles apresentasse algum defeito
de sangue, era uma ótima alegação para justificar a possibilidade que, mesmo sob impedimento,
ingressa na carreira sacerdotal”. Para o Maranhão, Pollyanna Mendonça cita o caso de João da Rocha,
em 1744. Seu pai, Francisco da Rocha, era filho ilegítimo. Sua avó, Andresa, tinha casta de mulato, mas
as testemunhas não souberam dizer de que grau. Afirmaram apenas que ela tinha cabelos frisados,
mas a pele alva. Andresa tinha, no entanto, um primo que era sacerdote secular, o padre André Lopes,
além de outros parentes que ele não citou o nome. Na ocasião o habilitante foi apto para receber as
Ordens75.

No caso do pernambucano José, outra testemunha que prestou depoimento foi Manoel Pereira
Barreto. O mesmo afirmou que o pai do justificante, Francisco Gomes da Fonseca, teria acumulado
dinheiro para comercializar escravos através da prática do jogo de azar “conservando sempre a casa do
jogo”. O mesmo afirmou também que o avô paterno de José, Manoel Gomes de Oliveira, “era pedreiro
e caboqueiro”, atividades que exerceu até o fim da sua vida. Na aparência carregava a “casta de pardo”,
que podia ser vista, tanto “no semblante”, como nos seus “cabelo”. Da mesma forma que Catherina de
Oliveira, avó paterna do justificante, que denunciava a sua origem mestiça tanto no “cabelo como na
cor”76.

Félix da Fonseca Jaime, 72 anos,77 também confirmou que o pai do justificante tinha a casta
de pardo, herdada de Manoel Gomes de Oliveira, avô parterno de José, que bem poderia ser vista no
“cabelo mais crespo” e na “cor mais malilenta e parda”. Sobre Francisco Gomes, pai de José, a testemunha
ainda afirmou que o mesmo viveu por muitos anos do ofício de “picar couro” e “pedreiro”.

Ao todo foram ouvidas 27 testemunhas78, todas tidas como “cristão velhos e tementes a Deus”.
As mesmas confirmaram que os seus dois tios teriam se ordenado em tempo de “Sá vaga onde houve
a maior facilidade”. Sobre o avô paterno do justificante foi afirmado que o mesmo tinha “a casta de
pardo”. Segundo alguns depoimentos José só tinha se ordenado por afirmar que era sobrinho do Padre
Álvaro Gomes, o que teria sido suficiente, pois era costume na praça os pretendentes apresentarem
parentescos e assim ter a dispensa.

Por outro lado, os padres José de Brito da Silveira79, João da Masceno Campos e Joaquim
Marques de Araujo, ressaltaram o bom procedimento do justificante e de toda a sua família. Sobre o
pai de José, o Capitão Fransisco Gomes da Fonceca, afirmaram que o mesmo tinha navios próprios,
comercializava escravos, tinha cargos da República e era senhor de engenho. Sobre a mãe afirmou que
“era pessoa grave, e destinta, natural da mesma cidade de Pernambuco”. Em suas palavras todos eram
“reputados no sangue, sem que nesta família houvesse crimes de infâmias ou rumor incontrário”80.
Todos confirmaram o bom procedimento de José e a limpeza de sangue do seu pai.

75 MENDONÇA, P.G. op. Cit. p.207


76 HOC José Gomes Fonseca, letra “J”, m. 83, n. 5. ANTT Página 91.
77 HOC José Gomes Fonseca, letra “J”, m. 83, n. 5. ANTT Página 95.
78 HOC José Gomes Fonseca, letra “J”, m. 83, n. 5. ANTT Página 122.
79 HOC José Gomes Fonseca, letra “J”, m. 83, n. 5. ANTT Página 152.
80 HOC José Gomes Fonseca, letra “J”, m. 83, n. 5. ANTT Página 154.

902
Manoel Rodrigues de Carvalho, Cônego Doutoral da Sé de Olinda de Pernambuco, também
ressaltou a nobreza do pai do justificante, porém reafirmou alguma nota de mulato pela parte materna,
mas deixou bem claro que certamente seria “fora do quarto grau”, visto que o mesmo teria familiares
“ordenados pelo senhor Bispo, D. Frei Luís de Santa Thereza sem despensação”, não sendo comum que
pessoas com tal defeito fossem ordenadas para excercer o sarcedócio. O Cônego Manoel Rodrigues
também afirmou que de fato o avô paterno de José excerceu “o ofício de tirar pedra de pedreiras”. Já o
avô materno tinha o ofício próprio de Carcereiro.

As dúvidas de pureza de sangue de José só aumentavam. O Reverendo padre Antônio Gonzaga


afirmou que a família era infecta de mulatismo e ainda de judaismo. Sobre o avô paterno ressaltou
que o mesmo foi penitenciado81. O mestre de campo Luís Nogueira de Figueiredo, homem pardo, em
depoimento ressaltou que Francisco Gomes da Fonseca, pai de José, “aprendera o ofício de Pedreiro,
com seu pai, Manoel Gomes de Oliveira, avô paterno do solicitante, na sua mocidade, e que depois
ajudado da fortuna veio a ser senhor de grandes cabedais”. Declarou que teria ouvido dizer que Manoel
Gomes de Oliveira, tinha casta de cristão novo. Luís Nogueira de Figueiredo, confirmou que de fato o
avô materno de José era “Cassereiro”, oficio este que dizia ser próprio82.

Após as diligências ficou concluído que o justificante José Gomes da Fonseca era de idade
competente, natural do Recife de Pernambuco e filho legítimo do Capitão Francisco Gomes da Fonseca
e de Dona Joseja Maria de Jesus, batizados também na mesma freguesia. Neto paterno de Manoel
Gomes de Oliveira, e pela parte materna de Sebastião Pereira da Costa e de Dona Madalena de Lara.
Segundo os depoimentos dados pelas testemunhas o pai do justificante, nos seus princípios, aprendeu
o ofício de pedreiro com o avô paterno do mesmo, mas em decorrência do acúmulo de cabedal se
transformou em um grande comerciante de escravos. A mãe do justificante se tratou sempre com
recolhimento e anseio, mas sobre ela “padecia o defeito de mulatismo na opinião popular” como
relataram as testemunhas no 13, 14,15,16, e 18, acrescentando algumas também que a mesma era cristã
nova, “por ter a família dos Laras este defeito”. Sobre o avô paterno do justificante ficou definido que o
mesmo exerceu o ofício de Pedreiro “padescendo juntamente a nota de judaismo” e “infecto de mulato”,
sendo também penitenciado pelo santo ofício. Sobre o avô materno ficou definido que o mesmo foi
Carcereiro na cidade de Pernambuco, porém não ficou claro se era de serventia ou propriedade. Das
duas avós paterna e materna as informações foram insuficientes para chegar a uma conclusão da
naturalidade e profissão83.

Apesar das diversas suspeitas de “mulatismo”, “judaismo” e “dedefito mecânico”, José Gomes
da Fonseca foi habilitado na Ordem. Tal ato serve como indicativo das brechas do sistema. Segundo
George Cabral, não deixa de ser relevante o fato de que o governador lhe passou uma certidão. “Isso
indica que provavelmente o seu grande progresso material talvez se deva às relações que mantinha
com essa autoridade, ou o contrário, a riqueza lhe abriu as portas ao bom relacionamento com o

81 HOC José Gomes Fonseca, letra “J”, m. 83, n. 5. ANTT Página 166.
82 HOC José Gomes Fonseca, letra “J”, m. 83, n. 5. ANTT Página 171.
83 HOC José Gomes Fonseca, letra “J”, m. 83, n. 5. ANTT Página 178.

903
poder”84. A habilitação de José Gomes da Fonseca ocorre dentro de um movimento que não visa
comprometer a ordem vigente e sim recriá-la. Aqui percebemos que, “embora a ‘dispensa da cor’
implicasse na formulação de estratégias que contradiziam os impedimentos legalmente constituídos
para a ordenação de pretos e pardos ela, por outro ângulo, acaba igualmente instaurando um processo
de diferenciação e ordenação ‘natural’ das desigualdades no interior do segmento dos ‘homens de
cor’”. Segundo Anderson José Machado, a Igreja, dessa forma, reiterava a sua função de organismo
perpetuador de uma ordem social desigual não só explicando-a e justificando-a do ponto de vista
teórico, mas igualmente reproduzindo as diferenças do Antigo Regime na expansão do seu próprio
quadro sacerdotal85 e, é claro, não podemos esquecer as diferenças de está na periferia ou no centro
do Império.

De volta a Pernambuco, José Gomes da Fonseca tentou esquecer o constrangimento passado


durante as suas provanças que a todo instante colocou em risco a sua pureza de sangue e mãos. José não
apenas foi habilitado na Ordem de Santiago, uma habilitação menor, mas de importância e nobilitação,
como também recebeu a mercê de Cônego da Sé de Olinda, cargo vago por óbito do Cônego Ignácio
Ribeiro Marinho. Ao ocupar o cargo, José estava cercado de opositores86. Em 1771, o mesmo escreveu
um requerimento ao rei D. José I, pedindo alvará para poder receber seus emolumentos87.

Não foi possível localizar documentos que afirmem que as súplicas do padre José Gomes da
Fonseca foram atendidas. Ao certo, foi no cargo de cônego de Olinda que o padre José Gomes da
Fonseca encerrou a sua carreira eclesiastica, falecendo no dia 9 de setembro de 1782. A sua trajetória
e de toda a sua família permite vislumbrar horizontes de investigação que aponta que a ascensão
social era, assim, possível desde que se reunissem os instrumentos necessários para operacionalizá-
la, o que poderia ser tarefa de mais de uma geração. A obtenção de bens, a ocupação de postos
militares e eclesiásticos, a integração em instituições religiosas, a ocupação de cargos na Câmara, os
laços matrimonias, entre outros, eram formas eficazes de obter visibilidade e reconhecimento social.
Mas para tal mobilidade ascendente ocorrer era preciso perpassar por diversas gerações, em que
ficava sobre a responsabilidade de cada integrante da família manter ou até mesmo aumentar tal
prestígio social. Tal tarefa não foi fácil para a família aqui em análise, visto que, a morte de Francisco
Gomes da Fonseca, fez desenterrar “qualidades e condições” que por muitos anos permaneceram no
esquecimento.

Em suma, a pesquisa em foco não teve e não tem a pretensão de mostrar exceções à regra, mas
possibilidades. Aqui queremos destacar a importância da utilização de diversas fontes, de aspectos
diversos, na perspectiva de melhor analisar os espaços de visibilidade social e, consequentemente,
a trajetória de vida de quem integrava tais espaços, ou seja, a elite colonial. Uma elite que não tinha
apenas aspectos e características de sujeitos brancos.
84 SOUZA, George F. Cabral de. Tratos e Mofatras: o grupo mercantil do Recife colonial(1654-1756).
Recife:UFPE, 2012.p.425
85 OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Suplicando a “dispensa do defeito da cor”: clero secular e estratégias de
mobilidade social no Bispado do Rio de Janeiro – século XVIII. XIII Encontro de História da ANPUH. Identidades, Rio
de Janeiro.
86 CA/PT/TT/Ordem de Cristo/Padriado do Brasil/ maço 12, número 12
87 AHU_ACL_CU_015,Cx.111, [ant. 1771, agosto, 7], D.8585

904
Em Pernambuco, não podemos negar que muitos indivíduos pardos se fizeram notáveis e
integrantes de uma elite econômica, religiosa, administrativa e intelectual. Porém, a grande maioria
fez uso da fraude da tez branca, tendo em vista que a própria troca de cor era uma estratégia na
constante busca por reconhecimento social. Negar a sua origem mestiça era algo corriqueiro na vida
de muitos pardos que almejavam distinção e honra. No mais muito ainda precisa ser problematizado
e questionado pela historiografia. Aceitar que, de fato, muitos indivíduos pardos fizeram parte de uma
elite colonial ainda é algo que “incomoda”, ou até mesmo assusta muitos pesquisadores que insistem
em afirmar que a elite colonial era constituída por sujeitos brancos. De fato ela era, porém só no papel,
como já nos dizia o nosso ilustre Frei Jaboatão, ainda no século XVIII, em seu discurso proferido nas
festividades em homenagem a São Gonçalo Garcia em Recife, no ano de 1745. “Dos príncipes e reis se
seguem os generais, governadores, mestres de campo e mais postos da milícia: e sem sairmos do nosso
Brasil, e ainda de Pernambuco, podíamos fazer de todos uma boa lista, se assim como lhe sabemos os
nomes, não achássemos alguns com cores mudadas ”88.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro. O Sexo Devoto: Normatização e Resistência feminina no Império Português
– XVI – XVIII. Recife: Editora Universitária UFPE, 2005.p.106 e 107.
ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro de. A clausura feminina no mundo ibero atlântico: Pernambuco e Portugal
nos séculos XVI ao XVIII. Tempo vol.18 no.32 Niterói  2012.

ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas: Mulheres da colônia –Condição feminina nos conventos e
recolhimentos do Sudeste Brasil (1750-1822). Rio de Janeiro: José Olímpio; Brasília: Edunb, 1995.

BLUTEAU, Raphael. Vocabulário português e latino. Vol. 1. Coimbra: Colégio das Artes da Companhia de
Jesus, 1712-1727.

BORREGO, Maria Aparecida de Menezes. A teia mercantil: negócios e poderes em São Paulo colonial (1711-
1765). Ed. Alameda.São Paulo, 2010.
CARREIRA, António. As Companhias Pombalinas. Lisboa: Editorial Presença, 1982.
CARNAXIDE, Visconde de. O Brasil na Administração Pombalina. São Paulo: Editora Brasiliana, 1979.
CÓDIGO Filipino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal: Edição fac-similar da 14º

ed, de 1870, com introdução e comentários de Cândido Mendes de Almeida. Brasília: Senado Federal, 2004.
Livro 3, título 86 DIAS, Érika Simone de Almeida Carlos. As pessoas mais distintas em qualidade e negócio: a
Companhia de Comércio e as relações políticas entre Pernambuco e a Coroa na segunda metade de Setecentos.
Tese de doutoramento em História, especialidade em História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa.
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Universidade de Nova Lisboa. Lisboa, 2014.

FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1998.

GUEDES R. (Org.). Dinâmica imperial no antigo regime português: escravidão, governos, fronteiras, poderes,
legados: séc. XVII – XIX. Rio de Janeiro: Mauad X, 2011.

GUEDES, Roberto. Ofícios mecânicos e mobilidade social: Rio de Janeiro e São Paulo (Sécs. XVII-XIX) TOPOI,
v. 7, n. 13, jul.-dez. 2006, pp. 379-423.

88JABOATÃO. A. S. M. Discurso Histórico, Geográfico, Genealógico, Político, e Encomiástico, recitado na nova celebridade,
que dedicam os pardos de Pernambuco, ao Santo de sua cor, o Besto Gonçalo Garcia, na sua Igreja do Livramento do recife,
aos 12 de setembro do ano de 1745. Lisboa, Oficina de Pedro Ferreira, Impressor da Augustíssima Rainha N. S. 1751.

905
O negro na Capitania de São José do Rio Negro: trabalho e propriedade
Kézia Wandressa da C. Lima1
Maria Luiza Fernandes2

Uma das questões fulcrais a ser considerada nesse tópico é a da propriedade. Não há nada de
excepcional ou novo para a historiografia observar que havia índios proprietários de escravos negros
em suas produções: não obstante chama-nos a atenção o fato disso ser uma possibilidade dentro do
regramento colonial na Amazônia, já que o próprio acesso a essa mão de obra era escasso, ainda mais
se tratando da Capitania de São José do Rio Negro, região hoje correspondente aos atuais Estados do
Amazonas e Roraima (conforme se observa na Figura 1), formada por 21 povoações no período entre
XVIII-XIX (conforme Figura 2) e que em 1751 passa a ter a cidade do Pará como sede administrativa
do Estado3. Anteriormente, a região era denominada como Estado do Maranhão e Grão-Pará, criado
em 1621, tinha um governo separado do então Estado do Brasil e administrativamente ligado a Lisboa,
com sede administrativa no Maranhão até 17504 (FARAGE, 1991). Pensemos ainda em como era
empregada essa força de trabalho num espaço em que os escravos negros estavam numa quantidade
inferior, em comparação a outros espaços (tanto no que se entendia como Brasil, quanto nas regiões
referentes ao Grão-Pará).

Figura 1: Localização da Capitania de São José do Rio Negro (XVIII-XIX)

Fonte: Roller5.

1 Mestre em Sociedade e Fronteiras pela UFRR; graduada com bacharelado e licenciatura em História pela
UFRR.
2 Professora titular da UFRR; Doutora em História Social pela USP; Mestre em História pela UFSC e graduação
em História pela UFSC.
3 SANTOS, F. Vilaça dos. O governo das conquistas do norte: trajetórias administrativas no Estado do Grão-
Pará e Maranhão (1751-1780). 2008. 441p. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
4 FARAGE, Nádia. As muralhas dos sertões: os povos indígenas no Rio Branco e a colonização. Rio de Janeiro, Paz e Terra:
ANPOCS, 1991.

5 ROLLER, H. F. Colonial Routes: spatial mobility and community formation in the Portuguese Amazon. PhD Dissertation
in History. Stanford University, 2010.

906
Figura 1: Localização das povoações na Capitania de São José do Rio
Negro

Fonte: Roller6, adaptação de Fonseca7.


A lógica entre ocupar o mesmo espaço social, mas com status diferente, possibilitou a
existência de índios proprietários de negros escravos, como mostraram Ciro Flamarion Cardoso e
Flávio Gomes8, que nos fornecem pistas interessantes sobre a qualidade dessa existência na Capitania
do Rio Negro. Entender os regramentos estabelecidos pelas hierarquias sociais que tornaram possível
esses aspectos da propriedade ajudam a refletir a questão prática e teórica dessa relação hierárquica.
Portanto, o trabalho da Patrícia Sampaio9 é de essencial importância para entendermos essa situação.
Chamam a atenção as observações de Patrícia Sampaio com relação à questão das hierarquias
e distribuições das desigualdades sociais porque

A propriedade escrava constituía-se, sem dúvida, em um indicador poderoso nessa


direção. Seguramente uma parcela da população indígena aldeada, exercitando
as prerrogativas de seus cargos e postos, pôde ter acesso à propriedade de almas.
Daí decorre mais que uma nuance: a questão da liberdade. Se os índios podiam ser
engajados em formas de trabalho compulsório, no limite, eram legalmente livres ao
contrário dos negros10.

Ou seja, a presença desses negros escravos também contribuiu para a distribuição das

6 Ibidem.
7 FONSECA, André Augusto da. Reformismo Ilustrado e Política Colonial: negociações e resistências na
Capitania do Rio Negro (1751-1798). 2016. 318p. Tese (doutorado em História Social) – Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2016.
8 CARDOSO, Ciro Flamarion. Economia e sociedade em áreas periféricas: Guiana Francesa e Pará (1750-1817). Rio de
Janeiro: Edição Graal, 1984. GOMES, Flávio da Santos. A hidra e os pântanos: quilombos e mocambos no Brasil (sécs.
XVIII-XIX). 1997. 773p. Tese (doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Estadual de Campinas. São Paulo, 1997.
9 SAMPAIO, Patricia Melo. Escravidão e liberdade na Amazônia: notas de pesquisa sobre o mundo do trabalho
indígena e africano. 3º Encontro escravidão e liberdade no Brasil Meridional. Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis, Maio, 2007.
10 SAMPAIO, Patricia Melo. Escravidão e liberdade na Amazônia: notas de pesquisa sobre o mundo do trabalho
indígena e africano, op. cit., p. 6.

907
hierarquias no regramento colonial, apesar da possibilidade de índios serem incorporados ao trabalho
compulsório, o regramento também lhe possibilitava ser um proprietário de escravos. E o fato de ser
proprietário lhe dava, hierarquicamente, outra posição, uma vez que “cada lugar social derivava sua
posição a partir de uma comparação com outros, imediatamente acima e abaixo dele. Caminhando
de cima para baixo, a submissão a uma pessoa ‘de mais qualidade’ estava diretamente relacionada ao
domínio sobre outras”, como é o caso da propriedade de negros pelos índios11.
Vejamos o curioso caso das índias viúvas Margarida Pinheira e Joaquina Maria, proprietárias
de escravos. O que tinham em comum, além de serem índias e viúvas, era o fato de serem “cabeças
das famílias”, conforme o Mapa das Famílias de 177812, e de serem possuidoras de escravos,
provavelmente herdados de seus falecidos maridos. Margarida Pinheira, moradora de Barcelos, tinha
sobre sua responsabilidade e administração 19 pessoas, sendo 4 classificadas como “filhos, parentes
ou agregados” (3 meninos e 1 mulher adulta), enquanto as outras 14 eram escravos (3 meninos, 3
meninas, 4 homens adultos e 4 mulheres adultas). Entretanto, apesar de viver do seu café e de possuir
14 escravos, Margarida aparece no Mapa das Famílias como alguém que vivia pobremente. Joaquina
Maria, moradora de Borba, não tinha nenhum dependente e era dona de somente 1 escrava adulta,
mas vivia remediadamente. Não podemos indicar com exatidão o critério utilizado para defini-las
como pobre, apesar das suas propriedades, e a outra como remediada, tendo apenas uma escrava.
O que podemos afirmar a partir desses dados é eles dão uma mostra importante da
parcela da sociedade colonial que se apropriou dos regramentos existentes. Eram índias viúvas que,
provavelmente, tinham se casado com portugueses, já que essa era uma política pombalina, que
incentivava o casamento entre esses. Outra questão que não podemos deixar de mencionar é o fato de
serem mulheres, pois são raros os registros de mulheres assumindo o papel de “cabeças de família” e
proprietárias nos censos populacionais do século XVIII.
Outro fator que marca bem as limitações de espaço a partir da propriedade escrava refere-se
à dispensa ao recrutamento e ao trabalho forçado, pois
A propriedade escrava demarcava outro limite no final do século XVIII: a legislação
complementar à Carta Régia de 1798 estabelecia que, entre aqueles que poderiam
isentar-se do alistamento compulsório nos corpos militares de serviço, estavam os
que fossem proprietários de escravos. Excluídos do recrutamento, a propriedade
ainda podia garantir o acesso (ou a permanência) nas milícias, forças móveis que
podiam ser deslocadas para reforçar as tropas permanentes. Ser proprietário
significava garantir sua própria liberdade, assegurar sua mobilidade espacial com
menores restrições e ainda o acesso a postos militares que lhes garantiam outras
honrarias e prerrogativas13.

11 LARA, Silva H. Fragmentos Setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa. São Paulo: Companhia
das Letras, 2007, p. 86.
12 AHU_CU_013, Cx. 94, D. 7509; os mapas das famílias “consistiam em tabelas ou listas que demonstravam
a população de um determinado local (freguesia, vila, cidade, etc.) por meio de alguns critérios, como gênero,
idade, condição jurídica (se livre, forro ou escravo), entre outros” e sua confecção estava relacionada ao poder
da Coroa Portuguesa que ordenava a contagem da população e que, a partir do século XVIII, passou a ter
uma padronização desses documentos e uma frequência sistemática. Ver: OLIVEIRA, Victor L. Alvares. A
zona Oeste colonial e os mapas de população de 1797: algumas considerações sobre lavradores partidistas e
produção agrária de Jacarepaguá, Campo Grande e Guaratiba no século XVIII. In: Revista do Arquivo Geral da
Cidade do Rio de Janeiro. Nº 10, 2016 (p.233-258).
13 SAMPAIO, Patricia Melo. Escravidão e liberdade na Amazônia: notas de pesquisa sobre o mundo do trabalho
indígena e africano, op. cit., p. 6-7.

908
Nesse contexto, as “Hierarquias sociais sustentadas pela cor” ou pelos regramentos coloniais,
que servem para “avaliar os privilégios e impedimentos que sustentavam ou barravam a ascensão social
de portugueses, africanos, índios e mestiços no mundo português”, são essenciais para entendermos a
dinâmica da sociedade colonial da Amazônia14.
Outra questão importante diz respeito à estrutura “sócio-profissional” de Barcelos em 1786,
como denomina Ciro Flamarion Cardoso, ao demonstrar como os trabalhos e usos dos diversos tipos
de trabalhadores estiveram organizados sendo, basicamente, uma força de trabalho rural,
constituída, nas fazendas ou nos sítios que pertencem a 27 donos brancos, por 65 pretos,
51 pretas, 39 índios e 37 índias: note-se que também aí a mão-de-obra escrava já supera
em proporção a dos índios. O mesmo se nota nos sítios cujos proprietários são índios: o
‘pessoal de serviço’ consta de 72 pretos, 58 pretas, 41 índios e 43 índias. A fonte indica que
os proprietários rurais são 27 brancos e 60 índios. [...]. No termo da vila, além dos 1.154
habitantes do núcleo urbano, havia ainda 301 outros habitantes: 243 índios, 47 brancos e
11 escravos. Evidentemente, os “brancos” de Barcelos deviam compreender bom número de
mestiços15.

Tratava-se, então, de uma “comunidade basicamente rural, comunicando-se pela navegação


fluvial, pequena e com reduzido artesanato: como tantas, na mesma época, ao longo do rio Amazonas”16.
Ressalta-se ainda o fato de que as propriedades dos índios, proporcionalmente, tinham uma maior
produção do que as dos brancos, com relação à produção agrícola de alimentos para o consumo da
Capitania, sendo esse dado diferente com relação à agricultura exportadora17. Podemos supor, então,
que a aplicação da mão de obra escrava nas propriedades indígenas era melhor aplicada do que nas
dos brancos. O mesmo é registrado por Gomes ao demonstrar que
Ciro Cardoso, a partir de cálculos de produtividade per capita aponta uma maior
produtividade nas lavouras pertencentes aos índios e sugere que os mesmos
podiam juntamente com seus familiares trabalhar “lado a lado com seus escravos e
empregados”18.

A realidade do trabalho na Capitania do Rio Negro no século XVIII é marcada pela


agricultura de subsistência. A mão de obra escrava negra, quando utilizada conforme as orientações
da administração colonial, era empregada nessa área, apesar dos constantes desvios da sua utilização
básica.
Um exemplo do uso fora da agricultura na Capitania do Rio Negro é fornecido pelo viajante
Alexandre Rodrigues Ferreira, que descreve uma situação em que, durante uma chuva em São Gabriel
da Cachoeira, um raio estrondoso e forte havia caído muito perto de onde estava. Ferreira apresenta
os envolvidos no cenário do acontecimento, dentre os quais consta um “preto cozinheiro, que estava

14 RAMINELLI, Ronald. Impedimentos da cor: mulatos no Brasil e em Portugal c. 1640-1750. In: Varia História, vol. 28,
nº 48, Belo Horizonte: 2012, p. 701-702.
15 CARDOSO, Ciro Flamarion. Economia e sociedade em áreas periféricas: Guiana Francesa e Pará (1750-
1817), op. cit., p. 141-142.
16 CARDOSO, Ciro Flamarion. Economia e sociedade em áreas periféricas: Guiana Francesa e Pará (1750-
1817), op. cit., p. 142.
17 FONSECA, André Augusto da. Reformismo Ilustrado e Política Colonial: negociações e resistências na Capitania do
Rio Negro (1751-1798), op. cit.
18 GOMES, Flávio da Santos. A hidra e os pântanos: quilombos e mocambos no Brasil (sécs. XVIII-XIX), op.
cit., p. 46.

909
tirando o pão do forno, foi levado de encontro a uma das paredes da cozinha”19.
Basicamente, o uso e emprego dos escravos acontecia prioritariamente na agricultura, apesar
dos registros de “mal uso” e “má aplicação” dessa mão de obra, já que, como temos visto, os registros
de Alexandre Rodrigues Ferreira, demonstram a constante queixa da falta de braços para o cultivo e a
produção, e os que os tinham, não o aplicavam onde deviam. Daí, pode-se concluir que estes recursos
eram poucos e, além do mais, mal utilizados.
Endossando ainda mais essa afirmativa, outro exemplo emblemático disso ocorreu também
nas visitas feitas por Alexandre Rodrigues Ferreira as roças dos moradores brancos Vila de Thomar
ao apresentar como estavam as plantações de alguns deles. Dentre os moradores, cita a propriedade
do capitão Paulino da Silva Rego que, assim como seu filho José do Rego, tinha as propriedades mal
cultivadas, onde “constavam de alguns pés de café e raros de algodão”; tinha ainda um pequeno
roçado de anil e que por falta de sementes, Paulino da Silva Rego não teria continuado a plantação.
Era também proprietário de “2 pretos que até ao dia de hoje ainda não estão pagos” e, com a queixa da
dívida, Paulino se comprometeu a plantar o anil. Mas, acrescenta Ferreira,
Nem sei como ainda subsiste tal morador, suposta a distração que tem feito de seus
poucos braços. Empregou-os na factura de casas que tem na vila, que também já
escrevi que são as melhores e mais asseadas; empregou-os na factura de outras boas
casas que possui na foz do riacho de Xibaru, pouco superior ao lugar de Lamalonga,
aonde não reside, porque a formiga lhe destrói a maniba; empregou-os, finalmente,
no estabelecimento da roça que dentro deste rio possui20 [...].

Ou seja, a aplicação e uso da mão de obra escrava negra não era sempre utilizada para o
cultivo e agricultura, o que caracterizava o desvio registrado por Ferreira, apesar de ser a atividade de
maior demanda e necessidade, já que o projeto pombalino previa justamente a inclusão dessa mão de
obra para o desenvolvimento e manutenção da lógica colonial na Amazônia. O caso acima menciona
a construção de casas de tamanha qualidade que Ferreira as elogia, mas inicia o relato questionando
como Paulino da Silva Rego ainda subsistia já que seus dois únicos escravos não estavam empregados
nos roçados desde o início da sua obtenção.
Outra discussão que pode ser levantada nesse documento é referente aos termos empregados
para referir-se aos escravos de Paulino da Silva Rego, “2 pretos que até ao dia de hoje ainda não estão
pagos”21. Depreende-se que, sem utilizar a palavra “escravo”, se trata de duas propriedades escravas. A
proposta a seguir é refletir essa questão nominal a partir das considerações contextuais.
As questões referentes a cor e raça devem ser analisadas conforme suas variações temporais e
com o tipo de sociedade em que tal conceito está sendo vinculado. Dependendo disso, a reivindicação
da manutenção da hierarquia social e a ascensão dentro desse sistema pode ser barrada ou dificultada.
Raminelli exemplifica isso, ao mostrar que, no século XVII, o poder do Rei nem sempre tinha a
capacidade de dar mercês que transformasse um forro em nobre, pois a influência do clero e da nobreza
nas definições de hierarquia social através das suas participações na “Mesa de Consciência e Ordens e
19 FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira: a expedição philosophica pelas
Capitanias do Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuyabá. Vol.3. São Paulo: Kapa Editorial, 2006 [1786], p. 170.

20 FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira: a expedição philosophica pelas
Capitanias do Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuyabá. Vol.3. São Paulo: Kapa Editorial, 2006 [1786], p. 220.
21 Ibidem, p. 220.

910
no Conselho Ultramarino”, buscava sempre “preservar a ordem de nascimento, a hierarquia de sangue”,
fazendo com que rejeitassem “as interferências monárquicas que ameaçassem seus privilégios” 22.
Para se pensar a ideia de raça, a interpretação de Raminelli sobre a discussão de Maria Elena
Martínez é de que
[...] muitos especialistas demonstraram a variação temporal, espacial e cultural dos
significados e usos do conceito raça. Aliás, no período [do século XIX], o uso do
conceito não estava vinculado exclusivamente à variação biológica entre os homens,
mas era também influenciado pela cultura e pela classe. [...] torna-se enganoso
vincular o conceito de raça somente ao determinismo biológico, pois ele também
invoca elementos sociais e culturais23 .

Ainda com relação ao termo raça, seu uso inicialmente “atuava como referência religiosa e
social, depois o termo vincula-se ao físico, sem perder a sua capacidade de hierarquizar os indivíduos”.
Eram três aspectos que definiam a conveniência de se utilizar o termo, tendo então esse caráter instável,
promovia “ora a exclusão pautada na religiosidade, ora na falta de qualidade, na origem cativa ou
mecânica, ora na pele escura, no indício de ‘mulatismo’”24.
Somente com a prevalência do determinismo biológico, no século XIX, é que houve rigidez
e consenso quanto ao uso e emprego do termo raça. No recorte temporal adotado para a presente
pesquisa, não é possível, pois, estabelecer uma relação entre raça e as barreiras sociais do Antigo
Regime. Não se pode negar as hierarquias estabelecidas, que legitimaram o processo de escravização,
mas não se pode deixar de notar “o impedimento da cor era sobretudo social e não racial”25.
Raminelli afirma ainda que “o idioma racial se tornou mais forte com a difusão do capitalismo,
mas de forma alguma fora sua origem. A ideia de raça consolidada entre os séculos XVIII e XIX
impulsionou o racismo, mas não o inventou”26. Um aspecto disso é que “no Antigo Regime não era
incomum conceber a cor preta como sinônimo de cativeiro”27. Disso se pode depreender que “ser de
tal cor” colocava um indivíduo socialmente no extrato social inferior. Ser negro era pertencer a um
grupo marcado “pelos dotes físicos e pela falta de qualidade oriunda do cativeiro (aspecto social)”, mas
“aos poucos a pele escura tornou-se sinônimo de origem cativa”, sendo o vínculo entre a pele escura e
cativeiro considerado por Raminelli como a “gênese da sociedade escravista”28.
Estudando o léxico do período colonial, Paiva mostrou que “dificilmente se encontraram
definições de aceitação geral e de uso completamente padronizado” 29, ou seja, segundo esse autor não
há uma regra geral para a leitura da sociedade colonial. No prefácio da sua obra, Bernand afirma que
O léxico das diferenças visíveis entre os homens (a condição, a cor, o temperamento,
a estética) é ao mesmo tempo racional, como mostram as diferentes definições que
os dicionários e os documentos administrativos oferecem, e impreciso, porque a

22RAMINELLI, Ronald. Impedimentos da cor: mulatos no Brasil e em Portugal c. 1640-1750, op. cit., p. 711.
23 Ibidem, p. 703.
24 Ibidem, p. 722.
25 Ibidem, p. 723.
26 Ibidem, p. 702.
27 Ibidem, p. 706.
28 Ibidem, p. 722.
29 PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical da Ibero-América entre os séculos XVI e XVIII (as
dinâmicas de mestiçagens e o mundo do trabalho). Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015, p. 199.

911
diversidade humana não pode ser reduzida a um conceito30.

Dentro dessa concepção de diversidade humana encontramos casos na história colonial que
nos desafiam a dar conta dessa complexidade e que reforçam a ideia de que não se esgotam em um
conceito. Uma das fontes utilizadas e que nos coloca diante de um desafio e, ao mesmo tempo, de um
estímulo à pesquisa trata sobre um escravo fugitivo do Pará, João da Silva, que chegou até os domínios
espanhóis; ele foi incorporado a tropa militar espanhola e reapareceu na Capitania do Rio Negro como
membro da Comitiva Espanhola de Demarcação dos Territórios, em 1781, na função de Capitão de
Conquistas, juntamente com outro negro fugitivo, chamado Fernando Rojas31.
Sobre a Partida Espanhola que esses negros incorporavam, Sweet32 mostra como foi a chegada
dela ao Rio Negro sob as ordens do Primeiro Comissário Don Francisco Requena e descreve que estava
composta por “[...] oficiales españoles, un capellán y un cirujano – todos ellos personas ‘de calidad’ que
disfrutaban de salarios elevados, calculados para incluir los sueldos de los sirvientes personales que
los acompañaban”, além dessas “personas de calidad”, vieram também “cinco cabos, cuarenta y cinco
soldados rasos, y dos docenas de trabajadores capacitados para los servicios diversos indispensables
de cocina, herrería, carpintería y dibujo”. Para completar tal quadro, havia 180 canoeiros indígenas
das missões de Mainas e “dos expedicionarios de origen africano, Juan da Silva y Fernando Rojas,
comisionados en el ejército español como ‘capitanes de conquista’”33.
A chegada de João da Silva nos domínios portugueses foi marcada pela criação de uma
devassa que investigava a sua situação jurídica (livre, escravo ou forro) já que surge uma reclamação de
propriedade através de uma procuração de um herdeiro de seu antigo dono que havia sido assassinado
por indígenas no Pará (como consta descrito na documentação)34. Não há um consenso terminológico,
tanto por portugueses quanto por espanhóis, na reclamação da liberdade ou servidão de João da Silva.
Vez ou outra, João é definido como “negro” outras como “preto”. Considerando as definições dos
estudos de Paiva35, que bem nos alertou quanto à dificuldade de se assumir absolutamente um padrão
terminológico, os termos e conceitos não estavam sendo aplicados de forma despretensiosa. O seu uso
de determinado termo em detrimento de outro tem uma razão.
A reflexão que queremos levar adiante diz respeito aos sentidos atribuídos aos termos quando
empregados para se referirem ao João. A partir das discussões conceituais desenvolvidas por Paiva36 e
Lara37, encontramos vestígios dos modos de pensar dessa sociedade escravista portuguesa aplicando à
interpretação documental referente a João da Silva.

30 BERNAND, Carmén. Nomear, descrever, separar e hierarquizar: nota breve sobre o livro de Eduardo França Paiva. In:
Dar nome ao novo: uma história lexical da Ibero-América entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagens e o
mundo do trabalho). Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015, p. 6.
31 AHU_ACL_CU_020, Cx. 8\Doc. 329 (1).
32 SWEET, David.; NASH, Gary B. Lucha por la supervivencia em la América colonial. México: Fondo de Cultura
Económica, 2ª ed., 1987.
33 Ibidem, p. 238.
34 AHU_ACL_CU_020, Cx. 8\Doc. 329 (1)
35 PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical da Ibero-América entre os séculos XVI e
XVIII (as dinâmicas de mestiçagens e o mundo do trabalho), op. cit.
36 Ibidem.
37 LARA, Silva H. Fragmentos Setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa, op. cit.

912
Vejamos então no dicionário de Bluteau38 contemporâneo de João da Silva, em que
encontramos as definições aos termos empregados a João da Silva, hora como “preto”, hora como
“negro”. O termo “preto” aparece como sinônimo de negro, definido ainda como “também se chama o
escravo preto”39, mas o mesmo não ocorre ao consultar o verbete “negro”, não apresenta uma relação
de sinônimo com “preto”. Já o termo “pretinho”, que consta na mesma página, define como “negrinho,
alguma coisa preto, tirante a preto [...] o mesmo que pequeno escravo”. Não há, além dessas, qualquer
outra relação estabelecida entre os termos “escravo”, “negrinho” e “preto” no dicionário de Bluteau.
Indo ao verbete “negro”, este é definido como “homem da terra dos negros, ou filho de pays negros”40.
Os sentidos dos termos foram pensados por Lara, que questiona “Por que ‘pretos’, e não
‘negros’?”41, com base em Bluteau42. Para essa autora, negro “era um designativo de cor, origem e
nascimento” e não de servidão43. Já o verbete “escravo” designa, conforme Bluteau, “aquele que nasceu
cativo, ou foi vendido e está debaixo do poder do senhor”44. O verbete não faz qualquer referência a
cor da pele. Porém, o termo “preto” relaciona-se diretamente em sua definição ao termo “escravo”
enquanto o termo “negro” não, ou seja: “diferentemente de ‘negro’, portanto, o termo ‘preto’ podia ser
considerado equivalente a escravo, sem margens para dúvidas, sem considerações de nascimento ou
referenciação geográfica”45. Isso explica então o caso que chamamos atenção no início da discussão de
raça e cor, quando Ferreira menciona os “2 pretos”46 não pagos de Paulino da Silva Rego, sabemos que
são escravos porque o termo preto está diretamente relacionado no século XVIII com a escravidão.
No caso do João da Silva que, nos aspectos visuais, era definido como de pele escura, tinha,
porém, sua posição no regramento das demarcações espanhola definida noutra conotação, que estava
relacionada ao que mencionamos com a condição social, e não definida à cor da pele. Suas funções
e responsabilidades dentro do ordenamento militar dos espanhóis lhe conferiam outro status que
não se resumia ou que não podia se definir apenas pela cor da pele. Nas fontes produzidas pelos
portugueses, João da Silva é chamado tanto de “negro” quanto de “preto”, o que nos traz a problemática
da indefinição da qualidade do João da Silva pelos portugueses, além da reivindicação da sua servidão
ao herdeiro do seu proprietário que, como dito anteriormente, havia sido assassinado.
Lara mostra que ser branco era uma categoria indiscutível de liberdade, enquanto que
“para os pretos presumia-se geralmente a condição de cativo” e, dentre outras variações de cor da
pele, a suposição de ser ou ter sido um escravo era deliberado ao aspecto da aparência. Esse parece
ser “um indicador suficiente para demarcar diferenças e permitir inferências”, mas a associação de

38 BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez e Latino, 10 vols. Coimbra: Colégio das Artes da Companhia
de Jesus, 1712-1728.
39 Ibidem, p. 727.
40 Ibidem, p. 703.
41 LARA, Silva H. Fragmentos Setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa, op. cit., p.
132.
42 BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez e Latino, op. cit.
43 LARA, Silva H. Fragmentos Setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa, op. cit., p.
132.
44 BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez e Latino, op. cit., p. 225.
45 LARA, Silva H. Fragmentos Setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa, op. cit., p.
135.
46 FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira: a expedição
philosophica pelas Capitanias do Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuyabá, op. cit., p. 220.

913
“cor e condição social não era evidente nem imediata”, para tanto incluía além da cor, “a riqueza, o
nascimento, a ocupação, o grau de crioulização, o modo de apresentar-se”47. No caso do João da Silva,
a apresentação dele como Capitão de Conquistas e sua condição jurídica (livre, escravo ou forro) que
era reivindicada pelos portugueses lhe colocava numa indefinição enorme, quem seria João além da
definição aparente da sua cor?
Para incrementar esse quadro em que João da Silva era investigado, a chegada dele, juntamente
com Fernando Rojas, uniformizado como oficial militar causou muita estranheza na região da
Capitania do Rio Negro, afinal,
A diferencia de las milicias coloniales del Brasil y de Hispanoamérica, las del Gran
Pará en la época todavía no acostumbraban el nombramiento de hombres de color a
la oficialía. El ejército português, mucho menos. Pero los españoles traían consigo al
Solimões a dos hombres negros, africanos evidentemente ‘de nación’, hombres altos,
guapos y fornidos, de por sí imponentes em su porte, armados de espada y escopeta48.

Quanto a questão do uso de armamento, Lara mostra que já havia sido publicado no Estado do
Brasil uma proibição de porte e uso de armas por pessoas de cor na Pragmática49, em 1749, que incluía
também as ordens de como vestir e portar-se. Mendonça Furtado registra em 175150 a percepção da
não publicação da Pragmática nas capitanias da Amazônia ao queixar-se dos “vestidos agaloados e
cheios de ouro e tecido” indo então “averiguar a causa de se me apresentarem contra as reais leis de
S. Maj.” o que deixa evidente que tal lei cabia também ao Grão-Pará e Rio Negro51. No ano de 1756,
Lara52 mostra que houve uma lei específica aos mulatos e pretos escravos ou livres que portassem facas
ou outras armas proibidas. Tais evidências nos regramentos da sociedade colonial nos mostram as
motivações para tamanha inquietude e indignação dos moradores do Rio Negro quando se depararam
com oficiais militares negros e armados caminhando entre os habitantes.
Exemplo desse desconforto e indignação ficou registrado pelo Sargento Mor Segundo
Comissário João Wilckens sobre João da Silva que descreve as vestimentas da seguinte maneira: “o dito
Negro de uniforme, chapeo de Galaõ, traçado a cinta”53. Uma das queixas frequentes nos documentos
diz respeito ao comportamento do João da Silva na região e ao uso de vestimentas iguais aos dos
demais. Sua presença era um verdadeiro estranhamento ao regramento colonial português em vários
aspectos: escravo fugitivo, um negro incorporado ao serviço militar espanhol e armado. João reunia
todas as condições para causar o desconforto, estranhamento e insatisfação nos moradores.
João da Silva, não estava sozinho. Como já observamos, nos documentos e trabalhos que

47 LARA, Silva H. Fragmentos Setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa, op. cit., p.
147.
48 SWEET, David.; NASH, Gary B. Lucha por la supervivencia em la América colonial, op. cit., p. 238.
49 As Pragmáticas eram “decisões dos reis com valor de leis e que tinham por objetivo ou limitar o uso de
artigos de luxo, acomodando-o às presumíveis possibilidades econômicas das diferentes classes sociais [...] ou
proteger as fábricas e manufaturas nacionais” (ROSSINI, 2010, p. 122).
50 MENDONÇA, M. Carneiro. Amazônia Pombalina, p. 194. Carta de Mendonça Furtado Diogo de Mendonça
Corte-Real, 24 de dezembro de 1751.
51 LARA, Silva H. Fragmentos Setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa, op. cit., p. 194.
52 LARA, Silva H. Fragmentos Setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa, op. cit.
53 AHU_ACL_CU_020, Cx. 8\Doc. 329 (1), Carta de Henrique João Wilckens ao João Pereira Caldas, em 1º
de maio de 1784.

914
encontramos ele aparece acompanhado por Fernando Rojas, outro negro fugitivo54 que tinha sido
incorporado ao serviço militar espanhol, mas a fonte que encontramos questionava somente a
propriedade do João, sendo Rojas mencionado, porém, não questionado quanto à propriedade e fuga.
Beerman narra do seguinte modo: saíram de Quito para Mainas em janeiro de 1780, chegando
em março do mesmo ano. Requena tomou posse como governador e comissário da Quarta Partida
de Limites e saíram em fevereiro de 1781 para encontrar com a Partida Portuguesa em Tabatinga.
Chegaram a Ega em 28 de setembro de 1781 e permaneceram até 21 de fevereiro de 1782, saindo
então para a Demarcação dos Limites juntamente com a Partida Portuguesa. O período estabelecido
na Capitania do Rio Negro e da viagem demarcatória rendeu produções de aquarelas pelo Requena
retratando os lugares, as matas e a bravura dos rios, não passando despercebido nessas aquarelas a
presença de um negro que, possivelmente, era Fernando Rojas ou o próprio João da Silva55.
As aquarelas abaixo, produzidas por Requena, trazem a representação de sujeitos, entre eles
negros, mostrando a posição e atividade executada por cada sujeito nas imagens. A representação desses
sujeitos, seja João da Silva ou Fernando Rojas, nos fornece vestígios da dimensão da importância que
estes tiveram na comitiva de demarcação. Utilizaremos as interpretações de Smith56 e Beerman57 sobre
as aquarelas para localizarmos os sujeitos que estão representados. Na figura 1, intitulada “Segundo
salto del río de los Engaños”, na parte superior em azul com letras vermelhas, como aparecem as
representações de portugueses, índios, e o próprio Requena à esquerda usando “casaca azul, calzón
rojo y tricornio”58. Na margem direita:
This man, a curious figure in a red and white blouse, his long black hair arranged in a pig-tail
down his back, is sketching on top of the shelter of a survey boat. A Negro wearing a yellow
shirt is talking to him with animated gestures, while the soldiers of the escort, round yellow
hats upon their heads, are managing the boat59.

O homem que Smith60 define como “a curious figure” é um desenhista que dialoga com um
negro ao seu lado que supomos ser um dos Capitães de Conquista, Fernando Rojas ou João da Silva.

54 A bibliografia encontrada que menciona João e Fernando mostra uma confusão quanto ao Fernando Rojas.
Flávio Gomes (1997, p. 138) o apresenta como um temido ‘preto hespanhol’ por seus possíveis contatos com
os quilombos em Olivença; David Sweet (1987, p. 238) afirma que os espanhóis trouxeram na Comitiva “dos
expedicionarios de origen africano, Juan de Silva y Fernando Rojas”; Eric Beerman (1996) acaba fazendo uma
confusão na sua obra, num dado momento define Rojas como negro (p. 38) ao descrever a pintura de Requena
em que há um negro representado e depois, num verbete dedicado ao Fernando Rojas, o define como “moreno
capitan de conquista de la provincia de Mainas e indio Yuri” (p. 174); o mesmo ocorre no trabalho de Beatriz P.
S. Bueno (2012) que toma como base o trabalho de Beerman (1996) e define Fernando Rojas como índio Yuri
da província de Mainas (p. 5).
55 BEERMAN, Eric. Pintor y Cartógrafo em las Amazonas: Francisco Requena. In: Anales del Museo de América. Madri,
vol. 2, 1994 (p.83-97).
56 SMITH, Robert C. Requena and the Japurá: some 18th-Century Watercolors of the Amazon and Other Rivers. The
Americas, v. 3, n. 1, 1946 (p.31-65).
57 BEERMAN, Eric. Pintor y Cartógrafo em las Amazonas: Francisco Requena, op. cit.
58 BEERMAN, Eric. Pintor y Cartógrafo em las Amazonas: Francisco Requena, op. cit., p. 91.
59 SMITH, Robert C. Requena and the Japurá: some 18th-Century Watercolors of the Amazon and Other
Rivers, op. cit., p. 61-62: “Este homem, uma figura curiosa em uma blusa vermelha e branca, seu longo cabelo
preto arranjado em uma trança nas costas, está esboçando em cima do abrigo de um barco de pesquisa. Um
negro vestindo uma camisa amarela está falando com ele com gestos animados, enquanto os soldados da escolta,
redondo chapéus amarelos sobre suas cabeças, estão gerenciando o barco” (Tradução nossa).
60 Ibidem.

915
Figura 3: “Segundo Salto del río de los Engaños” de Francisco
Requena

Fonte: produzida por Francisco Requena, localizada na Biblioteca Oliveira Lima da Catholic University of America, em
Washington DC, reproduzida em http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.148/4506

A aquarela seguinte, também obra de Requena, foi nomeada como “Cascadas del Río Cunaré”
(figura 2), um rio mais ao norte, “Río de Los Engaños”. A aquarela registra o contato com “índios não
convertidos na nação Omaguas”,
Whose language was understood by a Negro whom I had brought along on this
expedition, His Majesty’s servant, one Fernando Rosas, who serves in Maynas with
the title of capitán de conquistas, a man of good judgment and conduct, the only one
familiar with these headwaters of the Yupuri61 [sic]

Os que aparecem na aquarela identificados por Smith trajando longos casacos azuis e brancos,
chapéus amarelos e inspecionando as corredeiras seriam os portugueses (localizados no centro da
aquarela). Na margem direita da aquarela, aparece Requena de casaco azul, calça vermelha e chapéu
conversando com um índio. Ao seu lado, Fernando Rojas, conversando com duas índias. Podemos
presumir que este negro seja Fernando Rojas, tal qual está descrito na transcrição feita por Smith
do registro de Requena, como intérprete da língua da nação Omagua, que aparecem no quadro na
margem esquerda da aquarela, numa canoa, indo de encontro aos comissários62.

61 REQUENA apud SMITH, Robert C. Requena and the Japurá: some 18th-Century Watercolors of the
Amazon and Other Rivers, op. cit.,p 63: “[...] cuja língua foi compreendida por um negro eu tinha trazido nesta
expedição, o servo de sua Majestade, um Fernando Rosas [sic], que serve em Maynas com o título de Capitán
de conquistas, um homem de bom senso e conduta, o único familiarizado com estas cabeceiras do Yupuri [sic]”
(Tradução nossa).
62 SMITH, Robert C. Requena and the Japurá: some 18th-Century Watercolors of the Amazon and Other
Rivers, op. cit.

916
Figura 4: “Cascadas del Río Cunaré” de Francisco Requena

Fonte: produzida por Francisco Requena, localizada na Biblioteca Oliveira Lima da Catholic University of America, em
Washington DC, reproduzida em http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.148/4506

A importância de Fernando Rojas para a comitiva espanhola salta aos olhos na descrição que
Requena faz dele, representado ao seu lado direito na aquarela, dialogando com os índios. Segundo
Sweet, tanto João quanto Fernando, “eran hombres de gran inteligencia y habilidad, y elementos
indispensables para los trabajos del partido español”63. Portando não há dúvidas da importância desses
sujeitos tanto para os espanhóis, quanto para entendermos os vestígios do modo de ser da sociedade
colonial da Capitania do Rio Negro.
O caso do João da Silva, se era preto ou era negro, traz ambiguidades que têm caráter revelador
porque
Indicam que, geralmente, a cor da pele estava associada à condição que separava a
liberdade da escravidão. [...] ela era lida, no Reino e na América portuguesa, como
uma dentre as muitas marcas simbólicas de distinção social. [...] a tez escura indicava
uma associação direta ou indireta com a escravidão [...] nomear as pessoas como
negros, cafuzos, pardos, pretos e crioulos era uma forma de afastá-las dos brancos64.

A intenção dos portugueses em deixar evidente que João da Silva, aos olhos dos seus regramentos,
exercia funções dignas de um branco. Entretanto, não deixaram de questionar sua servidão, como
forma de estabelecer a distinção social, mencionada por Lara65, acionando a partir da cor da pele, que
é o primeiro sentido acionado nesse processo. Enquanto, Fernando Rojas também partia do mesmo
meio que João, não foi reclamado enquanto propriedade; ao contrário do João, mas sua tez e cargo no
regramento espanhol causou o mesmo espanto que João aos moradores e administradores coloniais
ao chegarem a Capitania do Rio Negro.
A constatação da existência e convivência desses diversos sujeitos na Capitania do Rio Negro
nos leva a pensar sobre o estabelecimento dos limites nos regramentos coloniais, do espaço que cada

63 SWEET, David.; NASH, Gary B. Lucha por la supervivencia em la América colonial, op. cit., p. 238.
64 LARA, Silva H. Fragmentos Setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa, op. cit, p. 144.
65 Ibidem.

917
um ocupava naquela sociedade, além dos espaços que eram forjados por esses sujeitos, principalmente,
por negros e índios, como João da Silva e Fernando Rojas. A relação com os brancos, que neste
trabalho representam os agentes colonizadores, fossem eles português ou espanhol, se dava de forma
assimétrica por conta das diversas alianças, barganhas e resistências construídas pelos que estavam à
margem dos espaços que decidiam e ditavam as regras.
O caso de João da Silva chama a atenção pelo histórico de sobrevivência. Ele havia sobrevivido
à viagem atlântica, quando escravizado da África para Lisboa. Sobreviveu ao terremoto de 1750, em
Portugal e, quando vendido pelo seu dono para o Pará, sobreviveu mais uma vez a travessia atlântica.
Quando seu dono foi assassinado por indígenas, João viu a possibilidade de fuga e assim o fez e sobreviveu
dentro das matas da Amazônia até alcançar territórios espanhóis66. Já incorporado à expedição de
demarcação pelos espanhóis como Capitão de Conquistas, sobreviveu ao final da expedição de 1782,
“cuando la mayor parte de los tripulantes indígenas de las canoas de ambas comitivas murieran en una
epidemia repentina de fiebres malignas”67. Sobreviver dentro de um regramento que lhe restringia e
controlava a liberdade, que poderia ter ocasionado a morte em tantas ocasiões, era de uma façanha e
tanto.
A situação quanto ao anseio de liberdade era tanta que os agentes coloniais na Amazônia
afirmavam conscientemente que “se os pretos não fogem para África, donde vêm, não é por falta de
vontade, mas pela de meios para atravessarem tantos e tão distantes mares”68.
O último registro que o documento do Arquivo Histórico Ultramarino nos mostra é que
em 1784, ano da devassa, João teria fugido da região sem, teoricamente, dar notícias a espanhóis e
a portugueses, depois de ter arrumado uma briga, supostamente embriagado, tentado uma agressão
física a um português e, por ordem do próprio Requena, foi preso no tronco tendo cometido a fuga
depois disso. A verdade é que, sendo mais criteriosas com o relato presente na fonte, veremos que
havia uma possibilidade de o Comissário Requena ter acobertado a fuga de João da Silva ao perceber
que os portugueses não iriam reduzir-se a negociação da liberdade do seu Capitão de Conquista e
tê-lo na sua tropa era algo que os espanhóis faziam questão de possuir. O trabalho de David Sweet69
mostra que João continuou a trabalhar para os espanhóis após sua fuga até o ano de 1795, quando
faleceu.
Quanto a Fernando Rojas, este continuou com os espanhóis durante todo o período que
as tropas espanholas estiveram presentes na região da Capitania do Rio Negro até o momento da
saída em 1791 chegando ao ponto de receber uma falsa proposta para desertar para os domínios
portugueses, o que não se concretizou, apesar dos planos do Capitão General João Pereira Caldas
instruindo ao comandante e diretor da Vila de Olivença, que ao abordá-los não os deixasse perceber
que seriam presos e caso desconfiassem, dissesse que serviriam aos serviços da Coroa Portuguesa e

66 AHU_ACL_CU_020, Cx. 8\Doc. 329 (1).


67 SWEET, David.; NASH, Gary B. Lucha por la supervivencia em la América colonial, op. cit., p. 241.
68 FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira: a expedição
philosophica pelas Capitanias do Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuyabá, op. cit., p. 121.
69 SWEET, David.; NASH, Gary B. Lucha por la supervivencia em la América colonial, op. cit.

918
que eles guardassem isso em absoluto segredo70.
O que percebemos aqui é que esses sujeitos passaram a ser partes nessas disputas entre
administradores coloniais e usamos esse histórico para exemplificar uma amostra dessa sociedade
colonial que, por outro lado, para os escravos, era uma possibilidade de conquistar vantagens e talvez, a
própria liberdade. A esses Capitães de Conquista, as suas liberdades estiveram vinculadas ao interesse
dos espanhóis pelos seus conhecimentos nas línguas e na região da Amazônia.
O tipo de fuga efetivado por Fernando e João era muito mais ameaçadora do que a formação
de mocambos, no sentido de que estar fugitivo servindo de guia, informante e conhecedor das regiões
era um perigo para questões diplomáticas entre as duas Coroas e pela constante sensação de ameaça
de uma possível invasão de território. O mocambo, por sua vez, era uma ameaça à propriedade e, por
ocorrer com um número pequeno de fugitivos, não desmontou o sistema escravista ao qual estavam
submetidos, “jamais lograram ameaçar os sistemas escravistas como um todo”71 (FLORENTINO, 2012,
p. 264). As desconstruções da noção de propriedade escrava se deram por outros fatores conjecturais
que podem ser tema de futuras pesquisas, analisando, por exemplo, o fim da escravidão no Grão-Pará
e as reações da sociedade frente ao fim da propriedade cativa.

REFERÊNCIAS

Fontes documentais

Arquivo Histórico Ultramarino:


AHU_CU_013, Cx. 94, D. 7509
AHU_ACL_CU_020, Cx. 8\Doc. 329 (1)
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez e Latino, 10 vols. Coimbra: Colegio das Artes da
Companhia de Jesus, 1712-1728.
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira: a expedição
philosophica pelas Capitanias do Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuyabá. Vol.3. São Paulo: Kapa
Editorial, 2006.
MENDONÇA, Marcos Carneiro de. A Amazônia na Era Pombalina: correspondência inédita do
governador e capitão general do Estado do Grão-Pará e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça
Furtado, 1751-1759. Rio de Janeiro: IHGB, 3v. 1963.
Bibliográficas
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BERNAND, Carmén. Nomear, descrever, separar e hierarquizar: nota breve sobre o livro de Eduardo
França Paiva. In: Dar nome ao novo: uma história lexical da Ibero-América entre os séculos XVI e
XVIII (as dinâmicas de mestiçagens e o mundo do trabalho). Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
BEERMAN, Eric. Pintor y Cartógrafo em las Amazonas: Francisco Requena. In: Anales del Museo de
70 Transcrito em BASTOS, Carlos Augusto de C. No limiar dos impérios: projetos, circulações e experiências
na fronteira entre a Capitania do Rio Negro e a Província de Maynas (c.1780-c.1820). 489p. Tese (Doutorado
em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São
Paulo, 2013.: APEP, Códice 416, Documento 02. Ofício de João Pereira Caldas ao Comandante e Diretor de Olivença.
Ega, 11/06/1784.
71 FLORENTINO, Manolo; AMANTINO, Marcia. Fugas, quilombos e fujões nas Américas (séculos XVI-XIX). Revista do
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920
A Câmara do Natal e suas relações de poder no império português (1701-1759)
Kleyson Bruno Chaves Barbosa1

A instituição camarária da cidade do Natal, por meio dos seus oficiais camarários, que
eram eleitos anualmente, e representavam os homens bons e as principais famílias da capitania do Rio
Grande, estava inserta em um jogo de relações de poder que envolviam agentes régios e instituições
espalhadas pelas Capitanias do Norte2, e chegavam até o reino. Assim, para a própria atuação dos ofi-
ciais camarários de Natal, estes tinham que interagir com as populações locais, regulando, fiscalizando
e penalizando o seu cotidiano, assim como recebendo petições e pedidos de mercês; com o capitão-
-mor do Rio Grande, chefe militar da capitania, com o qual a Câmara travava relações constantemente
conflituosas; além do ouvidor da Paraíba e o governador de Pernambuco, representantes de espaços
centrais para a capitania do Rio Grande no aspecto judicial, e, militar-administrativo, como também
com o próprio rei de Portugal, centro do reino.

Visto isto, este trabalho buscou compreender como a Câmara do Natal se inseria ema
uma rede de poderes, que envolviam diferentes agentes régios espalhados nas Capitanias do Norte, e
no próprio reino. Para isso, este artigo se valeu das frutíferas discussões que ultimamente se tem feito
sobre a comunicação política. A documentação da Câmara do Natal dos livros de registros de cartas
e provisões se encontra preservada até hoje, depositada no Instituto Histórico e Geográfico do Rio
Grande do Norte, sendo, portanto, de fundamental importância para se traçar uma rede comunicativa
que a Câmara do Natal se inseria, e, assim, compreender melhor tais relações de poder. Para os anos
de 1702-1760, foi tipificado um total de 1714 documentos encontrados nesse período3. A partir da
quantificação e categorização da tipologia documental mencionada, buscou-se compreender as ques-
tões propostas, enfatizando-se os agentes envolvidos nessa comunicação politica, como os emissores,
intermediários, e receptores4.
1 Doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense. Bolsista CAPES PROEX (Programa de
Excelência Acadêmica). Orientado pela Professora Dra. Maria Fernanda Bicalho.
2 As Capitanias do Norte do Estado do Brasil estavam estruturadas em relação às diferentes instâncias e ju-
risdições, do seguinte modo: concernente à jurisdição político-militar, o governo da capitania de Pernambuco
atuava enquanto um centro, que exercia influência sobre Paraíba, Rio Grande e Ceará. Esta última estava su-
bordinada à Pernambuco desde o ano de 1656, o Rio Grande desde 1701, e a Paraíba apenas no ano de 1755.
Já no aspecto judicial, a Ouvidoria Geral de Pernambuco possuía jurisdição sobre a comarca de Alagoas, e
a partir de meados do século XVIII teve Itamaracá anexada à sua Ouvidoria. Anteriormente, o território de
Itamaracá estava subordinado à Ouvidoria da Paraíba, que por sua vez, foi criada em 1688, englobando além
de Itamaracá, os territórios das capitanias do Ceará e do Rio Grande. Entretanto, o Ceará passou a ter a sua
própria Ouvidoria no ano de 1723, deixando de ser subordinada à Paraíba, assim como no mesmo ano passou
a ter sua própria Provedoria, deixando de ser subordinada à do Rio Grande. MENEZES, Mozart Vergetti de.
Jurisdição e poder nas Capitanias do Norte (1654-1755). Saeculum – Revista de História. [14]; João Pessoa,
jan./jun. 2006.
3 A proposta do trabalho se baseia entre 1701, ano da anexação da capitania do Rio Grande à capitania de
Pernambuco, e 1759, quando outras municipalidades foram criadas na capitania do Rio Grande, pois até então,
apenas Natal possuía tal status.
4 Por ora, não foram esquematizadas as temáticas mais presentes nessa documentação, nem a mudança destas
ao longo dos anos, tendo-se ciência que estas questões não exploradas serão retomadas em trabalhos futuros,
para melhor refinamento de uma análise que se baseia em noções de comunicação política.

921
A comunicação política

Ronald Raminelli destacou que nas últimas décadas as Câmaras municipais tornaram-se
um tema de pesquisa de relevada importância para o estudo da política e administração do período
moderno. Entre as várias perspectivas em se considerar a participação das periferias no centro, e as
intervenções deste nas primeiras, assim como as negociações e resistências entre esses polos, a inves-
tigação da comunicação política envolvendo a produção e a troca de papeis administrativos tem sido
um caminho seguido para se pensar justamente tais questões5.

Recentemente, foi lançado o livro “Um reino e suas repúblicas no Atlântico. Comunica-
ções políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVII e XVIII”, organizado por João Fragoso
e Nuno Gonçalo Monteiro, no qual a perspectiva da comunicação política é o centro da discussão,
tendo por base nas análises sobre as conquistas principalmente o acervo do Arquivo do Conselho Ul-
tramarino. De acordo com Hespanha, o livro baseia-se no “estudo das redes da comunicação política
no âmbito de uma unidade política pluricontinental – América, africana e europeia.” Dessa forma,
além dos sujeitos-agentes que fazem parte da rede, buscou-se analisar o processo de comunicação
da rede, considerando os seguintes elementos: “os comunicantes, o suporte da comunicação, com os
seus alcance e durabilidade, a seleção, tipologia e gramática dos conteúdos, os impactos externos das
mensagens”. O estudo da comunicação permite ao pesquisador compreender quais as temáticas que
tornavam uma rede eficiente, assim como o seu funcionamento6.

Segundo António Castro Nunes, o poder não era gerado apenas no centro das monar-
quias ibéricas e aplicado de forma rígida nas comunidades locais, sendo que essas produziam lógicas
de poder que tinham peso nos sentidos das decisões das Coroas, além de que estes dois centros de
poder não eram pensados enquanto polos com interesses opostos. Nesse sentido, a análise da corres-
pondência entre ambos se torna fundamental para melhor detalhamento de como se processavam tais
relações, fosse por parte das solicitações dos locais como das decisões régias. Assim, a comunicação
é um importante meio de se analisar a negociação, os pedidos e a resolução de conflitos. Entretanto,
o autor ressaltou que nessas relações havia uma “lógica de domínio que, para todos os efeitos, dese-
quilibrava estes intercâmbios”. Para ele, apesar de a comunicação demonstrar uma funcionalidade nas
duas direções, havia “uma clara verticalidade, não estando todos os polos em posições idênticas no
estabelecimento das referidas dinâmicas de negociação”, o que apontava para o estatuto cimeiro e o

5 RAMINELLI, Ronald. Nobrezas do Novo Mundo – Brasil e ultramar hispânico, séculos XVII e XVIII. Rio
de Janeiro: Editora FGV, 2015. p. 72-76.; RAMINELLI, Ronald. Poder político das Câmaras. In: FRAGOSO,
João; MONTEIRO, Nuno Gonçalo (Orgs.). Um reino e suas repúblicas no Atlântico. Comunicações políti-
cas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVII e XVIII . 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2017. p. 371.
6 HESPANHA, António Manuel. Prefácio: In: FRAGOSO, João; MONTEIRO, Nuno Gonçalo (Orgs.). Um
reino e suas repúblicas no Atlântico. Comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos
XVII e XVIII . 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

922
poder de ‘mando’ das Coroas na articulação com os poderes locais7.

Isto era o que tinha ressaltado Jan Dumolyn, ao afirmar que a comunicação política pode
ser entendida como as formas de comunicação que envolve questões públicas marcadas por relações
desiguais de poder. Desse modo, o autor criticou o uso desta temática pelos historiadores apenas en-
quanto um problema histórico central, sem se atentar para a questão histórica mais importante que
é a do poder e da desigualdade. Portanto, ao se considerar que toda forma de comunicação envolve
relações de poder distribuídas de forma desigual, o conflito se torna presente, algo essencial para a
história política8.

Arthur Curvelo tem analisado a relação dos governadores de Pernambuco, enquanto um


centro nas Capitanias do Norte, com outras espacialidades desta região, baseando-se em uma noção
de comunicação política. O autor ressaltou que a prática administrativa da América portuguesa tinha
por base “centros de governo”, que se relacionavam entre si e se articularam com poderes locais, con-
formando redes de governabilidade de dimensões regionais. Estas redes se tornavam operacionais por
meio da produção de atos comunicativos, que davam materialidade à governança. Visto isto, afirmar
que os governadores de Pernambuco governavam espaços pertos ou mais distantes do centro de poder
é dizer também que eles “estabeleciam variados arranjos de interação com os poderes existentes nesses
espaços”, sendo necessária a comunicação escrita e a ação de intermediários para que as ordens fossem
executadas localmente9. Se Curvelo procurou analisar os arranjos relacionais partindo dos Governa-
dores de Pernambuco, este trabalho procurou enfatizá-lo a partir de uma câmara periférica, como a
de Natal com diversos outros poderes existentes nas Capitanias do Norte, garantindo o exercício de
governo da Câmara, assim como tecendo uma diferente rede comunicativa se compara à do centro.

O estudo da comunicação política se torna relevante também para analisar a participação


dos poderes locais frente ao reino. Denise Aparecida De Moura, enfatizando a questão da autonomia
camarária, trouxe uma interessante perspectiva ao se discutir uma interlocução horizontal entre as
câmaras da capitania de São Paulo no século XVIII, contribuindo para um sentido de ligação entre
essas instituições, agindo em conjunto em alguns casos na busca de interesses junto aos poderes cen-
trais. Para ela, a comunicação de ordem administrativa ou política “estimulou a adoção de ações em
conjunto entre as Câmaras, ou seja, estas instituições formalizaram suas demandas, decisões e relações
com os poderes régios na colônia ou no ultramar individualmente, através de cartas ou representações
dirigidas” fossem ao rei ou ao Conselho ultramarino. “Contudo, tais escritos foram produzidos simul-

7 NUNES, António Castro. Comunicação e prática política nas monarquias ibéricas de antigo regime
(1700-1750): Évora, Córdova, Ouro Preto e Quito. Tese (Doutorado em História), Universidade de Évora,
2016; MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Instrumentos de comunicação da periferia. In: HESPANHA, António
Manuel (coord.). História de Portugal. vol. IV. Lisboa: Círculo de Leitores, 1993. p. 310.
8 DUMOLYN, Jan. Political Communication and Political Power in the Middle Ages: A Conceptual Journey,p. 33-55,
EDAD MEDIA. Rev. Hist., 13 (2012), pp. 7-9, 2012. Universidad de Valladolid.
9 CURVELO, Arthur. Governar o Sul antes da Comarca das Alagoas: Notas preliminares sobre as relações dos
Governadores de Pernambuco com os poderes meridionais da Capitania (1654-1712): In: _____. CAETANO,
Antonio Filipe Pereira (Org.). Da comarca à província das Alagoas: poder, administração e escravidão (sé-
culo XVII-XIX). Maceió: Editora Viva, 2017.

923
taneamente ou em datas aproximadas, sugerindo uma ação política associada”10.

Maria Fernanda Bicalho, José Damião Rodrigues e Pedro Cardim estudaram as diversas
formas de comunicação e representação que os poderes locais das Câmaras poderiam realizar junto
ao poder da Coroa, tanto reinóis como ultramarinos, fossem as cortes, menos frequentes ao longo do
período moderno e nem todas as Câmaras tinham representantes; as juntas, mais frequentes e orga-
nizadas pelos homens bons de uma municipalidade; e também enviando procuradores ao centro para
representar os interesses locais11.

As Cortes não foram convocadas no século XVIII, e anteriormente, por muito tempo teve
representantes apenas do reino, mudando tal situação apenas em meados do século XVII quando daí
em diante Goa, Salvador e São Luís, enquanto espaços ultramarinos tiveram representantes nas reu-
niões. As juntas representavam outro tipo de assembleias de certo caráter representativo no espaço
político português. Elas designavam “tanto as assembleias que as câmaras costumavam promover,
reunindo toda a população que vivia no perímetro do concelho, quanto as assembleias que preten-
diam representar os corpos e instituições locais perante os agentes do poder régio”. Ademais, existiam
assembleias locais internas, nas quais a Câmara convocada a população em geral para decidir questões
da sua municipalidade. Portanto, de acordo com os autores, “... as juntas realizadas na América foram
uma forma de as câmaras brasileiras defenderem os seus interesses, bem como de pressionarem as
autoridades régias”12. Além da participação nas cortes, as câmaras também podiam ter procuradores
junto à Coroa em caráter permanente, ou ainda em momentos pontuais. Estes “permaneciam na cor-
te tanto tempo quanto fosse necessário para a resolução dos assuntos relacionados ao município que
representavam”. Assim, “procuravam mover diligências para favorecer os interesses da sua câmara e
tentavam, igualmente, acelerar decisões”13.

No caso da Câmara de Natal, esta nunca teve o privilégio de participar das Cortes, inclu-
sive este era um recurso limitado para as Câmaras das conquistas, tendo participado apenas as mu-
nicipalidades de Goa, Salvador e São Luís do Maranhão, conforme mencionado; e, a última reunião
das Cortes convocadas ocorrera em 1697, no reinado de D. Pedro II. Já em relação às juntas, é possível
perceber nas atas de vereança da cidade do Natal, que em diversas ocasiões, os camarários se reuniram
com as principais autoridades da capitania e com o Povo, no intuito de solucionar problemas con-
dizentes ao cotidiano colonial e que dizia respeito à população que estava sob sua responsabilidade.
Quanto aos procuradores, ressalta-se que a Câmara de Natal se utilizou de representantes próprios
em Lisboa para atender a seus interesses. Assim, no ano de 1709, os camarários de Natal arcaram com
despesas para enviar um procurador que os representassem em Lisboa. Em vereação do mesmo ano,
de 20 de novembro, consta que o Desembargador Cristóvão Soares Reimão, ouvidor da Paraíba, teria
10 MOURA, Denise Aparecida Soares de. Redes associativas e de comunicação entre as Câmaras de uma Ca-
pitania, São Paulo (Século XVIII). Hist. R., Goiânia, v. 21, n. 1, p. 48–69, jan./abr. 2016.
11 BICALHO, Maria Fernanda; RODRIGUES, José Damião; CARDIM, Pedro. Cortes, Juntas e procuradores.
In: FRAGOSO, João; MONTEIRO, Nuno Gonçalo (Orgs.). Um reino e suas repúblicas no Atlântico. Comu-
nicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVII e XVIII . 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2017.
12 Ibid. p. 113
13 Ibid. p. 117

924
realizado em correição uma sentença desfavorável aos aforamentos e arrendamentos das terras do
Concelho. Os camarários apelaram dessa decisão, e, para isso, deliberaram que as despesas do procu-
rador em Lisboa fossem pagas, para representá-los. Em 30 de dezembro do mesmo ano, os camarários
enviaram 25$000 réis a dois procuradores que os representassem em Lisboa: João de Leiros, guarda-
-tapeçarias do rei, e, Manuel Barbosa Brandão, apontador de repartimentos14. Já em vereação de 26 de
abril de 1756, os camarários decidiram em reunião que se fizesse um procurador em Lisboa, a fim de
representar o Senado de Natal no que lhe conviesse15. Dessa forma, ressaltam-se os mecanismos que
esta instituição utilizou em prol de seus interesses, inclusive, com pessoas influentes no reino, que po-
deriam agir em seu favor, e com contato direto ao rei. Entretanto, notam-se nos termos de vereação de
Natal apenas estes dois casos, o que demonstra que era custoso manter procuradores permanentes no
reino, sendo solicitados em momentos de necessidade, em que se exigia uma urgência de demandas
em prol do poder local16.

Segundo Arthur Curvelo, o nível de integração de uma formação política pode ser men-
surado a partir da capacidade de comunicação dos poderes que compõe essa estrutura, sendo que a
comunicação compreende não apenas as informações trocadas entre as instâncias governativas, como
também “a variedade de estruturas disponíveis para encurtar o tempo de transposição de distância tais
como estradas, embarcações, sistemas de correios (ou instituição semelhante), suportes e redes de di-
fusão de informações”.17 Evaldo Cabral de Mello, por exemplo, ao retratar a relação dos governadores
com os poderes locais, desde o governo do Xumbergas, Jerônimo de Mendonça Furtado, na década de
1660, até as Alterações Pernambucanas (1710-1711), demonstra de modo exemplar em “A Fronda dos
Mazombos” como a comunicação política estabelecida entre diversas instâncias governativas operava.
Dessa forma, pode-se perceber como o tempo administrativo afetava a política no império português,
visto que a sedição da nobreza ocorrida em 1710 se efetua no momento em que as frotas partem para
o reino com as notícias locais, abrindo-se assim uma margem para atuação dos locais contra o gover-
nador de Pernambuco Castro e Caldas e o grupo mascatal18.

Sobre o processo legislativo da Coroa portuguesa, Pedro Cardim e Miguel Baltazar desta-
caram a importância da “publicação” da norma, não só no reino, como nas diversas conquistas portu-
guesas, a fim de que esses territórios ficassem informados das disposições régias. Dessa forma, havia
um processo que envolvia desde a recepção e redistribuição dessas normas para diferentes partes de
jurisdição portuguesa, passando pelo traslado, anúncio e registro delas nas instâncias locais. Para que
esse processo tivesse êxito, era preciso a participação de vários oficiais régios. No Estado do Brasil e

14 Idem.
15 Catálogo dos Livros de Termos de Vereação da Cidade do Natal (1674-1823). Documentos 0500, fls. 008v-
009; 0505, fl. 011; e 0671, fls. 086-086v.; e Termo de vereação de 26 de abril de 1756. Fundo documental
do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. Senado da Câmara do Natal. Livro de posse,
juramento e sessões. 1753-1776. BARBOSA, Kleyson Bruno Chaves. A Câmara de Natal e os Homens de
Conhecida Nobreza: Governança Local na Capitania do Rio Grande (1720-1759). Dissertação (Mestrado em
História), Natal, UFRN, 2017.
16 BICALHO, Maria Fernanda; RODRIGUES, José Damião; CARDIM, Pedro. Op. cit.
17 CURVELO, Arthur. Op. cit. 2017.
18 MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos mazombos: nobres contra mascates, Pernambuco, 1666-1715.
Rio de Janeiro: Editora 34, 2003.

925
no Estado do Maranhão e do Pará, os governadores-gerais e governadores funcionavam como uma
primeira instância de distribuição das normas régias vindas de Lisboa para as Câmaras Municipais.
Nestas instituições locais, ocorria o registro das disposições régias, significando que as normas haviam
sido difundidas e divulgadas a nível local, assim como garantiam a continuidade da sua memória.
Devido à especificidade de cada território, os autores afirmaram que os agentes recorriam a diversos
procedimentos à difusão das normas régias, sendo impossível generalizar o modo de disseminação
das leis. 19

António Castro Nunes que comparou as correspondências de quatro municipalidades do


mundo ibérico (Évora, Córdova, Ouro Preto e Quito) na primeira metade do século XVIII, concluiu
que embora existissem semelhanças entre o modelo burocrático da metrópole e o americano, este
último embasado no primeiro, a prática política nos territórios americanos possuíam especificidades.
Assim, os interlocutores dessas comunicações também eram diferentes, assim como também eram os
graus de participação nas negociações e as articulações políticas, ao se comparar não só a parte espa-
nhola com a portuguesa do mundo ibérico, mas entre a parte americana e o modelo reinol20.

Portanto, ao longo deste trabalho, a partir dos livros de registros de cartas e provisões da
Câmara do Natal, buscou-se compreender a rede comunicativa na qual a Câmara do Natal se inseria,
identificando e analisando diversos outros agentes da América portuguesa, assim como também com-
preendendo melhor como a legislação régia se dispersava e chegava até a capitania do Rio Grande,
além de outros diálogos que eram estabelecidos e também chegavam até o reino.

Tipologias documentais da Câmara do Natal e comunicações políticas

Para o trabalho e as propostas pretendidas em questão, foram utilizados os livros de regis-


tros de cartas e provisões do Senado da Câmara do Natal [Livro 4 (1702 – 1707); Livro 5 (1708 – 1713);
Livro 06 (1713-1720); Livro 7 (1720 – 1728); Livro 17 (1728-1736); Livro fragmentado (1736-1737);
Livro 08 (1738 – 1743); Livro 09 (1743 – 1754); Livro 10 (1755-1760)], indo, portanto, de 1702 a 1760,
satisfazendo o recorte temporal deste artigo, que se situa entre 1701 a 1759. Toda essa documentação
se encontra depositada no fundo documental do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do
Norte.

O ato de registrar disposições régias era uma prática nas diversas espacialidades do im-
pério português, e o objetivo disto era garantir que as normas fossem difundidas a nível local, assim
como se mantivessem preservadas para eventuais necessidades de consulta e resolução de dúvidas
que envolvessem a matéria da ordem régia. Desse modo, as instâncias locais tinham por obrigação

19 CARDIM, Pedro; BALTAZAR, Miguel. A difusão da legislação régia (1621-1808). In: FRAGOSO, João;
MONTEIRO, Nuno Gonçalo (Orgs.). Um reino e suas repúblicas no Atlântico. Comunicações políticas entre
Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVII e XVIII . 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017. p.
172-194.
20 NUNES, António Castro. Op. cit.

926
registrar as leis régias, e, as Câmaras possuíam livros nos quais os escrivães copiavam manualmente
tais emissões, fossem integralmente, ou ainda realizando resumos nos livros de registros das câmaras,
enquanto os originais eram depositados em um cartório. De acordo com os escrivães e os oficiais de
cada Câmara, poderia existir um livro específico para ordens e leis régias, ou ainda era comum que
essas fossem registradas juntamente com diversos outros documentos burocráticos como cartas-pa-
tentes e cartas de doação de sesmarias, tornando-se um livro de registro de informações mescladas21.

Gráfico 1: Elaborado pelo autor Kleyson Barbosa a partir dos livros de registros de cartas e provisões do Senado da Câmara do Natal,
entre 1702-1760.

Este último é o caso da Câmara do Natal. Os livros de registros de “Cartas e provisões do


Senado da Câmara do Natal” são compostos por uma grande variedade de tipologias documentais. A
partir dos nove livros citados anteriormente, entre os anos de 1702-1760, foi possível detectar o regis-
tro de 1714 documentos, que foram catalogados de acordo com as suas tipologias documentais, agru-
pados em nove tipos (“ordens, provisões, leis, alvarás régios”; “portarias, bandos ordens e mandados”;
“editais”; “cartas”; “doação de terras”; “provisão de cargos”; “provisão de patentes militares”; “carta de
usança”; “petição”; “marca de ferros de gado”; e, “outros”), e que se apresentam no gráfico acima.

Desse conjunto, percebe-se que cerca de 5% (89 de registros) corresponde à categoria


documental de “ordens, provisões, leis, alvarás régios”. Estas, portanto, são emissões régias, fossem
aquelas enviadas diretamente aos oficiais da Câmara do Natal, ou ainda para outra autoridade régia
na colônia, que, por sua vez as encaminhavam para serem registradas na própria Câmara do Natal.
Ademais desse importante conjunto, foram registradas ainda 24 cartas régias enviadas diretamente
aos oficiais de Natal, e 11 cartas régias para diversas outras instâncias (do total de 496 cartas dessa ca-
21 CARDIM, Pedro; BALTAZAR, Miguel. Op cit.

927
tegoria no gráfico anterior); 15 provisões régias de cargos/ofícios (do total de 245 também do gráfico
anterior); e 18 provisões régias militares (do total de 336 do mesmo gráfico); o que somados à catego-
ria de “ordens, provisões, leis e alvarás régios” totalizam 157 emissões régias de variados tipos, 9,15%
do total da documentação levantada.

Segundo Pedro Cardim e Miguel Baltazar, os estudos relativos às dinâmicas políticas dos
séculos XVII e XVIII enfatizaram como a Coroa portuguesa diversificou as formas de intervenção
dos seus territórios. Entre estas, destaca-se a produção normativa, que passou a ser realizada de forma
crescente para os vários territórios da Coroa, resultando em um maior conhecimento por parte dos
vassalos do rei de Portugal sobre as ordens emanadas de Lisboa. Conforme os autores, as tipologias
documentais régias eram bem variadas. Entre os séculos XVII e XVIII, os autores detectaram sete
tipos principais de normas produzidas pela Coroa: “a lei, o alvará, a provisão, a carta régia, o decreto,
a portaria, e, por último, o aviso”. Essas normas podiam ser direcionadas para um âmbito mais geral,
como o decreto, o alvará e a lei, ou para um âmbito mais restrito, de parte da população ou para al-
guém ou algo em específico, como a carta régia, aviso ou portaria22.

O grupo de maior destaque das emissões régias registradas na Câmara do Natal é aquele
que aparece com a nomenclatura de “ordem régia”, com um total de 58. As ordens régias podiam ser
enviadas diretamente aos camarários de Natal, ou, então, o rei poderia se comunicar com outras ins-
tâncias governativas localizadas nas Capitanias do Norte, e, posteriormente, tal ordem era enviada e
registrada à/na Câmara do Natal. Em relação a este último ponto, o rei também poderia fazer uma
menção expressa para que a ordem fosse remetida aos oficiais camarários de Natal, ou, então, a ordem
dizia respeito ao espaço da capitania do Rio Grande, e, portanto, se via como necessário que ela fosse
registrada na Câmara do Natal. Das 58 ordens régias mencionadas, interessam saber quem eram os
seus receptores, conforme se apresenta no gráfico a seguir:

Gráfico 2: Elaborado pelo autor Kleyson Barbosa a partir dos livros de registros de cartas e provisões do Senado da Câmara do Natal,
entre 1702-1760.

22 Existiam ainda os regimentos que regulavam as competências de uma instituição ou cargo ou ainda os es-
tatutos que normatizavam a vida interna de corporações ou institutos. CARDIM, Pedro; BALTAZAR, Miguel.
Op. cit.

928
Visto isto, nota-se que três instâncias governativas das Capitanias do Norte se destacavam
enquanto espaços intermediários para informar a elite local acerca das decisões régias: o governador
de Pernambuco, o capitão-mor do Rio Grande e o ouvidor da Paraíba. Destaca-se a expressiva quanti-
dade de ordens régias que primeiramente eram enviadas ao governador de Pernambuco, 26, revelan-
do-se este enquanto um agente central nas Capitanias do Norte, e, consequentemente, na capitania do
Rio Grande. A ele, principalmente, a Coroa confiava a informação não apenas à cidade do Natal, mas
para importantes resoluções régias que diziam respeito às Capitanias do Norte como um todo.

Segundo Arthur Curvelo, os governadores da capitania de Pernambuco “tinham juris-


dição sobre um território de dimensão regional, e, para dar substância material à governabilidade,
precisavam negociar constantemente com os poderes presenciais existentes”23. Esta jurisdição foi ges-
tada após o domínio holandês nas Capitanias do Norte, e, fortalecida enquanto prática governativa
ao longo dos séculos XVII e XVIII. Conforme o autor, tal desenvolvimento ocorreu à medida que a
comunicação aos poderes camarários de várias localidades das Capitanias do Norte buscava “recrutar
tropas, obter recursos e mantimentos, lançar tributos, indicar homens para ocupar os postos da infan-
taria da ordenança e, até mesmo, coordenar operações bélicas”24. No caso da capitania do Rio Grande,
destaca-se a participação dos governadores de Pernambuco na Guerra dos Bárbaros, iniciada na dé-
cada de 1680 e que se estende até 1720. No meio desse período, o Rio Grande foi anexado à capitania
de Pernambuco, em 1701, explicando-se, portanto, a presença maciça do governador de Pernambuco
como comunicador com a Câmara do Natal, e enquanto espaço de intermediação entre o poder local
e o centro reinol.

Ademais, o ouvidor da Paraíba e o capitão-mor do Rio Grande receberam oito ordens


régias cada, que se encontram registradas na Câmara do Natal no período em questão. Lembra-se
que na divisão das capitanias régias do Estado do Brasil, as principais eram chefiadas político-militar-
-administrativamente por governadores, e nas subordinadas, existia o capitão-mor que exercia a ju-
risdição territorial, sendo que este se submetia ao governador de uma capitania principal. No caso da
capitania do Rio Grande, existia um capitão-mor, que desde 1701 estava subordinado ao governador
de Pernambuco. Ambos os funcionários régios possuíam um conjunto de funções que iam para além
da militar, sendo incorporadas ao longo do tempo funções judiciária, fazendária, entre outras25. Já os
ouvidores tinham por responsabilidade jurisdicional o espaço das comarcas. Suas relações funcionais
estavam diretamente imbricadas com a do governo municipal, fiscalizando-o, fossem nas eleições

23 CURVELO, Arthur. Governabilidade e redes concelhias: notas sobre a comunicação política estabelecida entre os go-
vernadores de Pernambuco e as câmaras das Capitanias do Norte (1654-1746). In: Anais Eletrônicos do IV Encontro de
Jovens Investigadores de História Moderna. Disponível em: http://ejihm2015.weebly.com/uploads/3/8/9/1/38911797/
artur_curvelo_ejihm_2015.pdf.
24 Idem.
25 COSENTINO, Francisco. Hierarquia política e poder no Estado do Brasil: o governo-geral e as capitanias, 1654-1681.
Topoi, vol. 16, nº 31, 2015, pp. 515-543. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Dicionário da História da Colonização
Portuguesa no Brasil. Lisboa: Verbo, 1994. p. 614; MONTEIRO, Nuno Gonçalo; CUNHA, Mafalda Soares da. Gover-
nadores e capitães-mores do império atlântico. In: MONTEIRO, Nuno Gonçalo; CUNHA, Mafalda Soares da; CARDIM,
Pedro (Orgs.). Optima Pars. Elites ibero-americanas do Antigo Regime. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2005. p.
201; CASTRO, António Nunes. Op. cit.

929
anuais, como na escolha de indivíduos26. Isto era o ocorria, por exemplo, na relação estabelecida entre
os ouvidores da Paraíba com os camarários da cidade do Natal, visto que a Comarca da Paraíba englo-
bava as capitanias da Paraíba e do Rio Grande.

Os próprios camarários de Natal também receberam ordens régias, nove no total. O ou-
vidor de Pernambuco recebeu duas ordens régias, e o governador da Paraíba apenas uma. Entretanto,
conforme se demonstra ao longo desse trabalho, a principal rede comunicativa e mais expressiva da
Câmara do Natal ocorria com o ouvidor da Paraíba, a qual ela se submetia, assim como com o gover-
nador de Pernambuco e o capitão-mor do Rio Grande. Dessa forma, os três espaços de centralidade
para a Câmara do Natal em aspectos de comunicação e governabilidade, o governador de Pernambu-
co, o ouvidor da Paraíba e o capitão-mor do Rio Grande, revelavam-se também como cargos e espaços
que o rei de Portugal utilizava-se para informar a população local sobre suas decisões. Mas também os
próprios camarários as recebiam diretamente do rei, sem ser necessária essa intermediação.

Em relação ao reino, as “câmaras cabeça de comarca” tinham um papel destacado na difu-


são da legislação reinol, redistribuindo-a aos concelhos que pertenciam à sua comarca, o que também
era verificado no Estado do Brasil, pois às mais proeminentes a Coroa buscava manter um diálogo
mais assíduo. Em espaços tão vastos como do Estado do Brasil, Pedro Cardim e Miguel Baltazar des-
tacaram a importância dos vice-reis, governadores-gerais, magistrados do Tribunal da Relação da
Bahia, assim como os do Rio de Janeiro, posteriormente nesse processo. Ademais, os ouvidores-mores
e ouvidores de comarcas participaram como difusores e executores das legislações régias; como tam-
bém provedores da Fazenda Real, juízes de fora, juízes ordinários das Câmaras, entre outros27. Havia,
assim, uma cadeia de troca de informações que vinham do reino às conquistas e vice-versa, e entre os
próprios agentes presentes nas conquistas.

Quanto ao processo de difusão da legislação régia, deve-se ter em mente que ela deman-
dava tempo e envolvia diversos agentes, como também as condições dos mais variados lugares que
compunham o extenso império português. Nas conquistas, os governadores e vice-reis tinham papel
fundamental na intermediação entre as leis reinóis e a sua publicitação. Segundo Francisco Carlos
Cosentino, estes eram os principais interlocutores entre as conquistas e o reino28. Assim, estes eram
uma primeira instância de redistribuição das normas, enviando-as às Câmaras Municipais para o seu
registro. No caso da Câmara do Natal, percebe-se que o governador de Pernambuco era a principal
instância de redistribuição, seguido pelo ouvidor da Paraíba e o capitão-mor do Rio Grande, além da
própria Câmara.

A Câmara tinha papel destacado, pois era a intermediária da difusão do conhecimento


26 CASTRO, António Nunes. Op. cit. WEHLING, Arno. História Administrativo do Brasil: administração
portuguesa no Brasil, de Pombal a D. João. Brasília: Fundação Centro de Formação do Servidor Público. 1986;
MELLO, Isabele de Matos Pereira de. Magistrados a Serviço do Rei: Administração e Justiça e os Ouvidores
Gerais na Comarca do Rio de Janeiro (1710-1790). Tese (Doutorado em História), UFF, 2012.
27 CARDIM, Pedro; BALTAZAR, Miguel. Op. cit.
28COSENTINO, Francisco; CUNHA, Mafalda Soares da; NUNES, António Castro; RAMINELLI, Ronald.
Governadores reinóis e ultramarinos. In: FRAGOSO, João; MONTEIRO, Nuno Gonçalo (Orgs.). Um reino
e suas repúblicas no Atlântico. Comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVII e
XVIII. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

930
régio em nível local para as populações. No caso da cidade do Natal, percebe-se que por meio de edi-
tais (61 casos, 4% da documentação de acordo com o gráfico 1), anualmente as posturas municipais
eram emitidas e afixadas nos lugares mais públicos e costumados das ribeiras da capitania do Rio
Grande, para que o maior número possível de pessoas tivesse conhecimento do que era deliberado
em vereações29, podendo ocorrer também por meio da verbalização oral nos principais lugares das
povoações30. As posturas municipais eram produto da legislação municipal sobre diversas atividades
do cotidiano, desde questões econômicas até urbanas. Para esse percurso de conhecimento de suas
posturas a nível local, a Câmara do Natal contava com diversos agentes, como almotacés, aferidores de
pesos e medidas, registradores de gado, juízes de vintena, alcaides, meirinhos, escrivães, entre outros,
espalhados na cidade do Natal, e também por toda a capitania do Rio Grande.

Outro conjunto de documentos que se destaca nos livros de registros da Câmara do Natal
é o de “cartas”, 496 cartas, correspondendo a 29% do total, o de maior proporção em relação aos outros
tipificados. As cartas, assim como as ordens, eram instrumentos, nas palavras de Arthur Curvelo, indi-
vidualizados de comunicação, sendo, portanto, remetidos a uma pessoa ou instituição em específico,
diferenciando no fato de que a ordem tinha um tom imperativo de necessidade de execução imediata,
e as cartas possuíam “um formato mais aberto e plural, contemplando tanto pedidos quanto a trans-
missão de informação que, não necessariamente, pressupõem a execução de um comando, sendo a
tipologia privilegiada para negociações”31.

Ao se quantificar as relações entre os emissores e receptores dessas cartas e os espaços que


eles representam, percebeu-se mais uma vez a preponderância de quatro espaços que se sobressaem
na comunicação política da Câmara do Natal, conforme se observa no gráfico a seguir:

Gráfico 3: Elaborado pelo autor Kleyson Barbosa a partir dos livros de registros de cartas e provisões do Senado da Câmara do Natal,
entre 1702-1760.

29 BARBOSA, Kleyson Bruno Chaves. Op. cit.


30 CARDIM, Pedro; BALTAZAR, Miguel. Op. cit.
31 CURVELO, Arthur. Op. cit. 2017.

931
A capitania da Paraíba revelou-se como o espaço que a Câmara do Natal mais se comu-
nicava diretamente por meio de cartas, 151 cartas (30%), destacando-se a figura do Ouvidor da Pa-
raíba, principalmente, superando, inclusive, as comunicações no próprio espaço da capitania do Rio
Grande, que ocuparam a segunda posição, com 128 cartas (26% do total). Impressiona que o envio
de correspondências entre a Câmara do Natal e o Reino esteja próximo da segunda posição, com 113
cartas (23% do total). E, por fim, apenas 16% do total, 78 cartas, foram trocadas entre o espaço da
capitania de Pernambuco e a Câmara do Natal. A centralidade da capitania de Pernambuco, na figura
do governador, ocorria com o espaço da capitania do Rio Grande mais pela emissão de ordens régias e
bandos do que pela troca de cartas, se comparado às figuras institucionais como o ouvidor da Paraíba
e o capitão-mor do Rio Grande.

Torna-se relevante, portanto, separar as correspondências por meio dos agentes especí-
ficos de cada espaço, quantificando quantas cartas foram recebidas e enviadas pela Câmara do Natal
em relação a cada um desses funcionários régios, no intuito de se ter uma maior dimensão dessa co-
municação:

Tabela 1: Elaborado pelo autor Kleyson Barbosa a partir dos livros de registros de cartas e provisões do Senado da Câmara do Natal,
entre 1702-1760.

Na tabela anterior, foram elencadas aquelas comunicações de maior destaque para a aná-
lise, na qual se demonstra que os camarários de Natal, de maneira geral, enviavam mais cartas do que
recebiam, com destaque para a disparidade entre as cartas enviadas ao rei de Portugal, 87, e recebidas,
apenas 24. Pode-se somar a análise que figuras como o governador de Pernambuco e o próprio rei
podiam respondê-las por outros meios, como por meio de alvarás, ordens, bandos, mandados, etc.
Percebe-se, assim, que a Câmara do Natal mantinha um fluxo contínuo de interações comunicativas
com essas espacialidades, havendo uma regularidade na recepção e emissão dessas correspondências

932
com outros agentes institucionais. Desse modo, a Câmara do Natal demonstrou ser uma espacialidade
integrada a uma determinada rede comunicativa, fosse comunicando-se diretamente com o rei, fosse
recorrendo a canais intermediários de comunicação nas Capitanias do Norte para gerenciamento do
cotidiano camarário e resolução de conflitos internos. A constante interação desses organismos admi-
nistrativos revela a interdependência destes órgãos, e, portanto, cada parte da sociedade corporativa
se tornava necessária para o funcionamento deste império, não havendo partes “menores” que fossem
desnecessárias e não precisassem ser integradas a esse corpo32. Entretanto, esta integração se fazia
constantemente por ambas as partes, marcada por conflitos, tensões e acordos, sendo necessário que
os agentes envolvidos buscassem se articular para assegurar suas vantagens advindas da participação
nesta rede comunicativa.

Entre 1702-1760, os camarários de Natal enviaram 45 correspondências ao capitão-mor


do Rio Grande, assim como receberam 39 deste. A partir dessas cartas, percebe-se que os camarários
e os capitães-mores do Rio Grande travavam conflitos constantemente, além de que, por serem figuras
institucionais de destaque na localidade, informavam-se mutuamente sobre os mais variados aspectos
da política e administração que interferiam no cotidiano da capitania. Quanto à Provedoria do Rio
Grande, a comunicação foi menos intensa, talvez porque a divisão de competência fosse mais nítida
entre ambas as instâncias, atendo-se a Provedoria aos contratos de dízimos que lhe eram de respon-
sabilidade, assim como outros contratos, e a Câmara no que condizia aos contratos de meles, aguar-
dentes e carnes, que eram gerenciados por esta instituição. Entretanto, tanto os camarários, como os
funcionários da Fazenda Real e o capitão-mor estavam constantemente em conflitos ou negociações,
reajustando as alianças que compunham os jogos de poder local na capitania do Rio Grande33.

Quanto à capitania de Pernambuco, a sede do Bispado localizado em Olinda, do qual a ca-


pitania do Rio Grande pertencia, a comunicação política foi mínima. Tais diálogos poderiam ser mais
intensos no aspecto religioso, ao se voltar para a Igreja Católica na capitania do Rio Grande. Com o
Ouvidor de Pernambuco o diálogo também foi mínimo, visto os camarários de Natal se subordinarem
ao Ouvidor da Paraíba. Já a comunicação entre o governador de Pernambuco e os camarários de Na-
tal demonstrou-se ser bem mais intensa, diferentemente da relação destes últimos com o vice-rei da
Bahia, que era praticamente inexistente. Lembra-se que a partir de 1701, a capitania do Rio Grande foi
anexada à capitania de Pernambuco, e, assim a comunicação política entre essas duas espacialidades
passou a ser mais frequente, se comparada à sede do Estado do Brasil. Desse modo, o governador de
Pernambuco também era uma instância intermediária na resolução de conflitos, além de ser um canal
do rei para informar aos camarários de Natal sobre decisões, deliberações e ordens diversas. Notam-
-se também questões conflituosas dos camarários com outras instâncias locais, resultando na decisão
dos camarários de Natal de pedirem o auxílio ao governador de Pernambuco, estreitando-se os laços
jurisdicionais.

32 HESPANHA, António Manuel. Às vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal século
XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994.
33 FONSECA, Marcos Arthur Vianna da. Sob a sombra dos governadores de Pernambuco? Jurisdição e
administração dos capitães-mores da capitania do Rio Grande (1701-1750). Dissertação (Mestrado em Histó-
ria) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2018.

933
Arthur Curvelo, analisando os ouvidores e governadores de Pernambuco, destacou a di-
ferença do exercício de poder e deslocamento espacial na prática governativa desses funcionários
régios. Os ouvidores, “apesar de residirem, na maior parte do tempo, em Olinda ou no Recife, eram
oficiais itinerantes e incumbidos de percorrer periodicamente as vilas de sua comarca, os Governa-
dores não estavam autorizados a deixar o espaço de sua residência”. Visto isto, o autor detectou que
embora a autoridade de ambos tivesse uma repercussão espacial de âmbito regional, a interação deles
com os poderes locais se processava de forma diferenciada. Isto ocorria, pois os ouvidores tinham um
contato mais presencial ao realizar as correições nas vilas e freguesia, e os governadores se limitavam
entre Olinda e Recife, resultando em uma ação e comunicação governativa com outros espaços que se
baseava no papel manuscrito. Assim, a escrita assumia um importante papel para a governança, infor-
mando as câmaras sobre variadas questões, como formalizando ações de governo34.

Entretanto, a referência de Curvelo eram os Ouvidores de Pernambuco com a parte me-


ridional da capitania. No caso da capitania do Rio Grande, a dinâmica ocorria de outra forma, visto
que seu território pertencia à Comarca da Paraíba. Em relação à capitania Paraíba, quanto à comu-
nicação da Câmara do Natal com o governador desta capitania, ressalta-se que esta foi mínima. Já a
relação com a Ouvidoria da Paraíba foi o diálogo mais intenso registrado no período, sendo 78 cartas
recebidas e 69 enviadas pelos camarários de Natal. Isto ocorria, pois para a posse dos camarários
em Natal era preciso a autorização do ouvidor da Paraíba e a emissão das cartas de usança, além de
que ele era constantemente requisitado para solucionar problemas e dúvidas que se apresentavam no
cotidiano da gestão camarária, assim como dirimir conflitos em que os camarários se envolviam. Os
ouvidores da Paraíba estavam em constante comunicação com os camarários de Natal, e muitas das
posturas municipais e das ações administrativas da Câmara eram geradas por produtos de correições
e provimentos deixados pelos ouvidores sobre os mais variados assuntos, e que envolviam um maior
conhecimento das Ordenações do Reino35.

Destaca-se a expressiva quantidade de cartas enviadas e recebidas em relação ao rei de


Portugal. Estes números demonstram que o rei procurava constantemente tornar cientes os camará-
rios da cidade do Natal sobre diversas ordens emitidas, assim como os camarários, por sua vez, bus-
cavam informá-lo sobre tudo que acontecia na capitania do Rio Grande, referente a diversos aspectos,
principalmente, os que se relacionavam aos conflitos de jurisdição com outras instâncias governativas.
Portanto, esta não era uma espacialidade distante da Coroa portuguesa em termos comunicativos.
Não era porque ela mantinha uma relação periférica e pertencente a outras capitanias em diversas
áreas de jurisdição que isto a impedia de ter conhecimento sobre diversos assuntos e também requerer
suas reivindicações, negociando constantemente, fosse por vias intermediárias, fosse diretamente ao
rei.

Sobre isto, Maria Fernanda Bicalho afirmou que as Câmaras coloniais utilizavam recor-
rentemente canais de comunicação que fossem diretos com o rei, sem recorrer à intermediação, por
meio de petições ou representações, para solucionar problemas nos mais diversos lugares do ultramar.
34 CURVELO, Arthur. Op. cit. 2017.
35 BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Ci-
vilização Brasileira, 2003.

934
Incentivada pela Coroa, essa comunicação representava um mecanismo de controle por parte da pró-
pria metrópole, servindo também para administrar da melhor forma possível a colônia e resolver os
conflitos existentes36. Embora muitas vezes as respostas de tais petições pudessem levar anos, à Coroa
as Câmaras recorriam, mas no caso da Câmara do Natal, esta também recorria ao governo da capita-
nia de Pernambuco ou ao ouvidor da Paraíba, a fim de solucionar problemas de forma mais urgente,
sendo estes intermediários para se chegar ao reino. Para António Castro Nunes, a prerrogativa dos
municípios de se comunicar diretamente com o rei lhes garantia uma importante ferramenta de de-
núncia. Além disso, quando os conflitos a nível local eram irresolúveis ou careciam de negociação, as
Câmaras buscavam instâncias centrais que servissem como mediadoras37.

Além das “cartas”, ainda sobre a quantificação da tipologia documental dos livros de re-
gistros das Câmaras apresentado no Gráfico 1, 74 (4%) correspondiam a “portarias, bandos, ordens,
mandados” de funcionários régios ou da própria Câmara do Natal, e que incidiam diretamente no
espaço da capitania do Rio Grande, conforme se observa a seguir:

Tabela 2: Elaborado pelo autor Kleyson Barbosa a partir dos livros de registros de cartas e provisões do Senado da Câmara do Natal,
entre 1702-1760.

Assim, além do próprio rei, outros agentes governativos das Capitanias do Norte tam-
bém emitiam decisões ao espaço da capitania do Rio Grande, com destaque, mais uma vez para o
governador de Pernambuco, com quase 50% de portarias, bandos, ordens38, mandados39 e/ou alvarás
emitidos. Foram 37 portarias emitidas e registradas nos livros da Câmara do Natal, sendo duas pela
36 BICALHO, Maria Fernanda. As fronteiras da negociação: as Câmaras municipais na América portuguesa e o poder
central. In: NADARI, Eunice; PEDRO, Joana Maria; e IOKOI, Zilda M. G. Anais do Simpósio Nacional da ANPUH,
História e Fronteiras. São Paulo: Humanitas/ FFLCH-USP/ ANPUH, 1999. pp. 480-482.
37 CASTRO, António Nunes. Op. cit.
38 As ordens eram para cumprimento imediato, como suspensão de determinada pessoa em um cargo, neces-
sidade de se construir uma obra, entre outros. Destaca-se também a conjuntura da Guerra dos Bárbaros para a
execução de ordens realizadas nesse período.
39 Os mandados se aproximam das ordens, sendo emitidas pela Câmara do Natal ou pelo ouvidor da Paraíba,
nos exemplos percebidos da documentação analisada, envolvendo questões econômicas como gado, pesca, ou
funções para a boa gestão do cotidiano colonial, como obras, entre outros.

935
própria Câmara do Natal, 16 pelo governador de Pernambuco, e 18 pelo capitão-mor do Rio Grande.
Segundo Pedro Cardim e Miguel Baltazar, “a ‘portaria’ era uma ordem verbal dada pelo rei ou expe-
dida pelo secretário de Estado em nome do soberano e dirigida aos tribunais ou conselhos palatinos”.
Entretanto, para os autores “os tribunais e alguns oficiais régios de maior dignidade também podiam
produzir ‘portarias’”40. Dessa forma, as portarias eram decisões que tinham um caráter de cumpri-
mento imediato, e foram utilizados tanto pelo governador de Pernambuco como pelo capitão-mor
do Rio Grande para acelerar alguma decisão que se fazia urgente, como, por exemplo, nomear um
indivíduo para determinar cargo que se encontrava vago, como de tabelião do público judicial e notas
ou ainda como escrivão da Câmara; garantir a segurança em determinadas conjunturas de confrontos
dos colonos com indígenas ou mocambos de escravos; ou ainda, realizar diligências; resolver questões
de justiça ou militares; entre outros.

Em relação aos bandos, esta era atividade exclusivamente dos governadores de Pernambu-
co, sendo emitidos 16 ao longo do período estudado, sobre questões econômicas na capitania do Rio
Grande, assim também sobre problemas ligados aos indígenas, fossem aldeamentos ou ainda confron-
tos e mortes realizadas; entre outros que resultavam também de maiores conhecimentos de ordens
régias. Pedro Cardim e Miguel Baltazar destacaram que bando denominava “documentos que serviam
pra difundir ordens régias”, e, que, “eram em regra emitidos pelo governador de uma circunscrição e
podiam ter uma abrangência regional ou local41”. Segundo Arthur Curvelo, havia uma diferença entre
a relação dos governadores da capitania de Pernambuco com as diversas câmaras espalhadas nas Ca-
pitanias do Norte. Em Olinda e Recife, para publicação dos bandos não existia uma dependência em
relação às Câmaras, podendo ser acionados os oficiais da tropa paga ou da Secretaria de Governo, pois
estavam mais próximos do comando do governador, e, por sua vez, fiscalizavam de perto a execução
dessas ordens. Já nas municipalidades mais distantes, as autoridades locais, como Câmaras, capitães-
-mores, ou, aonde existiam ouvidores, estes se tornavam necessários para realizar a intermediação
para difusão e efetivação de Bandos42. Assim, os poderes locais se tornavam fundamentais para a exe-
cução dos bandos vindos do centro das Capitanias do Norte, que, por sua vez, resultavam de decisões
do centro ultramarino, em Portugal.

Registraram-se ainda ordens do capitão-mor do Rio Grande, do ouvidor e do governador


de Pernambuco, e do ouvidor e do governador da Paraíba, mandados da Câmara do Natal e do Ou-
vidor da Paraíba, e um alvará do governador de Pernambuco, novamente figuras institucionais que
faziam parte da rede comunicativa da Câmara do Natal. Entretanto, o conjunto que é mais se destaca
foi o das portarias do governador de Pernambuco e do capitão-mor do Rio Grande, assim como os
bandos, também do governador de Pernambuco. Ressalta-se que além desses documentos apresenta-
dos, uma categoria que ficou à parte, por representar um conjunto especial, e que também revelam a
força de interferência sobre o espaço da capitania do Rio Grande foram os editais já mencionados (61,
4% do total da documentação). Estes, assim como os bandos, eram “instrumentos de comunicação
dos governadores com o coletivo da sociedade e a diferença entre ambos reside na forma de publica-

40 CARDIM, Pedro; BALTAZAR, Miguel. Op cit.


41 CARDIM, Pedro; BALTAZAR, Miguel. Op cit. p. 183
42 CURVELO, Arthur. Op. cit. 2017.

936
ção”43. Se os primeiros revelavam a participação sonora, sendo lidos ao som de caixas em alta voz nos
lugares costumadas das municipalidades, os editais eram afixados por meio de papel manuscritos em
locais de destaque das municipalidades, como portas de igrejas, Câmaras, Provedoria, entre outros44.

No caso da capitania do Rio Grande, por exemplo, os camarários de Natal anualmente


emitiam os editais. Ao finalizar um edital, era comum que se advertisse “para que venha a notícia de
todas, mandamos se fixasse este nosso edital nos lugares públicos, o qual se cumprirá e guardará tão
pontual e inteiramente como nele se contém”45. Segundo Cardim e Baltazar, o processo de publicação
de ordens régias era de fundamental importância, fosse a partir da leitura em voz alta, importante para
uma população majoritariamente analfabeta, ou na afixação de papeis escritos em locais “públicos”
dos espaços urbanos, que garantia uma maior perenidade das disposições lançadas. Visto isto, a “pró-
pria palavra ‘fixar’, na época, pressupunha a publicação de ‘alguma coisa com papel pregado em lugar
público’”. E, o termo edital, segundo Raphael Bluteau era “o papel que está lançado o édito” 46. Se este
era uso exclusivo das ordens régias, com o tempo, foi-se generalizado, de modo que a Câmara do Natal
lançava suas posturas municipais anuais por meio de editais.

Por consequência das posturas municipais emitidas no início do ano, as correições eram
realizadas no final de cada ano, no intuito de fiscalizar e penalizar aqueles que haviam transgredido
essa legislação municipal. Do mesmo modo que ocorria com as posturas municipais, fixados nos lu-
gares mais públicos e costumados das povoações da capitania do Rio Grande, os camarários saíam em
correição nas povoações, principalmente, de Cunhaú, Goianinha, Guaraíras, Mipibu, Potengi, finali-
zando no núcleo urbano da cidade do Natal. Para a implementação destas medidas ao longo do ano,
os camarários contavam com a participação de diversos outros agentes que informavam as populações
locais sobre as posturas, que, por sua vez, fiscalizavam-nas, notificavam testemunhas a comparecem,
entre outras ações, como os aferidores de pesos e medidas, almotacés, alcaides e meirinhos do campo,
e, também os juízes e escrivães de vintena, estes últimos nomeados pelos próprios camarários para as
povoações da capitania do Rio Grande47. Os juízes de vintena eram fundamentais para a divulgação
das disposições régias e também camarárias, reportando-se a esses espaços mais micros, detendo além
do caráter judicial de pequenas causas, a função de mensageiros, difundo normas e chegando a lugares
que poucos conseguiam adentrar48.

Até, então, do gráfico 1 a respeito da tipologia documental dos livros da Câmara do Natal,
abordaram-se as “ordens, provisões, leis, alvarás régios” (89 casos, 5%); as “portarias, bandos, ordens,

43 Idem.
44 Idem.
45 1720, Fevereiro, 15, Natal. REGISTRO de um edital sobre porcos que andam soltos nesta cidade. Referência: Fundo
documental do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da
Câmara do Natal. Livro 6 (1713 – 1720). fl. 133. ALVEAL, Carmen; BARBOSA, Kleyson. Posturas e correições: ações
legislativas, fiscalizatórias e punitivas do poder camarário da cidade do Natal (1705-1760). Natal: Editora Flor do
Sal, 2018.
46 EDITAL. In: BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico ...
Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712 - 1728. v.2 Disponível em: http://www.brasiliana.
usp.br/dicionario/edicao/1. Acesso em: 14 out. 2018.
47 BARBOSA, Kleyson Bruno Chaves. Op. cit.
48 CARDIM, Pedro; BALTAZAR, Miguel. Op cit. p. 180.

937
mandados” (74 casos, 4%); e os “editais” (74 casos, 4%), perfazendo quase 15% do total da documen-
tação sobre decisões, fossem régias, de outras figuras de autoridade nas Capitanias do Norte, ou até
da própria Câmara do Natal, que interferiam no espaço da capitania do Rio Grande. Também foram
registradas 496 “cartas”, cerca de 30% da documentação, não à toa o maior número encontrado nessa
quantificação, visto que os livros de registros da Câmara eram intitulados de “cartas e provisões do Se-
nado da Câmara do Natal”. Dessa forma, não surpreende que o grosso dessa documentação se concen-
tre em provisões e mercês de variados tipos, perfazendo cerca de 50% do total. Ademais, a economia
de privilégios era estruturante em uma sociedade de Antigo Regime português, que contribuía para
a verticalização das pessoas, e, a nível local, os livros da Câmara eram depositários dessas mercês que
dignificavam e distinguiam os indivíduos49.

No quesito “doação de terras”, os camarários de Natal concederam 173 chãos de terras


(10% do total), ao longo do período analisado. Essas concessões ocorriam no perímetro urbano da
cidade do Natal, no intuito que os agraciados com essas mercês construíssem casas e aumentassem a
povoação. Esta era uma competência camarária, que tinha o poder de distribuir e reordenar o espaço
urbano, cobrando por cada doação foros anuais, que vinham a compor suas rendas. Outro ponto que
se pode destacar é a capacidade de concessão ou não aos suplicantes dessas terras, revelando a nível
local a economia de bem comum50.

Nos livros da Câmara foram registradas 53 “marca(s) de ferros de gado”, 3% do total da


documentação. A atividade pecuária era uma das principais no quesito economia da capitania do Rio
Grande, e os camarários de Natal, por meio das posturas municipais, buscavam ao longo dos anos,
regular, fiscalizar e penalizar aqueles que estavam envolvidos nela. Visto isto, o registro de marcas de
ferros de gado nos livros da Câmara tinha o intuito de regular a atividade pecuária, identificando os
donos dos gados vacuns, para que se evitassem descaminhos, roubos e desvios, que eram comuns
quando o gado era levado para comercialização fora da Capitania do Rio Grande.

Em seguida, “provisão de cargos” ou ofícios correspondeu a 14% da documentação (245


provisões deste tipo). Conforme se observa no gráfico a seguir, não se estranha que a Câmara do Natal
tenha concedido cerca de 50% desses cargos, como por exemplo, escrivães e juízes de vintena, escrivão
da Câmara, entre outros, nomeações que diziam respeito à prática administrativa do poder camarário.
Do mesmo modo, a relevância do número de concessões realizadas pelo capitão-mor do Rio Grande,
com quase 40% do total, visto que este governante além de deter o governo das armas, também era
responsável pela nomeação e redistribuição de cargos na capitania, como, por exemplo, o alcaide,
carcereiro, secretário do governo, meirinho do campo, escrivão da Câmara, escrivão de órfãos, en-
tre outros. Por se tratar de um registro local, entende-se o porquê de cerca de 90% das concessões
correspondessem às duas principais autoridades locais do Rio Grande, o capitão-mor e a Câmara do

49 OLIVAL, Fernanda. As ordens militares e o Estado moderno. Honra, mercê e venalidade em Portugal
(1641-1789). Lisboa: Estar Editora, 2001.
50 FRAGOSO, João. A Formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite senhorial (sé-
culos XVI e XVII). In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.).
O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civi-
lização Brasileira, 2001. pp.29-71.

938
Natal. Entretanto, nota-se ainda uma considerável porcentagem relacionada aos cargos providos pelo
Governador de Pernambuco e pelo rei de Portugal, com 6% cada, o que se demonstra, que mesmo
distantes, tinham poder de atuação e nomeação para essa localidade periférica, nos cargos de escrivão
da Câmara, tabelião, escrivão de órfãos, entre outros.

Gráfico 4: Elaborado pelo autor Kleyson Barbosa a partir dos livros de registros de cartas e provisões do Senado da Câmara do Natal,
entre 1702-1760.

Já em relação ao Ouvidor da Paraíba, impressiona no gráfico anterior ele corresponder a


apenas 1% das concessões realizadas. Entretanto, se se leva em conta uma categoria que foi colocada
a parte por sua relevância, as cartas de usança (90 no período, 5 % do total), e se é incorporada ao
gráfico anterior, temos seguinte resultado:

Gráfico 5: Elaborado pelo autor Kleyson Barbosa a partir dos livros de registros de cartas e provisões do Senado da Câmara do Natal,
entre 1702-1760.

As cartas de usança eram expedidas pelo Ouvidor da Paraíba para que os camarários de

939
Natal eleitos pudessem assumir os postos para os quais haviam sido eleitos, de juiz ordinário, vereador
e procurador. Ao incorporar tal documentação, nota-se como se aproximam o número de concessões
(em torno de 30%) pelas instituições que proviam cargos diretamente na capitania do Rio Grande, a
Câmara do Natal, o capitão-mor do Rio Grande e o Ouvidor da Paraíba, além de outros espaços já
mencionados, mas que nesse quesito possuíam uma dimensão menor, o governador de Pernambuco
e o rei de Portugal (em torno de 5%).

Gráfico 6: Elaborado pelo autor Kleyson Barbosa a partir dos livros de registros de cartas e provisões do Senado da Câmara do Natal,
entre 1702-1760.

Há ainda um relevante registro de “provisão de patentes militares”, 336 ao longo do pe-


ríodo (20% do total da documentação). Nesse aspecto, o capitão-mor do Rio Grande se sobressaía,
tendo quase monopolizado as concessões, 86% (287 concessões), visto que era a autoridade máxima
da capitania no aspecto militar, distribuindo e concedendo patentes militares. Chefes militares, como
capitães, por exemplo, realizavam numbramentos, concedendo patentes de alferes para pessoas que
estavam no início da carreira militar, principalmente de ordenanças (21 casos, 6% do total). Já o rei e o
governador de Pernambuco aparecem apenas com 18 (5%) e 10 (3%), respectivamente. Deve-se lem-
brar de que as concessões militares do capitão-mor do Rio Grande tinham que ser confirmados pelo
governador de Pernambuco, o chefe militar nas Capitanias do Norte, e, posteriormente, pelo rei de
Portugal. Entretanto, nos registros da Câmara do Natal percebe-se uma discrepância entre as patentes
concedidas e as confirmadas.

Talvez ocorresse com essas concessões o mesmo que Carmen Alveal detectou para as doa-
ções de sesmarias na América portuguesa, quando a autora comparou as realizadas pelos governantes
de capitanias com as confirmações régias, e percebeu que as confirmações eram mínimas em relação
ao total51. Dessa forma, era custoso seguir o processo de confirmações e registros que envolvia todo
51 ALVEAL, Carmen Margarida Oliveira. Converting land into property in the Portuguese Atlantic
World, 16th-18th century. 2007. 366 f. Dissertação (Doutorado em Filosofia) — Johns Hopkins University,
Baltimore, 2007.

940
o percurso administrativo e burocrático, saindo da capitania do Rio Grande, passando pela de Per-
nambuco, até chegar ao reino, e de lá, voltar até ser registrado novamente no âmbito local. Tal fato
pode ter levado a que muitos daqueles que tinham posições militares a exercessem, assim como os
que possuíam sesmarias, sem ter completado inteiramente o processo que levava ao registro da con-
firmação régia. Entretanto, o reduzido número de confirmações do governador de Pernambuco e do
rei de Portugal nos livros da Câmara do Natal não deve também ser tido como absoluto, visto que se
faz preciso a investigação das concessões nos órgãos dessas outras espacialidades52.

Considerações finais

A partir deste estudo preliminar, foi possível perceber que a Câmara do Natal pertencia
a uma determinada rede comunicativa, que envolviam instâncias administrativas em quatro espaços
específicos: a própria capitania do Rio Grande, a capitania da Paraíba, a capitania de Pernambuco, e
o centro de Portugal, em Lisboa. Os livros de registros de cartas e provisões do Senado da Câmara
demonstram a constante e intensa comunicação política entre esses agentes, que interferiam e mol-
davam o espaço da capitania do Rio Grande, assim como a prática desses funcionários régios e dos
poderes locais. Existia, assim, uma linha de comunicação que ligavam os oficiais da Câmara do Natal
com os governadores de Pernambuco, ouvidores da Paraíba, capitães-mores do Rio Grande e o rei de
Portugal. A comunicação política envolvia trocas entre os próprios funcionários régios nas conquistas
e os poderes locais, assim como o reino se mantinha informado por meio destes, e as decisões régias se
tornavam também tributárias dessas informações, que serão exploradas e destrinchadas em trabalhos
posteriores.

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52 Uma interessante questão a se pontuar, por fim, e para se explorar em trabalhos posteriores são as “petições” regis-
tradas nesses livros, 53 (3% do total), como indivíduos que pediam a Câmara um chão de terra, ou ainda envolvendo
questões econômicas, ou pedido de registros de certos documentos nos livros da Câmara, como também ao capitão-mor à
ocupação em um cargo, entre outros. Há também uma categoria de “Outros”, com 44 casos (3% do total), destacando-se
as cartas de guias de apresentação que os degredados apresentavam, as escrituras de fiança para ocupar o posto de juiz de
órfãos, e alguns termos de ajuntamento ou vereação.

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943
944
SIMPÓSIO TEMÁTICO 13
Espaços da Familia: conflitos e solidariedades no mundo colonial.

Coordenadores:

Ana Silvia Volpi Scott

Carlos de Almeida Prado Bacellar

Cristianização, Escravidão e Negociação: Famílias Escravas na Freguesia de Nossa Senhora


da Apresentação(1749-1770)1
Danielle Bruna Alves Neves2

Orientador: Prof. Dr. Helder Alexandre Medeiros de Macedo

Resumo

Este trabalho objetiva analisar o perfil das famílias escravas da Capitania do Rio Grande do
Norte setecentista, com base nos dados demográficos retirados dos registros de batismo e matrimônio
da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, tendo como recorte temporal as décadas de 141 1749
a 1770. Durante o período colonial, a Igreja Católica e o Estado Português, como órgãos reguladores
das ações humanas, se incumbiram de transplantar para a América Portuguesa os ideais de uma so-
ciedade balizada em valores cristãos. Durante esse processo de cristianização, o batismo, sacramento
considerado como “porta de entrada” para o mundo cristão, e o matrimônio, que se constituía como
um elemento normatizador das relações sociais e divisor entre a sexualidade lícita e a ilícita, tinham
um papel fundamental. Porém, enquanto o batismo foi, provavelmente, o ritual cristão mais ampla-
mente utilizado pelo escravo, pesquisas que vieram a público nas últimas décadas mostraram que, na
prática, o acesso ao casamento entre os escravos não constituía uma regra. Diante da importância da
análise destas estratégias para a compreensão das dinâmicas sociais entre os indivíduos de diferentes
condições jurídicas na sociedade colonial escravista da Capitania do Rio Grande do Norte setecen-
tista, é analisado como os cativos se apropriavam destes sacramentos para atingirem seus objetivos e
legitimar seus laços familiares para seus senhores e para a sociedade.
Palavras-chave: Escravidão; Famílias Escravas; Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação;

1Trabalho apresentado no VII Encontro Internacional de História Colonial, realizado em Natal/RN – Brasil, de
5 a 8 de setembro de 2018.
2Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
membro do Laboratório de Experimentação em História Social (LEHS), bolsista CAPES.

945
INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como pretensão analisar o perfil das famílias escravas da Capitania do Rio
Grande do Norte setecentista, com base nos dados demográficos retirados dos registros de batismo e
matrimônio da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, tendo como recorte temporal as décadas
de 1749 a 1770.

O recorte espacial selecionado para a realização da pesquisa é a Freguesia de Nossa Senhora da


Apresentação. Seu centro estava localizada na cidade de Natal, situada à margem do Rio Potengi, que
possuía população urbana estabelecida ao redor da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Apresentação.
Suas capelas anexas foram fixadas onde os moradores estavam, de modo que estariam distribuídas
seguindo os caminhos dos rios (Mipibú, Jundiaí, Ceará-Mirim, Potengi), onde havia uma maior con-
centração de núcleos populacionais e povoações diversas. A criação dessas capelas decorria de dois
fatores cruciais: densidade demográfica significativa e desenvolvimento econômico local(CASCUDO,
1992; PAULA, 2010).

Nas últimas décadas, os estudos sobre escravidão no Brasil vêm sofrendo grandes mudanças
e adquirindo um caráter mais inovador, principalmente quanto ao questionamento de pressupostos
como promiscuidade, passividade e aculturação, que se destacavam na historiografia da primeira me-
tade do século XX. Não obstante de a historiografia, até a década de 1970, descrever a família escrava
como uma instituição insólita e promíscua, pesquisas recentes, baseadas em documentos históricos,
vêm comprovando que os escravos conquistaram uma dinâmica de formação de famílias de bastante
importância por meio de uniões estáveis, oficializadas pela Igreja ou, até mesmo, consensuais.

Deve-se destacar que, no Brasil, segundo essa historiografia anterior à década de 1980, durante
quase três séculos prevaleceu o modo de produção escravista, no qual o senhor era o proprietário dos
meios de produção, compreendendo escravos, que, por sua vez, eram qualificados como qualquer
outro instrumento de trabalho, como objetos, animais ou mesmo ferramentas. Apesar da completa
negação de si como ser juridicamente capaz, o negro africano, tanto quanto os seus descendentes
nascidos na América Portuguesa, foi, aos poucos, conquistando o seu espaço como elemento ativo da
sua própria história.
Os primeiros trabalhos concebidos por essa nova perspectiva historiográfica foram os de Hebe
Mattos (1998), Manolo Florentino e José Roberto Góes (1997), e dos brazilianistas Richard Graham
(1979) e de Robert Slenes (1999). Nos anos seguintes, foram realizadas pesquisas de extrema impor-
tância, por vários autores, tais como: Iraci del Nero da Costa e Francisco Vidal Luna (1981), Horácio
Gutiérrez (1987; 1988) e Stuart Schwartz (1988), que deram a sua contribuição para que se pudesse
chegar, ao menos, perto de desvendar os meandros da dinâmica escravista no Novo Mundo. Todos
eles preocuparam-se com essa temática e desenvolveram pesquisas no intuito de retirar do cativo das
Américas a imagem de desregrado moral e sexualmente.

Este trabalho apoia-se na História Quantitativa e na Demografia Histórica, tendo em vista que

946
trabalhamos com fontes seriais. Desse modo, o cruzamento dos documentos nos permite analisar a
formação de laços familiares e de sociabilidades. A aplicação de técnicas da Demografia contribui
para o avanço da análise sobre a população escrava na espacialidade selecionada. A aproximação da
História com a Demografia permite estudos populacionais mais detalhados, análises sobre variáveis
diversas e pesquisas sobre pessoas comuns e suas dinâmicas sociais.

Diante da importância da análise destas estratégias para a compreensão das dinâmicas sociais
entre os indivíduos de diferentes condições jurídicas na sociedade colonial escravista da Capitania
do Rio Grande do Norte setecentista, este trabalho estuda como os cativos se apropriavam do código
social dos brancos para atingirem seus objetivos e legitimar seus laços familiares para seus senhores e
para a sociedade.

A FREGUESIA DE NOSSA SENHORA DA APRESENTAÇÃO

A Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação foi criada no dia três de fevereiro de 1598,
antes da própria fundação da cidade do Natal, que ocorreu somente um ano depois, em 1599(CAS-
CUDO, 1980; MEDEIROS FILHO, 1991; COSTA, 2015), o que indicaria que a jurisdição eclesiástica
antecedia à própria jurisdição civil e que a circunscrição eclesiástica tinha suas próprias hierarquias
(COSTA, 2015).A primeira capela da freguesia teria sido inaugurada no dia da fundação de Natal,
25 de dezembro de 1599, como defendeu Câmara Cascudo. Posteriormente, essa capela se tornaria a
matriz de Nossa Senhora da Apresentação.

Suas capelas estavam distribuídas ao longo das margens dos rios que cruzavam esta freguesia –
os rios Potengi, Ceará-mirim, Jundiaí e Mipibú. A construção de uma igreja ou capela era, no período,
um marco de povoamento estável. Como analisou o historiador Thiago Torres de Paula, as capelas
estavam onde os moradores estavam, de modo que, se encontrariam dispostas ao longo do curso dos
rios(PAULA, 2009, p. 95). Porém, é preciso atentar-se para a precariedade das mesmas na freguesia e,
inclusive, da igreja matriz, localizada na cidade do Natal. As condições urbanas da cidade eram extre-
mamente precárias (COSTA, 2015).

O local onde eram fundadas as capelas e igrejas, assim como o cabedal utilizado na constru-
ção, provinha dos moradores, que cediam porções de suas terras em prol da igreja e com o intuito de
ter os sacramentos que a mesma oferecia (TEIXEIRA, 2009). Segundo Renata Costa, esta rusticidade
encontrada na matriz também poderia ser vista nas capelas, e isto poderia ser atribuído à pobreza da
capitania ou das ordens religiosas que aqui atuavam (COSTA, 2015).

Uma vez que os terrenos da faixa litorânea não eram tão propícios para a lavoura da cana-de-
-açúcar como nos litorais das capitanias de Pernambuco e Paraíba, os moradores da capitania do Rio
Grande acabaram por se especializar na lavoura de mandioca e a consequente produção de farinha e
também na criação do gado (DIAS, 2011).

947
Apesar de a produção de farinha e outros gêneros para autoconsumo e a criação de gado terem
sido as principais atividades econômicas da região, isso não significa a inexistência de lavouras de ca-
na-de-açúcar. Houve um grande engenho, de Cunhaú, ao sul da capitania que sempre teve participa-
ção relevante na produção de açúcar que era levado para o porto de Recife. Ademais, havia pequenas
engenhocas que produziam rapadura e aguardente para o consumo local (DIAS, 2011).

Apesar de o Rio Grande não ter tido uma atividade econômica vinculada à exportação, não
deixou de utilizar mão-de-obra escrava em outras atividades; a consolidação de algumas atividades
econômicas, como a pecuária, pescaria, salineira e pequena produção agrícola foi baseada no uso da
mão-de-obra escrava tanto de indígena quanto negra (DIAS, 2011; MORAIS, 2014; OLIVEIRA, s/d).

Embora os indígenas terem sido utilizado como mão-de-obra escrava muito em consequência
da própria Guerra dos Bárbaros, vários foram os escravos negros utilizados também como mão-de-
-obra, evidenciando que mesmo não fazendo parte dos grandes lucros da economia açucareira, as
famílias tinham recursos para possuir escravos negros, considerados mais caros que os indígenas,
inclusive alguns vindo diretamente da África. A Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação era for-
mada por espaços onde foram tecidas redes de sociabilidade entre a população branca, negra, mestiça,
indígena; livre e escrava.

FAMÍLIAS ESCRAVAS NA FREGUESIA DE NOSSA SENHORA DA APRESENTAÇÃO

Durante o período colonial, a Igreja Católica e o Estado Português, como órgãos reguladores
das ações humanas, se incumbiram de transplantar para as terras brasileiras os ideais de uma socie-
dade balizada em valores cristãos. Durante esse processo de cristianização, o batismo, sacramento
considerado como “porta de entrada” para o mundo cristão, e o matrimônio, que se constituía como
um elemento normatizador das relações sociais, tinham um papel fundamental. Porém, enquanto o
batismo foi, provavelmente, o ritual cristão mais amplamente utilizado pelo escravo, pesquisas que
vieram a público nas últimas décadas mostraram que, na prática, o acesso ao casamento entre os es-
cravos não constituía uma regra.

Com relação aos registros de batismo, foram encontrados308 registros de batismo de escravos,
de um total de 1089 assentos. A economia da capitania do Rio Grande não comportava atividades
voltadas para a grande lavoura exportadora, mas ainda assim os escravos estavam presentes no pro-
cesso de construção da sociedade colonial local, sendo 28,3% de batizandos, correspondendo crianças
ou adultos que estavam na condição de escravos quando foram submetidos ao sacramento católico.
O número de assentos de batismo de escravos é significativo, ainda que durante muito tempo, na
historiografia do Rio Grande do Norte (ROCHA POMBO, 1922; LYRA, 1922, CASCUDO, 1955),
acreditou-se que os escravos eram tão poucos que não se constituiriam em uma parcela significativa
a ser considerada.

948
O quadro a seguir apresenta a razão de sexo calculada por meio dos registros de batismo da
freguesia no recorte temporal selecionado:

QUADRO 1- Razão de sexo dos escravizados da Freguesia de Nossa Senhora da Apresenta-


ção:
     

Homens Escravizados 140 escravos batiza- 52,83%


dos
 
     

Mulheres Escravizadas 125 escravas batizadas 47,16%

   
Total Razão de Sexo: 112

Fonte: Elaborado pela autora a partir dos livros de batismo da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação.

A razão de sexo expressa a relação quantitativa entre os sexos. Quando a razão de sexo é igual
a 100, o número de homens e mulheres se equivalem, estando em equilíbrio “perfeito”. Se está abaixo
de 100, há predominância de mulheres na população e, acima de 100, predominância de homens,
mostrando certo desequilíbrio, que quanto maior a discrepância entre eles, maior o desequilíbrio en-
tre os sexos, podendo acarretar consequências demográficas. O indicador é influenciado por taxas de
migração e de mortalidade diferenciadas por sexo e idade.

Como podemos ver no quadro acima, ao contrário das grandes regiões açucareiras, volta-
das para a agroexportação, em que a desproporção de homens e mulheres cativos era expressiva(S-
CHWARTZ, 1988), na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação esse desequilíbrio não chegava
a ser tão significativa. Isto porque apesar da agroexportação do açúcar não estar ausente no litoral da
Capitania do Rio Grande, por ser em pequena proporção, não gerou tal desproporção entre os sexos.
Portanto, a razão de sexo estaria mais próxima das razões encontradas para áreas de produção de
alimentos e pecuária do que das razões encontradas para áreas de agroexportação, onde as porcenta-
gens de africanos presentes na população também são maiores. Este equilíbrio pode ter favorecido a
formação de famílias escravas na Capitania, incentivado pelos senhores por estabilizar os escravos e
evitar fugas, além de proporcionar a reprodução endógena de cativos.

No gráfico a seguir vemos a legitimidade das crianças escravas batizadas na freguesia:

949
GRÁFICO 1-Legitimidade das crianças escravizadas da Freguesia de Nossa Senhora da Apre-
sentação:

Fonte: Elaborado pela autora a partir dos livros de batismo da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação.

De 262 registros de batismos de crianças escravas negras analisados, 82% eram filhos (as) de
mães solteiras e 18% com mãe e pai no registro. Tais dados evidenciam um maior número de filhos
naturais entre a população negra escravizada. Isto, porém, poderia evidenciar o fato de que as mu-
lheres negras poderiam ter uniões estáveis com homens, mas tais uniões não eram reconhecidas pela
Igreja.

O gráfico abaixo apresenta o número total de matrimônios ocorridos entre 1749 a 1770 na
Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, diferenciando o casamento entre pessoas livre/liberta e
o casamento de indivíduos em que pelo menos um dos nubentes era cativo:

GRÁFICO 2- Matrimônios na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação:

Fonte: Elaborado pela autora a partir dos livros de matrimônios da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação.

950
Pode-se perceber, a partir da análise do gráfico acima, a discrepância entre o número de ca-
samentos entre pessoas livres ou libertas e os matrimônios em que pelo menos um dos nubentes era
cativo na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação. De um total de 365 assentos matrimoniais
analisados, apenas 53 registravam os matrimônios de escravos. A partir disso, muitos podem cair na
armadilha de concordar com a historiografia tradicional norte-rio-grandense e defender a ideia de
que o número de escravos na Capitania do Rio Grande não era expressivo. Porém, a título de hipóte-
se, acredita-se que estes números refletem apenas a realidade de uma sociedade colonial cuja econo-
mia se caracterizava por unidades produtivas pequenas.

Uma hipótese seria o impedimento que provinha dos senhores que impediam a união legal
de escravos de donos diferentes. As explicações para a proibição estão relacionadas às complicações
que podiam surgir quando esse tipo de união ocorria: residências diferentes, direitos de propriedade,
separação forçada, entre outros.

O gráfico a seguir apresenta, a partir dos matrimônios onde os dois nubentes eram cativos, o
número de casamentos entre escravos que pertencem ao mesmo proprietário, em detrimento ao nú-
mero de matrimônios entre escravos de donos diferentes:

GRÁFICO 3- Proprietários dos nubentes escravizados da Freguesia de Nossa Senhora da


Apresentação:

Fonte: Elaborado pela autora a partir dos livros de matrimônios da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação.

Dos 22 assentos matrimoniais da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação em que os dois


nubentes eram cativos, apenas três apresentam matrimônios em que os nubentes pertenciam a pro-
prietários diferentes, enquanto 19 casamentos os nubentes pertenciam ao mesmo proprietário, o que
corresponde a 86,36% dos matrimônios.

Tendo em vista os dados apresentados, conclui-se que se pode estabelecer que o casamento, na
Igreja, era possível somente entre escravos de um mesmo proprietário no caso da freguesia de Nossa

951
Senhora da Apresentação. A situação acima descrita não induz, entretanto, a que cativos de donos
diferentes não se relacionassem.

Apesar do impedimento dos senhores a casamentos entre escravos de proprietários diferentes,


esses escravos ainda assim se relacionavam e formavam famílias entre si. Defende-se a ideia de grande
parte das uniões entre escravos eram consensuais e não oficializadas pela Igreja, e que o padrão de fa-
mílias escravas na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação era constituído a partir destas uniões;
ou eram, ainda, matrifocais, isto é, formada por mãe solteira e filhos.

Para aprofundar a análise da questão dos matrimônios de escravos nos diferentes espaços da
Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, também foi elaborado uma tabela com o local de batis-
mos destes indivíduos:

GRÁFICO 4- Local dos matrimônios da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação:

Fonte: Elaborado pela autora a partir dos livros de matrimônios da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação.

De acordo com os registros, a maioria dos matrimônios de população negra escrava ocorreu
em Natal, na Matriz de Nossa Senhora da Apresentação, seguido pela capela de Nossa Senhora da
Conceição do Jundiaí e a capela de São Antônio do Potengi. Esses números podem indicar que as
atividades que envolviam a mão de obra escrava giravam em torno desses locais.

Apesar de Natal não ter sido uma cidade com alta dinamicidade econômica, parece ter exerci-
do uma centralidade das ações da Igreja ou talvez diante das dificuldades da ida de clérigos aos locais
mais remotos, é possível que houvesse um esforço de se ir até à capital para garantir o sacramento
(COSTA, 2015).

O gráfico seguinte mostra a condição jurídica dos nubentes nos casamentos mistos e entre
escravos, no total de 53 casamentos:

952
GRÁFICO 5- Condição jurídica dos nubentes nos casamentos mistos e entre escravos na Fre-
guesia de Nossa Senhora da Apresentação:

Fonte: Elaborado pela autora a partir dos livros de matrimônios da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação.

Com base no gráfico acima pode-se concluir que casamentos entre pessoas livres e escravos
eram mais frequentes do que casamentos entre cativos pertencentes a donos diferentes. O casamento
de escravos com livres ou forros foi mais bem visto pelos senhores. O casamento entre homens cativos
e mulheres livres/forras provavelmente ocorria por que esses indivíduos buscavam evitar ter filhos
escravos.

Mas como explicar o casamento entre homens livres e mulheres escravas? Afinal, esses indiví-
duos sabiam que seus filhos iriam nascer escravos e que pertenceriam a um senhor que teria um poder
sobre essas crianças maior que a interferência dos pais. Segundo Sheila de Castro Faria:
O interesse de homens livres, despossuídos, em ter acesso a terras dos donos das escra-
vas, uma terceira poderia ser desproporção de mulheres livres com relação às escravas.
Para os senhores, as vantagens eram a relativa ausência de problemas relacionada a
essas uniões, como, por exemplo, no caso de venda ou de mudança no local de mora-
dia das escravas. Soma-se a isso, o interesse dos senhores na ampliação do poder pes-
soal pela anexação de mais dependentes. Também devemos considerar a hipótese de
transferir a outros a responsabilidade de subsistência de alguns cativos e de sua prole.
(FARIA, 1998, p.317)

Esses homens e mulheres que optaram por se casar com escravos provavelmente conviviam
com eles nos mesmos espaços de sociabilidade e até mesmo podiam ser agregados dos senhores destes
cativos. Há de se levar em consideração também a possibilidade da influência dos sentimentos e da
atração física entre essas pessoas.

O próximo gráfico apresenta a naturalidade dos nubentes nos matrimônios mistos ou entre
escravos, isto é, o local de origem destes nubentes, no total de 53 casamentos:

953
GRÁFICO 6- Naturalidade dos nubentes nos casamentos de escravos:

Fonte: Elaborado pela autora a partir dos livros de matrimônios da Freguesia de Nossa Senho-
ra da Apresentação.

Já no caso da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, como se pode observar no gráfi-


co, a exogamia entre os nubentes está presente em percentuais em hipótese alguma desprezíveis. As
hipóteses para esse fenômeno provavelmente são maior número de escravos nascidos na colônia nos
plantéis; menor fluxo de entrada de escravos africanos durante o período verificado, o que favoreceu
um maior número de matrimônios onde pelo menos um dos nubentes era natural da colônia; o pa-
rentesco entre os escravos nascidos na colônia. Além disso, o matrimônio entre africanos e os naturais
da colônia podem ser uma estratégia de integrar o africano, alienígena nessa comunidade, se integrar
à sociedade colonial e cristã.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante décadas, a tese de que no Rio Grande do Norte não existiu um número considerável
de escravos africanos predominou nos trabalhos historiográficos desse estado. Isto acarretou, de certa
forma, em um desinteresse por parte dos historiadores. A consequência disso foi a escassez de traba-
lhos sobre escravidão no Rio Grande do Norte.

Visto que atualmente já se considera a importância de estudar os escravos em vários aspectos


da economia e sociedade coloniais, o presente estudo procurou estabelecer a relevância de se estudar
a formação de laços familiares escravos africanos no Rio Grande do Norte.

Com base no estudo da formação da família escrava e dos laços de parentesco consanguíneos
ou por afinidade, entre os quais se incluem o compadrio e a camaradagem, pode-se perceber a pos-
sibilidade de entender a dinâmica complexa e diversificada do sistema escravista e das suas relações.
A complexidade e a diversificação ocorrem dependendo da região e de um número considerável de
variáveis, entre os cativos e os seus senhores, inerentes ao sistema em questão, que persistiu por três
longos séculos no Brasil.

954
Ainda é possível, em certa medida, compreender a influência que a formação da família escra-
va teve na dinâmica social daquela época e como, a partir dessa instituição, mantiveram-se e foram
passadas para as gerações seguintes as tradições de seus antepassados africanos. No século XVIII, a
família escrava legitimamente constituída esteve presente na sociedade da Capitania do Rio Grande,
talvez com menos expressividade se comparada às grandes regiões açucareiras. A Freguesia de Nossa
Senhora da Apresentação era formadas por espaços que se caracterizavam por uma economia menos
dinâmica. Consequentemente, as unidades produtivas e, portanto, as escravarias, não possuíam gran-
de porte, já que as atividades econômicas não exigiam isso.

Porém, isso não significa que o número de escravos na freguesia fosse inexpressivo. O tama-
nho dos plantéis de escravos influenciava, de forma decisiva, nas possibilidades de matrimônios entre
cativos. A situação acima descrita não induz, entretanto, a que cativos de donos diferentes não se
relacionassem. A ideia analisada foi a de que grande parte das uniões entre escravos era consensual
e não oficializada pela Igreja, e que o padrão de família escrava na Freguesia de Nossa Senhora da
Apresentação era constituído a partir destas uniões; ou eram, ainda, matrifocais, isto é, formada por
mãe solteira e filhos.

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956
MESTIÇAGEM E RELAÇÕES FAMILIARES DE SUJEITOS ESCRAVIZADOS E FORROS NA FRE-
GUESIA DA GLORIOSA SENHORA DE SANTANA DO SERIDÓ (1788-1838).
Isac Alisson Viana de Medeiros3

INTRODUÇÃO

Entendemos que a formação da sociedade do Seridó se deu em decorrência de dinâmicas de


mestiçagens, (PAIVA, 2015) no contexto do processo de ocidentalização das terras da América (MA-
CEDO, 2007; 2013), na qual, segundo a problematização feita por Serge Gruzinski, se misturaram
homens, imaginários e formas de vida oriundos das quatro partes do mundo conhecido – América,
Europa, África e Ásia –, gerando indivíduos “mestiços” (GRUZINSKI, 2001, p. 62). Deste modo, bus-
camos confrontar ou pelo menos preencher lacunas deixadas por uma historiografia mais tradicional,
onde autores ligados ao IHGRN (Instituto Histórico Geográfico do Rio Grande do Norte)4 contam
um processo de povoação da Capitania do Rio Grande do Norte formado exclusivamente por pessoas
possuidoras de uma qualidade branca e de origem portuguesa, excluindo a participação de negros,
índios e mestiços.

No entanto, autores contemporâneos5 já apontam em suas pesquisas, dados que comprovam


a participação de pessoas não brancas na formação da sociedade do Seridó. Esse fato contribui para
que seja dado um novo olhar a esses sujeitos e que possamos buscar entender a imensa complexidade
presente em nosso recorte espacial e temporal. Para isso, um dos passos iniciais remete-se a perceber
aspectos que tangem à qualificação desses sujeitos, ou seja, à forma que eram identificados e
classificados em meio àquela sociedade, de acordo com a lógica empregada no período estudado.
Desta forma, segundo Eduardo Paiva, quando levamos em consideração as características utilizadas
para denominar um sujeito como “cabra”, “mulato” ou “pardo” é necessário entender que as mesmas
vão muito além da perspectiva de “cor”, “raça” ou “condição” e, sim através de um conjunto destas
somadas a tantas outras características entendidas e aplicadas pela sociedade em meio às dinâmicas
de mestiçagens. (PAIVA, 2015) Sendo assim, no que tange à nomeação desses grupos populacionais,
é necessário antes levar-se em consideração um conjunto complexo de fatores, tais quais: relações (fa-
miliares, de parentesco e profissionais), condições (econômicas, políticas, sociais, religiosas e étnicas),
a ascendência, a naturalidade, os privilégios e as aptidões (RUSSELL-WOOD, 2005). A esses conjun-
tos de vários fatores, damos o nome de “qualidade” (PAIVA, 2015), conceito este que será abordado
3Graduado do Curso de Licenciatura em História – UFRN-CERES-Campus de Caicó. Especialista em Histó-
ria dos Sertões História – UFRN-CERES-Campus de Caicó e mestrando em História dos Espaços pela UFRN
(Campus Central). E-mail para contato: isac.alisson.bsi@gmail.com.br.
4Nos referimos a autores como Manuel Dantas; José Augusto Bezerra de Medeiros; Jayme da Nóbrega Santa
Rosa; Olavo de Medeiros Filho que são anteriores a constituição do curso de História da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (UFRN) e, dessa forma, suas pesquisas carecem de um método científico bem elabo-
rado (de acordo com os critérios atuais), no entanto tal fato não diminui a importância dos seus trabalhos para
o entendimento de parte do passado da região do Seridó.
5Nos referimos a autores à exemplo de BORGES, 2000; ARAÚJO, 2003; MACÊDO, 2005, 2007; MACEDO,
2013 que fazem parte de uma historiografia mais atual que busca uma reinterpretação do passado colonial
deixado pela historiografia clássica.

957
em nosso artigo.

Sendo assim, buscando perceber a complexidade desse universo social ao qual nos referimos e,
deste modo, levando em consideração os fatores aqui abordados, o trabalho problematizará a seguinte
questão: Como se estabelece em termos quantitativos e qualitativos, as famílias “mestiças” escraviza-
das e libertas na Freguesia do Seridó, nos percursos dos séculos XVIII e XIX?

Para tornamos possível a resolução de nossa problemática faremos uso de registros paroquiais
– divididas em batismo, casamento e óbito6. Essas características fazem com que nossa fonte, segundo
Barros (2012) seja compreendida no que tange ao quesito qualidadecomo de ordem cultural visto
que o conteúdo presente no interior dos livros de registros são os que conferem importância a nossa
pesquisa. Assim, entendemos que para tornar possível o estabelecimento de perfil demográfico e a re-
constituição denúcleos familiares formados por mestiços livres e cativos, bem como a análise da rela-
ção entre suas qualidades e condições, no âmbito da Freguesia do Seridó, estes documentos conferem
importância imprescindível.

As fontes paroquiais possuem um caráter fundamental em nossa pesquisa, pois sendo as mes-
mas de posição direta elas provém de maior proximidade com o nosso objeto de estudo, nos permitin-
do o acesso à população de mestiços envolvidos nas tradições cristãs da Freguesia do Seridó, sem que
passem por filtros que estivessem fora da temporalidade e da norma exercida em nosso recorte. Afinal,
desde a sua padronização7 e obrigatoriedade8, essa tipologia documental ganhou caráter social e cro-
nológico, permitindo ao historiador fazer uso de uma dupla função dos mesmos, individual e coletiva.
(BASSANEZI, 2009, p. 146) Desta forma, “cada indivíduo é registrado com suas características pes-
soais e em cada momento da sua existência e cada um deles integra uma série cronológica de eventos,
que cobrem uma localidade fisicamente bem demarcada – a paroquia”. (HAMEISTER; NADALIN,
2007). O que nos permite tanto uma abordagem quantitativa quanto qualitativa em nossa pesquisa.

Em respeito à localização dessas fontes, toda a documentação pode ser encontrada nas de-
pendências da Casa Paroquial de Santana (Caicó-RN), ainda possuindo cópias digitais no Labordoc
(Laboratório de Documentação Histórica do Ceres UFRN).

Já em relação às abordagens, no que diz respeito ao tratamento das fontes, utilizaremos a His-
tória Serial e a Quantitativa9, entendendo não ser possível desvincular ambos os métodos devido à
6Somam um total de 4904 registros divididos em (6) seis tomos, dois para cada tipo, que vão de 1788 a 1838.
7 Segundo Barros (2012) a padronização de nossas fontes indica que as mesmas são compreendidas como fon-
tes seriais onde uma mesma estrutura de produçãorepete-se, alterando-se apenas as informações contidas em
cada documento.
8O fato da fonte ser um documento de teor obrigatório para a população da época faz com que a mesma seja
entendida, conforme Barros (2012) como possuidora de uma intencionalidade involuntária por parte daqueles
que aparecem nessa tipologia documental.
9 No que tange o senário regional, tais abordagens são utilizadas por autores à exemplo de Muirakytan Macêdo
e Helder Macêdo; já de um ponto de vista mais amplo temos exemplos de autores como Eduardo Paiva, Ro-
berto Guedes e Márcia Amantino que também fazem uso da História Serial e Quantitativa em seus respectivos
trabalhos.

958
natureza de nossas fontes (como mencionado no item anterior). As características do nosso corpo
documental exigem o uso desses modelos para que possa ser estudado com mais precisão através da
análise de dados e formação de gráficos e tabelas com os resultados obtidos, para que dessa forma
possamos elaborar perfis quantitativos e qualitativos de nossa amostra pesquisada e que consigamos
as respostas para a nossa problemática.

UM OLHAR ALÉM DAS “VELHAS FAMÍLIAS DO SERIDÓ”: AGRUPAMENTOS FAMILIARES DE


“MESTIÇOS” ESCRAVOS E FORROS

Como dito na introdução deste artigo muito tem se discutido em obras clássicas da historio-
grafia norte rio grandense acerca do povoamento desse território. No entanto, quando trata-se desse
processo tais autores trazem uma história branca, de origem portuguesa, sem a presença de outras
camadas da população – índios, negros e “mestiços” – que participaram do desenvolvimento da ca-
pitania do Rio Grande do Norte. Como exemplo podemos citar Olavo de Medeiros Filho, autor de
Velhas famílias do Seridó e José Augusto que escreveu Seridó. O título desses trabalhos já demonstra
a intenção de tratar a respeito da região mencionada. Seguindo a ideologia do IHGB (ao qual faziam
parte), buscavam a criação de uma identidade nacional para o recente domínio português e, deste
modo, torna-se compreensível à forma de escrita de sujeitos pertencentes a seu devido tempo.

Nesse aspecto, podemos perceber na fala destes autores, que ao mencionar em suas obras a
respeito de assuntos voltados a população, família e pessoas, há uma imensa exclusão de sujeitos não
brancos. Tudo é feito aosmoldes de uma história positivista, contada a partir dos olhos do outro – o
português. Olavo de Medeiros Filho, ao falar dos primeiros agrupamentos familiares na capitania do
Rio Grande do norte afirma que:

No Seridó, as primeiras famílias ali instaladas, cuja lembrança se impôs


pela perpetuação genealógica regular, somente aparecem após o ano de
1720. Certamente, antes dessa data, as rústicas condições ambientais
reinantes somente permitiram a fixação do homem desacompanhado
de família. (MEDEIROS FILHO, 1983, p. 4)

Certamente, as famílias indígenas não eram consideradas na análise do autor, o importante em


seu discurso era enfatizar o elemento desbravador, a importância da conquista. Ainda a respeito das
famílias seridoenses no olhar de autores clássicos, José Augusto elenca um conjunto de famílias que te-
riam dado origem ao processo de povoação da região do Seridó e as colocam de forma hierarquizada,
pondo-as como as principais para o desenvolvimento da região. Para isso, destina no terceiro capítulo
de sua obra Seridó (1980) uma sequência de tópicos intitulados com os sobrenomes desses grupos10.

Obviamente, não seria possível encontrarmos a presença de índios, “afrodescendentes” ou


10Araújo Pereira, Dantas Correia, Azevedo Maia, Batista, Medeiros, Linha dos Rocha, Linha dos Vasconcelos,
Lopes Galvão, Bezerra de Menezes, Fernandes Pimenta, Pereira Monteiro e Nóbrega.

959
mestiços nessas obras, principalmente em relação a sujeitos escravizados ou forros. Os motivos para
isso se dão tanto pela intenção desses autores (já mencionada aqui), como no próprio entendimento
do conceito de família para a época. Segundo as palavras de Muirakytan Macêdo: “Em uma socieda-
de em que a pureza de sangue chancelava a linhagem familiar, ser escravo eximia a necessidade de
sobrenome ou de pertencimento familial”. (MACÊDO, 2015, p. 183) No caso de libertos ou forros,
acontecia a partir do ganho da nova condição, a inserção de um sobrenome que poderia ser o da fa-
mília do seu antigo senhor ou outro escolhido pelo mesmo, no entanto, esse fator não o absolvia de
sua procedência étnica e, assim, o mesmo ainda era considerado uma “camada baixa”do ponto de vista
social. Assim, percebemos que as características estamentais da própria sociedade criam obstáculos
para o estudo de famílias marginais na época, transformando tal tarefa em um processo gradativo e
demorado.

No entanto, em nossa posição atual, nos resta (mesmo com todo o respeito e gratidão a obra de
nossas gerações passadas)preencher essas lacunas deixadas para o nosso tempo, de modo a contribuir
para a escrita da história do Rio Grande do Norte (e do Brasil). Em nossa historiografia contempo-
rânea, muito tem se discutido acerca dos sujeitos esquecidos por nossos anteriores. Autores como
Helder Macedo já nos apresentam dados importantes acerca de populações indígenas e mestiças no
Seridó. Temos ainda o próprio Muirakytan Macêdo como uma importante referência a essa nova
etapa de nossa história, como um dos primeiros a enfatizar a presença de índios, negros, mestiços,
escravos e forros. Porém, ao se abordar acerca da família de pessoas escravizadas e libertas, pouco
tem se encontrado e é a respeito dessa temática que pretendemos dar nossa contribuição, dando voz
a esses sujeitos e situá-los no processo de povoação da capitania do Rio Grande do Norte, em especial
a Freguesia de Santana do Seridó. Sendo assim, pretendemos ampliar as relações familiares no nosso
recorte para algo mais além das “velhas famílias do Seridó” tão bem enfatizadas até aqui.

CASAMENTO

Tendo em vista que o objetivo desse artigo destina-se a analisar uniões familiares de “mestiços”
escravizados e libertos da Freguesia do Seridó, torna-se necessário estabelecer um ponto inicial. Desta
forma, ao confrontar a historiografia que estuda escravidão no período colonial, autores à exemplo
de Muiraytan Macêdo (2015) e Douglas Libby (2005) falam sobre a importância do casamento como
início da família na América portuguesa. Afinal, em uma sociedade que desconsidera como família
as uniões indígenas existentes, ao ponto que enfoca o caráter importado da Europa, ou seja, o modelo
familiar cristão, acabamos por ter na colônia um corpo social em que religião e Estado se misturam
e, deste modo, o casamento torna-se de forma oficial o início da família, onde um casal, aos olhos de
Deus e dos homens se une para formar uma constituição familiar. A respeito disso, Muiraytan Macêdo
afirma que: “A família é formada por uma união que deve ser regulada socialmente para que seja dada
legitimidade à aliança.” (MACÊDO, 2015, p. 200)

Mesmo sendo importado da Europa, tal modelo também se abrange para as populações in-
dígenas, “africanas” e “mestiças”, assim como a população escrava. Tendo uma conotação sagrada o

960
casamento passa a se tornar bem mais que um direito, chegando a atingir até mesmo um status de
obrigação e, dessa forma, até mesmo a população escravizada deveria se adequar a norma cristã. A
Igreja não toleraria nem mesmo que os escravos vivessem uniões ilegítimas. A respeito das uniões
entre escravos e forros o autor informa que:

Segundo as determinações das constituições primeiras da Bahia publi-


cadas em uma carta pastoral em 1710 – documento que tentava adequar
as resoluções do Concílio de Trento (1545-1563) à realidade colonial –,
o matrimônio de escravos com pessoas cativas ou livres era um “direi-
to divino e humano”. Além de afirmar que os senhores não poderiam
proibir-lhes o matrimônio, defendiam a indissolubilidade da família, de
forma que os casais não poderiam ser separados na venda da escravaria.
Os argumentos em favor desse tipo de casamento eram que os escravos
continuariam a servir seus senhores da mesma forma e que reproduzi-
riam a escravaria sobre o abrigo das normas cristãs. (MACÊDO, 2015,
p. 205)

Sendo assim, para chegarmos à análise de nosso objeto, tomamos como ponto de partida o
início da constituição familiar de nosso período, ou seja, o casamento. Nesse sentido, primeiramente
voltamos o nosso olhar para a nossa documentação referente aos registros matrimoniais. O gráfico
abaixo mostra os resultados equivalentes aos casamentos realizados na Freguesia do Seridó no perío-
do de 1788-1821.

Gráfico 1 - Quantidade de casamentos coletados na Freguesia do Seridó a partir de registros paro-


quiais (casamentos: 1788-1821).

Podemos perceber que ao total, tivemos a disposição 1.116 registros, sendo que cada um deles
é respectivo a uma união, ou seja, temos um casal para cada registro. Levando em consideração o nos-

961
so recorte (casais (ou famílias)em que pelo menos um membro apresente uma qualidade “mestiça” 11
acompanhada da condição de escravo(a) ou forro(a)) apenas 54 casais (cerca de 5%) encaixaram-se
em nossa condição de análise. Assim, podemos notar que a população casada de “mestiços” forros
ou escravos mostrou-se bastante reduzida se comparada ao geral. No entanto, ao analisar nossa do-
cumentação, pudemos perceber que seria possível aumentar nossa base de dados a partir das outras
tipologias de documentos paroquiais. Isso porque tanto nos registros de batizado como nos de óbito
há espaços dedicados à parentela do registrado. No caso do primeiro é comum que apareçam acompa-
nhados dos nomes dos pais da criança, as suas respectivas qualidades e condições. Da mesma forma,
nos registros de óbito, o mesmo pode ocorrer em relação aos pais e cônjuge do morto. A tabela abaixo
reflete o resultado dessa pesquisa.

Tabela 1 - Quantidade de casamentos coletados na Freguesia do Seridó a partir de registros paro-


quiais (1788-1838)

Mesmo utilizando toda a documentação referente a registros paroquiais disponível (cerca de


4.904 no total) os resultados foram abaixo do esperado. Somados aos 54 casais encontrados nos ca-
samentos pudemos adicionar apenas mais três tirados dos batismos e 10 dos obituários, chegando a
um total de 67 casais encaixados em nosso recorte. Em seguida era necessário saber com quem essa
população se casava, em outras palavras, a respeito da qualidade desses sujeitos, como eram feitas as
uniões? Quais qualidades se casavam? Existia um padrão mais frequente? Havia uma grande varie-
dade de tipos de uniões? Para todas essas questões eram necessárias respostas para que pudéssemos
entender melhor a complexidade da família colonial de “mestiços” da Freguesia do Seridó. Para res-
ponder tais questões analisamos as qualidades dos sujeitos dispostas nos casais verificados aqui. Tal
análise foi feita de maneira a organizar a qualidade dos homens e mulheres que formavam esses casais.
A tabela abaixo mostra os resultados obtidos dessa pesquisa.

Tabela 2 - Qualidade dos “mestiços” escravizados e alforriados na Fre-


guesia do Seridó a partir de registros paroquiais (casamentos: 1788-1821)

11No caso do nosso recorte espacial, a Freguesia do Seridó, as qualidades de “mestiços” mais frequentes em
nossa documentação são as de pardo, cabra e mulato.

962
Os resultados acima estão organizados da seguinte forma: as colunas intituladas de casais
possuem as siglas que indicam as várias formas que as uniões foram qualificadas. Para diferenciar
os inúmeros enlaces utilizamos as duas primeiras letras para indicar a qualidade e a terceira como
referência ao gênero (o significado das siglas consta ao lado da tabela). Assim podemos analisar as
mais diversas combinações possíveis. Nos casos em que aparece a sigla NIM (NÃO INDICADO MU-
LHER) e NIH (NÃO INDICADO HOMEM) fazem menção às vezes em que a qualidade não aparecia
no documento, não sendo possível a sua qualificação. Já nas colunas intituladas quant. se referem ao
número de casais que se encaixam a sua respectiva sigla. Explicada a metodologia, podemos perceber
que há uma grande variedade de tipos de uniões (no que tange a qualidade) na Freguesia do Seridó.
A grande campeã no quesito de quantidade se deu ao casamento entre “pardos”, onde dos 67 totais,
25 foram dessa qualidade. Esses dados ajudam a comprovar resultados de pesquisas anteriores12 que
apontam para um maior número de “pardos” na Freguesia do Seridó, que nos remetem a entender essa
qualidade como mais suscetível a miscigenação no recorte temporal por nós analisado. Em relação às
demais uniões, podemos perceber uma grande variedade e complexidade nas mesmas. Em segundo
lugar na nossa contagem ficou o casamento entre pardo homem e mulher não indicada com apenas
quatro exemplos. Todos os demais ficaram de três a baixo, sendo a grande maioria de apenas um caso
único, que não se repetiu. Isso mostra por um lado a grande dinâmica que existiu entre as uniões de
“mestiços” escravizados e forros como também a grande maioria notória de “pardos” existentes na
Freguesia do Seridó.

Em seguida, com o objetivo ainda de entender a forma em que ocorriam essas uniões, bus-
camos analisar a condição desses sujeitos que se casavam, na tentativa de compreender uma possível
lógica social entre os habitantes da Freguesia do Seridó. A partir disso, elaboramos um gráfico que
12Ver MEDEIROS, 2016.

963
indica a maneira em que ocorreram (no que tange a condição dos sujeitos) os matrimônios em nosso
recorte.

Gráfico 2 - Condições dos “mestiços” escravizados e alforriados casados da Freguesia do Seridó a par-
tir de registrosparoquiais (1788-1838)

A partir do gráfico acima podemos observar que a grande maioria das uniões entre “mestiços”
escravizados e/ou alforriados da Freguesia do Seridó se estabeleceu de homem escravo e mulher es-
crava, cerca de 51,2% do total contabilizado; em segundo lugar ocorreu o empate entre os casamentos
de homem e mulher forros com o enlace de homem escravo e mulher forra, constando 11,5% do total.
Tais dados nos ajudam a revelar características importantes da norma social da Freguesia do Seridó.
Quando relacionamos estes resultados à historiografia destinada a escravidão do período colonial
brasileiro, uma série de autores à exemplo de Muirakytan Macêdo (2015); Eduardo Paiva (2015); Ro-
berto Guedes (2008) e Douglas Libby (2005) irão falar sobre as características estamentais do período,
onde a sociedade regula as uniões para que as mesmas ocorram entre iguais, dessa forma pode ocorrer
com mais “facilidade” uma estabilização do sistema vigente, alterando o mínimo possível a hierarquia
social dos sujeitos que o compõe. Sobre esse aspecto, Muirakytan Macêdo afirma que:

As maquinações sobre a nupcialidade da prole já começavam muito an-


tes da idade núbil, pois, para a família se alargar de maneira política e
economicamente sustentável, era preciso que fosse um casamento entre
pares. A igualdade de qualidade social, a fortuna e a idade eram termos
de uma equação sempre intercambiáveis. (MACÊDO, 2015, p. 201)

Lógico que o autor estar se referindo a casamentos de pessoas “brancas” e livres, que ocupa-
vam uma “elevada” posição na hierarquia social, no entanto, nos parece correto supor que o mesmo se
aplicava as “camadas mais baixas”. Entendendo que para um escravo o seu principal objetivo de vida
era a obtenção da liberdade, casar-se com alguém próximo ou superior a si na hierarquia social era a
opção mais lógica, do contrário a luta por seu objetivo seria dificultada.Os dados acima mostram que
essa lógica foi seguida na Freguesia do Seridó durante o nosso recorte temporal analisado. Ao per-
ceber que mais da metade das uniões estudadas são pertencentes a casamentos entre escravos e que
depois disso aparecem os casamentos entre forros, vemos que essa igualdade foi perseguida por esses
sujeitos, que apesar de buscarem objetivos diferentes que a elite “branca”, também acabam seguindo a
lógica estamental do período.

Ainda, no caso em que os dados acabaram fugindo dessa “igualdade social”, ou seja, nos ca-

964
samentos de homens escravos com mulheres forras que assim como o enlace entre forros totalizaram
11,5% do total, a historiografia do período consegue encontrar explicações para o ocorrido. Nesse
sentido, Macêdo afirma que essa união era mais possível, isso porque: “Ancorando-se o fogo familial
na figura masculina, o casal assim constituído agregava mão de obra para o proprietário da fazenda,
pois a mulher liberta era incorporada ao trabalho do marido”. (MACÊDO, 2015, p. 206) Ainda, do
ponto de vista da estratégia escrava pela busca da alforria, o casamento do escravo com uma forra
seria visto com bons olhos, pois a sua prole nasceria livre, e assim facilitaria a busca da família pela
liberdade de todos os membros. Nesse sentido podemos supor que o motivo de tal união se mostrar
em uma quantidade relativamente superior, abaixo apenas do matrimônio entre escravos, deve-se ao
fato de ser interessante tanto para os senhores quanto para a escravaria.

ENFIM AS FAMÍLIAS MESTIÇAS, POIS NÃO SÓ DE FAMÍLIAS “BRANCAS” FORMA-SE O SE-


RIDÓ.

Tendo analisado a fase inicial da estabilização da família no período colonial (o casamento),


nos resta entender como caracterizavam-se esses agrupamentos familiares compostos por “mestiços”
escravizados ou forros.

No entanto, quando nos referimos à família colonial é necessário antes pensarmos algumas
questões. Como explicado no início deste artigo, o termo família (dentro do período por nós estuda-
do) foi utilizado para denominar apenas um tipo de agrupamento: àquele formado por pessoas “bran-
cas” e de origem portuguesa. Esse foi o foco de uma historiografia positivista que muito ainda reflete
no campo historiográfico de hoje. Freyre, com o clássico Casa Grande & Senzala chega a apresentar
uma família “mestiça” a qual, segundo o autor iria originar a identidade brasileira. (FREYRE, 2006
[1933]) No entanto, esse modelo popularizado por Freyre e que acabou se propagando em grande
escala pela historiografia brasileira remete-se a Família Patriarcal tradicional. A partir deste paradig-
ma freyriano a família brasileira se daria a partir de um poder centralizado na figura paterna (à qual
todo o restante dos membros eram dependentes), possuidora de influência sobre toda a comunidade
e solidariedade entre parentes. (SILVA, 2015)

Porém, nos últimos anos vem se percebendo uma nova abordagem acerca da família colonial.
Apesar de o modelo patriarcal não ser negado (e nem poderia, pois é inegável a sua existência) já se
é possível analisar outros tipos de famílias no período colonial da história brasileira. Segundo Gian
Carlo de Melo Silva:

Com todo esse poder em seu entorno, o modelo patriarcal não existiu
sozinho na época colonial, afinal existiram outras formações que exer-
ceram papel importante na construção do cotidiano e da sociedade co-
lonial de outrora. O espaço colonial foi habitado e formado a partir de
“famílias” num sentido bem plural, com diversas formações, congregan-
do conquistadores, nativos e escravos. Núcleos que existiram a partir
dos contatos culturais possibilitados pelas conquistas do século XVI e
que formaram famílias mestiças, que compreendem não só uniões que

965
possuíram indígenas, mas toda uma leva de formações familiares que
existiram no espaço colonial. (SILVA, 2015, p. 124)

A partir desse novo olhar nos é apresentado um universo bem mais dinâmico e complexo, re-
pleto de estratégias que buscam uma melhor condição e busca por poder. No momento em que se abre
a perspectiva para novos padrões e moldes familiares vemos surgir a nossa frente uma nova remessa
de agentes históricos que ao receberem voz acabam por enriquecer ainda mais o campo historiográfi-
co. A respeito dessa nova perspectiva Rangel Netto afirma que:

A constatação de um grande número de uniões familiares não sanciona-


das pela Igreja, envolvendo homens e mulheres brancos, pretos, crioulos
e mestiço, livres, libertos e escravos, possibilitou verificar na sociedade
colonial o surgimento de um fenômeno populacional caracterizado pela
união familiar de pessoas desiguais com comportamentos herdados de
culturas múltiplas e de condições sociais variáveis. Ou seja, uma família
formada por pessoas que provinham de diferentes etnias e localidades e
que também tinham níveis socioeconômicos e culturais diversos. (CER-
CEAU NETTO, 2010)

No entanto, apesar desse leque de oportunidades abertas a historiografia do período colonial,


pouca atenção tem sido dada a família “mestiça” de escravos e forros. Ainda, esse modelo familiar
quando é mencionado, é feito de forma a englobá-lo no modelo antigo, como extensão da família pa-
triarcal. Buscamos aqui, fecharmos nosso olhar para esses sujeitos, tornando-os protagonistas de uma
história direcionada ao passado dos mesmos e entender um pouco do universo familiar de “mestiços”
escravizados e libertos da Freguesia do Seridó. Nesse sentido, buscamos contribuir mesmo que mini-
mamente para a historiografia colonial.

Dando continuidade a análise de nossos dados, após verificar as famílias que se encaixam em
nosso recorte, ou seja, agrupamentos familiares em que pelo menos um dos membros apresente uma
qualidade “mestiça” acompanhada da condição de escravo ou forro, pudemos analisar 67 casais que
se enquadraram nessas condições. No entanto, essa amostra pode ser expandida quando ampliamos
nosso olhar para os filhos gerados nas uniões da Freguesia do Seridó. Isso porque casais que possuem
qualidades não consideradas “mestiças”, a que Paiva (2015) nomeia como “puras”, ou seja, “branca”, in-
dígena e “preta”, podem gerar uma prole mestiça e assim se enquadrar em nosso recorte. Assim como,
as uniões ilegítimas ou os casos em que não se foi possível à identificação paterna e que deste modo
não aparecem na primeira análise dos casamentos, porém, aqui podem ser verificados. Ainda existem
situações em que não se tinha a qualidade dos pais no registro, mas, sim, a da criança e a mesma se
encaixando em nosso recorte, essa família também foi contabilizada em nossa análise. Portanto, assim
pudemos ampliar o número de sujeitos analisados a respeito das famílias de “mestiços” escravizados
ou libertos da Freguesia do Seridó. O quadro abaixo mostra os resultados de nosso levantamento.

Tabela 3 - Qualidade dos membros das famílias de “mestiços” escravizados e alforriados pertencentes
da Freguesia do Seridó a partir de registros paroquiais (1788-1838)

966
Podemos observar na tabela acima que a primeira coluna representa a posição familiar que o
sujeito exerce;na primeira linha estão alocadas as qualidades encontradas em nossa pesquisa e a úl-
tima coluna, assim como a última linha exibem os números totais de nossa quantificação. Explicada
a metodologia, primeiramente é interessante notar a presença de qualidades não “mestiças”. Como já
foi explicado e justificado o fato delas estarem presentes basta reforçar a atuação das mesmas. Afinal,
em uma pesquisa que destina-se a ter a mestiçagem como objeto de estudo, seria estranha a presença
de sujeitos não mestiços, no entanto é a respeito de situações como essa que Paiva (2015) se refere ao
tratar do conceito de dinâmicas de mestiçagem. Segundo o autor:

No espaço comum formavam-se verdadeiras redes de contatos e de in-


formações, que envolviam gente de “qualidades” e “condições” diversas,
propiciando o surgimento de relações afetivas, de famílias, amizades e
negócios, assim como a circulação de ideias e informações de todos os
tipos, além de potencializar o vigor das misturas biológico-culturais.”
(PAIVA, 2015, p. 32)

Assim, apesar de não serem “mestiços” esses sujeitos acabavam se relacionando com os pró-
prios e se incluindo no universo da mestiçagem, o que demonstra a forte complexidade do período
e, desta forma, tornando obrigatória a presença dos mesmos em nosso estudo. Dando continuidade
também torna-se interessante observar a grande maioria de mães (98) em relação a pais (59). Isso
ocorre devido ao fato da nossa documentação, em especial os registros de batismos, muitas vezes não
apresentarem os nomes dos pais das crianças, sendo o filho considerado de ordem natural, ou seja, ile-
gítimo. No entanto, autores que estudam nossos recortes espacial e temporal à exemplo de Muirakytan
Macêdo (2015) atentam ao fato de uma maioria feminina na região do Seridó durante o período por
nós estudado e talvez esse fato venha a contribuir para esses dados.

Em relação as qualidade desses sujeitos, percebemos novamente uma grande maioria de “par-
dos” (90) seguidos de “cabras” (24) e “mulatos” (9). Como já dito, pesquisas anteriores já apontaram
para essa maioria de sujeitos qualificados nos documentos como “pardos” e nesse estudo isso não
mudou. A qualidade “parda” continua a mostrar-se como mais suscetível a mestiçagem e aparecendo
em maior número nas pesquisas. Atrás dela, aparecem os não indicados (45), ou seja, aqueles em que

967
não se foi possível identificar a qualidade e, que do contrário, poderiam muito bem estar engrossando
ainda mais as fileiras dos “pardos”. Ainda, se fecharmos nosso olhar apenas para a prole dessas famílias
ainda existe essa grande maioria parda. Tanto a respeito de meninos ou meninas somaram um total
de 21 crianças de cada gênero, sendo que para os primeiros, 11 eram pardos e 7 não indicados. Para as
meninas, 17 eram pardas e 4 não indicadas.

À exemplo do que fizemos na análise dos casamentos, optamos por repetir no estudo das famí-
lias em geral e verificamos também a condição dos sujeitos envolvidos em relações familiares no nosso
recorte. O quadro abaixo mostra como se deu nossa pesquisa.

Tabela 4 - Condição dos membros das famílias de “mestiços” escravizados e alforriados pertencentes
à Freguesia do Seridó a partir de registros paroquiais (1788-1838)

Feita no mesmo modelo e seguindo a mesma metodologia da anterior, a tabela acima mostra
como foram registradas as condições de toda a população envolvida em nosso recorte temático. Per-
cebemos sem muita surpresa que grande maioria pertence aos escravizados (135) sendo os forros (49)
bastante inferiores, que nem chegam sequer à metade do número de cativos. Ainda tivemos 29 não
indicados e 3 pessoas qualificadas como livres. O interessante se dá ao fato de todas serem do sexo
feminino, uma mãe e duas filhas. Por último também vale a pena salientar a grande maioria de mães
(99) em relação aos pais (79) que apesar de diminuir ainda se mostra bastante superior.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para dar conclusão a esse texto, entendemos como necessário algumas explicações ao leitor.
Primeiramente, para aqueles mais atentos, fica claro que nossa pesquisa ficou inconclusa. Para o pou-
co espaço e tempo que tivemos disposição para a produção deste artigo não foi possível analisarmos
mais a fundo o nosso objeto de pesquisa. Em primeiro lugar, passando por um processo de autocrítica,
entendemos que os nossos núcleos familiares analisados ficaram muito curtos (em sua maioria, ape-
nas casais ou casais com apenas um filho). Isso se deveu a natureza de nossas fontes que diante de um
primeiro olhar só nos permitiu essa perspectiva. No entanto, acreditamos que o cruzamento dessas
fontes, tanto entre elas, como também com outras tipologias que já temos a disposição (cartas de al-
forria e inventários post-mortem) nos permitirão abranger o nosso olhar e conseguir montar núcleos

968
familiares mais complexos e até mesmo “reconstruir” algumas trajetórias de vida.

Outro ponto que buscaremos melhorar no prosseguimento da pesquisa se remete a uma análi-
se mais qualitativa. Nesse primeiro momento acabamos ficando muito presos a parte de quantificação,
o que sem dúvida consideramos importante para um primeiro estágio, afinal nos permite ter uma
melhor noção da realidade “mestiça” estudada em nosso recorte. No entanto, entendemos que ao nos
propormos para o estudo de uma nova perspectiva acerca do Seridó colonial é obrigatório que faça-
mos uma expansão do olhar e, deste modo, apenas números não bastam. Portanto, a partir de agora
daremos mais importância a análises de trajetórias de vida na tentativa de entender os mais variados
contextos possíveis em que essas famílias de ”mestiços” escravizados e libertos se enquadraram no
âmbito social em meio às dinâmicas de mestiçagem.

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970
A BENÇÃO, COMPADRE: REDES DE COMPADRIO E INTERDEPENDÊNCIA SOCIAL NA FREGUE-
SIA DE VIAMÃO (1747-1769)
Israel Aquino13

Este trabalhose propõe a estudar a formação de redes de compadrio na freguesia de Viamão


do século XVIII, tendo como objetivo investigar sua utilização enquanto estratégia de atuação social
por famílias latifundiárias da região. De acordo com Fragoso14, a sociedade do Brasil setecentista foi
marcada por uma "hierarquia social costumeira”, constituída por intrincadas relações entre estratos
sociais diversos, tornando essa uma sociedade altamente hierarquizada e interdependente. Essa es-
trutura política e social em que Viamão estava inserida, que é identificada por Hespanha15 como uma
monarquia corporativa, era então atravessada por uma estratificação social característica e governada
por normas de reciprocidade, equidade e da justiça distributiva. Nesse sentido, Levi16 aponta que as
relações engendradas por esses atores sociais estavam atravessadas por uma noção de equidade social,
a qual cimentava uma sociedade de desiguais, onde a atuação de seus membros estava pautada pela
busca constante de distinções e privilégios. Nesse contexto, adquirem especial interesseas redes for-
madas através do parentesco ritual, sendo possível pensar o compadrio como parte de uma estratégia
de atuação que buscava favorecer a posição de um indivíduo ou grupo frente àquela sociedade.

As fontes utilizadas para este trabalho foram os dois primeiros livros de batismo da freguesia,
que reúnem 1091 registros no período compreendido entre 1747 a 1769, além dos Róis de Confessa-
dos ainda disponíveis, referentes aos anos de 1751, 1756, 1757 e 1758, que forneceram os dados demo-
gráficos da região. A análise destas relações se deu mediante o recurso às ferramentas da metodologia
de Análise de Redes Sociais (SNA), que permitiu a produção dos componentes gráficos e métricas
utilizadas, a partir dos quais buscamos discutir de que forma a instituição do compadrio era utilizada
pelos agentes estudados.

A freguesia de Viamão no mundo corporativo português

Situado nos confins do Império, a região do Continente de São Pedro foi palco de contendas
envolvendo os diferentes grupos que atuavam na dinâmica colonial da América do Sul setecentista.
Portugueses, espanhóis e povos originários estiveram, ao longo de todo o período, envolvidos em
rusgas, guerras e tratados que não findaram senão no século seguinte. A estes componentes se so-
13 Mestrando em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
14FRAGOSO, João. Efigênia Angola, Francisca Muniz, forra parda, seus parceiros e senhores: freguesias rurais
do Rio de Janeiro, século XVIII. Uma contribuição metodológica para a história colonial. Topoi, Rio de Janeiro:
UFRJ, v. 11, n. 21, p. 74-106, 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S-
2237-101X2010000200074>. Acesso em 06/04/2018.
15HESPANHA, Antônio M. Carne de uma só carne: para uma compreensão dos fundamentos histórico-antro-
pológicos da família na época moderna. Análise Social, Lisboa: ICS-UL, v. 27, p. 951-973, 1993. Disponível em:
<http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1223293699K2wUQ7iq8Pw47EV0.pdf.>. Acesso em 06/04/2018.
16LEVI, Giovanni. Reciprocidade Mediterrânea. In: OLIVEIRA, Mônica; ALMEIDA, Carla. Exercícios de mi-
cro-história. Rio de Janeiro: FGV, 2012. p. 51-86.

971
mavam outros grupos populacionais europeus e um expressivo contingente cativo negro, formando
uma estrutura social altamente complexa e estratificada, que refletia um sistema imperial que buscava
mimetizar características da sociedade metropolitana ao mesmo tempo em que era atravessado por
características que o particularizavam.

Estabelecida sobre uma noção de 'bem comum', a sociedade forjada nos extensos domínios
lusos estava baseada na distribuição de privilégios, na construção de alianças familiares e clientelistas
e em um exercício constante de diferenciação social. Nas palavras de João Fragoso, esta sociedade
estava organizada por práticas costumeiras, construídas pela regularidade das sociabilidades locais, e
vinculadas a uma concepção corporativa de mundo.
Estou me referindo à hierarquia social costumeira, construída pela interação de po-
tentados, escravos, forros, índios, ministros da coroa, clérigos, etc. Ou seja, sujeitos
portadores de orientações valorativas próprias (conforme o grupo, vindos da escra-
vidão africana e da sociedade rural do Velho Mundo) e presentes na Conquista. A
materialidade dessas práticas adquiriu a forma das relações de clientela e de paren-
tesco consanguíneo e fictício e, entre outros fenômenos, sob a tutela da monarquia,
organizou a sociedade americana.17

Ainda segundo Fragoso18, para entendermos o conceito de economia do bem comum é ne-
cessário considerar que o mesmo encerra uma forma particular de apropriação do excedente social,
onde a produção e o controle de bens e serviços eram concedidos a particulares e exercidos através de
monopólios, através do sistema de mercês. Isso reforçava uma organização social estratificada onde,
conforme lembra Hespanha19, a prestação de serviços à Coroa se colocava como uma forma impor-
tante de mobilidade social. Além disso, a noção de bem comum implica em duas outras noções, a sa-
ber: a primeira diz respeito a um mercado regulado pela política; e, além disso, a organização de uma
hierarquia social excludente, que funcionava simultaneamente como ponto de partida e de chegada
desta economia. Como pano de fundo, havia a estratificação social do Antigo Regime, na qual a mobi-
lidade passava pela prestação de serviços ao Rei e à República20. Porém, esse sistema só fica completo
quando atentamos para o fato de que se baseava em uma série de interdependências e reciprocidades,
atravessada por práticas de alianças com seus dons e contradons, que criavam extensas redes de com-
promisso, proteção e clientela. Assim, fechava-se o ciclo que servia de sustentação para a economia do
bem-comum e para a mimese do Antigo Regime nos domínios atlânticos lusos.

Ao estudar as estratégias sociais de proprietários de terras e comerciantes do Rio de Janeiro,


João Fragoso encontrou indícios dessas práticas que formavam um ethosde uma nobreza principal
da terra, alegadamente atuante na conquista dos territórios do Império Português em expansão. Em
nome dos serviços prestados à Sua Majestade, esses homens buscavam ascender social e economica-

17FRAGOSO, Op. Cit., p. 249.


18FRAGOSO, João. A Economia do bem comum e a formação da elite senhorial do Rio de Janeiro no Império
Português (século XVI e XVII). Dimensões, Vitória: UFES, v. 13, p. 14-27, 2001. Disponível em: <http://www.
periodicos.ufes.br/dimensoes/article/view/2373/1869>. Acesso em 09/04/2018.p.21-22.
19HESPANHA, Antônio M. A mobilidade social na sociedade de Antigo Regime. Tempo, Rio de Janeiro: UFF,
v.16, n.21, p. 121-143, 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/tem/v11n21/v11n21a09>. Acesso em
09/04/2018.p. 135-136.
20FRAGOSO, 2001, Op. Cit., p. 22.

972
mente através do sistema de mercês que vinculava a Coroa e seus súditos em um intrincado sistema
de interdependência21. Através de expedientes semelhantes, especialmente pela prática da conquista,
bandeirantes, tropeiros, militares e homens de negócio ampliaram a fronteira sul do império portu-
guês, ocupando a região do Continente do Rio Grande de São Pedro a partir do século XVIII. Leia-
-se, enquanto Conquista, a prática que possibilitava a apropriação de terras e de homens através da
guerra, especialmente através da prática da guerra justa22. Conforme aponta Blanco, esses homens se
apropriaram de terras e rebanhos, e mais tarde reivindicaram sesmarias, utilizando-se do mesmo ar-
gumento da ‘conquista’, e trazendo assim “para o sul as insígnias de Antigo Regime que presidiam, há
duzentos anos, a colonização dos domínios lusitanos no continente americano”23.

Dentro desse contexto, a freguesia de Viamão foi criada por ordem do bispo de São Paulo, D.
Bernardo Rodrigues Nogueira, e desmembrada de Laguna a 14 de setembro de 1747. Mas, antes disso,
a região dos “Campos de Viamão” já vinha recebendo fluxos migratórios há alguns anos, especialmen-
te por conta das incursões para captura do gado selvagem das vacarias do sul. Assim, conforme aponta
Kuhn24, é necessário, primeiramente, fazer a distinção entre a denominação ‘Campos de Viamão’, uma
extensa área que então englobava todo o nordeste do Continente de São Pedro, e a freguesia propria-
mente dita. Esta última, por ocasião de sua criação, abrangia a região limitada a oeste pelas margens
do Guaíba e da Lagoa dos Patos e a leste pelo oceano Atlântico, se estendendo ao norte até os cha-
mados ‘Campos de Cima da Serra’, incluídas aí as regiões dos vales dos rios Caí, Taquari e Sinos. Esse
imenso território, contudo, começou a ser desmembrado já nas décadas seguintes, a partir da criação
de novas freguesias na região, tais como Triunfo, Santo Antônio e Porto Alegre25.

Conforme demonstra Kuhn26, o povoamento inicial desta região se deu, principalmente, atra-
vés da migração de famílias lagunenses que começaram a se fixar no segundo quartel do século XVIII.
Para além destas, a população inicial da freguesia - que no início da década de 1750 rondava 800 indi-
víduos - era constituída também por algumas famílias advindas das regiões de São Paulo, Colônia do
Sacramento e de Portugal continental, além de um contingente de cativos - negros, sobretudo - que
nos Róis do ano de 1751 já rondava 40% da população. Contudo, esse estrato demográfico sofreria
profundas transformações nos anos seguintes, por ocasião da emancipação das freguesias de Triunfo
(1756) e Santo Antônio (1763), da criação do Aldeamento dos Anjos e a chegada dos povos guaranis
(1757) e do fluxo repentino das famílias fugidas de Rio Grande por ocasião da invasão dos espanhóis
(1763), além da chegada de casais açorianos a partir da década de 1750, por ocasião da assinatura (e do
não cumprimento) do Tratado de Madrid. Todos esses eventos produziram transformações demográ-

21Idem, p. 15-16.
22Ibidem, p. 19.
23BLANCO, Márcio M. A senzala em movimento: notas sobre os primórdios da família escrava nos campos
de Viamão (1747-1758). V Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Porto Alegre, 2011. Dispo-
nível em: <http://www.escravidaoeliberdade.com.br/site/images/Textos5/blanco%20marcio%20munhoz.pdf>.
Acesso em 09/04/2018. p. 1.
24KÜHN, Fabio. Gente da Fronteira: família, sociedade e poder no sul da América Portuguesa – século XVIII.
Niterói: UFF, PPG em História (Tese de Doutorado), 2006. Disponível em: <http://www.historia.uff.br/stricto/
teses/Tese-2006_KUHN_Fabio-S.pdf>. Acesso em 09/04/2018. p. 103.
25Idem.
26Ibidem, p. 13-15.

973
ficas bastante significativas, especialmente no período que propomos como recorte para este trabalho.

A extensa área da freguesia apresentava baixa densidade demográfica, configurando-se como


uma localidade predominantemente rural, conforme demonstrou Kuhn. Ao analisar os róis do ano de
1751, o autor apresenta dados que nos permitem ter uma ideia de como estava distribuída a população
local naquele momento:
somente três localidades (...) abrigavam a metade dos fregueses: o Arraial, o Morro
Santana e a Guarda de Viamão. No “núcleo urbano” [o Arraial] da freguesia havia
um número reduzido de moradores efetivos: o livro de aforamentos de terrenos da
Irmandade de N.S. da Conceição demonstra bem qual era a situação existente a essa
altura, pois até 1750 foram aforados somente 27 terrenos pertencentes ao patrimônio
da confraria, todos eles pequenos lotes variando entre duas e dezesseis braças de
frente, que pagavam de foro a módica quantia de 20 réis por braça ao ano. Nesses
terrenos, situados na “rua direita” ou na “travessa da fonte”, os primeiros estancieiros
construíram suas moradas de casas, ocupadas por ocasião da assistência aos serviços
religiosos ou por ocasião das festividades profanas.27

A região que concentrava o maior contingente populacional então - cerca de 200 pessoas - era
àquela conhecida como a ‘Guarda’, onde estava localizado o Registro, local onde ocorria a cobrança
dos tributos, especialmente sobre o gado em pé, que era levado pelos condutores de tropas às capita-
nias do Sudeste28. Ponto de passagem praticamente obrigatório para quem entrava ou saía dos Cam-
pos, a Guarda foi instalada em 1737, tendo sido transformada em Registro em outubro de 175229. No
momento da criação da Freguesia, a administração da Guarda já se encontrava sob o comando do
tenente Francisco Pinto Bandeira, proeminente estancieiro da região, tropeiro, militar e chefe de uma
das famílias mais importantes da localidade. Já no ano de 1763, essa região seria desmembrada com a
criação da Freguesia de Santo Antônio da Patrulha.

Com a invasão da vila de Rio Grande, também em 1763,Viamão transformou-se na segunda


sede da Capitania. O ato foi oficializado em 16 de junho de 1764, sendo nomeado governador o co-
ronel José Custódio de Sá e Faria. Devido às dificuldades causadas pela guerra, contudo, a primeira
sessão da Câmara seria realizada somente em junho de 176630. Assim, nesse contexto de guerra e
conquista, deu-se o pano de fundo para a formação dessa sociedade situada nos confins do império
ultramarino português.

Análise de Redes Sociais na História

O método adotado neste trabalho, chamado Análise de Redes Sociais, envolve um conjunto de
técnicas e conceitos oriundos de diferentes disciplinas e áreas do conhecimento que, por vezes,
são pouco conhecidos dos historiadores (embora o uso deste método não seja inédito em trabalhos
históricos). Mais que isso, como pudemos perceber nas leituras realizadas durante nossa pesquisa, é
27Ibidem, p. 112.
28Ibidem, p. 113.
29JACOBUS, André Luiz. Resgate Arqueológico e Histórico do Registro de Viamão (Guarda Velha, Santo An-
tônio da Patrulha – RS). Porto Alegre: PUCRS, PPG em História (Dissertação de Mestrado). 1996.
30KUHN, Op. Cit.

974
um método apropriado por pesquisadores sociais de forma muitas vezes metafórica ou instrumental,
sem uma preocupação mais efetiva em discutir sua apropriação.

A Análise de Redes Sociais é uma metodologia que se dedica ao estudo dos diferentes tipos de
interação entre indivíduos, tendo se originado a partir de estudos e conceitos originados em diferen-
tes áreas do conhecimento, tais como a Antropologia, a Psicologia Social, a Sociologia Estrutural e a
Matemática. Transitando por diferentes paradigmas e disciplinas, a ideia de rede social fomenta uma
multiplicidade de abordagens e compreensões. De forma mais geral, podemos tomar uma rede social
enquanto um “conjunto finito de atores e a(s) relação(ões) que se estabelecem entre eles”31. A Análi-
se de Redes Sociais (do inglês SNA - Social Network Analysis), por sua vez, consiste em um campo
multidisciplinar, que propõe um estudo sistemático de redes representadas graficamente, tomadas
enquanto representações das estruturas de relacionamento que pessoas ou organizações estabelecem
entre si.

De modo geral, os estudos de Jacob Moreno, na década de 1930, são apontados como a ori-
gem dos principais conceitos que mais tarde formariam a base da Análise de Redes Sociais. A partir
de seus estudos, Moreno lançou as bases da sociologia estrutural e criou o sociograma, ferramenta
que apresenta sob a forma de um gráfico as várias relações entre os sujeitos que compõe um grupo,
representando uma importante inovação para época32. Em sua obra Who shallsurvives? (publicado
originalmente em 1934), Moreno estabelece os pressupostos teóricos da sociometria, definida como
uma “técnica experimental […] obtida através da aplicação de métodos quantitativos […] que inves-
tigam a evolução e organização dos grupos e a posição dos indivíduos dentro deles”33. Contudo, con-
forme aponta Beauguitte34, a tecnologia da época não permitia, ainda, o desenvolvimento de cálculos
avançados, de modo que algumas das propostas apresentadas no livro seriam desenvolvidas apenas
décadas depois.

O sociograma, precursor do grafo utilizado na SNA contemporânea, é a representação visual


da rede, no qual os atores são apresentados como nós, e suas relações são representadas como linhas
que ligam esses nós. O principal interesse de Moreno era medir as relações dos grupos, compreen-
dendo como esses conjuntos de atores eram estruturados. O autor também foi o primeiro a utilizar o
termo “redes” para se referir às redes de relações interpessoais entre indivíduos e o estudo destas como
objeto de análise35.

31WASSERMAN, Stanley; FAUST, Katherine. Social Network Analysis: methods and applications. Cambridge:
Cambridge University Press, 1994. p. 4.
32 BEAUGUITE, Laurent. L’analyse de r ́eseauxen sciences socialeseten histoire: Vocabulaire, principes et
limites. Le reseau. Usages d’une notion polys ́emiqueen sciences humainesetsociales, Presses Universitaires
de Louvain, 2016. p. 7.Disponívelem: <https://halshs.archives-ouvertes.fr/halshs-01476090/document>. Aces-
soem 14/8/2018.
33MORENO, Jacob; JENINGS, Helen. Who shall survives? A New Approach to the Problem of Human In-
terrelations.Mental Healt, 1954. p. 39. Disponível em: <http://www.asgpp.org/docs/wss/wss.html>. Acesso em
14/8/2018.
34 Op. Cit., p. 7-8.
35 Op. Cit.

975
De acordo com Bertrand36, a noção de rede social remete a uma estrutura construída com base
nas relações existentes entre indivíduos. Desta forma, as interações no interior da rede proporcionam
aos atores posições no grupo social que podem ser mais ou menos vantajosas e lhes dar acesso a di-
ferentes valores. A análise de redes sociais, desse modo, trabalha com a representação gráfica desses
grupos, que são analisados a partir das medidas de suas propriedades estruturais.

Essa noção, por sua vez, remete a uma primeira caracterização da rede em termos morfológi-
cos, onde essa estrutura pode assumir um formato egocentrado (construída em torno de um indiví-
duo) ou polinodal (que evidencia a existência de relações fragmentadas, organizadas em torno de um
ou vários núcleos). Assim, conforme aponta Fioravante37, o estudo desses vínculos busca evidenciar a
capacidade de cada ator social manipular o conjunto de suas ligações com o intuito de satisfazer seus
interesses e necessidades. Essas relações são influenciadas pelo posicionamento do indivíduo na rede
(central ou periférico), seu acesso a recursos, a intensidade dos relacionamentos, a densidade da rede,
entre outros fatores38.

A primeira etapa da análise de redes é a criação do que chamamos matriz de adjacência, em


que linhas e colunas representam os atores sociais envolvidos em determinada relação e contexto his-
tóricos39. Nessas matrizes, são estipuladas as relações entre os atores do grupo analisado. A elaboração
das matrizes e seus grafos correspondentes é parte fundamental deste método. Cada matriz e seu grafo
correspondem a uma espécie de instantâneo dos relacionamentos do grupo em análise. Contudo, há
de se considerar que esse “instantâneo” das relações sociais não aponta para a existência de relações
estanques: pelo contrário, é preciso levar em conta as dinâmicas que envolviam as mesmas. Nesse
sentido, Ponce Leiva e Amadori chamam atenção para o fato de que as redes podem sofrer mudanças
em suas configurações ao longo do tempo: “as redes, longe de serem estáticas, confiáveis e duradouras,
estão sujeitas a mudanças e contingências que nos falam sobre sua vulnerabilidade”40.

Os grafos são representações formadas pelas unidades de análise (pessoas, organizações) e pe-
las relações estabelecidas entre elas, que são representadas por pontos (nós) e linhas, respectivamente.
Os nós da rede podem representar tanto um indivíduo quanto uma organização, categoria ou grupo.
Assim, em um determinado estudo, os nós podem representar pessoas, e em outro, grupos de pessoas,
dependendo do objeto de análise do pesquisador. Na maioria dos casos, todos os nós de uma rede
36 BERTRAND, Michel. De lafamilia a lared de sociabilidad. Escuela de Historia. Rosário, ano 4, n. 6, p. 47-80,
2012. Disponível em: <http://revistapaginas.unr.edu.ar/index.php/RevPaginas/article/view/94/94>. Acesso em
09/04/2018. p. 61.
37 FIORAVANTE, Fernanda. Considerações acerca da Análise de Rede Social nas sociedades de Antigo Re-
gime. Revista de Teoria da História, v. 10, n. 2, p. 221-240, 2013. Disponível em <https://www.revistas.ufg.br/
teoria/article/view/29094/16186>. Acesso em 09/04/2018. p. 222.
38 PONCE LEIVA, Pilar; AMADORI, Arrigo. Redes sociales y ejerciciodel poder enla América Hispana: conside-
raciones teóricas y propuestas de análisis. Revista Complutense de Historia da America, Madrid: UC, v. 34, p. 15-
42. Disponível em: <https://revistas.ucm.es/index.php/RCHA/article/viewFile/RCHA0808110015A/28432>.
Acesso em 06/04/2018, p. 22.
39PANDOLFI, Fernanda C. ; BUENO, Newton P. Análise de redes sociais em História: noções básicas e su-
gestões de aplicação. Anais do XIX Encontro Regional de História: Profissão Historiador: formação e mercado
de trabalho. Juiz de Fora: UFMG, 2014. Disponível em: <http://www.encontro2014.mg.anpuh.org/resources/
anais/34/1401385226_ARQUIVO_anpuhpaper29-05corrigido.pdf>. Acesso em 06/04/2018. p. 2.
40 Op. Cit., p. 30.

976
representam uma mesma categoria (indivíduos ou grupos), formando o que chamamos de redes de
um modo (onemode network).

As redes também são formadas por linhas (também chamadas arcos ou conexões). Essas li-
nhas indicam algum tipo de relação social entre os diferentes nós da rede, podendo contar, ainda, com
setas, que indicam o sentido das ligações estabelecidas, ou omitindo essas setas, quando tratamos de
relações recíprocas. Dessa forma, podem haver dois tipos de grafos: grafos direcionados (quando uti-
lizamos setas para mostrar a ‘direção’ das relações) ou grafos não direcionados.

Um grafo direcionado é aquele na qual as relações assumem um sentido, uma direção. A op-
ção por um grafo direcionado ocorre quando as relações estabelecidas em uma rede não se dão entre
iguais (ou não têm o mesmo peso). Um exemplo seria a representação em uma rede das relações de
compadrio de uma família ou comunidade, tendo em vista as complexas normas de reciprocidade
e desigualdade que atravessam estas relações. Por outro lado, uma rede também pode ser não-dire-
cionada, ou seja, suas conexões não possuem direção ou sua direção não importa. Poderíamos citar
como exemplo uma rede de acionista de uma sociedade anônima: se A é sócio de B nesta empresa,
então B também será sócio de A, não importando o sentido da relação (a menos que seja do interesse
do pesquisador estabelecer uma direção, um peso nessa relação). Em suma, cabe ao pesquisador o
importante papel de conhecer os atores e relações que compõem o corpus de sua pesquisa, a fim de
definir o tipo de grafo a ser utilizado.

Para além da elaboração das matrizes e a geração dos respectivos grafos, outra contribuição
fundamental deste método é a produção dos coeficientes ou estatísticas de análise, denominadas mé-
tricas, que permitem evidenciar algumas das características dessas redes, colocando em evidência
alguns tipos de relação que se estabelecem, ou destacando a atuação de um determinado agente no
grupo a partir da posição por este assumida. Essas métricas cumprem papel fundamental para a aná-
lise, tanto quanto o recurso gráfico proporcionado pelos softwares de análise de redes.
Uma das preocupações que surgem com o uso da SNA é a aparente simplificação das rela-
ções que se estabelecem ou, conforme aponta Thiago Gil41, certa pretensão de objetivizar as relações
humanas. Torna-se, portanto, necessário ressaltar que com esta técnica não se pretende dar conta da
totalidade das relações, mas sim "apresentá-las de uma forma ordenada e visualmente inteligível para
o investigador"42. Conforme aponta Hanneman:
Uma razão para a utilização das técnicas matemáticas e dos grafos na análise de re-
des sociais é que permite representar a descrição de uma rede de maneira concisa e
sistemática. Também possibilita o uso de computadores para armazenar e manipular
rapidamente a informação, de maneira mais precisa do que se fosse feito manual-
mente. [...] As representações formais asseguram que toda a informação necessária se
encontra representada sistematicamente e fornecem as regras para fazê-lo de forma

41 GIL, Tiago L. O Bando de Rafael Pinto Bandeira em uma representação gráfica: uma tentativa de aplicação
das social network anaysis na história social. I Colóquio do LAHES: Alternativas Metodológicas para História
Econômica e Social, Juiz de Fora. 2005. Disponível em: <http://www.ufjf.br/lahes/files/2010/03/c1-a66.pdf>.
Acesso em 09/04/2018. p. 1.
42 Idem.

977
eficiente.43

        Faz-se necessário, desta forma, refletir sobre a utilização do instrumental proporcionado pela
SNA em estudos históricos, e de forma particular na aplicação desta para a análise de fontes do perío-
do colonial. A esse respeito, Michel Bertrand nos lembra do cuidado que se faz necessário ao empregar
em estudos históricos ferramentas que foram construídas para pensar sociedades contemporâneas:
Não podemos, pois, descartar o impacto que pode ter esta transferência de um mo-
delo de relação social elaborado para a análise de um dado tipo de sociedade para
sociedades de Antigo Regime, cujas regras de funcionamento eram radicalmente di-
ferentes. [...] A utilização de métodos de pesquisa baseados em fontes não permite
uma abordagem ou apreensão global do objeto de estudo, colocando o historiador
em uma posição muito diferente daquela que goza o sociólogo ou o antropólogo.44

Deste modo, aponta Bertrand, existem pelo menos duas limitações a que precisamos estar
atentos ao adotar a SNA para o estudo de sociedades de Antigo Regime, a saber: por um lado, esta-
mos limitados pelas próprias fontes, e pela forma como nelas se apresenta nosso objeto. Bertrand nos
lembra que "uma rede não pode existir, em absoluto, fora [...] de uma finalidade ou de um projeto
em particular [...], construído por atores sociais em um contexto específico"45. Em outras palavras,
entende-se que a própria identificação dessas redes em uma fonte histórica é precedida pela atuação
dos agentes históricos em prol de seus objetivos ou projetos próprios. Ficando apenas no exemplo que
exploramos neste trabalho, caberia perguntar: que projeto mobilizava os atores que se envolveram nas
redes de compadrio identificadas? Em que contexto estavam inseridos, e porque realizaram determi-
nadas escolhas?

Por outro lado, Bertrand aponta que as redes a que temos acesso através das fontes serão sem-
pre e necessariamente limitadas, seja pelo recorte temporal, espacial, ou pela própria dinâmica que
governava as relações estabelecidas entre os agentes (ou, mais precisamente, as mudanças nessas re-
lações). Desta forma, podemos dizer que o que chega ao historiador são, na verdade, 'fragmentos de
rede’, de modo que "a reconstituição [dessas] redes se limita [...] essencialmente a uma aproximação
sincrônica, em detrimento [...] da diacronía"46. Bertrand reforça, nesse sentido, a necessidade de que o
historiador adote duas precauções:
Ao querer empurrar os limites de uma rede o mais longe possível em um espaço
social dado para reconstruir sua globalidade [...], corre-se o risco, sobretudo, de se
chegar em uma verdadeira "apoplexia do conceito" [...] [onde] "todo mundo está
em relação com todo mundo". Também parece mais pertinente [...] interessar-se na
lógica combinatória que relações e vínculos permitem estabelecer entre os atores no
marco de uma rede, mais que no simples fenômeno acumulativo [de relacionar os
vínculos].47

Da mesma forma, Imizcoz destaca a importância dos vínculos sociais dos indivíduos para a
43HANNEMAN, Robert A. Introducción a los métodos del Análises de Redes Sociales. Revista Redes, Barce-
lona: UAB, 2000. Disponível em: <http://revista-redes.rediris.es/webredes/text.htm>. Acesso em 06/04/2018.
p. 3.
44 Op. Cit., p. 57.
45 Idem.
46 Idem, p. 58.
47 Idem, p. 64.

978
definição de sua ação na sociedade. Voltando sua atenção também para o estudo de sociedades de
Antigo Regime, o autor aponta para a necessidade de se estudar as trajetórias de vida no contexto das
relações sociais e das normas que regiam estas relações. Assim, destaca a necessidade de se voltar a
atenção para as relações sociais estabelecidas pelos atores ao longo do tempo48.

Cabe, portanto, ao pesquisador interessado em aplicar o método apresentado, o cuidado e o


esforço, conforme lembra Bertrand, de demonstrar efetivamente as consequências das relações iden-
tificadas, mais que o simples ato de enumerá-las.

Fazendeiros e escravistas: os abastados paulistas e suas redes no sul.

Um importante grupo socioeconômico durante a formação da freguesia de Viamão era aque-


le organizado em torno do conhecido Porto do Dorneles, sob a liderança do sesmeiro Jerônimo de
Ornellas de Menezes e Vasconcellos, que se estabeleceu no Morro de Sant’Anna por volta do ano de
1740. Natural do arquipélago da Madeira, Jerônimo de Ornellas é apontado em outros trabalhos e nas
genealogias disponíveis como descendente da fidalguia insular, e migrou para o Continente na década
de 1730. Antes disso, havia se casado em Guaratinguetá com Lucrécia Leme Barbosa, filha de uma
das “melhores famílias” locais e também descendente dessa fidalguia49, sendo por sua vez também
prima em terceiro grau do capitão-mor Francisco Brito Peixoto, importante liderança lagunense cujos
descendentes cumpriram papel importante no povoamento de Viamão e na ‘conquista’ das terras do
Continente do Rio Grande.

A região do então ‘Porto do Dorneles’, dentro das terras de Jerônimo, anos mais tarde serviria
como base para o núcleo urbano inicial da atual capital gaúcha, Porto Alegre, enquanto a localidade
onde se situava seu fogo corresponde à região de divisa entre os atuais municípios de Porto Alegre e
Viamão, o Morro de Sant’Anna. Com o crescente número de casais açorianos vindos da vila de Rio
Grande a fixar-se em seus domínios, Jerônimo vende sua propriedade em 1762 e transfere-se para
a freguesia de Triunfo. Suas filhas e genros, contudo, continuam aparecendo com frequência como
padrinhos de crianças da região.

Além deste núcleo, se ligavam a esta família por laços de parentesco e matrimônio outros
proprietários locais. O português Dionísio Rodrigues Mendes, por exemplo, casou-se com a irmã
de Lucrécia Leme Barbosa, Dona Beatriz Barbosa Rangel, sendo assim concunhado de Jerônimo, e
também considerado um dos precursores da povoação viamonense. Algumas referências apontam
que a este tocou a sesmaria de São Gonçalo, na região correspondente ao atual bairro do Belém Velho,
em Porto Alegre, mas parece nunca ter havido emissão do título competente. Kuhn informa que ele
ocupou morada na sede da freguesia de Viamão (o Arraial), onde “em 1749 aforou mais 11 braças de
terras 'na rua direita’"50. Um de seus genros, o capitão Pedro Lopes Soares, que atuou na década de
1770 como Juiz de Órfãos na freguesia, também é citado com frequência nos batismos. Finalmente,

48 IMIZCOZ BEUNZA, José María. Comunidda, red social y élites: unanálisis de lavertebración social em
elAntiguoRégimen. In: _____. Elites, poder e red social: lasélitesdes País Vaco y Navarra em laEdad Moderna.
Bilbao: Universidad del País Vaco, 1996. p. 14-18.
49KUHN, Op. Cit, p. 217.
50KUHN, Op. Cit., p. 113.

979
havia o paulista Francisco Xavier de Azambuja, também oriundo de família potentada e ocupante
da sesmaria vizinha a de Jerônimo de Ornellas, tendo sido casado com sua filha Rita de Menezes, e
o português José Fernandes Petim, também proprietário de terras, gado e escravos. Como se vê, este
grupo possuía fortes raízes em famílias da fidalguia, e isso se refletiu na extensa rede constituída por
seus membros no Continente.

As famílias que compõe este grupo aparecem em 109 registros de batismo, constituindo uma
rede composta por 202 agentes e 360 laços. No período compreendido por este ensaio, 14 netos de
Jerônimo de Ornellas foram batizados, e outros 9 netos de Dionísio Rodrigues Mendes, enquanto seus
familiares atuaram como padrinhos de 86 crianças, o que corresponde a cerca de 8% dos batismos no
período. Interessante notar como esta rede contou com a participação de agentes de estratos sociais
bastante diversificados, incluídos aí escravos, forros e índios administrados, havendo inclusive o regis-
tro de duas crianças expostas. Sua representação gráfica pode ser visualizada no grafo a seguir:

Grafo 1 - Rede de compadrios famílias Mendes e Ornellas

Fonte: Livro 1º de Batismos de Viamão

A análise do componente visual traz uma contribuição valiosa para o entendimento da di-
nâmica de funcionamento das relações entre àquelas pessoas, especialmente ao permitir enxergar a
importância que alguns agentes assumiram ao estabelecer um número maior de relações, por um lado,
ou o papel desempenhado pelos atores que conectam diferentes grupos dentro da mesma rede (inter-
mediários) por outro. A partir desta representação, podemos produzir alguns insightsiniciais sobre a
atuação dos membros desta rede.

O primeiro elemento que nos chama atenção é a concentração de laços em torno de alguns dos
agentes que compunham a rede, ou seja, seu elevado InDegree. Conforme mencionado, essa métrica
direta diz respeito ao número de relacionamentos estabelecidos por um agente da rede. Em nosso
caso, o InDegree de um agente está relacionado ao número de vezes em que este foi escolhido para

980
atuar como padrinho; assim, os agentes com elevado InDegre serão aqueles denominados na literatu-
ra como padrinhos preferenciais, ou ‘campeões de batismo’51.

Entre os nomes que concentram maior número de relações, destaca-se o casal Dionísio Rodri-
gues Mendes e Beatriz Barbosa Rangel, que juntos acumularam 26 afilhados no período entre 1747 e
1769, mantendo-se entre o grupo dos campeões de batismos durante todo o período. Já o seu genro
Pedro Lopes Soares aparece batizando 13 crianças, além de firmar relações com outros proprietários
de terras da região através do batismo de 6 filhos. Maria Teresa de Jesus, filha de Dionísio e mulher de
Pedro Lopes, por sua vez, apadrinha outras 7 crianças, demonstrando que o casal possuía uma rede de
relacionamentos bastante ampla.

Também se destacaa atuação das filhas de Jerônimo de Ornellas, Gertrudes e Rita, além do es-
poso desta última, Francisco Xavier de Azambuja. Juntos, este casal acumulou 15 afilhados, incluindo
uma criança cativa, filha de um casal de escravos do pai de Rita. Outros dois filhos de Jerônimo, Ma-
noel Dorneles e José Raimundo Ornellas, também aparecem com frequência nos registros de batismo,
além de sua esposa, Lucrécia Lemes Barbosa.

Outro elemento que fica em evidência a partir da visualização gráfica desta rede é a formação
de grupos de relacionamento mais íntimo, que na bibliografia especializada são chamados de clus-
ters52. Na SNA, um cluster (do inglês grupo, aglomerado) consiste em um grupo de agentes mais forte-
mente relacionados, que no Grafo 1, acima, estão representados pelas diferentes cores do grafo e pelos
agrupamentos mais densos de alguns nós. Dessa forma, podemos ver que alguns agentes de nossa
rede formaram ao seu redor agrupamentos mais densos através do compartilhamento de relações em
comum. Para exemplificar, temos o grupo formado por Dionísio Rodrigues Mendes e sua esposa, Te-
resa, representando em azul claro no canto inferior esquerdo do grafo. Já a rede de relacionamentos do
casal Francisco Azambuja e Rita de Menezes aparece em verde escuro, na parte superior da imagem.

A representação do grafo através desses grupos de relacionamento permite, por outro lado,
identificar a existência de intermediários sociais no interior desta rede, agentes que mantinham laços
de relacionamento com diferentes grupos. A importância desses agentes se dava justamente pela inter-
mediação que poderiam realizar entre os diferentes estratos sociais, sendo frequentemente procurados
por fornecer acesso a pessoas, informações ou recursos valiosos. Por essa razão, a bibliografia aponta
a importância estratégia desses agentes no interior das redes sociais, também chamados de goznes ou
brokers. Para identificar esses sujeitos em uma rede utilizamos uma métrica chamada Centralidade de
Intermediação, ou Betweenness Degree, índice que quantifica o número de vezes que um nó age como
‘ponte’ entre dois outros nós. Em nossa rede, esse papel é desempenhado por diferentes agentes, mas o
já citado Pedro Lopes Soares (no grupo azul escuro, situado no canto superior direito) se destaca com
uma métrica muito acima de seus familiares. Isso demonstra o papel chave que cumpria a este genro
de Dionísio Rodrigues Mendes no interior do grupo, e poderia explicar, ao menos parcialmente, sua
ascensão a cargos importantes da vida pública local nos anos seguintes.
51BRUGGER, Silvia M. J. Minas Patriarcal: família e sociedade, São João del Rei, séculos XVIII e XIX. São
Paulo: Annablume, 2007.
52WASSERMAN & FAUST, Op. Cit. p. 240.

981
Para que possamos compreender melhor os papéis de cada agente desta rede, vejamos, então,
as métricas individuais de alguns de seus membros:

In-Degree Out-Degree Betweenness Closeness Eigenvector


Beatriz Barbosa Rangel 28 0 9719,14 0,002 0,031
Dionísio Rodrigues Mendes 28 0 6534,095 0,002 0,035
Pedro Lopes Soares 22 10 11970,627 0,002 0,045
Gertrudes de Menezes 20 0 6181,275 0,002 0,017
Rita de Menezes 20 4 6329,53 0,002 0,014
Francisco Xavier Azambuja 18 4 3460,398 0,002 0,015
Maria Teresa de Jesus 14 10 4957,049 0,002 0,036
Manoel Gonçalves Meireles 12 6 5683,212 0,002 0,017
Jose Raimundo de Ornelas 11 0 3165,587 0,001 0,005
Teresa Maria de Jesus 10 5 1706,99 0,002 0,028
Lucrécia Leme Barbosa 10 0 2374,41 0,001 0,003
Jose Fernandes Petim 8 4 3771,434 0,001 0,004
Tabela 1: Métricas dos padrinhos preferenciais – famílias Mendes e Ornellas

Fonte: Livros 1 e 2 de batismos de Viamão

Como já apontado, destaca-se a centralidade dos agentes mais relacionados. Comumente for-
mado por homens e mulheres de renome na comunidade, seja por seu status socioeconômico, seja
pelos cargos ou patentes ocupados, o grupo dos chamados campeões de batismos respondia por um
número destacado de apadrinhamentos em comunidades do período colonial. No caso da rede em
análise, considerando apenas os padrinhos com InDegree de dois dígitos, temos 11 agentes relacio-
nados. Se considerarmos apenas as relações destes agentes, teríamos ao todo 193 laços de compadrio
formados no período analisado para este trabalho. Este é um dado bastante impressionante, se consi-
derarmos que a população da freguesia não deve ter ultrapassado 2000 almas até o final da década de
1760. Isto significa que este núcleo familiar ampliado, considerando apenas suas relações de compa-
drio, mantinha relações com algo em torno de 20% da população da freguesia.

Rita de Menezes, por exemplo, acumulou 20 compadres no período. Considerando os 18


vínculos de seu esposo, Francisco (alguns deles compartilhados), podemos afirmar que este casal era
extremamente bem relacionado naquela comunidade. Entre seus compadres, aparecem proprietários
de terras, colonos, um padre e também um casal de escravos, além de irmãos(ãs) e cunhados(as). A
irmã Gertrudes Magna de Menezes, por seu turno, apadrinha 12 crianças, sendo uma das pessoas
que apresenta o conjunto de relações mais diversificado, ao incluir entre suas comadres três mulheres
escravas, além de um compadre forro.

Esta, aliás, é uma característica que chama atenção nesta rede. Apesar da predominância das
relações entre livres, a participação do substrato cativo é bastante evidente nas relações deste grupo.
Assim, temos Dionísio Rodrigues Mendes firmando relações de parentesco espiritual com três negros
cativos (escravos de Domingos Gomes Ribeiro), além de uma índia administrada do plantel de Ana
Guerra (uma prima em quarto grau de sua mulher). Sua esposa o acompanha em duas ocasiões, mas
também batiza sozinha o filho de outro casal, escravos de Francisco Manoel de Souza e Távora, ses-

982
meiro vinculado a outro grupo potentado local. As filhas de Jerônimo de Ornellas também atuam com
frequência no estabelecimento de relações sociais verticais, comparecendo como comadres de dez
negros cativos (três homens e sete mulheres), além de dois negros forros. Entre os proprietários destes
cativos, constam os sesmeiros Francisco de Távora e Domingos Ribeiro, além do cunhado Francisco
da Silva e o próprio pai, Jerônimo.

João Fragoso53 aponta que o compadrio entre estratos cativos e livres foi uma das formas de
controle adotada por famílias senhoriais no Brasil do período colonial. Assim, a linguagem do pa-
rentesco fictício tornava-se uma das maneiras de se estabelecer pactos entre senhores e seus escravos,
estabelecendo assim compromissos de lealdade e proteção, de cliente e patrão. Nessa relação hierar-
quizada, baseada em noções de disciplina e reciprocidade, não eram apenas os senhores que saíam
ganhando: reproduzindo no interior dos plantéis a estrutura estratificada que atravessava aquela so-
ciedade, os escravos que figuravam no polo 'passivo' destas relações criavam expectativas de se dife-
renciarem socialmente, o que poderia ocorrer, por exemplo, através da permissão para cultivar sua
própria terra, acessar tarefas especializadas e, quem sabe, alcançar sua alforria.

Uma das características que diferenciavam estes cativos dos demais dentro dos plantéis era
a adoção de sobrenomes ou apelidos, geralmente aqueles das famílias às quais pertenciam. Fragoso
aponta que essa não era uma relação gratuita nem generalizada, mas obedecia a estratégias de parte
a parte que concorriam para os objetivos de diferenciação e legitimidade buscados. No caso dos re-
gistros analisados aqui, esses escravos não apresentavam apelidos nem outros signos que indicassem
uma distinção em relação aos seus colegas de cativeiro; se bem que essa diferenciação poderia estar
expressa no próprio laço ritual estabelecido com seus compadres.

Voltando as relações da família Ornellas, observamos que o Jerônimo de Ornellas possui ín-
dices pouco destacados, especialmente quando confrontados com os de seu cunhado, Dionísio. Isso
pode causar certa estranheza, a princípio, por isso precisamos observar esse dado com mais cuidado.
No caso de Jerônimo, podemos observar que este não apadrinhou nenhum de seus netos, por exem-
plo, e por isso não se relaciona diretamente com outros membros da família. Por outro lado, como
mencionamos acima, este estancieiro se retirou de Viamão em 1762, transferindo sua residência para
a freguesia vizinha de Triunfo, enquanto Dionísio Mendes permaneceu, até onde sabemos, morador
do Arraial do Viamão durante todo o período. Finalmente, há de considerar a possibilidade de, assim
como outros ‘capos’ familiares, Jerônimo ocupasse outro papel na divisão de tarefas que estruturava a
atuação social de seu grupo familiar. Isso pode ser especialmente observado no papel desempenhado
por suas filhas e genros, que apadrinharam um elevado número de crianças locais.

Outra característica que fica evidente através da análise desta rede é a ampla incorporação
das mulheres às estratégias sociais familiares, ao menos quando consideramos as relações de compa-
drio. No caso da família Ornellas, vimos que o chefe de família não exerceu o papel de padrinho com
frequência, sendo as relações de parentesco espiritual da família mediadas principalmente por suas
filhas e esposa. As filhas da família Ornellas, em especial, estabeleceram uma trama densa de relacio-
namentos dentro do grupo que orbita seu núcleo familiar, junto a seus esposos. Quando contrapomos
53FRAGOSO,2010, OP. Cit., p. 260.

983
essa informação a uma presença mais discreta de seu pai junto a pia batismal, podemos concluir que,
enquanto parte de uma estratégia de atuação social, a tarefa de oferecer o dom espiritual em nome da
família ficava predominante a cargo de seus rebentos, enquanto Jerônimo possivelmente se ocupava
de outras tarefas, tais como a liderança militar do grupo e sua articulação política.

Essa atuação pode ser observada das já citadas Gertrudes e Rita de Menezes, amplamente
relacionadas através do parentesco ritual. Para além das relações verticais que já mencionamos, estas
mulheres tiveram sucesso, também, em estabelecer relações com parceiros de estrato social seme-
lhante, contanto entre estes com figuras importantes da sociedade local, proprietários de terras, gado
e escravos, como no caso de João de Magalhães, bandeirante lagunense e importante precursor na
formação da freguesia.

Considerados em conjunto, esses elementos sugerem que esse grupo soube atuar para repro-
duzir seu status social, utilizando o compadrio como parte de uma estratégia de reprodução dentro
dos moldes da hierarquia social costumeira do Antigo Regime, criando assim redes de relacionamento
que agregaram diferentes estratos daquela sociedade em uma malha complexa de interdependência
social.

Considerações finais

No presente texto buscamos produzir um breve ensaio, utilizando as ferramentas fornecidas


pela Análise de Redes Sociais para examinar algumas das características das redes de apadrinhamento
formada por famílias viamonenses no século XVIII, com o objetivo de tecer algumas considerações
iniciais a respeito da forma como a instituição do compadrio era utilizada por estas. Considerando o
referencial adotado e nossos resultados preliminares, as relações identificadas sugerem o uso do com-
padrio como parte de uma estratégia social dessas famílias. As redes apresentadas permitem identifi-
car um conjunto de alianças verticais e horizontais, onde temos, por um lado, ligações entre famílias
abastadas, que se ligavam através do parentesco ritual ao batizar os filhos uns dos outros, enquanto a
associação com outras camadas sociais indica a utilização do compadrio também para o fortalecimen-
to das relações verticais destas famílias com estratos subalternos dessa sociedade, que lhe serviam de
base social e política.

