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dt06
Abstract: This paper presents a theoretical discussion about the constitution of a field
of studies for the essay film. This research identifies a becoming-essay in both practice
and theory of cinema since the 1940s. I also propose a mapping of recent and relevant
studies which support the effective constitution of the film essay as an autonomous
form or the "fourth domain of cinema"(Teixeira, 2015). Finally, I present a notion of
film essay that dialogues with the contributions of authors such as Català (2005 and
2014) and Corrigan (2015).
Keywords: film essay; non-fiction film; film theory.
Introdução
O ensaio, desde as suas origens na literatura, costuma ser categorizado
como a mais livre, a mais fugidia das formas de reflexão. Não propõe respostas
acabadas, mas a inquietação, a abertura, a dúvida. Em função de característi-
cas imanentes que parecem inviabilizar a sua categorização como um gênero
narrativo em sentido estrito, o ensaio costuma ser definido a partir de negativas
ou de um entendimento frouxo de que se trata de uma forma expressiva em
que tudo vale ou, principalmente, que carece de rigor.
Embora seja possível identificar um devir-ensaio no cinema desde as suas
primeiras décadas, e nas Teorias do Cinema pelo menos a partir da década de
1940, com Hans Richter e Alexandre Astruc, é sobretudo nos últimos vinte
anos que ganha força a produção de ensaios fílmicos, no seio do que se pode
caracterizar como uma virada subjetiva do documentário. É a partir desse con-
texto que passam a ser classificadas como ensaísticas obras como os filmes
mais recentes de João Moreira Salles e, retrospectivamente, parte significativa
da filmografia de cineastas como Agnès Varda, Chris Marker, Jean-Luc Godard
e Harun Farocki. Embora, também, o filme-ensaio não seja necessariamente
um braço do documentário, a sua vinculação ao cinema de não-ficção acabou
tornando esse tipo de produção objeto de interesse prioritário de pesquisadores
do cinema não-ficcional no Brasil.
No campo dos estudos do cinema, especialmente do documentário, o termo
“ensaio fílmico” vem sendo utilizado como chave de leitura para um conjunto
de obras marcadas por características como a autorreflexão, a metalinguagem,
o uso crítico do dispositivo cinematográfico e um certo teor autobiográfico.
Não raro, a expressão também designa filmes de difícil classificação, tornando
o ensaio uma grande categoria que abarcaria diferentes formas de produção
não-ficcional mais ou menos afastadas do cânone do documentário e dos seus
principais modos de representação institucionalizados, como o expositivo, o
observacional e o participativo, bem como do cinema experimental.
Se uma genealogia do filme-ensaio localizará no documentário as suas ori-
gens, pretendo com esse texto avançar numa discussão sobre os ensaios fílmi-
cos que não se restrinja ao campo do documentário e que pense possibilidades
e sensibilidades ensaísticas no cinema em diferentes momentos do século XX
e também neste início do século XXI. Assim, considero essencial a revisão de
um conjunto de estudos produzidos em diferentes momentos e que, de algum
modo, contribuem para a aproximação ao ensaio fílmico que é feita aqui, em
um movimento que respeita a natureza incerta do fenômeno e a experiência de
desorientação e deriva que a sua fruição costuma provocar.
Ensaio fílmico, eterno devir: projeto de filme inacabado e de um cinema futuro 93
Esta revisão também é necessária pois este trabalho se insere num campo
ainda em construção nos estudos de cinema no Brasil, apoiado numa relação
que pretendo estabelecer entre três pilares: 1) a afirmação do cinema como
possibilidade de pensar com e por imagens e o ensaio como sua materialização;
2) as experiências de produção de obras audiovisuais que não apenas esgarçam
fronteiras de gênero, mas também obrigam a repensar a linguagem audiovisual,
os dispositivos e os modos de exibição e 3) a pertinência de pensar em uma
sensibilidade ou uma inflexão ensaísticas que se fazem presentes em obras
diversas, inclusive algumas situadas no cânone do documentário.
forma que o escritor escreve com sua estilográfica” – trata-se, assim, de uma
“autêntica escritura”. 4 (Astruc, 2010: 224, tradução nossa).
Astruc aproveita também para criticar a postura e o discurso das vanguar-
das e para rejeitar qualquer tentativa de defesa de um cinema “puro”, como
fizeram algumas vanguardas históricas ao propor que poderia haver um terreno
exclusivo do cinema: “[...] ao contrário, pretendemos estendê-lo e convertê-
lo na linguagem mais vasta e mais transparente possível” (Astruc, 2010: 224,
tradução nossa). Acusa o Surrealismo de tentar adaptar ao cinema as investiga-
ções da pintura e da poesia e afirma que “entre o cinema puro dos anos vinte e
o teatro filmado, segue existindo espaço para um cinema livre”. (Astruc, 2010:
223, tradução nossa).