Pudemos identificar, entre outras características, uma importante participação feminina nestas
relações, onde especialmente as filhas cumpriam papel importante na construção de relações rituais.
Em seu estudo sobre as instituições do batismo e do compadrio para a região das Minas Gerais no sé-
culo XVIII, Donald Ramos54 já apontava para a importância das mulheres na construção das relações
reticulares através do parentesco espiritual, especialmente como mecanismo de reforço de relações
intrafamiliares. Essa característica fica evidenciada para as redes identificadas a partir dos registros de
batismo de Viamão, considerando a importância que as ‘donas’ cumpriam. Essas mulheres, esposas e
filhas dos potentados da terra, frequentemente aparecem como madrinhas preferenciais da freguesia,
54RAMOS, Donald. Teias sagradas e profanas: o lugar do batismo e compadrio na sociedade de Vila Rica durante
o século do ouro. Varia Historia, Belo Horizonte: UFMG, n. 31, p. 41-68, 2004. Disponível em: <https://static1.
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mos%2C+Donald.pdf>. Acesso em 06/04/2018.

984
concedendo seu dom à crianças de estratos diversificados e contribuindo, assim, para a ampliação da
clientela de suas famílias. Nesse sentido, nomes como os de Lucrécia Barbosa, Beatriz Rangel, Gertru-
des de Menezes e Rita de Menezes servem como excelentes exemplos de como as mulheres estavam
plenamente integradas às estratégias sociais das famílias proprietárias desta terra.

Por outro lado, devemos considerar que o matrimônio era outro expediente eficaz nas es-
tratégias de reprodução adotadas por grupos da elite colonial. Assim, em famílias cuja prole foi pre-
dominantemente feminina, pudemos notar que os genros também assumiram papel de destaque na
construção das redes familiares. Esses homens, que não raro eram também proprietários de terras e
membros de famílias renomadas, assumiam a função de dar continuidade ao legado familiar e, por
vezes, formavam ‘bandos’ de cunhados cuja atuação se estendia a política e economia local. Bons
exemplos são os nomes de Francisco Xavier de Azambuja e Pedro Lopes Soares.

A imagem que nos vem à mente a partir do estudo dessas relações é a de teias superpostas
no tempo e no espaço, integrando personagens de diferentes estratos sociais em intrincadas redes de
proteção, favorecimento e reciprocidade. Assim, ao analisar as redes formadas através da instituição
do compadrio por potentados da terra, o que percebemos foi uma presença regular de indivíduos pro-
venientes dos estratos econômicos inferiores daquela sociedade, surgindo como compadres-clientes
que oferecem seus rebentos como afilhados e personificam as normas de hierarquia e equidade que
atravessavam àquela sociedade. Assim, conforme Fragoso55e outros autores já demonstraram, surgem
as figuras dos senhores ‘compadres de pretos’, de colonos, de padres, de governadores, de outros se-
nhores; o esqueleto semirrígido daquela sociedade se vê transpassado por linhas imaginárias que, ao
mesmo tempo, conectam os diversos pontos da rede e mantém cada um em seu lugar.

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55 FRAGOSO, 2010, Op. Cit.

985
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Forros: lavradores de cana e chefes de domicílio - Freguesia de Campo Grande, Rio de Janeiro
(1750-1800)
Jerônimo Aguiar Duarte da Cruz *

Na distante Montaillou do século XIV, antes da Contra-Reforma, Ladurie encontrou certa per-
missividade sexual: concubinatos sem pudor e expostos à luz do dia, padres com amantes, filhos ilegí-
timos, fornicações; atitudes moralmente discutíveis à época, mas nem por isso escondidas. 56

Fato é que após o Concílio de Trento desenvolvem-se na Europa católica alguns sínodos que
visam implementar diretrizes reformistas, no que diz respeito aos sacramentos e aos costumes. Nesse
contexto, a Igreja busca impor novos padrões às relações entre parentesco e casamento, combatendo
práticas endogâmicas, por exemplo. 57

Um exemplo desse processo é a publicação das Constituições Sinodais do Arcebispado de


Braga em fins do século XVII, texto que colabora para melhor definição das regras e impedimentos
do matrimônio no norte português.58 Somam-se as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia,
1707, para o caso da América Lusa. Ambas tiveram forte influência do Concílio de Trento combaten-
do, dentre outras coisas, a permissividade sexual que resultava em altos índices de ilegitimidade – as
devassas eclesiásticas são um exemplo desse movimento de maior atuação da Igreja. 59 Segundo Scott,
as Constituições Sinodais do Arcebispado de Braga tentariam impor uma moral mais rígida quanto ao

56* Doutorando do PPGHIS/UFR, orientado pelo Prof. Dr. João Fragoso. Bolsista CNPq. E-mail: jeronimoa-
dc@gmail.com.

LADURIE, Emmanuel Le Roy. Montaillou: Cátaros e Católicos numa Aldeia Francesa 1294-1324. Edições 70,
1987, p. 217-219.
57 GOODY, Jack. Família e casamento na Europa. Oeiras: Celta Editora, 1995, p. 37-38.
58 SCOTT, Ana Sílvia Volpi. SCOTT, Ana Sílvia Volpi. Famílias, formas de união e reprodução social no no-
roeste português (séculos XVIII e XIX). Guimarães: NEPS, 1999, p. 170, p. 219.
59 TORRES-LONDOÑO, Fernando. A outra família: concubinato, Igreja e escândalo na colônia. São Paulo: Ed.
Loyola, 1999. p. 121. Ver o Cap. 5 de MACHADO, Cacilda. A trama das vontades: negros, pardos e brancos na
construção da hierarquia social do Brasil escravista. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.

987
matrimônio. No cerne da discussão está a questão ilegitimidade, a geração de filhos fora do casamen-
to. Em parte, a aplicação das diretrizes eclesiásticas visaria combater esse fenômeno. 60

No caso da América Lusa, a historiografia brasileira consolidou a tendência de que as mestiças


e pretas forras eram as responsáveis pelas altíssimas taxas de ilegitimidade. Segundo Marcílio e Faria,
forras solteiras que habitavam nas cidades tendiam ter maiores taxas devido constante migração dos
homens, teriam ainda possibilidade de autossustento através do comércio local, menos dependentes
dos maridos, etc.61

Esse cenário colaboraria para a existência de variados modelos familiares na América Portu-
guesa, especialmente, mulheres solteiras na chefia de domicílios.62 Esta variedade de famílias não seria
exclusividade da América Portuguesa, sendo discutida também para áreas da América Espanhola. 63
Em Portugal, as altas taxas de ilegitimidade associadas a chefia de domicílios por mães solteiras apa-
recem em algumas regiões. Brettell,Metcalf e Scott questionam se o respeito às normas eclesiásticas
estava atrelado ao estatuto social e indicam que a prática era mais comum nos grupos pobres,64 em-
bora a ilegitimidade dentro da elite não fosse menos comum.65 Ou seja, tal qual o caso da América a
ilegitimidade está atrelada aos segmentos menos prestigiados daquelas comunidades.

Por outro lado, alguns autores têm enfatizado a possibilidade de ex-escravos desenvolverem
matrimônios firmados frente à Igreja. Estes libertos escolheriam gerar seus filhos no casamento, filhos
legítimos. Nesses trabalhos, a ênfase está mais sobre o perfil dos cônjuges, se casais com a mesma
classificação social e condição jurídica, se casais mistos, e menos nas consequências dessas escolhas
efetuadas por ex-escravos numa perspectiva de média duração, com possíveis impactos sobre o siste-

60 SCOTT, Ana Sílvia Volpi. Op. Cit., p. 228.


61 Este tema, destacado na obra de Gilberto Freyre, tem grande repercussão na historiografia brasileira. Se-
gundo Freyre, havia uma multidão de filhos ilegítimos no Brasil. Inclusive, destaca a existência de filhos ile-
gítimos da elite, dos senhores de engenho ou mesmo dos padres. FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala:
formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2003, p. 525-531. Sobre
concubinato, Cf. SAMARA, Eni de Mesquita. Op. Cit. p. 148. Sobre a tendência de que as forras são as que mais
geram filhos ilegítimos, ver: capítulo 5 de MACHADO, C. Op. Cit. Sobre a tendência de que a ilegitimidade
era mais frequente em áreas urbanas do que rurais, ver: FARIA, Sheila. Op. Cit. 1998, p. 57. MARCÍLIO, Maria
Luiza. Op. Cit. 1986, 148-149.
62 CORRÊA, Mariza. Op. Cit. FARIA, Sheila. Op. Cit. 1998, p. 47. Sobre agregadas amásias, ver: SAMARA, Eni
de Mesquita. Op. Cit. p. 148.
63 MERIÑO, Maria de los A.F.; PERERA, A. D. Familias, agregados y esclavos. Los padrones de vecinos de
Santiago de Cuba (1778-1861). Ed. Oriente: Santiago de Cuba, 2011, p. 30-31.
64 A literatura a este respeito é vastíssima. Para uma introdução ao tema, ver: SCOTT, Ana Sílvia Volpi. Fa-
mílias, formas de união e reprodução social no noroeste português (séculos XVIII e XIX). Guimarães: NEPS,
1999, p. 213. Comparando com outras partes da Europa Ocidental, Portugal e Espanha possuíam altas taxas de
ilegitimidade. Cf. BRETTELL, Caroline B., METCALF, Alida C. Costumes familiares em Portugal e no Brasil:
paralelos transatlânticos. População e família. São Paulo, n. 5, 2003, p.132.
65 Sobre a filhos ilegítimos na elite, Cf. FREYRE, Gilberto. Op. Cit.Sobre filhos ilegítimos em famílias da elite
fluminense, ver: OLIVEIRA, Victor. Retratos de Família: sucessão, terras e ilegitimidade entre a nobreza da
terra de Jacarepaguá, séculos XVI – XVIII. Dissertação de mestrado, PPGHIS/UFRJ, 2014.

988
ma agrário de uma dada área. 66

Vale ressaltar que, segundo Goody, durante a Idade Média europeia os filhos oriundos de ma-
trimônio legítimo vão desenvolvendo valor positivo naquela cultura católica – inclusive do ponto
de vista jurídico, no que diz respeito à herança. 67 Segundo Stolke, “pessoas de nascimento ilegítimo
sofriam discriminação social por conta das incertezas que cercavam sua limpeza de sangue”. 68 Sheila
de Castro Faria também destaca a importância da procriação legítima como um costume virtuoso
naquela sociedade católica. 69 Claro que a opção pelo matrimônio não exclui a existência de filhos
bastardos. 70

Desta forma, este artigo busca demonstrar que o estudo do fenômeno da legitimidade entre
ex-escravos, da organização das suas estruturas familiares e dos seus parentescos tem papel funda-
mental na compreensão das dinâmicas rurais de uma área produtora de açúcar nas bordas da cidade
do Rio de Janeiro de fins do século XVIII, revelando indícios das suas transmissões patrimoniais,
modalidades de sucessão e acesso à terra entre lavradores de cana.71

Além disso, o processo de formação de família entre os libertos demonstra as intencionalida-


des desses agentes históricos e a própria capacidade de realização dessas estratégias frente aos demais
agentes e grupos sociais. No interior desse circunscrito universo de relações - a freguesia de Campo
Grande,as parentelas consanguíneas e rituais aparecem como configurações sociais em que os agentes
se inserem, com dinâmicas de poder que delineam os lugares sociais dos diferentes estratos daquela
sociedade. No nosso caso, esse estudo procura colaborar na compreensão das especificidades de um
estrato específico de ex-escravos: os pardos forros enquanto segmento social, através da trajetória da
família Mattos.72

A Freguesia de Campo Grande e os partidos de cana

66 Cf. SAMARA, Eni. A família negra no Brasil: escravos e libertos. VI Encontro Nacional de Estudos Popu-
lacionais, Anais. Olinda: APEB, 1988. LEWKOWICZ, Ida. Herança e relações familiares: os pretos forros nas
Minas Gerais do século XVIII. Revista brasileira de História. SP, n 17. SCHWARTZ, S. B. Op. Cit., 1988. LARA,
Silvia Hunold. Campos da Violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1988. SLENES, Robert. "Escravidão e família: padrões de casamento e estabilidade familiar
numa comunidade escrava (Campinas, século XIX)", Estudos Econômicos, v.17, n. 2, 1987. EISENBERG, Peter
L. Op. Cit. Muitos desses autores inspirados na obra de GENOVESE, Eugene D. A terra prometida: o mundo
que os escravos criaram. Rio de janeiro: Paz e Terra/CNPq, 1988.
67 GOODY, Jack. Op. Cit. p. 70-71, p. 123-124, p. 175-176.
68 STOLKE, V. O enigma das interseções: classe, “raça”, sexo, sexualidade. Estudos Feministas, Florianópolis,
14(1): 15-42, jan-abr/2006, p. 24.
69 FARIA, Sheila. Op. Cit. p. 95-96.
70 CABRAL, João de Pina. Filhos de Adão, filhas de Eva. Minho: Publicações Dom Quixote, 1989, p. 83.
71 Sobre as diversas formas de organização familiar e sucessão patrimonial, Cf. BURGUIÈRE, André. Uma
geografia das formas familiares. In: BURGUIÈRE, André et al., História da Família: Mundos longínquos Histó-
ria da Família, vol III, Lisboa, Terramar, 1996. Sobre o parentesco enquanto esquema de valores na reprodução
camponesa, ver: WOORTMANN, Elle F. Herdeiros, parentes e compadres: colonos do Sul, sitiantes do Nordes-
te, São Paulo-Brasília: HUCITEC, Ed. UNB, 1995.
72 BARTH, Fredrik. Por um maior naturalismo na conceitualização das sociedades. In: LASK, Tomke (Org.).O
guru, o iniciador e outras variações antropológicas.Rio de Janeiro: Contra Capa. 2000. ELIAS, Norbert. Intro-
dução à Sociologia. Lisboa: Edições 70, 1995. GRENDI, Edoardo. Microanálise e história social. In: ALMEIDA,
Carla e OLIVEIRA, Mônica. (Org.). Exercícios de micro-história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009.

989
A freguesia de Campo Grande era uma área rural que estava submetida à cidade do Rio de
Janeiro e, desde o século XVI, produzia açúcar.Duzentos anos depois, em 1797, Campo Grande era
caracterizada pela produção de açúcar e gêneros alimentícios. Segundo o seu mapa populacional, a
região possuía 14 engenhos de açúcar e 357 domicílios, dos quais, 210 foram classificados como par-
tidistas de cana, 73 ocupando terras diretamente “amarradas” aos engenhos.

Essa organização da terra remete a um modelo presente em outras áreas açucareiras do Impé-
rio ultramarino português, como Madeira ou o recôncavo baiano. 74 Consistia num sistema que sepa-
rava o cultivo da cana e o fabrico do açúcar entre senhor de engenho e lavradores. Schwartz afirma que
este sistema se disseminara na produção açucareira de Pernambuco e Bahia a partir do século XVI.
No entanto, tal modus operandi não era comum a todas as áreas açucareiras do Atlântico, divergia do
sistema caribenho, por exemplo. No Caribe prevaleciam as unidades integradas de produção, onde
apenas uma grande quantidade de mão-de-obra escrava trabalhava em plantations para somente um
proprietário. 75

Segundo Maurício Abreu, este modelo descrito por Schwartz para a Bahia é estabelecido tam-
bém no Rio de Janeiro, de modo geral, desde o alvorecer do século XVII.76 Tais lavradores plantavam
suas canas e estabeleciam suas famílias em “parcelas de terra do senhor de engenho, os “partidos”, por
isso eram chamados partidistas. Em pagamento pelo uso do solo e beneficiamento de suas canas divi-
diam com o senhor de engenho uma parte do seu açúcar”. 77

De antemão, devemos sinalizar a ínfima quantidade de trabalhos de fôlego sobre a economia


açucareira fluminense da segunda metade do Setecentos. Ao analisar a produção econômica do Rio
de Janeiro deste período, Pesavento indica esta deficiência.78 Há alguns textos sobre o tema e período
em questão, no entanto, não avançam muito. 79Por outro lado, sabemos algumacoisa para São Paulo

73Mapa descritivo das populações do Distrito de Guaratiba, 1797. AHU_ACL_CU_005, Cx. 163, Doc. 12203.
74 Evaldo Cabral de Mello postula esta tese que é compartilhada por Schwartz. A organização da terra entre
partidistas aparece também em São Paulo. MELLO, E. C. Um imenso Portugal: história e historiografia. SP: Ed.
34, 2002, p. 71-72. SCHWARTZ, S. O nordeste açucareiro no Brasil Colonial. In: FRAGOSO, J.; GOUVÊA, M.
F. (orgs.). O Brasil Colonial (1580-1720). RJ: Civ. Brasileira, 2014. p. 337-378. GUEDES, Roberto. Egressos do
cativeiro: trabalho, família, aliança e mobilidade social (Porto Feliz, São Paulo, 1798-1850).Rio de Janeiro: Ed.
MAUADX, 2008, p. 43-48. FERNÁNDEZ, R V. G. Os lavradores de cana de São Sebastião. Revista Inst. Est.
Bras. São Paulo, n 40, 1996.
75 SCHWARTZ, S. Op. Cit. 2014. p. 337-378.
76 ABREU, M. A. Geografia Histórica do Rio de Janeiro (1502 – 1700), Vol. 2. Rio de Janeiro, Ed. Andrea
Jakobsson Estúdio e Prefeitura do Município do Rio de Janeiro,2010. p. 108.
77 Idem, p. 104-111.
78 PESAVENTO, Fábio. Um pouco antes da Corte: a economia do Rio de Janeiro na segunda metade do Sete-
centos. Niterói: Tese de doutorado, UFF. 2009.
79 Sobre produção açucareira fluminense: COSTA, Iraci del Nero. Nota sobre a posse de escravos nos engenhos
e engenhocas fluminenses (1778). Revista Instituto Estudos Bras., São Paulo, n. 28, 1988, p. 111-113. Sobre
elite senhorial açucareira: FRAGOSO, João. Nobreza Principal da terra nas repúblicas de Antigo Regime de
base escravista e açucareira: RJ, séc. XVII-XVIII. In: FRAGOSO, J.; GOUVÊA, M. F. O Brasil Colonial, Vol. 3
(1720-1821). RJ: Civilização Brasileira. 2014.PEDROZA, Manoela. Engenhocas da moral: redes de parentela,
transmissão de terras e direitos de propriedade na freguesia de Campo Grande (RJ, séc. XIX). RJ: Ed. AN, 2011.
Para uma análise da Campos dos Goytacazes de fins do século XVIII, ver: FARIA, S.. A Colônia em Movimento,
Fortuna e Família. RJ: Nova Fronteira, 1998.

990
e Bahia,80mas exploramos muito pouco o Rio de Janeiro, pois os trabalhos não tocam nos aspectos
sociais da produção, nem nas dinâmicas de propriedade que a sustentam.

Demonstramos em outras oportunidades que diferentemente dos partidistas baianos do sé-


culo XVII, os partidistas campo-grandenses de fins do século XVIIIpossuem muitos indicativos de
qualidade: pardos forros, pretos, donas, capitães brancos, etc. 81Se temos 210 lavradores de cana na
freguesia, identificamos, por reconstituição familiar, 57 como pardos forros ou pretos. Esse cenário
parece ser fruto das dinâmicas sociais específicas desta metade de século, pois em várias partes da
América Lusa percebe-se uma pluralização das qualidades sociais, impulsionada pela chegada cres-
cente de escravos africanos, portugueses migrantes, pelo crescente número de alforrias e mestiçagens
socioculturais. 82

Nesse processo de complexificação social, as diversas transações dos partidos e o consequente


acesso à terra passavam pelas estratégias das famílias. Elasempregavam mecanismos que envolviam
todos os seus membros. Em outras palavras, a família é entendida como uma corporação dotada de
certa autonomia, que gerenciava a terra e todos os seus membros (filhos, agregados, criados, escravos,
etc.), de modo que as estratégias são antes da família do que dos indivíduos.83

Além disso, a família pode assumir a figura de uma pessoa moral, acima de seus membros.
Nesse sentido, há uma relação entre família e patrimônio no desenrolar das lógicas de parentesco,
objetivando a continuidade do patrimônio e de sua prole nas terras.84O estudo das formas de acesso à
terra e de reprodução social pode ser aprofundado a partir de alguns critérios. O primeiro diz respeito
80 Cf. Para Bahia, ver: SCHWARTZ, Stuart. A Commonwealth within Itself: The early brazilian sugar industry,
1550-1670. In: Tropical Babylons: sugar and the making of the Atlantic World, 1450-1680.North Carolina: Uni-
versity of North Carolina Press. 2004, p. 183. RUSSEL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil Colonial.
RJ: Civilização Brasileira, 2005, p. 254. SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na socie-
dade colonial, 1550-1835. SP: Companhia das letras, 1988, p. 253-254. BARICKMAN, B. J. Um Contraponto
Baiano, Açúcar, Fumo, Mandioca e Escravidão no Recôncavo 1780-1860. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2003. FERLINI, Vera Lúcia Amaral. A subordinação dos lavradores de cana aos senhores de engenho: Tensão e
conflito no mundo dos brancos. Revista Brasileira de História, São Paulo. v.6, nº 12, 1986. Para São Paulo, ver:
FERLINI, Vera Lucia Amaral. Sociedades Açucareiras no Mundo Ibérico: estudo comparativo. XXVIII Simpó-
sio Nacional de História. ANPUH: Florianópolis, 2015. EISENBERG, Peter L. Homens Esquecidos: Escravos
e trabalhadores livres no Brasil (séculos XVIII e XIX). Campinas: Ed. da UNICAMP, 1989, p. 350. GUEDES,
Roberto. Op. Cit.
81Ver Capítulo 1: CRUZ, Jerônimo A. D. Das muitas qualidades: lavradores de cana numa freguesia rural do
Rio de Janeiro (Campo Grande, 1740-1799). Dissertação de Mestrado – PPGHIS/UFRJ, 2018.
82Sobre a discussão sobre qualidade, ver: RAPPAPORT, Joanne ¿Quién es mestizo? descifrando la mezcla ra-
cial en El Nuevo Reino de Granada, siglos XVI y XVII. Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 25, nº 41: p.43-60,
jan/jun, 2009, p. 46-47. PAIVA, E.F. Dar nome ao novo: uma história lexical da Ibero-América entre os séculos
XVI-XVIII. BH: Ed. Autêntica, 2015. GUEDES, Roberto. Egressos do cativeiro: trabalho, família, aliança e mo-
bilidade social (Porto Feliz, São Paulo, 1798-1850).Rio de Janeiro: Ed. MAUADX, 2008, p. 69-126.
83 A família como corporação: HESPANHA, António Manuel. A Ordem. In: Imbecillitas. SP: Ed. AnnaBlu-
me, 2010. A família é o sujeito principal das estratégias de reprodução social, diria Bourdieu. Cf. BOURDIEU,
Pierre. Razões práticas: sobre teoria da ação. Editora: Papirus, 1997. p. 130-133. CABRAL, João de Pina. Op.
Cit. p. 65, p. 75. A família organiza a distribuição da parentela. WOORTMANN, Elle F. Herdeiros, parentes e
compadres, São Paulo-Brasília: HUCITEC, Ed. UNB, 1995.
84CAMPS, Joan Bestard. La estrechez del lugar. Reflexiones en torno a las estrategias matrimoniales cercanas.
In: JIMÉNEZ, F. C.; FRANCO, Juan Hernández (Eds.) Poder, familia y consanguinidad en la España del Anti-
guo Régimen. Barcelona: Anthropos Ed. del Hombre. 1992, p.133-135.

991
a legitimidade dos relacionamentos e dos filhos.

Ainda que não tenhamos testamentos ou inventários, acredito que podemos perseguir alguns
indícios da transmissão patrimonial dessas famílias. Esteé um dos eixos para analisar a reprodução so-
cial naquelas comunidades - herança como transmissão do direito de propriedade e sucessão familiar
como transmissão do status e dos papéis sociais para os descendentes. 85

Ressaltamos que há alguns estudos sobre as formas de reprodução social das elites. 86 No caso
da elite fluminense, a família possui uma vasta parentela, aliados e amigos, são compadres de escravos
e pardos forros, como bem demonstra Fragoso para as freguesias rurais do Distrito de Guaratiba.87 No
entanto, vamos trilhar outro caminho. A ênfase cairá sobre a autonomia das famílias de lavradores,
ressaltando como eles desenvolvem sua permanência na terra a partir de suas estratégias.

Classificações sociais e Legitimidade

Quadro 1. Indicativo de qualidade da mãe e legitimidade das crianças batizadas na freguesia


de Campo Grande, Rio de Janeiro (1750 – 1790)

1750 1790
Indi-
Legí- Ile- % de Legí- Ile- % de
cativo de quali-
timos gítimos legitimidade timos gítimos legitimidade
dade
Livre,
sem cor, sem 62 3 95 275 34 88,9
título
Dona 28 0 100 53 0 100
Parda
32 9 78 163 72 69,3
forra
Preta
5 1 80 46 25 64,7
forra
Ou-
- - - - - -
tros
Ex-
0 22 - 0 67 0
postos
127 35 78,3% 537 198 73%
Totais
162 735

Fonte: Dados coletados em Livro de batismos de Livres e Escravos da freguesia de Nossa Senhora do
Desterro de Campo Grande, 1750-1799. Banco de dados do grupo de pesquisa Antigo Regime nos Trópicos,
CNPq.
85 PEDROZA, Manoela. Op. Cit., p. 144.
86 Para um texto importante sobre a reprodução social da alta aristocracia portuguesa, ver:   MONTEIRO,
Nuno G.  - Monteiro, Nuno G. Casa e Linhagem: o vocabulário aristocrático em Portugal nos séculos XVII e
XVIII. Penélope – Fazer e Desfazer a História, n. 12, 1993. Este conceito tem sido empregado por João Frago-
so para trabalhar com a nobreza da terra, no Rio de Janeiro, ver: FRAGOSO, João. Capitão Manuel Pimenta
Sampaio, senhor do engenho do Rio Grande, neto de conquistadores e compadre de João Soares, pardo: notas
sobre a hierarquia social costumeira (Rio de Janeiro, 1700-1760). In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, M. F. (Orgs.).
Na trama das redes: política e negócios no império português, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2010.
87 Sobre as relações de compadrio entre a elite senhorial e forros, ver: FRAGOSO, João. Op. Cit. 2010. GUE-
DES, Roberto. Op. Cit. Nazzari caracteriza a família extensa da elite paulista como clã, que envolve uma vasta
parentela, além de parentes, amigos e aliados. NAZZARI, M. O desaparecimento do dote, 1600-1900. Rio de
Janeiro: Companhia das Letras, 2001.

992
Um dos primeiros aspectos diz respeito as escolhas matrimoniais do conjunto da população da
freguesia de Campo Grande. Acima podemos identificar o comportamento do conjunto de mães para
as décadas de 1750 e 1790. Baseado nos registros paroquiais de batismo dos livres, dividimos as mães
a partir das classificações que lhes eram imputadas no momento do batismo. Vemos que os indicati-
vos de qualidade podem mesclar cor e condição jurídica como a categoria parda forra ou indicam o
pertencimento à elite local, como dona.

Vemos que a prática do matrimônio era disseminada em todos os segmentos e já estava se-
dimentada na década de 1750, ainda que as mães com qualidade de cor tivessem maior tendênciaà
ilegitimidade.

As taxas de legitimidade caem no momento de crescimento da população campo-grandense. E


isto em todos os segmentos. Mesmo assim, não ficam muito distantes dos universos rurais fluminen-
ses,88 mas ficam acima dos níveis para áreas não rurais da capitania de São Paulo. 89

Segundo Scott, a ilegitimidade pode ser dividida em cinco escalões: prole natural, prole espú-
ria, prole incestuosa, prole adulterina e prole sacrílega. Filhos naturais são os que podiam ser legiti-
mados com maior facilidade, frutos de cópula ilícita. Espúrios são os filhos cujos pais possuem algum
impedimento, cópula proibida. Os incestuosos e adulterinos são autoexplicativos, já os sacrílegos re-
ferem-se aos filhos de padres. 90

Uma advertência. O fato de algumas mães não terem seus parceiros mencionados na hora do
batismo (pais incógnitos) indica que a igreja católica inibia a menção de pais em circunstância de
ilegitimidade (seja adulterina, natural, incestuosa, etc),91 ainda que o pai estivesse ao lado da mãe no
momento do ritual – no entanto, a menção aos pais junto das mães no momento do batismo parece
ter sido comum em freguesias do Rio de Janeiro do século XVII. 92 De todo modo, os filhos de mães
solteiras são vistos como frutos de relacionamentos ilegítimos e são classificados como prole natural
em nossas fontes. Por outro lado, todas as mães casadas caracterizam nascimentos legítimos.

Destacamos a variação dos indicadores de acordo com a classificação das mães. Havia uma
clara desigualdade nas práticas de legitimidade, o que delineava o lugar social das mães da freguesia.
Grupos como donas ou mães livres, sem menção à cor e sem título ficam acima dos 95% de legitimida-
de na década de 1750 e acima dos 88% na década de 1790. Por outro lado, mães pretas forras aparecem
com 64,7% dos filhos legítimos no último período. Dito de outro modo, 35,3% das mães pretas forras
eram mães solteiras na década de 1790. Enquanto que apenas 11,1% das mães livres, sem menção à
cor e sem título eram solteiras. Entre as donas, segmento com mais prestígio social, nenhuma mãe era
solteira.

A estes dados acrescentamos que o mapa populacional da freguesia de Campo Grande, escrito
88Faria apontou que mais de 80% dos filhos nasciam na legitimidade em freguesias fluminenses de fins do
século XVIII. FARIA, S. Op. Cit., p. 157.
89Marcílio apontou 60% de legitimidade em áreas de São Paulo. MARCÍLIO, M. L. Op. Cit., p. 93.
90SCOTT, Ana Sílvia Volpi. Op. Cit., p. 170, p. 219.
91FARIA, Op. Cit., 1998, p.72.
92RIBEIRO, Julia. Op. Cit., 2015, p. 55-56.

993
em 1797, demonstra que 80% dos lavradores de cana eram casados ou viúvos. E a partir das nossas fi-
chas genealógicas, identificamos que, ao contrário da taxa de legitimidade da década de 1790 (69,3%),
em 1797, 90% dos chefes de domicílio pardos forros eram casados. Entre os chefes de domicílio, la-
vradores de cana e pretos forros, 70% eram casados/viúvos. Entre os livres, sem menção à cor e sem
título, apenas 4,6% eram solteiros. Ou seja, entre os lavradores de cana a legitimidade parece ter sido
mais alta do que a média da população como um todo, inclusive, entre pardos forros.

Esses dados demonstram a importância da família entre os lavradores de cana, pois a maioria
era composta por casais e seus filhos. Por outro lado, indicam para desigualdades quanto ao casamen-
to de acordo com os indicativos de qualidade dos agentes, mesmo entre os chefes de domicílio.

Essas informações demonstram a relevância do estudo dos arranjos familiares no entendimen-


to do sentido das hierarquizações sociais no campo e para modalidades de acesso à terra. Acreditamos
que o parentesco representa um esquema de valores, uma linguagem para as relações de propriedade,
e a busca por analisar as estratégias de composição familiar torna-se fundamental para entender tais
direitos, como também aponta para possíveis diferenciações de valores entre distintos segmentos so-
ciais. 93

Os pardos forros aparecem como segmento com ampla adesão às práticas de legitimidade,
ainda que cerca de 20-30% de seus filhos pudessem nascer em condições ilegítimas, 90% dos lavra-
dores de cana pardos eram casados. Tentaremos compreender as especificidades desse conjunto de
ex-escravos lavradores de cana que apela para legitimidade. Para isso, nos aproximamos da trajetória
dos Mattos.

A família Mattos

Acreditamos que a construção das hierarquias sociais e a formação dos valores dos agentes po-
dem ser percebidos na maneira como os mesmos desenvolvem suas famílias. A presença de interações
entre grupos ou a ausência das mesmas nos níveis do matrimônio e da parentela consanguínea podem
indicar as diferenças entre os estratos sociais de uma dada área. A pertença a um segmento social ou
outro é entendida também como um processo, visível nas configurações familiares. 94

Num forte apego à terra e à freguesia, os lavradores vão casando seus filhos de acordo com os
valores das suas famílias. Diferente dos criados, caseiros ou agregados, os lavradores chefes de domi-
cílio possuem acesso estávelà terra, preservando-se nos bairros rurais, mantendo seus nomes e costu-
rando intensas relações de vizinhança e parentesco no decorrer da segunda metade do século XVIII.

Destarte, nos aproximamos da trajetória da família Mattos. Em 1741, Gonçalo de Mattos com-
pra uma faixa de terra na freguesia de Campo Grande. De acordo com a escritura de compra, a pro-
priedade estava localizada no bairro chamado Guandu-mirim, indicando proximidade com um dos
93 WOORTMANN, Ellen F. Op. Cit., p. 82.
94BARTH, Fredrik. Os grupos étnicos e suas fronteiras. In: LASK, Tomke (Org.).O guru, o iniciador e outras
variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa. 2000.

994
pequenos rios que até hoje cortam a região.95 Através dos registros paroquiais descobrimos que o local
das terras de Gonçalo também era chamado simplesmente de Guandu ou Guandu do Mendanha,
como será identificado em 1797.

Gonçalo aparece como um simples carpinteiro,96 natural da freguesia de São Gonçalo, que
chega por volta de 1720 em Campo Grande e que, vinte anos depois, aparece como um pequeno pro-
prietário. Em vários momentos, Gonçalo era classificado como pardo-forro, assim como sua mulher,
Leonor de Melo.

Como veremos, suas estratégias culminam em mais de sessenta anos de acesso à terra, se pro-
longando até começos do século XIX. Formam uma família forjada na antiguidade de seu nome e de
suas terras. Isso fica claro na escritura abaixo.

“Escritura de doação de terras para instituição de patrimônio que fazem o Ca-


pitão José Álvares de Azevedo e sua mulher Dona Clara Rosa do Sacramento
a seu filho José Álvares Pinto de Azevedo – com 125 braças de testada e meia
légua de sertão, sitas na freguesia do Campo Grande, fazendo a testada pelo
pé e redondezas da serra do Gericinó e sesmaria que foi do Capitão Antonio
Coelho Cão, e que hoje pertencem ao padre Antonio do Couto da Fonseca e
quem mais de direito for, que partem de uma banda com terras dos herdeiros
de Gonçalo de Matos e da outra com quem de direito pertencer, compradas ao
Alferes João Barbosa da Silva e sua mulher Mariana Joaquina em 11/10/1796.”
11 de Julho de 1804. 97 [grifo nosso]

A escritura é de 1804, 63 anos após a compra realizada por Gonçalo de Mattos. No entanto,
sua família permanecia conhecida na pequena freguesia açucareira. Em torno da família se articulam
valores e artimanhas para promover a continuidade do patrimônio e de sua prole na freguesia. Na lista
nominativa de 1797, os Mattos possuem muitos descendentes como chefes de domicílio, em 1797.

Vejamos a genealogia.
Genealogia dos Mattos

Gonçalo de Mattos, pardo forro, é natural de São Gonçalo. Por volta de 1715, junto com sua
esposa Leonor de Mello, parda forra, migra para a freguesia de Campo Grande. Em 1743 compra ter-
ras no Guandu. Do casal nascem:

F1. Marcela de Mello, parda forra, casa com José da Silva.

F2. Pedro Celestino, pardo forro, casa com Maria Joaquina.

F3. Antônio de Mattos, pardo forro, casa com Ana de Oliveira, parda forra.

F4. Manoel de Mattos casa com Clara de Oliveira.

95 Guandu. Disponível em: http://www.comiteguandu.org.br/rio-guandu-mirim.php. Acessado em 20/05/2018.


96 Sobre a importância do trabalho para ex-escravos, ver: GUEDES, Roberto. Op. Cit. 2008.
97Arquivo Nacional, 4º Ofício de Notas, 122, p. 138v. Disponível em http://mauricioabreu.com.br/escritu-
ra?id=4936. Acessado em 05/03/2018.

995
F5. Maria de Mattos casa com Francisco da Costa Macedo.

F6. Luiza de Mello, parda forra, com Manoel Rodrigues Chaves.

F7. Bernardina de Azevedo casa com Antônio Furtado de Mendonça.

F1. Marcela de Melo, parda forra, é natural de Campo Grande, nascida em 1718. Casa-se em
1745, com José da Silva, natural de Lisboa, filho legítimo de Antônio da Silva e de Maria Pereira. Nas-
cem do casal:

N1. Josefa Maria é natural de Campo Grande. Casa-se com Inácio Madureira, natural de São João de
Meriti, filho legítimo de Inácio Madureira de Veiga e Maria Amorim Soares. Em segundas núpcias
casa com Pedro Marques Barcelos, natural de Marapicu, filho legítimo de Antônio Marques de Barce-
los e Germana Freire.

N2. Inácio Manoel da Silva é natural de Campo Grande. Casa-se com Ana de Jesus, natural de São
João de Meriti, exposta.

F2. Pedro Celestino pardo-forro, nascido em 1743, é natural de Campo Grande. Em 1766, ca-
sa-se com Maria Joaquina, natural de Irajá, exposta. Do casal nascem:

N3. Brízida Maria, parda forra, natural de Campo Grande, nascida em 1778. Em 1790, casa-se
com Ambrózio de Souza Coutinho, filho de Clara Maria de Jesus, parda forra, e de pai incógnito.

N4. Ângela Maria Joaquina, parda forra, nascida em 1770, natural de Campo Grande. Em
1789, casa-se com João Pereira, exposto.

F3. Antônio de Mattos, pardo-forro, é natural de São Gonçalo. Em 1750casa-se com Ana de
Oliveira, parda-forra, filha natural de Jerônimo da Encarnação e de Maria da Cruz de Oliveira, natural
de Campo Grande, nascida em 1737. Em 1797, já viúva, Ana de Oliveira é chefe do fogo 30, sem plan-
tação, nem definição de acesso à terra, no lugar do Guandu. Do casal nascem:

N5. Maria da Cruz, nascida em 1760, é natural de Campo Grande. Em 1774, casa-se José Ca-
bral de Melo, natural de Marapicu, filho legítimo de Lourenço Cabral de Melo e de Josefa Maria.

N6. Ana Maria, nascida em 1763, é natural de Campo Grande. Em 1781, casa-se com Inácio
Pereira da Costa, natural de Campo Grande, filho legítimo de Francisco Pereira da Costa (português)
e de Maria da Assunção.

N7. Rosa Maria de Jesus, parda-forra. Em 1785, casa-se com Vicente Ferreira, pardo-forro,
natural da Sé. Filho de Sulana de Araújo, parda liberta, e de pai incógnito. Vicente Ferreira é chefe do
fogo 37, partidista no Guandu.

996
N8. José de Mattos, pardo-forro, natural de Campo Grande, nascido em 1753. Em 1788, casa-
-se com Joana de Souza, parda-forra, filha legítima dos pardos forros João dos Anjos e de Antônia de
Souza. Viúva, sua sogra é chefe do fogo 25, partidista no Guandu. José de Mattos é proprietário das
terras do Guandu, fogo 39.

N9. Josefa Maria da Conceição, parda-forra, nascida em 1776, é natural de Campo Grande.
Em 1795, casa-se com o pardo-forro Francisco Batista Suzano, natural de Irajá e filho de Maria Luiza,
parda liberta, e de pai incógnito. Francisco é chefe do fogo 38, partidista no Guandu.

N10. Joaquim de Mattos, pardo-forro, nascido em 1756, é natural de Campo Grande. Casa-se
com Francisca Joaquina, parda-forra. Em 1797, Joaquim é chefe do fogo 40, proprietário de terras no
Guandu.

F6. Luiza de Mello, parda-forra, é natural de São Gonçalo. Em 1747, casa-se com Manoel Ro-
drigues Chaves, natural de Braga, filho legítimo de Manoel Rodrigues e de Maria Gonçalves. Do casal,
nascem:

N11. Antônio Rodrigues Chaves, pardo-forro. Em 1765, casa-se com Maria das Candeias, par-
da-forra, natural de Campo Grande, filha legítima dos pardos forros José de Barcelos e Ana Freire. Do
casal:

BN1. Maria do Desterro, nascida em 1767, natural de Campo Grande. Em 1783, casa-se com
Alexandre José, natural de São Miguel, nos Açores. Filho legítimo de Manoel da Costa. Alexandre José
é chefe do fogo 31, partidista no Guandu do Mendanha.

BN2. Sebastiana Rodrigues, parda-forra. Em 1795, casa-se com Manoel Nunes, filho legítimo
dos pardos forro Inácio Nunes e Joana Maria. Seu sogro é chefe do domicílio 353, partidista no Rio da
Prata. É cunhada de João Barbosa, pardo-forro, partidista no fogo 72, Campinho, casado com Beatriz
Maria, parda-forra.

BN3. Luiza Maria é natural de Campo Grande, nascida em 1778. Em 1794, casa com Manoel
de Melo, filho legítimo de José de Melo e Quitéria Maria. José de Melo é natural dos Açores e partidista
no fogo 48, Mendanha, casado com Quitéria Maria, parda forra, natural da cidade do Rio de Janeiro.

Esta genealogia é bastante rica. Conseguimos identificar vários ramos da família por mais de
80 anos, revelando nuances das classificações sociais, escolhas matrimoniais e indícios da transmissão
patrimonial da parentela.Os Mattos possuem a qualidade pardo forro, que os acompanha durante toda
a segunda metade do século XVIII. São quase sempre pardos forros, ainda que nunca tenham sido
escravos no período.Claro que esse indicativo de qualidade variava circunstancialmente. Por exemplo,
quando apareciam como proprietários da terra ou como senhores de uma escrava, a cor sumia. No
entanto, a cor vinha constantemente em todos os livros consultados, demonstrando mais do que um

997
aspecto prático referente à condição jurídica, uma qualidade social.98

Destaca-se ainda o fenômeno da legitimidade nessa grande família de descendentes de es-


cravos.Todos os membros da família se casam frente à Igreja, embora o perfil dos cônjuges variasse
significativamente de acordo com o ramo familiar: os cônjuges possuíam indicativos de qualidade que
iam do português ou açoriano pobre até filhos de libertos. 99

Em trabalhos sobre as freguesias de São Gonçalo e Campo Grande para o século XVIII, Ri-
beiro e Tostes demonstraram que a ilegitimidade estava atrelada a mulheres cativas em processo de
mobilidade social. Essa condição de mães solteiras, com seus filhos ilegítimos, não seria um problema.
Nessas circunstâncias, a
““opção” pela “solteirice” era reflexo de estratégia: podia ser socialmente mais inte-
ressante ter um filho ilegítimo fruto do intercurso sexual com homens livres do que
casar-se com um escravo. Apesar dos entraves sociais da condição de mãe solteira
diante de uma sociedade católica, as relações com homens de condição social e ju-
rídica superior podiam resultar em acesso à terra, padrinhos de qualidade social,
acumulação de recursos materiais e até mesmo na possibilidade da alforria”. 100

Francisco Batista Suzano era filho de uma ex-escrava e de pai desconhecido, e isso não foi em-
pecilho para que se casasse com Rosa Maria de Jesus (N7) – integrante de uma parentela baseada na
legitimidade. Diferentemente do grupo de escravas, tal qual demonstrado pelos trabalhos de Tostes e
Ribeiro, a legitimidade é um valor buscado pela família dos pardos forros. No entanto, esses pardos
podem incorporar filhos ilegítimos, gerados continuamente por escravas e ex-escravas.

Por outro lado, casam alguns de seus descendentes com filhos legítimos e mesmo com alguns
forasteiros. É o caso do açoriano Alexandre José, casado com a parda-forra Maria do Desterro (BN1),
do bracarense Manoel Rodrigues Chaves que se casa com a parda-forra Luiza de Mello (F6), ou do
lisboeta José da Silva, casado com a parda-forra Marcela de Mello (F1).

Nesse cenário, os Mattos aparecem como incorporadores de forasteiros de freguesias vizinhas


ou do Reino, no entanto, acrescentam uma novidade: trazem também filhos naturais e ilegítimos de
ex-escravas solteiras como noivos de sua prole.

Seguindo na análise, notamos algumas peculiaridades nos indícios de transmissão patrimo-


98 Em 1806, Ana de Oliveira aparece como proprietária da escrava Maria. A escrava preta Maria estava se ca-
sando com Antônio, pardo escravo de José de Mattos. Os cônjuges eram escravos de membros da mesma famí-
lia, pois Ana de Oliveira era mãe de José de Matos, embora morassem em domicílios diferentes. O mais curioso
é que nos registros de batismo, José de Mattos e Ana de Oliveira foram classificados como pardos forros, mas
no momento do casamento de seus escravos estão sem cor. Fonte: Livro de batismos de Livres e Escravos da
freguesia de Nossa Senhora do Desterro de Campo Grande, 1705-1811. Disponível em<http://familysearch.
com> Acesso em 23 jun.15, 18:00:00. Habilitações matrimoniais da freguesia de Nossa Senhora do Desterro de
Campo Grande. Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro.
99 Sobre o casamento de pardas com portugueses. GUEDES, Roberto. O vigário Pereira, as pardas forras, os
portugueses e as famílias mestiças. Escravidão e vocabulário social de cor da freguesia de São Gonçalo (Rio de
Janeiro, período colonial tardio) In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O Brasil Colonial
(1720-1821), vol. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
100 RIBEIRO, Julia. Op. Cit. p. 126. TOSTES, Ana P. Op. Cit.

998
nial. Para início de conversa, pouquíssimos Mattos acessam a terra: dos 19 casais identificados na
família, apenas 6 aparecem como chefes de fogo, em 1797.

Em 1797, dois dos herdeiros das terras originais da família Mattos aparecem como proprie-
tários de terras no Guandu: Joaquim de Mattos (N10) e José de Mattos (N8). Estas terras são as mes-
mas compradas por Gonçalo de Mattos na década de 1740, no bairro Guandu. Ambos são netos de
Gonçalo e filhos de Antônio de Mattos (F3), o que indica que este foi escolhido para sucessão da casa
e, depois, os dois rebentos foram escolhidos para sucedê-lo. As terras dos Mattos ficam para os filhos
homens. Os membros excedentários da casa com acesso à terra são redirecionadospara os partidos
de cana dos engenhos. Nesse caso, o ingresso nos partidos passa diretamente pelas estratégias dessas
famílias de lavradores.

Podemos aprofundar a análise dos partidistas pardos forros através do levantamento da naturalidade
dos chefes de domicílio da freguesia. A partir de um intenso cruzamento de dados identificamos a
naturalidade e indicativos de qualidade dos chefes de domicílio da freguesia no ano de 1797. Vemos
que dos 167 chefes identificados, 67 são naturais de Campo Grande, enquanto 100 são forasteiros.
Os homens de fora representam 60% dos chefes de domicílio. Por outro lado, entre os naturais da re-
gião, os pardos forros possuem fortíssima presença: 40% dos chefesnascidos na freguesia são pardos
forros, enquanto entre os forasteiros somam apenas 13%.

De modo geral, o favorecimento dos forasteiros na chefia dos domicílios indica para estratégias de
casamento que favorecem as filhas no processo de transmissão do acesso à terra na maior parte dos
casos. Pina Cabral encontrou uma semelhante preferência pelas filhas nas estratégias de herança das
casas camponesas do Minho. Segundo os relatos, as filhas zelariam pelo bem da família muito me-
lhor do que as noras, cuidando dos pais na velhice. 101 Metcalf e Faria encontraram o mesmo tipo de
preferência para Campos dos Goitacazes e para Santana de Parnaíba, no século XVIII. 102Por outro
lado, a forte presença de pardos forros entre os naturais da freguesia indica que esse segmento talvez
seja um caso fora da curva.

Quadro 2. Naturalidade e indicativo de qualidade dos Chefes de Domicílio identificados

Indicativos de Campo Freguesiasvi- Cidade do Outras partes Portugal e Outros


qualidade Grande zinhas RJ da América Açores
Lusa
Nº % Nº % Nº % Nº % Nº % Nº %
Pardo forro 27 40,3 9 17,7 1 11,1 3 23,1 - - - -
Crioulo forro - - 2 3,9 - - - - - - -
Preto forro 3 4,5 3 5,8 - - - - - - 1 50
Livre, sem cor, 33 49,2 35 68,7 6 66,6 8 61,5 22 88 1 50
sem título

101 CABRAL, João de Pina. Op. Cit. p. 91-93.


102METCALF, Alida C. Families of planters, peasants and slaves: strategies for survival in Santa de Parnaíba,
Brazil, 1720-1820. Texas, University MicrofilmesInternacional, 1983. FARIA, Sheila. Op. Cit. 380.

999
Patentemilitar, 3 4,5 0 - 2 22,3 1 7,7 3 12 - -
semcor
Padre - - - - - - - - - - - -
Dona - - 2 3,9 - - 1 7,7 - - - -
Nãoidentifi- 1 1,5 0 - - - - - - - - -
cada
Total 67 100 51 100 9 100 13 100 25 100 2 100
Fontes: Mapa descritivo das populações do Distrito de Guaratiba, 1797. AHU_ACL_CU_005, Cx. 163, Doc. 12203.

Livro de batismos de Livres e Escravos da freguesia de Nossa Senhora do Desterro de Campo Grande, 1705-1811. Dispo-
nível em<http://familysearch.com> Acesso em 23 jun.17, 18:00:00.

Livro de Casamentos da Freguesia de Nossa Senhora do Desterro de Campo Grande, 1744-1798. Cúria Metropolitana do
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Habilitações matrimoniais da freguesia de Nossa Senhora do Desterro de Campo Grande. Arquivo da Cúria Metropoli-
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Os chefes pardos possuem forte presença entre os homens naturais de Campo Grande, distin-
guindo-se dos livres, sem cor e sem título. A trajetória dos Mattos é um indício. Havia uma preferên-
cia de sucessão pela via masculina, que se manifesta nos indicadores de naturalidade. Num primeiro
momento, os Mattos privilegiaram um dos filhos homens na herança, Antônio de Mattos (F3), e este
privilegia seus dois filhos homens.

Além disso, notamos distintas formas de lidar com a legitimidade nos ramos da família. As
filhas de Antônio de Mattos (F3), Rosa Maria de Jesus (N7) e Josefa Maria (N9), se relacionam com
filhos ilegítimos, demonstrando que esse ramo tinha baixa preocupação em se casar com filhos de
escravos.

Dos sete filhos de Gonçalo de Mattos, apenas Antônio de Mattos (F3) e Luiza de Mello (F6)
parecem gerar prole com acesso à terra. Luiza é casada com o português Manoel Rodrigues Chaves e
sua neta Maria do Desterro (BN1) retoma a tendência de se casar com um reinol, Alexandre José, e
este sujeito será partidista no Engenho Guandu Mendanha.

Ao contrário do ramo de Antônio de Mattos (F3), o ramo de Luiza de Mello (F6) não apresen-
ta casamentos com filhos ilegítimos, embora pudesse casar seus rebentos com filhos de outros casais
pardos da freguesia ou portugueses recém-chegados, revelando uma tendência homogâmica ou as-
cendente, do ponto de vista dos indicativos de qualidade - em relação ao ramo de Antônio de Mattos,
que é o sucessor.

São claramente ramos desiguais dentro de uma mesma parentela de forros. E não só do ponto
de vista de quem sucede, mas também das lógicas de reprodução das qualidades, através do matrimô-
nio. Um ramo com maior aproximação com a escravidão, um outro com tendência ao afastamento.
Fato que confirma Lima, pois, as famílias pardas, pretas ou libertas “não casavam seus filhos em uma

1000
direção única”, podiam ter estratégias matrimoniais segmentadas, como as que vemos aqui. Enquanto
operavam suas estratégias matrimoniais e sua transmissão patrimonial, os Mattos reproduziam desi-
gualdades, internamente às suas famílias. Lembrando que as relações de parentesco são hierarquizadas
e desiguais: “relações de parentesco podem incluir relações de dominação e não apenas generosidade,
a reciprocidade do parentesco não é necessariamente igualitária”. 103

Acredito que todos os outros elementos excedentários desta família foram levados a migrar ou
se agregar. Além disso, os Mattos vivem todos no mesmo lugar, Guandu do Mendanha. Ao invés da
distribuição pelos bairros rurais, a frente familiar se divide pela vizinhança do mesmo bairro, ainda
que sobre formas distintas de acesso à terra. Vale lembrar que os fogos de pardos forros possuem me-
nos escravos e menor capacidade de agregar.104 Nesse sentido, a proximidade física, ou seja, as relações
de vizinhança e parentesco ajudam a entender os indicativos de qualidade. Estar perto um do outro
buscaria compensar a fragilidade econômica desses ramos familiares.105

Em suas estratégias, os pardos colaboram para uma maior complexidade de uma sociedade
que já estava em transformação na segunda metade do século XVIII. Suas estratégias intensificam
a desigualdade no interior de suas próprias famílias, num fenômeno de mestiçagem pra cima e pra
baixo, segmentado por ramos familiares. São personagens que atuam entre as estratificações sociais,
mesclando aquelas múltiplas qualidades que se forjavam.

Devemos acrescentar que o respeito à sucessão familiar parece persistir até 1806. Nesse mo-
mento, José Rodrigues Chaves, um dos descendentes de Luiza de Mello (F6), aparece vendendo parte
das terras que, em 1797, estava sob administração dos irmãos Joaquim e José de Mattos. Segundo José
Rodrigues Chaves, Gonçalo de Mattos e Leonor de Melo (o casal pioneiro) deixaram parte de suas
terras como herança à Luiza de Mello (F6), de quem José herdou.

Segundo o documento, José Rodrigues Chaves não morava na freguesia de Campo Grande,
mas na Lagoa da Sentinela – segundo Nireu Cavalcante ficava próximo ao atual campo de Santana, no
centro do Rio de Janeiro. 106 O sujeito não teve dúvidas, vendeu as terras que estavam nas mãos de seus
ancestrais há mais de sessenta anos. Depois que migra, parece ter pouco apego à família. O drible à lei
da partilha dura algum tempo, mas agora parece ser desfeito.

Escritura de venda de terras que faz José Rodrigues Chaves, morador na Lagoa
da Sentinela, que vive de lavouras, a Manoel Francisco de Santa Ana, morador na
Freguesia de Campo Grande, que vive de lavouras – sitas na paragem denominada
Guandu do Mendanha, freguesia do campo Grande, que fazem testada na Serra do
Gericinó, de uma banda partem com terras do padre Antonio do Couto da Fonseca
e da outra com casas do capitão José Alves de Azevedo, correndo os fundos para a
103 WOORTMANN, Ellen. Op. Cit. p. 54.
104Ver Capítulo 2: CRUZ, Jerônimo A. D. Das muitas qualidades: lavradores de cana numa freguesia rural do
Rio de Janeiro (Campo Grande, 1740-1799). Dissertação de Mestrado – PPGHIS/UFRJ, 2018.
105 Sobre a importância das relações de solidariedade entre os forros. GUEDES, Roberto. Op. Cit. 2008, p. 246-
247. Ver também o Capítulo 5 de OLIVEIRA, Mônica R. Op. Cit. Ver capítulo 5 de MACHADO, Cacilda. Op.
Cit. CASTRO, Hebe Mattos. Op. Cit., 1995, p. 64-66.
106CAVALCANTE, Nireu. Rio de Janeiro Setecentista. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

1001
parte do Lamarão, livre de foro, a qual houve por herança, a testadora houve por legí-
tima de seus pais Gonçalo de Matos e Leonor de Melo no Inventário e partilha a que
se procedeu pelo juízo de Fora do Geral desta cidade no cartório de tabelião Faustino
Soares de Araújo, sendo nela inventariante a testadora. 31 de Março de 1806.107

Os Mattos têm uma estratégia um tanto estranha aos nossos olhos. Esperávamos que os ra-
mos de matrimônios ascendentes, formados pelos genros portugueses sucedessem a frente familiar na
terra. No entanto, isso não ocorreu. O ramo repleto de cônjuges filhos de ex-escravos e ilegítimos é o
escolhido para sucessão. Esse entroncamento entre indicativos de qualidade e parentesco representa
um esquema de valores alternativo.

Durante décadas, a ideia de herança igualitária, característica para plebeus lavradores,


parece não ter sido seguida aqui. 108 Sheila de Castro Faria ressalta os impactos desse sistema
igualitário de herança nas reproduções sociais de lavradores de Campos dos Goytacazes de
fins do século XVIII. Tendo em vista a pobreza, a divisão da terra poderia ser desvantajosa
para todos os herdeiros. No entanto, indica que filhos ou genros, frequentemente, estabele-
ciam moradia nas terras dos seus pais e sogros. Assim, a constituição das unidades domésticas
mais pobres se pautava na solidariedade familiar e nas tentativas de manter o patrimônio ínte-
gro, muitas vezes instalando os herdeiros em puxadinhos na terra-origem. 109

De forma mais detalhada, acredito que a expansão da ocupação territorial respondia às estratégias
costuradas por antigasfamílias de lavradores – que já datavam mais de 70 anos na freguesia. Muito
além dos puxadinhos, os personagens parecem ter atuado estrategicamente para manter a viabilidade
da terra, concentrando a sucessão, mantendo a capacidade de reprodução familiar e arranjando ca-
samentos para os demais filhos, que viveriam sob distintas modalidades de acesso à terra em novas
terras: lavradores de cana, foreiros, posseiros, etc.

Parece ter sido com base nestas famílias antigas, que já estariam casadas e que já aparecem antes da
década de 1750, que parte significativa dos domicílios se desenvolverá. A antiguidade na terra teria
resultado numa forma social 110 muito interessante: as extensas parentelas. Os pardos forros se con-
solidam emfrentes familiares. Levi alerta que as estratégias familiares não podem ser compreendidas
caso tomemos a família como unidade residencial isolada, mas sim em solidariedade. Para além da
dimensão isolada dos fogos, destacamos as unidades parentais, que se desdobram em teias de vizi-
nhança e parentesco.

Nesse sentido, a legitimidade aparece como elemento fundamental das estratégias dessa família de
pardos forros, como valor a ser perseguido e como forma de distribuição dos filhos. Ao mesmo tempo,
aparece como fator para a compreensão dos direitos de propriedade locais, gerando extensas parente-
las legítimas de libertos, famílias relevantes na dinâmica fundiária dessa área açucareira. Os libertos
107 Arquivo Nacional, 3º Ofício de Notas, 163, p. 116. Banco de Dados Maurício Abreu. Disponível em http://
mauricioabreu.com.br/escritura?id=4965. Acessado em 20/02/2018.
108PEDROZA, Op. Cit. p. 144.
109 FARIA, Sheila. Op. Cit. p. 256-265, p. 380.
110SIMMEL, Georg. Questões fundamentais da sociologia: indivíduo e sociedade. Rio de Janeiro: Ed. Zahar,
2006, p. 53-82.

1002
se sustentam nas suas famílias.

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1005
Registros de batismo e o estudo das migrações: metodologia, análise de fluxos migratórios
e trajetórias familiares de migração no processo de ocupação lusitana do atual Rio Grande
do Sul (c. 1755 - 1835)
Leandro Rosa de Oliveira111

Introdução

A produção de estudos efetuados a partir de registros paroquiais vem crescendo de maneira


significativa recentemente, sendo tais fontes utilizadas para averiguar diversos aspectos no estudo das
sociedades ibero-americanas, tanto no período colonial, quanto nos contextos que a ele imediatamen-
te sucederam. especialmente através dos vieses da História Social e da Demografia Histórica. Por sua
natureza e pelas informações que podem conter, os registros paroquiais fornecem diversas possibili-
dades de análise, as quais vêm sendo exploradas especialmente através dos vieses da Demografia His-
tórica e da História Social. Dentre elas, destacamos aqui o estudo dos movimentos migratórios, objeto
central do nosso trabalho. Nesse sentido, o presente texto tem como objetivo abordar possibilidades
de estudo sobre migrações através de registros de batismo, sendo para tanto dividido da seguinte ma-
neira: em um primeiro momento, descrevemos a metodologia de depuração de assentos batismais, a
qual desenvolvemos no intuito de analisar fluxos migratórios de chegada a uma localidade através des-
sas fontes; após, apresentamos os resultados obtidos a partir da aplicação dessa metodologia aos regis-
tros de batismo da localidade de Rio Pardo relativos ao período entre 1755 e 1779, buscando observar
os fluxos migratórios constituintes da composição social desse local; por fim, exploramos uma outra
possibilidade através desses mesmos assentos, qual seja, a de visualização de trajetórias familiares de
migração, efetuada a partir desses registros, mas com o aporte de batismos posteriores referentes não
apenas a Rio Pardo, mas também às localidades de Alegrete, Bagé e Caçapava do Sul.

Metodologia: a depuração dos registros batismais

O estudo de movimentos migratórios tem encontrado nos registros paroquiais uma fonte bas-
tante profícua. Através da utilização desses assentos para uma única localidade, pode-se efetuar uma
aferição aproximada dos fluxos migratórios de chegada ao local selecionado, a qual é realizada através
da análise das origens dos indivíduos presentes nos registros paroquiais. Por mais que os párocos não
tivessem a obrigatoriedade de assinalar essa informação relativa aos indivíduos que recorressem às
suas unidades eclesiásticas112, tal dado se fazia presente em grande parte desses assentos. Para o estudo

111 Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Bolsista Capes.
112Ver, por exemplo:MARCÍLIO, Maria Luiza. Os registros paroquiais e a História do Brasil, Maria Luiza
Marcílio. Varia História, janeiro de 2004. Disponível em: <http://www.fafich.ufmg.br/varia/admin/pdfs/31p13.
pdf> . Acesso em 15 de junho de 2018. MATHEUS, Marcelo.A produção da diferença: escravidão e desigualda-
de social ao sul do Império brasileiro (Bagé, c. 1820 - 1870). Rio de Janeiro: UFRJ/IFCH-PPGHis, 2016. (Tese
de Doutorado)

1006
de movimentos migratórios, portanto, essas informações são de suma pertinência, ainda mais tendo-
-se em consideração a escassez ou mesmo a ausência de fontes que permitam uma aproximação direta
com essa temática para os períodos colonial e imperial da história brasileira.

No que diz respeito à historiografia referente ao Brasil, análises nesse sentido podem ser en-
contradas em alguns dos pioneiros trabalhos efetuados através da aplicação do método de Reconsti-
tuição de Famílias113, tenham esses trabalhos utilizado os registros paroquiais como documentação
principal ou não. Dentre tais obras, destacamos aqui a produção de Maria Luiza Marcílio e Carlos de
Almeida Carlos Bacellar, para o primeiro caso, e a de Maria Luiza Bertulini Queiroz para o segundo114,
as quais demonstram a utilidade das fontes paroquiais para análises como a que estamos aqui propon-
do. Essa mesma possibilidade vem sendo explorada por alguns historiadores mais recentemente, em
especial através da análise única de registros de batismo para a aferição de movimentos migratórios

113 Elaborada por Louis Henry e Michel Fleury, essa metodologia baseia-se na utilização, de maneira asso-
ciada, dos assentos de batismo, casamento e sepultamento, estando voltada principalmente para análises de
demografia histórica. HENRY, Louis. Técnicas de análise em demografia histórica. Curitiba: UFPR, 1977.
114Dentre os trabalhos que utilizaram as listas nominativas enquanto base documental, destacamos aqui a pro-
dução de Maria Luiza Marcílio e Carlos de Almeida Prado Bacellar. Na obra “Caiçara, terra e população”, Mar-
cílio analisa brevemente as origens dos indivíduos presentes em Ubatuba através das fichas de famílias fechadas
ou “completas”, nas palavras da autora, utilizando os registros matrimoniais de maneira auxiliar à sua análise.
A autora também utiliza outros registros paroquiais disponíveis para controle das informações por ela obtidas
através das listas nominativas. MARCÍLIO, Maria Luiza. Caiçara, terra e população. Estudo de demografia his-
tórica e da história social de Ubatuba. São Paulo: Paulinas/CEDHAL, 1986.Carlos Bacellar, por sua vez, efetua
análises semelhantes em “Os Senhores da Terra”, aprofundando-se um pouco mais nessa questão. Utilizando
fichas de famílias elaboradas com o auxílio de genealogias, o autor analisa as informações por ele obtidas sobre
os locais de nascimento dos cônjuges das famílias de grandes proprietários do “Oeste Paulista”, destacando que
indiretamente identificam-se, dessa maneira, as “prováveis principais correntes migratórias que engrossaram o
processo de ocupação” do espaço por ele analisado. Em “Viver e sobreviver em uma vila colonial”, entretanto,
esse mesmo autor elabora suas fichas de famílias utilizando tanto os recenseamentos nominativos quanto os
registros paroquiais de Sorocaba, efetuando uma análise da origem dos indivíduos a partir da totalidade dessas
fichas, as quais são comparadas pelo próprio autor com os dados de naturalidade obtidos unicamente através
dos assentos matrimoniais. BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os Senhores da Terra: família e sistema
sucessório entre os senhores de engenho do Oeste Paulista, 1765 - 1855. Campinas: Centro de Memória – Uni-
camp, 1997.BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Viver e sobreviver em uma vila colonial: Sorocaba, séculos
XVIII e XIX. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2001. Por outro lado, chamamos a atenção aqui para o trabalho de
Maria Luiza Bertulini Queiroz, no qual a autora também analisa as origens dos indivíduos a partir das fichas de
famílias, cuja totalidade é utilizada para tal aferição, sendo que as informações para a elaboração de tais fichas
foi feita tendo os registros paroquiais enquanto base documental principal. QUEIROZ, Maria Luiza Bertulini.
Paróquia de São Pedro do Rio Grande: Estudo de História demográfica (1737 – 1850). Curitiba: PPGH/UFPR,
1992. (Tese de Doutorado).

1007
de chegada. Utilizando a totalidade desses assentos em um primeiro momento115, tais análises foram
posteriormente refinadas, especialmente a partir do trabalho de Luís Augusto Farinatti, o qual aplicou
“procedimentos de desambiguação” aos registros de batismo, “excluindo as vezes em que um sujeito
aparecia novamente, no caso de batizados de mais de um filho” e, assim, analisando “o total de pais e
mães presentes nos registros e não o total de assentos”116. Dessa forma, cada indivíduo era contabili-
zado apenas uma vez, sendo assim reduzidas as distorções causadas pela contabilização repetida da
naturalidade de alguns genitores. Esse procedimento também foi adotado, de maneira similar, por
Marcelo Santos Matheus117.

Partindo desse mesmo princípio de desambiguação dos registros batismais, portanto, busca-
mos sistematizar tais procedimentos, elaborando uma metodologia bastante simples, a qual objetiva
identificar as recorrências relativas a pais e mães que levaram seus filhos à pia batismal em uma mes-
ma localidade. Nosso método caracteriza-se pela aplicabilidade voltada exclusivamente para assentos
batismais, servindo, portanto, para estudos que utilizem apenas essas fontes, seja por disponibilidade
ou mesmo por opção. Seu princípio básico é a identificação e contabilização de registros referentes
aos mesmos pais e mães que levaram seus filhos à pia batismal em uma mesma localidade, asseme-
lhando-se, dessa forma, à elaboração das fichas de famílias do método de Reconstituição de Famílias.
Para tanto, à cada ocorrência nominal é atribuído um número, o qual serve como identificador das
recorrências para cada entrada. Dessa forma, torna-se possível identificar de maneira mais prática e
eficaz as repetições, o que permite excluí-las da análise quando necessário, sendo assim reduzidas as
distorções decorrentes da contabilização do total de registros batismais para um mesmo local. Possibi-
lita-se assim, portanto, a obtenção de resultados mais verossímeis no que diz respeito aos movimentos
migratórios de chegada a uma localidade, sem deixar de se considerar, por óbvio, as limitações ineren-
tes à fonte utilizada. Além disso, a identificação numérica serve também para a visualização das recor-
rências relativas à presença de um mesmo indivíduo no local analisado ao longo do tempo, as quais
podem ser compreendidas como indício de enraizamento dessas pessoas na localidade em questão. A
contabilização dessas recorrências, quando analisada em relação às primeiras ocorrências de batismo
115Em tais trabalhos, dentre os quais se faz presente nossa própria produção, as análises foram baseadas na
quantificação simples do total dos registros de batismo de crianças livres das localidades escolhidas para aná-
lise, sendo assim computada a naturalidade de um indivíduo a cada vez que um de seus filhos tivesse sido
batizado. Em virtude disso, e apesar de ter sua utilidade bem demonstrada para análises dessa natureza, esse
método ocasionava distorções dos percentuais gerais de naturalidade calculados para pais e mães. Dentre esses,
destacamos aqui os seguintes: FARINATTI, Luís Augusto. Territórios sobrepostos: as migrações na constitui-
ção de uma sociedade de fronteira (paróquia de Alegrete, 1821-1844). In: Anais do Seminário Internacional
“Migrações: mobilidade social e espacial”. São Leopoldo: Unisinos, 2010; MATHEUS, Marcelo; OLIVEIRA,
Leandro Rosa de. Das migrações para a fronteira (BAGÉ, c.1830-c.1860). In: Anais do XII Encontro Estadual de
História: História, Verdade e Ética. Porto Alegre: ANPUH-RS, 2014; OLIVEIRA, Leandro Rosa de. Nas Veredas
do Império: Guerra, política e mobilidades através da trajetória do Visconde de Serro Alegre (Rio Grande do
Sul, c. 1780-1870). Porto Alegre: PPGH/PUCRS, 2016 (Dissertação de Mestrado); OLIVEIRA, Leandro Rosa
de. Mover-se ao sul do Brasil: Mobilidade e fluxos migratórios através da trajetória de João da Silva Tavares
(c.1800 - c. 1860). Revista de História da Unisinos, v. 20, p. 260-272, out/dez .2016a.
116 FARINATTI, Gente de todo lado: deslocamentos populacionais, registros de batismo e reordenação social
na fronteira meridional (Alegrete, 1816-1844). In: SCOTT, Ana Sílvia et al. (Orgs). História da Família no Brasil
Meridional: temas e perspectivas. São Leopoldo: Oikos/Editora Unisinos, 2014, p. 222, nota 1.
117 MATHEUS, Marcelo. A produção da diferença: escravidão e desigualdade social ao sul do Império brasi-
leiro (Bagé, c. 1820 - 1870). Rio de Janeiro: UFRJ/IFCH-PPGHis, 2016. (Tese de Doutorado)

1008
referentes a cada genitor, permite a comparação dos totais encontrados para essas duas situações e,
dessa forma, a observação de conjunturas de maior ou menor movimento migratório de chegada em
um mesmo local, conforme pretendemos demonstrar neste trabalho.

O processo o qual denominamos depuração dos registros de batismo118 é efetuado basicamente


através da análise comparativa dos nomes dos pais ou mães das crianças batizadas na localidade esco-
lhida para análise. Para tanto, os nomes e sobrenomes precisam necessariamente estar padronizados
em relação à sua escrita, passo que efetuamos através da atualização ortográfica. Os fichamentos dos
registros de batismo são feitos em planilhas do tipo Excel para Windows119, nas quais tais assentos são
decompostos em 78 campos (preenchidos quando possível), referentes a informações como nomes
completos de pais e avós e suas naturalidades, evidentemente, além de atribuições gerais e datas rela-
tivas aos registros, dentre outras. A utilização dessas planilhas permite a reorganização dos assentos
por ordem alfabética sempre que necessário, podendo-se escolher o campo relativo ao nome completo
do pai, da mãe, dos avós ou mesmo dos padrinhos e do próprio batizando para se efetuar tal processo.
Em nosso procedimento de depuração, utilizamos o campo “nome do pai” como a principal baliza,
alternando para o campo “nome da mãe” quando necessário, sendo o cruzamento dessas duas infor-
mações basilar para o processo, desde que possível.

118 Optamos pela adoção desse termo a partir de sua utilização por Marcelo Santos Matheus em sua tese, já
anteriormente mencionada. “Eliminando os pouquíssimos africanos batizados e realizando uma depuração das
mães que tiveram mais de um filho (o que foi feito através da busca do nome da mãe, mas também do pai, no
caso da esposa ter seu nome grafado levemente diferente de um registro para o outro), chegamos ao total de
2.357 famílias ou ‘núcleos-base’.” MATHEUS, 2016, Op. Cit., p. 110. Grifos nossos.
119 Conforme modelo elaborado por Luís Augusto Farinatti e por nós adaptado.

1009
Em termos gerais, podemos dizer que o processo de depuração passa basicamente por duas
etapas: a primeira é aidentificação inicial das ocorrências individuais e suas reiterações ao longo do
tempo; a segunda objetiva separar homônimos e localizar variações nominais referentes a um mesmo
indivíduo. Durante esse processo, são atribuídos códigos provisórios a cada entrada nominal, os quais
são posteriormente substituídos por numerações definitivas.

Para a realização desse processo, entretanto, há que se considerar algumas especificidades do


contexto brasileiro dos períodos colonial e imperial. A primeira delas diz respeito às distintas práti-
cas nominativas vigentes, as quais trazem implicações ao preenchimento dos campos referentes aos
nomes completos dos indivíduos mencionados nos assentos.Esse procedimento é efetuado de acor-
do com uma adaptação da Reconstituição de Famílias ao caso brasileiro sugerida por Maria Luiza
Marcílio, a qual consiste em balizar a identificação dos indivíduos a partir de seu “prenome”120. Para
o contexto específico de nosso trabalho, entretanto, há outra ressalva nesse mesmo sentido.Em seu
trabalho acerca da presença indígena em Rio Pardo ao longo do século XVIII, Max Roberto Pereira
Ribeiro destaca as especificidades relativas às práticas nominativas desses indivíduos, as quais podem,
conforme o autor, trazer outras dificuldades a análises que utilizem do índice nominal enquanto ele-
mento básico121. Essa questão, portanto, será por nós levada em conta ao longo deste trabalho através
de adequações aos procedimentos utilizados, as quais serão devidamente especificadas em um mo-
mento mais propício. Nesse sentido, tendo em vista as observações acima colocadas acerca da questão
nominal, pode-se passar aos procedimentos relativos à depuração dos assentos batismais.

Previamente à depuração, porém, faz-se necessário efetuaralguns procedimentos no sentido


de definir o universo de análise, os quais correspondem tanto a fins estritamente práticos quanto a
opções metodológicas. Primeiramente, e quando necessário, procede-se a exclusão dos batizados que,
não tendo sido efetuados no local escolhido para análise, encontram-se assentados nos livros a ele
referentes122. Em seguida, efetua-se uma seleção a partir da condição jurídica do batizando, dos quais
são excluídos aqueles descritos enquanto escravizados e libertos, objetivando-se analisar apenas a ori-
120A partir de seu trabalho, a autora relata a dificuldade de se organizar as fichas de famílias através do sobre-
nome dos chefes de domicílios, conforme sugerido pelo método Henry-Fleury. De sua experiência, Marcílio
relata o seguinte:“Identificá-las pelo sobrenome do chefe do domicílio mostrava-se frequentemente ineficaz.
De um ano para outro, o mesmo indivíduo poderia aparecer com sobrenomes diferentes, em ordem inversa,
com falta de um deles, ou até, em casos mais raros, sem nome de família de vez. Tínhamos que ir descobrindo
técnicas eficientes de identificação, para não perder nenhuma família ou não criar famílias fictícias em razão da
variação do sobrenome do chefe. Como sabíamos que os prenomes só raramente eram trocados em sua ordem,
decidimos ordenar as centenas de fichas de família, que iam sendo montadas, alfabeticamente, pelo prenome
do marido.” (MARCÍLIO, 1986, Op. Cit., p. 9. Grifos nossos). Essa adaptação, portanto, a qual também é utili-
zada por outros autores (Ver, por exemplo: BACELLAR, 1997, Op. Cit.), faz-se necessária ao método que aqui
apresentamos, ainda mais considerando as práticas nominativas vigentes nos contextos acima referidos.
121Segundo Max Ribeiro, os indígenas utilizavam nomes diversos conforme suas próprias necessidades, de
acordo com seu costume. Independente dos significados e motivações que tais práticas pudessem ter, conside-
ramos, a partir do exposto pelo autor, que esse costume torna-se um empecilho ao método aqui proposto para
análise dos registros de batismo.RIBEIRO, Max Roberto Pereira. “A terra natural desta nação Guarani”: Iden-
tidade, memória e reprodução social indígena no Vale do Jacuí (1750 - 1801). São Leopoldo: PPGH/Unisinos,
2017 (Tese de Doutorado)
122 Como exemplo, podemos citar aqueles realizados em capelas filiais, guardas e acampamentos militares, ou
mesmo em oratórios privados.

1010
gem de pais e mães livres e libertos123, cuja mobilidade constitui nosso principal alvo de análise. Essa
escolha é baseada não apenas na restrição de mobilidade espacial relativa à escravidão, mas também
na grande dificuldade em se mapear as famílias constituídas por indivíduos escravizados, algo salien-
tado por Maria Luiza Marcílio124. Em seguida são excluídos os expostos, em virtude da ausência de
dados sobre seus genitores. Os assentos batismais nos quais os nomes dos pais e mães encontram-se
parcial ou totalmente ilegíveis devem também ser excluídos, quando necessário. Interessa ressaltar,
portanto, que o objetivo aqui é selecionar para análise a maior quantidade possível de registros de ba-
tizandos livres, os quais dizem respeito à quase totalidade das pessoas livres presentes enquanto pais
e mães na localidade escolhida.Também é importante destacar que essa escolha independe de esses
rebentos serem filhos legítimos ou ilegítimos, algo também central para a Reconstituição de Famílias,
e que para nós não constitui um elemento definidor do universo de análise.

No que diz respeito ao espaço proposto para análise neste trabalho, faz-se necessário um ou-
tro procedimento prévio à depuração, de caráter mais específico, e relativo às populações indígenas.
Aqui partimos das observações feitas por Max Ribeiro, o qual destaca a peculiaridade dessa presença
nos registros paroquiais de Rio Pardo ao longo do século XVIII. Ela seria decorrente das lógicas mi-
gratórias próprias desses indivíduos, distintas daqueles que chegavam a essa localidade seguindo a
trilha das conquistas da Coroa lusa no continente americano, sendo estes últimos objetos principais
do trabalho aqui proposto125. Tendo isso em vista, partimos desse entendimento para justificar o fato
de não incluirmosessas populações nas análises aqui propostas, ainda mais tendo em vista as práticas
nominativas específicas a elas referentes, sobre as quais discorremos anteriormente.Consideramos
que efetuar a exclusão simples dos registros relativos a esses indivíduos, entretanto, poderia levar a
uma impressão errônea sobre o contingente populacional que se fazia presente no espaço por nós es-
colhido para análise, no qual conviveram tanto africanos, europeus e migrantes oriundos das posses-
sões lusitanas na América, quanto populações indígenas que nele já se encontravam, independente de
onde pudessem estar fixadas. Nesse sentido, efetuamos um procedimento que consiste na separação
prévia dos batismos nos quais os genitores presentes no assento tenham exclusivamente naturalidades
referentes aos Povos de Missões. A partir desse critério, esses registros são classificados através da ca-

123 É importante lembrar que a matrilinearidade da condição jurídica pode acarretar a não inclusão de alguns
pais libertos ou livres em nossas análises, desde que esses tenham batizado seus filhos com mães escravizadas.
Em contrapartida, é possível também que alguns pais escravizados estejam incluídos em nosso universo de
análise, caso registrem filhos com mães libertas ou livres. Consideramos, entretanto, que a contabilização des-
ses casos não altera de maneira significativa os resultados, em virtude de sua ocorrência ser bastante reduzida.
124MARCÍLIO, 1986, Op. Cit..
125Tais práticas correspondiam a movimentos internos aos territórios ancestrais dessas populações, nos quais
esses indivíduos já habitavam anteriormente à chegada de europeus e luso-americanos. RIBEIRO, 2017, Op.
Cit.

1011
tegoria que aqui sintetizamos com o termo “Somente Missões”126.

Dessa forma, portanto, obtemos inicialmente dois conjuntos: o primeiro, referente à categoria
“Somente Missões”, serve não apenas ao propósito de evidenciar a presença de populações originárias
dessas áreas, mas também ao de visualizar as flutuações desse contingente ao longo do tempo nas lo-
calidades analisadas, evitando assim incorrer no equívoco de invisibilizar tais indivíduos; o segundo,
por sua vez, o qual denominamos por “Diversas Origens”, diz respeito à totalidade dos assentos os
quais serão submetidos ao processo de depuração, sendo esse, portanto, o objeto principal de nossas
análises127.

Estando definido o conjunto “Diversas Origens”, pode-se finalmente proceder ao processo de


depuração. Esse procedimento, conforme afirmamos anteriormente, passa por duas etapas principais.
A primeira delas corresponde à identificação inicial das ocorrências nominais individuais, sendo atri-
buído um código provisório a cada uma delas, o qual também serve para identificar suas reiterações
ao longo do tempo. Tendo o campo “Nome do Pai” como principal baliza sempre que possível128, a
depuração é efetuada através da análise cruzada com o campo “Nome da Mãe”, sendo acompanhada
de cruzamentos relativos aos nomes dos avós, quando essa informação se faz presente129.

Cada nova ocorrência nominal corresponde ao que chamamos por “Primeira Entrada”, ou seja,
o “início da observação” de um determinado indivíduo, caso façamos um paralelo com a terminologia
utilizada pela Reconstituição de Famílias. As entradas subsequentes relativas a cada caso são denomi-
nadas “Recorrências”. O encerramento da “observação”, ou seja, da utilização de um mesmo código
provisório ou numeração definitiva concernente a cada caso, efetua-se com o término da ocorrência
de novos batizados atribuídos a cada “Primeira Entrada”, não sendo um mesmo código atribuído a
gerações posteriores.Ao longo do processo, aplica-se uma classificação para os casos enumerados, a
qual objetiva principalmente à sinalização de alguma especificidade ou possível contagem duplicada

126Consideramos interessante destacar que nessa categoria incluem-se unicamente os batismos nos quais os
genitores são concomitantemente oriundos de localidades referentes a essas áreas, além daqueles nos quais o
único genitor presente no batismo apresenta essa mesma origem registrada (Incluídos aqui principalmente
casos de pai incógnito, podendo haver também, entretanto, casos de mãe incógnita, embora estes muito rara-
mente ocorram.). Não estão incluídos nessa categoria, portanto, aqueles assentos que, tendo os dois genitores
registrados, apresentem apenas um deles com naturalidade referente às Missões. Faz-se importante evidenciar
aqui também que o único critério que utilizamos neste trabalho para identificar as populações indígenas são as
informações relativas à naturalidade, as quais são basilares para as análises que aqui propomos. Embora sirva
ao propósito por nós acima descrito, essa opção metodológica, por certo, não abarca dentro dessa categoria a
totalidade dos genitores indígenas presentes na órbita da localidade analisada, haja vista que nem sempre esses
pais e mães tinham sua naturalidade declarada nos assentos. Ver, nesse sentido: RIBEIRO, Op. Cit.
127 Frisamos aqui que indivíduos oriundos de Missões poderão estar presentes neste conjunto, em virtude dos
casamentos mistos entre tais populações e os migrantes de outras regiões. Nossa metodologia, entretanto, prevê
esses casos. Essa questão será exposta adiante, em momento mais oportuno no texto.
128 Tendo em vista, por certo, os casos de pai incógnito.
129 As naturalidades individuais, por certo, também podem ser consideradas nos cruzamentos, desde que este-
jam registradas, algo que nem sempre ocorre. É interessante destacar que a depuração, ao agrupar os registros
referentes a um mesmo indivíduo, permite a complementação de dados como a naturalidade, por exemplo,
desde que confirmado que os assentos correspondem efetivamente a uma mesma pessoa. Essa confirmação,
entretanto, só pode ser efetuada após a realização da segunda etapa da depuração.

1012
de uma mesma ocorrência. Essa classificação se dá em dois momentos distintos. Inicialmente, após a
primeira etapa da depuração e atribuição dos códigos provisórios a cada caso, são atribuídasàs “Pri-
meiras Entradas” do conjunto “Diversas Origens” as seguintes categorias:

- Primeira Entrada Simples: incluídos os registros nos quais estão descritos pai e mãe, indepen-
dente da legitimidade da relação;

- Primeira Entrada de Genitor Incógnito: específico para casos de mãe e, principalmente, pai
incógnito.

Feito esse procedimento, efetua-se a segunda etapa dadepuração, utilizando-se apenas as “Primeiras
Entradas”. Procede-se aqui a um cruzamento mais rigoroso, o qual objetiva mais especificamente a
visualização de casos de repetições que possam ter escapado à primeira identificação, similar à verifi-
cação de famílias fictícias do método de Reconstituição de Famílias. Ele consiste principalmente em
separar homônimos que tenham sido equivocadamente agregados sob um mesmo código provisório,
assim como localizar variações nominais referentes a um mesmo indivíduo que tenham sido classi-
ficadas sob distintos códigos. Em casos nos quais a dúvida não possa ser dirimida apenas através das
“Primeiras Entradas”, as “Recorrências” podem ser utilizadas sempre que necessário, utilizando-se o
código provisório para localizá-las. Concluída essa segunda etapa da depuração, podem ser agregadas
às duas categorias iniciais as seguintes classificações:

- Possível Repetição: casos nos quais há a possibilidade de se tratar de repetição de um ou de


ambos os genitores, a qual não é passível de comprovação através dos cruzamentos;

- Recasamento: casos nos quais foi possível identificar essa situação para ao menos um dos
genitores;

- Possível Recasamento: casos nos quais há a possibilidade de se tratar de recasamento de ao


menos um dos genitores, o qual não é comprovável através dos cruzamentos.

É importante ressaltar que todos os casos acima descritos são variações da “Primeira Entrada”, mesmo
aqueles nos quais há alguma suspeita de repetição. Cada uma dessas “Primeiras Entradas”, portan-
to, corresponderia a uma ficha do método de Reconstituição de Famílias, às quais são agregadas,
através da numeração, as “Recorrências”. Apenas após essa classificação, entretanto, é que se procede à
substituição dos códigos provisórios pelo número identificador definitivo, uma vez que, sendo essa a
numeração permanente de cada “Primeira Entrada”, haveria a necessidade de uma correção de toda a
série numérica posterior quando fossem localizadas repetições durante a segunda etapa da depuração.
Com o número identificador definitivo, torna-se possível localizar de maneira mais prática as “Recor-
rências” de um mesmo caso ao longo do tempo, o que possibilita acessar mais facilmente os registros
relativos a um mesmo indivíduo, conforme já afirmamos. Ao mesmo tempo, as “Recorrências” podem
ser excluídas das contabilizações referentes às origens dos pais e mães para análises de fluxos migra-

1013
tórios. Dessa maneira, como também já mencionado aqui, as distorções decorrentes da utilização do
total de registros batismais de um mesmo local para estudos dessa natureza são reduzidas ao máximo
possível.

Através da utilização única das “Primeiras Entradas” contabiliza-se, portanto, apenas uma
ocorrência por número identificador ao longo do período analisado. Conforme a nomenclatura ex-
plicita, a ocorrência a ser contabilizada necessita ser especificamente a primeira localizada nas fontes
utilizadas para uma um mesmo local, com o intuito de se visualizar a presença dos indivíduos nume-
ricamente identificados o mais cedo possível dentro do recorte temporal escolhido para análise. Nesse
sentido, o número identificador atribuído a partir dessa “Primeira Entrada” é definido a partir da data
do batizado, independente de fatores como ordem alfabética ou data de nascimento do batizando, por
exemplo, haja vista que o indício central, para nós, é justamente o registro do batismo na localidade
analisada. Consideramos interessante ressaltar aqui também a importância de se definir previamente
o recorte temporal inicial do universo de análise, pois a inserção de registros anteriores ao início da
numeração definitiva implicaria em uma renumeração de todos os casos posteriores.

As “Recorrências”, por sua vez, servem também ao propósito de demonstrar a reiteração de


registros batismais de um determinado indivíduo ou casal em um mesmo local ao longo do tempo.
Nesse sentido, cremos que elas possam ser consideradas enquanto um indício do enraizamento da
população em uma localidade. Ao avaliá-las, devem ser consideradas diversas variáveis, dentre as
quais podemos destacar fatores como a morte ou o êxodo de habitantes da localidade analisada, por
exemplo, assim como o ciclo de vida de cada pessoa e as questões concernentes à capacidade reprodu-
tiva que dele advém, uma vez que os registros de batismo dependem, obviamente, de um nascimen-
to. Apesar disso, e sem deixar de considerar tais limitações, cremos que as “Recorrências”, ao serem
contrapostas com a quantidade de “Primeiras Entradas” ao longo do tempo, auxiliam na visualização
conjuntural de um maior ou menor movimento migratório para uma localidade em relação à popula-
ção já enraizada que permanece levando seus filhos à pia batismal.

Acerca dos processos de numeração e contabilização das “Primeiras Entradas”, cabem ainda
algumas observações. No que diz respeito aos casos de possível repetição, consideramos interessante
evidenciar que eles são incluídos na contabilização total, sendo assim compreendidos enquanto novos
casos. Seu percentual com relação às outras “Primeiras Entradas” pode ser tratado enquanto uma
“margem de erro” interna às contabilizações, sendo possível sua exclusão, caso necessário, em virtude
de estarem devidamente identificados. A categoria “Primeira Entrada de Genitor Incógnito” foi pen-
sada também no intuito de reduzir essas repetições, considerando a possibilidade de posterior união
conjugal ou mesmo reconhecimento da criança pela parte anteriormente não declarada. Na ausência
de dados relativos aos avós ou outras informações que permitam o cruzamento de dados, entretanto,
a localização dessas repetições torna-se praticamente impossível, sendo esse também um motivo para
a sinalização desses casos. Já em relação aos “Recasamentos” confirmados, exclui-se da contabilização
a entrada relativa ao cônjuge cuja viuvez precedente tenha sido localizada.É importante ressaltar tam-
bém que, no procedimento aqui descrito, são aglomerados apenas os filhos dos pais e mães enumera-

1014
dos, sendo iniciado e encerrado o alcance dessa numeração unicamente através disso. As informações
relativas aos netos, portanto, não são agregadas através do mesmo número identificador, sendo essa
outra diferença entre nossa metodologia e a Reconstituição de Famílias, pois as fichas referentes a esse
método possuem espaços dedicados ao preenchimento de tais informações.

Concluída a depuração, pode-se passar às análises referentes aos movimentos migratórios de


chegada em uma localidade. Para tanto, as “Primeiras Entradas” são contabilizadas levando-se em
consideração algumas áreas de origem dos indivíduos, não sendo tais áreas, necessariamente, cor-
respondentes a unidades geopolíticas. Objetiva-se, dessa forma, organizar os dados no sentido de se
possibilitar a sua visualização de maneira agregada, com o intuito de observar as regiões que mais
contribuíram para a composição dos movimentos migratórios em questão e, a partir disso, pensá-los
historicamente dentro de suas especificidades. Essa organização é feita a partir da sugestão inicial pro-
posta por Luís Augusto Farinatti130, a qual foi posteriormente reelaborada por Marcelo Matheus e por
nós131, e pode ser resumida, em termos gerais, ao seguinte: umlocal selecionado para análise; uma área
principal, correspondente à maior unidade política e/ou territorial possível, na qual a localidadea-
nalisada está incluída; uma ou mais áreas do mesmo continente da área principal; espaços exteriores
ao continente da área principal; casos omissos ou específicos ao contexto analisado. Essas áreas são
escolhidas conforme sua relevância, em termos de afluxo migratório, para o local analisado. Especifi-
camente para este trabalho, portanto, os dados relativos à origem dos genitores serão organizados da
seguinte maneira:

- África;

- Europa;

- Ilhas: correspondente aos Açores e à Ilha da Madeira;

- Missões: referente a genitores naturais dos 30 Povos que não estejam incluídos no conjunto
“Somente Missões”;

- Luso-América ou Brasil: referente às possessões lusitanas no continente americano e, poste-


riormente, ao Império do Brasil;

- Própria localidade: referente ao local escolhido para análise;

- Região platina;

- Sem referência ou incógnito: quando não há menção ao local de origem, ou mesmo referên-
cia a um dos genitores;

130 FARINATTI, 2010, Op. Cit..


131 MATHEUS e OLIVEIRA, 2014, Op. Cit.; MATHEUS, 2016, Op. Cit.; OLIVEIRA, 2016, Op. Cit.; OLIVEI-
RA, 2016a, Op. Cit..

1015
- Outros: referente a locais não identificados ou não inclusos em nenhuma das situações acima.

No que diz respeito aos genitores oriundos de localidades relativas às possessões lusitanas na
América e, posteriormente, ao Império do Brasil, cabem ainda algumas considerações. Em trabalhos
nos quais as análises voltaram-se apenas para o período imperial de nossa história, a utilização das
unidades provinciais para a identificação dos locais de origem dos migrantes oriundos de outras áreas
do Império do Brasil não constituiu um problema, haja vista a relativa estabilidade territorial das pro-
víncias ao longo daquele período. Retrocedendo as análises à época colonial, entretanto, a utilização
de algumas unidades como capitanias, por exemplo, pode ser problemática em termos de organização
e comparação dos dados obtidos, justamente em virtude das dinâmicas territoriais relativas às suas
jurisdições. Tendo isso em vista, objetivamos abordar esses dados de maneira distinta. Baseados nas
proposições de Louis Henry132, dividimos os dados obtidos de acordo com a distância da naturalidade
descrita em relação à localidade analisada, com o intuito de melhor observar a relação entre distância
e mobilidade para homens e mulheres. Tais dados de origem, correspondendo unicamente às posses-
sões lusitanas na América, podem ser analisados de uma maneira mais uniforme ao longo do período
colonial, tendo em vista não apenas as modificações dos territórios com relação às suas jurisdições,
a incorporação de novas áreas ou mesmo a perda de algumas delas, como é o caso da Colônia do
Sacramento. Além disso, essa divisão pode igualmente ser estendida ao período imperial brasileiro,
permitindo comparações em um intervalo de tempo mais longo, sem que haja a necessidade de ajustes
com relação às jurisdições, algo que facilita as análises comparativas entre distintos recortes tempo-
rais. O parâmetro da distância com relação ao local analisado, ademais, ainda permite comparações
mais apuradas com relação a outras localidades. As distâncias correspondem às seguintes: até 75 km;
entre 75 km e 150 km; entre 150 km e 300 km; entre 300 km e 500 km; entre 500 km e 700 km; entre
700 km e 1000 km; acima de 1000 km.

Dessa forma, portanto, é possível observar a influência dos fluxos migratórios oriundos de
áreas igualmente distantes aos locais analisados, sendo avaliada também a presença de localidades
dentro de cada raio e sua influência na composição dos fluxos migratórios de chegada observados. Em
termos de movimentos migratórios, e considerando o recorte temporal que aqui utilizamos, conside-
ramos esse procedimento como uma interessante maneira de comparar, ao longo de todo o período,
as migrações internas ocorridas tanto no Império do Brasil quanto no espaço referente às possessões
lusitanas na América.Feitas essas considerações, passamos, portanto, à análise diacrônica dos dados
relativos às origens obtidos para a localidade de Rio Pardo.

Aplicando a metodologia: análise de fluxos migratórios de chegada a Rio Pardo

Para esta parte do trabalho, utilizaremos os dados obtidos nos seguintes livros de batismos da
localidade de Rio Pardo133: em sua totalidade, livros 1A (1755 - 1761) e 1B (1761 - 1763); parcialmente,

132 HENRY, 1977, Op. Cit.


133 Arquivo da Cúria Metropolitana de Porto Alegre (Doravante ACMPOA).

1016
livros de “Batismos de Índios de Rio Pardo e depois Gravataí” (1758 - 1765) e 4 (1774 - 1783)134. Faz-se
importante mencionar que inexistem os livros referentes ao período entre fevereiro de 1763 e outubro
de 1774 para essa localidade.Ao todo, foram obtidos 592 assentos para o período entre 1755 e 1763,
dos quais 588 foram efetuados na própria localidade. Nessa mesma situação temos 604 assentos de
um total de 607 obtidos para o período entre 1774 e 1779. Dos 588 assentos do primeiro período, 517
correspondem a assentos de crianças livres, totalizando 87,9% dos registros. Os 12,1% restantes são
compostos da seguinte maneira: 37 são referentes a crianças escravizadas; um para escravo descrito
como “adulto”; três para libertos; um para criança exposta; 30 estão ilegíveis. Para o segundo período,
nenhum assento encontra-se ilegível, sendo que 443 correspondem a assentos de crianças livres, tota-
lizando 73,4% dos registros. Os 26,6% restantes são compostos da seguinte maneira: 135 são referentes
a crianças escravizadas; um para escravo descrito como “adulto”; 11 para libertos; 14 para crianças
expostas. Ao longo do tempo, tais dados135 encontram-se dispostos da seguinte maneira:

Gráfico 1: Variação temporal dos batismos de Rio Pardo (1755- 1762; 1775- 1779)

Fonte: ACMPOA. Registros de Batismo da Igreja de Rio Pardo. Livros 1A (1755 - 1761), 1B (1761 - 1763) e 4 (1774 - 1783).
Registro de Batismo de Índios de Rio Pardo e depois Gravataí. Livro 1 (1758 - 1760).

Chamamos a atenção, primeiramente, para a quantidade de batismos referentes à categoria


“Somente Missões”, a qual corresponde a 41% dos assentos do primeiro período, mas reduz-se drasti-
camente para o segundo, não chegando a 1%. Não nos deteremos neste trabalho, entretanto, à presen-
ça guarani em Rio Pardo136, a qual impactou de maneira significativa esse local, como se pode perceber
através do gráfico acima. Voltamos nossa atenção, portanto, aos assentos referentes ao conjunto “Di-
134 Do livro de “Batismos de Índios”, utilizamos os batismos efetuados entre julho de 1758 e agosto de 1760,
sendo excluídos, obviamente, os registros referentes a Gravataí. Do livro 4, utilizamos apenas os assentos efe-
tuados entre os dois últimos meses de 1774 e o ano de 1779 (inclusive).
135Optamos por não incluir nesse gráfico os dados referentes a 1763 e 1774, em virtude de só terem sido obti-
dos os registros referentes ao mês de janeiro, para o primeiro, e de novembro e dezembro, para o último.
136Analisada mais detalhadamente por Max Ribeiro. RIBEIRO, Op. Cit.

1017
versas Origens”, objeto central de nosso estudo. Sobre esse conjunto, é interessante observar que temos
a quase totalidade dos assentos do segundo período nele incluídos, algo bastante distinto do primeiro
momento(no qual esse conjunto correspondeu a 46,9% dos registros), e que demonstra o impacto
referente à presença guarani nessa localidade naquele período. Dispusemos tais dados137 no gráfico
abaixo, com o intuito de analisá-los conforme a metodologia aqui utilizada, mas com algumas ade-
quações necessárias à apresentação dos dados referentes às “Primeiras Entradas”. Considerando que
os naturais de Rio Pardo, os quais passam a aparecer no segundo período, obviamente não correspon-
dem a migrantes, efetuamos o seguinte procedimento, no intuito de distinguir suas “Primeiras Entradas”
daquelas referentes aos nascidos em outros locais: como a contabilização da “Primeira Entrada” através
do batismo corresponde, em geral, a um pai e uma mãe, e considerando que nem sempre os genitores
possuem a mesma naturalidade, passamos a contabilizar uma “Primeira Entrada” para cada homem
e mulher. Dessa forma, podemos separar as “Primeiras Entradas” de pais e mães nascidos na própria
localidade daquelas referentes a genitores migrantes. Obtém-se assim, conforme cremos, um indicativo
mais aproximado da presença desses últimos dentre os pais e mães observados através dos batismos. O
gráfico relativo ao conjunto “Diversas Origens”, por sua vez, é duplicado apenas com a finalidade de ilus-
trar melhor a comparação, uma vez que nem todos os registros possuem ambos os genitores registrados.

Gráfico 2: Variação temporal dos batismos de crianças livres do conjunto “Diversas Origens” divi-
didos entre “Primeiras Entradas”, “Recorrências” e nascidos em Rio Pardo (Rio Pardo, 1755- 1762;
1775 - 1779)

Fon-
te: ACMPOA. Registros de Batismo da Igreja de Rio Pardo. Livros 1A (1755 - 1761), 1B (1761 - 1763) e 4 (1774 - 1783).
Registro de Batismo de Índios de Rio Pardo e depois Gravataí. Livro 1 (1758 - 1760).

Observemos os dados referentes à classificação por nós utilizada, começando pelas “Recor-
rências”, cuja quantidade apresenta tendência de aumento ao longo dosdois períodos, demonstrando
o enraizamento da população, conforme cremos. A quantidade de “Primeiras Entradas”, por sua vez,

137Optamos por não incluir nesse gráfico os dados referentes a 1763 e 1774, em virtude de só terem sido obti-
dos os registros referentes ao mês de janeiro, para o primeiro, e de novembro e dezembro, para o último.

1018
apresenta tendência distinta, apesar das variações visualizadas principalmente no segundo momento.
Em termos gerais, cremos ser possível afirmar a partir dos dados acima que o movimento migratório
para Rio Pardo foi relativamente constante no primeiro momento, apresentando uma leve tendência
de redução. Para a avaliação do segundo momento, é importante chamar a atenção para a lacuna de
registrosdo período entre 1763 e 1774, a qual certamente fez com que as “Primeiras Entradas” apare-
cessem represadas em 1775, de maneira semelhante ao que pode ser visualizado nos anos de 1755 e
1756, quando praticamente todos os batismos correspondem a “Primeiras Entradas”, em virtude do
surgimento da povoação. A partir dos dados do gráfico, portanto,cremos que o maior movimento
migratório para Rio Pardo no segundo momento se deu entre 1776 e 1777, oscilando nos dois anos
posteriores. Cremos, portanto, que esse movimento tenha correspondido ao arrefecimento das ativi-
dades bélicas após a retomada de Rio Grande, o qual não apenas levou novos migrantes à “Fronteira
do Rio Pardo”, mas também fez com que antigos moradores ausentes retornassem àquela região138.
Associados, esses movimentos fazem com que as “Recorrências” aumentem ao final do período, da
mesma maneira que ocorrera entre 1755 e 1763, indicando o enraizamento daquela população, algo
que pode ser inferido também pela presença de naturais de Rio Pardo no segundo período, sendo essa
também uma razão para o procedimento efetuado para a elaboração do gráfico acima.

A metodologia por nós aplicada aos assentos batismais, conforme cremos, possibilita a visua-
lização tanto da chegada de novos habitantes quanto do enraizamento da população, cujas representa-
ções gráficas indicam conjunturas de maior ou menor ocorrência de um ou outro movimento, guarda-
das as limitações referentes à tais registros, conforme mencionado anteriormente. Para inquirir sobre
as áreas que mais contribuíram com migrantes para a localidade de Rio Pardo, passamos, portanto, à
análise dos percentuais referentes às “Primeiras Entradas”, os quais dividimos conforme descrito na
primeira parte deste trabalho. Abaixo apresentamos graficamente os percentuais dos conjuntos mais
representativos:

Gráfico 3: Percentuais de naturalidade dos genito-


res (Rio Pardo, 1755 - 1763; 1774 - 1779)

138 Algo que pode ser inferido através da visualização de “Recorrências” no segundo momento para “Primeiras
Entradas” registradas no primeiro, considerando aquelas que não ocorrem nos primeiros anos do reinício dos
assentos.

1019
Fonte: ACMPOA. Registros de Batismo da Igreja de Rio Pardo. Livros 1A (1755 - 1761), 1B (1761 - 1763) e 4 (1774 - 1783).
Registro de Batismo de Índios de Rio Pardo e depois Gravataí. Livro 1 (1758 - 1760).

Como se pode perceber, há uma inversão entre os percentuais relativos a ilhéus e nascidos nas
possessões luso-americanas para os dois momentos: enquanto aqueles predominam no primeiro, estes
últimos passam a compor de maneira majoritária o aporte migratório observado para Rio Pardo no
segundo. Para este, destacamos também a presença de pessoas nascidas na própria localidade, a qual
reflete o enraizamento da população nesse local. Seu percentual ultrapassa aquele referente aos natu-
rais da Europa, o qual cai pela metade de um momento para o outro. Os dados por nós apresentados
conjuntamente acima correspondem a 258 pais e 255 mães. Para uma melhor visualização dos movi-
mentos migratórios em relação ao sexo, distribuímos graficamente tais informações abaixo:

1020
Gráfico 4: Percentuais de naturalidade para pais e mães (Rio Pardo, 1755 - 1763)

Fonte: ACMPOA. Registros de Batismo da Igreja de Rio Pardo. Livros 1A (1755 - 1761), 1B

(1761 - 1763). Registro de Batismo de Índios de Rio Pardo e depois Gravataí.Livro 1 (1758 - 1760).

Gráfico 5: Percentuais de naturalidade para pais e mães (Rio Pardo, 1774 - 1779)

Fonte: ACMPOA. Registros de Batismo da Igreja de Rio Pardo. Livro 4 (1774 - 1783).

Chamamos a atenção, primeiramente, para a composição percentual dos contingentes por ori-
gem, a qual não apresenta uniformidade com relação ao sexo. Destacamos também a ausência de mu-
lheres oriundas da Europa para os dois momentos analisados. As genitoras permanecem distribuídas
majoritariamente entre os percentuais relativos a Ilhas e Luso-América, sendo que aqueleé ultrapas-
sado não apenas por este último, mas também pelo percentual relativo às mulheres nascidas em Rio
Pardo, o qual é bem maior do que o valor encontrado para homens dessa mesma origem. As distinções
percentuais não apenas indicam que as uniões não ocorriam necessariamente entre pessoas de mesma
origem, como também demonstram uma mobilidade de maior distância para os pais em relação às
mães. Podemos afirmar, portanto, que essa característica, presente em distintos contextos dos perío-
dos colonial e imperial da história do Brasil139 se faz também presente em Rio Pardo, ao menos para
o período analisado. Dentre os rio-pardenses, consideramos que a significativa diferença percentual

139 Ver, por exemplo: MARCÍLIO, 1986, Op. Cit.; BACELLAR, 1997, Op. Cit.; FARINATTI, 2014, Op. Cit.

1021
entre os sexos corrobore a maior mobilidade masculina para aquele espaço.

Ainda acerca dos dados relativos aos gráficos4 e 5, observamos que o percentual de luso-a-
mericanos é majoritário tanto para pais quanto para mães no segundo momento, ultrapassando a
participação dos ilhéus, a qual apresentou os maiores percentuais para ambos os sexos no primeiro
período. O percentual de ilhéus relativo aos pais, menor que o concernente às mães no primeiro mo-
mento, ultrapassa este último no segundo recorte, algo que indica, cremos, um maior aporte masculi-
no de açorianos à “Fronteira do Rio Pardo” para este momento. Diferentemente do primeiro período,
no qual houve aporte conjunto de açorianos para Rio Pardo, entendemos que esse contingente passa
agora a acompanhar o movimento migratório geral observado para essa localidade. O percentual refe-
rente às mães não apenas cai em relação aos pais açorianos, mas também em relação às mães nascidas
na própria localidade, as quais passam a ocupar o segundo maior percentual neste período, conforme
já afirmamos. Tendo em vista essa presença majoritária de luso-americanos em Rio Pardo no segundo
período, e no intuito de observar de maneira mais detalhada as áreas das possessões lusitanas de onde
provinha esse contingente durante todo o período aqui analisado, distribuímos aqui seus percentuais
de acordo com a distância de suas origens com relação à Rio Pardo. Dispomos tais dados no quadro
abaixo:

Quadro 1: Percentual de “Primeiras Entradas” de Luso-americanos

por distância da origem em relação a Rio Pardo

(1755- 1763; 1774 - 1779)

Fonte: ACMPOA. Registros de Batismo da Igreja de Rio Pardo. Livros 1A (1755 - 1761),

1B (1761 - 1763) e 4 (1774 - 1783). Registro de Batismo de Índios de Rio Pardo e depois

Gravataí. Livro 1 (1758 - 1760).

1022
De antemão, chamamos a atenção para a já mencionada diferença de distância do local de
origem entre homens e mulheres, a qual se reflete também dentre as migrações internas ao espaço co-
lonial luso-americano agora observadas. Dentre os homens oriundos dessa área, predominam aqueles
nascidos em locais mais afastados de Rio Pardo, sendo que os percentuais diminuem na medida em
que as distâncias são reduzidas. Tanto o é que nenhum homem nascido a menos de 300 km se faz
presente em Rio Pardo no primeiro momento, enquanto 7,2% das luso-americanas são naturais de
locais dentro desse raio. Aumentando essa distância para 500 km, temos mais de um terço das mães, e
apenas 0,7% dos pais. Dentre os oriundos de distâncias maiores que essa, predominam pessoas nasci-
das em São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba. Nesse grupo, além da quase totalidade dos pais nascidos
nas possessões lusitanas na América (21,6%), temos ainda 15,8% das mulheres, percentual que nos
faz questionar a relação entre distância e mobilidade para estas últimas. Nessa conjuntura, entretanto,
faz-se necessário recordar não apenas o aporte de mulheres solteiras de outras áreas da colônia à Rio
Grande no período anterior descrito por Maria Luiza Bertulini Queiroz140, mas também o desloca-
mento de contingentes em armas dessa localidade para Rio Pardo. Nesse sentido, consideramos que
muitas dessas mulheres tenham acompanhado esses contingentes até essa localidade, o que explicaria
o percentual observado para distâncias maiores que 500 km para mulheres no primeiro momento.

A mobilidade de maior distância para homens luso-americanos aparece de maneira mais acen-
tuada para o segundo momento. Excetuando-se os rio-pardenses, temos nesse momento apenas 11,6%
dos homens oriundos de distâncias menores que 300 km de Rio Pardo, sendo que para as mulheres te-
mos 43,3% nesse quesito. Essas pessoas eram, em sua quase totalidade, naturais de Rio Grande ou Via-
mão. Para as possessões lusitanas na América localizadas a mais de 300 km de Rio Pardo, inverte-se
essa relação nesse momento: 13,5% das mães e 43,1% dos pais são nascidos nesse espaço, sendo que
para o primeiro período os luso-americanos presentes em Rio Pardo eram oriundos exclusivamente
de áreas nessa distância. Entre 1774 e 1779, predominam pessoas oriundas da Ilha de Santa Catarina,
de São Paulo e localidades próximas a essa cidade, além do Rio de Janeiro.

Para este momento, também é importante considerar o aporte de tropas de outras áreas do
império português ao Continente de São Pedro em virtude da conjuntura bélica ocorrida entre os anos
de 1763 e 1776, assim como ocorrera na década de 1750. Dessa forma, podemos considerar que mui-
tos desses nascidos nas possessões lusitanas na América fossem homens ligados às armas, assim como
o reduzido contingente de portugueses observados na localidade para o período agora analisado. O
predomínio de pais oriundos de áreas mais distantes, aliado ao percentual considerável de mulheres
naturais de Rio Grande e Viamão, aponta também para a possibilidade de que muitos desses homens
tenham contraído núpcias nessas localidades e, posteriormente, tenham se deslocado para Rio Pardo
com suas famílias, principalmente após o arrefecimento do período bélico. É possível que muitos
deles compusessem as tropas portuguesas mobilizadas para a retomada de Rio Grande e a defesa do
Continente de São Pedro, tendo se estabelecido por essas paragens após o encerramento dos conflitos,
vislumbrando a possibilidade de granjearem para si terras e gados.

140 QUEIROZ, 1992, Op. Cit.

1023
Como vimos, portanto, grande foi o aporte de pessoas que chegaram a Rio Pardo efetuando
movimentos migratórios a partir de diversas origens, as quais variaram quantitativamente ao longo
do período aqui analisado. Apesar do curto recorte temporal, cremos ter sido possível explicitar as
distintas conjunturas migratórias ocorridas para esse local através da metodologia aqui exposta, em
contraponto com a visualização do enraizamento da população, conforme proposto. Após o período
aqui analisado, a “Fronteira do Rio Pardo” se expandiria rumo ao sul e ao oeste, movimento do qual
muitas famílias radicadas nessa localidade fizeram parte. A seguir, efetuamos um breve exercício, no
intuito de explorar uma outra possibilidade que os assentos batismais apresentam, quando utilizados
de maneira associada.

Trajetórias familiares de migração através de registros de batismo

Como vimos, grande foi o aporte de pessoas que chegaram a Rio Pardo entre 1755 e 1779, as
quais eram provenientes das mais diversas áreas.Mesmo com a lacuna de registros de batismo para o
período entre 1763 e 1774, assolado pela conjuntura bélica, alguns indivíduos presentes no primei-
ro período ainda batizavam crianças em Rio Pardo no período posterior. Para muitos outros casos,
entretanto, o passar dos anos de guerra não foi tão gentil. Dentre aqueles que não mais levaram suas
crianças à pia batismal em Rio Pardo após 1774, encontra-se o coronel Francisco Barreto Pereira Pin-
to, falecido em março de 1775. Boa parte de sua descendência, entretanto, não apenas permaneceria
em Rio Pardo, como também se espraiaria para o sul e para o oeste, estabelecendo-se em localidades
que surgiram com a expansão de sua “Fronteira” nos anos posteriores ao que aqui analisamos. Par-
tindo não apenas dos assentos batismais já aqui utilizados, mas também daqueles aos quais ainda
não pudemos aplicar a depuração, observaremos a presença dessa família em Rio Pardo ao longo do
tempo, cruzando as informações referentes às suas “Primeiras Entradas” e “Recorrências”, seleciona-
das individualmente para o período posterior ao analisado anteriormente. Além disso, e utilizando os
assentos batismais de outras três localidades, buscaremos efetuar um exercício no intuito de visualizar
algumas trajetórias de migração, explorando, dessa forma, mais uma potencialidade desses registros,
os quais utilizaremos aqui de maneira associada.

A “Primeira Entrada” do coronel Francisco Barreto Pereira Pinto em Rio Pardo ocorre no ano
de 1756: sendo natural de Portugal, registra ao menos três de seus rebentos nessa localidade entre esse
ano e 1762, juntamente com sua esposa, dona Francisca Velosa da Fontoura, natural das Minas. Após
o lapso temporal dos batismos de Rio Pardo e o falecimento de Francisco, seus filhos e filhas passaram
a comparecer à pia batismal nessa mesma localidade, na qual sete deles batizaram ao menos 28 crian-
ças entre 1774 e 1804. Suas naturalidades indicam uma trajetória de migração de seus pais, tendo em
vista que alguns deles nasceram em Rio Grande e Viamão.

Os netos do coronel Francisco, por sua vez, passaram a comparecer à pia batismal em Rio
Pardo no ano de 1789. Localizamos oito homens e mulheres, todos naturais de Rio Pardo, os quais ba-

1024
tizaram ao menos 22 crianças nessa localidade até 1830, último ano por nós alcançado no fichamento
dos batismos desse local. Nessa geração, porém, passamos a visualizar movimentos migratórios em
direção ao sul e ao oeste de Rio Pardo, o que efetuamos através dos registros batismais de outras loca-
lidades, quais sejam: Caçapava do Sul, a sudoeste de Rio Pardo, cujos assentos vão de 1800 a 1811141;
Bagé, também a sudoeste de Rio Pardo, com batismos para o período entre 1829 e 1835142; Alegrete,
com assentos de 1818 a 1835143, localizada a oeste de Rio Pardo. É importante ressaltar que tais locali-
dades não são as únicas que surgiram com a expansão da “Fronteira do Rio Pardo” rumo a sul e oeste
após o período bélico ocorridoentre 1763 e 1776, embora sejam algumas das principais surgidas até
1835 no espaço que se formou a partir dessa expansão.

Retomando a descendência do coronel Francisco, observamos quatro de seus netos e netas


em duas dessas localidades: enquanto uma faz-se presente em Alegrete no ano de 1825, duas netas e
um neto batizam crianças em Caçapava do Sul entre 1800 e 1811, sendo que uma delas foi localizada
batizando crianças também em Rio Pardo, algo que indica um movimento migratório efetuado em fa-
mília, junto de seu cônjuge e, muito provavelmente, de seus rebentos. Desses quatro, todos eram igual-
mente nascidos em Rio Pardo. Da totalidade dos netos observados através dos assentos batismais,
entretanto, observa-se que boa parte optou por permanecer na localidade em que nasceu, ao menos
ao longo do período que aqui analisamos. É importante salientar, entretanto, que através dos registros
de batismo utilizados foi possível localizar apenas 11 netos e netas do coronel Francisco, sendo que
apenas na localidade de Rio Pardo foram localizados os batismos de 28 crianças dessa mesma geração.

Passando à terceira geração, observamos apenas uma bisneta do coronel Francisco batizando
três rebentos em Rio Pardo entre 1807 e 1827. Nenhuma pessoa dessa mesma geração foi localizada
em Caçapava do Sul entre 1800 e 1811, mas para as outras duas localidades o resultado foi distinto:
em Bagé, dois bisnetos batizaram três crianças entre 1829 e 1835, e em Alegrete uma bisneta batizou
seis rebentos entre 1823 e 1834. Embora tenhamos localizado poucos indivíduos para essa geração,
e apesar de não dispormos de mais dados para o momento, consideramos interessante observar que
a maior parte dos bisnetos batizou seus filhos em outras localidades, algo que não apenas demonstra
sua migração para esses locais, mas talvez esteja demonstrando também uma preferência pelo movi-
mento migratório em direção às novas áreas que se abriam a sul e oeste nessa geração, em detrimento
à permanência em Rio Pardo. Essa, entretanto, é uma hipótese que surge a partir das informações
encontradas, a qual poderá ser avaliada com o andamento de nossos trabalhos.

Ainda sobre os bisnetos, é interessante observar que nem todosos localizados eram naturais de
Rio Pardo: um deles, presente em Bagé, nascera em Encruzilhada do Sul, localidade situada ao sul de
Rio Pardo. Sua naturalidade demonstra o movimento migratório de uma geração anterior para uma
localidade surgida no mesmo contexto aqui analisado, o qual não pode ser visualizado em virtude
da impossibilidade de incluirmos os batismos desse local neste trabalho. Conforme mencionamos
anteriormente, as localidades aqui analisadas são apenas algumas daquelas que surgiram até 1835 no
141 Arquivo da Cúria Diocesana de Cachoeira do Sul. Livro 1 de batismos de Caçapava do Sul (1800 - 1811).
142 Arquivo da Cúria Diocesana de Bagé. Livro 1 de batismos de Bagé (1829 - 1835).
143 Arquivo da Cúria Diocesana de Uruguaiana. Livros 1 e 2 de batismos de Alegrete (1816 - 1835).

1025
espaço aberto pela expansão da “Fronteira do Rio Pardo”. Dentre aquelas não incluídas, encontram-
-se, além da já mencionada Encruzilhada do Sul: Cachoeira do Sul, Santa Maria, São Gabriel, Santana
do Livramento e Uruguaiana. Todas essas, tal qual as que aqui analisamos, eram possíveis destinos
para aqueles que optassem por acompanhar a expansão da “Fronteira do Rio Pardo”. Por mais que
englobá-las, infelizmente, não nos seja possível para este trabalho, cremos ter conseguido demonstrar
a utilização de tais registros para a visualização de trajetórias familiares de migração através desse
brevíssimo exercício. Como pudemos observar, famílias radicadas em Rio Pardoacompanharam esse
movimento de expansão da “Fronteira do Rio Pardo” em direção ao sul e oeste, participando dire-
tamente do alargamento dessas terras, compondo pessoalmente a expansão demográfica e também
apropriando-se das terras e dos gados que encontravam pela frente. Com o andamento de nossos tra-
balhos, cremos, objetivamos desvendar mais algumas histórias dessas famílias, as quais expandiram
suas proles tal qual expandiram-se as possessões lusitanas ao sul da América.

Considerações finais

Face ao exposto, cremos ter aqui demonstrado algumas possibilidades que podem ser explora-
das no intuito de efetuar estudos relativos a movimentos migratórios a partir de registros de batismo.
Através da aplicação da metodologia da depuração a uma determinada localidade, entendemos ser
possível efetuar avaliações acerca de conjunturas de maior ou menor afluxo migratório ou enraiza-
mento da população no local analisado, em se utilizando os dados obtidos como um todo. Além disso,
e utilizando apenas as “Primeiras Entradas”, podem ser averiguadas as áreas que mais forneceram mi-
grantes para o local sob análise, em um outro exemplo de utilização dos dados obtidos em conjunto.
Quando utilizadas de maneira centrada em algum indivíduo, casal ou família, tais assentos podem
fornecer informações sobre trajetórias familiares de migração, as quais podem ser complementadas
com a utilização de assentos batismais referentes a outras localidades. Os resultados aqui apresen-
tados, entretanto, são apenas parciais, e serão ainda posteriormente refinados com o andamento de
nossas pesquisas, assim como a própria metodologia aqui exposta, a qual ainda encontra-se em pro-
cesso de elaboração. À parte isso, esperamos ter demonstrado através dos exercícios efetuados alguns
dos resultados que podem ser obtidos através das possibilidades que os registros de batismo fornecem
para o estudo de movimentos migratórios, os quais carecem de fontes para os períodos colonial e im-
perial da história do Brasil.

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“VIVE A FAVOR DE SEU PAI”: RELAÇÕES DE RECIPROCIDADE FAMILIAR E A ESTRUTURA


AGRÁRIA DE SÃO JOSÉ DO TAQUARI, 1770-1811
Sandra Michele Roth Eckhardt144
Introdução

Nestacomunicação, pretendemos apresentar o perfil socioeconômico dos moradores de São


José do Taquari e apontar a importância das relações de reciprocidade familiar envolvidas no acesso à
terra na freguesia, ao final do período colonial.

Localizada na margem leste do rio Taquari, São José do Taquari se torna freguesiana década
de 1760, e é fundada para acomodar “casais açorianos” migrados ao sul da América portuguesa, com
a finalidade de povoar e cultivar terras de fronteira política em processo de ocupação. Aqui não abor-
daremos de modo sistemáticoo processo de traslado das famílias de ilhéus que se dispuseram a tentar
uma vida nova na América, mas sim da sua adaptação, sobrevivência e inserção socioeconômica no
Continente do Rio Grande de São Pedro, nas últimas décadas do século XVIII.

A partir da análise específica da composição sociale da estrutura agráriade Taquarimostrare-


mosas principais formas de acesso à terra dessa população e a importância da família na organização
produtiva da região. Porém, como Taquari foi a primeira freguesia criada para instalar parte dessa
população migrada dos Açores retomaremos alguns aspectos desse projeto de migração e povoação
da Coroa Portuguesa.

Ocupação portuguesa ao sul da América

A região, que atualmente compreende o estado do Rio Grande do Sul e parte do estado de
Santa Catarina, era disputada entre ambos as Coroas ibéricas na América. A presença portuguesa na
região sul iniciou-se ainda no século XVII, porémfoi apenas em 1750, como Tratado de Madri, que
a Coroa portuguesa alcançou o reconhecimento da ocupação dos campos de Viamão por parte dos
espanhóis. Tratado esse que implicou na troca do território da Colônia do Sacramento, localizado no
extremo da ocupação portuguesa na região do rio da Prata145, pelo território espanhol das Missões
Jesuíticas, situadas ao oeste do litoral português.
144Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria e bolsista
CAPES/Desenvolvimento Social.
145O rio da Prata era um importante meio de escoamento das produções coloniais na América, em especial da
prata espanhola. Portanto, ambas as Coroas cobiçavam o monopólio lícito e ilícito na região.

1028
Mesmo sendo posteriormente invalidado, em 1761, pelo Tratado de El Pardo, o tratado de
limites de 1750 deu início a expedição de demarcação territorial, estendendo o processo de expansão
da fronteira agrária rumo ao oeste do Continente do Rio Grande e também desencadeando o conflito
indígena da guerra guaranítica. A questão de demarcação dos limites ibéricos na região somente se
resolveu em 1777, com o Tratado de Santo Ildefonso que incorporou definitivamente a Colônia do
Sacramento aos domínios do Vice-reino da Prata. Contudo, a expedição demarcatória, iniciada em
1751-1752 e, encabeçada pelo governador do Rio de Janeiro Gomes Freire de Andrade, possuía a
pretensão de encaminhar, de modo mais sistemático, a apropriação das terras que naquele momento
pertenciam aos domínios portugueses.

A expedição de demarcação dos limites, da década de 1750, objetivou povoar a região que pas-
saria a pertencer aos domínios portugueses. Conforme Helen Osório (1990) povoar o Continente, que
agora reorganizava suas fronteiras significava ocupa-lo economicamente, em especial com animais146.
A autora também assinalou que a transferência populacional, via imigração dos súditos portugueses
das ilhas açorianas, visava assegurar a territorialidade portuguesa na América e compunha o projeto
de organização e auto sustento do espaço meridional do Brasil. Vejamos quem foram os sujeitos que
deveriam ocupar social e economicamente esses domínios portugueses.

Súditos Migrantes: a presença Açoriana na América

A iniciativa portuguesa que envolveu a migração de súditos das ilhas açorianas para a região da
fronteira meridional estava baseado no Edital de 1747, o qual instituía as condições para a imigração
e as expectativas sobre a instalação e início das atividades na América. Por ordem do Rei, D. João V, o
anúncio foi divulgado nas ilhas do arquipélago dos Açores e incitou a população disposta a migrar a
se matricular no projeto e posteriormente mudar-se para o sul do Brasil.

O Edital previa um perfil populacional jovem e em plenas condições produtivas, fossem pes-
soas solteiras ou casadas, com ou sem filhos. Esse também prometia ajuda de custo e materiais, nos
primeiros momentos de fixação no outro lado do Atlântico, até que as primeiras lavouras fossem
cultivadas.

[...] logo que chegarem aos sítios que hão de habitar se dará a cada casal uma espingarda, duas
enxadas, um machado, uma encho, um martelo, um facão, duas facas, duas tesouras, duas
verrumas, uma serra com uma lima e travadoura, dois alqueires de sementes, duas vacas e
uma égua, e no primeiro ano se lhes dará farinha [...] se dará a cada casal um quarto de légua
em quadro para principiar a sua cultura. (Apud: FORTES, 1999, p.27) 147

No entanto, como demostrou Adriano Comissoli (2009), em estudo sobre as estratégias de


sobrevivência e ascensão social da população açoriana nos campos de Viamão, as condições de auxílio
146OSÓRIO, Helen. Apropriação da terra no Rio Grande de São Pedro e a formação do espaço platino. Disser-
tação (Mestrado em História). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 1990, p.48-50.
147FORTES, João Borges. Os Casais Açorianos: presença lusa na formação do Rio Grande do Sul. Ed. 3. Porto
Alegre: Martins Livreiro, 1999.

1029
previstas não se efetivaram, pois os migrantes tiveram que encontrar suas próprias formas de inser-
ção socioeconômica148. Enquanto aguardavam a fixação definitiva nos “sítios” prometidos no Edital
de1747 os imigrados açorianos acabaram se espalhando pelo Continente e se envolvendo em um pro-
cesso de espera pela posse efetiva das datas149de terra, que durou cerca de duas décadas.

A tese de MartaHameister (2006) também contribuiu no debate sobre a inserção social e eco-
nômica da população açoriana no Rio Grande de São Pedro. A autoraelucidou alguns exemplos da
diferença social existentes entre os imigrantes ilhéus desde sua partida no outro lado do Atlântico.
Aliada a essa possível distinção econômica e social trazida das ilhas, está o atraso de 20 anos da distri-
buição e demarcação das datas que se deram aos casais de origem açoriana, o que forjou outras formas
de sobrevivência e inserção socioeconômica no Continente150.

As observações dessa historiografia reflete a conjuntura política, social e econômica que os


súditos do Rei vieram a enfrentar após sua chegada ao extremo sul do Brasil, pois a ocupação da terra
que lhes foi prometida pela Coroa não ocorre de imediato. Também demostra que a ideia de um Rio
Grande como território de pouca ocupação e desmembrado da dinâmica econômica colonial não é
compatível com a realidade encontrada pelos açorianos chegadosà América.

A Inserçãosocioeconômica Açoriana no Rio Grande de São Pedro

Helen Osório (1990) situou o Rio Grande de São Pedro dentro do espaço platino, ou seja, as
bases produtivas e as políticas metropolitanas se assemelhavam em ambos os domínios ibéricos na
América. Comparando a paisagem agrária e as estruturas produtivas do Continente de São Pedro
com as regiões do rio da Prata a autora constatou que “pequenos e médios proprietários de terras
constituíam o maior contingente ocupacional da campanha de Buenos Aires” (Osório, 2007, p.82-83)
cenário que em muito se assemelhava com a realidade socioeconômica do Rio Grande151.

A população açoriana presente no Continente do Rio Grande de São Pedro veio a incorporar a
categoria“lavrador” que se caracterizavam, de modo geral, como pequenos produtores, proprietários
de datas e/ou agregados, dedicados a agricultura e a pequena criação de animais.Osório (2007, p.169)
identificou, a partir da comparação patrimonial, que esses pequenos produtores, com até 100 cabeças
de gado, configuraram o grupo mais pobre dos produtores agrários do Continente. O número médio
de animais apontado pela autora para essa categoria é o cenário socioeconômico predominante entre
os moradores de Taquari, portanto, muitos desses pequenos produtores do Continente estiveram ins-

148COMISSOLI, Adriano. Do arquipélago ao continente: estratégias de sobrevivência e ascensão social na


inserção açoriana nos campos de Viamão (Séc. XVIII). Aedos: Revista do corpo discente do Programa de Pós-
-graduação em História da UFRGS (online), v.2, p.74-96, 2009.
149As datas eram pequenas propriedades de terras concedidas, comumente, aos imigrados açorianos, durante
a década de 1770, pelo governador da Capitania do Rio Grande, e apresentava uma dimensão que pode ser
considerada uma pequena propriedade no período, comparada às extensões dos despachos e das sesmarias.
150HAMEISTER, Martha. Para dar calor à nova povoação: estratégias sociais e familiares na formação da Vila
do Rio Grande dos Registros Batismais (c.1738-c. 1763). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal
do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2006.
151O império português no sul da América: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: Editora da
UFRGS, 2007, p.82-83.

1030
talados na freguesia152.

Em relação ao nosso lócus de estudo, a freguesia de Taquari, acredita-se que a observação


detalhada de uma determinada região permite a inclusão mais complexa de uma série de fatores que
apontam variáveis capazes de compreender a formação de tendências gerais. A partir da análise es-
pecífica de um espaço delimitado, podemos identificar ações sociais dos agentes locais e dos condi-
cionantes regionais da estrutura socioeconômica vigente. Desse modo, é possível apontar as diversas
formas de inserção econômico-social plausíveis na sociedade colonial, cujo ponto mais dinâmico era
caracterizado pela agricultura de exportação e pelo escravismo, porém, onde eles não eram exclusivos.

Caminhos metodológicos

Apresentado o cenário político, social e econômico em que é criada a freguesia de São José
do Taquari a problemática central dessa pesquisa se construiu a partir da questão de como ocorreu a
inserção socioeconômica da população migrada, do arquipélago açoriana à América,no Continente
do Rio Grande de São Pedro e no mercado colonial brasileiro. Os objetivos da análise se ocupam em
entender as práticas socioeconômicas e a dinâmica da estrutura agrária formada na freguesia de São
José do Taquari.

Acreditando que são os historiadores que elaboram suas técnicas de acordo com o universo
histórico analisado, segundo suas fontes e atentando para o quadro teórico escolhido, a pesquisa visa
se inserir numa perspectiva micro analítica da história agrária, a partir da temática da história social,
baseada em análises quantitativas e qualitativas.

A quantificação das fontes trouxe a conhecimento realidades socioeconômicas do Brasil co-


lonial muito para além da plantation escravista153, proporcionou visibilidade a uma ampla gama de
pequenos lavradores e produtores de alimentos, que também podiam se inserir modestamente em
mercados exportadores ou em mercados inter-regionais. João Fragoso e Renato Pitzer (1988) apon-
tam principalmente os inventários post mortem como possibilidade de conhecer esses sujeitos e as
formas como se relacionam com o mercado154.

Na historiografia do Rio Grande do Sul alguns trabalhos nos servem de inspiração e exemplo
da utilização de metodologias da história quantitativa e serial. Osório (2007), ao trabalhar com os
inventários post-morteme a Relação de Moradores do Continente do Rio Grande verificou a presen-
ça do trabalho escravo em pequenas e médias propriedades, como na pecuária e agricultura do Rio
Grande de São Pedro, ao final do período colonial. Luciano Gomes Costa (2013), ao estudar a estrutu-
ra econômico-demográfica na formação de Porto Alegre entre 1772 e 1802, utilizando-se de registros
paroquiais e a Relação de Moradores de 1784, apontou a existência de dimensões rurais variadas e

152Osório, Idem, p.162.


153FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do
Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992.
154FRAGOSO, João &PITZER, Renato. Barões, homens livres pobres e escravos: notas sobre uma fonte múlti-
pla – inventários post-mortem. Revista Arrabaldes, ano1, nº 2, 7/dez 1988, p. 29-52.

1031
uma diferenciação social advinda da concentração fundiária ocorrida nessa região155.

Nosso universo de estudo, a freguesia de São José do Taquari, infelizmente não apresenta uma
ampla e variada documentação, em especial pelos poucos e dispersos inventários post-mortem regis-
trados para a freguesia e a não localização dos Róis de confessados (documentação eclesiástica elabo-
rada por domicilio que arrola os membros pertencentes aos fogos). Porém, a partir da microanálise e
do cruzamento de informações contidas noRegistro Paroquiais (Casamentos, batismos e óbitos), os
Registros de Concessão de datas, a Relação de Moradores, Mapas populacionais e alguns inventários
post-mortem, podemos apresentar algumas afirmações sobre o universo social da freguesia, ao final
do século XVIII.

Inicialmente procurou-se realizar numa análise demográfica, a qual nos permite entender
quem foram os sujeitos que povoaram a freguesia de Taquari e quais os arranjos familiares produzidos
e/ou reproduzidos nesse contexto. Para tal, utilizaremos os RegistrosParoquiais, produzidos na Paró-
quia de São José do Taquari. Segundo Ana Scott e Dario Scott esses registros são “fontes por excelência
da história demográfica” (2006, p. 2), pois possibilitam a identificação individual dos atores sociais
nos contextos em que atuam156. Utilizaram-se os registros de casamento produzidos na paróquia da
freguesia entre 1767-1796 e os registros de concessão de dataspara analisar o perfil das famílias que
povoaram Taquari.

Ao analisar o perfil dos povoadores da freguesia podemos partir para a verificação das formas
de acesso à terra e como essa influenciou na formação das unidade produtivas e na inserção econômi-
ca dos moradores de Taquari. Para esse objetivo, cruzamos as informações dos Registros de Concessão
de datas que se dão aos casais das ilhas (1770)e a da Relação de Moradores que tem campos e animais
no Continente (1784). Os primeiros consistem em títulos de propriedade da terra, concedidas, a partir
da década de 1760 pelo governador do Continente do Rio Grande de São Pedro, e registradas como
carta de datadurante a década de 1770157. A Relação de Moradores, realizada 14 anos após os registros
de concessão de datas, é uma espécie de lista nominativa agrária e foi realizada objetivando conhecer
as formas de ocupação da terra e as atividades produtivas desenvolvidas nessa região158.

Aliando a análise demográfica à verificação da estrutura agrária da freguesia, procuraremos


entender a influência dos arranjos familiares na organização das unidades produtivas de São José do
Taquari, ao final do século XVIII.

155OSÓRIO, Idem.

GOMES, Luciano Costa. Uma cidade negra: escravidão, estrutura econômico-demográfica e diferenciação so-
cial na formação de Porto Alegre, 1772-1802. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Porto Alegre: 2012.
156SCOTT, Ana &SCOTT, Dario. Cruzamento nominativo de fontes: desafios, problemas e algumas reflexões
para a utilização dos registros paroquiais. In: Anais do XV Encontro Nacional de Estudos Populacionais. 1ª
Edição. Campinas: ABEP, 2006.
157 Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Livro registro de datas de terra que se dão aos casais das ilhas –
1770. Códice F 1229, p. 68-117.
158Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Relação de moradores que têm campos e animais no Continente do
Rio Grande de São Pedro, 1784. Códice 104, p. 351-356.

1032
Taquari, uma Freguesia“açoriana”: arranjos familiares e as formas de acesso à terra

A povoação disposta às margens leste do rio Taquari pelo governador Custódio de Faria e Sá
foi a tentativa mais próxima, até então, de fazer cumprir os critérios estabelecidos no Edital da migra-
ção, pois a promessas de amparos monetários, instrumentos e suplementos não foram efetivadas. A
tarefa de demarcar geograficamente as datas e legitimar as posses foi consolidada posteriormente pelo
governo de José Marcelino de Figueiredo, na década de 1770. O cenário político em que José Marce-
lino assume o governo do Continente (1769-1780) é de instabilidade e intensificação das investidas
dos espanhóis. Portanto, a regularização da instalação dos açorianos se torna uma possibilidade de
assegurar e expandir as possessões portuguesas na região Platina e também de acolher elementos e
contingentes militares em constante circulação.

Para verificar algum perfil social da população que recebeu a concessão de terras demarcadas,
por ordem do governador, buscaram-se os Registros de datas de datas de terras que se deram aos ca-
sais das ilhas, de Taquari. Nos registros de Taquari consta reiteradamente o nome do beneficiado (o
cabeça de casal ou chefe do fogo) com a data de terra e a descrição de legitimação do pedido, geral-
mente, se é família imigrante, filho de casal imigrado ou casado com algum desses, portanto é possível
identificar um perfil matrimonial das famílias que foram beneficiadas com as concessões.

As afirmações historiográficas sobre a distribuição de terras feitas pelo governador acordam


que se tratava de 60 lotes em cada freguesia que recebeu população migrada, porém nosregistros de
concessão de datasde Taquari são encontrados 54 registros de concessões de títulos. Acredita-se que
essa diferença está na ausência dos registros dos lotes de número 5, 12, 21, 31, 37, 38 e 43 e na duplica-
ção do registro de número 19. Esses lotes podem não ter sido demarcados e/ou registrados, bem como
pode o engenheiro e o escrivão da Fazenda Real não terem adotado um padrão numérico sequencial.
Contudo, a partir de algumas declarações feitas em 1784 sobre a origem da propriedade da terra, na
Relação de Moradores, acredita-se que alguns moradores de Taquari não registraram o título das ter-
ras que ocupavam.

A tabela a seguir é resultado da quantificação dos 54 Registros de concessão de datas de Ta-


quari. Nela podemos observar um perfil matrimonial da população beneficiada com as concessões de
terras na freguesia.

Tabela 1: Perfil matrimonial dos casais que receberamdatas em Taquari, 1770

Nº de Regis-
Total %
tros
1. Cônjuges açorianos 23 44,5%

2. Um cônjuge açoriano 1 2%

3. Filhos de açorianos 16 29,5%

4. Um cônjuge filho (a) de açoriano 11 20%

5. Cônjuge agregado de casal 3 3,7%

1033
Total 54 100%
Fonte: Elaboração própria. Baseada em: Registros de concessão de datas que se dão aos Casais das Ilhas– Taquari 1771

1 - Casal das Ilhas de Açores, Casal de número, Casal transportado e Viúva de casal;

2 - Casado com viúva de casal;

3 - Filho de casal casado com filha de casal;

4 - Agregado casado com filha de casal, Casado com filha de casal, Filho de casal casado com agregada de casal e Filho de
agregado casado com filha de casal;

5 - Casado com agregada de casal.

O grupo que mais recebeu concessão de datas em Taquari, se considerado isoladamente, foi
o de “casais” (famílias) de origem imigrante, pois se somadas as diversas nomenclaturas que foram
auferidas nos registros de concessão, teremos uma representatividade maior desse grupo, totalizando
44,5%159.

O segundo contingente populacional mais representativo da tabela é o dos casais formados


pelos matrimônios com filhos ou filhas de casais açorianos. Os filhos de casais imigrantes que casaram
com filhas de casal (ambos os cônjuges filhos de ilhéus) representam 29,5% dos beneficiados com as
concessões de datas em Taquari160. Em seguida, estão os casais envolvendo apenas um filho ou filha
de “açorianos” entre os cônjuges beneficiados com a concessão de datas, somando 20% dos registros
de datas anotados para Taquari. Aqui cabe a ressalva de que segundo os critérios do Edital de 1747
“as gentes das Ilhas” (solteiros e viúvos) que contraíssem matrimônio, no prazo de cinco anos após
a chegada à América, também teriam direito à concessão de terras. Já os filhos de ilhéus na América
acessaram o direito à terra via concessão através da Carta Régia de 1752.

A análise do perfil das famílias beneficiadas com a concessão de terras em Taquari demonstra
que mesmo na primeira freguesia criada para acomodar os súditos migrados das ilhas açorianas ha-
via uma grande parcela de casais formados por filhos e filhas de ilhéus, bem como de casais em que
apenas um dos cônjuges possuía ascendência nas ilhas açorianas. Portanto, Taquari foi a primeira fre-
guesia a acomodar os casais açorianos, contudo, a maioria dos beneficiados com a concessão de datas
já não eram de casais originários das ilhas, mas sim descendentes desses e/ou sujeitos que acessaram
a concessão da terra via matrimônio.

Buscando as observações da micro-história italiana, mais especificamente da apropriação de


Giovani Levi dos trabalhos do antropólogo Fredrik Barth, percebe-se que parte dos povoadores do
Continente de São Pedro se valeram das “regras do jogo” e avaliaram dentro de uma “racionalidade

159A denominação “casal das Ilhas”, “casal de número”, “casal transportado” e “Viúva de casal” fazem referência
a pessoas que vieram migradas do arquipélago para a América Portuguesa, geralmente famílias já constituídas,
com ou sem filhos.
160 Nos registros de concessão de datas não há referência sobre o local de nascimento desses filhos. Portanto,
podem tanto ter nascido nas ilhas açorianas e ter migrado com seus pais para a América, quanto serem filhos
dessa população nascidos no próprio Continente, pois haviam se passado 18 anos desde a chegada dessa po-
pulação ao Rio Grande e a demarcação dos lotes em Taquari, tempo o suficiente para que filhos americanos
participassem do mercado matrimonial.

1034
limitada” que estabelecer matrimônio, agregar-se e possuir relação com pessoas de procedência nas
ilhas dos Açores os levaria à possibilidade de fazer referência a uma “origem” açoriana, o que poderia
garantir uma situação mais confortável em relação à distribuição dos lotes de terras ordenados pelo
governador161.

A utilização de tal estratégia indica outra discussão importante, que o acesso à terra e a sua
regularização, através da demarcação e obtenção de título de posse, eram elementos de inserção eco-
nômica importantes em uma região marcada por disputas territoriais e conflitos interimperiais. Assim
sendo, o acesso aos recursos produtivos ligados ao meio rural, em especial a terra, foram elementos
centrais para a sobrevivência de qualquer grupo ou pessoa. Portanto, acreditamos que a utilização
de soluções estratégicas que pudessem facilitar e acelerar essa ascensão eram almejados e executados
quando possível.

O enxoval simbólico e o mercado matrimonial

Giovanni Levi (2000), em A herança imaterial, afirma que não se pode restinguir a estratifica-
ção social à constituição dos bens de um determinado casal ou núcleo familiar co-residente, pois, no
contexto estudado por ele (uma aldeia do Piemonte, no século XVII), um conjunto maior de estra-
tégias que interligavam os membros da família compunha o repertório dessas táticas. Essa afirmação
pode ser testada para outros contextos162. Escolher com quem se casar, a partir da afetividade, certa-
mente não compunha a opção de uma grande maioria dos nubentes dos séculos XVII e XVIII, em
sistemas de Antigo Regime, e certamente também não o fora diferente no Continente de São Pedro.

Se o ato de contrair matrimônio compunha as estratégias possíveis e disponíveis a uma famí-


lia no acesso aos recursos e à diferenciação social, no Brasil colonial, qual o papel do matrimônio na
obtenção, manutenção e transmissão dos recursos entre os pequenos produtores?163 No contexto de
migração e povoamento açoriano do Continente de São Pedro, tiveram as noivas e noivos, de origem
insulana, portadores de uma possibilidade de acesso às datas de terra, um papel de destaque no mer-
cado matrimonial?

Atentando a presença açoriana em Taquari e o uso do casamentocomo estratégia de inserção


socioeconômica na região buscaram-se os registros matrimoniais da freguesia de Taquari, anotados
entre 1767-1795164,e a hipótese de que a referência da origem açoriana continuou sendo usada para a

161 LEVI, Giovanni. Sobre amicro-história. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da História - novas perspectivas.
São Paulo: Ed. UNESP, 1992.
162LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janei-
ro: Civilização Brasileira, 2000.
163Os principais trabalhos que servem como inspiração nesse modelo teórico/metodológico são: FARIA, Shei-
la de Castro. A Colônia em movimento. Fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1998.BACELAR, Carlos. Os Senhores da Terra: família e sistema sucessório entre os senhores de engenho do
Oeste paulista, 1765-1855. Campinas: Centro de memória, 1997.
164Os Registros de Casamento da freguesia de Taquari encontram-se no Arquivo Histórico da Cúria Metro-
politana de Porto Alegre (AHCMPA) e estão organizados em livros que abrangem um determinado número
registros anuais e que também se encontram microfilmados num catálogo online realizado pela organização de
pesquisa genealógica Family Search, administrada pela Igreja de Jesus Cristo dos Últimos Dias. Disponível em:
https://familysearch.org/search/catalog/402433.

1035
obtenção das datas, após 1770, não se confirmou, ou seja, a freguesia criada para acomodar os súditos
migrados das ilhas açorianas não expõe, de modo significativo, a sua presença nos registros matrimo-
niais da paróquia de Taquari.

Anna Silvia Scott e Gabriel Santos Berute (2014) analisaram os registros de casamento, de al-
gumas freguesias do Rio Grande de São Pedro, para avaliar o impacto demográfico ocasionado pela
presença açoriana no Continente de São Pedro165. A partir da análise e da comparação dos matrimô-
nios das freguesias de Nossa Senhora da Conceição de Viamão, São José do Taquari e Nossa senhora
da Madre de Deus de Porto Alegre, os autores apontaram a transformação da dinâmica do mercado
matrimonial após a chegada dos contingentes de ilhéus ao Continente e indícios da distribuição es-
pacial dessa população. Umadas conclusões apontada pelos pesquisadores foi de que, aparentemente,
os noivos da freguesia de Taquari escolhiam, majoritariamente, como suas noivas, moças nascidas no
próprio continente, pois a presença de mulheres que referiram origem insulana era baixa.

Desse modo, o dado mais interessante sobre Taquari apontado pelos autores é o de que a
freguesia criada especificamente para acomodar os casais açorianos é a que menos expõe, nos
registros de casamentos, a presença de noivas com origem nas ilhas, se comparada com Viamão e
Porto Alegre166. Esse perfil matrimonial de Taquari averiguado nos registros paroquiais diferiu com-
pletamente do perfil matrimonial presente nos registros de concessões de datas. A questão em aberto
é: onde estariam se casando as mulheres açorianas e as filhas dos casais ilhéus?

Acreditamos que a explicação está no impacto ocorrido no mercado matrimonial com a che-
gada dos imigrantes ao Continente do Rio Grande de São Pedro. As moças solteiras vindas das ilhas
açorianas com seus pais e também aquelas que nasceram no Continente possuíam um papel social
importante numa região de fronteira política instável, marcada pela ampla presença de soldados, au-
sência de mulheres brancas, cristãs e com certas dificuldades de acesso àterra por parte de pequenos
produtores.

As solteiras das ilhas e as filhas dos casais migrados possuíam algo a mais que o cristianismo e
a cor branca da pele. A possibilidade de receber a concessão de datas certamente também não passou
despercebida aos olhos dos homens interessados em se estabelecer como lavradores. Ana Scott e Dario
Scott analisando a origem das noivas da freguesia de Viamão entre 1747-1752 argumentam que:

Mais do que serem brancas, vindas de Portugal Insular (um capital simbólico muito apre-

165A pesquisa desses autores é baseada num amplo banco de dados informatizado, chamado NACAOB, desen-
volvido nos anos de 1991 e 1992 por Dário e Ana Scott com a finalidade de servir como mecanismo de melho-
ramento e agilidade nas pesquisas demográficas e conta com amplo número de dados de registros paroquiais
coletados pelos pesquisadores. SCOTT, Ana Silvia Volpi; BERUTE, Gabriel Santos.Gente das Ilhas: repensando
a migração do Arquipélago dos Açores para a Capitania do Rio Grande de São Pedro. In: Gentes das Ilhas. Tra-
jetórias transatlânticas dos Açores ao Rio Grande de São Pedro entre as décadas de 1740 a 1790. SCOOT, Ana
Silvia. ; BERUTE, Gabriel Santos: MATOS, Paulo Teodoro (org.). São Leopoldo: Oikos, 2014.
166 Ver Tabela 08 e 12 In: Gentes das Ilhas. Trajetórias transatlânticas dos Açores ao Rio Grande de São Pedro
entre as décadas de 1740 a 1790. SCOOT, Ana Silvia. ; BERUTE, Gabriel Santos: MATOS, Paulo Teodoro (org.).
São Leopoldo: Oikos, 2014. p.128.

1036
ciado), elas “teoricamente” seriam muito atraentes aos candidatos a “marido” também por
conta do “enxoval” que poderiam dispor, como mulheres vinculadas aos “casais del rei”, como
muitos foram identificados nos assentos de casamento daquela freguesia. (SCOTT & SCOTT,
2013, p.10, grifos nossos) 167.

Portanto, o seu “enxoval” baseado na origem pôde atrair mais rapidamente um pretendente.
Desse modo, é possível que muitas das filhas solteiras nascidas nas ilhas e filhas de casais migrados
que nasceram no Rio Grande tenham se casado ainda antes de seguirem rumo às regiões da fronteira
missioneira e isso, provavelmente, explica a pouca presença dessas nos registros de casamentos nas
freguesias criadas na segunda metade do século XVIII.

E onde teriam se casados as mulheres açorianas e suas filhas antes de se instalar na região oeste
do Continente? Maria Luiza Queiroz (1985)demonstra que as noivas de origem açoriana estiveram pre-
sentes em grande parte das uniões matrimoniais de Rio Grande antes de 1763168. Os dados de Scott e
Berute (2014) sobre os registros de casamentos da freguesia de Nossa Senhora de Viamão, entre 1747-
1759, também apontam para uma participação importante de nubentes com origem nos arquipélagos
portugueses169. Por outro lado, esses nubentes de origem insular já estão ausentes em grande parte dos
casamentos registrados em Taquari, a partir de 1767.

Desse modo, a historiografia apoia nossa hipótese de que muitas mulheres de origem açoriana
disponíveis no mercado matrimonial, solteiras ou viúvas, assim como as filhas nascidas no Continente
que haviam alcançado idade suficiente para se casar, contraíram matrimônio, especialmente em Rio
Grande e Viamão, antes mesmo de se deslocar para as novas freguesias da fronteira com os espanhóis.

Portanto, tudo indica que as mulheres açorianas e suas filhas se casaram antes de migrarem
para Taquari e para reforçar essa hipótese verificamos, especificamente a referência de origem das mu-
lheres nos registros de datas de 1771. Nessa documentação encontram-se 24 mulheres sendo referidas
sob a nomenclatura “casal”, ou seja, mulheres migradas das ilhas com seus cônjuges, representando
45% do total. As filhas de açorianos foram referidas 26 vezes, representando 48% das mulheres povoa-
doras da freguesia de Taquari. Portanto, somadas às mulheres nascidas nas ilhas e filhas de mulheres
insulanas tem-se o percentual de 93% dos registros de concessão de datas.

Desse modo, se nos registros decasamento de Taquari encontramos poucas noivas açorianas e
poucas filhas de casais migrados, isso provavelmente se deu pelo fato dessas mulheres já terem se casa-
do em outras paróquias, especialmente em Rio Grande e Viamão, devido ao interesse do mercado ma-
167SCOTT, Ana Silvia, SCOTT, Dario Casais d’El Rei no Rio Grande de São Pedro setecentista: um olhar
através dos registros paroquiais. In: Anais do XXVII Simpósio Nacional de História: Conhecimento histórico
e diálogo social. Natal, 2013.
168Maria Luiza Queiroz (1985) mostra que a participação açoriana nos matrimônios na Vila Rio Grande,
entre 1756-1763, é de 77% para uniões com participação açoriana e de 64% para casamentos realizados entre
açorianos.QUEIROZ, Maria Luiza. A Vila do Rio Grande de São Pedro, 1737-1822. Dissertação (Mestrado em
História). Universidade Federal de Rio Grande. Rio Grande: 1987.
169No ano de 1753, o número de casamentos realizados em Viamão triplica se comparado aos dois anos ante-
riores. Para os autores é um indicativo claro do impacto causado, pela chegada dos insulanos, na nupcialidade
da freguesia.SCOTT,BERUTE. Idem, p.136.

1037
trimonial no “enxoval” que essas traziam consigo ao referir uma origem insular. Os homens de origem
açoriana por sua vez, são mais recorrentes nos registros matrimoniais de Taquari nos primeiros anos
da criação da freguesia, pois possivelmente foram absorvidos mais tarde pelo mercado matrimonial
devido à migração para as regiões de fronteira para fins militares, ainda na década de 1750.

Nemsódeaçorianosfoipovoada

A história da agricultura compõe a história econômica de homens e mulheres, e esses a trans-


formam, produzem seu sustento e acumulam algum excedente através da comercialização. Entender
quem são esses sujeitos possibilita uma maior compreensão de como ocorreram as diversas formas de
inserção econômica por parte de pequenos produtores em uma sociedade permeada pelo escravismo
e pela agricultura de exportação. Portanto, para melhor entender o perfil demográfico e a estrutura
agrária vigente na freguesia de São José do Taquari, ao final do século XVIII, verificamos quem eram
seus moradores para além dos casais açorianos beneficiados com as concessões de datas de terras.

Conforme apontado anteriormente a não localização dos Róis de Confessados de Taquari fez
com que se buscassem outras fontes para a análise demográfica da população. Os Mapas de população
ou mapas de todos os habitantes da Capitania do Rio Grande de São Pedro do Sul estão alocados no
Arquivo Histórico Ultramarino, e compõem quadros de caráter estatístico que contém informações
sobre os habitantes da colônia e foram elaborados com o intuito de conhecer as populações que esta-
vam sob a administração do governo metropolitano170. A coleta de informações ocorria em nível local
a partir da estrutura administrativa eclesiástica a qual controlava uma série de registros (batismos,
casamentos, óbitos, confissões e comunhões) dos fiéis.

Os mapas de habitantes eram elaborados nas paróquias das freguesias, encaminhados às ad-
ministrações regionais e enviados, na forma de relatórios, à Lisboa. A contagem da população se deu
por faixas de idade e por sexo, porém infelizmente nem sempre foram descriminadas as etnias, em es-
pecial para a população indígena, e o número de crianças menores de sete anos. Os eclesiásticos locais
estavam responsáveis pela elaboração das listas e a compilação de dados a eles disponíveis incluía ape-
nas os adolescentes que receberam comunhão na páscoa, os ditos meninos e meninas de confissão171.

Por outro lado, a condição jurídica era claramente discriminada e por mais que o número total
de moradores das freguesias seja incompleto, devido ao subregistro de crianças e uma possível taxa
média de erro, a porcentagem aproximada de adultos e suas respectivas condições jurídicas parecem
possíveis de ser estimadas. Vejamos a descrição da condição jurídica da população de São José do Ta-
170Mappa de todos os habitantes da Capitania do Rio Grande de São Pedro do Sul, devididos pelas fregue-
ziasactuais da mesma Capitania no anno de 1780. Arquivo Histórico Ultramarino, caixa 7, doc. 485. Projeto
Resgate: documentos manuscritos avulsos da Capitania do Rio Grande de São Pedro, cd1. Agrade-se ao douto-
rando da UFRGS, Luciano Costa Gomes, por gentilmente nos ceder esse material para consulta.
171Ao comparar as informações dos Róis de confessados com os mapas de populações da freguesia Madre de
Deus de Porto Alegre, freguesia do Rio Grande de São Pedro, Dário Scott (2017, p.621) encontrou uma dife-
rença média de 15% nos dados arrolados nos Róis de confissão e nos mapas populacionais de 1780, 1798, 1802,
1805. Por outro lado, quando confrontados com outros registros paroquiais (casamentos, batismos e óbitos)
o autor constatou que a média de diferença com os referidos censos populacionais não ultrapassou os 10%.
SCOTT, Dário. A população do Rio Grande de São Pedro pelos mapas populacionais de 1780 a 1810. Revista
Brasileira de Estudos de População. Belo Horizonte, v.34, n.3, 2017, p. 617-633.

1038
quari, feita no mapa de população de 1780.

Tabela 2: A população de Taquari segundo a sua condição jurídica, 1780

Livres % Confissão* % Cativos % Total


Homens 133 42,9 110 35,5 67 21,6 310
Mulheres 137 36,1 200 52,8 42 11,1 379
Total 270 39 310 45 109 16 689
Fonte: Elaboração própria. Baseada em: Mapa de todos os habitantes da Capitania do Rio Grande de São Pedro do Sul de
1780.

A partir dos dados apresentados nesse levantamento populacional observa-se a maior presen-
ça de pessoas livres em Taquari, tanto homens quanto mulheres e crianças e adolescentes. No entanto,
a presença de pessoas em condição cativa não é desprezível, pois compõe 16% do total da população
da freguesia e 28,7% dos adultos. Esse fato foi o que nosdespertou atenção sobre as possibilidades de
acumulação proveniente da agricultura desenvolvida pelos pequenos produtores de Taquari.

Por ora, pode-se lançar a hipótese de que em Taquari, bem como em outras freguesias, o pre-
domínio era de pequenas escravarias, típicas em regiões economicamente voltadas ao mercado in-
terno, o que conforme Francisco Luna (1981, p. 57) não significava pouca disseminação social da
escravidão172.

A população livre em Taquari, descriminada no mapa de população, era predominante, com-


pondo 84% da total, enquanto a população em condição cativa compunha os demais 16% dos habi-
tantes. O número de homens escravizados em Taquari superava o das mulheres, porém isso não foi
uma barreira para a formação de uniões matrimoniais e a formação da família escrava. Gabriel Berute
(2013, p.5) analisou os registros matrimoniais da freguesia entre 1767 e 1780 e verificou que os noi-
vos, que tiveram sua condição social apontada como “escravo”, representaram 19% do total e as noivas
escravizadas estiveram presentes em 18% dos registros173. Portanto, o matrimônio entre cativos da
freguesia é expressivo e é tema a ser explorado em pesquisas futuras.

Se comparados com outras freguesias do Continente do Rio Grande de São Pedro os 16% da
população cativa de Taquari parece pouco representativa perto dos 40% apontados por Fábio Kuhn
(2006, p. 111-130) para Viamão, a partir dos Róis deconfessados, ou dos 31% de pessoas escravizadas
vivendo em Porto Alegre, localizados por Luciano Gomes (2012, p.36-37) no mesmo mapa de po-

172LUNA, Francisco Vidal. Minas Gerais: escravos e senhores. São Paulo: IPE-USP, 1981.

Para Schwartz (1988, p.368) “a escravidão caracterizou-se como um investimento comum e acessível a popula-
ção do Brasil”, porém a estrutura da posse está relacionada com as formas de acesso à terra e o tipo de explora-
ção econômica nela desenvolvida. SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: Engenhos e Escravos na Sociedade
Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
173BERUTE, Gabriel Silva. “E logo lhes dei as bênçãos matrimoniais”: arranjos matrimoniais e sociabilidade
entre escravos, livres e forros (freguesia de São José de Taquari/RS, segunda metade do século XVIII). IN: Anais
do VII Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Universidade Federal de Santa Catarina, 2013.
Disponível em: http://labhstc.paginas.ufsc.br/files/2013/04/Gabriel-Santos-Berute-texto.pdf.

1039
pulação de 1780174. Porém, as dinâmicas econômicas dessas freguesias diferem de Taquari e podem
comprometer a comparação, pois Viamão foi a área mais antiga de produção pecuária, em grandes
propriedades, e desde o princípio caracterizou-se pela significativa presença de escravos. Para Porto
Alegre Gomes (2012, p.38) aponta a consolidação da freguesia como centro administrativo, no ano de
1772, como responsável pelo elevado crescimento demográfico e significativa presença cativa175.

As freguesias espacialmente mais próximas de Taquari e também criadas em meio ao contexto


de expansão da fronteira agrária ao oeste exibem percentuais parecidos com Viamão e Porto Alegre,
exceto pelo díspar destaque da freguesia de Bom Jesus do Triunfo que apresentou no mapa de habitan-
tes de 1780 uma população cativa de 50%. As freguesias de Santo Amaro e Nossa Senhora do Rosário
do Rio Pardo possuíam respectivamente 28% e 26% de sua população cativa. Portanto, dentro do
contexto de criação das freguesias do Rio Grande de São Pedro, São José do Taquari, essencialmente
agrícola e aparelhada na economia de mercado interno, apresentou uma das menores populações
escravizadas do período.

Desse modo, a explicação para a pequena participação da população cativa em Taquari, se


comparada com outras freguesias circunscritas, acorda com a hipótese de Osório (2007) de que a
maior parte da mão-de-obra empregada pelos lavradores do Continente de São Pedro era a familiar
e a escravidão convinha como complemento176. No entanto, a presença dos cativos na freguesia não é
desprezível, principalmente se considerarmos a sua recente formação, pois o intervalo de tempo entre
1765 e 1780 é relativamente curto para acúmulos produtivos necessários para acessar as rotas mercan-
tis da escravidão. Por isso, também não descartamos a hipótese de que a presença de parte dos cativos
da freguesia pudesse ser anterior a 1765, década da concessão das datas.

A composição populacional e também a sua modificação deve ser compreendida dentro de


conjunturas maiores e inter-relacionais. A partir dos dados dosMapas de População de 1780 podemos
notar dois fatores conjunturais que influenciaram no perfil dos moradores de Taquari. Primeiro, o
comparecimento majoritária de imigrantes açorianos e descendentes desses como responsáveis pela
maior presença de moradores que apresentaram condição jurídica livre177. O segundo está ligado a
uma possível distinção socioeconômica existente entre os migrados das ilhas e a formação de um sis-
tema produtivo local e regional, como responsáveis pela presença cativa na freguesia.

A estrutura agrária em taquari: acesso à terra e a constituição das unidades produtivas

O estudo específico da freguesia, enquanto povoado de importante presença de migrantes


174KÜHN, Fábio. Gente da Fronteira: família, sociedade e poder no sul da Américaportuguesa – século XVIII.
Niterói: PPG-História/UFF, tese de doutorado, 2006.

GOMES, Idem, p.38.


175O perfil comercial de Porto Alegre provavelmente absorvia os cativos recém-chegados ao Continente e os
redistribuía para outras freguesias.
176OSÓRIO, Idem.
177 Não se descarta a presença de populações indígenas nessa região, apesar do Mapa de 1780 não os categori-
zar de modo separado ou não explicar se estão contidos na categoria das pessoas livres, sabe-se que estes pro-
vavelmente compunham parte da população livre local, pois os mapas de 1798 e 17802 apontam a sua presença
em categorias especificas.

1040
açorianos, permite compreender como se deu a inserção desses agentes nos circuitos mercantis da
América Portuguesa e de que modo os objetivos de demarcação e ocupação territorial portuguesa se
desenvolveram na região meridional da Colônia.

Passaremos agora à análise das principais formas de acesso à terra dos moradores de Taquari,
a partir das informações contidas na Relação de Moradores que tem campos e animais no Continente
do Rio Grande, Freguesia de San Jozé do Taquary, de 1784. Essa documentação foi produzida a partir
das ordens do Vice-Rei Luís de Vasconcelos e Souza ao Provedor da Fazenda Real do Rio Grande, em
todas as freguesias do Continente, objetivando conhecer as formas de ocupação da terra e atividades
produtivas desenvolvidas nessa região178.

A Relação de Moradores de 1784 permite acompanhar a apropriação das terras ocorrida no


Rio Grande de São Pedro e os tipos de propriedade estabelecidos e essa é a primeira possibilidade que
será explorada. A partir da análise de todas as propriedades declaradas nessa lista nominativa para o
Continente Osório (2007, p.88) verificou seis formas de apropriações primárias da terra (datas, não
informadas, despachos do governador, posse, sesmaria e arrematação)179. Em termos de representati-
vidade a autora constatou que prevaleciam em maior número as datas.

A partir da análise específica da Relação de Moradores de Taquari, verificamos que a ocupa-


ção primária de apropriação da terra na freguesia foi predominantemente através das datas.Como
podemos observar na tabela a seguir, a maior parte dos moradores possuía apenas uma única porção
de terra, uma data, e em seguida estava o conjunto de pessoas “a favor”, que não detinham alguma e
viviam em terras alheias.

Tabela 3: Proprietários e não proprietários em Taquari, 1784

1 2 3
Agregados Proprietários e posseiros Total
Mais que uma 1 data 2 datas 3 datas Chácara Sítio S/r
data
107
Número de 34 3 40 5 1 17 2 5
moradores
Percentual 32% 2,8% 37% 4,6% 1% 16% 2% 4,6% 100%
Fonte: Elaboração própria. Baseada em: Relação de Moradores que tem campos e animais no Continente –1784

Legenda:

Coluna 1: Moradores que declararam não possuir terras e “viver a favor”;

Coluna 2: Moradores que declaram possuir terras;

Coluna 3: Total de domicílios registrados na Relação de Moradores de 1784.

Sobre as “dimensões” das terras ocupadas pelos moradores de Taquari cabem alguns esclare-
178A fonte apresenta reiteradamente o nome de cada ocupante de lotes de terra, os títulos de propriedade,
quando o possuem, a atividade ocupacional em que se empregavam nos domicílios e o número de animaispos-
suídos porcada freguês, explicitando gênero e espécie desses.
179OSÓRIO, Idem.

1041
cimentos. Nos Registros de Concessão de datas de terras aos casais das Ilhas encontra-se a seguinte
descrição para a dimensão de uma data: “uma área superficial de terreno de quinhentos e sessenta e
duas mil e quinhentas braças quadradas que constam na certidão”, o que em medidas contemporâneas
corresponde a 272 hectares180. Essa certidão referida nos registros de doação foi a documentação que
os moradores, que a possuíam, apresentaram para comprovação da propriedade no momento da rea-
lização da Relação de Moradores.

Nos Registros de Concessão de datas há 54 porções de terra que foram registradas como datas
pelos moradores de Taquari em 1770 e 1771, já em 1784, quando foi realizado o recenseamento das
freguesias, 40 moradores declararam ocupar a dimensão de apenas uma data. A partir do cruzamento
dessas informaçõesverificou-se que os ocupantes de uma única data, eram 25 moradores que, segundo
as descrições da Relação de Moradores, teriam apresentado o Registro de concessão no momento da
realização do censo e o seu nome também consta nos Registros de Concessão de data de 1770. Por-
tanto, dos 54 moradores que receberam e regularizaram a situação de suas propriedades em 1770, 25
ainda eram moradores de Taquari em 1784 e declararam não terem ampliado sua propriedade.

Doações, heranças e compras

Os outros 15 moradores, do total de 40, possuidores de uma data não foram localizados nos
Registros de concessão. Esses, ao declararem a origem de sua propriedade como data, explicaram a
forma pela qual a acessaram. Dois moradores declararam ter recebido a propriedade na forma de
doação, um deles de seu sogro e o outro morador não especificou seu vínculo com o suposto doador.
Três moradores declararam ter obtido sua data pela compra de antigos beneficiários da concessão de
terras, apenas um apresentou título de aquisição. Já os demais dez declaram ter herdado as proprieda-
des. Desses 10 herdeiros de datas, sete eram viúvas e permaneceram na área demarcada ao casal em
1770181. Os outros três herdeiros possuíam relações de parentesco com o antigo dono da propriedade,
sendo dois genros e dois filhos182.

Portanto, os dados da tabela, em especial em relação asdatas de terras, expressam claramente


a importância das relações familiares na obtenção do acesso à terra nessa freguesia, pois para além da
concessão de terras feitas pelo governador às famílias povoadoras, as heranças e doações foram signi-
ficativas formas de adquirir propriedade da terra e estiveram permeadas por relações de parentesco.
Não se descarta a possibilidade das compras também imbricarem relações parentais, porém como a
fonte nem sempre apresenta claramente essa informação e por não termos localizado os registros de
compra e venda dessas propriedades a sua confirmação não é possível.

Os Agregados e a reciprocidade familiar


180Registro de concessão de data de João Silveira Jorge. In: Registros de concessão de datas de terras que se dão
aos casais das ilhas, p.68, Códice F 1229.
181A viúva de João Dorneles, Maria de Jesus, foi listada juntamente com seu cunhado Mathias Dorneles, no
entanto, não é possível saber se viviam juntos ou de que maneira administravam a divisão da data.
182 Manoel Inácio e André Machado eram genro e filho de Pedro Machado, beneficiado com a concessão de
data. Como a Relação de Moradores de Taquari não traz a descrição das benfeitorias não é possível saber, a par-
tir dessa documentação, se esses habitaram em moradias separadas ou compartilhavam de uma mesma, bem
com não é previsível informar a forma de administração da propriedade da terra.

1042
O segundo grupo mais representativo da tabela anterior é a categoria “não possuem”. Esses são
os moradores que não apresentavam relação de propriedade direta com a terra por viverem “a favor”
em terras alheias, ou seja, foram listados na Relação deMoradores como não proprietários, o que no
contexto do Rio Grande de São Pedro significou acesso à terra sem aparente pagamento monetário
ou concessão da Coroa, o que não constitui gratuidade em relação ao proprietário que concede o
agregamento, pois formas informais de contratos envolvendo reciprocidade não estão descartadas. E
desse modo, configuram o exemplo mais pontual da importância das relações familiares no acesso aos
recursos produtivos em Taquari.

Utilizando-se dessa mesma fonte, Osório (2007, p. 93) apontou 157 moradores vivendo em
terras alheias, ou seja, 18,2% da população do Continente. Taquari comportava 22% do total de agre-
gados do Rio Grande, ao final do século XVIII e ato de possuir em sua propriedade um morador ou
uma segunda família foi verificado em 34 propriedades da freguesia183. Portanto, havia propriedades
que comportavam mais de um morador ou família como agregado. Esse foi o caso de Ana Maria de
Quadros, viúva de José de Quadros que partilhava, na forma de agregamento, a extensão de uma data
com seu filho Antônio José de Quadros e o genro João Pereira da Silva.

Os motivos que levaram os moradores da freguesia a acessar os meios produtivos a partir da


agregação são variados e bastante complexos, pois nesse conjunto de motivações podem estar envol-
vidos laços de parentesco e afetividade, ausência de terrenos disponíveis para a apropriação simples e/
ou a falta de recursos para sua aquisição. Carlos Bacelar (2001, p.190) argumenta que o agregamento,
no período colonial, se caracteriza como uma forma de solidariedade familiar e funcionou como me-
canismo de amparo de indivíduos familiares, uma estratégia para burlar situações de vulnerabilidade,
bastante comuns durante o estágio inicial da constituição de uma nova unidade doméstica184.

Para além da solidariedade familiar, acredita-se que em Taquari os agregados foram ampla
fonte de mão-de-obra empregada no cultivo de lavoura e desempenharam um importante papel na
ampliação das propriedades e aquisição de recursos. Analisando o perfil social, mediante o cruzamen-
to de informações da Relação de Moradores e com osRegistros paroquiais de Taquari, dos agregados
constatou-se que predominaram as relações de reciprocidade familiarde primeiro grau, ou seja, entre
pais e filhos e pais e genros.

Tabela 3.1:Relações familiares entre proprietário e agregados –Taquari

Relação Fami-
Outros paren-
liar com o pro- Filho Genro Sem parentesco Total
tescos
prietário
Número de
21 15 2 1 39
agregados
Percentual 54% 38,5% 5% 2,5% 100
Fonte: Elaboração própria. Baseada em: Relação de Moradores que tem campos e animais no Continente –1784

183OSÓRIO, Idem.
184BACELAR, Carlos. Agregados em casa, agregados na roça: uma discussão. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza-
da.Família, Sexualidade e Religião na Colonização do Brasil. Lisboa: Horizonte, 2001.

1043
As questões de como se escolhiam os filhos e genros para conceder a agregação ainda não estão
significativamente encaminhadas para afirmarmos um padrão presente nessa forma de acesso à terra
em Taquari, porém é um dos objetivos principais para análises futuras.

Economicamente os agregados de Taquari seguem o perfil dos proprietários. Dentre os 39


moradores que viviam dessa forma todos foram declarados na Relação de Moradores como “vive de
lavouras”, ou seja, mesmo esses tendo declarado animais sob sua posse, exceto um morador que não
referiu animais, elegeram a atividade da agricultura como sendo sua principal fonte de sustento do
domicílio.

Osório (2007) mostrou, a partir da Relação de Moradores de todas as freguesias do Continen-


te, que os lavradores consistiram o grupo socioeconômico que mais recorreu ao agregamento, repre-
sentando 63% dos casos e que esses possuíam uma incidência maior em freguesias onde a principal
forma de acesso à terra era a concessão de datas185. A partir da análise específica desse material para
Taquari verifica-se que a totalidade dos agregados praticava o cultivo de lavouras e possuíam peque-
nas criações de animais. Portanto, condizem com a categoria “lavrador” proposto pela autora, porém
os motivos para a incidência desses ser maior em freguesias onde ocorreram as concessões de datas
ainda precisam ser investigados.

Mão-de-obra familiar: ampliação da propriedade e da produção

Se por um lado muitas propriedades comportaram agregados, por outro a presença de mora-
dores com duas ou mais datas de terra é baixa, mas configuram algumas das possibilidades de am-
pliação da propriedade na freguesia. Dentre os cinco fregueses possuidores de duas datas, apenas um
morador não recebeu concessão direta do governador, adquirindo uma data por compra e outra lhe
foi designada como herança, que possivelmente foi concedida ao primeiro morador. Os demais qua-
tro moradores receberam uma concessão de data em 1764 e ampliaram sua propriedade a partir da
aquisição de outra.

E para encerar a análise da Tabela 3 e exemplificaremos um caso, bastante expressivo, de am-


pliação da posse de terras e a sua relação com a reciprocidade familiar. Iremos apresentar uma parte da
trajetória do morador Antônio Teixeira Fagundes, o único morador que estava de posse de três datas.

Em 1771 Antônio recebeu uma data de terra na forma de concessão e as outras duas foram
adquiridas via compra de dois beneficiários com as concessões feitas em 1764. A hipótese inicial que
apresentamos é que a presença de dois agregados em suas propriedades, um filho e um genro, amplia-
ram a força produtiva empregada nas lavouras e, consequentemente, o volume da produção, possibi-
litando um acúmulo de recursos necessários à aquisição de duas propriedades via compra. Antônio
comportava dois agregados, adquiriu igualmente duas propriedades e cada morador declarado como
“a favor” declarou número independente de animais, portanto é possível que o proprietário tenha
destinado um lote para uso do filho e outra para o genro.

Sustenta-se que o aumento do volume produtivo esteve focado nas lavouras, pois ao analisar
185OSÓRIO, Idem, p.97.

1044
o número de animais, declarados na Relação de Moradores, dos agregados encontramos números
bastante baixos, e mesmo se somados aos de Teixeira Fagundes não chegaram a 80 reses, aindaque
administrando três lotes de terra. Portanto, em número de animais do proprietário e os dois agregados
por ele comportados estiveram a baixo da média geral de animais da freguesia, que girou em torno de
60 animais por domicílio.

Em 1806 Mathias Teixeira de Souza inicia, no cartório de órfãos e ausentes da freguesia de Ca-
çapava, a abertura do processo de inventário de seu pai. Mathias era um dos 12 filhos de Antônio Tei-
xeira Fagundes e juntamente com a viúva compunha os herdeiros do falecido186. Sabemos que a aber-
tura desse processo consiste em uma ação especial, realizada em função da morte de um indivíduo
que possuía bens a serem partilhados e que as camadas sociais representadas nesse processo são a de
sujeitos que, ao final da vida, apresentavam algum acúmulo de recursos. Portanto, o falecido Antônio,
filho de um agregado de açoriano casado com uma filha de ilhéus, morador de Taquari beneficiado
com a concessão de data em 1771, ao final do século XVIII havia acumulado recursos suficientes para
serem partilhados entre seus herdeiros num processo de inventário.

Os bens arrolados no processo iniciado por Mathias são de caráter variado e perante inven-
tários de outras regiões podem ser considerados pouco expressivos. Porém,no contexto econômico
da freguesia de Taquari foram bastante significativos, em especial pela presença de quatro cativos em
idade produtiva, campos em Caçapava e terras em Taquari, diversidade de objetos de ferro, prata e
estanho e um expressivo número de animais de espécie e gêneros variados (éguas, cavalos, potros,
mulas e rezes de criar).

O inventário em questão está bastante comprometido pelas ações do tempo e problemas de


conservação e ainda não foi analisado por completo para refinar e aprofundar a reflexão acerca da
trajetória familiar desses sujeitos, mas o que podemos adiantar é que Antônio Teixeira Fagundes, em
algum momento entre 1784 e 1806, migrou para o oeste, região em que viria a se formar a freguesia de
Caçapava, se instalou como criador de animais sem se desfazer de suas posses em Taquari, três datas,
as quais provavelmente permaneceram sob a administração dos agregados e/ou outros filhos adultos.
Portanto, a trajetória familiar desse filho de agregado açoriano foi de migração,povoamento e acúmu-
lo de recursos em pelo menos três localizações diferentes do Continente de São Pedro.

Chácaras e sítios nos “matos” e “rossio”

Conforme a tabela 3 o acesso à terra por apropriação e ocupação, aparentemente não foi ex-
pressivo na freguesia, pois apenas dois moradores declararam ocupação de terras, um de um campes-
tre e outro de um sítio. No entanto, atenta-se aqui aos moradores que declararam estar de posse de
algum lote, mas não apresentaram títulos de propriedade.

Dezoito moradores podem ser apontados como possíveis posseiros, pois não apresentaram ne-
nhuma origem da propriedade em suas declarações. Desses 17 asseguraram a sua propriedade como
“chácara” e dessas 13 delas foram descritas como localizadas no “rossio” e as demais quatro “encontra-
186Inventário post-mortem de Antônio Teixeira Fagundes, 1806. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do
Sul. Cartório de Órfãos e Ausentes, Fundo: Vara de Família e Sucessão, Estante: 148, maço 1.

1045
da nos matos do rio”. A apresentação diferenciada dessas dimensões de terra indica que sua origem/
localização e forma de acesso diferem das datas concedidas e demarcadas por ordem do governador,
o que leva a crer que esses moradores pudessem ser ocupantes anteriores a definição das datas e/ou
de sobras e/ou bordas das datas demarcadas pelo capitão em 1770. O outro possível posseiro estivera
instalado em um terreno descrito como sítio

Foram dois os sítios descritos na Relação de 1784, um deles não teve sua origem declarada, ou
seja, no momento da elaboração da Relação de Moradores o freguês recenseado alegou estar de posse
de um sítio, que também pode ter sido adquirido por ocupação, como se indicou para as “chácaras”.
No entanto, o segundo sítio referido no censo foi o de Antônio Ferreira Camacho, morador de Ta-
quari que alegou ter adquirido sua propriedade em 1772, por compra. Esse último morador possuía
o segundo maior rebanho de animais da freguesia e declarou “viver de lavouras e criação de animais”.
Assim, Antônio Camacho se soma aos moradores da freguesia que possuíam dimensões de terra dife-
rentes das datas e maior número de animais.

Lotes de terra sem referência de dimensão

Dentre os quatro moradores que aqui tiveram o tamanho de lotes de terra classificados como
“sem referência”, tem-se um caso de dimensão ampliada, uma suposta data sem registro187, uma doa-
ção descrita como “esmola” e um proprietário de uma sesmaria desapropriada. Portanto, acredita-se
que essas dimensões não se assemelham em medidas de extensão, mas como não é possível saber pela
documentação seu real espaço de abrangência ou algum traço de consideração, como é o caso das
chácaras e sítios, optou-se por agrupá-los em uma única categoria.

A partir das atividades ocupacionais declaradas na categoria “sem referência” e as extensões


heterogêneas acredita-se quetambém não podemos agrupá-los em níveis produtivos. Pois, o tenente
desapropriado é o maior produtor de animais da freguesia e declarou viver do cultivo de lavouras e da
criação de animais, o proprietário de posse ampliada e o da suposta data não registrada declararam-se
lavradores e possuíam número médio de animais. E Lourenço de Quadro, cuja filha recebeu a esmola,
está entre os menores criadores de animais e declarou viver de lavouras.

Considerações finais

A partir do perfil demográfico apresentado verificamos maior número de pessoas livres ins-
talados na freguesia de São José do Taquari, ao final do século XVIII. Isso se deu devido ao impacto
demográfico da migração interna, do litoral de Santa Catarina, Viamão e Rio Grande para a fronteira
oeste, dos súditos açorianos presentes na América e também de seus descendentes. Porém, a presença
cativa constatada no Mapa de População de 1780 demonstrou que a escravidão estivera presente e
compôs significativa parcela da população adulta da freguesia desde os primeiros anos da sua criação.

O acesso à terra na freguesia ocorreu, majoritariamente, através da concessão de datas de terra

187 Esse morador declarou ter recebido concessão de data do governador e não ter o registro de posse por não
tê-lo retirado. Logo, não é possível saber se sua posse possui a dimensão de uma data ou se está diante de uma
caso de ocupação de uma dimensão imprecisa.

1046
doadas pelo governador às famílias de ascendência açoriana que povoaram Taquari. As famílias que
receberam a concessão eram compostas, principalmente, pelos filhos e filhas de casais migrados das
ilhas açorianas. A partir desse perfil percebemos o significativo atraso no cumprimento do Edital de
imigração de 1747, devido aos conflitos com a Coroa espanhola na América.

O conjunto de formas de acesso à terra analisadas para Taquari apontou basicamente três
formas principais de acesso à terra na freguesia. Primeiro, os proprietários de posse legal, aqueles que
apresentaram títulos de concessão de data, segundo os agregados que estiveram vivendo em terras de
familiares e por último os possuidores semregistros, dentre os quais há possíveis ocupantes.As pou-
cas transações comerciais, a ampla presença das concessões da Coroa, as heranças e os agregamentos
de caráter familiar foram as principais formas pelas quais os moradores da freguesia acessaram os
meiosde produção. Portanto, as formas de ocupação da terra em Taquari estiveram significativamente
marcadas por formas não mercantis e relações familiares.

Fontes consultadas

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Relação de moradores que têm campos e animais no Continente, versão oficial de 1784. Códice 104,
p. 351-356.

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gueziasactuais da mesma Capitania no anno de 1802. Projeto Resgate: documentos manuscritos avul-
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Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre (AHCMPA)

Registros de Casamentos da paróquia de São José do Taquari – Livro I (1767-1796).

Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS)

Inventário post-mortem de Antônio Teixeira Fagundes, 1806. Cartório de Órfãos e Ausentes, Fundo:
Vara de Família e Sucessão, Estante: 148, maço 1.

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Dona Rosa Maria de Mendonça: uma exposta na freguesia da cidade do Natal setecentista
Thiago do Nascimento Torres de Paula188

Rosa Maria de Mendonça não deixou testamento, ou provavelmente aquele documento não
chegou até o presente. Ela foi deixada em residência de um indivíduo proeminente da freguesia da
Cidade do Natal, pessoa que compunham o nível superior da figuração social, o que possibilitou que
se casasse com alguém de qualidade. Assim, quando o nome de Rosa Maria de Mendonça surge na
documentação eclesiástica, ela está na condição de noiva, esposa e mães, normalmente à sombra de
uma referência masculina. Por esse motivo, busquei reconstituir informações sobre o seu receptor,
marido e filhos para melhor iluminar aquela pequena história. Por conseguinte, o objetivo deste estu-
do é elabora a trajetória possível de uma enjeitada na jurisdição eclesiástica de Natal no século XVIII.

A enjeitada foi identificada inicialmente nos assentos de batismo, quando se buscava aferir
o índice de abandono de recém-nascidos na freguesia da Cidade do Natal, já que, por três vezes, os
padres fizeram referência ao qualificativo de exposta da dita senhora. Casada com o Alferes Domin-
gos João Campos, ela fez parte do conjunto de expostos que não morreram na primeira infância,
atingiram a idade produtiva e reprodutiva e ascenderam ao altar, consolidando sua inserção social e
constituindo uma família legitima.

Não foi possível acessar o documento de batismo de Rosa, assim não dispomos de informa-
ções específicas sobre o seu abandono, como data, horário, quem a encontrou e quem foram seus
padrinhos, que com certeza compunham a complexa rede de interdependência que permitiu socorrer
aquela pequena vida. A referência documental mais remota que se identificou para Rosa foi seu assen-
to de casamento.

Aos vinte e quatro de novembro de mil setecentos e quarenta e cinco anos, pela ma-
nhã, na capela de Nossa Senhora da Conceição do Jundiaí, desta freguesia de Nossa
188Pós-Doutorando em Educação no PPGED/UFRN, vigência de 2017-2019, Bolsista CAPES.

1049
Senhora da Apresentação do Rio Grande do Norte, feitas as denunciações na forma
do Sagrado Concílio Tridentino, nesta matriz, e na dita capela onde o contratante
é morador e justificando o contratante ser solteiro livre e desempedido perante o
Reverendo Doutor José de Almeida vigário da praça e do Juiz dos residentes do dis-
trito da Paraíba, por comissão nomeado na visita de sua Excelência Reverendíssima
que se achava visitando na dita cidade e dando fiança aos banhos do contratável
perante mim como constava do mandado que se me apresentou com as sobreditas
clausulas, sem se descobrir impedimento como consta nas certidões dos banhos mais
documentos que ficam em meu poder, exceto a fiança que foi remetida ao dito Juiz
a mão do escrivão, pelo Reverendo Inácio Pereira de Azevedo, clausula também do
dito mandado, e em presença do Reverendo coadjutor licenciado João Gomes Freire
de licença minha e sendo presentes por testemunhas o Capitão-mor desta capitania
Francisco Xavier de Miranda Henrique e o Provedor da Fazenda Real Inácio de Sou-
za Rocha Branco, pessoas conhecidas, se casaram em face da Igreja solenemente por
palavras de presente Domingos João Campos, filho legitimo de Felipe Francisco já
defunto e sua mulher Isabel Fernandes, naturais do lugar Muzelos, freguesia do Cam-
po, Bispado de Viseu e morador nesta cidade com Dona Rosa Maria de Mendonça
filha de pais incógnitos, exposta em casa do Sargento mor Mario de Castro Rocha,
natural e morador na ribeira da cidade desta dita freguesia e logo lhes dei as bênçãos
conforme os ritos e cerimônias digo as cerimônias da Santa Madre Igreja do que tudo
mandei fazer este assento em que por verdade me assinei. Manuel Correa Gomes /
Vigário.189

Como se vê, o documento que registrou o casamento da exposta Rosa Maria de Mendonça
deixa evidente que ela estava conectada a indivíduos importantes da figuração social. Primeiro, é ne-
cessário frisar que seu receptor, o Sargento-mor Mário de Castro Rocha, teve participação recorrente
no Senado da Câmara da Cidade do Natal na primeira metade do século XVIII. Aos 17 de fevereiro de
1746, praticamente 90 dias após o matrimônio da enjeitada, o Sargento-mor assinou o termo de posse
e juramento para assumir a função de Juiz Ordinário na governança da cidade.190

A condição de presidente do Senado da Câmara indicava que o receptor era o vereador mais
velho daquela administração, ratificando a suspeita de que Rosa tinha sido abandonada em um do-
micílio posicionado na camada superior daquela sociedade. Não há dúvidas de que Mário de Castro
Rocha era um indivíduo conhecido na freguesia.

O Sargento-mor participou em outros momentos de sua vida da governança da Capitania do


Rio Grande do Norte. Na data de 1o. de maio de 1737, ele foi empossado outra vez como Juiz Ordi-
nário.191 Em 11 de fevereiro de 1738, foi escolhido para ser o Almotacé da cidade para aquele mês192;
já em 21 de novembro do mesmo ano, Mário de Castro Rocha estava na função de Provedor dos
Ausentes e, juntamente com outros membros da governança, buscava soluções para uma rebelião de
escravos africanos que tinham se amucambado, cometendo delitos pelos caminhos e contra os mora-

189ACMAN, Assentos de casamento, Cx. única, Maço: 1740-1752, f. 62.


190AIHGRN, Termos de Vereação, Cx. 2, Livro: 1745-1752, f. 18v.-19.
191AIHGRN, Termos de Vereação, Cx. 1, Livro: 1737-1742, f. 7.
192AIHGRN, Termos de Vereação, Cx. 1, Livro: 1737-1742, f. 15v.-16.

1050
dores da Capitania.193

Em 1o. de junho de 1739, o receptor de Dona Rosa Maria de Mendonça foi outra vez escolhido
como Almotacé, para os meses de setembro e outubro. Neste ano ficou especificado que os Almotacés
tinham que notificar os moradores da cidade que fossem proprietários de escravos para que enviassem
um dos seus cativos “[...] para o concerto dos barcos da ribeira e do rio da cidade”.194

Na década de 1720 também foi possível identificar a passagem de Mário de Castro Rocha pela
Câmara. Aos 7 de abril de 1722, o receptor de Rosa, que já possuía a patente de Capitão, foi escolhido
como Almotacé para substituir o capitão Antônio Marques da Rocha, que se achava no sertão.195 Em
21 de novembro de 1723 (dia de Nossa Senhora da Apresentação, orago da freguesia da Cidade do
Natal), Mário foi escolhido como vereador para o ano de 1724.196

Aos 22 de novembro de 1724, ele foi preso por dívidas que tinha com a Fazenda Real,197 porém
sua prisão não bloqueou a possibilidade de participações futuras na Câmara, já que em 27 de março de
1725 mais uma vez Mário estava na função de almotacé198; aos 2 de fevereiro de 1727, ele foi chamado
à presença do Capitão-mor da Capitania, provavelmente para ser escolhido como Juiz e escrivão de
vintena para a Ribeira e Freguesia de Goianinha.199

Nove meses após ter sido chamado à presença do Capitão-mor, Mário de Castro Rocha foi
testemunha do casamento entre Manuel Rodrigues Pimentel, exposto em casa de Brigida Pimentel, e
Eugênia Maria de Sá, filha natural de Anacleto Gomes e Francisca Borges.200 Ambos os nubentes eram
naturais e residentes na freguesia da Cidade do Natal; o matrimônio foi celebrado aos 26 de novembro
de 1727 na capela da Senhora Santa Ana do Ferreiro Torto.201

O receptor de Rosa também era criador de gado: em 1735, solicitou à Coroa terras devolutas
próximas ao rio Jundiaí para tal finalidade, recebendo resposta positiva de Lisboa.202

Em suma, a exposta não foi deixada à porta de qualquer indivíduo da freguesia: seu enjeita-
mento se enquadra no padrão de abandono estabelecido pelos indivíduos da figuração por todo o
século XVIII e primeiras décadas do XIX: um enjeitamento domiciliar, protetor e consciente.

Abandonada em casa de alguém de distinção, Rosa Maria de Mendonça também foi encami-
nhada ao casamento com alguém socialmente distinto, o Alferes Domingos João Campos. Domingos
era um reinol, nascido aos 29 de abril de 1714, filho legítimo de Felipe Francisco e Isabel Fernandes,
193AIHGRN, Termos de Vereação, Cx. 1, Livro: 1737-1742, f. 27v.-29.
194AIHGRN, Termos de Vereação, Cx. 1, Livro: 1737-1742, f. 47.
195AIHGRN, Termos de Vereação, Cx. 1, Livro: 1721-1735, f. 11v.
196AIHGRN, Termos de Vereação, Cx. 1, Livro: 1721-1735, f. 30-30v.
197AIHGRN, Termos de Vereação, Cx. 1, Livro: 1721-1735, f. 47-47v.
198AIHGRN, Termos de Vereação, Cx. 1, Livro: 1721-1735, f. 53.
199AIHGRN, Termos de Vereação, Cx. 1, Livro: 1721-1735, f. 69-69v.
200Nas buscas realizadas nos documentos de batismo, o qualificativo de exposto desapareceu do nome de Ma-
nuel Rodrigues Pimentel após a realização do casamento.
201ACMAN, Assentos de casamento, Cx. única, Maço: 1727-1740, f. 34.
202CARTA DE SESMARIA. Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/sesmaria/RN%200931 Acesso em:
08 fev. 2016.

1051
em Muzelo, freguesia de Nossa Senhora do Rosário do Campo, Bispado de Viseu, norte de Portugal.203

Não se sabe com que idade ou em que ano Domingos chegou à América, nem em quais cir-
cunstâncias. Mas é certo que aos 31 anos de idade ele encontrava-se na Capitania do Rio Grande do
Norte, na freguesia da Cidade do Natal, apto a casar-se com a exposta Rosa. Conjeturo que ele tenha
adotado o sobrenome Campos como uma forma de lembrar-se e identificar-se com suas origens. Na
segunda metade do século XVIII, o marido da exposta esteve presente entre os membros da governan-
ça, atuou como piloto de terras na Capitania e foi qualificado como senhor de engenho pelo próprio
Senado da Câmara.

Seis anos após ter contraído matrimônio com Rosa Maria de Mendonça, o Alferes Domingos
João Campos foi escolhido para a função de vereador, aos 21 de novembro de 1751, passando a com-
por a governança.204 Em 1774, o Alferes era responsável por transportar valores de Câmaras do sertão
para a Cidade do Natal205; neste mesmo ano, ele foi mais uma vez escolhido para ser vereador.206

Aos 3 de janeiro de 1776, Domingos foi escolhido para ser Almotacé nos meses de janeiro e
fevereiro207; já estava nesse momento com aproximadamente 66 anos, sendo velho para os parâmetros
do século XVIII; em 24 de janeiro de 1780, ele assinou o termo de posse e juramento para tornar-se
Juiz Ordinário da Câmara.208 Sublinho que o marido de Dona Rosa Maria de Mendonça só foi iden-
tificado entre os membros da administração alguns anos após o casamento, o que revela indícios da
relação de interdependência entre o Sargento-mor Mário de Castro Rocha e Domingos. O primeiro
possivelmente precisava casar sua enjeitada Rosa Maria, que talvez fosse sua própria filha concebida
fora do casamento e abandonada na porta do próprio pai, enquanto o segundo provavelmente via na-
quele casamento o caminho para ingressar na governança, considerando a condição de homem-bom
do receptor de sua esposa.

O esposo de Rosa Maria de Mendonça, antes de estar entre os membros da governança, e pou-
cos anos antes do casamento, exercia uma função importante na Capitania do Rio Grande do Norte:
Domingos João Campos era um tipo de agrimensor, um Piloto demarcador de terras. Apesar de ter
fixado moradia com a exposta no litoral, o Alferes percorreu vários pontos do sertão da capitania,
medindo terras e prestando serviços.

No ano de 1742, ele foi responsável por demarcações nas regiões litorâneas de Maniçobas,
Boas Águas, Macacheta e Itaipu Grande. Quase vinte anos depois, em 1759, Domingos media datas
na ribeira do Apodí, em um lugar de nome Riacho do Olho de Água da Serra do Catolé, no sertão da
Capitania.

Em 1762 ele estava presente na região do Seridó, também sertão da Capitania, demarcando as
203Documento de batismo de Domingos João Campos. Disponível em: http://putegi.blogspot.com.br/2012/11/
familiares-de-domingos-joao-campos-em.html Acesso em: 09 fev. 2016.
204AIHGRN, Termos de Vereação, Cx. 2, Livro: 1745-1752, f. 112-113.
205AIHGRN, Termos de Vereação, Cx. 2, Livro: 1766-1781, f. 149-149v.
206AIHGRN, Termos de Vereação, Cx. 2, Livro: 1766-1781, f. 167-168.
207AIHGRN, Termos de Vereação, Cx. 2, Livro: 1766-1781, f. 200v.-201.
208AIHGRN, Termos de Vereação, Cx. 2, Livro: 1766-1781, f. 262v.-263.

1052
terras do sítio Passagem do Acari; em 1763, Domingos volta ao Seridó para medir uma data de terra
chamada Totoró, pertencente a Salvador de Souza Castro. Já em 1768, estava mais uma vez no Seridó,
agora para demarcar o Sítio São José, que pertencia aos herdeiros de Nicolau Mendes da Cruz.

Em 5 de abril de 1769, Domingos João Campos demarcou o Sítio Santo Antônio do Potengi;
quase dez anos depois daquela medição, em 1778, o piloto demarcador retorna ao sertão para medir
o Sítio Quinque, no Seridó.209 Pode-se ter uma noção do ofício de Domingos:

A primeira etapa do processo de demarcação era o requerimento da parte interessa-


da, marcada a data e o provável custo da demarcação, iniciava a viagem até o destino
previsto. Para realização do processo, fazia-se necessário a presença do Provedor da
Fazenda Real e seu Escrivão, o Perito Demarcador e seu auxiliar, a quem chamavam
de Ajudante da Corda, função quase sempre exercida pelo Meirinho do Mar e Exe-
cuções da Fazenda Real. No local da demarcação o Provedor recebia o juramento do
Piloto Demarcador e seu ajudante “[...] bem e verdadeiramente fizessem a presente
demarcação sem dolo e sem malícia e correção do rumo da agulha não acrescentan-
do nem diminuindo mais do que disse o dito rumo [...]”. Em seguida o Demarcador
trazia perante o Provedor a agulha que era examinada por este, e ao Demarcador
era perguntado: “se a agulha estava correta”, ao que este respondia “[...] que a agulha
estava corrente e capaz sem embaraço algum [...]” Feito isto, mediam a corda que
usariam na demarcação “[...] e sendo ai mediram o dito Piloto e seu Ajudante da
Corda em uma corda de fio de gravatá dez braças de dez palmos craveiros cada braça
[...]”. Após essas démarches procuravam o lugar de referência na sesmaria original
e seguiam o curso declarado até se completar as medições de sua concessão e, em
determinados locais, iam colocando marcos referenciais para futuras averiguações e
como fixador de divisas “[...] porno dito lugar um marco de pedra preta tosca com
três palmos de comprido ao largo de dois palmos sendo a dita pedra quase redonda
e ficou interada dois palmos escassos e fora da terra um palmo reforçado, ferindo o
rumo do Norte para o sul com duas testemunhas da mesma pedra uma da parte do
Leste e outra da parte do Oeste [...].210

Com a idade de 74 anos, aos 2 de abril de 1788, o Alferes e Piloto Demarcador de terras Do-
mingos João Campos não mais aparece como membro da governança, mas foi qualificado pelo pró-
prio Senado da Câmara como senhor de engenho, que deveria prestar informações sobre suas terras,
lavouras, escravos e animais, tudo por cobrança do governo de Pernambuco.211

Para além da participação na Câmara, do ofício de Piloto Demarcador ou mesmo das posses
acumuladas pelo Alferes ao longo da vida, destaca-se que Domingos e Rosa constituíram uma família
legítima. Por várias vezes vieram a público batizar seus numerosos filhos, sempre na capela do Jun-

209CAMPOS, João Bosco. Demarcações de terras no Rio Grande do Norte. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Norte, v. LXXV-LXXVI, 1983. p. 45.
210Ibid., p. 45.
211AIHGRN, Termos de Vereação, Cx. 3, Livro: 1784-1793, f. 74-74v.

1053
diaí: Manuel, em 1749212, Antônio, em 1754213, Francisco, em 1757214, João, em 1759215, Lourenço, em
1762216, Patrício, em 1764217, Bernardo, em 1766218, e Joaquim, em 1770.219

Domingos João Campos, em outros momentos, tornou-se compadre de outros indivíduos da


freguesia da Cidade do Natal. Aos 21 de dezembro de 1767, na Capela de São Gonçalo do Potengi,
o Alferes passou a ser padrinho do pequeno Manuel, filho legítimo de José Gomes Camilo, natural
de Pernambuco, e de Helena da Paixão, natural do Rio Grande do Norte.220 É importante mencionar
que o pai de Manuel tinha a mesma condição da esposa de seu compadre, como pode-se verificar no
assento de batismo:

Manuel filho legítimo de José Gomes Camilo exposto natural da freguesia de Nossa
Senhora do Rosário da Varge, e de Helena da Paixão natural desta freguesia, neto pela
parte materna de Teodoro de Mendonça, e de Joana Gomes naturais desta freguesia,
nasceu no primeiro de novembro de mil setecentos, e sessenta e sete, e foi batizado
com os santos óleos na capela de São Gonçalo do Potengi de licença minha pelo pa-
dre Miguel Pinheiro Teixeira aos vinte e um de dezembro de mil setecentos e sessenta
e sete. Foram padrinhos Domingos João Campos, e Maria José da Conceição mulher
de João da Silva desta freguesia, do que fiz este termo em que por verdade me assinei.
Pantaleão da Costa de Araújo / Vigário do Rio Grande.221

Em 7 de junho de 1776, Domingos atendeu a novo convite para ser padrinho, agora de um
menino batizado com o nome de Francisco, filho de Fabrício de Moura e Francisca Rodrigues.222 A
presença do esposo de Dona Rosa Maria de Mendonça na pia batismal na condição de padrinho repe-
tiu-se em 21 de setembro de 1776, quando outro pequeno Francisco, filho legítimo de Eugênio Gomes
e de Inês Rodrigues, recebeu os santos óleos também na capela do Jundiaí.223

Com aproximadamente 72 anos, aos 3 de maio de 1786, o Alferes voltou a tornar-se parente es-
piritual de outras pessoas da figuração, passando a ser padrinho da recém-nascida Rita e compadre de
Francisco Brito e Maria da Silva, ambos naturais da vila de Arez, Capitania do Rio Grande do Norte.224

Com a idade já bastante avançada, aos 8 de julho de 1792, na capela do Jundiaí, juntamente
com Josefa Joaquina, sua neta (filha legítima de José Martins Praça e Dona Ana Guiteria de Mendon-

212ACMAN, Assentos de batismo, Cx. única, Maço: 1749, f. s/n.


213ACMAN, Assentos de batismo, Cx. única, Maço: 1755-1757, f. 103v.
214ACMAN, Assentos de batismo, Cx. única, Maço: 1755-1757, f. s/n.
215ACMAN, Assentos de batismo, Cx. única, Maço: 1760-1761, f. 104.
216ACMAN, Assentos de batismo, Cx. única, Maço: 1765-1766, f. s/n.
217ACMAN, Assentos de batismo, Cx. única, Maço: 1763-1765, f. s/n.
218ACMAN, Assentos de batismo, Cx. única, Maço: 1765-1766, f. s/n.
219ACMAN, Assentos de batismo, Cx. única, Maço: 1770-1777, f. s/n.
220ACMAN, Assentos de batismo, Cx. única, Maço: 1770-1777, f. s/n.
221ACMAN, Assentos de batismo, Cx. única, Maço: 1768-1770, f. 4.
222ACMAN, Assentos de batismo, Cx. única, Maço: 1770-1777, f. s/n.
223ACMAN, Assentos de batismo, Cx. única, Maço: 1770-1777, f. s/n.
224ACMAN, Assentos de batismo, Cx. única, Maço: 1786-1795, f. 65v.-66.

1054
ça), Domingos apadrinhou um exposto batizado com o nome de Nicácio. O recém-nascido tinha sido
abandonado em casa de José Rodrigues Silveira, dois meses antes de ser batizado225; porém, na data de
21 de novembro de 1792, o afilhado do velho agrimensor tornou-se um anjinho, sendo sepultado na
mesma capela onde foi batizado.226

Alferes, Camarista e piloto de terras, Domingos João Campos também foi testemunha do ca-
samento de João Severino Maciel com Joana Rodrigues da Costa, ambos filhos legítimos, aos 22 de de-
zembro de 1765, na capela de Nossa Senhora da Conceição do Jundiaí.227 Em 1779, na mesma capela,
o marido da exposta, mais uma vez foi solicitado como testemunha de casamento, agora juntamente
com seu filho José Fernandes Campos: daquela vez, a união foi entre cativos.228

Foram extremamente raros os momentos registrados em que a exposta Rosa Maria de Men-
donça veio a público. Não contando as vezes em que esteve na capela do Jundiaí batizando os filhos,
identificou-se apenas um caso em que Dona Rosa apareceu na condição de madrinha:

Firmiano escravo do capitão Antônio de Gois Vasconcelos, filho natural de uma sua
escrava chamada Joana natural desta freguesia de Nossa Senhora da Apresentação
neto pela parte paterna de avos incógnitos, e pela materna de Feliciana, digo de Fe-
licia natural de Angola, foi batizado com os santos óleos aos três de outubro de mil
setecentos e sessenta e três na capela de Nossa Senhora da Conceição do Jundiaí por
mim vigário abaixo assinado, foram seus padrinhos Carlos Vital, homem casado, e
morador na freguesia da vila de São José, e Dona Rosa Maria de Mendonça mulher
de Domingos João Campos morador no Jundiaí de que logo fiz este assento, em que
por verdade me assinei. Miguel Pinheiro Teixeira / Pro Vigário.229

Domingos João Campos e Rosa Maria de Mendonça tiveram dois recém-nascidos enjeitados
na porta de seu domicílio: uma exposta tornou-se, assim, receptora. O primeiro abandono ocorreu
por volta de junho de 1766: a exposta foi batizada com o nome de Joana; não sabe-se quem foram os
padrinhos, pois a informação foi acessada a partir dos documentos de óbito: Joana não teve a mesma
sorte de sua receptora, falecendo com aproximadamente 11 meses aos 14 de maio de 1767, sendo se-
pultada envolta em uma mortalha de tafetá azul na capela de Santo Antônio do Potengi.230

É necessário apontar que o indivíduo que tomou a decisão de abandonar a recém-nascida na


casa do Alferes e da exposta buscava proteger a criança, e sabia que as condições objetivas e subjetivas
para seu recolhimento estavam dadas. Domingos João Campos era um homem de posses; além disso,
quando Joana foi exposta, Dona Rosa tinha em casa um filho pequeno, Bernardo, que tinha vindo ao

225ACMAN, Assentos de batismo, Cx. única, Maço: 1786-1795, f. 141v.


226ACMAN, Assentos de óbito, Cx. única, Maço: 1792-1793, f. 6.
227ACMAN, Assentos de casamento, Cx. única, Maço: 1769-1782, f. s/n.
228ACMAN, Assentos de casamento, Cx. única, Maço: 1769-1782, f. 138v.
229ACMAN, Assentos de batismo, Cx. única, Maço: 1761-1763, f. 147v.
230ACMAN, Assentos de óbito, Cx. única, Maço: 1767, f. 3.

1055
mundo na data de 28 de dezembro de 1765, sendo batizado aos 3 de janeiro de 1766.231 Dessa forma,
na data do enjeitamento, Bernardo era uma criança com seis meses de idade, e Rosa, na condição de
lactante, tinha plenas condições de amamentar a enjeitada, favorecendo assim sua sobrevivência.

O domicílio de Domingos e Rosa foi uma segunda vez eleito para ser receptor de um recém-
-nascido. Não se pode conjeturar sobre a data do enjeitamento, pois o assento de óbito da criança não
faz referência a sua idade: o padre que elaborou o documento afirma apenas que Januário tinha sido
exposto em casa do Alferes Domingos João Campos, tendo falecido aos 11 de março de 1782, sendo
enterrado na capela do Jundiaí, envolto em um pano branco.232

No entanto, houve o caso de uma enjeitada na casa do Alferes que não morreu na primeira
infância, mas chegou à idade produtiva e reprodutiva. Dona Antônia não se casou, mas tornou-se mãe
solteira. Ela conseguiu casar sua filha natural, Maria Fernandes, com Manuel Rodrigues de Sá, filho
legítimo de Vitoriano Rodrigues de Sá e Luiza de Souza. O casamento ocorreu na capela de Nossa
Senhora do Socorro da Utinga, aos 13 de outubro de 1785, pela manhã.233 É presumível que Dona
Antônia visualizava para seus netos uma origem diferente: nem expostos como a avó, nem ilegítimos
como a mãe.234

Em 14 de outubro de 1757, Domingos João Campos teve outra experiência com pessoas que
tinham sua origem no enjeitamento. Naquela data, ele foi testemunha, na capela de Nossa Senhora
da Conceição do Jundiaí, do matrimônio de Nicácio Gomes, filho legítimo de José Cruz de Melo e de
Leonor Quaresma, com Dona Antônia Maria de Mendonça, que tinha sido exposta em casa de Dona
Maria Madalena de Mendonça. Era o noivo natural da freguesia de Nossa Senhora dos Prazeres de
Goianinha, e a noiva, da freguesia de Nossa Senhora da Apresentação.235

Nota-se que a noiva tinha o mesmo sobrenome da esposa do Alferes, assim como a mesma
origem. Assim, sou forçado a inferir que a exposta Rosa Maria de Mendonça, apesar de ter sido aban-
donada em casa do Sargento-mor Mário de Castro Rocha, talvez tenha sido criada em casa de Maria
Madalena de Mendonça, o que também não afasta a possibilidade de Rosa Maria ter sido afilhada de
Maria Madalena, tornando-se assim um tipo de irmã de criação de Dona Antônia Maria de Mendon-
ça.

É de grande valia ressaltar que Dona Maria Madalena de Mendonça provavelmente circulava
entre os indivíduos que compunham o nível superior da figuração social da freguesia. A casa daquela
senhora por vezes foi pouso para um religioso que visitava a povoação do Jundiaí, que veio a ser
perseguido pelo Santo Ofício por abusar sexualmente de suas confidentes.

231ACMAN, Assentos de batismo, Cx. única, Maço: 1765-1766, f. s/n.


232ACMAN, Assentos de óbito, Cx. única, Maço: 1780-1784, f. 14v.
233ACMAN, Assentos de casamento, Cx. única, Maço: 1785-1790, f. 170v.
234Nota-se que a exposta tinha o tratamento de Dona, uma distinção social. É possível que este status tenha sua
origem no domicílio de Domingos João Campos e Dona Rosa Maria de Mendonça, que foram seus receptores e,
talvez, criadores e protetores. Seria por acaso que a filha de Antônia adotou o sobrenome Fernandes, o mesmo
da mãe do Alferes?
235ACMAN, Assentos de casamento, Cx. única, Maço: 1761-1769, f. 97v.

1056
Frei Ignácio de Jesus era um religioso carmelita pertencente à Província Reformada
de Pernambuco que trabalhava como assistente no sertão do Panema, Freguesia de
Assu na Capitania do Rio Grande. Costumava ir até a povoação de Jundiahy para
visitar e participar de eventos familiares, como assim o fez em 1754 por ocasião do
casamento de uma sobrinha. Geralmente, hospedava-se na casa da viúva Dona Maria
Magdalena com quem mantinha boas relações sociais.236

O que mais chama a atenção não é o fato do Alferes ter sido convidado como testemunha da
união de sua suposta cunhada, mas o fato de que, dez anos depois, a noiva daquele mesmo matrimô-
nio, na mesma capela do Jundiaí, batizou um filho natural, resultado de uma provável mancebia com
Manuel Fernandes Campos, que tinha então 18 anos, filho do Alferes e de Rosa Maria de Mendonça.

Maria filha de Manoel Fernandes Campos, e de Dona Antonia Maria de Mendonça


exposta em casa da Dona Maria Madalena de Mendonça já defunctafoi bautizada
com os sanctosoleos na capella de Nossa Senhora da Conceição de Jundiahi de licen-
ça minha pelo padre Jose VieyraAfonço aos vinte, e nove de dezembro de mil sette-
centos, e secenta, e sette. Forão Padrinhos o Alferez Domingos João de Campos, e sua
filha Dona Anna Guiteria todos desta freguesia, e não constava mais da Certidão, do
que fis este termo, em que por verdade me-assinei. (Pantaleão da Costa de Araujo /
Vigario do Rio grande)237

Percebe-se que o padre que elaborou o assento de batismo não fez nenhuma referência à possí-
vel viuvez de Dona Antônia Maria de Mendonça, o que indica ser a pequena Maria uma filha natural.
Estaria Dona Antônia carnalmente separada do marido, ou teria Nicácio Gomes partido para outras
terras e não mais retornado, permitindo assim a ela relacionar-se com o próprio sobrinho de criação?
Outro ponto a destacar é que Maria tornou-se afilhada do próprio avô; a exposta Antônia Maria, na-
quele ano de 1767, acumulava as condições de cunhada, nora e comadre do Alferes Domingos João
Campos.

O nascimento e batismo de Maria indicavam a existência de leite humano no domicílio de


Manuel Fernandes Campos; acredito que, um ano após aquele batizado, a exposta ainda amamenta-
va. Assim, aos 8 de dezembro de 1768 Manuel Fernandes foi convidado a tornar-se padrinho de um
recém-nascido exposto em casa de Antonio Ferreira, encontrado pelas 10 horas da noite por João Go-
mes de Melo, batizado com o nome de Manuel, na Capela de Nossa Senhora da Conceição do Jundiaí,
pelo padre João Tavares da Fonseca.238

Tendo o padrinho uma esposa em condições de amamentar, e sendo os padrinhos os responsá-

236HONOR, André Cabral. A exposição da carne: condutas sexuais de carmelitas reformados na América por-
tuguesa do século XVIII. Oficina do historiador, Porto Alegre, v. 7, n. 2, jul./dez. 2014. p. 203.
237ACMAN, Assentos de batismo, Cx. única, Maço: 1768-1770, f. 4.
238ACMAN, Assentos de batismo, Cx. única, Maço: 1768-1770, f. s/n.

1057
1058
SIMPÓSIO TEMÁTICO 14
Dimensões do catolicismo no Império português: instituições, práticas e representações (séculos XVI-
XVIII)

Coordenadores:

Anderson José Machado de Oliveira

Beatriz Catão Cruz Santos

Entre o territorial e o ideológico: as esferas da religiosidade no Rio de Janeiro do século


XVIII1
Monalisa Pavoni Oliveira.

A cidade do Rio de Janeiro passou por diversas transformações no período setecentista, prin-
cipalmente em função da importância que passou a ter para o Império Português, diante do fato de ter
se tornado o principal porto da rota atlântica em função da descoberta de ouro nas Minas Gerais e a
sua consequente elevação à condição da capital da América lusa em 1763.

O catolicismo estava presente, não só no processo de concentração de posses e territórios pela


cidade, mas, também, em todos os segmentos da vida cotidiana, por isso é necessário compreender
como a religião era uma das estratégias de negociação para alterar, ou mesmo almejar, patamares
maiores nas escalas sociais dentro de um amplo espectro de categorias sociais presentes2. A Igreja
Católica detinha influências na cidade com relação ao poder eclesiástico e nas referências diárias da
população carioca e estava presente desde o nascimento de um indivíduo até na hora de sua morte,
sendo assim, podemos mencionar aqui, também, a importância das instituições religiosas com relação
à temática da morte e sua relação entre locais de sepultura e hierarquização social no Rio de Janeiro do
século XVIII.

A população do Rio de Janeiro do século XVIII se organiza em diversas formas de associações


coletivas e estavam inseridos de diversas formas sobre os aspectos religiosos. Cada homem ou mulher
adulto tinha a oportunidade de se integrar nas organizações por motivos e interesses variados, pois
dentro delas se ultrapassa os limites do círculo restrito familiar. Essas associações eram também locais
onde os indivíduos poderiam socialmente ascender. As irmandades religiosas destacavam-se entre as
diversas formas de organização no mundo católico.
1 Diego Santos Barbosa é mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universida-
de Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGH-UNIRIO) e é bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior – Capes.
2 CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro setecentista: a vida e a construção da cidade da invasão francesa até
a chegada da Corte. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2004, p. 102.

1059
Nessa sociedade dinâmica e conflituosa, as irmandades vão atuar como instrumentos de “luta
social” no sentido de buscar privilégios e de afirmar os segmentos sociais que representavam. Essas
instituições tiveram um papel importante na organização da sociedade, principalmente no que toca
à afirmação das hierarquias sociais, apaziguando possíveis conflitos e até rebeliões; nessa perspectiva
podemos pensar as irmandades como um dos sustentáculos da Coroa na região. Mas, ao mesmo tem-
po, essas instituições auxiliavam os associados na luta por "direitos", configurando um espaço de luta.
Dessa forma, pensamos que as irmandades atuavam de duas maneiras no que se refere aos embates
sociais: amortecendo possíveis conflitos e institucionalizando a busca por privilégios. Em outras pa-
lavras, as irmandades institucionalizaram a luta social, na qual os anseios e as armas utilizadas eram
ditados pela ideologia predominante, os preceitos do Antigo Regime3.

De acordo com a ortodoxia cristã, não existe preconceito de cor na Corte Celestial. Existiam
vários santos cuja pele não era branca. Dos mais conhecidos temos: Santa Efigênia, Santo Elesbão e
São Benedito. Mas na época colonial as diferenças eram marcas que se manifestavam nas próprias
práticas religiosas. Podemos perceber essa característica dentro das próprias irmandades, dispositivos
nos compromissos delimitavam ou expunham exclusões como é o caso da Irmandade de São José, que
não admitia em seus quadros pessoas de cor e a Irmandade de São Pedro que não admitia clérigos
com traça de mulato. Esses dois exemplos não significam que fossem estas as únicas irmandades que
se observava a exclusão pela cor, mas esta é uma das razões pelas quais se formaram numerosas irman-
dades exclusivas de negros. No século XVIII, existiam outras confrarias de homens de cor na cidade
do Rio de Janeiro, como era o caso da Irmandade de São Domingos, de Nossa Senhora da Lampadosa,
de Nossa Senhora das Mercês, de Sant´Ana e de Nossa Senhora da Boa Morte. Dentro destas mesmas
irmandades existiam formas de distinções. Umas se constituíam unicamente de homens pardos. Algu-
mas só admitiam pretos forros. Existiam várias identidades que se formaram dentro das irmandades,
como as que se constituíram em torno do culto a Nossa Senhora do Rosário dos homens pretos.

A devoção a Nossa Senhora do Rosário surgiu no século XIII e ganhou grande espaço na cris-
tandade ocidental ao longo da época moderna. Segundo a tradição católica teria sido instituída por
Domingos Gusmão, religioso dominicano, pregador no sul da França, na região de Albi. Este teria tido
uma revelação da Virgem, na qual a mesma o ensinou um método de oração no qual seria invocada
por orações realizadas através contas unidas por um cordão.

Em 1208, o papa Inocêncio III deflagrou a primeira cruzada contra os hereges, sendo nomeado
chefe da mesma Simão de Monfort, amigo de Domingos de Gusmão, que desenvolveu uma intensa
atividade para combater cátaros ou albigenses e reconverter a região do Languedoc. A vitória que se
teve sobre os albigenses foi então atribuída à Nossa Senhora do Rosário,que teria auxiliado os com-
batentes da cristandade por meio da intercessão ao seu rosário e no ano de 1213 Simão de Monfort
construiu uma capela na Igreja de Santiago de Muret dedicada à Virgem4.

É pela contribuição dos dominicanos que livros foram publicados no sentido de despertar a
3 OLIVEIRA, Monalisa Pavoni. Op., cit., p. 25.
4 SOUZA, Juliana Beatriz de. Viagens do Rosário entre a Velha Cristandade e o Além-Mar, Estudos Afro-Asiá-
ticos, Ano 23, nº2, 2001. p. 382.

1060
devoção no Rosário. Segundo Ronaldo Vainfas e Juliana Souza, “por volta de 1470 o dominicano Ala-
no de Rupe publicou uma obra que despertou a crença dos poderes do Rosário como meio de obter
graças e a proteção da Virgem Maria. [...] Em 1495 o papa Alexandre VI aprovou a prática que cresceu
rapidamente5”.

Após as batalhas relacionadas à expulsão dos turcos no Mar Mediterrâneo, as seguidas vitórias
cristãs também seriam associadas a Nossa Senhora do Rosário. Quase cem anos depois, após a batalha
de Lepanto, em outubro de 1571, que representou a derrota do domínio turco no Mar Mediterrâneo,
Nossa Senhora do Rosário foi elevada à padroeira das conquistas espirituais, e passou a ser associada
à luta dos católicos contra os infiéis. Segundo Scarano:

Quanto à Senhora do Rosário, seu culto tornou-se popular com a batalha de Lepanto
e sua fama, bem como a recitação do terço, foram intensamente divulgadas pelos do-
minicanos. Os inúmeros privilégios que mereceram dos pontífices provocaram um
florescimento de igrejas, conventos e irmandades, de geral aceitação. Divulgada a de-
voção de Nossa Senhora do Rosário na península ibérica, logo foi tida como proteto-
ra de inúmeros grupos, como os homens do mar no Porto, sobretudo, e, considerada
milagrosa entre os marinheiros6.

Lucilene Reginaldo demonstra que em Portugal a devoção do Rosário se estabelece no final


do século XV. Foi adotada como padroeira de vários segmentos sociais e profissionais. Em diversas
localidades do mundo português criaram-se igrejas dedicadas a este culto7.A primeira Irmandade do
Rosário surgiu em Lisboa em 1496 na Igreja de São Domingos. No século XVIII o culto já tinha se
espalhado por todo o império português, e já havia se estabelecido uma associação entre esta devoção
e a população de escravos e libertos.

Há estudos que analisam as razões da associação entre os negros cativos e forros com a devo-
ção do Rosário. Pedro Penteado, que estudou as confrarias portuguesas na época moderna, afirma que
as irmandades negras possibilitavam um exercício de poder para grupos sociais menos privilegiados,
sendo assim, aumentavam seus níveis de participação e protagonismos sociais. Ele diz:

A questão da integração social assumiu uma importância especial no caso dos ho-
mens de cor e dos cristãos-novos, dado que estes se serviam do ingresso nas confra-
rias (onde podiam ou conseguiam entrar) para obterem melhores níveis de aceitação
social. Não é ainda de desprezar, como motivação para a entrada de novos membros,
o fato das irmandades possibilitarem um aumento da capacidade de exercício do
poder dos indivíduos e a multiplicação dos tempos de sociabilidade. Não podemos
esquecer que as festas confraternais proporcionaram momentos excepcionais de con-
5 VAINFAS, Ronaldo; SOUZA, Juliana Beatriz de. Brasil de Todos os Santos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000,
p. 46-47.
6 SCARANO, Julita. Devoção e Escravidão. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito
Diamantino no século XVIII. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978, p. 39.
7 REGINALDO, Lucilene. O Rosário dos Angolas. Irmandades de africanos e crioulos na Bahia Setecentista.
São Paulo: Alameda, 2011, p. 92.

1061
vívio e de evasão ao quotidiano8.

Para Pedro Penteado não podemos correlacionar a adesão dos devotos a irmandades negras
em um único elemento, mas, como menciona o autor, não existem dúvidas que muitas destas confra-
rias, como são os casos das confrarias negras em Portugal, foram produto da intervenção eclesiástica.
Sendo assim, para o autor:

Tudo indica que a supressão e o aparecimento de determinadas invocações confrater-


nais não foi obra do acaso, mas antes ações que se sujeitaram a uma intencionalidade
que urge estudar. Não nos restam dúvidas que a Igreja intervinha no estabelecimento
do quadro de confrarias ao nível paroquial. A intervenção clerical fazia-se no sentido
de controlar o aparecimento de heresias e de difundir os princípios básicos da cren-
ça católica, de incutir maiores níveis de interiorização devocional e de consolidar o
enquadramento paroquial dos leigos, através dos espaços e tempos de culto promo-
vidos pelas irmandades9.

Julita Scarano menciona que desde o século XIV eram numerosos os conventos da ordem
dominicana em Portugal, e tanto eles como as associações por eles criadas contribuíram em muito
para estimular a devoção ao rosário no reino e no ultramar. Assim, desde 1556 havia confraria dessa
invocação em Chaul e em outras regiões da África e Ásia onde se estabeleceram os dominicanos. Mas
outras ordens também criaram irmandades do rosário, como os agostinianos e franciscanos10.

É interessante ressaltar aqui em quais condições a devoção a Nossa Senhora do Rosário chega
ao além-mar, nesta mesma perspectiva Lucilene Reginaldo considera que as explorações portuguesas
ocorridas na costa ocidental africana tinham a intenção de tomadas de pontos estratégicos principal-
mente para o controle do comércio, e, também, iam além para a proteção do interesse de outros ter-
ritórios. Durante essas ocupações os povos das cercanias eram convertidos pelos portugueses ao cris-
tianismo, sendo um meio de conseguirem manter as relações comerciais que conquistavam. Tinham
como alvo principal a conversão da elite local, os reis negros, que uma vez aderindo ao cristianismo
influenciariam os seus súditos a também aceitarem a fé cristã. Para Reginaldo:

A aceitação da “amizade” dos reis de Portugal supunha o reconhecimento de uma


nova religião com novas práticas e novos ritos. A pequena mostra do poderio tec-
nológico dos recém chegados, somadas as promessas de uma associação vantajosa
em termos políticos e econômicos, avalizaram, de imediato, a religião trazidas pelos
brancos. A partir do século XVI, centenas de missionários alcançaram à costa e
os sertões africanos. Várias ordens religiosas aventuraram-se por esse vasto con-

8 PENTEADO, Pedro. Confrarias portuguesas da época moderna: problemas, resultados e tendências da in-
vestigação. Lisboa: Centro de Estudos de História Religiosa- Universidade Católica Portuguesa, 1995, p. 28.
9 PENTEADO, Pedro. Confrarias portuguesas da época moderna: problemas, resultados e tendências da in-
vestigação. Lisboa: Centro de Estudos de História Religiosa- Universidade Católica Portuguesa, 1995, p. 39.
10 SCARANO, Julita. Devoção e Escravidão. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito
Diamantino no século XVIII. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978, p. 47.

1062
tinente. Companhia de Jesus, Franciscanos, Carmelitas Descalços, Capuchinhos,
Dominicanos, Marianos, Espiritanos, foram os principais responsáveis pela ação
missionária católica em África11.

A Companhia de Jesus também foi uma instituição importante nesse papel de propagação da
doutrina cristã, como é o caso no Congo e em Angola no século XVI e, após os jesuítas, a Ordens dos
Frades Menores, que iniciaram um novo período da era missionária na África Central12.

A devoção ao Rosário, como coloca Lucilene Reginaldo, foi associada principalmente aos ne-
gros e cativos forros, sendo esta devoção reservada aos africanos que estão inseridos na experiência de
escravidão, para a autora, a devoção do Rosário entre os negros nasce vinculada às marcas de “conver-
são-cativeiro”. É necessário ainda salientar a importância fundamental da propagação desta devoção
pelas instituições jesuíticas, principalmente com o processo de catequese que passa vincular esta de-
voção aos escravos, isto dos dois lados do atlântico. Uma das conclusões da autora é que em Portugal
e, principalmente, na América, a devoção do Rosário tenha se tornado uma ponte entre às tradições
africanas e o catolicismo português13.

O reconhecimento de um cristianismo africano, como afirma Lucilene, pode ser analisado


como uma variante do catolicismo ocidental, mas sendo este compreendido como uma reinterpreta-
ção africana dos símbolos e práticas oficiais cristãs do ocidente. O que a autora chama a atenção é que
estas devoções que foram criadas na experiência de cristianização da África Central foram um fator
importante para a compreensão da política e da cultura dos africanos e seus descendentes afro-ame-
ricanos. Nesta ótica, as irmandades negras consagradas ao Rosário foram veículos de propagação de
concepções cristãs africanizadas14.

As irmandades de escravos e forros, tanto na África Central, quanto em Portugal, cumpriam


um papel religioso e de ajuda mútua, lugar de proteção e apoio jurídico. A procedência da invocação
do Rosário, sendo esta uma das mais populares para a população negra em Portugal, estava associada
à proteção e à defesa das populações negras espalhadas pelo Império15.

Tanto a expansão marítima quanto a crescente popularidade do Rosário entre os negros foram
responsáveis pela chegada dessa devoção às colônias ibéricas. As notícias sobre os escravos no Rio de
Janeiro existem desde o final do século XVI. Em 1583 já se tinha notícia de comerciantes de escravos
nesta capitania. Beirando a segunda metade do século XVII já havia um número expressivo de pretos
livres ou escravos que começaram a se organizar na forma de confrarias. Nessas condições é curioso
mencionar que desde cedo na cidade os homens de cor, convertidos ao catolicismo, formaram suas

11 REGINALDO, Lucilene. O Rosário dos Angolas. Irmandades de africanos e crioulos na Bahia Setecentista.
São Paulo: Alameda, 2011, p. 30.
12 REGINALDO. Op., cit., p. 42.
13 REGINALDO. Op., cit., p. 92.
14 REGINALDO, Op., cit., p. 108.
15 REGINALDO, Op., cit., p. 90.

1063
próprias agremiações para a prática de culto e devoção16.

Podemos considerar que a experiência da cristianização da África é de fundamental importân-


cia para os que procuram compreender, mais, profundamente, a história política, social e cultural de
seus descendentes nas Américas. E, dentro desta ideia, as irmandades e confrarias cristãs se colocam
como relevantes veículos de transmissão e ressignificação dessas práticas cristãs, tanto dentro do con-
tinente africano como no novo mundo.

O trabalho de Anderson José Machado de Oliveira procura compreender o papel importante


das ordens religiosas para a formulação de um projeto de catequese com foco para determinados seg-
mentos da sociedade colonial. Para o autor, igreja se empenhou em ampliar o "mercado hagiográfico"
para os negros, "investindo" em santos negros, como: Santo Elesbão, Santa Efigênia, São Benedito e
Santo Antônio de Categeró. Neste aspecto, os santos católicos serviram como elementos de conversão
e da mesma forma foram apropriados pelos africanos e seus descendestes que os identificavam com
as suas referências religiosas17.

Podemos concluir pela pesquisa de Anderson Oliveira que, com a utilização do santo negro
como um instrumento a favor da catequese a Igreja visava inserir africanos e seus descentes no sistema
de cristandade, garantindo assim a autoridade do Estado e da Igreja sobre aqueles segmentos. Oliveira
menciona no seu estudo excepcionalmente Santo Elesbão e Santa Efigênia, porém o mesmo pode ser
observado para os demais santos negros mencionados inicialmente, como é o caso da devoção de
São Benedito dos Homens Pretos. Eles passaram a ser, com eficiência, usados como instrumento de
catequese, santos de devoção negra, porém essa apropriação do culto católico por parte dos negros foi
moldada e reconstruída com base na experiência do cativeiro e nas recordações das diferentes culturas
africanas presentes na colônia portuguesa. Isso possibilitou novas recriações culturais autônomas, fato
esse observado nas irmandades de pretos presentes no Brasil colônia18.

Com o mesmo efeito e percepção de Lucilene Reginaldo, o espaço demarcado sobre a devoção
do Rosário foi aos poucos se tornando um lugar reconhecido pelos negros, pois as confrarias do Ro-
sário que se espalharam pela América Portuguesa não levavam em consideração critérios de riqueza
e estatuto social, admitiam todos os cristãos. A identificação com esse segmento se deu dentro da
própria experiência do cotidiano da escravidão. Estas irmandades foram fundamentais com relação à
criação de experiências do catolicismo imbuído de valores africanos19.

O objetivo deste trabalho é reconhecer que práticas devocionais identificavam os irmãos do


Rosário e os espaços que estavam em jogo nessa dinâmica no Rio de Janeiro do século XVIII.

Sendo uma das mais antigas irmandades da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, datada
no começo do século XVII, a devoção a Nossa Senhora do Rosário depois se uniu com a Irmandade
16 CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro setecentista: a vida e a construção da cidade da invasão francesa até
a chegada da Corte. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2004, p. 210.
17 OLIVEIRA, Anderson. José Machado de. Devoção Negra: santos pretos e catequese no Brasil colonial. Rio
de Janeiro: Quartet/Faperj, 2008.
18 OLIVEIRA, Op., cit., p. 99.
19 REGINALDO. Op., cit., p. 164.

1064
de São Benedito dos Homens Pretos. Joaquim José da Costa afirma que no ano de 1640 a confraria
de Nossa Senhora do Rosário já estava organizada na Igreja de São Sebastião no Morro do Castelo,
o autor também reforça que na mesma Igreja já existia neste período uma confraria de São Benedito
fundada por homens pretos. O ocorrido, a junção das duas irmandades, se deu por um irmão, juiz
da Irmandade do Rosário também ser escolhido para juiz da Irmandade de São Benedito, ocupando,
assim, às duas varas das irmandades em questão20.

Joaquim da Costa menciona que antes desta união, as duas irmandades eram amigas e se au-
xiliavam. As hostilidades teriam se iniciado após o mesmo juiz ter sido escolhido para dirigir as duas
associações, o que levou a Irmandade de São Benedito a acusar o juiz de mostrar-se pouco zeloso pelos
interesses desta irmandade e dedicado apenas à Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. O autor
menciona que não se sabe ao certo se as queixas tinham fundamento, mas é certo que aos poucos estas
diferenças foram se acentuando com o tempo e, por isso, surgiu a ideia de unir às duas confrarias para
encerrar as rivalidades21.

Em fevereiro de 1668 reuniram-se as confrarias com seus capelães, presidindo o ato o juiz de
ambas as irmandades, que, segundo o costume, levava às duas varas de prata que representavam cada
confraria. A ideia foi aprovada e nomearam os irmãos para escreverem o primeiro compromisso que
devia regular a irmandade, agora sendo uma só. O primeiro compromisso da irmandade foi confir-
mado em 22 de março de 166922.

No ano de 1676 a prelazia do Rio de Janeiro foi transformada em bispado, mas só em primeiro
de Junho de 1682 chegou D. José de Barros Alarcão para assumi-lo como prelado. No ano de 1684
instalou-se o Cabido da Sé a Igreja Catedral de São Sebastião, onde a irmandade do Rosário e São Be-
nedito já se encontrava instalada. Joaquim Costa menciona as perseguições pelo Cabido aos pretos da
irmandade, pois o corpo capitular era formado por padres avessos a ideia do convívio compartilhado
na Sé Catedral. Por isso no mesmo ano o Cabido exigia da irmandade os seus títulos, compromissos,
relação de alfaias e tudo quando lhe dissesse respeito. Apesar de terem entregado todos os documen-
tos exigidos pelo Cabido, a irmandade foi proibida de praticar qualquer ato religioso ou Culto Divino
dentro ou fora da igreja sem antes dar parte do acontecimento ao Cabido. Atos como o capelão da
irmandade não poder celebrar missas aos sábados por não ter recebido o aval do Cabido ocorreram.
A contratação de músicos para suas festas, a própria eleição dos irmãos para a mesa diretora e qual-
quer ato praticado pela irmandade deveria dar conta ao cônego designado pelo Cabido para dar seu
parecer, por isso às reuniões só ocorriam quando o dito cônego estivesse presente. Tudo dependia da
ordem e da autorização do Cabido23.

Instalado o Corpo Capitular na Sé Catedral na Igreja de São Sebastião, a irmandade pagava


propinas para realização de seus atos divinos, um desses atos se dava com relação ao sepultamento
dos irmãos. O Chantre, padre João Pimenta de Carvalho, vendo o zelo que a irmandade tratava o
20 COSTA, Joaquim José. Breve Noticiário da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos
Homens Pretos do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Tipografia Politécnica, 1886, p. 4.
21 COSTA. Joaquim José. Op., cit., p. 5.
22 COSTA. Joaquim José. Op., cit., p. 5.
23 COSTA. Joaquim José. Op., cit., p. 6.

1065
culto, concedeu espontaneamente, em 12 de novembro de 1687, sepulturas com isenção de esmolas
pertencentes à fábrica da matriz. O Cabido indignado com tais perdas com relação aos valores que
eram arrecadados pediu revogação da graça concedida, mas o padre não mudou o ocorrido. Joaquim
da Costa confirma em sua obra que os abusos do Cabido se intensificaram após este fato24.

Nesta situação de conflitos, uma devota de Nossa Senhora do Rosário, Francisca Pontes, tirou
a irmandade desta situação doando um terreno medindo 15,40 de frente por 70,40m de fundos, lo-
calizado no Campo de São Domingos. A Irmandade pediu permissão ao rei para construir sua igreja,
sendo esta atendida em 14 de janeiro de 1700 e dispensada de pagar propinas ao Cabido.

Alvará:

Eu, El Rei, como governador e perpétuo administrador que sou do mestrado, Ca-
valaria e Ordem de N.S. Jesus Cristo, faço saber aos que este meu Alvará virem que
havendo respeito ao que se me representou por parte do Juiz e mais irmãos de N.S. do
Rosário dos Pretos da Capitania do Rio de Janeiro, pedindo-me faculdade para edifi-
carem sua igreja naquela cidade para nela se perpetuar a dita sua Irmandade: e visto
o que alegaram em informação que procedeu do Governador do Bispado da dita
Capitania, e resposta do Procurador Geral das Ordens e do Cabido do dito Bispado
a que se deu vista com o que me foi presente em consulta do meu Tribunal da Mesa
de Consciência. Hei por bem conceder-lhes a licença que pedem para edificarem a
dita igreja para sua Irmandade, salvo sempre o Padroado Real, Direito da Ordem
Paroquial com declaração que a dita Irmandade não ficará sujeita ao encargo de dar
provisão ao Cabido, nem ter Capelão Capitular, nem pagar cavagens na Sé, por não
ser justo que tendo edificado igreja capaz de se enterrarem nela os Irmãos e Cemité-
rio onde se enterre os que não forem, fique onerada com os referidos encargos. E este
se cumpra e guarde como nele se contém, sendo passado pela Chancelaria da Ordem
se registrará no Livro das Câmaras Eclesiásticas e Secular da dita Capitania para a
todo o tempo constar desta minha concessão. E se passou por 3 vias, uma só haverá
efeito. Manoel Guedes da Costa o fez em Lisboa, aos 14 de janeiro de 1700. Antônio
de Souza de Carvalho o fez escrever – Rei. Está conforme, Fortunato José Francisco
Lopes Escrivão.25

Gostaria de salientar que podemos perceber que pela resposta do alvará já é possível perceber
um indício de demarcação da organização maior dos irmãos e a afirmação de sua autonomia diante
do Cabido, o que demonstrou as alianças que aqueles confrades construíram cidade.

Somente depois do alvará, em 1701, na residência de Francisca Pontes, junto com escrivão,
tesoureiro, tabelião, procurador e juízes da irmandade, o terreno foi doado. Assim, com o início da
construção da igreja o local onde o terreno se encontrava passou a ficar conhecido como Largo do Ro-
sário. No dia 2 de fevereiro de 1708, com a presença da irmandade, Corpo Capitular, autoridades civis
e população, a primeira pedra e a benção do terreno foram dadas e, alguns dias depois, iniciaram-se

24 COSTA. Joaquim José. Op., cit., p. 7.


25 Transcrição do Alvará que se encontra no maço da irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito
dos Homens Pretos - série: Associações Religiosas: notação AR001, f. 01 - Arquivo da Cúria Metropolitana do
Rio de Janeiro - ACM-RJ.

1066
às obras26.

A construção da igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito foi resultado de diversos
esforços da irmandade. Deve-se a sua conclusão a doações de devotos, membros importantes e figuras
políticas do período. Um desses bem feitores foi o governador da capitania do Rio de Janeiro, Luiz
Vahia Monteiro, que foi eleito juiz da irmandade em 1728. Luiz Vahia já tinha feito algumas contri-
buições financeiras e arcou com os custos para a finalização do corpo da igreja ao assumir o cargo.
No mesmo ano, outro importante membro da irmandade, João Machado Pereira, que possuía uma
capela nos fundos da igreja, doou a mesma à irmandade. Somente em 1736 as obras são concluídas,
um período de quase quarenta anos para a conclusão da igreja, não sendo a data exata da construção
da Igreja, mas neste ano já se celebravam atos religiosos no templo27.

O memorialista Coaracy relata que os irmãos do Rosário ficaram instalados na capela de Nos-
sa Senhora da Conceição, que ficava na Rua de André Dias à esquina do caminho do Parto para a
Conceição, enquanto sua Igreja estava em construção. Outro aspecto importante que menciona o au-
tor é que devoto Pedro Coelho da Silva e sua esposa doaram um terreno de um lote de seis braças para
construção da Igreja da Irmandade da Senhora Lampadosa, mais conhecida como Nossa Senhora das
Candeias, que era formada por pretos-minas. Era uma irmandade de cor que estava instalada também
na Igreja do Rosário. Pelas suas desavenças com a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário trataram
logo da construção de sua igreja que ocorreu quando ergueram a capela em 1748, o local da igreja era
no Campo dos Ciganos, que após a construção da Igreja chamou-se Campo da Lampadosa, ocupando
toda a área que formou o Largo do Rossio28.

É interessante ressaltar que este processo de construção das igrejas das irmandades negras se
deu quase que em conjunto, ao longo da primeira metade do século XVIII, demarcando o crescimento
daquelas associações e o acirramento das rivalidades entre elas.

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1069
Enlaces e nós: as testemunhas de casamento de escravos e forros da Freguesia da Candelá-
ria / RJ, c.1750 – c. 1850.
Janaina Christina Perrayon Lopes29

Os registros de matrimônio são fontes ricas em informações referentes não só aos noivos como
também à sua parentela. Além disso, as atas de casamento nos deixam vestígios valiosos dos laços
sociais estabelecidos e reforçados pelos nubentes na ocasião do enlace. Um dos dados presente de
forma reiterada em tais assentos é o nome das testemunhas da cerimônia, porém, tais personagens
tem merecido pouca atenção por parte da historiografia embora sua presença e assinatura fosse uma
exigência eclesial para que o rito tivesse validade.

Desse modo, a partir da análise desses nomes presente nos registros de matrimônio de escra-
vos e forros da Freguesia da Candelária entre a segunda metade do século XVIII e primeira metade
do século XIX, percebemos que alguns apareceram repetidamente em vários registros assumindo esse
mesmo papel. Sendo assim, o presente trabalho segue alguns vestígios deixados por estes personagens
aparentemente secundários e, a partir do nome daquelas testemunhas mais recorrentes, buscamos
identifica-las, rastreando e ampliando as informações referentes a elas, a fim de começar a desvendar
possíveis redes de relações sociais em que por ventura estivessem inseridos, bem como perceber o
papel que desempenhavam no processo de socialização dos noivos escravos e forros na Freguesia da
Candelária.

A partir dos nomes das testemunhas presentes em cada um dos registros foi possível contabili-
zar o número de vezes em que cumpriram esse papel. Além disso, conforme a informação presente no
registro quanto a natureza coletiva ou não das cerimônias, também foi possível distinguir para cada
uma das testemunhas o número de participações em cerimônias simples, onde apenas um casal e suas
respectivas testemunhas comparecem àigreja, ou cerimônias coletivas, em que mais de um casal rece-
beu o sacramento compartilhando a (as) testemunha (as).Identificados os nomes, daremos os passos
seguintes em direção à aplicação do método onomástico proposto por Carlo Ginzburg30 percorrendo
novas fontes e recorrendo, sobretudo, a inventários e registros de compra e venda de terras para, en-
fim, começar a desvendar as identidades e os perfis de tais personagens.

3.1 – Em torno da repetição

O Capitão, e mais tarde coronel,Antônio Gomes Barrozo, foi chamado por 53 anos a ser tes-
temunha em10 cerimônias distintas de casamento entre os anos de 1776 e 1829. A cada cinco anos,
Antônio Barrozofoi chamado por um casal para estar presente em sua cerimônia, emprestar-lhes a
assinatura e validar seu casamento. Em um período mais curto, entre os anos 1751 a 1775, o alferes e

29Doutoranda – PPGH / Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) – Bolsista Capes.
30GINZBURG, Carlo. “O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico”. In: GINZBURG, Carlo;
CASTELNUOVO, Enrico; PONI, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1989. p. 174-178.

1070
sacristão Antônio Pereira da Costa, compareceu ao todo em 28 enlaces matrimoniais sendo 21 ceri-
mônias simples e 7 coletivas. Isso significa que ao longo de 24 anos repetiu o gesto de assinar os papeis
que sacramentaram o casamento de vários casais praticamente uma vez ao ano.

Entre os anos de 1750 e 1866, ou seja, ao longo de mais de um século, encontramos um total
de 4.895 matrimônios assentados na Freguesia da Candelária. Nesse universo, 178 personagens re-
petiram o gesto de testemunhar enlaces matrimoniais, assim como fizeram os personagens descritos
acima.

De antemão é importante fazer algumas considerações de cunho metodológico que nortearam


a elaboração do perfil de tais testemunhas recorrentes: quando tabulados os nomes das testemunhas
em relação ao número de vezes em que apareceram nas cerimônias assumindo tal papel, foi encon-
trada uma grande quantidade de homens e mulheres sem sobrenomes arrolados diversas vezes como
testemunha; em função da ausência de tal informação é impossível saber se, quando se repetem, esta-
mos diante das mesmas pessoas ou de homônimos.

Vale ressaltar que ouso do nome como instrumento metodológico de identificação dos indiví-
duos nas fontes documentais é um ponto comum entre a análise demográfica serial, a Micro-história
e os estudos de trajetórias. No entanto, a aplicação do método onomástico para as populações da
América portuguesa nesse período é um verdadeiro desafio. Ana Silvia Volpi Scott e Dario Scott são
precisos no diagnóstico dos problemas encontrados pelos pesquisadores quanto ao uso dos nomes e
sobrenomes em suas investigações e análises. Segundo os autores a norma era a

Falta de regras para transmissão dos nomes de família, alteração e/ou inversão de
nomes e sobrenomes, ausência de nomes de família para a maioria da população
feminina, concentração na escolha de alguns nomes de batismo – tanto para homens
como para mulheres – alto índice de homônimos.31

Sabemos, portanto, que havia uma ampla variação dos critérios de escolha dos sobrenomes no
período colonial e a sua incorporação não obedecia às regras adotadas posteriormente nos registros
civis.Um forro, por exemplo, poderia incorporar, como sinal de prestígio, o sobrenome de seu antigo
senhor e, mesmo em famílias de elite, por vezes, se optava por incorporar o sobrenome de um dos
ramos mais poderosos, ou de um antepassado com mais prestígio.

Desse modo, se o trabalho de pesquisa com personagem com nome e sobrenome já requer
uma série de cuidados, aqueles cujo sobrenome inexiste ou não foi registrado torna a pesquisa prati-
camente inviável. Sendo assim, as testemunhas sem sobrenomes foram excluídas da análise e consi-
deradas apenas aquelas cujo registro forneceu um nome acompanhado de um ou mais sobrenomes.

Outro ponto importante a ressaltar é o fato de que,em um primeiro momento, foram recor-
31 SCOTT, Ana Silvia Volpi; SCOTT, Dario. “Análise quantitativa de fontes paroquiais e indicadores sociais
através de dados coletados para sociedades do Antigo Regime”. Mediações, Londrina, v. 18, n. 1, p. 106-124,
jan./jul. 2013.

1071
tadas as testemunhas que compareceram em 5 ou mais casamentos, a fim de reduzir o universo de
observação, o que gerou uma lista com um total de 178pessoas.Embora, aparentemente,esse sejaum
volume revelador acerca de uma prática muito mais corriqueira do que ate agora considerou a histo-
riografia,também nos pareceu um número amplo demais para garantir uma boa qualidade da análise.
Além disso, a partir desse critério de corte com cinco casamentos ou mais, estaríamos colocando no
mesmo patamar de relevância aqueles que foram registrados muitas vezes em função da participa-
ção em algumas cerimônias coletivas, e aqueles cuja participação ocorreu inúmeras vezes a partir de
convites singulares. A aposta na redução do escopo da pesquisa para um grupo mais restrito coaduna
com a proposta da análise microsocial, pois “aolimitar o campo de observação, fazemos surgir dados
não apenas mais numerosos, mais finos, mas que, além disso, se organizam segundo configurações
inéditas e fazem aparecer outra cartografia do social.”32 O contorno dado momentaneamente ao nosso
objeto de análise não significa o abandono da abordagem “multiscópica”. Ao contrário, ele ratifica a
certeza da necessidade no manejo de diferentes níveis de escalas de observação para o entendimento
dos fenômenos sociais.33

Desse modo, alteramos o critério de seleção e mantivemos na lista apenas aquelas pessoas que
testemunharam ao menos 10 casamentos simples. Ou seja, aquelas que compareceram no mínimo
10 vezes na igreja cumprindo essa função, em dias e cerimonias distintas. Dessa forma, houve uma
redução drástica no volume de casos e passamos então de 178 para 28 testemunhas arroladas. A partir
dessa mudança metodológica é possível garantir, então, não só um bom nível de análise qualitativa
como também assegurar que estamos diante daqueles personagens que foram seletivamente convi-
dados por diversos casais. Portanto, astestemunhas presentes reiteradamente no banco de dados em
função do comparecimento em poucos casamentos coletivos só constam em nossa lista caso tenham
testemunhado ao menos 10 cerimônias simples.

A possibilidade da realização de inúmeros enlaces em uma mesma cerimônia foi uma prática
comum no período colonial. Embora bastante documentado nos registros paroquias, os casamentos
coletivos foram pouco abordados ou problematizados pela historiografia. Em geral, os casamentos
simples, ou seja, celebrado por um único casal, eram realizados por casais de todos os estatutos jurí-
dicos. Porém àqueles de tipo coletivo envolveram, em geral,homens e mulheres escravos e forros. É
comum associar uma maior frequência de casamentos coletivosenvolvendo escravos e forros a uma
tentativa dos mesmos em diminuir o impacto das despesas geradas pelas exigências burocráticas que
poderiam tornar o processo matrimonial lento e dispendioso caso fossem cobradas taxas por even-
tuais certidões e dispensas. Essa é, de fato, uma possibilidade, na medida em que os noivos poderiam
optar por uma socialização das despesas, porém tal explicação ainda encontra-se no campo das infe-
rências.

Robert Slenesquando trata da dinâmica dos casamentos entre cativos em Campinas do século
XIX afirma que “os grandes fazendeiros comumente esperavam até ter uma ‘safra’ de batismos e ca-
samentos para serem celebrados todos juntos: uma maneira de tornar o uso do tempo mais eficiente”.
32 REVEL, Jacques. “Microanálise e construção social”. In: Jogos de Escalas: a experiência da microanálise. Rio
de Janeiro: Ed. FGV, 1998, p. 32.
33Idem.

1072
Desse modo, o autor relaciona a realização de possíveis casamentos coletivosao esforço dos senhores
34

em tentar minimizar a perda das horas de trabalho cativo consumidas pela celebração do enlace nos
casos em que os matrimônios não ocorriam em momentos de folga dos escravos. Outro elemento ex-
plicativo que podemos acrescentar aqui àquele usado pelo autor diz respeito a frequente ausência de
vigários nas igrejas e capelas rurais cujos membros aguardavam as visitas de tais autoridades religiosas
para realizar, de tempos em tempos, de uma única vez, um conjunto decasamentos.

É bem verdade quenão podemos esquecer tratar-se de um comportamento ambientado em uma


freguesia rural. Nós, ao contrário,estamos tratando,aqui,de casamentos celebrados emuma Freguesia
urbana, cuja dinâmica religiosa guarda inúmeras diferenças com aquelas localizadas no meio rural.
Seja pela possibilidade de contato frequente com os templos religiosos em função das dimensões mais
reduzidas das freguesias, seja em função da maior oferta na provisão de padres ou, ainda,pela maior
capacidade dedeslocamento, o fato é que a dinâmica da vida na cidadepossuía suas especificidades,-
tanto entre os livres quanto entre os cativos. Porém, ainda assim, talvez seja importante destacar no
argumento de Slenes, a questão do “tempo” enquanto elemento norteador da estratégia dos senhores
para minimizar os “danos” gerados pela atividade religiosado escravo em dias de trabalho. Mesmo na
cidade, é provável que houvesse um ‘cálculo’, tanto de senhores quanto de escravos, quanto ao tempo
dispensado para a atividade religiosa que não viesse a causar transtorno na atividade laboral. Embora
a historiografia já tenha discutido e consolidado a ideia de que havia,nesse período,um empenho por
parte da Igreja em incentivar o casamento da população em geral e que dos senhores esperava-se es-
forço semelhante, a análise dos dias da semana e do horário dos casamentos nessa mesma Freguesia
nos mostra uma dinâmica onde o interesse dos senhores em garantir o máximo de horas trabalhadas
de seus cativos prevaleceu em relação à escolha para a realização dos sacramentos dos mesmos.35O
dia da semana preferido para a realização de casamentos entre escravos foi o domingo, pouco antes
das 18h, ou seja, o dia de folga no horário imediatamente anterior ao da missa. Já o dia preferido dos
forros foi o sábado no meio da tarde ou pela manhã, o mesmo dia de preferência dos livres, porém em
horários distintos. Sendo assim, vários escravos pressionados pela “razão senhorial” poderiam usar
como estratégia o casamento coletivo, dividindo as despesas da cerimônia em dias e horários avalia-
dos por todos como menos conflituosos com a dinâmica do trabalho.

As testemunhas aqui analisadas participaram de casamentos coletivos, no entanto estiveram


presentes recorrentemente em cerimônias simples. Na Tabela 1dispomos, em ordem alfabética,os no-
mes das ditas testemunhas acompanhadas dos respectivos números de enlaces em que estiveram pre-
sentes, tomando o cuidado de estabelecer a distinção entre o número de vezes em que compareceram
acasamentos celebrados em cerimônias coletivas e simples.Além disso, alocamos esses personagens
em grupos distintos conforme o período em que exerceram tal função. Sendo assim, temos um pri-
meiro grupo de testemunhas no período que vai de 1750 a 1800 e o outro no recorte entre os anos de
1801 e 1866. A opção por tal arranjo da Tabela se deu, sobretudo, pelo fato de possibilitar o discer-
34 SLENES, Robert W. Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil
Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 93.
35 LOPES, Janaína Christina Perrayon. Casamentos de escravos nas freguesias da Candelária, São Francisco Xa-
vier e Jacarepaguá: contribuições aos padrões de sociabilidade matrimonial no Rio de Janeiro (c.1800-c.1850).
121 f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.

1073
nimento quanto à influência das distintas conjunturas econômicas e religiosas presentes no final do
século XVIII e início do século XIX nos comportamentos dos agentes sociais envolvidos em nossa
análise.

Tabela 1 – As testemunhas mais frequentes por período – Séculos XVIIIe XIX- Freguesia da Can-
delária (1750 a 1866)

Nº de Casamentos
Período Nome das Testemunhas Titulação/Ocupação
Simples Coletivo Total
Alexandre Fidele de Araujo Dom/Coadjutor/Padre 16   16
Anacleto Elias da Fonseca Capitão Mor/Sargento Mor 12   12
Antônio de Mello Padre 17   17
1
Antônio Gomes Barrozo Capitão/Coronel 10   10
2
Antônio Joze Coelho Padre 11   11
Antônio Pereira da Costa Alferes/Sacristão 21 7 28
Bento Rodrigues Pereira Tenente 10   10
3
Braz Carneiro Leão Capitão/Coronel/Tenente 19   19
1750- Felippe Lopes dos Santos Ni4
12   12
1800 Ignacio de Oliveira Maciel Padre 17   17
João da Costa Pinheiro Capitão / Negociante 16   16
5
Joze Dias da Cruz Tenente/ Alferes 23   23
Joze Dias de Oliveira Capitão/Sargento Mor 8 2 10
6
Luis Antônio Ferreira Capitão/Licenciado 26   26
Manoel de Figueiredo Chaves Coim-
bra Ni 20   20
Manoel Luis França Padre 16   16
Pedro Martins Duarte Capitão 8 3 11
Antônio Jose Alves Souto Comendador 12   12
Andador Irmandade Candelá-
Antônio Luiz de Andrade ria 29   29
CezarioJoze da Silva Porteiro do Cavallo do Número 10   10
Capitão/Comendador/Ten.
Fernando Carneiro Leão Coronel 11   11
Ignacio Manoel da Silva Ni 20   20
1801-
João de Medeiros Augusto Ni 9 4 13
1866
Joaquim Marianno do Amaral Cam-
pos Ni 9 2 11
7
Joze Antônio da Cunha Ni 13   13
Manoel Machado Coelho Comendador/ Segueiro 10   10
Capitão/Irmão da Irmand. Mãe
Manoel Moreira da Silva8 dos Homens/Marceneiro 10   10
Mathias Gonçalves Ferreira 2°Andador Irmand. Candelária 19   19
Fonte: ACMRJ - Registros de Matrimônio Freguesia de Nossa Senhora da Candelária. Livros 6, 7, 8, 9 e 10 (1750 a 1866).

1074
Logo de início chama atençãoo fato de alguns personagens se destacarem bastante dos demais
quanto ao número de vezes em que foram chamados, pois, embora tenhamos selecionado apenas
aqueles com mais de 10 presenças em enlaces simples, vemos alguns assumindo a função de testemu-
nha duas ou até quase três vezes mais que isso.

No período entre 1750 a 1800ganha destaque o caso de Antônio Pereira da Costa, testemunha
de 28 casamentos,21 vezes em cerimônias simples e 7em celebrações coletivas (neste caso mais pre-
cisamente em 3 cerimônias coletivas: duas com dois casais e uma com três). Outras três testemunhas
também se sobressaem, não só pelo volume de enlaces em que estiveram presentes como pelo fato de
nenhum deles ter sido coletivo: foi o caso de José Dias da Cruz, com 23testemunhos, Luiz Antônio
Ferreira, com 26, e Manoel de Figueiredo Chaves Coimbra, com 20. Todas essas três pessoas foram
convidadas por dezenas de homens e mulheres diferentes, em diversos diaspara testemunhar uni-
camente seus enlaces. Entre os anos de 1801 e 1866 também foram vários os casos de testemunhas
convidadas repetidas vezes para assumir tal papel, porém o caso de Antônio Luiz de Andrade é emble-
mático. Ele foi chamado por 29 casais diferentes e todos para testemunhar cerimônias únicas.

A partir da Tabela 1 percebemos que as testemunhas recorrentes analisadas aquiestiveram pre-


sentes majoritariamente em cerimônias de tipo simples, ou seja, aquelas envolvendo apenas um casal.
Dos 28 personagens, apenas 5envolveram-se também com casamentos coletivos. Estar presente como
testemunha em casamentos coletivos – casamento subalterno

Do ponto de vista das testemunhas, o convite para estar presente em casamentos simples ou
coletivos talvez não fizesse grande diferença se levarmos em consideração o provável interesse desses
personagens em compor ou reforçar sua clientela com diversos extratos sociais. Não podemos es-
quecer que estes homens e mulheres, na condição de testemunhas ou casais, estavam imersos em um
ambiente social cuja lógica exaltava o mais profundo respeito à hierarquia e à distinção ao mesmo
tempo em que reiterava uma dinâmica constante de favores entre desiguais. Nesse cenário, partindo
do princípio vigente da reciprocidade, quanto mais propenso estava um sujeito adispor de seu cabedal,
mais prestígio ele acumulava.36Tal dinâmica impressa na relação entre testemunhas e casais certamen-
te se tornará mais clara na medida em que desvendarmos o perfil e “qualidade” dos casais com que
essas testemunhas estiveram envolvidas, levando em consideração, inclusive, quem eram os senhores
ou ex-senhores de alguns deles.

Ainda observando a Tabela 1 fica evidente que a recorrência de uma mesma testemunha em
vários matrimônios não foi uma especificidade de um dos períodos analisados. Porém, também cons-
tatamos que na segunda metade do século XVIII eles aparecem em número superiorquando compa-
rados àprimeira metade do século seguinte. Um caminho para o entendimento dessas diferenças no
volume de testemunhas que se repetem em um período e outro e, de certa forma, a explicação para o
fato de se repetirem, sem dúvida, passa pela elucidação de quem foram esses personagens.
36 XAVIER, Â. B. & HESPANHA, A. M. “As redes clientelares”. In: HESPANHA, Antonio Manuel (Org.). His-
tória de Portugal: o Antigo Regime. Lisboa: Estampa, 1998; LEVI, Giovanni. “Reciprocidade mediterrânea”. In:
Exercícios de micro-história. OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de Oliveira (Org.). Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009;
VENÂNCIO, Renato Pinto. “O compadre governador: redes de compadrio em Vila Rica de fins do século
XVIII”. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v.26, n° 52. 2006.

1075
Na medida em que intentamos desvendar a ocupação ou função que exerciam para além do
âmbito legal, dando ênfase, sobretudo, na relevância que tinham no âmbito das relações sociais, a
identificação dessas pessoas passa a ser um desafio. Um passo nessa direção já pode ser dado em
função das informações contidas no próprio registro de matrimônio, pois, além das assinaturas das
testemunhas ao final do assento, por vezes, os registros de casamento trazem também alguns outros
dados sobre elas e a ocupação ou titulaçãoé uma dessas informações. Porém, a busca por novos da-
dos acerca desses personagens nos forçou ao cruzamento com outras fontes conservando seus nomes
como elemento norteador.

Desse modo, alguns testamentos encontrados foram preciosos e os registros referentes à Ir-
mandade da Candelária citados anteriormentetambém trouxeram informações importantes, porém,
o corpus documental que gerou o maior número de informações, perdendo apenas para ospróprios
registros de matrimônio, foi o banco de dados disponibilizado pelo geógrafo Maurício de Abreu. Nele,
a partir de uma busca que pode ser nominal, encontramos todos os registros de compra e venda de
imóveis e terrenos realizados no Rio de Janeiro ao longo do século XVII, XVIII e início do XIX. A
partir dele encontramos informações sobre quem vendia,comprava ou, eventualmenteestava, de for-
ma direta ou indireta, envolvido ou servindo de referência paratal transação. Nele descobrimos várias
de nossas testemunhas e tomamos conhecimento de inúmeras informações sobre esses personagens,
inclusive suas titulações.

A partir daí conseguimos compor um quadro onde chama atenção o fato de encontramos,no
primeiro período, vários padres entre as testemunhas mais solicitadas entre os noivos da Candelária.
Infelizmente não foi possível encontrar seus respectivos Inventários, mas de acordo comas Habilita-
ções sacerdotais encontradas de Alexandre Fidele de Araujo, Antônio de Mello, e José Maciel, não
houve registro ou testemunha que fizesse menção a qualquer outro tipo de outra atividade exercida
por esses padres a não ser as funções religiosas. Desse modo, parece que de fato estamos diante de
padres de missa como se dizia na época.

Entre 1750 e 1800, portanto, Alexandre Fidele de Araujo, Antônio de Mello, Antônio Joze
Coelho, Ignácio de Oliveira Maciel, Manoel Luiz de França eram membros da hierarquia da Igreja Ca-
tólica e foram chamados para testemunhar inúmeros casamentos. Nesse grupo, ainda podemos incluir
Antônio Pereira da Costa, um sacristão que, embora leigo, provavelmente tinha uma vida cotidiana
constante na paróquia. A primeira vista a interpretação vigente na historiografia parece estar correta:
as testemunhas repetidas nestes assentos eram, na verdade, meros funcionários eclesiásticos que, pelo
fato de estarem mais facilmente disponíveis na ocasião da cerimônia foram chamados,de forma im-
pessoalpor aqueles noivos carentes de tal personagem, para cumprir tal papel.

No entanto, temos de levar em consideração que neste mesmo período, ou seja, segunda me-
tade do século XVIII, outros sete personagens não são membros da hierarquia da Igreja e, além disso,
no segundo período da tabela, entre os anos de 1801 e 1866, nenhuma das 9 testemunhas foi identifi-
cada nos assentos como padre, vigário, sacristão, ou algo parecido. O mais próximo disso foi Antônio
Luiz de Andrade, nosso recordista em participações como testemunha, e Mathias Gonçalves Ferreira

1076
que foram identificados na documentação da Irmandade da Candelária como Andadores. Conforme
vimos no capitulo anterior, vale lembrar que tal cargo, embora ligado não só à Confraria mas também
a vida cotidiana paroquial eraum serviço realizado por leigos. Portanto, todos no segundo período, ao
menos em princípio, não eram membros dahierarquia da Igrejae foram chamados reiteradas vezes a
assumir a condição de testemunha. Desse modo, ser funcionário ou membro da hierarquia da Igreja
não parece ter sido a condição para ser convocado a testemunhar casamentos repetidas vezes.

O número significativo de sacerdotes entre as testemunhas que se repetem no primeiro perío-


do, e a ausência de personagens com tal designação no segundo, pode ter alguma relação com o im-
pacto das políticas pombalinas levadas a cabo a partir da segunda metade do século XVIII na América
portuguesa. A expulsão dos jesuítas foi o ponto culminante, e bastante simbólico, de um projeto polí-
tico que tinha como objetivo a submissão da Igreja ao Estado e a diminuição cada vez mais acentuada
do peso do clero regular na sociedade portuguesa.37

Dessa maneira, as décadas que precederam a chegada da corte portuguesa ao


Rio de Janeiro, em 1808, ficaram marcadas por um acentuado regalismo, que
procurou transformar os sacerdotes seculares em autênticos funcionários da
coroa, ao privilegiá-los para a função de párocos, entre outras.38

Como consequência de tal conjuntura, o clero secular acabou por ocupar um papel de maior
proeminência no meio eclesiástico, o que os tornou mais atuantes e presentes na vida dos fiéis. Desse
modo, diferente do segundo período que vai de 1801 a 1866, no primeiro período compreendido entre
1750 e 1800 a presença marcante de padres compondo o conjunto de testemunhas recorrentes talvez
seja consequência desse maior domínio do clero secular no cotidiano paroquial.

Após o período pombalino, esse cenário mudou consideravelmente. Segundo Guilherme pe-
reira das Neves à época da Independência a “fisionomia religiosa” no Brasil era bastante peculiar:
tínhamos em torno de 600 paróquias e uma população que ultrapassava quatro milhões de pessoas,
o que gerava uma média de sete mil fiéis por pároco.39 Não por acaso, eram comuns as solicitações
dirigidas à Mesa de Consciência e Ordens, por parte dos moradores, suplicando à ereção de novas
capelas e até mesmo freguesias com vistas aum melhor serviço do pasto espiritual. Porém, ainda que,
em geral, a Mesa fosse favorável à súplica dos fiéis para o desmembramento de freguesias e à criação
de paróquias, a falta de padres que pudesse prover as necessidades espirituais do rebanho era uma
realidade.40

Antes de tudo vale lembrar que havia uma deficiência na capacidade de formação do clero
37 SOUZA, Everton Sales. “Igreja e Estado no período pombalino”. In: FALCON, Francisco, RODRIGUES,
Claudia. (orgs.) A ‘Época pombalina’ no mundo luso-brasileiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015.
38 NEVES, Guilherme Pereira das. “A religião do Império e a Igreja”. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo.
O Brasil imperial, vol. I: 1808-1831. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
39 Idem, p. 384.
40 NEVES, Guilherme Pereira das. E receberá mercê: a Mesa da Consciência e Ordens e o clero secular no
Brasil. Rio de Janeiro Arquivo Nacional, 1997, p.268.

1077
tanto do ponto de vista quantitativo como qualitativo. Segundo Guilherme Pereira das Neves, “embora
os jesuítas e – sobretudo posteriormente à sua expulsão – outras ordens tenham mantido seminários,
a política tridentina de estabelecimento dessas instituições foi colocada em prática de maneira muito
tíbia e irregular no Brasil.” 41 Os primeiros semináriosdiocesanos datam do século XVIII, porém sua
existência era, em geral, precária e poucos eram os sacerdotes que passavam pelo ensino formal nessas
instituições. Segundo o autor, os esforços de formação chegavam a envolver os próprios bispos que
por vezes ministravam lições de teologia moral e cerimônias eclesiásticas.

Diante dos inúmeros pedidos pra a formação de novas capelas e freguesias, uma preocupa-
ção frequente por parte dos membros da Mesa também se referiaà falta de condições financeiras que
propiciassem um sustento dignoaos párocos na medida em que eram conhecidas as condições de
vida precárias do clero paroquial da maioria das freguesias.Vale lembra que eram bastante escassos
os recursos destinados pelo padroado à manutenção de toda a estrutura eclesiástica. Desse modo,
o aumento das despesas resultantes desses desmembramentos era também um elemento levado em
consideração na ocasião da deliberação de tais pedidos.42

É importante destacar, no entanto, que passado o primeiro quartel do século XIX o Brasil
caminhava em direção a uma crescente secularização. Embora o país tenha se mantido declaradamente
católico e conservado vivo o sentimento religioso, crescia a ideia de que a religião não deveria ser en-
tendida como a definição da própria sociedade mas um conjunto de crenças. 43

Não por coincidência, entre os anos 1801 e 1850 os padres desaparecem do quadro das teste-
munhas repetidas conforme vemos na tabela 1. É provável que os sacerdotes tenham perdido gradati-
vamente ao longo do final do século XVIII e início do século XIX o poder de inserção e a relevância na
vida cotidiana dos fiéis. Desse modo, não ser convidado a estar presente nas cerimônias de casamento
na condição de testemunha pode ser signo não só da escassez da presença diária como do declínio da
influência.

Nesse período os únicos personagens que tangenciam o clero e fazem parte de alguma institui-
ção eclesiástica são Antônio Luiz de Andrade e Mathias Gonçalves Ferreira, andadores da Irmandade
da Candelária. No mais, reiteramos, nenhuma das testemunhas foi identificada como membro da
hierarquia eclesiástica.

Dentre as testemunhas não reconhecidas como sacerdotes podemos distinguir prontamente


dois importantes personagens não só para a cidade Rio de Janeiro como para toda a Colônia: Antônio
Gomes Barrozo e Braz Carneiro Leão. O primeiro, Antônio Gomes Barrozo, fazia parte, segundo Ma-
nolo Florentino, de uma das dezessete maiores famílias de traficantes de escravos do Rio de Janeiro44.
Já o segundo, Baz Carneiro Leão era, segundo João Fragoso, um dos grandes comerciantes da Cida-

41 Idem, p. 197.
42 Idem, pp. 192-244.
43 NEVES, Guilherme Pereira das. “A religião do Império e a Igreja”. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo.
O Brasil imperial, vol. I: 1808-1831. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p.419.
44 FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras. 2. ed. São Paulo: Cia. das Letras, 1997.

1078
de.45 Ao traçar o perfil desses que eram considerados “homens de grosso trato”, Fragoso acaba por citar
justamente a família de nossos dois personagens:

Na América lusa, alguns daqueles comerciantes surgiam também como arrematantes


de impostos, a exemplo dos Gomes Barroso e dos Pereira de Almeida. Famílias que
durante vários anos, na passagem do século XVIII para o XIX, possuíram os contra-
tos do Rio Grande do Sul (charque e couro); combinando esta atividade com aquilo
que sabiam fazer de melhor, controlar o mercado. Aliás, o Rio Grande do Sul tinha
como principal parceiro o Rio de Janeiro. De fato, para estes grandes negociantes,
eram frágeis as fronteiras entre o comércio feito no interior da América portuguesa
daquele realizado fora dela. Os mesmos Pereira de Almeida e Gomes Barroso tam-
bém faziam parte do seleto grupo de empresários que controlava, por exemplo, o
tráfico atlântico de escravos. (...) Além disso, eram eles que dominavam o crédito
regional, possuíam companhias de seguro etc. Alguns tinham ainda grandes plan-
tations de açúcar, com mais de duzentos cativos, como os Carneiro Leão e os Velho.
Em outras palavras, eles eram comerciantes de grosso-trato com base nas rotas do
império luso, no mercado colonial interno e alguns com posses no agro. Era por es-
tarem simultaneamente em diferentes setores do mercado que se transformavam em
negociantes de grosso-trato.46

Vale lembrar que a partir da segunda metade do século XVIII até a chegada do século XIX o
comercio da cidade do Rio de Janeiro já se caracterizava como atividade extremante concentrada nas
mãos de poucas famílias. Para ser mais precisa “apenas quinze famílias de negociantes cariocas de-
tinham 27% do tráfico atlântico de escravos (1811-30), 29%, do transporte de mercadorias da cidade
para Portugal (década de 1820), e 26% do comércio do Rio com Goa.”47 Antônio Gomes Barrozo e
Braz Carneiro Leão, testemunhas frequentes nos casamentos da Freguesia da Candeláriaocupavam o
topo da hierarquia comercial onde se encontravam os grandes atacadistas responsáveis diretos pela
compra e venda de mercadorias com províncias distantes da colônia e pelo comercio exterior. Confor-
me caracterizou Fragoso, eram negociantes típicos, pois diversificavam sua área de atuação, atuando
no abastecimento, na exportação e importação, na rede de créditos públicos e privados e ainda na
arrematação de impostos. Desse modo, são homens que tem o controle de setores chaves da econo-
mia, atuando tanto na atividade comercial e na produção escravista, como nas manufaturas, nas casas
bancárias, companhias de seguro e bancos.48Não por acaso, a Paróquia da Candelária abriga uma
Irmandade de comerciantes com o mesmo nome da padroeira. Esses personagens além de refletirem
o perfil da própria freguesia e seus membros, evidenciam que a prática do testemunho recorrente, em
se tratando de casamentos, não esteve restrita a uma única camada social ou qualidade de pessoas e,
além disso, era uma pratica comum e disseminada.

45 FRAGOSO, João. Homens de grossa aventura: 1790-1830. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
46 FRAGOSO, João. “Mercados e negociantes imperiais: um ensaio sobre a economia do império português
(séculos XVII E XIX)”. In: História: questões & debates. Curitiba, n. 36, p. 99-127, 2002. Editora UFPR.
47 FRAGOSO, João. Homens de grossa aventura: 1790-1830. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998,
p.320.
48 LOBARINHAS, Théo. “A política dos negociantes e o porto do Rio de Janeiro no século XIX.” In: Anais do
XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho 2011.

1079
A partir da informação referente à data em que os enlaces ocorreram,foi possível também
apontar outro aspecto acerca da participação das testemunhas de casamento observadas: o exato pe-
ríodo de tempo em que atuaram cumprindo tal papel. A Tabela 2 nos permite observar quando essas
testemunhas foram chamadas pela primeira e pela última vez e por quantos anos tais convites ocor-
reram ao menos no âmbito da Freguesia da Candelária. Nela podemos notar que esses personagens
não tiveram uma passagem célere pelo ambiente religioso e paroquial. Alguns se apresentaram em
diversos casamentos ao longo de 20,30, 40 e até 50 anos, espaço de tempo mais que suficiente para
constituí-los ou consolidá-los como personagens de prestígio não só do ponto de vista religioso, mas,
sobretudo, social. Dentre aqueles não ocupantes de cargos eclesiásticos temos Antônio Gomes Barro-
zoum dos personagens que recebeu convites para testemunhar casamentos por mais tempo. No perío-
do de 53 anos ele esteve presente em 10 casamentos diferentes, sendo que no primeiro deles, em 1776,
ainda recebia o título de capitão. A partir de 1819 ele começa a ser intitulado de Coronel e segue assim
ate sua últimaaparição como testemunha, já no século seguinte, em 1829. Outro caso interessante é o
de Coronel Braz Carneiro Leão, negociante e personagem de vulto na Cidade do Rio de Janeiro, cujo
período de participação em cerimônias de casamento na cidade chegou a quatro décadas, começando
em 1765 e terminando em 1806. Dois anos depois, em 1808, mesmo ano da morte de Carneiro Leão,
seu filho, Fernando Carneiro Leão, também começa a aparecer como testemunha sendo designado
como capitão. Assim ele segue nos assentos paroquiais até 1818, quando passa a ser identificado como
comendador até 1825, ultimo ano de sua aparição. Conforme vemos na tabela abaixo, são vários os
casos de personagens que operam tal prática por períodos longos de mais de 25 anos e, portanto, por
uma ou mais gerações. Nesses casos poderíamos estar diante de funcionários eclesiásticos que, por
força das características inerentes ao cargo, tendem a permanecer por extensos períodos de tempo no
serviço paroquial e, portanto, estariam mais disponíveis para socorrer noivos carentes de testemunhas
por uma longa temporada. No entanto, não é isso que vemos expresso quando levamos em considera-
ção as ocupações dessas testemunhas mais presentes ao longo do tempo. Daquelas cuja participação
avançou a partir dos 25 anos, 8 eram leigos e apenas 2 eram padres, em um total de 10.

1080
TABELA 2 - Período em que ocorreram os casamentos envolvidos com as testemunhas mais recor-
rentes– Séculos XVII e XIX- Freguesia da Candelária (1750 a 1866)

N° de anos
Período dos entre 1° e o
Período Nome das Testemunhas Titulação/Ocupação
casamentos último ca-
samento
Alexandre Fidele de Araujo Dom/Coadjutor/Padre 1770 A 1785 15
Anacleto Elias da Fonseca Capitão Mor/Sargento Mor 1759 A 1800 41
Antônio de Mello Padre 1752 A 1761 9
Antônio Gomes Barrozo Capitão/Coronel 1776 A 1829 53
Antônio Joze Coelho Padre 1754 A 1809 55
Antônio Pereira da Costa Alferes/Sacristão 1751 A 1775 24
Bento Rodrigues Pereira Tenente 1769 A 1783 14
Braz Carneiro Leão Capitão/Coronel/Tenente 1765 A 1806 41
1750- Felippe Lopes dos Santos Ni 1769 A 1777 8
1800 Ignacio de Oliveira Maciel Padre 1769 A 1787 18
João da Costa Pinheiro Capitão / Negociante 1767 A 1792 25
Joze Dias da Cruz Tenente/ Alferes 1769 A 1810 41
Joze Dias de Oliveira Capitão/Sargento Mor 1757 A 1781 24
Luis Antônio Ferreira Capitão/Licenciado 1774 A 1806 32
Manoel de Figueiredo Chaves
Coimbra Ni 1783 A 1797 14
Manoel Luis França Padre 1758 A 1798 40
Pedro Martins Duarte Capitão 1757 A 1772 15
Antônio Jose Alves Souto Comendador 1847 A 1861 14
Antônio Luiz de Andrade Andador Irmandade Candelária 1815 A 1854 39
CezarioJoze da Silva Porteiro do Cavallo do Número 1812 A 1832 20
Fernando Carneiro Leão Capitão/Comendador/Ten. Coronel 1825 A 1808 17
Ignacio Manoel da Silva Ni 1818 A 1810 8
João de Medeiros Augusto Ni 1840 A 1854 14
1801-
1866 Joaquim Marianno do Amaral
Campos Ni 1838 A 1848 10
Joze Antônio da Cunha Ni 1795 A 1812 17
Manoel Machado Coelho Comendador/ Segueiro 1815 A 1856 41
Capitão/Irmão da Irmand.Mãe dos
Manoel Moreira da Silva Homens/Marceneiro 1798 A 1819 21
Mathias Gonçalves Ferreira 2°Andador Irmand. Candelária 1818 A 1825 7
Fonte: ACMRJ - Registros de Matrimônio Freguesia de Nossa Senhora da Candelária. Livros 6, 7, 8, 9 e 10 (1750 a 1866).

Coronéis, negociantes, alferes e comendadores são alguns títulos e ocupações das testemunhas
leigas desse grupo. Ou seja, conforme já verificamos,a presença reiterada em casamentos na condição
de testemunha, além de não ser um ato praticado exclusivamente por eclesiásticos ou pessoas vincu-
ladas a Igreja, foi executada por outras pessoas de “qualidade” e prestígio elevado.

Além disso, parece que a relevância desses personagens não está expressa apenas em suas pa-

1081
tentes e ocupações ou no número de vezes em que foram convocados a testemunhar os enlaces, mas
também no longo período de tempo em que esses convites ocorreram. A reiteração detais práticas
relacionadas a essas testemunhas provavelmente ocorreuem função do reconhecimento,por parte dos
noivos, do nível de prestígio e proeminência desses personagens. Porém, ao mesmo tempo, pode ter
ajudado a construir ou consolidar suas trajetórias de mobilidade e ascensão e, por conseguinte, solidi-
ficar sua importância e influência. Até aqui parece claro que oestabelecimento dessas testemunhas em
seu ambiente cotidiano como referência para os noivos que os escolheram, foi fruto de um processo
que exigiu tempo. Ser chamado dezenas de vezes durante décadas para assumir um papel importante
em cerimônias religiosas que coroaram e ratificaram, publica e oficialmente, o enlace de inúmeros ca-
sais, nos faz refletir sobre todos os laços e relações estabelecidas não só a partir da cerimônia, mas tam-
bém anteriormenteàela. Desse modo, tais convites provavelmente foram precedidos pelaconstrução
e reiteração de vínculos de todo tipo entre consortes e testemunhas: amizade, trabalho, clientela,
irmandade etc...

3.2– O perfil da repetição

Outro dado curioso advindo dos registros de matrimônio da candelária em relação às teste-
munhas é o fato de que várias delas foram identificadas formando pares entre si. Quando observamos,
conforme a Tabela 3, apenas o grupo de testemunhas que se repetiam percebemos que boa parte dos
pares formados entre elas envolvia pessoas com o mesmo título. Portanto, além de ficar evidente que
algumas delas se conheciam, é provável que houvesse, inclusive, um convívio e até certa afinidade,
anteriores a cerimônia.

TABELA 3- N° de vezes em que as testemunhas recorrentes formaram par entre si– Séculos XVII e
XIX- Freguesia da Candelária (1750 a 1866)

Nome das Nome das Titulação/ N° de Ca-


Titulação/Ocupação
Ocupação samentos
Testemunhas Testemunhas
Alexandre Fidele de Araujo Dom/Coadjutor/Padre Felippe Lopes dos Santos Ni 4
Anacleto Elias da Fonseca Capitão Mor/Sargento Mor João da Costa Pinheiro Capitão 1
Alferes/Sacris-
Antônio de Mello Padre Antônio Pereira Da Costa tão 1
Antônio de Mello Padre Manoel Luis França Padre 2
Antônio de Mello Padre Pedro Martins Duarte Capitão 1
Antoo Gomes Barrozo Capitão/Coronel João Da Costa Pinheiro Capitão 1
1°Andador Irmandade Can-
Antônio Luiz De Andrade delária Ignacio Manoel Da Silva Ni 1

1082
2° Andador
1° Andador Irmandade Mathias Gonçalves Fer- Irmandade
Antônio Luiz De Andrade Candelária reira Candelária 6
Anacleto Elias Da Fon- Capitão Mor/
Braz Carneiro Leão Capitão/Coronel/Tenente seca Sargento Mor 1
Capitão/Co-
Braz Carneiro Leão Capitão/Coronel/Tenente Antônio Gomes Barrozo ronel 1
Capitão/Licen-
Braz Carneiro Leão Capitão/Coronel/Tenente Luis Antônio Ferreira ciado 1
Porteiro do Cavallo do Nú-
CezarioJoze Da Silva mero Ignacio Manoel Da Silva Ni 1
Ignacio De Oliveira Ma-
Felippe Lopes Dos Santos Ni ciel Ni 1
Capitão/Licen-
João Da Costa Pinheiro Capitão Luis Antônio Ferreira ciado 3
Manoel De Figueiredo Ignacio De Oliveira Ma-
Chaves Coimbra Ni ciel Ni 1
Manoel De Figueiredo
Manoel Luis França Padre Chaves Coimbra Ni 1
Fonte: ACMRJ - Registros de Matrimônio Freguesia de Nossa Senhora da Candelária. Livros 6, 7, 8, 9 e 10 (1750 a 1866).

Para além dos padres que formaram par com outros sacerdotes, temos os pares das únicas
testemunhas cuja ocupação também advém do cotidiano religioso, os andadores. Antônio Luiz de
Andrade, Andador da Irmandade da Candelária, quando formou par recorrente com alguém o fez
por 6 vezes com Mathias Gonçalves Ferreira, também andador da mesma confraria e seu contempo-
râneo, e apenas 1 vez com Ignácio Manoel da Silva cujas titulação e ocupaçãonão foi possível conhecer.
Também o Coronel e comerciante Brás Carneiro Leão formou par por três vezes com outros capitães.

Portanto, atese do caráter aleatório e fortuita da escolha dessas testemunhas parece fazer cada
vez menos sentido na medida em que, quando olhamos seus perfis de comportamento, encontramos
personagens que, como vimos,não apenas se conhecem como retornam aos locais da cerimônia inú-
meras vezes ao longo de anos seguidos, inclusive com pessoas de qualidade semelhante.

Desse modo, a ocasião do enlace, nesses casos pode ter servido como via de mão dupla, ou seja,
como ocasião da escolha dos casais por personagens com certo grau de prestígio e, ao mesmo tempo,
momento de recriação ou consolidação de laços entre as próprias testemunhas. Um paralelo com os
trabalhos sobre compadrio escravo e forro talvez possa ajudar no entendimento do comportamento
desses personagens apreendidos até o momento. A maioria das pesquisas dedicadas àdiscussão em
torno do batismo apontam algumas características típicas daqueles escolhidos como padrinhos como,
por exemplo, o status superior destes em relação ao dos pais do batizado. Embora o termo “padrinho
de casamento” não apareçanos registros de matrimônio aqui analisados, por vezes, essas testemunhas
me parecem cumprir as mesmas funções sociais dos compadres de batismo.

A historiografia que vem se dedicando ao tema da sociabilidade tem dado especial atenção ao
compadrio na medida em que, a partir desse sacramento, estabeleciam-se entre padrinhos, afilhados

1083
e suas respectivas famílias laços não só espirituais como também sociais. Segundo Stuart Schwartz em
seu livro Escravos, roceiros e rebeldes:
“Tais laços também tinham uma dimensão social fora da estrutura da igreja. Podiam
ser usados para reforçar laços de parentesco já existentes, ou solidificar relações com
pessoas de classe social semelhante, ou estabelecer laços verticais entre indivíduos
socialmente desiguais”49.

O autor, comentando a respeito de certos padrões na escolha de padrinhos de batismo nas


lavouras do recôncavo baiano, nos diz que:
“Os escravos quase nunca serviam de padrinhos de crianças nascidas livres ou de fi-
lhos de escravos libertos, mas, pelo contrário, os filhos de escravos tinham padrinhos
livres, libertos e escravos. Havia uma espécie de categoria de compadrio que repro-
duzia a hierarquia de status e cor da sociedade, e os brancos, quase sempre, tinham
padrinhos brancos; a maioria de filhos de pardos tinham padrinhos branco (...)”50.

É bem verdade que o próprio autor admite poder tratar-se de padrões de compadrio específicos
da Bahia no final do século XVIII, cuja economia estava intimamente ligada ao tráfico de escravos a
exportação de açúcar. Segundo ele, as duas paróquias rurais analisadas eram zonas produtoras de
açúcar cuja produção havia se expandido naquele momento. No intuito de estabelecer uma compa-
ração, Stuart Schwartz resolveu então examinar os padrões de compadrios de escravos em Curitiba
no mesmo período, logo, uma outra região e uma área não tão intimamente ligada à economia de
exportação e ao tráfico internacional de escravos. O estudo dos dados Curitibanos confirmou muitas
das descobertas da Bahia do século XVIII, dentre elas: a escolha de um padrinho e de uma madrinha
livres no compadrio de filhos de escravos. O autor conclui então que os padrões de Curitiba indicam
que os dados baianos não eram excepcionais e mais: que “para os escravos, esses padrões indicam a
aceitação das circunstâncias e a tentativa de usar a instituição do compadrio para melhorar a própria
situação ou fortalecer laços de família”51.

Na esteira dos trabalhos de Schwartz sobre compadrio outros autores desenvolveram pesqui-
sas em outras regiões, ressaltando a importância das relações de compadrio em suas análises e to-
mando com referência o trabalho do autor. Silvia Brügger em seu livro Minas patriarcal: família e
sociedade52, já no início, propõe uma reflexão sobre o conceito de patriarcalismo e, a partir daí, deixa
claro que o entende como um sistema de valores onde a família está no centro da ação social e política
e não como um mero sinônimo de família extensa. Para a autora, na estrutura da sociedade patriarcal
mineira entre os séculos XVIII e XIX os vínculos familiares eram de extrema importância não só em
termos culturais como também políticos e econômicos. A partir de registros paroquiais de batismo e
casamento, e de fontes cartorárias como inventários post-mortem e testamentos, a autora consegue
identificar determinadas estratégias entre algumas famílias mineiras de São João Del Rei ao longo da
segunda metade do século XVIII e primeira metade do XIX. Ter parentes com inserção política nas

49 SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru, SP: EDUSP, 2001, p.265.
50 SCHWARTZ, Stuart B. Idem p. 272.
51 SCHWARTZ, Stuart B. Idem p.285.
52 BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Minas patriarcal: família e sociedade (São João Del Rei - Séculos XVIII e
XIX). São Paulo: Annablume, 2007.

1084
mais variadas instituições como a Câmara Municipal ou como o Juizado de Paz podia fazer parte não
de uma estratégia pessoal, mas familiar de poder. Desse modo, as alianças matrimoniais, as relações
entre pais e filhos e o compadrio podiam estar intimamente ligados a negócios, sociedades, emprés-
timos e arranjos políticos. As pessoas consideradas importantes na região eram, justamente, as que
tinham maior número de afilhados. Silvia Brügger percebe, então, que a valorização dessas famílias
esteve intimamente relacionada com seu tempo de permanência na região e com o grau de inserção
social que atingiram, isso significa que quanto mais elas eram socialmente reconhecidas como “tradi-
cionais” mais reforçavam os valores patriarcais.

Já Roberto Guedes em seu livro Egressos do cativeiro: trabalho, família aliança e mobilidade
social53, analisa a trajetória de cinco famílias da Vila de Porto Feliz, província de São Paulo que, no
século XVIII, era uma região ligada às áreas mineradoras do Mato Grosso e onde os escravos re-
presentavam metade da população. Utilizando fontes de natureza diversa como listas nominativas
de habitantes, registros paroquias de batismo, casamento e óbito, inventários post-mortem, licenças
comerciais e processos crime, o autor mescla o uso de informações agregadas em grandes bancos de
dados com a técnica do cruzamento onomástico. O autor ressalta que, em tese, o trabalho tendia a ser
depreciado em uma sociedade do Antigo Regime e, desse modo, um liberto traria consigo o estigma
do “defeito” mecânico e do rebaixamento social deixado pelo tempo na escravidão. No entanto, o au-
tor faz questão de lembrar que essa concepção depreciativa do trabalho e do trabalhador variava no
tempo e que, apesar disso, não inviabilizava a mobilidade social ascendente de escravos e forros. Na
verdade, o autor vai além e aposta na ideia de que o trabalho gerava espaços de autonomia e ascensão
social para os egressos do cativeiro, tanto do ponto de vista material quanto simbólico e podia até ser
percebido de forma positiva. Ao observar as estratégias de mobilidade social de escravos e seus des-
cendentes que conseguem sair do cativeiro por meio da alforria, o autor percebe que havia uma busca
por estabilidade familiar e inserção em redes de sociabilidade. Desse modo, essas famílias utilizavam
como recurso nesse processo, o parentesco, o compadrio, as amizades e as relações clientelares e de
vizinhança. Percorrendo o caminho trilhado pelos forros e seus descendentes depois da concessão da
alforria, Guedes destaca que a mobilidade social resulta da interação entre senhores, escravos, forros
e livres e deve ser analisada no âmbito familiar e de forma geracional.

Por fim, Cacilda Machado em seu livro A trama das vontades: negros, pardos e brancos na
construção da hierarquia social no Brasil escravista54 faz uma análise socioeconômica e demográfica
na cidade paranaense de São José dos Pinhais no início do século XIX. .A partir do uso de listas no-
minativas cruzadas com registros paroquiais de batismo, casamento e óbito, a autora tenta entender
o caminho por meio do qual as posições raciais e sociais foram construídas em uma região marcada
pela escassez de cativos, predomínio de pequenas escravarias e preponderância de domicílios com
famílias compostas de brancos e pardos pobres sem escravos. A autora percebeu a prevalência de
laços de compadrio com pessoas livres, por parte dos escravos que buscavam batizar seus filhos. Tal

53 GUEDES, Roberto. Egressos do cativeiro: trabalho, família aliança e mobilidade social (Porto Feliz, São
Paulo, c.1798-c.1850) Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2008.
54 MACHADO, Cacilda. A trama das vontades: negros, pardos e brancos na construção da hierarquia social
no Brasil escravista. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.

1085
apadrinhamento se dava, sobretudo, não com os senhores de tais escravos, mas com seus parentes.
Para Cacilda Machado, se tratava de uma estratégia que buscava o estreitamento dos laços com as ca-
sas senhoriais em que os amigos desses escravos viviam como cativos ou agregados. Daí a percepção
de que esse era, na realidade, um mecanismo de manutenção e de ampliação de uma comunidade de
negros e pardos.

Conforme vimos até agora, os laços estabelecidos por meio do matrimônio excedem, em mui-
to, aqueles constituídos entre os noivos. Nessa diversidade de relações nos deparamos, a partir dos re-
gistros, com laços que unem noivos às testemunhas além de conexões entre as próprias testemunhas.
Na esteira desses últimos trabalhos sobre família escrava, e aproveitando os resultados das pesquisas
mais recentes que dão destaque ao compadrio como mecanismo de sociabilidade, podemos pensar
na possibilidade de interpretar o casamento como ocasião privilegiada para o estabelecimento de
alianças parecidas com as ensejadas pelo apadrinhamento e, portanto, como momento igualmente
importante para o estabelecimento de múltiplas estratégias de mobilidade social.

Enfim, parece que as testemunhas de casamento cumpriam um papel social que ia muito além
de uma mera formalidade burocrática. É possível que esses homens tivessem a clareza de estarem
diante da possibilidade de construírem, no longo prazo, uma rede de clientes e de, portanto, amplia-
rem seu prestígio social. No entanto, cabe ainda uma pergunta: reaparecer na Igreja fornece certa vi-
sibilidade para esses homens ou eles são escolhidos por que já são proeminentes na localidade?Desse
modo, tomando como princípio que os registros de casamentos também nos deixam vestígios de laços
de solidariedade e reciprocidade, o próximo desafio será desvendar a natureza dos vínculos que unem
noivos e testemunhas.

Desse modo, será inevitável seguir o rastro das recentes pesquisas em História social e operar,
na medida do possível, a reconstrução das trajetórias de vida de alguns desses personagens, tanto
testemunhas como nubentes. Tal tarefa só se concretizará a partir do cruzamento das informações
já coletadas acerca desses personagens com outras tantas fontes de natureza o mais diversa possível.
Segue o desafio.

Fontes

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a) Arquivo Nacional (AN)

Inventários Post Mortem: Antônio Luiz de Andrade – Juizo de Órfãos Ausentes - ZN, N° 3857/ Cx
912/ Galeria A/ Ano 1837 - Digitalização total e Coleta de informação parcial; Matias Gonçalves
Ferreira - Juizo de Órfãos Ausentes - ZN, N° 04/ Cx 3639 / Ano 1864 - Digitalização total e Coleta de
informação parcial ;Manoel Rodrigues de Oliveira- Juizo de Órfãos Ausentes - ZN, Maço 323 / Cx
6007/ Ano 1840 - Digitalização total e Coleta de informação parcial. Luiz Antônio Ferreira, N° 1246,
Caixa 4223, Ano 1878, 2ª Vara do Juízo de Órfãos e Ausentes; Antônio Gomes Barroso, Nº 2365, Maço
2296, Ano 1825, Juízo de Fora; João da Costa Pinheiro, Nº 8966, Maço 2288, Ano 1822, Juízo de Fora.

1086
b) Arquivo da Cúria Metropolitana (ANCMRJ)

Registros de Matrimônio da Freguesia de Nossa Senhora da Candelária. Livro 6 (1751-1761); Regis-


tros de Matrimônio da Freguesia de Nossa Senhora da Candelária. Livro 7 (1761-1769); Registros de
Matrimônio da Freguesia de Nossa Senhora da Candelária. Livro 8 (1770-1808); Registros de Matri-
mônio da Freguesia de Nossa Senhora da Candelária. Livro 9 (1809-1866)

Habilitações Sacerdotais - HS 140 – Alexandre Fidele de Araújo, 1766-1767; HS 181 – Antônio Couti-
nho de Mello, 1785; HS 289 – José Alexandre Fidele de Araújo, 1802-1803; HS 298 – Antônio Jozé de
Mello, 1804-1807; HS 311 - Alexandre José Fidele de Araújo, 1805-1806; HS 456 – Antônio de Mello
Muniz Maia, 1859; HS 3529 – Jozé Maciel, 1766.

c) Irmandade de N. S. da Candelária.

Registro de Atas da Mesa Administrativa da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Freguesia de N.


S. da Candelária – 1775 (junho 03 – 1834 (outubro 28), Vol. 1 e 2;

Livro de Compromisso da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Candelária – 1756-1757;Livro de


Registros de Ofícios e Correspondências da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Candelária –
1827- 011-B-00760.

2. Site: mauricioabreu.com.br – Banco de dados da estrutura Fundiária do Recôncavo da Guanabara


Sécs. XVII e XVIII.

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1088
O PROJETO DE INTERVENÇÃO SOCIAL DE JORGE BENCI: MODELOS DEVOCIONAIS55
Natália de Almeida Oliveira

QUEM FOI JORGE BENCI?

Jorge Benci de Arimino56 nasceu em Rimini, na Península Itálica, em 1650. Ingressou na Compa-
nhia de Jesus em Bolonha, em 17 de outubro de 1665, com 15 anos de idade. Embarcou para Lisboa,
em 1681, para trabalhar nas atividades missionárias.Ao alargar a busca de dados para compreender a
vinda de Benci para o Brasil, descobrimos que a sua chegada, no ano de 1681, foi junto com Antônio
Andreoni, o Antonil e Antônio Vieira. O primeiro vinha para o Brasil pela primeira vez e o segundo
chegava após uma longa estadia em Lisboa desde 1675. Ressaltamos que Benci e Antonil realizaram
no mesmo dia a sua profissão solene, Benci no Rio de Janeiro em 15 de Agosto de 1683, e Antonil na
mesma data na Bahia. Partindo do ano de 1681, conseguimos delimitar mais claramente as divisões
da Companhia de Jesus, estas inicialmente polarizadas entre os italianos x portugueses, e, posterior-
mente, estendendo-se aos chamados brasileiros.

Os dados após a chegada de Benci ao Brasil são extremamente escassos, em linhas gerais apontam
que em 2 de Maio de 1700, quando estava na Bahia, solicitou sair do Brasil por motivos pessoais,
pedindo para voltar à Veneza, onde havia estado, ou para ir para a Ilha de São Tomé, mas foi enviado
para Lisboa onde trabalhou com os assuntos referentes à Província Jesuítica do Brasil. Benci morreu
em 10 de Julho de 1708, em Lisboa. Entre a sua vinda em 1681 e a sua morte em 1708 passaram-se 27
anos.

É interessante salientar que a ligação entre Benci, Vieira e Antonil teve início no Brasil, em 1681, e
55Mestre em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO (2017). Integrante
do grupo de pesquisa ECCLESIA - Grupo de Estudos de História do Catolicismo, da Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro. Também integrante do grupo de pesquisa Jesuítas nas Américas, da Unisinos. Licen-
ciada (2010) e Bacharel (2011) em História pela Universidade Gama Filho (UGF), Pós-Graduada em História
do Brasil Colonial (2013) pela Faculdade São Bento do Rio de Janeiro (FSBRJ), e Pós-Graduada em Ciências
da Religião (2016), também pela Faculdade São Bento do Rio de Janeiro (FSBRJ). As conclusões apresentadas
nesse trabalho são fruto da dissertação defendida em Junho de 2017, na Universidade Federal do Estado do Rio
de Janeiro (UNIRIO), intitulada: “Jorge Benci e missão: A reconstrução da trajetória de um jesuíta italiano na
América Portuguesa”, pesquisa feita sob a orientação do Professor Dr°. Anderson José Machado de Oliveira,
e financiada pela CAPES durante todo o curso. Agradeço publicamente ao professor Anderson Oliveira, pela
orientação e dedicação. E-mail para contato: natalia_hist@yahoo.com.br
56 Os dados sobre sua biografia são retirados de dois estudiosos, Serafim Leite e Carlos Sommervogel, e da
Cátedra Alberto Benveniste. LEITE, Serafim.História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomos I, II, III, IV,
V, IV, VII, VIII, IX e X – Estabelecimentos: Estado do Brasil – Século XVI. Edições Loyola. São Paulo, 2004. 4
volumes. P. 234-235.

SOMMERVOGEL, Carlos. Bibliothèque de la Compagnie de Jésus. Première Partie: Bibliographie. Tome I. p:


1292 e 1293. E Tome VIII, p.1812. Edição que está na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, na seção de Obras
Raras.

Cátedra "Alberto Benveniste". Dicionário dos Italianos estantes em Portugal. Pesquisa: Jorge Benci. In: http://
www.catedra-alberto-benveniste.org/dic-italianos.asp?id=361.

1089
foi marcada por tensões e conflitos. Em meio aos dois, Benci sempre esteve mais à margem, não sendo
tão “popular”. Antonil e Vieira já haviam se conhecido em Roma, e não temos informações parecidas
com relação a vida de Benci. Entretanto, a relação de Antonil e Viera foi incialmente de proximidade,
já que o italiano foi considerado por Vieira como homem de confiança. Em 1681, Vieira retornou ao
Brasil politicamente vitorioso57, em função do triunfo diante do conflito com o Santo Ofício, enquanto
Benci e Antonil eram desconhecidos.

Os jesuítas precisavam adaptar-se, independentemente do local da sua atuação, à vida local, o que
era necessário para o funcionamento da missão, compartilhando o estilo de vida dos que ali habitavam
– como hábitos, costumes, alimentação. De acordo com Paulo Assumpção, isso estendia-se à posse
de propriedades e práticas construtivas58. A adaptação muitas vezes acabava sendo o ingrediente que
faltava para o surgimento de um conflito sobre os rumos que a missão deveria tomar. Permeados por
muitos motivos, os conflitos eram inerentes à existência da Companhia de Jesus. Mas o que ajudava
a fomentar essas querelas? Acreditamos que um dos grandes motivos fosse a diferente formação dos
religiosos. Vindos de longínquos lugares, de locais distintos de nascimento, os jesuítas encontravam o
outro naqueles que deveriam catequizar, mas também nos seus irmãos.

Jorge Benci, segundo Serafim Leite e Carlos Sommervogel, ocupou os cargos de professor de Hu-
manidades e Teologia, sendo também Pregador e Procurador do Colégio da Bahia, foi também Visita-
dor Local e Secretário Provincial. Serafim Leite ressalta que “nesta qualidade esteve em S. Paulo a tra-
tar das administrações dos Índios”59.Pelos cargos ocupados entendemos que Jorge Benci fez parte de
uma elite intelectual italiana presente na América Portuguesa. Mais do que isso, acreditamos, mesmo
não havendo dados oficiais em Serafim Leite e Carlos Sommervogel, que Benci fazia parte do seleto

57A vida e a trajetória de Vieira é um estudo a parte, feito com muito sucesso por Ronaldo Vainfas e João Lúcio
de Azevedo, não sendo nosso objetivo aqui. Vieira nasceu em 1608 em Portugal, e morreu aos 89 anos no Brasil.
No decorrer de sua longa vida, envolveu-se em muitas querelas, criou muitos inimigos e amigos. Apontamos
que em 1681 ele volta ao Brasil vitorioso, pois sua volta ocorre após a sua vitória contra o Santo Ofício, no qual
após ser condenado, em função da Carta ao Bispo do Japão, e da obra A Chave dos Profetas, e sua ligação aos
escritos de Bandarra, ele obtém um Breve Papal de Clemente X, no ano de 1675, que suspende a sentença da
Inquisição Portuguesa, e o deixa imune diante do Santo Ofício.

A nosso ver essa vitória de Vieira perante a Inquisição aponta uma singularidade de seu personagem, mais do
que jesuíta, Vieira é um homem político, português. Sua fidelidade ao Papa caminha lado a lado, com a sua
fidelidade a Portugal e seus governantes. Fato este que torna o personagem tão singular, e pode ser uma chave
de leitura para se pensar a presença de Vieira em tantos conflitos internos e externos a Companhia de Jesus.
58ASSUNÇÃO, Paulo de. Negócios Jesuíticos: O cotidiano da administração dos bens divinos. Editora: EDUSP.
São Paulo, 2004.p.252.
59 LEITE, Serafim.História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomos I, II, III, IV, V, IV, VII, VIII, IX e X – Es-
tabelecimentos: Estado do Brasil – Século XVI. Edições Loyola. São Paulo, 2004. 4volumes.Tomo VIII. p. 234,
235.

1090
grupo de jesuítas que tinham professado o quarto voto60. Pelo quarto voto os jesuítas distinguiam-se61.
Charlotte L’Estoile afirma que havia um “pequeno número de professos de quatro votos na provín-
cia”62. Fato este “que corresponde a um perfil muito típico: professos, nascidos em Portugal, mais fre-
quentemente de origem nobre”63. Logo, entendemos que o quarto voto era uma peça fundamental da
hierarquia interna da Companhia de Jesus, podendo relacionar-se com a formação do jesuíta. Tendo
sido Benci Secretário Provincial, acreditamos que o mesmo possuía um alto nível de formação inte-
lectual.

Jorge Benci nasceu na cidade de Rimini, no nordeste da Península Itálica, fato este que nos per-
mite cogitar o seu pertencimento a uma elite da região, já que “no Nordeste da Europa e no centro da
Itália, a Companhia atraiu fortemente os filhos dos profissionais, proprietários que viviam de rendas e
negociantes prósperos”64. Logo, acreditamos que Benci se insere na categoria de homens oriundos de
grupos privilegiados que aderiram à Companhia de Jesus.

A hipótese do pertencimento de Benci a uma elite nos ajuda a pensar sua trajetória, entendendo
não só o seu lugar social de fala, mas também o grupo de quem e para quem ele falava. Ao compreen-
dermos esse seu lugar, conseguimos entender os meios que o fizeram ser um jesuíta que ocupou altos
cargos, tendo assim professado o 3° e 4° voto da Companhia de Jesus, votos esses não populares e que
eram chaves do instrumento de hierarquização e segregação internas dos inacianos.

O sentido da missão moderna era espalhar-se pelo mundo, adaptando-se às diferentes circunstân-
cias, era o exemplo prático da palavra de Cristo: “Ide, portanto, e fazei que todas as nações se tornem
discípulos, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”65. Como resposta quase que

60O’MALLEY, John W. Os primeiros Jesuítas. Editora: Unisinos/EDUSC. São Paulo, 2002.


61Segundo as Constituições, para alguém ter o 4° voto é necessário: “1° virtude insigne segundo a norma
n. 120, positivamente comprovada e patente, de modo que brilhe diante dos outros por seu bom exemplo.
Nenhum outro dom pode suprir a falta deste. 2° Juízo reto e prudência no agir, comprovada e tão necessária
quanto a virtude. 3° Aptidão acima da mediana para nossos mistérios, comprovada por três anos pelo menos.
4° Plena disponibilidade e mobilidade para as missões e ministérios da Companhia. 5° Suficiente saúde física
e psíquica. 6° Alto nível de conhecimento nas ciências sagradas ou outras qualidades notáveis conforme o dis-
posto nos itens 2 e 3 abaixo. 7° Ordenação sacerdotal. [...] Item 2: O alto nível de conhecimento nas ciências sa-
gradas devem ser demontradas quer por um título acadêmico superior, ao menos a licença, quer pela docência
ou por escritos, de reconhcido valor , nesse mesmo campo, quer pelo exame ad gradum [...]. Item 3: Por causa
de outras notáveis qualidades, recebidas de Deus (das quais fala o parágrafo 1 [...]), podem ser promovidos os
que demostraram uma notável capacidade apostólica e pastoral para qualquer cargo ou ministério próprio da
Companhia, comprovada pelos respectivos títulos academicos superiores ou por uma prática de, ao menos,
três anos. [...] Suposto sempre o nível de conhecimentos teólogicos, requerido comumente pela Igreja em um
sacerdote bem formado. Item 4: Ao propor candidatos para a profissão de quatro votos, os Superiores maiores
e os seus Consultores devem estar seguros de que eles preenchem todos os requisitos para tanto”. In: Constitui-
ções da Companhia de Jesus e normas complementares. Anotadas pela Congregação Geral XXXIV, e aprovadas
pela mesma. São Paulo. Edições: Loyola. 2004. p. 273 e 274.
62 CASTELNAU - L’ESTOILE, Charlotte de.Operários de uma vinha estéril: Os jesuítas e a conversão dos
índios no Brasil – 1580-1620. Editora: EDUSC. São Paulo, 2006. Confrontado com o original em Francês:
LesOuvriers d’une vignestérile – LesjésuitesetlaconversiondesIndiensauBrésil. 1580-1620. Centre CulturelCa-
laousteGulberkian. Paris, 2000.Operários de uma vinha estéril. 2006. p.53.
63 Idem. p.53.
64 Idem.
65BÍBLIA: Bíblia de Jerusalém. Editora: Paulus. São Paulo, 2002. p. 1758.

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imediata a Trento, como nos mostra Louis Châtellier, os missionários reconheciam muito as diferen-
ças entre os católicos e os reformados:
Constituíam duas comunidades separadas, às quais já não era possível falar a mesma
linguagem. Os fiéis da Igreja precisavam ser reforçados, fortificados, isto é, instruídos.
Era necessário fazê-los conhecer uma religião cujos ofícios litúrgicos se deveriam
agora celebrar com decência e pompa. Quanto aos outros cristãos, pouco inclinados
a ouvir os pregadores, de que não sentiam qualquer necessidade, esses só poderiam
ser levados à conversão através da autoridade do príncipe, e por ordem deste. 66

Os missionários dos séculos XVI e XVII, impulsionados pelas determinações de Trento, preo-
cupavam-se em difundir as práticas do Concílio, e com isso a ligação com os Príncipes Católicos foi
fundamental. Desse modo Coroa e Igreja andavam juntas, e essa união é fundamental para entender-
mos esse projeto de intervenção socialproposto por Benci. Para Anderson José Machado, o modelo de
cristão idealizado por Jorge Benci era o “que seguisse os modelos tridentinos, já que a Companhia de
Jesus era a principal representante dos ideais da Contra-Reforma no além-mar”.67

Nesse contexto, de difundir os princípios normativos da Cristandade, inserem-se os sermões de


Jorge Benci. Buscamos trazer à luz, em princípio, três68 sermões de Benci que nunca foram analisa-
dos. Encontramos referência a todos eles em suas biografias presentes nas obras sobre a Companhia
de Jesus, como as de Serafim Leite e Carlos Sommervogel, e nas informações da Cátedra de Estudos
Sefarditas, Alberto Benveniste, da Universidade de Lisboa. As referências aos sermões limitam-se a
apresenta-los indicando que foram escritos no tempo em que esteve no Brasil.

Esses sermões cronologicamente são: O Sermão Sentimentos da Virgem Maria N. S. em sua Sole-
dad69,pregado na Sé da Bahia no ano de 1698, e publicado em Lisboa em 1699. O Sermão do Madato70,
pregado no Colégio da Bahia em 1701, e publicado no mesmo ano em Lisboa. E por fim, o Sermão de
S. Felippe Neri71, pregado na Igreja da Madre de Deus da Congregação do Oratório do Recife, no ano
de 1701 e publicado em Lisboa no ano de 1702.

66 CHÂTELLIER, Louis. A religião dos pobres: As fontes do cristianismo moderno. Séc. XVI-XIX. Coleção:
Nova História. Editora: Estampa. Lisboa, 1994. p. 34.
67OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção Negra: Santos Pretos e Catequese no Brasil Colonial. Edi-
tora: Faperj. Rio de Janeiro, 2008.p. 31.
68São quatro sermões inéditos de Benci, o último impresso em Roma no ano de 1713. Mas com dedicatória de
11 de dezembro de 1705, apontando que foi escrito no período que o jesuíta ainda estava na Bahia, éDe vera et
falsa probabilitateopiniorummoralium. Que é um sermão de mais de 400 páginas, e que está todo em latim, não
havendo nenhuma tradução conhecida, para nenhuma outra língua. Incialmente quando começamos o mes-
trado, era nosso objetivo traduzir e analisar essa obra. Mas na prática foi inviável, pois só as cartas traduzidas e
analisadas nos tomaram os dois anos do mestrado. Dito isso, esse sermão está fora do que apresentamos aqui
como projeto normatizador de Jorge Benci.
69BENCI, Jorge. Sentimentos da Virgem Maria N. S. em sua Soledade. Sermão que pregou na Sé da Bahia o P.
Jorge Benci da Companhia de Jesu.Anno 1698. [Trigrama da Companhia].  Lisboa. Publicado om as licenças
necessárias na Officina de Bernardo da Costa. 1699,27 pp. Encontrado na Biblioteca Nacional de Portugal.
70BENCI, Jorge. Sermão do Mandato, que pregou o padre Jorge Benci da Companhia de Jesu no Collegio da
Bahia. Lisboa. Publicado com as licenças necessárias na Officina de Bernardo da Costa. 1701, 23pp. Encontrado
na Biblioteca Nacional de Portugal.
71 Sermão de São Felippe Neri, na capa da fonte está escrito: “Sermam de S. FELIPPE NERI”, e na fonte Benci
chama o texto de sermão. Mas Serafim Leite e Carlos Sommervogel, o chamam de Panegírico de S. Filipe de
Néri. Panegírico de S. Filipe de Nerí no seu templo de Pernambuco. Lisboa, António Pedroso Galrão, 1702, 4°.

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Com distintas temáticas esses sermões se interligam a nosso ver justamente pelo projeto missio-
nário de intervenção social benciano. A devoção a Maria e a São Felipe Neri e a importância que o
jesuíta vê no ato do lava pés são elementos que, mesmo aparentemente díspares, dizem muito sobre a
sua visão de mundo, ressaltando os aspectos da sua formação e o contexto de uma época específica.

Acreditamos que o investimento em exemplos cristãos, tanto na figura de santos, Maria e São Feli-
pe Neri, quanto nas passagens da vida de Cristo - o ato de lavar os pés dos discípulos - era parte desse
projeto missionário de Benci. Da mesma forma que, segundo Anderson José Machado de Oliveira72,
a promoção se santos negros seria um projeto de conversão para a Ordem do Carmo. Com essa ana-
logia, gostaríamos de apontar que não só Benci, ou só os jesuítas formularam projetos missionários.
Durante todo o período colonial, a afirmação da Cristandade era necessária e com isso múltiplas es-
tratégias de diferentes segmentos religiosos foram desenvolvidas.

Analisaremos os sermões cronologicamente, buscando apresentar a obra, refletindo sobre seu sig-
nificado dentro do projeto de missão de Benci e identificando os aspectos de formação de Benci pre-
sentes nos textos. Nosso objetivo, mais do que apresentar esses textos nunca antes analisados, é tam-
bém aprofundar a contextualização de um personagem, trazendo à tona elementos que nos permitem
compreender melhor quem foi Jorge Benci.

A DEVOÇÃO DE BENCI AO AMOR DE MARIA

O sermão Sentimentos da Virgem Maria N. S. em sua Soledad73,datado de 1698, tendo sido pre-
gado na Sé da Bahia e publicado com as licenças necessárias na Oficina de Bernardo da Costa74 em
Lisboa no ano de 1699. E o sermão contém uma folha de rosto com emblema da Companhia.

Para Jorge Benci o mar de dores de Maria “é semelhante a dor de minha soledade”75, sendo a so-
ledade do filho, isto é, de Cristo. A dor da soledade de Maria era tão grande quanto o mar, fazendo
analogia com a passagem bíblica de Lamentações 2.13, “Quem te poderá salvar e consolar-te, Virgem,

72 OLIVEIRA, Anderson José Machado de.Devoção Negra. Op. Cit., 2008.


73BENCI, Jorge. Sentimentos da Virgem Maria N. S. em sua Soledade. Sermão que pregou na Sé da Bahia o P.
Jorge Benci da Companhia de Jesu.Anno 1698. [Trigrama da Companhia].  Lisboa. Com as licenças necessá-
rias. Na Officina de Bernardo da Costa. Anno 1699, 4°, 27 pp. Salientamos que encontramos este sermão, na
Biblioteca Nacional de Portugal.

Segundo o padre Raphael Bluteau, a palavra que aparece no título do sermão e se repete inúmeras vezes no tex-
to significa lugar solitário, ou o estado de quem fica só. Bluetau afirma que em Portugal e Castela foram célebres
os sermões denominados de Soledade. Estes apontariam “a soledade da Virgem Maria no espaço de morte e
martírio de seu filho”, existindo uma diferença entre saudade e soledade, já que a “saudade sempre pressupõe
amor. E a soledade nem sempre pressupõe amor. As saudades incluem em si a soledade, porque quem tem sau-
dade, ainda quando mais acompanhado, está só”, logo, a soledade não está incutida de saudade, “porque nem
todos que estão em soledade tem saudade”. In: BLUTEAU, Raphael. VocabularioPortuguez e Latino. Collegio
das Artes da Companhia de Jesus. Coimbra, 1712. Versão da Biblioteca digital da coleção Brasiliana, da Univer-
sidade de São Paulo. SP. p. 704. Acesso em: 13/02/2017, às 21h15min
74 Para maiores informações sobre a Oficina de Bernardo da Costa ver: SANTOS, Cátia Sofia Remédios do.
Bibliografia portuguesa: 1701-1705. Tipógrafos e impressos no fundo da BNP: contributo para um catálogo.
Apresentado como relatório de Estágio, no Mestrado em Ciências da Documentação e Informação, especiali-
dade de Biblioteconomia. Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, 2015.
75BENCI, Jorge. Sentimentos da Virgem Maria N. S. em sua Soledade. Op. Cit.1698. p. 3.

1093
filha de Sião? Grande como o mar é teu desastre: Quem te curará?”76. Segundo Bernard Sesboüe, a pas-
sagem acima citada de Maria como filha de Sião é recorrente durante todo o Novo Testamento, e traz
consigo expectativas messiânicas em relação a sua pessoa. Afirma que Maria é apresentada nos livros
do Novo Testamento pela sua singular relação com Cristo, sendo “a esse título que ela está presente
junto à Cruz e no Cenáculo.”77

A semelhança entre a mãe Maria e o filho Cristo é a base do texto benciano, atrelando-se a relação
mãe-filho à relação pai-filho-esposo. Segundo Benci, essa relação é importante, pois a solidão que
Maria diz estar passando justifica-se por ser Cristo, o pai do seu coração, ou seja, de seus sentimentos;
filho de suas entranhas, o verbo encarnado; esposo de sua alma, pois compartilha com ela o seu espí-
rito. Cristo é o filho de Deus, por isso ele também é pai. Deus, Cristo e o Espírito Santo compartilham
da mesma essência, embora fossem pessoas distintas. A soledade de Maria seria justificada pelo de-
samparo que ele vivia por parte do pai, do filho e do esposo, é o que seria chamado de mapa das três
soledades, pois a fé de Maria é no seu pai, no seu filho e no esposo. A relação familiar homem-mulher-
-filho é fundamental para Benci. Para ele Maria indaga:
Querido Pay, amado Filho, & doce Esposo meu, se sabieis muito bem que nesta so-
ledade se haviaõ de ajuntar os desamparos de orfã na ausencia do Pay, as lastimas
de Mãy na morte do Filho, & as lagrymas de viuva na perda do Espofo; como me
deyxastes, fendo meu Esposo, meu Filho & meu Pay?78

Indagando com é possível resistir sobre essa dor, Benci vai ao Livro de Eclesiastes 4:12 “Alguém so-
zinho é derrotado, dois conseguem resistir, e a corda tripla não se rompe facilmente.”79 Justifica, desta
forma, que com o amor familiar dos três (pai, filho e esposo) é possível aguentar tudo, “pois as cordas
do amor tecem os laços mais fortes”. 80

Mas para Benci nenhuma dessas soledades de Maria é tão grande quanto a soledade de Deus, pois
ela se sente abandonada, sendo o calvário de Cristo análogo à dor de Maria. Porque o que “O Payhe
para o filho, o filho he para a mãy, o espofohe para a espofa: &Deos para quem he? Para todos81”. E sen-
do assim, a ausência, o desamparo de Deus é o que mais atormenta Maria, pois é uma coisa cotidiana
filhos perderem pais, mães perderem filhos e esposos, mas ser desamparada por Deus é um martírio.
E este tira todas as forças de Maria, sendo análogo de acordo com Benci, a tirania judaica (no que tan-
ge à morte de Cristo). Esse desamparo tirou toda a alegria, doçura e riqueza de Maria, sendo o único
bem restante a sua grandeza. 82

Ainda para Benci, o coração de Maria tinha sido forjado na dor, sendo composta por todas as
dores da profecia de Simão, que eram espadas perpassando a alma de Maria: “E a ti, uma espada

76 BÍBLIA: Bíblia de Jerusalém. Editora: Paulus. São Paulo, 2002. p. 1464.


77 SESBOÜE, Bernard SJ (Direção). BOURGEOIS, Henri; TIHON, Paul (SJ). História dos Dogmas. Tomo 3-
Os Sinais da Salvação (Séculos XII-XX). Editora: Edições Loyola. São Paulo, 2013. p. 473.
78BENCI, Jorge. Sentimentos da Virgem Maria N. S. em sua Soledade. Op. Cit.1698. p. 7.
79Na Vulgata Latina, página 60. Na Bíblia de Jerusalém página: 1076.
80BENCI, Jorge. Sentimentos da Virgem Maria N. S. em sua Soledade. Op. Cit.1698. p. 7.
81Idem p. 8.
82 Idem, p. 12.

1094
transpassará tua alma! – Para que se revelem os pensamentos íntimos de muitos corações”.83 Por Maria
ser a filha perfeita, a escolhida, a mãe, ela aguentaria a sua soledade, pois se Jesus enfrentou a espada
perpassando seu corpo e alma, Maria aguentaria sua cruz, pois “os tormentos de minha alma naõso-
faõfuperiores a todas as penas, que cafepaecem no mundo, mas fenaõ excedem, nada faõ inferiores as
que fetoleraõlaneffe inferno”.84

É interessante salientar a ideia de mazelas do mundo que aparecem nesse momento do texto sobre
Maria, pois essas poderiam ser associadas às mazelas da sociedade colonial. A analogia bíblica das
dificuldades de Maria e do próprio Cristo serviria como elemento alegórico discursivo do sermão. Se
Cristo e Maria sofreram, o homem colonial também poderia passar por sofrimentos e suportá-los. Em
especial, os escravos, como Benci pontua na Economia Cristã.

Benci cria a analogia entre o inferno e os três dias que sucederam à Ressureição. Essa é feita tendo
como base o Profeta Jonas: “Pois como Jonas esteve no ventre do mostro marinho três dias e três noi-
tes, assim ficará o filho do homem três dias e três noites no seio da terra”85. Desta forma, para Benci,
no Calvário Cristo foi acometido das dores da morte e do inferno. Tendo no inferno tormentas e
múltiplas e incontáveis penas, sendo capaz de uma pena tirar mil vidas. O inaciano questiona como os
condenados vivem? Traz à luz o questionamento a respeito da salvação e da danação, pois aqueles que
não seguem a palavra serão condenados a penas incontáveis e imensuráveis.

A nosso ver, o sermão sobre Maria seria inicialmente uma queixa do desamparo sentido e sofrido
pela mãe de Cristo, indagando porque o criador abandonou a obra que criou86. Para Benci, Maria sen-
tindo-se abandonada teria em suas lágrimas as respostas para o seu próprio sofrimento (quando Davi
pergunta onde está Deus, e deste modo retificando sua dor “as lágrimas são meu pão, noite e dia e todo
dia me perguntam: Onde está o teu Deus?)87. Jesus não estaria mais com Maria pela tirania daqueles
que o mataram e o crucificaram. Não estando Maria sofrendo por um desamparo no sentido de ser
abandonada propositalmente por Deus, mas um abandono gerado após a morte de Cristo.

A presença de Jesus para Benci é o que torna a vida um paraíso e sua ausência deixa um vazio, que
é análogo ao inferno. O pregador pede para que Deus receba as lágrimas e lástimas de Maria como o
sangue de Cristo, por causa dos pecados do mundo88. Maria é mãe, e assim suas lágrimas ajudariam a
absolver os pecados do mundo, o sofrimento pela morte de seu filho era uma cruz que ela aguentaria
e suportaria.

Nenhum exemplo, nenhuma analogia é isenta de valor. O texto de Benci não é diferente. As ações
de Benci são consequências diretas das suas crenças e estas desdobram-se na concepção de mundo,
na qual as leis são religiosas e desta forma seu projeto de intervenção é criado. O sermão como ins-

83Na Vulgata Latina, página 1013. Na Bíblia de Jerusalém página: 1791. BENCI, Jorge. Sentimentos da Virgem
Maria N. S. em sua Soledade. Op. Cit.1698. p. 14.
84BENCI, Jorge. Sentimentos da Virgem Maria N. S. em sua Soledade. Op. Cit. 1698. p. 14.
85 Mateus 12.40. Na Vulgata Latina, página 974. Na Bíblia de Jerusalém página: 1726.
86BENCI, Jorge. Sentimentos da Virgem Maria N. S. em sua Soledade. Op. Cit.1698. p. 21.
87 Salmos 41.4. Na Vulgata Latina, página 485. Na Bíblia de Jerusalém página:906.
88BENCI, Jorge. Sentimentos da Virgem Maria N. S. em sua Soledade. Op. Cit.1698. p. 27.

1095
trumento de oratória realiza-se por meio da pregação pública89. Neste caso na igreja da Sé da Bahia.
É na pregação que o autor dá vida aos instrumentos retóricos que o permitem difundir a palavra de
Deus, isto é, os preceitos da Igreja. Seu discurso é fundamentado pelas narrativas bíblicas do Antigo e
do Novo Testamento, assim como pelos homens considerados doutores e santos pela tradição Cristã.

A figura de Maria, desde o século IX, tornou-se um elemento de manutenção da ordem social,
transformando-se em um símbolo que auxiliou na organização do sistema representativo da cris-
tandade. Sendo assim, “Maria se reveste de múltiplas figuras e ocupa múltiplos espaços”90. Sua figura
ocupa uma posição que é fundamental para os preceitos doutrinários da Igreja. No decorrer da Idade
Média, Maria virou um símbolo normatizador, que foi usado para legitimara autoridade da Igreja.Foi
contexto de crise da cristandade que Maria tornou-se uma personagem diferenciada, sendo, de acordo
com Juliana Souza, uma mediadora entre um mundo humano e um mundo divino.

Para os teólogos modernos, a figura de Maria não pode ser comparada a outros seres humanos,
como salienta Azzi, “pois ela fora colocada desde o nascimento num patamar superior, em razão de ser
predestinada para a função de Mãe de Deus”91, e deste modo carregava um duplo papel no mistério:
gerou Jesus virgem, e após a sua morte foi glorificada, tendo sua alma e seu corpo ascendido ao Céu.
Essa glorificação de Maria aparece em muitos sermões e panegíricos coloniais, como por exemplo em
José de Anchieta, Antônio Vieira e Benci.

No imaginário português, Maria era uma mãe defensora, sempre presente, padroeira da monar-
quia e de seus súditos. Sua proteção estendia-se do reino ao ultramar. Em Portugal a devoção a Nossa
Senhora acompanhou o contexto das reformas. A mãe dos cruzados e da Reconquista tornou-se a
mãe das missões. Portugal buscou construir seu império por meio da dimensão religiosa, e com isso o
culto à Maria (em suas diferentes formas) foi um instrumento de conversão à fé Católica. Sua imagem
ajudava a construir e a manter a ordem social, pois a conquista deveria ser de corpos e almas.

89 MARQUES, João Francisco. Verbete: Oratória Sacra ou Parenética. In: AZEVEDO, Carlos Moreira (Di-
reção). Dicionário de História Religiosa de Portugal. Editora: Círculo de Leitores. Centro de Estudos de
História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa. Portugal, 2001. In: http://repositorio.ucp.pt/hand-
le/10400.14/13494. Acesso em: 22/03/20157, as: 16h00min. Apêndice. p. 470-510.

MARQUES, João Francisco. Verbete: Pregação. In: AZEVEDO, Carlos Moreira (Direção). Dicionário de His-
tória Religiosa de Portugal. Editora: Círculo de Leitores. Centro de Estudos de História Religiosa da Univer-
sidade Católica Portuguesa. Portugal, 2001. In: http://repositorio.ucp.pt/handle/10400.14/13494. Acesso em:
22/03/20157, as: 16h55min. .Volume 2. p. 393-417.

MARQUES, João Francisco. O púlpito barroco português e os seus conteúdos doutrinários e sociológicos – a
pregação seiscentista do Domingo das Verdades. Via Spiritus11 (2004). 111-148.
90 SOUZA, Juliana Beatriz Almeida de. Virgem Imperial: Nossa Senhora e o Império marítimo português.
Luso-BrazilianReview 45:1. Universidade de Wisconsin, 2008. p. 36.
91 AZZI, Riolando. A teologia Católica na formação da sociedade colonial brasileira. Editora: Vozes. Petrópolis,
2005. p. 216.

1096
Na transposição da metrópole para a colônia, Maria92 tornou-se protetora das navegações, como
diria a ladainha lauretana, estrela do mar. E assim a sua devoção difundia-se. Maria passou a ser in-
vocada sob diferentes nomes.93 Para Charles Boxer, as viagens ultramarinas não fizeram com que o
culto e a popularidade de Maria diminuíssem, muito pelo contrário94. A devoção mariana veio para
a colônia junto com os primeiros conquistadores. Em 1646, Nossa Senhora da Conceição tornou-se
padroeira de Portugal e seus domínios, ganhando o status de rainha.

Maria torna-se assim personagem chave da constituição da Cristandade. Tornava-se um exemplo


de moralidade devocional, representava o amor de mãe, mas também castigava quando necessário,
deixando nítido o caráter pedagógico da devoção. No Brasil colonial a devoção à Maria estava espa-
lhada por todo o território, fazendo com que esses espaços virassem locais privilegiados, abençoados.

Anderson Oliveira nos aponta que a religião tem o poder de modelar ações e comportamentos.
Dessa forma, o mundo do fiel é orquestrado pelo modelo religioso. A devoção implica na transposi-
ção do modelo do santo para o fiel, funcionando como um elemento de construção de identidades.
Essas identidades seguiam em parte uma narrativa que criava lugares de representações sociais. Benci,
ao contrapor Maria e Eva, cria modelos de perfeição, de santidade e de danação, isto é, um modelo
a não ser seguido. Essa criação de modelos, para nós, integra o discurso de conversão de Benci. Em
um mundo colonial, o sermão orienta mentes e corpos, normatizando não só a fé, mas a conduta das
pessoas. A devoção, dessa forma, seria um elemento que ajudaria na construção do edifício social,
reforçando a identidade entre o fiel e do santo.

O LAVA-PÉS COMO ATO DE AMOR MAIOR DE JESUS

O Sermão do Mandato95, identificado também por Serafim Leite e Carlos Sommervogel como
Sermão ao povo na Quinta-feira, pregado no Colégio da Bahia e publicado em Lisboa também na
tipografia de Bernando da Costa Carvalho, no ano de 1701. O sermão também contém uma folha de
rosto com emblema da Companhia.

Salientamos que a escrita/pregação de sermões do Mandato96 era uma prática comum entre os re-
ligiosos, assim como a escrita de sermões sobre Maria, desse modo, não sendo uma exclusividade de
Jorge Benci. O rito da Quaresma é divido em momentos: a Quarta-feira de cinzas, que seria a entrada
92Maria Beatriz de Mello e Souza aponta que são conhecidas aproximadamente 164 denominações diferentes
de Nossa Senhora no período colonial. Enquanto Portugal apresenta 406 invocações de Nossa Senhora. In:
SOUZA, Maria Beatriz de Mello e. O Culto Mariano no Brasil Colonial. Caracterização tipológica das invoca-
ções (1500-1822). Actas do Congresso Internacional de História da Missionação Portuguesa. Braga: Universi-
dade Católica Portuguesa, 1993.
93Ver: Augusto de Lima Júnior, História de Nossa Senhora em Minas Gerais, texto já citado, e Nilza Botelho

Megale, no também já citado: Invocações da Virgem Maria no Brasil.


94 BOXER, Charles. A mulher na expansão ultramarina ibérica. 1415-1815. Alguns Factos, ideias e personali-
dades. Coleção: Horizonte, 35. Editora: Horizonte. Lisboa, 1977.
95BENCI, Jorge. Sermão do Mandato, que pregou o padre Jorge Benci da Companhia de Jesu no Collegio da
Bahia. Lisboa. Publicado com as licenças necessárias na Officina de Bernardo da Costa. 1701, 23pp. Encontrado
na Biblioteca Nacional de Portugal.
96 O jesuíta Antônio Vieira tem um sermão do Mandato, intitulado: O Mandamento do Amor ou o Sermão do
Mandato.

1097
no tempo da Quaresma, o Domingo de Ramos, que é o início da Semana Santa, a Quarta-Feira das
Trevas, que assim como a Sexta-feira da Paixão denota o sofrimento de Cristo, e a Quinta-Feira Santa,
ou Quinta-Feira maior, que instituia Eucaristia e o mandato, que seria o ato maior de amor, “chama-se
Mandato esta cerimônia do Lava-pés, por ocasião da prescrição que fez o Mestre aos Discípulos de
entre si fazerem como lhes fizer a Elle.”97

Benci começa a sua narrativa discutindo a afirmação que alguns diriam que o maior ato de amor
de Cristo foi dar a vida pelos homens, já para outros teria sido a instituição dos sacramentos. Em sua
opinião a maior prova de amor de Jesus foi o ato de lavar os pés dos apóstolos, como narrado no evan-
gelho de João. Ao citar Santo Agostinho: “Amor meus, pondusmeum”98, Benci entende que a caracte-
rística fundamental do amor: “Naõhe propriedade de amor subir, como talvez se imagina, senaõ des-
cer: naõ buscar o lugar mais alto, senaõ o mais baxo: naõ ir para os montes, senaõ vir para os valles”99.

Baseando-se no livro de João, Benci relata que, no fim da ceia da Páscoa, Jesus levantou-se e co-
locou água em uma bacia e começou a lavar os pés dos discípulos. Embora a aparente inversão dos
papéis, isso não incomodou a Jesus, pois ele lavou os pés como prova de amor, um amor maior, sobe-
rano:
E cá o fogo era verdadeiro fogo, porque ardendo entre as aguas, tam afetivamente
abrazava o coraçaõ de Chrifto, & em tanta maneira o consumia, & sumia aos pés dos
homens, que o deixou sem reverencia & sem veneração alguma, quando como fervo
os lavou: Coepitlavare pedes.100

Mostrando assim a importância do ato, Benci chega ao que denomina ser a primeira cláusula do
tema do seu sermão: o ato do lava pés como momento de excesso do amor de Cristo pelos homens:
Amamos o Eterno Padre como Creador; amamos o Espirito Santo como Santificador;
& amamos Christo com Resemptor: porém nem o amor do Espírito Santo na Santifi-
caçaõ, nem o amor de Christo na Redempçaõparece podem competir com este amor,
que abateo hoje, &poz o mesmo Christo aos pés dos homens.101

Para Benci, quando o Eterno Padre colocou-se aos pés dos homens, na verdade eles estavam aos
pés de Deus, porque aqueles lhe estavam sujeitos. E quando Cristo, seu único filho, colocou-se aos pés
dos apóstolos, colocou os mesmos homens automaticamente no coração de Deus, porque o seu amor
é o mesmo amor do pai durante a Criação. No momento do lava pés, o amor de Cristo seria maior do
que o amor do Espírito Santo na santificação.

O amor de Cristo a seus filhos era tão grande, que este lavou os pés de Judas, sendo este o ponto
mais alto do seu amor, pois já antevia a sua traição. Ao enfatizar o ato de lavar os pés de Judas, Benci

97GOFFINE. Manual do Christão. APUD. CAMPOS, Adalgisa Arantes. Quaresma e Tríduo Sacro nas Minas
Setecentistas: Cultura Material e Liturgia. Revista Barroco. Belo Horizonte, 17 (1993/6). p. 209-219. (No arqui-
vo que temos com o texto, não há número de páginas, então as numeramos de 1 a 17. Estando essa citação na
página 12.
98“Tradução: Amor meu, peso meu.” AGOSTINHO, Santo. Confissões. Coleção: Espiritualidade. Editora: Pau-
lus. São Paulo, 2016. Seria o livro XIII, capítulos 9 e 10, p. 406.
99BENCI, Jorge. Sermão do Mandato. Op. Cit. 1701. p. 05.
100 Idem, p. 8.
101 Idem, p. 9.

1098
trazia para o texto a questão das tentações do demônio. Segundo o autor, Pedro teria sido contra Cris-
to lavar os pés de Judas, pois este já o aborrecia. Afirmou que antes do lava pés, o demônio já havia
tentado o coração de Judas para que ele entregasse Jesus, estando “o demônio no coraçaõ de Judas, &
o Filho de Deos a seus pés”102.

Cristo seria para Benci a verdadeira arca do Novo Testamento, pois mesmo com o demônio pre-
sente no coração de Judas, a arca mostrava Deus como o amor maior, como a verdade. E deste modo, o
amor triunfava sobre os demônios. Mesmo com a traição, o amor de Cristo é o mais puro e verdadeiro,
pois ao lavar os pés de Judas, amou o seu maior inimigo, mostrando que Deus é o paraíso, por causa do
amor. E foi por esse amor que Cristo morreu pelos homens. Cristo amou tanto os homens que se pôs
aos pés do demônio, pois ao ir resgatar um amigo no inferno fez com que seu ato de amor triunfasse.
Pois ao ter descido aos pés de Judas, Cristo não é só superior, é amor.

Para Benci, as honras e os princípios que acontecem no mundo não são os mesmos de Cristo, pois
“a honra, que o mundo tanto préza, & tanto estima, he o que Deos mais abomina, &despréza”103. Se
algum cristão, filho da cristandade, quisesse as honras do mundo, que ficasse com elas, pois os ver-
dadeiros filhos da cristandade deveriam aceitar serem postos aos pés de todos, para que pudessem
corresponder ao grande amor do filho de Deus por nós, o ato de lavar os pés dos apóstolos.

No século XVI os catecismos e as festas litúrgicas continuam a ritmar a mentalidade da popula-


ção.104 E o Sermão do Mandato de Benci debruça-se sobre um período muito caro para o catolicismo,
a quaresma. O universo católico ritmava-se pelo ano litúrgico, que é o Ciclo da Pascoal, Ciclo do Natal,
Tempo Comum e Ciclo Santoral. E os dias desse ano são marcados por celebrações especiais: o sacrifí-
cio da eucaristia e a liturgia das horas. O ano litúrgico apresenta o chamado Temporal, que são os ritos
móveis sem datas marcadas, sendo a Páscoa o ápice deste período. Segundo Sergio Chahon105, a Pás-
coa está relacionada, mais do que qualquer outra celebração, ao mistério da vida e da morte de Cristo.
No calendário católico sua comemoração ocorre ao fim da Quaresma, que segundo a tradição é um
tempo de conversão, de oração, penitência e jejum, ou seja, um período de preparação para a Páscoa.

Segundo Lana Lage, no Portugal moderno, a Quaresma “avivava ainda mais a religiosidade que mar-
cava o ano inteiro o cotidiano do povo. Avivava é o termo pois não se pense que o luto pelo senhor
morto empalidecia o brilho das cerimônias”.106 O tempo da Quaresma mais do que a reflexão sobre
a morte do Senhor, também era um rito de exibição da fé. A Cristandade usava as festas litúrgicas
também para legitimar a sua glória.

Depois da missa da Quinta-Feira Santa, dia que Cristo lavou os pés dos apóstolos, era comum a

102 Idem, p. 16.


103 Idem, p.23.
104 SESBOÜE, Bernard SJ (Direção). BOURGEOIS, Henri; TIHON, Paul (SJ). História dos Dogmas. Tomo
3- Os Sinais da Salvação (Séculos XII-XX).Op. Cit.2013. p. 386.
105CHAON, Sérgio. Os convidados para a ceia do Senhor: As missas e a vivência leiga do Catolicismo na Cida-
de do Rio de Janeiro e arredores (1750-1820). Editora: EDUSP. São Paulo, 2008. Cap. 2 (p. 152-256).
106 LIMA, Lana Lage da Gama. A confissão pelo avesso: O crime de solicitação no Brasil Colonial. Tese de
doutorado apresentada ao departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, sob a orientação de Fernando A. Novais. São Paulo, 1990. p. 48.

1099
realização da desobriga107, isto é, uma comunhão geral, que significava a possibilidade de estar mais
perto de Cristo. Desse modo, fica clara a insistência da Igreja na frequência dos fiéis à confissão anual
na desobriga, onde não só se expressava um momento de fé, mas também de controle dos párocos
sobre os fiéis que deveriam comparecer para confessarem e receberem as instruções e absolvições. O
controle dos sacerdotes expressava-se também pelo fato de ser a desobriga o momento em que se co-
bravam as conhecenças ou dízimo pessoal devido ao clero.

No decorrer do século XVIII, na América portuguesa, a Igreja passou a insistir ainda mais na
obrigação da confissão e da comunhão, pelo menos uma vez ao ano na Quaresma. Mesmo não
discorrendo diretamente sobre o ato de comungar no seu sermão, Benci o reforça diante da im-
portância conferida ao período da Quaresma e da Semana Santa, pois foi na Quinta-Feira Santa
que se deu o ato de lavar os pés dos apóstolos. A confissão, por outro lado, foi um dos principais
sacramentos afirmados pela Reforma Tridentina. Era visto como um momento ímpar em que o sa-
cerdote em contato direto com o fiel poderia intervir diretamente na moldagem de sua consciência
e costumes. Benci, na Economia Cristã, afirmava em relação à confissão e à comunhão:
Não só no tempo da Quaresma, mas em todos Domingos e Dias Santos, como man-
da o Concílio Tridentino; e vereis que com essa continuação e repetição se há-de
abrandar e quebrar a dureza dessas pedras, e se transformarão em bons e verdadeiros
Cristãos .108

Deixando claro que os ensinamentos cristãos, nesse caso em particular, aos escravos negros,
não deveriam ser superficiais. Para Benci, os escravos deveriam ser ensinados sobre a doutrina,
e não apenas apresentados a respostas prontas e orações previamente pré-moldadas. Segundo o
padre italiano muitos destes escravos rezam, mas não sabem por quem ou para quem rezam, e nem
tão pouco entendem o que rezam.

Benci afirmava que era preciso que, “entendam o que dizem, percebam os mistérios que hão-de-
-crer, e penetrem bem os preceitos que hão-de guardar”.109 Os religiosos deveriam dar o pão da dou-
trina Cristã, ensinando-a com paciência, e quantas vezes fossem necessárias. Não adiantava ensinar a
doutrina uma vez ao ano apenas, às pressas. O ensino deveria ser um processo contínuo.

Assim como no Sermão devocional a Maria, Benci utilizava sua pregação para construir seu proje-
to de intervenção social. No seu texto o jesuíta italiano apresentava o que seria o amor maior de Deus,
mas também apontava para o que seriam os limites dos homens.

Benci dizia existir um descaminho na sociedade colonial, indagando-se sobre onde andava a fé e
a cristandade dos homens. Afirmava que os princípios mundanos nem sempre eram os princípios da
107No Brasil colônia, chamava-se comumente de desobriga o cumprimento pelos fieis católicos do preceito
de confissão anual durante a Quaresma. A palavra também denotava a ação do sacerdote que, nessa mesma
época comparecia as comunidades para desabrigar os fiéis de seus pecados, ministrando-lhes o sacramento da
Penitência. Com o tempo, o seu significado ampliou-se para designar o giro dos párocos pelas comunidades em
qualquer época do ano. In: FERREIRA, Elisangela Oliveira. “Mulheres de Fonte e Rio”: Solicitação no confes-
sionário, misoginia e racismo na Bahia setecentista. Afro-Ásia, 48 (2013), 127-171. P. 130-131.
108BENCI, Jorge. Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos. Livro Brasileiro de 1700. Editora:
Grijalbo. São Paulo, 1977. p.96.
109 Idem p.94.

1100
Igreja110. O discurso do pregador, ao oferecer o exemplo do amor de Cristo, claramente propunha-se
também a apontar um norte e corrigir rumos. Afinal, não deixava de ser este um dos propósitos da
missão. Identificamos aqui um dos momentos chave da obra benciana em que é possível perceber
seus questionamentos aos costumes daquela sociedade. A crítica ainda resumida, no último parágrafo
do Sermão do Mandato,tomaria proporções maiores e constituir-se-ia numa das bases da Economia
Cristã, seu tratado de 1705, no qual ele justifica sua escrita argumentando que os senhores de escravos
do Brasil estariam afastados dos bons preceitos morais da fé Católica e não cuidavam de modo cor-
reto de seus servos. Deste modo, Benci deixava claro em sua pregação que era sua obrigação, como
missionário, lembrar aos fiéis o ato maior de amor de Cristo, e que este deveria ser seguido. Indepen-
dentemente das honras mundanas, o mais importante é o caminho da salvação, seguindo deste modo
o exemplo do Salvador.

A PERFEIÇÃO DE UM SANTO: SÃO FELIPE NERI

O Sermão de São Felipe Neri111, que foi pregado na Igreja da Madre de Deus da Congregação do
Oratório do Recife, em 1701. Foi publicado em Lisboa, no ano de 1702, na Oficina de AntonioPedrozo
Galram com todas as licenças necessárias.

O fato de Benci ter pregado este sermão em uma igreja dos Oratorianos é significativo porque
todos os demais foram pregados na Bahia, na Sé, e no Colégio da Bahia, enquanto o sermão sobre São
Felipe de Neri foi pregado no Recife, em uma Congregação Oratoriana. Segundo Evaldo Cabral de
Mello112, a presença dos oratorianos em Pernambuco justificou-se pela prática missionária da conver-
são do gentio, almejando não permitir que a heresia dos Holandeses se difundisse. Diante desta justi-
ficativa tiveram início, em 1662, as atividades da Casa de Santo Amaro, que vai atuar junto às aldeias
no interior da Capitania. As primeiras dissidências entre os oratorianos pernambucanos iniciam-se
em 1672 quando da aprovação dos estatutos do Oratório português, considerado mais rígido que os
estatutos italianos de Vallicela. Em Pernambuco essa divergência estabeleceria uma clivagem entre os
congregados da Casa de Santo Amaro, contrários à adoção das regras portuguesas, e aqueles favorá-
veis à reforma que se abrigaram na Casa da Madre de Deus, no Recife, que teve confirmação da Coroa
em 1681. No entanto, para Evaldo Cabral, além da questão estatutária, uma das grandes motivações
dos néris sediados no Recife seria o pastoreio de uma área economicamente em expansão em decor-
rência do crescimento do comércio.

Os Oratorianos em Pernambuco envolver-se-iam, ao longo da segunda metade do século XVII,


em uma grande querela interna que aprofundaria a divisão entre aqueles situados na Igreja da Madre
Deus, no Recife, e aqueles da Casa de Santo Amaro. Os primeiros apoiados pela mascataria recifense
e os segundos pela nobreza da terra de Olinda. Por outro lado, o conflito traduzia também uma luta
de facções entre os professos no Reino, mais identificados com a Madre de Deus e a perspectiva de
110BENCI, Jorge. Sermão do Mandato. Op. Cit. 1701. p. 23.
111BENCI, Jorge. Sermão de São Felippe Neri. Pregado pelo padre da Companhia de Jesus, Jorge Benci, na
Igreja da Madre do Oratório do Recife de Pernambuco, no ano de 1702. Publicado em Lisboa, na oficina de
AntonioPedrozo Galram, com as licenças necessárias no ano de 1702. 28pp. Encontrado na Biblioteca Nacional
de Portugal.
112MELLO, Evaldo Cabral de. A briga dos Néris. Estudos Avançados. 8(20), 1994.

1101
adoção das regras do Oratório português, e os professos em Pernambuco, agrupados em Santo Amaro.
Essa divergência durou anos, envolvendo governadores, bispos, reis, e a Cúria Romana, sendo fina-
lizada apenas em 1701, quando uma bula de Clemente XI, satisfazendo as demandas de D. Pedro II
ratifica a vitória da Madre de Deus colocando um ponto final na controvérsia e os pertencentes à Casa
de Santo Amaro aceitam definitivamente sua derrota. Alguns dos dissidentes derrotados preferiram
ingressar em outras ordens a aceitar a união com o Oratório português e a preponderância da Madre
de Deus.113

É interessante salientar o quão pouco a historiografia sabe sobre a trajetória de Benci, pois em
nenhum dado dos biógrafos da Companhia aparece a ida de Benci a Recife, sabemos que ele havia ido
ao Rio de Janeiro para realizar sua profissão solene, a São Paulo para tratar da questão dos indígenas,
mas não que ele havia estado em Recife e nem pregado lá. Essa circulação, no entanto, parece ter sido
comum entre os religiosos, o que talvez nos permita compreender melhor não só os conflitos entre
as ordens, mas também suas aproximações e alianças circunstanciais que expressavam contradições
internas às ordens e das ordens entre si. Sob este aspecto, é curioso observar que, embora no interior
da província jesuíta na Bahia Benci estivesse em oposição à facção portuguesa, no Recife sua prega-
ção deu-se justamente na Madre de Deus que, naquele momento, reforçava a posição portuguesa no
Oratório. O jesuíta italiano pregou seu sermão no Recife justamente no ano em que a querela entre as
facções oratorianas pernambucanas foi decidia, pelo papa, a favor da Madre de Deus. A exaltação de
São Felipe naquele momento era também de certa forma a exaltação dos vitoriosos, dos seus verda-
deiros filhos.

Como missionário obediente ao papa, Benci não poderia deixar de reconhecer a força da bula de
Clemente XI, mesmo que esta viesse a atender à solicitação do rei em benefício da facção portuguesa
que na Companhia naquele momento era sua grande opositora. Esta ambivalência permite que per-
cebamos que as questões “nacionais” ou os “estrangeirismos” eram dotadas de grande complexidade,
que em nada refletiam o discurso de nação do século XIX e, por sua vez, davam nota de questões emi-
nentemente locais, conjunturais e que diferiam de uma ordem religiosa para outra.

Segundo Benci, o propósito de seu Panegírico é “engrandecer o heroyco das acções soberanas do
vosso sempre grande, & sempre amado Pay S. Felippe Neri”114, pois para o italiano Felipe Neri segue
o caminho da perfeição, tornando-se um modelo e regra. Neri seria a mais bela e engraçada flor de
Florença que se entregou plenamente ao serviço de Deus, figurando, deste modo, entre “os mayores
exemplares da perfeiçaõ, o contemplei voando ás mais altas esferas da santidade, & copiando em si as
virtudes todas dos solitários”115. Deste modo, Benci estabelece a analogia com figuras de religiosos
que para ele são exemplos, como a abstinência de Bernardo, o silêncio de Bruno, a pobreza de Fran-
cisco, o zelo de Elias e a contemplação de Romualdo. Neri então não estaria mais solitário no silêncio
dos claustros, mas sim acompanhado “nas mayores praças das cidades, à vista de toda Roma, & e aos

113MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos mazombos: Nobres contra mascates Pernambuco 1666-1715. Edi-
tora: Companhia das Letras. São Paulo, 1995, p. 96-112.
114BENCI, Jorge. Sermão de São Felippe Neri. Op. Cit. 1702. p. 5.
115 Idem, p.7.

1102
olhos de todo o mundo.”116

Para Benci as virtudes de São Felipe Neri não cabiam em um único discurso de louvor, e por isso
ele optou por pregar apenas sobre as três características que via como essenciais da religião: castidade,
pobreza e obediência. Eram fundamentais, pois todos os religiosos as deveriam seguir, já que eram
recomendadas por Cristo. Benci inicia a pregação destacando a castidade e pureza virginal de Felipe.
Para o italiano, a pureza virginal é aquela inocente, a da Pomba de Noé colocada na arca antes da
corrupção da natureza. Seria a verdadeira pureza existente em São Bento e em São Bernardo de Cla-
raval,117 que para o jesuíta é um nobre candidato a castidade.

De acordo com Benci o demônio tentou a Cristo no deserto com diferentes gêneros de tenta-
ções. A primeira seria a gula, transformando as pedras em pão. A segunda seria a presunção, para
que Cristo se defendesse no templo, e a terceira seria a ambição, oferecendo o demônio um mundo
inteiro de riquezas em troca de sua adoração. Para o padre italiano essas tentações tinham o objetivo
de descobrir se Cristo era um homem ou um Deus. O demônio para Benci só tenta quando acha que
tem a chance de vencer. Porém em Cristo, o demônio só encontrou uma pureza angelical, divina. E
desta forma, percebeu que não adiantaria o tentar. Com efeito, o paralelo entre Felipe Neri e Cristo foi
traçado tendo a pureza como similitude.

A segunda virtude destacada era a pobreza, que também fora ensinada por Cristo, pois o mundo
deveria ser o lugar de exercício da pobreza evangélica, para a qual não fazia falta bens e riquezas, já
que o bem maior era a fé. Felipe Neri seria um exemplo dessa virtude, pois em meio a riquezas decidiu
e soube viver pobre, renunciando a bens materiais, tanto que em “seus rasgos retratou, & eternizou os
quilates da sua admirável pobreza”118.

Felipe seria um exemplo, pelo seu desejo pela pobreza, não desejando ter e nem aceitar riquezas. A
excepcionalidade de Felipe para Benci era “obrar maravilhas para remediar a pobreza alheia, he amor,
& caridade ao próximo”119. E é esse desejo de ser pobre, que para Benci constitui o milagre de Neri, o
milagre da pobreza.

A terceira virtude pontuada por Benci foi a obediência, que para ele seria “uma virtude própria do
estado religioso”120. Afirmou que a obediência não foi um voto feito por Neri e nem pelos seus filhos,
mas que esta lhes era inerente, por serem justos e perfeitos. Deste modo, não precisando de lei, nem
obrigação e nem de preceitos. Porque as leis e os preceitos não são obrigados para os justos e perfeitos,
sendo norma para os injustos e pecadores e, segundo Paulo, essa diversidade ocorre porque os justos
e pecadores precisam de leis e os santos não, pelas suas virtudes.

Felipe Neri estaria livre das leis da obediência, e mesmo assim sempre foi obediente. Sendo esta
obediência caracterizada como sobre-humana, beirando ao divino. A referência à questão da obe-

116 Idem, p. 7 e 8.
117 Idem, p. 12.
118 Idem, p. 16.
119 Idem, p. 19.
120 Idem, p. 21.

1103
diência poderia ser uma forma de Benci justificar o fato de os Oratorianos fazerem votos simples e
não solenes. Os votos simples eram feitos privadamente e não eram perpétuos, devendo ser renovados
periodicamente.

Ao afirmar que sabe que está se alongando muito em sua pregação, Benci afirma que Felipe Neri
exerceu as virtudes da religião: pureza, pobreza e obediência, sendo que para alcançar essas virtudes
“é necessário um espírito muito heróico”121. Afirmou que Elias foi o primeiro a retratar essas virtudes
da religião, mas que este viveu nos bosques e Felipe conseguiu alcançar essas virtudes na Corte Ro-
mana.122

É no Panegírico de Felipe Neri que conseguimos perceber o diálogo de Benci com outras ordens ao
pontuar os franciscanos (com São Francisco de Assis), os Camaldulenses (com São Romualdo), a
Ordem da Cartuxa (com São Bruno) e a Ordem do Carmo (com seu pai espiritual São Bruno e, seu
fundador mítico, Elias), e com os dominicanos (por influência de São Tomás de Aquino). Além é
claro, da proximidade com os Oratorianos, por realizar um panegírico sobre São Felipe Neri, e por
ter pregado o sermão em uma Congregação Oratoriana. Aqui é interessante salientar a ligação direta
entre jesuítas e oratorianos, ambos tinham como objetivo trabalhar na missionação, isto é, trabalhar
para a ampliação da fé, além de sua organização interna, divida em casas e colégios, ser muito
próxima.

São Felipe Neri nasceu em Florença no ano de 1515. Segundo a tradição hagiográfica era conside-
rado uma pessoa alegre e otimista, tendo uma “tendência de estabelecer o primado da ação em rela-
ção as projeções racionais ou ao planejamento estratégico”123, logo para Neri a Reforma da Igreja era
necessária, acreditando que todas as instituições humanas poderiam ser restauradas pela santidade, e
não o contrário124.

Benci busca e usa a narrativa hagiográfica125 sobre Felipe de Neri para construir seu discurso, e
consequentemente seu projeto de intervenção social. O panegírico de Benci extrapolava a perspectiva
de um projeto individual, estando inserido em um contexto maior, ou seja, a construção da cristan-
dade colonial.

A perspectiva tridentina em relação ao culto dos santos na Época Moderna foi, ao mesmo tempo
em que defendia esta prática do ataque dos reformadores, aprofundar a reflexão em torno do caráter
exemplar de suas vidas, apresentando-os como modelos de conduta. O objetivo da Igreja era aprofun-
121 Idem, p. 24.
122 Idem.
123CERINOTTI, Angela. Santos e beatos de ontem e hoje. Editora: Globo. São Paulo, 2004. p. 242.
124 Idem.
125 Para Anderson Oliveira, “o ato de reunir estes textos e de enfatizar algumas lembranças em detrimento de
outras faz do texto hagiográfico uma narrativa perpassada por escolhas e tradições, realizadas em diferentes
temporalidades históricas” (OLIVEIRA, Anderson José Machado de.Devoção Negra. Op. Cit. 2008. p. 90.), sen-
do assim as narrativas são oriundas a partir de diferentes textos, com diferentes temporalidades, mas são histó-
ricas, o que faz com que o texto hagiográfico não seja fechado em um si próprio, pois ele pode ser reconstruído
por escolhas diferentes. A partir do momento que entendemos a hagiografia como um texto narrativo que tem
um sentido próprio, conseguimos enxergar que esse sentido carrega uma intencionalidade e uma finalidade,
estando ligada diretamente a quem o produz e para quem o texto é produzido.

1104
dar a relação santo-fiel e permitir o maior controle da hierarquia eclesiástica sobre esta relação. Até
então os santos eram vistos, segundo Anderson Oliveira, de modo mundano, e era preciso mudar tal
concepção. Os santos passam a ser modelos de evangelização das terras de além-mar:
Esse período viu crescer as preocupações da Igreja com a conquista de novas almas
e a reforma dos costumes dos antigos católicos. Era preciso não só fazer frente ao
avanço protestante como também se colocar como alternativa para o pastoreio dos
povos residentes nos novos continentes que entravam no circuito cultural europeu126.

Tornando-se os santos modelos de devoção, muitos religiosos viram a difusão do culto como ins-
trumento para a efetivação de seu projeto de normatização social que visava buscar novas filhos para
a cristandade. As hagiografias produzidas sobre a vida de Felipe Neri insistem sobre o seu caráter de
pregador, principalmente entre os jovens pobres da periferia romana, educando-os, sendo seu “chefe”,
mas não impondo regras e práticas. Para custear seu trabalho com os jovens, pedia esmolas na rua. A
pobreza evangélica e o viver de esmolas era outro elemento da tradição hagiográfica sobre São Felipe
regatado por Jorge Benci, influenciando diretamente o discurso proferido pelo sermão. O jesuíta va-
leu-se desta tradição hagiográfica como uma das bases para exaltar o exemplo do pai dos oratorianos,
reforçando sua ligação com Cristo, com isso pretendia “salientar o papel de orientação que a vida dos
santos deveria imprimir na vida dos fiéis.”127

Ao pregar este sermão na Madre de Deus, Benci, com já assinalamos, também fazia o elogio dos
oratorianos que seguiam o exemplo de seu fundador e “dedicam-se a catequese, e às instruções fa-
miliares, ou vão para os campos, e por meio de missões tão humildes quanto caritativas, libertam os
pobres camponeses da ignorância e do pecado”128. Seguindo os preceitos da missão tridentina, desta-
cavam-se, assim como os jesuítas no “apostolado de massas transforma-se assim, no inicio do século
XVII, num projeto divulgado entre os homens e as mulheres mais avançados na devoção”.129 Com
efeito, o exemplo de São Felipe e de seus seguidores reforçavam a ideia da missão e da necessidade de
cristianização dos povos.

O fio condutor dos três sermões era o desejo moralizador e de cristianização da sociedade num
sentido amplo. Cristo era o filho de Deus, seus atos foram provas do mais puro e verdadeiro amor
à humanidade, por isso ele é o exemplo maior. Maria e São Felipe Neri eram as figuras próximas a
Cristo, pois o amor de Maria, e o quanto ela sofreu ao ficar desamparada, mostra o quanto ela é im-
portante enquanto exemplo de perfeição e de fé. As virtudes de Felipe Neri o permitem pensá-lo como
um modelo a ser seguido, colocando-o em paralelo com Cristo. Por esses três personagens a narrativa
benciana é construída, e por eles e pelos seus exemplos a Cristandade estaria resguardada.

Esses exemplos aparecem não só no sermão sobre Felipe Neri, mas também no sermão sobre Ma-
ria, ambos são modelos de virtude, e “a hagiografia acabava por engendrar a formação de modelos,
os quais, dentro de uma mentalidade tridentina, representavam as expressões do heroísmo cristão”130.

126OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção Negra. Op. Cit. 2008.p. 99.
127 OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção Negra. Op. Cit. 2008. p. 117.
128 CHÂTELLIER, Louis. A religião dos pobres: As fontes do cristianismo moderno.Op. Cit.1994. p. 48.
129 Idem, p. 48.
130 OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção Negra. Op. Cit. 2008. p. 123.

1105
Esses modelos buscavam ir contra aos inimigos da fé, contra os inimigos da cristandade. Sendo assim,
para Benci, tanto Maria quanto Felipe Neri eram modelos que os fiéis deveriam seguir pelas suas vir-
tudes, assim integrando-os como elementos de devoção em seu projeto missionário.

CONCLUSÃO: A ECONOMIA CRISTÃ COMO COROAMENTO DA REFLEXÃO DE BENCI

Para pensarmos por completo o projeto normatizador de Benci, precisamos pontuar a obra “Eco-
nomia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos”, embora esta já tenha sido alvo de inúmeras
análises. A obra está dividida em quatro discursos, que nos mostram as “obrigações dos senhores para
com os servos”. No discurso I – “Em que se trata da primeira obrigação dos senhores para com os
servos”. Para o italianoo pão no é o alimento necessário à vida humana, além da vestimenta e cuidado
com as doenças, que são as obrigações de todos os senhores cristãos para com os seus escravos. Os se-
nhores deveriam obedecer e seguir essas obrigações, pois do contrário estariam pecando contra Deus.

Já no discurso II – “Em que se trata da segunda obrigação dos senhores para com os servos”, ve-
mos o esforço do jesuíta italiano em constituir um molde no trato com o cativo, o que a nosso ver
enquadra-se na constituição do “projeto missionário-cristão”, não apenas pelo reforço da ideia de
construção de uma família-cristã, mas também pela valorização da relação desta com a própria orga-
nização da cristandade.Depois de propor que o senhor deve dar o sustento ao cativo, como forma de
conservação da vida humana, no que tange alimentação, vestuário e cuidado com as enfermidades,
que são preocupações com o corpo do servo, Benci afirma que a alma do cativo também precisava ser
alimentada, com a doutrina, com o alimento espiritual:

Podemos perceber o ideal de normatização de Benci na tentativa de afirmação de uma cristandade


colonial, que alcança os considerados como gentios, transformando-os em escravos cristãos. Reali-
za, portanto, uma tentativa da normatização do trato ao cativo, na qual a todo o tempo Jorge Benci
respaldava-se nas referências bíblicas e da Antiguidade para a construção de seu discurso, como por
exemplo as analogias entre a relação Povo do Brasil- Povo de Israel, presentes na Economia Cristã e
no Panegírico de São Felipe Neri.

Todo pecado cometido contra o outro é um pecado cometido contra Cristo e a contra Deus. E
um senhor cristão não deveria corromper o seu escravo conduzindo-o ao erro. O texto, nesse sentido,
apresentava-se como um instrumento na eterna batalha a favor da Cristandade, ganhando contornos
específicos ao debruçar-se sobre o problema da relação senhor-escravo, questão fundamental em uma
sociedade escravista. Deixando clara a importância da doutrina em sua obra, no caso da Economia
Cristã, o senhor é aquele que deve ser o exemplo. Nos seus sermões, Maria, Felipe Neri e Jesus Cristo
eram os modelos. Em todos os seus escritos Benci cria modelos devocionais que devem ser seguidos.

No discurso III – “Em que se trata da terceira obrigação dos senhores para com os servos”, Benci
aborda o castigo como tema. Os senhores deveriam aplicar o castigo a seus escravos quando necessá-
rio, porém com moderação e não desenfreadamente e injustamente. O jesuíta nos diz que os senhores
deveriam perdoar algumas faltas dos escravos, e não os castigar sempre com castigos físicos e com
palavras (rogando pragas), pois quando o senhor castiga o escravo sem este merecer, é o senhor que

1106
peca contra Cristo.

O castigo a esmo é um erro do senhor, que ao fazê-lo peca contra Cristo, não cumprindo a sua fun-
ção de ser um bom senhor cristão. Ressaltamos que neste discurso Benci coloca que é sua obrigação
defender os escravos dos maus tratos dos senhores ao falar que: “Mas tomando eu tanto a meu cargo
defender a causa dos escravos, contra os senhores, que os maltratam.”131Assim, ao comprometer-se
com a causa dos escravos, Benci lançava um dos pilares do projeto escravista cristão que consistia na
educação de escravos, mas também dos senhores.

E, por fim, no discurso IV – “Da quarta obrigação dos senhores para com os servos”, Benci nos diz
que a “quarta obrigação” dos senhores para com os servos é “dar trabalho” a estes. O trabalho funcio-
naria como um instrumento pedagógico.

Sendo assim, os senhores devem ocupar os escravos para que estes não fiquem ociosos, e deste
modo não fiquem insolentes. Benci também diz que o trabalho deve ser contínuo e moderado, pois
trabalho sem descanso torna-se intolerável. Logo o trabalho é pedagógico e Benci como “missionário
estrangeiro” no Brasil, como ele mesmo se autodenomina, percebia que o trabalho dado aos escravos
no Brasil colonial não era aplicado de forma correta, então, o discurso IV é um modelo de como os
senhores cristãos devem aplicar o trabalho aos servos. Recorremos em voltar a Economia Cristã, pois
cremos que os sermões por nós aqui analisados formam uma base para o ápice da teoria normatiza-
dora de Jorge Benci, que a nosso ver é a Economia Cristã. Várias questões pontuadas de forma sucinta
nos sermões aparecem novamente na Economia Cristã, desenvolvidas em torno da relação senhor-
-escravo.

Para nós, mais do que apontar uma cronologia, essa linearidade mostra a maturação de determi-
nadas percepções. Se inicialmente nos sermões o jesuíta pregavam sobre suas devoções, a Cristo, a
Maria e a São Felipe Neri. A Economia Cristã aprimora essas concepções narrativas. Sendo assim a
Economia não é uma obra apenas devocional, mas combativa. Benci escolhe um nicho, a escravidão
negra colonial, e aponta os elementos que já havia usado, apresentando-os como bases normativas,
que se não cumpridas fragilizariam a Cristandade. Ao pregar o cuidado com os escravos, fica nítido o
embasamento das resoluções acerca da querela interna acerca dos indígenas no Colégio de São Paulo,
o medo de um novo Quilombo dos Palmares e a necessidade de trazer os escravos negros para a Cris-
tandade, tornando-os filhos, membros efetivos da Igreja.

Por fim, afirmamos que a Economia Cristã é o auge da teoria benciana, e que a influência do texto
na formulação de parte das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia denota que após o fim
do conflito interno e a ascensão do seu grupo aos altos cargos da Companhia, houve um ambiente
favorável para que parte de suas ideias ganhassem maior expressão.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
FONTES:
BENCI, Jorge. Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos. Livro Brasileiro de 1700.
131 Idem. p. 126.

1107
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NERI”, e na fonte Benci chama o texto de sermão. Mas Serafim Leite e Carlos Sommervogel, o cha-
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1109
1110
SIMPÓSIO TEMÁTICO 15
Sujeitos, práticas e instituições nas monarquias ibéricas e seus domínios ultramarines

Coordenadores:

Maria Fernanda Bicalho

George Félix Cabral de Souza

Os Homens de Negócio fluminenses e a mobilidade social em uma sociedade de Antigo Re-


gime (século XVIII)
Alana Thais Basso1

Os grandes comerciantes do Império português no século XVIII, responsáveis pela reprodu-


ção e manutenção do tráfico transatlântico de seres humanos escravizados, que realizavam comércio
de grosso trato de forma geralmente ultramarina, eram chamados – autodenominados ou por seus
pares – de homens de negócios. Nesse trabalho, pretendo apresentar um grupo de 29 agentes mer-
cantis de grosso trato que moravam no Rio de Janeiro no setecentos, analisando as possibilidades de
mobilidade social para comerciantes no Antigo Regime a partir de três variáveis: a nomenclatura que
receberam nas fontes consultadas, a sua participação como familiares do Santo Ofício e a conquista
do hábito da Ordem de Cristo. O objetivo é ilustrar algumas das estratégias de ascensão social dos ne-
gociantes que viviam no Brasil no período, refletindo sobre a importância do processo de nobilitação
para a mobilidade social em sociedades de Antigo Regime.

O que apresento abaixo deriva de uma pequena parte da minha pesquisa em andamento para
a realização da dissertação de mestrado, em que pretendo verificar a inserção dos homens de negócio
no mundo mercantil, a partir de seu envolvimento no comércio ultramarino e das estratégias de que
faziam uso a fim de conseguirem a ascensão social. Os indivíduos estudados são 29 agentes mercan-
tis que possuem em comum: sua ocupação como comerciantes de grosso trato; o fato de que todos
nasceram em Portugal; e, também, terem em algum momento de suas vidas vivido no Rio de Janeiro.
Mesmo sendo uma amostra pequena em um universo de aproximadamente 200 pessoas2, o estudo
aprofundado deste grupo circunscrito é interessante pelo fato do que os une como um grupo desde a
origem da pesquisa: terem estado todos, em algum momento de suas vidas, contrabandeando escra-
vos para a Colônia do Sacramento3.

1 Mestranda em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGHIST/UFRGS), bolsista CAPES.
2 Conforme Nireu Cavalcanti (2005), havia pelo menos 199 comerciantes que atuavam na praça do Rio de
Janeiro entre os anos de 1753 a 1766 (CAVALCANTI, Nireu Oliveira. “O comércio de escravos novos no Rio
setecentista”. IN: FLORENTINO, Manolo (org.). Tráfico, cativeiro e liberdade (Rio de Janeiro, séculos XVII-
-XIX). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 15-77).
3 Para maiores informações sobre a história da Colônia do Sacramento e sua importância para o Império portu-
guês, cf. PRADO, Fabrício Pereira. A Colônia do Sacramento: o extremo sul da América portuguesa no século
XVIII. Porto Alegre: F. P. Prado, 2002.

1111
Os 29 agentes mercantis foram selecionados a partir de sua aparição nos registros de óbitos
de escravos da Colônia do Sacramento entre os anos de 1735 a 17524. Nessa fonte, são descritos como
consignatários ou proprietários dos escravos que faleciam no extremo sul da América e também como
moradores do Rio de Janeiro. A função dos registros de nascimento, casamentos e óbitos não era
arrolar a demografia de determinado local e nem denunciar o contrabando – embora sejam esses,
hoje, alguns dos usos que se fazem deles. As fontes paroquiais são produções de sociedades católicas
que registravam a vida dos seus paroquianos de forma individualizada, a fim de que a Igreja pudesse
conhecer e controlar o seu “rebanho”. Isso significa que “os moradores das sociedades católicas [...]
relatavam os momentos decisivos de suas vidas ao padre local”, que registrava na forma de assentos
paroquiais – livros de batismo, habilitações para casamento, livro de óbitos e outros – em que, “com
maior ou menor rigor, encontramos informações relativas aos fregueses, como nome, filiação, natura-
lidade, qualidade social (cor, título, etc.), moradia, estado matrimonial, entre outras”5.

Os detalhes arrolados nos registros de óbitos consultados possibilitam a reconstrução de redes


mercantis envolvendo a Colônia do Sacramento e outras localidades, bem como a descoberta de quem
eram os agentes envolvidos no comércio de seres humanos. Os registros de óbitos de escravos da Colô-
nia do Sacramento, portanto, “indicam a existência de estreitos contatos com traficantes da Bahia e do
Rio de Janeiro, as principais regiões de onde vinham os escravos que eram revendidos aos domínios
espanhóis”; um exemplo disso é que entre 1735 a 1752 foram registrados, em um total de mais de mil
óbitos, o falecimento de pelo menos 250 cativos na localidade que “foram objeto de negociação entre
interessados do Rio e da Bahia e moradores e traficantes da praça platina”6.

Através dos nomes dos agentes envolvidos no tráfico de escravos, encontrados em um pri-
meiro momento nos registros de óbitos de escravos da Colônia do Sacramento, procuramos esses
indivíduos em outros contextos e em outras fontes históricas. Esse processo é o método onomástico,
definido por Ginzburg (1989) como o cruzamento nominativo em diversas fontes – metodologia que
acompanha todo este trabalho. A onomástica contribui na percepção das diversas relações que podem
ligar determinado indivíduo a sua sociedade, pois auxilia o pesquisador a buscar seu objeto de pesqui-
sa por diferentes fontes. Cada tipo de fonte cobre alguns aspectos da realidade; comparar mais de um
tipo permite encontrar o objeto de pesquisa em diferentes contextos, tendo, dessa forma, uma noção
maior da complexidade dos sujeitos estudados. É um método que exige pesquisa exaustiva, guiando a
historiadora e o historiador pelas várias fontes a partir do nome do indivíduo a ser pesquisado – que
é elemento de identificação de um mesmo sujeito, independente dos contextos em que se encontra.
Através do método onomástico, então, é possível constituir uma biografia ou biografias coletivas, mes-
4 Os registros encontram-se no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro (ACMRJ), sob as notações
724, 727 e 732. (ACMRJ. Colônia do Sacramento. Livro 2º de óbitos de livres e escravos (1735-1747), fl. 91-
137v; livro 6º de óbitos de negros, índios, mulatos e cativos (1747-1774), fl. 1-54v).
5 FRAGOSO, João. “Apontamentos para uma metodologia em História Social a partir de assentos paroquiais
(Rio de Janeiro, séculos XVII e XVIII)”. IN: FRAGOSO; GUEDES; SAMPAIO (org.). Arquivos paroquiais
e história social na América Lusa, séculos XVII e XVIII: métodos e técnicas de pesquisa na reinvenção de um
corpus documental. Rio de Janeiro: MauadX, 2014, p. 23.
6 KÜHN, Fábio. “Um olhar sobre o tráfico negreiro para a Colônia do Sacramento a partir dos registros pa-
roquiais (1732-1777)”. Anais: VII Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. UFPR, Curitiba,
2015, p. 7-8.

1112
mo que fragmentárias7.

A partir dos nomes próprios, portanto, passamos a buscar informações sobre os comercian-
tes em outras fontes, a começar por diversos documentos do Arquivo Histórico Ultramarino para a
capitania do Rio de Janeiro (AHU-RJ) e do inventário feito por Castro e Almeida (AHU-CA)8. Esses
documentos, de caráter administrativo, apresentam a troca de correspondências entre os súditos da
Coroa portuguesa em suas colônias com o Conselho Ultramarino, órgão responsável por acolher essa
demanda e analisar os pedidos em nome do rei. Essas fontes permitiram a obtenção de informações
biográficas sobre esses agentes, que escreviam à Coroa solicitando confirmação de cargos adminis-
trativos, patentes militares, contratos arrematados e também de sociedades mercantis. O uso desses
documentos tornou possível conhecer um pouco melhor os 29 negociantes, mapeando sua movimen-
tação pela estrutura administrativa do Império.

Utilizando seus nomes como fios condutores, analisamos também os processos de habilitação
de familiares do Santo Ofício disponíveis no Arquivo da Torre do Tombo de Lisboa9. É uma fonte que
traz informações biográficas dos comerciantes que buscavam concorrer ao processo de habilitação:
ela traz relatos desses agentes, além de relatos de diversas testemunhas. Conseguimos, com essa fonte,
informações como naturalidade, moradia, idade, situação conjugal e cabedal dos agentes mercantis,
que precisavam provar a veracidade desses dados para que pudessem se dizer pessoas de sangue “lim-
po” – isto é, pessoas cristãs-velhas (famílias cristãs a várias gerações), sem traços em sua ascendência
de judeus, mouros, negros e demais “infiéis”. Os processos nos permitem, então, conhecer melhor o
comerciante e sua família, além de possibilitar uma visão ampliada sobre as redes que formava – visto
as pessoas que testemunhavam a seu favor.

Os agentes selecionados viviam em uma sociedade hierarquizada e desigual, comandada pelo


sistema escravocrata; se sobressaíam economicamente por participarem e inclusive controlarem esse
sistema, utilizando uma série de estratégias para alcançarem o topo da pirâmide social. Nesse sen-
tido, entende-se estratégia social em uma perspectiva micro-histórica, em que uma “pluralidade de
destinos particulares” é analisada, buscando “reconstituir um espaço dos possíveis – em função dos
recursos próprios de cada indivíduo ou de cada grupo no interior de uma configuração dada”10. As
estratégias adotadas por eles, portanto, estavam dentro de uma série de possibilidades que se encon-
travam ao seu alcance em determinado momento.

Nesse sentido, reduzir a escala, partindo de um universo de centenas de comerciantes que vi-
viam no Rio de Janeiro no século XVIII para um grupo de 29 indivíduos, é manifestar “uma intenção
deliberada de visar a um objeto e indica[r] o campo de referência no qual o objeto é pensado”11. Essa
7 GINZBURG, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1989, pp.169-178.
8 O Projeto Resgate disponibiliza documentos relacionados à história do Brasil existentes no Arquivo Histó-
rico Ultramarino (AHU) de Lisboa e utilizados para a realização desta pesquisa. Para maiores informações,
acessar: http://www.cmd.unb.br/resgate_index.php.
9 Os processos foram digitalizados e disponibilizados para download pelo Arquivo Nacional da Torre do Tom-
bo (ANTT) através do site http://digitarq.arquivos.pt/.
10 REVEL, Jacques. “Microanálise e construção do social”. IN: Id. (org.). Jogos de escalas: a experiência da
microanálise. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getulio Vargas, 1998, p. 26.
11 LEPETIT, Bernard. “Sobre a escala na história”. IN: REVEL, Jacques (org.). op. cit., p. 94.

1113
metodologia micro-histórica proporciona maior entendimento do mundo social colonial, em que a
distribuição de recursos era amplamente desigual; cada indivíduo precisava agir “em função de uma
situação que lhe é própria e que depende dos recursos de que ele dispõe – recursos materiais, decerto,
mas também cognitivos e culturais”12. Observar essas pessoas com uma lente de aumento, portanto,
traz aspectos de suas vidas que poderiam passar despercebidos em uma abordagem mais generali-
zante. Conhecer o que pudermos sobre suas vidas é importante para que se nomeiem e se mapeiem
os traficantes de escravos, agentes históricos que não só movimentavam como também construíam e
reproduziam o sistema escravista – cujas mazelas são ainda hoje sentidas na sociedade brasileira.

Os agentes estudados eram chamados de homens de negócio, o grupo de elite dentre os co-
merciantes. Conforme definição encontrada no Compromisso da Mesa do Bem Comum do Rio de
Janeiro, o termo homem de negócios significa “comerciar do mar em fora”13, ou seja, ter negócios para
além da praça em que se estabeleciam, envolvendo grandes distâncias, atravessando o atlântico ou o
continente americano, e grandes quantidades de produtos, investimentos e lucros. Os homens de ne-
gócio lidavam com a exportação e importação de produtos, com o comércio interno, com a reposição
da mão-de-obra escrava, além de atuarem como fornecedores de crédito para comerciantes menores
e como representantes de casas de comércio estrangeiras. Um homem de negócios geralmente atuava
em mais de um ramo mercantil, sempre buscando diversificar suas atividades, visto que o mercado co-
lonial era marcado pela “rapidez das mudanças conjunturais, o que implica a instabilidade dos ramos
de negócio” e possuía um caráter restrito, “com poucas opções econômicas”14. A rapidez das mudanças
leva à diversificação das atividades dos comerciantes, como medida de precaução a possíveis proble-
mas (safras perdidas, navios naufragados/atacados, etc.), enquanto que o caráter restrito impede que
o negociante com cabedal invista tudo em um único segmento comercial. Dessa forma, o tráfico de
escravos era um setor, dentre diversos, em que os homens de negócio poderiam atuar.

Embora saiba-se que todos os 29 agentes fossem comerciantes, eles não eram todos comer-
ciantes no mesmo nível, e essa diferenciação é marcada nas fontes consultadas pela denominação que
recebiam. Alguns são chamados de homens de negócio, enquanto que outros são apenas negociantes,
comerciantes ou mercadores. Essas diferenciações eram importantes na sociedade mercantil do sécu-
lo XVIII, pois demarcavam lugares sociais distintos que os comerciantes possuíam dentro da comu-
nidade mercantil, o que está atrelado ao fato de que as definições que as pessoas recebiam no mundo
do Antigo Regime eram muito importantes para classificar as pessoas e demarcar o seu local social.

As diferenças entre as pessoas nas sociedades de Antigo Regime eram demarcadas pelas no-
ções de “estado” e de “privilégios”. O estado diz respeito ao lugar ocupado na ordem das coisas, ao
ofício do indivíduo, sua tarefa para manter o “corpo” social funcionando. O estado da pessoa era tra-
duzido por privilégio, o direito particular que “era o meio pelo qual o príncipe afastava a regra geral,

12 ROSENTAL, Paul-André. “Construir o “macro” pelo “micro”: Fredrik Barth e a microstoria”. IN: REVEL,
Jacques (org.). op. cit., p. 155-156.
13 Extraído do Compromisso da Mesa do Bem Comum do Comércio da Praça do Rio de Janeiro (AHU_ACL_
CU_017-01, Cx. 79, D. 18331).
14 FRAGOSO, João. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Ja-
neiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. p. 325-326.

1114
adaptando a norma às diferentes pessoas”15. A Coroa, com o ato de distribuir privilégios, realizava
uma espécie de “justiça distributiva”, que é, de acordo com Levi (2009), aquela que garante a cada
um o que lhe corresponde de acordo com seu status social, funcionando portanto numa ótica de re-
ciprocidade. As sociedades que se baseiam na reciprocidade agem buscando a adequação entre dom
e contradom – recompensando um dom de forma justa no momento justo. O poder central garantia
a justiça e institucionalizava as classificações sociais, mas, além disso, era preciso equidade, ou seja,
estabelecer uma medida conforme o caso.

A equidade surge em sociedades hierárquicas e desiguais, com sistemas de privilégios e clas-


sificações sociais, como um mecanismo que visa reconhecer o que corresponde a cada um “sobre a
base de sua situação social e de acordo com um princípio de justiça distributivo”16. A equidade busca
organizar as sociedades que, mesmo estratificadas, possuem espaço para alguma mobilidade social
– mobilidade difícil, não disponível para todos. Ela explica os “esforços classificatórios” tão comuns
a sociedades de Antigo Regime, “esforços desprendidos justamente para definir de maneira estável
condições sociais às quais se reconhecem privilégios específicos”17. Por isso, é importante conhecer a
classificação a qual os indivíduos estudados se encaixados, percebendo a partir daí o lugar que ocupa-
vam e qual o espaço de mobilidade disponível a eles. No grupo de 29 agentes mercantis estudados, a
questão da nomenclatura se estrutura da seguinte forma:

Quadro 1: Denominação dos agentes nas fontes consultadas

Nome Denominação nas fontes


1 – Agostinho de Faria Monteiro Comerciante e traficante*; Homem de Negócios**
2 – Anacleto Elias da Fonseca Negociante*; Homem de Negócios**
3 – Antonio Alvares de Oliveira Negociante*; Homem de Negócios
4 – Antonio Carneiro e Companhia***
5 – Antonio de Araújo Braga Homem de Negócios**
6 – Antonio de Oliveira Durão Negociante*; Homem de Negócios
7 – Antônio José Diniz Negociante*; Homem de Negócios**
8 – Antônio Lopes da Costa Comerciante e traficante*; Homem de Negócios
Mercador**; Comerciante e traficante*; Homem
9 – Antônio Ramalho
de Negócios
10 – Bernardo Pereira de Faria Homem de Negócios
11 – Cosme Velho Pereira Homem de Negócios**
12 – Domingos Correia Bandeira Homem de Negócios**
13 – Domingos Ferreira da Veiga Homem de Negócios**
14 – Domingos Martins Brito Homem de Negócios
15 – Domingos Vieira Pinto Comerciante e traficante*; Homem de Negócios**
16 – Francisco Xavier da Fonseca Mercador**

15 HESPANHA, António Manuel. Imbecillitas – As bem aventuranças da inferioridade nas sociedades de An-
tigo Regime. São Paulo: Annablume, 2010, p. 35.
16 LEVI, Giovanni. “Reciprocidade mediterrânea”. In: OLIVEIRA, Mônica; ALMEIDA, Carla. Exercícios de
micro-história. Rio de Janeiro: FGV, 2009, p. 62.
17 Ibid., p. 63.

1115
17 – Jácome Ribeiro da Costa Homem de Negócios
18 – Jerônimo Dias Coelho Homem de Negócios**
19 – João Gonçalves da Costa Homem de Negócios
20 – João Rodrigues Homem de Negócios**
21 – João Rodrigues de Freitas Homem de Negócios**
22 – Joaquim dos Santos Comerciante e traficante*
23 – José da Costa de Andrada Comerciante e traficante*; Homem de Negócios**
24 – José Rodrigues Anes “e Companhia”***
25 – Luís de Andrada “e Companhia”***
26 – Luís Duarte Francisco Homem de Negócios**
27 – Manuel João Loyo Negociante
28 – Matias Soares Homem de Negócios**
29 – Simão de Freitas Guimarãens Homem de Negócios**
Legenda:

Nomes em negrito: mencionado como “Homem de Negócio” ou “Negociante” em fontes diversas para além das citadas
separadamente abaixo, como em documentos do Arquivo Histórico Ultramarino e bibliografia especializada.

*Conforme informações arroladas por CAVALCANTI, Nireu Oliveira. “O comércio de escravos novos no Rio setecentis-
ta”. IN: FLORENTINO, Manolo (org.). Tráfico, cativeiro e liberdade (Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005. p. 15-77.

**Indivíduos denominados “homem de negócio” em suas habilitações para familiatura no Santo Ofício, disponíveis online
pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo de Lisboa, em digitarq.arquivos.pt

***Denominação que acompanha os nomes dos agentes mercantis assinalados nos registros de óbitos de escravos da Colô-
nia do Sacramento. (ACMRJ. Colônia do Sacramento. Livro 2º de óbitos de livres e escravos (1735-1747), fl. 91-137v; livro
6º de óbitos de negros, índios, mulatos e cativos (1747-1774), fl. 1-54v).

De acordo com os dados arrolados acima, dos 29 agentes mercantis selecionados para a análi-
se, 23 indivíduos (79,32%) são chamados de Homem de Negócios em algum momento de suas vidas
– muitos deles tendo recebido também outras denominações, como “mercador” ou “comerciante e
traficante”. Homem de negócios era uma denominação informal, que partia da autonomeação ou da
nomeação por terceiros, até a criação da Junta do Comércio em 1756, quando “todos os assim deno-
minados tiveram a obrigação de inscrever-se para seguirem com suas atividades”18. A formalização da
titulação ocorre na metade do século XVIII, período em que os negociantes estão plenamente inseri-
dos na comunidade fluminense, com atividades que lhes permitem grande acumulação mercantil. A
autodenominação existia no início do setecentos, mas geralmente vinha atrelada a outras identidades,
como patentes militares e títulos honoríficos, sem ter a importância que vai adquirir com o passar dos
anos – advinda de sua atuação mais marcante, de sua união e identificação com o termo para que se
atinjam objetivos desejados pelo grupo, como a própria questão da ascensão social. Dessa forma, o
uso cada vez mais frequente da terminologia “homem de negócios” demonstra “a construção de uma
identidade própria ou, o que é o mesmo, de uma noção de comunidade mercantil [que] está em pleno
18 SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. “Batismos, casamentos e formação de redes: os homens de negócio
cariocas nas fontes paroquiais setecentistas”. ”. IN: FRAGOSO, João; GUEDES, Roberto; SAMPAIO, Anto-
nio (org.). Arquivos paroquiais e história social na América Lusa, séculos XVII e XVIII: métodos e técnicas de
pesquisa na reinvenção de um corpus documental. Rio de Janeiro: MauadX, 2014, p. 191.

1116
andamento”19.

Três indivíduos – Antônio Carneiro, José Rodrigues Anes e Luís de Andrada – foram identificados
como agentes mercantis já na análise dos registros de óbitos de escravos, por terem sido registrados por seus
nomes seguido de “e Companhia”, nomenclatura que remete à atuação como comerciantes e, mais do que isso,
como comerciantes em sociedade, em negócios de grosso trato. Há, ainda, os indivíduos que estão assinalados
como “negociantes” ou como “comerciante e traficante” em listagem arrolada por Cavalcanti (2005) para os
anos de 1753 a 1766, onde o autor procura mostrar um panorama da comunidade mercantil fluminense20. Por
fim, há dois indivíduos – Antônio Ramalho e Francisco Xavier da Fonseca – são denominados nas
fontes como “mercador” nas fontes consultadas, sendo que o primeiro é também chamado de “comer-
ciante e traficante” e de “homem de negócios”, enquanto que o segundo é apenas “mercador”.

A maior parte dos agentes mercantis do grupo analisado é formada por homens de negócios,
praticantes do comércio ultramarino, de longas distâncias. Na sociedade setecentista, contudo, o nú-
mero de mercadores – que eram “ligados essencialmente ao comércio interno, com fraca participação
no seu ramo além-mar”21 – era maior do que o de homens de negócio – embora sejam estes, e não
aqueles, os com a maior capacidade de acumulação, convertendo-se portanto na elite econômica do
Rio de Janeiro. A diferença entre mercadores e comerciantes dos homens de negócio diz respeito ao
volume acumulado e, também, à forma com que exerciam a atividade: os primeiros, de forma even-
tual, com distâncias e riscos menores; os últimos, com grandes investimentos iniciais, cobrindo dis-
tâncias maiores. Por não terem atuação constante, os mercadores dependiam dos homens de negócio
para receberem mercadorias, crédito e para formarem sociedades.

Jorge Pedreira (1992) ressalta que a denominação “homem de negócios” era relacionada aos
agentes que tinham na compra e venda o seu ofício, além de trabalharem com oferta de crédito e em-
préstimos e de lidarem com comissões em terra e mar; mesmo que possa englobar um grupo muito
grande, a denominação geralmente era referida “ao mais restrito grupo superior, ao mesmo tempo
comercial e financeiro, que mantém os lucrativos contratos com o Estado”22. A distinção entre a elite
mercantil e os demais comerciantes era fundamental no que diz respeito às classificações sociais do
Antigo Regime, pois a primeira é relativa a uma atividade que proporcionava riquezas ao Império e,
portanto, passível de “premiações” por parte da Coroa, enquanto que a segunda constituía um exercí-
cio mecânico – incompatível com a condição da nobreza.

Uma possibilidade de mobilidade social que se abria aos homens de negócio, no século XVIII
em todo o império português, era a participação na Inquisição, especificamente como familiares do
Santo Ofício, segunda variável analisada neste artigo. A procura por se tornar um Familiar do Santo
19 SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. “Famílias e negócios: a formação da comunidade mercantil carioca na
primeira metade do setecentos”. IN: ALMEIDA, Carla; FRAGOSO, João; SAMPAIO, Antonio (org.). Con-
quistadores e Negociantes: histórias da elite no Antigo Regime nos trópicos. América Lusa, séculos XVI a
XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 241.
20 CAVALCANTI, 2005, p. 67-72.
21 SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do império: hierarquias sociais e conjunturas econô-
micas no Rio de Janeiro (c. 1650 – c. 1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. 2003, p. 235.
22 PEDREIRA, Jorge Miguel. “Os negociantes de Lisboa na segunda metade do século XVIII: padrões de
recrutamento e percursos sociais”. Análise Social, vol. XXVII, 1992, p. 411.

1117
Ofício significava – mais do que um fervor religioso ou uma identificação com a repressão do Tribu-
nal – a busca de um status social elevado, a busca por um título que traria distinção. Os súditos que
conquistavam títulos e privilégios desejavam obter “o reconhecimento real de seu valor, de seus servi-
ços e sacrifícios, e tais pedidos eram feitos e concedidos em um contexto altamente pessoal da relação
vassalo-soberano”23. Conforme dados arrolados por Silva (2005), entre 1721 a 1770, mais da metade
dos familiares no Brasil eram homens de negócio – no período em que a classe mercantil reconheci-
damente buscava prestígio social24. Para esses negociantes, a familiatura era uma das distinções mais
requeridas, pois o defeito mecânico – o trabalho “manual”, não nobre, e as origens humildes como
comerciante de loja ou outros ofícios como sapateiro, artesão e lavrador – não era investigado, e o
atestado de limpeza de sangue era concedido, o que afastaria suspeitas de origem cristã-nova – uma
suspeita frequente, na época, para agentes mercantis.

Quando analisados os números de concessão de familiaturas em contraste com o número de


acusados pelo Tribunal, podemos perceber que a procura pela participação no Santo Ofício seguia
outros objetivos que a defesa da fé cristã. Ainda, se analisados os números de concessões nos períodos
em que valia a distinção entre cristão-velho e cristão novo, em contraste com o período em que essa
distinção deixou de existir, os propósitos dos indivíduos que procuravam fazer parte do Santo Ofício
ficam mais evidentes.

Torres (1994) analisa o número de concessões de familiaturas e mostra que, desde o final do
século XVII, os quadros de agentes da inquisição tendem a crescer, embora o número de processados
pelo Tribunal diminuísse. No século anterior, a média decenal de criação de novos familiares girava
em torno de 330, enquanto que a média decenal de vítimas da inquisição beirava as 1800 (uma relação
de quase seis vítimas para cada familiar). Agora, entre 1720 a 1770, a média decenal de vítimas caiu
para 775, enquanto que a criação de familiar subiu para uma média decenal de 1730 novos membros
(uma média de 2,23 familiares para cada indivíduo processado pela Inquisição)25. Isso significa que

Os Familiares eram cooperantes leigos da Inquisição, cujo número e implantação local


não corresponde à pressuposta cooperação na actividade repressiva inquisitorial, mas
se apresenta correspondendo a um processo de legitimação de promoção social, que é
pretendido por todos os sectores da sociedade, com maior incidência nos sectores que
podemos designar de “burguesia mercantil”. Desde o último quartel do século XVII,
a principal actividade da Inquisição desenvolver-se-á mais em ordem à promoção so-
cial, do que ao seu controle pela repressão26.

Assim, o autor evidencia que a procura pela carta de familiar do Santo Ofício era uma forma
de nobilitação, pois, “para além de constituir o documento mais seguro e prestigiado de comprovação
da limpeza linhagística, alguns dos privilégios a que dava acesso, pela carga simbólica de distinção
nobre que possuíam, aproximava os Familiares das gentes nobres das localidades, sem que fossem
23 RUSSEL-WOOD, A. J. R. “Centro e periferia no mundo lusobrasileiro, 1500-1808”. In: Revista Brasileira
de História, nº 36, 1998, p. 9.
24 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser Nobre na Colônia. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
25 TORRES, José Veiga. “Da repressão religiosa para a promoção social: a Inquisição como instância legitima-
dora da promoção social da burguesia mercantil”. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 40, 1994, p. 129-130.
26 Ibid., p. 113.

1118
nobres, nem por origem, nem por estatuto profissional”27. Por “burguesia mercantil”, ele se refere a
toda classe de agentes envolvidos em atividades comerciais, que durante o século XVIII foram os mais
agraciados com a familiatura. Para os homens de negócio, um dos maiores benefícios da familiatura
se relacionava ao atestado de limpeza de sangue que esta fornecia.

Para serem familiares do Santo Ofício, os homens de negócio investiam seu cabedal, advindo
do comércio, no processo de habilitação, a fim de constituírem para si o capital simbólico que fazer
parte do corpo inquisitorial proporcionava – distinção social publicamente reputada28. De uma só
vez, com a concessão da familiatura, os homens de negócio confirmavam a origem cristã-velha, des-
vencilhando-se das suspeitas de judaísmo, e ainda garantiam conferência de prestígio, visto que o
habilitando, como veremos a seguir, deveria comprovar que vivia “limpamente e com bom trato”29, de
forma nobre. A comprovação da “limpeza de sangue”, realizada quando do pedido de concessão da
familiatura, consistia em uma investigação dos inquisidores das origens do candidato à habilitação,
retrocedendo várias gerações, a fim de verificar se não continha na sua família “raça alguma de judeu,
cristãos-novos, mouro, mourisco, mulato, infiel, ou de outra alguma nação infecta, e de gente nova-
mente convertida à santa fé católica”30.

Visto que a maioria da população cristã-nova era formada por comerciantes e fornecedores
de crédito, entende-se por que os homens de negócio estavam entre a maioria dos que buscavam
essa comprovação de limpeza de sangue, a fim de escaparem do jugo preconceituoso existente contra
pessoas de origem judaica e, também, para se afirmarem como distantes do judaísmo, como “lim-
pos” dessa “mácula”. Na América portuguesa, uma sociedade de Antigo Regime, a limpeza de sangue
“constituía um meio de avaliar os sujeitos em torno de uma cultura de caráter nobiliárquico, levando
em conta aspectos como honra e qualidade social”31. A mera suspeita de cristão-novo poderia levar
o indivíduo e várias de suas gerações à desonra; pertencer ao grupo da “pureza de sangue” e, mais
do que isso, ter um atestado confirmando – a familiatura – era uma afirmação pública da qualidade
do indivíduo. Podemos pensar, inclusive, que para um homem de negócios o atestado de pureza de
sangue auxiliaria – além da obtenção de status social e a possibilidade de obter outros ofícios e outras
distinções (como o hábito da Ordem de Cristo, embora mais raro) – na atividade mercantil do mesmo,
por se tratar de pessoa “digna” aos olhos da sociedade.

Em 1774 foi elaborado um novo Regimento do Santo Ofício, em que constava a proibição de
27 Ibid., p. 122.
28 O prestígio que um familiar possuía perante a sociedade pode ser exemplificado nos usos que se faziam de
tal título. Rodrigues (2007) afirma que a autoridade inquisitorial era utilizada tanto pelos agentes da Inquisição
para atender seus objetivos pessoais, como também era utilizada por pessoas não habilitadas, que fingiam ser
membros do Santo Ofício para, assim, desfrutar de poder a fim de resolver quaisquer questões cotidianas que
lhes incomodassem. Era previsto no regimento de 1640 do Santo Ofício, inclusive, punições para esses trans-
gressores (RODRIGUES, Aldair Carlos. Sociedade e Inquisição em Minas colonial: os familiares do Santo
Ofício (1711-1808). Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2007).
29 PT/TT/TSO-CG/A/008-001/14846. Trecho da habilitação de José da Costa de Andrade.
30 RAMINELLI, Ronald José. Nobrezas do Novo Mundo: Brasil e ultramar hispânico, séculos XVII e XVIII.
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015, p. 52.
31 BONFIM, Daniela Pereira. “Não possui fama nem rumor em contrário”: Limpeza de sangue e Familiares
do Santo Ofício (Bahia – 1681-1750). Dissertação de Mestrado, Universidade Federal Fluminense (UFF),
Niterói, 2014, p. 146.

1119
referências à limpeza de sangue. A comprovação da limpeza de sangue, que atestava que a pessoa era
cristã-velha, acaba perdendo o seu valor com o Regimento, o que se faz notar na redução drástica do
número de pedidos de familiatura após sua publicação32. O Regimento acaba interferindo no propósi-
to da Inquisição, afinal “a Instituição que outrora exercia de forma mais enfática a repressão e vigilân-
cia na fé foi progressivamente se tornando uma instância de distinção social através de seus cargos”33.
Após essa medida do Marquês de Pombal, tanto a ação repressiva do Tribunal quando o interesse em
ser familiar diminui consideravelmente; afinal, com o fim da diferenciação entre cristãos-velhos e no-
vos, a distinção que a “limpeza de sangue” conferia já não existia mais legalmente.

No grupo de 29 agentes mercantis analisados, encontramos habilitações para 16 deles. A ha-


bilitação mais antiga é a de Cosme Velho Pereira, datando de 171734; e a mais recente é de Antônio de
Araújo Braga, de 175535. Quando analisamos as habilitações por décadas, verificamos que, com exce-
ção de Cosme Velho Pereira, nenhum dos familiares obteve a habilitação antes de 1730. Nessa década,
temos quatro habilitados: Antônio Ramalho36 e Simão de Freitas Guimarãens37 em 1730, Domingos
Ferreira da Veiga em 173738 e Agostinho de Faria Monteiro em 173839. A maior parte do grupo (sete
indivíduos) obteve suas habilitações na década de 1740: João Rodrigues de Freitas40 e Matias Soares41
em 1740, Domingos Correia Bandeira em 174242, Jerônimo Dias Coelho em 174443, Anacleto Elias da
Fonseca em 174544, José da Costa de Andrada45 e Luís Duarte Francisco46 em 1747. Na década de 1750,
por fim, temos quatro familiares: Antônio José Diniz em 175147, Domingos Vieira Pinto48 e Francisco
Xavier da Fonseca49 em 1754, e Antônio de Araújo Braga em 175550.

Os processos de habilitação seguem um padrão de construção que raramente se altera: há o


pedido feito pela pessoa que deseja se habilitar, em que ela diz qual sua ocupação, onde nasceu e foi
batizado e onde mora, se era solteiro ou casado, os nomes e origens dos seus pais e avós, e se é um
filho legítimo (fruto de um casamento, dentro das leis católicas). A partir daí, os inquisidores partem
em busca da confirmação dos dados fornecidos, entrevistando testemunhas que possam afirmar a
32 Para detalhes, cf. RODRIGUES (2007).
33 CRUZ, Roberta Cristina da Silva. “Inquisição e status social: processos de habilitação de Familiares do
Santo Ofício que não se enquadravam às normas (Rio de Janeiro, segunda metade do século XVIII)”. Revista
Crítica Histórica, Ano VII, n. 14, 2016, p. 7-8.
34 PT/TT/TSO-CG/A/008-001/5500.
35 PT/TT/TSO-CG/A/008-001/993.
36 PT/TT/TSO-CG/A/008-001/3374.
37 PT/TT/TSO-CG/A/008-001/24347.
38 PT/TT/TSO-CG/A/008-001/6401.
39 PT/TT/TSO-CG/A/008-001/106.
40 PT/TT/TSO-CG/A/008-001/13322.
41 PT/TT/TSO-CG/A/008-001/22194.
42 PT/TT/TSO-CG/A/008-001/6242.
43 PT/TT/TSO-CG/A/008-001/10707.
44 PT/TT/TSO-CG/A/008-001/511.
45 PT/TT/TSO-CG/A/008-001/14846.
46 PT/TT/TSO-CG/A/008-001/17206.
47 PT/TT/TSO-CG/A/008-001/2349.
48 PT/TT/TSO-CG/A/008-001/7013.
49 PT/TT/TSO-CG/A/008-001/9707.
50 PT/TT/TSO-CG/A/008-001/993.

1120
veracidade do que foi dito e, mais do que isso, também responder “se o habilitando é pessoa de bons
procedimentos, vida e costumes, e capaz de ser encarregado de negócios de importância e segredo
como são os do Santo Ofício; se vive limpa e abastadamente e que cabedal tem de seu; se sabe ler e
escrever e que idade representa ter”51. A partir das informações coletadas pelos agentes da inquisição,
se conferia o atestado de pureza de sangue e o habilitando estaria capacitado para realizar as atividades
designadas pelo Tribunal.

As habilitações trazem informações que permitem que possamos conhecer melhor os indiví-
duos estudados, como o local em que nasceram, a idade e a situação conjugal que tinham no momento
da habilitação, o local de moradia e o cabedal que possuíam – informações disponíveis com diferentes
níveis de detalhamento. Levantamos esses dados para os 16 agentes que se tornaram familiares do gru-
po de 29 homens de negócio estudados, e alguns dos dados obtidos trazemos neste trabalho. Enten-
demos que, por se tratar de uma amostragem pequena no universo de habilitandos, as generalizações
feitas devem ser aplicadas apenas ao grupo estudado.

Dos dezesseis homens de negócio do grupo analisado que se habilitaram para Familiar do San-
to Ofício, temos informação de naturalidade para todos, e de moradia para 15 deles. A começar pela
naturalidade, todos os indivíduos analisados nasceram em Portugal. Dividimos os locais encontrados
em áreas geográficas a fim de facilitar a análise: norte de Portugal, região de Lisboa, região central
de Portugal e Ilhas Atlânticas. A região norte engloba Braga, Alto Douro e Porto; temos 11 agentes
naturais dessas localidades: Antônio de Araújo Braga (freguesia de Santa Maria de Lamaçais, Braga),
Antônio José Diniz (termo de Montealegre, Alto Douro), Cosme Velho Pereira (Porto), Domingos
Correia Bandeira (Barcellos, Braga), Domingos Ferreira da Veiga (freguesia de São Vicente, Braga),
Domingos Vieira Pinto (freguesia de Santiago do Forte, Porto), Jerônimo Dias Coelho (freguesia de
São Pedro de Barreiro, Barcellos, Braga), João Rodrigues de Freitas (Vila de Guimarãens, Braga), José
da Costa de Andrada (freguesia de Gundiselhos, Braga), Matias Soares (Vila Real, Braga) e Simão de
Freitas Guinarãens (Vila de Guimarãens, Braga)52.

A região de Lisboa engloba os dois agentes naturais da capital portuguesa, Agostinho de Fa-
ria Monteiro e Anacleto Elias da Fonseca (freguesia de São Nicolau). A região central compreende a
Guarda e o Distrito de Leiria, com dois comerciantes: Antônio Ramalho (Vila de Truquel, Distrito de
Leira) e Francisco Xavier da Fonseca (Vila de Covila, Bispado da Guarda). Por fim, temos 1 negociante
natural dos Açores, Luís Duarte Francisco (freguesia de Santa Maria de Vila Nova de Garsa, Açores)53.

Como se percebe, a maioria dos agentes é proveniente do norte de Portugal, região conhecida
também por Minho; destes, oito agentes são naturais de Braga. A migração de portugueses do norte ao
Brasil era bastante frequente, o que pode ser explicado pela conjuntura demográfica da região: poucas
terras a serem divididas por muitas pessoas. Bonfim (2014) ressalta que o norte de Portugal era mais
populoso e, para os indivíduos oriundos de famílias extensas, em que a divisão dos bens familiares e

51 Trecho da habilitação de Agostinho de Faria Monteiro, 1738. PT/TT/TSO-CG/A/008-001/106, fl. 9v.


52 Cf. ANTT: Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações.
53 Cf. ANTT: Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações.

1121
das terras poderia ser bastante conflituosa, a migração se tornava uma opção bastante desejada54. Nas
16 habilitações analisadas, há a totalidade de agentes naturais de Portugal, que buscavam oportunida-
des mercantis na colônia – nesse caso específico, procuravam se assentar na cidade do Rio de Janeiro,
que no século XVIII desfrutava de uma boa posição no Império português e se mostrava um lar com
bastante oportunidades mercantis para esses comerciantes.

A questão da moradia no momento em que são feitas as habilitações, por sua vez, é bastan-
te interessante do que diz respeito à movimentação desses agentes pelo Império português. Nas 16
habilitações, temos a informação de moradia para 15 – apenas na habilitação de Domingos Correia
Bandeira não consta o local de moradia55. Contudo, existem motivos que nos levam a pensar que Ban-
deira, no ano de sua habilitação (1742), já estivesse morando no Rio de Janeiro, visto sua trajetória de
enraizamento na cidade que remonta a, pelo menos, 1734, quando ele assume o posto de almoxarife
da Fazenda Real do Rio de Janeiro, posto que mantém até 174056; além disso, em 1743 ele aparece em
documentação como Juiz da Irmandade de Nossa Senhora da Glória do Rio de Janeiro57. Por fim, te-
mos conhecimento de que era casado com Anna da Silva Barcellar e que viviam no Rio de Janeiro pelo
menos desde 193958 até a morte do comerciante, no final da década de 1740, quando sua viúva tem
aceito um requerimento para retornar ao reino59.

Temos seis comerciantes em que consta na habilitação que eram “moradores do Rio de Ja-
neiro” : Antônio de Araújo Braga, Antônio Ramalho, Cosme Velho Pereira, Domingos Vieira Pinto,
60

Jerônimo Dias Coelho, José da Costa de Andrada. Essa informação, algumas vezes, aparece logo no
início do documento, passada pelo próprio concorrente ao cargo de familiar; quando isso não acon-
tece, buscamos o dado entre os depoimentos das testemunhas entrevistadas. Por vezes, o vocabulário
utilizado é “assistente no Rio de Janeiro”, expressão utilizada nas habilitações de Agostinho de Faria
Monteiro e de João Rodrigues de Freitas61. Dizer que uma pessoa era “assistente” em determinado lu-
gar significava que ela morava lá; dessa forma, além dos sete indivíduos já citados que eram moradores
do Rio de Janeiro, temos mais esses dois “assistentes no Rio de Janeiro”, totalizando portanto nove
comerciantes que lá moravam e viviam de seus negócios.

Um dos comerciantes, Anacleto Elias da Fonseca, é descrito na sua habilitação como “comis-
sário de fazendas para o Rio de Janeiro”62. Essa expressão significa que Fonseca vivia do comércio de
54 No caso dos familiares da Bahia do período de 1681 a 1750, Bonfim (2014) verificou que a maioria deles
era natural do reino, especialmente do norte de Portugal; eram ligados geralmente a atividades comerciais. Já
entre os familiares residentes nas Minas, Rodrigues (2007) encontrou, em um total de 443 habilitações, 418
casos de agentes naturais de Portugal continental (94,36%) e 14 das ilhas atlânticas (3,16%); contudo, em seu
caso, a maioria deles vinha da região de Lisboa. No nosso caso, confirma-se a naturalidade portuguesa, mas
com a maioria nascida na região do Minho.
55 Cf. ANTT: Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações.
56 AHU_ACL_CU_017-01, Cx. 47, D. 10980.
57 AHU_ACL_CU_017-01, Cx. 50, D. 11847-11849.
58 AHU_ACL_CU_017-01, Cx. 44, D. 10450. No documento, a esposa de Bandeira, descrito como morador
do Rio de Janeiro, solicita licença para viagem ao reino.
59 AHU_ACL_CU_017-01, Cx. 60, D. 14172-14173.
60 Cf. ANTT: Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações.
61 Cf. ANTT: Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações.
62 Cf. ANTT: Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações.

1122
produtos (fazendas) com o Rio de Janeiro, mas não nos dá certeza se ele já morava lá ou se morava em
outra localidade. Para conferir a informação, cruzamos os dados de sua habilitação com informações
de outras fontes e bibliografia, e constatamos que, segundo Pesavento (2013), no ano de sua habilita-
ção Anacleto vivia em Lisboa, vindo morar no Brasil algum tempo depois, visto que em 1744 casa-se
com Joana Maria de Seixas, natural do Rio de Janeiro63. Dessa forma, podemos acrescentar Anacleto
Elias da Fonseca como morador de Lisboa, juntamente com outros comerciantes que, no momento de
sua habilitação, moravam lá: Antônio José Diniz e Francisco Xavier da Fonseca, somando, portanto,
três comerciantes moradores de Lisboa no momento de suas habilitações.

Outra situação não muito direta no que diz respeito à definição de moradia é a de Matias Soa-
res, em cuja habilitação consta “morador de Lisboa, de presente no Rio de Janeiro”64. A construção da
definição sugere que ele morava de fato em Lisboa, estando no Rio de Janeiro “de presente”, ou seja, no
momento da habilitação, mas de forma temporária. Contudo, para fins estatísticos, iremos considerar
que seu local de moradia no momento da habilitação era o Rio de Janeiro, visto “de presente” estar lá,
então o incluiremos no grupo que morava na capitania fluminense, totalizando, agora, dez indivíduos.

O homem de negócios Luís Duarte Francisco, por sua vez, é descrito em sua habilitação como
“morador do Porto, vive de comissões para o Rio de Janeiro”65; contudo, temos informações confli-
tantes a seu respeito, visto que, no mesmo ano em que obtém a familiatura (1747), ele se encontrava
servindo no posto de Tesoureiro da Alfândega do Rio de Janeiro66. Podemos supor que as testemunhas
inquiridas considerassem Luís Duarte Francisco como morador do Porto, mesmo que ele tivesse se
estabelecido no Rio de Janeiro (poderiam pensar que estava apenas de passagem pela Colônia, como
muitos homens de negócio faziam a fim de alavancarem suas carreiras mercantis); existe a hipótese,
também, de ele ter se ausentado do Brasil, morando em Porto enquanto tentava se habilitar. De qual-
quer forma, para fins estatísticos, iremos acrescentar Luís Duarte Francisco no grupo de moradores do
Rio de Janeiro, totalizando agora onze indivíduos, já que esse negociante aparece em documentação
do ano seguinte, 1748, como morador do Rio de Janeiro67, e também por ter exercido o ofício de Te-
soureiro da Alfândega da cidade.

Por fim, na habilitação de Simão de Freitas Guimarãens consta que ele era morador de Coim-
bra em 1730; e na de Domingos Ferreira da Veiga, que é morador de Ouro Preto no ano de sua habili-
tação, 173768. A ligação de Domingos Ferreira da Veiga com as Minas Gerais é atestada, também, por
ter sido arrematante do contrato das Entradas das Minas69. Poderia estar morando nas Minas quando
da sua habilitação, mas sabemos que nos anos seguintes foi morador do Rio de Janeiro, por lá ter arre-
matado diversos contratos importantes, como será demonstrado no próximo capítulo.

63 PESAVENTO, Fábio. Um pouco antes da Corte: a economia do Rio de Janeiro na segunda metade do sete-
centos. Jundiaí: Paco Editorial, 2013, p. 125-130.
64 Cf. ANTT: Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações.
65 Cf. ANTT: Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações.
66 AHU_ACL_CU_017, Cx. 39, D. 4097.
67 AHU_ACL_CU_017-01, Cx. 58, D. 13489.
68 Cf. ANTT: Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações.
69 AHU_ACL_CU_, Cx. 54, D. 5388.

1123
Depois de vistos os pormenores sobre as expressões empregadas para definir a moradia nas
habilitações, podemos agora analisar essa questão de forma mais generalizada: do grupo de 16 fami-
liares, onze moravam no Rio de Janeiro, três em Lisboa, um em Ouro Preto e um em Coimbra. Grosso
modo, 12 agentes viviam no Brasil no momento de suas habilitações (75%) e quatro viviam em Portu-
gal (25%). Todavia, é importante enfatizar que todos eles, em algum momento de suas vidas, viveram
por algum período no Rio de Janeiro, onde comerciaram seres humanos escravizados com a Colônia
do Sacramento.

Por fim, sobre a terceira variável analisada neste artigo, deve-se destacar que as mercês mais
requisitadas pelos súditos da Coroa portuguesa eram os hábitos de ordens militares: Ordem de Cristo,
Ordem de Avis e Ordem de Santiago, responsáveis por constituir códigos de distinção bastante mar-
cados. Os hábitos das ordens militares tinham “amplos efeitos político-sociais e fortemente disciplina-
dores”70, pois serviam como prova de que o indivíduo que os tivesse havia prestado serviços importan-
tes ao Império português – era um exemplo a ser seguido, um verdadeiro estímulo. Existe uma ideia
de que as ordens tinham fortes mandatos religiosos, mas, assim como a familiatura do Santo Ofício,
elas representavam distinção social, comprovando a trajetória ascendente e honrosa do indivíduo e
servindo como um pagamento por serviços feitos em nome da Coroa71.

Da mesma forma que ocorreu com o número de pedidos para habilitação de Familiar do Santo
Ofício, houve uma redução significativa do número de provisões para Cavaleiro da Ordem de Cristo
após 1773, com o desaparecimento oficial dos estatutos de limpeza de sangue, o que indica que “o
hábito valia essencialmente pela sua conotação com a pureza”, e também que “o seu valor em status
sobrepunha-se a todos os outros referentes”72. Os hábitos das ordens militares certificavam, além da
pureza de sangue, a “vocação” para a realização de serviços em nome da Coroa e a “limpeza” de ofí-
cios, ou seja, a nobreza do indivíduo e sua não-vinculação com ofícios mecânicos. Quando, no final
do século XVIII, a limpeza de sangue desaparece dos meios oficiais, o peso social dos hábitos diminui,
sendo sua importância então circunscrita a exprimir nobreza.

O caminho para quem desejava um hábito começava no Conselho Ultramarino e, conforme


o parecer deste, o rei concedia ou não a mercê. Em caso positivo, a Mesa de Consciência e Ordens,
responsável por administrar as ordens militares, começaria o processo de habilitação a partir do in-
quérito de testemunhas nos locais de naturalidade do habilitando e de seus ascendentes. Para as tes-
temunhas, se perguntava se o habilitando, seus pais e seu avós eram todos nobres; se o habilitando é
filho legítimo; se é “infamado” de caso grave (se se diz sobre ele algo negativo, algum desvio da condu-
ta que se espera de um cavaleiro); se há na família do habilitando hereges, ou se tem “raça” de mouro
ou judeu; se cometeu algum crime; se é casado e, caso sim, se a esposa concorda com sua participação
na ordem militar; se tem mais de 50 ou menos de 18 anos; se é professo em outra religião que não
70 OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno: honra, mercê e venalidade em Portugal
(1641-1789). Lisboa: Estar, 2001, p. 215.
71 Para grande parte dos membros de ordens militares, sua participação corroborava “uma trajectória ascen-
dente e honrosa, a aposta na ascensão, ou o consolidar de um estatuto social – consoante o patamar de partida;
por outras palavras, vingou já a noção de que os hábitos destes cavaleiros obtinham-se dominantemente a troco
de serviços e não por fervor religioso” (Ibid., p. 3).
72 Ibid., p. 175.

1124
a católica; e, por fim, se tem alguma doença grave ou deficiência física que cause impedimentos nas
funções de cavaleiro73.

Nota-se que as exigências para a obtenção do hábito de Cavaleiro da Ordem de Cristo são
maiores que no caso da familiatura do Santo Ofício, a quem interessava principalmente a limpeza
de sangue, o saber ler e escrever e o cabedal. Para o Santo Ofício, a mecânica não afetava a decisão;
mas, para se tornar Cavaleiro, ela podia causar impedimento – o que nem sempre acontecia, graças às
dispensas. Olival (2001) afirma que as dispensas atingiram o seu máximo no século XVIII, afetando
48,8% dos novos cavaleiros da Ordem de Cristo até 1777, praticamente metade dos habilitados. As
dispensas do defeito mecânico eram a maioria: foram 2640 dispensas por esse motivo, 39% do total
para o período; em seguida, vinham as dispensas por menoridade (418 – 6,2%) 4 maioridade (376 –
5,5%), ou seja, quando o candidato tinha, respectivamente, menos de 18 ou mais de 50 anos. Havia
também dispensas por “falta de notícia” (200 – 3%), quando os investigadores não obtinham infor-
mações sobre algum dos avós do habilitando. O perdão do defeito mecânico, então, perfazia maioria
esmagadora das dispensas do período, o que está relacionado com o fato do aumento do número de
agentes mercantis nas ordens militares – que conseguiam, com as dispensas, desvencilharem-se do
passado mecânico que eles ou os familiares tinham. Importante notar que, no período referido, não
houve nenhuma dispensa por motivo de origem cristã-nova74.

Com as dispensas, o rigor nas habilitações diminuiu consideravelmente; e quando, em 1730,


D. João V aprovou o pagamento de “contribuições” por parte dos dispensados, as possibilidades se
abriram para pessoas com cabedal obterem o hábito da Ordem de Cristo, mesmo que tivessem algum
impedimento previsto nos regimentos da ordem. Por serem muito numerosas desde o final do seis-
centos75, as dispensas foram então transformadas em mecanismo financeiro que favoreceria o centro
político, aumentando as rendas da Coroa. O pagamento da dispensa poderia ser tanto em dinheiro
quanto em serviços; assim, “se o candidato tivesse capacidades para negociar e pagar a multa, fosse em
serviços ou sob outra espécie, podia ultrapassar esse obstáculo”76.

No grupo de 29 agentes estudados, temos apenas cinco indivíduos com hábitos de ordens
militares, todos da Ordem de Cristo. É importante ressaltar que, infelizmente, não tivemos acesso às
habilitações desses agentes: sabemos que são cavaleiros da Ordem de Cristo por informações coleta-
das em bibliografia sobre o assunto, citadas após a tabela, e também por uma busca nominal no site
do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, que nos mostra que essas habilitações existem in loco, em
Lisboa, mas que não foram digitalizadas, como no caso das habilitações para familiatura no Santo
Ofício, disponíveis online na mesma plataforma. Pelo fato de não termos lido as habilitações, a análise
será um tanto superficial.

73 SILVA, 2005, p. 100.


74 OLIVAL, 2001, p. 185.
75 A popularidade das dispensas era tanta que muitos indivíduos prometiam serviços futuros em sua troca, por
determinado período de tempo; o “pretendente recebia logo a insígnia, e os afazeres que efectuasse durante o
tempo previamente estabelecido não contavam para efeito de solicitar novas recompensas ao centro político”
(Ibid., p.188).
76 Ibid., p. 193.

1125
Os cavaleiros da Ordem de Cristo são: Anacleto Elias da Fonseca em 175977, Antônio Lopes
da Costa em 174778, Domingos Correia Bandeira em 174679, Domingos Ferreira da Veiga em 173980
e João Gonçalves da Costa em 176981. Todos eles foram homens de negócio notáveis no Rio de Janeiro,
responsáveis pela arrematação de contratos importantes e pela conquista de ofícios na administração
local e, claro, pela obtenção do hábito de cavaleiro da Ordem de Cristo, elemento de distinção de
grande importância, ainda mais para negociantes, que na maioria das vezes não tinham origem nobre.
Anacleto Elias da Fonseca e Antônio Lopes da Costa possuíam uma relação mercantil de sucesso, ar-
rematando juntos, em 1770, o contrato dos Dízimos Reais do Rio de Janeiro em sociedade com outros
homens de negócio82.

Domingos Correia Bandeira, por sua vez, construiu sua trajetória com base na participação
em instituições administrativas locais: foi almoxarife da Fazenda Real desde 1734 até 1740, e moedeiro
da Casa da Moeda em 174683. É descrito como “senhor de muitas propriedades de casas térreas e de
sobrados”84, sendo, portanto, um homem de negócios abastado. Já Domingos Ferreira da Veiga foi um
grande arrematador de contratos, tomando parte como procurador ou administrador de contratos
importantes, como o contrato da saída dos escravos do Rio de Janeiro para as Minas Gerais, em 174085
e o contrato da dízima da Alfândega do Rio de Janeiro, em 175086. João Gonçalves da Costa, por fim,
foi também moedeiro da Casa da Moeda87.

Este trabalho procurou demonstrar, portanto, como se dava a mobilidade social entre homens
de negócio no século XVIII, a partir das experiências de um grupo de 29 agentes mercantis, no que diz
respeito à nomenclatura que utilizavam e que recebiam de seus pares, à sua participação na Inquisição
como familiares do Santo Ofício e à obtenção de hábitos de ordens militares, especificamente a Ordem
de Cristo. Podemos perceber duas espécies de escalada social: uma, dentro do mundo mercantil, em
que mercadores e pequenos comerciantes podem ascender e se tornarem homens de negócios; e a ou-
tra, em que esses homens de negócio buscam validação de seu prestígio perante a sociedade, a partir
da conquista de hábitos de ordens militares e da carta de familiatura. A ascensão social, para agentes
mercantis, é possibilitada pelo acúmulo de capital que eles realizam com seu ofício – que permite
não apenas a ascensão dentro do mundo mercantil, com a passagem de “mercador” para “homem de
negócios”, mas também que permite o investimento financeiro para se obter a carta de familiatura do
Santo Ofício e, para os mais abastados, a compra da dispensa do defeito mecânico para a obtenção do
hábito de Cavaleiro da Ordem de Cristo. Assim, o ofício do comércio, que ocasiona na acumulação
mercantil, é um caminho para a ascensão social em uma sociedade de Antigo Regime.
77 Conforme informações retiradas de PESAVENTO, 2013, pp. 112, 125-130, 134, 137.
78 De acordo com: PESAVENTO, Fábio; GUIMARÃES, Carlos Gabriel. “Contratos e Contratadores do
Atlântico Sul na segunda metade do setecentos”. História, histórias. Brasília, v. 1, n. 1, 2013, p. 85.
79 AHU_ACL_CU_017-01, Cx. 55, D. 12831-12837
80 PT /TT/RGM/C/0031/36963.
81 PT/TT/RGM/D/0022/79371.
82 PESAVENTO, 2013, p. 130.
83 AHU_ACL_CU_017-01, Cx. 47, D. 10980; AHU_ACL_CU_017-01, Cx. 55, D. 12831-12837.
84 AHU_ACL_CU_017-01, Cx. 47, D. 10986.
85 AHU_ACL_CU_017-01, Cx. 47, D. 11122-11125.
86AHU_ACL_CU_017-01, Cx. 64, D. 15038.
87 AHU_ACL_CU_017-01, Cx. 37, D. 8612.

1126
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1128
Diamantes e Diplomacia
O contrato e a venda dos diamantes brasileiros na Europa durante a segunda metade do
século XVIII1
Ernst Pijning

“As notícias políticas são superficiais e não confiáveis. As informações sobre o comércio e os
navios são acidentais e incompletas. Os rumores não têm valor.”2
G. de Bruin, “Buitenlands Beleid en Gezantschapswezen in de Republiek,”
Nederlands Archievenblad (1995) 99:1, 9.

Ao contrário do que acreditava o arquivista holandês que escreveu o trecho acima, conside-
ro a correspondência diplomática uma fonte importante. As correspondências entre os diplomatas
portugueses nos Países Baixos e os representantes holandeses em Portugal, oferecem uma percepção
privilegiada sobre o Brasil, Portugal e os diamantes. Dois contratadores de diamantes mantiveram o
monopólio da venda dos diamantes brasileiros por vários anos: Gerardo Braamcamp e Daniel Gilde-
meester. Estes mercadores holandeses foram, inclusive, diplomatas. Além deles, o irmão de Braam-
camp, Hermano, foi o Residente (Representante) na Prússia e Daniel Gildemeester, o Cônsul-Geral
dos Países Baixos em Lisboa. Da mesma maneira, diplomatas portugueses na Inglaterra e na Holan-
da foram cruciais para a regulamentação e controle sobre o comércio de diamantes, especialmente
Martinho de Mello e Castro, representante em ambos os países, e Dom Luís da Cunha Manoel, que
atuou na Inglaterra.3 Depois da estadia no estrangeiro, os dois passaram a ser Secretários de Estado
(o segundo do Ultramar e o primeiro dos Negócios Estrangeiros). Tudo indica que o comércio dos
diamantes foi fundamental para as suas carreiras.

Há algumas diferenças importantes entre os diplomatas portugueses e holandeses. Os Cônsu-


les Residentes e Ministros dos Países Baixos atuavam em Portugal para informar aos Estados Gerais e
ao público sobre os acontecimentos no país. Sua importância se deu em termos mercantis e de inves-
timentos. Deveriam defender os interesses da comunidade mercantil integrante da nação Holandesa
garantindo respeito aos privilégios concedidos em tratados do século anterior, assim como zelar pelos
direitos econômicos e sociais da comunidade. Os Cônsules tiveram quase o mesmo papel, mas foram
também mercadores estabelecidos nos países onde atuavam. Com isso, estavam mais próximos da co-
munidade local e faziam alguns serviços como registrar heranças e redigir relatórios para o Residente
1Agradeço ao professor Luciano Figueiredo e a Miriam C. Figueiredo pela revisão deste artigo na versão
portuguesa.
2 “De politieke berichten blijven oppervlakkig en onbetrouwbaar. De handels- en scheepsvaartberichten bli-
jven toevallig en onvolledig. De geruchten zijn niets waard.”
3 Existem vários livros sobre o comercio de diamantes mas poucos fizeram análise sobre o papel de diplo-
matas. O livro de Buist presta muita atenção sobre os negócios do governo português para obter dinheiro no
estrangeiro durante o tempo da revolução francesa. Marten G. Buist, At Spec non Fracta. Hope & Co, 1770-
1815, (Haia: Martinus Nijhoff, 1974) 383-427. David Rabello, Os Diamantes do Brasil na regência de Dom
João (1792-1816): um estudo de dependência externa, (São Paulo: Editora Arte & Ciência, 1997) 102-103;
Harry Bernstein, The Brazilian Diamond in Contracts, Contraband and Capital, (Lanham, MD: University
Press of America, 1986) 58-80; Augusto Lima Junior, História dos Diamantes nas Minas Gerais, (Rio de Ja-
neiro e Lisboa: Edições Dois Mundos, 1945), 101-123.

1129
ou Ministro. Na hierarquia diplomática, o Embaixador era o cargo mais alto, depois vinha o Ministro,
o Residente e o Cônsul. Os Cônsules, de vez em quando, mantinham correspondência própria com
os Estados Gerais, e o Cônsul-Geral podia ser o chargé d’affaires pro tempore quando havia ausência
do Residente ou Ministro. Os diplomatas portugueses em Haia também produziam informações, mas
como agentes do Estado. Estavam na Corte da República para fazer contratos, como os de diamantes
e os relacionados ao pau-brasil, e também para fazer encomendas, por exemplo, de cavalos e navios.4
Havia também Cônsules em Amsterdã, algumas vezes - mas não sempre - vindos da comunidade
sefardita, e até mesmo mercadores holandeses envolvidos no comércio de Portugal, como foi o caso
de Jan Gildemeester.5 Em Lisboa, o governo português também via os Cônsules estrangeiros de forma
diferente, eram considerados como uma fonte de colaboração para o desenvolvimento do reino e, por
isso, tentaram construir alianças com estes mercadores para estimular a economia tanto em Portugal
como no Ultramar.6

Desde a Paz com a Holanda em 1661, estabeleceram-se Residentes e Ministros das Províncias
Unidas na Corte Portuguesa. Dali, mandavam despachos para o governo em Haia, seja para os Esta-
dos Gerais, seja para o escrivão dela (este cargo pertenceu à família aristocrática dos Fagel por cinco
gerações). Estes despachos sempre tinham o mesmo conteúdo: notícias da Corte, especialmente a
saúde da família Real, acontecimentos políticos, contabilidade da cidade de Lisboa e do Reino, chega-
da e partida dos navios para Ultramar - especialmente para Brasil -, novidades das colônias, estado do
comércio, tratamento dos comerciantes holandeses e algumas curiosidades. De vez em quando havia
assuntos específicos, como por exemplo, os conflitos relacionados ao tráfico na Costa da Mina ou os
navios confiscados no Brasil, mas estes casos foram todos tratados por representantes, já em Portugal.
Além dos Residentes ou Ministros também havia Cônsules e Vice-Cônsules. Se o Residente dos Países
Baixos voltava para o país, ou morria, era o Cônsul-Geral que ficava em seu lugar. Durante o século
XVIII, o posto de Cônsul-Geral em Portugal ficou nas mãos da família Gildemeester por três gera-
ções: em 1740 foi eleito Jan Gildemeester, em 1759 o irmão dele, Daniel, e em 1780 o filho de Daniel,
homônimo.7 Em Portugal havia ainda Vice-Cônsules em Setúbal, Viana do Castelo, Faro, no Porto,

4 Veja Cátia Antunes, Lisboa e Amesterdão 1640-1705, Um caso de globalização na história moderna, (Lis-
boa: Livros Horizontes, 2009), capítulo 7. Existem mais publicações sobre o século dezessete, C. van Haar,
De Diplomatieke Betrekkingen tussen de Republiek en Portugal, 1640 - 1661, (Groningen: J.P. Wolters, 1961);
Evaldo Cabral de Mello, O Negócio do Brasil. Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669, (Rio de
Janeiro: Topbooks, 1998); Edgar Prestage, The Diplomatic Relations of Portugal with France, England and
Holland from 1648 to 1668, (Watford: Voss & Michael Ltda, 1928). Sobre o século dezoito veja os dois livros
de Isabel Cluny, D. Luís da Cunha e a ideia de diplomacia em Portugal, (Lisboa: Livros Horizonte, 1999) e O
Conde de Tarouca e a Diplomacia na Época Moderna, (Lisboa: Livros Horizonte, 2006).
5 Desde 23 de Junho de 1772, Arquivo Nacional da Torre do Tombo [ANTT] , Indice da Chancellaria de D.
Jose I, Doações, merces e privilégios, livro 13. Cluny, D. Luís da Cunha, 149-152.
6 Existem muitos trabalhos comparativos sobre Cônsules. Klemens Kaps demostrou um caso de um Cônsul
do Império Habsburgo, em Cadiz, como os negócios privados são utilizados para os interesses de um estado.
“Entre el servicio estatal y los negocios transnacionales: el caso de Paolo Greppi, cónsul Imperial em Cadíz,”
em Marcella Aglielli et al (org), Los Cónsules de Extranjeros en el Edad Moderna y a principios de la Edad
Contemporánea (Aranjuez: Ediciones Doce Calles, s.d.) 225-235.
7 Para os representantes dos Países Baixos no estrangeiro veja: O. Schutte, Repertorium der Buitenlandse
Vertegenwoordigers residerende in Nederland, 1584-1810, (Haia: Martinus Nijhoff, 1983). Infelizmente, esta
lista não é completa.

1130
nas Ilhas e outros em lugares.8 Tais Cônsules davam assistência local para a comunidade mercantil
holandesa espalhada em Portugal, e só mandavam notícias quando havia algum motivo específico.
Em Lisboa o Cônsul-Geral manteve correspondência com a Companhia de “Levante”, que facilitava
o comércio neerlandês no Mediterrâneo, ocasião em que estavam especialmente preocupados com a
ação dos corsários na África de Norte.9

Os Ministros holandeses estavam interessados nos diamantes do Brasil. Em 1755 um Ministro


escreveu uma carta sobre o contrabando dos diamantes e a chegada de Felisberto Caldeira Brandt:
“Chegou o navio N.S. da Natividade Capitão Gonçalo Xavier vindo do Rio de Janeiro, depois de 96 dias
de viagem. Levou 4 milhões de cruzados de ouro e prata, dos que são dois e meio para o Rei, e a gente
me assegura que tem mais do que três milhões [de cruzados] de diamantes. Todos os efeitos, mesmo
dos marinheiros foram para a Casa da Índia para serem examinados, por que são muito suspeitos de
terem ouro em pó e diamantes escondidos. Com este navio também vem um dos antigos contratadores
dos Diamantes das minas do Brasil e mais um empregado dele. Eles foram mandados aqui pelo Rei, e
foram dirigidos à prisão imediatamente, como são acusados por grandes malfeitorias.”10

Conforme o arquivista De Bruin, mencionado no início, podemos concluir que esta mensa-
gem era superficial e incompleta, mas com certeza sugeria a existência de rumores. A carta dá algumas
dicas sobre o que era importante para o enviado dos Países Baixos: a percepção sobre a quantidade de
ouro e diamantes no navio. Esta carta mostra que o Ministro acreditava nos rumores sobre o grande
volume do contrabando e as medidas para evitá-lo e, ainda, acompanhava com cuidado a sorte do
poderoso contratador de diamantes brasileiro.11 Isso indicava para os Estados Gerais a capacidade
do governo português para regular o comércio do Brasil. Depois de recebidas as cartas pelos Estados
Gerais e por seu escrivão em Haia, elas seriam distribuídas para os Estados de todas as Sete Provín-
cias, seguindo ainda para os delegados locais e os burgomestres nas Câmaras Municipais.12 Algumas
informações que chegaram nas cartas diplomáticas foram também publicadas na imprensa e enviadas
para todos os representantes holandeses que atuavam no estrangeiro. As notícias das famosas gazetas
holandesas também divulgavam informações com base nestas cartas. Percebe-se que a audiência des-
sas informações era muito ampla, composta especificamente por pessoas com interesse econômico
em Portugal e suas colônias. A Holanda era então um centro importante de seguros e empréstimos,
e Amsterdã uma das mais importantes praças de lapidação de diamantes. Isso explica a viagem dos
diplomatas portugueses na Holanda, deslocando-se de Haia para Amsterdã, em maio de 1755. Uma

8 Em 1787 houve onze Vice-Cônsules: na Ilha da Madeira, no Porto, Villa de São Martinho, Peniche, Vianna,
Figueira, Ericeira, Ilha de Fayal, Faro e Setubal. Arquivo Nacional Haia, Países Baixos [NADH], Legação de
Portugal, 137.
9 Maurits Ebben, “Uwer Hoog Moogenden Onderdaenigsten Dienaers. Nederlandse consuls en Staatse diplo-
matie in Spanje, 1648-1661,” Tijdschrift voor Geschiedenis (2014) 127:4, 655.
10 Despacho do Ministro Charles François Bosc de la Calmette aos Estados Gerais, Lisboa, 18 de março de
1755, NADH, Staten Generaal [SG], Liassen Portugal [LP], 7027/2.
11 Para este assunto veja Júnia Ferreira Furtado, “O Labirinto da Fortuna: ou os revezes na trajetória de um
contratador de diamantes,” Eunice Norari e outros (org.), Historia: Fronteiras (Florianópolis, SC: ANPUH,
1999) 1: p. 309-320.
12 A.J. Veenendaal jr., “Een Ministerloos Tijdperk. De buitenlandse politiek van de Republiek,” em: R.E. van
Ditzhuyzen e.o. (org.), Tweehonderd Jaar Ministerie van Buitenlandse Zaken, (Haia: SDU uitgeverij, 1998)
p. 13-14. Sobre a falta de segredo destas cartas veja: Guido de Bruin, Geheimhouding en Verraad. De geheim-
houding van staatszaken ten tijde van de Republiek (1600-1750), (Haia: SDU uitgeverij, 1991).

1131
gazeta holandesa noticiou: “estão voltando da sua viagem para Amsterdã o embaixador espanhol Mar-
quis de Grimaldo e Dom Mello y Castro, o enviado Extraordinário do Rei de Portugal.”13 Não houve
indicações da razão pela qual Martinho de Mello e Castro estava em Amsterdã, mas, para os mais
bem informados, ele estava ali para discutir e organizar o contrato de monopólio para a venda dos
diamantes brasileiros.14

Ao contrário dos Países Baixos, em Portugal a correspondência diplomática não era pública,
nem tampouco recebia tanta publicidade. Não eram os interesses locais ou de comerciantes que ti-
nham importância, mas sim os interesses do Estado, ou seja, o Rei. No caso do enviado Martinho de
Mello e Castro, a correspondência seguia diretamente para Sebastião de Mello e Castro ou para D.
Luís da Cunha Manoel, que foi então enviado de Portugal para Londres para tratar do mesmo assunto.
Mesmo assim o secretário estava inseguro quanto ao sigilo das cartas. Ele recomendava que as noticias
poderiam ser, quando fosse o caso,
“escrevendo-se de expressos quando a gravidade da matéria assim o requerer. A mesma observância
V.Sa. [deve seguir] pelo que pertence a esta Corte, com a cautela de não me escrever nunca pelos cor-
reios de terra ou navios, o que tiver algum peso, e de se valer antes dos Navios que saírem frequente-
mente destes portos para esta cidade””15

Dentre outras atribuições, os representantes portugueses nas Províncias Unidas dos Países
Baixos foram responsáveis pela boa administração dos contratos, principalmente o contrato de dia-
mantes na Holanda, mas também outros contratos como o do pau-Brasil.16 O comércio de diamantes
foi bastante complicado. Para lapidar essas pedras, as duas melhores cidades eram Londres e Amster-
dã; e a partir delas os diamantes eram vendidos para outros lugares da Europa, especialmente Rússia e
o Império Otomano. Em 1754, os dois principais contratadores eram as casas de Bristow, em Londres,
aliados com a de Salvador (negociantes Sefarditas), e a de Braamcamp em Amsterdã. Martinho de
Mello e Castro e Dom Luiz da Cunha Manoel estavam em Haia e em Londres para resolver as brigas
entre os contratadores destas duas praças, que afetavam diretamente os interesses de Portugal.

Os problemas era o seguinte: a baixa dos preços pela grande quantidade de diamantes. Os
diamantes da Índia que vinham pela Companhia das Índias Orientais inglesas e o contrabando de
diamantes do Brasil aumentaram a quantidade de diamantes nos mercados. A casa de Salvador tinha
interesses na venda dos diamantes da Índia e no contrabando dos diamantes do Brasil, no qual estava
13 “’s Gravenhage de 20 Mey [1755]” Leydse Courant, 21 de Maio de 1755.
14 Sobre este assunto veja Tijl Vanneste, “Money Borrowing, Gold Smuggling, and Diamond Mining. An En-
glishman in Pombaline Circles,” E-Journal of Portuguese History, (Dezembro de 2015) 13:2, 80-94. Sobre a
carreira de Martinho de Mello e Castro, veja Virgínia Maria Trinidade Valadares, A Sombra do Poder. Marti-
nho de Melo e Castro e a Administração da Capitania de Minas Gerais (1770-1795), (São Paulo: HUCITEC,
2006) p. 42-58.
15 Minuta do Despacho de (Sebastião José de Carvalho e Mello) a Martinho de Mello e Castro, Belém, 13 de
Novembro de 1753, ANTT, Ministérios de Negócios Estrangeiros [MNE], Arquivo Central [AC], Legação de
Inglaterra {LI], caixa 918.
16 Despacho de Martinho de Mello e Castro a Sebastião José de Carvalho e Mello, Haia, 30 de Janeiro de
1755, ANTT, MNE, AC, Legação de Países Baixos [LPB], caixa 790.

1132
envolvido o próprio Felisberto Caldeira Brandt, contratador da mineração dos diamantes no Brasil.
Houve também brigas entre os contratadores da Inglaterra e Holanda. Em Londres as casas de Bristow
e de Salvador diziam que podiam vender os diamantes mais caro do que Amsterdã, e assim queriam
obter uma parte maior do que a metade do que era enviado. Os contratadores ingleses tinham uma
vantagem porque os diamantes do Brasil eram primeiro enviados para Londres e de lá distribuídos
para Amsterdã. Então Braamcamp acusou Bristow e Salvador de mandar os diamantes com menor
peso e qualidade para Amsterdã, ocorrendo assim diferenças de preço. Nesta briga, Braamcamp es-
creveu para as autoridades portuguesas, informando que a casa de Salvador pedira a ele para dar
prioridade à venda dos diamantes da Índia Oriental em relação aos do Brasil, atitude que causou uma
enorme baixa nos preços dos diamantes brasileiros.17

Para resolver estes problemas, Martinho de Mello e Castro foi instruído a fazer um estudo
minucioso dos negócios dos diamantes.18 Utilizando informantes privilegiados, identificou os preços
dos diamantes em ambas as praças e ficou se correspondendo com as pessoas ligadas ao seu comér-
cio, como, por exemplo, Luiz Domingos da Costa, negociante de origem portuguesa estabelecido em
Amsterdã e que foi sócio de Braamcamp.19 Mello e Castro e Dom Luís da Cunha Manoel recalcularam
os preços dos diamantes nestes mercados e encontraram as razões da alta e baixa dos preços. Em
1756, Martinho de Mello e Castro se mudou de Haia para Londres e Dom Luís da Cunha Manoel ocu-
pava o cargo de secretário de Negócios Estrangeiros. Nessa ocasião, Sebastião José Carvalho e Mello
comunicou aos seus enviados em Londres e Amsterdã que havia uma competição entre os diamantes
da Índia e do Brasil. Competição esta de caráter religioso: “Não querem os tais Hebreus passem os
Cristãos da Inglaterra e de Holanda para o ramo do comercio dos diamantes.”20 Surgiu aí uma nova
política do Primeiro Ministro: excluir os judeus, ou seja a casa de Salvador, do comércio dos diaman-
tes do Brasil. Sebastião José de Carvalho e Mello escreveu sobre isso:
“Várias vezes tenho escrito sobre esta matéria, que nem o Brasil produz diamantes em tan-
ta quantidade que possam suplantar os da Ásia, nem tal ideia se concebeu até agora. É porém, indis-
pensavelmente necessário que a mesma distinção que tem a religião cristã dos que professam e que só
seguem a luz escrita, tenha o primeiro dos ditos comércios, e [o] segundo façam os Hebreus, o da Ásia;
e façam os Cristãos o [comércio] da América porque claramente se vê que eram nelas todas as diligên-
cias enquanto neste comercio se não passar a Sinagoga da Igreja.”.”21

Os representantes portugueses obrigaram todos os contratadores a assinassem uma declara-


ção em que se comprometiam a não fazer nenhum negócio de diamantes com a casa de Salvador.22
Infelizmente, os problemas com a baixa dos preços não foram resolvidos com mais informação e no-
vos contratadores. Primeiro, a casa de Bristow estava com grandes problemas financeiros, sobretudo
17 Carta de Francisco e José Salvador a Geraldo Braamcamp, Londres, 21 de setembro de 1753, ANTT, MNE,
AC, LI, caixa 918.
18 Sebastião Jose de Carvalho de Mello a Martinho de Mello e Castro, 13 de Novembro de 1753, ANTT, MNE,
AC, LI, livro 120, No 14ª/47.
19 Parte da correspondência fica no ANTT, MNE, AC, LI, caixa 918.
20 Despacho de Sebastião Jose de Carvalho e Mello a Martinho de Mello e Castro, Belem, 24 de Novembro
de 1755, ANTT, MNE, AC, LI, caixa 918.
21 Sebastião Jose de Carvalho e Mello a Martinho de Mello e Castro, Belem, 24 de Novembro de 1755, ANTT,
MNE, AC, LPB, 816.
22 Declaração em inglês, assignado por John Bristow, John Bristow jr, Geraldo Braamcamp e Herman Jose
Braamcamp, 8 de Julho de 1756, ANTT, MNE, AC, LI, caixa 918.

1133
depois do terremoto de Lisboa.23 Após as grandes brigas entre Bristow e Braamcamp, o Secretário de
Estado buscava novas casas de negócios dotadas de grande capital para o contrato da venda de dia-
mantes.24 Para tanto, atraíram a casa de João Gore e de Joshua van Neck, ambos em Londres. Mesmo
assim a queda do preço dos diamantes continuou. Em 1757 a desculpa era a guerra no leste da Europa
e, a seguir, a grande quantidade de diamantes da Índia Oriental derramada no mercado. Em 1760, o
preço ficou ainda pior e assim tornou-se difícil vender os diamantes do Brasil por preços razoáveis.
Mandava Martinho de Mello e Castro todas as informações para o Conde de Oeiras mas, mesmo com
todas estas medidas, a situação continuou a piorar. Joshua van Neck escreveu em 1760:

“Quanto aos assuntos que conversamos no sábado passado, me deixou sem vista a resolver. Vão chegar
aqui provavelmente um ou mais navios da Índia que podem levar muitos diamantes, estes vão comple-
mentar os que já estão no mercado, e neste caso vai ser impossível vender, como eles são preferidos aos
do Brasil. E aí não podemos pagar pelas vendas que foram nas frotas.”25

Como o enviado mais próximo dos contratadores, Martinho de Mello e Castro ficou bem in-
formado dos problemas no mercado dos diamantes. De vários lados, de Amsterdã, Antuérpia, Londres
, ele recebia as notícias com explicações sobre a dificuldade de vender os diamantes brasileiros com
preço fixo. Segundo os números do historiador Gedalia Yogev, no ano de 1760 , o preço dos diamantes
da Índia esteve mesmo um pouco mais alto do que antes (em termos de valor monetário), mas haveria
outras razões para explicar o aumento na metade dos anos de 1750.26 Como o contratador Felisberto
Caldeira Brandt foi acusado de estar envolvido em contrabando de diamantes, e como foram muitas as
redes de venda de diamantes ilegais apreendidos nos anos de 1760, pode-se imaginar que isto também
teve uma influência considerável. Finalmente, como já mencionei anteriormente, segundo a docu-
mentação, as guerras na Europa Central, um dos melhores mercados de diamantes, colaboraram para
baixar os preços.27 Para o Conde de Oeiras havia outra saída para contornar a situação. Ele julgava que
o novo contratador de diamantes deveria ser de uma só praça, o que excluía Londres completamente:
o escolhido foi o Daniel Gildemeester, de Amsterdã.

A casa comercial de Gildemeester & Companhia, em Lisboa, pertencia a três irmãos: Jan
(João), Daniel e Thomas. O mais velho, Jan, foi Cônsul-Geral dos Países Baixos conforme a resolução
dos Estados Gerais de 5 de Março de 1740, prometendo boas relações entre os dois representantes da
23 Despacho Sebastião Jose de Carvalho e Mello a D. Luís da Cunha Manoel, 24 de Novembro de 1755,
ANTT, MNE, AC, LI, livro 120, No 35/73.
24 Despacho de Sebastião Jose de Carvalho e Mello a D. Luís da Cunha Manoel, 5 de setembro de 1755,
ANTT, MNE, AC, L.I., livro 120.
25 «Le nombre des choses que se sont dit dans la conference qui nous eumes l’honneur d’avoir avec Votre Excellence
Samedy, m’ont fait perdre de vue alors ce que s’est presenté ou depuis á mon esprit, se avoir, qu’il arrivera probablement
dans le Cours de cette année un ou plus de Vaissaux des Indes qui pourront porter beaucoup de Diamants & succeder
dans le Marche á ceux deja arrivé, au quel cas il nous sera impossible, puisqu’ils sont encore preferré a ceux du Brezil,
de vendre aucuns des nostre, & tout aussi impossible pour nous de payer aucune partie des Traittes qui viendront par le
retour de la Flotte.» Carta Joshua van Neck a [Martinho de Mello e Castro], Londres, 10 de Março de 1760, ANTT, MNE,
AC, LI, caixa 918.
26 Houve uma baixa dos diamantes da Índia em dinheiro (libras) depois de 1730, mas um aumento depois de
1749, baixa de novo entre 1747-1762; 1760 foi um aumento maior, depois cresceu muito desde o ano de 1767.
Gedalia Yogev, Diamonds and Coral. Anglo-Dutch Jews and Eighteenth-Century Trade, (Leicester: Leicester
University Press, 1978) table 1, p. 337-338.
27 Carta de Braamcamp & Cia a Martinho de Mello e Castro, Amsterdã, 17 de Fevereiro de 1757, ANTT,
MNE, LI, caixa 918.