As proposições de Astruc me parecem pertinentes por três motivos funda-
mentais. Em primeiro lugar, por propor lá em 1948 que existem uns cinemas, e
não apenas um cinema. Em segundo lugar, por antecipar, ainda que de maneira
não intencional, a ideia de cinema expandido e do borramento das fronteiras
entre o cinema e outras artes 5 , e, em terceiro lugar, por afirmar uma qualidade
dialética para o cinema e situá-lo como uma espécie de mecanismo relacional
entre diversos saberes.
Também entre os franceses ou autores que estabeleceram sua produção in-
telectual na França, André Bazin e Noel Burch dedicaram alguma atenção à
relação entre ensaio e cinema. No caso de Bazin, analisando o filme Carta
da Sibéria (1957), de Chris Marker, em texto publicado na revista France Ob-
servateur, em 1958, em que descreve a obra como “um ensaio documentado
por meio do filme” (Bazin apud Rascaroli, 2008, tradução nossa). Já Burch
fala de uma categoria de filmes, chamados de “filme-meditação”, que expõem
teses e antíteses em sua própria tessitura. Para o autor, Jean-Luc Godard seria
um ensaísta em um sentido totalmente novo, que só justificaria plenamente no
cinema: “Um cinema de meditação pura, onde o tema é a base de uma cons-
trução intelectual suscetível de transformar-se na forma, na própria realização,
sem que esta seja, por isso, edulcorada ou alterada”. (Burch, 2008: 192-193).
O discurso de Burch converge com o dos outros autores trazidos aqui até
agora em um aspecto principal: a afirmação de que não apenas o cinema é
um tipo de escritura passível de expor um pensamento complexo, mas, sobre-
tudo, que é uma expressão privilegiada para este propósito. O interesse da
crítica francesa deste período pelo tema é plenamente justificável, uma vez
que boa parte dos primeiros filmes aos quais se associou a noção de ensaio
4. Procedimento para o qual Agnès Varda cunharia, alguns anos depois, a expressão “ci-
nescrita” (“Cinécriture”).
5. Para além das relações mais notadas e que sempre existiram entre o cinema e o teatro,
ou entre o cinema e a literatura.
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foi produzida por cineastas como por Marker, Varda, Godard e Alain Resnais,
na França do pós-guerra. Alguns autores, como Phillip Lopate (1996), Paul
Arthur (2003) e Michael Renov (2005), com razão incluem ainda Jean Rouch
entre os cineastas que produziram filmes com inflexão ensaística a partir da dé-
cada de 1950, especialmente pela forma altamente reflexiva como Rouch usou
o comentário (de pós-produção) em filmes como Os Mestres Loucos (1955) e
Crônica de um Verão (Jean Rouch e Edgar Morin, 1960).
É possível apontar, neste conjunto de escritos mencionados, uma espécie
de “devir-ensaio”, o vislumbramento de uma potência ensaística para o cinema
que, embora já se manifestasse nas obras de alguns cineastas, vai ganhar mais
força a partir dos anos de 1990. É neste momento que o documentário, es-
pecialmente, experimenta o que Català (2012) classifica como uma “virada
subjetiva” que põe em evidência os filmes ensaísticos e autobiográficos (cujas
características se misturam, em muitos casos). Na próxima seção, são apre-
sentadas algumas contribuições mais recentes, inclusive do próprio Català, no
sentido de tentar compreender as manifestações do ensaio no cinema.
Em busca de um conceito
Marcado pelos princípios da liberdade e da experimentação, o ensaio – de
forma ampla, não apenas no cinema – se apresenta como um lugar sem mapa,
uma forma que passeia pela arte e pela ciência e, muitas vezes rejeitada no
campo científico, costuma ser considerada imprecisa e excessivamente subje-
tiva. Numa releitura do clássico texto de Adorno sobre o ensaio, Cássio Hissa
e Adriana Melo o afirmam como:
Uma pausa apenas, em vez da pretensão de um acabamento definitivo. Um
silêncio eloquente. O eterno devir da linguagem, dos conceitos de um mundo
permanentemente em construção. Espaço de algo a ser continuamente expe-
rimentado e, portanto, transmutado, transcriado. Lugar sem mapa cujo per-
curso, desenhado e redesenhado por um incessante devir, redefine trajetórias
de partida e de chegada, aproximando fim e início, desordenando e desalo-
jando significados culturalmente construídos e estabelecidos. (Hissa, Mello,
2011: 251).