1134
Nação Holandesa e em “serviço ao país e utilidade do comércio.”28 Como Cônsul-Geral trabalhou em
conjunto com o Residente. Isso se confirma nas palavras do Cônsul Francês ao se queixar junto ao
representante português em Haia da conduta do Cônsul e do Residente: “o Cônsul desta Nação fazia
contrabando, e o Residente o protegia.”29 Mesmo assim Jan Gildemeester ficou como representante na
ausência do Residente. Isso aconteceu mais duas vezes: uma em 1746, quando consulta se seu irmão,
Daniel Gildemeester, poderia ficar como Cônsul-Geral em seu lugar, e em 1748, quando Van Til vol-
tou para Holanda.30 O importante é que este posto diplomático dava acesso aos Ministros de Portugal,
e durante seis anos não se nomeou um novo Ministro dos Países Baixos para o reino.31 Foi nessa al-
tura que os Gildemeesters alugaram uma casa na Rua das Janelas Verdes, cujos futuros donos seriam
a família de Sebastião de Carvalho e Mello.32 A escolha do imóvel foi um premeditado “jeitinho” do
Primeiro Ministro. 33 Jacomo Ratton havia chamado atenção para situação semelhante no caso da Casa
Comercial de Purry, que já estivera envolvida com contrato de diamantes:

“Deixando Sebastião José de Carvalho e Mello a sua casa na Rua Formosa, para ir viver na barraca
de Ajuda, foi a dita casa arrendada por 4,000 cruzados anuais a uma casa de comércio Inglesa, a qual
corria debaixo da firma de Purry, Melish e de Vismes: excessivo aluguel para aquele tempo; mas que
os ditos comerciantes pagavam de muita boa vontade, pela conservação do contrato de pau Brasil,
que julgo pagavam a 6,000 reis por quintal; e com que adquiriram uma imensa fortuna, que todas
saíram do Reino.”34

Foram os contatos na Corte, como Cônsul-Geral e como representante Holandês, que colo-
caram Daniel Gildemeester em contacto com o Conde de Oeiras. Daniel Gildemeester foi nomeado
Cônsul-Geral em agosto de 1759, quando o seu irmão, Jan, se mudou para Amsterdã. Nesta altura o
Cônsul-Geral ocupava também a função de representante dos Países Baixos, até que chegasse o novo
28 Despacho do Residente J.R. van Til aos Estados Gerais, Lisboa 12 de Abril de 1740, NADH, S.G., L.P.,
7024.
29 «et il y a trois mois que par ordre de sa Cour Don Louis Dacunha a ecrit fortement contre luy au Grand
Pensionaire se plaignant qu’il n’etoit pas asséz moderé dans ses expressions, que le Consul de sa Nation faisoit
la Contrebande et que luy Resident le prôtegeoit.» Despacho Cônsul Du Vernay ao Secretario de Estado da
França, Lisboa, 26 de Novembro de 1743, Achives Nationalles Paris, Affaires Étrangers, BI 674, fl. 177R. Foi
confirmado na correspondência holandesa, que Jan Gildemeester esteve mesmo na prisão. “Op den 15de wierd
alhier een van onse voornaamste kooplieden genaamd Jan Gildemeester op den middag aan dieveleiders geb-
onden door de publiqste straaten naar het gevanghuys gebragt.” Despacho do Residente Van Til aos Estados
Gerais, Lisboa, 18 de Maio de 1734, NADH, SG, LP, 7023.
30 Contou que Daniel “já esteve nesta Praça durante 18 anos, e está muito conhecido nos trabalhos de con-
sules.” Despacho Cônsul Jan Gildemeester aos Estados Gerais, Lisboa, 17 de Maio de 1747, NADH, SG, LP,
7026. Schutte, Repertorium No. 135 (Van Til).
31 Van Til saiou 11 de Setembro de 1748 e Bosc de la Calmette chegou a 10 de Setembro de 1754. Schutte,
Repertorium No. 135 (Van Til) e No. 214 (Bosc de la Calmette).
32 A primeira referencia das Janelas Verdes achei em 30 de Julho de 1761, mas pode ter sido bem antes. Procu-
ração, ANTT, Cartório 14, caixa 4, Livro de Notas No. 14. “Gildemeester e Comp.a homens de neg.o de nasção
Holandeza moradores nas janellas verdes.” Veja também Ernesto Ennes, “O Dr. Mathias Aires Ramos de Eça
e o Palácio dos condes de Alvor às Janelas Verdes,” Ethos vol. 2 (1940) 15, que escreveu que foi em 1762 que
entravam os Gildemeesters.
33 Ennes, p. 12-18.
34 Jacome Ratton, Recordações de Jacome Ratton sobre Ocorrências do seu tempo em Portugal de Mai de
1747 a Setembro de 1810, (Lisboa: Fenda Edições, 1992) p. 154. Depois do terremoto viveram a família real
e os Ministros perto de Ajuda em barracas. Maria Alexandre Lousada e Eduardo Brito Henriques, “Viver nos
escombros: Lisboa durante a reconstrução,” em Ana Cristina Araújo et al (org) O Terramotto de 1755. Impac-
tos Históricos (Lisboa: Livros Horizontes, 2007) 189-193.

1135
Ministro, De Kretschmar.35 Contatos pessoais eram importantes para se obter o contrato de diaman-
tes. Além do mais ele já se encontrava bem estabelecido em Lisboa, ao contrário dos contratadores
anteriores. Nada mais natural do que “propor este negócio a Daniel Gildemeester, em razão de ser
negociante na Praça de Lisboa, que pela comum e geral opinião tinha acumulado os maiores cabedais
pecuniários.”36 Tais circunstâncias deixam claro que houve a partir de então quatro grandes mudanças
decisivas: a primeira, que todos os negociantes deveriam estar estabelecidos na Praça de Lisboa; a
segunda, que a Praça principal na Europa do Norte era Amsterdã, e não Londres; a terceira, que os
caixeiros dos contratos deveriam ser mercadores de Lisboa, próximos ao Conde de Oeiras; e a quarta,
que este contrato não tivesse como mediador o enviado português em Londres ou Amsterdã, mas os
Ministros de Estado, e especificamente o Conde de Oeiras.37

Os contatos muito estreitos entre Daniel Gildemeester e a administração portuguesa pioraram


as relações com o Ministro Kretschmar, cada vez mais desconfiado da lealdade de Gildemeester com a
nação holandesa. As tensões pioraram muito com a saída do Ministro Kretschmar para Haia. Normal-
mente nomeava-se para o posto de Ministro o Cônsul-Geral que havia sido chargé d’affaires, indicação
que recairia em Daniel Gildemeester, mas, neste caso, foi nomeado o Sr. Palsij, secretário do antigo
ministro. Para explicar isso, Kretschmar mandou uma carta em agosto de 1762 para o secretário dos
Estados Gerais após a sua saída, logo depois que Gildemeester obteve o seu contrato:
“O mencionado Cônsul está muito envolvido em negociações comerciais com esta Corte, especialmen-
te o Contrato de Diamantes, fornecimentos para a Marinha do Rei, e outros. Obviamente toda a for-
tuna deste homem, e de sua família depende completamente desta Corte e de seu Ministério. Pode-se
concluir que é muito perigoso deixar os interesses da República com esta pessoa.”38

O Ministro já sabia que haveria controvérsia e adiantou que iria falar pessoalmente com o
escrivão dos Estados Gerais, Hendrik Fagel. Também tratou um pouco mais sobre o caráter de Gilde-
meester:
“pessoas respeitáveis me falavam muitas vezes, durante a minha estadia aqui sobre a incapacidade deste
homem, e o perigo da ruina total de que esta cada vez mais exposto pelos referidos negócios.”39

35 A primeira audiência de Kretschmar foi no dia 8 de Março de 1760. Schutte, Repertorium No. 232 (Krets-
chmar) e No. 321. (Daniel Gildemeester).
36 “Do Descobrimento dos Diamantes e Diferentes Methodos, que se tem Praticado na sua Extracção,” Anais
da Biblioteca Nacional [Rio de Janeiro], 1960 vol. 80: p. 72.
37 “Do Descobrimento dos Diamantes” p. 72 e o contracto de Gildemeester, p. 198.
38 “Voornoemde Consul geinvolveert zijnde in considerablele commerceale engagementen met dit Hof, te
weten het Diamant Contract, fornitures voor des konings Marine, als elders, is het klaarblijkelijk nae te gaen
het gansche fortuin van die mans, als sijne familie, alleen steunt en subsisteert inder de immediate dependentie
van dit Hof en desselfs Ministerie, waer uyt verder te concludeeren valt hoe dangereus de interesten van de
Republique aen hem te fideeren zijn.” Despacho De Kretschmar ao secretário de Estados Gerais (Fagel), s.l.,
s.d., recebido 14 de Setembro de 1762. NADH, SG, LP, 7029.
39 “Meede is mij dikwijls, geduurende mijn verblijf alhier, van goeder hand voorgekoomen so wel de inca-
paciteyt van die man, als het gevaar van een totale ruine waer aen sig meer en meer exponeert door opgemelde
enterprises mondeling verlange de eere te hebben UWEd Gestr. breeder op dit sujet rapport te doen.” Despacho
De Kretschmar ao Secretário de Estados Gerais (Fagel), s.l., s.d., recebido 14 de Setembro de 1762. NADH,
SG, LP, 7029.

1136
Rumores e suspeitas foram bastante importantes no desenrolar deste contrato de diamantes em 1761,
chegando notícias até ao ministro holandês.

Houve também, reações do Cônsul. Em suas manifestações utilizou os mesmos princípios que
o Ministro.
“Não há nada mais importante” (...) “do que servir à minha Pátria, e tenho que dizer que estou muito
agitado de ser impedido a fazê-lo em vez do estrangeiro Católico o Sr. Palsij, que agora esta empregado
neste ofício” (...). “Isso me deixa pensar se isso foi feito por ordem de Vossos Senhores, e o mesmo com
a notícia que as armas de Vossos Senhores ficariam no edifício onde estavam.” 40

Não se manifestou mais Daniel Gildemeester porque o ex-Ministro provavelmente atuou con-
tra as ordens dos Estados Gerais, e porque afinal sempre fora ele o Cônsul chargé d’affaires. O con-
flito acabou sendo resolvido rapidamente: o Sr. Palsij escreveu que deveria haver ordens dos Estados
Gerais, mas fez o que o Ministro queria. Foi mandado um novo despacho para o Sr. Palsij entregar o
arquivo e as armas para Daniel Gildemeester, e nomearam um novo Ministro alguns meses depois.41
Felizmente Gildemeester e o novo Ministro Van Haeften se entendiam muito bem, tanto assim que
Van Haeften usou uma carruagem de Gildemeester quando participou de sua primeira audiência na
Corte.42

Parece que os contatos entre Daniel Gildemeester e os Ministros Portugueses tiveram resul-
tados positivos. Houve um problema nos Açores com um Cônsul Holandês e com os impostos, que
foram resolvidos depois que Gildemeester falou com o Conde de Oeiras.43 Quando se criou o imposto
de dez por cento para os homens de negócio holandeses na cidade do Porto, também foi Daniel Gilde-
meester que falou com o primeiro servidor do Conde de Oeiras para evitá-lo.44 O Cônsul Gildemees-
ter foi também utilizado para ajudar a tripulação de um navio da Companhia das Índias Orientais que
naufragou em Pernambuco e que foi aprisionada em Lisboa, antes do transporte para a Holanda.45

O prestígio de Daniel Gildemeester aumentava cada vez mais. Ao voltar de uma viagem aos
Países Baixos, em 1773, segundo ele próprio escreveu, foi muito bem recebido na Corte portuguesa:
“Ontem, na ocasião do aniversário do Infante Dom Pedro na Corte, Sua Majestade Real demonstrou
40 “en terwijl niets mij meer ter herten Gaat, als ‘t geen ten voordeelen kan verstrekken van mijn Vaderland konnen niet
nalaten seer aangedaan te weesen, belett worden mijn gewilligheyd daar Inne Verder te toonen, door dien voorgenomen
vreemdeling de Hr. Palsij Van de Roomse Religie, met de Affaire heeft Gechargeerd, die volgens de gebruijke van ons
landen met diergelijke charges niet worden belast, ‘t geen mij eenigszints doet twijfelen, off sulkx wel met volkomen Or-
der Van H.H. Mog.de geschied als meede dat de wapens van H.H.Mog.de voor sijn WEg. Hotel blijven Hangen, waar uijt
so veel onlusten laast sijn Voortgekomen.” Despacho Daniel Gildemeester aos Estados Gerais, Lisboa, 18 de Setembro
de 1762, NADH, SG, LP, 7029.
41 Despacho J.K. Palsij aos Estados Gerais, Lisboa, 19 de Setembro de 1762, NADH, SG, LP, 7029; Dispacho
Daniel Gildemeester aos Estados Gerais, 9 de Novembro de 1762, NADH, SG, LP, 7029. O novo Ministro,
Van Haeften tive a primeira audiencia aos 8 de Setembro de 1763. Schutte, Repertorium No. 94 (Van Haeften).
42 Despacho do Ministro Van Haeften aos Estados Gerais, Lisboa, NADH, SG, LP, 7029.
43 Despacho de Daniel Gildemeester aos Estados Gerais, Lisboa, 22 de Decembro de 1762, , NADH, SG, LP,
7029
44 Despacho do Residente Van Haeften a Hendrik Fagel, Lisboa, 15 de Novembro de 1763, NADH, SG, LP,
7029. Foi resolvido muito depois. Só os Ingleses não pagavam mas, no caso dos negociantes holandeses, o
dinheiro pago foi restituído depois.
45 Despacho de van Haeften aos Estados Gerais, Lisboa, 17 de Abril de 1764, NADH, SG, LP, 7029.

1137
apreço pela minha volta, fui depois encontrar com sua Excelência o Marquês de Pombal, e hoje fui re-
cebido pelos outros Ministros de Estado, depois de ter vários encontros com a nobreza e os Ministros
Estrangeiros.”46

Depois de doze anos à frente do contrato de diamantes, o Cônsul holandês era um homem
poderoso. Mesmo assim não estava livre de certos conflitos de interesse, como acontece dois anos
mais tarde quando foi preso um homem de negócio holandês, o que era contra os privilégios da nação
Holandesa em Portugal. Daniel Gildemeester fez o relatório para os Estados Gerais mas o Ministro
dos Países Baixos, Sauvin, lembrava os Estados Gerais que “não é permitido fazer este negócio, salvo o
Cônsul Gildemeester, sendo o contratado com el Rei.” Para resolver o assunto ele utilizou o Vice-Côn-
sul, que era ninguém menos que seu irmão, Thomas Gildemeester.47

Como já notou Cátia Antunes, as relações entre a Províncias Unidas dos Países Baixos e o
Reino de Portugal e Algarve foram mais amplas do que elaborar e manter acordos militares e de
comércio.48 As interações entre os diplomatas e os altos funcionários mostraram-se simbióticas. Para
o governo português, os diplomatas no estrangeiro eram uma extensão de interesses econômicos del
Rei, como aumentar as rendas do Estado e desenvolver a economia de Portugal. Já os diplomatas
dos Países Baixos estavam mais interessados em proteger os interesses privados dos negociantes e
das Companhias Comerciais (o VOC, WIC e a Companhia de Levante). Os interesses privados dos
Cônsules na economia de Portugal tiveram um interesse mútuo: de um lado os contatos, os capitais,
o crédito dos Gildemeesters foi utilizado para o mercado de diamantes; por outro lado, o acesso junto
à Corte Portuguesa auxiliaram-no a arbitrar conflitos entre as autoridades portuguesas e os repre-
sentantes da Nação Holandesa em Portugal. Quantos aos negócios, as relações entre a comunidade
mercantil holandesa e o governo de Portugal foram de mútuo interesse.

46 “Gisteren bij gelegenheid de Geboortedag van de Infant Dom Pedro aan ‘t Hof zijnde, toonde Zijn Koninklijke Majes-
teijt zeer vergenoegt over mijn terugkomst: hebbende alvorens mijn opwagting gemaakt bij zijn Ex: den Heer Marquis de
Pombal en heede verrigt zulks bij de andere Secretarissen van Staat. Door de menigvuldige bezoeken die ik nog dagelijks
van de meeste Adel en buytenlandsche Ministers ontvangen.” Despacho Daniel Gildemeester aos Estados Geraes, Lisboa,
6 de Julho de 1773, NADH, SG, LP, 7031.
47 Despachos do Ministro P. Sauvin aos Estados Gerais, Lisboa, 26 de Setembro de 1775 e, “is het aan geen mensch
gepermitteerd die Negotie te doen, als aan den Consul Gildemeester, als sijnde Contractant daarvoor met den Koning” 3
de Outobro de 1775, Despacho Daniel Gildemeester aos Estados Gerais, Lisboa, 26 de Setembro de 1775, NADH, SG,
LP, 7031.
48 Cátia Antunes, Lisboa e Amesterdão 1640-1705, 149.

1138
AS ELITES LOCAIS E AS ESTRATÉGIAS DE MANUTENÇÃO DE PODER: OS HOMENS-BONS DA
VILA DE TAUBATÉ/SP (1780-1830).
Felipe de Moura Garrido

Doutor em História Social, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG/FAFICH)

Resumo

A historiografia compreende a América portuguesa como parte da monarquia pluricontinental lu-


sitana, na qual o rei era peça chave na estrutura social, pois dele dependia a economia da graça. A
sociedade de Antigo Regime nos trópicos dependia das mercês concedidas pelo monarca e se baseava
na diferenciação entre as pessoas, concebendo que os indivíduos tinham estatutos diferentes entre si,
dependendo das relações que estabeleciam. Soma-se o fato dos imensos territórios que compunham
o Império Português inviabilizarem o controle rígido por parte da coroa e garantia autonomia admi-
nistrativa para as elites locais.

Dentro desse contexto, a apresentação busca entender o funcionamento dos símbolos de diferenciação
social e a disputa por poder numa região economicamente periférica da América portuguesa, a vila de
Taubaté (capitania de São Paulo).

As fontes utilizadas são as atas da câmara de Taubaté, os Maços de População e os Inventários das elites
locais da vila de Taubaté. Nas atas da câmara podemos mapear os sujeitos que atuaram nas vereanças,
cumprindo cargos oficiais, ou através de petições à câmara ou, ainda, participando de assinaturas co-
letivas para determinados assuntos.

Os Maços de População identificam dois fatores de distinção social: a posse de escravos e os postos nas
ordenanças. A posse de escravos era o primeiro fator de distinção, pois garantia o mando sobre outro
sujeito. E, os postos nas ordenanças simbolizavam o mando coletivo sobre a região e a confirmação
desse poder pelas instâncias centrais da administração. Os inventários, por sua vez, permitem enten-
der a lógica de empréstimos e a composição de fortunas na vila.

Acreditamos que essa metodologia de análise e as fontes selecionadas permitem identificar os símbo-
los sociais e as características do poder numa área periférica. Desta forma, poderemos compreender
os símbolos de diferenciação social, as estratégias para ascensão social e as dinâmicas para a manu-
tenção do poder local.

1139
THE LOCAL ELITES AND THE MAINTAINING STRATEGIES OF POWER: THE GOOD MEN
OF THE VILLAGE OF TAUBATÉ / SP (1780-1830).

Felipe de Moura Garrido

Doutor em História Social, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG/FAFICH)

Abstract

The Historiography understands Portuguese America as part of the Lusitanian Pluricontinental Mon-
archy, in which the king was a key player in the social structure, since it depended on the grace. The
Ancièn Regime society in the tropics depended on the favors bestowed by the monarch and was based
on the differentiation between people, conceiving that individuals had different statutes among them-
selves, depending on the relationships they established. It adds up the fact that the immense territories
that made up the Portuguese Empire made rigid control by the crown impossible and guaranteed
administrative autonomy for the local elites.

Within this context, the presentation seeks to understand the functioning of the symbols of social dif-
ferentiation and the dispute for power in an economically peripheral region of Portuguese America,
the village of Taubaté (captaincy of São Paulo).

The sources used are the minutes of the Taubaté chamber, the Maços de População and the local elites
inventories of the village of Taubaté. In the minutes of the chamber we can map the subjects that
served in the vereanças, fulfilling official positions, or through petitions to the camera or, even, partic-
ipating in collective signatures for certain subjects.

The Maços de População identify two factors of social distinction: the possession of slaves and the
posts in the ordinances. The possession of slaves was the first factor of distinction, since it guaranteed
control over another subject. And, the ordinance posts symbolized the collective control over the re-
gion and the confirmation of that power by the central administration. The inventories, in turn, allow
one to understand the logic of loans and the composition of fortunes in the village.

We believe that this methodology of analysis and the sources selected allow us to identify the social
symbols and the characteristics of power in a peripheral area. In this way, we can understand the sym-
bols of social differentiation, the strategies for social ascension and the dynamics for the maintenance
of local power.

1140
Introdução

No dia primeiro de janeiro de 2017, o prefeito Bernardo Ortiz Junior foi reeleito no municí-
pio de Taubaté. O pleito ficou marcado pela disputa judicial da chapa, sendo somente em novembro
anterior a decisão final do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que permitiu a vitória de Bernardo Ortiz
Junior.

No discurso de posse, o prefeito reeleito aproveitou para agradecer as lideranças políticas


locais, responsáveis em parte por sua vitória, e, principalmente, ao seu pai que chamou de “maior
referência de homem público1”. José Bernardo Ortiz, o pai, também foi prefeito da cidade em três le-
gislaturas diferentes entre os anos de 1983-1988, 1993-1996 e 2001-2004.

A história da família Ortiz é um exemplo típico de manutenção do poder por elites locais.
Embora uma narrativa que pode ser replicada para diferentes municípios e regiões do Brasil2, ela tem
sua origem com a própria colonização portuguesa e o sistema de poder na sociedade colonial. Assim,
pretendemos recuar na história de Taubaté para compreender como as elites locais se estabeleceram
na vila, quais as estratégias de poder que elas arquitetaram, como eram formadas as redes sociais dos
camarários e, por fim, qual o papel do crédito na sociedade colonial3.

Antes de dar início às respostas, vamos estabelecer como se estabeleceu a sociedade taubatea-
na no período em foco e os procedimentos metodológicos utilizados ao longo da pesquisa.

A historiografia mais recente compreende a América portuguesa como parte da monarquia


pluricontinental lusitana, na qual o rei era peça chave na estrutura social, pois dele dependia a econo-
mia da graça. A sociedade de Antigo Regime nos trópicos dependia das mercês concedidas pelo mo-
narca e se baseava na diferenciação entre as pessoas, concebendo que os indivíduos tinham estatutos
diferentes entre si, dependendo do nascimento e das relações que estabeleciam.

Além disso, a administração de vastos territórios foi uma empreitada de complexa solução
para o Império Português, o que impossibilitava o controle rígido por parte da coroa e garantia auto-

http://g1.globo.com/sp/vale-do-paraiba-regiao/noticia/2017/01/reeleito-ortiz-junior-e-vereadores-tomam-
-posse-em-taubate.html, acesso em: 05/07/2018.
2 https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/congresso-um-negocio-de-familia-seis-em-cada-dez-
-parlamentares-tem-parentes-na-politica/, acesso em: 10/07/2018.
3 Compreendemos que a sociedade atual tem diversas mudanças em relação à sociedade colonial taubateana.
O próprio sistema eleitoral é completamente distinto da eleição de pelouro, que era feita até a Independência, e
a eleição censitária e indireta, a partir da Constituição de 1824. Contudo, utilizamos esse caso do município de
Taubaté para mostrarmos as permanências históricas.

1141
nomia administrativa para as elites locais4.

Dentro desse contexto, a apresentação busca entender o funcionamento dos símbolos de


diferenciação social e a disputa por poder numa região economicamente periférica da América por-
tuguesa, a vila de Taubaté (capitania de São Paulo).

Essa vila foi formada no século XVII como centro irradiador do povoamento português. O
estabelecimento da vila fez parte de uma política de expansão do povoamento na capitania de São
Paulo e na busca por metais preciosos. Da vila partiram várias expedições para os sertões, inclusive a
fundadora da vila de Ouro Preto (ORTIZ, 1996, 29-51; TOLEDO, 1976: 13-15).

Na segunda metade do século XVIII, no contexto da retomada de autonomia administrativa


da capitania de São Paulo e no renascimento agrícola (PETRONE, 1968; ALDEN, 1999), ocorreu a
expansão da indústria açucareira na vila de Taubaté. Esse processo desenvolveu a economia local,
expandiu as redes de comércio e causou o aumento da população escrava na vila. No século XIX, espe-
cialmente a partir de 1818, houve o declínio dos fogos anotados como produtores de cana-de-açúcar
e a expansão de fogos ligados à cafeicultura.

Para responder as perguntas lançadas anteriormente, tendo em vista o contexto analisado,


o texto faz uso de três coleções documentais diferentes: as atas da câmara de Taubaté, os maços po-
pulacionais e os inventários e testamentos. As atas da câmara, entre 1780 e 1798, foram transcritas
e publicadas. Os maços populacionais foram analisados em determinados anos, com o intuito de
criar um panorama sobre as patentes nas ordenanças, a posse de escravos e a pauta produtiva da vila
. E, os inventários foram selecionados dentre aqueles que sujeitos que se destacaram nas outras duas
fontes, seja porque foram presença constante na câmara da vila5, o que denota poder local, seja porque
anotaram muitos escravos ou variados negócios nos maços de população6.

Esse texto foi dividido em dois tópicos e uma breve conclusão. O primeiro tópico busca com-
preender a formação das fortunas na vila de Taubaté, fazendo um panorama da pauta produtiva na
vila e os principais negócios desenvolvidos na localidade. O segundo tópico foi centrado na análise de
4 Atualmente, existe uma longa e frutífera discussão acadêmica sobre o papel da administração régia e as au-
tonomias dos poderes locais. Não pretendemos adentrar na discussão, pois foge o ponto central de nossa pes-
quisa. Porém, é ponto pacífico que as elites locais que circulavam pela câmara e outras instâncias de poder local
tinham autonomia em suas decisões, dentro de certos limites. Da mesma forma, compreende-se que as elites
locais se utilizavam dessas instituições de poder para legitimarem seus poderes e, num movimento contínuo,
expandirem seus poderes. Para mais: HESPANHA, António Manuel. Caleidoscópio do Antigo Regime. São
Paulo: Alameda, 2012; SOUZA, Laura de Mello e. O Sol e a sombra: política e administração na América por-
tuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006; BICALHO, Maria F. FERLINI, Vera L (org.).
Modos de governar: ideias e práticas políticas no Império português séculos XVI-XIX. São Paulo: ALAMEDA,
2005.
5 Os maços de população analisados foram os de 1789, 1793, 1797, 1802, 1808, 1812, 1818, 1825 e 1830. Bus-
cou-se manter uma série relativamente constante de anos entre um maço e outro, mas diferentes problemas
encontrados no documento não permitiram uma seleção rígida. Somente nos anos de 1808 e 1830 fizemos a
listagem completa de todos os fogos. Nos outros anos, transcrevemos somente os fogos de ocupantes de postos
nas ordenanças, sujeitos dedicados ao comércio, senhores de engenho ou fogos com dez ou mais cativos.
6 Ao todo, foram sistematizados 50 inventários, entre os anos de 1780 e 1830. Três importantes sujeitos para a
configuração das redes sociais da vila faleceram em período posterior e foram adicionados ao banco de dados:
Dâmaso Alves de Abreu (1836), Vitoriano Moreira da Costa (1849) e Francisco Moreira da Costa (1851).

1142
redes sociais. Nele identificamos as redes sociais estabelecidos na câmara da vila de Taubaté e a rede
de crédito apontada pelas dívidas ativas e passivas dos inventários analisados.

Formação de fortunas

A vila de Taubaté estava localizada na região denominada, atualmente, de Vale do Paraíba


paulista. Uma área formada no século XVII, na qual existe proximidade entre as várias vilas e marcada
por ser conectada por vários caminhos. A oeste o caminho parte da vila em direção a São Paulo, a leste
a continuação deste caminho levava até a capitania do Rio de Janeiro, onde ocorria a bifurcação, um
caminho seguia para Parati e o outro para a cidade do Rio de Janeiro. Em direção ao sul, encontramos
um caminho para a vila de Ubatuba e outra para a vila de São Sebastião. E, para o norte, encontra-se
o caminho para o sul de Minas até a vila de Ouro Preto.

Os maços populacionais mostram que as principais unidades produtivas estavam dedicadas


à produção de açúcar, até 1825. O maço de 18027 apontou uma produção de mais de três mil arrobas
de açúcar em dezesseis fogos com uso médio de 24,4 escravos por unidade. Alguns casos saltam aos
olhos. O reverendo Francisco Moreira da Costa foi produtor de 150 arrobas comercializadas no Rio
de Janeiro e dono de 44 escravos. O tenente coronel miliciano Antonio Moreira da Costa, irmão do
anterior, produziu 650 arrobas de açúcar, vendidas no Rio de Janeiro, e também se dedicou a dife-
rentes ramos, como a criação de animais, a produção de outros gêneros e o comércio de fazenda seca
comprada no Rio de Janeiro. E, por fim, o sargento-mor Eusébio José de Araújo produziu 80 arrobas
vendidas no Rio de Janeiro, além de criar animais, produzir diferentes gêneros e ser sócio com seu
filho no comércio de boiadas do Sul para o Rio de Janeiro.

O gráfico 1 mostra a evolução do açúcar na vila de Taubaté. Esse gráfico contém as informa-
ções fornecidas pelos fogos listados para a pesquisa. Portanto, não temos a totalidade da produção da
vila, mas dos principais produtores da vila.

7 Os maços de população de 1789, 1793 e 1797 não mostram a produção dos fogos. Eles eram listas nominativas
com caráter militar que listaram os braços jovens disponíveis para as armas, além de escravos e os postos nas
ordenanças.

1143
Gráfico 1 – Produção de açúcar na vila de Taubaté

A partir do gráfico podemos identificar algumas características da pauta produtiva da vila de


Taubaté. Conforme a historiografia apontou, houve o crescimento da produção açucareira na vila de
Taubaté até a chegada da família real. No século XIX, porém, houve o declínio da produção açucareira
e o desenvolvimento da cafeicultura na vila (RANGEL, 1990). Ao mesmo tempo, as forças produtivas
da vila não estavam centradas em um único efeito, pois, até o 1825, os principais fogos da vila estavam
ligados a diferentes gêneros e ramos. Como citado acima, os donos dos maiores plantéis de escravos
atuavam na produção de gêneros alimentícios, de produtos para exportação, na criação de animais, no
comércio de boiadas do Sul e no comércio de produtos importados do Rio de Janeiro.

Os mapas anexados aos maços populacionais de 1808 auxiliam a compreender a pauta pro-
dutiva da vila. O mapa da primeira companhia, em 1808, anotou os seguintes gêneros: milho, feijão,
farinha de mandioca, arroz, algodão, açúcar, toicinho, fumo, aguardente, mantimentos, gado vacum,
potros e bestas. O mapa da segunda companhia anotou, além dos anteriores, amendoim, algodão,
panos de algodão, porcos, rapaduras e cavalos. Na terceira companhia também encontramos café.
E, na quarta companhia arrolou galinhas. As outras duas companhias (6ª e 7ª) não anotaram efeitos
diferentes dos anteriores. Dessa maneira, percebemos que existia uma vasta pauta produtiva na vila,
alguns produtos eram comercializados na vila e outros exportados para o Rio de Janeiro.

Portanto, podemos caracterizar Taubaté como um local periférico economicamente, haja


vista que não estava ligado intimamente à agro exportação, conectado às redes mercantis internas de
abastecimento e vinculado ao Império Português através do porto do Rio de Janeiro, de onde os prin-
cipais negociantes locais iam buscar os artigos importados.

A partir dos maços populacionais e das atas da câmara, selecionamos alguns inventários e
testamentos no Arquivo Municipal de Taubaté “Félix Guisárd Filho”. Os nomes selecionados foram de
sujeitos que apresentaram grande quantidade de escravos ou o envolvimento em diferentes negócios,
em diferentes anos. Também selecionamos os sujeitos que tiveram importante participação na Câma-
ra, que será abordado no próximo tópico.

Os inventários mostraram que a fortuna dos taubateanos estava concentrada em quatro bens
principais, respectivamente: escravos, bens de raiz, dívidas e animais. Esses bens representavam 97%

1144
das fortunas inventariadas, o que revela o caráter agrária das elites locais, pois ligava-se à produção
rural com o aumento de mão de obra escrava e aquisição de terras (bens de raiz).

Em seguida, dividimos os inventários em quatro grupos distintos, conforme pode ser visto
no gráfico 2, abaixo. O grupo A foi formado por quatro inventários que apontaram monte-mor su-
perior a 20 contos de réis. O grupo B também contou com quatro inventários de sujeitos que tinham
monte-mor entre 10 e 20 contos de réis. O grupo C contou com 21 processos com mais de um conto
de réis e menos de dez contos. E, por fim, o grupo D, formado por dez processos, foi dos inventários
que não atingiram um conto de réis.

Essa divisão mostrou que o padrão de fortuna altera de acordo com o grupo ao qual o sujei-
to pertence. O grupo A investiu mais em dívidas do que os demais grupos. O grupo B investiu mais,
proporcionalmente, em bens de raiz do que os demais. E, todos os grupos anotaram suas fortunas
mais em escravos do que em qualquer outros bem. Isso sugere que os processos anotados no grupo
A eram de fortunas bem estabelecidas e que também atuavam nas redes de crédito e comércio, o que
possibilitava ganhos maiores do que a produção agrícola. Já os processos do grupo B, anotaram valo-
res maiores para os bens de raiz, pois eram grandes produtores rurais. E, por fim, o escravo era o bem
mais valorizado de toda a sociedade colonial, sendo empregado em todos os serviços, e o primeiro
degrau para a distinção social.
Gráfico 2 – As fortunas arroladas nos inventários, divididos por grupos de riqueza

Por fim, resta-nos localizar a realidade encontrada nos inventários taubateanos com o res-
tante da América Portuguesa. A realidade de Lorena, vila vizinha, era distinta, pois os a riqueza estava
concentrada em dívidas ativas (62%), imóveis (14%), escravos (13%) e dívidas passivas (4%). O que
demonstra uma vila mais conectada às trocas mercantis que à produção agrícola. Em São Paulo, na
primeira metade do XIX, os ativos mais importantes foram os imóveis (25,7%), dívidas ativas (23,4%),
escravos (23,3%) e bens profissionais (13,4%), enquanto os outros bens somados não chegaram a 15%
(ARAUJO, 2010: 97-100).

Por outro lado, a concentração de riquezas analisada em Taubaté ocorreu em outras vilas da
América. O grupo A teve grande papel de destaque frente à população taubateana, o que fica mais

1145
claro quando se percebe o peso relativo das fortunas desse grupo na soma total de bens. Os quatro
integrantes do grupo A representavam 10% dos inventários arrolados e possuíam 54,18% do valor
total dos bens. Esse número se aproxima da realidade carioca, conforme descrita por Fragoso, onde
10% dos homens mais ricos da capitania tinham 2/3 do patrimônio inventariado (FRAGOSO, 1998:
90). E, no caso da vila de Vitória, a principal vila mercantil da capitania do Espírito Santo, os homens
que compunham os 10% mais ricos da vila eram detentores de 49,07% do pecúlio (CARVALHO, 2010:
89-90).

Assim, embora tenhamos visto que a vila de Taubaté não concentrava seus esforços produti-
vos na cana-de-açúcar e no comércio de açúcar, os sujeitos inventariados na vila amealharam fortuna
semelhante a seus pares de outras localidades e participaram de redes mercantis que os ligavam a
outras regiões, algo que será melhor explorado no próximo tópico.

Ascensão social: símbolos e negócios

Para compreendermos a estrutura social da sociedade colonial, vamos nos utilizar das visões
de Antônio Antonil em seu livro “Cultura e opulência no Brasil”. Analisando o engenho Sergipe do
Conde, o viajante descreveu as melhores formes de produzir açúcar e as qualidades necessárias aos
senhores de engenho. Em suas palavras:
O ser senhor de engenho é um título a que muitos aspiram, porque traz consigo o ser
servido, obedecido e respeitado de muitos. E se for, qual deve ser, homem de cabedal e
governo, bem se pode estimar no Brasil o ser senhor de engenho quanto proporciona-
damente se estimam os títulos entre os fidalgos do Reino (ANTONIL, 1997: 75, grifos
nossos).

A sociedade colonial foi estruturada por reinóis que foram para o Ultramar com a expec-
tativa de reproduzirem o universo mental e cultural que deixavam para trás. A estrutura do Antigo
Regime era corporativa e fundamentava a sociedade em divisões de ordem natural e hierarquizada. O
Monarca atuava como ponta da estrutura social, desempenhando o papel de legitimador da diferença
entre as camadas. Para tanto, emanava dele as mercês régias, o fator de distinção social e que podia
elevar o status individual. No Ultramar, a estrutura se tornou mais complexa. A adição de grupos es-
cravizados africanos e indígenas modificou a estrutura inicial (FRAGOSO, GOUVÊA, 2010: 13-16).

As hierarquias eram formadas pelas lógicas de prestígio e etiqueta, pela antiguidade e pelos
serviços prestados à Monarquia. A administração local era executada por sujeitos que respeitassem
esses atributos e recebiam legitimação régia e social. Além disso, esses sujeitos atuavam em conjunto
com os membros de sua família. A Casa, denominação dada a uma família tradicional, recebia paren-
tesco fictício e tinha alguns instrumentos próprios de manutenção e expansão do poder (HESPANHA,
2007: 13-17).

Assim, a sociedade taubateana também se estruturou nos conceitos de prestígio, mando e


status. O ponto inicial da estrutura de poder se dava pela posse de almas escravizadas. A posse de

1146
escravo representava, por um lado, o mando sobre um outro sujeito e, por outro lado, a possibilidade
de expandir a produção.

Os maços populacionais mostram que a posse de escravos era relativamente difundida na vila
de Taubaté, mas havia concentração de mão de obra compulsória em alguns fogos. O maço popula-
cional completo de 1808 revela que praticamente 80% dos fogos não tinham escravos e a maior parte
dos escravizados estavam restritos aos pequenos plantéis. Os plantéis com mais de cinco escravos
representavam pouco mais de 5% do total, mas concentravam quase 70% dos escravos da vila. Em
1830, apesar do desenvolvimento da cafeicultura, conforme pontuado acima, os índices de posse de
escravos se mantiveram na vila. Os fogos com mais de cinco escravos eram pouco mais de 5% do total
e concentravam cerca de 65% dos escravos.

O patamar seguinte a posse de escravo era o posto de oficial da ordenança. A lista de 1808
mostrou que 54 domicílios eram chefiados por oficiais das ordenanças, o que corresponde a 3,36% do
total de fogos. Em 1830, a situação foi muito semelhante, pois encontramos 79 residências chefiadas
por oficiais das ordenanças, o que representava 3,4% do total. Mas, assim como o escravo, o posto
na ordenança, embora restrito para a maioria da população livre, era relativamente comum para as
elites locais. Estudos mostram que, pelo censo de 1798, cerca de 40% dos sujeitos que foram listados
como senhores de engenho na capitania de São Paulo tinham posto de oficial nas ordenanças (IZE-
CKSOHN, 2010: 489-492).

Os cargos de oficiais das ordenanças eram debatidos e votados em sessões da câmara local.
Os camarários votavam em quem seria o oficial dos cargos que vagavam. Essa lista seguia para o Ou-
vidor da capitania de São Paulo que referendava a decisão. Por fim, os novos oficiais enviavam cartas
pedindo ao Conselho Ultramarino a confirmação de carta patente. Em geral, esses documentos res-
peitavam o mesmo modelo de escrita.

O trâmite burocrático do cargo de oficial das ordenanças revela a necessidade do sujeito em


ter bom relacionamento com as elites locais, especialmente aqueles que estavam exercendo vereança
na câmara. Assim, analisamos os sujeitos que frequentavam a câmara de Taubaté, entre os anos de
1780 e 17988.

8 GUISARD FILHO, Félix. Taubaté. Atas da Câmara (1780-1798). São Paulo: Empresa Editora Universal, v. I,
1943. A coleção conta com outros volumes, mas eles não foram encontrados em arquivos e bibliotecas consul-
tadas, o que restringiu o período de pesquisa para esses anos.

1147

Imagem 1 – Rede camarária na vila de Taubaté (1780-1798).
A imagem 1 foi gerada pelo Pajek. Podemos observar que os vértices (círculos) são sujeitos da
rede e têm diferentes colorações. Isso decorre de um cálculo do programa sobre aqueles que têm mais
ligações centrais dentro da rede social. Os anos de vereanças estão todos assinaladas nas cores branca
e rosa, pois são as cores que apresentam a maior quantidade de ligações. As outras cores possuem
menos ligações na rede.

O mais interessante do grafo é o surgimento de alguns nomes também na coloração branca.


Os nomes dos outros sujeitos foram retirados do grafo para facilitar a visualização. Os sujeitos cen-
trais da rede foram: Lourenço Garcia Toledo, João Francisco Abreu Guimarães, Joaquim Santos Alves
Abreu, Eusébio José Araújo, José Faustino Alvarenga, Antonio Moreira Costa, João Mota Pais, Lino
Manuel Toledo, Thomas Vila Nova Guedes, Manuel Antônio Alves, Dâmaso Alves Abreu, Simão Alves
Silva, Salvador Correia Siqueira, João Garcia Cordeiro, Gabriel Araújo Torres e Francisco Teles Barre-
to. Entre os 16 nomes, vamos excluir da análise Francisco Teles Barreto, pois era escrivão da câmara,
o que explica sua participação em várias vereanças.

Nesse espaço não vamos nos ater aos números de participações, mas nos dedicarmos a rede
social construída. Entendemos que o importante na sociedade colonial não era, necessariamente, a
quantidade de participações por si, mas a rede social que era construída.

Assim, percebemos dois perfis de sujeitos que estiveram presentes em vários anos na câmara
da vila de Taubaté. De um lado, alguns ocuparam cargos por vários anos, o que revela a legitimidade
do mando local que tinham, pois foram votados para exercerem os cargos de mandos. Este foi o caso
de José Faustino Alvarenga que ocupou o cargo de juiz ordinário em três anos diferentes (1786, 1795 e
1796), procurador em dois anos (1791 e 1792) e vereador em dois anos (1783 e 1784). De outro lado,
alguns participaram das reuniões em vários anos porque eram requisitados para definirem alguns
assuntos relevantes na localidade.

O caso mais singular é do sargento-mor Eusébio José de Araújo que esteve presente em sete
reuniões, mas somente ocupou cargo na vereança de 1783 como juiz ordinário. Em 1784, ele retornou

1148
a câmara numa sessão para substituir o procurador que estava ausente por doença. A próxima apari-
ção ocorreu em 1791, quando ele foi chamado por ser juiz de órfãos e tesoureiro de órfãos, o que era
incompatível, onde ocorreu a eleição de um novo tesoureiro de órfãos. Em 1792, ele voltou à câmara,
juntamente com outros sujeitos importantes da vila, para assinar uma carta se responsabilizando pela
festa pelo nascimento da Princesa da Beira. Em 1794, o seu nome apareceu na eleição para o posto de
sargento-mor, na qual ele foi eleito, substituindo seu posto de capitão. E, por fim, em 1795, ele nova-
mente atuou como signatário de um acordo entre os principais da vila para uma contribuição para a
reconstrução da igreja matriz da vila.

A hipótese que articulamos se refere aos estágios de mando e poder local. Os sujeitos que
tinham várias participações em cargos na vereança eram homens que estavam articulando suas pró-
prias redes locais e necessitavam referendar o poder local. Basicamente, precisavam se legitimar com
os cargos de mando. Os sujeitos que eram chamados em reuniões específicas eram, provavelmente,
sujeitos que tinham o poder local legitimado e não precisavam atuar na câmara constantemente para
que a sociedade os visse como pessoas de mando.

Essa hipótese pode ser vista com mais clareza na análise da rede de crédito da vila. Arrola-
mos 54 inventários para serem analisados, dos quais 39 foram utilizados para a execução da rede de
crédito. Os demais não apresentaram informações que pudessem ser utilizadas pela pesquisa, pois
eram processos de testamento, sem listar os bens, ou eram trâmites burocráticos de indivíduos que
estavam incapacitados de exercerem o controle dos próprios bens ou eram processos inconclusos ou
não listaram dívidas ativas/passivas.

Na imagem 2 identificamos a rede de crédito com alterações feitas. A imagem original tinha
uma grande quantidade de ligações em sua completude, o que inviabiliza a análise. Por este motivo,
os sujeitos que tinham ligações únicas foram aproximados, o que dificulta perceber a quantidade de
ligações unitárias que existem, mas facilita a visualização dos contatos na rede – ponto central para
a Análise de Redes Sociais. Também fizemos uso da função core, pois entendemos que na sociedade
colonial, assim como em outros espaços, os sujeitos mais importantes não são aqueles que têm muitas
ligações, embora isso seja importante, mas aqueles que se mantém como agentes centrais da formação
e manutenção da rede social.

A função core identificou com diferentes cores os sujeitos, variando conforme sua centrali-
dade na arquitetura da rede. Os indivíduos com a cor amarela tinham pouca centralidade, pois man-
tinham ligações únicas ou com sujeitos que não se conectavam aos demais. A cor vermelha foi incor-
porada aos indivíduos que tinham ligações com sujeitos importantes, mas não era agentes centrais na
rede. A cor verde foi destacada para os indivíduos que tinham várias ligações com sujeitos que inter-
mediavam suas ligações com os sujeitos centrais. Eles conectavam diferentes partes da rede social. E,
por fim, aos sujeitos centrais na construção da rede social encontramos os vértices de cor azul.

1149
2 - Rede de crédito na vila de Taubaté

A imagem nos permite algumas constatações sobre a rede de crédito na vila de Taubaté. As
irmandades tiveram um papel importante na estrutura do crédito, especialmente a irmandade de
Ordem Terceira. Ela está localizada na parte inferior central do grafo, próxima a irmandade do Santís-
simo Sacramento, e na coloração azul, pois fez empréstimos para sujeitos importantes da vila, como o
reverendo Francisco Moreira da Costa, o alferes José Luis Camargo e o capitão João Moreira da Costa.

As outras irmandades, principalmente Senhor dos Passos e Santíssimo Sacramento, tiveram


a mesma postura, pois não emprestaram dinheiro para muitos agentes, mas fizeram empréstimos para
sujeitos importantes. Isso nos sugere que o empréstimo de Irmandades não era algo fácil de se con-
seguir na sociedade taubateana, sendo somente os principais sujeitos capazes de conseguirem crédito
dessas instituições.

A principal consideração envolve os agentes de coloração azul. Esses eram os indivíduos


centrais nas redes de crédito. Ressaltamos que trabalhamos com a função core porque ela identifica os
sujeitos centrais na construção da rede e não necessariamente os que tiveram mais conexões, embora
esse fator auxilie na rede.

Novamente, encontramos dois perfis de players na construção das redes sociais: os que ti-
nham muitas ligações e os de ligações centrais. O primeiro tipo foi formado pelos sujeitos que tinham
muitas ligações, além das conexões importantes da vila e arquitetaram a maior parte de contatos da
vila. O segundo tipo foi formado pelos sujeitos que não tiveram uma grande quantidade de ligações,
mas todas as conexões formadas eram com elementos centrais da vila. A divisão que fazemos entre
os dois tipos de nenhuma maneira se torna rígida e definitiva, mas foi feita somente para facilitar a
compreensão da estrutura da rede social. Não podemos afirmar que, de fato, existiam esses dois perfis
de forma consciente ou que um modelo de inserção na rede de crédito fosse hierarquicamente melhor
do que outro.

1150
Os principais indivíduos do primeiro tipo foram o sargento-mor Eusébio José de Araújo, o
alferes José Antônio Nogueira, o reverendo Francisco Moreira da Costa e os capitães João Moreira da
Costa e João Gomes de Araújo. Por outro lado, os principais sujeitos do segundo tipo foram o capi-
tão Antônio Cordeiro Coutinho, o alferes João Garcia Cordeiro, o alferes José Luis Camargo, a dona
Margarida Florinda de Jesus e, principalmente o capitão João Francisco Vieira e o alferes Antônio José
Matos.

Após a composição do grafo, retornamos aos inventários para cruzarmos as informações.


Entre os sujeitos centrais da rede encontramos o maior prestamista da vila, o sargento-mor Eusébio
José de Araújo (298 entradas), o terceiro maior prestamista, o alferes José Antônio Nogueira (156
entradas) e o quinto maior prestamista, o reverendo Francisco Moreira da Costa (70 entradas). O
segundo maior prestamista, José dos Santos Luz (178 entradas) e o quarto maior, Salvador Correia de
Siqueira (85), não aparecem como sujeitos centrais na rede de crédito. Esses números reforçam a ideia
de que a quantidade de ligações não determina a posição de centralidade na formação da rede social.
Esse fato fica reforçado pela dona Margarida Florinda de Jesus que, embora tenha somente onze entra-
das de empréstimos, foi considerada pelo programa como agente central na rede, devido aos sujeitos
para quem emprestou.

E, por último, os inventários analisados em conjunto com a rede de crédito permitem veri-
ficar a importância das famílias na constituição das redes de sociabilidade. Entre os sujeitos centrais
encontramos duas famílias bem estruturadas: os Araújo e os Cordeiro.

A família Araújo é representada na primeira geração pelo sargento-mor Eusébio José de


Araújo e sua esposa dona Margarida Florinda de Jesus. Uma segunda geração é do alferes José Antô-
nio Nogueira, genro de Eusébio, e pelo capitão João Gomes de Araújo, filho do casal (AHMT, 1807:
1-13b).

A família Cordeiro é representada pelo alferes João Garcia Cordeiro, seu irmão o capitão
Antônio Cordeiro Coutinho, e, seu filho, o alferes José Luis de Camargo. Essa família tinha íntimos
negócios com a família Araújo, pois o capitão Antônio Cordeiro Coutinho deixou o sargento-mor
como seu inventariante – não encontramos razões para tal – e indicou dívidas abertas com o mes-
mo senhor, tanto por compra de fazenda seca quanto pelo aluguel de algumas casas (AHMT, 1786,
15b-16b). O seu irmão, o alferes João Garcia Cordeiro, também anotou dívidas com o sargento-mor
Eusébio (AHMT, 1795, 10). E, por último, o alferes José Luis de Camargo anotou dever para homens
importantes da vila, como o tenente coronel Cláudio José de Camargo e o alferes Antônio José de
Matos (AHMT, 1807, 18b-22).

Portanto, entre os principais sujeitos da rede de crédito que encontramos a sua inserção e sua
centralidade na rede decorre do fato de atuarem em conjunto com seus familiares. A quantidade de
ligações, embora seja importante, não garantia a centralidade da rede, pois essa dependia da capacida-
de de conectar diferentes partes da rede. Uma forma simples de perceber a questão da centralidade é
retirando o sujeito da rede, caso ele seja “apagado” da imagem, grande parte das ligações feitas deixa-
riam de ocorrer e os sujeitos não se ligariam.

1151
Conforme Tiago Gil apontou em sua tese, o crédito era elemento essencial do comércio na
sociedade colonial, haja vista que não existiam instituições de crédito oficiais, como um banco, e a
transação com o uso de moedas era muito raro. Assim, a venda por crédito era costumeira e o tempo
dos negócios era longo, o que explica que os testamentos revelem longas listas de dívidas ou emprés-
timos de pessoas que faleceram muitos anos antes. E, a dívida não era vista como um problema. Ao
contrário, quanto maior o prestígio de um sujeito maior era a sua possibilidade de emprestar e receber
o empréstimo (GIL, 2009).

Anotamos, portanto, que as dívidas estruturavam redes de comércio por toda a sociedade
colonial. Alguns sujeitos tinham a capacidade de emprestar e adquirir empréstimos em diferentes
localidades. Eles eram os elos que ligavam o comércio de diferentes partes com o mercado de Taubaté.
Mesmo numa vila economicamente periférica como esta, existia uma demanda por diferentes produ-
tos que era suprida pelo crédito e por indivíduos que se tornavam tão relevantes para a sociedade local
que conseguiam se inserir na rede de crédito dessas localidades.

Esse foi o caso, por exemplo, do alferes José Antônio Nogueira que, em seu testamento, iden-
tificou empréstimos para Minas Gerais, as quais deu como perdidas, e outras localidades do Vale do
Paraíba, como Guaratinguetá e Piraquama. O seu sogro, o sargento-mor Eusébio José de Araújo, em-
prestou para negociantes de Ribeirão das Almas, Guaratinguetá, Caçapava e, até mesmo, para o Rio
de Janeiro. O reverendo Francisco Moreira da Costa e o capitão Antônio Cordeiro Coutinho mantive-
ram negócio com a cidade de São Paulo, ambos recebendo créditos nessa localidade. Essas situações
sugerem que alguns indivíduos extrapolaram o poder local e eram os responsáveis pela família para
acessar outros mercados.

Á guisa de conclusões

O texto apresentado tinha por objetivo identificar quem faziam parte das elites locais e as es-
tratégias de manutenção de poder dessas elites. Para tanto, utilizamos como local de pesquisa a vila de
Taubaté, pois era uma localidade economicamente periférica dentro do Império Marítimo Português.
Ao mesmo tempo, a localidade mantinha relações comerciais e sociais com duas vilas importantes
(São Paulo e Rio de Janeiro) e com a capitania de Minas Gerais.

Selecionamos como recorte cronológico o período de 1780 a 1830. Esse período foi de gran-
des transformações econômicas, sociais e políticas para Taubaté, assim como para a América. Entre
1780 e 1808, os autores especializados identificaram o auge da produção açucareira na vila. A partir da
chegada da Família Real, a vila e todo o centro-sul da América Portuguesa passaram por transforma-
ções sociais e políticas, culminando com o processo de Independência e a Constituição outorgada de
1824. E, a partir de 1818, encontramos a expansão vertiginosa da produção cafeeira na vila de Taubaté.
Todas as mudanças na vila deveriam, instintivamente, levar a mudança político-social entre as elites
locais. Todavia, não foi esse o cenário que encontramos.

1152
Desta forma, primeiramente, buscamos identificar a formação das elites locais, privilegiando
o aspecto econômico. Em outras palavras, fizemos o levantamento das fortunas inventariadas pe-
los principais taubateanos do período, de acordo com a análise do Maço de População. Em seguida,
buscamos compreender a atuação das elites locais na câmara da vila, onde eles poderiam legitimar o
poder local, e a arquitetura da rede de crédito na vila, através dos inventários selecionados no Arquivo
Histórico Municipal de Taubaté “Félix Guisárd Filho”.

Assim, constatamos que, apesar de não serem conclusões definitivas para toda a sociedade
colonial, podemos visualizar uma dinâmica de conquista de poder e mando na área periférica de
Taubaté. O poder tem início com a aquisição de escravos, seguido pela compra de terras e expansão
da pauta produtiva. Em seguida, os sujeitos buscaram postos de oficiais nas ordenanças, almejando
cargos mais relevantes. Ao mesmo tempo, investiam em outros negócios, o que explica os senhores
de engenho também serem agricultores, criadores de animais e negociantes. Para legitimar o poder
local, eles se inseriam na câmara da vila e, provavelmente, participavam de outros órgãos locais, como
Irmandades e Santa Casa. Enquanto isso, usavam de suas ligações com os sujeitos que negociavam ou
que atuavam juntos na câmara para arquitetarem redes de crédito, preferencialmente se inserindo em
redes de comércio de áreas mais dinâmicas, como São Paulo, Minas Gerais e o Rio de Janeiro.

Embora as elites locais da vila de Taubaté tenham especificidades sui generis, acreditamos
que o perfil das elites e as trajetórias delineadas ao longo do texto servem como parâmetro para o res-
tante do território brasileiro. Assim, essa pesquisa contribui para visualizar um panorama de atuação
das elites locais na formação do Estado Nacional brasileiro.

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1780, José dos Santos Luz
1783, Tenente Antônio Correia Santiago
1785, Francisco Xavier de Camargo
1786, Antônio Cordeiro Coutinho
1788, Joaquim dos Santos Alves de Abreu
1790, Amaro Teixeira Bitencourt
1795, Antônio Moreira Portes
1795, alferes João Garcia Cordeiro

1153
1796, capitão Guilherme Moreira de Cabral
1797, João Antônio da Silva
1799, Francisco Leme do Prado
1801, Ana da Fonseca Teles
1801, Francisco José Bitencourt
1802, Capitão-mor João Francisco de Abreu Guimarães
1807, Sargento-mor Eusébio José de Araújo
1807, Capitão João Gomes de Araújo
1807, Alferes José Luis de Camargo
1808, Antônio Barreto Leme
1813, Pedro Moreira Castilho
1814, Capitão Simão Martins Silva
1816, Filipe Vieira de Toledo
1817, João Evangelista de Camargo
1818, João Moreira da Costa
1818, Salvador Cursino dos Santos
1819, Francisco Camargo Machado
1820, Dona Margarida Florinda de Jesus
1820, Alferes José Antônio Nogueira
1822, Guarda-mor Joaquim dos Santos Alves de Abreu
1822, Manuel Antônio Alves
1823, Francisco Vieira da Silva
1824-1825, Reverendo Francisco Moreira da Costa
1824, José Correia de Siqueira
1826, Gaspar Leme do Prado
1826, Maria Leme do Prado
1829, Salvador Correia de Siqueira
1829, Soledônio Antônio de Andrade
1830, Alferes Antônio José Pinto de Souza
1830, Antônio Moreira da Costa
1836, Dâmaso Alves de Abreu
1849, Vitoriano Moreira da Costa
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1156
Nos limites do “nordeste recifense”: São João da Parnaíba e o comércio de carnes salgadas
no Piauí na segunda metade do século XVIII
Gabriel Parente Nogueira1

Ao longo do século XVIII a porção oriental da costa leste oeste – zona que atualmente corres-
ponde à porção norte do litoral do estado do Rio Grande do Norte e aos litorais dos estados do Piauí
e Ceará – teve sua história marcada pela formação e desenvolvimento de núcleos que tiveram suas
economias caracterizadas pela exploração da produção local de carnes salgadas e couros, gêneros
estes que dos portos da região (conhecidos em conjunto pela denominação de portos do sertão) eram
exportados para as principais praças da América portuguesa. Entre os núcleos produtores da região,
destacaram-se como os mais importantes aqueles que dariam origem às vilas de Santa Cruz do Araca-
ti, na capitania do Siará Grande, e São João da Parnaíba, na capitania de São José do Piauí, vilas criadas
respectivamente nos anos de 1748 e 1762 e que juntamente com outros núcleos como os portos de
Camocim, Granja, Acaraú e Itapajé, na capitania do Siará Grande, e os de Mossoró e Assu/Oficinas na
capitania do Rio Grande do Norte, dinamizaram a economia regional no século XVIII por meio da
produção e exportação de carnes e couros.

Dentre os mercados imediatos aos quais destinavam-se as carnes e couros produzidos na


região, destacava-se a praça do Recife, de onde provinha não somente parte do financiamento para
o desenvolvimento destas atividades e de mercadorias destinadas ao suprimento das demandas do
mercado local, mas, sobretudo, grande parte dos sujeitos que, em níveis hierárquicos distintos, com-
punham as redes mercantis que, baseadas na produção local de carnes e couros, exploraram o comér-
cio regional, vinculando parcelas importantes das ribeiras que deságuam neste trecho costeiro aos
núcleos produtores de carnes salgadas da costa leste oeste que, de forma gradual e crescente, passaram
ao longo do século XVIII a configurarem-se como verdadeiros empórios regionais para onde os cria-
dores das ribeiras locais e áreas próximas destinavam seus gados em troca das mercadorias trazidas
pelos barcos que sazonalmente acorriam aos portos da região carregados com mercadorias e bens
variados e que faziam a viagem de volta para as principais praças da colônia carregados com carnes,
couros e outros gêneros da terra.

1 Mestre e Doutorando em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade


Federal do Ceará e bolsista Capes. O presente trabalho corresponde a parte da pesquisa de doutorado desen-
volvida com o auxilio financeiro da Capes, instituição a que agradeço o auxílio concedido.

1157
Mapa elaborado pelo autor

Acerca do comércio desenvolvido na região é preciso destacar que, grosso modo, encontra-
va-se inserido nos quadros da organização do comércio na América portuguesa que durante grande
parte do século XVIII, foi marcado por uma forte concentração das atividades mercantis em alguns
portos centrais como os de Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Luis e Belém que, em meio a esta or-
ganização, atuavam como portos concentradores do comércio externo e intermediadores do comércio
interno, fatores que tenderam a fazer com que estas praças, que já eram centros importantes na colônia
desde os séculos XVI e/ou XVII, ampliassem ainda mais a influência regional que já possuíam na co-
lônia, na medida em que configuravam-se como pontos nodais nas redes mercantis que exploravam o
comércio colonial ao longo do século XVIII.

A organização mercantil em tais moldes, favoreceu à constituição de zonas de influência, de


modo que as principais praças mercantis da colônia tenderam a ter sob seu intermédio o comércio de
vastas áreas que para além dos territórios das próprias capitanias em que encontravam-se inseridas,
incorporavam também territórios de outras capitanias que, além da influência econômica expressa no
modelos de organização do comércio, em muitos casos, encontravam-se sujeitas a influência política
e militar do mesmo centro de poder regional que lhe influenciava economicamente. Este era o caso
vivenciado pelo Recife, que ao longo do século XVIII – época marcada pela efetiva conquista dos
sertões do norte por meio da expansão da pecuária, crescimento populacional e forte expansão do
comércio na colônia – expandiu sua influência mercantil para um vasto território no qual incluíam-se
áreas que desde o final do século XVI e início do século XVII, vivenciavam, em maior ou menor me-
dida, a influência da capitania de Pernambuco. É a esta forte influência mercantil, crescente ao longo
do século XVIII, que Evaldo Cabral de Mello credita a ascensão do Recife que ao longo deste processo
teria criado uma zona de influência à qual o autor denomina como “Nordeste recifense”. Nas palavras

1158
de Cabral de Mello:

O Recife deveu sua fortuna histórica à função de entreposto e à dominação comercial da área
que se poderia designar de Nordeste recifense, de vez que seus limites geográficos ultrapassa-
ram os do Nordeste chamado oriental pelos geógrafos. Essa dominação, esboçada desde finais
do século XVI e consolidada ao longo da centúria seguinte, prolongou-se sob vários aspectos
até os começos do XX, reproduzindo em escala local o mesmo esquema de relações que su-
bordinava o Recife à metrópole colonial que, por sua vez, respondia aos centros da ‘econo-
mia-mundo’ ocidental. Um centro urbano domina uma região de fronteiras razoavelmente
estáveis, que vão além ou ficam aquém das jurisdições formais políticas e administrativas, me-
diante cidades transmissoras, sócias menores da cidade dominante [...]2

Segundo Evaldo Cabral de Mello, a organização da exploração comercial que pautou a ex-
pansão dos interesses dos grandes centros mercantis da colônia sobre suas áreas de influência e que
marcaram as práticas tanto do Recife como das demais praças centrais para o comércio na colônia, ca-
racterizava-se, portanto, pela constituição de núcleos mercantis regionais em suas zonas de influência,
núcleos estes que atuariam como centros intermediadores de seu comércio com os sertões remotos,
atuando, portanto, nas palavras do autor, como “cidades transmissoras, sócias menores da cidade do-
minante”; sócias estas que comporiam assim as bases de expansão das redes de influência mercantil
das principais praças da América portuguesa nos vastos sertões da colônia, bases estas que, para o
caso do Recife, compunham uma rede de influência a que Evaldo Cabral de Mello denomina como
“Nordeste recifense”.

Conforme o entendimento do autor os portos que desenvolviam o comércio de carnes e cou-


ros na porção oriental da costa leste oeste corresponderiam a alguns dos núcleos que atuariam como
“sócios menores” da “matriz recifense”, pois acerca dos limites do “Nordeste recifense”, entendido, por-
tanto, como a zona de influência mercantil do Recife, composta por centros mercantis regionais que
intermediavam o seu comércio com os sertões, especialmente no que concerne aos portos costeiros
situados na costa leste oeste, Evaldo Cabral de Mello identifica que:
Grosso modo, os limites do Nordeste recifense iam do Ceará ao baixo São Francisco (Penedo).
Limites, porém, permanentemente postos em causa pelo equilíbrio instável entre o Recife e os
entrepostos vizinhos, o Maranhão e a Bahia. Havia assim áreas de conflito, mas também de
interpenetração. Era o que ocorria no norte do Ceará, que também sofria a atração do porto de
São Luís, ou reciprocamente, no Piauí, extremo a que podia chegar o influxo do Recife. 3

O Piauí é aqui entendido basicamente como o porto de Parnaíba, que correspondia ao entre-
posto que intermediava o comércio da porção norte da capitania e áreas limítrofes com outros centros
mercantis de destaque da colônia. Conforme Cabral de Mello, Parnaíba – juntamente com os portos
da região norte do Ceará (entenda-se os portos da região dos rios Acaraú e Coreaú) – encontraria-se,
portanto, situado em uma zona de transição entre as influências mercantis das principais praças às
quais associava-se o seu comércio: São Luis e o Recife.

2MELLO, Evaldo Cabral de. Um imenso Portugal: história e historiografia. São Paulo: Ed. 34, 2002. p.179.
3 MELLO, Evaldo Cabral de. Um imenso Portugal: história e historiografia. São Paulo: Ed. 34, 2002. p.180.

1159
Sem negar a influência mercantil que São Luis e outras praças, como Salvador, exerceram no
comércio da porção norte do Piauí por intermédio do núcleo que se tornaria sede da vila de São João
da Parnaíba, criada no ano de 1762, e que se configurou como o segundo maior centro de produção
de carnes e couros na costa leste oeste, buscaremos discutir e ressaltar a forte influência exercida pelos
interesses mercantis do Recife no comércio destes gêneros desenvolvido a partir do porto de Parnaíba.
Parte central desta discussão terá como referencia uma análise acerca das trajetórias de João Paulo
Dinis e Domingos Dias da Silva, os dois negociantes que maior destaque alcançaram no núcleo de
Parnaíba na segunda metade do século XVIII, negociantes estes que tiveram suas bases de atuação
econômica na região diretamente ligadas à promoção da produção e do comércio de carnes e couros
e que se configuram como ótimos referenciais para, em conjunto, pensarmos a situação do comércio
de Parnaíba na segunda metade do século XVIII entre as influencias de São Luis e Recife e da força da
atuação dos interesses do Recife na organização e promoção do desenvolvimento do comércio de car-
nes e couros na capitania do Piauí, de modo que o núcleo de Parnaíba, assim como outros núcleos da
costa leste oeste, possa ser pensado como parte daquilo que Evaldo Cabral de Mello denomina como
“Nordeste recifense” apesar de encontrar-se situado na capitania do Piauí, cujo governo, durante o
século XVIII, encontrava-se subordinado ao governo da capitania do Maranhão.

O porto de Parnaíba e comércio de carnes e couros na costa leste oeste

Discutir as relações estabelecidas entre Parnaíba e a praça do Recife por meio do comércio de
carnes e couros que dinamizou a economia local ao longo do século XVIII e início do XIX nos leva
antes de tudo a buscar perceber o porto de Parnaíba como parte de uma região mais ampla, qual seja,
o conjunto de núcleos produtores de carnes e couros situados na porção oriental da costa leste oeste.
Pouco se sabe acerca das origens da produção e comercialização dos ditos gêneros nos portos desta
região. O que se pode deduzir, a partir de alguns indícios, é que sua organização tenha se iniciado (ao
menos com maior destaque) na ribeira do Jaguaribe no começo do século XVIII e que posteriormen-
te se ampliou para outros núcleos da região especialmente a partir de meados do século. Parte deste
entendimento encontra referência na obra de um ilustre membro da elite baiana, Sebastião da Rocha
Pita. Na descrição que fez das costas que se estendem entre o Maranhão e o Rio Grande, Rocha Pita
indicou que: “Do rio Maranhão, em distância de cento e trinta e quatro léguas de costa, corre o Jagua-
ribe, também caudaloso. Dele se contam quarenta léguas ao rio Grande, que leva copioso tributo ao
mar.”4 A menção ao Jaguaribe, o único marco indicado por Rocha Pita na descrição sucinta em que se
refere àquele vasto trecho costeiro em sua “Historia da América Portuguesa” publicada originalmente
em 1730, é um indicativo da notoriedade que a ribeira do Jaguaribe já possuía no início do século
XVIII para aquele membro elite baiana, notoriedade esta que, certamente, devia-se ao negócio das
carnes salgadas que já se desenvolvia com destaque na dita ribeira, pois, acerca do rio Jaguaribe de
forma específica, Rocha Pita destacou que:

4 PITA, Sebastião da Rocha. História da América Portuguesa. Belo Horizonte: Editora Itatiaia; São Paulo Edi-
tora da Universidade de São Paulo, 1976. p. 22.

1160
Vinte léguas para o Rio Grande, tem pelo sertão uma formosa povoação, com o nome do rio
Jaguaribe, que por ela passa, o qual seis léguas para o mar faz uma barra suficiente a embarca-
ções pequenas, que vão a carregar carnes, de que abunda com excesso aquele país5.

A “formosa Povoação” à que Rocha Pita se refere, correspondia ao povoado do Aracati, tam-
bém conhecido àquela época como São José do Porto dos Barcos ou unicamente “Porto dos Barcos”,
o mais antigo e mais importante núcleo produtor de carnes secas da costa leste oeste durante o século
XVIII.

As referências ao rio Jaguaribe, indicam que o núcleo que daria origem à sede da vila de Araca-
ti, criada no ano de 1748, já era reputado na Bahia como um importante produtor de carnes salgadas
no ano de 1724. Subentende-se desta forma que as atividades de salga de carnes já se desenvolviam,
havia algum tempo, naquela localidade, ao ponto de ser uma atividade digna de merecer a menção de
Rocha Pita em sua obra.6 Destaca-se assim que, na medida em que produção de carnes salgadas já se
desenvolvia na ribeira do Jaguaribe nos primeiros anos do século XVIII, estas atividades organizaram-
-se, portanto, em um contexto que regionalmente foi marcado pela chamada “guerra dos bárbaros”,
o que nos leva a entender que os interesses que promoveram este setor de exploração econômica da
pecuária, atuaram fortemente nas séries de conflitos que marcaram o processo de efetiva expansão da
pecuária nos chamados “sertões de fora”, tendo estabelecido na ribeira do Jaguaribe uma importante
base7.

Acerca da influência das principais praças mercantis no comércio desenvolvido na região na


primeira metade do século XVIII é digno de referência o parecer que Manuel José de Farias, ouvidor
da comarca do Siará Grande, emitiu em 24 de julho de 1744 no qual recomendava a elevação do po-
voado do Aracati à categoria de vila, dado a importância do comércio que nele desenvolvia-se, pois,
segundo o dito oficial, em sendo criada uma vila no Aracati:

5 PITA, Sebastião da Rocha. História da América Portuguesa. Belo Horizonte: Editora Itatiaia; São Paulo Edi-
tora da Universidade de São Paulo, 1976. pp. 55-56.
6 A despeito de ter sido publicada originalmente em 1730, a obra de Rocha Pita não foi escrita no dito ano.
Um elemento que nos leva a perceber que ao menos o trecho no qual o autor se refere à produção de carnes
salgadas no Jaguaribe tenha sido escrito no ano de 1724, se dá logo na sequência da citação em que Rocha Pita
faz referência aos barcos que iam ao Jaguaribe para carregar carnes, pois após referir-se ao Jaguaribe, enten-
dendo erroneamente que a dita localidade à qual se refere teria sido criada em vila àquela época, Rocha Pita
indica que: “[N] Este lugar [Jaguaribe] erigio em Villa o Doutor Joseph Mendes Machado, que foy crear a
ouvidoria geral daquella Provincia no anno passado de mil e setecentos e vinte e três(...)” Mesmo que o fato
por ele mencionado possa ser identificado como um erro, já que o Aracati só foi criada em vila no ano de 1748
sendo o ano de 1723 o ano de criação da Ouvidoria/Provedoria do Ceará – o que provavelmente corresponda
à base para o mau entendimento do autor – o fato de referir-se na citação a 1723 como “ano passado” nos leva
a entende que a referência que Rocha Pita fez à produção de carnes secas no núcleo do Jaguaribe tenha sido
escrita no ano de 1724 o que, consequentemente, nos leva a entender que para contar com reconhecimento
digno de merecer a menção na obra de Rocha Pita, as atividades de produção de carnes salgadas no Jaguaribe
já deveriam desenvolver-se há alguns anos antes de 1724.
7 Sobre o processo de conquista dos sertões por meio da promoção à guerra contra populações nativas hostis ao
avanço das fronteiras das zonas de criatório na região das ribeiras do Jaguaribe e/ou Açu-Piranhas ver: PIRES,
Maria Idalina da Cruz. Guerra dos Bárbaros: resistência indígena e conflitos no Nordeste Colonial. Recife:
Fundarpe, 1990; e PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Barbaros: Povos indígenas e a colonização no sertão do
Nordeste do Brasil, 1650-1720.São Paulo: Hucitec: Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp, 2002.

1161
[...] virá a ser a corte deste Siará em breves annos por ficar nas margens do Rio Jaguaribe na-
vegável as mesmas Somacas em distancia de três Legoas e de facto ao seo porto todos os annos
vinte e Sinco e mais q’ a troco de fazendas q’ trazem Levam a Carne e courama de dezoito thé
vinte mil Boys para Pern.co Bahia e Rio de Janeiro8

Aracati, portanto, destacava-se na primeira metade do século XVIII por uma intensa atividade
econômica marcada pela atração de embarcações (em grande parte sumacas) carregadas com mer-
cadorias destinadas a serem trocadas pelos numerosos rebanhos que descendo os sertões da região
rumo ao litoral, serviriam de base em Aracati para a produção de carnes, couros e outros gêneros que
eram destinados às praças de Recife, Salvador e Rio de Janeiro. O destaque econômico da localidade
serviu como base para a elevação do núcleo de Aracati à categoria de vila no ano de 1748. A criação da
vila, contudo, teve como uma consequência momentânea a diminuição das atividades em seu porto,
pois, os barcos que anteriormente destinavam-se ao Jaguaribe, teriam passado a buscar portos mais
ao norte, na região da ribeira do Aracaú na capitania do Siará Grande e o porto de Parnaíba na ca-
pitania do Piauí; é o que relata e justifica Alexandre de Proença Lemos, ouvidor da comarca do Siará
Grande, que em um oficio escrito a 19 de fevereiro de 1751, indicava que 03 anos após a criação da vila
de Aracati: “[...] diminuiu muito o concurso dos barcos porque vendo-se os negociantes vexados das
posturas daquela Câmara, e sem a franqueza, que gozaram antes de ali haver vila, começaram fazer
viagens para a Parnaíba e ribeira do Acaracu”9

A diminuição do afluxo de barcos no porto do Aracati e seu redirecionamento, em parte, para


o porto de Parnaíba neste período podem ser atestados por uma provisão encaminhada por Dom
José I, em 10 de maio de 1751 ao Governador e Capitão General de Pernambuco, na qual o monarca
reporta ao Governador a queixa encaminhada pelos oficiais da câmara de São Luis acerca dos impac-
tos que a freqüência de barcos oriundos da Bahia e de Pernambuco estariam gerando no comércio
de panos que a cidade de São Luis mantinha no rio Parnaíba. Conforme a provisão, os oficiais de São
Luis queixavam-se:
[...] sobre o prejuízo q se tem aquelles moradores com o comércio dos barcos, q’ continuam.e
estão entrando no Ryo Parnahiba carregados de fazendas da Bahia e dessa Cap.nia [Pernam-
buco], por cuja rezão experimentão huma grande deminuição no preço dos panos de algodão,
que os ditos moradores fabricão10

A queixa, levando em conta o período em que foi feita, confirma que a criação da vila de
Aracati, teria tido como uma de suas consequências uma expansão regional da atuação de agentes

8 1746, Dezembro, 12, Lisboa CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei [D. João V], sobre a necessidade
de se criar uma nova vila em Aracati de Jaguaribe. Anexo. cópias de cartas e provisão. AHU-CEARÁ, cx.4 ,
doc.62. AHU_CU_006, Cx. 5, D. 304.
9 STUDART, Guilherme. Notas para a História do Ceará. Brasília: Senado Federal, 2004. p. 164. Acerca da
ribeira do Acaraú, [denominada no período, por vezes, como Caracu ou Acaracu] cabe destacar que, apesar de
posteriormente ter sido subdividida, no ano de 1751 (época em que Proença Lemos escreveu o ofício indicado)
a dita ribeira incluía os rios Aracatiaçu, Acaraú e Coreaú, nos quais situavam-se os outros portos que, além do
porto de Aracati na ribeira do Jaguaribe, destacaram-se como núcleos produtores de carnes salgadas na capi-
tania do Siará Grande.
10 6038- 1751, maio, 10, Lisboa PROVISÃO (1ª via) do rei [D. José I] ao governador da capitania de Pernam-
buco, [Luís José Correia de Sá], ordenando se informe a respeito do comércio de fazendas de algodão prove-
nientes daquela capitania no rio Parnaíba. Anexo: 1 doc. AHU_CU_015, Cx. 72, D. 6038.

1162
vinculados à produção de carnes e couros para outros portos como o de Parnaíba, agentes estes que,
em grande medida, associavam-se, portanto, aos interesses mercantis das praças de Salvador e Recife
de onde provinham os barcos que passaram a fomentar o comércio na região do baixo Parnaíba. A
associação destes elementos nos levam a entender que, até meados do século XVIII, a ribeira do Jagua-
ribe corresponderia à principal base em que teriam inicialmente se estabelecido os interesses vincula-
dos à produção de carnes salgadas na região e que a criação de uma vila com sede no núcleo produtor
do rio Jaguaribe teria sido responsável pela difusão destes interesses para núcleos de outras ribeiras
como Parnaíba e Acaraú. Se para alguns esta difusão (que deu margem à expansão e ao fomento da
produção de carnes e couros em outros portos) tendeu a ser interpretada como elemento que expres-
saria concorrência entre estes núcleos11, entendemos, no entanto, que esta realidade, antes de tudo,
revela as bases comuns dos interesses que atuaram nos portos da região no que se refere à promoção
da produção e do comércio de carnes salgadas, interesses estes fortemente vinculados às principais
praças do Estado do Brasil, dentre as quais destacava-se a praça do Recife de onde provinham, ou com
a qual mantinham laços diretos, a grande maioria dentre os agentes por nós identificados, que atua-
ram na promoção do dito comércio na região.

Sobre a influência da praça do Recife no comércio promovido no porto de Parnaíba, cabe ain-
da ressaltar as informações passadas por João Pereira Caldas, o primeiro governador do Piauí. Ao refe-
rir-se ao comércio de carnes e couros que se fazia no porto de Parnaíba, João Pereira Caldas, em carta
escrita ao rei a 20 de janeiro de 1760, indicou que este comércio desenvolvia-se por meio da agência
de negociantes de Pernambuco, agência esta que certamente remontaria alguns anos antes do relato
do governador, muito provavelmente recuando à época da criação da vila do Aracati. Ao referir-se ao
comércio dos gêneros que então se fazia na barra do rio Parnaíba, Pereira Caldas ressaltava que:
Para Práticos daquella Barra [do rio Parnaíba], ha na Cidade de Pernambuco abundancia delles
dos que costumão todos os annos ou muito vir aquelle citio nos Barcos que dalli conduzem
para a dita Cidade os Gados que vem comprar a esta Capitania. He certo que a sobredita Barra
não admite entrar por ella embarcação grande, porem sempre fazem embarcações que carregão
seiscentos Boys, e mais, mas mortos, que não hé pequena carga.12

Se é possível identificar a ação de agentes mercantis das principais praças do Estado no Brasil
na promoção do negócio de carnes e couros em Parnaíba em meados do século XVIII é muito provável
que tenha sido a partir deste período que Parnaíba tenha se tornado de fato um porto mercantil com
destaque associado à produção de carne salgadas, pois sobre a produção na dita localidade de carnes
e de couros, (produtos que a despeito da origem comum atendiam demandas e mercados diversos),
Odilon Nunes indica que durante a primeira metade do século XVIII corresponderia a uma indústria
que se desenvolvia em pequena escala pois, embasado no relato feito por João da Maia da Gama que
governou o Maranhão entre 1722 e 1728, indica que:

11 Este corresponde ao entendimento expresso em alguns dos principais trabalhos que se dedicaram à anali-
sar a produção de carnes salgadas em Aracati, como é o caso de: GIRÃO, Valdelice Carneiro. As oficinas ou
charqueadas no Ceará. Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto, 1995.; e NOBRE, Geraldo da Silva. As
oficinas de carne no Ceará: Uma solução local para uma pecuária em crise. Fortaleza: Cearense, 1977.
12 CARTA do [governador do Piauí], João Pereira Caldas, ao rei [D. José] sobre as causas da decadência do comércio
no Piauí. 1760, Janeiro, 20, vila da Moucha Anexo: 2 doc. AHU-Piauí, cx. 8, doc. 3; Pará, cx. nv 798 AHU_CU_016, Cx.
6, D. 378.

1163
Já havia uma incipiente indústria de carnes e couramas. O curtimento do couro era singu-
larmente feito com casca de pau chamado angico, e produzia a melhor sola de todo o Brasil.
Mais rudimentar ainda deveria ser o processo para conservação de carnes. Não havia indústria
saladeril, baseada no charque propriamente, o que surgiria e se aperfeiçoaria com o decorrer
do tempo.13

O Odilon Nunes indica, portanto, que por volta do final da década de 1720 e início da década
de 1730 (época em que João da Maia da Gama produziu o documento de referência) as atividades
na região de Parnaíba correspondiam basicamente ao beneficiamento do couro, sendo a produção e
o comércio de carnes salgadas, mesmo que existente, de pouco destaque, aspectos que reforçam que
a efetiva dinamização da indústria de salga de carnes que marcou a economia da localidade teria se
dado, sobretudo, a partir do terceiro quartel do século XVIII. Foi neste período que se deu inicio à
atuação e estabelecimento em Parnaíba de João Paulo Dinis e Domingos Dias da Silva, dois dos mais
importantes homens de negócio a atuarem na vila de Parnaíba na segunda metade do XVIII, nego-
ciantes estes cujo destaque encontrava-se diretamente associado à promoção da indústria de salga de
carnes na capitania do Piauí.

O comércio de carnes salgada em Parnaíba e seus laços com a praça o Recife

A atuação mercantil de João Paulo Dinis e Domingos Dias da Silva e os laços econômicos e fa-
miliares por eles constituídos ao longo de suas trajetórias, correspondem a referenciais que nos levam
a perceber a situação do comércio de Parnaíba na segunda metade do século XVIII entre as influên-
cias das praças de São Luis e do Recife e os fortes vínculos que Parnaíba, por meio da produção e do
comércio de carnes salgadas, estabeleceu com a praça do Recife neste período, a despeito de encon-
trar-se situada na capitania do Piauí, cujo governo e comércio encontravam-se sujeitos às influências
imediatas de São Luís, sobretudo se levarmos em consideração a conjuntura do período, marcada pela
ação da Companhia de Comércio do Grão Pará e Maranhão, que na década de 1760 estabeleceu uma
feitoria em Parnaíba, instituição que correspondia ao espaço de representação dos interesses da dita
companhia na capitania do Piauí, cuja administração foi inicialmente conferida a João Paulo Dinis,
um dos dois negociantes destacados.

Acerca de João Paulo Dinis, apesar de não podermos precisar sua naturalidade, sabemos que
sua atuação no Piauí teve como base de referência prévia o Maranhão, onde teria estabelecido víncu-
los familiares por meio de seu casamento com Rosa Maria Joaquina Pereira de Castro que, segundo
Edgardo Pires Ferreira, seria pertencente a uma importante família com bases na vila de São Matias
de Alcântara.14 Sobre o início da atuação econômica de João Paulo Dinis no Piauí é possível de ser
remontada ao menos a um período situado entre o final da década de 1750 e o inicio da de 1760, pois
conforme o relato de Joaquim de Mello e Povoa, Governador do Maranhão, João Paulo Dinis teria
sido indicado como Administrador da feitoria de Parnaíba em razão de ser ele “[...]o mais capaz para
aquelle emprego por ser commerciante a muitos annos naquella vila e ter o melhor conhecimento do

13 NUNES, Odilon. Pesquisas para a História do Piauí V.1. . Rio de Janeiro: Artenova, s/d. p 83.
14 Ver:< http://www.parentesco.com.br > visto em: 10/10/2018.

1164
Paiz”15 Entende-se assim que em 1768, ano da dita indicação, João Paulo Dinis já se tratava de um
negociante de destaque na região. É a ele que se atribui a efetiva abertura do Parnaíba à navegação, o
que tornou o dito rio um eixo econômico de fato importante na capitania do Piauí. Parte disso, pro-
vavelmente, tenha se dado devido ao privilegiado acesso que o negociante certamente teve a terras
na região, pois segundo o mesmo Mello e Povoa, João Paulo Dinis teria comprado todas as fazendas
anteriormente pertencentes aos Jesuítas na região do Parnaíba16. Destas fazendas originavam-se parte
dos rebanhos que passaram a ser destinados à produção de carnes salgadas, que serviram de base para
as conexões que, por meio de sua comercialização a partir do porto de Parnaíba, chegaram a influen-
ciar até mesmo a pecuária do longínquo sertão dos Pastos Bons, onde João Paulo Dinis possuía terras
no rio das Balsas. O impacto destas atividades proporcionaram assim a constituição de novos cami-
nhos que, por terra e pelo rio Parnaíba, ligavam porções dos sertões da capitania do Piauí ao núcleo
mercantil de Parnaíba conforme dos indica o autor anônimo do “Roteiro do Maranhão a Goiás pela
Capitania do Piauí”. Segundo o qual:
No ano de 1770 abrio João Paulo Diniz, Negociante da Villa de São João da Barra da Parnaíba
hum novo caminho para a extração dos referidos gados; levantando Officinas nas margens do
ditto Rio Parnaíba oittenta legoas acima da sua foz; onde os reduz a carnes seccas, que carrega
em barcas pelo mesmo Rio até a ditta villa, para d’ahi serem re-exportadas à Bahia, Rio de Ja-
neiro e Pará.17

As ações econômica no setor da pecuária promovidas por este negociante não ficaram restritas
à seu perfil de proprietário de fazendas de criar e produtor e comerciante de carnes salgadas e cou-
ros, João Paulo Diniz também atuou no mercado de contratos, tendo sido arrematante de contratos
dos dízimos no Piauí, imposto este cuja principal base de cobrança na capitania era o gado, aspecto
que aumentava a margem de lucro deste agente e daqueles que compunham à rede mercantil por ele
encabeçada no Piauí e correspondia a um fator estratégico na expansão dos interesses da pecuária vol-
tada à produção de carnes salgadas no Piauí pois, além fortalecimento das relações econômicas entre
porções da capitania com o núcleo de Parnaíba, a forte atuação de João Paulo Diniz no mercado de
contratos, ampliava também sua influência política na região o que nos é dado a perceber pela indica-
ções elogiosas que o Governador do Maranhão, Joaquim de Melo e Povoas sobre ele fazia, ao dizer que
: “João Paulo Diniz tem sido utillíssimo ao Addiantamento dos Contractos destas Capitanias, por ser
homem muito franco nos seus negócios Lançando unicamente nos contractos para os fazer subir”18

15 4826- 1775, Outubro, 24, Maranhão OFÍCIO do governador da capitania do Maranhão, Joaquim de Melo e Póvoas,
para o secretário de estado dos Negócios do Reino, marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Melo, sobre a
criação da feitoria da vila de São João da Parnaíba e a nomeação de João Paulo Diniz como seu administrador. AHU_
CU_009, Cx. 49, D. 4826.
16 Acerca deste Ponto, Mello e Povoa diz que João Paulo Diniz: “Lançou sobre todos nas fazendas que forão
dos Jesuitas na Parnayba que todas elle comprou” Ver: 4826- 1775, Outubro, 24, Maranhão OFÍCIO do
governador da capitania do Maranhão, Joaquim de Melo e Póvoas, para o secretário de estado dos Negócios
do Reino, marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Melo, sobre a criação da feitoria da vila de São
João da Parnaíba e a nomeação de João Paulo Diniz como seu administrador. AHU_CU_009, Cx. 49, D. 4826.
17 Roteiro do Maranhão a Goiaz pela capitania do Piauhi. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Bra-
sileiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1899. TOMO LXII. parte 1, p. 64.
18 4826- 1775, Outubro, 24, Maranhão OFÍCIO do governador da capitania do Maranhão, Joaquim de Melo e Póvoas,
para o secretário de estado dos Negócios do Reino, marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Melo, sobre a
criação da feitoria da vila de São João da Parnaíba e a nomeação de João Paulo Diniz como seu administrador. AHU_
CU_009, Cx. 49, D. 4826

1165
A indicação de João Paulo Dinis como administrador da feitoria de Parnaíba teria tido como
uma de suas conseqüências o seu afastamento das atividades comerciais por vias diretas, pois confor-
me expressa o Governador Mello e Povoa, para assumir o dito posto, João Paulo Dinis: “deyxou seu
negocio vendeo as suas Embarcações e perdeo os seus Correspondentes”19 A referência de que João
Paulo Dinis teria afastado-se dos seus negócios quando assumiu a administração da feitoria (o que se
deu no ano de 1768) nos leva a associar esse fato com a emergência de Domingos Dias da Silva, como
negociante de destaque em Parnaíba, o que ocorre no início década de 1770, quando Dias da Silva se
estabeleceu na vila, abrindo casa comercial e atuando com grande destaque na promoção da produção
e do comércio de carnes salgadas e couros no Piauí.

A atuação econômica de Domingos Dias da Silva em Parnaíba foi marcada entre outros aspec-
tos pela promoção da navegação direta entre o porto de Parnaíba e o de Lisboa com barcos soltos que,
entre o final dos anos de 1770 e início dos de 1790 viajaram diretamente para o reino, com freqüência
quase anual, carregados em grande medida com couros. De forma semelhante a João Paulo Dinis, as
ações econômicas de Domingos Dias da Silva no Piauí também caracterizaram-se pela forte atuação
na produção de carnes salgadas, que juntamente com couros eram exportadas para as principais pra-
ças da colônia com as quais Domingos Dias da Silva manteve intenso comércio e também por uma
forte presença na arrematação de contratos dos dízimos da capitania, que se expressa, entre outros
casos, na arrematação por dois triênios seguidos dos dízimos de três freguesias no Piauí, freguesias
estas que, conjuntamente, tiveram os contratos de seus dízimos arrematados por Domingos Dias da
Silva por valores que somados totalizaram importâncias que, para cada triênio, superaram o valor de
26:000$000.20

Natural da Freguesia de Santa Maria de Padornelos termo da Vila de Monte Alegre, arcebis-
pado de Braga, Domingos Dias da Silva é indicado como morador na vila do Recife em seu processo
de habilitação como Familiar do Santo Ofício desenvolvido entre os anos de 1769 e 177021. Se o seu
estabelecimento em Parnaíba se deu em princípios da década de 1770, acreditamos, contudo, que
suas relações com a dita vila sejam anteriores à sua “sedentarização” em Parnaíba como mais impor-
tante mercador de lojas da vila, pois conforme informação transmitida pelas cinco testemunhas do
Recife consultadas em seu processo de habilitação, Domingos Dias da Silva, à época das consultas no
Recife (1769), viveria de seu negócio que corresponderia à época à sua atuação, como dono e mestre
de embarcação, no setor de transporte que ligava o Recife a outras praças, com especial destaque
aos chamados “portos do sertão”, mencionados de forma específica por duas das cinco testemunhas
19 4826- 1775, Outubro, 24, Maranhão OFÍCIO do governador da capitania do Maranhão, Joaquim de Melo e Póvoas,
para o secretário de estado dos Negócios do Reino, marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Melo, sobre a
criação da feitoria da vila de São João da Parnaíba e a nomeação de João Paulo Diniz como seu administrador. AHU_
CU_009, Cx. 49, D. 4826
20 Ver: 808- 1784, Julho, 1, Oeiras do Piauí CARTA do governo interino do Piauí, à rainha [D. Maria I], sobre
o envio de uma certidão da arrematação dos dízimos reais do Piauí, referente aos anos de 1776 a 1778. Anexo:
3 docs. AHU-Piauí, cx. 13, doc. 2, 9 AHU_CU_016, Cx. 14, D. 808.; 847- 1787, Maio, 4, Oeiras do Piauí
OFÍCIO do governo interino do Piauí, ao [secretário de estado da Marinha Ultramar], Martinho de Melo e
Castro, sobre a arrematação dos dízimos reais do triénio de 1779 a 1781. Anexo: 3 docs. AHU-Piauí, cx. 13,
doc. 32 AHU_CU_016, Cx. 17, D. 847.
21 DILIGÊNCIA DE HABILITAÇÃO DE DOMINGOS DIAS DA SILVA. TORRE DO TOMBO: Tribunal do San-
to Oficio, Conselho Geral, Habilitações, Domingos, mç. 52, doc. 830

1166
consultadas. Dentre as testemunhas deste processo encontra-se o então sócio de Domingos Dias da
Silva, Domingos Pires Ferreira, homem de negócio estabelecido no Recife e que no ano de 1757 foi
signatário, em companhia de 13 outros negociantes do Recife, de um requerimento no qual solicita-
vam a criação de uma companhia monopolista para a exploração do comércio de carnes e couros do
sertão.22

Domingos Pires Ferreira foi um homem de negócio pertencente a um importante grupo fami-
liar de negociantes com interesses sediados no Recife cujos membros atuavam fortemente na explora-
ção do comércio dos portos do sertão situados da porção oriental da costa leste oeste, com negócios
associados à exploração econômica dos setores de carnes salgadas, couros, salinas e bancos pesquei-
ros. Foi muito provavelmente por intermédio da ação deste importante negociante que Domingos
Dias da Silva inseriu-se nas redes mercantis que exploravam o comércio de carnes salgadas nos portos
do sertão que indicam suas vinculações com a exploração da produção e comércio de carnes e couros
antes de seu estabelecimento efetivo em Parnaíba. Manuel de Oliveira Garrido, testemunha em seu
processo de habilitação, disse que conhecia Domingos Dias da Silva por intermédio de seu sócio, Do-
mingos Pires Ferreira, em cuja casa, Dias da Silva, seria assistente. Já o próprio Pires Ferreira disse, em
1769, que Domingos Dias da Silva vivia: “[...] de seu negocio transportando fazendas e vários gêneros
deste porto para outros e daquelles para este e em imbarcação própria e que isto sabe elle testemunha
por conhecello a quinze annos tratando sempre com elle o mesmo negocio” 23

Se Domingos Pires Ferreira indicou conhecer Domingos Dias da Silva desde um período que
remontaria, portanto, à meados da década de 1750, (quando Dias da Silva tinha pouco mais de vinte
anos)24 e que este momento corresponderia ao período em que expandiu-se a produção de carnes sal-
gadas e couros no porto de Parnaíba, é muito provável que Dias da Silva fosse um dos muitos práticos
da barra do rio Parnaíba, a que João Pereira Caldas dizia haver no Recife no início da década de 1760.
Sua inserção nos circuitos de produção e comercialização de couros e carnes salgadas em Parnaíba
provavelmente tenha se dado como mestre de embarcação atuando como agente de Pires Ferreira no
setor de transporte, por meio da navegação de cabotagem que conectava o Recife aos portos do sertão
da costa leste oeste.

Se claro fica a representação dos interesses de Domingos Pires Ferreira na exploração do co-
mércio de carnes salgadas e couros no porto de Parnaíba por meio de sua associação com Domingos
Dias da Silva, ressalta-se que estes interesses mostram-se ainda mais estreitos ao identificarmos que
uma das duas filhas de João Paulo Dinis, por nome Mariana de Deus Castro Dinis, teve por espo-

22 A indicação de que Domingos Dias da Silva seria sócio de Domingos Pires Ferreira não consta no testemunho deste
último, mas no de Manuel de Oliveira Garrido, homem de negocio que foi a segunda testemunha consultada no Recife no
processo de Habilitação de Domingos Dias da Silva. Já sobre a solicitação de Negociantes do Recife para a Criação de
uma companhia de comércio de carnes e couros do sertão ver: 1757, maio, 21, Recife. OFÍCIO do [governador da capita-
nia de Pernambuco], Luís Diogo Lobo da Silva, ao [secretário de estado do Reino e Mercês], Sebastião José de Carvalho
e Melo, sobre o requerimento dos homens de negócios daquela praça, em que pedem a criação de uma Companhia para
resgatar as carnes secas e couros do sertão. Anexos: 7 docs. AHU_CU_015, Cx. 84, D. 6965.
23 DILIGÊNCIA DE HABILITAÇÃO DE DOMINGOS DIAS DA SILVA. TORRE DO TOMBO: Tribu-
nal do Santo Oficio, Conselho Geral, Habilitações, Domingos, mç. 52, doc. 830.
24 Conforme informações contidas em seu processo de Habilitação a Familiar do Santo Oficio, Domingos Dias
da Silva nasceu em 21/12/1732 tendo sido batizado no dia 25/12/1732.

1167
so José Pires Ferreira, um dos filhos de Domingos Pires Ferreira25, o que indica as íntimas relações
que ligavam Domingos Pires Ferreira aos dois principais produtores de carnes salgadas de Parnaíba.
Elementos que ressaltam que, mesmo que sujeito às influencia intermediaria de São Luis, o porto de
Parnaíba, por meio da produção e comercialização de carnes salgadas, pode ser percebido na segunda
metade do século XVIII como um núcleo em que atuaram fortemente os interesses de negociantes da
praça do Recife.

• Bibliografia e Fontes Impressas:


GIRÃO, Valdelice Carneiro. As oficinas ou charqueadas no Ceará. Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto,
1995.

MELLO, Evaldo Cabral de. Um imenso Portugal: história e historiografia. São Paulo: Ed. 34, 2002.

NOBRE, Geraldo da Silva. As oficinas de carne no Ceará: Uma solução local para uma pecuária em crise. For-
taleza: Cearense, 1977.

NUNES, Odilon. Pesquisas para a História do Piauí V.1. . Rio de Janeiro: Artenova, s/d. p 83.

PIRES, Maria Idalina da Cruz. Guerra dos Bárbaros: resistência indígena e conflitos no Nordeste Colonial.
Recife: Fundarpe, 1990.

PITA, Sebastião da Rocha. História da América Portuguesa. Belo Horizonte: Editora Itatiaia; São Paulo Editora
da Universidade de São Paulo, 1976.

PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Barbaros: Povos indígenas e a colonização no sertão do Nordeste do Brasil,
1650-1720.São Paulo: Hucitec: Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp, 2002.

Roteiro do Maranhão a Goiaz pela capitania do Piauhi. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasilei-
ro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1899. TOMO LXII. parte 1.

STUDART, Guilherme. Notas para a História do Ceará. Brasília: Senado Federal, 2004.

• Fontes Manuscritas

o Arquivo Nacional da Torre do Tombo:

DILIGÊNCIA DE HABILITAÇÃO DE DOMINGOS DIAS DA SILVA. TORRE DO TOMBO: Tribu-


nal do Santo Oficio, Conselho Geral, Habilitações, Domingos, mç. 52, doc. 830.

o Arquivo Histórico Ultramarino

1746, Dezembro, 12, Lisboa CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei [D. João V], sobre a neces-
sidade de se criar uma nova vila em Aracati de Jaguaribe. Anexo. cópias de cartas e provisão. AHU_
CU_006, Cx. 5, D. 304.

1751, maio, 10, Lisboa PROVISÃO (1ª via) do rei [D. José I] ao governador da capitania de Pernam-
buco, [Luís José Correia de Sá], ordenando se informe a respeito do comércio de fazendas de algodão
provenientes daquela capitania no rio Parnaíba. Anexo: 1 doc. AHU_CU_015, Cx. 72, D. 6038.

25 Ver:< http://www.parentesco.com.br > visto em: 10/10/2018.

1168
1757, maio, 21, Recife. OFÍCIO do [governador da capitania de Pernambuco], Luís Diogo Lobo da
Silva, ao [secretário de estado do Reino e Mercês], Sebastião José de Carvalho e Melo, sobre o reque-
rimento dos homens de negócios daquela praça, em que pedem a criação de uma Companhia para
resgatar as carnes secas e couros do sertão. Anexos: 7 docs. AHU_CU_015, Cx. 84, D. 6965.

1760, Janeiro, 20, vila da Moucha CARTA do [governador do Piauí], João Pereira Caldas, ao rei [D.
José] sobre as causas da decadência do comércio no Piauí. Anexo: 2 doc. AHU_CU_016, Cx. 6, D. 378.

1775, Outubro, 24, Maranhão OFÍCIO do governador da capitania do Maranhão, Joaquim de Melo
e Póvoas, para o secretário de estado dos Negócios do Reino, marquês de Pombal, Sebastião José de
Carvalho e Melo, sobre a criação da feitoria da vila de São João da Parnaíba e a nomeação de João
Paulo Diniz como seu administrador. AHU_CU_009, Cx. 49, D. 4826.

1784, Julho, 1, Oeiras do Piauí CARTA do governo interino do Piauí, à rainha [D. Maria I], sobre o
envio de uma certidão da arrematação dos dízimos reais do Piauí, referente aos anos de 1776 a 1778.
Anexo: 3 docs. AHU_CU_016, Cx. 14, D. 808.

1787, Maio, 4, Oeiras do Piauí OFÍCIO do governo interino do Piauí, ao [secretário de estado da Ma-
rinha Ultramar], Martinho de Melo e Castro, sobre a arrematação dos dízimos reais do triénio de 1779
a 1781. Anexo: 3 docs. AHU_CU_016, Cx. 17, D. 847.

1169
A Intendência da Marinha e Armazéns Reais no Arsenal da Bahia: aspectos políticos e eco-
nômicos (1770-1808)
Halysson Gomes da Fonseca1

A perspectiva de uma malha governamental altamente centralizada na metrópole e permeada


pela indefinição das áreas de jurisdições específicas entre as repartições administrativas existentes
nos domínios ultramarinos contribuiu para que Caio Prado Jr2 concluísse pela ideia da caótica admi-
nistração colonial, deixando para trás aspectos importantes das instituições administrativas. Desde a
investigação que contemplou a Câmara Municipal de Salvador por Affonso Ruy, em 1953,3 temos um
reduzido conjunto de obras publicadas sobre as instituições da administração colonial baiana, em que
se destacam os estudos clássicos do Tribunal da Relação da Bahia de Stuart Schwartz, 4 e da Câmara
Municipal de Salvador de Avanete Sousa.5

Acerca das instituições responsáveis pela construção náutica no ultramar, tem-se um quadro
ainda mais alarmante. Embora os historiadores dedicados à economia e sociedade do Império por-
tuguês reconheçam a importância do tema, permaneceu por muito tempo como objeto de estudo de
historiadores militares.6 Amaral Lapa foi um dos primeiros a destacar a necessidade de um estudo
aprofundado sobre as instituições, que, de alguma forma, afetaram a carreira da Índia e o funciona-
mento do porto da Bahia. Dedicou um capítulo ao “aproveitamento da madeira e as feitorias reais”, à
definição do que seriam as feitorias reais, ao estudo da natureza do capital nelas empregados e a mão
de obra utilizada. Trata-se de uma contribuição historiográfica em que o autor reconhece sua insufi-
ciência e caráter de síntese.7 Outro autor, Jobson Arruda, sem aprofundamentos no tema, afirma ser
essencial o estudo da construção naval no Império, a fim de melhor compreender a época moderna,
caracterizada pelo capitalismo comercial, pois eram as embarcações que faziam circular a riqueza,

1 Mestre em História (UFBA/2010) e professor da Universidade do Estado da Bahia. Este texto é parte do
projeto de pesquisa de doutoramento em curso no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal da Bahia (PPGH/UFBA), que obteve apoio da FAPESB. E-mail: halysson.gomes@yahoo.com.br
2 PRADO JR., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia. São Paulo: Brasiliense, 1999. (1. ed., 1942).
3 RUY, Affonso. História da Câmara Municipal de Salvador. Salvador: Câmara Municipal, 1953.
4 SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial. São Paulo: Perspectiva, 1979.
5 SOUSA, Avanete P. Poder Local e Cotidiano: a câmara de Salvador no século XVIII. 1996. Dissertação (Mes-
trado) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1996; _____. A
Bahia no Século XVIII: poder político local e atividades econômicas. São Paulo: Alameda, 2012.
6 A maior parte das obras foi publicada pela Marinha do Brasil por indivíduos a ela ligados. A mais expressiva
para a nossa pesquisa é a História da Intendência da Marinha, de Luís Cláudio Pereira Leivas e Levy Scarvada
(Rio de Janeiro: Diretoria da Intendência da Marinha, 1972). Também a Revista NAVIGATOR tem reunindo
trabalhos importantes, incentivando o debate e a pesquisa sobre temas de História Marítima, aberta aos pes-
quisadores em geral, conta com alguns artigos que se aproximam da temática em tela, porém voltados à outras
capitanias, como o Reio de Janeiro. Cf.: MALVASIO, Ney Paes Loureiro. “A reforma da Marinha de Guerra
portuguesa no período pombalino (1761/1777): a criação de uma Marinha estritamente militar e profissional e
as fontes para seu estudo.” Navigator, v. 5, n. 10, 2009.
7 LAPA, José Roberto do Amaral. “História de um Navio”. In: ____. Economia Colonial. São Paulo: Perspecti-
vas, 1973, p. 231-293.

1170
daí a necessidade de pesquisas não apenas sobre a construção naval, mas sobre as instituições que
coordenavam tais atividades, o funcionamento e composição das frotas, a participação dos portos no
complexo sistema atlântico, entre outros. Afirma o autor:
Um tema essencial e necessário é o da construção naval. A enorme variedade de
madeiras nobres listadas nas três frotas, muitas delas já desdobradas, não era apenas
destinada à indústria moveleira, mas, sobretudo, para os arsenais portugueses. Já no
século XVII multiplicavam-se as instalações destinadas à construção de navios no
Brasil, localizadas na Bahia, no Rio de Janeiro, Paraíba e Maranhão, alcançando no
século XVIII padrões de qualidade e competitividade com os arsenais portugueses.
O escambo de escravos na África, como vimos, intensificado na segunda metade do
século XVIII e a tradicional carreira da Índia, levaram as autoridades portuguesas
primeiramente a liberar e, depois, estimular o desenvolvimento desta indústria na
colônia.8

O contraponto dessa realidade encontra-se na historiografia portuguesa. A historiadora Leo-


nor Freire Costa dedica-se, em sua obra magistral, ao universo dos transportes no comércio com o
Brasil nos séculos XVI e XVII, em que destacou aspectos dos portos e instituições do reino e também
a estrutura das frotas. Para ela, a eficiência dos transportes foi fundamental para o alargamento dos
mercados, e as conjunturas do tráfico são determinantes para a economia dos transportes, uma preo-
cupação central de seu trabalho.9 Em outro clássico português publicado pela primeira vez em 1993,
História de Portugal, ela dedicou-se ao tema da construção naval com afinco, demonstrando as engre-
nagens do sistema produtivo no reino e diversos aspectos importantes para a compreensão dessa in-
dústria dos transportes.10 Também em um ensaio publicado em 1996, explorou aspectos empresariais
da construção naval,11 ambos voltados para os séculos XVI e XVII.

Foi ao longo do século XVII que a América portuguesa adquiriu crescente importância no
contexto do Império português, fazendo do Atlântico “um espaço de articulação dos três continentes
que o bordejavam”.12 Entretanto, ainda que a navegação tenha se caracterizado pela irregularidade no
século anterior, o porto da Bahia de Todos os Santos já se constituía num dos mais importantes do
ultramar, capaz de proporcionar a defesa, movimentar as mercadorias e reparar e abastecer as embar-
cações que perfaziam a carreira da Índia. Testemunho disso, o estaleiro da Bahia, instalado por Tomé
de Sousa por volta de 1550, tornou-se uma importante referência de produção e concertos náuticos
no Atlântico Sul da era moderna, assim como ponto de escala para embarcações portuguesas e es-

8 ARRUDA, J. J. A. Frotas de 1749: um balanço. Ler História, Lisboa, p. 83-98, 2000.


9 COSTA, Leonor Freire. O Transporte no Atlântico e a Companhia Geral do Comércio do Brasil (1580-1663).
Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2002.
10 COSTA, Leonor Freire. Construção Naval. In: MATTOSO, José (Dir.). História de Portugal. Lisboa: Círculo
de Leitores, 2014, v. 3, p. 325-349. Esse estudo é o que mais se aproxima do que pretendemos abordar em nossa
pesquisa. Leonor Costa traz a geografia histórica da produção naval no território português. Infelizmente, um
corpo documental muito utilizado por ela nesse trabalho infelizmente não alcança o século XVIII, trata-se do
“Corpo Cronológico” (Arquivo Nacional da Torre do Tombo – ANTT, Portugal).
11 COSTA, Leonor Freire. “Aspectos empresariais da construção naval no século XVI: o caso da Ribeira das
Naus de Lisboa”. Análise Social, v. 31, n. 136/137, p. 295-312, 1996.
12 COSTA, Leonor Freire. Impérios e grupos mercantis. Entre o Oriente e o Atlântico (Século XVII). Lisboa:
Livros Horizonte, 2002, p. 41.

1171
trangeiras.13 José Roberto do Amaral Lapa evidenciou o seu papel estratégico e central, afirmando que
desde os primórdios da colonização, chamavam-no “Porto do Brasil”, como se não houvesse outro no
ultramar.

Ainda de acordo com Amaral Lapa, a história da construção naval deve ocupar-se das implica-
ções que a atividade ocasionou e a real economia de divisas que representou para a metrópole.14 Acre-
ditamos que na capitania da Bahia empregou-se parte considerável do excedente fiscal na construção
naval. Como sugeriu o historiador Ângelo Carrara, as rubricas das remessas para Lisboa, no caso da
Bahia, estariam “embutidas em rubricas específicas”, ligadas à atividade naval da capitania no século
XVIII.15

A Intendência da Marinha e Armazéns Reais do Arsenal da Bahia foi criada em 3 de março


de 1770, através de alvará que se destinava também à regulamentação da Junta da Fazenda e criação
do cargo de Intendente da Marinha na Bahia. Assim, o rei de Portugal, D. José I, extinguiu o ofício
de Provedor-mor da Fazenda da Capitania da Bahia, absorveu a Vedoria do Exército, unificando os
almoxarifados dos Armazéns Reais (Armazém dos Materiais da Coroa, Armazém das Munições e Ar-
mazém dos Mantimentos), fazendo-os convergir para a alçada do novo cargo de intendente, que por
dever tinha assento na Junta da Fazenda, participando em suas reuniões colegiadas.

Problemas nas arrecadações e cobranças de direitos na Alfândega da Bahia anunciavam a ne-


cessidade de mudar os métodos e a estrutura de repartições cujos funcionamentos fossem análo-
gos a ela. O peculato ocorrido a partir de 1727 sinalizava muito precisamente o problema metodo-
lógico praticado pelas instituições de controle financeiro e fiscal até a década de 1760.16 A própria
estrutura do Arsenal Real e estaleiro da Ribeira das Naus passou a ser alvo de questionamentos acerca
da administração de recursos dispensados. O Contador Geral dos Contos, Antônio Ferreira Cardoso,
já apontava, em 1766, que
Na Ribeira das Naus se despende em cada um triênio em jornais de Mestres, oficiais e
pretos, mas de cem mil cruzados sem haver fabricar lhe Nau, que respeita a cada um
dia de trabalho muito perto de 40$000 e esta administração também se não acha com
as devidas cautelas para não haver extração, e é preciso aplicarem-se lhe providências
pelas grandes quantias que se dispende.17

Quando em 1761 foi estabelecida a Junta de Administração e Real Fazenda da Capitania da


Bahia, os deputados da instituição fizeram críticas à estrutura e funcionamento da Ribeira das Naus,
o que pode ter influenciado no estabelecimento da Intendência. Como destacou a Coroa no Decreto
13 LAPA, José Roberto do Amaral. A Bahia e a Carreira da Índia. Ed. Brasiliana, 1968, p. 51; BOXER, Charles
R. O império marítimo português, 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
14 LAPA, J. R. A. História de um Navio. In: _____. Economia Colonial. São Paulo: Editora Perspectiva S. A,
1973, p. 231-293.
15 CARRARA, Ângelo Alves. Receitas e Despesas da Real fazenda no Brasil, século XVIII. Juiz de Fora: UFJF,
2009, p. 104.
16 CERQUEIRA E SILVA, Ignácio Accioli. Memórias Históricas e Políticas da Província da Bahia. Bahia: Tipo-
grafia do Correio Mercantil, 1835, tomo I, p. 250-252 (nota n. 83).
17 AHU_Cx. 34, Doc. 7413. Bahia, 16 de Agosto de 1766.

1172
de 7 de Março de 1770, tais medidas foram tomadas buscando mais rigor nas contas públicas e que
as “atividades de marinha se desenvolvesse na conformidade dos Regulamentos Militares”, esses re-
formados anteriormente pelo Conde de Lippe. Essa repartição econômica militar funcionou até 1808
sem transformações estruturais que a descaracterizasse.18

O intendente controlava os armazéns por livros auxiliares, mas com um só almoxarife, e servia
como deputado na Junta da Fazenda, com direito ao voto. Tinha como atribuições fazer vistorias nos
navios, verificando se levavam o necessário para as viagens; tomar dos capitães das embarcações os
“termos de fiança”, “termo de levarem cavalo”, “termo de levarem capelão”; fazer arqueações e visitas
nas embarcações da África junto ao Procurador da Fazenda, Patrão-mor e Mestre da Ribeira; vistoriar
as obras reais com o Procurador da Coroa; tirar devassa quando chegarem os navios, observando as
leis; comprar os gêneros necessários aos armazéns reais.19

O Intendente perfazia ordenado da monta de 800$000 réis, mais propina das arrematações
da Junta e propina dos contratos da capitania, e sua repartição incluía quinze funcionários diretos,
dentre os quais um “cirurgião”, um “mestre da obra” e um “mestre calafate”, com ordenados de 24$000,
200$750 e 292$000, respectivamente.20 Luiz dos Santos Vilhena acrescenta alguns indivíduos ligados
indiretamente à Intendência da Marinha, como dez remadores com vencimentos de 240 réis por dia
e oito guardas dos forçados que venciam 100 réis o dia e uma quarta de farinha terra de dez em dez
dias, sugerindo que seriam eles parte das despesas ordinárias e extraordinárias, dando uma ideia do
número de indivíduos necessários para a consecução de suas atividades.21

A intendência não se limitava às atividades militares, muito embora elas formassem sua base
de princípios norteadores, era a perspectiva de coordenação logística que a regia. As embarcações
mercantis transatlânticas carregavam consigo peças de artilharia, assim como as costas marítimas
necessitavam de constante defesa. Dessa forma, as atividades da referida intendência estavam distri-
buídas no complexo cotidiano portuário, por vezes de modo sutil, por permearem as amplas ações de
aprovisionamento das embarcações, de revistas, de reparos, de recepção de embarcações estrangeiras,
de compra de material necessário aos armazéns reais, de controle de despesas e das atividades da Ri-
beira com a construção naval baiana.

Tratava-se de um órgão cuja maior função era de aporte, posicionava-se sempre como núcleo
18 Decreto do rei D. José ao Conselho Ultramarino referente à resolução de extinção do Ofício de Provedor-
-mor da Fazenda da capitania da Bahia e criação do lugar de Intendente da Marinha e Armazéns reais dela, com
o governo da vedoria. Lisboa, 7 de Março de 1770. AHU_ACL_CU_005, Cx. 164, Doc. 12443.
19 Alvará de criação do Intendente da Marinha no Arsenal da Bahia de 3 de Março de 1770, dando procedi-
mentos para a Administração Fazendária da Colônia, e definindo as atribuições da Junta da Administração da
Fazenda na mesma Capitania, que o Intendente da Marinha integrava como Ministro. In: LEIVAS, Luis Cláudio
Pereira; SCAVARDA, Levy. História da Intendência da Marinha. Rio de Janeiro: Diretoria da Intendência da
Marinha, 1972.
20 A responsabilidade da vedação de cascos, e a relação deles com naufrágios e acidentes, justificava o ordenado
do mestre calafate. Os demais foram: o “escrivão do almoxarife”, o “almoxarife da ribeira”, o “meirinho da junta
Real da Fazenda”, o “escrivão do meirinho”, o “patrão mor da ribeira”, o “feitor da ribeira”, o “guarda da ribeira”, o
“apontador”, o “porteiro da ribeira”, o “guarda pregos”, o “patrão da galé” e o “barbeiro e sangrador”. VILHENA,
Luiz dos Santos. A Bahia do século XVIII. Salvador: Itapuã, 1969, v. 2, p. 341.
21 VILHENA, Luiz dos Santos. A Bahia do século XVIII. Salvador: Itapuã, 1969, v. 2, p. 341.

1173
de comando, respondendo a demandas surgidas e planejando a superação de obstáculos logísticos e
financeiros da construção e da ação naval, através de prospecções conjunturais, climáticas, tecnológi-
cas, econômicas e diplomáticas. Considerando a grande importância de Salvador para o contexto de
construção e reparos navais do império marítimo lusitano e a guerra entre as Coroas ibéricas no Sul
da América do período, percebemos que o interesse régio extrapolava a modernização contábil decor-
rente da criação do Erário Régio, mesclando interesses militares e mercantis que a própria guerra exi-
gia da Capitania da Bahia em relação ao Rio Grande de São Pedro, com quem ela passara a aumentar
seus negócios a partir dos novos conflitos da década de 1770.

(...) em termos de fluxo de mercadorias e de embarcações, sobretudo a partir do sécu-


lo XVIII, era o comércio com o Rio Grande de São Pedro do Sul, atual Rio Grande do
Sul, para onde se enviavam roupas, tecido, sal, açúcar, doces e escravos, recebendo-
-se, em troca, farinha de trigo, courama, queijos, sebo, velas, milho e, principalmente,
carne seca e salgada.22

Os inúmeros reparos de embarcações mercantis ou militares na Bahia exigiam grandes esfor-


ços das autoridades envolvidas na gestão e execução das atividades, que ultrapassavam o empenho
na busca de matéria-prima e gestão da mão de obra. No porto, era necessário coibir o contrabando,
a proliferação de doenças, o excesso de despesas com os consertos,23 cuidar do prazo de lançamento
de embarcações, das munições e provisões, além do fornecimento de água potável. Tratava-se de uma
zona movimentada, exportando volume considerável de mercadorias,24 concentrando negócios e ne-
gociantes sempre dispostos à realização de descaminhos e reunindo um aglomerado de embarcações
de vários tipos, ligando mercados e praças comerciais.25

O indiscutível vigor centralista do período pombalino (1750-1777) foi observado diante da


capitalidade de Salvador no século XVIII, característica enfatizada por John Russel-Wood,26 Avanete

22 SOUSA, Avanete, P. A Bahia no Século XVIII: poder político local e atividades econômicas. São Paulo: Ala-
meda, 2012, p. 42.
23 Quanto mais tempo uma embarcação permanecesse no porto, maior seria a despesa com marinheiros e
homens do mar aquartelados, além dos prejuízos com perdas das mercadorias perecíveis.
24 Os principais produtos exportados pela Bahia do período, por ordem de importância, eram o açúcar branco,
o tabaco, o açúcar mascavo, o algodão, os couros secos, a ½ sola, os couros salgados, a aguardente, as vaquetas
e a ipecacuanha. Acrescentam a esses uma imensa variedade de produtos alimentícios, da courama, de drogas,
de madeiras e outros gêneros. A composição das importações na Bahia, produtos das fábricas [do Reino],
tem maior porcentagem em todo o período. Em 1800, atingiu 39% do montante das importações. O comércio
da Ásia tem um peso considerável, representa, em 1796, 16,5% e em 1797, 27,3%. A Bahia mantinha intenso
comércio intercolonial, abastecendo de escravos outras capitanias. ARRUDA, José Jobson de A. O Brasil no
Comércio Colonial. São Paulo: Ática, 1980, p. 189-208.
25 MASCARENHAS, M.ª J. R. Salvador e seu Recôncavo: “O Empório do Universo”. In: XXVI SIMPÓSIO NA-
CIONAL DA ANPUH. 2011. São Paulo. Anais... . São Paulo: ANPUH-SP, 2011, v. 1.
26 RUSSEL-WOOD, A. J. R. A projeção da Bahia no Império Ultramarino português. In: IV CONGRESSO DE
HISTÓRIA DA BAHIA. 2011. Salvador. Anais... IGHB, 2011; _____. Centros e Periferias no Mundo Luso-Bra-
sileiro (1500-1808). Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 18, n. 36, 1998; _____. Histórias do Atlântico
Português (org. Ângela Domingues e Denise A. Soares de Moura). São Paulo: Editora Unesp, 2014.

1174
Souza27 e Maria José Mascarenhas.28

As atividades desenvolvidas pela Intendência da Marinha geraram movimentações na cida-


de de Salvador e seu entorno, deixando impactos em termos econômicos e políticos.29 As contas de
despesas das construções navais na Bahia, associadas a outras fontes, possibilitam o mapeamento de
grupos envolvidos nessas articulações, e as disputas em torno do cargo, quando as solicitações de no-
meação se avolumaram, também se tornam elucidativas da importância social e econômica do cargo.30

As fontes pesquisadas indicam que o cargo de Intendente da Marinha foi muito disputado pe-
las elites locais, possivelmente porque atuava na área portuária e cabia a ele a vistoria das embarcações,
o que poderia possibilitar intervenções na economia de exportação, já que também era membro na
Junta da Fazenda. Ainda como assevera José Subtil, analisando o cargo em Portugal, os intendentes
limitavam a supremacia de tribunais e magistrados, influenciando diretamente nas decisões dos tribu-
nais régios. Para o autor, constituíam-se em
(...) altos funcionários da Coroa a quem competia a administração dos negócios, so-
bretudo do governo econômico, sendo um dos polos mais dinamizadores da centra-
lização política e do novo modelo de governo.31

Os intendentes da marinha providos pela Coroa para atuarem na Bahia do final do século

27 SOUSA, Avanete Pereira. Poder local e autonomia camarária no Antigo Regime: o Senado da Câmara da
Bahia (século XVIII). In: BICALHO; FERLINI (Org.). Modos de Governar: ideias e práticas no Império portu-
guês (séculos XVI-XIX). São Paulo: Alameda, 2005.
28 Op. cit., 2011.
29 Officio do Intendente da Marinha Henrique da Fonseca Sousa Prego para o Visconde de Anadia, no qual
informa acerca das avarias da charrua S. João Magnanimo, da exportação de madeiras para o Reino e da impor-
tância das despesas feitas com a construcção da Nau Principe do Brazil. Bahia, 7 de Abril de 1804. AHU, cx. 131,
doc. 25950; Termo da Vistoria a que se procedeu a bordo da charrua Real S. João Magnanimo, sob o comando
do 2º Tenente da Marinha Guilherme da Silva Garvo. Bahia, 5 de Abril de 1804. AHU, cx. 131, doc. 25951; Con-
ta Geral da despesa feita com a Nau Principe do Brazil. Bahia, 7 de Abril de 1804. AHU-CA, cx. 131, doc. 24953.
30 Antonio José de Sousa Freire Tavares de Brito de Castro e Sampaio solicita o cargo em 9 de Agosto de 1782;
Tomás Inácio de Morais Sarmento, em 20 de Maio de 1794; Bernardino José de Castro, em 17 de Outubro de
1795; Francisco Sabino Álvares da Costa Pinto, em 12 de Setembro de 1796; mas é nomeado, por Carta Régia
de 31 de Janeiro de 1797, José Francisco Perné, oficial português da Marinha Real, a despeito das solicitações,
destacado como conhecedor dos regimentos do Arsenal de Lisboa (AHU-Bahia-Série Avulsos, AHU_ACL_
CU_005, Cx. 184, D. 13571; AHU_ACL_CU_005, Cx. 197, D. 14275; AHU_ACL_CU_005, Cx. 199, D. 14396;
AHU_ACL_CU_005, Cx. 202, D. 14582; AHU_ACL_CU_005, Cx. 205, D. 14680). Requerimento de Antônio
José de Sousa Freire Tavares de Brito de Castro e Sampaio, à rainha [D. Maria I] solicitando a propriedade dos
ofícios de Provedor da Alfândega e de Intendente da Marinha, que foram da propriedade do seu sogro. Bahia,
9 de Agosto de 1782. AHU-Bahia (Série Avulsos), cx. 184 , doc. 55. AHU_ACL_CU_005, Cx. 184, D. 13571;
Ofício do desembargador Tomás Inácio de Morais Sarmento ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar,
Martinho de Melo e Castro] solicitando os ofícios de Provedor da Alfândega e Intendente da Marinha da cidade
da Bahia, que estão sendo executados por serventias. Lisboa, 20 de Maio 1794. AHU-Bahia (Série Avulsos), cx.
214, doc. 26. AHU_ACL_CU_005, Cx. 197, D. 14275.
31 SUBTIL, José. Instituições e quadro geral. In: LAIMS, Pedro; SILVA, Alvaro Ferreira da (Orgs.). História
económica de Portugal, 1700-2000. Lisboa: ICS: Imprensa de Ciências Sociais, 2005. 1º volume: O século XVIII,
p. 380.

1175
XVIII agiram em colaboração com o Juiz Conservador das Matas32 e com autoridades diversas na
defesa das questões de interesse régio, de forma que no contexto americano, a ênfase destacada por
Subtil recairia, em linhas gerais, sobre os membros das elites locais ao invés de magistrados. Assim
sendo, o conflito entre intendentes de marinha e magistrados foi um quadro que, por enquanto, não
observamos como um padrão típico na América colonial. Era a elite econômica que muitas vezes
via nesses intendentes um limite aos seus interesses políticos e comerciais. A intensidade da atuação
desses agentes poderá dizer-nos se a ênfase dada por Subtil é aplicável e, se positivo, de que forma se
daria. Algo que a pesquisa responderá.33

Demarca-se o caráter de autonomia relativa das instituições ultramarinas, entre as diretrizes


régias e as demandas locais, conforme enfatizado por Avanete Pereira Sousa.34 É objeto de nossa
análise a Intendência da Marinha e Armazéns Reais do Arsenal da Bahia dentro da lógica própria do
consulado pombalino, assim como dos Secretários de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos,
Martinho de Melo e Castro (1770-1795) e D. Rodrigo de Sousa Coutinho (1795-1801), com os seus
projetos econômicos diferenciados em alguns aspectos, mas no quadro geral marcados pela tentativa
de impor uma administração “mais ativa e interveniente” no Império, assinalando o pombalismo
pela doutrina do “cameralismo” e pela “ciência de polícia”.35

Os estudos de Roberta Stumpf36 e de José Subtil37 nos provocam a supor que os provimentos
régios dos intendentes da marinha na Bahia compunham uma estratégia peculiar de aumentar o con-
trole régio sobre os órgãos nevrálgicos da economia local, assim como de permitir um controle mais
eficiente das atividades militares de marinha, de suas estratégias e resoluções de dilemas, uma vez que
a tímida “profissionalização” de alguns setores se firmava ao lado da concentração de poder de alguns
cargos.

32 Cargo criado na capitania em 1797 para a preservação das madeiras de construção e garantia do monopsô-
nio régio sobre as madeiras de construção, especialmente com a finalidade de manutenção da construção naval
régia. Uma Carta Régia de março de 1797 proibia aos particulares, mesmo proprietários de sesmarias, de as
extraírem sem as devidas licenças do Juiz Conservador das Matas, Baltasar da Silva Lisboa.
33 Tratando sobre as reformas pombalinas, Intendente do Ouro e da Mesa de Inspeção na Bahia, Schwartz
afirma que “seus poderes e seu alcance cresceram com o passar do tempo. Seu primeiro diretor, Wenceslau
Pereira da Silva, o Intendente do Ouro, tornou-se mais poderoso que o próprio vice-rei, e tendeu a favorecer os
interesses metropolitanos.” (SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial
(1550-1835). São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 342).
34 SOUSA, Avanete Pereira e. Poder local cotidiano: a câmara de Salvador no século XVIII. 1996. Dissertação
(Mestrado) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1996.
35 SUBTIL, op. cit.; SUBTIL, José. As mudanças em curso na segunda metade do século XVIII: a ciência de
polícia e o novo perfil dos funcionários régios. In: STUMPF, Roberta; CHATURVEDULA, Nandini (Orgs.).
Cargos e ofícios nas monarquias ibéricas: provimento, controlo e venalidade (séculos XVII e XVIII). Lisboa:
Centro de História do Além-Mar – CHAM, 2012; _____. Administração da Fazenda e das Finanças. In: SUB-
TIL, J. Actores, Territórios e Redes de Poder entre o Antigo Regime e o Liberalismo. Curitiba: Editora Juruá,
2011, p. 173-216; _____. Os Poderes do Centro. In: HESPANHA, A. M. História de Portugal: O Antigo Regime
(1620-1807). Lisboa: Editorial Estampa, 1998, v. 4. p. 141-244.
36 STUMPF, Roberta. Ser apto para servir a monarquia portuguesa: profissionalização e hereditariedade. In:
LEIVA, P.; CASTILLO, F. A. (Org.) Mérito, Venalidad y Corruption en España y América siglos XVII y XVIII.
Albatros Ediciones, 2016, p. 115-131.
37 SUBTIL, José. Instituições e quadro legal. In: LAIMS, Pedro; SILVA, Alvaro Ferreira da (Orgs.). História
económica de Portugal, 1700-2000. Lisboa: ICS: Imprensa de Ciências Sociais, 2005, 1º volume: O século XVIII.

1176
Traremos então, brevemente, três perfis de intendentes em contextos distintos, para uma me-
lhor compreensão da alteração de perfil na nomeação dos oficiais no período em tela. Os dois primei-
ros, um provido pelo rei efetivamente (1770-1782) e o outro, pelo governador interinamente (1782-
1797), eram homens familiarizados com a elite local e de origem destacável no sistema de valores
sociais da sociedade de Antigo Regime, homens experimentados no serviço administrativo e jurídico
da capitania; já quanto ao terceiro, nascido no reino, sua formação obedeceu aos estatutos militares
das instituições em formação no período, um oficial da armada portuguesa, provido pelo rei para o
cargo de efetivo de Intendente da Marinha da Bahia (1797-1802). Utilizaremos, basicamente, fontes
do Arquivo Histórico Ultramarino, do Projeto Resgate.

No governo pombalino, em março de 1770, Rodrigo da Costa e Almeida era o Provedor-mor


da Fazenda na Bahia e o seu avô homônimo, que nascera no Algarve, foi detentor do privilégio de
sucessão desse cargo por duas gerações. “Filho, pai e avô tinham alcançado comendas da Ordem de
Cristo”. Do lado materno, sua família havia participado em Pernambuco, “com dispêndios de sua pró-
pria fazenda”, nas guerras que expulsaram os holandeses.38 Permaneceu na Intendência da Marinha da
Bahia até sua morte, em janeiro de 1782,39 levado pelo provimento régio, que extinguiu e absorveu
cargos, como dito anteriormente, e que também eram ocupados pelo mesmo. Portanto, a estratégia
pombalina habilmente instalava a instituição na malha administrativa baiana, aparentemente sem
atritos momentâneos com os poderes locais, mantendo um local letrado, pertencente à Academia dos
Renascidos e preservando a “nobreza da terra” a sua frente.

Sua primeira difícil tarefa seria a de pôr em prática o método contábil das “partidas dobradas”
nos registros de finanças da Provedoria, Vedoria, Armazéns Reais e Arsenal Real, que consagraria a
unificação dos livros dos almoxarifes em um livro único. Os registros de receitas ou entradas eram
lançados nas folhas da esquerda, e os de despesas ou de saídas, nas folhas da direita, ambas eram men-
sais e os livros anuais, estreando com o saldo do mês anterior no início da folha e fechando com seus
totais ao final. No final do livro, os totais de receitas/entradas mensais eram organizados à esquerda e
os de saídas, à direita, trazendo o total final de todos os meses e o saldo anual, tanto das receitas como
das despesas.

Tal método, aparentemente simples, não era praticado nas esferas administrativas, apenas os
negociantes o utilizavam, mas a partir da criação do Erário Régio, passou a ser difundido como siste-
ma único de contabilidade nas repartições administrativas da Coroa. A forma clara com que permitia
confrontar as entradas e saídas de períodos curtos ou longos, consentindo mais eficiência nas cobran-
ças e conferências de contas, o fazia mais atraente às autoridades reformistas. Mas, obviamente, pre-
cisariam de um homem não só experimentado no serviço administrativo, mas também de habilidade
com as letras para conduzir a transição e aplicação do novo método. Rodrigo da Costa de Almeida

38 KANTOR, Íris. Esquecidos e Renascidos: Historiografia Acadêmica Luso-Americana (1724-1759). São Pau-
lo: Hucitec; Salvador: Centro de Estudos Baianos, 2004, p. 127.
39 Ofício do Governador Marques de Valença para Marinho de Melo e Castro em que participa o falecimento
do Provedor da Alfândega, Rodrigo da Costa Almeida, que exercia também os lugares de Intendente da Mari-
nha e Vedor Geral e de ter nomeado para exercer interinamente esses cargos o Mestre de Campo Antônio José
de Sousa Freire. Bahia, 31 de Janeiro de 1782. AHU_CA, cx. 57, doc. 10940.

1177
reunia as competências necessárias, e o perfil político almejado, assim como detinha a propriedade
de um dos cargos fundidos na criação da Intendência da Marinha, prevenindo possíveis conflitos na
transição da estrutura administrativa. Portanto, ele elaborou a proposta para a transição de métodos
contábeis das repartições que estavam sobre sua responsabilidade, iniciando os trabalhos ainda no
mesmo ano de 1770.40

Aquele que de imediato substituiu interinamente Rodrigo da Costa após a sua morte, em 31
de janeiro de 1782, não permaneceria por muito tempo por motivos de saúde. Antônio José de Sousa
Freire41 foi substituído pelo José Pires de Carvalho em 9 de setembro daquele ano,42 que por motivos
próprios, alegando o acúmulo de cargos, foi sucedido pelo desembargador Felipe José de Faria, que
também teve uma passagem muito curta e, finalmente, por José Venâncio de Seixas,43 que apesar de
interino, ficou no cargo de 1784 até 1797. Todos eles providos pelo governador.

Se, por um lado, a nomeação de todos eles destoava das alíneas do decreto que requeriam para
a Intendência da Marinha a imagem correspondente aos princípios das reformas militares portugue-
sas, apontando que os sujeitos mais apropriados aos cargos seriam aqueles que entendessem das ques-
tões de marinha, segundo o legado do Conde de Lippe; por outro, as nomeações buscavam respeitar
a experiência administrativa e as habilidades de homens letrados pertencentes aos antigos cargos ali
fundidos.

Após a criação do “Colégio dos Nobres” e da reforma militar do Conde de Lippe, criou-se o
“Colégio de Guardas-Marinhas”, em 1782, que foi ganhando e emprestando força ao Estado de polícia
a que se refere José Subtil, resultando em uma instituição de ensino superior, em 1796, a “Real Aca-
demia dos Guardas-Marinhas”, que prezava pelas características de formação acadêmica nas renova-
ções dos quadros administrativos de marinha.44 A participação portuguesa na Guerra dos Sete Anos,
40 Método para se observar nas compras e despesas que se fizerem na Intendência da Marinha e Armazéns
Reais e na escrituração dos livros do Almoxarifado respectivo. Bahia, 8 de Agosto de 1770. AHU, cx. 45, doc.
8306. Rodrigo da Costa foi um dos que estiveram na reunião para a fundação da Academia Brasílica dos Re-
nascidos na Bahia, em 19 de Maio de 1759, na casa do conselheiro José Mascarenhas Pacheco Pereira Coelho
de Mello.
41 Carta de Antônio José de Sousa Freire para o Governador Marquês de Valença na qual lhe participa estar
muito doente e lhe pede para o demitir dos cargos que estava exercendo interinamente. Bahia 23 de julho de
1782. AHU_CA, cx. 58, doc. 11134.
42 Ofício do Governador Marques de Valença para Marinho de Melo e Castro em que participa ter nomeado
José Pires de Carvalho e Albuquerque para exercer interinamente o lugar de Provedor da Alfândega, Intendente
da Marinha e Vedor Geral do exército, por ter adoecido Antônio José de Sousa Freire, que os estava exercendo
desde o falecimento de Rodrigo da Costa de Almeida. Bahia, 9 de Setembro de 1782. AHU_CA, cx. 58, doc.
11133; BORGES, Eduardo José Santos. Viver sob as leis da nobreza: a casa dos Pires de Carvalho e Albuquerque
e as estratégias de ascensão social na Bahia do século XVIII. Tese (doutorado) - Universidade Federal da Bahia,
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Salvador, 2015. p. 236.
43 Oficio do Governador D. Rodrigo José de Menezes para Martinho de Melo e Castro, no qual comunica que,
tendo o secretário do Governo José Pires de Carvalho pedido a demissão dos cargos que exercia de Provedor
da Fazenda e de Intendente da Marinha dos Armazéns Reais nomeara para desempanar o primeiro lugar o
Desembargador Felipe José de Faria e para o segundo José Venâncio de Seixas. Bahia, 12 de Setembro de 1784.
AHU_CA, cx. 61, doc. 11660.
44 Carta Régia de 1º de Abril de 1796. Lei de Novo Regulamento para a Academia Real de Guardas-Marinhas.
In: SILVA, Antônio Delgado. Colecção da Legislação Portugueza (1791-1801). Lisboa: Typografia Maigrense,
1828, p. 267.

1178
iniciada em 1762, fora um divisor de águas no processo de modernização das armas portuguesas.
Foi a percepção de fragilidades na estrutura militar do governo de D. José I pelo Conde de Lippe que
impulsionou Sebastião José de Carvalho e Melo a iniciar a uma reforma, orientando-se pelo conde
britânico.45

Mas José Venâncio Seixas, que interinamente assumiu em 1784, sendo ele, junto com Luis dos
Santos Vilhena, um dos opositores do grupo de notáveis baianos que se ressentiam das políticas de
“retomada do pacto colonial” de d. Rodrigo, como destacou Valim,46 ainda não contemplava a for-
mação militar exigida, o processo de consolidação da Academia de Marinha se completara em 1796.
José Venâncio Seixas tinha uma relação de proximidade de ideias com d. Rodrigo de Sousa Coutinho
e mantinha com ele constante troca de informações. Ocupou o cargo de intendente durante 13 anos,
até o ano de 1797, quando recebeu a informação negativa ao seu pedido de efetivação no cargo e ficou
sabendo que um militar formado nos novos quadros institucionais do reino, o Capitão de Mar e Guer-
ra José Francisco Perné, seria o Intendente da Marinha da Bahia efetivado através de provimento régio
de 30 de janeiro de 1797, após d. Rodrigo assumir sua pasta como Secretário de Estado da Marinha e
Negócios Ultramarinos, em 1796.47

Até 1797, os perfis dos intendentes nomeados são de homens familiarizados com a sociedade
baiana, que pertencem a sua elite política e econômica. Os registros de conflitos inicialmente identi-
ficáveis para essa transição com a promoção de oficiais da armada portuguesa a intendentes na Bahia
eram, em geral, de competências. Para D. Rodrigo, era necessário cumprir as determinações da Carta
Régia de 3 de Março de 1770, nomeando aqueles que possuíssem comprovado saber das atividades de
mar, para a melhor contenção de despesas e eficiência nas ações marítimas, e assim um piloto e capitão
de embarcações transoceânicas experimentado passou a Intendente da Marinha na Bahia.48 Luís dos
Santos Vilhena assim relatou o momento intervencionista do ministro:
(…) o ilmo. e exmo. Sr. D. Rodrigo de Souza Coutinho, (…) atento só ao zêlo do real
serviço, e interesses da nação, se deve a seguinte alteração para o verdadeiro estabele-
cimento do Arsenal. Nomeou um intendente tirado do corpo da Marinha, quando os
que lhe precederam apenas hábeis não entendiam de Marinha (…).49

45 COSTA, Fernando Dores. Insubmissão: Aversão ao Serviço Militar no Portugal do Século XVIII. Lisboa:
Imprensa de ciências Sociais / Universidade de Lisboa, 2010.
46 VALIM, P. Tempos de Tensão. In: VALIM, Patrícia. Corporação dos enteados: tensão, contestação e negocia-
ção política na Conjuração Baiana de 1798. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012, p.
179-230. De acordo a autora, o grupo, nomeado de “Corporação dos enteados”, tinha a seguinte composição:
José Pires de Carvalho Albuquerque, Bernardino de Sena e Araújo, Francisco Vicente Viana, Caetano Maurício
Machado, Manoel José Villela de Carvalho, Joaquim Pereira Bastos, Paulino de Sá Tourinho e Maria Francisca
da Conceição e Aragão. O nome dado refere-se ao fato, por ela destacado, de que todos eles fizeram “pronta
entrega” de seus escravos às autoridades na devassa relativa à Conjuração dos Alfaiates ocorrida em 1798 na
Bahia, um ato a se considerar como parte da “ritualística do teatro da revolta”.
47 Carta Régia (cópia) ao governador geral da Bahia, D. Fernando José de Portugal, ordenando que se dê todo
o auxílio necessário ao novo Intendente dos Armazéns da Marinha José Francisco Perné. Bahia, 11 de março de
1797. AHU-AV-BA, cx. 205, doc. 14680.
48 Carta Régia (cópia) ao governador-geral da Bahia, D. Fernando José de Portugal, ordenando que se dê todo
o auxílio necessário ao novo Intendente dos Armazéns da Marinha José Francisco de Perné. Anexo: instruções.
AHU-Bahia, cx. 205, doc. 32.
49 VILHENA, op. cit., v. 2, p. 350.

1179
A atividade de construção náutica então passou a vivenciar intensos conflitos, um deles ocor-
rido a partir de 1798 entre o referido intendente José Francisco Perné e o Mestre Construtor da ribeira
da Naus, Manuel da Costa, que começou por causa do atraso na construção da “Nau Príncipe do Bra-
sil”, que se arrastou de 1798 a 1802, quando se deu o seu lançamento ao mar.50

Sobre o atraso da obra, Manoel da Costa, o mestre construtor da ribeira que “deitou sua quilha”
em 1798, escrevia ao Conde de Anadia, em 1802, um interessante relato.
Pensei então que em Agosto de 1800 saísse ela [embarcação] do estaleiro, mas en-
ganei-me por que trabalhei sempre mais contra os empates do Intendente da Ma-
rinha Josê Francisco de Pernê, do que na Construção da mesma Nau, de que estou
concluindo a Coberta da primeira lataria, e proa, que estarão por acabar por falta
de tabuado e Oficiais, que foram as demoras, com que lutei sempre. Por que certo o
Intendente da Marinha que eu não moldava aos planos do seu interesse conspirasse
contra mim caluniando-me na presença do Governador, e da Junta da Fazenda desta
Capitania, chegando até a mandar registrar a Portaria inclusa, em que falsamente me
crimina, e ultraja. Excedi é certo os termos da moderação na resposta, que dei e que
já faz parte do documento junto; (...) [ele] despedia, ou dispensava os Oficiais mais
juntos, e por isso mais necessários para a Construção da Nau (...).51

Observamos que mesmo estando há apenas dois anos no estaleiro da Ribeira das Naus, o mes-
tre familiarizou-se com a lógica das tradições locais de organização do trabalho nas oficinas por ali
existentes, adequando-se a elas em suas condições concretas para a execução da obra, muitas vezes im-
portando adaptar-se aos vícios estruturais ali vigentes. A reprovação do intendente Perné ao material a
ser empregado e aos oficiais, que, na opinião do mestre, “mais juntos” se tornavam indispensáveis, re-
flete este contraste de concepções de organização de atividades produtivas característico da geração de
1790, que imputa traços de avanços técnicos e alterações organizacionais, assim como novos métodos
e procedimentos administrativos peculiares da modernização em curso, em especial, no período de D.
Rodrigo de Sousa Coutinho a frente da Secretaria de Estado da Marinha e Negócios Ultramarinos.52

50 Nau que viveu entre 1802 e 1819, quando, considerada inútil, foi desmanchada, servindo por 17 anos sem
ter ido ao Oriente. Foram gastos em sua construção 233:620$977 réis. Nau de 74 peças, sua lotação era de 663
homens. Seu construtor, Manoel da Costa, português, foi arguto debatedor e opositor do intendente, ao qual
remetia a responsabilidade do atraso, chegando a Bahia um ano antes da formação da intendência, em 1796,
tendo sido pupilo do famoso mestre Torcato José Clavim, em Lisboa. Cf. LAPA, José Roberto do Amaral. A
Bahia e a Carreira da Índia. Ed. Brasiliana, 1968, p. 319.
51 Carta do constructor naval Manuel da Costa para o Visconde de Anadia em que informa sobre o adianta-
mento das obras da nova nau Principe do Brazil sob a sua direção. Bahia, 4 de Fevereiro de 1802. AHU_CA,
cx. 119, doc. 23577.
52 É necessário sublinhar que durante o período de d. Rodrigo a frente dessa pasta, foi incentivador das pes-
quisas acadêmicas representadas nas “memórias econômicas” (ensaios monográficos realizados pelos vassalos
de Sua Majestade, estudando pontos fracos e possibilidades de melhor aproveitamento econômico das poten-
cialidades das regiões ou atividades econômicas do reino e domínios em troca de mercês e benesses) que com-
puseram um número expressivo de textos voltados para a orientação da modernização técnica, socializando
as inovações técnicas pensadas pelos homens de ciências lusitanos ou observadas em outros Estados, como se
verifica no trabalho de Hipólito José da Costa, no qual descreve “uma máquina para tocar a bomba a bordo dos
navios sem o trabalho de homens”, por ele observada na Filadélfia, publicado em 1800 pelo Arco do Cego. Cf.
COSTA, José da Costa. Diário da Minha Viagem a Filadélfia (1798-1799). Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais,
2007; POMBO, Nívia. Dom Rodrigo de Souza Coutinho: Pensamento e ação político-administrativa no Impé-
rio Português (1778-1812). São Paulo: Hucitec, 2015.

1180
Considerada a arte de aprovisionar e assegurar o fornecimento, em tempo e quantidades há-
beis de suprimentos necessários à ação marítima, a atuação da intendência com o Capitão Perné nos
permite uma visão mais ampla para justificar o atraso da nau, além das questões de renovações técni-
cas e de tradições na velha Ribeira das Naus. Ele alega que requereu inúmeras vezes os “massames”53
e lonas à Real Junta da Fazenda da Marinha, mas o “Comercio os não costuma a mandar vir para
negocio pelas suas grandes bitolas; fazendo somente a importação de cabos de dimensões próprias de
Navios, até o presente se não tem dado esta indispensável providencia”.54 Portanto, a nau, de grande
tonelagem que leva o nome de “Príncipe do Brasil”, e com oficiais da armada à frente de sua execução,
precisava de apoio de comerciantes para alocar e transportar gêneros necessários a sua obra, mas o
apoio não foi consumado.

As aparelhagens necessárias para a conclusão da referida nau foram, por questões de segu-
rança, alocadas no porto da Paraíba. Vindas do reino, eram tempos de insegurança nos mares, e por
isso ali foram deixadas. Logo os particulares baianos, sabendo da urgência do intendente, oferecem
seus serviços e apresentam orçamentos onerosos de fretes à Paraíba, alegando que tais encarecimen-
tos se deviam à presença de muitos inimigos nos mares. Após ser consultado pelo intendente baiano,
o governador de Pernambuco se mostrou, pelos mesmos motivos, impedido de prestar o auxílio de
trazê-las à Bahia, estando o Perné “na inteligência” de que:
Nestas circunstancias, como estava neste Porto a Sumaca de Sua Alteza Real, que
tinha completado o transporte das madeiras das Alagoas para a construção da nova
Nau, e se tivesse anunciado a nossa Paz com a Hespanha e a Republica Francesa, fiz
imediatamente prepará-la para seguir viagem ao Porto da Paraíba a fim de receber os
referidos gêneros ali retardados, como com efeito os recebeu, e se acham recolhidos
nestes Armazéns; e da sua receita remeto nesta ocasião extraídos o conhecimento
em forma à Real Junta da Fazenda da Marinha, e as contas, que na mesma serão pre-
sentes a Vossa Excelência, fincando assim economizadas as despesas com os fretes
pretendidos pelos Proprietários das Embarcações particulares, e as mesmas fazendas
livres do risco, que ocorriam, se viessem transportadas naquele tempo.55

Dando continuidade à economia de despesas, Perné não perde tempo, e assim que a referida Su-
maca56 chega à Bahia, autoriza a preparação desta para o carregamento de tabaco ao Rio de Janeiro,
também pretendido pelos particulares da Bahia, para dali encaminhar o produto à Nau da Índia. Sua
ordem é justificada pela contabilidade do ano anterior, em que se verificou altíssimo gasto com o mes-
mo procedimento, os particulares que “levaram hum grande frete” prestando tal serviço. O intendente
baiano agiu, portanto, em conformidade com as diretrizes políticas e econômicas centralizadoras do
53 “Toda cordoalha do aparelho de um navio.” Cf. MORAIS SILVA, Antonio. Diccionario da Lingua Portugue-
za. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1789, v. 2, p. 243.
54 OFFICIO do Intendente da Marinha José Francisco de Perné para o Visconde de Anadia, sobre os servi-
ços do Arsenal e os trabalhos de construcções e reparações em diversos Navios. Bahia, 11 de Abril de 1802.
AHU_CA, cx. 120, doc. 23.630.
55 Idem.
56 “Pequena embarcação de dois mastros, usada na América do Sul, especialmente no Brasil e no rio da Prata.
Era armado em patacho, sendo o mastro de vante e respectivo mastaréu feitos de uma peça só.” Sendo o ‘pata-
cho’ um navio armado com dois mastros. Cf. GODOY, José Eduardo P. Naus no Brasil Colônia. Brasília: Senado
Federal, 2007, p. 676.

1181
reino, em detrimento dos comerciantes da Bahia.57

Temos por hipótese que os provimentos régios dos cargos de Intendente da Marinha na Bahia
corroboraram o projeto político da centralização das atividades financeiras do império no reino entre
1770 e 1808, obedecendo às diretrizes econômicas e administrativas implementadas a partir da fun-
dação do Erário Régio, em 1761,58 conseguindo cumprir suas funções, e aumentando o número de
embarcações transoceânicas produzidas na Bahia e contribuindo, dessa forma, para o fortalecimento
do comércio e da atividade fiscal.

O historiador português Fernando Dores Costa, em “Observações para o Estudo das Nomea-
ções dos Postos Militares” (1763-1807), chama a atenção para o fato de que os postos militares deixa-
vam de ser hereditários no período, pois desde a reforma promovida pelo Conde de Lippe, na década
de 1760, que a estrutura militar no reino sofria com alterações e vinha cedendo a uma nova interpre-
tação administrativa da atividade militar, aproximando-a da ciência, e não da arte, como era comum
ao pensamento da fidalguia. Para ele, também a venalidade é dificilmente verificável e, portanto, não
era tradicional.59

No sistema de reformas setecentistas, os intendentes, superintendentes e inspetores ocuparam


lugar privilegiado no quadro institucional, como destaca José Subtil.60 A administração dos circuitos
comerciais coloniais era objeto da política metropolitana de centralização a partir de 1750, e chega ao
final da centúria contrastando com as políticas de centralização administrativas engendradas por d.
Rodrigo de Sousa Coutinho, sobretudo pela constituição e tentativa de acomodação de novos grupos,
como nos alertaram Valim e Maxwell.61 Sob a égide do conhecimento científico formulado no Colégio
dos Nobres e na Universidade de Coimbra reformada, mas também do Conselho do Almirantado
(1795) e da Real Academia de Guardas Marinhas (1796), que marca a atuação de homens da “geração
de 1790”, d. Rodrigo estreia uma política de ampliação de intendências de marinha na América por-
tuguesa, destacando-se no controle das capitanias detentoras de grandes portos comerciais e arsenais,
e para isso introduziu homens adequados ao política reformista nas principais instituições financeiras
57 OFFICIO do Intendente da Marinha..., op. cit.
58 TOMAZ, Fernando. As Finanças do Estado Pombalino. In: Ensaios II. Lisboa: Sá da Costa, s/d.
59 E alerta a respeito da noção de “criado”, sugerindo que a mesma traz dificuldades metodológicas para as
investigações voltadas para a temática militar. Cf. COSTA, Fernando Dores. Observações para o Estudo das
Nomeações dos Postos Militares. In: STUMPF, Roberta; CHATURVEDULA, Nandini (Orgs.). Cargos e ofícios
nas monarquias ibéricas: provimento, controlo e venalidade (séculos XVII e XVIII). Lisboa: Centro de História
do Além-Mar – CHAM, 2012, p. 51-63.
60 José Subtil, analisando como os ofícios régios foram afetados pela nova doutrina de polícia durante a se-
gunda metade do século XVIII, afirma que a partir de então ganhou consistência a prática segundo a qual todo
o funcionário régio deveria possuir “jurisdição disponível, qualidades requeridas para o ofício (mérito) e res-
ponsabilidade pelo desempenho profissional (avaliação). Requisitos que seriam conjugados com a promoção
da livre e espontânea vontade do monarca para proceder às nomeações”. SUBTIL, José. As mudanças em curso
na segunda metade do século XVIII: a ciência de polícia e o novo perfil dos funcionários régios. In: STUMPF,
Roberta; CHATURVEDULA, Nandini (Orgs.). Cargos e ofícios nas monarquias ibéricas: provimento, controlo
e venalidade (séculos XVII e XVIII). Lisboa: Centro de História do Além-Mar – CHAM, 2012
61 VALIM, P. Tempos de Tensão. In: VALIM, Patrícia. Corporação dos enteados: tensão, contestação e nego-
ciação política na Conjuração Baiana de 1798. 2012. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo,
2012; MAXWELL, K. A Devassa da Devassa: a Inconfidência Mineira, Brasil-Portugal, 1750-1808. São Paulo:
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1182
dos domínios ultramarinos, as Juntas de Fazenda, diretamente ligadas aos agentes dos circuitos eco-
nômicos transatlânticos.62

A partir dessas pontuais considerações, justifica-se o interesse de analisar a estrutura e fun-


cionamento da Intendência da Marinha e Armazéns Reais do Arsenal da Bahia, identificando a sua
composição e atuação, buscando perceber as estratégias de controle econômico da Coroa. Novas ca-
tegorias analíticas permitem discutir as relações da Intendência da Marinha e Armazéns Reais do Ar-
senal da Bahia com outras instituições administrativas, com as redes de fornecedores, de negociantes
e autoridades coloniais.63

Acreditamos que o estudo da atuação da repartição em tela revela aspectos do desenvolvimen-


to crescente da construção naval baiana do século XVIII, e esses podem contribuir para melhor com-
preender a Bahia no contexto do império marítimo português. A Intendência da Marinha da Bahia foi
a primeira a ser criada, logo após a lisboeta, em 1793, e consideramos que sua experiência foi aquela
que orientou a Coroa na criação das intendências de marinha nos demais arsenais das capitanias a
partir do Alvará de 12 de Agosto de 1797.64 Nossa investigação pretende aprofundar essas questões
buscando, como destacou Russel-Wood, perceber as influências que emanam da periferia, e da capita-
lidade baiana em construções navais no ultramar português do século XVIII.65

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62 Alvará de 12 de Agosto de 1797 Regulando o Governo dos Arsenais Reais da América e criando Intendentes
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64 SILVA, op. cit., 1830, p. 444.
65 RUSSEL-WOOD, A. J. R. A projeção da Bahia no império ultramarino português. In: 4º CONGRESSO DE
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1185
A mercê da desanexação: capitanias, territórios e governança no Norte do Estado do Brasil
(1756-1817)66*
José Inaldo Chaves Jr.67

Não sei discorrer nos motivos das minhas infelicidades


olhando para o zelo com que sirvo a Sua Magestade, para
o disvelo com que executo as Suas ordens, e para a tole-
rância com que aturo as duras cadeias de hum governo
subordinado, sujeito as paixoens e oprobios de Joze Cezar
[governador-general de Pernambuco] que me tem posto
em maior consternação [...].68

É conhecida a obstinada (e infrutífera) cruzada realizada pelo capitão-mor da Paraíba, coronel


Jerónimo José de Mello e Castro (1764-97), contra o estado de subordinação a Pernambuco, que se
estendia desde 1756.69 Ele denunciou os prejuízos econômicos e os custos políticos de uma sujeição
que não apenas fraudava o fisco, em sua interpretação, mas também fragilizava as estruturas governa-
tivas da Paraíba, provocando uma série de atentados à ordem. A luta desse capitão-mor foi, de resto, a
expressão de sua própria desgraça junto à Monarquia, uma vez que, apesar de muito reivindicar, fora
mantido à contragosto na Paraíba, enfrentando “as duras cadeias de hum governo subordinado” por
nada menos que trinta e três anos, entre 1764 e 1797.70

A anexação do governo da capitania da Paraíba a Pernambuco e a condição vexatória de seu


governador se retroalimentavam. Em 1778, sem ter respostas concretas ao seu antigo pedido de trans-
ferência para uma capitania “principal”, “geral” ou de “primeira grandeza” – sonhava particularmente

66* Esse artigo possui natureza exploratória. O tema das autonomias das capitanias do Norte, entre o final do
século XVIII e início dos Oitocentos, bem como a desagregação da antiga capitania geral de Pernambuco, ain-
da é pouco abordado no âmbito da história política e das histórias das territorialidades coloniais do Norte do
Estado do Brasil. A intenção aqui será, pois, destravar o debate e apontar alguns caminhos e notas de pesquisa
para o futuro das investigações.
67Professor adjunto da Faculdade de História da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (FAHIST/UNI-
FESSPA). Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF).Esta comunicação contou com o
apoio financeiro da Pró-Reitoria de Pós-Graduação, Pesquisa e Inovação Tecnológica da UNIFESSPA por meio
do Edital PIAPA/2018.
68AHU_ACL_CU_014, cx. 29, doc. 2152 (1786, abril, 29, Paraíba). Leia-se Arquivo Histórico Ultramarino_
AdministraçãoCentral_Conselho Ultramarino, Caixa 29, Documento 2152 (1786, abril, 29, Paraíba).
69 Entre 1756 e 1799, a Paraíba esteve subordinada ao governo de Pernambuco após recomendação do Con-
selho Ultramarino e posterior decisão régia. O motivo fundamental da anexação, alegado pela Coroa, tivera
sido a falência da Provedoria da Fazenda Real da Paraíba e a falta de meios para manter um governo autônomo.
Sobre os antecedentes da anexação da Paraíba, cf. MENEZES, Mozart Vergetti. Sonhar o céu, padecer no infer-
no: governo e sociedade na Paraíba do século XVIII. IN.: BICALHO, Maria Fernanda & FERLINI, Verá Lúcia
Amaral (orgs.). Modos de governar: idéias e práticas políticas no Império Português. Séculos XVI a XIX. São
Paulo: Alameda, 2005.Por essa mesma época, Ceará e Rio Grande do Norte também integravam o governo do
capitão-general de Pernambuco desde 1656 e 1701, respectivamente. Para a Paraíba e o Ceará, a conquista da
autonomia político-administrativa só viria em 1799. O Rio Grande do Norte teve que aguardar 1817 e o desdo-
bramento do ciclo revolucionário.
70AHU_ACL_CU_014, cx. 29, doc. 2152 (1786, abril, 29, Paraíba).

1186
com a capitania de Goiás –, o capitão-mor desabafoujunto ao secretário de Estado Martinho de Mello
e Castro: “Se Vossa Excelencia, porém, olhar que tenho obrado como devo, que só deste Governo
tenho quinze annoz, e mereso a protecção de Vossa Excelencia para algú despacho de maior asceso,
então conhecerão estez que vivo na graça de Sua Majestade e que Vossa Excelencia me não desattende,
como chegáo a proferir”.71

Como típico numa sociedade de Antigo Regime, a fama públicabem como a proximidade e
familiaridade com os canais de engrandecimento, sediados em Lisboa,eram medidas concretas para
as estratégias de enriquecimento (patrimônio), via uma economia regulada majoritariamente pela
política, e na busca porprojeção social do indivíduo e, fundamentalmente, de suas parentelas e redes-
clientelares, o que se expressava naqualidadede cada um.72Naturalmente, a condição de governar uma
capitania subordinada por anos a fio, sem ascender a um posto de maior dignidade,“colava” em sua
própria posição pessoal como uma chaga, difamando-o perante as elites locais, que não reconheciam-
-lhe como autoridadee para tudo recorriam ao governador e capitão-general de Pernambuco.73

De acordo com Mafalda Soares da Cunha, as carreiras governativas no Império português


costumeiramente acompanhavam as hierarquias sociais, de modo que o prestígio de um governador
pode ser visto como indicador valioso da importância dada pela Coroa para cada capitania. Ou seja,
é preciso ter em conta que as distinções clássicas de capitania geral, capitania principal e capitanias
subalternas, anexas ou secundárias, além de serem hierarquias político-administrativas sobre o espaço
colonial, estavam diretamente associadas aos planos da Coroa em reconhecer e nobilitar os titulares
designados.74

Ademais, a respeito das espacialidades coloniais no antigo Norte do Estado do Brasil, a crise da
economia açucareira, que se arrastava desde o fim da guerra da Liberdade Divina, nos Seiscentos, lan-
çara uma “pá de cal” na condição antes ostentada pela Paraíba nos acertos regional e imperial, que vira
seu status de “capitania régia com cidade real” dissolver-se progressivamente perante a proximidade

71AHU_ACL_CU_014, cx. 26, doc. 2033 (1778, dezembro, 30), grifos nossos.
72Para uma discussão sobre a fama pública no Antigo Regime português, cf. GANDELMAN, Luciana. Mur-
murações e caridade. Distinção social e fama pública no Império português: o caso das órfãs da Misericórdia.
IN.: ABREU, Martha; SOIHET, Rachel & GONTIJO, Rebeca (orgs.). Culturas políticas e leituras do passado:
historiografia e ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. Sobre o uso de conceitos como
família, rede e grupo social para as sociedades de Antigo Regime, cf. BERTRAND, Michel. Grupo, clase o red
social? Herramientas y debates en torno de lareconstruccíon de lós modos de sociabilidadenlas sociedades de
AntiguoRégimen. IN.: ARZÚ, Maria Elena Casaús& LEDESMA, Manuel Pérez (eds.). Redes intelectuales y
formacíon de nacionesenEspaña y América Latina (1890-1940).Madri: EdicionesUniversidad Autónoma de
Madrid, 2005.
73AHU_ACL_CU_014, cx. 24, doc. 1898 (1770, outubro, 27, Paraíba). Para uma análise do longo governo de
Jerónimo de Mello e Castro como metáfora da condição pouco remediada da Paraíba no século XVIII, cf. CHA-
VES JR., José Inaldo. As duras cadeias de hum governo subordinado: poder e sociedade na Paraíba colonial
(c.1756-c.1799). Curitiba: Editora CRV, 2017, sobretudo o capítulo 3.
74 CUNHA, Mafalda Soares. Governo e governantes do Império português do Atlântico (século XVII). IN.:
BICALHO & FERLINI, Modos de governo, op. cit., p. 104.

1187
com o porto e vila do Recife, seu concorrente mais imediato, na antiga donataria de Duarte Coelho.75

Autonomia e reformismo ilustrado

Contudo, na década de 1790, moribundo, Jerónimo de Mello e Castro já não era a voz solitá-
ria que fora antes, pois outros capitães-mores, inclusive de outras capitanias do Norte do Estado do
Brasil, engrossaram o coro contra a subordinação a Pernambuco. Passadas algumas décadas desde
aquele fatídico 1756, até mesmo a Coroa duvidava da velha solução de que a anexação era a única
saída para melhorar o governo econômico e político-administrativo da capitania. Em 1797, após a
morte de Mello e Castro, assumiu o posto o capitão-mor Fernando Delgado Freire de Castilho, sendo
governador até 1799, em uma conjuntura bem distinta daquela de meados dos Setecentos e com a in-
cumbência de demonstrar ao Príncipe Regente dom João a utilidade de se fazer a Paraíba novamente
autônoma.

A carta-patente que lhe foi conferida, assinada por dom Rodrigo de Sousa Coutinho, dava-lhe
inúmeras recomendações de toda ordem, cobrando-lhe informações detalhadas sobre a defesa da
capitania, as condições das fortificações e corpos militares, até o estado econômico da Paraíba, suas
produções, matas, comércio e população.76Entretanto, a abertura da carta trazia o objetivo primaz ao
qual foi encarregado o novo governador: a Coroa desejava conhecer a conveniência de se manter a
Paraíba subordinada a Pernambuco, ou, enfim, fazê-la independente.

Havendo-se essa capitania da Parahiba incorporado na de Pernambuco, a que está


sujeita, em consequência de uma Consulta do Conselho Ultramarino, ordena SuaMa-
gestade que Vossa Mercê examine com a maior imparcialidade se a utilidade que tira
a Fazenda Real desta incorporação pela economia que póde resultar de não manter
um governo totalmente independente, equivale aos prejuízos que póde receber seja
da falta de execução das reaes ordens, seja da menos activa cobrança das dividasreaes
dependentes de Pernambuco, seja de se manter um conflicto de jurisdição igualmen-
te nocivo ao Real Serviço e aos interesses dos habitantes da capitania, que também
podem receber algum veixame de um systema, que os faz dependentes para o seu
commercio da praça de Pernambuco.77

75 Juntamente com Mozart Vergetti de Menezes, em artigo ainda não publicado, apontei alguns elementos
desse processo de erosão da condição política da capitania da Paraíba nos acertos regional e imperial. Cf. ME-
NEZES, Mozart Vergetti& CHAVES JR., José Inaldo. “A sempre leal cidade da Paraíba”: culturas históricas e
culturas políticas em uma capitania do Império português (séculos XVII e XVIIII). No prelo.
76 De acordo com AndréeMansuy-Diniz Silva, tão logo d. Rodrigo assumiu o ministério da Marinha e Negó-
cios Ultramarinos, em 1796, “[...] pediu a todos os governadores das capitanias informações precisas: descrição
geográfica e topográfica, estatísticas da população, das produções agrícolas e minerais, das exportações, impos-
tos, rendas reais, despesas gerais da capitania, estado das tropas e milícias, das fortificações e dos armamentos
etc. Pedia, também, propostas relativas a melhorias a introduzir na agricultura, comércio e finanças da Coroa.
Estes dados eram o fundamento para as medidas de governação que ele queria implementar”. SILVA, Andrée-
Mansuy-Diniz. Uma figura central na Corte Portuguesa no Brasil: D. Rodrigo de Sousa Coutinho. In.: MAR-
TINS, Ismênia & MOTTA, Márcia (orgs.). 1808 – A Corte no Brasil.Niterói: Editora da UFF, 2010, p. 139-140.
77Apud PINTO, IreneuFerriera. Datas e notas para a História da Paraíba.Edição Fac-similar. João Pessoa: Edi-
tora Universitária/UFPB, 1977, vol. I, p. 180.

1188
As orientações do secretário de Estado ao novo governador da Paraíba rompiam um silêncio
mortífero de ao menos quarenta e dois anos, desde quando, em 1755, o Conselho Ultramarino solici-
tou do então capitão-mor, Luiz António Lemos de Brito (1754-1757), um relatório no qual revelasse
as condições de se manter um governo autônomo na Paraíba. Lemos de Brito, à sua época, denunciou
a precariedade das rendas da capitania e isso foi imperioso para a conhecida decisão da Coroa. Em
1797, o questionamento metropolitano era inverso. Embora não fosse propriamente afortunado, o
cenário econômico era bem mais alentador, a despeito das inconstâncias climáticas. Porém, as evasões
de receitas por meio dos descaminhos das fazendas para Pernambuco, sem contar os numerosos con-
flitos de jurisdição, ainda perturbavam os ânimos.

O comportamento do capitão-mor Fernando Delgado Freire de Castilho foi igualmente deci-


dido a mostrar as potencialidades da capitania e os prejuízos da sujeição, sobretudo para a Fazenda
Real. Dedicou-se com esmero a esta missão, utilizando um sofisticado ferramental ilustrado, típico
da geração de 1790, o qual deve ter aprendido durante sua formação em matemática e ciências na-
turais na Universidade de Coimbra.78 Segundo Cláudia Maria Chaves, uma das características mais
importantes dos projetos reformistas da geração de 1790, levados a cabo nos tempos de secretariado
de dom Rodrigo de Sousa Coutinho, era o destacado interesse em “ampliar os conhecimentos sobre o
território americano – população, produção, comércio, cartografia, caminhos etc. – ao propor ações
de intervenção a partir de princípios fisiocráticos e liberais”.79 Essa perspectiva atingiu, de modos
diversos, todo o Império, inclusive áreas periféricas. Fernando Delgado Freire de Castilho, por sua
vez, foi operoso nesse sentido, produzindo uma gama de relatórios e memórias sobre a agricultura,
notadamente o cultivo do algodão e do açúcar, a mineração, a exploração das florestas, a produção de
linho e anil e a necessidade de haver comércio livre na Paraíba.80

Por sua vez, Castilho denunciava que os prejuízos ao bom governo se multiplicavam na Paraí-
ba em virtude do estado de subordinação. Os efeitos nocivos da sujeição a Pernambuco eram sentidos
nos “[...] conflitos de jurisdicção e mando, que [...] estorrão e talvesdamnão de todo o Real Serviço e
o Bem do Público”. Freire de Castilho alertava que a oposição e ciúme entre o governador-general e
o capitão-mor da Paraíba “he tanto mais prejudicial quanto mais figurão os subalternos a respeito de
78AHU_ACL_CU_014, cx. 32, doc. 2372 (ant. 1796, novembro, 18, Paraíba).
79CHAVES, Cláudia Maria das Graças. O outro lado do Império: as disputas mercantis e os conflitos de juris-
dição no Império Luso-Brasileiro. Topoi – Revista do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ,
vol. 7, nº 12, p. 147-77, jan-jun. 2006, p. 149.
80 Boa parte desse rico material histórico foi compilada na obra Datas e notas para a História da Paraíba (1908),
de Irineu Ferreira Pinto, a qual utilizamos a seguir. Sobre a colaboração dos governadores do Império com os
propósitos reformistas de d. Rodrigo de Sousa Coutinho, Mansuy-Diniz Silva destaca que: “Felizmente, D.
Rodrigo teve a sorte de encontrar colaboradores de grande qualidade, que o entenderam, o apoiaram, e o acon-
selharam na sua acção reformadora. Eram homens formados pela Universidade de Coimbra, mineralogistas,
botânicos, matemáticos, que publicaram memórias na Academia Real das Ciências de Lisboa, magistrados,
oficiais da marinha, governadores das Capitanias, etc. Faziam parte daquilo a que chamei há pouco a ‘constela-
ção brasileira’, porque muitos deles eram nascidos no Brasil e conhecedores do seu país. O professor Kenneth
Maxwell chamou-lhes Geração de 1790. Dela faziam parte José Joaquim de Azeredo Coutinho (nascido na
capitania do Rio de Janeiro), que também defendia a abolição do monopólio do sal, Manuel Ferreira da Câmara
(nascido nas Minas Gerais), mineralogista distinto, e José Bonifácio de Andrade e Silva (nascido em Santos),
também mineralogista. Eram homens ‘esclarecidos’, preocupados com o progresso do Brasil e do Império por-
tuguês” (SILVA, Uma figura central na Corte Portuguesa no Brasil, op. cit., p. 141).

1189
quem manda sobre elles [...]”.81 Doutra feita, se as cobranças das rendas reais amargavam perdas em
virtude dos desvios do Erário e dos percalços com eventual dupla tributação, as despesas da Paraíba
também pelejavam com a subordinação à Junta da Fazenda de Pernambuco, donde provinham todas
as ordens, até em matérias elementares, o que causava dependência e morosidade à gestão das finan-
ças.

Pelos idos de 1799, impasses como a extensão jurisdicional da ouvidoria-geral da comarca


da Paraíba ainda não haviam sido resolvidos, de modo que Freire de Castilho também notou sua fla-
grante ineficiência. Entretanto, ardilosamente defendendo o seu “quinhão” no equilíbrio de poderes,
ele sugeriu que, em caso de demarcação “para hum governo independente estabelecido na Paraiba,
toda aquella terra que comprehende a jurisdicção do Ouvidor Geral da mesma Parahiba” fosse to-
mada como referência e incorporada ao governo do capitão-mor da Paraíba, propondo, portanto,
a anexação do Rio Grande do Norte. Freire de Castilho alegava que “além de ser incoherente que a
sua jurisdição [do ouvidor-geral] fosse maior que a do Governador, he também prejudicial ao Real
Serviço, pela complicação de ordens [...]” de três instâncias governativas distintas na comarca – do
governador-general de Pernambuco e dos capitães-mores de Paraíba e Rio Grande.82

Como se vê, o capitão-mor e governador conhecia bem a situação econômica, jurisdicional e,


sobretudo, política da Paraíba, tendo ciência dos embaraços provocados por um governo dependente.
Todavia, ao passo que reiterou a maioria das queixas veiculadas por seus antecessores, notavelmente
por Jerónimo de Mello e Castro, Fernando Delgado Freire de Castilho utilizou argumentos muito
distintos para defender a mesma desanexação. Suas noções de “bom governo” e “bem comum” diver-
giam fundamentalmente. Por outro lado, o contexto também mudara bastante e a Coroa já não estava
tão convencida de que a subordinação das capitanias do Norte a Pernambuco era a melhor solução
para a racionalização da máquina administrativa. Os conflitos jurisdicionais entre os próprios oficiais
parecem ter finalmente preocupado os responsáveis pela alta política imperial, ao passo que a subor-
dinação de 1756 mostrou-se ineficiente no combate aos descaminhos dos direitos reais.

Logo ficou claro que, se a subordinação da Paraíba em 1756 foi orientada pelo típico prag-
matismo português, baseado em experimentações políticas anteriores, na necessidade premiar bons
servidores de el-rei e nos projetos de anexação/subordinação que circulavam há tempos na região,
não constituindo necessariamente uma “novidade administrativa” do pombalismo, do contrário, as
autonomias de Paraíba e Ceará em 1799 e, depois, do Rio Grande do Norte, estas sim, pareceram estar
bem mais concatenadas com o liberalismo “aportuguesado” que ganhava vigor no reino e nas con-
quistas a partir da atuação de dom Rodrigo de Souza Coutinho, conde de Linhares, e de governadores
instruídos segundo os princípios da Ilustração, que visavam forjar um corpo de oficiais cuja “nobreza”
81 PINTO, Datas e notas para a História da Paraíba, vol. I, op. cit., p. 211. Acerca da impunidade dos facínoras
que encontravam alento na confusa jurisdição da Paraíba, Freire de Castilho parece repetir as angustiadas pa-
lavras de ex-governador Mello e Castro: “[...] os effeitos desta rivalidade passam tão bem a opressão de quem
recorre e deve o seu adiantamento, ou graça ao Governador subalterno, ainda mais são a impunidade dos mal
feitores e criminosos que geralmente produzem nos orgulhosos e atrevidos o despreso do mesmo Governador,
o qual sem o arbítrio das providencias repentinas, que pede huma colônia desta sorte, mortificado por ordens,
encontradas, vendo talvez desapprovados os projectos mais benéficos [...]” (apud PINTO, op. cit., p. 211).
82 Ibidem, p. 213.

1190
provava-se mais no serviço e menos no sangue.

Com a nova orientação aos rumos do Império português nesta última década dos Setecentos,
tendo como um de seus principais artífices o secretário dom Rodrigo, as justificativas de Castilho,
embasadas em conhecimento empírico à moda da Ilustração portuguesa, parecem ter surtido melho-
res efeitos que os lamentos de Jerónimo de Mello e Castro. Em 17 de janeiro de 1799, uma carta régia
livrou a capitania da Paraíba da subordinação em que se achava, alegando, dentre outras causas, o
aumento populacional como fator primordial para a medida. A decisão de dona Maria I era estendida
também ao governo do Ceará, feito independente pela primeira vez. Além dessas providências, a carta
de Sua Majestade também ordenava a liberação completa do comércio na Paraíba e no Ceará, tanto
diretamente com o reino (preferível, mas não mais imposto) quanto intercolonial.83

O Rio Grande do Norte, a política local e o abastecimento regional

No entanto, o caso do Rio Grande do Norte pareceu-nos mais complicado, pois a capitania fora
mantida dependente de Pernambuco, o que é, no mínimo, curioso, posto que com uma jurisdição ter-
ritorialmente descontínua – atravessada pela independência da Paraíba em 1799 – fazia uma menção
clara da permanência da tradicional irregularidade das circunscrições no Portugal moderno, mesmo
em tempos de mudança mais acentuada naquela fin de siècle.84 Doutra feita, desde o início da década
de 1790, os capitães-mores do Rio Grande vinham, com vigor, queixando-se da subordinação. É isto
o que se depreende da correspondência de Caetano da Silva Sanches. Sanches apontou as dificuldades
que enfrentava ao exercer um ofício sem jurisdição alguma, posto que, além da sujeição a Pernambu-
co, o referido capitão-mor partilhava os minguados espaços de poder com o ouvidor-geral da Paraíba,
já que o Rio Grande integrava a jurisdição dessa comarca.

Um exemplo dos limites colocados ao cotidiano governativo desse capitão-mor pode ser ob-
servado no âmbito da administração das vilas de índios no Rio Grande. Em 1791, Silva Sanches recor-
dou que, assim que tomou posse, vários moradores foram procurá-lo afim de que pudesse sustar os
constantes assaltos às lavouras praticados pelos nativos. O problema era ocasionado porque:

os ditos Indioshião para a Capitania da Parayba, e por laficavão dispersos, e os que-


voltavão para as ditas vilas, como não tinhão plantado, vinham destruir as planta-
çoens [...]” dos colonos. Por isso, ao tomar conhecimento do fato, Silva Sanches logo
mandou passar ordens aos capitães-mores índios para que “não consenticemhirIndio
83 Ibidem, p. 214. Contudo, mesmo após a desanexação, é importante frisar que setores primordiais do governo
econômico da Paraíba continuaram em estreita relação com a vizinha Pernambuco, pois, apesar da provisão
régia de 24 de janeiro de 1799, mandando organizar uma Junta da Fazenda na Paraíba, apenas em 1809 tal
órgão foi efetivamente criado, passando as arrematações dos contratos a serem feitas na cidade da Paraíba. Cf.
PINTO, Datas e notas para a História da Paraíba, op. cit.., p. 214, 238.
84 A esse respeito, cf. SILVA, Ana Cristina Nogueira da. O Modelo Espacial do Estado Moderno. Reorganização
Territorial em Portugal nos finais do Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1998.

1191
algum para fora desta Capitania sem ordem do general, e nem ainda para o trabalho
dos particulares desta mesma Capitania [da Paraíba] [...].85

Ao realizar a dita proibição, o capitão-mor do Rio Grande do Norte tomou conhecimento que
partira do próprio ouvidor-geral da Paraíba a ordem para que os índios das novas vilas fossem até a
vizinha capitania trabalhar para os seus colonos. E, por causa dessas determinações, o capitão-mor
do Rio Grande lamentava ainda que o magistrado produzisse intrigas a seu respeito junto ao general.
Era governador de Pernambuco à época o general Tomás José de Mello (1787-98), a quem, ademais,
o capitão-mor do Rio Grande acusava de retirar-lhe todas as regalias outrora atribuídas aos seus ante-
cessores. Em carta a Martinho de Mello e Castro, Silva Sanches disse:

Ponho na presença de VossaExcelencia a copia da ordem de Sua Magestade em a qual


me da faculdade que sempre tiveram os meus antecessores, de proverem os oficiais da
Justiça e Fazenda, e passarem Patentes de alguns postos da ordenança e dar terras de
sismarias, tudo para o fim de autorizar o meu posto; toda esta regalia me tem tirado
o General, em huma palavra Grandississimo Senhor,athe os mesmos cabos de esqua-
dra e inferiores dos 3ªs auxiliares o General os faz, eu aqui nenhuma jurisdição tenho,
e como as não tenho entendo que nenhum serviço faço aqui a Magestade.86

Em seu pedido para que o secretário de Estado intervisse na situação e desse “providencia a
esta minha tão justa Reprezentação”, o prócer do Rio Grande do Norte afirmava ter certeza que “o ca-
pitam Mor do Siara estava gozando de toda a jurisdição e autoridade que SuaMagestade lhe concede, e
só a mim se me não permite o que a mesma senhora me facultou [...]”.87 De fato, era mesmo uma situa-
ção de interinidade que grassava ainda mais a atuação dessemilitar do Rio Grande do Norte, pois, em-
bora assumindo o seu posto em 1791, na condição de capitão-mor interino, apenas seis anos depois,
em 1797, teve seu lugar efetivado por decreto régio no qual nomeava-o “Capitão Mor Governador da
Capitania do Rio Grande do Norte, com a Patente de Sargento Mor de Infantaria, e subordinado ao
Governador e Capitão General de Pernambuco [...]”.88 Sem dúvidas, esse era mais um governador sem
governo, aliás, tal como tivera sido o de Jerónimo de Melo e Castro na Paraíba setecentista.

Seja como for, o caso do capitão-mor da Paraíba, entre 1764 e 1797, cuja nomeação e carta-pa-
tente davam-lhe a prerrogativa do governo civil e militar, mas a ordem régia de subordinação de 1756
esvaziava flagrantemente o conteúdo de sua jurisdição,89 estabelece, ao nosso ver, uma regra geral e
permite-nos ponderar o dramatismo de Caetano da Silva Sanches, que supunha, com pouco crédito,
que o congênere do Ceará usufruíra de maiores prerrogativas. É verdade que o exercício jurisdicional
85 AHU_ACL_CU_018, cx. 8, doc. 483 (1791, abril, 29, Natal).
86 AHU_ACL_CU_018, cx. 8, doc. 483 (1791, abril, 29, Natal), grifos nossos.
87 Ibidem.
88AHU_ACL_CU_018, cx. 8, doc. 493 (1797, janeiro, 9, Lisboa).
89 A esse respeito, cf. CHAVES JR., José Inaldo. As Capitanias de Pernambuco e a construção dos territórios
e das jurisdições na América portuguesa (século XVIII). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2017, p. 285.

1192
dos governadores-generais de Pernambuco construiu parcerias ao nível local, de modo que os poderes
formal e informal conferidos aos oficiais da administração periférica nas capitanias sujeitas eram da-
dos na medida exata da lealdade prestada aos generais, que, em última instância, operavam os planos
da governança lusa na região.90 E isto valia mais ainda para os capitães-mores governadores, tenden-
cialmente refratários à autoridade emanada da capitania-geral.

Em outubro de 1799, Caetano da Silva Sanches escreveu a dom Rodrigo lamentando que,
após saber que a Paraíba e o Ceará teriam conquistado a mercê da autonomia, a sua capitania havia
sido mantida “em meyo subordinada ao mesmo Governo [de Pernambuco]”. Por isso, o capitão-mor
pedira ao secretário de Estado “para me fazer a honra, e mercê por [a representação] na Prezença de
SuaMagestade rogando ao mesmo passo a VossaExcelencia o queira patrocinar a que seja concedida
a graça que imploro para que conferida, fique também izenta esta Capitania, assim como ficarão as
duas [...]”.91 O capitão-mor relatava que o Rio Grande possuía as circunstâncias necessárias para a sua
isenção, inclusive “por ter extenção mais cressida que a da Paraíba, a qual só dista a Pernambuco vinte
e oito legoas, e esta do Rio Grande setenta [...]”.92

Em sua representação à rainha, Silva Sanches lembrava do incômodo vivido pelos habitantes
do Rio Grande em virtude da “longitude daquella Capital [de Pernambuco], que dista aos confins des-
ta Capitania quase duzentas legoas, e lhes hepercizo atravessarem ásperos sertoens em tempo de verão
com travessias de faltas de agoas, e pastos para sustentação dos animais em viagens [...]”. Muitas vezes,
os moradores, que iam ao Recife buscar recurso às suas pendências, retornavam “sem ellas, e por não
sofrerem esperar pelas demoras dos despachos, por razão das muitas dependências daquele Governo,
e também suceder perderem o êxito de seus pleitos por necessitarem hir segunda vez para mostrarem
a verdade da cauzapertendida, e pelas circunstancias referidas não tornam [...]”.93

O capitão-mor do Rio Grande, que em março de 1799 havia escrito a dom Rodrigo pedindo-
-lhe que intercedesse junto à rainha para que fosse servida estimular o comércio direto com o reino,
sem a passagem pelo Recife, defendera que a capitania possuía grande capacidade em receber navios
de grande calado, ao passo que buscou apresentar à Coroa o valor econômico e potencialidade de
uma conquista que há tempos era vista como modesta.94 Silva Sanches preocupou-se em dar destaque
à importância da capitania para as rotas do abastecimento interno que irrigavam a cadeia produtiva
regional, demonstrando, com precisão, a interdependência que caracterizava as relações econômicas
no hinterland recifense.

90 Sobre o relacionamento entre os generais de Pernambuco e os bandos e potentados do sertão da Paraíba, cf.,
por exemplo, GUEDES, Paulo Henrique Marques de Queiroz. “No íntimo do sertão”: poder político, cultura
e transgressão na capitania da Paraíba (1750-1800). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal de
Pernambuco, Recife, 2013.
91 AHU_ACL_CU_018, cx. 8, doc. 511 (1799, outubro, 15, Natal).
92 “Os habitantes desta Capitania, Augustissima, e Soberana Senhora, não são de menor condição para Vossa
Magestade lhes conferir a graça permitida aos da Paraiba, porque se ella alcançou por estar vinte e oito legoas
em distancia de Pernambuco, com quanto mais justiça imploro a VossaMagestade por estar setenta legoasapar-
tadada daquela capital”. AHU_ACL_CU_018, cx. 8, doc. 511 (1799, outubro, 15, Lisboa).
93 Ibidem.
94 AHU_ACL_CU_018, cx. 8, doc. 503 (1799, março, 1, Natal).

1193
[...] as margens dos mares [do Rio Grande] são de grande utilidade à praça de Per-
nambuco, e ainda a da Paraíba, que é socorrida do pescado que annualmente vai
desta Capitania, e padeceria a mesma Praça se tão bem annualmente não fossem
desta Capitania mais sinco mil cabeças de gado, e antes da rigorosa seca que se expe-
rimentou mais de quinze; os engenhos padecerião, e ficarião frustradas as moagens,
se desta Capitania lhe não fossem continuamente novillos para carros, e animais ca-
valares para as ditas moagens daquelles que não são de agoas, pella maior parte serem
de boys.95

Em 1800, seus apelos foram endossados pela câmara da cidade do Natal, que também escreveu
à rainha pedindo a mercê da autonomia e reforçando o papel da capitania na economia e no abasteci-
mento regional. No entanto, os vereadores advertiam que só o comércio direito com reino daria justa
evidência àquilo que já era constatável na prática.
Apesar de tudo, que fome, que cruel fome Soberana Senhora, não sofrerião os mora-
dores de Pernambuco se não fossem constantemente fornecidos de peixe que lhe vai
das praias desta Capitania. Da mesma forma, a que extrema necessidade de carne não
chegarião os mesmos moradores se os sertoens do Assu, Seridó, Espinharas e Trariri-
pertecentes a esta Capitania não exportassem todos os anos seis mil boys, e antes da
seca de 1790 a 93, certamente hião quinze, dezeceis mil boys por anno.96

Outras vilas do Rio Grande também encaminharam a rainha semelhantes clamores pela auto-
nomia administrativa e comercial. Contudo, o despacho do conde de Linhares fora desanimador, pois
mandava “responder a estas camaras paraemquantonão crescer mais a povoação do Rio Grande do
Norte he impossível que Vossa Alteza Real faça a subdivisão do Governo que pediram, e que ate essa
época não he possível deferir lhes como pedem [...]”.97 O capitão-mor Caetano da Silva Sanchos não
viveria na capitania para ver a sua independência jurisdicional.

Comércio e capitais

Decerto, as autonomias das capitanias do Ceará e da Paraíba em 1799 não garantiram, em si, a
interrupção abrupta e radical das históricas relações comerciais e produtivas capitaneadas pelo hinter-
landdo Recife, como demonstra a morosidade na criação das Juntas de Fazenda livres da dependência
da congênere pernambucana,98além da própria resistência dos negociantes das capitanias do Norte em
negociar fora dos circuitos do comércio recifense. Um caso emblemático fora dado pela negativa dos

95 AHU_ACL_CU_018, cx. 8, doc. 511 (1799, outubro, 15, Natal). A respeito dessa intensa e interessante re-
lação econômica entre as capitanias do Norte, fulcral para o abastecimento e alimentação dos povos, o mesmo
fora notado por KOSTER, Henry. Viagens do Nordeste do Brasil. Trad. Câmara Cascudo. 2ª ed. Recife: Secreta-
ria de Estado da Educação e Cultura de Pernambuco, 1978, p. 65, 123 passim; muito antes, Gaspar Barléu tam-
bém indicara o papel do Rio Grande no abastecimento das capitanias do Norte. Cf. BARLÉU, Gaspar. História
dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil e noutras partes sob o governo do ilustríssimo
João Maurício, Conde de Nassau etc.. Trad. Claudio Brandão. Rio de Janeiro: Serviço Gráfico do Ministério da
Educação, 1940, p. 128.
96 AHU_ACL_CU_018, cx. 8, doc. 514 (1800, março, 31, Lisboa).
97 Ibidem, grifos nossos.
98 AHU_ACL_CU_006, cx. 13, doc. 735 (1799, maio, 2, Lisboa); AHU_ACL_CU_018, cx. 9, doc. 602 (1806,
abril, 17, Natal); AHU_ACL_CU_018, cx. 9, doc. 607 (1806, agosto, 26, Natal); AHU_ACL_CU_018, cx. 9, doc.
609 (1806, setembro, 5, Natal)

1194
homens de negócio da vila de Santa Cruz do Aracati, urbe mais rica no Ceará do início dos Oitocen-
tos, aos projetos do governador Bernardo Manuel de Vasconcelos, que, em 1800, desejava criar uma
companhia de comércio que estimulasse o trânsito direto com o reino, mas dependia conspicuamente
do apoio e participação da vila de comerciantes.
Como somente os negociantes do Aracati podem formar hum corpo de associação
comercial: para este convoquei-os, e lhes propuz este assumpto: elles conhecem sem
duvida a summa utilidade, e benefícios que a toda a Capitania e aos seus próprios
interesses delladeve provir; porem o justo receio de arriscarem sobre mares de piratas
as suas mercadorias, os suspende, e faz objeto da sua desculpa, a qual entre outras
he a que merece consideração, porque as demais são fundadas na dependência he-
reditária, e pueril de Pernambuco, o que faz hum grande prejuízo ao comércio desta
Capitania [...].99

Como era de se esperar, a câmara da vila de Fortaleza, precária “cabeça” da capitania, demons-
trou-se muito favorável às propostas do governador, porém, sua posição era absolutamente minori-
tária na política local e inexpressiva do ponto de vista da sua importância comercial.100 Aliás, a defesa
do comércio direto pressupunha ciosamente a readequação de Fortaleza na economia e na política da
capitania, prevendo inclusive a instalação da Junta da Fazenda no porto de Mucuripe, e não no Araca-
ti, onde estava a praça do comércio local e onde costumava funcionar a antiga provedoria. No entanto,
o comércio do Aracati era majoritariamente recifense – como têm mostrado pesquisas recentes – e
esse impasse se estenderia ainda por muitos anos.101

Finalmente, para o caso da Paraíba, ainda em meados dos Oitocentos, a Chorographiado pre-
sidente da província, coronel Henrique BeaurepaireRohan, concluía que “só a imprevidência dos nos-
sos homens de negócio, ou o hábito que já tem contrahido de sujeitar todas as suas transações á praça
de Pernambuco, tem concorrido para que elles não aproveitem, como devem os recursos da província
em benefício desta [...]”.102Por tudo isso, seria muito simplificador se tratássemos esse processo de
regionalizaçãocolonialapenas nas bases de um protecionismo arraigado da praça do Recife, apoiada
por seus ambiciosos capitães-generais, como numa espécie de “colonização dentro da colonização”,103

99AHU_ACL_CU_Ceará, cx. 13, doc. 757 (1800, janeiro, 1, Fortaleza), grifos nossos.
100AHU_ACL_CU_Ceará, cx. 13, doc. 762 (1800, fevereiro, 15, Fortaleza).
101 NOGUEIRA, Gabriel Parente. Fazer-se nobre nas fímbrias do Império: práticas de nobilitação e hierarquia
social da elite camarária de Santa Cruz do Aracati (1748-1804). Dissertação (Mestrado em História), Univer-
sidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2010; __________. O negócio das carnes secas da costa leste-oeste nas
dinâmicas do Atlântico português setecentista. IV Encontro de Jovens Investigadores em História Moderna,
Anais do IV EJIHM, Porto, p. 1-19, 2015; e ROLIM, Leonardo Cândido. “Tempo das carnes” no Siará Grande:
dinâmica social, produção e comércio de carnes secas na vila de Santa Cruz do Aracati (c.1690-c.1802). Disser-
tação (Mestrado em História), Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2012.
102 ROHAN, Henrique B. “Chorographia” publicada in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano,
vol. 3, 1911, ob. cit., p. 253, grifos nossos.
103 OLIVEIRA, Elza Regis de. A Paraíba na crise do século XVIII: subordinação e autonomia (1755-1799).
João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2007.

1195
inclusive porque só muito tardiamente emergira a aspiração de “provincializar” os comércios.104

Sem dúvidas, no final do século XVIII, alguns governadores da Paraíba, Rio Grande do Norte
e Ceará formularam ousadas ideias de defesa do comércio direito com o reino, contestando frontal-
mente o papel da praça do Recife e o “lobby” dos generais de Pernambuco em favor de seus homens
de negócio. Essa agenda, porém, definitivamente não convencia a maioria, nem mesmo em suas pró-
prias capitanias, cuja elites senhoriais e pequenos comerciantes guardavam contatos umbilicais com o
circuito recifense de comércio.105

Ademais, o Recife foi bem mais que o entreposto comercial entre o antigo norte e a Europa;
sua capitalidade era exercida também por meio de um intenso exercício jurisdicional que se cho-
cava diariamente com poderes concorrentes, eventualmente enfraquecidos, mas que, de tempos em
tempos, ganhavam sobrevida, quando, pois, a capitania-geral de Pernambuco fora esfacelada com a
desanexação da Paraíba e do Ceará em 1799 e a custosa autonomia do Rio Grande do Norte alguns
anos depois. As vinculações socioeconômicas eram, contudo, resistentes e seguiram concorrendo pelo
poder enquanto as feições de uma economia colonial fortemente centrada na atividade agroexporta-
dora e que privilegiava as urbes maiores se mantiveram. Nada obstante, esses conflitos e a disputa pela
capitalidade atingiram o século XX.

Por enquanto, estamos apenas iniciando uma compreensão mais apurada e complexa dessas
engenharias políticas, sociais e econômicas compósitas do hinterland pernambucano entre os séculos
XVII e XIX, assim como de seus conflitos e contradições cujos efeitos se espraiaram na longa duração.

BIBLIOGRAFIA

ABREU, Martha; SOIHET, Rachel & GONTIJO, Rebeca (orgs.). Culturas políticas e leituras do passa-
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partes sob o governo do ilustríssimo João Maurício, Conde de Nassau etc.. Trad. Claudio Brandão.
Rio de Janeiro: Serviço Gráfico do Ministério da Educação, 1940.

BERTRAND, Michel. Grupo, clase o red social? Herramientas y debates en torno de lareconstruccíon

104 Segundo Mello, apenas na segunda metade do século XIX “[...] surgira [nas então províncias do norte, atual
nordeste] a aspiração de ‘provincializar’ seus comércios, isto é, reservar às praças de suas respectivas capitais a
exportação dos produtos dos seus hinterlandse a importação dos artigos estrangeiros por eles consumidos, me-
diante a ampliação do comércio direto com o exterior e a diminuição da ‘parte do leão’ que detinham as grandes
praças do Recife, São Luís e Salvador”. MELLO, Evaldo Cabral de. O Norte Agrário e o Império, 1871-1889. 2ª
ed. rev. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, p. 221.
105 Cf. por exemplo, CHAVES JR., Fronteiras insubmissas: circuitos mercantis, elites e territorialidades nas
capitanias do Norte do Estado do Brasil, c. 1791-1797. IN: COSTA, Ariadne Ketini; CHAVES JÚNIOR, José
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1198
TRAFICANTES DE ESCRAVOS: ESTRATÉGIAS SOCIO-ECONÔMICAS NA COLÔNIA DO SACRA-
MENTO EM MEADOS DO SÉCULO XVIII
Stéfani Hollmann106

A região na qual a Colônia do Sacramento estava situada era geograficamente muito impor-
tante. A fortaleza portuguesa interligava as Américas Ibéricas, conectando seus súditos, mas também
seus mercados. Além disso, com a permissão espanhola para que os britânicos comercializassem com
Buenos Aires, havia uma circulação significativa de pessoas de Nações diferentes. Era comum que os
britânicos, do asiento, desembarcassem escravizados em terras sacramentinas107, para que estes fos-
sem vendidos posteriormente em Buenos Aires. Certo é que os britânicos aproveitavam a permissão,
para comercializar também com as portuguesas mercadorias trazidas da Europa, além de levar ma-
terial luso-brasileiro para ser revendido em terras espanholas. Os lusos, por infiltrarem ilegalmente
sua mercadoria em Buenos Aires, tinham preços mais competitivos do que os britânicos, portanto
acabavam por roubar mercado britânico. Por este motivo, havia interesse comum entre súditos das
Coroas Espanhola, Portuguesa e Britânica, sem o conhecimento do monarca. Estes vínculos não fica-
vam apenas no âmbito do comércio, estendiam-se para parentesco espiritual e casamentos108.

O tráfico de escravos no Rio da Prata só ocorreu por conivência dos representantes das Coroas
Ibéricas. Aqueles que deveriam fiscalizar o comércio eram os mesmos que, por vezes, incentivavam
o comércio de cativos. Em um período em que interesses públicos e privados se misturavam, e as
relações pessoais e profissionais eram próximos, os governadores platinos, por vezes, colocavam seus
interesses a frente dos interesses reais. Neste artigo, proponho apresentar a relação dos traficantes de
escravos com os governadores da Colônia do Sacramento e os benefícios dessa relação para o tráfico
de escravos entre a possessão portuguesa e a América Espanhola.

A Colônia do Sacramento esteve desde o início da sua povoação vinculada ao comércio in-
traimperial, pois estava sobre jurisdição do porto do Rio de Janeiro. Este que deveria ser responsável
pelo abastecimento de provisões à praça, o que não era feito com frequência. Portanto, o comércio
ilegal foi o que restou para manter a sobrevivência da praça, por muitas vezes. No entanto, não foi
apenas a falta de mercadorias que fez com que o contrabando ocorresse, pois a possibilidade de rápido
enriquecimento também era muito atrativa. Desta forma, os moradores de Sacramento acabaram por
se envolver significativamente no comércio com Buenos Aires e com eles, os governadores. Estes se
viram muitas vezes obrigados a manter os comerciantes ao seu lado para manter a governabilidade
da praça. Em Sacramento, toda a população estava vinculada de alguma forma ao comércio. Neste
período, na em especial, depois da assinatura do Tratado de Ultrecht em que determinou a área fora
da fortificação a ser explorada. Este fez com que a população sacramentina não conseguisse se mantar
106 Mestranda em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
107 Ver: MIR, Lúcio B. “Ladrones de Guante Blanco – La corrupcionporteñaentiempos de La South SeaCom-
pany (1713 – 1752) – Editora Biblos, 2008.
108 ACMRJ. Livros 2º, 3º e 4º de batismos de livres da Colônia de Sacramento (1735-1777); 8 de novembro de
1733Gulherme Kelly, inglês de Liverpool e sua esposa, natural de Buenos Aires, compareceram à pia batismal
na Colônia do Sacramento.

1199
através da caça ao gado ou agricultura, tornando-se ainda mais dependente do comércio.

O grupo de traficantes de escravos sacramentinos, apesar de não se reconhecer enquanto tal, e


não possuir estratégias de mobilidade social conjunta teve estratégias em comum. A busca pela rela-
ção com os governadores foi uma delas. Dos 116 comissário/homens de negócio/comerciantes109 que
atuaram na Colônia do Sacramento entre 1737 e 1777, apenas trinta e quatro deles podem ser conside-
rados traficantes de escravos. Através de dados cedidos do projeto “Os homens de negócio da Colônia
do Sacramento e o Contrabando de Escravos para o Rio da Prata (1737-1777)”, financiado pelo CNPQ
e executado entre 2012 e 2014, coordenado pelo Professor Doutor Fábio Kuhn, da Universidade Fede-
ral do Rio Grande do Sul, tive acesso aos nomes dos homens que se dedicavam ao comércio na praça,
estes dados foram cruzados com os Registros de Óbito de Escravos110 (1737 – 1752) da Colônia, nos
quais encontrei alguns nomes em comuns. Considerei que aqueles que apareciam nas demais fontes
citados como comerciantes/homens de negócio/negociantes/mercadores, e que nos sepultamentos
apareceram com maior frequência enterrando cativos, eram os traficantes de escravos sacramentinos.
Considerando Sacramento não possuía economia que necessitasse mão de obra cativa em larga escala,
estes homens estavam sepultando os escravizados que deveriam ter sido comercializados com a Amé-
rica Espanhola, mas que por algum motivo que desconhecemos morreram ainda na praça lusa.

Foram muitos administradores portugueses que passaram pela Colônia do Sacramento111. To-
dos passaram dificuldades, devido a proximidade com a América Espanhola, os muitos cercos enfrenta-
dos, as investidas castelhanas e a falta de provisões enviadas pela Coroa Portuguesa. Desta forma, longe
dos principais centros do Império Ultramarino Português, os administradores coloniais, precisavam
governar conforme as condições que lhes foram oferecidas. Neste trabalho, analisarei as relações entre
traficantes e os governadores Antônio Pedro de Vasconcelos (1722 – 1749), Luís Garcia Bivar (1749 –
1760) e Pedro José Soares de Figueiredo Sarmento (1764 – 1775), os quais mantiveram relações com
o grupo de trinta e quatro traficantes analisados neste trabalho. O governador Fonseca, que antecedeu
José Sarmento, por ter governado por poucos anos e provavelmente não ter estabelecido vínculos tão
fortes, não será analisado neste trabalho. O foco não serão exclusivamente os governadores, mas sim
os interesses dos comerciantes de cativos nas relações momentâneas e frágeis com os representantes
reais. Relações de caráter econômico, mas também de parentesco fictício como, por exemplo,
apadrinhamento de filhos de traficantes, como o caso de Luís Garcia Bivar que apadrinhou, muitos
moradores da praça ao longo de seu governo, entre eles quatro filhos de traficantes de escravos que
atuaram na Colônia. Estes casos serão estudados com maior detalhe nas sessões seguintes. Além
destas relações, os governadores também se valeram da distribuição de patentes, gerando com os
traficantes, redes fortes de favores. Por fim, mostrar a centralidade dos governadores em diferentes
relações econômicas e possível conivência destes homens com o contrabando desenvolvido entre a

109 Dados cedidos do projeto “Os homens de negócio da Colônia do Sacramento e o Contrabando de Escravos
para o Rio da Prata (1737-1777)”, financiado pelo CNPQ e executado entre 2012 e 2014, Professor Doutor Fábio
Kuhn, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
110 ACMRJ 2º Livro de Óbitos de livres e escravos da Colônia do Sacramento, fl. 91-137v (1735- 1747) e 6º
Livro de Óbitos de negros, índios, mulatos e cativos, fl. 1-54v (1747-1752)
111 Foram dez governadores entre 1680 e 1777, que representaram a Coroa Portuguesa na Colônia do Sacra-
mento.

1200
América Espanhola e Portuguesa.

Estes administradores régios chegavam à América Portuguesa em busca de ascensão, mobili-


dade e prestígio social. Através de alianças e da flexibilização das ordens reais a seu favor, conseguiram
alcançar seus objetivos. Formavam-se alianças com demais súditos lusos ou com vassalos espanhóis
ou britânicos. Àqueles que recebiam o encargo de administrar a praça da Nova Colônia do Sacra-
mento, sabiam aproveitar das circunstâncias e do seu poder em beneficio próprio. A partir da década
de 1720, a Coroa Portuguesa procurou desvincular seus representantes na América Portuguesa de
negócios escusos que facilitasse a eles enriquecimento, paralelamente ao aumento dos seus salários112.
O motivo pelo qual estes governadores entravam em redes legais ou ilegais na colônia pode-se dever
a questão dos baixos salários. No entanto, apesar do aumento de salário, os governadores sacramenti-
nos, por atuarem em uma praça meridional e provavelmente eram menor remunerados, continuavam
envolvidos em redes e negociações legais ou não.

Deste comércio irregular que ocorria no Prata entre portugueses e espanhóis, os principais
beneficiados foram os governadores ibéricos, que souberam utilizar da sua rede de poder e de seu
cargo a seu favor. Charles Boxer113 defende que os pilares da administração portuguesa foram, em
todo o Império Ultramarino, a Câmara e as Misericórdias, segundo o autor,foram lugares onde a elite
buscou assumir cargos que possibilitaram distinção social dentro dos domínios imperiais. A autora,
Maria Fernanda Bicalho, em seu trabalho “A cidade e o Império – Rio de Janeiro no século XVIII”114,
acrescenta a esses pilares um terceiro, que seriam as redes de poder. Como Sacramento não possuía os
dois primeiros, possivelmente este último tenha sido aquele de sustentação da praça em mãos portu-
guesas. Considerando que a praça tenha passado por muitos períodos de conflito com os castelhanos,
estas relações estabelecidas pelos administradores régios fizeram com que mantivessem homens im-
portantes, que puderam auxiliar na manutenção da praça em favor dos portugueses. Além disso, estas
redes não ficavam restritas as fronteiras sacramentinas, ampliaram-se para outras capitanias, como
Rio de Janeiro e Bahia, mas também para o território castelhano, como Buenos Aires. Além disso, no
final do setecentos,possivelmente se estenderam também até Montevidéu. Estas redes eram formadas
por solidariedade em momentos oportunos e por tensões em períodos em que havia desencontro de
interesses115.

ANTÔNIO PEDRO DE VASCONCELOS, UM LONGEVO GOVERNADOR (1722 – 1749)

Antônio Pedro de Vasconcelos foi governador da Colônia do Sacramento entre 1722 e 1749.
Foi o segundo governador empossado após a refundação da praça portuguesa no Prata. Ele tinha
como objetivo além de aumentar o comércio e a povoação, modificar as relações entre a administração
112 SOUZA, Laura de Mello. “O Sol e a Sombra: Política e Administração na América Portuguesa do século
XVIII”. Companhia das Letras, São Paulo. 2006. p. 270 e 271
113 BOXER, Charles R. O Império Colonial Português (1415 – 1825). Edições 70. Lisboa. 1992.
114 BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o Império – Rio de Janeiro no século XVIII, Rio de Janeiro – Ci-
vilização Brasileira. 2003. Citado por SOUZA, Laura de Mello. “O Sol e a Sombra: Política e Administração na
América Portuguesa do século XVIII”. Companhia das Letras, São Paulo. 2006 em nota de rodapé. p. 256
115 SOUZA, Laura de Mello. “O Sol e a Sombra: Política e Administração na América Portuguesa do século
XVIII”. Companhia das Letras, São Paulo. 2006. p. 278

1201
portuguesa e a elite local116. Governou a praça sacramentina em um período de instabilidades políticas
entre as Coroas Ibéricas. Administrou a fortificação com auxílio financeiro dos comerciantes, devido a
falta de provisões enviadas pela Coroa117. Desta forma conseguiu manter o soldo dos militares em dia e
manter as necessidades de vida no local. Durante o período em que esteve no cargo máximo da Nova
Colônia, os traficantes de escravos sacramentinos tiveram que conviver com outros comerciantes de
cativos: os britânicos, que tinham permissão dos hispânicos para vender escravos com suas colônias.
Entre as décadas de 1710 e 1740 os britânicos obtiveram concessão da Coroa Hispânica para comer-
cializar cativos com seus portos na América e estiveram presentes no cotidiano platino. Paralelamente,
praticamente, a chegada dos britânicos ao Rio da Prata, o Tratado de Ultrecht devolveu a Colônia do
Sacramento aos lusos, o que provocou a vinda de muitos comerciantes portugueses ao Prata, e uma
grande concorrência na venda de mão de obra escravizada no local. Mesmo com o fim do asiento118
por volta de 1740, os britânicos permaneceram no Rio da Prata, pois possuíam vastos interesses e re-
des de sociabilidade no local. Havia diversas denúncias por parte dos castelhanos sobre a permanência
dos britânicos no Rio da Prata, após o período do asiento, e sobre o uso da Colônia do Sacramento
para aportarem e realizarem suas negociações na localidade119. Em um período em que os olhos de
toda a Europa estavam voltados para o Rio da Prata120, ingleses, espanhóis e portugueses tinham inte-
resses, relações e negócios em comum.

Os homens que habitaram a região platinamanejavam121 a fronteira a seu favor. Esta fronteira
meridional da América era porosa e fez circular além de mercadorias homens. Para que este comér-
cio ilegal entre Portugueses e Espanhóis ocorresse por tantas décadas, era necessário que houvesse
pessoas interessadas nele em ambos os lados. Aqueles que deveriam inibir o contrabando também
estavam interessados no benefício econômico que este poderia lhes garantir. Não apenas os represen-
tantes lusos, mas também os hispânicos tinham interesse em usufruir dos lucros do tráfico a seu favor.
Tanto os governadores sacramentinos, quanto os portenhos possuíam relações primárias com os trafi-
cantes122. Certamente aqueles comerciantes que não se beneficiavam das relações com o representante

116PRADO, Fabrício Pereira. Colônia do Sacramento. O extremo Sul da América Portuguesa. Porto Alegre,
2002. p. 174 e175
117POSSAMAI, Paulo César.O tráfico de escravos na Colônia do Sacramento. 5º encontro Escravidão e liber-
dade no Brasil Meridional, 2011. Disponível em: <http://www.escravidaoeliberdade.com.br/site/images/Tex-
tos5/possamai%20paulo%20

cesar.pdf> Acesso em: 27.setembro de 2014.


118Ver: O’MALLEY, Gregory E. Final Passages The Intercolonial Slave Trade Of British America, 1619 – 1807.
2014. North Carolina Press
119 MIR, Lúcio B. “Ladrones de Guante Blanco – La corrupcionporteña em tiempos de La South SeaCompany
(1713 – 1752) – Editora Biblos, 2008. p. 104
120 SOUZA, Laura de Mello. “O Sol e a Sombra: Política e Administração na América Portuguesa do século
XVIII”. Companhia das Letras, São Paulo. 2006
121Aqui utilizo do conceito de Fronteira Manejada de THOMPSON FLORES, Mariana F. da C. Apologia à
fronteira (manejada): uma proposta conceitural. In: Crimes de fronteira: a criminalidade na fronteira meridio-
nal do Brasil (1845-1889). Porto Alegre: PUCRS, 2012. A autora apesar de tratar de um período posterior ao
analisado por mim neste trabalho, traz um conceito de fronteira que se encaixa ao intervalo estudado.
122MOUTOUKIAS, Zacarias. Redes Personales y Autoridad Colonial. In: HISTOIRE, SCIENCES SO-
CIALES,mai-juin. 1992, Paris. Annales…Paris, 1992. (Traduzido com finalidades didáticas por Maria Zapiola,
Universidade de Buenos Aires, Facultad de Filosofia y Letras,1998). P. 6 e 7.

1202
real, reclamavam à Metrópole das irregularidades. Todos os traficantes buscavam ampliar sua rede de
relacionamentos, para buscar facilitar a saída e a entrada de mercadorias em ambos os portos. Assim
como Cipriano de Mello123, que circulava pelas fronteiras e possessões, conforme seus interesses pes-
soais fossem atendidos – o que acabou por facilitar os contatos comerciais entre espanhóis e portu-
gueses, os demais traficantes também fizeram o mesmo no período em que atuaram em Sacramento.

Como o caso de João da Costa Quintão, que fugiu da Colônia do Sacramento, levando sua
família, móveis da sua casa, sua prata e inclusive escravos, através do campo de bloqueio estabelecido
pelos castelhanos, no ano de 1740. O traficante se mudou para Buenos Aires, na oportunidade, sem
pagar os encargos ao governador Antônio Pedro de Vasconcelos124. Esses homens mudavam-se con-
forme seus interesses e suas necessidades pessoais125. Formavam assim a ideia de comunidade dentro
dos impérios português e espanhol126, o que geravam oportunidades em sociedade periféricas e afas-
tadas geograficamente da Metrópole. Como no período ainda não havia um sentimento nacional,
estes homens tinham suas fidelidades ligadas aos interesses pessoais que se misturavam aos públicos.
Portanto, apesar de saberem onde a fronteira delimitava as possessões ibéricas, seus interesses econô-
micos passavam sobre esses limites e criavam vínculos pessoais e profissionais importantes.

João da Costa Quintão era Familiar do Santo Ofício, chegou a Colônia depois da posse de An-
tônio Pedro de Vasconcelos. Quando chegou a América Portuguesa, já possuía vínculos no local, seu
irmão Antônio da Costa Quintão, estava atuando na Colônia do Sacramento também no trato negrei-
ro. Quando em Sacramento, o traficante adquiriu propriedade extramuros, que veio a perder devido
a restrição da área agricultável da Colônia do Sacramento, que o Tratado de Ultrecht havia determi-
nado. Devido a esta perda, o traficante de escravos havia perdido a maior parte da sua propriedade e
passou por dificuldades financeiras127. Provavelmente, devido ao Campo de Bloqueio, teve sua econo-
mia abalada e decidiu partir para Buenos Aires. No lado espanhol, deveria ter relações pessoais que o
auxiliaram a se estabelecer no local, além disso, pode continuar o seu comércio na margem oposta do
Rio da Prata, mantendo vínculos familiares em Sacramento com seu irmão, Antônio.

O traficante João da Costa Quintão certamente esteve vinculado ao governador Antônio Pedro

123 PRADO, Fabrício Pereira. A carreira transimperial de don Manuel Cipriano de Melo no Rio da Prata do
século XVIII. Topoi. Revista de História, Rio de Janeiro, v. 13, n. 25, p. 168-184, jul./dez. 2012. Disponível em:
<www.revistatopoi.org>.
124 ANRJ, Códice 94 [Nova] Colônia do Sacramento (1739-1777), 7 volumes. Vol. 1 (1739-1759): Registro de
cartas do governador a autoridades espanholas. fl. 7r, 7v e 8r. O governador Vasconcelos relata a saída de João
da Costa Quintão, na calada da noite, quando furou o campo de bloqueio em direção a Buenos Aires. Dia 06
de outubro de 1739.
125 Aqui cabe um pequeno comentário, pois parece mais comum do que se imagina trocar de “lado” da fron-
teira. Segundo Possamai (2016), os soldados que não concordavam com o governo da Colônia do Sacramento
também passaram para o lado espanhol da fronteira. Deixando que os interesses pessoais superassem a fideli-
dade ao rei.
126 PRADO, Fabrício Pereira. A carreira transimperial de don Manuel Cipriano de Melo no Rio da Prata do
século XVIII. Topoi. Revista de História, Rio de Janeiro, v. 13, n. 25, p. 168-184, jul./dez. 2012. Disponível em:
<www.revistatopoi.org>. p. 169
127MONTEIRO, Lucas Maximiliano. “A inquisição não está aqui? A presença do Tribunal do Santo Ofício no
Extremo Sul da América Portuguesa (1680 – 1821). Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Porto Alegre, 2011.p. 135

1203
de Vasconcelos. As relações que este traficante estabeleceu com pessoas que também estiveram vin-
culadas ao administrador português, como Manuel Botelho de Lacerda128 e o seu próprio irmão, An-
tônio129, que estavam vinculados diretamente a Vasconcelos, fez com que chegasse a certo benefício,
mesmo que de forma indireta, em seu comércio ou em sua economia. Naquele momento, em 1740, era
provável que estas relações não foram suficientes para manter seu padrão de vida. Portanto, decidiu
partir para o lado castelhano, onde deveria ter relações que fosse o sustentar.

Os traficantes não possuíam uma estratégia conjunta para alcançarem ascensão social, os pro-
cedimentos que tomavam ao estabelecer vínculos eram diferentes para cada indivíduo. Pois homens
diferentes relacionavam a todo instante, tendo em vista o caráter temporário e instável deste tipo de
negócio. As estratégias eram particulares, apesar das trajetórias, profissão e origem social comum.
Cada qual se associava a outros indivíduos em momentos oportunos e necessários para que alcançasse
mobilidade dentro da sociedade na qual estava inserido. Os laços de compadrio poderiam auxiliar a
tornar este fio mais sólido, mas isso não se fazia uma regra. Os laços de cunho pessoal influenciavam
na estrutura de poder local e o que dava base à corrupção. As relações com os representantes das
Coroas Ibéricas não eram exclusividade dos traficantes de escravos sacramentinos. Os comerciantes
portenhos também possuíam relações próximas aos governadores da Colônia do Sacramento, que os
garantiam um embarque seguro de escravos para que estes fossem levados a América Espanhola130.
Aqueles que deveria proibir o comércio ilegal entre ambas as margens do Rio da Prata eram, muitas
vezes, coniventes com a situação131.

O governador Vasconcelos viabilizou as redes legais e ilegais que se estabeleceram no Rio da


Prata. Através da conivência dos representantes régios quanto ao comércio entre a América Espanhola
e Portuguesa, a sua autoridade aumentou na praça da Colônia do Sacramento, fazendo com que mui-
tos negociantes procurassem se relacionar com o governador. De forma semelhante, o administrador
buscou ampliar suas relações pessoais com aqueles que tinham interesse comum a ele132. Durante este
governo, as relações entre os súditos Ibéricos foram estreitadas, o que não significou a paralisação
das apreensões. Estas que não diziam respeito tanto a origem da embarcação que era confiscada e

128Ver: MONTEIRO, Lucas Maximiliano. “A inquisição não está aqui? A presença do Tribunal do Santo Ofício
no Extremo Sul da América Portuguesa (1680 – 1821). Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Porto Alegre, 2011. Botelho serviu de testemunha da Habilitação do Santo Ofício de João da
Costa Quintão. Botelho serviu de governador interino em determinados períodos em que a situação de saúde
de Vasconcelos o impossibilitou, como será visto à diante.
129Ambos – Antônio da Costa Quintão e Antônio Pedro de Vasconcelos – aparecem citados como testemu-
nhas em documentos comuns. É provável que os irmãos Costa Quintão tivessem relações próximas com Vas-
concelos e que estabeleceram-se, neste período, como “bando” do governador.
130MOUTOUKIAS, Zacarias. Redes Personales y Autoridad Colonial. In: HISTOIRE, SCIENCES SO-
CIALES,mai-juin. 1992, Paris. Annales…Paris, 1992. (Traduzido com finalidades didáticas por Maria Zapiola,
Universidade de Buenos Aires, Facultad de Filosofia y Letras,1998). p. 8 – 11.
131POSSAMAI, Paulo César.O tráfico de escravos na Colônia do Sacramento. 5º encontro Escravidão e liber-
dade no Brasil Meridional, 2011. Disponível em: <http://www.escravidaoeliberdade.com.br/site/images/Tex-
tos5/possamai%20paulo%20

cesar.pdf> Acesso em: 27.setembro de 2014. p. 4


132PRADO, Fabrício Pereira. Colônia do Sacramento. O extremo Sul da América Portuguesa. Porto Alegre,
2002. p. 152

1204
sim as pessoas/autoridades e redes mercantis a qual estava vinculada. Também foi neste período que
embarcações da Colônia do Sacramento passaram a ser autorizadas a buscar produtos de necessidade
básica em Buenos Aires, através da conivência de ambos os administradores. Durante o período em
que esteve no poder, o governador procurou manter seus interesses alinhados aos dos comerciantes,
além de manter boas relações com os castelhanos.

Havia diferentes formas de manter relações com os administradores régios, no entanto, Vas-
concelos buscou aumentar seu poder e relações através da concessão de patentes militares. Ao longo
do período em que esteve no poder, deu ao menos sete patentes distintas aos traficantes de escravos
sacramentinos. Os demais governadores que o sucederam buscaram outros meios de estabelecer os
vínculos. Antônio Pedro de Vasconcelos, por exemplo, não compareceu tantas vezes à pia bastimal
como seu sucessor, Bivar, o que será visto na próxima sessão. No entanto, soube administrar a conces-
são de mercês a seu favor, estabelecendo relações importantes e dando a maior parte das patentes de
Ilhas próximas à Colônia do Sacramento a comerciantes de cativos.

O governador Vasconcelos manteve vínculos importantes com seus oficiais. Muitos desses mi-
litares também atuavam no comércio sacramentino. Estes que se beneficiavam da posição militar para
não pagar tributos e ganhar certa autonomia dentro da praça, como por exemplo, João da Costa Quin-
tão – capitão de cavalos da ordenança dos moços solteiros - José da Costa Pereira e Manuel Pereira
Lago, os três que tiveram suas patentes concedidas no período do governo Vasconcelos133. Estes três
homens também aparecem nos registros de óbito de escravos enterrando cativos e por isso, também
são considerados traficantes de escravos. Já eram mercadores antes de ganhar esses títulos de cunho
militar, no entanto com sua patente militar recebida, puderam aproximar-se da administração local
e usufrui dos seus benefícios. Como por exemplo, o caso de José da Costa Pereira que era Capitão
de Ordenança da Ilha de São Gabriel, que era a maior do arquipélago que se encontra próximo da
Colônia do Sacramento. Fazendo com que pudesse ser utilizada para evitar a fiscalização e facilitar o
comércio com Buenos Aires.

O traficante João da Costa Quintão, devido à proximidade com Vasconcelos deve ter esta-
belecido importantes relações com Buenos Aires, a ponto de durante o campo de bloqueio, fugir
para o lado castelhano e estabelecer-se no local por algum tempo. Este fato nos leva a perceber que
as relações que eram estabelecidas entre os traficantes e os governadores eram momentâneas e que
fossem oportunas. Quando foi necessário, João estabeleceu vínculos com Vasconcelos e no momento
que este contato não o auxiliou em seu comércio, o mercador sacramentino atravessou a fronteira da
América Portuguesa em direção ao território castelhano, onde poderia se estabelecer e continuar com
o seu comércio. Também é importante lembrar que seu irmão, Antônio da Costa Quintão, teve como
testemunha do seu casamento o traficante de escravos, José da Costa Pereira e o Mestre de Campo da
Colônia do Sacramento, Manuel Botelho Lacerda, ainda em seu matrimônio estava presente o gover-
nador Vasconcelos.
133MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. A Colônia do Sacramento : 1680-1777. 2v. Porto Alegre, Livraria
Globo. 1937. Volume 2 p. 216 e 217

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Botelho Larcerda, além de governador interino da praça em períodos que Vasconcelos estava
impossibilitado, também estava envolvido no comércio na região platina. Este homem possuía rela-
ções comerciais com outras praças portuguesas. Além disso, na Colônia do Sacramento estabeleceu
família. Sendo que seu filho Constantino Botelho recebeu o mesmo cargo do pai. Já sua filha casou-
-se com o Inglês João Burrish, que como será explanado na próxima sessão deste trabalho possuía
proximidade com o governado Antônio Pedro de Vasconcelos, que batizou o inglês que abjurou à fé
protestante. Necessário apontar que havia diferentes formas do governador aumentar o poder e sua
influência dentro da Colônia do Sacramento134. Nestas vastas redes a qual o governador sacramentino
estava inserido, também estavam relacionados importantes traficantes de escravos da praça. Portanto,
uma vez o governador relacionado a estes mercadores, ele também estava vinculado ao trato negreiro
de certa forma.

VASCONCELOS E OS BRITÂNICOS

Era comum que os lusos da Colônia do Sacramento tivessem relações comerciais e pessoais
com os britânicos que também circulavam pelo Rio da Prata. Os britânicos não ficaram na região
apenas durante o período do seu monopólio do fornecimento de escravos para a América Espanhola.
Mesmo com o final do asiento, alguns permaneceram comercializando com o extremo sul da Amé-
rica, como já mencionado na sessão anterior135. Já no período da permissão espanhola, utilizavam a
Colônia do Sacramento para aportarem, aproveitando para realizar comércio com os portugueses.
Durante o período de Vasconcelos era constante a comunicação entre Buenos Aires e a Colônia do Sa-
cramento. Avisos do administrador luso ao espanhol da chegada de diversas embarcações de origem
britânicas, atentando para a chegada de mercadoria de outra procedência que não ibérica.

Contudo, no final, parece ter sido, Sacramento um entreposto comercial para os britânicos.
Alguns traficantes de escravos sacramentinos possuíram parentesco fictício com eles, aproximando
seus interesses pessoais e profissionais com os súditos da Grã-Bretanha. Como o caso de Domingos
Fernandes de Oliveira que apadrinhou João Little, de origem escocesa, que se converteu a fé católica,
quando na Colônia do Sacramento136. Este traficante de escravo sacramentino, apareceu nos registros
de óbito de escravos sepultando apenas um escravo, no entanto, tinha caixeiro viajante a suas ordens.
Não chegou a se casar na praça, mas chegou à praça acompanhado por outro traficante de escravos,
Manuel Lopes Fernandes. Ambos, no momento em que chegaram a Colônia, o governador Vasconce-
los confidenciou ao administrador de Buenos Aires em carta, que os dois eram merecedores de seus
títulos137.

134 PRADO, Fabrício Pereira. Colônia do Sacramento. O extremo Sul da América Portuguesa. Porto Alegre,
2002. p. 178 - 184
135 Ver: MIR, Lúcio B. “Ladrones de Guante Blanco – La corrupcionporteñaentiempos de La South SeaCom-
pany (1713 – 1752) – Editora Biblos, 2008.
136 ACMRJ. Livro 2º de batismos de livres da Colônia de Sacramento (1735-1777); Dia 8 de setembro de 1733.
João Little foi batizado na casa de Francisco Xavier. fl. 119
137 ANRJ Cód. 94: Secretaria de Estado do Brasil:[Nova] Colônia do Sacramento (1739-1777), 7 volumes. Vol.
1 (1739-1759): Registro de cartas do governador a autoridades espanholas. fl.. 31 e 32 Dia 4 de novembro de
1747, chegando com embarcações que também trariam provisões do Rio de Janeiro.

1206
Ainda havia o caso de Guilherme Kelly, comerciante de origem inglesa, que se relacionava
com diversos traficantes de escravos como Bartolomeu Gomes Lisboa e Bartolomeu Nogueira, ambos
traficantes sacramentinos enraizados na Colônia do Sacramento. Segundo os registros de batismo de
livre, Guilherme Kelly havia sido batizado no Rio de Janeiro, mas foi na região platina que estabeleceu
vínculos mais profundos. Casou-se com Lourença de Lara, natural de Buenos Aires, tiveram alguns
filhos que foram batizados na praça da Nova Colônia. Para apadrinhar seus herdeiros escolheram al-
guns traficantes de escravos, já mencionados acima. Dos seus filhos, alguns nasceram ainda durante o
período asiento, no entanto, outros registros estendem-se para além data estipulada para a permissão
de comércio dos britânicos138. Seus interesses foram enraizados nas margens platinas, sua família se
estabeleceu na praça por anos, tendo seus filhos também se enraizado na sociedade local. A filha Ana
Joaquina Kelly, casou-se anos mais tarde com outro morador da praça portuguesa, Antônio Ribeiro
dos Santos (de origem Reinol lusa), onde ela apadrinhou também filho de Manuel de Abreu Guima-
rães, outro traficante de escravos139. Ana também batizou uma filha sua na praça, portanto, a família
da Guilherme Kelly chegou ao menos a terceira geração na praça sacramentina, esta criança teve como
padrinhos os próprios avós maternos140. Guilherme Kelly, ainda recebeu na praça o título de Capitão
de Guerra e Mar141. Não havia, portanto, interesse português apenas no Rio da Prata, os britânicos
continuavam interessados na região142 e os vínculos extrapolavam os interesses metropolitanos. As
relações que foram estabelecidas no Rio da Prata,

Além do envolvimento com os traficantes, o governador Antônio Pedro de Vasconcelos, tam-


bém possuía relações próximas a britânicos. Batizou três homens que abjuraram a fé protestante (um
escocês, um irlandês e um inglês), todos sem profissão declarada,Thomas Glenham,André Barba e
D. João Burrish respectivamente. Porém, devido ao interesse britânico no comércio platino, pode-se
supor que eram mercadores. No entanto, o que chama a atenção nesses registros de batismo é a proxi-
midade e a forma comum com que portugueses e britânicos se relacionavam no Prata.

“Durante o período do governador Antônio Pedro de Vasconcelos (1722 – 1749), que fazia
parte de uma rede envolvida em negócio ilícitos, em que o prestígio da autoridade régia associava-se

138 ACMRJ. Livro 2ºde batismos de livres da Colônia de Sacramento (1735-1777); Dia 8 de novembro de 1733;
dia 11 de maio de 1735; dia 05 de maio de 1737; dia 14 de outubro de 1738; dia 06 de outubro de 1740; 08 de
julho de 1742; dia 02 de março de 1744; dia 05 de setembro de 1745;dia 10 de agosto de 1748; dia 09 de fevereiro
de 1752; dia 29 de setembro de 1753; dia 14 de janeiro de 1756, Guilherme Kelly compareceu a Pia Batismal
como pai. Neste registro de batismo, constam informações sobre origem do pai e da mãe dos batizados, o que
permite saber que Kelly era natural de Liverpool e batizado na Candelária no Rio de Janeiro e sua esposa era
natural de Buenos Aires. Apesar de nem todos os filhos do casal terem alcançado idade adulta, morrendo logo
após o batismo, os registros deste sacramento católico, permitem verificar o período no qual o inglês esteve
atuante na praça. 3º livro de casamento da freguesia da Sé do Rio de Janeiro..fl 120r; fl. 138r; 3º livro de batismo
fl 7v.; fl. 13r.; fl. 22r; fl. 32r; fl. 39r e 39v; fl. 46r; fl. 57r; fl. 70; fl. 77v; fl. 90v; respectivamente;
139 ACMRJ. Livro 2º de batismos de livres da Colônia de Sacramento (1735-1777); 30 de setembro de 1755 fl.
88v.
140 ACMRJ. Livro 3º de batismos de livres da Colônia de Sacramento (1735-1777); dia 26 de junho de 1762.
Fl. 16v
141 Nos registros mencionados nas duas notas anteriores, sua descrição no livro de batismo permite descobrir
seu título. Embora não tenha tido acesso a seu registro de patente.
142 PRADO, Fabrício Pereira. Colônia do Sacramento. O extremo Sul da América Portuguesa. Porto Alegre,
2002.

1207
à influência dos burocratas e homens de negócio”143. Vasconcelos, procurou manter os traficantes li-
gados a ele através de uma rede de clientela, através de mercês e patentes concedidas, diferentemente
agiu seu sucessor, que buscou relações mais pessoais com o grupo estudado neste trabalho. Devido
a presença inglesa ou devido ao cerco espanhol à Colônia do Sacramento (1735 – 1737), talvez os
comerciantes de cativos não eram tão assíduos nas trocas mercantis no Rio da Prata. No entanto, isso
não significou a inibição do tráfico de escravos ao longo do seu governo. Mesmo que este, não pos-
suísse tanta intimidade com os comerciantes de cativos, nem tendo assumido nenhum vínculo de pa-
rentesco fictício com eles. Ainda, Antônio Pedro de Vasconcelos, sabia das relações comerciais entre a
Colônia do Sacramento e Buenos Aires, o que foi demonstrado nas cartas que escrevia para diferentes
autoridades lusas e hispânicas, porém, não o inibia com todo afinco.
LUÍS GARCIA BIVAR, UM GOVERNADOR “INTERESSADO” (1749 – 1760)

Luís Garcia Bivar esteve vinculado ao comércio ilegal de forma aparentemente mais estreita
que qualquer outro administrador régio. Administrou a praça da Nova Colônia entre 1749 e 1760,
justamente no período em que os óbitos de escravos registrados foram crescentes. Bivar soube ampliar
suas relações sociais o que favoreceu a sua governança e seu poder em todo o Prata. Governou a praça
em um período turbulento em que as demarcações entre a América Portuguesa e Espanhola estavam
em definição devido ao Tratado de Madri., mas soube articular-se e manter a importância da Colônia
dentro do Império Ultramarino Português. O governador foi o único que permaneceu no cargo até a
sua morte, sendo que seu registro de óbito aparece nos livros de sepultamento da Colônia do Sacra-
mento.

As relações entre pessoas comuns e os representantes reais não eram incomuns na América
Portuguesa, ainda em uma praça mercantil, do tamanho da Colônia do Sacramento. No entanto, o
que chama atenção era a proximidade dos interesses do governador Bivar com os dos traficantes de
escravos sacramentinos. Este que chegou a ser acusado de contrabando, por determinado grupo de
traficantes144, como veremos a diante. “O bom conselheiro deveria ‘despojar-se de todos os interesses
de amizade, parentesco, parcialidade, bandos e outros quaisquer respeito’”145. O governador Luís Gar-
cia Bivar parece ter feito justamento o contrário do que recomendava o autor. As relações pessoais en-
tre Luís Garcia e os comerciantes de cativos, variaram entre concedimento de patentes militares – que
por vezes eram vendidas pelo administrador português146 -, compadrio e testemunha de casamento.
A venda de títulos e patentes, não foi tão comum no Império Português, no entanto, na Espanha esta
prática era realizada com maior frequência. Já em Sacramento, segundo as denúncias, Bivar teria apro-
veitado do seu cargo para comercializar patentes importantes e administrar a fortificação. Além disso,

143 KUHN, Fábio. “Homens que concorrem ao seu negócio” A comunidade mercantil da Colônia do Sacra-
mento (1737-1777). R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 176 (468): 13-38, jul/set. 2015. p. 14
144KUHN, Fábio.“Os interesses do governador: Luiz Garcia de Bivar e os negociantes da Colônia do Sacramen-
to (1749-1760)” Topoi. Revista de História. Rio de Janeiro, v. 13, n. 24, jan-jun. 2012, pp. 29-42. p. 40
145 ROMEIRO, Adriana. Corrupção e Poder no Brasil Uma História, séculos XVI a XVIII. Coleção História
e Historiografia. Editora Autêntica – Belo Horizonte – MG. 2017 p. 28 ao citar FURIÓ CRIOL. El concejo y
consejerosdel príncipe, p. 117-118, 73.
146 Ver: KUHN, Fábio.“Os interesses do governador: Luiz Garcia de Bivar e os negociantes da Colônia do Sa-
cramento (1749-1760)” Topoi. Revista de História. Rio de Janeiro, v. 13, n. 24, jan-jun. 2012, pp. 29-42.

1208
no período em que governou Sacramento, Bivar quando acusado de contrabando, procurou aliados
que testemunhassem sua idoneidade enquanto administrador real.

Neste contexto, houve a assinatura de uma atestação por homens que compunham diversos
setores da sociedade – como párocos e militares – mas, sobretudo por comerciantes. Este documento,
serviu para mostrar apoio, ou não ao governador da praça. Em 1752, houve denúncia por parte de
alguns comerciantes, entre eles traficantes de escravos, contra o governador Luís Garcia Bivar, que foi
acusado de realizar contrabando com Buenos Aires147. Um dos seus acusadores foi Domingos Fer-
nandes de Oliveira, traficante de escravos. Bivar, acuado com as acusações procurou aliados naquele
momento, para se fortalecer.Dos quinze traficantes que assinaram a atestaçãotrês possuíam relação
de compadrio com o governador, Costa Machado, Coelho Rosa e Gomes dos Santos Lisboa os três
possuíam patentes militares distintas.

Inácio da Costa Machado, teve o governador como testemunha do seu matrimônio. A segunda
testemunha do seu casamento foi o também traficante de escravo, Antônio da Costa Quintão. Natural
de Lisboa veio a Colônia e buscou enraizar seus interesses no local, através das redes de solidariedade
que firmou148. Dos escravos que enterrou, foram todos adquiridos do Rio de Janeiro149, sendo um de-
les comprador de Francisco Xavier Fonseca, que mais tarde veio a casar-se com moça sacramentina
e também se estabeleceu na praça150. Ao longo do período em que atuou na praça, teve seu prestígio
social aumentado por ter se tornado alferes de ordenança e tenente de Sacramento.

Manuel Coelho Rosa tornou-se Capitão ao longo do período em que atuou na Colônia do
Sacramento. O governador Bivar, além de testemunha do seu casamento, junto novamente de An-
tônio da Costa Quintão, também batizou um dos filhos do traficante. Coelho Rosa151, foi o “típico”
comerciante sacramentino. Natural da Metrópole chegou a Sacramento, realizando negócios, contraiu
matrimônio com moça natural da Nova Colônia e que possuía uma extensa família no local152. Esta-
beleceu relações comerciais tanto com Salvador, como com Rio de Janeiro e também Buenos Aires153.
Assinou a atestação favorável ao governador Bivar, dando respaldo ao administrador luso. Por esses
motivos, possivelmente teve seu comércio facilitado em determinado período. Portanto, Coelho Rosa
foi o traficante que mais vezes apareceu mencionadas nos registros de sepultamento de escravos anali-
sados para este trabalho. Certamente, devido a particularidade da fonte analisada – de analisa perdas
147KUHN, Fábio.“Os interesses do governador: Luiz Garcia de Bivar e os negociantes da Colônia do Sacramen-
to (1749-1760)” Topoi. Revista de História. Rio de Janeiro, v. 13, n. 24, jan-jun. 2012, pp. 29-42. p. 40
148 ACMRJ. Livros de casamentos (1722-1777). Casou-se: 26/07/1750 com Dona Ana Marcelina de Oliveira e
Figueiredo – filha do Mestre de Campo Pedro Gomes de Figueiredo. Fl. 206
149 ACMRJ. 6º Livro de Óbitos de negros, índios, mulatos e cativos, fl. 1-54v (1747-1752). fl. 11r dia o2 de maio
de 1748; fl. 49r dia 25 de julho de 1751, quando comercializou com Francisco Xavier Fonseca
150 ACMRJ. Livros de casamentos (1722-1777). Casou-se 03/12/1747, Por meio do seu procurador: José Inácio
de Almeida com Rita Tereza de Jesus filha do Capitão de Cavalos Manuel Félix Correia fl. 199v.
151 Ver: HOLLMANN, Stéfani. Comércio de Cativos no Rio da Prata: Os traficantes de Escravos na Colônia
do Sacramento entre as décadas de 1730 – 1750. Trabalho de Conclusão de Curso: Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. 2014. p. 35 - 40
152 ACMRJ. Livros de casamentos (1722-1777). Casou-se dia 27 de novembro de 1751, com Vitória Silveira de
Lacerda. Filha de Manuel de Souza Teixeira. Fl. 209v.
153 ACMRJ. 6º Livro de Óbitos de negros, índios, mulatos e cativos, fl. 1-54v (1747-1752). fls. 9r, 50v, 50r, 30 r,
30v, 35r, 53v, 33r, 39v, 44v, 42v. Os óbitos de escravos revelam as conexões comerciais dos traficante.

1209
e não de negócios concretizados - não é possível afirmar que ele tenha sido o maior traficante de Sa-
cramento, todavia é possível concluir que seu comércio era realizado em larga escola com as demais
praças luso-brasileiras e hispânicas.

Por fim, Gomes dos Santos tornou-se capitão e ajudante, assim como Coelho Rosa, comerciali-
zou com os dois principais portos brasileiros154. Casou-se também na Praça da Colônia do Sacramen-
to. Teve três filhos, sendo dois deles apadrinhados pelo governado Luís Garcia Bivar155. A escolha do
administrador régio como padrinho pode não significar proximidade pessoal com ele, mas sim uma
estratégia para que com os vínculos de parentesco fictício com o governador, possam-se adquirir be-
nefícios, entre eles a facilidade de comércio com a margem oposta a Sacramento.

O compadrio era um recurso que poderia gerar prestígio social. Dentro de uma “economia de
favores”, as relações não eram iguais para ambos os polos, sempre. Algum indivíduo dessa relações
poderia ter mais poder social ou econômico do que o outro. Os registros de batismo nas possessões
ultramarinas são importantes objetos de análise, pois o compadrio revela relações de parentesco san-
guíneo e espiritual. Além disso, provavam também a condição social de cada indivíduo. A escolha
de compadres implicava em uma construção de relações de uma nova família e o fortalecimento das
relações com seus descendentes. Quem procurava as relações de compadrio, nem sempre eram mem-
bros do mesmo estrato social. Podiam buscar em um padrinho de uma classe social mais elevada, um
acesso a benefícios importantes. No entanto, também havia o compadrio dentro de grupos sociais
semelhantes. No caso analisado nesta sessão, tratava-se de um grupo em ascensão social – os trafi-
cantes de escravos – e dos representantes régios156. O compadrio dentro da elite colonial significava a
exclusão de outro grupo157 e o fortalecimento do mesmo.

Na Colônia do Sacramento, se comparado o caso do governador Luís Garcia Bivar com os


outros administradores régios, percebe-se que ele foi uma exceção a regra. Tanto Vasconcelos quanto
Sarmento, não utilizavam das relações de compadrio para ampliar suas relações sociais na praça. Cada
qual procurou outras formas de estabelecer proximidade com aqueles que podiam trazer benefícios
para seu governo. No entanto, na América Portuguesa esta estratégia era comum, como o caso do

154 ACMRJ. 6º Livro de Óbitos de negros, índios, mulatos e cativos, fl. 1-54v (1747-1752). Fl. 6r, 17v, 15r, 1r,
13r. Dias 29 de janeiro de 1748; 30 de julho de 1748; 16 de junho de 1748; 05 de maio de 1747 e 26 de maio de
1748, respectivamente.
155 ACMRJ. Livro 2º de batismos de livres da Colônia de Sacramento (1735-1777);06.11.1756o governador
compareceu para apadrinhar Francisco Marcelino e em 24.11.1759 para batizar Manuel. Fl. 94v
156VENÂNCIO, Renato Pinto; SOUSA, Maria José Ferro de; PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves. “O compadre
Governador: redes de compadrio em Vila Rica de fins do século VIII”. Revista Brasileira de História, São Paulo,
v. 3, nº 52, p. 273 – 294. 2006 p. 274 - 277
157KUHN, Fábio. “Os homens do governador: Relações de parentesco e redes sociais no Continente do Rio
Grande (1769 – 1780). In: GUAZZELLI, César Augusto Barcellos; THOMPSON FLORES, Mariana Flores da
Cunha; ÁVILA, Arthur Lima de. Fronteiras americanas: teoria e práticas de pesquisa. Porto Alegre: Susani
Letras & Vida, 2009.p. 44

1210
Continente do Rio Grande158 e de Minas Gerais. O governador, da região aurífera, recebia convite
oficial para apadrinhar crianças, assim que chegado a capitania, não necessitando de relações pré-es-
tabelecidas para que o compadrio ocorresse. Desta forma os governantes conseguiam enraizar seus
interesses dentro da sociedade local. Mesmo com os esforços da Coroa Lusa em manter seus repre-
sentantes distantes das relações locais, o compadrio era oportuno para ambas as partes. Ele servia de
“indicador das hierarquias de poder” na sociedade colonial159.

Procurava-se estabelecer vínculos com o administrador, pelo o que ele representava, uma for-
ma de chegar até a Coroa ou de garantir mercês. Comparando o caso dos governadores de Minas
Gerais e de Luís Garcia Bivar na Colônia do Sacramento, pode-se verificar que havia algumas se-
melhanças. Ambas as regiões recebiam pessoas recém-chegadas do Reino, constantemente. Nos dois
locais, havia a busca pelo enriquecimento rápido devido ao acesso aos metais preciosos que estas
regiões possibilitavam. Além disso, quando chegados da Metrópole, não possuíam vínculos no local e
encontraram no compadrio a forma com de estabelecer e enraizar seus interesses160. No caso de Bivar,
as relações com os traficantes parece ter sido comum, mas o governador também buscou relações de
parentesco com outros setores da sociedade sacramentina, além dos traficantes. Outras formas de
aproximação com o representante régio foram estabelecidas, como por exemplo, a atestação que foi
assinada por alguns traficantes, já anteriormente mencionada.

Sobre a atestação que foi assinada no período do governador Luís Garcia Bivar, não foram to-
dos os trinta e quatro traficantes de escravos que assinaram. Uma quinzena deles provou ser favorável
ao governo, que como sabemos, estava bastante envolvido com o contrabando desenvolvido no Rio
da Prata. Possivelmente estes homens tiveram crescente reconhecimento social, além disso, obtiveram
reconhecimento do governador. Diferentemente daqueles que a assinaram contrários a Bivar, que ape-
sar de aparecerem nos registros de óbito de cativos com frequência, devem ter possuído dificuldades
nas relações dentro e fora da praça. São exemplos, Antônio da Costa Quintão, que apesar de aparecer
relacionando-se com homens que possuíam relações importantes com o governador Bivar,além de
citado como testemunha do casamento de Manuel Coelho Rosa junto ao representante da Coroa lusa,
não se apresentou favorável a Luís Garcia Bivar. Antônio da Costa Quintão, provavelmente estava
vinculado ao antigo governador, Vasconcelos. Com a chegada do novo governador a praça em 1749,

158 KUHN, Fábio. “Os homens do governador: Relações de parentesco e redes sociais no Continente do Rio
Grande (1769 – 1780). In: GUAZZELLI, César Augusto Barcellos; THOMPSON FLORES, Mariana Flores da
Cunha; ÁVILA, Arthur Lima de. Fronteiras americanas: teoria e práticas de pesquisa. Porto Alegre: Susani
Letras & Vida, 2009. p. 44 e 45. O governador José Marcelino, do Continente do Rio Grande, apadrinhou
poucas crianças. Não utilizou muito deste recurso no primeiro governo e quando do seu retorno a capitania,
apadrinhou poucas crianças e com pais socialmente importantes, com pessoas que compunham a elite da nova
capital, Porto Alegre. No caso do Rio Grande os governadores acabaram por aproximar-se da elite local e com
mercadores; José Marcelino parece ter sido a exceção a esta regra no Continente. Já em Sacramento, Bivar apa-
renta ser a exceção, em um local que não era comum as relações de compadrio com o grupo mercantil.
159 VENÂNCIO, Renato Pinto; SOUSA, Maria José Ferro de; PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves. “O compa-
dre Governador: redes de compadrio em Vila Rica de fins do século VIII”. Revista Brasileira de História, São
Paulo, v. 3, nº 52, p. 273 – 294. 2006 p.279-280
160 VENÂNCIO, Renato Pinto; SOUSA, Maria José Ferro de; PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves. “O compa-
dre Governador: redes de compadrio em Vila Rica de fins do século VIII”. Revista Brasileira de História, São
Paulo, v. 3, nº 52, p. 273 – 294. 2006 p.285,287, 288, 290.

1211
Quintão deve ter tido dificuldade em manter os vínculos com o novo administrador real. Esta questão
aponta para as particularidades de interesses de cada administrador real. Bivar, ao chegar na Colônia
do Sacramento encontrou redes relacionais formadas e atuantes, poderia ter se inserido nas mesmas
de seu antecessor, mas ao que tudo indica, o governador formou sua própria, conforme interesses
pessoais e econômicos que possuía. Luís Garcia pode ter mantido alguns vínculos semelhantes aos de
Antônio Pedro, mas não foram necessariamente os mesmo, o que prova a falta de coesão na adminis-
tração lusa e, além disso, que os interesses pessoais eram colocados a frente dos interesses da Coroa,
ou que eles se misturavam. Novo governador, implicava em gerar novas relações sociais161.

Daqueles traficantes que não assinaram a atestação favorável a Bivar e que auxiliaram na de-
núncia, ainda havia Bartolomeu Nogueira. Este que possuiu forte enraizamento na praça, tendo sua
família, permanecido no local até o fim do período luso – tendo o seu filho seguido a carreira mercan-
til, tornando-se comerciante da mesma praça162. Além disso, era Familiar do Santo Ofício e com isso
deve ter conseguido distinção social. Nogueira registrou onze vezes sepultamento de cativos, aparen-
temente era um traficante que realizava bastante comércio163. No entanto, poucos dos sepultamentos
foram realizados posteriormente a posse de Bivar na praça sacramentina. Este dado pode revelar a di-
ficuldade deste homem em realizar comércio no período, diferentemente do antecessor, Vasconcelos.
Possivelmente o homem auxiliou a denunciar Luís Garcia Bivar por este motivo. Também, Domingos
Fernandes de Oliveira – tido como líder daqueles que eram contra – João de Freitas Guimarães e Tomé
Barbosa. Este último cabe ser mencionado, era cunhado do Vigário João Almeida Cardoso, o mesmo
responsável por lavrar os sepultamentos de escravos utilizados como fonte principal desta pesquisa.
Estes homens já atuavam na praça da Nova Colônia no governo de Antônio Pedro de Vasconcelos e
provavelmente não se mantiveram dentro das relações com o administrador real novo. Com exceção
de Nogueira, todos os citados enterraram poucos cativos, o que pode apontar para uma eventualida-
de no seu comércio de cativos ou em pouca perda. No entanto, estes comerciantes não negociavam
exclusivamente escravos e, portanto devem ter sido prejudicados nos outros ramos do seu mercado.

161KUHN, Fábio. “Os homens do governador: Relações de parentesco e redes sociais no Continente do Rio
Grande (1769 – 1780). In: GUAZZELLI, César Augusto Barcellos; THOMPSON FLORES, Mariana Flores da
Cunha; ÁVILA, Arthur Lima de. Fronteiras americanas: teoria e práticas de pesquisa. Porto Alegre: Susani Le-
tras & Vida, 2009. p. 36 O autor debate sibre José Marcelino, governador do Continentedo Rio Grande, e sobre
as novas relações sociais que estabeleceu quando chegou ao local e assumiu o cargo. Não continuando com as
relações estabelecidas anteriormente com seus antecessores.
162ANTT Habilitação do Santo Ofício BARTOLOMEU CESÁRIO NOGUEIRA Maço 6, nº 105 16.10.1772 A
habilitação aponta que o comerciante não era casado, filho do Capitão (e também comerciante) Bartolomeu
Nogueira. Fala do Cabedal e da pureza de sangue que seu pai já havia adquirido anteriormente. É preciso
considerar a adversidade desta praça, pois em geral, na América Portuguesa não havia o hábito de ter segunda
geração de comerciante nas famílias. No entanto, devido as características marítimas da praça tenham estimu-
lado Bartolomeu Cesário Nogueira a seguir a carreira de seu pai, como mercador
163 ACMRJ. 6º Livro de Óbitos de negros, índios, mulatos e cativos, fl. 1-54v (1747-1752). Fl. 40r, 118v, 112r,
119v, 120r, 54v, 110r, 28r. Dos onze escravos que enterrou sete deles foram entre 1741 e 1749 (período em que
Vasconcelos este a frente da administração da Colônia do Sacramento), os demais quatro foram ao longo do go-
verno Bivar, que provavelmente dificultou este homem. Sem dúvida é preciso considerar que as fontes as quais
utilizo apontam apenas para as perdas e não para as vendas. No entanto, é possível supor que se os traficantes
costumavam sepultar mais escravos em determinado período isso devia-se pela entrada por seu intermédio de
mais cativos.

1212
A política de mercês era comum no Antigo Regime, assim como no Império Português, era
uma forma de administrar o território, os súditos e garantir sua governabilidade, como em uma di-
nâmica de sujeição164. Com o sistema de mercês, houve aproveitamento dos títulos recebidos ou com-
prados através dos representantes reais em benefício próprio. Elas serviam como “um dispositivo
informal de exercício de poder e ao mesmo, como o principal elemento articulador desse Império
descerebrado”165.

Em geral, recebiam uma honraria por serviços prestados à Coroa. Quanto aos serviços presta-
dos ao Rei de Portugal, questiono quais seriam eles. Pode-se considerar que estas mercês serviam para
deixar o súdito a seu serviço na região fronteiriça evitando que ele mudasse para o lado oposto, como
o caso de Cipriano de Mello166? O fato é que as mercês fizeram o papel de integradoras do Império
Português167. Elas eram a principal forma de mobilidade social nesta sociedade colonial e poderiam
vir a gerar o sentimento de dívida com o monarca. Esta política de mercês contribuiu para a governa-
bilidade dos territórios portugueses, restaurando a soberania portuguesa em territórios longínquos168,
coordenando os esforços da administração lusa nos seus mais diferentes territórios. Os homens que
recebiam títulos ou cargos importantes por “serviços prestados ao Rei” criavam uma espécie de vín-
culo de sujeição a Coroa, fazendo com que realizassem atividades que auxiliasse a manter, principal-
mente, esses súditos fiéis àquele soberano e ao seu território.

Daqueles homens que assinaram a atestação para confirmar a honestidade do governador da


Praça, alguns ganharam patentes militares importantes, posteriormente. Como o caso de José de Bar-
ros Coelho, que tornou-se Capitão de Ordenança da Ilha de São Gabriel169, uma das maiores ilhas
próximas à Colônia do Sacramento. Apesar de comparecer apenas duas vezes para sepultar escravos
junto ao Vigário170, este traficante casou-se com moça sacramentina e estabeleceu uma vasta rede de
contatos dentro de Sacramento, através do compadrio171. Outro caso importante era o de Simão da
164 FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda e GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. O Antigo Regime nos
trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI – XVIII). Rio de Janeiro: Civilização brasileira. 2001. p.
44
165 ROMEIRO, Adriana. Corrupção e Poder no Brasil Uma História, séculos XVI a XVIII. Coleção História e
Historiografia. Editora Autêntica – Belo Horizonte – MG. 2017 p. 54
166 Ver: PRADO, Fabrício Pereira. A carreira transimperial de don Manuel Cipriano de Melo no Rio da Prata
do século XVIII. Topoi. Revista de História, Rio de Janeiro, v. 13, n. 25, p. 168-184, jul./dez. 2012. Disponível
em: <www.revistatopoi.org>.
167 DUARTE, Madio Pietro Gallas. Administração portuguesa no extremo sul da América: o governo de Pedro
Sarmento na Praça da Nova Colônia do Sacramento (1763 – 1775). p. 28
168 GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. Poder Político e Administração na Formação do Complexo Atlântico
Português (1645-1808). LASA. 2001. p.8
169 ANRJ. Cód. 94 Secretaria de Estado do Brasil:[Nova] Colônia do Sacramento (1739-1777), 7 volumes. Vol.
4 Registro de nomeações de postos militares e outros cargos, patentes e ordens do governador (1748-1755) fl.
73r, 73v e 74r. Luís Garcia Bivar reitera a importância do título de José de Barros Coelho de Capitão da Ilha
de São Gabriel, patente que lhe foi concedida pelo governador Antônio Pedro de Vasconceos, que estaria na
praça por vinte anos. Além disso, defendeu a praça quando necessário, além de queimar embarcações inimigas
e receber embarcações da cidade da Bahia com mercadorias e provisões. Além disso, era muito bom com seus
escravos. Dia quatro de fevereiro de 1750.
170 ACMRJ. 6º Livro de Óbitos de negros, índios, mulatos e cativos, fl. 1-54v (1747-1752). Fl.90 dia 03 de abril
de 1735 e fl. 121v dia 14 de julho de 1743. José de Barros Coelho sepultou escravos, o segundo, vindo do Rio
de Janeiro.
171 ACMRJ. Livros 2º, 3º e 4º de batismos de livres da Colônia de Sacramento (1735-1777);

1213
Silva Guimarães, Capitão da Ilha Rasa172, natural de Braga, assinou a atestação, através da qual possi-
velmente obteve auxilio para o desenvolvimento do seu comércio. Contraiu matrimônio com mulher
sacramentina, Teresa de Figueiredo, com quem teve sete filhos batizados na Colônia173. Possuía con-
tatos comerciais importantes com o Rio de Janeiro, onde havia um sócio, Francisco Xavier Fonseca174,
que anos mais tarde se casou com moça natural da Colônia do Sacramento, por meio de procuração175.
Além disso, Simão obteve o título de Familiar do Santo Ofício, através da habilitação na qual José de
Freitas Guimarães foi testemunha, este que também se dedicava ao trato negreiro176.

A maioria dos traficantes sacramentinos tinha de origem reinol, no entanto, não era regra que
se conhecessem antes de entrarem neste ramo de comércio. Chegavam a colônia muitas vezes sem ne-
nhum conhecido e ampliavam suas redes aos poucos. Iniciavam suas carreiras sendo caixeiros viajan-
tes ou mesmo comissários de algum outro comerciante. Considerando que Sacramento era um local
que dependia do comércio com os demais portos luso-brasileiros, mantinham relações mais ou menos
resistentes com negociantes de outros portos. Mas também havia aqueles traficantes que possuíam
embarcações próprias e seus comissários em outros pontos desta teia mercantil. As rotas comerciais
traçavam cenários de interesse e realizações políticas177.

As relações com o governador da Praça não ficavam apenas no ramo do crédito. Muitos tra-
ficantes tinham laços de parentesco fictício com governadores. As estruturas coloniais locais eram
fonte de prestígio e autoridade, auxiliaram na manutenção e criação de vínculos de parentesco, o que
se tornou fundamental para o funcionamento do Império Português. Através dos laços primários
eram constituídos recursos importantes para que o grupo que tinham grande influência no local – no
caso os traficantes - tratasse dos seus negócios da melhor forma. Aproximavam-se pessoalmente dos
administradores locais, através das relações de parentesco fictício e assim, tinham seus interesses en-
volvidos com os representantes da Coroa. As relações mais pessoais auxiliavam no desenvolvimento
do tráfico e também da política do contrabando178. O governador Luís García Bivar aparece com maior
regularidade nos registros eclesiásticos, no intervalo analisado. Como os casos de Manuel Gomes dos
Santos Lisboa e Manuel Coelho Rosa. Sendo que dos dois apareceu tanto como testemunha de casa-
mento, quanto como padrinho de filhos dos traficantes. O governador também serviu de testemunha
172MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. A Colônia do Sacramento : 1680-1777. 2v. Porto Alegre, Livraria
Globo. 1937. Volume 2 p. 216. Simão recebeu esta patente pelos bons serviços de guerra.
173 ACMRJ. Livro 2º e 3º de batismos de livres da Colônia de Sacramento (1735-1777); fl. 61r; fl.67; fl. 76v; fl.
86v; fl. 94r; fl.103v; fl. 5v.
174 Casou-se com moça sacramentina por procuração assinada para José Inácio de Almeida – Sargento Mor de
Sacramento. Pode-se acreditar que tenha vindo poucas vezes a Sacramento, além de ter se casado na tentativa
de aumentar sua influência sobre a sociedade local. Já que Rita Tereza de Jesus – sua esposa - era filha de Manuel
Félix Correia, Capitão de Cavalos da praça.
175 ACMRJ - Livros de casamentos (1722-1777). Casou-se dia 3 de dezembro de 1747. Fl. 199v
176 ANTT – Habilitação do Santo Ofício - Simão da Silva Guimarães Maço 10, nº 158. Dia. 14.10.1755
177FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima. Nas rotas da governarão portuguesa: Rio de Janeiro e Costa
da Mina Séculos XVII e XVIII. In: FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo; SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá;
CAMPOS, Adriana Pereira. Nas Rotas do Império: eixos mercantis e relações no mundo português. EDUFES,
Vitória. 2006 p. 27
178MOUTOUKIAS, Zacarias. Redes Personales y Autoridad Colonial. In: HISTOIRE, SCIENCES SO-
CIALES,mai-juin. 1992, Paris. Annales…Paris, 1992. (Traduzido com finalidades didáticas por Maria Zapiola,
Universidade de Buenos Aires, Facultad de Filosofia y Letras,1998). p. 3 - 5

1214
de casamento do comerciante de cativos, Inácio da Costa Machado.

Além de compadre, Luís Garcia também serviu como testemunha de casamento, buscou alia-
dos na assinatura da atestação e concedeu patentes militares, que reforçaram seu poder dentro da
praça sacramentina. Considerando que o período analisado o trato de cativos foi expandido, pode-
-se compreender porque estes eram os homens melhor remunerados e melhor vistos na sociedade
colonial setecentista. Dos trinta e quatro traficantes sacramentinos, vinte o oito aparecem em fontes
diversas sendo citado como Homens de Negócio. No entanto, é necessário lembrar, que os próprios
mercadores que davam sua titulação nesta documentação analisada. Pode-se supor que a maioria
destes comerciantes, que na Colônia do Sacramento intitulavam-se homens de negócio, em Portugal,
não passavam de caixeiros viajantes179. Por este motivo, não pode-se dizer se a Colônia do Sacramento
teve comerciantes tão importante a ponto de serem considerados homens de negócio. Certamente,
Sacramento desempenhou papel importante dentro das relações mercantis, dentro do Império portu-
guês, no entanto a praça e os homens que nela atuaram, nunca chegaram a ser tão poderosos quanto
aqueles do Rio de Janeiro.

Outro fator que possivelmente colaborou para que o contrabando ocorresse no período ana-
lisado na região platina, foi que os governadores possuíam respaldo da Coroa Lusa para o enrique-
cimento por meios ilícitos. Pois em períodos de crise financeira, o administrador colonial deveria
desembolsar os próprios recursos para manter a ordem e a vida da praça180.Por esta motivo, os gover-
nadores da Colônia do Sacramento, acostumados a passar dificuldades devido a ineficiência das em-
barcações legais que deveriam chegar do Rio da Janeiro, devem ter tido interesse maior no comércio
ilegal na região platina.

PEDRO JOSÉ SOARES FIGUEIREDO SARMENTO, UM GOVERNADOR E SEUS DESCAMI-


NHOS (1763 – 1775)

Pedro José Sarmento, governou a praça da Nova Colônia entre os anos de 1763 a 1775. Foi
o penúltimo administrador português na praça. Apesar de o período o qual governou a localidade
não estar inserido as fontes dos sepultamentos de escravos, Sarmento também estabeleceu relações
importantes com os traficantes de escravos, que em sua maioria já atuavam no período anterior e que
portanto, aparecem enterrando escravos nos registros analisados. Enquanto administrador, buscou
manter as relações entre ambos os lados do Rio da Prata além de manter o comércio funcionando. Ele,
assim como seus antecessores, tornou a Colônia do Sacramento dependente do mercado, pois a área
agricultável já era restrita, como já mencionado anteriormente. Devido ao Campo de Bloqueio, os
sacramentinos estavam impossibilitados de plantar e caçar o gado para além do espaço determinado
pelo “tiro de canhão”. Portanto, a praça perdeu a subsistência agrária, dependendo do comércio e das
provisões que eram enviadas pelas diferentes embarcações que chegavam ao Prata.

Como já mencionado anteriormente, no período em que Luís Garcia Bivar administrou a Co-
179KUHN, Fábio. “Homens que concorrem ao seu negócio” A comunidade mercantil da Colônia do Sacra-
mento (1737-1777). R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 176 (468): 13-38, jul/set. 2015.
180 ROMEIRO, Adriana. Corrupção e Poder no Brasil Uma História, séculos XVI a XVIII. Coleção História e
Historiografia. Editora Autêntica – Belo Horizonte – MG. 2017 p. 36

1215
lônia do Sacramento, houve distribuição de patentes militares de forma significativa entre os trafican-
tes de escravo. Fez com que o governador obtivesse uma rede clientelística importante, mostrando-se
interessado em manter boas relações com os comerciantes. Pedro José Soares de Figueiredo Sarmento,
por sua vez, parece ter seguido bem os passos do seu antecessor, para que se mantivesse a governabili-
dade da praça. “Destituiu antigos oficiais e nomeando novos, para atingir um grupo de indivíduos181”.
Entre as nomeações, estavam alguns homens que estariam envolvidos no negócio negreiro. Cons-
truindo estes vínculos, Sarmento provou seu interesse nas relações com estas pessoas, que poderiam
lhe ser úteis em determinado momento. Estes homens, não eram necessariamente os mesmos que os
governadores anteriores consideravam importantes. As relações entre representantes reais e trafican-
tes eram temporárias e precisavam ser relevantes naquele momento. Caso seus interesses viessem a
divergir eram desfeitas, conforme a necessidade do administrador.

Devido ao recorte temporal que as fontes dos óbitos de escravos fornecessem a esse trabalho,
nenhum dos trinta e quatro traficantes analisados anteriormente aparecem sendo relacionados direta-
mente ao governador Sarmento. No entanto, alguns nomes que já haviam sido encontrados se relacio-
nando aos traficantes sacramentinos estudados, se repetem. Uma relação chama atenção em especial
é a de José Custódio de Almeida Beça. Este homem também estava envolvido com o trato negreiro182,
estava relacionado ao bando dos “Azevedos”183, que tinham seus negócios facilitados pelo governador
Sarmento. José Custódio, mais do que isso, era concunhado de Manuel Coelho Rosa, traficante que
atuou na Colônia do Sacramento no período analisado, sendo um dos mais importantes comerciantes
de cativos da praça184.

Coelho Rosa, aparece mencionado como morto em abril de 1762, quando seu filho mais novo
é batizado185. No entanto, sua família permaneceu na praça até o final do período luso, pois sua filha
aparece nos registros de batismo de livres ainda em 1776. Ela batiza sua prima (filha de José Custódio)
junto ao último governador luso da praça, Francisco José da Rocha186. Há algumas questões que pre-
cisam ser analisadas nessas relações estabelecidas, José Custódio, assim como Manuel Coelho Rosa,
através do matrimônio ingressou em uma rede familiar bastante importante. Seus sogros vieram do
arquipélago dos açores para a Colônia do Sacramento, provavelmente para auxiliar a povoação desta
terra meridional lusitana. Tiveram cinco filhos batizados em Sacramento, entre elas Vitória, que ca-
sou-se com Manuel e Isabel, com José. Enraizando seus interesses na Colônia e dentro desta teia fami-
liar, conseguiram influência local, estabelecendo vínculos com os governantes. Manuel Coelho Rosa
181 DUARTE, Madio Pietro Gallas. Administração portuguesa no extremo sul da América: o governo de Pedro
Sarmento na Praça da Nova Colônia do Sacramento (1763 – 1775). 2010 p. 39
182 DUARTE, Madio Pietro Gallas. Administração portuguesa no extremo sul da América: o governo de Pedro
Sarmento na Praça da Nova Colônia do Sacramento (1763 – 1775). 2010 p. 39
183 Ver: DUARTE, Madio Pietro Gallas. Administração portuguesa no extremo sul da América: o governo de
Pedro Sarmento na Praça da Nova Colônia do Sacramento (1763 – 1775). 2010 p. 39 -41
184Manuel Coelho Rosa, foi um dos comerciantes sacramentinos que contribuiu com 100 mil para a expedição
de Gomes Freire de Andrade” foi um dos maiores contribuintes, tendo entrado com 2$500.000 réis no rateio
que foi realizado em 1753 (ver Prado, 2002, p. 202).
185ACMRJ. 255 ACMRJ. Livros 2º, 3º e 4º de batismos de livres da Colônia de Sacramento (1735-1777); Fl. 14
r dia 15 de abril de 1762.
186ACMRJ. 255 ACMRJ. Livros 4º de batismos de livres da Colônia de Sacramento (1735-1777); fl 28r 22 de
outubro de 1776.

1216
com Bivar e José Custódio de Almeida Beça com Sarmento. O tráfico de escravos era, portanto, uma
empresa familiar. Apesar de Manuel Coelho Rosa não estar mais vivo, seu concunhado continuou
envolvendo a família nesta relação e beneficiando-a dos lucros deste comércio, através de alianças
importantes com o governo. Através do matrimônio e dos vínculos familiares (mesmo de parentesco
fictício), formavam-se outras formas de bandos que buscavam em conjunto mobilidade social. Cla-
ramente, nem todos os membros desta rede contribuíam da mesma forma na dinâmica social. No
entanto, todos deveriam ter algo a contribuir ao grupo187. Eram vínculos temporários de reciprocidade
entre pessoas de diversos estratos sociais, como o governador e os traficantes de escravos.

A corrupção existiu sim no Antigo Regime, mas como sinônimo de outras práticas que iam
de encontro ao correto, assim como abuso de excesso de poder. Era a prática de venda de ofícios, ou
o favorecimento de pessoas próximas ou ainda a realização de contrabando. O Império Ultramarino
Português esteve marcado pela ambição de funcionários régios mal pagos e pouco reconhecidos. Este
fator provavelmente tenha levado a ocorrer atos ilícitos ao longo do seu vasto território. Assim como
as estratégias de mobilidade social, o recebimento de mercês e ambição, o contrabando realizado
com certo respaldo das autoridades lusas na Colônia do Sacramento, contribuiu para a dinamização
e autonomia da praça. Contribuindo assim para a manutenção e governabilidade de uma das praças,
que embora geograficamente periférica, era importante economicamente para o Império Ultramarino
Português. Apesar das formas de enriquecimento tanto dos representantes régios nem sempre serem
legais, o contrabando não foi o resultado de um Estado incapaz de controlar o comércio ilegal entre
as possessões americanas. Pode-se dizer, que as autoridades coloniais não estavam interessadas em
combatê-lo totalmente. Pois a corrupção e o contrabando eram estratégias em um espaço que estava
aberto para negociações188. Houve apreensões de mercadorias comercializadas de forma ilegal em
ambas as margens do Rio da Prata, mas também houve um período em que as apreensões de embar-
cações desapareceram189. O que não significou o fim do comércio entre Buenos Aires e Colônia do
Sacramento, pode ter significado uma maior conivência ou beneficiamento das autoridades locais, que
se envolviam facilmente com o comércio local.

Além disso, estes vínculos superavam a saída e chegada de novos administradores régios. A
busca por novas relações que pudessem os auxiliar no comércio era importante e constante. Elas não
eram permanentes e sim temporárias conforme os interesses. Os interesses europeus estavam voltados
àquela região que além do comércio de cativos ser muito lucrativo, também garantia acesso a prata
espanhola de Potosí A aproximação de homens de diferentes origens reinóis, através do comércio de
escravos, mostra a importância da articulação econômica em um período em que o comércio maríti-
mo crescia. Mesmo vivendo em uma sociedade de Antigo Regime nos Trópicos em que a política de
Mercês parece ter auxiliado nos vínculos Imperiais, foi o comércio e seus agentes que ligaram todos os

187 GIL, Tiago Luís. O Bando de Rafael Pinto Bandeira em uma representação gráfica: uma tentativa de apli-
cação das social network analysis na história social. Anais do I Colóquio do LAHES. Juíz de Fora, 2005. p. 4
188 ROMEIRO, Adriana. Corrupção e Poder no Brasil Uma História, séculos XVI a XVIII. Coleção História e
Historiografia. Editora Autêntica – Belo Horizonte – MG. 2017 p. 33, 34,35, 57, 76 e 77.
189 Ver: JUMAR, Fernando; PAREDES, Isabel. “El comercio intraregional em El complejo portuário riopla-
tense: El contrabando visto através de lós comisos, 1693 – 1777. Universidade Nacional de La Plata. Memória
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(1748-1755).

1219
1220
SIMPÓSIO TEMÁTICO 16
Revoltas, Inconfidências e Independências: episódios, poderes, narrativas das lutas políticas no Brasil
– séculos XVII-XIX

Coordenadores:

André Figueiredo Rodrigues

Luciano Raposo de Almeida Figueiredo

Morto pelo desejo de Liberdade: a imagem de Tiradentes reabilitada em tempos de Repú-


blica.
Carlos Lima Junior1

O Museu Paulista, aberto ao público em 1895, e alocado no edifício-monumento construído


em fins do Império para celebrar a Independência do Brasil, no bairro do Ipiranga, em São Paulo,
recebeu, como doação, em 1898, um busto de “Tira-dentes”2. O aceite pelo busto ia ao encontro ao
Regimento de criação do Museu que além da tela “Independência ou Morte!” (1888), de Pedro Améri-
co3, previa a colocação de “estátuas, bustos ou retratos a óleo de cidadãos brasileiros que, em qualquer
ramo de actividade, tenham prestado incontestáveis serviços à Pátria e mereçam do Estado a consa-
gração de suas obras ou feitos4”.

Apesar de comemorada nos primeiros instantes, a incorporação de tal “dádiva”junto ao acervo


logo gerou desconfianças por parte da diretoria do Museu, representada na pessoa de Hermann vo-
nIhering, cientista alemão, especialista em moluscos5. Os questionamentos de Ihering diante da peça,
como veremos, pairavam em torno da origem da mesma, da estranha coloração empregada, e, sobre-
tudo, dos traços fisionômicos que, aos olhos do diretor, poderiam insinuar uma suposta ascendência
mestiça e, quiçá, negra de Tiradentes. Foram todas essas inquietações que levaram o cientista alemão
a recorrer a vozes que pudessem atestar a “veracidade” da imagem esculpida no busto, e uma vez mu-
nido dessas provas, decidir por expor (ou não) a peça aos olhos do público visitante.

1 É Doutorando em História da Arte pelo MAC|USP, sob orientação da Profa. Dra. Ana Paula Cavalcanti Si-
mioni. Bolsista FAPESP. E-mail: carloslimajr@usp.br
2 O paradeiro do referido busto é desconhecido. Não está mais arrolado no acervo do Museu Paulista. Como
veremos, possivelmente na gestão de Afonso Taunay a peça foi “descartada”, uma vez que não consta nos inven-
tários elaboradas pelo diretor.
3 OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles & MATTOS, Claudia Valladão de. O Brado do Ipiranga. São Paulo:
Edusp/ Museu Paulista da USP/ Imprensa Oficial, 1999.
4 Artigo 3º, parágrafo 2º, do Regulamento do Museu Paulista do Estado de São Paulo. São Paulo: Typographia
do Diário Official, 1894. p. 4.
5 Sobre os anos de direção de Ihering, entre 1895 e 1916, consultar MORAES, Fábio Rodrigo de. Uma coleção
de História em um Museu de Ciências Naturais: o Museu Paulista de Hermann vonIhering. Anais do Museu
Paulista. Jan-Jun, ano| vol. 16, número 1. 2008.

1221
Ihering, em carta ao “cidadão Benedicto Camargo”6, - doador do referido busto -, e datada de
22 de abril de 1898, questionaria:

A respeito de Tira- Dentes e os outros objectos [foi offertado ao Museu] peço-


-vos fornecer algumas informações que, segundo opinião de muitos, ha necessidade
ou que seja conhecido: [o seu fim, origem, procedencia, etc.] tendo sido exposto o
busto de Tiradentes, apresentarão-sediversos republicanos illustres que divergirão
em opiniões. Para isso pesso a sua por escripto a fim de ajuntar aos objetos referidos.

Se o busto de Tiradentes, é tirado do[a palavra aparece riscada] uma figura do


original ou se é tirado por alguma photographia retrato original legendaria daquelle tempo
(authentico?); se éra branco ou mulato; (que pela cor do busto e cabellos mostra ser
de raça mestiça).

Se era ligitimo brasileiro ou não.7

A resposta viria, pois, em questão de dias, em carta preenchida de detalhes sobre a vida de
"Tira-Dentes", com destaque para a sua inserção no grupo dos insurretos, que levaria a sua morte, em
1792. O fim da missiva era a respeito das dúvidas sobre a imagem contida no busto. Camargo explica-
ria ao diretor o processo de sua constituição, e, portanto, de sua suposta "autenticidade".

Illustre cidadão e Director do Museo Paulista

Tira-Dentes não deixou retrato de especie alguma; e desejando os seus parentes pos-
suir um retrato do martyr, e não tendo ainda por esse tempo sido descuberta a pho-
tographia o que aliás seria inutil, por que Tira-Dentes não deixou retrato que pudesse
ser reproduzido, recorreram a um pintor.

Como este não conhecera ao grande patriota, reuniu a familia do mesmo e


encetou o arduo trabalho de mediante informações circunstanciadas sobre a phisio-
nomia de Tira-Dentes, reconstruil-a por partes, com o pincel, sendo, somente depois
de affanosos esforços que os parentes do glorioso morto accordaram em acceitar um
dos retratos feitos, por julgal-o parecido.

Foi deste grosseiro masauthentico trabalho, que os parentes de Tira-Dentes


mandaram mais tarde tirar photographias.

Este retrato não foi feito sobre tela, o que naquela epocha era desconhecido
nesta parte da America, mais sim, sobre taboas de pinho unidas e pregadas em senti-
do horisontal. - Tira-Dentes, devia ser de puro sangue portuguez por que era official
militar de patente e no seculo passado só gente limpa de sangue judeu[sublinhado
próprio], indio ou negro podia ser padre [sublinhado próprio] e official do exercito.

A côr escura do busto é do gesso colorido e não do homem.

O busto foi dado ao Club Republicano pelo falecido Manoel Augusto Galvão,

6 Não conseguimos ainda no atual estágio da investigação maiores dados sobre Benedicto Camargo.
7 Carta da Diretoria do Museu Paulista a Benedito Camargo. 22 de abril de 1898. APMP/ FMP, Pasta 115. Gri-
fos meus.

1222
ignora-se quem o fez.

[...]

Saude e Fraternidade

Benedicto Camargo8

As informações contidas na missiva ficam ainda mais instigantes quando comparadas àquelas
da legenda a respeito da imagem de “Tira-Dentes”que integra o livro “História de Portugal”, escrito
por Manuel Joaquim Pinheiro Chagas e ilustrado pelo artista Alfredo Roque Gameiro9, preservada na
biblioteca do Museu. Ao fim do livro, encontra-se nas “Explicações das Illustrações”

Todos os retratos existentes d'este proto-martyr da liberdade brazileira são


copiados de um pintado em madeira feito por indicação de pessoas de familia do
famoso republicano brazileiro. O retrato existente no Museu de Ypiranga em S. Paulo
tem a seguinte nota que o auctor d' estes apontamentos copiou com o fim de a repro-
duzir aqui: "Este busto não é authentico, porquanto o Tira-Dentes não deixou retrato
algum, visto não haver photographias naquele tempo. Em 1792, foi feito um retrato a
pincel em taboas de pinho, pregadas horizontalmente e executado segundo informa-
ções da physionomia do morto prestadas pela familia. A familia e parentes, achando
o retrato parecido acceitou-o e o fez reproduzir."10

A explicação contida na carta de Benedicto Camargo coincide com a legenda anotada no livro
de Chagas. Certamente, Ihering repassou as informações sobre o busto, exposto na sala de Objetos
históricos, conforme os dados endereçados por Camargo, e, posteriormente, anotados, ou pelo artista
Roque Gameiro, ou mesmo Pinheiro Chagas, quando de sua possível visita ao Museu. Ao que tudo
indica, a ilustração do livro de Chagasfoi feita a partir da imagem de Tiradentes presente no busto,
doado em 1898.

8 Carta de Benedicto Camargo ao "illustre cidadão e Director do Muzeô Paulista. 15 de maio de 1898. APMP/
FMP. Pasta 115. Grifos meus.
9 Trata-se de CHAGAS, Manuel Joaquim Pinheiro. História de Portugal. Popular e Illustrada. Lisboa: Liv. Mo-
derna, 1899. Publicado em três volumes e presente no acervo da Biblioteca do Museu Paulista.
10 CHAGAS, Manuel Joaquim Pinheiro. Op. cit. Possivelmente, "authentico" foi empregado como contempo-
râneo a Tiradentes. Grifos meus.

1223
Figura 1 - CHAGAS, Manuel Joaquim Pinheiro. História de Portugal. Popular e Illustrada. Lisboa: Liv.
Moderna, 1899.

Com a saída apressada de Ihering, em 1916, o historiador Afonso d’Escragnolle Taunay (1876
– 1958) assumiu o posto de diretor imediatamente no ano seguinte. Visando preparar o Museu para
os festejos do Centenário da Independência a ser celebrado em 192211, Taunay encomenda uma série
de pinturas versadas sobre episódios do passado nacional, bem como retratos destinados a galeria dos
“Homens da Independência”, a serem dispostos no alto da escadaria do Museu, reservada aos “Ban-
deirantes, martyres da liberdade e grandes vultos da Independência12”.

11 MATTOS, Claudia Valladão de. Da palavra à imagem: sobre o programa decorativo de Affonso Taunay para
o Museu Paulista. Anais do Museu Paulista, Ano/ Vol. 6, n. 7, São Paulo, 2003. BREFE, Ana Claudia Fonseca.
Op.cit.2005.
12 TAUNAY, Afonso. Relatório Referente ao anno de 1922 apresentado a 23 de Janeiro de 1923, ao excellen-
tissimo senhor secretario do Interior, doutor Alarico Silveira, pelo director em comissão, do Museu Paulista,
Affonso d’ Escragnolle Taunay. In: Revista do Museu Paulista. Tomo XIV. São Paulo. Officinas do DiarioOfficial,
1926. p. 730. Sobre o imaginário da Independência, cf., entre outros de OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles. O
Museu Paulista da USP e o imaginário da Independência. Cedes. Campinas. v. 22, n. 58. Dez, 2002.

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Figura 2 - Oscar Pereira da SILVA (1865 – 1939). Tiradentes. 1922. Óleo sobre tela.

Museu Paulista da Universidade de São Paulo

Dentre as 22 figuras retratadas, está Tiradentes, realizada pelos pincéis do fluminense Oscar
Pereira da Silva (1865 – 1939), e doado pelo próprio artista em 1922.13 Alocado abaixo do retrato de
Soror Joana Angelica de Jesus, religiosa assassinada pelos portugueses na Guerra da Independência
na Bahia em 1823, e posicionado na parede oposta, na qual está o retrato de Domingos José Martins,
morto na “Revolução Pernambucana de 1817”, a presença ali de Tiradentes junto a estes dois, confor-
mava o grupo de “mártires” da história pátria. Assim se referiu Taunay sobre tal escolha

Num nivel superior, entre o fecho do nicho e a sanca deixou o architecto lugar para os
retratos. Para elles escolhi os de dois martyres da liberdade brasileira: synthetisando
um a Inconfidencia Mineira, outro a revolução pernambucana de 1817; Tiradentes
(Oscar Pereira da Silva); Domingos José Martins (N. Petrilli).

Na visão do historiador, Tiradentes, sentenciado à forca e esquartejamento pelo crime de Lesa-

13 Mariana Dolci em pesquisa de mestrado dedicou-se a compreensão desse retrato de Pereira da Silva. Sobre
as reflexões da autora nos deteremos mais a frente. DOLCI, Mariana. Personagem imortal: a construção da
memória de Tiradentes no Museu Paulista e no Museu da Inconfidência Mineira. Dissertação (Mestrado em
História Social). PUC-SP, 2014. Para a iconografia de Tiradentes, cf. CARVALHO, José Murilo. Tiradentes: um
herói para a República. In: A formação das almas. O imaginário da República no Brasil: São Paulo: Companhia
das Letras, (1990), 2007; MILLIET, Maria Alice. Tiradentes: o corpo do herói. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

1225
-Majestade, em 1792, graças ao seu envolvimento na “Inconfidência Mineira14”, preconizava, já naque-
la época, um suposto sentimento de pertencimento, de “comunhão fraterna15”, uma vez que aspirou à
libertação da colônia do julgo da metrópole portuguesa. Tiradentes seria, portanto, um grande exem-
plo daquele que se sacrifica por um bem maior – no caso, a libertação do Brasil de Portugal. É como
se sua morte na forca tivesse sido feita em nome do Brasil, de uma grande “comunidade imaginada”, a
qual já pertencia e deu a vida16.

Lidos dentro uma perspectiva linear e evolutiva da História, esses movimentos contestatórios,
ocorridos na Colônia, eram encadeados uns aos outros, nos escritos de fins do século XIX e inícios do
XX, de modo que o último elo era formado com o “7 de setembro de 1822.”17 Taunay, em Relatório ao
Secretário do Interior a respeito das medidas implementadas no interior do Museu, visando os festejos
de 1922, deixaria explicitada tal associação:

Nos quatro angulos da sancavem-se medalhões esculpidos trazendo os millesimos,


coroados de louros, das grandes datas assignaladoras da evolução da liberdade nacio-
nal; em 1720 rebellião de Vila Rica e supplicio de Philippe dos Santos; 1789 Inconfi-
dencia Mineira; 1817 revolução pernambucana e 1822 a Independencia18.

Ainda que recorrendo a elementos próprios da iconografia de Tiradentes - muito próxima à


simbologia cristã - Pereira da Silva apresenta algumas variações no trato de sua imagem encomendada
por Taunay. Os olhos do personagem não estão voltados aos céus, associativa a ideia de um "mártir
14 Para uma discussão adensada sobre esse movimento contestatório em Minas, ocorrido em fins do século
XVIII, vide, sobretudo: MAXWELL, Kenneth. A devassada devassa. A Inconfidência mineira: Brasil – Por-
tugal (1750 – 1808). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985; SOUZA, Laura de Mello e. Norma e conflito: aspectos
da história de Minas Gerais na primeira metade do século XVIII. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999;
FIGUEIREDO, Luciano. O Império em apuros notas para o estudo das alterações ultramarinas e das práticas
políticas no império colonial português, séculos XVII e XVIII. In: FURTADO, Júnia (orgs) Diálogos oceâni-
cos. Minas Gerais e as novas abordagens para a história do Império Ultramarino Português. Belo Horizonte:
Editora da UFMG, 2001; FIGUEIREDO, André. A fortuna dos inconfidentes. Caminhos e descaminhos dos
bens de conjurados mineiros (1760 – 1850). Rio de Janeiro: Editora Globo, 2009. Heloisa Starling, em recente
estudo, ilumina aspectos ainda pouco discutidos sobre a participação de Tiradentes na Conjuração Mineira, cf.
STARLING, Heloísa M. República florente. In: Ser republicano no Brasil Colônia. A História de uma tradição
esquecida. São Paulo: Cia das Letras, 2018.
15 ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. Reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo.
São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 32.
16 Como bem sintetizou José Murilo de Carvalho: “Leitores de livros de estrangeiros eram, por exemplo, os
participantes da conspiração mineira de 1789. Especialmente de livros que falavam da independência da Amé-
rica do Norte. Esses juristas e poetas que sonharam com a independência de Minas Gerais, com uma república
segundo o modelo dos Estados Unidos da América do Norte, não falavam em Brasil. Falavam em América
(“nós americanos”) ou falavam na “pátria mineira”. Embora tenham buscado apoio em capitanias vizinhas,
como Rio de Janeiro e São Paulo, fizeram-nos por razões estratégicas mais do que qualquer sentimento de iden-
tidade coletiva. Os argumentos dos conspiradores em defesa da independência referiam-se sempre ao território
de Minas Gerais e a seus recursos econômicos.” CARVALHO, José Murilo. Brasil: nações imaginadas. In: Pon-
tos e bordados. Escritos de história e politica. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001. p. 234.
17 Os escritos presentes na Revista do Instituto Histórico Brasileiro a respeito da Inconfidência Mineira, anali-
sados para a Tese, certamente iluminarão as discussões sobre os quadros históricos versados sobre Tiradentes.
18 TAUNAY, Afonso. Op. cit. 1926. p. 732. Grifos meus.

1226
cristão", solução encontrada por Aurélio de Figueiredo Mello em seu quadro Martírio deTiradentes,
de 1893, com o alferes diante ao patíbulo, postado diante de seu carrasco, vestindo uma longa túnica
branca, e acompanhado de um frade que lhe apresenta a cruz19. Diversa desta, Tiradentes é retrata-
do por Pereira da Silva com uma postura imponente, não está cabisbaixo, em nada denota fraqueza;
não se trata de um "herói fragilizado", "enfraquecido" como na tela Tiradentes esquartejado,de Pedro
Américo, datado de 189320, exposto com o corpo aos pedaços, momento depois da morte na forca.21
Se a postura de seu corpo é comedida, assim o é o seu cabelo, todo alinhado.

Sobre a imagem de Tiradentes, comentaria Taunay ao Secretário do Interior:

"De todos estes illustresbrazileiros desde muito angariei as effígies salva a de


Tiradentes, de que não há retrato como V. Excia., sabe, existindo porém, uma effigie
muito popular em todo o paiz em que desde muito se concretiza a memoria do pro-
tomartyr. Podemos tomal-a sem inconveniente."22

A "effígie muito popular em todo o paíz", selecionada por Taunay, a respeito do "protomartyr",
e pintada por Pereira da Silva, parece ser, realmente, de grande circulação. Uma imagem muito seme-
lhante ao retrato já constava na edição da Revista Illustrada de 1890, estampando uma das páginas
dedicadas à rememoração da morte de Tiradentes, em 21 de abril de 179223. Mas é ainda possível que
a ilustração “José da Silva Xavier, o Tira-dentes”, que consta no já referido livro de Pinheiro Chagas
tenha servido a Oscar Pereira da Silva para a confecção do retrato.24

É certo que a imagem de Tiradentes gravada no livro e aquela contida no retratoguardam muitas
aproximações, mas também algumas divergências. Se na primeira, Tiradentes aparece com a casaca
abotoada até o alto, em uma clara associação à sua posição de alferes, no segundo, a escolha recaiu pela
camisa branca aberta, que permitiu realçar a grossa corda pendida de seu pescoço – acessório inserido

19 Francisco Aurélio de Figueiredo e Melo (1856 – 1916). Martírio de Tiradentes. 1893. Óleo sobre tela. 57 x 45
cm. Rio de Janeiro. Museu Histórico Nacional – RJ.
20 Pedro Américo (1843 – 1905). Tiradentes Esquartejado. 1893. Óleo sobre tela. 266 x 164 cm. Museu Mariano
Procópio, Juiz de Fora.
21 CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira. Pintura, história e heróis no século XIX: Pedro Américo e Tiradentes
Esquartejado. Tese (Doutorado em História da Arte). IFCH – UNICAMP, 2005.
22 Carta de Afonso Taunay ao Secretario do Interior. 18 de maio de 1921. Pasta 111. APMP/FMP. Esta carta está
citada na dissertação de Mariana Dolci.
23 Revista Illustrada. Anno 15, Nº 588. Capital Federal, 26 de abril de 1890, p. 4.
24 Em carta ao artista Fiuza Guimarães a respeito das matrizes visuais utilizadas para o quadro Sessão das
Cortes de Lisboa, de autoria de Oscar Pereira da Silva, Taunay citaria o livro História de Portugal entre as obras
consultadas: “A documentação para o ambiente da sala da sessão das cortes obtive de uma estampa de Roque
Gamei[r]o que se encontra num grande album publicado a pouco tempo de historia de Portugal. Os retratos
dos deputados portuguezes obtive os da Historia de Portugal de Pinheiro Chagas e da historia da revolução de
1820 de Manuel de Arraiga. Os retratos brasileiros foram muito mais difficeis de se encontrar; obtive-os aqui
e acolá. Quanto ao graphico do quadro do Oscar espero poder mandar-lhe dentro de algum tempo, preciso
fazel-ophotographar”. Carta de J. Fiuza Guimarães. 16 de março de 1925. Setor de Documentação Textual e
Iconográfica do Museu Paulista da USP. Arquivo Permanente/ Fundo Museu Paulista. Série: Correspondências.
Pasta 123. Grifos meus.

1227
por Pereira da Silva, talvez por sugestão de Taunay, já que os objetos relacionados à causa do martírio
devem ser sempre presença eminente na narrativa hagiográfica, enquanto instrumento de memória
essencial e eficaz25. Pereira da Silva opta em retratar Tiradentes vestido com uma camisa aberta, e
não a túnica que aparece de maneira reiterada nas composições. A camisa aberta permite salientar o
pescoço (mais alongado na tela do que na gravura), assim como a corda, bastante frouxa. Pereira da
Silva, diante da imagem que lhe serviu de base, preferiu trocar as vestes de Tiradentes. Se na primeira,
a casaca fechada de tons escuros encobre o corpo de Tiradentes, no retrato para o Museu Paulista,
o peito torna-se desvelado pela camisa amarrotada, aberta e bastante alva. Outros artistas fizeram a
mesma escolha, como Eduardo de Sá, em "Leitura da sentença dos inconfidentes", em que apresenta
Tiradentes, com a mesma peça do vestuário masculino, bastante rota pelos dias de cárcere26. Entre a
ilustração e o retrato, o Tiradentes deste último, aparece com o semblante de um homem já maduro,
com vincos na pele, um rosto magro, como o seu peito, talvez remetendo aos anos de clausura no cár-
cere, como bem observou Mariana Dolci. Enquanto que na ilustração, o alferes está vestido, no retrato,
apenas uma camisa o agasalha, ainda que aberta, com as grossas cordas que se entrelaçam, cujo nó está
sob seu peito.

A escolha pela camisa aberta, com parte do peito amostra, guarda alguma semelhança com o
"retrato do intrépido marinheiro Simão, carvoeiro do vapor Pernambucana", de José Correia de Lima,
datado de 185327. Simão ganhou notoriedade pela ação destemida ao salvar muitas vidas com seus
próprios braços quando o vapor submergiu nas águas próximas à região da Laguna, ao Sul do Brasil.
A tragédia tomou conta dos folhetins da corte, e a valentia do marinheiro rendeu-lhe uma medalha de
ouro concedida pelo Imperador, outra pelo rei de Portugal, e um retrato feito pelo tipógrafo Francisco
de Paula Brito. Nessa fotografia que deu origem ao retrato, como bem observa Rafael Cardoso, Simão
aparece elegantemente vestido, à moda europeia.28 No entanto, Correia de Lima na pintura troca o ter-
no pela camisa azul, aberta, e com as mangas dobradas, cuja mão segura uma grossa corda, associando
a sua atuação como marinheiro. Em um diálogo desavisado, podemos comparar a ação de Pereira da
Silva com a de Correia de Lima. Uma vez que a opção por despir e exibir a musculatura poderia im-
primir a tão almejada força e virilidade aos corpos dos dois “heróis”.

A sobrevivência da imagem de Tiradentes do busto doado ao Museu à gravura de Roque Ga-


meiro, e da gravura ao retrato de Pereira da Silva, pode ser ainda encontrada em mais um suporte: na
escultura dedicada ao “marty da Liberdade”, destinada ao Monumento da Independência, realizado
por Ettore Ximenes para os festejos de 1922, e disposto às margens do riacho do Ipiranga - associação

25Huizinga fala em "contornos nítidos" para os fatos da vida "cercados de formas enfáticas e expressivas". Ou-
tono da Idade Média. Cosac Naify, 2010, p. 11.
26 Eduardo de SÁ (1866 – 1940). Leitura da sentença dos inconfidentes, s.d. Óleo sobre tela. 197 x 338 cm.
Museu Histórico Nacional – RJ.
27 José Correia de LIMA (1814 – 1857). Retrato do intrépido marinheiro Simão, carvoeiro do vapor Pernam-
bucana. 1853. Óleo sobre tela. 92 x 72 cm. Museu Nacional de Belas Artes –RJ.
28 CARDOSO, Rafael. José Correiade Lima [1814 – 1854]. Retrato do intrépido marinheiro Simão, carvoeiro
do vapor Pernambucana, 1853. In: A arte brasileira em 25 quadros [1790 – 1930]. São Paulo: Editora Record,
2008.

1228
direta ao suposto lugar do Grito.29

O grupo escultórico dedicado à memória dos “Inconfidentes mineiros de 1789” é formado por
cinco estátuas, e a narrativa fundida no bronze é feita para comover e sensibilizar: se os outros incon-
fidentes tombam ao chão, e têm suas mãos acorrentadas, Tiradentes figura em pé à frente dos demais,
em atitude altiva. O soldado posicionado atrás, que segura o longo tecido, que de maneira incerta,
não sabemos se está o cobrindo ou o despindo, permite, a partir deste gesto, realçar o corpo de Tira-
dentes, para o qual a atenção deve ser totalmente voltada. Ximenes não deixa de recorrer à convenção
tão propagada em retratos, bustos e pinturas para figurar o personagem histórico morto na forca. Os
longos cabelos, a barba e a corda ao pescoço, bem como a posição da cabeça, são detalhes que compõe
a iconografia do inconfidente, num diálogo muito próximo com a imagem impressa no retrato dentro
do Museu, feito por Oscar Pereira da Silva. Como neste último, o escultor italiano prefere a camisa à
túnica. A escolha por tal veste deliberada, na medida em que a farda de alferes permite heroicizar sua
ação de homem, sem revesti-la de qualquer aura religiosa que a túnica poderia facilmente remeter.
Não há inclusive algum símbolo que alude à religiosidade Cristã, nem mesmo a presença do pároco
que ouviu suas últimas palavras e lembrada por artistas como Leopoldino de Faria em “Resposta de
Tiradentes à Comutação da pena de morte”30, ou mesmo o crucifixo na tela de Américo.

Pela veste, o Tiradentes de Ximenes difere daquele executado por Virgílio Cestari (1861 –
19??), para compor o Monumento em Ouro Preto, inaugurado em 1894, disposto no meio da praça,
local em que a cabeça de Tiradentes foi exibida conforme regia a comutação da pena que previa a con-
denação à forca e depois esquartejamento. No monumento, depositado sob a imensa coluna, Tiraden-
tes está voltado para a Casa de Câmara e Cadeia, como que em uma clara oposição à instituição que
desafiou. Com longos cabelos, barbas, vestindo apenas uma túnica branca, descalço e com o baraço no
pescoço, Tiradentes é apresentado ao observador, momentos antes de ser enforcado. Apesar da certa
serenidade e altivez que a postura do “herói” impõe, o punho da mão esquerda cerrada, volvida para
as costas, parece concentrar a força daquele homem, que mesmo acorrentado, não se entregou fácil
aos desmandos da Coroa.

No grupo escultórico do Ipiranga apenas homens civis e militares participam da narrativa


proposta em bronze. Mas há um detalhe que parece escapar a essa versão que destaca a humanização,
e pouco “messiânica” do "herói". Na escultura, Tiradentes aparece descalço, enquanto os soldados
que o cercam usam pesadas botas, como regia as normas dos uniformes do século XVIII. A escolha
pelos pés despidos do Inconfidente poderia, de certa maneira, enfatizar a sua humildade, sua posição
de homem destemido e desvencilhado, diante daquela perversa situação que impunha certa coragem
diante o fim trágico anunciado com sua morte na forca. É neste ponto que talvez a simbologia atrelada
à religiosidade entre em jogo para compor aqui a imagem do Tiradentes, e que o escultor italiano não
29MichelliScapol Monteiro em Tese recém defendida, analisa com vagar todo o processo de elaboração desse
Monumento por Ettore Ximenes, vencedor do concurso em 1919. Ainda que visando às Celebrações do Cen-
tenário da Independência em 1922, o Monumento ficou pronto apenas em 1926. Cf. São Paulo na disputa pelo
passado: o Monumento à Independência de Ettore Ximenes. Tese (Doutorado em Fundamento da Arte e da
Arquitetura). FAU-USP, 2017.
30Leopoldino de FARIA (1836 – 1911). Resposta de Tiradentes à comutação da pena de morte. s| d. Óleo sobre
tela, 47, 5 x 62, 3 cm. Câmara dos Deputados, Ouro Preto| Minas Gerais.

1229
abre mão.  

Alçado a “herói” com a República, como tão bem já analisou José Murilo de Carvalho31, den-
tro do Museu Paulista, o alferes morto na forca foi elevado, quando das Celebrações de 1922, à “proto
mártir” da Independência do Brasil, ali rememorado a partir de seu retrato. Vale se atentar ao dado
que o termo “protomarty” empregado por Taunay para qualificar Tiradentes, é carregado de sentidos
religiosos, uma vez que os santos protomártires do cristianismo foram aqueles que primeiro derra-
maram seu sangue em nome da fé. Tiradentes, na visão do diretor, seria o primeiro a ser imolado pela
crença na Liberdade32.Num diálogo imbricado entre história e arte, os artistas recorriam à verossimi-
lhança, uma vez que se pautavam em documentos que pudessem conferir certa autenticidade àquele
retratado, - que pouco deixou pistas sobre seus traços fisionômicos -, mas também mesclavam, na
composição, alta dose de idealização.

O caso do retrato de Tiradentes, aqui analisado, é exemplar para se pensar aos moldes de
Andreas Huyssen, para quem “o real pode ser mitologizado da mesma maneira que o mítico pode
engendrar fortes efeitos de realidade.33” Essas obras situadas entre fins do século XIX e inícios do XX
versadas sobre Tiradentes, ensejaram discursos, conformaram narrativas visuais. Diante de tantos
“Tiradentes” aqui expostos, pudemos acompanhar a verdadeira “batalha de imagens” que permeou a
construção, não de apenas uma, mas das diversas fisionomias do suposto “martyr da liberdade”.

Referências bibliográficas

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. Reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São
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31 CARVALHO, José Murilo. Tiradentes: um herói para a República. In: A formação das almas. O imaginário
da República no Brasil: São Paulo: Companhia das Letras, (1990), 2007.
32 Devo a Francislei Lima da Silva a associação religiosa do termo “protomartir”. Como bem lembrou o pes-
quisador, Taunay teve formação católica, chegando a trabalhar como professor no Colégio São Bento, em São
Paulo.
33HUYSSEN, Andreas. En busca del tempo futuro. “Medios, política y memoria”, Revista Puentes,año1, N° 2,
diciembre 2000. p. 7. Tradução livre do autor. No original:“lo real puede ser mitologizado de lamismamaneraen
que lo mítico puede engendrar fuertesefectos de realidad”.

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1232
PODER, GOVERNO E CONEXÕES NA AMÉRICA PORTUGUESA SETECENTISTA
Charles Nascimento de Sá34
André Figueiredo Rodrigues35

RESUMO

O presente trabalho apresenta elementos do segundo capítulo de minha tese de doutorado sobre o governo da
capitania da Bahia entre 1755 a 1777, realizada no programa de Doutorado em História e Sociedade da UNESP/
Assis, no qual o foco é um estudo de história política e busca aventar conceitos relacionados às ideias de poder,
governo, monarquia pluricontinental, Antigo Regime português e redes governativas. Desse modo, o texto vol-
ta-se para uma discussão teórica e conceitual sobre aspectos intrínsecos ao governo do mundo luso-brasileiro
na América. Destacam-se aqui uma abordagem sobre a ideia de monarquia pluricontinental e sistema atlântico
no século XVIII. Na monarquia portuguesa e seu sistema atlântico houve sempre o predomínio de valores e
práticas que eram inerentes ao modo de pensar e de viver do Antigo Regime. Nele foram dominantes formas
e práticas de vida que davam coesão e sentido a uma ideia de Estado e seu governo. Vivia-se um teatro, e sua
representação era o que dava sentido aos exercícios e atitudes dos indivíduos e seus grupos. O entendimento
sobre a noção de governo e seu sentido no Antigo Regime português completam a discussão inerente ao artigo
aqui exposto. Remete-se para toda essa abordagem os conceitos e estudos oriundos do grupo Antigo Regime
nos Trópicos bem como palavras e expressões recorrentes no universo da colônia e de sua Metrópole.

Palavras-chave: governo, poder, monarquia pluricontinental, Antigo Regime.

O Antigo Regime português

O século XVIII, de modo particular sua segunda metade, foi cenário de mudanças profundas
para a sociedade colonial baiana e portuguesa. A figura do marquês de Pombal e suas reformas, bem
como seu centralismo acentuado, denotaram nova configuração para a sociedade luso-brasílica. Seu
governo vivenciou diretamente a Revolução Industrial e suas mudanças na economia, a Revolução
Americana e sua influência nos relacionamentos entre as metrópoles europeias e suas colônias. Ao fim
do seu mandato, encerrado em 1777, faltariam doze anos para a eclosão da Revolução Francesa e suas
modificações na estrutura social e política da Europa e de todo o mundo Ocidental.

O período que vai de 1750 a 1777, tempo de estudo dessa tese, é ainda dominado pela socieda-
de do Antigo Regime e sua concepção de hierarquia e fragmentação política. Nessa sociedade a uni-
dade e soberania dos Estados na Europa, eram garantidas pela figura do rei, sob a égide de sua coroa e
34 Professor da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Campus XVIII. Aluno do Doutorado em História e
Sociedade UNESP/Assis. Bolsista PAC-DT/UNEB.
35 Orientador. Professor do Doutorado de História e Sociedade da UNESP/Assis.

1233
com o apoio da nobreza (KOSELECK, 2006, p. 101). Ainda sobre o Antigo Regime,

Considera-se que a sociedade se fundamentava em uma ordem natural, estando de-


vidamente hierarquizada, constituindo-se em resultado das fricções derivadas das
relações estabelecidas entre poderes concorrentes. O rei era a cabeça do corpo social,
articulando as partes como um todo, e, assim não se confundiam com a sociedade.
Uma dada noção de pacto político vinculava soberano e vassalos na monarquia, via-
bilizando a constituição das monarquias sociais informadas pelas lógicas de prestígio
e de etiqueta, bem como por outras práticas sociais, em particular a da antiguidade,
na ocupação dos principais cargos da república – na administração local -, a consti-
tuição de parentescos fictícios que envolviam diversos segmentos sociais no interior
de grandes parentelas [...] (FRAGOSO; GOUVÊIA. 2010, p. 14)36.

A sociedade do Antigo Regime português possuía gama variada de concepções que norteavam
o entendimento sobre aspectos do direito, do poder e da cultura no seu seio. O universo cultural desse
período era rico e complexo, havia uma presença de regras e normas, externadas nas noções de justiça,
economia e ética monástica, que conduziam a sociedade em direção ao chamado bem comum. Esta
noção de bem comum era guiada por uma disciplina social, esta possuía variações e diversos níveis
que, sendo diferentes, não se sobrepunham. Dessa junção de elementos distintos constituía-se o uni-
verso mental da sociedade portuguesa na Idade Moderna, mentalidade esta que guiava as práticas e
ações sociais (GOUVÊIA; FRAZÃO; SANTOS, 2009, p. 97).

Nessa sociedade havia uma mescla entre público e privado, tal fato estabelecendo o que era
lícito e plenamente aceito pelos indivíduos de então. Ela possuía como lógica uma noção clientelar de
coletividade, envolvidas em redes. Assim,

As redes são aqui percebidas como networks de relacionamentos, constituídos a par-


tir das ações e relações vivenciadas entre diversos indivíduos com acesso a informa-
ções e recursos diferenciados entre si. Essas diferenças potencializavam a possibilida-
de de sua imbricação, tirando-se assim partido das fraturas que cotidianamente eram
identificadas nos diversos cenários sociais que compunham o império português
(FRAGOSO; GOUVÊIA, 2010, p. 23)37

As formações sociais que os lusitanos transplantaram para suas possessões além-mar também
se constituíram com a noção do dom. Tal fato estaria presente em todo o mundo português tropical.
Na Bahia, redes clientelares e dependência de indivíduos junto aos senhores de engenho, grandes

36 FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima. Na trama das redes: política e negócios no império portu-
guês. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010
37 GOUVÊA, Maria de Fátima; FRAZÃO, Gabriel Almeida; SANTOS, Marília Nogueira. Redes de poder e
conhecimento na governação do Império Português, 1688-1735. In. Tempo. Revista digital de história do de-
partamento e do programa de pós-graduação em história da Universidade Federal Fluminense. Niterói, n. 27,
p. 96-137, 2009.

1234
mercadores, funcionários públicos e da Igreja denota o quanto a economia do dom, ou das mercês, foi
parte integrante do mundo social e cultural da América portuguesa.

Nesse ambiente o uso do dom é algo coerente com as ideias recorrentes no período38. O dom
aparece no mundo luso-brasileiro como um instrumento para o “desenvolvimento e estruturação das
relações sociais, políticas e econômicas”. Tal fato permite falar em uma economia do dom ou econo-
mia da mercê (GOUVÊIA; FRAZÃO; SANTOS, 2009, p. 97). No Antigo Regime português, a econo-
mia do dom pressupunha um benfeitor e um beneficiado, no que se constitui uma troca de favores.

A economia do dom propiciava o aparecimento de intermediários. Estes, por sua vez, detinham
informações dos interesses dos grupos que compunham a sociedade, fazendo uso desse conhecimento
para obter dividendos políticos. Essa rede de sociabilidade e de compromisso assumidos por diversos
agentes entre si possibilitava uma forma de resistência contra a centralização que se tentava empreen-
der, do governo reinol, junto às sociedades coloniais (GOUVÊIA; FRAZÃO; SANTOS, 2009, p. 98).

Na sociedade do Antigo Regime ibérico, ainda que fundamentada por uma economia mer-
cantil, apoiada nas conquistas e territórios de além-mar, o que vigorava profundamente na cultura
política dominante eram os valores de defesa da cristandade – mesmo que esta tenha perdido muito
de sua importância no período pombalino – serviço ao príncipe e um ethos aristocrático guerreiro
(FRAGOSO; GOUVÊIA, 2009, p. 53).

De acordo com Antonio Manuel de Hespanha, a partir dos anos 1970, a historiografia oci-
dental iniciou um processo de revisão e aprofundamento do entendimento da ação do Estado e das
monarquias modernas entre o século XV ao XVIII. Segundo ele, teve início aí uma consciência mais
difundida da pluralidade da razão política, de seu enraizamento cultural e de sua quase intransferibili-
dade. Nisso, o caráter local do poder e seu uso pelas elites e grupos localizados na periferia do Império
ganharam destaque (HESPANHA, 2012)39.

Havia nesse momento histórico profunda ligação envolvendo a ‘família’ e a ‘república’. Reme-
morando Gilberto Freyre pode-se afirmar que a relação entre esses dois universos era uma forma de
extensão do poder da casa grande sobre o restante da sociedade. Economia doméstica e política do
governo estavam profundamente imbricadas na sociedade ibérica. O rei era visto e entendido pela
sociedade como pai dos súditos e marido da república. O reino era seu dote (HESPANHA, 2012).

Nessa sociedade a solidariedade envolvendo familiares, seus grupos, amigos e seus compadres
era tida como natural e aceita. Nesse tipo de modelo “personalista”, os vínculos políticos individualiza-
dos contavam muito mais que laços abstratos de concidadania e de nacionalidade. Havia uma obriga-
ção moral para com os amigos e os grupos aos quais o indivíduo se vinculava. Proteção, misericórdia,
gratidão eram mais importantes na prática jurídico-política do que a imparcialidade. Podia-se, em um

38 Sobre a noção de dom ver F. Barth Process and Form in the Social Life, 1981. Ernest Kantorowicz Os dois
corpos do rei, um estudo sobre teologia política medieval, 1998. Marcel Mauss. Sociologia e Antropologia,
2003. Nos estudos deste último encontram-se as bases para o conceito usado pelo grupo de pesquisa Antigo
Regime nos Trópicos.
39 HESPANHA, António M. Caleidoscópio do Antigo Regime. São Paulo: Alameda, 2012

1235
julgamento, favorecer ou agir com misericórdia para com os amigos. Da mesma maneira, a atribuição
de cargos e as benesses advindas dessa função, deveriam corresponder, na ação do rei, a um favoreci-
mento a quem o tivesse servido antes (HESPANHA, 2012, p. 121-122).

Claro está que ao favorecer aqueles que o tivessem servido, o sistema entra em círculo vicioso,
tendo em vista que quem precede indica, em geral, o seu sucessor, geralmente um familiar, amigo ou
compadre, um devedor de seus favores, que tende em decorrência disso lhe servir a posteriori.

Monarquia pluricontinental e o sistema atlântico no Império português

O entendimento sobre a monarquia pluricontinental, conceito hoje usado para o estudo do


Império português moderno, originou-se a partir das discussões de John Elliott e seu conceito de
monarquia compósita para a Inglaterra e suas colônias do norte da América. Tendo isso como ponto
de partida, João Fragoso, Maria Fernanda B. Bicalho e Maria de Fátima Gouvêa, entre outros, desen-
volveram o conceito de monarquia pluricontinental para Portugal e seus domínios na Idade Moderna,
a qual se entende:

Como um só reino – o reino de Portugal – uma só aristocracia e diversas conquistas.


Nela há um grande conjunto de leis, regras e corporações – conselhos, corpos de or-
denanças, irmandades, posturas, dentre vários outros elementos constitutivos – que
conferem aderência e significado às diversas áreas vinculadas entre si e ao reino no
interior dessa monarquia [...] trata-se na verdade de poderes locais [...] que tomavam
instituições sócio-organizacionais reinóis como referência para formalização de sua
organização social. (FRAGOSO; GOUVÊA, 2010, p. 18)

Outro aspecto a ser salientado em relação à monarquia pluricontinental é que nela, Coroa
e nobreza, mas especificamente a nobreza de primeira grandeza, viviam das rendas e emolumentos
produzidos no ultramar, em outros termos, competia à periferia do sistema a manutenção da sede do
poder e suas finanças (FRAGOSO; GOUVÊA, 2009, p. 56)40.

A monarquia pluricontinental se torna uma realidade graças à ação cotidiana de in-


divíduos que viviam espalhados pelo império em busca de oportunidade de acres-
centamento social e material; indivíduos que não se colocavam passivos diante das
regras gerais e que se utilizavam das fraturas existentes no permanente diálogo trava-
do entre regras gerais e locais (FRAGOSO; GOUVÊIA, 2009, p. 56).

40 FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima. Monarquia pluricontinental e repúblicas: algumas reflexões
sobre a América lusa nos século XVI-XVIII. In. Tempo. Revista digital de história do departamento e do pro-
grama de pós-graduação em história da Universidade Federal Fluminense. Niterói, n. 27, p. 49-63, 2009.

1236
Ao se compreender a dinâmica que constituiu as monarquias na Idade Moderna, como for-
mações sociais integradas, entende-se que o poder do monarca, longe de ser absoluto, era comparti-
lhado por instâncias integradas por uma legislação que o vinculava frente às sociedades diferentes em
regiões afastadas e díspares. Nessa diversidade de povos e culturas percebe-se o esforço e a proemi-
nência da elite portuguesa da época moderna no domínio dos mais importantes cargos do Império.
Identificados por Nuno Leal Monteiro como membros da 1ª Nobreza ou Grandes, estes detinham o
monopólio da indicação real para os governos das capitanias e regiões de maior prestígio ou riqueza
(MONTEIRO, 2001, 2005)41. Nesse sentido,

A monarquia no antigo regime estava existencialmente implicada com uma noção de


autoridade cujo sentido prático e conceitual não pressupunha o término dos privi-
légios corporativistas ou a imposição de um dualismo que tem por centro a relação
Rei/indivíduo. Os corpos da sociedade tão somente passaram a depender ou estar
referidos à preeminência estrutural e estável de um poder político centralizado, que
era simultaneamente responsável por tratar de questões que afetavam a vida local,
mas que estavam implicadas em nexo extra-locais, como por exemplo, conflitos de
jurisdições, garantia jurídica de contratos, proteção do comércio entre outros, como
também para dirimir os assuntos que podiam ser decididos com base nos repertório
locais de leis e de costumes.

Portanto o sentido prático da autoridade política no antigo regime era o de subordi-


nar, preservar, confirmar ou adaptar as diferentes instâncias corporativistas, sempre
respeitando os limites impostos pela lei de Deus, pelas leis naturais do reino e pelos
privilégios que cada grupo possuía. Dessa forma, depreende-se que essa sociedade
estava assentada numa relação de interdependência entre os centros emergentes de
poder e as demais localidades[...] (VIANNA JÚNIOR, 2014, p. 60)42.

Na composição da monarquia pluricontinental portuguesa, a concepção católica de mundo, a


influência da Igreja e de sua escolástica, o impacto da ação dos padres jesuítas e de outras ordens, os
emolumentos concedidos pela Coroa a capelas, conventos e paróquias definiu muito da mentalidade
que imperava na concepção de governo do Reino. A ordem nesse regime, nesse Antigo Regime portu-
guês, era sustentada por uma disciplina social, onde a “obediência era amorosa, portanto, consentida
e voluntária. Este último fenômeno esteve presente em todos os municípios, apesar das diferenças dos
costumes locais, dando-lhes [...] uma uniformidade social" (FRAGOSO; GUEDES; KRAUSE, 2013, p.
38)43.

A concessão de cargos e serviços e sua efetivação davam-se por meio de trocas envolvendo o
41 MONTEIRO, Nuno Gonçalo F. Trajetórias sociais e governo das conquistas: notas preliminares sobre os vi-
ce-reis e governadores-gerais do Brasil e da Índia nos séculos XVII e XVIII. In. FRAGOSO, João; BICALHO, M.
F. Baptista; GOUVÊIA, Maria de F. Silva (Org.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa
(séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001
42 VIANNA JÚNIOR, Wilmar da Silva. Modos de governar, modos de governo: o governo-geral do Estado do
Brasil entre a conservação da conquista e a manutenção do negócio (1642-1682). São Paulo: Alameda, 2014.
43 FRAGOSO, João; GUEDES, Roberto; KRAUSE, Thiago. A América portuguesa e os sistemas atlânticos na
Época Moderna: monarquia pluricontinental e Antigo Regime. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013.

1237
rei e sua corte. As mercês efetuavam a oferta do dom, o que produzia uma relação de troca de favores
e benefícios entre as partes. O posto de governador-geral ou vice-rei no Brasil, por exemplo, era feito
por meio de uma mercê régia. Nessa sociedade, a importância da família e dos laços familiares era
fundamental. Dessa maneira,
O sentido do império resulta, assim, do processo de fusão da concepção corporativa
e da de pacto político, fundamental na monarquia, e garantindo, por princípio, a au-
tonomia do poder local. A monarquia pluricontinental se torna uma realidade graças
a ação cotidiana de indivíduos que vivem espalhados pelo império em busca de opor-
tunidades de acrescentamento social e material. Indivíduos que não se comportam
de forma passiva diante das regras gerais e que se utilizam das fraturas existentes
no permanente diálogo travado entre regras gerais e locais (FRAGOSO, GOUVÊA,
2010, p. 19).

A consolidação do domínio português sob extensas regiões do globo e sua manutenção mes-
mo com invasões, guerras e conflitos, envolvendo o Reino ibérico e outras monarquias da Europa, é
feito a ser destacado, conforme já apontado Gilberto Freyre. Quanto mais se consolidava o domínio
luso sobre áreas da África, Ásia e, principalmente, da América tropical, mais essas regiões assumiam
papel fundamental na manutenção do poderio da Coroa e da Corte. Pois,

[...] a monarquia portuguesa tinha uma dimensão imperial única o contexto da Eu-
ropa nos séculos XVII e XVIII. Não apenas pela dependência financeira das receitas
provenientes do império atlântico, mas também por que as respectivas elites aristo-
cráticas tinham, quase na mesma medida em que se fecharam à Europa, uma expe-
riência de circulação pelo império que não tinha paralelo na época (MONTEIRO,
2010, p. 337)44.

O desenvolvimento da economia açucareira, do tabaco, do couro, a produção de navios, de


carne, o incremento do comércio, a produção de itens para consumo alimentar e tantos outros ele-
mentos que compunham a economia colonial, produziam riqueza para o Reino. Quanto mais essa
riqueza era enviada, mais se consolidava a dependência de Portugal junto às suas conquistas, de modo
particular ao Brasil, constituindo-se uma verdadeira simbiose entre Portugal e a América.

Esse sustento econômico não era, porém, o cerne da razão de ser da sociedade do Antigo Re-
gime. A mentalidade predominante no período, dominada pela cultura política da época, ancorava-se
em um sistema de benefícios, comendas e terras. Esses três componentes simbolizavam, mais que a
economia de mercado, o sentido da sociedade do Antigo Regime lusitano. Dessa forma,

Como em Portugal, conquistar honras era a grande ambição na sociedade castelha-


na renascentista. Os cargos e as terras [...] era ainda a forma pública do monarca

44MONTEIRO, Nuno Gonçalo F. A tragédia dos Távoras. Parentesco, redes de poder e facções políticas na
monarquia portuguesa em meados do século XVIII. In. FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.)
Na trama das redes: política e negócios no império português. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

1238
reconhecer os feitos de seus súditos. Nessa ordem, a busca da rela generosidade
aproximava os vassalos do projeto de construção do Estado [...] (RAMINELLI,
2008, p. 21)45.

A pluralidade de povos, sociedades, culturas e concepções foi outra prática comum da mo-
narquia pluricontinental. Convivendo com indígenas, africanos, reis, guerreiros, praticantes de outras
concepções religiosas que não a oficial católica, a exemplo de mulçumanos e das religiões de matrizes
africanas, direitos de tradição oral ou escrita, sociedades milenares – como os indianos, chineses e ja-
poneses; concepções distintas de mundo e de homem. Coube à monarquia católica portuguesa servir
de amálgama para dar coesão interna a toda essa gama variada de povos e indivíduos, concedendo-
-lhes a unidade política, jurídica e militar que permitiria ao Império português transitar do fim da
Idade Média até o século XX. Relembrando Gruzinski, “as mestiçagens são, em grande parte, consti-
tutivas da monarquia. Estão aí onipresentes. São fenômenos de ordem social, econômica, religiosa e,
sobretudo, política, tanto senão mais que processos culturais” (GRUZINSKI, 2014, p. 48)46.

Quanto mais se expande e assimila ou subjuga povos e cultura mais o Império se remodela. A
sua concepção de sociedade e de mundo se incorporam novas identidades, com o novo conhecimento
produzido obras e estudos avançam e geram um entendimento diferente do que se possuía até então.
No século XVIII isso foi ainda mais impactante, de modo particular no regime pombalino, em que
estudiosos eram enviados às colônias para obter ai novos entendimentos sobre as riquezas que podiam
ser exploradas. Em outras palavras, “os livros fazem mais que exportar a modernidade europeia: con-
tribuem para modelar outra surgida do enfrentamento dos ibéricos com as outras partes do mundo”
(GRUZINSKI, 2014, p. 76).

A toda essa produção de novos saberes, empenharam-se europeus e luso-brasileiros. Dotar a


monarquia de conhecimento, tendo em vista a unidade de pensamento de pertencimento a um único
reino, era tarefa para todos os povos que habitavam o Império. Assim:

[...] aproveitados por uma política de estado “ilustrada”, crente no poder da razão,
única e universal e na função pragmática da ciência a serviço do progresso natural,
procuraram os estudiosos brasileiros dos fins do século XVIII e início do XIX inte-
grar o Brasil na cultura Ocidental (DIAS, 2005, p. 78)47.

Apesar de todos esses esforços é notório não esquecer que mesmo com todas as mudanças que
a época pombalina trouxe, muito da mentalidade dominante ainda permaneceu. Pois “quando che-
gamos ao ocaso do século XVIII [...] os povos peninsulares vão permanecer enredados nas estruturas
agora arcaizantes que tinham feito a sua glória, mas estavam inteiramente desajustadas” (GODINHO,
19?, p. 71)48. Dessa maneira,

45 RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas: monarcas, vassalos e governo à distância. São Paulo: Alameda,
2008.
46 GRUZINSKI, Serge. As quatro partes do mundo: história de uma mundialização. Trad. Cleonice Paes Barre-
to Mourão e Consuelo fortes Santiago. Belo Horizonte: Editora. UFMG; São Paulo: Edusp, 2014
47 DIAS, Maria Odila Leite. A interiorização da metrópole e outros estudos. São Paulo: Alameda, 2005.
48 GODINHO, Vitorino Magalhães. Estrutura da antiga sociedade portuguesa. 2. ed. Lisboa: Arcádia, 19?

1239
A sociedade era então composta por um conglomerado de grupos de natureza cor-
porativa, com configurações muito diversas, e cada um deles dotado de um disposi-
tivo institucional capaz de satisfazer grande parte das necessidades da vida coletiva,
levando a cabo essa tarefa em boa medida à margem de toda e qualquer iniciativa do
poder central, ou seja, a Coroa.

Quanto à Coroa não era um sujeito unitário, mas sim um agregado de órgãos e de
interesses pouco articulados entre si [...] (CARDIM, 2005, p. 53)49.

É preciso entender que o social e sua concepção em uma dada temporalidade “não é nunca
objeto de uma conceptualização sistemática articulada, ele é, principalmente, o lugar de um inventário
sempre aberto, das correspondências e das relações que fundam a interdependência dos fenômenos”
(RAVEL, 1989, p. 27).

Na monarquia pluricontinental portuguesa e seu sistema atlântico houve sempre o predomí-


nio de valores e práticas que eram inerentes ao modo de pensar e de viver do Antigo Regime. Nele
foram dominantes formas e práticas de vida que davam coesão e sentido a uma ideia de Estado e seu
governo. Vivia-se um teatro e sua representação era o que dava sentido aos exercícios e atitudes dos
indivíduos e seus grupos. Nesse corpo social,

[...] a distinção fundamental entre representação e representado, entre signo e signi-


ficado, é pervertida pelas formas de teatralização da vida social do Antigo Regime.
Todas elas têm em vista fazer com que a identidade do ser não seja outra coisa senão
a aparência da representação, isto é, que a coisa não exista a não ser no signo que a
exibe (CHARTIER, 1990, p. 21)50.

Ao longo de toda sua trajetória, a monarquia portuguesa, bem como todas as demais realezas
europeias, continuamente buscou atingir cada vez maior controle sobre seus súditos. Se nem sempre
isso foi possível, ao menos, consecutivamente, foi tentado. Contando com o apoio das elites coloniais
e mantendo por meio da riqueza oriunda do ultramar, domínio sobre a nobreza ibérica, o reino portu-
guês, ainda que marginal na diplomacia e política europeia, manteve sobre seu poder amplas partes de
territórios do mundo moderno. Entende-se que “era a coroa que tinha recursos e meios para garantir
o equilíbrio de um modo de governar. Aí residia a centralidade da coroa, encontrando na pessoa real
o ponto essencial de ordenação do conjunto social (GOUVÊA, 2010, p. 181).

Pombal e a Ilustração portuguesa

49 CARDIM, Pedro. Administração e governos: uma reflexão sobre o vocabulário do Antigo Regime. In. BI-
CALHO, Maria F. B.; FERLINI, Vera L. A. (Org.). Modos de governar: ideias e práticas políticas no império
português séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2005.
50 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Trad. Maria Manuela Galhardo. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. (Coleção Memória e Sociedade).

1240
A complexa interação entre os diversos grupos que compunham as redes de governabilidade
e de poder no Império português sofreu alterações ao longo do século XVIII. Para isso, muito contri-
buiu a descoberta de ouro na região de Minas Gerais. O enorme afluxo de pessoas e desenvolvimento
econômico e urbano na região das gerais, frutos da mineração de ouro e de diamantes, produziram
um período de esplendor e de riqueza para a monarquia lusa. D. João V e D. José I foram os benefi-
ciários diretos de tal mote. Governando o reino de Portugal ao longo de toda a primeira metade do
século XVIII, o rei D. João V aproveitou o enorme fluxo de dinheiro advindo com as taxas pagas pela
mineração na América portuguesa para realizar em Portugal um governo inspirado no monarca fran-
cês Luís XIV. Sua corte recebeu vultosas somas que eram gastas em festas, castelos, bailes e desfiles.
Muito do ouro foi doado a Igreja e boa parte foi investida na construção do mosteiro castelo de Mafra.

Em outras palavras,

Por mais de meio século, a coroa portuguesa extraiu enormes rendas não só dos
quintos, como também dos contratos de monopólio, dos dízimos e toda uma gama
de impostos sobre todo tipo de comércio colonial. Além disso, a coroa recorria as
minas em particular quando precisava de ‘doações voluntárias’ para diversos em-
preendimentos, que incluíam dotes de casamentos reais, a construção de Mafra ou a
reconstrução de Lisboa após o terremoto de 1755 (RUSSELL-WOOD, 2004, p. 520)51.

Quando assumiu o trono em 1755, D. José I também aproveitou da riqueza oriunda das minas
americanas. Esta, porém, já não afluía de forma tão generosa quanto no período de D. João. Ao mesmo
tempo, novas concepções e ideias sobre a maneira pela qual as nações se tornavam ricas e poderosas
estavam sendo debatidas em salas e espaços em toda a Europa. A esse movimento denominou-se Ilu-
minismo.

[...] a Ilustração apresentava uma unicidade sustentada pela concepção do mundo,


da vida e da fé à luz da razão, tendo o homem e o humanismo como bases e a moral
laica e a liberdade, como um direito incontestado no entendimento de Falcon, o que
caracterizava a Ilustração, era a sua existência como uma mentalidade, como um
estilo de vida. (VALADARES, 2006, p. 24)52.

Esse debate, já arraigado em toda Europa ocidental, ainda era minimizado em terras lusita-
nas. A ascensão de Sebastião José de Carvalho e Mello, futuro Marquês de Pombal, veio modificar as
estruturas vigentes na sociedade e economia portuguesa. Tendo sido representante diplomático do
Reino português na Áustria e na Inglaterra, ficara interessado na forma como a economia desses paí-
ses era gestada, de modo particular no último. Sua aversão aos ingleses, motivada possivelmente pelo
pouco caso dado pelo governo inglês a ele no período em que foi diplomata, e a constatação de que a
maioria das riquezas de Portugal iam direto para a Grã-Bretanha, fizeram com que iniciasse uma série
51 RUSSELL-WOOD, A. J. R. O Brasil colonial: o ciclo do ouro, 1690-1750. In. BETHELL, Leslie. História da
América Latina: América Latina Colonial. São Paulo: Edusp, 2004. V. II.
52 VALADARES, Virgínia M. Trindade. A sombra do poder: Martinho de Melo e Castro e a administração da
capitania de Minas Gerais (1770-1795). São Paulo: Hucitec, 2006.

1241
de mudanças na gestão dos negócios do Império. Tais mudanças tinham no Iluminismo sua base de
sustentação, porém é necessário não esquecer que assim como Pombal,
O Iluminismo em si era um movimento complexo, ele próprio cheio de contradições
e contracorrentes. Ele nunca conquistou a adesão de uma maioria no seio da elite, e
não pode ser identificado com toda a vida intelectual no século XVIII. A nacionalida-
de significava pouco para tais monarcas ou para qualquer um que comandasse tropas
e dirigisse a diplomacia no século XVIII (DARTON, 2005, p. 93)53.

A constatação de que já não era enviado tanto ouro quando no período de D. João V foi outro
fator a contribuir para mudanças no governo da colônia. Tentativas de reanimar a lavoura, de modo
particular a de cana, e iniciar novos investimentos com experimentos de outras culturas começaram
a ser estimuladas pelo governo. No entanto, a mudança mais significativa deu-se na gestão e centrali-
zação do governo. Portanto,

Era através deste tom radical – o que não significa revolucionário – autoritário e
extensivo às diversas instâncias da sociedade, sempre valendo-se da contraposição
da ideia do atraso do Reino ao progresso de outras nações que o ministro josefino
justificaria a prática despótica do seu governo (SILVA, 2015, p. 424)54.

Como toda ação humana é contraditória e com fraturas deve aqui salientar que,

Em primeiro lugar, importa destacar que a ação pombalina, ao mesmo tempo que
procurou submeter politicamente a alta nobreza (afirmando a supremacia do gover-
no e das Secretarias de Estado), e reformá-la, nunca pretendeu questionar seu esta-
tuto, nem o sistema de remuneração de serviços da monarquia (MONTEIRO, 2009,
p. 512).

A partir da administração pombalina, o Estado português começou a ter mais funções e houve
aumento em suas atividades. Isso, porém, não significou maior domínio sobre parcelas da colônia,
pois muito da necessidade de se contar com as elites e grupos residentes nas colônias permanecia.

Cioso de seu poder e concentrando todas as decisões em sua pessoa, o Marquês de Pombal
queria relatos e descrições de todas as atividades desenvolvidas nas possessões portuguesas. Para tal,
contava com o envio de relatórios dos governadores os quais ele comparava com cartas e petições vin-
das de outros grupos, como os membros das Câmaras, por exemplo. Nesse sentido,
53 DARNTON, Robert. Os falsos dentes de Jorge Washington. Tradução José Geraldo Couto. São Paulo: Cia
das Letras, 2005.
54 SILVA, Ana Rosa Cloclet da. O marquês de Pombal e a formação do homem-público no Portugal setecen-
tista. In. FALCON, Francisco; RODRIGUES, Claudia. A época pombalina no mundo luso-brasileiro. Rio de
Janeiro: FGV Editora, 2015, p. 413-452.

1242
A partir de meados do século XVIII, verificou-se um aumento exponencial na remes-
sa de informações aos poderes do centro feita pelos governadores/vice-reis, resultado
por certo das reformas pombalinas. Ac correspondência emitida pelos governadores
teve aumento significativo na Bahia, em Minas, em São Paulo e no Maranhão (RA-
MINELLI, 2015, p. 81).

Essa centralização administrativa do período pombalino teve consequências nas ações e no


trabalho dos governadores da capitania da Bahia no período. Nessa região em especial, a tentativa
de aumentar o volume de produção do açúcar, a busca por modernização dos engenhos, o plantio de
novas culturas agrícolas, a exemplo do arroz e do anil e a tentativa de maior arrecadação junto aos
senhores de engenho e lavradores foram formas do governo da capitania buscar novas fontes de arre-
cadação.

Claro está que essas mudanças encontraram resistência e representaram mais uma dor de ca-
beça para aqueles que ocupavam a função de governador da capitania. Conforme afirma Bicalho:
“paradoxalmente, a intensificação do poder real foi acompanhada por uma densificação do governo
local” (BICALHO, 2017, p. 49)55.

O aumento do poder régio resultou em maior fiscalização e cerceamento da autonomia local.


Isso, porém, não acarretou a perda do prestígio ou da autoridade dos poderes locais. Seja pela cultura
política do período, enquadrada nas normas de honra e mercê características do Antigo Regime, seja
pela presença física das elites locais junto à população da colônia e dos meios de produção, o poder,
ainda que mais centralizado nas mãos do Marquês de Pombal, em nenhum momento foi unicamente
dele. Era preciso contar com a anuência dos regimes locais e sua cooperação. A imposição da força
foi uma tática muito utilizada, mas ela nem sempre era a mais viável dentro da estrutura de poder do
regime português, de modo particular, em regiões mais afastadas do Império. Nesse sentido,

[...] de forma geral é possível perceber a existência de um claro projeto modernizante


nas ações da Coroa no reinado de D. José I. Esse caráter ativo da monarquia, que ia
além do seu papel tradicional de mantenedora dos equilíbrios sociais pré-existentes,
marca o que Antonio Manuel Hespanha denomina de mudança de paradigma con-
tratualista para o individualista na segunda metade dos setecentos. Segundo Hes-
panha, a Coroa entende-se a partir daí não só como fiadora de uma estrutura social
e política que em grande parte independe da mesma, mas como a responsável pela
reforma dessa mesma estrutura quando esta já não atendia ao “bem comum dos po-
vos”, na expressão da época (SAMPAIO, 2015, p. 32, grifo nosso)56.

Conforme atesta o grifo na citação acima, a Coroa compreendia que o conjunto a formar o
55 BICALHO, Maria Fernanda B. A territorialização do poder régio na América portuguesa (séculos XVII e
XVIII). In. SOUZA, Armênia Maria de; NASCIMENTO, Renata C. S. Nascimento. Mundos ibéricos: territó-
rios, gêneros e religiosidade. São Paulo: Alameda, 2017.
56 SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. A economia do império português no império pombalino. In. FALCON,
Francisco; RODRIGUES, Claudia. A época pombalina no mundo luso-brasileiro. Rio de Janeiro: FGV Editora,
2015

1243
Império português, de modo particular sua estrutura social, política e econômica, tinha certa au-
tonomia em relação ao poder da monarquia. Nessa autonomia residia a necessidade de interação e
concessões que o monarca precisa fazer para, por meio de mercês e honras, manter a coesão de todo
o seu domínio, pois “a prática de condecorar beneméritos sem qualidades era então uma estratégia da
monarquia para ampliar as alianças no ultramar, onde os homens ilustres de sangue eram escassos”
(RAMINELLI, 2015, p. 38).

Foram características do regime pombalino no Estado português: política de racionalização


administrativa, esta foi efetivada por meio de maior controle econômico, fiscal e alfandegário, apoio e
incentivo ao desenvolvimento intelectual e literário, com benefícios sendo concedidos a estudiosos e
escritores (RIBEIRO, 2015, p. 91)57.

A racionalização administrativa e os implementos para modificações da economia portugue-


sa tiveram impacto direto sobre grupos, seja no Reino ou nas colônias. Toda mudança traz consigo
perspectivas de apoio e rejeição. Aqueles que se beneficiam das mudanças tendem a apoiá-la, os que
perdem com elas tendem a se opor. Na Bahia os poderosos locais tiveram que se enquadrar nas no-
vas práticas vindas do Reino. As mudanças que foram aceitas pela maioria da classe dirigente local
também não deixaram de produzir choques com os interesses de alguns grupos, no que redundou em
contestações às ordens vindas de Portugal e abriu caminho para revoltas e rebeliões que se tornariam
frequentes no último quartel do século XVIII e primeiras décadas do XIX.

Para atender aos novos valores e ideias difundidas pelo Iluminismo, Pombal e seus seguidores
implementaram a chamada “razão de Estado” (MAXWELL, 2005)58. Oriunda da Academia Real de
História essa concepção tinha como base os novos conhecimentos oriundos das descobertas nas áreas
de cartografia, história e geografia. A Corte era encarada como área privilegiada para a centralização
administrativa do governo o que induziu a uma mudança no ideário e na prática político-administra-
tiva do Império. Centralidade do Estado, racionalidade política e controle e ordenamento econômico
formavam o eixo dominante na razão do Estado português da era pombalina (RIBEIRO, 2015, p. 92-
93). Dessa forma:

A administração sob Pombal enfeixa uma série de medidas que ataca diretamente
as fontes tradicionais de descontentamento que cercavam os súditos na América as-
segurando melhor exercício da justiça e participação na fiscalidade, aparentemente
respeitando-se os princípios de bom governo que deveriam reger as monarquias (FI-
GUEIREDO, 2015, p. 126).

As práticas impostas ou negociadas por Pombal mantiveram no governo e na administração


do Império características importantes do Antigo Regime. No território de além-mar mantinham-se
também as relações envolvendo o poder régio e os poderes locais, afinal:

57 RIBEIRO, Mônica da Silva. “Razão de Estado” e pombalismo. Os modos de governar na administração de


Gomes Freire de Andrada. In. FALCON, Francisco; RODRIGUES, Claudia. A época pombalina no mundo
luso-brasileiro. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2015
58 MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa: inconfidência mineira Brasil e Portugal 1750 – 1808. 6. ed. São
Paulo: Paz e Terra, 2005.

1244
a constituição das elites no ultramar passava pelo serviço do rei, não tão diferente
do que também ocorria em Portugal. Nesse sentido a conquista e a defesa da terra,
o serviço do rei, a ocupação de cargos administrativos e as mercês régias recebidas
em retribuição aos serviços prestados podem aqui ser evocados como critérios de
formação e de definição das elites coloniais (BICALHO, 2005, p. 74).

Essa “nobreza da terra”, conforme conceituado por Evaldo Cabral de Mello na sua obra O
Nome e o sangue tinham, como já dito anteriormente, enorme poder de barganha junto aos órgãos
estatais. Lembrando Schwartz, não se devem esquecer as muitas facetas de enlaçamento que esses
grupos fizeram para perpetuidade de se domínio, de modo particular com os arranjos matrimonias e
formação de redes mercantis junto a membros do governo (SCHWARTZ, 1988)59.

Outro elemento a não se esquecer dos limites das mudanças que o período pombalino formu-
lou tem a ver com as questões histórica do período. É importante não olvidar, como nos ensinam Blo-
ch e Florescano, que os homens possuem ideias que estão muitas vezes à frente do seu tempo, no en-
tanto, os arranjos materiais, as necessidades da economia, a cultura política dominante, a mentalidade
e os recursos tecnológicos nem sempre permitem que essas ideias vigorem ou sejam implementadas
em sua inteireza. Dessa forma ainda que se reconhecesse a irracionalidade do sistema econômico por-
tuguês este era justificado pela sua importância política. Assim:

Tratava-se de limitações e ambiguidades trazidas no bojo de um projeto reformista


que, embora visando as transformações das estruturas vigentes, não podia prescindir
do próprio regime absolutista, cujas bases de sustentação estavam fincadas numa or-
dem social arcaica, que, no máximo, se podia “arejar” com os novos conhecimentos
técnicos e científicos (SILVA, 2015, p, 433).

Esse “arejar” significou mudanças qualitativas e quantitativas nos governos dos povos que
compunham o Império. Essas alterações, ainda que limitadas pela dinâmica política do Antigo Regi-
me, trouxeram mudanças na forma como o governo era exercido. De modo particular nas colônias,
tais modificações trouxeram em seu bojo maior dificuldade para os governadores na lide com seus
subalternos e necessidade de ampliar o diálogo com os grupos dominantes locais.

As alterações produzidas por Pombal em seu governo, continuadas no reinado de D. Maria,


ainda que tivessem encontrado barreiras ou contestações, alteraram partes significativas da adminis-
tração e do governo no Estado português. De uma concepção contratualista de governo triunfou a
ideia de um governo político. Neste, eram os motivos do Estado que conduziam as decisões do gover-
no, valores e práticas tradicionais precisam ser incorporadas e adequadas aos novos ditames do poder.
Pois,

59 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

1245

• O consulado pombalino, cremos, pode ser encarado como o mais sério es-
forço levado a efeito pela metrópole portuguesa para pôr em funcionamento a ex-
ploração econômica do ultramar e o concomitante desenvolvimento da economia
metropolitana, em moldes mercantilistas clássicos (NOVAIS, 2006, p. 10)60.

Ao Estado cabia organizar a sociedade e impor-lhe uma ordem. De uma administração pas-
siva, vigente entre os séculos XVI ao XVII, passou-se para uma administração ativa, que abandonava
paulatinamente os constrangimentos corporativos adequando a sociedade e as leis aos novos preceitos
oriundos dos teóricos iluministas (VILALTA, 2016, p. 28)61.

Conforme salienta Hespanha (2012, p. 28) foi mesmo com Pombal e, depois dele, com os mi-
nistros ilustrados de D. Maria, que um maior controle, oriundo de planejamento particular ou geral
foi exercido sobre os domínios da Coroa no ultramar. Estas reformas se davam por meio de altera-
ções urbanísticas, alfandegárias, territoriais e econômicas. Algumas tiveram êxito, outras não.

REFERÊNCIAS

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XVIII). In. SOUZA, Armênia Maria de; NASCIMENTO, Renata C. S. Nascimento. Mundos ibéricos: territó-
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60 NOVAIS, Fernando A. Portugal e o Brasil na crise do Antigo Sistema colonial. 8. ed. São Paulo: Hucitec,
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61 VILALTA, Luiz Carlos. O Brasil e a crise do Antigo Regime português (1788-1822). Rio de Janeiro: FGV
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tora, 2016.

1247
DAS INSOLÊNCIAS QUE COMETEM MESMO DEBAIXO DE PAZ: A CÂMARA DE NATAL, OS
TRATADOS DE PAZ COM OS INDÍGENAS E AS NOVAS AMEAÇAS NA CAPITANIA DO RIO
GRANDE (1692-1720)
Júlio César Vieira de Alencar62

O processo de ocupação e colonização dos sertões das Capitanias do Norte pelos luso-brasi-
leiros, na segunda metade do século XVII, resultou em uma série de conflitos entre esses colonos e
os indígenas que habitavam esses espaços da América portuguesa, denominados genericamente de
“tapuias”.63 A essa série de conflitos, bastante heterogêneos entre si, convencionou-se o uso do termo
Guerra dos Bárbaros – referenciado tanto na documentação do período colonial quanto pela historio-
grafia que trata da temática.64 Apesar do termo transmitir a ideia de um único conflito, Pedro Puntoni
e Kalina Vanderlei apontam para a pluralidade desses enfrentamentos entre moradores e indígenas
nos sertões coloniais, que ocorreram em momentos distintos e emdiferentes espaços da colônia.65

No caso da capitania do Rio Grande, um dos principais palcos desses conflitos, pode-se afir-
mar que a segunda metade da década de 1680 marca o momento em que os relatos sobre os enfrenta-
mentos no sertão –sobretudo, na ribeira do Assu – passaram a ser mais frequentes. Em princípios do
ano de 1687, em cartas encaminhadas para o governo de Pernambuco, para a Câmara de Olinda e para
o capitão-mor da Paraíba, os oficiais da Câmara de Natal davam conta da “rebelião dos índios tapuios”
62 Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte. É professor efetivo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte
(IFRN), campus São Paulo do Potengi.
63Tapuia seria um termo genérico utilizado pelos povos indígenas Tupi, habitantes do litoral, para se referir às
populações que habitavam as áreas mais afastadas da zona costeira. Entre essas populações podemos citar os da
etnia Tarairiú, que habitavam o sertão da Capitania do Rio Grande e dividiam-se em vários subgrupos, como os
Janduí, Canindé, Ariú, Panati, Pega, entre outros. Ver LOPES, Fátima Martins. Índios, colonos e missionários
na colonização do Rio Grande do Norte. Mossoró: Fundação Vingt-um Rosado, Instituto Histórico e Geográ-
fico do Rio Grande do Norte, 2003. p 135-142; e 155. Tal denominação foi incorporada pelos conquistadores
lusitanos, que passaram a conceber os povos indígenas a partir do binômio Tupi-tapuia, que também represen-
tava uma bipolaridade geográfica: litoral-sertão. Ver também PUNTONI, Pedro. Guerra dos Bárbaros: povos
indígenas e a colonização do sertão do nordeste do Brasil. Tese de doutorado, Programa de Pós-Graduação em
História Social, FFLCH/USP, São Paulo-SP, 1998. p. 44-46.
64 Entre os trabalhos mais recentes acerca desses conflitos podemos citar: ALENCAR, Júlio César Vieira de.
Para que enfim se colonizem estes sertões: a Câmara de Natal e a Guerra dos Bárbaros (1681-1722). 2017. 243f.
Dissertação (Mestrado em História e Espaços) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2017;
DIAS, Patrícia de Oliveira. Onde fica o sertão rompem-se as águas: processo de territorialização da ribeira do
Apodi-Mossoró (1676-1725). 2015. 187f. Dissertação (Mestrado em História e Espaços) - Universidade Federal
do Rio Grande do Norte, Natal, 2015; JESUS, Mirian Silva de. Abrindo espaços: os "paulistas" na formação da
capitania do Rio Grande do Norte. 2007. 120f. Dissertação (Mestrado em História e Espaços) - Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2007; LOPES, Fátima Martins. Op cit.; PIRES, Maria Idalina da Cruz.
Guerra dos Bárbaros: resistência indígena e conflitos no nordeste colonial. Recife: FUNDARPE, 1990; PUN-
TONI, Pedro. Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão do nordeste do Brasil. Tese de
doutorado, Programa de Pós-Graduação em História Social, FFLCH/USP, São Paulo-SP, 1998; SILVA, Kalina
Vanderlei. Nas solidões vastas e assustadoras: a conquista do sertão de Pernambuco pelas vilas açucareiras nos
séculos XVII e XVIII. Recife: Cepe, 2010; SILVA, TyegoFranklim da. A ribeira da discórdia: terras, homens
e relações de poder na territorialização do Assu colonial (1680-1720). 2015. 176f. Dissertação (Mestrado em
História e Espaços) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2015;
65 PUNTONI, Pedro. Op cit. p. 5 e 66; SILVA, Kalina Vanderlei. Op cit. p. 155.

1248
e das mortes de moradores em função desses ataques.66

Além disso, o capitão-mor do Rio Grande enviou um vereador da Câmara de Natal, chama-
do Manoel Duarte de Azevedo, à Bahia, a fim de solicitar o auxílio do próprio Governador Geral do
Estado do Brasil, Mathias da Cunha. Este, por sua vez, respondeu aos oficiais da Câmara e ao próprio
capitão-mor, informando que havia ordenadoao Governador de Pernambuco que enviasse “duas com-
panhias da melhor gente dos Terços do Camarão e Henrique Dias”, e ao capitão-mor da Paraíba que
socorresse aos moradores do Rio Grande “com o maior numero de gente” que fosse possível. Tais tro-
pas deveriam ser comandadas pelo coronel Antônio de Albuquerque da Câmara, atuando tanto “para
terror dessas nações, como para quietação de seus vassallos.”67

Além dessa campanha, liderada pelo coronel Antônio de Albuquerque da Câmara, o gover-
no geral ainda ordenaria a realização de uma outra, comandada pelo capitão-mor Manoel de Abreu
Soares, morador da capitania do Rio Grande, que deveria fazer guerra aos “tapuias”, “degollando-os, e
seguindo-os até os extinguir”, o que serviria de exemplo “a todas as mais nações que confederadas com
elles não temiam as armas de Sua Magestade”. Seria enviado o reforço de 600 homens de Pernambuco,
constituindo-se em uma campanha que possuía “jurisdição separada, e independente” daquela lide-
rada pelo coronel Antônio de Albuquerque da Câmara, devendo esses dois homens manterem algum
tipo de comunicação “de palavra, ou por escripto”, a fim de melhor coordenar as entradas contra “o
Barbaro”.68

Essas tropas, entretanto, não obteriam grandes sucessos nas suas incursões contra os indíge-
nas, sendo muito constantes entre fins da década de 1680 e princípios da década de 1690 os relatos dos
oficiais camarários da cidade do Natal sobre o clima de ameaça e medo que os moradores da capitania
do Rio Grande estavam vivenciando, tanto no sertão quanto nas povoações da faixa litorânea.69 Mes-
mo o envio das tropas dos paulistas pelo governo geral, ainda no ano de 1688,70 não surtiram efeitos
imediatos – apesar de algumas vitórias narradas pelo sertanista Domingos Jorge Velho e pelo coronel

66 CARTA dos oficiais da Câmara de Natal ao Capitão-mor General de Pernambuco. IHGRN, LCPSCN, Caixa
65, Livro 2, fls. 96v e 97, 23/02/1687. Apud PUNTONI, Pedro. Op cit. p. 105; CARTA dos oficiais da Câmara
de Natal aos oficiais da Câmara de Olinda. IHGRN, LCPSCN, Caixa 65, Livro 2, fl. 97, 23/02/1687; CARTA dos
oficiais da Câmara de Natal ao Capitão-mor da Paraíba. IHGRN, LCPSCN, Caixa 65, Livro 2, fl. 97, 01/03/1687.
A partir de PORTO ALEGRE, M. S.; MARIZ, M. da S.; DANTAS, B. G. (Org.). Documentos para a história
indígena do Nordeste: Ceará, Rio Grande e Sergipe. 1994. p. 111.
67 CARTA do Governador Geral Mathias da Cunha para os officiaes da Camara do Rio Grande, 24/09/1687;
CARTA do Governador Geral Mathias da Cunha para o Capitão-mor do Rio Grande Paschoal Gonçalves de
Carvalho, 17/09/1687. DHBN. v. 10, p. 250; 253-254 .
68CARTA para o Capitão-mor Manuel de Abreu Soares sobre a guerra do Gentio do Rio Grande. DHBN. v. 10,
p. 275-276.
69 Acerca das incursões dos “tapuias” à faixa litorânea e do clima de medo que se instaurou na capitania do Rio
Grande em função disso, ver: ALENCAR, Júlio César Vieira de Alencar. Op cit. p. 89-113.
70CARTA do Governador Geral Mathias da Cunha para o Capitão-mor Domingos Jorge Velho sobre partir
com a gente que tiver sobre os Bárbaros do Rio Grande. 08/03/1688. DHBN. v. 10, p. 262.

1249
Antônio de Albuquerque da Câmara.71 Se um dos objetivos dessas expedições era submeter o “gentio
bárbaro” – termo utilizado pelas autoridades locais para se referir aos indígenas do sertão – à obe-
diência da Coroa e das autoridades coloniais, os acordos de paz seriam uma ferramenta extremamente
importante nesse sentido, visando tornar antigos inimigos em cristãos e vassalos d’El Rei. Somente em
1692 teríamos a assinatura do primeiro tratado nesse sentido, sendo seguido de vários outros acordos
nos anos seguintes, muitos dos quais contaram com a anuência e a participação de homens ligados à
Câmara da cidade do Natal.

Todavia, esses acordos, como veremos adiante, não colocariam um ponto final nos conflitos,
o que reforçava a narrativa das autoridades da capitania – entre elas, os oficiais da Câmara de Natal
– de que esses indígenas não poderiam ser incorporados à sociedade colonial como homens livres.
Na argumentação desses personagens, os moradores da capitania do Rio Grande só poderiam ter paz
se essas populações nativas fossem eliminadas ou reduzidas à condição de cativos. Buscaremos com-
preender que circunstâncias levavam esses indígenas às novas ações de resistência e de que maneira
elas eram utilizadas pelas elites locais para legitimar novas ações bélicas contra os “bárbaros” e com o
objetivo de defender os interesses dos grupos ligados à Câmara de Natal.

“Falsos e traidores”: tratados de paz e novas ameaças


O ano de 1692 representou um marco importante para o que viria a ser encarado pelos colo-
nos, incluindo os camaristas da cidade do Natal, como o princípio do processo de pacificação da ca-
pitania do Rio Grande. Nesse ano, no mês de abril,os temidos nativos da “nação Janduim” – liderados
pelo “rei” Canindé, “a cuja obediência e poder absoluto” estavam sujeitas 22 aldeias – estabeleceram
um acordo de paz com o Governador Geral Antônio da Câmara Coutinho. Ficavam esses grupos
comprometidos em reconhecer o Rei de Portugal “por seu Rey natural e senhor de todo o Brasil”,
prometendo-lhe “vassalagem, e obediência para sempre”, o que incluía a obrigação de fornecer “cinco
mil homens de arcos” para defender a Coroa contra seus inimigos. Em contrapartida, as autoridades
do império português e da colônia reconheceriam a “liberdade natural” desses indígenas, protegendo-
-os(em tese) da escravidão, além de assumirem o compromisso de demarcar as terras correspondentes
a cada aldeia dos Janduí.72

A demarcação das terras que haviam sido prometidas a esses indígenas, entretanto, ocorreria
apenas em fevereiro de 1695, com o cumprimento por parte do capitão-mor, Agostinho Cézar de
Andrade, da determinação régia de que “a todo o gentio tapuya que Eu novamente reduzir a paz e a
obediencia lhe dê sitio e terras donde vivão e plantem”. Ordenava o rei que os Canindé fossem fixados
71Nesse sentido, Helder Macedo faz referência a dois grandes massacres cometidos pelas tropas coloniais con-
tra as populações indígenas, dos quais resultaram grande número de mortes entre os nativos do sertão e o ca-
tiveiro de muitos outros. Os dois massacres ocorreram na região atualmente conhecida como Seridó potiguar,
sendo o primeiro na Serra da Rajada, em 1689, e o segundo na Serra da Acauã, no ano de 1690. Ver MACEDO,
Helder Alexandre Medeiros de. Populações indígenas no sertão do Rio Grande do Norte: histórias e mestiça-
gens. 2011. p. 126.
72 Apud POMPA, Cristina. Religião como tradução: missionários, Tupis e “Tapuia” no Brasil colonial. Bauru/
SP: EDUSC, 2008.p. 282-284.

1250
“na Ribeira do Rio Jundiapereba”, em localização relativamente próxima à faixa litorânea e à cidade
do Natal,73 argumentando que a distância deveria ser “proporcionada por que sendo muito distante
fica menos sujeito a obediência que prometem”.74 Dessa forma, percebe-se que, para a Coroa, o esta-
belecimento desses nativos no sertão, longe das instâncias do poder espiritual e temporal na capitania
do Rio Grande, lhes ofereceria uma liberdade indesejável, que poderia dificultar a sua incorporação
como súditos do império, que fossem úteis à colonização.75

Esse processo de condução dos grupos indígenas rebelados à condição de aliados – nomeado
nos documentos de “reduzir a paz” –, entretanto, ainda demoraria quase três décadas para se consoli-
dar na capitania do Rio Grande. Isso se deuem virtude do surgimento de novas ameaças, fosse em fun-
ção do levantamento de etnias até então desconhecidas (ou que ainda não haviam sido mencionadas
na documentação), fosse pela retomada das hostilidades por parte de grupos que já haviam firmado
as pazes com os colonos.

Essa falta de sossego na capitania parece confirmada pelo termo de vereação de 21 de agosto de
1693, no qual os camaristas fazem menção ao documento que enviariam ao Governador de Pernam-
buco, Caetano de Melo e Castro, “dandolhecontta das morttes que fes o gentio nas praias das salinas”.76
Provavelmente, em decorrência da permanência de hostilidades desse tipo, em carta endereçada ao
capitão-mor Agostinho Cézar de Andrade, datada de março de 1695, os camarários afirmavam que,
antes de se estabelecer acordos de paz com os indígenas, deveriam ser feitas “algumas correções e
apertos aos barbaros”, que dessa forma seriam obrigados à submissão.77

O fato é que novos tratados de paz com povos identificados como tapuias seriam realizados
nos anos de 1695 e 1697, por intermédio do capitão-mor Bernardo Vieira de Melo, sucessor de Agos-
tinho Cézar de Andrade. Dessa vez, os grupos indígenas envolvidos seriam os “Janduinz da Ribeyra
do Assu”, cujo “rey” seria TayaAssu, e os “AriusPiquenos”, cujo principal seria um índio de nome Peca.
Os dois tratados, assinados com um lapso de dois anos de diferença entre si, trazem características
muito semelhantes. Além das condições já vistas anteriormente no acordo de paz com os Canindé,
que seria a promessa de fidelidade e vassalagem ao rei de Portugal, obedecendo seus Governadores e
capitães-mores na colônia, e a atuação contra outras “nações” indígenas que se rebelassem, esses gru-
73 De acordo com Olavo de Medeiros Filho, o “lugar denominado Jundiá-Pereba” estaria localizado atualmente
entre as cidades de Santo Antônio e Goianinha, na região do Agreste potiguar. Seria, portanto, bem distante do
sertão do Seridó, território tradicionalmente ocupado por esses indígenas. Ver MEDEIROS FILHO, Olavo de.
Índios do Açu e do Seridó.Brasília: Gráfica do Senado Federal, 1984.p. 123.
74CARTA do Capitão-mor da Capitania do Rio Grande, Agostinho Cézar de Andrade, em cumprimento à
ordem de Sua Majestade. IHGRN, LCPSCN, Caixa 65, Livro 3, fls. 54v e 55, 12/02/1695. Transcrito e publicado
por MEDEIROS FILHO, Olavo de. Op cit. p. 136-137.
75 A desconfiança com relação a esses indígenas seria algo evidente nesse momento, o que pode ser verificado
pela orientação que o Governador Geral, Câmara Coutinho, passou a Agostinho Cézar de Andrade, capitão-
-mor do Rio Grande, logo após firmar as pazes com os índios liderados por Canindé. Alertava para que tivesse
“cuidado e atenção” com eles, em virtude deles serem “naturalmente inconstantes” e possuírem “ódio aos Bran-
cos”. Apud LOPES, Fátima Martins. Op cit. p. 175-176. Essa mesma desconfiança, como veremos adiante, estava
presente entre os oficiais da Câmara da cidade do Natal.
76TERMO de Vereação de 29/08/1693. IHGRN, LTVSCN, Caixa 1, Livro 1674-1698, fl. 110v.
77CARTA dos oficiais da Câmara ao Capitão-mor Agostinho Cézar de Andrade. IHGRN, LCPSCN, Caixa 65,
Livro 3, fls. 56-56v. 01/03/1695. Apud LEMOS, Vicente. Op cit. p. 65.

1251
pos se comprometeriam a permitir o povoamento dos sertões da capitania do Rio Grande, “que a seu
respeito se despovoarão”, e a auxiliar os “brancos” que fossem criar seus gados no Assu, ajudando na
reconstrução de casas e currais. Também não deveriam aceitar em sua companhia “escravos fugitivos
dos moradores”, que deveriam ser presos e devolvidos.78

Havia, ainda, uma preocupação com a aproximação desses indígenas das povoações situadas
na faixa litorânea do Rio Grande e da própria cidade do Natal, já que o acordo estabelecia que, “decen-
do do sertão”, esses grupos não deveriam trazer armas até mais próximo do que a localidade de “Piru-
tuba e vindo pela Prayaathê a barra do Siarâmerim”. Não deveriam, também, levar para o sertão “gente
de sua nação” que já fossem “domesticos catequizados e bautizados”, pois enquanto “filhos da Igreja”
não convinha que retornassem “ao barbarismo de que sahirãomayormente”, já que viviam “contentes
e satisfeitos na companhia dos brancos”.79

Torna-se evidente, a partir dessas duas restrições, que o sertão continuaria sendo o lugar ideal
para os grupos mencionados, que, apesar de aliados, mantinham costumes considerados selvagens
pelas autoridades e moradores da colônia. Eles estariam em um estágio diferente dos nativos já cate-
quizados, considerados livres do “barbarismo” e que, por isso, deveriam conviver com outros súditos
da Coroa no litoral, e não no sertão, espaço da falta de ordem e da ausência do controle régio. A fuga
ou o retorno para esse espaço, aos olhos dos luso-brasileiros, equivaleria a retroceder a uma condi-

78 CARTA do capitão-mor do Rio Grande do Norte, Bernardo Vieira de Melo, ao rei [D. Pedro II] sobre decisão
dos oficiais da Câmara e moradores de Natal de se fazer um presídio no sertão do Açu, que seria sustentado por
seis meses pelas farinhas dadas pelos moradores.AHU-RN, Cx. 1, D. 42.
79Idem. De acordo com Olavo de Medeiros Filho, o lugar denominado de Pirituba seria no atual município
de São Gonçalo do Amarante. MEDEIROS FILHO, Olavo de. Aconteceu na Capitania do Rio Grande. Natal:
Departamento Estadual de Imprensa, 1997. p. 155.

1252
ção de bárbaro, que a catequese e o convívio com a sociedade colonial deveriam ter sido capazes de
fazê-los superar. Além disso, a desconfiança com relação a esses indígenas, que pediam perdão pela
“desobediência e seus erros passados”, se mostraria a partir do receio e das precauções referentes à sua
eventual aproximação da cidade do Natal, sendo impedidos de trazerem suas armas.

Entretanto, a presença de homens “brancos” de confiança desses indígenas, para atuarem como
testemunhas e assinar os tratados em seu nome, demonstra que as relações entre colonos luso-brasi-
leiros e indígenas eram bem mais complexas do que imaginamos. No caso dos Janduí, no acordo de
1695, essa pessoa era o capitão Gaspar Freire de Carvalho, que atuou no Senado da Câmara de Natal
como vereador, em 1689 e 1697, e almotacé, em 1692 e 1694. Já no acordo com os Ariú Pequeno, da-
tado de 1697, esse indivíduo era o capitão Antônio Álvares Correa, por ser “conhecido antigo desses
índios”, em virtude de possuir terras aonde eles tinham “sua habitação, e haver nelas tido gados que
com o levante da guerra do dito gentio se destruirão”. Álvares Correa também teve ligações com a Câ-
mara, já que figurou nos termos de vereação como almotacé em 1694, e seu irmão, o também capitão
João Pinto Correa, que também assinou o tratado de paz com os Ariú, foi juiz ordinário em 1674 e
1680, além de almotacé em 1675 e 1681.80

Percebe-se, dessa forma, que homens ligados à Câmara da cidade do Natal tiveram importante
atuação no sentido de conduzir algumas etnias ao estabelecimento de acordos de paz com os colonos
e, consequentemente, liberar as terras do sertão para o desenvolvimento da atividade pecuária. Sua
referência nesses tratados como homens de confiança desses indígenas nos faz refletir sobre o cará-
ter dos contatos estabelecidos entre sesmeiros/moradores e nativos nos sertões da capitania do Rio
Grande, já que chegaram a atuar, ao que tudo indica, como mediadores nas capitulações que levavam
à promessa de obediência de alguns grupos à Coroa.

Do ponto de vista dos indígenas, devemos salientar, amparados nas conclusões de Cristina
Pompa, que esses tratados eram uma maneira de “se inserir nas contingências históricas em função de
seus interesses de sobrevivência física e cultural”.81 Pode-se afirmar que a condição nova representada
pela colonização levava a rearticulações e a novas estratégias por parte desses nativos. Não se trataria,
dessa maneira, de uma sujeição total aos interesses da Coroa e dos colonos, mas uma maneira de res-
guardar determinadas prerrogativas, como a garantia da liberdade e o acesso a terras para a formação

80CARTA do Capitão-mor do Rio Grande do Norte, Bernardo Vieira de Melo, ao rei [D. Pedro II] sobre decisão
dos oficiais da Câmara e moradores de Natal de se fazer um presídio no sertão do Açu, que seria sustentado por
seis meses pelas farinhas dadas pelos moradores.AHU-RN, Cx. 1, D. 42; e LOPES, Fátima Martins. Catálogo
dos Livros dos Termos de Vereação do Senado da Câmara de Natal. De acordo com carta de sesmaria concedida
em 1691, as terras de Antônio Álvares Correa, mencionadas no acordo de paz com os Ariú, estariam localizadas
na povoação do rio Paneminha. Nessa carta, o suplicante alegava já ter ocupado a terra em duas ocasiões com
seus gados, que, juntamente com escravos e homens livres que trabalhavam nas fazendas da região, acabaram
sendo mortos pelos indígenas. Plataforma SILB: PB1173.
81 POMPA, Cristina. Op cit. p. 218.

1253
de aldeias.82 Esses mesmos interesses, obviamente, poderiam ocasionar novas ações de resistência por
parte de etnias que já haviam jurado vassalagem ao rei de Portugal, levando as autoridades coloniais a
sustentarem que os grupos identificados como tapuias seriam naturalmente inconstantes e traidores.

Nesse sentido, os Canindé, que haviam sido aldeados nas proximidades da povoação de
Goianinha três anos após o acordo de paz com a Coroa (firmado em 1692), acabaram fugindo da al-
deia no ano de 1699. Essa fuga teria sido causada pela morte de sete ou oito crianças, além do próprio
Canindé, “seu principal”. Bernardo Vieira de Melo atribui a morte desses indígenas, vitimados pela
“maleita”, ao clima do litoral, tão diferente daquele a que eles estavam acostumados no sertão. O capi-
tão-mor, que alegava ter alcançado o grupo de índios partindo em direção ao oeste, “jâ distanciados
perto de trezlegoas”, entendia como melhor solução que se buscasse um novo lugar, situado no sertão,
para acomodá-los, “por ser o clima semelhante ao em q ellesvivião”.83 Isso demonstra que os interesses
dos grupos indígenas que firmavam pazes, além de suas condições de vida nas aldeias delimitadas
pelas autoridades, poderiam levá-los a romper com determinados aspectos estabelecidos nos tratados.
Para as autoridades locais, por outros lado, essas ações dos grupos indígenas poderiam ser apontadas
como evidência da selvageria e da inconstância desses índios.

Nesse sentido, os oficiais camarários escreveriam duas cartas ao rei, no início de 1702, afir-
mando que fazia “perto de 20 annos que esta capitania geme debaxo do mais pezado pego de guerras
[...] com esta emdomadanasamjandoim”. Alertavam para os perigos que esse grupo, “hua nação tam
belicosa e maliciosa”, traziam para a capitania do Rio Grande, sendo o único missionário que conse-
guia lidar com eles e mantê-los sossegados o padre Miguel da Encarnação. Já os outros sacerdotes não
sabiam lidar com esses “gentios” em função de sua inexperiência, ficando os índios das aldeias fora de
controle, matando o gado e causando estragos.84

De acordo com Fátima Martins Lopes, esses problemas relacionados à quietação dos indíge-
nas das missões da capitania do Rio Grande estavam ligados às dificuldades de sobrevivência nessas
povoações, levando os nativos a buscarem alimentos nas redondezas, assaltando roças e matando o
gado dos moradores. Tanto a légua de terra que era concedida aos aldeamentos se mostrava insufi-
ciente para o sustento dessa população, quanto “a constante obrigação de servir aos moradores”, o que
retirava boa parte dos homens aptos para o trabalho das missões, poderia causar enorme dificuldade
para a produção de gêneros alimentícios. Tais problemas, como demonstra a autora, continuaram
causando conflitos entre colonos e indígenas aldeados, “que estavam inquietos e difíceis de dominar”,
82 Dessa maneira, os Janduí que assinaram o acordo de paz em 1695, cientes que deveriam se aldear e receber
doutrina de um sacerdote, solicitaram ao capitão-mor, Bernardo Vieira de Melo, terras na ribeira do Ceará-
-Mirim, alegando “serem as do Assumuy secas para nelas se plantar rossa”. Concordando com os termos, o
capitão-mor acabou prometendo conceder essas terras aos indígenas. CARTA do capitão-mor do Rio Grande
do Norte, Bernardo Vieira de Melo, ao rei [D. Pedro II] sobre decisão dos oficiais da Câmara e moradores de
Natal de se fazer um presídio no sertão do Açu, que seria sustentado por seis meses pelas farinhas dadas pelos
moradores. AHU-RN, Cx. 1, D. 42.
83 CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei [D. Pedro II], sobre carta do capitão-mor do Rio Grande do
Norte, Bernardo Vieira de Melo, informando que os índios Canindé haviam abandonado o sítio em que esta-
vam aldeados por causa da febre que matou muitos deles, nomeadamente o principal. AHU-RN, Cx.1, D. 47.
84CARTA dos Oficiais da Câmara de Natal à Sua Majestade; outra CARTA dos Oficiais da Câmara de Natal à
Sua Majestade. IHGRN, LCPSCN, Caixa 65, Livro 3, fls. 123-123v. **/**/1702; Livro 4, fls. 7v, 8 e 8v, 03/08/1702.

1254
nas décadas de 1720, 1730 e 1740, ou seja, após o fim da Guerra dos Bárbaros.85

Um novo tratado de paz firmado com os Janduí, em 1702, parece trazer as experiências negati-
vas com os índios aldeados para o centro da questão, com o compromisso de “todos os Governadores
e Grandes da nação Janduí”86, que viviam em três aldeias: nas ribeiras do Ceará-Mirim, do Cunhaú e
do Potengi. Além de firmarem a obediência e a fidelidade para com o rei de Portugal, lutando contra
os seus inimigos, comprometiam-se em não se ausentar das suas respectivas aldeias sem autorização
por escrito dos missionários e não permitiriam que os seus subordinados roubassem e matassem os
gados dos moradores. O não cumprimento do que foi acordado, assinado na presença do capitão-mor
do Rio Grande, do Ouvidor Geral e dos oficiais da Câmara de Natal, levaria ao castigo a ser definido
por essas autoridades.87

Ainda no começo do mesmo ano, os oficiais da Câmara relatavam ao Governador de Pernam-


buco novos “desaforos” dos indígenas, que, em um “curral vezinho desta Cidade [do Natal]”, situado
entre 10 a 12 léguas de distância dela, haviam tentado matar um morador, que acabou conseguindo fu-
gir para pedir auxílio. O capitão-mor, Antônio de Carvalho Almeida, reagiu enviando soldados para a
localidade, que encontraram os índios preparados para a guerra, ameaçando os soldados e mandando
“recados muito desavergonhados” ao próprio capitão-mor.88 Isso demonstra que mesmo as povoações
situadas mais próximas à cidade do Natal continuavam, nesse início do século XVIII, experimentando
um clima de insegurança e temor, em virtude dos ataques dosindígenas – tanto os que ainda estavam
abertamente em guerra contra os colonos, quanto os que haviam estabelecido pazes com as autorida-
des da capitania do Rio Grande, passando à condição de aldeados.

Índios aldeados e índios “de corso”

Na memória que escreveu sobre os índios do sertão, entre fins do século XVII e início do
século XVIII, Pedro Carrilho atribuía a não observância dos tratados de paz por parte dos “tapuias”
como resultante de seu modo de vida seminômade. De acordo com o autor, o fato de não cultivarem
lavouras, andando “sempre de corso bolantes, com a caza as costas”, fazia com que esses nativos não
permanecessem nas missões, levando-os a procurarem esses espaços apenas para se protegerem, fin-
gindo estabelecer as pazes com os colonos para continuarem a “furtar, matar, e comer guados, pellos
campos” e atacando os moradores que se opunham a eles. Isso impedia, para Carrilho, que a guerra

85 LOPES, Fátima. Índios, colonos e missionários na colonização do Rio Grande do Norte. 2003. p. 196.
86São citados nominalmente o “Grande PanacuAssu” e o “Grande Rei Canindé” (obviamente não se trata do
mesmo que assinara o acordo de 1692, já que este havia falecido três anos antes do presente tratado) como re-
presentantes desses indígenas.
87PROTESTO de fidelidade à Sua Majestade, rei de Portugal, de todos os Governadores e Grandes da nação
Janduí, e capítulo que se acrescentou na cidade do Rio Grande. IHGRN, LCPSCN, Caixa 65, Livro 3, fls. 127-
127v. **/**/1702. A partir de PORTO ALEGRE, M. S.; MARIZ, M. da S.; DANTAS, B. G. (Org.). Op cit. p.
136-137.
88CARTA dos oficiais da Câmara de Natal ao Governador de Pernambuco. IHGRN, LCPSCN, Caixa 65, Livro
4, fls. 10v-11v. **/**/1702.

1255
fosse movida como se deveria, não devendo esses “ereges” gozarem da “ymunidade da ygreja”.89

Nesse sentido, percebe-se que, para a sociedade colonial, a distinção entre sedentarismo e no-
madismo representava um marco importante para delimitar a fronteira entre “civilização” e “barbárie”,
da mesma maneira que as oposições entre o litoral e o sertão, ou a aldeia e o mato. Esses binômios,
portanto, diferenciavam o que seria o mundo ordenado e cristão do mundo considerado selvagem e
pagão, havendo a concepção de que aqueles indígenas que conviviam com os luso-brasileiros, próxi-
mos ao mar, em aldeias onde recebessem a doutrina religiosa católica, superariam em humanidade
aqueles que viviam nos longínquos sertões da colônia.90

Não é por acaso que os acordos de paz que estamos discutindo tenham uma tendência a es-
tabelecer a necessidade de fixação dos grupos étnicos em uma aldeia, geralmente no litoral, o que
também estaria associado à catequese e à possibilidade de servir como mão de obra disponível para
os moradores das povoações coloniais. A diferenciação entre índios aldeados e “de corso”, à medida
que alguns grupos passavam a aceitar a condição de vassalos do rei, vivendo em aldeias, seria cada
vez mais utilizada para distinguir aliados de inimigos. Porém, aos aliados que quebrassem os acordos
de paz anteriormente firmados restaria o tratamento como traidores pelo Estado e pela Igreja, já que
haviam se declarado como súditos régios e como povos abertos à catequese.

Os oficiais da Câmara da cidade do Natal, portanto, em diversas ocasiões fariam esse tipo de
alerta ao rei e às autoridades instituídas em seu nome na América portuguesa. Foi o que ocorreu em
novembro de 1706, quando os moradores, em reunião com os oficiais da Câmara e o Capitão-mor,
decidiram queixar-se ao Governador de Pernambuco sobre os “insultos que os índios aldeados nas
Missões das ribeiras do Potengi, Ceará-Mirim e Cunhaú” (justamente as localidades das aldeias que
receberam os indígenas mencionados no “protesto de fidelidade” assinado em 1702) estavam prati-
cando, acompanhados de outros indígenas, identificados como “de corso”. Eles destruíam as lavouras e
as criações de gado, sendo necessário que o rei e a Junta das Missões encontrassem uma solução para
a questão, já que se tratavam, em parte, de nativos aldeados.91

A resposta da Coroa viria um ano e meio mais tarde, em abril de 1708, com a ordem para que
se fizessem entradas pelos sertões da Bahia, do Ceará Grande e do Rio Grande, guerreando contra “to-
das as nasoiz de indios de corsso”. Declarava o rei, ainda, que fossem mortos todos os que resistissem
e “cativoz oz que se lhez renderem”, que deveriam ser leiloados e “da importância que disto rezultar se

89ANDRADE, Pedro Carrilho de. Memória sobre os índios do Brazil. Revista do IHGRN. Vol. 7, nº 1 e 2, 1909.
p. 143-145. De acordo com Bartira Barbosa e Socorro Ferraz, a expressão “corso” se referia a um “modo de vida
errante”, quando “os índios não se comprometiam em ficar reduzidos a um aldeamento dirigido por religiosos
ou por autoridades civis ou militares”. As autoras, dessa maneira, enfatizam que o nomadismo era uma das
formas pelas quais os indígenas resistiam à ordem colonial. Ver: FERRAZ, Socorro; BARBOSA, Bartira Ferraz.
Sertão: a fronteira do medo. Recife: Editora da UFPE. 2015. p. 126; 170.
90POMPA, Cristina. Op cit. p. 259-260.
91TERMO feito por moradores da Capitania para o Governador de Pernambuco. IHGRN, LCPSCN, Caixa
65, Livro 4, fls. 109v-110. 28/11/1706. A partir de PORTO ALEGRE, M. S.; MARIZ, M. da S.; DANTAS, B. G.
(Org.). Op cit.p. 138-139.

1256
pague a fazenda Real da despeza que nesta guerra fizerem”.92 Podemos afirmar que essa Carta Régiase
tornaria um novo elemento para conferir legitimidade ao aprisionamento e à escravização dos grupos
indígenas que se rebelassem. Seria, como veremos adiante, evocada pelos agentes ligados à conquista
do sertão e interessados no acesso à mão de obra indígena para justificar a manutenção da guerra
contra determinadas etnias.

A situação do Rio Grande, nesse contexto, parece ter continuado preocupante, já que, ao che-
gar à capitania, em fins de 1708, o Capitão-mor André Nogueira da Costa relatava os ataques dos
Janduí aos moradores estabelecidos não apenas no Assu e no Apodi, mas também aos “moradores
avesinhados a esta Cidade” do Natal. Além disso, fazia menção à bandeira realizada contra os Janduí
“dos Ranchos do Corema, e Canindé”, que haviam “tomando armas contra os nossos tapuias aldeados
na Capella”, na ribeira do Ceará-Mirim. Os mesmos Canindé estariam, segundo o capitão-mor, ma-
tando o gado, destruindo as fazendas e cercando os moradores no “sertão de Goianinha”.93 Toda essa
situação o levou a pedir autorização dos “homens respúblicos” da capitania para que aprovassem a
continuidade da guerra.94

A referência do capitão-mor ao “sertão de Goianinha” chama-nos a atenção, já que esta locali-


dade, cuja conquista já estaria consolidada desde meados do século XVII, situava-senas proximidades
da costa e era um importante núcleo de povoamento,95 estando consideravelmente distante daqueles
espaços que eram apontados como sertão do Rio Grande, sobretudo as ribeiras do Assu e do Apodi.
Provavelmente, referia-se ao entorno da povoação citada e asações de resistência dos indígenas, que
estariam atacando os moradores, tenham levado ao uso dessa terminologia, quepossuía vários signi-
ficados para a sociedade colonial e não se constituía em uma delimitação fixa ou permanente entre
espaços da América portuguesa. Além disso, como afirma Cláudia Damasceno, à medida que a ocu-
pação do espaço colonial ia ocorrendo, a noção homogeneizadora acerca do sertão se converteria no
surgimento de sertões específicos, indicando um melhor conhecimento acerca desses espaços.96 Pare-
ce-nos ser esse o caso do referido “sertão de Goianinha”, enquanto um espaço contíguo a uma área já
ocupada por luso-brasileiros, mas indicando que as dificuldades causadas pelos ataques dos indígenas

92 CARTA de Sua Majestade ao Governador de Pernambuco, Sebastião de Castro e Caldas, e enviada aos ofi-
ciais da Câmara de Natal. IHGRN, LCPSCN, Caixa 75, Livro 5, fls. 77v-78. 20/04/1708.
93 Vale lembrar que os Canindé haviam sido aldeados nas proximidades da povoação de Goianinha em meados
da década de 1690, mas acabaram fugindo em decorrência de uma epidemia que matou alguns deles, incluindo
o seu principal. Sua presença nesse “sertão de Goianinha” ainda no século XVIII pode ser explicada pela falta
de uma resposta definitiva sobre a proposta de Bernardo Vieira de Melo, capitão-mor à época, que entendia ser
mais conveniente estabelecê-los em terras situadas no interior da capitania do Rio Grande.
94 À proposta do Capitão-mor de continuar a guerra contra os indígenas, assinaram o documento e emitiram
parecer positivo 15 moradores, dos quais 14 haviam exercido ou chegariam a exercer cargos oficiais na Câmara
de Natal. Assim se expressaram sobre a matéria: “que se comtinue a guerra pellasrezoinsasimadeclaradas visto
estar já o tapuia levantado e principiada a guerra pera que não va a mais a sua ousadia e merecimento”. PRO-
POSTA feita pelo Capitão-mor André Nogueira da Costa aos homens repúblicos da capitania do Rio Grande.
IHGRN, LCPSCN, Caixa 75, Livro 5, fls. 11v, 12, 12v e 13. 12/12/1708.
95 Vale salientar que a povoação de Goianinha teve juiz de vintena a partir de 1677, indicando um nível de
ocupação que justificasse o estabelecimento dessa instância de justiça na localidade.LOPES, Fátima Martins.
Catálogo dos Livros dos Termos de Vereação do Senado da Câmara de Natal. Documento 0081.
96FONSECA, Cláudia Damasceno. Arraiais e vilas d’el rei: espaço e poder nas Minas setecentistas. Belo Hori-
zonte: Editora UFMG, 2011. p. 75-76.

1257
à zona costeira da capitania do Rio Grande continuariam sendo um problema para os colonos nessa
primeira década do XVIII.

Mas esse contexto de novas ameaças não traria apenas malefícios para os moradores do Rio
Grande, podendo também servir de base para a solicitação de mercês régias, principalmente se
considerarmos que esses indígenas, ao afirmarem sua obediência ao rei, poderiam receber terras na
capitania, ocupando espaços que tinham a possibilidade de servir a outros interesses. Assim, em 1709,
valendo-se desse contexto de rebeliões de grupos indígenas que já haviam sido aldeados, Teodósio
Grassiman, homem ligado à Câmara entre as décadas de 1670 e de 1700,97 viria a solicitar terras na
localidade de Pirituba, onde se situava a aldeia de São Paulo da Ribeira do Potengi, na qual havia sido
estabelecido o “Rancho dos Curema”. Grassiman, já como comissário geral de cavalaria à época, alega-
ra que essas terras lhe pertenciam anteriormente e, como os índios ali aldeados tornavam a se rebelar
contra os colonos, requeria a concessão de volta.98

Em fins de março de 1711, os Corema novamente apareceriam nadocumentação oficial como


um dos grupos que estariam causando problemas para os moradores. Segundo os oficiais da Câmara,
em carta ao Bispo e Governador de Pernambuco, o povo da capitania havia feito um requerimento em
que se queixavam que os tapuias desse “rancho” estavam destruindo as roças dos moradores e seus ga-
dos, mesmo após estabelecida a paz. O mais prudente, defendiam, era que fossem feitos de escravos.99
Da mesma forma, o povo e os homens do concelho reclamavam, alguns dias depois, das pazes conce-
didas aos indígenas dos Ranchos dos Canindé, dos Caboré-Assu e dos Panacu-Assu. Defendiam que
seria mais conveniente ao “serviso de Deos e de Sua Magestade e bem comum destes seus vassallos”
que se sujeitassem “todos estes tapuyas a obediensia de cativos”, afirmando que os acordos realizados
com eles contrariavam a Carta Régia de 1708, pois esses grupos eram formados por índios “de corso”.
Sugeriam a mesma condição para os nativos que estavam aldeados na Capela, que também estariam
causando danos aos moradores.100 A resposta sugerida para os danos causados por determinados gru-
pos indígenas seria constantemente ligada à sua escravização, demonstrando que a preocupação com
o bem comum e a segurança da capitania não excluía a defesa dos interesses dos sesmeiros que exer-
ciam cargos oficiais na Câmara.

É interessante perceber que havia a presença de sesmeiros entre os moradores que assinaram
o parecer favorável à proposta de continuidade da guerra lançada pelo capitão-mor, em 1708, assim
como entre aqueles que falavam em nome do povo da capitania do Rio Grande no requerimento enca-
97 Teodósio Grassiman atuou como oficial camarário nos anos de 1674, 1676, 1679, 1687, 1706 e 1710. LOPES,
Fátima Martins. Catálogo dos Livros dos Termos de Vereação do Senado da Câmara de Natal.
98 MEDEIROS FILHO, Olavo de. Aconteceu na Capitania do Rio Grande. 1997. p. 155-156.
99 REQUERIMENTO do povo aos oficiais da Câmara de Natal, que o remeteu ao Bispo e Governador de Per-
nambuco.IHGRN, LCPSCN, Caixa 75, Livro 5, fls. 78-78v. 28/03/1711. 32 moradores assinaram esse requeri-
mento, incluindo homens ligados à Câmara da cidade do Natal e sesmeiros (ver quadro 5, em anexo).
100 CARTA dos oficiais da Câmara de Natal ao Bispo e Governador de Pernambuco sobre o requerimento do
povo da capitania do Rio Grande. IHGRN, LCPSCN, Caixa 75, Livro 5, fls. 19, 79v e 80. 08/04/1711. Os Pa-
nacu-Assu, mencionados nesse documento, ainda figurariam em um acordo de paz firmado no ano de 1717,
ocasião em que lhes foi determinado um “citio” para que “plantassem suas lavouras, e não bolissem com as dos
moradores”. TERMO de obrigação que os tapuias Panacu-Assu fizeram, e as condições que lhes foram propos-
tas para irem para uma missão. IHGRN, LCPSCN, Caixa 99, Livro 6, fls. 58v e 59. 18/01/1717.

1258
minhado a Pernambuco três anos depois.101 Além disso, entre os próprios camaristas do ano de 1711,
verificou-se a presença de possuidores de sesmarias,102 indicando, portanto, que os posicionamentos
favoráveis à intensificação das ações bélicas contra indígenas considerados “de corso” e à sua sujeição
através da escravidão, partiam de moradores interessados não apenas na liberação das terras e na “pa-
cificação” da capitania, mas também no acesso à mão de obra dos nativos cativados em “guerra justa”.
O que se percebe, dessa maneira, é que as noções de “povo” e de “bem comum”, apesar de transmitirem
uma ideia de coletividade, eram utilizadas pelas elites locais com o objetivo de resguardar interesses
particulares, ligados aos homens que exerciam a governança local.103

Isso contribui para explicar o porquê de alguns homens ligados ao concelho da cidade do Natal
terem atuado como mediadores nos acordos de paz realizados com os indígenas, como foi verificado
nos tratados assinados em 1695 e 1697. As ações de resistência empreendidaspelosnativos causavam
prejuízos a esses indivíduos, sobretudo àqueles que eram possuidores de terras e de escravos, e quando
essa resistência partia de índios aldeados ainda havia o agravante de estarem situados nas proximida-
des das povoações coloniais, onde poderiam causar maiores danos. Seria esse o caso de “humstapuyas
que estiveram Aldeados na Capella”, e foram acusados pelos camaristas, em 1712, de “andarem avi-
zenhados as ribeiras Searâ Mirim e Potegi”, auxiliando outros tapuias, que serviam como cativos nas
casas dos moradores, a “fugir pera o certam”.104

No ano seguinte, seria o capitão Teodósio da Rocha, que atuou como oficial da Câmara entre
as décadas de 1670 e de 1680,105 o responsável por firmar um “papel de pazes” com esses indígenas que
estavam causando problemas “nos certoins do SiarâMeyrim”, que, por serem poucos e “escuteiroz106
sem família”, vivendo embrenhados em “trilhazmtoescuraz e encubertaz”, eram muito difíceis de con-
101 Das 15 assinaturas identificadas no parecer de 1708, 12 pertenciam a indivíduos que já possuíam ou viriam
a possuir sesmarias na referida data, de acordo com os dados encontrados na Plataforma SILB. Já no requeri-
mento de 1711, esse número foi de 15 sesmeiros, em um total de 32 assinaturas.
102 Dos seis oficiais camarários do ano de 1711, quatro já possuíam concessões de terra – ou pelo menos já
tinham feito requerimento das mesmas– até a data do envio dessas duas cartas para o Bispo e Governador de
Pernambuco. Seriam eles: o juiz ordinário Estevão de Bezerril, com duas doações datadas de 1706, sendo uma
em Goianinha e a outra na Serra do Patu, na ribeira do Piranhas; o vereador Manoel de Melo de Albuquerque,
com duas sesmarias na cidade do Natal, concedias em 1701 e 1709; o também vereador Antônio de Paiva da
Rocha, cuja sesmaria, localizada na ribeira do Trairi, foi doada em 1710; e, por fim, o procurador Domingos da
Silveira, que fez um requerimento na ribeira do Pirangi, em fevereiro de 1710, alegando que já ocupava essas
terras. LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros dos Termos de Vereação do Senado da Câmara de Natal; e
Plataforma SILB: RN 0049; RN 0064;RN 0086; RN 0095; RN 0954; RN 0961.
103CORRÊA, Helidacy Maria Muniz. “Para aumento da conquista e bom governo dos moradores”: a Câmara
de São Luiz e a política da monarquia pluricontinental no Maranhão. In: FRAGOSO, João; SAMPAIO, Antônio
Carlos Jucá. Monarquia pluricontinental e a governança da terra no ultramar atlântico luso: séculos XVI-XVIII.
2012. p. 23-49.
104CARTA dos oficiais da Câmara de Natal ao capitão-mor da capitania do Rio Grande, Salvador Álvares da
Silva. IHGRN, LCPSCN, Caixa 75, Livro 5, fls. 120v e 121. 20/09/1712.
105 Teodósio da Rocha atuou como oficial da Câmara nos anos de 1677, 1680, 1682 e 1685. LOPES, Fátima
Martins. Catálogo dos Livros dos Termos de Vereação do Senado da Câmara de Natal.
106 O termo “escuteiro” (ou “escoteiro”) vem da palavra de origem inglesa scout, que é utilizada para se referir
à figura do batedor nas guerras. Provavelmente, o seu uso no documento em questão relaciona-se ao fato desses
indígenas viverem sozinhos – “sem família” – e escondidos nos matos, recolhendo informações e auxiliando
na fuga de escravos, o que causava transtornos para os moradores luso-brasileiros que viviam na ribeira do
Ceará-Mirim.

1259
quistar. Foi estabelecido que esse grupo deveria ser aldeado na Missão do Guajiru, comprometendo-se
a devolver os tapuias cativos que andavam com eles aos seus senhores, assim como as armas que por-
tavam, pertencentes à Fazenda Real.107

Apesar da resolução encontrada para esse problema, a indicação da existência de sertões na


ribeira do Ceará-Mirim – assim como no caso de Goianinha, anteriormente citado – chama a aten-
ção para o fato de que, mesmo nos espaços próximos da costa e de outras povoações da colônia, o
controle das autoridades sobre os indígenas aldeados e as garantias de segurança para os colonos não
se dariam de maneira tão eficiente nesse contexto. Isso é demonstrado pela possibilidade que esses
nativos tinham de agir com relativa liberdade, apesar de já estarem reunidos em aldeias e convivendo
com os moradores luso-brasileiros. Nesse sentido, pode-se afirmar que a atuação das tropas coloniais
e de homens ligados ao poder político e militar da capitania do Rio Grande, como Teodósio da Rocha,
seria essencial.

Percebe-se, por outro lado, que, mesmo nessas décadas iniciais do século XVIII, o domínio
efetivo sobre os espaços situados nas proximidades da cidade do Natal ainda era algo bastante pro-
blemático. A presença de indígenas insubmissos nessas localidades indica a existência de uma fron-
teira mais larga, que não se limitava apenas às regiões do Assu e do Apodi, mas que se estendia até as
vizinhanças das fazendas e povoações do litoral, como temos visto ao longo deste capítulo. O que se
verifica é a permanência, mesmo na porção leste da capitania, de espaços pouco povoados por luso-
-brasileiros, nos quais o controle colonial se fazia de maneira menos eficiente, possibilitando que os
indígenas – aldeados ou não – trouxessem problemas para os moradores.

Também no Assua convivência entre nativos e colonos se mostrava tensa, de acordo com o que
relatou ao rei, ainda no ano de 1711, o capitão-mor Salvador Álvares da Silva, que acabava de chegar à
capitania do Rio Grande. Ele dava conta da “grande destruição que tem feyto no Sertam do Asu hum
Rancho de tapuyas chamado do Caboreasu”, de “nasamJandoim que rezidenaquellas partes” e que, “
vivendo nellasdebaycho da Pax que se lhe comsedeo”, acabaram sendo atacados por alguns vaqueiros,
que mataram muitos deles e cativaram suas mulheres e filhos. Isso teria levado os indígenas a tomarem
“huma cruel vingança matando gente Cavallos, e gados”, causando tamanha destruição que temia o
capitão-mor que aqueles sertões se despovoassem.108

Evidencia-se, aqui, outro elemento que poderia levar indígenas que já haviam estabelecidos as
pazes com as autoridades coloniais a se rebelarem novamente: os ataques dos moradores em busca de
escravos, sobretudo no sertão, onde o controle do Estado se faria de maneira menos evidente. Talvez
em virtude disso os Caboré-Assu viriam a ser aldeados nas proximidades do litoral, na Missão do

107 PAPEL de pazes feita entre os índios tapuias e o capitão Teodósio da Rocha. IHGRN, LCPSCN, Caixa 99,
Livro 6, fl. 8v. 28/07/1713.
108 CARTA do [capitão-mor do Rio Grande do Norte], Salvador Álvares da Silva, ao rei [D. João V], sobre a
destruição que os índios “Caboré-Açu” fizeram na Ribeira do Açu, como vingança do ataque que sofreram dos
vaqueiros. AHU-RN, Cx.1, D. 68.

1260
Guajiru, como demonstra a documentação proveniente da Junta das Missões no ano de 1714.109

Entretanto, de acordo com o coronel Miguel Barbalho Bezerra, que havia realizado entradas
pelo sertão do Assu, em 1716, vários indivíduos desse grupo – principalmente homens – permane-
ciam na região. Segundo ele, muitos moradores da localidade defenderiam que não convinha fazer
pazes com esses tapuias, afirmando que para “destruírem estas Ribeyras estes [índios] bastão estando
de guerra, pois assim se tem exprimentado, que como não tem molheres” haviam passado a viver
“sempre de corsso”.110 Nesse sentido, os oficiais da Câmara de Natal, em “Termo de ajuntamento e con-
cordata” assinado juntamente com outras autoridades da capitania, cientes das entradas que o referido
coronel havia realizado contra o “gentio levantado”,assim se expressavam sobre esses nativos:
este tapuyaCaborê com esta agora proximamente herão oito vezes que tinhão pedido
pazes, e que todas se lhe concederão, e que nenhuaathe o prezentehavião observado,
mais antes de baychodellas se rebellarão fazendo muitas mortes aos moradores atrei-
soadamente, e destruissois em suas fazendas de gadoz, vaquejandoos em currais e
feixandolhes az porteyras pera dentro delles acabarem, e que todas estas pazes fizerão
e selebrarão com o emteresse de se fornecerem de armas e monissois, pera ao depois
romperem guerra aos brancos como sempre fizerão111

Pode-se entender, assim, que, para os moradores e autoridades da capitania, esses indígenas,
denominados Caboré, não seriam confiáveis, tendo pedido pazes em oito ocasiões distintas e sempre
retomando as hostilidades contra os colonos. Não se sabe, pelos limites impostos pela própria docu-
mentação, que razões levavam esses grupos a se rebelarem tantas vezes. A pressão dos luso-brasileiros
sobre suas terras ou pelo acesso à sua mão de obra, como vimos anteriormente, pode ter causado esses
novos levantamentos; ou, acrescentemos, os acordos de paz poderiam ser utilizados pelos grupos
nativos como estratégia não apenas de sobrevivência, mas também de resistência diante do avanço da
colonização sobre os seus territórios tradicionais. Dessa maneira, os relatos sobre indígenas que, mes-
mo debaixo de paz, continuavam atacando os colonos estabelecidos na ribeira do Assu e em outras ri-
beiras do sertão do Rio Grande seriam produzidos até meados da década de 1720, demonstrando que

109 Há ainda a referência a alguns tapuias que estavam presos em Itamaracá e acabaram fugindo para a mesma
missão, sendo convocado o capitãoTeodósio da Rocha para firmar as pazes, em virtude de ter bastante expe-
riência pelos “muytos anos q lida com eles”. ASSENTO (cópia) da Junta das Missões sobre o extermínio e pazes
feitas com os índios tapuias Caboré e Capela que estavam reunidos na aldeia Guajiru.AHU-RN, Cx.1, D. 78. De
acordo com Patrícia de Oliveira Dias, Teodósio da Rocha seria um indivíduo muito importante nesse contexto,
sobretudo em função das boas relações que mantinha com os indígenas. DIAS, Patrícia de Oliveira. Op cit. p.
111.
110 CARTA do coronel Miguel Barbalho ao capitão-mor desta capitania [do Rio Grande] Domingos Amado.
IHGRN, LCPSCN, Caixa 99, Livro 6, fls. 55. **/**/1716. Era comum a associação entre os ataques realizados
pelos homens tapuias com o fato de muitos deles estarem vivendo sozinhos pelo sertão, “sem o impedimento
de familias”, ou seja, sem mulheres, filhos ou velhos que os impedissem. Ainda em 1715, essa era uma das cau-
sas apontadas pelos camarários para os “assaltos contínuos dos barbaros”, que, apesar de estarem em número
reduzido, passavam a causar “maior damno” aos moradores do Assu. CARTA dos oficiais da Câmara de Natal
ao Governador de Pernambuco, D. Lourenço de Almeida. IHGRN, LCPSCN, Caixa 99, Livro 6, fls. 37 e 37v.
14/12/1715.
111TERMO de ajuntamento e concordata feito entre o capitão-mor Domingos Amado, os oficiais da Câmara
de Natal, o provedor da Fazenda Real e o sargento-mor do Estado, sobre os tapuias. IHGRN, LCPSCN, Caixa
99, Livro 6, fl. 55. 11/11/1716.

1261
o estabelecimento de luso-brasileiros nesses espaços continuaria encontrando grandes dificuldades.

Mesmo os religiosos das aldeias afirmavam ter pouco controle sobre esses indígenas, que se
demonstrariam difíceis de lidar.112 É o que se verificou, em agosto de 1716, na ocasião em que o padre
superior da aldeia de Guaraíras, José da Silveira, endereçou uma carta ao juiz ordinário do concelho,
Manoel Gonçalves Branco, afirmando que os índios andavam “insolentes, com as armas de fogo que
trazem nas mãos”, pois se faziam “soberbos com ellas”, matando “muitozgadoz não so a nos, mas
tãobem aos moradores”, chegando, inclusive, a matar um homem na povoação de Tamatanduba. O re-
ligioso pedia auxílio ao juiz ordinário e aos “mais oficiais dessa Camara” para resolver essa questão.113

Ainda no mesmo ano, os oficiais da Câmara enviariam uma carta ao Governador de Pernam-
buco, anexando a carta enviada pelo padre Silveira, afirmando que “agora [os missionários] recebem
junto com os moradores prejuízo, e exprimentão a pouca obediência” desses indígenas. Por fim, di-
ziam que o dito padre, dessa vez, teria vindo recorrer àqueles cuja autoridade nunca reconhecera e
que essas desordens estavam acontecendo por haver uma “falta desta Consonancia das vontades entre
quem governa, e os Missionarios”,114 evidenciando as disputas políticas entre missionários e homens
da Câmara, tão perceptível na documentação produzida pelos oficiais do concelho da cidade do Natal.

Considerações finais

A permanência da resistência dos indígenas aldeados, como se vê, traria enormes problemas
para os agentes da colonização, fossem religiosos ou leigos. E essa resistência se fazia presente de di-
versas formas. Ora roubando o gado e as roças e atacando os moradores, ora não aceitando a doutrina
religiosa que lhes era transmitida nas aldeias e mantendo-se na prática de seus antigos ritos,115 ou
simplesmente fugindo para os sertões e matos,fossem os situados mais distantes ou os mais próximos
das povoações litorâneas – provavelmente em busca de se manter longe do controle dos padres e dos
colonos, interessados na sua conversão e na modificação de seus costumes, além, obviamente, do
aproveitamento de sua mão de obra. Entretanto, a liberdade que os sertões de outrora poderiam lhes
proporcionar estaria bastante comprometida, em função do estabelecimento dos moradores e de seus
rebanhos, que se faria de modo cada vez mais perene nessas décadas iniciais do século XVIII.

O avanço da colonização sobre esses sertões e os territórios indígenas, levando aos conflitos e à
redução de alguns grupos à paz, trouxe também o conhecimento de novas etnias e subgrupos, havendo
112 Vale citar, a título de exemplo, as mortes de dois sacerdotes (“hum da Companhia de Jezuz o outro do abito
de São Pedro”), que foram relatadas pelos homens da Câmara de Natal, em 1712, como parte dos “delitos dos
barbaros tapuios”. CARTA dos oficiais da Câmara de Natal ao Governador de Pernambuco, Félix José Machado
Mendonça. IHGRN, LCPSCN, Caixa 75, Livro 5, fl. 119. 12/09/1712.
113CARTA do padre superior da aldeia de Guaraíras, José da Silveira, ao juiz Manoel Gonçalves Branco.IH-
GRN, LCPSCN, Caixa 99, Livro 6, fls. 51v e 52. 17/08/1716.
114 CARTA dos oficiais da Câmara de Natal ao Governador de Pernambuco. IHGRN, LCPSCN, Caixa 99, Li-
vro 6, fls. 53 e 53v. 01/12/1716. Ainda nesse documento os homens da Câmara queixavam-se das dificuldades
que experimentavam em ter acesso à mão de obra dos nativos, tema que discutiremos no próximo capítulo.
115 Sobre as dificuldades encontradas na conversão e na “modificação do modo de vida” dos indígenas das al-
deias do Rio Grande, ver LOPES, Fátima Martins. Índios, colonos e missionários na colonização do Rio Grande
do Norte. 2003. p. 194-195.

1262
em muitos documentos uma substituição das generalizações – verificadas no início dos conflitos pelo
uso de termos como tapuias ou gentios bárbaros – pelos nomes específicos de grupos e/ou “ranchos”,
muitos dos quais seriam pertencentes à grande “nação” dos Janduí. Parece-nos, também, que essa seria
uma forma de as autoridades e os moradores diferenciarem aqueles grupos que se mantinham como
aliados, úteis à Coroa, e aqueles que continuavam praticando hostilidades contra os moradores, cons-
tituindo-se em novas ameaças para o bem comum e para os interesses ligados à colonização.

Pode-se afirmar, dessa maneira, que a falta de unidade dos conflitos a que denominamos Guer-
ra dos Bárbaros – já apontada por Pedro Puntoni e Kalina Vanderlei116 – correspondeu à diversidade
dos povos nativos do sertão que resistiram ao avanço da sociedade colonial sobre seus territórios tra-
dicionais e às novas insurgências de grupos que, após o estabelecimento de acordos de paz, tornavam
a se rebelar contra os colonos e as autoridades da América lusitana.

A ideia que se possuíaacerca desses povos indígenas do sertão permaneceria, portanto, ligadaà
noção de “bárbaro”, que se constituíam – nos discursos produzidos pelas autoridades da capitania do
Rio Grande – como um obstáculo que se interpunha entre as povoações coloniais e o seu processo
de expansão em direção ao grande vazio que se considerava ser os sertões. Chegar-se-ia, ainda, a um
novo estereótipo: seriam povos de difícil incorporação à sociedade colonial, em virtude de sua supos-
ta natureza inconstante, fruto de seu nomadismo e da rudeza de seus costumes, o que os qualificaria
como traidores, falsos, “de corso” e, portanto, passíveis de assimilação unicamente através do cativeiro.
As suas ações de resistência – ou quando declaradamente inimigos ou “debaixo de paz” – ameaçavam
não apenas o avanço sobre os fundos territoriais da América portuguesa, mas colocavam em xeque,
de acordo com as autoridades coloniais, a ordem e o sossego dos moradores das povoações que for-
mavam a região colonial.

Por outro lado,o “bárbaro”, considerado feroz e insubmisso, quando convertido em indígena
aldeado, se tornaria – em tese – elemento extremamente relevante para o sucesso do empreendimen-
to colonial, fosse como soldado para compor o contingente das tropas que, através da guerra contra
outros grupos, efetivariam a liberação das terras do sertão do Rio Grande, fosse como mão de obra
para atuar nas diversas atividades econômicas que se desenvolviam nas povoações da capitania. Como
afirma o geógrafo Antônio Carlos Robert Moraes, “sem submeter a população [nativa] encontrada
não há colonização”, demonstrando que o controle sobre essa população seria um elemento impres-
cindível para o domínio do agente externo sobre o espaço colonial.117Isso se torna evidente quando
percebemos que o acesso a esses nativos – na condição de homens livres ou cativos –, assim como o
interesse por terras, levariam a intensas disputas envolvendo paulistas, camarários e outros agentes
ligados à conquista.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

116 PUNTONI, Pedro. Op cit. p. 5 e 66; SILVA, Kalina Vanderlei. Op cit. p. 155.
117MORAES, Antônio Carlos Robert. Bases da formação territorial do Brasil: o território colonial brasileiro no
“longo” século XVI. 2000. p. 266; 271.

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do Rio Grande do Norte, Natal, 2015.

1264
A representação de Tiradentes nos selos postais comemorativos brasileiros
Maria Alda Barbosa Cabreira118

Introdução

Diversos personagens da História do Brasil tiveram suas “representações faciais” ou “alguns de


seus feitos heroicos” estampados nos selos postais brasileiros. Dentre os personagens selecionados, o
alferes Joaquim José da Silva Xavier, conhecido pelo seu apelido de Tiradentes, figura entre as celebri-
dades escolhidas para ilustrar – em mais de uma ocasião – o selo postal brasileiro.

O selo postal como um instrumento de cultura visual pode ser considerado uma importante
fonte de pesquisa para se estudar a receptividade da informação que em um determinado contexto
histórico se quis transmitir ao grande público. Quais intenções existem por trás de determinadas esco-
lhas imagéticas? Quais recursos discursivos são utilizados nos selos individuais ou em coleções postais
para ilustrar certa seletividade de determinados fatos históricos?

Assim, pretendemos discutir a representação do alferes Tiradentes nos selos postais brasileiros,
a partir das coleções “Vultos célebres da História do Brasil”, que circulou de 1963 a 1966, com vistas a
identificar a materialidade instituída a ele naquelas coleções e seus contextos históricos e de produção.

A pesquisa

Estes questionamentos remetem às discussões presentes em nossa pesquisa de doutorado jun-


to ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade
Estadual Paulista (UNESP), câmpus de Assis, por meio do projeto: “Herói da nação? A representação
de Tiradentes na filatelia e na numismática”.

A pesquisa mostra que durante o período conturbado da implantação da Ditadura Militar


no Brasil – 1964 a 1984 –, em que foram utilizadas estratégias políticas e ideológicas, uma delas com
uso da simbologia materializada no selo postal, para consolidação da memória do herói, na pessoa
do alferes Joaquim José da Silva Xavier, conhecido por Tiradentes, o qual participou do movimento
intitulado Inconfidência Mineira e sua contribuição para que o regime militar tivesse aceitação e fosse
considerado ideal para o momento histórico da época.

Para Aline Fonseca Carvalho, em sua dissertação “A conveniência de um legado adequável:


representações de Tiradentes e da Inconfidência Mineira durante a Ditadura Militar”,

o uso político-ideológico da Conjuração de 1789 priorizou o personagem Tiradentes,


que é considerado um herói. As razões para essa escolha vão desde a consagração de
Tiradentes como herói nacional e líder da Conjuração Mineira até o fato de ele ter

118 Doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências e Letras
da Universidade Estadual Paulista (UNESP), câmpus de Assis.

1265
sido alferes de Cavalaria e, portanto, militar.119

Pelo excerto, percebe-se as intenções existentes por trás da escolha imagética de Tiradentes
representada no selo postal, com a sua exploração política sobre a memória para a formação do ima-
ginário.

O objetivo da pesquisa, portanto, é discutir a representação imagética de Tiradentes no selo postal


comemorativo, como fonte histórica e veiculador de informações científicas e, portanto, historiar na filatelia
e na numismática as representações imagéticas pela memória, tanto popular quanto a oficial, como o
maior de todos os heróis brasileiros, o que justifica apresentar em uma dessas facetas a representação
iconográfica da figura de Tiradentes nos selos postais brasileiros.

Assim, pretendemos discutir, também, a utilização do selo como documento histórico e ana-
lisar a representação criada em torno da figura do alferes Tiradentes como herói e, consequentemente,
sua elevação ao panteão da pátria, na condição de o maior herói nacional – o Mártir da Liberdade e
Patrono da Nação Brasileira –, materializado na iconografia veiculada no selo brasileiro, principal-
mente sobre as imagens ali representadas, explicitando sua história, as pessoas envolvidas no contexto
histórico de criação das representações artísticas reproduzidas.120

A Filatelia e a história do selo

A Filatelia, o nosso objeto de estudo, grosso modo, é a atividade de colecionar e de estudar


selos postais ou materiais relacionados a eles, como bilhetes postais (cartões franqueados para cor-
respondência escrita, com uma ilustração em um de seus lados), folhinhas filatélicas (folhas com im-
pressão alusiva a determinada comemoração e tendo afixados selos sobre os quais se apôs uma marca
postal especial dessa comemoração), blocos (conjunto de selos não destacados de uma folha especial
com legendas impressas) e envelopes do primeiro dia de circulação (envelopes criados para acompa-
nhar ou registrar o lançamento de um selo), editais (informativos que acompanham os selos ou blocos
e que trazem anotações sobre a tiragem, o autor do desenho, o tamanho e a história do selo), carimbos
(marcas usadas pelos Correios para assinalar na correspondência uma operação postal), falsos postais
(imitações de selos feitos por particulares para serem usados nas correspondências e defraudar assim
os Correios), cinderelas (selos enganosos, geralmente etiquetas utilizadas para divulgar algum evento,
um programa, etc.), entre outros.121

A Filatelia, enquanto um ramo da ciência, envolve a pesquisa e a sistematização histórico-do-


cumental, o que a torna uma fonte histórica de investigação e contempla os aspectos estéticos e criati-
119. CARVALHO, Aline Fonseca. A conveniência de um legado adequável: representações de Tiradentes e da
Inconfidência Mineira durante a Ditadura Militar. Belo Horizonte, 2015. Dissertação (Mestrado em História)
– Universidade Federal de Minas Gerais, p. 3.
120 Sobre este tema são fundamentais os apontamentos de: CARVALHO, José Murilo de. Tiradentes: um herói
para a República. In: A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998, p. 55-73; JARDIM, Márcio. A Inconfidência Mineira: uma síntese factual. Rio de Janeiro: Biblio-
teca do Exército, 1989, p. 61.
121 TIPOS de selos postais. Blog dos Correios. Disponível em: <http://blog.correios.com.br/filatelia/? page_
id=4931>. Ainda sobre os selos postais brasileiros, conferir: SALCEDO, Diego Andres. A ciência nos selos
postais comemorativos brasileiros: 1900-2000. Recife: Editora da UFPE, 2010.

1266
vos, podendo ser apropriada como potencial didático e pedagógico na Educação.

A história do selo tem sua origem na Europa, no século XIX. O primeiro selo postal nasceu na
Inglaterra em 1840, uma homenagem à rainha Vitória, e ficou reconhecido oficialmente pelos histo-
riadores como um meio de comunicação e fonte histórica de pesquisa.122

O surgimento do selo foi motivado pela Revolução Industrial, a partir da segunda metade do
século XIX, com o desenvolvimento das relações comerciais, aumentando, assim, a necessidade de
comunicação, pois o volume de correspondência cresceu tanto que os correios não davam mais conta
de atender a demanda, o que obrigou a se descobrir uma nova maneira de facilitar o serviço.

O inglês Rowland Hill criou o selo adesivo, considerado um dos grandes acontecimentos his-
tóricos contemporâneos, o que significa afirmar que as primeiras edições postais têm um valor docu-
mental ímpar.123

O selo, portanto, é um documento histórico e a Filatelia um ramo do conhecimento, uma


categoria do conhecimento histórico, que tem como objeto de estudo os selos postais. A Filatelia re-
presenta, em sua essência, um poderoso elemento auxiliar da História.

Na Grã-Bretanha, o selo denominado One Penny Black, foi emitido oficialmente em 6 de


maio de 1840. Por razões históricas determinantes, nos primeiros 50 anos de história da Filatelia, as
primeiras edições foram remetidas às efígies de soberanos reinantes, às armas e brasões e aos motivos
mitológicos.124

Arthur Maury, conhecido como um dos pais da filatelia, vivenciou os grandes momentos da
Comuna de Paris se remete à ligação íntima da filatelia aos rumos surpreendentes da história.125

No Brasil, em 29 de novembro de 1842, dom Pedro II aprovou os decretos nº 254 e nº 255, por
meio dos quais sua majestade instituía o selo postal nas correspondências brasileiras, colocado em
circulação nos Correios do Império, em 1º de agosto de 1843, os nossos três primeiros selos postais
brasileiros: os denominados Olhos-de-Boi – de 30, 60 e 90 réis cada.126

Os selos postais, inicialmente criados com a simples finalidade de postagem de correspon-


dência, divulgam e assinalam hoje informações importantes sobre o Brasil, ao mesmo tempo em que
122 QUANDO e onde surgiu o primeiro selo de correio? Super Interessante – Mundo Estranho. 11 abr. 2011.
Disponível em: <https://super.abril.com.br/mundo-estranho/quando-e-onde-surgiu-o-primeiro-selo-de-cor-
reio/>. Acesso em: 22 ago. 2018.
123 FERREIRA, Luis Eugénio. Um certo olhar pela Filatelia. 2. ed. Santarém (Portugal): Húmus, 2006, p. 13.
Disponível em: <https://www.fep.up.pt/docentes/cpimenta/lazer/html/ebook/bfd002_p.pdf>. Acesso em: 22
ago. 2018.
124 QUANDO e onde surgiu o primeiro selo de correio? Super Interessante – Mundo Estranho. 11 abr. 2011.
Disponível em: <https://super.abril.com.br/mundo-estranho/quando-e-onde-surgiu-o-primeiro-selo-de-cor-
reio/>. Acesso em: 22 ago. 2018.
125 FERREIRA, Luis Eugénio. Um certo olhar pela Filatelia. 2. ed. Santarém (Portugal): Húmus, 2006, p. 13.
Disponível em: <https://www.fep.up.pt/docentes/cpimenta/lazer/html/ebook/bfd002_p.pdf>. Acesso em: 22
ago. 2018.
126 1º DE AGOSTO: dia do selo postal brasileiro. Blog dos Correios. Disponível em: <http://blog.correios.com.
br/ correios/?p=48822>. Acesso em: 22 ago. 2018.

1267
prestam homenagem a heróis brasileiros e personalidades nacionais.

O selo postal enquanto material ilustrativo, tem características e funções marcantes, como
portador de informações e mensageiro do grande público, como também o papel de educar os leitores
para a prática de uma leitura diferente de mundo, com a intenção de emancipar o intelecto, já que
muitas pessoas têm dificuldades em leituras iconográficas, pois as imagens e os símbolos refletem a
realidade, e dela se apropriam para emitirem mensagens muitas vezes não decodificadas.127

Salcedo e Gomes lembram que o selo postal, do tipo comemorativo, pode ser considerado
um meio de divulgação de informações científicas, utilizado tanto para enviar mensagens ao grande
público quanto para educar leitores de mundo. A cultura visual, por meio da imagem, é um meio de
expressão da cultura humana.128

Segundo Salcedo, “a imagem tem sido utilizada como um recurso discursivo que informa,
comunidade e interpela o indivíduo, modifica seu mundo e tem papel importante na construção da
realidade social”.129

O selo comemorativo tem a função sócio histórica de contemplar temas de relevância na-
cional, propagando a cultura, a arte e a história. Porém, não se pode esquecer do poder ideológico à
serviço da política, da economia e da cultura.

Os selos postais como objeto de estudo da História

Dentro da diversidade de peças filatélicas, os selos postais, como objeto de estudo da História,
possuem como função original conferir valor a um serviço dos Correios – o franqueamento para o
envio de cartas e encomendas. Mas, além deste aspecto econômico, o selo pode ser, pelo aspecto da
cultura, um item colecionável, que perde a sua função usual e passa a exercer um novo papel: “são
protegidos, guardados, observados, exibidos e adorados.”130

Na análise dos selos, a Filatelia preocupa-se, de início, com seus aspectos físicos, como o tipo
de papel utilizado para a confecção do selo, o ano de sua emissão, o país emissor, a dimensão (em cen-
tímetros quadrados) e a denteação (ou picotagem). Em um segundo momento analisa-se a mensagem
transmitida na imagem e no texto que se reproduz na face do selo, ou seja, as suas representações,

127 SALCEDO, Diego Andres; GOMES, Isaltina Maria M. A. A visibilidade da ciência nos selos postais come-
morativos. E-Compós, v. 12, n. 1, 2009, p. 7. Disponível em: <https://doi.org/10.30962/ec.v12i1.263>. Acesso
em: 22 ago. 2018.
128 SALCEDO, Diego Andres; GOMES, Isaltina Maria M. A. A visibilidade da ciência nos selos postais come-
morativos. E-Compós, v. 12, n. 1, 2009, p. 1. Disponível em: <https://doi.org/10.30962/ec.v12i1.263>. Acesso
em: 22 ago. 2018.
129 SALCEDO, Diego Andres; GOMES, Isaltina Maria M. A. A visibilidade da ciência nos selos postais come-
morativos. E-Compós, v. 12, n. 1, 2009, p. 1. Disponível em: <https://doi.org/10.30962/ec.v12i1.263>. Acesso
em: 22 ago. 2018.
130 MENINI, Vitor Bianconi. Pedaços de papel, pedaços de História: o selo como documento histórico. 3 f. p.
1. Disponível em: <http://arqueologiapublicalap.blogspot.com.br/2014/04/pedacos -de-papel-pedacos-de-his-
toria-o.html>. Acesso em: 22 ago. 2018.

1268
mensagens e significados.131

Assim, devemos pensar o selo com “uma função específica dentro da realidade que ele se encontra”.
Além de sua função legal, “possui função política, social e cultural.”132

O selo postal pode ser entendido como

Um produto de uma autoridade oficial, é natural admitirmos que ele evidencie igual-
mente o seu regime político, sobretudo, quando, por motivos históricos, esse regime
se modifica. Sendo assim, as emissões postais funcionam como agentes da legitima-
ção de um governo por meio de propaganda.133

Os selos dos Correios, portanto, são um elemento de soberania nacional e um privilegiado


lugar de memória. A história postal, ou o correio, é uma fonte muito útil para se conhecer a realidade
política, econômica, ideológica, religiosa, cultural e social de cada momento. Os selos, elaborados
pelo governo, refletem a evolução do pensamento oficial ao longo do tempo. São, em consequência,
elementos chave de propaganda, mas, também, de memória histórica.134

De acordo com Jesús García Sánchez, como mecanismo de propaganda, “o selo utiliza a sele-
ção e simplificação dos conceitos de imagens, sua repartição sistemática e a retroalimentação de ati-
tudes afins ao regime político”. Como instrumento de memória, o selo “exerce antes de tudo uma fun-
ção normativa, criadora de modelos exemplares ou símbolos imutáveis, que legitimam a identidade
afetiva de grupo destinatário” com o que representa: personagem, partido, acontecimento histórico,
preservação da natureza, campanha social, religião, filme, esporte, ideia, etc. A lista é interminável.135

O selo é um lugar de memória, como diria Pierre Nora, em obra já clássica, porque como um
ícone, registra ou comemora a história e, ao mesmo tempo, é um signo de história.136

É memória de uma sociedade determinada, sendo ou não organizada. É um distintivo fun-

131 MENINI, Vitor Bianconi. Pedaços de papel, pedaços de História: o selo como documento histórico. 3 f. p.
2. Disponível em: <http://arqueologiapublicalap.blogspot.com.br/2014/04/pedacos -de-papel-pedacos-de-his-
toria-o.html>. Acesso em: 22 ago. 2018.
132 MENINI, Vitor Bianconi. Pedaços de papel, pedaços de História: o selo como documento histórico. 3 f. p.
2. Disponível em: <http://arqueologiapublicalap.blogspot.com.br/2014/04/pedacos -de-papel-pedacos-de-his-
toria-o.html>. Acesso em: 22 ago. 2018.
133 MENINI, Vitor Bianconi. Pedaços de papel, pedaços de História: o selo como documento histórico. 3 f. p.
3. Disponível em: <http://arqueologiapublicalap.blogspot.com.br/2014/04/pedacos -de-papel-pedacos-de-his-
toria-o.html>. Acesso em: 22 ago. 2018.
134 GARCÍA SÁNCHEZ, Jesús. Sellos y memoria: la construcción de una imagen de España, 19361945. Studia
Historica: História Contemporánea, Salamanca, v. 25, p. 37-86, 2007, p. 38. Disponível em: <http://revistas.usal.
es/index.php/0213-2087/article/view/1052>. Acesso em: 22 ago. 2018.
135 GARCÍA SÁNCHEZ, Jesús. Sellos y memoria: la construcción de una imagen de España, 19361945. Studia
Historica: História Contemporánea, Salamanca, v. 25, p. 37-86, 2007, p. 38. Disponível em: <http://revistas.usal.
es/index.php/0213-2087/article/view/1052>. Acesso em: 22 ago. 2018.
136 Discussões sobre as relações entre memória e história podem ser consultadas em: NORA, Pierre. Entre
memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n. 10, p. 7-28, 1993; NORA, Pierre.
Les lieux de Mémoire. Paris: Gallimard, 1984; RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campi-
nas: Editora da Unicamp, 2007; LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1992;
POLLACK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, v. 5, n. 10, 1992; POLLACK, Michael.
Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, v. 2, n. 3, 1989.

1269
damental da soberania nacional, junto com a bandeira, o brasão, o hino e, já em menor medida, a
moeda.137

Jesús García Sánchez lembra-nos que em muitos casos o selo de um lugar “procede a constitui-
ção de um Estado, anuncia sua criação ou reflete o âmbito territorial que quer constituir.”138 Em várias
ocasiões, por exemplo, a Argentina tem incluído as Ilhas Malvinas como sendo parte de seu território,
causando conflitos diplomáticos com a Inglaterra.139 Este assunto, aliás, tem mais importância que
parece, pois se um Estado aceita as cartas franqueadas com selos emitidos por uma autoridade de um
território, está legitimando a independência deste lugar, o reconhecendo perante a comunidade inter-
nacional.140

Estas questões, como muitas outras que aqui poderiam ser elencadas, atestam a importância
dos selos como objeto de pesquisa e estudos da História.
A representação imagética de Tiradentes

A representação imagética de Tiradentes na visão do romancista português Eça de Queirós,


em um de seus artigos sob o título “Idealismo e Realismo”, da coletânea Cartas inéditas de Fradique
Mendes e mais páginas esquecidas [Porto: Livraria Chardon de Lello & Irmão, 1929, p. 195-197], orga-
nizada pelo seu filho José Maria, ao fazer a distinção entre Idealismo e Realismo, quando aplicados ao
setor das artes plásticas, lega-nos com bastante propriedade um belo exemplo de fidelidade artística:
Ora aqui tens, meu caro concidadão: supõe que tu queres ter na tua sala a imagem
de Napoleão I passando os Alpes (estas fantasias são-te permitidas: a parede é tua,
e podes cobri-la de escarros ou de figuras imperiais; são coisas que ficam com a tua
consciência e com o Deus severo que te há de julgar um dia). Que fazes tu? Chamas
dois pintores: um que é idealista e que vem com a sua grenha, o seu casaco de veludo
e o seu chapéu de aba larga; e outro que é realista, e que vem, como tu, de chapéu
alto, com a sua caixa de tintas debaixo do braço. Dá-lhes o teu assunto e vais aos teus
negócios.

E aqui está o que se passa na tua ausência sobre a tua parede:

O pintor idealista arregaça as mangas e brocha-te imediatamente este quadro:


um píncaro de montanha; sobre este píncaro, um cavalo com as proporções heroicas
do cavalo de Fídias, empinado; sobre esse cavalo, premindo-lhe as ilhargas, Napoleão,
de braços e pernas nuas, como um César romano, com uma coroa de louros na cabe-
ça. Em volta, nuvens; em baixo, a assinatura.

Dir-me-ão: é falso! – Como, falso? Este quadro foi, creio que é ainda, uma das

137 GARCÍA SÁNCHEZ, Jesús. Sellos y memoria: la construcción de una imagen de España, 19361945. Studia
Historica: História Contemporánea, Salamanca, v. 25, p. 37-86, 2007, p. 39. Disponível em: <http://revistas.usal.
es/index.php/0213-2087/article/view/1052>. Acesso em: 22 ago. 2018.
138 GARCÍA SÁNCHEZ, Jesús. Sellos y memoria: la construcción de una imagen de España, 19361945. Studia
Historica: História Contemporánea, Salamanca, v. 25, p. 37-86, 2007, p. 39. Disponível em: <http://revistas.usal.
es/index.php/0213-2087/article/view/1052>. Acesso em: 22 ago. 2018.
139 Sobre o caso argentino, conferir: BECK, P. Argentinas’s “philatelic annexation” of the Falklands. History
Today, Londres, v. 33, n. 2, p. 39-44, 1983.
140 GARCÍA SÁNCHEZ, Jesús. Sellos y memoria: la construcción de una imagen de España, 19361945. Studia
Historica: História Contemporánea, Salamanca, v. 25, p. 37-86, 2007, p. 39. Disponível em: <http://revistas.usal.
es/index.php/0213-2087/article/view/1052>. Acesso em: 22 ago. 2018.

1270
joias do Museu do Luxemburgo.

Durante esse tempo, o pintor realista, tendo lido a história, consultado as


crônicas do tempo, estudado as paisagens dos Alpes, os uniformes da época, etc.,
deixou na tua parede o seguinte quadro: sob um céu triste, um caminho escabroso
de serra; por ele, resfolgando e retesando os músculos, sobe uma mula; sobre a mula,
Bonaparte, abafado em peles, com um barrete de lontra e óculos azuis por causa da
reverberação da neve, viaja, doente e derreado...

Qual destes quadros escolhes tu, caro concidadão? O primeiro, que te inven-
tou a história ou o segundo, que ta pintou? O idealista deu-te uma falsificação, o
naturalista, uma verificação. Toda a diferença entre o Idealismo e o Naturalismo está
nisto. O primeiro falsifica, o segundo verifica.141

Este exemplo ilustra o ocorrido com as representações físicas pintadas sobre o alferes Joaquim
José da Silva Xavier. Os nossos artistas plásticos, a quem deveriam ser dadas as tarefas de criarem, por
assim dizer, a imagem do Tiradentes, enfrentaram, de início, o problema de contarem quase exclusiva-
mente com a própria inspiração, já que os documentos existentes eram escassos e de pouca valia. Espe-
cificamente sobre seu aspecto físico, partiu-se praticamente do zero. Em todos os 11 volumes dos Autos
de Devassa da Inconfidência Mineira, documento oficial aberto para se apurar a premeditada rebelião
de 1789, há apenas duas únicas referências a sua figura. Trata-se da apreciação ligeira e fugidia feita pelo
poeta Inácio José de Alvarenga Peixoto referindo-se ao primeiro encontro que tiveram no escritório do
contratador João Rodrigues de Macedo, em Vila Rica: “um oficial feio e espantado”.142

O estalajadeiro João da Costa Rodrigues acrescentou um pequeno detalhe: que na época da pre-
gação revolucionária, o alferes “tinha cabelos brancos”.143 Em depoimento prestado a 29 de maio de 1860,
portanto 68 anos após sua morte, o centenário capitão de milícias Antônio Dias Barbosa Ferreira, na
época tenente e que assistiu ao enforcamento de Tiradentes, disse que naquele dia, 21 de abril de 1792,
o padecente, que ele pessoalmente conhecia, e em cujo rosto se via a “resignação e a coragem”, era “de
mediana estatura, e de cabelos louros”.144

Já na edição de 19 de novembro de 1892, o Diário Oficial do Governo do Estado de Minas Ge-


rais traz impresso o relato de Severino Francisco Pacheco, então com 115 anos, ex-praça de cavalaria
do Segundo Regimento de Ouro Preto, que joga mais luz sobre a figura do alferes: “era um homem alto,
simpático, bonito e gênio alegre”. Pacheco estava no início da adolescência quando viu Tiradentes várias
vezes em uma casa do Largo do Rosário “tocar violão e cantar modinhas, no que era perito”.145

Como ponto de partida, pela ausência e discrepâncias de referenciais físicos do alferes, optou-se
por um modelo que agregava a figura do bravo conspirador mineiro com a sublime imagem de Jesus
141 Apud. MATHIAS, Herculano Gomes. Tiradentes através da imagem. Rio de Janeiro: Edições de Ouro,
1969, p. 26-28.
142 AUTOS de Devassa da Inconfidência Mineira. 2. ed. Brasília: Câmara dos Deputados; Belo Horizonte:
Imprensa Oficial, v. 5, 1982, p. 117.
143 AUTOS de Devassa da Inconfidência Mineira. 2. ed. Brasília: Câmara dos Deputados; Belo Horizonte:
Imprensa Oficial, v. 2, 1978, p. 450.
144 COSTA, João. Os pintores e o suplício de Tiradentes. Rio de Janeiro: ALERJ, 1992, p. 10.
145 WERNECK, Gustavo. Mais de 200 anos após sua morte, Tiradentes segue sem um rosto. 20 abr. 2012. Dis-
ponível em: <http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2012/04/20/interna_gerais, 289961/mais-de-200-a-
nos-apos-sua-morte-tiradentes-segue-sem-um-rosto.shtml>. Acesso em: 10 fev. 2018.

1271
Cristo, o homem que se sacrificou pela causa da justiça e da verdade e que recebeu como recompensa
uma coroa de espinhos e a cruz do martírio.146 Disto, fez-se a semelhança o “rosto” do alferes, cristiani-
zando-se a sua imagem.

A relação de Tiradentes com Jesus Cristo manifestou-se primeiramente nas letras, ao interpretar
a cena, os procedimentos e o ritual de execução do 21 de abril em termos bíblicos, depois ao ser retratado
pelas artes plásticas (gravura, pintura e estatuária).147

Na Literatura, a formação do herói seria dialética, pois, ao mesmo tempo em que se alimenta
desse imaginário cristológico, refletindo internamente nas obras a mentalidade de seu contexto, “ajuda a
criar e consolidar uma nova simbologia, influenciando o externo”.148 As artes também seguirão por este
caminho.

São importantes que se investiguem esses fenômenos em sua historicidade, entendendo-os com
a vocação própria da época que emoldura os fatos e que conforma a cronologia e o sentido. Mas, se cada
época fabrica mentalmente seu universo, como fazer para pensar, já que utilizamos como base referên-
cias atuais, as ferramentas de uma determinada época? Apesar de a imagem não responder tudo, ela diz
muito e, por esse motivo, ela deve ser evocada, não se reduzindo apenas à análise de sua aparência, mas
compreendendo também o contexto artístico de sua produção e divulgação.

Eis alguns de nossos desafios: identificar a representação imagética que a figura do alferes Joa-
quim José da Silva Xavier recebeu na filatelia. A imagem de Tiradentes nos 4 selos postais brasileiros:

• 1948 = Tiradentes;

• 1963 = Tiradentes (dentro da série: Vultos célebres da História do Brasil);

• 1992 = Bicentenário de Tiradentes;

• 2008 = Tiradentes no Panteão da Pátria.

No texto em questão, analisaremos apenas a sua segunda aparição em um selo postal.

146 MATHIAS, Herculano Gomes. Tiradentes através da imagem. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1969, p. 28.
147 SERELLE, Márcio de Vasconcellos. Os versos ou a história: a formação da Inconfidência Mineira no ima-
ginário do Oitocentos. Campinas, 2002. Tese (Doutorado em Teoria e História Literária) – Instituto de Estudos
da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, p. 22-23.
148 SERELLE, Márcio de Vasconcellos. Os versos ou a história: a formação da Inconfidência Mineira no ima-
ginário do Oitocentos. Campinas, 2002. Tese (Doutorado em Teoria e História Literária) – Instituto de Estudos
da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, p. 23.

1272
A imagem de sua segunda aparição em um selo postal brasileiro é semelhante – para não se
dizer a mesma, apesar invertendo-se o lado para o qual se gira a face do alferes – de sua primeira re-
presentação imagética no numerário brasileiro – na cédula de papel-moeda de Cr$ 5.000,00, da série
dos vultos nacionais da história do Brasil de o Cruzeiro.

Em ambas as imagens – a do selo e a da cédula de dinheiro – a origem daquelas representa-


ções faciais do alferes Tiradentes é um desenho reproduzido de uma gravura anônima custodiada
no Museu Histórico Nacional, do Rio de Janeiro, em que não se consta qualquer data de impressão
e que nele encontra-se grafado apenas o título “Alferes Joaquim José da Silva Xavier, ‘O Tiradentes’,
Precursor da Independência e da República do Brasil, 1748-1792” (à esquerda).

1273
Assim como no desenho do reverso da cédula do papel-moeda (à direita) e do selo, Tiradentes
aparece com barba e um longo cabelo. Aparece vestido aparentemente com o casaco de um terno,
omitindo-se quaisquer sinais do suplício que lhe acometeu no dia de sua morte, no 21 de abril: ali não
aparecem informados nem a corda, nem o laço ou mesmo a veste branca que cabia a um condenado
ao ato de enforcamento.

De acordo com Maria Alice Milliet, estudiosa da imagem de Tiradentes, na gravura aparece
um alferes nobilitado, começando pela fisionomia relaxada e altiva, como um tipo ariano. No olhar,
nenhuma agressividade. O pescoço não traz a marca do suplício: o baraço. Quanto à estética, pintam-
-lhe certo ideal de beleza:

O nariz torna-se afilado e reto, as sobrancelhas alongadas, os lábios cheios, o bigode


denso, a ondulação da barba e dos cabelos bem-composta. Desaparece qualquer in-
dício de mestiçagem e, mais do que isso, desaparece o conflito interior: a expressão
firme e serena restabelece o equilíbrio psicológico. Em traje escuro, o herói torna-se
belo, austero e nobre. Contudo, um véu de melancolia empana sua glória.149

Nas imagens, o porte físico e a descrição fisionômica do herói, com barba e cabelo, dialogam
entre si, contrastando com o evento histórico “realmente ocorrido”: um alferes careca e sem barba
levado à forca.

De qualquer maneira, uma questão vem à tona de imediato: qual a origem desta representação
imagética? De onde os artistas que desenharam o selo e, depois, o dinheiro, por exemplo, inspiraram-
-se?

Vasculhando-se as imagens construídas em torna da figura do alferes, a partir do banco de


149 MILLIET, Maria Alice. Tiradentes: o corpo do herói. São Paulo: M. Fontes, 2001, p. 190.

1274
dados da pesquisa do Prof. Dr. André Figueiredo Rodrigues, da UNESP de Assis, identifica-se que
seu inspirador é o editor e ilustrador Angelo Agostini que, em 26 de abril de 1890, pouco depois da
decretação do dia de morte de Tiradentes como feriado nacional republicano, pela primeira vez, em
1890, traz à público em sua Revista Illustrada um desenho intitulado “Alegoria à comemoração do dia
de Tiradentes”. O desenho toma como referência a imagem que saiu em andor no Dia do Tiradentes.

AGOSTINI, Angelo. Alegoria à comemoração do dia de Tiradentes. Revista Illustrada, Rio de Janeiro, ano 15, n. 588, p.
4, 26 de abril de 1890. Disponível em: <http://memoria.bn.br/pdf/332747/per332747_1890_00588.pdf>. Acesso em: 26
ago. 2018.

Só que entre a imagem de Angelo Agostini, datada de 1890, e a segunda representação de


Tiradentes em um selo postal brasileiro, em 1963, consta a imagem anônima custodiada no Museu
Histórico Nacional (peça que entrou para o acervo do museu no início do século XX), que serviu de

1275
inspiração inicial para a confecção do selo. Afinal, quem desenhou aquela imagem?

Ampliando-se essas referências, chegamos à Fundação Biblioteca Nacional e um conjunto de


dois cartões que reproduzem 32 retratos, todos reproduzidos dentro de bordas douradas. No verso há
uma folha que contêm o título do conjunto, a lista dos retratados e o dizer: “No nosso Plutarco esco-
lar brasileiro (em via de publicação) se acharão desenvolvidas as biografias deste e de outros ilustres
brasileiros. Rio de Janeiro, na Livraria de J. G. de Azevedo Editor, Rua da Uruguaiana, nº 33 / Paris,
Jablonky, Vogt e Cia., rua d’Hauteville.”150

Os autores do Plutarco escolar brasileiro, de acordo com os registros de entrada da FBN, de


1911, são Januário dos Santos Sabino e Antonio Estevão da Costa e Cunha.

Estes dois professores são autores de importantes obras didáticas adotadas pelo governo im-
perial para uso nas escolas primárias (ou escolas normais) da Corte, como, por exemplo, o “Primeiro
livro, ou, expositor da língua materna: ensinando ao mesmo tempo ler e a escrever”, segunda edição de
1883 (em 1911 consta que estava na edição 87); o “Segundo livro, ou, coleção de leituras graduadas”, de
1879; e um terceiro volume, que estava para sair quando do lançamento do Dicionário de Sacramento
Blake (volume IV, p. 156; 438), que apresentava “o desenvolvimento das noções contidas no segundo
livro e outras relativas à história e geografia geral e pátria, física, meteorologia, química, etc.”151

Provavelmente as imagens dos 32 retratos hoje pertencentes ao acervo da Fundação Biblioteca


Nacional foram confeccionadas para ilustrar as publicações de Januário dos Santos Sabino e Antonio
Estevão da Costa e Cunha. Ao que tudo indica, Angelo Agostini, em 1890, apropriou-se da imagem do
alferes Tiradentes pertencentes àquele conjunto reprográfico e a reproduziu em seu desenho. Assim,
temos a ordem: criação imagética de 1º) Januário dos Santos Sabino e Antonio Estevão da Costa e
Cunha; 2º) Angelo Agostini; 3º) reprodução anônima do Museu Histórico Nacional; 4º) papel-moeda
de 1951; e 5º) segundo selo postal brasileiro com imagem de Tiradentes.

150 DOLCI, Mariana de Carvalho. A preservação da memória de Tiradentes no Museu Paulista e no Museu
da Inconfidência. 15 f, p. 3-4. In: ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH-SP, 22., Santos, 2014.
Anais eletrônicos... Disponível em: <http://www.encontro2014.sp.anpuh.org/resources/anais/29/1406601564_
ARQUIVO_APRESERVACAODAMEMORIADETIRADENTESNOMUSEUPAULISTAENOMUSEUDA IN-
CONFIDENCIA-MarianaDolci.pdf>. Acesso em: 18 ago. 2018.
151 CUNHA, Beatriz Rietmann da Costa e. Experiências de professores primários na Corte imperial: a traje-
tória de Antonio Estevão da Costa e Cunha. 12 f, p. 5-6. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA
EDUCAÇÃO, 5. Aracaju, 2008. Anais eletrônicos... Disponível em: <http://www.sbhe.org.br/novo/ congressos/
cbhe5/pdf/195.pdf>. Acesso em: 18 ago. 2018.

1276
Os governadores-gerais do estado do Brasil e a guerra dos bárbaros: implicações políticas
no processo de conquista e permanência do sertão do Assu (1687-690)
Patrícia de Oliveira Dias152

O período pós-holandês no norte do Estado do Brasil foi marcado pela reestruturação da


administração portuguesa nas capitanias de Pernambuco, Paraíba, Itamaracá, Ceará e Rio Grande153,
pelo repovoamento de súditos da Coroa portuguesanesses espaços, sobretudo para impedir novas
ameaças estrangeiras, e pela reativação de atividades econômicas que garantissem o povoamento des-
sas áreas, como o caso do gado, principal atividade desenvolvida na capitania do Rio Grande154.Com
a chegada dos homens aos sertões das Capitanias do Norte155, a interação com os indígenas daquela
área se intensificou. Tal proximidade proporcionou momentos de convívio e uso comum dos espaços,
porém, abusos por parte dos moradores das fazendas de gado foram cometidos, o que levou à eclosão
devários desentendimentos que, intensificados, formaram a Guerra dos Bárbaros.

Este trabalho tem como objetivo analisar o reordenamento da Guerra dos Bárbaros nas Ca-
pitanias do Nortedo Estado do Brasil a partir das cartas dos governadores-gerais Matias da Cunha
(1687-1688) e Frei Manuel da Ressurreição (1688-1690), percebendo, por meio das cartas dos oficiais
do Senado da Câmara do Natal e papéis avulsos do Arquivo Histórico Ultramarino, como a popula-
ção dessas capitanias recebeu a imposição de uma nova estratégia para tal conflito, modificando uma
ordem local e trazendo complicações para o processo de conquista e permanência no sertão.

1. A Guerra dos Bárbaros

A Guerra dos Bárbaros consiste em um conjunto de conflitos, entre conquistadores e indígenas


de diversas etnias, resultantes da conquista de vários sertões da América portuguesa. Segundo Pedro
Puntoni, em seu livro A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do Brasil,
houve dois grandes conjuntos de conflitos que compuseram a chamada Guerra dos Bárbaros. O pri-
152 Doutoranda em história pela Universidade Federal Fluminense e bolsista CAPES.
153 Optou-se por utilizar nesse trabalho a denominação Rio Grande, uma vez que assim é tratada na docu-
mentação, não aparecendo, em nenhum momento, o atual nome do estado, Rio Grande do Norte. Essa deno-
minação foi adotada somente a partir de 1760, quando foi criada a capitania do Rio Grande de São Pedro, atual
estado do Rio Grande do Sul.
154Em trabalho anterior,foi analisado o processo de territorialização nos sertões das capitanias do Rio Gran-
de e do Ceará no período pós-holandês, bem como as implicações desse processo que levaram a Guerra dos
Bárbaros. DIAS, Patrícia de Oliveira. Onde fica o sertão, rompem-se as águas: processo de territorialização
da ribeira do Apodi-Mossoró (1676-1725). Dissertação (Mestrado em história). Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Natal, 2015.
155O termo Capitanias do Norte é utilizado para se referir às quatro capitanias litorâneas da porção norte do
antigo Estado do Brasil, a saber: Pernambuco, Paraíba, Rio Grande (do Norte) e Ceará. Para mais informa-
ções sobre o termo, vide: ALVEAL, Carmen. 2014. Capitanias do Norte, in SERRÃO, J. V., MOTTA, Márcia e
Miranda, S. M. (dir), e-Dicionário da Terra e do Território no Império Português. Lisboa: CEHCIUL. (ISSN:
2183-1408). Doi: 10.15847/cehc.edittip.2014. v. 023.

1277
meiro ocorreu, sobretudo, na capitania da Bahia, entre os anos de 1651 e 1679, e foram denominados,
pelo autor,de Guerra do Recôncavo. Já nas Capitanias do Norte, cerca de uma década depois, os con-
flitos estouraram na porção norte do Estado do Brasil e foram chamados, pelo historiador,de Guerra
do Assu (1687-1720).Tal denominação foi escolhida, pois as contendas mais violentas ocorreram na
ribeira do rio Assu, na capitania do Rio Grande,embora os conflitos tenham se espalhado pelos sertões
deMaranhão, Piauí, Ceará, Paraíba e Pernambuco156.

Tyego Franklim da Silva, em sua dissertação de mestrado intituladaA Ribeira da discórdia:


terras, homens e relações de poder na territorialização do Assu Colonial (1680-1720), traz uma nova
proposta de periodização para a Guerra dos Bárbaros no sertão do Assu, como vai denominar o con-
flito. Diferentemente de Pedro Puntoni, Silva considera o ano de1680 um marco inicial para contenda,
pois foi nesse ano que João Fernandes Vieira, considerado um dos responsáveis pelo estopim da guer-
ra, solicitou e recebeu a sua primeira sesmaria na foz do rio Assu. O ano considerado pelo autor como
fim da guerra é o de 1720, quando Silva encontra vestígios do que seria a última atuação do terço dos
paulistas na capitania contra os índios do sertão na Capitania do Rio Grande157.

Além de apresentar uma nova problematização para o início e fim da guerra, Silva propõem
uma divisão do conflito em três fases. A primeira delas, de 1680-1698, refere-se ao processo de coloni-
zação, por meio de doação de sesmarias edaintrodução de tropas militares no território, para impedir
a resistência indígena. Nesse momento, Silva percebe uma introdução de nomenclaturas para aquele
espaço, como sertão e fronteira. O segundo momento, entre 1698-1701, é marcado pela entrada do
terço dos paulistas na guerra, momento que traz uma disputade poder entre Manuel Álvares de Mo-
raes Navarro e Bernardo Vieira de Melo. Silva também destaca que, nesse momento, alguns termos
espaciais são inseridos nesse novo território, sobretudo ligados à lógica militar, como arraial, quartel,
presídio. Já o terceiro momento, entre os anos de 1701 e 1720, período caracterizado pela retomada
do processo de territorialização, causando conflitos entre os conquistadores, moradores da capitaniae
religiosos. Percebeu que, também nesse momento, as espacialidades recebem uma nova nomenclatu-
ra: ribeira158.

Outro estudo que apresenta uma nova perspectiva de recorte temporal para a guerra é o de
Júlio César Vieira Alencar. Em sua dissertação, intituladaPara que enfim se colonizem estes sertões:
A cmara de Natal e a Guerra dos Bárbaros (1681-1722),o objeto de estudo é a atuação daCâmara do
Natal no período da Guerra dos Bárbaros. Alencar aponta como marco inicial o ano de 1681,data em
que a primeira morte de um morador no sertão do Rio Grande foi registrada nos livros da Câmara,
e o período final como 1722, ano da declaração de fim de guerra dos oficiais da câmara do Natal eda
solicitaçãodos direitos das câmaras de Porto, Braga e Évora em recompensa pelo bom desempenho e

156 PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do Brasil,
1650-1720. São Paulo: editora Hucitec. 2002. p. 13.
157 SILVA, Tyego Franklim da. A Ribeira da discórdia: terras, homens e relações de poder na territorialização
do Assu Colonial (1680-1720). Dissertação (mestrado em história). Centro de Ciências Humanas, Letras e Ar-
tes. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2015.
158SILVA, Tyego Franklim da. A Ribeira da discórdia: terras, homens e relações de poder na territorialização
do Assu Colonial (1680-1720). 2015. p. 28-29.

1278
sucesso na conquista da capitania159.

O termo “Bárbaro” foi utilizado inúmeras vezes pela Coroa em casos de enfrentamento com
os indígenas “tapuias”, na América portuguesa.Com base nas informações obtidas por aliados Tupi,
muitos conquistadores, cronistas e escritores do período colonial construíram um imaginário sobre
os grupos que habitavam o sertão. A denominação generalista que surgiu dessa construção para esses
grupos indígenas foi “Tapuia”, sinônimo de bárbaro, inimigo, indomável160.Neste trabalho,será uti-
lizado o termo indígenas do sertão para tratar dos grupos denominados, pelos agentes da Coroa,de
“tapuias”.

O termo sertão era uma denominação utilizada pelos portugueses desde o século XII, mais
fortemente a partir do século XIV, para designar localidades longínquas, vastas, despovoadas, desco-
nhecidase com dificuldades de acesso, devido aos acidentes geográficos. Com as descobertas de novas
áreas e a expansão do que viria a ser o Império Ultramarino Português, o sentido de sertão modifi-
ca-se, passando a representar as áreas não colonizadas pelos portugueses. Quando se concretizou a
colonização da América portuguesa, o sentido de sertão se reelaborou e foi incorporada a ideia de
localidades não apenas longínquas, mas perigosas, sem controle administrativo, jurídico e religioso da
Coroa, portanto, desconhecido e revestido, também, de elementos míticos161.

Para o geógrafo Antônio Carlos Robert de Moraes, o sertão não é uma materialidade terrestre,
mas sim uma realidade simbólica, que resulta em uma ideologia. Tal processo é construído de acordo
com as referências que um determinado grupo atribui ao espaço. É uma construção de imagem que
associa, geralmente, valores culturais negativos ligados aos objetivos práticos de ocupação ou reocu-
pação de espaços. Assim, Moraes conclui que:

O sertão não é um lugar, mas uma condição atribuída a variados e diferencia-


dos lugares. Trata-se de um símbolo imposto – em certos contextos históricos
– a determinadas condições locacionais, que acaba por atuar como um quali-
tativo local básico no processo de sua valoração162.

Dessa forma, entende-se que os indígenas que habitavam esse espaçoeram dotados de carac-
terísticas sociais, culturais e econômicas negativas para os europeus, fazendo parte dessa realidade
simbólica, diferente do litoral civilizado.Portanto, deveriam ser combatidos, extintos, caso necessário,
por meio de guerra,uma vez que não se submetiam à lógica colonial que vinha se estabelecendo.

159ALENCAR, Júlio César. Para que enfim se colonizem estes sertões: A câmara de Natal e a Guerra dos Bár-
baros (1681-1722). Dissertação (Mestrado em História). Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, UFRN.
Natal, 2017.
160 MONTEIRO, John. Tupis, Tapuias e Historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo. Tese de
livre docência. Departamento de Antropologia. UNICAMP. Campinas. 2001. p. 18.
161AMADO, Janaína. Região, Sertão, Nação. Estudos Históricos. V. 8, nº15. Rio de Janeiro, 1995, p. 148-149.
162MORAES, Robert. O sertão: um “outro” geográfico”. Terra Brasilis (Nova Série), v.4-5, 2003.

1279
A denominação Guerra dos Bárbaros será mantida, uma vez que é um termo já consolidado
pela historiografia clássica e o mais comum encontrado nas fontes de estudo, como poderá ser visto
nas análises mais adiante. Como os eventos que aqui se referem tiveram o envolvimento das capita-
nias do Rio Grande, Ceará, Pernambuco e Paraíba, será utilizado o termo Guerra dos Bárbaros nas
Capitanias do Norte para diferenciar esse processo dos demais que ocorreram na América portuguesa.

Nesta pesquisa serão analisados, nas correspondências dos governadores-gerais Matias da


Cunha e Frei Manuel da Ressurreição entre os anos de 1687 e 1690, os projetos de guerra pensados
para esse conflito, bem como a percepção desses dois administradores sobre a Guerra dos Bárbaros
nas Capitanias do Norte. Assim, os estudos de Tyego Franklim da Silva foram utilizados como base
para a escolha do recorte temporal, que está inserido na primeira fase da guerra, entre os anos de 1680
e 1698. Para compreender os meandros que levaram a esse conflito, é necessário visualizar o processo
de territorialização empreendido pela Coroa portuguesa na segunda metade do século XVII nas Ca-
pitanias do Norte, tomando como exemplo o caso do Rio Grande.

2. Territorialização do Rio Grande.

O rei D. João IV doou a capitania do Rio Grandea Manoel Jordão, que faleceu no mesmo
ano em um naufrágio quando tentava desembarcar nessas terras163. Com sua morte, a capitania ficou
novamente sob a responsabilidade da Coroa e passou a ser administrada pelo nomeado capitão-mor
Antônio Fernandes Furna164, que permaneceu no poder até 1656, quando foi nomeado seu sucessor,
Antônio Vaz Gondim (1656-1663)165. Embora o governo de Antônio Vaz Gondim tenha iniciado em
1656, os registros encontrados sobre sua atividade como capitão-mor da capitania iniciam-se somente
em 1659.

Analisando os documentos organizados no Livro de Cartas e Provisões do Senado da Câmara


de Natal, percebeu-se que o principal objetivo de Vaz Gondim era organizar o povoamento da capita-
nia, ao menos nas áreas antes povoadas, tanto na cidade do Natale nas margens dos rios mais próxi-
mos ao Potengi, como por exemplo, o rio Ceará-Mirim, rio Jundiaí, rio Pium e rio Mipibu. Dentre es-
sas localidades,também estava a barra do rio Cunhaú, com uma pequena povoação nas proximidades
do antigo engenho de Jerônimo de Albuquerque.No mapa a seguir,estão apresentados os principais

163 CASAL, Aires. Corografia Brasílica ou representação histórico-geográfica do Reino do Brazil.1817. P. 277.
164 Hélio Galvão, em sua obra História da Fortaleza da barra do Rio Grande, apresentou o nome de Antônio
Fernandes Furna como primeiro capitão-mor da capitania no período pós-bellum, baseando-se no seguinte
documento “Nomeado por carta de 6 de junho de 1654. MS da Chancelaria de D. João IV, Livro 27, fls. 156
(Inventário dos documentos Relativos ao Brasil existentes na Biblioteca Nacional de Lisboa, cit, pag. 169.)”
GALVÃO, Hélio. História da Fortaleza da barra do Rio Grande. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura,
1979. p. 117.
165 Segundo Vicente Lemos, baseando-se na carta de nomeação de capitão-mor dada a Antônio Vaz Gondim
em 1672, esse capitão-mor fora nomeado em 1656 para o comando da capitania do Rio Grande e governou por
seis anos, terminando seu governo em 1663. LEMOS, Vicente. Capitães-mores e governadores do Rio Grande
do Norte. Vol. 1. Rio de Janeiro: Typographia do Jornal do Commercio, 1912. p. 22.

1280
rios conhecidos nesse período.

MAPA 01: Rios do Rio Grande do Norte

Fonte:
DIAS, Patrícia. Onde fica o sertão rompem-se as águas. 2015. P. 19.

Antônio Vaz Gondim mandou publicar editais nas “Capitanias da Parayba e Pernambuco [nos
quais dizia] que as pessoas que tiverem terras na dita Capitania do Rio Grande onde são moradores
as viesse povoar dentro de seis mezes, e não o fazendo as daria por devolutas e desaproveitadas”166.
Ao que parece, tal publicação surtiu efeito e logo vieram os primeiros sesmeiros a solicitar sesmarias
de áreas que antes já povoavam ou pleiteando novas sortes de terras para começar uma vida nova.
Além de convocar moradores, Vaz Gondim foi incumbido de reconstruir a Fortaleza dos Reis Magos
e iniciar obras de urgência na Cidade do Natal. Duas guarnições foram formadas, uma para servir a
Fortaleza e outra para a cidade. Desta última, quando necessário, “eram destacados guardas para os
distritos mais afastados para conter os indígenas e estabelecer a ordem, tranquilizando os moradores

166 Carta de sesmaria doada em 02/08/1659 a Francisco de Mendonça Eledesma no rio Potengi e Mipibu. IH-
GRN – Fundo Sesmarias. Livro 1, n. 1, fls. 73 RN 0001.