As formulações a respeito do ensaísmo no cinema são, naturalmente, bas-
tante devedoras das teorizações acerca do ensaio literário, sobretudo as contri-
buições de Adorno e também de Georg Lukács. De Adorno, a afirmação da
fragmentação e a renúncia às certezas, bem como o descompromisso com uma
expressão excessivamente cartesiana do pensamento:
O ensaio não apenas negligencia a certeza indubitável, como também renun-
cia ao ideal dessa certeza. Torna-se verdadeiro pela marcha de seu pensa-
mento, que o leva para além de si mesmo, e não pela obsessão em buscar seus
fundamentos como se fossem tesouros enterrados. (Adorno, 2008: 30).
De Lukács (1974), destacam-se as observações sobre sobre o caráter errá-
tico e anti-dogmático do ensaio, definido pelo autor um tipo de julgamento em
104 Gabriela Machado Ramos de Almeida
Considerações finais
Buscar um lugar histórico mais refinado para os filmes-ensaio significa,
para Corrigan (2015), situar-se em lugares escorregadios, entre a tentativa de
categorização e o cuidado com a natureza antigenérica própria desta forma de
expressão; entre o rigor em busca de uma definição e o caráter de “método não
metódico” daquilo a que o autor se refere como um “gênero de experiência”.
Escrever sobre o ensaísmo e os filmes-ensaio exigiria mais autoconsciência
do que de costume na escrita acadêmica e histórica e o caminho trilhado por
Corrigan passa por assumir que o filme-ensaio opera com sobreposições múl-
tiplas, diversas e inevitáveis, ou seja, que existem especificidades textuais dos
filmes que atestam seu caráter singular, mas que ao mesmo tempo é possível
pensar em um conjunto de modos específicos situados em uma história maior
do ensaio.
Se um mapeamento de traços de obras audiovisuais tidas como ensaísticas
vai permitir identificar como recorrências o uso de material de arquivo, o dado
autorreflexivo, a reflexão sobre o cinema imbricada ao mundo histórico e a sub-
jetividade, é importante ter claro também que esses traços surgem de formas
muito distintas nos filmes e que eles não são suficientes para que uma obra seja
um ensaio. Não se trata, então, da repetição de convenções estilístico-formais
e sim do modo como elas são convocadas na expressão de uma voz pessoal
reconhecível que se coloca em relação de abertura com o mundo, que reflete
as grandes questões éticas, estéticas e políticas.
Referências bibliográficas
Adorno, T. (2008). O Ensaio como Forma. São Paulo: Editora 34.
Arthur, P. (2003). Essay questions: from Alain Resnais to Michael Moore.
Film Comment, 1(39): 58-62. Nova Iorque. Disponível em: http://artsites
.ucsc.edu/faculty/gustafson/film%20223/ArthurEssayQuestions.pdf
Astruc, A (2010). Nacimiento de una nueva vanguardia: la ‘Caméra-stylo’.
In J. Ramió & H. Thevenet (org.), Textos y Manifiestos del Cine: Esté-
tica. Escuelas. Movimientos. Disciplinas. Innovaciones (pp. 220-224).
Madrid: Ediciones Cátedra.
Blüminger, C & Wulff, C. (org.). (1992). Schreiben Bilder Sprechen: Texte
zum essayistischen film. Vienna: Sonderzahl.
Burch, N. (2008). Práxis do Cinema. São Paulo: Perspectiva.
Català, J. (2005). Film-ensayo y vanguardia. In C. Torreiro & J. Cerdán
(orgs.), Documental y vanguardia (pp. 109-158). Madrid: Ediciones
Catédra.
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Filmografia
Allemagne 90 neuf zero (1990), de Jean-Luc Godard.
As estátuas também morrem (1953), de Alain Resnais e Chris Marker.
As praias de Agnès (2008), de Agnès Varda.
Cabra Marcado para Morrer (1984), de Eduardo Coutinho.
Carta da Sibéria (1975), de Chris Marker.
Crônica de um verão (1961), de Jean Rouch e Edgar Morin.
História(s) do cinema (1988-1998), de Jean-Luc Godard.
Imagens do mundo e inscrições da guerra (1989), de Harun Farocki.
Mediterranée (1963,), de Jean-Daniel Pollet e Volker Schlöndorff.
No Intenso Agora (2017), de João Moreira Salles.
Noite e Neblina (1955), de Alain Resnais.
O fundo do ar é vermelho (1977), de Chris Marker.
O Mistério de Picasso (1955), de Henri-Georges Clouzot.
Os catadores e eu (2000), de Agnès Varda.
Os mestres loucos (1955), de Jean Rouch.
Parallel I-IV (2012-2014), de Harun Farocki.
Santiago (2007), de João Moreira Salles.
Serious Games (2009-2010), de Harun Farocki.
Toda a memória do mundo (1956), de Alain Resnais.
Uma viagem com Martin Scorsese através do cinema americano (1995), de
Martin Scorsese.
Vento do Leste (1970), de Jean-Luc Godard.
Viagem à Itália (1954), de Roberto Rossellini.
Videogramas de uma revolução (1992), de Harun Farocki.
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