1281
da parte do sertão e facilitando, assim a vinda de mais pessoas para povoar a capitania”.167Assim, pode-
-se afirmar que, além de obrigação, assegurar a tranquilidade das terras da capitania, não permitindo a
invasão de outros povos europeus ou levantes indígenas, era uma estratégia de Vaz Gondim para atrair
novos moradores às terras vazias de súditos da Coroa portuguesa.

É válido lembrar que este artigo considera a perspectiva do conquistador súdito da Coroa
lusitana, a qual entende que todos os espaços não colonizados por vassalos em nome do seu soberano
seriam considerados vazios, mesmo existindo uma forte presença de grupos indígenas. O geógrafo
Antônio Carlos Robert de Moraes conceitua o espaço como uma construção do ser humano, que
utiliza as matérias-primas e o material humano disponível, no caso os indígenas, do espaço natural
e o transforma em estruturas artificiais de acordo com as demandas humanas de moradia, convívio,
abrigopara as instituições militares, econômicas, políticas e jurídicas. A partir do momento em que
um número de pessoas resolveu estabelecer-se em um espaço, compreendê-lo e percebê-lo como o seu
lugar, ou seja, possuir uma ligação mais forte com aquele espaço, este se transforma em um território.
Nesse território se estabelece uma relação entre a sociedade em formação e o espaço. Essa relação
é chamada de colonização pelo geógrafo.168 Assim, neste estudo, analisa-se a construção do espaço
considerado da Coroa portuguesa, que trabalha em um projeto de transformação desse espaço em
território no momento em que incentiva e investe na consolidação da colonização.

Nesse espaço, a Coroa passa a agregar, a seu projeto, os indígenas, que passam a ser clas-
sificados de acordo com a sua perspectiva de mundo. Essa classificação acaba por homogeneizar os
grupos que ocupavam aquele espaço. Os indígenas que habitavam o sertão do Rio Grande, Paraíba
e Ceará eram os Tarairiú, que estavam divididos em vários grupos e cada um recebia uma diferente
denominação. Eram eles os Janduí, Airu, Pega, Canindé, Genipapo, Paiacu, Panati, Caratiú e Corema.
Esses indígenas não tinham casas ou aldeias fixas devido à necessidade de estar se deslocando cons-
tantemente, sempre em busca de áreas com melhores condições de caça, plantio e pesca. A constante
mobilidade desses tapuias era comum no sertão do Rio Grande, onde as características eram clima
árido, com poucas precipitações em determinadas áreas e épocas, e um solo não muito arável, depen-
dendo do local169. Além das condições climáticas e de relevo, havia um componente cultural impor-
tante que movia essas migrações. Essas movimentações ocorriam nos meses de florada do caju, entre
novembro e janeiro. Essa fruta, predominante no litoral, era a base da alimentação desses índios e as
castanhas eram utilizadas para a contagem de anos de vida170.
167 CAVALCANTI, Helaine. Do Flamengo ao Bárbaro: o processo de restauração da capitania do Rio Grande.
In: CAETANO, Antônio Filipe Pereira Caetano (Org.). Conflitos, Revoltas e Insurreições na América Portu-
guesa. V. 1. Maceió: EDUFAL, 2011. p. 43.
168 MORAES, Antônio Carlos Robert. Território e História no Brasil. São Paulo: Annablume, 2005. p. 42-43.
169 Baseando-se em cronistas da época, como Jon Nieuhof, Jacob Rabbi e Roloux Baro, e em historiadores
como Olavo de Medeiros Filho, a historiadora Fátima Martins Lopes apresenta os costumes dos índios Trarairu,
bem como sua aparência física e costumes, como a forma que se mudavam de acampamento para acampamen-
to, e as funções de trabalho de cada membro dos grupos indígenas. LOPES, Fátima Martins. Índios, colonos e
missionários na capitania do Rio Grande. Coleção Mossoroense. s/d. p. 277-280.
170 Com base nos relatos de holandeses, como Joan Niehouf, em Memorável viagem marítima e terrestre no
Brasil (1681), e Gaspar Barléus, em O Brasil Holandês sobre o conde Maurício de Nassau(1674), Júlio César
Vieira Alencar faz uma problematização sobre o uso do espaço pelos indígenas, apresentando uma territoriali-
dade que vai de encontro com a territorialização empreendida pela Coroa portuguesa.

1282
Essas práticas de espaço desenvolvidas pelos índios eram consideradas como um empe-
cilho à conquista do sertão pelos súditos da Coroa portuguesa. Como tinham um comportamento de
seminômades, a dificuldade em catequizar e “amansar” os índios era presente nas falas dos religiosos,
bem como estava muito clara a insatisfação dos moradores daquelas áreas com a aparição inesperada
dos “selvagens”, que, quando cooptados para a vida colonial, não aceitavam a nova ordem cultural
estabelecida, rebelando-se ou fugindo, mas sempre apresentando ações de contestação.

A chegada de novos moradores na capitania, bem como a volta dos antigos, e os seus interesses
em terras além dos chãos da cidade do Natal foram de fundamental importância para o conhecimen-
to do espaço a ser conquistado e transformado em território, bem como para o desenvolvimento de
relações, boas ou mal sucedidas, com os indígenas. Exemplo dessas ações mal sucedidas é a do então
capitão-mor da Paraíba, João Fernandes Vieira que, no ano de 1661, resgatou dois indígenas, filhos do
principal Janduí, e os levou ao rei como exemplares daqueles que viviam no sertão do norte do Esta-
do do Brasil. Essa ação induziu o principal Janduí a revidar, com vigor, os moradores dos sertões da
Paraíba e Rio Grande – espaço de jurisdição indefinida – causando mortes e tornando a relação entre
tapuias e conquistadores ainda mais frágil171.

As ações de Vaz Gondim durante seu primeiro governo possibilitaram o retorno e/ou chegada
de súditos portugueses ao Rio Grande e incentivou que muitos destes desbravassem os sertões da ca-
pitania.O sistema sesmarial foi acionado para auxiliar nesse processo. Os demais capitães-mores que
o sucederam continuaram com a política de doação de terras, como pode-se perceber no quadro a
seguir.

Capitão-mor do Rio Quantidade Quantidade


Grande de Sesmarias de Sesmeiros
Antônio Fernandes Fur- - -
na (1654-1657)
Antônio Vaz Gondim 11 8
(1657-1663)
Valentim Tavares Cabral 17 24
(1663-1670)
Antônio de Barros Rego 4 18
(1670-1673)
Antônio Vaz Gondim 11 26
(1673-1677)
Francisco Pereira Gui- 1 1
marães (1677-1678)

171 Sobre a guerra q. Mathias de Albuquerque Maranhão avisa fazer aos Indios Barbaros Janduins. Expedi-
do. Arquivo Histórico Ultramarino. Lisboa/ Portugal. Códice 275, fl. 315 v. 09/01/1662. Carta ao Governador
de Pernambuco. Microfilme da Divisão de Pesquisa Histórica/UFPE. Apud: LOPES, Fátima Martins. Índios,
colonos e missionários na colonização da capitania do Rio Grande do Norte. p.479-481.

1283
Governo interino do Se- 4 6
nado da Câmara (1678-
1679)1
Geraldo de Suny (1679- 13 55
1681)2
Antônio da Silva Barbo- 2 2
sa (1681-1682)3
Manuel Muniz (1682- - -
1684)
Pascoal Gonçalves de 14 5
Carvalho (1684-1688)
Agostinho Cesar de An- 2 2
drada (1688-1692)5
Total 63 147
Fonte: Quadro elaborado com base nos dados obtidos na Plataforma SILB, na obra Cartas Patentes e Regimentos (2018),
e na dissertação de mestrado Onde fica o sertão rompem-se as águas (2015).

Com base nos dados encontrados no fundo documental do Instituto Histórico e Geográfico,
Documentação Histórica Pernambucana e no códice 497 do Arquivo Nacional, todos reunidos na
Plataforma SILB, pode-se afirmar que 63 sesmarias foram doadas a 147 sesmeiros, entre homens e
mulheres, em sua maioria, moradores em uma das capitanias do Norte, entre os anos de 1657 e 1692.
Ao fazer um levantamento dos locais citados nos requerimentos, percebeu-se uma predominância,
sobretudo a partir da década de 1670, de terras mais ao interior do território da capitania do Rio Gran-
de. Foi, a partir desse ano, que as denominações de “gênio bravio” ou “gentio brabo” foram encontra-
das nos documentos de sesmarias, bem como a associação do termo sertão como local de moradia
desses indígenas.

Mapa 02: Concessões entre 1659-1674

Mapa 03: Concessões entre os anos 1676-1679

1284
Mapa 04: Concessões Rio Grande (1680-1687)

Fonte: DIAS, Patrícia. Onde fica o sertão rompem-se as águas. 2015. P. 61; 76; 82; 87.

Mapa 05: Concessões Ceará (1680-1687)

Nessa série de mapas,é possível perceber, a partir das marcações coloridas, como o processo de
territorialização ocorreu ao longo dos anos, na capitania do Rio Grande encontrando com o mesmo
processo na capitania do Ceará. Essas sesmarias foram doadas nas áreas de maior conflito entre indí-
genas e moradores, as ribeiras do Açu e do Jaguaribe.

As doações de terras aqui analisadas são importantes documentos para se perceber como o
sertão da capitania do Rio Grande era cada vez mais procurado para a criação do gado. Observa-se,

1285
nesses pedidos, que a ideia de um espaço vazio permaneceu no imaginário desses desbravadores. No
entanto, paradoxalmente, a presença dos gentios bravos como possuidores das terras pleiteadas apon-
ta a consciência desses sesmeiros de que, para a conquista efetiva dessas terras, não seria necessário,
apenas, o gasto de suas fazendas para desbravar os caminhos, os custos das viagens e da implementa-
ção de suas criações de gado. O risco de suas vidas também estava em jogo devido à presença do índio
“bravio” naquele espaço.

A denominação desses indígenas dada por esses sesmeiros, “gentio bravo”, também aponta um
outro fator importante nesse momento. Primeiramente, estava prevalecendo a ideia construída de que
os indígenas do sertão eram os selvagens, portanto, o inimigo. A etnificação, como afirma o historia-
dor John Monteiro172, desses grupos indígenas do sertão como “tapuias”, gentio bravo, pode ter refor-
çado o desejo de conquista de terras que eram consideradas pertencentes à Coroa portuguesa e não
daqueles que as habitavam anteriormente. Assim, qualquer medida tomada com o intuito de impedir
a permanência desses “bravos”, que lutaram por ela, nas terras do rei era justificável.

Segundo Fátima Martins Lopes, em Índios, colonos e missionários na colonização da capitania


do Rio Grande do Norte, a relação entre os conquistadores, que se fixaram nas terras recebidas nas
ribeiras do Assú e Acauã, e os “gentios bravos” nem sempre era de total hostilidade. Em meio a rela-
tos de ataques indígenas às fazendas recém-instaladas no sertão e da falta de segurança sentida pelos
sesmeiros que se aventuravam por essas paragens, havia também descrições de uma convivência sem
atritos entre os grupos173.

Porém, como foi bem lembrado, são apenas alguns casos que relatam a manutenção de uma
boa relação entre índios e conquistadores. A forma como esse gentio era tratado por esses sesmeiros
foi ocultada na maioria dos documentos e,possivelmente, baseados na ideia construída de barbarida-
de desses índios do sertão, tais súditos da Coroa portuguesa tenham utilizado de diversas práticas para
se apossar do espaço considerado vazio.

Assim, a etnificação do grupo chamado de tapuias foi absorvida tanto pelos conquistadores
quanto pelos próprios indígenas assim denominados. Essa referência possibilitou que os tapuias con-
seguissem um nível de organização que possibilitou uma maior capacidade de resistência à domina-
ção europeia, mesmo que, em determinados momentos, seus objetivos não fossem aproximados, o
que mostra como os tapuias, por mais que parecesse, não formavam um grupo homogêneo174.

Quando possível, esses moradores dos sertões utilizavam a mão de obra indígena em suas ter-
ras. Os índios eram obrigados a desenvolver todos os tipos de serviços, não ficavam apenas com a lida
do gado. Dentre suas funções, estavam arar e semear a terra. O capitão-mor do Rio Grande, Manoel
172 MONTEIRO, John. Tupis, Tapuias e Historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo. Tese de
livre docência. Departamento de Antropologia. UNICAMP. Campinas. 2001. p. 59-60.
173 Citando uma carta de José Lopes de Ulhoa enviada ao rei em 22 de março de 1688, a autora argumenta que
alguns manuscritos de moradores da capitania do Rio Grande apresentam boas relações com os indígenas do
sertão, evitando um possível confronto entre as partes. LOPES, Fátima Martins. Índios, colonos e missionários
na colonização da capitania do Rio Grande do Norte. p. 267.
174 PIRES, Maria Idalina Cruz. “Guerra dos Bárbaros”: resistência indígena e conflitos no nordeste colonial.
Recife: FUNDARPE, 1990. P. 28.

1286
Muniz, em carta ao rei em 1684, relatava que para os índios essas atividades eram delegadas às mu-
lheres e não aos homens. Obrigar aos últimos, que eram treinados para serem guerreiros, a fazer tais
atividades, que diziam respeito ao universo feminino de suas culturas, era uma verdadeira afronta175.

Um desses abusos contra os indígenas pode ser considerado como o estopim para o conhecido
conflito da Guerra dos Bárbaros. Em 1687, houve um desentendimento entre tapuias e moradores. O
resultado da contenda foi a morte do filho de um dos principais. O então capitão-mor da capitania,
Pascoal Gonçalves de Carvalho, não conseguiu resolver os desacordos entre os dois grupos e, prin-
cipalmente, acalmar os ânimos dos tapuias que, em 15 de fevereiro de 1687, se levantaram contra os
colonos176.

Foi enviada à ribeira do Açu, pelo capitão-mor Pascoal Gonçalves de Carvalho, uma expedição
comandada por Manoel de Abreu Soares com 150 infantes, quatro capitães da ordenança e os índios
das aldeias de Diogo Camarão para combater os indígenas que se levantavam. Apesar dos esforços do
capitão-mor e os pedidos de ajuda enviados pelos oficiais da câmara ao Governador Geral, na Bahia,
os indígenas continuavam a atacar e a matar o máximo de homens que conseguiam.

O ano de 1687 terminou com muitas mortes. Segundo o governador Matias da Cunha, morre-
ram no sertão do Rio Grande mais de cem pessoas, “entre brancos e escravos”, e foram mortas mais de
30 mil cabeças de gado. Para o governador Matias da Cunha, “só o grande valor, e experiência dos pau-
listas poderão ali conseguir o mesmo fim, que com tanta glória alcançaram das nações que tyrannisa-
vam a Bahia”. Solicitava, então, em 1688, que o terço dos paulistas fosse enviado para o Rio Grande177.

3. Os projetos de uma guerra contra índios

A partir de 1687 as reclamações do capitão-mor do Rio Grande e dos oficiais da câmara do


Natal endereçadas ao governo-geral começaram a surgir com maior intensidade. O medo de um avan-
ço e permanência desses índios no litoral e a invasão de fazenda e morte de rebanhos e moradores
endossavam os pedidos de ajuda. Na tentativa de finalizar o conflito e consolidar a conquista das terras
dos sertões das Capitanias do Norte, os governadores-gerais passaram a traçar estratégias para o fim
desse conflito. A seguir serão apresentadas as análises preliminares das cartas de Matias da Cunha e
do Frei Manuel da Ressurreição, presentes na Coleção Documentos Históricos da Biblioteca Nacional
do Rio de Janeiro.

Para este artigo foram escolhidos quatro eixos de análises. O primeiro deles diz respeito a de-
nominação do conflito. O objetivo é compreender como os dois governadores percebiam a contenda
entre índios e conquistadores e moradores nas capitanias do Norte. O segundo eixo direcionado ao
175 LOPES, Fátima Martins. Índios, colonos e missionários na colonização da capitania do Rio Grande do
Norte. p. 295.
176 PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros. 2002. P. 127.
177 Carta que se escreveo aos officaes da Câmara de São Paulo persuadirem os paulistas a virem à Guerra dos
Bárbaros do Rio Grande. Coleção Documentos históricos da Biblioteca Nacional. N. 11.p. 139-140.

1287
direcionamento das ações das tropas por parte dos governadores gerais, sendo destacada as palavras
degola e extinção. O terceiro eixo foi dedicado a compreender como as palavras sertão e fronteira es-
tavam presentes nas correspondências, bem como os sentidos atribuídos a esses dois termos.

3.1 Guerra dos Bárbaros

Na correspondência de Matias da Cunha, entre os anos de 1687 e 1688, pode-se encontrar um


número de 36 cartas referentes ao conflito estudado.Nessas cartas, encontram-se algumas denomina-
ções para o conflito nascente e crescente entre aqueles dois anos. A expressão Guerra dos Bárbarossur-
ge na documentação analisada nove vezes,portanto, é a mais comum.O segundo termo mais comum
é Guerra do Gentio do Rio Grande, surgindo na documentação seis vezes, tornando-se a segunda
terminação que aparece com mais frequência na correspondência. Outra denominação que, além de
sinalizar o inimigo em questão, os índios do sertão, e localizar os conflitos éGuerra dos Bárbaros do
Rio Grande, aparecendo por cinco vezes. As denominaçõesGuerra do gentioe Guerra do Rio Grande
aparecem duas vezes cada uma. E o termoGuerra do Gentio Bárbaro do Rio Grande surge apenas uma
vez. No gráfico abaixo pode-se visualizar uma quantificação dessas denominações.

Figura 01

Gráfico elaborado com base nos dados extraídos na correspondência do governador-geral do Estado do Brasil Matias da
Cunha, presente no volume 10 da Coleção Documentos históricos da Biblioteca Nacional

O objetivo de destacar a denominação mais comum para esse conflito é o de analisar as inten-
cionalidades presentes nessa correspondência. Nas cartas, sempre está presente a denominação “Bár-

1288
baros” para os índios que estavam em conflito com os súditos da Coroa. Segundo o governador-geral
em exercício nos anos iniciais do conflito, Matias da Cunha, os moradores da capitania sofriam com
a opressão desses bárbaros violentos e persistentes, inimigos poderosos, hostis, e incentivava que de-
veriam viver livres desse indígena opressor. A liberdade só viria com a extinção desse inimigo, como
pode ser visto nas passagens a seguir.

Quando Matias da Cunha falece, quem assume o governo geral é o Frei Manuel da Ressur-
reição. Este enviou para variados destinatários, entre os anos de 1689 e 1690, 29 cartas cujo o assun-
to era a guerra dos bárbaros. Nessa correspondência, podem-se encontrar as seguintes designações
para o conflito:a exemplo de Matias da Cunha, o frei Manuel da Ressurreição utilizou largamente o
termo Guerra dos Bárbaros, surgindo por onze vezes na documentação analisada. O segundo mais
utilizado, aparecendo apenas quatro vezes, foiGuerra dos Bárbaros do Rio Grande. Com apenasduas
aparições,Guerra do Rio Grandefoi a terceira denominação mais utilizada e, apenas em uma carta,
surge a designaçãoGuerra dos Tapuias do Rio Grande, ligando o gentio bárbaro, até então amplamente
utilizada, a terminação tapuia, generalização utilizada para apontar os índios do sertão. A partir de
1690, quando o frei Manuel da Ressurreição reestruturou na guerra, reformando os capitães-mores e
mestres de campo nela envolvidos, indicando o paulista Matias Cardosos como governador da Guerra
dos Bárbaros, a qualificaçãoA nova guerra dos Bárbarossurge nos documentos por quatro vezes.

Figura 02

Gráfico elaborado com base nos dados extraídos na correspondência do governador-geral do Estado do Brasil Matias da
Cunha, presente no volume 10 da Coleção Documentos históricos da Biblioteca Nacional

Percebe-se que a denominação do conflito mais presente nas falas dos dois governadores-ge-

1289
rais nessa documentação é Guerra dos Bárbaros, o que reforça uma ideia de que é um conflito aberto e
organizado contra os índios considerados obstáculo para a conquista, o que justifica o uso dos termos
extinguir, degolar e extinção, como poderá ser percebido mais adiante.

3.2 Extinção e degola

Em carta enviada ao capitão-mor Manuel de Abreu Soares, da capitania de Pernmabuco e que


estava lutando nos sertões do Rio Grande, em 1688, Matias da Cunha avisa:

Vossa Mercê dirija a entrada e guerra que há de fazer aos Bárbaros como en-
tender que possa ser mais ofensiva degolando-os, e seguindo-os até o extin-
guir, de maneira que fique exemplo de castigo a todas as mais nações que
confederadas com eles não temiam as armas de Sua Majestade que considero
vitoriosas indo a cargo de Vossa Mercê178

O mesmo pedido de extinguir o bárbaro de forma tão violenta estava na carta enviada a Agos-
tinho Cesar de Andrada, então capitão-mor do Rio Grande. Matias da Cunha “pedia o Governador
Fernão Cabral com a pólvora e balas que lhe faltaram, e com as armas e o mais de que necessitava para
continuar a guerra, e acabar de extinguir os Bárbaros”179

Com todas as reclamações de insucessos das tropas pernambucanas, Matias da Cunha resolve
redirecionar as tropas de paulistas que foram enviadas para Palmares para o Rio Grande. Assim, as
tropas passariam a agir em três frentes diferentes, o que resultaria em melhores ações para desbara-
tar e extinguir os índios do sertão. A justificativa para o redirecionamento das tropas de Domingos
Jorge Velho, mestre de campo dos paulistas, foi a de que a guerra dos Bárbaros havia sido considera-
da guerra justa, ou seja, agora os índios envolvidos no conflito poderiam ser aprisionados e usados
como escravos180. Assim, Matias da Cunha afirmou “que não só terão todas as glórias de degolarem
os bárbaros, mas a utilidade dos que aprisionarem, porque a guerra ser justa resolvi em Conselho de
Estado, que para isso se fez que fossem cativos todos os bárbaros que nela se aprisionassem na forma
do Regimento de Sua Majestade de 1611.”181

O mesmo aviso foi enviado para Manuel de Abreu Soares, como incentivo para continuar em

178Carta para o Capitão-mor Manuel de Abreu Soares sobre a guerra do Gentio do Rio Grande. [1688]. Cole-
ção Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Vol. 10, p. 275-276.
179Cartas para Agostinho Cesar de Andrada Capitão-mor do Rio Grande [1688]. Coleção Documentos Histó-
ricos da Biblioteca Nacional. Vol. 10, p. 310 - 312.
180 A noção de guerra justa é discutida por PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos. Os
princípios da legislação indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII). In: CUNHA, Manuela Carneiro
da. Índios na história do Brasil. p. 123.
181Carta para o capitão-mor Domingos Jorge Velho sobre partir com a gente que tiver sobre os bárbaros do
Rio Grande [1688]. Referência: Coleção Documentos Históricos da Biblioteca nacional. Vol. 10, p. 262-263.
Publicado em GOMES, Flávio. Mocambo dos Palmares. P. 298

1290
combate;
“E como eu declarei em Junta Geral que fiz, que os prisioneiros nesta guerra seriam
escravos daqueles que os cativassem, assim como este é um grande estimulo para o
gosto dos soldados, é muito importante o reparo que Vossa Mercê deve fazer em não
consentir que deixem de degolar os Bárbaros grandes sópor os cativarem, o que prin-
cipalmente farão aos pequenos, que ou fujam, ou se levantem.”182

Dentro do universo de cartas analisadas,o termo extinção surge cinco vezes. Por quatro vezes a
designaçãodegola surgiu na documentação e, apenas em uma correspondência,foi encontrado aquali-
ficaçãoconquista de índio. Entende-se que a ideia de extinção, acompanhada pelo verbo degolar, deixa
claro o objetivo de limpeza do espaço, uma limpeza não apenas física, mas cultural. Soma-se à ideia
de que o sertão era um espaço ocupado por índios bravios, brabos, selvagens,bárbaros, que impediam
o andamento da conquista, esses termos se encaixam em uma política de esvaziamento do espaço
para a implantação, sem obstáculos, da nova ordem política, econômica e cultural trazida da Coroa
portuguesa, cumprindo, assim, o processo de transformação do espaço em território português. Seria
alcançar o objetivo de limpar o espaço para estabelecimento das fazendas de gado e causar a extinção
dos índios rebeldes, daqueles que não se submetem à ordem político-administrativa e, sobretudo, re-
ligiosa do reino. Jáa expressão conquista de índiose aproxima mais da ideia de inserção desse índio na
lógica colonial, mesmo que fosse por meio da escravidão.

Um termo parecido vai ser utilizado com mais frequência por Frei Manuel da Ressurreição:a
conquista desses bárbaros. Essaexpressão apareceu 4 vezes na correspondência do frei, enquanto que
foi encontrada apenas em uma carta de Matias da Cunha tal termo. A ideia de conquista não implica,
necessariamente, em morte ou extinção, mas pode estar se pensando em uma possível adequação des-
ses índios à lógica do império português, mesmo que fosse como mão de obra, como já foi apontado
anteriormente. Apesar dessa ressalva, ainda foram encontradas as denominaçõesextinção,extinto e
extinguirtrês, duas e duas vezes, respectivamente. Assim como o verbo degolar, no entanto, com uma
intencionalidade diferente da forma como foi utilizada pelo governador-geral anterior. A palavra de-
golar aparece apenas uma vez, em uma carta enviada para Domingos Jorge Velho, na qual o frei diz:
“E dou a Vossa Mercê o parabém de um aviso que do Recife me fez o Provedor da Fazenda estando
para dar á vela a embarcação que o trouxe de haver Vossa Mercê degolado 260 Tapuias.”183

3.3 Fronteira e sertão

Dois termos considerados importantes por esta pesquisa e que aparecem na documentação
sãosertão e fronteira. Nas cartas enviadas por Matias da Cunha, foram detectadas cincoaparições da
palavrafronteira. Já a terminaçãosertãosurgiu oito vezes. Nas cartas de Frei Manuel da Ressurreição,-

182Carta para o Capitão-mor Manuel de Abreu Soares sobre a guerra do Gentio do Rio Grande. [1688]. Cole-
ção Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Vol. 10, p. 275-276.

183Carta para Domingos Jorge Velho [1689]. Coleção Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Vol. 10,
p. 371-373.

1291
foram quinze citações defronteira e onze desertão.

O sentido atribuído a essas duas palavras foi o mesmo para os dois governadores-gerais. Tanto
para Cunha como para Ressurreição o termo fronteira tinha um significado de espaço habitado pelo
gentio bárbaro belicoso e onde ocorrem os conflitos. Ou seja, o termo fronteira teria características
estáticas e era compreendido como uma zona de contato entre as duas culturas que entravam em
combate.

Já o termo sertão, para os dois administradores, referia-se a um espaço de passagem, de fluxo,


de contínuo movimento, utilizado, sobretudo, pelos indígenas. Tal percepção estaria ligada à ideia do
sertão como o espaço da barbárie, da selvageria e uma oposição ao litoral, ocupado pela civilização. A
ideia de fluxo contínuo nessa área pode estar ligada a uma percepção de um espaço de possível con-
quista, o que Antônio Carlos Robert de Morais chamaria de fundo territorial, aquele espaço que está
prestes a se transformar em território184.

4. Conclusão

Com base na correspondência de Matias da Cunha e Frei Manuel da Ressurreição, foi possível
perceber dois projetos para uma guerra contra os índios do sertão. A análise desses documentos per-
mitiu que fosse avaliado os posicionamentos desses dois governadores frente aos indígenas chamados
de tapuias, como estes encaravam essa população e como encontraram possíveis soluções para a guer-
ra, que ultrapassou seus governos e perdurou até 1722.

Na lógica local, suas ações tiveram um impacto direto. No sertão das Capitanias do Norte, so-
bretudo na capitania do Rio Grande, o processo de territorialização estava seguindo seu curso. Os ho-
mens e mulheres que possuíam terras no sertão abandonaram suas fazendas, devido às investidas dos
índios, ou se juntaram às tropas comandadas por homens da capitania de Pernambuco e Rio Grande.
A entrada dos paulistas ameaçava os interesses dos homens do norte com a mão de obra e com as ter-
ras do sertão, dois produtos oferecidos aos paulistas como pagamento por seus serviços.

Neste artigo, foram apresentadas as primeiras análises das fontes escolhidas para a pesquisa de
doutorado em andamento. Pretende-se continuar com o estudo das mesmas e refinar a pesquisa ten-
tando perceber, o impacto das ações desses governadores-gerais, apresentadas de forma inicial nesse
artigo, na lógica local de combate na Guerra dos Bárbaros.

Referências

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1408). Doi: 10.15847/cehc.edittip.2014. v. 023.

CASAL, Aires. Corografia Brasílica ou representação histórico-geográfica do Reino do Brazil.1817.


184 MORAES, Antônio Carlos Robert. Território e História no Brasil. 2005. p. 69.

1292
CAVALCANTI, Helaine. Do Flamengo ao Bárbaro: o processo de restauração da capitania do Rio
Grande. In: CAETANO, Antônio Filipe Pereira Caetano (Org.). Conflitos, Revoltas e Insurreições na
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Rio Grande do Norte. Natal, 2015.

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MONTEIRO, John. Tupis, Tapuias e Historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo.


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Brasil, 1650-1720. São Paulo: editora Hucitec. 2002.

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zação do Assu Colonial (1680-1720). Dissertação (mestrado em história). Centro de Ciências Huma-
nas, Letras e Artes. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2015.

Usos do conceito de soberania e do “Direito Natural e das Gentes” em narrativas de lutas


políticas coloniais atlânticas na crise do Antigo Regime (1776-1817)
Pedro Henrique de Mello Rabelo185

Resumo: este texto evidencia algumas mudanças de significados que o conceito de soberania
sofreu na Modernidade. No campo político-jurídico, o autor de o Direito das Gentes, Emer de Vattel,
pode ter influenciado em alguma medida tais mudanças. No mundo ibero-americano essas mudanças
podem ser observadas nas páginas do Tratado de Direito Natural, de Tomás Antônio Gonzaga, no
Correio Braziliense, de Hipólito José da Costa, e mesmo nas publicações da Revolução Pernambucana
de 1817. Por meio da apresentação do processo de positivação do Direito Natural e das Gentes, o tex-
to busca mostrar ao leitor como o conceito de soberania se articulou às narrativas de certos projetos

185 Doutorando em História pela Universidade Federal de Ouro Preto. Pesquisa orientada pela Prof.ª Dr.ª
Cláudia Maria das Graças Chaves e financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Su-
perior – CAPES.

1293
políticos atlânticos, abrangendo boa parte do período entre a Restauração de 1640 e a emergência do
constitucionalismo ibérico das décadas de 1810 e 1820.

Palavras-chave: soberania; Direito Natural; Direito das Gentes; Emer de Vattel.

Abstract: this text highlights some changes of meanings that the concept of sovereingty suffe-
red in the Modernity. In the political-legal field, the author of Law of Nations, Emer de Vattel, mayhave
influencedin something extent these changes. In the Ibero-American world, these changes can be ob-
served in the pages of the Tratado de Direito Natural, by Tomás Antônio Gonzaga, in CorreioBrazi-
liense, by Hipólito José da Costa, and even in the publications of the RevoluçãoPernambucana of 1817.
Through the presentation of the process of positivation of the Natural Law and of the Law of Nations,
the text pursuit shows to the reader how the concept of sovereingty articulate itself to the narratives
of certain Atlantic political projects, covering part of the period between the Restauração of 1640 and
the emergence of the Iberian constitutionalism of the 1810’s and 1820’s decades.

Key-words: sovereignty; Natural Law; Law of Nations; Emer de Vattel.

1. Revendo o contrato social: tirania e Direito Natural no processo da Restauração de 1640

O projeto da Restauração portuguesa se apoiou firmemente sobre uma narrativa política cons-
truída pelas Cortes portuguesas de 1641. Assentados em Lisboa, os membros dos Três Estados da
Nação Portuguesa publicaram uma narrativa pela qual se acusava os Filipes de Habsburgo de terem
tomado tiranicamente a monarquia portuguesa em 1580. Arguia-se ser ilegítima a ascensão de Filipe
II ao trono, que apesar de sobrinho do falecido rei de Portugal, forçara as Cortes de Tomar a aclamá-lo
rei. Para as Cortes lisboetas, o episódio marcou a característica tirana de Filipe II, que assim manchou
toda a sua dinastia sobre o cetro português. Segundo o Assento das Cortes:
E pressupondo por cousa certa em direito, que ao Reyno somente compete
julgar, e declarar a legitima sucessão do mesmo Reino, quando sobre ella há duvida
entre os pretensores, por razão do Rey ultimo possuidor, falecer sem descendentes, e
eximirse também de sua sogeição, e domínio quando o Rey por seu modo de governo
se fez indigno de reynar. (...) ainda que os ditos ReysCatholicos de Castella, tiveram
titulo justo, e legitimo, de Reys deste Reino o que não tinhão, e por falta deles, se não
puderão julgar por intrusos. Comtudo o eram pello modo do governo, e assi podia
o Reino eximirse de sua obediencia, e negarlha sem quebrar o juramento que lhe
tinhãofeito. Por quanto conforme as regras de direito natural, e humano, ainda que
os Reinos transferissem nos Reys todo o seu poder, e imperio para os governarem,
foi debaixo de huma tácita condição de o regerem, e mandarem com justiça, sem
tirania, e natural defensão, e nunca nestes casos forão vistos obrigar-se, nem o viculo
do juramento extenderse a eles.186

Na passagem, a narrativa política das Cortes associava tirania, liberdade e direito natural. Se-
gundo o trecho, não havia caminho que não levasse à destituição dos Habsburgo do trono português.
Por um lado, justificava-se que mesmo que Filipe II pudesse ter sido rei de Portugal, sua tirania havia

186 CASTRO, José Ferreira Borges de. Tratados, Convenções, Contratos e ActosPublicos celebrados entre a
Coroa de Portugal e as mais potencias desde 1640 até ao presente. Lisboa: Imprensa Nacional, 1856, p. 9.

1294
lhe desvestido do posto, algo garantido pelas “regras de direito natural”. Por outro lado, exaltava-se a
liberdade que os súditos portugueses tinham para escolherem seu rei, fosse em casos de dúvida a res-
peito dos sucessores, como ocorrera em 1580, fosse em casos de tirania, afinal, tal estigma permitiria
que os súditos desobedecessem a seu opressor. Assim, a principal narrativa construída pelas Cortes
de 1641 foi a ideia de que um rei sempre perderia seus direitos como cabeça do corpo social ao agir
como tirano, o que ocasionava, por sua vez, a devolução aos súditos do “direito natural e humano” de
prestarem juramento a outra autoridade que lhes garantisse mando com justiça.

Segundo alguns historiadores, um dos principais motores da Restauração portuguesa foi a re-
sistência à imersão do reino em um grande número de conflitos armados espanhóis, comdestaque
daqueles que envolviam as possessões coloniais. Durante a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), os
portugueses perderam boa parte de suas mais importantes colônias, sobretudo para os neerlandeses,
que até o ano de 1642 já haviam conquistado todas as principais artérias coloniais de Portugal ligadas
ao comércio de especiarias, no Oriente, e de açúcar e escravos, no Atlântico187. Essa enorme perda de
colônias, sobretudo orientais –cuja maioria jamais voltou às mãos dos negociantes lusos –, acendeu
um forte alerta para os grupos de grandes negociantes atlânticos de Portugal, que viram mais próxima
a possibilidade de perder os últimos ramos de comércio externo que ainda garantiam ao reino algum
destaque no mercado europeu: o açúcar e o tráfico de escravos.

A guerra do açúcar, como referida por Celso Furtado, tornou latente e necessária a retomada
das colônias atlânticas por Portugal, tendo muitas delas o sido com o financiamento de produtores
de açúcar atuantes na região188. No reino, a subida do duque de Bragança à monarquia foi fortificada
pelo apoio delatifundiários, de grandes negociantes envolvidos com o comércio de açúcar do Brasil,
além de traficantes de escravos. O apoio desses setores ao projeto da Restauração é confirmadopela
análise dos primeiros Tratados189 bilaterais firmados pela nova monarquia entre 1641 e 1642. O dis-
curso legitimador das Cortes foi levado à esfera da diplomacia bilateral e corporificou novos sentidos
à liberdade, à tirania e ao direito natural presentes no AssentodasCortes, marcando significativamente
o rosto da política externa dos Bragança de a partir de então.

Apesarde político-militarmente isolada entre as potências católicas, a monarquia portuguesa


enviou missões de negociação de paz e aliança a alguns dos principais centros de poder da Europa, en-
tre eles a França, a Inglaterra, a Suécia e os Países Baixos, esses responsáveis por boa parte das desgra-
ças coloniais dos portugueses. Assim, entre junho de 1641 e janeiro de 1642, quatro Tratados bilaterais

187BATISTA, Felipe de Alvarenga. Os Tratados de Methuen de 1703: guerra, portos, panos e vinhos. 127f.
Dissertação (Mestrado em Economia Política Internacional), Instituto de Economia, Universidade Federal do
Rio deJaneiro, 2014, p. 38.
188 FURTADO, Celso.Economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Hucitec,2001, p. 103.
189 Neste texto, faz-se necessária uma distinção gráfica a respeito das palavras Tratado, tratado e tratadística.
Grafar-se-á tratado, com inicial minúscula, sempre que se referir a alguma obra escrita de algum campo do
saber. À exceção de títulos de obras, grafar-se-á Tratado, com inicial maiúscula, sempre que se referir a algum
acordo diplomático, seja ele de teor militar, comercial ou de paz. Já a expressão tratadística sempre será utiliza-
da em referência ao primeiro sentido, isto é, referir-se-á a obras escritas.

1295
foram firmados pela diplomacia bragantina190. Seus textos exploravam a narrativa política das Cortes
e associavam-na a sentidos ligados ao comércio e à navegação, campos esses de grande interesse aos
grupos de latifundiários e de negociantes que sustentavam a Restauração.

Em geral, os acordos restauravam o fluxo comercial entre as metrópoles das partes contratantes
e estipulavam auxílios militares contra a Espanha, inimiga comum. Assim foram boa parte dos teores
dos Tratados com a França, Suécia e Inglaterra, mas no caso do acordo com os Países Baixos, outras
estipulações foram acertadas, quase todas ligadas às tensões territoriais que amargavam os relaciona-
mentos dos portugueses com os neerlandeses no Brasil.

De início, o Tratado luso-neerlandês diferenciava-se dos demais por ser um acordo de tréguas, e
não uma aliança ou acordo de paz. Assim, o statusquo territorial definido entre as duas partes durante
a Guerra dos Trinta Anosseria mantido apenas temporariamente – nesse caso, por dez anos191 –,su-
gerindo grandes possibilidades de uma futura retomada das hostilidades. A guerra comum contra a
Espanha conferiu ao Tratado luso-neerlandês algumas semelhanças aos demais acordos de paz, como
o restabelecimento do comércio e da navegação, por exemplo192. Entretanto, a indefinição a respeito
do statusquo territorial, especialmente no nordeste do Brasil, fomentou a negociação de acordos mui-
to específicos com os neerlandeses, que por um lado entrelaçavam o discurso das Cortes a respeito da
relação entre a tirania habsburgae a liberdade dos súditos, mas que por outro, incluíram, nessa mesma
relação, algumas garantias específicas aos súditos, vistos como possuidores de certos direitos naturais
que deveriam estar isentos de prejuízos provocados pelos Estados.

Os embates luso-neerlandeses a respeito das colônias atlânticas foram responsáveis pela mode-
lagem de alguns dos principais acordos do Tratado de Tréguas entre Portugal e Países Baixos em 1641.
A base jurídica de seu preâmbulo, como a dos outros acordos bilaterais, firmava-se sobre o discurso
legitimador das Cortes. Mas para além disso, o Tratado articulou aquela narrativa políticaà garantia
aos direitos dos súditos à posse da terra, ao comércio, à navegação e à jurisdição judiciáriaem um es-
paço potencialmente conflituoso: o Atlântico Sul. Essa característica fez do Tratado luso-neerlandês
um marco essencial no tocante à defesa dos direitos dos súditosem meados do século XVII.Segundo
seu preâmbulo:
Mostrou a experiencia que Dom Phelippe segundo Rey de Castella por for-
ça, e poder de armas ocupou antigamente a Coroa de Portugal, e pelo cõseguinte
privou o Serenissimo, e muito Poderoso Rey Dom João (antes Duque de Bragança)
do indubitável direito de sua sucessão, e Justiça para a dita Coroa de Portugal, como
legitimo próximo herdeiro da Serenissima Senhora D. Catherina, e muitos anos con-
tínuos preseverarão os sucessores do dito Rey de Castella em a violenta ocupação da
dita Coroa de Portugal, quebrantando os concertos e pactos de amizade, confiança,
e do Commercio que os Senhores Reys da Coroa de Portugal, com outros Principes,
e nações de Europa, santamente, sempre respeitarão, privando aos bons súbditos,
e vassallos da mesma Coroa, de seu direito, e de suas leys e costumes, e além disso
190Tratado de Confederação e Aliança entre Portugal e França (ratificação: 1 de junho de 1641); Tratado de
Tréguas e Cessação de Hostilidades entre Portugal e Países Baixos (ratificação: 12 de junho de 1641); Tratado
de Paz entre Portugal e Suécia (ratificação: 29 de julho de 1641); Tratado de Paz e Comércio entre Portugal e
Inglaterra (ratificação: 29 de janeiro de 1642).
191 CASTRO, 1856, p. 29.
192Ibidem, p. 31.

1296
carregandoos, injustamente de intoleráveis moléstias, e outras diversas especias de
tyrannia juntas a excecivos tributos, os quais os Reys de Castella, juntamente com
o Patrimonio da Coroa Real de Portugal, consummirão, e destruirão com guerras
escusadas, com as quais cousas, sendo os ditos bons súbditos, e vassalaos daquela
Coroa, estimulados, e provocados, de justo furor, vencido o sufrimento, com grade
animo, ousadia, e advertência, sacodirão aquelle intolerável, e injusto jugo de el Rey
de Castella, restituindosse a sy mesmos, a sua liberdade; e finalmente por aplauso
commum elegerão, aclamarão derão omenagem, e juramento de fidelidade ao dito
Rey Dom João o quarto193.

Estando presente em um acordo bilateral, o texto garantia legitimidade recíproca às duas partes
contratantes. Não apenas à nova monarquia portuguesa chefiada por D. João IV, mas também aos
Estados Gerais dos Países Baixos, que lutavam por sua independência política de Madri desde fins do
século XVI194. Nota-se que além de levar para a esfera da política externa uma narrativa construída
internamente pela reunião das Cortes, o preâmbulo destacava os prejuízos causados pelo período
habsburgo aos súditos, que enfrentavam problemas ligados ao comércio, além de terem sido expostos
a guerras e impostos considerados intoleráveis e tiranos.

À época da Restauração, autores como Thomas Hobbes davam alguns dos principais passos
rumo à escrita da tratadística do Direito Natural e de sua aproximação à concepção contratualista da
relação sociedade-Estado. Em O Leviatã, publicado em 1651, Hobbes defendeu a tese da formação
contratual da sociedade, pela qualo corpo social era encabeçado pelo Estado, responsável por sua
condução e união.Essa lógica esteve presente no envio das missões diplomáticas da Restauração, de
modo que o Estado português se propunhaa guiar o reino por meio de acordos benéficos à população,
que sofria com os efeitos do período habsburgo.Esse princípio era o que dava sustentação a todo o
Assento das Cortes citado anteriormente, inclusive no que tocava a sua narrativa contrária ao poder
dos Habsburgo – “Por quanto conforme as regras de direito natural, e humano, ainda que os Reinos
transferissem nos Reys todo o seu poder, e imperio para os governarem, foi debaixo de huma tácita
condição de o regerem, e mandarem com justiça, sem tirania”195. Essa cultura político-jurídica era
muito bem-vinda aos negociantes do açúcar no Atlântico, especialmente portugueses, que em apenas
vinte anos já haviam perdido mais de quinze milhões de libras esterlinas aos neerlandeses196.

Mostra disso é que no Tratado luso-neerlandês de 1641, a regulamentação do comércio com a


colônia brasílica emergia de maneira bastante diversa das relativas às africanas e asiáticas. Na África
portuguesa, por exemplo, era permitido que embarcações neerlandesas carregassem até mesmo ouro
e escravos, desde que pagassem os respectivos direitos nos portos portugueses. A prática desses fretes
não era incomum, principalmente na Ásia depois da perda da maior parte das feitorias portuguesas.
Entretanto, o Tratado luso-neerlandês extinguiu essa possibilidade para o Brasil. Proibia-se aos portu-
gueses a contratação de navios estrangeiros não-neerlandeses para o comércio das colônias america-
nas, cujos fretamentos deveriam ser concedidos exclusivamente às embarcações neerlandesas ou, em

193 CASTRO, 1856, p. 27.


194 MELLO, Evaldo Cabral de. O negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669. São
Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 20.
195 CASTRO, 1856, p. 9.
196 FURTADO, 2001, p. 104.

1297
especial, às da Companhia das Índias Ocidentais neerlandesa – West IndischeCompagnie (WIC)197.

A proibição prejudicou ainda mais os negócios dos súditos portugueses na região, que chegaram
a formar uma oposição à ratificação da trégua com os Países Baixos198. A reação também era agravada
pelo congelamento do statusquo territorial firmado com a trégua, o qual não só manteve com os neer-
landeses as conquistas feitas sobre os domínios portugueses, como permitiu a sua ampliação em casos
de aproximação ao inimigo espanhol. Estipulava-se que:
Todas as Fortalezas, Cidades, naos, e pessoas particulares, ou sejão Portugue-
ses, ou outros quaisquer que forem achados no Brazil, ou em outra parte, os quais
favorecerem as partes del Rey de Castella, ou daqui por diante, se reduzirem a seu
poder, serão julgados por inimigos communs, aos quais, será licito acometer, perse-
guir, e vencer por cada hua das partes, sem se ter respeito ao limite, e termos em que
forem achados; Conforme ao que se cada hua das partes tomar algu dos ditos lugares,
ou fortalezas, pertencerá áquelle por quem for tomado, e juntamente a jurisdição, e
termo de seus campos, e todas as mais vtilidades a elles antes anexas; sem embargo
de os taes lugares, e fortalezas, estarecituadas no destricto, e termos de cada hua das
partes199.

O acordo diferenciava-se do dispositivo geral do Tratado relativo ao aprisionamento de bensini-


migos. Por um lado, por que os arrestados, nesse caso, não eram apenas os súditos habsburgos, mas
qualquer particular que fosse flagrado, no Brasil, envolvido com a Espanha. Outra diferença é que
esses arrestos não seriam divididos entre Portugal e Estados Gerais, mas mantidos apenas com a parte
que empreendeu a conquista, que não só se assenhoraria das terras do particular, mas também de suas
jurisdições correspondentes.

É notável a potência da crise bilateral a ser estabelecida com essa insegurança jurídica forjada
pela trégua, especialmente se se considerar o recente histórico de conflito armado entre as duas partes
contratantes. No Brasil e na costa ocidental da Áfricaessa instabilidade se fazia ainda mais forte
em função da guerra do açúcar, o que tornou necessário o estabelecimento de regras relativas aos
direitos dos súditosmoradores nessas áreas. Para tanto, além de restabelecer o intercâmbio mercantil
metropolitano e entabular mútuos auxílios militares contra a Espanha, o Tratado luso-neerlandês
também garantiu certas imunidades aos súditos das duas partes contratantes, valendo-se, para isso,
da crescente defesa pelos direitos naturais do homem, que nesse caso ficavam chancelados por um
acordo jurídico interestatal.

De acordo com o artigo XXI do Tratado luso-neerlandês:


E por quanto os Senhores Ordens Geraesacquirirão por seu próprio poder seus domínios, e terras
no Brazil, e em outras partes em tempo que os súbditos, e moradores delas ainda erãovassallos e sujeitos
a el Rey de Castella, e inimigos deste Estado, de cuja natureza, e condição forãoaquelles que agora no
mesmo lugar se reduzirão a obedienciadel Rey de Portugal, e se mostrarão amigos, e confederados a este
Estado, pella qual rezão, daqui por diante, de hua, e outra parte estará manifesto, duravel concerto, e pura
confiança e juntamente hus a outros serão com rezão obrigados a se tratarem com amigável administra-
ção de justiça200.
197 CASTRO, 1856, p. 39.
198 MELLO, 2003, p. 40
199 CASTRO, 1856, p. 35
200 CASTRO, 1856, p. 41.

1298
Com acordos como esse, o Tratado luso-neerlandês impedia que os súditos de ambas as partes
tivessem seus domicílios invadidos ou seus livros ou documentos tomados à força201. Proibia represá-
lias, perseguições motivadas por religião e diferenciações no tratamento dos processos judiciais202. O
Tratado também previa que todas essas garantias ficassem sob a responsabilidade de agentes consula-
res, que mediariam as possíveis contendas surgidas entre os súditos203. Desse modo, por meio da defe-
sa aos direitos naturais dos súditos, os Estados português e neerlandês tentavam, a nível diplomático,
impedir que seus respectivos corpos sociais caíssem em desgraça. Pelo Tratado, preservar a liberdade
de comércio, a liberdade de navegação e a equanimidade na administração da Justiça passou a signifi-
car a própria defesa estatal do princípio contratualista do Direito Natural, o que simbolizava, por sua
vez, uma espécie de antídoto à tirania.

Assim, pelo texto do Tratado, a manutenção da trégua luso-neerlandesa dava-se mais em função
do respeito a esses direitos dos súditos que propriamente a uma aliança entre os representantes dos
dois Estados contratantes, os quais mantinham a importância de suas funções representativas no âm-
bito diplomático, mas passavam aatuarem simultaneamente na manutenção da integridade jurídica de
seus compatrícios.

Existem poucos estudos a respeito dospossíveis reflexos da cultura jurídica ibérica sobre a an-
glo-saxã nos séculos XVII e XVIII. Em geral, pesquisas tem evidenciado uma série de visões negativas
por parte dos juristas protestantes no tocante a administração da Justiça portuguesa, que em parte
controlada pelo Tribunal do Santo Ofício, era por vezes encarada como sombria e autoritária204. En-
tretanto, parece não haver dúvida que o contratualismo e o Direito Natural fizeram parte do rol de
concepções político-jurídicas que compuseram os acordos firmados pelos Bragança com os Estados
protestantes. O raciocínio é especialmente válido para a segunda metade do século XVIII, momen-
to em que tratados contratualistas como O Leviatã já compunham significativa parcela da cultura
político-jurídica de vários Estados europeus, fossem protestantes ou católicos.

2. A emergência da soberania: monarquia e democracia em Tomás Antônio Gonzaga

A Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) envolveu variáveis de ordem política e religiosa. Irrom-
pido na Boêmia, principado protestante que se sublevara contra o poder católico do Sacro Império
Romano Germânico, em poucos anos o conflito envolveu alguns dos principais Estados protestantes
do norte da Europa, entre eles a Dinamarca, a Suécia, a Inglaterra e a porção norte dos Países Baixos,
que assim conseguiram engrossar o coro contrário ao poder dos Habsburgo205. O fim do conflito, se-
lado com a Paz de Vestfália de 1648, marcou uma nova concepção acerca do poder estatal, haja vista
que em termos diplomáticos os pequenos principados protestantes tornaram-se politicamente equi-

201Ibidem, p. 47.
202Ibidem, p. 45.
203Ibidem, p. 49.
204 FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Sobre rebeldes e inconfidentes: o léxico político nas américas
inglesa e portuguesa, século XVII. VII EncontroInternacional de História Colonial, Natal (RN), 2018.
205 GUTMANN, Myron P. The origins of the Thirty Years’ War. The Journal of Interdisciplinary History, v. 18,
n. 4, The Origin and Prevention of Major Wars, Spring, pp. 749-770, 1988; WILSON, Peter H. The causes of the
Thirty Years War 1618-48. The English Historical Review, v. 123, n. 502, pp. 554-586, junho de 2008.

1299
valentes aos tradicionais centros de poder católicos europeus, especialmente Madri, Paris e Roma206.
A força dessa nova composição interestatal fez eco entre os juristas de tradição anglo-saxã, não sendo
um acaso o fato de os principais nomes da formação da ciência do Direito Internacional moderno
terem sido procedentes de regiões que se envolveram na Guerra dos Trinta Anos.

Na esteira das teorias contratualistas, alguns desses autores se singularizaram por sua tentativa
de positivar algumas matérias de Direito Natural. Entre elas estiveram os“direitos das gentes”, que à
maneira do antigo iusgentium romano, buscavamorientar a dinâmica das relações externas interes-
tatais, tanto em seu âmbito comercial quanto diplomático207. Entre os principais nomes estiveram
Samuel Pufendorf, Hugo Grotius, Christian Wolff e mais especialmente, Emer de Vattel, cuja obra
Le Droitdes Gens – O Direito das Gentes –, publicada em 1755, logo obteve traduções para o inglês,
língua que a possibilitou grande dispersão na década de sessenta do século XVIII.

Como os autores que o antecederam, Emer de Vattel também defendia a tese contratualista da
relação sociedade-Estado, mas o destaque de sua obra foi a dedicação ao entendimento do poder,que
para ele, estava envolto a essa relação contratualista: a soberania. Segundo o jurista, ao organizarem-se
em uma sociedade, os homens entregavam parte de seus direitos naturais ao Estado, que se tornava,
então, soberano, ou seja, o detentor do poder de guarda dos direitos naturais do corpo social. Para
Vattel:
Foi dito que, na sociedade civil, a soberania é a autoridade pública que co-
manda, que determina, e que dirige o que cada membro deve fazer para atingir a
finalidade dessa sociedade. Esta autoridade pertence originária e essencialmente ao
próprio corpo da sociedade, ao qual cada membro está submetido e pelo qual cedeu
os direitos recebidos pela natureza, de conduzir-se em todas as cousas segundo seu
entendimento e sua própria vontade e de fazer justiça por si mesmo. Mas o corpo da
sociedade não retém sempre para si essa autoridade soberana; ele frequentemente
toma a decisão de confiá-la a um senado ou a uma única pessoa. Este senado ou esta
pessoa então torna-se o soberano208.

Como se percebe, a centralidade do Direito Natural na compreensão do contratualismo acom-


panhoua positivação das matérias jurídicas desse campo ao longo do período posterior à Restauração,
inclusive entre autores anglo-saxões como Vattel. Diante disso, pode o leitor associar diretamente a
narrativa da luta restauracionista ao Direito das Gentesvatteliano, raciocínio que apesar de não ser
inteiramente incorreto, carece de uma ressalva importante.

Vattel foi o primeiro jurista europeu a dar à soberania centralidade no entendimento da relação
entre o Estado e a sociedade, e foi sua obra que destacou a origem desse poder no corpo social – “Esta
autoridade pertence originária e essencialmente ao próprio corpo da sociedade”. Nesse sentido, por
mais que o discurso das Cortes de 1641 também se valesse dos direitos naturais do homem como base
à composição do poder estatal, percebe-se na cultura política setecentista portuguesa, um grande
206 GROSS, Leo. The Peace of Westphalia, 1648-1948. The American Journal of International Law, v. 42, n. 1,
pp. 20-41, janeiro de 1948.
207 NUSSBAUM, Arthur. The significance of Roman Law in the History of International Law. University of
Pennsylvania Law Review, v. 100, n. 5, pp. 678-687, março de 1952.
208 VATTEL,Emer de. O Direito das Gentes. Prefácio e tradução: Vicente Marotta Rangel. Brasília: Editora
Universidade de Brasília; Instituto de Pesquisas e Relações Internacionais, 2004, p. 32.

1300
esforço narrativo em se evitar que a concepção que apontava o corpo social como origem do poder
da soberania tomasse outros espaços que não o jurídico. Tratava-se de um tema de Direito bastante
áspero em razão de seu potencial desestruturador do poder estatal, ainda mais em uma monarquia.
Mesmo o próprio Vatteldefendia que seu livro não contasse com mais de duzentos exemplares pu-
blicados, número por ele considerado suficiente para atender a demanda de leitura por estadistas e
monarcas europeus209.

O Estado católico bragantino bebeu muito da tradição protestante advinda da Guerra dos Trinta
Anos, sendo os primeiros Tratados bilaterais da Restauração algumas das marcas desse processo. Mas
é observável, porém, algum recuo dos juristas portugueses nesse quesito após a estabilização do poder
bragantino em inícios do século XVIII, fenômeno que parece ter sido revisto apenas com constitu-
cionalismo ibérico nas décadas de 1810 e 1820.A concepção vatteliana de soberania tendia a ser vista
de forma muito receosa pela tradição político-jurídica portuguesa, especialmente durante os reinados
de D. João V e D. José I, esse último marcado pela proeminência do marquês de Pombal à frente da
governança.

Além de conjugá-la à lógica contratualista e frisar sua origem na sociedade,Vattel defendia que a
soberania era o maior poder de um Estado, tese que o diferenciava de seus predecessores, que tendiam
a entender o conjunto dos Estados como uma espécie de “sociedade internacional”, ou civitatismaxi-
mae, como a chamava Wolff. Segundo Vattel:
É da essência de toda sociedade civil que cada membro tenha cedido uma parte
de seus direitos ao corpo da sociedade, e que haja uma autoridade capaz de comandar
todos os membros, de dar-lhes leis, de coagir os que se recusarem a obedecer. Não
se pode nada conceber nem nada supor de semelhante entre as Nações. Cada
Estado soberano pretende ser, e o é efetivamente, independente dos demais (...) É
verdade que os homens, estando muito longe de observarem voluntariamente entre
si as regras da lei natural, têm recorrido a uma associação política como o único
remédio conveniente contra a depravação de grande número, como o único meio de
assegurar o bem-estar dos bons e conter os maldosos; e a própria lei natural aprova
essa providência. Mas é fácil compreender o fato de que uma sociedade civil entre as
Nações não é tão necessária como tem sido entre os particulares210.

Nota-se que o jurista sugere não ser possível a um Estado estrangeiro promover intervenções na
relação contratualista estabelecida entre outros Estados e os seus respectivos corpos sociais, cabendo
unicamente a esses últimos a crítica ao contrato firmado com a autoridade soberana. O efeito dessa
interpretação era o fortalecimento de poderes locais com pretensões soberanas, que acabavam vislum-
brando a narrativa de Vattel como uma segurança jurídica frente a possíveis resistências externas em
projetos de separação política. É o que parece ter dado ao autor boa visibilidade entre os revolucioná-
rios anglo-americanos de 1776. Eles a utilizaram como um dos principais pilares teóricos da Declara-
çãodeIndependência, um documento diplomático que justificava aos demais Estados a desvinculação
dos colonos anglo-americanos da autoridade soberana britânica, apontada como incapaz de proteger

209Ibidem, p. 58.
210 VATTEL, 2004, p. 80.

1301
os seus direitos naturais211. Como estabelecia o conhecido trecho da Declaração:
Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens
são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão
a vida, a liberdade e a procura da felicidade. Que a fim de assegurar esses direitos, gover-
nos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos
governados; que, sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva de tais fins,
cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo, baseando-o em tais
princípios e organizando-lhe os poderes pela forma que lhe pareça mais conveniente para
realizar-lhe a segurança e a felicidade. Na realidade, a prudência recomenda que não se mu-
dem os governos instituídos há muito tempo por motivos leves e passageiros; e, assim sen-
do, toda experiência tem mostrado que os homens estão mais dispostos a sofrer, enquanto
os males são suportáveis, do que a se desagravar, abolindo as formas a que se acostumaram.
Mas quando uma longa série de abusos e usurpações, perseguindo invariavelmente o mes-
mo objeto, indica o desígnio de reduzi-los ao despotismo absoluto, assistem-lhes o direito,
bem como o dever, de abolir tais governos e instituir novos Guardiães para sua futura se-
gurança. Tal tem sido o sofrimento paciente destas colónias e tal agora a necessidade que as
força a alterar os sistemas anteriores de governo. A história do actual Rei da Grã-Bretanha
compõe-se de repetidas injúrias e usurpações, tendo todos por objetivo directo o estabele-
cimento da tirania absoluta sobre estes Estados. Para prová-lo, permitam-nos submeter os
factos a um mundo cândido212.

Os pensamentos de Vattel se fizeram imensamente presentes nesse documento. Boa parte de sua
argumentação esteve presente em O Direito das Gentes do autor, desde a necessidade da prudência na
troca do governo213 até a ideia de que o direito de o abolir se tornava um dever em casos de tirania214.
Em concorrência com as ideias de pensadores locais, como Thomas Paine, a concepção vatteliana de
soberania – indiretamente mencionada pelo trecho como “guardiã” – se fortaleceu nos Estados Uni-
dos durante seu processo de unificação. A concepção de soberania foi continuamente retomada como
parte das narrativas que justificaram, entre outros, o Congresso da Confederação de 1781, o embargo
comercial de Jefferson de 1809, a Doutrina Monroe de 1823e mesmo a tentativa de desunião da Caro-
lina do Norte durante a Guerra de Secessão.

No Império português, esse entusiasmo com o princípio da soberania foi em alguma medida
velado durante boa parte do século XVIII, emergindo apenas nas narrativas de algumas lutas políticas
surgidasem inícios do século XIX. Bom exemplo do encobrimento desse conceito na tratadística ju-
rídica portuguesa encontra-se no Tratado de Direito Natural de Tomás Antônio Gonzaga, português
historicamente conhecido por seu envolvimento com a Inconfidência Mineira de 1788-1789.

O Tratado foi escrito como tese a um concurso para professor da Faculdade de Leis de Coimbra,
tendo sidodedicado ao então marquês de Pombal, único traço da obra que permite uma possível data-
ção à publicação, situada entre 1769 e 1777215. A obra é, talvez, a mais importante contribuição portu-

211 ARMITAGE, David. Declaração de independência: uma história global. Tradução: Angela Pessoa. São Pau-
lo: Companhia das Letras,2011, p. 31.
212 MAXWELL, Kenneth. O livro de Tiradentes: transmissão atlântica de ideias políticas no século XVIII. São
Paulo: PenguimClassics& Companhia das Letras,2013.
213 VATTEL, 2004, p. 49.
214Ibidem, p. 108.
215 GONZAGA, Tomás Antônio. Tratado de Direito Natural. Organização e apresentação: Keila Grinerg. São
Paulo: Martins Fontes, 2004, p. VIII.

1302
guesa às demais disposições europeias sobre Direito Natural, e não esteve isenta deuma forte predis-
posição de Gonzaga em corrigir aquilo que ele julgasse afastado dos princípios religiosos católicos216.

Para Keila Grinberg, historiadora que deu ao Tratado a sua mais recente edição em português,
Gonzaga dialogou fortemente com alguns dos autores já mencionados anteriormente, entre eles Gro-
tius e Pufendorf217.Estudos clássicos sobre o tema,sobretudo o de Lourival Gomes Machado218, costu-
mam interpretar o pensamento de Gonzaga como fortemente tendente à tradição jurídica de Tomás
de Aquino219, o que lhe garantia certo desprezo por tentativas de secularização dos direitos naturais. É
um dos elementos que parece explicar o empenho de Gonzaga em criticara posição de Hugo Grotius
com relação à teoria de que o Direito Natural existiria independentemente da existência divina220. Ten-
do rendido a Grotiussérias acusações por parte das autoridades religiosas, o postulado foi duramente
rechaçado por Gonzaga, que reconhecia unicamente no deus cristão a origem dos direitos naturais.

Essa posição de Tomás Antônio Gonzaga também guiou seu diálogo com Samuel de Pufen-
dorf, e mais especialmente, com Emer de Vattel, autor que parece ter feito parte do rol de leituras
de Gonzaga, mas que não fora diretamente citado em seu Tratado. Gonzaga refutava o postulado de
Pufendorf referente à distinção para ele existente entre princípios absolutos e princípios hipotéticos.
Os princípios absolutos disciplinavam todos os seres humanos, tendo sua origem em evidências divi-
nas. Já os princípios hipotéticos, ainda segundo Pufendorf, eram aqueles dependentes da vontade do
homem, como o eram os instituídos pelos Estados, por exemplo221. Gonzaga não admitia a existência
dos princípios hipotéticos222, o que dificilmente o permitiria aceitar as defesas de Vattel referentes à
possibilidade de retomada da soberania pelo corpo social. Se se considerar os trabalhos do Primeiro
Congresso Continental estadunidense, por exemplo, nota-se que um de seus principais objetivos foi
a revisão de certas regulamentações estatais, e é importante a contribuição vatteliana à narrativa das
missivas do Congresso à Coroa britânica223. Nesse sentido, para o autor do Tratado de Direito Natu-
ral, a formação contratualista da sociedade explicava apenas a constituição da governança, que seria
permanente e com origem em um passado cristãomuito remoto, o que devia impossibilitar suacrítica
por parte do corpo social.

Alguns trechos do Tratado indicam que seu autor parece ter suprimidoo que se aproximasse às
teses vattelianas. Um desses trechos é a passagem abaixo, pela qual Gonzaga elaborava sua conclusão
a respeito daquela que considerava como sendo a melhor das formas de governo: a monarquia. Assim
escreveu o autor:
Creio que ninguém duvidará que a democracia é a pior de todas. Primeiro que se
ajunte um povo, se conformem os votos e se decida a coisa, já muitas vezes tem chegado

216Ibidem, p. X.
217Ibidem, p. XX.
218 MACHADO, Lourival Gomes. Tomás Antônio Gonzaga e o direito natural. Rio de Janeiro: MEC, 1953.
219 GONZAGA, 2004, p. XXIII.
220Ibidem, p. XXI.
221Ibidem, p. XX.
222Ibidem, p. XXII.
223 YORK, Neil L. The First Continental Congress and the problem of American rights. The Pennsyvania Ma-
gazine of History and Biography, v. 122, n. 4, outubro de 1998, p. 368.

1303
o mal a termos que não tem remédio, à maneira do enfermo que morrer pela indelibera-
ção do médico, quando poderia viver, se o mal se lhe atalhasse logo em seu princípio. (...)
Daqui se segue ser a Monarquia a melhor forma de governo, não só por ser mais pronta,
mas também por se evitarem os incômodos que se experimentam nas aristocracias, don-
de cada um dos seus Optimates [membros da antiga aristocracia romana] não pertende
ser nada menos que um soberano224.

Em termos de cultura jurídica escrita, a presença da palavra soberano na obra de Gonzagaainda


era uma novidade, principalmentese se levar em consideração que o vocábulo era raramente empre-
gado nos textos dos Tratados bilaterais firmados por Portugal entre 1641 e 1760 – década, essa última,
epicentro das disputas territoriais luso-espanholas na América.Apesar disso, nota-se que Gonzaga
buscou associar o poder da soberania a um sentido de ambição, marcado pela pretensão aristocrática
pelo poder. Como Emer de Vattel, Gonzaga também aceitava a ideia deque a sociedade civil era apro-
vada pela lei divina, pois ela seria a única maneira de se conter a maldade dos homens vis.Porém, para
além disso, Gonzagacentralizava a monarquia como a forma de governo mais eficiente no que tangia
a esse objetivo, já que ela marcava uma dificuldade à ambição daqueles com presunções soberanas.

Ainda há muita incerteza a respeito da interpretação do modo comoGonzaga guiara a escrita


de seu Tratado de Direito Natural. Há quem defenda que o autor apenas buscou se adequar à tradição
jurídica defendida por Pombal com o fim de conseguir a vaga na Faculdade de Coimbra225. Há, tam-
bém, quem aponte a necessidade de se entender a pluralidade das facetas da personagem, que transita
do autor do Tratado de Direito Naturalao inconfidente de 1789226. Entretanto, no que tange ao uso do
conceito de soberania, parece certo que Gonzaga se esforçou em distanciar sua obra dos princípios
vattelianos, seguindo, assim, a proposta dos Estados ibéricos em conciliar, na ciência jurídica, Ilus-
tração e Escolástica227. Isso, porém, é algo que se modificou em apenas algumas poucas décadas entre
pensadores que, pelo menos apriori, tenderiam a compartilharas ideias de Tomás Antônio Gonzaga.

Esse é o caso de um dos representantes mais célebres do advento da imprensa portuguesa oi-
tocentista: o letrado, Hipólito José da Costa. Monarquista convicto, em menos de meio século apósa
publicação do Tratado de Direito Natural, Hipólito da Costa já construía narrativas políticas afeitas ao
conceito de soberania de Vattel, autor que chegou a ser diretamente citado pelo letrado em várias de
suas publicações entre 1808 e 1821. Diante disso, é necessário compreender os usos do conceito de so-
berania como parte de um processo maior de transformação semântica do contratualismo português,
o qual forasumariamente posto em xeque durante as invasões napoleônicas de inícios do século XIX.

A soberania como defesa de direitos: Hipólito da Costa e a invasão napoleônica de 1807

Em finais do ano de 1807, chegavam aos portões de Lisboa as primeiras tropas do exército do
general de Napoleão Bonaparte, Jean-AndocheJunot. Em polvorosa, a capital portuguesa se preparava
224 GONZAGA, 2004, p. 137.
225Ibidem, p. XVII.
226RODRIGUES,André Figueiredo. Tomás Antônio Gonzaga em verso e prosa: comentário de cinco publica-
ções recentes. Revista de História da USP, n. 139, pp. 119-123, 1998.
227CHIARAMONTE, José Carlos. Cidades, Províncias, Estados: origens da nação argentina (1800-1846). Tra-
dução por Magda Lopes. Revisão por João Paulo Garrido Pimenta. São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2009, p.
22.

1304
para o embarque da família real rumo ao Brasil, que declarada extinta pelo governo napoleônico, as-
sinara com a Coroa britânica um acordo de aliança. Entre diversos dispositivos, a Convenção Secreta
de 1807 estipulou a efetivação da reconquista de Portugal a partir da ilha da Madeira, que se manteria
sob controle do exército britânico até a completa expulsão dos franceses do reino.Antes de partir para
o Brasil, no entanto, o Príncipe D. João nomeou uma Junta de Regência para Lisboa, a qual teria entre
seus objetivos os de administrar o reino durante a ausência do Príncipe e de manter relações amistosas
com a Coroa britânica228.

A Regência, no entanto, teve vida breve, e foi extinta por Junot algumas poucas semanas depois
de sua criação, além de ser substituída por um novo organismo governativo presidido pelo próprio
general. O episódio foi marcado por duras e constantes críticas por parte de Hipólito José da Costa,
que em seu jornal, o CorreioBraziliense, editado em Londres, escreveu uma série de textos hostis à
Regência, acusando-a de indiferença frente à tirania do invasor francês. Hipólito entendia que a Re-
gência deveria ter se mostrado resistente a Junot, mesmo que isso significasse a simples publicação de
um protesto. Para o editor, a atitude apática da Regência provava sua infidelidade para com o Príncipe
português, e para com a nação portuguesa, por consequência229.

Para Hipólito, os únicos centros de poder portugueses que estavam se empenhando em prol da
fidelidade ao monarca eram as recém-criadas Juntas Governativas de Porto e Faro, as quais lutavam
militarmente contra os franceses e entabulavam comunicações bilaterais com a Coroa britânica. Hi-
pólito as via de modo muito entusiasmado, e empenhou-se na construção de narrativas que as legiti-
masse. Segundo as páginas de seu jornal:
He mui natural de supor que as outras Provincias do Reyno, seguindo o exemplo
do Minho e do Algarve, cuidem em nomear suas Junctas de Governo provisório; mas a
multiplicidade de Junctasnaõ poderá já mais obrar em concerto, sem que haja um Governo
Geral; e parece que os Portuguezes se lembram já das Cortes; porque as Junctassaõ compos-
tas, tanto no Porto, como no Algarve, de Pessoas tiradas das tres classes, ou ao menos re-
presentando as tres classes, cujos deputados ou representantescompûnham as Cortes; com
efeito no estado de desamparo em que os Regentes deixaram o Reynonaõ poderá haver um
Governo legal para governar a Naçaõ, até que S. A. [Sua Alteza] faça saber a sua vontade, se
naõaquelle, que as Cortes nomearem; e o inimigo proximo a entrar a Hespanha, com todas
as suas forças, além das tropas que conserva em Portugal, requer medidas prontas, como
saõ a colleçaõ de rendas, imposição de tributos, e outros actos de Soberania, que na ausên-
cia de S. A. so dimanando das Cortes poderiam ter legalidade, e força de obrigar a todo o
Reyno230.

Em alguma medida, o trecho distancia-se da concepção de monarquia presente em Tomás An-


tônio Gonzaga. Por um lado, por que, nesse caso, o monarca não era visto como a autoridade mais
pronta para socorrer o reino. Por outro, por parecer haver na narrativa de Hipólito uma certa tran-
quilidade em se afastar, mesmo que episodicamente, o conceito de soberania da autoridade monár-
quica. Entretanto, isso esteve longe de significar que Hipólito não defendesse o poder da monarquia.
228 RABELO, Pedro Henrique de Mello. Soberania da nação ao Estado: a invasão napoleônica da península
ibérica nas páginas do Correio Braziliense (1807-1810). Faces da História, Assis-SP, v. 5, n. 1, pp. 21-43, junho
de2018, p. 24.
229 COSTA, Hipólito José da. Correio Braziliense ou ArmazemLiterario, Londres, 1808, p. 140.
230Ibidem, p. 151.

1305
O movimento narrativo construído por Hipólito envolvia dois elementos. Um era de ordem mais
tradicional, que valorava as Cortes como o centro de poder legítimo frente a situações de tirania, algo
que já estivera presente na Restauração em 1640. O outro elemento, por sua vez, já parecia se guiar por
experiências, que como a independência dos Estados Unidos, associavam diretamente a defesa de di-
reitos naturais à retomada do poder pelo corpo social pela via de um poder legislador. Nesse aspecto,
é importante ressaltar que diferentemente da era pombalina, em inícios do século XIX incrementa-
vam-se significativamente os argumentos favoráveis à positivação dos direitos naturais, movimento há
décadas presente na cultura jurídica anglo-saxã – que Hipólito conhecia bem –, e que se encontrava
em clara agitação no mundo ibérico em função da atuação das Juntas Governativas.

Hipólito queixava constantemente a respeito do abandono do costume de se convocar as Cortes


em episódios importantes para o império. No número do CorreioBraziliense de fevereiro de 1809, por
exemplo, Hipólito escreveu:
Um governo popular he, na minha opinião, o mais bem calculado para sacar a
publico os talentos, que há na naçaõ, e para desenvolver o enthusiasmo, que resulta de
se considerarem todos os Cidadaõs, em via de ter parte, ou voto, na administração dos
negócios públicos. Mas quando assim fallo, entendo o chamamento de Cortes, e outras
instituiçoens, que formavam a parte Democratica da excelente Constituiçaõ antiga de
Portugal. Naõquero pois entender, de forma alguma, por Governo popular, a entrega
da autoridade suprema nas maõs da populaça ignorante; porque isso he o que constitue
verdadeiramente a anarchia; e nesta se deve cahir necessariamente todas as vezes, que o
vigor e enthusiasmo do povo, excede a energia e talentos dos que governam231.

O trecho é uma das mostras mais importantes do esforço feito por Hipólito em se afastar de
qualquer resquício narrativo que aproximasse seu jornal à memória coletiva portuguesa da Revolução
Francesa. Ao contrário, nele o letrado reforçava sua defesa das monarquias ibéricas, pois ele as enten-
dia como guardiãs dos direitos naturais dos seus súditos, o que aproximava sua narrativa à presente na
Declaração de Independência estadunidense.

É importante se compreender que Hipólito defendia, baseado em Emer de Vattel, o princípio


da “soberania da nação”, que em sua concepção, seria caracterizada por uma série de direitos naturais,
entre eles os de liberdade, independência e religião, que seriam salvaguardados pela monarquia
bragantina, que, por sua vez, era contratualmente ligada ao corpo social português desde a Restauração
de 1640. Nesse sentido, defender os direitos dinásticos do rei significava, para Hipólito, defender
simultaneamente os direitos dos súditos portugueses como nação, termo esse último cujo sentido
também se encontrava em transmutação nesse período. No CorreioBraziliense, especificamente, so-
berania e nação aglutinavam-se com um sentido bastante claro pela defesa dos direitos de liberdade,
independência e religião – assim como das suas variantes nos campos do comércio, da navegação, da
defesa de territórios, etc; –, de modo que Hipólito costumava escrever:
O sustentar a honra, e ainda o orgulho da naçaõ, naõhe logo adorar um ente imaginario; he sim
defender a barreira, que cerca os nossos mais preciosos direitos; e invadida esta barreira, apenas haverá
forças humanas, que possam atalhar o progresso de um invasor poderoso232.

231COSTA, 1808, p. 175.


232Ibidem, p. 322.

1306
O trecho permite a compreensão de boa parte das impressões de Hipólito sobre a Regência e as
Juntas Governativas, além de indicar alguns dos novos sentidos que o conceito de soberania adquiriu
em inícios do século XIX. Aos olhos de Hipólito, entre os dois entes citados, apenas as Juntas Gover-
nativas pareciam cumprir o dever – portanto o direito, se se considerar o pensamento de Vattel – de
conservar os direitos da nação e do Estado portugueses, portanto a elas pertenciam, doravante, a so-
berania sobre o reino de Portugal.

Para Hipólito, o Príncipe D. João, por seu turno, nunca perdera sua autoridade soberana, pos-
suindo, inclusive, o direito – portanto, o dever – de expandi-la sobre os territórios coloniais da Es-
panha a partir do Brasil233. Por outro lado, em função da tirania napoleônica e da incapacidade da
Regência, D. João perdia progressivamente sua soberania sobre o território mais importante do impé-
rio, o reino, tornando-se urgente a necessidade da sua salvaguarda por uma instituição legítima que
respeitasse o antigo contrato social português. Nesse episódio, segundo o raciocínio de Hipólito, a
atuação das Juntas era a mais forte garantia da manutenção da soberania do monarca.

As Cortes, nesse sentido, representavam a guarda dos direitos das três classes da nação por-
tuguesa, e as Juntas Governativas adotavam-nas como modelo para sua atuação, protegendo, assim,
tanto os direitos dos súditos reinóis, quanto os do Príncipe D. João. Sua comunicação com o monar-
ca britânico, por exemplo, atestava não só o respeito à aliança firmada pelo Príncipe em 1807, mas
também a possibilidade de uma reabertura político-comercial entre Portugal e as ilhas britânicas no
contexto do Bloqueio Continental, ação que atendia a interesses de negociantes, de oficiais civis e mi-
litares, de magistrados e até mesmo de clérigos portugueses, afinal todas essas classes teriam de volta
assegurados os seus direitos de independência, liberdade – de comércio e navegação – e religião.

Assim, a soberania também passou, no mundo luso-brasileiro, a ser rotineiramente utilizada


para se referir aos direitos da nação, mesmo que ainda apenas indiretamente pela via da monarquia. E
nesse aspecto, mais uma vez o Direito das Gentes de Emer de Vattel aparece como um ponto de refe-
rência, sobretudo para o estudo da participação desse conceito na linguagem política ibero-americana
das décadas de 1810 e 1820, e,em especial, na Revolução Pernambucana de 1817.

3. A concorrência da “soberania do povo”: considerações a respeito da Revolução Pernambucana


de 1817

Foi certamente com a Revolução Pernambucana de 1817 que a convulsão propiciada pelas refle-
xões acerca do princípio de soberania tomou centralidade no espaço luso-brasileiro. Com o objetivo
de pôr fim ao poder dos Bragança sobre a região, o Governo Provisório de Pernambuco enviou três
missões diplomáticas oficiais ao exterior: uma aos Estados Unidos, uma às Províncias Unidas do Rio
da Prata e uma ao Reino Unido. O objetivo das missões era conseguir armas, empréstimos, embarca-
ções, combatentes e o reconhecimento da República pernambucana234, que ficava organizada a partir

233COSTA, 1808, p. 63.


234 RIBEIRO, Gustavo dos Santos; CABRAL, Flávio José Gomes. A missão Cabugá nos EUA: uma página da
revolução pernambucana de 1817. Anais do V Colóquio de História Perspectivas históricas: historiografia,
pesquisa e patrimônio. 16, 17 e 18 de novembro de 2011, p. 191.

1307
de um novo ordenamento jurídico corporificado pelas Leis Orgânicas de 1817235.

Hipólito José da Costa chegou a ser cotado como emissário do movimento em Londres236, oferta
recusada pelo letrado certamente em função de suas oposições ao modo como o princípio da sobera-
nia estava sendo exaltado entre os revolucionários. Como nas narrativas de Hipólito, as proclamações
do Governo Provisório também reverenciavam o movimento restauracionista de 1640 e a ideia de
que a soberania simbolizava a defesa dos direitos à liberdade, à independência e à religião. Entretanto,
diferentemente de Hipólito, os revolucionários pernambucanos anulavam a importância da monar-
quia bragantina e, ao contrário, defendiam a sua responsabilidade pelas injustiças que eles entendiam
grassar as capitanias do norte do Brasil, o que dificilmente agradaria ao editor do Correio Braziliense.

Acompanhando concepções vattelianas, as primeiras publicações do Governo Provisóriodefen-


diam a necessidade da retomada do poder estatal pelo corpo social, e nesse aspecto aproximavam-se
das defesas de Hipólito ao considerarem o poder representativo – embora não necessariamente as
Cortes – como o mais adequado nesse processo. Segundo o decreto que convocava a Assembleia
Constituinte de Pernambuco, por exemplo:
O governo Provisório da República de Pernambuco, revestido da Soberania pelo
povo, em quem ela só reside, desejando corresponder à confiança do dito povo, e co-
nhecendo que sem formas e regras fixas e distintas o exercício das funções que lhe são
atribuídas, por vago, inexato e confuso, não pode deixar de produzir choques, e dissen-
sões sempre nocivas ao bem geral, e assustadoras da segurança individual, fim e alvo dos
sacrifícios sociais237.

Outra conhecida proclamação revolucionária, o Preciso, de autoria do líder pernambucano José


Luís de Mendonça, buscava tranquilizar os pernambucanos a respeito da destituição do governador
bragantino Caetano Pinto Montenegro, considerado representante de uma das características que jus-
tificavam a sua retirada do poder: o seu fomento à diferenciação na administração da Justiça conferida
a portugueses e brasileiros. Segundo o Preciso:
Os Patriotas no fim de duas horas acharam-se sem chefes, sem governador era
precisa precaver as desordens da anarquia no meio de uma povoação agitada e de um
povo revoltado. Tudo se fez em um instante, tudo foi obra da prudência e do patriotismo.
Pernambucanos, estai tranquilos: a paz reina na capital, o povo está contente, já não há
distinção entre os brasileiros e europeus, todos se conhecem irmãos descendentes da
mesma origem, habitantes do mesmo país, professores da mesma Religião. Um Governo
Provisório iluminado escolhido entre as ordens do estado preside a vossa felicidade238.

O efeito dessa narrativa sobre as relações externas de Pernambuco foi o seu completo desalinha-

235ANDRADE, Breno Gontijo. A guerra das palavras: cultura oral e escrita na Revolução de 1817. 297f. Dis-
sertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte, 2012, p. 180.
236 CABRAL, Flávio José Gomes. A divulgação da revolução de 1817 entre os pernambucanos e na imprensa
norte-americana. XXVIII Simpósio Nacional de História – Lugares dos historiadores: velhos e novos desafios.
Florianópolis (SC), 27 a 31 de julho de 2015, p. 9.
237 BERNARDES, Denis. O patriotismo constitucional: Pernambuco, 1820-1822. São Paulo: Edusp, 2002, p.
206.
238MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E SAÚDE. Documentos Históricos, Revolução de 1817. Biblioteca Nacio-
nal; Divisão de Obras Raras e Publicações: 1953, pp. 14-16.

1308
mento da diplomacia bragantina desenvolvida a partir do Rio de Janeiro. Contrário à aliança anglo-lu-
sa decorrente da Convenção de 1807, o Governo Provisório de Pernambuco buscou aproximar-se de
outros centros de poder mais afeitos aos interesses daqueles que sustentaram o movimento em Recife,
sendo centrala missão diplomática enviada aos Estados Unidos. O porto de Recife, segundo agentes
consulares portugueses instalados nos Estados Unidos, chegava a receber mais embarcações mercan-
tes estadunidenses que a própria Lisboa239, configurando-se em umdos poucos lugares no Brasil a
oferecer aos britânicosuma concorrência estrangeira forte o bastante para lhes anularem as vantagens
asseguradas pelo Tratado anglo-luso de 1810240.

A “guerra de palavras” – citando Breno Gontijo (UFMG)– travada pela Revolução contra o
governo realista garantiu a ela o apoio da Igreja, da elite mercantil recifense e dos latifundiários algo-
doeiros e canavieiros do interior, grupos que viam no Governo Provisório uma autoridade soberana
bem mais inclinada à defesa de sua “segurança individual”241 que a monarquia bragantina. Não foi
um acaso, nesse aspecto, o incremento da narrativa dos revolucionários com menções ao processo da
expulsão dos neerlandeses durante a Restauração de 1640. A memória do período não só buscava dar
legitimidade popular ao movimento, como tinha bases de ordem político-jurídica que justificavam
que o Brasil só se mantinha com os domínios bragantinos em função das lutas travadas pelos pernam-
bucanos seiscentistas.

Como a narrativa que outrora garantira aos apoiadores do duque de Bragança o entabulamento
de novas alianças e redes de comércio externas, as proclamações do Governo Provisório conseguiram
servir de sustentação aos seus emissários no exterior, sobretudo nos Estados Unidos, onde o enviado
Antônio Gonçalves da Cruz chegou a se tornar cônsul-geral de D. Pedro I após a independência do
Brasil242. A diferença primordial existente entre os dois movimentos refere-se à concepção de sobera-
nia, que se ainda parte da formação tratadística do Direito Natural durante a Restauração, já se confi-
gurava como um conceitopositivo de Direito das Gentes em inícios do século XIX.

É evidente, porém, que seu sentido estava longe de ser unívoco, mesmo entre aqueles que aceitavam
a sua centralidade para o contratualismo. Se Hipólito José da Costa era um defensor do princípio da
soberania como defesa aos direitos da nação, igualmente o eram os revolucionários pernambucanos,
porém com a diferença elementar de que a autoridade soberana não se reservava necessariamente
à monarquia bragantina. Tanto Hipólito quanto os revolucionários de 1817 concordavam com o
princípio vatteliano de que a soberania podia, eventualmente, ser retomada pelo corpo social. Mas
para o editor do CorreioBraziliense isso jamais significaria a entrega da “autoridade suprema nas maõs

239 RIBEIRO, Jorge Manuel Martins. Comércio e diplomacia nas relações luso-americanas (1776-1822). 2000f.
Tese (Doutorado em História Moderna e Contemporânea) – Faculdade de Letras, Universidade do Porto, 1997,
p. 207.
240 FITZ,Claitin A. “A stalwart motor of revolutions”: na American Merchant in Pernambuco, 1817-1825. The
Americas, n. 65, v. 1, pp. 35-62, julho de 2008, p. 46.
241 BERNARDES, 2006, p. 206.
242RABELO, Pedro Henrique de Mello. Amizade, comércio e navegação: o Tratado de 1829 e as relações po-
lítico-mercantis entre o Brasil e os Estados Unidos na formação do Império brasileiro (1808-1831). 197f. Dis-
sertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Ouro
Preto, Mariana, 2017, p. 58.

1309
da populaça ignorante”243, o que embora certamente compartilhado pelos revolucionários de 1817,
não foi empecilho para que eles se valessem da expressão “soberania do povo” em suas proclamações.

Isso posto, nota-se ser tarefa árdua e ainda em processo a compreensão daspossíveis relações
existentes entre os vários sentidos das palavras mencionadas neste texto, ainda mais considerando-se
um arco temporal que supera os cem anos. Entretanto, é definitivamente importante a consciência
de sua aproximação ao processo de positivação do Direito Natural e das Gentes ao longo dos séculos
XVII e XIX, com especial destaque à obra de Emer de Vattel, O Direito das Gentes.Foi esse o campo
jurídico por meio do qual formou-se o corpo de algumas das principais narrativas de projetos políti-
cos surgidos no espaço atlântico na Modernidade.Os direitos naturais e das gentes formaram o plano
de fundo narrativo à formação de diferentes concepções de nação, povo, soberania, entre outras pa-
lavras, tendo cada uma importância única à compreensão da formação dos poderes soberanos, assim
como ao do entabulamento de alianças e elos comerciais com o exterior.

Assim, este texto é, em si, parte da saudável e produtiva discussão promovida pelo Simpósio
Temático Revoltas, inconfidências e independências: episódios, poderes e narrativas das lutas políti-
cas no Brasil – séculos XVII-XIX, organizado pelos professores André Figueiredo Rodrigues (Unesp)
e Luciano Raposo de Almeida Figueiredo (UFF) durante aúltima edição do Encontro Internacional
de História Colonial ocorrido em Natal, no Rio Grande do Norte. Muitas das reflexões citadas neste
texto são frutos dos trabalhos do Simpósio, que assim prova sua importante contribuição à troca de
experiências de pesquisa entre estudantes da área das Humanidades, campo infelizmente cada vez
mais desvalorizado no Brasil.

Por fim, mas não menos importante, o autor expressa por meio deste texto o seu mais profundo
pesar pela destruição do Museu Nacional, consumido em chamas por uma sociedade que ainda não
reconhece suficientemente as áreas da Educação e da Cultura como pontes a um futuro mais próspero
e humanizado.

Referências

ANDRADE, Breno Gontijo. A guerra das palavras: cultura oral e escrita na Revolução de 1817. 297f.
Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Fe-
deral de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2012.

ARMITAGE, David. Declaração de independência: uma história global. Tradução: Angela Pessoa. São
Paulo: Companhia das Letras, 2011.

BATISTA, Felipe de Alvarenga. Os Tratados de Methuen de 1703: guerra, portos, panos e vinhos. 127f.
Dissertação (Mestrado em Economia Política Internacional), Instituto de Economia, Universidade
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O conceito de república em frei Caneca


Pedro Henrique Duarte Figueira Carvalho244

Frei Joaquim do Amor Divino Caneca nasceu em 1779 e morreu em 1825. Sua trajetória polí-
tica foi agitada. Carmelita, foi aluno e professor do Seminário de Olinda, principal iniciativa ilustrada
conhecida na colônia, participou da Insurreição Pernambucana de 1817 e foi preso na Bahia só sendo
solto em 1821 em meio à constitucionalização do Império luso-brasileiro. De regresso a Pernambuco,
foi um entusiasta da Junta Constitucionalista chefiada por Gervásio Pires Ferreira e, posteriormente,
defendeu a Independência do Brasil e a escolha de D. Pedro como Imperador constitucional do Brasil,
chegando a escrever um sermão para celebrar tal fato. Entretanto, o fechamento da Assembleia Cons-
tituinte e a consequente outorga de uma Constituição pelo imperador contribuíram para que o frade
passasse a se opor a D. Pedro I e, posteriormente, aderisse a Confederação do Equador, sendo seu
líder intelectual e, consequentemente, morto por tal participação durante a repressão. Apesar disso, a
historiografia só dedicou atenção na sua participação no Tyhpis Pernambucano, do qual era o editor,
e sua participação na Confederação do Equador.

O objetivo do presente trabalho é apresentar alguns apontamentos para uma análise que abor-
de o pensamento político de frei Caneca antes do fechamento da Constituinte e de sua participação na
Confederação do Equador. Para tal, foram escolhidos dois de seus escritos: o “Sermão da aclamação de
D. Pedro I” e o “Voto sobre o projeto de Constituição oferecido por D. Pedro I”. No primeiro, o frade
elogia a escolha do futuro imperador como libertador do Brasil e elege a monarquia constitucional
como a melhor forma de governo. Já no segundo documento, frei Caneca critica duramente D. Pedro
I por ter fechado a Assembléia Constituinte, elege o poder moderador como o principal instrumento
de opressão do povo brasileiro e, consequentemente, recusa o projeto de Constituição oferecido pelo
imperador. Diante disso, buscarei analisar como, a partir de tais documentos, podemos esboçar um
244 Mestrando-PPGH/UFF. Bolsista Cnpq. E-mail: velho.phcarvalho@gmail.com

1312
conceito de república em torno da ideia de bem comum. Para tal, buscarei realizar uma aproximação
entre a história do discurso e a história dos conceitos tendo como base a proposição de ReinhartKo-
selleck, segundo a qual, os conceitos dependem dos discursos para apreender tanto os contextos lin-
guísticos como os extralinguísticos245.

A primeira metade do século XVIII foi marcada pela consolidação das monarquias absolu-
tistas. Tal movimento era uma ameaça para as repúblicas, pois ameaçava a sua existência e reforça a
concepção vigente na época de que a monarquia era a forma adequada de governo para Estados em
formação, enquanto o regime republicano era concebível somente para pequenas formações políticas.
Entretanto, as repúblicas não foram absorvidas pelas monarquias e este fato permitiu que a tradição
republicana continuasse viva. Além disso, na segunda metade do mesmo século, se o republicanismo
não era mais uma alternativa à monarquia, continuava ativo no plano dos costumes246. O republica-
nismo transformara-se em uma linguagem, que ao valorizar a virtude e a moral, era bem aceita entre
os principais círculos da ilustração europeia.

As revoluções Americana e Francesa acarretaram importantes consequências para o republi-


canismo. De um lado, elas fecham o ciclo republicano da época moderna e abrem uma nova época
na história das repúblicas247. Por outro lado, tais movimentos adicionaram mais um significado ao
conceito de república. Este não portava mais a noção de coisa pública aplicável a qualquer forma de
governo. Tal conceito adquiriu um significado que se afirmava em oposição às monarquias e ao despo-
tismo e também se afastava das tradicionais categorias aristotélicas sobre o governo. Outra mudança
importante foi a transformação de república em um conceito de movimento, ou seja, era um objetivo
que se colocava no horizonte de expectativa dos homens e que deveria ser alcançado através da ação
política, o que ficou posteriormente conhecido como republicanismo248.

Entretanto, apesar das revoluções de fins do século XVIII terem consagrado república como
uma forma de governo, seus diversos significados aumentaram e não diminuíram. Nos Estados Uni-
dos, John Adams não sabia o que era uma república. Já na França, Benjamim Constant argumentou
que a única diferença entre a república e a monarquia constitucional residia na forma e não foram
poucos os franceses que qualificavam a Monarquia de Julho como a melhor das repúblicas249.

Pode-se dizer que o mundo luso-brasileiro não foi indiferente a tais transformações durante o
período que é o escopo do presente trabalho: o final do século XVIII e o início do XIX. As conjurações
que ocorreram neste período aperfeiçoaram o conceito de república e concebiam a instalação de go-

245KOSELLECK, Reinhart. Uma resposta aos comentários sobre o GeschichtlicheGrundbegriffe. In: JASMIN,
Marcelo G. e FERES JÚNIOR, João (orgs.). História dos conceitos: debates e perspectivas. Rio de Janeiro: Edi-
tora Puc-Rio, Edições Loyola, Iuperj, 2006, p. 104.
246 VENTURI, Franco. Utopia e reforma no iluminismo. Bauru: Edusc, 2003, p. 140.
247Ibidem, p. 178.
248 KOSELLECK, Reinhart. “Espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”: duas categorias históricas.
In: ______. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto,
Editora Puc-Rio, 2006, p. 325.
249FLORENZANO, Modesto. República (na segunda metade do século XVIII – história) e Republicanismo
(na segunda metade do século XX – historiografia). In: SOIHET, Rachel et al (orgs.). Culturas políticas: ensaios
de história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: Mauad, Faperj, 2005, p. 47-48.

1313
vernos republicanos. Como propõe Heloisa Starling, as conjurações de fins do século XVIII formaram
uma linguagem republicana que girava em torno do autogoverno e de uma administração zelosa do
bem público. Além disso, a espacialidade de tais movimentos demonstra que o republicanismo não
era restrito a um único evento político, nem a uma única capitania250. Entretanto, a defesa da monar-
quia constitucional na Revolução do Porto em 1820 e na Independência do Brasil em 1822 limitaram
as possibilidades do republicanismo. Por causa da adesão àquela forma de governo, o conceito de
república se escondeu sob a fórmula de uma monarquia republicana ou popular, na qual a ênfase dos
princípios democráticos ou republicanos e a predominância da câmara popular enfraqueceriam o
principio monárquico251. Além disso, na cultura política do constitucionalismo luso-brasileiro, repú-
blica era um conceito que se opunha à monarquia e era concebido como uma forma de governo em
que povo é livre e se governa através da eleição de magistrados252.

Apesar dos poucos exemplos, parece razoável afirmar que o conceito de república no mun-
do luso-brasileiro passou por algumas transformações, mas não as propostas por ReinhartKoselleck.
Apesar de conceberem a república como oposição à monarquia, tais concepções são frutos do temor
da experiência da Revolução Francesa, ou seja, a república no mundo luso-brasileiro não se colocou
no horizonte de expectativa dos diversos atores políticos em fins do século XVIII e início do XIX. De
fato, a república não se transformou em republicanismo.

Diante de tal contexto, a hipótese assumida neste trabalho é a de que frei Caneca formulou
um conceito próprio de república a partir das linguagens políticas do constitucionalismo histórico e
do humanismo cívico. Para tal, partimos das constatações de J. G. A. Pocock sobre a história do pen-
samento político. A primeira delas é a de que as transformações ocorridas em uma sociedade e suas
consequências para o pensamento e a ação políticas são assimiladas a partir de linguagens antigas para
que os paradigmas antigos prevaleçam sobre os novos. A segunda delas é a de que a linguagem não
é somente um idioma partilhado entre uma série de atores, e sim um recurso disponível e difundido
ao ponto de ser conhecido e fazer parte do discurso de pessoas engajadas em discussões que não lhes
diziam respeito253. Por fim, cabe destacar a proposta, segundo a qual, determinada parole só pode ser
compreendida quando anunciada a partir de uma determinada langue, ou seja, quais foram as lingua-
gens políticas que os diversos atores acionaram para emitir seus discursos.

Assim sendo, é necessário delinear as linguagens políticas em Pernambuco no período em que


escreveu e qual era ou quais eram os significados que República assumia para os pernambucanos. De
tal forma, pode-se compreender melhor o contexto linguístico e extralinguístico no qual frade emitiu
seus atos de fala e formulou seu conceito de república.

250 STARLING, Heloisa M. Ser republicano no Brasil colônia: a história de uma tradição esquecida. São Paulo:
Companhia das Letras, 2018, p. 244-246.
251 STARLING, Heloisa M. e LYNCH, C. E. C. República/republicanos. In: FERES JÚNIOR, João (org). Léxico
da história dos conceitos políticos no Brasil. 2ª edição. Belo Horizonte: Editora Ufmg, 2014, p. 193-195.
252 NEVES, Lúcia M. B. Pereira das. Corcundas e constitucionais: a cultura política da independência (1820-
1822). Rio de Janeiro: EditoraRevan, Faperj, 2003, p. 192.
253POCOCK, J. G. A. The concept of a language and the métier d‟historien: some considerations on practice.
In: PAGDEN, Anthony (ed.). The Languages of Political Theory in Early-Modern Europe.Cambridge: Cambri-
dge University Press, 1990, p. 31 e 35.

1314
Apesar de sua importância ter declinado ao longo do século XVIII, a capitania e a futura pro-
víncia de Pernambuco apresenta duas singularidades que chamam a atenção do historiador do pen-
samento político. A primeira delas é a presença de um forte discurso nativista, formulado no século
XVII, apropriado e reformulado ao longo de diversos episódios da história da capitania. Além disso,
Pernambuco também foi marcado por sua associação ao republicanismo pelo fato de que tanto a
Guerra dos Mascates (1710-11) como a Insurreição Pernambucana e a Confederação do Equador
(1824) cogitaram o estabelecimento de repúblicas. De fato, a capitania e futura província foi o local de
excelência da tradição republicana, especialmente ao longo do século XIX254.

Em dois pequenos artigos, Evaldo Cabral de Mello esclarece alguns mitos sobre o republicanis-
mo em Pernambuco. Primeiramente, coloca que este não pode ser associado à experiência holandesa
do século XVII. Os pernambucanos, por também serem portugueses, rejeitavam tanto as crenças po-
líticas dos holandeses, como sua religião. A ausência de monarca fazia com que os holandeses, além
de heréticos, fossem homens sem lei. Além disso, repudiavam terem de ser súditos de uma empresa
mercantil e a valorização de elementos aristocráticos fazia com que repudiassem a presença de indiví-
duos populares no governo. Entretanto, cabe destacar que os holandeses não implantaram instituições
republicanas em Pernambuco, fazendo com que a oposição portuguesa aos batavos tivesse raízes na
condição colonial imposta pela Companhia das Índias Ocidentais, visto a tradição de autonomia de
Pernambuco por gozar do status de capitania donatarial255.

O modelo de república para a açucarocracia pernambucana era o de Veneza e a Guerra dos


Mascates foi a única manifestação de tal mito conhecida na América Portuguesa. De fato, a experiên-
cia veneziana foi o principal modelo republicano da época moderna, chegando a superar o modelo
formulado na Antiguidade Clássica e até mesmo a influenciar a independência das Treze Colônias
inglesas em finais do século XVIII256. O sucesso de tal modelo baseava-se no duradouro apego que
Veneza demonstrou aos ideias de autogoverno e independência formulados durante a Renascença.
Mesmo com o avanço dos príncipes, a República se manteve estável e preservou o regime republicano.
Tal sucesso não deixou de atrair a atenção de vários pensadores políticos. Para eles, o mérito de tal
sistema foi a fusão das três formas “puras” de governo: a monarquia, a aristocracia e a democracia.
O governo misto dos venezianos era composto por: o Conselho Grande, responsável pela eleição dos
magistrados, o Senado, responsável pela política externa e pelas finanças, e o Doge, o chefe de esta-
do257. Sua superioridade residia em sua capacidade de combinar as virtudes da monarquia, da demo-
cracia e da aristocracia impossibilitando a degeneração do sistema político tal como previram Políbio
e Aristóteles. De tal forma, distanciava-se das monarquias dissimuladas e das repúblicas demasiado
democráticas.
254 STARLING e LYNCH, op. cit., p. 195.
255 MELLO, Evaldo Cabral de. “O republicanismo no Brasil holandês”. In: ______. Um imenso Portugal: his-
tória e historiografia. São Paulo: Editora 34, 2002, p. 150.
256 Cf. POCOCK, J. G. A. The Machiavellian Moment: Florentine Political Thought and the Atlantic Republi-
can Tradition. Princeton: Princeton University Press, 1975. Franco Venturi também argumentar que Veneza era
o modelo a se seguir na segunda metade do século XVIII por conta de sua neutralidade política e sua ênfase ao
comércio. VENTURI, op. cit., p. 95.
257 SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras,
1996, p. 160-161.

1315
Tal modelo atraía a açucarocracia por ser oligárquico e por permitir o monopólio dos cargos
da república, justamente quando os senhores de engenho de Olinda estavam em conflito com os mer-
cadores do Recife pelo domínio da capitania. Em petição ao rei de 1704, a nobreza da terra reafirmava
seu domínio ao pedir que somente os senhores de engenho pudessem votar nas eleições e ocupar
os cargos das câmaras. Durante a Guerra dos Mascates, os pró-homens, ainda que em minoria, não
deixaram de cogitar a adoção do regime republicano. A república colocava-se como uma possibili-
dade, pois tal regime conseguira superar sua imagem de instabilidade e subordinação crônicas e não
era concebido como uma oposição às monarquias, e sim como uma forma de governo. Além disso,
o sistema republicano era adequado a Pernambuco, pois este não era um grande Estado territorial258.

Entretanto, o direito de constituir-se em república dos pernambucanos também se fundamen-


tava nos argumentos da Segunda Escolástica. A açucarocracia já derrubara um governador no século
XVII e cogitava o assassinato de outro no início do XVIII, pois ambos desrespeitaram os pactos assu-
midos entre a nobreza e os governantes. Aquela concebia a existência de uma relação contratual entre
ela e o rei que seria fruto da reconquista e devolução da capitania após a expulsão dos holandeses. As-
sim sendo, como o rei tinha violado os compromissos assumidos no pacto, a nobreza podia rebelar-se
e desconsiderá-lo como o seu soberano.

O principal argumento de tal discurso defendia que os pernambucanos haviam reconquistado


a capitania sem a ajuda da Coroa, e sim “à custa de nosso sangue, vidas e fazendas” e, a partir de tal
feito, a nobreza da terra demandava diversos privilégios, entre eles: o de monopolizar os cargos das
câmaras. Sua argumentação sustentava que a reconquista de Pernambuco fora realizada contra o rei,
e não apenas sem ele, mas tal desobediência não era incompatível com o ser leal ao monarca, pois era
dever do vassalo resistir ao mau-governo, como fizeram os portugueses diante de Felipe IV em 1640,
ou seja, a açucarocracia apropriava-se de argumentos da Segunda Escolástica, pois afirmava que era
necessário “resistir ao rei para melhor servir ao rei”, ou seja, o direito de rebelião era acionado para
justificar a luta dos vassalos259.

Assim sendo, ao mesmo tempo em que os pró-homens da capitania de Pernambucano con-


cebiam a república a partir do “mito de Veneza”, não deixavam de utilizar argumentos da Segunda
Escolástica para fundamentar a existência de um pacto entre governantes e vassalos e que o descum-
primento do mesmo legitima o direito de rebelião. De fato, a Revolução de 1817, que se considerava
um recomeço da Guerra dos Mascates, fazia tanto uma releitura e uma apropriação da tradição re-
publicana na colônia como recuperava o discurso pactista do nativismo pernambucano260. Foi neste
contexto linguístico que frei Caneca elaborou o seu conceito de república.

O frade republico

O pensamento de frei Caneca já foi objeto de algumas análises por parte da historiografia. Lú-
cia Maria Bastos Pereira das Neves coloca o frade como parte da elite brasiliense, grupo sem grande
258 MELLO, Evaldo Cabral de.A fronda dos mazombos: nobres contra mascates, Pernambuco, 1666-1715. 3ª
edição. São Paulo: Editora 34, 2012, p. 288-289.
259 Idem.Rubro-veio: o imaginário da restauração pernambucana. 3ª edição. São Paulo: Alameda, 2008, p. 95.
260STARLING, op. cit., p. 240 e 254.

1316
poder aquisitivo e que tinha acesso à Ilustração através da leitura de livros, sendo que alguns eram
proibidos. Não rejeitavam o rei desde de que ele respeitasse a soberania popular e, em certa medida,
ambicionavam que a monarquia fosse a melhor das repúblicas261. Além disso, conjuntamente com
Guilherme Pereira das Neves, ela também coloca o frade como adepto da vertente do constitucio-
nalismo democrático, no qual os homens eram cidadãos por pacto antes de o serem por lei, pois o
estabelecimento de um governo só poderia ocorrer com a presença do povo, no sentido moderno do
conceito, é claro262. Já Roderick Barman destaca que os brasilienses, por não terem se formado neces-
sariamente em Coimbra, adquiriram uma familiaridade com a ideologia das revoluções Americana e
Francesa, ou seja, estavam próximos das concepções de poder e de sociedade oriundas do humanismo
cívico e da política moderna263.

Algumas ponderações sobre o republicanismo de frei Caneca já foram feitas pela historiogra-
fia. Para ele, a obra do frade apresenta a concepção mais bem acabada de republicanismo presente na
Independência. Entretanto, frei Caneca usou o conceito com diversos significados. Assim sendo, seu
republicanismo manifestava-se através de diversos valores. O primeiro deles era a representatividade
e a separação de poderes complementada por um corpo de magistrados. Outra manifestação de seu
republicanismo seria sua defesa da democracia, entendida como o exercício público do poder pelos
cidadãos cuja forma seria a representação encarnada no poder legislativo. Assim sendo, o frade seria
um republicano escondido por dois motivos: sua participação na república de 1817 e a negativação
que o conceito sofrera após a Revolução Francesa, sendo associado à desordem e à anarquia264. De tal
forma, frei Caneca só assumiu publicamente seu republicanismo quando perdeu as esperanças com a
monarquia constitucional.

Já Silvia C. Pereira de Brito defende que o conceito de república em frei Caneca é uma combi-
nação de significados antigos e modernos. De moderno, o republicanismo do frade apresentava sua
associação à defesa do federalismo e à concepção de que a república era a única salvaguarda contra
o despotismo. Já dos antigos, Caneca recuperou o ideal da virtude cívica. De fato, as largas citações
a Cícero na “Dissertação sobre o que se deve entender como pátria do cidadão e deveres deste para
com a mesma pátria” reforçam a ligação entre o frade e o humanismo cívico. De tal forma, Caneca faz
uma interessante associação entre o conceito de república e o de pátria, pois enfatiza a primazia do
bem público sobre o bem individual e demonstra os sacrifícios pessoais que são requeridos em nome
da pátria, pois a defesa desta é a maior dentre as obrigações de um cidadão virtuoso265. Para finalizar,
Caneca defende a república a partir da virtude, enquanto as monarquias são marcadas pela honra,
característica que conduz ao despotismo e a tirania.

261 NEVES, op. cit., p. 88.


262 NEVES, Lúcia M. B. Pereira das e NEVES, Guilherme Pereira das. Constituição. In: FERES JÚNIOR (org.),
op. cit., p. 66.
263 BARMAN, Roderick J. Brazil: the Forging of a Nation, 1798-1852.Stanford: Stanford University Press,
1988, p. 77.
264 LEITE, Renato L. Republicanos e libertários: pensadores radicais no Rio de Janeiro (1822). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2000, p. 47-48.
265FONSECA, Sílvia Carla P. de Brito. A linguagem republicana em Pernambuco (1824-1835).
Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 27, nº 45, 2011, p. 61.

1317
Entretanto, tais interpretações possuem alguns problemas. A interpretação de Rena-
to L. Leite sugere que frei Caneca era um republicano nas entrelinhas. Primeiramente, tal hi-
pótese recorre a um procedimento na história das ideias criticado por Quentin Skinner, qual
seja, a de que os autores escondem suas ideias durante momentos de repressão e que somen-
te os mais letrados podem compreender o que não está escrito explicitamente266. Além disso, a
adesão do frade ao movimento de 1817 parece se basear numa oposição ao absolutismo, em outras
palavras, é razoável dizer que para frei Caneca a diferença entre a monarquia constitucional e a repú-
blica era de forma, e não de conteúdo. Já no caso de Sílvia Carla P. de Brito, concordo que o frade faz
uso de antigos para formular o seu conceito de república. Entretanto, busco evidenciar em que medida
tal uso indica se Caneca compreendia a modernidade como um tempo novo e como esta se formava
a partir de uma mescla com elementos herdados do Antigo Regime267. Além disso, nenhum dos dois
trabalhos se debruça profundamente sobre os escritos anteriores ao fechamento da Constituinte e a
Confederação do Equador.Começemos pelo sermão da aclamação.

Escrito aproximadamente um ano após a aclamação de D. Pedro no Rio de Janeiro, poder-se-


-ia pensar que frei Caneca se ligava aos brasilienses e aos princípios da soberania popular, justamente
pelo fato da aclamação do imperador no Rio de Janeiro ter sido obra dos brasilienses. Apesar de reco-
nhecer que o frade elege o império constitucional como a melhor forma de governo e de conceber a
constituição como o freio das arbitrariedades dos governantes,ele o faz a partir de linguagens antigas e
pensa a forma de governo a partir de categorias antigas, no caso: as aristotélicas. Logo no início de seu
texto, Caneca apresenta uma característica especial das linguagens políticas do mundo luso-brasileiro:
o constitucionalismo histórico.

Embasada nas lembranças da rebelião contra Felipe IV e na aclamação do duque de Bragança


como o novo rei de Portugal, tal linguagem teve um impacto muito grande no império português,
pois redesenhou as bases da monarquia em torno das ideias de bem comum, justiça, bom governo
e da origem popular do poder régio268. De fato, sua importância foi tão grande, que a linguagem do
constitucionalismo histórico se tornou uma tradição no império luso-brasileiro, sujeita a apropriações
em diversos momentos históricos, como evidencia o caso dos inconfidentes mineiros269. Ao tratar da
escolha de D. Pedro como uma aclamação,Frei Caneca já recorria a uma tradição portuguesa que con-

266 SKINNER, Quentin. “Significação e compreensão na história das ideias”. In: ______. Visões da política.
Questões metodológicas. Lisboa: Difel, 2005, p. 102-103.
267GUERRA, François-Xavier. De la política antigua a la política moderna: larevolución de la soberania. In:
GUERRA, François-Xavier e LEMPÉRIÈRE, Annick (orgs). Los espaciospublicosenIberoamerica: ambiguida-
des y problemas. Siglos XVIII-XIX. México: Fondo de Cultura Económica, 1998, p. 109.
268FIGUEIREDO, Luciano R. A. O Império em apuros: notas para o estudo das alterações ultramarinas e das
práticas coloniais no Império colonial português, séculos XVII e XVIII. In: FURTADO, Júnia Ferreira (org.).
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Belo Horizonte: Editora Ufmg, 2001, p. 216. Cf. HESPANHA, Antônio Manuel. A “Restauração” portuguesa
nos Capítulos das Cortes de Lisboa de 1641. Penélope: Revista de História e Ciências Sociais. Lisboa, nº 9-10,
1993, p. 29-62.
269VILLALTA, L. C. As origens intelectuais e políticas da Inconfidência Mineira. In: RESENDE, Maria Efigên-
cia L. de; VILLALTA, L. C. (orgs.). História das Minas Gerais: as Minas Setecentistas. Vol. 2. Belo Horizonte:
Companhia do Tempo, Autêntica, 2007, p. 579-607.

1318
firmava a origem popular do poder régio270. Além disso, exibe argumentos da Segunda Escolástica ao
tratar de três temas importantes: a fundação da sociedade política, a função do governante e o direito
de rebelião. É por esta última que começarei a minha análise.

A discussão da fundação da sociedade política em frei Caneca está vinculada a linguagem da


Segunda Escolástica e suas concepções acerca da natureza do homem. Para ela, a criação de socieda-
des políticas não é diretamente ordenada por Deus, e sim fruto da ação dos homens e criadas como
um meio para atingir fins mundanos. O estado de natureza conduz a injustiça e a incerteza já que o
homem não é capaz de buscar o bem comum sem a existência de leis. Portanto, a existência de auto-
ridades se faz necessária para que o governo seja exercido em nome do bem comum. De fato, o frade
não deixa de ecoar tal argumento quando inicia a parte de seu sermão que em louva D. Pedro como
imperador constitucional. Nas palavras de frei Caneca:
Quer fosse a propensão, que o homem herdou da natureza, para procurar outro ho-
mem e viver em sociedade, evitando as incomodidades e o enojo da solidão; quer
uma encadeação necessária das coisas, dimanada do amor conjugal entre estes e seus
filhos; quer fossem as necessidades da vida, e o desejo de fazê-la cômoda e agradável;
quer a prudência de pôr-se acoberto dos males, que se podiam temer dos outros ho-
mens; quer finalmente outras causas, que ainda não lembraram aos filósofos e publi-
cistas, o que obrigou aos primeiros pais de família a renunciarem à independência do
estado natural, e irem formar as sociedades civis; estabelecidas estas, não se dirigem
a outro fim que o bem da espécie humana, sua existência cômoda e feliz, o aumento
e perfeição de suas faculdades físicas e mentais271.

Neste trecho, frei Caneca toca no ponto essencial descrito nas linhas anteriores, qual seja: a ne-
cessidade do homem de sair do estado de natureza para criar a sociedade política, compreendida pelo
frade como sociedade civil. Apesar de enumerar vários motivos para fazê-lo, o frade toca em outro
ponto essencial para a Segunda Escolástica: a visão do homem como animal social. Para os tomistas,
mesmo no estado de natureza, o homem nunca vivera sozinho. Ao se oporem as concepções estoicas,
reafirmavam a premissa aristotélica, segundo a qual, a vida social e em comunidade é inerente ao ho-
mem, tanto no estado de natureza como em comunidades políticas272.

Frei Caneca também utilizava tais argumentos para discorrer acerca da função do governante
em tais sociedades. Em um trecho, elege a manutenção do bem comum como o objetivo que levou os
homens a estabelecerem as formas de governo. Nas palavras do mesmo:

[...] a salvação do povo é a primeira e a máxima das leis; a fonte donde se derivam
todas as outras; e o ponto de apoio que sustenta os movimentos e equilibra a marcha
de toda a máquina política.

A este fim se instituíram os governos, que vigiassem sobre o bem dos povos no in-
terior das cidades, e fora delas repulsassem os malhes que lhes procurava a ambição
dos conquistadores, e outros opressores injustos273.
270 TORGAL, Luís Reis. Ideologia política e teoria do estado na Restauração. Vol. 1. Coimbra: Biblioteca Geral
da Universidade, 1981, p. 234.
271 CANECA, Frei Joaquim do Amor. “Sermão da aclamação de D. Pedro I”. In: MELLO, Evaldo Cabral de
(org.). Frei Joaquim Amor do Divino Caneca. São Paulo: Editora 34, 2001, p. 111-112.
272 SKINNER,As fundações..., op. cit., p. 434-435.
273 CANECA, op. cit., p. 112.

1319
Ao conceber que a função do poder político é a salvação do povo e a manutenção do bem
comum, Caneca se aproxima novamente das teorias escolásticas acerca da origem popular do poder.
Para estas, a função de um governo é justamente preservar a boa ordem, a harmonia e a paz. Para que
a sociedade política seja estabelecida,governantes e governados realizam um pacto.

Esta ideia caminha com outra essencial para a Segunda Escolástica: o direito de rebelião e a
deposição dos reis. Apesar de ceder sua soberania ao transferi-la ao governante, o povo nunca perde
o direito de preservar sua comunidade. De tal forma, quando o governante não governa em nome do
bem comum e, consequentemente, coloca em perigo a própria existência da comunidade, o direito de
resistência é legítimo274.

Apesar de frei Caneca usar termos como despotismo e escravidão para qualificar as relações
entre Portugal e Brasil, bem de acordo com a linguagem do constitucionalismo luso-brasileiro, empre-
ga diversas vezes o termo tirania e aciona a ideia de direito de resistência tanto para criticar Portugal
como para legitimar a aclamação de D. Pedro.

Inicialmente, ao tratar da dinastia de Bragança, não deixa de louvar D. João IV por seu ato de
rebelião contra a tirania de Felipe IV, movimento que possibilitou a aclamação de um novo rei para
Portugal. Após conceber que os governos devem se empenhar na busca do bem comum, ressalta que
quando tal fim não foi alcançado, os povos trataram de empreender “funestas revoluções” para que o
governante fosse deposto e o bem comum voltasse a reinar.

Partindo do que foi exposto, consideramos razoável afirmar que a linguagem da Segunda Es-
colástica se faz presente no sermão analisado. Uma vez que seu conceito de república foi elaborado em
favor do bem comum e do governo popular.Contudo, o conceito de república em frei Caneca também
comporta outra linguagem: a do humanismo cívico.

Ela se faz presente quando o frade manifesta sua preocupação com o bem comum e a defesa
de uma vida dedicada aos negócios públicos. Logo no início do sermão, o frade afirma que busca
conciliar a virtude cristã com o gaudio cívico de modo que os cidadãos sejam tanto patriotas como
cristãos devotos e pios, característica da ilustração luso-brasileira. De fato, sua formação no Seminá-
rio de Olinda, principal iniciativa ilustrada conhecida na colônia, contribuiu para que o frade fosse
partidário da instituição de uma ordem pública que fosse capaz de intervir na sociedade e promover
o bem comum.Além disso, as largas citações a Cícero presentes na “Dissertação sobre o que se deve
entender por pátria do cidadão e os deveres deste para com a mesma pátria” demonstram a preocu-
pação com o bem comum e a defesa de uma vida dedicada aos negócios públicos, como já destacado
anteriormente275.Por fim, cabe destacar que a revalorização de Cícero se deu principalmente por causa
de seu ativismo cívico e, não obstante, sua concepção de república era a mais difundida entre os cír-

274 SKINNER,As fundações..., op. cit., p. 453.


275NEVES, Guilherme Pereira das. Como um fio de Ariadne no intrincado labirinto do mundo: a ideia do
império luso-brasileiro em Pernambuco (1800-1822). Ler História, Lisboa, nº 39, 2000, p. 51 e 53.

1320
culos letrados portugueses276.

Em primeiro lugar, destaca-se a recuperação dos valores republicanos.Ao tratar da monarquia


constitucional, afirma: “É esta forma de governo que o cidadão se lisonjeia de encontrar, quer no Exér-
cito, quer nos tribunais, quer no ministério, só amigos, só irmãos, só iguais, sem nada a ver acima de
si que a lei e merecimento por ela protegido”277.

Nesta citação, frei Caneca recupera a amizade republicana. Como já disse,se a república não
tinha forças para se instalar como forma de governo em meados do século XVIII, transformou-se em
linguagem política, ou seja, uma forma de vida. A ideologia republicana sobreviveu a partir da valo-
rização de tal amizade e de um sentido republicano do dever. Um dos pontos essenciais de tal moral
é a igualdade. Esta foi uma das contribuições mais originais do humanismo cívico. Em suas formula-
ções, um dos principais méritos da república é que na mesma todos os homens têm a capacidade de
ascender às honras públicas. De tal forma, a competição por estas faz com que os talentos dos homens
despertem e, consequentemente, fortaleçam a república.

Para alcançar tais honras, diversos sacrifícios devem ser feitos em nome da pátria. Nas palavras
de frei Caneca,

Aqui é que sua alma, parte mais nobre e essencial do homem, alardeia a sua nobreza,
enche-se de um racional orgulho, eleva-se com dignidade, desprega constantemente
sua energia, e se entrega sem violência ao entusiasmo do amor da pátria, emulando a
glória dos Pompeus, dos Régulos, dos Catões278.

Ao colocar que os sacrifícios em nome da pátria equiparam os homens aos grandes heróis da
Antiguidade Clássica, o frade toca novamente em um topos do humanismo cívico: a busca de honra e
glória. Ao colocar o homem como capaz de controlar o próprio destino, o humanismo cívico defendia
que a vida de um homem virtuoso consistia justamente na busca da maior honra e glória possíveis. De
fato, no século XVIII, o patriotismo foi associado à defesa dos valores republicanos, compreendidos
como um afeto político que se traduzia em sinal de cidadania, bravura e decoro cívico. Entretanto, frei
Caneca não exagera neste ponto, pois, ao longo do texto, a providência se faz presente em momentos
importantes, como: a escolha de D. Pedro como libertador do Brasil e que este país recebera da pro-
vidência os atributos para ser um dos principais impérios do universo.Portanto, os homens ainda não
eram capazes de controlar o próprio destino, este ainda era governado pela providência divina.

A fim de finalizar a análise do sermão, qual seria a república que poderia influenciar o pensa-
mento de frei Caneca? Ao tratar do império constitucional, ele nos dá uma pista. Para ele, o mérito
do império constitucional está em ser um ponto de equilíbrio entre a monarquia e a democracia, reu-
nindo as vantagens das duas formas de governo e afastando-se do despotismo e da anarquia279. De tal
276GRAFTON, Anthony. Cicero and Ciceronianism. In: GRAFTON, Anthony; MOST, Glenn W; SETTIS,
Salvatore (orgs.). The ClassicalTradition. Harvard, Londres: Belknap, 2010, p. 194-197.; VILLALTA, L. C. Per-
nambuco, 1817, “encruzilhada de desencontros” do Império luso-brasileiro: notas sobre as ideias de pátria, país
e nação. Revista USP, São Paulo, nº 58, p. 58-91, 2003.
277 CANECA, op. cit.,p. 117
278 Idem.
279Idem.

1321
forma, Caneca se situava no campo político do constitucionalismo luso-brasileiro que considerava a
monarquia constitucional como a melhor das repúblicas.

Um ano depois em meio ao fechamento da Assembléia e a outorga da Constituição escreve


“Voto sobre o projeto de constituição oferecido por D. Pedro I”. Neste pequeno escrito, encontramos
duas matrizes republicanas: a do humanismo cívico e a inglesa. Inicialmente, o texto do frade aparece
bem alinhado aos princípios da política moderna, destacando que a soberania reside na nação e que
cabe a esta definir a forma de governo que deseja adotar através de seus representantes. De tal forma,
o frade coloca que o imperador do Brasil foi escolhido como detentor do poder executivo para que
fosse possível realizar a Independência e que o imperador perdeu seus poderes quando da abertura da
Assembléia Constituinte.

A linguagem do humanismo cívico se faz presente quando comenta as prerrogativas do Impe-


rador para utilizar as forças armadas e classifica tal medida como a coroa do despotismo e o instru-
mento de escravização utilizado por todos os déspotas280. Apesar de usar conceitos como despotismo e
escravidão, o frade não deixa de remeter ao perigo dos exércitos para a liberdade dos povos. O perigo
de exércitos permanentes está no seio das preocupações do humanismo cívico. Para este, as cidades
perderam suas liberdades pela não participação dos cidadãos nos assuntos públicos e por relegarem a
defesa de sua liberdade aos mercenários. Além disso, ainda que se trate do caso inglês, a estabilização
das monarquias, feita através do Exército e do sistema de dívida pública, representou a passagem da
liberdade antiga para a sociedade civil e representou um dos maiores medos dos republicanos ingleses
tanto na Europa como na América281. De fato, as Treze Colônias não tardaram em se rebelar quando a
Coroa inglesa decidiu pelo aquartelamento de tropas britânicas em seu território, pois estavam cientes
do perigo que tal medida representava para sua liberdade.

A linguagem característica dos republicanos ingleses do século XVII transparece em sua crí-
tica ao poder moderador. O frade o concebe como o principal instrumento da opressão da nação
brasileira e o garrote mais forte das liberdades dos povos. A crítica de frei Caneca comporta elementos
da política moderna. Para ele, a monarquia constitucional brasileira deveria ser unicameral para que
pudesse enfraquecer as prerrogativas do poder executivo, concebido como o braço do despotismo282.
Assim sendo, o poder moderador desrespeitava a soberania popular e fazia com que o poder de exe-
cutar e propor leis residisse na mesma pessoa, no caso, o imperador.

Ao constituir o poder moderador, o imperador desrespeitava uma das premissas básicas dos
neo-romanos: um Estado somente é livre quando as ações do corpo político são determinadas pela
vontade dos membros como um todo e quando isto não ocorre a comunidade é privada de sua li-

280CANECA, “Voto sobre o juramento do projeto de constituição oferecido por D. Pedro I”. In: MELLO (org).,
op. cit., p. 563.
281POCOCK, J. G. A. “A res publica e a diversidade de repúblicas: uma história das ideias”. In: ______. Cida-
dania, historiografia e res publica: contextos do pensamento político. Coimbra: Almedina, 2013, p. 296. Para o
desenvolvimento deste processo na Inglaterra, cf. POCOCK, J. G. A. “Ejército y deuda públicas: lasinstitucio-
nesdelLeviathán”. In: ______. Historia e ilustración. Madrid: Marcial Pons, 2002, p. 109-131. Em português, cf.
POCOCK, J. G. A. A angústia republicana. Lua Nova, São Paulo, nº 51, 2000, p. 31-40.
282 CANECA,“Voto sobre o...”, op. cit., p. 561.

1322
berdade. No caso do frade, D. Pedro I atentava contra a liberdade da nação brasileira ao não acatar
as formulações da Assembléia Constituinte. Além disso, estados livres só se submetem a leis que eles
mesmos escolhem, ou seja, o imperador brasileiro desrespeitava novamente a liberdade do povo ao ter
o poder de propor e vetar leis283.

Uma das questões mais importantes para os neorromanos era o que significava a perda da
liberdade. Para eles, significava cair no estado de escravidão, compreendida como o estado de estar
sob a jurisdição de alguém. Ao tratar das formas através das quais um corpo político pode perder a
sua liberdade, as formulações neorromanas encontram novamente eco no discurso de frei Caneca. A
primeira delas defende que quando um corpo político é coagido a agir por uma vontade que não seja
a de seus representantes, aquele perde sua liberdade. Para tais autores, esta é uma das marcas mais
distintivas da tirania. A outra forma de se perder a liberdade é quando as leis permitem a existência de
poderes privilegiados por parte daqueles que o governam, pois tornam o corpo político dependente
da vontade dos governantes284. De fato, tais caracterizações se encontram no pensamento do frade. No
primeiro caso, ao fechar a Constituinte e outorgar uma Carta Constitucional, o imperador agia segun-
do uma vontade que não era a do corpo político, no caso, a Assembléia Constituinte. No segundo caso,
o poder moderador pode ser considerado um poder discricionário, pois fazia com que o povo agisse
segundo as vontades do imperador já que o mesmo detinha o poder de controlar os poderes executivo
e legislativo a seu bel-prazer.

Ao analisar o discurso de frei Caneca presente nestes dois textos, parece razoável dizer que o
conceito de república formulado pelo frade ainda não passara pela transformação descrita por Rei-
nhartKoselleck. De um lado, compreendia república a partir da Restauração de 1640 e da Segunda
Escolástica e associando-a ao bem comum e a uma concepção pactista do poder. Já na parte do huma-
nismo cívico, apresenta a linguagem republicana formulada a partir das repúblicas modernas. Além
disso, comporta argumentos do republicanismo inglês ao criticar o fechamento da Constituinte e a
criação do poder moderador. Assim sendo, o conceito de república em frei Caneca ainda era saturado
de experiência e não se situava no horizonte de expectativa. A monarquia constitucional de D. Pedro I
ainda era a melhor das repúblicas. Mesmo quando D. Pedro I fecha a Constituinte, o frade não externa
seu republicanismo, e sim uma preocupação com a soberania popular e sua concepção de que a Cons-
tituição é o símbolo do pacto entre governantes e governados. Além disso,a ênfase que confere ao bem
comum e a preocupação com a comunidade políticasugerem que o frade concebe a república a partir
duas características: um governo que realize a boa gestão da coisa pública e um tipo de comunidade
política em que as pessoas se agregam visando o bem comum. Portanto, frei Caneca ainda não era um
republicano, e sim um repúblico que ainda se mostrava preso às tradicionais categorias aristotélicas
sobre o governo.

Fontes

283 SKINNER, Quentin. Liberdade antes do liberalismo. Sao Paulo: Editora Unesp,1999, p. 33 e 35.
284 Ibidem, p. 49-50.

1323
CANECA, Frei Joaquim do Amor Divino. “Sermão da aclamação de D. Pedro I” e “Voto sobre o jura-
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1326
Negociantes e Constitucionalistas: a sedição na Praça do Comércio do Rio de Janeiro
(1820-1822)
Wederson de Souza Gomes285

Em 25 de abril de 1821 a Praça do Comércio do Rio de Janeiro seria tomada por uma enor-
me movimentação que reuniria desde pequenos comerciantes até os negociantes de grosso trato do
Império luso-brasileiro. A reunião na Praça do Comércio que tinha por objetivo a formação da Junta
Eleitoral da Comarca acabou se transformando no palco de disputas e conflitos que influenciaram de
forma substancial os rumose os projetos políticos do Império luso-brasileiro. Em 25 de abril do ano
de 1821, importantes figuras da administração imperial, políticos e grandes negociantes prestariam
esclarecimentos acerca da sedição.

No Auto de Corpo de Delito da devassa o escrivão João Nepomuceno d’Assis traz algumas
informações sobre o acontecimento destacando que:

Na tarde e noite de Sábado de Aleluia vinte um do corrente mês de abril houvera


um ajuntamento tumultuoso e sedicioso de homens mal intencionados
que na casa e praça do comércio dessa Corte a tempo que os Eleitores das
Paróquias se propunham eleger os de Comarca, se opuseram aos mesmos com
vozes sediciosas e força pública, e assim os amotinados se revoltaram contra
a Constituição atual do Estado, bradando que só queriam ser regidos pela
Constituição d”Hespanha, enquanto não chegava a que estava se organizando
em Portugal, faltando ao solene juramento, que todos haviam prestado com
manifesta sedição e sublevação contra o Governo público que não deve sofrer
outras mudanças senão as que estabelecerem pela futura Constituição de
Portugal286.

A revolta ocorrida na Praça do Comércio em 21 de abril de 1821 pode ser compreendida como
uma das resultantes do movimento constitucionalista iniciado no Reino de Portugal em 24 de agosto
de 1820. Havia uma pluralidade de questões em pauta que levaram à ocorrência da sedição, dentre
elas se destacava: o retorno do monarca d. João VI para Portugal, o estabelecimento de d. Pedro de Al-
cântara como Regente do Reino do Brasil e a redação daquele que seria o novo texto constitucional do
Império luso-brasileiro. Tais inquietações eram anteriores à sedição da Praça do Comércio e já haviam
se expressado no Largo do Rossio em 26 de fevereiro de 1821. A manifestação militar organizada por
negociantes, oficiais militares e proprietários mercantis do Recôncavo da Guanabara e de Goitacazes
cobrava de d. João VI o juramento à Constituição que estava sendo elaborada pelos revolucionários
vintistas, bem como exigia o rearranjo de ministros e cargos públicos do Estado. Destacavam-se nesse

285Doutorando no Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto. Pesquisa
orientada pela Prof. Drª. Cláudia Maria das Graças Chaves.
286 Documentos para a História da Independência, volume 01. Lisboa – Rio de Janeiro, 1923, p.278.

1327
grupo os nomes de Joaquim Gonçalves Ledo287, José Clemente Pereira288 e Januário da Cunha Barbosa,
homens que desde o findar do século XVIII conquistaram fortuna e buscavam ascender junto à esfera
pública289.

Iara Lis Carvalho aponta que o grupo de Gonçalves Ledo e Cunha Barbosa, também conhecido
como constitucionais, empreenderaa movimentação militar para tentar frear as ações do rei que, em
oposição às Cortes Gerais Constituintes em Lisboa, buscava se legitimar junto às Câmaras e vilas de
todo o império para assim delinear a nova Constituição. Os constitucionaisatuavam em consonância
com os vintistas em Lisboa defendendo a partida do monarca, da família real e dos nobres portugue-
ses emigrados, bem como propunham a composição de um Governo Provisório com representantes
indicados pelo “povo”290. O que estava no centro de suas ações era o enfraquecimento do grupo de
negociantes de grosso trato e membros da burocracia estatal ao qual faziam oposição e do qual José de
Resende Costa Filho, Manuel Jacinto Nogueira da Gama e José da Silva Lisboa fazia parte.

O grupo de negociantes de grosso trato, apontado por Cecília Helena Oliveira como “partido
brasileiro”, era composto em sua maioria por membros do Corpo do Comércio do Rio de Janeiro, no-
bres e empreendedores portugueses emigrados que possuíam interesses mercantis no mercado flumi-
nense. Esse grupo gozava de prestígio junto ao monarca e à burocracia estatal e desde o estabelecimen-
to da Corte no território americano em 1808 financiou diversas obras, assim como injetou grandes
somas de dinheiro para a manutenção da Corte no Rio de Janeiro291. Eram considerados negociantes
de grosso trato da sociedade carioca não apenas por suas fortunas e os projetos que empreendiam,
mas pelo estilo de vida adotado, títulos recebidos, ocupação de altos cargos na administração, pelas
honrarias conquistadas e o nível de envolvimento com a Coroa e entidades religiosas292.

Com a eclosão da Revolução do Porto e, consequente exigência para que d. João VI retornas-
se a Portugal, os negociantes de grosso trato e alguns membros da burocracia estatal começaram a
vislumbrar a possibilidade da redação de uma Constituição própria ao Reino do Brasil e um governo
encabeçado pela figura de d. Pedro de Alcântara. Atuando de maneira profícua no comércio transa-
tlântico de escravos, na produção de açúcar, na importação e exportação da metrópole desde o sécu-
lo XVII293, esses homens que atuaram para o fortalecimento do Império luso-brasileiro passaram a
considerar a possibilidade de romper os laços com Portugal. O grande temor desses homens era que
com a expansão do movimento constitucionalista em Portugal o protagonismo político e econômico

287 Nascido no Brasil, Rio de Janeiro, cursou Direito na Universidade de Coimbra e vinha de uma família de
comerciantes que retornou ao Brasil no ano de 1808. Destacou-se por ser um dos redatores do Revérbero Cons-
titucional Fluminense em companhia do cônego Januário da Cunha Barbosa.
288 José Clemente Pereira era natural de Portugal e estudou Direito na Universidade de Coimbra. Foi um dos
negociantes que emigrou com a Corte para o Rio de Janeiro. Consolidou sua carreira como magistrado e ocu-
pou cargos como o de Juiz de Fora. Foi deputado durante as primeiras legislaturas entre os anos de 1826-1833,
além de ocupar cargos como o de ministro durante o Primeiro e Segundo Reinado.
289 OLIVEIRA, Cecília Helena L. de Salles; 1999, p.108-109.
290 SOUZA, Iara Lis Franco SchiavinattoCarvalho;1999, p.94-98.
291PIÑEIRO, Théo Lobarinhas; 2003.
292MARTINHO, Lenira Menezes; GORESTEIN, Riva; 1993, p.189.
293 FRAGOSO, João Luís. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de
Janeiro, 1790-1830. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992.

1328
conquistado na última década ruísse294.

Havia também o grupo dos ministros Silvestre Pinheiro e Tomás Antônio de Vila Nova Por-
tugal295
que ponderava sobre a necessidade de d. João VI manter-se em solo americano, uma vez que
sua partida poderia desencadear na dissolução do Império luso-brasileiro. Segundo Cecília Helena
Oliveira, Silvestre Pinheiro ponderava em suas memórias que se d. João tivesse trabalhado naquilo
que fora proposto em seu sumário do ano de 1814-1815 e o Reino de Portugal não se sentisse reduzido
à posição de colônia muitos daqueles conflitos teriam sido atenuados296.

Em face dessas percepções tão distintas sobre o destino do império, a mobilização militar no
Largo do Rossio organizada pelos constitucionais tinha como intencionalidade enfraquecer os nego-
ciantes de grosso trato e membros da burocracia estatal, bem como fazer com que o monarca recuasse
em sua tentativa de se legitimar através das Câmaras. O evento acabou não incorrendo em uma si-
tuação mais violenta porque d. Pedro de Alcântara foi informado antecipadamente sobre o evento e
interviu comprometendo-se a levar as reivindicações em pauta, bem como explicitar os pedidos da
tropa-povo-oficiais ao monarca, até mesmo com os nomes para composição do novo ministério. O
evento terminou de forma pacífica e com resultados positivos para a família real que terminou ova-
cionada no Largo do Rossio297.

Algo bem distinto aconteceuno momento do pleito organizado para compor a Junta Eleitoral
de Comarca e desencadeou em uma revolta que atravessou o dia e também a noite. A reunião estava
prevista para acontecer no domingo, dia 22 de abril do ano de 1821, mas de maneira estratégica os no-
bres emigrados e negociantes de grosso trato anteciparam a convenção para o sábado, dia 21 de abril,
na tentativa de garantir que os donos de engenho e lavouras mercantis do Recôncavo e Goitacazes não
chegassem em tempo hábil. A estratégia do grupo de Nogueira da Gama era convencer os presentes da
irreversibilidade da partida de d. João VI e assegurar a instauração da Regência de d. Pedro298.

O grupo dos constitucionais percebendo a investida do grupo opositor procurou que a reunião
ocorresse em um espaço público e com a presença do maior número de pessoas, conseguindo que o
pleito fosse transferido para a Praça do Comércio – edifício construído no Rio de Janeiro pelos comer-
ciantes brasileiros, portugueses e ingleses. A mudança provocou preocupação em Silvestre Pinheiro
pelo caráter demasiadamente público que o evento assumiria. Além dos grandes negociantes, também
circulava na Praça outros eleitores como ourives, caixeiros, professores régios, mascates, boticários,
ourives e outros tantos alijados do processo eleitoral, mas que estavam ao redor da praça e tinham suas

294 OLIVEIRA, Cecília Helena L. de Salles; 1999, p.126-127.


295Nasceu em Lisboa, Portugal, em 1755 e formou-se em direito pela Universidade de Coimbra. Destacado
magistrado do Império luso-brasileiro atuou como corregedor em Vila Viçosa, desembargador na Casa de Su-
plicação, deputado da Junta de Comércio e desembargador do Paço, no momento em que a Corte se encontrava
no Rio de Janeiro. Foi ministro de várias pastas, chegando a acumular, em caráter ordinário e efetivo, as do Rei-
no, Erário Régio e Negócios Estrangeiros e da Guerra, entre 1818 e 1820. Defensor do absolutismo, opunha-se
às ideias liberais e seus defensores.
296 OLIVEIRA, Cecília Helena L. de Salles; 1999, p.126
297 SOUZA, Iara Lis Franco Schiavinatto Carvalho; 1999, p.96.
298 OLIVEIRA, Cecília Helena L. de Salles; 1999, op. cit., p.138-139.

1329
reivindicações próprias299.

Durante as inquirições a maior parte dos homens interrogados se referiu ao evento como um
motim de um grupo de sediciosos mal intencionados que se utilizou da violência e coerção para que
os eleitores presentes jurassem a Constituição Espanhola – Constituição de Cádiz de 1812 – e eleges-
sem um Governo Provisório. O Conselheiro de d. João VI e deputado do Régio Tribunal da Junta de
Comércio, Manoel Moreira de Figueiredo, salientou em sua inquirição que o intento dos sediciosos
em compor um Governo Provisório contraditava inclusive com a Constituição Espanhola, uma vez
que “por ela o povo não podia eleger Governo Provisório pois que era ir contra o Poder Real tirando-
-lhe até o poder executivo e que pela dita Constituição a nomeação dos Secretários era privativa de El
Rey”300.

A maior parte dos eleitores convocados era de donos de engenho e lavouras, proprietários, po-
líticos do império ou membros da burocracia estatal; em geral os partícipes estavam ligados ao Corpo
do Comércio. No caso de Resende Costa Filho, este se apresentou como Escrivão do Erário Régio e
era eleitor pela freguesia de Sacramento. Silva Lisboa era Conselheiro e Censor Régio e representava
a paróquia de São José assim como Nogueira da Gama, que era negociante e Conselheiro da Fazenda
Real. Gonçalves Ledo, por sua vez, também era eleitor pela freguesia de Sacramento, bem como atuava
como Oficial Maior da Contadoria do Arsenal Real do Exército.

Resende Costa Filho apresenta em seu relato as seguintes ponderações acerca do evento no
momento em que foi inquirido:
Que os eleitores foram ali instrumentos passivos duma populaça desenfreada e amo-
tinada cujos sedutores e cabeça viu ele testemunha serem um Luís Duprat, e um
comerciante José Nogueira Soares e um militar de farda e pantalonas que ele não
conhece, e um Macamboa, que fazia de procurador do povo, que viu mais que o
secretário era José Clemente Pereira, pelo saber depois, mas que nem para este ser
nomeado nem para serem nomeados os escrutinadores se lhe pediu voto nem aos
mais eleitores que estavam do lado dele testemunha301.

Ademais, salienta que as ações praticadas durante a sedição eram nulas, pois tinham assinado
tudo sem uma leitura cuidadosa, sob ameaça e com medo da violência que poderia decorrer em caso
de recusa. De forma semelhante também relataram Silva Lisboa e Nogueira da Gama, enfatizando que
cederam à pressão dos sediciosos e assinaram o que lhes foi exigido, pois corriam “eminente perigo
de vida”302.

Nogueira da Gama, em um relato mais detalhado, tentou demonstrar que havia atuado como
um conciliador no momento em que percebeu que a reunião tomara um rumo descontrolado. Suas
ações ensejavam que o pleito cumprisse o seu real propósito que era a leitura das instruções reais.
Que vendo ele testemunha que tão horrorosos procedimentos se levantara do lugar
em que se achava e fora ter com o Presidente e lhe dissera que os eleitores não tinham
sido convocados para semelhante fim e que tudo quanto se estava não só era nulo
299 SOUZA, Iara Lis Franco Schiavinatto Carvalho; 1999, p.101.
300 Documentos para a História da Independência, volume 01. Lisboa – Rio de Janeiro, 1923, p.295.
301 Documentos para a História da Independência, volume 01. Lisboa – Rio de Janeiro, 1923, p.305.
302Idem, p.295.

1330
mas era um horroroso atentado contra a autoridade legitima do Nosso Soberano ao
que responde o Presidente que Sua Majestade havia autorizado aquela Junta para
estabelecer o que mais conviesse exigiu ele testemunha que lhe mostrasse a Ordem,
e dando-lhe a ler o aviso replicou ele testemunha que Sua Majestade só o autorizava
pela sua piedade e condescendência para que se fizessem as reflexões que parecessem
a bem do público dando por nulo qualquer ato legislativo da Junta, e que portanto
tudo que se estava praticando era contrário ao dever e fidelidade dos portugueses303.

O Conselheiro da Fazenda Real solicitou a intervenção tanto por parte de José Clemente Pe-
reira quanto do advogado Marcelino José Alves Macamboa304. Requeria o controle dos amotinados
para a leitura das Instruções do monarca para o Governo do Príncipe Real e que os eleitores pudessem
cumprir seus deveres. Nogueira da Gama recebeu respostas negativas em todas as suas intervenções,
inclusive por parte do Corregedor Presidente Joaquim José de Queiroz305 que teria lhe respondido que
“o povo estava amotinado, que não queria absolutamente ser governado por pessoas da escolha de El
Rey e que se ele testemunha podia acalmar o povo o fizesse”306.

Chama atenção no relato de Nogueira da Gama dois aspectos consideráveis: primeiramente,


sua defesa para que os eleitores desempenhassem a finalidade à qual aquele pleito fora organizado
cumprindo dessa forma a vontade do Soberano. E, em segundo lugar, a negativa do Presidente em se-
guir as instruções afirmando que o povo não queria ser governado por pessoas escolhidas pelo rei. Os
apontamentos são relevantes para pensarmos o conceito de soberania que passava por uma paulatina
transformação no Império luso-brasileiro desde o adventovintista em Portugal.

A soberania que durante o Antigo Regime “designava uma autoridade pessoal e exclusiva do
monarca”307 assumia novos contornos após a década de 1820 tornando-se um elemento chave no vo-
cabulário político daqueles homens. A noção de soberania que outrora estava alicerçada na persona
do rei passava a residir na nação e por esse motivo ela deveria ser estruturada e exercida na Constitui-
ção política. Lúcia Bastos apresenta que após a Revolução do Porto iniciou-se um debate em torno do
conceito; de um lado havia os que preconizavam que a soberania residia nos deputados reunidos nas
Cortes Gerais Constituintes. Por outro, havia aqueles que defendiam uma noção de soberania com-
partilhada entre o monarca e o legislativo, em que o monarca deveria renunciar ao controle autocrá-
tico e reconhecer os limites de sua autoridade, contudo, não abria mão de seus poderes por completo.

A segunda perspectiva de soberania que era compartilhada pelos negociantes de grosso trato
e demais correligionários do grupo que estiveramenvolvidos na sedição da Praça do Comércio. O
intento do grupo era o de referendar as instruções do rei e dar ensejo a um projeto político em que o
controle do poder seria compartilhado entre o regente, d. Pedro de Alcântara, e uma assembleia le-

303Idem, p.291.
304 Natural de Lisboa, era advogado da Casa da Suplicação formado em Cânones pela Universidade de Coim-
bra, também era clérigo Subdiácono.
305 Alexandre Mansur Barata informa que Queiroz ocupava o cargo de ouvidor da comarca e deu início à
leitura de um aviso do Ministro dos Negócios do Reino, Silvestre Pinheiro Ferreira, sobre o estabelecimento
da Regência de D. Pedro de Alcântara. Queiroz também fora um jurista, magistrado e Ministro dos Negócios
Eclesiásticos e da Justiça entre dezembro de 1847 e fevereiro de 1848.
306 Documentos para a História da Independência, volume 01. Lisboa – Rio de Janeiro, 1923, p.292.
307 NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira; 2003, p.157.

1331
gislativa nos moldes do absolutismo ilustrado. Visão oposta a essa era a dos constitucionais, uma vez
que este grupo defendia outra via de soberania, paralela à soberania da nação, ponderava-se acerca da
soberania do povo308. De forma diversa ao seu grupo opositor, os constitucionais acreditavam que os
membros do governo popular deveriam ser escolhidos pelo “povo”309. Fato é que após o evento da Pra-
ça do Comércio sair do controle, o grupo de Ledo e Cunha Barbosa percebeu os riscos envolvidos com
a participação da “grande massa” no pleito. Gonçalves Ledo ao ser inquirido sobre os acontecimentos
da Praça do Comércio narrou:
Tendo eles sido instrumentos passivos da violência e das ameaças de uma populaça
desenfreada e que pouco faltou pra degenerar em anarquia [...]. e outrossim disse
que sabia pelo ver que nem ele nem os mais eleitores se deferiu juramento algum e se
ele assinou foi por ceder a força e a torrente do exemplo, e que julgava que o mesmo
aconteceu a todos para não serem vítimas de um povo revoltado e enfurecido mais
não disse nem do costume digo enfurecido: e outrossim disse que sabia pelo ver que
nem ele nem os mais eleitores procederam a sobredita nomeação pelo seu livre arbí-
trio e vontade própria310.

A argumentação adotada por Gonçalves Ledo era estratégica e tinha como principal objeti-
vo atenuar o seu envolvimento na sedição, em razão de que ele, Cunha Barbosa e Clemente Pereira
tinham sido os responsáveis pela transferência da reunião para um local demasiadamente público.
Entretanto, nem mesmo os constitucionais tinham consciência dos rumos que o pleito tomaria com o
envolvimento de artífices, mascates, ourives, caixeiros, dentre outros.

Nesse sentido, a noção de soberania que o grupo parecia defender tinha uma relação estrita
com a Constituição e seus representantes, ou seja, os constituintes. Defendiam um governo liberal e a
convocação de uma Assembleia Constituinte para que os legisladores escolhidos pelo “povo” pudes-
sem trabalhar pelo bem da nação. Foi a partir de setembro de 1821, com a ampliação da liberdade de
imprensa, que Ledo e Cunha Barbosa se utilizaram das páginas do Revérbero Constitucional Flumi-
nense para defender o projeto liberal constitucionalista.

O Rio de Janeiro só deseja possuir um governo liberal, e permanente, regulado


por Leis fixas, e bebidas na Natureza [...]. Queremos, portanto e devemos
querer uma Constituição, nem o poder arbitrário pode assegurar a felicidade
e a vida dos Reis. A sua felicidade não pode andar anexa com a desgraça dos
vassalos, e a escravidão he a maior desgraça [...]. Tão bem guiados por tais
princípios devemos apertar mais e mais a moral e sagrada cadeia que nos
prende aos nossos Irmãos de Portugal. Do templo da Liberdade, que ali se
ergueu que há de nos vir a boa Constituição que precisamos: uma Constituição
pela qual todos os membros do grande Corpo do Estado gozem hum inteiro
desenvolvimento, correspondam-se, deem mútuas forças, participem todos
do suco nutritivo da vida, todos concorram para a harmonia geral311.
308 Acerca da questão, segundo Pereira, essa vertente constitucionalista defendia uma acepção do conceito
político de povo em que a soberania da nação emanava dos representantes do povo organizados em Assembleia
Legislativa e excluía, portanto aqueles cujas exigências necessárias para ser votante/eleitor não fossem atendi-
das. PEREIRA, Luísa Rauter; 2013, pp.31-47.
309 NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira; 2003, op. cit., pp.160-161.
310 Documentos para a História da Independência, volume 01. Lisboa – Rio de Janeiro, 1923, p.307.
311Revérbero Constitucional Fluminense. 15 de setembro de 1821, nº1 Disponível em: <http://memoria.bn.br/
DocReader/700223/8>.

1332
Ademais, LúciaBastos explicita a forte resistência existente à noção de soberania do povo nas
páginas dos periódicos que circularam no Brasil durante os anos iniciais da década de 1820. A autora
argumenta que periódicos como O Espelho, que fazia oposição à noção de soberania pregada pelos
redatores de A Malagueta, apontavam para os riscos de uma soberania que residisse e fosse exercida
pelo “povo”, não obstante Bastos salienta que a palavra não apareceu tão frequentemente nos escritos
coevos quanto liberdade e constituição312.

A acepção de uma monarquia constitucional encontrava respaldo entre ambos os grupos mes-
mo havendo consideráveis discordâncias. O constitucionalismo tornou-se parte integrante do voca-
bulário político daqueles homens que estavam alinhados à experiência constitucional dos peninsula-
res espanhóis. Algo que também pode ser entrevisto no relato de Nogueira da Gama, pois depois das
repetidas tentativas em demover Macamboa, Clemente Pereira e Joaquim Queiroz a cumprirem as
Instruções do rei, enfatizou que mesmo acolhida a Constituição Espanhola, os atos daquela assembleia
contrariavam o texto constitucional de 1812. Segundo o relato de Nogueira da Gama, a Constituição
de Cádiz preconizava “ser da regalia de Sua Majestade a nomeação dos seus ministros”313 e, por esse
motivo, deveria ser lido o artigo da Constituição concernente. Novamente o Conselheiro não obteve
êxito em seuintento de fazer com que a reunião cumprisse seu objetivo inicial e, por isso, Nogueira da
Gama abandonou o prédio ainda em meio ao tumulto.

Por fim, foram enviadas tropas para conter a sedição e, segundo Cecília Helena Oliveira, Sil-
vestre Pinheiro relatou que as tropas usaram de violência contra os eleitores presentes porque os mes-
mos se encontravam armados; o que resultou em uma morte e alguns feridos. O aspecto essencial
resultante da sedição é que os constitucionais perderam o controle da situação e passaram a temer a
participação popular, uma vez que perceberam a dificuldade em controlá-los. Após a partida do rei
e receando pela anarquia generalizada que os atos das massas populares poderiam ocasionar esses
distintos segmentos passaram a vislumbrar na figura do príncipe d. Pedro a possibilidade de que seus
projetos políticos e econômicos fossem atendidos. Mesmo que seus projetos e percepções não fossem
uníssonos, eles optaram por uma aliança política em favor do controle e manutenção da ordem.

A adesão em torno da persona de d. Pedro por parte do grupo de Clemente Pereira e Gonçalves
Ledo não seria uma constante, ao contrário, através das páginas do Revérbero Constitucional
Fluminense teceriam críticas contundentes. A sedição da Praça do Comércio serviu como um ensaio
para que eles percebessem as implicações que um ambiente conflituoso ofereceria, contudo, por
vezes, esse grupo ainda atuava de forma ambígua devidoao receio de que seus adversários políticos
mantivessem o controle e a influência política. Ancoravam-se na figura de d. Pedro, mas não deixavam
de considerar a possibilidade da criação de um Governo Provisório no Reino do Brasil vinculado às
Cortes Gerais Constituintes. Os constitucionais temiam que caso a ruptura se desse sem um pacto
constitucional os negociantes de grosso trato e emigrados portugueses defenderiam demandas
próprias e os excluiriam do controle decisório. Cecília Helena Oliveira apresenta que o movimento
do Fico demonstraria a latência e dubiedade de suas ações, visto que apesar de Clemente Pereira

312 NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira; 2003, p.162.


313 Documentos para a História da Independência, volume 01. Lisboa – Rio de Janeiro, 1923, p.307.

1333
interceder junto ao Príncipe Regente para que ele permanecesse no Rio de Janeiro, nos bastidores não
descartava a partida de d. Pedro caso seus intentos não fossem atendidos314.

É importante pensar o quão representativos foram os desdobramentos da sedição de 21 de


abril para o imaginário daqueles homens, pois em razão daquele acontecimento as ações do grupo de
Ledo e Cunha Barbosa ganharam novas especificidades. Dessa forma, como ressalta Cecília Helena
Oliveira, aqueles homens que anteriormente se levantaram como defensores da soberania do povo,
“concordaram em participar de uma reunião secreta em que quinze cidadãos escolheram em nome
de 159.280 pessoas”315. Os donos de engenhos e lavouras mercantis do Recôncavo e Goitacazes teriam
vários de seus interesses atendidos, mas isso não faria cessar suas críticas junto às ações do Regente
bragantino. Com uma postura mais ordenada se utilizaram das páginas do Revérbero Constitucional
Fluminense para mobilizar suas críticas àquilo que consideravam incorreto à condução política do
Brasil.

Os negociantes de grosso trato e nobres portugueses membros da burocracia estatal dariam


prosseguimento em seu intento de manter sua influência junto à administração do Reino do Brasil. O
que chama atenção acerca desse fato é que os mesmos homens que durante a estada da Corte no Rio
de Janeiro atuaram para sua sustentação e viram na elevação à condição de Reino Unido uma vitória
política foram aqueles que arquitetaram a ruptura política do império. Nesse sentido, é preciso obser-
var algumas nuanças sobre a participação da deputação do Brasil nas Cortes Gerais Constituintes e
suas acepções em torno das discussões.

A deputação mineira Fica: desencontros nas Cortes Gerais Constituintes e o discurso da reco-
lonização do Brasil.

Em 24 de agosto do ano de 1820 eclodira a Revolução liberal constitucionalista em Portugal, a


Revolução do Porto. O movimento revolucionário era resultado da insatisfação latente existente junto
a alguns segmentos sociais do Reino de Portugal que consideravam como colonial a atual situação em
que a península se encontrava316. Andréa Slemian pontua que o movimento trazia como proposta a re-
generação da nação portuguesa e com isso reconfigurar a monarquia através de uma base constitucio-
nal. Os vintistas se apresentavam como herdeiros das Cortes de Lamego e propunham a fundação de
um novo pacto político para o império. Era sob o auspicioso sucesso da experiência liberal espanhola
que os vintistas convocavam os representantes do Ultramar para se reunir em Cortes e dessa forma
deliberar, sem distinção entre as partes, sobre os rumos do império317.

Como foi explicitado anteriormente, as ocorrências de 26 de fevereiro e 21 de abril de 1821 no


Rio de Janeiro eram resultantes da Revolução do Porto, e as acepções em torno do movimento consti-
314 Durante o processo do Fico de d. Pedro, Clemente Pereira enviava ofícios às vilas e freguesias para reunir os
eleitores paroquiais e realizar a eleição da Junta de governo fluminense. Os constitucionalistas e negociantes do
Recôncavo e de Goitacazes não atuou para suspender a reunião para formação da Junta eleitoral, uma vez que
caso a resistência de d. Pedro em manter-se como Regente da Corte no Rio de Janeiro fosse vencida, eles dariam
prosseguimentos na eleição da Junta de governo. OLIVEIRA, Cecília Helena L. Salles; p.185.
315 OLIVEIRA, Cecília Helena L. Salles; p.148.
316 SOUZA, Iara Lis Franco Schiavinatto Carvalho; 1999, p.74.
317 SLEMIAN, Andréa; 2015, pp.91-120.

1334
tucionalista no continente americano foram as mais diversas. Em sua História dos principais sucessos
políticos do Brasil, José da Silva Lisboa apresenta um relato acerca da adesão da província baiana ao
movimento constitucionalista em Portugal. Silva Lisboa informa que a “Seleta Mestrança dos Pedrei-
ros Livres em a noite de 9 de fevereiro do corrente ano acordou no seu Club Jacobinico fazer aclamar
a Constituição de Portugal pelo Corpo de Artilharia na Praça do Trem”318. Os baianos aderiram às
Cortes Gerais Constituintes antes mesmo da do regresso de d. João em 26 de abril de 1821, bem como
organizaram uma nova Junta governativa na qual se declaravam “independente do Governo Real do
Rio de Janeiro, para só receber ordens do Governo de Portugal”319.

Silva Lisboa, em tom crítico, ponderava que era de forma arbitrária que tinham iniciado a
pretendida regeneração; com uma junta que se dava ares de importância e buscava, inclusive, aliciar
Pernambuco com uma “pedantesca e adulatória carta”320 em defesa do movimento constitucionalista
de Lisboa. O Conselheiro Real entrevia os baianos que compuseram a junta governativa como usurpa-
dores do poder, assim como os deputados que a Junta terminou por eleger. O que lhe incomodava era
o fato de que aos deputados eleitos pela província baiana faltava formação profissional para a função
de reformar e refazer a legislação da monarquia. Ademais, criticava a eleição do cirurgião Cipriano
Barata321 como um dos representantes do Reino do Brasil, uma vez que Barata era reconhecido como
turbulento e amotinador.

O grupo de negociantes de grosso trato ao qual Silva Lisboa se alinhava era bastante reticente
em relação às práticas das Cortes Gerais Constituintes e, por isso, durante a sedição na Praça do Co-
mércio se articularam para legitimar a regência de d. Pedro de Alcântara. Se em Portugal os liberais
vintistas reivindicavam que Portugal recuperasse o esplendor de outrora, no reino americano os ne-
gociantes de grosso trato, nobres portugueses, políticos e intelectuais a eles vinculados propunham
o aprofundamento das práticas políticas empreendidas durante o governo joanino. Acreditavam que
com a partida de d. João a regência de d. Pedro seria o caminho mais fácil para dar continuidade às
suas práticas políticas e econômicas. Apesar de partidários da coesão entre o Império luso-brasileiro,
não descartavam a possibilidade de se constituir um novo Império no Brasil322.

Valdei Lopes Araújo, ao analisar a experiência de tempo desses políticos e intelectuais, ponde-

318 LISBOA, José da Silva. Manifesto do Príncipe Regente aos Governos, e Nações Amigas. IN: História dos
principais sucessos políticos do Império do Brasil – Parte X. Rio de Janeiro: Tipografia Imperial e Nacional,
1830, p.45.
319 Ibidem, p.47.
320Idem.
321 Foi um médico e político liberal nascido no Brasil, Salvador, que se destacou por sua participação na Con-
juração Baiana e posteriormente nas Cortes Gerais de Lisboa. Diplomou-se em Cirurgia, Filosofia e Medicina
pela Universidade de Coimbra.
322 OLIVEIRA, Cecília Helena L. Salles; 1999, p.127.

1335
ra que para José Bonifácio de Andrada323 o projeto de regeneração de Portugal deveria se alicerçar na
experiência do mundo antigo, em que a colonização não pressupunha dependência econômica e po-
lítica. A Antiguidade – não o passado velho da colonização portuguesa – representava a possiblidade
de renovar e modernizar Portugal através do Brasil. Bonifácio de Andrada obrava pela manutenção da
unidade e integridade do Império luso-brasileiro, todavia, à medida que os debates nas Cortes Gerais
prosseguiam sua percepção alterava gradativamente. Segundo Araújo, Bonifácio também incorporou
o discurso da recolonização adotado pelas elites e dessa forma o estadista entendia que as Cortes
Gerais tinham assumido um caráter despótico e não conseguiam perceber a decadência do Reino de
Portugal e nem sua incapacidade de regenerar o império324.

Um elemento valioso salientado por Araújo, acerca das proposições de Bonifácio, corresponde
ao possível projeto de recolonização do Brasil. A discussão, apesar de movediça, tem relevância para
que possamos entrever as diferentes acepções que os debates nas Cortes Gerais Constituintes assumi-
ram entre os anos de 1821 e 1822, especialmente no Reino do Brasil. Segundo Márcia Berbel, a expe-
riência constitucional das Cortes foi bastante discutida na historiografia e que durante os séculos XIX
e XX os trabalhos tenderam a relacionar a ruptura política do Brasil com Portugal a partir daquela
experiência. Entretanto, a autora é assertiva em dizer que o discurso darecolonizaçãose tratou de uma
argumentação retórica e que tinha por objetivo endossar o governo de D. Pedro. Em suma, a ideia
da recolonização ganhou força especialmente após o decreto lisboeta de outubro de 1821, no qual as
Cortes Gerais Constituintes haviam redefinido a condução política para o continente americano325,
incluindo a exigência do regresso de d. Pedro.

De forma semelhante, Lúcia Bastos apresenta que dentre os periódicos que circularam no pe-
ríodo não há uma relação entre a Independência política e a ideia de devolver ao Brasil o status co-
lonial. Ainda segundo a autora, na porção americana a separação política já havia se consolidado
mesmo antes do 07 de setembro e documentos como o Manifesto às Nações Amigas e o Manifesto
aos Povos do Brasil foram escritos como já considerando a separação um fato concretizado326. Tanto
323 Nasceu em Santos, Brasil, em 13 de junho de 1763 foi um importante estadista do Império luso-brasileiro.
Em 1777 foi para São Paulo, onde estudou gramática, retórica e filosofia. Ingressou na Universidade de Coim-
bra em 1783, tendo frequentado os cursos de leis, matemática e filosofia natural, bacharelando-se em filosofia
e leis em 1787. Em 1812, tornou-se secretário da Academia das Ciências de Lisboa, encarregado de registrar a
história da instituição. Ingressou na atividade política no conturbado período do processo de independência,
integrando a Junta Provisória de São Paulo, em 1821. Nesse mesmo ano redigiu Lembranças e apontamentos
do Governo Provisório da Província de São Paulo para os seus deputados, documento que pretendia orientar
a bancada paulista em sua participação nas Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa que foram
instaladas com o objetivo de elaborar uma constituição para Portugal e seus domínios ultramarinos. Apesar da
alcunha de “patriarca da independência”, defendeu a integridade do Reino Unido. Coordenou o lançamento
do manifesto que pediu a permanência do príncipe regente, d. Pedro, no Brasil, quando passou a ter atuação
decisiva no processo de independência. Ainda na regência de d. Pedro foi nomeado secretário de Estado dos
Negócios do Reino e Estrangeiros, e seu irmão, Martim Francisco, dos Negócios da Fazenda, em 16 de janeiro
de 1822. Disponível em: <http://linux.an.gov.br/mapa/?p=8982> Acesso em: 03/09/2017.
324 ARAÚJO, Valdei Lopes. A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira
(1813-1845). São Paulo: Editora Hucitec, 2008, p.57-66.
325 BERBEL, Márcia Regina. A retórica da colonização. IN: JANCSÓ, István. Independência: história e histo-
riografia. São Paulo: Hucitec; Fapesp, 2005, p.791-808.
326 NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Estado e política na Independência. IN: JANCSÓ, István. Indepen-
dência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec; Fapesp, 2005, p.125.

1336
Berbel quanto Bastos defendem a tese de que não houve uma tentativa de subordinação dos mercados,
ao contrário, a primazia dos discursos se assentava na tentativa de conciliar os interesses os dois reinos
tornando-os integrados.

A tese acerca da retórica da recolonização é válida para pensarmos as ações adotadas por Re-
sende Costa Filho e também dos políticos e grandes negociantes da região Centro-Sul. Resende Costa
Filho, apesar de residir no Rio de Janeiro desde seu retorno ao Brasil, foi um dos quatorze327 deputados
eleitos por Minas Gerais no ano de 1821 para se reunir às Cortes Gerais Constituintes em Lisboa. To-
davia, em 25 de fevereiro de 1822 a deputação mineira enviou uma comunicação ao Governo Provi-
sório de Minas Gerais que cancelava a sua viagem para Portugal, pois estava claro que nas Cortes “se
tem olhado com a maior indiferença para os interesses gerais do rico e vastíssimo Reino do Brasil”328.
A deputação defendia que o Reino do Brasil estava sendo preterido em relação ao Reino de Portugal
ante as discussões e que as leis não seriam comuns à América, portanto:
Refletindo, que depois de proclamar-se no Artigo 21 das Bases, que a Constituição,
ou Lei fundamental não seria comum a América, e as outras partes da terra, en-
quanto pelos seus legítimos representantes não declarassem ser esta a sua vontade,
apenas (para a nossa perpétua saúde) aportou ao Tejo o Senhor Dom João VI, o
interesse parcial, depondo as hipócritas aparências, minou o alicerce das grandezas
do Brasil, cimentado ainda de fresco, ordenando-lhe Governos [polyaphalos], que se
destruiriam facilmente; carregando seu terreno de Tropas espreitadoras, por ventura
pesadas à Portugal, que desta arte deseja aligeirar suas despesas; e arrancando final-
mente de seu seio o único penhor da nossa união, e seguridade, qual o Herdeiro da
Coroa, Legitimo Representante daquele que na Carta de Lei de 16 de Dezembro de
1815 nos ergueu do vergonhoso estado de Colônia, a que se tenta novamente redu-
zir-nos; aterrados com a perspectiva da inevitável ruína da nossa pátria, e obedientes
ao imperioso dever, que nos impõem a Suprema Lei da salvação do Povo, tomamos
a Resolução de suspender a nossa viagem, enquanto a revogação dos fatais Decretos
de 29 de Setembro de 1821 não afiançar no soberano Congresso as devidas conside-
rações acerca deste Reino, e do seu decoro329.

Era com base no conteúdo do decreto lisboeta de 29 de setembro de 1821 que a deputação
mineira explicitava a sua recusa em seguir para as Cortes Gerais. Dentre as deliberações do decreto,
alguns elementos impactavam substancialmente no que concernia à autonomia do Reino do Bra-
sil, destacando-se: a extinção de “todos os órgãos de governo formados no Rio de Janeiro depois da
transferência da Corte”330, a subordinação dos Presidentes de Província as Cortes e ao Rei, bem como
o retorno imediato do Príncipe Regente à Europa, visto que se tornara desnecessária sua presença no
Brasil.

A Comunicação ao Governo Provisório buscava explicitar os motivos que levaram à abdicação


da viagem e apontava como falsa a proclamação feita pelas Cortes de 13 de julho do ano 1821, após
a chegada de d. João em Portugal. A deputação mineira não tinha, portanto, interesse em engrossar
“o número dos Deputados do Ultramar (como nos chamam) que assaz pequeno para a pluralidade
327 DOMINGOS, Marcus Caetano; 2007.
328Comunicação ao Governo Provisório de Minas Gerais (1822), dos deputados eleitos pela Província às Cor-
tes Portuguesas, de não seguirem para Lisboa e dos motivos porque assim deliberaram, de 25 de fevereiro de
1822. RAPM, v. 2, 1897.
329 RAPM, v. 2, 1897.
330 BERBEL, Márcia Regina; 2005, p.794.

1337
vencedora, seria, contudo suficiente para sancionar a escravidão do nosso país”. Suas ações eram justi-
ficadas pelo sentimento patriótico que exerciam em favor do interesse da Província mineira e também
por considerar o Príncipe Regente “o mais zeloso defensor do sistema”. A Regência constitucional de d.
Pedro aparecia como o elo responsável por manter o bem geral e a união entre as províncias do Brasil.
Ademais, buscavam cumprir com “a palavra dada ao Governo de São Paulo, fazendo causa comum
com as mais Províncias, que reconhecem a mesma Regência”331.

Resende Costa Filho assinou o comunicado ao Governo Provisório juntamente dos outros
12 deputados332. Segundo Marcus Caetano Domingos, o décimo quarto deputado, o vigário d. Her-
mógenes Cassimiro de Araújo seria eleito tardiamente pela comarca de Paracatu para seguir com os
deputados a Lisboa, porém, com o cancelamento da viagem, o vigário acabou não se reunindo com os
demais no Rio de Janeiro. Domingos reforça a dificuldade em apresentar posicionamentos distintos
dentre os deputados eleitos, visto que não foram encontrados documentos que tratassem disso333. No
caso de Resende Costa Filho, também não identificamos junto à documentação pesquisada corres-
pondências ou algum outro elemento que pudesse trazer um parecer próprio acerca da recusa. Contu-
do, seu alinhamento junto a Nogueira da Gama e Silva Lisboa e sua relação com o Corpo do Comércio
fluminense são elementos que reforçam sua posição adesista à figura do Príncipe Regente. Ademais,
mesmo residindo no Rio de Janeiro, mantinha laços familiares e de amizade com negociantes em Mi-
nas Gerais e uma parcela desses negociantes daria respaldo aos negociantes do Rio de Janeiro para que
rompessem com as Cortes Gerais Constituintes334.

No que tange ao interior da província mineira, Ana Rosa Cloclet Silva apresenta que a apro-
priação do constitucionalismo se deu em duas perspectivas: “a busca pela preservação de antigas auto-
nomias políticas e econômicas; e os mecanismos consagrados de reiteração das hierarquias sociais”335.
A autora assevera que a instalação da 1ª Junta Governativa em agosto de 1821 e os decretos lisboetas
de 29 de setembro do mesmo ano foram responsáveis por acirrar a tensão existente em Minas Gerais.
O antigo governador, d. Manuel e Castro, faria forte oposição à criação de um governo provisório,
contudo, acabaria por convocar os eleitores da paróquia ensejando, dessa forma, permanecer no con-
trole político da província; algo que se consumou em 20 de setembro de 1821, momento em que foi
eleito presidente da primeira junta mineira.

A partir do momento em que a Junta governativa de Minas Gerais tomou conhecimento dos
decretos lisboetas ampliou-se a preocupação em torno da perda de autonomias, bem como o receio de
uma guinada absolutista do Príncipe Regente. Não havia consonância de ideias no interior da provín-
cia, ao contrário, se por um lado os negociantes e a deputação mineira tomavam partido do adesismo
à persona d. Pedro de Alcântara, havia grupos que expressavam indiferença caso se consumasse sua
331 RAPM, v. 2, 1897.
332 Deputados que assinaram a Comunicação: Belchior Pinheiro de Oliveira. – Antônio Teixeira da Costa. –
Manoel José Vellozo Soares. – José de Rezende Costa. – Lucas Antônio Monteiro de Barros. – José Custódio
Dias. – João Gomes da Silveira Mendonça. – José Cesário de Miranda Ribeiro. – Jacinto Furtado de Mendonça.
– José Joaquim da Rocha. – Manoel Rodrigues Jardim. In: RAPM, v. 2, 1897.
333 DOMINGOS, Marcus Caetano; 2007.
334 OLIVEIRA, Cecília Helena L. Salles; 1999, p.231.
335SILVA, Ana Rosa Cloclet Da;2012, pp.243-268.  

1338
partida. Silva salienta que mesmo com o Fico essas dissidências permaneceram, uma vez que crescia
a preocupação em torno das autonomias longamente construídas e consolidadas pelo movimento
constitucional336.

A pretendida regeneração do Império luso-brasileiro proposto pelas Cortes Gerais Constituin-


tes conquistava cada vez mais desafeição na porção americana – essa foi uma característica substancial
da região Centro-Sul do Brasil – ganhando ares de tirania e despotismo. Assim como a Comunicaçãoe
o Ficoda deputação mineira, O Manifesto do Príncipe Regente aos Governos e Nações Amigas, de 6
de agosto de 1822, era uma clara evidência de que as relações entre o Reino do Brasil e de Portugal
haviam se esgarçado de forma irremediável. O discurso adotado pelo Príncipe Regente no Manifesto
era bastante objetivo: exultava a natureza prodigiosa do Brasil, sua exuberância e riquezas minerais,
além de seus povos – índios e europeus que juntos tinham convivido por três séculos. Não obstante,
criticava a ganância do Estado Português em buscar retirar daquela porção todos os seus tesouros sem
nenhuma contrapartida. Contrapunha-seàs ações das Cortes Gerais Constituintes que, segundo d.
Pedro, tentava retirar do Brasil a condição de Reino que seu Augusto pai, d. João VI, tinha propiciado.
Mas merecem desculpas os brasileiros, porque almas cândidas e generosas muita di-
ficuldade teriam de capacitar-se que a gabada Regeneração da Monarquia houvesse
de começar pelo restabelecimento do odioso sistema colonial. Era mui difícil, e quase
incrível, conciliar esse plano absurdo e tirânico com as luzes, e liberalismo, que alta-
mente apregoava o Congresso Português! E ainda mais incrível era, que houvessem
homens tão atrevidos, e insensatos, que ousassem, como depois direi, atribuir à von-
tade e ordens de meu Augusto Pai El Rei d. João VI, a quem o Brasil deveu sua cate-
goria de Reino, querer derribar de um golpe o mais belo padrão que a de eternizar na
História do Universo337.

Foi então,no ano de 1822, que passaram a utilizar o vocábulorecolonização para designar a
condução dos debates que ocorriam no Congresso Português338. A expressão era uma resposta à forma
como os habitantes do Brasil interpretavam as proposições das Cortes. Em Lisboa, à medida que os
debates iam se desenvolvendo, o sentimento em relação às Cortes ganhava novos contornos. Berbel
assevera que os deputados presentes advogavam que a extinção dos órgãos institucionais existentes
no Brasil daria ensejo à ampliação dos poderes de magistrados locais e buscavam reverter a situação
sem sucesso. A autora acredita que a chegada da deputação paulista e o envio de tropas à Bahia, con-
trariando a maior parte dos deputados brasileiros, foi um divisor de águas para os baianos aderirem
à figura de d. Pedro. Ademais, segundo Berbel, o deputado paulista Antônio Carlos de Andrada e
Silva e o baiano Cipriano Barata contrapunham-se à proposta integracionista do comércio de gêneros
entre Portugal e Brasil. Para Andrada e Silva, a abertura dos Portos e os tratados posteriores trouxe-
ram vários elementos que fizeram prosperar o comércio na porção americana. Barata, por sua vez,
argumentava que a exclusividade com Portugal inibiria o fluxo comercial no Brasil e afetaria também
proprietários e negociantes339.
336 Idem.
337 LISBOA, José da Silva. Manifesto do Príncipe Regente aos Governos, e Nações Amigas. IN: História dos
principais sucessos políticos do Império do Brasil – Parte X. Rio de Janeiro: Tipografia Imperial e Nacional,
1830, p.86-87.
338 BERBEL, Márcia Regina; 2005, p.793.
339 Ibidem, p.806-807.

1339
Os acordos diplomáticos empreendidos durante o período em que a Corte estava no Brasil
também foram objeto de debate no que diz respeito à possibilidade de recolonização do Brasil. Segun-
do Lúcia Bastos, no ano de 1820, o periódico Português Constitucional defendia que tudo voltasse à
antiga situação, da forma como era até 1807; a assertiva era no intuito de que fosse abolido, inclusive,
o tratado de comércio com os britânicos340. Lúcia Bastos destaca que a publicação portuguesa foi re-
chaçada de maneira incisiva no Brasil, tendo em vista que aludia à revogação da abertura dos portos e
também à elevação do Brasil a Reino; ocorrência do ano de 1815. A resposta ao artigo português, por
parte do padre Luís Gonçalves dos Santos341, não representava propriamente uma defesa ao tratado
de amizade e comércio, que como destacado fora objeto de críticas, entretanto era um dos elementos
que legitimava a emancipação mercantil do Brasil e, ao lado da elevação à categoria de Reino Unido,
deixava evidente a impossibilidade de recolonização por parte de Portugal. Desta forma, acusaram o
Português Constitucional de “fazer parte do número daqueles a quem o abutre da inveja e do ciúme
mercantil rói as entranhas” 342.

O fato é que o protagonismo mercantil fluminense ampliado após o advento de 1808 teve papel
basilar para que o Corpo do Comérciodo Rio de Janeiro sustentasse o Fico de D. Pedro. Théo Piñei-
roLobarinhas e Isabel Lustosa salientam que um dos mais profícuos negociantes do Rio de Janeiro,
Fernando Carneiro Leão, forneceu apoio econômico e militar ao Príncipe Regente no momento em
que as tropas fiéis a Lisboa se sublevaram contra o Fico. O negociante reuniu e comandou o 1º Regi-
mento de Infantaria contra as tropas do General Jorge Avilez343, garantido a permanência de d. Pedro
em território americano.

Como pode ser observado, a questão da autonomia política e econômica do Reino do Brasil
tornou-se central na acepção dos diferentes segmentos existentes dos dois lados do atlântico. A ex-
tinção das estruturas institucionais e administrativas do Reino do Brasil e a centralização político-
-administrativa em Portugal passaram a ser interpretadas como uma tentativa de reverter os sucessos
conquistados pelo Brasil durante o período em que sediou a Corte; algo que parecia ser preconizado,
porém por uma pequena parcela de negociantes portugueses da península. A abertura dos portos às
nações amigas e condição de Reino Unido eram vitórias políticas inquestionáveis. Mesmo que o in-
tento das Corte não fosse o de subvertê-las, mas integrá-las, isso certamente não seria visto com bons
olhos pelas elites mercantis do Brasil.

Como bem salienta Berbel, houve forte apelo por parte dos deputados portugueses pela manu-
tenção dos laços entre os reinos344, todavia a condução dos debates e a tentativa de sistematização de

340Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves. Os panfletos políticos e a cultura política da independência do Brasil.
IN: JANCSÓ, István. Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec; Fapesp, 2005. p. 659.
341Luiz Gonçalves dos Santos, nascido no Rio de Janeiro no ano de 1767, foi um importante cônego e cronista
do Império luso-brasileiro e, posteriormente, Império do Brasil. Também era conhecido como Padre Perereca
devido a sua baixa estatura, olhos esbugalhados e o seu peso. In: Livraria do Senado. Disponível em: <http://
livraria.senado.leg.br/memorias-para-servir-a-historia-do-reino-do-brasil.html>.
342NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira; 2005, p. 659.
343LUSTOSA, Isabel; PIÑEIRO, Théo Lobarinhas; 2008, p.182.
344 BERBEL, Márcia Regina; 2005, p.794.

1340
uma política administrativa para o Ultramar tangenciava fortemente as autonomias provinciais345. O
discurso da recolonização adotado pela deputação mineira e reforçado no Manifesto de d. Pedro pode
realmente ser entrevisto como retórico, uma vez que a “desobediência” aos decretos lisboetas e o Fico
do Regente já explicitavam uma recusa em relação às Cortes. O Fico da deputação mineira era apenas
uma forma de corroborar as ações empreendidas pelas elites dirigentes do Rio de Janeiro, tanto que ele
ocorre num momento em que o Rio de Janeiro já havia endossado a manutenção da regência pedrina.

A constituição de um império no Brasil desvinculado do Reino de Portugal começara a se


delinear entre as elites dirigentes fluminenses no princípio de 1822 e os acontecimentos no largo do
Rossio e Praça do Comércio no ano anterior se apresentam como sintomas desse novo horizonte de
expectativas. Havia interesses comuns sobre o controle político do império por segmentos das capi-
tanias do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais e estes já vislumbravam uma monarquia constitu-
cional encabeçada por d. Pedro de Alcântara.

Referências

Fontes:

Comunicação ao Governo Provisório de Minas Gerais (1822), dos deputados eleitos pela Província às
Cortes Portuguesas, de não seguirem para Lisboa e dos motivos porque assim deliberaram, de 25 de
fevereiro de 1822. RAPM, v. 2, 1897.

LISBOA, José da Silva. Manifesto do Príncipe Regente aos Governos, e Nações Amigas. IN: História
dos principais sucessos políticos do Império do Brasil – Parte X. Rio de Janeiro: Tipografia Imperial
e Nacional, 1830.

Processo da Revolta da Praça do Comércio do Rio de Janeiro em 21 de abril de 1821. Rio de Janeiro,
23 abr.-25 maio de 1821. In: Documentos para a História da Independência, volume I. Lisboa – Rio de
Janeiro: OfficinaGraphica da Biblioteca Nacional, 1923.

Revérbero Constitucional Fluminense. 15 de setembro de 1821, nº1 Disponível em: <http://memoria.


bn.br/DocReader/700223/8>.

SILVA, Antonio Moraes. Diccionario da linguaportugueza - recompilado dos vocabularios impressos


ate agora, e nesta segunda edição novamente emendado e muito acrescentado, por ANTONIO DE
MORAES SILVA. Lisboa: TypographiaLacerdina, 1813.

Bibliografia:

ARAÚJO, Valdei Lopes. A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasi-
leira (1813-1845). São Paulo: Editora Hucitec, 2008.

BERBEL, Márcia Regina. A retórica da colonização. IN: JANCSÓ, István. Independência: história e
345 O fato de o Governo de Armas não ser controlado pela Junta provincial foi objeto de críticas por parte do
deputado Cipriano Barata que enfatizava o fato de que tal ação tenderia à desordem. SLEMIAN, Andrea; 2006,
p.68.

1341
1342
SIMPÓSIO TEMÁTICO 17
O espaço luso-atlântico em perspectiva global: cirulação, poder e redes no contexto da união de coro-
as ibéricas, 1580 -1640

Coordenadores:

José Manuel Santos

José Luis Ruiz-Peinado

Expansão do poder régio nas capitanias donatárias: o caso do Rio Grande nos anos inicias
da união das coroas ibéricas
Elenize Trindade Pereira1

Aos oito dias do mês de março de 1535, na cidade de Évora, o rei D. João III (1521-1557) assinou
a carta de doação de uma capitania destinada ao oficial do alto escalão da administração ultramarina,
João de Barros2. Além da carta de doação, o rei concedeu a Barros a carta de foral da capitania, em 11
de março de 1535, documento que estabelecia um conjunto de direitos e deveres do capitão donatário e
dos futuros moradores da capitania para com a Coroa. Estes dois diplomas régios instituíram a criação
de um território subordinado à jurisdição de uma pessoa privada, capitão donatário, responsável pelo
governo e administração da capitania.

De acordo com o texto da carta de doação, Barros fora beneficiado com a concessão de uma
capitania na costa setentrional da Terra de Santa Cruz, já conhecida como Brasil3. A capitania doada

1Mestre em História – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. O presente trabalho foi realizado com
apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Finan-
ciamento 001.
2 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Chancelaria de D. João III, Doações, liv. 73, fl.27. A transcrição da carta
foi publicada em um estudo introdutório da obra Décadas da Ásia pelo primeiro diretor do ANTT, António
Baião. In: BARROS, João de. Ásia de Joam de Barros: dos feitos que os portugueses fizeram no descobrimento
e conquista dos mares e terras do Oriente. Primeira Década. 4ª ed. rev. e prefaciada por António Baião. Lisboa:
Impresa Nacional-Casa da Moeda, 1988. p. 28-34. Disponível em: http://purl.pt/26841/4/120004-1/120004-
1_item4/120004-1_PDF/120004-1_PDF_24-C-R0150/120004-1_0000_1-524_t24-C-R0150.pdf Acesso em 30
agosto de 2017.
3 Nas próprias cartas de doação e de foral das capitanias aparece o nome Brasil. No entanto, como explica a
historiadora Laura de Mello e Souza, durante dois séculos a denominação oscilou entre Brasil, referência à
atividade mercantil decorrente da exploração do pau brasil e Terra de Santa Cruz, nome ligado à missão evan-
gelizadora que acompanhava a os movimentos de colonização empreendidos pelos portugueses. A autora já
havia feito reflexões sobre este tema em duas obras: Terra de Santa Cruz (1986) e Inferno Atlântico (1993), mas
apresenta análise mais aprofundada no artigo SOUZA, Laura de Mello e. O nome do Brasil. Revista de História,
São Paulo, n. 145, p. 61-86, dec. 2001. ISSN 2316-9141. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/revhistoria/
article/view/18919/20982. Acesso em 10 de janeiro de 2018.

1343
abrangia uma extensa área de 50 léguas4de terra ao norte da Baía da Traição, limite com a capitania
de Itamaracá. Na mesma carta de doação destinada a Barros, há informação de outra capitania de 50
léguas doada ao navegador Aires da Cunha5, contígua capitania de Barros. As 100 léguas doadas a
Barros e Cunha correspondiam ao território dos povos Potiguara6, do tronco linguístico Tupi-Guarani7.
No século XVI, estes povos ocupavam a faixa litorânea desde atuais estados da Paraíba até o Ceará8.
Quando da chegada dos portugueses, a população Potiguara estava estimada em aproximadamente
90.000 pessoas9.

A história das tentativas de ocupação da conhecida costa “Leste-Oeste” foi marcada pelo
protagonismo da resistência dos povos Potiguara, que, associados aos franceses, impediram durante
muitos anos a fixação dos portugueses no Brasil. A designação presente no título desta dissertação,
“Terra dos Potiguara”, aparece nos documentos quinhentistas como referência à capitania de João de
Barros localizada ao norte de Itamaracá, que passou a ser denominada como capitania do Rio Grande
apenas no final do século XVI10. Além das capitanias mencionadas, Barros e Cunha receberam cada
um, uma capitania de 25 léguas de terra na região denominada na época de Maranhão11.

4 Uma légua de terra equivale a 6,6 quilômetros, portanto estima-se que a capitania doada possuía aproxima-
damente 330 quilômetros de litoral. CRUZ, João José de Sousa. Do pé real à légua da póvoa. Revista Militar; nº
2491/2192. Ago./set. 2009. Disponível em: https://www.revistamilitar.pt/artigo/500. Acesso em 30 de agosto de
2017.
5 De acordo com Pedro de Azevedo, Aires da Cunha possuía uma extensa lista de serviços à Coroa no ultra-
mar. Comandou uma armada nos Açores e participou de guerras na Índia. AZEVEDO, Pedro de. Os primeiros
donatários. In: DIAS, Carlos Malheiros. História da Colonização Portuguesa no Brasil. Vol. III. A Idade Média
Brasileira (1521-1580). Edição Monumental Comemorativa do Primeiro Centenário da Independência do Bra-
sil. Porto: Litografia Nacional, 1924. p. 207.
6 Neste trabalho optou-se pela adoção das regras estabelecidas na “Convenção para grafia de nomes tribais”,
assinada na 1ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada no Rio de Janeiro, em 1953, “de modo a uniformi-
zar a maneira de escrever os nomes das sociedades indígenas em textos em língua portuguesa”. In: Revista de
Antropologia. Vol. 2, nº. 2, dez. 1954, pp. 150-152. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/41616540?se-
q=1#page_scan_tab_contents. Acesso em 22 de março de 2018.
7 Sobre os hábitos e costumes dos Potiguara com base no relato dos cronistas da época ver LOPES, Fátima Mar-
tins. Índios, colonos e missionários na colonização da capitania do Rio Grande do Norte. Edição especial para o
acervo virtual Oswaldo Lamartine de Faria. Natal: IHGRN, 2002, p. 48-97; MOONEN, Frans; MAIA, Luciano
Mariz. Etnohistória dos índios Potiguara. João Pessoa: Procuradoria Geral da República-PB/SEC-PB, 1992.
8 Informação levantada pelo antropólogo Kurt Nimuendaju e representada no “Mapa etno-histórico do Brasil
e regiões adjacentes” de 1940. Para elaboração deste mapa o autor consultou mais de 900 obras de referência
entre cronistas e pesquisadores. Apud GIL, Tiago Luís... [et al.] Atlas histórico da América Lusa. Porto Alegre:
Ladeira Livros, 2016, pp- 28.29.
9 Estimativa feita pelo historiador canadense John Hemming. Para mais informações sobre o método utilizado
para o cálculo ver HEMMING, John. Ouro Vermelho: a conquista dos índios brasileiros. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2007. p. 721-39.
10 Nos alvarás régios e petições de João de Barros e de seus filhos, as autoridades competentes referem-se à
capitania do Rio Grande como “Terra dos Pitiguara”, como no alvará régio de 1561 em que o rei D. Sebastião
proibia a ida de qualquer pessoa à capitania de João de Barros sem a autorização do mesmo. “Mercê a João de
Barros referente a uma capitania no Brasil”. In: BAIÃO, António (org.). Documentos Inéditos sobre João de
Barros, sobre o escritor homônimo contemporâneo, sobre a família do historiador e sobre os continuadores de
suas ‘Décadas’. In: Boletim da Segunda Classe da Academia de Sciencias de Lisboa. Vol. XL, 1917, pp. 293-295.
Disponível em: https://archive.org/details/boletima11acaduoft. Acesso em 29 de janeiro de 2017.
11 Sabe-se da existência destas doações por meio da “Carta da doação das minas de ouro e prata das respectivas
capitanias a João de Barros e outros”, documento que será analisado mais adiante. ANTT, Chancelaria de D. João III, liv. 21, fl. 64.
In: BARROS, João de. Op. Cit. p. 35-38.

1344
Os processos de conquista ocorreram de diferentes maneiras nas capitanias do Brasil e com
dinâmicas particulares de produção dos novos espaços que compunham a circunscrição jurisdicional
dos donatários. No caso específico da “Terra dos Potiguara”, João de Barros não logrou êxito nas em-
preitadas para a conquista da capitania. O fracasso da primeira expedição financiada por Barros em
uma sociedade com Aires da Cunha e Fernão Álvares de Andrade12, resultou em uma tragédia. Cunha
liderou a grande expedição para tomar posse das capitanias e deixou o porto de Lisboa em novem-
bro de 1535, oito meses após a doação. No entanto, não conseguira aportar na primeira capitania de
Barros devido a reação hostil dos Potiguara. Assim, seguiu para as outras capitanias e, meses depois,
naufragou na costa do Maranhão13. Todo o investimento de Barros, Andrade e Cunha se perdeu, e
este último perdeu a própria vida no intento de encontrar riquezas no Brasil. A segunda tentativa
financiada por Barros ocorreu em 1555, quando enviou seus filhos, Jerônimo e João de Barros, para
explorar as ditas capitanias. Os filhos também não conseguiram tomar posse da “Terra dos Potiguara”
e seguiram para o Maranhão onde viveram por alguns anos desbravando a costa em busca de metais
preciosos sem encontrar14.

Devido a estes insucessos nas tentativas de colonização, na história da implementação do sistema


de capitanias no Brasil, a capitania de Barros consta entre as “capitanias cuja primitiva colonização se
malogrou”, como afirma Francisco Adolfo de Varnhagen na sua História Geral do Brasil, tomo I,
seção XII, dedicada aos casos de fracasso de alguns capitães donatários15. Aos casos cuja “colonização
vingou”, dedicou outra seção apresentando os feitos realizados pelos capitães donatários, notadamente
os casos de São Vicente e Pernambuco, e apontou ainda alguns sucessos nos anos iniciais da ocupação
das capitanias de Itamaracá, Ilhéus, Porto Seguro e Espírito Santo16.

Capistrano de Abreu também recordou as tentativas sem êxito de João de Barros e comentou os
problemas decorrentes da implantação do sistema das capitanias donatárias. Para o autor, a questão do
financiamento particular dos donatários era um problema, tendo em vista os grandesriscos envolvidos
nas empreitadas onerosas. Vencidos os desafios da navegação, em terra encaravam situações adversas
com os primeiros contatos com povos indígenas. Outros capitães donatários também perderam todos
seus investimentos, como foi o caso de Pero de Góis, donatário da capitania de São Tomé, ou perderam
até a própria vida, como ocorreu com Francisco Pereira Coutinho na Bahia17 .
12Tesoureiro mor do Reino e donatário de uma capitania vizinha a de João de Barros e Aire da Cunha.
13 O estudo mais recente sobre o naufrágio de Aires da Cunha é de MOREIRA, Rafael; THOMAS, William
M. Desventuras de João de Barros, primeiro colonizador do Maranhão: o achado da nau de Aires da Cunha
naufragada em 1536. Revista Oceanos: João de Barros e o cosmopolitismo do Renascimento. Nº 27 – julho-se-
tembro, 1996.
14SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil em 1587. Edição castigada pelo estudo e exame de
muitos códices manuscritos existentes no Brasil, em Portugal, Espanha e França, e acrescentada de alguns co-
mentários a obra por Francisco Adolpho de Varnhagen. Segunda Edição mais correcta e acrescentaria com um
aditamento. Rio de Janeiro: Typographia de João Ignacio da Silva, 1879, p. 15. Disponível em: https://archive.
org/details/tratadodescriti00varngoogAcesso em 7 de agosto de 2017.
15VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil– Antes da sua separação e independência de
Portugal; revisão e notas de J. Capistrano de Abreu, Rodolfo Garcia. Tomo Primeiro. - 9ª ed. São Paulo: Edições
Melhoramentos, 1975.pp. 192-204.
16Ibidem, p. 164-185.
17ABREU, Capistrano de. Capítulos de história colonial: 1500-1800. Brasília: Conselho Editorial do Senado
Federal, 1998, p. 55.

1345
Dado o fracasso de algumas tentativas, gradualmente a Coroa portuguesa retomou para si
poderes antes delegados aos capitães donatários, fosse por meio da restrição da jurisdição daqueles18,
fosse pela conversão de capitania donatária para capitania régia por meio da compra, além disso, a
instauração do Governo Geral, em 1548, fez parte de um projeto vistas a uma maior centralização do
poder da Coroa no Brasil, representada na figura do Governador Geral19.

No caso da compra de capitanias, o primeiro exemplo conhecido é o da capitania da Baía


de Todos os Santos. Após o capitão donatário Francisco Pereira Coutinho ter perdido todo o
investimento que havia feito e ter sido morto pelos Tupinambá, a Coroa assumiu o governo direto
da capitania, fundou a Cidade de São Salvador, sede do Governo Geral, e anos mais tarde, em 1579,
como forma de indenização, procedeu o pagamento de alguns direitos ao filho de Coutinho, Manuel
Pereira Coutinho20. Outros processos de conversão duraram anos, marcados por longos processos
dos descendentes dos donatários contra a Coroa. Foram os casos das capitanias de Itamaracá21,
Pernambuco22 e São Vicente23.

No que tange ao caso da donatária de João de Barros na “Terra dos Potiguara”, observa-se que
na historiografia sobre o tema das capitanias, perdura a hipótese, e em casos tida como afirmação,
de que o donatário abandonou a capitania após o fracasso da primeira tentativa de conquista, em
1535, e que, após a morte de Barros, em 1570, teria ocorrido a conversão para capitania régia, no
período de ascensão D. Filipe II de Espanha como rei D. Filipe I de Portugal no contexto da União das
Coroas (1580-1640). A origem desta hipótese é identificada na obra de Varnhagen, que ao descrever o
desfecho da primeira expedição financiada por Barros, em 1535, fez a seguinte afirmação:

18 “Alvará por que se limita a jurisdição dos Capitães donatários do Brasil” com data de 5 de março de 1557.
Documento publicado por SALDANHA, António Vasconcelos. As capitanias: o regime senhorial na Expansão
Ultramarina Portuguesa. Lisboa: Centro de Estudos de História do Atlântico, Secretaria Regional do Turismo
Cultura e Emigração, Região Autónoma da Madeira, 1992, p. 310-11.
19 Sobre a caracterização do ofício de Governador Geral ver COSENTINO, Francisco Carlos. Governadores
gerais do Estado do Brasil (séculos XVI-XVII): ofício, regimentos, governação e trajetórias. São Paulo: Anna-
blume/FAPEMIG, 2009.
20 TAVARES, Luís Henrique Dias. História da Bahia. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista Jú-
lio Mesquita Filho; Salvador: Editora da UFBA, 2001, p. 91; SALDANHA, António Vasconcelos. Op. cit. p. 389.
Este caso será analisado no capítulo 2 do presente estudo.
21 Sobre este caso ver SALDANHA, António Vasconcelos. As capitanias do Brasil: antecedentes, desenvolvi-
mento e extinção de um fenómeno atlântico. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobri-
mentos Portugueses, 2001, p. 404-9; BARBALHO VELEZ, Luciana de Carvalho. Donatários e administração
colonial: a capitania de Itamaracá e a Casa da Cascais (1692-1763). Rio de Janeiro, 348 f. Tese (Doutorado em
História) –Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense.
22 Sobre os conflitos gerados entre os donatários de Pernambuco e os Governadores Gerais ver DUTRA, Fran-
cis A.” Centralization vs. DonatarialPrivilege: Pernambuco, 1602-1630”. In ALDEN, Dauril (Org.). Colonial
Roots of Modern Brazil. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1973, pp. 19-60. O jurista
português Manuel Álvares Pegas (1635-1696) é o autor de “Allegaçam de direito por parte dos senhores condes
de Vimiozo sobre a sucessão da capitania de Pernambuco” de 1671, apresentada originalmente como petição
inicial de uma ação movida pelos herdeiros dos donatários da capitania de Pernambuco contra a Coroa. Um es-
tudo recente sobre este caso ver CABRAL, Gustavo César Machado. Pegas e Pernambuco: notas sobre o direito
comum e o espaço colonial. Direito & Práxis Revista, Rio de Janeiro, v. 20, n. 20, 2017.
23 LEME, Pedro Taques de Almeida Pais. História da capitania de São Vicente. Brasília: Senado Federal, Secre-
taria Especial de Editoração e Publicação, 2004.

1346
El rei D. Sebastião perdoou depois a Barros a dívida de uns 600$000 réis, em que
estava alcançado pela artilharia, armas e munições, que lhe haviam sido fornecidas,
pelo arsenal régio, para a expedição; e depois de ele falecer (1570), fez mercê a viúva
de 500$000 réis de pensão. E D. Filipe (I de Portugal) concedeu a Jerônimo de Barros,
filho do nosso donatário, e talvez como indenização dos direitos que tinha a capitania,
uma tença de 100$000 réis com faculdade para testar dela até a quantia de 30$000
réis24.

De acordo com Varnhagen, D. Sebastião (1557-1578) perdoou uma dívida que Barros havia
contraído para empreender a expedição rumo ao Brasil e, após a morte do donatário, o rei concedeu
uma pensão para a viúva. Anos mais tarde, em data posterior a 1580, D. Filipe II de Espanha já na
condição de D. Filipe I de Portugal, teria pago uma indenização ao primogênito de Barros e herdeiro
das capitanias, Jerônimo de Barros. Varnhagen não fez nenhuma menção a fonte dessas informações,
também não teceu comentários sobre a hipótese da conversão da capitania donatária para régia ter
ocorrido por meio do pagamento de uma suposta indenização ao novo donatário, após mais de meio
século como capitania donatária supostamente abandonada. Nesse sentido, faz se necessário sondar a
visão deste pesquisador sobre este período da história do Brasil quando Portugal passou a fazer parte
da Monarquia Hispânica

Em artigo a respeito dos enfoques historiográficos e possibilidades de investigação sobre o


Brasil colonial no período filipino, o historiador Ronaldo Vainfas adverte que a obra varnhageana
é marcada por uma percepção de que o Brasil era português e que o autor “lastima a União Ibérica”
pelas consequências adversas como a herança de diversos inimigos de Castela que resultaram nas
invasões holandesas25. Nesse sentido, o ponto de referência para as análises de Varnhagen sobre a
atuação da dinastia dos Habsburgo era a ideia de que Portugal e, consequentemente o Brasil, viveram
sob o “domínio espanhol”. Nesse sentido, a hipótese de Varnhagen sobre a conversão da capitania
nos primeiros anos do reinado de D. Filipe I, pode estar relacionada justamente a esta visão do autor.
No entanto, o fato de D. Filipe I ter concedido uma tença ao filho de João de Barros, não significava
necessariamente que esta tença era uma indenização pelos direitos da capitania. Mas esta percepção
merece uma investigação do contexto e da própria situação de Jerônimo de Barros na corte portuguesa
após a morte do seu pai, em 1570.

A afirmação de Varnhagen sobre o abandono da capitania por parte Barros e a hipótese a respeito
da conversão desta em capitania régia, foi repetida, em alguma medida, nos estudos considerados
clássicos sobre história do Rio Grande do Norte, tais como os trabalhos de Augusto Tavares de Lyra26e

24VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Op. cit. p. 19.


25VAINFAS, Ronaldo. Tempo dos Filipes no Brasil colonial: enfoques historiográficos, possibilidades de inves-
tigação. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n. 16, p. 14-33, jan./jun. 2017. Disponível emhttp://www.e-publica-
coes.uerj.br/index.php/maracanan/article/view/27118 Acesso em 22 de março de 2018.
26 LYRA, Augusto Tavares de. História do Rio Grande do Norte. Natal: EDUFRN, 2008.

1347
Rocha Pombo27, publicados na década de 1920, e de Luís da Câmara Cascudo28, de 1955.

Augusto Tavares de Lyra inicia a sua História do Rio Grande do Norte com o capítulo “A
conquista da capitania”29. Sobre a doação desta capitania, Tavares de Lyra menciona rapidamente a
discussão sobre a imprecisão com relação aos limites da donataria, pois não se sabia onde terminavam
as 100 léguas concedidas a João de Barros e Aires da Cunha30. Para Lyra, a divergência com relação
aos limites era natural e comum ao caso de quase todas as capitanias dado o pouco conhecimento
da costa. Tavares de Lyra indicou outro ponto de discordância no que diz respeito a concessão da
capitania. A dúvida que existia era se a doação fora feita, inicialmente, para João de Barros e depois
o donatário ter-se-ia associado a Aires da Cunha, ou se Cunha fora donatário desde o início. Mas,
Lyra afirma que, apesar do fato de não ter tido acesso à carta de doação da capitania na época em que
escreveu sua obra, a carta de foral de 11 de março de 1535 dirimia tal dúvida, pois apresentava Barros
e Cunha como donatários no momento da doação31.

Com relação ao fracasso da primeira expedição, Lyra cita a conclusão de Varnhagen onde afirma
que somente à custa de muitos trabalhos e despesas, o capitão donatário poder resgatar seus filhos e
desistira de conquistar a capitania32. Importa observar também, que, apesar de Lyra ter apresentado,
mesmo que rapidamente, o alvará de 1561 de D. Sebastião a respeito de um pedido de João de Barros
para que ninguém fosse à “Terra dos Potiguara” sem sua permissão como capitão donatário, e a própria
certidão sobre os limites entre a capitania de Barros e Itamaracá, querela que resultou em disputa
judicial sobre a verdadeira localização do Porto de Búzios, Lyra manteve a afirmação de Varnhagen de
que Barros havia abandonado a capitania. Neste ponto, a ideia do abandono está associada a falta de
novas tentativas de conquista.

Rocha Pombo, em sua História do Rio Grande do Norte, dedicou dois capítulos ao período
anterior à conquista da capitania. O autor teceu algumas considerações sobre os laços de amizade
entre os povos Potiguara e os franceses e como essas alianças dificultaram a chegada dos portugueses
no litoral das capitanias do norte33. Ademais, afirmou que “O que se liquida de modo incontestável
é que, não só aquela parte, como todo o litoral do Noroeste ficaram desde 1538 até fins do século,
completamente abandonados pelos portugueses”34. Assim, Pombo corroborou com a ideia do
abandono. No entanto, nada mencionou a respeito de uma segunda expedição com os filhos de Barros
e nem da conversão da donataria em capitania régia.

27 POMBO, Rocha. História do Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro: Editores anuários do Brasil, 1922, p. 23-
51.
28CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e
Cultura, Serviço de Documentação, 1955, p. 13-34. Elementos sobre a conquista também são discutidos em
CASCUDO, Luís da Câmara. História da Cidade do Natal. Natal: EDUFRN, 2010, p. 35-62.
29 LYRA, Augusto Tavares de. Op. cit. p. 23-40
30 Lyra menciona o caso de autores como Cândido Mendes que fixou o limite norte da capitania no rio Jaguari-
be; Rocha Pombo definiu como ponto limite o rio Mundaú, no atual Ceará, e Matoso Maia, afirmava que a ca-
pitania de Barros e Cunha tinha termo final na cordilheira do Apodi. LYRA, Augusto Tavares de. Op. cit. p. 25.
31 LYRA, Augusto Tavares de. Op. cit. p. 25.
32Ibidem, p. 28.
33 POMBO, Rocha. Op. cit. p. 21-2.
34Ibidem, p. 27.

1348
A História do Rio Grande do Norte, de Luís da Câmara Cascudo, é de data um pouco posterior
às duas obras mencionadas foi publicada em 1955, e apresenta mais elementos sobre as tentativas de
conquista. O autor declarou que desconhecia a carta de doação da capitania, mas relatou detalhes da
primeira expedição e identificou uma segunda com base em uma declaração do primogênito de João
de Barros e no alvará expedido pelo rei D. Sebastião, em 1561, o mesmo documento citado por Lyra,
que ignorou esta informação35. Cascudo ainda menciona a certidão dos limites entre a capitania de
Barros e Itamaracá como uma prova do interesse de João de Barros pela capitania. Devido a estas
demonstrações de interesse do donatário, Cascudo chegou à seguinte conclusão:

Vê-se que a capitania nunca esteve esquecida pelo seu proprietário. Pequenina fonte
econômica, quando João de Barros faleceu, 1570, os filhos, alegando, justos serviços,
requereram pagas a Filipe II de Espanha, rei de Portugal. Jerônimo recebeu 150$000
de tença, por mercê real de 21 de junho de 1582, com direito de testar até 30$000,
concedido na mesma data. Ter-se-ia dado nessa época a reversão de propriedade da
capitania à coroa? 36.

Com opinião diferente dos outros autores, Cascudo afirma que a capitania não esteve abandonada.
Foi fonte de renda para o donatário e que, após a morte deste, os filhos buscaram uma recompensa
pelos serviços do pai. De forma mais prudente, Cascudo lança um questionamento sobre a possível
reversão da donataria em capitania régia neste período.

O historiador Helder Alexandre Medeiros de Macedo destacou outros estudos da produção lo-
cal e erudita, ligada ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte e os classificou como
estudos revisionistas e que nas últimas quatro décadas, “teve como meta auscultar temas controversos
ou lacunares na historiografia”37. Dentre estes estudos, pode-se destacar os trabalhos de Tarcísio Me-
deiros nas décadas de 1970 e 1980, e Olavo de Medeiros com uma produção dos anos 1990.

No livro Aspectos geopolíticos e antropológicos da História do Rio Grande do Norte38, Tarcísio


Medeiros informa que também desconhecia a carta de doação de capitania de João de Barros, mas
seguia outros autores na afirmação de que o rei havia doado 100 léguas da Baía da Traição até o rio
Jaguaribe para Barros e Cunha conjuntamente39. Sobre a situação da capitania após a primeira expedi-
ção de 1535, retomou a questão do abandono e afirmou que, com a morte do donatário, em 1570, o fi-
lho Jerônimo de Barros não podendo manter os direitos de donatário, recebia, a título de indenização,

35 CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e
Cultura, Serviço de Documentação, 1955, p. 20.
36Ibidem, p. 23.
37 MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Ocidentalização, territórios e populações indígenas no sertão da
Capitania do Rio Grande. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
2007, p. 85.
38 MEDEIROS, Tarcísio. Aspectos Geopolíticos e Antropológicos da História do Rio Grande do Norte. Natal:
Imprensa Universitária, 1973.
39Ibidem, p. 23.

1349
“uma tença de 100$000 réis” pela cessão à Coroa Real, em 1587”40. Assim, Medeiros apresenta uma
outra data para a conversão, sem um fundamento mais sólido para tanto, e a suposição dos autores
com relação ao recebimento da tença por parte do primogênito de Barros ter a ver com uma espécie
de indenização pelos direitos da capitania ganhou ares de certeza na referida obra.

Já no seu outro livro, Proto-história do Rio Grande do Norte41, face ao achado no ANTT da
carta de doação destinada a João de Barros, por Ivoncísio Medeiros (filho de Tarcísio Medeiros), foi
dirimida a dúvida sobre quando Aires da Cunha ter-se-ia tornado capitão donatário da porção de 100
léguas, se foi no ato da doação ou depois quando uniram esforços para organizar a grande expedição
de 1535. Tarcísio Medeiros transcreveu trechos da carta de doação e ficou evidenciado que a donataria
de 100 léguas foi concedida a João de Barros e Aires da Cunha na mesma data e que existiu apenas
uma carta de doação onde o rei determinou a divisão das 100 léguas de modo que cada donatário
ficasse com 50 léguas42. No entanto, Medeiros ignorou o fato de que no final da carta de doação, o rei
afirma que iria proceder com a feitura do mesmo documento para Aires da Cunha. No que toca ao
período posterior a 1535, o autor mantém a afirmação de que a capitania ficou abandonada por 63
anos (1535-1598) e por isso, foi “presa fácil” dos franceses43.

Olavo de Medeiros em sua obra Aconteceu na Capitania do Rio Grande44, curiosamente não
trata de nenhum aspecto referente a doação e conversão da capitania. O autor optou por uma abor-
dagem da história do contato dos europeus com o litoral “norte-rio-grandense”45. Nesse sentido, teve
como ponto de partida o episódio da expedição de André Gonçalves de 1501 que, segundo Medeiros,
foi quem realizou o ritual de tomada de posse da terra e como parte desta ritualística, chantou um
padrão de pedra de lioz, chamado mármore de Lisboa, na atual Praia de Touros, padrão de pedra que
ficou conhecido como Marco de Touros46. Em seguida, o autor trata da descrição da costa da capitania

40Ibidem, p. 24.
41MEDEIROS, Tarcísio. Proto-história do Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro: Presença Edições, 1985.
42Ibidem, p. 192-94.
43Ibidem, p. 1998-99.
44 MEDEIROS FILHO, Olavo. Aconteceu na Capitania do Rio Grande. Natal: Depto. Estadual de Imprensa,
1997.
45Ibidem, p. 7. Em outra obra, Terra Natalense, o autor foca nos aspectos da conquista e da fundação da Cidade
do Natal. MEDEIROS FILHO, Olavo. Terra Natalense. Natal: Fundação José Augusto, 1991.
46 No ano de 1975, o marco foi retirado da praia e transferido para Natal e passou a integrar o acervo do Mu-
seu da Fortaleza dos Reis Magos. Na Praia de Touros, foi colocada uma réplica daquele padrão. Ibidem, p. 12.
Atualmente, este fato está associado a uma tese que defende que o primeiro contato dos europeus com o terri-
tório que viria a ser o Brasil, teria ocorrido na localidade onde foi chantado o referido marco. A iniciativa tem
como lema “Rio Grande do Norte: o Brasil começa aqui”. Disponível em https://oglobo.globo.com/sociedade/
uniao-para-provar-que-cabral-chegou-primeiro-ao-rio-grande-do-norte-21238803. Acesso em 21 de abril de
2017. Lema problemático do ponto de vista histórico por não refletir a constituição daquele espaço na aurora
do século XVI.

1350
feita por Gabriel Soares de Sousa47 no Tratado Descritivo do Brasil de 1587, para logo adentrar na
temática da conquista da capitania, em 1598, sem fazer qualquer menção a atuação de João de Barros
como capitão donatário.

No campo da historiografia acadêmica, sobre a história da capitania neste período, destaca-


se o estudo de Maria Emília Monteiro Porto, professora do Departamento de História da UFRN,
sobre a atuação dos jesuítas no Rio Grande48. No que diz respeito ao período referente ao século
XVI, o trabalho discute o papel fundamental desempenhado pelos padres da Companhia de Jesus no
processo de conquista da capitania já no final do século. Apesar de não tocar diretamente nas questões
referentes à doação e à conversão para capitania régia, pois não era objetivo do estudo, a historiadora
seguiu a linha dos autores mencionados anteriormente ao afirmar que “As bases jurídicas desta política
de conquista se delinearam com a elevação de algumas donatarias a Capitanias da Coroa, como foi o
caso do Rio Grande em 1582 [...]”49.

Outro estudo importante que perpassa em alguns pontos pelo século XVI é o de Fátima Martins
Lopes, professora do Departamento de História da UFRN, sobre as missões volantes e aldeamentos
indígenas que apresentam aspectos fundamentais sobre os hábitos, costumes e as relações estabelecidas
com os europeus ao longo dos séculos50. Com base em Augusto Tavares de Lyra e Luís da Câmara
Cascudo, a autora reitera a ideia de que a capitania retornou para Coroa em 1582.

A conversão da capitania é uma questão que deve ser pensada com base em duas perspectivas:
a dos fatos que estavam ocorrendo na corte portuguesa e envolviam o herdeiro das capitanias nos
anos iniciais da integração de Portugal à Monarquia Hispânica e a dos conflitos que eclodiram nas
fronteiras das capitanias setentrionais e que impulsionaram os processos de conquista.

Entre os pesquisadores que trataram do tema das capitanias donatárias, pairou a dúvida e, às
vezes, a certeza de que a capitania de João de Barros foi convertida em capitania régia no início da
ascensão de D. Filipe II de Espanha como rei de Portugal no contexto de União das Coroas ibéricas
(1580-1640), quando o herdeiro de Barros, Jerônimo de Barros, teria recebido uma tença pela cessão
dos direitos da capitania51. Sobre este assunto, é oportuno examinar detidamente a situação da família
de João de Barros após sua morte, em 1570, no intuito de analisar tanto a posição como os possíveis

47 Gabriel Soares de Sousa, cronista português, nascido em 1540, foi um dos grandes senhores de engenhos
da Bahia e escreveu umas das crônicas mais importantes do século XVI, Tratado Descritivo do Brasil de 1587.
Graças a esta obra que dedicou a um importante nobre português defensor da causa da União das Coroa, D.
Cristóvão de Moura, Sousa recebido na corte em Madrid e nomeado “capitão-mor e governador da conquista e
descobrimento do rio São Francisco”. Morreu em 1592 na Bahia. VAINFAS, Ronaldo. Gabriel Soares de Sousa.
In: VAINFAS, Ronaldo (Org.). Dicionário do Brasil colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p.
260-1.
48PORTO, Maria Emilia Monteiro. Jesuítas na capitania do Rio Grande séculos XVI-XVIII: Arcaicos e Moder-
nos. Tese (Doutorado em História). Facultad de Geografía e Historia, Universidad de Salamanca, 2000.
49Ibidem, p. 67.
50 LOPES, Fátima Martins. Índios, colonos e missionários na colonização da capitania do Rio Grande do Norte.
Edição especial para o acervo virtual Oswaldo Lamartine de Faria. Natal: IHGRN, 2002.
51 Hipótese defendida inicialmente por Francisco Adolfo de Varnhagen, Ver VARNHAGEN, Francisco Adolfo
de. História Geral do Brasil– Antes da sua separação e independência de Portugal; revisão e notas de J. Capis-
trano de Abreu, Rodolfo Garcia. Tomo Primeiro. - 9ª ed. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1975, p. 19.

1351
interesses de Jerônimo de Barros como novo capitão donatário, principalmente com base nas petições
que enviou aos reis D. Sebastião (1557-1578) e D. Filipe I (1581-1598).

As mercês da família Barros

Como apontado na introdução do presente estudo, a tença destinada a Jerônimo de Barros é


comumente interpretada pela historiografia como uma espécie de indenização pela cessão de direitos
das capitanias52. Contudo, faz-se necessário compreender até que ponto a tença destinada a Jerônimo
de Barros pode ser considerada o marco da conversão de capitania donatária para régia.

Inicialmente, é preciso retomar o ponto de partida da hipótese sobre a indenização. Na História


do Brasil, de Varnhagen, consta o seguinte trecho:

El rei D. Sebastião perdoou depois a Barros a dívida de uns seiscentos reais, em que
estava alcançado pela artilharia, armas e munições, que lhe haviam sido fornecidas,
pelo arsenal régio, para a expedição; e depois de ele falecer (1570), fez mercê a viúva
de cinquenta mil réis de pensão. E D. Filipe (I de Portugal) concedeu a Jerônimo de
Barros, filho do nosso donatário, e talvez como indenização dos direitos que tinha a
capitania, uma tença de cem mil réis com faculdade para testar dela até a quantia de
trinta mil reais53.

O pesquisador afirma, sem citar as fontes, que o rei D. Sebastião (1557-1578) havia perdoado
uma dívida que Barros havia contraído para armar a expedição rumo ao Brasil e concedido uma pen-
são à viúva do donatário. Outro detalhe importante diz respeito à doação destinada a Jerônimo de
Barros. Na carta de mercê, consta que no ano de 1571, D. Sebastião concedeu uma tença de 150$000
réis anuais. Varnhagen menciona uma tença de 100$000 réis doada por D. Filipe I (1581-1598) desti-
nada ao primogênito de Barros em data desconhecida.

Com base nesta comparação, é possível questionar a hipótese de Varnhagen sobre a possibilida-
de da tença doada por D. Filipe I representar uma indenização pelos direitos das capitanias no Brasil,
após a morte de João de Barros. É plausível a ideia de que o pesquisador brasileiro conheceu, ou teve
notícia, apenas da tença concedida pelo rei D. Filipe I a Jerônimo de Barros, e, somados aos fatos que
se sucederam no Brasil neste período, como os processos de conquistas das capitanias localizadas
no norte, tenha assim associado a concessão da tença a uma iniciativa para indenizar o novo capitão
donatário.

Mais do que estabelecer hipóteses, é necessário compreender a lógica social intrínseca na doa-
ção de mercês desse tipo na sociedade daquela época. Neste intuito, a análise do conjunto de docu-
52 Alguns estudos já mencionados: VARNHAGEN, Francisco Adolfo. Op. cit. p. 191-2; LYRA, Augusto Tavares
de. Op. cit. p. 28; CASCUDO, Luís da Câmara. Op. cit. p. 23; MEDEIROS, Tarcísio. Aspectos Geopolíticos e
Antropológicos da História do Rio Grande do Norte. Natal: Imprensa Universitária, 1973, p. 24.
53VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Op. cit. p. 191-2.

1352
mentos respeitantes à João de Barros e sua família, possibilitou a elaboração de um quadro de mercês
que ajudam a compreender qual era o lugar social destas pessoas naquela sociedade e quais eram seus
interesses, especialmente do herdeiro das capitanias no Brasil, Jerônimo de Barros. Além disso, foi
possível perceber as especificidades com relação às concessões em dois momentos distintos na história
da vida política portuguesa: o reinado de D. Sebastião I (1557-1578) e nos anos iniciais da União das
Coroas ibéricas na década de 1580.

O estudo do conjunto de fontes que incluem petições e cartas de mercês da família Barros, tem
como referencial a visão da monarquia portuguesa como um centro definidor da hierarquia social
com base na lógica da justiça distributiva. A sociedade portuguesa de Antigo Regime se estruturou a
partir da prestação de serviço dos súditos ao rei e do reconhecimento destes serviços pela autorida-
de real por meio da concessão de cargos, comendas, terras, remuneração, títulos honoríficos, entre
outros que configuravam a lógica de reciprocidades e recompensas. Os historiadores Ângela Barreto
Xavier e António Manuel Hespanha caracterizam essa dinâmica social de relações com base na ideia
de “dom” como "parte da sociedade de Antigo Regime, de um universo normativo preciso e detalhado
que lhe retirava toda a espontaneidade e o transformava em unidade de uma cadeia infinita de atos
beneficiais"54. O ato do rei de conceder mercês fazia parte das redes de obrigações fundamentada em
um tripé de ações formado pelos atos de dar, receber e restituir que, segundo os autores, "cimentavam
a natureza das relações sociais e, a partir destas, das próprias relações políticas"55.

Em estudo sobre as Ordens Militares, a historiadora Fernanda Olival caracteriza este processo
de criação de uma cadeia de obrigações recíprocas e assimétricas entre o rei e o súdito como “econo-
mia de mercês” 56. Olival atenta para a necessária equidade que deveria existir entre o serviço presta-
dor e a remuneração recebida. Além disso, a autora diferencia dois termos presentes nos documentos
na época que comumente são tidos como sinônimos: mercê e graça. De acordo com Olival, mercê era
o “débito” do rei com relação a um serviço prestado pelo súdito. Já a graça, era concedida pelo rei ao
súdito sem que este tenha prestado algum serviço57. Outra concepção importante sobre esta dinâmica
social é a ideia de que o monarca tinha dever moral de remunerar de alguma forma os serviços dos
seus vassalos. Assim, o serviço ao rei adquiriu um significado mais associado a um investimento que
ao mesmo tempo consolidava o poder da Coroa em influir nas hierarquias e práticas sociais58.

Os textos das cartas de doação e as petições enviadas pelos súditos evidenciam esta percepção do
dar e receber. Nas petições, por exemplo, antes de mencionar o pedido, os suplicantes relatavam todo
um histórico de serviços não apenas seus, mas também dos antepassados. O objetivo era demonstrar
ao rei o quão digno a pessoa era para receber uma determinada mercê. Nesse sentido, a mobilidade
social naquela sociedade estava intrinsicamente relacionada ao conjunto de serviços prestados, tanto
54 Concepção inspirada no conceito de “economia do dom” de Marcel Mauss. HESPANHA, António Manuel;
XAVIER, Ângela. "Redes Clientelares". In: HESPANHA, António Manuel (coord.). História de Portugal: o An-
tigo Regime, v. 4. Lisboa: Editorial Estampa, 1998, p. 340.
55Ibidem, idem.
56OLIVAL, Fernanda. OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno: Honra, Mercê e Venali-
dade em Portugal (1641-1789). Lisboa: Estar, 2001, p. 21.
57Ibidem, p. 21-2.
58Ibidem, p. 24.

1353
pelo suplicante como por seus familiares, tendo em vista que algumas mercês poderiam inclusive ser
herdadas59, reproduzindo assim os privilégios.

No caso de Jerônimo de Barros, é possível observar esta dinâmica de concessão de mercês a par-
tir de 1552, no reinado de D. João III (1521-1557), quando o primogênito de Barros foi tomado como
moço fidalgo, tal como consta na certidão encontrada por António Baião60. Na classificação apresen-
tada pelo linhagista português Manuel José da Costa Felgueiras Gaio, o foro de moço fidalgo era um
foro de primeira ordem na classificação da divisão social e de serviços na Casa Real61. Os homens
agraciados com este foro, tinham direito a receber mil e duzentos réis mensais de moradia e 1 alqueire
de cevada por dia62. Na mesma certidão encontrada por Baião, consta ainda que, no ano de 1574, foi
acrescentado à Jerônimo de Barros o foro de fidalgo escudeiro com direito a 1$600 réis de moradia por
mês e um alqueire de cevada por dia, “moradia que pelo dito seu pai lhe pertence”63. Com base nesta
informação, sabe-se que João de Barros, próximo à data de sua morte, detinha o segundo foro mais
importante da Casa Real, fruto de uma trajetória de serviços que começaram na condição de moço da
guarda-roupa do príncipe e futuro rei D. João III. Jerônimo de Barros, por sua vez, herdou a moradia
que era concedida ao pai em vida e ascendeu na categoria dos foros.

No entanto, as categorias de foros não podem ser examinadas como se respeitassem uma ordem
engessada de uma ascensão vertical. Ao analisar a semântica dos títulos dos moradores da Casa Real,
a historiadora Mafalda Cunha observou que, a partir do reinado de D. Sebastião, houve um agrava-
mento na mudança da lógica dos acrescentamentos de foros que já passava por um processo de trans-
formação anterior. Os homens que detinham o foro de escudeiro fidalgo, por exemplo, poderiam ser
acrescidos com o foro de fidalgo escudeiro e aqueles que eram cavaleiros fidalgos com o foro de fidalgo
cavaleiro. Isto quer dizer que os foros que anteriormente eram destinados apenas aos puros fidalgos
de linhagem, passaram a ser acessados pelo escalão mais baixo da hierarquia dos moradores64. Dessa
forma, após a morte do pai, Jerônimo de Barros passou para uma categoria de foro que havia perdido
o prestígio e o carácter exclusivista destinado à nobreza.

Três anos após ser agraciado com o foro de moço fidalgo, Jerônimo de Barros estava no Brasil
desbravando a costa no entorno do rio Maranhão, como é possível identificar nas fontes. Tal infor-
mação consta no alvará expedido em nome do rei D. Sebastião (1557-1578), no ano de 1561, em que
proibia a ida de qualquer pessoa à “Terra dos Potiguara” sem autorização do capitão donatário João de
Barros65. No início do documento, informa que os filhos de Barros participaram de expedição rumo
59Ibidem, idem.
60 ANTT, Chancelaria de D. Sebastião, Doações, liv. 21, fl. 22. In: BAIÃO, António. Op. cit. o. 307.
61 Como apontado no primeiro capítulo do presente estudo, todos os homens agraciados com foros de primei-
ra ordem eram denominados de Fidalgos da Casa Real. GAIO, Manuel José da Costa Felgueiras. Nobiliário das
Famílias de Portugal. Tomo I e II. Braga: Oficinas Gráficas de Paz, 1938. pp.13-19. Disponível em: http://purl.
pt/12151/4/. Acesso em 10 de julho de 2017.
62 Para um quadro geral das categorias de foros existentes na Casa Real com base na classificação apresentada
por Manuel José da Costa Felgueiras Gaio, vide anexo B, p. 149.
63 BAIÃO, António. Op. cit. p. 307.
64 CUNHA, Mafalda. A Casa de Bragança (1560-1640): Práticas senhoriais e redes clientelares. Lisboa: Edito-
rial Estampa, 2000, p. 56-7.
65 BAIÃO, António. Op. cit. p. 247.

1354
às capitanias do Brasil cinco anos antes da data do dito alvará, portanto, em 1555.

Em 1561, ano em que João de Barros obteve o alvará que reafirmava sua jurisdição sobre a “Ter-
ra dos Potiguara”, era o tempo da regência de D. Catarina de Áustria (1557-1562), filha de Fernando
de Aragão e Isabel de Castela e viúva de D. João III (1521-1557). D. Catarina, assumiu a regência e a
tutela do herdeiro, o rei D. Sebastião, coroado aos três anos de idade66. Antes da morte do marido,
D. Catarina já exercia uma considerável influência política no reino. Fora admitida no Conselho real
e emitia opiniões, destacando sua importante posição no centro do poder político português, que foi
reforçada após a morte do marido67.

A primeira mercê destinada a Jerônimo de Barros identificada após a morte do pai, em 1570,
corresponde à concessão de uma tença, em 1571, de cento e 150$000 mil réis anuais até o momento
em que ele fosse provido com comenda da Ordem de Cristo “ou coisa que o valha”68. Cabe ressaltar
que esta mercê é resultado de um pedido feito previamente por meio de um alvará de lembrança re-
gistrado em Lisboa com data de 12 de janeiro de 156869, portanto, antes da morte de João de Barros.
O texto do documento indica que era intenção de Barros garantir junto ao rei que, após sua morte, o
filho mais velho receberia uma tença como reconhecimento pelos serviços e dos serviços do filho. Je-
rônimo de Barros apresentou o alvará de lembrança que foi reproduzido na carta de mercê e confirma-
do pela autoridade real. Importa observar que, neste documento não existe menção à nova situação de
Jerônimo de Barros como capitão donatário das capitanias no Brasil. A justificativa para o pagamento
da tença encerra-se na questão dos serviços prestados por pai e filho, sem especificar os ditos serviços.

O documento ainda menciona a possibilidade de Jerônimo de Barros um dia ser provido com a
comenda da Ordem de Cristo “ou outra coisa que o valha”. Para esboçar o significado social deste tipo
da comenda da ordem citada, é preciso ter em conta que a Ordem de Cristo era uma ordem religiosa-
-militar controlada pela Coroa portuguesa. Os homens providos nesta ordem eram agraciados com o
hábito de Cavaleiro da Ordem de Cristo. Esta era uma honraria nobilitante acompanhada de uma ten-
ça (rendimento monetário) e importantes privilégios jurídicos e fiscais. O processo de admissão, nes-
ta ordem, envolvia uma vasta investigação das características que inviabilizavam a nomeação. Era feito
um exame que procurava descobrir se o candidato era limpo de sangue, ou seja, se tinha ascendentes
cristãos-novos (judeus ou mouros convertidos); se ele ou seus ascendentes tinham "defeito mecânico",
isto é, se haviam trabalhado com as mãos, e se vivia nobremente. Tal nobilitação estava associada ao
prestígio e ao reconhecimento por parte do Coroa dos serviços de súditos leais e honrados em prol da
monarquia. As comendas da Ordem, por sua vez, formavam outra honraria, com valor simbólico mais

66 Após a morte de D. João III, em 1557, não havia herdeiro direto para o trono de Portugal, pois os nove filhos
de D. Catarina e D. João III já haviam falecido. COELHO, António Borges. História de Portugal. Na esfera do
mundo. Volume IV. Alfragide: Editora Caminho, 2013, p. 192-3.
67 SILVA, Luisa Stella de Oliveira Coutinho. O pensamento na época de Catarina de Áustria e as mulheres no
governo. RIDB, ano 2, n. 10, 2013, p. 11639-11681. Disponível em: https://www.cidp.pt/publicacoes/revistas/ri
db/2013/10/2013_10_11639_11681.pdf. Acesso em 25 de junho de 2018.
68 ANTT, Chancelaria de D. Sebastião, Doações, Liv. 26, fl. 189v. In: BAIÃO, António. Op. cit. p. 214-6.
69Ibidem, idem.

1355
relevante, por serem mais raras, e fornecerem tenças de valores variados70.

No rol de documentos selecionados por António Baião e classificados na presente pesquisa na


categoria “petições e mercês dos filhos de João de Barros”, não consta nenhuma indicação de que Je-
rônimo de Barros tenha recebido a comenda da Ordem de Cristo ou qualquer outra comenda. No rol
das petições, por sua vez, consta um importante pedido com relação as capitanias do Brasil. Na minuta
de uma petição com data desconhecida, está registrada a seguinte declaração:

Diz Jerônimo de Barros que ele tem uma capitania no Brasil de cinquenta léguas na
costa dos Potiguara e vinte e cinco léguas na boca do rio Maranhão. E já que seu pai,
nem ele por seus serviços mereceram servir Vossa Alteza dele nesta reino como seu
pai sempre requereu, quer ir povoar esta capitania no que espera fazer a Deus e a Vos-
sa Alteza muito serviço pela experiência que tem daquela costa do tempo que nela
andou de que ficou tão despeso que sem ajuda de Vossa Alteza não pode povoar71.

Esta petição é bastante significativa, dentre outros aspectos, por ser um dos únicos documentos
conhecidos em que Jerônimo de Barros se colocou como capitão donatário das capitanias no Brasil.
Apesar de a data ser desconhecida, mas a julgar pelo pronome de tratamento utilizado, “Vossa Alteza”,
provavelmente trata-se de uma petição encaminhada ao cardeal D. Henrique que assumiu o trono
logo após a morte do sobrinho neto, D. Sebastião em 157872.

O novo capitão donatário mencionava sua experiência na costa do Brasil e, mais do que isso,
informava que tinha a intenção de tentar povoar a capitania, tendo em vista que o pedido de seu pai,
João de Barros, para que os filhos servissem em Portugal, não fora atendido. Pelo menos após a morte
de Barros, é possível verificar que seus filhos possuíam um histórico de serviços longe do reino. Je-
rônimo de Barros informava que Diogo de Barros, seu irmão, serviu durante oito anos na Índia e, no
ano de 1575, morreu em uma batalha contra os mouros, e que sua mãe, já cansada das dívidas que
a família tinha e abatida pela notícia da morte do filho, adoeceu e morreu quinze anos depois73. Ao
retornar ao Brasil, depois do período ao Maranhão, Jerônimo e seus irmãos, João de Barros e Lopo de
Barros, foram mandados para servir no grande cerco de Mazagão, em 1562, quando numerosas tropas
lideradas por mouros cercaram a fortaleza74. Após o período de serviço em Mazagão, João de Barros
seguiu para a Ilha da Madeira e, em 1569, foi para a Índia onde serviu na capitania de uma nau que

70 Sobre as ordens militares em Portugal ver OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno:
Honra, Mercê e Venalidade em Portugal (1641-1789). Lisboa: Estar, 2001.
71 BAIÃO, António. Op. cit. p. 350
72 O cardeal D. Henrique era o único filho vivo de D. Manuel I (1495-1521), assumiu o trono real entre 28 de
agosto de 1578 e 30 de janeiro de 1580, data do seu falecimento, como se verá mais adiante neste capítulo.
73 BAIÃO, António. Op. cit. p. 248.
74 A fortaleza de Mazagão estava isolada em território marroquino e foi cercada por um numeroso exército
liderado pelos membros da nova dinastia marroquina. Ao todo, foram três meses de cerco, tempo em que a Co-
roa portuguesa necessitou reunir todas as forças necessárias para vencer a pressão das tropas mulçumanas. Para
um estudo aprofundado sobre este cerco de Mazagão, em 1562, ver MENDONÇA, Agostinho de Gavy. História
do Cerco de Mazagão. Lisboa: Bibliotheca de Clássicos portugueses, 1890. Disponível em https://archive.org/
details/HistoriaDoCercoDeMazagao. Acesso em 14 de junho de 2018.

1356
comprou com seu próprio dinheiro e de todos os gastos que teve durante o serviço, ficou pobre. Em
seguida, participou de batalhas em Arzila, no Norte da África, onde adoeceu e em pouco tempo veio
a falecer em Lisboa, em 157975.

Diante dos acontecimentos e das dívidas que são constantemente lembradas em trechos da do-
cumentação sobre a família Barros, a nova tentativa de colonizar as capitanias do Brasil poderia ser a
solução para os problemas financeiros que diziam enfrentar. No intuito de conseguir o apoio financei-
ro e bélico da Coroa para uma nova expedição, Jerônimo de Barros apresentou alguns argumentos que
indicavam uma certa urgência na ocupação das terras das suas capitanias, como consta na declaração
abaixo:

Ao serviço de Vossa Alteza, é necessário mandar povoar esta capitania antes que os
franceses a povoem, os quais todos os anos vão a ela a carregar de Brasil por ser o
melhor pau de toda a costa e fazem já casas de pedra em que estará em terra fazendo
comércio com o gentio e oito anos passados estivera nessa capitania dezessete naus
de França a carga e são tantos os franceses que vem ao resgate que até as raízes do pau
brasil levam por que tinge mais as raízes do que o pau que nasce nesta capitania que o
pau de outras capitanias e sempre vai dobrado do outro brasil. E agora tomaram nos
Pitiguares três mil quintais de brasil que os portugueses tinham na praia feito a sua
custa para carregar e antes que os franceses façam uma fortaleza que obrigue depois
a muito parece que será bom povoar se por nós e com isso feito lhe não levarão este
pau a França e ficará então rendendo mais a Vossa Alteza76

A preocupação demonstrada pelo autor da petição, estava relacionada ao possível estabelecimento


definitivo dos franceses na “Terra dos Potiguara”, e a construção de uma fortaleza seria o indicativo
dos grandes trabalhos que teriam para reaver a capitania. A presença dos franceses na “Terra dos
Potiguara” não era uma novidade para Jerônimo de Barros, tal como ficou registrado na crônica de
Gabriel Soares de Sousa:

[...]Da Itapitanga ao Rio Pequeno, a que os índios chamam Baquipe, são oito léguas, a
qual está em cinco graus e um seismo. Neste rio entram chalupas francesas a resgatar
com o gentio e carregar do pau de tinta, as quais são das naus que se recolhem na
enseada de Itapitanga. Andando os filhos de João de Barros correndo esta costa,
depois de se perderem, lhes mataram neste lugar os Pitiguares com favor dos
franceses, induzidos deles muitos homens [...]77

Este episódio teria ocorrido em 1555, quando Barros e seu irmão tentaram tomar a posse da
“Terra dos Potiguara” durante a segunda expedição enviada por João de Barros ao Brasil. No que

75 BAIÃO, António. Op. cit. p. 250.


76 BAIÃO, António. Op. cit. p. 354.
77 SOUSA, Gabriel Soares de. Op. cit. p. 13.

1357
tange à exploração do pau-brasil, o relato do furto de três mil quintais de pau-brasil78, indica a atuação
de portugueses na atividade exploratória na capitania. Nesse sentido, provavelmente, Jerônimo de
Barros tenha continuado as atividades de seu pai de conceder licenças para pessoas interessadas em
explorar esse recurso natural. O novo capitão donatário continuou a petição listando o que precisava
para garantir a conquista da capitania:

[...] Pede lhe faça Vossa Alteza mercê de lhe mandar dar 100 moradores dos 800, que
o contratador do Brasil é obrigado a por lá; e assim de a ver por bem que possam
entrar neste reino de Inglaterra cinco mil peças de pano no que as alfândegas de
Vossa Alteza Real proveito e ele ajutoria para fazer esta obra e que os primeiros
dez anos possam tirar casa ano mil quintais de pau do Brasil. E assim de 50 peças
de escravos em São Thomé e aqui somente duas peças de artilharia e da que está
em Pernambuco oito peças para defesa da fortaleza a qual artilharia dará fiança. E
lembro a Vossa Alteza que muito mais e maiores mercês se fizeram aos capitães que
povoaram no Brasil por que alguns deram as fortalezas feitas e artilhadas e navios
com que defender a costa e há outro com que as fazer e se parecer muito o que peço
há isso responda por mim a fazenda de Vossa Alteza com dizer o que tem custado a
Baía a povoar. [...]79

Não se sabe exatamente o quão oneroso seria para a Coroa fornecer tudo o que o capitão
donatário havia pedido, mas é importante observar como Barros tentou fundamentar seu pedido.
O donatário usou como argumento o suposto fato de a Coroa ter ajudado mais a uns capitães que
a outros. Ainda continuou afirmando que se seu pedido fosse considerado muito elevado, os gastos
realizados pela Coroa em prol da povoação da Bahia respondiam pelo pedido.

Á essa altura a Bahia era capitania régia e recaía sobre a Coroa sobre todo o ônus no que
diz respeito aos investimentos e incentivo ao povoamento. Já para o caso dos capitães que teriam
supostamente recebido mais benefícios do rei, seria necessário pensar na própria questão das redes
instituídas na época e os interesses da Coroa com relação a essas capitanias; a defesa da costa era algo
emergencial naquele contexto nas áreas já conquistadas para que os investimentos já realizados não
fossem perdidos e as capitanias despovoadas. Barros mostrou-se atento ao que se passava com relação
aos investimentos nas empreitadas no Brasil e acreditava que merecia também a ajuda da Coroa para
conquistar sua capitania que, segundo ele, corria sério risco de ser perdida para os franceses.

A situação da capitania com a presença dos franceses representou um grande problema para o
novo donatário que, aparentemente, não possuía a mesma influência do seu pai para negociar junto aos
homens que definiam as concessões de mercês. Não se conhece nenhuma resposta ao pedido de ajuda
encaminhado por Jerônimo de Barros e nem indícios de que teria ocorrido uma terceira expedição
rumo à capitania. Mas o conhecimento da existência desta petição, demonstra que o donatário não

78 No século XVI, um quintal de pau-brasil correspondia a, aproximadamente, 55,8 quilos, e seu preço variava
entre 700 a 1.000 réis na praça de Lisboa. SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na
sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 167.
79 BAIÃO, António. Op. cit. p. 353.

1358
cedeu de imediato os direitos que detinha sobre as capitanias e não desistiu do intento de conquistar e
povoar as terras, pelo menos até 1580. Os documentos referentes a Jerônimo de Barros, após esta data,
correspondem às petições encaminhadas ao rei D. Filipe I de Portugal. Os pedidos de mercês feitos
pelo donatário serviram como testemunho da sua posição política no complicado cenário marcado
pela crise sucessória que se instaurou no reino e resultou na coroação do monarca espanhol, em 1581.

O quadro político nos anos iniciais da União das Coroas

A morte do jovem rei D. Sebastiãona Batalha de Alcácer-Quibir, em 1578, sem deixar herdeiros,
impôs uma crise sucessória em Portugal que mobilizou diferentes interesses e disputas por parte dos
candidatos ao trono. A vacante do trono foi assumida inicialmente pelo cardeal D. Henrique, tio-avô
de D. Sebastião e único filho ainda vivo de D. Manuel (1495-1521) e inquisidor geral de Portugal. O
cardeal já havia assumido o trono como regente, de 1562 a 1568, no lugar de D. Catarina de Áustria, a
avó do rei D. Sebastião. Dada a idade avançada do cardeal, 68 anos à época, e sua condição de celibatá-
rio, a posição como rei de Portugal não durou muito tempo. Foi um breve governo de 18 meses – entre
28 de agosto de 1578 e 30 de janeiro de 158080. Dentre os candidatos ao trono estava D. António81,
Prior do Crato, neto de D. Manuel I, descendente por linha paterna; D. Felipe II de Espanha, neto de
D. Manuel I por linha materna, e D. Catarina, duquesa de Bragança, também neta do mesmo rei, e
descendente por linha paterna82. A candidatura do Prior do Crato foi a mais problemática de todas,
pois ele foi considerado filho bastardo do infante D. Luís, portanto, inapto para a sucessão. No entanto,
D. António reuniu pessoas simpáticas à sua causa e inflamou o “sentimento nacional” de membros de
diferentes setores da sociedade portuguesa e formou grupos de resistência contrários à possibilidade
de terem um rei castelhano. De modo geral, os anos em que transcorreu o pleito sucessório foi marca-
do por negociações entre o rei castelhano e membros da nobreza portuguesa, bem como disputas no
âmbito jurídico83, social e militar. Os conflitos que se sucederam tiveram como marco final a batalha
de Alcântara, em 1580, quando as tropas castelhanas, lideradas pelo duque de Alba, derrotaram as
forças militares que se reuniram para defender a pretensão de D. António ao trono84. D. Filipe II de

80 BOUZA ÁLVAREZ, Fernando. “A negociação de Portugal entre 1578 e 1581: a entronização de uma nova
dinastia”. In: BOUZA ÁLVAREZ, Fernando. D. Filipe I. Lisboa: Círculo de Leitores, 2005, p. 59.
81 HERMMAN, Jacqueline. Um rei indesejado: notas sobre a trajetória política de D. Antônio, Prior do Crato.
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 30, nº 59, p. 141-166. 2010. Disponível em: http://www.scielo.br/
pdf/rbh/v30n59/v30n59a08.pdf Acesso em 10 de junho de 2018.
82 Estes são os candidatos considerados protagonistas do pleito sucessório. No entanto, outros pretendentes
também se manifestaram como, por exemplo, os príncipes italianos Manuel Filisberto de Sabóia e Rainúncio de
Parma. O primeiro era neto de D. Manuel e o segundo, bisneto. BOUZA ÁLVAREZ, Fernando. Op. cit. p. 59-60.
83 Sobre os aspectos formais e jurídicos na crise dinástica ver CUNHA, Mafalda Soares da. A questão jurídica
na crise dinástica". In: MAGALHÃES, J. R. (coord.). História de Portugal. No alvorecer da Modernidade (1480-
1620), Lisboa, 1993, pp. 552-559; BOUZA ÁLVAREZ, Fernando. D. Filipe I. Lisboa: Círculo de Leitores, 2005,
p. 57-85.
84 Sobre os eventos militares que marcaram a disputa pelo trono ver VALLADARES, Rafael. A Conquista de
Lisboa: violência militar e comunidade política em Portugal, 1578-1583. Lisboa: Texto editores, 2010.

1359
Espanha foi coroado como D. Filipe I de Portugal nas Cortes de Tomar de 1581-8285.

Entre as várias promessas firmadas pelo rei D. Filipe I que foram juramentadas no Estatuto
de Tomar, o novo monarca declarou que os ofícios do governo seriam providos apenas por pessoas
nascidas em Portugal; jurou que as reuniões de Cortes seriam realizadas sempre em território portu-
guês; manteria os cunhos e armas na moeda corrente; garantiu a educação do príncipe herdeiro, D.
Diogo, a ser educado em Portugal; e prometeu guardar os privilégios, mercês e graças dos habitantes
do reino86. Ademais, fora criado um organismo consultivo para tratar das questões lusitanas junto ao
rei: o Conselho de Portugal. Este conselho atuou na corte de D. Filipe I, em Madrid, e, de acordo com
Fernando Bouza Álvarez, “simbolizava a plena integração do reino na estrutura plural da monarquia
hispânica”87.

No entanto, esta plena integração resultava na consequência inerente à condição de Portugal


como reino incorporado: a ausência do rei88. Para solucionar esta questão, foram estabelecidas, nas
Cortes de Tomar, duas possibilidades: a nomeação de um vice-rei ou a nomeação de vários gover-
nadores. D. Filipe I permaneceu em Portugal de dezembro de 1580 a março de 158389. Inicialmente,
adotou a primeira solução e nomeou como vice-rei seu sobrinho, cardeal arquiduque Alberto de Áus-
tria que governou entre 1583 e 159390. Após o retorno do rei para Madrid, os focos de resistência dos
seguidores do Prior do Crato ainda eram presentes no reino, somados ao aparecimento de falsos “D.
Sebastiões”91. Para tratar destes problemas, o rei delegou, ao vice-rei, em carácter extraordinário, o

85SERRÃO, Joaquim Veríssimo. O Tempos dos Filipes em Portugal e no Brasil (1580-1668). Lisboa: Edições
Colibri, 1994, p. 19-20. São alguns exemplos de estudos sobre Portugal na Monarquia Hispânica OLIVEIRA,
António de. Poder e oposição política em Portugal no período filipino(1580-1640). Lisboa: Difel: 1991;

HESPANHA, António Manuel. O governo dos Áustrias e a "Modernização" da constituição política portuguesa.
Penélope. Fazer e Desfazer História. n. 2, fev/1989, p. 50-73; VALLADARES, Rafael. Portugal y la Monarquia
Hispánica, 1580-1668. Madrid: Arco Libros, 2000; BOUZA ÁLVAREZ, Fernando. Portugal no tempo dos Fi-
lipes: política, cultura e representações (1580-1668). Lisboa: Edições Cosmos, 2000; SCHAUB, Jean-Frederic.
Portugal na Monarquia Hispânica 1580-1640. Lisboa: Livros Horizonte, 2001; CARDIM, Pedro; COSTA, Leo-
nor Freire e CUNHA, Mafalda Soares da, (orgs.) Portugal na Monarquia Hispânica. Dinâmicas de integração e
conflito, Lisboa, CHAM-UNL/UAç - CIDEHUS-UÉ - GHES-UTL, 2013.
86 BOUZA ÁLVAREZ, Fernando. “As Cortes de Tomar e a definição política do Portugal dos Filipes (1581-
1583)”. In: BOUZA ÁLVAREZ, Fernando. D. Filipe I. Lisboa: Círculo de Leitores, 2005, p. 145-193.
87Ibidem, p. 160.
88 Alguns estudos sobre o reflexo da ausência do monarca na corte de Lisboa: BOUZA ÁLVAREZ, Fernando.
Lisboa Sozinha, Quase Viúva. A nobreza portuguesa e a corte de Madrid. Nobres e luta política no Portugal
de Olivares. In: BOUZA ÁLVAREZ, Fernando. Portugal no Tempo dos Filipes: política, cultura, representação
(1580-1668). Lisboa: Edições Cosmos, 2000, p. 159-184; MEGIANI, Ana Paula. O Rei Ausente: festa e cultura
política nas visitas dos Filipes a Portugal (1581 a 1619). São Paulo: Alameda, 2004.
89 MEGIANI, Ana Paula. Op. cit. p. 85.
90 BOUZA ÁLVAREZ, Fernando. “Acerca de um rei ausente (1583-1598): D. Alberto de Áustria e os cinco go-
vernadores”. In: BOUZA ÁLVAREZ, Fernando. D. Filipe I. Lisboa: Círculo de Leitores, 2005, p. 145-193.

Ibidem, p. 195.
91 Sobre esta questão ver HERMANN, Jacqueline. No reino do desejado: a construção do sebastianismo em
Portugal, séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.249-272.

1360
encaminhamento de soluções governativas, principalmente em relação ao plano militar92. O vice-rei
também fora investido de outros poderes, como o direito a resolver diretamente a concessão de mer-
cês e, em 1586, desempenhou o cargo de inquisidor-mor93.

Sobre a questão da concessão de mercês, o historiador Félix Labrador Arroyo afirma que uma
parte significativa das elites portuguesas encararam a incorporação do reino de Portugal à Castela
como “uma possível solução para os problemas que atravessaram o reino e para o colapso do sistema
de mercês e benefícios que aumentava desde que a dinastia de Avis subira ao trono, agravada pelos an-
seios militares de D. Sebastião”94. Durante as negociações em torno do pleito sucessório, esta questão
foi bem explorada pelos agentes da Coroa hispânica que empreenderam “uma política de aliciamento
por meio de promessas de grandes benefícios pessoais ou coletivos”95.

Apesar de todas as promessas realizadas, após o retorno do rei para Madrid em 1583, a situação
mudara sensivelmente. Como observou Bouza, a distância entre a nobreza portuguesa e a corte em
Madrid personificava a distância da graça real mesmo com a atuação do Conselho de Portugal que
servia justamente para atenuar os problemas decorrentes da distância e da ausência do rei e o autor
completa:
Não obstante o crescente recurso a memoriais e à consulta escrita, continuou a ser
indispensável a presença, na corte, das partes interessadas, a resolução na realidade
"en pie" de muitas petições de mercês e de graças, supunha a sua deslocação até à
corte, a qual, naquele caso, era distante e bastante diferente96.

Conforme explica o historiador espanhol, a presença dos suplicantes em Madrid era funda-
mental para obter mercês. Os súditos que estavam próximos ao rei e das pessoas mais importantes
da corte que detinham o poder de decisão sobre as concessões, tinham mais chances de conseguir o
que almejavam.Dado este quadro histórico e a compreensão das dinâmicas políticas e sociais daquela
época em que o reino de Portugal vivenciava nos primeiros anos de União das Coroas, parte-se para
a análise dos documentos dos descendentes de João de Barros e da situação do Brasil neste contexto.

As petições de Jerônimo de Barros no reinado de D. Filipe I


92 CARDIM, Pedro. Política e identidades corporativas no Portugal de D. Filipe I. In: Estudos em homenagem
a João Francisco Marques. Porto: Universidade do Porto, 2002, p. 300. Disponível em: http://ler.letras.up.pt/
uploads/ficheiros/2837.pdf. Acesso em 10 de junho de 2018.
93Ibidem, idem.
94ARROYO, Félix Labrador. A função integradora da Casa Real portuguesa de D. João I a D. Filipe I (1385-
1598). In: MARTÍNEZ HERNANDÉZ, Santiago (coord.). Governo, política, e representações do poder em Por-
tugal Habsburgo e nos seus territórios ultramarinos(1581-1640). Lisboa: CHAM, FCSH/UNL, UNAC, 2011. p.
35. Disponível em: https://eciencia.urjc.es/bitstream/handle/10115/11850/1_Arroyo.pdf?sequence=1. Acesso
em 9 de junho de 2018.
95 BOUZA ÁLVAREZ, Fernando. “A negociação de Portugal entre 1578 e 1581: a entronização de uma nova
dinastia”. In: BOUZA ÁLVAREZ, Fernando. D. Filipe I. Lisboa: Círculo de Leitores, 2005, p.69.
96 BOUZA ÁLVAREZ, Fernando. “Lisboa Sozinha, Quase Viúva”. A nobreza portuguesa e a corte de Madrid.
Nobres e luta política no Portugal de Olivares. In: BOUZA ÁLVAREZ, Fernando. Portugal no Tempo dos Fili-
pes: política, cultura, representação (1580-1668). Lisboa: Edições Cosmos, 2000, p. 211.

1361
Entre os documentos encontrados por António Baião no códice “Serviços da Casa Real” pre-
sentes no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, encontra-se uma petição de Jerônimo de Barros
encaminhada ao rei D. Filipe I97. A petição não possui data, mas por meio do cotejo das informações
mencionadas por Barros sobre os serviços prestados por ele e os irmãos, além dos fatos históricos
apontados, é possível afirmar que a petição foi escrita após 1581.

Nela, Barros pedia ao rei uma mercê na vultuosa quantia de quatro mil cruzados98 réis para
pagar as dívidas do seu pai e seus irmãos que ainda recaíam sobre ele; uma tença de cinquenta mil réis
para sua esposa, pois, segundo Barros, ela havia gastado todo o dote pagando as dívidas da família e,
por fim, pediu ao rei que concedesse a António Pinheiro o foro de escudeiro por ele ter participado da
conquista do Maranhão99. Provavelmente, este António Pinheiro é o mesmo que atuou como procura-
dor de João de Barros na Vila dos Cosmes, em Igarassú, em 1564, defendendo os direitos do donatário
sobre a “Terra dos Potiguara”. No rol de serviços declarados por Barros, consta a seguinte declaração
sobre a empreitada no Brasil:

Meu irmão João de Barros e eu, nos tempos del rei Dom João o terceiro, fomos por
seu mandado ao rio Maranhão com uma armada ao descobrir o dito rio e costa pelas
esperanças que havia de grande resgate de ouro e descobrimos mais de quinhentas
léguas de costa e entramos assim no rio Maranhão como outros muitos grandes notá-
veis e resgatamos alguns homens que nela andavam dos que se perderam com Luís de
Melo no que passamos muitos trabalhos de guerra com os franceses e com o gentio
da terra e fomos e povoamos em três partes no que gastamos perto de cinco anos
sustentando tudo sempre à custa do meu pai até gastar quanto tinha e fizemos muito
serviço a el rei como darei conta se me for perguntado100

Neste relato, Jerônimo de Barros expôs os desafios que enfrentou junto com seu irmão, João de
Barros, durante os cinco anos em que estiveram desbravando a capitania do pai no entorno do rio Ma-
ranhão. O objetivo deles era encontrar grandes quantidades de ouro, muito provavelmente motivados
pelos relatos que circulavam sobre as riquezas das Índias de Castela. No entanto, não encontraram a
fortuna tão desejada, e, de acordo com o relato, lutaram contra os franceses que também possuíam
interesse na região, enfrentaram os índios; e o pai, o donatário João de Barros, sustentou toda a em-
preitada. Desta primeira tentativa de colonização da capitania, encontra-se registro na crônica de
Gabriel Soares de Sousa, no qual afirma que os filhos de João de Barros povoaram uma localidade co-
nhecida como Ilha das Vacas101. É nesta crônica também que se pode conferir a informação sobre o a
97 Códice “Serviços da Casa Real”, presentes no ANTT, Manuscritos da Livraria, nº 2664. In: BAIÃO, António.
Op. cit. p. 349-351.
98 Aproximadamente um milhão e seiscentos mil réis. De acordo com Robert Simonsen, no reinado de Filipe
II (1598-1621), um cruzado equivalia a quatrocentos réis. Assim, foi utilizado esse valor de referência para fazer
a conversão em réis. Ver: SIMONSEN. Robert C. História Econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Editora
Nacional. 1969. p. 70.
99Ibidem, p. 352.
100 Códice “Serviços da Casa Real”, presentes no ANTT, Manuscritos da Livraria, nº 2664. In: BAIÃO, António.
Op. cit. p. 349-351.
101 SOUSA, Gabriel Soares. Op. cit. p. 9.

1362
expedição de Luís de Mello, cujos homens foram resgatados pelos filhos de Barros102. Na continuidade
das declarações sobre o merecimento das mercês pedidas, Jerônimo de Barros registrou informações
importantes sobre sua situação:

E estando eu doente em uma quinta tanto que o senhor Dom António formou campo,
logo me recolhi em Odivelas por que estava a obediência de Vossa Majestade com um
salvo conduto do duque onde...quanto em mim foi a lealdade que os portugueses de-
viam ter ao serviço de Vossa Majestade como fará certo se necessário for por muitas
pessoas nobres que aí estavam. E nunca servi D. António antes por os seus me foram
tomados dois cavalos e um escravo e finalmente de tudo o que tinha fui saqueado. E
por carregarem sobre mim as dívidas de meus irmãos e as de meu pai, passei muitos
trabalhos e afrontas e desgostos a três anos que são enfermo para remédio dos quais
trabalhos em satisfação de seus serviços e de seus irmãos103.

Conforme consta na petição, Barros declarou lealdade a D. Filipe I, e afirmou não ter servido
a D. António, o Prior do Crato, e declarou obediência e lealdade ao novo rei de Portugal. Jerônimo
de Barros informa, na petição, que os simpatizantes do Prior do Crato tomaram dois cavalos e um
escravo seu e depois saquearam tudo o que tinha104. Assim, com a ascensão do novo rei, Jerônimo de
Barros tratou de se apresentar enquanto um súdito leal que defendeu a causa de D. Filipe I e sofreu
consequências por não apoiar os seguidores de D. António.

Com base nestas informações, sabe-se que Barros estava em Portugal no momento em que fez a pe-
tição e muito provavelmente deve ter aproveitado o tempo em que D. Filipe permaneceu no reino de
dezembro de 1580 a março de 1583, para encaminhar suas demandas105.

Neste ponto, é importante considerar o lugar social de Jerônimo de Barros naquela sociedade e
na lógica da distribuição de mercês. Como apontado neste estudo, João de Barros ocupava um cargo
importante da administração ultramarina e tinha acesso direto ao rei e que lhe concedeu mercês e
privilégios, e aos homens que estavam no centro do poder tomando as decisões, como o conde da
Castanheira. Por outro lado, não se encontrou evidências de que Jerônimo de Barros tenha usufruído
da mesma condição que o pai, mesmo com todo o histórico de serviços e as constantes menções ao
legado de João de Barros. Ao finalizar a petição, Jerônimo de Barros fez as últimas considerações sobre
as razões que justificavam o pedido da mercê:

102 Segundo Gabriel Soares de Sousa, Luís de Mello, filho do alcaide-mor de Elvas, conseguiu uma autorização
do rei D. João III, para organizar uma armada particular com destino ao Brasil. Assim, partiu de Lisboa com
três naus e duas caravelas. Mas, se perdeu nos baixios do Maranhão e muitas pessoas que estavam em suas
caravelas ficaram pela região perdidas. Mello conseguiu ir para as Antilhas e de lá voltou para Lisboa. SOUSA,
Gabriel Soares. Op. cit. p. 7-8.
103 BAIÃO, António. Op. cit. p. 352.
104 BAIÃO, António. Op. cit. p. 352.
105 Existe uma carta de mercê de D. Filipe I para Jerônimo de Barros no ano de 1582 como se verá adiante, por
isso a correlação entre a possível data na petição ora analisada e a resposta do rei.

1363
E sem embargo que para o que lhe parece que bastam seus serviços e os de seu irmãos,
não deixará de lembrar a Vossa Majestade que é filho de um homem que se criou com
el rei D. João o Terceiro e serviu 65 anos com tanto amor e verdade os reis desse reino
como todo o mundo sabe não somente nos negócios da fazenda, mas em escrever os
feitos que seus naturais fizera no Oriente o qual acabou tão pobre e por ser coisa de
muita honra do reino e louvor dos reis em cujo tempo se fizeram el rei D. Sebastiao
e D. Henrique lhe comendaram muito que acabasse a dita obra o que tenho feito e
se não foram os trabalhos do tempo e muita enfermidade este os espíritos muito
derribados com os trabalhos que me dão estas dívidas já fora impressa, mas ora com
ajuda de Vossa Majestade e despacho de Vossa Majestade, espero cobrar novas forças
para em seu nome a imprimir no que Real Mercê106.

Barros enfatiza a dignidade de seu pai ao lembrar ao rei que João de Barros cresceu com D. João
III e foi reconhecido pelos muitos anos de serviço nos negócios da fazenda e escreveu sobre os feitos
dos portugueses no Oriente, e mesmo assim, morreu na pobreza. Mas, continuou informando que a
importância da obra de seu pai fez com que os reis anteriores pedissem que o filho terminasse o tra-
balho. No entanto, Barros alegou que estava enfermo e as dívidas que possuía lhe davam muito “traba-
lho”. Interessante observar que além dos serviços prestados por ele e seus irmãos na esfera militar e de
seu pai na Casa da Índia, a obra Décadas da Ásia passou a ser incluída no rol das justificativas, algo que
não foi constatado nos outros documentos emitidos logo após a morte de João de Barros, em 1570.

Este último pedido parece ser um reforço a um pedido anterior, realizado já no reinado de D. Fi-
lipe II, que tratava especificamente de uma demanda relacionada à impressão das Décadas da Ásia. Na
“Minuta de uma petição de Jerônimo de Barros ao rei católico por causa da impressão das Décadas”107,
o herdeiro de João de Barros afirmou que D. Sebastião e, posteriormente, o cardeal D. Henrique, lhe
pediram para terminar a obra das Décadas. Relatou que nos tempos do reinado de D. Sebastião, havia
escrito durante quatro anos, mas já não possuía condição de continuar, pois estava doente e sem es-
perança de viver mais anos. Assim, Barros pediu ao embaixador Gomes da Silva, presente em Roma,
para procurar algum homem que pudesse terminar de escrever a obra. O pedido foi atendido, e a es-
crita da obra foi concluída e aprovada pela Inquisição. Barros então lembrou ao rei D. Filipe I que no
tempo em que este esteve em Lisboa, portanto entre dezembro de 1580 a março de 1583, da promessa
de arcar com os custos da impressão. Esta informação demonstra que o herdeiro de João de Barros
aproveitou presença do monarca espanhol em Portugal para encaminhar suas demandas. Aproveitou
para exaltar a importância da obra de seu pai para a memória dos feitos dos reis portugueses e afirmou
que soubera de uma iniciativa da Pérsia de traduzir a obra do seu pai para a língua parsi, demonstran-

106 BAIÃO, António. Op. cit. p. 352-3.


107Ibidem, p. 311-2.

1364
do que em outros reinos a obra já era reconhecida108. Além das razões já apresentadas, Jerônimo de
Barros acrescentou:

[...] Apresento acostada a uma petição que Vossa Majestade me fará mercê de querer
ver e nela lembro algumas coisas por onde obra e ver eu que pois a ds (sic) aprove
que em tempos que estes reinos tão aflitos e cansados estavam se lembrou deles e com
a sucessão de Vossa Majestade para remédio deles e que por em Vossa Majestade o
império das gentes e ajuntar a conquista de todo orbe da terra e quis por nós vossos
espanhóis a glória das armas em este bem aventurado tem que por Vossa Majestade
são governados e que tanta parte cabe aos portugueses justa razão e mandar Vossa
Majestade que de suas obras haja memória e fazer para isso e esta história impressa
tirará à luz o que meu pai deixou escrito da história da África se Vossa Majestade
houver por seu serviço [...]109

Conforme o trecho acima, na petição, o suplicante enalteceu o rei D. Filipe I e a nova condição de Por-
tugal como reino integrante da monarquia hispânica, no intuito de demonstrar lealdade. Barros in-
formou ainda que a impressão da obra que dava continuidade ao trabalho do pai, revelaria os escritos
sobre a história da África até então desconhecidos110. Assim, após alegar as razões do merecimento da
obra, o herdeiro de João de Barros informou ao rei que o custo da impressão era de três mil cruzados,
portanto, aguardava esta mercê da Coroa.

Para finalizar a petição, como de praxe, Barros tocou na questão da prestação de serviços do seu
pai e de seus irmãos, como consta no trecho abaixo:

E mais havendo nesta outros méritos de sessenta e tantos anos de serviço de meu pai
e cinco filhos homens que sempre estiveram na guerra com muita despesa os quais
por tantas vezes derramaram nela seu sangue tem quem alguns sacrificaram as vidas
nas guerras. E sendo ele herdeiro de todos sem até hoje por isso lhe não fizeram mer-
cê ficando-lhe muitas dívidas com que passa muito trabalho [...]111

108 A primeira tradução conhecida das Décadas da Ásia foi lançada no ano de 1562 em italiano. HORCH, Ro-
semarie Erika (coord.). Biblioteca Universitatis: Livros Impressos do Século XVII do Acervo Bibliográfico da
Universidade de São Paulo. São Paulo: Edusp; Imprensa Oficial, 2002, p. 140. Disponível em: https://books.goo-
gle.com.br/books?id=4HJBpYuLR0AC&pg=PA140&lpg=PA140&dq=D%C3%A9cadas+da+%C3%81sia+Bar-
ros+tradu%C3%A7%C3%A3o+italiano&source=bl&ots=v-nWLhALj7&sig=iEo8LY-id02rUQl2YK2knNik-
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C3%A9cadas%20da%20%C3%81sia%20Barros%20tradu%C3%A7%C3%A3o%20italiano&f=false. Acesso em
28 de junho de 2018.
109 BAIÃO, António. Op. cit. p. 312.
110 Anos mais tarde, os direitos de edição da obra de João de Barros foram objeto de uma disputa judicial en-
tre um neto do autor, António Barros de Almeida, e o cosmógrafo João Baptista de Lavanha. Em 1618, o neto
de Barros pediu à Câmara de Lisboa, um empréstimo de 1.000 cruzados para ele fazer a impressão da obra, a
mesma que Lavanha já havia impresso em Madrid no ano de 1615. O pedido foi negado pela Câmara com a
justificativa de que o requerimento “nãoestava assinado em tempo para fazer este empréstimo”. O neto de Bar-
ros apenas conseguiu embargar um exemplar da Quarta Década, em 1619, e foi condenado a arcar com todas
as custas processuais. BAIÃO, António. Op. cit. p. 288-92.
111 BAIÃO, António. Op. cit. 312.

1365
Importante observar que Barros se coloca como o herdeiro que não recebeu outro bem a não ser
as dívidas da família, que esperava mercê até aquele momento. No entanto, no ano de 1582, Jerônimo
de Barros recebeu uma carta de mercê de D. Filipe I (1581-1598) com a seguinte concessão:

Dom Filipe etc. faço saber aos que esta carta virem que havendo respeito aos serviços
de João de Barros que foi feitor da Casa da Índia e aos de Jerônimo de Barros, seu
filho fidalgo da minha casa e querendo lhe fazer mercê, ei por bem e me praz que ele
tenha e haja de minha fazenda cem mil réis de tença cada um ano até o prover de uma
comenda em qualquer das ordens que lhe valha e tome cento e cinquenta mil réis de
renda e mando aos vedores de minha fazenda que lhe façam assentar os ditos cem mil
réis de tença no livro dela e do primeiro de março deste presente ano de 1582 [...]112

Com base no cruzamento de informações realizado entre esta carta de mercê e a carta concedida
a Barros pelo rei D. Sebastião, em 1571, pode-se afirmar que, de 1571 até 1582, Jerônimo de Barros
não havia recebido comenda de nenhuma ordem. Mas, recebeu tença pelos seus serviços e de seu pai.
Tença que, se comparada ao valor pedido por Jerônimo de Barros na petição analisada anteriormente
para pagar suas dívidas (quatro mil cruzados), é mais baixa e manteve o valor da carta de mercê doada
por D. Sebastião, em 1571.

A tença doada pelo rei D. Filipe I, representa a primeira mercê conhecida concedida pelo mo-
narca espanhol a Jerônimo de Barros. Esta é a mercê à qual Francisco Adolfo de Varnhagen faz re-
ferência como sendo uma possível indenização pelos direitos das capitanias do Brasil. Neste ponto,
cumpre observar que nos documentos analisados sobre João de Barros e sua família, não há menção à
concessão de direitos das capitanias. Todavia, tal fato também não exclui a possibilidade de que uma
possível negociação sobre a cessão de direitos do novo donatário em prol da Coroa estava incluída na
mercê dada pelo rei D. Filipe I devido aos “serviços” de João de Barros e seu filho. Neste caso, serviços
como categoria genérica que poderia abranger a esfera militar como administrativa.

Todavia, as fontes indicam que até pelo menos o final do curto reinado do cardeal D. Henrique
I (1578-1580), Jerônimo de Barros mantinha a intenção de povoar suas capitanias, principalmente
a “Terra dos Potiguara” devido ao estabelecimento dos franceses. Dos documentos analisados, per-
cebeu-se que Jerônimo de Barros usou como estratégia argumentativa em suas petições as dívidas
da família. Além disso, enfatizou sua lealdade e apoio ao novo rei no momento em que Portugal se
encontrava nos anos inicias de integração à Monarquia Hispânica, momento fundamental para pedir
mercês devido à presença do rei em Lisboa. O capitão donatário estava na corte pedindo mercês não
mais relacionadas diretamente as suas capitanias, como fez no reinado do cardeal D. Henrique I ao
pedir ajuda para voltar ao Brasil, mas apresentou seu histórico de serviços na exploração da costa do
Maranhão para justificar suas petições.

António Vasconcelos de Saldanha, ao analisar os processos de incorporação das capitanias, ex-


plica que, em diferentes circunstâncias, a Coroa chamou para si os “bens originalmente votados a
112 ANTT, Chancelaria de D. Filipe I, Liv. 2, fl. 269v. In: BAIÃO, António. Op. cit. p. 217-8.

1366
senhorio particular”113. Segundo o autor, este processo teve como base a impossibilidade de alguns
donatários de cumprirem o que estava disposto nos diplomas régios que constituíram as doações,
especialmente a necessidade da defesa e povoamento das capitanias.

A “Terra dos Potiguara” poderia já ter sido incorporada à órbita de poder da Coroa pouco antes
dos primeiros anos de reinado de D. Filipe I, como extensão de um projeto iniciado anos em período
anterior ao reinado de D. Sebastião (1557-1578), mais especificamente de 1570, com a ordem expedi-
da pelo rei de fundar uma povoação na área onde ocorriam graves conflitos entre luso-brasileiros de
um lado e os povos Potiguara e franceses do outro, no território da futura capitania real da Paraíba114.
A questão da defesa era um ponto sensível e em determinado momento os conflitos passaram a re-
presentar uma grave ameaça aos investimentos já realizados principalmente na zona dos engenhos da
capitania de Pernambuco, centro propulsor das conquistas que se seguiram.

Os conflitos que eclodiram nas fronteiras das capitanias localizadas no norte era resultado de
um longo processo de deterioração das relações entre os portugueses e alguns grupos indígenas, entre
eles os Potiguara. A expansão dos negócios do açúcar e a atividade dos apresadores de índios, foram os
dois fatores que desencadearam uma série de ataques dos Potiguara aos engenhos e núcleos de povoa-
mento português. Na década de 1570, a situação de Itamaracá era particularmente grave, a capitania
estava praticamente despovoada, pois muitos moradores fugiram da capitania devido aos ataques. O
recuo dos moradores de Itamaracá contribuiu para o avanço dos Potiguara rumo ao rio Igarassu em
direção aos engenhos de Pernambuco115. Em 1570, havia 70 engenhos em funcionamento no litoral, a
maioria deles concentradas na donataria de Pernambuco116.

O constante redesenhar das fronteiras era resultado do apetite territorial dos senhores de en-
genho por um lado, e, por outro, do constante avanço dos Potiguara justamente em um momento
favorável caracterizado pela alta do preço açúcar para exportação. Ademais, os interesses dos senhores
estavam voltados para a busca de mão-de-obra escrava cada vez mais difícil, principalmente após o
extermínio dos índios Caeté117.

Outro grupo interessado na expansão das fronteiras eram os comerciantes de Olinda, represen-
113 SALDANHA, António Vasconcellos de. Op, cit. p. 388.
114 GONÇALVES, Regina Célia. Guerras e açúcares: política e economia na Capitania da Parayba, 1585-1630.
Bauru, SP: Edusc, 2007, p. 64-82. Sobre a conquista da capitania real da Paraíba ver também BATISTA, Adriel-
Fontelene. O Sumário das Armadas: Guerras, missões e estratégias discursivas na conquista do rio Paraíba.
Natal, RN: EDUFRN 2013.
115Ibidem, p. 49-82.
116 Pernambuco contava com 23 engenhos em funcionamento. SCHWARTZ, Stuart. O Nordeste açucareiro
no Brasil colonial. In: FRAGOSO, João Luís Ribeiro; GOUVÊA, Maria de Fátima. O Brasil colonial, volume 2
(1580-1720). 1 d. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 339. Sobre os engenhos pernambucanos nesta
época, ver também MELLO, Evaldo Cabral de. O bagaço da cana. São Paulo: Penguin Companhia, 2012.
117 A Coroa portuguesa havia declarado guerra contra os índios Caeté por terem matado D. Pero Fernandes
Sardinha, primeiro bispo do Brasil. Em 1557, um édito régio condenou os Caetés à escravidão perpétua. BAR-
BOSA, Bartira; ARRUDA, José Jobson de Andrade; ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Paranambuco.
Herança e poder indígena. Nordeste – séculos XVI e XVII. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2007. Apud
FERRAZ, Maria do Socorro. A sociedade colonial em Pernambuco. A conquista dos sertões de dentro e de fora.
In: FRAGOSO, João Luís Ribeiro; GOUVÊA, Maria de Fátima. O Brasil colonial, volume 2 (1580-1720). 1 d.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 178.

1367
tantes dos grupos mercantis com sede na Europa que mantinham negócios relacionados à produção
açucareira. A convergência de interesses desses grupos que contribuíam para o crescimento da Fa-
zenda Real, contou com o apoio dos reis D. Sebastião e, posteriormente, do cardeal D. Henrique I,
mas apenas no reinado de D. Filipe I, em 1585, foi lançada a expedição vencedora118. Neste contexto,
a capitania do Rio Grande representava a próxima fronteira a ser vencida pelos colonizadores, fato
concretizado quase 15 anos depois da conquista da Paraíba, em 1598.

Considerações finais

Os intensos movimentos de guerra nas fronteiras das capitanias do Norte desde a década de
1570, a crise sucessória em Portugal, os problemas econômicos decorrentes das guerras em África e
os interesses envolvidos na expansão das fronteiras do Norte, podem explicar a falta de apoio finan-
ceiro da Coroa no momento em que Jerônimo de Barros se dispôs a voltar ao Brasil e colonizar sua
capitania.

Jerônimo de Barros faleceu em 20 de agosto de 1586119. Poucos anos depois, em 1591, a viúva
de Barros vendeu ao rei os cadernos que continham os escritos de João de Barros sobre a geografia do
império português. A importância destes cadernos pode ser medida pelo valor pago pelo rei: quinhen-
tos mil réis120, quantia superior a qualquer tença que João de Barros e Jerônimo de Barros receberam
em vida.

No restante dos documentos catalogados sobre João de Barros e sua família, as capitanias do
Brasil não aparecem mais como bens de nenhum capitão donatário herdeiro. Mas, os gastos que se
fizeram nas duas tentativas de conquista foram repetidamente citados em petições do neto de João de
Barros, António de Barros de Almeida, na década de 1620, ao pedir comendas tanto pelos serviços dos
seus antepassados como seus serviços na Índia121. Portanto, assim como o trabalho de João de Barros
de escritor dos feitos no Oriente, o discurso das dívidas ultrapassou gerações e os prejuízos com as
empreitadas no Brasil foram representados como divisor de águas nas finanças da família do antigo
capitão donatário.

Referências bibliográficas

ARROYO, Félix Labrador. A função integradora da Casa Real portuguesa de D. João I a D. Filipe I (1385-1598).
In: MARTÍNEZ HERNANDÉZ, Santiago (coord.). Governo, política, e representações do poder em Portugal
Habsburgo e nos seus territórios ultramarinos(1581-1640). Lisboa: CHAM, FCSH/UNL, UNAC, 2011.. Dis-
ponível em: https://eciencia.urjc.es/bitstream/handle/10115/11850/1_Arroyo.pdf?sequence=1. Acesso em 9 de
junho de 2018.

118 GONÇALVES, Regina Célia. Op. cit. p. 76-82.


119 ANTT, Chancelaria de D. Filipe I, Liv. 10, fl. 377v. Ibidem, p. 219-20.
120 Ibidem, p. 308.
121Ibidem, p. 322-23.

1368
BAIÃO, António (org.). Documentos Inéditos sobre João de Barros, sobre o escritor homônimo contemporâ-
neo, sobre a família do historiador e sobre os continuadores de suas ‘Décadas’. In: Boletim da Segunda Classe
da Academia de Sciencias de Lisboa. Vol. XL, 1917, pp. 293-295. Disponível em: https://archive.org/details/
boletima11acaduoft. Acesso em 29 de janeiro de 2017.
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Conexões da Guerra de Pernambuco com os fins monarquia hispânica a partir da trajetória


de Duarte de Albuquerque Coelho
Hugo Coelho Vieira122

“Advertido de, camino que entramos, mundos son bolas, y que todos podemos rodar
con ella y volver a vernos en los bancos de Flandes donde ay ballenas y finanças…”123 /

A citação acima é parte de uma carta escrita em Madrid por Duarte de Albuquerque Coelho,
quarto donatário da capitania de Pernambuco. O documento data de 16 de fevereiro de 1650, oito
anos antes de morte de Duarte, que ocorreu em 1658. No ano de 1650, Duarte era um homem expe-
riente e possuía mais de 59 anos de idade e a capitania de Pernambuco passava pelos últimos anos do
período da Companhia Neerlandesa das Índias Ocidentais. Nessa carta, Duarte reflete e informa, de
forma geral e breve, sobre as dificuldades e aventuras da vida de um capitão donatário que já havia
passado por muitas vivências. Duarte de Albuquerque Coelho já havia navegado pelo mundo atlân-
tico, passado por guerras, enfrentado muitas situações de conflito político e passado pelas mortes de
familiares próximos como de seus pais logo cedo, seu irmão e de alguns soldados amigos. Também já
havia visto nascer os cinco de seus filhos.

No trecho da carta, Duarte começa dizendo que era pernicioso passar por golfos, mas conclui
escrevendo que sabia que o mundo girava. A partir dessa carta podemos extrair alguns significados,
mas o que nos chama atenção é que a ela demonstra a complexidade do mundo moderno e o conhe-
cimento de um capitão donatário atento também as conexões globais. Portanto, em 1650, dois anos
antes da morte de seu único filho varão, o Marques de Basto, escreveu uma analogia que pode servir

122 Doutorando em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), bolsista da CAPEs.
123 AHN, Archivo Histórico Nacional (Madrid). Universidades y Colegios, Libro 1190 – fol. 155. Carta datada
de 16 de fevereiro de 1650 em Madrid.

1370
como provérbio, o de que: “os mundos são bolas e que todos podemos rodar com elas”.124
Quando Duarte escreveu dizendo que atravessar golfos era pernicioso, que os mundos são bolas e
que todos poderiam rodar com elas se encontrando nos bancos de Flandres onde havia finanças e ba-
leias podemos apenas por uma ótica financeira perceber que Flandres tinha um papel de destaque na
economia da Europa Moderna ou pelo menos era um dos mais importantes centros de congruência
financeira da época.

Mas, Flandres tinha um histórico de ser um local de grande importância geo-estratégica para
as redes de negócios, por isso, mencionada por Duarte, mesmo que, nesse período já não exercesse a
relevância que a fama lhe havia causado. Segundo Evaldo Cabral de Mello, já em 1630, vinte anos antes
da carta escrita por Duarte, a monarquia hispânica sabia que a presença holandesa em Pernambuco
possuía um papel estratégico tanto para defender parte da América Espanhola servindo especialmente
como barreira e escudo da prata de Potosí, - mas não só isso - quanto para o comércio de escravos e
outras possessões no Atlântico Sul. Portanto, a corte de Madrid sabia que o “caráter multinacional do
exército da WIC facilitaria a manobra, de resto comum em Flandres e em outros teatros europeus”.125

Como podemos perceber as conexões de Duarte e da presença neerlandesa na capitania de


Pernambuco estão inseridas numa complexa dimensão global. Em 1634, o Provedor dos Armazéns
de Pernambuco dizia que a armada que passasse por Pernambuco não parasse em lugar algum e
que em breve a coroa deveria enviar ajuda de homens, armas e munições que chegaria de Flandres.126
Duarte sabia da importância de se relacionar com a elite europeia para sobreviver ao teatro de guerra e
que assim como o mundo rodava também mudava a situação de cada um que nesse mundo estivessem
envolvidos. Portanto, não foi apenas a partir dos bancos de Flandres que a capitania de Pernambuco
esteve conectada, mas com a complexidade do maior império global do mundo conforme pontuou o
historiador Charles Ralph Boxer.127

Mas, além de falar dos bancos de Flandres Duarte também escreve em sua carta que as finanças
são como uma roda, assim como as baleias que viajam e rodam o mundo. A analogia do quarto dona-
tário de Pernambuco é interessante em termos de que a história possui uma dinâmica própria feita de
mudanças e permanências. A carta nos parece interessante também porque a pesca da Baleia tinha um
elevado valor preço de mercado e de cobiça na época em que Duarte escreve. A historiadora Cleonir
Xavier de Albuquerque irá destacar em seu estudo sobre as Despesas e Receitas no Estado Brasil que
os contratos da pesca da baleia eram muito importantes para a economia colonial, e que entre os anos
de 1631 ao ano de 1635 os contratos das baleias serão ainda os maiores dentre todo o período de 1602
à 1640. Esse dado é interessante porque mesmo nos anos da guerra contra os neerlandeses a pesca da

124 AHN, Archivo Histórico Nacional (Madrid). Universidades y Colegios, Libro 1190 – fol. 155. Carta datada
de 16 de fevereiro de 1650 em Madrid.
125 MELLO, Evaldo Cabral de 1936. Olinda restaurada: guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1654. São Paulo:
Ed. 34, 2007. p 34.
126 AHU_ACL_CU_015, Cx. 2, D. 127. Datada de 9 de junho de 1634. Carta régia (minuta de capítulo) do
rei [D. Filipe III] ao Conselho da Fazenda ordenando o envio de quatro esquadras das duas Coroas [Espanha e
Portugal], com homens, armas e munições, para socorrer a capitania de Pernambuco, impedindo que o inimi-
go se espalhe pelas capitanias do Rio Grande do Norte, do Ceará, do Maranhão e do Grão-Pará.
127 BOXER, Charles Ralph. O império ultramarino português. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

1371
baleia rendeu importante receitas como o contrato do pau-brasil diferentemente da produção açuca-
reira que irá ter uma maior variação.128 Não resta dúvida, que a analogia da vida como roda do mundo
é bem mais interessante do que as referências as finanças de Flandres e das baleias.

Em 1650, a família dos Albuquerque Coelho possuía mais de cento e cinquenta anos de servi-
ços prestados a casa real portuguesa e mais de setenta anos de serviço a monarquia hispânica, tendo
passado pela perda de sua capitania, navegado pelo atlântico, comandado tropas, perdido Matias de
Albuquerque que um experiente homem de guerra. Sabia Duarte, que a vida era uma roda com altos
e baixos. Contudo, a história da família possui uma relação muito interessante com a história de Por-
tugal antes mesmo da junção das duas coroas e também durante a formação da monarquia hispânica.
Quando seu avô, Duarte Coelho Pereira recebeu a capitania de Pernambuco por doação régia, a mo-
narquia hispânica era apenas um embrião do que chegou a ser, mas após a morte de seu avô e sucessão
de seu tio e de seu pai quando eles passam a donataria da capitania a família irá vivenciar o epicentro
da morte de Dom Sebastião que desemboca com a “união das duas coroas”.129

Desde o ano em que a carta foi escrita já faziam dez anos de separação oficial da monarquia
hispânica, embora conflituosa e passível de discussão por conta das guerras de separação, Pernam-
buco estava no calor da guerra de restauração para expulsar a Companhia Neerlandesa das Índias
Ocidentais e Duarte estava no final de sua vida. Portanto, o final da vida de Duarte será o contexto
das guerras de restauração portuguesa e pernambucana.
Ao que tudo indica, em 1650 o conde de Pernambuco parecia ter ciência que a
roda do mundo girava para todo mundo, mas nem sempre com a mesma velocidade, oportunidade e
dificuldade. Mas sabia ele que sua história, assim como a da capitania de Pernambuco e da Monarquia
Hispânica estavam conectadas e entrelaçadas como as questões de lucro, guerra, fé e famílias, ou entre
comércio, lutas militares, catequizações e política imperial misturada a uma complexa rede familiar.
Duarte sabia que seu percurso e de sua família estavam ligados a história política da península ibéri-
ca. A história dos Albuquerque Coelho e a trajetória de Duarte de Albuquerque Coelho demonstra a
interessante dimensão humana na história que ultrapassa qualquer previsão ou prognóstico.

Embora, Duarte de Albuquerque Coelho tenha sido donatário de uma das capitanias heredi-
tárias que mais protagonismo teve não se tem trabalhos sobre sua trajetória. Porém, seu livro de me-
mórias ou sua crônica de guerra já foi assunto debatido em artigo de renomados historiadores como
Pereira da Costa, Francis Dutra, Evaldo Cabral de Mello e José Antônio Gonsalves de Mello.130 Na his-
128 COSTA, Cleonir Xavier de Albuquerque da Graça e. Receita e Despesa do Estado do Brasil no Período
Filipino. Aspectos Fiscais da Administração Colonial. Recife, UFPE, 1985.
129 O historiador José Manuel chama atenção para o erro que a historiografia já revelou a respeito do equívoco
conceitual do termo União Ibérica. SANTOS PÉREZ, J.M.: "Introducción", en MEGIANI, A.P.T. [et al.] (orgs.):
O Brasil na Monarquia Hispânica (1580-1668): Novas interpretações. São Paulo. O historiador Rafael Vallada-
res demonstra como foi violenta a formação da monarquia hispânica e que isso também foi uma conquista mi-
litar. In: VALLADARES, Rafael. A Conquista de Lisboa – Violência militar e comunidade política em Portugal,
1578-1583. Lisboa, fevereiro. 2010.
130 COSTA, Francisco Augusto Pereira da. Anais pernambucanos 1591-1634. Estudo introdutório de José An-
tônio Gonsalves de Mello. Recife, Fundarpe. Volume 2. 1983. p 20. MELLO, José Antônio Gonsalves de Mello.
Estudos Pernambucanos. Críticas e problemas de algumas fontes da história de Pernambuco. Recife: Universi-
dade do Recife, Imprensa Universitária. 1960.

1372
toriografia oitocentista brasileira, o conde de Pernambuco é exaltado como personagem nobre, militar
destacado e que deixou um dos mais importantes registros da história de Pernambuco. Assim como
Pereira da Costa, Capistrano de Abreu preso a historiografia nacionalista de seu tempo irá considerar
Duarte como “admirável” historiador da guerra de Pernambuco.131 Mesmo que, esses renomados e
importantes historiadores tenham trabalho com o período ou temas relacionados a figura de Duarte
de Albuquerque Coelho nenhum desses trabalhos teve Duarte como figura central ou como condutor
da narrativa.

O período de nossa investigação dialoga com o que Vitorino Godinho bem explicou no texto
denominado “Portugal, as frotas do açúcar e as frotas do ouro”, quando o Atlântico já não se constitui
mais como uma barreira, ou ainda o texto que o historiador francês Serge Gruzinski chamou da “Águia
e o Dragão” para demonstrar que a globalização teve início no século XVI na esteira das expedições
portuguesas e espanholas, e que houveram grandes efeitos da desmesura europeia no século XVI, do
México a China, utilizando como simbolismo desses dois países a Águia e o Dragão e especificando
essas conexões.132

Em nosso caso além dessas conexões China México de Gruzinski, Sevilha-Cádiz, Cádiz-Co-
ruña, Gênova-França, Andalucia-Setúbal, Brasil-São Tomé-Lisboa, podemos acrescentar Pernambu-
co-Angola numa perspectiva Atlântica. Perceber como Pernambuco está inserido no Atlântico ibérico
e africano como espaço de trocas, circulações, mobilidades, poderes, culturas, interesses e ideias, cons-
tituindo como um espaço de interação entre Europa, África e Brasil (América) que fogem de uma
lógica simplória e pacificada, embora possa ser visto também como um espaço de ocupação de car-
gos,133 que na maioria das vezes funcionou como “um sistema e uma lógica própria dentro do império
português no século XVII”,134 mas que está além de uma mera proposta de análise triangular em uma
concepção clássica da historiografia, conforme questionou e demonstrou Luiz Felipe de Alencastro,
tendo em vista que dentro do Atlântico os impérios ibéricos cederam espaços para as redes de comér-
cio e de parentesco. A análise parte da perspectiva que existe um fio tênue entre comércio, religião
e guerra no século XVII, em especial, as conexões de interesse da elite pelo lucro mercantil e suas
possibilidades de aproveitamento político como os Chatins, soldados que conciliavam a atividade
militar com o comércio paralelo no sonho da fortuna potencial em detrimento dos serviços a El

131 COELHO, Duarte de Albuquerque. Memórias Diárias da Guerra do Brasil. Introdução feita por José An-
tônio Gonsalves de Mello que ele chama Uma crônica da guerra pernambucana em nova edição. Fundação de
Cultura da Cidade do Recife, 1982. José Antônio diz ainda que “Algumas dessas relações conservam-se ainda,
manuscritas e inéditas, em arquivos da Espanha e de Portugal, parecendo que Matias de Albuquerque teria
mantido a redação dessas relações, mesmo sabendo que o irmão também o fazia. Bem merecem ser divulgadas.
fls 14.
132 GODINHO, Vitorino de Magalhães. Portugal, as frotas do açúcar e as frotas do ouro (1670-1770). Anna-
les, Economies, Sociétes, Civilizations. (janeiro-março de 1951); GRUZINSKI, Serge. A águia e o Dragão. São
Paulo: Companhia das Letras, 2015.
133 NASCIMENTO, Rômulo Luiz Xavier do. Brasil holandês: uma história do Atlântico. In: O Desconforto da
Governabilidade: aspectos da administração no Brasil holandês (1630-1644). Rio de Janeiro. Tese de Douto-
ramento da Universidade Federal Fluminense, 2008.
134 ALENCASTRO, Luis Felipe de. O tratado dos Viventes: formação do Brasil no atlântico sul, século XVI e
XVII. Companhia das Letras; 2000.

1373
Rei e da nação.135 Duarte de Albuquerque Coelho influenciou na Guerra
de Pernambuco e possuía interesses políticos e comerciais na capitania que perpassavam conexões
136

com o Atlântico Sul. Duarte Coelho tinha obrigação donatarial de defender a capitania e influenciou
na circulação de pessoas e na Guerra de Pernambuco, sua trajetória demonstra a estreita relação en-
tre política e guerra. A participação da “elite” na guerra e a interferência na circulação de pessoas
ora por questões mais políticas ora por questões mais comerciais também foi uma tônica para este
período. É nesse contexto com a presença da Companhia
das Índias Ocidentais em sua capitania que Duarte de Albuquerque Coelho chega em Pernambuco.
Duarte de Albuquerque Coelho nasceu em 1591 e foi o quarto donatário de Pernambuco, tomou posse
da Capitania em 2 de julho de 1603, quando herda de seu pai a capitania aos 12 anos de idade, mas só
chegou em Pernambuco em 21 de setembro de 1631 para lutar contra a WIC com 40 anos de idade, foi
sucessor da linha familiar iniciada pelo avô Duarte Coelho Pereira, mas não ficou do lado português
após a Restauração da Independência por D. João IV em 1640.137

Por outro lado, seu irmão Matias de Albuquerque Coelho, além de chefe militar em Pernam-
buco comandou também as tropas portuguesas no Alentejo travadas contra a Espanha, ficando co-
nhecido pela vitória da batalha no Montijo em 1644. Duarte de Albuquerque Coelho, assim como
Matias Coelho vinham de uma família tradicional em viagens pelos mares e oceanos, estavam acostu-
mados na luta armada em vários continentes. Basta lembrar que um de seus antecessores, o primeiro
donatário de Pernambuco, avô de ambos, Duarte Coelho Pereira, esteve em guerra em luta a favor dos
portugueses na China e na África. Já seu irmão, Matias de Albuquerque Coelho, recebeu a ordem de
cristo, que era a mais importante honraria portuguesa de seu tempo pelos seus serviços prestados no
norte da África e quando chegou a capitania de Pernambuco, entre maio e junho de 1620 já era um
soldado prático e com uma certa experiência.138

135 SOUZA, George F. Cabral de. Tratos & mofatras: o grupo mercantil do Recife Colonial. Recife: Editora
Universitária da UFPE, 2012. p 82. Miranda, Bruno Romero Ferreira. Gente de guerra. Origem, cotidiano e
resistência dos soldados do exército da Companhia das Índias Ocidentais no Brasil (1630-1654). Leiden: Proe-
fschrift Universiteit Leiden, 2011.
136 A Guerra de Pernambuco foi o período que a historiografia convencionou chamar de Brasil holandês.
Porém, o nome que aparece na documentação da época é Guerra de Pernambuco, tanto na documentação
luso-espanhola (Arquivo Histórico Ultramarino e Arquivo de Simancas) quanto na documentação holandesa.
Além dessa definição na documentação do período, tem-se também o mesmo termo utilizado pelos cronistas
do período, como Diogo Lopes de Santiago e Duarte de Albuquerque Coelho. COELHO, Duarte de Albuquer-
que. Memórias diárias da guerra do Brasil 1630-1638. Apresentação de Leonardo Dantas Silva; Prefácio de
José Antônio Gonsalves de Mello. Recife: Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 1981; SANTIAGO, Diogo
Lopes. História da Guerra de Pernambuco. Apresentação de Leonardo Dantas Silva; Prefácio de José Antônio
Gonsalves de Mello. Recife: Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 1981.
137 COELHO, Duarte de Albuquerque. Memórias diárias da Guerra do Brasil; 1630-1638. Recife: Fun-
dação de Cultura Cidade do Recife, 1982. Duarte Coelho e Matias Coelho reclamaram no Memórias da Guerra
do Brasil que não contaram com ajuda que precisavam da coroa espanhola e essa idéia ficou cristalizada na
historiografia a exemplo da tese de Evaldo Cabral de Mello que afirma que a guerra foi toda custeada com os
recursos locais e com a gente da terra.
138 DUTRA, Francis A. Matias de Albuquerque and the defense of Northeastern Brazil 1620-1626. Lisboa,
Revista número 36 – 1973. Centro de Estudos Históricos Ultramarinos. Utilizamos o folheto da biblioteca do
Instituto Ricardo Brennand do acervo que pertenceu a José Antônio Gonsalves de Mello.

1374
O estudo da trajetória de Duarte Coelho e sua relação com a corte filipina e a elite ibérica é de
suma importância para analisar a guerra de Pernambuco e sua relação com a circulação de pessoas no
Atlântico Sul. Não foi fácil Duarte de Albuquerque Coelho manter uma boa relação com Lisboa e Ma-
drid em um período tão difícil politicamente com as disputadas em torno da restauração portuguesa,
pela crise de uma Espanha fragilizada com a Guerra dos Trinta Anos, com os problemas de falta de
alimentos conforme descreve Geoffrey Parker e ainda combater a companhia neerlandesa (WIC) em
Pernambuco. Em suas Memórias Diárias da Guerra do Brasil, Duarte Coelho elogia os trabalhos de
seu irmão e critica a Espanha pelo descaso na ajuda financeira o que é estranhado a publicação de suas
memórias pelo escrivão de Madrid. O próprio historiador pernambucano José Antônio Gonsalves de
Mello chama atenção para a estranheza de nas “Razones que no se devem imprimir la historia que tra-
ta de las guerras de Pernambuco compuesta por Duarte de Albuquerque” o autor elogiar Duarte Coe-
lho de suas ações militares ao mesmo tempo em que critica a Espanha pelo descaso da recuperação de
Pernambuco elogiando Matias de Albuquerque que fica ao lado dos portugueses contra os espanhóis
na restauração portuguesa.139 Entretanto, parece que foi quando Portugal se encontrava sobre o domí-
nio Espanhol, que o Brasil e os “donos” (os Albuquerque Coelho, especialmente no período de Duarte
de Albuquerque Coelho) que Pernambuco obtive mais ajuda dos recursos metropolitanos, tendo em
vista que a Restauração Pernambucana posteriormente a restauração portuguesa fora financiada, em
sua maioria, pelos custos locais e pela insatisfação da oligarquia do açúcar que Evaldo Cabral de Mello
chama de açucarocracia.140 Neste caso, as relações e responsabilidades do reinado e do donatário fazem
parte da complexidade política que tinha a elite com a corte e seus interesses.

A mobilização para obter recursos financeiros, marinheiros, soldados, alimentos e petrechos


bélicos por Duarte requeria uma estrutura onerosa e também precisava de ajuda da coroa espanhola.
A solução encontrada pelo monarca espanhol para articular as forças políticas de Portugal e Caste-
la foi formar uma influente Junta com membros dos dois países para o planejamento do que eles
chamavam de La Armada para el Socorro do Estado del Brasil ou Armada para el Socorro de la
Guerra de Pernambuco.141 Aqui nos cabe observar que em nenhum momento aparece nas diversas
documentações do período, tanto a portuguesa, quanto a espanhola e holandesa o termo Brasil
holandês, como a historiografia convencionalmente denomina o período, mas Guerra de Pernambu-
co.142

Assim, a Junta de Socorro para a Guerra de Pernambuco tinha a responsabilidade de organi-


zar as provisões de alimentos, adquirir os armamentos para enviar à colônia, planejar a saúde física
e espiritual dos soldados, buscar organizar o soldo dos homens de guerra e a forma como deveriam
ser alojados durante a travessia do Atlântico. Podemos dizer que a Junta era uma espécie de órgão
139 COELHO, Duarte de Albuquerque. Memórias diárias da Guerra do Brasil; 1630-1638. Recife: Fun-
dação de Cultura Cidade do Recife, 1982.
140 Esse é uma tese que foi criada por Evaldo Cabral de Mello em Olinda Restaurada.
141 Archivo General de Simancas (AGS), Guerra Antígua, Legajos 1025, 1011, 1012, 1015, 1071, 3010.
142 A Guerra de Pernambuco foi o período que a historiografia convencionou chamar de Brasil holandês.
Porém, o nome que aparece na documentação da época é Guerra de Pernambuco, tanto na documentação
luso-espanhola (Arquivo Histórico Ultramarino e Arquivo de Simancas) quanto na documentação holandesa.
Além dessa definição na documentação do período, tem-se também o mesmo termo utilizado pelos cronistas
do período, como Diogo Lopes de Santiago e Duarte de Albuquerque Coelho.

1375
responsável pela organização geral da armada e pelas projeções dos problemas que por ventura
surgissem no trajeto das tropas à Pernambuco. Para uma viagem longa que cruzasse o Atlântico, os
burocratas ordenavam que a esquadra levasse “marineros de respecto para suplir los que murriera y
enfermaren los quales se an de repartir entre todos los navios del Armada conforme a sus partes
en la forma que mexor os parecieren”.143 Grande parte dos membros que compunham essa Junta
integrou o Conselho de Portugal, mas a nobreza política não se contentava nem se fixava em apenas
uma única Instituição do Antigo Regime. Eles circulavam a medida de seus interesses políticos e
comerciais. Se na dissertação conseguimos identificar um pouco o papel da Junta agora nos cabe
identificar a relação de Duarte de Albuquerque Coelho com os membros dela. Ao que nos parece a
maioria dessa Junta pertencia ao Conselho de Portugal que Duarte de Albuquerque Coelho após sua
volta para Europa quando termina o que Evaldo Cabral de Mello definiu como guerra de resistência.
A Junta que deveria organizar a retomada da capitania pernambucana tinha a importante missão de,
em nome da coroa, tentar aquisição de recursos para a armada, nomear militares competentes para
assumir cargos e patentes importantes, buscar armamentos, cuidar do abastecimento da tropa e
realizar o recrutamento dos homens que cruzariam o temeroso labirinto Atlântico. De acordo com
Francisco Adolfo Varnhagen, a Junta foi criada para reunir os fundos necessários, “cobrando certos
atrasos, fazendo composição com os devedores etc”.144 Ainda de acordo com o historiador, a Junta
tinha sido criada em 26 de junho de 1631, mas nada fazia.145

Os nomes que compõem a influente junta por si só já demonstram o forte prestígio político e
a influência que a mesma tinha na corte, sendo uns condes, outros duques, marqueses, entre outros
títulos recebidos. O Marques de Montalvão, por exemplo, chegou ao Brasil trazendo da Espanha entre
outros títulos o de restaurador de Pernambuco, informação que é relatada pelo padre Antônio Vieira
em um de seus sermões. 146 Don Jorge Mascarenhas, conhecido como Marquês de Montalvão chegou
a ser Vice-rei e Capitão-geral de Mar e Terra do Brasil, substituindo Jorge Mascarenhas e assim como
os outros membros da Junta de Pernambuco, buscava através da guerra obter mais prestígio político,
poder e dinheiro.147 Diogo de Castro, conhecido como Conde de Basto, chegou a fazer parte da Junta
de Socorro à capitania de Pernambuco e foi governador de Portugal por duas vezes, em 1621 e 1630,
quando foi substituído por Dona Margarida de Sabóia, a Marquesa de Mântua, que tanto aparece na
documentação do ultramarino. Outra figura de grande peso que compõe a Junta é o duque de Villa

143 Idem.
144 VARNHAGEN, Francisco Adolfo. História das lutas com os holandeses no Brasil desde 1624 a 1654. Rio de
Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2002. p 102.
145 Idem.
146 Apud. MELLO, José Antônio Gonsalves de. Templo dos Flamengos. Influência e ocupação holandesa na
vida e na cultura do norte do Brasil. Recife; Topbooks, 2000. VIEIRA, Padre Antônio. Sermão da Visitação de
Nossa Senhora, pregado na chegada ao vice-rei à Bahia: Sermões: Sexta Parte. Lisboa: 1609, p 390.
147 VARNHAGEN, Francisco Adolfo. História das lutas com os holandeses no Brasil desde 1624 a 1654. Rio de
Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2002. p 169. VALLADARES, Rafael. Las dos guerras de Pernambuco. La
armada del conde da Torre y la crisis del Portugal hispânico (1638-1641). IN: El Desafio Holandés al Domínio
Ibérico em Brasil en el Siglo XVII. José Manuel Santos Pérez e George F. Cabral de Souza. Ediciones Universi-
dad de Salamanca y los autores, 2006. p 37.

1376
Hermosa que foi presidente do Conselho de Portugal.148

Essas informações revelam que a Guerra de Pernambuco foi discutida por pessoas influentes
na política da corte, eram famílias de prestígio que buscavam se manterem com poder. Segundo o
historiador espanhol Rafael Valladares, foram três famílias que disputaram o Conselho de Portugal
que o marquês de Villa Hermosa tinha ocupado a presidência.149 Para esse renomado historiador
do século XVII foram essas brigas internas os motivos dos fracassos da tentativa de retomada da
capitania de Pernambuco. Briga pelo poder que é talvez uma permanência na história política de
Portugal e de muitas de suas colônias.

A partir da história de Duarte de Albuquerque Coelho e da trajetória de sua família pode-


mos relacionar a relação da capitania de Pernambuco com a corte da monarquia hispânica. Nesse
sentido, nos cabe ressaltar a complexidade do império hispânico com dimensões globais e com dis-
tintos problemas particulares continentais. Duarte teve cinco filhos e apenas um único homem que
morreu na guerra da Catalunha, em Lérida. Duarte foi portanto, em termos de consanguinidade o
último representante masculino da família já que seu filho morre antes dele. O Marquês de Basto
obteve mercês e pleitos de Felipe IV e sua filha herdeira contraiu um importante matrimônio. A
importância da família na sociedade de corte perpassava pelos sucessos nas relações matrimoniais
e Dona Maria Margarida de Castro casou com Diogo de Castro que foi governador de Portugal..150

Certamente Jorge de Albuquerque nomeou “Duarte” em homenagem ao seu pai, já que o


primeiro donatário era homônimo (xará) de Duarte. Essa inclusive é uma das características cultu-
ral da elite, a de tentar a perpetuação no poder e na maioria das vezes associar isso ao nome como
uma forma de lembrança e reforço de uma linhagem, que está sempre associada a uma casta.

Sobre os anos finais da vida de Duarte descobrimos que Don Duarte de Albuquerque Coe-
lho, conhecido na villa de Madrid como Marques de Basto ou Marquês de Obasto, como aparece por
vezes na documentação madrilena. Embora a data de registro pelo escrivão tenha sido no dia 19,
mas foi no dia 11 de fevereiro, logo 8 dias antes de entregar ao escrivão ou ao cartório, que Duarte de
Albuquerque data e assina seu testamento. Porém, é no dia 24 de setembro de 1655 que o señor The-
niente Alonso Gonçalves Cadena recebe o referido testamento. O testamento do Marquês de Basto
está escrito na “Tabla de las esscripturas publicas que se han otorgado ante Juan Sanches Yzquierdo
Scrivano del Numero de Esta Vila de Madrid este año de 1658”.151 Mas três anos antes, no dia 6 de
agosto de 1652, Duarte lamentava a norte de seu filho. A perda de seu filho deve ter sido um dos
acontecimentos mais importantes na trajetória de Duarte, único filho homem.
148 SANTOS PÉREZ, José Manuel e George F. Cabral de Souza. El Desafio Holadés al Domínio Ibérico em
Brasil en el Siglo XVII. Ediciones Universidad de Salamanca y los autores, 2006. IN: VALLADARES, Rafael.
Las dos guerras de Pernambuco. La armada del conde da Torre y la crisis del Portugal hispânico (1638-1641).
149 Idem.
150 CUNHA, Mafalda Soares da. Los Albuquerques Coelho, siglos XVI-AVII. Prácticas Sociales Y Retórica
Nobiliaria. Artículo traducido del original por Antonio Terrasa Lozano. P 132.
151 Archivo Histórico de Protocolos (AHP), Madrid, Legajo (Tomo) 7847, fls 591. Testamento Cerrado de
D. Duarte de Albuquerque Coelho, Marquês de Basto. No dia 19 de fevereiro de 1655, Francisco de Moscoso,
escrivão de Madrid, iniciou o registro do testamento cerrado Duarte. Agradecemos ao historiador Fernando
Bouza Álvares que nos informou sobre essa documentação.

1377
Diante do testamento de Duarte de Albuquerque Coelho podemos constatar o final de uma
vida sem grandes posses e patrimônio como por vezes é colocado na historiografia quando trata da
família dos Albuquerque Coelhosde que tiveram fortuna.152 Nesse caso, parece que o dito popular pai
rico, filho nobre e neto pobre serve em parte para fazer analogia um pouco para tratar da decadência
dos Albuquerque Coelho. Segundo Francis Dutra, Duarte Pereira foi um dos homens mais ricos do
Brasil Colonial tendo em vista a produção açucareira de seu período. Sabemos que a capitania de
Pernambuco foi uma das que mais tiveram produção de açúcar da época, contudo essa produção será
afetada ao longo da história de Pernambuco e da família dos Albuquerque Coelho. A produção da
capitania de Pernambuco desde o primeiro donatário Duarte Pereira até seus predecessores Duarte
Coelho de Albuquerque, de Jorge de Albuquerque Coelho até chegar a Duarte de Albuquerque Coelho
se passaram mais de cem anos.

Obviamente esse dito popular mencionado anteriormente não se encaixa nos conceitos nobre-
za já que a herança financeira tende a se perder ao longo do tempo, mas a herança de nobreza tenda a
aumentar já que pela lógica do Antigo Regime quanto mais antiga a linhagem de nobreza e sucessão
mais pura e nobre seria a família, ou como pontuou Antônio Manuel Hespanha, nas sociedades do
Antigo Regime a permanência é que deveria estar para as naturezas das coisas153. Se por um lado, a
questão de nobreza parece ter sido cada vez mais fortalecido na geração do Marques de Basto e seu
reconhecimento é notório diante da corte de Madrid tendo Duarte atingido a presidência do conselho
de Portugal, obtido honrarias e conquistado mercedes, recebendo a importante honraria espanhola de
Santiago, tido autorização para publicação de seu livro mesmo tendo seu irmão como uma desavença
da coroa espanhola em virtude da guerra do Alentejo e tornando-se até um problema para Duarte
na publicação de suas memórias e muito provavelmente na sua relação com a corte. Esses são alguns
motivos que demonstram que Duarte conseguiu em parte obter reconhecimento e transitar diante da
corte de Madrid conforme já apontamos ao longo desse trabalho.

Duarte de Albuquerque Coelho morre aos 67 anos de idade na Villa de Madrid, precisamente
no dia 25 de setembro de 1658154 e seu testamento é assinado pelo escrivão Francisco Moscoso no dia
19 de fevereiro do ano de 1655, portanto três anos antes de morrer Duarte protocola e oficializado no
cartório de Madrid da época o testamento que só poderia ser conhecido após sua morte e que hoje se
encontra sob acervo do Archivo Histórico de Protocolos pertencente ao Archivo de la Comunidade
de Madrid. Além do escrivão Francisco Moscoso, assinaram também como testemunhas de seu co-
dicilo, Don Francisco de Urbiola, Don Juan de Velasco, Don Pedro de Zevallos (Cevallos), Joseph de
152 Tanto Francis Dutra quanto Mafalda Soares da Cunha colocam os Albuquerques como detentores de gran-
de fortuna, da capitania mais produtiva e de uma sucessão financeira de êxito, embora ambos não tenham se
aprofundado no Marques de Basto (Duarte de Albuquerque Coelho), ou seja, no quarto donatário, mas sim em
seus antecessores como foi o caso de Francis Dutra que influencia parte de uma historiografia nesse assunto do
patrimônio do Albuquerque Coelho e que baseia o artigo de Mafalda Soares da Cunha.
153 HESPANHA, Antônio Manuel. A mobilidade social no Antigo Regime. In: http://www.scielo.br/pdf/tem/
v11n21/v11n21a09
154 AHN, Archivo Histórico Nacional, Universidades y Colegios, Libro 1190, fol 146-147v. Deposito del cuer-
po del senhor Don Duarte de Albuquerque Cuello Marques de Basto conde de Pernambuco. Agradeço ao
historiador Fernando Bouza Álvares que gentilmente me passou as referências desse documento que não existe
no portal de digitalização dos arquivos espanhóis (PARES), assim como era desconhecido pelos archiveros do
Archivo Nacional, bem como de grande parte dos historiadores brasileiros do período.

1378
Zevallos, Manuel de Noroña e Andres Fernandes, que eram seus criados. Ao que tudo indica pelo seu
testamento quando Duarte morre ele possuía ao menos 9 criados.

Em 21 parágrafos, o então Marquês de Basto, Conde de Pernambuco, gentil homem da câmara


de Sua Majestade e de seu Conselho de Estado escreve seu testamento, onde perfilha uma de suas fi-
lhas como herdeira financeira e demonstra algumas de suas últimas vontades. Duarte de Albuquerque
Coelho inicia seu testamento demonstrando seu caráter religioso, preso ao catolicismo, fiel ao santíssi-
mo sacramento e a santíssima trindade, mas não apenas no começo do testamento. Portanto, durante
todo codicilo o Marques de Basto deixa claro sua reputação e fidelidade a Igreja Católica.

Em uma das informações interessantes do testamento de Duarte está a informação que Duarte
obteve um empréstimo a Mucio de Orillia, que foi “Sargento Mayor del tercio napolitano del Conde de
Bañolo” lhe emprestou no ano de 1633, no calor da guerra contra a WIC quatrocentos mil reis, sendo
dez mil Reales de prata para serem enviados a Lisboa, mas como o sargento faleceu no Brasil na guerra
de Pernambuco, e como Mucio Orillia havia nomeado Duarte como seu testamentário servindo na
guerra de Pernambuco “o qual he publico hacer falecido no Brasil”.155 Portanto, Mucio Orilia morre no
mesmo ano de 1633 em que Mucio empresta o dinheiro a Duarte.

O empréstimo de Mucio Orillia nos faz pensar como andavam as finanças de Duarte no perío-
do da guerra de Pernambuco contra a WIC, assim como nos faz refletir na confiança e credibilidade
do sargento com Duarte. Parece que o donatário de Pernambuco conseguiu estabelecer relações de
confiança e credibilidade com alguns de seus militares a ponto de obter inclusive recursos financeiros.

Além da informação encontrada no testamento de que Mucio Orillia156 foi Sargento Mayor
do terço napolitano do Conde de Bagnuolo e que emprestou dinheiro no ano de 1633 a Duarte de
Albuquerque Coelho encontramos também um documento chamado “Copia autentica da setença
de justaficasão do sargento mayor mucio Orilia” datado de 1641, portanto escrito 14 anos antes do
testamento de Duarte em que seu filho mais velho e capitão chamado Carlos Orilia solicita e obtém
resposta positiva da Junta do despacho ordinário de Portugal para que “Dom Phelippe per graça de Ds
Rey de Portugal e dos Algarves da quem e dalem mar em Africa Señor de Guine e da Conquista na-
vegação e Comercio de Ethiopia, Arabia, Persia e da India” dê remuneração e recursos em virtude do
falecimento de seu pai que é “publico hacer falecido no Brasil servindo sua Magestade”.157 O despacho

155 Ambos documentos, tanto no testamento de Duarte do Archivo Histórico de Archivo Histórico, quanto
na solicitação de recursos de pedido do capitão Carlos Orilia, filho de Mucio dão como o ano de 1633 o seu
falecimento. IN: Archivo Histórico Nacional de Madrid (AHNM), Universidades y Colegios, Libro 1190, fol
155, fls. 143-143v. Copia autenticada da sentença de justaficasão dos filhos do sargento mayor mucio Orilia,
Carta escrita em Madrid no dia 8 de fevereiro de 1642 e assinada pelo secretário Antonio de Almeida; e Archi-
vo Histórico de Protocolos (AHP), Madrid, Legajo (Tomo) 7847, fls 591. Testamento Cerrado de D. Duarte de
Albuquerque Coelho, Marquês de Basto.
156 O sobrenome de Mucio Orilia aparece na maioria das vezes escrito dessa maneira (Orilia), mas algumas ve-
zes aparece documentação como Orillia, Oirla e Urila. A maiorida das vezes que tivemos acesso aparece como
Orilia e por isso utilizaremos ao longo do trabalho a não ser quando tivermos citando a fonte original escrita
de outra maneira.
157 AHNM, Archivo Histórico Nacional de Madrid, Universidades y Colegios, Libro 1190, fols. 143-143v. Co-
pia autentica da sentença de justaficasão dos filhos do sargento mayor Mucio Orilia. Madrid, 29 de Novembro
de 1641. Embora datado em 1641 o documento está com um selo de 1642.

1379
referido dava poder para Carlos Orilia receber os recursos como herdeiro de seu pai Mucio Orilia por
ser seu filho mais velho e herdeiro universal.158 Diz o documento, que Mucio havia servido durante 33
anos em diferentes partes defendendo os interesses da coroa espanhola e que foi casado com Victoria
do Reyno de Napoles e, além de Carlos, teve também outro filho chamado Diogo de Orilia, que era o
irmão mais novo do capitão Carlos Orilia e também menor de idade chamado Diogo de Orilia. Mucio
de Orilia pediu para ser enterrado na Capela São Francisco de Lisboa e informou que sua certidão
estava com o Padre Frei Aleixo de Moura guardião do referido convento.159 Mucio parece ter sido um
militar destacado e que conheceu bem as guerras no Brasil, pois obteve “65 escudos al mês por el cargo
de sargento mayor del Tercio del marqués de Torrecuso” e pertenceu a importantes armadas com mili-
tares destacados tendo oportunidade de aprender bastante como a convivência do Conde de Bagnuolo
e na frota de D. Fadrique de Toledo quando recuperou a Bahia no ano de 1625.160

Segundo Duarte de Albuquerque Coelho em seu testamento, Mucio Orilia ordenou que 400
mil reis se empregassem em renta para casar-se cada ano uma órfã e donzela italiana161, mas caso não
encontrasse que casasse uma órfã portuguesa. Ainda de acordo com Duarte, era seu desejo que ele e
seus sucessores fossem administradores e patronos dessa obra pia e que pelas condições daquele ao
ano de seu testamento, no ano de 1655 ele pediu para que Manuel de Miranda seu criado buscasse
cumprir logo esta disposição. Acrescentava e registrava Duarte em seu testamento, que não sabendo se
tinha feito tal obra pia, que era de seu desejo também que o “Padre Comendador del Convento de San-
ta Barbara de Mercenários Descalços desta villa de Madrid” ao tempo de seu falecimento ou a quem
de ofício tivesse essa função em responsabilidade que servir de seus diamantes (sentinillo de diaman-
tes) que estavam entre seus bens para que fizesse vender para obter os recursos para realizar essa obra
pia de casar uma órfã italiana por ano ou na falta dela uma órfã portuguesa. Pedia o quarto donatário
da capitania de Pernambuco em seu testamento que elas “sean virtuosas y honradas”.162 A escolha das
órfãs cabia inicialmente ao Padre Comendador do Convento de Santa Bárbara, onde provavelmente
foi velado o corpo de Don Duarte e onde ele residia próximo já que em certa parte escrita de um dos
escrivães do codicilo ele informava que o Marques de Basto era morador vizinho ao tal convento.

158 AHNM, Archivo Histórico Nacional de Madrid, Universidades y Colegios, Libro 1190, fols. 143-143v. Co-
pia autentica da sentença de justaficasão dos filhos do sargento mayor Mucio Orilia. Madrid, 29 de Novembro
de 1641. Embora datado em 1641 o documento está com um selo de 1642.
159 AHNM, Archivo Histórico Nacional de Madrid, Universidades y Colegios, Libro 1190, fols. 143-143v. Co-
pia autentica da sentença de justaficasão dos filhos do sargento mayor Mucio Orilia. Madrid, 29 de Novembro
de 1641. Embora datado em 1641 o documento está com um selo de 1642.
160 In: http://brasilhis.usal.es/es/personaje/mucio-orilla, último acesso para esse link em 24 de julho de 2018.
Nesse caso as fontes usadas pelo Banco de Dados Brasilhis sobre os escudos de Mucio Orilia e participação na
armada de Don Fradique de Toledo foram retiradas da seguinte referência: MN, Museo Naval, MN. 13. 1625,
"Compendio Historial de la Jornada del Brazil y Sucesos de Ella... Por Dn. Juan de Valencia y Guzman natural
de Salamanca que fue sirviendo a su Magestad en ella de soldado particular, y se halló en todo lo que pasó."
161 No testamento Duarte Coelho fala apenas em órfã italiana, mas em um documento do Archivo Históri-
co Nacional quando fala que Duarte ficou como testamentário de Muccio Orilia ele fala em donzela italiana.
AHNM, Archivo Histórico Nacional de Madrid, Universidades y Colegios, Libro 1190, fls 143-143v. Emprésti-
mo de mil cruzados em março de 1633 em Pernambuco de Mucio Orilia Sargento Maior do terço Naplitano a
Duarte de Albuquerque Coelho. Carta datada de 29 de novembro de 1641 com selo de 1642.
162 Archivo Histórico de Protocolos (AHP), Madrid, Tomo 7847, fls 591. Testamento Cerrado de D. Duarte de
Albuquerque Coelho, Marquês de Basto.

1380
Duarte de Albuquerque Coelho nasceu em 1591, foi o quarto donatário de Pernambuco, to-
mou posse da Capitania em 2 de julho de 1603, quando herda de seu pai a capitania aos 12 anos de
idade, mas só chegou em Pernambuco em 21 de setembro de 1631 para lutar contra a WIC com 40
anos de idade, foi sucessor da linha familiar iniciada pelo avô Duarte Coelho Pereira, mas não ficou
do lado português após a Restauração da Independência por D. João IV em 1640, diferentemente de
seu irmão, Matias de Albuquerque Coelho, que além de chefe militar em Pernambuco também co-
mandou as tropas portuguesas no Alentejo travadas contra a Espanha, ficando conhecido pela vitória
da batalha no Montijo em 1644.163 Matias Coelho, assim como Duarte Coelho vinham de uma família
tradicional em viagens pelos mares e oceanos, acostumados na luta armada em vários continentes,
vale lembrar que seu avô Duarte Coelho Pereira, o primeiro donatário de Pernambuco, esteve em luta
a favor dos portugueses na China e na África. Matias de Albuquerque Coelho, recebeu a ordem de
cristo, que era a mais importante honraria portuguesa de seu tempo pelos seus serviços prestados no
norte da África e quando chegou a capitania de Pernambuco, entre maio e junho de 1620 já era um
soldado prático e com uma certa experiência.164 Foi Matias, incialmente, quem escreveu os registros
diários da guerra do Brasil, que foram posteriormente publicados em 1654, por Duarte de Albuquer-
que Coelho, em Madrid.

Duarte de Albuquerque Coelho recebeu o título de Marquês de Basto que conquistou por
concessão de Felipe IV, obteve honrarias, mercedes e possivelmente ocupou o cargo de presidente do
Conselho de Portugal como consta em seu testamento. Seu padrinho de batizado foi o comendador
do Hábito de Cristo e tenha tido como seu tutor o vice-rei da índia, tenha inclusive recebido os três
hábitos de cristo com a morte de seu irmão, tendo recebido recursos com a morte de seu filho quan-
do morreu, assim como tendo recebido a ordem de Santigo ao que tudo indica Duarte não teve um
final tão trágico como de seu filho e seu tio, que foram mortos em guerra. A trajetória de Duarte nos
possibilita, em certa medida, refletir sobre a relação da capitania de Pernambuco com a monarquia
hispânica, entendendo que “é impossível fazer guerra sem soldados, sustentá-los sem soldos, pagar
seus os seus soldos sem tributos e criar tributos sem comércio”.165

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163 COELHO, Duarte de Albuquerque. Memórias diárias da Guerra do Brasil; 1630-1638. Recife: Fun-
dação de Cultura Cidade do Recife, 1982. Duarte Coelho e Matias Coelho reclamaram no Memórias da Guerra
do Brasil que não contaram com ajuda que precisavam da coroa espanhola e essa ideia ficou cristalizada na
historiografia a exemplo da tese de Evaldo Cabral de Mello que afirma que a guerra foi toda custeada com os
recursos locais e com a gente da terra.
164 DUTRA, Francis A. Matias de Albuquerque and the defense of Northeastern Brazil 1620-1626. Lisboa,
Revista número 36 – 1973. Centro de Estudos Históricos Ultramarinos. Utilizamos do folheto da biblioteca do
Instituto Ricardo Brennand do acervo que pertenceu a José Antônio Gonsalves de Mello.
165 MELLO, Evaldo Cabral de Mello. Olinda Restaurada: guerra e açúcar no nordeste, 1630-1640. São Paulo:
Ed 34, 2007, p 10. A citação utilizada por esse historiador foi feita por Antoine de Montcherétien no ano de
1615.

1381
COELHO, Duarte de Albuquerque. Memórias diárias da guerra do Brasil 1630-1638. Apresentação de Leonardo Dantas
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[D. Filipe III] ao Conselho da Fazenda ordenando o envio de quatro esquadras das duas Coroas [Espanha e
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migo se espalhe pelas capitanias do Rio Grande do Norte, do Ceará, do Maranhão e do Grão-Pará.

Archivo Histórico de Protocolos (AHP), Madrid, Tomo 7847, fls 591. Testamento Cerrado de D. Duarte de
Albuquerque Coelho, Marquês de Basto.

Archivo Histórico Nacional de Madrid (AHNM), Universidades y Colegios, Libro 1190, fol 155, fls. 143-143v.
Copia autenticada da sentença de justaficasão dos filhos do sargento mayor mucio Orilia.

Fazer-se mercador na colônia:


Trajetórias mercantis entre o Rio da Prata e a América Portuguesa
Queila Guedes Feliciano Barros166

RESUMO

O presenteartigo, busca analisar, a trajetória demercadores luso-hispânicosestabelecidos no


Rio da Prata e o deslocamento de seus negócios para a América Portuguesano período da União
Ibérica.Compreendendo a prática mercantil comoparte da conjuntura política e econômica de con-
solidação do Estado moderno Português, aatuação deste grupo mercantil, teve início com a Cédula
Real de 1602, que oficializou o comércio entre o porto de Buenos Aires com Guiné e Costas do Brasil
(compreendidas como São Salvador Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco), foi através das cédulas
reais que os vecinos de Buenos Aires tiveram acesso ao tráfico de escravos, a partir da associação com
mercadores portugueses,que,de contra partida, passaram a comercializar os frutos da terra platinos no
Estado do Brasil, esses contatos mercantis foram facilitados pelo uso dos navios soltos, possibilitando
aos mestres de navio luso-hispânicos adquirir mercê de comércio no Brasil, expandindo o negócio dos
frutos da terra, do litoral para o interior.

Palavras-chave:União Ibérica. Navios Soltos. Trajetórias Mercantis.

166 Doutoranda em História Social pela Universidade Federal do Ceará – UFC, cuja pesquisa tem sido finan-
ciada pela FUNCAP CE.

1383
INTRODUÇÃO

Em 1609, após 21 dias de viagem de Salvador em direção ao porto de Buenos Aires numa em-
barcação denominada San Pedro, o mestre de navio, Francisco Dias, chegou ao Poso do Riachuelo na
embocadura do Rio da Prata, logo após a sua entrada, o mestre foi questionado sobre as licenças que
possuía para entrar na cidade de Santíssima Trinidad y Puerto de Buenos Aires.

Francisco Dias respondeu que possuía uma licença emitida pelo governador Hernandarias167
emitida ao convento São Francisco de Buenos Aires para trazer do Rio de Janeiro – Costas do Brasil,
além do navio solto no qual viajou, mais dois navioscarregados de madeira, e que a licença por ele le-
vada ao Rio de Janeiro, para trazer o navio com a madeira, ficou em poder de um freipara que pudesse
mandar mais naviosa Buenos Aires.

Mesmo sem estar convencido da licença, Antonio de Sousa, alguacil maior da governança,
permitiu a entrada do navio para averiguação das licenças reais de comércio e mercadorias transpor-
tadas pelo mestre Francisco Dias. Por conseguinte, no dia 17 de janeiro de 1609, após 29 dias, mais
ou menos, da sua entrada no porto, Francisco Dias foi levado aos juízes168 reais para averiguação das
licenças, nesta ocasião, os juízes alegaram que sua licença era duvidosa e pediram para que ele apre-
sentasse testemunhas para justificar sua viagem.

No dia 18 de janeiro de 1609, 30 dias após a sua entrada no porto de Buenos Aires, o mestre
Francisco Dias apresentou aos juízes, como testemunha, Antonio Fernandez Barrios, que em depoi-
mento, afirmou ser português, ter 56 anos mais ou menos, possuir vencidad no porto de Buenos
Aires,ser mercador no Rio de Janeiro, e fiador do mestre Francisco Dias. Antonio Fernandez Barrios
confirmou que não tinha como provar as licenças navegadas por Francisco Dias, mas trouxe consigo
por testemunha, Juan de Calate, escrivão do porto de Buenos Aires. O escrivão confirmou a existência
de uma licença assinada por Hernandarias e referendada por ele próprio (escrivão de registros do por-
to) para o padre Gabriel da ordem de São Francisco, e alegou que Antonio Fernandez Barrios, por ser
síndico da ordem de São Francisco, foi ao Rio de Janeiro acompanhando o padre Gabriel a mandado
do governador Hernandarias e que o navio fretado para o seu retorno a Buenos Aires foi o San Pedro,
do mestre Francisco Dias.

No dia seguinte, Antonio Fernandez Barrios apresentou outra testemunha, o frei Bartolomeu

167Raul Molina, apresentou em sua obra “Hernandarias el hijo de la tierra 1560-1631” (1948), o nome de Her-
nán Arias de Saavedra como Hernandarias, ao apresentar a sua trajetória política, consagrou a forma pela qual
a historiografia passaria a apresentar aquele que foi uma das figuras mais emblemáticas da história do porto
de Buenos e Rio da Prata, em 1592, pouco tempo após a abertura do porto de Buenos Aires, foi escolhido pelo
Cabildo de Assunção como teniente de gobernador, onde governou a capital da província (Assunção) até 1593,
logo, tornou-se teniente general do governador Juan Ramirez de Velasco, e em 1597 foi nomeado pelo vice-rei
da província como governador do Rio da Prata. Hernandarias governou o Rio da Prata de 1602 a 1609, retor-
nando ao governo em 1615, onde governou até 1618, quando a província foi dividida em Rio da Prata e Para-
guai pela Cédula real de 1617, Hernandarias continuou como governadorda província do Paraguai até 1621.
MOLINA, Raul. Hernandarias el hijo de la tierra (1560-1631). Buenos Aires: 1948.
168 Oficiais reais que compunham o júri nesta época: Antonio de Sousa (Alguacil Maior), Simon de Valdez
(Tesoureiro) e as vezes dependendo do caso o governador. Neste julgamento em específico o governador não
estava presente.

1384
de la Asunción, religioso da ordem de São Francisco, que afirmou em depoimento ter 38 anos, mais
ou menos, e repetiu em seu relato a mesma história da testemunha anterior, que ao saberque o gover-
nador Hernandarias havia emitido permissão para o convento São Francisco trazer madeira do Rio
de Janeiro, Costas do Brasil e em proveito da mesma, Antonio Fernandez Barrios por ser vecino em
Buenos Aires, membro da Ordem de São Francisco e fiador do navioSan Pedro, aproveitou a viagem
para navegar os retornos dos vecinos de Buenos Aires que estavam no Rio de Janeiro desde julho de
1607, ou seja, passados mais de dois anos no Brasil, já estavam sendo dados como perdidos.

No dia 22 de janeiro de 1609, passados 5 dias do início do julgamento, Antonio Fernandez Bar-
rios apresentou por testemunha, Antonio Francisco Teixeira, que afirmou em depoimento, ser natural
do porto de Buenos Aires, ter 20 anos mais ou menos, ser oficial mecânico e trabalhar nos fornos de
telha. O oficial mecânico relatou que estando na rua São Francisco, próximo ao convento São Francis-
co, viu quando o tesoureiro Simon de Valdez, foi até o governador Hernandarias, afirmando que o na-
vio San Pedro havia chegado a Buenos Aires, trazendo madeira sem licença e escutou quando Valdez
pediu ao governador que emitisse cédula permitindo a entrada da madeira, materiais de construção
e frutos da terra, transportados no dito navio, Hernandarias, por sua vez, teria afirmado que não era
necessário a emissão da cédula de permissão, pois ele mesmo já a teria emitido para o padre Gabriel
de la Anunciación, permitindo o frete de navios soltos para o transporte da madeira, e este frei, já se
encontrava no Rio de Janeiro.

Claramente Antonio Fernandez Barrios, apresentou o oficial mecânico Antonio Francisco


Teixeira, como testemunha, com a intenção de encerrar o julgamento, até mesmo, porque caberia a
Antonio Fernandez Barrios, na condição de fiador do mestre Francisco Dias, a obrigação de pagar as
despesas dos autose se dependesse dos juízesem questão, o julgamento se estenderia muito mais. Por
sorte, a experiência de Antonio Fernandez Barrios deu certo, e após o relato do mecânico, no qual
afirmou ter ouvido uma conversa comprometedora entre os oficiais reais sobre as permissões do navio
San Pedro, os juízes, não tiveram outra saída a não ser permitir o descarregamento das mercadorias,
inclusive, os retornos da venda dos frutos da terra dos vecinos de Buenos Aires que estavam no Rio de
Janeiro sem licença específica para navegar e desembarcar. E por mais que a dita madeira tenha sido
constantemente citada nos autos, não foi registrado na aduada nenhum descarregamento de madeira,
e sim de diversas manufaturas europeias.

Ainda no dia 22 de janeiro de 1609, os juízes apresentaram o valor dos autos somados em:
11 pesos e 4 reales para o tesoureiro, 2 pesos para o governador, 12 pesos pagos ao alguacil por duas
vistorias feitas no navio, 27 pesos pagos a Real Contadoria pelos despachos, testemunhas e outros
gastos. Por conseguinte, tudo foi pago por Antonio Fernandez Barrios e o julgamento foi dado por
encerrado169.

169Os dados apresentados na introdução, foram coletados no Archivo General de la Nación Argentina – Navio
San Pedro 1608 – 1609 (Legajo 1) códice: sala 9, 45 5 2.

1385
DESENVOLVIMENTO

No início do século XVII, Portugal e Espanha sofriam forte concorrência dos países do norte
da Europa, e a medida que ficava difícil comercializar no Oriente, os portugueses passaram a explorar
seus territórios atlânticos, em especial a Costa da África e o Brasil. Foi no contexto da viragem atlân-
tica, nas primeiras décadas do século XVII, que se formou entre o Rio da Prata e o Brasil, uma rede
mercantil luso-hispânica, que como podemos acompanhar nos autos do navio San Pedro, teve forte
ligação entre clérigos, funcionários reais e mercadores do porto de Buenos Aires.

Como sugere Vitorino Magalhães Godinho (1969)170 o recrudescimento dos conflitos euro-
peus, o domínio político-jurídico sobre a América e os ameríndios e o desenvolvimento do comércio
de escravos com a conquista de Angola, foram fatos de uma conjuntura global que conduziu a União
Ibérica em 1580, e foi como consequência da União Ibérica que o porto de Buenos Aires foi fundado,
e os portugueses passaram a ter acesso, mesmo que limitado, ao comércio local no Rio da Prata, esta-
belecendo uma nova rota de comércio entre o Brasil e as possessões espanholas no Oceano Atlântico.

Neste período, novas soberanias se ergueram na Europa, redefinindo alianças políticas e mer-
cantis, transferindo o eixo político-econômico para o Ocidente, tornando o Atlântico palco de dispu-
tas comerciais e territoriais. Portanto, como afirma Bicalho (2013)171:

Já em meados do século XVII o eixo dinâmico do Império colonial português havia


se afirmado definitivamente no Atlântico, ficando as possessões orientais num plano
secundário (BICALHO, 2013:51)

A viragem atlântica e a União Ibérica, favoreceram a nova rota mercantilde abastecimento do


Atlântico Sul, rota esta, efetuada por navios ditos soltos172, que foram, ao longo do século XVII, os
principais responsáveis pelo comércio entre as cidades hispano-americanas e o Brasil. Foi através de
licenças particulares e restritas regulamentações reais, que esses navios, ditos soltos, mantiveram um
limitado, mas vivo e dinâmico comércio entre Brasil, Angola, Lisboa e Sevilha, tendo no Brasil Colô-
nia a sua centralidade.

Neste contexto, os vecinos-comerciantes do porto de Buenos Aires, logo trataram de estabele-


cer conexões mercantis com as Costas do Brasil173, fazendo do porto de Buenos Aires paragem estra-

170GODINHO, Vitorino Magalhães. O socialismo e o futuro da península. Lisboa, Livros Horizonte, 1969.
171BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o Império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civi-
lização Brasileira, 2013.

172 Denominamos os navios que efetuavam que efetuavam os fretes entre o Brasil e o porto de Buenos Aires
como dito soltos, porque ao longo da pesquisa demonstraremos que havia uma regularidade de rota seguida
pelos mesmos.
173 O termo Costas do Brasil é utilizado pelos mestres dos navios que arribavam em Buenos Aires para se refe-
rir ao Brasil e representam em nosso trabalho os portos de Salvador, Rio de Janeiro e Pernambuco.

1386
tégica devido a sua localização na embocadura do Rio da Prata, proximidade com as Costas do Brasil
e porta de entrada para as cidades do Rio da Prata. Buenos Aires, interligou por terra, através do ca-
minho real de Potosí, as rotas mercantis terrestres ao Oceano Atlântico, possibilitando,aos mercadores
que transitavam no atlântico, adquirir, de forma legal ou não, a prata extraída de Potosí.

Esses navios, ditos soltos, não integravam os comboios da zona antilhana que faziam parte
da navegação da Carreira das Índias, transitando apenas no Oceano Atlântico. Outra diferença dos
navios soltos perante os navios da Carreira das Índias, se dava em relação a sua estrutura e as licenças
reais, pois, as embarcações soltas, eram embarcações portuguesas de 40 a 50 toneladas, e o nome solto
era atribuído ao fato de fazerem fretes particulares, sem obedecer a uma rota específica. Suas licenças
se distinguiam das demais, porque, além de constituírem privilégios individuais, se destinavam exclu-
sivamente à importação de mercadorias (BARROS, 2013)174.

Com a circulação dos navios soltos entre Buenos Aires e o Brasil Colônia, a sociedade do Rio da
Prata e Paraguai logo viram, nesta possibilidade, a solução para não mais depender do abastecimento
de manufaturas europeias que acontecia através do Vice-Reino do Peru, rota esta, que privilegiava o
abastecimento da Praça de Potosí e, por meio dela, as mercadorias chegavam aos demais povoamentos
do Rio da Prata com preços exorbitantes, chegando a valer entre 800 a 1000 por cento a mais do que
valiam na Espanha, preço aumentado também, pela deteriorada rota terrestre e os constantes ataques
indígenas ao qual os comboios ficavam expostos (CANABRAVA, 1984: 68)175.

Mas, os negócios entre os agentes mercantis do Rio da Prata e o Brasil, não foram tão fáceis de
serem estabelecidos e muito menos mantidos, pois, a Coroa espanhola, privilegiava os monopolistas
de Lima, e para evitar a concorrência portuguesa na rota real de Potosí, manteve o porto de Buenos
Aires como porto fechado ao livre comércio.

Como afirma Junqueira (2005)176:

Ao permitir a fundação do porto de Buenos Aires a Coroa o restringiu ao mesmo


contextodo monopólio das vendas de mercadorias adquiridas no ultramar, subme-
tendo as embarcações ao sistema de exclusivismo metropolitano pertencente ao
sistema das frotas de galeões que seguiam a rota Sevilha, Cádiz, Caribe, Istmo do
Panamá e Callao. Com esta medida, o monarca espanhol objetivava evitar o contato
comercial das possessões ultramarinas espanholas com agentes mercantis portugue-
ses, negando-lhes o acesso à prata de Potosí e proibindo em Buenos Aires o uso de

174BARROS, Queila Guedes Feliciano. “As margens da ilegalidade”: relações mercantis e sociais entre São Sal-
vador da Bahia e Buenos Aires (c. 1580 – c. 1640). 2013. 124p. Dissertação (Mestrado em História e Cultura
Histórica) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2013.

175CANABRAVA, Alice Piffer. O comércio português no Rio da Prata (1580-1640).Belo Horizonte, Itatiaia;
São Paulo: Edusp, 1984.
176JUNQUEIRA, Lucas de Faria. A Bahia e o Prata no primeiro reinado: comércio, recrutamento e Guerra
Cisplatina (1822 – 1831). 2005. 195 p. Dissertação (Mestrado em História). Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal da Bahia, 2005.

1387
mercadorias que viessem de outras rotas comerciais que não as fiscalizadas pela Es-
panha (JUNQUEIRA177, 2005:18).

Além de vincular Buenos Aires a rota de Sevilha, Felipe II pôs em prática uma política que
manteve os portugueses como súditos da Coroa espanhola, porém, com menos privilégios do que os
espanhóis, inclusive, negando-lhes o livre acesso ao Rio da Prata, e aumentou, de forma gradativa, a
fiscalização sobre o comércio português, o que prejudicou a intenção dos vecinos do Rio da Prata de
comercializar com o Brasil, através dos navios soltos, em virtude de serem os mestres e donos dos
navios soltos, portugueses em sua maioria (STELLA, 2000)178.

Para evitar que os mercadores que transitavam no Atlântico Sul, vissem o advento da União
Ibérica como possibilidade para reivindicar direitos na América espanhola, Felipe II tratou de implan-
tar uma rígida política de proibição aos estrangeiros nas Índias e definiu, por lei, quem seria conside-
rado pela Coroa um legitimo vecino e súdito seu, e como afirma Konetezke (1945)179:

Apesar da união das Coroas e como novos vassalos do rei, os portugueses continua-
ram sendo considerados estrangeiros. Mas em 1590, nova Cédula Real definiria com
mais exatidão aqueles que eram considerados súditos do rei, seriam aqueles que: re-
sidissem a mais de dez anos na Espanha, ocupando casa, sendo proprietário de terras
e casado com espanhola; residir nas Índias, mesmo sem licença, há mais de anos e
estar casado; filhos de estrangeiros naturalizados. Anos depois, o rei ainda permitiria
a permanência de residentes ilegais nas Índias através da composición, segundo a
qual por meio do pagamento de um valor estipulado se obteria a naturalização (KO-
NETEZKE, 1945:283 e 284).

Em virtude de tantas restrições, a fim de evitar que os comerciantes portugueses se estabeleces-


sem no Rio da Prata, Felipe II acabou por causar dificuldades de abastecimento e falta de mercadorias
manufaturadas nos portos do Novo Mundo. Como no Rio da Prata, os vecinos de Buenos Aires se
achavam em posição semelhante à dos mercadores portugueses, fazendo parte de uma mesma Coroa,
mas, não dos mesmos privilégios, por estarem submetidos ao Vice-Reino do Peru e aos monopolistas
de Lima, que através da Audiência de Charcas, arrecadavam a maior parte dos lucros que retornavam

177A referência do trabalho de Lucas Faria Junqueira “A Bahia e o Prata no primeiro reinado: comércio, re-
crutamento e guerra cisplatina (1822-1832)”, se faz pertinente a nosso trabalho, embora esteja numa tempo-
ralidade muito distante, devido à discussão desenvolvida pelo autor no seu primeiro capítulo sobre as relações
comerciais entre o Brasil e o Rio da Prata no período colonial utilizando como base os estudos de Alice Piffer
Canabrava, discussão que perpassa o nosso trabalho como um todo.
178STELLA, Roseli Santaella. O domínio espanhol no Brasil durante a Monarquia dos Felipes 1580-1640. São
Paulo: Unibero/CenaUn, 2000.

179KONETZKE, Richard. Legislación sobre inmigración de extranjeros durante la época colonial. Revista In-
ternacional de Sociologia, año 3, n. 11/12, p. 283-284, 1945.

1388
como resultado da venda de suas colheitas.

E sendo a Audiência de Charcasa jurisdição que cobria inicialmente uma área de 100 léguas
(1.796 km) do território espanhol, incluindo Santa Cruz e territórios pertencentes atualmente ao Pa-
raguai, qualquer rota de comércio que os vecinos tentassem estabelecer no Rio da Prata, acabava
por esbarrar nos embargos da jurisdição de Charcas, cabendo aos vecinos de Buenos Aires custear
os exorbitantes valores decorrentes das expensas do transporte e dos direitos alfandegários (CE-
BALLOS,2007:34)180.

Por isso, a saída para que o porto de Buenos Aires se mantivesse ativo e lucrativo, estava na
associação, principalmente mercantil, com os tão proibidos mercadores portugueses, que por meio
de casamentos com espanholas descendentes dos primeiros povoadores, ou através da inserção nas
ordenações religiosas do Rio da Prata, conseguiam permissão para viver e negociar em Buenos Aires.

Neste contexto, os vecinos, apoiados pelo Cabildo181, funcionários reais locais,e portugueses
residentes em Buenos Aires, suplicaram a abertura do porto por completo, incluindo a sua partici-
pação nas rotas comerciais com o Brasil Colônia, solicitação, que pode ser observada no compêndio
“Correspondência de la Ciudad de Buenos Aires com losreyes de España (1588-1615)”, publicado em
1915 por Levillier:

De mano de Vuestra real persona seamos gratificados y no de los tales juecestan mo-
lestados y sinningúnremedio y suplicar a VuestraMajestad nos hagamerced de dar-
mos licencias para que los frutos de nuestrascosechaslos podamos enviar a la costa de
Brasil y el retorno de ellosmeterlos em está ciudadlibremente para eldichoefecto com
locual nos podamos sustentar y acudir a Vuestro real servicio como somos obligados
(LEVILLIER, 1915:29-30)182.

180CEBALLOS, Rodrigo. Arribadas Portuguesas: a participação luso-brasileira na Constituição Social de Bue-


nos Aires (c. 1580-1650). 2007. 292p. Tese (Doutorado em História). Instituto de Ciências Humanas e Filosofia,
Universidade Federal Fluminense.

181 Cabildo era a Câmara de Buenos Aires, órgão responsável pela jurisdição local tendo os seus representan-
tes, relações diretas com os interesses comerciais do porto e para uma população que não atingiria ao longo do
século XVII mais do que 2.000 habitantes adquirir cargos e permissões reais significava pertencer a uma fonte
de poder que se estendia para além do porto, conseguindo honrarias na Audiência de Charcas e até mesmo
perante o Rei (CANABRAVA, 1984: 56).
182 Carta do Cabildo ao rei, informando o estado de pobreza da cidade de Trinidad, porto de Buenos Aires,
solicitando que o rei atendesse ao seu procurador especial, o arcebispo Martin Barco de Centenera. Fonte
pertencente a coleção “Correspondência de la Ciudad de Buenos Aires com losreyes de España (1588-1615)”,
publicadas por Roberto Levillier no ano de 1915.

1389
A citação revela a construção do processo de experiência183, articulado teoricamente por
Thompson, revelando, na reação dos vecinos de Buenos Aires em manifestar-se contra a cobrança de
impostos e a precariedade do comércio, uma ação coletiva. Desse modo, ao afirmarem que o livre co-
mércio com o Brasil garantirá não só o sustento no Rio da Prata, mas também, a possibilidade de “ser-
vir ao Rei”, estão conscientemente utilizando o pagamento de impostos, que antes de mais nada, era
uma obrigação, como meio de barganha para adquirir as permissões reais de comércio com o Brasil.

Para continuar renovando a mercê de livre comércio com o Brasil, os vecinos sabiamente ci-
taram a importância do pagamento dos impostos, e estes, aumentavam consideravelmente quando o
mestre do navio, tinha que passar por um julgamento para apresentar as suas permissões reais de na-
vegação. Por consequência, não é mera coincidência, que, dentre os trinta e oito navios tabulados até
o presente momento nessa pesquisa, entre os anos 1602 a 1688, todos, possuindo mercê real para na-
vegar, ou não, passaram por processo de julgamento no porto de Buenos Aires, tanto em sua chegada,
como na sua saída, e mesmo estando tudo conforme a Lei, os processos sempre eram alongados para
mais de 3 ou 4 dias184 como podemos observar no caso do navio San Pedro, apresentado na abertura
desse texto.

Foi alegando as facilidades de fazerem parte agora de um mesmo reino e de servirem melhor
a Coroa, principalmente com os impostos, que os vecinos de Buenos Aires, conseguiram a liberação
comercial do porto para comercializar com o Brasil. E foi através da Cédula Real de 20 de agosto de
1602185, que o rei obrigou a Audiência de Charcas a não mais enviar ao Rio da Prata juízes de comissão,
devendo o governador da própria província, que residia em Buenos Aires, ser o principal responsável
para emiti-las ou proibi-las, esta determinação real, apoderou os oficiais reais locais, e deu margem
para a formação de alianças que passaram a controlar a emissão de mercês para navegar e negociar,
tanto no Rio da Prata, como no Brasil de acordo com os interesses particulares dos mercadores da rede
mercantil em formação.

Essas permissões reais de comércio deveriam ser renovadas periodicamente, pois a primeira
emitida em 1602 por Filipe II, permitiu o comércio dos vecinosdo porto de Buenos Aires com o Bra-

183Neste contexto, o conceito de experiência serviu como modelo unificador das ações dos sujeitos estudados,
já que cada qual pertence a um fragmento social específico. Sendo assim, utilizando o conceito de experiência
histórica e cultural apresentado por Thompson em a “Miséria da Teoria (1981)” podemos perceber as ações
dos sujeitos de nosso estudo de maneira interligada, onde percebemos o processo de autotransformação por
eles vivido, e percebemos através de quais mecanismos de ação, um sujeito que outrora era visitante no porto
de Buenos Aires e proibido por ser português, passa a ser vecino e comerciante por causa das conexões e laços
sociais aos quais consegue participar, como é o caso de Antônio Fernandez Barrios, e mesmo sabendo ser ana-
crônico empregar o conceito de classe para o Período Colonial, o uso deste termo nos permite fugir de uma
interpretação meramente econômica e material.
184 Essa discussão será feita em detalhes no capítulo 3 desta Tese, e todos os dados citados referem-se ao com-
pêndio de documentos intitulados Registros de Navios, século XVII, do ArquivoGeral da Nação Argentina.
185 Cédula transcrita no Legajo 2: Navío Nuestra Señora de La Concepción (1619) pertencente ao Registro de
Navíos (siglo XVII) do ArquivoGeral da Nação Argentina, Códice: Sala 9, 45 5 3,quandoummestrede naviofoi
condenado a perder seu barco e suamercadoria porque trouxeumouvidor da Espanha para fiscalizar o porto
de Buenos Aires, irritando os administradores locais que se negaram a elaborar permissão de entrada para o
Mestre e nãoconsideraram a permissãoapresentada pelo ouvidor,confiscando o navio e as mercadorias, neste-
julgamentefoi anexada a cédula real de 1602, para justificar tal apreensão.

1390
sil e Guiné por apenas seis anos. Outra questão a ser observada, é que a permissão real era restritiva
quanto a quantidade e qualidade do que poderia ser comercializado, sendo permitido, inicialmente,
que em navios próprios (particulares) fossem comercializados com Brasil e Guiné, anualmente, até
2.000 fanegas de farinha186, 500 quintais de sesina187 e 50 arrobas de sebo para cada vecino, no entanto,
esses valores poderiam ser divididos em várias navegações e transações comerciais, até alcançarem o
valor anual estipulado, e como saldo das vendas, poderiam trazer produtos diversos para serem con-
sumidos unicamente em Buenos Aires (BARROS; CEBALLOS, 2010: 2)188.

Diante de uma permissãode comércio com o Brasil e Guiné, que permitia negociações, mas
negava o direito de embarque e desembarque de pessoas, e, permitia o comércio com a Guiné, mas
proibia o tráfico de escravos, além da exigência de que o negócio fosse efetuado em navios próprios.
Os vecinos acabaram por adquirir mais problemas do que soluções, e diante dessas restrições, a saída
para comercializar em Buenos Aires estava na associação com os donos e mestres dos navios soltos
que circulavam no Atlântico. Pois, na impossibilidade de comprar um navio, os vecinos fretavam e na
impossibilidade de viajarem para efetuar seus negócios, confiavam suas colheitas aos mestres dos ditos
navios soltos. E na impossibilidade de adquirir escravos, principalmente devido à falta de contatos na
Guiné, seria através do Brasil que esses escravos africanos chegariam ao Rio da Prata.

Logo, veremos que essa relação entre vecinos espanhóis, portugueses e luso-brasileiros, se es-
tendiam para muito além do interesse econômico, não foi por acaso, que muitos dos mercadores
portugueses ou mestres dos navios pesquisados, conseguiram mercê de vencidad no Rio da Prata,
tornando-se, como no caso de Antonio Fernandez Barrios, um mercador que possuía casa no Rio de
Janeiro, em Buenos Aires, era cavaleiro da Ordem de São Francisco no Rio da Prata e dono de asientos
negreiros, tudo conseguido devido a sua destreza mercantil e a forma como se fez necessário para o
bom andamento do abastecimento, fosse no Brasil ou em Buenos Aires.

O comércio com o Brasil, via o Atlântico Sul, passou a abastecer o Rio da Prata de manufaturas eu-
ropeias e escravos africanos, enquanto, por intermédio do porto de Buenos Aires,as Capitanias de São
Sebastião do Rio de Janeiro, São Salvador Bahia e Pernambuco eram abastecidas de farinha de trigo,
sebo e carne seca produzidas no Rio da Prata.Segundo Alice Piffer Canabrava (1984) a exportação de
produtos alimentícios de Buenos Aires para São Salvador Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco revelam
a dependência alimentar em que se encontravam as Capitanias do Brasil durante a União Ibérica, e
embora Alice Piffer Canabrava (1984) tenha demonstrado indícios da importância das relações co-
merciais entre o Brasil Colônia e o Rio da Prata no período da União Ibérica, esta temática, pouco tem
sido discutida pela historiografia brasileira até o presente momento.

Logo após a União Ibérica, a cidade de Salvador já estava consolidada como “(...) grande praça
186 Sacos de farinha de trigo (FLAVIAN; FERNANDES, 2005: 374).
187 Carne seca (FLAVIAN; FERNANDES, 2005: 76).
188 BARROS, Queila Guedes Feliciano; CEBALLOS, Rodrigo. As margens da ilegalidade: relações mercantis
e sociais entre as Capitanias do Norte e o Rio da Prata In: XIV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA:
HISTÓRIA, MEMÓRIA E COMEMORAÇÕES, 2010, João Pessoa. Anais... João Pessoa: UFPB, 2010. p. 2-15.
CD-ROM.

1391
mercantil, distribuidora de mercadorias, ponto de convergência e irradiação de rotas comerciais ter-
restres e marítimas, a cidade abrigava um dos portos mais movimentados do Atlântico Sul” (SOUSA,
2012: 8)189. Internamente o Recôncavo abastecia a cidade de Salvador em alimentos; em troca, a praça
comercial do porto fornecia as mais diversas mercadorias adquiridas do fluxo comercial de navios que
vinham dos mais variados portos.

E como afirma Mattoso:

A Cidade Baixa, que algumas décadas antes não passava de um depósito, transfor-
mara-se num ativo mercado, local de troca entre as mercadorias vindas da Europa ou
do Oriente e os produtos da terra, trazidos pelos agricultores da região: produtos de
subsistência – como farinha de mandioca, feijão de diversos tipos, milho – e também
de exportação, como pau-brasil, algodão e açúcar, no século XVI; açúcar, algodão,
fumo e pau-brasil, no século XVII e, no século XVIII, açúcar, fumo, algodão, madei-
ras diversas, couros, álcool de cana e ouro (MATTOSO, 1992: 71)190.

Logo os engenhos se tornaram grandes centros produtivos adquirindo também o papel de


centros populacionais mais povoados, aumentando a necessidade de abastecimento. Segundo Charles
Boxer, Pernambuco e Bahia, mesmo após a fundação do Rio de Janeiro, continuaram a ser os centros
produtivos e populacionais mais importantes “(...) em 1585 havia três engenhos de açúcar e cento e
cinquenta chefes de famílias portuguesas no Rio de Janeiro, enquanto Olinda e o seu distrito contavam
com sessenta e seis engenhos e 2000 famílias portuguesas” (BOXER, 1969: 115)191. Mesmo sendo o
solo bastante rico para as plantações de gêneros alimentícios principalmente nas regiões açucareiras
do Recôncavo da Baía e da Várzea de Pernambuco, eram, de maneira geral, muito pobres em elementos
químicos orgânicos. Essa falta de recursos para a produção de gêneros de subsistência “(...) contribuiu
para que o abastecimento dos núcleos de povoamento mais densos, onde a insuficiência alimentar se
tornou quase sempre a regra” se tornasse ainda mais problemático(PRADO JUNIOR, 2008: 161)192.

Dificuldades de abastecimento que se tornavam maiores nos momentos de alta dos preços
dos produtos da grande lavoura que segundo Caio Prado Junior (2008: 161) contribuíam para que as
atenções se voltassem inteiramente para elas, relegando as culturas alimentares ao abandono em favor
do maior lucro das monoculturas. Fenômenos de crise de abastecimento que se somaram no período
da União Ibérica, a guerra hispano-holandesa, contribuindo para o aumento do preço do açúcar, que
a esta altura começava a faltar nos mercados europeus, por consequência, as invasões holandesas, de-
189SOUSA, Avanete Pereira. A Bahia no século XVIII: Poder político local e atividades econômicas. São Paulo:
Alameda, 2012.
190MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Bahia, século XIX uma província no Império. 2º ed.Rio de Janeiro: Nova
Fronteira S. A. 1992.

191BOXER, Charles. O império colonial português (1414-1825). Tradução Inês Silva Duarte. Lisboa: Edições
70, Ltda. 1969.
192PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 23° ed. São Paulo: Brasiliense, 2008.

1392
sencadearam uma série de batalhas em defesa dos portos de São Salvador e Pernambuco, dobrando a
necessidade de alimentos para abastecer as tropas de resistência.

A prosperidade na qual se encontrava a cidade de Salvador nos primeiros anos da União Di-
nástica, logo foi completamente abalada pelas invasões holandesas, “(...) a cidade na ocasião estava
bem habitada e após as invasões ficou entregue a um diminuto número de negros, toda a gente acam-
pava pelos arredores atemorizada, passando por privações e incômodos” (AZEVEDO, 2009: 131)193.

Azevedo acrescentou ainda que:

A Bahia ficou reduzida à extrema miséria. Da metade do casario que restava, a tropa
de ocupação arrancou até as fechaduras das portas. A escravaria fugira, os canaviais
haviam sido incendiados, os engenhos depredados. Pobres e ricos padeciam as peo-
res misérias (AZEVEDO, 2009: 132).

A necessidade de abastecimento emSalvador resultava ainda de uma complexidade de fatores


que iam além das invasões holandesas, a exemplo, o fato de o porto funcionar como ponto de escala
para os navios que efetuavam as rotas referentes às possessões ultramarinas portuguesas e o interesse
dos navios que navegavam no Oceano Atlântico atraídos pela riqueza dos negócios do açúcar e escra-
vos africanos. Por conseguinte, Salvador abastecia também, os navios que aportavam isoladamente
em seu porto alegando avarias causadas pelos temporais e ataques de piratas “(...) Além das frotas que
visitavam anualmente a costa chegando e partindo comboiadas por navios armados, aumentando os
motivos da escassez de alimentos” (LAPA, 2000: 252)194.

Com efeito, toda essa procura a Salvador agravou ainda mais a questão do abastecimento.

Pode se fazer ideia da extraordinária porção de matalotagem necessária a uma frota


que não sei como esta cidade pode sustentar toda esta gente, além do grande povo
que a habita. Essa razão porque há dez anos a Câmara vinha pedindo ao rei que, em
vista de estar o povo extenuado e não poderem os lavradores cumprir a ordem dos
governadores e capitães generais de fazer o fornecimento de farinha aos navios, ao
menos as náus da carreira de Portugal viessem já suficientemente abastecidas; a ci-
dade supriria as da África e as que, de passagem da Índia, vinham fazer aguada, não
falando nos navios estrangeiros, especialmente ingleses, que apareciam de quando
em vez no porto alegando necessidade de reabastecimento (AZEVEDO, 2009: 253).

193AZEVEDO, Thales de. Povoamento da cidade do Salvador. Salvador: Fundação Pedro Calmon, 2009.

194LAPA, José Roberto do Amaral. A Bahia e a Carreira da Índia. São Paulo: Hucitec, Unicamp, 2000.

1393
Para sanar a situação de degradação e necessidade de abastecimento no qual São Salvador
Bahia se encontrava, os comerciantes e administradores reais recorreram ao comércio com o Rio da
Prata, que através do Porto de Buenos Aires, forneciam frequentemente à Salvador navios carregados
com farinha de trigo, sebo e carne seca, além de ser a viagem entre ambos os portos razoavelmente
curta, próximo a 21 dias, como foi representado no mapa das rotas de abastecimento mercantil. Muito
embora, os contatos comerciais entre o porto de São Salvador Bahia e Buenos Aires já se fizessem fre-
quentes muito antes da invasão holandesa, pois como afirma Canabrava (1984, p. 90) eram “(...) ativos,
desde a primeira visita a costa do Brasil efetuada pelo Bispo de Tucumán”.

Emborao comércio entre o porto de Buenos Aires e o Brasil Colônia durante a União Dinástica
tenha se desenvolvido principalmente entre os portos do Rio de Janeiro, Pernambuco e São Salvador
Bahia, foi, sem dúvida, o comércio entre São Salvador Bahia e o porto de Buenos Aires o que atingiu
maiores proporções, em virtude, de carências que se completavam, estando São Salvador Bahia ligado
ao Rio da Prata desde a consolidação da conquista espanhola na região meridional da América do Sul.
Para representar a amplitude da relação mercantil entre Buenos Aires e Salvador elaboramos o quadro
abaixo com os dados coletados até o presente momento.

QUADRO 1: Número de navios que arribaram no porto de Buenos Aires indo ou voltando do Brasil colônia
durante os anos de 1608 a 1633

NAVIOS ANO DE ENTRA- MESTRE LOCAL DE MERCADORIAS QUE


DA EM BUENOS ONDE VEIO TROUXE
AIRES
Navio San Pedro 1608 Francisco Dias São Sebastião do Mercadorias Diversas
Rio de Janeiro
Navio San Antônio 1608 Antônio Gon- São Salvador Bahia Mercadorias Diversas
çales
Caravela Nuestra 1610 Manuel Fortes São Salvador Bahia Mercadorias Diversas
Señora de La Ayuda
Caravela San Fran- 1611 Gaspar de Ponte São Salvador Bahia Mercadorias Diversas
cisco
Nuestra Señora de 1611 Juan Mendes São Salvador Bahia Mercadorias Diversas
Nazaren
Navio San Antônio 1612 Pedrianes São Salvador Bahia Mercadorias Diversas
Pabón
Navio San Antônio 1612 Juan Martins São Salvador Bahia Mercadorias Diversas
Navio Nuestra Seño- 1612 Juan Mendes São Salvador Bahia Mercadorias Diversas
ra de Nazaren
Nuestra Señora da 1614 Gonzalo Rodri- Se dirigia Para São 148 peças de escravos
Gracia gues Sebastião do Rio de São Paulo de Luanda
de Janeiro Arri-
bando forçada-
mente em Buenos
Aires

1394
Navio La Concep- 1615 Julian Mixel Ia para Guiné, mas 148 peças de escravos
ción saindo de São Sal- de São Paulo de Luanda
vador Bahia apor-
tou forçosamente
em Buenos Aires
Caravela San Fran- 1615 Matheus Pa- São Salvador Bahia Frutos da Terra
cisco lhano
Caravela San Fran- 1615 Matheus Pa- São Salvador Bahia Mercadorias Diversas
cisco lhano
Navio San Antônio 1617 Agustin Perez Rio de Janeiro Mercadorias Diversas
Navio San Antônio 1618 Sebastian Do- São Salvador Bahia Frutos da Terra
minguez
Navio San Antônio 1618 João de Leão São Salvador Bahia Mercadorias Diversas
Navio San João Bau- 1619 Raphael Maldo- São Salvador Bahia Mercadorias Diversas
tista nado
Navio San João Bau- 1619 Raphael Maldo- São Salvador Bahia Frutos da Terra
tista nado
Navio San João Bau- 1619 Raphael Maldo- São Salvador Bahia Mercadorias Diversas
tista nado
Navio San João Bau- 1619 Raphael Maldo- São Salvador Bahia Frutos da Terra
tista nado
Nuestra Señora de 1623 Manuel Fernan- Vila de Pernam- 65 Peças de Escravos
La Ayuda des buco
Navio La Bendicion 1623 Francisco Gon- São Salvador Bahia 1000 couros vacuns
de Dios çales
Barca San Francisco 1627 Manuel Gon- Ia de São Salvador Sal e Açúcar
zales Bahia para o porto
de São Vicente
Pernambuco arri-
bou forçosamente
em Buenos Aires
Nuestra Señora de 1629 Bartolomeu São Salvador Bahia Manufaturas Diversas
La Concepción Fernandes
Patache San Fran- 1633 Pedro Antunes Ia de Angola para 150 couros vacuns e 40
cisco Rio de Janeiro arrobas de sebo
arribou forçosa-
mente em Buenos
Aires
Fonte: Archivo General de la Nacíon (Argentina). Registros de Navíos (siglo XVII) (códice 9, 45 5 2) Legajo 1, 2, 3.

Preferência comercial que se traduz na análise da tabela acima, na qual visualizamos que den-
tre os 24 navios que arribaram no porto de Buenos Aires, com destino ao Brasil colônia, durante os
anos de 1608 a 1633, 17 estiveram destinados ao porto de São Salvador Bahia195. Interesse ressaltado
após o principal fiador do comércio entre Buenos Aires e o Brasil colônia, Antonio Fernandez Bar-
rios196, doar a seu irmão Francisco Barrios (português, mercador e residente na cidade de Salvador)
os direitos das letras de câmbio as quais era fiador no Rio da Prata. Observamos então, que após o
ano de 1617 o papel de fiador dos navios soltos que transportavam mercadorias de Salvador para

195Archivo General de la Nacíon (Argentina). Registros de Navíos (siglo XVII) (códice 9, 45 5 2) Legajo 1, 2, 3.
196 Português que conseguiu o título de vencidad no porto de Buenos Aires, se transferindo com a sua família
do Rio de Janeiro para o Rio da Prata.

1395
Buenos Aires ficou a cargo de Francisco Barrios, transferindo automaticamente o eixo das relações
comerciais entre Buenos Aires e o Brasil colônia do Rio de Janeiro para São Salvador Bahia (BARROS,
CEBALLOS, 2010: 9).

Os entraves geográficos não eram as únicas barreiras a serem vencidas para a efetuação do
comércio entre o porto de Buenos Aires e o Brasil colônia. Embora o plantio da cana e a fabricação do
açúcar fossem, sem dúvida, a forma mais fácil de adquirir riqueza e poder no período colonial, prin-
cipalmente nos séculos XVI e XVII, para que essa atividade sobrevivesse e prosperasseoutras eram
necessárias, dentre elas, destacamos o comércio.

A circulação dos produtos adquiridos em ultramar, nas cidades ou no campo, era indispen-
sável para a manutenção da vida nas sociedades coloniais, iluminando a figura do comerciante, que
dividiu, lado a lado, o desenvolvimento colonial com os senhores de engenho, pois, conforme Sousa:

Os grandes comerciantes se incumbiam do embarque do açúcar para a Europa e da


venda e distribuição dessa mercadoria lá. Além disso, comercializavam os produtos
vindos de Portugal, e como muitos deles eram proprietários de embarcações (navios,
saveiros, etc.) dedicavam-se ainda ao frete de mercadorias, inclusive ao tráfico de
escravos da África para o Brasil (SOUSA, 1995: 19)197.

Para que o comércio Inter colonial fosse possível, era crucial a ligação entre o grande e o pe-
queno comerciante. Pois, era o pequeno comerciante, conhecido como “mercador”, o responsável por
vender as diversas mercadorias na Colônia. A relação entre o grande comerciante e o mercador, se
dava através do mestre de navio, quando não eram os próprios mestres, mercadores também. Desta
forma, os mestres de navio menos afortunados, necessitavam ainda de outro agente comercial, “o
fiador”, que arcava com as despesas da navegação (abastecimento e pagamento da tripulação), consti-
tuindo-se como comerciante intermediário(SOUSA, 2012).

Foi comum no comércio entre o Brasil colônia e Buenos Aires a prática mercantil submetida a
fiadores, efetuada, principalmente através das letras de câmbio, onde destacamos, no início do século
XVII a trajetória do mercador Antonio Fernandez Barrios, apresentado no texto de abertura da intro-
dução deste trabalho. Antonio Fernandez Barrios era um português, casado com Antônia de Narvaez
(portuguesa em segundas núpcias)198 e chegou a Buenos Aires por volta do ano 1593 junto de Diego
da Vega, proprietário do navio em que vieram. Logo, adquiriu um solar próximo ao convento de Santo
Domingo - hospital “Del Rey” que foi transferido do centro para as imediações do Riachuelo por ser
de onde chegavam a maioria dos doentes. Antes de ir para Buenos Aires Antonio Fernandez Barrios,
já havia residido em Lima, mas foi em Buenos Aires, por intermédio do vice-rei Dom Luis de Velas-
co,que conseguiu o ofício de Alguacil Mayor de la Hacienda real de Buenos Aires, ficando no cargo
197SOUSA, Avanete Pereira. Salvador, capital da colônia. São Paulo: Atual, 1995. – (A vida no tempo)

198 Ver árvore genealógica da família Barrios nos anexos desse trabalho.

1396
até meados de 1607, quando prevendo que estava perto de perder o cargo por causa da mudança de
governador, obteve em 1604, o título de regidor do Cabildo e logo após, foi escolhido para Alcalde de
La Santa Hermand199.

Provavelmente viveu em Pernambuco onde nasceram duas de suas filhas, três delas casaram-se
com portugueses no Porto de Buenos Aires, sendo eles:Salvador Sequeira que se estabeleceu no Rio de
Janeiro após o casamento, Manuel Mendez Pallero - vecino em Buenos Aires e Salvador Peixoto, que já
havia tido a vencidad negada, mas após o casamento e o pedido de mercê feito pelo seu sogro, obteve
o título, porém, após a aprovação de sua vencidad, mudou-se para a cidade de Salvador no Brasil200.

A neta de Antonio Fernandez Barrios, Lorenza de Barrios, manteve laços de parentesco com
antigos vecinos da cidade ao casar-se, em segundas núpcias, com Matheo de Avalos Mendoza, neto de
Juan Ruiz Ocaña (fundador e “primer poblador” da cidade junto a Juan de Garay) e bisneto de Juan
Ruiz (conquistador do Rio da Prata que acompanhou a expedição de Dom Pedro de Mendoza (CE-
BALLOS, 2007).

Por volta de 1605, Antonio Fernandez Barrios comprou uma permissão emitida pelo vice-rei
do Peru ao irmão do vecino Vaquez de Sosa, para comercializar escravos provenientes do Brasil. Mas,
nesse período, Antonio Fernandez Barrios já havia começado suas conexões mercantis com o Brasil,
estabelecendo uma rede de abastecimento luso-hispânica por intermédio de seus genros.

Essas informações nos trazem um quadro inusitado, pois, o governador de Buenos Aires, Her-
nandarias de Saavedra era conhecido em todo o Rio da Prata como ávido cumpridor das leis reais,
mantendo posição totalmente contrária a inserção de portugueses em Buenos Aires, mesmo que fosse
para o comércio que segundo Molina:

Hernandarias procedia de imediato al cumplimento de lasórdenes reales y expulsaba


a losextranjeros entrados sin licencia, expulsión que lleva a cabo el 15 de septiembre
de 1603, decretada em masa. Al mismo tempo se pregonaban, bandos castigando a
los encobridores com destierro em Arauco o Azotes. Es indudable que Hernandarias
y Fríasinterpretaban com toda exactitudlosdeseos de la metrópole, como lodemues-
tranlas sendas cartas de agradecimento que lesenvióelrey. Sonconocidoslos propó-
sitos que tuvo Hernandarias de expulsar nuevamente a los portugueses em elaño de
1605, desde entoncesesafué su lucha, la granpreocupación de su terceira y cuarta-
gobernación (MOLINA, 1948: 160-161).

Desde 1590 o rei Felipe II havia iniciado uma rígida política de proibição de estrangeiros nas
Índias, incluindo na condição de estrangeiro os portugueses. Rodrigo Ceballos (2007) ressaltou que
embora as proibições fossem severas a inserção no porto de Buenos Aires dependia principalmente
das relações que os comerciantes portugueses estabeleciam com os vecinos e funcionários reais do Rio

199 Fonte: Archivo General de la Nación, Registros de Navios.


200 Idem.

1397
da Prata, “adquirindo as permissões de permanência de acordo com o meio social no qual se relacio-
navam”, complementando que:

(...) os vecinos da cidade defenderam a permanência de portugueses alegando sua


importância para a execução de tarefas manuais (carpinteiros, alfaiates, sapateiros,
marinheiros). Outros, por sua vez, eram poderosos comerciantes que se casaram
com filhas dos primeiros conquistadores. Ainda houve aqueles que nem sequer se
casaram ou eram artesãos, mas vivendo de sua “própria inteligência” aliaram-se a
membros do Cabildo, comerciantes e a importantes vecinos apoiando os interesses
locais. Estas redes envolviam também os funcionários régios, principais fiscais no
porto, que negociavam e permitiam a entrada de ilegais. Ser residente na região signi-
ficava obrigatoriamente sua inserção às redes de interesses locais, caso contrário sua
frágil situação poderia levá-lo à deportação (CEBALLOS, 2007: 46).

O que explica o consentimento de entrada e permanência através do título de vencidad a An-


tonio Fernandez Barrios, adquirida no governo mais repressivo a estrangeiros que o porto de Buenos
Aires conheceu, foi justamente o meio no qual estrategicamente o mercador se inseriu. A única ins-
tancia de poder a qual o governador Hernandarias não intervinha, eram as ordens religiosas, princi-
pais frentes de oposição no primeiro decênio do século XVII aos mandatos de perseguição e expulsão
dos portugueses no Rio da Prata, oposição, que foi encabeçada pelo bispo Loyola, capaz de conter
no ano de 1605 os planos do governador Hernandarias de expulsar massivamente os portugueses do
porto de Buenos Aires. Relações de poder que se evidenciam no depoimento de Antonio Fernandez
Barrios, que após ter declarado fazer parte da ordem de São Francisco obteve permissão de entrada,
culminando com título de vencidad (MOLINA, 1948: 161).

Após o título de vencidad, Antonio Fernandez Barrios se estabeleceu como o principal fiador
dos mestres de navio que efetuaram o transporte das mercadorias entre Buenos Aires, Rio de Janeiro
e São Salvador Bahia e Pernambuco durante o período de 1607 a 1617. Utilizando a letra de câmbio
para o controle do mesmo.

O uso da letra de câmbio ou letra de crédito era muito difundido. Era um meio de pa-
gamento cômodo, por poder ser transferido à ordem ou endossado, o que o tornava
negociável, e pela garantia quase plena de quitação no vencimento. A letra de câmbio
podia ser à vista ou estipular prazos, de até vários meses. No vencimento, todos os
signatários (sacador, endossante, sacado) eram solidariamente responsáveis em face
do portador do título (MATTOSO, 1992: 509).

O uso da letra de câmbio nas transações comerciais entre o Rio da Prata e o Brasil colônia enfa-
tiza a importância comercial do mestre de navio e seu fiador. Uma vez que o pagamento das compras e
vendas efetuadas entre ambos os portos não eram realizadas de imediato, sendo pagas após prazos es-

1398
tabelecidos pelo fiador. No caso das transações comerciais que tiveram por fiador Antonio Fernandez
Barrios, o prazo para a quitação da dívida variava entre dois a vinte meses, efetuada diretamente para
o mestre do navio, responsável em receber o valor das vendas após os prazos e registrar o pagamento
das mesmas em cartório. Favorecendo a criação de laços entre mestre de navio e fiador para além dos
próprios limites das redes mercantis. (...) “Tratando-se de uma estrutura social onde a própria iden-
tidade individual ainda se encontrava fortemente vinculada às relações familiares e às redes sociais às
quais estavam associados” (FRAGOSO, ALMEIDA, SANPAIO, 2007: 408)201.

QUADRO 2: Transações comerciais entre o porto de Buenos Aires e o Brasil colonial que tiveram como fiador
Antonio Fernandes Barrios (1607/1617)

ANO NAVIO ROTA MERCADORIAS TOTAL MESTRE COMPRADOR


ENVIADAS AO DO NAVIO NO BRASIL CO-
BRASIL POR: LÔNIA
1607 Caravela Buenos Antônio Peixoto 40 Fa- Gaspar Antônio Fernan-
Nossa Se- Aires à Rio (Vecino de Buenos negas de Balero des Barrios
nhora da Aires) Farinha
Boa Viagem de Janeiro (Mercador do Rio
11Quin- de Janeiro)
tais de
Sesina

11 Ar-
robas de
Sebo
1608 Navio Santo Buenos Julião Pabón (Vecino 26 Fa- Pedrianes Manoel Caldeira
Antônio Aires de Buenos Aires) negas de Pabón (Mercador do Rio
Farinha de Janeiro)
á Rio de
Janeiro 06 Ar-
robas de
Sebo

06 Quin-
tais de
Sesina
1608 Navio Santo Buenos Antônio Fernandes 40 Fa- Pedrianes Manoel Caldeira
Antônio Aires Barrios (Mercador negas de Pabón (Mercador do Rio
do Rio de Janeiro) Farinha de Janeiro)
á Rio de
Janeiro 11 Ar-
robas de
Sebo

11 Quin-
tais de
Sesina

201FRAGOSO, João Luis Ribeiro, v, ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de, SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de
(Orgs). Conquistadores e Negociantes: história de elites no Antigo Regime nos trópicos. América Lusa, séculos
XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

1399
1608 Navio Santo Buenos Antônio de Sousa 40 Fa- Pedrianes Antônio Caldeira
Antônio Aires (Alguacil da Gover- negas de Pabón
nança de Buenos Farinha (Mercador do Rio
á Rio de Aires em 1608) de Janeiro)
Janeiro 10 Ar-
robas de
Sebo

10 Quin-
tais de
Sesina
1608 Navio Santo Buenos Convento São Fran- 26 Fa- João de Pascoal Tavares
Antônio Aires cisco de Buenos negas de Leão (Mercador repre-
Aires Farinha sentante do con-
á São vento São Fran-
06 Quin- cisco da Bahia)
Salvador tais de
Bahia Sesina
1615 Caravela Buenos Bartolomeu Lopes 17 Fa- Matheus Manoel Francisco
São Fran- Aires (Vecinos de Buenos negas de Palhano Flores (mercador
cisco Aires) farinha da cidade de
á São
Salvador 07 Ar- (Salvador)
Bahia robas de
Sebo

07 Quin-
tais de
Sesina
1615 Caravela Buenos Antônio Gutierres 16 Fa- Matheus Sebastião Rocha-
São Fran- Aires Barragán negas de Palhano pita (mercador da
cisco Farinhas cidade de Salva-
á São Salva- (Vecino de Buenos dor)
dor Bahia Aires) 05 Quin-
tais de
Sesina

05 Ar-
robas de
Sebo
1617 Navio Santo Buenos Diogo de Trigueros 118 Fa- Agustín João de Abreu
Antônio Aires negas de Perez
(Vecino de Buenos Farinha (Mercador do Rio
á Rio de Aires) de Janeiro)
Janeiro
Fonte: Archivo General de la Nacíon (Argentina). Registros de Navíos (siglo XVII) (códice 9, 45 5 2) Legajo 1, 2, 3.

Noquadro acima podemos visualizar as transações comerciais entre Buenos Aires e o Brasil
colônia que tiveram por fiador Antonio Fernandez Barrios, tendo sido todas elas realizadas através
do pagamento por letra de câmbio. Podemos perceber que no ano de 1607 houve o primeiro contato
comercial entre o Brasil colônia e Buenos Aires, no qual Antonio Fernandez Barrios fora fiador e
responsável pela compra das mercadorias enviadas ao Brasil pelo vecino de Buenos Aires Antonio
Peixoto. No ano de 1608, mesmo antes de adquirir o título de vencidad (concedido apenas no ano de
1609), Fernandez Barrios conseguiu ficar no porto de Buenos Aires e enviar em seu nome, mercado-
rias para membros da família Caldeira no Rio de Janeiro. Esta ação comercial foi possível, devido a

1400
sua associação com o mestre Pedrianes Pabón, que conseguiu com seu parente Julião Pabón (vecino
de Buenos Aires) permissão para que seu fiador adquirisse vencidad.

A família tem suas origens no século XVI e, desde então, seus membros construíram
progressivamente uma vasta estrutura de poder especialmente no âmbito local, espa-
lhando-se por toda região Norte do país, constituindo engenhos e redes comerciais
e ocupando importantes cargos jurídicos, militares, eclesiásticos e político-adminis-
trativos. Fundamental ao entendimento desse processo, portanto, torna-se a identi-
ficação das redes de sociabilidade e parentesco que envolvia esses personagens, no
sentido de compreender essa elite dirigente não como a representação de um grupo
isolado, a partir de suas características internas de formação e composição, mas, con-
siderando ainda suas relações dinâmicas e constantes com a sociedade, através das
estratégias de alianças e jogos de interesses que se constroem e se refazem permanen-
temente ao seu redor (FRAGOSO, ALMEIDA, SAMPAIO, 2007: 408).

CONCLUSÃO

A entrada e a fixação de mercadores portugueses no porto de Buenos Aires mudaram radical-


mente a estrutura e organização social da sociedade no Rio da Prata. Os mercadores que adquiriram o
título de vencidad acabaram por trazer a Buenos Aires os primeiros indícios de fortuna particular e, ao
mesmo tempo, as primeiras manifestações de conforto e padrões de vida mais aproximados aos mol-
des europeus. Segundo a historiografia o porto de Buenos Aires desempenhou no século XVII, o mes-
mo papel que vinha desempenhando no século XVI, porto do Atlântico, base para as comunicações
entre as regiões do interior e os mercados abastecedores do exterior. Como porto de Tucumán e de
Potosí, a cidade de Trinidad, porto de Buenos Aires, havia conservado a função de cidade de trânsito,
de ponto de desembarque e de passagem para as mercadorias destinadas ao interior do Rio da Prata.

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1402
1403
1404
SIMPÓSIO TEMÁTICO 18
A Fazenda, os Contratos e os Contradores na América Portuguesa séculos XVII e XVIII

Coordenadores:

Luiz Antônio Silva Araújo

Rafael Chambouleyron

A FORMAÇÃO DA FAZENDA SÃO FRANCISCO: DO GENOCÍDIO AS PRIMEIRAS CASAS.


Donizete Emanoel de Couto Rodrigues1

1- PARA INICIO DE CONVERSA

Quem conhece - como diz o hino - a “pequenina Olivedos”logo se apaixona, cidade organi-
zada, de povo simpático e acolhedor que traz no olhar um misto de sofrimento e alegria, cidade de um
potencial enorme e de uma gente capaz.

No entanto, essa cidade de tantas qualidade carece de um estudo detalhado sobre sua história
tendo em vista que não existe sequer um livreto que conte algo de forma minudenciadada mesma.

As únicas anotações que trazem a história de Olivedos, não se sabe quem fez e dizem que
essas terras foram requeridas em 1722 quando Teodósio de Oliveira Ledo demarcou esse lugar para si,
deixando em suspenso a quem essas terras pertenciam antes de serem do sertanista e se de fato chega-
ram a pertencer a essa figura tão emblemática da colonização sertaneja paraibana.

Teriam essas terras tido colonizadores antes de Teodósio chegar? Esse sertanista teria mora-
do aqui mesmo? Seria o nome da cidade (nome que homenageia Teodósio) um equívoco? Há outros
personagens nessa história?

É com esse intuito que este trabalho se desenvolve, buscando respostas para uma história
incompleta, uma história que não satisfaz a ânsia desse povo. Para isso vamos trabalhar com obras de
grandes autores como Elpidio de Almeida, Wilson Seixas e Irineu Joffily da mesma forma que Valdeci
dos Santos Junior, Antônio Pereira de Almeida, Roberto Ribeiro, Henriques de Castro e tantos outros
contribuíram para esse minucioso trabalho.

Foi a base de muita leitura e com a contribuição de grandes obras, que foram devidamente
referenciadas, além da oralidade deste povo, que buscamos fontes e orientações sobre a antiga fazenda
São Francisco, hoje cidade de Olivedos, dando-lhe a concretude que ela merece.

2- INTRODUÇÃO

1 Graduando em História pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).

1405
Atualmente, segundo estimativa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística),
Olivedos conta com uma população de 3.916 habitantes, está localizada na mesorregião do agreste
paraibano e na microrregião do curimataú ocidental, limitando-se ao norte com o município de Barra
de Santa Rosa, a leste com Pocinhos a Oeste com Cubatí e com Seridó e ao sul com o município de
Soledade.

Olivedos, assim como boa parte das cidades do interior da Paraíba tem sua formação graças
a pecuária que se desenvolveu nesses lugares a tempos atrás, vale a ressalva de que comprovamos isso
ainda hoje nas comunidades rurais remanescentes que vivem da criação animal, contudo esse proces-
so de expansão da cultura da criação não foi tranquila, ao contrário, foi complexa e essa fervura de
acontecimentos será descrita nas próximas linhas.

O gado ia a frente, o boiadeiro atrás e as consequências eram sem volta, essa era a ocupação
dos sertões, nesse momento é importante ressaltar que sertões no período colonial compreendiam
toda e qualquer terra que não fizesse parte do litoral, esse ambiente (o litoral) estaria ocupado com os
engenhos de cana-de-açúcar, dificultando assim a criação animal, sob força de lei viu-se a necessidade
de expansão da pecuária para terras ainda inexploráveis, que nesse momento seria os sertões e dentro
dessa perspectiva compreendiam onde presentemente estão cidade do brejo passando pelo agreste e
chegando aos limites mais afins do estado.

Segundo Junior (2008), dentro dessa definição de sertões eles estariam divididos em dois
tipos, sertões de fora que compreendiam as capitanias, hoje estados, do Pernambuco, Paraíba, Rio
Grande e Ceará e sertões de dentro que partiam do rio São Francisco rumo ao interior Baiano , Olive-
dos faria parte dos sertões de fora por ser parte da capitania da Paraíba, mais tarde, com uma divisão
mais apurada dos lugares, Olivedos faria parte do Cariri de Fora, sabendo e comprovando isso por um
achado, uma telha encontrada em uma de suas casas mais antigas, casa essa que é atribuída a Teodosio,
nessa telha havia os seguintes dizeres “julgado do cariry de fora”, comprovando assim a localização
geográfica da fazenda São Francisco na época da chegada dos primeiros colonizadores.

3- PECUARIA VS NATIVOS

A criação animal aumentou consideravelmente depois da saída dos holandeses de onde hoje
é oNordeste em 1654, o litoral que era o lugar de criação de gado até então, torna-se exclusivo para
plantação de cana-de-açúcar e agricultura de subsistência para os colonos, nessas condições o atual-
brejo, agreste e o sertão se tornaram os novos pastos dos bodes, bois, cavalos, jumentos e ovelhas.

Como os holandeses tinham conseguido adentrar os sertões do nordeste os portugueses vi-


ram que era possível usar aqueles sertões até então intocáveis por eles para algo e cogitaram de ime-
diato que era propicio a criação de animais nestes ambientes, sendo assim, desenvolver a pecuária se
tornou algo propício.

Entretanto a pecuária em expansão encontraria seu algoz temporário nos verdadeiros donos
da terra, os índios, Tapuias que com muita bravura resistiram o quanto puderam a invasão portugue-
sa, todavia o sofrimento foi companheiro inseparável dos índios nesse período.

1406
Diante do contato com o colonizador europeu o índio sofria as piores punições possíveis,
desde a catequização por missionários após o aldeamento, passando pela escravidão em todos os tra-
balhos possíveis e chegando ao genocídio especialmente aos homens, mas alcançando a todos com um
nível de crueldade assustador:
“Teodósio de Oliveira Ledo escreve em 1698 ao Capitão-Mor da Paraíba Manoel Soa-
res de Albergaria sobre uma luta travada contra os tapuias da ribeira das Piranhas
onde relata que: ―terminada a luta e alcançada a vitória, achavam-se da parte do ini-
migo trinta e dois mortos e setenta e duas presas e muita quantidade de feridos que
mandei matar por serem incapazes ao rei” (JUNIOR, 2008, p. 96)

A situação para os Tapuias ficou complicada depois da saída dos holandeses do nordeste, os
Tapuias fizeram alianças com os flamengos e conviviam em certa harmonia, em contrário a isso os Ta-
puias abominavam os portugueses e quando o nordeste voltou a posse portuguesa os ânimos estavam
bem exaltados e o sangue prestes a escorrer.

Junte a isso o fato do sertanista não respeitar o espaço do índio, ocupando os lugares mais
férteis para a criação e expulsando os índios para os ambientes mais inóspitos. Os ânimos se exalta-
vam cada vez mais, a situação estava crítica, faltava ao índio também a noção de propriedade privada,
sendo assim os bois soltos aos pastos, para os índios, não tinham donos, como bom caçador o índio
abatia esses animais, provocando dessa forma a ira do fazendeiro colono.

A conjuntura era tensa, os índios queriam o direito de uso de seus espaços, onde desde de
incontáveis tempos seus ancestrais viveram, o português, ganancioso, queria aproveitar o máximo
possível das ricas terras paraibanas, o resultado disso foi um conflito entre nativos e invasores que
ficou conhecida como “guerra dos bárbaros”. De um lado o índio tapuia querendo defender sua terra,
seu espaço vital e de outro o português querendo a expansão de uma pecuária avassaladora, as conse-
quências da guerra foram drásticas e a crueldade sem limites:
Estavam quase sem armas e mortos de fome. Renderam-se todos, sob a condição de
que lhes poupassem a vida. Mas os portugueses, obrigando-os a entregar as armas,
os amarraram e dois dias depois mataram, a sangue frio, todos os homens de arma,
em número de quase quinhentos, e fizeram escravos seus filhos e mulheres.(JUNIOR,
2008, p. 90)

Na verdade esse movimento de revolta dos nativos começou durante a primeira metade da
década de 1680, as tribos não planejaram se revoltarem ao mesmo tempo, foi algo casual que aconte-
ceu por conta do movimento português de invasão, o fato é que diversas tribos, algumas aliadas outras
não, se revoltaram quase que ao mesmo tempo contra os invasores. A medida que o colono adentrava
cada vez mais no interior novas tribos se rebelavam na intenção de proteger o seu espaço de vivencia.

O índio começou essa guerra armado de arco e flecha, e outras armas de fabricação manual
como machados, porretes, com o tempo foi recebendo auxilio francês e holandês, chegaram a possuir
espingardas e um certo poder de fogo, contudo o dos portugueses era maior e eles exterminaram di-
versas tribos, matando milhares de índios e tomando a força as terras dos nativos.

Durante o período da chamada “guerra dos bárbaros” os céus destas terras eram negros de

1407
urubus que nesse tempo muito bem se alimentaram, vez ou outra acontecia uma chacina e o número
de mortos sempre foi alto, as batalhas travadas entre índios e portugueses traziam uma mortandade
assustadora.

Nesse cenário de invasão e povoamento dos sertões paraibanos devemos chamar atenção
para a dualidade que era o posicionamento dos religiosos, em determinados episódios foram os re-
presentantes da igreja que evitaram massacres e escravidão do nativo da terra, entretanto em outras
situações foram eles que ajudaram a subjugar o indígena, padres como os jesuítas aldeavam índios
para educa-los na fé católica e muitas vezes esses padres davam ordem de guerra contra os indígenas
bem como se mostravam interessados nos negócios de modo que chegavam a receber doações de
sesmarias.

A igreja era, em muitos casos, conivente com as atrocidades da coroa, tamanho é o absurdo
que liberou a escravidão de índios aprisionados em “guerras justas”, mas o que seria uma “guerra jus-
ta”? Seria a declaração de guerra contra qualquer índio ou tribo que fosse contra a fé católica, contra
os colonos ou a coroa portuguesa. Os que descumprissem esses critérios seria passível de serem escra-
vizados pelo homem branco.

Mediante a isso o que os colonos faziam? Incitavam os índios para que esses respondessem
de forma violenta e eles pudessem justificar a guerra fazendo daqueles índios escravos tendo em vista
que esses colonos do interior não tinha condições de adquirirem escravos africanos, fazendo isso con-
seguiriam mão de obra gratuita.

4- EM MEIO A GUERRA, FLORESCE SÃO FRANCISCO.

Confrontos entre bandeirantes e índios foram travados nesse lugar, que hoje encontra-se a
cidade de Olivedos, como é registrado na concessão de sesmaria de 8 de Março de 1723 que solicita
terras próximas ao Riacho do Padre, riacho esse que corta o município, esse documento confirma
conflitos existentes nessa região antes mesmo de sua solicitação e traz outras informações:
Governo de João de Abreu Castelo-Branco

O capitão-mórTheodosio de Oliveira Ledo e Braz de Oliveira, moradores no sertão


do –cariry-, dizem que nas testadas da data do PE. Sebastião da Costa, correndo de
norte para o sul, havião nos campos, que os gentio chamam – Pedras Grandes – que
com algum trabalho e dispêndio , fazendo-se um poço de pedra e cal se pode con-
servar agua todo o ano, e os ditos campos estão devolutos e nunca se pediram por
não ter agua para o gado no verão; e porque eles suplicantes os queriam povoar com
gados, pediam para cada um três legoas de terras em quadro, começando do logar
donde o suplicante Theodosio de Oliveira Ledo dêo batalha com os tapuias Pegas
com grande destruição e mortandade, no riacho que chamam do Padre que é o dito
P. Sebastião da Costa, pelo mesmo riacho acima da terra do dito padre, meia legoa
para o dito lugar, aonde se dêo a batalha dos tapuias Pegas.

Fez-se a concessão de três legoas de comprimento e uma de largura à cada um, aos 8
de Março de 1723. (JOFFILY, 1894, p.94)

Na primeira analise dessa concessão de terras através dessa sesmaria é possível evidenciar

1408
alguns fatos, o primeiro desses é que os Tapuias Pegas eram tribos de índios que de fato habitavam
nessa região,

Outro fato que podemos evidenciar é o seguinte: a “Guerra dos Bárbaros” como ficou conhe-
cido esse movimento de revolta indígena contra os portugueses, eclodiu na Paraíba ainda na primeira
metade dos anos de 1680, na doação de terras acima faz-se referência a uma batalha que se deu no
Riacho do Padre neste período, por isso que fica nítido a ocupação desse território antes da data tida
como oficial (Segundo a história “oficial” 1722 é o ano de formação da fazenda São Francisco), note
que diz a carta “começando do logar donde o suplicante Theodosio de Oliveira Ledo dêo batalha com
os tapuias Pegas com grande destruição e mortandade”, mortandade essa que provavelmente ultra-
passou os quinhentos nativos. Esse conflito teria acontecido durante a dita guerra o que mostra que
a fazenda São Francisco, posteriormente cidade de Olivedos, teria sido formada ainda por volta de
1680-1690.

A partir da crítica desta concessão de sesmaria se torna plausível a desconstrução do mito da


fundação da fazenda São Francisco só no século XVIII, ficando evidente pela carta de concessão de
sesmaria e pela análise feita no parágrafo anterior que o povoamento do lugar que hoje temos o terri-
tório de Olivedos é bem anterior a 1722, data “oficial” de fundação como diz o site do IBGE:
“Município de Olivedos, teve sua história iniciada em 1722, quando foi implantada
a Fazenda São Francisco por Antônio Francisco da Costa. Duas casas existiam na
propriedade, sendo uma na sede e outra no local conhecido como “Curralinho” .
No mesmo ano, foi demarcada a Fazenda São Francisco pelo sertanista Teodózio de
Oliveira Ledo, que residiu por alguns anos disseminando a colonização do território
San-Francisco.” (IBGE)

Podemos notar também que onde a zona urbana do município está era terra do padre Se-
bastião da Costa, essa carta pede terras nas testadas da terra do padre indo de norte a sul, ou seja, a
doação começaria provavelmente no sitio Olho d´agua e se estenderia a fazenda São Brás (perceba o
nome da fazenda traz uma homenagem a seu primeiro dono, Brás de Oliveira), passando ao Espirito
Santo e adentrando mais terras, bem como se estenderia a sul, englobando terras onde hoje temos as
comunidades de Malhada de Areia, Floriano e adentrando os limites o atual município de Boa Vista.

Vale a ressalva de que a propriedade da terra em grande parte do período colonial se dava
pela doação de sesmarias. Sesmarias eram, doações de terras documentadas em formas de cartas de
sesmarias a requerentes que justificassem o interesse pela terra e produzisse em nome da coroa, caso
não houvesse produção as terras eram retomadas e ficavam devolutas a espera de outro arrendatário,
podiam ser requeridas por uma ou por um grupo de pessoas, de início o tamanho das sesmarias eram
livres, o que favoreceu algumas associações:
Os Oliveira Ledo já tinham conseguido sesmarias inicialmente no Rio Grande do
Norte, em 1664, conseguindo terras no Rio Putegy. Em seguida solicitam sesmarias
junto ao rio Paraíba (30 léguas) ao Conde de óbidos (Governador Geral do Brasil),
que foi concedida em Fevereiro de 1665. (ALMEIDA, 1962, p. 17)

Talvez por isso a família dos Oliveira Lêdo conseguiram avantajar-se nesse comercio, além

1409
de possuírem uma família grande e induzirem pessoas próximas a eles a serem colaboradores quando
requeriam terras, assim como fizeram onde hoje é Olivedos, eram criadores de gado, a pecuária como
vimos era bem requisitada já que eram necessários bois para moverem os engenhos e principalmente
pelo fato da alimentação.

Essa sociedade que ficou conhecida por sociedade do couro não fazia uso apenas do couro,
mas aproveitava o animal como um todo, inclusive a carne para alimentação e venda. O que favoreceu
e impulsionou muito o comercio da carne foi a utilização do sal e a consequente utilização da charque,
a salga da carne permitia sua conservação por um longo período de tempo o que acabava tornando
propicio a produção desse alimento a longas distancias do brejo e do litoral.

Continuando nossa abordagem torna-se importante perseverar em nossa contextualização,


diante disso é importante vê que a coroa portuguesa vendo a necessidade do povoamento desses ser-
tões, grupos que muitas vezes eram formados por famílias de bandeirantes ganharam notoriedade
nesse cenário, esses grupos tornavam-se ocupantes dos territórios, ganhavam postos militares e status
para promover essas ocupações, dentro da Capitania da Paraíba duas famílias em especiais ganharam
destaque, os Garcias D’Ávilla que formavam a Casa da Torre da Bahia e chegaram a possuir um terço
de todo o território paraibano, em especial as terras do atual sertão, e o outro grupo e objeto de nossa
pesquisa, os Oliveira Lêdo. Ambas as famílias baianas e saíram da margem sanfranciscana para atingir
e gerenciar o povoamento dos sertões paraibanos.

Receberam duas sesmarias na capitania do Rio Grande, hoje Rio Grande do Norte, de imedia-
to após esse acontecimento eles adentraram onde atualmente chamamos de Paraíba, receberam aqui
várias doações de sesmarias que acabaram abarcando uma grande quantidade de terras na Capitania
da Paraíba, como mostra Wilson Seixas no mapa publicado em seu livro, O Velho Arraial de Piranhas:

Mapa 1: Terras dos Oliveira Lêdo nas primeiras décadas de ocupação

Fonte: Livro, O Velho Arraial de Piranhas, Wilson Seixas.

1410
Como podemos observar no mapa o domínio dos Oliveira Lêdo foi vasto e ao que tudo
indica este território de Olivedos foi requerido repentinamente as primeiras terras dessas famílias,
comprovando assim que Olivedos remete a tempos anteriores ao que a “história oficial” coloca, dessa
forma a fazenda São Francisco teria sido instalada ainda na década de 1680.

5- ATORES DO POVOAMENTO COLONIAL

Como já vimos não havia limite no tamanho das sesmarias requeridas, para se ter uma ideia
a primeira sesmaria concedida aos Oliveira Lêdo na Paraíba foi ao longo do rio Paraíba em 1665 há
qual já fizemos referência, todavia vale ressaltar o tamanho gigantesco desta; 30 léguas (cerca 200 qui-
lômetros) ao longo do rio Paraíba com 12 léguas de largura, 2 ao sul e 10 ao norte(15 quilômetros ao
sul e70 quilômetros para o norte) e essa não foi a única requerida nesses moldes, contudo em 1697 as
coisas mudam:
A princípio, as áreas concedidas não eram limitadas a uma determinada quantia.
Depois, em face de excessos cometidos, começaram a ser estabelecidos limites. Em
1695, uma Ordem Real impôs ao concessionário, além dos encargos costumeiros, o
pagamento de foro. A Carta Régia de dezembro de 1697 limitou a extensão das ses-
marias a três léguas. Havia, ainda, a obrigação de pagar o dízimo relativo aos frutos
à Ordem de Cristo e o dever de demarcação das terras, em três anos. (LEITE, 2007,
p-5)

Antes dessa lei de 1697 que limitava o tamanho das sesmarias, foram pedidas sesmarias
imensas como vimos e mesmo um grupo de pessoas pedindo era necessário ter uma família numero-
sa além de colaboradores para povoarem essas terras e assim fizeram, aqui em Olivedos fora Sebastião
da Costa e sua família que fizeram parte desses grupos de colaboradores. Como a citação nos mostra
depois de 1697 as sesmarias foram limitadas a 3 léguas por requerentes, vale ressaltar que uma légua
neste período era proporcional a 6,6 quilômetros.

Essa família, em especial Teodósio de Oliveira Lêdo um dos principais se não o principal
sertanista da Paraíba, teriam em épocas passadas fundado onde hoje são asfalto e calçamento as pri-
meiras rotas para o gado e as primeiras casas para os viajantes, evidente que tudo isso à custa de muito
sangue indígena, não apenas em Olivedos, mas em diversas cidades do interior do Paraíba, tendo em
vista que é atribuído a ele a formação de Pombal, Campina Grande e tantas outras cidades da Paraíba.

É atribuído a Teodósio o pioneirismo do povoamento desse lugar na época colonial e no


contexto da interiorização, tanto que as duas casas mais antigas deste município remetem a ele, uma
na entrada da rua e outro na comunidade do Curralinho,perceba que o nome dessa comunidade re-
mete a criação animal.

Entretanto é importante destacar a outra figura deste meio, trata-se do padre Sebastião da
Costa (livros como “Viagem através da província da Paraíba” trazem o nome deste padre como Sebas-
tião da Costa e Oliveira, evidenciando o parentesco entre o mesmo e Teodósio), familiar e compadre
de Teodósio esse padre teria sido tão ou mais importante que Teodósio para a fundação da fazenda
São Francisco, posteriormente vila e depois cidade de Olivedos.

1411
O pouco que remete a história de Olivedos coloca Teodósio como principal e único persona-
gem dessa povoação, colocando-o como referência de herói frente as tribos que por aqui habitavam,
entretanto veremos no decorrer destas linhas que não é bem isso que acontece.

Em meio ao contexto da interiorização se faz necessário salientar que grupos entradistas


como os Oliveira Lêdo tinha a intenção de conseguir as maiores quantidades de terras possíveis, um
dos meios para isso é trazendo e introduzindo colonos em pontos estratégicos, Sebastião da Costa e
sua família seriam um desses colonos e colaboradores.

Esses dois personagens importantes da história local além de familiares eram grandes ami-
gos, são inúmeras as sesmarias que Sebastião da Costa aparece como requerente junto a Teodósio.

O próprio Teodósio teria cedido essas terras a Sebastião da Costa, bem como a seu irmão
Antônio Francisco da Costa e seu pai Francisco da Costa, essas três personalidades teriam chegado
nas terras do atual município de Olivedos junto a um grupo de colonos que se estabeleceram aqui.

A fazenda erguida, recebeu o nome de fazenda São Francisco homenagem de Sebastião da


Costa a seu pai, da mesma forma que a capela que foi levantada foi em honra ao santo de mesmo
nome, ao que tudo indica a capela data de 1722 e o cemitério data do mesmo ano, cemitério esse por
muito tempo foi o único campo santo da região, recebendo defuntos de toda a redondeza, fato que só
vai mudar depois de mais de um século

A partir das possíveis datas de construção da Igreja e do cemitério local é aceitávela conclu-
são que quando a “história oficial” coloca o início do município neste mesmo ano está referindo-se a
fundação deste só a partir do ano que a fazenda passa a ter igreja e cemitério e não da construção da
fazenda em si.

O EMPODERAMENTO DOS OLIVEIRA LEDO NO CONTEXTO DA COLONIZAÇÃO


DOS SERTÕES.

Como foi ressaltado, Teodósio de Oliveira Ledo foi um dos responsáveis pelo povoamento
deste lugar, mas não o único, entretanto é importante salientar queTeodósio foi homem importante
na colonização do sertão, tanto que foi nomeado Capitão-mor das Fronteiras das Piranhas, Cariri e
Piancó em 1694, um dos cargos mais importantes militarmente da época. Ele assumiu o cargo militar
acima referido depois dele ter passado por seu tio e irmão, era homem frio e cruel, assassinava índios,
não poupava sequer mulheres gestantes ou crianças. Essa figura emblemática e cruel com as comuni-
dades indígenas era descendentes dos mesmo como veremos a seguir.

Dentro do nordeste os dois nomes que daria origem aos Oliveira Lêdo seriam o curiboca
Manuel de Oliveira e Bartolomeu Lêdo, segundo Almeida (1978, p. 21) “dos dois troncos referidos
–Manuel de Oliveira- mameluco- dum lado, Bartolomeu Lêdo- do outro, queremos supor que, de sua
mestiçagem, tivera origem no Nordeste, a família dos Oliveira Lêdo.”

Bartolomeu casou-se com Anna Lins (filha de Rodrigo Lins com Felipa Rodrigues que era

1412
índia) desse casamento entre Bartolomeu e a Mameluca Anna, nasceram dois filhos, Custodio de
Oliveira Lêdo e Antonio de Oliveira Lêdo. Antônio (que era tio de Teodósio) casou com uma senhora
de nome desconhecido e teve três filhos: Antônio Pereira de Oliveira, Gaspar Pereira de Oliveira e
Francisco de Oliveira Lêdo.

Enfim, Custodio, o pai de Teodósio. Custodio casou-se com uma senhora de nome incerto e
desse casamento teve mais três filhos além de Teodósio, que foram Pascácio de Oliveira Lêdo, Cons-
tantino de Oliveira Lêdo e Ana de Oliveira Ledo, entretanto o de maior destaque foi Teodósio.

As primeiras sesmarias doadas por meio de concessões aos Oliveira Lêdo, foram doadas a
Antônio de Oliveira Lêdo, que tinha um filho que curiosamente não recebeu como herança, muito
provavelmente por esse não possuir as características de desbravador, algo essencial na época para as-
sumir o cargo, sendo assim Antônio acabou doando a seu sobrinho Constantino de Oliveira Lêdo, este
antes da morte em 1694 (morte essa provocada por confronto contra os tapuias), passa para seu irmão
Teodósio de Oliveira Lêdo, todas as suas sesmarias, além dessas Teodósio também herdou sesmarias
de seu pai, Custodio de Oliveira Lêdo. Notamos assim o quanto este homem possuía terras em toda
a Paraíba, sendo impossível que ele sozinho povoasse a todas ia seguindo aquele costume de assentar
colonos em lugares estratégicos.

A família dos Oliveira Ledo ganharam sesmarias no Rio Grande, hoje capitania do Rio Gran-
de do Norte, ao que os indícios apontam Olivedos seria rota dos bandeirantes quando estes saiam da
capitania do Rio Grande do Norte e adentravam a Paraíba, como cita Roberto Ribeiro na obra: Poci-
nhos o Local e o geral.
Vindo do interior potiguar, a rota mais curta era a chamada estrada do Seridó, que
entrava por Pedra Lavrada, seguia para a fazenda Cubatí, daí para o arruado São
Francisco (Olivedos), atravessava Pocinhos chegando a Campina (RIBEIRO, 2013,
p.36)

Não é possível ter uma definição certa de onde ia a terra que pertenceu a Sebastião da Costa
e a Teodósionos limites que hoje temos o município de Olivedos, pois as terras nesse período eram di-
vididas pelos rios, riacho, serras, olhos d´agua, e outras formações que pudessem servir de referencial,
o que há certeza é que eles dois foram os protagonistas da povoação desse lugar.

Seria erro nosso acreditar que Olivedos fora fundada apenas em 1722 como conta a história
“oficial”, bem antes disso os Oliveira Ledo já possuíam terras no sertão e em grande parte da Paraíba,
sendo assim o padre Sebastião da Costa teria fundado a primeira casa e o primeiro curral nessa terra
ainda durante a “guerra dos bárbaros”, ou seja, fim do século XVII.

Torna-se importante referenciar um pouco da história da família dos Oliveira Ledo até por-
que muitas famílias que atualmente ocupam o território olivedense descendem desta família, bem
como da família Costa e em muitos casos tem-se descendentes de índios que sobreviveram ao massa-
cre e ao banho de sangue destas terras, bem como de negros que chegam depois do estabelecimento
dos colonos por aqui, é essa mestiçagem que forma o povo deste lugar.

1413
A CONSTRUÇÃO DO MUNICIPIO.

Mas como esses dois personagens não eram donos de todo o território olivedense algumas
terras que hoje compreendem sítios foram sendo pedidas ao longo dos anos de 1700, como já vimos
na primeira doação de sesmaria analisada, Teodósio e Brás de Oliveira Lêdo requerem terras onde
hoje existem fazendas e comunidades rurais, da mesma forma acontece em outros sítios como o Al-
godão e suas adjacências:
Governo de Jeronymo José de Mello castro

Antonio Gonçalves Henriques com muito trabalho e risco de sua vida e despendio
de sua fasenda, tendo descoberto no sertão do cariry de fora um sitio de terras em
riacho chamado de Algodão, cuja terra confronta pela parte do sul com terras de Braz
de Oliveira,pela parte do norte com terras do defunto sargento-mór José Gomes de
Farias e pela parte de leste com terras do defunto Baltazhar Gomes, e pela parte do
oeste com terras do defunto coronel Matheus Bezerra, cujo o riacho nasce da parte
sul e desagoa para parte do norte e por se achar devoluta dita terra pedia data de
sesmaria com três legoas de comprimento e uma de largura ou uma de comprimen-
to e três de largura, como na melhor forma conveniente for, fasendo peão no poço
Carahybeira.

Fez-se a concessão aos 10 de Dezembro de 1766. (JOFFILY, 1893, p. 180-181)

E também do riacho gravatá que corta Olivedos e adentra Soledade, nosso município vizinho.
Governo de Francisco Pedro Mendonça Gurjão

Manoel Fernandes Coelho, morador no sertão do cariry, tendo de crearseos gados,


lhe é necessário por data de sesmaria uma sorte de terras devolutas com três legoas
de comprimento e uma de largura a qual o supplicantedescobrio no sertão do cariry,
e principia no olho d’agua a que chamam – riacho Gravatá, confrontando pela parte
do norte com a Serra Negra, que fica fronyeira ao sitio travessia do defunto Marcos
de Castro, pela do sul com terras dele supplicante e pela parte do leste com terra
dos – Oliveiras – do oeste sem confrontação, cujo olho d’agua faz riacho que corre
de leste para oeste, donde o supplicante pretende sua sesmaria, por ele acima, como
confrontado tem.

Fez-se a concessão de três legoas de comprimento e uma de largura, aos 13 de Setem-


bro de 1731.

Foi dessa forma que este território foi sendo ocupado, aos poucos as comunidades indígenas
iam desaparecendo do mapa e o homem branco ia povoando esse lugar, desde o centro que seria onde
hoje é a zona urbana aos entornos, ou seja, as comunidades rurais, o processo de colonização acabou
obedecendo a uma ordem só, dizimar os nativos da terra e povoar esta área com pessoas e com a pe-
cuária.

Após a posse afirmativas dessas terras houve a instalação definitiva, segundo os relatos popu-
lar o padre Sebastião da Costa foi enterrado embaixo do altar da igreja local, junto a ele uma fortuna
em ouro, quanto a isso não há certezas. Seu irmão, Antônio Francisco da Costa, constituiu família e
até os dias que correm sua geração perdura já que o sobrenome Costa resistiu ao tempo e atualmente é
um dos principais sobrenomes de Olivedos, grande parte das pessoas que por aqui moram ou tem ou
tiveram em gerações passadas o sobrenome na família, é ilusão de qualquer olivedense achar que as

1414
famílias Costa desta cidade são distintas uma da outra, todo sobrenome Costa desta cidade é de uma
origem só.

Já Teodósio de Oliveira Lêdo, sua vivência era errante e ele não se instalava em um lugar por
muito tempo por isso não podemos apontar que ele morou de fato em Olivedos, mas suas passagens
por esse lugar são certas, porem a um consenso quando a sua condição de morte, Teodósio morreu
cego e segundo Henriques de Castro:
TEODÓSIO DE OLIVEIRA LÊDO (A pessoa objeto deste relatório) nascido em
1650, em Colônia Portuguesa do Brasil, filho de Custódio De Oliveira Lêdo, como
mostrado na árvore da família 8. Teodósio era Oficial de Ordenanças de Portugal.
Teodósio morreu em 1732, com aproximadamente 82 anos, em Olivedos, Capitania
Real da Parahyba, Colônia Portuguesa do Brasil. A seguinte informação foi gravada
também para Teodósio. Capitão-Mor das Fronteiras do Espiranhas, Piancós e Cariris
em 3 de novembro de 1694, com aproximadamente 44 anos, em Portugal. (CASTRO,
2015, p. 13)

Assegurados por essa informação, ficamos cientes que a cidade de Olivedos além de ser tu-
mulo de Sebastião da Costa é da mesma forma de Teodósio de Oliveira Lêdo, homem esse que mesmo
sendo tirano com seus semelhantes tem o nome desta cidade em sua homenagem, afinal Olivedos
deriva da junção de Oliveira com Lêdo, formando o prefixo Olivedo adicionado a um S.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A dificuldade da pesquisa baseou-se na busca de dados do período colonial que remetessem


a cidade de Olivedos, mesmo fazendo uso dos principais nomes como o do Padre Sebastião da Costa,
do próprio Teodósio de Oliveira Ledo, dos riachos que cortam o município, da fazenda São Francisco,
os dados eram raros, mas foram a partir de percepções nas entrelinhas dos livros e registros que en-
controu-se algo e a partir de então foi possível constituir nexo.

Diante dessa abordagem é possível concluir que o colonizador apesar de ser agente de ação
em outro tempo praticou nessas terras um verdadeiro genocídio das comunidades indígenas que por
aqui existiam, da forma mais cruel possível.

Para além disso é possível perceber também que as terras que hoje encontram-se a zona ur-
bana e os entornos de Olivedos foram habitadas por colonizadores ainda no século XVII, durante a
Guerra dos “bárbaros”, sendo assim há uma desconstrução da história tida como oficial.

Tornasse relevante apontar que a formação do povo que por aqui reside parte tanto do nativo
e do negro que por aqui chega tempos depois da fundação, como do colonizador que por aqui residiu.

Por fim, mas não menos importante é a ressalva de que o intuito é que esse trabalho se afirme
como base da nossa história municipal, que seja base de ensino para que do mais idoso ao mais jovem
saiba como foi a colonização dessas terras, afinal um povo desse não pode ser um povo sem história.

REFERENCIAS:

ALMEIDA, Antonio Pereira de. OS OLIVEIRA LEDO e a genealogia de SANTA ROSA. 1 ed.

1415
João Pessoa: Editora Grafica Universal, 1978.

ALMEIDA, Elpídio de. História de Campina Grande. Segunda edição, Editora Universitária-
-UFPB, João Pessoa-PB, 1962.

AQUINO, Aécio Villar. A ocupação do interior da Paraíba. Rev. Do Inst. Hist. E Geográfico
Paraibano, João Pessoa, Ed.24, p. 49-57, 1986.

CASTRO, Henriques de. Relatório de Genealogia para TEODÓSIO DE OLIVEIRA LÊDO.


Heritage. 2015.

Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pb/olivedos/historico Aceso em 14 de


Agosto de 2018.

JOFFILY, Irineu. Synopsis das Sesmarias da Capitania da Paraíba. Tomo I. Paraíba, 1894.

JUNIOR, Valdeci dos Santos. Os Índios Tapuias no Rio Grande do Norte, antepassados es-
quecidos. Mossoró-RN. 2008.

LEITE, José Luís Marasco C. A apropriação das terras brasileiras

RIBEIRO, Roberto da Silva. Pocinhos o Local e o Geral. 2 ed. Campina Grande: RG Editora,
2013.

SEIXAS, Wilson Nóbrega. O Velho Arraial de Piranhas (Pombal). João Pessoa: Gráfica A
Imprensa, 1962.

Arrematações de contratos régios: práticas e modos de organização na comarca do Serro


Frio
Joelmir Cabral Moreira2

A partir dos descobrimentos de metais preciosos em fins do século XVII, desencadeou-se um


rápido processo de montagem da máquina administrativa que culminou, em 1720, na formação da
comarca do Serro Frio desmembrada da comarca do Rio das Velhas, o que a tornou área com gover-
no e administração próprios. A atividade de mineração teria impulsionado a criação de um mercado
interno nesse espaço, e para Minas se dirigiram homens de todas as origens com vistas à realização
de negócios, o que, no plano político, levou à necessidade de se estabelecer rapidamente na região um
aparato administrativo com todas as suas peças.

2 Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro. Bolsista CAPES. E-mail: joelmircabral@outlook.com.

1416
No que diz respeito à política administrativa do Império ultramarino português, nota-se que,
na passagem do século XVII para o XVIII, ocorreu uma mudança no foco com as crescentes notícias
sobre os atrativos que dispunham a América portuguesa, a atenção da Coroa voltou-se para as povoa-
ções e lugares afastados sobre o seu domínio. Em um primeiro momento, a Coroa procurou ocupar e
povoar essas localidades e, assim, organizar, administrar egarantir suas prerrogativas e promover sua
legislação em distintos territórios, especialmente na capitania de Minas Gerais, onde a mineração do
ouro e de outras pedras preciosas se tornou a principal atividade econômica.

O conjunto de alterações estabelecidas pelo Estado português na comarca do Serro Frio,ao


longo do século XVIII, demonstra a tentativa de melhor organizar e administrar as riquezas encon-
tradas na localidade de Vila do Príncipe e, sobretudo no Arraial do Tejuco, para onde se dirigiram
grandes contingentes de indivíduos que buscavam enriquecimento rápido através das atividades co-
merciais e mineradoras3.

Como assinalou Luiz Antônio Silva Araujo, as dificuldades em monitorar essas localidades
com grande potencialidade econômica, onde predominavamaltos índices de corrupção4, levaram a
implantação de um forte aparato fiscalista que garantisse tanto os interesses mercantis quanto os tri-
butários metropolitanos5. Dentre estas medidas, o estabelecimento dos contratos, foi uma atividade
amplamente difundidanas conquistas sobo amparo da Coroa portuguesa6. Segundo Myriam Ellis, a
contratação, ou a ação de contratar, compete à exploração, comércio, trato de mercadorias, assim como
à arrematação, mediante contrato, do privilégio para a cobrança de tributos e rendimentos reais. Para
a autora, em ambos os casos, o Estado recebia antecipadamente determinados rendimentos, como
cabia a função de garantir o funcionamento do sistema7.

O sistema de contratos dos diamantes que firmou-se na comarca do Serro Frio em 1740 era de
caráter comercial, constituía-se em um acordo para exclusiva extração dos diamantes por um único
indivíduo ou em sociedade em áreas previamente demarcadas e com números de escravos estipulados
para trabalharem nesta atividade, o produto final angariado pelos contratadores, isto é, aqueles que
3 RESENDE, Maria Efigênia Lage de. Itinerários e interditos na territorialização das Geraes. In: RESENDE,
Maria Efigênia Lage de; VILLALTA, Luiz Carlos (orgs). As Minas setecentistas,1. Belo Horizonte: Autêntica,
Companhia do Tempo, 2007. p.29.
4Bluteau, em seu dicionário destaca o verbete corrupção aproximando-se muito mais fortemente de deprava-
ção, no sentido moral, corrupção de costumes. Quando assinala “corrupção do juiz ou da Justiça” traduz a ex-
pressão latina “judicia corruptela”. A palavra que corresponderia a abusos contra a lei é corruptela, mas a ênfase
na moral persiste. Cf. Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da Universidade de São Paulo (USP).
Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. São Paulo, SP. p. 572. Disponível em: http://dicionarios.bbm.usp.br/
pt-br/dicionario/1/corrup%C3%A7%C3%A3o. Acesso em 11 de dezembro de 2017.
5ARAUJO, Luiz Antônio Silva. Contratos nas Minas Setecentistas: O estudo de um caso – João de Souza Lisboa
(1745-1765). Anais doX Seminário sobre a Economia Mineira – Cedeplar, UFMG. Belo Horizonte, 2002. p. 1.
Confira também: ARAUJO, Luiz Antônio Silva. Contratos e Tributos nas Minas Setecentistas: O estudo de um
caso - João de Souza Lisboa (1745-1765). Dissertação de Mestrado, História, Universidade Federal Fluminense.
Niterói: 2002. p. 20.
6GOMES, Franciany Cordeiro. Negócios e Contratos: a trajetória de Manuel Ribeiro dos Santos em Minas
Gerais setecentista.Dissertação de Mestrado, História, Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora: 2014.
pp. 44-47.
7ELLIS, Myriam. Comerciantes e Contratadores do Passado Colonial. São Paulo, Revista do Instituto de Estu-
dos Brasileiros, USP, 1982. pp. 97-122.

1417
arrematavam o contrato, era enviado ao Reino para venda8.

O sistema continha uma série de cláusulas que regulavam os direitos e os de-


veres do contratante, e deveriam ser por eles seguidas. Tais artigos visavam
controlar tanto a produção, mantendo estáveis a oferta de preços, como a limi-
tação da área explorada e o número de escravos empregados, e ainda reprimir
o contrabando9

No Distrito Diamantino10“era lícito minerar no perímetro da demarcação, com seiscentos es-


cravos pelos quais pagavam a capitação de 230$000”11 – duzentos e trinta mil réis. Sob esse sistema de
exploração, a Coroa fez o uso de contratos que seriam arrematados de quatro em quatro anos, com
o objetivo de evitar a queda dos preços no mercado mundial e exercer o controle da demarcação.
Foram celebrados seis contratos no período entre 1740 a 177112.É preciso lembrar que a extração dos
diamantes começou a ser feita sob a forma de contratos após a reabertura da Demarcação em 1739, e
o governador Gomes Freire de Andrade se deslocou até o Arraial do Tejuco para reabrir as lavras, pois
os preços dos diamantes estavam estabilizados no mercado mundial13.

Gomes Freire de Andrada pelo Bando de 26 de agosto de 1739 declarou os


sítios, onde os moradores podiam minerar para ouro, e os que não podiam
assistir na Demarcação; e por outro Bando da mesma data declarou os limites
da Demarcação (...)14

8Cf: FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócio: a interiorizarão da metrópole e do comércio nas minas
setecentistas. São Paulo: HUCITEC, 2006. pp.87-88.Códice Costa Matoso. Belo Horizonte: Fundação João Pi-
nheiro, vol. I e II, 1999. Coordenação-geral de Luciano Raposo de Almeida Figueiredo e Maria Verônica Cam-
pos. p.89.
9Arquivo Histórico Ultramarino, Minas Gerais Avulsos, Cx. 108, Documento 9. Apud: FURTADO, Júnia Fer-
reira. Chica da Silva e o Contratador dos Diamantes: O outro lado do mito. São Paulo: Companhia das Letras,
2003. p.35.
10O Distrito Diamantino ou a Demarcação Diamantina, era o quadrilátero em torno do Arraial do Tejuco,
onde se faziam a exploração de diamantes em toda a área abrangida pela demarcação.
11SANTOS, Joaquim Felício dos. Memórias do Distrito Diamantino. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp,
1976. pp. 69 -75. MACHADO, Aires da Mata. Arraial do Tijuco, cidade Diamantina. Belo Horizonte: Itatiaia,
1980. p. 52.
12 FURTADO, Júnia Ferreira. Chica da Silva e o contratador dos diamantes: O outro lado do mito. Op.cit.,pp.
33-34.
13O bando, publicado pelo governador, Gomes Freire de Andrade, proibiu toda a mineração de diamantes no
território de ocorrência das jazidas. A sua promulgação, foi uma tentativa para controlar e diminuir a explora-
ção dos diamantes devido ao excesso de oferta das pedras no mercado mundial. No decorrer de 1736 e 1737, o
escoamento de diamantes de forma ilícita foi diminuindo, o que gerou uma regulação dos preços no mercado
europeu. A exploração mineradora foi reaberta em 1739, instalando o sistema de contratos.Bando do Conde de
Galveas, de 19 de julho de 1734,Memorias da Academia das Sciencias de Lisboa. Potugal: Lisboa, v.1, 1797.p. 18.
14 IHGB, Revista trimensal de historia e geographia, ou, Jornal do Instituto Historico e Geographico Brazileiro.
n. 21, Tomo sexto, 1844. p. 296.

1418
Regulou-se a capitação dos 600 Negros a razão de 230$00 réis, que importava
em 345 mil Cruzados; Como era possível a um Contratador pagar esta quantia
de Capitação, e fazer as despesas da mineração, quando o tal rendimento não
podia naturalmente exceder de 300 mil Cruzados: Claramente se conhece que
o erro consistiu na falta de proporção da quantidade dos Negros permitidos,
qual devia ser muito maior15

Esses eventos sumariamente revelam as formas que a Coroa portuguesa encontrou como ten-
tativa de organizar administrativamente a região, “no sentido de encontrar tantos mecanismos de
efetivo controle sobre a produção dos diamantes quanto sistemas eficazes de cobrança dos tributos e
direitos régios” 16. Conforme ressaltou Carrara, existia uma indefinição na administração da Comarca
do Serro Frio. Nesse período específico,ficam evidentes as diferentes medidaspolíticas e administra-
tivas com as quais a Coroa portuguesa procurou controlar e equilibrar a extração de diamantes, sua
arrematação e valor no mercado internacional, por este sistema de contrato dos diamantes, o Estado
português via como mais eficaz a ser adotado dentro do Distrito Diamantino17.

Segundo Furtado, a administração buscou ser mais controladora, e esses e outros artifícios
transformaram o cotidiano e as relações na comarca. Sob o sistema de contratos, era concedido o
direito de minerar apenas aos mineradores, com efeito, eram os únicos a terem acesso exclusivo à
exploração das lavras. Quanto à população local, esses não tinham acesso livre à riqueza, porém, po-
deriam contornar essa situação mediante a obtenção do direito de explorar os rios que se comprovas-
sem exclusivamente auríferos, através do aluguel dos seus escravos para os contratadores e por via da
extração ilegal dos diamantes na região demarcada18.

As atividades no sistema de contratos iniciaram-se com a primeira arrematação em 10 de


junho de 1739, por João Fernandes de Oliveira e Francisco Ferreira da Silva, sendo que assumiram
o contrato no dia 1 de janeiro de 174019. A autora Júnia Furtado tece uma interessante discussão em

15A restrição de homens negros escravizados para trabalhar na exploração das lavras de diamantes ocasionou
grandes divergências no direcionamento do sistema de contratos, sobretudo por conta do número de 600 es-
cravizados que não conseguiriam alcançar o esperado na extração anual, de 8 a 10 mil quilates de diamantes,
que eram vendidos na Europa no valor entre 200 a 300 mil cruzados. Com esse número de negros trabalhando
nas lavras, a capitação deveria entregar entre 40 a 50$000 mil réis por cada homem escravizado que trabalhava
na exploração. O contrato exigia grandes despesas, a partir de termos claros, ficou o contrato regulado com 600
negros destinados apenas para extração de diamantes, porém, além desse número, entre 4 a 5 mil escravizados,
às vezes mais, de acordo com as condições do contrato, foram permitidos para executar outros tipos de serviços
fora da demarcação. ANAIS DA BIBLIOTECA NACIONAL. Do Descobrimento dos Diamantes, e Diferentes
Methodos, que se tem Praticado na sua Extração. Rio de Janeiro: Divisão de Publicações e Divulgação, vol.80,
1960. pp. 22- 23
16CARRARA, Ângelo Alves. Desvendando a riqueza na terra dos diamantes. Revista do Arquivo Público Mi-
neiro, Belo Horizonte, v. 41, jul.-dez. 2005. p.42.
17NOYA PINTO, Virgílio. O Ouro Brasileiro e o Comércio Anglo-Português: Uma contribuição aos estudos da
economia atlântica no século XVIII. São Paulo: Editora Nacional, 1979.pp. 212-217.
18 FURTADO, Júnia Ferreira. Chica da Silva e o contratador dos diamantes: O outro lado do mito. Op.cit.,p.
210.
19Arquivo Histórico Ultramarino, Minas Gerais, Avulsos, Cx.37, Documento 64. Arquivo Histórico Ultrama-
rino, Minas Gerais, Avulsos, Cx. 41, Documento 55.

1419
torno das estratégias desenvolvidas pela família Fernandes de Oliveira20. Sob essa perspectiva, temos
que considerar que essa família de negócio portuguesa se tornou umas das mais reconhecidas, com
ganhos materiais e simbólicos advindos de suas redes de relações ibero-americanas que conseguiram
estabelecer no período em que assumiram o sistema de contratos régios.

Vê-se, portanto, que após a arrematação do primeiro contrato, o sargento-mor João Fernandes
de Oliveira muda-se de Vila do Carmo, atual cidade de Mariana, para o Arraial do Tejuco, posterior-
mente cidade de Diamantina.Inicialmente, o contrato foi arrematado através dos editais divulgados
por toda a capitania mineira e no Rio de Janeiro, e tinha o prazo até o ano de 174321. Em 1743, perto
do término do primeiro contrato, João Fernandes de Oliveira arrematou novamente em uma nova
associação com Francisco Ferreira da Silva, desse modo conduziram o negócio até o ano de 174822.

O segundo contrato de extração de diamantes não foi favorável aos seus arrematantes, sobre-
tudo as condições desvantajosas oferecidas pela Coroa portuguesa para lavrar nas terras em confor-
midade com a demarcação. Nesse contexto, mesmo com as solicitações feitas pelos contratadores ao
governador da capitania, Gomes Freire de Andrade, para que modificasse as cláusulas do contrato,
especialmente o limite de homens escravizados para trabalhar na extração, com o intuito de beneficiar
a exploração das pedras preciosas, o segundo contrato acabou afundado em despesas e dívidas por
consequênciada instabilidade que se encontravam as lavras de diamantes e, também, por não terem
as suas exigências atendidas pelo governador da capitania23. Por conta de dificuldades financeiras, o
contratador regressou ao Reino e decidiu não renovar a arrematação24. A partir de 1749, os irmãos
Caldeira assumiram a arrematação.

Os melhores anos foram os do contrato com os irmãos Caldeira. Felisber-


to, o mais velho e mais empreendedor, agindo, evidente, sob o princípio de
que “lobo não come lobo”, fechava os olhos às atividades dos contrabandistas,
quando não cooperava ativamente com eles25

De acordo com Camila Pelinsari Silva, os estudos sobre o terceiro contratador da extração
de diamantes, Felisberto Caldeira Brant, sugerem muitas vezes um perfil que destoa da maioria dos
estudos que se voltaram para estes personagens, ou seja, da importância desses homens e as suas
relações sociais e econômicasna sociedade colonial. Brant, por se envolver em conflitos, crimes
e problemas com agentes régios nas regiões pelo qual passou, teve sua imagem compreendida
razoavelmente de modo diferente dos perfis traçados para outros personagens. Dentro deste viés,
20 FURTADO, Júnia Ferreira. Chica da Silva e o contratador dos diamantes: O outro lado do mito. Op.cit.,pp.
199- 243.
21 Idem, p. 33.
22Arquivo Histórico Ultramarino, Minas Gerais, Avulsos, Cx.42, Documento 51.
23 FURTADO, Júnia Ferreira. Chica da Silva e o contratador dos diamantes: O outro lado do mito. Op.cit.,pp.
83-87.
24 Idem, pp. 33-34.
25BOXER, Charles R. A Idade do Ouro do Brasil: dores do crescimento de uma sociedade colônia. Rio de Ja-
neiro: Nova Fronteira, 2000. p. 241.

1420
os estudos mais recentes têm se atentando para a limitação dos poderes régios e, portanto, para a
atuação e representação dos interesses particulares dos poderes locais na construção da autoridade
metropolitana na colônia26.

Felisberto Caldeira Brant nasceu na Vila de São João Del Rei, comarca do Rio das Mortes,
casou-se com Branca de Almeida Lara, de família paulista, e teve três filhos. O dito arrematante do
terceiro contrato e os seus três irmãos pertenciam a uma família com títulos, honrarias e todo tipo
de reconhecimento na localidade. Seu pai, Ambrósio Caldeira Brant, português que emigrou para a
capitania de Minas Gerais por volta de 1700, com a sua mulher Josefa, paulista27, participou da guerra
dos emboabas em 1709 e era considerado na região do Rio das Mortes um dos homens mais ricos,
além de ilustre povoador, o que permitiu alcançar postos de destaque na sociedade colonial, como o
de mestre-de-campo e de juiz ordinário28.

Talvez a “qualidade social” da sua família permitisse que Felisberto se envolvesse em diversos
conflitos e, na maioria das vezes, saísse ileso. Um desses conflitos ocorreu em 1730. Nesse episódio,
Felisberto e o seu irmão Joaquim atentaram contra a vida do ouvidor do Rio das Mortes, Antônio da
Cunha Silveira. Os irmãos Caldeira Brant foram presos e processados, sendo o processo julgado na
Relação da Bahia, mas no final dele foram absolvidos por falta de provas29.

Após o conflito ocorrido em Rio das Mortes, em 1735, Caldeira Brant foi para Vila Boa, na
cidade de Goiás, juntamente com seus irmãos. Nas Minas de Goiás se enriqueceram e, posteriormente,
em 1744, se envolveram novamente em desavenças nessa região que ocorreram entre cobradores de
quintos e a população. Mais uma vez fugindo de conflitos, os irmãos Caldeira Brant encaminharam-
se para Paracatu, onde tinham sido recentemente descobertas as minas de ouro, assim construíram
e fizeram fortunas na mineração, na qual esses homens sempre concentraram os seus negócios. No
entanto, como afirma Joaquim Felício dos Santos, “Felisberto não estava satisfeito, ambicionava
maiores riquezas e veio para o Arraial do Tejuco arrematar o terceiro contrato de diamantes”30, em
1749, com os seus irmãos.
26 SILVA, Camila Pelinsari. A Conturbada trajetória do contratador dos diamantes Felisberto Caldeira Brant:
Dores e glórias de um caminho margeado pelas relações com agentes da Coroa. VI Encontro Internacional de
História Colonial. Mundos coloniais comparados: poder, fronteiras e identidades. Caderno de resumos. Salva-
dor: EDUNEB, 2016. pp. 166-167. SILVA, Camila Pelinsari. O contratador Felisberto Caldeira Brant: sucessos,
tragédias e meandros de suas relações com o poder real.Anais doVI Encontro Internacional de História Colo-
nial. Mundos coloniais comparados: poder, fronteiras e identidades. Caderno de resumos. Salvador: EDUNEB,
2016. pp. 319-330.
27FRANCO, Francisco Assis de Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil. Belo Horizonte:
Editora Itatiaia Limitada, 1989. p. 85. Códice Costa Matoso. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, vol. I e
II, 1999. Op. cit., p. 30-31. Para este assunto ver também: FURTADO, Júnia Ferreira. Terra de estrelas: o distrito
dos diamantes e a fortuna dos contratadores. In: SCHWARTZ, Stuart e MYRUP, Eric. (Orgs.) O Brasil no im-
pério marítimo português. Bauru: Edusc, 2009. p. 217-262.
28 FURTADO, Júnia Ferreira. Chica da Silva e o contratador dos diamantes: O outro lado do mito. Op.
cit.,pp.30-31.
29 Ver: Carta de D. Lourenço de Almeida, governador de Minas, dirigida a D. João V, queixando-se do proce-
dimento de Felisberto Caldeira Brant e seu irmão Joaquim Caldeira, em virtude da violência praticada contra a
pessoa de Antônio da Cunha Silveira, ouvidor da Comarca do Rio das Mortes. Arquivo Histórico Ultramarino,
Minas Gerais, Avulsos, Cx.17, Documento 35.
30SANTOS, Joaquim Felício dos. Memórias do Distrito Diamantino. Op. cit. p. 84.

1421
Por certo, como vários estudos têm demostrado nas últimas décadas, sabe-se o destino que
tomou o terceiro contrato e o seu arrematante.Apesar disso, fez-se necessário retomar brevemente o
seu caminho, dissertando sobre as primeiras notícias sobre o seu envolvimento na atividade ilegal. O
período inicial do terceiro contrato foi de prosperidade, talvez pela falta de controle dos administradores
na extração de diamantes. Como consequência disso, o contratador Felisberto Caldeira Brant assistiu
ao aumento do seu poder e prestígio como potentado da região dos diamantes31.

Durante a administração dos irmãos Caldeira Brant, o descaminho e a ilegalidade tornaram-se


algo mais exteriorizado no cotidiano da localidade, consequentemente, abriram-se inúmeras brechas
para denúncias por crimes, garimpo ilegal, descaminho e o contrabando de pedras preciosas.

Perto do fim do terceiro contrato, de acordo com Júnia Furtado, “a sociedade encontrava-se
novamente afundada em dívidas; o resgate das letras emitidas estava ameaçado, e a situação do Tejuco,
prestes a sair do controle”32. Para evitar que a situação saísse ainda mais fora do domínio régio, a
renovação do contrato dos irmãos Caldeira foi vedada, mesmo com o pedido realizado para reiterar o
negócio entre 1751 e 1752. Ainda, segundo as considerações de Furtado, Caldeira Brant tentou pedir
ajudar ao seu antecessor, João Fernandes de Oliveira, para arrematar novamente o contrato33. Tudo
indica que o pioneiro da arrematação tinha outras estratégias para executar no momento, visto o
declínio eminente que se encontrava o contrato e o terceiro contratador34.

Como seria de esperar, antes do término previsto para o fim do terceiro contrato, João
Fernandes de Oliveira arrematou o quarto contrato por um período de seis anos. O quarto contrato de
extração de diamantes iniciou-se em janeiro de 1753.No reino, João Fernandes solicitou um parecer
acerca do caso ocorrido com o contratador dos diamantes, Felisberto Caldeira Brant¸ na comarca do
Serro Frio35. Convém notar que os atuais contratadores continuaram a difundir as transgressões e os
procedimentos presentes no terceiro contrato, isto é, a exploração fora das terras demarcadas para
lavrar as pedras preciosas, o número excessivo de homens escravizados que estavam trabalhando na
demarcaçãoe a prática de descaminho de diamantes, ou seja, as irregularidades administrativas na
execução do contrato que causaram gravesprejuízos à Coroa portuguesa. Por fim, João Fernandes fez
o pedido ordenando que os infratores fossem presos36. A solicitação foi atendida, por esse e outros
motivos, sobretudo devido às transgressões praticadas no período de vigência da terceiraarrematação
no sistema de contratos.

Para Furtado, se “antes amistosas, as relações entre os dois contratadores se deterioraram, e,


quando o terceiro contrato efetivamente quebrou, João Fernandes não hesitou em protestar letras que

31FURTADO, Júnia Ferreira. Saberes e Negócios: os diamantes e o artífice da memória, Caetano Costa Matoso.
Varia História. Belo Horizonte, UFMG, n. 1, 1985. p. 305.
32 FURTADO, Júnia Ferreira. Chica da Silva e o contratador dos diamantes: O outro lado do mito. Op.cit.,p.86
33 Idem, p.86.
34 FURTADO, Júnia Ferreira. Saberes e Negócios: os diamantes e o artífice da memória. Op.cit., p. 305.
35Arquivo Histórico Ultramarino, Rio de Janeiro, Avulsos, Cx.53, Documento 18.
36Arquivo Histórico Ultramarino, Rio de Janeiro, Avulsos, Cx.53, Documento 2. Arquivo Histórico. Arquivo
Histórico Ultramarino, Rio de Janeiro, Avulsos, Cx.56, Documento 14,16,17. Arquivo Histórico Ultramarino,
Rio de Janeiro, Avulsos, Cx.57, Documento 14.

1422
comprara em seu nome”37. De acordo com a autora, João Fernandes era um dos homens de negócio
da confiança de Sebastião José de Carvalho Melo, futuro marquês de Pombal38 esse pode ser um dos
fatores do êxito como negociante no direcionamento do sistema dos contratos, especialmente após
a implantação da nova administração no Arraial do Tejuco, em 1751, representada pelo Intendente
Sancho de Andrade Castro e Lanções, e pelo ouvidor de comarca, José Pinto de Morais Bacelar.

No que toca ao direcionamento do quarto contrato, em Portugal, João Fernandes de Oliveira


passou a responsabilidade para o seu filho de mesmo nome. O desembargador João Fernandes, o filho,
chegou no Arraial do Tejuco em 1753 para administrar o contrato régio, no qual permaneceu até o
ano de 177039. Oquinto contrato, que vigorou de 1759 a 1761,ficou sobos cuidados novamente de João
Fernandes de Oliveira, em associação com Antônio dos Santos Pinto e Domingos de Bastos Viana.
Desse contrato em diante, segundo Furtado, o comércio de pedras no mercado internacional passou a
ser monopolizado pela Coroa portuguesa, sendo assim, os contratadores ficaram apenas com o direito
de exploração no Arraial do Tejuco40. O sexto e último contrato de extração diamantes, considerado
o contrato mais longo de todos, continuou estabelecidoentre o pai e o filho por um período de dez
anos, de 1762 a 1771. Portanto, tornaram-sesócios e poderosos negociantes no empreendimento dos
contratos41.

Por muito tempo, a historiografia que se debruçou sobre os contratos da família Fernandes
de Oliveira destacou a figura do filho, o desembargador João Fernandes de Oliveirae sua relação com
a forra Francisca Oliveira da Silva, a Chica da Silva, criando assim um mito em torno desses perso-
nagens42. Para Furtado, esse fato se deve porque os autores tradicionais se basearam muitas vezes em
fontes orais, sem tecer críticas pertinentes acerca da temática, ou seja, a maioria das informações e
registros sobre esse período ficaram limitados pelo respeito à tradição43. Logo, as referências permea-
ram sobre o romance dessas figuras, com o objetivo de projetar a imagem do mito no cenário nacional,
isto é, através da literatura, teatro, cinema, e mais recentemente, pela exumação do corpo da Chica
da Silva para o documentário A Rainha das Américas - A Verdadeira História de Chica da Silva44.

37 FURTADO, Júnia Ferreira. Chica da Silva e o contratador dos diamantes. O outro lado do mit.Op.cit.,p. 86
38 Idem, p.86.
39 O quarto contrato vinha sido administrado por um representante, José Álvares Maciel, porém através de
procurações João Fernandes (filho) assumiu a administração, o representante foi obrigado a entregar a admi-
nistração, sendo expulso da demarcação acusado por má administração. AMU. Documentos relativos ao Brasil
-Bahia, n° 2585. In: Eduardo de Castro Almeida.Inventário dos Documentos relativos ao Brasil no Archivo de
Marinha e Ultramar. Anais da Biblioteca Nacional, vol 31, 1909, p. 172. Apud: FURTADO, Júnia Ferreira. Chica
da Silva e o contratador dos diamantes. O outro lado do mito. Op.cit., p. 99 -101. Confira também: Arquivo
Histórico Ultramarino, Minas Gerais, Avulsos, Cx.66, Documento 7.
40 FURTADO, Júnia Ferreira. Chica da Silva e o contratador dos diamantes. O outro lado do mitoOp.cit., p. 35.
41Idem, pp. 34, 100 e 118.
42 Sobre o assunto mito ver: LÉVI-STRAUSS, Claude; ERIBON, Didier. De perto e de Longe. São Paulo: Nova
Fronteira, 1991, pp. 178-183.
43FURTADO, Júnia Ferreira. Chica da Silva e o contratador dos diamantes. O outro lado do mito. Op.cit.,p.
278. Confira também: CARDOZO, Manoel da Silveira. O desembargador João Fernandes de Oliveira. Revista
da Universidade de Coimbra. Vol. XXVII, 1979, p. 303.
44 BBC Brasil. A escrava que virou rainha: documentário e livros revivem história da brasileira que rompeu
padrões do século 18.Rio de Janeiro, 2016.Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/geral-36658302.
Acesso em 02 de janeiro de 2017.

1423
Ainda dando voz às considerações de Furtado, não resta dúvida acerca do mito que se criou em torno
dessas figuras, no qual “tem sido usado para sustentar alegação de que, no Brasil, os laços de afeto e
as relações físicas entre brancos livres e mulheres de cor abrandaram a exploração inerente ao sistema
escravista em face do concubinato”45.

Ao trabalhar com usos e significados da memória e da história de uma personagem regional,


Joaquina do Pompéu, o historiador Gilberto Cezar de Noronha afirma que a história adquire apro-
priações e muitas vezes é tomada de significados pela memória dos diversos grupos que lembram de
um personagem46, como foi o caso da personagem do seu estudo, de Chica da Silva e do contratador
João Fernandes de Oliveira, todas figuras do século XVIII que ainda se fazem presente pela memória
nos dias atuais. Para Noronha, o fato investigado deve ser visto, ele próprio, como uma intriga e não
como objeto de uma única face. Sendo assim, um personagem não deve ser considerado por uma
única dimensão47.

Nesse contexto, por mais que a historiografia das últimas décadas venha demonstrando a com-
plexidade da sociedade colonial, da mineração e do sistema de contratos de extração de diamantes na
comarca do Serro Frio, como frisou Furtado, o que se propagou, sobre esse período específico, foi o
ideário de dominação branca, representado pelo contratador João Fernandes de Oliveira, a sexualida-
de de Chica da Silva, o estereótipo da cultura africana e dos negros sem nenhum compromisso com a
realidade do século XVIII48.

Prova da importância da gestão e êxito da família Fernandes de Oliveira no direcionamento do


sistema dos contratos, para além da popularização e difusão do seu relacionamento com a forra Chica
da Silva, é o modo como conduziram arrematação através de suasredescomo negociantes no contrato,
o que significa isso, a família arrematou cinco contratos entre 1740 e 1747, e entre 1753 e 1771, tendo
como intervalo apenas o terceiro contrato, que foi arrematado pelos irmãos Caldeira.

Uma ressalva extremamente importante sobre os contratos arrematados pela família Fernan-
des de Oliveirafoi a grande parte da riqueza acumulada através das irregularidades produzidas ilegal-
mente na extração de diamantes. Este cenário se assemelha aos delitos notificados também no terceiro
contrato conduzido por Felisberto Caldeira Brant, porém, devemos destacar, conforme salientou Fur-
tado, João Fernandes “não deixou tantas provas quanto as do descuidado Caldeira Brant”49.A menção
do seu retorno para Lisboa sugere circunstâncias relacionais ocasionadas na sua vida privada, espe-
cialmente o falecimento do seu pai, o contratador regressou ao Reino em 12 de novembro de 1770. Em
julho de 1771, o sistema de contrato foi extinto e foi decretado o monopólio régio através do Regimen-

45 FURTADO, Júnia Ferreira. Chica da Silva e o contratador dos diamantes. O outro lado do mito. Op.cit.,pp.
22-33.
46 NORONHA, Gilberto Cezar de. Joaquina do Pompéu: Tramas de memórias e histórias nos sertões do São
Francisco. Uberlândia: Editora Edufu, 2007. pp. 138-147.
47Idem, p.15.
48 FURTADO, Júnia Ferreira. Chica da Silva e o contratador dos diamantes. O outro lado do mito.Op.cit.,p.283.
49 Idem, p.211.

1424
to de 1771 e, posteriormente, foi instalada a Real Extração dos Diamantes na demarcação,em 177250.

Um aspecto importante abordado por Carmen Marques Rodrigues refere-se ao momento


conturbado que foi o período do sistema de contratos, marcado especialmente pelo contrabando e
práticas de descaminho, realizado tanto pelos contratadores da extração de diamantes como por ou-
tros membros da sociedade colonial51. Esse período de vigência do sistema de contratos na comarca
do Serro Frio fomentou o envolvimento em irregularidades, as fraudes na arrematação reduziam a
capacidade real de tributação, ao mesmo tempo que não traziam qualquer benefício econômico para a
Coroa e nem para a população, mas sem dúvida tornou-se uma poderosa estratégia de enriquecimen-
to para um seleto grupo de homens de negócio capaz de investir em tais atividades52.

Na capitania mineira, vários foram os desdobramentos para que a Coroa conseguisse atingir
a sua governabilidade, sobretudo por conta de uma de suas atividades econômicas, a exploração e ex-
tração de metais preciosos. No que toca à comarca do Serro Frio, as redes de poder que se formaram
na região envolveram diferentes agentes históricos, onde podemos dizer que as circunstâncias das
transformações na organização político-administrativa da comarca ofereceram oportunidades para
que diferentes grupos se adentrassem em atividades ilícitas, com a pretensão de conseguir algum
tipo de distinção e enriquecimento, com base no funcionamento desta sociedade que tinha valores e
práticas do Antigo Regime53.

Portanto, as irregularidades foram uma realidade da América portuguesa desde o século XVI,
e que também estiveram presentes na arrematação dos contratos, sobretudo por conta das alianças
50SIMÕES, Josanne Guerra; FURTADO, Júnia Ferreira; MIRANDA, Maria Elisa Mendes; QUITES, Moema de
Jesus C; HEMÉTO, Vânia Ribeiro. Reavaliando o significado do Regimento Diamantino de 1771. Revista do
Departamento de História da UFMG, Belo Horizonte, v.1, 1985. pp.91-98. FURTADO, Júnia Ferreira.O livro
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FINAL-com-FICHA.pdf . Acesso em 05 de janeiro de 2018.
51RODRIGUES, Carmen Marques. Os Mapas das pedras brilhantes: A cartografia dos sertanistas, dos enge-
nheiros militares e dos padres matemáticos sobre o Distrito Diamantino do Serro Frio (1714-1771). Universi-
dade Federal de Minas Gerais, Departamento de História. Dissertação de Mestrado, História, 2014. p. 59
52 ALMEIDA, Carla; Antonio Carlos Jucá de Sampaio; COSTA, André. Fiscalidade e comunicação política
no Império. In: Fragoso, João & Gonçalo Monteiro, Nuno (Orgs). Um Reino e suas Repúblicas no Atlântico.
Comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2017. p.214.
53 Podemos apresentar alguns casos como ilustração: Em 1729, através de carta, o governador da capitania de
Minas Gerais, D. Lourenço de Almeida, queixou-se da pouca tiragem do ouro nas minas da comarca do Serro
Frio, além de queixar-se do descaminho dos reais quintos. Arquivo Histórico Ultramarino, Minas Gerais, Avul-
sos, Cx.14, Documento 54. No ano 1735, o ouvidor-geral do Rio de Janeiro, Agostinho Pacheco Teles, enviou
uma carta ao rei D. João V, informando a prisão de João Freire Souto Maior, acusado pelo crime de falsificação
de moeda na comarca de Serro Frio. Arquivo Histórico Ultramarino, Rio de Janeiro, Avulsos, Cx.28, Documen-
to 5. Em 1746, o ouvidor de comarca do Serro Frio, Custódio Gomes Monteiro, enviou uma carta a D. João V,
solicitando ordens definindo quem deveria tirar devassa dos presos da comarca, alegando a falta de autoridade
na localidade. Arquivo Histórico Ultramarino, Rio de Janeiro, Avulsos, Cx. 46, Documento 22. No ano de 1751,
o secretário de estado da Marinha e Ultramar redigiu um ofício sugerindo providências para o maior controle
dos caminhos e registros, com o intuito de evitar o contrabando de ouro. Arquivo Histórico Ultramarino, Rio
de Janeiro, Avulsos, Cx. 51, Documento 15.

1425
políticas e econômicas, assim como da complacência das autoridades em aceitar atividade ilícitas dos
contratadores e de outros membros da sociedade colonial54.Partindo desses pressupostos, torna possí-
vel pensar nos espaços de flexibilidade inerentes da sociedade colonial, mesmo sem negar as políticas
de controle exercidas pela Coroa Portuguesa para evitar as práticas consideradas ilícitas.Do quadro
geral esboçado, pode-se afirmar que as alterações produzidas pela Coroa portuguesa não foramsufi-
cientes para que as irregularidades fossem suprimidas no mundo colonial, visto que se fizeram presen-
tes nessa conquista desde os princípios da sua formação.

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1427
Dos ganhos e interesses na Real Fazenda: autos de arrematação, contratadores, economia
e fiscalidade na capitania do Rio Grande (1673-1723)
Lívia Brenda da Silva Barbosa55

Os autos de arrematação dos dízimos reais eram postos como pregão público com o objetivo
de lançar em forma de contratos a arrecadação sobre a produção na capitania do Rio Grande. Assim,
utilizava-se de um mecanismo administrativo para atribuir a particulares a responsabilidade de ar-
recadar os tributos régios. Ao arrematar o contrato o rendeiro pagava à Provedoria da Fazenda Real
um valor previamente estabelecido de acordo com as cláusulas do pregão e a diferença entre o que ele
pagava e o que de fato era arrecadado consistia no seu ganho56. Mesmo em tempos de poucos lances os
autos de arrematação da Provedoria da Fazenda Real ocorriam57. O processo dos autos de arrematação
da Provedoria do Rio Grande era organizado, seguia um padrão ritualístico bem definido e acontecia
mesmo com algumas dificuldades. Findo o auto, o contratador tomava os ramos verdes em mãos e
outra etapa viria: a arrecadação. O auto de arrematação era apenas o começo de uma jornada de co-
branças e registros burocráticos que tinham o objetivo de garantir as rendas da capitania.

Ainda que ocorressem de forma padronizada e com determinações bem definidas, não havia
garantia de que os contratos seriam pagos dentro do prazo ou de que os contratadores conseguiriam
uma boa arrecadação. Quando o pregão chegava ao fim iniciavam-se outras etapas para os oficiais e
os contratadores. As dificuldades administrativas não estavam apenas nos autos.As características dos
autos de arrematação da Fazenda do Rio Grande fazem com que algumas questões sejam considera-
das. A inconstância dos autos – dificuldades enfrentadas nos pregões – ausência de lances, pausas e
retomadas poderiam influenciar na arrecadação, o que tornava as rendas da capitania oscilantes58. As
perguntas sobre o que poderia tornar as rendas da Provedoria do Rio Grande tão frágeis imperam:
seriam os problemas dos autos de arrematação? A falta de interesses dos lançadores em arrematar os
contratos? A baixa produção que impedia uma boa arrecadação? A conjuntura conturbada da retoma-
55Graduada em História/Licenciatura (2014) e em História/ Bacharelado (2016) pela UFRN. Possui mestrado
em História (2017) pelo Programa de Pós-graduação da mesma instituição (PPGH-UFRN). Integra o Labo-
ratório de Experimentação em História Social da UFRN (LEHS-UFRN), e faz parte do grupo de pesquisa
Impérios Ibéricos no Antigo Regime: política, sociedade e cultura. Atualmente trabalha no Núcleo de Docu-
mentação e Pesquisa Histórica (NUDOPH) da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) como
técnica especializada do Departamento de História.
56 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p.
340, 341.
57 Os registros dos autos de arrematação da Provedoria da Fazenda Real do Rio Grande narram em detalhes
como ocorria o processo, seus participantes e oficiais envolvidos. Sobre o processo do auto de arrematação, sua
ritualística e procedimentos ver: BARBOSA, Lívia Brenda da Silva Barbosa. Com os ramos nas mãos, para o
lucro dos homens e da Coroa: os autos de arrematação da Provedoria da Fazenda Real do Rio Grande (1673-
1723). Temporalidades, v. 8, p. 392-408, 2016. Thiago Alves Dias tratou sobre os autos de arrematação no
caso da Câmara do Natal. Ver: DIAS, Thiago Alves. O Código Filipino, as Normas Camarárias e o comércio:
mecanismo de vigilância e regulamentação comercial na capitania do Rio Grande do Norte. Revista Brasileira
de História. v. 34, n. 68, p. 215 – 236. 2014. DIAS, Thiago Alves. Dinâmicas mercantis coloniais: Capitania do
Rio Grande do Norte (1760-1821). 2011. 277 f. Dissertação (Mestrado em História e Espaços) - Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2011.
58BARBOSA, Lívia Brenda da Silva Barbosa. Com os ramos nas mãos Op. cit.

1428
da da colonização, da interiorização do povoamento e da Guerra dos Bárbaros?As respostas podem
não ser tão exatas, mas envolvem uma série de dinâmicas que dizem respeito a produção, grupos de
interesse, e de forma geral ligam economia e fiscalidade. Nesse sentido, com base principalmente nos
autos de arrematação dos dízimos reais da Provedoria da Fazenda Real do Rio Grande, pretende-se
compreender a relação entre os grupos de contratadores e as dinâmicas da economia e da fiscalidade
entre a segunda metade do século XVII e o início do século XVIII, na capitania do Rio Grande, apon-
tando-se algumas hipóteses iniciais acercadestas questões59.

A arrecadação

O processo de reorganização das atividades da Provedoria da Fazenda Real do Rio Grande, no


século XVII, pode ser analisado paralelo às questões relacionadas à arrecadação de tributos na capi-
tania. O recolhimento da tributação, no recorte analisado, está cercado de alguns impasses, que co-
meçam já na arrematação dos contratos, quase sempre levadas a cabo com dificuldades, interrupções
e falta de lançadores interessados60. A tabela abaixo organiza os aspectos da arrecadação de impostos
sob a competência da Fazenda do Rio Grande entre 1660 e 1723:

Quadro I – Arrecadação dos dízimos da Fazenda Real do Rio Grande (1660-1723)


Período Produção sobre a qual recaía a cobrança
1665 Engenhos de açúcar
1673-1700 Gado, açúcar, tabaco, pescados, sal e miunças
1700-1723 Gado, açúcar, lavouras e pescados
Fontes: AHU-RIO GRANDE DO NORTE, Cx. 1, D. 7. AUTOS de arrematação dos dízimos da capitania do Rio Grande e
Siará Grande entre 1673-1723. Fundo documental do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte.

O dízimo era a cobrança de 10% sobre a produção. Segundo Caio Prado Júnior, “antigo direito
eclesiástico cedido pela Igreja, nas conquistas portuguesas à Ordem de Cristo, e que se confundiu mais
tarde com os do rei, que se tronou [...] Grão-Mestre da Ordem de Cristo”, por ocasião do padroado. O
tributo que em sua ideia original deveria servir para os gastos com a Igreja acabou se misturando com
as outras receitas e sendo aplicado costumeiramente para todos os tipos de despesas. O dízimo era a
59 O recorte inicial deste texto, 1673, é demarcado pela disponibilidade de fontes, pois é o ano do primeiro
auto de arrematação da Provedoria da Fazenda Real do Rio Grande até agora encontrado, a principal fonte aqui
utilizada. O recorte final, 1723, corresponde a um marco importante no que diz respeito as dinâmicas fiscais
da Provedoria do Rio Grande. Foi nesse ano em que a referida Provedoria passou a ter competências adminis-
trativas apenas sobre a capitania do Rio Grande, pois desde a década de 1680 era responsável pela arrecadação
também da capitania vizinha Siará Grande. A partir de 1723 foi criada junto com a ouvidoria do Siará Grande
sua provedoria, reduzindo-se assim as competências da Provedoria do Rio Grande em termos territoriais.
60 Ver: BARBOSA, Lívia Brenda da Silva. Com os ramos nas mãos, para o lucro dos homens e da Coroa: os
autos de arrematação da Provedoria da Fazenda Real do Rio Grande (1673-1723). Temporalidades – Revista de
História, Edição 21, V. 8. N. 2 (maio/agosto). p. 392 -408.

1429
maior fonte de arrecadação durante o período colonial61.

Como observado na tabela acima, foi possível, com base nos autos de arrematação, identi-
ficar sobre o que reincidia a cobrança do tributo no recorte analisado. Inicialmente, percebe-se que
a cobrança era realizada apenas sobre a produção de engenho, certamente a única fonte possível de
cobrança na década de 1660. Como dito anteriormente no capítulo II, a capitania encontrava-se em
situação de pobreza e necessitava constantemente da ajuda da Provedoria-mor ou da Fazenda de Per-
nambuco. Tratava-se de um momento delicado para a arrecadação de tributos, visto que a capitania
ainda se recuperava da ocupação holandesa. Além disso, o próprio povoamento do território ocorria
de forma muito tímida. Sendo assim, não havia alta e variada produção para que se reincidisse sobre
a cobrança dos dízimos62. A cobrança apenas sob os engenhos é o reflexo da situação socioeconômica
da década de 1660. Sinal de que certamente a única forma possível de cobrar o dízimo era sob o pouco
que se produzia no Engenho Cunhaú. Cobrança essa que rendia apenas 200 réis anuais para os cofres
da Fazenda Real do Rio Grande63.

Outro aspecto importante para a arrecadação da Fazenda Real do Rio Grande parece ter sido
formado nesses anos iniciais de retomada do funcionamento da instituição: a variedade de tributos
que ficaram sob a competência da Fazenda do Rio Grande. Não somente a Fazenda Real possuía
competências fiscais na capitania, o Senado da Câmara também detinha em sua administração alguns
aspectos da arrecadação. Conforme Caio Prado, “as finanças do Senado se formavam com os réditos
que lhe competia arrecadar: foros e tributos autorizados pela lei geral ou especialmente concedidos
pelo soberano”64. Assim, a Câmara também possuía fontes de receita.

O caso da capitania do Rio Grande é curioso, pois a Câmara detinha uma variedade maior de
tributos do que a própria Provedoria. A cobrança sobre a produção e a Câmara, principalmente os
tributos relacionados a manufaturas e comércio, era o que recaía para a Provedoria. Importante ressal-
tar que, apesar de a Provedoria deter apenas um tipo de tributo, essa cobrança era a do dízimo, maior
fonte de receita da capitania, ou seja, os 10% de tudo o que era produzido estava para a Provedoria.
O Senado da Câmara cobrava tributação sobre mel, aguardente, comércio da carne e de peixes. Além
disso, tinha a função específica do controle do comércio de produtos. Esses direitos eram controlados
pela Câmara, e assim como na Provedoria, sua cobrança era concedida a particulares por meio dos
contratos.

Em sua dissertação de mestrado, Thiago Alves Dias dividiu os contratos da Câmara de Natal
em três categorias: aferições, molhados e secos. Os primeiros eram concedidos pelo tempo de um ano,
e não exigiam fiadores. O contratador das aferições tinha o direito de fiscalizar os pesos e medidas que

61 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p.
340,341.
62 DIAS, Patrícia de Oliveira. Onde fica o sertão rompem-se as águas: processo de territorialização da ribeira
do Apodi-Mossoró (1676-1725). 2015. 175 f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, Natal- RN. p. 46-53.
63CARTA dos oficiais da Câmara de Natal ao rei [D. Afonso VI] sobre o estado de ruína da Fortaleza dos Reis
Magos e a falta de soldados, armas e munições. Anexo: carta (treslado). AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 1, D. 7.
64 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. Op. Cit., p. 336.

1430
eram utilizados no comércio. Esses indivíduos confirmavam se os pesos e medidas utilizados na venda
de grão eram condizentes com os definidos pela Câmara. O contrato dos molhados era semelhante
ao das aferições. Também concedido por um ano permitia que o contratador cobrasse taxação sobre
o comércio de “volumes”, como barris e pipas, mel e aguardente. O contrato das carnes era concedido
pelo tempo de três anos. Nele, o arrematante recebia a licença da Câmara para abastecer com carne as
localidades da capitania65. Além dessas cobranças, as Câmaras detinham especificamente a taxação do
valor de venda de alguns produtos na cidade. Observa-se na tabela abaixo o levantamento feito por
Bruno Chaves para o Senado da Câmara da cidade do Natal entre 1709 e 1759:

Quadro II – Produtos almotaçados pela Câmara da cidade do Natal (1709-1759)


Produtos Preços Medida/quantidade
Carne de vaca e boi capado (1709-1711; 1713) 1 cruzado (400 réis) a arroba

Boi em grão (1709-1711, 1715) 12 vinténs (240 réis) ----


Boi em grão (1713) 1 pataca (320 réis) ----
Porco macho (1709-1711; 1713;1721-1725;1727) 2 vinténs (40 réis) a libra (0,453kg)
Porco macho (1715;1728-1729;1732;1734;1738- 30 réis a libra (0,453kg)
1742;1744-1745;1747;1750;1759)

Porco macho, na cidade do Natal (1712) 2 vinténs (40 réis) a libra (0,453kg)
Porco macho, fora da cidade do Natal (1712) 30 réis a libra (0,453kg)
Porco fêmea (1709-1711; 1713; 1715;1732;1734;1738- 1 vintém (20 réis) a libra (0,453g)
1742;1744-1745;1747;1750;1759)

Porca fêmea (1721-1725;1727) 30 réis a libra (0,453kg)


Porca fêmea (1728-1729) 15 réis a libra (0,453kg)
Porco fêmea, na cidade do Natal (1712) 25 réis a libra (0,453kg).
Porco fêmea, fora da cidade do Natal (1712) 1 vintém (20 réis) a libra (0,453kg)
Carne seca, livre do osso (1719-1721) 2 vinténs (40 réis) a libra (0,453kg)
Carne seca, livre do osso (1722-1725;1727- 30 réis a libra (0,453kg)
1729;1732;1734;1738-1742;1744-
1745;1747;1750;1759)
Farinha na cidade do Natal (1709) 640 réis o alqueire (15 kg)
Farinha fora da cidade do Natal (1709) 400 réis o alqueire (15 kg)
Farinhas (1710) Não se venderá por ----
preços exorbitantes
Farinha (1711) Arbítrio do vendedor
e compradores
65 DIAS, Thiago Alves. Dinâmicas mercantis coloniais: Capitania do Rio Grande do Norte (1760-1821). 2011.
277 f. Dissertação (Mestrado em História e Espaços) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal,
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1431
Farinha em casas (1712) 480 réis ----
Farinha na cidade do Natal (1712-1713) Pelo que puderem ----
Farinhas em casas (1713) 400 réis o alqueire (15 kg)
Mel, aguardente, farinha e fumos nas vendas Vender com o ganho ----
(1719;1721-1725;1727-1729;1732;1734;1738- de 25% do preço que
1742;1744;1747;1750;1759) correr na terra desses
produtos
Bananas maduras curtas (1719-1725;1727- por 1 vintém (20 réis) 20 bananas
1729;1732;1734;1738-1741)

Bananas maduras compridas e miúdas (1719- 15 por 1 vintém (20


1725;1727-1729;1732;1734;1738-1741) réis)

Bananas maduras grandes (1719-1725;1727-1729; por 1 vintém (20 réis) 10 bananas


1732;1734;1738-1741)

Bananas verdes (1719-1724;1738-1741) O dobro da quantida- ----


de da maduras.
Laranjas da China nas vendas da Cidade do Natal por 1 vintém (20 réis) [ilegível]
(1738)
Laranjas da China fora da Cidade do Natal (1738) por 1 vintém (20 réis) 30 laranjas
Laranjas da terra na Cidade do Natal (1738) por 1 vintém (20 réis) 30 laranjas
Laranjas da terra fora da Cidade do Natal (1738) por 1 vintém (20 [ilegível]
réis).
Bananas curtas e compridas, laranjas da China e da Vendidas na cidade ----
terra (1742) pelo que for almota-
çado pelo Almotacé.
Fonte: Quadro feito com base no elaborado pelo historiador Kleyson Bruno Chaves Barbosa. Disponível em: BARBOSA,
Kleyson Bruno Chaves. “E se fixará nos lugares mais públicos e costumados desta cidade e ribeiras desta capitania”: postu-
ras municipais da Câmara da cidade do Natal na capitania do Rio Grande (1700-1760). Anais do VII Encontro de História
ANPUH-RN – 26 a 29 de julho de 2016.

Desse modo, nota-se que a divisão tributária entre a Câmara de Natal e a Provedoria do Rio
Grande ocorria basicamente pelo critério da cobrança sobre o comércio, para a primeira, e sobre a
produção para a segunda. Não foi encontrado alvará ou ordem régia que delimitasse essas competên-
cias.

Quanto a essa questão, acredita-se que se trata de uma especificidade da capitania, que come-
çou a ser definida na década de 1660, quando ambas as instituições retomaram o seu funcionamento.
Levanta-se a possibilidade de que a Câmara de Natal deteve maior variedade de tributos do que a
Provedoria por ter começado a funcionar antes, já em 1662, enquanto em 1663 a Provedoria ainda
incorria no processo da nomeação de seu primeiro provedor da segunda metade do século XVII. Para
o caso dos produtos almotaçados não há o que discutir, pois tratava-se de uma competência exclusiva

1432
das Câmaras na América Portuguesa66.

Essa característica da Fazenda do Rio Grande é ressaltada quando é comparada ao caso com
os de outras capitanias. Os dados para a primeira metade do século XVIII apontam que, na Paraíba, a
Provedoria tinha em sua competência a cobrança dos dízimos; do subsídio da carne, taxação sobre o
corte do gado; o subsídio do açúcar, cobrança de 60 réis por arroba de açúcar branco exportado e 30
réis por arroba de açúcar mascavado; o cruzado das caixas, 400 réis por cada caixa usada para comér-
cio e 200 réis por feixe; e a dízima, imposto de 10% que reincidia sob a importação. Destaca-se que o
subsídio da carne era competência da Câmara até 1732, quando passou a ser cobrado pela Provedoria
da Paraíba67. Já a Provedoria de Pernambuco detinha a cobrança dos dízimos; do subsídio da carne; da
aguardente; vintena do peixe, 1/20 de peixes que fossem pescados na capitania; o subsídio do açúcar;
a dízima, taxação de 10% sobre os produtos que passassem pela alfândega68.

A complexificação das rendas da Provedoria do Rio Grande ocorre a partir da década de 1670.
Quando antes a cobrança é identificada apenas sobre os engenhos, a partir de 1673 especifica-se nos
autos de arrematação a cobrança sobre gado, açúcar, tabaco, pescados, sal e miunças (animais de
pequeno porte: patos, galinhas, porcos). Já no começo do século XVIII descreve-se a cobrança sobre
gado, açúcar, lavouras e pescados, a inserção do termo “lavouras”, indica que já havia nesse momento
a produção de víveres maior que anteriormente, sinalização de que o povoamento começava a se fixar
melhor.

Foi também na década de 1670 que se identificou a primeira menção no que diz respeito a
influência fazendária que a Fazenda do Rio Grande detinha sob o Siará Grande. Assim que assumiu o
posto de provedor da Fazenda, Lázaro de Freitas Bulhões recebeu ordens para que mandasse cobrar os
dízimos “dos ramos” do Siará Grande do ano de 167669. Desde então, contata-se que a Provedoria da
Fazenda Real do Rio Grande era a responsável por lançar o pregão dos contratos dos dízimos do Siará,

66 Conforme Charles Boxer: “A Câmara supervisionava a distribuição e o arrendamento das terras municipais
e comunais; lançava e coletava impostos municipais; fixava o preço de muitas mercadorias e provisões; con-
cedia licenças a vendedores ambulantes, mascates, etc, verificava a qualidade do que era vendido; concedida
licenças para construção; assegurava a manutenção de estradas, pontes, fontes, cadeias e outras obras públicas;
regulamentava os feriados públicos e as procissões, e era responsável pelo policiamento da cidade e pela saúde
e o saneamento públicos. A arrecadação da Câmara provinha diretamente das rendas da propriedade munici-
pal, incluindo as casas que eram alugadas como lojas, e dos impostos com que se tributava ampla variedade de
produtos alimentícios postos à venda, embora as provisões básicas – pão, sal e vinho – a princípio estivessem
isentos. Outra fonte de renda procedia das multas cobradas pelos almotacéis e outros funcionários àqueles que
transgrediam os estatutos e as regulamentações municipais (posturas), tais como vendedores que não tinham
licença ou roubavam no peso”. BOXER, Charles. Conselheiros municipais e irmãos de caridade. In: _____. O
Império ultramarino português 1415-1825. Charles Boxer; tradução Anna Olga de Barros Barreto. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002. p. 289. MENEZES, Mozart Vergetti de. Colonialismo em ação: Fiscalismo, Econo-
mia e Sociedade na Capitania da Paraíba (1647-1755). João Pessoa: Editora da UFPB, 2012. p. 130-140.
67

68 SILVA, Daniele Ferreira da.Colonialismo e fiscalidade na capitania de Pernambuco (1770-1793). 2011. 113
p. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Pernambuco. p. 57-61.
69CARTA para o Capitão-mor da Capitania do Rio Grande sobre a arrecadação dos dízimos do Ciará. Docu-
mentos Históricos da Biblioteca Nacional. Volume X. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1929. p. 186.

1433
por meio dos autos de arrematação realizados em praça pública na cidade do Natal70. Essa competên-
cia persiste até o ano de 1723, quando foi criada a Provedoria do Siará Grande e a capitania não ficou
mais dentro da área de influência fazendária da Provedoria do Rio Grande71.

A vinculação da Provedoria da Fazenda Real do Rio Grande a um novo tributo ocorreu so-
mente em 1725. Nesse ano, a cobrança do tributo do gado do vento é subdividida dos dízimos reais.
Essa era uma cobrança específica e diferente das demais realizadas até então72. Esse imposto era co-
brado sobre o gado do vento, aquele que era criado solto e sem marca do proprietário.73 De acordo
com os forais de D. Manuel I, o gado do vento era encontrado geralmente solto, pastando sem dono, e
caso o proprietário não se pronunciasse e reclamasse o gado que lhe pertencia, era então chamado de
gado do vento. Esse gado era considerado propriedade da Coroa e poderia ser vendido, sendo o valor
revertido como imposto da Fazenda Real74.

70Fundo documental do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. Dízimos Reais: termosde
arrematação dos dízimos da capitania. 1660 a 1666. Nº caixa ant. 113. Fls. 75-81. Fundo documentaldo Instituto
Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. Dízimos Reais: termos de arrematação dosdízimos da capita-
nia. 1660 a 1666. Nº caixa ant. 113..Fundo documental do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do
Norte. Dízimos Reais -arrematação 1690 a 1698. Nº caixa ant. 49.Fundo documental do Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Norte. Dízimo – arrematação 1702-1705. Nº caixa ant. (documento sem registro
no catálogo). Fundo documental do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. Dízimos reais
(arrematação) 1715-1716-1725. Nº decaixa ant. 49.
71 Ver: PINTO, Irineu Ferreira. Datas e Notas para a História da Paraíba. João Pessoa: Editora Universitária/
UFPB, 1977. p. 120.
72 REQUERIMENTO do tenente-coronel da Cavalaria, João Pinto a Cruz, seus irmãos Francisco, Antônio Pin-
to da Cruz e Matias Simões Coelho, ao rei [D. João V], pedindo nomeação de um ministro de fora da capitania
do Rio Grande do Norte a fim de proceder nova devassa, devido a denúncia feita pelo rendeiro da renda [do
gado do vento] da ribeira do Apodi, Inácio Pereira de Sousa. AHU- PE, Papéis Avulsos, Cx. 60, D. 5131.
73 CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei D. João V sobre carta do provedor da Fazenda Real do Rio
Grande do Norte, Teotónio Fernandes Temudo, acerca dos moradores da Ribeira do Apodi que impediam a
execução do contrato do gado do vento. AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 5, D. 286.
74 Ver: SILVA, Daniele Ferreira da.Colonialismo e fiscalidade na capitania de Pernambuco (1770-1793). 2011.
113 p. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal de Pernambuco. p.65. A nomenclatura gado
do vento, gado do invento foi encontrada nas fontes que fazem referência ao Rio Grande: CONSULTA do
Conselho Ultramarino ao rei D. João V sobre carta do provedor da Fazenda Real do Rio Grande do Norte,
Teotónio Fernandes Temudo, acerca dos moradores da Ribeira do Apodi que impediam a execução do con-
trato do gado do vento. AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 5, D. 286. REQUERIMENTO do tenente-coronel da
Cavalaria, José Pinto da Cruz, ao rei [D. João V], pedindo alvará de fiança para tratar do seu livramento, pois
está preso na fortaleza da Barra do Rio Grande, pronunciado em devassa feita pelo provedor da Fazenda Real,
Teotônio Fernandes Temudo, por denúncia do seu inimigo, o rendeiro da Renda [do gado] do Vento no sertão
e ribeira do Apodi, Inácio Pereira de Sousa. AHU- PE, Papéis Avulsos, Cx. 60, D. 5120. REQUERIMENTO do
tenente-coronel da Cavalaria, João Pinto a Cruz, seus irmãos Francisco, Antônio Pinto da Cruz e Matias Simões
Coelho, ao rei [D. João V], pedindo nomeação de um ministro de fora da capitania do Rio Grande do Norte a
fim de proceder nova devassa, devido a denúncia feita pelo rendeiro da renda [do gado do vento] da ribeira do
Apodi, Inácio Pereira de Sousa. AHU- PE, Papéis Avulsos, Cx. 60, D. 5131 CARTA do [governador da capitania
de Pernambuco], Henrique Luís Pereira Freire de Andrada, ao rei [D. João V], sobre ter cumprido a ordem
de suspensão do capitão-mor do Rio Grande [do Norte], Francisco Xavier de Miranda Henriques, por quatro
meses, por ter concorrido para as desordens dos moradores da ribeira do Apodi, que impediram a execução do
contrato dos gados do vento ou do ramo. AHU- PE, Papéis Avulsos, Cx. 60, D. 5169. CARTA do [governador da
capitania de Pernambuco], Henrique Luís Pereira Freire de Andrada, ao rei [D. João V], sobre o cumprimento
da provisão acerca do contrato dos gados do vento ou do ramo, da ribeira do Apodi, no Rio Grande do Norte,
para remeter presos os rebeldes culpados de impedir a execução do referido contrato e suas culpas e repreender
o governo e justiça da dita capitania. AHU- PE, Papéis Avulsos, Cx. 60, D.5170.

1434
Para evitar confusões, o gado do vento possuía um processo de avaliação para que a sua condi-
ção de propriedade régia fosse definida ou não. O gado criado solto era avaliado primeiramente após
ser encontrado pelo contratador. Admoestações eram feitas imediatamente na igreja da localidade e,
posteriormente, eram lançados editais públicos, para que os seus donos fossem noticiados da situação.
Caso os donos do gado não fossem encontrados, dois homens de reta consciência avaliariam o gado,
lançando o valor que de acordo com opinião deles correspondia ao dito gado. Assim, acredita-se que a
arrecadação do imposto do gado do vento incidia no valor arrecadado com a sua venda, quando o seu
valor era definido pelos dois homens de reta consciência75. Apresentados os aspectos da arrecadação,
outra questão relevantes é sobre as relações de interesse dos lançadores dos contratos dos dízimos
reais da Provedoria do Rio Grande, aspectos que serão analisados nos tópicos a seguir.

Os contratadores e as rendas

Segundo Stuart Schwartz, em geral, os arrematadores espalhados no reino e ultramar tinham


uma “ideia aproximada da produtividade da região, mas não podiam prever secas, inundações ou
guerras”. O autor destaca que os contratadores possuíam “provavelmente uma capacidade muito me-
lhor de estimar o preço dos bens produzidos”. Além disso, tinham conhecimento que “se a produção
dobrasse, mas o preço caísse pela metade, o valor do contrato não seria maior do que fora antes das
alterações”76. Como complemento a essa afirmação de Schwartz, Mozart Vergetti de Menezesreiterou
que:
por isso, era comum que grandes arrematadores, que tinham cabedais suficientes
para tal, se envolvessem em mais de um contrato de ramos diferentes e em diversas
praças do Império Português. Mas o acúmulo de contratos, sob olhos atentos da Co-
roa, não era algo prudente, pois se temia que, em caso de um contrato malsucedido,
o resultado fosse o encadeamento da ruína de arrematadores e fiadores77.
75 OFÍCIO (1ª via) da Junta da Fazenda Real da capitania de Pernambuco ao [secretário de estado do Reino e
Mercês], marquês de Pombal, [Sebastião José de Carvalho e Melo], sobre arrecadação de escravos e do gado de
vento para Fazenda Real. Anexos: 4 docs. AHU- PE, Papéis Avulsos, Cx. 119, D. 9159.
76 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Compa-
nhia das letras, 1998.p. 154 Apud MENEZES, Mozart Vergetti de. Colonialismo em ação: Fiscalismo, Economia
e Sociedade na Capitania da Paraíba (1647-1755). João Pessoa: Editora da UFPB, 2012. p. 120-121.
77 Conforme Mozart Menezes, para a capitania Paraíba, há o caso de Rafael Nunes Paz, que foi pretendente a
arrematador dos dízimos na Paraíba, em 1727, quando, um ano antes, e em conjunto com Manuel Rodrigues
Costa, contratou os dízimos em Pernambuco por cinquenta mil cruzados. AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 7,
D. 541. É interessante também o caso de Manuel Correia Bandeira, que apareceu aperreado, em 1725,“com a
notícia de um decreto que havia sua majestade baixado ao Conselho de sua Real Fazenda, para que não pu-
desse arrematar um contrato a quem já tivesse outro”. Dessa feita, o arrematador temia perder o contrato do
direito real de cobrar os 3$500 réis sobre “os escravos que se resgatam em toda a Costa da Mina, Cacheu, São
Tomé e mais partes para a Paraíba, Pernambuco e anexas”, pois já acumulava com esse o “direito aplicado para
a Guarda-Costa do Rio de Janeiro”. Nesse caso, o temor da Coroa era de que o acúmulo de contratos levasse o
contratador à ruína e, consigo, os seus fiadores. Contudo, Manuel Bandeira, além de ser homem afortunado,
pois dizia possuir umapropriedade de casas em que vivia e alugava na freguesia de São Miguel em Alfama, apre-
sentava como seus fiadores: Domingos de Miranda,“Provedor dos Contos da Sereníssima Casa de Bragança e
superior deles e da Casa do Infantado, possui várias fazendas, em que entra sua quinta no termo de Sintra, e
duas no termo dessa cidade, uma no Carnanixe e outra no Lumiar”; “João Antunes, ourives rico e que tinha
uma morada de casas em Castel Picão, e outra no Alegrete, na freguesia de São Miguel, e uma outra morada de
casas na rua da Madragoa; e“Antônio Bernardes, ourives rico e reputado”. AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 6, D.
431. MENEZES, Mozart Vergetti de. Colonialismo em ação: Fiscalismo, Economia e Sociedade na Capitania da
Paraíba (1647-1755). João Pessoa: Editora da UFPB, 2012. p. 120-121.

1435
Os fatores que influenciavam a inconstância nos contratos da Provedoria do Rio Grande pode-
riam ser inúmeros. Destaca-se que cerca de 50 anos de autos de arrematação foram levantados neste
artigo. Cada grupo de lançadores, cada auto em sua conjuntura poderia fornecer uma explicação es-
pecífica para as causas desta característica comum ao recorte analisado: os contratos da Provedoria do
Rio Grande ocorriam quase sempre em circunstancias adversas.

O quadro abaixo permite visualizar alguns elementos dos autos de arrematação entre 1673 e
1723. Em ordem estão o ano do auto, os indivíduos que fizeram lances no referido auto, o contratador
e o valor do contrato. No caso dos contratadores, muito pela condição do documento, não foi possível
de identificá-los na maioria dos autos, assim como o valor do contrato. Nesse último caso, foi coloca-
do o último lance identificado no auto de arrematação, valores que estão postos no quadro com um
asterisco (000$$000*):

Quadro III – Lançadores e contratadores dos autos de arrematação da Provedoria da Fazenda Real do Rio Grande
(1673-1723)
Ano Capitania Lançadores Contratador Valor do contra-
to/ maior lance
1673/74 Rio Grande Antonio Gonçalves Ferreira Simão da Rocha 530$000 réis
Caminha anuais
Antonio Leite de Oliveira

Antonio Lopes de Lisboa

Domingos Dias Moura

(Alferes) Jorge França

Juliano Maciel

Manuel Nunes Nogueira (Capitão)


Simão da Rocha Caminha
1690 Siará Grande Não houve lançadores Não houve contra- NA
tador
1702 Rio Grande/Sia- (Capitão) Antonio Dias Pereira Domingos da Sil- 1:870$400 réis
rá Grande veira anuais
(Padre) Amaro Barbosa

(Capitão) Gonçalo de Castro da Ro-


cha

(Capitão) Bento Correa da Costa

(Alferes) Domingos da Silveira

João Carvalho de Lima

Manuel Gonçalves Branco

Manuel Rodrigues Arioza

Manuel Rodrigues Taborda

1436
1704/05 Rio Grande/Sia- Bento Correa da Costa Fadrique Cor- Não identificado 1:200$150 réis
rá Grande rea da Costa anuais (Rio
Grande)
José da Silva Vieira
2:000$100 réis
Manuel da Silva Queirós anuais (Siará
Grande) *
1709 Rio Grande Carlos da Rocha Não identificado 1:920$000 réis
anuais *
Francisco Gomes

Manuel Gonçalves Branco

Maurício Bocaro Ribeiro (Vigário da


Matriz) Simão Rodrigues de Sá
1713 Siará Grande (Comissário geral) Antonio Pereira de João Malheiros 1:312$000 réis
Azevedo anuais

João Malheiros
1714 Siará Grande (Alferes tenente) Antonio Lopes de Não identificado 1:000$000 réis
Lisboa anuais
1715/16 Rio Grande Bartolomeu da Costa Jeronimo Cardoso 1:200$000 réis
da Silva
(Sargento-mor) Bento Teixeira Ri-
beiro

(Capitão) Domingos da Silveira

(Alferes) Faustino da Silveira

(Licenciado) Francisco Alves Bastos

Jeronimo Cardoso da Silva

João Marinho de Carvalho

(Sargento-mor) José Morais Navarro

(Comissário geral) Manuel de Melo


Albuquerque
1717 Siará Grande (Coronel) Carlos de Azevedo do Vale Não identificado 1:200$000 réis *

(Capitão) Tomé Leite de Oliveira


1723 Rio Grande (Coronel) Bento Correa da Costa Não identificado 600$000 réis
anuais *
Francisco Antunes Vieira

Francisco Pita da Rocha Brandão


Fonte: Quadro elaborado pela autora Lívia Barbosa com base nos autos de arrematação da Provedoria da Fazenda Real
do Rio Grande ocorridos entre 1673 e 172378 e do AHU-RIO GRANDE DO NORTE, Cx. 1, D. 42. Todos os valores que
estavam em cruzados foram convertidos para réis.

78Fundo documental do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. Dízimos Reais: termos de
arrematação dos dízimos da capitania. 1660 a 1666. Nº caixa ant. 113. Fls. 75-81. Fundo documental do Institu-
to Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. Dízimos Reais: termos de arrematação dos dízimos da capi-
tania. 1660 a 1666. Nº caixa ant. 113.. Fundo documental do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do
Norte. Dízimos Reais - arrematação 1690 a 1698. Nº caixa ant. 49. Fundo documental do Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Norte. Dízimo – arrematação 1702-1705. Nº caixa ant. (documento sem registro
no catálogo). Fundo documental do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. Dízimos reais
(arrematação) 1715-1716-1725. Nº de caixa ant. 49..

1437

A riqueza da fonte, dos autos de arrematação, descortina uma série de informações. Assim,
foi possível identificar não apenas os contratadores, como ainda os outros homens que fizeram seus
lances. Isso abre uma maior margem para identificar quem tinha interesse em investir nos contratos.
Contudo, essa margem suplanta os indivíduos que estavam ali nos autos de arrematação gritando seus
lances, competindo com outros lançadores pelo contrato posto em pregão. Sem sombra de dúvida
analisar os contratos é um dos tópicos com mais facetas e possibilidades desta pesquisa. O negócio
dos contratos e seus segredos de arrecadação envolviam possibilidades de ganho financeiro, grupos
de interesses, fatores de queda e alta dos valores, tudo isso apesar de não ser analisado em detalhes
– como posto em pauta os limites da pesquisa, tempo hábil e necessidade de novos estudos que se
complementem – tudo isso é sempre considerado como elementos que podem alterar as conclusões
de pesquisa futuramente.

Dessa maneira, quanto aos interessados nos contratos, fica claro que os autos permitem ir além
dos nomes dos contratadores, aqueles que davam o lance final, conhecendo-se também os lançadores.
Contudo, não se pode enganar-se: poderiam haver financiadores por trás desses homens. As redes de
negociantes, a quem esses homens poderiam representar, grupos familiares. Essas pessoas representa-
vam, na verdade, outros indivíduos que, em segredo, os financiavam e alargam em grande medida es-
ses grupos de interesses que não estão explícitos nos autos de arrematação e somente estudos focados
em cada um desses indivíduos poderão esclarecer.

Feitas essas ressalvas de caráter metodológico, foram elaboradas algumas considerações com
base nos dados que já foram obtidos. Um primeiro fator identificado é que não ocorria um alto índice
de reincidência dos mesmos indivíduos interessados nos contratos. De um total de 40 homens que
fizeram lances entre 1673 e 1723, 4 (10%) reincidiram nos lances dos pregões públicos: Bento Cor-
reia da Costa (1702,1704/05, 1723); Domingos da Silveira (1702, 1715/16), Manuel Gonçalves Branco
(1702, 1709) e Antonio Lopes de Lisboa (1673/1674, 1714). Em uma primeira análise, portanto, não
haviam grupos consolidados de negociantes dos contratos da Provedoria do Rio Grande. A cada auto
de arrematação novos indivíduos surgiam nos pregões.

Por mais que um lançador não reincidisse em contratos posteriores, havia sempre a possibi-
lidade de que esses homens se associassem a outros indivíduos nos contratos, e assim não são iden-
tificados diretamente nos autos, mas a partir de suas ligações. Um dos casos mais curiosos dos autos
analisados é o do vigário da Matriz, Simão Rodrigues de Sá, lançador no auto de 1709. Conforme José
Rodrigues da Silva, o padre tinha uma filha, casada com Manuel de Melo Albuquerque, camarário,
também fez seus lances no auto de arrematação de 1715. Desse modo, há um primeiro indício de que
sogro e genro estivessem associados na tentativa de investir em contratos na capitania79. Outros dois
lançadores que tinham ligação eram Manuel Gonçalves Branco (Juiz ordinário, em 1716 e Almotacé
em 1717) e Carlos de Azevedo do Vale (Vereador em 1724 e 1727 e Juiz ordinário em 1738), o pri-
meiro lançador em 1702 e 1709 e o segundo em 1717. Kleyson Bruno Chaves Barbosa constatou que
79 SILVA FILHO, José Rodrigues. Padre Simão Rodrigues de Sá, um patriarca de batina. III Encontros Colo-
niais, Natal, 14 a 17 de junho de 2016. p. 1-10.

1438
Carlos Azevedo do Vale tinha uma filha, Angélica de Azevedo leite, casada com Valentim Tavares de
Melo, filho de Manuel Gonçalves Branco. Inclusive, no mesmo ano em que Carlos do Azevedo do Vale
fez lances, seu filho, Carlos de Azevedo do Leite também estava fazendo lances no auto de arremata-
ção, em 1717. Observa-se, nesses exemplos, alguns casos de indivíduos com ligações de parentesco
circulando nos autos de arrematação80.

Alguns fatores podem justificar a configuração da dinâmica dos homens que participavam
dos pregões, dentre eles: a) Os contratos da Provedoria do Rio Grande não davam grandes retornos
aos rendeiros, por isso a ausência de uma reincidência nos pregões seguintes; b) Não existiam grupos
consolidados de contratadores que investiam nesses contratos; c) A circularidade ou reincidência de
interessados não pode ser visualizada nos dados existentes porque ainda não foi possível identificar
redes e ligações entre esses homens e a quem eles poderiam representar. Assim não fica claro se um
homem que investia em um ano estava investindo em outro ano por meio de um parceiro de negócios.

O primeiro contrato identificado após a retomada da administração da Fazenda Real do Rio


Grande foi o de 1673, arrematado por Simão da Rocha Caminha por um valor relativamente baixo em
relação aos anos seguintes, 530$000 réis anuais. A despeito disso, a última informação para as rendas
da capitania foi a mencionada em 1665, em carta da Câmara do Natal ao rei D. Afonso IV, ínfimos
200 réis81. Em pouco mais de cinco anos ocorreu um aumento significativo das rendas da capitania,
considerando-se que o contrato dos dízimos era a fonte de arrecadação da Fazenda do Rio Grande.
Em 1682, os dízimos da capitania não teriam chegado à arrematação de 550$000 réis. Mesmo que não
tenham sido encontrados ainda registros de autos de arrematação entre 1675 e 1690, em documento
enviado pelo provedor-mor ao provedor do Rio Grande, Pedro da Costa Faleiro, além do dado dos
rendimentos de 1682 é mencionado que o valor de 550$000 havia diminuído em relação aos anos
anteriores, que variavam entre 800$000 e 850$000 réis. Assim, a recomendação posta em regimento
quanto à obrigação dos oficiais da Fazenda em não aceitar lanços menores que a arrecadação anterior,
em vista do ganho da Real Fazenda82, era posta de lado devido às condições de baixos arremates da
capitania do Rio Grande.

As primeiras décadas após a retomada do funcionamento da Provedoria do Rio Grande fo-


ram dificultosas no aspecto da arrecadação. A característica prossegue até pelo menos 1690, ano do
registro seguinte dos autos de arrematações. Nesse ano, diferente dos anos anteriores com diminuição
dos valores de arremate, nenhum lançador sequer compareceu ao pregão para fazer seus lanços. Os
fatores que motivaram essa baixa podem ter sido situações de baixa produção como secas, das quais
não se tem conhecimento para esse período. O que teria levado falta de interesse dos contratadores é
ainda uma incógnita. É certo que essas primeiras décadas eram de reestruturação da administração
fazendária. O primeiro avanço, já verificado anteriormente, foi a retomada da ação da instituição na
80 BARBOSA, Kleyson Bruno Chaves. A Câmara de Natal e os homens de conhecida nobreza: governança
local na capitania do Rio Grande. 2017. 319 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade federal do
Rio Grande do Norte, Natal. 2017. p. 108.
81 CARTA dos oficiais da Câmara de Natal ao rei [D. Afonso VI] sobre o estado de ruína da Fortaleza dos Reis
Magos e a falta de soldados, armas e munições. Anexo: carta (treslado). AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 1, D. 7.
82 REGIMENTO dos provedores da Fazenda. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Raízes da formação ad-
ministrativa do Brasil. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1972. p. 100.

1439
capitania. Os oficiais existiam, eram nomeados, completavam o quadro administrativo e durante todo
o recorte analisado, apesar de todos os fatores, estavam em exercício. Uma boa arrecadação era algo
que, mesmo com a (re)organização da Fazenda, não poderia ser garantido.A fase de retomada da
Fazenda mal ocorreu e outro acontecimento que exigia muito dos cofres da Provedoria se insurgia.
A chamada Guerra dos Bárbaros (1698-1720) deixou clara a fragilidade das rendas da capitania e os
socorros do governo-geral, para o sustento das tropas foi verificado.83.

Dos dez autos de arrematação entre 1673 e 1723, cinco foram identificados como arrematados.
Os outros cinco, um não houve lançador (1691) e quatro (1704/05,1709,1717,1723), devido às condi-
ções das fontes, não foram possíveis identificar o valor do lance de arremate, ou seja, o valor do con-
trato. Porém, o que se observa é que, os contratos das primeiras décadas do XVIII, são de valor maior
que os anteriores, mesmo nos casos em que não se sabe qual foi o valor do último lance, os valores
excedem aos 500$000, 800$000 e 850$000 réis do século anterior.

Os homens dos contratos:

A questão dos autos com vários dias sem um lance ao menos, postergados até o ano seguinte,
pode ter uma resposta em outro dado. As chances de parte dos lançadores serem homens locais são
grandes. Assim, cada fator que pudesse influenciar em risco de má arrecadação e de déficit no inves-
timento feito por esses indivíduos era mais fácil de ser conhecida. Se esses homens faziam parte da
dinâmica local da capitania, não era muito difícil para eles tomarem conhecimento das possibilidades
de ganhos, ou não, com o negócio.

O quadro abaixo reúne algumas informações que foram obtidas sobre esses indivíduos:

Quadro IV – Informações dos homens dos contratos da Fazenda do Rio Grande (1673-1723)
Nome Funções camarárias exercidas na Outras funções Sesmaria (ano)
capitania (ano)
Auto de arrematação de 1673/74 – Rio Grande
Antonio Gonçalves Ferreira Juiz ordinário ---- RN 1264 (1682)
(1672,1678,1681,1684,1688)
Antonio Leite de Oliveira ---- ---- ----
Antonio Lopes de Lisboa Procurador (1675); Almotacé ---- RN 0030 (1676);
(1676); Escrivão (1679,1680, 1681, CE 0013 (1680);
1682,1683,1684,1685,1686,1687,16 RN 0023 (1684);
88); Vereador (1693, 1696) RN 0056 (1706);
Domingos Dias Moura ---- ---- ----
Jorge França Vereador (1673,1675) Alferes (1673) ----

83 CARTA para o provedor da Fazenda do Rio de Janeiro ter prontos os mantimentos para a gente do Terço,
para a guerra do Rio Grande, de que é Mestre de Campo Manuel Alvares de Moraes Navarro. Documentos
Históricos da Biblioteca Nacional. Volume XI. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1929. p. 259-260.

1440
Juliano Maciel ---- ---- ----
Manuel Nunes Nogueira ---- ----- ----
Simão da Rocha Caminha Procurador (1673); Almotacé Capitão (1673) ----
(1673, 1674,1677); Vereador (1676)
Auto de arrematação de 1702 – Rio Grande/Siará Grande
Antonio Dias Pereira Almotacé (1695,1715); Procura- Capitão (1702) CE 0958 (1710);
dor (1696,1710); Juiz Ordinário RN 0336 (1713);
(1709,1714,1719) RN 0348 (1716);
RN 0376 (1717)
Amaro Barbosa ---- Padre (1702) PE 0049 (1708)
Gonçalo de Castro da Rocha ---- Capitão (1702) RN 0338 (1713);
RN 0450 (1737);
Bento Correa da Costa Vereador (1714,1716) Capitão (1702) RN 0072 (1709);
RN 0919 (1733)
Domingos da Silveira Procurador (1711); Vereador Alferes (1702) RN 0095 (1711);
(1717); Juiz ordinário (1727)
João Carvalho de Lima Almotacé (1711) ---- ----
Manuel Gonçalves Branco Juiz ordinário (1716); Almotacé ---- ----
(1717)
Manuel Rodrigues Arioza ---- ---- CE 0079 (1703);
CE 0262 (1707);
CE 0263 (1707);
RN 0347 (1710)
Manuel Rodrigues Taborda Almotacé (1697); ----- RN 0347 (1716);
RN 0349 (1716);
RN 0372 (1717);
RN 0982 (1719)
Auto de arrematação de 1704/05 – Rio Grande/Siará Grande
Bento Correa da Costa Op. cit. ---- Op. cit.
Fadrique Correa da Costa Almotacé (1710,1711,1729) ---- ----
José da Silva Vieira ---- ---- ----
Manuel da Silva Queirós ---- ---- ----
Auto de arrematação de 1709 – Rio Grande/Siará Grande
Carlos da Rocha Procurador (1709) ---- ----
Francisco Gomes Vereador (1685,1692,1694,1698); ---- CE 0029 (1682);
Juiz Ordinário (1689,1713) RN 0080 (1705)
Manuel Gonçalves Branco Op.cit. ---- ----
Maurício Bocaro Ribeiro ---- ---- ----
Simão Rodrigues de Sá ---- Vigário da Matriz PE 0385 (1681);
(1697-1714) RN 0052 (1706);
RN 0948 (1706);
RN 0054 (1706);
Auto de arrematação de 1713 – Siará Grande
Antonio Pereira de Azevedo ---- Comissário geral RN 0097 (1711);
(1713)
João Malheiros Procurador (1710) ---- RN 0543 (1705)
Auto de arrematação de 1714 – Siará Grande
Antonio Lopes de Lisboa Op. cit. Alferes tenente Op. cit.
(1714)

1441
Auto de arrematação de 1715/16 – Rio Grande
Bartolomeu da Costa Almotacé (1691); Vereador (1692); ---- RN 0173 (1715);
Procurador (1719) RN 0397 (1719);
RN 0980 (1719)
Bento Teixeira Ribeiro Juiz ordinário (1715); Sargento-mor RN 0094 (1710);
(1715) RN 0335 (1712)
Domingos da Silveira Op. cit. Capitão (1715) Op. cit.
Faustino da Silveira Almotacé (1725); Vereador Alferes (1715) RN 0377 (1717);
(1728,1738); Juiz ordinário (1747) RN 0932 (1736);

Francisco Alves Bastos Juiz de órfãos (1724;1725,1731); ---- CE 0068 (1705);


Almotacé (1733,1734,1735) CE 0152 (1706);
CE 0152 (1706);
CE 0231 (1707);
RN 1128 (1731);
RN 1136 (1731)
Jeronimo Cardoso da Silva ---- ---- ----
João Marinho de Carvalho Vereador (1710,1715,1718); Almo- ---- RN 0446 (1736)
tacé (1716, 1719)
José Morais Navarro ---- Sargento-mor ----
(1715)

Manuel de Melo Albuquerque Vereador (1709, Comissário geral RN 0954 (1701);


1711,1713,1717,1718); Almotacé (1715) RN 0961 (1708);
(1710,1712),1715,1716,1722,1725 RN 0480 (1733);
,1738,1740,1741,1742,1744,1745);
Juiz ordinário (1724,1737); Juiz de RN 1005 (1740
órfãos (1732,1734)
Auto de arrematação de 1717 – Siará Grande
Carlos de Azevedo do Vale Vereador (1724,1727); Juiz ordiná- Coronel (1717) RN 0099 (1711);
rio (1738) RN 0924 (1735);
RN 0930 (1737)
Tomé Leite de Oliveira Vereador (1720); Juiz ordinário Capitão (1717) ----
(1721); Almotacé (1722)
Auto de arrematação de 1723 – Rio Grande
(Coronel) Bento Correa da Op. cit. ---- Op. cit.
Costa
Francisco Antunes Vieira ---- ---- ----
Jerônimo Lobo
Guimarães
Francisco Pita da Rocha Bran- ---- ---- ----
dão
Fonte: Quadro elaborado pela autora Lívia Barbosa com base nos autos de arrematação da Provedoria da Fazenda Real do
Rio Grande ocorridos entre 1673 e 1723. LOPES, Fátima Martins. Catálogo dos Livros de Termos de Vereação. Senado da
Câmara de Natal. Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. Banco de dados da Plataforma SILB. Disponí-
vel em: http://www.silb.cchla.ufrn.br.

Dos dados levantados, 55% (22) do total dos indivíduos, que apostaram nos autos de arrema-
tação tabulados, fizeram parte da Câmara do Natal. Como verificado na tabela, alguns como Antonio
Lopes de Lisboa, Francisco Alves Bastos, Francisco Gomes, Manuel de Melo Albuquerque, exerceram
várias funções na Câmara. Grande parte desses em período aproximado da sua participação nos autos.

1442
A grande maioria desses camarários eram também sesmeiros do Rio Grande. Dos cinco con-
tratadores levantados, quatro foram camarários do Rio Grande, Simão da Rocha Caminha que ar-
rematou o contrato de 1723, foi Procurador (1673); Almotacé (1673, 1674,1677); Vereador (1676);
Domingos da Silveira, contratador de 1702, foi Procurador (1711); Vereador (1717); Juiz ordinário
(1727); João Malheiro, contratador de 1713, foi Procurador (1710), apenas Jeronimo Cardoso da Sil-
va consta sem informações do levantamento realizado. Desse modo, há a hipótese dos contratos da
Provedoria do Rio Grande estarem inseridos em dinâmicas de investimento de grupos endógenos a
capitania.

Considerações finais:

As conclusões a respeito desses grupos de contratadores e das dinâmicas de arrecadação do


Rio Grande podem ser aprofundadas. Entretanto, muitas das ressalvas e possibilidades aqui colocadas
orientam para caminhos de pesquisa. No momento, caracterizar o processo de realização dos autos de
arrematação, seu pregão púbico, foi um avanço para entender uma das partes do cotidiano da Prove-
doria da Fazenda Real. Além disso, ainda que em virtude da falta de lançadores, dos valores em baixa,
o que se observa pelas amostragens é que os autos continuaram ocorrendo ao longo de 50 anos. Essa
longa fase em que a instituição se sustentou em plena atividade perdurou com algumas dificuldades.
Novas mudanças e reorientações de caráter administrativo ocorreram na década de 1720 e integram
uma parte da História da Provedoria da Fazenda Real do Rio Grande. É nesse sentido para o qual a
pesquisa deve avançar.

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Os contratos da dízima da Alfândega de Jerônimo Lobo Guimarães:ganhos eperdas nas


capitanias de Pernambuco e Paraíba (1724-1732).
Luanna Maria Ventura Dos Santos Oliveira

O artigo pretende discutir as estratégias criadas pelo contratador Jerônimo Lobo Guimarães,
nas capitanias de Pernambuco e Paraíba, para viabilizar a execução de seus contratos e tentando au-
mentar seus lucros e diminuir suas perdas. Buscaremos demonstrar as mudanças provocadas pela
anuência desses dois primeiros contratos e como foram acertadas as contas dessa nova forma de co-
brança do tributo da dízima. Utilizaremos também, as redes existentes entre Jerônimo e seus diversos
agentes envolvidos nesse contrato, para demonstrar, as articulações que proporcionaram no âmbito
local e reinol a realização fiscal desse tributo.

Palavras-chave: Contrato da dízima, Alfândega e Tributação.

Jerônimo Lobo Guimarães foi um grande contratador de tributos do seu tempo, ele mais
diversos fiadores e procuradores desenvolveram estratégias de administrarem várias empreita-
das dentro do Reino e da América Portuguesa. A primeira vez que encontramos Jerônimo Lobo
Guimarães aparecendo na documentação referente a Pernambuco, é na arrematação do contra-
to da dízima, em 1724, onde ele é classificado pelos conselheiros do rei D. João V, como “Homem

1444
de grosso trato, grande contratador das rendas do Reino e homem fazendado da Praça de Lisboa”

Jerônimo Lobo herdou de seu pai Pedro Lobo a experiência no universo dos contratos.
Seu pai foi contratador dos couros, produto que distinguia bem, pois exercerá a profissão de sapa-
teiro e conhecia como ninguém a qualidades e variações da principal matéria-prima de seu ofício.
Jerônimo Lobo pertenceu a uma família de negociantes que buscavam acender socialmente encontramos,
ele e seus irmãos, pedindo e conseguindo hábitos de Cristo e familiaturas do Santo Ofício, durante as duas
primeiras décadas do XVIII.Todos os três irmãos eram naturais da Vila de Guimarães, Arcebispado de Braga.

Morador da cidade de Lisboa, Jerônimo Lobo já era familiar do san-


to ofício em 1706, como já expomos, ele tinha dois irmãos que também eram ho-
mens de negócio, o Francisco Lobo Guimarães que também já era familiar do Santo ofí-
cio, em 1721, residente na cidade do Porto. Seu segundo irmão era o Simão Lobo Guimarães
que não morava no Reino e sim no ultramar, especificamente no Estado do Brasil, através de seu pedido de
habilitação do Santo Ofício, foi possível identificar que ele era morador residente da cidade da Bahia, em 1719.

Na Bahia, uma das principais cidades portuárias do Brasil, Simão Lobo Gui-
marães era conhecido como uma “pessoa de bons procedimentos”. Era um merca-
dor de sobrado que recebia muitas fazendas vindas de Portugal e que vivia desse negócio.
Provavelmente, essas fazendas eram enviadas por seus irmãos que, estrategicamente, residen-
tes nas duas principais cidades portuárias do Reino: Lisboa e no Porto. Deveriam ser seus re-
presentantes diretos, fazendo com quer o comércio da família girasse com mais facilidade
.

O contrato da dízima da alfândega de Pernambuco e Paraíba foi uma estratégia de Jerônimo


Lobo Guimarães, e outros negociantes de grosso trato do Reino, em aumentar seus cabedais no ultra-
mar. Como não houve quem mais se interessasse por tal contrato, esse foi arrematado sem que se pa-
gassem as devidas fianças como de costume. No entanto, o Jerônimo só teria acesso aos rendimentos
do contrato depois do término da arrecadação e no fim ele receberia os ganhos ou as perdas referentes
ao mesmo.

O lance com o qual Jerônimo Lobo Guimarães arrematou o contrato da dízima de Pernambuco
e Paraíba compôs-se com a contribuição financeira de mais três homens de negócio do reino que eram
“pessoas de conhecido crédito nesta praça”que foram: Antônio Paes de Lemos, Joseph Ferreira da Silva
e Francisco Luís Saião. O valor do contrato foi de 82 mil contos e que a cada ano equivaleu a 32:800$000
réis, valor inferior ao lance dado pelo contrato da dízima da alfândega da Bahia que foi de 253$000 cru-
zados e 100 réis e ao da dízima do Rio de Janeiro do mesmo ano em questão que foi de 243$000 cruzados.

A fiança do contrato deveria ser de vinte mil e quinhentos cruzados, devendo ser paga ao

1445
Conselho Ultramarino, mas como foi dito anteriormente, os arrematantes se negaram a fazê-lo e o rei
aquiesceu por não ter quem mais quem arrematasse tal contrato, pois caso contrário, seria administra-
do pelos provedores da Fazenda Real das duas capitanias, o que certamente causaria uma arrecadação
inferior ao valor acertado na arrematação, como já era de costume.

Quadro (1): Rede da Arrematação do primeiro Contrato da Dízima da Alfândega de Pernambuco e Paraíba
(1724).

Fonte: Lisboa, 2 de julho de 1723. AVISO do (secretário de estado], Diogo de Mendonça Corte Real, ao (conse-
lheiro do Conselho Ultramarino], João Teles da Silva, sobre o requerimento do contratador dos contratos dos
dízimos da Alfândega de Pernambuco e Paraíba, Jerônimo Lobo Guimarães. Arquivo Histórico Ultramarino,
Avulsos de Pernambuco, AHU_ACL_CU_015, Cx. 30, D. 2686.

Diversos foram as questões levantadas por Jerônimo Lobo Guimarães em relação a arrecada-
ção da dízima na alfândega da capitania de Pernambuco e Paraíba. Para administrar os diversos con-
tratos que ele tinha no ultramar, o Jerônimo utilizava-se de diversos procuradores que o auxiliavam
na fiscalização e administração de seus contratos que eram diversos na América Portuguesa84, além da
parceria com seus irmãos.

O Jerônimo Lobo Guimarães arrematou também o segundo contrato da dízima da alfândega


de Pernambuco e Paraíba e utilizou como “testa de ferro” José dos Santos na arrematação de (1727-
1729)85, termo utilizado à época e inclusive era reconhecido eexplicado no mapas dos contratos reais

84CARDOSO, Grazielle Cassimiro. A Luta pela estruturação da Alfândega do Rio de Janeiro durante o governo
de Aires de Saldanha de Albuquerque(1719-1725). Rio de Janeiro: UNIRIO, 2013. 186p. (dissertação de Mes-
trado em História Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro). Págs. 111-122. AZEVEDO,
Beatriz Líbano Bastos: O Negócio dos Contratos: Contratadores de Escravos na Primeira Metade do Sécu-
lo XVIII. São Paulo, 2013. 170 págs. Dissertação (Mestrado em História Econômica da Universidade de São
Paulo) USP, São Paulo. 2013.págs.19-21.
85 AHU. Mapa dos Contratos reais do Conselho ultramarino. Cód. 1269. Pág. 25.

1446
do Conselho Ultramarino(1641-1758)86 como segue: “[...]Se não pode saber ao certo, quais são os
verdadeiros donos, e interessados em todos estes contratos; porque a maior parte dos arrematantes
são testas de ferro, e os fiadores a decima, também as vezes o são.”87 Podemos perceber através de tais
explicações que era um caso recorrente o uso dos “testas de ferro”uma forma de representantes nas
arrematações dos contratos. No Livro do Mapas dos Contratos, chegam a serem expostas famílias por-
tuguesas que seriam“testas de ferro”, vejamos:“[...]Sabe-se porém, que os Calistos são testas de ferro
dos Bezerras, os Abreosdos Barbosas e Torres, os Souzas dos Moreiras.”88

Jerônimo Lobo Guimarães foi o principal contratador da década de vinte do Setecentos. No


entanto, pretendemos enfatizar com esse artigo os acertos de contas do contrato da dízima de Pernam-
buco e Paraíba dele com a Fazenda Real de Pernambuco e Paraíba, já que os dois tributos foram ane-
xados em um só contrato em 1724, pela dificuldade financeira enfrentada pela capitania da Paraíba.89

O fim do primeiro contrato de Jerônimo Lobo Guimarães se deu com o término da terceira
frota, o que aconteceu no ano de 1728. O ano de 1725 foi terrível em relação à seca que assolou as
capitanias de Pernambuco e Paraíba, provocando uma diminuição no número de embarcações que
entravam nesses portos. Segundo as autoridades da Fazenda Paraibana, no porto da Paraíba, houve
uma total escassez de navios com fazendas.

Em uma relação de receitas e despesas da Provedoria da Fazenda Paraibana, ficava exposto


pelo Provedor Salvador Quaresma Dourado que nos anos de 1724 e 1725 não se arrecadou absoluta-
mente nada do imposto da dízima. Não vamos analisar o ano de 1724, pois não se contabiliza em rela-
ção ao contrato, porém o ano de 1725 é o marco do primeiro ano do contrato de Jerônimo Guimarães
e, no final dele, deveriam ser acertadas as contas, momento em que o tesoureiro da dízima entregaria
os ganhos ou as perdas do contrato ao contratador. Nas palavras do Provedor da Paraíba:
[...]desde a última frota que de Pernambuco, e deste porto foi para esse reino até o
presente se lhe não veio navio algum a este dito porto por não se terem feito açúcares
nesta capitania por causa da grande secas que tem havido, me requereu o procurador
da Fazenda de Vossa Majestade que visto ter chegado frota este ano a Pernambuco e
seria aferia assim dela esse ter completado o primeiro ano do dito contrato, no fim de
dezembro de ano passado[...]90

Segundo o Provedor da Paraíba e o Procurador da Fazenda, no fim do ano de 1725, teria ter-
minado o primeiro ano do contrato da dízima e, com isso o provedor buscou acertar as contas com o
procurador do contrato da dízima que assistia na capitania da Paraíba. No entanto, o procurador do
86 1641-1758. Mapas dos contratos reais do Conselho Ultramarino. 1Vol. AHU_ACL_CU_, Contratos reais,
Cod. 1269.
87 Idem
88Idem
89 Mozart.MENEZES, Mozart Vergetti, Colonialismo em ação: Fiscalismo, Economia e Sociedade na Capi-
tania da Paraíba (1647-1755). Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Econômica da
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. Pág. 206. Para o autor a junção das duas dízimas representou uma
“anexação branca” da capitania da Paraíba a capitania de Pernambuco.
90 Paraíba, 22 de agosto de 1725. Carta do [provedor da fazenda Real da Paraíba] Salvador Quaresma Dourado
ao rei [D. João V], sobre não ter ajustado as contas com o contratador da dízima da Alfândega da Paraíba e
Pernambuco Jerônimo Lobo Guimarães por não virem navios à capitania. Avulsos da Paraíba_AHU_ACL_
CU_014, Cx. 6, D. 491.

1447
contrato afirmou que não tinha dinheiro para pagar a dívida, porém tinha dinheiro em Pernambuco
e que ele deveria pedir ao Provedor da Fazenda de Pernambuco que mandasse passar precatório da
dívida e notificar o administrador do contrato que era o Jerônimo Lobo Guimarães que estava em
Lisboa.91

Em resposta ao pedido feito pelo Provedor da Paraíba, o Provedor de Pernambuco passou o


precatório e mandou dar vista Jerônimo Lobo Guimarães, no entanto não mandou nenhum valor para
a Paraíba. O Provedor da Paraíba queixava-se de que a frota já estava partindo para o Reino e que eles
não receberam nenhum dinheiro, por conta disso, resolveu informar a Vossa Majestade sobre o caso.92

Dois dias após o envio da carta do Provedor da Paraíba, foi a vez do capitão-mor da Paraíba
João Abreu Castelo Branco reclamar ao rei sobre a necessidade do dinheiro do contrato da dízima
para o pagamento da infantaria, que era a única esperança para o pagamento dos soldados, porém a
mesma “[...]se acha também frustrada[...]”93. Ele clamava ao rei que socorresse aquela Capitania com
o dinheiro da dízima de Pernambuco. 94

Após alguns meses foi a vez do contratador da dízima se manifestar, Jerônimo Lobo Guimarães
respondeu diretamente ao rei, justificando que tinha a intensão de cumprir com todas as obrigações
que havia adquirido com sua arrematação, acrescentando que acudiria até com seu próprio desembol-
so. No entanto, ele não poderia acudir uma dívida que não era dele, pois seu contrato:
[...] não se regula pelo curso dos tempos e número de meses, mas sim pelo de frotas
convencionando-se que não só seriam três frotas; mas que os anos se contariam por
elas, segundo conta a condição dezessete [...]. Sendo esta forma de convenção de
nenhuma sorte se poderiam pedir os vinte mil cruzados aplicados a Paraíba, porque
como não tenha ainda chegado alguma a Paraíba, segundo se não nega, e constante
não estava vencido o pagamento por ser destinado depois daquela chegada[...]95

O contratador se utilizava das cláusulas de seu contrato para se livrar do pagamento dos vinte
mil cruzados da Paraíba e com isso utilizou a condição dezessete, para se proteger, dizendo que só
começaria a contar o contrato com a chegada da frota nos dois portos e como não havia chegado ne-
nhuma na Paraíba, então não teria começado a contar o tempo para aquele porto. Porém o contrato
era conjunto, assim não se poderia contar tempos diferentes para o mesmo contrato, ficando nítido
que essa é uma estratégia de esquivar-se da perda dos vinte mil cruzados que a Paraíba estava solici-
tando. 96

Segundo o Jerônimo Guimarães, o rei havia prometido a ida de um ou dois navios ao porto da
91 Idem
92Idem
93 Paraíba, 24 de agosto de 1725. Carta do [capitão-mor da Paraíba] João de Abreu Castel Branco ao rei [D. João
V], sobre a situação em que se encontram as companhias de Infantaria da Guarnição da Paraíba e a necessidade
de 20 mil cruzados do produto da dízima para acudi-las. Avulsos da Paraíba_AHU_ACL_CU_014, Cx. 6, d.
492.
94Idem
95 Lisboa, 23 de fevereiro de 1726. Carta de Jerônimo Lobo Guimarães ao rei [D. João V], justificando o não
pagamento da dívida contraída na arrematação do contrato da dízima da Alfândega da Paraíba e Pernambuco.
Avulsos de Pernambuco_AHU_ACL_CU_014, Cx. 6, D. 505.
96 Idem

1448
Paraíba em todas as frotas, porém até aquele momento não havia descarregado nenhum e, por isso,
não se poderia atribuir-lhe aquela dívida.97

Não encontramos mais documentos que obrigassem o Jerônimo Lobo Guimarães a enviar os
20 mil cruzados que equivalem 8:000$000 réis para a Paraíba, referentes ao primeiro ano do contrato.
No rendimento e despesas da capitania da Paraíba, fica claro que a Paraíba não recebeu nenhuma re-
messa de dinheiro da dízima de Pernambuco nos anos de 1725 e 1726.98

Na prestação de contas do Provedor da Fazenda Real da Paraíba do ano de 1725, um item das
despesas da capitania chamou atenção: “Pelo mais dispêndio com José Ramos da Silva; contratador da
dízima do Rio de Janeiro; como consta da ordem de Sua Majestade, que para isso alcançou: 131$172
mil réis”99.

Como se fez esse pagamento, se nos anos de 1724 e 1725 não havia entrado nenhum navio com
fazenda no porto da Paraíba?

A resposta para tal pergunta estava nos avulsos da Paraíba, pois as autoridades locais estavam
omitindo a relação das entradas de navios no porto da Paraíba nos anos de 1724 e 1725, visto que há
registro de um navio que foi obrigado a pagar a dízima na Alfândega da Paraíba de forma incorreta.

O referido navio ia do Maranhão para o Rio de Janeiro e, no decorrer do percurso, acabou


atracando no porto da Paraíba, no dia 12 de setembro de 1724. Nesse período ainda não estava em
vigência o contrato de Jerônimo Lobo Guimarães. Os oficiais da alfândega obrigaram a embarcação
a descarregar no porto e sobre as mercadorias foi aplicado o imposto da dízima e mais emolumentos
dos oficiais. No entanto, o contrato da dízima da Alfândega do Rio de Janeiro estava em vigor e o
contratador José Ramos da Silva recorreu à Coroa requerendo os valores arrecadados, visto que, nas
condições assinadas por ele encontrava-se uma cláusula que lhe garantia os direitos da dízima sobre
as embarcações vindas do Maranhão.100

Caso não fossem questionados os impostos da dízima pelo contratador do Rio de Janeiro e de-
pois pelo dono do navio, não saberíamos do esquema de sonegação do imposto no porto da Paraíba,
visto que não foi informado na prestação de contas da provedoria o valor do apuramento desse navio,
no ano de 1725, que foi de 131$172 mil réis, alegando que no ano em questão “[...]não houve navios

97Idem
98 Paraíba, 30 de maio de 1729. Carta do [provedor da Fazenda Real da paraíba], Salvador Quaresma Dourado,
ao rei [D. João V], remetendo relação da receita e despesa do Almoxarifado, de 1723 a 1729, com a importância
da folha secular e eclesiástica, da Infantaria, bem como o rendimento do direito da dízima da Alfândega. Avul-
sos da Paraíba_AHU_ACL_CU_014, Cx. 7, D. 570.
99 Paraíba, 30 de maio de 1729. Carta do [provedor da Fazenda Real da paraíba], Salvador Quaresma Dourado,
ao rei [D. João V], remetendo relação da receita e despesa do Almoxarifado, de 1723 a 1729, com a importância
da folha secular e eclesiástica, da Infantaria, bem como o rendimento do direito da dízima da Alfândega. Avul-
sos da Paraíba_AHU_ACL_CU_014, Cx. 7, D. 570.
100 Paraíba, 29 de julho de 1725. Carta do [provedor da Fazenda Real da Paraíba], Salvador Quaresma Dou-
rado, ao rei [D. João V], sobre a ordem para entregar ao procurador de José Ramos da Silva, a importância dos
direitos da dízima de uma embarcação que no tempo de seu contrato, saiu do Maranhão ao porto da Paraíba.
Avulsos da Paraíba_AHU_ACL_CU_014, Cx. 6, D. 469.

1449
neste porto com fazendas, como consta do livro de entrada deles, e dos despachos delas.”101

No entanto, foi registrado na folha de despesa da Provedoria que, no ano de 1725, houve dis-
pêndio no valor de 131$172 réis, com o pagamento a José Ramos. O que podemos supor é que os
oficiais da Provedoria da Paraíba se apropriaram desse recurso, pois se fosse declarado o valor da
cobrança do navio na receita e nas despesas, o resultado seria zero entre receita e despesa para a Prove-
doria paraibana. Porém, se o navio não aparece declarado na receita, que eles chamam de rendimento,
e aparece declarado como despesa, a Provedoria da Fazenda paraibana fica com o déficit dos 131$172
mil réis e poderia pedir socorro a Pernambuco para cobrir essa despesa. Assim, os recursos da cobran-
ça foram parar sabe-se lá em que bolsos.102

Quantos navios a mais foram sonegados e permaneceram no esquecimento do tempo e não


foram questionados? Impossível ter uma dimensão completa do passado, porém, podemos cogitar
que o Provedor da Fazenda juntamente com o Capitão-mor da Paraíba deveriam ter um esquema para
esconder a chegada de navios soltos em seu porto, o que provocava um déficit contínuo nos números
da provedoria paraibana e, consequentemente, um acréscimo nos lucros desses oficiais.

Em uma carta feita no dia 10 de maio de 1729 pelo escrivão da Fazenda Real de Pernambuco
Miguel Correa Gomes, é possível compreender ganhos e perdas obtidos com o contrato da dízima
arrematado por Jerônimo Lobo Guimarães.

Segundo ele, a dízima da alfândega da Paraíba rendeu em todo o contrato um conto quatro-
centos e quarenta e cinco mil e quatorze réis, como já vimos na primeira frota; a dízima da Paraíba não
rendeu nada, pois não atracou navio naquele porto. Já na segunda frota, rendeu novecentos e setenta e
nove mil, seiscentos e trinta e sete réis e na terceira frota, que aconteceu no ano de 1727 e findou-se no
ano de 1728, rendeu quatrocentos e sessenta e cinco mil, trezentos e setenta e sete réis, como mostra
o quadro a seguir:

Quadro(2): Rendimento da dízima da Alfândega da Paraíba.

Frota Rendimento da dízima Paraíba (Mil réis)


Primeira (1725) --------
Segunda (1726) 979$637
Terceira (1727-1728) 465$377
Total 1:445$014
Fonte: Dados retirados do documento da Biblioteca Nacional, MS618 02: 0406 e 0407.103

Como exposto no quadro acima, a arrecadação da dízima da Paraíba rendeu um conto qua-
trocentos e quarenta e cinco mil e quatorze réis, porém a ordem era enviar vinte mil cruzados para a
Paraíba, para suprir os pagamentos dos soldados e outras despesas diversas daquela Capitania. Como
101Paraíba 30 de maio de 1729. Carta do [provedor da Fazenda Real da paraíba] Salvador Quaresma Dourado
ao rei [D. João V], remetendo relação da receita e despesa do Almoxarifado, de 1723 a 1729, com a importância
da folha secular e eclesiástica, da Infantaria, bem como o rendimento do direito da dízima da Alfândega. Avul-
sos da Paraíba_AHU_ACL_CU_014, Cx. 7, D. 570.
102Idem
103Documento cedido gentilmente pela historiadora Suely Almeida.

1450
a alfândega da Paraíba, só rendeu 1:445$014 réis, era necessário que o dinheiro arrecadado pela al-
fândega de Pernambuco fosse enviado para a Paraíba para complementar o dinheiro que faltava para
as despesas da vizinha. Segundo o escrivão da fazenda de Pernambuco, foram remetidos 22:554$986
réis para a Provedoria paraibana do “rendimento da dízima da Alfândega desta Capitania de Pernam-
buco”104, que se ajustou sessenta mil cruzados do contrato.105 Se somarmos com o total da receita da
dízima da Paraíba de 1:445$014, chegamos ao valor de 24:000$000 réis, que é o mesmo que 60 mil
cruzados.106

Como já expusemos anteriormente, encontramos uma relação de receita e despesa da Prove-


doria da Paraíba e foi possível cruzar os números enviados e os rendimentos da dízima da Paraíba107
com os declarados pelo escrivão da Fazenda Real de Pernambuco expostos acima108. Associamos aqui
os números enviados pelo Provedor da Fazenda Real de Pernambuco e o escrivão da Alfândega de
Pernambuco.109 Vejamos:

Quadro(3): Frotas, dízima da Paraíba e envios de Pernambuco para a Paraíba(1725-1732).

Ano/Fro- Rendimen- Comple- Total recei- Rendimento Complemento de Total receita


tas to da PB* mento de ta – PB* da PB** PE ** -PB **
PE *

1725 0 0 nada nada nada nada


1726 979$637 0 979$637 - - -
1727 465$377 8:500$000 8:965$377 - 8:000$000 8:000$000
1728 0 6:520$360 6:520$360 6:520$363 8:000$000
1729 484$262(fi- 7:534$623 8:018$885 465$377 7:534$623 8:000$000
nal do ano)
1730 não - - - - - -
teve frota1
1731 - - - 484$262 7:515$738 8:000$000
1732 - - - - 4:000$000 4:000$000
*Declaração da Paraíba

** Declaração de Pernambuco

Fonte: Recife, 12 de abril de 1732. Carta do Provedor da Fazenda Real de Pernambuco, João do Rego Barros, ao rei [D.
João V], sobre os vinte mil cruzados referentes ao contrato da dízima da Alfândega da Paraíba e Pernambuco, que devem
ser remetidos àquela capitania. Avulsos da Paraíba_AHU_ACL_CU_014, Cx. 8, D. 665. Paraíba 30 de maio de 1729. Carta
do [provedor da Fazenda Real da paraíba], Salvador Quaresma Dourado, ao rei [D. João V], remetendo relação da receita
e despesa do Almoxarifado, de 1723 a 1729, com a importância da folha secular e eclesiástica, da Infantaria, bem como o
104Biblioteca Nacional, MS618 02: 0406 e 0407.
105Idem
106Idem
107 Paraíba 30 de maio de 1729. Carta do [provedor da Fazenda Real da paraíba] Salvador Quaresma Dourado,
ao rei [D. João V], remetendo relação da receita e despesa do Almoxarifado, de 1723 a 1729, com a importância
da folha secular e eclesiástica, da Infantaria, bem como o rendimento do direito da dízima da Alfândega. Avul-
sos da Paraíba_AHU_ACL_CU_014, Cx. 7, D. 570.
108 Dados retirados do documento da Biblioteca Nacional, MS618 02: 0406 e 0407
109 Recife, 12 de abril de 1732. Carta do Provedor da Fazenda Real de Pernambuco João do Rego Barros ao rei
[D. João V], sobre os vinte mil cruzados referentes ao contrato da dízima da Alfândega da Paraíba e Pernambu-
co, que devem ser remetidos àquela capitania. Avulsos da Paraíba_AHU_ACL_CU_014, Cx. 8, D. 665.

1451
rendimento do direito da dízima da Alfândega. Avulsos da Paraíba_AHU_ACL_CU_014, Cx. 7, D. 570.

No documento exposto pela Provedoria da Paraíba, se somarmos os três envios de Pernam-


buco 1727, 1728 e 1729 (complemento de PE*) com os valores de 1725, 1726 e 1727 (rendimento
da PB*), chega-se o montante de: 23:999$997, que é praticamente os 24:000$000 que era a parte da
Paraíba no contrato da dízima,110 e, portanto, podemos concluir que Jerônimo Lobo Guimarães foi
obrigado a pagar a parte da Paraíba, mesmo não entrando navios com fazendas em seu Porto.

Se somarmos os valores declarados por Pernambuco, também chegaremos à mesma conclu-


são, pois os anos 1727,1728 e 1729 (complemento de PE**) com os anos 1728 e 1729 (rendimento da
PB**) que é o mesmo que rendeu em 1727, segundo a Provedoria da Paraíba, resulta no mesmo valor
de 24:000$000 réis, que equivalem aos 60 mil cruzados.

Porém, se pararmos para analisar os números com atenção, chegaremos à conclusão de que
alguns não batem. O primeiro deles é o valor do envio de Pernambuco à Paraíba, no ano de 1727
(complemento de PE**), o valor de 8:000$000 réis e (complemento de PE*) 8:500$000 réis, uma dife-
rença de 500$000 réis. Qual seria o interesse de Pernambuco em declarar um valor menor do que ele
mandou, se o Provedor de Pernambuco só mandava a diferença que falta para completar os 8:000$000
da parte da Paraíba? E qual seria a intensão do Provedor da Paraíba em colocar os 500$000 réis, a mais
no envio de Pernambuco?

Podemos cogitar que o escrivão da alfândega José Ribeiro Ribas junto ao Provedor de Per-
nambuco João do Rego Barros “erraram” no valor do envio para a Paraíba, no ano de 1727.111 E para
maquiar as contas, resolveram concertar dizendo que o “rendimento da dízima daquela alfândega que
lá se achava...” era de 1:479$637, mas de fato o valor correto era o dos 979$637 em 1726. A conta fecha
se acrescentarmos mais 500$000 réis. Se somarmos o valor que Pernambuco disse que tinha de dízima
na Paraíba no ano de 1728 ao que mandou no mesmo ano, 6:520$363, chegamos ao valor de 8:000$000
réis que era igual aos 20 mil cruzados que fecha a conta.

Se somarmos os valores do rendimento da dízima da Paraíba dos anos de 1726 (979$637) e


1727 (465$377) (rendimento da PB*), chegamos ao valor de 1:445$014, valor igual ao que declarou o
escrivão da fazenda real no quadro (2).112 Também encontramos um documento datado do dia 13 de
setembro de 1734, no qual ficam expostos os valores remetidos à Paraíba por Pernambuco, nos anos

110Idem. Paraíba 30 de maio de 1729. Carta do [provedor da Fazenda Real da paraíba], Salvador Quaresma
Dourado, ao rei [D. João V], remetendo relação da receita e despesa do Almoxarifado, de 1723 a 1729, com
a importância da folha secular e eclesiástica, da Infantaria, bem como o rendimento do direito da dízima da
Alfândega. Avulsos da Paraíba_AHU_ACL_CU_014, Cx. 7, D. 570.
111 Recife, 12 de abril de 1732. Carta do Provedor da Fazenda Real de Pernambuco João do Rego Barros ao rei
[D. João V], sobre os vinte mil cruzados referentes ao contrato da dízima da Alfândega da Paraíba e Pernambu-
co, que devem ser remetidos àquela capitania. Avulsos da Paraíba_AHU_ACL_CU_014, Cx. 8, D. 665.
112 Dados retirados do documento da Biblioteca Nacional, MS618 02: 0406 e 0407 e Paraíba, 30 de maio de
1729.

1452
de 1727 a 1729 que seria de 22:554$983.113 Se somarmos todos os valores (Complemento de PE*), nos
anos de 1727,1728 e 1729, vai dá exatamente o mesmo valor de 22:554$983 réis.

Esses indícios corroboram com a ideia de que as contas da Paraíba, nessas remessas, estão cor-
retas, e que Pernambuco maquiou as contas, porém não é possível saber a verdadeira intensão de se ter
omitido o envio desses 500$000 réis no ano de 1727 para a Paraíba. Porém podemos conjecturar que
o sistema de maquiar fosse comum na alfândega de Pernambuco, pois o escrivão era o José Ribeiro
Ribas que havia sido denunciado, com seu irmão Miguel Ribeiro Ribas, pelo contratador Jerônimo
Lobo Guimarães ao rei.114

Analisando a tabela acima, notamos que o valor do rendimento da dízima da Paraíba do ano
de 1727, de 465$377, só vai ser contabilizado por Pernambuco no ano de 1729. Corroborando mais
uma vez com a ideia de maquiagem das contas feitas em Pernambuco.

No entanto, não podemos esquecer que era conveniente a capitania da Paraíba continuar de-
pendente do dinheiro da dízima de Pernambuco. A permanência do discurso da necessidade de mais
dinheiro da “dízima de Pernambuco” vai conservar-se por toda a primeira metade do século XVIII.
Ficamos com a dúvida: será que a dízima da Paraíba rendia tão pouco? Ou será que foi comum escon-
der a entrada de navios no porto da Paraíba e fazer negócios não declarados?

Infelizmente, quanto a essas questões, nada podemos afirmar, apenas especular a partir dos
indícios.

Voltando ao contrato de Jerônimo Lobo Guimarães, o mesmo foi obrigado a cumprir com as
partes referentes à dízima da Paraíba, o que provocou um déficit, significativo, visto que, do primeiro
contrato da dízima, ele foi obrigado a pagar 24:000$000 réis115 da dízima da Paraíba e, como vimos, a
mesma rendeu “oficialmente” o valor de 1:445$014116, ficando um déficit de 22:554$986 réis, só com a
Paraíba. Encontramos um documento que confirma o envio da última parcela do primeiro contrato

113 Recife, 13 de setembro de 1734. Carta do provedor da Fazenda Real de Pernambuco João do Rego Barros,
informando ter remetido à Provedoria da Fazenda Real da Paraíba todo o dinheiro que foi possível cobrar dos
devedores da dízima para pagamento das milícias daquela praça e fortificação, conforme ordem real. Avulsos
da Paraíba_AHU_ACL_CU_014, Cx. 9, D. 762.
114 Lisboa, 23 de fevereiro de 1726. Carta do [administrador dos contratos dos dízimo da capitania de Per-
nambuco] Jerônimo Lobo Guimarães ao rei [D. João V], pedindo não se dar crédito a um requerimento cujo
procurador é Miguel Ribeiro Riba, por tratar-se de calúnias a seu respeito. Avulsos de Pernambuco_AHU_
ACL_CU_015, Cx. 33, D. 3021. A Ementa do documento está errada, o contrato é o da dízima da Alfândega
de Pernambuco. Para mais detalhes sobre os irmãos Ribeiro Ribas, consultar: Oliveira, Luanna Maria Ventura
Dos Santos. Op.cit. 2016.
115 Valor igual a 60 mil cruzados.
116 Segundo o escrivão da fazenda real de Pernambuco e o Provedor da fazenda Real da Paraíba. Dados reti-
rados do documento da Biblioteca Nacional, MS618 02: 0406 e 0407 e Paraíba, 30 de maio de 1729. Carta do
[provedor da Fazenda Real da paraíba] Salvador Quaresma Dourado ao rei [D. João V], remetendo relação da
receita e despesa do Almoxarifado, de 1723 a 1729, com a importância da folha secular e eclesiástica, da Infan-
taria, bem como o rendimento do direito da dízima da Alfândega. Avulsos da Paraíba_AHU_ACL_CU_014,
Cx. 7, D. 570. E

1453
de Jerônimo Lobo Guimarães, no ano de 1729, para a Paraíba.117

Sobre o dinheiro da dízima da Alfândega de Pernambuco, além do envio de dinheiro para a


Paraíba, também encontramos uma ordem régia, de 25 de abril de 1726, que estabelecia que se reme-
tesse, todos os anos, do rendimento da dízima, 30 mil cruzados ao Conselho Ultramarino para serem
“...empregados em artilharia e mais petrechos de guerra, para fortificação e desta capitania”118. Em
outra ordem régia, é determinado sejam enviados para Paraíba mais 10 mil cruzados por tempo de
oito anos a partir de 9 de agosto de 1724.119 Essas duas despesas somadas alcançam 40 mil cruzados,
que equivalem a 16:000$000 réis, fora o dinheiro que era enviado para a Paraíba, que chegava ao valor
de 8:000$000 réis. Somando-se tudo, atingia-se o montante de 24:000$000 réis. 120

Porém, podemos supor que o primeiro contrato de Jerônimo Guimarães deva ter sido com-
pensador, pois logo em seguida ele arrematou novamente o contrato da dízima de Pernambuco, como
fiador de José dos Santos. No entanto, nos documentos das autoridades locais, Jerônimo Lobo Gui-
marães aparece como contratador, nos anos de 1729 a 1731. E em uma carta enviada pelo Provedor,
se diz que:
[...]se reconhece que começando o primeiro contrato de Jerônimo Lobo Guimarães
em janeiro do ano de mil setecentos e vinte quatro, e o segundo foi arrematado com
a cláusula, de que teria princípio, quando o primeiro se vencesse e não pelo termo de
anos, se acabaram de concluir as seis frotas, no fim do ano de mil setecentos e trinta e
um. E por este modo ficaram sendo necessários oito anos, para que as ditas frotas se
vencessem, e consequentemente tendo eu remetido para a cidade da Paraíba quatro
pagamentos e meio[...] não se lhe devem para inteirar os ditos dois contratos mais
que a metade do pagamento da frota do ano de mil setecentos e vinte e nove, e outra
que se vai vencendo desta última frota[...]121

Podemos chegar a algumas conclusões com o fim do segundo contrato de Jerônimo Guima-
rães. A primeira foi que ele conseguiu colocar um dos seus parceiros de contrato José dos Santos,

117 Recife, 26 de março de 1729. Carta do Provedor da Fazenda Real da capitania de Pernambuco João do Rego
Barros ao rei [D. João V], sobre ter remetido para a Paraíba os 20 mil cruzados referentes ao terceiro e último
ano do contrato da dízima, arrematado por Jerônimo Lobo Guimarães. Avulsos de Pernambuco_AHU_ACL_
CU_015, Cx. 38, D. 3406.
118 Recife, 17 de setembro de 1726. Carta do Provedor da Fazenda Real da Capitania de Pernambuco João do
Rego Barros ao rei [D. João V], sobre o recolhimento do rendimento da dízima da alfândega pelo tesoureiro
João de Oliveira Godim, na nau do comboio da frota de que é capitão João Alves Barracas. Avulsos de Pernam-
buco_AHU_ACL_CU_015, Cx. 34, D. 3153.
119 10 mil cruzados equivalia a 4 contos de réis. Recife, 16 de setembro de 1726. Carta do provedor da Fazenda
Real da capitania de Pernambuco João do Rego Barros ao rei [D. João V], sobre o conhecimento do pagamento
do rendimento da dízima da alfândega, por oito anos, recolhido pelo tesoureiro João de Oliveira Godim no
cofre da nau de comboio de que é capitão João Alves Barracas. Avulsos de Pernambuco_AHU_ACL_CU_015,
Cx.34, D. 3150.
120 Infelizmente, não é possível afirmar o valor exato que rendeu anualmente a dízima da Alfândega de Per-
nambuco, visto que os documentos que tratam dela se encontravam ilegíveis na digitalização do Arquivo His-
tórico Ultramarino, talvez seja possível averiguar no documento físico.

121 Recife, 12 de abril de 1732. Carta do Provedor da Fazenda Real de Pernambuco João do Rego Barros ao rei
[D. João V], sobre os vinte mil cruzados referentes ao contrato da dízima da Alfândega da Paraíba e Pernambu-
co, que devem ser remetidos àquela capitania. Avulsos da Paraíba_ AHU_ACL_014, Cx. 8, D. 665.

1454
como sua “testa de ferro” para continuar na cobrança da dízima da alfândega da capitania de Per-
nambuco, porém, no fim do ano de 1732, ainda não havia sido completado o dinheiro da dízima de
Pernambuco referente à Paraíba, onde ainda faltava uma parcela122 e meia que equivalia ao valor de
12:000$000 réis123 de seu contrato.

A pergunta que se faz é a seguinte: Jerônimo Lobo Guimarães ganhou ou perdeu dinheiro com
a empreitada dos contratos da dízima da alfândega de Pernambuco e Paraíba? Chegamos à conclusão
de que Jerônimo Lobo Guimarães perdeu bastante dinheiro com os contratos, por dois fatores: pri-
meiro, porque a dízima da Paraíba era ínfima; segundo porque encontramos o defunto Jerônimo Lobo
Guimarães, em 1745, sendo executado por sua dívida com a Fazenda Real da capitania de Pernambu-
co124 no Conselho Ultramarino.

Também encontramos outra carta, data de 2 de novembro de 1746, em que temos mais deta-
lhes sobre a execução. Nela afirma-se que se havia 11:014$067 réis “que haviam apreendido e deposi-
tadonaquela provedoria[...]” e o rei ordenava que o Provedor da Fazenda de Pernambuco Francisco
do Rego Barros remetesse o dinheiro nos cofres das naus de guerra ao Conselho Ultramarino. Não
sabemos ao certo se esse dinheiro era referente às parcelas que faltavam à Paraíba, já que o valor é bem
aproximado, ou se era o lucro obtido com o contrato, o que até o presente momento não é possível
definir.

Em relação ao envio do dinheiro ao reino, o provedor disse que não tinha o dinheiro para en-
viar na frota, pois ele estava aplicado em outras consignações, no entanto iria ordenar ao tesoureiro da
dízima para arrecadar o dinheiro e remetê-lo na próxima frota ao reino.125 E, até o presente momento,
também não foi possível identificar esse envio.

Essa foi a história dos contratos da dízima de Jerônimo Lobo Guimarães, que não obteve muito
êxito em sua empreitada com a alfândega de Pernambuco nem com a da Paraíba. Porém as redes de
seu contrato permaneceram na capitania de Pernambuco e, por coincidência ou não, seu cunhado
Alexandre de Lemos Sala, que foi seu administrador no segundo contrato da dízima, permaneceu na
capitania e, na década de quarenta do Setecentos, era tesoureiro da dízima da alfândega de Pernam-
buco. Essa ligação, pode ser uma possível explicação do motivo pelo qual sua dívida só foi executada
após quatorze anos do final de seu contrato.126

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZEVEDO, Beatriz Líbano Bastos. O Negócio dos Contratos: Contratadores de escravos na primeira
122Idem. Parcela equivalente a 8:000$000 réis ou 20 mil cruzados.
123Idem
124 Lisboa, 6 de outubro de 1745. Carta do solicitador Francisco de Sales Rodrigues ao rei [D. João V], reme-
tendo uma quantia em dinheiro pertencente ao defunto Jerônimo Lopo Guimarães, devedor na executadoria
da Provedoria da Fazenda Real da capitania de Pernambuco. Avulsos de Pernambuco_AHU_ACL_CU_015,
Cx. 62. D. 5286.
125 Lisboa, 2 de novembro de 1746. Carta do executor e desembargador José da Costa Ribeiro ao rei [D. João
V], sobre a execução da dívida de Jerônimo Lopo Guimarães para a Fazenda Real da Capitania de Pernambuco.
Avulsos de Pernambuco_AHU_ACL_CU_015, Cx. 64. D. 5466.
126Idem

1455
metade do século XVIII. São Paulo, 2013. Dissertação. Programa de Pós-graduação em História Eco-
nômica da Universidade de São Paulo.

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1456
(Footnotes)

1 Recife, 12 de abril de 1732. Carta do Provedor da Fazenda Real de Pernambuco, João do Rego Barros, ao rei [D.
João V], sobre os vinte mil cruzados referentes ao contrato da dízima da Alfândega da Paraíba e Pernambuco, que devem
ser remetidos àquela capitania. Avulsos da Paraíba_AHU_ACL_CU_014, Cx. 8, D. 665.

1457
1458
SIMPÓSIO TEMÁTICO 19
Governo, Administração e Direito na América Portuguesa (séculos XVI-XIX)

Coordenadores:

Victor Hugo Abril

Maria Isabel Siqueira

O CONFISCO SOBRE OS JESUÍTAS NA AMÉRICA PORTUGUESA: A REPERCUSSÃO E A ADMI-


NISTRAÇÃO DOS BENS
Ilana Peliciari Rocha1

Resumo

Com o confisco dos bens dos Jesuítas, de imediato, um vasto patrimônio foi adquirido pela metrópo-
le. Mas o destino e a repercussão desta aquisição é ainda sem estudos suficientes na historiografia. Uma parte
destes bens eram escravos que se tornaram “escravos da nação”, outra parte considerável era composta de imó-
veis, que receberam destinos diversos. As intenções da Coroa eram claras, na perspectiva moderna do Estado,
enquanto despotismo esclarecido encarnado na figura de Pombal: o combate ao poder político da Igreja. Mas
o que ocorreu na Colônia, como resultado desse processo, é outra história, a dever muitos esclarecimentos.
O objetivo é analisar os relatos oficiais coletados e reunidos na Coleção do Projeto Resgate, que abrange a
dispersão territorial da presença jesuítica. A partir dessa documentação vislumbra-se esclarecer as seguintes
hipóteses: a) O confisco tinha apenas fins políticos, não gerou repercussão econômica significativa. Ou seja,
esses bens, apesar de significativos, em sua grande maioria foram mal administrados e diluídos no conjunto dos
bens da Coroa ou destinados a particulares pela venda, sem, portanto, repercutir significativamente na compo-
sição patrimonial da Coroa; b) Esses bens tanto foram consumidos com o próprio processo do confisco como
também passaram a compor um patrimônio do Estado português na Colônia, de significativa importância,
pelo seu considerável aporte; c) Em razão da hipótese anterior e desse vasto patrimônio adquirido, a dispersa
“administração colonial” se mostrou atribulada e desarranjada; d) Com o registro desse volume patrimonial
como patrimônio oficial, surgiram mais implicações que ensejariam outros estudos, como o robustecimento
do patrimônio da Coroa na Colônia. Assim, apesar dos fins claramente políticos, sua repercussão foi também
econômica. Esse conjunto de documentos é predominantemente de ofícios das repartições públicas coloniais e,
também, correspondências e relatórios de natureza variada. Há que se reconhecer que as hipóteses apresenta-
das podem ser confirmadas apenas e sob o limite da perspectiva oficial dos administradores.

1 Mestre e Doutora pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas-FFLCH/USP. Professora do Depar-
tamento de História da Universidade do Triângulo Mineiro-UFTM.

1459
I. Introdução

A História da América Portuguesa é marcada pela presença e participação relevante da Com-


panhia de Jesus, que não só assumiu suas atividades espirituais como atuou politicamente e economi-
camente. Pelos mais de dois séculos até a expulsão, adquiriu um patrimônio com um modelo próprio
de exploração econômica; considerável com o auxílio de particulares, por doações, esmolas e heran-
ças; e, com o apoio da Coroa, por subsídios e vantagens. Para além das vantagens, a destreza adminis-
trativa da Companhia de Jesus mostrou-se com o aumento de seus rendimentos2. Segundo Paulo de
Assunção:

Os inacianos demonstraram em muitos momentos uma hábil administração dos ne-


gócios, controlando e gerenciando uma estrutura complexa e diversificada que in-
cluía o cultivo de terras, os canaviais, o controle dos trabalhadores assalariados e da
mão-de-obra escrava, a compra de materiais para equipar as propriedades e o es-
coamento da produção, dentre outras preocupações. Os bons resultados de algumas
propriedades revelam que os religiosos souberam trabalhar e adaptar-se às estruturas
coloniais, adequando os recursos naturais e a força de trabalho à produção. Observa-
mos ainda que as administrações não podiam ser pautadas por normas fixas, pois as
vicissitudes impeliam o gestor a assumir riscos, a adaptar o sistema e a tomar decisões
que não poderiam demorar demasiadamente, tarefas nem sempre fáceis de serem
empreendidas no universo dos engenhos, onde muitos proprietários não mostraram
competência administrativa para construir uma base econômica estável3.

Essa destreza nos negócios resultou no vasto patrimônio e em problemas com a administração
pombalina, ocasionando a expulsão dos jesuítas e o confisco de seus bens. Umas das preocupações
da Coroa era acabar com o domínio e atuação desses religiosos, que cresciam economicamente e que
agiam policamente e socialmente.

Os aspectos econômicos da atuação dos jesuítas foram recorrentes em alguns trabalhos, tanto
nos aspectos globais do patrimônio e seus desdobramentos quanto nas particularidades de certos es-
tabelecimentos dos jesuítas, como apontou Márcia Amantino e Marieta Pinheiro de Carvalho:

De maneira isolada, algumas fazendas jesuíticas foram analisadas pela historiografia.


São exemplos a Fazenda de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, o Engenho do Sergipe do
Conde, em Sergipe, e de São Cristovão, também na cidade do Rio de Janeiro. Estas
obras, apoiadas em ampla documentação, permitiram elucidar pontos importantes
destas estruturas, trazendo à tona questões sobre o funcionamento, o cotidiano, a

2 Para o aprofundamento da compreensão da manutenção dos bens pelos jesuítas, as motivações para a expul-
são e do confisco dos bens da Companhia de Jesus, vide: ALDEN, Dauril. Aspectos Econômicos da Expulsão
dos Jesuítas do Brasil: nota preliminar. In. KHEITH, Henry H. EDWARDS, S. F. Conflito e Continuidade na
Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. ASSUNÇÃO, Paulo de. Negócios Jesuíticos:
O Cotidiano da Administração dos Bens Divinos. São Paulo: Edusp, 2009. AMANTINO, M. CARVALHO, M.
P. de Pombal, a riqueza dos jesuítas e a expulsão. FALCON, F. RODRIGUES, C. (org.) A “Época Pombalina” no
mundo luso-brasileiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, p. 59-90, 2015. SANTOS, Fabricio Lyrio. A expulsão dos
jesuítas da Bahia: aspectos econômicos. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 28, nº. 55, p. 171-195, 2008.
3 ASSUNÇÃO, op. cit., pp. 435-436.

1460
vida dos escravos que por lá viviam e, principalmente, sobre a movimentação econô-
mica que a produção desses bens gerava4.

Com o alvará de 03 de setembro de 1759, o Rei D. José I de Portugal, expulsou os jesuítas e


confiscou seus bens. Dessa forma, o patrimônio passou a pertencer à Coroa Portuguesa. No entanto,
os estudos contemplaram pouco os desdobramentos posteriores.

No patrimônio estavam escravos que se tornaram “escravos da nação”5 e imóveis, que recebe-
ram destinos diversos. Pretende-se observar o encaminhamento que o governo pombalino deu para
esses bens e os significados que esses deram para a época pombalina, a partir de parte dos relatos
oficiais coletados e reunidos na Coleção do Projeto Resgate. A escolha dessa coleção justifica-se por
contemplar fontes relativas aos diversos locais que contavam com a presença jesuítica. A Coleção
contempla documentos diversos relacionados à administração dos estabelecimentos e que, foram ana-
lisados considerando seus limites e potenciais.

A análise histórica do problema do confisco dos bens dos jesuítas pode se encaminhar para di-
versas hipóteses. Pode-se pensar que resultou apenas em desdobramentos políticos, não evidenciando
um impacto e preocupação com as questões econômicas. Dessa forma, o patrimônio jesuítico, mesmo
representativo, não foi considerado na administração. Outra hipótese oposta é a repercussão, voluntá-
ria ou involuntária do confisco sobre o patrimônio da Coroa: o governo considerou o aspecto econô-
mico dos bens e estes proporcionaram uma incorporação ao patrimônio real, além do financiamento
do próprio processo de expulsão e confisco dos jesuítas. No entanto, a administração desses bens na
América Portuguesa pode ter sido difícil, visto compreender uma dispersão territorial e diversificadas
atividades produtivas. Esse patrimônio pode ter se perdido nos problemas de ordem administrativa.

Outra hipótese é que o volume dos bens dos jesuítas conferiu uma robustez patrimonial à Co-
roa na América Portuguesa e contribuiu na condução não só dos aspectos econômicos, mas também
políticos.

I. A expulsão dos jesuítas e o confisco: aspectos gerais

Durante o reinado de D. José I em Portugal, os jesuítas acabaram expulsos de todos os domí-


nios portugueses, com o alvará de 03 de setembro de 1759, por diversos motivos. Com a expulsão,
seus bens foram confiscados e incorporados ao erário real. Após o confisco, o encaminhamento foi a
nomeação de administradores para prosseguirem as atividades produtivas de certos estabelecimen-
tos. Também passou-se à elaboração do inventário desses bens que incluíam igrejas, os colégios, os
dízimos, os ornamentos, as fazendas, os sítios e as casas de aluguel e tudo que nesses paços se encon-
travam.

O processo de seqüestro de bens e expulsão dos inacianos, a partir de agosto de 1759,


confirmava o descompasso entre os interesses do Estado e os dos religiosos, que nos
4 AMANTINO & CARVALHO, op. cit., p. 62, 2015.
5 ROCHA, I. P. “Escravos da Nação”: o público e o privado na Escravidão Brasileira, 1760-1876. São Paulo:
USP-FFLCH, 2012 (Tese de Doutorado).

1461
últimos anos assumira contornos mais evidentes. O confisco geral – de todos os bens
móveis e de raiz, rendas ordinárias, pensões e qualquer outra atividade dos religiosos
em toda a extensão das terras coloniais, com o respectivo inventário e registro de
rendimentos anuais – permitiu à Coroa avaliar o montante dos bens temporais e dos
negócios jesuíticos que justificavam a própria expulsão6.

O confisco dos bens dos jesuítas contribuiu para ampliação do patrimônio da Coroa. Esse
conjunto dos bens da Ordem se estendia por todo o Brasil, com imóveis, escravos e outros de valor,
equivalentes a grandes propriedades privadas em geral. Para além das razões do confisco, um enca-
minhamento imediato da Coroa em relação a parte desse patrimônio foi a sua venda. Alguns estudos
indicam a venda de uma parte desse patrimônio, como é o caso da Bahia. Fabrício Lyrio dos Santos
apontou a venda de suas principais propriedades e concluiu a falta de interesse por parte da Coroa em
manter a posse desses bens. Sua explicação recaiu na constatação da venda imediata e até mesmo nos
acordos de pagamentos por longos anos. A atitude da Coroa era justificada para “cobrir gastos adicio-
nais com as diligências de percorrer o interior da capitania, tanto para conduzir os padres que estavam
dispersos pelas propriedades da ordem, quanto para inventariar e sequestrar seus bens e rendimentos”.

O chanceler Thomás Barreto, continuando seu raciocínio relativo aos escravos dos
engenhos e fazendas, recomendou à Coroa que vendesse logo, em separado, os es-
cravos, as terras e os engenhos, de modo a conseguir comprador, pois de outro modo
não haveria quem pudesse pagar por elles, e observou que manter apenas os enge-
nhos, sem os escravos, acarretaria prejuízo para a Real Fazenda7.

No caso da administração da Fazenda de Santa Cruz8 após o confisco foi conduzida com des-
caso. Carlos Engemann, Márcia Amantino e Cláudia Rodrigues colocam que:

Com a expulsão dos jesuítas, suas fazendas passaram às mãos de administradores,


senhores locais ou funcionários designados como gestores do patrimônio, até que a
maior parte delas fosse leiloada, inteiras ou em partes. Neste interregno, a política de
gestão dos padres parece ter sido substituida por outra muito mais laxa e de pouco
interesse no destino das propriedades, alterando completamente o estado dos recur-
sos ambientais e humanos nelas abrigados. Já em 1773, o rei de Portugal chamava a
atenção para este fato em carta endereçada ao Marquês do Lavradio, no qual afirmava
que os bens dos jesuítas ‘se vão deteriorando cada dia mais pela negligência dos ad-

6 ASSUNÇÃO, op. cit., p. 349.


7 SANTOS, op. cit., pp. 187-188.
8 Solicitada como sesmaria, inicialmente, as terras da Fazenda Santa Cruz pertenceram a Cristóvão Monteiro
e sua esposa, a Marquesa de Ferreira. Após a morte da Marquesa, em 1590, as terras foram divididas em partes
iguais e entregues, uma à filha, D. Catarina, como herdeira; e a outra à Companhia de Jesus, conforme vontade
de Cristóvão Monteiro. Após dois dias, ocorreu a permuta entre D. Catarina e os jesuítas, que lhe entregaram
outras terras. Iniciou-se, então, o período de posse da propriedade por parte da Companhia de Jesus, que se
estendeu até 1759, quando da expulsão e o confisco de seus bens, quando a Fazenda passa às mãos da Coroa,
tornando-se Fazenda Real. Com a vinda da Família Real, em 1808, essa se torna um local de veraneio e, poste-
riormente, com as mudanças políticas, passa-se a Fazenda Imperial. Ver: ENGEMANN, C. Os Servos de Santo
Inácio a Serviço do Imperador: Demografia e Relações Sociais entre a Escravaria da Real Fazenda de Santa
Cruz, RJ (1790-1820). 2002. 149f. Dissertação (Mestrado em História Social) - Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro, 2002.

1462
ministradores e cobiça dos rendeiros’ (Arquivo do Museu da Fazenda, 1773)9.

Com relação às fazendas e aos engenhos dos jesuítas na Capitania do Rio de Janeiro, apenas
a Fazenda de Santa Cruz ficou como patrimônio público, as restantes foram avaliadas e arrematadas,
juntamente com os seus escravos, por particulares10. Como coloca Márcia Amantino: “A Fazenda de
Santa Cruz, diferentemente das demais propriedades que haviam pertencido aos jesuítas, nunca foi
vendida como um todo. Apenas algumas partes foram compradas ou arrematadas, como os engenhos
de Itaguaí e Piauí”11.

Outro exemplo de arremação foram os escravos do Colégio dos Jesuítas do Recife, primeira-
mente entre os anos de 1760 e 1764 e, posteriormente, em 177012.

O processo de venda dos bens dos jesuítas bem como o método de escrituração ado-
tado pelos funcionários da Coroa não permitem determinar com rigor o número de
escravos que o Colégio do Recife possuía à data do seu encerramento. Uma parte
dos cativos foi vendida isoladamente, mas a parcela mais significativa foi alienada
conjuntamente com as propriedades em que trabalhava: Engenho da Luz, Fazenda
da Barreta e fazendas de gado do rio São Francisco. No primeiro e terceiro destes
casos os registros das transações apenas mencionam ‘com toda a sua escravatura’, não
especificando, por conseguinte, a quantidade de escravos que labutava nessas unida-
des. Apenas no caso da Fazenda da Barreta, o lançamento refere explicitamente os
escravos (61) que foram vendidos conjuntamente com essa propriedade e o seu valor
incluído no respectivo preço de venda13.

Em artigo que analisa a estrutura fundiária no Paraná, Horacio Gutiérrez deparou-se com uma
propriedade que fugia dos padrões, principalmente pela extensão. É interessante notar que: “Trata-se
de uma antiga fazenda jesuíta, expropriada no século XVIII e vendida pela Real Fazenda por volta de
1810 a um imigrante inglês que com grandes capitais se instalou na vila e adquiriu, além de terras,
escravos”14.

José Alves de Souza analisou os bens confiscados no Pará. Também apresentou os resultados
da administração após o confisco: “No período de 1760 a 1761, o rendimento de sete fazendas toma-
das à Ordem teria sido bem inferior ao da gestão jesuítica, isto se os dados dos inventários apresenta-
9 ENGEMANN, Carlos. RODRIGUES, Cláudia. AMANTINO, Marcia. Os jesuítas e a Ilustração na adminis-
tração de Manuel Martins do Couto Reis da Real Fazenda de Santa Cruz (Rio de Janeiro, 1793-1804). História
Unisinos, vol. 13, nº. 3, pp. 241-252, setembro⁄dezembro de 2009, p. 243.
10 Para detalhes sobre o problema de venda da Fazenda de Santa Cruz ver: VIANNA, Sônia Bayão Rodrigues.
A Fazenda de Santa Cruz e a Crise do Sistema Colonial (1790-1815). Revista de História. São Paulo, vol. XLIX,
nº. 99, p. 84-90, 1974.
11 AMANTINO, Márcia. De “curral dos padres” à gigantesca Fazenda de Santa Cruz. AMANTINA, Márcia.
ENGEMANN, Carlos (org.). Santa Cruz: de legado dos jesuítas a pérola da Coroa. Rio de Janeiro: EdUERJ, p.
39, 2013.
12 COUTO, Jorge. A venda dos escravos do Colégio dos Jesuítas do Recife (1760-1770). SILVA, Maria Beatriz
Nizza (org.). Brasil: colonização e escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p. 205, 2000.
13 COUTO, op. cit., p. 199.
14 GUTIÉRREZ, Horacio. A Estrutura Fundiária no Paraná antes da Imigração. Estudos de História, Franca,
UNESP, v. 8, n. 2, p. 219, 2001.

1463
dos pelos padres forem corretos”15. Concluiu que:

os usos e abusos que se fizeram dos bens jesuíticos no Pará, após a expulsão da Or-
dem, contribuíram para fortalecer uma elite de proprietários leigos, formada, na qua-
se totalidade, por funcionários militares e civis da burocracia colonial, tendo alguns
deles continuado a aumentar seu patrimônio, principalmente, a partir de negócio
feitos com o Estado colonial16.

Observou-se também que muitos escravos foram vendidos, mas outros foram mantidos. Para
essa nova situação de proprietário de escravos notou-se que:

A atitude do Estado para com sua nova situação de proprietário de escravos não era
uma situação usual a qual estava preparado para assumir. A manutenção do perfil je-
suítico de administração, de certa forma, tornou-se uma contradição: foi confortável
aproveitar a experiência, relativamente bem sucedida, mas resultou na dificuldade de
se posicionar enquanto proprietário público, visto que já ocorria na época um con-
flito entre o privado e o público. No entanto, esse comando, enquanto continuidade
dos moldes jesuíticos, não se iniciou logo depois do confisco17.

Na Fazenda de Santa Cruz:

Com o advento da administração real, o descontrole e o desmando parecem ter gras-


sado nos campos da fazenda. Descontrole este, que pode ter gerado uma paulatina
autonomia para a vida escrava, não obstante os deslocamentos que retiraram uma
parte da mão-de-obra da fazenda. Algum tempo depois, chegou à fazenda o Coronel
Manuel Martins do Couto Reys, um administrador que apostou na viabilidade do
modelo jesuíta de administração18.

Contudo, a venda dos bens dos jesuítas não ocorreu na sua totalidade. Durante o Império es-
tavam entre o patrimônio do Estado Imperial, a Fazenda de Santa Cruz, as fazendas do Piauí e Nazaré,
por exemplo.

O que se pode cogitar, frente à postura de venda dos bens confiscados por parte do Estado, é
que este não tinha uma perspectiva de se tornar um produtor e proprietário. No entanto, acabou assu-
mindo esse papel, já que nem todos os bens foram vendidos. Todavia, provavelmente essa orientação
de venda tenha atrapalhado qualquer perspectiva de uma administração ordenada e uniforme desses
bens. Em relação aos bens confiscados que foram mantidos pela Coroa, restou o desafio de adminis-
trá-los de maneira dispersa, com administradores de relativa autonomia entre os estabelecimentos
mantidos.

Do vasto patrimônio dos jesuítas, destacam-se especialmente alguns dos estabelecimentos que
15 SOUZA JUNIOR, José Alves de. A expulsão dos jesuítas e a secularização da propriedade da terra no Pará
do Setecentos. SERRÃO, José Vicente. MIRANDA, Susana Münch (org.). Property Rights, Land and Territory
in the European Overseas Empires. Lisboa: CEHC-IUL, p. 215, 2015.
16 Ibid., p. 220.
17 ROCHA, op. cit., p. 38.
18 ENGEMANN, op. cit., p. 132.

1464
permaneceram ao longo do tempo, como a Fazenda de Santa Cruz e as Fazendas do Piauí19. Esses
imóveis serviram posteriormente como principais estabelecimentos para a manutenção, emprego dos
escravos da nação e para produção e abastecimento, também foram imóveis que permaneceram pú-
blicos por todo Império e alguns deles são públicos até a presente data.

Esses estudos conduzem a análise a seguir, com os documentos relativos ao confisco e que
estão no banco de fontes do Projeto Resgate. Esse Projeto conta com documentação de diversas loca-
lidades da América Portuguesa e permite a visualização dos posicionamentos oficiais relacionados ao
tema.

2. O confisco dos bens dos jesuítas no Projeto Resgate

A expulsão e confisco dos bens dos jesuítas gerou uma série de cartas e ofícios entre os admi-
nistradores dos estabelecimentos, governadores-gerais e os secretários-gerais. O Projeto Resgate conta
com documentação a respeito e aqui, parte dela, será analisada.

No mês subsequente da ordem do confisco (10/1760), um ofício do governador e capitão-geral


de Goiás para o conde de Oeiras demonstra a preocupação dos governantes em identificar todos os
bens jesuíticos. A fonte trata o caso das fazendas de gado pertencentes às recolhidas do Coração de
Jesus, da cidade de São Luís do Maranhão, cuja administração estava a cargo dos padres jesuítas.

me informou o visitador do Bispado do Pará, o seu secretário, que as ditas nunca per-
ceberão produto algum daquelas fazendas, nem sabiam o que rendiam; porq’ o Padre
Manoel da Silva as estabelecera de esmolas q’ pedia de cabeças de gado no púlpito,
e no confissionario, e q’ todos os rendimentos os mandava pͣ o seo colégio do Pará,
servindo só de pretexto o dito recolhimͦ a disfarçar o projecto de estabelecer rendas
âs suas casas dentro destas Minas20.

19 Quanto às fazendas do Piuaí, parte delas passou a ser propriedade dos inacianos em 1711. Até então perten-
ciam ao sertanista Domingos Mafrense, que as deixou aos jesuítas por doação para após a sua morte. Os jesuítas
ampliaram essas terras, que com o confisco passaram a pertencer à Coroa, eram as Fazendas do Real Fisco ou
Fazendas do Fisco. Foram divididas em três, Canindé, Nazaré e Piauí, para cada uma inspeção ou departamen-
to - nomenclaura que passaram a receber – havia como responsável um inspetor e um criador. “A inspeção de
Nazaré situava-se ao longo do rio Parnaíba e era composta pelas fazendas Tranqueira de Baixo, Gameleira, Gua-
ribas, Matos, Lagoa de São João, Olhos d’Água, Mocambo, Serrinha, Jenipapo, Algodões e Cataréns. A inspeção
Canindé, localizada na região do rio Canindé, compreendia as fazendas Ilha, Pobre, Baixa dos Veados, Sítio,
Tranqueira, Poções, Saco, Saquinho, Castelo, Buriti, Campo Largo e Campo Grande. A inspecção Piauí ficava à
margem do rio Piauí e era constituída pelas fazendas Salinas, Brejinho, Grande, Boqueirão, Gameleira, Caché,
Serra, Cachoeira, Espinhos, Julião”. Com as mudanças políticas tornaram-se Fazendas da Nação ou Fazendas
Nacionais. Em 1844, a inspeção Canindé foi dada como presente de casamento por Dom Pedro II à princesa
Januária Maria, que passou a ter o usufruto dessas terras. “À República coube administrar o que restara das
propriedades: nove fazendas da inspeção de Canindé, seis da inspeção de Nazaré e uma da inspeção do Piauí”.
Ver: LIMA, Solimar Oliveira. Braço Forte. Trabalho escravo nas fazendas da nação no Piauí (1822-1871). Passo
Fundo: UFP, p. 32, 2005.
20 Ofício do [governador e capitão-general de Goiás], João Manuel de Melo, ao [secretário de estado dos Ne-
gócios Estrangeiros], conde de Oeiras [Sebastião José de Carvalho e Melo], sobre as fazendas de gado das re-
colhidas do Coração de Jesus da cidade de São Luís do Maranhão, situadas além do rio Tocantins em território
espiritual pertencente ao Pará, cuja administração estava a cargo dos padres jesuítas; Goiás, 15/10/1760.

1465
O governador colocou: “passei uma portaria a um homem abonado daquele destricto pͣ man-
dar feitorizar as ditas fazendas, q' não sam tam pequenas q' não tenhao numerosas cabeças de gado,
e dezaseis pretos pͣ o seu trafego”21. A situação indefinida dessas fazendas arrastou-se pelo tempo,
em 1774, em ofício do governador e capitão de Goiás ao secretário de Estado da Marinha e Ultramar,
aquele comenta a carta do guarda-mor do arraial da Natividade, acerca de três fazendas povoadas de
gado e escravatura, formadas pelos jesuítas Manuel da Silva e Pedro Tebalde com o produto das esmo-
las tiradas para o recolhimento das Ursulinas da Cidade de São Luís do Maranhão. A carta apresenta
a dúvida quanto pertencer as fazendas às recolhidas ou aos jesuítas22.

Estes exemplos demonstram a dificuldade para a identificação de parte da propriedade jesuíti-


ca. A administração dos bens envolvia uma rede administrativa diversa, que dificultava aos governa-
dores o controle efetivo. Havia algum cuidado administrativo, como demonstra a prestação de contas
abaixo para as referidas fazendas, mas as correspondências em geral, como veremos adiante, revelam
uma dispersão e desorganização de decisões.

Em observância da ordem de S. Magͤem carta de V. Exª de 18 de junho deste presen-


te anno sobre a arrecadação do dinheiro depositado do rendimento dos curraes de
gado qͤ a S. Magͤ sera presente, e a V. Exª pela certidam inclusa de qͤ não só consta
a sobredito arrecadação, mas também a sua importância e pelo qͤ respeita aos orde-
nados qͤ se devem dar a cada hum dos Administradores dos Curraes, lhe ordenei a
cada hum dos mayores cento e trinta mil reis por anno, e aos dos pequenos cem mil
reis23.

Os ofícios a seguir apontam as dificuldades encontradas pelos administradores. Não havia


uma definição de procedimento do confisco, menos ainda diretrizes para a administração dos bens.
Um ofício do conde de Azambuja, vice-rei do Estado do Brasil, sobre o período posterior ao confisco
dos bens dos jesuítas, colocou:

Quando o Conde de Bobadella mandou fazer o Confisco destas Fazendas, encarre-


gou essa diligencia a vários Ministros da Relação separadamente, e esses mesmos
ficarão encarregados, respectivamente na administração das mesmas Fazendas, o que
não ficarão mal, principalmente o Desembargador Brandão, pelo conhecimento, que
21 Ofício do [governador e capitão-general de Goiás], João Manuel de Melo, ao [secretário de estado dos Ne-
gócios Estrangeiros], conde de Oeiras [Sebastião José de Carvalho e Melo], sobre as fazendas de gado das re-
colhidas do Coração de Jesus da cidade de São Luís do Maranhão, situadas além do rio Tocantins em território
espiritual pertencente ao Pará, cuja administração estava a cargo dos padres jesuítas; Goiás, 15/10/1760.
22 Ofício do [governador e capitão-general de Goiás, barão de Mossâmedes], José de Almeida Vasconcelos [de
Soveral e Carvalho], ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro, sobre a carta
do guarda-mor do arraial da Natividade, António Nunes do Vale, acerca de três fazendas, povoadas de gado
e escravatura, na ribeira chamada Canabrava, distrito do Julgado da Barra da Palmas, formadas pelos jesuítas
Manuel da Silva e Pedro Tebalde com o produto das escolas tiradas para o recolhimento das Ursulinas da Ci-
dade de São Luís do Maranhão e a dúvida quanto pertencer as fazendas às recolhidas ou aos jesuítas. Goiás, 25
de janeiro de 1774.
23 Ofício do governador e capitão general do Estado do Pará e Maranhão, Manuel Bernadro de Melo e Castro,
para o [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Francisco Xavier de Mendonça Furtado, sobre a arre-
cadação do dinheiro depositado na Provedoria da Fazenda Real referente ao rendimento dos currais de gado
pertencentes aos jesuítas na ilha Grande de Joanes. Pará, 22 de outubro de 1760.

1466
adquirirão delas nas ditas diligencias24.

O mesmo ofício salienta a importância desses bens. No entanto, apresenta que a administração
dos bens confiscados dos jesuítas na América Portuguesa envolveu dificuldades ao longo do tempo e
com mudanças administrativas, com um resultado ruim de administração.

nem o dito Ministro me parece capaz de tomar sua semelhante conta, a qual ainda a
mesma contadoria não há de dar pouco que fazer, pela grande confusão, desordem,
e negligência, com que tem sido administrados os bens confiscados aos jesuítas; de
sorte que Fazendas de muita importância, e de muito rendimento, e que ainda hoje
tem grande número de escravos, mal dão presentemente para costeamentos das mes-
mas Fazendas, que se achão alguãs em termos de se arruinarem25.

O mesmo ofício aponta as mudanças administrativas que influenciaram no encaminhamento


desses estabelecimentos: “Porém depois que em lugar destes vierão outros, aos quais falta o mesmo
conhecimento, coisa alguã sabem, nem fazem nesta matéria, o que continuamente se está vendo nas
Informações e Respostas, que dão a Junta”26. Por fim, o conde de Azambuja conclui que:

se os Livros e Papeis, que Manoel Francisco da Veiga pede, tornassem para a sua mão,
ficavão alteradas, e perturbadas, todas as medidas e direçõens, que a Junta tem dado
sobre esta matéria, e isto por muito tempo; pois me persuado, que Manoel Francisco
da Silva e Veiga nem dentro de um anno conclue esta conta27.

Na dispersão da administração dos bens dos jesuítas, além da venda e doação, o que ficou
como patrimônio público foi aleatoriamente incorporado e principalmente atendendo a demandas
imediatas da administração local. Por outro lado, não havia uma orientação de preservação, os bens
eram usados, conforme podiam, até seu provável esgotamento. Os bens imóveis se deterioraram e o
que os administradores mais faziam eram reclamar dessa situação. Em ofício do governador da Pa-
raíba, Jerônimo José de Melo e Castro ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, relata-se o uso,
como residência, por doze anos do antigo colégio dos jesuítas28. Colocou o governador que:

e por que este depois da expulsa dos nominados jesuítas, ficou sem habitadores, athé
o tempo da minha passagem p.ª ele, cuja assitencia faz os edifícios presistiveis, por
cujo principio se acha bastantemente deteriorado o asualho e alguã madeira do ar,
24 Ofício do [vice-rei do Estado do Brasil], conde de Azambuja, [D. Antonio Rolim de Moura Tavares], ao
[secretário de estado da Marinha e Ultramar], Francisco Xavier de Mendonça Furtado, sobre a ordem para o
juiz intendente do confisco, desembargador Manoel Francisco da Silva e Veiga verificar as contas dos livros e
papéis confiscados ao padres jesuítas, informando que não considera este desembargador apto para exercer esta
função, mencionando a desordem em que se encontram as contas dos bens dos jesuítas. Rio de Janeiro, 16 de
outubro de 1768.
25 Ibid.
26 Ibid.
27 Ibid.
28 Ofício do [governador da Paraíba], brigadeiro Jerônimo José de Melo e Castro, ao [secretário de estado da
Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro, sobre a necessidade de uma casa para o governador, já que
há doze anos reside no antigo colégio que foi dos jesuítas. Paraíba, 09 de agosto de 1782.

1467
cuja reedificação, tanto p.ª conservação do mesmo colégio, como p.ª se poder nelle
residir, sem embargo de ser impropria habitação de governadores, por ser construída
para diferente corporação29.

A conservação dos estabelecimentos que foram dos jesuítas não foi uma prática da admi-
nistração colonial. Mas, a sua utilização, mesmo em condições precárias, foi usual. Eram, inclusive,
disputados entre os órgãos de administração. Posteriormente, o mesmo colégio dos jesuítas foi alvo de
interesse para se fazer um quartel, como expõe o ofício de 1799:

A impossibilidade que há de se conservar a Tropa paga desta cidade em todo o devi-


do arranjamento, e necessária economia, por viver toda dispensa e cada soldado onde
lhe he mais conveniente me obriga a expor a V. Ex.ª a necessidade de hum Quartel
que lhe seja próprio huma vez que sem ele jamais pode deixar de padecer o serviço,
e os costumes dos mesmos soldados a quem igualmente he bastante oneroso, além
do diminuto soldo, estar pagando renda de Casa. Eu bem conheço que o rendimento
desta capitania não he tal que possa suprir a despesa alguma extraordinária, ainda a
mais necessário; porém aqui hâ a Casa dos expulsos Jesuítas composta de Collegio e
Seminario, e para onde por única ordem do General, que então era de Pernambuco
Manoel da Cunha e Menezes forão mudados o Governador, e Ouvidor, apesar de
hum e outro perceber quarenta mil réis para renda de Casas, os quais ainda hoje a
Comarca paga ao ouvidor, assim com a fazenda Real ao Governador. A parte que
ocupa o ouvidor, que he o chamado seminário, pode muito bem servir para Quartel
da Tropa sem a menor violência do mesmo ouvidor, pois que esta percebendo aquelle
que he bastante para aposentadoria, e para ajuda da despesa que se hover de fazer no
dito Quartel e qe será insignificante vista as circunstancias e estado das casas podem
ser aplicados os quarenta mil reis do governador que tão bem os não deve perceber
por existir na outra parte das referidas Casas chamado Collegio30

Em 1801, outro ofício o governador esclarece a utilização da casa e posiciona-se contra o


quartel ocupar-se dela, visto a possibilidade de conflitos: “As casas porem, que o mesmo suplicante
pertende e que forão dos expulsos Jesuitas servem ã muito tempo de residência dos corregedores desta
Comarca”. E prossegue: “não obstante a ordem do Governo Geral, e os ditos corregedores a resideir
suas sobreditas Casas pouco depois da referida expusão dos denominados jesuítas”31.

Portugal estava preocupado com os rendimentos destes bens, determinou que fossem desti-
nados a bons administradores, desde que retornasse uma renda anual. O patrimônio tornou-se uma
fonte de renda, mas não havia uma orientação de como deveria ocorrer, como informa esta Provisão
do rei D. José ao governador do Piauí, João Pereira Caldas, para as fazendas dos jesuítas:
29 Ibid.
30 Ofício do [governador da Paraíba], Fernando Delgado Freire de Castilho, ao [secretário de estado da Mari-
nha e Ultramar] Rodrigo de Sousa Coutinho, propondo um novo regulamento para a tropa paga de Paraíba e
guarnição da fortaleza do Cabedelo; expondo a necessidade de se fazer um quartel da casa dos jesuítas expulsos,
evitando o pagamento de renda de casa. Paraíba, 23 de julho de 1799.
31 Ofício do [governador governador da Paraíba], Fernando Delgado Freire de Castilho, ao [secretário de es-
tado da Marinha e Ultramar], visconde de Anadia [João rodrigues de Sá e Melo], informando do recebimento
da ordem que manda dar casa para o intendente da Marinha, Joaquim Martins, responsável pela inspeção e
administração dos cortes das madeiras reais, mas avisando que as casas antes pertencentes aos jesuítas já se
encontram ocupadas. Paraíba, 09 de novembro de 1801.

1468
E para que não padeçao detrimento as Fazendas, Lavouras e Gados as entregareis ou
inteiras, ou divididas a pessoas que bem as administrem com encargo de pagarem
anualmente o terço de seu produto hora, e em quanto eu não dermais decisiva provi-
dencia sobre esta matéria: Dos mesmos rendimentos farei deduzir do Culto Divino,
e as despozeçoens desta mes cartas como pelas minhas Reais ordens esta determina-
do32.

Os administradores eram indicados com amplos poderes e poucas e genéricas orientações de


administração, como indica o ofício sobre o Colégio da cidade da Bahia, com indicação de adminis-
tradores das fazendas. O ofício apresenta que:

Em observância das Reais Ordens de S. Magͤ tenho nomeado ao Capitão Manoel Pe-
reira Taborda, para administrador da Fazenda do Campo largo (...) e porque está com
a Respectiva Fabrica, e eefeitosse deve entregar judicialmente, e por um Inventário
ao dditoCapitão, para conservar tudo na forma em que Receber e só pode vender os
efeitos que estiverem, e for havendo nos termos de se extrahirem da sobredita Fazen-
da, e que sem os mais teve prejuízo della se deve unicamte apurar33.

E prossegue com a definição dos encaminhamentos da administração:

somͤ com encargo de por ora pagar o terço do aanualproducto dos mesmos efeitos,
em que tão bem se deve ccompreenderdaquellas rezes que se matarem para o susten-
to das pessoas que assistirem na dita Fazenda, e para dos tangedores das Boyadas que
ddelase tirarem; regulandosse o mesmo Administrador quanto a estas rpeloordinario
preço da terra: como a despeza dos creadores, deve presentemente sahir das duas
partes do rendimento que ficão ao ditto Administrador34.

Do lado de cá, os administradores seguiram improvisando a administração, conforme cada


caso, na serventia que desse, para proveito próprio ou para alguma função pública. Numa resposta do
governador do Piauí, referente à administração desses bens, ele relata dificuldades:

Aqui tenho posto na administração que S. Magͤ. determina muitas das Fazendas
que os Regulares da Compª denominada de Jesus posuhirão, e administrarão nesta
Capitania, tendo reservado algumas delas para os officiaes de Cavalaria que nesta
Villa estou esperando/observando nesta pͤ o mesmo que V. Exª praticou no Pará
com as do Marajó, e fico cuidando em arrumar o Resto; esperando informar a V.

32 Provisão (cópia) do rei D. José, ao governador do Piauí, João Pereira Caldas, ordenando a expulsão dos Jesuí-
tas, a sua entrega ao governador do Maranhão e sequestro dos seus bens. Lisboa, 10 de abril de 1760.
33 Ofício do [governador do Piauí], João Pereira Caldas, ao [ex-secretário de estado da Marinha e Ultramar],
Tomé Joaquim da Costa Corte Real, sobre o que se fez com as fazendas dos jesuítas e informando que são da
administração, pois essas devem passar à sucessão a que tocam, segundo a instituição das capelas. Piauí, 11 de
fevereiro de 1761.
34 Ibid.

1469
Exª brevemente, e com mais vagar, de tudo o que respeita a esta diligencia, em que
tenho encontrado um pouco de disgosto e de trabalho, em alterar os despropósitos, e
destemperos desta gentes, que certamͤ é a mais rústica que tenho encontrado nestas
pes.35.

A documentação explorada não aponta com clareza razões para as dificuldades de administra-
ção, mas elas são recorrentes e indicam sempre que os bens estão se degradando. Os jesuítas contavam
com doações, com a experiência administrativa do patrimônio que eles mesmo constituíram e não
possuíam os mesmos entraves de uma administração pública (ainda que típica do período colonial),
assim como possuíam finalidades distintas. É previsível que o destino desses bens tenha sido acome-
tido de muitas dificuldades. A documentação oficial, entretanto, aponta para uma situação de inexis-
tência de uma orientação oficial geral, apenas ordens genéricas para que ocorra “boa administração”.
É possível que a venda de parte dos bens logo após o confisco tenha atrapalhado a adoção de uma
política de administração.

CONCLUSÃO

Considerando as hipóteses propostas no início, o que se verificou a partir dos documentos


pesquisados é uma confirmação parcial no seguinte sentido: Já há estudos na historiografia reconhe-
cendo a importância do confisco em algumas localidades que ocorreu. Não há um estudo que resultou
numa resposta para o processo inteiro de confisco. Os documentos do Projeto Resgate permitiram
constatar as dificuldades da administração colonial por inexistir uma orientação clara da Coroa, tam-
bém porque eram bens administrados com uma perspectiva diferente, os jesuítas, como observado,
contavam com doações, tinha a experiência administrativa do patrimônio que eles constituíram, não
possuíam os mesmos entraves de uma administração pública e possuíam finalidades distintas desta.

É possível concluir que houve uma repercussão econômica sobre o patrimônio da Coroa na
Colônia. Não é possível dimensionar claramente essa repercussão, o tema requer mais estudos com
outras fontes. Uma parte dos bens foi vendida, outra parte se dispersou e se perdeu em má adminis-
tração. Mas muitos imóveis ficaram até após a independência, assim como escravos. É preciso mais
estudos para identificar o destino dos bens, especialmente os imóveis, que permaneceram como bens
da Coroa.

No início do período posterior ao confisco esses bens serviram a destinos diversos, necessários
para administração em geral, como residências, sedes administrativas ou simplesmente bens da Coroa
com exploração econômica.

35 Ofício do governador do Piauí, João Pereira Caldas, ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Fran-
cisco Xavier de Mendonça Furtado, sobre as medidas tomadas com as fazendas administradas pelos jesuítas
e doadas aos oficiais da Cavalaria; acerca da conclusão do trabalho de que estava encarregado o engenheiro
Henrique Antônio Gallucio, remetendo o requerimento em que este solicita a nomeação para sargento-mor
engenheiro, com soldo dobrado. Vila da Moucha, 21 de novembro de 1760.

1470
BIBLIOGRAFIA

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1471
Um olhar sobre o juízo dos órfãos mediante as demandas das viúvas e tutoras solicitantes.
Capitania de Pernambuco, primeira metade do século XVIII
Jéssica Menezes36

O presente trabalho procura desenvolver uma analise sobre o Juízo dos órfãos, instituição
que pertenceu à estrutura judicial do Estado Português, cujas atribuições e impedimentos estavam
determinados pelas Ordenações do Reino.Logo, assim como para todos os cargos do judicial, o juízo
dos Órfãos tinha seus procedimentos descritos no código das Ordenações Filipinas, contando no li-
vro I, título 88 a regulamentação para o cargo de juiz dos Órfãos. Tal ordenamento previa, ainda,um
quadro de agentes e oficiais para o serviço do juízo, entre eles contamos com o escrivão, o avaliador,
o tesoureiro. Estes tinham por finalidade garantir a manutenção das diligenciasreferentes às funções
e atribuições deste juízo.

Oreferido juízo foi socialmente importante, por ter suasatividades direcionadas a tencionar
acerca a regulação social das famílias, especificamente aquelas que cruzavam por uma situação de
desestruturação familiar, pois estes deveriam atender aos cuidados e interesses das pessoas e bens
daqueles que ficavam órfãos. Suas ações abarcaram papeis jurídicos, administrativos e sociais, tendo o
juízo desígnio para administrar e zelas pelas pessoas e bens daqueles que tornavam-se órfãos.

Assim, faz saber da criação do ofício de juiz e escrivão de órfãos, as Ordenações Filipinas,
em seu Livro I37, título LXXXVIII. Destinados, especialmente, para prover, tanto as pessoas quanto
as fazendas dos órfãos. A constituição de um magistrado, que com grande presteza, deveria cuidar e
administrar os interesses dos que ficavam órfãos, segundo o Historiador Português do direito e das
Instituições, Antonio Manuel Hespanha:
“homenageavam a idéia de que ao poder competia a proteção daqueles que, em vir-
tude de capitis deminutio ou de condições sociais concretas, não estavam capacitados
para assumir pessoalmente a defesa dos seus interesses (incapazes, pessoas coletivas,
pobres, viúvas, órfãos, dementes, pródigos, ausentes e, até, defuntos)” 38.

De acordo com as Ordenações Filipinas, em atenção as suas atribuições o juízo dos órfãos,
deveria manter com grande diligência e cuidado, todos os órfãos que estavam sobre sua jurisdição,
inscritos em um livro. As informações que precisavam ser declaradas diziam respeito, primeiramente,
as pessoas dos órfãos. Assim, deveria constar registrado o nome do órfão, do seu pai e de sua mãe, o
domicílio onderesidiam, a idade que apresentavam, bem como o nome daqueles quehaviam sido de-
signados como seus tutores e curadores.

36 Mestranda pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), bolsista da pós-graduação- órgãos de
fomento CAPES.
37 De acordo coma dispôsição dos Livros das Ordenações Filipinas, o Livro I dispõe sobre o quadro de agentes
(magistrados e juízes) e oficiais (ouxiliares, tabeliões e escrivãos) diretos e indiretos (procuradores, oficiais das
câmaras) com as suas respectivas atribuições e impedimentos. MENEZES, Jeannie da Silva. Sem embargo de
ser Femea: as mulheres e um estatuto jurídico em movimento no século XVIII. Jundiaí, Paco editorial: 2013.
p, 49.
38HESPANHA, Antonio Manuel. As vésperas do Leviathan, 1994, p, 180

1472
Contava como nota de registro do livro dos órfãos, também, informações quanto aos bens des-
tes, referentes aos espólios que haviam ficado por herança pela perda do pai ou da mãe. Dessa forma,
precisaria o juiz de órfãos inteirar-se tanto quando a soma como também a qualidade dos bens herda-
dos, sendo estes os móveis ou de raiz. Era preciso saber e tomar registro, também de quem os admi-
nistrava. Deveriam, ainda, ter o cuidado de saber se os espólios herdados andavam bem aproveitados,
danificados ou perdidos. Nestes casos a ordenação previa quanto aos danos e prejuízosque pudessem
ser causadosas fazendas dos menores órfãos, que o juiz deveria fazer pagar por todas as perdas causa-
das, de tal modo que, caso não cumprisse deveriam eles mesmos cobrir as perdas39.

Dessa forma, ojuízo dos órfãos, ao compor o quadro da administração e da justiça régia, era in-
cumbido, especialmente, para atender as diligências que envolviam o amparo e a administração, tanto
das pessoas quanto dos bens, daqueles que ficavam órfãos. Sua jurisdição estava atrelada a todos os
feitos cíveis que órfãos figuravam como autores ou réus. A instituição do juízo dos órfãos era encabe-
çada pelo Juiz de órfãos, cargo que superintendia, figurando, principalmente as tomadas de decisões.
Embora, por vezes, a instituição e o juiz que a superintendia sejam percebidos de forma inseparável.

Segundo consta nas Ordenações Filipinas deveria existir um juiz de órfãos em todos os lugares
que contassem com 400 vizinhos ou mais40. Já nos lugares onde este contingente populacional não
fosse alcançado o cargo deveria ser acumulado junto ao de juiz ordinário.

Sendo que, consta na documentação consultada que em janeiro de 1735 o Governador da Ca-
pitania de Pernambuco, Duarte Sodré Pereira Tibão, remete uma carta ao Rei, D. João V, tratando da
separação do juiz dos órfãos da Capitania de Itamaracá, referente às atribuições do dito juízo em rela-
ção ao juiz ordinário. Em anexo encontra-se uma cópia de um Alvará Régio que trata da criação do cargo
de juiz dos órfãos separados do juiz ordinário. O alvará declara convenientes os motivos para tal separação no
Reino, sendo que pelas mesmas razões deveria ocorrer no Brasil. De acordo com o Alvará citado:

“Foi servido ordenar se estabeleçam no Brasil Juízes dos Órfãos Trienais separados
dos juízes ordinários, não somente nas vilas que tiverem quatrocentos vizinhos no
seu destrito, e daí para cima, em cada uma das quais haja um juiz de órfãos separados
dos juízes ordinários; mas que nas outras vilas menores, aonde comodamente pode
ter um juiz dos órfãos, servir em diferentes vilas, se crie também separado, com tanto
que na sua jurisdição não tenha menos de quatrocentos vizinhos”41.

De acordo consta no Alvará de 1731 éverificada uma possibilidade que não constava nas Orde-
nações do Reino. Referente a um mesmo Juiz de órfãos servir em diferentes vilas, sendo estas vizinhas,
desde quefosse conveniente servir as diligências referentes às suas funções. O que se infere, de acordo
com as referidas normatizações é que não poderiam ocorrer casos em que um juiz de órfãos constasse
com jurisdição inferior a de quatrocentos vizinhos.

O alcance no tratamento do juiz dos órfãos quanto à atenção que deveriam prestar as pessoas

39Ordenações Filipinas, Livro 1, Título LXXXVIII, parágrafo 22º ao 30º


40 Ordenações Filipinas, Livro 1, Título LVXXXVIII, caput.
41 AHU_ACL_CU_015, Cx. 48, D. 4256. O referido Alvará foi passado por resolução de sua Majestade em 19
de março de 1731, tendo sido registrado no Livro 7, folha 162, de Provisões da Secretaria do Conselho Ultra-
marino em 11 de maio de 1731.

1473
dosmenores órfãos se encaminhava para a execução de inventários e partilhas de toda fazenda e bens
que um menor tinha como direito por herança.Quando falecia um pai ou uma mãe, deixando um
menor, era preciso proceder com o Inventário42, tendo o juiz dos órfãos um prazo de um mês para in-
ventariar todos os bens móveis e de raiz. Este processo tinha por finalidade o arrolamento, liquidação
e partilha dos bens, devendo junto ser feita uma acareação de todos os bens ao tempo do inventário.

Nos casos de falecimento da mãe o juiz dos órfãos determinava ao pai que se realizasse o
inventário no prazo de um mês (contando do dia do falecimento), ficando os bens em poder do pai,
pois, este se constituía como o legítimo administrador. Nos casos em que o inventário fosse realizado
por um dos cônjuges, este teria o prazo de dois meses para fazer, mesmo sem a determinação do juiz
dos órfãos43.

Segundo as Ordenações Filipinas os bens de raiz deveriam ser identificados pela sua condição
e local onde se encontravam já os bens móveis precisava ser sinalizado para serem identificados a
qualquer momento. Somado a acareação dos bens era empreendida uma avaliação destes, feita pelo
juiz e escrivão dos órfãos e mais dois avaliadores que entendessem do assunto. O propósito era que, a
partir da identificação e avaliação, não recaísse sobre esses bens alguma dúvida no momento em que
os órfãos os recebessem44.

Finalizada a partilha, mesmo assim, o processo não se esgotava para o juizado de órfãos, pois
este transcorreria até o momento da emancipação do menor, findando, assim, a orfandade e consti-
tuindo-se a capacidade jurídica. Os processos de emancipação são estabelecidos, de maneira geral,
pela maioridade ou emancipação (via judicial- cartas de emancipação ou suprimento de idade- ou
casamento), e de maneira específica para as mulheres, cuja condição especial de fragilidade e carência
de tutela masculina, impossibilitava de atingir de forma absoluta a sua emancipação, seja pela via da
maioridade ou do casamento45.

Além disso, deveriam observar quanto aos cuidados atribuídos a educação dos menores e o
destino da administração de seus bens. Para tanto, primeiramente, deveriam proceder no prazo de
trinta dias, após a morte da mãe com a nomeação de tutores e curadores, para posteriormente, a fim de
garantir uma cuidadosa fiscalização quanto à boa administração e arrecadação dos espólios herdados,
devesse chamar os tutores para a prestação de contas, o que deveria acontecer dentro de um prazo
determinado de tempo. Outras diligências que contavam do quadro de atribuições do juízo diziam
respeitoà emancipação de menor, a concessão de suprimento de idade, a licença para casamento, entre
outros.

42 O testamento não era obrigatório, mas quando existia deveria ser anexado ao inventário. RODRIGUEZ, So-
nia Maria. O juiz de órfãos de São Paulo: caracterização de tipos documentais (séc. XVI-XX). São Paulo, 2010.
Tese (Doutorado em História)- Universidade de São Paulo, p, 69,70.
43 Ordenações Filipinas, Livro I, Título LXXXVIII, parágrafo 6º.
44 Ordenações Filipinas, Livro I, Título LXXXVIII, parágrafos 4º ao 9º
45 MENEZES, Jeannie da Silva. Sem Embargo de ser Femea: As mulheres e um Estatuto jurídico em movimen-
to no século XVIII. Jundaí, Paco Editorial:2013. P, 111.

1474
De acordo com o Diccionário da Língua Portugueza46, composto pelo Padre D. Rafael de Blu-
teau, as designações das palavras: menor, menoridade, maior e maioridade são assim entendidas: me-
nor é aquele “mais pequeno; menos grande; mais moço; o que está em idade de receber curador por
morte do pai”. Menoridade é a “idade do menor, daqueles a cujos bens, a sua administração se dá a
curador”. Maioridade é a “idade de 25 anos, em que alguém se reputa pai de família”. Ainda, maior é
aquele “que não está debaixo de curador”.47 Segundo, António Manuel Hespanha em seu livro “Im-
becilitas. As bem aventurança da inferioridade no Antigo Regime” 48a orfandade decorria do fato do
menor de idade não possuir a capacidade para praticar atos jurídicos, ou seja, não possuir a prudência
pela percepção do equilíbrio das coisas, e que por este motivo, aguardava a ele os cuidados de um
tutor.

De acordo com Jeannie Menezes, a capacidade jurídica viabilizava “o pleno exercício dos atos
da vida civil”, entretanto a mulher pela fragilidade que acompanhava o sexo deveria sujeitar-se a tutela
de um homem, desse modo nem a maioridade, tão pouco o casamento, assinalava o pleno exercício
da capacidade jurídica feminina49. Somente a condição de viúva trazia uma chance de atuação mais
autônoma do gênero, por possibilitar a gerencia e a condução da vida de seus filhos e do seu patrimô-
nio. Mesmo que fosse condição para a mulher poder administrar formalmente suas fazendas a tutela
de um homem, que no caso desta analise, se figura na pessoa do juiz de órfãos. Instituição que, ao
compor mecanismos reguladores e fiscalizadores para as condutas das mulheres se preocuparam com
a manutenção da honra feminina.

Neste ponto da definição do que seja orfandade para o contexto de analise da presente pesquisa
se insere a perspectiva relacional na qual buscamos estabelecer entre a instituição do juízo dos órfãos
e a instituição da tutela feminina. Para tanto, entendemos de acordo com Virgínia Assis, que por trás
de um juiz de órfãos havia uma criança, uma viúva e uma herança50.

Viúvas e tutoras solicitantes: uma perspectiva relacional entre com o juízo dos órfãos

Na presença de filhos menores de idade, a morte ou desaparecimento de um dos responsáveis,


pai ou mãe, acarretava como solução no tocante aos cuidados com os menores, caminhos distintos.
Desse modo, a orfandade era inauguradaapenas para oscasos em que havia o falecimento do pai. Pois,
segundo as Ordenações Filipinas, ao falecer uma mãe, o pai automaticamente permanecia como o
legitimo administrador das pessoas e bens dos seus filhos menores51. De acordo com José Pereira de
Carvalho, tratadista da obra “Primeiras linhas sobre o processo orfanológico”, órfão era o menor de

46BLUTEAU,Rafael. Diccionario da LinguaPortugueza. Tomo segundo, L-Z. Lisboa. Obra indispensável para
o entendimento, sem erros, dos documentos raros que entre nos se conservam, sendo abarcado em nossos
estudos.
47 BLUTEAU, op. cit, p, 73.
48Hespanha, António Manuel. Imbecilitas: as bem –aventuranças da inferioridade nas sociedades de Antigo
Regime. São Paulo: Annablume, 2010. (coleção Olhares), p 69 e 70.
49 MENEZES, Jeannie da Silva. Sem embargo de ser Femea: as mulheres e um estatuto jurídico em movimento
no século XVIII. Jundiaí, Paco editorial: 2013. P, 111.
50ASSIS, Virgínia. Velhos papéis novas histórias: a justiça para os órfãos na Capitania de Pernambuco. CLIO-
Revista de Pesquisa Histórica- nº 32.2 p. 67.
51 Ordenações Filipinas, Livro 1, Título 88, parágrafo 6º.

1475
idade que não tinha pai, pois o que apenas não tinha mãe achava-se sobre o pátrio poder, desse modo,
o juiz de órfãos só estava autorizado a inventariar a fazenda ou nomear tutor quando eram interessa-
dos menores sem pai 52.

À vista do que foi exporto nos casos de falecimento do genitor paterno, ou seja, quando havia a
perda do pátrio poder no seio familiar, era necessário que a mãe, que acabará de enviuvar, percorresse
um caminho burocrático que a ascendesse na administração e tutela das pessoas e fazendas dos seus
filhos órfãos. O ponto de partida a ser tomado pelas mães era via juízo dos órfãos, embora em casos
específicos pudessem ter seus pedidos encaminhados ao Reino.

A mãe viúva carecia do recebimento de uma licença que a nomeava legalmente como adminis-
tradora das pessoas e bens de sua prole. A necessidade que tem a mãe de uma provisão passada pelo
Juízo de Órfãos para assumir a tutela dos filhos tem como fundamento a disposição do Livro 1, Título
62, parágrafo 37 das Ordenações Filipinas. Segundo consta, “e achando que a dita viúva tem saber para
administrar a fazenda dos menores, e obrigando-se na maneira sobredita, lhe fará entregar as pessoas
dos menores e suas legítimas, enquanto ela for tutora e não se casar”53.

Assim como apontou, em 1742, a viúva Helena dos Santos Cardozo, em requerimento que
solicita a provisão para ser tutora de seus quatro filhos menores de idade. Segundo ela argumenta os
ditos menores não tem tutor testamenteiro, pois seu marido faleceu sem deixar testamento, sendo que,
segundo argumenta a viúva “na pessoa da suplicante concorre os requisitos para a tutoria dos ditos
seus filhos por ser pessoa honesta e por toda capacidade para os tutorar e administrar”54.

Logo se depreender que, não cabia as diligenciasdo juiz de órfãos, enquanto o menor ainda es-
tivesse sob os cuidados do pai, nomear tutor, requerer inventário e realizar partilhas, solicitar as pres-
tações de contas ou ainda recolher no cofre dos órfãos o dinheiro que havia ficado de legítimas para os
órfãos. Estas providencias não teriam lugar enquanto estivesseo menor sobre a potestas paterna, pois
este, na qualidade de legitimo administrador dos bens deveria manter e conservá-los em seu poder.

Quanto ao patrimônio sobre a vigilância do juízo a legislação portuguesa previa a existência


de um cofre dos órfãos, nele deveria ficar depositados todos os pertences de valor dos órfãos, como
dinheiro, jóias e objetos de ouro e prata. Como consta de um Alvará régio de 29 de janeiro de 1614,
onde se tem “[...] ordenado que na cidade da Bahia, em mais partes do Brasil, onde houver Juiz de ór-
fãos haja cofre onde se meta o dinheiro do órfão [...]”55. O juiz dos órfãos, escrivão e depositário56eram
aqueles que possuíam as três chaves necessárias para a abertura da arca, e somente na presença deles
o cofre poderia ser aberto.

Quanto ao controle cabia ao escrivão de órfãos o registro, feito em livro, das entradas e saídas.
52 CARVALHO, José Pereira de. Primeiras linhas sobre o Processo Orfanológico. Rio de Janeiro, 1879, p. 9 e 10.
53 Ordenações Filipinas, Livro 1, título 62, parágrafo 36º, p, 424.
54 AHU_ACL_CU_015, Cx. 57. D. 4912. 18 de janeiro de 1742.
55 Conjunto documental do livro dourado da relação do Rio de Janeiro. Data do documento 29 de janeiro de
1614, local: Salvador. Folhas 112v, 113 e 113v.
56 Pessoa abonada eleita, para o período de dois anos, para ter a guarda da arca dos órfãos. Sendo ele nomeado
pelo corregedor. Ordenações Filipinas, Livro I, Título LXXXVIII, parágrafo 32º.

1476
Para tanto deveria declarar os nomes, pesos e contos, valia e sinais de caba peça57. Apesar da utiliza-
ção de um cofre para a guarda dos bens dos órfãos propenderem uma maior segurança a fazenda dos
órfãos, na prática manteve exposta a malversação daqueles que eram constituídos como os responsá-
veis pela proteção das legítimas dos órfãos.

A partir do estabelecimento da arca o juízo dos Órfãos passou a controlar o patrimônio dos
órfãos de forma mais efetiva e organizada, adquirindo, com isso, maior relevo. Entretanto, como foi
destacado por Maria Beatriz Nizza da Silva, estes funcionários “por vezes confundiam seus próprios
bens com as avultadas somas que lhes passavam pelas mãos” 58. Isto, devido ao fato de deterem sobre
sua alçada uma poderosa maquina econômica, e sobre estas heranças lançarem-se inúmeras expec-
tativas. Como por exemplo, a viabilidade de concessão empréstimos auferidos a terceiros, que eram
concedidos mediante pagamentos dos juros.

Ficava estabelecido, de acordo com as Ordenações que o juízo dos Órfãos não possuísse em seu poder
os bens provindos das fazendas dos órfãos, constando o impedimento de que“[...] não tomarão, nem
comprarão para si, nem para outro, nem receberão, nem terão em seu poder dinheiro algum, ou bens,
ou qualquer outra coisa que sejam dos ditos órfãos” 59. O Alvaráacima citado, ainda, sobre a designa-
ção do cofre alerta
“[...] que o governo do estado, que hoje é, e ao diante for, ou quem em cargo servir, nem outro algum ministro
de justiça, e minha fazenda, possa tomar, nem tome dinheiro algum dos ditos órfãos
do cofre deles, nem por outra via para necessidade alguma, por precisa que seja, pos-
to que ponha penhoras [...]” 60.

Apesar de as normativas do reino prever garantias e impedimentos quanto à utilização dos


proventos depositados no cofre de órfãos, ao parirmos para a analisedas práticas jurídicas e adminis-
trativas da colônia fica demonstrado que a utilização dos recursos depositados no cofre era um costu-
me amplamente aproveitado pelos juízes. Isto porque estes rendimentos eram, com freqüência, dados
a empréstimos sem que se prestassem as garantias dos penhores de ouro ou prata ou, ainda, sem que
fossem dados fiadores abonados.

Os cuidados que deveriam ser tomados tinham como objetivo garantir uma maior segurança
para os espólios depositados, estes que pertenciamàs legítimas dos menores órfãos.Esta pratica pode
ser vista através da carta do juiz dos órfãos de Itamaracá, Francisco de [...],em que diz ao Rei, “[...]
que daqui em diante fazia com que se não dê a juros dinheiro pertencente aos vossos órfãos.Senão
sobre penhores de ouro e prata [...]” 61. Também alertou Virginia Assis para tais usos, ao deparar-se
com querelas que envolveram tais fundos financeiros em seu artigo intitulado “Velhos papéis, novas
histórias; a justiça para os órfãos na Capitania de Pernambuco”, a historiadora analisou a documenta-
ção do AHU que revela fatos envolvendo a utilização do fundo dos órfãos na construção da Ponte do

57 Ordenações Filipinas, Livro I, Título LXXXVIII, parágrafo 35º


58 Silva,Maria Beatriz Nizza da. Família e Herança no Brasil Colonial. Salvador: EDUFBA, 2017, p, 61 e 62.
59 Ordenações Filipinas, Livro I, Título LXXXVIII, parágrafos 30º.
60 Conjunto documental do livro dourado da relação do Rio de Janeiro. Data do documento 29 de janeiro de
1614, local: Salvador. Folhas 112v, 113 e 113v.
61AHU_ACL_CU_015, Cx. 38, D. 3451.

1477
Varadouro, na freguesia de Olinda62.

O fato apresentado pela historiadora decalca uma disputa política e administrativa que ocor-
reu na capitania de Pernambuco, no ano de 1756, envolvendo o desvio da utilização do fundo dos
órfãos na construção de obras publicas, na cidade de Olinda, sem o consentimento régio. Também
no tocante à utilização por terceiros das rendas dos órfãos, Maria de Fátima Machado, reforça que a
concentração do dinheiro dos órfãos na arca possibilitou sua utilização, mediante determinação régia,
para o financiamento de projetos e negócios de interesse público ou privado, embora estes negócios
não mantivessem qualquer relação com os órfãos a quem pertenciam os bens. Tal costume acarretava em
ameaças, a restituição das legítimas dos órfãos, no momento de sua emancipação 63.

Como fica evidenciado as medidas que visavam trazer maior segurançae garantias para as
heranças e bens herdados pelos órfãos, nem sempre eram tomadas. Podemos perceber o estabeleci-
mento de tal pratica em carta remetida ao reino, em 31 de maio de 1733, o Ouvidor Geral da Capitania
de Pernambuco, Antônio Rodrigues da Silva, nos deixou registros sobre ter tomado contas juntoao
tesoureiro do cofre dos órfãos de Olinda e do Recife e seus termos. A carta trata do procedimento
tomado pelo Ouvidor em relação aos bens depositados no cofre dos órfãos, o mesmo fez “recolher as
fazendas e todo cabedal que se achava descaminhado e mal seguro”.O caso contou comas diligencias
de um ouvidor sindicante, Pedro Cardoso de Novais Pereira. O mesmo relata que “examinei o cofre e
nele não achei dinheiro algum nem jóias de ouro e prata”. De acordo com o que foi apontado pelos Ou-
vidores que examinaram as contas do referido cofre “todo este dinheiro se deu a juros sem segurança”,
o que poderia acarretar, possivelmente, emprejuízos aos menores órfãos e suas fazendas.

Ainda sobre a apuração feita pelo ouvidor ao relatar sobre os descaminhos e a pouca segurança
a que davam aos bens dos órfãos depositado no cofre intercede o magistrado a sua majestade para que
mande cobrar os bens dos devedores e seus fiadores, de modo que, “(...) não chegando estes bens a
satisfação dos órfãos se proceda à execução contra os bens dos juízes que deram dinheiro a juros dos
órfãos sem as seguranças devidas”64.

As mulheres que, solicitaram provisão para serem tutoras de seus filhos tendo alcançado junto
às instituições tal requerimento, também deixaram registradasas ações que precisaram ser empreen-
didas por elas junto à instituição do juízo dos órfãos, a fim de alcançar uma maior proteção referente
às legítimas que pertenciam aos seus filhos tutelados. No tocante as “assimetrias jurídicas”, decorrente
da supremacia do poder paterno e da idéia de incapacidade do sexo feminino, ficaramevidenciadas as
diferenças de atitudes da sociedade colonial perante os membros masculinos e femininos das famílias
. Aqui podemos destacar que a entrega dos bens para deposito no cofre, que só acontecia quando
65

havia a perda do pai, trouxe como consequencias prejuízos e desvios quanto às fazendas sob a admi-
nistração do juízo dos órfãos. Em decorrência dessas desigualdades as mães precisaram se posicionar
62 ASSIS, Víginia. Velhos papéis, novas histórias: a justiça para os órfãos na capitania de Pernambuco. CLIO-
REVISTA DE PESQUISA HISTORICA- Nº 32.2.
63 MACHADO, Maria de Fátima. Op.cit. p, 305 e 306.
64 AHU_CU_015, Cx. 44, D. 3983. 31 de maio de 1733.
65 Silva, Maria Beatriz Nizza da. Vida familiar em Pernambuco colonial: segunda metade do século XVIII e
inicio do XIX. São Paulo: Singular, 2017, p 12.

1478
frente às instituições para resguardarem os direitos de herança de seus filhos.

Assim consta do requerimento de Ana Pacheco, que em 1732, como tutora de três filhas me-
nores, solicitou ao juiz de órfãos que o mesmo procedesse com à cobrança ao fiador do devedor dos
espólios de suas filhas. Com a morte do referido devedor a arrecadação da dívida havia de ser feita a
quem tinha se obrigado por fiador, “constando-lhe da obrigação dos suplicados pela escritura que fez”.
Sendo que a dívida era resultado de um dinheiro que havia sido posto em arrecadação pelo juízo dos
órfãos no ano de 1725.

É declarado pela tutora que o devedor das legítimas de suas filhas menores, o capitão Diogo
Antunes Barroso, havia falecido sem deixar bens com que pudesse cumprir com o pagamento,
deixando antes, muitas dívidas. Requere, então, por ser tutora de suas filhas junto ao juízo dos órfãos
contra o Capitão Manoel Vaz de Pinho, que segundo escritura passada em 1725 havia se obrigado
como fiador da dívida. Argumenta a viúva e tutora, contra o dito fiador, que pelo “(...) seu poder e por
conhecer que a suplicante e suas filhas menores são pessoas miseráveis em pobreza, que não tem do
que se sustentar, mas do que dos juros de suas legítimas (...)” e assim protela o pagamento a mais de
um ano pelo pagamento devido.

O pedido feito pela viúva e tutora ao juiz de órfãos é que se proceda à cobrança da dívida “exe-
cutivamente assim como se cobrão as da fazenda real”. Segundo a tutora o mesmo juízo de órfãos, pelo
fato de ter dado o dito dinheiro, ficavaobrigado a realizar a cobrança.

Fruto de um direito diferente, ou não, tais recursos financeiros, foram alvos de vigilância da
coroa portuguesa, através de mecanismos como o pagamento de fiança. O cargo de juiz de órfãos
era adquirido mediante fiança de quatrocentos mil réis, “de fiadores abonados que se obrigassem a
compor e pagar toda a perda e dano que por malícia, ou culpa dos ditos juízes se seguir aos órfãos, até
a quantia da dita fiança” 66. Outro mecanismo de controle era feito através das tiradas de residência,
estas “pretendiam avaliar o desempenho dos magistrados e dar a oportunidade aos que se sentissem
lesados de recorrerem à justiça sem receio de represálias, porque enquanto estas se efetuavam a autori-
dade dos avaliados era suspensa.” 67. Contudo, fica demonstrado quepraticas concretizadas buscavam
atender a interesses próprios de ascensão econômica dos oficiais dos órfãos, responsáveis por tais
riquezas particulares, bem como, privilegiar as exigências dos seus grupos de influências.

Com o intuito de garantir uma boa administração dos bens dos órfãos que ficavam pela morte
do pai, deveriam ser investidas pessoas para a qualidade de tutor dos menores órfãos, já que os bens
não poderiam ficar abandonados ou não aproveitados. Segundo Cava López, a instituição da tutela
pode ser definida com responsável, primeiramente, pela defesa e guarda da pessoa do menor órfão, e
em segundo lugar pelo cuidado com os seus interesses econômicos. Sendo considerada uma atividade
de destacada importância, devido às implicações pessoais e patrimoniais que geravam. Os tutores/
curadores deveriam assumir a responsabilidade com a educação, gestão patrimonial e representação

66 Ordenações Filipinas, Livro I, Título LXXXVIII, parágrafos 54º.


67 MACHADO, Maria de Fátima. Os órfãos e enjeitados da cidade e termo do Porto (1500-1580).Op, cit, p 89.

1479
dos menores órfãos peranteo Juízo dos órfãos68.

Desse modo, sobre os nomeados para tutela deveria atuar uma constante vigilância judicial
que buscava garantir a integridade pessoal e patrimonial dos menores. Para tanto, os tutores deveriam
ser chamados para prestarem as contas da administração dos bens dos órfãos. Constando como uma
obrigação do juízo dos órfãos, as diligências realizadas para poderem buscar informações da conduta
dos tutores. Entretanto, o juízo não precisava chamar os pais para a prestação de tais contas, já nos
casos em que o pai declarava um tutor testamenteiro este deveria prestar as contas em intervalos de
tempo de quatro anos, enquantoque as mães e avós deveriam prestar as contas em um prazo de tempo
mais curto, dois em dois anos.

Concernente as prestações de contas, as mulheres também poderiam sofrer com perdas nos
rendimentos dos legados dos seus filhos menores, também por motivos que se davam a partir da im-
bricada relação que deveriam manter com os juízes. Como se percebe em carta remetida pelo Ouvi-
dor Geral da Capitania de Pernambuco, Antônio Rodrigues da Silva, ao Rei, 1732, onde informa dos
procedimentos dos juízes de fora, que naquele tempo serviam o ofício acumulado junto ao de juiz de
órfãos. O ouvidor representa ao reino sobre a cobrança, feita pelos ditos ministros, de salários dobra-
dos quando tomavam as contas das viúvas e tutoras. Alerta, ainda, que desse modo, procediam em
prejuízo dos órfãos, sendo “sem a lei lhes conceder”. Além das poucas seguranças com que os juízes
guardavam os espólios herdados, as tutoras, ao precisar tomar as contas com os juízes tinham parte
das legítimas encaminhadas, de forma abusiva, para as mãos dos juízes.

O Livro IV, título 102, em seu primeiro parágrafo, estabelece que na designação de um tutor,
primeiramente, o juiz de órfãos deveria observar se havia alguma indicação testamentária, feita pelo
pai ou avô69, demonstrando, nestes casos, que a vontade paterna era tida preferencialmente e que ca-
beria ao juiz apenas a nomeação, não a indicação de um tutor. Deveriam, entretanto, atentar-se para a
condição e capacidade da pessoa a ser nomeado como tutor de menores órfãos. Visto que, figuravam
como pessoas inábeis para assumir um posto de tutor, entre outros, os menores de 25 anos, as mulhe-
res (exceto as mães e avós), os escravos, os religiosos, os loucos.

Não constandoa indicação passada pelo testamento, pois, caso existisse o desejo paterno de-
veria ser mantido, e estando a mãe ou avó presente, determinava o terceiro parágrafo do título 102 das
Ordenações Filipinas que, vivendo elas honestamente e não adquirindo segundas núpcias, nos casos
em que desejassem assumir a tutorias de seus filhos ou netos “(...) não consentirá o Juiz dos órfãos,
que usem delas, até perante ele se obrigarem de bem e fielmente administrar os bens e pessoas de seus
filhos e netos.”Ainda assim, deveriam renunciar ao benefício da lei do Veleano, ao qual consta que ne-
nhuma mulher poderá ser fiadora. Logo, a tutoria assumida por uma mulher, o que era limitado ape-
nas para as mães ou a avós, acarretaria, ainda, na perda de privilégios introduzidos em favor do sexo70.
Acrescenta, Maria de Fátima Machado, historiadora Portuguesa, que as mães herdeiras, enquanto

68 CAVA LÓPEZ, Maria Gema – La tutela de los Menores en Extremadura durante La Edad Moderna in Revis-
ta de Historia Moderna, nº 18, 2000, pp. 271-275.
69 Ordenações Filipinas, Livro IV, Título CII, parágrafo 1º.
70 Ordenações Filipinas, Livro IV, Título CII, parágrafo 3º.

1480
permanecessem viúvas e honestas, poderiam assegurar a tutela dos filhos, se obrigando, para isso, na
presença de juiz de órfãos, escrivão e três testemunhas a zelar corretamente pelos interesses dos seus
filhos e de suas fazendas71.

Caso estimassem adquirir segundas núpcias deveriam informar, com antecedência, ao juiz de
órfãos para que este providenciasse a nomeação de um novo tutor, visto que a tutela feminina finda-
va para mãe ou avó caso contraíssem novo enlace matrimonial. E mesmo nos casos em que a viuvez
recaísse sobre elas novamente, ainda assim, permaneciam impedidas de reaverem a tutoria e adminis-
tração de seus filhos e netos 72.

Quanto às execuções referentes aos procedimentos ligados aos testamentos e partilhas dos
bens, um terceiro, nomeado em testamento, poderia ficar responsável pelo cumprimento das ultimas
vontades do defunto. E no tocante as realizações destas, as viúvas e tutoras, inclusive, precisaram es-
tabelecer uma relação com o juízo dos órfãos, a fim de garantir suas posses. Como se depreende da
alegaçãoda viúva, tutora e cabeça de casal do Coronel Manoel de Souza Teixeira, Maria de Mendonça
e Silva, que apesar de ter feito “exatas diligências e repetidos requerimentos” precisou recorrer ao juiz
de órfãos para que este notificasse o devedor e testamenteiro do seu falecido marido, visto que este
procedia com embaraços e demoras a mais de quatro anos na finalização do inventário73.

Também o inventariante poderia se dá na pessoa da viúva, como no caso de Inácia Maria, que
ficou como responsável pela execução do inventário de seu falecido marido, que a havia deixado com
oito filhos órfãos. O inventário que se dá no juízo dos órfãos e tem seus encaminhamentos demorados,
por mais de uma década, tendo, inclusive, nesse tempo falecido dois filhos da viúva. O fato ocorre,
pois a inventariante alega que um dos avaliadores estaria interessado no dito inventário, e desse modo
avaliava uma morada de casas por um valor abaixo do merecido, e por esse motivo deveria ser consi-
derado impedido de tal avaliação.

As fazendas dos bens dos órfãos também poderiam sofrer perdas com os abusos cometidos
pelos credores, estes eram aqueles a quem alguma dívida ficava por ser paga pelos bens deixados no
patrimônio herdado. Em 1749, o juiz de órfãos de Itamaracá, Bento Ferreita Mouzinho, alerta para o
costume dos credores de ajuizarem viúvas antes de se fazerem inventários, o que acarretava em graves
prejuízos aos bens dos órfãos. O fato se dava, pois os credores passavam penhoras dos bens que se
encontravam em melhores condições por um preço abaixo do que valiam, e desse modo, tinham suas
dívidas pagas em oposição aos prejuízos causados as fazendas dos órfãos 74.

As mães e avós eram as únicas mulheres autorizadas a prestar uma tutoria, e só podiam figurar
como tutoras de seus filhos ou netos. As mulheres abordadas em nossa investigação se posicionaram
com resistência e presteza, recorrendo à justiça e ao direito, requerendo a tutoria de seus filhos e netos,
bem como defendendo os espólios herdados da malversação de terceiros. Desse modo, intentaram
71 MACHADO, Maria de Fátima. Órfãos e enjeitados da cidade e do termo do Porto (1500-1580). Porto, 2010.
P, 224.
72 Ordenações Filipinas, Livro IV, título CII, parágrafo 4º.
73 AHU_ACL_CU_015, Cx. 58, D. 4956. 22 de junho de 1742.
74AHU_ACL_CU_015, Cx. 64, D. 5429. 15 de maio de 1746.

1481
ações que objetivaram garantias que lhes assegurassem uma maior segurança na defesa de seus inte-
resses, de suas famílias e de seus espólios.

A tradição cultural européia construiu um discurso, ancorado e legitimado pelas autoridades


médicas, jurídicas, assim como pela cultura religiosa que ligou a mulher ao sexo imbecil e a uma posi-
ção de fragilidade e incapacidade. Tal entendimento propagou-se com base em uma carga de precon-
ceitos sobre a natureza e a condição da mulher.

A imagem da mulher foi representada, dentro deste contexto, a partir da idéia da imbecilidade
do sexo. Desse modo era considerada menos digna, em que ocupava lugar de incapacidade para as
funções de mando, ficando afastadas de todos os ofícios civis ou públicos, logo, elas eram excluídas
de direitos políticos. O remédio para os defeitos relacionados ao sexo feminino se constituía em uma
incessante vigilância sobre seus atos e um rigoroso confinamento ao espaço privado. Estas eram as re-
gras aconselhadas em respeito aos cuidados com a preservação do pudor e honestidade. Desse modo,
ao garantir o direito de administrar as pessoas e bens dos seus filhos, as instituições que serviram a jus-
tiça dos órfãos, ao mesmo tempo em que supervisionavam as ações das tutoras, que deveriam perma-
necer viúvas e honestas, como mandava as regras previstas para o comportamento do sexo feminino,
também possibilitaram a estas mulheres e mães um lugar como autoras de seus interesses, prestando
assim, um papel ativo dentro da sociedade colonial, ou seja, um lugar de maior autonomia para o sexo.

As contingências enfrentadas por essas mulheres, devido às ausências de seus maridos e a or-
fandade de seus filhos, fizeram com que elas movimentassem as instâncias institucionais, judiciais e
administrativas, da colônia, de modo que lhes fosse garantidas novas possibilidades como a de tutora
e administradora tanto das pessoas quanto dos bens dos seus filhos menores. Assim buscaram preser-
var suas condições e status sociais, enquanto mulheres de uma camada intermediária da sociedade,
vivendo próximo à nobreza, sem com isso, contrariar os papéis que eram esperados por elas. Estas
movimentaram as instituições de justiça, adaptando o ordenamento as necessidades que o contexto
que a viuvez exigia delas.

Muitas das idéias acolhidas pela tradição jurídica européia tiveram como base o direito canô-
nio, como extensão das escrituras religiosas. Compreendeu uma unanimidade jurídica a incapacidade
da mulher para se reger sobre si só, em comunicação a uma tradição clássica que entendia a mulher
como um ser frágil. Entretanto, nos esclarece António Manuel Hespanha, cito:
“O direito participava deste sistema de pré-compreensão profundas sobre a identidade e a
natureza dos sexos e recebia dele as suas intuições fundamentais. No entanto, como saber
prático de um mundo social em que as mulheres eram mais do que seres passivos e menori-
zados, o direito (...) diferenciava-se como sistema produtor de imagens sobre o feminino” 75

A caracterização da sociedade brasileira na constituição das famílias, durante o período co-


lonial, tinha na composição da família patriarcal o seu modo exclusivo, entretanto os novos olhares
historiográficos ao questionarem esse ideal patriarcal dominante começam a perceber e apresentar a
ocorrência de situações contraria, desse modo, inviabilizando as generalizações. Assim como intenta
75HESPANHA, António Manuel Hespanha. Imbecilitas. As bem-aventuranças da inferioridade nas sociedades
de Antigo Regime. São Paulo: Annablume, 2010, p. 102.

1482
este trabalho, em que buscamos apontar outra forma de arranjo familiar, esta que carrega na figura
feminina, mãe e viúva, uma idéia feminina distante de um ideal conformista e inativa, até então apre-
goada pela historiografia clássica. De modoque, elas se apresentaram a instituição do juízo dos órfãos,
movimentando, requerendo e reclamando, em seu nome e de seus filhos.

Entendemos, desse modo, assim como a pesquisadora Silvia Maria Jardim Bruguer, em livro
dedicado ao estudo da família mineira, que o patriarcalismo deve ser entendido não apenas como a
configuração dos domicílios, mas ainda, a partir de “um universo de valores, calcado, sobretudo na
importância dos laços familiares”76.

O comportamento feminino desejado era desse modo, privilegiado, visto que a condição de
honestidade e a boa reputação vinculada à imagem da mulher lhe garantiram a legitimidade que pre-
cisavam para ingressavam em juízo. Apresentando suas queixas e defendendo seus interesses, como
consta da documentação. Logo, o que estava em jogo, não só para as mulheres, mas também para
a conformidade social, era a possibilidade de diminuição das suas condições, advinda com a perda
dos bens materiais, assim como, pela possibilidade de diminuiçãodo bem familiar imaterial, como a
honra77.

Podemos classificar as mulheres que aqui apresentamos como pertencente de uma camada
intermediária da sociedade, definida por Suely Almeida, como um grupo de mulheres brancas e mes-
tiças, casadas com funcionários coloniais de segundo escalão. Representam um grupo de mulheres
que mobilizaram a administração e a justiça na busca pela defesa de seus interesses, sendo que dessa
forma, apresentaram-se as instituições do reino a fim de solucionar questões pertinentes a viuvez, aos
bens e a família. Por viverem entre a dignidade e o perigo da pobreza, que poderia levá-las a perda da
honra e em ultima instância a prostituição, tais mulheres “detinham as atenções da administração e da
justiça quando aos seus institutos recorriam, principalmente alegando as dificuldades que encontra-
vam para manterem a si e aos seus filhos, o que poderia resultar na desonra” 78.

A condição de viúva inaugurava um momento de desamparo que, por um lado, dirigia para
uma atuação autônoma do gênero, enquanto que por outro, não acompanhava a garantia de uma vida
tranquila, devidos as incertezas geradas. O patrimônio familiar, fatalmente, sofria uma perda com a
divisão dos bens, pagamentos de dívidas, despesas fúnebres, celebrações de missas e esmolas, colocan-
do em risco a unidade familiar. Além disso, precisavam lidar com a pouca segurança com que eram
submetidas à administração dos bens herdados pelos seus filhos, como ficou depreendido da analise
documental.

Buscando superar as situações contrárias a sua sobrevivência e a ameaça ao futuro de seus


filhos ficou demonstrado que elas recorreram aos órgãos administrativos e judiciais do reino, se po-
sicionando como tutoras de seus interesses, tendo, para isso que enfrentar os abusos e a malversação
76 BRUGGER, Silvia Maria Jardim. Minas Patriarcal: Família e sociedade (São João Del Rey- séculos XVIII e
XIX), 2007, p, 54.
77 MENEZES, Jeannie da Silva. Sem Embargo de ser Femea: As mulheres e um Estatuto jurídico em movimen-
to no século XVIII. Jundaí, Paco Editorial:2013, p, 116.
78 MENEZES, op. cit, p, 131.

1483
daqueles que deveriam zelar pelos interesses dos órfãos. Assim se depreende dos Requerimentos de
viúvas, como Rosa Acioli de Moura que pede recurso contra procedimento do juiz dos órfãos de Se-
rinhaém, afirmando:
“que por falecimento do dito seu marido, lhe ficarão alguns filhos de menoridade; e sendo
o juiz dos órfãos da dita vila [...], o qual sempre teve grande inimizade e oposição com a
casa da suplicante, entrou o dito juiz, com o poder de seu cargo a destruir a fazenda dos di-
tos menores, e com o pretexto de haverem no casal algumas dívidas menos justificadas, lhe
mandou vender e arrematar o seu engenho por ___ menos do seu justo preço, e com lesão
enormíssima; e fez assinar a suplicante dolosamente um termo de desistência, induzindo-a,
com palavras persuasivas e carvilhosas e procedendo em tudo o mais de fato nula e injusta-
mente [...]; preterindo e desprezando toda a forma, que a lei neste caso determina e manda
observar [...]”79.

Já em 1730 a viúva Ana Maria, contando com seis filhos, todos menores de idade, que pela
morte do marido, João Batista Lisboa, ficaram órfãos, requere fazendo o pedido de provisão no Estado
da Bahia para figurar como tutora de seus filhos, pois como declara em seu requerimento temia que
não cumprisse o juiz de órfãos a provisão. Segundo apresenta a viúva, o juiz de fora e órfãos “servia
com dano grave dos menores, pois com menos segurança mandou dar a juros o dinheiro de suas legí-
timas a pessoas que não satisfazem os juros e não possuem bens para o principal”80.

Desse modo, dos documentos analisados percebe-se o estabelecimento de uma dinâmica em-
preendida pelas solicitações de viúvas e tutoras, junto ao juizado de órfãos. Além de possibilitar uma
verticalização referente ao estudo de tal juízo, devido ao fato de, a partir de tais relações as atribuição
do juízo dos órfãos adquirem maior relevo, pois a ele precisavam recorrer as viúvas e tutoras. Estes
requerimentos revelam o quanto elas precisaram se posicionar para proteger as posses dos seus filhos.
Pois, por parte dos juízes, dos testamenteiros, dos devedores e dos credores se figuravam um costu-
me de malversação dos bens dos órfãos, além de se estabelecerem poucas garantias para as restitui-
ções dos bens, somado ainda as demoras com que se encaminhavam os procedimentos referentes aos
testamentos e partilhas. Ao expressar, tal estudo, novas possibilidades da expressão da sociabilidade
femeinina nos espaços coloniais nos são apresentado praticas emancipadoras quanto à condição civil
tuteladas destas mulheres.

CONCLUSÃO

Desse modo, vimos que as mulheres precisaram recorrer a estratégias para garantir os espólios
herdados, de modo a suprir a ausência dos tutores masculinos, figurando assim, “desejo e ousadia de
reclamar seus direitos e conduzir as próprias escolhas” 81. Ao deparar-se com uma nova realidade ju-
rídica que apesar de carregar a condição de tutelada, comum a toda mulher, figuraram também como
tutoras, e assim, agiram de modo a negociar direitos e deveres dos maridos falecidos.

Ao fazer deste modo, se relacionaram com a instituição do juízo dos órfãos, e, além disso, mo-
vimentaram tal instituição. Ou seja, o estudo das viúvas setecentistas enquanto agentes históricos que

79 AHU_CU_015, Cx. 48, D. 4262. 24 de janeiro de 1735.


80 AHU_CU_015, Cx. 40, D. 3600. 23 de março de 1730.
81MENEZES, Jeannie da Silva. Sem Embargo de ser Femea: As mulheres e um Estatuto jurídico em movimento
no século XVIII. Jundaí, Paco Editorial:2013. P, 111.

1484
mobilizaram as instituições nos é apresentado, de modo, a entender melhor os procedimentos do juízo
dos órfãos e de seus modos de agir. Bem como, o estudo do juízo dos órfãos nos apresentou a história
destas mulheres, viúvas e solicitantes.

Dentro desta seara estudo de tal juízo nos é apresentado de modo dinâmico dentro de um
contexto social colonial que buscou atender as necessidades e exigências de um grupo de mulheres, na
busca pelos seus interesses e garantias, além de, em contrapartida estabelecer mecanismos de controle
da população feminina e da família legitimamente constituída, principalmente, após a morte do chefe
da família.

FONTES MANUSCRITAS

Arquivo Histórico Ultramarino- Projeto Resgate

AHU_ACL_CU_015, Cx. 48, D. 4256. 8 de janeiro e 1735.

AHU_ACL_CU_015, Cx. 57. D. 4912. 18 de Janeiro de 1742.

AHU_ACL_CU_015, Cx. 38, D. 3451. 20 de junho de 1729.

AHU_CU_015, Cx. 44, D. 3983. 31 de maio de 1733.

AHU_ACL_CU_015, Cx. 58, D. 4956. 22 de junho de 1742.

AHU_ACL_CU_015, Cx. 64, D. 5429. 15 de maio de 1746.

AHU_CU_015, Cx. 40, D. 3600. 23 de março de 1730.

AHU_CU_015, Cx. 48, D. 4262. 24 de janeiro de 1735.

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CARVALHO, José Pereira de. Primeiras Linhas sobre o Processo Orfanológico. RJ: AA. Da Cruz Cou-
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Alvará Régio sobre o cofre dos órfãos. Livro Dourado da Relação do Rio. Datas Limites: 1534-1612.
Título de Fundo: Relação da Bahia. Data do documento: 29 de janeiro de 1614. Local Salvador. Dis-
ponível em: http://www.historiacolonial.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoi-
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1486
1487
1488
SIMPÓSIO TEMÁTICO 20
Governanças, administração e poderes no império português entre os séculos XVI e XIX

Coordenadores:

Reinaldo Forte Carvalho

Jonas Wilson Pegoraro

Trajetórias sociais, mercês e o contexto de conquista da terra: a atuação dos capitães-mo-


res no Siará Grande entre 1679 e 1754
Rafael Ricarte da Silva1

Este artigo2 busca analisar os perfis, as trajetórias de guerra e a governança das terras
desenvolvidas pelos capitães-mores da Capitania do Siará Grande entre os anos de 1679 e 1754. Este
estudo permite que se compreenda a relação entre o contexto de dominação, o perfil dos candidatos
selecionados para o cargo e a atuação desses na administração das terras. Assim, procura-se analisar
o que competia e o que era esperado dos agentes coloniais no desempenho de suas obrigações e como
estes atuaram nos combates aos inimigos internos e externos da Coroa portuguesa e na distribuição
de sesmarias.

Em primeiro lugar, apesar do pretenso formalismo e unificação de atribuições e deveres


expressos nas normativas gerais e particulares, como os regimentos, ressalta-se que a administração,
governação em um vasto império como o lusitano não foi homogênea, muito menos obedeceu à mo-
delo único de organização em todos os espaços. Conforme Rodrigo Ricupero,

A Coroa portuguesa não possuía um modelo único de administração para seus ter-
ritórios ultramarinos, que foram sendo organizados segundos modelos próprios e
adaptando-se às realidades encontradas. As opções administrativas adotadas devem,
portanto, ser entendidas a partir da análise de certos fatores como, por um lado, a
realidade local das diversas áreas, e por outro, a distância em relação à Metrópole e
as dificuldades de comunicação, como se percebe pela comparação entre as várias
partes do império.3

1 Doutor em História Social e Professor Adjunto da Universidade Federal do Piauí – UFPI, Campus Senador
Helvídio Nunes de Barros. Agradecimento a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Piauí – FAPEPI
pelo apoio por meio do Edital 01/2018 de participação em eventos.
2 Este artigo é parte das discussões da tese defendida em 2016 no Programa de Pós-Graduação em História
Social da Universidade Federal do Ceará – UFC.
3 RICUPERO, Rodrigo. A formação da elite colonial: Brasil, c.1530-c.1630. São Paulo: Alameda, 2009, p. 103.

1489
Percebe-se a dimensão particular que esses fatores atribuíam para cada possessão do vasto
Império, sem, contudo, esquecer-se os elementos legais e centralizadores que também estavam pre-
sentes na estrutura administrativa do Império e de suas partes. Ademais, Nuno Gonçalo F. Monteiro e
Mafalda Soares da Cunha, ressaltam a importância de estudos que busquem investigar esses diversos
contextos, como o de conquista do Siará Grande, “uma vez que descobre de forma particularmente
clara os interesses sociais em jogo”.4 Dessa forma, como pensar o processo de escolha dos candidatos
aos cargos de governação em um espaço tão longínquo como o da Capitania do Siará Grande? Que
critérios prevaleceram na análise do perfil dos postulantes? O que se esperava e determinava para suas
administrações?

O recrutamento de agentes para os cargos de governação no Império português foi he-


terogêneo, variando de acordo com a hierarquia dos territórios e dos postos a serem ocupados, bem
como ao longo de diversos contextos entre os séculos de dominação em suas conquistas ultramarinas.
Quanto maior a importância do território e/ou do cargo a ser ocupado na compreensão da estratégia
de conquista e dominação lusitana, mais elevados eram os critérios e os atributos que os escolhidos
deveriam possuir, sendo esses de natureza sócio familiar e/ou de experiência militar ou governação.
Portanto, o processo de escolha de um Governador-Geral, Vice-Rei demandava setores, atributos e
agentes diferentes de uma nomeação como a de um capitão-mor em uma capitania de menor enver-
gadura econômica e estratégica na política metropolitana.

Além dos aspectos acima mencionados, devem-se levar em conta os interesses pessoais
e contextuais que estão em jogo nos diferentes espaços. Para Nuno Gonçalo F. Monteiro e Mafalda
Soares da Cunha,

(...) a nomeação dos governantes decorria tanto dos critérios sociais e de mérito
pré-definidos pela monarquia para cada território, quanto da decisão individual de
aceitar ou não o posto. E esta era influenciada pelo resultado das negociações sobre
mercês que o governante indigitado iniciava antes de aceitar o cargo e pela situa-
ção concreta em que se encontrava o território em causa. As benesses solicitadas
podiam incidir tanto sobre as condições de exercício do cargo (ordenado, comple-
mentos remuneratórios, titulatura), quanto sobre as mercês a obter, imediatamente
ou no regresso, para si e para os seus descendentes. Por parte da Coroa, os factores
que intervinham no parecer final articulavam as qualidades do requerente com a
situação concreta do despacho de serviços anteriores, ponderando-as com o estado
de necessidade do território em causa e, por isso, com a urgência na partida para o
posto. É evidente, então, que a existência de conflitos militares abertos ou outras di-
ficuldades conhecidas reforçavam a capacidade negocial do governante indigitado e
propiciavam actos de maior liberalidade da Coroa e, em geral, um abaixamento nas
suas exigências usuais.5

As nomeações levavam em conta elementos do contexto local, dos critérios a serem con-
4 MONTEIRO, Nuno Gonçalo F.; CUNHA, Mafalda Soares da. Governadores e capitães-mores do Império
Atlântico português nos séculos XVII e XVIII. In: MONTEIRO, Nuno Gonçalo F.; CUNHA, Mafalda Soares da;
CARDIM, Pedro. (Coords.). Optima Pars: Elites Ibero-americanas do Antigo Regime. Lisboa: ICS, 2005, p. 209.
5 MONTEIRO, Nuno Gonçalo F.; CUNHA, Mafalda Soares da. Op. Cit., p. 209.

1490
templados e da capacidade negocial entre postulante e Coroa na política de prestação de serviços e
recompensas em forma de mercês. Ao se postular um cargo de capitão-mor, por exemplo, o candidato
apresentava os serviços que já havia desempenhado em nome de Sua Majestade e os possíveis recursos
de sua fazenda que havia gasto na execução dos mesmos, como forma de demonstrar sua qualifica-
ção e obediência como bom vassalo, aguardando em troca a recompensa em forma de mercê. Dessa
maneira, “servir a Coroa, com o objetivo de pedir em troca recompensas, tornara-se quase um modo
de vida, para diferentes setores do espaço social português”6 no reino e no ultramar, configurando,
segundo Fernanda Olival, uma economia de mercês que fundamentou a lógica do recrutamento nas
conquistas do Império português.

Cabe advertir, que a participação dos agentes coloniais não foi impulsionada somente
a partir do interesse ou do sentimento de pertencimento na política imperial de conquista e recebi-
mento de mercês. Deve-se levar em consideração, também, os interesses imediatos e particulares que
estavam em jogo no contexto local de conquista e afirmação de poder no momento em que se estava
recrutando para determinado posto.

A seleção dos candidatos ao cargo de capitão-mor nas capitanias onde existiam menores
competências e maior dependência funcional em relação a outras jurisdições governamentais reco-
mendava “que a boa política fosse seleccionar pessoas com menores atributos sociais exigindo-se-lhes,
porém, experiência”. A escolha dos capitães-mores a partir de 1643, com a criação do Conselho Ultra-
marino, era realizada por meio de uma seleção e consulta desse Conselho, abrindo-se “geralmente um
prazo para a apresentação das candidaturas, findo o qual o Conselho elaborava uma consulta na qual
se indicava o mais votado, normalmente com fundamentação”.7 Por fim, tinha-se o despacho real com
o deferimento do selecionado pelos conselheiros ou a indicação de outro candidato que o rei enten-
dia que mereceria ou melhor se encaixaria na ocupação do cargo. Contudo, no século XVIII, quanto
mais importante fosse a capitania, mais cedo foram eliminados os processos de escolha por meio de
concursos.

A nomeação para o posto de capitão-mor da Capitania do Siará Grande obedeceu ao


sistema acima mencionado. Em 1678, por exemplo, abriu-se consulta do Conselho Ultramarino para
nomeação ao cargo de capitão-mor devido ao falecimento de Jorge Correia da Silva que até então o
ocupava.

Por estar vago o posto de capitão da capitania do Ceará, por falecimento de Jorge
Correia da Silva, em quem estava provido, se puseram editais de quinze dias, para
que as pessoas que a ele se quisessem opor, entregassem seus papéis ao secretario
deste Conselho Manoel Barreto de Sampaio, e no dito termo de quinze dias os apre-
sentaram as pessoas seguintes.8
6 OLIVAL Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno: honra, mercê e venalidade em Portugal (1641-
1789). Lisboa: Estar, 2001, p. 21.
7 MONTEIRO, Nuno Gonçalo F.; CUNHA, Mafalda Soares da. Op. Cit., p. 211 e 212, respectivamente.
8 [1678, abril, 1, Lisboa] Consulta do Conselho Ultramarino ao rei [D. Pedro II], sobre a nomeação de pessoas
para o posto de capitão-mor do Ceará, que vagou por falecimento de Jorge Correia da Silva. Resolução régia a
nomear Sebastião de Sá. Manuscritos Avulsos da Capitania do Ceará. AHU-Ceará, cx. 1, doc. 31.

1491
Para além da legitimação da conquista e da ação governativa das terras pelos capitães-mo-
res, o provimento nesses postos de comando administrativo proporcionava aos nomeados honras, re-
munerações, privilégios, distinção e ascensão social, bem como a oportunidade de formação de redes
de alianças com outros sujeitos. Assim,

(...) a administração colonial oferecia a seus membros ou pessoas a eles ligadas, uma
série de possibilidades de auxílio à formação de patrimônios, tanto lícitos como ilí-
citos, fosse pelo uso dos recursos da pequena arca de mercês manejadas diretamente
na colônia, da qual a terra era o principal item, fosse por outros expedientes. Além
disso, era ainda a administração colonial que mediava, por via de cartas e certidões, o
acesso à grande arca de mercês, materiais e simbólicas, controladas pelo rei.9

O primeiro capitão-mor da Capitania do Siará Grande nomeado no período em análise foi


Sebastião de Sá, filho de Manoel Ribeiro de Sá e natural de Olinda, que em 1678 recebeu a nomeação
para o posto de capitão-mor após, aproximadamente, 27 anos de serviços prestados à Coroa portu-
guesa no Estado do Brasil. As atividades desempenhadas pelo candidato, segundo consta da apresen-
tação de sua candidatura, relacionavam-se essencialmente com o contexto de conquista, expansão e
afirmação de novos domínios entre as capitanias da Paraíba e do Siará Grande, conforme destacado
abaixo. Dentre os serviços prestados a Vossa Alteza encontravam-se a ocupação dos postos de,

(...) de soldado, alferes vivo e reformado, e capitão de infantaria vivo e reformado;


havendo-lhe achado no decurso do referido tempo (e antes dele no princípio das
ditas guerras, em que também tinha assistido) na facção da casa forte de Izabel Gon-
çalves, no sitio da força de Nazaré, que se tomou à escala, na entrada da Capitania da
Paraíba, e assalto, que se deu a um forte nos limites de Santo André, queimando-se
ao inimigo uma lancha de mantimentos e assustando-se toda a campanha, nas duas
batalhas dos Guararapes, na defesa da estância do governador dos pretos (...) e pas-
sando ao Rio Grande ficar ali de guarnição até segurar os moradores dele; e indo ao
Ceará domar o gentio, que inquietava aquele povo, e ultimamente nas marchas que se
fizeram pelo sertão, assolar e intimidar as nações dos gentios, matando, e cativando
muitos, e tornando aos Palmares buscar negros levantados, executar neles o mesmo
castigo, em que entrou um irmão do rei que era toda nossa inquietação; padecendo
nestas jornadas grandes fomes e trabalhos, e procedendo sempre com muito zelo e
valor.10

Concorreram com Sebastião de Sá os seguintes postulantes: Cristóvão Berenger de An-


drade, que havia servido nas guerras de Pernambuco, presidido a Fortaleza das Cinco Pontas e era
pessoa das mais nobres da Capitania Geral de Pernambuco, onde foi vereador e juiz; Antônio Botelho
9 RICUPERO, Rodrigo. Op. Cit., p. 182.
10 [1678, abril, 1, Lisboa] Consulta do Conselho Ultramarino ao rei [D. Pedro II], sobre a nomeação de pessoas
para o posto de capitão-mor do Ceará, que vagou por falecimento de Jorge Correia da Silva. Resolução régia a
nomear Sebastião de Sá. Manuscritos Avulsos da Capitania do Ceará. AHU-Ceará, cx. 1, doc. 31. Grifo meu.

1492
da Silva, consta que serviu no Reino, Alentejo, Évora, Pernambuco e no Maranhão; Cristóvão Paes de
Mendonça, que serviu em Pernambuco, Paraíba e cargos da República e Mateus Vieira Botado, que
desempenhou funções na cavalaria do Estado do Brasil e Corte durante oito anos e foi capitão de In-
fantaria no Rio de Janeiro.

Após análise dos “currículos” apresentados pelos candidatos ao cargo, os Conselheiros


do Conselho Ultramarino definiram seus votos, conforme lhes pareciam mais adequado a partir das
experiências dos proponentes.

Ao Conselho parece nomear a Vossa Alteza para este posto em primeiro lugar a An-
tônio Botelho da Silva, por ter notícia destas partes, e servir já de capitão de Gurupá,
em que procedeu com toda satisfação, e que com a mesma o fará no Ceará por sua
inteligência, e cuidado: Em segundo lugar a Cristóvão Berengel. E em terceiro a Se-
bastião de Sá.

Ao Doutor Carlos Cardoso Godinho lhe parece nomear em primeiro lugar Sebastião
de Sá, em segundo lugar Cristóvão Berengel e em terceiro Cristóvão Paes.

Salvador Correia de Sá [e Benevides] nomeia em primeiro lugar a Sebastião de Sá, em


segundo Cristóvão Berengel e em terceiro Antônio Botelho da Silva, pelo que fica re-
latado de seus serviços. Lisboa, ao primeiro de abril de 1678. Conde de Val de Reis.11

Compreende-se a divisão das indicações realizadas pelos Conselheiros a partir da análise


dos perfis dos três candidatos mais recomendados. Sebastião de Sá era o único que possuía experiên-
cia na guerra contra os gentios no Siará Grande e aquele que detinha maior tempo de serviço prestado.
Critérios estes que para Salvador Correia de Sá e Benevides certamente prevaleciam dentre os atribu-
tos almejados para o cargo.

Cristóvão Berenger de Andrade, segundo postulante com maior tempo de prestação de


serviços, apresentou-se como uma das pessoas mais nobres da Capitania Geral de Pernambuco, fi-
cando em segundo lugar na indicação de todos os Conselheiros. Nesse caso, a pretensa “nobreza” não
garantiu sua indicação ao posto, pois era o único a mencionar a “qualidade” distintiva. O terceiro a
ser apontado como possível capitão-mor foi Antonio Botelho da Silva, único que detinha experiência
como capitão-mor, o que lhe assegurou designação por uma parte dos Conselheiros.

Certamente, nesse caso, a escolha por Sebastião de Sá para ocupar o cargo de capitão-mor
do Siará Grande levou em consideração o contexto de conquista e combate aos inimigos externos e
internos da Coroa portuguesa, aliando maior experiência em serviço de guerras e conhecimento dos
espaços a serem dominados e consolidados. Para Nuno Gonçalo F. Monteiro e Mafalda Soares da
Cunha, a guerra era um elemento distintivo para o processo de ocupação social do território. Ou seja,
“os diferentes graus de exigência defensiva iniciais repercutiram-se decisivamente sobre o perfil social

11 [1678, abril, 1, Lisboa] Consulta do Conselho Ultramarino ao rei [D. Pedro II], sobre a nomeação de pessoas
para o posto de capitão-mor do Ceará, que vagou por falecimento de Jorge Correia da Silva. Resolução régia a
nomear Sebastião de Sá. Manuscritos Avulsos da Capitania do Ceará. AHU-Ceará, cx. 1, doc. 31.

1493
da população recrutada para cada um dos territórios e, muito em particular, sobre os atributos dos
seus governantes”.12 Para além da exigência defensiva, acredita-se que a guerra ofensiva de conquista
impetrada no espaço das Capitanias do Norte do Estado do Brasil reforçava a necessidade da escolha
por candidatos que tivessem o perfil de homens de guerra, independentemente da experiência de um
governo anterior como capitão-mor ou de uma diferenciação pelo status de nobreza.

Para o caso da Capitania do Rio Grande, entre 1700 e 1751, Leonardo Paiva de Oliveira,
concluiu, após analisar o processo de seleção dos 11 governos desse período, que os indigitados per-
tenciam ao grupo de sujeitos que detinham experiência militar, sendo poucos os que apresentavam
alguma distinção nobiliárquica.13

Na Comarca das Alagoas, segundo Dimas Bezerra Marques, as nomeações para postos na
Câmara, na administração da capitania e concessão de patentes militares seguiram a lógica da política
de mercês em retribuição aos serviços prestados à Coroa portuguesa, destacando-se as participações
dos agentes coloniais nas guerras contra os negros de Palmares e os indígenas resistentes ao processo
de conquista.14

E no caso do Siará Grande, qual o perfil dos escolhidos para desempenhar o posto de capi-
tão-mor? Prevaleceu o contexto de conquista e afirmação dos domínios territoriais, sendo seleciona-
dos os homens de guerra em detrimento daqueles que possuíam distinção nobiliárquica, experiência
de governação? Qual a naturalidade dos capitães-mores nomeados para a Capitania do Siará Grande?
Qual a circulação/trajetória destes? Todos combateram nas guerras de Pernambuco? Participaram
dos combates aos indígenas na Guerra dos Bárbaros? Prestaram serviços somente nas Capitanias do
Norte do Estado do Brasil? Existem alterações relevantes no perfil dos candidatos selecionados? De
que forma o perfil destes escolhidos permite compreender o processo de conquista do Siará Grande e
a formação de uma elite conquistadora?

A partir do mapeamento das trajetórias dos postulantes ao cargo de capitão-mor do Siará


Grande, até o momento de suas primeiras candidaturas na capitania, evidencia-se, apesar das lacunas
documentais mencionadas, que poucos tinham experiência no posto de capitão-mor. Do que se con-
clui, portanto, que esse não era um fator determinante na escolha para o caso do Siará Grande. Haja
vista o fato de dois candidatos de reconhecida experiência terem sido preteridos nas consultas que
disputavam com outros que não haviam desempenhado a dita função.

Pode-se afirmar, com base na análise das consultas do Conselho Ultramarino, que o co-
nhecimento do espaço territorial da capitania também não foi fator decisivo na seleção dos capitães-
-mores, sendo diminuta a quantidade de candidatos selecionados que mencionaram passagem pelo
12 MONTEIRO, Nuno Gonçalo F.; CUNHA, Mafalda Soares da. Op. Cit., p. 200.
13 OLIVEIRA, Leonardo Paiva de. Muitos soldados, poucos fidalgos: os candidatos ao governo do Rio Grande
(1700-1751). Revista Acadêmica Historien (Petrolina). Ano 5. Nº 10. Jan./Jun de 2014, p. 97-110. Disponível
em: <http://revistahistorien.com.br/arquivos/06leonardo.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2016.
14 MARQUES, Dimas Bezerra. Por meus méritos às minhas mercês: elites locais e a distribuição de cargos
(Comarca das Alagoas – século XVIII). In: CAETANO, Antonio Filipe Pereira (Org.). Alagoas Colonial: cons-
truindo economias, tecendo redes de poder e fundando administrações (séculos XVII-XVIII). Recife: Editora
Universitária da UFPE, 2012, p. 87-126.

1494
Siará Grande antes de assumirem o posto. Em consultas como as que definiram Bento Macedo de
Faria, Tomás Cabral de Olival, Pedro Lelou e Jorge de Barros Leite como indicados ao cargo, o quadro
de postulantes era formado por pelo menos um candidato que já havia servido à Sua Majestade na
capitania, sendo todos preteridos.

Quanto ao tempo de serviço prestado à Coroa pelos indigitados, concluiu-se, a partir da


análise documental que não existiu a lógica de nomear o candidato com maior tempo de contribuição
ao Império luso. Um destes casos foi a nomeação de Tomás Cabral de Olival que há onze anos estava
desempenhando variadas funções nos ofícios metropolitanos, mas que possuía concorrente com tem-
po bem superior ao seu. Concorreram com Tomás Cabral de Olival os postulantes: Valentim Tavares
Cabral, que servia à Sua Majestade há trinta e oito anos, ocupando postos de governação e guerra nas
capitanias do Rio Grande e Pernambuco, além da Bahia, e ainda esteve no Siará Grande por dois anos
servindo contra os gentios; Antônio Simões Delgado, que serviu na praça da Bahia e Pernambuco por
aproximadamente onze anos e encontrava-se então no posto de sargento-mor da ordenança de Sergi-
pe d’El Rei; Antônio César de Mendonça, que servia no Reino de Angola já há treze anos, e Bartolo-
meu Fragoso Cabral, que servia na Bahia e na Capitania do Espírito Santo há cerca de dezessete anos.

Sendo vistos os serviços prestados à Coroa pelos candidatos ao posto de capitão-mor do


Siará Grande, os Conselheiros do Conselho Ultramarino resolveram indicar Tomás Cabral de Olival,
mesmo “que suposto tenha menos anos de serviço contudo tendo-se mui boa notícia do seu procedi-
mento e que será mui capaz para se fiar dele, o governo desta praça”.15 Em segundo lugar, indicaram o
experiente Valentim Tavares Cabral.

Importante destacar ainda mais duas questões na indicação de Tomás Cabral de Olival.
A primeira se refere à circulação deste, assim como de outros selecionados que antes de chegarem
ao Siará Grande já haviam prestado serviços em variadas partes do Império. Tomás Cabral de Olival
estava no Estado da Índia quando foi nomeado para ser capitão-mor do Siará Grande e já havia de-
sempenhado funções na África, no Reino e na China. A segunda questão diz respeito a como esses
se (re)apresentavam nos momentos de solicitação de mercês. Do Estado da Índia, Tomás Cabral de
Olival requereu ajuda de custo para realizar a viagem à capitania, pois era “soldado pobre que não tem
com que se poder preparar”.16 Já em 1699 o discurso do requerente modificou-se, na medida em que
se apresentou como “homem nobre, e das principais famílias da sua terra [vila de Sabugal, comarca
de Castelo Branco]”, tendo entre os anos de 1688 e 1693 governado a Capitania do Siará Grande com
boa satisfação e desvelo, “fazendo grandes despesas de sua fazenda em socorrer aos paulistas quando
ali foram apertados das fomes e sedes que tinham experimentado, sustentando-os, em uma ocasião,

15 [1687, junho, 21, Lisboa] Consulta do Conselho Ultramarino ao rei [D. Pedro II], sobre nomeação de pes-
soas para o posto de capitão-mor do Ceará. Resolução régia a nomear Tomás Cabral de Olival. Manuscritos
Avulsos da capitania do Ceará. AHU-Ceará, cx. 1, doc. 38.
16 [1687, dezembro, 23, Lisboa] Consulta do Conselho Ultramarino ao rei [D. Pedro II], sobre o requerimento
do recém-nomeado capitão-mor do Ceará, Tomás Cabral de Olival, que pede ajuda de custo para viajar para a
referida capitania. Manuscritos Avulsos da Capitania do Ceará. AHU-Ceará, cx. 1, doc.

1495
oito dias”.17

A mudança na apresentação do Vassalo, certamente, denota como esses se utilizavam de


variados argumentos e classificações distintivas na hora de solicitar um posto, ajuda de custo e/ou
títulos. Os serviços prestados à Sua Majestade no Reino, Estado da Índia e Capitania do Siará Grande,
juntamente com a distinção de ser um homem nobre, favoreceriam o requerente em sua requisição do
Hábito da Ordem de Cristo com cinco mil réis de tença efetivas. Ressalta-se, ainda, que com o passar
dos anos os agentes da Coroa portuguesa acumulavam posses com a obtenção das mercês que lhes
garantiam privilégios.

Segundo Nuno Gonçalo F. Monteiro e Mafalda Soares da Cunha, a naturalidade interferia


diretamente no envolvimento do capitão-mor com os interesses locais. Ou seja, os brasílicos ou rei-
nóis que permaneciam muito tempo na América, exemplos de João de Barros Braga e Gabriel da Silva
Lago, respectivamente, acabavam incorporando-se nos interesses de grupos locais, enraizando tam-
bém seus interesses. De acordo com os autores, após a Restauração de 1640, a nomeação dos gover-
nadores reinóis tinha como objetivo evitar o enraizamento das relações e interesses locais, buscando
uma maior autonomia e comprometimento com os pressupostos da metrópole.18

O caso do coronel João de Barros Braga foi emblemático nesse aspecto. Por duas vezes
submeteu candidatura ao posto de capitão-mor do Siará Grande, não obtendo sucesso em nenhuma
das oportunidades. João de Barros Braga foi um dos principais agentes da Coroa portuguesa no com-
bate aos indígenas e na consolidação do processo de conquista espacial, “aproveitando” uma vasta
extensão territorial que obteve com suas onze concessões de terras na capitania em remuneração aos
serviços prestados.

João de Barros Braga, ao concorrer com João Batista Furtado, no início da década de 1720,
foi apontado por alguns Conselheiros como quem deveria assumir o posto de capitão-mor, pois o
mesmo servia há tempos na capitania, sendo “reputado por um dos melhores vassalos” e possuía mui-
tas experiências e conhecimentos dos sertões e de seus moradores “com muita autoridade entre eles”,
o que contribuiria para o desempenho do cargo. Segundo o Conselheiro Antônio Rodrigues da Costa,
João de Barros Braga deveria ser nomeado para o posto em virtude de “ter informações fidedignas do
valor e prudência (...) que nele há muito zelo do serviço de Deus e de Vossa Majestade e ter feito mui
particulares serviços nesta mesma capitania”.19

Entretanto, a decisão final tomada foi pela indicação de João Batista Furtado ao cargo,
preterindo João de Barros Braga que tinha maior número de serviços prestados, tempo de experiência
e conhecimento sobre o espaço a ser administrado. Conjectura-se que o enraizamento das relações so-
cioeconômicas, a posse de sesmarias e a rede de alianças que o coronel possuía no Siará Grande tenha
17 [anterior a 1699, dezembro, 16] Requerimento do ex-capitão-mor do Ceará, Tomás Cabral de Olival, ao rei
[D. Pedro II], a pedir o hábito da Ordem de Cristo, com 200 mil réis de tença. Manuscritos Avulsos da Capitania
do Ceará. AHU-Ceará, cx. 1, doc.
18 MONTEIRO, Nuno Gonçalo F.; CUNHA, Mafalda Soares da Cunha. Op. Cit., p. 224-225 e 241.
19 [1723, julho, 15, Lisboa] Consulta do Conselho Ultramarino ao rei [D. João V], sobre nomeação de pessoas
para o posto de capitão-mor do Ceará. Resolução régia a nomear João Batista Furtado. Manuscritos Avulsos da
capitania do Ceará. AHU-Ceará, cx. 2, doc. 4.

1496
sido o fator determinante para sua não nomeação ao posto. D. João V, a quem cabia à decisão final,
optou por um candidato que, naquele momento, estava isento perante os interesses locais em jogo na
capitania. Ademais, cabe destacar que João de Barros Braga foi nomeado, poucos anos depois dessa
decisão, capitão-mor do Rio Grande, concorrendo com outros cinco postulantes. Dentre estes, estava
João de Teive Barreto e Menezes, Fidalgo da Casa Real, que posteriormente viria a ser capitão-mor do
Siará Grande.

Depreende-se do exame dos processos de nomeação ao posto de capitão-mor do Siará


Grande que a lógica na seleção dos candidatos foi a escolha por sujeitos que tivessem experiência em
guerras. Esta poderia ter sido adquirida em qualquer parte do império, mas que, de alguma forma,
contribuísse no contexto de conquista que o indigitado iria se inserir, não importando se o seleciona-
do era nobre, se já tinha passagem pela capitania ou se detinha o maior tempo de serviço prestado. O
importante para o contexto de conquista por qual passava o Siará Grande era enquadrar-se no perfil
de homens de guerra e não, necessariamente, em homens de governança, respeitando-se apenas o
cuidado para não nomear aqueles que possuíssem interesses nos arranjos locais. Este perfil dos sele-
cionados, homens de guerra, reforçava e reafirmava o quadro geral dos sesmeiros que formou uma
elite conquistadora da Capitania do Siará Grande mediante a prestação de serviços no combate aos
indígenas e posse da terra. Alguns desses, como Francisco Gil Ribeiro e Pedro Lelou, foram compa-
nheiros de sesmeiros em incursões contra gentios. Já outros como Gabriel da Silva Lago, formaram
redes de alianças na capitania com sesmeiros da ribeira do rio Jaguaribe.

E, após a nomeação, como esses capitães-mores desempenharam suas atribuições, espe-


cialmente aquelas concernentes ao controle da distribuição e posse das terras? Como foi o processo
de doação? Seguiram as normativas? Quais embates foram travados a partir das disputas por terra e
tentativas de regulamentação/medição destas concessões?

A análise das concessões de sesmarias no Siará Grande nos permite concluir que existiu
uma forte concentração de doações de terras nas duas primeiras décadas do século XVIII, momento
este de deflagração de uma guerra geral e justa aos indígenas por parte da Coroa portuguesa e que até
a primeira metade do século XVIII a capitania encontrava-se esquadrinhada pelas concessões. Indis-
cutivelmente, o contexto de guerra geral permitiu a existência de práticas, tanto por parte de sesmeiros
como por capitães-mores, que estiveram à margem do que determinavam as normativas. Dentre essas
práticas, destacaram-se a concessão de mais de uma sesmaria por requerente, a não exigência de al-
guns deveres e o não cumprimento de demarcações e confirmações.

Gabriel da Silva Lago, por exemplo, teve uma administração extremamente contestada
frente ao processo de concessão de sesmarias, especialmente quando da realização dos trabalhos de
medição e demarcação de terras pelo desembargador Cristóvão Soares Reimão na primeira década do
século XVIII.

Decerto, pode-se afirmar que os capitães-mores aproveitaram a ocupação do posto para


garantir aos familiares ou integrantes de suas redes de alianças a posse do principal bem que represen-
tava poder nos sertões das Capitanias do Norte, a terra. Segundo Rodrigo Ricupero, não é de “se estra-

1497
nhar que os governadores e capitães-mores se utilizassem de tal poder em benefício próprio, de suas
famílias ou dos grupos próximos a eles, com grandes doações das melhores áreas de cada capitania”.20

Ressalta-se que foi extremamente difícil de rastrear concessões de terras que foram feitas
pelos capitães-mores para familiares, pois geralmente não estão expostos dados quanto ao parentes-
co dos requerentes. Mais complicado ainda foi identificar os interesses das redes de alianças que os
capitães-mores integravam. Tecer esses arranjos só foi possível com o cruzamento de uma vasta do-
cumentação.

Para o caso do Siará Grande, ao se examinarem as concessões realizadas por cada capitão-
-mor, foi possível evidenciar doações que, presumivelmente, beneficiavam direta ou indiretamente o
capitão-mor que havia concedido a sesmaria ou diretamente seu parente. Na administração de Gabriel
da Silva Lago, por exemplo, foram identificadas 10 concessões para sesmeiros que detinham o mesmo
sobrenome do capitão-mor. Infelizmente, não foi possível identificar o grau de parentesco dos reque-
rentes com o capitão-mor. Dona Mariana da Silva Lago, que recebeu duas concessões de três léguas de
comprimento por uma légua de largura, seria sua esposa? Lamentavelmente, essa questão ficará em
aberto por falta de dados.

O exame das concessões feitas por Gabriel da Silva Lago evidencia dois importantes pon-
tos: a localização das terras doadas e com quem o possível parente recebeu a mercê. As sesmarias
estavam, na maior parte dos casos, localizadas em áreas de importantes rios e riachos do Siará Gran-
de, concentrando-se especialmente na ribeira do rio Jaguaribe. Destacam-se, também, alguns dos
companheiros de requisição das datas. Sesmeiros como João de Barros Braga, Leonardo de Sá e Filipe
Paes Barreto que tiveram notória participação no processo de conquista da capitania, combatendo os
gentios inimigos com armas ou conversão religiosa.

Assim como Gabriel da Silva Lago, outros capitães-mores efetivaram doações para sujei-
tos que, provavelmente, fossem seus familiares. Em 1704, Jorge de Barros Leite doou uma sesmaria na
ribeira do rio Jaguaribe para o capitão Antonio de Barros Leite. Outro a agraciar um possível parente
foi João da Mota, que em 1705 concedeu a Dona Úrsula da Mota uma sesmaria na ribeira do rio Jagua-
ribe. Já em 1712, foi a vez de Francisco Duarte de Vasconcelos dadivar Antonio Duarte de Vasconce-
los. O capitão-mor Plácido de Azevedo Falcão deferiu a solicitação de Dona Inocência de Brito Falcão
em 1714. Por fim, Manuel da Fonseca Jaime doou em 1717 uma sesmaria na ribeira do rio Jaguaribe
para Félix da Fonseca Jaime.

Os casos identificados acima são poucos, mas são significativos na medida em que de-
monstram como os capitães-mores usufruíam dos cargos para garantir vantagens para si e/ou para
familiares por meio da doação de terras em excelentes áreas da capitania. Certamente, a concessão de
sesmarias também foi a principal forma desses se inserirem ou constituírem redes de alianças com os
conquistadores do Siará Grande.

Em 15 de junho de 1703, o rei D. Pedro II emitiu provisão ao Capitão-General Gover-


nador da Capitania Geral de Pernambuco e demais autoridades das capitanias do Siará Grande e Rio
20 RICUPERO, Rodrigo. Op. Cit., p. 190.

1498
Grande informando ter encarregado o desembargador Cristóvão Soares Reimão de diligências no Siará
Grande, mandando que se:

(...) dêem-lhe toda ajuda e favor que de minha parte lhe pedir, e o deixem obrar livre-
mente e só bastará que lhes mostre esta minha Provisão, que fará registrar nos Livros
da Câmara e da Fazenda (...) Ordeno aos ditos Capitães-Mores (...) [passar] ordens
necessárias aos Oficiais de Guerra para que lhes ponha guarda de soldados com ca-
bos de satisfação aos Oficiais das Câmaras onde passar e assistir. Ordeno também lhe
dêem por conta das rendas do Conselho e a seus Oficiais, criando aposentadorias e
casas e cosas e pelo seu dinheiro os mantimentos que lhes forem necessários.21

A provisão acima referida deu ao magistrado plenos poderes e liberdade em suas ações,
além da possibilidade de requerer quaisquer meios necessários à realização dos trabalhos de demarca-
ção e medição das terras.

Ao chegar ao Siará Grande, o desembargador Soares Reimão solicitou aos oficiais da Câ-
mara de Aquiraz aposentadoria para ele e seus oficiais. Entre os oficiais encarregados pelo magistrado,
estavam o escrivão das causas de doações de sesmarias, Alberto Pimentel22 e o meirinho responsável
por realizar o processo de medição e demarcação das terras, Inácio Ferreira de Albuquerque.23 Entre-
tanto, os camaristas alegaram não terem casas capazes e nem dinheiro para sua construção.

Em resposta à solicitação do magistrado e à provisão de Sua Majestade, o coronel João de


Barros Braga, a sua custa, “mandou fazer e as ornou de moveis necessários e as mesmas aplicadas para
uso de qualquer ministro que aparecer” 24. Ressalta-se que João de Barros Braga havia sido camarista e
era um dos principais sesmeiros e agentes da Coroa portuguesa no combate aos indígenas na capitania,
conforme evidenciado neste texto.

Certamente, a aliança entre o coronel e o desembargador proporcionou vantagens a am-


bos. Aventa-se a hipótese de que para João de Barros Braga, estar ao lado do magistrado, poderia
significar que não sofreria nenhum cerceamento em suas terras, já que o mesmo detinha onze sesma-
rias, situação não permitida pela legislação sesmarial. Para o Ouvidor Geral, a ligação com o coronel
representaria a possibilidade de ter ao seu lado um dos principais sesmeiros da capitania que poderia
contribuir com suas fazendas e homens para o processo de medição e demarcação das terras, além de
sua proteção e a de seus oficiais.

O trabalho a ser desempenhado por Cristóvão Soares Reimão e seus oficiais era o de me-
dir e demarcar as terras doadas na Capitania do Siará Grande, especialmente as doadas nas ribeiras

21 Provisão ao Governador de Pernambuco e mais autoridades sobre a medição das terras do Ceará pelo De-
sembargador Cristóvão Soares Reimão. In: Coleção de documentos doados ao APEC pelo Professor Limério
Moreira da Rocha, p. 170. Grifo meu.
22 Segundo consta na Plataforma SILB, Alberto Pimentel foi vereador da Câmara de Natal no ano de 1696 e
recebeu quatro concessões de sesmarias, sendo uma na Paraíba, uma no Rio Grande e duas no Siará Grande. As
terras foram recebidas entre os anos de 1707 e 1732. Ver: <http://www.silb.cchla.ufrn.br>.
23 Infelizmente não foi possível, devido não constar nas documentações, identificar os outros oficiais que par-
ticiparam destas diligências. Estes aparecem apenas como “os oficiais”, sem nomear o piloto, seu(s) ajudante(s)
e/ou escravos relacionados por Soares Reimão.
24 Patente por que foi provido João de Barros Braga no Posto de Capitão-Mor da Capitania do Rio Grande do
Norte. In: Coleção de documentos doados ao APEC pelo Professor Limério Moreira da Rocha, p. 250.

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do Jaguaribe. Entretanto, constam nas documentações – correspondências oficiais trocadas entre o
desembargador e a Coroa portuguesa, representada pelos Conselheiros do Conselho Ultramarino e os
autos de medição e demarcação das terras – que foram muitas as tentativas por parte de sesmeiros e da
governança local de dificultar e até mesmo impedir a realização das atividades do juiz das sesmarias
e seus oficiais.

Durante os anos que esteve a cargo do poder metropolitano no Siará Grande Cristóvão
Soares Reimão esteve envolvido em confrontos e alianças. De um lado, nos embates estavam Soares
Reimão e os oficiais da Câmara de São José de Ribamar – muitos destes eram sesmeiros.25 Do outro,
capitães-mores e diversos sesmeiros que se sentiam prejudicados com os processos de medição e de-
marcação das sesmarias que exigiam a apresentação da Data de concessão e a posterior confirmação da
medição judicial, além do pagamento dos custos do processo.

Um dos processos de medição e demarcação das terras que resultou em contestações e


disputas entre sesmeiros, Cristóvão Soares Reimão e o capitão-mor Gabriel da Silva Lago foi o caso
que envolveu as terras de Gregório de Gracisman de Abreu.

Gregório de Gracisman de Abreu, filho do comissário geral Teodósio de Grascisman, ses-


meiro na ribeira do Jaguaribe, proveniente da Capitania do Rio Grande, e integrante da entrada do
terço de Manoel de Abreu Soares, sentia-se prejudicado com a sentença proferida pelo desembarga-
dor nos autos de medição. A reclamação se deu pela retirada de uma légua de terra que o requerente
possuía. Requeria, assim, uma légua de terra que excedia e solicitava que fosse “donde pela medição
lhes tocam”. Isto é, requeriam às terras que já ocupavam de forma irregular, segundo constatou o de-
sembargador Soares Reimão.

Segundo a argumentação do magistrado, no despacho dos autos de medição, a doação


feita excedia o limite de três léguas de comprimento por uma légua de largura. Dessa forma, a légua
excedente deveria ser suprimida da concessão. Posteriormente, Gabriel da Silva Lago, capitão-mor e
desafeto de Soares Reimão, deferiu o pedido do solicitante e ressaltou que este tinha a obrigação de
povoá-las no termo da Lei com “gados próprios, não prejudicando a terceiro”.26

O processo se inicia em 16 de dezembro de 1707 com uma requisição do capitão coman-


dante Francisco da Silva Costa, morador no distrito do Siará Grande. Este solicitou, “para o bem da
justiça”, que se passasse uma certidão acerca das terras demarcadas pelo Doutor desembargador Cris-
tovão Soares Reimão, “ministro deputado por Sua Majestade para averiguação e repartição das terras
de sesmaria desta capitania do Siará grande [e] os da demarcação das terras de Jaguaribe”.27

Essas terras principiavam nas testadas das compradas pelo capitão Manoel Rodrigues Ai-
rosa. Evidenciadas as testadas da dita pretensão, mandou o juiz das sesmarias que o piloto, “já tomado

25 Ressalta-se que na organização jurídico-administrativa do Império português as câmaras estavam subordi-


nadas à ouvidoria. Talvez essa dependência, aliada aos constantes atritos entre os camaristas e o poder “opres-
sivo” dos capitães-mores, fizesse com que os oficiais se aproximassem do desembargador almejando proteção
contra o que chamavam de intromissão jurisdicional do Forte no que cabia a estes.
26 Petição e certidão de tombo da medição da sétima dacta das terras do rio Jaguaribe. Apud: Revista do Insti-
tuto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará, 1899, p.03-17.
27 Idem, p. 3-4.

1500
o juramento”, colocasse sua agulha sobre o dito marco, margens do rio Jaguaribe, e “começasse a medir
o comprimento pelo rumo de Oeste por respeito da volta que faz o rio e medidas em uma corda vinte
braças e no fim o dar um nó para por ela se continuar, o que se satisfaria três vezes no dia”. A medição
continuou para o Oeste na direção de uns cobertos de juremas e angicos, carnaúbas e “junto a um
cipoal” e neste cipoal se fizeram as mil e duzentas braças, correspondente a meia légua, e “ai se meteu
uma estaca e se virou o rumo para o Norte a buscar o rio por dentro do cipoal”.28

Este pequeno trecho das referências da demarcação das terras de Gregório de Grascisman
denota o quão era rústico e impreciso o processo. Medidas e marcações como palmos, dedos, cruz em
árvore, árvores, riachos, testadas de outras concessões e pedras enterradas foram os marcos utilizados
pelos representantes da Coroa portuguesa nessas diligências de tombamento das sesmarias.

Assinaram o termo de encerramento da medição em 24 de dezembro de 1707, Cristóvão


Soares Reimão, Alberto Pimentel, Gregório e Teodósio de Grascisman, Inácio Ferreira de Albuquer-
que, Manoel Rodrigues e Florência Dorneles. Estes dois últimos, provavelmente, eram testemunhas e
sesmeiros de terras que faziam testadas com as demarcadas.

Os autos foram escritos na Igreja do Jaguaribe em 08 de janeiro de 1708. O desembargador


determinou que o éreo fosse obrigado a mandar “na primeira frota confirmar pelo Conselho Ultrama-
rino a data retro próxima”. Após esta determinação, em 15 de janeiro de 1708, o escrivão das causas de
doações de sesmarias, Alberto Pimentel, notificou Gregório de Grascisman da sentença proferida por
Cristóvão Soares Reimão. O processo foi encerrado na cidade de Natal em 16 de maio de 1708 com o
despacho do Provedor da Fazenda Real, Doutor Antonio Carneiro de Albuquerque Gondim, e regis-
trado na Fazenda Real do Almoxarifado da Alfândega e Vedoria por Antonio José de Sousa.

Cristóvão Soares Reimão relatou em 1709 ao rei, D. João V, as dificuldades e impedimen-


tos que estava enfrentando na Capitania do Siará Grande por conta da atuação de vários sujeitos que
procuravam impedir e intimidar o ministro e seus oficiais no processo de medição e demarcação das
terras, causando um “motim”. Segundo o desembargador, existia ainda o agravo da justiça da capitania
se encontrar distante cerca de 50 léguas da ribeira do Jaguaribe. O magistrado esclareceu que:

(...) não prendi ao menos alguns cabeças, como os ia nomeados, Domingos Ribeiro,
Gregório de Figueiredo, Gonçalo Munis, assim por haver sido repreendido de uma

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